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José Rezende Jr.

A mulher-gorila
e outros demônios

coleção rocinante
© 2005 José Rezende Jr.

Produção editorial
Debora Fleck
Isadora Travassos
Jorge Viveiros de Castro
Marília Garcia
Valeska de Aguirre

Ilustração de capa
Nelson Cruz

REZENDE JR., José


A mulher-gorila e outros demônios / José Rezende Jr.
– Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.
Coleção Rocinante: ISBN 85-7577-038-1
ISBN 85-7577-217-1
1. Literatura brasileira – contos. I. Título.

CDD 869 B

2005

Viveiros de Castro Editora Ltda. (21) 2540-0130 / 2540-0037


R. Jardim Botânico 674 sl. 417 editora@7letras.com.br
Rio de Janeiro RJ CEP 22461-000 www.7letras.com.br
SUMÁRIO

Pleibéqui ...................................................................... 11
Bangue-bangue ............................................................. 17
59 segundos ................................................................. 27
A mulher-gorila ............................................................ 37
José – o duelo .............................................................. 45
Não passarão
(ou A abolição da quarta-feira de cinzas) ........................ 53
Os bichos ..................................................................... 63
A triste orla do Aqueronte ............................................ 79
Nada nunca não ........................................................... 91

Ainda é tarde .............................................................. 109


Para meu pai,
por tudo,
em nome de todos.
O senhor sabe o que o silêncio é?
É a gente mesmo, demais.
JOÃO GUMARÃES ROSA, G. S. V.

Ouvi minhas veias.


IDEM
PLEIBÉQUI

Só fui reparar que era a Creuza quando ela já tava lá, no


meio do palco, as luzes todas em cima, tinha até começado a
cantar. Como eu ia adivinhar, se o locutor anunciou um nome
que não era Creuza? Burro, na hora nem me passou pela ca-
beça, todo artista muda de nome pra ficar mais chique, se
bem que, segundo a revista, já tem mãe batizando filho com
nome artístico pra não precisar trocar depois de grande. E só
quando a Creuza já tava lá no meio do palco e do refrão da
música foi que me lembrei da promessa que ela fez uns anos
atrás, nem era promessa, era mais um sonho, “eu vou ser
cantora”, e eu ri, e não podia ter rido, ela me disse depois,
quando eu telefonei pro salão de beleza pela décima vez e ela,
cansada de mandar a Dirce dizer que tinha morrido e que
queria que eu morresse também, pegou o telefone e gritou
“você não podia ter rido de mim, podia ter falado du-vi-de-
o-dó ou sei lá acho que vai ser difícil porque o que mais tem
neste país de merda é cantora de merda, podia falar qualquer
coisa, menos rir na minha cara.” Eu não devia mesmo ter
rido, porque ela não riu naquele dia quando a gente namora-
va e eu disse que ia ser jogador de futebol, ela ficou séria, “se
é o que você quer, dou a maior força”, mas eu não fui joga-
dor de futebol, não fui porra nenhuma, e ela agora era canto-
ra, tinha palco, luz azul e tudo.
Tanto tempo vivendo junto e eu nunca soube que ela
tinha voz, a Creuza não cantava nem no chuveiro, acho que
porque a água era fria e ela vivia me cobrando chuveiro quen-

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te, “água fria faz bem pra pele”, eu desconversava, mas na-
quela época ela tava pouco se lixando pra pele, não sei hoje
em dia, pra ser artista tem que ter pele bonita, parece que é
exigência contratual: nome bonito, pele bonita. Nome bo-
nito ela agora tinha, não lembro qual, sei que não era mais
Creuza, a pele eu não reparei, não dava pra ver naquela luz
escura. A voz é que era uma coisa de doido, eu dava tudo pra
entender o que ela tava cantando, mas era inglês, e eu não
sabia que ela sabia inglês.
Como são as coisas... Nem cinco anos desde o dia em
que eu ri quando ela disse que ia ser cantora e a Creuza me
aparece com outro nome, artista, e ainda por cima cantando
em inglês. O pastor é que não ia gostar, esse negócio de falar
outras línguas é coisa do demônio, ou do espírito santo, não
lembro agora, eu só ia à igreja pra acompanhar a Creuza,
nunca dei um puto praqueles sacanas, ela é que dava, mas aí o
salão, se é que alguém podia chamar aquela portinha mixuruca
e aquela feiúra toda de salão de beleza, aí o salão foi fracassan-
do, fracassando, e eu nada de arrumar emprego, se bem que
acho que ninguém tinha nada a ver com isso, nem deus nem
diabo, e ela foi reclamar pro pastor, e o pastor na maior cara
dura, “irmã, seu dízimo tá sendo pago com pouca fé”, e ela,
“ah é? ah é? pois agora é que eu não dou mais um centavo”,
embirrou, e não deu mesmo, e o salão nem melhorou nem
piorou, ficou ruim igual.
Mas isso não tem mais importância, ela deve ter fecha-
do o salão pra virar cantora, é lógico, e foi sorte ter largado
também a igreja, o pastor não ia deixar esse batom e esse
esmalte, logo a Creuza que nunca usava maquiagem, só pra
esconder as manchas de quando eu cansava de entrar em fila
pra procurar emprego e descia a mão na cara dela, e naquele

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dia ela disse “nem quando você me bate dói igual agora que
você riu porque eu quero ser cantora.”
E eu bem ali, na beira do palco, olhando pra cima, ela
podia me ver se quisesse, acho que até olhou pra mim, mas
não me viu, ou fingiu que não viu, e isso foi o pior de tudo,
ela podia ter olhado com raiva, “aí, babaca, eu não disse que
ia ser cantora?”, mas não, só olhou pra mim e mais nada.
Não sei se foi de saudade ou remorso que eu levantei e bati
palma, e era só eu aplaudindo, a boate inteira achou que eu
tava bêbado e eu tava mesmo, mas não foi só por isso, era
bonita, a voz dela, ainda mais em inglês. Ô pessoal que não
prestava nem pra aplaudir, só teve um que puxou um assovio
meio desenxabido quando ela deixou cair o vestido assim de
qualquer jeito no chão e pisou em cima de salto alto, logo a
Creuza que nunca deixava roupa caída no chão, acho que
porque era ela quem tinha que lavar depois, nem usava salto
porque ficava muito alta e isso eu nunca tolerei em mulher,
podia até ganhar melhor do que eu por conta da conjuntura
econômica e tal, mas me olhar de cima pra baixo, isso nunca.
E ela ficou linda assim, cantando em inglês, de salto
alto e calcinha, até virou de costas pra gente ver que era fio
dental, fio dental e vermelha, ela que no nosso tempo só
usava calcinha branca de algodão, ela assim de costas, só com
aquele cordãozinho vermelho enfiado, e eu olhando pralgum
lugar nenhum pra não reparar se tinha celulite na bunda dela,
era falta de respeito, eu já tinha rido quando ela falou que ia
ser cantora, não podia ficar conferindo estria e celulite agora
que a Creuza era artista e nem se chamava mais Creuza. E ela
enfiava devagar os dedos no elástico da calcinha e rebolava e
começou a tirar, confesso que achei bonito, aquilo, tirava a
calcinha sem parar de cantar, puta coordenação motora, logo

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ela que não conseguia nem fazer almoço e escutar rádio ao
mesmo tempo. E eu acho que era o único ali de pau mole, o
cara perto de mim fedendo a suor e uísque paraguaio até
botou o dele pra fora, eu achei o maior desrespeito, mas não
sei se foi por isso que eu broxei, sei lá.
O peito dela é que era o mesmo, só faltava ter botado
silicone, pensei, mas aí já seria muito exagero demais, ela
morria de vergonha do peito grande, juntava dinheiro pra
fazer operação, vivia anunciando “vou arrancar metade”, até
mentir ela mentia pro pastor: aumentava o prejuízo do salão
pra reduzir o valor do dízimo e guardar a grana da operação.
Só ficou sossegada quando entrou essa moda de peito gran-
de, as bacanas botando silicone, bom saber que pelo menos o
peito da Creuza era o mesmo que eu conheci.
E eu juro que ia ficar ali quietinho, vendo ela cantar
pelada em inglês, depois ia beber mais um pouco até criar
coragem e, sei lá, dizer “lembra de mim?”, “lembro, você é
aquele babaca que riu na minha cara quando eu disse que ia
ser cantora”, ela talvez respondesse, mas eu juro que se ela
dissesse isso eu ia embora numa boa e podia ter acabado tudo
bem, se não fosse aquele punheteiro perto de mim balançan-
do o pau com uma mão e enfiando a outra no meio das
pernas da Creuza, aí era demais, eu levantei e não falei nada,
só quebrei a garrafa na cabeça do pau dele, e espirrou sangue
pra tudo que era lado, acho que tava cheio de sangue o pau
do cara, todo pau duro é assim, sangue que não acaba mais.
Aí vieram os seguranças de colete preto e já chegaram
me dando porrada, eram dois, um só dava pra fazer o estra-
go, não sei pra que dois, um exagero, dinheiro jogado fora, e
eu lembro que a última vez que eu abri o olho, só um olho,
o outro acho que não vai abrir nunca mais de tanta porrada,

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a Creuza tinha parado de dançar, tava só de salto alto, pelada,
me olhando de cima pra baixo, como se agora soubesse quem
eu era, e cantando, com a boca fechada mas cantando, eu não
sei como ela conseguia cantar de boca fechada, e de repente
ela começou a rir, tremia o corpo todo, balançava os peitos
de tanto rir, mas continuava cantando, e em inglês, os caras
me enchendo de porrada e ela rindo e cantando sem desafi-
nar uma nota e era uma canção de amor eu sei porque tinha love
no meio e ela ria e cantava love e era linda e não parava de rir.
E eu não sabia que ela sabia rir.

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BANGUE-BANGUE

Na manhã do dia em que o matariam, por ser uma


manhã igual a todas as outras, meu pai tomou o mesmo
café, que era sempre muito preto, mas ao mesmo tempo tão
sempre doce que nenhum de nós estranharia se alguma for-
miga suicida disputasse com ele o último gole no fundo da
xícara. Comeu uma banda de pão com manteiga e meio bis-
coito de polvilho encharcado de gordura de porco, como
fazia sempre e não deixaria de fazer naquele dia só porque o
matariam. Enquanto mastigava, meu pai tinha nos olhos e
no bigode a arrogância serena dos mocinhos que sabem que
nunca morrem no fim.
Também era a mesma de todos os dias a roupa que ele
usava: o terno engomado. Minha mãe jamais delegou a ou-
tra pessoa a tarefa de engomá-lo. Era, hoje penso, uma ma-
neira de dizer “eu te amo”, coisa que nunca disse, não na nos-
sa presença, não com estas nem outras palavras. Minha mãe
possuía um jeito próprio e silencioso de amar meu pai: a
goma no terno, o frango com angu e quiabo às sextas-feiras,
os filhos educados, a casa um brinco de tão limpa.
Eu era a mais nova, a única menina, a filha temporã.
Naquela época, não gostava de minha mãe. Naquela época,
não sabia por quê. Éramos as únicas mulheres da casa, eu e
minha mãe, mas eu amava meu pai, o cheiro de loção
mentolada, a pele lisa do rosto escanhoada com a gilete in-
glesa que meu tio trazia de contrabando, o bigode aparado
com a tesourinha de cortar unha, o jeito como descascava
laranja sem interromper o movimento em espiral do canive-

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te adestrado. O mesmo canivete com o qual, aos sábados,
meu pai extirpava os bichos-de-pé que eu apanhava de pro-
pósito andando descalça pelo quintal, esfregando as solas dos
pés contra a terra contaminada, chamando os bichos. Ele
conhecia meu artifício, mas nunca contou a ninguém, era
nosso segredo, parte do nosso ritual de cada sábado: o cani-
vete adestrado cavucando minha pele, invadindo minha car-
ne, a coceira e a dor, a gosma do bicho na ponta do canivete.
Todos os sábados, eu e ele fazendo de conta que no interior
do meu delicado pé de menina havia não um bicho gordo e
indefeso, mas uma bala assassina que meu pai, parceiro
inseparável de assaltos a bancos e diligências, necessitava ex-
trair a sangue-frio porque ainda não haviam inventado a
anestesia, ou haviam, mas levaria muitas luas para que o bál-
samo entorpecente chegasse aos confins do nosso velho oeste
de mentira. Então, meu pai esquentava a ponta do canivete
na chama da vela e me estendia o copo d´água, que eu bebia e
cuspia fingindo ser aguardente, e, bêbada, entorpecida, me
entregava à sua imaginária perícia de bandoleiro e médico de
faroeste.
Eu queria ser menino. Invejava meus irmãos mais ve-
lhos, meus irmãos virando homens, os arremedos de bigode e
as espinhas patéticas, o futebol no rádio da sala entre os pala-
vrões e o zumbido da transmissão precária, Deus, como eu odi-
ava futebol, meu pai e meus irmãos torcendo pelo mesmo time,
parceiros embriagados da mesma alegria, da mesma tristeza.
A cumplicidade masculina: meu pai e meus irmãos mais ve-
lhos e as conversas sobre peitos e bundas, e os risinhos suspensos
quando eu entrava na sala: o mundo dos homens. Duas mulhe-
res sozinhas na casa dos homens, eu e minha mãe, e, no entanto,
eu e meu pai, e nada mais importava: eu e meu pai.

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Não fui à escola no dia em que o matariam. Simulei
alguma febre ou coisa assim. Minha mãe acreditou. Meu pai
piscou-me o olho e sorriu: conhecia meus artifícios. Pulei a
janela tão logo ele saiu cheirando a café e menta, vestindo o
terno que minha mãe engomara à guisa de dizer “eu te amo”.
Talvez por isso eu não gostasse dela. Odiei minha mãe mais
ainda naquela manhã, quando, meu pai na porta, um pé já
na soleira, ela alisou primeiro com a palma da mão e depois,
indecente, pensando que eu não via, mas eu tudo via, riscou
com as unhas o coração do meu pai sob o terno, como se
dissesse sem palavras “não demora, te espero”, mas ao mes-
mo tempo como se transmitisse com as unhas a instrução
final à bala futura, indicando o alvo: “aqui, entra bem aqui”.
Desconfiei de minha mãe naquele instante, imaginei-a parte
de uma trama cujo objetivo inconfessável era afastar para sem-
pre meu pai de mim. Era como se minha mãe conhecesse
desde já o itinerário da bala que tingiria de vermelho o paletó
engomado do meu pai, vermelho como a intimidade dos
panos que uma vez a cada mês ela esfregava no tanque, na
rotina imunda e sem sentido de todas as mulheres.
Meu pai esperava por mim alguns metros à frente da
casa. Era o dia em que o matariam. Entre os dedos, já aceso,
o cigarro sem filtro que minha mãe odiava, o cheiro do fumo
de má qualidade infiltrando-se entre a menta e o café. Ele
quis pegar minha mão, eu refuguei duas vezes. Tinha meus
motivos. Na terceira tentativa, cedi. Começamos a caminhar.
Tremi ao perceber que meu pai tinha naquela hora um andar
de xerife, e eu sabia que os xerifes não pertencem à linhagem
sagrada dos mocinhos – os xerifes quase sempre morrem no
fim. Louca, eu que agora esmagava sem força a mão de meu
pai, louca, eu que agora velava pela sua vida, era eu a mesma

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que passara os últimos dias a exigir de Deus uma única bên-
ção, e por essa graça esfolei e humilhei meus joelhos nas ora-
ções sonolentas de cada noite, a exigir de Deus que matasse
meu pai. Eu, que amava meu pai, queria vê-lo morto. Tinha
meus motivos.
O sol já ia alto, era assim o sol da nossa cidade, quando
tomamos a avenida principal. Esqueci o ódio, e amei meu
pai por me guiar pelo calçamento irregular, nós dois de mãos
dadas, ele agora, supunha eu, não mais com o andar vulnerá-
vel de algum xerife, mas com os passos de um mocinho, de
um John Wayne. Forcei minha memória curta de criança:
não, John Wayne nunca morria no fim. Alívio. Pelo sim,
pelo não, odiei outra vez minha mãe pelos seus gestos de
amor inúteis, porque em vez de alisar com a palma da mão e
as unhas o terno do meu pai não lhe ocorrera introduzir no
bolso do paletó um dólar de prata, na altura do coração do
meu pai, feito escudo ou amuleto capaz de deter a bala que o
mataria dali a pouco. Minha mãe ignorava os truques dos
faroestes, mesmo os mais conhecidos, feito o dólar furado
que salvara a vida do Giuliano Gemma. Minha mãe nunca ia
ao cinema. Meus irmãos, sim, mas não mais aos bangue-
bangues das matinês, visto que agora pertenciam ao seleto
mundo dos homens, com seus arremedos de bigode e suas
espinhas patéticas. Antes assim: íamos só nós dois, meu pai e
eu. Ele porque amava bangue-bangue; eu, porque o amava.
E por amá-lo, amava os bangue-bangues das matinês.
Todo domingo, depois do almoço: meu pai comprando
os ingressos e a pipoca, abrindo caminho para mim, pousando
em minhas costas as mãos impregnadas de pólvora de
pistoleiro das matinês, fazendo de mim uma princesa
dominical, permitindo que eu girasse antes dele a roleta do

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cinema, meu pai, nobre e rude cavaleiro do Reino Unido do
Texas e do Arizona. Depois, o gerente apagava todas as luzes,
e passávamos ao trailer do filme em cartaz na próxima semana,
meu pai já fazendo planos para a matinê do domingo seguinte.
Enxotávamos da tela o urubu de celulóide, removendo o
último obstáculo entre nós e os pistoleiros, as diligências e os
duelos ao pôr do sol (meu pai dizia tratar-se de um condor,
símbolo da empresa distribuidora dos faroestes, mas para
mim não passava de um urubu agourento e metido a besta).
Expulso o urubu, acompanhávamos, ombro a ombro, os
primeiros passos do caubói pela cidade-fantasma, os mesmos
passos de mocinho, ou de xerife, ou de John Wayne com os
quais meu pai, de mãos dadas comigo, evoluía pelo
calçamento irregular da nossa cidade no dia em que o
matariam.
À certa altura, o encanto se quebrava. Sem desgrudar os
olhos da tela, ele soltava minha mão crispada e introduzia
em meus ouvidos o hálito de café e menta, ao mesmo tempo
em que sussurrava a frase maldita de todas as matinês: “Não
tenha medo, o mocinho e a mocinha sempre acabam juntos
no fim”. Ele, então, se levantava e desaparecia por duas lon-
gas horas escuras. Abandonada, eu tremia na escuridão abafa-
da do cinema, cercada de apaches e mexicanos, e sem meu
caubói favorito. Todas as matinês.
No fim da sessão, quando acendiam as luzes, meu pai
estava em pé, a mão estendida, de volta para mim. Ostentava
o mesmo sorriso sob a moldura do bigode, mas já não era o
mesmo. Trazia, na volta, um cheiro que meu faro aguçado
jamais encontrara na nossa casa, mas que ali, ao final das
matinês, impregnava cada fio de seu bigode. Um cheiro en-
tre o doce e o ácido cuja procedência eu só descobriria tem-

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pos mais tarde, na noite, tempos depois daquela matinê, em
que o farejei em mim, no dia, tempos depois daquela matinê,
em que me brotaram, à revelia, os primeiros pêlos entre as
pernas magras de menina. Quantas vezes tentei exorcizar esse
meu cheiro, arrancá-lo a golpes furiosos de áspera bucha, até
que de mim em carne viva nada mais exalasse, até ser de novo
inodora. Mas ele voltava, sempre, esse meu cheiro, o mesmo
cheiro que meu pai trazia nos fios do bigode ao emergir da
escuridão das matinês.
“Não tenha medo, o mocinho e a mocinha sempre aca-
bam juntos no fim”, ele sussurrava no meu ouvido antes de
desaparecer para sempre por duas horas escuras. Era inútil e
cínico o apelo do meu pai: eu tinha medo dos apaches, dos
mexicanos, da ausência do meu pai. Temia que o gerente nunca
mais acendesse as luzes. Até que um dia o medo infinito en-
corajou a curiosidade sem fim, e eu respirei fundo, e segui o
vulto do meu pai através da escuridão do cinema, tropeçan-
do no tapete ondulado, trombando nas cadeiras de pau, pi-
sando os pés dos espectadores, até estancar diante da escada
de marinheiro que conduzia à galeria superior do cinema.
Esperei embaixo da escada, minha embrionária intuição fe-
minina exigiu que eu esperasse, e eu esperei, até que não pude
mais esperar, e subi a escada de marinheiro até a galeria, e não
havia ninguém na galeria, não havia ninguém na galeria a não
ser meu pai, não havia ninguém na galeria a não ser meu pai
e a mulher que eu não conhecia mas de quem jamais esqueci
o perfume ordinário misturado ao cheiro doce e ácido que
reconhecia no bigode do meu pai – e que reconheceria, mais
tarde e para sempre, impregnado em minhas entranhas de
moça, de mulher, de velha.

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Meu pai e a mulher jamais dariam pela minha presença,
para sempre contorcidos e alienados em sua imundice ofe-
gante, caso não jorrasse da minha boca centenas de carocinhos
de pipoca devolvidos num refluxo, e se não banhasse meu
vômito os peitos enormes da mulher, e se não escorresse o
caldo quente do meu nojo pelo vestido desabotoado dela,
até emporcalhar a nuca do homem que era meu pai debruça-
do entre as pernas abertas da mulher que eu odiava sem saber
quem era.
Ele me bateu pela primeira e última vez. Odiei meu
pai, nem tanto pelo tapa que me partiu o lábio e manchou
de sangue o vestido de domingo. Odiei meu pai pelo cheiro
de cada uma das nossas matinês, e em nome desse ódio dese-
jei que ele morresse, humilhei meus joelhos e exigi de Deus
que o bandido fosse mais rápido no gatilho, e que Ele remo-
vesse todos os obstáculos à determinação da bala, e que no
bolso do paletó engomado do meu pai não existisse nenhum
dólar de prata, nenhum escudo, nenhum amuleto.
Não fui à matinê no domingo seguinte. Meu pai foi
sozinho. Na véspera, não permiti que o gume afiado de seu
canivete me acariciasse a pele e revirasse minhas carnes à pro-
cura do bicho. Ele, o bicho, estava lá, eu o sentia, penetrara
em mim, eu consentira, e com meu consentimento haveria
de sobreviver ao canivete do meu pai. Eu desejava que o bi-
cho, grávido, procriasse pelo meu corpo inteiro.
No dia em que o matariam, eu caminhava ao lado do
meu pai e tinha os passos hesitantes por obra do bicho, que
sobrevivera, engordara, crescia e se multiplicava. Coceira e
dor. Pisava com o lado oposto do pé, para que o bicho nada
sofresse, para que ele, o bicho, permanecesse vivo até a imo-
lação ritual do próximo sábado. Sim, eu perdoara meu pai.

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Tinha meus motivos. Reconciliados, caminhávamos, eu e meu
pai, sob o sol alto, pelo calçamento irregular da avenida prin-
cipal da nossa cidade, da minha cidade-fantasma, fantasma
porque não havia, de fato, naquele dia, naquela hora, além
de nós ninguém na rua, ou havia uma população inteira, mas
eu só tinha olhos para meu pai. Já não o odiava desde o ins-
tante em que piscou e sorriu para mim e sugeriu, em silên-
cio, que eu pulasse a janela e viesse com ele (eu conhecia seus
artifícios). E o amava naquela hora mais do que nunca, devo-
rada pelo bicho e pela culpa de haver conjurado a morte do
meu pai, por não ter secretamente introduzido no bolso de
seu terno engomado um dólar de prata, por sequer ordenar
que minha mãe o fizesse, e por não estancar seus passos rumo
ao destino que, bandida, eu mesma invocara em pactos
escusos com Deus.
E atravessamos a praça do relógio, e chegamos ao fórum,
e eu já não podia mais dizer que era a nossa uma cidade-
fantasma, porque toda a cidade estava ali, às portas do fórum,
como se adivinhasse o que viria a seguir, mas a população da
cidade inteira era para mim uma massa indistinta, coadju-
vante. Pensei ter visto, não tenho certeza, meus irmãos, e a
inveja nos olhos dos meus irmãos, quando a massa indistinta
abriu caminho e eu venci o corredor humano de mãos dadas
com meu pai, e entramos no fórum, sempre de mãos dadas,
e lá dentro existia outra multidão, mas eu só via meu pai; até
que de repente enxerguei, além do meu pai, o homem que o
mataria.
Frente a frente, meu pai: o terno engomado, o rosto
escanhoado, o cheiro de café e menta; e o homem que o
mataria: o paletó amarfanhado, a barba por fazer, revólver
feito cão raivoso pronto a saltar do coldre.

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Não sei quanto tempo durou aquilo, os dois frente a
frente, um tempo breve e infinito, até que alguém me puxou
para o lado, e me ofereceram guaraná e pão com salame, e
tudo durou outra imensidão de tempo, tempo em que não
pude ver meu pai, até que alguém gritou uma espécie de or-
dem em meio ao burburinho, e fez-se um silêncio de morte,
e no meio do silêncio um estampido de morte, e vi meu pai,
o rosto lívido de morte escanhoado com gilete de contraban-
do cheirando a café e menta, a mão direita empunhando o
revólver estéril, a mão esquerda à altura do bolso vazio do
paletó engomado, e por entre os dedos da mão esquerda, o
princípio da hemorragia. Meu pai não disse uma palavra,
apenas rendeu-se ao desânimo do corpo que se tornava mais
pesado à medida que se esvaziava da alma, e caiu de joelhos,
e olhou em volta, e seus olhos só tiveram tempo de encon-
trar os meus, no meio da multidão e do tempo em silêncio.
Ainda hoje, 50 anos depois, revejo a cena, congelo a
imagem no instante em que meu pai, o sangue engomado
crescendo no paletó, se ajoelha e olha para mim, o olhar que
antecede a morte, a morte que antecede o grito histérico da
mulher que eu viria a ser. Todos os dias revejo e congelo a
cena, desde que lançaram o filme em vídeo. Nunca assisti
por inteiro, a não ser uma dezena de vezes quando menina.
Não gosto do Cinema Novo, tenho especial desapreço por
este pretensioso bangue-bangue experimental de terceiro
mundo filmado em nossa cidade com atores famosos que
ninguém conhecia e figurantes locais que se imaginaram cé-
lebres por um dia – entre eles, meu pai. Tudo o que vejo
nestas duas horas de fita são os dez segundos da morte do
meu pai, só tenho olhos para os olhos do meu pai, que me
espreitam de dentro da televisão. Ainda mais agora que esta-

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mos sozinhos, trancados em nossas solidões, e ele já não pode
me ver.
Espero que estas linhas expliquem tudo, ou, pelo me-
nos, a parte que importa do todo. Quando terminar de
escrevê-las, olharei uma vez mais o olhar do meu pai conge-
lado na tela da tevê. Depois, sob o chuveiro, áspera, esfrega-
rei como nunca a bucha entre minhas pernas, até extirpar
para sempre o cheiro corrosivo que há meio século me devo-
ra feito bicho. Límpida e nua, caminharei então pela casa
vazia até o quarto de casal, até a cama de casal onde meu pai
agoniza, à espera de sua segunda morte, os olhos esgazeados
girando sem rumo, o pijama que eu mesma engomei (jamais
deleguei a outra pessoa a tarefa de engomar o pijama do meu
pai). E meu pai não dirá nada, há anos ele não diz nada, ape-
nas estenderá o braço muito magro e agarrará minha mão
com a força que lhe resta. Introduzirei, então, meus lábios
em seu ouvido, e soprarei, sem pressa, cada sílaba: “Não te-
nha medo, o mocinho e a mocinha sempre acabam juntos
no fim”. Por último, vedarei todas as frestas da nossa casa
vazia, e abrirei o gás, e riscarei o fósforo para acender o cigarro
sem filtro que meu pai não chegará a fumar.
E fim.

26
59 SEGUNDOS

Não entendo uma palavra do que ele diz por causa do


Raul Seixas que toca muito alto no CD player ou por causa
dos vidros fechados do carro ou porque falamos mesmo lín-
guas diferentes ele é pobre e eu segundo o ponto de vista dele
e os indicadores sociais do terceiro mundo sou rico mas nem
é preciso falar a língua dos desesperados porque nada mais
eloqüente e universal que um revólver apontado pra sua ca-
beça mesmo com um vidro elétrico entre você e a bala e se
isso é assim em qualquer lugar do mundo imagina então nes-
te país fodido nesta cidade de merda nesta escuridão filha da
puta em que fui me meter mesmo a polícia avisando toda
hora que é suicídio que é preciso evitar lugares ermos mas
quem é que raciocina pela ótica do aparelho de segurança do
estado quando a única coisa que importa é um belo par de
coxas mas eu podia ao menos ter botado vidro à prova de
bala mas pensando bem por que eu botaria vidro à prova de
bala que é quase o preço do meu carro se nunca pensei em
morrer assim com uma bala na cabeça

49 segundos
na próxima encarnação a prioridade é vidro à prova de bala
não saia de casa sem seu vidro à prova de bala você nunca
sabe quando vai precisar de um eu e o meu pessimismo nem
na hora da morte consigo pensar positivo sejamos otimistas
tenho grandes chances de sobreviver segundo as estatísticas

27
só um em cada dez assaltos acaba em morte não sei se as
estatísticas são relativas ao Rio ou a Estocolmo e esse único
desgraçado que morre entre os dez assaltados é porque ten-
tou reagir ou então porque o assaltante tava muito doidão eu
não vou reagir e sei lá se o cara fumou ou cheirou evito olhar
pra ele aliás evito olhar pra qualquer lugar mantenho os olhos
fixos no relógio digital do painel do carro 23:11 mas minha
excelente visão periférica capta pelo canto do olho esquerdo
um revólver atrás do vidro e pelo canto do olho direito o par
de coxas

39 segundos

não sei se me conforto ou me desespero de vez por saber que


não vou morrer sozinho vou morrer acompanhado da moça
do par de coxas mas é bem provável que eu morra sozinho
sim porque um par de coxas desses não é todo dia se o cara
for esperto estoura meus miolos depois estupra a menina e aí
resolve se mata ou não mata deve ser bom brincar de Deus
ter amplos poderes pra decidir “este aqui com cara de doutor
morre aquela gostosona ali merece viver porque um par de
coxas desses não é todo dia” engraçado eu só lembrar dela
como um par de coxas mas tem até certa lógica a única coisa
que vejo com o lado direito da minha excelente visão perifé-
rica que a terra há de comer a partir de amanhã à noite depois
do velório é o par de coxas de resto a gente mal se conhece
lembro-me vagamente do rosto mas o que me chamou a
atenção no bar foi a minissaia pensei pô eu dava minha alma
ao Diabo em troca da bênção de penetrar nessas coxas e bem
feito acabei de penetrar e já não consigo lembrar se foi bom
acho que depois do gozo ficou igual a sempre mas o Diabo

28
não quer nem saber já tá aí do outro lado do vidro veio cor-
rendo cobrar a dívida só que pra levar a alma o filho da puta
precisa primeiro descartar meu corpo e é aí que eu me fodo e
não sei mais se a mão que empunha o revólver é de Deus ou
do Diabo deve ser de Deus porque eu pequei Senhor e mere-
ço Vossa ira

29 segundos
maldito sentimento de culpa que não nos abandona nem
agora na hora da nossa morte ou da minha morte conside-
rando que a única morte líquida e certa aqui é a minha já não
tento entender o que o cara fala e o mais estranho é o silêncio
ele já não berra coisas naquela língua incompreensível e a moça
também não abre a boca ela não fala nada ela não grita ela
não dá escândalo nem imagino o que se passa pela cabeça
dela desisto da visão periférica portanto nem a visão do para-
íso das coxas dela nem a do inferno que me chama do outro
lado do vidro só tenho olhos pro relógio digital do painel
23:11 mas como 23:11 ainda 23:11 o tempo parou

19 segundos
ou então o tempo continua a correr mas o relógio digital não
marca a passagem dos segundos então este tempo todo não
durou nem um minuto eu li não sei onde já li tanta coisa na
minha vida li que na hora da morte a vida toda do moribun-
do passa pela cabeça dele num minuto como se fosse filme
ah não definitivamente tudo o que eu não quero é rever o
filme da minha vida produção chinfrim uma porcaria rotei-
ro medíocre elenco sofrível a começar pelo protagonista mal-
dita baixa auto-estima que não me abandona nem agora na

29
hora da minha morte muito bem Deus fazemos um acordo
o Senhor me mata eu morro mas cancela a exibição do filme
da minha vida é o último pedido do condenado ou o penúl-
timo sei lá o que não falta agora é último pedido a ser feito
tantas coisas incompletas amanhã era dia de regar as plantas o
IPVA vence segunda-feira que bom pelo menos do IPVA eu
tô livre não me despedi dos meus filhos as ex-mulheres que
se fodam todo mundo que vai morrer mesmo não sabendo
que vai morrer tem uma espécie de iluminação sei lá e telefo-
na na véspera pralgum ente querido como quem não quer
nada e diz “olha aconteça o que acontecer não esqueça que eu
te amo muito etc e tal” e bate as botas no dia seguinte pelo
menos é o que dizem as reportagens que reconstituem a morte
de algum famoso ainda bem que não sou famoso posso
morrer anônimo ainda bem o caralho não sejamos cínicos
pelo menos uma vez na vida ou pelo menos uma vez na morte
tudo o que eu queria era ser famoso nunca tive saco nem
talvez talento pra escrever porra nenhuma só poema vaga-
bundo em boteco idem mas sempre me via bem lá adiante
na noite de autógrafos meu livro imaginário desaparecendo
das estantes da livraria sucesso de crítica

9 segundos

a única coisa boa do anonimato é a morte anônima nenhum


jornal especulando as circunstâncias do homicídio a polícia
nem aí que nada muito pelo contrário todo cara que morre
trepando dentro do carro a imprensa faz o maior carnaval a
polícia é obrigada a sair da letargia e ir no embalo exames do
IML “a bala rompeu o osso tal e foi se alojar não sei em que
parte do cérebro” “vestígios de esperma” esperma porra ne-

30
nhuma o termo técnico é sêmen “vestígios de sêmen estamos
providenciando o DNA pode ter havido conjunção carnal
talvez crime passional o marido dela não está descartado ela
era solteira pra nós todo mundo é suspeito trata-se de um
profissional a moça está em estado de choque incapaz de des-
crever o criminoso a moça foi barbaramente violentada antes
de morrer claro que já temos um suspeito mas pra não atra-
palhar as investigações”

8
e se eu abrisse o vidro elétrico e dissesse calmamente tudo
bem pode levar o carro meu rolex da feira do paraguai meu
talão de cheque se o senhor quiser eu assino todas as folhas
em branco pro senhor não ter trabalho juro que não mando
sustar tudo o que eu peço é deixar a gente ir embora com
vida o senhor entendeu a minha colocação eu disse a gente ir
embora com vida veja que não excluo a possibilidade desde
que não mate nenhum dos dois bem o senhor sabe um par
de coxas desses não é todo dia

7
e se eu abrisse o vidro elétrico e dissesse aos prantos leva tudo
leva inclusive essa vagabunda aí do lado eu nem sei o nome
dela mas um par de coxas desses não é todo dia leva tudo
menos a minha vida tenho dois filhos domingo é dia de visi-
ta eu prometi aos meus dois filhos vamos ao McDonald´s
concordo com o senhor eu podia ter pensado num programa
mais saudável e politicamente correto zoológico cinema to-
bogã do parque da cidade porra mas o senhor sabe como são
as crianças de hoje em dia o senhor é que tá certo nunca levou

31
seus filhos ao McDonald´s esse negócio de fast-food a globa-
lização o senhor sabe começa pelo estômago o McDonald´s
é a ponta de lança deste modelo neoliberal que enriquece os
ricos e empobrece os pobres o senhor sabe o senhor é mais
uma vítima do desemprego gerado pelo sistema econômico
desumano que aí está o senhor podia estar aí dignamente
coletando nosso lixo ou desentupindo esgotos pra que nos-
sos excrementos corram livres mas não em vez disso aí está o
senhor se humilhando com um revólver apontado pra mi-
nha cabeça

melhor pensar em outra estratégia essa dos filhos não vai co-
lar mesmo sendo verdade lembro quando eu era pequeno
meu pai botou no fusca aquele ímã Não Corra Papai com o
retratinho meu de um lado e o da minha irmã do outro ia
cair superbem agora um ímã daquele com as fotos dos meus
filhos se o cara for coração-mole não vai matar o pai de duas
crianças tão lindas por que não fabricam mais aqueles ímãs
Não Corra Papai deve ser porque os painéis dos carros hoje
são todos de plástico ah bons tempos dos automóveis com
painel de metal e o ímã Não Corra Papai hoje é painel de
plástico e radar eletrônico e não corra papai porque se o se-
nhor ultrapassar o limite de velocidade da via papai o Detran
fotografa o senhor e manda a multa pelo correio fora os pon-
tos na carteira de habilitação “que papo é esse véi que filhos
esperando em casa porra nenhuma tu aí na parada comendo
a mina no meio do cerrado véi tu merece é um pipoco no
meio das idéias tá ligado” o bandido ia dizer e o pior é que ele
teria razão não dá nem pra dizer a ele sou pai de família esta

32
senhora aqui ao lado é a mãe dos meus filhos ele não vai
acreditar já tô beirando os 50 malho todo dia me cuido mas
não dá pra esconder que os 40 ficaram bem lá pra trás e a
moça do par de coxas ainda não chegou nos 20 maldita pre-
visível e inescapável crise da meia-idade

5
estranha sensação quanto mais perto o fim mais os segundos
custam a passar o relógio digital do painel insiste 23:11 sem-
pre 23:11 será que este já é o filme da minha vida então cadê
a cena de abertura minha mãe me dando o peito meu pai
tendo que trabalhar dobrado fazendo serão era assim que se
dizia naquela época meu pai tendo que fazer serão porque
agora somos mais uma boca cadê minha infância infeliz mi-
nha adolescência desatinada cadê meu primeiro beijo o pri-
meiro peito sem ser o da minha mãe cadê aqueles projetos de
vida por falar nisso cadê a vida que tava aqui e nem deu tem-
po de viver direito o pior é ir embora sem nem saber o quê
que eu vim fazer aqui afinal

4
o CD continua tocando a mesma faixa é sinal que o tempo
passa mesmo mais devagar ou então a música é muito com-
prida mas já tá quase no fim “eu que não me sento no trono
de um apartamento” Deus pode nem existir mas tem um
senso de humor do caralho enquanto o Raul canta “boca es-
cancarada cheia de dentes esperando a moooooorte
chegaaaaaar” eu estou exatamente esperando a morte e lem-
bro o Raul começou cantando “eu devia estar contente por-
que tenho um emprego sou um dito cidadão respeitável” e é

33
isso mesmo eu tenho emprego sou cidadão respeitável mas
não estou contente nem lembro a última vez que estive con-
tente quando o cara chegou batendo no vidro com o cano do
revólver eu já era infeliz há muito tempo mas nem por isso
escolhi morrer assim com um tiro na cabeça se eu pelo me-
nos tivesse uma arma mas não tenho nunca tive arma na cin-
tura carrego esse celular surdo-mudo nunca gostei de celular
comprei porque cansei de subir escada correndo ouvindo o
telefone tocando dentro do apartamento vazio eu largando
as compras no chão a garrafa de uísque quebrando com o
baque eu querendo abrir a porta nunca acerto a chave na pri-
meira eu entrando no apartamento vazio agarrando o telefo-
ne tirando do gancho tarde demais desligaram deve ser enga-
no não sei quem era do outro lado da linha será que existe
vida do outro lado da linha aí comprei secretária eletrônica
mas já veio com defeito só pode ser defeito de fabricação
nenhuma mensagem gravada em tanto tempo agora é o celu-
lar que não toca porque também veio estragado ou então
porque ninguém telefona pra mim e eu não sei por que insis-
to em juntar tanta tralha inútil

e se eu destravo a porta do carro aí o cara faz logo o que tem


que fazer e acaba com essa agonia talvez ele mande a gente
descer aquele teatro todo “se abrir a boca morre véi se olhar
pra minha cara morreu meu irmão tá ligado se respirar num
respira nunca mais aí tu fica a pé a mina vai comigo porque
um par de coxas desses aê onde é que acende o farol dessa
porra” ou então o cara teve um dia ruim não tá a fim de papo
mete logo uma bala na minha cabeça e leva ou não leva a

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menina mata ou não mata come ou não come já não tô nem
aí meus miolos espalhados pelo painel de plástico respingan-
do no par de coxas da moça a gente morre acaba tudo ou será
que tem outra encarnação infeliz do outro lado da linha da
vida e nesse outro lado continua a mesma merda sei lá não
demora vou ver o que tem lá do outro lado pena que não dá
pra escrever um livro de auto-ajuda contando como é lá do
outro lado só contratando um médium mesmo assim eu
penso na noite de autógrafos minha obra-prima póstuma de
estréia desaparecendo das gôndolas dos supermercados suces-
so de público

não dá mais pra enrolar tenho que escolher baixar o vidro


elétrico ou destravar a porta ou arrancar com o carro mas a
polícia manda evitar movimentos bruscos pro cara não ficar
puto ou assustado e puxar o gatilho mas como eu vou saber
o que o cara considera movimento brusco os conceitos va-
riam de indivíduo pra indivíduo ele já deve ter perdido a
paciência se bem que o relógio digital do painel de plástico
ainda 23:11 sempre 23:11 então não faz tanto tempo assim
nem um minuto passado desde que ele chegou batendo no
vidro ainda não exibiram o filme da minha vida meu último
pedido foi atendido obrigado Senhor fico te devendo esta
Senhor valeu mesmo Senhor eu agora escuto a Nona de
Beethoven será que a professora de catecismo tava certa eu
cheguei no céu os anjos dão as boas-vindas tocando a Nona
de Beethoven porra nenhuma agora me lembro é o celular
em vez de apitar a porra do celular toca a Nona de Beethoven

35
até que enfim essa porcaria resolveu funcionar até que enfim
alguém liga pra mim

ignoro pela última vez o manual de sobrevivência do apare-


lho de segurança do estado faço movimento brusco levo a
mão à cintura pra sacar o celular é quando o relógio digital
do painel do carro pula pra 23:12 e não dá tempo nem de
dizer alô a bala estilhaça o vidro eu devia ter botado vidro à
prova de bala mas por que botaria vidro à prova de bala que
é quase o preço do meu carro se nunca pensei em morrer
com uma bala na cabeça e eu vejo a fumaça no cano do revól-
ver o cheiro de pólvora a trajetória da bala vindo vindo vindo
aí ela rompe não sei que osso e vai se alojar não sei em que
parte do meu cérebro e pra falar a verdade não ligo a mínima
isso não é mais problema meu os caras do IML que se virem
com o laudo cadavérico deve ser pra isso que pagamos tanto
imposto.

36
A MULHER-GORILA

– Vê: o próximo passo é o abismo, e lembra-te que a


queda é sem volta – disse o demônio ao menino.
– Há muito o sei, aprendi na lama bruta onde se
forjam todos os homens, desde o primeiro – respondeu o
menino, resoluto.
– Avante! – exultou o demônio, afiando a língua
entre as presas.

***
Eu te invoco, demônio dos Infernos! o locutor berra,
ordena feito um possesso, Façam-se as trevas! e a escuridão se
faz, e ele grita ordens desencontradas, feito um possesso ele
grita muito além do som áspero do ferro que se rasga, mais
alto que os urros dos demônios na escuridão, o choro das
crianças, o riso histérico das moças, os ombros e os joelhos
dos homens fortes a trombar contra a lataria enferrujada na
fuga desesperada pela porta estreita, e a ferocidade do cheiro,
o fedor de bicho morto, e ele, o conjurador de demônios,
ele, o locutor, ele, o que acende a sombra pálida e traz à tona
a silhueta do monstro, o pânico da multidão, a multidão
que já não pode fechar os olhos ao horror, a multidão força-
da a ver: a frágil moça há pouco vestida com o biquíni obsce-
no que lhe desnudava a perfeição do corpo deu lugar à hor-
renda nudez do monstro, o monstro acaba de rasgar o ferro
da jaula, o monstro está a um passo da garotinha da primeira

37
fila, a garotinha grita, o monstro urra, o monstro estica as
garras enormes e, obrigada, não sou de beber, só mais um, o
último, você é um menino estranho, desculpe-me por chamá-
lo “menino”, mas, reconheça, é infantil e tolo buscar neste
tanto álcool barato a chave do seu crescimento. Agora é mes-
mo o último, desculpe-me se disse isso antes, do copo ante-
rior, dos copos anteriores, se o chamei outras vezes de meni-
no, perdoe se bebo além da conta e de um gole só, é a sede,
sempre, toda noite, depois da última sessão: a sede.
Onde estávamos? a garotinha, isso, a garotinha grita, o
monstro estica a mão peluda, roça e rasga o vestido da garo-
tinha com as garras afiadas, o horror, o cheiro de urina, a
garotinha, coitada, Calma, monstro! o locutor grita, Calma,
monstro! ele ordena, e estala o chicote, O público é nosso
amigo, monstro! Pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo,
monstro! ele suplica, ele... mas por que desperdiçarmos tan-
to tempo precioso? você viu com os próprios olhos, ouviu
os gritos de pavor, sentiu os fedores…no entanto, não me
surpreendo, sei, precisa ouvir de novo, de minha própria boca.
Não o censuro; conheço cada uma das infinitas fragilidades
de sua triste espécie masculina.
Eu te esconjuro demônio das trevas! Volta para as cha-
mas do Inferno, Satanás! o locutor exorciza, estala o chicote
com esferas de aço, fere muito, o chicote, quer ver? por isto
não me visto com decotes, não, não acenderei a luz, não há
luzes a serem acesas, não há nada para os olhos enxergarem,
me dê a mão, assim, consegue ver com os dedos, minhas
cicatrizes, as costas em carne viva? continue, eu gosto, afague
minhas costas enquanto conto, assim, quer que eu desamarre
a parte de cima? gosta? isso, não pare, assim… assim… Mons-
tro! Volta para o Inferno, Satanás! ele reza, xinga, esconjura,

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chicoteia, as luzes piscam mais alto, o monstro hesita, come-
ça a ceder à força do exorcismo, o monstro urra, o monstro
se contorce, perde altura e envergadura, sente a dor dos mús-
culos e ossos que se atrofiam, tufos e mais tufos de pêlos
arrancados em desespero, garras e dentes que já não caçam
nem devoram, até que morre o monstro e volta à vida a mulher
de biquíni obsceno, mas quase já não há testemunhas, fugi-
ram todos, menos você, homens mulheres crianças aos em-
purrões varando nem Deus sabe a porta estreita do trailer
enferrujado aterrorizando/excitando os pagantes da próxima
sessão, fugindo todos, menos você, não fugiu quando havia
tempo, ao contrário, foi o último a sair, muito depois de
tudo terminado, quando já não havia nada nem ninguém, e
tive a certeza de que você era diferente, não nessa hora, mas
ainda antes, bem antes, no princípio, antes de tudo.
Não entenda como grave ofensa à sua macheza incipiente
de moço, mas não é o primeiro, há sempre um, diferente,
assim como você, há sempre um, a mesma penugem rala, o
desamparo clandestino nos bruscos e indecisos gestos, há sem-
pre um em cada cidade onde atraco meu mambembe circo
de metamorfoses. Vi, pressenti, farejei: você era um deles.
Senti seu cheiro, você olhava para mim, olhava para mim
desde muito antes da metamorfose, antes de iniciada a ses-
são, para mim não, olhava para a inocente e repulsiva mu-
lher de biquíni obsceno que então era eu, antes da metamor-
fose, olhava não com desejo, mas quase com indiferença, e vi
depois o reverso: seus olhos na véspera do gozo, seus olhos
acesos na escuridão tal como os vejo agora, e vi em seus olhos
a sede, saboreei sua fome no instante divino em que a mu-
lher de biquíni obsceno deu lugar à encarnação do monstro
que prefiro ser e que, sei, você deseja e teme. Não era a garo-

39
tinha da primeira fila a merecer meu apetite, aquela que mi-
nhas garras partiriam ao meio com um único gesto de tédio,
juro que não, sequer teria percebido a garotinha não fosse o
cheiro de urina impúbere açoitando meu faro, pois era você,
era você que meu instinto caçava naquele instante pouco an-
tes do fim, e por você meu coração de fera assassinada bra-
miu o último vagido de desespero quando vi a solidão im-
pregnando de novo cada fio do seu invisível bigode de meni-
no, vi cada uma das suas dores de menino agitar o casulo, a
sua ânsia de se transformar em homem, vi sua metamorfose
interrompida no instante em que o monstro, no instante em
que EU retornava, vencida, à horrenda forma feminina, o
biquíni obsceno, e assim você deixou claro o quão desejava a
metade anterior de mim, você, ao contrário dos outros, que-
ria a metade verdadeira, a mais profunda de mim.
Obrigada, já não fumo, você também não deveria, é
pouco mais que um menino, infantil e tolo querer desta fu-
maça o fermento da sua metamorfose, está bem, só mais
um, um último cigarro, não há de matar-me, talvez apenas
aumentar a sede. Acenda para mim, mas cubra com as mãos
a chama do fósforo, mantenha a escuridão, não quero que
veja a perfeição esculpida neste obsceno corpo feminino à
custa de tantos cremes, esfoliações e outros martírios.
Você fala pouco, quase nada, nada, e no entanto escuto
em cada silêncio a pergunta que tanto cala: qual o segredo da
mulher-gorila, a bela e indefesa vítima da maldição que se
transforma em monstro neste trailer enferrujado pelo país
afora? você por certo ouviu quando ele, o locutor, o homem
que conjura o demônio em mim, você ouviu a ladainha de
todas as noites, Esta bela jovem, esta jovem vítima da maldi-
ção da madrasta, da maldição da madrasta má! ele declama, e

40
eu escuto, todas as noites, a mesma patética liturgia, e pren-
do, a custo, meu riso. Nunca houve madrastas, nem maldi-
ções, é velho e vagabundo o truque das mulheres que se trans-
formam em gorila nesses espetáculos de beira de estrada à
beira da extinção, o jogo de espelhos, a iluminação ardilosa, a
sobreposição das duas imagens: a bela, a nudez realçada pelo
biquíni obsceno, e a fera, vestida nua de pêlos, duas imagens
que se fundem num artifício antigo até formarem a criatura
híbrida, metade bela-metade fera, e, finalmente, a monstru-
osidade absoluta. Sim, eu era assim, no começo, igual a to-
das as outras, uma indefesa refém dos espelhos, até que uma
noite, há tanto tempo, o espelho partido, cinco minutos fal-
tando para a sessão, eu me lembro, eu quebrei, eu não me
lembro, não sei qual metade de mim quebrou, o espelho, o
espelho partido, justo naquela noite, os ingressos todos ven-
didos, não eram muitos, os ingressos, nunca foram, uma ci-
dadezinha a um passo da inexistência igual a esta, o espelho
partido, os estilhaços, e, ainda assim, eu fiz, era preciso. Sem
jogo de espelhos, sem o ardil das luzes, sem o artifício das
imagens sobrepostas, fiz, ainda assim, o número que os
pagantes exigiam de mim.
Você agora transpira; calor; admito, é demasiado quen-
te este trailer enferrujado onde perco o viço confinada por
arbítrio próprio, mas não, não abriremos porta nem janelas
deste ataúde de lata, há vaga-lumes lá fora, e se eles arrom-
bam o escuro com a indiscrição de suas luzes voadoras, e se
você enxerga a perfeição deste meu horrendo corpo femini-
no? só mais um copo, o último, a sede, você sabe: a fome.
Talvez não seja o calor o único culpado pelos seus frios
suores, mas lembre-se, quem o trouxe aqui foram seus pró-
prios passos. Por que agora então os tremores, este rufar de

41
tambor onde antes pulsava um coração de menino? medo?
será isso o que farejo a borbulhar nos hormônios da sua in-
fância terminal? medo? pressente alguma coisa? por isso in-
siste em esvoaçar para além do trailer estes olhos que julga
invisíveis na escuridão mas que para meus sentidos de fera
são dois vaga-lumes no cio? por que tanto sobressalto, agora
que chegamos tão longe? pensa ter ouvido ruídos lá fora?
passos, talvez? prefere que eu fale em sussurros? será ele? tem
medo que ele chegue de repente, ele, o locutor, ele, o narrador
do meu tormento cotidiano, o homem que conjura e escon-
jura de mim o demônio? não, ele não virá, não esta noite,
não, nem qualquer outra noite: não existe tal homem, nunca
existiu, ele não passa de frágil voz masculina aprisionada numa
fita-cassete comprada a algum camelô de esquina, somos ape-
nas eu e você. Não há chicote, tampouco, lembre-se, você
nunca viu aqui tal instrumento, apenas escutou o que na es-
curidão parecia o atrito sangrento de esferas de aço contra
alguma tenra e hipotética carne de moça. Efeitos sonoros,
tão somente. Minhas cicatrizes? as cicatrizes, sim, são de ver-
dade, sempre deixo marcas – às vezes em mim mesma, quan-
do não tenho companhia.
Mas agora basta! Não bebamos mais, apague a fumaça
do cigarro, pois sua sede é de outros venenos. Apalpe o fio
das minhas unhas, sinta como crescem, e se enrijecem,
latejantes, inundadas de sangue represado, mas não, não ha-
verá dores atrozes, tenho para estas garras afiadas o anestésico
da minha língua ferina, feche os olhos à escuridão, e veja, e
sinta, a textura ondulante da minha pele, a penugem rala fe-
minina que cresce e se encrespa e envolve seus dedos e sua
boca, dê adeus à alma que escorre pela dilatação dos poros,
sua alma, por inútil, já não lhe pertence, seja por inteiro o

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corpo que não cabe mais nas suas vestes de menino. Devore a
fome que o devora, sacie a carnívora gruta, a carnívora gruta
onde há pouco dormiam demônios – sua faminta legião de
demônios, que você acordou para sempre.
Só mais um passo. Vem.

43
JOSÉ – O DUELO

Inútil lâmina trêmula. Não; nenhum grão de sobrevida


emprestará esta lâmina cega à areia de sua existência, que, de
tão antiga, escorre e se esvai entre um arquejo de velho e
outro. Inútil a lâmina que treme em suas mãos. Quanto des-
te tempo imóvel, quanto desta chuva temporã haveria de se
infiltrar entre as trincas e o mofo das paredes descascadas an-
tes que eu descobrisse quem você é? Tantos anos de fuga,
tanta agonia à toa: eu reconheceria estes seus olhos e os olhos
de cada um da sua laia até no mais profundo e obscuro bura-
co do quinto dos infernos. Você deveria ter arrancado, ou, se
não fosse homem para tanto, mandado que algum jagunço
arrancasse estes seus olhos delatores, você urraria de dor, mas
viveria, cego, mas viveria, e a dor doeria menos que essa espe-
ra infinita, cada ano, cada chuva e cada colheita, a espera infi-
nita por esse dia, este hoje, em que eu, em que nós, como
sabíamos desde aquela noite, havíamos de nos encontrar ou-
tra vez, eu, refletido nestes seus olhos delatores, eu, desem-
bestado cavaleiro do seu juízo final.
Quanto tempo? Cinqüenta anos? Não importa, espe-
rei, esperamos, por este dia, tanto. Esperamos, e esperaría-
mos, um tempo que não se mede pela mecânica dos relógios
ou a exatidão arbitrária dos calendários. Estava escrito, você e
os da sua laia escreveram à faca, naquela noite, naquele cu-de-
mundo, na cara do meu irmão José. Éramos três, lembra?
José o melhor de todos, dos três, José, João e eu, José o mais
bonito, o mais inteligente, o que escutava e compreendia a

45
língua arrevesada dos livros, José, o que talvez virasse doutor,
vocês deveriam ter matado um de nós dois, João ou eu, ou
os dois, João e eu, mas José, nunca, José era o único de to-
dos, de nós três e dos sete da sua laia, o único que valia a pena
ter vivido, talvez essa porcaria de mundo prestasse um pouco
se a José fosse dado tempo, mas você e os da sua laia conde-
naram José a 18 anos de vida.
Acaso pensa que nós dois, João e eu, não desejávamos
também não digo a morte, mas o nunca-existir de José?
Quanto a mim, não tenho memória para tanto, eu acabara
de nascer, não há como me lembrar, mas ouvi de minha mãe
na hora da morte os mesmos impropérios de dor e desespero
que me contaram terem sido os dela na hora do meu nasci-
mento. Quanto a João, lembro-me bem, eu tinha quatro
anos, pela porta entreaberta do quarto, ele rasgando as entra-
nhas da minha mãe, minha mãe berrando rezando blasfe-
mando e todo aquele sangue e João rebentando tudo o que
se opunha até nascer horrendo enrugado sujo, monstros da
mesma natureza, João e eu. José, não; José pousou sereno
naquele cu-de-mundo, belo, limpo e indolor, minha mãe
sorria, eu tinha oito anos, João tinha quatro, e odiamos José
desde o instante em que vimos aquela cabeça angélica brotar
do meio das pernas de nossa mãe.
Acaso sabia que João e eu odiávamos José, mais talvez
do que você e os da sua laia, todos juntos? José, o belo, os
olhos azuis, José, o educado, quase um moço da cidade, o
mais perfumado e no entanto de todos o mais homem, o
invocado pelas virgens na noite em que noivos embriagados
partiam-nas ao meio rompendo com urgência e fúria a carne
que até a véspera conhecia, quando muito, delicados e impa-
cientes dedos de moça.

46
Sei, sabemos, todos, disso, tudo. Eu mesmo vi o vulto,
meio sombra meio luz, nos olhos dela, quando assinei com
sangue meu sobrenome de macho na fenda estreita e relutan-
te entre as pernas abertas a contragosto, e esse vulto que vi
nos olhos fechados e nas pernas abertas de minha mulher na
noite de núpcias era José, e a mulher de João, ela também,
João me contou, a mulher de João entre uma estocada e ou-
tra, entre um gemido de dor e outro, murmurava “José”, e
cheirava a José a nascente avermelhada que naquela primeira
noite minava da mulher de João, o próprio João me contou,
e teria chorado ao contá-lo, se não fosse homem. E foi então
que nós, os daquele cu-de-mundo, todos nós, lembra?, proi-
bimos nossas mulheres de gemerem na hora do coito, por-
que gemeriam por José, e de revirarem os olhos, porque seus
olhos revirados só teriam olhos para José, e de mexerem os
quadris em suas demoníacas danças de mulheres, porque o
demônio-par de todas as danças seria José, e passávamos as
noites em vigília para que a lembrança do José diurno, forte
e nu da cintura para cima, a tanger com voz afinada o gado
rude, não penetrasse a imundice dos seus sonhos femininos.
E por isso você e os da sua laia mataram José; porque
naquela festa da padroeira as suas noivas, as montarias futu-
ras que vocês encheriam de sêmen e de filhos, naquela festa
da padroeira elas, as suas noivas, cortaram tecidos estampa-
dos, e cerziram com linhas coloridas, e se vestiram todas para
José, e sob os vestidos floridos por certo não usavam nada a
não ser as almas nuas orvalhadas exalando suores e risos assa-
nhados, José mais bonito do que sempre, 18 anos, o terno
branco trazido pelo trem de ferro, o chapéu impoluto, ape-
ando do cavalo mais imponente do arraial, por nada mais do
que isso vocês esperaram o fim da festa, e o derrubaram do

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animal, e desfiguraram seu rosto com as facas cegas para que
doesse mais, cada lâmina, de propósito, menos afiada do que
esta que agora treme em suas mãos, e lhe arrancaram os olhos,
e deixaram a carcaça a boiar na beira do rio, pasto de todos os
bichos da terra da água e do ar, para que nenhuma moça
voltasse a sonhar com José, o morto mais feio daquele cu-
de-mundo.
E o velório: o fantasma impenetrável de nosso pai na
moldura oval; a litania das velhas, as bocas murchas carpindo
uma a uma as infinitas e odiosas qualidades de José; o vômi-
to das moças, os mamilos rijos de desejo insepulto e arrepio
frio da morte; e as velhas e as moças ganindo o nome de José,
e José devorado pelos peixes e os urubus e os porcos-do-
mato, o mais feio e fedorento defunto de todos os cus-de-
mundo do mundo, o caixão aberto porque João e eu deter-
minamos. Vocês fizeram com que nós, João e eu, nós que
odiávamos José, vocês nos obrigaram a amá-lo sobre todas as
coisas, e a jurar pelo maldito santo sangue de José derrama-
do, e a transfundir para as veias de toda a sua laia o veneno
que fermentáramos em nossas tripas durante 18 anos de ódio
a José.
O primeiro de vocês coube a mim, era eu o primogêni-
to, João não me negaria o direito. Não lembro o nome do
seu irmão, lembro que os olhos dele arranquei e depositei
sobre a mesa da cozinha, e trocamos olhares, João, eu e os
olhos do seu irmão, por um longo tempo, e não adormece-
mos naquela noite, João e eu. E só quando estavam eles, os
olhos do seu irmão, dormindo esbugalhados no vidro com
formol, percebemos, João e eu, que eram sutilmente dife-
rentes entre si, cada olho de um tom, o direito tinha a cor das
tardes quando anoitecem, o esquerdo era como as noites no

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átimo que precede os amanheceres, era assim, pensava eu,
que se estivesse vivo descreveria José os aleijados olhos de
seus assassinos, José e sua poesia inútil, como inútil a lâmina
que você empunha agora como o último ato de um afogado.
E o par seguinte de olhos que arrancamos a outro seu
irmão, João e eu, era também desencontrado de cor, e o ter-
ceiro tal e qual, e foi assim que descobrimos a marca maldita
da sua laia, e foi ela, a bendita marca, um olho claro o outro
escuro, que decretou a quase extinção da sua laia, porque vocês
fugiram daquele cu-de-mundo, e se espalharam pelo mun-
do, mudaram de nomes e cheiros, encorparam suas covardi-
as, deixaram as barbas crescerem, os cabelos e os dentes caí-
rem e o tempo encarquilhar suas caras imberbes, mas foram
sempre esses olhos, a eterna e infeliz juventude desses imutá-
veis aleijões, que nos permitiram farejá-los um por um, e matá-
los um por um. Todos, menos você; menos você, ainda.
Meu irmão João viveu mais do que podia, mais do que
desejaria qualquer criatura viva, o pulmão reduzido à metade
da metade do que sobrou, João cavucando oxigênio no ar
rarefeito, João demorou a morrer, e só não pôde morrer an-
tes por sua culpa, porque faltava matarmos você, você que
tem nas mãos a lâmina afiada mas inútil, você e sua insistên-
cia em sobreviver à meia-dúzia de irmãos cujos olhos ainda
flutuam opacos e meio dissolvidos pelo tempo no formol
do vidro; João só conseguiu morrer quando já não havia oxi-
gênio no ar, o corpo decomposto pela agonia lenta, a alma há
muito no inferno, e só conseguiu morrer depois de rogar a
mim e contra mim a prece e a maldição de não morrer sem
matar você, sétimo e último da sua laia. Sobrevivi à morte de
João porque não podia ser de outro modo, e noites a fio
rezei por você, meu inimigo, rezei pela sua vida, pela sua

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saúde, rezei para que seu corpo estivesse fechado contra faca,
febres e bala, rezei a deus e ao diabo para que Eles, em Sua
infinita misericórdia e desfaçatez, conservassem sua vida para
mim; e aqui estamos, ainda vivos, você e eu.
Quantos anos desde a festa da padroeira? Quantas lé-
guas percorridas? Você tem outro nome, outro cheiro, fal-
tam-lhe cabelos e dentes, é agora um velho feito eu. Um
velho barbeiro da Capital, quem diria?, e em vantagem apa-
rente sobre o inimigo, pois é você quem tem a lâmina da
navalha pousada em meu pescoço. Mas talvez a vantagem
afinal seja minha, quem garante que reconhece a mim neste
meu velho corpo? enquanto eu, ao contrário, sei quem você
é, sempre soube, desde que entrei nesta barbearia e você co-
meteu o erro fatal de permitir que eu olhasse seus olhos desi-
guais iguais à meia-dúzia de pares de olhos que há meio sécu-
lo armam contra mim tocaias invisíveis por trás da líquida
cortina de formol.
Aqui estou, velho, não morri, não podia morrer sem
olhar outra vez estes seus olhos, um olho claro, escuro o ou-
tro, não podia morrer sem matar o último da sua laia, velho,
e aqui estou, e quero poucas coisas da vida que resta, quero
mergulhar estes seus olhos no formol envelhecido e enterrar
o vidro com sete pares de olhos no pedaço de cemitério que
coube a José naquele cu-de-mundo, e quero, por fim, o sa-
grado direito que me foi roubado, quero de volta o sagrado
direito de odiar José e cada uma das virtudes peçonhentas de
José.
Queria, sobretudo, que me reconhecesse agora na hora
da sua morte, velho, queria gritar sua sentença, queria ao menos
murmurar entredentes tudo o que calei por tantos anos e
léguas, mas não posso, já não tenho voz, não posso, a doença

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e a velhice fizeram de mim silencioso prisioneiro encerrado
nas paredes de mim mesmo, então fito imóvel e em silêncio
estes seus olhos desencontrados, e vou fitá-los até que não
lhe reste qualquer dúvida sobre quem sou e para o que vim.
Que foi? Reconhece-me, afinal? Por isso tremem ainda
mais que antes estas suas mãos de velho, e a lâmina
desgovernada risca meu pescoço, e o filete vermelho começa
a minar da espuma branca, e o homem que lia jornal vem em
meu socorro, um homem que não conheço, nunca vi, em-
bora lembre alguma assombração antiga e me chame de “Pai”,
toda esta pantomima, velho, tudo isso porque você me reco-
nhece, enfim? E você limpa com subserviência a espuma e o
sangue do meu pescoço, e treme tanto que a navalha despen-
ca no assoalho desencerado, e você clama por indulgência na
língua trôpega dos velhos, e seu hálito fede a dentes postiços,
e o homem que não sei quem é e me chama de “Pai” sorri,
“Não tem importância”, ele diz que não tem importância e
aponta para o que resta de mim, “Meu pai já não sente mais
nada”, ele diz que eu não sinto mais nada e me leva embora,
o homem que não sei quem é e que não sabe quem você é, eu
sem virar para trás o corpo que há muito não respeita minhas
ordens, e tendo diante de mim, no encardido espelho da bar-
bearia, um velho entrevado e retorcido na cadeira de rodas
que o desconhecido a me chamar de “Pai” empurra com en-
fado em direção à chuva, e, ao fundo, dentro do mesmo
espelho, outro velho: você, meu inimigo, você e seus tremo-
res de velho, seus arquejos de velho, seus desiguais e juvenis
olhos de velho, você, meu inimigo, e este odor de morte
adiada.
O homem que me chama de “Pai” me leva embora,
mas ainda não acabou, velho, minha barba continuará a cres-

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cer, não há força na natureza capaz de estancar o crescimento
de minha barba, e eu voltarei, pelo amor e pelo ódio que
tenho a José, eu voltarei outras vezes, velho. E vamos ver
quem é que morre primeiro.

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NÃO PASSARÃO
(OU A ABOLIÇÃO DA QUARTA-FEIRA DE CINZAS)

pra sêo Neném,


dotô Ramiro,
Manuelzão

– Ocês me dão um pouquim de com-licença? É qu’eu


ouvi ocês inda-gorinha: “Carnaval isso, carnaval aquilo, car-
naval e coisa-e-tal, carnaval e tal-e-coisa”... Sou não, deus-
que-me-livre, ouvidor de falação alheia, mas carnaval, ó, aca-
bou faz-é-tempo. Carnaval foi no antigamente. O de 1963,
então, maior de todos. Causa dO Prefeito. Nome dele? Todo
mundo chamava ele assim: O Prefeito. Muito antes dele ser
prefeito. Esse O Prefeito era doido, mas não jogava pedra
que nem o João Rintintim, a Geni Tabaúna. Ó, mesmo o
João Rintintim e a Geni Tabaúna só davam pedrada se meni-
no judiasse, ofendesse com más palavras. Já O Prefeito era
um doido desigualado: ele possuía lá seu juízo, não era de dar
acesso que nem os outros, nunca ficava doido de tudo. Doi-
dice dO Prefeito era mansa: vestia o paletó roscofe em riba
da camisa volta-ao-mundo e ia pra defronte da prefeitura dar
expediente de mentirinha. Chegava lá às sete da manhã, su-
bia num caixote, fazia discurso pros bêbados e pros vira-la-
tas, apertava mão dos pobres, prometia calçamento com
paralepipe pra tão logo o governo mandasse verba, conversa-
va igual com a situação e a oposição. Ele calculava que era
prefeito de verdade, coitado. Doido. Aí, numa ocasião, na
época da política, diz-que pra protestar, a oposição lançou O

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Prefeito candidato a prefeito, com nome em cédula e tudo!
E ele ganhou! E ganhou porque o adversário era por demais
ladrão, e o povo já tava empanzinado de tanta ladroagem. Se
não tinha outro homem honesto na cidade? Uai, tinha, mas
não era doido. Honesto e doido-ajuizado era só O Prefeito.
E o povo elegeu ele.
Posso tomar só uma? Agradecido ocês. Pois então. Car-
naval era a festa mais linda, a cidade toda fantasiava, tinha os
blocos, os bailes… A Lira Filarmônica, que em noites de lua
executava Cisne Branco no coreto da Praça da Estação mas
que no carnaval variava de nome e virava A Furiosa e tocava
Bandeira branca, amor, não poooooosso maaaaais e diversas
marchas-rancho que não tinham sido inventadas nem no
Ridejaneiro! Carnaval era quando todo o povo era feliz. E o
quê que O Prefeito me faz assim que toma posse como pre-
feito? Baixa decreto abolindo a quarta-feira de cinzas! Não
tinha mais quarta-feira de cinzas, era carnaval o ano inteirim,
sô! Por esta meia-luz que me alumeia! Posso ser velho, aleija-
do, al-alc-alco-Ó-latra, mas mentiroso não! E até a bebida eu
tô largando dela. Só mais uma, se ocês permite.
De primeiro o povo estranhou aquele desatino carnava-
lesco todo, mas logo panhou a gostar do trem. É que nem
dizia a dona minha mãe: O que não tem remédio, remedia-
do está. Aí, numa ocasião… Á, já lá ia esquecendo, ocês
arreparem não, se minha prosa vagueia de cá pra lá, de lá pra
cá, mas eu só sei contar os trem assim, descosturado: ó, O
Prefeito não era doido de nascença não, diz-que endoideceu
na mocidade, num carnaval passado, antigo, muito antes de
ser prefeito. Doidice de amor. Conheceu uma desconhecida
no baile, uma mascarada. E ficou perdidim de amores. Não
sei se foi o cheiro dela, imitando perfume da chuva dispois

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de estiagem comprida, ou foi o jeito dela dançar requebran-
do os quadris, feito pau-de-árvore-fêmea chamando o ma-
cho da ventania, ou foi o jeito alegre de cantar marcha-ran-
cho triste, que nem passarinha acasalada em derradeira ma-
nhã de ano bissexto. Só sei que ele ficou gostando forte, de-
mais. Mas ela nada de tirar a máscara, nem de dizer o nome.
E a desgraça maior foi que no fim do baile da terça-feira,
sendo já a quarta-feira de cinzas, a mascarada deu um beijo
de despedida e sumiu como se nunca tivesse existido, que
nem espírito de pessoa humana falecida.
Às-vez fosse alma penada. Ou então fosse a esposa-nova
dum coronel Zézim, que nesse tempo era prefeito, homem
ruim que nem carne de cobra. Atirava só pra ver se o defunto
caía de cara ou de coroa. Matava pra apreciar o tombo. Diz-
que o coronel Zézim trancava a esposa a poder de corrente e
cadeado, mas quando era noite de carnaval ela ia rezar o terço
e ajeitava um jeito de escapulir pelo túnel que existia por
debaixo da capelinha da fazenda, um túnel cavado pelos pre-
tos no tempo da escravidão. Ela escapulia e corria pro baile
de carnaval, com a roupa curta, aquelas blusas de curar-um-
bigo, caçar sem-vergonhice. O povo maldava demais, diz-
que ela chegava no salão mascarada, com barriga de fora e o
terço de rezar novena e trezena inda na mão. Ê-ê. Ocês já
viram diabo rezador, com terço a-tiracol? Diabo, por comum,
carrega na mão é garfo de espetar as almas em perdição… Às-
vez fosse ela, a esposa do coronel Zézim, às-vez fosse ela a tal
mascarada, a que sumiu pra sempre. Só sei que O Prefeito,
coitado, que nesse tempo inda não era O Prefeito, era só um
menino bão, trabalhador, estudado, ledor de jornal… pois
ele endoidou e pegou a dar expediente falso em defronte à
prefeitura. Virou O Prefeito. O doido.

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Vai ver foi causa disso que quando elegeram ele prefei-
to, O Prefeito baixou o tal decreto abolindo a quarta-feira de
cinzas: ou foi por não querer que o carnaval acabasse outra
vez, ou foi por querer que amor de carnaval durasse pra sem-
pre. Só sei que tanto carnaval, o ano inteiro, fez uma revolu-
ção danada, sô! Morador montou fábrica de confete, outro
de serpentina. Tanta encomenda de fantasia que costureira
nenhuma dava conta, aí a prefeitura botou escola comunitá-
ria de corte-costura, as costureiras criaram cooperativa, sindi-
cato. Á, e existia naquela época um alemão, um sêo Vupes,
que montou até linha de montagem, dou exemplo: fantasia
de pirata: um operário fazia a perna-de-pau, outro o olho-
de-vidro, outro a cara-de-mau.
O Prefeito inda inaugurou escola de música, abriu con-
curso público prA Furiosa... Ó, ele era doido, mas não era
bobo não: o negócio deu tão certo que acabou o desempre-
go, esquentou a economia, distribuiu renda. E o melhor era
que tava todo mundo feliz por demais da conta, matinê pras
crianças, baile matutino pra quem trabalhava de à-noite já ir
direto pra folia, carnaval o dia inteirim, o ano inteirim.
Ê. O Prefeito era magro que nem palmito brejaúba,
mas garrou a dar expediente vestido de Rei Momo, e ocês
sabem, Rei Momo carece de ser um capado de tão gordo,
mas como O Prefeito era doido… E o povo seguiu exem-
plo, já ia todo mundo trabalhar fantasiado pra não ter que
passar em casa antes dos bailes. Mas O Prefeito inda achou
pouco: baixou decreto prefeitural obrigando moça bonita a
usar máscara, que era pra ver se numa delas ele reconhecia a
mascarada. Coitado, dava até dó.
Convém tomar mais uma, posso?, pra ver se pára de
doer essa coluna velha aleijada que não dá sossego, essa cabe-

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ça minha ruim que dói, e dói, e dói... Apanhei demais nessa
vida, gente. Mais uma, posso? Obrigado. Bão, eu falei que
tava todo mundo feliz? Á. Tava não, quem dera. Tinha o
padre. E tinha também o coronel Zézim, mas o coronel Zézim
não conta, aquele era um infeliz, entendia só de fabricar infe-
licidades. Tem ser humano que veve-diário de judiar, praticar
malefícios, será por quê? É que nem dizia o sêo meu pai:
Coração dos outros é terra aonde ninguém vai. Mas eu falava
do padre: pois é, Ó, o padre foi tolerando, tolerando... Eu
tenho preguiça de tudo quanto é padre, mas não posso dizer
que aquele um não teve paciência. Teve, e foi é muita: cele-
brou até casamento de pierrô com odalisca, pirata com
colombina, arlequim com marinheira, A Furiosa executan-
do a marcha nupcial em forma de marcha-rancho do lado do
altar, vê se pode? E o sêo vigário tolerando, tolerando. Aí,
um dia, alguém chama o padre pra dar extremunção, ele vai
encomendar a alma e tá lá o futuro defunto fantasiado de
transviado, com peruca postiça e tudo! Ocês tão rindo? Pois
na semana seguinte me vai o padre fazer um batizado: era um
recém-nascido fantasiado de capeta! De capeta dentro da san-
ta-madre-igreja! Aí era demais, diz-que o padre deu queixa
pro bispo, escreveu carta pro governo... Mas ninguém tem
prova que foi por isso que…
Posso tomar mais uma? Ocês bebem comigo? Faço gos-
to. Daqui a pouco pára de doer, essa coluna aleijada, essa
cabeça velha… Mas eu lá ia dizendo que o carnaval durou o
ano de 63 todim, atravessou o natal, varou o rei-véião, pulou
pra 64, e o povo satisfeito de ter elegido O Prefeito prefeito.
Aí resolveram fazer um bitelo dum grito de carnaval no 1o de
abril, pra celebrar o Dia da Mentira. Um carnaval dentro do
carnaval. O folião devia de se fantasiar ao contrário do que

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era na vida real. Deu confusão: teve tanta moça mandando
fazer fantasia de diaba que o povo declarou: Essa daí também
vai sair de diaba pra nós achar que ela é anja, mas vai ver ela é-
é diaba messsm’.
O povo...
O certo é que chega a véspera do baile, 31 de março, o
povo todo na maior animação, e acontece o quê? Heim? Ocês
não alembram? 31 de março de 64! Esqueceram já? As tropa,
moço! o golpe dos militar, moça! apearam o Jango do poder,
gente! E chegou notícia: os tanques de guerra vinham vindo
de Governador Valadares com ordem de esbagaçar a tal repú-
blica anarco-comunista-carnavalesca-financiada-pelo-ouro-de-
moscou, que era como tava escrito no telegrama. E os tan-
ques vieram, e passaram por riba das casas e da plantação, e
massagaram os povoado tudo pelo meio do caminho: o Capa-
Bode, o Mata-Três, a Rosca-Seca... não sobrou nenhum. E
vieram vindo, vieram vindo... A situação tava mais feia que
filhote de cruz-credo. E o quê que O Prefeito me faz? Á.
Chama A Furiosa, junta o povo na Praça do Relógio, cada
um fantasiado dum trem diferente, e decreta: “Não passa-
rão!” O doido.
E aí, sô, me amanhece o 1o de abril e o povo tudim na
divisa da cidade, A Furiosa tocando e folião cantando Ó jar-
dineira por que estás tão triste?... Ala-la-ô-ôôô-ôôô, mas que
calô-ôôô-ôôô... Mamãe eu quero... Nó! O povo entristecido e
se borrando de medo-pavor, mas semelhando mais animado
que nunca, foi bom O Prefeito ter distribuído de graça a
cachaça, a cerveja, o lança-perfume, ocês também acham?,
pois é, eu falei que ele era doido, mas não era bobo. Por falar
em cachaça, posso…? Agradecido. E os tanques chegaram, e
quiseram entrar na cidade de qualquer jeito, e era pra mais de

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uns cem, cem eu não digo mas uns cinqüenta eu agaranto,
pois então, e era uns duzentos tanques botando fogo pelas
ventas que nem mula-sem-cabeça. Aí O Prefeito avistou no
meio do povo o dotô Ramiro da Farmácia, fantasiado de
brigadeiro, e o sêo Neném Ferroviário, que tava imitando
almirante, os dois fardados de militar porque não toleravam
militares; e existia também um João Rosa, que tinha forte
alergia a guerras e por isso envergava fardão de general de
brigada. Como eu já expliquei procês, os três tavam vestidos
assim porque era Dia da Mentira e todo cidadão tinha que se
fantasiar ao contrário da vida real, mas O Prefeito não quis
nem saber, convocou o dotô Ramiro da Farmácia, o sêo
Neném Ferroviário e mais o João Rosa, e pronto: tava for-
mado o Estado-Maior da Resistência! Eu falei procês: ele não
era bobo, mas era doido. A fantasia dO Prefeito? Á, ele tava
vestido de doido, Napoleão Bonaparte completo, com mão pra
dentro da roupa, coçando as partes. Porque O Prefeito se enxer-
gava que era são, coitado. Doido de dá dó. A saideira, posso?
E me vai O Prefeito com o Estado-Maior lá pra linha
de frente, quase pisando nos calos dos tanques, e os tanques
cuspindo fumaça, acelerando acelerando, chegando chegan-
do, querendo entrar na cidade, querendo passar por riba dO
Prefeito, do dotô Ramiro da Farmácia, do sêo Neném Fer-
roviário, do João Rosa, e os quatro falando “Não passa, não
passa, não passa”, a população bêbada pulando e cantando e
falando “Não passa, não passa, não passa”, e os tanques que-
rendo passar de qualquer jeito, e os tanques acelerando, e os
tanques vindo-vindo, vindo-vindo, vindo-vindo, até que vi-
eram, e chegaram, e passaram por riba dos quatro, e esmaga-
ram os quatro, e dispois esmagaram a cidade, dispois o esta-
do, dispois o país, e acabaram com tudo.

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E fim. Acabou-se o carnaval, findou-se a história. Uai,
ocês acharam ruim? Mas eu inda avisei antes de principiar o
causo: “Carnaval, ó: acabou faz-é-tempo”. Os tanques, gen-
te, acabaram com o carnaval, com a cidade, com a alegria,
acabaram com tudo! Daí por diante, ocês sabem, aquela
desgraceira: mataram uns, desapareceram com muitos, alei-
jaram uns pobrecoitados no pau-de-arara e noutras feias tor-
turas. Á, o coronel Zézim foi nomeado interventor e prati-
cou toda sorte de malefícios e foi feliz pra sempre fazendo os
outro infeliz. E fim.
Muito agradecido ocês pela atenção, pela bebida... Ó,
tenho pra mim que enganaram ocês, essa cachaça deve de ser
da boa não, cachaça fraca, nem deu conta de esbarrar meus
diversos males: a dor de cabeça ficou do messsm´jeitim, a
coluna aleijada inda dói que dói… Ocês sabem o que é pade-
cer pendurado feito fosse animal morto caçado, sendo ho-
mem, humano, e ainda vivo, esfolado, mas ainda vivo? Á,
ocês não sabem… E minha memória até piorou, demais:
agora é que ela não esquece essas tristes recordações, agora
que elas não passarão de jeito nenhum, as más lembranças,
nem a poder de fortes benzedeiras. Inté, então. Ã? Á! Ocês
não toleram final triste? Uai, mas todo final, de pessoa, hu-
mana, é medonho triste – o contrário é quando o contador
abrevêia a narração antes do derradeiro fim, o exato. Mas ó,
se ocês faz muita questão, deix-ô-só tomar mais uma, que é
pra variar o desfecho. Pronto. Reconto:
Aí tão lá O Prefeito, o dotô Ramiro da Farmácia, o sêo
Neném Ferroviário, o João Rosa, os quatro no ponto de ser
esbagaçado pelos tanques, e tão lá os tanques acelerando, os
tanques vindo-vindo, vindo-vindo, vindo-vindo, e aceleran-
do, e se achegando, e aquela fumaceira toda... Aí eu sinto,

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não, aí O Prefeito sente alguma mão pegando na mão dele,
aí eu olho pra ver o que é, não, aí O Prefeito olha pra ver o
que é, e era a mascarada, era a mascarada! era a diaba da mas-
carada! e ela chega mais perto de mim que nem naquele baile
antigo, não, e ela chega mais perto dO Prefeito que nem
naquele baile antigo, o mesmo cheiro, o mesmo requebrado,
o mesmo cantar de passarinha, e chove tanto confete e ser-
pentina e A Furiosa toca tão alto que nem dá mais pra ouvir
os tanques vindo, chegando, acelerando, e a mascarada abra-
ça O Prefeito, a mascarada abraça eu, e eu e mais ela de mãos-
dada desfiando o terço, cada conta é um beijo, novena-trezena
de beijos, até perdermos a conta, até perdermos de vista a
barulheira disgramada dos tanques vindo, chegando, acele-
rando, até que eu e ela só damos conta de sentir o cheiro dA
Furiosa feroz que nem onça parida e o povo pulando e can-
tando forte, demais:
Vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval…
Vou beijar-te agora...

61
OS BICHOS

A gente era que nem bicho. Não sei precisar o marco


zero, o início de nossa involução; da mesma forma, ignoro o
exato estágio de animalidade que havíamos atingido. Sei que
quando Lucy juntou-se ao bando, muitos de nós, um passo
à frente no processo involutivo, já comiam crua a carne dos
cães sem dono que meu irmão degolava. Quanto a mim, e o
digo sem nenhuma ponta de soberba ou auto-indulgência,
sempre exigi que minha mãe os cozinhasse primeiro. Houve
uma fase anterior, bem antes da chegada de Lucy, em que
fazíamos dos vira-latas errantes nossos bichos de estimação.
Dividíamos com eles nossa comida, compartilhávamos car-
rapatos, pulgas e outros parasitas. Até o dia em que eles, os
cães sem dono, tornaram-se nosso alimento. Meu irmão mais
velho, o segundo na hierarquia do bando, era quem os dego-
lava, com um caco de vidro.
Não sei, repito, quando nossa involução começou, mas
tenho consciência de que não fui sempre bicho. Lembro-me
vagamente de um outro tempo, de um outro lugar, quando
a gente parecia gente, bem ou mal escovava os dentes, comia
com garfo, com garfo-e-faca não digo, seria por demais
inverossímil, mas com uma colher coletiva e torta, nos dias
em que havia comida. Eu era pequeno, pouco mais que um
filhote, mas filhote de gente, ignoro como e quando virei
bicho. Acho que foi aos poucos, a gente não percebe essas
coisas, se percebesse não virava bicho. Ninguém ordena, um

63
belo dia, à secretária: “Cancele todos os meus compromis-
sos, amanhã torno-me bicho”.
Quando Lucy juntou-se ao bando, tínhamos abando-
nado há algum tempo o conceito tradicional de habitação;
desistíramos de vez das moradias de papelão, que funciona-
vam mais como memória de nossa humanidade remota do
que como abrigo, além de nos deixarem vulneráveis ao extre-
mo: inúteis contra a chuva e o frio, acabavam por delatar
nossa presença aos predadores. Um dia, rasgamos nossa últi-
ma casa de papelão e viramos nômades.
No princípio, provocávamos nos transeuntes apenas le-
ves esgares. Com o tempo, nossa aparência passou a suscitar
reações mais fortes. Seres humanos de alma caridosa mas es-
tômago sensível vomitavam ao sentir nosso cheiro; outros,
mais belicosos, atiravam pedras. Meu pai ordenou, então,
que evitássemos a luz do dia. Mas se adquirimos hábitos
noturnos não foi com o nobre intuito de poupar os huma-
nos de nossa aparência, e sim para evitar que as reações públi-
cas à pestilência que emanávamos atraíssem mais e mais pre-
dadores.
Hoje, passo boa parte de meu exíguo tempo livre dian-
te da televisão. Gosto dos canais por assinatura, sobretudo os
que abordam a vida animal. Tenho vários documentários gra-
vados em DVD, aprecio particularmente a série, que revejo
com freqüência, sobre a inteligência dos primatas: chimpan-
zés que executam operações elementares de adição e subtra-
ção, gorilas que se expressam por meio da linguagem dos
surdos-mudos e demonstram notável consciência do próprio
Eu, além de outros prodígios.
Fujo, sempre, de antropoformismos baratos, mas, mes-
mo considerando irracional e tolo atribuir aos animais carac-

64
terísticas exclusivamente humanas, muitas vezes pergunto-
me se não possuíamos, naquela época, eu e boa parte do nos-
so bando, inteligência superior à dos macacos da tevê a cabo.
Já no instante seguinte, porém, concluo que não, asseguro a
mim mesmo que não era inteligência e sim instinto; era ins-
tinto o que nos levava a agir de modo a denunciar nossa vaga
herança genética humana. Sou, contudo, forçado a reconhe-
cer que fizemos vários progressos desde que Lucy juntou-se
ao bando.
Lembro-me bem da madrugada em que a vimos pela
primeira vez. De início, o instinto nos fez acreditar que Lucy
pertencia a alguma espécie ainda não catalogada de predador,
visto que não usava porretes de borracha rijos feito ferro,
como faziam os policiais, tampouco estampava no rosto
muito branco o sorriso amarelo dos funcionários públicos
da Assistência Social. Eram, tanto uns quanto outros,
cumpridores zelosos da ordem de remover toda e qualquer
interferência sobre a arquitetura e o traçado urbanístico da
cidade. Nós éramos a interferência, e eles, os predadores, ti-
nham carta branca para nos levar à força até o Depósito, onde
seríamos despidos de nossos trapos, lavados com jato d´água
e creolina e embarcados em ônibus de itinerário desconhe-
cido e retorno improvável.
Em circunstâncias normais, jamais teríamos permitido
que Lucy se aproximasse tanto naquela madrugada, uma vez
que nossos instintos enviavam aos músculos tensos a ordem
de fuga meio segundo após farejado o mais leve odor dos
predadores. Mas estávamos exaustos e assustados demais na-
quela madrugada.
Nossa mãe estava prenhe. Não era novidade. Iniciara
naquela noite a mesma e lenta agonia dos tantos partos ante-

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riores, e, como das outras vezes, ganiu por tempo infinito,
deitada no concreto do viaduto, os uivos entrecortados pelo
bramido selvagem dos automóveis sobre nossas cabeças. Mas,
diferente das outras vezes, a madrugada avançava sem que o
berro estridente da nova cria anunciasse o crescimento do
bando. O filhote parecia consciente do que o esperava, e de-
cidido a ficar onde estava. Inútil a agonia de nossa mãe.
Lembro-me do exato instante em que meu pai, ensur-
decido pelo silêncio longo que sobreveio à longa agonia, que-
brou nossa última garrafa de aguardente e tentou, com a agu-
deza dos cacos, arrancar do avesso de nossa mãe a pequena
vida indesejada que acabara de matá-la. Nada fizemos para
impedir. Tampouco fugimos quando Lucy chegou, sorratei-
ra. Pareceu-nos, a princípio, que seu olfato de predador in-
terpretara no cheiro de sangue de nossa mãe a condição de
presas indefesas que de fato éramos naquela momento, exaus-
tos e assustados demais para fugir.
Não houve qualquer tipo de vocalização, nem de nossa
parte, nem de Lucy. Falávamos já bem pouco naquela época,
mesmo entre nós, e o fazíamos ora usando os poucos vocá-
bulos de nosso idioma particular de bichos, ora recorrendo a
olhares e gestos. Nos primeiros anos depois de se juntar ao
bando, Lucy empenhou-se em aprender nossa linguagem;
frustrada, optou mais tarde por desenvolver uma forma al-
ternativa de comunicação, que nos ensinava com paciência
cristã e punições severas. Tais experimentos lingüísticos, to-
davia, só teriam início muito tempo depois. Naquela pri-
meira madrugada, Lucy nada disse, nada tentou dizer. Ne-
nhum som. Apenas sumiu por alguns instantes, depois rea-
pareceu ao volante de uma Kombi, e, por meio de sinais,
ordenou que nela embarcássemos a carcaça esquálida de nos-
sa mãe. Obedecemos.

66
Quando Lucy voltou, sem o corpo de nossa mãe, o sol
alongava a sombra do viaduto. Era dia, mas permanecíamos
inertes, nossas pernas entranhadas nas fendas do concreto.
Em silêncio, Lucy estendeu e abriu a mão muito branca, na
qual havia um maço de cédulas amarrotadas. Meu pai saltou
sobre o dinheiro como se cravasse garras e dentes num ani-
mal mais fraco que se recusa a ser devorado – e aquela fome
animalesca foi, para Lucy, o sinal de que ainda não
involuíramos de vez à condição absoluta de bichos.
(Explico: anos depois, refletindo sobre os acontecimen-
tos daquela madrugada, convenci-me de que embora, na épo-
ca, comêssemos com a mão, embora alguns de nós já não
desperdiçassem tempo aguardando o cozimento dos vira-la-
tas que meu irmão mais velho degolava, embora defecásse-
mos onde a urgência nos surpreendesse, embora tudo, ainda
preservávamos resquícios de humanidade; cheguei a tal con-
clusão ao rememorar não apenas as lágrimas que melavam
nossos rostos imundos quando embarcamos na Kombi de
Lucy a carcaça de nossa mãe, mas, também e principalmente,
o olhar de predador faminto de nosso pai ao saltar sobre as
cédulas amarrotadas. Não há consenso quanto ao choro, re-
conheço. Por coincidência, na semana passada assisti a um
documentário sobre determinada corrente científica,
minoritária mas barulhenta, que afirma não estar o choro
entre as prerrogativa humanas, visto serem os elefantes – e,
acrescentam alguns pesquisadores, também os camelos da
Mongólia – supostamente capazes de externar sofrimento em
forma de lágrimas. Mas, se divergem nesse ponto, há entre
os pesquisadores o monolítico consenso de que pertence aos
humanos, e a nenhuma outra espécie animal, a capacidade
infinita de reconhecer e cultuar o dinheiro – e por ele matar e

67
morrer. Seguindo essa linha de raciocínio, meu pai, e todos
nós, por extensão, naquela época ainda seríamos meio gente.)
Só muitos anos mais tarde, Lucy revelou-me detalhes
ocultos daquela madrugada. Meu pai ficaria orgulhoso (caso
estivesse o orgulho ao alcance das espécies primitivas) se lhe
fosse permitido assistir ao desajeitado balé de nossa mãe flu-
tuando no tanque de formol, a barriga inchada feito salva-
vidas tardio, nossa mãe prestando relevantes serviços à medi-
cina, logo nossa mãe, que, em vida, foi o mais completo
compêndio das doenças do Terceiro Mundo.
Perdoem-me, senhoras e senhores, pelo lugar-comum,
mas não há como evitá-lo: minha vida daria um livro. Isto
posto, comunico que minha vida dará um livro. Vou, inclu-
sive, contratar um escritor ou jornalista premiado para escre-
ver minha autobiografia (já recebi alguns currículos.) Talvez
inclua num dos capítulos o episódio pungente do cadáver
materno vendido à faculdade de medicina em troca de algu-
mas cédulas amarrotadas, mas devo alterar o contexto. Não é
tarefa das mais fáceis relembrar meu passado de bicho, esta é
a primeira vez que falo em público sobre ele, e não o faria se
não estivesse entre meus pares.
O período pré-involução, este sim, com toda certeza,
estará contido em minha autobiografia: abordarei a seca, a
miséria, as febres e disenterias, a colher torta e coletiva, a via-
gem no caminhão pau-de-arara et cetera et cetera. E o farei,
reconheço, por vaidade, pela óbvia razão, como é do conhe-
cimento dos senhores e das senhoras, de que a fome dignifica
e enobrece o homem – depois, é óbvio, que este homem se
torna um empresário bem-sucedido e as pompas e as cir-
cunstâncias lhe permitem, como agora, saborear à mesa farta
a memória da fome. Mas não me queiram mal, não me inve-

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jem pelo privilégio, à maioria negada, de exibir no currículo
a miséria como medalha. Peço que ignorem meu acesso de
sinceridade. Ou antes, que o degustem, como se fosse iguaria
rara. É provável que nunca mais se repita.
Outrossim, acaba de ocorrer-me que talvez valha a pena
uma versão popular de minha autobiografia, sem capa dura
nem papel couchet. Um pocket book barato. Melhor ainda,
um cordel cujo mote seria O sélfimêidimén que enganou o
capeta da fome. Os famintos, como é sabido, odeiam-se uns
aos outros, mas entoam loas e fazem reverências mil aos ex-
famintos que venceram na vida. Meu ghost writer que decida
sobre o formato e encontre o tom da narrativa, será regia-
mente remunerado para escrever na primeira pessoa a
edificante saga do retirante… que os senhores, e sobretudo as
senhoras, perdoem o emprego de tal adjetivo, mas não há
outro mais apropriado: a edificante saga do retirante fodido
que está aqui, nesta noite, recebendo tão cobiçado título ou-
torgado por esta egrégia Federação das Indústrias.
Uma coisa… obrigado, obrigado. Muito obrigado. Uma
coisa, porém, está decidida. Já que a obediência ao bom-gos-
to impõe certos limites, minha autobiografia falará da fome
– por vaidade, como já disse – mas não haverá menção ao
passado de bicho. Não haverá nas páginas de meu livro uma
linha sequer sobre cães degolados, carne crua devorada com
mãos imundas, defecações públicas e aberrações do gênero.
Ou haverá? Assombra-me, neste exato instante, um conflito
ético: terei o direito de sonegar ao leitor uma história assim
tão rica em misérias? Creio que não. Concordam, os senho-
res e as senhoras? A voz do povo... Certo, revelarei, então,
meu asqueroso e obscuro passado de bicho – mas apenas num
segundo livro: uma biografia não-autorizada, contra a qual

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protestarei com veemência e violência, e moverei céus e ter-
ras, e processarei de forma implacável o autor e a editora! E,
ao final do embate, terei vendido milhares de exemplares e
me tornado um pouco mais rico. Brincadeira, claro: minha
sinceridade é bissexta, e não chega a tanto.
Mas admito um certo desconforto: independente do
tom da narrativa, que papel estará reservado a Lucy em mi-
nha autobiografia?
Pobre Lucy. A maneira como cuidava de nós… O cari-
nho quase humano com que catava nossos piolhos, o esforço
sobre-humano para ser aceita pelo bando e para abortar cada
vômito diante de cada naco da carne crua de cada vira-lata
abatido. Pobre Lucy. No fim, invertemos os papéis, eu e ela,
e foi a minha vez de cuidar de Lucy, e eu cuidei, da maneira
como cuidamos do cão que envelhece tristemente aos pés do
dono, e já perde o faro, os dentes e o apetite, e já não retém a
urina, e assiste, imóvel, ao peso das cataratas despencando
sobre seus olhos. No fim, estávamos quites, eu e Lucy. Nada
devíamos um ao outro. Talvez me arrependa apenas do mé-
todo que escolhi para executar o gesto de misericórdia. Lem-
bro-me, ainda hoje, do instante em que a abati. Lucy tinha
os olhos arregalados, e era como se os olhos perguntassem,
“Por quê?”, antes de saltarem das órbitas pela força do tercei-
ro ou quarto impacto. Pobre Lucy. Já não era, então, a pálida
sombra daquela Lucy da primeira madrugada sob o viaduto
manchado de sangue, seu ar de comiseração misturado à cu-
riosidade acadêmica diante das involuídas espécimes que éra-
mos então.
Nunca havíamos visto alguém tão grande. Acredito,
hoje, que Lucy não medisse mais que 1,75m, mas a magreza
saliente sob o jeans e a brancura homogênea da pele acaba-

70
vam por fazê-la maior aos nossos olhos, além do quê, na
época, já não caminhávamos eretos: ora rastejávamos para
caçar ou escapar aos predadores, ora arqueávamos a coluna
farejando o chão à cata de restos de comida, o que nos torna-
va ainda menores.
Pobre Lucy. O esforço desprendido para encurtar a dis-
tância abissal entre nós e ela, o modo como curvava os om-
bros um centímetro a cada ano, até que as dores na coluna se
tornassem insuportáveis. Inútil sacrifício: Lucy continuaria
sempre maior do que nós. E foi com espanto que depois de
abatê-la, muitos anos mais tarde, e esticar-lhe o corpo curvo
sobre o granito da pia, ao lado da churrasqueira, descobri
uma Lucy diminuta. Lucy encolhera. O tempo, a decadência
física inerente ao tempo se encarregara de reduzi-la à metade
do que havia sido. Pobre Lucy. Suas tentativas vãs de omitir
a superioridade inconteste, sobretudo diante dos machos do
bando, ainda que por interesse próprio – ela temia que, hu-
milhados, nós a repelíssemos... Nunca a repeli, sobretudo à
noite, quando os outros dormiam. Nenhum de nós a repeliu
algum dia ou noite.
Lucy não tardou a se tornar a fêmea dominante do ban-
do. Enfrentava muito raramente a tênue oposição de nossa
irmã mais velha, creio que pela atávica rivalidade entre fême-
as. A disputa entre as duas só foi superada quando nossa irmã
mais velha morreu ao parir um filhote incompleto.
Lucy já não tinha a Kombi, por isso carregou nos bra-
ços, para algum lugar que não conhecíamos, a pequena e in-
forme carcaça do recém-nascido, acondicionada num caixote
de maçãs argentinas encontrado na lixeira do supermercado.
Voltou algum tempo depois, com o caixote vazio e outro
maço de cédulas amarrotadas, sobre o qual meu pai saltou

71
com igual avidez, mas sem a mesma agilidade de outrora.
Quanto à nossa irmã, nada poderíamos fazer por ela. Ficaria
estendida no chão. Não possuíamos os meios, nem faria sen-
tido arrastá-la conosco. Alguém cuidaria dela, ou o serviço
funerário da Assistência Social, ou os cães sem dono. Era uma
questão de quem primeiro encontrasse o corpo.
Justo naquela época, Lucy gastava boa parte das aulas de
adestramento alertando-nos quanto aos riscos de misturar-
mos nossos genes no interior do próprio bando; dizia, por
meio de sons e gestos, que nossas cópulas incestuosas acaba-
riam por levar à degradação genética e, em conseqüência, à
má formação dos fetos. Creio que só fomos capazes de
compreendê-la ao ver, na calçada, a criatura disforme que nossa
irmã acabara de expelir do ventre. Até então, pensávamos, ou
melhor, intuíamos que a pregação de Lucy nada mais era que
a tentativa mesquinha de manter, apenas para si, todos os
machos do bando – meu pai, eu e meus irmãos – visto ser ela
a única fêmea a possuir os genes diversos dos nossos.
Mas havia algo errado, uma incompatibilidade qualquer
entre nossos códigos genéticos, pois apesar dos nossos dili-
gentes esforços em cobri-la a cada cio, revezando-nos em có-
pulas intermináveis, Lucy jamais emprenhou. E todos os
meses, quando o sangue lhe descia por entre as pernas, ela o
estancava com chumaços de miolo de pão e, mais irritadiça
que nos outros dias, nos açoitava com os olhos e as mãos
espalmadas, punia com as unhas sujas nossa incompetência
de machos. E, pior: nos evitava até o próximo cio.
Hoje me pergunto se agi certo ao matar meu pai. Mas
não havia escolha. Não era uma questão de certo ou errado.
Acordei um dia com a instintiva convicção de que o bando
necessitava de outro macho dominante. Na verdade, acho
que nem dormi naquela noite. Hoje, penso que nosso pai já

72
não fazia questão de manter o posto. Envelhecia a olhos vis-
tos, a cabeleira imunda e a barba piolhenta cada dia mais
brancas, os dentes podres caindo, um a um. Meu pai entre-
garia o posto, já não fazia questão dele, hoje tenho certeza,
mas não cabia a ele ofertá-lo de mãos beijadas a outro macho
qualquer. Lutamos, e eu o matei. Foi só. Não me custou
muito esforço. Hoje, penso que ele desejava mesmo morrer.
O passo seguinte era enfrentar meu irmão mais velho, o
segundo na hierarquia, candidato natural à chefia do bando.
Mas ele refugou. Apertou com força a mão direita contra o
caco de vidro que usava para degolar os cães sem dono e foi
embora, deixando um rastro de sangue, o rabo entre as pernas.
Sem outro adversário a ser vencido, reinei em paz sobre
as irmãs e os irmãos mais novos. Eu e Lucy. Reinamos juntos
durante anos a fio, enquanto o bando se extinguia devido às
muitas mortes e capturas, até que restássemos apenas nós dois,
até o dia em que a Kombi estacionou no beco fedorento
onde passáramos a noite. Era como se ela, a Kombi, houves-
se desde sempre monitorado nossos passos e humores, cap-
tando os sinais de rádio que imaginárias coleiras transmissoras
enfiadas à força em nossos pescoços enviavam a pesquisado-
res invisíveis.
Lucy abriu a porta da Kombi com inesperada destreza
humana, e me empurrou para dentro com rispidez igualmente
humana, e acho que havia mesmo em meu pescoço alguma
coleira radiotransmissora, talvez camuflada no crucifixo que
ela me dera no dia em que matei meu pai e assumi o domí-
nio do bando.
A bordo da Kombi, rodamos por avenidas movimen-
tadas, e por ruas ermas, e de novo pelo centro financeiro da
cidade, e outra vez pela periferia, e em silêncio chegamos ao

73
laboratório, onde Lucy confrontou suas anotações com as
dos outros pesquisadores. Eu estava nu, sobre a mesa de exa-
mes, e permiti que eles me manipulassem, e realizassem tes-
tes clínicos e tomografias computadorizadas, e confrontas-
sem outra vez os dados.
Não sei quanto tempo demoraram as pesquisas, se se-
manas, meses ou anos. Naquele tempo, não possuía noção
de tempo. Quando fui, enfim, dispensado, Lucy chamou o
táxi e nos mudamos para o apartamento de cobertura. Aprendi
bons modos à mesa, estudei quatro idiomas (inclusive o que
Lucy empregava para se comunicar com os demais conse-
lheiros da organização), fiz o MBA em Nova York e voltei
para dar vazão racional ao empreendedorismo que era meu
por instinto. Lucy assistia, embevecida, ao meu progresso. E
envelhecia, como o cão que envelhece e perde o faro, os den-
tes e o apetite, e já não retém a urina, até que tive compaixão
e parti-lhe o crânio com o taco de baseball ou golfe que ela
me dera no aniversário ou no natal, já não me lembro.
Depois que Lucy se foi, e a partir da fortuna deixada
pela organização, iniciei-me no mundo dos negócios, até che-
gar onde estou. Custou-me anos e anos de trabalho duro,
que resumirei em poucas palavras, por ser uma história por
demais repetida pela mídia: após exaustivas pesquisas de mer-
cado, concluí que havia um nicho promissor a ser explorado,
que o país, em franca recuperação econômica e com uma
classe média ascendente, se ressentia da ausência de um for-
necedor confiável de carnes exóticas e nobres, e que eu pos-
suía o know-how e os meios para obtê-las a custo quase irri-
sório e et cetera e et cetera.
Ganhei, como é sabido, muito dinheiro com a aceita-
ção de meu produto pela crítica especializada e pelas mesas
mais exigentes e emergentes do país e do exterior. Mas o que

74
vocês não sabem é que quase me tornei vegetariano, desde o
dia em que assisti ao primeiro abate. Juro! É um espetáculo
que não recomendaria a nenhuma das senhoras aqui presen-
tes. Nem mesmo aos senhores, e o digo por experiência pró-
pria, ainda que empreguemos, no abate, métodos higiênicos
e praticamente indolores. Mas sempre tive o estômago fraco,
por isso exigia de minha mãe o cozimento prévio dos cães
sem dono que meu irmão degolava. De qualquer maneira,
rogo aos senhores e às senhoras que nunca assistam a um de
nossos abates. E, sobretudo, que nunca se tornem vegetaria-
nos – e faço este apelo em nome da boa saúde. Da boa saúde
dos meus negócios, é claro… Vocês estão rindo? Mas é sério!
Ora bolas, um empresário honesto tem ou não tem o direito
de ganhar dinheiro, pagar impostos e gerar empregos neste
país? Obrigado, muito obrigado.
Antes de encerrar, gostaria de relatar um fato recente e
inusitado, que poderia mudar minha vida. Jamais faria tal
relato, caso não estivesse entre meus pares.
Há dois ou três dias avistei meu irmão na rua. Eu nunca
mais o vira, desde a manhã em que fugiu, com o rabo entre
as pernas, à disputa pelo posto de macho dominante do ban-
do. E era estranho nunca mais termos nos encontrado, visto
que meus negócios me obrigam ao contato permanente com
seres iguais a ele.
Farejei-o primeiro, duas ou três quadras antes de vê-lo.
(Conservo meus instintos de bicho, por imprescindíveis à
atividade empresarial.) Farejei-o por duas ou três quadras, até
avistá-lo. Contive o sobressalto e ordenei ao motorista que o
seguisse a uma distância segura.
Sabem aqueles softwares que, a partir de uma fotogra-
fia, calculam a aparência que determinada pessoa terá no fu-

75
turo distante? Pois seria totalmente dispensável, no caso. Meu
irmão era o retrato fiel do que eu seria hoje, se um acaso
chamado Lucy não interrompesse minha involução. Ele con-
servava o mesmo olhar de bicho acuado, os mesmos trapos,
o mesmo fedor. Na aparência era o mesmo, ainda que mui-
tos e muitos anos mais velho do que era de se esperar. (O
abismo social potencializara a distância cronológica entre nós.)
Mas alguma coisa, nele, mudara. Talvez um fenômeno natu-
ral e raro houvesse desencadeado uma ruptura abrupta em
seu processo involutivo; enfim, algo fugira ao curso natural
das coisas, pois meu irmão, entre outras atitudes inesperadas,
conversava com o vira-lata que trazia atado a uma corda. O
cachorro latia em resposta, meu irmão cobria-o de afagos e, à
guisa de recompensa, dele recebia lambidas infames. Tive a
certeza de que ele jamais degolaria aquele ou qualquer outro
vira-lata. Meu irmão ficara mais fraco, tornara-se menos bi-
cho, ou continuava bicho apenas na aparência pulguenta.
Segui-o por horas a fio, até ser capaz de afirmar, ainda
que sob o risco de incorrer em antropomorfismos baratos,
que ele readquirira determinados comportamentos humanos.
Voltara, por exemplo, a ter residência fixa; morava num arreme-
do de casa, feita de papelão, e até enfeitara a fachada com marga-
ridas amarelas, na certa roubadas de algum canteiro público.
Meu irmão não me viu. E não creio que me tenha reco-
nhecido quando regressei de madrugada, acompanhado de
três funcionários meus, e rasguei em pedaços sua patética casa
de papelão, e arranquei pela raiz as margaridas amarelas. Des-
confio que sequer tenha me visto, nem mesmo quando o
forçamos a entrar na van. Meu irmão limitou-se a abraçar o
vira-lata, não sei se para protegê-lo ou proteger-se, ou ambas
as coisas.

76
Em circunstâncias normais, descartaríamos o vira-lata,
sempre descartamos esse tipo de bicho, em observância ao
rigoroso compromisso com a qualidade de nossos produtos.
No entanto, deixei que meu irmão e o outro bicho imundo
permanecessem juntos até o fim, e que fossem abatidos jun-
tos. Foi a única concessão que fiz, nunca permiti que laços de
família interferissem nos negócios. Voltei a sentir náusea, a
mesma náusea que me obriga a deixar o recinto de paredes e
chão azulejados um segundo antes do abate. Mas antes que a
porta do abatedouro higiênico e quase indolor se fechasse às
minhas costas, um último olhar furtivo através do vidro
mostrou-me as duas lágrimas que escorriam pela barba en-
cardida de meu irmão. Ele me olhava. E acho que finalmente
soube quem eu era.
Afirmo, senhoras e senhores, que aquele olhar, que aque-
las lágrimas, nada daquilo abalou minha crença, a crença de
que existimos não só pelo lucro, mas para muito além do
lucro. Existimos para corrigir eventuais falhas no processo de
seleção natural, para garantir que somente os mais fortes so-
brevivam, e para preservar um meio ambiente saudável, equi-
librado, evitando que as espécies involuídas se proliferem além
do suportável. E é graças à inabalável fé neste ideal que estou
aqui, hoje, recebendo este título que tanto me honra. Obri-
gado, obrigado… Muito obrigado.
Entretanto, se não foram capazes de abalar minhas con-
vicções, admito que aquele olhar e aquelas lágrimas levaram-
me ao seguinte questionamento técnico-filosófico: ou a cor-
rente científica minoritária tem razão e os animais, alguns
deles, possuem mesmo a capacidade de chorar, ou meu ir-
mão não só deixara de involuir como galgara um degrau na
escala de evolução. Fosse como fosse, ele ainda era o mais fraco.

77
Esse episódio, senhoras e senhores, veio provar, antes de
tudo para mim mesmo, que depois de tantos e tantos anos
eu pouco mudei; sou na essência o mesmo bicho, exceto pelo
fato de ocupar, agora, lugar de honra no topo da cadeia ali-
mentar. E muito me orgulho desta minha animalidade, se-
nhoras e senhores… obrigado, muito obrigado… e muito
me orgulho desta minha animalidade, senhoras e senhores,
porque é graças a ela, é unicamente graças a ela que estou
aqui, na noite de hoje, na Federação das Indústrias deste Es-
tado que me acolheu como a um filho, recebendo o título de
“Empresário da Década”!
Obrigado, muito obrigado.
E para encerrar, senhoras e senhores… muito obriga-
do… e para encerrar, gostaria de registrar que minha realiza-
ção jamais seria completa se hoje, aqui, neste jantar com o
qual singelamente retribuo tamanha honraria a mim conce-
dida; repito, minha realização jamais seria completa se eu não
pudesse contar com um convidado muito especial; uma tes-
temunha ocular das privações que superei com suor, com
lágrimas e, sobretudo, com sangue.
Uma salva de palmas, senhoras e senhores, para meu
irmão mais velho, aqui presente em carne e ossos! Obrigado,
muito obrigado. E bom apetite.

78
A TRISTE ORLA DO AQUERONTE

“Doutor”, Ele foi logo começando, e começou mal,


odeio que me chamem de Doutor, quer dizer, faço questão
absoluta que me chamem de Doutor, não encomendei à toa
ao decorador as luzes que incidem 24 horas por dia sobre
minha vasta coleção de diplomas, exijo ser chamado de Dou-
tor, mas odeio quando pobre me chama de Doutor, pobre só
chama rico de Doutor na hora de pedir um prato de comida,
um emprego ou outra caridade qualquer, odeio pobre.
Ele faz uma pausa depois do Doutor, não entra logo
com o pedido, aposto que é isso o que ele quer, alguma es-
mola, comida, caridade, mas Ele não pede logo, Ele hesita,
quer parecer que consome as últimas reservas de dignidade,
Ele negaceia, faz de tudo para convencer-me de que não é um
profissional do ramo, puro jogo de cena, claro, pobre não
pensa duas vezes antes de pedir alguma coisa, odeio a deter-
minação dos pobres.
Inferno, eu devia ter recuado quando abri a maldita porta,
Ele dentro deste maldito elevador, eu devia ter recuado, Ele
descendo não sei de onde, malvestido, quase um mendigo,
linguagem corporal de cachorro vira-lata, as orelhas caídas, o
rabo enfiado entre as pernas, conheço bem esses tipos, reti-
rantes, pedintes, aleijados, fodidos em geral, eu os vejo nas
ruas quando interrompo por um instante a leitura dos versos
que quase sei de cor, os versos que só leio no original, odeio
traduções, Nel mezzo del cammin di nostra vita…, merda,
ultrapassei há muito a metade da minha vida e não me acos-

79
tumo a essa visão do inferno, eles estão por toda parte, po-
bres, famintos, sifilíticos, imundos, da janela do automóvel
vejo tipos como este cada vez que ergo os olhos do livro, por
isso refugio-me nos versos, evito que meus olhos vagueiem
do livro para as ruas, evito que meus olhos, feito um par de
anjos caídos, despenquem na direção do inferno que esmurra
a janela do automóvel querendo entrar a todo custo, cavo no
livro e na blindagem do vidro minha trincheira contra esses
tipos, fedidos, fodidos, miseráveis apodrecendo a olhos vis-
tos, mas a trincheira é em vão, o inferno me persegue até no
elevador, absurdo um tipo como este chegar aqui em cima,
um insulto, Ele não podia ter botado os pés no elevador, Ele
não devia sequer pisar o tapete do hall, o porteiro incompe-
tente na certa dormia, inútil construir edifícios inteligentes
se os porteiros são burros, e ainda por cima nordestinos, odeio
porteiros nordestinos, odeio porteiros e nordestinos, eu de-
via ter esperado o próximo elevador, mas não posso esperar,
sou um homem ocupado, odeio gente desocupada.
“Doutor”, Ele recomeça, é um péssimo recomeço para
Ele, ponto para mim, Ele acaba de entregar o jogo, ao repetir
o vocativo Doutor Ele admitiu a possibilidade de que eu não
tenha escutado da primeira vez, abriu uma brecha, posso fin-
gir que não escutei mesmo, que não escuto, que sou surdo
feito uma porta, “Doutor”, minha vitória não dura um mi-
nuto e Ele já recomeça com a voz subserviente, odeio a sub-
serviência dos pobres, “Doutor”, Ele começa pela quarta vez,
odeio a persistência dos pobres, pobre devia demonstrar a
mesma persistência na hora de cursar uma faculdade nem
que fosse pública, arrumar uma boa colocação no mercado,
subir na vida, ficar rico, parar de encher o saco, se bem que
nada pior do que rico nascido pobre, odeio novo-rico.

80
Será que tomei o comprimido? não lembro, azar, pros-
sigo com a estratégia de me fingir de surdo, aproveito e faço
de conta que sou cego também, afinal encontro alguma uti-
lidade para meus óculos de lentes superescuras à base de ozô-
nio concentrado, com sorte Ele vai acreditar que por trás da
escuridão das lentes não há nada, apenas órbitas vazias, sou
um pobre cego, ou, vá lá, um cego rico, o que não invalida a
triste condição de pobre cego, cego e surdo-mudo também
por que não? vou à forra, odeio esses deficientes físicos que
emporcalham as vias públicas expondo suas deformidades
fedorentas pedindo “uma esmola pelo amor de Deus”, agora
o coitadinho sou eu, cego, surdo e mudo, clamo por pieda-
de, meu silêncio exige umaesmolinhapelamordedeus, odeio
esses idiotas perdulários que dão esmola para tudo quanto é
aleijado, não percebem que um aleijão bem-administrado é
uma bênção, rende mais que o salário-mínimo no final do
mês, por isso ninguém trabalha neste país.
A estratégia do cego-surdo-mudo começa a dar resulta-
do, Ele parece desconcertado, não esperava por esta, eu con-
tinuo impassível, Ele se contorce todo, nervoso, não sabe o
que fazer, evito o sorriso de escárnio, sorrir agora seria entre-
gar o jogo de volta para Ele, seria admitir que tenho alguma
interação com o mundo, não quero que Ele pense que eu,
pseudo-cego-surdo-mudo, tenho algum tipo de interação com
o mundo.
Ele ergue a sobrancelha direita, adivinho uma certa iro-
nia no gesto, no mínimo uma desconfiança, Ele coça a cabe-
ça, quase posso ver os piolhos saltitando, é claro que um tipo
desses tem piolho, carrapato, percevejo, o diabo-a-quatro,
aposto que tem, Ele me olha de cima embaixo, talvez seja
inveja do meu terno, talvez seja um ataque fulminante de

81
misericórdia, talvez Ele pense “Esse aí é mais fodido do que
eu, coitado, tem dinheiro mas é cego e surdo e mudo”, estú-
pido, só quem nunca teve dinheiro acredita que nem tudo
está à venda, ridículo, tudo está à venda, o dinheiro compra
tudo, é só abrir a carteira e perguntar “Ei, você aí, quanto
quer pelos dois olhos e um rim?” Ele vende na hora, e ainda
tenta me empurrar o coração da mãe, com garantia de pron-
ta-entrega.
O elevador não pára de descer, não chega nunca, calor
desgraçado, como se chama mesmo o aleijado que não sente
cheiro? eu dava tudo para não ter olfato, odeio o cheiro dessa
gente, odeio essa gente, se é que isso é gente.
O elevador pára, cheguei, até que enfim, que nada, puta-
merda, “Vigésimo-terceiro andar”, anuncia a voz de mulher
da gravação, inferno, ainda o 23º andar, a garagem subterrâ-
nea tão longe, o automóvel de vidro blindado e meu moto-
rista não-nordestino ainda a anos-luz de distância, odeio a
gravação que anuncia os andares, mesmo sendo um mal de
primeira-necessidade, não fosse este um elevador inteligente
teríamos aqui um ascensorista burro e, por conseguinte, mais
um nordestino a sorrir sem dentes “Bom-Dia-Doutor!” e a
passar lista de Natal no final do ano, odeio listas de Natal,
odeio a mulher da gravação que sussurra com voz macia os
números dos andares, são todas umas putas, as mulheres,
sobretudo quando chegam ondulando os quadris e falando
com voz macia, a voz é sempre a mesma, macia, sempre,
tudo o que você quer é levá-las para a cama e cair fora 20
minutos depois, mas ela te convence que o casamento talvez
não seja tão mau negócio, ela é nova, e bonita, e os sócios
morrem de inveja, e você odeia os sócios, e você está envelhe-
cendo, você então se casa e daí a um tempo elas vão embora

82
e levam dois automóveis uma fazenda e o chalé no litoral,
elas têm um caso com o advogado esperto, e com o sócio
que você mais odeia, e com o juiz corrupto que manda você
pagar a pensão milionária e vai ver ainda leva 15% de comis-
são, elas vão embora e deixam as crianças, odeio crianças,
odeio esses protótipos dos adultos que odiarei amanhã.
“Doutor”, Ele murmura bem perto do meu rosto, à
altura do ouvido direito, quer conferir se sou mesmo surdo,
prendo a respiração, odeio mau-hálito, “Doutor”, Ele insis-
te, agora no ouvido esquerdo, e eu nada, Ele tenta outro tes-
te, abana a mão direita gordurosa quase embaçando minhas
lentes de ozônio, e eu nada, Ele quer ter certeza que não vejo,
faço de conta que não vejo, Ele agora olha para minha pasta
de crocodilo, morre de inveja, de cobiça, na certa avalia as
probabilidades de êxito caso arranque a pasta de crocodilo da
minha mão e saia correndo na próxima parada do elevador,
instintivamente seguro a pasta de crocodilo com mais força,
crispo tanto a mão que Ele percebe, impossível não ter perce-
bido, acho que percebeu, não tenho certeza, odeio incertezas.
Inferno, esqueci de novo o remédio, será que tomei?
passou da hora? cego não usa relógio, escondo o meu por
baixo do punho da camisa suada, não sei mais quanto tempo
agüento este inferno, ainda mais sem remédio, ou será que
tomei? melhor tomar outro por garantia, não, melhor não
arriscar uma overdose, o mau cheiro, o olhar dEle posto so-
bre mim, calor, o ar condicionado acho que pifou, a garagem
subterrânea não chega nunca, ops, o elevador parou, não sei
por que, ninguém sobe, eu não desço, ele não desce, eu devia
aproveitar a chance, “Trigésimo-segundo andar”, anuncia a
voz macia, trigésimo-segundo?! mas estamos descendo e agora
há pouco a voz anunciou no tom suave e prostituto de sem-

83
pre “Vigésimo-terceiro andar”, não é possível, não vou entrar
em pânico, não devo entrar em pânico, devia ter tomado o
comprimido, agora sou eu quem se contorce todo, pânico,
taquicardia, agora é Ele quem fica impassível, forço a visão
por trás da escuridão dos óculos ozônicos, confiro o número
que pisca no painel, 13º andar, graças a Deus, o elevador está
no rumo certo, para baixo e sempre, a voz suave da puta
digital é que errou nas contas, pane, defeito, bug, incompe-
tência, odeio a indústria nacional, se bem que pelo nome o
fabricante é estrangeiro, inútil, basta instalar filial neste país e
os gringos só querem saber de pular carnaval com os pretos,
odeio o carnaval e os pretos.
Agora não resta dúvida, o ar condicionado pifou mes-
mo, inferno, só faltava essa, começo a derreter dentro do
maldito terno, odeio este calor tropical, esta umidade de ter-
ceiro mundo, ainda bem que só faltam uns dez andares até a
garagem subterrânea, pu-ta-que-pa-riu, ainda mais dez anda-
res neste inferno, não vou apertar botão nenhum mas se o
elevador parar de novo eu desembarco seja onde for, eu de-
sembarco, desisto da garagem subterrânea, do automóvel blin-
dado com ar condicionado, do motorista branco, desisto de
tudo e desembarco no meio do caminho e rezo para Ele não
me seguir, mas o elevador não pára de novo, inferno, o suor
me emplastra o cabelo, minha gordura se dissolve, a gosma
entra colarinho adentro, já me empapa as axilas, neutraliza o
desodorante full protection de última geração, quase posso
ver as manchas amarelas crescendo em cada sovaco, o deso-
dorante já era, odeio desodorantes de free shop, sinto meu
próprio fedor, eu não sabia que fedia tanto, prendo a respira-
ção enquanto Ele, ao contrário, continua respirando como se
nada acontecesse, Ele sorve o meu oxigênio e não está nem

84
aí, deve estar habituado a respirar ares que não lhe perten-
cem, deve estar habituado a piores odores, claro, Ele se diver-
te com a situação, há algo de demoníaco no sorriso dEle,
deve estar pensando “O bacana se fodeu, vai derreter dentro
do terno”, abro o paletó, afrouxo o nó da gravata, odeio
giorgiarmani, odeio hugoboss, odeio estilistas, costureiros e
veados em geral, por força de hábito quase arranco e mando
Ele segurar meu paletó, seria meu fim, sou cego e surdo além
de mudo, não tenho como saber que há outra pessoa comigo
no elevador, não tenho como dar ordens a essa pessoa que
não vejo nem ouço, se Ele descobre minha farsa Ele começa
tudo de novo e lá vem o maldito pedido de esmola ou do
que quer que seja, agora é questão de honra, não dou um
puto para este pedinte de merda, alguém tem que fazer algu-
ma coisa, alguém precisa tomar uma providência.
Só agora percebo, o termômetro, fervendo no painel
digital, os algarismos do termômetro subindo feito loucos
enquanto corre para baixo a numeração dos andares, quanto
mais o elevador se aproxima do subsolo mais quente fica este
elevador do inferno, 40 graus, 45 graus, mudei de idéia, não
quero mais chegar à garagem subterrânea, lá embaixo deve
estar um inferno, lá embaixo deve ser O inferno, o elevador
me leva direto ao inferno, o elevador despenca através da cra-
tera escavada nas profundezas pela queda de Lúcifer, boba-
gem, inferno não existe, o Diabo não existe, 50 graus, meu
Deus, o inferno existe, bobagem? Ele sorri, há algo de demo-
níaco no sorriso dEle, sinto até o cheiro do enxofre, cheiro
de inferno, não, é só o mau-hálito, quisera ter nascido aleija-
do do olfato, Ele boceja com indiferença, abre a boca para
dar vazão ao hálito podre, Ele fede, ou será este o meu pró-
prio fedor a embrulhar-me o estômago? o fedor e a tranqüi-

85
lidade dEle potencializam meu medo, maldito pânico, o com-
primido derrete no suor da minha mão, boto o comprimido
na boca, foda-se a overdose, engulo em seco, inútil, odeio a
indústria farmacêutica nacional, indústria farmacêutica de
índios, os bugres-farmacêuticos nativos recheiam suas cápsu-
las inúteis com inócuas raízes-de-não-sei-o-quê, placebo de
merda, não acredito na indústria farmacêutica nacional não
acredito em inferno não acredito em diabo não acredito em
pecado não acredito em danação eterna, meu coração dispa-
rado, pânico, emergência, o botão vermelho, o botão verme-
lho de emergência, como não pensei nisso antes? o botão
vermelho, freada brusca, solavanco, despenco no chão, Ele
impávido, arregaço minha coluna, Ele intacto, pelo menos
estou salvo, não, é tarde demais, a voz macia da puta da gra-
vação: “Quinto-subsolo”, impossível, não há 5º subsolo, o
edifício não se entranha tanto assim Terra adentro, o edifício
tem as raízes fincadas na garagem subterrânea onde o moto-
rista blindado com ar condicionado me espera no automóvel
que não veio para cá fugindo da seca do Nordeste, este edifí-
cio não tem 5º subsolo, eu vi a planta do edifício, eu cons-
truí o edifício, então... então... o inferno existe, então este é
o inferno, Ele é meu guia, pior, talvez Ele seja o Diabo em
pessoa, suor frio, taquicardia, pânico, tomar mais um com-
primido, tomei o comprimido? doença dos infernos, com-
primido inútil, placebo de merda, a porta do elevador range,
eu não quero que ela se abra mas ela se abre, não quero sair,
tenho medo do que vai entrar, mas o que entra é só a clarida-
de do dia, não é o 5º subsolo, não é subsolo nenhum, não é
sequer o paraíso seguro da garagem subterrânea, é o térreo, é
o térreo, a voz suave e incompetente da gravação errou de
novo, graças a Deus, amo a indústria nacional, “Doutor”, Ele

86
recomeça, mas não espera que eu responda visto que além de
cego sou surdo e mudo, não tenho como ouvir, não tenho
como responder, Ele apenas segura meu braço de leve mas
com firmeza e me leva para fora do elevador, “Doutor, por
aqui”, Ele puxa conversa mesmo sabendo que não escuto,
Ele é meu guia, Ele me leva pelo tapete do hall, minhas per-
nas dormentes, não sinto meus passos, não vejo nenhum
porteiro nordestino, não vejo ninguém, deve ser a greve geral
dos porteiros nordestinos, odeio greves, sindicatos e sindica-
listas, atravessamos o tapete do hall do edifício inteligente e
deserto, eu sou o cego, Ele é meu guia, nossos pesos, ou o
meu peso sozinho porque Ele é magro, quase não pesa, deve
comer pouco e malhar cinco horas por dia, o peso solitário
dos meus sapatos leves de cromo alemão aciona o mecanis-
mo da porta eletrônica e a porta eletrônica corre para os lados
e me vejo do lado de fora do edifício e do lado de fora do
edifício eu vejo: O Inferno!
Ele me empurra para fora do edifício, Ele me empurra
para dentro do inferno, na saída do edifício na entrada do
inferno leio o aviso inexistente e óbvio, Lasciate ogne speranza,
voi ch´intrate, porra nenhuma, não vou abandonar a espe-
rança, estão todos do lado de fora do edifício, saio do edifí-
cio, entro no inferno, perco a esperança, não, não é o infer-
no, não é o centro da Terra, é só a cidade, é só a cidade, o
centro da cidade, o asfalto pegando fogo, os pobres, os nor-
destinos, as putas, os pretos, alguns até de terno, essa gente
toda vindo em minha direção, pedintes, leprosos, sifilíticos
apodrecidos, essa gente toda forma um rio, o rio do inferno
vem em minha direção, a água do rio do inferno fede e bor-
bulha e me engolfa e tenta me arrastar para o fundo, eu pre-
ciso me segurar em alguma coisa, não há nada em que eu

87
possa me segurar, a não ser Ele, mas Ele não me serve de
apoio, Ele ao contrário me empurra para dentro do rio do
inferno, “Doutor, eu levo o senhor”, odeio a solidariedade
dos pobres, os nordestinos, os veados, as putas, os pretos, as
domésticas, os desocupados, os aleijados, os desvalidos, os
foliões e os fodidos, essa gente que tromba em mim e me
empurra de um lado para o outro sem pedir desculpas, tento
voltar à tona, Ele gentilmente me puxa para o fundo, o oxi-
gênio não me chega aos pulmões, pânico, asfixia, maldita
poluição urbana, “Doutor, eu levo o senhor”, Ele recomeça,
quer parecer bonzinho, odeio a filantropia fingida dos po-
bres, Ele tenta parecer capaz de gestos de grandeza para com
pobres aleijados ricos, mas Ele não me convence, Ele me
empurra correnteza abaixo, Ele me empurra com ódio, Ele
se insurge contra mim, odeio a insurreição dos pobres, preci-
so voltar à tona, preciso chegar a algum lugar, não quero che-
gar a lugar algum, tenho medo do que me espera quando
alcançar a orla do rio do inferno, la trista riviera d’Acheronte,
na orla do rio Ele há de enfim revelar sua identidade demoní-
aca, mas eu já sei quem Ele é, Lucifero, Ele em pessoa, para o
nosso acerto de contas, mas não devo nada a ninguém a não
ser um ou outro imposto, odeio impostos, mas nunca caí na
malha-fina, tenho os melhores contadores, o diabo não exis-
te, eu não devo mas temo, tenho medo do que me espera
quando alcançar a orla do rio, mas não vejo a orla do rio, não
vejo nada, escuridão, cegueira, procuro em vão por Ele, soli-
dão, odeio solidões, procuro por Ele mas Ele já não existe,
não existe nada a não ser a escuridão, estou cego, quero cha-
mar por Ele, tento gritar que estou cego, inútil, minha voz
em agonia bate contra as paredes da garganta, inútil, a voz
não sai, estou mudo, e se eu gritasse ninguém ouviria, eu

88
ouço, apenas ouço, o coro infernal de vozes gritos buzinas
sirenes os automóveis freando acelerando freando a voz dEle
mil vezes repetindo “Doutor” “Doutor” “Doutor”, a voz dEle
cada vez mais longe mais longe mais longe...
Estou só, a solidão é pior que a presença dEle, mil vezes
pior, por que Ele não aparece? rezo, invoco, conjuro, nada,
Ele não volta, já não ouço nada, silêncio, estou surdo, os
sons tornaram-se líquidos, a sede do rio me engole, o rio do
inferno engasga de mim, não ouço nem vejo mais nada, es-
tou cego, mudo, surdo, não vejo nem ouço mais nada, só o
silêncio martelando meus ouvidos, não, há alguma coisa além
do silêncio, no meio do silêncio percebo o som, o som que
vem das profundezas do fogo e congela minha espinha, o
som é feito um rufar de asas, de asas enormes e sem plumas,
feito asas de morcego, Lucifero, o anjo caído, Ele e suas asas
sem plumas, asas de morcego, não consigo vê-Lo, só pode
ser Ele, Lucifero, Ele com chifre e rabo e tridente, não vejo
nada, não posso vê-Lo, mas só pode ser Ele, quero fechar os
ouvidos, mas não posso, o rufar das asas cada vez mais forte,
da escuridão faz-se a luz, a luz me cega, quero fechar os olhos,
mas não posso, a claridade me obriga a ver o que não quero,
e eu vejo, eu vejo a orla do rio, estou do outro lado do rio, e
não há nada, nada, nada, não, agora vejo, sim, uma casa, uma
casa com letreiro luminoso, a casa é uma espécie de estabele-
cimento comercial, com letras dançantes na fachada, e as le-
tras dançarinas de neon e fogo formam o nome do estabele-
cimento, e o nome do estabelecimento é A Casa dos Espe-
lhos, agora vejo, sim, agora vejo, na fachada da casa: a criatu-
ra medonha, de pé, diante de mim, é Ele? Lucifero? mas a
criatura medonha não tem asas nem chifre nem rabo nem
tridente e essas ausências me enchem de pavor, a criatura

89
medonha não tem asas nem chifre nem rabo nem tridente, a
criatura medonha tem apenas paletó e gravata e um imenso
nada à sua volta, a criatura medonha segura uma pasta de
crocodilo, e tem a mão crispada como se dentro da pasta
guardasse a alma em danação, a criatura medonha de repente
abre a boca, uma boca assustadora e assustada, e da boca da
criatura sai um grito mudo que não posso ouvir mas que leio
no movimento trêmulo dos meus lábios, e o que o grito
grita em silêncio é :
Socorro
– mas não há ninguém para ouvir.

90
NADA NUNCA NÃO

Eu não devia ter vindo. De jeito nenhum. Se tivesse


sabido, antes, de véspera que fosse, eu passava direto, rumava
estrada afora, seguia era em frente. Eu nunca que não vinha.
A gente devia ter o direito de saber o que vai ser da vida da
gente amanhã, depois-de-amanhãs, os por-vir... Não digo nem
conhecer o futuro todo, completo, exato, mas saber o que
vai acontecer no prazo de um ano, ou de um mês. Até um
dia antes, a véspera, já tava bom. Custava? A modo da gente
escolher. Aí sim, eu concordo, a Polícia podia prender e ba-
ter, Deus podia cobrar, podia julgar e condenar. Mas se a
gente não sabe, e em não-saber não tem como não deixar
não-acontecer, que direito Deus, e a Polícia, que direito Eles
têm de cobrar da gente depois? Pois eu vim. E agora nunca
mais que não saio.
Eu vim foi sem saber de nada, sendo que quando che-
guei ainda não existia o que era pra eu ter antes sabido, por-
que o acontecido só foi acontecer depois. E mesmo o come-
ço de tudo só foi começar depois que eu tinha já chegado: o
princípio da desgraça; a indecência. Eu, por minha pessoa,
própria, não julgo. A cidade é que logo pegou a resmungar,
em tudo quanto era canto: que era uma indecência. E com
hora marcada. Isso eu afirmo e confirmo. Nunca vi gente tão
pontual, ainda mais formando par de casal. Por comum, o
homem chega na hora, a mulher atrasa, mas existe o pelo-
contrário, também. O fato é que tem sempre um que demo-
ra mais que o outro. Mas aqueles dois, aquele casal… A gen-

91
te até podia acertar o relógio pelos dois. A gente que eu falo
é esse povo aí que anda de relógio no braço, porque eu, mes-
mo, não possuo; tive, mas larguei faz tempo, por falta de
precisão. Relógio meu é hora que barriga ronca.
Mas aqueles dois, o casal, tenho pra mim que eles carre-
gavam era um relógio no lugar do coração, o coração deles
batia era fazendo tic-tac. Nunca vi par tão pontual, porque
quando eles apontavam, cada um de um lado da praça, o
relógio da prefeitura, lá longe, dava uma resfolegada, os pon-
teiros tremiam, e vinham as badaladas, a meia-dúzia: seis da
tarde. Hora dos anjos e da ave-maria. Eu acho que isso até
piorava as coisas, o encontro deles se dando em hora tão ca-
tólica, e bem defronte da igreja-matriz.
Eu, próprio, não dou razão, completa, à cidade. Pra
mim, indecência, indecência mesmo, é o que a gente vê em
qualquer hora em qualquer televisão. Mas também não pos-
so tirar, de todo, a razão da cidade, que fez abaixo-assinado e
tudo. Porque aquela, deles, do casal, era uma indecência dife-
rente: qualquer um que passasse pela praça depois das seis da
tarde podia sentir, o cheiro, da indecência deles.
Quem tomou conhecimento do acontecido só pelo jor-
nal nunca não vai saber do cheiro; e em não sabendo do chei-
ro, nada de nada não sabe. Não sou de ler jornal, minha lei-
tura é fraca, mesmo que tivesse dinheiro, pudesse comprar,
não lia, foi por isso que eu não li, do acontecido, no jornal.
Todo mundo leu, só eu é que não. Mas ninguém não sabe
do sucedido mais do que eu sei. Porque eu tava lá, eu tava
sempre lá, de olhos bem abertos, até quando eu dormir fin-
gia. Eu podia até fechar os olhos, e tinha vez que eu mesmo
fechava, e mesmo de olho fechado eu sentia: o gosto do chei-
ro dela.

92
Começou uns dez dias depois que eu cheguei. Nesse
meio tempo, antes de se começar o fato, eu bem tive tempo
de ir embora, mas fiquei. Ignoro a causa. Eu não sabia do
futuro, ninguém sabe, nem povo cigano, legítimo, com dente
de ouro, tacho de cobre e leitura de mão. Ninguém sabe. Se
eu tivesse sabido, antes, eu nem não tinha chegado, nem não
entrava na cidade, passava era direto, pegava o rumo da ou-
tra, não tem diferença, toda cidade é sempre a mesma cidade,
igual, toda cidade tem gente, igual. E gente… bom, sabe
como gente é. Não gosto de gente, e gente-mulher é que eu
menos aprecio. Gosto é da estrada. A única mulher que não
trai o homem é a Dona Estrada – e mesmo assim é preciso dela
a gente muito gostar, e tratar com carinho de namorado novo.
Mas eu dizia que era todo dia, a indecência deles. Todo
santo dia, e até em dia santo, acho que isso revoltou ainda
mais a cidade, que foi reclamar pro padre. Ah, o padre…
Tenho pra mim que a causa maior de tudo, da desgraça, foi
um diabo, um capeta dum coisa-ruim chamado inveja.
Um dia eu lá ia estrada afora e passou um caminhão, o
caminhão rodava até meio troncho, de banda, envergado por
causa da pesada carga, não sei quem é que tem dinheiro pra
possuir tantas diversas coisas, tanta coisa que até entortava o
caminhão, o caminhão veio lerdo e passou devagar, mais de-
vagar que minha leitura, e foi só por isso que eu dei conta de
ler, escrito no pára-choque: “A inveja é uma merda”. Na hora
eu nem não dei muita atenção, porque ninguém nunca não
teve motivo pra pegar inveja de mim, e eu, mesmo em não
possuindo nada de próprio meu, nunca fui de invejar o alheio.
Mas depois fiquei pensando pensando pensando que quem
escreveu aquilo, no pára-choque, tinha a toda razão: a inveja
é uma merda. Antes eu não sabia, agora sei, porque vi de

93
perto a besta-fera, olhei dentro do olho dela: eu conheci a
inveja. Eu peguei inveja do moço, o das seis da tarde, com a
moça. Eu quis que ele morresse. Isso digo e não nego, quem
quiser escrever que escreva. Acho que até já escreveram já.
A moça chegava do lado de lá. O moço vinha daquela
outra banda. E os dois se encontravam bem às seis da tarde,
bem no meio da praça, ali, onde tem a televisão agora, e eles
se encostavam um no outro, eles se encostavam que nem os
ponteiros dos relógios se encostam no meio-dia e na meia-
noite, eles davam o primeiro beijo, e pronto. Daí, se assenta-
vam no banco de cimento que existia ali, onde hoje é a tele-
visão, e não paravam mais. Tinham hora pra chegar, mas pra
ir embora... Quem disse? Ah, dava gosto de ver, mas dava
inveja também, dava agonia, aquela beijação toda, parecia
que nem nada não tinham pra dizer um pro outro, ou que
tudo tinham, e diziam era em forma de beijo. Uma ocasião,
por falta do de-fazer, comecei a contar, pra ver quantos eram,
os beijos, mas desisti antes do meio do caminho, porque era
beijo grande, beijo-beijim, beijo de cinema, beijo de novela,
beijo prolongado e delongado, era tanto beijo que até con-
fundia a gente, ainda mais gente que nem eu, sem costume
de operação de conta, aquilo até embaralhava as idéias, por-
que às vezes pareciam dois beijos e era um só, e quando pare-
cia um de verdade eram dois. Os abraços é que eu sabia, exa-
to: um. Nunca precisei fazer conta: o abraço era um só. Al-
gum cidadão, desse que só conheceu o acontecido pelo jor-
nal, pode até menoscabar, falar que um abraço só é pouco.
Ah, mas o negócio é que eles, o casal, eles se encontravam,
eles se encostavam, e se abraçavam, e não se largavam mais
dos braços um do outro. Era o mesmo abraço, o mesmo
abraço, até a hora de ir embora, nas altas horas. Eu achava

94
que aquilo era amor demais, o povo dizia que era indecência.
Podia ser que fosse as duas coisas, junto: indecências do amor
demais. Disso falo pelo vido, não pelo vivido: experiência
prática, real, não tenho. Nunca não ninguém gostou de mim
daquele jeito. Eu, sim. Gostei, mas gostei sozinho. E não
tem dor mais dolorida do que gostar sem ser gostado. Eu
jurei não gostar nunca mais. Tomei meu rumo e meu pru-
mo. Vim. O que falo agora agorinha, nesta hora presente, de
gostar sem ser gostado, é de muitos anos pra trás. Coisas
esquecíveis, mas que eu, próprio, por castigo, não esqueço.
Por mais que eu ando, e eu ando, e ando, a memória das
coisas vem atrás, feito fosse meu triste rastro, a minha som-
bra preta.
Mas eu não quero não falar do passado antigo, eu quero
é falar do hoje, do ontem, do anteontem. Do agora, desse
agora que já passou também, mas passou menos, porque foi
quase que outro dia. Da indecência. Pois era uma indecência
assim… não sei se me explico, me complico com as tantas
palavras, mas digo que a indecência deles, do casal, era uma
indecência até comportada, sabe? Porque a gente não via nada
dos dois, nem um tiquitinho que fosse do que não se deve de
ver. Olha, o que eu quero dizer e complico e não sei se expli-
co é que o casal não mostrava nada, essa televisão que bota-
ram aí no lugar do banco de cimento onde eles se abraçavam
e se beijavam, ela mostra muito mais, a televisão: sem-
vergonhices. Mostra muito mais essa televisão aí que bota-
ram pra distrair o povo, fortes sem-vergonhismos, até com
dia claro e criança de-menor assistindo. O que eu digo e afir-
mo e confirmo é que eles, o casal, eles nunca ficaram pela-
dos, nem de tudo nem de pouco, arreganhando as partes.
Nunca teve nada disso, o moço nunca botou nada de seu pra

95
fora, e a moça vinha sempre de calça muito comprida, nem
era dessas calças apertadas que qualquer mocinha hoje em dia
usa, até as filhas das beatas, dessas beatas que reclamaram do
casal, pois elas também usam, as mocinhas beatinhas, essas
calças indecentes que racham o negócio delas bem no meio,
metade pra banda de cá, metade pra banda de lá. Qualquer
mocinha usa, até as que se diz “as de-família”. Mas a moça,
não; ela usava era uma calça comprida comum, comportada,
ou então uns vestidinhos estampados de flor que pegavam
na direção do joelho, eu nunca vi mais que um pedacinho de
nada das coxas dela. Não vou negar que eram demais boni-
tas, as coxas dela, mas a roupa era comportada, se alguém
falasse que a moça tinha acabado de chegar da igreja eu juro
que eu acreditava. E do mesmo jeito que ela chegava ela ia
embora, do mesmo jeito não digo, por conta do amarrotado
da roupa, por causa daquele abraço que eu já expliquei, abra-
ço amarrotador, mas fora isso ela ia embora com todos os
botões abotoados, o fêcheclér fêche-fechado, tudo no lugar,
direitinho. O rapaz respeitava ela, sabe? Quer dizer, respeita-
va mas não respeitava, porque eu se tivesse uma moça bonita
daquela, se gostasse dela, e se ela gostasse de mim, eu não de
jeito nenhum deixava o cheiro dela se espalhar assim, pela
praça, pela cidade. Mas indecência graúda, sem-vergonhona,
nunca teve não, nunca vi. Quem falou que tinha mentiu. Se
o jornal falou, mentiu também. Mentiram pro jornal, por
despeito ou por maldade. As pessoas maldam. Invejas.
Não sou de ler jornal, mesmo que pudesse comprar eu
não lia, já disse, porque minha leitura é pouca, não vou gas-
tar ela toda em jornal. Gasto minha pouca leitura é com li-
vro, que é mais negócio. Livro nunca comprei, nunca pude,
os poucos, que li, foi porque achei, no lixo. Aí eu paro e

96
penso: quem é o doido que joga livro no lixo? Ah, é gente
muito da ignorante. Ou por demais caridosa, sendo a bon-
dade em pessoa mesmo em não querendo ser, porque se nin-
guém jogasse livro no lixo quando é que algum que nem eu
ia dar conta de ler livro nesta vida? O que a gente aprende em
folha de livro… Metade do nada que sei aprendi na estrada;
a outra metade, quase do mesmo tamanho, foi livro que me
ensinou. Eu cato livro no lixo e vou lendo… vou lendo…
vou lendo… devagar… devagar… devagar… porque minha
leitura é demais devagarosa, e quando acabo eu jogo o livro
no lixo, sem dó, jogo noutro lixo, noutra cidade, proutro
algum feito eu poder ler também.
Concordo que deve de ser importante ler jornal, se não
fosse nem não existia tanto jornal nem não tanta gente lendo
tanta notícia em letra tão miúda. Mas eu queria ver a história
deles, do casal, da indecência deles, eu queria ver essa história
deles escrita era em livro. Queria que alguém contasse a his-
tória deles em livro, e que alguém comprasse o livro, e que
por ignorância ou caridade alguém jogasse o livro no lixo.
Ah, eu queria…
Mas sabe o que é mais engraçado, e mais triste tam-
bém? É que na época que eles começaram a beijação e a
abraçação no banco da praça a praça não tinha nada, mesmo
não quase existindo. Isso era tudo um ermo. Uma pracinha
só com o banco de cimento, o cemitério e mais a cadeia. E
tinha a igreja, igreja nunca que não falta, mas mesmo a igreja
só dando movimento domingo de manhã por ocasião da
santa missa, e nalgumas noites no meio da semana, mas mes-
mo nessas noites do meio da semana não vinha quase nin-
guém, só alguma beata mais beata. A praça era um paradeiro.
Mas isso era antes. Foi só o casal pegar a se beijar, e se espalhar

97
a notícia de que tinha casal praticando toda sorte de indecên-
cia no banco da praça pra praça virar uma romaria. Ah, mas
pegou um movimento! De uma hora pra outra, era o lugar
mais movimentado da cidade! E antes nem não morava nin-
guém, nem quase não vinha ninguém, fora o povo todo nos
domingos de manhãzinha e as poucas beatas nas noites do
meio da semana. Mas depois… Ah, mas infestou de gente!
Veio pipoqueiro, veio até vendedor de maçã do amor, mas
maçã o padre proibiu, quer dizer, diz ele que não proibiu
não, que o fruto era que era proibido por natureza, segundo
a Bíblia. O padre…
O que eu faço questão de dizer, e digo, e repito outra
vez, e as outras todas vezes, é: quem tomou conhecimento
do acontecido só pelo jornal não sabe do cheiro dela, e em
não sabendo do cheiro não sabe é de nada nada não. Acho
que ele tinha boa intenção, o rapaz que escreveu a notícia no
jornal, conversou comigo, me chamou de “senhor” e tudo,
pagou café, pão com manteiga. Mas ele não podia, quem é
que podia? explicar, em palavras, o cheiro dela. Pois até eu,
que respirava todos os dias o cheiro dela, até eu explicar não
posso. Por causa dela não fui embora; por causa dela, e do
cheiro dela, nunca mais que me vou. Nunca mais não posso.
Se eu soubesse, se eu tivesse sabido, de véspera que fos-
se, eu tinha ido embora, eu devia era de ter ido embora mui-
to antes, não sou de parar plantado tanto tempo num mes-
mo lugar, criar raiz feito pé-de-árvore, porque o corpo dá de
doer, os pés se incham de tanto paradeiro, eu fico todo
desavontade, pego entojo do lugar. Não gosto de cidade,
aprecio é a estrada. Gosto de andar; não sei se gosto, sei que
ando – andava – e sempre no rumo do em frente, e nunca
não voltando pra trás. Sigo – seguia – em frente pra não ter

98
que voltar nunca mais. Eu só queria que o mundo não fosse
redondo, porque em sendo redondo, e deve de ser porque
até a igreja nem não diz mais que não é, em sendo redondo o
mundo eu corro grave perigo de, um dia, qualquer dia, vol-
tar pra donde saí, e eu não quero, não posso, nunca mais.
Quanto mais eu ando pra frente, mais o passado fica pra trás.
É capaz que se um dia eu andar de novo, se me deixarem
andar, eu andando assim pra frente e em não sendo o mundo
redondo eu acabo chegando a algum lugar, a lugar algum,
mas o diabo é que o passado vem atrás, rastejando feito co-
bra venenosa. Ignoro se chego, um dia, a algum lugar. O que
sei, e digo, é: cada um com suas pernas, e suas distâncias.
Se fiquei e não fui embora foi por causa dela, não nego,
nunca neguei, negar pra quê, depois de tudo? Fiquei porque
ninguém nunca não me deu o direito de saber o que ia acon-
tecer, no antes do acontecer. Nem Deus, nem a polícia. Mas
se eu pudesse saber, do acontecido, antes de acontecer, será
que não tinha era ficado do mesmo jeito? Porque ela era boni-
ta. Era danada de bonita. Nunca que eu ia ter uma moça bonita
daquela nos meus feios braços, como tive naquela noite.
A boca, os dentes… Eu não sabia que podia existir tan-
ta brancura em dente de gente. Os cabelos sempre tão mo-
lhados, feito fosse sempre chuva no lugar donde ela vinha…
E eu nem não sabendo mais o quê que era mulher, porque só
tinha tido uma, aquela, lá de atrás, em tempos antigos, a cuja
lembrança feito cão raivoso morde minhas velhas alpercatas,
e mesmo aquela mulher, a primeira, aquela lá de atrás, eu
nunca não devia nem de ter tido, mas eu era moço, e moço
apessoado. Eu só tive aquela, na origem da minha desgraça,
depois nunca mais não quis. Peguei a estrada, peguei desgos-
to, ódio não digo, mas raiva, de mulheres. Raivei por anos e

99
anos, e anos. Até que botei os olhos nessa moça de agora, a
da praça, a dos beijos, e gostei, os olhos dela olhos de gato,
feito luzinha luzindo na escuridão, quantas vezes eu tive von-
tade de ir lá de noite e assoprar os olhos dela, pra apagar
aquela chama e eu poder me dormir em paz.
Mas ela, própria, mesma, nunca que me via... Pra ela eu
sendo um vazio buraco, que ela olhava pra mim, ou pronde
eu devia de ali estar, mas a mim ela não via, via era a paisagem do
outro lado de mim, feito eu nem existir existisse. Eu existia?
E o cheiro… Pergunta pra qualquer um, que sentiu, o
cheiro dela, pede que explique, em palavras, podendo ser
qualquer palavra, existente ou inventada, e espere resposta.
Não tem resposta. Não tem palavra. Primeiro, porque não
era um só, eram muitos, os cheiros da moça. O cheiro era
um quando ela chegava, e aí eu sabia que era ela chegando, eu
sabia que era as seis da tarde antes do relógio da prefeitura, o
relógio ainda não sabia da hora certa, e eu já sabendo, porque
sentia o cheiro dela chegando. Mas ainda não era esse, o tal
cheiro, de que falo. Porque o cheiro dela de primeiro era um,
depois pegava a crescer, aumentava de tamanho, virava outro
cheiro, quanto mais ela beijava maior era o cheiro. Não tinha
flor de jardim que competisse. Até as flores tinham inveja.
Até o padre olhava com malícia. Ah, o padre…
As quantas vezes, depois da missa acabada, eu sentia o
bafo de vinho de missa no olhar do padre, eu farejava o vi-
nho e o pecado no olho do padre. O padre… Uma vez ele
expulsou a moça da missa. Fez ela cuspir fora a santa hóstia
sagrada, que já tava até mastigada em dentro da boca, o sa-
cristão, distraído, é que tinha dado a comunhão, o padre fez
a moça cuspir, e acho que até bateu no sacristão por ter dado
a hóstia pra moça, não sei se bateu mesmo, mas eu vi o sa-

100
cristão com a cara vermelha e chorando lágrima depois da
missa daquele dia, o sacristão gostava do padre, eu sei porque
ele olhava o padre com carinho se filho fosse, e daquele dia
em diante o sacristão pegou ódio da moça, eu sei, eu li o
escrito em todas as letras nos olhos dele. O povo apoiou o
padre, achou que a moça tinha que cuspir mesmo a hóstia,
porque não estava certo o corpo do Cristo se derretendo em
boca que tanto beijar beijava. Isso eu vi com os próprios olhos
meus, nunca entrei na igreja, aquilo não é pra mim, mas eu
ficava na porta, e via tudo, e da porta eu rezava do meu jeito.
Acho que meu jeito de rezar não era forte, porque Deus nun-
ca não veio quando eu mais precisei, eu precisei as muitas e as
tantas vezes, precisei demais naquele dia, lá atrás, e segui pre-
cisado, precisando, preciso, e Ele nunca não vindo. E olha
que eu já vivi tantos anos... – se Deus nunca não veio, não vai
Ele agora querer dizer que foi por falta de tempo.
Ah, o padre… Eu vi ele aquela noite, já a madrugada
sendo, com a marreta na mão, fedendo a vinho de missa. Ele
pensa que ninguém viu, mas eu vi, ele mais a marreta, naque-
la noite. Deu até medo, eu encolhi o corpo em cima do pa-
pelão e fiz de conta que dormia. Cidade de gente doida, nem
o padre regula direito, de madrugada, marreta na mão… Eu
queria mesmo era ir embora, era nem não ter entrado nessa
cidade donde eu nunca que mais não saio. O que me sobra é
a lembrança dela, nua, nuinha, nos meus braços, ela, a moça
mais linda, e eu feio homem, eu velho, eu todo sujo de sujei-
ra antiga, encroada, imundices trazidas de outras cidades, e
ela nua, nos meus braços, e o cheiro dela. Ah, até o sangue
dela cheirava bom. O cheiro vermelho dela escorrendo pelo
chão afora.
Era ela entrar na igreja e todos os fiéis olhavam pra trás,
o padre mandava badalar o sino pra cobrir os suspiros dos

101
fiéis, e danava o sacristão a correr de lá pra cá balangando
aquele negócio de soltar fumaça perfumada, a mando do
padre, pra ver se o cheiro dela não atrapalhava as rezas. O
moço eu nunca não vi na igreja; a moça é que não perdia um
domingo de missa. Eu, próprio, não entrava na igreja, já dis-
se, não tinha nada pra fazer do lado de dentro, sentava era na
escada, o povo saía da missa desejoso de fazer o bem aos
olhos de Deus e dava comigo, sentado na escada. Eu arrega-
çava mais a calça e deixava aparecer a ferida e as moscas, eu
nem não deixava a ferida criar casca, pra ela ficar mais feia, eu
nem nada não falava, só estendia a mão, nem não precisava
abrir a boca pra chorar mágoas, minha triste história quem
conta é as linhas da minha cara, minha velha cara, eu que já
fui bonito moço, bonito de ser gostado, mas eu queria era
que aquela gostasse, aquela lá de trás, a primeira, a do come-
ço da minha má estrada. Mas ela fez de conta, só. Fingideza
de mulher. Por isso aprecio a estrada, porque ela se deita na
minha frente e eu sei aonde ela vai me levar. Mesmo com as
tantas curvas, ela vai me levar sempre no exato rumo. Estrada
é palavra-fêmea, mas corre na contramão da mulher – estra-
da não oferece enganos, traições.
Eu estendia a mão, e em nela o povo da missa pingava
umas moedinhas de nada, mas em se juntando uma aqui,
outra acolá, e em não cachaça muita se tomando, dava pro
de-comer. É assim em toda cidade, o que seria dumas almas
feito eu não existisse igreja no mundo…Eu não entrava na
igreja, mas sabia que a moça tava lá dentro mesmo não ven-
do ela, eu sabia por causa do cheiro e do sino badalando
desgovernado a modo de disfarçar os suspiros dos fiéis.
A cidade toda devia de saber que a desgraça estava perto
de se acontecer. Menos eu. A desgraça cada vez mais perto,

102
desde que o banco de cimento da praça amanheceu virado
farelo. Alguém foi lá de noite e esfarinhou o banco inteirinho,
e ninguém viu, quer dizer, eu vi, eu morava na praça, eu via
tudo, deitado no papelão, eu até encolhi o corpo no papelão,
de medo, mas não adianta contar. Ninguém viu, mas todo
mundo sabe, mas ninguém nada não fala. O padre… Falei
que gosto de igreja? Gosto, mas de padre não gosto. Fosse
por padres eu tinha já morrido em cada outra cidade, de fome,
de frio, em tantas calçadas de igreja, nas igrejas onde diz que
moram os santos. Moram? Moram nada. Em igreja mora é
o padre; dizem que a casa é de Deus, mas quem tem a chave
é o padre. Deus, se vier, vem é vez-em-quando, de visita, e
com autorização do padre.
Ah, mas se o padre achava que ia acabar com a indecên-
cia arrebentando a poder de marretadas o banco de cimento
onde eles, o casal, onde eles praticavam a indecência… Pois
fez foi piorar, agora que não tinha mais banco a indecência
era feita de em pé, o corpo de um grudado no corpo do
outro, nem rajada de vento magro não cabendo entre o moço
e a moça. A esfregação. O cheiro dela até encorpou. Ganhou
alento, pegou perfumes de outras flores… Indecência.
Daí o ódio do padre. Padre pode ter ódio? Deus permi-
te, ou é feio pecado? Padre pode qualquer coisa, até olhar pra
moça com aqueles olhos de vinho e pecado e o corpo e o
sangue do Cristo ainda quente na boca? Pode, só em sendo
padre? Tenho pra mim que não, padre pode menos que a
gente, paisano; ainda mais padre que nem aquele, um sério pa-
dre de batina preta varrendo o chão, que nem não se usa mais.
Eu devia ter desconfiado quando o padre mandou o
sacristão me chamar, com recado que era pra eu dormir den-
tro da igreja, por causa do frio. Desconfiei; negaceei; mas

103
enjeitar não pude, porque eu nem não lembrava mais o que
era dormir debaixo de teto fabricado por mão de homem.
Aceitei. Apreciei. Mas custei a cair no sono, e acho que não
dormi foi nada, porque daí a pouco acordei com o feio grito.
Abri o olho e dei de cara com o santo de boca aberta, o santo
iluminado pelas velas de pagar promessa, o santo com a boca
arreganhada, pensei que o grito era do santo, fiz o nome-do-
pai, peguei a rezar, mas aí completei o acordar e vi que o grito
não podia ser do santo, porque o santo era de barro, o grito
tinha vindo era de dentro da boca da noite, do lado de fora
da igreja. Fechei os olhos, abri os ouvidos: tudo quieto. Mas
no meio do silêncio, uns suspiros. Esperei esperei esperei,
mas ninguém não deu sinal de vida, nem o padre, nem o
sacristão. Será que ninguém não ouviu o grito? Sonho não
foi, porque agora tinha os suspiros, os gemidos, uns gemidos
fracos, vindo do lado de fora, eu já tinha acordado, mas conti-
nuava a ouvir a gemeção que vinha de lá da praça. Sonho não
era, e nem gemido de amor, sei que não era amor porque
conheci os gemidos deles, os do amor do moço e da moça. Dos
meus, próprios, antigos, nem não me alembro. Faz tempo.
E a gemeção continuando, baixinha. Eu não devia de
me levantar da quentinha igreja, mas eu não dava mais conta
de pregar o olho; eu não devia de abrir a porta da igreja, mas
os gemidos me chamavam do lado de fora. Ah, o quê que eu
tinha que fazer do lado de fora?
Até hoje pergunto, e ninguém não me responde, nem
Polícia nem ninguém não me ouve: será que não foi coisa
encomendada? Acho que a cidade inteira sabia que a desgraça
se ia acontecer, porque ninguém não nem saiu de casa naque-
la noite, nem a mais beata das beatas, um pio de coruja não
se ouviu, nem as cigarras, cachorro nenhum latiu pra lua, lua

104
não teve, nem ventar ventava, o pipoqueiro não fez nem som-
bra, e todas as casas de luz apagada, como se sabendo da des-
graça antes da desgraça se acontecer. E só eu não sabendo. Só
eu. E foi naquele silêncio e naquela escuridão que se deu a
desgraça…
Do moço eu nem de alembrar não gosto, tinha pedaço
de miolo vazando do afundado da testa dele, coisa feia de se
ver. A moça não, a moça continuava bonita, nua, nuinha, e
não tinha nada de indecente no corpo pelado dela, parecia
corpo de santa sem pecado, a virgem-maria. Ela, acho que
nem dor não sentia, só olhava pra mim, e acho que naquela
hora ela até me via, eu existindo, e ela nua nua, eu abraçado
no corpo dela, ela nua, ela gemendo, eu abraçando e beijan-
do ela feito o moço morto abraçava e beijava no tempo que
era vivo, o calor do corpo dela, quando é que um velho e feio
e sujo que nem eu ia ter nos braços uma moça bonita daque-
la, e nua? Eu enroscado no cheiro que vinha do cabelo dela, o
sangue nem não me dando nojo, porque o sangue escorria
era da nuca, e a cara dela, mesmo, formosa, que nem a da-
quela outra mulher do meu longe passado, a cara dela, da
moça, não tinha sangue, e ainda por cima era de noite e quase
nem não se via, o sangue, eu só sentia o melado quente quan-
do passava minhas mãos pela nuca da moça…
Aí umas outras mãos vieram e me agarraram pelas cos-
tas, pelo pescoço, me agarraram com ódio, e me sacudiram,
e me jogaram longe, e foram logo me batendo, me dando
soco, pontapé, e gritando os feios palavrões. “Flagrante”, eles
condenaram, quando já cansados de me bater. Mas flagrante
de quê, se culpa não tive? Eu não queria que ninguém visse as
partes dela, escancaradas do jeito que estavam, ela toda
nuazinha, era por isso que eu estava ali, daquele jeito, deitado

105
no meio das pernas dela, tampando com meu feio corpo as
vergonhas dela, o que a cidade ia dizer se visse ela assim, de
perna aberta, aparecendo tudo? O que a cidade ia dizer se já
tudo dizia em nada não vendo, e nada não vendo porque ela
era moça de todo respeito, cujo só pecado era beijar demais?
E veio o padre dar extrema-unção, veio o sacristão com os
santos óleos, veio o povo todo em procissão chorar as tristes
ladainhas.
Uns falsos, uns fingidos. Chorando de falsidade, de
fingidez. A cidade toda queria era esse desfecho derradeiro, e
agora fingindo falsas lágrimas. Pois se até dinheiro me ofere-
ceram… Quer dizer, dar não deram, nunca, nada, mas antes
da desgraça uma beata passou um dia e falou assim-assim
com a outra, mesmo querendo que eu ouvisse: “Ah, a gente
até fazia uma vaquinha, arrecadava bom dinheiro e pagava
pralgum cristão dar cabo dessa indecência”… E depois outro
dia um homem, depois outra beata, e outro dia mais mora-
dor e moradora, até rapaz e até moça, de família e rapariga, e
todo dia e todo mundo falando igual, e eu ouvindo, eles
querendo que eu ouvisse, e eu ouvindo… Mas dinheiro-di-
nheiro, sem ser o pequeno, o amarrotado, o encardido, o em
moedas… que serventia possa ter, pra um feito eu? Dinheiro
em graúdo, novo, vistoso, o muito-muito, só serve só é pra
comprar coisas, pesadas coisas pra eu carregar depois estrada
afora, todo troncho, envergado. Pois já não chega o peso das
más lembranças, as gordas assombrações, me entortando o
ombro e rasgando meu magro embornal? Desperdício. Não
quero. Enjeito e rejeito, mil-vez. Eu nunca que não matei
ninguém, por dinheiros.
A Polícia falou que tinha sangue nas minhas mãos, e
tinha, mas foi porque eu peguei a moça nas mãos, ela ainda

106
viva, ela respirando, e nua, tão nua… Eu nada não vi das
partes escondidas dela, ela nua, sem nada escondido, mas eu
nada não via, só apertava ela nos meus braços, e esfregava a
cara nos cabelos dela, por causa do cheiro, eu devia ter fugi-
do, mas fiquei foi ali, ela nua, e eu sentindo o cheiro dela,
que pela primeira vez era pra mim, aquele cheiro.
Vou morrer negando, por mais que me batam, que me
quebrem inteiro. Acho que até já me quebraram, inteiro, já.
Como não tem mais onde me bater, acabou-se o espaço pra
produzir machucados, eles me botaram aqui, nesta feia cela,
me botaram justo na cela que dá de frente pra praça, só por
judiação, sendo que tem as outras, que dão pro outro lado.
Eles me obrigam a ver a praça pelas grades da janela. Eu que-
ria não olhar, mas eu olho. Eu queria dormir que nem você
dorme agora, feito pedra, sua consciência em paz apesar das
tantas mortes pesadas nas costas, eu queria dormir como se
morresse, que nem você, e no sonho esquecer de tudo, dor-
mir e ser a inocência das pedras, a inocência dura das pedras,
eu queria, mas não durmo, não sou pedra, gente é que sou, e
gente humana, sou.
Eu sinto falta da estrada, minhas pernas querendo an-
dar, mas andar pra onde, se eu só conheço o rumo do da
frente e o a-frente é só o ferro das grades? e andar com que
pernas, se as pauladas e os chutes arreganharam de vez a ferida
que nunca mais dá casca? e andar pra quê, se ela, a moça, se
ela não vai mais estar nunca em lugar nenhum? Minha valia é
que agora pode o mundo ser redondo e do tamanho que for:
perigo mais não corro de chegar de novo deadonde parti.
Mas do quê que adianta não voltar, se eu andei andei andei,
mas o meu rastro correu correu correu, passou na frente de
mim, se o passado apertou o passo, e feito cachorro veneno-

107
so, e feito cobra raivosa, se o passado cravou os brabos dentes
pra sempre nos meus calcanhares?
Eu queria é que fechassem a janela da cela com fortes
tijolos, e que nem não deixassem fresta pra nem ar entrar, pra
eu não ver nunca mais a praça, não ver a igreja, não ver a
televisão que botaram no lugar do banco que o padre que-
brou, não ver que a moça eu nunca mais não vejo.
Não tenho medo de assombração; a alma dela, se vaga,
em tormentos, eu nunca que não vi. Posso até avistar alguma
meia-noite, saindo dalguma tumba, o cemitério é bem ali, e
eu não durmo, nunca mais dormi, mas nunca que não vi
alma nenhuma. Meu medo é quando pega a ventar, e toda
noite venta, por mais quente que sendo o dia, toda noite
pega a ventar. É só prestar atenção, no vento.
Ó. Não falei? Pára de roncar e ouve, ó: primeiro é o
assobio… úúúúúúúúuú… ouviu? Depois as folhas das árvo-
res pegam a sacudir… viu? tá ouvindo? frrrrrrrrrrrrrr…Agora
é que vem o pior, ó... Tudo que nada eu não queria era ficar
aqui sozinho nessas horas da noite, eu queria que seus muitos
pecados pesassem mais que seu sono de pedra, e que você
acordasse, e me fizesse companhia, mesmo calado, ou então
que chamasse os polícias pra mim, não adianta nada coisa
nenhuma eu próprio chamar, eles não me ouvem, ninguém
não me ouve, eu queria que você acordasse, que chamasse os
polícias por mim, que dissesse que eles podem de novo me
bater, mais e muito, e que eu até de arame farpado apanho.
Diz pra eles que eu só não quero, diz pra eles que eu só
não posso é ficar sozinho com o vento, o desgraçado do ven-
to que toda noite me traz o cheiro dela.

108
AINDA É TARDE

Há muitos dias não amanhece. Eu só preciso que ama-


nheça, mas há dias e dias é sempre noite. Escuto vozes lá fora,
crianças brincando, a algazarra das crianças é sinal de que está
tudo bem, mas não me iludo, não creio na autenticidade
dessas vozes, o que estariam crianças fazendo na rua a esta
hora da noite que não tem fim? É apenas um artifício, mais
um, eles já tentaram de tudo, querem de todas as maneiras
que eu saia da toca. Não sairei, a menos que amanheça.

***
Mantenho janelas e portas lacradas, isolado do mundo
exterior, mas sei que é sempre noite por causa dos insetos que
voam em torno da lâmpada fraca dependurada no teto, a
única que mantenho acesa o tempo todo. São insetos notur-
nos, condenados a voar à noite, e eles não interrompem o
vôo obsessivo, eles não pousam: logo, ainda é noite, é sem-
pre noite. Estão cansados, os insetos, de tanto voar em círcu-
los em torno da lâmpada, algumas vezes pensei em apagar a
luz para o repouso dos insetos, mas calar a única lâmpada
seria ceder por inteiro à escuridão. Sinto pelos insetos de asas
partidas que agonizam no meu chão, mas é questão de sobre-
vivência: ou eles ou eu.

***

109
Estou nu, e vejo os olhos que me espreitam através das
frestas da veneziana, são muitos, sei pelos diferentes pares de
olhos que me olham, sei pelos diferentes tons dos olhares
que me espreitam, eles são muitos e me olham pelas frestas
da veneziana, eles espiam minha nudez, o calor me obriga a
estar nu. Não importa que dissequem minha nudez, mas exijo
uma resposta: como conseguiram chegar aqui em cima? A
não ser que... Da última vez que saí da toca, para comprar
mantimentos, havia homens carregando estruturas metálicas
nas proximidades do prédio. Fingiram não me ver, mas eu os
vi, de uniforme laranja, carregando estruturas metálicas
tubulares. Só agora compreendo: construíram andaimes, en-
caixando uma na outra as estruturas metálicas, escalaram os
andaimes e agora me olham pelas frestas da veneziana. Deixo
que me olhem, não há nada para ver na escuridão, a não ser
um homem nu sentado sob a lâmpada fraca, e insetos exaus-
tos voando em torno dele e da luz. Também estou cansado,
tão cansado quanto os insetos, mas não permitirei que aque-
les lá fora, os donos dos olhos que me espreitam, não permi-
tirei que eles saibam do meu cansaço. Resistirei. É a única
arma da qual disponho: a capacidade de resistir, que eles des-
conhecem.

***

Eles agora recorrem à força bruta, por que não o fize-


ram antes? Eles agora tentam entrar a golpes de marreta, aban-
donaram toda e qualquer sutileza, já sabem que eu sei sobre
eles, não precisam mais de subterfúgios, artifícios, ardis, vão
derrubar as paredes, tentam entrar a golpes de marreta TUM
TUM TUM talvez não queiram entrar, querem apenas que

110
o som cadenciado TUM TUM TUM me impeça de dormir
e me leve à exaustão final TUM TUM TUM inútil estraté-
gia: já não durmo há muito tempo, tenho medo de dormir
justo na hora que amanhecer, preciso manter os olhos bem
abertos para quando a manhã chegar, até porque ignoro quan-
to tempo há de durar a relutante manhã que espero.

***

O último inseto se debate no chão, agoniza com as asas


partidas, sobre a pilha de outros insetos mortos. Morreram
todos. Lamento. Mas eram eles ou eu.

***

Ontem veio um homem de uniforme azul. Ou virá


amanhã, antes que o último inseto morra. Se ainda não veio,
virá. Eles tentam de tudo. Ouvi o toque da campainha, na
verdade eu desliguei a campainha, ouvi apenas o som do dedo
apertando a campainha muda TLEC TLEC olhei pelo olho
mágico, ele estava lá, olhando para mim através do olho
mágico, sorriso falso, uniforme azul, um embrulho nas mãos,
é um disfarce, quer convencer-me de que se trata de um hu-
milde funcionário do condomínio, mas os humildes funcio-
nários deste edifício usam uniforme cinza, deste ou do outro
edifício que morei antes, já não me lembro, mas não impor-
ta a cor do uniforme, não abri a porta quando ele apertou
hoje a campainha muda TLEC TLEC ele tem o corpo des-
proporcional, a cabeça imensa em relação ao corpo, o corpo
imenso em relação às pernas, os olhos imensos em relação a
todo o resto. Ele faz o mesmo que eu, ele também me olha

111
do outro lado da porta, desafiador, jamais um humilde fun-
cionário de condomínio desafiaria um morador com tal olhar,
olhamo-nos pelo olho mágico, um de cada lado da porta,
ambos ridiculamente deformados: ele pela aberração ótica;
eu, pelo cansaço da espera. Ele desiste, ele foi embora há muitos
dias, ou muitas noites, uma vez que é sempre noite. Agora,
eles perderão toda e qualquer sutileza, eles esperam apenas que
o último inseto morra, para que eu esteja completamente só; aí,
sim, eles usarão a força bruta, começarão a derrubar as paredes a
marretadas, já começaram há muito TUM TUM TUM

***

A pilha de insetos mortos desapareceu, cadê a pilha de


insetos que estava aqui? Provavelmente o gato comeu, preci-
so tirar isso a limpo, chamo por ele: Gato de Alice… Gato
de Alice… PSSSS PSSSS PSSSS mas Gato de Alice não res-
ponde, não responde porque morreu de fome antes dos inse-
tos, nossas provisões acabaram há tempos e não posso sair da
toca enquanto não amanhecer. Não: Gato de Alice morreu
depois dos insetos, não importa a causa mortis, se fome ou
pescoço quebrado, morreu depois dos insetos de luz, é ób-
vio, visto que alguém comeu a pilha de insetos no chão, tal-
vez Gato de Alice esteja vivo, mas o cheiro dele em decom-
posição prova o contrário, é um cheiro forte e doce, um cheiro
antigo, morte e apodrecimento, então Gato de Alice morreu
muito antes dos insetos, mas alguém comeu os insetos, e se
Gato de Alice estava morto... então eu comi os insetos, visto
que eles desapareceram do chão, mas minha fome persiste e
demonstra o contrário, então eu não comi os insetos, ou comi,
mas eles não tinham qualquer valor nutritivo.

112
***

Não sei o que é pior TUM TUM TUM o barulho das


marteladas ou SCRESH SCRESH SCRESH Gato de Alice
arranhando a porta do quarto fechado. Gato de Alice me
olha nos olhos em desespero, pede que eu o deixe entrar no
quarto fechado, Gato de Alice é só pele e osso, mas não per-
mitirei que ele entre no quarto fechado, o que você acha que
existe atrás da porta fechada, Gato de Alice? Não adianta você
me olhar com esses olhos felinos famintos, o mesmo olhar
de caçador que reserva para os insetos que voam em volta da
lâmpada fraca, você com certeza espera que um deles caia de
cansaço para devorá-lo, mas os insetos não caem, até agora
não caiu nenhum, têm sete vidas e fôlegos estes insetos no-
turnos que não podem interromper o vôo porque há dias e
dias é sempre noite SCRESH SCRESH SCRESH você só
espera que eu morra para se fartar com minha carne, Gato de
Alice SCRESH SCRESH SCRESH vou até a porta fechada
do quarto e quebro o pescoço do Gato de Alice. Pronto. Só
assim ele pára de SCRESH SCRESH SCRESH só assim
Gato de Alice desiste de entrar no quarto fechado.

***

Eles esperam que eu desista, que eu abra a porta, que eu


saia à rua antes de amanhecer, pois esperarão sentados, nem a
fome nem a sede me obrigarão a sair da toca. A sede.
Penitencio-me pela água ingerida depois que o filtro secou,
não devia ter bebido a água da torneira, eles por certo enve-
nenaram os encanamentos, mas talvez só tenham pensado
nisso depois que suspendi a ingestão de água. Inócuo, pois, o

113
veneno que despejaram nos encanamentos. Não morrerei
envenenado, não morrerei de sede. Beberei, bebo, minha uri-
na. O gosto da urina é-me indiferente, o que não suporto é o
cheiro, mas não o cheiro da urina, o que não suporto é o
outro fedor que empesteia tudo, morte e apodrecimento,
minha urina é até um antídoto ao fedor que empesteia tudo,
minha urina tem cheiro forte, cheiro de urina de alguém que
há muito não ingere líquidos, preciso ingerir líquidos para
ter o que urinar e assim ter líquidos para ingerir e poder uri-
nar e assim ingerir mais líquidos para urinar e assim ingerir
líquidos para e assim SCRESH SCRESH SCRESH

***

VRMMMMM VRMMMMM VRMMMMM

***

VRMMMMM VRMMMMM VRMMMMM

***

VRMMMMM VRMMMMM VRMMMMM

***

A furadeira de alto impacto arranca as pastilhas da fa-


chada, rompe os tijolos, arrebenta o acabamento interno, entra
em cheio na minha cabeça VRMMMMM VRMMMMM
VRMMMMM é como se a broca estivesse não do lado de
fora do prédio e sim varando meu cérebro VRMMMMM

114
VRMMMMM VRMMMMM eles vão entrar a qualquer
momento, logo as paredes estarão cheias de buracos, as pare-
des estão cheias de buracos, corro até a geladeira, a geladeira
está vazia, exceto pelo pacotinho com massa de matar bara-
tas, é o que me basta, cubro os buracos com massa de matar
baratas, eles são mais rápidos VRMMMMM VRMMMMM
VRMMMMM novos furos, eu sou mais rápido, novos re-
mendos, é uma corrida de vida ou morte VRMMMMM
VRMMMMM VRMMMMM até que eles se cansam, não
há mais buracos a serem cobertos, estão todos lacrados com
massa de matar baratas, logo isto aqui estará infestado de
baratas mortas, todas as baratas morrerão, sentirei falta de
dormir ao som das baratas correndo pelos ocos das paredes,
não fazem falta porque não durmo, porque permaneço em
vigília, porque espero a manhã que pode chegar quando me-
nos espero, o chão está coalhado de baratas mortas, baratas
de todos os tamanhos e formas e cores, algumas tentam voar,
mas é inútil, logo se espatifam no chão, odeio o barulho que
elas fazem quando estouram seus cascos sob o peso dos meus
pés descalços CREK CREK CREK Gato de Alice se refeste-
laria com tantas baratas mortas caso estivesse vivo CREK
CREK CREK chamo por ele: Gato de Alice… Gato de Ali-
ce… PSSSS PSSSS PSSSSSSS mas Gato de Alice está mor-
to, mas Gato de Alice arranha a porta fechada do quarto
SCRESH SCRESH SCRESH

***

É preciso levar em conta todas as hipóteses: e se eles


derrubam as paredes? Espero que tal idéia nunca lhes ocorra,
mas: e se eles recorrem às furadeiras de alto impacto? CREK

115
CREK CREK corro de um lado para o outro feito barata
tonta CREK CREK CREK pisando e estourando baratas
tontas e mortas CREK CREK CREK destruo os documen-
tos, identidade, título de eleitor, certificado de reservista, eles
não saberão quem eu sou, mesmo que entrem, eles não sabe-
rão quem sou, rasgo as cartas, são poucas, rasgo todas, inclu-
sive a última, a inacabada, esmago mais baratas CREK CREK
CREK por fim dou fim às fotografias, destruo tudo que possa
me incriminar, até a fotografia em que apareço abraçado a ela
convém destruir, ela morreu há muitas noites, ela morreu
ontem à noite, sei que era noite porque é sempre noite, não
me lembro quando ela morreu, não importa, todo mundo
morre algum dia ou noite, mas a fotografia pode dar mar-
gem a diversas interpretações, levantar suspeitas, eles podem
especular, fazer perguntas, torturas físicas e mentais, eles por
certo desconfiarão de tamanha felicidade, rasgo, então, a fo-
tografia: abraçados, sorridentes, felizes: eu, Alice e o Gato de
Alice.
***
SCRESH SCRESH SCRESH
***
TUM TUM TUM
***
VRMMM VRMMM VRMMM
***
TRIIIMMMM TRIIIMMMM TRIIIMMMM

116
***
TRIIIMMMM TRIIIMMMM TRIIIMMMM
***
TRIIIMMMM TRIIIMMMM TRIIIMMMM

***
............................................

***
............................................

***
............................................
***

Agora é o
silêncio...............................................................……….A
estratégia deles se chama “enlouquecimento cadenciado por
meio do silêncio”, eu não devia ter arrancado o fio do telefone,
a ausência do TRIIIMMMM TRIIIMMMM TRIIIMMMM
deixou um vazio, eu não devia ter quebrado a televisão, eu
não devia ter partido o pescoço de Gato de Alice, agora tudo
é silêncio, eles usam contra mim a estratégia do silêncio, es-
tou sozinho e indefeso, e tudo em volta é silêncio, mas se
não enlouqueci com os ruídos não enlouquecerei com o
silêncio................................................................................
O silêncio me enlouquece, o silêncio e a fome, os manti-
mentos acabaram há nem sei quanto tempo, o silêncio e a

117
fome, o silêncio e a sede; a sede: minha urina ressecada no longo
percurso entre a uretra e a garganta. A sede me enlouquece.

***

SCRESH SCRESH SCRESH Gato de Alice arranha


arranha arranha a porta do quarto fechado, ele quer entrar no
quarto fechado, ele insiste, persiste SCRESH SCRESH
SCRESH até que o trinco cede, e a porta se move, e o movi-
mento liberta o cheiro aprisionado, o cheiro doce e apodreci-
do que empesteia tudo, Gato de Alice entra no quarto, não
corro atrás dele, não tento impedi-lo, estou fraco demais para
detê-lo, não tenho forças para deixar a sala e o conforto da
lâmpada fraca em cuja órbita erradia gravitamos eu e os inse-
tos exaustos. Morrerei antes dos insetos, morro antes do pri-
meiro inseto, morrerei antes de Gato de Alice, Gato de Alice
sobreviveu a mim, Gato de Alice vai se fartar com minha
carne, não, ainda não é minha morte, é apenas morte aparen-
te, catalepsia, poupo as forças que me restam, é como se hi-
bernasse, minha quase-morte economiza comida e água, eles
batem na porta, não sei se tocaram antes a campainha muda
TLEC TLEC o cansaço a fome e a sede arrefeceram meus
instintos, só os ouço quando batem na porta pela primeira
vez BAM BAM BAM eles batem de novo BAM BAM BAM
eles batem com mais força BAM BAM BAM querem ar-
rombar a porta, agora é irreversível, movo os olhos em dire-
ção à foto: abraçados, sorridentes, felizes, na fotografia: eu,
Alice e o Gato de Alice, eu devia ter destruído a fotografia, a
felicidade é suspeita, a felicidade me incrimina, mas agora é
tarde, não tenho mais forças, movo os olhos em direção à
carta, a carta que ela não acabou de escrever, nem preciso

118
desdobrar a folha de papel em branco, sei de cor o que ela ia
dizer na carta que não escreveu, eu devia ter destruído, nada
mais suspeito que uma carta em branco, eles batem com mais
força BAM BAM BAM ouço vozes, não são crianças brin-
cando, eles já não precisam de disfarces, eles começam a ar-
rombar a porta com a força dos muitos ombros BAM BAM
BAM Gato de Alice volta do quarto, parece gordo e feliz,
Gato de Alice lambe as mãos que esqueço caídas ao longo do
meu corpo inerte BAM BAM BAM eles vão entrar a qual-
quer momento BAM BAM BAM a porta estremece, as pa-
redes reverberam BAM BAM BAM logo agora que pressin-
to a manhã chegando, chegando, chegando…

***
Amanheceu? Não, ainda é tarde. Se pelo menos ama-
nhecesse, mas não amanhece, há dias e dias é sempre noite.
Apago a única lâmpada (ou ela sozinha se extingue?), conce-
do, enfim, repouso aos insetos exaustos. Os insetos agora
dormem, a noite é sem volta. Mas antes que arrombem a
porta, mas antes que entrem, recorro à última arma que me
resta: suspendo a respiração para sempre. Só assim não sinto
o hálito de carne podre que Gato de Alice exala ao voltar do
quarto, enquanto lambe minhas mãos.

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IMPRESSO SOBRE PAPEL
PÓLEN BOLD 90 G/M2 (MIOLO)
E CARTÃO PAPIRUS 280 G/M2 (CAPA)
NA GRÁFICA LIDADOR
PARA A EDITORA 7LETRAS
EM AGOSTO DE 2005.

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