Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
nalanda09/11/2012Vida do Buddha
~ Dr. Mettanando ~
No Dia de Vesak, informam-nos que esse é também o dia em que Buddha atingiu o
Parinibbāna. Mas nem todos sabem como o Buddha morreu. Textos antigos misturam dois
relatos acerca da morte do Senhor Buddha. Ela foi planejada e desejada pelo Buddha ou foi
devido a uma intoxicação alimentar, ou algo completamente diferente? Eis aqui uma breve
análise:
O Mahāparinibbāna Sutta, dos Discursos Longos do Tipiṭaka em pāli, é, sem dúvida, a fonte
mais confiável de detalhes da morte de Siddhattha Gotama (563-483 a.C.), o Senhor
Buddha. Ele é redigido em estilo narrativo, que permite que os leitores acompanhem a
história dos últimos dias de Buddha, a partir de alguns meses antes de sua morte. Porém,
entender o que realmente aconteceu ao Buddha não é coisa simples. O sutta, ou discurso,
descreve duas personalidades conflitantes de Buddha, cada uma ocupando o lugar da outra
ao longo do texto.
A primeira personalidade é de alguém que fazia milagres, que transportou a si mesmo e sua
comitiva de monges pelo rio Ganges (D II, 89), que tinha uma visão divina da distribuição
dos deuses na terra (D II, 87), que poderia viver até o fim do mundo desde que alguém o
pedisse (D II, 103), que determinou o momento da própria morte (D II, 105), e cuja morte
foi glorificada por uma chuva de flores celestiais, pó de sândalo e música divina (D II, 138).
A outra personalidade é a de um idoso com a saúde decadente (D II, 120), que tinha quase
perdido a vida por uma dor intensa durante seu último retiro em Vesali (D II, 100), e que foi
forçado a aceitar os termos de uma doença inesperada e morrer depois de ingerir uma
iguaria oferecida por um anfitrião generoso.
Alguns estudos focam nas qualidades desse alimento especial que o Buddha teria ingerido
na sua última refeição e que teria sido o agente de sua morte. Contudo, há também uma
outra abordagem baseada na descrição dos sinais e sintomas apresentada no sutta, para os
quais o conhecimento médico moderno pode lançar alguma luz.
Numa pintura mural em Wat Ratchasittharam, o Senhor Buddha está próximo da morte,
mas ele ainda se dispõe a responder perguntas do asceta Subhadda, seu último convertido,
o qual, após ser admitido na Ordem Buddhista, tornou-se um arahant (monge iluminado).
O que sabemos
No Mahāparinibbāna Sutta, é relatado que o Buddha adoeceu subitamente após comer uma
iguaria denominadasukaramaddava, literalmente “porco macio”, que foi preparada pelo seu
generoso anfitrião, Cunda Kammaraputta. O nome dessa iguaria atraiu a atenção de muitos
estudiosos, e é o foco de pesquisas acadêmicas sobre a natureza dos ingredientes usados em
seu preparo.
O próprio sutta apresenta detalhes dos sinais e sintomas da doença do Buddha, além de
informações fidedignas sobre as suas condições nos quatro meses anteriores, e esses
detalhes também são significativos para a medicina.
O sutta começa com o plano do rei Ajatasattu de conquistar um estado rival, Vajji. O
Buddha tinha viajado a Vajji para iniciar seu último retiro da estação chuvosa. Foi durante
esse retiro que ele adoeceu. O sintoma da doença era dor súbida e intensa.
O sutta, porém, não descreve a localização ou características dessa dor. Ele menciona
brevemente a doença, dizendo que a dor era intensa e quase o matou.
Em seguida, o Buddha foi visitado por Māra, o Deus da Morte, que o convida a morrer. O
Buddha não aceitou o convite imedatamente. Somente após seu auxiliar Ānanda fracassar
em perceber a indicação de que deveria fazer um convite para que permanecesse, foi que
Buddha morreu. Esse trecho da mensagem, apesar de envolto em mito e no sobrenatural,
fornece algumas informações significativas do ponto de vista médico. Quando o sutta foi
composto, seu autor estava convencido de que o Buddha morrera, não por causa da iguaria
que tinha comido, mas porque já tinha uma doença subjacente, aguda e severa, e já
apresentava os mesmos sintomas da patologia que finalmente o mataria.
A Cronologia
A tradição buddhista Theravāda apóia a suposição de que o Buddha histórico faleceu
durante a noite de lua cheia no mês lunar do Visakha (entre maio e junho). Mas isso
contradiz a informação do sutta, que diz claramente que o Buddha morreu logo após o retiro
da estação chuvosa, mais provavelmente durante o outono ou meio do inverno, isto é, entre
novembro e janeiro.
Uma descrição do milagre do florescimento das árvores sāla fora da época, quando o
Buddha estava deitado entrer elas, indica o intervalo de tempo descrito no sutta.
Outono e inverno, porém, não são estações favoráveis ao crescimento de cogumelos, que
alguns estudiosos acreditam ser a fonte da intoxicação do Buddha na sua última refeição.
Diagnóstico
O sutta nos diz que o Buddha adoeceu imediatamente após comer o sukaramaddava. Uma
vez que não sabemos nada sobre a natureza dessa iguaria, é difícil atribuir a ela a causa
direta da doença do Buddha. Mas, a partir da descrição feita, sabemos que o início do mal-
estar foi súbito. Enquanto estava comendo, ele sentiu haver algo errado com a comida e
pediu que o anfitrião a enterrasse. Logo depois, ele apresentou forte dor abdominal e
sangramento retal. Podemos presumir que o mal-estar começou enquanto ele se alimentava,
fazendo com que ele imaginasse haver algo errado com aquela iguaria exótica. E por sua
compaixão pelos demais, fez com que ela fosse enterrada.
Seria a intoxicação alimentar a causa da doença? Parece improvável. Os sintomas descritos
não indicam intoxicação alimentar, que pode ser bastante aguda, mas dificilmente
provocaria diarréia com sangue. Habitualmente, a intoxicação bacteriana não se manifesta
imediatamente, mas apenas após um período de incubação que dura de duas a doze horas,
com diarréia e vômitos, mas sem hemorragia.
Infarto Mesentérico
Uma doença que é compatível com os sintomas descritos – dor abdominal aguda,
sangramento retal, ocorrência frequente em pessoas idosas, e ser desencadeada por uma
refeição – é o infarto mesentérico, causado por uma oclusão nos vasos sanguíneos do
mesentério. E é uma situação letal. Isquemia mesentérica aguda (redução da irrigação
sanguínea para o mesentério) é uma condição grave com alto índice de mortalidade.
O mesentério é uma parte da parede intestinal que liga todo o trato intestinal à cavidade
abdominal [3]. Um infarto nos vasos do mesentério normalmente provoca a morte tecidual
numa grande porção do intestino, levando a uma laceração da parede intestinal. Isso
normalmente provoca dor abdominal intensa e sangramento. O paciente habitualmente
morre por hemorragia aguda. Essa situação condiz com a informação do sutta. Também é
corroborada mais tarde, quando o Buddha pede a Ānanda para trazer-lhe água para beber,
indicando sede intensa.
Conforme é relatado, Ānanda nega esse pedido, já que ele não encontra fonte de água
limpa. Ele argumenta com o Buddha que o riacho próximo está lamacento por ter sido
atravessado por uma grande caravana de carroças. Mas o Buddha insiste para que ele traga
água de qualquer jeito. Uma questão surge nesse ponto: Por que o Buddha não foi sozinho
até a fonte de água, em vez de pressionar um auxiliar de má-vontade a fazê-lo? A resposta é
simples. O Buddha estava sofrendo de choque hipovolêmico causado pela hemorragia
intensa.
A partir do sutta, fica claro que o Buddha não estava prevendo sua doença súbita, caso
contrário ele não teria aceito o convite do seu anfitriâo. Kusinara era, provavelmente, a
cidade mais próxima onde ele poderia encontrar um médico para atendê-lo. Não é difícil
imaginar um grupo de monges carregando apressadamente o Buddha numa padiola para a
cidade mais próxima a fim de salvar a sua vida.
Antes de morrer, o Buddha falou a Ānanda que Cunda não deveria ser considerado
culpado e que sua morte não tinha sido causada por comer sukaramaddava. A declaração
é significativa. A refeição não foi a causa direta de sua morte. O Buddha sabia que os
sintomas eram a repetição de um quadro clínico que ele havia apresentado poucos meses
antes, aquele que quase o havia matado. Sukaramaddava, não importa que ingredientes
tenha ou como é feito, não foi a causa direta do seu adoecimento súbito.
Evolução da doença
O infarto mesentérico é uma doença comumente encontrada em pessoas idosas, provocada
pela obstrução da artéria que leva sangue para o trato intestinal médio – o intestino delgado.
A causa mais comum da obstrução é a degeneração da parede de um vaso sanguíneo, a
artéria mesentérica superior, provocando dor abdominal intensa, também conhecida como
angina abdominal.
Habitualmente, a dor é desencadeada por uma refeição abundante, que demanda um fluxo
maior de sangue para o trato digestivo. Conforme a obstrução persiste, o intestino é privado
do suprimento sanguíneo, o que leva a um infarto, ou gangrena, de uma porção do trato
intestinal. Isso, por sua vez, resulta em uma laceração da parede do intestino, sangramento
profuso e diarréia sanguinolenta.
A doença progride à medida que líquido e conteúdo intestinal extravasa para a cavidade
peritoneal, causando peritonite ou inflamação da parede abdominal. Já é, então, uma
condição letal para o paciente, que frequentemente morre em decorrência da perda de
sangue e outros fluidos. Se a situação não é corrigida por cirurgia, o quadro evolui para
choque séptico devido a infiltração de toxinas bacterianas na corrente sanguínea.
Análise Retrospectiva
Do diagnóstico apresentado acima, podemos ter como quase certo que o Buddha sofreu um
infarto mesentérico causado por uma oclusão da artéria mesentérica superior. Essa foi a
causa da dor que quase o matara poucos meses antes, durante o seu último retiro da estação
das chuvas.
É provavelmente verdadeiro que o Buddha sentiu-se melhor após beber algo e repor sua
perda hídrica, e descansar na padiola. A experiência anterior com os mesmos sintomas
fazia-o saber que esse mal-estar era a segunda crise de uma doença já em curso. Ele diz a
Ānanda que a refeição não tinha sido a causa da sua doença, e que não se deveria culpar
Cunda. Um paciente em choque, desidratado e com hemorragia profusa geralmente sente
muito frio. Essa foi a razão pela qual ele pediu ao seu auxiliar para preparar uma cama com
quatro camadas de ‘sanghati’. De acordo com a disciplina monástica buddhista, um
‘sanghati’ é um manto, uma peça de pano bem grande, do tamanho de um lençol, que
Buddha havia permitido aos monges e monjas usar durante o inverno. Isso informa quanto
frio o Buddha sentiu devido a sua perda de sangue. Do ponto de vista médico, não se
permite a um paciente em choque e intensa dor abdominal, possivelmente peritonite,
palidez e calafrios, ser atendido numa consulta de rotina.
Provavelmente o Buddha foi acolhido em uma pousada, onde foi cuidado e aquecido, na
cidade de Kusinara. Isso é confirmado pela descrição de Ānanda que chora, desfalece e se
apóia na porta da pousada após ficar sabendo que o Buddha tinha morrido. Sem tratamento
adequado, um paciente com infarto mesentérico pode viver de 10 a 20 horas. A partir do
sutta, sabemos que o Buddha morreu cerca de 15 a 18 horas após o início da crise. Durante
esse tempo, seus auxiliares fizeram o melhor possível para deixá-lo confortável, por
exemplo, aquecendo o cômodo onde ele estava descansando, ou gotejando água em sua
boca para saciar sua sede persistente, ou oferecendo-lhe preparados medicinais. Mas é
muito improvável que um paciente com calafrios precisaria de alguém para abaná-lo como
descrito no sutta.
Por momentos, ele pode ter se recuperado temporariamente da exaustão, permitindo-se
continuar suas conversas com algumas pessoas. A maior parte das suas últimas palavras
devem ter sido ditas como relatadas, elas foram memorizadas por gerações de monges até
serem finalmente transcritas. Mas, por fim, tarde da noite, o Buddha morreu durante uma
segunda onda de choque séptico. Sua doença decorreu de causas naturais associadas à sua
idade, como aconteceria com qualquer outro.
Conclusão
A hipótese descrita acima explica vários eventos na narrativa do sutta, nomeadamente a
pressão para que Ānanda trouxesse água, o pedido do Buddha para que sua cama tivesse
quatro camadas de cobertores, a ordem para que a comida fosse enterrada, e assim por
diante. Ela também apresenta outra possibilidade para o meio real de transporte do Buddha
para Kusinara e o local do seu leito de morte. Sukaramaddava, seja o que contenha,
dificilmente seria a causa direta de sua morte. O Buddha não morreu por intoxicação
alimentar. Em vez disso, foi o tamanho da refeição, consideravelmente volumosa para o seu
trato digestivo já comprometido, que desencadeou a segunda crise de infarto mesentérico
que levou ao fim da sua vida.
Bangkok Post, 15 de maio de 2001
[1] NT (nota do tradutor): Vômitos com sangue vivo.
[2] NT: A hemorragia provocada pela úlcera gástrica faz com que o paciente apresente
fezes pretas (melena), devido ao fato de o sangue passar pelo processo digestivo, tornando-
se enegrecido.
[3] NT: É o tecido especializado que liga o intestino ao revestimento da cavidade
abdominal.
http://nalanda.org.br/vida-do-buddha/como-o-buddha-morreu