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338 ENSAIO | ESSAY

Por que os pacientes não aderem ao


tratamento? Dispositivos metodológicos
para a educação em saúde
Why do patients not adhere to treatment? Methods for health
education

Silier Andrade Cardoso Borges1, Priscilla Nunes Porto2

RESUMO: Este trabalho é um ensaio teórico que objetiva desenvolver uma reflexão sistemática
sobre a adesão ao tratamento por usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Problematiza-
se o conceito de adesão com base na historicidade do SUS como legitimador das ações rela-
tivas à autonomia dos usuários. Articulam-se o Método Paulo Freire, a Clínica Ampliada e a
Entrevista Motivacional como dispositivos metodológicos que ressaltam o papel do profis-
sional na educação em saúde em direção à mudança e ao autocuidado. O problema da adesão
questiona a equipe sobre o seu papel no contexto educativo, que exige escuta das demandas
que se interpõem à práxis cotidiana.

PALAVRAS-CHAVE: Educação em saúde; Cooperação do paciente; Metodologia; Entrevista


motivacional.

ABSTRACT: This work is a theoretical essay aiming to develop a systematic reflection on the
adherence to treatment by the Unified Health System (SUS) users. It discusses the concept of
adherence grounded on the historicity of the SUS as legitimizer of actions related to the users’
autonomy. Paulo Freire’s Method, the Broadened Clinic and the Motivational Interview are ar-
ticulated as methodological devices that emphasize the role of health education professionals
towards change and self-care. The problem of adhesion questions the working team about its role
1 Graduando em Psicologia in the educational context, which requires listening to the demands that are interposed to the
pela Universidade everyday praxis.
Salvador (UNIFACS) –
Salvador (BA), Brasil.
silier@outlook.com KEYWORDS: Health education; Patient compliance; Methodology; Motivational interviewing.
2 Mestranda em
Enfermagem pela Escola
de Enfermagem da
Universidade Federal da
Bahia (UFBA) -
Salvador (BA), Brasil.
priscillaporto@outlook.com

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 38, N. 101, P. 338-346, ABR-JUN 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140031
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Introdução Evidentemente, há algo que escapa à com-


preensão das equipes multiprofissionais, ten-
O Sistema Único de Saúde (SUS) dispõe em do-se em vista a eventual ocorrência da não
uma rede de ações e serviços para promoção, adesão dos seus pacientes. Assim, paira nas
proteção e recuperação da saúde, garantida equipes o sentimento de impotência frente
através do acesso universal e igualitário de à recorrente pergunta: “por que os pacientes
suas ações. Dotado de historicidade, o SUS não aderem ao tratamento?”.
não foi implantado via imposição vertical ou Nesse contexto, as estratégias de educa-
decreto. Enquanto desdobramento do movi- ção em saúde se apresentam como saídas
mento político brasileiro que objetivou es- viáveis, estratégias comprometidas com a
tabelecer a participação democrática da po- solidariedade, ancoradas na promoção do
pulação, foi gestado no interior da sociedade homem e na melhoria da qualidade de vida.
civil, com ampla influência de militantes po- Como área do conhecimento, a educação em
líticos e profissionais de saúde (PAIM, 2009). saúde tangencia disciplinas como psicologia,
Nesse contexto, insere-se a Clínica sociologia, antropologia e filosofia, eviden-
Ampliada, conjunto de diretrizes políticas no ciando-se como campo multifacetado onde
contexto de reformas pela humanização da convergem diferentes concepções filosóficas
gestão e do cuidado à saúde, apresentadas na sobre o homem e a sociedade. Entretanto,
Política Nacional de Humanização (PNH). A verifica-se que na prática predominam para-
PNH ressalta que, mesmo hoje, o SUS ainda digmas de educação em saúde que reforçam
enfrenta desafios à sua plena efetivação, den- ações reducionistas, verticais e distanciadas
tre eles: fragmentação do processo de traba- de valores como equidade e participação po-
lho entre diferentes profissionais; sistema pular (MACHADO ET AL., 2007).
público verticalizado e burocratizado; des- Nesse sentido, objetiva-se desenvolver
preparo para lidar com a dimensão subjetiva uma reflexão no entorno de algumas ques-
nas práticas de atenção; precarização da ges- tões que se configuraram como desafios à
tão participativa e fragilidade do controle so- atuação de gestores e profissionais do SUS,
cial; formação profissional distanciada da atu- mais especificamente à adesão dos usuários
ação política; modelo de atenção centrado na dos serviços de saúde ao tratamento. Este
relação queixa-conduta (BRASIL, 2008; 2009; 2010). trabalho constitui-se como ensaio teórico,
Frente aos entraves identificados pela produção textual que busca a compreensão
PNH, a humanização em saúde se apresen- de uma realidade fenomênica ou de um obje-
ta não como programa, mas como política to através de uma área do conhecimento.
transversal na rede SUS. Nessa perspectiva,
enfatiza-se a necessidade de destacar o as-
pecto subjetivo presente na atenção em saú- A adesão como
de, ressaltando-se o papel de uma atuação problemática social
dialogada e amparada no estabelecimento de
vínculos solidários e sócio-afetivos e no fo- Esta discussão implica resgatar o conceito de
mento ao protagonismo social dos usuários adesão. Embora muitos profissionais relacio-
das ações e serviços de saúde (BRASIL, 2009). nem adesão ao seguimento estrito da prescri-
Desde a formulação e consolidação do SUS, ção de medicamentos, a definição de adesão
inúmeras foram as demandas que emergiram aos tratamentos crônicos ressalta outras di-
no contexto do cuidado em saúde. Subjacente mensões, como o grau de comprometimen-
aos entraves ressaltados na PNH, encontra-se to de uma pessoa, representado pela adoção
o fenômeno da adesão ao tratamento e à as- da dieta e da orientação dos profissionais de
sistência dos usuários dos serviços de saúde. saúde, bem como da mudança nos estilos de

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vida individuais. A adesão visa à melhora da operacionais para o enfrentamento das


saúde via redução dos sinais e sintomas da DCNT entre 2012-2022. Dentre seus princí-
doença. A adesão distingue-se do compliance, pios, destacam-se humanização da atenção,
compreendido como obediência participativa respeito às diversidades culturais, partici-
do paciente à prescrição médica. No contexto pação e controle social dos usuários sobre
atual, o paciente tende a ser visto meramente os serviços, evidenciando-se a dimensão da
como objeto da intervenção terapêutica tec- autonomia como estratégia promotora de
nicista (LUZ, 2012). Mais do que simples concor- autocuidado. Ambas as políticas pautam-se
dância do paciente frente ao tratamento esti- na constatação de que as DCNT constituem
pulado pelo profissional de saúde, o conceito o problema de saúde de maior magnitude,
de adesão implica postura ativa frente ao au- observando-se que correspondem a 72% das
tocuidado (GUSMÃO; MION, 2006). causas de morte relacionadas a fatores de
Dotado de diferentes níveis, a adesão va- risco no Brasil, como baixos níveis de ativi-
ria do nível mais elevado ao menos elevado. dade física no lazer, consumo de alimentos
No primeiro localizam-se os aderentes, pa- com elevado teor de gordura e baixa adesão
cientes que seguem totalmente o tratamento aos tratamentos de saúde (BRASIL, 2011).
e, no segundo, os desistentes, que os aban- Nesse sentido, Reiners et al. (2008) realiza-
donam. Os persistentes compõem uma mo- ram uma análise crítica da bibliografia latino-
dalidade de não aderentes que comparecem -americana, identificando publicações das
às consultas, mas não seguem o tratamento áreas de saúde pública, enfermagem, medici-
(GUSMÃO; MION, 2006). na clínica, farmácia e nutrição sobre adesão e
A baixa adesão ao tratamento comu- não adesão de pessoas ao tratamento de saú-
mente se refere às doenças crônicas não de. Os resultados revelam a realização de estu-
transmissíveis, como doenças cardiovascu- dos que superem a dimensão epidemiológica
lares, obesidade, diabetes, dentre outras. do fenômeno. Ademais, os dados indicam que
Compreende-se as doenças crônicas não a perspectiva predominante das intervenções
transmissíveis como grupo de doenças com profissionais e das pesquisas sobre adesão
história natural prolongada, caracterizada e não adesão não contempla a subjetividade
por fatores de riscos múltiplos e comple- dos pacientes, suas necessidades e dificulda-
xos, interação de fatores etiológicos desco- des, enfatizando, exclusivamente, a precisão
nhecidos, longo período de latência, curso com que o paciente segue as recomendações
assintomático, manifestações clínicas que médicas. Essa representação contribui para a
oscilam entre períodos de remissão e exa- compreensão do paciente como submisso aos
cerbação, evoluindo para a incapacidade desígnios dos profissionais de saúde, vigilan-
(REINERS ET AL., 2008). te biopolítico que esquadrinha as formas com
A rede de atenção à saúde das pessoas que os pacientes lidam com o próprio corpo.
com doenças crônicas no âmbito do SUS é A mesma representação que exclui e margi-
regulada pela Portaria nº 483, de 1º de Abril naliza comportamentos legítimos que dife-
de 2014, que redefine a Rede de Atenção à rem de suas prescrições.
Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no Compreende-se que as ações e serviços
âmbito do SUS e estabelece diretrizes para a de saúde devem contemplar a autonomia e a
organização das suas linhas de cuidado em corresponsabilização dos usuários. Afinal, a
todos os componentes da rede de atenção à construção do sistema de saúde público de-
saúde (BRASIL, 2014). Ademais, o Plano de Ações mandou a participação ativa de segmentos
Estratégicas para o Enfrentamento das sociais diversos marginalizados do processo
Doenças Crônicas Não Transmissíveis prevê decisório das instâncias políticas. Se o SUS
diretrizes para redefinição dos instrumentos é resultado da conjuntura histórica tecida

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entre diversos segmentos, dentre os quais se das práticas de atenção à saúde, devem ser
incluem os trabalhadores de saúde e usuá- vivenciadas e compartilhadas pelos traba-
rios dos serviços públicos, é de se supor que lhadores, setores organizados da população
o distanciamento entre os espaços de ges- e usuários dos serviços de saúde. É uma prá-
tão, assistência e participação popular tenha tica social compromissada com a formação
contribuído para o baixo envolvimento dos da consciência crítica das pessoas sobre os
atores na produção de saúde que, como se problemas de saúde, implicando na busca de
sabe, é produto eminentemente social. ações individuais e coletivas; o compromisso
com a transformação da realidade dada; e o
reforço da ação comunitária, em respeito ao
Educação popular em saúde universo cultural das pessoas (BRASIL, 2007B).
A interseção da educação em saúde com
A prática educativa amparada no Método a educação popular possibilita compreender
Paulo Freire se apresenta como dispositivo que sua práxis não se confunde com educação
promotor do empoderamento dos usuários informal. Afinal, existem propostas educativas
dos serviços de saúde. Compreender as ativi- diversas que ocorrem no exterior das institui-
dades educativas desempenhadas pela equi- ções, mas que ainda recorrem aos métodos
pe multiprofissional exige o entendimento verticais na relação entre educador e educan-
do exercício de uma pedagogia calcada no do. A educação popular não objetiva produzir
real, responsável por revelar as contradições sujeitos subalternos e polidos. No contexto
sociais e envolvida no combate às formas da educação em saúde, a educação popular se
usuais de opressão. Assim, a perspectiva de apresenta como alternativa para uma atuação
Paulo Freire se interpõe como saída viável política transformadora, eximindo-se da re-
ao estabelecimento de estratégias e atitudes produção conteudista ou da transmissão line-
exigidas pelos profissionais de saúde quando ar de conhecimentos de tradição autoritária. A
se tornam também educadores. educação popular em saúde reconhece o saber
A educação em saúde consiste em um pro- dos usuários sobre o próprio corpo, legitiman-
cesso sistemático, contínuo e permanente de do narrativas associadas à conscientização
formação e desenvolvimento da consciência dos determinantes sociais da saúde (FERNANDES;
crítica do cidadão, estimulando a busca de BACKES, 2010; MIRANDA; BARROSO, 2004).
soluções coletivas para os problemas viven- A educação apresenta duas diferentes
ciados, por meio da efetiva participação do concepções políticas: a concepção bancária e
controle social. Sabe-se que a educação em a libertadora. A concepção bancária de edu-
saúde é inerente a todas as práticas desen- cação atende aos interesses elitistas das clas-
volvidas no âmbito do SUS. Como prática ses opressoras e mantém a distinção binária
transversal, proporciona a articulação entre entre educador, quem educa, quem sabe e
todos os níveis de gestão do sistema, repre- pensa, em contraposição ao educando, que é
sentando dispositivo essencial tanto para educado e pensado, que escuta e se acomo-
formulação da política de saúde de forma da na condição de objeto da educação. Já a
compartilhada como às ações que aconte- concepção libertadora de educação se fun-
cem na relação direta dos serviços com os damenta na superação dessa contradição,
usuários (BRASIL, 2007A). reduzindo os abismos através da dialética
Segundo as diretrizes de educação em educador-educando e educando-educador
saúde visando à promoção da saúde, a edu- (FEITOSA, 1999). Essa superação implica a parti-
cação em saúde é constituída por um con- cipação ativa de ambas as partes, e não ape-
junto de práticas pedagógicas e sociais, téc- nas do educador. Estabelece-se no entendi-
nicas, políticas e científicas que, no âmbito mento dos sujeitos como seres históricos,

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dotados de uma cultura de onde deve partir em saúde a escuta atenta dessas expressões,
o processo formativo (FREIRE, 1987). compreendendo-as enquanto exigências da
Dentre os princípios da educação popular, coletividade. A partir dessa escuta, estabe-
destacam-se: a compreensão de que não existe lecer-se-á a temática das atividades a serem
docência sem discência, envolvendo a aceita- desempenhadas no transcurso educativo e
ção do risco e a crítica dos fazeres; o reconhe- serão definidos os parâmetros metodológicos
cimento de que ensinar é uma especificidade da ação pedagógica.
humana, o que envolve a competência profis- A educação popular em saúde prima pe-
sional, o saber escutar, legitimando a verdade las diferentes representações da doença e do
e a demanda que os educandos trazem de sua cuidado mantidas pelos pacientes, proble-
historicidade; e o entendimento de que toda matizando as consequências individuais ad-
educação é de natureza ideológica, não haven- vindas do engajar-se ou não no tratamento,
do saber politicamente neutro ou isento (FREIRE, sem recair no julgamento moralizante e no
2011; MITRE ET AL., 2008; FEITOSA, 1999). discurso utópico. Dessa forma, o profissio-
Ressaltando-se que a educação em saúde nal-educador em saúde evita estereótipos
é também uma forma de conceder assistên- das diferentes formas do cuidado de si e do
cia e cuidado aos usuários, é de se pressupor binarismo adesão/não-adesão. Assim, o edu-
o compromisso que assume o profissional de cador compromete-se com o ato educativo
saúde com a natureza singular dessa moda- como alguém também disposto a aprender,
lidade de atuação. Logo, torna-se relevante convicto de que a mudança é possível; sem
considerar atividades educativas em saúde a a esperança nos usuários e em suas poten-
partir da proposta pedagógica de Paulo Freire cialidades não há educação transformadora,
(BRASIL, 2007A; PEREIRA, 2003). impossibilitando os espaços de diálogo entre
Nesse sentido, passa-se da assistência in- educador-educando e educando-educador.
dividual do modelo clínico para a assistência O profissional-educador em saúde impli-
educativa pautada em práticas alinhadas à cado em educação popular se apresenta ao
pedagogia libertadora na educação em saúde. usuário através da escuta atenta às deman-
Tais atividades não devem ocorrer vertical- das biopsicossociais relacionadas às doenças
mente, no sentido de propor que o profissio- e agravos, com a finalidade da preservação da
nal de saúde, suposto detentor de um saber saúde dos indivíduos, estabelecendo com eles
legitimado, eduque o usuário do serviço, que possíveis estratégias de resolutividade, acom-
deveria assistir e ser informado. Em verdade, panhamento e compreensão do que acontece
trata-se da construção do saber coletivo, onde com o corpo e com a vida do usuário, irredutí-
as ações de educação em saúde se iniciem vel ao corpo biológico (BRASIL, 2007A).
sempre a partir dos saberes prévios trazidos Na atuação do profissional-educador em
pelos próprios usuários, em respeito à sua saúde, o usuário é protagonista de sua pró-
dimensão cultural. Uma concepção eman- pria vida. Dotado de capacidades cognitivas
cipatória da educação em saúde exigirá que plenas, o usuário deixa de ser ‘paciente’ para
o conhecimento produzido no contato com evidenciar-se pelo empoderamento na rela-
o usuário o afete, no sentido de mobilizá-lo ção consigo e com a equipe multiprofissio-
à mudança de suas práticas. Para afetá-lo, é nal, que passa a compreendê-lo como sujeito
preciso que o saber do senso comum não seja de direitos. Nessa perspectiva, propiciam-se
marginalizado pela ideologia dominante do melhores chances de reintegração e recu-
profissional-educador (BRASIL, 2007A). peração, dada a multiplicidade de caminhos
Se os usuários dos serviços expressam sua para se lidar com o corpo.
satisfação ou insatisfação perante os serviços Nos caminhos estabelecidos por uma
assistenciais, cabe ao profissional-educador educação popular em saúde, cabe ao

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profissional-educador atuar em atividades A proposta da Clínica Ampliada é norte-


pedagógicas politicamente comprometidas, ada por cinco eixos fundamentais: compre-
de forma a ressaltar as dimensões da liberda- ensão ampliada do processo saúde-doença,
de individual frente ao tratamento proposto construção compartilhada das terapêuticas,
e às consequências advindas de aceitá-lo ou ampliação do objeto de trabalho, transforma-
rejeitá-lo (FREIRE, 2011). Assim, cabe a ambos, ção dos meios de trabalho e suporte para os
profissional e usuário, o reconhecimento do profissionais de saúde (BRASIL, 2009).
compromisso mútuo envolvido na afirmação A compreensão ampliada do processo saú-
ética das diferentes formas de cuidar de si. de-doença ressalta a natureza parcialmen-
te arbitrária dos recortes teóricos e busca
construir sínteses singulares de diferentes
Clínica Ampliada aspectos da realidade - orgânico, psíquico,
e humanização na econômico, cultural, étnico, afetivo etc. -, em
respeito às relações diversas mantidas entre
educação em saúde o indivíduo e o seu entorno. Já a construção
compartilhada das terapêuticas, exige com-
A Clínica Ampliada se insere no contexto partilhamento com a equipe de saúde e com
de reformas pela humanização da gestão e os usuários dos diagnósticos das demandas e
do cuidado à saúde. Considerando-se a uni- das propostas de solução, tendo-se em vista a
versalidade, a integralidade e a equidade da complexidade do exercício clínico.
atenção em saúde, subverte-se a noção de Para se alcançar a ampliação do objeto de
saúde como ausência de doença, adentrando trabalho, estima-se a responsabilização mú-
os espaços individuais e coletivos compro- tua pela atenção e pelo cuidado dos usuários
metidos com a promoção, proteção, trata- dos serviços de saúde, de forma que pesso-
mento e recuperação à saúde. as se responsabilizem por pessoas e não por
Sabe-se a que a atuação dos trabalhado- partes delas, seja por ‘diagnóstico’, ‘procedi-
res-educadores em saúde tem como desa- mento’, ou, pior, por ‘partes de órgãos’.
fio não dicotomizar a atenção individual da Para transformação dos meios de traba-
atenção coletiva; a qualidade de vida (as- lho, preconiza-se a fluidez dos dispositivos
pecto biológico) do andar na vida (aspecto de atenção, bem como as especificidades dos
subjetivo); não perder o conceito de atenção projetos terapêuticos, enfatizando-se a escu-
integral à saúde; e realizar o trabalho edu- ta do outro e a escuta de si, propondo a ex-
cativo junto à população (MACHADO ET AL., 2007). pressão de subjetividades.
Nessa perspectiva, a Clínica Ampliada O suporte para os profissionais de saúde es-
apresenta uma proposta biopsicossocial para tabelece a compreensão de sujeitos íntegros,
atuações interdisciplinares como a educação dotados de direitos e deveres sobre o próprio
em saúde, norteada pela suspensão de mo- corpo. Igualmente, esse eixo estabelece a críti-
delos de atuação estanques. Assim, a Clínica ca da não implicação do profissional no fazer
Ampliada oferece as diretrizes que possibi- clínico. Dessa forma, se uma clínica reducionis-
litam objetivar na práxis educativa elemen- ta conduz à negação da pessoa e do coletivo em
tos que compõem o Método Paulo Freire no sofrimento, a Clínica Ampliada oferece suporte
cuidado às pessoas que não aderem ao trata- para que os profissionais de saúde lidem com
mento à saúde. Ademais, a matéria prima da suas próprias emoções e dificuldades durante
educação popular, que é o respeito ao saber a elaboração do Projeto Terapêutico Singular,
anterior do educando, adquire concretude afastando-se do ideal de neutralidade carac-
quando se realiza a crítica da clínica reducio- terístico da clínica tradicional (BRASIL, 2009).
nista (BRASIL, 2007A).

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A Entrevista Motivacional mudança. A não adesão não é compreendi-


da como resistência do paciente, mas como
no contexto da educação
comportamento a ser refletido criticamente
em saúde pelos envolvidos. Dessa forma, as metas do
tratamento não são impostas pelo profissio-
A Entrevista Motivacional (EM) é um mé- nal, mas negociadas entre equipe e usuário
todo de assistência diretiva e centrada no (ANDRETTA; OLIVEIRA, 2005; PAYÁ; FIGLIE, 2004).
cliente que objetiva estabelecer a motivação A EM vale-se de estratégias diversas,
interna para mudança de comportamento como a balança decisória, a escala de dispo-
mediante a resolução e exploração da am- sição, afirmações automotivacionais, treino
bivalência apresentada pelo cliente. A EM do relato verbal e automonitoramento, com
possui reconhecida influência da Terapia o objetivo de aumentar a auto-eficácia e di-
Cognitivo-Comportamental e da Psicologia minuir a ambivalência frente à não adesão
Social, mas é possível afirmar que a EM (ANDRETTA; OLIVEIRA, 2005; PAYÁ; FIGLIE, 2004). A am-
também se aproxima conceitualmente do bivalência é um conflito existente entre duas
Método Paulo Freire, ao considerar a cor- opções possíveis, essência do problema de
responsabilização do usuário, que se sente muitos comportamentos. Não consiste em
caminhar ao lado do profissional de saúde traço de personalidade, mas em fenômeno
em direção à mudança, ao invés de seguir humano decorrente da interação entre pa-
apenas orientações (PAYÁ; FIGLIE, 2004). ciente e uma situação aguda imediata, com
A EM consiste em uma intervenção sim- aspectos interpessoais e intrapessoais. Evi-
ples e de baixo custo que objetiva auxiliar dentemente, o objetivo da EM é estabelecer
indivíduos no processo de mudança compor- as condições para emergência da motivação,
tamental, baseada em princípios do entendi- entendida como a probabilidade de que uma
mento dos conflitos, das reações emocionais pessoa inicie, permaneça e prossiga em um
associadas, estabelecimento de padrões de processo de mudança específico.
pensamento e alternativas para implementa- A abordagem do profissional de saúde
ção de soluções (ANDRETTA; OLIVEIRA, 2005). Con- orientado pela EM deve-se pautar na evita-
siderando-se a eficácia da EM, comumente ção de armadilhas que possam prejudicar a
aplicável ao contexto da assistência às pes- relação com os usuários do serviço. Dentre
soas que fazem uso abusivo de substâncias elas, ressaltam-se: 1) um diálogo excessivo
psicoativas, deve-se considerar, dada a ampli- de perguntas e respostas, no lugar da escu-
tude conceitual da EM, a pertinência da uti- ta reflexiva; 2) a armadilha em confrontar o
lização dessa técnica na atenção aos usuários usuário com o dado da realidade, resultan-
com baixa aderência ao tratamento. do em resistência e indisposição à mudança;
O número de sessões pode ser variável na 3) a armadilha do saber especialista, onde o
EM, embora seja usualmente realizada em Educador em Saúde se apresenta como de-
sessão única, o que a torna passível de imple- tentor de todas as respostas, conduzindo o
mentação como técnica subjacente às ativi- usuário à passividade e à impossibilidade
dades de educação em saúde. A postura do de resolução da ambivalência; 4) culpabi-
profissional-educador em saúde pautada na lização do usuário pela sua própria condi-
EM deve conservar os princípios da técnica. ção de saúde; 5) rotulação do problema, re-
Dentre tais princípios, ressalta-se que a pos- sultante da excessiva preocupação com o
tura do profissional seja persuasiva e não co- diagnóstico nosológico, em detrimento das
ercitiva e menos argumentativa do que com- representações do usuário frente à própria
preensiva, no sentido de propor uma relação saúde; 6) e a armadilha do foco prematuro,
terapêutica dotada de atmosfera favorável à resultado de uma atenção do profissional

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Por que os pacientes não aderem ao tratamento? Dispositivos metodológicos para a educação em saúde 345

que ocorre antes que o usuário estabeleça saúde, estabelecem-se as condições para a
a resolução de outras questões prioritárias consolidação de uma educação popular, dis-
também relacionadas à doença ou transtor- tanciada da fragmentação da vida social e em
no (PAYÁ; FIGLIE, 2004). benefício da recomposição da integralidade
Nesse sentido, o educador em saúde deve nas práticas de saúde.
expressar empatia pelos usuários por meio
da escuta reflexiva e sensível às demandas
grupais. Em lugar da argumentação, o edu- Considerações finais
cador em saúde conduz o grupo educativo
no sentido de incitá-lo a apresentar, por ele A problemática da adesão ao tratamento
mesmo, argumentos para a mudança. Para convoca os gestores e profissionais do SUS
tal, evita-se rotular o usuário pela patolo- a refletir criticamente sobre a postura, o pa-
gia, mas conscientizá-lo das consequências pel e a atuação da equipe multiprofissional
de cada decisão sobre a qualidade de vida. O no contexto da educação em saúde, comu-
caminho indicado para superação da ambi- mente desvinculada da escuta reflexiva e
valência é utilizar-se da dissonância cogniti- das demandas culturais e psicossociais que
va, isto é, realizar discussões e atividades que se interpõem à práxis cotidiana. Nessa pers-
possibilitem aumentar a discrepância entre o pectiva, não se trata da adoção espontaneís-
comportamento presente e as metas impor- ta dos métodos de ensino-aprendizagem que
tantes para o próprio usuário (PAYÁ; FIGLIE, 2004). vigoram ao sabor da moda pedagógica, mas
Assim, evitando-se as armadilhas da atu- da compreensão crítica da transversalidade
ação do profissional alicerçado na EM, es- inerente aos dispositivos teóricos e metodo-
pecificamente no contexto da educação em lógicos reconhecidamente eficazes. s

Referências

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Recebido para publicação em abril de 2013
Versão final em abril de 2014
Conflito de interesses:inexistente
Suporte financeiro:não houve

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 38, N. 101, P. 338-346, ABR-JUN 2014

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