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Artigo escrito para o trabalho https://acervo.publico.

pt/multimedia/a-experiencia-da-
praxe , apresentado pelo Jornal Público (edição de 4 de Maio de 2014).

Este testemunho foi tido em conta pelo estudo/relatório “A PRAXE COMO


FENÓMENO SOCIAL” de João Teixeira Lopes (IS-UP, Universidade do Porto) e de
João Sebastião (CIES-IUL, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa), apresentado na
Universidade do Minho a 6 de Março de 2017.

NOTA: Quero, antes de tudo o resto, referir que não sou contra a praxe enquanto livre-
exercício/actividade de participação voluntária.

A discussão mantém-se: praxe, sim ou não? Seria preferível: praxe, por que não?

O fenómeno da “Praxe” surge como se de uma inevitabilidade se tratasse. Chega a


altura da matrícula na faculdade e “pimba”, lá estão eles, os “guardiões da tradição”,
recrutando discípulos. Legítimo? (Quase) Tudo é legítimo, comprometem-nos à partida,
só porque sim ou porque “tem de ser”.

“Só vai quem quer.”; “Ninguém é obrigado.”; “A praxe integra.”; Quantas vezes
escutamos estas frases, estes lugares comuns? São verdades, sim, mas apenas meias-
verdades, como tantas outras. Vai quem quer e também quem não quer, pensando que
quer porque os outros querem. Vai quem quer e, por querer, acha que os outros também
têm que querer. Vai quem quer porque “tem de ser”. Vai quem não quer porque “tem de
ser”.

Ninguém é obrigado. Certo. Reformulando: ninguém deveria sentir-se obrigado. Se a


praxe integra, que razão haveria para alguém não querer sentir-se integrado? Ora,
porque a praxe depende de pessoas e de ambientes, depende de atitudes e de maturidade
(ou falta dela). A “Praxe”, a tradição, é muitas vezes (demasiadas) confundida com
humilhações baratas, retaliações e selvajarias. A “Praxe” tem servido de pretexto para
muita coisa que, francamente, “Praxe” não é, mais parecendo ajustes de contas ou o
libertar de frustrações várias.

É por essas e por outras que, “voilá”, a praxe também exclui. A praxe, essa irmã
afastada da “Praxe”, exclui quem nela não quer participar, não só da praxe mas de
(quase) toda a vida social em torno da academia. A praxe, a irmã afastada da“Praxe”, é
segregacionista, totalitária e exclusivista. Não há alternativa à praxe. Quer dizer, há a
“Praxe”, mas, por onde andará? E a alternativa à alternativa? Há estudantes de primeira
e estudantes de segunda? Não poderão existir outras formas de integração, sabendo que
há estudantes que não lidam bem com determinados actos e exposições? O ser humano
é único em si mesmo e o à vontade de uns é a vergonha de outros: é legítimo!

É legítimo querer manter uma tradição como também é legítimo não querer nela
participar sem temer retaliações: chama-se Liberdade e, acreditai, a Universidade muito
fez pela causa da Liberdade. Ultimamente, nem tanto.

Ingressei na faculdade. Primeiro, em Viana do Castelo. Tive, em Viana do Castelo, o


meu 1º contacto com a “Praxe”. Voluntariamente. E era, de facto, penso eu, “Praxe”:
integrava, mostrava, expunha, protegia…esclarecia! Nunca me senti forçado a nada,
nunca nada nem ninguém me fez sentir constrangido com o que quer que fosse. Nunca
conheci outra “Praxe”.

Depois, veio a mudança para Vila Real. UTAD.

1º dia de aulas. Apanhei o 1º semestre a meio, fruto da ida para Trás os Montes. Após
verificar o horário e assegurar-me de que estava no corredor certo, juntei-me aos
restantes alunos do curso que aguardavam, junto à porta da sala de aula, a chegada do
Professor.

Um infeliz qualquer, de quem já não recordo o nome (mas que, com o tempo, vim a
perceber que a sua principal função era “espiar” os “caloiros” – já agora, antigamente,
“caloiro” era o nome dado aos novos estudantes dos Liceus – o que não deixava de ser
curioso, sendo ele mesmo um “novato”, este sim, o nome original dado aos que
entravam na Universidade), veio perguntar-me se era “caloiro de P.I.”. P.I.,
Português/Inglês. “Sim, sou.” – Respondi-lhe com relativo à vontade.

Ele olhou-me, virou-me as costas e dirigiu-se a uma sala anexa ao corredor. No espaço
de não mais do que dois ou três minutos vi-me rodeado por cinco indivíduos,
“doutores”, disseram-me eles, sem que nada lhes tivesse eu perguntado. O “bufo”
escondia-se atrás deles, mas era possível ver-lhe a fronha, sorridente, um sorrir de troça
e sedento por desenvolvimentos.

Perguntaram-me de onde era. “Guimarães.”- respondi. “Ah, do sítio dos doentinhos (a


polémica dos atestados às provas estava fresca)! – gozaram.´
“Oiça lá, ó doentinho, porque é que ainda não apareceu à praxe?” – perguntou uma das
criaturas (um doutor, claro está). Lá tentei explicar-lhe que tinha estado em Viana do
Castelo e que só naquela altura é que fôra estudar (ou tentar, pelo menos) para a UTAD.
Ele nem me ouviu! Começou aos berros, exigindo-me que não o olhasse nos olhos,
porque eu era “uma besta”. Ó Suprema ironia! Nem tudo foi mau, pelo menos tratou-me
por “você”.

Outro dos senhores doutores retivera a informação: “Viana do Castelo? Onde? Na


E.S.E. (Escola Superior de Educação) ?”, inquiriu. “Sim, na E.S.E.” – afirmei. Uns
riem, outros sorriem. Um deles leva dois dedos à boca, simulando um forçar de vómito.
“E foi praxado, caloiro?”, continua. “Sim.” – respondo.

– “Então por que razão não está encostado à parede? Como é que não sabia disso? E
baixe a cabeça (sim, porque não era permitido estar “ao mesmo nível” dos excelsos
doutores)!

Começa o julgamento sumário. Eu, segundo suas excelências magnânimas, não havia
sido praxado em Viana do Castelo. Dom da ubiquidade? O álcool torna muita coisa
possível. Bem me tentei explicar, mas de que adiantava? Eles não me queriam ouvir:
queriam, isso sim, “sangue”. A agressividade aumentou e eu acabei também por me
irritar. Começaram a fazer as perguntas mais absurdas, todos ao mesmo tempo, seguidas
de ordens em tom ameaçador: “Faça o pino de orelhas!”, recordo-me especialmente
desta. Um domador do circo, o senhor doutor. De repente, o “bufo” mete-se na conversa
e, do altoda sua significância, dirige-me o seguinte conselho: “É bom que obedeças, tens
de te integrar!”

Nunca mais esqueço a cara dele. É daqueles momentos que marcam. Ele também não
deve ter esquecido a minha resposta durante uns tempos: “Vai para o caralho!”. Uma
daquelas cinco doutas sapiências quase que encostou a sua cabeça à minha. Ordenou-me
(afinal de contas, era uma autoridade) que me pusesse “de quatro, imediatamente!”. É
claro que não me pus de quatro e muito menos de cinco, mantive-me impávido e sereno
(por fora, por dentro fervilhava). As ameaças aumentaram de tom (“Mal saia da aula vai
rebolar na merda! “; Está completamente fodido!”; “A praxe de Trás os Montes vai
ficar-lhe na memória.”, etc etc etc), já toda a gente em redor olhava para aquela cena.
“Então? Não responde? Não reage? Está a gozar connosco? Está a brincar connosco,
caloiro? Já que não nos responde vamos chamar cá alguém que o vai fazer
responder…você está tão fodido!” Cada vez mais irritados pela minha aparente
impavidez, pediram, ou melhor, ordenaram ao sempre leal bufo para que fosse chamar o
“Veterano” que se encontrava no bar do complexo (pedagógico). O sabujo, que queria
parecer bem aos olhos dos mentores, arrepiou logo caminho.

Não demorou muito até voltar. Com ele, veio um indivíduo. Aquela figura magnífica
era o Veterano, claro. “Quem é o caloiro armado em fino?” – perguntou o cintilante ser.
O “bufo” apontou na minha direcção. Pelo ar do Infalível e Poderoso “Ancião”, percebi
que naqueles dois minutos, se tanto, que demorara no ir e no vir, o “bufo” lhe teria feito
um resumo muito breve do meu “curriculum vitae” enquanto novo estudante da UTAD.

O “veterano” olhou-me de cima a baixo. “Caloiro, sabe o que sou?”- perguntou-me ele.
“Sou um veterano.” – respondeu. Não estava mal, não senhor, este perguntava mas pelo
menos também respondia às próprias perguntas. “Sabe o que fazem os veteranos?” –
perguntou. Aquela gente estava ainda na idade dos porquês, muitas questões colocavam.
Nem me dei ao trabalho de responder, calculei que ele o fosse fazer. E assim foi:
“COMEM CRIANCINHAS AO PEQUENO ALMOÇO!” – berrou-me ele, bem à
minha frente. Se a ideia era intimidar-me, devo referir que não conseguiu. Aliás, até lhe
respondi com um seco “Ok.” E virei-lhe costas.

Foi precisamente aí que a coisa se descontrolou. Eu acabara de desrespeitar uma


autoridade quase celestial, fazendo-a falar para as minhas costas. “O QUÊ? VOCÊ
SABE O QUE ACABOU DE FAZER?”- gritou sua velhota excelência. “VAI JÁ À
MINHA FRENTE PARA A LAMA”, continuou, agarrando-me pelo ombro. Eu afastei-
o, não era digno de ter sobre mim poisada tão divina mão. Quando o fiz, os cinco da
vida airada manifestaram-se, precipitando-se ao meu encontro. Empurraram-me,
insultaram-me, ameaçaram-me.

Disseram-me, aos berros, que nunca iria praxar, nunca iria poder usar traje (tão
inteligentes e informados os meninos, acreditam que o traje está associado única e
exclusivamente à praxe. Estudassem e investigassem e descobririam que é, segundo o
Artigo 1.º de 12 de Novembro de 1924, “permitido aos estudantes de ambos os sexos
das Universidades, liceus e escolas superiores o uso da capa e batina, segundo o modelo
tradicional, como traje de uso escolar.”. Ora que chatice, tanta gente a acreditar que só
poderá “trajar se for praxada” e “só quando deixar de ser caloiro”. É o caraças, não é?
Ainda para mais eu vinha de uma das únicas duas cidades onde o “tradicional traje”
ainda se usa no ensino secundário.), nunca poderia participar em jantares e festas nem
em queimas das fitas ou qualquer tipo de evento do género. Disseram-me que iria ser
excluído e que seria muito bem feito, a culpa era toda minha. Fizeram-no aos berros,
exaltados. Eu abanava a cabeça. Houve um senhor doutor que teve a excelente ideia de
me chamar “filho da puta”. Está claro que eu não concordei e respondi-lhe à altura.

A coisa só não ficou mais feia porque uma aluna do 4º ano, da excelente terra de
Fermentões, Guimarães (contou-me ela, posteriormente), agarrou em mim, enfiou-me
sob a sua capa negra e tirou-me dali para fora, mandando-me para casa, não sem antes
escutar os veementes protestos de suas excelências os senhores doutores e seu Rei-Sol,
o Veterano.

Não fui a aula, não fui a nada, valha a verdade, a professora demorou uma eternidade a
chegar. Quanto ao resto, está bom de ver: Exclusão, perseguição, SEGREGAÇÃO.
Durante três anos! Depois, já longe, stress pós-traumático, depressão crónica, etc etc
etc.

Lamento, mas é esta a minha história, que conto abertamente pela primeira vez, em
época conturbada para o académico costume.

Espero honestamente que muita gente tenha razões para sorrir quando recorda o seu
tempo de “novata”. Não tenho essa sorte. Infelizmente. “Praxe”, na UTAD de Vila
Real? Não! praxes: humilhações, ajustes de contas e descarregar de frustrações. Foi isso
que eu vi(vi). Mais depressa faria as coisas por impulso do que por obrigação de
qualquer ordem.

Paulo César Gonçalves

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