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GLAUBER

ROCHA

O
ORG. MATEUS ARAÚJO

NASCIMENTO 1
2
GLAUBER ROCHA
O NASCIMENTO DOS DEUSES
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG, MG, Brasil)

EDIÇÃO ORGANIZADA POR MATEUS ARAÚJO


G551 Glauber Rocha : o nascimento dos deuses / Glauber Rocha ; edição
organizada por Mateus Araújo. – Belo Horizonte : Fundação Clóvis
Salgado, 2019.
282 p. : il. ; 20 cm.

Livro da Mostra “Glauber - Kynoperzpektyva18”, realizada no


Cine Humberto Mauro – Palácio das Artes, de 7 a 23 de dez. 2018.
ISBN 978-85-66760-48-4

1. Rocha, Glauber, 1939-1981 – Exposições. 2. Cinema brasileiro


– Exposições. 3. Crítica cinematográfica – Exposições. 4. Roteiros
cinematográficos – Exposições. I. Rocha, Glauber, 1939-1981. II.
Araújo, Mateus. III. Fundação Clóvis Salgado.
BELO HORIZONTE
CDD: 791.430981 FUNDAÇÃO CLÓVIS SALGADO
2019
A Fundação Clóvis Salgado – por meio do Cine Humberto
Mauro - comemora o lançamento do par de livros Glauber Rocha:
Crítica Esparsa (1957-1965) e Glauber Rocha: O Nascimento dos Deuses
como desdobramento editorial imediato da retrospectiva Glauber
- Kynoperzpektyva18. Estas publicações prolongam e ampliam as
reflexões iniciadas durante a mostra sobre Glauber Rocha, realizada
em dezembro de 2018 pela Gerência de Cinema da Fundação Clóvis
Salgado em parceria com Mateus Araújo, professor de teoria e história
do cinema (ECA-USP) e pesquisador da obra do cineasta.
Trata-se de um importante mergulho no universo de Glauber
Rocha cuja filmografia enfatiza a complexidade das questões sociais,
políticas e culturais do Brasil. Além dos 16 filmes (entre longas e curtas)
dirigidos por Glauber, a mostra exibiu onze produções estrangeiras em
diálogo com as obras do artista.
Com estas publicações dedicadas a um dos principais nomes
do Cinema Brasileiro, a Fundação Clóvis Salgado reafirma sua função
cultural de promover a valorização do cinema nacional, ao contribuir
de forma significativa para os estudos glauberianos e ao expandir a
fortuna crítica a respeito do cineasta baiano, por meio da reunião de
textos de relevância nacional e internacional, jamais publicados em
livro no Brasil.
Estas publicações trazem um aporte substancial para futuros
pesquisadores e colaboram de maneira fundamental para os estudos
sobre o artista inovador, incontornável e atemporal que foi Glauber.

Fundação Clóvis Salgado


8 . GLAUBER ROCHA
E O RE- NASCIMENTO DOS DEUSES
MATEUS ARAÚJO

24 . NOTA SOBRE A TRADUÇÃO


JACYNTHO LINS BRANDÃO

O NASCIMENTO DOS DEUSES


28 . IRREALIDADE DO FILME HISTÓRICO
GLAUBER ROCHA

31  . CIRO: LUA DO ORIENTE


32 . PRIMEIRA PARTE

66 . SEGUNDA PARTE

96 . TERCEIRA PARTE

111  . ESBOÇOS DE PAULA GAITÁN E


GLAUBER ROCHA PARA O FILME

147  . ALEXANDRE: SOL DO OCIDENTE


148 . PRIMEIRA PARTE

174 . SEGUNDA PARTE

196  . TERCEIRA PARTE

226 . GLAUBER E OS GREGOS:


A PROPÓSITO DE O NASCIMENTO DOS DEUSES
JACYNTHO LINS BRANDÃO

6 7
GLAUBER I

ROCHA E O Em agosto de 1973, tateando ocasiões de trabalho em meio


a dificuldades materiais da vida no exílio, Glauber Rocha recebe uma

RE-NASCIMENTO proposta do canal de televisão italiano da RAI para fazer um filme his-
tórico a partir da Ciropédia e da Anábasis de Xenofonte, no rastro de

DOS DEUSES filmes ambientados na antiguidade que Rossellini e outros cineastas


de ponta já vinham fazendo na Itália1. Conversa vai, ajuste vem, ele
conta ter estudado um pouco a história antiga, e chega a escrever nos
MATEUS ARAÚJO cinco primeiros meses de 19742 um roteiro intitulado O Nascimento
dos Deuses (La Nascita degli dei) para um filme de seis horas. Este se
dividiria em duas partes, uma em torno de Ciro da Pérsia, “Ciro, Lua
do Oriente”, a outra em torno de Alexandre da Macedônia, “Alexandre,
o Sol do Ocidente”. Numa carta saborosa de 6/1/1974 ao amigo Zelito
Viana3, Glauber descreve as linhas gerais da proposta inicial da RAI e
também as do argumento inicial que esboçara, recorrendo amiúde, nos
dois casos, a paralelos e analogias entre o mundo antigo e a História
do Brasil, em cujo estudo mergulhara por dois anos para elaborar com
Marcos Medeiros o filme homônimo.
Útil para indicar ao mesmo tempo as matérias que ele tencio-
nava abordar e o modo de abordá-las que contava adotar ao iniciar a

1 Lembremos, além de Rossellini (Socrate, 1970), os filmes de Pasolini (Edipo Re, 1967-8;
Medea, 1970), Fellini (Satyricon, 1969), Straub & Huillet (Othon, 1970; Lições de História,
1972), Miklos Jancso (La tecnica e il rito, 1971; Roma rivuole Cesare, 1973, também produzidos
pela RAI) e Vittorio Cottafavi (Antigone, 1971).
2 Em carta a Raquel Gerber de junho de 1974, Glauber lhe diz ter terminado “o roteiro da Rai”
e estar esperando por um mês a resposta da emissora (Cartas ao Mundo, Org. Ivana Bentes,
Cia das Letras, 1997, p.486).
3 Cartas ao Mundo, Op. cit., p.474-9.

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redação, a carta conta: “A RAI me telefonou e propôs o seguinte: fazer Ao resumir em seis partes o argumento do filme que subme-
um filme de seis horas sobre a obra de Xenofonte - CIROPEDIA e ANÁ- tia à RAI naquele momento, qualificado por ele de “trip evidentemen-
BASIS -, a primeira relatando CIRO I, criador do Império Persa, e o te pretensiosa”, Glauber indica algumas decisões que o marcariam: a
segundo a invasão que os espartanos fazem da Pérsia, anos depois, para aplicação ao mundo antigo de um esquema histórico encontrado em
conspirar com Ciro II, filho de Dario, neto de CIRO I, contra seu irmão A Origem da família, da propriedade privada e do estado, de Engels; a
Artaxerxes, que lhe usurpara o trono” (p.475). Sem transições, a conti- atribuição de um “estilo homérico” ao relato de Xenofonte; o privilégio
nuação do relato já mistura o esqueleto do filme proposto com elemen- de alguns episódios em que se estruturaria sua história. Indica também
tos transfigurados pela imaginação glauberiana: “Artaxerxes ganha a o raciocínio analógico que governou sua concepção inicial, ao assinalar
guerra e os mercenários gregos, comandados pelo próprio Xenofonte na Grécia “o modelo democrático emedebista, os intelectuais de direita
que de Euclides da Cunha (era o Caminha de CIRO II) se transforma (Platão), de esquerda (Sócrates), a fofoca subdesenvolvida, o acordo
em Ulisses e faz uma viagem de volta para a Grécia, onde chega quando dos Deuses com o capital”, ou ao dizer que “os bravos guerreiros de Es-
Sócrates estava sendo condenado por esquerdismo e a direita platônica parta são jagunços. Clearco Antônio das Mortes contrata 10 mil merce-
tomando o poder” (p.475). nários e partem para a Pérsia, levando Xenofonte como cronista militar
Típicas da imaginação glauberiana, as metamorfoses, analo- = os sertões no deserto ou no Cocorobó dá no mesmo: mas desta vez
gias e justaposições de personagens, épocas e parâmetros (Xenofon- tem dez mil extras, todo o exército persa à minha disposição” (p.477).
te / Euclides da Cunha / [Pero Vaz de] Caminha / Ulisses, Sócrates / Este esquema mental de sobrepor elementos da história brasileira aos
esquerdismo, direita platônica etc), se confirmam nos parágrafos se- do mundo antigo é explicitado por Glauber no fim da carta: “Não sei
guintes: “A interpretação é de Engels e Antônio das Mortes [...] Eis-me nada da Grécia nem da Pérsia mas, como estudei a fundo a História
de volta ao cinema e ao sertão [...]. Diante destas circunstâncias - um do Brasil pelo método materialista dialético estrutural psicolinguístico,
filme sobre antigas civilizações do Ocidente (Grécia) e Oriente (Ásia tiro de letra em 2 meses” (p.479).
Menor) - transferi a Idade da Terra (Paulo Martins das Mortes rides Quatro meses depois, Glauber entrega à RAI o roteiro enco-
again...) por este novo Deus e o Diabo nos desertos do Saara - é um mendado (bem diferente do argumento inicial), provavelmente num
filme de cangaceiros, Paulo Martins é Xenofonte, CIRO I é Lampião e italiano a revisar, mas talvez num português ainda a traduzir. Não te-
CIRO II Barravento, logo viajo à ancestralidade mais ou menos segu- mos notícia do que aconteceu com o texto nos anos seguintes, mas o
ro dos resultados porque o que me interessa é desmistificar mitologias próprio Glauber nos informa, numa entrevista romana de 16/11/1980,
greco-orientais, mostrar que por baixo de Olympos e Templos reinava ter dado uma última demão no roteiro de setembro a outubro daquele
o patriarcalismo escravocrata, primeiras solidificações do capitalismo”
(p.475-6).

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ano em Roma4, depois do fatídico episódio do Festival de Veneza de Brasil, contam-se nos dedos os outros textos a ele consagrados: uma
setembro de 1980 em que, exasperado pelos ataques a sua pessoa e a resenha aqui7, um capítulo ali8, um ou outro trabalho universitário o
seu filme A Idade da Terra, que acabou não levando nenhum prêmio, discutiram, em geral sem maiores aprofundamentos9. Em suma, qua-
brigou com boa parte da comunidade cinematográfica ali presente. Tal se quarenta anos depois de sua publicação, quase ninguém, no Brasil
entrevista anunciava ainda a publicação do roteiro para janeiro e a rea- como na França e no mundo anglófono, escreveu sobre este roteiro, que
lização do filme correspondente para o verão de 1981. permanece assim praticamente virgem na bibliografia mundial.
Nunca filmado, o roteiro acabou publicado em Torino, pelas
ERI (Edizioni RAI - Radiotelevisione Italiana), em italiano - única ver-
são que conhecemos. Ele saiu de uma gráfica romana em fins de julho II
de 1981, dias antes da hospitalização de Glauber em Lisboa por compli-
cações pulmonares, que no mês seguinte o levariam à morte em 22 de Além de pouco discutido, o roteiro italiano de Glauber per-
agosto, depois de um voo in extremis para o Rio de Janeiro. Tudo leva manecia praticamente inacessível em toda parte. Sua única edição está
a crer, portanto, que o livro nem sequer chegou às mãos de Glauber. esgotada há muito tempo na Itália, e segue sendo uma raridade ain-
Consta que foi lançado em setembro, já post mortem, no Festival de da maior nas bibliotecas brasileiras - públicas e privadas. Era preciso,
Veneza de 1981, onde deve ter soado como uma espécie de desagravo portanto, e antes de mais nada, recolocá-lo em circulação entre nós,
italiano ao cineasta brasileiro, mas sem nenhuma repercussão. Nunca providenciando sua primeira tradução integral para o português, de
republicado na Itália nem fora dela, jamais traduzido para nenhuma modo a incluí-lo para valer no corpus glauberiano. Para isso, tratava-se
outra língua, o roteiro teve recepção praticamente invisível, suscitou de elucidar o estatuto do próprio texto italiano. Resultou ele de um
pouquíssima discussão, e tem permanecido por anos à margem da obra manuscrito inicial em português traduzido por alguém para o italiano,
glauberiana. Até onde sei, durante décadas nenhum dos mais eminen- antes ou depois de sua apresentação aos produtores da RAI? Ou resul-
tes intérpretes de Glauber no mundo se ocupou dele (aí incluídos os tou pelo menos de uma versão revisada de eventual redação italiana
italianos). Um pequeno trecho da segunda parte foi publicado, em tra-
dução brasileira de Maurício Santana Dias, na Folha de São Paulo em 7 Marques, Clóvis. “Glauber Rocha e os déspotas esclarecidos”. Jornal do Brasil, 24/10/1981,
20055, secundado por uma breve apresentação de Ivana Bentes6. No Caderno B, p.12.
8 Feijó, Martin Cezar. Anabasis Glauber - Da Idade dos Homens à Idade dos Deuses. São Paulo:
Anabasis, 1996, Cap. IV, “O nascimento dos deuses”, p. 69-89.
9 Nem mesmo a longa tese de doutorado de Demétrio Panarotto, Glauber Rocha: De Xenofonte
4 Ali, segundo a entrevista, ele “ha messo a punto la sceneggiatura di La Nascita degli dei, [...] a Euclides da Cunha, de Euclides da Cunha a Xenofonte (Florianópolis: UFSC, 2012, 306p.), che-
per la quale aveva condotto richerche in Grecia, Egitto e altri Paesi” (“Il crítico furioso” [entre- ga a levar a cabo um exame atento do roteiro italiano, alternando sua discussão por vezes inte-
vista a Constanzo Constantini. Il Messaggero. Roma, 16/11/1980). ressante com longos excursos teóricos (nem sempre felizes), paráfrases de autores de prestígio
5 “Alexandre, o sol do Ocidente”. Folha de São Paulo, 9/1/2005, Mais!, p. 10. visivelmente mal assimilados (Deleuze à frente) e diatribes pouco convincentes contra a for-
6 “O profeta da democracia global”. Folha de São Paulo, 9/1/2005, Mais!, p. 10. tuna crítica glauberiana.

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do próprio Glauber? Pouco rigorosa, a edição da ERI não indica nem sólida carreira, de reconhecimento internacional. Para nosso entusias-
tradutor, nem revisor, e se limita a incluir uma brevíssima apresentação mo, ele aceitou de pronto nosso convite, e se dispôs ainda a assumir a
de Glauber datada erroneamente de 1968 (podemos inferir que se trata própria tradução do texto italiano, de modo a ganhar mais intimida-
de 1978, mas o mais plausível seria datá-la de 1980, quando do arre- de com seus meandros, e examinar mais de perto os elementos de sua
mate da versão finalmente publicada). Parece improvável, a julgar pelo fabricação.
italiano de Glauber em seu filme Claro (rodado em maio de 1975), que Não é sempre que um tal trabalho urgente e necessário en-
ele tivesse nos primeiros meses de 1974 desenvoltura suficiente para contra alguém com esta envergadura disposto a enfrentá-lo. Estavam
escrever direto em italiano um longo roteiro capaz de prescindir da criadas assim as condições para a contribuição específica que este volu-
revisão de algum de seus amigos (Gianni Amico? Gianni Barcelloni?) me espera trazer ao debate, conjugando a tradução integral do roteiro
ou de alguém da equipe da própria RAI. Seja como for, desconhecendo por um especialista na antiguidade e um ensaio erudito sobre o sentido
os bastidores da gênese do roteiro e algum manuscrito brasileiro ou da apropriação glauberiana particular das fontes antigas. Ao mapeá-
italiano que pudesse ser levado em conta, decidimos partir da edição -las no roteiro, Jacyntho discute, no bloco sobre Ciro (“Ciro, lua do
italiana, que traz sua única versão publicada, e procurar um tradutor à Oriente”), o uso relativamente estrito da Ciropédia de Xenofonte nas
altura do desafio. duas primeiras partes10, e o recurso a acréscimos tirados das Histórias
Além desta tarefa, que nos parecia prioritária, havia uma ou- de Heródoto ou propostos pelo próprio Glauber na terceira. No bloco
tra, de submeter o roteiro a um primeiro escrutínio mais sólido de um sobre Alexandre (“Alexandre, sol do Ocidente”), personagem ao qual
estudioso da antiguidade, para avaliar não tanto a eventual justeza da Glauber teria chegado por meio da Anábase não de Xenofonte, mas
hermenêutica do mundo antigo por Glauber (que nunca esteve em seu de Arriano, Jacyntho assinala um uso mais livre das suas fontes, den-
horizonte de artista), mas sobretudo a força da sua apropriação criativa tre as quais a própria Anábase de Arriano (da qual o cineasta tirou as
desta matéria histórica. Esta segunda tarefa também se afigurava exi- informações principais sobre a vida do herói, apesar da diferença de
gentíssima, pois pressupunha uma conjugacão rara entre, de um lado, o tratamento), o livro sobre Alexandre nas Vidas Paralelas de Plutarco
rigor de um estudioso da cultura antiga e, de outro, um discernimento e as suas biografias por Diodoro Sículo e pelo romano Quinto Cúr-
estético também agudo para se compreender e respeitar as prerrogati- cio. Para além destas fontes principais, Jacyntho aponta ainda ecos da
vas de um cineasta radical na sua lida com o assunto antigo. Para ela, Teogonia de Hesíodo no próprio título do roteiro, antes de discutir o
sonhamos desde o início com Jacyntho Lins Brandão, eminente estu- que lhe parece uma tese glauberiana: a do paralelo entre deuses orien-
dioso da antiguidade grega (mas não só), escritor e professor emérito
da UFMG, onde por décadas a fio, ensinou língua e literatura grega a 10 Assim como o abandono da sua Anábase (prevista no projeto inicial), cujo entrecho aparece
gerações de estudantes, formou gerações de helenistas, e construiu uma pontual e residualmente num resumo de duas frases presentes no comentário derradeiro do
narrador na terceira parte.

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tais (Ahura Mazda) e ocidentais (Zeus), assim como dos protagonistas mite perceber um contraste entre, de um lado, a gênese circunstancial
Ciro e Alexandre, que tendem a aparecer como seus filhos respectivos, do projeto (neste caso, uma encomenda) e, de outro, o resultado coe-
num processo portanto de divinização cujo horizonte seria em última rente com o programa estético geral do cineasta. A maneira mais direta
análise uma integração do Oriente e do Ocidente. Para muito além da de medir tal coerência é examinar a situação do roteiro no interior da
mera detecção das fontes, Jacyntho procurou assim examinar o senti- obra glauberiana, cujos esquemas de fundo ele acaba reencontrando,
do propriamente glauberiano de sua apropriação, o que lhe permitiu apesar de se voltar desta vez para um universo histórico até então iné-
também, num diálogo original com a fortuna crítica do cineasta11, dis- dito em seu cinema - o da antiguidade (grega e do Oriente Médio)13.
cutir seus gestos de superpor situações culturais distintas, de integrar Na visita a este universo, o roteiro confirma um movimento
a seu modo o princípio dos dípticos comparatistas que estruturam as de expansão do arco espácio-temporal coberto pelos filmes de Glauber,
Vidas Paralelas de Plutarco, de transformar a noção mesma de “anába- que vão aos poucos transcendendo a esfera da História do Brasil e de
sis” num operador de sua poética tardia, a cuja luz se poderia detectar seu passado recente. Sugerido em Terra em Transe (cuja recapitulação
relações do roteiro com o projeto de Idade da Terra - ambos possivel- do processo político resultante no golpe civil-militar de 1964 no Brasil
mente informados por um outro Nascimento dos Deuses, um romance remete também a uma experiência histórica mais larga de formação da
histórico de 1925 do escritor russo Dmitri Merejkóvski12, que falava em América Latina), tal movimento se prolonga nos seus primeiros longas
terceiro testamento. Estimulado pela rica discussão de Jacyntho, e na do exílio, O Leão de Sete Cabeças e Cabezas Cortadas, que abordam
esperança de trabalhos futuros em colaboração, assinalo brevemente, processos históricos recentes do continente africano e do mundo ibe-
para concluir esta introdução, dois ou três aspectos do roteiro que nos ro-americano. O roteiro italiano avança ainda mais no espaço (Pérsia,
permitem pensar seu lugar na obra de Glauber, notadamente em sua Grécia e suas zonas de expansão) e recua mais no tempo (séculos VI a
articulação, tipicamente glauberiana, da História com a religião. IV a.C.), abrindo o caminho para a revisita ao Império Romano sugeri-
da em Claro e para a figuração do nascimento do mundo na cosmogo-
III nia inicial da Idade da Terra.
No seu âmbito específico, o roteiro talvez reate também com
A exemplo de outros trabalhos de Glauber, como O Leão de a postulação, constante em Glauber, de uma dialética histórica entre
sete cabeças, Cabeças Cortadas, Claro e Di Cavalcanti, este roteiro per-

13 Desse ponto de vista, o roteiro parece constituir também um episódio significativo da recep-
11 Da qual mobilizou textos de Ismail Xavier e meu (sobre a problemática da história), de ção da antiguidade no cinema brasileiro, cuja história passa pelas paródias da chanchada (Car-
Demétrio Panarotto (sobre as presenças de Heródoto e Euclides da Cinha, vistas como centrais naval Atlântida e Barnabé, tu és meu, José Carlos Burle, 1952; Nem Sansão nem Dalila, Carlos
à obra de Glauber) e Marília Rothier (sobre os métodos de trabalho do cineasta perceptíveis Manga, 1954, Entrei de gaiato, J. B. Tanko, 1959 etc), pelo mito de Orfeu e Eurídice nos filmes
em seus arquivos). de Marcel Camus (Orfeu negro, 1959) e Carlos Diegues (Orfeu, 1999), pelo Cleópatra (2007) de
12 Cuja tradução italiana, intitulada tambem La Nascita degli Dei, data de 1948. Júlio Bressane, e assim por diante.

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a decadência de formas culturais peremptas e a emergência de novas meiro em Ciro, de cujo Império persa vemos o apogeu, antes que a deca-
formas de vida social14, frequentemente impulsionada pela experiência dência suceda sua morte, e dê lugar ao Império de Alexandre da Mace-
religiosa dos oprimidos. Tal postulação aparece já em Deus e o Diabo dônia, cujo apogeu é então mostrado, antes que sua morte feche o relato.
(atento ao massacre da revolta messiânica e ao ocaso do cangaço no Na verdade, apesar do seu título, o roteiro não privilegia o
nordeste, mas também ao horizonte político da profecia segundo a qual nascimento dos deuses, mas o nascimento, o apogeu e a morte des-
o sertão vai virar mar) e O Dragão da maldade (atento à decadência tes dois personagens históricos da antiguidade, os Imperadores Ciro
da oligarquia rural brasileira, mas também ao seu justiçamento pelas e Alexandre, com seus respectivos Impérios. Separadas por cerca de
forças do Santo Guerreiro)15. Do exílio em diante, tal dialética reapa- 200 anos, a vida dos dois é narrada diacronicamente, em duas partes
rece forte em Der Leone (que figura a decadência do neocolonialismo sucessivas, de títulos simétricos (“Ciro, lua do Oriente” e “Alexandre,
europeu na África, e termina com uma promessa de revolução popular sol do Ocidente”), cada uma subdividida em três, provavelmente para
iminente) e Cabezas Cortadas (que figura a decadência do tirano hispa- se adequar ao formato dos seis episódios de 1 hora vislumbrados para
no-americano, assassinado ao fim do filme para que o povo receba sua uma série televisual da RAI, que lhe fornecia o horizonte. Guardadas
coroa), antes de prosseguir em Claro (que remete o que via como crise as diferenças de escala espaço-temporal, o roteiro organizava o salto
do capitalismo global nos anos 1970 à decadência do império romano, narrativo entre as duas vidas justapostas mais ou menos como Deus
e observa com empatia e esperança as manifestações dos movimentos e o Diabo fazia com os episódios do massacre dos beatos de Sebastião
políticos organizados de esquerda na Itália) e em Idade da Terra (que (alusão ao de Canudos em 1897) e da morte de Lampião e Corisco (em
condensa a decadência do imperialismo americano na figura grotesca 1938 e 1940)16, numa sutura narrativa fornecida pelo relato da deca-
de Brahms, e aposta no cristianismo do terceiro mundo como vetor de dência do Império persa, na última página da história de Ciro.
renovação da cultura ocidental). Da mesma maneira, a fusão de Alexandre e Ciro na terceira e
última parte de “Alexandre...” (que se refere várias vezes a “Alexandre-
No meio deste trajeto, guardadas as especificidades do seu uni- -Ciro”) sela uma identificação entre os dois personagens análoga àquela
verso ficcional, O Nascimento dos Deuses parece observar um movimen- sugerida entre Sebastião e Corisco no filme de 1964 pelo uso da voz de
to análogo de decadência e renovação de duas versões de um Império Othon Bastos na dublagem de ambos. Tal fusão coroa sincronicamente
antigo com pretensões de unir Ocidente e Oriente. Elas se encarnam pri- uma série de indícios de espelhamento entre eles ao longo do texto: “a

14 Discutida por Ismail Xavier com sua acuidade costumeira em “A Idade da Terra e sua visão
mítica da decadência” (Cinemais, n.13, set/out 1998, p.153-85). 16 Além dos casos de estrutura interna bipartite, própria de Deus e o Diabo e de alguns textos
15 Atento ao colapso do populismo pré-1964, Terra em transe parece porém menos esperan- de Glauber contemporâneos do roteiro italiano (por exemplo, “A questão teatral 74” e “Palma
çoso de qualquer redenção possível diante do impasse do golpe, e sua sugestão iconográfica de Ouro 75”, recolhidos em Revolução do Cinema Novo, Ed. 2004, p. 259-61 e 281-8), outros
da luta armada figurada na imagem de Paulo Martins agonizando com um fuzil na mão não de seus filmes também instauram dípticos (O Dragão da Maldade em relação ao próprio Deus
encerra o menor sinal de ilusão. e o Diabo, Cabezas Cortadas em relação a Terra em Transe).

18 19
mesma massa que aclama Ciro quando entra em Babilônia vê surgir, Glauber, do elemento religioso sobre a esfera histórico-política. Com
no lugar de Ciro, Alexandre” (p.186); “Alexandre levanta-se do trono uma diferença, porém, digna de nota.
e um grupo de sacerdotes persas põem-lhe na cabeça a tiara de Ciro” No seu cinema, tal projeção dá corpo a um verdadeiro reen-
(p.188); “Alexandre é a reencarnação de Ciro” (p.189); “Alexandre usa cantamento do mundo, que passa - não sem ambivalências - pela mo-
uma túnica persa idêntica às túnicas usadas por Ciro” (p.189); “Segui as bilização frequente (senão por um verdadeiro endosso) de cosmovisões
teorias de Aristóteles até quando descobri Zoroastro. Eu não sou Ale- religiosas, de matriz afro-brasileira (em Barravento, Terra em Transe
xandre, eu sou Ciro” (p.202); “Durante minha vida, o espírito de Ciro e O Leão), cristã (rústica em Deus e o Diabo e O Dragão da Maldade,
me acompanhou. Mas ele ainda não está morto. Ele se tornou a minha sincrética em A Idade da Terra) ou pré-colombiana (na concepção me-
realidade” (p.216); “Entre as ruínas, Alexandre encontra o túmulo de xicana da morte reivindicada em Di Cavalcanti). No roteiro, Glauber
Ciro violado. A múmia está na terra e não mais envolvida nas faixas. parece ter integrado a este mesmo impulso religioso, que está na base
Alexandre envolve-a de novo, repõe-na no sarcófago e veste a túnica de de seus esquemas históricos, os deuses antigos e as figuras de Ciro e
Ciro, que está rasgada e suja” (p.218). Alexandre, qualificados por ele de “mitos fundamentais do pré-cristia-
Glauber leva ainda mais longe a sobreposição sincrônica dos nismo”. Ele chega até mesmo a se referir ao Cristo, num gesto ostensi-
dois imperadores ao agregar-lhe figuras históricas de outras latitudes vamente anacrônico, típico de sua poética nos anos 70, cheia de super-
em duas passagens de seu ensaio “Eyzenstein e a revolução soviétyka”: posições de personagens, épocas e lugares distintos. Mas seria difícil
“Ivan é fusão de Kyruz da Pérzyka e de Alexandre (Nevski) o Grande falar aqui de religião do oprimido, pois a cosmovisão religiosa presente
da Makedônya Grega” e “Ciralexandrotaviaugusto, Felipe II, Napoleão, no roteiro é também a dos poderosos que o protagonizam. Além disso,
Hitler, Stalin, Nevski, Ivan I e Ivan II”17. não se trata aqui propriamente de reencantar o mundo antigo (no qual
Voltando ao roteiro, Ciro e Alexandre ocupam nele a maioria os mitos e os deuses guardavam sua vigência, e conviviam com a emer-
das cenas (mais até do que acontecia com as outras figuras do poder de gência do Logos) como faziam outros filmes de Glauber no contexto de
Terra em Transe a Idade da Terra, com a exceção talvez do Diaz II de um mundo moderno laicizado e administrado pelo Capital.
Cabeças Cortadas), e seu protagonismo é muito claro na economia ge-
ral do texto. Seriam talvez eles próprios os deuses referidos no título? Se A relação entre a religião e a História no universo ficcional do
não chega a lhes atribuir de modo taxativo um caráter divino, o roteiro roteiro requer, portanto, exame mais cuidadoso. Não custa lembrar que
frequentemente o sugere, borrando por vezes a separação entre os seres também o requer a diferença radical, e mesmo o forte antagonismo, en-
humanos e as divindades18, e trazendo assim a projeção, constante em tre, de um lado, a concepção glauberiana das religiões, assim no plural
(como fonte de afirmação cultural e resistência dos povos dominados),
17 O Século do Cinema, reed. Cosac Naify, 2006, p.164 e 167, respectivamente. e, de outro, o recrudescimento contemporâneo, francamente regressi-
18 Seu mundo narrado traz alguns deuses, que convivem e se intercambiam com os homens.

20 21
vo, da ingerência religiosa indevida no debate político, ou dos modelos
políticos de viés teocrático, que não hesitam em usar a religião como
álibi para a dominação, o cerceamento de direitos legítimos das po-
pulações e a violência contra mulheres, homossexuais, pessoas trans,
povos originários, minorias étnicas e grupos estigmatizados em geral.
Seja como for, estas e várias outras questões suscitadas por
este roteiro só agora se tornam pensáveis, quando, num verdadeiro
“re-nascimento dos deuses”, podemos frequentar em nossa língua seu
texto, que esperemos saia finalmente da sombra a que ficara relegado
por quase quarenta anos. Que saia também da sombra, junto com ele,
uma belíssima série de desenhos que Paula Gaitán e Glauber fizeram
para o projeto de La Nascita degli Dei. Enriquecendo a edição italiana
do roteiro, tal série consistia num conjunto de 32 desenhos, 17 de Pau-
la (dos quais 4 coloridos) sucedidos por 15 de Glauber (quase sempre
assinados), e aparecia num bloco central do livro (p.63-96), separando
assim, num parêntese iconográfico, os blocos textuais consagrados a
Ciro e a Alexandre. Na ausência dos desenhos originais, tivemos que
retomar aqui suas reproduções disponíveis no livro italiano, mantendo
seu lugar e sua ordem no texto do roteiro. Neste processo, Paula não só
nos autorizou a reimprimir a sua série como também se dispôs genero-
samente a cuidar do seu tratamento visual para esta nova edição. Que
ela receba aqui uma palavra de profunda gratidão.

22 23
NOTA SOBRE A
Esta tradução de O Nascimento dos Deuses tem como base o li-
vro publicado em 1981 pela ERI/Edizioni RAI, na Itália, que parte dos

TRADUÇÃO
manuscritos do autor. Busquei ser fiel não só ao conteúdo do texto –
condição indispensável –, como também ao estilo de Glauber Rocha,
que tem como peculiaridade seguir a velocidade do pensamento e da
JACYNTHO LINS BRANDÃO imaginação.
Assim, ele usa poucas vírgulas e outros sinais de pontuação – e,
na tradução, em raras ocasiões, me pareceu necessário acrescentar uma
ou outra vírgula, em nome da clareza. Do mesmo modo, embora não
o aplicando em todas as situações, ele tem um critério muito próprio
no uso de iniciais maiúsculas na grafia de certos termos – como Deus/
Deuses, Heróis, Rei. Isso também foi estritamente respeitado, a não ser
no caso dos gentílicos (persa, grego, indiano), em que se trata apenas de
norma do italiano, que não se aplica ao português do Brasil.
Todos os nomes próprios antigos foram vertidos na forma
portuguesa usual, com exceção de três topônimos, Ircadela, Iramnia
e Rifasi, cuja localização não consegui identificar, deixando-os como
no original italiano. Saliente-se que, em alguns casos, considerando o
contexto, foi possível detectar erros tipográficos, os quais foram corri-
gidos na tradução, como no caso de “hircanos” onde se lia “irvanos”.
Além disso, assinalei com nota de rodapé uma passagem em que a fala
atribuída ao personagem parece mais própria de outro. Finalmente, as
indicações de câmera foram deixadas conforme o original.

24 25
. O .
NASCIMENTO
DOS DEUSES

26 27
IRREALIDADE DO
A história passada, presente e futura é irreproduzível. Salambô
não é um documentário sobre Cartago, mas um delírio provocado pelo

FILME HISTÓRICO
desejo estético de Flaubert, projetado para além da França decadente
após a tragédia napoleônica, que reintegrou o provincialismo realista
de Madame Bovary.
GLAUBER ROCHA Vida de Napoleão, de Stendhal, criticado por sua imprecisão his-
tórica, é a melhor análise do general corso.
Buñuel considera o cinema um feito onírico e os filmes de Ales-
sandro Blasetti, Cecil B. De Mille, Federico Fellini, assim como os clás-
sicos do neorrealismo (Roma, Cidade Aberta ou A Terra Treme), são
plasmas racionalizados dos vulcões do inconsciente.
Deformação, impressão, expressão, reversão, subversão caracte-
rizam as Grandes Artes.
O que importa é a visão que o artista tem da realidade, e a sua
capacidade de criar, para além dos documentos.
Em agosto de 19731, durante o meu exílio em Roma, fui convi-
dado por Alberto Luna a escrever um ensaio sobre Anábase, inspirado
no famoso texto grego de Xenofonte.
Mergulhei nos mitos fundamentais do pré-cristianismo, Ciro da
Pérsia e Alexandre da Grécia.

Glauber Rocha, 19782

1 No original, 1963, o que parece mero erro tipográfico. O exílio de Glauber Rocha teve início
em 1971 (1963 é o ano em que ele lança Deus e o Diabo na Terra do Sol, estando em plena
atividade no Brasil). A carta a Zelito Viana que fala do projeto é de janeiro de 1974. [N.T.]
2 No original, 1968, data que deve ser corrigida tendo em vista as razões dadas na nota anterior.
[N.T.]

28 29
CIRO
LUA DO ORIENTE

30 31
Externo dia, sol

Voz: O Irã, país da Ásia central, teve uma influência decisiva na for-
mação econômica, social, política, religiosa e intelectual do Oriente
antigo. Zoroastro, fundador da religião persa, instaurou o culto de um
único Deus, Ahura Mazda, inimigo das forças do mal, representadas
por Ahriman.

Externo dia
(p.g. trav.) Grande fogo no meio do deserto.

PALÁCIO REAL DA PÉRSIA ANTIGA


Externo dia
(p.g. trav.)

Voz: Na segunda metade do século VI antes de Cristo, o Rei Ciro de


PRIMEIRA PARTE
Azan, descendente da tribo dos Aquemênidas, unificou a Pérsia e a Mé-
dia, criando o primeiro grande Império do Mundo.

Externo dia, céu, noite


(p.p.) Zoroastro, velhíssimo, iluminado pelo sol, fala.

Zoroastro: Os sete demônios da Luz combatem os sete demônios das


trevas. Deus, rei do céu! Ó Ásia, mãe da terra, ó tribos errantes do
Elam, ó Iluminações do passado ao futuro. Ahura Mazda, único Rei no
Céu. Ciro, único Rei na terra.

PALÁCIO PERSA
Interno dia
(p.g. trav.) Mandane, deitada na cama, pega Ciro, recém-nascido, e o
levanta.

33
Voz: Ciro nasce no ano 559 antes de Cristo. Seu pai era Cambises, Rei Preceptor: Antes de pensar se a camisa é ou não na medida do corpo,
da Pérsia, e sua mãe Mandane, filha de Astíages, Rei da Média. você deve saber que o homem deve trabalhar para obter uma camisa
Cambises se aproxima, toma Ciro nos braços e caminha até a janela, na medida do seu próprio corpo. O homem que, precisando da camisa,
de onde entra a luz do sol. mata ou rouba para obtê-la está agindo contra a lei que proíbe o assas-
sinato e o furto. Você deve aprender que cada ação segundo a lei é justa,
(p.p.) O pequeno Ciro iluminado pelo sol.
enquanto toda ação contra a lei é injusta. O juiz deve julgar segundo a
PRAÇA DA LIBERDADE DA ANTIGA CAPITAL PERSA lei e segundo as razões dos que acusam.
Externo dia
PRAÇA
(p.g. trav.) Vê-se o Palácio Real e os edifícios administrativos.
Externo dia
Voz: Na praça da Liberdade, diante do Palácio Real, os homens, dos
(p.g. trav.) O grupo dos jovens começa a exercitar-se com as armas.
meninos até os velhos, preparam-se para as funções administrativas e
Voz: Aos 18 anos, os jovens são transferidos para um outro grupo, onde
militares requeridas pelo Estado. São divididos em quatro grupos, se-
aprendem a manejar as armas, ficam encarregados da guarda da praça e
gundo a idade: os garotos, os jovens, os adultos, os velhos.
começam a praticar a caça...
(p.m.) Um preceptor ancião, circundado por garotos, fala.

Preceptor: Aqui, na praça da Liberdade, segundo as tradições do povo, PRAÇA


o homem aprende a ser honesto desde o nascimento até a morte. Externo dia

(p.p.) Ciro, que tem 10 anos, escuta o velho e pergunta. (p.g. trav.) O grupo dos homens está com as couraças, os escudos de
vime na mão esquerda e cimitarra ou lança na mão direita.
Ciro: O que é a justiça?
Voz: Aos 28 anos, os jovens passam para o grupo dos adultos, elegem
(p.m.) O velho preceptor, auxiliado por alguns colaboradores e sempre
um chefe escolhido entre eles e se preparam para exercer as funções
circundado pelos garotos, põe o garoto maior, que veste uma camisa
pequena, diante de um garoto menor, que veste uma camisa grande. administrativas e militares do Estado.
Os garotos trocam as camisas. O preceptor pergunta a Ciro.
PRAÇA
Preceptor: Para você, Ciro, eles devem trocar entre si a camisa ou não? Externo dia
(p.p.) Ciro. (p.g. trav.) Os garotos, os homens e os velhos partem, enquanto os jo-
Ciro: Que cada um vista a camisa que fica melhor. vens começam a limpar a praça e a organizar o serviço de guarda.

34 35
Voz: Durante toda a vida, os persas ensinavam e praticavam a obediên- Astíages: Preciso cobrir você de colares, braceletes e anéis.
cia aos Deuses e às leis, aprendiam a suportar a fome e a sede, respeita-
vam os mais inteligentes e os mais fortes cuidavam da higiene do corpo CAMPO DA MÉDIA

e dedicavam-se à concentração espiritual. Externo dia

(p.p.) O Rei Cambises beija Ciro e fala. (p.g. trav.) Um grupo de cavaleiros acompanha Astíages, que mostra
a Ciro a natureza circundante. O grupo segue para uma montanha.
Cambises: Agora você vai com sua mãe conhecer o seu avô Astíages,
Música.
Rei da Média.
(p.g. trav.) Astíages a cavalo, Ciro.
CAMPO
Ciro: Você conhece as terras além das montanhas?
Externo dia
Astíages: São as terras de Ircadela Susiana, da Caldeia... dos assírios.
(p.g. trav./p.p.) A caravana que escolta Mandane e Ciro em viagem
para a Média. Ciro: E depois?

Música. Astíages: É a Lídia, a grande Frígia e a Grécia.

Externo dia Ciro: E agora estamos em paz?

(p.g. trav.) A caravana com Mandane e Ciro chega diante do palácio de Astíages: O nosso antepassado, o Rei Ciaxares, derrotou os inimigos,
Astíages. Astíages corre para Ciro, tira-o do cavalo, beija-o e abraça-o, tornando estáveis as fronteiras da Média. Mas podemos ser agredidos
dizendo: a qualquer momento.

Astíages: Você tem os olhos, os cabelos e a compleição dos medos... Ciro: E podemos atacar?
(p.p.) Ciro, Astíages e Mandane. Ciro acaricia a barba de Astíages. Astíages: Enquanto eu for o Rei da Média, recorrerei à violência só
Ciro: Como é bonito o meu avô! como defesa. Vivendo em paz, o homem conquista a eternidade, mas a
paz se obtém com a sabedoria, não com as armas.
Mandane pergunta a Ciro:

Mandane: Quem é mais bonito, seu pai ou seu avô? PALÁCIO DE ASTÍAGES
Interno noite
Ciro: Meu pai é o homem mais bonito que conheço entre os persas;
mas entre os medos o mais bonito é o meu avô. (p.m. trav.) Banquete em homenagem a Ciro, Mandane senta-se ao
lado de Astíages. O banquete abunda em carnes, vinhos, frutas e legu-
Astíages beija Ciro.
mes. Todos comem muito e Ciro brinca com a filha de seu tio Ciaxares.

36 37
Ciro: Como é bonita a minha prima! Astíages: Qual? Darei tudo o que você quiser...
Ciaxares pergunta à filha: Ciro: Que os seus guardas me deixem entrar nos seus aposentos quan-
Ciaxares: Com quem você vai se casar quando for grande? do eu quiser e que você atenda a todos os pedidos que farei em favor
de meus amigos.
A menina: Ciro.
Astíages: A minha casa e o meu coração estarão sempre abertos para
Ciro ouve a prima e responde:
você.
Ciro: Depois que eu tiver conquistado o mundo, casarei com você.
Externo dia
Ciro beija a menina, todos riem.
(p.g. trav.) Diante do palácio de Astíages. Mandane prepara-se para
Astíages: Mas por que você quer conquistar o mundo?
partir. Despede-se de Astíages, Ciaxares, das irmãs e dos sobrinhos.
Ciro vai até Astíages, senta-se no colo de Mandane, abraça-a, beija-a Pega a mão de Ciro, distancia-se.
e responde:
Mandane fala com Ciro.
Ciro: As terras não pertencem aos homens, mas aos Deuses. Se as tri-
Mandane: Entre os medos não vigem as mesmas leis que na Pérsia.
bos vivem em luta umas com as outras, é melhor que uma só tribo
Astíages é o senhor absoluto da Média, enquanto na Pérsia seu pai
domine as outras e instaure um governo justo.
governa segundo a lei e não segundo sua própria vontade. Você deve
Mandane: Para fazer isso é preciso que seja uma tribo rica e forte. aprender a ser Rei, e não tirano.

Ciro: Quando eu crescer, unirei a Pérsia e a Média e construirei um Ciro responde a Mandane.
grande império. Ciro: De meu avô, quero aprender as virtudes, não os defeitos. Seguirei
Astíages aproxima-se de Ciro, pega-o nos braços, beija-o e fala. as leis que ensinam a honestidade e a generosidade.

Astíages: Mandane, quero que Ciro viva comigo para completar sua Ciro beija Mandane.
educação...
CAMPO DA MÉDIA
Mandane: Mas ele deve ser educado segundo as leis da Pérsia.
Externo dia
Ciro: Já conheço todas as leis da Pérsia e sou o melhor dos garotos da (p.g.) Ciro, jovem de 18 anos, corre a cavalo pelo campo. Encontra um
minha idade. Aqui aprenderei as artes da caça e da guerra, e o tio Cia- outro grupo de jovens a cavalo e todos correm numa outra direção.
xares será o meu mestre. Mas ficarei só com uma condição. Gritam.

38 39
Voz: Ciro cresceu na Média, vivendo entre o povo e fazendo amizade PALÁCIO DE ASTÍAGES
com os jovens que formavam seu primeiro séquito. Aprendeu a caval- Externo dia
gar, a atirar com o arco, a usar a lança e a cimitarra, a saber o tempo (p.g.) As tropas entram em formação, os cavaleiros correm para pôr
segundo a posição do sol e a orientar-se pelas estrelas de noite. as couraças, os arqueiros se agrupam seguindo as ordens gritadas por
(p.m.) Ciro reza com os olhos voltados para o céu... Ciaxares e Astíages.

Oração... Rumores, gritos

(p.p.) Sol. (p.g. trav.) Ciro, que veste uma armadura que se destaca dentre as ou-
tras, monta cavalo, levanta as armas e parte à frente de seu grupo. As-
(p.p.) Olhos de Ciro sob a luz do sol. tíages e Ciaxares seguem-no.

Externo noite Música.


(p.g.) O céu estrelado, luz noturna. (p.g.) O grupo comandado por Ciro espera os grupos comandados
por Ciaxares e Astíages. Os três aproximam-se e olham com atenção.
PALÁCIO DE ASTÍAGES
Interno noite Externo

(p.m.) Astíages, mais velho, deitado lado a lado com Ciro, que o trata (p.g.) À distância, as tropas assírias movem-se ao longe.
com ternura. (p.m.) Ciro pergunta a Astíages:

Astíages: Sonhei que sua mãe, Mandane, urinava até inundar toda a Ciro: Aqueles são os nossos inimigos?
Ásia. Depois, um véu azul ornado de estrelas me recobria, e o filho de
Astíages: Sim. É o filho do rei da Assíria, que invadiu nossas terras para
Mandane tentava me matar. Então, eu mandava o meu servo Hárpago
caçar.
matar o filho de Mandane, mas ele, tendo tido medo de Ahura Mazda,
abandonava o menino no deserto, onde ele era criado por um Oráculo. Ciro: E o que você espera para atacá-lo?

Quando o menino ficou grande, reconheci nele o filho de Mandane, Astíages: Eles são mais numerosos, as nossas forças não chegaram
ou seja, você. Para me vingar de Hárpago, matei o filho dele e, então, o ainda.
convidei para um banquete. Depois que Hárpago tinha comido, revelei
Ciro: Você fica aqui com Ciaxares esperando os reforços. Assim, os
a ele que tinha comido a carne do seu filho e lhe mostrei a cabeça e as
assírios não se mexerão antes do seu ataque. Eu e meus homens ataca-
mãos cortadas. No fim do sonho, você me derrotou numa batalha e se
remos de surpresa.
tornou Rei da Média.
Ciro não espera a resposta de Astíages e parte.

40 41
CAMPO canções. As notícias das proezas de Ciro chegam também a seu pai, que
Externo dia decide chamá-lo de volta para completar sua educação na Pérsia.
(p.g.) Ciro, a galope, lança-se com suas tropas na direção dos assírios. O texto termina com a imagem dos assírios perseguidos por Ciro, As-
tíages e Ciaxares.
(p.g. trav.) Uma parte das tropas assírias move-se para Ciro.
Música.
Sons naturais.
(p.g. trav.) Ciro, brandindo a cimitarra, avança gritando e ataca os TENDA
assírios. Interno noite
Sons naturais. Ciro troca de roupa para ir dormir. Um velho fala com ele.
Ciro continua a avançar com os seus, investe contra os primeiros assí- Velho: Depois da morte de Astíages, seu filho Ciaxares o sucedeu. O
rios e mata-os; os outros se espantam e começam a se afastar.
Rei da Assíria, que tinha conquistado a Síria e a Iramnia, ameaçava
Sons naturais. submeter a Báctria, o Irã, a Média e consolidar o seu domínio sobre
Música. todos os países vizinhos. Com o objetivo de formar uma união contra
a Média e a Pérsia, o Rei da Assíria mandou uma mensagem ao Rei da
CAMPO Lídia, da Capadócia, da Frígia, da Índia, da Cária e da Cilícia, na qual
Externo dia denunciava um plano, falso, de invasão desses países por parte de Cam-
(p.g.) Astíages e Ciaxares avançam no comando das tropas e atacam o bises e Ciaxares. Diante da ameaça dos assírios, que se avizinhavam dos
resto das tropas assírias. confins da Média, Ciaxares pediu ajuda militar a Cambises.

Música.
PRAÇA
(p.g.) Ciro comanda a perseguição dos assírios. Externo noite
Música. (p.g.) Ciro, junto com alguns jovens, monta a guarda, cumprindo seu
dever como todos os outros.
(p.g.) Ciro, Astíages e Ciaxares perseguem as tropas assírias até a
fronteira.
PALÁCIO
Voz: Depois dessa vitória, os povos da Média e da Pérsia começam a Interno dia
falar de Ciro como um herói e seu nome corria nos discursos e nas
(p.p.) Cambises recebe a mensagem enviada por Ciaxares.

42 43
Cambises: O Conselho dos anciãos elegeu Ciro comandante do exér- (p.p.) Uma águia voa no céu.
cito e conferiu-lhe a faculdade de escolher duzentos cavaleiros nobres. (p.p.) Um sacerdote celebra o sacrifício.

PALÁCIO (p.g.) Os animais mortos. Os sacerdotes, Ciro, Cambises.

(p.g. trav.) O conselho dos anciãos, na presença de Cambises, elege Cantos.


Ciro. (p.m.) Os soldados rezam.

PRAÇA Orações.

Externo dia (p.p.) Ciro olha o céu e reza.

(p.p.) Ciro fala a seus Pares. (p.g.) Todo o exército reza.

Ciro: Cada um de vocês, escolha quatro companheiros de armas, assim Cantos, orações.
organizamos uma corporação de mil oficiais. Cada um desses mil ofi- (p.p.) O sol.
ciais, escolha dez cavaleiros, dez lanceiros e dez arqueiros, de modo que
Orações.
o exército estará completo com dez mil cavaleiros, dez mil lanceiros e
dez mil arqueiros, comandados por mil oficiais. (p.p.) O sangue dos animais pela terra e sobre as pedras. As vísceras
à mostra.
(p.m.) Pares.
(p.m.) Os sacerdotes põem-se ao redor de Ciro e falam.
(p.m.) Cavaleiros.
Sacerdote: Os Deuses anunciam a vitória.
(p.m.) Lanceiros.
Ciro: Mesmo que eu tenha a proteção dos Deuses, estarei preparado
(p.m.) Arqueiros.
para vencer um exército mais poderoso que o meu?
(p.p.) Ciro para de falar.
Cambises: Cuide da saúde dos seus soldados como da sua e invente
CAMPO novas táticas capazes de dividir e assustar o inimigo. Ataque só quando
Externo dia você estiver certo de vencer e retire-se quando o inimigo dispuser de

(p.g.) Exército de Ciro: fazem-se os sacrifícios aos Deuses antes de par-


forças superiores. A inteligência, a organização, a disciplina e a cora-
tirem para a Média. gem são as leis principais da guerra.

Cantos, orações. (p.p.) Cambises beija Ciro e distancia-se junto com os sacerdotes.

(p.p.) Ciro olha o céu.

44 45
(p.m.) Ciaxares fala a Ciro. Ciaxares: Mandarei de imediato fabricar os escudos e buscar outros

Ciaxares: ...Creso, Rei da Lídia, marcha à frente de 60 mil homens. Ar- cavalos.

tacama, Rei da Frígia, marcha à frente de 48 mil homens. Artabata, Ciro: Já que precisamos de dinheiro, acho que o melhor a fazer é man-
Rei da Capadócia, marcha à frente de 36 mil homens. Aragona, Rei da dar uma expedição ao Rei da Armênia para coletar os tributos que ele
Arábia, marcha à frente de 10 mil homens. Os gregos mandaram 6 mil deve a você desde que perdeu a guerra.
homens.
MONTANHA. ACAMPAMENTO DO REI DA ARMÊNIA
PALÁCIO DE ASTÍAGES NA MÉDIA Externo dia
Interno noite (p.g.) Um mensageiro a cavalo entra e dirige-se à tenda do Rei da Ar-
(p.m.) Ciaxares fala com Ciro, completando as informações. mênia, rodeado de mulheres e de filhos.

Ciaxares: ...quanto ao Rei da Síria e ao Rei de Babilônia, estes devem (p.m.) Um dos filhos do Rei, Tigranes, traduz a mensagem de Ciro,
trazida por Histaspes, um de seus comandantes mais importantes.
dispor de 20 mil soldados e 200 carros cada um.

Ciro: Devemos afrontar 60 mil cavaleiros, 200 mil soldados a pé. Quan- Tigranes: Pai, rei da Armênia, Ciro ordena que você se una a ele, com

tos homens você tem? os seus tesouros e os seus soldados.


(p.m.) O Rei fala com seus filhos.
Ciaxares: É possível reunir 80 mil, a pé e a cavalo.
Ciro e Ciaxares conversam.
Rei: Síbaris, devemos fugir e levar os nossos tesouros. Tigranes, reúna
os soldados e veja se estão dispostos a lutar.
Ciro: Quais são os modos de combate dos assírios?

Ciaxares: Mais ou menos os mesmos que os nossos, com o uso dos CAMPO DA ARMÊNIA. VILA PRIMITIVA

arcos e das flechas. Externo dia


(p.g.) Agricultores, cavalos, camelos. Parte da população está sentada,
Ciro: Com essas armas a batalha acontece à distância.
caminha olhando com medo o regimento do exército de Ciro, coman-
Ciaxares: E vence quem dispõe de mais homens. dado por Crisantas, que passa a fronteira da Armênia.
Ciro: Todos os soldados devem vestir a couraça, levar um escudo de (p.m. trav.) Crisantas avança com o seu regimento em passo lento, en-
vime no braço esquerdo e a lança ou a cimitarra na mão direita. Prote- tre os armênios assustados.
gidos pelos escudos, os nossos soldados podem avançar na direção dos Crisantas: Ciro perdoará quem nos acolher pacificamente e punirá
arqueiros, abrindo caminho pela cavalaria. quem tentar fugir ou opor resistência.

46 47
CAMPO DA ARMÊNIA Ciro: Povo da Armênia. Os medos e os persas são amigos, viemos com
Externo dia a intenção de paz para coletar um débito do Rei de vocês, que não hon-
(p.g. trav.) As pessoas agitam-se confusamente, sem saber se devem rou seu compromisso com o Rei dos medos.
fugir ou se render. Crisantas fala:
LADO DA MONTANHA
Crisantas: Mais um pouco e o Rei da Armênia se renderá a Ciro. Vie-
Externo dia
mos em missão de paz. Não fujam, preparemo-nos para acolher Ciro...
(p.m.) Tigranes, filho do Rei da Armênia, fala com o Rei, amedronta-
(p.g. trav.) Crisantas consegue convencer a multidão, que segue o re- do, junto com sua família.
gimento em silêncio.
Tigranes: Toda a população e o exército foram rendidos. Penso que
CAMPO DA ARMÊNIA seja melhor você se render também, junto com a sua família, antes que
Externo dia Ciro nos mate.

(p.g.) Ciro avança a cavalo à frente de um regimento e para quando Rei: Mas se ele nos pegar, nos matará.
cruza com o capitão Astálago, dirige-se a ele.
Tigranes: Não tenha medo, eu o conheço. É um homem justo.
Astálago: Crisantas já obteve a rendição de várias tribos e o Rei está
Rei: A minha vida está nas suas mãos, meu filho. Vá dizer a Ciro que eu
fugindo.
me entrego, com os tesouros, se ele me garantir que salva a minha vida.
Ciro: Vamos capturá-lo.
CAMPO DA ARMÊNIA
Ciro esporeia o cavalo e prossegue, seguido pelo regimento.
Externo dia
LADO DA MONTANHA (p.m.) Oficiais persas ao lado de Ciro, que fala.
Externo dia
Ciro: Rei dos armênios, como você se comportaria se um vizinho não
(p.g.) O Rei da Armênia, com a família e numerosos servos e soldados, lhe pagasse os débitos de guerra?
foge saindo por um lado da montanha, levando consigo os tesouros.
(p.p.) O Rei da Armênia responde amedrontado.
CAMPO, ATRÁS DA MONTANHA Rei armênio: Você quer que eu subscreva a minha sentença de morte?
Externo dia Cometi um crime ao não pagar o meu débito com Ciaxares, mas você
(p.g.) O povo e os soldados armênios que formam a retaguarda do Rei deve entender que humilhação é, para um Rei, ser derrotado e feito
rendem-se diante de Ciro, que passa no meio da multidão, no meio de escravo.
gritos de admiração.

48 49
(p.m. trav.) Ciro. Ciro: O dinheiro de que preciso serve para as despesas da guerra contra

Ciro: Eu tenho os poderes divinos de fazer com você o que eu quiser, os assírios e seus aliados. Se eu vencer a guerra, lhe restituirei a parte

mesmo contra os princípios da justiça, mas não quero condenar você e que você me empresta, porque o resto pertence a Ciaxares. Os seus sol-

por isso lhe pergunto de novo: o que você faria com um inimigo ven- dados e a sua amizade são mais importantes que o dinheiro. Você está

cido que não merecesse mais o seu respeito por ter sido desonrado e sempre em guerra com os caldeus?

covarde? Rei da Armênia: Os caldeus assaltam os nossos campos para pilhar


(p.p.) O Rei da Armênia chora. nossos víveres...

Rei: Mate-me, Ciro, mas perdoe a minha família. Mate-me... Ciro: Tigranes, escolha os seus melhores homens e venha comigo para
estipular um tratado de paz com a Caldeia.
(p.m. trav.) Tigranes abraça o pai que chora, volta-se para Ciro e fala.
Tigranes: Veja, pai, como Ciro, além de perdoar você, nos faz um outro
Tigranes: Ciro, responda a esta pergunta antes de julgar meu pai. É
bem, que é pôr um fim à guerra com a Caldeia?
mais difícil punir ou perdoar?

Ciro: A punição das pessoas más serve de exemplo para as boas, e as MONTANHA DA CALDEIA
boas não necessitam de perdão. Externo dia

Tigranes: Se você pensa que um homem mau, depois da punição, pode (p.g.) O Rei dos caldeus, à frente dos seus soldados armados, cavalga,
tornar-se um homem bom, perdoe meu pai, que já foi punido com uma correndo para defender-se da invasão de Ciro.

humilhação pior que a morte. Você vê como ele chora desesperado, por (p.p.) Tigranes, a cavalo, grita a seus soldados.
medo e pela humilhação? Não tendo mais o respeito da sua família e do Tigranes: Avante, armênios! Não tenham medo dos caldeus e gritem
seu povo? Você já é o nosso rei, Ciro. Perdoe o meu pai e terá um servo. que viemos em paz.
(p.p.) O Rei armênio se recupera e para de chorar.
(p.g.) Soldados armênios gritam que vieram em missão de paz, mas os
Rei armênio: Darei a você todos os meus tesouros como pagamento do caldeus, furiosos, atacam-nos.
débito, e, mais ainda, os da minha família, como recompensa do per- (p.g.) Os armênios começam a recuar, seguidos pelos caldeus.
dão que você me concede. Você poderá pegar os soldados que quiser
(p.p.) Tigranes continua a lutar, dando ordens aos armênios.
e viver na nossa terra como se fosse sua. Conte sempre com a gratidão
Tigranes: Não fujam! Coragem, resistam até a chegada de Ciro!
da minha família.
(p.g.) As tropas comandadas por Ciro sobem a montanha e atacam os
(p.m.) Ciro, Tigranes, oficiais. O Rei armênio aproxima-se como su-
caldeus.
plicante de Ciro.

50 51
(p.m.) O Rei dos caldeus, diante do poder do exército de Ciro, dá or- Ciro: E você, aceita este pacto?
dem de retirar-se para o alto da montanha.
Rei armênio: Aceito.
(p.g.) Tranquilizados pela ajuda de Ciro, os armênios seguem os cal-
Ciro volta-se para o Rei dos caldeus.
deus pela montanha.
Ciro: E você aceita que os armênios lhe paguem um aluguel porque os
(p.p. trav.) Soldados caldeus são massacrados.
rebanhos deles pastam nas suas montanhas?
(p.g.) O Rei dos caldeus, com os restos de seu exército vencido, entra
nas fortificações, a população corre, gritando com medo. Rei caldeu: Aceito, mas se os armênios não nos pagarem, como fare-
mos para cobrar?
(p.m.) O Rei dos caldeus fala com um de seus oficiais.
Rei armênio: E se os caldeus nos enganarem?
Rei caldeu: Vá a Ciro e lhe proponha aceitar a nossa rendição, com
condições vantajosas para ele. Ciro: Resolveremos a questão assim: tanto os caldeus quanto os ar-
mênios, terão que me pagar uma parte dos aluguéis recebidos. Se um
ACAMPAMENTO DE CIRO não me pagar porque o outro está atrasado, eu venho cobrar o débito
Externo dia e punir quem não respeitou o pacto. Sacrifiquemos aos Deuses para
(p.g.) Diante da tenda, Ciro, seus oficiais, Tigranes, uma representação celebrar a união entre a Caldeia, a Armênia, a Média e a Pérsia.
de armênios e uma de caldeus, encabeçada pelos respectivos Reis.
CAMPO DA MÉDIA
Ciro: Rei dos caldeus, você está seguro de que, fazendo a paz com os
Externo dia
armênios, viverá sinceramente em amizade, ou está propondo a paz
para enganá-los e traí-los em seguida? (p.g.) O exército de Ciro treina.

Rei dos caldeus: Quero que você explique de que modo a paz pode ser Música.
vantajosa. Voz: Depois de ter reforçado o seu exército com os soldados armênios
Ciro: Os caldeus são pobres porque a terra aqui é árida. Por isso são e caldeus, Ciro retornou à Média, onde começou a se preparar para a
obrigados a caçar e roubar nas terras vizinhas. Se você aceitar pagar o grande batalha contra os assírios.
aluguel, os caldeus poderão cultivar as terras da Armênia.
ACAMPAMENTO
Rei dos caldeus: Aceito. Externo dia
Ciro pergunta ao Rei dos armênios: (p.m. trav.) Os soldados revistam as armas, ajustam os escudos, ocu-
pam-se dos cavalos e dos víveres.

52 53
Voz: Ciro exigia dos soldados a mais rigorosa obediência aos respecti- Cantos, rumores naturais.
vos comandantes e prometia recompensar os mais capacitados no mo- Ciro: Creio que devemos atacar imediatamente, antes que os assírios
mento da divisão do butim da vitória sobre os assírios. consolidem a aliança com a Índia. Os embaixadores vieram para avaliar
o poder dos nossos exércitos.
TENDA DE CIAXARES
Interno noite Ciaxares: Não podemos provocar um exército mais forte que o nosso.

(p.m.) Estão presentes os embaixadores da Índia, Ciro, Ciaxares, Cri- Ciro: Os armênios e os caldeus estão dispostos a atacar os assírios antes
santas, Tigranes, Astálago, Histaspes. dos outros, pensando que temos medo deles. Se eles invadem os nossos
Embaixador indiano: O Rei da Índia, embora tenha recebido uma países, ficará difícil colocá-los para fora. Se você permitir que os medos
mensagem do Rei da Síria, na qual ele denunciava um plano dos medos me sigam, marcho hoje mesmo, pela manhã.
e persas visando à conquista das nações vizinhas, manda perguntar se (p.m.) Ciaxares se dirige a Ciro.
isso corresponde à verdade ou se é mentira.
Ciaxares: Não posso ordenar aos medos que entrem em guerra antes
Ciaxares: É mentira. É o Rei da Síria que, ao contrário, quer dominar que tenha chegado o momento justo. Mas quem quiser pode ir com
a Ásia. você.

Ciro: Os assírios nos caluniam porque somos fortes e podemos nos Ciro: Recompensarei com terras e tesouros este favor que você me faz.
defender em caso de agressão. Diga ao Rei da Índia que nos mande o (p.m. trav.) Ciro percorre a cavalo o acampamento, seguido de homens
dinheiro para a guerra contra os assírios, porque, se eles nos derrota- que levam tochas, de modo que todos possam vê-lo, e fala.
rem, invadirão a Índia.
Ciro: Comandantes e soldados: não podemos recuar diante das pro-
Volta-se a Histaspes. messas de fortuna e prosperidade que os Deuses nos fazem. Estou
Histaspes entrega os presentes para o Rei da Índia. disposto a partir hoje mesmo contra os assírios, junto com os persas,
Histaspes entrega os presentes aos embaixadores. armênios, hircanos e caldeus. O Rei Ciaxares me deu permissão de le-
var comigo os medos, se estes estiverem de acordo. O que é melhor:
TENDA DE CIAXARES arriscar a vida para derrotar o inimigo e ser digno da glória, ou esperar
Interno noite o ataque, a derrota e a escravidão?
(p.m.) Dentro da tenda, Ciro e Ciaxares continuam a conversa, depois (p.p.) Um soldado medo fala.
de os embaixadores da Índia terem se retirado.
Soldado: Se o nosso Rei consente e Ciro nos garante a vitória, devemos
segui-lo.

54 55
ACAMPAMENTO DOS MEDOS Ciro: Ahura Mazda, nosso aliado comandante... repitam estas palavras:
Externo noite Ahura Mazda, nosso aliado e comandante.
(p.g.) Os medos aplaudem Ciro, gritam, agitam as tochas. Os pares repetem as palavras de Ciro.

Ciro: Os últimos sacrifícios anunciaram que a vitória nos é propícia. Pares: Ahura Mazda, nosso aliado e comandante.
O exército deverá encontrar na disciplina e na coragem a força que o (p.g. trav.) A cavalaria acelera o passo, os soldados cantam.
tornará superior ao inimigo. Tenham confiança no seu rei e nos Deuses
Cavaleiros: Ahura Mazda, nosso aliado e comandante.
que o tornam invencível.
(p.m. trav.) Os arqueiros aceleram o passo, cantando.
(p.m. trav.) Ciro dá ordens aos soldados, que começam a desmontar
as tendas. Arqueiros: Ahura Mazda, nosso aliado e comandante...

Sons naturais. (p.p. trav.) A infantaria ergue os escudos, marcha e canta.

(p.g. trav.) Os soldados montam a cavalo e seguem Ciro. Infantaria: Ahura Mazda, nosso aliado e comandante...

Sons naturais. (p.m. trav.) Ciro, mais exaltado, avança, perguntando:

(p.m.) Ciaxares, à porta de sua tenda, observa os medos que seguem Ciro: Quem será digno da glória da vitória? Quem matará o primeiro
Ciro. inimigo? Quem preferirá morrer a recuar? Quem ama o seu Rei mais
do que a própria vida? Quem dará a Deus a sua vida pela vida do seu
Manhã
Rei? Quem seguirá o Rei até a vitória?
(p.g. trav.) O exército de Ciro avança nesta formação: no centro, Ciro
e o Estado Maior. Dos lados direito e esquerdo, as tropas a cavalo. (p.g. trav.) O exército, exaltado pelas palavras e pelos cantos, acelera
Adiante e atrás, os arqueiros. Em volta desse grupo, a infantaria pe- o passo.
sada, armada com lanças e cimitarras e protegida por escudos que os Cantos, sons.
soldados levam no braço esquerdo. O exército canta, seguindo as pa-
(p.g. trav.) O exército assírio está localizado no campo. Os arqueiros
lavras de Ciro.
lançam flechas contra o exército de Ciro.
Cantos.
(p.m. trav.) A infantaria de Ciro protege-se com os escudos e avança
Rumores naturais. sob a chuva de flechas.

(p.m. trav.) Ciro, à frente do Estado Maior, dá ordens com voz clara e Cantos, sons, gritos.
forte.
(p.m. trav.) Os arqueiros da vanguarda de Ciro lançam as flechas com
grande precisão.

56 57
(p.m. trav.) Muitos assírios e seus aliados, localizados nas trincheiras, Vozes: Recuar. Recuar por ordem de Ciro.
morrem atingidos pelas flechas, porque não têm escudos.
Externo noite
(p.p. trav.) A cavalaria assíria ataca desordenadamente, surpresa com
a tática de Ciro. (p.g.) Os assírios e seus aliados retiram-se diante do poder do exército
de Ciro. As mulheres e as crianças choram, os homens correm levando
Sons. suas coisas.
(p.g.) Os infantes e os arqueiros abrem-se e, da passagem assim for-
Trovões, chuva, gritos; relinchos e gritos de outros animais.
mada, surge a cavalaria comandada por Ciro. Os arqueiros continuam
a atirar flechas e os infantes avançam, para afrontar a pé a cavalaria (p.p. trav.) O Rei assírio foge com sua família, acompanhado dos
inimiga. cavaleiros.

Sons. ACAMPAMENTO ASSSÍRIO


(p.g. trav.) As tropas encontram-se e Ciro leva vantagem. Os assírios e (p.g. trav.) O povo continua a fuga sob a tempestade. Animais que se
seus aliados são atacados pela infantaria, enquanto a cavalaria obriga rebelam, feridos que pedem ajuda. Confusão geral.
o grosso das tropas inimigas a recuar.
Tempestade.
(p.m. trav.) Ciro lança-se contra o comando da cavalaria adversária e
mata dois inimigos com golpes de cimitarra. (p.m. trav.) As tropas de Ciro irrompem no acampamento, capturam
homens e mulheres, saqueiam, incendeiam e matam.
(p.p.) A cavalaria síria bate em retirada, perseguida por Ciro.
Sons naturais.
(p.m. trav.) Os arqueiros assírios e seus aliados continuam a lançar
flechas. (p.p.) Saque.

Cantos, gritos, sons. (p.p.) Saque.

(p.g.) Diversos soldados de Ciro morrem atingidos pelas flechas, por- (p.p.) Saque.
que se aproximaram muito das trincheiras inimigas. (p.p.) Saque.
(p.p.) Ciro, sobre seu cavalo, dá ordens a Crisantas. (p.p.) Saque.
Ciro: Crisantas, recue, recue e fique fora do alcance das flechas.
ACAMPAMENTO ASSÍRIO
Crisantas: Recuar, ordem de Ciro! Recuar, ordem de Ciro! Externo dia
(p.m.) O exército de Ciro recua, retomando a posição original. Os in- (p.g.) O céu nublado, muitos mortos, tendas queimadas. O exército de
fantes reconstroem o muro de escudos.

58 59
Ciro acampado. Os soldados, bêbados, rondam em volta das mulheres, TENDA
dos fogos e dos animais. Interno dia
(p.m. trav.) Os soldados de Ciro abrem os baús e observam os maravi- (p.g.) A Dama de Susa está sentada, recoberta com véus, em silêncio,
lhosos tapetes, joias, objetos variados e armas preciosas. circundada de outras quatro mulheres, que estão na mesma posição.
(p.l.) Os soldados dividem os tesouros entre si e dão uma parte a suas Dois escravos, assentados, tocam uma música lenta e triste. Ciro en-
mulheres. tra na tenda, guiado por Histaspes, que ordena às outras mulheres e
aos músicos que saiam. Todos saem e, com eles, também Histaspes. A
(p.m. trav.) Ciro aproxima-se dos escravos e fala. Dama de Susa, timidamente, levanta-se.
Ciro: Vocês estão livres e, se me obedecerem, serão tratados como Dama de Susa: Nenhum homem levantou o véu de meu rosto e muito
amigos. menos você, Ciro, o levantará, mesmo que agora eu seja sua escrava.
Volta-se para Crisantas. (p.p.) Ciro.
Ciro: Crisantas, controle com os outros a distribuição dos bens, de Ciro: Quero ver se você é a mulher mais bela da Ásia.
modo que os covardes não recebam mais que os corajosos. Façamos
(p.m.) A Dama de Susa tira o véu e mostra a belíssima face.
um sacrifício aos Deuses para agradecer por uma vitória tão grande e
fácil. Dama de Susa: Sim, sou a mulher mais bela da Ásia, mas amo meu
marido Abradatas, que fugiu.
Histaspes entra e fala com Ciro.
Ciro: Mande dizer a seu marido que, se ele quer retornar como amigo,
Histaspes: Ciro, venho lhe chamar para mostrar a Dama de Susa, a
farei dele o comandante de um grande regimento.
mulher mais bela da Ásia. Encontrei-a numa tenda e fechei os olhos
para não ficar apaixonado. Você é o homem que tem direito de vê-la. Dama de Susa: Espero ser sempre digna de seu amor.

Ciro: Se é tão bela como você diz, não posso vê-la. Se fico apaixonado, Ciro: O amor de seu marido vale mais que o meu.
não terei tempo de continuar a guerra. Dama de Susa: O amor de um Deus vale mais que o amor de um
Histaspes: O amor da Dama de Susa lhe dará novas forças, será a aven- homem.
tura de uma noite e não a paixão de toda a vida. Ciro beija a Dama de Susa.
Ciro: Vamos vê-la, assim satisfaço o seu desejo. Se realmente é a mu-
lher mais bela da Ásia, a darei ao Rei da Índia.

60 61
CAMPO DA ASSÍRIA minha noiva. Sua filha desposará um dos meus amigos.
Externo dia (p.m. trav.) Bailarinas dançam em homenagem a Ciro.
(p.g.) Ciro e um grupo de cavaleiros aproximam-se de uma construção
Música.
da qual sai uma delegação para recebê-lo.
(p.m.) Ciro e Góbrias comem, continuando a conversar.
(p.m.) Góbrias, o senhor do castelo, tendo ao lado a filha vestida de
negro e os seus soldados, aproxima-se de Ciro e fala: Góbrias: Depois que você derrotou o Rei da Assíria, Creso, Rei da Lí-
dia, assumiu o comando de todas as tropas aliadas.
Góbrias: É uma honra receber você nas minhas terras e lhe ofereço o
meu castelo, os meus tesouros, os meus soldados e a minha filha, se Ciro: Creso pensa que pode me derrotar?
você me permite segui-lo. Góbrias: Ele contratou mercenários gregos e aliou-se a Nabonedo, Rei
(p.p.) Ciro responde. de Babilônia, a cidade mais rica e mais bem defendida da Ásia.

Ciro: Se você me dá tudo o que possui e me jura lealdade, aceite-me Ciro: Se você quer me dar uma prova da sua lealdade, transmita esta
como amigo. mensagem a Nabonedo. Se Creso me atacar, eu ocuparei pacificamente
as terras e ele não atacará Babilônia.
CASTELO DE GÓBRIAS
Góbrias: E por que Nabonedo deveria deixar você ocupar os campos?
Interno noite
Ciro: As terras já estão ocupadas pelo meu poder divino e Creso seria
(p.g. trav.) Banquete em homenagem a Ciro. Músicos e bailarinos.
Ciro sentado ao lado de Góbrias e de sua filha. derrotado se me atacasse.

(p.m.) Góbrias, sua filha, Ciro. Góbrias: E se Nabonedo não acreditar no seu poder divino?

Góbrias pergunta a Ciro: Ciro: Que saia com o seu exército e se confronte numa batalha leal.
Se não tem coragem de defender com o seu corpo as muralhas da sua
Góbrias: Você aceita minha filha em casamento?
cidade, não é digno de ser rei.
Ciro: Desposarei só uma mulher, a filha de Ciaxares, Rei dos medos.
Góbrias: Babilônia não precisa de heróis. Nabonedo é um Rei influen-
Góbrias: Mas todas as mulheres do mundo querem ser suas esposas.
ciado pela democracia grega e a principal força política consiste no li-
Ciro: O amor de uma mulher representa todas as mulheres do mundo. beralismo democrático, que torna possível a corrupção do exército, da
Mas nem todas as mulheres belas representam o amor. Existem belezas administração e dos sacerdotes.
passageiras, como as da Dama de Susa, e outras eternas, como as da
Ciro: Creso e Nabonedo devem desaparecer, para que a Ásia não seja
dominada pela Grécia.

62 63
Góbrias: É a luta das trevas contra a luz.

Ciro: Luz de Zoroastro, ação de Ciro. Com o método justo, o homem


atinge os seus objetivos.
(p.m. trav.) Vários magos exibem-se diante de Ciro.

(p.g.) Estrelas.

Ciro fala.

Ciro: Sou um homem solitário, destinado a ser Deus de um povo que


seguirá as minhas ideias e não se recordará do meu corpo.

Externo dia
(p.g.) Diante do castelo de Góbrias, Ciro a cavalo, circundado de seus
pares, fala ao exército.

Ciro: Meus bravos soldados, que acreditaram nas minhas promessas


de vitória! Um grande destino nos espera até a conquista definitiva da
eternidade. Ahura Mazda, nosso aliado e comandante, contra os muros
de Babilônia.

Externo dia

(p.g.) O exército de Ciro, cantando, marcha na direção de Babilônia.

64
DESERTO
Externo dia
(p.g.) Mapa da Ásia Menor com os países citados.

Voz: A Assíria alia-se com a Arábia, a Capadócia e a Frígia, e ameaça


invadir a Média, a Pérsia e a Índia. Ciro, comandante do exército persa,
derrota os assírios e marcha sobre Babilônia.

Música.

Externo dia
(p.g.) Pode-se ver, ao longe, Babilônia.

ACAMPAMENTO DE CIRO DIANTE DE BABILÔNIA


Externo dia

SEGUNDA PARTE (p.g. trav.) Movimento de soldados. Góbrias, um dos principais cola-
boradores de Ciro, aproxima-se a cavalo.

Rumores.

TENDA DE CIRO
Interno dia
(p.m.) Ciro, assentado, conversa com alguns oficiais, quando Góbrias
entra e fala.

Góbrias: O Rei Nabonedo rejeita as suas propostas de paz e decidiu


resistir ao assédio.

Ciro: Se ele aceitasse sair da cidade para combater, sucumbiria ao pri-


meiro encontro.

Góbrias: O povo está sobre as muralhas e zomba das reivindicações do


nosso exército.

67
Ciro: Você acredita que Nabonedo possa resistir a um assédio de dois Góbrias: Se a Grécia perde Babilônia, Ciro dominará o Oriente. Creso
anos? e Nabonedo lutarão até o fim para defender os interesses gregos.

Góbrias: Nabonedo está subjugado pelos gregos, porque não pode pa- Ciro: Góbrias, você conhece Gadatas?
gar as suas dívidas. O povo não o respeita mais. Góbrias: Sim. Ele foi castrado pelo Rei da Assíria.
Tigranes entra e fala para Ciro.
Ciro: Os eunucos são seres frágeis, mas corajosos.
Tigranes: Chegaram os embaixadores da Índia...
Góbrias: Gadatas comanda oito mil homens e poderia se unir a nós.
Ciro: Continuamos depois, Góbrias. Vamos ouvir se o Rei da Índia
Ciro: Vá visitá-lo e oferecer-lhe a minha amizade. Como primeira
aceitou os nossos pedidos.
prova de obediência, deve atacar os dois castelos assírios que estão no
Entram os três embaixadores da Índia. O que está no centro traz uma norte. Se ele se revolta e ataca os assírios, outras tribos seguirão o seu
cimitarra de ouro com a empunhadura de pedras preciosas e a dá a exemplo. Antes de Babilônia, conquistaremos a Cadúsia, a Arábia, a
Ciro.
Capadócia, a Lídia e a grande Frígia.
Embaixador: O Rei da Índia lhe manda esta cimitarra, com a qual es-
pera que você faça justiça, e manda também o dinheiro que você lhe ACAMPAMENTO DE CIRO
pediu. Externo dia

Ciro levanta-se, pega a cimitarra e volta-se para os embaixadores. (p.g. trav.) Um pelotão escolta Ciaxares e aproxima-se da tenda de
Ciro.
Ciro: O Rei da Índia é sábio. Agora quero que vocês me façam um favor
especial. Visitem Babilônia como amigos e se informem sobre a possi- Música.

bilidade de resistência da cidade. (p.m.) Ciaxares desmonta do cavalo e fica diante da tenda de Ciro,
olhando tristemente.
Embaixador: É nosso dever buscar o caminho da paz, mas se isso não
é possível, devemos colaborar para fazer com que o vencedor seja nosso Música.
aliado. (p.m. trav.) Ciro sai da tenda, acompanhado de Artabano, Histaspes
e Tigranes, repara em Ciaxares e dirige-se para ele com os braços
Ciro: Partam e retornem o mais depressa possível.
abertos.
Os embaixadores partem, saudando todos os presentes.
Ciro: Tio, que prazer receber sua visita...
Crisantas: Não acredito que Babilônia possa resistir dois anos...
Ciaxares rejeita o abraço e o beijo e começa a chorar. Ciro, surpreso,
abraça Ciaxares.

68 69
Ciro: Por que você chora? Por que você chora? Um rei não deve chorar canos, aos armênios e aos caldeus? E por que você diz que lhe levei
diante de seus súditos. embora os homens se eles estão sob o meu comando e eu sou seu so-
Ciaxares continua a chorar. brinho e o futuro marido de sua filha? E de quem será a maior parte
dos tesouros e das terras senão sua, que é meu tio, o homem que mais
Ciaxares: Um rei que não tem súditos pode chorar em público...
respeito depois de meu pai Cambises? Você não acha que o seu ódio
Ciro faz um gesto para que os outros se retirem. deriva da inveja?
Ciro: Saiam todos. Ciaxares: Inveja?
Todos se vão. Ciro abraça Ciaxares.
Ciro: Inveja pelo fato de que os seus homens me seguiram... Mas eles
Ciro: Mas por que você chora? me seguiram porque sabem que sou fiel a você.

Ciaxares: Você não tem vergonha de me fazer essa pergunta? Vim para Ciaxares: Você tem razão. Não posso lhe chamar de traidor...
constatar como você é cínico. Ciro: A inveja é a mais violenta demonstração de amor de um homem.
Ciaxares afasta-se de Ciro e assenta-se, chorando, sobre alguns tapetes Deixe eu lhe beijar, depois lhe convido para um grande banquete.
diante da tenda.
Ciro beija Ciaxares. Reconciliam-se.
(p.p.) Ciro, surpreso e preocupado.
ASSÍRIA
Ciaxares (f.c.): ...há maior humilhação para um homem do que ser
Externo dia
abandonado por seus soldados? E a humilhação não é ainda maior
quando o responsável pela traição é seu sobrinho, que para ele é como (p.g. trav.) O exército de Ciro em marcha.
um filho? Cantos.
Ciro: Você mesmo me permitiu convocar todos os medos que quises- Música.
sem me seguir.
(p.m. trav.) Arqueiros lançam flechas.
(p.m.) Ciaxares. Ciro, a seu lado, escuta-o triste.
(p.m. trav.) Carga de cavaleiros.
Ciaxares: Quando lhe dei a permissão de buscar voluntários entre os (p.m. trav.) Infantes, protegidos com escudos e armados com cimitar-
medos, não pensei que você se aproveitaria dessa liberdade para levar ras, avançam combatendo.
embora todos os meus soldados.

Ciro: Por que os medos deveriam recusar se aliar aos persas, aos hir-

70 71
VILA servir-lhe para sobreviver.
Externo dia
Ciro: Saúde e felicidade também para você, Creso. Não me chame seu
(p.g.) Fogo. Batalha entre o exército de Ciro e as tropas inimigas. senhor, mas amigo, porque somos homens iguais. Se você quer me
Rumores. agradar, me ajude a obter a rendição de alguns grupos que ainda resis-
tem em vários pontos. Os meus soldados estão ansiosos para saquear a
Música.
cidade, mas não quero, porque um saque destruiria edifícios e monu-
(p.p.) Soldados de Ciro decapitam os inimigos. mentos.
(p.p.) Ciro corre a cavalo.
Creso: A resistência terminará em poucas horas. Não haverá necessi-
Voz (f.c.): Avançando para o ocidente, Ciro conquistou a Capadócia, a dade de saque, porque tudo que há em Sardes pertence a você, incluin-
Arábia e as colônias gregas no Mediterrâneo. Em 561 a.C., Ciro entra do as minhas mulheres e meus filhos.
em Sardes, capital da Lídia.
Ciro: Conserve os seus tesouros e a sua família. Você é livre para fazer
Externo dia tudo, menos a guerra.

(p.g. trav.) Creso: Ciro, agradeço porque, desse modo, ponho fim na minha car-
reira militar e começo a minha vida de sábio.
Rumores.
Ciro: Sei que você é amigo do Oráculo de Delfos e sei da sua devoção
Música.
ao Deus Apolo. Você pensa que os Deuses gregos são mais poderosos
As portas de Sardes abrem-se e Ciro entra à frente de um regimento,
que Ahura Mazda?
aclamado pelo povo.
Creso: Celebrei muitos sacrifícios a Apolo, mas perdi a guerra, tenho
Mortos, fumaça de incêndios vizinhos.
um filho mudo, enquanto um outro está morto.
PALÁCIO DE CRESO, REI DA LÍDIA Ciro: E por que você teve fé num Deus tão fraco?
Interno dia
Creso: Eu não conhecia outro mais forte.
(p.g. trav.) Creso é um homem de cerca de quarenta anos, simpático e
Ciro: Eu, Ciro, sou apenas um emissário de Ahura Mazda.
inteligente. Está cercado de sua família e de alguns oficiais e sacerdo-
tes. Ciro entra com Góbrias e Crisantas. Creso avança, falando. Creso: Você está construindo a grande ponte entre o Oriente e o
Creso: Saúde e felicidade a Ciro, meu conquistador e senhor. Esse é o Ocidente.
título que o destino lhe dá, enquanto a mim, vencido, não resta senão

72 73
Ciro: E com a ajuda de Ahura Mazda construirei uma escada da terra (p.m. trav.) A Dama de Susa chora sobre o corpo de Abradatas. Ciro
até o céu. aproxima-se, assenta-se e fala.

Creso: Espero estar vivo nesse dia. Ciro: Que triste que uma alma tão generosa tenha partido, nos privan-
do para sempre de sua companhia...
Ciro: Seria pior para você, porque só os mortos chegarão a Deus.
Ciro tenta pegar a mão de Abradatas, mas o braço se solta do corpo. A
Ciro beija Creso em sinal de amizade, Creso beija Ciro.
cabeça também se solta. Dama de Susa tenta recompor o corpo e fala.

PRAÇA PRINCIPAL DE SARDES, DIANTE DO PALÁCIO Dama de Susa: Ele terminou sendo sacrificado como um animal, por-
Externo dia que eu lhe dizia que ele devia ser o melhor soldado, para merecer o meu
(p.g. trav.) Ciro fala com Góbrias, Gadatas e Crisantas. amor e para dar glória a você. Você e eu somos culpados por sua morte.
Ciro repousa as mãos nos ombros da Dama de Susa, a acalma, olhan-
Ciro: Gadatas, quero lhe agradecer pelos serviços que me prestou. Por
do-a fixamente nos olhos.
isso lhe dou grande parte dos tesouros desta cidade. Góbrias, antes de
repartir os tesouros, coloque à parte aqueles que os sacerdotes indica- Ciro: Mas ele morreu feliz, porque eu venci. Você gozará dos privilé-
rão ser os mais preciosos para os Deuses. Quem viu Abradatas? Prome- gios e da proteção de uma rainha.
ti à Dama de Susa proteger e honrar seu marido, caso demonstrasse ser (p.m. trav.) Ciro distancia-se do grupo que está em volta do corpo de
um bom soldado. Abradatas e da Dama de Susa, e dirige-se ao seu cavalo, acompanhado
de Góbrias, Gadatas e Histaspes.
Crisantas: Abradatas morreu na última batalha.
Histaspes: Que desgraça é maior para um homem do que deixar viúva
Ciro: Tragam os presentes mais belos para a Dama de Susa, porque
a mulher mais bela do mundo?
Abradatas merece um funeral de herói.
Ciro: Você viu de perto a Dama de Susa e agora está louco de amor. Se
FORA DA CIDADE quer ser digno dela, torne-se um herói maior que Abradatas.
Externo dia
(p.g.) Ciro monta em seu cavalo e parte, deixando Histaspes desespe-
(p.g. trav.) Diante da tenda da Dama de Susa. Soldados e servos em rado. Ouvem-se os gritos da Dama de Susa.
volta do corpo de Abradatas.
Lamentos.
Lamentos.
(p.m. trav.) A Dama de Susa levanta-se com gestos agressivos e man-
Ciro aproxima-se sozinho com seu cavalo, desmonta e dirige-se para o da que todos se distanciem e deixem-na sozinha com o corpo de
grupo, onde vê Histaspes, que chora. Abradatas.

74 75
(p.g. trav.) Todos se distanciam, inclusive Histaspes, chorando e Ciro: Mande prender Histaspes antes que ele também se suicide...
cantando.
Crisantas: Isso já foi feito.
(p.p.) A Dama de Susa, uma escrava e dois eunucos ao lado do corpo
de Abradatas. A Dama de Susa pega um punhal e aponta-o para o PRAÇA DE SARDES
coração. Os escravos choram e imploram que não se mate. A Dama de Externo noite
Susa assume uma viva expressão e fala aos escravos.
(p.g. trav.) A praça iluminada com fogos. Soldados e povo protestam.
Dama de Susa: Tão logo eu esteja morta, envolvam nossos corpos com O exército agita-se.
o mesmo manto vermelho e nos sepultem.
(p.m.) Um soldado de Ciro.
A Dama de Susa inclina-se sobre o punhal e cai sobre o peito de Abra-
Soldado: Conquistamos uma cidade tão rica como Sardes, por que não
datas. Os escravos, desesperados, suicidam-se por seu turno.
saqueá-la e fazer de seus habitantes escravos? O acordo entre Ciro e
(p.g.) Histaspes, junto com os outros que assistem à cena de uma certa
Creso não satisfaz nossos interesses, porque não viemos como amigos,
distância, corre à frente dos outros, gritando e chorando.
mas como inimigos, e arriscamos nossas vidas para enriquecermos
Histaspes: Desgraça, desgraça. Morreu a beleza do mundo. Os Deuses com o saque.
nos são hostis. Morreremos sob os muros de Babilônia.
(p.p.) Um outro soldado.
Todos que seguem Histaspes repetem exatamente suas palavras e o
Soldado: Ciro não faz guerra para fazer escravos e inimigos, mas para
desespero se difunde.
levar a paz a todas as tribos da Ásia.
Vozes que repetem mais ou menos esses exatos maus presságios.
(p.m. trav.) Agitação na praça. Uma patrulha tenta dissolver a multi-
INTERIOR DO PALÁCIO DE CRESO. APOSENTOS DE CIRO dão: reações, confrontos, situação mais ou menos sob controle. Gó-
brias grita para acalmar os soldados.
Externo noite
(p.g. trav.) Ciro não consegue dormir por causa dos rumores da rua e
Góbrias: Vocês têm razão! Ciro e Creso discutiram para combinar a
pelo abatimento devido ao suicídio da Dama de Susa. melhor forma de dividir os tesouros e premiar os soldados mais corajo-
sos! Mas será punido com a morte quem duvidar da honestidade e da
Crisantas fala.
justiça de Ciro!
Música fúnebre.
SALA DO PALÁCIO DE CRESO
Rumores.
Interno noite
Crisantas: O exército todo está participando do funeral de Abradatas
(p.g. trav.) Reunião de Ciro com Crisantas, Góbrias, Gadatas, Tigra-
e da Dama de Susa...

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nes, Artabano, Creso e os comandantes dos caldeus, dos armênios, dos por muito mais tempo e jamais acreditariam nas nossas propostas de
capadócios, dos árabes, dos frígios, dos hircanos, dos cadúsios. paz e amizade.
Ciro: Senhores comandantes, a situação é grave e devemos reunir (p.m.) Creso.
nossos esforços para salvaguardar a unidade do exército até o fim da
Creso: A verdade é que o exército não crê que é possível conquistar
guerra.
Babilônia. Para os soldados, Sardes representa o maior presente que os
Crisantas: São os medos que encabeçam a agitação, e isso porque sa- Deuses poderiam lhes dar.
bem do conflito entre você e Ciaxares... (p.m.) Ciro responde:
Ciro: Não existem conflitos entre mim e Ciaxares. Se os medos usam Ciro: Os homens ainda são tão fracos que não estão em condição de
esse argumento contra mim, mande prender imediatamente os respon- reconhecer a força dos seus condutores, nem mesmo no momento em
sáveis. Quero saber a opinião de cada comandante. que ela se manifesta na sua máxima intensidade. Com a conquista de
(p.m.) O comandante cadúsio fala. Sardes, Babilônia ficou isolada de seus aliados. Isso apressará a sua
Com. cadúsio: Como acontece sempre entre os chefes dotados de sabe- derrocada econômica e política, e facilitará a ocupação militar de nos-
doria, seguimos o exemplo de Creso e nos aliamos com nosso vencedor. sa parte. Por que os comandantes não explicaram esse plano aos seus
soldados?
(p.m.) Ciro responde:
(p.p.) Artabano, que é um homem calmo, fala.
Ciro: Quero saber se os comandantes aqui presentes gozam do respeito
de seus homens ou dependem destes para tomar decisões. Artabano: Os comandantes não podem convencer os soldados do fato
de que devem morrer para que você impere sobre Babilônia. Os solda-
(p.m.) Comandante dos hircanos.
dos podem lhe seguir, como sempre fizeram, por amor e não por medo.
Com. hircano: Um comandante depende sempre dos seus soldados e a
(p.m. trav.) Ciro e o Estado Maior. Ciro responde a Artabano e dirige-
obediência depende da recompensa. A guerra é a única fonte de ganho
-se para a porta, seguido de todos os outros.
dos soldados e eles têm o direito de requisitar o saque...
Ciro: Você tem razão, Artabano. Falarei pessoalmente com os soldados
(p.m.) Ciro responde:
e procurarei convencê-los.
Ciro: É dever dos comandantes ensinar aos soldados que a guerra não
Ciro pede que seja deixado sozinho e retira-se.
é a única fonte de ganho e, se os comandantes não agem desse modo,
Ciro: Prefiro ir sozinho, assim demonstrarei a eles que não tenho medo.
estão se comportando como bandidos, não como soldados. Se os habi-
tantes de Babilônia viessem a saber que saqueamos Sardes, resistiriam Gadatas: Atenção, Ciro, que algum louco pode matar você.

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SARDES Ciro abraça um soldado agonizante, olha-o fixamente e fala:
Externo noite Ciro: Acredite em mim, você não pode morrer. Pense no fogo. Fogo.
(p.g. trav.) Nas ruas iluminadas com fogos e tochas, a população, ame- Vida. Vivos.
drontada, fecha-se em casa. Os soldados, bêbados, cantam e dançam,
Agonizante: Vida... Fogo... Ciro... Fogo... Vida...
fomentando a agitação e ameaçando saquear. As patrulhas tentam
manter a ordem, mas as discussões são violentas. Ciro olha-o fixamente e fala.

Sons. Ciro: Acredite em mim, você não pode morrer. Pense no fogo. Fogo.
Vida. Vivos.
Música.
Agonizante: Vida... Fogo... Ciro... Fogo... Vida...
Gritos.
Vários soldados observam Ciro e o moribundo.
Ciro caminha no meio de um grupo de soldados, ouvindo e observan-
do. Em seguida para, ouvindo os protestos. Soldado: Ciro ressuscita o morto...
Sons. Soldado: Ciro, Deus santo, ressuscita os mortos...
Ciro iluminado pelas tochas.
SARDES
Externo noite Ciro: São os inimigos dos Deuses que semeiam as desordens. Eu tenho

(p.p.) Os feridos gritam, pedindo socorro. Ciro aproxima-se dos feri- poderes sobre a vida e sobre a morte e derrotarei quem tentar mudar o
dos, vê que a situação é trágica por causa da falta de medicamentos. caminho do meu destino.

Um soldado ferido fala com Ciro. Um soldado do grupo fala:

Soldado: Ciro, dou graças a Deus pela felicidade de ver você antes de Soldado: Você dispõe da vida e da morte dos homens sob o seu coman-
morrer. do, mas quem, além de Deus, dispõe da sua vida e da sua morte?

Ciro vagueia entre os feridos, falando com aqueles que o circundam. Ciro: Você e todos os soldados, porque não há rei que não seja defen-
dido pelo seu exército. Por isso o nosso exército deve ser unido e forte.
Ciro: Por que não cuidar dos feridos e enterrar os mortos? Por que
transformar a vitória numa festa de animais? Um velho profeta fala:

Soldado: Mas que diferença existe entre um soldado e um animal? Pre- Profeta: Existiram outras Babilônias no passado e outras, mais ricas
cisamos matar para viver e por isso ninguém sofre com a desgraça dos que esta, existirão. Nabonedo é o maior inimigo dos Deuses. Em Ba-
outros. bilônia não se venera mais o Deus Marduk, mas os monstros do ódio

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criados por criminosos tornados loucos pelo falso brilho do ouro. Ó Os soldados e os outros presentes aplaudem Ciro e agitam as tochas.
grande Ciro, filho direto dos Deuses, soldados! Eu vivo há dez mil anos Saque.
e ainda não vi um momento de felicidade sobre a terra, mas sei que um
Orgia.
dia o homem libertará o paraíso que está fechado em seu espírito.
Ciro dorme.
Ciro aproxima-se do velho profeta e fala com ele e com os soldados.
A lua.
Ciro: Eis um homem que tem dez mil anos e ainda não conheceu, mas
Rumores.
nele crê, o paraíso. Você tem razão, ó imortal! Não lhe ofereço tesouros
ou escravos, porque você não precisa de nada. Soldados, não sejam hu- Música.
manos como eu, que sou Rei, rico e mortal, mas como ele, que é súdito,
DIANTE DE BABILÔNIA
pobre e imortal.
Externo dia
Soldado: Se nós somos imortais, Ciro também é.
O exército de Ciro acampado.
Profeta: A imortalidade de Ciro depende da imortalidade dos soldados.
(p.g.) Soldados estão construindo duas torres, carros e grandes esca-
Ciro: Por culpa dos comandantes, os soldados perdem a fé e têm medo das. Elefantes e camelos estão em formação de combate.
de combater as grandes guerras até o fim. Mas eu não posso admitir
Rumores.
que o meu exército se subverta depois de uma grande vitória, como foi
a conquista de Sardes. Música.

Soldado: Os rebeldes devem ser punidos para que volte a reinar a ACAMPAMENTO
ordem. Externo dia
Soldados: Queremos sangue. Queremos sangue. Queremos sangue. (p.m. trav.) Histaspes e Tigranes dão instruções a um grupo de ho-
mens e mulheres sobre como repartir os alimentos.
Ciro: Esta noite terminará com o domínio das forças irracionais.
Quando o sol nascer, a lei da disciplina e da obediência será restaurada Histaspes: Uma ração de pão e água três vezes por dia...
intransigentemente. Exaltem-se nas paixões, satisfaçam os desejos da Tigranes: O vinho aquece o sangue e debilita o corpo. Beber, só água...
carne, mas não confundam o sonho com a realidade. O paraíso não se
Histaspes: Não comer carne, nem fumar, comer ou beber alguma dro-
encontra nem em Sardes, nem em Babilônia, nem em nenhum lugar
ga. Só pão e água.
da terra. O paraíso é um mistério além da nossa própria imaginação.
Tigranes: Dormir só cinco horas e uma ração de pão e água três vezes
por dia.
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Música. junto com os adoradores de Marduk, se você estabelecer o momento
adequado.
Externo dia
Ciro: Prometo expulsar os mercadores gregos e oferecer melhores con-
No acampamento, continuam os trabalhos de construção das torres,
dições de comércio para os árabes e egípcios, restabelecer o culto de
das máquinas de guerra e o adestramento dos soldados.
Marduk, liberar e administrar os prisioneiros e os hebreus. Relate ao
(p.g. trav.) Uma patrulha comandada por Gadatas conduz um prisio-
povo que tenho novos projetos administrativos para o cultivo dos cam-
neiro vestido com roupas exóticas. A patrulha para na frente da tenda
de Ciro e Gadatas entra com o prisioneiro.
pos, para a caça e para as construções.

Música. Oráculo: Quando o homem é vítima da pior das doenças, o câncer, a


infinita multiplicação das células o devora e o torna louco. Então ele vê
TENDA DE CIRO o centro da terra se abrir entre chamas e liberar os nossos prisioneiros
Interno noite na caverna do inconsciente. Assim é Babilônia, Ciro, monstro de sete

(p.m. trav.) Gadatas entra conduzindo o prisioneiro, recebido por cabeças, prostituta do Oriente, mãe que lava com o sangue dos filhos as
Ciro, Creso e Góbrias. imagens dos falsos Deuses.

Gadatas: Este é o famoso oráculo de Ur, que defende a supremacia do (p.m. trav.) Luzes multicoloridas não permitem distinguir entre o dia e
a noite. Imagem do Deus Marduk fortemente iluminada.
Deus Marduk. Ele fugiu depois de romper com Nabonedo.
Cantos religiosos.
Ciro: Saúde, paz e eternidade, grande oráculo. Este é Creso, o rei da
Lídia. Quais são os planos de Nabonedo? (p.m. trav.) Ruas de Babilônia sob o efeito da luz. A cidade está em
festa. A população está mascarada.
Oráculo: Nabonedo nega a existência do Deus Marduk e se dedica a
(p.p. trav.) Pelas ruas de Babilônia, entre cantos e danças, intensamente
fazer escavações em busca de cidades perdidas no sarcófago dos sécu-
iluminados, homens e mulheres de várias raças.
los. Ele diz que crê só na matéria e não no espírito. Para ele existe só
uma lei, a do ouro. Ele adora somente o ouro e o símbolo da carne. Diz Rumores.
que você é um bárbaro que ainda crê no espírito e que nenhum exército (p.g. trav.) Tesouros sujos de sangue e cadáveres.
pode ultrapassar os muros de Babilônia.
(p.m. trav.) Sacerdotisas, intensamente iluminadas, dançam dentro de
Ciro: Você acredita que seja possível uma rebelião dos adoradores de um templo diante de várias imagens e símbolos cabalísticos.
Marduk contra Nabonedo? Música.
Oráculo: Os mercadores árabes e egípcios estão dispostos a se revoltar

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(p.p.) Nabonedo, intensamente iluminado, abre um sarcófago e tira as Góbrias: Mas é profundo o suficiente para que dois homens, um sobre
faixas de uma múmia, descobrindo a imagem de um rei e a inscrição os ombros do outro, permaneçam sobre a superfície da água. O rio é
Hammurábi. Fade-in, com variação de cores. Uma outra imagem e a uma defesa ainda mais segura que os muros.
inscrição Nabucodonosor, ainda uma outra e a inscrição Nabonedo e,
enfim, a inscrição Ciro. Ciro: Crisantas, mande escavar o mais rápido possível uma fossa larga
e profunda. Divida os regimentos para trabalharem dia e noite.
Rumores.

Cantos. PRAÇA DE BABILÔNIA. MERCADO

(p.g.) Intensamente iluminado, um homem, dentro de uma fossa, que


Externo dia
amansa dois leões. Uma corda cai na fossa, o homem sai. (p.g.) Os babilônios, assediados, dedicam-se a seus afazeres, mas mos-
tram preocupação. Vemos vendedores de tecidos, de cereais e de ani-
Rumores.
mais. Um homem fala.
(p.g. trav.) Intensamente iluminada, aparece uma mão de pedra que
escreve na parede do Palácio de Babilônia. Da parede saem chamas.
Homem: O príncipe hebreu Daniel foi posto na fossa dos leões e as
feras não o comeram porque ele as dominou com a força do olhar... foi
Música.
o olho de Daniel que decifrou a mensagem escrita pela mão de Deus
(p.p.) Intensamente iluminado, Nabonedo canta, acompanhado de um nas paredes do palácio de Baltazar: Babilônia será destruída por um
coro de assistentes. inimigo que chegará sob seus muros.
(p.p.) Uma estrela desenhada com sangue na palma de uma mão. (p.p.) Um outro homem fala.
A estrela transforma-se numa cruz.
Homem: É o dilúvio!
Variações sonoras. (p.g. trav.) Um grupo de mulheres jovens e belas é conduzido ao centro
A cruz transforma-se num horóscopo caleidoscópico, onde giram to- do mercado e posto à venda. O mercador anuncia.
dos os signos.
Mercador: As mais belas, jovens e únicas virgens de Babilônia são
Externo dia vendidas para matrimônio com homens ricos e dignos. Quem oferece
mais, quem oferece mais pelas virgens de Babilônia?
(p.g.) As águas do rio Eufrates.
(p.m. trav.) Numa outra parte do mercado, um grupo de doentes es-
(p.m.) Sobre as margens do rio Eufrates, Ciro fala com Crisantas e
tendidos no chão, ou sentados, alguns estão moribundos. Outros che-
Góbrias.
gam ajudados por terceiros.
Crisantas: O rio Eufrates entra na cidade sob os muros.

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Doente: O meu sangue está ficando branco. (p.g. trav.) Num dos jardins de Babilônia, um templo ao qual se diri-
gem diversas mulheres.
Homem: Se você vivesse com saúde até os sessenta anos, poderia ser
sacrificado ao Deus Marduk e depois ser comido por seus amigos. (p.g.) Dentro do templo, uma mulher sozinha olha o fogo que arde
sobre uma pira.
Doente: Que infelicidade morrer por causa de uma doença do sangue.
(p.m.) Um homem fala.
Homem: Beba um pouco deste vinho.
Homem: Eu sou estrangeiro, destinado a você. Sua herdeira foi Nitó-
PRAÇA cris. Ela era forte no deserto e, quando morreu, deixou escrito em sua
tumba que havia ouro lá dentro. Mas que ninguém a violasse por ambi-
(p.g. trav.) As mulheres mais belas são vendidas a preços mais altos e as
feias são vendidas por último, a preços mais baixos. ção. No futuro, um imperador abriu a tumba e encontrou o seu cadáver
com uma mensagem escrita com sangue: “Ó indigno que viola a paz
O mercador recebe as moedas e as entrega às mulheres.
dos mortos em busca de ouro!”.
(Enquanto a cena está se desenvolvendo, rumores naturais, vozes, dis-
cussões: mas a cena deve ser compreendida por meio dos gestos. Vozes Música.
gritam cifras em talentos de ouro e de prata).
BABILÔNIA
Mercador: Esta é a mais bela, quem oferece mais? Vinte talentos de Externo dia
ouro para começar...
(p.g. trav.) O carnaval pelas ruas. Gente com máscara. Danças e cantos.
Mercador: Esta é a mais feia, é a última, é a pior de todas... cinco talen-
(p.m.) O Rei Nabonedo circundado por dois sacerdotes que falam ao
tos de ouro... três. Deus Marduk. Levantam longos punhais de ouro.

PORTAS DE BABILÔNIA SOBRE O RIO EUFRATES Sacerdote: Temos o direito de sacrificar homens, mulheres, animais
terrestres, marítimos e voláteis ao Deus.
(p.g. trav.) Barcos, canoas, carga e descarga de mercadorias. Alguns
soldados prendem três ou quatro homens que tentam escapar. São Nabonedo: Que o sangue das vítimas ilumine o povo nas festas que se
identificados como espiões de Ciro. avizinham.
Soldados: Espião de Ciro... espião de Ciro... Sacerdote: Nem tudo que brilha é ouro, e quanto maior o poder, mais
Comandante: Ninguém pode mais entrar e sair da cidade até nova or- violenta é a queda na miséria definitiva da sua morte corporal.
dem do Rei. Qualquer tentativa de fuga será punida com a morte. Nabonedo: E a alma, se esconde em qual nada? Se procuro muito na
matéria, descubro o mineral da morte.

88 89
Sacerdote: Ó Nabonedo, que reina sobre o mesmo trono de Hammu- Ciro: E também a glória do Ocidente.
rábi e Nabucodonosor! Ó Nabonedo! Concentração para receber o va- Creso: Atenção, Ciro, os Deuses do Ocidente são os demônios do
ticínio dos Deuses. Oriente, assim como as coisas negativas existem no interior das coisas
Nabonedo: Digam aos Deuses que eu não creio em nada, senão na positivas.
matéria. Ciro: Você não crê no absoluto?

CÉU Creso: O absoluto é o ignoto, o inconsciente, o não, o nada, a morte.


Externo noite Enquanto vivemos, somos relativos, porque a vida passa com os tem-
pos, o passado é memória imprecisa e o futuro, desconhecido.
(p.g. trav.) Fogos de artifício explodem no ar, formando monstros.
O carnaval de Babilônia aumenta em intensidade. Música, danças, Ciro: A Lídia é a fronteira entre a Grécia e a Ásia. Você pertence a dois
alegria. mundos diferentes, você é a síntese, por isso é absoluto.

ACAMPAMENTO DE CIRO Creso: Fui absoluto até o dia em que preferi me sacrificar a Apolo mais
Externo noite do que ser vencido por você. Mas Apolo mandou uma chuva que apa-
gou o fogo que deveria me queimar. Desde aquele dia, sou somente a
(p.g.) Sobre as margens do Eufrates iluminadas com tochas, muitos
homens trabalham cavando. lenda do que fui. O passado é imutável, por isso é possível, por isso é
absoluto, mesmo se for desconhecido. O presente é relativo como as
(p.m.) Crisantas corre a cavalo até o local onde se encontram Ciro, Gó-
águas do Eufrates, que levam a sua vitória até o palácio de Nabonedo.
brias, Histaspes, Tigranes, Creso e outros membros do Estado Maior.

Ciro: À meia-noite, os soldados devem fechar os diques e desviar a Externo noite


água do rio nos fossos. Marcharão no leito do rio, seguidos de infantes (p.m.) Margens do rio iluminadas com tochas. Às ordens de Crisantas
e arqueiros. A cavalaria entrará na cidade depois que as portas forem e dos outros comandantes, os soldados rompem os diques de madeira
abertas. Matem Nabonedo o mais depressa possível. e as águas do rio correm nos fossos.

Creso: Esta noite se cumprirá a profecia de Daniel. Rumores.

Ciro: O que me interessa, Creso, não é Babilônia, mas a beleza que está (p.g. trav.) Leito do rio, com o nível de água diminuindo.

além do Mar Cáspio. (p.p. trav.) Os soldados entram no rio, a água lhes chega à cintura, e
caminham apagando as tochas.
Creso: Babilônia caiu. Começaram os tempos de Ciro e, com eles, a
glória do Oriente. Rumores.

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(p.g. trav.) Os soldados apagam as tochas e entram no rio. Nabonedo: Destruam essa imagem maldita, porque ela ensinou a Ciro
o caminho para entrar sob os muros. Desgraça! Desgraça, mas antes
Externo noite
que a glória seja humilhada, eu quero deixar sobre a terra a memória
(p.g. trav.) Um grupo de pessoas mascaradas que cantam e dançam. de um homem que destruiu um Deus.
Abaixo da muralha alguns guardas bêbados estão se divertindo. Os
soldados de Ciro entram e matam os guardas. Os soldados lançam por terra a estátua do Deus Ur, que se despedaça
emitindo chamas.
(p.m. trav.) Crisantas corre e grita à frente de um grupo de soldados.
(p.g. trav.) Góbrias e Crisantas, à frente de um grupo, galgam as esca-
Crisantas: Matem, não perdoem ninguém até o nascer do sol... das do palácio, matando os guardas. Aproximam-se do salão em que
(p.g.) Os soldados de Ciro, repetindo sempre as mesmas palavras, acontece o banquete e assassinam quem lhes atravessa o caminho.
saltam furiosamente sobre os homens com máscara que festejam o Rumores.
carnaval.
(p.g. trav.) Nabonedo, sua família e os nobres lançam-se contra Gó-
Massacre. brias, Crisantas e seus homens.
Rumores. Gritos.
Gritos. (p.m. trav.) Góbrias mata Nabonedo a golpes de espada.
(p.p. trav.) Das outras partes da margem surgem soldados, comanda- Música.
dos por Góbrias, que incendeiam as casas.
(p.g. trav.) Externo, alvorada, Babilônia. As ruas cheias de mortos, os
Música. soldados de Ciro saqueiam a cidade. Incêndios.
(p.p. trav.) Numa outra rua de Babilônia, soldados de Ciro massacram Rumores.
a gente mascarada, entre as casas que queimam.
(p.m. trav.) Um grupo de soldados abre as portas da cidade e Ciro
Rumores. entra à frente do seu exército.
Sons, música.
BABILÔNIA
PALÁCIO Externo dia

(p.g. trav.) Banquete na corte de Nabonedo. Entre as músicas e os can- (p.g. trav.) Os habitantes de Babilônia, de várias raças e nacionalida-
tos, ouvem-se os gritos dos feridos e dos soldados que avançam. Muita des, dirigem-se à praça para ver Ciro. Os mortos são removidos, os
gente corre amedrontada, outros riem. Nabonedo desembainha a es- incêndios apagados. Expectativa, como se estivessem diante de Deus.
pada e ordena aos soldados que revirem a estátua do Deus Ur.

92 93
Música. (p.m.) Ciro responde.

Externo dia Ciro: Trabalhar para o seu marido, para os seus filhos e para Deus.
Ensinar aos filhos que não se deve urinar, vomitar e evacuar em públi-
(p.m. trav.) Do outro lado da escadaria do palácio, apresentam-se al-
co; e comer só arroz, pão, água e treinar nos estudos para se tornarem
guns soldados que instalam um trono de ouro.
homens de ideias e de ação.
(p.m. trav.) Precedido de um anúncio de trombetas, tambores e cantos
religiosos executados pelos peritos em magia, aparece Ciro coroado, (p.g. trav.) As pessoas continuam a cercar Ciro. Muitos trazem presen-
vestido com um riquíssimo manto, coberto de colares e anéis. tes, outros conduzem prisioneiros que devem ser libertados; alguns
doentes pedem que sejam curados.
(p.g. trav.) Ciro abre os braços e o povo começa a galgar a escada. Os
primeiros beijam-lhe os pés. Um homem com um braço aleijado pede a Ciro:

(p.m. trav.) Escada do palácio. Em face do esplendor de Ciro, alguns Homem: Ó grande Rei, tenho este braço aleijado desde que nasci, e
homens morrem, outros sorriem de felicidade. Cantam, falam, apre- essa é a razão da minha maior tristeza. Cure-me, grande Rei!
sentam pedidos.
Ciro pega o braço do homem, faz-lhe uma massagem e endireita-o.
Cantos.
Ciro: O homem cai doente porque a sua mente permite que a morte
(p.m. trav.) Ciro assenta-se no trono. A guarda organiza um pouco a avance, conquistando os órgãos sem proteção. Beba água fervida, lave a
aproximação das pessoas a Ciro. Um homem de meia-idade, depois de fruta e os legumes antes de comer, lave também os pratos, os potes e os
haver beijado a mão de Ciro, pergunta-lhe:
copos, porque a água é o único líquido purificador.
Homem: Ó grande Rei divino, sol que ilumina o mundo, o que deve- Ciro levanta-se e canta, seguido pela multidão.
mos fazer para sermos felizes?
Ciro: Ahahamaê...
Ciro: Não se deve comer carne nem beber vinho. O homem que mata
um animal para o comer é um selvagem. Os animais devem ser sacri-
ficados aos Deuses e suas carnes queimadas. O vinho aquece o sangue,
excita os sentimentos, fermenta no estômago e ataca o fígado. O órgão
principal do homem é o cérebro. Cuidando do cérebro, o homem rece-
berá a luz divina, fonte geradora da vida eterna.
(p.p.) Uma mulher fala.

Mulher: Ó grande Rei, o que devo fazer para ser feliz?

94 95
(p.g. trav.) O matrimônio de Ciro com a filha de Ciaxares faz-se con-
forme os costumes persas.

Música.
O matrimônio é celebrado, o rito chega ao fim.

PALÁCIO DE BABILÔNIA
Interno noite
(p.g. trav.) Ciro está sozinho, come arroz, bebe água, dirige-se a uma
das janelas e olha o céu.

(p.g.) O céu estrelado, a lua.

(p.p.) Megabizo.

(p.p.) Artabazo.

(p.p.) Crisantas.
TERCEIRA PARTE
(p.p.) Farnuco.

(p.p.) Góbrias.

(p.p.) Tigranes.

Voz (f.c.): Ciro confiou a Megabizo o governo da Arábia, a Artabata o


da Capadócia, a Artacanas o da grande Frígia, a Crisantas o da Lídia e
da Jônia, a Farnuco o da Eólida, a Góbrias o da Assíria e de Babilônia,
a Tigranes o da Armênia. A pedido do povo da Cilícia, de Chipre e da
Paflagônia, deixou que eles nomeassem os próprios governadores.

RUÍNAS DE ALGUMAS ANTIGAS CIDADES ORIENTAIS

Idem.

Idem.

97
Idem. (p.g.) O céu.

Idem. Estrelas.

Idem. A lua.

Idem. Voz (f.c.): Todas essas províncias, chamadas satrapias, dependiam di-
Idem. retamente de Ciro, através dos vários governadores que lhe eram fiéis e
lhe remetiam os rendimentos produzidos pela agricultura, pela indús-
Detalhes de objetos antigos,
tria e pelo comércio. O império de Ciro estendia-se, a Oriente, até o
de esculturas,
Ponto Euxino e, a Ocidente, até Chipre. Ciro estabeleceu a sede de seu
pinturas, governo no centro desse território, e passava os sete meses de inverno
desenhos, em Babilônia e o verão em Ecbátana. Por isso se dizia que Ciro vivia

idem, no frescor de uma vida sempre renovada. Ciro recompensava todos os


presentes e favores que os amigos lhe faziam e o povo lhe chamava de
ruínas,
pai, por causa de seu senso de justiça.
idem.
Externo dia
Externo dia
(p.p.) Ciro, no meio da fumaça da carne dos animais queimados no
(p.g.) Ciro no deserto. sacrifício, fala ao céu com voz exaltada.

Externo noite Ciro: Ó Deus dos meus pais, ó sol e divindade, aceite estes sacrifícios
como reconhecimento por sua graça, a qual me permitiu realizar ações
(p.p.) Ciro nas montanhas.
tão grandes, e sobretudo pelos alertas de perigos e acontecimentos que
Externo dia recebi através das vísceras de homens e animais sacrificados, dos signos
(p.m.) Ciro no mar. do céu, do voo dos pássaros, das palavras e das ações. Agradeço muitís-
simo porque sempre reconheci a sua superioridade e não esqueço, no
Externo dia
cume da minha glória, que sou um simples mortal. Derrame felicidade
(p.g.) O mar. para a minha esposa, os meus filhos, os meus amigos, os meus solda-
dos, os meus súditos, a pátria, e a mim uma morte feliz como a vida
Externo noite
que tenho.
(p.g.) Ciro dorme na praia.

98 99
MONTANHAS Voz: Depois de ter conquistado Babilônia, Ciro tornou-se Deus e en-
Externo dia trou em guerra contra a tribo das amazonas da Rainha Tômiris.
(p.p.) Animais mortos. Música.
(p.p.) Fogo que queima a carne dos animais.
Externo dia
Externo dia (p.g.) Planície ao lado das margens do rio Araxes, que assinala os con-
(p.p.) Cambises, pai de Ciro. fins das terras dos masságetas, tribo governada pela Rainha Tômiris.

Música.
Externo dia
(p.p.) Mandane, mãe de Ciro. PALÁCIO DE TÔMIRIS
Externo dia
Externo dia
(p.g. trav.) Uma construção rudimentar na costa de uma montanha.
(p.p.) Ciaxares, tio de Ciro.
Ao redor veem-se bois, cabras, carneiros, cavalos e tendas, onde vivem
Externo dia os habitantes do território. Um homem atravessa o campo a cavalo,
dirigindo-se ao palácio.
(p.p.) A mulher de Ciro.
Rumores.
Externo dia
Música.
(p.p.) Cambises, primogênito e herdeiro de Ciro.
INTERIOR DO PALÁCIO DE TÔMIRIS
Externo dia
(p.g. trav.) A Rainha, uma mulher de grande beleza, de idade indefini-
(p.g.) A praça da Liberdade, na capital da Pérsia. da, circundada de outras mulheres, sacerdotes, generais e de seu filho
Espargápises, de 20 anos. Tômiris volta-se a seu Estado Maior.
Externo dia
(p.p.) Um oráculo velhíssimo medita. Tômiris: Ciro, senhor absoluto de toda a Ásia, enviou-me um mensa-
geiro com presentes e um pedido de casamento. Depois que meu mari-
PALÁCIO do morreu e assumi o governo dos masságetas, muitos são os reis que
Interno noite me desejam como esposa, mas eu recuso todas as propostas que não
(p.p.) Ciro no trono. são motivadas por amor, mas pela ambição de conquistar nossas terras
e fazer nosso povo escravo.

100 101
PALÁCIO DE BABILÔNIA tos por medo de uma mulher. Tômiris usa de artifícios femininos para
Interno dia suscitar em você paixão e medo.
(p.m.) Ciro, tendo ao lado Creso e Artabano, ouve a resposta trazida Ciro: Você a conhece? Talvez os Deuses me condenem a morrer por
por Espargápises, filho de Tômiris. sua mão ou a me perder em seus fascínios. Dessa perdição não tenho
Espargápises: Eis a resposta de minha mãe Tômiris, rainha dos mas- medo, porque, entre tantas mulheres que tenho e que tantos filhos me
ságetas: “Ciro, abandone os seus planos de conquista dos masságetas deram, nenhuma conseguiu interessar-me depois da primeira noite.
por meio do matrimônio e da guerra, pois os seus Deuses não podem Você tem razão, Creso, marchemos contra a Massagétida.
assegurar-te a vitória”.
MARGENS DO RIO ARAXES
(p.p.) Ciro responde a Espargápises.
Externo dia
Ciro: Retorne e diga a sua mãe que conquistarei os masságetas com as
(p.g. trav.) Os soldados atravessam o rio sobre pontes e barcas.
armas e a ela com o amor.
Rumores.
(p.m.) Espargápises ouve e responde.
(p.g. trav.) Na outra margem do rio, à frente de um regimento, Espar-
Espargápises: Atenção, Ciro, porque o ano tem 360 dias sem noites e, gápises e os seus soldados lançam-se com barcas e atacam os soldados
se você não respeita o ciclo do sol, poderá num futuro incerto ser des- de Ciro.
truído por ambições desenfreadas.
Rumores.
(p.p.) Artabano volta-se para Ciro, que demonstra uma certa inquietu-
(p.g. trav.) Os soldados de Ciro, sobre pontes e barcas, avançam atiran-
de com as palavras que acaba de ouvir.
do flechas: os masságetas recuam, mas muitos terminam capturados,
Artabano: Tômiris não teria enviado uma resposta tão agressiva se não dentre os quais Espargápises.
estivesse segura da vitória em caso de guerra. Gritos.
Ciro: Nenhum rei da Ásia ou da Grécia teve coragem de me desafiar
Externo dia
com tanta insolência. Diante desse fato inesperado, creio que seja me-
lhor discutir com os Pares se convém invadir a Massagétida. (p.m.) Diante do palácio, circundada pelo Estado Maior, Tômiris fala
ao sol.
Creso: Ciro, o Deus Apolo me fez seu escravo para que eu pudesse lhe
Tômiris: Ó sol, nosso único, eterno Deus, transmita a Ciro as minhas
aconselhar nos momentos decisivos. Seria vergonhoso e insuportável
últimas palavras antes da guerra que se anuncia. Ó Ciro, me restitua
que Ciro, filho de Cambises e de Mandane, renunciasse a seus propósi-
o filho vivo e se retire das minhas terras antes que o sol nasça uma

102 103
segunda vez. Ainda há tempo para a paz, mas se você insiste em querer Externo noite
vencer com o ódio que lhe nega o amor, juro que abrirei as veias do seu (p.m.) Saindo da tenda, onde estava prisioneiro junto com seus ho-
corpo e o seu sangue, assim como a urina de sua mãe, secará nas areias mens de confiança, Espargápises despede-se de Artabano.
do deserto.
Espargápises: O meu sangue alimentará as forças de minha mãe. Eis a

ACAMPAMENTO DE CIRO
verdade e nem mesmo os Deuses podem mudar o que estava determi-

Externo noite nado antes mesmo da história.


Espargápises, sem que Artabano possa evitar, suicida-se com a lança
(p.m.) Conversa com Artabano e Creso.
que Artabano lhe tinha dado. Artabano tenta salvá-lo.
Artabano: Até mesmo uma mãe velha e débil é capaz de derrotar um
Artabano: Você não pode morrer! Você não pode morrer!
inimigo mais forte se ele ameaça seu filho. Ouça os meus conselhos,
Espargápises: Não lute contra o destino, Artabano. Procure salvar sua
Ciro, que vêm de um amigo fiel e desinteressado. Ainda há tempo para
vida enquanto há tempo.
libertar Espargápises e se retirar.
Música.
Ciro: Você tem razão, Artabano. Libertemos Espargápises e chame
Histaspes. RIO
Artabano sai, Creso fala. Externo dia

Creso: É um erro libertar os inimigos. (p.g.)

Ciro: É pior sacrificar o filho de uma mulher poderosa. Histaspes, (p.p.) Tômiris diante do rio.
Histaspes! Música.
(p.m. trav.) Histaspes, sujo de sangue e de terra, entra correndo. (p.o.) O exército de Tômiris avança na planície.
Histaspes: O que você deseja, Ciro? Por que me chama com tanta (p.p.) Ciro recebe um arco e uma flecha flamejante e a lança no ar.
pressa?
Música.
Ciro: Sonhei que seu filho Dario tinha duas asas, uma representava a
(p.m.) Os arqueiros de Ciro lançam flechas.
Ásia, a outra a Grécia. Isso significa que seu filho, ainda que seja menor
Gritos, sons.
de idade, está destinado a ser o herdeiro do meu império, mesmo que
não seja meu filho. Prenda Dario e, depois desta guerra contra Tômiris, (p.m.) Os arqueiros de Tômiris lançam as flechas.
quero o interrogar sobre suas intenções.

104 105
Música e gritos. (p.p. trav.) Artabano e os outros transportam Ciro ferido, desfalecido,
sujo de sangue.
Montagem sempre mais violenta. Os arqueiros morrem, aproximan-
do-se uns dos outros, até iniciar o combate com as espadas, as lanças Gritos.
e os punhais.
Rumores.
Gritos.
Música.
Rumores.
TENDA DE CIRO
Música.
Interno noite
Os soldados de Ciro não conseguem derrotar os de Tômiris. A batalha
desenvolve-se. (p.p.)

Música. Ciro: Ahura Mazda determina que meu filho Cambises assuma o trono
e marche com os nossos exércitos invencíveis para conquistar o Egito e
Rumores.
a Grécia. Um rei não depende da sua espada nem da sua coroa, mas da
Gritos. fidelidade dos amigos e das traições do destino. Até agora, ninguém viu
Ciro, com duas flechas no peito, está circundado por vários soldados a minha alma. A alma faz viver o corpo mortal... Depois que o corpo
de Tômiris, que o ferem nos braços e nas pernas. Os seus homens morre, a alma libertada encontra os espaços infinitos onde vivem os
defendem-no. Deuses. O corpo morto dissolve-se no fluxo e a alma se reencarnará
Rumores. nos homens durante séculos até que a terra desapareça do universo.
Que o meu corpo não seja coberto de ouro, nem de prata ou de pedras
Música.
preciosas, mas imediatamente entregue à terra de onde veio. Que felici-
(p.m. trav.) Vários escudeiros circundam o corpo de Ciro e muitos ca- dade maior do que ser transformado em terra, mãe generosa de tudo o
valeiros defendem-no, levando-o embora agonizante.
que é belo? Eu sempre amei os homens e a natureza, e agora, fechando a
Rumores. minha carreira de homem, deixo para minha esposa, meus filhos, meus
Tômiris, no meio da batalha, observa o exército de Ciro retirar-se soldados e meus súditos e para toda a humanidade este último conse-
transportando o corpo do rei ferido. Tômiris corre com seu cavalo e lho: fazendo bem aos amigos, o homem terá aliados para combater os
grita. inimigos. Ahura Mazda, grande Deus sobre todos, criador do universo,
Tômiris: Eu estou viva e Ciro está morto. Eu mantive a minha promes- receba-me na sua paz infinita.
sa, matando quem se considerava imortal. (p.p.) Cambises, filho de Ciro.

106 107
(p.p.) Ciro morre. de Cunaxa e as tropas de mercenários gregos, entre os quais se encon-
(p.p.) Cambises. trava o historiador grego Xenofonte, foram constrangidas a uma difícil
retirada que abriu um novo caminho entre a Grécia e a Ásia. Em 334
(p.p.) Ciro.
a.C., o Império persa atravessava uma grave crise econômica e política
PRAÇA DA LIBERDADE, NA PÉRSIA devido aos arbítrios dos governadores militares, cuja ação consistia es-
Externo dia sencialmente no desfrute das riquezas naturais mediante o trabalho dos
escravos e na imposição de pesados tributos aos proprietários de terra
(p.g. trav.) Uma caravana acompanha o corpo de Ciro morto.
e aos comerciantes das cidades. O caráter do império fundado por Ciro
(p.p.) Mandane, chorando, beija o corpo de Ciro.
degenerara logo em domínio absoluto da divina monarquia persa, que
Música. não tinha outro objetivo senão o de acumular riquezas para financiar
(p.p.) Cambises, pai de Ciro, beija o corpo morto. o luxo de Dario III e da sua numerosa corte de militares e adminis-
tradores. A civilização grega estimulava nas colônias persas um desejo
(p.p. trav.) O povo ouve.
de independência que ia crescendo com a aproximação de Alexandre,
DESERTO portador de promessas de revolução econômica, política e cultural.

(p.e.) Um grande fogo no meio do deserto. A fumaça confunde-se com


as nuvens.

Voz: Aos Deuses mais poderosos, a mulher Tômiris sacrificou o mais


poderoso de todos os homens.
(p.p.) Efígie de Ciro e inscrições.

Externo noite
(p.p.) Ciro entre as estrelas.

Voz (f.c.): Depois da morte de Ciro, em 529 a.C., o filho Cambises con-
quistou o Egito, em 525 a.C. Dario I, em 451 a.C., consolidou o impé-
rio. Em 401 a.C., Ciro II contava com 10.000 mercenários gregos e ia
contra o irmão, o imperador Artaxerxes, com o objetivo de depô-lo e
de substituí-lo no trono imperial. Ciro II terminou vencido na batalha

108 109
ESBOÇOS DE
PAULA GAITÁN E
GLAUBER ROCHA
PARA O FILME

110 111
145
ALEXANDRE
SOL DO OCIDENTE

147
(p.g. trav.) Mapa da Europa. Ressalta-se a Grécia.

Voz: A primeira civilização ocidental começa na Grécia, 15.000 anos


antes de Cristo.

ILHAS GREGAS
Externo dia
(p.g.)

Voz: Segundo as mais antigas versões religiosas da história grega, o céu,


chamado Urano, desposa a Terra, chamada Gea.
(p.p.) Urano, envolto em relâmpagos.

Urano: Eu sou o cimento do cosmo e Gea é o ventre que gerou os Titãs


de 100 braços e 50 cabeças.

PRIMEIRA PARTE (p.p.) Um Titã, envolto em luzes, grita até que a escuridão não domine
o espaço.

Titã: Urano condenou os seus filhos monstruosos ao inferno.

Externo noite estrelada.


(p.g.)

Voz da noite: Eu sou Érebo, a Escuridão, a Noite que limpa da sua


mente a imagem dos Titãs.
(p.p.) Urano, circundado de estrelas.

Urano: Érebo libertará a luz do ventre da Terra.

CAVERNA
Interno
(p.g.) Uma mulher, Gea, cercada de Titãs, dança com um punhal na
mão. Urano lança um urro ao receber uma punhalada de Gea.

149
Música. CAVERNA
Interno
PRAIA
(p.g.) Gea fala aos Titãs, indicando um jovem forte e armado.
Externo noite, tempestade
Gea: Este é Crono, filho meu e de Urano, que reinará sobre a natureza e
(p.g.) Gea e os Titãs transportam o corpo mutilado de Urano e o jogam
no mar.
sobre os animais até morrer pela mão de um de seus filhos.
(p.g. trav.) Crono dirige-se a uma mulher que se parece muitíssimo
Trovões.
com ele e fala.
Música.
Crono: Desposarei Reia, minha irmã gêmea.
MAR, TEMPESTADE Gea: O homem que desposa sua irmã não se liberta da sua carne e ter-
Externo noite mina devorado pelas Fúrias.
(p.g. trav.) O corpo de Urano afunda. Reia: Crono devorou todos os meus filhos, menos um, Zeus, que um
Trovões. dia o obrigará a vomitar os animais selvagens que habitam no seu corpo.

Música. CAMPO
(p.g.) A água do mar tinge-se de sangue e forma redemoinhos sob o Externo dia
impulso do vento.
(p.g.) Iluminado pelo sol, um jovem medita.
Rumor do vento.
Música.
(p.g.) Os ciclones, as Fúrias, sopram sobre o mar.
Jovem: Eu me chamo Zeus, neto de Urano e Gea, filho de Crono e Reia.
Música. Sou a materialização humana de Deus. Sou marido de todas as mu-
(p.g.) Ondas violentas sobrepõem-se na praia. lheres e pai de todos os filhos. Entre estes repartirei as montanhas, as

A espuma expande-se na areia.


planícies, os rios, as florestas, os mares e as ilhas.

Externo manhã Externo dia


(p.g.) Afrodite dança cercada de sátiros que tocam flauta, de poetas
(p.g.) Uma mulher branca e belíssima surge da areia: Afrodite.
que cantam e tocam lira e de outros Deuses que dançam.
Rumores.
Zeus: Eros, arte, comunicação entre as energias divinas do universo

150 151
através de sons, gestos e formas criadas pelos homens. O homem é um Olímpia, no cume da exaltação.
animal ignorante e débil que se reproduzirá, evoluindo lentamente. O Olímpia: Bendito seja o meu ventre fecundado por Zeus.
homem combaterá, construirá cidades e nações até o dia em que a ex-
Coro: Ó união divina, ó união humana!
plosão divina iluminará o nada. O mais inteligente, forte e belo do-
minará sobre o mais irracional, débil e feio, e todos lutarão para ter o Olímpia: Um Deus entra no meu corpo e transforma-se em homem.
Amor que os faz atingir a felicidade. Coro: Ó Rainha Olímpia, esposa de Filipe, Rei da Macedônia!

CAMPO E MONTANHAS DA MACEDÔNIA (p.g.) Céu.

Externo dia Nuvens negras. Relâmpagos.

(p.g. trav.) Olímpia, esposa do Rei Filipe, carrega um braseiro com (p.p.) Zeus, circundado de nuvens coloridas, fala.
uma chama e canta seguida de um coro de mulheres.
Zeus: O caminho da verdade nasce com o sol, nas montanhas, e morre
Coro: Ó Grécia desunida (dividida), ó Grécia desgraçada. com o sol, no mar. Quem seguirá esse caminho, até reunir o início do
Olímpia: Ó terras da Macedônia, imunes à contaminação da razão que Ocidente ao fim do Oriente e no Fim encontrar o Princípio?
nega a força de Deus e afirma a debilidade do homem. (p.g.) Entre as nuvens desponta Ahura Mazda.

Coro: Ó Grécia desunida (dividida), ó Grécia desgraçada. Ahura Mazda: Eu, Ahura Mazda, Deus do Oriente, criado pelo homem
Olímpia, levantando a chama, continua sua invocação. Zoroastro, criei meu filho Ciro, que abriu os caminhos do Oriente.
(p.g.) Entre as nuvens coloridas, Zeus aproxima-se de Ahura Mazda e
Olímpia: Ó Zeus, criador supremo do universo e guia dos homens!
os dois se abraçam.
Coro: Ó Grécia dividida, ó Grécia desgraçada!
Integração mística.
Olímpia: Ó Zeus, traído por seus filhos que se destroem uns aos outros
Universo.
em guerras contínuas!
Zeus: Meu filho Alexandre abrirá os caminhos do Ocidente.
Coro: Ó Grécia dividida, ó Grécia desgraçada!
(p.g.) Olímpia e o Coro, cercados de pombas.
(p.m. trav.) Olímpia e o coro chegam ao cume da montanha e olham
na direção do sol. Olímpia: Que sejam destruídos os templos dos falsos Deuses, que
os estados da Grécia se unam, que o sangue de Aquiles ressuscite os
Olímpia: A fragilidade do homem foi superada pela força de Deus.
Heróis!
Coro: Ó Grécia dividida, ó Grécia desgraçada!

152 153
Coro: Ó Deuses e Heróis, todos que se uniram nos séculos escuros para Aristóteles: A minha felicidade consiste em conviver com o Rei Filipe
criar a Grécia. da Macedônia, o maior político e militar que a Grécia já teve.
(p.p. trav.) Alexandre nascido sobre uma camada de flores coloridas.
APOSENTOS DE OLÍMPIA E DE ALEXANDRE
Coro (f.c.): Ó Grécia unida, ó Grécia feliz! Interno dia
(p.p. pan.) Alexandre, um jovem de treze anos, sentado no chão, con-
PALÁCIO DE FILIPE DA MACEDÔNIA
centrado, com os olhos fechados. Olímpia recebe Aristóteles.
Externo/Interno dia
Olímpia: Ele é uma natureza pura à espera de luz. Sei que você é um
(p.g.) Filipe, homem forte, com o olho esquerdo coberto por uma ven-
da, bebe vinho. grande sábio e por isso confio em você para educá-lo. Mas não o desvie
de suas ambições divinas.
Voz (f.c.): Alexandre, filho do Rei Filipe da Macedônia e da Rainha
Olímpia, nasce em 356 antes de Cristo, quando a Grécia, depois de Aristóteles: O meu objetivo é formá-lo para que possa assumir as suas
dois séculos de desenvolvimento econômico, político e cultural, estava funções de Rei.
fracionada por causa de várias guerras que haviam envolvido Atenas, Olímpia: Eu acredito na magia, mais que na ciência...
Esparta e Tebas.
Aristóteles: A magia aprendida com a mãe é mais forte que a ciência
(p.p.) Filipe termina de beber e fala. aprendida com um filósofo.
Filipe: É necessário que uma força superior una os fracos em torno de Olímpia afasta-se. Aristóteles abaixa-se, próximo de Alexandre, e diz:
um objetivo capaz de salvar a Grécia. Quando há cem anos os persas
Aristóteles: Bom dia, príncipe.
invadiram a Grécia, Atenas soube ser o fulcro da unidade e o guia que
nos permitiu vencer. Depois de ter expulsado os persas, a supremacia Externo dia
de Atenas transformou-se numa tirania, na qual Esparta pôs fim. Mas (p.g. trav.) Aristóteles e Alexandre passeiam pelos jardins, campos,
os espartanos não tinham a inteligência dos atenienses. Os tebanos des- montanhas e praias. A montagem faz com que a paisagem mude e o
truíram Esparta. Os tebanos e os coríntios são fracos como todos os diálogo entre mestre e discípulo desenvolve-se de forma didática, em
Estados que fizeram, sim, com que a Grécia regredisse até a barbárie lugares diversos, sem parar a ação visual em vista da complexidade do
diálogo.
da época homérica. Não nos resta nada, a não ser a técnica militar dos
espartanos e a cultura dos atenienses. A minha felicidade, Aristóteles, Aristóteles: O filósofo é um homem que ama conhecer todas as coisas
está em saber que Alexandre nasceu numa época em que você existe, o do céu e da terra. Mesmo se o homem não deseja aprender nada, deve
maior gênio do mundo. Ensine a meu filho tudo o que você conhece. pensar o porquê de não querer saber nada. Esse pensamento sobre o

154 155
desejo de não saber nada e de não fazer nada representa a própria ori- Alexandre: Minha mãe me disse que eu sou filho de Zeus.
gem da filosofia.
Aristóteles: Tudo o que não se explica com a demonstração prática é
Alexandre: Pensar é filosofar... religião para os místicos e metafísica para os filósofos.

Aristóteles: Mas o pensar sem indagar, sem analisar, sem ordem e sem Alexandre: Deus é religião e metafísica.
levar a uma conclusão é antifilosófico, porque não esclarece os proble-
Aristóteles: Você deve estudar astronomia, que tem por objeto os pla-
mas da natureza, do homem e de Deus.
netas e as estrelas. Você deve estudar geografia, que tem por objeto as
Alexandre: É necessário indagar, analisar e concluir. regiões da Terra que se conhecem. Você deve estudar botânica, que tem

Aristóteles: Até hoje sabemos pouco ou nada sobre a origem dos pla- por objeto as plantas. Você deve estudar zoologia, que tem por objeto

netas, das plantas e dos animais. A Terra é um planeta novo, nenhum os animais. Você deve estudar física, química, que têm por objeto as

homem conhece ainda as suas dimensões e as suas riquezas. oposições naturais e técnicas da matéria orgânica e inorgânica. Você
deve estudar medicina, que tem por objeto o corpo humano. Você deve
Alexandre: E por que devemos conhecer a origem das coisas?
estudar história, que tem por objeto as ações dos homens.
Aristóteles: Se eu não conheço a origem desta pedra, não sei por que
Alexandre: Quero libertar-me da ignorância.
tem esta dimensão e esta forma. Não conhecendo suas origens, faço
uma falsa análise da forma desta pedra, porque, não sabendo de onde Aristóteles: O raciocínio retórico termina nas conclusões. O raciocínio

vem, não sei em que coisa se transformará. O discurso em torno da que duvida das conclusões e faz da tese positiva uma tese negativa em

forma da coisa em si mesma – sem origens nem consequências – é a face daquilo que é conhecido, abrindo as portas do desconhecido, é o

característica fundamental da linguagem retórica. Quando estudei na que chamo de raciocínio dialético.

Academia de Platão, em Atenas, critiquei a retórica, demonstrando que Alexandre: Um raciocínio que nasce das contradições entre o negativo
cada fenômeno tem origem no pensamento e que o pensamento nasce e o positivo?
de uma força superior e não representável, chamada Deus.
Aristóteles: A arte é a forma literária, musical ou visual do raciocínio
Alexandre: O homem é a imagem de Deus? dialético.

Aristóteles: Na medida em que o homem é inteligente, forte, belo, con- Alexandre: O fim contém o princípio?
quistador invencível, sábio e imortal, ele encontra, no fim da vida, o
Aristóteles: Comecemos pelo estudo da história, porque você, sendo
princípio original, que é divino. Deus cria o universo e o homem. Mas
filho de Filipe – um homem que faz história –, está destinado a fazer
o homem deve pensar e trabalhar para transformar-se em Deus.
história. O poeta Homero, primeiro narrador da velha Grécia, conta

156 157
que a nossa história começa com a guerra de Troia, da qual tomaram poetas Arquelau, Alceu e Safo, ou filósofos como Tales, Anaximandro
parte Deuses, Heróis e homens... e Pitágoras, historiadores como Heródoto e Tucídides, e um cientista
como Hipócrates, que é o criador da medicina.
PALÁCIO
Alexandre: O mestre sabe mais que o discípulo, mas o discípulo, que
Interno noite
deve aprender a arte militar do almirante ateniense Temístocles e do
(p.g. trav.) Alexandre dorme, ouvindo as palavras de Aristóteles.
general tebano Epaminondas, tem tempo de se recordar só dos gênios.

PALÁCIO DE FILIPE Aristóteles: E quem, segundo você, dentre os nossos antepassados, é o


Interno dia maior gênio?

(p.g. trav.) Aristóteles junto com Alexandre e outros jovens da corte Alexandre: Píndaro, que descobriu o sentimento da natureza e do ho-
macedônia. mem através da arte da poesia, Eurípides, que descobriu a consciência
Aristóteles: Peçam ao Príncipe que discorra aos presentes sobre seus do homem através da arte da psicologia, e Demócrito, que descobriu a
conhecimentos de história. existência do átomo através da arte da ciência.

Alexandre: A história dos homens divide-se em história do Oriente Aristóteles: E Sócrates?


e história do Ocidente. A história do Oriente é a história do império Alexandre: Sócrates, aceitando passivamente a condenação do tribu-
persa, fundado por Ciro e consolidado por Dario I e por outros des- nal de Atenas que o obrigava a beber o veneno, provou somente que a
cendentes, até que, no século passado, o imperador Xerxes invadiu a nossa democracia é o suicídio dos gênios, já que permite que os tiranos
Grécia e foi derrotado. A história do Ocidente é a história cujas origens matem um filósofo. A história precisa de Heróis que sobrevivem, não
são contadas por Homero nos poemas épicos – a Ilíada e a Odisseia – de sábios que morrem.
e por Hesíodo, no poema científico Os Trabalhos e os Dias. As cida-
Aristóteles: Nisso você está errado, porque Sócrates é imortal.
des-estado principais da Grécia são Esparta e Atenas. No passado, sob
o regime democrático de Péricles, Atenas produziu gênios do teatro, Alexandre: Foi Platão que o criou, para esconder-se detrás dele.
como Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes, poetas, como Píndaro,
APOSENTOS DE ALEXANDRE
e filósofos, como Sócrates, Demócrito, Platão e o nosso mestre Aristó-
Interno noite
teles, síntese da cultura grega.
(p.g.) Olímpia dá banho em Alexandre e conversa com Alexandre e
Os companheiros de Alexandre aplaudem e Aristóteles fala.
Aristóteles.
Aristóteles: Você se esqueceu de citar muitos gregos ilustres, como os
Olímpia: Não perdeu a pureza original.

158 159
Alexandre: Não entendi a origem de Deus. CAMPO DA MACEDÔNIA
Externo
Aristóteles: A história se refere ao passado e o passado está morto.
(p.g. trav.) Filipe e seus generais e soldados tomam parte num torneio
Olímpia: A história dos homens fala da morte e a história dos Deuses
em que se domam cavalos selvagens.
fala da vida.
Música.
Alexandre: Os Deuses são invisíveis.
Rumores.
Aristóteles: Existem os homens-Deuses.
(p.m. trav.) Bucéfalo, um cavalo branco particularmente rebelde, que
Olímpia: Esses atravessam o tempo e o espaço e não fazem história um grupo de homens tenta domar em vão.
porque não obedecem à ordem dos números nem à lógica dos fatos.
(p.g. trav.) Filipe, sem uma perna e com o braço direito mutilado, ca-
Aristóteles: Eu me ocupo da história porque sou um homem. minha ao lado de Alexandre, que aparenta cerca de 19 anos.

Alexandre: Essa é a sua limitação. Filipe: Aquele é Bucéfalo, o cavalo mais selvagem da Macedônia. Se

Olímpia: Aristóteles sabe tudo e não percebe nada, porque transfor- não fosse cego de um olho, manco e mutilado, eu o domaria.

mou a religião em ciência. É um filho de Apolo. Alexandre: Eu, seu legítimo herdeiro, o domarei.

Alexandre: Eu sou filho de Dioniso. (p.m. trav.) Alexandre entra na arena e manda os homens distancia-
rem-se do cavalo Bucéfalo. Pega uma corda, aproxima-se, Bucéfalo
Aristóteles: Mas não se esqueça de Apolo. Um rei que não se ocupa
assusta-se, Alexandre pega-o com o laço, Bucéfalo resiste, Alexandre o
com as leis do estado permite a desordem que o destrói. contém, até que Bucéfalo cede e Alexandre se aproxima dele lentamen-
Alexandre: Sou rei ou Deus? te, pronunciando com voz baixa palavras afetuosas. Bucéfalo deixa-se
acariciar por Alexandre, o que, com um movimento rápido, monta-o.
Olímpia: Quer ser? Bucéfalo refuga e corre; Alexandre controla-o, Bucéfalo toma impulso
Alexandre: Deus. e depois se acalma pouco a pouco.

Aristóteles: Querer é poder. Rumores.

Alexandre: Como posso lhe agradecer por tudo que me ensinou? Os assistentes aplaudem, Alexandre dirige-se para Filipe, que grita
algo.
Aristóteles: Mande reconstruir a minha cidade, Estagira, que foi des-
Alexandre: Quero como prêmio uma armadura e uma lança.
truída pelos macedônios.
Filipe: Conquistaremos a Pérsia porque a Grécia é muito pequena para
você.

160 161
ATENAS Velho: A sabedoria da velhice elimina a corrupção.
Externo dia
Jovem: Precisamos de jovens revolucionários como Alexandre.
(p.g.)
Homem: Só a democracia permite que se louve um inimigo na Assem-

PORTO DE ATENAS
bleia da própria cidade. Não nos esqueçamos de que Filipe e Alexandre
derrotaram os atenienses e tebanos na batalha de Queroneia.
(p.g. trav.) Mercado de escravos. Mercadores.
Jovem: O que demonstrou o renascimento grego na Macedônia.
Voz: Graças ao desenvolvimento de uma poderosa frota mercantil e de
guerra, Atenas controlava os mares da Grécia e se estendia com suas Velho: Mas Filipe é um tirano e Alexandre prepara a destruição da
colônias até a Ásia Menor, onde estava em permanente conflito com o democracia.
império persa. Atenas exportava vinho, azeite de oliva, cerâmica e im- Jovem: Se a maioria do povo é escrava, a democracia não é senão o go-
portava todos os bens necessários ao luxo em que viviam a aristocracia verno de uma minoria de proprietários de escravos que dividem entre
rural, as classes mercantis e os ricos artesãos. si o poder e a corrupção.

Externo dia Homem: Silêncio, silêncio. Quem está indo à tribuna é o grande orador
Demóstenes.
(p.g. trav.) Assembleia.

(p.m. trav.) Homens do povo, de todas as idades, discutem. Aplausos e assobios.


(p.m.) Demóstenes, um homem de 40 anos, entra e sobe à tribuna,
Voz: Um conselho de 500 membros, sorteados entre os candidatos elei-
espera que cessem os aplausos e assobios, põe algumas pedras na boca
tos pelos Demos, tinha a função de dirigir a assembleia e controlar a
e fala.
execução das leis. A cada ano eram eleitos os arcontes que formavam
a câmara alta do Areópago, onde eram ouvidos e venerados os anciãos Demóstenes: Quem assume a responsabilidade pela derrota na batalha

mais ilustres de Atenas. de Queroneia? Todos sabem que Filipe já estava derrotado pelas nos-
sas tropas quando os lanceiros inimigos, comandados por Alexandre,
Homens discutem na Assembleia.
fizeram uma incursão que inverteu os rumos da batalha. Quem é que
Jovem: Já tenho dezoito anos, posso votar e ser eleito. fugiu de Atenas para educar o destruidor da democracia? Aristóteles.
Homem: Você não tem experiência. Mas quem é responsável pela traição de Aristóteles? Atenas, que de-
cai dia a dia pela corrupção dos dirigentes e pela passividade do povo.
Velho: É ignorante, mas ainda não é corrupto.
Têm mais dignidade os escravos que executam atividades de polícia.
Homem: Então o mais velho seria o mais corrupto?

162 163
Um povo fraco elege um governo que cede diante das invasões do mais (p.m.) Um jovem grita.
forte. Filipe foi eleito estratego da Grécia pela Assembleia de Corinto, Jovem: Entre a tirania estatal de Esparta, que reduz o homem a uma
mas essa Assembleia não representa a Grécia, porque Corinto não tem máquina de guerra, e a democracia de Atenas, que reduz o homem a
o poder de Atenas. Essa Assembleia foi uma farsa promovida por Filipe um cinismo decadente, eu prefiro o imperialismo de Filipe, que exalta
em colaboração com o Oráculo de Delfos, que se vendeu em troca do a alma e o corpo.
ouro macedônio. Filipe captura, tortura, mata, corrompe e utiliza todos
(p.p.) Demóstenes.
os meios para afirmar a sua selvagem sede de poder.
Demóstenes: Mesmo reconhecendo a ignorância do povo, eu tenho
(p.g. trav.) Um homem fala e outros homens falam logo depois dele.
lutado sempre pela democracia. Entre Macedônia e Esparta, prefiro o
Homem I: Se Filipe fosse um bárbaro, teria destruído Atenas. Império persa, que está disposto a fornecer dinheiro, armas e homens
Homem II: Alexandre respeita a cultura de Atenas e nos perdoou. Mas para destruir Filipe. É o momento da escolha, atenienses! Ou o impe-
sabe o que o filósofo Diógenes disse? “Sai do meu sol”... rialismo macedônio, ou o imperialismo persa!

Homem: A tirania não pode sobreviver no templo da democracia. (p.g.) A Assembleia rumoreja. Aplausos, assobios e discussões. De-
móstenes retira-se.
(p.m. trav.) Um homem, entre outros homens, grita.
Rumores.
Homem: Em Esparta não existe Democracia, nem propriedade privada.
Vozes.
Homem II: Lá todos são escravos do estado.
Gritos.
Homem II1: O que pertence ao estado pertence ao povo.

Homem: O que pertence ao estado é propriedade dos dirigentes do PALÁCIO. APOSENTOS DE FILIPE
estado. Em Esparta não existe liberdade de pensamento e de criação. Interno noite

Homem: Esparta é uma cidade militar onde não existem filósofos nem (p.g. trav.) Filipe entra nos aposentos e encontra Olímpia no leito, en-
artistas. volvida por duas serpentes. Filipe agarra as serpentes, bate em Olímpia
e grita.
(p.p. trav.) Demóstenes tenta acalmar a exaltação das discussões.
Filipe: Louca, selvagem, bárbara! Eu não posso viver com uma mulher
Demóstenes: Esparta é uma cidade bárbara porque Licurgo preocu-
que se dedica à magia e corrompe o meu filho. Louca, louca, fora, fora!
pou-se em desenvolver os músculos do corpo, mas atrofiou o cérebro.
Casarei com uma mulher civilizada como eu.

1 Assim no original, mas provavelmente esta fala se refere ao Homem I. [N.T.] Olímpia: O seu reinado terminou e daqui a pouco Alexandre reinará
no seu lugar.
164 165
Filipe: Você ainda ousa me fazer ameaças de crimes e traições? Quem é militar superior a qualquer um de vocês, superior inclusive a Filipe,
Alexandre para se levantar contra mim? Tenho muitos filhos, e se você salvando os macedônios da derrota na batalha de Queroneia? E se eu
diz que ele é filho de Zeus, então fora também! Fora vocês dois! não fosse filho legítimo de Filipe, quem senão um descendente de Zeus
Olímpia chora; Filipe a golpeia. teria direito a todos os tronos? Caso alguém não esteja de acordo comi-
go, quem ousa falar diante da minha espada?
SALÃO DO PALÁCIO DE FILIPE (p.p. trav.) Filipe, tomado de ira, sobe também na mesa e avança, com
Interno noite a espada em punho, na direção de Alexandre. Mas, por estar bêbado,
(p.g. trav.) Banquete para celebrar o casamento de Filipe com Cleópa- tropeça e cai.
tra, filha do rei do Epiro. Filipe faz um brinde. Filipe: Não lhe reconheço nem como filho, nem como súdito, e cortarei
Filipe: À inteligência e à beleza de minha nova esposa Cleópatra, filha sua língua para lhe punir por tanta presunção e arrogância.
do rei do Epiro, que me dará um filho digno de herdar o império mun- (p.g.) Filipe cai sobre a mesa e Alexandre pula no chão, enquanto os
dial que criarei. Para a Grécia, não há outro destino senão o de subme- que assistem afastam-se amedrontados.
ter os bárbaros à civilização. E a maior prova disso está no fato de que
Alexandre: Olhem, o Rei que tem a pretensão de conquistar a Pérsia
eu, Rei da Macedônia, que é um país bárbaro, tenha me convertido à
não consegue dar dois passos. Mas não pensem que por isso eu trairei
filosofia de Aristóteles e tenha adotado o grego como língua oficial. O
Filipe, mesmo que ele tenha traído minha mãe, à qual permanecerei
meu matrimônio com Cleópatra é o signo dos novos tempos que estão
sempre fiel. Só os deuses decidirão o destino da nossa família, e ai da-
se iniciando.
queles que querem desviar o curso da história.
(p.m.) Todos brindam a Filipe. Depois se levanta o general Átalo e faz
(p.p.) Filipe chora.
um outro brinde.

Átalo: Macedônios! Invoquemos os deuses para que bendigam o ven- TEATRO NA MACEDÔNIA
tre de minha sobrinha Cleópatra, que deve gerar um príncipe digno de Externo dia
herdar a coroa de Filipe! (p.g. trav.) O povo aproxima-se para assistir a uma representação. Mú-
(p.m. trav.) Alexandre, que está sentado entre um grupo de amigos, sicos, cantores, bailarinos preparam o espetáculo. Um homem com
sobe de repente na mesa, dirige-se a Átalo e lança-lhe no rosto o vinho uma máscara anuncia.
do copo que tem na mão. Música.
Alexandre: Quem é você, general velhaco e servil, para negar que eu Homem: Hoje assistiremos à última tragédia de Eurípides, As Bacantes.
seja o único herdeiro de Filipe? Quem, senão eu, demonstrou já ser um

166 167
TEATRO Oração fúnebre.
(p.g.) Representação de As Bacantes.
TEATRO
(p.g.) O povo aplaude.
(p.g. trav.) O corpo de Filipe coberto por um véu branco no centro do
(p.m.) Filipe, com Cleópatra a seu lado. palco, rodeado pelas profetisas. Alexandre entra e, lançando-se sobre
Filipe: Que comece o segundo ato. o corpo de Filipe, grita:

(p.g. trav) Representação do segundo ato. Alexandre: Traição de nobres macedônios e políticos atenienses finan-
ciados pelo ouro persa! Que todos os membros da família do assassino
Sons.
Pausânias sejam justiçados sobre a tumba de meu pai e que todos os
(p.p.) Filipe acompanha atentamente a tragédia. pretendentes ao trono se ajoelhem e me beijem os pés.
Palavras. No palco aparece Olímpia, com uma serpente na mão, dizendo:
Emocionado, Filipe levanta-se. Olímpia: Que seja arrancado do ventre de Cleópatra aquele que pre-
(p.m. trav.) Pausânias, um jovem da corte, apunhala Filipe, foge, mas tendia herdar o trono e que ela se enforque com o corpo desta serpente!
termina morto pela guarda. Filipe, com o punhal atravessado, fala.
Cleópatra, com a serpente envolvida no pescoço, grita.
Filipe: Ó Píndaro, maior de todos os poetas! O homem não deve buscar
Cantos fúnebres.
vencer o impossível, mas desfrutar todas as possibilidades do possível.
Alexandre tira a camisa, fica com o torso nu, levanta a espada com a
Oração fúnebre. mão direita e fala.

TEATRO Alexandre: Que se reúna imediatamente a assembleia de Corinto para


me eleger imperador supremo dos gregos!
(p.g.) O povo e os atores entoam a oração fúnebre.
Coro: Ó Grécia unida, ó Grécia feliz!
Idem.
Externo dia
CAMPO
(p.g.) Reunião da Assembleia de Corinto, da qual participam repre-
Externo dia
sentantes de todos os estados gregos. Alexandre, na tribuna, ouve as
(p.m. trav.) Alexandre, cavalgando em Bucéfalo, corre chorando. delegações que vão apresentando as credenciais. Um relator anuncia:
Pranto de Alexandre. Relator: Delegação da Trácia.

168 169
Delegado: Presente. Alexandre: Esparta não participa desse congresso porque, segundo a
mensagem enviada, não se julga destinada a obedecer, mas a comandar.
Relator: Delegação da Tessália.
A pretensão de Esparta é ridícula, já que ela crê ser ainda uma potência
Delegado: Presente.
militar, depois que o grande general Epaminondas a destruiu. Esparta
Relator: Delegação da Etólia. e toda a Grécia vivem de um passado que não é outra coisa senão um

Delegado: Presente. teatro de fantasmas nesse museu literário que é a poesia de Homero.
Deuses e Heróis que sitiaram Troia ainda não conseguiram ultrapassar
Relator: Delegação de Atenas.
as colunas que Hércules plantou nas fronteiras do Oriente. Que Deuses
Delegado: Presente. e Heróis são aqueles que se viram obrigados a fazer esforços sobre-hu-
(p.p. pan.) Mapa da Grécia antiga que mostra a geopolítica grega na manos para resistir às invasões dos persas há cem anos? Leônidas foi o
época de Alexandre. último herói espartano, sacrificado nas Termópilas na ilusão de querer
Continua-se a ouvir a voz (f.c.). destruir o exército persa com apenas trezentos homens. O gênio e a
coragem do almirante Temístocles derrotou os persas no mar, mas os
(p.m. trav.) Alexandre fala da tribuna.
navios não servem para atravessar os desertos. Nem a infantaria espar-
Alexandre: Desse congresso que reúne todos os estados gregos, estão tana, nem a marinha de Atenas servem para o meu projeto, que é mar-
ausentes Tebas e Esparta. Tebas não pôde participar porque não existe char até a Índia. Confiemos na crescente força militar macedônia, cria-
mais. Como o trágico rei, Édipo, Tebas era cega e culpada de parricídio da pelo imortal Filipe. É denso de significado o desafio representado
e incesto, e por isso insistiu em se isolar da comunidade grega. Quando pela ausência de Esparta, assim como o é a presença passiva de Atenas.
Tebas me desafiou, o seu destino histórico, que era o de ser expulsa da Entre a tirania militar burocrática de Esparta e a democracia civil buro-
Grécia, estava para ser cumprido, assim como antes ela havia expulsado crática de Atenas, morre a velha Grécia. Das cinzas nasce Alexandre, fi-
Édipo. Por isso a destruí, respeitando unicamente a casa do poeta Pín- lho da matriarca Olímpia e Zeus, herdeiro do gênio econômico, militar
daro, símbolo de luz naquele deserto espiritual. e político do imperador Filipe, discípulo do filósofo Aristóteles, mestre
(p.p.) Vários delegados e os bustos de Tales, Anaximandro, Pitágoras, da humanidade. Conheça-se a si mesmo e você descobrirá a verdade,
Heráclito, Heródoto, Hipócrates, Demócrito, Píndaro, Tucídides, Só- dizia Sócrates. Eu conheço a mim mesmo e por isso estou seguro de ser
lon, Clístenes, Péricles, Sócrates, Platão etc. o maior homem do mundo e de não ser superado por nenhum outro
(p.p.) Aristóteles ouve com expressão grave o discurso de seu discípu- no futuro.
lo. A montagem incluirá as ruínas da arquitetura grega entre os séculos
A Assembleia em coro:
VI e V a.C.

170 171
Assembleia de Corinto: Viva Alexandre, homem, Herói e Deus. CAMPO
Externo dia
Alexandre: Viva Alexandre, homem, Herói e Deus.
(p.g.) A cavalaria macedônia desfila, tendo à frente Alexandre, que
Música.
monta Bucéfalo.

MINA DE OURO (p.g. trav.) A infantaria macedônia, cujo armamento consiste em escu-
Interno dos e espadas, desfila.

(p.g. trav.) Escravos extraem o metal. Alguns morrem, muitos apresen- (p.g. trav.) Os arqueiros desfilam.
tam sintomas de grave degeneração e de doença.
Externo dia
Externo dia (p.g.) Soldados armados com lanças longas desfilam.
(p.g. trav.) O ouro é transportado para a entrada da mina e carregado Sons.
em cavalos. Administradores e guardas controlam a operação e vigiam
os escravos. Música.

(p.p.) O ouro é fundido. (p.g. trav.) Soldados que fabricam espadas, arcos, flechas, escudos,
lanças longas. Os soldados experimentam as couraças e exercitam os
(p.p.) O ouro é cortado e modelado em forma de moedas.
cavalos, sob o comando de Alexandre.
Voz: Com o ouro das minas de Pangeu, Filipe cunhou moedas persas,
Interno noite
mas deixou em circulação as tradicionais moedas de prata gregas, fi-
xando o câmbio em quinze moedas por uma moeda de ouro. (p.p.) Alexandre dorme. Olímpia olha-o e canta. Escuridão.

(p.p.) Mãos de escultor gravam o perfil de Alexandre numa moeda. Voz: Alexandre recruta os soldados de todas as cidades-estado da Gré-
cia, até formar um exército de 30.000 infantes e 5.000 cavaleiros.
Voz: Alexandre abaixou o câmbio levando-o a doze moedas de prata
por uma de ouro. Desse modo, desvalorizava o ouro também no mer-
cado persa, mas as importações da Grécia aumentavam.
(p.p.) As moedas são transportadas em sacos.

(p.m.) Um tesoureiro anota a qualidade das que são levadas embora.

(p.p.) Mãos recolhem moedas de um monte sobre uma mesa.

172 173
(p.g. trav.) Um mapa antigo da Grécia antiga que mostra as fronteiras
da época com a Ásia.

Voz (f.c.): Em 334 a.C., Alexandre pôs-se em marcha com seu exército
em direção à Ásia, declarando guerra ao imperador persa Dario III.
Na estratégia grega, a arma mais importante era a infantaria pesada,
combinada com a ligeira. Mas a técnica militar foi revolucionada com
a introdução da cavalaria macedônia armada com lanças longas, que
permitiam combater o inimigo à distância. Alexandre não modificou
a estrutura do exército, deixando-o como o havia organizado Filipe,
mas desenvolveu sua capacidade de ação mediante uma preparação ri-
gorosa destinada a aperfeiçoar o uso combinado do poder da cavalaria
e da infantaria, apoiada pelos arqueiros especialistas e pelos soldados
mercenários.

SEGUNDA PARTE (p.g. trav.) Batalha de Gaugamela, entre os exércitos de Alexandre e


Dario III. Montagem, em ordem cronológica, das imagens que docu-
mentam a batalha. Dario III utiliza uma nova arma, os carros puxados
por cavalos, contra as falanges de Alexandre. A cavalaria de Alexandre
é disposta nos flancos das falanges, enquanto a de Dario III está nos
flancos da formação dos carros. A batalha desenvolve-se com ataques
recíprocos das cavalarias adversárias, das falanges gregas e dos car-
ros asiáticos. Alexandre desloca o regimento de infantaria ligeira, que
deve afrontar os assaltos dos carros inimigos numa luta desigual. Da-
rio III ordena uma carga de um segundo regimento de carros e Ale-
xandre retira rapidamente a infantaria, fazendo com que se forme um
corredor para a passagem dos carros. Ordena um ataque da cavalaria
à direita e à esquerda sobre os flancos da coluna adversária. Os carros
terminam destruídos. Os arqueiros macedônios lançam flechas contra
os cavaleiros persas. Os sobreviventes terminam mortos pelas falanges
e pela infantaria ligeira. Alexandre e um grupo cavalgam na direção
do centro da formação persa, onde Dario III, num carro de guerra,

175
comanda a batalha, cercado de sacerdotes que rezam. À vista de Ale- Sons.
xandre, que se avizinha, Dario III, desesperado, retrocede e foge, se-
Gritos.
guido de sua corte, enquanto um grupo de seus cavaleiros e infantes
lhe protege a fuga, enfrentando, numa luta corpo a corpo, o grupo de Música.
Alexandre. Alexandre e alguns soldados conseguem romper a linha
(p.p.) A imagem de Alexandre em fade-in sobre a cena de batalha.
inimiga e lançam-se no deserto, em perseguição a Dario III.
Escuridão.
Rumores.

Tambores. ACAMPAMENTO MILITAR DE GÓRDIO


Externo dia
Trombetas.
(p.g.) Alexandre cavalgando Bucéfalo, aclamado pela multidão. Os
Gritos.
soldados desfilam ao som de trombetas e de tambores.
Cantos.
Sons.

DESERTO Trombetas.
Externo dia Tambores.
(p.g. trav.) Dario III e um grupo de nobres e generais fogem no deserto. (p.p.) Alexandre, cavalgando Bucéfalo e sem mostrar nenhum sintoma
Música. de cansaço, fala ao povo.

Alexandre: Durante esta guerra, sem precedentes na história, venci


SONHO DE ALEXANDRE
todas as batalhas e instaurei a democracia em todas as cidades liberta-
Interno, externo
das, pondo em prática fielmente a teoria de justiça do grande filósofo
Corte. Dia. Noite. Chuva. Sol. Montanhas. Desertos. Mar. Catapultas Aristóteles. Mesmo que Dario III ainda esteja vivo, os seus dias estão
que lançam pedras. Aríetes que derrubam os muros das cidades. Ar-
contados, porque de agora em diante não controla mais o seu exército,
queiros que lançam flechas. A cavalaria carregada com as lanças lon-
que prefere aderir ao meu regime de liberdade e de progresso. Eu sou
gas. A infantaria pesada ataca, assim como a ligeira. Alexandre, sempre
à frente, espada em punho, cai sobre o inimigo, demonstrando força e invencível. Conquistei Tiro, Sídon, Biblos, Arado, Jerusalém, a Síria e
capacidade extraordinárias. Os orientais retiram-se, rendem-se, cho- agora estou prestes a libertar o Egito. Para demonstrar que as minhas
ram implorando perdão. Ninguém resiste à força do exército mace- previsões se realizarão, desatarei aqui, diante dos olhos de nobres, orá-
dônio, que avança precedido pelas falanges, disciplinadas e violentas. culos, generais, artistas, cientistas, comerciantes, soldados e escravos, o
legendário nó de Górdio.

176 177
(p.m. trav.) Alguns soldados trazem um carro envolto por uma grande DESERTO EGÍPCIO
corda. No centro vê-se um grande nó. Externo dia
(p.m.) Alexandre faz sinal aos soldados para que se distanciem e co- (p.g. trav.) Veem-se, ao longe, as pirâmides.
meça a buscar as extremidades da corda para poder desatar o nó.

(p.p.) das várias personagens que cercam Alexandre com uma expres- RIO NILO
são de expectativa na face. Externo dia

(p.p.) Mãos de Alexandre, que não conseguem desatar o nó de Górdio. (p.g. trav.) Enquanto a voz do narrador refere-se ao avanço de Alexan-
dre, a montagem mostra a evolução histórica do Egito, por meio das
(p.p.) Alexandre, com os olhos fixos, demonstra uma certa inquietação
ruínas, objetos, pinturas e desenhos que se encontram nos museus.
por não conseguir desatar o nó.
Voz: Tratando como amigos e seguidores os sátrapas e os chefes das tri-
(p.m.) Uma águia negra aparece no céu, arremessando-se para o lado.
bos vencidas, Alexandre destruía a base política do império persa. No
Lado da águia. ano 331, Alexandre entra no Egito. O Egito, a civilização mais desen-
(p.m. trav.) Alexandre distancia-se. Tensão. Desembainha a espada e volvida do norte da África, tinha sido incorporado ao império do su-
parte o nó pela metade. cessor de Ciro, Dario I. As tribos hebraicas escravizadas pelos egípcios
tinham sido libertadas pelo profeta Moisés, representante de Yehowah.
Rumor.
(p.m. trav.) Os espectadores, silenciosos, não sabem como reagir dian- VIA ESFINGE
te do gesto de Alexandre. Externo
(p.m.) Alexandre, com a espada numa mão e o nó cortado na outra. (p.g. trav.) O sátrapa Masaces e a sua corte ajoelham-se diante de Ale-
Alexandre: Este nó representava o emaranhado de fios da hipocrisia xandre, que está sentado no trono de ouro cravejado de pedras verme-
lhas e verdes. Alexandre, doente e atingido por arrepios de febre, pro-
oriental, que busca confundir os inimigos com falsas lendas que giram
nuncia palavras incompreensíveis. O general Heféstion, com a divisa e
sempre em torno dos mesmos temas, sem encontrar um caminho de
o disfarce de Alexandre, dirige os negócios da política. A corte egípcia
saída. Diz a lenda que o homem que conseguisse desatar o nó de Gór-
está maravilhada com a beleza física e a energia verbal de Alexandre.
dio teria conquistado a Ásia. O tempo da vida corre com a velocidade
Coro:
dos rios tortuosos e por isso não resolvo com a paciência o que posso
- Zeus Amon.
resolver com a força.
- Íris.
- Íbis.

178 179
- Osíris. Um grupo leva, a nado, o cesto à princesa, que abre a coberta e vê o
- Nemenis. menino Moisés.
- Menfhi. Música.
- Aphan.
Cantos.
- Keopius.
- Kenorpios. Princesa: Moisés, filho das águas, príncipe da justiça.
- Miquerinos. (p.p.) Alexandre delira. Uma grande árvore em chamas no deserto.

Alexandre, sentado no trono, delira enquanto Heféstion recebe a ser- Trovões.


pente de ouro, que representa o símbolo do poder dos faraós, das mãos
Música.
de Mazaces.
Moisés velho, à luz de tochas, fala a um grupo de escravos e de
Alexandre: A dinastia de 33 faraós deixou de reinar sobre a terra.
delinquentes.
Mazaces: José de Judá decifrou os nossos sonhos, permitindo a rebe-
Moisés: A operação “sete pragas” deve seguir um programa articulado
lião dos escravos hebreus comandados pelo príncipe Moisés.
que preveja a propaganda e a agitação. Conheço o sistema enérgico do
(p.p.) Alexandre interrompe Mazaces com um delírio místico. faraó e por isso devemos ser violentos e inflexíveis.
Alexandre: Atravessei rios envenenados, comi a podridão dos cadá- Alexandre delira.
veres, construí uma base naval na ilha de Chipre, destruí a marinha
Alexandre: A liberdade não servirá para criar uma nova tirania. Vejo
persa aliada aos traidores de Esparta. Que diferença há entre egípcios
no futuro um imperador como Salomão, que será o mais sábio, ao lado
e hebreus?
de Ciro e de um misterioso bárbaro da Macedônia.
(p.m.) Grupo de 12 faraós, que respondem em coro.
Alexandre urra como uma fera.
Faraós: O Egito é o país do silêncio: nascido dos vales férteis do Nilo,
Música.
nos quais a criança navega por si só.
Cantos.
Alexandre: Quero viver no passado eterno dos hebreus.
Alexandre: Ao norte da Terra existe a desconhecida Europa, que, fun-
NILO dindo-se com a Ásia, forma a Rússia. Além dos grandes rios existe a
Um cesto verde e amarelo flutua no rio e toca a margem num ponto Índia, defendida por um exército de elefantes. E detrás de uma muralha
onde uma das princesas egípcias toma banho ao som de uma música. infinita vive o povo chinês, amarelo e silencioso, servidor de um aman-
te da humanidade, um Deus chamado Buda.

180 181
Alexandre levanta-se do trono. Mazaces: Com a conquista do Egito vocês consolidaram o seu domínio
Vejo Cleópatra cem anos antes que Jesus Cristo seja crucificado pelo sobre a Ásia Menor. Daqui vocês podem controlar o comércio com a
Imperador Augusto de Roma, numa sexta-feira do mês de abril, trinta e Grécia.
três anos depois de seu nascimento. Cristo dividirá a história e eu vejo a Heféstion: É a partir deste silêncio que as múmias decifrarão o segredo.
minha morte nos jardins de Babilônia. Conquisto o mundo para supor-
Alexandre: Que os homens, as mulheres e as crianças me escutem em
tar a monotonia da vida. As energias são desperdiçadas na juventude.
silêncio, e meditem sobre o significado das minhas palavras. A lei do
No deserto arábico, no ano dois mil, jorrará o petróleo que incendiará
amor deve ser mais forte que a da espada. Estas são as novas ideias
o mundo antes da explosão atômica.
que conservam a vida e geram felicidade: paz e amor. Repitam comigo,
Coro dos doze faraós, que canta fazendo um círculo em volta de
abram os seus corações e deixem que a luz do céu os penetre!
Alexandre.
Coro: Paz e amor!
Coro: Ele viu o último futuro da história. Ele desintegrou a matéria do
futuro. No Egito, país do silêncio. OÁSIS, TEMPLO NATURAL DE ZEUS AMON
Alexandre: A bancarrota da democracia grega representa a morte de Externo dia
uma humanidade adolescente. Péricles era pragmático e civilizou a re- (p.g. trav.) Alexandre, sozinho, avizinha-se do oásis cavalgando
ligião, deu a Demócrito a possibilidade de descobrir o átomo, que fez Bucéfalo.
da cultura um feito aristocrático, formou uma elite de tecnocratas civis Alexandre, sempre a cavalo, entra no oásis e admira encantado a ve-
e uma de mercenários que construíram e mantiveram o imperialismo. getação luxuriante.
De Ciro a Alexandre, as tribos esmagam os vizinhos e afirmam um
Silêncio.
Deus patriarca. Eu uni o Ocidente ao Oriente e fundo hoje, aqui, a ci-
O tempo muda, chovem estrelas e relâmpagos coloridos. Silenciosa-
dade de Alexandria.
mente, aparecem sacerdotes.
No meio do salão aparece uma cidade em miniatura, feita com farinha
Alexandre desmonta do cavalo e dirige-se a um templo situado entre
de trigo. Alexandre olha a miniatura e volta-se para os arquitetos.
coqueiros.
Alexandre: Os pássaros virão comer esta farinha e eu fundarei outras
Rumores.
Alexandrias ao longo do meu caminho para a Índia. A poesia será es-
Sobre a porta do templo um homem moreno de mais de quarenta
crita ou declamada em versos alexandrinos. A filosofia consistirá de
anos, longos cabelos negros, vestindo apenas uma calça curta de cor
duas correntes: o estoicismo e o epicurismo.
escura, abre os braços, então fala, enquanto com um gesto rápido rasga
Heféstion dá ordens a Mazaces e aos nobres egípcios. a barba falsa.

182 183
Homem: Entre, mas me poupe a vida. Você é um homem enlouqueci- Alexandre: A traição bate todos os dias à minha porta, dorme no meu
do pela sede de poder, é um devastador de cidades e um assassino de leito, come à minha mesa. Devo afrontar lanças, flechas, punhais, espa-
povos. Fugi da guerra, abandonando a minha tribo, para esconder-me das, pedras e venenos. Os homens se odeiam e as mulheres são indig-
junto de uma outra e mascarei a minha covardia com as artes do teatro nas da comunicação espiritual.
e da música. Tudo é representação, Alexandre, e a reconstrução teatral Um velho sacerdote fala.
reduz a história a uma vaga invenção da memória.
Sacerdote: Alexandre, este é o templo de Zeus Amon, Deus dos
Alexandre desembainha a espada e decapita o homem.
egípcios.
Alexandre: Eu sou mais forte e um Deus não tem moral. Venho a este Alexandre: A natureza e os animais poderão me escutar em silêncio?
templo para encontrar o escudo de ouro de Aquiles.
Sacerdote: A natureza e os animais escutam uma palavra na caverna.
Alexandre caminha ao longo do corredor iluminado e fala em tom
sempre mais profético, revelando o seu inconsciente de herói trágico. Alexandre: Deus!

Alexandre: Onde estão os Deuses que vivem imitando os Deuses gre- Sacerdote: Você é filho de Amon Ra e de Zeus Hélio.
gos? Hércules é um herói do povo que deu ao fogo o seu corpo. Onde Alexandre: Sem dúvida, Deus é o pai comum de todos os homens, mas
estão as mulheres gregas? Ártemis! Atena! Afrodite! Ariadne! Fedra! por uma predileção misteriosa ele escolhe os melhores para fazer deles
Pandora! Penélope! Helena! Clitemnestra! Dejanira! Amazonas! Olím- seus filhos.
pia, minha mãe!
Dentro do templo, Alexandre, circundado por seus generais, dá
Alexandre observa as mulheres evocadas, que dançam em torno de ordens.
uma grande teia envolvendo seus corpos em longos fios.
Alexandre: Que os traidores venham à frente.
Alexandre: A teia de Penélope é o símbolo da inteligência grega, que
Alguns generais, nobres e sacerdotes vão à frente e beijam Alexandre
deixa passar a água, mas retém os monstros entre suas malhas. A teia na bochecha.
de Penélope é uma imitação da teia da aranha negra.
Em seguida trocam moedas, põem-se cordas no pescoço e falam.
Uma aranha negra com uma coroa de ouro caminha e agarra-se a uma
Coro: Somos os traidores vendidos ou arrependidos.
teia de fios brancos.

Ao centro de um círculo formado por Teseu, Perseu, Hércules, Her- Alexandre: O orgulho, a inveja, a ambição, o ciúme, o poder e a mor-
mes, Orfeu, Aquiles e outras divindades gregas, está Alexandre te antes do prazer. Qual é a origem desta mitologia que dominará o
ajoelhado. Deuses e Heróis dançam e giram as espadas, ferem-no Ocidente?
simbolicamente.

184 185
Dois sacerdotes desenrolam as ataduras de uma múmia no interior Besso: Você é acusado de incapacidade militar, covardia e corrupção.
do templo.
Dario III: Vocês são Generais incapazes de vencer Alexandre.
Alexandre: Este é um rito simples que ensina a não ter medo dos
Barsantas: O povo está com Alexandre, que já se coroou Rei da Ásia.
mortos.
Você não tem mais o poder de reunir todas as tribos.
Sacerdote: Estas lições jamais foram reveladas na história. A verdade é
Besso: Fui nomeado, pelos soldados e pelos oficiais, comandante geral
simples como a água é clara e a noite é escura.
do nosso Exército, com o fim de reivindicar a sua renúncia ao trono da
Alexandre: Silêncio. Concentração das energias cósmicas. Pérsia.

Externo dia Dario III: Besso e Barsantas! Traidores de Deus e do Rei.

(p.g.) A mesma massa que aclama Ciro quando entra em Babilônia vê Barsantas: O Rei está morto.
surgir, no lugar de Ciro, Alexandre cavalgando Bucéfalo.
Besso e Barsantas desembainham os punhais e matam Dario III.
No ano 331 Alexandre entra em Babilônia, conquista Susa e dirige-se
a Persépolis. DESERTO
Externo dia
Externo noite
(p.g. trav.) O exército de Alexandre acampado no deserto. Tribos de
(p.g.) Alexandre entra em Persépolis e desfila no meio da multidão que
origens diversas misturam-se aos soldados.
aplaude. Alexandre desce de Bucéfalo e entra no palácio seguido dos
seus generais; com tochas nas mãos, incendeiam Persépolis. Música.

Fogo. Rumores.
(p.m. trav.) Diante da tenda real Alexandre fala e alguns membros do
TENDA DE DARIO III
Estado Maior escrevem.
Interno noite
Alexandre: A vitória do Ocidente sobre o Oriente dá lugar a uma fu-
(p.g.) O Rei está bebendo e chorando porque perdeu a sua família, o
são econômica, política, cultural e religiosa. Aristóteles me dizia que
seu exército e o seu poder, conquistados por Alexandre.
eu deveria ser democrático no Ocidente e tirano no Oriente, susten-
Dario III: Quero morrer, porque sou indigno da tradição de Ciro. tando que os orientais são seres semelhantes às plantas e aos animais
Chora... selvagens. Mas este é um conceito racista. A igualdade vale para todos,
Os Generais Besso e Barsantas entram na tenda e acusam Dario III, menos para o Imperador, cujo gênio supera a dimensão humana.
que os ouve sem ter força para defender-se.

186 187
(p.m. trav.) Alexandre levanta-se do trono e um grupo de sacerdotes Homem: Alexandre é a reencarnação de Ciro.
persas recobrem-no com o manto real e põem-lhe na cabeça a tiara
Um grego: Eu não acredito na reencarnação. Alexandre explora a ig-
de Ciro.
norância do povo que crê em Deus. Para os gregos, os Deuses são os
Sacerdotes: Este é o manto real de Ciro e esta é a sua tiara. Heróis e os verdadeiros Heróis são os pobres homens que lutam contra
Alexandre: A justiça deve ser igual para todos. a tirania.

Sacerdotes: De hoje em diante Alexandre é Imperador do Ocidente e


PALÁCIO DE PERSÉPOLIS
do Oriente.
Interno noite
Alexandre: A história que eu fiz concreta não exprime o infinito da (p.m. trav.) Um cômodo de um palácio em ruínas onde se veem traços
minha imaginação. A Terra é um planeta pequeno e pobre que gira do incêndio, um banquete no qual Alexandre come, bebe e se diverte
em torno de um sol que matou os planetas. O meu desespero nasce celebrando a consolidação da conquista depois da morte de Dario III.
da solidão que toma conta de um Deus que vive entre homens fracos, (p.p. trav.) Alexandre usa uma túnica persa idêntica às túnicas usadas
invejosos e covardes que o atraiçoam. As minhas esperanças me adver- por Ciro. Diante de Alexandre, nus, torturados e presos, os generais
tiram que o general Parmênio está à frente de uma conspiração urdida Besso e Barsantas.
contra mim. Que ele e os seus sequazes sejam justiçados sem honras
Alexandre: Tratei a esposa e os filhos de Dario como se fossem a minha
militares e religiosas.
própria família e jamais pensei em matar o grande Rei, mas antes fazer
dele meu amigo.
ACAMPAMENTO DOS SOLDADOS ENTRE OS MERCADORES
Externo noite Besso: Ele queria fazer uma aliança com a Grécia.

(p.m. trav.) Feridos, doentes, tristeza, fome. Mortos e lamentos. Os Barsantas: Era um fraco, um traidor.
vencedores gregos e os orientais vencidos confraternizam numa des-
Alexandre: Só eu tenho o direito de fazer e destruir imperadores. As-
graça comum.
sassinando Dario, vocês me tiraram o pão da boca. Vocês me deixaram
Soldado grego: É o exército que derrama seu sangue, mas só o Impera- faminto porque não tive o prazer de beber o sangue, de sentir o medo
dor recebe os tesouros e as honras. e de comer a carne do último descendente de Ciro. E vocês tiveram a
Um homem: As forças da natureza são tantas, mas nenhuma é superior coragem de pensar que seria possível resistir ao poder de Alexandre?
ao homem. Que vocês terminem sacrificados sem honra e que os cavalos os puxem
por terra, como fez Aquiles com Heitor.
Um persa: Um homem não caminha sem pés, um carro não avança
sem rodas, um pássaro não voa sem asas.

188 189
Durante este diálogo, sucessão de planos do banquete que está ocor- Alexandre volta-se para alguns soldados e continua a beber e a falar.
rendo. Alexandre, fora do tempo, vive sensações que o fazem recordar
Alexandre: Que seja reforçada a guarda em todos os pontos da cidade
a traição de Parmênio e Filotas e o assassinato de seu amigo Clito.
e que o exército permaneça pronto até o amanhecer. Fechem as tendas,
Enquanto Alexandre fala, aparecem os fantasmas do General Parmê-
porque devemos discutir um importante segredo de estado. Heféstion,
nio, seu filho Filotas e, em seguida, a reação de Clito. Todos comem,
Crátero, Ceno, Erígio, Pérdicas e Leónato devem voltar à meia-noite
bebem e participam do banquete.
para receber novas ordens. Filotas, por que Dimno se suicidou?
Parmênio: Alexandre, você confia em mim?
Filotas: Ele pensava em matar você e o seu plano foi descoberto.
Alexandre: Você é o governador da Média, que controla os caminhos
Alexandre: Quem o revelou?
que levam à Grécia. Você é o meu segundo pai, porque tem todos os
defeitos e algumas das qualidades de Filipe, meu pai. Filotas: Eu. Ele veio me propor que o ajudasse a assassinar o rei e divi-
dir o império.
Filotas: Você está em perigo.
Alexandre: E você me jurou fidelidade?
Alexandre: Os sacrifícios anunciam eternidade.
Filotas: Respondi que as tropas do general Parmênio teriam garantido
Filotas: Meu pai está descontente porque não descobriu o futuro de-
o poder divino do Imperador. Contei a conspiração a meu pai, ele or-
pois do incêndio de Persépolis.
denou prender Dimno.
Parmênio: Estou velho, não tenho tempo de ver a Grécia renascer.
Alexandre: Estas cartas dizem que Parmênio recomenda a seu filho
Intervém o historiador e filósofo Calístenes.
Filotas assassinar Alexandre.
Calístenes: O passado não deve ser recordado. Quem é você, Alexandre? Alexandre mostra os papiros aos presentes ao banquete.
Alexandre: Zeus. Filotas: O medo leva o Imperador a descobrir traidores entre os seus
Calístenes: Zeus, mesmo que tenha existido, está morto. Zeus faz parte melhores amigos.
da história e a história não existe. Aquiles é um mito e você neste mo- Alexandre: Parmênio quer se vingar de Filipe. O filho de Parmênio
mento é história, mas o que conta é o mito. quer se vingar do filho de Filipe; Filotas, você pensou em me matar?
Parmênio: Os homens morrem e os mitos permanecem. Filotas: Eu amo você.
Filotas: Alexandre não é Deus. Alexandre: Você sonhou me matar?
Calístenes: É mortal. Filotas: Eu amo você.

190 191
Alexandre rasga as vestes de Filotas e com uma espada corta a cabeça Alexandre: Eu sou filho do nada.
do general Parmênio.
Clito: Você é o monstro.
Alexandre: Você me odeia porque você não é Alexandre, você pode me
Alexandre, aterrorizado com as palavras de Clito, pega um arco e tras-
matar e se tornar Imperador, mas você não tem a minha alma nem o passa o amigo no peito. Clito morre e Alexandre cai chorando sobre
meu corpo, você não pode experimentar a sensação que sinto porque o seu cadáver.
você está morto.
Interno noite
Alexandre chicoteia Filotas, que chora, e Alexandre grita.
(p.m. trav.) Alexandre sozinho dentro da tenda, em silêncio. Depois
Alexandre: Um outro Alexandre, chamado Lincestida, pensou em to- chora em voz alta. Murmura. Lança-se por terra. Grita que quer mor-
mar o meu lugar. Nem todos os assassinos de meu pai foram punidos. rer. Heféstion entra na tenda e fala, enquanto Alexandre distancia-se e
começa a vestir-se para a guerra.
Filotas: Confesso, meu pai fez nascer em mim a inveja e o ódio, sou
um traidor porque todos os seus inimigos viam em mim o seu sucessor. Heféstion: Você deve pensar no império e não nos amigos que matou.

Clito, o Negro, amigo mais velho de Alexandre, fala. Dioniso tomou posse de você porque no dia da morte de Clito o senti-
mento persa dominava o espírito grego.
Clito: Você gosta de Eurípides?
Alexandre: Eu desprezei Dioniso.
Alexandre: Píndaro, Eurípides, Aristóteles... eu já esqueci todos os
Heféstion abraça amigavelmente Alexandre e lhe dá um pouco de
gregos...
vinho.
Alexandre põe-se a rir dos gregos enquanto Clito canta um verso de
Eurípides. Heféstion: Clito despertou em você a fúria sexual de Dioniso.

Clito: Das alturas das magnitudes ele despreza o povo. Ele que também Alexandre: Eu amei Clito como você.

é nada. Heféstion: Você deve se casar. A amizade masculina é forte só quando

Alexandre: Clito é o meu maior amigo. Heféstion é mais do que meu é espiritual.

grande amigo. Heféstion sou eu. Alexandre: Clito disse que o povo não me ama. Ele me repetiu o que

Clito: Você não é filho de Filipe. diz o povo porque amava mais o povo do que a mim. Ele me traiu com
o povo.
Alexandre: Eu sempre disse que sou filho de Zeus.
Heféstion: Porque você traiu Dioniso.
Clito: Você é filho de Olímpia.
Alexandre: Conquistaremos a Sogdiana.

192 193
Heféstion: É um país pobre.

Alexandre: Não, você ouviu falar da princesa Roxana, filha de Oxiartes?

Heféstion: Você precisa de um filho.

Alexandre: Filipe não amava Olímpia.

Heféstion: Olímpia amava você.

Alexandre: Olímpia não quer que eu case.

Heféstion: Você deve amar uma outra mulher que não seja Olímpia.

Alexandre: Eu quero me apaixonar por Roxana.

Heféstion: Atenção à vingança de Olímpia.

Alexandre: Dê a Ceno a retaguarda e parta para Bactra, para ocupar-se


da alimentação dos soldados durante o inverno. Ainda devo dominar
algumas tribos, pois quero entrar em Sogdiana livre para o amor.

Heféstion: Seja feliz. Não só de ser Deus vive um homem.

Alexandre: Não sou nem Zeus Amon, nem Aquiles, nem Ahura Maz-
da, nem Buda, nem Yehowah, nem Cristo, nem Maomé.

Heféstion: Você vê claro o seu passado.

Alexandre: Eu vejo no futuro a morte delirante nos jardins de Babilônia.

194
PALÁCIO DO SÁTRAPA OXIARTES NA SOGDIANA
Externo dia
(p.g.) Estão presentes oficiais gregos e orientais. Alexandre está can-
sado e tira o elmo, a couraça e os sapatos enquanto fala com Oxiartes.

Oxiartes: Você é generoso com os seus inimigos...

General grego: Obrigado, Príncipe Oxiartes.

Oxiartes: Alexandre é um amigo...

Alexandre: Fui ferido em três batalhas. Mas algumas cicatrizes desapa-


receram. O sátrapa Espitâmenes foi traído e os seus generais me man-
daram a sua cabeça.

Oxiartes: Aqui, o Rei da Ásia esquecerá as guerras e repousará.

Alexandre: Eu preciso de paz.


TERCEIRA PARTE
(p.p.) Alexandre fica em silêncio depois desse diálogo, e todos em tor-
no dele permanecem em silêncio.

Alexandre dorme.

Sonha.

Externo dia
(p.g.) A tribo de Oxiartes está acampada.

Música.
(p.m.) Sua filha, a Princesa Roxana, dança com as outras irmãs.

(p.p.) Alexandre passeia entre as tribos acampadas e ouve a música que


vem da tenda de Oxiartes.

(p.g.) Alexandre aproxima-se da tenda.

197
(p.m.) Roxana dança com suas irmãs, vê que Alexandre entra na tenda Depois de falar, Roxana desaparece numa fumaça colorida.
e dança com mais graça e intensidade.
(p.p.) Alexandre, sentado em tapetes, bebe chá e medita, acompanha-
(p.p.) Alexandre aproxima-se de Roxana. Todos ficam perplexos, Ro- do de três magos.
xana escapa com as suas irmãs.
(p.m.) Roxana reaparece, entrando na tenda de Alexandre com as suas
(p.m.) Oxiartes, amedrontado, fala. irmãs e os seus sobrinhos.

Oxiartes: Mandarei matar minha filha porque ela fugiu do seu olhar. Roxana fala diante do Rei, sem nenhum cumprimento.

Roxana: Se você me quer, deve desposar as minhas irmãs e ser o pai


TENDA
dos meus sobrinhos.
Interno noite
Alexandre beija as irmãs e os sobrinhos de Roxana e responde.
(p.g.) Examina mapas geográficos e documentos assistido por dois efe-
bos que o ajudam. Um músico toca. Alexandre se sente mal, vomita, Alexandre: Todas as mulheres que se aproximam de mim buscam mais
expulsa os efebos e o músico. o poder que o amor.
(p.p.) Alexandre olha-se no espelho. (p.p.) Roxana sorri para Alexandre.

Alexandre: Até hoje considerei as mulheres como estátuas vivas que Roxana: Sinta o calor do meu corpo.
se servem da fantasia e do sexo para corromper o homem. Reprimi os (p.p.) Alexandre sorri.
meus sentimentos com relação às mulheres e só assim é possível con-
(p.p.) Roxana canta.
centrar as minhas energias numa única direção.
Música.
(p.p.) A imagem de Roxana aparece no espelho sobre a imagem de
Alexandre, que desaparece. (p.p.) Alexandre dorme e escuta o canto de Roxana.

Roxana: Eu sou uma caverna iluminada pelo seu olhar. Alexandre desperta.

Alexandre: A beleza de uma mulher paralisa os homens mais Externo dia


poderosos.
(p.m. trav.) As tribos e o exército estão acampados no deserto. Festa.
(p.m.) A partir da magia do espelho, Roxana mostra-se. Está distendi- Celebra-se o casamento de Alexandre com Roxana.
da sobre almofadas orientais na tenda de Alexandre.
(p.g.) Alexandre, vestido com uma túnica branca, seguido de meninos,
Roxana: O poder não tem sentido se não há o amor da mulher que leva aparece ao lado de Roxana.
o homem ao paraíso. Oxiartes: Hoje celebramos o casamento do Ocidente com o Oriente.

198 199
(p.m. trav.) Os generais macedônios estão presentes, também os prín- Enquanto todos se ajoelham, Alexandre e Roxana olham felizes a sub-
cipes orientais. Quando Alexandre sai com Roxana, os orientais ajoe- missão dos homens.
lham-se diante dele, enquanto os gregos o abraçam com intimidade e
Calístenes, único entre eles não ajoelhado, fala a Alexandre.
beijam Roxana. Oxiartes chama Alexandre à parte.
Calístenes: Sou um discípulo de Aristóteles e tenho autoridade para
Oxiartes: É necessário que os gregos se ajoelhem diante do represen-
criticar o desprezo do Rei pelos homens e pelos Deuses.
tante de Ahura Mazda.
Roxana: Um Deus não reconhece os homens.
Alexandre: Não posso mudar os hábitos do meu povo.
Calístenes: Você é a esposa de Deus?
Oxiartes: O seu povo é o nosso povo.
Roxana: Eu sou Alexandra.
(p.p.) Roxana.
Calístenes: O demônio sexual que fez Alexandre enlouquecer.
Roxana: Os gregos devem se ajoelhar diante do Rei.
Alexandre: Eu sou um democrata, Calístenes. Você faz a sua crítica aos
(p.m.) O filósofo Calístenes, grego, amigo de Alexandre.
macedônios?
Calístenes: Somos mais inteligentes que os asiáticos e conhecemos
(p.p.) Calístenes caminha entre as pessoas ajoelhadas e fala.
Alexandre há mais tempo que vocês. Nem mesmo ele acredita ser um
Deus. Calístenes: Os macedônios são bravos guerreiros, mas não são civili-
zados como os gregos. Você nasceu na Macedônia, mas a sua cultura
(p.m.) Roxana.
é grega.
Roxana: Uma vez que Deus não pode falar aos traidores, respondo que
Alexandre: Você quer dizer que os macedônios são bárbaros?
o mar se acalmou diante de Alexandre. Calístenes crê que os gregos são
superiores à natureza? (p.m. trav.) Alexandre, Roxana. Calístenes aproxima-se deles.

(p.m. trav.) Calístenes aproxima-se. Calístenes: Bárbaros! Onde está a sua consciência?

Calístenes: Eu sou um filósofo e minha tarefa é duvidar do seu amor Roxana: Que consciência?
por um Deus. Calístenes: Ele abandonou a cultura grega.
Alexandre: Os gregos que me amam devem se ajoelhar. Quem me ama? Roxana: Ele não é grego.
(p.g. trav.) Os orientais olham os gregos, que estão quase todos vesti-
Calístenes: Quem perde a razão morre.
dos como asiáticos de várias tribos. Os gregos começam a ajoelhar-se,
enquanto uma minoria procura retirar-se. O medo é tão grande que Alexandre: Quem perde a razão morre, mas pode matar. Você é um
todos se ajoelham, menos Calístenes. traidor, Calístenes.

200 201
Roxana: Ele tem a coragem de falar na sua presença. DESERTO. OÁSIS
Externo dia
Alexandre: Na minha ausência ele conspira contra a minha vida. To-
dos de pé, que o Rei instaura um processo. (p.g. trav./p.m. trav.) Roxana canta.

(p.g. trav.) Os gregos e os orientais ajoelhados levantam-se. Música.

Alexandre: O filósofo grego Calístenes induziu alguns efebos a me Roxana: Não tenho o desejo nem a força para seguir você nessa viagem
apunhalar enquanto eu dormia. rumo ao nada.

Calístenes: Mentira! (p.p.) Alexandre come uma fruta e fala com Roxana, que está sentada
em tapetes.
Alexandre: Os culpados foram torturados e confessaram.
Alexandre: O nada?
Os gregos e os orientais gritam em uníssono.
Roxana: Os homens escrevem a história com sangue. Quantos homens
Vozes: Morte a Calístenes!
morreram por você?
(p.m. trav.) Alexandre aproxima-se de Calístenes, faz um gesto a Ro-
(p.p.) Alexandre continua a comer a fruta, bebe água.
xana e ela fala.
Alexandre: Morreram milhares... Alguns por amor, outros por ódio
Roxana: Os exércitos decretaram a sua morte.
ou medo.
Calístenes: Você mata a filosofia?
(p.m.) Alexandre, sentado ao lado de Roxana, bebe chá e come doces.
Alexandre: Esse era o maior desejo de Sócrates. Segui as teorias de
Roxana: Um corpo manchado de sangue de animais ou de homens.
Aristóteles até quando descobri Zoroastro. Eu não sou Alexandre, eu
Você é um jardim afogado em sangue.
sou Ciro.
Alexandre: Eu estou vivo.
Calístenes: Ciro foi morto por uma mulher.
Roxana: As flores morrem antes de nascer.
Roxana: Salvarei a sua vida, mas você se tornará escravo e não poderá
nem ler nem escrever. Alexandre: Não logro pensar, não logro sentir, não logro lutar, não lo-
gro existir.
Alexandre: Calístenes esquecerá Aristóteles e eu esquecerei Ciro.
Roxana: É fácil conquistar o mundo com violência.
Roxana: Eu sou o seu presente, sem passado nem futuro.
Alexandre: Quero um filho.

202 203
Roxana: Para ter um filho é necessário amar o próximo. PLANÍCIE
Externo dia
Alexandre: Eu amo você.
(p.g.) O exército indiano, nas costas de elefantes, avança contra as tro-
Roxana: Você ama a si mesmo. Eu sou um reflexo mágico no seu
pas de Alexandre.
espelho.
Música.
Alexandre: O amor é sonho.
Rumores.
Roxana: O sonho é felicidade. Atravessa as águas do Ganges, passa as
(p.p.) À frente, sobre o dorso de um elefante branco, está o legendário
montanhas do Himalaia...
e gigantesco Rei Poro.
Alexandre: Quero deixar um herdeiro.
Batalha de Alexandre contra o Rei Poro. Os gregos fogem por medo
Roxana: Você morrerá consigo mesmo. dos elefantes. Alexandre, cavalgando Bucéfalo, lança-se para o elefante
do Rei Poro. O elefante agarra Alexandre com a probóscide e abate Bu-
Alexandre: Eu quero ser eterno através dos meus filhos. Eu sou a carne
céfalo. O Rei Poro joga uma lança que atravessa o pescoço de Bucéfalo.
do meu povo.
Gritos.
Roxana: Você me ama e crê que amar seja uma fraqueza. Mas eu segui-
rei você e lhe darei todos os filhos do mundo. Rumores.

Música.
Externo dia
(p.p.) Alexandre, desesperado com a morte de Bucéfalo, grita.
(p.c.) O exército e a tribo de Alexandre.
Alexandre: A Grécia morre, mas as colunas de Hércules serão postas
Voz: No ano 326 a.C., Alexandre atravessa as grandes montanhas e
no coração da China, cavalaria, infantaria! Ao ataque, sem medo e sem
invade a Índia. Alexandre alia-se ao Príncipe Taxila, descobre Nisa –
piedade!
cidade fundada por Dioniso –, conquista a fortaleza de Aorno e prepa-
ra-se para enfrentar o Rei Poro na batalha do rio Hidaspe. (p.g. trav.) A cavalaria e a infantaria de Alexandre atacam o exército
indiano.
Aspectos do ambiente natural, sociedade e cultura indiana.
Música.
Música.
Externo noite
Voz: A Índia é um país sem história. Os homens trabalham para comer
e viver o prazer de Deus. (p.g.) A batalha continua.

204 205
Alvorada Alexandre: Quero conhecer o segredo da paz!
(p.g.) A batalha continua. Os gregos e os indianos estão cansados. Poro Poro: Quebre a sua lança e deixe que o amor flua das suas mãos.
comanda a batalha do alto de seu elefante.
Alexandre quebra a lança e grita aos seus soldados.
(p.p.) Alexandre dá ordens a seu Estado Maior.
Alexandre: Quebrem as armas! Quebrem as armas!
Alexandre: Os elefantes devem ser atingidos nos olhos com as flechas.
(p.g.) Muitos hesitam, mas Heféstion quebra a sua lança, seguido dos
Então, a cavalaria atacará os elefantes cegos, atingindo-os no ventre
outros, que repetem as palavras de Alexandre. Os elefantes recuam e a
com as lanças. guerra transforma-se em paz.
Rumores naturais. Sons naturais.
Música. Gritos dos soldados.
(p.m.) Alexandre recebe um arco de ouro que (ele) distende, mirando
os olhos do elefante do Rei Poro. MONTANHAS. DESERTO
Externo
(p.m.) Duas flechas atingem o alvo. O elefante corre, aos pulos, e der-
ruba Poro no chão. (p.g. trav.) Soldados de Alexandre e do Rei Poro.

(p.g.) Alexandre ataca com a lança o Rei, que se defende também com Gritos.
uma lança.
Rumores.
(p.m.) A luta é violenta e Poro, desarmado por um potente golpe, hip-
Música.
notiza Alexandre, gritando.
(p.m. trav.) O exército de Alexandre avança unido com o exército de
Poro: Pare de pensar por um segundo no cavalo Bucéfalo e ele
Poro. Combate, domina, saqueia, escraviza as tribos miseráveis dos
ressuscitará.
povos sem rei. Os vencidos são constrangidos a aceitar o Império de
(p.m.) Alexandre reage gritando. Alexandre.

Alexandre: Bucéfalo! (p.m. trav.) Povos submetidos, famintos, magros, ouvem em silêncio a
explicação do Rei Poro sobre Alexandre.
Poro: A Índia sacrificará os cavalos vermelhos aos Deuses.
Poro: Ele é Alexandre, o enviado do Ocidente. No Oriente não se come
Alexandre: Bucéfalo era um cavalo branco.
carne porque o animal é divino como o homem. No Oriente não se
Poro: Você voltará a Babilônia no dorso de um elefante vermelho. bebe o vinho que contamina o sangue. No Oriente come-se legumes e
cereais.

206 207
(p.p. trav.) Escravos carregam um trono de ouro, no qual Alexandre se Alexandre: A democracia para os meus oficiais! A escravidão para os
assenta, diante dos vencidos. Alexandre está vestido como um Marajá fracos!
e Roxana como uma Deusa indiana. O general Heféstion está vestido
como um general grego. Alexandre delira. Heféstion e Roxana tradu- Roxana: Democracia com um imperador divino.
zem as suas mensagens ao povo. Poro: Divino?
Alexandre: Na Índia existe uma monarquia sacerdotal que se recusa a Alexandre: O imperador divino está acima do povo e não representa
resolver os conflitos com a violência. um poder opressivo.
Roxana: O Rei Poro se defendeu da invasão de Alexandre e matou Poro: Você não é capaz de ser humilde?
Bucéfalo...
Roxana: Não!
Alexandre: Perdi o meu cavalo. Não sou mais um guerreiro.
Alexandre: Poro me ajudou a dominar os povos sem rei. Como posso
Roxana: Santo. lhe agradecer?
(p.p. pan.) O Rei Poro aproxima-se de Alexandre e fala. Poro: Quero ser tratado como um rei.
Poro: O nosso povo morre de fome porque se multiplica e não há co- Alexandre: Deus lhe trata como um rei. Deus se ocupa do Paraíso no
mida para todos. Céu e o Rei, do Inferno na terra. De agora em diante, Poro representa
Alexandre: Você é meu escravo, Poro. Os famintos são seus escravos. a minha pessoa na Índia. Agora começará a parte mais difícil da nossa
Eu como e não me preocupo com a fome. viagem, que é chegar ao mar, do outro lado do Rifasi.

Poro: A sua superioridade não lhe dá o direito de assassinar ou fazer Externo dia
escravos os mais fracos.
(p.g.) Os soldados gregos estão desesperados por causa do projeto de
Roxana: Ele quer libertar o homem da natureza. Alexandre de avançar mais em busca do Oceano Índico.

Poro: Tudo o que se liberta da natureza morre. Os soldados têm fome, estão doentes, feridos e querem voltar para a
Grécia.
Alexandre: O nada é uma coisa. A morte é outra. Quem falou da morte?
Soldado grego: Deixamos a Macedônia há doze anos e ainda somos
Roxana: Poro pede amor pelos famintos.
pobres.
Heféstion: Ele não conhece este mundo. Existe um regime político me-
Soldado: Doze anos?
lhor que a democracia grega?
Soldado: Dois anos a mais que a guerra de Troia...

208 209
Soldado: Ser soldado e ser ladrão é a mesma coisa. Alexandre: Todos querem voltar, mas eu quero ultrapassar o sol.

Soldado: Não sou um ladrão. Sou um saqueador. Soldado: Os mortos chegam ao sol?

Soldado: Eu assassino para viver. Alexandre: Voltem, e digam que me abandonaram sozinho nas mãos

Soldado: Alexandre assassina para ficar rico. do inimigo.

Soldado: Nós assassinamos para manter Alexandre. Soldado: Os asiáticos são os seus verdadeiros amigos. Você se conver-
teu à religião dos inimigos.
Soldado: Estou cansado de seguir um rei louco, que sacrifica os seus
soldados em nome da fantasia. Alexandre: Somos todos irmãos.

Soldado: Eu sou um soldado, você é o Rei.


Externo dia
Soldado: São os fracos que fazem o forte.
(p.m.) Alexandre fala com um grupo de soldados.
Alexandre: Não me considero Deus. Pensem em mim como um ho-
Alexandre: Quem falou da vida?
mem pobre e fraco. Façam silêncio. Meditem sobre um homem pobre e
Soldado: A única coisa que posso perder é a vida. fraco. Sou um homem pobre e fraco que deseja ultrapassar o sol.
Alexandre: Eu também.
TENDA
Soldado: Você pode perder primeiro o império.
Interno noite
Alexandre: A coisa mais importante é a vida. Você é mais livre porque (p.m. trav.) Alexandre chora estendido em almofadas. Roxana ofere-
luta para salvar a vida, enquanto eu luto para salvar o império. Reco- ce-lhe um prato, mas ele recusa. Alexandre está triste e desesperado.
nheço a razão dos meus soldados, mas quero explicar a minha.
Alexandre: Os gregos não me amam.
(p.m. trav.) Os soldados gregos gritam e se agitam.
Roxana: Os soldados não amam os guerreiros mortos.
Soldado: O Rei se humilha porque precisa dos soldados.
Alexandre: Como Aquiles, fui ferido por uma flecha no calcanhar.
Soldado: A Índia é a Troia de Alexandre.
Roxana: Os soldados são homens e os homens creem em Deus porque
Soldado: Quero voltar para a Macedônia. não são Deuses.
Soldado: Quero voltar para a Grécia. Alexandre: Você crê em mim?
Soldado: Queremos voltar. Roxana: Enquanto viver.

210 211
Alexandre: Penso na morte desde quando o exército decidiu não me Alexandre: Voltarei a Babilônia através do deserto da Gedrósia.
seguir.
DESERTO DA GEDRÓSIA
Roxana: Sem o exército, você não existe.
(p.g.) Por causa da miséria, confundem-se exército e tribos. Depois da
Alexandre: Devo renunciar. morte de Bucéfalo, Alexandre será visto sempre a pé.
Roxana: Você já conquistou o mundo. Vestido com a túnica birmânica, Alexandre parece um profeta, e não
um general. A seu lado, o profeta indiano Calano. Roxana, transfor-
Alexandre: Quero ver o mar.
mando-se em mãe da Ásia, ocupa-se com os mortos, os doentes, as
Roxana: Faça a vontade do exército e retorne a Babilônia. Durante a crianças.
sua ausência, as disputas e os persas estão levando o império a uma
Vozes.
grave crise.
Rumores.
Alexandre: O império não me interessa.
Vozes.
Roxana: Sem o império você morre.
A Gedrósia é o inferno. Nesse deserto vivem povos miseráveis. Os ani-
Alexandre: Deixemos a Índia sagrada entregue ao seu silêncio. mais morrem de fome e Alexandre decide sacrificar homens a Deus.
(p.m. trav.) Entra o general Heféstion e Roxana fala. Alexandre fala a Calano, depois de ter bebido a última gota d’água de
um odre de couro.
Roxana: Alexandre quer fundar uma cidade chamada Bucefalia.
Música.
Alexandre: Em homenagem ao meu cavalo. O Rei Poro matou o meu
cavalo. Eu não posso esquecer o meu cavalo. Alexandre: Calano... estão morrendo duzentas pessoas por dia.

Heféstion: Você deve ver o profeta Calano. Calano: É a sua desintegração.

(p.m. trav.) Roxana sai da tenda e Alexandre continua a falar com He- Alexandre: Tenho medo das nuvens carregadas de almas. Morte às al-
féstion, sempre mais delirante. mas! Morte às almas!

Alexandre: O Almirante Nearco construirá uma frota e retornará a Ba- Roxana ocupa-se com as crianças que estão morrendo de sede. Cre-
bilônia navegando do mar Eritreu ao Golfo Pérsico. púsculo. Alexandre olha o sol.

Heféstion: Que seja fundada uma Alexandria do Norte e uma outra do Alexandre: Além do sol, existem outros planetas, e nem mesmo Ícaro

Sul, de modo a fixar e tornar seguros os confins da minha lenda. poderá atravessar o labirinto universal.

212 213
Calano: É o infinito. Calano: Sacrifiquemos os homens a Deus.

Alexandre: O infinito é impensável. Alexandre: Ao sol, porque eu vejo o sol. Deus é somente uma ideia...
O sol... O sol...
Calano: O espírito está além do infinito.
Roxana: Que sejam sacrificados os doentes, os velhos, os fracos, os
Alexandre: Agora vejo os planetas que giram em torno do sol. Vejo
feios e os aleijados.
a terra, as florestas, os mares, as montanhas, as cidades e os desertos.
Vejo os homens da Europa, da Ásia e da África. Vejo do outro lado Alexandre: Sacrificados ao Deus Molock de Babilônia. Quem tem
do Extremo Oriente um país coberto de florestas iluminadas pelo sol. medo das maldições de Babilônia? Ciro conquistou Babilônia e está
Dentre todos os homens que existiram e que existem, eu sou o maior morto! Babilônia! Babilônia! Babilônia! Onde estão as imagens, as vo-
guerreiro e sábio. zes e a música de Babilônia?

Calano: Eu sou um homem pobre, humilde, que esqueceu a humanida- Calano, com um punhal, mata um homem, iniciando o sacrifício.
de. Vivo porque adoro Deus. Alexandre: Apagar o incêndio de Persépolis! Apagar o incêndio de
Calano toca o ombro de Alexandre. Persépolis! Quero ver minha mãe! Olímpia! Olímpia!
Homens, mulheres e crianças morrem na travessia. A tribo de Alexan- Calano mostra o fígado de um homem a Roxana e fala.
dre, em movimento, encontra outras tribos que vivem num estágio
Calano: A cor do fígado mostra que Alexandre saíra vivo do deserto.
inferior. Alexandre, Roxana e Calano entre os membros dessas tribos
atrasadas, que choram e pedem clemência. Roxana, com o fígado entre as mãos, vai a Alexandre.

Rumores. Roxana: Presságios favoráveis...

Música. Alexandre busca recuperar a lucidez.

Gritos. Alexandre: Falo, grito, canto, choro, sinto nascer milhares de órgãos,
de membros, de cabeças desconhecidas. Cada homem que morre corta
Alexandre: As lágrimas dos vencidos não me comovem. Se eu não sin-
um pedaço da minha carne. Sinto dores na cabeça, nos ombros.
to o que eles sentem, não posso ter piedade.
Calano dá um recipiente com o sangue a Alexandre, que bebe.
Roxana: Devem ser sacrificados aos Deuses porque os animais estão
mortos. Roxana: Continue a fazer sacrifícios até que ele tenha atravessado o
inferno.
Alexandre: O exército deve comer a carne dos vencidos.

214 215
Alexandre para diante do sol e provoca um eclipse. Roxana procura Alexandre ouve queixas dos nobres persas, dos sátrapas, dos generais.
contar os grãos de areia. O rosto de Alexandre é iluminado pelo sol O caos domina o império. Roxana, vestida à moda grega e mascarada
que renasce. como se fosse Olímpia, está cercada de sacerdotisas que buscam exor-
cizar as influências orientais sobre Alexandre.
Música.
Sátrapa: O tesoureiro Árpalo fugiu para a Grécia levando a maior parte
Roxana sorri.
do dinheiro.
Alexandre entre os cadáveres.
Nobre persa: Ele mandou esculpir uma estátua da prostituta Clitionice.
Alexandre, deitado no deserto, come areia e delira.
Olímpia-Roxana: E celebrou ritos em homenagem à prostituta Clicera.
Música.
Heféstion: O efebo Hermolau recebeu dinheiro dos atenienses para
Alexandre: Entendi o mundo, conquistei o mundo e estou só.
assassinar Deus.
Um grupo carrega uma maca com Alexandre desmaiado. Roxana e
Calano dirigem os cantos e os sacrifícios que pedem a Deus ajuda para Olímpia-Roxana: Demóstenes continua conspirando contra Deus e
salvarem-se. Aristóteles para enriquecer desfrutando da sua amizade.

Alexandre está distendido na maca, mas de repente levanta-se. Heféstion: A democracia grega não reconhece um imperador divino.

Alexandre: Se não tenho memória, devo imaginar o futuro... Dois sé- Olímpia-Roxana: Deus se esquece do homem e o homem se rebela
culos atrás, Ciro conquistou o mundo que ele conhecia. Eu conheci contra Deus.
mais que ele. Durante a minha vida, o espírito de Ciro me acompa- Heféstion: Os soldados querem voltar para a Grécia.
nhou. Mas ele ainda não está morto. Ele se tornou a minha realidade.
Alexandre: Quero que os soldados fiquem em Babilônia.
Roxana, venha, escute, venham todos...
Olímpia-Roxana: Você se casou e não teve filhos.
Os escravos, Roxana e outros aproximam-se de Alexandre.
Alexandre: Corrupção. Subversão! O Estado não pode existir se não
PALÁCIO DE ALEXANDRE EM PERSÉPOLIS se aplica a lei!
Interno dia/noite
Heféstion: Nenhum imperador é imune à traição dos comerciantes,
(p.g. trav.)
dos políticos e dos generais.
Cantos. Alexandre: Prisão, processo e justiça!
Música. Heféstion: Os crimes da política devem ser julgados secretamente.

216 217
Roxana-Olímpia: Você é o caminho, a verdade e a vida. Alexandre fala serenamente.

Coro: O caminho, a verdade e a vida. Alexandre: Não obstante os persas tivessem a hegemonia dos mares,
abri para vocês o Helesponto. Venci os sátrapas do grande Rei em Gra-
Externo dia
nico. Submeti as satrapias da Ásia Menor e deixei vocês gozarem dos
(p.g. trav.) Povo e soldados rezam diante das ruínas. Alexandre, com frutos da vitória. Distribuí entre vocês as riquezas do Egito e de Cirene.
uma túnica branca, seguido de Roxana-Olímpia e do coro. Caminha
Dei-lhes a Síria, Babilônia e Bactra. Dei-lhes os tesouros da Pérsia, os
entre o povo e aproxima-se da tumba.
objetos preciosos da Índia e o Oceano. Escolhi entre vocês sátrapas,
Alexandre: Sou o maior amigo do Rei de Pasárgada. generais e governadores. Que vantagem tirei de tantos combates fora
(p.m. trav.) Alexandre abandona o coro e entra nas ruínas em busca a púrpura e o diadema? Vocês dirão que vocês abandonaram este Rei,
da tumba de Ciro. deixando-o sob a proteção dos bárbaros vencidos. Essas coisas, quando
(p.g. trav.) Entre as ruínas, Alexandre encontra o túmulo de Ciro viola- vocês as contarem, farão de vocês gloriosos aos olhos dos homens e
do. A múmia está na terra e não mais envolvida nas faixas. farão de vocês amados pelos Deuses. Andem!

Alexandre envolve-a de novo, repõe-na no sarcófago e veste a túnica Alexandre sai da tenda. Os sátrapas ficam em silêncio.
de Ciro, que está rasgada e suja.
Heféstion fala.
(p.m. trav.) Alexandre-Ciro desce da tumba e aparece diante do povo
Heféstion: A partir de hoje, o exército está dissolvido!
e dos soldados que rezam.
Sátrapa: É a morte do estado.
(p.p.) Olímpia-Roxana sorri.
Heféstion: É a morte do Rei.
(p.m. trav.) O coro grego sorri como se fosse iluminado.
Heféstion começa a saudar os sátrapas e generais que festejam a disso-
(p.p.) Alexandre-Ciro iluminado pelo sol.
lução do Exército.
(p.g.) O povo em silêncio diante do esplendor de Alexandre-Ciro.
Heféstion morre atingido no coração.
(p.g. trav.) O profeta Calano dirige-se para o deserto, na direção de
um fosso. Externo dia
(p.m.) Alexandre chora e reza.
INTERNO TENDA
(p.m. trav.) Um modelo com o projeto de uma grande tumba. Alexan-
(p.g.) Gregos que ainda procuram conservar os próprios costumes. Os
dre fala com dois arquitetos.
Generais mais velhos querem retornar à Macedônia. O exército conti-
nua a rebelar-se. Quando se levantam em silêncio, outros ajoelham-se. Alexandre: Quero que a tumba de Heféstion seja a maior do mundo.

218 219
Protegido por essa tumba, ele ressurgirá. Devo ir a Babilônia. caminha um pouco, respirando, porque faz calor.

Arquiteto: Os magos fenícios disseram que o Rei deveria evitar (p.m.) Um homem pobre aproxima-se do trono, veste o manto real e
Babilônia. põe a tiara na cabeça.

Arquiteto: E também os oráculos persas. Música.


(p.g. trav.) Alexandre e os magos ficam paralisados por esse gesto.
Alexandre: Não quero fugir de Babilônia.
(p.p.) O homem com o manto real e a tiara de Alexandre.
Arquiteto: O oráculo disse que o primeiro a morrer seria Heféstion.
(p.p.) Alexandre, perplexo, murmura.
Arquiteto: E que o Rei não deve entrar em Babilônia olhando para o
Oeste. (p.p.) Roxana-Olímpia deitada. Alexandre procura beijá-la mas ela
não se move.
Alexandre: O melhor adivinho é aquele que prevê a sorte. Para entrar
Alexandre levanta-se do leito e bebe.
em Babilônia olhando para o Leste, é necessário contornar a cidade e
essa manobra cansará o exército. Alexandre: Você não me ouve, você não fala, você não me deu um filho
e por sua culpa perdi o controle do exército. Farei um grande casamen-
Arquiteto: O exército foi dissolvido.
to entre gregos e persas e Dinócrates construirá uma grande estátua
Alexandre: Não tenho soldados, tenho fiéis que me seguem. A minha minha com uma cidade de dez mil habitantes na mão direita, enquanto
vida não tem mais sentido. Sinto que o meu retorno a Babilônia é um um rio jorra da mão esquerda e desemboca no mar.
encontro marcado com a morte. Depois de ter esquecido a Grécia e
Enquanto Alexandre fala, aparece o modelo do projeto que nunca foi
renunciado à Índia, só me resta conquistar o mundo e encontrar as
construído.
mesmas tribos, as mesmas religiões, as mesmas intrigas e a mesma po-
(p.m.) Roxana-Olímpia e Alexandre-Ciro participam de um ban-
breza espiritual e física do homem. Meu pai foi assassinado num teatro.
quete junto com artistas, cientistas, poetas, músicos, escultores e
Minha mãe era uma Deusa. Minha esposa é o paraíso. Matei os meus historiadores.
amigos, outros estão mortos por mim. A filosofia de Aristóteles e a reli-
Alexandre demonstra seu interesse na criação de uma nova cultura.
gião de Calano explicam as mesmas coisas usando linguagens diversas.
Mas desapareceram as vestimentas gregas.
PÓRTICO DO PALÁCIO EM BABILÔNIA A tribo de Alexandre é uma síntese do Oriente e do Ocidente.
Externo
Alexandre-Ciro-Deus, os homens vivem felizes celebrando Dioniso,
(p.m. trav.) Alexandre está sentado no trono, ao lado de Roxana-Olím- Deus encarnado em Alexandre.
pia. Alexandre tira a tiara e o manto real, coloca-os sobre o trono e

220 221
Voz: Os gregos aprendem astronomia em Babilônia e na Índia, ana- Alexandre: Morrerei?
tomia e engenharia no Egito. Dos casamentos mistos nasce uma nova Roxana-Olímpia: Como o seu pai, como os seus amigos, como os seus
vida social. soldados, como se...
Cantos. Alexandre: Fugi da morte em todas as batalhas e não morrerei como
A montagem precedente, como num documentário televisivo sobre o Ciro, nas mãos de uma mulher, nem morrerei de doença.
passado, associa-se com o casamento coletivo entre gregos e asiáticos.
Roxana-Olímpia: O vinho é o sangue de Dioniso... se não fosse pelo
Alexandre: Que sejam sacrificados dez mil animais para glorificar a vinho, não suportaria o peso da minha consciência, que reprime o meu
morte de Heféstion. desejo de destruir o meu universo para ser livre de corpo e espírito.
Fogos de artifício, magia oriental.
TENDA DO REI DOS MEDOS
TENDA Interno noite
Interno noite (p.g.) Os últimos convidados partem. Alexandre está bêbado, caminha
(p.m.) Alexandre fala com Olímpia-Roxana. de um lado para o outro, mas não fala. O Rei medo permanece em
silêncio.
Música.
Alexandre tenta beber, deixa cair a taça, leva a mão à cabeça e cai.
Alexandre: A única coisa que posso fazer para reorganizar o exército é
(p.m.) Alguns escravos dão banho em Alexandre, que delira de febre.
conquistar a Arábia.

Roxana-Olímpia: Você pediu aos Deuses a eternidade e eles fizeram DESERTO


de você um mortal. Externo

Alexandre: Farei um grande banquete em homenagem ao almirante (p.g.) Roxana-Olímpia dá início ao ritual dionisíaco.
Nearco, que descobriu novas vias marítimas. Se eu ainda tivesse dez (p.p. trav.) Os soldados desfilam em silêncio.
anos, inventaria máquinas voadoras.
(p.m.) Alexandre, sentado no trono, tem febre, olha os soldados e
Roxana-Olímpia: Você se reconhecerá em profetas e guerreiros. saúda.

Alexandre: Triste imortalidade.


TENDA DE ALEXANDRE
Roxana-Olímpia: O homem morre sozinho. Interno
(p.g.) Alexandre está deitado. Roxana-Olímpia está a seu lado.

222 223
Alexandre está morrendo. DESERTO
Interno dia
Alexandre: Mandei oitocentos talentos de ouro a Aristóteles para que
fundasse uma Academia de Ciências... Você me ama? (p.g.) Alexandre caminha no deserto e olha o céu.

Roxana: Sim. Vento no deserto.

Alexandre: Você é Olímpia? Música.

Roxana: Olímpia está no Paraíso com Dioniso. O sol brilha em seu rosto e Alexandre desaparece no horizonte.

Alexandre: Sinto que a luz do meu espírito se apaga, sinto que as ener- (p.p.) Homens, mulheres e crianças montados com as imagens de Ale-
xandre, que desaparece no deserto.
gias abandonam o meu corpo.
(p.p.) Roxana-Olímpia.
Roxana: A sua alma é mais forte que a sua vontade.
Voz: Alexandre morre no ano 323 a.C.
Alexandre: Eu e a minha alma somos a mesma coisa. Saia, Roxana, não
quero que haja testemunhas da minha morte. Música.

Roxana deixa Alexandre.

Sai.

Alexandre agoniza.

TENDA
FIM

Interno noite
(p.p.) Alexandre dorme inquieto, como se tivesse um sonho.

Ciro no céu.

DESERTO
Externo
(p.g.) As tribos acampadas veem Alexandre, com a tiara e o manto de
Ciro, saudar Roxana-Olímpia, todos os Deuses e Heróis, os generais, e
partir sozinho no deserto.

224 225
GLAUBER E OS
GREGOS: Proponho neste comentário mapear as fontes gregas usadas por
Glauber Rocha para construir sua saga sobre Ciro da Pérsia e Alexan-

A PROPÓSITO DE
dre da Grécia em O Nascimento dos Deuses, naturalmente não para ve-
rificar sua maior ou menor fidelidade a elas, mas para perceber como

O NASCIMENTO
ele as usa em função de seu próprio projeto poético e cinematográfico.1
Há três alertas iniciais ao leitor. O primeiro, que lidamos não
com um filme, mas com um roteiro, ou seja, a etapa inicial do que po-

DOS DEUSES deria conduzir a um filme, o que, todavia, já constitui uma poética.
O segundo, que se tratando de um roteiro que, pelo menos de início,
tem como objetivo levar à tela episódios da história antiga, adaptando
JACYNTHO LINS BRANDÃO
textos literários e historiográficos gregos, isso supõe vários processos
de intermidialidade, envolvendo operações em termos de expansão,
modificação, transposição e citação (cf. RYAN, 2013, p. 100-102). Fi-
nalmente, o mais importante, que não tem sentido cobrar de Glauber
algum tipo de “fidelidade” a suas fontes, pois ele trabalha da perspectiva
do herdeiro (neste caso, da chamada “tradição clássica”), que pode e
deve, com inteira legitimidade, selecionar aquilo que lhe interessa na
herança recebida, descartando o que não o afeta e colhendo o que lhe
parece fazer sentido – não sendo de outro modo que, aliás, os próprios
escritores gregos lidavam com a tradição, produzindo um corpus cuja
marca principal está na diversidade. Assim, meu esforço estará focado
exclusivamente em buscar perceber as diferentes camadas de entrechos
e motivos procedentes dos antigos que confluem em O Nascimento dos
Deuses.

1 Agradeço a Mateus Araújo a primeira leitura deste texto e suas ponderadas sugestões.

226 227
O PROJETO O NASCIMENTO DOS DEUSES
Como convém a um filme da MAPA2
Principiemos com as informações sobre o que se pretendia ini- I – A origem da família, da propriedade privada e do Estado na Grécia,
segundo Engels, narrado por Xenofonte exilado numa ilha sáfica em ple-
cialmente, ou seja, qual foi a encomenda da Rádio Televisão Italiana
na decadência grega. Xenofonte conta no estilo homérico a história de
(RAI), para que se possa, em seguida, apreciar quanto do projeto inicial
CIRO I.
foi mantido e quanto foi modificado. Esse é um aspecto de especial II – CIRO I – A infância e a Adolescência de CIRO I. Antropologia histó-
importância, pois um artista diz muito de si no modo como se com- rica: a educação para o poder patriarcal identificado a Deus.
porta quando cria por encomenda, mantendo ou não a coerência com III – CIRO I – Maturidade, Velhice e Morte. Consolidação por guer-
as obras produzidas livremente. ras econômicas do Império Persa que é o maior da Antiguidade. Im-
No livro publicado pela RAI em 1981, Glauber afirma que, “em perialismo, etapa superior do capitalismo. Tem mais!!! A Conquista de
Babilônia!!!
agosto de 1973, durante o meu exílio em Roma, fui convidado por Al-
IV – HOMERO – A Grécia é o Império Ocidental. Oriente e Ocidente. Os
berto Luna a escrever um ensaio sobre Anábase, inspirado no famoso
grandes acordos de coproduções mitológicas. Édipo vem do Egito fazer
texto grego de Xenofonte”. Em carta a Zelito Viana, de 6 de janeiro de teatro oficial repressivo anti-incestuoso em Atenas. O modelo democráti-
1974, ele dá mais detalhes sobre a proposta: co emedebista, os intelectuais de direita (Platão), de esquerda (Sócrates),
a fofoca subdesenvolvida, o acordo dos Deuses com o capital. Os bravos
A RAI me telefonou e propôs o seguinte: fazer um filme de seis horas guerreiros de Esparta são jagunços. Clearco Antônio das Mortes contrata
sobre a obra de Xenofonte – CIROPEDIA e ANÁBASIS –, a primeira rela- 10 mil mercenários e partem para a Pérsia, levando Xenofonte como cro-
tando CIRO I, criador do Império Persa, e o segundo a invasão que os es- nista militar = os sertões no deserto ou no Cocorobó dá no mesmo: mas
partanos fazem na Pérsia, anos depois, para conspirar com CIRO II, filho desta vez tem dez mil extras, todo o exército persa à minha disposição.
de Dario, neto de CIRO I, contra o seu irmão Artaxerxes, que lhe usur- V – ÁSIA MENOR – CIRO II, de 22 anos, no auge do esquerdismo mís-
para o trono. Artaxerxes ganha a guerra e os mercenários gregos, coman- tico, avança com os dez mil espartanos contra Artaxerxes e morre de-
dados pelo próprio Xenofonte, que de Euclides da Cunha (era o Caminha capitado. Clearco é morto e Xenofonte toma o comando dos espartanos
de CIRO II) se transforma em Ulisses e faz uma viagem de volta para a vencidos e volta guerreando pelos caminhos de Ulisses até a Grécia.
Grécia, onde chega quando Sócrates estava sendo condenado por esquer- VI – DECADÊNCIA DA ANTIGUIDADE. RENASCIMENTO – Quan-
dismo e a direita platônica tomando o poder. (ROCHA, 1997, p. 475) do Xenofonte chega à Grécia, Sócrates está sendo condenado. Xenofonte,
porque era sofista, foge e é perseguido de ilha em ilha até conseguir uma
Assim, a encomenda é bastante clara: compor uma série em seis onde descansa, velho, e escreve os dois livros sobre os quais o filme se
episódios a partir das duas obras de Xenofonte. Isso é ainda mais deta- baseia. Prevê a decadência da Grécia e uma renascença no Imperialismo

lhado na mesma carta, na seguinte sinopse: 2 Referência à companhia produtora “Mapa filmes”, criada, em 1965, por Glauber, Zelito Viana,
Walter Lima Jr., Paulo César Saraceni e Raymundo Wanderley Reis.

228 229
Romano. O filme termina com a primeira invasão Romana na Grécia. mente ‘expedição’, em geral partindo da costa para o interior, havendo,
(ROCHA, 1997, p. 477). portanto, separadas por cerca de meio milênio, a anábasis dos dez mil,
narrada por Xenofonte, e a anábasis de Alexandre, narrada por Arria-
Nesta sinopse, observe-se que são três episódios dedicados à no. Acredito que não seja especular em excesso supor que Glauber, na
Ciropedia, seguidos de outros três sobre a Anábase. Ressalte-se tam- pesquisa para o filme, tenha topado, partindo da Anábase da encomen-
bém que o título do filme já está dado: O Nascimento dos Deuses. Con- da, a de Xenofonte, com a não encomendada, a de Alexandre, modi-
tudo, como declara o próprio Glauber no prefácio da publicação de ficando então o plano da obra, porque desde o início está interessado
1981, “mergulhei nos mitos fundamentais do pré-cristianismo, Ciro na questão Oriente-Ocidente, como se registra já na primeira sinopse.
da Pérsia e Alexandre da Grécia”, ou seja, como de fato acontece, uma Esse processo nada tem de absurdo, tratando-se de um autor curioso e
personagem não prevista inicialmente termina incluída no projeto: erudito, em que o trabalho de pesquisa parece ser uma constante.3
Alexandre Magno. Verificada a mudança de planos pela descoberta de Alexandre,
Inclusão é o termo adequado neste caso, pois, em termos tempo- uma pergunta é o que acontece com a anábasis dos dez mil, que ocu-
rais, Alexandre foi posto no intervalo que, na primeira sinopse, levava paria os três últimos episódios do filme. A solução foi a mais simples
diretamente de Xenofonte velho numa ilha, prevendo a decadência da possível: fechando o último episódio sobre Ciro, a voz a que compete a
Grécia (séc. 4 a. C.), ao Imperialismo Romano, com a primeira invasão narração em vários pontos do roteiro relata:
dos romanos ao território grego (séc. 2 a. C.). É como se, elaborada
uma ideia inicial sobre o filme, Glauber tivesse descoberto que, depois Voz: Depois da morte de Ciro, em 529 a. C., o filho Cambises conquis-
de Xenofonte, não veio a decadência, mas um apogeu, com o império tou o Egito, em 525 a. C. Dario I, em 451 a. C., consolidou o império.
de Alexandre. A percepção de que, após o quinto século a. C., o perío- Em 401 a. C., Ciro II contava com 10.000 mercenários gregos e ia con-
tra o irmão, o imperador Artaxerxes, com o objetivo de depô-lo e de
do tradicionalmente chamado de clássico, teria vindo a decadência da
substituí-lo no trono imperial. Ciro II terminou vencido na batalha de
Grécia era um lugar comum oitocentista bastante difundido, compar-
Cunaxa e as tropas de mercenários gregos, entre os quais se encontra-
tilhado tanto por historiadores da Antiguidade quanto por filósofos, va o historiador grego Xenofonte, foram constrangidas a uma difícil
como Hegel e Nietzsche. retirada que abriu um novo caminho entre a Grécia e a Ásia. Em 334
O que desejo salientar é como, no percurso de concepção do fil-
me, Glauber procedeu a uma autêntica descoberta, talvez impulsionada 3 Marília Rothier Cardoso, em Glauber, “fabulista fabuloso”, trabalhando com os arquivos do
autor, em que se conservam muitos inéditos, chama a atenção para o paciente trabalho de
pela existência de uma segunda obra grega intitulada Anábase, neste pesquisa que cercou a composição de cada uma de suas obras, levadas a cabo ou não: “O brilho
caso dedicada a Alexandre Magno, escrita pelo historiador Arriano da solução de momento foi garantido por horas de pesquisa, reflexão e revisões. Esse lado labo-
rioso do artista, que desmancha sua imagem de gênio intuitivo [...]. Foi no exercício seletivo da
de Nicomédia, no século 2 d. C. Em grego, anábasis significa simples- curiosidade intelectual e estética que Glauber se aparelhou para interferir de modo consistente,
mesmo que precário, na ordem da sociedade brasileira.” (CARDOSO, 2010, p. 64).

230 231
a. C., o Império persa atravessava uma grave crise econômica e política dições jamais imaginadas por mim, acaso e baianidades”; “um milhão
devido aos arbítrios dos governadores militares, cuja ação consistia es- de dólares ou mais!!! O tal milhão de Hollywood saiu pela RAI sem
sencialmente no desfrute das riquezas naturais mediante o trabalho dos
que eu pedisse! Como é o Setor Cultural quem produz, o filme não
escravos e na imposição de pesados tributos aos proprietários de terra e
tem compromissos comerciais: logo, um milhão de dólares e liberdade
aos comerciantes das cidades. O caráter do império fundado por Ciro
para perpetrar um miúra” (1997, p. 474-475). Em novo passo na dire-
degenerara logo em domínio absoluto da divina monarquia persa, que
não tinha outro objetivo senão o de acumular riquezas para financiar o ção da realização do filme, conforme informa Ivana Bentes, “de Roma,
luxo de Dario III e da numerosa corte de militares e administradores. A Glauber parte para o Egito e Grécia, em 1974, com a atriz Juliet Berto,
civilização grega estimulava nas colônias persas um desejo de indepen- procurando as locações para O Nascimento dos Deuses [...] e diz num
dência que ia crescendo com a aproximação de Alexandre, portador de postal que ‘o Egito é um Nordeste’” (BENTES, 2005). Considerando
promessas de revolução econômica, política e cultural.4
tudo isso, a par do argumento de que o roteiro apresentado à RAI exi-
giria investimento avultado na produção do filme (cf. FEIJÓ, 1996, p.
Como se vê, todo o conteúdo do que seriam os três episódios
72), com cenas de batalha envolvendo milhares de figurantes e figurino
finais terminou resumido a duas frases (o trecho que assinalei com ne-
à altura do fausto dos reis postos em cena – o que não parece ser im-
grito na citação). Como consequência da mudança de planos, o gancho
peditivo, pelo menos à primeira vista, a considerar o que diz o próprio
que permite passar para a segunda parte é dado não mais pela deca-
Glauber –, não creio despropositado aventar que possa ter interferido
dência da Grécia, mas pela decadência do próprio império persa, mer-
nos planos da emissora italiana, levando à não realização do filme, a di-
gulhado no despotismo de uma monarquia divina e de uma oligarquia
ferença entre a encomenda e o roteiro, ou seja, entre um filme histórico,
interessada só em acumular riquezas, o que dá azo ao surgimento de
adaptação de dois textos literários para a televisão, e a obra de cunho
Alexandre como “portador de promessas de revolução econômica, po-
profundamente autoral que disso resultou.
lítica e cultural”.
Desde o início Glauber tem plena consciência do quanto pre-
Ressalte-se que essa é uma mudança estrutural de extrema im-
tende atender e não atender às expectativas da encomenda:
portância, na medida em que subverte inteiramente a concepção ini-
cial, permitindo especular sobre os motivos que impediram a passagem Diante destas circunstâncias – um filme sobre antigas civilizações do Oci-
do roteiro ao filme, algo com relação a que Glauber parece, de início, dente (Grécia) e Oriente (Ásia Menor) –, transferi a Idade da Terra (Paulo
bastante otimista, conforme a mesma carta a Zelito Viana: “Restou-me Martins das Mortes rides again...) por este novo Deus e o Diabo nos de-
a RAI, sob direção das esquerdas demo-cristianas nas melhores con- sertos do Saara – é um filme de cangaceiros. Paulo Martins é Xenofonte,
CIRO I é Lampião e CIRO II Barravento, logo viajo à ancestralidade mais
ou menos seguro dos resultados porque o que me interessa é desmistificar
4 Todas as citações de O Nascimento dos Deuses são tomadas de minha tradução, publicada
neste volume. mitologias greco-orientais, mostrar que por baixo de Olympos e Templos

232 233
reinava o patriarcalismo escravocrata, primeiras solidificações do capi- dizer que o objetivo de ambos fosse incompatível, pois, considerando
talismo. O que a RAI não sabe é que vou com os alemães em cima do como Ciro pôde governar tantas nações, “embora não falassem a sua
assunto, o que é para mim absolutamente fascinante na possibilidade de
língua, nem a mesma umas e outras, não obstante pôde estender sua
materializar as estruturas claras das civilizações de Oriente e Ocidente,
autoridade sobre tão vasta região pelo temor que infundia” e “soube
levando à máxima radicalização linguística a estética revolucionária po-
incutir tal desejo de ser-lhe agradável, que preferiam sempre ser gover-
pular televisada. Resisti à indústria e ao underground e caí nessa boca
que só abriram aqui pro Rossellini. Será que o filme sai bom? (ROCHA, nados pelo seu arbítrio”, Xenofonte busca a explicação para isso investi-
1997, p. 476). gando “quais os antecedentes, quais os dotes naturais e qual a educação
que o tornaram tão apto a governar homens” (Ciropedia 1).5 Conforme
CIRO, LUA DO ORIENTE o próprio título do livro – Kyropaideía –, é na educação (paideía) de
Ciro que Xenofonte pretende encontrar a razão para seu sucesso como
Xenofonte, que na sinopse original teria um papel destacado fundador de um vasto império.
como personagem narradora, o que equivaleria a atribuir-lhe uma cer- No momento em que escreve, Xenofonte pretende, decerto,
ta autoria ficcional do filme, tem seu nome mencionado, na versão final contrapor a figura do “Grande Rei” persa – e não só Ciro – à experiên-
do roteiro, não mais que uma vez, no trecho narrativo (já citado) que cia dos regimes democrático e oligárquico conhecidos pelos gregos, ou
fecha a parte dedicada a Ciro. Do mesmo modo, fornece ele argumento seja, apresentar um governante justo, na figura de um bárbaro, serve
para o roteiro apenas com a Ciropedia, a sua Anábase tendo sido in- como ponto de observação com relação aos vícios próprios das cida-
teiramente descartada, desobrigando-se dela Glauber com o resumo des gregas, em especial Atenas. Conforme as palavras de abertura da
de duas frases já referido. Não resta dúvida, contudo, de que a Cirope- própria Ciropedia, “certa vez me pus a refletir em quantas democra-
dia é a base da parcela maior da primeira parte do roteiro – “Ciro, lua cias foram dissolvidas por nações desejosas de viver sob outro regime
do Oriente” –, a qual, conforme a apreciação de Gian Luigi Rondi, em e não sob o democrático e, doutro lado, quantas monarquias e quantas
contraste com a segunda, apresenta “uma simplicidade de enunciados oligarquias têm eliminado a massa popular” (Ciropedia 1). Assim, não
e um imediatismo de signos que recordam, quase, a crônica televisiva se trata de uma simples biografia, mas de uma obra política, voltada
de Roberto Rossellini” (RONDI, 1981, p.12) – talvez correspondendo para o público ateniense, a qual, no elogio de Ciro, critica os gregos.
mais ao que almejava a RAI. Também em outro livro, o diálogo socrático intitulado Econômico, Xe-
A presença da Ciropedia como hipotexto de “Ciro, lua do Orien- nofonte reitera sua admiração pelo Grande Rei: segundo Sócrates, ele
te” dá-se a ver com bastante clareza no início do roteiro, sendo impor- se apresenta como modelo de equilíbrio entre o público e o privado, de
tante observar, contudo, como Glauber, já no que diz respeito ao rei
persa, vai pouco a pouco se libertando de Xenofonte. Isso não quer 5 As citações da Ciropedia de Xenofonte se fazem na tradução de Jaime Bruna (XENOFONTE,
1965).

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tal modo que, “por julgar que a agricultura e a arte bélica estão entre Ciropedia O Nascimento dos Deuses
as mais belas e necessárias, dá muita atenção a ambas”, não só fiscali- O mestre me designou para juiz Ciro: O que é a justiça?
zando os exércitos como as plantações, cuidando que “haja jardins, os dos outros, como alguém já bem (p.m.) O velho preceptor, auxiliado
competente em justiça. E, sabes? só por alguns colaboradores e sempre
chamados paraísos, cheios de tudo o que de belo e bom a terra costu-
uma vez apanhei por uma sentença circundado pelos garotos, põe o ga-
ma produzir” (Econômico 4, 4, 13). O próprio Ciro teria confessado errada. O caso foi o seguinte: um roto maior, que veste uma camisa
a Lisandro: “jamais vou jantar antes de suar fazendo um exercício de menino grande, que tinha uma tú- pequena, diante de um garoto menor,
guerra ou um trabalho agrícola”, obtendo como resposta: “penso que nica curta, tirou a túnica comprida que veste uma camisa grande. Os ga-
dum menino pequeno, pôs nele a rotos trocam as camisas. O preceptor
és feliz e isso é justo” (Econômico 4, 4, 21-25). No mesmo ambiente dos
sua e vestiu a dele. Eu, julgando o pergunta a Ciro.
que escrevem diálogos socráticos, pode-se considerar que o rei-filósofo caso, achei mais acertado ter cada Preceptor: Para você, Ciro, eles de-
da República de Platão tem como pano de fundo a figura idealizada do um a túnica que lhe servia. Então vem trocar entre si a camisa ou não?
Grande Rei persa.6 o mestre me bateu, dizendo que, (p.p.) Ciro.
quando eu fosse decidir o que as- Ciro: Que cada um vista a camisa
sentava bem ou mal, procedesse da- que fica melhor.
A CIROPEDIA COMO HIPOTEXTO
quele modo, mas, quando tivesse de Preceptor: Antes de pensar se a ca-
julgar a quem pertencia a túnica, o misa é ou não na medida do corpo,
Seguindo essa linha de raciocínio, no início da primeira parte que devia averiguar era de quem era você deve saber que o homem deve
de “Ciro, lua do Oriente”, Glauber concentra-se na educação de Ciro, a posse justa, se de quem a possuía trabalhar para obter uma camisa
por a ter tomado à força ou se de na medida do seu próprio corpo.
tomando de Xenofonte os dados de que, na Pérsia, “na praça da Li-
quem a mandara fazer ou compra- O homem que, precisando da ca-
berdade, os homens, dos meninos até os velhos, preparam-se para as ra. Uma vez, acrescentou ele, que o misa, mata ou rouba para obtê-la
funções administrativas requeridas pelo Estado”, dividindo-se em qua- legal é justiça e o ilegal violência, en- está agindo contra a lei que proíbe
tro grupos: “os garotos, os jovens, os adultos, os velhos”; e de que a sinava o juiz a dar o seu voto sempre o assassinato e o furto. Você deve
de acordo com a lei. aprender que cada ação segundo a
educação, entre os persas, tem como fim ensinar aos jovens a justiça,
lei é justa, enquanto toda ação con-
assim como – acrescenta Xenofonte –, entre nós, os meninos vão à es-
tra a lei é injusta. O juiz deve julgar
cola “para aprender as primeiras letras” (Ciropedia 2). Para ilustrar isso, segundo a lei e segundo as razões
Glauber introduz logo o episódio que o próprio Ciro narra a sua mãe dos que acusam.
no capítulo 3 da Ciropedia, valendo confrontar os dois textos, para que
se verifique como se dá a transposição intermidiática:

6 Em resenha à tradução do Econômico por Anna Lia Amaral de Almeida Prado, comentei bre-
vemente o papel da figura do Grande Rei em Xenofonte e Platão (cf. BRANDÃO, 1998/1999).

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Como se vê, o procedimento adotado por Glauber configura costumes persas ao luxo dos medos, parece que Glauber não quis dar
uma transposição relativamente simples, que recupera o que há de mise ao roteiro uma feição anedótica, selecionando apenas o que servisse a
en scène no relato de Ciro, mesmo que optando por uma apresentação seu objetivo geral. Da estada de Ciro na Média, ele mantém o conselho
em que o objetivo didático fica mais destacado (uma vez que o menino de Mandane ao filho (“Entre os medos não vigem as mesmas leis que
maior não tirou a túnica do menor, mas foi o preceptor que mandou na Pérsia. Astíages é o senhor absoluto da Média, enquanto na Pérsia
que trocassem as camisas para ilustrar o problema proposto a Ciro), a seu pai governa segundo a lei e não segundo sua própria vontade. Você
conclusão com respeito à justiça sendo só em parte a mesma – “o juiz deve aprender a ser Rei, e não tirano”)7, além da primeira incursão do
deve julgar segundo a lei” –, pois Glauber acrescenta a isso que também jovem príncipe contra alguns assírios que invadem o território medo
deva considerar “as razões dos que acusam”, sugerindo que nem sempre para caçar.
a propriedade legal deve se sobrepor ao uso. Significativos são também os acréscimos de Glauber, como
Respeitados os procedimentos intermidiáticos, pode-se dizer quando, durante o banquete de Astíages, perguntam à filha de Ciaxares
que o mesmo literalismo marca as cenas relativas à infância de Ciro: com quem queria ela se casar quando tivesse crescido, obtendo como
a visita ao avô Astíages, rei dos medos, o confronto dos hábitos medos resposta: “Ciro”, este retrucando que, “depois que eu tiver conquistado
com os persas, a diferença entre o modo de governar de Cambises, pai o mundo, casarei com você”, o que leva às considerações do menino so-
de Ciro, e o modo de governar de Astíages. Assim, a título de exem- bre esse ideal de conquista: “As terras não pertencem aos homens, mas
plo, ao encontrar este último e ser interrogado sobre quem considerava aos Deuses. Se as tribos vivem em luta umas com as outras, é melhor
mais belo, o pai ou o avô, Ciro sai-se com esta, em cada uma das ver- que uma só tribo domine as outras e instaure um governo justo. [...]
sões: “Mãe, entre os persas, meu pai é o mais bonito e muito, mas, entre Quando eu crescer, unirei a Pérsia e a Média e construirei um grande
os medos que vi até agora nas ruas e em palácio, quem é extremamente império” – o que responde bem à perspectiva glauberiana de enfatizar
belo é aqui o vovô” (Xenofonte) / “Meu pai é o homem mais bonito que desde logo a globalização do Oriente Próximo sob o poder de Ciro,
conheço entre os persas; mas entre os medos o mais bonito é o meu apresentando-a como uma missão.
avô” (Glauber Rocha). Não tenho como colacionar sistematicamente texto e hipotex-
Observe-se que Glauber não aproveita todas as cenas apresen- to, os exemplos dados sendo suficientes para mostrar como Glauber
tadas por Xenofonte, por exemplo a relativamente longa e bastante fa-
mosa que se detém no banquete de Astíages e nas tiradas e perfórman- 7 Compare-se com Ciropedia 2, 3: “Porém, filho – volveu Mandane –, não são os mesmos os
direitos admitidos na terra de teu avô e na Pérsia. Ele, com efeito, se fez senhor de todas as
ces de Ciro nessa ocasião, as quais, como o que se costuma contar de coisas na Média, enquanto na Pérsia considera-se justiça a igualdade de direitos. Teu pai é o
primeiro a cumprir os preceitos constitucionais e a aceitá-los; não procede na medida de sua
crianças, dão margem ao riso bem-humorado dos adultos (Ciropedia 1, vontade, mas da lei. Vê lá, portanto, não venhas a morrer de pancadas, quando estiveres em
3). Mesmo que esse episódio tenha a função de contrapor os austeros casa, indo daqui educado por ele no sistema não da realeza, mas da tirania, que implica o prin-
cípio de possuir mais do que todos”.

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segue, sem dúvida, Xenofonte, selecionando momentos significativos com o sobrinho; a conquista de Sardes e a amizade com Creso; a morte
que lhe permitem (ou permitiriam) construir uma narrativa cinema- de Abradatas, marido da Dama de Susa, e o suicídio desta; a conquista
tográfica coerente. Isso se aplica, na primeira parte de “Ciro, lua do de Babilônia. Finalmente, na terceira parte, o hipotexto de Xenofonte
Oriente”, além de aos episódios já referidos, também àqueles relativos é deixado de lado, o roteiro fornecendo informações rápidas sobre a
à organização do exército; às tratativas com o rei da Armênia, à aliança consolidação e organização do império,9 para frisar a divinização de
com ele e ao papel de seu filho Tigranes; à incursão contra os caldeus Ciro e sua morte na campanha contra os masságetas, nem uma nem a
e posterior aliança com eles; às tratativas com o rei da Índia; ao ataque outra fazendo parte da Ciropedia.
aos assírios; à Dama de Susa; à aliança com Góbrias. De destacar, na
mesma parte, a exata percepção, da parte de Glauber, daquilo que dava EXPANSÕES PROCEDENTES DE HERÓDOTO

consistência ao mundo governado pelo Grande Rei, o que se costuma


chamar de “império tributário”, ou seja, um ente político multicultural, Os acréscimos à Ciropedia são de duas ordens: os que o roteiro
baseado em conquistas, em que os conquistados, todavia, podem man- toma de outro autor antigo, Heródoto; e os autorais, da lavra do próprio
ter suas línguas e costumes, desde que se recolham, pelas próprias elites Glauber, de que tratarei na parte final destes comentários. No primeiro
locais, os tributos devidos ao monarca.8 Assim, logo depois de firmada caso, são três os momentos em que se inserem no hipotexto de Xeno-
a aliança entre persas, medos, caldeus e armênios, interrogado pelo rei fonte elementos procedentes das Histórias de Heródoto, cada um deles
destes últimos sobre a possibilidade de que o pacto tributário com os em cada uma das três partes de “Ciro, lua do Oriente”.
caldeus não fosse cumprido, Ciro determina: “Resolveremos a questão Na primeira, Glauber toma de Heródoto a história de como As-
assim: tanto os caldeus quanto os armênios terão que me pagar uma tíages, alertado por dois sonhos sobre o fato de que seria deposto por
parte dos aluguéis recebidos. Se um não me pagar porque o outro está um neto, manda matar o menino recém-nascido, entregando-o a um
atrasado, eu venho cobrar o débito e punir quem não respeitou o pacto”. parente de confiança, Hárpago, que, todavia, se apieda da criança e a
Pode-se dizer que é esse acordo que funda o império de Ciro, tanto que
ele conclui: “Sacrifiquemos aos Deuses para celebrar a união entre a 9 Assim, a “Voz” encarregada da narração esclarece: “Ciro confiou a Megabizo o governo da
Arábia, a Artabata o da Capadócia, a Artacanas o da grande Frígia, a Crisantas o da Lídia e da
Caldeia, a Armênia, a Média e a Pérsia”. Jônia, a Farnuco o da Eólida, a Góbrias o da Assíria e de Babilônia, a Tigranes o da Armênia. A
Na segunda parte de “Ciro, lua do Oriente”, Glauber segue tam- pedido do povo da Cilícia, de Chipre e da Paflagônia, deixou que eles nomeassem os próprios
governadores”. Acrescenta ainda a mesma Voz, pouco mais adiante: “Todas essas províncias,
bém Xenofonte ao apresentar a aliança entre o rei persa e Gadatas, que chamadas satrapias, dependiam diretamente de Ciro, através dos vários governadores que lhe
eram fiéis e lhe remetiam os rendimentos produzidos pela agricultura, pela indústria e pelo
havia sido castrado pelo rei assírio; a rixa e a reconciliação de Ciaxares comércio. O império de Ciro estendia-se, a Oriente, até o Ponto Euxino e, a Ocidente, até Chi-
pre. Ciro estabeleceu a sede de seu governo no centro desse território, e passava os sete meses
de inverno em Babilônia e o verão em Ecbátana. Por isso se dizia que Ciro vivia no frescor de
uma vida sempre renovada. Ciro recompensava todos os presentes e favores que os amigos lhe
8 Para uma visão pancrônica do “império tributário”, SELDEN, 2012. faziam e o povo o chamava de pai, por causa de seu senso de justiça”.

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entrega a um boiadeiro, cujo filho nascera morto; quando adolescente, menino ficou grande, reconheci nele o filho de Mandane, ou seja, você.
por sua altivez, Astíages reconhece o neto e vinga-se de Hárpago, ma- Para me vingar de Hárpago, matei o filho dele e, então, o convidei para
um banquete. Depois que Hárpago tinha comido, revelei a ele que tinha
tando seu filho e dando-o de comer ao próprio pai (Histórias 1, 107-
comido a carne do seu filho e lhe mostrei a cabeça e as mãos cortadas. No
119). Essa versão do nascimento de Ciro é inteiramente incompatível
fim do sonho, você me derrotou numa batalha e se tornou Rei da Média.
com a de Xenofonte, mas parece que Glauber foi atraído por ela em
vista de um dos sonhos pressagos de Astíages:
A segunda inclusão de relato tomado de Heródoto ocorre na se-
gunda parte de “Ciro, lua do Oriente”, quando Creso refere ao rei persa
Sucedeu-lhe [a Ciaxares], no trono, seu filho Astíages. Este tinha uma
filha, a quem pôs o nome de Mandane. Em sonhos, o rei viu-a urinar
sua devoção pelo Apolo délfico e a traição do deus (“Ciro: Sei que você
com tal abundância que lhe inundou a cidade, e mesmo a Ásia inteira fi- é amigo do Oráculo de Delfos e sei da sua devoção ao Deus Apolo. Você
cou submersa. [...] Logo no primeiro ano do casamento de Mandane com pensa que os Deuses gregos são mais poderosos que Ahura Mazda?
Cambises, Astíages teve outro sonho: parecia-lhe que, do sexo da filha, Creso: Celebrei muitos sacrifícios a Apolo, mas perdi a guerra, tenho
nascia uma vinha, e que esta cobria toda a Ásia. (Histórias 1, 107-108) um filho mudo, enquanto um outro está morto.”).10
Todavia, a mais importante das intrusões das Histórias no rotei-
O próprio fato de tratar-se de sonhos deve ter sugerido a Glau- ro encontra-se no relato da morte de Ciro durante a campanha contra a
ber como resolver o problema da incompatibilidade entre os dois hi- rainha dos masságetas, Tômiris, uma passagem em que Glauber se afas-
potextos: em O Nascimento dos Deuses, a versão de Heródoto é trans- ta decididamente da versão de Xenofonte, na qual o persa falece, já em
formada, com sonhos e feitos, num sonho que Astíages narra ao neto idade avançada, em casa, rodeado pelos filhos, amigos e autoridades do
– e, com essa solução engenhosa, o sugestivo entrecho é incluído sem reino. Isto não impede porém o cineasta de aproveitar da Ciropedia 8,
qualquer incoerência no relato, ao modo de citação. Cumpre ressaltar 7, o discurso final do rei, no qual o paralelismo de alguns trechos salta
que isso se faz com expansões que não se encontram em nenhuma das aos olhos:
duas fontes antigas, a saber, o temor de Ahura Mazda, o abandono do
menino no deserto e sua criação por um Oráculo:

Astíages: Sonhei que sua mãe, Mandane, urinava até inundar toda a Ásia.
Depois, um véu azul ornado de estrelas me recobria, e o filho de Mandane
tentava me matar. Então, eu mandava o meu servo Hárpago matar o fi-
lho de Mandane, mas ele, tendo tido medo de Ahura Mazda, abandonava
o menino no deserto, onde ele era criado por um Oráculo. Quando o
10 A história de Creso é extensamente tratada na obra de Heródoto (Histórias 1, 26-94).

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Ciropedia 8, 7 O Nascimento dos Deuses em razão dos ferimentos sofridos na batalha contra os masságetas (His-
[...] Não pareceis, por certo, segura- [...] Até agora, ninguém viu a minha tórias 1, 205-214). Da mesma sequência herodotiana, Glauber apro-
mente convencidos de que eu deixa- alma. A alma faz viver o corpo mor- veita também o sonho de Ciro que se projeta sobre o futuro, prevendo
rei de existir quando tiver terminado tal... Depois que o corpo morre, a
que não seria seu filho, mas o filho de seu general Histaspes, Dario, o
esta vida humana; tampouco vistes alma libertada encontra os espaços
o meu espírito na presente vida, mas infinitos onde vivem os Deuses. O seu sucessor. No interesse de perceber os processos intermidiáticos de
verificastes a sua excelência através corpo morto dissolve-se no fluxo e Glauber, comparem-se os dois trechos:
de suas realizações. [...] Jamais, pelo a alma se reencarnará nos homens
menos, me deixei convencer, filhos, durante séculos até quando a terra Histórias 1, 209 O Nascimento dos Deuses
de que a alma só vive enquanto desapareça do universo. Que o meu Ciro, já em território masságeta, Ciro: [...] Histaspes, Histaspes!
anima um corpo mortal e perece corpo não seja coberto de ouro, nem teve, durante o sono, uma visão. (p.m. trav.) Histaspes, sujo de sangue
quando dele se desprende, porque de prata ou de pedras preciosas, mas Parecia-lhe ver, em sonhos, o mais e de terra, entra correndo.
vejo que apenas enquanto neles re- imediatamente entregue à terra de velho dos filhos de Histaspes de asas Histaspes: O que você deseja, Ciro?
side uma alma se mostram vivos os onde veio. Que felicidade maior do nos ombros, a cobrir de sombra a Por que me chama com tanta pressa?
corpos perecíveis. [...] O meu corpo, que ser transformado em terra, mãe Ásia com uma, e a Europa com ou- Ciro: Sonhei que seu filho Dario ti-
filhos, após a minha morte, em vez generosa de tudo o que é belo? Eu tra. [...] Já acordado, Ciro refletiu nha duas asas, uma representava a
de sepultá-lo em ouro, em prata ou sempre amei os homens e a natureza sobre a visão que tinha tido, e por- Ásia, a outra a Grécia. Isso significa
qualquer outro recipiente precioso, e agora, fechando a minha carreira que lhe pareceu que o assunto era que seu filho, ainda que seja menor
devolvei-o quanto antes à terra. Que de homem, deixo para minha es- grave, chamou Histaspes de parte e de idade, está destinado a ser o her-
destino mais feliz do que ser reuni- posa, meus filhos, meus soldados e disse-lhe: “Histaspes, o teu filho foi deiro do meu império, mesmo que
do à terra, que cria e sustenta tudo meus súditos e para toda a humani- apanhado a conspirar contra mim e não seja meu filho. Prenda Dario e,
quanto há de belo e tudo quanto dade este último conselho: fazendo o meu poder. [...] Ora, na noite pas- depois desta guerra contra Tômi-
há de bom? Eu sempre nutri amor bem aos amigos, o homem terá alia- sada, vi, em sonhos, o teu filho mais ris, quero o interrogar sobre suas
à humanidade; espero gostar de me dos para combater os inimigos. [...] velho com asas sobre os ombros a intenções.
integrar no elemento que tanto bem fazer sombra sobre a Ásia com uma,
faz aos homens. [...] Guardai este e sobre a Europa com outra. Perante
meu último conselho: é fazendo o essa visão, é de todo impossível que
bem a vossos amigos que podereis ele não esteja a tramar um golpe
punir aos inimigos. [...] contra mim. Põe-te a caminho da
Pérsia, o mais depressa que possas, e
Em “Ciro, lua do Oriente”, a narrativa de Heródoto é seguida
arranja uma maneira a que, no meu
bem de perto, compreendendo o pedido de casamento de Ciro a Tômi- regresso, depois de ter dominado
ris; a recusa da rainha; a ida de Espargápises, seu filho, em embaixada este povo, me apresentes o teu filho
até o rei persa, sua detenção, libertação e suicídio; enfim, a morte do rei para ser interrogado”.

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ALEXANDRE, SOL DO OCIDENTE mais profundo do oceano.12 Assim, mesmo que no breve prefácio de O
Nascimento dos Deuses, escrito em 1978, o autor afirme que “a história
Se parece razoável supor que Glauber chegou a Alexandre por passada, presente e futura é irreproduzível. [...] O que importa é a visão
meio da outra Anábase, a de Arriano, não é exato pretender que esse que o artista tem da realidade, e a sua capacidade de criar, para além
livro seja o hipotexto ou, pelo menos, a fonte bem precisa da segunda dos documentos” – mesmo assim, não parece que ele pretenda deixar
parte de O Nascimento dos Deuses, como afirma Feijó (1996, p. 75). de partir dos “documentos” como uma espécie de origem da “irrealida-
Basta que se considere que a narrativa de Arriano começa com a morte de do filme histórico”. Das fontes “históricas” antigas sobre Alexandre,
de Filipe, a ascensão de Alexandre ao trono e o início de suas cam- há indícios de que, seja diretamente, seja com alguma mediação mo-
panhas militares, o que é o tema só da segunda e da terceira parte de derna, Glauber se valeu de Arriano, talvez preferentemente, Plutarco e
“Alexandre, sol do Ocidente”. Mais que com relação à narrativa sobre Diodoro Sículo, dentre os autores gregos, a que se acrescenta também o
Ciro, fica difícil, neste caso, identificar as fontes antigas de Glauber, romano Quinto Cúrcio.
pois, como observa Rondi, trata-se de páginas em que se constatam “os A favor da precedência de Arriano com relação às outras fontes
mesmos incêndios visionários e as iluminações não raramente apoca- deve estar, em primeiro lugar, o fato de que seu livro se chame Anábase,
lípticas que atravessaram o cinema mais recente de Rocha” (RONDI, pela razão que já sugeri. Mas justamente por ser dedicado à anábase
1981, p.12), isto é, ele escreve mais liberado das fontes, numa reformu- de Alexandre, ou seja, a suas campanhas guerreiras, a obra prescin-
lação da história de Alexandre muito própria. Não é mesmo improvável de, como também já observei, de tudo que antecede a morte de Fili-
que seu ponto de partida fosse alguma biografia moderna do rei, talvez pe. Configura-se, assim, uma situação curiosa: do mesmo modo que a
mesmo em italiano. 11
Anábase de Xenofonte teve um papel apenas marginal em O Nascimen-
Algumas constatações são, contudo, possíveis. A primeira to dos Deuses, também a de Arriano, em que pese seu valor heurístico,
delas é que Glauber tem em consideração as fontes antigas de cará- responde só parcialmente ao projeto de Glauber. De fato, ele toma de
ter historiográfico, parecendo desconhecer completamente a Vida de Arriano, na segunda e na terceira parte de “Alexandre, sol do Ocidente”,
Alexandre atribuída a Calístenes, uma biografia romanceada, repleta vários episódios, tratados não necessariamente do mesmo modo que
de passagens fabulosas, como o nascimento prodigioso de Alexandre, na Anábase, a saber: o corte do nó górdio (Anábase de Alexandre 2, 3),
filho do último dos faraós do Egito, Nectanebo, ou as jornadas do rei a rendição de Mazaces, sátrapa do Egito (3, 1), a visita ao templo de
macedônio até os confins da terra, seu voo nos ares e sua descida ao Amon (3, 3-4), a entrada em Babilônia (3, 16), a conquista e o incêndio

11 Por exemplo, a tradução italiana do livro de Charles Mercer, publicada em 1964. Não tenho 12 Essa é a vida de Alexandre que conheceu mais difusão, sendo traduzida em muitas línguas,
como examinar aqui essa possibilidade, que fica, portanto, apenas sugerida. Para uma biblio- desde a Antiguidade até a nossa época. Para uma tradução em português, com estudo, RABE-
grafia extensiva sobre Alexandre, CONTE, 2001. LO, 2017.

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de Persépolis (3, 18), o assassinato de Dario por Besso (3, 21), a execu- mas pode-se considerar que conflua nela também a primeira, a solução
ção de Filotas e Parmênio (3, 26), a morte de Besso (4, 7), o assassinato de Glauber sendo engenhosa, pois encena, já no princípio, a vitória de
de Clito (4, 8), a recusa de Calístenes ao ritual de prosternação (4, 11- Alexandre, eliminando qualquer espécie de suspense que pudesse ser
12), o assassinato de Calístenes (4, 14), o casamento com Roxana (4, alimentado pelo público (como num filme de aventuras) e permitindo
19), a guerra contra Poro (5, 14-17), a aliança com Poro (5, 19), a morte que a atenção se concentre inteiramente no modo como se processa o
de Bucéfalo (5, 19), a travessia do deserto de Gedrósia (6, 22-23), a ami- avanço de Alexandre pelo império construído por Ciro, a conflução
zade com Calano (7, 3), o casamento coletivo entre gregos e asiáticas (7, de ambos e sua divinização. Isso não implica abandonar inteiramente
4), a morte de Heféstion (7, 14). Como disse, nem todos os episódios a cronologia, pois a batalha de Granico é referida nas cenas finais do
têm o mesmo tratamento nos dois textos: assim, por exemplo, mesmo roteiro, quando, diante das insatisfações dos aliados e imediatamente
que Bucéfalo tenha morrido na batalha contra Poro, Arriano não afir- antes da dissolução do exército, Alexandre rememora:
ma, como faz Glauber, que foi por ter sido atingido pela probóscide
do elefante do rei indiano; em Arriano, quem mata Dario III é apenas Não obstante os persas tivessem a hegemonia dos mares, abri para vocês
o Helesponto. Venci os sátrapas do grande Rei em Granico. Submeti as
Besso, Barsantas não tendo participação no feito, como narra Glauber;
satrapias da Ásia Menor e deixei vocês gozarem dos frutos da vitória. Dis-
Alexandre não experimenta delírios na visita ao templo de Amon no
tribuí entre vocês as riquezas do Egito e de Cirene. Dei-lhes a Síria, Babi-
oásis, segundo Arriano. Este último exemplo de modificação, comum lônia e Bactra. Dei a vocês os tesouros da Pérsia, os objetos preciosos da
nos processos intermidiáticos, exige ressaltar um aspecto instigante do Índia e o Oceano. Escolhi entre vocês sátrapas, generais e governadores.
trabalho de Glauber: mesmo que tudo que diz respeito a Alexandre
seja um tanto onírico ou cercado de uma aura de “irrealidade”, é num EPISÓDIOS ANTERIORES À ANÁBASE
historiador bastante tucididiano (hoje se diria “positivista”), Arriano,
que ele busca as informações. Os dados da biografia de Alexandre anteriores ao início de sua
Um detalhe ajuda a compreender a forma como Glauber lida campanha bélica são tomados de várias fontes. Antes de examiná-las,
com suas fontes. É logo no princípio do percurso de Alexandre que ele convém especular por que Glauber sentiu a necessidade de acrescen-
localiza a batalha de Gaugamela (que integra a primeira sequência da tá-los à saga de Alexandre. A resposta mais simples poderia estar em
segunda parte de “Alexandre, sol do Ocidente”). Ora, em Arriano, como que, sem eles, a biografia estaria incompleta. Uma hipótese mais ela-
nos demais historiadores e biógrafos, a sucessão das grandes batalhas borada, entretanto, seria que, constituindo O Nascimento dos Deuses
inclui as de Granico, de Isso e, por último, de Gaugamela. De certo um díptico – Ciro-Alexandre –, o paralelismo entre a abordagem dos
modo, a cena imaginada por Glauber funde as duas últimas, como pro- dois reis se impunha. Ora, no caso do primeiro, o hipotexto principal
põe Feijó (1996, p. 79), pois ambas terminam com a fuga de Dario III, é a Ciropedia, que constitui não uma simples biografia, mas a demons-

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tração da tese segundo a qual Ciro foi um monarca justo em vista de estão no Saara ou no Cocorobó etc. –, então Plutarco é uma referência
sua educação (paideía). Assim, era preciso discorrer, também no caso a ser levada devidamente em conta.
de Alexandre, sobre sua formação, envolvendo as origens familiares, Acrescente-se que, desde o século 19, o paralelismo se impôs
sua instrução e os primeiros sinais de sua natureza excepcional, até o como um autêntico método científico, histórico e heurístico, no caso
momento em que é reconhecido como imperador dos gregos – ou seja, das culturas do Mediterrâneo oriental beneficiando-se das descobertas
antes que se tornasse também imperador da Ásia. Considerando que e da decifração da documentação cuneiforme espalhada por toda essa
Arriano abstém-se de relatar tudo isso, em razão de seu projeto his- área, o que levou de imediato à proposição de paralelos com a tradição
toriográfico prioritariamente factual, já se vê como, em que pese sua grega, numa espécie de recuperação do método comparativo que re-
importância para O Nascimento dos Deuses, se trata de duas propostas monta a Heródoto. Também a antropologia e outras disciplinas do sé-
bastante distintas. culo 20 dedicaram-se muito aos paralelos entre as culturas, mesmo sem
Podemos considerar que a fonte principal sobre tudo que ante- preocupação histórica, levantando, por meio de metodologia variada
cede a campanha asiática de Alexandre seja Plutarco, autor de uma das – materialismo histórico, estruturalismo, psicologia social, estudos cul-
biografias do monarca mais célebres, a qual constitui um dos livros de turais –, tipologias que permitiram relacionar fenômenos em princípio
Vidas Paralelas, obra muito lida desde a Antiguidade, escrita na passa- isolados. Nesse contexto é que se deve avaliar o comparatismo univer-
gem dos séculos 1-2 d. C., já no contexto do Império Romano. Recor- sal praticado por Glauber – um comparatismo fabular –, que lhe per-
de-se que essa extensa coleção de biografias se organiza em dípticos, mite compreender o que há de paralelo entre cangaceiros e espartanos
pondo em paralelo a vida de um grego famoso e a de um romano não e como, em consequência, seria possível fazer um Deus e o Diabo nos
menos afamado, a Teseu correspondendo Rômulo, a Licurgo, Roma desertos do Saara e na Antiguidade greco-oriental.
Pompílio, a Péricles, Fábio, a Alcibíades, Coriolano, a Demóstenes, Cí- Plutarco pode ser também uma fonte importante de O Nasci-
cero, a Alexandre, César – e assim por diante. Isso condiz bastante bem mento dos Deuses porque, mesmo não autorizando entrechos maravi-
com o projeto de Glauber em termos estruturais, já que o que ele faz lhosos como os que se encontram no romance de Calístenes, registra
é acrescentar à tradição dos dípticos mais duas vidas paralelas, Ciro e como, pouco a pouco, Alexandre se foi tornando “muito sensível aos
Alexandre, com a diferença de que Plutarco se volta não para o passado sinais divinos, permitindo que seu espírito fosse invadido pelo temor e
grego – suas relações com o Oriente –, mas para o futuro da Grécia pelas perturbações” (Vida de Alexandre 75). Nesse aspecto, a influência
no contexto romano. Se é verdade que a produção glauberiana após a de Olímpia, sua mãe, é de destacar-se, uma vez que, ainda conforme
década de 1960 tem como um dos operadores principais as sinapses Plutarco, se apresentava como mais empenhada que as outras mulheres
entre situações e lugares em que ele descobre paralelismos – o Egito é “na procura do êxtase e inclinada a se deixar levar de maneira extre-
o Nordeste, Xenofonte é Euclides da Cunha, Ciro é Lampião, os sertões mamente bárbara aos delírios inspirados”, o que a fazia aparecer, “nas

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cerimônias dionisíacas, com grandes serpentes domesticadas, que às pequena para ti” (Vida de Alexandre 6), o que Quinto Cúrcio reproduz
vezes deslizavam para fora da hera e dos cestos místicos, aterrorizando assim: “Meu filho, busca um grande império, a Macedônia é muito pe-
os homens quando se enrolavam nos tirsos e nas coroas das mulheres” quena para um espírito tão vasto” (História de Alexandre 1, 4), Glauber
(Vida de Alexandre 2). Ora, após a introdução mitológica dos primei- usando a fórmula: “Conquistaremos a Pérsia porque a Grécia é muito
ros quadros, o que se apresenta em “Alexandre, sol do Ocidente”, como pequena para você”. Também a cena por ocasião do casamento de Fili-
cena inaugural, é o cortejo em que Olímpia conduz um coro de mulhe- pe com Cleópatra: depois de sentir-se injuriado por Átalo, tio da noiva,
res pelo campo e pelas montanhas da Macedônia, atingindo “exaltação que fizera um brinde exortando os macedônios a pedirem aos deuses
máxima”, bem como é Roxana-Olímpia que conduz o marido-filho na um herdeiro legítimo para o trono, Alexandre, atirando-lhe uma taça
exaltação de considerar-se, enfim, deus, nas sequências finais. na cabeça, gritou: “E quanto a mim, miserável, tomas-me por um bas-
Dos fatos anteriores à eleição de Alexandre como comandan- tardo?” Na sequência, Filipe ergue-se com a espada desembainhada e,
te dos gregos em Corinto13 – a saber, sua educação por Aristóteles, a cambaleando na direção de Alexandre, por estar bêbado, termina cain-
forma como o jovem se destaca entre os de sua idade, o modo como do ao chão, dando azo ao comentário do filho: “Eis aí, meus amigos,
doma Bucéfalo, o casamento de Filipe com Cleópatra, a maneira como, o homem que se preparava para passar da Europa à Ásia: tentando ir
nele, ofendido, Alexandre enfrenta Átalo e o pai, bem como o assassi- de um leito ao outro, cai de borco e fica esparramado no chão!” (PLU-
nato de Filipe – as fontes podem ser Plutarco ou Quinto Cúrcio,14 ou TARCO, Vida de Alexandre 9).15 Em Glauber, a cena recebe uma grande
ainda, como já salientei, alguma biografia moderna de Alexandre que ênfase, as falas de Alexandre estando bastante expandidas com acrésci-
compendie esses autores, embora me pareça que Glauber deve ter tra- mos que ressaltam aspectos do passado e projetam o futuro:
balhado diretamente pelo menos com Plutarco. Alguns episódios en-
contram-se nas várias fontes, como a domesticação do cavalo Bucéfalo (p.m.) Todos brindam a Filipe. Depois se levanta o general Átalo e faz um

e a declaração um tanto profética de Filipe, o qual, conforme Plutarco, outro brinde.


Átalo: Macedônios! Invoquemos os deuses para que bendigam o ventre
teria dito: “Meu filho, procura um reino à tua altura: a Macedônia é
de minha sobrinha Cleópatra, que deve gerar um príncipe digno de her-
dar a coroa de Filipe!
13 Anote-se que a assembleia de Corinto, que tem bastante importância em O Nascimento dos
Deuses, não é mencionada por Arriano, que se reduz a dizer que, com a morte de Filipe, a Ale- (p.m. trav.) Alexandre, que está sentado entre um grupo de amigos, sobe de
xandre “foram conferidas as mesmas honras [...], com a aquiescência de todos os gregos, menos
repente na mesa, dirige-se a Átalo e lança-lhe no rosto o vinho do copo que
os lacedemônios, que responderam não ser seu costume seguir outros, mas liderar outros”
(Anábase de Alexandre 1,1). As fontes de Glauber, neste caso, podem ser Quinto Cúrcio 1, 9 tem na mão.
ou Diodoro Sículo 17.
14 Estas não são as únicas fontes gregas sobre Alexandre, nem mesmo as primeiras. Contudo, Alexandre: Quem é você, general velhaco e servil, para negar que eu seja
trata-se das biografias completas que se conservaram, por isso sua importância. Deve-se men- o único herdeiro de Filipe? Quem, senão eu, demonstrou já ser um mili-
cionar o relato sobre Alexandre a que é dedicado o livro 17 da História universal de Diodoro
Sículo, que, contudo, acrescenta pouco à obra de Arriano. Sobre os fragmentos dos historiado-
res gregos sobre o monarca, GEIER, 1844. 15 A cena existe também em QUINTO CÚRCIO 1, 9.

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tar superior a qualquer um de vocês, superior inclusive a Filipe, salvando A expansão mais considerável da primeira parte de “Alexandre,
os macedônios da derrota na batalha de Queroneia? E se eu não fosse sol do Ocidente” está, todavia, nos longos diálogos do jovem príncipe
filho legítimo de Filipe, quem senão um descendente de Zeus teria direito
com seu preceptor, Aristóteles. Os biógrafos antigos são unânimes em
a todos os tronos? Caso alguém não esteja de acordo comigo, quem ousa
relatar o quanto a paideía de Alexandre deve ao filósofo. Conforme Plu-
falar diante da minha espada?
tarco, foi tendo em vista a “natureza inflexível” do filho, “avessa à coa-
(p.p. trav.) Filipe, tomado de ira, sobe também ele na mesa e avança, com a
espada em punho, na direção de Alexandre. Mas, por estar bêbado, tropeça ção”, que Filipe decidiu contratar “o mais sábio e ilustre dos filósofos”,
e cai. a fim de que provesse ao jovem, como diz Sófocles, “vários freios e vá-
Filipe: Não reconheço você nem como filho, nem como súdito, e cortarei rios lemes ao mesmo tempo”. Acrescenta ainda Plutarco que Alexandre
sua língua para o punir por tanta presunção e arrogância. “não aprendeu apenas a ética e a política, mas teve também acesso às
(p.g.) Filipe cai sobre a mesa e Alexandre pula no chão, enquanto os que
lições secretas e mais profundas que os filósofos designam com a ter-
assistem afastam-se amedrontados.
minologia especial de acroamáticas e epópticas, que jamais divulgam”
Alexandre: Olhem, o Rei que tem a pretensão de conquistar a Pérsia não
(Vida de Alexandre 7).
consegue dar dois passos. Mas não pensem que por isso eu trairei Filipe,
mesmo que ele tenha traído minha mãe, à qual permanecerei sempre fiel. Sem dúvida, as longas conversas que têm Alexandre e Aristóte-
Só os deuses decidirão o destino da nossa família e ai daqueles que que- les em O Nascimento dos Deuses (enquanto a paisagem muda dos jar-
rem desviar o curso da história. dins para campos, montanhas e praias) mereceriam uma análise deta-
lhada que não tenho como fazer aqui. Elas envolvem a definição do que
Venho privilegiando, nas citações, a versão de Plutarco, mas é um filósofo (“um homem que ama conhecer todas as coisas do céu
cumpre considerar os momentos em que Glauber se afasta dela. Assim, e da terra”) e do que é pensar (“pensar sem indagar, sem analisar, sem
ainda que o assassinato de Filipe por Pausânias seja referido em todas ordem e sem levar a uma conclusão é antifilosófico”); o conhecimento
as fontes, o detalhe de que ele se deu à entrada do teatro, na sequência físico (“a Terra é um planeta novo, nenhum homem conhece ainda as
dos festejos do casamento com Cleópatra, versão adotada por Glau- suas dimensões e as suas riquezas”) e as origens (“se eu não conheço a
ber, não se encontra em Plutarco, mas sim em Diodoro Sículo 16, 94 origem desta pedra, não sei por que tem esta dimensão e esta forma”); a
e em Quinto Cúrcio 1, 9. A referência e a reprodução de discursos de crítica à retórica (“o discurso em torno da forma da coisa em si mesma
Demóstenes contra Filipe também é alheia a Plutarco, encontrando-se – sem origens nem consequências – é a caraterística fundamental da
de modo muito extenso em Quinto Cúrcio 1, 6-8, sem dúvida um bió- linguagem retórica”); uma fenomenologia (“cada fenômeno tem ori-
grafo mais interessado, como Glauber, nos aspectos políticos da vida gem no pensamento e [...] o pensamento nasce de uma força superior e
de Alexandre. não representável, chamada Deus”); uma antropologia (“na medida em
que o homem é inteligente, forte, belo, conquistador, invencível, sábio

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e imortal, ele encontra, no fim da vida, o princípio original, que é divi- Olímpia: Esses atravessam o tempo e o espaço e não fazem história por-
no”); uma metafísica (“tudo o que não se explica com a demonstração que não obedecem à ordem dos números nem à lógica dos fatos.
Aristóteles: Eu me ocupo da história porque sou um homem.
prática é religião para os místicos e metafísica para os filósofos”); uma
Alexandre: Essa é a sua limitação.
teoria da história (ela “tem por objeto as ações dos homens” e você,
Olímpia: Aristóteles sabe tudo e não percebe nada, porque transformou
“sendo filho de Filipe – um homem que faz história –, está destinado a
a religião em ciência. É um filho de Apolo.
fazer história”). Alexandre: Eu sou filho de Dioniso.
Glauber pretende enfatizar, em termos dialógicos e imagéticos, Aristóteles: Mas não se esqueça de Apolo. Um rei que não se ocupa com
a importância de Aristóteles para Alexandre, reconhecida desde a Anti- as leis do estado permite a desordem que o destrói.
guidade – ele teria mesmo dito dever tanto ao filósofo quanto a seu pai: Alexandre: Sou rei ou Deus?
Olímpia: Quer ser?
“de um procedeu sua vida, do outro os princípios de viver com virtude
Alexandre: Deus.
e honra” (QUINTO CÚRCIO 1, 3) –, a ponto de, no roteiro, uma das
Aristóteles: Querer é poder.17
últimas declarações do rei a Roxana, quando ele está à beira da morte,
ser: “mandei oitocentos talentos de ouro a Aristóteles para que fundas-
se uma Academia de Ciências”.16 A trama, portanto, parece desembo- O NASCIMENTO DOS DEUSES

car numa fusão da ciência de Aristóteles com a religião de Olímpia, o


que se representa já na primeira parte de “Alexandre, sol do Ocidente”, Uma pergunta se impõe: por que o filme se chamou O Nas-
no diálogo final da sequência paidêutica, durante o banho do príncipe, cimento dos Deuses? Do ponto de vista dos hipotextos do roteiro de
como que para indicar não só os dois vieses de sua formação, como a Glauber, esse título pode, mais que simplesmente remeter, constituir
confluência entre metafísica e mística: uma tradução literal do nome do poema de Hesíodo – Teogonia – e,
nesse sentido, é significativo que a sequência inicial de “Alexandre, sol
Olímpia: Não perdeu a pureza original. do Ocidente” tome dele os dados cosmogônicos donde parte, num au-
Alexandre: Não entendi a origem de Deus. têntico processo de citação.18 Essa citação, contudo, se faz a contrapelo,
Aristóteles: A história se refere ao passado e o passado está morto.
Olímpia: A história dos homens fala da morte e a história dos Deuses fala 17 No conhecido processo glauberiano de trânsito do sublime ao grotesco ou da metafísica ao
materialismo, à resposta de Aristóteles segue a pergunta de Alexandre, interessado em pôr em
da vida. prática o que acabara de aprender, que “querer é poder”: “Como posso lhe agradecer por tudo
que me ensinou?”, o filósofo aproveitando então para pedir ao príncipe um benefício para a sua
Alexandre: Os Deuses são invisíveis.
cidade: “Mande reconstruir a minha cidade, Estagira, que foi destruída pelos macedônios”. Nas
Aristóteles: Existem os homens-Deuses. fontes gregas, é Filipe que concede a Aristóteles esse favor.
18 Como em todos os casos, sem literalidade: assim, ao invés de ser castrado pelo filho Crono
(HESÍODO 176-189), Urano é apunhalado pela esposa, a Terra: “(p.g.) Uma mulher, Gea, cer-
16 Essa é a soma que Alexandre deu a Aristóteles para seus estudos de história natural (botâni- cada de Titãs, dança com um punhal na mão. Urano lança um urro ao receber uma punhalada
ca e zoologia), cf. QUINTO CÚRCIO 1, 3. de Gea”.

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pois, se no roteiro são os homens que criam os deuses (como Zoroas- Falando de ‘tese’ minha pretensão é tentar perceber como, desde
tro criara Ahura Mazda), em Hesíodo são os próprios deuses que dão a concepção inicial do filme enquanto “antropologia histórica” – com
origem a outros, a humanidade aparecendo apenas no trecho dedicado Engels, o “poder patriarcal identificado a Deus”, “o imperialismo, eta-
a Prometeu, sem que se diga, aliás, qual a sua origem – ou seja, dife- pa superior do capitalismo”, as “coproduções mitológicas” do “teatro
rentemente de outras cosmogonias orientais, a Teogonia não comporta repressivo anti-incestuoso em Atenas” e o “acordo dos deuses com o
uma antropogonia. capital” (ROCHA, 1997, p. 477) –, o plano de Glauber vai assumindo
Esse título não é algo que se possa considerar como casual, pois a feição que apresenta no roteiro, ou seja, com o impacto natural que a
está dado desde a primeiríssima concepção do filme. As sequências ini- pesquisa parece ter tido em seu projeto, sobretudo após a descoberta da
ciais das partes dedicadas a Ciro e Alexandre, que põem em cena, de anábase de Alexandre, o que leva à reformulação da obra como um díp-
um lado, Ahura Mazda, o deus único dos persas, “criado pelo homem tico, no estilo das vidas paralelas. Todavia, mesmo que a primeira con-
Zoroastro”, e, de outro, a origem dos deuses gregos, com Urano, Gea, cepção pareça ter-se modificado bastante, o título deve responder pela
os Titãs, Érebo, Afrodite, Crono e finalmente Zeus, “a materialização tese que se mantém, permitindo as sinapses e os paralelismos presentes
humana de Deus”, “esposo de todas as mulheres e pai de todos os fi- não só no roteiro escrito para a RAI como em toda a obra de Glauber,
lhos”, respondem bem à – digamos assim – tese que orienta o roteiro e sendo para enfatizá-la que acredito que ele procede às expansões mais
justifica o título. Dos dois lados, encontramos duas divindades em que importantes das fontes antigas em O Nascimento dos Deuses, incluindo
todas as demais convergem e, por meio delas, os dois heróis são postos tudo quanto diz respeito à divinização de Ciro e, pelo menos em parte,
em paralelo. Assim, após Ahura Mazda declarar que “criei meu filho de Alexandre.
Ciro, que abriu os caminhos do Oriente”, Zeus acrescenta que “meu No primeiro caso, Heródoto já sugere algo nessa direção, ao
filho Alexandre abrirá os caminhos do Ocidente”, pois o que está em observar que, desejando conquistar a imensa planície ocupada pelos
questão é saber, conforme o mesmo Zeus, “quem seguirá esse caminho, masságetas, num dos confins da terra, a oriente do Cáucaso, Ciro era
até reunir o início do Ocidente ao fim do Oriente e no Fim encontrar o movido pelas “circunstâncias do seu nascimento, que o levavam a con-
Princípio?” – Fim e Princípio sendo tomados, como se vê, como duas siderar-se mais do que um simples mortal” (Histórias 1, 204). Em Xe-
entidades, não como mera cronologia. Assim se processa ao abraço e à nofonte nada há a esse respeito e Ciro vive e morre como um homem
“integração mística” entre os dois deuses, o que corresponde ao “Uni- normal. No roteiro glauberiano, ao contrário, na medida em que a ação
verso”, cabendo a Olímpia comandar: “Que sejam destruídos os tem- avança, cresce a ênfase no caráter divino do rei persa. Assim, a primeira
plos dos falsos deuses, que os estados da Grécia se unam, que o sangue parte de “Ciro, lua do Oriente” fecha-se com Góbrias afirmando que a
de Aquiles ressuscite os Heróis!” campanha contra Babilônia “é a luta das trevas contra a luz”, ao que o
rei acrescenta: “Luz de Zoroastro, ação de Ciro. Com o método justo, o

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homem atinge os seus objetivos. [...] Sou um homem solitário, destinado do exército para a campanha na Ásia), o rei assume definitivamente
a ser Deus de um povo que seguirá as minhas ideias e não se recordará do seu caráter messiânico, que supõe fazer confluir em si não só Ciro, mas
meu corpo”. Após o fim das conquistas, no final da segunda parte, Ciro toda a história antiga. Assim se justifica que ele queira “viver no passa-
assume, sem meias palavras, um papel sobre-humano, atuando como do eterno dos hebreus”, dando margem, no contexto da conquista do
verdadeiro conselheiro e taumaturgo, algo de todo ausente nos autores Egito, ao quadro sobre Moisés, e que veja, em delírio, “um imperador
antigos: ele não só cura o braço estropiado de um súdito, como ressus- como Salomão, que será o mais sábio, ao lado de Ciro e de um miste-
cita um soldado em agonia, sendo declarado, no início da terceira parte, rioso bárbaro da Macedônia”, ou seja, ele próprio.
verdadeiro Deus: “Depois de ter conquistado Babilônia, Ciro tornou-se Essa sequência é especialmente significativa para a compreensão
Deus e entrou em guerra contra a tribo das amazonas da Rainha Tômiris”. das figurações da história da parte de Glauber e de como elas se expres-
O caso de Alexandre é mais destacado, pois desde a Antiguidade sam em O Nascimento dos Deuses. Tendo como cenário o Rio Nilo, numa
era ele considerado filho de Deus. Isso, segundo Plutarco, decorreu do tomada externa, ela é introduzida pelo narrador, que se refere “ao avan-
fato de que, ao ingressar no templo de Amon, na Líbia, o sacerdote se ço de Alexandre”, enquanto “a montagem mostra a evolução histórica do
teria dirigido a ele chamando-o de “filhinho” – ô paidíon –, mas, por Egito, por meio das ruínas, objetos, pinturas e desenhos que se encon-
falar grego como estrangeiro, se teria confundido e pronunciado ô paî tram nos museus”, cena em que se observa uma técnica de sobreposição
Diós – “ó filho de Zeus”. Ainda conforme Plutarco, Alexandre apro- temporal, já que se trata de registros que se encontram em museus, o
veitava-se disso, dando “aos bárbaros a impressão de estar absoluta- museu sendo, por excelência, o lugar de produção de visões pancrôni-
mente convicto de sua filiação divina”, enquanto “com os gregos era cas. A voz, depois de referir os sucessos de Alexandre, que entra, em 331,
mais moderado e discreto nesse ponto”, fazendo chiste com esse tipo no Egito, “a civilização mais desenvolvida do norte da África”, introduz
de crença (Vida de Alexandre 27-28).19 Em Glauber, desde o princípio a primeira referência a Moisés: “as tribos hebraicas escravizadas pelos
Alexandre se tem e é tido por Deus (conforme anuncia Olímpia: “um egípcios tinham sido libertadas pelo profeta Moisés, representante de
Deus entra no meu corpo e transforma-se em homem”) e, na sequência Yehowah”. Em princípio, isso parece um dado anacrônico e aleatório,
de uma abordagem de cunho mais propriamente político (discussões cuja pertinência, contudo, se vai firmando pouco a pouco no decorrer
na assembleia de Atenas, a fala de Alexandre na assembleia de Corinto, da sequência, quando Alexandre delira junto do sátrapa do Egito, Maza-
o ouro das minas de Pangeu e as mudanças no câmbio, a preparação ces, e a perspectiva histórica se amplia até chegar a Cristo, que “dividirá
a história”, e à “lei do amor”, que “deve ser mais forte que a da espada”:
19 Em O Nascimento dos Deuses, na cena no templo de Amon, depois que o sacerdote declara
a Alexandre, “Você é filho de Amon Rá e de Zeus Hélio”, este retruca: “Sem dúvida, Deus é o
pai comum de todos os homens, mas por uma predileção misteriosa ele escolhe os melhores
para fazer deles seus filhos” – o que corresponde ao que se encontra em Plutarco, Vida de Ale- cada um deles’; o próprio Alexandre, porém, teria emitido a esse respeito uma opinião ainda
xandre 27: “Conta-se ainda que, no Egito, ouviu o filósofo Psamão, aprovando-lhe sobretudo mais profundamente filosófica, estatuindo que Deus, sem dúvida, é o pai comum de todos os
esta máxima: ‘Deus é o rei de todos os homens porque um princípio divino dirige e governa homens, mas só perfilha os melhores”.

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Alexandre: A dinastia de 33 faraós deixou de reinar sobre a terra. deu a Demócrito a possibilidade de descobrir o átomo, que fez da cultura
Mazaces: José de Judá decifrou os nossos sonhos, permitindo a rebelião um feito aristocrático, formou uma elite de tecnocratas civis e uma de
dos escravos hebreus comandados pelo príncipe Moisés. [...] mercenários que construíram e mantiveram o imperialismo. De Ciro a
Alexandre: Atravessei rios envenenados, comi a podridão dos cadáveres, Alexandre, as tribos esmagam os vizinhos e afirmam um Deus patriarca.
construí uma base naval na ilha de Chipre, destruí a marinha persa aliada Eu uni o Ocidente ao Oriente e fundo hoje, aqui, a cidade de Alexandria.
aos traidores de Esparta. Que diferença há entre egípcios e hebreus? [...] No meio do salão aparece uma cidade em miniatura, feita com farinha de
Faraós: O Egito é o país do silêncio: nascido dos vales férteis do Nilo, nos trigo. Alexandre olha a miniatura e volta-se para os arquitetos.
quais a criança navega por si só. Alexandre: Os pássaros virão comer esta farinha e eu fundarei outras
Alexandre: Quero viver no passado eterno dos hebreus. [...] Alexandrias ao longo do meu caminho para a Índia. A poesia será escrita
Alexandre delira. ou declamada em versos alexandrinos. A filosofia consistirá de duas cor-
Alexandre: A liberdade não servirá para criar uma nova tirania. Vejo no rentes: o estoicismo e o epicurismo. [...]
futuro um imperador como Salomão, que será o mais sábio, ao lado de Alexandre: Que os homens, as mulheres e as crianças me escutem em si-
Ciro e de um misterioso bárbaro da Macedônia. lêncio, e meditem sobre o significado das minhas palavras. A lei do amor
Alexandre urra como uma fera. [...] deve ser mais forte que a da espada. Estas são as novas ideias que con-
Alexandre: Ao norte da terra existe a desconhecida Europa, que, fundin- servam a vida e geram felicidade: paz e amor. Repitam comigo, abram os
do-se com a Ásia, forma a Rússia. Além dos grandes rios existe a Índia, seus corações e deixem que a luz do céu os penetre!
defendida por um exército de elefantes. E detrás de uma muralha infinita Coro: Paz e amor!
vive o povo chinês, amarelo e silencioso, servidor de um amante da hu-
manidade, um Deus chamado Buda. Nesse trecho é de destacar como a história dos hebreus se en-
Alexandre levanta-se do trono.
tretece com a de Alexandre, numa expansão que diz muito do projeto
Vejo Cleópatra cem anos antes que Jesus Cristo seja crucificado pelo Im-
glauberiano, o qual, nos termos de Ismail Xavier, “se desenha com base
perador Augusto de Roma, numa sexta-feira do mês de abril, trinta e três
anos depois de seu nascimento. Cristo dividirá a história e eu vejo a mi- numa analogia: a configuração dos conflitos de hoje é nova versão do
nha morte nos jardins de Babilônia. Conquisto o mundo para suportar a processo de morte e ressurreição que foi a decadência do Império Ro-
monotonia da vida. As energias são desperdiçadas na juventude. No de- mano, a crise da cultura antiga e a emergência do cristianismo” (XA-
serto arábico, no ano dois mil, jorrará o petróleo que incendiará o mundo VIER, 2001, p. 136). Não que as relações entre Alexandre e os hebreus
antes da explosão atômica. estejam de todo ausentes nas fontes antigas. Flávio Josefo, por exemplo,
Coro dos doze faraós, que canta fazendo um círculo em volta de Alexandre.
historiador grego helenizado que escreve no primeiro século de nossa
Coro: Ele viu o último futuro da história. Ele desintegrou a matéria do
era, afirma que, quando de sua chegada em Jerusalém, o conquistador
futuro. No Egito, país do silêncio.
Alexandre: A bancarrota da democracia grega representa a morte de uma macedônio foi recebido em festa e, tendo-se prostrado em adoração a
humanidade adolescente. Péricles era pragmático e civilizou a religião, Iahweh, o sumo-sacerdote Iaddua lhe teria garantido que seu reinado

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estava previsto nas profecias de Daniel, que prognosticara que um gre- elemento central da poética glauberiana em Cabezas Cortadas, Claro e
go havia de conquistar o império dos persas (cf. Antiguidades Judaicas A Idade da Terra; 4) a natureza dos elementos figuradores da História,
que ganha tradução estilística até então inédita no cinema de Glauber, na
11, 316-338). Também as tradições rabínicas incorporaram episódios
figura da sobreimpressão. (ARAÚJO, 2017, p. 64)
das relações entre judeus e Alexandre, em especial, na Gemara, o en-
contro do rei com sábios hebreus – os “sábios do Negev” (cf. Bavli Ta-
Ora, parece que todos esses traços, em termos de concepção e
mid 31b-32b). Não parece, contudo, que Glauber tenha em vista esses
dos recursos para exprimi-los, podem ser detectados no excurso citado,
registros, inclusive porque em O Nascimento dos Deuses a cena se passa
mesmo que o último deles, a sobreimpressão, não se possa afirmar em
no Egito, não na Palestina (Jerusalém e o deserto de Negev), o gancho
sentido estrito, uma vez que não contamos com o filme para verificar se
que permite a expansão sendo dado pelo relato bíblico da escravidão
corresponde ao feito, por exemplo, em Claro, em que se sobrepõem vi-
dos hebreus e sua libertação por Moisés. Mais ainda, Moisés não é um
sualmente várias temporalidades em Roma (cf. ARAÚJO, 2017, p. 83).
fim em si, mas serve para abrir a perspectiva para um futuro que tem
Mesmo assim, a sobreimpressão parece sugerida no roteiro – a começar
como referência Jesus Cristo, que divide a história, donde se chega até
pelas figuras de antiguidades egípcias expostas em museu, sobrepostas
o ano dois mil, quando, “no deserto arábico [...] jorrará o petróleo que
à tomada externa do Nilo –, o mais importante estando em considerar
incendiará o mundo antes da explosão atômica” – exercício em que
como toda a sequência se articula nessa técnica poética, ligada ao de-
Alexandre, conforme o coro dos doze faraós, “viu o último futuro da
lírio de Alexandre, sendo em geral disposta em dípticos que se abrem
história e desintegrou a matéria do futuro”, sendo a isso que provavel-
para um terceiro. Assim, seguindo o trecho citado passo a passo: Jo-
mente corresponde o desejo do rei de “viver no passado eterno dos
sé-Moisés-Alexandre (Atravessei rios etc.); Salomão-Ciro-Bárbaro da
hebreus”, ou seja, numa espécie de conflução entre Fim e Princípio.
Macedônia (ou seja, Alexandre); Europa-Ásia-Rússia; Índia-China-Bu-
Mateus Araújo chamou a atenção para a forma como, a partir
da; Cleópatra-Jesus Cristo-Imperador Augusto de Roma; Cristo-Ale-
dos anos 1970, a abordagem da história, que sempre fora uma tônica
xandre (Minha Morte)-Babilônia; Monotonia da Vida-Juventude-Pe-
em toda a produção glauberiana, sofre uma inflexão – em termos de
tróleo; Democracia Grega-Péricles-Demócrito; Ciro-Alexandre-Deus
radicalização – envolvendo quatro aspectos:
Patriarca; Ocidente-Oriente-Alexandria; Alexandrias-Versos Alexan-

1) a expansão espácio-temporal do universo historiado; 2) a instauração


drinos-Filosofia; Lei do Amor-Lei da Espada-Paz e Amor. Além de em
de uma clivagem nos filmes entre uma História representada pelas suas outros pontos do roteiro, destaque-se como é ainda o recurso poético
narrativas (com personagens, ações e ambientações próprios) e uma ou- da sobreimpressão que se revela na cena final, em que se veem “ho-
tra História paralela evocada pelo cineasta nas intervenções sonoras de mens, mulheres e crianças montados com as imagens de Alexandre que
seus monólogos over; 3) o rearranjo da articulação entre diacronia e sin- desaparece no deserto”, a própria concepção do filme como um díptico
cronia na visada histórica dos filmes, que transforma o anacronismo num

264 265
supondo e impondo expansões espaço-temporais, paralelismos, pan- ANABAZIS
cronismos e sobreimpressões, como as de Ciro-Alexandre e Olímpia-
-Roxana, por exemplo, as quais sempre se abrem para um terceiro. Conforme salienta Feijó (1996, p. 92), toda essa temática tem
Essa leitura do nascimento dos deuses a partir de uma pers- relação com a produção glauberiana dos anos 1970, sendo significativo
pectiva antropológica atenta aos processos históricos de formação das que o chamado “primeiro tratamento de A Idade da Terra”, que é de
estruturas sociais e econômicas – em especial, na esteira de Engels, a 1977, tenha como título Anabazis – O Primeiro Dia do Novo Século
família, a propriedade privada e o estado –, não se restringe ao roteiro (ROCHA, 1985, p. 193). Como se vê, o conceito de anábasis extrapo-
escrito para a RAI, mas aparece em outros textos do autor. Confor- la as circunstâncias relacionadas com o roteiro para a RAI, parecendo
me Marília Rothier Cardoso, no argumento intitulado “Cristo”, há um ter-se tornado um constituinte do pensamento e da poética glauberia-
“tópico do ‘nascimento dos deuses’” que “denuncia a helenização do na, uma sorte de ganho, para os processos de criação do cineasta decor-
mundo pelo jugo romano ao mesmo tempo que derruba as razões da rente do trabalho feito por encomenda.
catequese”, iniciando por “Otávio Augusto sob cujo império nasceu em Nesse sentido, cumpre apontar que, além da acepção comum de
Belém da Galileia Jesus Cristo filho de Maria, a Virgem, casada com o ‘expedição’ que vai da costa para o interior (e se aplica bem às obras de
marceneiro José de Arimatheia (sic)”, enquanto “as tribos da Africásia Xenofonte e Arriano), anábasis significa também ‘ascensão’, o ‘montar’
continuavam bárbaras” e “Roma mantinha a política persa burocra- (em cavalo), qualquer ‘subida’, a ‘invasão’ (militar), a ‘cheia de um rio’,
tizada por Alexandre”, estando presentes “Deuses gregos, Zoroastro, a ‘inundação’, o ‘crescimento’ (das plantas), o ‘agravamento’ (de enfer-
longínquo bramanismo, Jeová judeu” e as gentes “esperavam o Messias midades), a ‘progressão aritmética’, ‘degraus’, uma ‘saída’, o lugar de um
porque os reis judeus traíram Jeová em nome da corrupção” e “os pa- astro no firmamento, o nome de uma herarquia de anjos. Trata-se de
triarcas profetas negavam o Messias” (apud CARDOSO, 2010, p. 61). um derivado de anabaínein, ‘subir’, ‘ascender’ – em todas as acepções,
Como os papéis desse argumento não têm data, não se pode saber se incluindo a ação do peixe que emerge da água, a trepadeira que sobe no
antecedem ou sucedem o trabalho de O Nascimento dos Deuses, o que muro, o macho que trepa na fêmea ou alguém que supera em algo um
seria importante para determinar se a tese já estava formulada quando outro –, o termo sendo composto pelo verbo baínein, ‘andar/caminhar’,
da encomenda do filme pela RAI ou se foi elaborada ou, pelo menos, o mais a preposição aná, que, em sentido espacial, indica movimento de
quanto foi desenvolvida no processo de escrita do roteiro. baixo para cima, bem como, em acepção temporal, repetição, donde,
em voz média, anabaínein poder significar também ‘voltar’, ‘regressar’.
Não seria despropositado supor que, tomando anábasis – em seus ter-
mos exatos: Anabazis – como um operador, Glauber tivesse em vista
essa pluralidade de sentidos, na linha do que afirma Rondi no prefá-

266 267
cio que escreveu para O Nascimento dos Deuses, citando as palavras do na cruz na sexta-feira da Paixão e depois do terremoto segui minha vol-
próprio cineasta: ta pelo mundo e esta é a terceira e definitiva” (ROCHA, 1985, p. 229),
“volta”, como salientei, sendo uma tradução possível para anábasis (a
“A última experiência civilizadora do século XX será feita no continente Anábase de Xenofonte sendo o relato da volta dos dez mil mercenários
americano – lia-se numa declaração dele [Glauber], recolhida na Itália, há gregos para casa). Enfim, saliente-se como este primeiro tratamento de
alguns anos, por Cinzia Bellumori –, por isso é necessário que se supere o
A Idade da Terra principia com a seguinte declaração de Brahms, que
sacrifício socrático, o compromisso platônico e se atinja a sabedoria aris-
tem como ponto de partida Ciro e Alexandre:
totélica. De Zoroastro a Lacan, de Tales a Einstein e de Eurípides a Eisens-
tein, a história da humanidade, assim como a Terra é redonda, encontra o
princípio no fim”... Era um conceito que servia para introduzir o “Terceiro Nem Ciro da Pérsia, nem Alexandre da Macedônia, nem Júlio César, nem

Testamento”, sobre o qual Rocha pretendera construir A Idade da Terra; é Otávio Augusto, nem o Rei Artur, nem Filipe II de Espanha, nem Luiz

um conceito que pode introduzir também a leitura de O Nascimento dos XIV, nem Napoleão, nem Stalin, nem John Kennedy e nem Mao Tse Tung

Deuses (RONDI, 1981, p. 12). tiveram u’a mulher como Dona Luz Margarida Madalena I, Rainha de
Ogulaganda, capital das colônias de Amérika em África e Ázia. Glória a
meu novo amor! (ROCHA, 1985, p. 195)
De fato, a relação de O Nascimento dos Deuses com A Idade da
Terra evidencia-se de vários ângulos, mas sobretudo da perspectiva do
Ora, se de um ponto de vista interno é razoável entender O Nas-
“terceiro”, seja sob a forma de Terceiro Testamento, Terceiro Mundo
cimento dos Deuses como um díptico, do ponto de vista mais amplo
ou Terceira Guerra Mundial. Conforme afirmou o próprio Glauber a
da produção glauberiana dos anos 1970 podemos entender que forme,
propósito de seu último filme, “os quatro Cavaleiros do apocalipse que
com Anabazis, um tríptico, num processo semelhante ao que salientei
ressuscitam o Cristo no Terceiro Mundo” recontam “o mito através dos
no delírio de Alexandre, em que se percebe uma organização em dois
quatro evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas e João, cuja identidade é
que se abrem todavia para um terceiro. Se Ciro abre os caminhos do
revelada no filme quase como se fosse um Terceiro Testamento”.20 Nes-
Oriente, num império supranacional, e Alexandre abre as vias do Oci-
se sentido, no roteiro de A Idade da Terra, o Cristo Negro afirma a
dente, Brahms, Presidente da Amérika, almeja o império global, o que
Brahms, presidente da Amérika, que “chegou a hora de você ouvir a
termina por mostrar, na conclusão do roteiro, “pela montagem dialéti-
voz do Terceiro Mundo”, pois “a humanidade caminha para a Terceira
ca, o ser e o nada” (ROCHA, 1985, p. 235). Há ainda outros indícios que
Guerra Mundial. O mundo será destruído pela Bomba Atômica!” (RO-
aproximam Anábazis e A Idade da Terra de O Nascimento dos Deuses,
CHA, 1985, p. 444). Em Anabazis, o próprio Cristo afirma: “Não morri
de que cito apenas três, a título de exemplo: o coro dos doze apóstolos
que dialoga com Cristo (ROCHA, 1985, p. 226) parece remeter ao coro
20 Depoimento de Glauber Rocha em http://www.tempoglauber.com.br, item “Filmografia/A
idade da terra”. dos doze faraós que dialoga com Alexandre; a rainha da Amazonas

268 269
(que derrotara Ciro) desfila com as freiras pelas ruas de Salvador (RO- ne de escritores russos que tiveram ampla influência no Ocidente.21 O
CHA, 1985, p. 456), numa das sequências mais impactantes de A Idade segundo, que foi ele o responsável por reintroduzir no ambiente inte-
da Terra, trabalhada com a técnica da sobreimpressão; enfim, o Cristo lectual europeu da primeira metade dos Novecentos a ideia, tomada
Negro, na torre de televisão, em Brasília, ressuscita um homem (como de Joaquim de Fiore (séc. 12), de um Terceiro Testamento por vir, o
fizera Ciro) com estas palavras: “Por Ciro. Por Alexandre o Grande. Por qual representaria a síntese entre o Novo e o Antigo, noutros termos,
Dario. Por Omulu, por Oxossi, Xangô, Ogun. Por Geová. Te liberto, a síntese entre as duas revelações originais, a primeira relativa à Terra
homem, deste peso. Renasce. Levanta-te. Morte aqui não tem lugar” (nas crenças pré-cristãs), a segunda sobre o Céu (o cristianismo), para
(ROCHA, 1985, p. 451). atingir-se, com o terceiro, a grande nova Terra sob o novo Céu. Na Cre-
Do ponto de vista de todas as sinapses com que Glauber traba- ta de O Nascimento dos Deuses, por exemplo, abundam os símbolos em
lha, desejo acrescentar uma segunda hipótese para a escolha do título forma de cruz, sendo numa cruz que Tamuzadad termina morto, num
O Nascimento dos Deuses para o roteiro escrito para a RAI. Esse é tam- ritual à grande deusa Mãe. O primeiro testamento teria revelado Deus
bém o nome de um dos livros do escritor russo Dmitri Merejkóvski, como Verdade, o segundo, como Amor, e o terceiro estaria destinado a
publicado em 1925 e traduzido em muitas línguas – a tradução italiana, mostrá-lo como Libertação: “o temível nó da desigualdade social, que
com o nome de La Nascita degli Dei, é de 1948. Trata-se de um romance ameaça se apertar em um laço de morte e estrangular a humanidade,
histórico em que se narra a estada em Creta de Tutankhâmon, futuro pode ser desatado apenas no terceiro testamento” (MEREJKÓVSKI,
faraó do Egito, na qualidade de embaixador do então faraó Akhenáton, 1939, p. 163 apud BEDFORD, 1963, p. 160).
o qual fora responsável por uma reforma religiosa que banira os muitos Caso seja possível haver alguma mediação da obra e das ideias de
deuses, promovendo a veneração a apenas um, Aton. A ação tem como Merejkóvski com relação aos textos antigos de que parte O Nascimen-
protagonistas uma sacerdotisa cretense, Dio, um comerciante assírio to dos Deuses, isso suporá admitir a mesma liberdade (ou anarquismo)
de armas de ferro (algo ainda desconhecido na ilha), Tamuzadad, e o com que Glauber lida com outros hipotextos. Como assinala Panarotto,
embaixador egípcio, o pano de fundo sendo os ritos arcaicos e sangren- quando se fala de “um terceiro testamento, há de se considerar que Glau-
tos que se praticavam em honra do Touro e da Mãe. No epílogo, Dio ber está à procura de uma terceira maneira, não mais dicotômica, que
se pergunta a razão de tantas vítimas, concluindo: “Agora o sabia: para lhe permita se posicionar” com relação à “tensão que parece presente na
que Ele viesse. A Terra-Mãe, entre as dores do parto – dores humanas história milenar dos povos ocidentais e orientais” (PANAROTTO, 2012,
– dá à luz Deus” (MEREJKÓVSKI, 1993, p. 164). Não tenho pretensão
maior que deixar sugerida a possibilidade dessa relação, com base em 21 Merejkóvski foi indicado não menos de oito vezes ao Prêmio Nobel, até que o venceu seu
compatriota Ivan Bunin, em 1933, tirando a chance de que outro escritor russo fosse premiado
dois aspectos. O primeiro, que Merejkóvski foi um autor muito reno- num futuro próximo. Sua aproximação de Mussolini, nos anos anteriores à Segunda Guerra
mado de fins do século 19 até sua morte em 1941, integrando o câno- Mundial, e o fato de que tenha mesmo comparado Hitler a Joana d’Arc, por ter livrado a Europa
do comunismo, tiveram importante papel no esquecimento que terminou por cercar sua obra.

270 271
p. 33), ou, nos termos do próprio Glauber, em busca da possibilidade – REFERÊNCIAS
que provavelmente só pode se efetivar no Terceiro Mundo – de unir “o
início do Ocidente ao fim do Oriente e no Fim encontrar o Princípio”. ARAÚJO, Mateus. Figurações da História no Glauber Rocha Maduro. In:
AGUIAR, Carolina et al. Cinema e História: Circularidades, Arquivos e
Nos termos bastante exatos de Xavier, “fiel à sua visão totalizante e a seu
Experiência Estética. Porto Alegre: Sulina, 2017.
desejo de história, Glauber configura, em seu último filme, um evange-
ARRIAN. History of Alexander and Indica. Cambridge/London: Harvard
lho da energia popular das nações exploradas a trazer, da periferia para
University Press/W. Heinemann, 1983.
o centro (tal como na Antiguidade), a boa nova de uma regeneração da
ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno. Trad. Antonio Guzmán Guerra.
humanidade no momento da crise do Império”, projetando “a esperan-
Madrid: Gredos, 1982.
ça na figura de Cristo: mas um novo Cristo popular, nada romano ou
BEDFORD, Charles Harold. Dmitry Merezhkovsky, The Third Testament and
eclesiástico, um Cristo do Terceiro Mundo, multiplicado, multirracial
the Third Humanity. The Slavonic and East European review, London, v. 42, n.
– negro, índio, branco, mestiço” (XAVIER, 2001, p. 137-138). 98, p. 144-160, 1963.
Enfim, diante do mar de histórias que parece convergir em O BENTES, Ivana. O profeta da democracia global. Folha de São Paulo, São Paulo,
Nascimento dos Deuses, termino com as palavras de Cardoso, a qual, tra- 09 jan. 2005. Caderno Mais. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
balhando nos arquivos do autor, resume assim seu processo de criação: fsp/mais/fs 0901200514.htm. Acesso em: 29 mar. 2019.

BRANDÃO, Jacyntho Lins. O filósofo econômico. Kleos, Rio de Janeiro, v. 2-3,


Convicto de que “mais fortes são os poderes do povo”, Glauber colecionava p. 221-227, 1998-1999.
mitos. Mas, ao glosá-los, condensava peças de origens diferentes, para rom-
CARDOSO, Marília Rothier. Glauber, “fabulista fabuloso”. Alea, Rio de Janeiro,
per com o bom senso conformista, desnaturalizar a significação e permitir
v. 12, n. 1, p. 58-67, Jun. 2010. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/
interpretações alternativas. Seus encadeamentos fabuladores, excessivamen-
S1517-106X2010000100005. Acesso em: 29 mar. 2019.
te hibridizados, correm o risco, de um lado, da simplificação esquemática e,
de outro, do hermetismo. No entanto, ele nunca abrandou a autoexigência CONTE, Rosa. Alessandro Magno: vita, opera, leggenda e romanzi in Oriente
e Occidente. Roma: IsIAO, 2001. Disponível em: https://www.researchgate.
de inventividade na apropriação e transformação subversiva de enredos. Foi
net/publication/305992278_Alessandro_Magno_Vita_opera_leggenda_e_
assim que escolheu a carreira exigente de cineasta, tentando desatar o nó da
romanzi_in_Oriente_e_Occidente_Bibliografia. Acesso em: 04 abr. 2019.
indústria capitalista, mas aproveitando todas as brechas para inserir sua arte
nos circuitos de massa, em busca de interferir no quotidiano das pessoas DIODORE DE SICILE. Bibliothèque historique. Ed. Pierre Bertrac. Trad.
comuns. Na mesma carta a Zelito [sobre O Nascimento dos Deuses], ele se Yvonne Verniere et al. Paris: Les Belles Lettres, 1972.
mostra fascinado com “a possibilidade de materializar as estruturas claras FEIJÓ, Martin Cezar. Anabasis Glauber: da idade dos homens à idade dos
das civilizações de Oriente e Ocidente, levando à máxima radicalização lin- deuses. São Paulo: Anabasis, 1996.
guística a estética revolucionária televisada”. (CARDOSO, 2010, p. 60).
GEIER, Robert. Alexandri M. historiarum scriptores aetate suppares. Leipzig:
Libraria Gebaueria, 1844.

272 273
HERÓDOTO. Histórias: livro 1. Introdução, versão do grego e notas de José SELDEN, Daniel. Mapping the Alexander romance. In: STONEMAN, Richard;
Ribeiro Ferreira e Maria de Fátima Silva. Lisboa: Edições 70, 1994. ERICKSON, Kyle; NETTON, Ian. The Alexander romance in Persia and the
East. Groningen: Barkuis/Groningen University Library, 2012. p. 19-60.
HERODOTUS. Historiarum libri IX. Ed. Rudolph Dietsch. Leipzig: Teubner,
1903. XAVIER, Ismail. Glauber Rocha: o desejo da história. In: O cinema brasileiro
moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 127-155.
MERCER, Charles. Alessandro Magno. Trad. B. Vivenza. Milano: Mondadori,
1964. XENOFONTE. A educação de Ciro (Ciropedia). Trad., introdução e notas por
Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1965.
MEREJKÓVSKI, Dimitri. O Nascimento dos Deuses: Romance de Tutankhâmon.
Trad. Eugênio Amado. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1993. XENOFONTE. Econômico. Trad. e introdução de Anna Lia Amaral de Almeida
Prado. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
PANAROTTO, Demétrio. Glauber Rocha (De Xenofonte a Euclides da Cunha
de Euclides da Cunha a Xenofonte). 2012. 306 f. Tese (Doutorado em Literatura) XENOPHONTIS. Opera omnia. Recognovit brevique adnotatione critica
– Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012. instruxit E. C. Marchant. Oxford: Clarendon, 1949.

PLUTARCO. Vidas paralelas. Introdução e notas de Paulo Matos Peixoto. Trad.


Gilson César Cardoso. São Paulo: Paumape, 1992.

PLUTARQUE. Vies. Edição e tradução de Robert Flacelière, Émile Chambry e


Marcel Juneaux. Paris: Les Belles Lettres, 1966.

QUINTO CÚRCIO. Histoire d’ Alexandre le Grand. Trad. V. Crepin. Paris:


Garnier, 1932.

RABELO, Laura Cohen. Vida e feitos de Alexandre da Macedônia: tradução e


comentário de um romance de Alexandre grego. 2017. Dissertação (Mestrado
em Literatura) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.

ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. Org. Ivana Bentes. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.

______. Roteiros do terceyro mundo. Organizado por Orlando Senna. Rio de


Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1985.

RONDI, Gian Luigi. Il profetismo di Rocha. In: ROCHA, Glauber. La Nascita


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RYAN, Marie-Laure. Narrativa transmídia e transficcionalidade. Celeuma,


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issn.2318-7875.v2i3p96-128. Acesso em 29 mar. 2019.

274 275
SOBRE OS AUTORES
GLAUBER ROCHA JACYNTHO LINS BRANDÃO
Glauber Rocha (1939-1981) foi cineasta, crítico de cinema, Jacyntho Lins Brandão é professor emérito de língua e
escritor e jornalista. Largamente reconhecido como um dos literatura grega da Universidade Federal de Minas Gerais e
mais importantes artistas brasileiros do século XX e um dos membro da Academia Mineira de Letras. Publicou, dentre
cineastas mais originais do cinema mundial nos anos de outros, os ensaios A invenção do romance (Editora UnB) e
1960-70, teve carreira breve mas intensa. Em pouco mais de Antiga Musa: arqueologia da ficção (Relicário), os romances
25 anos de trabalho, deixou dez longas (alguns dos quais de Relicário (José Olympio) e O fosso de Babel (Nova Fronteira),
grande repercussão internacional), cinco curtas e um média além de traduções do grego e do acádio: Como se deve escrever
metragem, além de mais de mil textos publicados no Brasil e a história de Luciano de Samósata (Tessitura), Ele que o abismo
no exterior. viu: epopeia de Gilgámesh (Autêntica) e Ao Kurnugu, terra sem
retorno: descida de Ishtar ao mundo dos mortos (Potter).
PAULA GAITÁN
Paula Gaitán é artista plástica, fotógrafa, poeta e cineasta.
MATEUS ARAÚJO
Franco-colombiana, formou-se em Artes Visuais e Filosofia
Mateus Araújo é doutor em filosofia (UFMG/Sorbonne) e
pela Universidade de Los Andes (Bogotá) e mudou-se em 1977
professor de teoria e história do cinema na ECA-USP. Organizou
para o Brasil, onde casou e colaborou com Glauber Rocha, com
ou co-organizou os volumes Glauber Rocha / Nelson Rodrigues
quem teve dois filhos (Ava e Eryk Rocha). Sua carreira solo de
(Magic Cinéma, 2005), Jean Rouch 2009: Retrospectivas e
cineasta remonta aos anos 1980 e compreende mais de 50
Colóquios no Brasil (Balafon, 2010), Straub-Huillet (CCBB,
curtas e médias, além dos longas Uaká (1988), Diário de Sintra
2012), Charles Chaplin (Fundação Clóvis Salgado, 2012),
(2007), Vida (2008), Exilados do Vulcão (2013), Noite (2014), Sutis
Jacques Rivette (CCBB, 2013), Godard inteiro ou o mundo em
Interferências (2016), Luz nos Trópicos (2019-20) e É rocha e
pedaços (CCBB/Heco, 2015) e O cinema interior de Philippe
rio, Negro Leo (2019-20), exibidos e premiados em festivais
Garrel (CCBB, 2018).
brasileiros e estrangeiros.

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GOVERNADOR DO ESTADO DE MINAS ASSOCIAÇÃO PRÓ-CULTURA E GLAUBER: FICHA TÉCNICA
GERAIS PROMOÇÃO DAS ARTES – APPA KYNOPERZPEKTYVA 18 DA PUBLICAÇÃO
ROMEU ZEMA NETO
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Calvo Ulloa, Arlindo Rebechi Junior, Augusto Nunes-Filho, Ava Rocha,
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Nogueira de Lima, João Lanari Bo, José Quental, Julia Engelender,
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Murari, Luis Felipe Flores, Marcelo Miranda, Marcos Pierry, Marcus
Mello, Maria Chiaretti, Mauricio Cardoso, Michel Marie, Miguel
Belo Horizonte

Pereira, Natalia Belasalma, Ney Piacentini, Nikola Matevski, Pablo


Gonçalo, Paloma Rocha, Paula Gaitán, Pedro Veras, Philipe Ratton,
Regina Mota, Sara Moreira, Theo Duarte, Thiago Herdy, Thomas
Sparfel, Umbelino Brasil, Virgínia Amaral.

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