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RESUMO: Este trabalho é um ensaio teórico que objetiva desenvolver uma reflexão sistemática
sobre a adesão ao tratamento por usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Problematiza-
se o conceito de adesão com base na historicidade do SUS como legitimador das ações rela-
tivas à autonomia dos usuários. Articulam-se o Método Paulo Freire, a Clínica Ampliada e a
Entrevista Motivacional como dispositivos metodológicos que ressaltam o papel do profis-
sional na educação em saúde em direção à mudança e ao autocuidado. O problema da adesão
questiona a equipe sobre o seu papel no contexto educativo, que exige escuta das demandas
que se interpõem à práxis cotidiana.
ABSTRACT: This work is a theoretical essay aiming to develop a systematic reflection on the
adherence to treatment by the Unified Health System (SUS) users. It discusses the concept of
adherence grounded on the historicity of the SUS as legitimizer of actions related to the users’
autonomy. Paulo Freire’s Method, the Broadened Clinic and the Motivational Interview are ar-
ticulated as methodological devices that emphasize the role of health education professionals
towards change and self-care. The problem of adhesion questions the working team about its role
1 Graduando em Psicologia in the educational context, which requires listening to the demands that are interposed to the
pela Universidade everyday praxis.
Salvador (UNIFACS) –
Salvador (BA), Brasil.
silier@outlook.com KEYWORDS: Health education; Patient compliance; Methodology; Motivational interviewing.
2 Mestranda em
Enfermagem pela Escola
de Enfermagem da
Universidade Federal da
Bahia (UFBA) -
Salvador (BA), Brasil.
priscillaporto@outlook.com
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 38, N. 101, P. 338-346, ABR-JUN 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140031
Por que os pacientes não aderem ao tratamento? Dispositivos metodológicos para a educação em saúde 339
entre diversos segmentos, dentre os quais se das práticas de atenção à saúde, devem ser
incluem os trabalhadores de saúde e usuá- vivenciadas e compartilhadas pelos traba-
rios dos serviços públicos, é de se supor que lhadores, setores organizados da população
o distanciamento entre os espaços de ges- e usuários dos serviços de saúde. É uma prá-
tão, assistência e participação popular tenha tica social compromissada com a formação
contribuído para o baixo envolvimento dos da consciência crítica das pessoas sobre os
atores na produção de saúde que, como se problemas de saúde, implicando na busca de
sabe, é produto eminentemente social. ações individuais e coletivas; o compromisso
com a transformação da realidade dada; e o
reforço da ação comunitária, em respeito ao
Educação popular em saúde universo cultural das pessoas (BRASIL, 2007B).
A interseção da educação em saúde com
A prática educativa amparada no Método a educação popular possibilita compreender
Paulo Freire se apresenta como dispositivo que sua práxis não se confunde com educação
promotor do empoderamento dos usuários informal. Afinal, existem propostas educativas
dos serviços de saúde. Compreender as ativi- diversas que ocorrem no exterior das institui-
dades educativas desempenhadas pela equi- ções, mas que ainda recorrem aos métodos
pe multiprofissional exige o entendimento verticais na relação entre educador e educan-
do exercício de uma pedagogia calcada no do. A educação popular não objetiva produzir
real, responsável por revelar as contradições sujeitos subalternos e polidos. No contexto
sociais e envolvida no combate às formas da educação em saúde, a educação popular se
usuais de opressão. Assim, a perspectiva de apresenta como alternativa para uma atuação
Paulo Freire se interpõe como saída viável política transformadora, eximindo-se da re-
ao estabelecimento de estratégias e atitudes produção conteudista ou da transmissão line-
exigidas pelos profissionais de saúde quando ar de conhecimentos de tradição autoritária. A
se tornam também educadores. educação popular em saúde reconhece o saber
A educação em saúde consiste em um pro- dos usuários sobre o próprio corpo, legitiman-
cesso sistemático, contínuo e permanente de do narrativas associadas à conscientização
formação e desenvolvimento da consciência dos determinantes sociais da saúde (FERNANDES;
crítica do cidadão, estimulando a busca de BACKES, 2010; MIRANDA; BARROSO, 2004).
soluções coletivas para os problemas viven- A educação apresenta duas diferentes
ciados, por meio da efetiva participação do concepções políticas: a concepção bancária e
controle social. Sabe-se que a educação em a libertadora. A concepção bancária de edu-
saúde é inerente a todas as práticas desen- cação atende aos interesses elitistas das clas-
volvidas no âmbito do SUS. Como prática ses opressoras e mantém a distinção binária
transversal, proporciona a articulação entre entre educador, quem educa, quem sabe e
todos os níveis de gestão do sistema, repre- pensa, em contraposição ao educando, que é
sentando dispositivo essencial tanto para educado e pensado, que escuta e se acomo-
formulação da política de saúde de forma da na condição de objeto da educação. Já a
compartilhada como às ações que aconte- concepção libertadora de educação se fun-
cem na relação direta dos serviços com os damenta na superação dessa contradição,
usuários (BRASIL, 2007A). reduzindo os abismos através da dialética
Segundo as diretrizes de educação em educador-educando e educando-educador
saúde visando à promoção da saúde, a edu- (FEITOSA, 1999). Essa superação implica a parti-
cação em saúde é constituída por um con- cipação ativa de ambas as partes, e não ape-
junto de práticas pedagógicas e sociais, téc- nas do educador. Estabelece-se no entendi-
nicas, políticas e científicas que, no âmbito mento dos sujeitos como seres históricos,
dotados de uma cultura de onde deve partir em saúde a escuta atenta dessas expressões,
o processo formativo (FREIRE, 1987). compreendendo-as enquanto exigências da
Dentre os princípios da educação popular, coletividade. A partir dessa escuta, estabe-
destacam-se: a compreensão de que não existe lecer-se-á a temática das atividades a serem
docência sem discência, envolvendo a aceita- desempenhadas no transcurso educativo e
ção do risco e a crítica dos fazeres; o reconhe- serão definidos os parâmetros metodológicos
cimento de que ensinar é uma especificidade da ação pedagógica.
humana, o que envolve a competência profis- A educação popular em saúde prima pe-
sional, o saber escutar, legitimando a verdade las diferentes representações da doença e do
e a demanda que os educandos trazem de sua cuidado mantidas pelos pacientes, proble-
historicidade; e o entendimento de que toda matizando as consequências individuais ad-
educação é de natureza ideológica, não haven- vindas do engajar-se ou não no tratamento,
do saber politicamente neutro ou isento (FREIRE, sem recair no julgamento moralizante e no
2011; MITRE ET AL., 2008; FEITOSA, 1999). discurso utópico. Dessa forma, o profissio-
Ressaltando-se que a educação em saúde nal-educador em saúde evita estereótipos
é também uma forma de conceder assistên- das diferentes formas do cuidado de si e do
cia e cuidado aos usuários, é de se pressupor binarismo adesão/não-adesão. Assim, o edu-
o compromisso que assume o profissional de cador compromete-se com o ato educativo
saúde com a natureza singular dessa moda- como alguém também disposto a aprender,
lidade de atuação. Logo, torna-se relevante convicto de que a mudança é possível; sem
considerar atividades educativas em saúde a a esperança nos usuários e em suas poten-
partir da proposta pedagógica de Paulo Freire cialidades não há educação transformadora,
(BRASIL, 2007A; PEREIRA, 2003). impossibilitando os espaços de diálogo entre
Nesse sentido, passa-se da assistência in- educador-educando e educando-educador.
dividual do modelo clínico para a assistência O profissional-educador em saúde impli-
educativa pautada em práticas alinhadas à cado em educação popular se apresenta ao
pedagogia libertadora na educação em saúde. usuário através da escuta atenta às deman-
Tais atividades não devem ocorrer vertical- das biopsicossociais relacionadas às doenças
mente, no sentido de propor que o profissio- e agravos, com a finalidade da preservação da
nal de saúde, suposto detentor de um saber saúde dos indivíduos, estabelecendo com eles
legitimado, eduque o usuário do serviço, que possíveis estratégias de resolutividade, acom-
deveria assistir e ser informado. Em verdade, panhamento e compreensão do que acontece
trata-se da construção do saber coletivo, onde com o corpo e com a vida do usuário, irredutí-
as ações de educação em saúde se iniciem vel ao corpo biológico (BRASIL, 2007A).
sempre a partir dos saberes prévios trazidos Na atuação do profissional-educador em
pelos próprios usuários, em respeito à sua saúde, o usuário é protagonista de sua pró-
dimensão cultural. Uma concepção eman- pria vida. Dotado de capacidades cognitivas
cipatória da educação em saúde exigirá que plenas, o usuário deixa de ser ‘paciente’ para
o conhecimento produzido no contato com evidenciar-se pelo empoderamento na rela-
o usuário o afete, no sentido de mobilizá-lo ção consigo e com a equipe multiprofissio-
à mudança de suas práticas. Para afetá-lo, é nal, que passa a compreendê-lo como sujeito
preciso que o saber do senso comum não seja de direitos. Nessa perspectiva, propiciam-se
marginalizado pela ideologia dominante do melhores chances de reintegração e recu-
profissional-educador (BRASIL, 2007A). peração, dada a multiplicidade de caminhos
Se os usuários dos serviços expressam sua para se lidar com o corpo.
satisfação ou insatisfação perante os serviços Nos caminhos estabelecidos por uma
assistenciais, cabe ao profissional-educador educação popular em saúde, cabe ao
que ocorre antes que o usuário estabeleça saúde, estabelecem-se as condições para a
a resolução de outras questões prioritárias consolidação de uma educação popular, dis-
também relacionadas à doença ou transtor- tanciada da fragmentação da vida social e em
no (PAYÁ; FIGLIE, 2004). benefício da recomposição da integralidade
Nesse sentido, o educador em saúde deve nas práticas de saúde.
expressar empatia pelos usuários por meio
da escuta reflexiva e sensível às demandas
grupais. Em lugar da argumentação, o edu- Considerações finais
cador em saúde conduz o grupo educativo
no sentido de incitá-lo a apresentar, por ele A problemática da adesão ao tratamento
mesmo, argumentos para a mudança. Para convoca os gestores e profissionais do SUS
tal, evita-se rotular o usuário pela patolo- a refletir criticamente sobre a postura, o pa-
gia, mas conscientizá-lo das consequências pel e a atuação da equipe multiprofissional
de cada decisão sobre a qualidade de vida. O no contexto da educação em saúde, comu-
caminho indicado para superação da ambi- mente desvinculada da escuta reflexiva e
valência é utilizar-se da dissonância cogniti- das demandas culturais e psicossociais que
va, isto é, realizar discussões e atividades que se interpõem à práxis cotidiana. Nessa pers-
possibilitem aumentar a discrepância entre o pectiva, não se trata da adoção espontaneís-
comportamento presente e as metas impor- ta dos métodos de ensino-aprendizagem que
tantes para o próprio usuário (PAYÁ; FIGLIE, 2004). vigoram ao sabor da moda pedagógica, mas
Assim, evitando-se as armadilhas da atu- da compreensão crítica da transversalidade
ação do profissional alicerçado na EM, es- inerente aos dispositivos teóricos e metodo-
pecificamente no contexto da educação em lógicos reconhecidamente eficazes. s
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Recebido para publicação em abril de 2013
Versão final em abril de 2014
Conflito de interesses:inexistente
Suporte financeiro:não houve