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FALSAFA
A Filosofia entre os Árabes
São Paulo
2001
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
»¬Ÿ
FALSAFA
A Filosofia entre os Árabes
SUMÁRIO
Tabela de transliteração das letras árabes ....................................................................4
Tabela de pronúncia .....................................................................................................5
Introdução .....................................................................................................................6
1 – ALGUNS INTRÓITOS
1.1 A importância do estudo da falsafa........................................................8
1.2 A origem e o significado do termo falsafa.............................................9
1.3 As principais características da falsafa ................................................12
1.4 Árabes, islâmicos e muçulmanos ........................................................14
1.5 Filosofia árabe ou filosofia islâmica ? .................................................17
1.6 História do pensamento e história da filosofia ....................................21
1.7 Filosofia e teologia ..............................................................................23
1.8 Filosofia e mística ................................................................................27
3 – NO ISL¿
¿M NASCENTE
3.1 A Arábia pré-islâmica..........................................................................59
3.2 O Profeta Mu¬ammad ........................................................................61
3.3 O Alcorão ...........................................................................................64
3.4 A expansão muçulmana .....................................................................66
3.5 Os Omíadas ........................................................................................67
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Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
3.6 Os Abássidas.......................................................................................68
3.7 Os primeiros intérpretes ......................................................................72
3.8 O Kalām ..............................................................................................74
5 – A FALSAFA E OS FAL¶SIFA
5.1 Al-Kind÷, o anfitrião .........................................................................100
5.2 Al-Fārāb÷, o inventor ........................................................................121
5.3 Ibn S÷nā, o sistematizador .................................................................143
5.4 Al-¦azāl÷, o batedor .........................................................................172
5.5 Ibn Ru¹d, o reformador ....................................................................196
3
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
[ ā y r š §
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Vogais ¾ ÷/ y
_´_ a Æ ’
__ i (Õ â)
´
_’_ u ( Â ä)
4
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Tabela de pronúncia
Letra nome tranlist. som aproximado Letra nome tranlist. som aproximado
m ¬e ¬ H - aspirado ā fe f feliz
Vogais breves
_______´____ a
Æ hamza ’ -----------
_______ ____ i
´
______ ’_____ u (Õ ---------- â --------------)
( ÅA-----------AäA
5
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
INTRODUÇÃO
6
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
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Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
1 – ALGUNS INTRÓITOS
1
No singular, failasýf (filósofo).
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gregos. O fato de tais pensadores estarem inseridos numa cultura mais distante da
nossa, talvez nos desse a falsa impressão de que o mundo árabe e o mundo islâmico
pouco teriam a acrescentar às nossas discussões histórico-filosóficas em vistas da
formação do nosso pensamento ocidental. Porém, ao se entrar em contato com as obras
dos falāsifa pode-se verificar que eles adotaram os princípios da filosofia através das
demonstrações lógicas, estabelecidos principalmente por Aristóteles para superar os
desafios impostos pelas mais variadas questões que se-lhes apresentaram. Assim, é
natural que eles figurem juntamente com os grandes nomes da História da Filosofia.
Curiosamente, em muitos aspectos, a sua importância se deu mais em vista do impacto
causado na História da Filosofia do Ocidente do que na do próprio Oriente. De todo
modo, a falsafa é um dos elos mais esclarecedores para a compreensão dos caminhos
da filosofia no período medieval visto que se deu no mesmo período em que o
Ocidente esteve sob a denominação (às vezes injusta) de Idade das Trevas.
Uma das coisas que mais chama a atenção ao atento estudante de
filosofia é que, não raras vezes, os manuais de História da Filosofia – ao tratarem do
período medieval – passam de Agostinho (séc. IV d. C.) a Tomás de Aquino (séc. XIII
d.C.) sem dar a devida atenção ao que ocorreu nesse ínterim, o que indiretamente acaba
reforçando que, nesse período, o conhecimento científico e filosófico teriam ficado
estagnados. Tal julgamento não pode se aplicar ao lado oriental medieval, pois neste, o
que se viu, permite considerá-lo como um dos períodos mais luminosos da História:
grandes avanços foram realizados em praticamente todas as áreas do conhecimento e,
de modo particular, na filosofia.
árabe resultou no termo »¬Ÿ ( falsafa ). Vale esclarecer que se, por um lado, na
língua grega, os morfemas φιλια / σοφια (filia/sofia) se unem para dar, entre outras, a
idéia de “amor à sabedoria”, por outro lado, em árabe – assim como nas transcrições
que encontramos em outras línguas como, por exemplo, “philosophia” em latim;
“philosophie” em francês e alemão; “philosophy” em inglês etc. – a idéia que liga os
conceitos de amor e de sabedoria se dá somente por uma analogia e um retorno ao
termo grego. Os vocábulos usados para significar “amor” e “sabedoria”, na língua
árabe, não possuem qualquer semelhança com os radicais gregos decorrendo, portanto,
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Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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que no vocábulo »¬Ÿ ( falsafa ) não há qualquer idéia que provenha dos radicais
primeiros, apesar de serem usados com frequência na língua árabe, não tiveram um uso
muito corrente no vocabulário da falsafa. No caso de `o (¬ub), sua aplicação se dá
se traduz por amizade, porém sua raiz original remete à noção de autenticidade,
sinceridade, veracidade e outros termos afins. E, talvez, justamente pelo fato de uma
amizade não poder prescindir de todos esses atributos é que, na língua árabe, o termo
“amizade” provém daqueles primeiros conceitos. Por fim, a idéia de amor no sentido
da paixão e da inclinação do desejo, encontra sua melhor tradução no termo ¢„—
(þi¹q). Ibn S÷nā, por exemplo, ao fazer uso desse termo não o restringe meramente ao
sentido material da atração carnal mas, procura espiritualizá-lo no sentido metafísico
do movimento da hierarquia dos seres em direção à causa final. Nesse sentido, o termo
¢„— (þi¹q) guarda também uma certa proximidade com o conceito de ερωσ (eros) e,
no vocabulário filosófico é, pois, o que mais se aproxima também da idéia de
φιλια (filia).
Em relação ao termo σοφια (sofia), há três termos na língua árabe que
estão relacionados ao sentido de sabedoria, de ciência e de conhecimento. São eles:
±¬— (‘ilm ), »Ÿz˜° ( ma‘rifa ) e »°¨n (¬ikma). Esses três termos possuem um uso
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Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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sua melhor correspondência é o termo ciência. Com mais frequência foi esse o termo
utilizado para traduzir a noção grega de επιστηµη (episteme). No vocabulário da
falsafa é com ±¬— (‘ilm ) que se expressa, por exemplo, a noção de “ciência divina”,
“ciência da natureza” “ciência da alma”, “ciência da lógica” etc. Nos dias de hoje,
grande parte da denominação das ciências modernas e suas variantes como, por
exemplo, Biologia, Sociologia, Economia e Ecologia é antecedido pelo termo ±¬— (‘ilm
que esse alguém é douto, erudito, diplomado. O mesmo termo também é usado para
designar o cientista.
No segundo caso, isto é, »Ÿz˜° (ma‘rifa), este deriva da raiz do verbo
āz— (‘arafa) que significa conhecer. Assim, o termo »Ÿz˜° (ma‘rifa) pode ser
traduzido por “conhecimento”. É com esse termo, por exemplo, que Ibn S÷nā afirma
que “o fim da filosofia especulativa é o conhecimento da verdade, e o fim da filosofia
prática é o conhecimento do bem” 2. Mas, num outro sentido, há certa nuance nesse
termo: ao analisá-lo, Goichon aproxima-o do termo grego γνωσισ (gnosis). Assim, por
enquanto os dois primeiros denotam um tipo de saber mais indicativo, o espectro mais
amplo do conceito »°¨n (¬ikma) é o que mais se aplica no caso do vocabulário
filosófico para designar a extensão do conceito “sabedoria”. Por essa razão, às vezes,
»°¨n (¬ikma) também, foi usado como sinônimo do próprio conceito de filosofia. Se
os antigos gregos chamavam um homem sábio de σοφοσ (sofos), em árabe ele seria
2
Cf. GOICHON, Vocabulaire, p. 19 e Lexique, p.221.
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primeira vez, a ser escrita em língua árabe. Nesse caso, não é difícil imaginar que os
termos e os conceitos filosóficos tiveram de seguir um novo itinerário para serem
adaptados ao novo idioma.
Outro ponto relevante é o fato de a filosofia se confrontar com uma
nova religião. O islamismo recebeu a filosofia pouco mais de 150 anos após o seu
nascimento. A filosofia, nascida entre os mitos gregos, transportada juntamente com os
deuses para o panteão de Roma, absorvida pelos padres da igreja para cimentar os
dogmas da cristandade, havia se confrontado, até então, com outras formas de religião
mas não ainda com o islamismo. Foi a falsafa que se encarregou de fazer com que os
princípios filosóficos se deparassem, pela primeira vez, com os dogmas da religião
islâmica, o que foi, sem dúvida, um novo desafio para ambas.
A falsafa foi a responsável não só pela imersão do pensamento da
filosofia grega entre os árabes mas também pela transmissão da filosofia grega ao
Ocidente. Na medida em que o paradigma grego foi um dos responsáveis pela
construção filosófica do Ocidente, não é difícil imaginar que a falsafa ocupa um lugar
histórico muito peculiar. Sobre o meridiano da filosofia oriental e ocidental, a meio
caminho da contemplação de dois – ou mais – caminhos, a falsafa contribuiu
sobremaneira para inúmeras transformações da filosofia do Oriente e do Ocidente. É
assim que, por exemplo, muitas teses desenvolvidas no interior da falsafa possuem –
aos moldes das duas faces da alma propostas por Ibn S÷nā – duas frontes distintas: uma
voltada para o Oriente e a outra para o Ocidente. Como bem assinalou Carra de Vaux,
“esta escola se divide em dois ramos: o oriental e o ocidental. Al-Kind÷, Al-Fārāb÷,
Avicena são nomes célebres do primeiro ramo; Ibn Bāja, Ibn Æufayl, Averróis, os do
segundo ramo.” 3
Talvez se Voltaire tivesse conhecido, além dos infindáveis volumes
escritos pelos pensadores do Ocidente medieval, também os dos falāsifa, certamente
teria continuado a exclamar de que tudo deveria ser colocado em dicionários. E isso
não seria à toa, pois uma das características comum aos falāsifa, que chama muito a
atenção, é o número de suas obras. Os títulos de Al-Kind÷, citados por Badawi em sua
Histoire de la Philosophie Islamique, chega ao número de 241; no caso de Al-Fārāb÷,
mais de 120; para Ibn S÷nā, Anawati cataloga 276 obras; para Ibn Ru¹d, Badawi
apresenta uma lista de 92 títulos. Algumas dessas obras não chegaram até nós, muitas
3
Cf. VAUX, C. Les penseurs de l’Islam, pp. 1s.
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Miguel Attie Filho
Apesar de muitas vezes serem tomados um pelo outro, esses três termos
não são sinônimos. Certamente, podem ter mais de um sentido dependendo do modo
como são empregados mas, geralmente, os encontramos utilizados a partir de uma
distinção bàsica: o termo “árabe” geralmente é utilizado no sentido da língua, da
cultura, da política ou da etnia e não no sentido religioso; o termo “islâmico” guarda o
caráter da religião, mas também do Estado ou da cultura e não da etnia; o termo
“muçulmano”, aplica-se às pessoas adeptas à religião islâmica, mas que não são,
necessariamente, árabes. De todo modo, passemos a verificar com mais detalhes tais
significados.
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Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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(‘arab) que é um coletivo: os árabes. No caso do adjetivo, que para nós possui a
mesma forma, no original sofre uma alteração para Á^z— (‘arabiy ). As derivações a
partir dessa raiz englobam todos os termos afins como, por exemplo, “arabismo”,
“arábico” e “arabizar”. O termo “hebreu” ¾z_— ( ‘ibriy ) deriva de uma raiz
semelhante que se diferencia pela inversão da segunda com a terceira letra formando o
verbo z_— (‘abara ) que significa atravessar, passar.
4
Gênesis, X, 31-32.
5
Cf. LEWIS, B. Os árabes na história, p.17.
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mesmo com a rápida expansão que se verificou, o termo “árabe” ainda se aplicava
somente aos que falavam a língua árabe e descendiam de algumas tribos árabes. No
entanto, à medida que outros povos foram adotando a língua e a religião dos árabes
como, por exemplo, os sírios e os egípcios, o termo “árabe”começou a migrar em
direção a uma conotação mais próxima tanto do conceito religioso como do línguístico,
pois, tanto a língua como a nova religião haviam sido geradas no seio do povo árabe.
Como bem assinalou Lewis, “a partir do século VIII d.C / II H. o
califado foi se transformando gradualmente de um império árabe num império
islâmico”. O Califado Omíada que durou por pouco mais de 100 anos, desde o
estabelecimento do Islām, esteve em poder dos árabes. Em meados do século VIII d.C.
/ II H. a hegemonia árabe sobre o império começou a se perder. Os Abássidas, de
origem persa, assumiram o califado e transferiam a capital de Damasco para Bagdá.
Nessa época os interesses do império já não eram mais exclusivamente árabes. Esse foi
um marco importante no distanciamento entre os conceitos “’arabe” e “islâmico”. Não
é difícil perceber que à medida que esse processo de transformação dos povos
convertidos encontrava mais acolhida no termo “islâmico” do que no termo “árabe”, as
discussões entre os dois conceitos se mantiveram acesas e chegaram até os dias atuais.
Questões como “medicina árabe” ou “medicina islâmica” e, no nosso caso, “filosofia
árabe” ou “filosofia islâmica” têm suas raízes nesse processo histórico de
desenvolvimento do islamismo desde a península arábica até os limites de hoje.
Atualmente, o termo “árabe” é aplicado num sentido mais genérico
designando não somente os árabes que habitam a Arábia mas também os que habitam
outros países tais como o Egito, Marrocos, Síria, Líbano e Iraque. Por outro lado os
países árabes não designam a totalidade dos países islâmicos. Isso quer dizer que
“árabe” e “islâmico” não são sinônimos, assim como “árabe”e “muçulmano” também
não o são: há muçulmanos que não são árabes e árabes que não são muçulmanos.
Nesse sentido, os árabes vêem a si mesmos como uma grande nação. Do mesmo modo
que os países da Europa vêem a si mesmo como uma unidade, os árabes entendem ser
uma nação nos limites daqueles que “falam a língua árabe e são sensíveis à memória da
glória árabe passada”6 possuindo uma divisão apenas geográfica e política, que teve,
entre outras causas, o próprio colonialismo europeu.
6
Cf. LEWIS, B. Os árabes na história, p.21.
16
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mesma raiz: ±¬ (salima). A ideía geral aplicada a esta raiz engloba uma série de
termo resultou em ¾¯Ø[ (islāmiy) que se traduziu por “islâmico”. Logo, aquele que
aceita o princípio contido no termo ®Ø[ ( Islām ) é um ±¬~¯ ( muslim ), termo que
se traduz por “muçulmano”. Apesar de não haver uma regra rigorosa, o termo
“islâmico” geralmente é usado no sentido das idéias e dos ideais contidos no Islām, ao
passo que o termo “muçulmano” aplica-se com mais frequência à pessoa, ao sujeito
concreto que pratica os ideais do Islām. Assim como do verbo ±¬— (‘alima ) – saber –
se retira aquele que pratica o saber, isto é, o ±¬˜¯ (mu‘allim ) – professor –, do mesmo
modo a prefixação “mu” indica, em ±¬~¯ (muslim) a noção do sujeito concreto. Por
isso é mais comum encontrarmos “filosofia islâmica” e “filósofo muçulmano” e não o
contrário, apesar de que, em casos como “mundo islâmico”, pode se encontrar também
“mundo muçulmano”. No entanto o primeiro se mantém no sentido dos ideais do Islām
e o segundo denota o conjunto dos sujeitos concretos.
17
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7
ANAWATI, G. Études de philosophie musulmane, p. 23.
8
ANAWATI, G. Études de philosophie musulmane, p. 23.
9
AVICENNE, Le Livre de Science. Traduction du texte perse Danesh #ama par Mohammad Achena e
Henri Massé . Paris: Les Belles Letres, 1986./
10
ANAWATI, G. Études de philosophie musulmane, p. 24.
18
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11
ANAWATI, G. Études de philosophie musulmane, p. 85.
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12
FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique, p. 15.
13
FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique, p. 15.
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pensamento mas nem todo pensamento é filosofia. Vejamos alguns casos que ilustram
essa questão.
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(falsafa ). Entre as três há muitas diferenças. Como neste trabalho se pretende um olhar
mais detido sobre a falsafa, não cabe, aqui, uma análise mais detida da teologia ou da
mística pelo aprofundamento dos princípios do sufismo ou do kalām. Mas algumas
indicações sumárias marcam alguns pontos fronteiriços entre essas posturas. Pelo fato
14
Cf. CARRA DE VAUX, Les penseurs de l’Islam. Paris: Paul Geuthner, 1921, vol. IV “A escolástica,
a teologia e a mística. A música.”
23
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do kalām foi denominado ±¬¨c¯ (mutakallim), isto é, “aquele que discursa” ou “aquele
que fala”. Geralmente são citados pelo plural: ²½°¬§c° ( mutakallimun ). Logo após o
estabelecimento do Alcorão, e mesmo antes das traduções das obras filosóficas gregas,
15
Cf. Grande dicionário Laroussse cultural da língua portuguesa. São Paulo: Abril, 1999, p.865.
16
AQUINO, T. Suma de teologia. I.q.1,a 2
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o kalām já era uma realidade no mundo islâmico. Uma de suas características foi ter
aplicado o raciocínio e a argumentação filosófica aos dogmas do islamismo. Nesse
sentido, a abordagem do kalām se aproximou bastante do sentido que damos ao termo
“teologia” tomando por base a experiência do cristianismo. Ao se falar em teologia no
Islām, é aos mutakallimun – e não aos falāsifa – que se encontram as referências.
Desse modo, os representantes do kalām, enquanto se basearam na revelação, como
ponto de partida para a reflexão filosófica, podem ser considerados os mais próximos
dos pensadores cristãos dos primeiros séculos do cristianismo. Por isso, não é razoável
estabelecer uma identidade entre a falsafa e o caráter da filosofia medieval cristã. A
falsafa não tem precedente e não se confunde com nenhum outro movimento, seja no
Oriente e, menos ainda, no Ocidente. Sua posição histórica é assaz peculiar e única.
Apesar de se desenvolver num ambiente religioso manteve-se continuadora da filosofia
antiga. A teologia ficou a cargo dos mutakallimun.
17
BADAWI, A. Histoire de la Philosophie Islamique, p.5.
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Miguel Attie Filho
primeira”. Essa ciência deveria se ocupar do estudo do ser enquanto ser e da substância
eterna e separada, isto é, Deus pois “a mais divina das ciências é também a mais nobre;
e esta, ela só, é de duas maneiras a mais divina. Com efeito, a ciência que mais
conviria a Deus possuir é uma ciência divina, e também o é aquela que trata de coisas
divinas.”18 O termo “metafísica” teria sido, na verdade, o nome dado por Andrônico de
Rodes no século I a.C quando organizava os livros de Aristóteles. Como esses livros
haviam sido colocados após os oito livros da Física, chamou-se-lhes
τα µετα τα φυσιχα (tá metá tá phisicá) que significa “os que estão depois da física”.
Geralmente considera-se que o nome, a princípio de caráter classificatório, acabou
servindo adequadamente ao estudo que se debruçava sobre as coisas que transcendem
o mundo da natureza. Teria sido a partir dessa classificação de Rodes que os termos
“teologia”, “filosofia primeira” e “metafísica” foram tomados praticamente como
sinônimos, o que ocorreu também entre os falāsifa.
caso, encontramos, por exemplo, em Ibn S÷nā o termo árabe ¾¸«[ ±¬— ( ‘ilm ilahiy )
primeira”. Esses dois termos – “teologia” e “ciência divina” – são usados, assim como
para Aristóteles, como sinônimo de “metafísica” que no árabe guarda exatamente o
sentido original do grego τα µετα τα φυσιχα (tá metá tá phisicá) “o que está depois
da física” e se encontra do seguinte modo: »˜À_«[ v˜^ \° (mā ba‘d aÐÐabiy‘at) “o que
está depois da física”. No segundo livro da Metafísica, Ibn S÷nā assim se refere a essa
ciência:
“Ela é chamada filosofia primeira porque é a ciência das primeiras das coisas na
existência (ý) é igualmente a sabedoria que é a ciência mais nobre concernente ao
18
ARISTÓTELES, Metafísica. Porto Alegre: Ed. Globo, p. 40. 983a-5.
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objeto de conhecimento mais excelente. Pois ela é a melhor ciência, isto é, a certeza,
em vista do objeto cognoscível mais nobre que é Deus, que Ele seja exaltado, e das
causas que vem depois dele. É também o conhecimento supremo das causas do todo. É
também o conhecimento de Deus e é por isso que ela é definida como a ciência
divina”19
19
AVICENNE La métaphysique du Shifa’, p. 95.
20
CHEVALIER, J. El sufismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1998, p.11.
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esquema geral de muitas doutrinas místicas que, em certa medida, foi extraída pelo
pseudo-Dionísio dos textos neoplatônicos.
de seu respectivo adjetivo “de lã”, ou seja, ÁŸ½ˆ (¼ýfiy ). Porém, não há acordo a esse
que não haja um consenso quanto à origem precisa do termo “sufi”, parece ser
concórdia que essas qualidades são intrínsecas ao sufismo: o desapego, a sabedoria e a
pureza. Seguir adiante na definição do que é o sufismo parece ser uma tarefa para
desavisados que desconhecem a própria doutrina sufi. Em seu prefácio, Idries Shah
alerta:
“Não é por acaso que a “doutrina secreta”, cuja existência tem sido
suspeitada e procurada há tanto tempo, se revela tão esquiva ao
pesquisador.(ý) Não se chega ao sufismo, à “tradição secreta”, tomando
21
SHAH, I. Os sufis. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 7.
28
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22
SHAH, I. Os sufis, p. 23.
23
KIELCE, A. O sufismo. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 15.
29
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24
KIELCE, A. O sufismo, p. 9.
25
ALI SHAH, S.I. Princípios gerais do sufismo. São Paulo: Attar, 1987, p. 25.
26
PLATÃO, Cartas Lisboa: Estampa, 1989, p.77.
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expansão... não sabemos ainda... é daqui que falamos, sempre foi... disso é bom
lembrar ...”
“Alguns estudiosos defendem a idéia de que essa expansão teve um
início com data e hora marcadas, em que toda a matéria de todas as galáxias estaria
reunida num espaço ínfimo, menor que a cabeça de um alfinete... Depois, uma grande
explosão: booom ! big-bang. Será que ainda somos capazes de ouvir esse barulho?...
será que alguém me ouve?... estou quase surdo... que bom... ainda ouço o momento da
criação... e você ..? ”
“Quanto mais nos distanciamos no espaço mais para trás nós vamos no
tempo e, no limite, há uma distância de mais de 12 bilhões de anos-luz, nos
defrontamos com os ruídos da criação desse nosso universo... quasares... os mais
distantes que nossos olhos e ouvidos científicos podem enxergar... talvez
remanescentes do big-bang. Especula-se que este universo seja apenas um dentre
outros. A que lugar nos levam os buracos negros..? talvez a outros universos... mas
‘seo’ Miguel isso é só uma estória que estou contando... pode não ser assim... mas é
assim que nos localizamos... é daqui que falamos, disso é bom lembrar...”
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“Mas, por que o homem pensou ?.... pouco se sabe... o que se especula é
que o homem, assim como os outros animais, deveria estar até o pescoço na luta pela
sobrevivência reunido em bandos para caça e pesca. Mas num dado momento, as
circunstâncias e a compleição desse animal-homem teriam se combinado de tal modo
que ele se diferenciou dos demais. Como ? Talvez nunca saibamos... acho mesmo que
não saberemos... podemos, por enquanto, só imaginar... talvez sempre imaginar... o que
é certo é que esse homem pensou e, pensando, saiu da imediatidade da natureza.”
34
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JALDUN, IBN. Introducción a la historia universal. México: Fondo de Cultura Economica, 1997,
p.92.
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Enquanto este livro está sendo escrito, o Brasil comemora 500 anos de descobrimento.
Nunca a nossa história fora tão contada, de muitos modos. Aquela velha história que se
aprendia no ginásio parece, hoje, quase um engodo e nos faz sentirmos vitimados pelo
olhar positivista e eurocêntrico, notadamente do século XIX. Esse mesmo olhar que,
até há pouco, foi seguido como paradigma por grande parte dos historiadores. Mesmo
assim, as mudanças no contar a história, também, já eram uma idéia existente no século
passado. Vejamos um comentário a respeito do verbete “história”em um dicionário do
ano de 1873 28.
Dos relatos de viagens de Heródoto (484/420 a.C.) até os dias de hoje, muitas foram
as abordagens a respeito da história. De cíclica e circular, decadente ou apologística,
as visões sobre a história, por se modificarem, modificam sua própria compreensão.
Na experiência de contar sua própria história, o homem tem revisto o modo como a
contou e a conta. Grande parte das alterações de enfoque deve-se, muitas vezes,
menos à novas descobertas do que a uma mudança no olhar sobre os mesmos fatos.
No horizonte das mudanças do enfoque do historiador do século XXI, as mudanças
enfatizam, entre outras coisas, a inclusão de elementos esquecidos ou negligenciados.
Surgem novas abordagens sobre temas que pareciam petrificados. Essa nova direção
pode ser sentida numa passagem contemporânea de Dominique Vallaud :
“Há não mais de meio século é que a História saiu do quadro estreito
no qual a escola positivista a havia trancado, e se abriu aos fenômenos
sociais e aos fatos de civilização. Além disso, os progressos
fulminantes da comunicação, conjugados à descolonização, a fizeram
sair de seu eurocentrismo. A História não é mais somente a do baixo
mediterrâneo e da Europa ocidental, mas igualmente a da África, da
América pré-colombiana, do Extremo Oriente. Ela tem a vocação para
abraçar o conjunto do passado da humanidade e, aliás, os programas
28
LARROUSSE, M. Grand dicctionaire universal universel du XIX siècle. Paris, 1873, p. 301.
36
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Não causa surpresa, pois, que a partir desse espírito renovador da ciência da História,
enquanto, hoje, após 500 anos, se procura uma nova história na História do Brasil, ao
mesmo tempo, no âmbito da História Universal, também se procure uma outra história
no interior da idade mais hostilizada da História: a Idade Média.
Não é demais lembrar que foi a partir da proposta entabulada por um
pedagogo alemão do séc. XVII d.C. Cristoph Keller – em latim Cellarius (1638/ 1707
d.C.) – que se consagrou a divisão da História em antiga, medieval e moderna. Essa
divisão, com pequenas modificações e o acréscimo da datação da revolução francesa,
permaneceu como sendo a mais usada. A Idade Antiga iniciando-se com o surgimento
da escrita há, pelo menos 4.000 a.C., e terminando com a tomada de Roma em 476 d.C.
pelo chefe germânico Odoacro; a Idade Média compreendida entre o período de 476
d.C. até a queda de Constantinopla em 1453 d.C., pelas mãos dos turcos; e a Idade
Moderna, de 1453 d.C. até a Revolução Francesa em 1789 d.C, a partir de quando se
inicia, então, a Idade Contemporânea.
É notório que o estabelecimento dessa divisão privilegiou dois pontos,
um em cada extremidade, considerados pelos homens dos séculos das luzes como os
mais significativos: a antiguidade e a modernidade. Ao se denominar os mil anos que
separavam esses dois extremos de idade “média”, a impressão que se tem é, que por si
só, essa idade, sendo “média”, não se definiria de modo positivo mas apenas figurava
como coadjuvante das outras duas. Em outras palavras, ela existiria, ou em função de
uma antiguidade que esperava ansiosa para ser revivida pelo renascimento da Europa,
ou então em função de uma modernidade que dela – Idade Média –, fez seu alvo crítico
preferido. De todo modo, não seria necessário especular muito para concluir que essa
impressão é preconceituosa. Parece que o próprio Cellarius, voz de sua época, se
encarregou disso: ao fixar essa divisão “fixou também a idéia de que este período
intermediário entre a antiguidade e a época moderna nada produziu de importante. Foi
um período não só estéril, mas de retrocesso: a idade das trevas.”30 Não valeria a pena,
aqui, desfilar as inúmeras desqualificações que partiram da modernidade em direção
aos medievais. De todo modo, é preciso ressaltar que os efeitos dessas críticas ecoaram
por muito tempo: “afirmações historicamente falsas, mas suficientes para impor um
29
VALLAUD, D. Dictionnaire historique. Paris: ed. Librarie Arthème Fayard, 1995, p.7.
30
NASCIMENTO, C.A. filosofia medieval, São Paulo: ed. Brasiliense, 1992, p.9.
37
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
31
DE LIBERA, A. A filosofia medieval. São Paulo: Ed. Loyola: 1998, p. 12.
32
NASCIMENTO, C.A. filosofia medieval, p.9.
33
DE LIBERA,A. A filosofia medieval, p.7.
38
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39
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Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Esse período, denominado patrística – com duas vertentes: uma de língua grega e outra
de língua latina – encerrou-se com a síntese de Santo Agostinho (354/ 430 d.C.) .
Boécio (aprox. 480/524) chamado “o último romano e o primeiro escolástico”35, foi
um transmissor importante da filosofia antiga para o período medieval do Ocidente
latino e um dos símbolos da ligação entre os dois períodos.
A partir do século V d.C., os pensadores, já ambientados na divisão
histórica da Idade Média encontraram a tradição filosófica dividida em dois mundos: o
mundo do Ocidente de língua latina e o mundo do Oriente de língua grega. Do lado
ocidental, a filosofia medieval foi, praticamente, uma filosofia cristã tanto do ponto de
vista de suas intenções como pelos seus próprios representantes. A partir do séc. VII
d.C./I H., a escolástica dominou todo o espaço filosófico do Ocidente até o séc.
XIVd.C./VIII H. Nesse ínterim, do lado oriental, a patrística grega preparou o caminho
para a recepção da filosofia antiga para o mundo árabe. A partir do séc. VIII d.C./ II
H., o volume de traduções para o árabe se configurou num desenvolvimento dos
caminhos da filosofia totalmente diverso do ocidente latino. A recepção da filosofia
antiga por Al-Kind÷, as consistentes teses de Al-Fārāb÷, a envergadura e a
sistematização da obra de Ibn S÷nā e as críticas de Ibn Ru¹d foram realizadas num
período em que o Ocidente latino, à meia luz, sequer sabia o que não sabia.
A partir do séc. XII d.C./V H. iniciou-se um período fecundo de
traduções de obras filosóficas e científicas do árabe para o latim. Inicialmente, o
Ocidente latino foi revigorado pelas traduções de obras em árabe e, quase
simultaneamente, pelas obras gregas. Ao mesmo tempo em que a falsafa já não tinha
mais tanta força no mundo muçulmano, a. escolástica cristã conhecia seu apogeu .
Tomás de Aquino tendo realizado uma nova síntese do cristianismo sobre as bases
aristotélicas foi o exemplo mais acabado desse período, equilibrando o binômio fé e
razão. Ao final da escolástica, Guilherme de Ockham (1280/ 1348 d.C.) apontou
inúmeras questões que anunciaram o final desse período. Sobre muitas de suas teses, os
modernos se ampararam para separar os dois caminhos em questão: razão e fé.
Nesse ponto, pois, já é possível localizar e contextualizar a falsafa no
interior da História da Filosofia: situa-se entre os séculos VIII d.C/II H. e XIII d.C./VI
H. Mais precisamente, a partir da recepção, por Al-Kind÷, das obras traduzidas para a
língua árabe até a morte de Ibn Ru¹d. Vale notar que a influência da falsafa não se deu
35
KUNZMANN,P. Atlas de la philosophie. Paris: La Pochothèque, 1993, p.63.
41
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
do mesmo modo nas duas frentes que absorveram suas teses, isto é, o Oriente e o
Ocidente, mas isso será detalhado mais adiante.
Continuando com nosso vôo panorâmico sobre a História da Filosofia,
pode se dizer que a partir do século XII d.C./ VI H., o contato crescente entre o
Ocidente latino e o mundo islâmico foi o responsável pela introdução da ciência e da
filosofia na Europa. Nessa época, um grande volume de tratados e novos
conhecimentos encontrou solo fértil nos pensadores ocidentais e alicerçou as condições
para o renascimento europeu. O que não se imaginava, talvez, é que muitos pensadores
do renascimento, ao redescobrir a antiguidade, paradoxalmente, preparassem tanta
ingratidão para com os medievais, esquecendo-se que, durante séculos, estes haviam
sido os responsáveis por guardar e desenvolver a filosofia e as ciências dos antigos.
Nessa época, a filosofia medieval, mesmo não tendo o seu fim lembrado de modo tão
marcante e aparente quanto o final da própria Idade Média em 1453 d.C. com a tomada
de Constantinopla pelos turcos, também já se findava.
Com o incremento das ciências em direção ao domínio da natureza, os
nomes de Francis Bacon (1521/ 1626 d.C.) e Renée Descartes (1596/ 1650 d.C.) foram
grafados como alguns dos símbolos mais ilustres que impulsionaram os europeus na
direção do que se chamou de filosofia moderna. No novo cenário da filosofia, três
principais tradições se destacaram: a francesa, a inglesa e a alemã associando-se a elas,
comumente, o o racionalismo, o empirismo e o idealismo, respectivamente. Em alguns
casos, muitos dos partidários dessas escolas foram tributários, ainda que indiretamente,
de teses desenvolvidas pelos medievais, inclusive pelos falasifa. O sistema de grande
envergadura proposto por Hegel (1770/ 1831 d.C.) pôde ser considerado como o
apogeu e o fim da modernidade, coincidindo, praticamente, com a data histórica do fim
da Idade Moderna, isto é, com a Revolução Francesa em 1789 d.C. Temporal e
espacialmente, os críticos mais próximos de Hegel tais como Schopenhauer (1788/
1860 d.C.) e Nietzsche (1844/ 1900 d.C.) anunciaram alguns caminhos da filosofia
que, na virada do século XX d.C. se expandiu numa miríade infindável de escolas,
tendências e caminhos. Aqui, a filosofia já não tinha mais um só rosto. Mas teve,
algum dia? O que será que pensaria Ibn S÷nā a esse respeito ?
42
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
própria Idade Média. A falsafa, sendo medieval, não esteve, pois, isenta de tais
preconceitos. No século XVIII d.C., as palavras do marquês Saint- Aubin em seu
Tratado da opinião podem dão uma idéia da visão negativa que a filosofia medieval
despertou entre os modernos, tanto de modo genérico, como de modo particular em
vistas da intersecção da falsafa com o pensamento do Ocidente latino. Assim o lemos:
“Após a tomada de Constantinopla, os franceses trouxeram os livros
de Aristóteles comentados pelos árabes. Introduziu-se, então, uma
filosofia tirada de Avicena e de outros comentadores africanos; e o
mau gosto arabesco estragou as escolas, como a arquitetura e as
demais artes haviam sido corrompidas pelo gosto gótico.”36
Gradualmente, interpretações como essa foram sendo sobrepostas pelo bom senso.
Assim como os tempos mudaram para a História, também mudaram para a História da
Filosofia. Na mesma direção e intenção de recuperar aspectos positivos da Idade
Média, o estudo a respeito da filosofia medieval também procurou lançar um olhar
mais generoso sobre a produção filosófica desse período. Essa nova abordagem da
filosofia medieval inevitavelmente levou a falsafa a ser incluída de modo mais
consistente no trajeto da História da Filosofia, também ocidental; pois se, em boa parte,
a história da filosofia medieval foi a história da filosofia escrita e pensada em árabe,
isso significa que todo reclamo em vistas da recuperação do valor filosófico da Idade
Média – para que não manque – deve incluir, necessariamente e de modo positivo, a
falsafa.
Não valeria a pena, aqui, analisar o espaço dedicado à falsafa nos
inúmeros manuais da história da filosofia do Ocidente escritos no século XX d.C. pelos
europeus pois, basta ao leitor verificar que a maioria deles é geralmente lacunar ao
tratar da falsafa. Apenas para citar um exemplo de peso, um dos manuais mais
completos a respeito da filosofia medieval foi escrito por Étienne Gilson, um dentre os
três nomes de maior destaque no medievalismo francês que surgiu no século XX d.C.
O título dessa obra exemplar, que tem aproximadamente 1.000 páginas, é A Filosofia
na Idade Média37. Ressalte-se que esse livro tornou-se referência praticamente
obrigatória aos medievalistas. O enfoque do autor já é bastante claro em sua
introdução, percorrendo os temas e as questões principais concernentes à filosofia
ocidental do ponto de vista do cristianismo. Mesmo assim, Gilson dedica dois capítulos
36
DE LIBERA, A.A filosofia medieval, p.13.
43
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
38
DE LIBERA,A. A filosofia medieval,1998, p.7.
39
Título que inspirou o subtítulo deste trabalho.
44
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
falāsifa sobre a Idade Média do Ocidente. Visando recuperar as ligações que explicam
as transformações no ocidente medieval, ele explica:
“É dessa herança esquecida que queremos aqui partir – o papel
positivo dos “arabes”, tendo se apagado da nossa memória juntamente
com a época, a cultura e o meio em que ele se manifestou plenamente.
Essa herança é a trama, o pano de fundo de tudo o que segue. É
através dela que iremos a Siger, mas sobretudo a Dante e a Eckhart.”40
A adoção de uma visão que interliga a história da filosofia numa continuidade
ininterrupta se apóia na afirmação da existência de múltiplos centros de
desenvolvimento da filosofia, ora sem comunicações uns com os outros, ora
interpenetrando-se e criando novos rumos ao pensamento. Outra fator que permitiu
uma visão renovada respeito da filosofia medieval e, particularmente da falsafa, foi a
ênfase no conceito da translatio studiorum , salientando a importância da transmissão
do saber através dos seus centros. Muitas foram as transmissões do saber que se
iniciaram na antiguidade tardia e se estenderam além da Idade Média:
“ Uma é feita de Atenas para a Pérsia e da Pérsia para Harran; outras
se fazem de Alexandria para os mosteiros sírios dos séculos VII e
VIII; um terceiro movimento vai da cultura siríaca para a cultura
árabe, de Alexandria a Bagdá.(ý) nessa mesma época o ocidente
cristão é filosoficamente estéril. Só desperta do seu longo sono com
uma nova translatio que vem de Bagdá para Córdoba e, daí, para
Toledo, isto é: do oriente muçulmano para o ocidente muçulmano e,
de lá, para o ocidente cristão.”41
A idéia de que o saber caminhou através dos grandes centros sendo incorporado pelas
sequentes civilizações e culturas encontra menos dificuldades, para se compreender os
caminhos da filosofia, do que a visão de uma suposta estagnação milenar do saber. O
próprio Al-Fārāb÷ entendia que esse movimento o antecedia em Bagdá. Explicou que o
saber filosófico dos antigos teria se transladado dos caldeus, na Mesopotâmia, para os
egípcios, destes aos gregos, aos sírios cristãos e, até aquela época, aos árabes. Vivo,
hoje, talvez acrescentasse as posteriores translações.
Ora... ora... “onde estão, portanto, as trevas?”42
40
DE LIBERA,A. Pensar na Idade Média. São Paulo: editora 34,1999,pp.133-134.
41
DE LIBERA,A. A filosofia medieval, p.17.
42
DE LIBERA,A. Pensar na Idade Média, p.86.
45
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Miguel Attie Filho
46
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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47
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
preparava para ser a herdeira das antigas estruturas, se tornando ela mesma um novo
império que se estendeu por todo o período medieval. Em 330 d.C. o mesmo
Constantino fundou Constantinopla nas margens do Bósforo, onde já existia desde 658
a.C., Bizâncio, antiga colônia grega. Em 395 d.C. o Império Romano foi dividido em
duas capitais por Teodósio: Roma, no Ocidente, e Constantinopla, no Oriente. Mesmo
quando em 476 d.C., Rômulo Augústulo foi deposto, marcando o fim do Império
Romano do Ocidente, o Império Romano do Oriente ou Império Bizantino, seguiu
unificado julgando-se o sucessor legítimo do Império como um todo e só cairia em
1453 d.C. com a tomada da cidade de Constantinopla pelos turcos. Do lado ocidental, a
partir da queda de Roma em 476 d.C., a Europa teve de esperar mais de trezentos anos
para ter algum vislumbre de reunificação que aconteceu somente no ano 800 d.C.
quando papa Leão III coroou Carlos Magno imperador, na tentativa de reerguer o
antigo império. No âmbito ocidental, portanto, à época do nascimento do Islām, a
igreja cristã havia seguido sua trajetória vitoriosa desde seu nascimento como religião
no Oriente em terras dominadas por Roma, passando a religião oficial do Império (313
d.C.) , sobrevivido à queda de Roma (476 d.C.), convertido os bárbaros – lembre-se o
batismo de Clóvis, rei dos francos em 496 d.C. – e coroado um deles, Carlos Magno
(800 d.C.) na tentativa de reerguer o antigo império.
Mas o Cristianismo não estava confinado ao poder de Roma e do
Ocidente. O Concílio de Constantinopla, em 381 d.C., havia determinado cinco
patriarcados, a partir das cidades preeminentes e de maior influência, constituindo-os
como os principais centros de difusão e controle do cristianismo ao mesmo tempo em
que paralisou a formação de outras zonas autônomas que requeriam o mesmo estatuto.
No século V d.C. o título de patriarca era utilizado para nomear os bispos de
Alexandria, Antioquia, Roma, Constantinopla e Jerusalém que dividiam o poder e o
controle religioso. Com o passar do tempo, o Ocidente reconheceu apenas a sede de
Roma como centro único, entendendo a supremacia do bispo de Roma sobre os outros
patriarcados.
Ao longo dessas transformações, duas tradições se desenvolveram de
maneira diversa: uma no Oriente, outra no Ocidente. Há pelo menos quatrocentos anos
antes do surgimento do Islām, a formação das bases filosóficas das doutrinas do
cristianismo já havia colocado os primeiros pensadores cristãos em contato com a
filosofia pagã. O Cristianismo, na busca de esclarecer e articular suas próprias teses,
teve no período da patrística o seu primeiro apogeu filosófico. Nesse período, as duas
48
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
43
DE LIBERA, A, A filosofia medieval ,p.20
44
DEL ROIO, J.L. Igreja medieval. São Paulo: Ed.Ática, 1997, p.20.
49
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45
DIEHL, C. Grandes Problemas da História Bizantina.São Paulo: Ed. Das Américas, 1961, p.180s.
46
DE LIBERA, A, A filosofia medieval , p.20.
47
DIEHL, C. Grandes Problemas da História Bizantina.São Paulo: Ed. Das Américas, 1961, p.183.
50
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
a política e a filosofia: pelo aspecto político, havia uma clara disputa de poder entre os
patriarcados; pelo aspecto teológico, as disputas refletiam esses interesses; e a filosofia
foi um instrumento valoroso na estruturação da argumentação lógica para se chegar à
vitória.
Um dos centros de difusão das heresias em Bizâncio surgiu em
Antioquia, na Síria, onde um padre, Nestório (381- 451d.C.) enfrentou o tema da
Natureza de Cristo separando de modo absoluto a natureza divina eterna e a natureza
humana gerada. Essas duas naturezas não estariam unidas consubstancialmente em
Cristo mas apenas de modo acidental. Uma das consequências de afirmar a existência
de duas naturezas e duas hipóstases na única Pessoa do Cristo Filho de Deus, ou duas
naturezas e duas pessoas, poderia levar à conclusão de que a Virgem Maria não seria
portadora da natureza divina: teria sido mãe de Cristo sem ter sido mãe de Deus.
Nestório enfrentou a irredutível oposição do patriarcado de Alexandria e Cirilo de
Alexandria levou o Imperador Teodósio II a convocar um novo Concílio (Éfeso em
431 d.C.) no qual Nestório foi deposto e a doutrina das duas naturezas, condenada.
Sua obras foram destruídas, o que infelizmente não permitiu que se fizesse uma idéia
mais precisa de sua doutrina. Mesmo assim, ela se propagou e se impôs como doutrina
oficial da igreja da Pérsia entre os cristãos do império sassânida.
A oposição enfrentada pelo nestorianismo acabou gerando uma outra
heresia no sentido radicalmente oposto: o Monofisismo. Este se opôs, ao mesmo
tempo, aos nestorianos e ao poder central de Constantinopla afirmando que o Verbo
encarnado possuía apenas uma natureza, a divina. Essa posição de independência na
interpretação da doutrina da Natureza de Cristo também foi condenada em 448 d.C.
Seu principal articulador, Êutico, foi condenado pelo Concílio de Calcedônia em 451
d.C. que impôs uma nova formulação para a questão: “o Verbo divino, Filho Único de
Deus, nascido da Virgem Maria quanto à sua humanidade, está em duas naturezas que
permanecem sem confusão, sem mudança, sem divisão ou separação”. 48 Mas, longe de
desaparecer, o monofisismo, como que escolhido para integrar uma unidade cultural
étnica e política independente do domínio centralizador de Constantinopla,
desenvolveu-se na Síria e no Egito e espalhou-se por outras províncias do Oriente.
Nesse cenário, prenunciou-se um clima de insatisfação pela dura
autoridade exercida pela capital do império bizantino em face de suas províncias,
48
Cf. DE LIBERA, A. A filosofia medieval, p.27
51
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
52
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Por razões religiosas, o Império bizantino, que não soube ceder lugar aos ‘dissidentes’,
encontrou-se alijado de uma parte essencial de seus recursos intelectuais.”49
Ao norte da Mesopotâmia, duas cidades abrigaram outros dois centros
importantes de desenvolvimento dos estudos filosóficos nesses tempos de transição:
Harran e Edessa. Harran, célebre pelo seu culto à deusa Lua, já era uma cidade tão
antiga quanto a promessa de Deus ao patriarca Abrãao:
“O senhor disse a Abraão: parte da tua terra, da tua pátria, e da tua casa
paterna e vai para a região que eu te mostrarei (ý) Abraão partiu, como o
senhor lhe tinha ordenado, e levou consigo Ló. Ao partir de Harran,
Abraão tinha setenta e cinco anos de idade.”50.
Em 312 a.C. essa região fez parte do império de Alexandre. Com o fechamento da
Escola de Atenas em 529 d.C. por Justiniano, alguns filósofos tais como Damáscio,
Simplício, Hérmias, Diógenes e Isidoro de Gaza deixaram o Império Bizantino e
refugiaram-se no Império Sassânida. No entanto, três anos depois, em 532 d.C.
retornaram e mantiveram a tradição dos estudos em Harran onde Simplício redigiu
seus comentários aristotélicos. Assim, Harran, uma cidade dedicada à filosofia,
afirmou sua importância na translação do saber: “Numa época em que o ensino da
filosofia sofria restrições intensas no coração do Império, a persistência da tradição de
Harran faz dela um dos elos mais importantes do que se poderia chamar “orientação”
dos centros de estudos da Antiguidade tardia até a Idade Média.”51 Também foi notório
o desenvolvimento da Escola de Edessa que, depois da tomada de Nísibe pelos persas
em 363 d.C. tornou-se o principal foco da difusão do cristianismo no império persa. A
partir de 430 d.C. foi marcada pelo nestorianismo mas rivalizou com outros centros de
viés mais próximos à ortodoxia . A Escola foi fechada pelo imperador Zenão em 489
d.C. e muitos se transferiram para Nísibe.
Mas foi em Alexandria, dominada no primeiro século de existência do
Islamismo, que os árabes tomaram contato com um dos mais antigos e ricos centros de
saber da antiguidade. Localizada no Egito a aproximadamente 200 Km da atual capital
do Cairo, Alexandria fôra formada no local onde desde 1.500 a.C. existia uma antiga
cidade faraônica chamada Rhakotis. Quando Alexandre o Grande, rei da Macedônia e
difusor da cultura helênica, dominou essa região, unindo algumas regiões próximas a
49
Cf. DE LIBERA, A. A filosofia medieval, p.30
50
Genesis. 12, 1-5
51
DE LIBERA, A. A Filosofia Medieval, p.26
53
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
essa, fundou a cidade que levou seu nome. O objetivo de Alexandre foi torná-la um
centro de difusão da cultura grega no Egito. Também planejou que Alexandria fosse
uma base naval e uma ligação de acesso para o vale do Nilo pelos macedônios.
Alexandre, morto em 323 a.C. na Babilônia, teria sido enterrado num caixão de ouro
na cidade por ele fundada. Depois de Alexandre, a cidade foi administrada pelos
Ptolomeus, época em que se ergueu o Farol de Alexandria e, pela sua riquíssima
biblioteca que reunia mais de 500.000 papiros tornou-se o centro da cultura mundial
acolhendo sábios de inúmeras partes do mundo. Alexandria, sob o domínio do império
romano, teve a biblioteca incendiada em 48 a.C. pela invasão de Júlio César mas foi
reconstruída em outro local. Essa não foi, porém, a única destruição que a biblioteca
sofreu. Subsequentes ataques à região fizeram a cidade sofrer numerosas perdas de
seus monumentos. O termo “Escola de Alexandria”, em seu sentido mais amplo,
referiu-se tanto aos gregos, como aos judeus ou cristãos que lá desenvolveram suas
doutrinas filosóficas. A gama de assuntos tratada foi ampla e envolveu trabalhos de
gramática, astronomia, medicina, teologia, geografia e de todas as ciências conhecidas
na época. Os nomes que estiveram ligados a Escola de Alexandria mostram a acolhida
de pensadores das mais distintas origens: Aristarco, Eratóstenes, Amônio Sacas, Fílon
e Clemente dentre outros. Além de Alexandria ter sido um dos mais ativos centros do
pensamento cristão, abrigou também cultos egípcios e romanos. Com a crescente
ascenção do cristianismo, o termo “Escola de Alexandria” adquiriu algumas vezes o
sentido mais específico da aproximação que lá se fez entre a filosofia e a religião e as
interpretações alegóricas do texto sagrado. Clemente de Alexandria foi um dos
expoentes desse período mas também Sinesio de Cirene que mesclou o neoplatonismo
com o cristianismo; Herméia de Alexandria comentou o Fedro, usando ideias
dialéticas de Jamblico e Asclépio comentou a Metafisica.
Em Alexandria, o helenismo presente no judaísmo teve em Fílon um de
seus notáveis representantes. Seu trabalho teve papel fundamental para o
desenvolvimento dos cristãos helenizados. Uma de suas importantes contribuições se
deu pela passagem que operou da filosofia com a religião monoteísta num período em
que o cristianismo estava apenas surgindo no cenário religioso e o Islamismo estava há
pelo menos cinco séculos de seu nascimento. De origem judaica, Filon de Alexandria
(25 a.C. -50 d.C) adotou a interpretacao alegórica do Antigo Testamento que se
efetuava entre os judeus cultos da comunidade de Alexandria. As influencias da
filosofia grega, principalmente de Platão e dos estóicos, foram a marca das grandes
54
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
52
MORA, J.F. Diccionario de Filosofia. Buenos Aires:Sudamericana, 171 pp.345.
53
GILSON, A Filosofia na Idade Média, p. 23
55
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
54
DE LIBERA, A. A filosofia medieval ,p.30
55
DE LIBERA, A. A filosofia medieval, p.32
56
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
56
DE LIBERA, A. A filosofia medieval , p.32
57
ELIADE, M. Dicionário das Religiões. São Paulo: ed. Martins Fontes: 1999, pp.108-109.
57
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
na França, mas mesmo assim tomaram, ainda, Creta em 823 d.C. e a Sicília em 827
d.C.
As conquistas árabes frente às regiões dominadas por Bizâncio,
contaram, surpreendentemente, com a ajuda das próprias populações locais, devido,
principalmente, à insatisfação dos grupos heréticos que se opunham à opressão
exercida por Constantinopla sobre essas regiões. “Na batalha de Yarmýk, na qual
foram destroçados os exércitos do Império, 12.000 cristãos árabes passaram para o
lado do inimigo.”58 Aos heréticos do cristianismo instalados nos domínios do Império
Bizantino, era preferível aderirem ao islamismo a suportarem as pressões locais e,
assim, não regiram e facilitaram a invasão árabe. O Império Bizantino ficou bastante
reduzido mas talvez mais homogêneo pois se livrara dos monofisitas e de outros
grupos dissidentes que haviam sido causas de constantes ameaças de desintegração do
Império. Por outro lado, os diversos centros de estudos, de cultura, filosofia e religião
que estiveram sob o domínio de Bizâncio e da língua grega, como língua oficial, foram
sendo paulatinamente, substituídos pela língua árabe.
58
DUÉ,A. Atlas histórico do Cristianismo São Paulo, ed.Vozes, 1999,p.102.
58
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
3- NO ISLAM NASCENTE
5959
1REIS 10, 1.
59
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
60
HERNANDEZ, M.C. História del pensamiento en el mundo islâmico. , p.31.
61
LEWIS, B. Os árabes na história. p. 29.
60
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Ser uma rota de tráfego entre os países do Mediterrâneo e o Extremo Oriente parece ter
sido, desde sempre, uma de suas mais singulares missões e assim como,
geograficamente, os árabes foram rotas de comércio, na filosofia foram pontes de
saber. Em algumas cidades havia comunidades cristãs e judaicas que, pelo perfil
monoteísta, viriam a contribuir para a formação da nova religião islâmica.
Ka‘aba. – imagens principais deusas e deuses das diversas tribos além de pedras,
divindades astrais e ícones cristãos. Segundo a tradição, a Caaba teria sido construída
pelo próprio Adão mas, levada pelo dilúvio, fora sido reconstruída por Abraão e seu
filho Ismael, os quais teriam colocado em seu interior a Pedra Negra – provavelmente
um meteorito – que teria sido trazida pelo anjo Gabriel para selar a amizade de Deus
com os homens.
Como bem assinala Mantran, “em fins do séc. VI d.C. a Arábia era um
mundo menos isolado do que se supôs durante muito tempo, um mundo em vias de
transformação, de evolução: uma certa tendência para a unidade se fazia sentir, tanto
no domínio religioso, como no da organização social e política. Essa tendência, o
Profeta Mu¬ammad iria transformar numa realidade dinâmica.”62
62
MANTRAM, R. Expansão muçullmana., p.56.
61
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
63
LEWIS, op. cit. p.57.
62
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
64
¢¬˜«[ / Surata 96 / a célula ou o coágulo (de sangue).
63
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
ordem existente, em Medina era ele que governava. Em Meca pregava o Islām, em
Medina podia pô-lo em prática.”65
Mu¬ammad permaneceu nessa cidade por dez anos, continuando a receber revelações e
a fortificar a nova religião. À crescente conversão verificada nesses anos seguiram-se
algumas peregrinações pacíficas dos muçulmanos a Meca mas que não escondiam a
tensão insurgente que levaria Mu¬ammad a tomar a cidade anos depois, tornando-a o
centro de peregrinação e de orientação do islamismo. A missão de Mu¬ammad parecia
praticamente concluída. Depois disso, ele viveu apenas mais um ano vindo a falecer
em 8 de junho de 632 d.C. / 11 H. O caminho indicado pelo Profeta havia dado aos
árabes uma unidade que, talvez, latente no seio do povo, só foi possível após a crença
de que o testamento escrito pelo próprio Deus, em árabe, era o selo da unidade e o guia
da verdade, assim como o fôra anteriormente aos judeus e aos cristãos.
3.3 O Alcorão
65
LEWIS, op. cit. p.49.
66
Alcorão, 1a Surata.
64
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
O Alcorão fornece istruções acerca da conduta de vida do crente e é uma fonte ética de
orientação para a comunidade. A maior parte das revelações se deu por
aproximadamente vinte anos e foi registrada por vários discípulos e secretários. Logo
após sua morte, havia grande número de textos somados à tradição oral que estava
fortemente viva pelos testemunhos daqueles que conviveram com ele, lembravam de
suas palavras e as repetiam. Os primeiros califas trataram de organizar o texto em
ordem decrescente por extensão de capítulos e estabeleceram-no como o encontramos
até os dias de hoje dividido em 114 capítulos – ou suratas – que contém, cada uma, um
número variável de versos .
Uma das diferenças entre a composição do Alcorão em vistas da Torá e
da Bíblia Sagrada foi o fato do primeiro ter sido revelado a um só homem e ter sido
registrado poucos anos depois de sua morte. A mensagem do Alcorão não procurou
uma nova fé, mas sim reestabelecer a pureza original da religião revelada por Deus a
Abraão e a Ismael. Esta teria sido alterada por judeus e por cristãos, apesar de lhes ter
sido lembrada por inúmeros profetas de Moisés até Jesus ao longo do tempo. No
Alcorão, depois do nome de Deus, o mais citado é o de Abraão –Ibrah÷m – Também há
referências a Ismael, Isaac, Moisés, Salomão e uma série de nomes provenientes da
revelação contida no Antigo Testamento. Quanto ao Novo Testamento, são citados os
nomes de vários Apóstolos e o de São João Batista. Jesus é considerado filho do
Espírito com a Virgem Maria, e o profeta que antecedeu o próprio Mu¬ammad. Ao
invés da trindade, afirma-se a unidade absoluta de Deus.67
Perde-se muito na tradução do Alcorão para as línguas modernas
porque o texto é escrito numa prosa ritmada e com grande força imagética própria da
língua árabe. Muito da força religiosa repousa na sonoridade e no ritmo que lhe são
próprios. Vale lembrar que “antes de ser um texto graficamente fixado, o Alcorão foi
uma recitação; e resta uma recitação litúrgica até os nossos dias.”68Seguindo
basicamente três níveis, isto é, metafórico, narrativo e estilístico, o Alcorão centra-se
em temas como a unidade absoluta e transcendente de Deus, seu poder e a condição
humana frente a Ele e à sua Criação. A imagem do Juízo Final é afirmada como um
paradigma pelo qual o crente deve guiar-se. Vários relatos da Bíblia são reinterpretados
(Adão e Eva, Abraão e Ismael, dentre outros). Na medida em que exorta a uma vida
digna e verdadeira, o Alcorão recomenda a conduta que o fiel deve seguir tanto no
67
HERNANDEZ op.cit. p.45.
68
ARKOUN, op. cit. p. 9.
65
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
66
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
3.5 Os Omíadas
70
MANTRAN, op.cit. p.80.
67
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
a sucessão dos califas por linha direta tentando evitar os perigos da eleição e da guerra
civil. Também criou conselhos consultivos junto ao califado procurando amenizar as
tensões do separatismo. Após o califado de Mu‘āwiya (661 a 681 d.C.), a dinastia
Omíada governou por mais 70 anos através de nove sucessores em meio a extremas
agitações.
A segunda fase da expansão muçulmana se deu nos períodos de certa
calma interna do califado Omíada. As expedições tiveram três direções: Constantinopla
e Ásia Menor; norte da África e Espanha; e Ásia Central. Nesse período, vários foram
os cercos à capital do Império bizantino – Constantinopla –, mas esta resistiu e iria cair
somente sete séculos mais tarde com a invasão dos turcos. Os árabes também fizeram
incursões nas ilhas gregas de Rodes, Creta e, possivelmente, na Sicília. À conquista em
direção ao norte da África seguiram-se as incursões na Espanha. Em 711 d.C., Æāriq
ocupou Córdoba e Toledo cidades onde a conquista foi facilitada pelos judeus que lá
habitavam e que apoiaram os muçulmanos, reagindo, assim, contra as perseguições dos
visigodos. Os muçulmanos prosseguiram mais ao norte, penetraram no sul da Gália, e
só foram detidos em 732 d.C. em Poitiers. Esse foi o ponto extremo a que chegaram na
Europa. Na direção da Asia Central, avançaram ao nordeste do Irã, atingiram o rio
Indo, em 713 d.C. chegando ao centro budista de Multan que por algum tempo foi o
ponto mais avançado do Islām na India. No último reinado de ‘Abd al-Malik houve um
período de esplendor que antecedeu os anos finais de anarquia entre 744 e 750 d.C., e
terminou com a queda da dinastia Omíada.
3.6 Os Abássidas
68
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
urbana menos favorecida, designadamente dos mercadores e artesãos (...) que a força
impulsionadora da revolução deve ser procurada.”71 Mais do que a simples mudança de
dinastia, a substituição dos Omíadas pelos Abássidas na direção da comunidade
islâmica se configurou numa grande revolução na história do Islām, “uma viragem tão
72
importante quanto as revoluções francesas e russa na história do Ocidente.”
Considerado como um período de amplo desenvolvimento da arte, da cultura, da
filosofia e das ciências da época, o califado dos Abássidas manteve seu vigor até
meados do sec. XI d.C. quando as invasões dos mongóis, turcos seldjúcidas e, depois,
dos turcos otomanos alteraram definitivamente a fisionomia do império arabo-islâmico
dos primeiros séculos.
Uma das primeiras medidas tomada pela nova dinastia – e um de seus
marcos –, foi a transferência da capital política de Damasco, na Síria, para Bagdá, no
Iraque durante o reinado do primeiro califa, ’Abu ‘Abbā as-Saffāh (750 a 754 d.C) e de
seu irmão ’Abu Ja‘far Al-Mansýr que reinou durante por pouco mais duas décadas (
754 - 775 d.C.). Foi sob o reinado deste último que se efetivou a mudança da capital
com a fundação da cidade de Mad÷nat as-Salām (a Cidade da Paz) que acabou ficando
conhecida pela região que a abrigava, isto é, Bagdá. O geógrafo Ya‘qýbi, conta como
Al-Mansur se referiu ao local escolhido para a fundação da cidade:
“ Essa ilha entre o Tigre, a oriente e o Eufrates, a ocidente, é um
mercado para o mundo.(...) Louvado seja Deus que guardou esse lugar
para mim e fez com que todos aqueles que me precederam, o tivessem
desprezado. Juro por Deus que farei a sua reconstrução e, então,
habitarei aqui enquanto viver e os meus descendentes habitarão depois
de mim. Será a cidade mais próspera do mundo.” 73
Inicialmente, de formato circular, Bagdá continha o palácio do califa ao centro e, ao
redor, mesquitas, edifícios públicos e residências para funcionários. A mudança da
capital não significou apenas uma mudança territorial mas também o conceito de
califado. Enquanto os primeiros califas árabes eram homens que se igualavam aos
outros e podiam ser abordados e misturavam-se ao povo, a dinastia Abássida cercou-se
de pompas e cerimônias –possivelmente de influência persa-, reivindicando um direito
quase divino. Se o califa Omíada ainda guardava traços do chefe das tribos árabes, ou
71
LEWIS, op. cit. p. 94
72
LEWIS, op. cit .p. 93.
73
LEWIS, op. cit.p.96
69
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
um rei árabe limitado por ser o representante do profeta de Deus, o califa Abássida
teve o perfil do chefe espiritual e temporal, um soberano absoluto que atribuiu a si
mesmo ser o representante de Deus sobre a terra. Foi nesse período que se criou,
também, a figura do vizir (waz÷r), inovação, possivelmente também de origem persa
para este que tinha toda a responsabilidade da burocracia administrativa e, por isso,
tinha muito poder.
Al-Mahd÷ (775-785 d.C.) sucedeu Al-Man½ýr, seguiu na organização do
estado e se ocupou em reprimir inúmeros movimentos separatistas de seitas
heterodoxas. Ao mesmo tempo as transações comerciais se intensificaram. Vale
lembrar que o comércio tinha, para os árabes, o paradigma do mercador íntegro
seguindo o exemplo de Mu¬ammad, símbolo ético nas transações. Segundo a tradição,
disse o Profeta: “os mercadores são os mensageiros do universo e os servos a quem
Deus depositou confiança na Terra.”74 Depois do reinado de Al-Mahd÷, Harýn ar-
Ra¹id, talvez o mais conhecido califa desse período, governou de 786 a 809 d.C. No
Ocidente ficou conhecido pelo seu relacionamento com Carlos Magno. Morto numa
expedição, sua sucessão gerou uma guerra da qual Al-Ma’mýn saiu vencedor e
permaneceu no poder durante vinte anos (813 a 833 d.C.).
O reinado de Al-Ma’mýn foi o apogeu da dinastia Abássida. Nessa
época, em que Bagdá já havia se desenvolvido a ponto de ser renomada pelos seus
intelectuais, o próprio califa interessou-se pelas obra gregas que eram traduzidas por
cristãos e judeus para a língua árabe e incentivou esse movimento. Após o governo de
Al-Ma’mýn sucedeu-o Al-Mu‘ta½im (833-847 d.C.) e Al-Mutawakkil (847- 861 d.C.)
Com a morte deste último a dinastia se enfraqueceu e não dominou mais de modo
absoluto.
Do grande desenvolvimento que se observou na administração do
império, no comércio e nas cidades, o impulso nas letras foi o mais relevante no
estabelecimento das bases para o pensamento filosófico no Islām. Nesse período a
língua árabe foi amplamente adotada por todo o império. Se nos tempos dos Omíadas,
a cultura e literatura dos beduínos eram tratadas com preeminência, no califado
Abássida, os núcleos de ciência e cultura se fixaram definitivamente nas cidades e,
entre elas, Bagdá. Com a fundação da Bait al-Hikma ( a Casa da Sabedoria) por Al-
Ma’mýn, Bagdá se tornou a capital intelectual do império numa época em que os
74
LEWIS, op.cit.p.105.
70
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
75
MANTRAN op.cit.,p.136.
76
MANTRAN, op. cit., 137.
71
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
foi proclamado emir em Córdoba. Essa situação permaneceu até o governo Fatímida
no Egito ter se proclamado como um novo califado. Na mesma época, o emir ‘Abd al-
Ra¬mān III também se proclamou califa em Córdoba, afirmando a tradição do
califado Omíada e sustentando-se como chefe da comunidade muçulmana no período
de apogeu de Córdoba.
As divisões internas do mundo islâmico, a partir do séc. X d.C./ V H.,
lhe conferiram uma face bem distinta da época das conquistas. “ O sec. X. d.C. foi o
último grande século do mundo muçulmano, resultado da expansão que começou logo
após a morte do Profeta (...) daí resultaram tendências que fizeram do Islām não mais
uma realidade árabe, mas uma realidade berbere, turca ou iraniana.”77. Já no século XI
d.C. / VI H. o mundo islâmico sofreu, simultaneamente, ataques e invasões dos turcos
pelo Oriente, dos berberes no norte da África e na Espanha, dos cristãos na Síria, na
Sicília e na Espanha, modificando a face política, cultural e territorial do Islām.
O período de apogeu do império arabo-islâmico criou momentos
florescentes, pela intersecção de várias culturas sob a égide da religião trazida pelos
árabes. Dessa construção cultural participaram muitos povos além dos árabes tais como
persas, egípcios e sírios, dentre outros. Ao mesmo tempo, a tolerância religiosa nas
regiões conquistadas abrigou uma comunidade que não era exclusivamente muçulmana
mas que contava com cristãos, judeus, zoroastrianos e hindus, entre outros. Para nosso
desiderato, cumpre deter-se sobre a chamada “idade do ouro”, notadamente sob o
reinado de Al-Ma’mýn no qual se deu a recepção das obras filosóficas gregas e do
conjunto de grande parte das ciências conhecidas da época, somando-se a isso a
reunião de vários sábios na cidade de Bagdá do séc. IX d.C. / III H., particularmente
nas traduções realizadas na Casa da Sabedoria, o berço da falsafa.
77
MANTRAN, op. cit., p. 162
72
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
três tipos de ciência: da leitura ( ºÆ[z£«[ ±¬— / ‘ilm al-qirā’at); da exegese ( zÀŸb /
78
HERNANDEZ, op.cit.,p.99
73
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
3.8 O Kalām
79
Cf. Cap. 1./1.7.
74
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
bizantinos e é, sem dúvida, do lado da cultura cristã que é preciso buscar sua
origem.”80
As disputas iniciais acerca das diferentes teses suscitadas pela
interpretação do texto sagrado dividiram, logo de início, as opiniões e originaram uma
série de escolas. O termo “mutakallimýn”, a princípio usado para nomear os teólogos
de modo indistinto, se aplicou, depois, mais para designar os ortodoxos em vista das
escolas que se afastaram da ortodoxia. Por sinal, “a primeira escola de teólogos
especulativos é herética: a dos mu’tazilitas.”81
Além das disputas internas, os primeiros mu’tazilitas se ocuparam
também em refutar os argumentos dirigidos contra o Islām pelos judeus, pelos cristãos
e pelos pagãos. Dentre esses últimos, os materialistas e os maniqueus. Para tal, desde o
início, os mu’tazilitas apoiaram-se no que denominaram de “a racionalidade das vias
de Deus”, buscando fundamentar intelectualmente suas posições sem descartar a
autoridade da Escritura. Suas teses ficaram conhecidas através de comentadores
posteriores que as citaram em suas obras. Caracteristicamente marcada pela
heterogeneidade de suas opiniões, a escola mu’tazilita integrou teólogos que, apesar
das divergências, tinham pontos básicos de concórdia, dentre os quais a unidade de
Deus e o modo pela qual a expressavam:
“Deus não é, dizem eles, como as coisas; ele não é nem corpo, nem
acidente, nem elemento, nem átomo, nem substância, Ele não é
perceptível aos sentidos nem neste mundo e nem no outro; ele não está
contido num lugar e nem limitado por dimensões, mas ele é aquele que
não cessa. Ele não conhece nem tempo e nem lugar; nem fim nem
limite; ele é o Criador de todas as coisas e ele as faz sair do nada. Ele é
eterno, e tudo, fora dele, é engendrado.”82
Aos primeiros sinais da possibilidade de um racionalização da concepção da unidade
de Deus, os mu’tazilita manifestaram uma certa proximidade com os conceitos
aristotélicos a esse respeito e com fontes anteriores que se mesclaram nesta síntese.
Um outro exemplo dos problemas enfrentados pelos primeiros teólogos encontrou-se
como uma das primeiras questões maiores tratadas no séc. VII d.C. Também os
80
CARRA DE VAUX, op. cit.,p. 134.
81
CARRA DE VAUX, op. cit.,p. 134
82
CARRA DE VAUX, op. cit.,p. 137
75
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
83
FAKHRY, op.cit., p.21
84
FAKHRY, op.cit., p.19
76
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
políticas de primeira ordem. A estreita relação entre a política e a religião, entre estado
temporal e espiritual nutriram desde o início as controvérsias político-religiosas. Como
bem destaca Fakhry, “Os conceitos religiosos foram frequentemente formulados para
servir de sustentação a posições políticas opostas tendo, depois, uma importância
decisiva no desenvolvimento ulterior da teologia islâmica.”85 Ao mesmo tempo que a
filosofia e a lógica gregas forneciam elementos para a teologia islâmica, o volume de
traduções foi suficiente para despertar o interesse dos árabes fazendo com que a
filosofia se constituísse num ramo próprio que não se confundiria com a teologia.
Tendo continuado em árabe, a falsafa foi, assim, herdeira do pensamento filosófico da
antiguidade de inspiração grega no mundo islâmico.
85
FAHKRY, op.cit., p.61.
77
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
86
MIQUEL, O Islame in GIORDANI, p. 71.
78
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
87
FAHKRY, op. cit., p. 26
79
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
80
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
81
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
88
Ibid, p. 32
89
Ibid, p. 33
82
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
90
Ibid, p. 34
83
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
91
Ibid, p.36
92
Ibid, p. 37
84
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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85
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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86
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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87
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
88
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
contra suas teses, principalmente por parte dos teólogos islâmicos e, no terceiro
momento, houve uma contra-reação em defesa da filosofia aristotélica, na tentativa de
reforma da falsafa. Na curva ascendente das traduções, da recepção e da internalização,
a filosofia de Al-Kind÷, os sistemas de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā foram os maiores
representantes. A reação dos teólogos coincidiu com uma certa paralisação da
influência do pensamento grego e teve na controversa figura de Al-¦azāl÷ um bom
exemplo disso. O momento crítico foi realizado por Ibn Ru¹d na tentativa de
restabelecer as bases propriamente aristotélicas confrontando-as com os elementos
neoplatônicos.
O primeiro período, considerado como a recepção propriamente dita de
Aristóteles, foi realizado pelos próprios tradutores que acabaram escrevendo uma série
de comentários às obras do mestre grego. O termo dessa primeira etapa da recepção de
Aristóteles teve como símbolo a presença de Al-Kind÷. O primeiro filósofo árabe e
muçulmano que entrou em contato com as idéias de Aristóteles. Apesar de Al-Kind÷
não ter se aprofundado nas temáticas aristotélicas e, muitas vezes, transparecer uma
certa superficialidade em suas abordagens em vista da maior profundidade encontrada
no Estagirita, seu mérito foi, entre outros, ter preparado o terreno para Aristóteles.
Mantendo-se próximo aos tradutores, Al-Kind÷ além de influenciar o califa Al-
Mu‘ta½im para que houvesse prosseguimento nas traduções, encorajou-os e contribuiu
na revisão e na correção do texto árabe, criando e adaptando termos que eram
inexistentes para a nova língua da filosofia.
O segundo momento foi marcado pelo pensamento de Al-Fārāb÷ e de
Ibn S÷nā em que houve um aprofundamento significativo no entendimento das próprias
teorias aristotélicas e uma fusão mais elaborada com os elementos do neoplatonismo.
Al-Fārāb÷ escreveu uma série de comentários às obras de Aristóteles seguindo a
tradição dos comentaristas gregos que o precederam. Infelizmente a maioria desses
comentários se perdeu. No entanto, nesse período, Aristóteles já estava inteiramente
integrado no cenário da filosofia entre os árabes. “Com a obra de Al-Fārāb÷ e o
trabalho desses tradutores-comentadores, a obra inteira de Aristóteles se encontra
integralmente traduzida e parcialmente comentada ou anotada, ao final do IV séc. da
Hégira (X d.C. ). A autoridade de Aristóteles está, pois, solidamente estabelecida.”93
No entanto, o pensamento de Al-Fārāb÷ ficou mais conhecido por seu lado
93
BADAWI, La transmission, op. cit. p. 81.
89
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
90
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Miguel Attie Filho
portanto, do aristotelismo entre os árabes foi marcado pela atenção e cuidado que a
obra de Aristóteles recebeu de Ibn Ru¹d. “A partir de então esses dois nomes:
Aristóteles e Ibn Ru¹d estarão, inseparavelmente ligados. Nenhum outro filósofo teve
esta grande chance de ter tido um comentador de suas obras tão fervoroso, inteligente e
perseverante. Mesmo sua monumental obra original: Tahāfut at-Tahāfut, a refutação
do livro de Al-¦azāl÷ contra os filósofos é uma defesa vitoriosa da filosofia de
Aristóteles.” 94
Alguns títulos das obras que foram traduzidas de autoria do próprio
Aristóteles ou obras apócrifas a ele atribuídas – seguidas pelos nome dos principais
tradutores – são os seguintes:
As Categorias / ©unayn bin Is¬aq ; Primeiros analiticos / Tutār÷ ; Segundos analiticos
/ Ibn Yýnis ; Tópicos/ Abu ‘Utmān al-Dima¹qu÷ ; Refutações Sofisticas / Ya¬ya bin
‘Adiy ; Retórica ; Poética/ Ibn Yýnis ; Física/ ©unayn bin Is¬aq ; De Caelo ; Geração
e Corrupção / ©unayn bin Is¬aq ; Meteorológicos/ Yahia bin al-Bitr÷q ; De Anima /
©unayn bin Is¬aq ; De sensu et sensato ; Sobre os Animais: Yahia bin al-Bitr÷q ;
Metafísica ; Ética a Nicômaco/ Is¬aq bin ©unayn.
Alguns títulos dos textos apócrifos são: Tratado sobre a economia, As
questões, O Bem Puro, Das causas das propriedades dos Elementos, De Plantis,
Teologia de Aristóteles, Secretum Secretorum, Sobre a Justiça, O Livro das Pedras, O
Livro do Espelho, Istimachus (magia e talismãs), O Tesouro, Epístola sobre a magia,
O livro de Hermes, Definição das Naturezas, Epístola de Aristóteles a Alexandre sobre
a Política, Tratado de Aristóteles sobre a Economia, Sentencas e Máximas atribuidas
a Aristóteles, As Virtudes da Alma.
94
Ibid, p. 87.
91
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
tanta a atenção dos filósofos, o que acarretou uma grande diferença entre o interesse
direto pelas suas obras em vistas das obras do Estagirita. Badawi se refere a esse fato,
dizendo que “contrariamente ao destino das obras de Aristóteles, o das obras de Platão
no mundo árabe foi medíocre (!). Com certeza, conhecia-se bem sua vida, seu papel na
história da filosofia grega, até mesmo estendendo-se longamente sobre detalhes de sua
vida (...) mas o que é realmente estranho é que nenhuma de suas obras autênticas nos
95
tenha chegado em uma tradução árabe.” Afinal, à primeira vista, o pensamento de
Platão poderia parecer ter maior afinidade com os orientais do que os tratados de
Aristóteles.
95
Ibid, p. 35.
92
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
96
Ibid, p. 37.
97
Ibid, p. 43
93
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
O “Platão Árabe” foi editado em 1974 por Badawi com uma seleção dos apócrifos a
ele atribuídos intitulado Aflatun fi al-Islam (Platon en pays d'Islam) publicado numa
segunda edição em Beirute em 1980.98
grego”.
Além de sua vida e de sua personalidade terem ficado sem referências
claras, também não se conheceu dele nenhum livro. Resumiu-se de suas Enéadas –
com paráfrases e alterações na ordem – as três últimas: IV-V-VI resultando no apócrifo
Teologia de Aristóteles. A importância das teses plotinianas da emanação contidas na
Teologia, – que foram a pedra angular da cosmologia de Al-Fārāb÷ e de Ibn S÷nā –
contrastou enormemente com o fato de sequer Plotino ter sido conhecido pelo seu
verdadeiro nome. Raramente aparece em algumas listas de filósofos gregos, de modo
fortuito como, por exemplo, na lista fornecida pelo biógrafo Ibn an-Nad÷m em que o
98
Ibid, p. 45
94
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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95
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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101
Ibid, p.47. A®mad era um dos filhos do califa Al-Mu‘tassim que reinou entre 833 e 842 d.C.
102
Ibid, p.51s. Cf. também FAHKRY p.44.
96
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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103
Ibid, p.65.
97
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
da alma e seu retorno ao mundo superior; a emanação dos seres a partir do Uno e como
a Alma entra na matéria e na Natureza, o lugar da alma entre o mundo sensível e
inteligível; a respeito do ato e da potência; sobre a imortalidade da alma racional; como
do Uno procede a multiplicidade; o retorno da alma à sua origem.
Juntamente com a Teologia, boa parte das teses neoplatônicas
circularam também através de uma obra atribuída ao neoplatônico Proclus sob o nome
de Liber de Causis. Este se compunha de 32 proposições que expunham de modo mais
sucinto do que a Teologia a teoria da processão das hipóstases. Não se sabe bem em
que data essa obra foi traduzida para a língua árabe mas é certo que no séc. X d.C. / V
H. já circulava entre os filósofos. Estas duas obras – A Teologia e o Liber de Causis –
foram as duas vias mais intensas pelas quais o neoplatonismo penetrou no mundo árabe
para formar a falsafa. Nessas duas obras de perfil neoplatônico encontram-se a
transcendência absoluta do Princípio Primeiro ou Deus, a processão ou emanação das
coisas a partir d’Ele; o papel do Intelecto como instrumento de Deus na criação e fonte
de iluminação e conhecimento para o espírito humano, e a posição da alma enquanto
ligação entre o mundo inteligível e o mundo sensível.
98
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
104
FAKHRY, op. cit, p.55
99
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Miguel Attie Filho
5. A FALSAFA E OS FAL¶SIFA
105105
GUERRERO, R. Obras Filosóficas de Al-Kindi. op.cit., p.41.
106
BADAWI, op. cit., pp. 387-393.
100
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Miguel Attie Filho
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como a alma pode ser conhecida pelos efeitos que ela produz no corpo, assim
também o mundo invisível pode ser conhecido por meio da organização e dos efeitos
que dele procedem em relação ao mundo visível. Em suas linhas mestras, o sistema
de Al-Kind÷ se ampara nessas primeiras definições para estabelecer, por um lado, o
mundo não-eterno e, por outro, Deus-eterno como o seu Criador. Deus é, pois, aquele
que não tem causa e, por isso, é eterno. O mundo, por sua vez, é causado e é uma
criação Sua. Deus, transcendendo a Sua criação, é entendido, pois, segundo o dogma
da trilogia da revelação das escrituras sagradas judaico-cristã-islâmica.
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equilíbrio natural das virtudes da alma pode ser obtido pela filosofia e pelo hábito, pois
a verdadeira virtude humana está naquilo em que acostumamos a nossa alma.
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Miguel Attie Filho
Encontra-se nos falāsifa posteriores –notadamente Al-Fārāb÷, Ibn S÷nā e Ibn Ru¹d –
maior completude e profundidade. Mas, voltemos a mais algumas definições.
“Filosofia”é um dos termos mais explicados na Epístola. Al-Kind÷
enumera cinco proposições distintas a esse respeito. Primeiramente, o termo
“filosofia”é explicado segundo a etimologia original da palavra grega, entendida, pois,
como o “amor à sabedoria”. No entanto, Al-Kind÷, também, evoca aqueles que a
chamaram de a “arte das artes” ou “a sabedoria das sabedorias”. Segundo ele, em sua
essência, a filosofia também pode ser entendida como uma ação que se assemelha à
ação do Deus Altíssimo visto que isso é possível ao homem que busca se aperfeiçoar
em suas virtudes. Ora, mas como deve o homem aperfeiçoar as virtudes de sua alma ?
A terceira explicação indica que isso pode ser conseguido se a filosofia for entendida
como uma preocupação pela morte, segundo o que dizem alguns. Nesse caso, não
refere-se à morte natural –na qual a alma deixa o corpo –, mas a morte das paixões.
Essa mortificação é um dos caminhos para se chegar à virtude, na medida em que se
busca alcançar o prazer que se encontra no mundo das essências intelectuais em
oposição ao mundo dos prazeres sensíveis. Essa direção da alma pode ser conseguida
pelo hábito que o homem desenvolve em sua conduta, visto que a alma tem a
predisposição para atuar em dois níveis distintos: um nível sensível e um nível
intelectual. Quando a alma está ocupada com os prazeres sensíveis, ela abandona, por
conseqüência, o uso do intelecto e não alcança sua verdadeira perfeição.
Uma outra definição do termo “filosofia” tendendo a uma inspiração
socrática entende-a como o conhecimento que o homem tem de si mesmo. Al-Kind÷
sublinha que essa expressão é de grande profundidade e possui uma nobre finalidade,
exemplificando esse caso do seguinte modo: “visto que as coisas são corpos e não-
corpos; que os corpos são substâncias ou acidentes; que o homem é corpo, alma e
acidentes; e que a alma é substância e não corpo, então, se o homem conhece a si
mesmo, conhece o corpo com seus acidentes, o acidente primeiro e a substância que
não é corpo. Ora, se ele conhece tudo isso, então conhece tudo. Por essa razão os
filósofos chamaram o homem de microcosmos.”107 Al-Kind÷ parece preferir entender a
filosofia como o conhecimento das coisas eternas e universais, de seu ser, de sua
essência e de suas causas na medida do possível ao homem. Quanto à posição que o
homem ocupa em sua condição de possibilidade, os últimos três itens da Epístola –
107
GUERRERO, op.cit., p.21.
106
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Miguel Attie Filho
108
Ibid, p.24.
109
Ibid, p.19, v.56.
107
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110
Ibid, p.156.
111
Ibid,p.157.
108
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Miguel Attie Filho
Além disso, devemos levar em consideração que aquilo que nos origina
a tristeza ou é uma ação nossa ou é uma ação de outro. Ora, no caso de sermos nós
próprios o agente daquela ação que nos entristece, então desde que paremos de fazer tal
ação, não mais nos entristeceremos. Se, por outro lado, a ação provem de um outro,
pode estar em nossas mãos afastá-la, e é o que devemos fazer quando é esse o caso.
Mas se, de outro modo, não depende de nós afastar tal ação, não devemos nos
entristecer antecipadamente pois talvez antes que aconteça aquilo que nos entristeça,
tal ação seja afastada por um motivo que não depende de nós e essa hipotética tristeza
jamais nos atingirá. De todo modo, não devemos nos entristecer pois “quem entristece
112
Ibid, p.157.
109
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
sua alma, a maltrata e quem a maltrata é um ignorante, injusto até não mais poder,
porque causou um dano à sua alma. Se houvesse feito isso com outro, seria ignorante e
injusto, mas ao fazê-lo consigo mesmo o é ainda mais, e não deveríamos estar
contentes em sermos os mais ignorantes, os mais grosseiros e os mais injustos.”113
Al-Kind÷ alerta para o fato de que se não queremos que nos aflijam as
desgraças, o que queremos é, em última análise, não existir pois essa é a condição dos
seres gerados e corruptíveis. Se queremos algo distinto do que é a natureza, estamos
querendo o impossível. Ao Criador pertence o que possuímos e, por isso, Ele pode
retirar o que nos dera a qualquer momento, às vezes, até mesmo, pelas mãos de nossos
inimigos. Quando alguem recebe um empréstimo e pensa que aquilo é seu, não está
sendo agradecido, pois o mínimo que deve fazer é devolver o que foi emprestado
quando isso for pedido de volta. Por isso, aquele que está triste por ter de devolver o
que lhe foi emprestado está sendo pouco agradecido. Se formos sabedores disso, então,
deveríamos considerar motivo de vergonha quando nos apoiamos em desculpas
113
Ibid,p.160
114
Ibid, p.162.
110
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
infantis dizendo: “estamos tristes porque aquele que nos emprestou algo recuperou seu
empréstimo pelas mãos de nossos inimigos.”115 Voltando-nos a nós mesmos, ainda que
desejemos que nada nos seja retirado ou que não alcancemos o que queremos,
podemos dizer: “ainda que nos arrebate o menor e o menos valioso, nos fica o mais
excelente e abundante enquanto permaneçam nossas almas.”116
111
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
conchas, flores e outras coisas que julgaram dever levar consigo na viagem de volta a
sua pátria. Estes, além de ocupar lugares mais apertados e desconfortáveis, tiveram de
se apinhar com as coisas desnecessárias que traziam consigo. Pior do que isso, tinham,
ainda, que cuidar dessas coisas a maior parte do tempo, ficando tristes quando algumas
delas se perdiam.
O caso mais extremo foi, porém, o dos passageiros que se embrenharam
nas matas que havia naquele lugar esquecendo-se completamente do barco e da pátria a
que se dirigiam. Na mata cerrada, correram grandes perigos, fosse pelos ataques de
animais, de armadilhas da floresta ou das doenças que podiam contrair. Quando
chegou a hora de continuarem a viagem, o capitão chamou a todos para a partida do
barco: alguns ainda foram capazes de escutá-lo e entraram no barco, mas traziam
muitas moléstias e ferimentos, terminando por ficarem nos lugares mais incômodos do
barco amontoados uns sobre os outros em péssimas condições; para aqueles outros, que
se embrenharam profundamente nos bosques, a voz do capitão sequer foi ouvida e o
barco partiu sem eles. Alguns foram mortos pelas feras, outros pelas doenças tendo
permanecido separados de sua pátria e, por isso, causaram muita tristeza para aqueles
que seguiram viagem. Aos que estavam no barco carregados com o peso das coisas que
recolheram ocorreu que não tardou para as conchas começassem a exalar um odor
fétido, as flores murchassem e as pedras perdessem seu colorido, e eles foram
obrigados a jogar tudo ao mar para livrarem-se do estorvo daquilo que lhes tirava a
liberdade. No fim, ficaram de mãos vazias. Muitos desses adquiriram doenças devido
aos odores daquelas coisas, mas, mesmo assim, debilitados, seguiram viagem. Outros
acabaram morrendo assim como muitos daqueles que haviam se embrenhado nos
bosques. Dentre aqueles os que somente se demoraram a contemplar as coisas daquela
terra ocorreu somente que não conseguiram os lugares mais amplos e cômodos do
barco mas seguiram sua viagem com tranqüilidade. Quanto aos que voltaram ao barco
sem entreterem-se com nada das coisas que chegavam aos seus sentidos, exceto a visão
que contemplaram seus olhos, ao sair do barco, ocuparam os lugares mais amplos e
mais confortáveis e chegaram comodamente à sua pátria.
Essa narrativa, mostrando várias maneiras pelas quais o homem poderia
transpor sua viagem, constituiu-se num “exemplo de nossa passagem por este mundo
em direção ao mundo verdadeiro.”120 Se realmente houvesse um motivo para nos
120
Ibid, p.168.
112
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
121
Ibn Sina escreveu uma espístola que trata do tema da cura do medo da morte.
113
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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exteriores que possuem os reis, também não possuímos aquilo que acompanha tais
posses tais como a cólera e a concupiscência que são fontes de males e dores da alma.
Afinal, pior do que a enfermidade do corpo é a enfermidade da alma.
Desse modo, Al-Kind÷ encerra a Arte da Consolação desejando que
esses conselhos sejam um exemplo firme a seguir para que nos salvemos dos males da
tristeza e possamos chegar à pátria mais excelente, à morada da permanência e ao
lugar dos piedosos:
“Que Deus te conceda a felicidade perfeita em tuas duas moradas, te
favoreça sobremaneira em ambas, te coloque entre os bem guiados, os
que gozam dos frutos da razão e te afaste da infâmia e da baixeza da
ignorância! Que Deus te de com suficiência um grande lote deste e do
outro mundo com que possas chegar a um descanso perfeito e a uma
vida excelente.”122
Se nessa exposição, não vemos aparecer com evidência os conceitos religiosos como
substrato da reflexão sobre a ética e o modo de conduta do homem ao longo de sua
vida, já em sua metafísica, os elementos religiosos são contemplados pela
argumentação filosófica. O resultado disso é que Al-Kind÷ procura atingir o seu
objetivo maior de concordar sua crença religiosa com a filosofia. Em sua epístola
Sobre a Filosofia Primeira, inicialmente Al-Kind÷ faz um longo louvor à filosofia de
um modo geral, e à Filosofia Primeira em particular, pois esta se ocupa do estudo da
causa primeira que é Deus. Assim, entende Al-Kind÷ que o filósofo mais nobre e
perfeito deve ser o homem que é versado nesse tema que é, em suma, o mais nobre
conhecimento. Na abertura dessa obra, Al-Kind÷ mostra a gratidão aos que o
precederam em outras línguas colocando-se como um elemento de ininterrupta
continuação da busca pela verdade.
“Grande deve ser, pois, nosso agradecimento àqueles que trouxeram
um pouco da verdade, tanto mais àqueles que nos trouxeram muito da
verdade, visto que nos fizeram participantes dos frutos de seus
pensamentos e nos facilitaram o caminho para as verdadeiras questões
obscuras, ao mesmo tempo em que nos beneficiaram com as
premissas que nivelaram, para nós, o caminho da verdade. Se não
houvessem já existido tais princípios verdadeiros com os quais nos
educamos para as conclusões de nossos problemas desconhecidos,
eles não se reuniriam para nós, nem mesmo com uma intensa
122
GUERRERO, op.cit., p.171.
114
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
investigação durante toda a nossa vida. Isso só foi reunido nas épocas
passadas –era após era- até esta nossa época, com uma investigação
intensa, com assídua e infatigável tenacidade (...) Não devemos nos
avergonhar, pois, de achar bela a verdade e de adquiri-la de onde quer
que venha, ainda que seja de povos e de raças distintas e distantes de
nós pois não existe nada mais caro do que a verdade para quem busca
a verdade. Nao há que se menosprezar a verdade, nem há que se
humilhar aquele que dela fala e nem quem a traz consigo. Nada se
tornou desprezível pela verdade; ao contrário, pela verdade tudo se
enobrece.” 123
123
Ibid, p.47s.
115
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
124
FAHKRY, op. cit,p. 101.
116
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
sobre a Alma inicia-se com a afirmação de que a obra é um resumo sobre o tema a
partir “do livro de Aristóteles, de Platão e do restante dos filósofos”125. Porém, pelo
desenvolvimento do texto, é possível verificar que Al-Kind÷ não se baseou no De
Anima de Aristóteles mas talvez nas primeiras obras do Estagirita de traços platônicos
mais marcantes como, por exemplo, o Eudemo, obra mais característica do período
platônico de Aristóteles.
A Abertura do Discurso sobre a Alma se dá com as seguintes palavras:
“Que Deus te guie retamente para alcançar a verdade e te ajude a obter suas coisas
inacessíveis! Que Deus Altíssimo te faça feliz por obedecer-lo.”126 Em seguida, Al-
Kind÷ resume as principais idéias sobre a alma. Para ele, a alma é uma substância
simples detentora de nobreza e perfeição, da mais alta dignidade. “Sua substância
procede do Criador do mesmo modo que a luz do sol procede do sol.”127 Sua
substância, sendo divina e espiritual, indica a sua nobreza em oposição às paixões e à
ira que sobrevém ao corpo segundo os impulsos da faculdade irascível. Quando a alma,
que procede do Criador, se separa do corpo, conhece tudo o que há no universo, nada
se lhe oculta. Isso, segundo ele, teria sido o que Platão quis dizer ao mencionar os
antigos e virtuosos filósofos que, depois de se liberarem no mundo terreno e das coisas
sensíveis, pela especulação e investigação revelou-se o conhecimento do que estava
oculto aos homens, descobrindo, assim, os mistérios da criação.
Seguindo por essa via platônica, Al-Kind÷ entende que a alma atinge seu
objetivo de assemelhar-se ao Criador enquanto não se entrega aos prazeres sensíveis de
modo integral, pois o virtuoso é aquele em quem prevalece a faculdade intelectual da
alma, pois esta se aproxima das qualidades do Criador tais como a sabedoria, o poder,
a justiça, o bem, o belo e a verdade. Ao homem é possível assim conduzir-se, dentro de
sua capacidade pois, ainda que limitado, pode participar dessas virtudes pois a
faculdade intelectual de sua alma possui, “um poder semelhante ao Seu poder.”128
Categoricamente, diz Al-Kind÷: “segundo a opinião de Platão e da maioria dos
filósofos, a alma é eterna depois da morte sendo que sua substância igual a do
Criador.”129 Separada do corpo, pode conhecer as coisas tal qual as conhece o Criador,
mas num grau menor já que recebe a luz Dele. Quando nossas almas estiverem
125
GUERRERO, op.cit., p.134.
126
Ibid, p.134
127
Ibid, p.134
128
Ibid, p.135
129
Ibid, p.135
117
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
separadas e adaptadas ao mundo da eternidade, verão, então, pela luz do Criador tudo
manifesto. Citando Pitágoras130, Al-Kind÷ entende que à medida em que a alma, ainda
que estando unida ao corpo, abandona as paixões e se purifica das impurezas e se volta
ao estudo detido para o conhecimento das coisas, ela realiza um polimento em si
mesma , o que permite que a luz do Criador faça que se manifestem nela as formas de
todas as coisas, assim como um espelho polido manifesta as imagens das coisas
sensíveis. O limite da pureza que uma determinada alma pode atingir fará com que ela
espelhe e reflita de maneira mais perfeita as formas do mundo superior pois, nesse
caso, o Criador derrama sobre ela Sua luz e Sua piedade. Nesse estado, a alma goza de
um prazer eterno, incomparavelmente superior a todos os prazeres sensíveis pois estes
não são tão nobres quanto os prazeres espirituais. “O desgraçado, o cego e o ignorante
são os que se contentam com os prazeres dos sentidos, fazendo deles seu objetivo e seu
fim último.”131
Segundo Al-Kind÷, é preciso saber que estamos nesta vida como se
estivéssemos passando por uma ponte, numa passagem em que a morada estável que
esperamos é o mundo superior e nobre. Nesse lugar nossas almas estariam, depois da
morte, próximas ao Criador, a quem veríamos com uma visão intelectual e não
sensível. Esse lugar, a morada das almas intelectivas, é o mundo da divindade, onde
está a luz do Criador, atrás das esferas por onde se movem os astros. As almas
separadas não possuem todas o mesmo destino pois a ascensão das almas a esse lugar
depende de sua pureza. Em etapas sucessivas de ascensão purificadora, algumas almas
chegam até a esfera da Lua, depois se elevam até a esfera de Mercúrio e assim seguem
sucessivamente elevando-se às esferas dos astros superiores, permanecendo em cada
uma dessas esferas por algum tempo. Quando as almas estão totalmente desprendidas
de suas ligações com o mundo da matéria e do sensível, quando não possuem mais as
imagens e a as coisas próprias aos sentidos, então essas almas se elevam finalmente ao
mundo do intelecto, atravessam todas as esferas e permanecem no lugar mais nobre
onde nada se oculta e onde a luz do Criador manifesta as coisas que são verdadeiras.
“Todas as coisas lhes são claras e evidentes, e o Criador lhes confia assuntos do
governo do mundo, cuja ação e tarefa lhes proporcionará prazer. Pela minha vida!
Platão descreveu, resumiu e reuniu nessas poucas palavras, muitas idéias.!” 132
130
O nome “Pitágoras” aparece de modo confuso no manuscrito Cf. GUERRERO, op.cit., p. 136,n. 6.
131
GUERRERO, op.cit., p.137
132
Ibid, p.137
118
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
133
Ibid, p.138
134
Ibid, p.139
119
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
elogios dentre eles são Aristóteles e seu mestre, o sábio Platão.” 135O início do tratado
já mostra que o resumo proposto por Al-Kind÷ não é fiel a nenhuma das teses
propriamente dos filósofos gregos em sua totalidade. Trata-se de uma sobreposição de
alguns elementos aristotélicos. Assim o lemos : “E posto que o essencial do que disse
Platão a esse respeito é o mesmo que manifestou seu discípulo Aristóteles, então, a
modo de informação, diremos sobre isso o que se segue.”
Seguindo, pois, o que ele acredita ser a tese de Aristóteles em
concordância com Platão, Al-Kind÷ classifica o intelecto segundo quatro classes: o
intelecto sempre em ato, o intelecto em potência, o intelecto que passa da potência ao
ato e o intelecto que se chama demonstrativo136. Em outras palavras, trata-se de: o
intelecto agente, o intelecto passivo, o intelecto em hábito e o intelecto manifesto. A
apreensão das formas pode se dar segundo os sentidos ou segundo o intelecto. Quando
a alma apreende as formas inteligíveis, ela se se identifica com essas formas
inteligíveis que estavam potencialmente nela e o intelecto passa da potência ao ato.
“Quando está na alma, ela e a alma são uma só coisa (ý) da mesma maneira que a
faculdade que sente tampouco é algo distinto da alma como os membros no corpo, mas
que ela é a alma e a alma é a que sente.”137As formas inteligíveis cumprem o papel de
causa eficiente nesse processo mas, tais inteligíveis, em si mesmos são idênticos ao
intelecto ativo. “Assim, tudo o que está em potência só passa ao ato por outro, que é
algo em ato. Assim, pois, a alma é inteligente em potência e é a que se converte em
inteligente em ato pelo intelecto primeiro , ao entrar em contato com ele.”138
As formas em ato no intelecto agente não são uma mesma coisa com a
alma mas a forma inteligível quando apreendida pela alma faz com que esta forma
inteligível e a alma se tornem uma só coisa. Al-Kind÷ parece, pois, entender desde o
início que o intelecto agente está separado do homem e assim, separado, será um dos
pilares que inspirou os sistemas posteriores na questão da transcendência do intelecto
agente. Na medida em que a alma é atualizada por essas formas que lhe chegam do
intelecto agente, a aquisição é nomeada intelecto adquirido. Adquiridas, as formas
podem ser evocadas quando a alma quiser delas dispor e esse é o intelecto em hábito.
135
Ibid, p.150
136
A tradução deste último termo é discutível e pode ser encontrada também como “manifesto”,
“emergente”, ou “segundo”. Cf. FAHKRY,op. cit. p. 110 e GUERRERO, op.cit. p. 150.
137
Ibid, p.150
138
Ibid, p.151
120
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139
CORBIN, Histoire de la Philosophie islamique, op. cit., p. 226.
121
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140
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op. cit.,p. 480.
122
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Miguel Attie Filho
palácio. Al-Fārāb÷, então, nos seus trajes humildes, silenciosamente levantou-se e foi
embora ...
Al-Fārāb÷ promoveu um salto na falsafa. Foi o principal responsável
pelas teorias mais originais e criativas entre os árabes. Além disso foi um lógico
eminente conhecido por uma série de comentários à obra de Aristóteles. Em seu
Tratado sobre o Intelecto propôs uma epistemologia segundo uma divisão do intelecto
que influenciou não só a falsafa mas também foi uma das obras mais conhecidas no
Ocidente medieval latino. Ao lado de seu perfil lógico, não deixou de permear uma
grande espiritualidade em suas teses. Com Al-Fārāb÷, a falsafa amadureceu numa
“visão de mundo em que o real e o divino se conjugam, na qual o peripatetismo e o
neoplatonismo se encontram e na qual o sistema edificado pela razão encontra seu
coroamento numa visão mística.” 141
Além da profundidade em suas teses, vale observar que ele conheceu em
detalhes o nascimento da filosofia na Grécia, sua evolução e a transmissão desses
conhecimentos através de outros centros de estudos. Al-Fārāb÷ esteve imbuído do
espírito da história da filosofia . Num pequeno tratado, ainda conservado, ele traçou
um itinerário da história da filosofia desde seu nascimento na Grécia, passando pelos
mestres que sucederam Platão e Aristóteles, apontando a transmissão dos
conhecimento através de Roma e de Alexandria, comentando a posição do cristianismo
frente a filosofia; sublinhando a transmissão dos saberes para Antióquia na Síria;
reconhecendo o papel dos cristãos na transmissão da filosofia aos árabes e, finalmente,
citando os principais pensadores que o antecederam num passado próximo. Essa
postura de visão universal e impregnada de história da filosofia explicou, em parte,
porque Al-Fārāb÷ entendia ser ele, também, um continuador da herança dos saberes de
sua época. Se com Al-Kind÷ a falsafa se iniciou, com Al-Fārāb÷ ela ganhou contornos
mais definidos, e a ele se devem os principais pilares que a sustentaram dali em diante.
O chamado Magister Secundus – sendo Aristóteles, o Magister Primus –, num período
em que a assimilação da filosofia já era uma realidade no mundo árabe medieval,
encontrou um momento mais favorável para desenvolver suas teses com maior
profundidade, criatividade e originalidade.
Sua obra é bastante vasta e passa em revista toda a gama das ciências
então conhecidas. Badawi142 apresenta mais de 120 títulos: 25 tratados de lógica, 18
141
Ibid., p. 575.
142
Ibid., pp. 485-496.
123
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143
GILSON, A Filosofia na Idade Média, op.cit.,p. 427.
124
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144
»¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ ( Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila ). Acompanhamos
Badawi que opta por traduzir o termo “ fa∞≈la ” por “ideal” e não por “virtuosa” entendendo-se que “
al-mad≈na al- fa∞≈la ” exprime a excelência, o mais alto grau, ou seja, o que é ideal não estando, pois,
limitado ao conceito de virtude. Cf. BADAWI, op. cit., p. 558 n.3
145
Ao menos mais 6 obras segundo Hernandez.
125
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Fārāb÷ deve se unir aos seres espirituais; sua função principal é de levar o cidadão em
direção a esse objetivo, porque dessa união depende a felicidade absoluta. (ý) o
‘príncipe’, ao qual Al-Fārāb÷ confere todas as virtudes humanas e filosóficas, é um
Platão revestido do manto do profeta Mu¬ammad”. 146
A presença das teses de Al-Fārāb÷ foi abrangente e em várias direções,
tendo marcado profundamente muitos pensadores que o sucederam não somente no
Oriente mas também no Ocidente medieval. No campo da metafísica, inspirado na
observação lógica de Aristóteles de que a noção de que uma coisa é, não inclui o fato
de que a coisa, seja, Al-Fārāb÷ estabeleceu um importante marco da história da filosofia
ressaltando a distinção entre a noção de essência e de existência. Na medida em que os
seres naturais são contingentes, não sendo essencialmente ligados à existência, logo,
podem possuí-la ou perdê-la. Os seres existentes devem, pois, ter passado a existir
segundo alguma causa que tenha, por essência, sua própria existência e, por isso
mesmo, não há como deixar de existir, em outras palavras: Deus. Segundo essa
abordagem, a existência não é algo se incluiria necessariamente nela; a essência não
incluiria a existência atual; e seria, pois, um acidente da essência. No ser necessário por
si, a existência acompanharia sua essência enquanto no ser possível a existência se
agregaria a sua essência pelo ato criador, tratando-se de algo possível por si e
necessário por outro. Enquanto os seres são de duas classes – possíveis e necessários –
ainda que sejam possíveis, se os supusermos como não existentes, não segue-se daí
nenhum absurdo e chegam a ser necessários por outro. Desse modo, a existência de
algo não seria um caráter constitutivo, mas apenas um acidente. Para se incluir a
essência sob a existência foi preciso aguardar as críticas de Ibn Ru¹d. Há inúmeras
outras teses que fizeram de Al-Fārāb÷ um dos elos na cadeia de transmissão do saber
que ele, assim como Al-Kind÷, também pregou. Atesta Gilson: “Impressionante pelo
vigor de seu pensamento e pela força de expressão, a obra de Al-Fārāb÷ merece ser
estudada por si mesma.” 147
No Livro das Opiniões dos Habitantes da Cidade Ideal,148 Al-Fārāb÷
seguiu um trajeto que estabelece as causas do existente primeiro, o surgimento e a
multiplicidade dos seres, as características dos corpos celestes, as categorias
146
CORBIN, Histoire de la Philosophie islamique, op.cit.,p.231.
147
GILSON, A Filosofia na Idade Média,op.cit., p.430.
148
Em linhas gerais, para um acompanhamento do desenvolvimento do texto, damos a referência da
tradução francesa cotejado com passagens de Badawi e citamos em árabe somente algumas passagens
que envolvem termos que implicam alguns esclarecimentos.
126
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149
“ \¸¬¨
a[u½j½¯«[ zÎ\ u½j½« ª¼×[ `_«[ ½· ª¼×[ u½j½°«[ ”
Cf. ALFARABI, »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila),
Beirute, 1996, p.37. Cf. Al-FARABI, Traité des Opinions des Habitants de la Cité Idéale. Paris: J.Vrin,
1990, p.43 e BADAWI, op.cit., p.535. Não nos cabe, aqui, adentrar às dificuldades que o termo ( ﻭﺠﻭﺩ
wuj…d ) adquire ao longo do texto árabe assim também como os seus termos derivados, para
expressarem, na língua árabe, a noção de ser, existência, ente, existente e demais termos relacionados,
indicando para tal ISKANDAR, Avicena, op. cit. pp.227-245.
150
O mundo sublunar, o mundo em que vivemos.
127
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
151
eles se destruiriam um ao outro.” Ora, esse lugar deveria ser um substrato, um
sujeito de inerência ou um gênero, isto é, algo que não fosse os dois mas que lhes
permitisse relação e esse algo seria, então, anteriormente existente a cada um deles. Por
isso não é possível considerar que haja um ser no mesmo grau que o existente
primeiro, pois os opostos estariam no mesmo grau de existência. O primeiro é, pois,
único por sua existência. “Ele é único sob esse aspecto.”152 Além disso, o existente
primeiro é indivisível em sua substância e não é suscetível de definição. A existência
do primeiro é distinta da existência dos outros seres pela sua unicidade, pois sua
essência é ele próprio. “Sua unidade é sua própria essência”153 .
Na medida em que o existente primeiro não tem matéria e, de modo
algum pode estar associado à matéria, ele é essencialmente inteligência em ato “pois o
que impede a forma de ser inteligência e de inteligir em ato é a matéria na qual a coisa
existe. Ora, desde que a coisa exista sem o subsídio da matéria, ela é, em sua
substância, inteligência em ato. Este é o caso do primeiro. Ele é, pois, inteligência em
ato.”154 Ele é também inteligível por sua substância pois, sendo inteligência, para
conhecer ele não tem necessidade de uma essência diferente da sua e, nesse caso, sua
própria substância lhe basta para conhecer e para ser conhecido. Sendo inteligência,
necessariamente ele intelige sa essência, sendo que a essência pela qual ele intelige é a
mesma que é inteligida. Desse modo, a um só e mesmo tempo “ele é inteligência, ele é
inteligível e ele é inteligente e tudo isso é uma única essência e uma única substância
indivisível.”155
Assim sendo, o existente primeiro tem ciência perfeita de si mesmo e
como “a ciência, por excelência é a ciência permanente que não desaparece – e essa é a
151
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.47s.
152
“ »¸k«[
¶x· µ¯ vn[¼ \Œ¿[ ½¸Ÿ ”
Cf. ALFARABI, »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila)
op.cit. p. 43 Cf. também Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.48
153
BADAWI, op.cit., p.537.
154
AL-FARABI, em BADAWI, op. cit., p. 537.
“ −˜«\^ −¤— ²w[ ½¸Ÿ ”
Cf . ALFARABI, »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila),
op.cit., p. 46. O termo árabe para intelecto e inteligência é o mesmo: ‘ ( عق[لaql ) .Traduzimos por
“inteligência” quando este termo se refere às dez inteligências separadas da matéria e por “intelecto”
somente quando se refere ao homem.
155
“ ±¤´° z› vo[¼ z·½k¼ ºvo[¼ a[w \¸¬¨ Á· !−¤\— ¹³[¼ ª¼£˜¯ ¹³[¼ −£— ¹³\Ÿ ”
AL-FARABI, »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila) op.cit.,
p. 47. Cf. também Traité, op.cit.,p.50.
128
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
ciência que o primeiro tem de sua essência –”156 logo, ao existente primeiro também
chamamos “sábio” pois a sabedoria consiste em que a inteligência conheça as coisas
mais excelentes do modo mais excelente. Ora, na medida em que o existente primeiro
intelige sua essência e a conhece, ele conhece a melhor das coisas e, por isso, possui a
ciência mais excelente da mais excelente das coisas. Por isso é, a um só tempo, sábio e
sabedoria.
156
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.51.
157
AL-FARABI, al-mad≈na al-f¡∞ila em BADAWI, op. cit., p. 537.
129
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Miguel Attie Filho
158
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.56
159
Os termos mais frequentes usados por Al-Farabi para designar esse movimento são: ÀŸ / fay∞
Cf AL-FARABI, »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila)
op.cit., p.55. Badawi entende como “ O Primeiro é aquele de quem procede o ser.” Cf. p.538.
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Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
acrescenta nenhuma perfeição porque ele é o ser mais perfeito e, se assim não fosse,
ele também não seria o primeiro. Nada há, portanto, que opreceda em sua emanação:
nem um ser, nem uma razão para ser, nem uma essência anterior, nenhuma causa, nada
enfim pois “todas essas considerações são impossíveis no primeiro, pois isso seria uma
afronta à sua primazia e à sua eternidade.”161 Tudo emana do existente primeiro pela
mesma e única substância que é a sua pois ele não opera como nós que temos as coisas
separadas para produzirmos algo como, por exemplo, nossa razão, de um lado e a arte
da escrita, por outro. No existente primeiro, o conhecimento de si mesmo e a emanação
dos seres é um só e mesmo ato e tudo procede de “uma só essência e uma só substância
ao mesmo tempo que constitui seu ser e de onde deriva todo outro ser.”162
A emanação segue uma hierarquia que se inicia pelo ser mais próximo e
mais perfeito em relação ao existente primeiro e segue em escala descendente até o ser
menos perfeito. Tudo isso provém do existente primeiro e sua substância permanece a
mesma sem sofrer qualquer alteração. Seguem-se assim, pois, os seres cada um
segundo sua perfeição começando pelo mais perfeito, depois, aquele que é um pouco
menos perfeito, depois, os seres que são menos perfeitos se sucedem até o ser que,
abaixo dele não pode haver nenhuma existência. “Então os seres se detém na
existência.”163 Vale notar que a emanação proposta por Al-Fārāb÷ se dá no interior do
existente primeiro e não como algo que se produz fora dele. “A substância do primeiro
permanece sempre a mesma quando os seres emanam de um modo hierarquizado cada
um segundo o seu grau. Uns com os outros os seres se unem, se aliam e se ordenam de
modo que a multiplicidade se torna, assim, uma só coisa”164. Vejamos como Al-Fārāb÷
descreve esse processo.
“Do primeiro procede o ser do segundo que também é uma substância
absolutamente incopórea e que não está em uma matéria. Ele intelige sua essência e
intelige o primeiro e, isso que ele intelige de sua essência não é outra coisa que sua
essência. Enquanto ele intelige algo do primeiro resulta necessariamente dele o ser de
um terceiro. Enquanto ele é constituído substancialmente em sua essência própria
161
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.57.
162
AL-FARABI, al-mad≈na al-f¡∞ila em BADAWI, op. cit., p. 539. Em seu comentário Hernandez
observa que “deste modo tudo quanto existe se produz necessariamente a partir do único ser necessário,
dotado da liberdade absoluta, não condicionada por nada, que atua como vontade pura; mas como é ao
mesmo tempo a mais alta inteligência sua vontade é, também a bondade pura. Portanto, sendo Deus o
bem absoluto, tudo quanto procede de Deus é bom; e enquanto Deus é beleza pura, é belo.” Cf.
HERNANDEZ , op. cit., p. 194.
163
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.59.
164
Ibid., p.59.
131
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
resulta necessariamente dele o ser do primeiro céu. Do mesmo modo o ser do terceiro
não está em uma matéria (...)”165 e, assim por diante, Al-Fārāb÷ continua sua descrição
cosmológica que alia o princípio de emanação plotiniano ao sistema geocêntrico de
Ptolomeu. O processo repete seguidamente o esquema precedente: cada nova
inteligência conhece sua própria essência166 e conhece algo do Primeiro resultando, em
cada etapa, uma nova inteligência, uma esfera correspondente a cada um dos planetas e
uma alma que move essa esfera. Tal processo, seguindo em fases sucessivas, emana ou
“cria” dez inteligências sucessivas que correspondem as seguintes esferas dos planetas
com suas respectivas almas que as movem:
segunda inteligência: primeiro céu;
terceira inteligência: esfera das estrelas fixas;
quarta inteligência: esfera de Saturno;
quinta inteligência: esfera de Júpiter;
sexta inteligência: esfera de Marte;
sétima inteligência: esfera do Sol;
oitava inteligência: esfera de Vênus;
nona inteligência: esfera de Mercúrio;
décima inteligência: esfera da Lua.
décima primeira: mundo sublunar.
A emanação segue ritmada até a décima inteligência e é descrita como uma
superposição incorpórea de cada uma delas em sequência necessária compondo um
sistema de esferas desde o Existente primeiro até a esfera da Lua tendo a Terra como
centro. “As coisas separadas [as inteligências] que seguem-se ao Primeiro são em
número de dez. Os corpos celestes em seu conjunto são em número de nove sendo que
o total resulta em dezenove.”167 A mudança e a interrupção desse processo se dá com o
surgimento da matéria e a explosão de almas humanas que se segue à esfera da Lua
gerando uma descontinuidade no modo pelo qual se dá o processo de emanação da
décima inteligência. O ser do décimo também é uma inteligência que não está
associada à matéria e, do mesmo modo que as outras inteligências, intelige sua
165
Ibid.,p.61.
166
“Cada um dos dez primeiros seres intelige sua essência e intelige o Primeiro.” Cf. AL-FARABI,
Traité, op. cit. p. 67 Como o Primeiro é superior ao segundo quando este-o segundo- intelige o Primeiro
obtem uma felicidade maior do que quando intelige a si mesmo.O mesmo se dá com o prazer e com o
seu maravilhamento que experimenta pois a perfeição, a beleza e o esplendor do primeiro são
insuperáveis.
167
Al-FARABI, Traité, op.cit.,p.66.
132
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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168
Ibid.,p.62.
133
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
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169
Ibid.,p.64.
170
Ibid.,p.64.
171
Ibid.,p.66.
134
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
172
Ibid, p.75
173
Ibid.,p.81.
135
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
174
Ibid.,p.83.
175
Al-F¡r¡b≈ localiza a faculdade imaginativa também no coração.
176
“ ²\³×[
y[u `o\ˆ −g¯ ©«w¼ ”
Cf. AL-FARABI, »¬Œ\«[ »´¿v°«[ −·[ Æ[y[ ]\c§ (Kit¡b ‘ar¡’ ’ahl ’al-mad≈na al-f¡∞ila)
op.cit., p.93.
136
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
intelecto que esteja sempre em ato. Esse agente que opera a passagem do intelecto em
potência para o intelecto em ato só pode ser uma certa essência cuja substância é uma
inteligência em ato separada da matéria que opera no intelecto humano de modo
semelhante à ação da luz do sol em relação à nossa visão. É pela luz do sol que a visão
se torna visão em ato estando, antes disso, apenas em potência. O mesmo – diz Al-
Fārāb÷ – , ocorre com a potência intelectiva no homem e, por isso “ chamou-se
inteligência agente. Seu grau no grupo das inteligências separadas que estão abaixo da
Causa Primeira é o décimo.”177 Pelo aperfeiçoamento constante do homem através do
entendimento crescente que ele tem pelo seu intelecto, esse homem é naturalmente
levado à meditação e à reflexão. Mas sendo o homem, o grau mais complexo da
composição de matéria e forma do mundo sublunar e constituído, pois, das faculdades
mais complexas, a título de quê e com qual finalidade operariam todas as faculdades
humanas? A resposta de Al-Fārāb÷ é: a busca da felicidade.
“Além da felicidade não há nada maior que o ser humano possa
178
obter.” As belas e boas ações, mais do que serem um bem em si mesmas, o são na
medida em que conduzem à felicidade. A esse movimento crescente de
aperfeiçoamento da alma humana corresponde um grau de felicidade que o acompanha
e é esta a finalidade maior pela qual todas as faculdades do homem operam servindo
umas às outras. O limite máximo da felicidade a que pode chegar o homem é, pois,
aquele estado no qual a sua alma humana chega à sua extrema perfeição existencial, de
modo que não haja mais necessidade de matéria para subsistir e, desse modo, ela se
assemelha e se encontra unida às inteligências separadas.
A sociedade exerce um papel importante na busca de cada ser humano
em direção à felicidade. O modo de organização da cidade pode ajudar ou não nesse
caminho. Segundo Al-Fārāb÷, deve-se partir do modelo ideal como o mais alto
paradigma a indicar o melhor caminho, mas, também, ser capaz de adaptar quando não
for possível que se encontre as condições adequadas para o modelo ideal.
137
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
sua perfeição sem o concurso de vários indivíduos, pois, é somente através do trabalho
conjunto que reúne tudo o que cada um tem de necessidade que isso se torna possível.
Por essa razão os indivíduos multiplicam-se, estabelecem-se na parte habitável da terra
e estabelecem as suas assembléias.
Para Al-Fārāb÷, a organização da cidade ideal deve assemelhar-se ao
corpo humano em sua totalidade, cujos órgãos ajudam-se mutuamente para realizar o
acabamento da vida do organismo e conservá-lo. E, do mesmo modo que ocorre com o
corpo, vários e diferentes são os órgãos mas um só é o órgão chefe: o coração. No
corpo humano é a partir dele que os outros órgãos são hierarquizados. Cada um, por
sua natureza, tem uma potência para realizar suas ações próprias em conformidade com
o seu propósito. Assim é a cidade. Suas partes são múltiplas, diferentes entre si e
hierarquizadas segundo suas disposições próprias devendo haver um ser humano que é
o chefe. Assim como no corpo humano o coração é o principal orgão e, por natureza, o
mais completo e o mais são, “do mesmo modo o chefe da cidade é o mais completo de
todas as partes da cidade.”179 Abaixo dele, deve haver homens que ele dirige e estes,
por sua vez, dirigem outros homens. Estabelece-se, assim, uma hierarquia descendente
para que todos atuem voluntariamente na cidade em conformidade com a direção do
chefe. Por outro lado, do mesmo modo como é o coração que socorre todo e qualquer
órgão que venha a ser prejudicado, assim, também, o chefe da cidade ideal deve correr
em socorro de qualquer parte da cidade que se deteriore.
Mas a questão principal é: quem deve ser o chefe? A resposta de Al-
Fārāb÷ inclina-se novamente para as aptidões naturais e procede segundo as qualidades
máximas próprias dos profetas. “O chefe da cidade não pode ser qualquer ser humano
pois a direção supõe duas condições: uma delas é que ele seja preparado por natureza e
por aptidão e, a segunda, é que ele tenha uma disposição e um hábito voluntário.”180
Sua faculdade imaginativa deve atingir o extremo acabamento, podendo receber no
estado de vigília ou no sono, por parte da inteligência agente, os próprios
acontecimentos ou, então, os símbolos desses acontecimentos. Seu intelecto deve ser
receptivo aos inteligíveis afim de que ele possua um perfeito entendimento das coisas
de modo que nada se lhe oculte. Em outras palavras, o chefe deve ser aquele que
possua um contato mais próximo com a inteligência agente.
179
Ibid.,p.105.
180
Ibid.,p.106.
138
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
181
Ibid.,p.109.
182
Ibid.,p.109.
139
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
183
Ibid.,p.110.
140
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Bem, mas se, mesmo assim, ainda não for possível encontrar tal homem
que reúna essas condições “mas que se encontre dois, um possuindo a sabedoria e o
outro as demais condições, então, os dois serão os chefes da cidade.”184 Se, ainda
assim isso não for possível, pode haver o caso em que tais qualidades encontrem-se
repartidas em um grupo de indivíduos: que um possua a sabedoria e cada um dos
outros possua uma das outras condições. Se isso ocorrer e os indivíduos estiverem de
acordo entre si, então, todos serão considerados eminentes chefes da cidade. (!).
A preeminência, porém, é para a sabedoria, pois se esta não tomar parte
no governo da cidade, mesmo que as outras condições permaneçam, a cidade
permanecerá sem chefe e aquele que exercerá as funções de chefe não será um
verdadeiro chefe. Essa cidade, se não conseguir encontrar um sábio que se associe ao
governo, estará destinada à ruína, fato que não tardará. Al-Fārāb÷ enumera e descreve
algumas cidades que se distanciam do paradigma da cidade ideal. Nesses desvios, os
habitantes sequer desconfiam qual é o objetivo maior da vida humana e o maior bem
que o homem possui, isto é, a felicidade. Por essa razão tais cidades se caracterizam
pela busca de outros bens que não levam seus habitantes à felicidade buscando
riquezas e fortuna; honrarias e vaidade; cidades que valorizam as disputas com outras;
cidades que falseiam a felicidade.
A felicidade, pois, sendo o paradigma da cidade, somente o é por ser,
antes, o paradigma da própria vida do homem. A visão de um mundo futuro que guia
Al-Fārāb÷ nessa obra encontra no destino da alma humana uma de suas raízes. Os
homens que compõem as gerações que passam, organizados em suas cidades, não
devem perder de vista o destino último ao qual se dirige o homem. Quando uma
geração passa, -diz Al-Fārāb÷ - os corpos dos indivíduos se destroem mas as almas,
liberadas da matéria, permanecem e se encontram com outras almas segundo o mesmo
grau de felicidade em que ambas estejam pois as almas se reúnem com suas
semelhantes seja em espécie, seja em profundidade intelectual ou seja em qualidade
segundo suas semelhanças. Como as almas não são corpos, o encontro entre elas não é
da mesma natureza do encontro entre os corpos. A reunião das almas não ocupa
espaço. Nesse encontro, aumenta o prazer de cada uma delas a cada vez que outra se
lhes reúne. O aumento do prazer vivido pelas almas ao reencontrarem-se é semelhante
ao aumento da capacidade da arte de escrever para o escritor que persevera muito
184
Ibid.,p.111.
141
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
tempo na sua arte pois, ao mesmo tempo em que, nele, todas as suas capacidades e
ações convergem, aumentando o prazer, também a sua escrita se intensifica e se
aperfeiçoa em força e em elegância. No caso das almas, como elas se sucedem sem
fim, a potência e o prazer em cada uma delas aumenta de um modo indefinido e
infindável e tal é o caso das almas a cada geração que passa.
142
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
185
Região da antiga Pérsia, atual Uzbequistão.
143
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
186
GUERRERO, Avicena , op. cit., p. 21.
144
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
187
IBN SINA, Autobiografia, tradução em BADAWI, op. cit., p. 596.
188
BADAWI, op. cit., p. 597.
189
Ibid., p. 597.
145
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
em leituras mas estas se mostravam infrutíferas: “eu reli o livro da Metafísica por
quarenta vezes de modo que o aprendi de cor. Porém não podia compreender o que
havia em seu interior e nem o intuito de seu autor.”190 Ocorreu porém, que no dia
seguinte, estando num mercado de livros, um vendedor lhe ofereceu insistentemente
um livro de Al-Fārāb÷ intitulado Do Propósito do Livro da Metafísica . Ibn S÷nā
acabou comprando-o por uma ninharia e levou-o para casa afoito em conhecer o seu
conteúdo. Rapidamente leu o livro do velho Al-Fārāb÷ e teve imediatamente a perfeita
compreensão dos objetivos de Aristóteles. Em sinal de agradecimento ao Deus
Altíssimo, Ibn S÷nā saiu às ruas para distribuir esmolas aos pobres. Essa curiosa
passagem fez pensar que as dificuldades a que se referiu Ibn S÷nā poderiam ser devido
ao próprio vocabulário filosófico na metafísica que consistiu um obstáculo a ser
superado pela língua árabe que teve que adequar e, até mesmo, inventar termos que
ainda não existiam para poder expressar os novos conceitos provindos da filosofia
grega. Muitos dos novos termos e das adaptações da língua árabe, Al-Fārāb÷, havia
explicado em algumas de suas obras como nessa que foi citada por Ibn S÷nā.
Ainda durante o primeiro período, o príncipe de Bukhara, Nu¬ Ibn
Man½ýr, foi acometido de uma doença que embaraçou os médicos que o
acompanhavam. Por não poderem curá-lo, Ibn S÷nā, já renomado nessa época, juntou-
se a eles e ajudou na cura de Man½ýr passando, dali em diante, a prestar seus serviços
ao príncipe. Não tardou muito para que Ibn S÷nā passasse também a freqüentar a
imensa biblioteca de Nu¬ Ibn Man½ýr a qual abrigava várias salas, cada uma acolhendo
um determinado assunto. Lá, Ibn S÷nā relata que leu o catálogo dos livros dos antigos
referente à filosofia e às ciências gregas e passou a estudar todas as obras que lhe
interessaram, amadurecendo sobremaneira seus conhecimentos. Nessa época, Ibn S÷nā,
contava somente dezoito anos.
Três anos mais tarde Ibn S÷nā começou a escrever seus primeiros
tratados atendendo a pedidos dos que os cercavam. Os temas desses primeiros escritos
eram variados e se compunham de resumos explicativos a respeito das ciências em
geral, comentários a alguns livros de filosofia e alguns escritos sobre moral. Porém,
nessa mesma época houve um acontecimento que alterou os rumos de sua vida: Ibn
S÷nā perdeu seu pai e seguiu, então, em pequenas viagens através de cidades próximas
190
Ibid., p. 598.
146
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
191
Até este ponto, todas as informações foram fornecidas pelo próprio Ibn Sina. O que vem a seguir foi
relatado pelo próprio Al-J…zj¡n≈.
192
GOHLMAN, W. E. The life of Ibn Sina. New York: State university of New York press, 1974, pp. 55
- 56.
147
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
por aproximadamente quatro meses. Mesmo na prisão, Ibn S÷nā compôs o tratado Hayy
Ibn Yaqzān escrito em linguagem simbólica. Libertado da prisão, Ibn S÷nā seguiu para
Isfahan sendo bem recebido pelo príncipe ‘Alā’ Al-Dawlah com quem havia se
correspondido anteriormente. Na nova corte, Ibn S÷nā tornou-se um sábio respeitado,
afirmando-se como um mestre incontestável em todas as ciências. Nesse período, ele
terminou sua obra maior Al-Šifā`, compôs a Al-Najāt / A Salvação e também o Dāne¹
Nama / O Livro das Ciências – uma das poucas obras que escreveu em persa e não
em árabe – Al-Juzjani relata que “o mestre era forte em todas suas faculdades, sendo a
sexual a mais vigorosa e dominante de suas faculdades concupiscíveis, e ele a exercia
frequentemente”.193
Durante uma viagem em companhia do príncipe, Ibn S÷nā foi acometido
por fortes cólicas que o obrigaram a voltar para Isfahan para tentar um auto tratamento.
Numa nova viagem com o príncipe, Ibn S÷nā sofreu novamente fortes dores que o
obrigaram a voltar definitivamente a Isfahan. Nos relata Al-Jýzjān÷ que, depois de
tentar um novo auto tratamento, o mestre acabou por se render dizendo “o governador
que governa o meu corpo, já é incapaz de governar e agora o tratamento não beneficia
mais”194. Ibn S÷nā ainda permaneceu assim doente por mais alguns dias mas não teve
mais forças para resistir e acabou falecendo. Tinha, então, 58 anos de idade. Sua
tumba se encontra em Hamadan.
Numa vida bastante agitada, vivida plenamente, dado à bebida, ao amor
e à música, ele não poupou suas forças e alcançou uma envergadura filosófica e
científica de grande excelência. A extensão de sua obra e a longevidade de sua
influência tanto na história do pensamento do Oriente como do Ocidente leva qualquer
menção de poucas páginas ao inteiro fracasso. No entanto, apenas a título de ilustração,
algumas indicações podemos fornecer.
Na arte médica, Ibn S÷nā figurou entre os maiores médicos da história
da medicina, pertencendo à tradição herdada dos gregos através dos árabes pela qual
foram difundidas muitas teorias de Hipócrates e de Galeno. Sua obra Al-Qanýn fi al-
Tib / Cânon da Medicina, uma síntese dos conhecimentos médicos de sua época e de
suas próprias experiências, foi adotada nas universidades européias até o séc. XVI d.C.,
– portanto, por mais de quinhentos anos após sua morte – como texto de base para o
ensino médico.
193
Ibid., p. 82s.
194
Ibid., p. 89.
148
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
195
ANAWATI , op. cit., pp. 407-440. Alguns títulos talvez possam se referir à uma mesma obra.Cf.
GUERRERO, Avicena , op. cit., p. 21
196
MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro:
ano 8, nº12, 1980, p. 22.
149
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
197
Ibid., p.22.
198
Ibid, p. 28.
199
Al Shifa, Lógica, 1, Introdução, ed. árabe, pp. 9-10 in GUERRERO, R. R. Avicena Madrid: Ediciones
del Orto. 1994, pp.53-54. Há também uma tradução deste trecho in MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O
universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22.
150
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
assim encontramos essa divisão a partir das quatro partes: Lógica; Física; Matemática e
Metafísica:
A Lógica está disposta em nove livros:
1) Isagoge, 6) Dialética,
2) Categorias, 7) Sofística,
3) Perihermeneas, 8) Retórica
4) Primeiros Analíticos, 9) Poética,
5) Segundos Analíticos,
151
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
anotados na escrita. No caso em questão, a grafia ¢z„° ( m¹rq ) pode ser vocalizada
de duas formas distintas: ¢z„° / ma¹riq que significa “oriente” ou ¢z„° / mu¹riq
que significa “iluminado”201. A segunda leitura poderia indicar um caráter místico em
suas doutrinas. O segundo problema é que a obra a que Ibn S÷nā se refere, isto é, A
Filosofia Oriental foi, em sua maior parte, perdida. Só chegou até nós uma pequena
parte da lógica.
No entanto os fragmentos que chegaram da chamada Filosofia Oriental
, intitulados como Lógica dos Orientais não confirmaram uma doutrina esotérica. A
Filosofia Oriental é um tratado completo de filosofia em três partes: Lógica, Física e
Metafísica que segue o mesmo plano das obras anteriores não se tratando, pois, nem de
mística e nem de filosofia esotérica. Uma leitura dos fragmentos mostra, também, que
não há sentido em supor que houvesse nesse tratado uma “filosofia oriental” original
de Ibn S÷nā que fora perdida e que se oporia a todo o desenvolvimento da filosofia
peripatética encontrada em suas outras obras. No prólogo da Al-Šifa’,o que esteja
indicado, talvez, seja apenas uma distinção quanto ao modo com que apresenta sua
doutrina: ou ao modo comum dos peripatéticos ou de um modo pessoal sem a
preocupação com o método anterior.
Por outro lado, os defensores da tese de uma doutrina esotérica em Ibn
S÷nā entenderam, ainda, que esta não deveria ser procurada especificamente na obra
denominada Filosofia Oriental mas que a sua “filosofia oriental” estaria dispersa ao
longo dos escritos de linguagem simbólica. No entanto, Badawi lembra que o próprio
200
GUERRERO, R.R. Avicena. Madrid: Ediciones del Orto, 1994, p.55. Para um aprofundamento da
discussão do caráter destas duas obras que dividiu boa parte dos estudiosos, remetemos a GOICHON, A.
M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médievale. Paris: Librarie d'Amérique et
d'Orient. Paris, 1940, pp. 1-53; CORBIN, H. Histoire de la philosophie islamique. Paris:
Gallimard,1986, Cap. V, item 4-Avicenne et le avicennisme-, pp. 238-247; e BADAWI, A. Histoire de
la Philosophie en Islam. Paris: J.Vrin, 1972, p. 609-610.
201
Badawi refere-se ao “magistral artigo de Nallino”que demonstra definitivamente que o título deve ser
lido como filosofia “oriental”e não “iluminativa” .
152
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Ibn S÷nā se quando refere à “filosofia oriental”, está sempre se referindo a um livro e
que, quando divide os filósofos em orientais e ocidentais entende que os primeiros são
os peripatéticos de Bagdá e os segundos os comentadores gregos de Aristóteles e nada
além disso.
Como bem observou Guerrero, deve se levar em conta que o
pensamento de Ibn S÷nā se assentou sobre dois pilares: um proveniente da Grécia e
outro da tradição da antiga Pérsia. “ O dinamismo interno de seu pensamento, o
esforço que o levou a construir seu sistema, foi o resultado de uma constante e
contínua preocupação por um conhecimento intelectual, intuitivo e experimental ao
mesmo tempo.”202 Permitindo-se usar uma dupla linguagem seus escritos visariam,
assim, atingir leitores de culturas e de entendimento diferenciados. Tal perfil eclético
explicaria os textos que escapam à linguagem filosófica e que poderiam, erroneamente,
levar a crer tratar-se de doutrina esotérica. Conhecendo-se sua exposição lógica e
filosófica verifica-se que “ainda que lidos em chave mística e simbólica, como relatos
visionários, tais textos apenas expõem sua doutrina em outro estilo literário.”203
Os textos escritos em linguagem simbólica parecem se diferenciar
apenas no tipo de linguagem, configurando-se em belas metáforas que, por sua vez,
podem ser reconduzidas às demonstrações lógicas que se encontram nas obras de
caráter científico e filosófico. Essa possibilidade dificultou, portanto, que a abordagem
de um caráter puramente místico em Ibn S÷nā fizesse sentido. Dupla linguagem não
significa dupla doutrina. Mesmo quando ele se refere a um tipo de ascese, esta só pode
ser entendida a rigor como uma ascese da parte mais nobre da alma: o intelecto. Nesse
sentido, o máximo que se poderia conceder seria entendê-la como uma razão mística
ou uma mística racional.204 “Avicena não foi um místico, nem um esotérico que
escreveu em linguagem cifrada para iniciados. Só se preocupou pelas mesmas questões
que ocuparam os demais filósofos.”205
As primeiras traduções, de partes de sua obra foram feitas para o latim,
entre os séculos XII e XIII d.C./ VI e VII H. notadamente na Espanha, que teve na
cidade de Toledo um importante centro. Essas traduções representaram muito pouco
do total de sua obra, o que fez o Ocidente medieval latino conhecer apenas uma
pequena parte da Al-Šifa’. Não obstante algumas dificuldades de identificação dos
202
GUERRERO, op. cit., p. 23.
203
Ibid., p. 23
204
BADAWI, op. cit., p. 662.
205
Ibid 24.
153
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
tradutores e até mesmo da qualidade das primeiras traduções de sua obra, estas foram
suficientes para despertar o espírito dos ocidentais medievais para novas considerações
de toda ordem, tornando-as referência, praticamente, presente em todas as formulações
medievais posteriores. Ibn S÷nā, ao mesmo tempo, trouxe a ciência dos antigos de
maneira reformulada e mais completa através de suas próprias contribuições. Sua
filosofia, conhecida principalmente pela Metafísica, os tratados Do Céu, Dos Animais,
Sobre a Geração e a Corrupção, Da Alma, além de fragmentos de lógica e das ciências
naturais (Física), foi um grupo de escritos que, nas palavras de Goichon, se comportou
como o “primeiro conjunto de doutrinas verdadeiramente constituído que chegava ao
da Física da Al-Šifā'), nosso filósofo desenvolve sua doutrina que, iniciada pelos
princípios aristotélicos na afirmação da alma como uma forma do corpo, termina por se
aproximar de certa inspiração neoplatônica de perfil espiritualista. Ao longo desse
tratado, Ibn S÷nā classificou e estudou as faculdades anímicas e, a partir dessas
relações, procurou explicar inúmeras afecções da alma como, por exemplo, a
melancolia, a tristeza, a alegria, a raiva entre outras; temática estudada, hoje em dia,
pela psicologia moderna. Em razão desse amplo desenvolvimento, algumas vezes
encontramos referências a Ibn S÷nā quanto à sua “psicologia” e particularmente a esse
tratado, que ficou conhecido como “A Psicologia de Avicena”. O Livro da Alma foi
importante na história do pensamento não só pelo seu próprio conteúdo mas também
porque apresentava, pela primeira vez, uma síntese do De Anima de Aristóteles, tendo
causado grande impacto sobre a teologia cristã medieval. Muitos nomes da escolástica
universitária cristã tais como Alberto Magno, Rogério Bacon, Tomás de Aquino e
Duns Scot procuram referências nas obras de Ibn S÷nā, o citam frequentemente e, em
muitos casos, apóiam-se nele.
A guisa de resumo e, sem entrar em detalhes em cada um dos temas que
compõe sua filosofia, pode-se dizer que as contribuições de Ibn S÷nā estenderam-se
praticamente a todos os ramos da filosofia desde a lógica até a metafísica. Em linhas
gerais, Ibn S÷nā se amparou em muitas das teses estabelecidas por Al-Fārāb÷. Este foi o
caso de sua visão cosmológica que seguiu o ritmo das emanações das dez inteligências
a partir da distinção entre o ser necessário por si e o ser necessário por outro. A lógica
ocupou um lugar central no desenvolvimento de seu pensamento. A esta dedicou
206
GOICHON, La philosophie d’Avicenne, op. cit., p. 90.
154
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
quase a metade de sua obra Al-Šifā'. Na metafísica, considerou o ser enquanto ser o
objeto próprio dessa ciência e elaborou sua doutrina a partir do estabelecimento da
distinção entre ser necessário por si, ser possível por si e necessário por outro. Nesse
sentido a metafísica de Ibn S÷nā adquiriu um sentido “onto-teo-lógico”. Nela
encontram-se quatro vias que indicariam a existência de Deus. Também a ele se deveu
um aprofundamento significativo na distinção entre essência e existência e na
preeminência da primeira noção. Na doutrina dos universais distinguiu três modos: sua
existência nas coisas particulares, no intelecto e em si mesma a que chamou de
natureza comum. Além disso, Ibn S÷nā criticou e refutou a doutrina das idéias segundo
os platônicos.
Todos esses – e muitos outros temas – formaram um conjunto
harmônico e vigoroso em suas obras. Limitemo-nos à algumas palavras a respeito de
um dos pontos altos de seu pensamento referente à sua psicologia, ou seja, seu estudo
sobre a alma. De modo bastante original sua doutrina a esse respeito não se confunde
com nenhuma outra praticada por seus predecessores fossem árabes ou gregos. Suas
idéias a respeito da alma no Kitāb al-Nafs / O Livro da Alma não obstante ser
construída a partir dos elementos aristotélicos e neoplatônicos, apresentaram traços
originais que a destacaram sobremaneira de outras teorias do mesmo período,
procurando manter-se em perfeita harmonia com a cosmologia herdada de Al-Fārāb÷ e
com suas experiências médicas que se apresentam como sustentáculos empíricos às
suas teses.
A constatação da existência da alma é a primeira coisa de que se ocupa
Ibn S÷nā indicando que sua existência pode ser constatada através da observação dos
corpos que não são apenas sólidos, mas que são organismos que possuem
sensibilidade, movimento, crescimento, nutrição e outras atividades que fazem
daquele corpo um ser vivo e não um sólido sem vida. Na medida em que há corpos que
não são dotados dessa características anímicas, forçosamente o corpo enquanto tal, não
pode ser o princípio de tais movimentos, restando, então, que devam existir princípios
além da própria corporeidade que sejam os responsáveis por tais movimentos. É
justamente isso, que é o princípio do qual procedem essas ações espontâneas, que
chamamos alma.
Sendo assim, na medida em que é certo que a alma faz parte do
composto do ser vivo, Ibn S÷nā aplica as categorias aristotélicas de ato e potência para
definir como ela participa dessa constituição. Se a alma fosse uma potência como a
155
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
matéria corpórea, deveria haver algum ato que realizasse o acabamento daquele
determinado corpo nesta ou naquela espécie. Ora, mas como é a própria alma que
realiza esse acabamento na matéria ela é, pois, o ato que faz com que determinada
matéria seja um vegetal um animal ou, então, um homem. A atualização e o
acabamento que a alma confere à matéria permite, pois, que ela seja definida como
uma forma em relação àquela determinada matéria que ela toma por receptáculo
passando a constituir as suas próprias faculdades pelas quais opera e dirige o ser vivo
para cumprir os atos referentes à vida.
Mesmo que, por vezes, haja referência ao termo “alma” no sentido do
conjunto das faculdades que ela forma no corpo – tais como as ações de crescimento,
geração e nutrição, movimento, sensibilidade e intelecção – sua melhor denominação é
ser uma “perfeição”. E, mesmo quando há referência ao termo “alma” no sentido de
que ela é uma forma – relativamente à matéria que ela tomou por receptáculo, sendo
207
que, desse modo, o composto matéria e forma se torna uma substância vegetal ou
animal – , ainda assim é preferível para Ibn S÷nā que chamemos a alma de “perfeição”.
O termo “perfeição”, denota que a alma realiza na matéria o acabamento do gênero
pela atualização da espécie através dos seres particulares. Assim, quando se diz
“perfeição” estão incluídas as duas idéias, isto é, “forma” e “faculdade”.
Porém, não obstante o fato de chamá-la de perfeição ser o mais
apropriado, ainda é preciso verificar que o sentido de “perfeição” pode ser entendido
em dois níveis: no primeiro refere-se ao acabamento realizado na matéria e, no
segundo, refere-se ao exercício das próprias faculdades. Portanto, a alma, em vista da
atualização da espécie é uma perfeição primeira; tratando-se do exercício, das paixões
e ações vindas da espécie dessa coisa, é uma perfeição segunda. Ora, mas como a
perfeição segunda não pode existir sem a primeira, pode-se afirmar, finalmente, que o
que mais caracteriza a alma, – visto ser a definição mais geral que abarca todas as
outras – é ser perfeição primeira: “a alma que encontramos é, então, perfeição primeira
208
de um corpo natural, provido de órgãos, que pode realizar os atos da vida.” Essa
definição aproxima-se bastante da definição dada por Aristóteles no De anima em que
afirma a alma como a forma de um corpo natural tendo a vida em potência, e também
como enteléquia primeira de um corpo natural organizado.209
207
Trata-se do συνολον de Aristóteles. Cf. Bakós n. 2.
208
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs, trad. J.Bakós. Praga: Académie Tchecoslovaque des Sciences, 1956, p. 10.
209
ARISTÓTELES De anima II 412 a 20 e II 412b5.
156
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
210
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p. 23.
211
®|¬ «¼ z·½j«\§ ª\¯§ ²w[ Ÿ´«\Ÿ Cf. RAHMAN: I,3,32. Em BAKÓS: I, 3, 23, “ Donc
l’ame est perfection comme substance, non comme accident.”
157
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
corrupção como o corpo. Em outras palavras, a alma não precede o corpo mas desde
que vem à existência juntamente com ele, jamais cessa, mesmo quando do
desaparecimento deste. Do mesmo modo que não foi gerada pelo corpo, não perece
quando este se corrompe. Ibn S÷nā crê poder demonstrar a substancialidade da alma
também pelo que se passa com o ser vivo quando de sua morte: se a alma se separa do
corpo na hora da morte, este não permanece mais da mesma espécie, revestindo-se de
uma outra forma; ora, se a alma não interviesse na organização do corpo, não haveria
razão para que essa estrutura se perdesse depois da morte; não tendo sido produzida
pela alma, ela poderia se manter mesmo ao se separar dela, mas isto não ocorre
justamente porque “ a matéria animada só é o que é por uma mistura própria e por uma
disposição própria, sendo que a matéria só resta existente em ato nessa mistura própria
enquanto a alma permanece nela, pois é a alma que a coloca nessa mistura.” 212
A divisão proposta por Ibn S÷nā quanto à alma e suas faculdades
acompanha Aristóteles na clássica divisão segundo as espécies vegetal, animal e
humana. Em sentido absoluto as faculdades da alma podem ser estabelecidas segundo
as três espécies, havendo também o caso de ser possível utilizar-se os termos por
analogia. No primeiro caso está a alma vegetal, definida como perfeição primeira de
um corpo natural munido de órgãos, enquanto nasce, cresce e se nutre; referindo-se,
portanto somente ao próprio vegetal. No segundo caso encontra-se a alma animal,
definida como perfeição primeira de um corpo natural munido de órgãos, enquanto
apreende as coisas particulares e se move voluntariamente; referindo-se, portanto,
somente ao animal em sentido próprio. O terceiro caso é o da alma humana, definida
como perfeição primeira de um corpo natural munido de órgãos, enquanto se lhe
atribui a execução dos atos que se fazem por escolha refletida e por invenção efetuada
com discernimento, e também enquanto apreende as coisas universais. Em sentido
analógico pode se fazer referência às funções vegetativas da alma do animal, e às
funções vegetativas e animativas da alma do homem. Segundo essa divisão,
verifiquemos a classificação das faculdades da alma.
A alma vegetal possui três faculdades: a nutritiva, a do crescimento e a
da geração. A primeira delas é responsável pela assimilação de corpos distintos
daquele no qual ela está transformando-o em algo semelhante ao seu próprio corpo. A
segunda faculdade, isto é a do crescimento, aproveitando a transformação efetuada
212
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit., p. 20.
158
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
213
Note-se que todas as localizações nervosas das faculdades não se encontram em Aristóteles, visto que
ele não tinha conhecimento algum da existência dos nervos. (Cf. Bakós n.183).
159
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
gostos dissolvidos dos corpos quando estão contíguos à língua e, por fim, o sentido do
tato, que é uma faculdade estabelecida nos nervos da pele e da carne de todo o corpo,
tendo por função perceber tudo o que toca o corpo.
No caso dos sentidos internos, vale destacar o amplo desenvolvimento
que Ibn S÷nā dedica a este grupo de faculdades que está a meio caminho entre a
sensação e a intelecção. Essas faculdades – em número de cinco – são as responsáveis
por realizar um processo de abstração que é mais perfeito do que o dos sentidos
externos mas ainda imperfeito em vistas daquele realizado pelo intelecto.
Primeiramente, deve se ter em mente uma distinção fundamental para se entender o
funcionamento dos sentidos internos. Essa distinção se refere ao que Ibn S÷nā chamou
214
de apreensão das formas e apreensão das idéias: “quanto às faculdades que
percebem interiormente, algumas são faculdades que percebem as formas das coisas
sensíveis, e outras percebem as idéias das coisas sensíveis.” 215 A diferença entre esses
dois modos de percepção é que a percepção da forma é realizada em conjunto com
algum dos sentidos externos enquanto a percepção da idéia, diferentemente, é
realizada de modo imediato pelo sentido interno. O exemplo clássico usado por Ibn
S÷nā foi repetido incansavelmente pelos pensadores do Ocidente latino medieval e
consiste no seguinte: a ovelha percebe a “forma” do lobo, isto é, sua configuração, seu
aspecto e sua cor; com certeza o sentido interno da ovelha também percebe essa forma
do lobo, mas, primeiramente, ela é percebida somente pelo seu sentido externo. Por
outro lado, a “idéia” é a coisa que a alma percebe do sensível sem que o sentido
externo a tenha percebido anteriormente. Por exemplo: a ovelha percebe no lobo a
idéia de inimigo ou a idéia que torna necessário o medo e a fuga para longe dele sem
que o sentido externo perceba isso de modo algum; logo, isso que o sentido externo
capta primeiramente e, depois o sentido interno percebe, chama-se propriamente de
forma; e isso que a faculdade interna percebe à exclusão dos sentidos externos, chama-
se idéia.
Os sentidos internos ou faculdades perceptivas internas são em número
de cinco: o sentido comum, a formativa, a imaginativa, a estimativa e a memória.216
Um dos exemplos que Ibn S÷nā se utiliza para mostrar a necessidade de haver uma
214
Å´˜¯ /ma’ana e ºy½ˆ / sura
215
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p.30.
216
Ibn Sina usa mais de um nome para definir cada um dos sentidos internos. Cf. ATTIE, Os Sentidos
op. cit., anexo. Note-se que, apesar de Ibn Sina utilizar os mesmos nomes que se encontram em outros
autores, notadamente em Aristóteles, as funções não são as mesmas.
160
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
instância interna distinta dos sentidos externos consiste na percepção de uma gota de
chuva que cai. Ora, uma gota que cai, naturalmente é percebida por nós como se
descrevesse uma linha reta mas, nesse caso, os sentidos externos não podem nos
fornecer a percepção de uma linha reta pois eles percebem apenas o que é dado num
determinado instante. Quando o sentido externo apreende a gota de chuva a cada
instante, segundo a posição que ela ocupa, não pode apreender a continuidade entre
uma posição e as posições anteriores. Para que tal percepção ocorra, isto é, para poder
apreendê-la como uma linha reta é necessário a conservação das posições anteriores no
momento da apreensão da posição atual, o que requer necessariamente a intervenção
dos sentidos internos.
Os cinco sentidos internos são localizados por Ibn S÷nā nas câmaras
cerebrais e possuem funções distintas. O primeiro deles é o sentido comum que está
localizado no primeiro ventrículo do cérebro e funciona como um receptáculo geral
para as formas que chegam indistintamente através dos cinco sentidos externos. Seu
papel, dentre outros, é o de receber as formas provindas da realidade externa para
dentro do cérebro. Em seguida está a faculdade formativa que também se localiza na
extremidade do ventrículo anterior do cérebro e opera em conjunto com o sentido
comum enquanto tem por função conservar o que este recebeu dos cinco sentidos
particulares. Tais formas permanecem no cérebro após o distanciamento das coisas
sensíveis. Assim, se estabelece a continuidade entre a realidade externa e a realidade
interna: num primeiro estágio, os sentidos externos apreendem os sensíveis particulares
– isto é, a visão apreende a cor; a audição o som; etc. – num segundo estágio essas
formas são recebidas no cérebro, pelo sentido comum; depois, são estabilizadas pela
faculdade formativa que as mantém fixadas no interior do primeiro ventrículo cerebral.
Em sua natureza, o sentido comum possui certa maleabilidade para receber as formas e
atua como a água que é capaz de receber um determinado traçado mas não é capaz de
conservá-lo. Por isso, a conservação é feita num segundo estágio de recepção.
Ora, mas como é da nossa natureza compor formas que estão
estabilizadas com outras, é preciso que haja uma faculdade que realize essa função.
Essa é, pois, a faculdade imaginativa que está estabelecida no ventrículo médio do
cérebro perto do lóbulo médio do cerebelo entre ambos os hemisférios tendo por
função unir e separar à vontade as formas que estão estabilizadas na formativa. Assim,
somos capazes de compor novas formas que necessariamente não existem na realidade
externa. Desse modo se estabelece, além da continuidade das formas da realidade
161
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
217
Esta alegoria também é referida “cogito” de Ibn Sina, no qual o homem, sem a intermediação do
corpo, se percebe existente e pensante.
162
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
sequer o ar o poderia tocar. Além disso, os seus membros estariam separados e não
poderiam se encontrar . Ora, nessas circunstâncias em que nenhuma realidade externa
lhe fosse percebida, pergunta-se Ibn S÷nā: seria possível que tal homem afirmasse sua
existência, apesar de não poder afirmar a existência de nenhum de seus membros, nem
suas entranhas, nem seu cérebro e seu coração, e nenhuma das realidades exteriores ?
A resposta dada por Ibn S÷nā, é positiva pois, mesmo destituído da apreensão de sua
realidade corporal e das realidades exteriores a ele, ainda assim, tal homem, de modo
imediato, seria capaz de afirmar-se como existente justamente pela existência da alma
nele. Para Ibn S÷nā isso se apresenta como uma evidência e, tal evidência de si mesmo,
alcançada de modo intuitivo e imediato, dispensa nosso filósofo de uma argumentação
exaustiva pois, por si só, ela é suficiente para que todo e qualquer homem possa
constatar a existência de sua própria alma. Vejamos como Ibn S÷nā termina esta
alegoria, chamando a atenção para tal evidência:
¬— ¹« »Àˆ\r \·u½k¼ a_f[ Ác«[ a[x«[ ²w\Ÿ Sendo assim, a essência cuja existência
foi constatada possui uma propriedade na
±« Ác«[ ¹Î\Œ—[¼ ¹°j z› ¹´˜^ ½· \¸´[
medida em que ele [esse homem] é
Ŭ— ¹_c´ ²[ «[ −_ ¹« ¹_´c°«[ [w\Ÿ G a_g distinto de seu corpo e de seus membros
¹³[¼ ±kz› −^ ±j«[ z› \Ï„ Ÿ´«[ u½k¼ que não eram constatados. Desse modo,
aquele que afirma, possui um meio para o
¹´— Ø·[w ²\§ ²[¼ ¹« z˜„c° ¹^ āy\—
afirmar, em virtude da existência da alma,
! ¶\ˆ— –z£¿ ²[ i\co como algo distinto do corpo, ou melhor,
não-corpo. Assim, esse homem conhece
isso e o percebe, e se ele disso se
esqueceu, seria necessário adverti-lo. 218
Uma das melhores imagens da alma humana que nos fornece Ibn S÷nā é a de que ela
possui duas faces: “a nossa alma possui duas faces: uma face voltada para o corpo (...)
e uma face voltada para os princípios supremos.”219 Seguindo essas duas direções, Ibn
S÷nā distingue as faculdades da alma humana em “faculdade que age e faculdade que
218
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs, edição do texto árabe por RAHMAN, F. Avicenna’s De Anima, Being the
Psycological part of Kitab Al-Shifa. London: Oxford University Press, 1960.
RAHMAN: I,1,16 / BAKÓS: I,1,13. A sentença final “ ¶\ˆ— –z£¿ ²[ i\co ” significa
literalmente “seria necessário bater nele com uma bengala (!)”.
219
»À«\˜«[ Âu\_°«[ Å«[ ¹j¼¼ !!! ²v^«[ Å«[ ¹k¼ G µ¸k¼ \´° Ÿ´¬« ²\¨Ÿ Cf. RAHMAN:
I,5, 47 IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p.33.
163
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
conhece sendo que cada uma das duas faculdades chama-se intelecto por homonímia
220
ou equivocidade.” Assim, temos duas faculdades: o intelecto prático e o intelecto
teórico. Sendo uma substância simples e una, mas que se relaciona com duas realidades
distintas – uma que está acima e outra abaixo dela –, a alma humana possui estas duas
faculdades que tornam possível a conexão entre ela e cada um dos dois lados. Pelo
lado inferior “nascem os hábitos morais e do lado superior nascem as ciências”.221
Acompanhando essa imagem, vejamos como Ibn S÷nā nos informa do papel da
filosofia:
“A filosofia tem como fim informar acerca das verdades de todas as
coisas na medida do possível ao homem. As coisas existentes, por sua
vez, ou existem sem depender de nossa vontade ou, então, existem por
nossa vontade e atividade. Ao conhecimento das coisas que pertencem
à primeira divisão chama-se filosofia teórica; ao conhecimento das
coisas que pertencem à segunda divisão chama-se filosofia prática. O
fim da filosofia teórica é aperfeiçoar a alma pelo conhecer; o fim da
filosofia prática é aperfeiçoar a alma, não pelo simples conhecer, mas
por conhecer o que há de ser feito e fazê-lo. Assim, o fim da teórica é
a aquisição de uma opinião que não é prática, ao passo que o fim da
prática é conhecer uma opinião que é prática.”
Na direção e comando do corpo está o intelecto prático que dirige o homem nos seus
atos particulares tais como as ações morais e políticas, a criação das artes e outras
ações realizadas em sociedade. Na outra direção, o intelecto teórico busca a aquisição
do conhecimento e das verdades supremas. Se, por um lado, o intelecto prático deve se
guiar pelo intelecto teórico, por outro lado, ele deve dirigir todas as outras faculdades
da alma e não se deixar dirigir por elas pois, se isso acontecer, corre-se o risco de se
criar hábitos morais vis por uma inversão na hierarquia das faculdades. Assim, o
intelecto prático governa o corpo mas não o faz de modo totalmente independente do
intelecto teórico pois este, em conexão com o lado superior e sob os influxos da
220
I, 5, 31. Também podem ser chamadas de faculdade prática e faculdade especulativa, ou ainda,
intelecto prático e intelecto teórico. Em Aristóteles são o intelecto teórico e o intelecto prático. O fim do
intelecto prático é a ação, dirigida ao bem prático e o contingente; enquanto o fim do intelecto teórico é
o necessário, isto é, o verdadeiro e o falso. O verdadeiro sendo absoluto, o bem relativo. (Cf. Bakós
n.210) . Note-se, ainda, que sendo faculdades da alma humana, não há uma localização fisica. Deve se
ter em mente que Ibn Sina acompanha em linhas gerais a divisão estabelecida por Al-Farabi mas não
totalmente.
221
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p.33.
164
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
inteligência agente (ª\˜«[ −¤˜«[), recebe e adquire constantemente o efeito disso que
está acima dele para que a ação humana se guie pela verdade, em vista do bem.
Focalizando as primeiras definições a respeito do intelecto teóorico –
no Kitāb al-Nafs –, Ibn S÷nā o define como “ uma faculdade que tem a função de
receber a impressão das formas universais abstraídas da matéria.”222 O intelecto teórico
possui diversas relações com essas formas na medida em que passa da potência ao ato.
Segundo esses dois extremos – potência e ato –, Ibn S÷nā estabelece uma gradação no
interior do intelecto humano para representar os diferentes níveis em que se dá a
apreensão dos inteligíveis desde o seu grau mais comum – encontrado em todos os
homens –, até o seu mais alto grau – o limite do entendimento humano –, encontrado
em alguns poucos homens. Os graus são os seguintes: intelecto material, intelecto em
hábito, intelecto em ato, intelecto adquirido e, por fim intelecto sagrado. Inicialmente,
Ibn S÷nā distingue níveis de potencialidade para, em seguida, relacioná-los com os
distintos graus do intelecto.
A potência no seu sentido mais radical deve ser entendida como uma
aptidão total e absoluta da qual não é possível que algo resulte em ato como, por
exemplo, a potência de escrever que há numa criança de pouca idade. Num segundo
sentido já nuançado, a potência pode ser entendida de maneira mais desenvolvida
como, por exemplo, quando a criança já se inicia nas letras e já conhece a pena e o
tinteiro. Num terceiro sentido, a potência pode ser entendida como uma aquisição já
completa que pode ser usada a qualquer instante sem que haja a necessidade de uma
nova aquisição bastando que se decida a agir ou não como, por exemplo, a potência do
escriba perfeito na arte, quando se decide ou não a escrever. Tais níveis de potência,
Ibn S÷nā denomina: potência material; potência possível e perfeição da potência. Esses
três níveis de potencialidade, assim estabelecidos, indicam os graus com que o
intelecto apreende os inteligíveis distinguindo-se, inicialmente, três níveis na
intelecção, como se fossem três intelectos ou três faculdades intelectivas, ou ainda
graus diferenciados de apreensão por parte do intelecto teórico.
No primeiro caso, “o intelecto se encontra frente aos inteligíveis
223
em um estado de potencialidade absoluta”. Esse é o intelecto material
(Á³×½À·«[ −£˜«[) e seu nome se deve justamente pela semelhança que guarda com a
222
RAHMAN I, 5, 48.
223
GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994, p. 46.
165
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
matéria prima que não possui por si uma forma, mas é sujeito de inerência para toda
forma. Na medida em que esse nível do intelecto ainda nada recebeu da perfeição que
existe em relação a ele, mantém-se em potência absoluta, é individualizado e pertence
a cada um dos membros da espécie humana. No segundo grau, ocorre que no intelecto
material já estão presentes os primeiros inteligíveis, isto é, os primeiros princípios
como, por exemplo, que o todo é maior que a parte, que duas coisas iguais a uma
terceira são iguais entre si, dos quais e pelos quais se chega aos inteligíveis segundos.
Esse segundo grau se chama intelecto em hábito ( »¨¬°«\^ −£˜«[ ), e pode se dizer em
esses são os três graus do intelecto teórico e, de certo modo, talvez bastasse, no
estabelecimento dos meios pelos quais se dá o processo de apreensão dos inteligíveis
abstraídos da matéria, esse itinerário ritmado através dos três graus do intelecto
humano assim definidos: material; em hábito; em ato. Entretanto, Ibn S÷nā apresenta
mais dois graus que devem ser entendidos em sua relação com a inteligência agente.
São eles: o intelecto adquirido (u\Ÿc¯«[ −£˜«[) e o intelecto sagrado (Áv£«[
−£˜«[).
Antes de mais nada, deve se ter em mente que, no processo de passagem
da potência ao ato, é preciso que haja um intelecto sempre em ato que opere essa
passagem. Ibn S÷nā, – seguindo Al-Fārāb÷ – também entende que esse intelecto
sempre em ato que opera a passagem da potência ao ato no intelecto humano é uma
das inteligências separadas, – mais precisamente a décima inteligência pura e
separada da matéria – que ilumina o intelecto humano para que este consiga a
abstração destituída de todo laço material. Vejamos uma das passagens a esse
respeito:
“Às vezes a relação é uma relação do que está em ato absoluto. Isso
consiste em que a forma inteligível está presente no intelecto enquanto
este o considera em ato; então ele conhece em ato e sabe que o
conhece em ato. O que veio então ao ato nele chama-se intelecto
adquirido; e ele só se chama intelecto adquirido porque nos será claro
166
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Assim, o intelecto adquirido pode ser entendido, num primeiro sentido do seguinte
modo: “toda vez que ele quiser, ele pode se conectar à inteligência agente por um
modo de conexão na qual é concebido nele esse inteligível, sem que este inteligível
esteja presente em seu espírito e seja sempre concebido em ato em seu intelecto, não
225
como este inteligível era antes da instrução.” Ou seja, atualizado um inteligível, a
alma como se soubesse a via pela qual pode acessá-lo na inteligência agente
novamente tal inteligível, o faz. Isso não significa que a alma o deva conhecer
novamente mas sim que o pode acessar novamente, pois tal inteligível em ato já fora
adquirido. Assim sendo, o que fora atualizado e fora denominado, a princípio, de
intelecto em ato, só o é em relação ao primeiro aprendizado, mas não o é em vistas do
uso deste inteligível. Sendo assim, o que se chamou de intelecto em ato tornar-se-ia
intelecto em potência em vista da atualização que faz do uso do inteligível sempre em
ato que está na inteligência agente. É por isso que nos diz Ibn S÷nā: “este modo de
intelecto está em ato por uma atualização, mas ele é a potência que vem ao ato na alma
para que a alma conheça por si o que quer conhecer, pois quando a alma quer, ela é
conectada – à inteligência agente – e nela desborda a forma inteligível; e essa forma é,
na verdade, o intelecto adquirido, enquanto que essa potência é o intelecto em ato em
nós enquanto ele tem a conhecer. E quanto ao intelecto adquirido, ele é o intelecto em
ato enquanto é uma perfeição.”226
O intelecto adquirido pode ser entendido no sentido de que o
conhecimento consiste na atualização provocada por uma forma inteligível vinda do
exterior e dele deve se entender o próprio inteligível, atuado e infundido pela
224
IBN SINA, Kit¡b al-Nafs ,trad. Bakós, op. cit.,p.I, 5, 34.
225
Ibid, V, 6, 247.
226
Ibid, V, 6, 247 – 248.
167
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
227
GARDET, L. La pensée religieuse d’Avicenne. Paris: Vrin, 1951, p. 115: “Para Ibn S≈n¡, ao contrário
de Al-F¡r¡b≈, (…) o intelecto adquirido não é o intelecto humano enquanto potência atualizada, mas é
recebido por este último.”
228
GOICHON, A.M. Introduction a Avicenne – son épître des définitions. Paris: Desclée, 1933. p. 46.
229
GARDET, op. cit. p. 115
168
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
ao se afirmar que “é comum a todos os homens” com isto não se afirma que o grau em
que ele se dá seja o mesmo para todos os homens. Por exemplo: nos homens comuns, o
aprendizado é um meio para a apreensão dos inteligíveis e, portanto, para a atualização
do intelecto. Ibn S÷nā observa que no exercício do aprendizado há distintos graus de
aptidão entre os alunos: uns são mais rápidos na apreensão do conhecimento, enquanto
outros são mais lentos. Essa aptidão – chamada por Ibn S÷nā de “intuição intelectual”
(vo/ ¬ads) 230 – não sendo observada de modo equânime em todos os homens, é
passível de ser classificada segundo sua variação, podendo ser mais ou menos ativa.
Desse modo, admitindo-se que a variação dos graus da aptidão para a
recepção dos inteligíveis tem sua causa na variação da intensidade da intuição
intelectual, não é difícil perceber que Ibn S÷nā não encontra nenhum obstáculo para
afirmar que tal aptidão levada a um grau extremo, torna o homem que a possui, um
homem com qualidades bastante distintas das qualidades do homem comum. Dessa
maneira, abre-se a possibilidade de haver uma conexão entre o intelecto humano e a
inteligência agente sem que o aprendizado ou outro meio utilizado pelo homem
comum seja o meio com que tal homem se conecte com as formas inteligíveis. Resume
Ibn S÷nā:
“ Essa aptidão aumenta, às vezes, num certo homem de modo que,
para se conectar à inteligência agente, ele não tem necessidade de
muitas coisas, nem de educação, nem de ensinamento; ao contrário,
ele é forte na aptidão. É por essa razão que a segunda aptidão vem ao
ato nele, melhor, como se ele conhecesse toda coisa por si mesmo. E
esse é o mais alto dos graus desta aptidão. E essa disposição da
inteligência material deve ser chamada inteligência sagrada, mas essa
disposição é do gênero da inteligência hábito, salvo que a inteligência
sagrada é muito elevada. Ela não é disso que todos os homens
possuem em comum.” 231
230
GOICHON, A.M., Lexique de la langue philosophique d’Ibn Sina. Paris: Desclée, 1938 pp. 65 – 66,
o termo vn ®ads é definido como “intuição intelectual” – em oposição à “intuição sensível” – . A
®ads é entendida como um tipo de lampejo de compreensão que se produz no espírito, em que se
descobre subitamente uma verdade até então não percebida. Este caráter repentino da ®ads não exclui
um certo tipo de movimento para atingir o termo médio quando o problema é colocado ou para se atingir
o termo maior quando o termo médio é obtido. No entanto, não se trata do movimento progressivo mais
próprio da cogitação que caberia melhor ao termo ºz¨Ÿ /fikra (idéia - reflexão) que é um movimento
deliberado de busca.
231
RAHMAN V, 6, 248.
169
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
232
GOICHON, op. cit. p.45 “ A hierarquia das forças compreende 26 graus, desde a mais alta forma da
inteligência até as qualidades dos corpos simples. O intelecto adquirido ou intelecto sagrado é servido
por todas as outras; abaixo dela vem o intelecto em ato, servido pelo intelecto em hábito, servido, ele
mesmo, pelo intelecto em potência (…) em homens raros, enfim, cuja preparação chega à perfeição, o
intelecto adquirido merece ser chamado sagrado.”
170
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Æ\Ÿˆ«[ ºv„^ Ÿ´«[ v¿Ì¯ \´«[ com a alma fortificada por uma grande pureza
e pela estreita junção com os princípios
Å«É »À¬£˜«[ Âu\_°«\^ ª\ˆb×[ ºv„¼
intelectuais, até que se inflame de uma
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intuição intelectual, quero dizer, recebendo os
ÆÁ„ −§ ÁŸ ª\˜Ÿ«[ −£˜«[ µ¯
princípios intelectuais da inteligência agente
−£˜«[ ÁŸ Ác«[ y½ˆ«[ ¹ÀŸ ±bzb¼
em todas as coisas, e que nele se imprimem as
µ¯ \_¿z£ \¯É¼ »˜Ÿu \¯É ª\˜Ÿ«[
formas que estão na inteligência agente, seja
`Àbzc^ −^ \¿vÀ¬£b × \¯\by[ »˜Ÿu
de um só golpe, seja quase de um só golpe,
(...) Å‘½«[ u¼vo«[ Ŭ— −°c„¿
não de uma maneira figurativa, mas sim
Ŭ—Ç −^ º½_´«[ µ¯ ]z‹ [x·¼ seguindo uma ordenação que inclui os termos
¶x· Á°b ²[ Å«¼Ù[¼ G º½_´«[ ½£ médios (...) e isso é um tipo de profecia, ou
Ŭ—Ç Á·¼ G »Àv£ º½£ º½£«[ melhor, a mais alta das faculdades da profecia.
. »À³\³Û[ ½£«[ `b[z¯ E esta faculdade é a mais digna de ser
chamada faculdade sagrada, e ela é o mais alto
grau das faculdades humanas. 233
233
RAHMAN, V, 6, 250. A referência final de que isto é “um modo” de profecia nos leva a perguntar
quais seriam, então, os outros. A título de indicação deveríamos nos remeter aos capítulos precedentes
do Kitab al-Nafs em que encontramos mais dois modos de profecias ligados a duas outras faculdades da
171
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Antes de tudo, porém, importa registrar que existem muitas razões para
Al-¦azāl÷ não figurar entre os filósofos, principalmente porque ele não foi um filósofo
– no sentido estrito do termo – e condenou as principais teses metafísicas de Al-Fārāb÷
e de Ibn S÷nā. Mas, por outro lado, existem também inúmeras razões para que ele
figure entre os filósofos, quanto mais num trabalho que se propõe a ser uma introdução
à falsafa. Uma da razões é a de que Al-¦azāl÷ utilizou em algumas de suas obras, os
métodos e os princípios da filosofia, ainda que fosse para criticá-la. Por esse motivo
importa sublinhar suas relações no que concerne à falsafa. Afinal, “o maior
personagem na história da reação islâmica ao neoplatonismo é Al-¦azāl÷: jurista,
teólogo, filósofo e místico.(!)”234
Como bem assinalou Hernandez, até aquele momento “a falsafa
realizara uma interpretação peculiar da sabedoria alcorânica e que, de certo modo,
representava uma substituição da teologia do kalām por uma cosmovisão peripatética
alma: a faculdade imaginativa e a faculdade motora. O modo de profecia associado à faculdade motora
permite, por exemplo, que o homem fortificado nesta faculdade interfira na matéria e na ordem da
natureza. Quanto à profecia ligada à faculdade imaginativa destacamos que, sem ela, os profetas não
poderiam, por exemplo, criar alegorias que mostram de uma maneira simbólica as verdades intelectuais
que podem lhe chegar pelo intelecto sagrado. Os três modos de profecia não são excludentes e podem
atuar em conjunto num mesmo homem, inserindo-se em três níveis: o sensível, o imaginativo e o
intelectual
234234
FAHKRY, Histoire de la philosiohie islamique, op.cit., p. 241.
172
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
235
HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico op. cit.,p.275.
236
DE LIBERA, A Filosofia Medieval op. cit., p. 124.
237
THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM, op. cit., p. 1039.
173
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
matrizar o pensamento de Al-¦azāl÷ somente a partir das obras principais que estejam
sob indubitável autenticidade.
A sua principal e maior obra – tanto em volume como em importância –
denomina-se ’I¬yā’ ‘ulým al-d÷n / Revificação das Ciências da Religião em quatro
volumes que tratam dos cultos religiosos, dos costumes sociais, dos vícios e das
virtudes do crente para o caminho da salvação. Nessa obra de teologia e moral, Al-
¦azāl÷, procurou submeter a uma larga revisão a atitude religiosa e buscar o sentido
mais elevado que possa fazer penetrar a fé, em seu sentido maior, no coração dos
crentes. É um dos livros mais notáveis do Islām.
Quanto à sua vida, esta nos é conhecida, em boa parte, através de uma
174
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
audiência de mais de trezentos alunos. Enquanto isso, se dedicava ao estudo dos livros
de filosofia. A esse tempo escreveu contra os filósofos, Maqā½id al-falāsifa / As
intenções dos filósofos e o Tahāfut al-falāsifa / A Autodestruição dos Filósofos.
Após aproximadamente quatro anos ensinando na escola de Bagdá, Al-
¦azāl÷, iniciou um terceiro momento que foi decisivo em sua vida. Buscando uma
certeza interior que fosse inabalável à sua alma, entrou em profunda crise chegando a
abandonar a profissão e a família. Em 1095 d.C./ 488 H., aos 36 anos de idade, partiu
em busca da certeza que lhe fosse a garantia da verdade e sobre a qual pudesse
testemunhar o verdadeiro conhecimento. Durante dez anos, vestido do hábito dos sufis,
ele peregrinou, solitário, através do mundo muçulmano.. Apesar de o próprio Al-¦azāl÷
explicitar que razões pessoais o motivaram a sair de Bagdá, parecem ter existido
motivos políticos, que igualmente teriam pesado em sua decisão. De todo modo,
durante esse decênio, Al-¦azāl÷ viajou para Damasco, Jerusalém, Alexandria, Cairo,
Meca e Medina. O período de peregrinação e isolamento dedicado à meditação e às
práticas espirituais dos sufis se encerrou por volta de 1105 d.C./ 498H. quando Al-
¦azāl÷ tinha por volta de 46 anos de idade.
O último período de sua vida durou pouco mais de 6 anos. Neste, Al-
¦azāl÷, depois de ter superado muitas de suas dúvidas, retornou à sua cidade natal,
ensinando alguns anos mais em Nay¹ābýr. Foi nesse último espaço de tempo que
compôs sua obra autobiografica Al-Munqid min Al-∞alāl / O Salvador do Erro quando
tinha por volta de 50 anos. Al-¦azāl÷ morreu em 1111 d.C./ 505H. deixando gravadas
em sua busca pela verdade, passagens como esta:
“O verdadeiro conhecimento é aquele pelo qual a coisa conhecida se
descobre completamente diante do espírito, de modo que nenhuma
dúvida subsista a seu respeito e que nenhum erro a possa obscurecer.
É o grau no qual o coração não saberia admitir e nem mesmo supor a
dúvida. Todo saber que não comporta esse grau de certeza é um saber
incompleto, passível de erro.” 238
Enquanto ensinava em Bagdá, Al-¦azāl÷ escreveu a obra Maqā½id al-falāsifa / As
intenções dos filósofos, na qual se propôs a expor as idéias dos filósofos,
principalmente, de Ibn S÷nā e de Al-Fārāb÷, com o intuito de refutá-las numa obra
posterior. As intenções dos filósofos foi a principal responsável pela confusão que se
deu no Ocidente medieval latino quando Al-¦azāl÷ foi classificado como um filósofo
238
CORBIN , Histoire de la philosphie islamique, op.cit., p.256
175
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
árabe juntamente com Al-Fārāb÷, Al-Kind÷ e Ibn S÷nā. O motivo da confusão foi
bastante simples: a obra em questão foi traduzida do árabe para o latim sem o
respectivo prólogo no qual Al-¦azāl÷ explicava justamente o seu objetivo de apresentar
as idéias filosóficas com a maior clareza possível para criticá-las depois. Sem esse
alerta, os leitores foram levados a concluir que Al-¦azāl÷ seria partidário, e não crítico,
das idéias filosóficas que expunha. Fahkry observa que “esta exposição das doutrinas
do neoplatonismo árabe é tão habilmente escrita que um leitor negligente concluiria
que se trata da obra de um neoplatônico clássico, tal como concluíram os doutores
escolásticos do séc.XIII d.C.” 239. Vale observar também que a fidelidade é tal, que são
poucas as diferenças entre essa obra de Al-¦azāl÷ e o Livro das Ciências / Danesh
Nama de Ibn S÷nā.
A segunda obra que completava, em parte, a crítica de Al-¦azāl÷ aos
filósofos denominou-se Tahāfut al-falāsifa / A Autodestruição dos Filósofos, na qual
são enumeradas vinte teses que, segundo ele, mostrariam as contradições em que
tahāfut, aliás, apresentou algumas dificuldades de tradução mas, em linhas gerais, pode
ser entendido como precipitação ou ruína, no sentido daquilo que tomba por sua
própria inconsistência. Por essa razão, às vezes encontramos o termo traduzido por
“incoerência”, apesar de este conceito não ser adequado pois, não contempla de
maneira explícita a noção de ruína que está presente no termo tahāfut.
Dos vinte pontos que Al-¦azāl÷ considerou como falsos na doutrina dos
filósofos, três se destacam por irem diretamente contra as afirmações do Alcorão, o que
o leva a condenar os filósofos por impiedade. Os três pontos em questão são os
seguintes: a afirmação, por parte dos filósofos, da eternidade do mundo, do não
conhecimento por Deus dos particulares e da não–ressurreição dos corpos. Em seu
fervoroso ataque, Al-¦azāl÷ negou a eternidade do mundo – assim como fizera Al-
Kind÷ – e a processão plotiniana das inteligências. Também negou que a filosofia fosse
capaz de demonstrar a unicidade e a incorporeidade divinas.
O que chamou a atenção nessa crítica de Al-¦azāl÷ contra a filosofia
foi foi o fato de ele ter adotado os próprios métodos da filosofia para atingir seu
objetivo. Essa estratégia revelou a dificuldade inerente de se utilizar a lógica e a
dialética racional com o intuito de demonstrar a insuficiência dos argumento
239
FAHKRY, Histoire de la philosiohie islamique,op. cit.,p.246.
176
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
240
CORBIN, Histoire de la philosiohie islamique,op.cit., p. 255.
241
MUNK, S. Melanges de philosophie, op.cit.,p.382s.
242
BADAWI, Histoire de la philosophie en Islam op.cit., p.84.
177
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
continuidade no Islām ocidental, onde o Tahāfut também foi conhecido, sugere que
outras causas também foram importantes.”243
Ao se acompanhar a trajetória pessoal de Al-¦azāl÷, pode-se verificar
que a crítica endereçada aos filósofos não é toda a sua preocupação mas é, também,
uma das estações de sua longa viagem em busca da verdade, como ele próprio relata no
Al-Munqid min Al-∞alāl / O Salvador do Erro. Pelo seu caráter autobiográfico, essa
obra foi, muitas vezes, chamada de uma versão árabe das Confissões de S.
Agostinho. Escrita poucos anos antes de sua morte – no último período de sua estada
em Nay¹ābýr – Al-¦azāl÷ passou em revista muitas de suas experiências com a verdade
procurando-a nas opções que o meio cultural da época lhe oferecia. Afinal, nesse
período tanto a filosofia quanto a teologia e a mística islâmicas já haviam se
estruturado a ponto de oferecer um quadro mais aperfeiçoado e acabado a Al-¦azāl÷ e
a seus contemporâneos. A verdade – diz Al-¦azāl÷ – tem que estar em algum desses
grupos significativos culturalmente pois, do contrário “não haverá expectativa de se
chegar a ela”.244 Isso explica, em parte, o porquê Al-¦azāl÷ criticou não só a falsafa,
mas também outros sistemas que se propunham ser vias de acesso à verdade que se
apresentavam em sua época. Mas passemos a verificar como o próprio Al-¦azāl÷
testemunha suas intenções ao longo de O Salvador do Erro.
Em sua divisão mais geral, a obra constitui-se de uma breve introdução
e um discurso sobre os procedimentos da sofistica. Al-¦azāl÷ estabelece diferentes
classes de buscadores da verdade discorrendo sobre a filosofia e seus ramos tais como:
lógica, metafísica, política e ética. Além disso analisa a teologia, a suposta infabilidade
dos imans, os sufis, a profecia e, por fim, explica o motivo pelo qual retorna a ensinar
no últimos anos de sua vida.
Inicialmente, Al-¦azāl÷ alude ao fato de que a diversidade de religiões e
seitas nos confundem entre o que é verdadeiro e o que não é verdadeiro, num cenário
que “um mar insondável no qual naufraga a maioria e apenas poucos se salvam.”245 Ao
longo de sua vida, confessa que o espírito da investigação e a sede por conhecer as
verdadeiras naturezas das coisas sempre o acompanharam desde sua juventude e
permaneciam presentes até aquele momento em que ele já passava dos cinquenta anos.
Em todo o seu trajeto, percorrendo as mais variadas escolas e mestres, Al-¦azāl÷ diz de
243
THE ENCICLOPAEDIA OF ISLAM, op. cit., vol.II p.1041.
244
ALGAZEL, Confesiones, Madrid: Alianza Editorial, 1989,p.38.
245
Ibid, p.28.
178
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
seu arrojo ao penetrar profundamente em cada uma das crenças e seitas que conheceu,
“tratando de averiguar os segredos da doutrina de cada grupo para distinguir entre o
veraz e o mendaz e entre aquele que segue a tradição ortodoxa e o herege que introduz
246
novas doutrinas.” Nesta passagem podemos ver como o próprio Al-¦azāl÷ definiu
sua determinação:
“Não deixei a nenhum esotérico antes de querer vislumbrar a sua
doutrina, nem a um literato sem desejar conhecer o resultado de sua
crença, nem a um filósofo antes de intentar saber o cume de sua
filosofia, nem a um teólogo sem esforçar-me por examinar o limite
máximo de sua teologia e de sua dialética, nem a um sufi sem antes
estar ávido de conhecer o segredo do sufismo, nem a um piedoso sem
observar o que resultava de seus atos de devoção, nem a um incrédulo
negador de Deus sem espiar para além disso para me aperceber dos
motivos de sua ousada postura.” 247
A partir disso, Al-¦azāl÷ declarou que passou a se guiar na direção de buscar
primeiramente o conhecimento da verdadeira natureza das coisas. Mas para isso,
entendeu que deveria buscar, antes de tudo, a verdadeira natureza do conhecimento,
isto é, “ver no que este consiste”248. Como se antecipasse a dúvida cartesiana, a
parcial conclusão de Al-¦azāl÷ sobre esta que deveria ser a pedra fundamental de seu
caminho é a de que ele só poderia aceitar como verdadeiro um conhecimento que lhe
fosse de tal modo evidente, que nenhuma dúvida pudesse derrubá-lo, pois o
conhecimento certo só poderia ser aquele no qual o que é conhecido o é de tal modo
que não deixaria lugar a nenhuma dúvida, nem ilusão e nem erro, e que a inteligência
não pudesse sequer supor que aquilo não fosse verdadeiro. Tudo aquilo que não se
pode conhecer desse modo e do qual não é possível ter esse mesmo tipo de certeza não
pode fornecer garantia e tampouco segurança da verdade sendo, pois, um
conhecimento incerto sobre o qual não seria possível se apoiar. A postura de Al-¦azāl÷,
carregando em seu íntimo a dúvida a respeito do verdadeiro conhecimento das coisas,
terminaria por arrastá-lo a uma crise profunda.
Ora, mas quais seriam os tipos de conhecimentos que temos acesso e
quais os que podemos considerar verdadeiros? Al-¦azāl÷ responde essa questão na
segunda parte de O Salvador do Erro, instaurando uma dúvida metódica que guarda
246
Ibid, p.29.
247
Ibid, p.29.
248
Ibid, p.30.
179
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
muita semelhança com as passagens em que Descartes trata de pôr em dúvida os meios
de apreensão da realidade. Primeiramente, Al-¦azāl÷ parte da constatação de que
aquilo que conhecemos ou nos chega através da apreensão dos sentidos ou através dos
primeiros princípios que estão no intelecto. Logo, para se atingir um conhecimento
certo dever-se-ia partir desses dois tipos de apreensão e investigar em que medida o
verdadeiro conhecimento com eles se relaciona, aceitando-os como fontes de verdade
desde que nos fosse evidente e seguro que esses tipos de conhecimento não fossem
passíveis de erro. Nos diz Al-¦azāl÷: “imediatamente passei a dedicar uma grande
atenção em considerar os dados sensíveis e os primeiros princípios e a ver se me era
possível colocá-los em dúvida.”249
Assim, a primeira certeza que Al-¦azāl÷ descarta (!) é quanto à
segurança e à verdade dos dados sensíveis, nos quais não se pode confiar totalmente.
Afinal, como poderíamos confiar nos dados dos sentidos se a visão, que é o mais
excelente dos órgãos dos sentidos, ao contemplar uma sombra qualquer vendo-a parada
e imóvel, julga equivocadamente que não há naquela sombra nenhum movimento? No
entanto, depois de algum tempo, quando voltamos a observar a mesma sombra, a
vemos em outra posição e concluímos que, movendo-se pouco a pouco, houve um
movimento imperceptível aos nossos sentidos, o que nos leva a concluir que a sombra
nunca esteve em repouso apesar de nossa visão não ter sido capaz de apreender esse
movimento. Engano semelhante ocorre quando vemos pequenas estrelas que pensamos
ser “do tamanho de um dinar”250 enquanto, contrariamente, as demonstrações
geométricas provam que elas são maiores do que a Terra. “Sobre estes e outros dados
sensíveis e semelhantes, decide o árbitro do sentido, mas o árbitro da razão os declara
falso e enganoso de um modo que não admite apelação.”251
Sendo certo, pois, que não podemos confiar totalmente nos dados
sensíveis, podemos pensar que talvez esta confiança que buscamos deva ser possível
somente quanto aos inteligíveis pois estes são da ordem dos primeiros princípios como,
por exemplo, que “dez é mais do que três; que a afirmação e a negação não são
possíveis sobre uma mesma coisa; e que tampouco pode algo ser ao mesmo tempo
criado e eterno, existente e não existente, necessário e impossível.”252 Mas surge uma
dificuldade: mesmo que confiássemos nos dados inteligíveis dos primeiros princípios,
249
Ibid, p.33.
250
Ibid, p.33.
251
Ibid, p.33.
252
Ibid, p.33.
180
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
ainda assim a nossa certeza não poderia ser dada como uma certeza absoluta pois os
próprios dados sensíveis objetariam quanto a essa nossa confiança, visto que não
haveria garantias de que tal confiança depositada nos dados do intelecto e dos
primeiros princípios não fossem semelhantes à garantia que julgavamos ter nos dados
sensíveis, a qual se mostrou insustentável pelo juízo da razão. Da mesma maneira
como o árbitro da razão invalidou o julgamento do árbitro do sentidos, o que nos
garantiria que não haveria um outro árbitro superior ao árbitro da razão que invalidasse
a nossa confiança nos dados dos primeiros princípios? Valendo-se do argumento
segundo o qual a ausência de prova não é prova de ausência, Al-¦azāl÷ afirma: “que
essa outra percepção além da razão não tenha aparecido não prova que seja impossível
sua existência.” 253
Nosso pensador se põe ainda mais perplexo ao comparar os dados
sensíveis e intelectuais com os dados que nos chegam através dos sonhos. É notório
que ao sonharmos, muitas vezes, temos confiança e certeza absolutas naquilo que
sonhamos como se fosse a própria realidade mas, abruptamente, acordamos e vemos
que todas aquelas imagens e cenas não possuíam nenhum fundamento crível como o
que temos no estado de vigília. Qual seria a garantia, também, que esse estado de
vigília, no qual atestamos como absolutamente certos os dados que nos chegam pelos
sentidos e pelo intelecto, não possa ser um estado sujeito a ser surpreendido por um
outro estado que invalidasse nossas certezas, do mesmo modo que o estado de sonho é
surpreendido e invalidado pelo estado de vigília? Se isso ocorresse e “se me
sobreviesse esse estado, estaria certo de que tudo que concebi com minha razão seriam
imaginações inúteis.”254
Sob esse verdadeiro desmoronamento das certezas, não surpreende que
Al-¦azāl÷ entrasse em profunda crise. Sua dúvida, parecendo ter ultrapassado os
limites, limitava-o e, nesse estado, perdera até mesmo a condição de raciocinar. Mas
ele logo superaria a crise. Após chegar ao ápice da descrença, Al-¦azāl÷ nos relata:
“agravou-se, pois, essa enfermidade, e passei cerca de dois meses em um estado de
ceticismo, ainda que não professasse explicitamente tal doutrina, até que Deus me
curou daquela enfermidade e recobrei a saúde e o equilíbrio voltando a aceitar os
primeiros princípios na confiança de que estavam a salvo do erro e de que havia
253
Ibid, p.34.
254
Ibid, p.34.
181
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
255
Ibid, p.35.
256
Ibid, p.36.
257
Ibid, p.38.
258
Ibid, p.39.
182
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
259
Ibid, p.40.
260
Ibid, p.40.
261
Ibid, p.41.
262
Ibid, p.40.
263
FAHKRY, Histoire de la philosiohie islamique,op. cit. p. 245.
264
ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.42.
265
Ibid, p.42.
183
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
266
Ibid, p.43.
267
Ibid, p.44.
268
Ibid, p.44.
269
Ibid, p.45.
184
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Miguel Attie Filho
270
FAHKRY, Histoire de la philosiohie islamique,op.cit.,p.247.
271
ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.49.
185
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
272
Ibid, p.50.
273
Alcorão, 34,3. ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.52
186
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
274
HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico,op.cit.,p.280.
275
Ibid, p.280.
276
Ibid, p.280.
277
Ibid, p.284.
278
Ibid, p.284.
279
Ibid, p.284.
187
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
280
Ibid, p.281.
281
ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.60.
282
Ibid, p.60.
283
Ibid, p.60.
188
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
189
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
290
Ibid, p.74.
291
Ibid,p.74.
292
Ibid, p.75.
190
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Al-¦azāl÷ não conseguia mais dar aulas. “Minha língua – nos diz ele –
não acertava articular uma só palavra”.293 A travada de língua gerou uma tristeza em
seu coração a tal ponto que resultou em alteração e problemas em sua digestão,
passando a ter dificuldades para se alimentar e, assim, foi ficando cada vez mais fraco
até que os médicos desistiram de tratá-lo, afirmando: “isto que ele tem é algo que se
alojou no coração e passou aos humores. Não há como lhe dar um tratamento enquanto
o mais íntimo de seu ser não se livre da pena que o aflige.”294 Esse foi o fato que fez
com que Al-¦azāl÷ decidisse ir embora de Bagdá, deixando a universidade, os amigos,
a família e tudo o mais para seguir viagem numa peregrinação que durou
aproximadamente dez anos.
Sua primeira parada foi na Síria, onde, permanecendo por dois anos,
não teve “outra ocupação que não o retiro, a solidão, os exercícios piedosos e a vida
ascética, tratando de elevar a alma, corrigir o caráter e purificar o coração recorrendo à
menção do nome de Deus como havia aprendido nos livros dos sufis.”295 Na mesquita
de Damasco, entrava e ficava só. “Foi nesse período que ele compôs seu obra maior,
’I¬yā’ ‘ulým al-d÷n / Revificação das Ciências da Religião, e realizou conferências
sobre seu conteúdo para públicos seletos.”296. Em seguida foi a Jerusalém, a Meca e a
Medina mantendo a mesma atitude de retiro e meditação. Assim ele nos narra estes
tempos: “continuei assim pelo espaço de dez anos e, naqueles retiros, a mim
revelaram-se coisas que não é possível compreender nem chegar a seu fundo.”297 Al-
¦azāl÷, mostrou sua preferência pela prática sufi dizendo que são eles em especial que
“percorrem os caminhos de Deus” 298 tendo a melhor conduta, o caminho mais acertado
e o caráter mais puro.
Com o intuito de testemunhar sua experiência, Al-¦azāl÷ afirmou que o
verdadeiro objetivo dos sufis consistia em purificar totalmente o coração de tudo o que
não fosse Deus, consagrando-se em oração e submergindo totalmente o coração na
menção do nome de Deus para que, ao final, isto resultasse na união e no
aniquilamento total em Deus. Em seu comentário, Hernandez nos dá uma boa imagem
dessa passagem ao dizer que quando se “aplica à compreensão da verdade revelada o
esforço da razão iluminada pela fé, então aparece o mistério; e no santuário do coração
293
Ibid,p.76.
294
Ibid,p.76.
295
Ibid, p.78.
296
THE ENCYCLOPAEDIA OF ISLAM.,op.cit.,p. 1039.
297
ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.79.
298
Ibid, p.79.
191
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
humano, purificado pelo seu próprio esforço espiritual e iluminado pela luz divina, se
mostram as maravilhas de Deus e se goza a felicidade do espírito, antecipação daquilo
que logo será a ciência direta de Deus e a felicidade eterna.”299
Al-¦azāl÷ atesta que experimentou um estado de meditação profunda
mas a sua experiência mística deve ser tomada num sentido moderado. Afirmou que
nesse estado, logo iniciaram-se revelações e visões nas quais se vêem os anjos e os
profetas, escutam-se as suas vozes conseguindo-se, até mesmo, benefícios deles e
“logo, seu estado ascende desde a contemplação de imagens e figuras até a uns graus
inefáveis nos quais aquele que intenta expressar-los incorre em um erro crasso do qual
não é possível guardar-se. Em uma palavra, se chega a uma cercania de Deus, que
alguns representam como uma encarnação de Deus nele, outros como uma
identificação com Deus e outro como uma união com Deus. Mas tudo isso é um erro
(ý)”300. Al-¦azāl÷ nos remete a uma outra obra de sua pena intitulada Al-Maq½ad al-
Asnā / A Meta mais Elevada na qual esclarece esse erro que considera um dos abusos
dos sufis. Mostrando que este caminho só é possível pela própria experiência, Al-
¦azāl÷ o diferencia radicalmente das outras proposições que havia vivido sublinhando
que “a comprovação mediante a demonstração é uma ciência, o submergir-se no núcleo
mais íntimo daquele estado é uma experiência e o aceitar de bom grado o que se
transmite de boca em boca e da experiência vivida por outros é uma fé.”301
Não é sem razão, pois, que Al-¦azāl÷ depois de relatar sua experiência
com a meditação e o retiro espiritual e de confirmar a possibilidade de se atingir estado
elevados de comunhão com Deus, reconheceu a profecia como o lugar mais elevado ao
qual o homem pode chegar. Curiosamente, esta é a mesma conclusão a que havia
chegado Ibn S÷nā e, Al-¦azāl÷, mesmo criticando os filósofos acabou por estabelecer
uma hierarquia de ascensão ao conhecimento semelhante àquela que encontramos em
Ibn S÷nā que, no caso deste último, culmina com a aquisição do intelecto sagrado que
é, em suma, o estado profético. Em sua classificação hierárquica, Al-¦azāl÷ entendeu –
no O Salvador do Erro – que o homem recebe primeiramente o sentido do tato que
forma o todo o seu corpo, depois recebe o sentido da visão com o qual vê as cores e as
figuras, o sentido da audição e o do paladar.302 Depois, o homem recebe o
discernimento para perceber aquilo que está além dos sentidos. Em seguida, recebe a
299
HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico, op.cit., p.284.
300
ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.80s.
301
Ibid, p.82.
302
Curiosamente não cita o olfato. Cf. ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.84.
192
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
razão pela qual percebe o necessário, o impossível e o possível. Por fim, Al-¦azāl÷
afirma ainda uma outra instância: “depois da razão há outra etapa na qual se abre outro
olho com o qual se percebe o oculto, o que haverá no futuro e outras coisas.”303 Com
essa última propriedade garante-se a verdade das profecias como, por exemplo, aquilo
que chega a determinados homens através de seus sonhos em que podem ver o futuro
com clareza ou revestidos de símbolos que procuram desvelar . Nos diz Al-¦azāl÷:
“Assim como a razão é uma das etapas do homem na qual ele obtém
um olho com o qual vê distintas classes de inteligíveis, dos quais
estão privados os sentidos, também a profecia é o passo a uma etapa
na qual se obtém um olho que é uma luz diante da qual aparecem as
coisas ocultas, presentes, passadas e futuras e coisas que o intelecto
não percebe .”304
Nesse ponto e, a partir dessas indicações, cabe salientar diferenças sensíveis em torno
da teoria de Al-¦azāl÷ em vistas da teoria de Ibn S÷nā a respeito da profecia. Al-¦azāl÷,
ao hierarquizar as potências da alma, enumera um tipo de apreensão além do intelecto
que seria a responsável por apreender aquelas realidades últimas. No caso da teoria da
iluminação de Ibn S÷nā essa faculdade nada mais é do que o próprio intelecto
conectado de modo mais intenso com os inteligíveis. Não há pode haver o caso,
segundo Ibn S÷nā, de que algo se manifestasse não pudesse ser inteligido. Mesmo que
considerássemos o fato de os profetas não conseguirem, muitas vezes, comunicar por
palavras aquilo que apreenderam, ainda assim a apreensão em si mesma é sempre
inteligível.
Na última parte de O Salvador do Erro, Al-¦azāl÷ depois de ter se
retirado de Bagdá e peregrinado por dez anos pelas terras do Islām, recebeu uma ordem
categórica do sultão Fajr al-Mulk para que voltasse: “assim, o sultão ordenou-me
peremptoriamente que me dirigisse a Nay¹ābýr (...) a ordem era tão imperiosa que
chegava aos maus modos se persistisse em desobedecê-la”.305 Entretanto, Al-¦azāl÷
ainda resistiu à ordem do sultão e, só depois de consultar outros sufis com quem
convivia, entendeu que aquele era mesmo o caminho que Deus guardava para ele. Em
tempo presente, depois de retornado à sua terra natal, nos confessa Al-¦azāl÷:
“Assim, pois esta é atualmente a minha intenção, meu objetivo e meu
desejo – Deus o sabe – e pretendo melhorar a mim mesmo e aos
303
ALGAZEL, Confesiones, op.cit.,p.84.
304
Ibid, p.86.
305
Ibid, p.98.
193
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
306
Ibid, p.100.
194
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
307
Ibid.,p. 100
308
HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico, op.cit., 278.
309
Ibid, p. 281.
310
Ibid,p. 283.
195
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
entre os árabes, foi chamado de ®Ø×[ »ko / Hujja al-Islām, isto é, O Garante do
Islām.
Quando Ibn Ru¹d nasceu, três séculos já haviam se passado desde que
Al-Kind÷ recepcionara a filosofia entre os árabes. Passando em revista todo o
desenvolvimento das teses de seus predecessores, sob uma leitura rigorosa das obras de
Aristóteles, Ibn Ru¹d tinha em mente recobrar a autêntica doutrina do pensador grego.
Afinal, por volta do séc. XI d.C./V H., Ibn S÷nā – o mais oriental dos falāsifa – era uma
referência obrigatória da filosofia grega na parte oriental do mundo muçulmano
interpenetrando às teses de Aristóteles um caráter neoplatônico. A tarefa de procurar
reconduzir o pensamento ao rigor da filosofia aristotélica, Ibn Ru¹d exerceu do ponto
mais ocidental do mundo muçulmano: a Espanha.
Não é demais lembrar que, até aquela data, a especulação filosófica se
desenvolvera sobremaneira a partir da ascensão da dinastia Abássida – com capital em
Bagdá – que impusera uma dura queda à dinastia Omíada – com capital em Damasco.
Porém, à época dessa inversão de poder no mundo islâmico, os árabes já haviam
tomado o sul da Espanha, região que passou a contar com muitos governadores sírios,
que lá se estabeleceram e contribuíram para arabização de diversas províncias da
região ibérica. Antes da queda dos Omíadas, a região de Al-Andaluz era, assim,
dirigida por governadores dependentes de Damasco. Quando a dinastia Omíada foi
derrotada pelos Abássidas, notadamente os sírios na Espanha “puderam oferecer um
refúgio ao jovem ‘Abd Al-Ra¬mān, salvo do massacre de 750 d.C. Com o apoio dos
sírios, ‘Abd Al-Ra¬mān conseguiu impor-se aos chefes locais e, em julho de 756 d.C.,
foi proclamado emir em Córdoba.”311 ‘Abd Al-Ra¬mān reinou até 788 d.C., ano de sua
morte e, durante seu reinado, usou tanto o título de emir quanto o de rei mas não,
ainda, o de califa, mantendo as aparências de reconhecimento ao califado de Bagdá.
Porém, na prática, a Espanha muçulmana funcionava como uma região independente.
A medida em que os califas do oriente passavam a enfrentar mais dificuldades, cada
vez mais a independência do emirado ibérico Omíada se anunciava. Mesmo asssim, o
311
MANTRAN, op.cit., p 155s.
196
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
emirado estabelecido durou até 929 d.C. quando Abd Al-Ra¬mān III (912-961d.C.),
proclamou-se califa, instaurando o califado Omíada na Espanha.
Nesse período, sob o domínio dos Omíadas, Al-Andaluz conheceu seu
apogeu e sob suas luzes se fez da Espanha o maior centro intelectual e artístico do
Ocidente. Mesmo com toda instabilidade política, no campo religioso, ali conviveriam
durante séculos, num clima de certa tolerância, muçulmanos, cristãos e judeus. Nessa
época já se verificava uma atmosfera de grandeza política, econômica e intelectual na
qual a filosofia não podia estar ausente. Esse ressurgimento do califado Omíada durou
aproximadamente cem anos quando, em 1031 d.C, o último califa, Hisham III foi
deposto. “Por volta de 1031 d.C., o califado Omíada desapareceu de maneira
inglória.”312 Em seu lugar, a região se dividiu em pequenos estados independentes
denominados de reinos de taifas. No séc XI d.C./V H., do norte da África, a dinastia
dos Almorávidas, de origem berbere, ocupou o cenário da Espanha. No séc XII d.C./
VI H., um novo grupo de tribos berberes constituiu-se no núcleo da dinastia dos
Almôadas. Nessa época, Al-Andaluz já não era mais uma primazia árabe mas turca
pelo leste e berbere pelo oeste. “Uma grande revolução se operou no Magreb durante a
juventude de Ibn Ru¹d: os Almôadas derrubaram a dinastia dos Almorávidas e se
apossaram sucessivamente do noroeste da África e da Espanha muçulmana.”313
Foi nesse cenário que, com Ibn Bāja (Avempace), Ibn Æufayl e,
finalmente, com Ibn Ru¹d, a falsafa inaugurou um novo perfil geográfico, não mais
exclusivamente centrado em Bagdá ou em Hamadan, mas, também, na Europa – mais
precisamente na Espanha. Apesar de ter havido um intenso intercâmbio entre as partes
orientais e ocidentais do mundo islâmico, isso não significou que não houve rivalidade
entre os dois cantos do império. Al-Andaluz, sempre que pode, rivalizou com os
Abássidas tanto política como culturalmente. Fatores políticos e culturais não deixaram
de estar presentes na postura adotada por Ibn Ru¹d frente aos seus antecessores do
extremo oriente do império. Mas, antes dele, a Espanha muçulmana já deixara
gravados dois nomes de importância: Ibn Bāja e Ibn Æufayl.
O primeiro, nascido em Saragoza, esteve em Sevilha e Granada e
morreu em Fez em 1138 d.C. Deixou alguns tratados que introduziram os aspectos
mais próprios da filosofia no mundo árabe-espanhol. Ibn Bāja preparou o terreno para
a exposição islâmica da doutrina aristotélica que chegaria ao apogeu com Ibn Ru¹d.
312
Ibid, p. 173.
313
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p.420.
197
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Ibn Æufayl, por sua vez, estudou medicina e filosofia em Córdoba e esteve sob a
proteção do califa ’Abý Ya‘qýb Yýsuf – mecenas generoso das ciências e da filosofia.
Foi médico da corte e tinha muito prestígio junto a ’Abý Ya‘qýb, tendo-lhe
apresentado o próprio Ibn Ru¹d. Além de escritos sobre medicina, astronomia e
filosofia, Ibn Æufayl deixou para a posteridade a obra ©ayy Ibn Yaqzān, título
homônimo de uma obra de Ibn S÷nā que também, em linguagem simbólica, descrevia a
viagem da alma em seu retorno ao mundo inteligível. É comum encontrarmos essa
obra de Ibn Æufayl indicada como uma das possíveis fontes originárias do romance
Robinson Crusoé – 1719 – de Daniel Defoe314. De todo modo, o apogeu da filosofia
verificado em Al-Andaluz se deu com Ibn Ru¹d. Vejamos alguns dados sobre sua vida.
Abý al-Wal÷d Mu¬ammad Ibn A¬mad Ibn Ru¹d (1126/1198 d.C -
520/595 H.), conhecido no Ocidente como Averróis, nasceu em Córdoba. O mais
ocidental dos falāsifa descendeu de uma longa linhagem de sábios e juristas eminentes.
Seu avô fôra o mais ilustre juiz de seu tempo por toda Al-Andaluz sob o domínio dos
Almorávidas e um dos personagens políticos mais importantes. O pai de Ibn Ru¹d
também ocupou o cargo de juiz e, igualmente, foi uma figura ilustre. Ibn Ru¹d seguiu a
mesma trajetória dos seus antepassados tendo se formado, inicialmente, nos estudos
tradicionais a respeito do direito islâmico. Em seguida estudou medicina, astronomia,
teologia, matemática e as outras ciências que compunham a base do conhecimento da
época e, naturalmente, filosofia. Chegou-se a dizer que Ibn Bāja teria sido seu
preceptor, mas essa hipótese foi descartada pois quando Ibn Bāja faleceu, Ibn Ru¹d era
apenas um jovem de doze anos. Ibn Æufayl é indicado, geralmente, como um de seus
amigos próximos e um de seus mestres, mas parece que Ibn Ru¹d não o conhecera
muito antes de 1169 d.C. quando este o apresentou ao emir Abý Ya‘qýb Yýsuf, que
tinha grande interesse pela filosofia e pela ciência. O próprio Ibn Ru¹d comentou a
passagem da seguinte maneira:
“Quando entrei na casa do emir315 dos crentes, o encontrei a sós com
Ibn Æufayl. Este começou a tecer elogios a mim, a exaltar minha
nobreza e a tradição de minha família e reuniu a isso, por sua
bondade, elogios que eu estava longe de merecer. Após ter perguntado
314
FAHKRY, Histoire de la Philosophie Islamique, op. cit.,p. 291.
315
A referência ao soberano às vezes é feita sob o título de “emir” que significa “príncipe”, ou ainda,
“rei” ou até mesmo “califa”, se bem que esta última denominação se aplique mais propriamente aos
soberanos que governaram durante o califado Omíada em Al-Andaluz. Às vezes aparece o termo
“sultão” mas, apesar de ter sido usado por alguns príncipes muçulmanos, aplica-se mais propriamente
aos soberanos do império turco.
198
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
316
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam op. cit., p. 738.
199
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
seguida, em 1184 d.C., o soberano veio a falecer e subiu ao poder seu filho Al-
ManÆýr. De imediato nada mudou em relação à condição do nosso filósofo que foi
mantido em suas funções e continuou sob a proteção do novo emir. Ao passar dos
anos, Ibn Ru¹d ao mesmo tempo que se dedicava aos afazeres políticos, compunha
seus trabalhos filosóficos. Suas posições na interpretação do Alcorão já criavam,
naquela época, certas tensões com os doutores da lei.
Desde que Al-Man½ýr subira ao trono, Ibn Ru¹d viveria mais 14 anos e
entre eles se estabeleceu uma grande amizade: passavam horas discutindo sobre
filosofia onde se ouvia Ibn Ru¹d chegando mesmo a dizer ao emir: tasma‘ yā a¬÷ –
escuta meu irmãoý Até 1195 d.C. quando Al-Man½ýr se preparava para lutar contra
Afonso VIII de Castela na batalha dos Alarcos, ainda se testemunhava o grande
prestígio de Ibn Ru¹d junto ao soberano. Mas, logo em seguida, as pressões dos
adversários do filósofo aumentaram levando-o à desgraça. Ele mesmo narra como, ao
entrar numa mesquita de Córdoba com seu filho ‘Abd Allāh para a prece, viu a turba se
dirigir contra eles e expulsá-los do templo. Seus discípulos abandonaram suas aulas
temendo mesmo invocar sua autoridade. Recebendo injúrias e ataques dos teólogos
radicais e da própria população, até mesmo Al-Man½ýr se viu obrigado a retirar-lhe a
proteção antes confiada. “Ele foi acusado, assim como vários outros sábios da
Espanha, de preconizar a filosofia e as ciências da antiguidade em detrimento da
religião muçulmana.”317
As verdadeiras razões que desbancaram Ibn Ru¹d de sua posição ainda
são tema de controvérsia. “Todos os historiadores muçulmanos se perderam em
conjecturas para explicar as causas dessa desgraça.”318 Seus adversários acusaram-no
de heresia, procurando em seus escritos passagens que pudessem indicar que ele se
afastava dos preceitos do Alcorão. Sua atividade como qād÷ também gerou inimizades
e os que discordavam de seus métodos na aplicação da lei islâmica passaram a
persegui-lo. Numa assembléia de juristas, reunida por Al-Man½ýr, para analisar as
posições de Ibn Ru¹d em relação à ortodoxia muçulmana, nosso filósofo foi condenado
como um extraviado do bom caminho da religião.
Parece que a perseguição a Ibn Ru¹d, deveu-se, em boa medida a
questões internas de interpretação da lei muçulmana mais do que propriamente à sua
317
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 425.
318
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op.cit. p., 741.
200
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
dedicação à filosofia. Não é demais sublinhar que Al-Man½ýr 319 foi bem instruído e era
um grande admirador de Aristóteles para ceder a uma campanha contra a filosofia mas,
pressionado pelas circunstâncias, acabou ordenando que os livros de Ibn Ru¹d fossem
queimados (!) Al-Man½ýr ordenou reprimir os que estivessem convencidos de estudar a
filosofia grega, confiscar e jogar ao “fogo todos os livros de lógica e de filosofia que se
pudesse encontrar nas livrarias e nos particulares.”320Como se tal não bastasse, talvez
para acalmar os ânimos, Al-Man½ýr, ordenou ainda que Ibn Ru¹d fosse exilado em
Lucena, pequena cidade ao sul de Córdoba, juntamente com outros estudantes de
filosofia e ciências, ao mesmo tempo em que proibia o estudo sobre esses assuntos. O
exílio durou pouco tempo pois os notáveis de Sevilha pleitearam a favor de Ibn Ru¹d.
Quando Al-Man½ýr voltou ao Marrocos, perdoou-o e chamou-o para voltar aos seus
serviços. Assim, Ibn Ru¹d seguiu para Marrocos mas, pouco tempo depois, veio a
falecer por volta de 1198 d.C. com a idade de 72 anos sem voltar a ver a Espanha. Seus
restos mortais, no entanto, foram transferidos para Córdoba três meses depois, onde foi
enterrado no túmulo de sua família no cemitério de Ibn ‘Abbās.
A produção de Ibn Ru¹d foi volumosa. Badawi apresenta uma lista de
92 títulos que pode ser dividida em seis grandes grupos temáticos: filosofia, teologia,
direito, astronomia, gramática e medicina.321 Em filosofia destacam-se 32 comentários,
em sua maior parte referentes à obra de Aristóteles, além de 29 títulos originais. Nove
obras sobre teologia e jurisprudência; 3 sobre astronomia e 2 sobre gramática. Em
medicina, listam-se 8 comentários – principalmente sobre Galeno – e 9 obras
originais. “Ibn Ru¹d foi, incontestavelmente, um dos homens mais sábios no mundo
muçulmano e um dos mais profundos comentadores das obras de Aristóteles. Ele
possuía todas as ciências acessíveis, então aos árabes, e foi um dos escritores mais
fecundos.”322
Como médico ficou conhecido principalmente por sua obra Kulliyyāt al-
Æib / Princípios Gerais de Medicina, um tratado de terapia geral que foi publicado em
latim sob o título de Colliget. Seus conhecimentos astronômicos podem ser verificados
num resumo do Almagesto, que ainda existe numa versão hebraica. Escreveu obras
originais em filosofia das quais se destaca o Tahāfut al-Tahāfut / A Autodestruição da
319
Conhecido como “o emir dos crentes e o sultão das duas margens (a Africa do Norte e a Al-
Andaluz)” Cf. BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op.cit., p.742.
320
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 427
321
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, pp. 743-761. Cf. também a lista de HERNANDEZ,
op. cit., pp.236-239.
322
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 429.
201
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
323
Chama a atenção o fato de Ibn Ruºd não ter comentado a Teologia de Aristóteles e de, ao mesmo
tempo, reclamar o aristotelismo puro.
324
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op. cit., p. 743.
202
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
325
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p.442.
326
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam , op. cit., p. 763. “Tal é a graça de Deus que a concede
a quem Lhe apraz porque Deus é Agraciante por excelência.” Cf. ALCORÃO, LVII, 21.
203
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
327
Ibid, p. 762.
204
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
328
Ibid, p. 814.
329
GILSON, A Filosofia na Idade Média, op. cit., p. 445.
330
MUNK,. Mélanges de Philosophie, op.cit, p. 443.
331
GILSON, A Filosofia na Idade Média, op. cit. p. 444.
205
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
332
AVERROES, Tahafut cit in. GUERRERO, op. cit., p. 52.
206
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
teólogos afirmam que o mundo teve um começo e, portanto seu passado é finito, ao
passo que alguns filósofos o afirmam infinito. “As duas partes divergem somente
quanto ao tempo passado e à existência passada: os teólogos as vêem como finitas, e
esta também é a doutrina de Platão e seus seguidores, ao passo que Aristóteles e sua
escola as vêem como infinitas, assim como o futuro.”333
Ibn Ru¹d defendeu a tese da eternidade do mundo sem ver nisso
qualquer discordância com a Revelação. A tese comumente defendida pelos teólogos
era, como no caso de Al-¦azāl÷, de que o mundo teria sido criado por Deus a partir do
nada. Isso signficava que a idade do mundo seria limitada no tempo o que, por sua vez,
indicava que.um tempo infinito passado deveria ser visto como impossível. Ibn Ru¹d
refuta, no Tahāfut , um a um os argumentos de Al-¦azāl÷. Partindo do conceito do
caráter todo-poderoso de Deus, “se a vontade divina tivesse tido que esperar para criar
no tempo, tal espera estaria condicionada por algo extrínseco e Deus estaria
determinado em suas ações, o que é incompatível com o próprio conceito de divindade.
Deus quis desde sempre o cosmos possível que é o que realmente existe.”334
Baseado na própria Revelação para defender sua posição, afirmou que
“os teólogos (mutakallimýn) quando falam sobre o mundo não seguem o sentido literal
da lei: a interpretam. Na Lei não se diz que Deus teria existido com o puro nada, em
nenhum texto se encontra isto.”335 Ao contrário, há varias passagens no Alcorão que
sugerem que “sua forma [do mundo] é produzida realmente e que a própria existência
e o tempo perduram em vista dos dois extremos, isto é, ininterruptamente.”336 Desse
modo, as próprias palavras: “Ele, Quem criou os céus e a terra em seis dias, e seu trono
estava sobre a água.”337 implicariam, em sentido literal, que antes da existência do
mundo existia outro ser: “o trono e a água, e um tempo antes desse tempo.”338 Do
mesmo modo, Suas palavras “o dia em que a terra seja substituída por outra terra e os
céus por outros céus”339 implicariam, também , em sentido literal que haveria uma
segunda existência depois dessa. Ou, ainda, quando diz: “dirigiu-Se aos céus quando
estes ainda eram fumaça”340 significaria que os céus teriam sido criados a partir de
algo. Para Ibn Ru¹d, na medida em que uma série temporal passada infinita é possível,
333
AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 29.
334
HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico, op. cit.,p 201.
335
AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 31.
336
Ibid, op. cit., p. 30. / Cf. trad. GUERRERO, p. 91.
337
ALCORÃO, XI, 7.
338
AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 30.
339
ALCORÃO, XIV, 48.
340
ALCORÃO, XLI,11.
207
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
341
CARRA DE VAUX, Les Penseurs de l’Islam, op. cit., p. 70s.
342
HERNANDEZ, Historia del pensamiento en el mundo islamico, op. cit., p. 241, n. 44 comenta a
ausência de um motor.
343
ALCORÃO, XXI, 22.
208
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
final. Assim, numa nova perspectiva, Ibn Ru¹d rejeitou que haveria uma causa primeira
criadora a partir do nada como queriam os teólogos do Islām ao mesmo tempo em que
afastou a idéia de pura emanação como queriam Al-Fārāb÷ e Ibn S÷nā mas apontou para
uma simultaneidade de Deus e mundo num eterno começo.
Outra questão importante desenvolvida por Ibn Ru¹d, – e não menos
espinhosa – referiu-se ao intelecto. Os temas envolvidos nessa discussão ligam-se,
principalmente, à questão da transcendência ou da imanência da inteligência humana.
No processo de intelecção três perguntas podem surgir com mais força: o homem
pensa por si mesmo; o pensamento no homem se dá pelo resultado do contato entre ele
e uma inteligência que está fora dele ou é a própria inteligência, externa ao homem,
que pensa nele? Seguindo Aristóteles, Ibn Ru¹d entendeu, assim como os seus
antecessores peripatéticos que, para inteligir, o intelecto humano deve passar da
potência ao ato e é preciso, para isso, que haja um intelecto sempre em ato – intelecto
agente – que realize esse processo. Desde Al-Fārāb÷, o intelecto agente fôra
estabelecido como uma inteligência cósmica na esfera da Lua sendo que, entretanto, ao
homem ainda estava reservado um núcleo intelectivo que lhe era próprio e individual
que assegurava o seu contato com as formas permanentes da inteligência agente
resultando, consequentemente, na própria intelecção, isto é, no entendimento das
coisas por parte do homem. Esse núcleo intelectivo no homem, inclusive, sobreviveria
de modo individualizado após a morte do corpo como uma consciência individual,
tanto para Al-Fārāb÷ como para Ibn S÷nā, a contemplar as formas permanentes da
inteligência agente.
A direção tomada por Ibn Ru¹d permitiu colocar em questão esse núcleo
próprio ao homem, trazendo à discussão a possibilidade de se entender o processo de
intelecção como um processo da própria inteligência agente que, momentaneamente, se
daria de modo particularizado no homem. O contato da inteligência agente com nossa
alma, sendo como uma luz que iluminaria os inteligíveis para nós, poderia ser
interpretado, pois, como uma operação da própria inteligência agente particularizada
num determinado indivíduo. Em última análise, não seria o homem a pensar mas seria
sempre a própria inteligência a pensar, nele. O que sobreviveria, nesse caso, após a
morte? Seguindo os ditames da razão, seria a própria inteligência agente que seria a
única propriamente substancial e separada da matéria. A sobrevivência da humanidade
só poderia ser entendida, pois, como a sobrevivência da espécie e não como a
sobrevivência individual.
209
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
344
Tradução em MUNK, op. cit, p. 445.
345
ALCORÃO, VII, 143.
346
CORBIN, Histoire de la Philosophie islamique, op. cit, p. 343.
210
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
347
MEHREN, cit em BADAWI, op. cit., p. 13.
348
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 444.
349
BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, op. cit., p 849. Para aprofundar essa questão,
verificar as posições de Aristóteles, Tomás, Siger de Brabant apresentadas por Badawi, pp. 840-856.
Assim como a pópria polêmica entre os analistas, inclusive Renan.
211
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
permitido ou não pela lei religiosa; se deveria ser recomendada seja a título meritório
ou a título obrigatório. O filósofo entende que, visto que a falsafa não é nada além que
a especulação sobre o universo e, na medida em que se conhece o Artífice pelo
conhecimento da arte que dele procede e, quanto mais perfeito é o conhecimento de
sua obra, mais é perfeito o conhecimento de seu Autor e, na medida em que a lei
religiosa convida e incita à instrução a respeito das coisas do universo é, pois, evidente
que o estudo da filosofia deveria ser, em vista da lei religiosa ou obrigatório ou
meritório.
A própria Lei divina contida no Alcorão convidaria, segundo ele, ao
estudo e ao aprimoramento racional como “aparece claramente em mais de um verso
do Livro de Deus – O Bendito, o Altíssimo! – ”350 Por exemplo, lê-se na surata 59
:“tirai ensinamento disso, oh! vós que sois dotados de visão!”351 Ou então: “Não tens
refletido sobre o reino dos céus e da terra e sobre todas as coisas que Deus criou?”352 ;
ou, ainda: “(ý) aqueles que refletem sobre a criação dos céus e da terra (ý)”353 Esses
seriam alguns dentre inúmeros versos que mostrariam a obrigação da utilização da
argumentação racional ou, ao menos, racional e religiosa ao mesmo tempo, exortando à
reflexão sobre o universo.
Sendo assim, na medida em que a própria Lei divina indicaria a
aplicação da reflexão sobre o universo pela especulação racional e, como a reflexão
consiste unicamente em tornar conhecido o que se desconhece e, como isso se faz pelo
silogismo, haveria a obrigação de se aplicar o silogismo racional na especulação a
respeito do universo. Nessa medida, “é evidente que tal modo de especulação, à qual a
lei divina convida e incita, toma a forma mais perfeita quando ela se faz pela forma
mais perfeita do silogismo que chama-se demonstração.”354 Ibn Ru¹d aludiu ao fato de
que alguém poderia objetar que esse modo de especulação a respeito do silogismo
racional fosse uma inovação ou mesmo uma heresia, visto que não existia nos
primeiros tempos do Islām. Mas, na medida em que o silogismo jurídico usado na lei
islâmica também foi posterior às primeiras interpretações do Alcorão e não foi
considerado uma heresia, a mesma permissão deveria ser dada ao uso do silogismo
racional.
350
AVERROÈS (IBN ROCHD), Traité Decisif - L’Accord de la Religion et de la Philosoohie trad.
Léon Gauthier. Paris: ed. Sidbad , 1988, p. 12.
351
ALCORÃO, LIX, 2. AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 12, Cf. GUERRERO, p. 76.
352
AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 12, Alcorão, VII, 185.
353
Ibid , op. cit., p. 12 .
354
Ibid, op. cit., p. 13.
212
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
355
Ibid, op. cit., p. 15.
356
Ibid, trad. Guerrero, p. 81.
213
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Em seguida, Ibn Ru¹d propôs que o acesso ao saber, não obstante dever
ser assegurado para todos, deveria seguir conforme as características e os limites de
cada um conforme as três classes que identificou entre os homens segundo sua
suscetibilidade quanto à aceitação da verdade “pois as características dos homens se
357
escalonam do ponto de vista do assentimento” : alguns dão seu assentimento à
demonstração; outros aos argumento dialéticos e outros aos argumentos oratórios. Essa
divisão tríplice é ilustrada pelos três tipos de homem que existem diante da letra da
escritura: a primeira – grande massa da população – é a dos que não a possuem o
menor grau de abstração interpretativa deixando se levar apenas pela retórica; a
segunda é constituída pelos homens dialéticos que trabalham com as hipóteses mas não
chegam a uma conclusão sobre as questões; a terceira é a dos homens de julgamento
correto, isto é, aptos na arte da filosofia.
Assim, visto que a Lei Divina faz apelo aos homens segundo esses três
graus, ela deve ser capaz, pois, de obter o assentimento geral de todos os homens a
não ser – obviamente – daqueles que não a aceitam. Assim, encontram-se três ordens
de abordagens: “no topo a filosofia que confere a ciência e a verdade absolutas; abaixo
a teologia, domínio da interpretação dialética e do verossímil; no pé da escala, a
religião e a fé, que devem ser cuidadosamente deixadas àqueles para quem são
necessárias. Justapõem-se, assim, e hierarquizam-se três graus de intelecção de uma só
e mesma verdade.”358 É isso que estaria expresso na frase do Altíssimo: “Chama-os ao
caminho do teu Senhor com sabedoria e exortações benevolentes. Discute com eles do
modo mais conveniente.”359
Ibn Ru¹d não viu como a especulação fundada sobre a demonstração
poderia conduzir, de algum modo, à contradição dos ensinamentos dados pela Lei
Divina “pois certamente a verdade não poderia ser contrária à verdade mas ela se
acorda consigo mesma e testemunha em seu próprio favor.”360 É necessário que a
crença, pela qual Deus caracteriza os sábios, seja produzida pela demonstração e, se ela
é produzida pela demonstração, ela não pode vir sem a ciência da interpretação: pois
Deus , Grande e Poderoso, fez saber que para essas passagens do Alcorão há uma
interpretação que é a verdade, e a demonstração não possui outro sujeito que a verdade.
357
Ibid, op. cit., p. 20.
358
GILSON, A Filosofia Medieval, op. cit. p. 443.
359
ALCORÃO XVI, 125 Guerrero, filosófico-sabedoria/ retórico-exortação/ dialético-discussão.p. 83
360
AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 20.
214
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Não é demais lembrar que, quanto à interpretação que deve ser dada às
passagens do texto revelado, no caso dos muçulmanos isto implica não somente a
compreensão dos caminhos da espiritualidade mas a própria legislação que estabelece
as regras de conduta da comunidade. Sobre isso, diz Ibn Ru¹d, quando houver
desacordo entre o sentido literal do texto revelado e a conclusão demonstrativa a partir
do silogismo, um acordo deve ser buscado procurando-se utilizar um sentido figurado
no texto. Quando o texto apresentar expressões que, tomadas no sentido literal se
contradizem, deve-se buscar um conhecimento mais profundo, conciliando-as pela
interpretação.
Isso deve ser verificado a partir de uma outra distinção tradicional
utilizada por Ibn Ru¹d. O texto revelado possui dois sentidos básicos: um sentido
literal ou externo (¥āhir) e um sentido oculto ou interior (bāÐin). Dito de outro modo:
um sentido exotérico e um sentido esotérico. “O exotérico são as figuras empregadas
como símbolos das coisas significadas; e o esotérico são as coisas significadas, que só
se revelam aos homens da demonstração.”361 O caráter exotérico seriam, assim, as
figuras empregadas como símbolos dos inteligíveis
A partir dessa distinção, deve-se ter em conta que o sentido oculto não
deveria ser conhecido por quem não pertencer aos homens de ciência e quem não for
capaz de compreendê-lo. Foi para chamar a atenção sobre isso e para que se refletisse a
respeito dos limites de entendimento de cada um que ‘Ali Ibn Ab÷ Æālib362 teria dito:
“Fale aos homens daquilo que conhecem. Quereis, acaso, que Deus e seu enviado
sejam acusados de mentirosos?”363 Segundo Ibn Ru¹d, o conhecimento da existência
de Deus, da missão dos profetas e da vida futura seria acessível a todos mas para que
isso seja atingido seria preciso se respeitar as três vias de acesso a esse conhecimento:
a via oratória, dialética ou demonstrativa. “Pois se é um homem de demonstração, uma
via lhe é oferecida para conduzi-lo à aquiescência pela demonstração, se é um homem
de dialética, pela dialética; e se é um homem de exortação, pelas exortações”364 na
medida em que o objetivo da Lei divina não é outro que o de ensinar a verdadeira
ciência e a verdadeira prática. A verdadeira ciência seria o conhecimento de Deus e de
todas as coisas tais como são e a verdade prática consistiria nas boas ações do homem
361
Ibid, op. cit., p. 34.
362
O quarto califa, primo e genro do Profeta.
363
AVERROES, Traité Decisif op. cit., p. 24.
364
Ibid, op. cit., p. 33.
215
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
fossem elas externas, como os atos corporais, fossem elas internas como a paciência e
a gratidão.
Ora, se o texto sagrado possui dois níveis de compreensão – o sentido
literal e o oculto –, se o primeiro sentido é o que é apreendido pela massa, e o segundo
sentido só é atingido pelos aptos ao filosofar que encontram o verdadeiro sentido da
passagem em questão, logo, a segunda classe, dos dialéticos, não seria necessária nem
no primeiro nem no terceiro caso. Essa classe Ibn Ru¹d identifica com as correntes de
teólogos que crêem compreender, mas por estarem cegamente presos ao dogma, não
apreendem o sentido correto só apreendido pela ciência demonstrativa e, por isso,
segundo ele, teriam semeado o germe da discórdia no Islām. Divididas em duas
classes: os ignorantes e os sábios, os que estão a meio caminham nada mais fariam do
que confundir as coisas pois revelam parte da compreensão esotérica e divulgam
conclusões da ciência. Por essa razão, segundo ele, nem os teólogos, nem os literatos, e
nem mesmo os partidários do método esotérico são capazes de formular as
interpretações justas que exige a fé verdadeira. Somente os filósofos são capazes disso.
Assim, os dois níveis de linguagem do texto sagrado – exotérico e
esotérico – devem atingir o assentimento segundo os três graus de argumentação –
demonstrativa, dialética e oratória – e, por isso, a Lei divina, para ser acessível a todos
os homens, conteria os três tipos de argumentação.Visto que a Lei divina tem como
primeiro objetivo atingir o maior número de pessoas sem negligenciar, ao mesmo
tempo, sua atenção aos espíritos de elite, os métodos que aparecem na lei religiosa
seriam métodos de concepção e de assentimento comuns ao maior número de pessoas,
isto é, símbolos e alegorias. Quando for o caso de haver interpretação, esta só poderia
atingir a verdade pela demonstração através do silogismo. “São esses unicamente os
métodos que se encontram no Livro Sagrado. Pois quando o examinamos, encontramos
os três métodos: o método que existe para todos os homens, os métodos comuns para o
ensinamento do maior número e o método reservado.”365
Expor determinadas coisas, notadamente interpretações demonstrativas
que estão distantes do conhecimento comum, a quem não está apto leva ao erro tanto o
que expõe quanto àquele que é exposto. Quando se retira o sentido exterior deve-se ser
capaz de instalar, em seu lugar, o sentido da interpretação pois fazer ruir o sentido
exterior num espírito que está apto apenas a conceber o sentido exterior é conduzi-lo
365
Ibid ,op. cit., p. 49.
216
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
ao erro. Este erro é apontado por Ibn Ru¹d nas obras dos teólogos justamente porque
“as interpretações não devem ser expostas ao vulgar nem nos livros oratórios nem nos
dialéticos, quero dizer nos livros onde as argumentações são desses dois gêneros como
o fez Abý ©amid [Al-¦azāl÷].”366
Refletir corretamente sobre a revelação segundo os métodos da filosofia
não conduziria, assim, à negação da revelação. Quando a conclusão do silogismo
demonstrativo se acorda com a revelação não há problemas mas quando não se
encontram em concordância trata-se apenas de um desacordo aparente, devido ao
sentido literal e ao sentido oculto. Nessse caso o filósofo deve recorrer a hermenêutica
segundo os princípios da demonstração. Desse modo, harmonizam-se duas abordagens
de uma só e mesma verdade, desde que corretamente compreendidas: a filosofia e a
religião, pois ambas têm a mesma finalidade para o homem: atingir a felicidade. Se a
filosofia cumpre o papel de mestra de felicidade somente para uma parte dos homens
suscetíveis à demonstração, as religiões têm em vista o ensinamento de todos os
homens sem exceção.
366
Ibid, op. cit., p. 44.
367
RENAN, apud BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, p.788.
368
AVERROES, Tah¡fut apud BADAWI, Histoire de la Philosophie en Islam, 785.
369
Ibid, p. 786.
217
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
370
ALCORÃO XVI, 44.
371
DE LIBERA, A Filosofia Medieval, op. cit, p. 164.
372
FAHKRY, Histoire de la Philosophie Islamique, op. cit., p. 301.
373
MUNK, Mélanges de Philosophie, op. cit., p. 439.
218
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
críticos. (!) A influência de seu trabalho se deu mais em vista da filosofia judaica e
cristã do que propriamente no mundo árabe muçulmano. “No mundo árabe foi
esquecido de imediato.”374 Do lado ocidental, ele encontrou, por exemplo, a
companhia do judeu Maimônides e – nas disputas dos cristãos – Siger de Brabant,
Alberto Magno e Tomás de Aquino.
Ao mesmo tempo em que acreditou firmemente em Deus e em Seu
Profeta Mu¬ammad, Ibn Ru¹d apontou rumos na filosofia e na ciência pelos quais os
homens deveriam continuar em busca do saber. No Ocidente, muitas de suas idéias
chegaram com vigor, anunciadoras de novos caminhos.
374
GUERRERO, Averroes ,op.cit., p.47.
219
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
220
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
sabedoria divina –»À¸«[ »°¨o / ¬ikma ’ilahiyya – que poderia ser designada como
375
BRAGUE, R. “Sens et Valeur de la Philosophia dans les trois cultures médiévales.” In Miscellanea
Mediaevalia / Was ist Philosophie im Mittelalter ? Berlin: Walter de Gruyter, 1998, p. 236.
221
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
376
CORBIN, op. cit, p. 352.
222
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
significou o fim da filosofia islâmica, por outro lado, significou, sim, o fim do período
clássico da filosofia no Islām; a segunda é a de que a sequência da filosofia islâmica
encontrou duas de suas grandes direções durante o ocaso da falsafa. Em largo esboço,
pode se dizer que a “teosofia das luzes” de Sohraward÷ e a “teosofia mística” de Ibn
‘Arab÷ sucederam o confronto entre o Kalām e a falsafa ditando duas grandes linhas
das fontes de meditação no Islām. “A corrente proveniente de Sohraward÷ (’I¹rāq) é de
tal originalidade que deu nascimento ao corrente adágio: o ’I¹rāq é em vista da
filosofia o que o sufismo é em vista do kalām. Não cabe neste trabalho penetrar no
universo de extrema riqueza e complexidade dessas duas correntes mas apenas
permanecer nos limites de algumas linhas sumárias de caráter biográfico de seus
autores.
Sohraward÷, também chamado Šai¬ al-I¹rāq / o Mestre das Luzes,
nasceu no Irã e morreu muito jovem com apenas 36 anos de idade. Seguindo-se a Ibn
S÷nā, foi um dos exemplos da transferência das fontes da meditação do Islām ocidental
para o Islām oriental sob os eflúvios dos pensadores iranianos a partir da retomada de
suas tradições mais antigas, ou seja, de origem persa. Sua obra situou-se na
encruzilhada dos caminhos entre o destino de Ibn Ru¹d no Ocidente e no de Ibn S÷nā
no Oriente ou, ainda, entre o peripatetismo e a “filosofia das luzes”. Esta última
assentou no Oriente, notadamente no Irã, novas rotas sobre as quais tantos pensadores
e espiritualistas se engajaram até os nossos dias. Seguindo as indicações de caráter
simbólico deixadas por seu conterrâneo Ibn S÷nā, Sohraward÷ acreditou poder
reconduzir o projeto aviceniano de uma filosofia oriental como mostra sua obra ©ikma
al-I¹rāq / A Sabedoria das Luzes. Desse modo, as noções colocadas por Ibn S÷nā nas
poucas páginas que restaram de sua obra Filosofia Oriental e no caráter simbólico da
obra ©ayy Ibn Yaq¥ān, nortearam o pensamento de Sohraward÷. A partir dessas
indicações, o jovem pensador pretendeu dar seguimento ao que entendeu ter sido a
intenção de Ibn S÷nā que, em sua opinião, não teria chegado ao fim de suas intenções
por não ter apresentado os verdadeiros fundamentos da sabedoria própria do Oriente:
os ensinamentos dos sábios da antiga Pérsia. Desse modo, com o intuito de revivificar
os saberes de suas tradições mais remotas, muito antes do surgimento do Islām, em seu
horizonte meditativo dominam as figuras de Hermes, Platão e Zaratustra. Nesse
cenário, o termo “platônicos da Pérsia” designou essa escola cuja uma de suas
características foi interpretar os arquétipos platônicos em termos da angeologia
223
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
zoroastriana. Aristóteles e outros filósofos, quando surgem, são nomes cujas próprias
doutrinas já não são reconhecidas em sua totalidade.
Outra linha importante determinou-se a partir da obra incomparável de
Ibn ‘Arab÷ (1165- 1240 d.C / 569-638 H.). Nascido no sul da Espanha e
contemporâneo de Ibn Ru¹d, Ibn ‘Arab÷ viajou por toda a Espanha, norte da África,
pelas terras do Oriente Próximo e se instalou, por fim, em Damasco, na Síria, onde
morreu por volta dos 75 anos de idade. Dentre os mais de 800 títulos a ele atribuídos,
400 parecem ser autênticos e chegaram até os nossos dias. Os adjetivos de Corbin, a
seu respeito, mostram um pouco desse incomparável místico: “um dos maiores
teósofos visionários de todos os tempos (ý)com essa obra, algo de novo e original
começa (ý) a filosofia dos falāsifa, o kalām dos escolásticos, a ascese dos piedosos
sufis primitivos, tudo isso é levado na torrente de uma metafísica especulativa e de
377
uma potência visionária sem precedentes.” Fahkry assinala a obra de Ibn ‘Arab÷
como tendo sido “a tentativa mais audaciosa e a mais radical para expressar a versão
mística da realidade em termos neoplatônicos.”378 Ibn ‘Arab÷ recusou que a filosofia
peripatética desenvolvida por Ibn Ru¹d fosse capaz de atingir o grau supremo do
verdadeiro conhecimento. Mesmo assim, suas obras sobre a experiência mística
revelam uma sistematização que só foi possível graças a uma certa adaptação dos
elementos oriundos da filosofia aos quais Ibn ‘Arab÷ teve acesso. O conjunto de seus
escritos se mostra como uma verdadeira enciclopédia mística, ascética, teológica,
poética e literária; com temas de grande extensão e profundidade que marcaram
praticamente todo o desenvolvimento da mística posterior no mundo islâmico.
Desse modo, entendendo-se a morte de Ibn Ru¹d como uma ruptura da
continuidade da filosofia – em sentido estrito – com o mundo islâmico duas grandes
linhas de desenvolvimento ganharam terreno: a de Sohraward÷ e a de Ibn ‘Arab÷.
Indicações como essas são fornecidas, também, por Corbin e Hernandez que parecem
ser dois dos estudos mais autorizados para se ter uma idéia mais detalhada da
continuidade do desenvolvimento do pensamento islâmico desde a morte de Ibn Ru¹d
até os nossos dias. Apesar das dificuldades enfrentadas para se traçar um itinerário de
quase oitocentos anos – do séc. XII d.C./ II H. até os dias de hoje – as duas obras se
complementam: Corbin confere mais ênfase ao caráter místico das doutrinas e escolas
que elenca ao passo que Hernandez o complementa com ótimas abordagens de caráter
377
CORBIN, op. cit, p. 402.
378
FAHKRY, op. cit., p. 276.
224
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Mas alguém poderia perguntar: ora, mas que interesse teríamos nós, do
Ocidente, com a influência da filosofia grega no mundo árabe? O que nos importa a
falsafa quando, na verdade, deveríamos nos preocupar com a formação das bases do
nosso próprio pensamento? Afinal, não podemos traçar a nossa história da filosofia
ocidental sem falar na falsafa? A resposta é que os caminhos da filosofia no Ocidente,
a partir do séc. XII d.C / VI H. foram também marcados pela presença da falsafa. Ela
faz parte da nossa história, e não apenas da história do mundo árabe. É nessa medida,
pois, que se destaca o papel da falsafa na formação do pensamento ocidental tanto na
baixa Idade Média, quanto no impulso posterior do Renascimento pelo contato que se
deu a partir do séc. XII d.C./IV H. entre o Ocidente medieval latino cristão com o
Oriente medieval árabe muçulmano. Quer tenha sido através do contato das
emergentes universidades da Europa com o pensamento dos árabes, quer tenha sido
pelo estreito contato na Espanha moura ou quer tenha sido, em menor grau, pelo
contato das cruzadas, os ocidentais foram marcados não só pelo refinamento das sedas
e dos perfumes, mas também pelo refinamento do astrolábio, pelas técnicas de
navegação, pela astronomia, pela medicina e, mais do que tudo, pela recepção da
ciência e da filosofia provindas das obras gregas assim como das obras dos falāsifa.
225
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
Afinal, fora entre os árabes que essas ciências haviam sido guardadas e desenvolvidas
por mais de quatro séculos.
A vida nova no campo da filosofia veio juntamente com as traduções de
importantes obras escritas em árabe em muitos campos do conhecimento: matemática,
astronomia, navegação, medicina e filosofia. Das ervas curativas ao vocabulário
náutico de Portugal, a presença árabe foi duradoura: “nas artes náuticas, nas ciências
astronômicas, nas ciências naturais e aplicadas, a ciência portuguesa tomou uma vasta
porção da ciência árabe e sujeitou-a logo em seguida a um cotidiano
experimentalismo.”379 Na medicina, o Canon de Medicina de Ibn S÷nā, traduzido para
o latim, permaneceu como texto base do ensino médico nas universidades européias
até, pelo menos, o século XVI d.C. Também foi natural que, na medida em que os
textos árabes traziam a ciência dos antigos gregos, os pensadores do ocidente latino,
paulatinamente, foram se desfazendo das interpretações e seguiram em direção às
próprias fontes de Aristóteles, Platão, Galeno e outros. Mas, num primeiro momento, o
que os ocidentais latinos conheceram foram as obras dos falāsifa. No campo da
filosofia, não coube mais na roupa da história repetir que os falāsifa teriam sido para a
história da filosofia ocidental, meramente, “comentadores árabes de Aristóteles”, em
alguns casos suas teses foram tão duradouras como as do próprio Aristóteles entre os
medievais do Ocidente.
Foi nesse contexto que, pela dificuldade de pronúncia, Ibn S÷nā foi
transformado em Avicena (trocando-se a letra “b” pela letra “v” como é comum em
Portugal e Espanha) e Ibn Ru¹d ficou conhecido pelo seu nome latinizado de Averróis.
Já foi dito que assim como modificaram seus nomes, em alguns casos, confundiram
suas teses e fizeram crer que os falāsifa dissessem coisas que não haviam dito. Mas as
falsas atribuições de textos, a compreensão equivocada de teses e de idéias, os
manuscritos incompletos e faltantes eram moeda corrente e também fizeram parte da
construção filosófica do ocidente latino naquela época.
Em todo o conjunto de mudanças que se anunciou, a falsafa contribuiu
para a recepção da filosofia grega ao ocidente. Impulsionados pelos novos desafios, na
mesma época, a filosofia cristã procurou reformular muitas das bases que sustentavam
suas teses e, para tal, valeu-se, em alguns casos, das doutrinas dos falāsifa . O final da
Idade Média no ocidente, já nas raias da modernidade, escutou os fragmentos de idéias
379
PINHARANDA, op. cit., p. 288.
226
Falsafa, a Filosofia entre os Árabes
Miguel Attie Filho
que deveriam circular na época e que, talvez, os próprios europeus sequer sabiam de
onde provinham. Muitas destas eram tributárias de Ibn S÷nā, Ibn Ru¹d ou Al-Fārāb÷.
Por vezes encontramos nos textos em árabe inspirações que pela semelhança, talvez
tenham tocado indiretamente os nossos filósofos modernos.
Como vimos, no Islām, após a morte de Ibn Ru¹d, a falsafa não se
desenvolveu como antes o fizera. Deu-se como se a filosofia escrita em árabe houvesse
cumprido uma nobre missão de guardar e desenvolver durante anos a filosofia e a
ciência dos antigos enquanto o ocidente, à meia luz, se preparava para recebê-las.
Durante a Idade Média ao longo de, pelo menos quatro séculos, a filosofia esteve em
boas mãos; mais do que isso, esteve no coração, na palavra e no pensamento dos
falāsifa que escreveram uma importante página da história da filosofia, em árabe.
380
DE LIBERA, op. cit., p. 346.
381
Cf. o artigo de Danielle Jacquart, “ A escola de tradutores” em CARDILLAC, L. (org). Toledo,
séculos XII-XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. pp. 155-167.
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382
Para detalhes sobre as traduções para o latim da obra de Avicena vide D’ALVERNY, M.T. Avicenne
en occident. Paris: J.Vrin, 1993.
383
GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie
d'Amérique et d'Orient, 1940, p.90.
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seu próprio conteúdo mas também porque apresentava, pela primeira vez, uma síntese
do De Anima de Aristóteles.384
No caso da tradução do Kitāb al-Nafs / Livro da Alma de Ibn S÷nā,
considerado o mais decisivo tratado de psicologia que penetrou no Ocidente naquela
época, a principal fonte histórica que fornece preciosos elementos das condições em
que se realizou esta tradução é a própria dedicatória385 que se encontra em mais de
quarenta manuscritos386. Por ela sabemos como, quando e onde foi realizado este
trabalho. A dedicatória se faz em nome de um arcebispo de Toledo de nome João: “
Johanni Reverentissimo Toletanae sedis Archiepiscopo et Hispaniarum Primati ” e
fornece, em seguida, dados sobre algumas circunstâncias da tradução, seu método e
seus tradutores mas, mesmo assim, os enigmas e as contradições que ela apresenta
dividem as opiniões, deixando ainda muitas lacunas. De todo modo, pela menção do
nome do arcebispo citado na dedicatória como “João” sucessor de Raimundo, é
possível situar a elaboração da tradução do De Anima entre 1152 d.C., data da morte de
Raimundo e 1166 d.C., data da morte de João. O método de tradução é relatado na
própria dedicatória como um trabalho de equipe: “Eis, pois, este livro, traduzido do
árabe conforme vossa orientação, eu dizendo cada palavra em língua vulgar387 e o
arque diácono Domenico a transferindo e convertendo em latim.” No entanto, em que
medida esta etapa oral era realizada, isso é algo que não se esclareceu e não se sabe se
o tradutor arabofone conhecia ou não o latim e, se o tradutor latinista conhecia ou não
o árabe. O que se confirma é que a tradução contém muitos equívocos. A confrontação
entre o texto árabe e o latino mostra inúmeras distorções, dentre elas, confusões entre
raízes árabes e erros de sintaxe, devido à estrutura maleável da língua árabe. O latinista
da equipe é nomeado como Domenico embora nenhum dos manuscritos forneça o seu
nome completo. Mesmo assim, seu nome é identificado com o de “Domenico
Gundissalinus” ou “Domenico Gundissalvi”, de quem já falamos, e que faleceu em
1190 d.C. e que, na sua juventude entre 1152d.C. e 1160d.C., talvez pudesse ter
realizado esse trabalho. Tal identificação , no entanto, não põe fim a uma série de
questões que ainda permanecem sem resposta em torno do latinista da equipe.
384
Parece ter havido uma tradução de Nemésio (De #atura hominis) que também foi feita à mesma
época. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.102.
385
O texto integral da dedicatória é reproduzido em VERBEKE. Introd. IV-V, pp.103-104.
386
O texto do De Anima de Ibn S≈n¡ nos é transmitido por 50 manuscritos: dezessete encontram-se na
Itália (oito em Roma); treze na França (dez em Paris); seis na Inglaterra (três em Oxford); cinco na
Alemanha; três na Bélgica; dois na Espanha (mas nenhum em Toledo); um em Leiden; um na Suíça; um
na Suécia e um na Iugoslávia. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.105.
387
A língua vulgar era a língua românica. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p. 98.
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388
Há alguns manuscritos que citam o nome de Gerardo de Cremona como o tradutor do De Anima. No
entanto, esta atribuição parece ter pouca credibilidade pois na mesma época, Gerardo estava traduzindo
o Canon de Ibn S≈n¡. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.102.
389
VERBEKE. Introd. IV-V, p.101.
390
GILSON, op. cit, p.466.
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391
DE LIBERA , op. cit., p. 349.
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espiritualista que o de Aristóteles e, por isso, foi inicialmente acolhido com simpatia
pelo ocidente latino.
Tanto a psicologia como a cosmologia de “Avicena” pareciam
completar o que diziam os cristãos. Desse modo, muitas de suas teses funcionavam
como amálgamas às doutrinas cristãs. Assim, por exemplo, era possível aproximar a
iluminação divina na teoria de Agostinho com a iluminação da inteligência agente dos
árabes. No século XII d.C. encontra-se essa mescla entre as doutrinas de Avicena com
as de Santo Agostinho na corrente que se denominou “agostinismo avicenizante”.
Essa situação de interpenetração, porém, não foi duradoura. Mas,
enquanto isso, até que houvesse uma melhor compreensão de todo o conjunto de
escritos que desaguava no mundo latino, muitos textos confusos e pouco filosóficos
foram escritos. O excessivo número de “De Animas” existentes indica a efervescência
nos espíritos nessa época. À medida em que a confusão na compreensão mais rigorosa
das teses dos falāsifa diminuía, o pensamento cristão procurava recobrar o que lhe era
próprio. Era preciso separar joio do trigo. A melhor imagem do que foi o inevitável
conflito entre a falsafa e a teologia cristã que se produz no início do séc. XIII d.C., é a
Universidade de Paris. A mais célebre das grandes universidades medievais,
constituída em 1200 d.C. e sancionada em 1215 d.C., desde os primeiros anos de sua
atividade recebia as obras de Aristóteles e dos falāsifa. Os mestres que lá ensinaram
como, por exemplo, Guilherme de Auxerre (m.1237) e e Filipe de Greve (m. 1236) não
ignoraram o papel que essa massa de novas idéias emergente cumpria.
Aproximadamente na mesma época começaram a chegar
progressivamente os escritos de Ibn Ru¹d, melhor, o “Averróis” latino. Rogério Bacon
e Alberto Magno começaram a citá-lo entre 1240 d.C. e 1250 d.C. Nesse período
tornou-se mais clara a impossibilidade de harmonizar as teses dos falāsifa com as
doutrinas cristãs. “A grande época da teologia e da filosofia escolásticas começa então”
e coincide com o trabalho dos pensadores cristãos de simultaneamente absorver e
conter o fluxo dos escritos greco-árabe da filosofia.
Até que esses escritos fossem devidamente analisados pela autoridade
eclesiástica, permaneceram proibidos. Em 1210 d.C. foi proibido o ensino dos escritos
de Aristóteles e de seus seguidores e tudo o que se referisse à filosofia natural sob pena
de excomunhão. Os tratados de lógica eram aceitos, mas os de física e de metafísica
representavam um perigo de todo, ainda, desconhecido. Em 1231 d.C., o papa
Gregorio IX renovou a proibição mas os escritos de Aristóteles e dos falāsifa sobre
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392
DELIBERA, op. cit., p. 196.
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393
Citado em DE LIBERA, op. cit., p. 217.
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maioria das referências dos escolásticos latinos a essas obras eram de segunda mão. A
grande difusão do platonismo terá de esperar ainda por volta de duzentos anos sendo
mais intensa a partir do século XV d.C. Boa parte da obra de Aristóteles, inclusive os
apócrifos, esteve disponível desde o final do séc. XII d.C. Antes disso, os tratados de
Ibn S÷nā assim como os de Ibn Ru¹d, logo em seguida, haviam deixado suas marcas
antecipadamente na interpretação da filosofia de Aristóteles. Na verdade, o
aristotelismo não podia ser entendido em estado puro. Entre a sua neoplatonização pela
lente aviceniana até a sua desplatonização, iniciada por Ibn Ru¹d e continuada por São
Tomás de Aquino, “a história da formação do Aristóteles latinus é dominada por um
jogo complicado de fatores perturbadores.”394
Os primeiros mestres das universidades emergentes da Europa tinham
em suas múltiplas tarefas, uma que era prioritária: dialogar com o recém-chegado
corpus filosófico greco-árabe e procurar adaptá-lo às necessidades da fé e do dogma
cristão, afastando ao mesmo tempo, as tendências que se lhe opunham fossem elas
oriundas dos gregos, dos árabes ou mesmo das próprias correntes de pensamento que
se formavam dentro do cristianismo.
Um desses casos foi o averroísmo contra quem lançou suas teses Tomás
de Aquino. Averróis havia entrado de modo duplo no mundo latino sendo que se lhe
atribuiram doutrinas que ele talvez nunca tenha professado. Da mortalidade individual
da parte intelectual da alma, a defensor de duas verdades –uma da fé e uma da razão-
este “Averróis” só pode ser entendido em sua relação com o averroísmo. Mas, apesar
disso, o averroísmo ganhou muitos adeptos no século XII d.C. como João de Jandun
(m.1328), Boécio da Dácia (m.1260) e seu maior representante Siger de Brabante
(1240/1284). O averroísmo seguiu ainda fazendo adeptos por Bolonha e em Pádua até
o século XV d.C. nas raias do Renascimento.
Alguns nomes são inseparáveis da escolástica no séc. XIII d.C.:
São Boaventura (1217/1274) foi mestre da cátedra franciscana da
Faculdade de Teologia de Paris. Se, por um lado combateu o averroísmo por defender
a eternidade do mundo e a unicidade do intelecto, por outro lado, “a filosofia
boaventuriana baseia-se na síntese da Avicena e de Dionísio.”395 Mas essa já é uma
outra história.
394
DE LIBERA , op. cit., p. 359.
395
DE LIBERA , op. cit., p. 403.
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396
DE LIBERA, op. cit., p. 107.
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7 – À GUISA DE CONCLUSÃO
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cosmovisão dos nossos dias dificulta que possamos ter uma visão mais integrada da
realidade. Mas alguém pode dizer que, talvez, a realidade não seja integrada. Essa é
uma questão. Mas o refúgio da integração no interior de nós mesmos é o princípio de
uma realidade sadia.
Ibn S÷nā escreveu uma obra chamada A Cura, como vimos. Ibn S÷nā era
médico. A Cura é uma obra de filosofia. Qual é, então a cura da filosofia? Essa obra é
um conjunto de todas as ciências conhecidas da época. Ibn Sina realizou uma grande
síntese. Será que ele colocou em sua obra tudo o que havia de conhecimentos em sua
época? Não, é claro que não. Mas certamente colocou tudo ou quase tudo que ele sabia
num conjunto ordenado segundo a sua própria organização. Essa lição me fica, sempre.
A cura é a integração dos conhecimentos a partir de uma cosmovisão própria. Isso é
sadio e filosófico.
Quase tudo o que ele pensava em termos de ciência, hoje é obsoleto.
Terra no centro do universo, teorias do pneuma, teoria da luz. Nada mais vale. É
inatual. É fundamental. Ele pensou sobre isso. No limite de seu entendimento e dos
recursos que possuía, elaborou sua síntese própria. Integrado, unificado em sua
pluralidade. Se a cosmovisão do mundo é o retrato da alma do homem, cosmovisões
integradas geram homens integrados. Por isso vale a pena ler os falāsifa . Eles respiram
e transpiram integração do mundo, da alma e do homem. Para qualquer construção de
si mesmo ý vale estar nas proximidades... vale escolher boas companhias... Aquece-te,
pois, à luz dos sábios.
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