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ISSN 2 1 8 3 – 6 9 8 1

REVISTA DE CIÊNCIAS DA ARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA | DEZ'15


Ficha Técnica

Convocarte − Plataforma digital de edição e PD-FCTAS – Programa Doutoral


Revista de Ciências da Arte contactos em Filosofia da Ciência,
Revista Internacional Digital com www.convocarte.belasartes. Tecnologia, Arte e Sociedade
Comissão Científica ulisboa.pt FCUL – Faculdade de Ciências da
Editorial e Revisão de Pares edições da FBAUL: www. Universidade de Lisboa
belasartes.ulisboa.pt/revistas/ FCSH-UNL – Faculdade de
Nº1, Dezembro 2015 e-mail: convocarte@fba.ul.pt Ciências Sociais e Humanas da
Tema do Dossier Temático Universidade Nova de Lisboa
Arte Pública PVP ESE-IPL – Escola Superior de
versão digital gratuita em Educação do Instituto Politécnico
Ideia e Coordenação Geral www.convocarte.belasartes.ulisboa.pt de Lisboa
Fernando Rosa Dias Versão impressa: por encomenda UFRJ – Professora da Universidade
Pedidos de volume em papel: Federal do Rio de Janeiro
Coordenação Científica do Isabel Nunes UA – Universidad de Alcalá
Dossier Temático FBA-UG – Faculdad de Bellas
nº1 − Arte Pública Publicidade, Relações Públicas Artes, Universidad de Granada
José Pedro Regatão da FBAUL UC - Universidade de Coimbra
Isabel Nunes
Periodicidade (+351) 213 252 108 Design Gráfico
Anual comunicacao@fba.ul.pt Caroline F. Torres
Joana Bernardo
Edição Conselho Científico Editorial e João Capitolino
FBAUL-CIEBA Pares Académicos − nº1
(Secção Francisco d´Holanda e Apoio à edição digital
Área de Ciências da Arte e do Interno à FBAUL Ricardo Vilhena, Paulo Santos e
Património) Fernando Rosa Dias - FBAUL Tomás Gouveia (FBAUL)
Cristina Azevedo Tavares - FBAUL
ISSN Eduardo Duarte - FBAUL Capa
2183-6973 © CML | DPC | José Vicente 2013
e-ISSN (Em linha) Externo à FBAUL
2183-6981 José Pedro Regatão – ESE-IPL Capa do Dossier Temático
Angela Ancora da Luz – UFRJ © CML | DPC | José Vicente 2015
Propriedade e Serviços Isabel Nogueira – UC
Faculdade de Belas Artes da Javier Maderuelo – UA Contracapa
Universidade de Lisboa (FBAUL) Juan Carlos Ramos Guadix – FBA-UG Arquivos Gulbenkian (PRS 04805)
Centro de Investigação e Estudos Raquel Henriques da Silva – FCSH-UNL
em Belas Artes (CIEBA), secção
Francisco d’Holanda (FH), Área de Abreviaturas
Ciências da Arte e do Património FBAUL – Faculdade de Belas Artes
(gabinete 4.23) da Universidade de Lisboa
Largo da Academia Nacional de CIEBA – Centro de Investigação e
Belas Artes, 1249-058 Lisboa Estudos em Belas Artes
(+351) 213 252 100 FH – secção Francisco d’Holanda
www.belasartes.ulisboa.pt do CIEBA
Índice

Pág—006 Pág—090 Pág—176


EDITORIAL A Escultura Pública A arte de José Datrino, o
Portuguesa em 1940, fora da “profeta gentileza”, e suas
Pág—011 Exposição de Belém 56 inscrições nas pilastras do
DOSSIER TEMÁTICO — ARTE PÚBLICA — Joaquim Saial viaduto da Avenida Brasil no
Rio de Janeiro
Pág—012 Pág—107 — Angela Ancora da Luz
Introdução Monumento
— José Pedro Regatão Multiculturalidade — uma Pág—188
experiência participada A Olhar para as Paredes
Pág—014 — José Francisco Alves — Marta Traquino
As Origens Históricas da Arte
Pública Pág—121 Pág—200
— José Guilherme Abreu Significado de Arte Urbana, Arte Pública e Política
Lisboa 2008-2014 — Cristina Pratas Cruzeiro
Pág—028 — Pedro Soares Neves
Poéticas da Arte Pública Pág—215
Relacional: da Forma ao Pág—135 Alguns Factores
Agenciamento das Relações Escultura e a re-simbolização Determinantes para o Impacto
como motor da Obra do espaço público no pós-25 da Arte Urbana em Lisboa
— Herbert Rolim de Abril: A evocação de “Os — Sílvia Câmara
Perseguidos” em Almada
Pág—043 — Sérgio Vicente Pág—230
Deambulações pela Arte A Filha Bastarda da Arte
(como coisa) Pública Pág—154 — Mauro Trindade
— Mário Caeiro Duas Narrativas para o meu
País nos Painéis de Almada Pág—241
Pág—066 Negreiros ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E
Do Monumento Público — Cristina Azevedo Tavares CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA
Tradicional à Arte Pública
Contemporânea Pág—162 Pág—242
— José Pedro Regatão Olhar em Movimento: As Historiografia da Arte
Intervenções Cerâmicas Portuguesa - Pioneiros e
Pág—077 de Catarina e Rita Almada Precursores
O Vandalismo da Arte Pública Negreiros no Ascensor da — Margarida Calado
— Victor Correia Bica e na Estação Sul/Sueste
do Terreiro do Paço
— Daniela Simões
Pág—252 Pág—313 Pág—333
Três Jornais de Belas-Artes A Galeria Virtual do Post- Do Desenho e do Ordenar
do Século XIX em Portugal — Screen Festival 2014 do Tempo: Catarina Patrício e
Eduardo Duarte — Diogo Freitas da Costa Emília Nadal na Galeria São
Mamede
Pág—270 Pág—315 — Claudia Simenta Rodrigues
Crítica de Arte na Década do 7 Mil Milhões de Outros
Silêncio — Carina Fonseca Pág—336
— Fernando Rosa Dias Guilherme Parente - Águas de
Pág—317 Transcendência
Pág—283 Shadow of a Doubt — Raquel Farelo
Exposição “Artistas — Joana Ottone
Portuguesas” e o Papel Pág—339
da Mulher na Arte da Pós- Pág—320 ACTIVIDADES CONVOCARTE
Revolução André Príncipe - Antena 2
— Claudia Simenta Rodrigues — David Gonçalves Pág—342
PROCEDIMENTOS E ORIENTAÇÕES
Pág—303 Pág—322 DE PUBLICAÇÃO EM CONVOCARTE
CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E Francisco Tropa
EVENTOS CULTURAIS — Cláudia Ramos Pág—348
APRESENTAÇÃO E CALENDÁRIO
Pág—304 Pág—325 DO PRÓXIMO NÚMERO
Fátima Mendonça – Operando Carla Cabanas
(Com) o Medo — Rita Branco
— Claudia Simenta Rodrigues
Pág—326
Pág—307 Imagerie — Casa de Imagens
José de Guimarães no TMG — Catarina Pinto
— Joana Correia Saraiva
Pág—328
Pág—308 Finok
Viktor Ferrando — Margarida Barros
— Mariana Salgueiro
Pág—330
Pág—310 Modernidades: Fotografia
Salette Tavares Brasileira (1940-1964)
— Margarida Eloy — Lara Neto
Editorial

A
– CONVOCARTE N.º1 | EDITORIAL

revista digital Convocarte – Revista


de Ciências da Arte visa promover o
debate e edição de questões artís-
ticas no espaço universitário, tendo as se-
guintes coordenadas dominantes: convocar
um número de especialistas em torno de
um tema do mundo das artes, integrar tra-
balhos relevantes desenvolvidos nas fases
curriculares e de projecto dos mestrados e
de doutoramento da FBAUL e publicar tra-
balhos desenvolvidos em linhas de investi-
gação do CIEBA.

O nome Convocarte, sobrevivente entre op-


ções várias que o grupo de trabalho foi lan-
çando, entre membros do Conselho Cien-
tífico Editorial, professores da FBAUL e até
alguns ensaístas, foi preferência assente na
simpatia pelo modo como esta aglutina-
ção linguística apela ao espírito de partilha
e discussão implicada na compreensão da
expressão: Convocar o Outro (para as ques-
tões artísticas). Convoca-se um tema, como
um primeiro plano ou palco que recebe um
segundo, a dos ensaístas, especialistas que
têm investido na problematização desse
tema. O espírito da convocação transporta
ainda uma dimensão social e inter-subjecti-

<<
va privilegiada, útil aos mecanismos das ar- espaços artísticos de formação superior2.
tes e humanísticas, e que nos sugere a tra-
dição, tão importante na cultura portuguesa A estrutura base da Convocarte assenta em
dos últimos dois séculos, da tertúlia artísti- três partes ou pastas que conjugam diferen-
ca e literária. A convocação da alteridade na tes intenções:
constituição de um grupo plural de discus-
são em torno de um tema é a nossa propos- 1. O Dossier Temático, central neste projec-
ta capital de Convocarte. to editorial, que caracteriza com um tema
particular cada número na convocação de
Aproveitando os meios digitais, esta revista especialistas. Os ensaios do Dossier Temá-
pretende ser um mecanismo científico ágil tico tiveram, neste primeiro número dedica-
e dinâmico, com uma larga plataforma de do à Arte Pública, o seguinte plano de se-
modos de reflexão sobre as artes (sobre- quência que define a ordem do seu índice
tudo visuais), sendo expressão do modo (uma orientação base para futuros números,
sincrético de funcionamento afecto à área embora passível de ajustamentos particula-
científica de Ciências da Arte e do Patrimó- res, consoante os temas):
nio (aberto a outras especialidades interes-
sadas em contribuir para a reflexão sobre • Textos teóricos ou doutrinais relativos
as artes em geral), incorporando ensaios de ao tema, mais perto do âmbito da filoso-
predomínio teórico enraizado nos mais pre- fia, da estética ou da teoria da arte.
dominantes modos de discurso sobre arte: • Textos históricos, com panoramas ou
História da arte, Crítica de Arte, Estética, abordando tempos históricos.
Teorias da Arte e Curadoria. A revista pre- • Estudos de Caso.
tende ser uma plataforma de recepção de • Extensões ou confluências do tema –
trabalhos realizados no âmbito de linhas de no caso, Novos Géneros ou Fronteiras
investigação do CIEBA, sobretudo da sec- da Arte Pública.
ção Francisco d’Holanda. Nesta sequência
procurará estar perto de trabalhos produzi- 2. Um bloco de Estudos de Historiografia e
dos nos mestrados e doutoramento de es- Crítica de Arte Portuguesa, que inclui traba-
pecialidade das Ciências da Arte. Contudo, lhos desenvolvidos no âmbito das Ciências
o enquadramento na FBAUL fornece a esta da Arte, nos ciclos de formação e em linhas
dominante teórico uma dimensão peculiar, de investigação do CIEBA/Francisco d’Ho-
uma proximidade com a produção artísticas landa. São contributos para o estudo dos
e a convocação dos próprios artistas para discursos sobre a arte, com relevância maior
essa reflexão – esta proximidade não só es- na cultura portuguesa, em torno da historio-
tabelece modos particulares aos modos das grafia da arte, da crítica, da estética, etc.
Ciências da Arte no contexto da FBAUL1,
como abona o mais recente desenvolvi- 3. A última parte incorpora um conjunto de
mento de uma noção de Investigação em críticas de exposições e eventos artísticos
Arte que tem marcado os últimos anos dos decorridos ao longo do ano anterior, procu-

7
rando desenvolver uma plataforma de rela- a sua teorização está patente em vários co-
ção com eventos artísticos concretos. Este laboradores deste número, com formação
espaço crítico e de reflexão, de ligação do artística e alguns com produção regular –
espaço universitário à comunidade cultural e aspecto a que se pretende dar seguimento
artística em geral, procura contribuir com um em futuros números.
espaço dialogante de produção de fortuna
crítica das mais diversas actividades artísticas A constituição de um Conselho Científico
correntes, sobretudo afins às artes visuais. Editorial procura salvaguardar a qualidade
científica da revista, tendo esta as funções
Entre estas partes que a revista compõe, tem de sugestão de autores e de revisão de en-
centralidade o dossier temático que carac- saios com apreciações qualitativas, com
teriza cada número. Sendo mais alargado possíveis sugestões de melhoria. Uma das
– CONVOCARTE N.º1 | EDITORIAL

e aprofundado, procura abordar um tema suas primeiras funções é essa proposta dos
especial no campo das artes. Para cada nú- ensaístas. O sistema de convites procura
mero há um especialista convidado para a orientar a harmonia e equilíbrio dos conteú-
sua coordenação desse dossier temático e dos, propondo pluralidade de perspectivas,
que vai integrar o Conselho Científico Edi- mas evitando tanto redundâncias como au-
torial. O sistema de solicitação de textos é sências de questões relevantes do tema.
por convite e com base na confiança cien- Em futuros números, o Conselho Científico
tífica de outros especialistas, funcionando Editorial aceitará propostas exterior, não no
o Conselho Científico Editorial não como modelo de call for papers, mas de vontade
modo de escrutínio (não há submissão de de adesão e participar na discussão de um
textos), mas de disposição de um espaço tema no âmbito das artes. Fica assim anun-
de discussão a todos os textos. É com estas ciado, no final, o tema seguinte no final de
coordenadas que convidámos a participar cada Convocarte.
no nosso primeiro número, com coordena-
ção especial do dossier-tema em torno da Relativamente à revisão de pares, não
questão da arte pública (Arte Pública: No- seguimos a generalização recente do mode-
vas Práticas e Fronteiras), o Professor José lo de origem anglo-saxónica e das Faculda-
Pedro Regatão, com recente doutoramento des de tradição mais positivista, declinando
nesta área. que este modelo se apresente como único
nas Ciências em geral. Consideramos que
Se as Ciências das Artes têm afinidades este modelo, que se vem insinuando com
óbvias com o campo universitário das Ar- parca discussão nas artes e humanísticas
tes e Humanidades, elas devem considerar- (ou nas Ciências do Espírito)3, tem dimen-
-se no modo como se desenvolvem numa sões perniciosas nesta área, onde a tradição
Escola de Belas Artes, onde a sua tendên- da discussão e da crítica têm sido, desde há
cia para o sincretismo e para a proximidade muito, essenciais nos seus mecanismos de
com a produção artística se tornam naturais. funcionamento. Assim, o que pretendemos
Essa aproximação a dilemas da produção e foi criar um modelo de discussão de pares

<<
(mais do que revisão) insistindo da aprecia- humanísticas, consideramos que os siste-
ção qualitativa (e não quantitativa). A necessi- mas, e até as normas, podem ser escolhidos
dade de certa protecção científica por parte com oportunidade específica consoante as
das ciências do fenómeno ou dos números, características de cada texto. A defesa desta
ou se quisermos, das ciências naturais ou pluralidade produz em nós uma coerência
das exactas, perante interesses particulares, bem mais importante que a uniformidade.
sobretudo de âmbito económico, lançan- Nos textos em português, também optámos
do produtos que invadem o espaço público por deixar à consideração de cada autor
como pseudociência, criaram um necessá- outras decisões de funcionamentos: como
rio modelo de call por papers e peer-review a aceitação ou não do acordo ortográfico
que nas artes e humanidades tem menos (que nos recusamos a impor), e a tradução
pertinência – porque nestas as ameaças do (ou não) de citações noutras línguas utiliza-
mercado são menos; e porque estas não se das nos trabalhos, etc.
desejam exactas, emergindo da discussão e
da crítica, para funcionarem com outra den- Nesta mesma linha de questões, considera-
sidade de planos históricos (que não coinci- mos prejudicial às tradições e fundamentos
de com o plano mais recente de um «estado das artes e humanísticas, o recente domínio
da arte», outra expressão aqui desajustada) do inglês como língua da Universidade Eu-
e de graus de subjectividade. Não procuram ropeia. Defendemos a multiplicidade das
o rigor do fenómeno ou da função, mas es- línguas, onde o inglês é uma língua entre
peculam nos conceitos. O mundo da arte, so- outras, na mesma linha com que Gadamer
bretudo no plano teórico em que aqui mais louvou o projecto Europeu: «Pode, decer-
se manifesta, está bem perto desta tradição to, prever-se uma língua única para o futuro
– afinal, arte não é (apenas) um fenómeno fí- das ciências naturais, mas a questão é dife-
sico, mas (sobretudo) simbólico. rente no caso das ciências do espírito»4. A
revista está aberta a textos noutras línguas
Na mesma ordem de ideias, e contra a ten- que circulam com facilidade no nosso âm-
dência de implementação de normas das bito universitário (espanhol, francês, inglês),
mesmas origens universitárias, a invadirem mas com o princípio de que cada autor pen-
as humanísticas, assumimos a opção edi- se e escreva na sua língua natural.
torial da liberdade de escolha, por parte
de cada autor, de sistemas (autor/citação Agradecemos a todos os colaboradores
ou autor/data) e normas (ISO-690; EP-405; neste arranque de mais um projecto que
APA, MLA, Chicago, etc.) na indicação de procuramos que seja um contributo positi-
bibliografia e documentação. Esta recu- vo para a área das artes e humanidades e
sa de imposição de apenas uma norma, é a FBAUL: ao Conselho Científico Editorial,
também porque consideramos que cer- pelo modo exemplar como trabalhou este
tas orientações únicas têm servido para diálogo entre pares; aos ensaístas, por nos
arrancar às humanísticas as suas tradições. cederem o seu trabalho, por vezes de vários
E, pela nossa experiência universitária nas anos, dispondo-o a este espaço de diálogo

9
com ao Conselho Científico Editorial; aos Letras, 2015; Investigação
designers pelo modo como entenderam em Arte e Design: Fendas no
em modo gráficos, na paginação e na estru- Método e na Criação (Vol.II)
tura, o espírito da revista; aos colegas, pro- (coordenação de Fernando
fessores e investigadores, de Ciências da Rosa Dias, José Quaresma,
Arte e do Património e da secção Francisco Juan Carlos Guadix), Lisboa:
d´Holanda do CIEBA, mesmo aos que não Universidade de Lisboa,
estão neste número, por apoiarem este tra- Faculdade de Belas Artes,
balho; e aos diferentes serviços da Faculda- 2011; Investigação em Arte –
de, com destaque às Relações Públicas, que Uma Floresta, muitos caminhos
nos ajudaram na melhor inserção editorial (coordenação de Fernando
desta edição no site da FBAUL e na sua di- Rosa Dias, José Quaresma,
– CONVOCARTE N.º1 | EDITORIAL

vulgação pelas plataformas institucionais. Juan Carlos Guadix),


Universidade de Lisboa,
A Coordenação Geral Faculdade de Belas Artes,
CIEBA, 2010.
3
A que Gadamer chama
Ciências do Espírito
(Alemanha), Lettres (França),
Moral Sciences ou Humanities
(cultura anglo-saxónica). Cf.
Hans-Georg Gadamer, «O
— Notas de colaboração internacional Futuro das Ciências do Espírito
1
Cf. Fernando Rosa Dias, sobre a Investigação em Europeias» (1983), in Herança
Fernando António Baptista Artes, a destacar: Investigação e Futuro da Europa, Lisboa:
Pereira, «Ciências da arte e em Artes – Ironia, Crítica e Edições 70, 1998, p.29.
criação artística: solidariedades Assimilação dos Métodos 4
Ibidem, p.29.
para uma investigação em (coordenação de Fernando
arte», in Investigação em Rosa Dias, José Quaresma,
Arte e Design: Fendas no Alys Longley), Lisboa:
Método e na Criação (Vol.II) Escola Superior de Teatro e
(coordenação de Fernando Cinema; The University of
Rosa Dias, José Quaresma, Auckland: Creative Arts ans
Juan Carlos Guadix), Lisboa: Industries Dance Studies,
Universidade de Lisboa, 2015; Investigação em Artes
Faculdade de Belas Artes, – A Oscilação dos Métodos
2011, pp.215-228. (coordenação de José
2
Veja-se a linha editorial, Quaresma, Fernando Rosa
nascida na FBAUL em 2010, Dias), Lisboa: Centro de
de publicação universitária Filosofia da Faculdade de

<<
José Guilherme Abreu
Herbert Rolim
Mário Caeiro
José Pedro Regatão
Victor Correia
Joaquim Saial
José Francisco Alves
Pedro Soares Neves
Sérgio Vicente
Cristina Azevedo Tavares
Daniela Simões
Angela Ancora da Luz
Marta Traquino
Cristina Pratas Cruzeiro
Ar te Pública
Sílvia Câmara
Mauro Trindade
Introdução
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

A
o longo de mais de meio século de
produção teórica dirigida ao estu-
do da arte pública, podemos hoje
identificar várias linhas de pensamento que
originaram diferentes perspetivas e abor-
dagens ao tema. À luz dessa investigação
produzida em diversas partes do mundo,
foi possível constituir um quadro teórico
específico para a compreensão e análise
deste fenómeno. Isto permitiu obter algu-
mas respostas para as questões que se co-
locavam sobre o assunto, nomeadamente
a questão de fundo que se prende com a
origem e significado da arte pública, mas
também com a sua função na cidade con-
temporânea. Sabemos hoje que as cidades
enfrentam diversos desafios não só em ter-
mos urbanísticos e arquitetónicos, com a
necessidade de planificar e organizar o es-
paço, mas também no campo da sustenta-
bilidade, da preservação do património e
da sua estética urbana.

Depois de alcançado um relativo consenso


sobre o significado do termo, bem como o
reconhecimento da sua autonomia discipli-
nar, surgiram ao longo das últimas décadas

<<
diversos desafios a esta disciplina. É impor- são evidentes quer do ponto de vista esté-
tante referir o desenvolvimento de determi- tico, quer na sua dimensão social e econó-
nadas vertentes que vieram expandir este mica, como testemunham diversos estudos
campo teórico, como é o caso da street art que avaliaram o seu impacto. A importân-
que nos tem oferecido uma produção artís- cia da implementação destes programas,
tica diversa e estimulante. Para além do for- que em boa parte tiveram na base um sen-
te impacto que gerou no espaço público, tido de valorização do espaço urbano, pro-
as propostas daqui resultantes destacaram- porcionou a criação de obras artísticas que
-se pela sua originalidade e poder subver- constituem hoje referências locais e inter-
sivo. Neste sentido, não só revitalizaram o nacionais. Seja, de natureza permanente ou
lado da contra-cultura da arte, como fizeram efémera, proliferam programas de arte pú-
emergir novos campos de debate que se blica um pouco por todo o mundo, tendo
afiguram profícuos para o desenvolvimento em vista melhorar esteticamente o ambien-
desta disciplina. te urbano e proporcionar uma melhor qua-
lidade de vida ao cidadão.
É estimulante perceber que a arte pública é
uma área de estudo dinâmica, inesgotável Esta primeira edição da Revista Convocarte
e universal, na medida em que é constan- dedicada ao estudo da Arte Pública, cons-
temente alimentada pela produção artísti- titui-se enquanto espaço aberto para a dis-
ca contemporânea e se concretiza no quo- cussão, partilha e reflexão sobre uma das
tidiano das nossas cidades. Por outro lado, problemáticas mais atuais e pertinentes
continua a reinventar-se revelando grandes dos estudos artísticos. Aqui se reúnem um
possibilidades expressivas, através de pro- conjunto de ensaios produzidos por alguns
postas que promovem novas experiências dos principais especialistas e investigado-
estético-percetivas. A popularidade que al- res do tema, que analisam e abordam o fe-
cançou nos nossos dias, derivado de uma nómeno em diferentes perspetivas. Esta
maior atenção por parte de particulares e publicação universitária não só representa
instituições, aparece formalizada no discurso uma oportunidade para incentivar o estu-
público da “sociedade hipermoderna”. Para do e a reflexão sobre a arte pública, como
esse efeito, também se observa a exposição também contribui para a consolidação e o
mediática de algumas obras e artistas, contri- avanço do conhecimento desta área.
buindo em boa parte para o alargamento do
interesse por esta área artística. José Pedro Regatão

Como nunca antes, a arte pública tornou-


-se exemplo de desenvolvimento urbano e
modernidade, um fator de prestígio e noto-
riedade para as cidades, com capacidade
de imprimir uma imagem forte e atrativa no
contexto internacional. Os seus benefícios

13
As Origens Históricas da Arte Pública

por José Guilherme Abreu


Doutor em História da Arte, professor, investigador e conferencista membro
do Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes da UCP-Porto.

Our study states the role that applied arts, as they were
meant by Arts and Crafts movement’s socialistic ideario,
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

have had in the expansion of the concept and use of 1. Introdução


art works, beyond the values of formal and symbolic A história da Arte Pública é um lugar cego
representations which have supported the academic no âmbito do seu estudo, e se é verdade
system of the fine arts since the Renaissance. que desde as últimas décadas do século
By Modern Public Art, we refer to the movement XX a investigação sobre este segmento de
launched, under the designation of “Public Art”, by a produção artística tem conhecido um de-
series of “Public Art Societies” which were created both senvolvimento notável na bibliografia an-
in Europe and North-America in the last quarter of the glo-saxónica e mais recentemente, em caste-
19th century, having as first major public appearance the lhano e até em português, os trabalhos têm
cosmopolitan stages of the Great Universal Expositions. incidido essencialmente sobre casos de es-
This international movement came to an end after the tudo, desde obras, projetos ou intervenções
first decade of the 20th century, due to the growth autorais, para se estender, nos contributos
of international political, economic and bellicose mais interessantes, a programas de regene-
antagonism, which first lead to the raise of nationalistic ração urbana ou de participação comunitá-
ideologies and soon to military confront, blocking the ria, onde são analisadas sobretudo as lingua-
young international movement in favour of Public Art. gens plásticas, as estratégias de produção
artística e, por vezes, as tensões causadas
pela receção pública das obras, sendo assim
residuais os trabalhos sobre os problemas e
os conceitos de uma teoria da Arte Pública,
que globalmente está por estabelecer.

Finalmente, importa esclarecer um ponto


preliminar de fundo. É problemático locali-
zar a origem da Arte Pública no passado
remoto, como Roma, Atenas, Egipto,  Índia,
Camboja, etc., porque em última análise
essa é uma atribuição nossa. Na época, a

<<
produção monumental não se designava bito da sua abrangência, âmbito esse que,
Arte Pública, porque não existiam coleções como parece óbvio, se encontra em fase de
privadas que dela se diferenciassem, e que problemático e inusitado alargamento.
com ela estabelecessem uma coabitação
ou tensão dialéticas. Tentado encontrar uma correspondência
histórica, uma revolução similar, ou pelo
Foi na Bélgica e nos Estados Unidos, em fi- menos equivalente, ocorreu no século XIX
nais do séc. XIX, que pela primeira vez sur- com a delimitação das cidades, depois de
giram sociedades que explicitamente se terem sido suprimidas as suas muralhas. De
designavam como promotoras da Arte Pú- espaços bem definidos e confinados, as ci-
blica, devendo por isso situar-se aí as ori- dades tornaram-se espaços difusos. Abri-
gens do ciclo da Arte Pública moderna: ram-se ao território circundante, perderam
aquele em que a Arte Pública se opõe ao o aspeto de estruturas fechadas, mas como
sistema de coleções mercantilizadas e/ou é evidente não desapareceram. Pelo contrá-
institucionalizadas de obras de arte. rio, expandiram-se, tornando-se metrópoles
e agregando-se em extensas conurbações.
2. Complexo conceptual da Arte Pública
Como refere José Bragança de Miranda, a Assim sendo, um primeiro problema surge:
noção de espaço público presentemente en- sem poder usar a regra da delimitação to-
contra-se em crise, pois se não é controverso pológica, o que poderá em seu lugar servir
o seu significado, mais problemático se tor- de critério para delimitar o conceito de Arte
na proceder à sua delimitação, pois como o Pública?
autor afirma “o que está entrando em crise é
a noção de um espaço público bem definido, Para o fazer, a nossa proposta é utilizar um cri-
um espaço entre outros, como seria o sector tério, por assim dizer, programático. Em vez
privado, o governo, ou o estado”1. de um critério único e exclusivo, preferimos
reunir uma série de aspetos e de premissas
Importa tirar desta circunstância as devidas (uma organização sistémica) que permitam
ilações, pois não sendo o conceito de espa- estabelecer um corpus coerente e que resul-
ço público, pelo menos atualmente, um con- tem de um modus operandi comum.
ceito bem delimitado, tornam-se destituídas
de valor epistemológico todas as definições Ou seja, em vez de definir um conceito, es-
que se estabeleçam, tomando como ponto tabelecer um complexo conceptual.
de partida esse critério, facto que serve para
evidenciar desde logo o carácter equívoco E esse complexo conceptual formula-se
da expressão “Arte no Espaço Público”. como corpus e modus operandi de um
ideário.
O facto da noção de espaço público se ter
tornado difusa e multidimensional, denota a E qual seria o ideário da Arte Pública?
revolução pelo que tem vindo a passar o âm-

– JOSÉ GUILHERME ABREU 15


Fazendo jus ao sentido etimológico da no- mesmo tempo que provoca comportamen-
ção de coisa pública, o ideário da Arte Pú- tos públicos de rejeição, senão mesmo de
blica traduz-se hoje, porventura, algo utopi- mutilação ou destruição das obras, desde
camente, a partir de duas facetas opostas: logo porque as mesmas não gozam de pro-
teção e ficam expostas a agressões desen-
Por um lado, pelo programa inclusivo de cadeadas por diferentes motivos, como, por
englobar num mesmo corpus, ou seja, num exemplo, por constituírem representações
mesmo conjunto de objetivos e de resulta- de poderes prepotentes ou corruptos, por
dos, a totalidade dos artistas e a totalidade expressarem memórias dolorosas ou trau-
do público. máticas e/ou por manifestarem linguagens
plásticas obsoletas ou herméticas.
Por outro lado, pelo modus operandi restri-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

tivo, ou seja, pelo seu regime específico de Pelo acima exposto, a nossa tese é que aqui-
produção, distinto do restante segmento lo que melhor caracteriza e diferencia a Arte
das artes plásticas. Pública é a circunstância da mesma ser de-
tentora de um ideário que a diferencia das
Para compreender adequadamente o regi- restantes modalidades de produção artísti-
me de produção da Arte Pública, importa ca, na medida em que visa aproximar a arte
convocar a distinção que Nelson Goodman dos cidadãos, usando meios, linguagens e
estabelece entre artes autográficas e artes formas que sirvam para o seu uso, prazer e/
alográficas2. ou instrução.

Como explica Antoni Remesar, a dimensão Ironicamente, porém, o público é atualmen-


alográfica da Arte Pública, para além do te muito heterogéneo e, por isso, a Arte
sistema de notação que a mesma utiliza, é Pública confronta-se com a dificuldade de
condicionada pelos seguintes fatores: constituir o seu próprio público, o qual em
consonância com o seu ideário não poderá
“En el caso del Arte público la alogenera- ser senão a totalidade do público.
ción proviene de forma sistemática del aná-
lisis del contexto y de las características del 3. A formação da Arte Pública Moderna
emplazamiento. Ambos factores pueden Pareceu-nos útil começar pela ingrata ques-
obligar a la introducción de modificaciones tão da definição da noção de Arte Pública,
sustanciales en el modo de relación estética pois sem definir o seu âmbito, dificilmente
entre el escultor y la obra”3. se pode avançar no sentido de saber donde
a mesma procede historicamente, pois se o
O regime de produção inerente à Arte Pú- critério espacial se apresenta como inade-
blica impõe, como se sabe, uma limitação quado para servir de fronteira delimitadora,
fortemente condicionadora da criação ar- também os critérios formal ou tipológico se
tística, e obriga a uma negociação que não afiguram não mais adequados do que aque-
é amável para a totalidade dos artistas, ao le, já que no âmbito da Arte Pública contem-

<<
porânea se encontram exercícios formais ou Vamos abordar aqui somente o primeiro
tipologias que não se distinguem dos res- dos dois núcleos, que de resto é o mais re-
tantes segmentos de produção. levante para o conhecimento da origem da
Arte Pública moderna.
De resto, retomando o raciocínio, o ideário
particular que diferencia hoje a Arte Públi- Esse núcleo organizou-se na Bélgica, como
ca não é inédito, e inclusive para melhor o legado e adaptação do movimento Arts and
captar e analisar, convém mesmo remontar Crafs, que irrompeu, na segunda metade
às suas origens, pois é ali que se descobrem do século XIX, na Grã-Bretanha, à volta de
os enunciados e os preceitos que a esse tí- John Ruskin de William Morris.
tulo são mais esclarecedores.
Como o manual de leitura do tradutor e
É que a Arte Pública, contrariamente ao que professor holandês Taco de Beer o demons-
a literatura anglo-saxónica tem sustentado, tra4, o livro “News from Nowhere” de William
não tem origem nos programas Art in Ar- Morris é ali mencionado, comprovando-se
chitecture do após-guerra, nem sequer nos assim a receção do movimento Arts and
programas do New Deal, como o Federal Crafts nos Países Baixos, logo em 1874.
Art Project ou o National Edowement for the
Arts, lançados pela Administração Roose- De citado e conhecido nos Países Baixos
velt, nos Anos 30. em 1874, a partir da década seguinte o
movimento britânico passa a ser adotado
A sua origem é bastante anterior, já que re- e difundido por Henry van de Velde, que
monta à segunda metade do século XIX, na o dissemina pela Bélgica e pela Alemanha,
medida em que o embrião mais antigo da definindo uma estética de caráter ornamen-
Arte Pública se forma na Europa como pro- tal e utilitário, sob a égide e o primado das
longamento natural do movimento Arts and Artes Aplicadas.
Crafts, de onde procede, justamente, o seu
ideário, e onde vem beber os enunciados O segundo núcleo surgiu nos Estados Uni-
estéticos e programas artísticos que logo dos, depois da Exposição Universal de Chi-
adota e proclama. cago (1893), influenciado pelo revivalismo
neoclássico e pelo ecletismo arquitetóni-
Ligeiramente mais recente do que este, um co da École des Beaux-Arts de Paris, e teve
segundo núcleo com características diver- como principais mentores o arquiteto nor-
sas forma-se também nos Estados Unidos, te-americano Daniel Burnham e o escultor,
em torno do movimento City Beautiful, de- também norte-americano, Augustus Saint-
notando este características monumentais -Gaudens, mediante uma conceção sobre-
e ecléticas, ao passo que o movimento Arts tudo monumental, sob a designação de
and Crafts possuía características ornamen- City Beautiful Movement, como já vimos.
tais e socializantes, na mira do tal ideário.

– JOSÉ GUILHERME ABREU 17


Sobre o movimento belga, num estudo re- leurs œuvres les principes auxquels Morris
cente, o professor Lieske Tibbe refere: n’avait fait que préluder”6.

“The first Dutch publication in which William E o historiador, logo a seguir, introduz dois
Morris was mentioned dates from 1874. In novos aspetos que são determinantes para a
that year a textbook on English literature for fundamentação da tese de que a Arte Públi-
secondary education introduces Morris as a ca moderna tem a sua origem nas Artes Apli-
lesser known though gifted author. In 1890 cadas:
‘A kings’s lesson’ (‘De les van eenen koning’)
appears in the popular weekly De Amster- “Un des artistes venus après Morris, dont le
dammer. This first translation of Morris’s was nom s’identifie le mieux avec le mouvement
followed by translation of News from Nowhe- dont il s’agit, fut Henry Van de Velde. Dans
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

re, to be published in installments in the so- le vaste domaine de l’art appliqué, aucune
cialist magazine in Recht voor Allen. This pu- branche n’a échappé à son action. Le meuble,
blication was not finished, but a complete l’appareil d’éclairage, le bijou, le papier
translation was published as a book in 1897. de tenture, voire la céramique et la reliure
By then Morris was already a rather well-k- appartiennent à son domaine. Tous ont été
nown figure in socialist and artistic circles. de sa part l’objet de combinaisons non seu-
The bibliography shows that also during the lement ingénieuses, mais d’un goût délicat”7.
20th century a small but constant stream of
publications on his life and work has appea- O pintor e arquiteto belga Henry van de Vel-
red in the Netherlands and Flanders”5. de foi um recetor atento da literatura (e do
ideário) do movimento Arts and Crafts e, logo
Outro testemunho coincidente, e mais anti- em 1894, publicava um artigo na revista La
go, encontra-se na obra, por assim dizer clás- Société Nouvelle com o título “Déblaiement
sica, do historiador da arte de nacionalidade d’Art”8 (Depuração da Arte), onde anunciava
belga Henry Adriaan Hymans, que citando o fim da “pintura de cavalete”, pois esta ha-
um artigo da revista francesa L’Art Décoratif, via-se tornado decadente e de mau gosto,
publicado em 1 de outubro de 1898, refere: por se colocar ao serviço da “corrompida e
caduca” sociedade burguesa, como explica:
“L’Angleterre, qui donne le signal du départ
dans la voie des transformations, s’est arrêtée “Ce qui ne profite qu’à un seul est bien près
en chemin successeurs de Morris et de Crâne d’être inutile et dans la société prochaine, il
s’immobilisent dans l’œuvre de ces premiers ne sera considéré que ce qui est utile et profi-
apôtres de l’art nouveau. Leurs vrais continua- table à tous. Et quand les artistes songeront à
teurs sont les Belges qui, reprenant le mou- faire œuvre utile, ce qui ne les déconsidérera
vement anglais à l’origine, surent en dévelo- aucunement, ce sera la fin du tableau, de la
pper les conséquences, débarrasser la voie statue qui sont des expressions épuisées et
des attaches au passé, trouver les formes scrofuleuses”9.
nouvelles, et surtout définir nettement dans

<<
Henry van de Velde não estava sozinho neste
ideário a favor de uma nova arte ornamental
e aplicada e dedicou-se mesmo a projetar e
construir obras públicas, incluindo memorais
arquitetónicos e monumentos escultóricos.

Além de Van de Velde, e mesmo anterior a


este e com consequências práticas notáveis,
importa referir a figura do arquiteto belga Henry Van De Velde e Harry Graf Kessler, Memorial a Friedrich
Charles Buls (1837-1914), o notável burgo- Nietzsche, 1910-14, Weimar (não construído).
Fonte: Hartmut Frank, Architettura, guerra e ricordo, In, La Rivista di
mestre de Bruxelas, que foi juntamente com Engramma (online), nº 113.

Ildefonso Cerda (1815-1876) e Camillo Sitte


(1843-1903) um dos pioneiros do urbanis-
mo moderno e um ativo promotor da Arte
Urbana, com destaque para o restauro da
Grand Place de Bruxelas, onde se encontra
um memorial à sua pessoa e obra.

Vejamos alguns dados da sua vida e obra:

Em 1837, nasceu em Bruxelas, filho de um


joalheiro.
Em 1862, ingressa na loja maçónica Les Vrais
Amis.
Em 1864, ajuda a fundar a Ligue de l’Enseig-
nement.
Em 1867, escreve o Cours d’Histoire des Arts
Décoratifs.
Em 1874, projeta o Musée des Arts Indus-
triels.
Em 1877, é eleito conselheiro municipal
pelo Partido Liberal.
Em 1879, projeta a École Modèle.
Em 1881, é eleito Burgomestre de Bruxelas, Victor Horta (arq.) e Victor Rousseau (esc.), Memorial ao
burgomestre Charles Buls, 1899, Bruxelas.
sucedendo a Jules Anspach.
Foto do autor.
Em 1893, publica L’Esthétique des Villes.
Em 1894, preside à associação L’Œuvre d’art
apliqué à la rue.
Em 1899, abandona o lugar de Burgomestre
de Bruxelas.

– JOSÉ GUILHERME ABREU 19


Um minucioso estudo da sua vida e obra Segundo a investigadora Céline Cheron, te-
realizado pelo professor Marcel Smets ca- ria sido esta a história da criação desta so-
racteriza a sua ação à frente do governo do ciedade:
Município de Bruxelas, como se segue:
“La naissance de l’Œuvre de l’art appliqué
Política urbanística de inspiração pragmáti- à la rue et aux objets d’utilité publique est
ca e realista. le résultat d’une réflexion s’inscrivant en
Gestão municipal como uma escola de plein cœur du parcours artistique de l’ar-
aplicação. tiste-peintre et esthète Eugène Broerman
Renúncia ao urbanismo de grandes gestos. (1861-1932). Premier lauréat du prix Go-
Revalorização de um passado glorioso. dercharle en 1881, il obtient une bourse
Reabilitação dos sítios históricos. qui lui permet de visiter les plus belles villes
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Intervenções pontuais: Grand Place, Petit d’Italie: Rome, Naples, Florence, Ravenne,
Sablon, Joseph Stevens… Venise, etc. Il est frappé par la beauté ur-
Pioneiro da aglomeração urbana planificada. baine et l’harmonie qui règne de manière
Valorização do décor urbano: concursos de ambiante dans ces villes. De retour en Bel-
arte decorativa. gique, il débute son activité d’esthète en
Promoção do turismo: Société Bruxelles-A- rédigeant un essai intitulé «L’Art régénéra-
ttractions. teur». Il y dépeint sa volonté d’un art nou-
Criação de um cupão municipal de trans- veau basé sur une renaissance esthétique et
porte social. sociale et le souhait de réformer l’art de la fin
Criação de uma tarifa única em todos os du XIXe siècle ainsi que les institutions qui
tramways (elétricos) para os turistas. lui sont consacrées. Il donne à cet art le nom
d’«art public»”10.
Sob a sua inspiração, em 1893 foi criada em
Bruxelas uma sociedade de artes decorati- No artigo L’Art Régénérateur é utilizada,
vas com a designação de “L’Œuvre de l’art provavelmente pela primeira vez, a expres-
appliqué à la rue et aux objets d’utilité publi- são Arte Pública para designar um segmen-
que”, que teve como promotor inicial o pin- to de produção artística destinada a todos
tor Eugène Broerman, e que logrou obter os cidadãos, expressão essa que, segundo
a colaboração dos arquitetos Victor Horta Marcel Smets, surgia como abreviatura do
e Edmond de Vigne, do pintor Alfred Cuy- nome da referida Sociedade, demasiado
senaar, do escultor Jef Lambeaux, entre ou- longo para ser usado comodamente como
tros nomes bem conhecidos. designação. Por outro lado, a ideia apre-
sentada no referido artigo de Broerman11
A partir de abril de 1894, essa sociedade se- não era inédita, tendo colhido a sua origem
ria presidida pelo próprio Charles Buls. em Saint-Simon, como já foi observado por
Marguerite Thibert12.

<<
Os objetivos da mencionada Sociedade de
Artes Decorativas bruxelense eram:

“Créer une émulation entre les artistes, en


traçant une voie pratique où leurs travaux
s’inspirent de l’intérêt général ;

Revêtir d’une forme artistique tout ce qui se


rattache à la vie publique contemporaine.

Transformer les rues en musées pittoresques


constituant des éléments variés d’éducation
pour le peuple;

Rendre à l’Art sa mission sociale d’autrefois, Association L’Art appliqué à la Rue et


aux Objets d’Utilité Publique, 1895,
en l’appliquant à l’Idée moderne dans tous les
Relatório de atividades
domaines régis par les pouvoirs publics”13.

O conceito de Arte Pública proclamado por


essa Sociedade enunciava-se como se segue:

“L’Art public, c’est-à-dire, le sublime de l’uti-


le dans la vie publique, était anciennement
une règle de civilisation à laquelle on ne dé-
rogeait que sous peine de déchéance mora-
le, tandis qu’aujourd’hui, il est une exception,
et la vulgarité de l’utile dans la vie publique
est devenue générale!”14

Esta sociedade de Artes Aplicadas tem rele- Société L’Œuvre de l’Art à la Rue et aux Objets d’Utilité
Publique, Sala na Exposição Internacional de Bruxelas, 1897,
vância não tanto pelas suas consequências
Académie Royale des Beaux-Arts, Bruxelles, p. 172.
práticas, uma vez que centrou a sua ação
mais na esfera da propaganda do seu ideá-
rio, do que na promoção de programas de
intervenção.

Ainda que, na sua origem, tivesse organi-


zado alguns concursos para desenho de
“fachadas, reclames, candelabros, fontes,
Quiosques e mesmo selos postais”, o impac-

– JOSÉ GUILHERME ABREU 21


te efetivo desta Sociedade de Arte Pública
na produção artística não foi de grande al-
cance, tendo mesmo sido criticada pela defi-
ciente qualidade estética dos seus modelos.

Não tendo grande impacte na produção


efetiva, o mérito maior desta Sociedade foi
lograr desencadear um movimento inter-
nacional a favor da Arte Pública, que teve
a sua primeira apresentação pública na Ex-
posição Universal de Bruxelas, em 1898,
onde ocupou um espaço de exposição das
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

suas iniciativas.
Catálogo do I Congresso Internacional
de Arte Pública, 1898, Bruxelas.
Esse movimento culminou na organização
de quatro congressos internacionais, entre
os anos de 1898 e 1910, que se realizaram
em Bruxelas, em 1898, em Paris, em 1900,
em Liège, em 1905, e de novo em Bruxelas,
em 1910. Esses Congressos reuniram um
grande número de representações oficiais,
as quais compreenderam destacadas figu-
ras dos governos de países da Europa, da
América do Norte o do Sul, e Ásia, entre os
quais se encontrava uma representação ofi-
cial do Município de Madrid15, assim como
de dezenas de Câmaras Municipais, entre
as quais as de Lisboa e de Coimbra.

Revista L’Art Public, nº II, 1908, Bruxelas. Além disso, dois destes congressos produ-
ziram importantes catálogos16, a partir dos
quais é possível traçar as linhas mestras da-
quele que foi o primeiro programa inter-
nacional de desenvolvimento de uma Arte
para Todos, sendo uma das resoluções do
Congresso de Liège de 1905 fundar um Ór-
gão Internacional permanente a favor da
Arte Pública, órgão esse que teve a desig-
nação de “Institut Internacional d’Art Public”,
o qual, a partir de 1907, teve como porta-

<<
-voz a revista L’Art Public, que se editou até 4. A condição contemporânea da Arte
1912, num total de doze números. Pública
Relativamente à situação atual da Arte
Não cabe aqui esmiuçar os êxitos e os ma- Pública, consideramos que a presente
logros deste movimento pioneiro a favor da condição é inversa, comparativamente à
disseminação do ideário da Arte Pública. original. Hoje, o seu conceito é claramente
mais limitado.
Em vez disso, que requeria um outro de-
senvolvimento e fôlego, para a nossa inda- Se é certo que os conceitos, as formas, as
gação em torno da origem e da natureza linguagens e as problemáticas que ema-
da Arte Pública, importa apurar o horizonte nam da estética contemporânea têm conta-
de aplicação do conceito de Arte Pública minado a Arte Pública e, correlativamente,
enunciado e praticado por este movimen- se não é menos verdade que a Arte Pública
to internacional. tem por seu turno contribuído para introdu-
zir novas possibilidades e novos meios de
Sobre este aspeto particular, Marcel Smets intervenção estética, o que acontece é que
observa: presentemente mau grado toda essa diver-
sidade se concentra quase exclusivamente
“Ce qui frappe surtout c’est l’extrême diver- no território das artes plásticas, o que não
sité des sujets qu’on y aborde. L’Art Publique sucedia com o referido movimento belga,
s’applique aussi bien à l’éducation qu’au onde o universo de incidência abrangia as
théâtre, à la législation, la restauration, les áreas que passamos a discriminar:
qualités et la profession de l’artiste, la con-
servation, des sites, le tracé urbain et le l’as- Educação
pect du domaine public. Au cours des douze Teatro
années qui séparent le premier congrès du Legislação
dernier, aucun de ces domaines ne s’impo- Restauro
sent, même si le nombre de contributions se Música popular
rapportant à l’aménagement urbain s’accroit Mobiliário urbano
graduellement”17. Profissão artística
Conservação de sítios
Refletindo sobre estas palavras, importa ad- Traçado urbano
vertir para o caráter ao mesmo tempo pro- Aspeto do domínio público
gressista e conservador deste movimen-
to. Por um lado, muito avançado no que Pelas áreas listadas, percebemos que o mo-
se relaciona com a amplitude da noção de vimento a favor da Arte Pública se concebia
Arte Pública que defendia. Por outro, muito não apenas como uma dinâmica de produ-
conservador pelos seus referenciais estéti- ção artística, mas também, e de forma parti-
cos, sendo o mais relevante a escultura rea- cularmente atenta, como um movimento de
lista de Constantin Meunier (1831-1905). defesa patrimonial.

– JOSÉ GUILHERME ABREU 23


Sem denotar um distanciamento crítico rela-
tivamente aos modos, métodos e resultados
da produção artística de caráter historicista,
o movimento a favor da Arte Pública de fi-
nais do século XIX foi refratário relativamen-
te às teses, às práticas e aos objetivos da mo-
dernidade emergente, aspeto que contribui
para a erosão da sua orientação estética.

Contrariamente, a condição atual da Arte


Siah Armajani, Star Tribune, 1994. Pública é inversa em relação à das origens.
Fonte: Kimberly Smith, Dml - Ajc Staff Star Tribune
Em termos estéticos, atualmente prevalece
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

o experimentalismo e a diversidade dos te-


mas, das linguagens plásticas e das tendên-
cias artísticas, mas esse experimentalismo e
autonomia, por sua vez aparece confinado
quase exclusivamente ao território das Artes
Plásticas.

Se se excetuar esta discrepância de campo


de aplicação, a Arte Pública bruxelense de
finais do século XIX e a Arte Pública de finais
do século XX apresentam uma continuida-
de estrutural que permite, na teoria e na
prática, reconhecer a manutenção do con-
ceito original, e pensamos que essa conti-
nuidade se descobre no Manifesto da Es-
cultura Pública de Siah Armajani, que abriga
um ideário muito similar, como se percebe
pelas seguintes passagens:

7. A escultura pública tenta preencher o


fosso que se forma entre a arte e o públi-
co, para fazer com que a arte seja pública e
com que o artista seja um cidadão outra vez.

14. A maior parte da dimensão ética das


artes perdeu-se e só poderá recuperar-se
através da redefinição da sua relação com
um público não especializado.18

<<
Por isso, consideramos que o significado da O movimento a favor da Arte Pública na Bél-
Arte Pública contemporânea se esclarece gica fracassou e, notoriamente, não resistiu
com maior acuidade a partir da compreen- ao embate da modernidade, que pela mes-
são do nascimento e do ocaso do movi- ma época começava a apresentar resulta-
mento belga a que nos vimos referindo. dos que Broerman não foi capaz de prever
ou assimilar.
Assim, se os fatores da formação da Arte
Pública moderna na Bélgica, hoje, nos pa- Tentando sintetizar, o tema da origem e do
recem claros, e se os mesmos se podem significado atual da Arte Pública, parece-
relacionar com a afirmação económica e -nos legítimo retirar as seguintes ilações:
política da Bélgica oitocentista, sob o subs-
trato do seu desenvolvimento industrial e O âmbito da Arte Pública confina-se hoje à
sua independência política, o impasse (e esfera das artes plásticas, sendo mais limita-
posterior ocaso) do movimento belga dos do do que nos finais do séc. XIX.
Congressos Internacionais de Arte Pública,
segundo Marcel Smets, explica-se assim: A Arte Pública emergiu da modernidade
sob o primado das Artes Aplicadas, mas a
“Les Congrès de l’Art Public ne donnent pas modernidade rejeitou o ideário utópico da
lieu à des tendances affirmées. Ils se distin- primeira, privilegiando o primado da inova-
guent par l’émulation qu’ils provoquent, et ção estética e da vanguarda.
par la coexistence en leur sein de tendan-
ces contradictoires qui caractérisent l’avè- A modernidade emergente hostilizou qual-
nement d’une discipline en formation. Leu- quer a ideia de continuidade, provocou a
rs apports concernant l’urbanisme sont dus blocagem do ideário utópico da Arte Públi-
à des contributions personnelles et non au ca e levou à perda da sua identidade.
débat entre participants. À aucune de ces
quatre assemblées, les communications ne O surto atual de arte pública contemporâ-
font preuve d’innovation. Elles semblent tout nea resulta do desbloquear do movimento
au moins destinées à vulgariser le savoir do final do séc. XIX, operado pela pós-mo-
professionnel de l’époque et il parait logi- dernidade, reabilitando a função cívica, uti-
que que Buls ait réservé à d’autres réunions, litária e lúdica da obra de arte, ligando-se
plus spécialisés, les allocutions qui reflètent à vida.
le plus étroitement ses conceptions concer-
nant l’aménagement urbain. Il est plus que
symptomatique que le dernier Congrès de
l’Art Public se soit déroulé presque en même
temps que la Fameuse Town Planning, Con-
férence de Londres, sans que ses initiateu-
rs à Londres, se soient aperçus qu’ils étaient
dépassés par les évènements”19.

– JOSÉ GUILHERME ABREU 25


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p. 233. 14
Ibidem, p. 18.
6
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Presidida por Enrique Fort,
et XIX Siècle dans les Pays Bas. professor na Escuela Superior de
Bruxelles : Académie Royale de Arquitectura de Madrid.
Belgique, vol. IV, 1921, p. 345. 16
AA.VV., Premier Congrès
7
Idem, ibidem. International de l’Art Public tenu a
8
Título de una conferencia Bruxelles du 24 au 29 septembre
pronunciada, en 1894, por Henry 1898. [S.l., Académie Royale
van de Velde, durante la exposición des Beaux-Arts., s.d.] ; AA.VV.,
anual del grupo artístico de IIIe Congrès International de
Bruselas “La Libre Esthétique”. l’Art Public tenu à Liège 12-21
9
VELDE, Henry van de – Septembre 1905. [S.l., Académie
Déblaiement d’art. Bruxelles: Royale des Beaux-Arts., s.d.]
Archives d’Architecture Moderne, 17
SMETS, Marcel – Charles Buls. Les
1979 (1895), p. 20. Principes de l’Art Urbain, Liège :
10
CHERON, Céline – L’Œuvre de Pierre Mardaga, 1995, p. 146.
l’art appliqué à la rue et aux objets 18
ARMAJANI, Siah – Manifiesto:
d’utilité publique (1894-c.1905): La Escultura Pública en el
étude d’une société bruxelloise Contexto de la Democracia
d’art décoratif, in Actes du LVe Norteamericana, in AA.VV, Espacios
Congrès de la Fédération des de Lectura. Barcelona: Museu d’Art
Cercles d’Archéologie et d’Histoire Contemporani de Barcelona, 1995,
de Belgique, 28-31 Août. Namur, pp. 35-37.
Presses universitaires de Namur, 19
SMETS, Marcel – Charles Buls…,
Belgique, 2011, p. 701. p. 147.

– JOSÉ GUILHERME ABREU 27


Poéticas da Arte Publica Relacional:
Da Forma ao Agenciamento das Relações
como Motor da Obra

por Herbert Rolim


Artista-professor-pesquisador. Mestre em Letras pela Universidade Federal
do Ceará (2003), doutor em Belas Artes pela Universidade de Lisboa.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

This text discusses the relational aspects of urban art


from a conceptual and historical approach to public art
with relational aesthetics, based in “paradigms” thought Observações preliminares:
by José António Fernandes Dias (2007), “mediation” Podemos dizer que o aspecto relacional da
theorized by Nicolas Bourriaud (2009) and “variables” arte é algo “aderente” ao tempo, aliás como
summarized by José Teixeira (2009). Thus it points at sempre foi, na medida em que seu campo
the presence of a relational phenomenon used by the de conformação (artista/obra/espectador)
post-industrial society to upgrade the modern thought, opera enlaces, cuja recepção estética ressig-
under the perspective of the artistic vanguards in the nifica e completa seu sentido enquanto tal.
1960s, and also since the 1990s, it is understood as Sua “singularidade” atual, no entanto, frente
the agent of living space-times, that is, social exchange ao passado, está no modo com que este en-
manners, thanks to the participation and inter-subjective foque se acentuou, além do grau relacional
collaboration of a collective body, interested in que lhe é próprio. Com efeito, o sinal indica-
experiences on inter-human relations. tivo mais evidente de sua contemporaneida-
de está na razão de que o mais importante
são os aspectos relacionais (comunicacio-
nais) acima dos formais, sem inquietações
estéticas quanto à composição, equilíbrio,
uso de materiais e suportes restritos ao pla-
no artístico.É o que o crítico de arte e cura-
dor, Nicolas Bourriaud, chama “estética re-
lacional”. Para ele, compartilhar torna-se a
palavra de ordem, pela qual as práticas e
teorias intermedeiam as relações humanas:
“Suas obras lidam com os modos de inter-
câmbio social, a interação com o espectador

<<
dentro da experiência estética proposta, os complexidades que a expresão arte públi-
processos de comunicação enquanto instru- ca relacional abriga no seu itinerário histó-
mentos concretos para interligar pessoas e rico, com a ressalva de aqui limitar-se a uma
grupos” (BOURRIAUD, 2009, p. 60). síntese, longe de esgotar o assunto. Antes
disto, precisamos fazer notar que cada vez
Neste caso, conforme observa, mais do que mais o conceito de arte pública parece es-
os aspectos formais de um campo simbóli- capar a uma definição circunscrita, em ra-
co ou material, como território autônomo e zão do que achamos pertinente a longa
particular da arte, “atesta uma inversão radi- transcrição abaixo:
cal dos objetivos estéticos, culturais e polí-
ticos, postulados pela arte moderna” (p. 20) Definir uma arte que seja pública obriga a
no sentido de libertar-se da pureza da arte considerar  as dificuldades que rondam a
que não se mistura, o que altera a ideia de noção deste conceito. Em sentido literal, se-
progresso histórico (o “novo” e a superação riam as obras que pertencem aos museus e
do “novo”) de que os manifestos modernis- acervos, ou os monumentos nas ruas e pra-
tas do século XX foram reféns. É também o ças, que são de acesso livre.
que ele chama “obra de arte como inters-
tício social”, numa analogia às relações de (...) O sentido corrente do conceito refere-
escambo sem interesse de lucro, ante à eco- -se à arte realizada fora dos espaços tradi-
nomia capitalista, em que cambialmente se cionalmente dedicados a ela, os museus e
operam as trocas intelectuais, afetivas, críti- galerias. Fala-se de uma arte em espaços
cas, culturais etc., como produtos de sociali- públicos, ainda que o termo possa designar
dade. Do seu ponto de vista, trata-se de per- também interferências artísticas em espaços
ceber as práticas de arte cocntemporânea privados, como hospitais e aeroportos. A
mais pelo ângulo das “formações” do que ideia geral é que se trata de arte fisicamente
das “formas”, em que pesa, no lugar de suas acessível, que modifica a paisagem circun-
especificidades internas, estilo e assinatura, dante, de modo permanente ou temporário.
o valor das forças externas com que dinami-
za “relações entre indivíduos ou grupos, en- (...) A arte pública deve ser pensada  den-
tre o artista e o mundo e, por transitividade, tro da  tendência da  arte contemporâ-
relações entre o espectador e o mundo” (p. nea  de se voltar para o espaço, seja ele o
37) pelo que se potencializa sua capacida- espaço da galeria, o ambiente natural ou
de de diálogo com outras formações, sejam as áreas urbanas. Diante da expansão da
estas do âmbito artístico ou não. obra no espaço, o espectador deixa de ser
observador distanciado e torna-se parte
Dito isto, é o caso de trazer para a arte pú- integrante do trabalho (neste sentido, difícil
blica contemporânea considerações so- parece, algumas vezes, localizar os limites
bre a presença deste fenômeno, ou seja, entre arte pública e arte ambiental).1
as bases fundantes das bifurcações, inter-
secções, entrecruzamentos, conjunções e

– HERBERT ROLIM 29
Embora não haja um senso comum quan- no sentido inverso restringindo seu alcan-
to à sua definição, esta ambivalência de ce para o âmbito do particular.
conceitos não é excludente, pelo contrá-
rio, tem como base a mesma estrutura que Com estas observações iniciais, introduzi-
se forma a partir de um entendimento de mos o relacional na arte pública, ponto de
espaço público onde se operam as corre- partida para uma compreensão da fecundi-
lações entre “lugar”, como espaço compar- dade desse fenômeno, de sua penetração
tilhado; “público”, que são seus agentes in- vinculada às formas de significação estéti-
terlocutores; e “identidade”, pela qual se cas com base nas relaçoes convivais.
acionam as relações sociais e simbólicas. A
crítica de arte Lisette Lagnado diante das Paradigmas, mediações e variáveis da
mais de trinta respostas do que é arte pú- arte pública
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

blica, lançada pelo site “trópico” aos artis- No texto Arte pública: alguns paradigmas,
tas, críticos, historiadores e curados, chega o antropólogo e curador José António Fer-
à conclusão que: nandes Dias (2007, pp. 103-111) procu-
ra distinguir três paradigmas em torno da
trata-se de uma vontade de deselitizar a ideia de arte pública que, segundo ele,
produção artística, abrindo-a para a parti- “têm vindo a acontecer” e que são:
cipação coletiva, em resposta aos intolerá-
veis processos de exclusão em curso na so- 1 – “arte em espaços públicos”: a preocupa-
ciedade contemporânea. Cresce o tom de ção do artista está em evidenciar as qualida-
defesa da interdisciplinaridade entre as es- des estéticas do objeto artístico, enquanto
feras estéticas e sociopolíticas, debate que obra autônoma, em que a paisagem, na qual
envolve artistas e não-artistas.2 está inserida, funciona mais como uma mol-
dura, “sem que as características particula-
Em oposição à ideia de espaço privado, res do sítio como entidade física, arquitetô-
precisamos entender que há no espaço nica ou geográfica tenha outra importância
público um sentido de “«lugar comum» de que não os desafios formais de composição
absorção, presentificação, captação e res- que põem ao escultor” (p. 105).
tituição que comporta a ideia de «domínio
público» para a qual, na opinião do inves- 2 – “arte como espaço público”: a obra aqui
tigador José Guilherme Abreu (2003, pp. leva em conta as relações entre o ambiente
1-2), deve haver uma intencionalidade de e o público, o que tem a ver com a especi-
entrecruzamento dos “níveis de percepção ficidade do sítio (site-specific) e o desloca-
que visam à realidade, com os níveis de re- mento do espectador, recursos inicialmente
presentação visados pela consciência (...)” explorados pelo minimalismo que podem
com os quais as experiências e os hábitos tanto ser no sentido integrativo e assimilati-
culturais específicos são ativados e com- vo como interruptivo e intervencionista.
partilhados. Por outro lado, no espaço pri-
vado o comportamento intencional se dá

<<
3 – “arte no interesse público”: as relações ordem do relacional com o divino. Mesmo
entre o ambiente e os agentes culturais são em se tratando de obras em que os acon-
de outra ordem, para além das questões de tecimentos, o engenho e as conquistas hu-
fisicalidade e, normalmente, estão ligados manas sejam proclamados, há referências
a projetos temporários em que o público ao divino nessas crônicas visuais, como se
é componente de sua poética, “neste sen- o poder vigente a ele estivesse associado.
tido, é parte de uma problemática espacio- Este fenômeno, de forma mais ou menos
-política, é um discurso que combina ideias persistente, estendeu-se até o Renascimen-
acerca da arte, da arquitectura e do design to (Séculos XIV-XVI) quando a arte no seu
urbano, com teorias da cidade, do espaço campo mediador de relações passa a vol-
social e do espaço público” (p. 109). tar-se também para os espaços de interli-
gação entre homem e mundo, que dizem
Estamos nos referindo a uma arte que migra respeito ao lugar do indivíduo diante da ex-
do monumental para o conceito, da forma tensão do universo.
para a (form)ação, do lugar específico para
a impermanência da arte desenraizada e Estamos falando do segundo modo de pro-
efêmera, das relações espaço/tempo fecha- dução de arte quanto ao caráter relacional,
das para as zonas de convivência sócioes- ou seja, do homem e dele mesmo como su-
paciais, abertas, próprias da arte pública jeito do mundo, na condição de observador
relacional de nossos dias, em que conta as e de sujeito/objeto observado, isto graças
relações inter-humanas. Em face do modo aos avanços das ciências e das artes com a
como as relações são objetivadas, nas pa- perspectiva e o naturalismo anatômico de
lavras de Bourriaud (2009, p. 38) “seria pos- Leonardo da Vinci (1452-1519). A ideia de
sível escrever uma história da arte como a que a terra não era o centro do universo e
história desta produção de relações com o se movia num espaço contínuo, defendida
mundo, levantando ingenuamente a ques- por Galileu, foi fundamental para que as
tão da natureza das relações inventadas pe- concepções de espaço avançassem em di-
las obras”, alçando seu valor como proprie- reção ao século XVIII e alcançassem depois
dade singular e origem de sua razão de ser. seu sentido moderno, notadamente no que
Dessa forma é possível delinear um panora- diz respeito aos aspectos naturais e organi-
ma histórico conforme o vetor para o qual zacionais da vida em sua abrangência. Não
se incline o foco da arte: como mediador que a presença do divino se tivesse esvazia-
entre humanidade e divindade, humanida- do, no entanto sua representação havia se
de e mundo (objeto) e humanidade e rela- humanizado.
ções-humanas.
Para o fílósofo francês Michel Foucault
No primeiro caso, a mediação da arte en- (1998)3 o grande valor desta descober-
tre homem e desígnios divinos se dá nas ta está na passagem da noção de espaço
relações do indivíduo com o que se expan- como “localização”, em forma de fixação e
de para além dos limites ordinários, numa hierarquização quanto às especificidades

– HERBERT ROLIM 31
de natureza moral dos lugares (sagrado/ suas explorações entre “homem e objetos”,
profano, divino/humano, permitido/proi- tudo isto tem, em comum, a natureza rela-
bido etc.) assim pensada na Idade Média cional da arte, como já dissemos. Lembran-
(séculos V-XV) para o sentido de “exten- do que, no entanto, o que se altera agora é
são” face a amplitude e abertura do espa- o grau de sentido de “relação”, sofrido pe-
ço descoberto pelo homem, até chegar à los modos de pensamento e produção his-
compreensão de espaço hoje e aí não mais tórica da arte, que, sucessivamente, vão se
como extensão, mas como um conjunto de alterando ao longo do tempo, num deslo-
pontos ou elementos especializados e in- camento contínuo, em que as relações, an-
dividualizados que se conectam em rede, tes almejadas como fim, na atualidade, pas-
site, conforme sua ativação (privado/públi- sam a ser percebidas também como meio
co, doméstico/social, lazer/trabalho, local/ formal, isto é, enquanto forma relacional. É
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

universal, etc.), pela qual a organização da o que se vê neste terceiro delineamento, a


vida se realimenta. que chamos “humanidade e relações inter-
-humanas” – a socialidade em forma de arte.
Se antes os modos de comunicação com
a divindade eram cultivados em concomi- Sabemos que as linhas de mudanças con-
tância com as práticas das relações manti- ceituais e representativas não são assim tão
das entre o Homem e as coisas do mundo, demarcatórias que começam e terminam
agora essa conveniência relacional passaria em datas assentadas. No caso do século
por questionamentos inadiáveis. Em acor- XX, por exemplo, José Teixeira (2009) sinte-
do com o mundo físico que privilegiava o tiza “a diversidade de registos”, acontecidos
ser humano, as relações medianeiras da neste espaço de tempo. Voltando-se para o
arte passa a indicar novos direcionamentos caso da escultura, ele enumera um conjun-
com o Cubismo (1907), nas formas de rela- to de três variáveis de acordo com os “sis-
ções visuais do homem com os objetos de temas de pensamento” (Clássico, Moderno,
uso cotidiano (mesas, cadeiras, cachimbos, Contemporâneo) e “modos de representa-
violões, jornais...) “a partir de um realismo ção” (“representação”, “presentação”, “apre-
mental que reconstituía os mecanismos mó- sentação”) respectivamente. Isto quer dizer
veis de nossa apreensão do objeto” (BOUR- que, no decurso deste século, presencia-
RIAUD, 2009, p. 39), particularizando-os nas mos a ascensão, o declínio e permanência
relações com a realidade do mundo físico, embaralhada de algumas destas tendên-
antes generalizadas, se não na sua totalida- cias artísticas. Em algum momento, deu-se
de, pelo menos no que se refere a maioria a passagem do modelo de “representação”
das obras. do Clássico (1ª. variável) orientado pelo
sentido “mimético” da estatuária, para o
Tudo o que foi visto anteriormente, desde as modelo de “presentação” do Moderno (2ª.
origens remotas da produção de arte com variável) voltado para o conceito de “auto-
suas objetivações de mediação entre “ho- nomia” do objeto, e deste para o modelo
mem e divindade” até à modernidade com de “apresentação” do Contemporâneo (3ª.

<<
variável) que tem a ver com “interpretação/ Em 1955, simultâneo aos happenings, sur-
exibição” correspondente ao mixed media giu uma corrente interessada pelas ques-
dos dias atuais, em que estamos mergulha- tões do “movimento” na arte, como pôde
dos, cujo emersão deve-se às atualizações ser vista na exposição de Arte Cinética Le
do pensamento moderno pela sociedade Mouvement, na Galeria Denise René, em Pa-
pós-industrial. ris. Em reexame às teses estéticas do cons-
trutivismo russo, os artistas cinéticos pensa-
As vanguardas dos anos sessenta ram em como suas obras poderiam avançar
A entrada na década de 1960 é marcada no sentido ambiental, na forma como a pro-
por uma agitação que se aproxima da variá- blemática do tempo e movimento, antes le-
vel de “apresentação”, mencionada há pou- vantada por Pevsner (1902-1983) e Gabo
co. Comecemos apontando seus antece- (1890-1977) no Manifesto Realista de 1920
dentes, os happenings (acontecimentos) de em sua forma mais literal, se resolveria pela
1952, tidos como os primeiros, assim reco- experiência sensorial, recorrendo a efeitos
nhecidos, realizados na Carolina do Norte, físicos reais e virtuais, que dependiam de
Estados Unidos, pelo compositor, escritor uma articulação pró-ativa entre espectador,
e artista, John Cage (1912-1992) cuja teo- obra e ambiente.
ria musical influenciou fortemente o cenário
artístico de então, sobretudo no que se re- Por sua vez, a ligação da expressão Arte Pop,
fere à participação do público e à conjun- na década de 1950, com o repertório da
ção poética da música, teatro e artes plás- cultura de massa, acabou por se constituir
ticas em suas apresentações. Seu método em uma corrente que substituia a inflexão
de composição, que consistia na integração e o subjetivismo do Expressionismo Abstra-
do acaso e na posição do espectador em to por assuntos ligados ao meio urbano, no
situação de atenção e atitude participativa, qual procurava imiscuir-se. A princípio, sur-
isto para que a obra atingisse plenamente giu em Londres e, imediatamente foi assimi-
sua poética, orientou toda uma geração. lada pela sociedade consumista americana,
O artista Allan Kaprow (1927-2006) como bem à vontade com os produtos do capi-
seu aluno, soube explorar bem as lições do talismo urbano: períodicos, publicidade,
mestre: seus happenings tornaram-se refe- embalagens de produtos alimentícios e de
rência para os processos de assentamento higiene, eletrodomésticos, indústria da cul-
das categorias instalação e performance, tura e do entretenimento, imagens de ído-
enquanto campos agregadores, desde que los, enfim, tudo aquilo que escapara às van-
a Bienal de Veneza de 1976, com o tema guardas modernistas em relação à tradição
Environmental art, trouxe o assunto para o figurativa e realista da arte. O que vemos
centro das discussões, hoje largamente pra- a seguir é a colocação da obra de arte no
ticadas e fundamentais para o entendimen- patamar de identificação com os produtos
to das intervenções urbanas no âmbito da de consumo, sem o objetivo de buscar sua
estética relacional. institucionalização oficial, mas de sair dela
e comunicar-se com a sociedade em geral.

– HERBERT ROLIM 33
Simultânea à pop art, lembremos que, 1986), levou às últimas consequências, cuja
numa direção oposta a esta, havia também prática tinha por princípio pensar “relações”
uma plena ativação do movimento político, como forma de arte, educação e política, in-
social, artístico e cultural, movida pela Inter- tercambiáveis no sua forma de efetivação,
nacional Situacionista, que, desde 1957, na dialógicas enquanto prática ativista da arte,
Itália, vinha se pronunciando sob a influên- em função de que pautou sua vida/perfor-
cia do marxismo, cujo agitador mais co- mance de artista/professor/pesquisador ao
nhecido foi o teórico libertário, cineasta e fundar a Universidade Livre Internacional
escritor Guy Debord (1931-1994) autor de (F.I.U.) e estruturar um pensamento a que
A sociedade do espetáculo, sua obra mais chamou “escultura social”.
conhecida, escrita em 1967. No âmbito da
arte, ele fala em “superação da arte” para A maneira Fluxus de agir esteve presente
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

falar de arte como consciência crítica da também em Portugal, no dinamismo expe-


vida ordinária, pela qual não caberia “tra- rimental e polémico do artista português
duzi-la”, mas “ampliá-la” (JAPPE, 2008). Os José Ernesto de Sousa (1921- 1988) “ope-
situacionistas estavam interessados numa rador estético” como ele se autodenomi-
arte ativista, cujas linhas, entre arte e vida, nava, dada à liberdade com que transitou
deveriam entrecruzar-se, neste sentido não pela música, cultura popular, fotografia, ci-
haveria artistas, mas cidadãos que, entre nema, vídeo, jornalismo, rádio, educação e
outras atividades, fariam arte. crítica de arte, influenciando toda uma ge-
ração, motivada pelas suas ações, cursos,
O elenco de acontecimentos que carateri- publicações e palestras, entre as décadas
zou o início dessa segunda metade do sé- de 60 e 80, pelos quais videoarte, happe-
culo passado levou o artista plástico, mú- ning e performance foram introduzidos na
sico, teórico e historiador de arte, George cena artística portuguesa.
Maciunas (1931-1978), a entendê-lo como
um estado de “mudança social”, a que cha- Em direção às questões do âmbito relacio-
mou Fluxus, em torno do qual formulou al- nal, o Brasil dá sua contribuição com o mo-
gumas ideias e aproximou vários artistas. vimento chamado Neoconcreto, cujo mani-
Conhecido como um laboratório interna- festo, publicado no Jornal do Brasil, Rio de
cional de experimentações artísticas, Flu- Janeiro, de 21 de março de 1959, assinado
xus não seria um movimento ou um gru- pelo poeta, artista e crítico, Ferreira Gullar,
po fechado, mas, no entender do poeta e trazia a seguinte afirmativa: “É porque a
compositor, Dick Higgins (1938-1998), um obra de arte não se limita a ocupar um lugar
de seus participantes e teóricos: “uma ma- no espaço- mas o transcende ao fundar nele
neira de fazer as coisas, uma tradição e um uma significação nova – que as noções ob-
modo de vida e morte”, como assinalou Ken jetivas de tempo, espaço, forma, estrutura,
Friedman (1949) no famoso ensaio Forty cor etc., não são suficientes para compreen-
years of Fluxus4 Modo de vida Fluxus este der a obra de arte, para dar conta de sua
que o artista alemão, Joseph Beuys (1921- “realidade” (AMARAL, 1998, p. 273) numa

<<
clara alusão de esgotamento dos princípios todo orgânico por escala” (OITICICA, 1986,
formais de beleza ou de como estes esca- p.78). Trata-se de uma concepção que al-
pariam aos limites da retina. tera todas as anteriores categorias de arte
(pintura, escultura, etc.) baseada na liberda-
A obra de Lygia Clark (1920-1988) é de de meios e na proposição participativa
exemplar desse entendimento desde as do espectador.
pinturas de 1954 quando a artista extrapola
o campo pictórico e avança o espaço da Em paralelo, entre 1965 e 1968, nos Esta-
moldura, rompendo os limites que separam dos Unidos, despontava o Minimalismo, no
a ficção da realidade, e que Ferreira Gullar campo da escultura, particularizado pela fi-
chamou de não-objeto por não ser nem sicalidade, tamanho geralmente de gran-
pintura, nem escultura, nem objeto utilitário. des dimensões, construção simplificada
Segue-se daí um percurso que vai da pintura dos sistemas visuais, utilização de materiais
à escultura, da parede à participação do produzidos industrialmente (chapas de aço,
espectador e desta à extrapolação das lâmpadas tubulares, tijolos...) repetições de
fronteiras entre arte e vida com que chegou unidades independentes e, abstraçãoprin-
à Estruturação do Self (1976-1988) sua últi- cipalmente, distanciamento de qualquer
ma pesquisa de um “possível”, em que os personalismo lírico ou ideológico. Deste
sentidos de alteridade e corporeidade fo- pendor da arte minimalista, interessa abor-
ram trabalhados a título de resultados tera- darmos o que dele se pode observar em
pêuticos, quer dizer, os objetos tornam-se proveito do sentido de construção de lugar
dispositivos relacionais, pelos quais pro- e sua dimensão relacional. Na série Mirro-
positora, coisas e corpos (espectadores) se red Boxes, de 1965, por exemplo, em que o
harmonizam em uma totalidade. artista Robert Morris (1931) se utiliza de um
conjunto de cubos revestidos de espelhos e
De igual importância para o avanço do fa- os leva para a galeria, o “Caminhar em torno
tor de mediação relacional da arte, temos a e por entre as partes separadas desta escul-
pesquisa de Hélio Oiticica (1937-1980) que tura permite ao indivíduo vivenciar o espa-
se amplia da natureza complexa da estrutu- ço da galeria, o próprio corpo e dos outros
ra-cor, em seu estado puro como ação, ao como uma realidade fraturada e disjuntiva”
“projeto ambiental” de uma nova sensibili- (ARCHER, 2012, p. 57).
dade. O aspecto relevante deste projeto de
trabalho é, sem dúvida, o conceito de “ma- Surgidas daí, no final dos anos 1960, estas
nifestação ambiental” que é sua própria ma- questões se afinam com o conceito de site-s-
nifestação criadora, transformada em pro- pecificity (especifidade do sítio) algo como
grama (“programa ambiental”) e que está fisicamente preso às determinações do lu-
enraizada nos “Núcleos, Penetráveis, Bóli- gar, inicialmente ligado à ideia de site-spe-
des e Parangolés, cada qual com sua carac- cific (sítio especifico) no sentido do jargão
terística ambiental definida, mas de tal ma- da arte contemporânea de implicar o ob-
neira relacionados como que formando um jeto/escultura às características do espaço

– HERBERT ROLIM 35
físico e à experiência visual do espectador fatores importantes que iriam caracterizar
em tempo real (aqui-agora), em que o con- as alterações estéticas da década de 1970.
teúdo e significado se completa na prática Um deles é a conjunção de arte, natureza e
relacional do sujeito com o objeto e o lugar. realidade. Disto resulta a penetrabilidade
Para a teórica Miwon Kwon (2008, p. 168): da obra, com implicações diretas na expe-
riência/reação ao praticá-la.
A (nova-vanguardista) aspiração de exceder
as limitações das linguagens tradicionais, Considerando o caráter efêmero desta obra
como pintura e escultura, tal como seu ce- e sua localização invulgar, havia interesse,
nário institucional; o desafio epistemológi- do artista, “em desenvolver uma teoria da
co de realocar o significado interno do ob- relação entre um local particular no meio
jeto artístico para as contingências de seu ambiente (que ele chamava ‘sítio’) e os es-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

contexto; a reestruturação radical do sujeito paços anônimos, essencialmente intercam-


do antigo modelo cartesiano para um mo- biáveis, nas galerias em que ele poderia ex-
delo fenomenológico da experiência cor- por (os quais chamava ‘não-sítios’)” como
poral vivenciada; e o desejo autoconsciente nos informa Michael Archer (2012, p. 96).
de resistir às forças da economia capitalista Desta forma, Smithson estruturava o concei-
de mercado, que faz circularem os trabalhos to de site (sítio) lugar de localização da obra,
de arte como mercadorias transportáveis e em uma situação fora da galeria, e a ideia
negociáveis – todos estes imperativos junta- de non-site (não-sítio) configurada a partir
ram-se no novo apego da arte à realidade da exposição de materiais (neste caso: pe-
do site.5 dras, terra, madeira etc.) projetos, esboços,
anotações, mapas, fotografias etc., em es-
“Realidade do site” esta que tanto pode es- paços convencionais da arte (museus e ga-
tar vinculada à arquitetura tangível do cubo lerias) com que o artista perenizava e trans-
branco de uma galeria ou museu como formava em mercadorias suas intervenções
associada às áreas urbanas ou ainda à na- ambientais, expondo-as nestes espaços na
tureza, no que assume características de condição também de arte. Note-se que,
arte ambiente, ou até mesmo nos meios com esta injunção da arte aos museus, ga-
eletrônicos. Vejamos a obra Quebra-mar lerias e colecionadores, dava-se um passo
espiral (1969-1970), de Robert Smithson na compreensão do “processo de criação”
(1938-1973), um trabalho que dificilmente como natureza estética da obra, importan-
poderia ser vendido, colecionável e acessa- te para as mudanças conceituais que iriam
do com facilidade por um público maior, le- ocorrer na década de 1970, alcançando o
vando em conta sua constituição de 6.500 sentido de arte como ideia.
toneladas de basalto, cristais de sal e areia,
construída no Grande Lago Salgado em Nestes termos, a arte conceitual colocou
Utah, Estados Unidos, sujeita às condições em xeque os valores mais caros à autono-
climáticas de toda ordem (vento, tempesta- mia do modernismo: a representação dire-
de, inundações, etc.). Aqui, deparamos com ta das coisas, materializada em obra-objeto

<<
como imagem estética e feita pelo artista, Data desta época um processo de constru-
e sua recepção pela simples contemplação, ção de novos modos de intervenções artís-
as quais, a começar por Duchamp (1887- ticas e crítica de arte, como a reconstitui-
1968), vinham sendo questionadas em ra- ção da secção portuguesa da Associação
zão de uma arte-conceito que não estivesse Internacional de Críticos de Arte (AICA) em
pautada apenas nos sentidos. Com o tem- 1969, e o despontar da arte relacional em
po, a resistência da “arte como questão”, Portugal, a partir, por exemplo, de experiên-
caracterizada pela crítica, tomada de cons- cias como a do Grupo Acre (1974-1977) e
ciência e protesto, investiu cada vez mais, do Grupo Puzzle (1975-1981) sobre as quais
tanto em relação ao sistema institucional, Isabel Nogueira ressalta:
artístico, quanto ao contexto social e políti-
co, operando com as ideias, o corpo, o meio A seu modo, ambos os agrupamentos se as-
ambiente, as minorias e causas sociais. sumiram como portadores de uma lingua-
gem plástico-performativa, inovadora no
Um rápido apanhado do que foi a década contexto português, de vertente concep-
de 70 em Portugal, sob a influência de um tualista, social e artisticamente interventiva.
início de abertura política e social, à luz do Aliás, é justamente pela reconstituição da
movimento revolucionário de 25 de abril, intervenção do Grupo Acre na Rua do Car-
nos faz lembrar o que ela representou em mo (Agosto de 1974) com a pintura de cír-
termos de reformulação estética, sobretu- culos amarelos e rosa no pavimento da rua,
do no que diz respeito à experimentação. A que se acede à entrada principal do Centro
investigadora Isabel Nogueira, cuja tese de de Arte Moderna.7 
doutorado versa sobre o pensamento críti-
co da década de 1970 em Portugal, esboça É digna de nota também, no tocante aos
um perfil deste período: aspectos relacionais da arte em Portugal, a
grande festa popular de 10 de junho de 1974,
Foi a época de FESTA, de militância e dos animada pelo Movimento Democrático de
eventos artísticos colectivos “ao serviço do Artistas Plásticos na Galeria Nacional de
Povo”, desde as pinturas murais “da revo- Arte Moderna, que ativou num só ambiente
lução”, até ao incremento de um modo de uma variedade de linguagens, interligando
operar mais ligado à exaltação do artista/ apresentações musicais, teatrais e um painel
criador, na procura de uma identidade ar- de 4,5m x 24m, produzido por quarenta e
tística, estética e mesmo poética. Foi igual- oito artistas. Acionado pela liberdade de
mente a altura da expressão longamente criação, o clima de coletividade se agudizou
contida e dos slogans: “A arte fascista faz e acionou o público em geral. No mesmo
mal à vista” (Marcelino Vespeira), “Contra a local onde fora pintado este painel, em
agressividade, criatividade”, ou “A qualida- 1977, deu-se a exposição, Alternativa zero,
de estética é progressista; a mediocridade tida como um marco de transição do mo-
é reaccionária” (Salette Tavares).6  dernismo para o pós-moderno, sob a lide-
rança de Ernesto de Sousa e a participação

– HERBERT ROLIM 37
de vários artistas e colaboradores. O termo o trânsito livre dos pedestres, obrigando-os
“zero” que encabeça o título da exposição a circundá-la. Diante da recusa do artista à
original expressa o zero inicial, como pon- sugestão de sua remoção para outro lugar
to demarcatório da ruptura com o moderno uma vez que, enquanto site-specific, sua es-
e a abertura para uma nova postura crítica, cala, tamanho e localização só tinham sen-
que passa pelo processo de conceituação, tido naquele contexto, como ele mesmo
desmaterialização do objeto artístico, que- disse: “removê-lo é destruí-lo”, o fato é que,
bra dos suportes, desconstrução do sentido depois de uma luta judicial de quatro anos,
de originalidade e autonomia, reformula- o trabalho foi considerado pela General Ser-
ção da experiência estética, abrangendo ar- vices Administration (GSA), sua financiadora,
tista, obra e espectador, num estreitamento como “opressor do espaço”, razão pela qual
da relação “arte-vida”. foi removido e desmontado em 1989.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

O pensamento do sensível, com o qual Er- A escultura de Serra ocasionou um estado


nesto Sousa pontuou Alternativa zero, trou- de crise quanto ao foco da práxis escultóri-
xe a intervenção artística portuguesa para o ca em relação ao site-specific, centrado ne-
centro do debate, aproximando-a do cená- cessariamente na inseparabilidade física do
rio internacional e dando motivos para no- objeto em função do lugar. Vista numa pers-
vos modelos de exposição como iria acon- pectiva de vinte anos à frente dos primeiros
tecer com Depois do Modernismo, em 1983, passos minimalistas, somada às experiên-
sob organização de Luís Serpa, na Socieda- cias dos situacionistas, do grupo Fluxus e
de Nacional de Belas Artes (Lisboa) em que dos conceitualistas, leva a crer que o sentido
agregou, mesmo sem o experimentalismo site-specific, pelo menos como Serra havia
crítico dos anos 1970, artes plásticas, dança, idealizado, não dava mais conta em razão
música, moda e arquitetura, algo que não das instâncias contemporâneas.
deixava de sugerir o aspecto convival das
formas. Deste ponto de vista, a ideia de site-specific
passou a operar numa dimensão maior do
Na década de 1980, no plano inernacional, que a de aproximação física do espectador
um caso que se tornou emblemático em di- com o objeto inseparável de sua localidade
reção a este novo rumo relacional e contri- específica, indo de encontro a uma concep-
buiu para pôr em questão as orientações ção menos materialista (até mesmo desma-
estéticas de implicações físicas da obra em terializada) e não estetizante (nos termos
relação ao síte, levadas a miúde na década tradicionais) da arte, em que pesam mais
de 1990 em diante, foi a escultura Tilted arc os aspectos políticos, sociais, econômicos e
(Arco inclinado) de Richard Serra. Esta obra culturais, ligados ao cotidiano e aos espaços
minimalista de grande dimensão, instalada públicos onde se dão as relações inter-hu-
na Federal Plaza de Nova York, em 1981, ge- manas como fator de experiência e conteú-
rou certo desconforto, principalmente, por do da (não)arte, do que as aparências espe-
erguer uma cortina de aço que dificultava cializadas da arte:

<<
Indo contra o menor sentido dos hábitos e Deste modo, diferentes debates culturais,
desejos institucionais, e continuando a re- um conceito teórico, uma questão social,
sistir a mercantilização da arte no/para o um problema político, uma estrutura institu-
mercado de arte, a arte site-specific adota cional (não necessariamente uma instituição
estratégias que são ou agressivamente an- de arte), uma comunidade ou evento sazo-
tivisuais – informativas, textuais, expositi- nal, uma condição histórica, mesmo forma-
vas, didáticas – ou imateriais como um todo ções particulares do desejo, são agora con-
– gestos, eventos, performances limitadas siderados sites. (KWON, 2008, p. 172).
pelo tempo. O “trabalho” não quer mais ser
um substantivo/objeto, mas um verbo/pro- Pelo que vemos, o modelo intervencionista
cesso, provocando a acuidade crítica (não de site assume contornos de caráter discur-
somente física) do espectador no que con- sivo de efeito receptivo conceitual, de sen-
cerne às condições ideológicas desta expe- sibilização cultural, relacional, portanto de
riência. Neste contexto, a garantia de uma orientação coletiva e de vivência urbana,
relação específica entre um trabalho de arte enquanto exercício de cidadania, tal como
e o seu “site” não está baseada na perma- as vanguardas da década de 1960 e 1970
nência física desta relação (conforme exigia almejaram, e a que a década de 1990 impri-
Serra, por exemplo), mas antes no reconhe- miu novas questões:
cimento da sua impermanência móvel, para
ser experimentada como uma situação irre- (...) no fato de que esta geração de artistas
petível e evanescente. (KWON, 2008, p. 170) não considera a intersubjetividade e a in-
teração como artifícios teóricos em voga,
Os sites-specific, deste modo, devem ser nem como coadjuvantes (pretextos) para
compreendidos como site-oriented, po- uma prática tradicional da arte: ela as con-
tencializados pela experiência urbana de sidera como ponto de partida e de chega-
natureza social, baseada na referência do da, em suma, como os principais elementos
lugar, pela relação das pessoas entre si, no a dar forma à sua atividade. (BOURRIAUD,
compartilhamento das questões de violên- 2009, p. 62)
cia, saúde, moradia, educação, gênero, re-
ligião, cidadania etc., numa dimensão críti- A década de 1990 acabou por colocar em
ca e conceitual da arte que não cabe num curso a prática artística de modelos de so-
objeto único nem no enraizamento deste cialidade, um sistema de arte pública, cujo
com o lugar físico, podendo tanto acon- agenciamento supera o consumo estéti-
tecer em logradouros, escolas, hospitais, co. Mesmo que este fenômeno não tenha
aeroportos, prisões, igrejas, shoppings..., acontecido em alto grau de intensidade e
quanto penetrar nas redes sociais da in- escala globalizante, nesta década, é possí-
ternet, ondas do rádio, sinais de tv, mídia vel assinalar sua inserção em vários países,
impressa..., como interagir com diferentes pelo menos identificar os caminhos que lhe
áreas do conhecimento: abriram espaço. No caso de Portugal, pode-
mos começar citando as “festas da cidade”,

– HERBERT ROLIM 39
por três anos consecutivos, no começo da em favor da ideia de uma cidadania ativa e
década, como exemplo de intervenção ar- participativa” (CAEIRO, 2001, p. 10).
tística de caráter relacional. Para o pesquisa-
dor Telmo Garção Lopes (2005/2006, p. 19), Chegamos, assim, ao cerne da estética rela-
no entanto foi com o evento Lisboa 94, Ca- cional, vista na perspectiva da dimensão hu-
pital Européia da Cultura que Portugal ini- mana, graças a participação e colaboração
ciou um processo “de dotar de importância intersubjetiva de um corpo coletivo, interes-
significativa os impactos da Arte Pública no sado em produzir espaços-tempos convivais.
Design Urbano e nas tensões da estrutura
da cidade a uma escala territorial”, aconteci- Considerações em continuum
mento que iria refletir, de forma mais proe- É preciso dizer que, mesmo dando-se a pas-
minente, com a Exposição Mundial de 1998 sagem, ascensão e declínio dos modelos de
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

(Expo98) quando a arte pública “monumen- produção de relações, na história da arte,


taliza a periferia urbana a oriente da cidade” presenciamos a permanência embaralhada
e traz novos contributos para suas transfor- destes fatores, na atualidade, o que não in-
mações no cenário local. valida o grau significativo dos aspectos rela-
cionais, assumidos na contemporaneidade,
Por fim, no contexto português, chegamos com mais ênfase, da década de 1990 para
ao caso da “arte pública como intervenção cá, cujos conceitos estéticos continuam sen-
comunitária”, propriamente dita, cuja mar- do acrescidos e pouco a pouco assentados,
ca principal é o caráter colaborativo, parti- mudanças estas que vem chamando mais
cipativo, com que as formas relacionais tra- atenção nestas duas últimas décadas.
tam de temas sociais e questões urbanas.
Encaixa-se nesta vertente, por exemplo, Cabe aqui reiterar a participação do públi-
o projeto Lisboa Capital do Nada – Marvi- co nos desígnios da arte relacional, como
la 2001, entre 1 e 30 de outubro de 2001, parte ativa da obra, o que denota envolvi-
com coordenação de Mário Caeiro, Luiz mento da comunidade nas questões levan-
Seixas e Daniela Brasil, contando com a co- tadas, percursos traçados, mediação e difu-
laboração de vários artistas, profissionais são, já que não depende, necessariamente,
e a participação comunitária. Chamamos da presença física de objetos artísticos no
atenção para o valor relacional desta prá- território acionado, mas das relações que se
xis e para sua dimensão tanto transforma- movem por fatores sociais, políticos, econô-
cional como discursiva, pelas quais artistas, micos etc., de interesse comum.
arquitetos e urbanistas, educadores, desig-
ners, ambientalistas, moradores etc. refleti- De sorte que estes breves apontamentos
ram e intervieram: “Não é de lugares físicos nos ajudam a pensar a arte pública hoje,
que falamos, mas desta instância da cria- deslocando o significado da arte do obje-
ção em que os limites entre intervenção ar- to para os processos de sociabilidade, da
tística, conhecimento técnico, sentido éti- forma puramente estética para a realidade
co e envolvimento afectivo se desvanecem social, da autoria para o coletivo, da mera

<<
contemplação para a consciência crítica. — Bibliografia
Precisamos ter em mente que ações artís-
ticas desta natureza, efetivamente, não ob- ABREU, José Guilherme. Um
jetivam resolver problemas sociais, mas sim modelo fenomenológico para
problematizar mecanismos de intervenção a escultura pública. Revista
e criar meios relacionais de como lidar com Faculdade de Letras Ciências e
a realidade e transformá-la. Técnicas do Património, Porto, vol.
2, pp. 385-418, 2003. (I Série).
AMARAL, Aracy (org.). Arte
Construtiva no Brasil: coleção
Adolpho Leirner. São Paulo:
Companhia Melhoramentos; São
Paolo: DBA Artes Gráficas, 1998.
ARCHER, Michael. Arte
Contemporânea. Tradução
Alexandre Krug. 2. ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2012.
(Coleção mundo da arte).
BOURRIAUD, Nicolas. Estética
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Bottmann. São Paulo: Martins,
2009.
CAEIRO, Mário J. Arte crítica
urbana. De Lisboa como capital
do nada à luz boa da cidade...
Experiências extramuros. In:
ANDRADE, Pedro de, et al. (coord.).
Arte pública e cidadania: novas
leituras da cidade criativa. Casal de
Cambra, Portugal: Caleidoscópio,
2010.
DIAS, José A. Fernandes. Arte
pública: alguns paradigmas. In:
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– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

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miow-kwon>. Acesso em: ago de miow-kwon>. Acesso em: ago de
2015. — Notas 2015.
LAGNADO, Lisette. O que é arte 6
NOGUEIRA, Isabel. Anos 70 –
pública? Disponível em: <http:// 1
Esta citação faz parte da definição atravessar fronteiras. Disponível em
pphp.uol.com.br/tropico/html/ (síntese) de arte pública expressa <http://artecapital.net/opinioes.
textos/956,1.shl>. Acesso em: ago pelo site do Itaú Cultural a partir php?ref=90>. Acesso em: ago de
2015. de fontes teóricas relevantes: 2015.
LOPES, Telmo Garção. Lisboa Annateresa Fabris, Aracy Amaral, 7
Idem.
94: A arte pública pelos registros Eileen Adams, Harriet Senie,
de imprensa. Programa de Irving Sandles, Michael Archer,
doutoramento. Espaço público Michael Breson e outros. Cf. Arte
e regeneração urbana: arte e Pública. Disponível em: <http://
sociedade. Universidade de enciclopedia.itaucultural.org.br/
Barcelona, 2005/2006. Disponível termo356/arte-publica>. Acesso
em: <http://www.academia. em: ago 2015.
edu/1261628/T_Garcao_Lopes_- 2
Disponível em:< http://www.
Lisboa94_A_arte_publica_pelos_ revistatropico.com.br/tropico/html/
registos_de_imprensa>. Acesso textos/956,1.shl>. Acesso em: ago
em: jul 2013. 2015.
NOGUEIRA, Isabel. Anos 70 – 3
Autor do ensaio Des espaces
atravessar fronteiras. Disponível em autres (Espaços outros) datado
<http://artecapital.net/opinioes. de 1967, citado pela tese de
php?ref=90>. Acesso em: ago de doutoramento em poéticas
2015. visuais de Ana Maria Tavares
TAVARES, Ana Maria. Armadilhas (2000, p. 48-53) Armadilhas para
para os sentidos: uma experiência os sentidos: uma experiência
no espaço-tempo da arte. Tese no espaço-tempo da arte, e

<<
Deambulação pela Arte (como Coisa) Pública

por Mário Caeiro


Professor na ESAD das Caldas da Rainha, Investigador e Curador.

A walk across the city, determined by the idea of


ambulation. One stimulated by the notion that art can
be a public thing. Res publica. Looking around leads to O olhar como saber
the analysis of a sequence of urban moments. A set of A partir du moment où l’œuvre est vue, c’est-
tensions appears, as made visible by each work of art. à-dire où sa présence s’est fait sentir, si elle
What appears by means of this mosaic of impressions existe vraiment avec ce qui l’entoure, alo-
is the idea that the urban form is a territory to be rs l’endroit n’est plus invisible. Dès lors, sa
continuously appropriated. Such is the concept which lies réalité est modifiée. Et ceci est plus effectif
in the core of an ethically responsible citizenship. lorsque l’œuvre n’est pas reconnue comme
une œuvre d’art, lorsqu’elle n’est pas disso-
— Keywords ciée comme une forme sur un fond.
Public Art, Urban Art, Street, City, Ambulation. Catherine Grout

O presente texto evoca um percurso pela


cidade. Uma deambulação simula um pas-
seio, constituindo a sua memória ficciona-
lizada, ao mesmo tempo que sintetiza as-
pectos essenciais da minha reflexão dos
últimos anos acerca da relação entre a arte
e a cidade. É por assim dizer uma viagem –
à vol d’oiseau – por conteúdos da obra Arte
na Cidade – História Contemporânea (Círcu-
lo de Leitores/Temas e Debates, 2014), aqui
actualizados por impressões recentes, con-
forme as vou situando no meu quotidiano.

Ao final assumo uma intuição: A arte pública


está na maneira de olhar. Saber olhar a cida-
de e nesta a arte (e vice-versa) é aqui a con-
dição sine qua non para poder produzir-se
o acontecimento urbano, que vejo como o

– MARIO CAEIRO 43
encontro da cidade consigo própria através na forma e no meio urbanos, precisamen-
da arte. Por outras palavras, parto da ideia te porque resultado aferível de um conjunto
fundamental do espectador em Hannah de tensões – identificar vs. agir; imaginar vs.
Arendt e articulo-a com uma abordagem fazer; apreciar vs. reflectir… – que são resol-
potencialmente transformativa1 (Collins e vidas como que por magia na obra de arte
Goto, 2005) da obra-espectáculo que é a ci- – chamemos-lhe pública ou urbana… – que
dade; laboro no seio da ideia lefebvreana funciona então, enquanto fragmento de/na
do espaço(-tempo) citadino como historica- cidade, como um enunciado ensaístico e,
mente produzido, hipersocializado (Delga- ao limite, como aforismo urbano.3 Nesta óp-
do, 2013), que encaro como a própria ma- tica, a arte é a afirmação poética da cidade
triz da vida urbana: a produzir um discurso em aberto sobre si
mesma. Uma prática da representação viva
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Neste sentido, a cidade é palavra, fala, é sis- da sua potencialidade.4


tema denotativo. O urbano vai mais além:
é uma linguagem, uma ordem de conota- Os conceitos que sugiro arrumam casos
ções, como Lefebvre refere, tomando a ana- concretos em que a arte se torna coisa públi-
logia da glossemática e da semiótica de ca, transformando a cidade – palco da arte –
Greimas. O urbano não é um tema, mas sim em res aesthetica. Falo a partir de um modo
uma sucessão infinita de actos e encontros de conhecer, no ambiente que nos rodeia,
realizados ou virtuais. A vida urbana “pro- a arte sobre a qual vale a pena falar. Nesta
cura devolver as mensagens, ordens, pres- retórica tanto da cidade como da arte, e de-
sões vindas do alto contra si próprias. Pro- pois da arte na cidade, o termo Arte Pública
cura  apropriar-se  do tempo e do espaço surge assim ora esvaziado de sentido (ao li-
impondo o seu jogo às dominações destes, mite…) ora plenamente relevante para pen-
afastando-os da sua meta, enganando… O sarmos a cidade e a arte conjugadamente
urbano é assim obra de cidadãos, em vez (no limite oposto). A expressão aparece a
de imposição enquanto sistema a este ci- muitos como um fantasma, mas que los hay,
dadão” (Lefebvre, 1978: 85). O urbano é a hay… Em todo o caso, é sempre com base
essência da cidade, mas pode dar-se fora em obras e situações específicas, à superfí-
dela, porque qualquer lugar é bom para cie da cidade tangível, que elaboro o meu
que nele se desenvolva uma substância so- discurso; falo por isso a partir do que a arte
cial que por acaso nasceu nas cidades, mas me faz. De como ela me acontece. E nos faz,
agora expande-se onde quer que o seu “fer- e nos acontece, a todos, já que concreção
mento, carregado de actividades suspeitas, de fascinantes complexidades.
de delinquências, é lugar de agitação […].”2
Neste passeio, entre obras que já perten-
Este texto assume que a arte pode ser pro- cem ao cânone da arte pública e novas ex-
tagonista do cenário visual urbano (Cam- pressões da cidade criativa que começam a
pos, 2011). A partir desta evidência procura exigir um olhar mais informado do que ape-
mostrar como certas ideias ganham corpo nas pela história de arte tradicional ou a es-

<<
tética; entre obras que fazem parte da pai- sificadas, sendo apropriados por distintas
sagem do dia-a-dia (quer queiramos quer entidades e grupos sociais como mecanis-
não) e outras que vão delicada- e quase in- mos fundamentais para a acção. A publi-
visivelmente criando uma sensibilidade crí- cidade que toma o espaço público, a vi-
tica abaixo do radar (mas perfeitamente in- deovigilância sob o controlo do Estado, as
tegradas movimento global,) procuro que gramáticas subversivas representadas pelos
a minha e nossa consciência dos lugares e graffiti e pela street art ou os estilos juvenis
das pessoas encontre na criação artística urbanos, são, entre muitos outros exemplos,
um espelho que abra possibilidades à re- fenómenos que nos demonstram a crucial
presentação de mais do que apenas o gos- relevância de um estudo mais detalhado
to (de alguns). Mesmo quando tal espelho das práticas e das estratégias engendradas
parece quebrado, o que vejo são em todo pelos diferentes actores nestas operações
o caso fascinantes impermanências de uma que buscam adquirir visibilidade no espa-
espécie de sentido de totalidade, no âmbi- ço público urbano, intervindo na ecologia
to do qual a arte subsiste como campo de visual urbana.”6
encontros vitais.
Mensagens (na garrafa)
Proponho-me em suma, ao evocar o que Mostly, I believe an artist doesn’t create
vejo por aí (e o que na sombra desse olhar something, but is there to sort through, to
me ocorre) revisitar alguns caminhos essen- show, to point out what already exists, to
ciais da arte contemporânea que manifesta put into form and sometimes reformulate it.
o seu interesse pela cidade, investigando o Annette Messager
seu papel comunicacional na actualidade5
urbana. As obras de que falarei são como Saldanha. São duas, talvez três da manhã.
que figuras de uma família, senão de uma Mas a cena surge-nos a qualquer hora do
genealogia que assim homenageio, mesmo dia, em muitos lugares de Lisboa. Em cima
sem a querer ou saber nomear. Aqui entre de um caixote do lixo, uma garrafa de cer-
nós, reconheceremos os nossos – ou não veja e uma lata de Monster, foram coloca-
fosse função essencial da arte na cidade dos, metodicamente arrumados, como que
afirmar-se a si própria e à sua comunidade num plinto. Porque é que não foram sim-
sempremergente, até porque só assim con- plesmente atirados para o chão ou, já ago-
tribui para essa outra e maior obra de arte ra, para o interior do caixote do lixo? Que
que é a própria cidade. fenómenos da acção corrente e da comuni-
cação interpessoal estão ali em causa, nesta
Ricardo Campos, num quadro de ideias que espécie de assemblage ou de impromptu?
engloba decisivamente a de um urbanismo
vertical, complementa: Quando passo, posso fingir que isto não
me afecta nem ao meu mundo, como se
”Actualmente, as imagens e os dispositivos não fosse comigo. Ou posso achar que tal
visuais desempenham funções muito diver- espécie de nano-performance é da ordem

– MARIO CAEIRO 45
do puro vandalismo. Mas lá está, como esta- sensorial da cidades. Mas outra coisa é cer-
belecer o nexo crítico para dizer a pequena ta: se a arte na cidade começa pelo saber
distância que vai entre encararmos a cena olhar, ela tem de basear-se numa perspec-
como simples vandalismo (afinal, não tarda, tiva ética de onde partamos para pensar (e
vai haver cacos pelo chão…?!?) ou uma es- depois arriscar) a acção. Em suma e noutros
pécie de natureza morta anónima – ocorre- termos, no discurso de uma obra ou situa-
-me essa obra-prima da ressonância entre o ção o modo de participação para que so-
lixo e a paisagem que é Island Within an Is- mos convocados pode ser ou não propício
land (2009), de Gabriel Orozco)… –, um rea- ao próprio fenómeno de a arte aparecer.
dy made cuidadosamente equilibrado no Nomeadamente como coisa pública.
mobiliário urbano? E se tudo isto sou só eu
a delirar, no furor da interpretação? Ora certos fenómenos desta projectualida-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

de específica (mas com alcance genérico


Explico. Enquanto espectador da cidade, para os domínios do social, do político, do
investido pela minha ideia sobre a mesma, quotidiano) são iminentemente públicos,
quero adivinhar que o que está ali a acon- enquanto outros nem tanto; e nessas tran-
tecer é uma forma de comunicação inter- sitoriedades – entre o público e o privado,
comunitária e intergeracional, ainda que entre o público e o íntimo, entre o público
porventura inconsciente. É como que se os e o secreto… – a obra de arte vai estabele-
jovens madrugadores que foram para os cendo protocolos com os seus espectado-
copos quisessem deixar um sinal (a messa- res. Precisamente para os criar. No fundo,
ge in the bottle) aos pacatos e ordeiros tra- convoca-os para que o acontecimento seja
balhadores do dia. E portanto, no melhor (em certa medida) comum, definindo es-
dos (meus) cenários, o menor dos factos sencialmente a forma como esse encontro
quotidianos urbanos pode merecer cuida- (em certa medida público) decorrerá. Reco-
da observação e dele tirarmos ilações tácti- dificando – para usar um termo de Flusser –
cas e estratégicas. Este é o papel mais pro- a experiência urbana.
fundo que se pode pedir à programação
artística da cidade que começa no acto de É bom de ver, nenhuma disciplina poderia
engajarmos o olhar. aspirar à hegemonia no âmbito deste sa-
ber. A cidade é infinito. E por isso o acon-
A hipótese de uma arte pública contem- tecimento urbano é sempre o resultado de
porânea passa por esta necessidade de o um poderoso diálogo entre disciplinas, cir-
espectador envolver-se – ou deixar-se en- cunstâncias, oportunidades, consciências,
volver na construção do seu próprio olhar. experiências. Leituras. E portanto também
Saber olhar torna-se sinónimo de aprender performatividades: Num contexto de maior
a ver. Nesta metaforologia visual não excluo reflexividade da vida social (Giddens, 1992,
– pelo contrário, incluo – os restantes senti- 1994), de monitorização do Eu e de cons-
dos em toda a sua interrelação, aliás seguin- tante mediatização das referências simbóli-
do um guião de Charles Landry: a paisagem cas, julgo que teremos hoje uma consciên-

<<
cia mais premente das nossas capacidades rito e não nas coisas, não é um dado em-si,
performativas. (Campos, 2011) mas implica um para-si. (Serrão, 2011)

Invisível paisagem, monumento No entanto, se será no fazer colectivo da


invisível paisagem que nos podemos realizar so-
But by returning to monuments some me- cialmente, nem todas as sensescapes (Lan-
mory of their own origins, by drawing back dry, 2012) funcionam como um oásis na
into view the memorial-making process, we malha urbana. E aí são raras as obras que
invigorate the very idea of the monument, empreendem uma notável conquista da ci-
thereby reminding all such cultural artifac- dade para o simples estar; é o caso, ocor-
ts of their coming into being, their essential re-me, do Jardim das Ondas8 de Fernanda
constructedness. Fragateiro, na Lisboa Oriental. Que então,
James E. Young só a uma segunda ou a uma terceira leitu-
ras, para além do mero estar e apreciar, co-
Passo o El Corte Inglês – com sua incontor- meça a dizer mais ao que vem, quando já
nável escala de referência urbana – e subo percepcionada como obra de arte…
ao jardim do Parque Eduardo VII. A sereni-
dade do momento seleciona claramente o Mas eis que na minha deriva paisagística
seu auditório (uma maneira de estar, em se- me deparo com um estranho aglomerado
renidade e silêncio) e, não sendo ‘arte’ em horizontal de pedras brancas e polidas… É
sentido estrito, a visão de Ribeiro Telles7 – o estranha configuração geométrica para a
grande mentor ideológico de toda uma po- qual não vislumbro uma função evidente.
lítica da paisagem (Aurora Carapinha) – de- Ah! É um (‘)monumento(’). Assinala os 25
senrola-se claramente como um assertivo anos da Associação 25 de Abril. Mas a inter-
artifício para criar uma disposição natural venção contraria as mais óbvias caracterís-
para um certo público ficar por ali, em paz. ticas de um monumento: não se ergue nas
alturas para se arvorar em marco (visual),
O pequeno episódio desta estrutura verde, não se reconhece qualquer rosto (de figura
o facto de se constituir como um ambien- histórica), não estabelece sequer uma dis-
te público amigável – réplica localizada da tância de veneração (antes pelo contrário,
visão sistémica que Ribeiro Telles tem ofe- funciona como mobiliário urbano, ‘ou coi-
recido à Cidade – mostra que a haver uma sa parecida’)… na verdade, a formalização
– ou ‘a’ – arte pública, ela assenta um dos desta espécie de memorial é quase contra-
seus pilares num participar cidadão na pai- -visual (no sentido debordiano). Ora é pre-
sagem. Numa co-responsabilização viven- cisamente nessa opção formal que se torna
ciada do sistema ambiental, já que é na adequada aos seus objectivos (que entre-
paisagem que somos convocados na pleni- tanto pesquisei): uma homenagem sensí-
tude dos sentidos: Trata-se de uma peculiar vel a um processo colectivo extraordinário,
forma de apreender as coisas naturais, que, cujos principais protagonistas nunca procu-
justamente, enquanto forma, reside no espí- raram a glória pessoal.

– MARIO CAEIRO 47
A obra de arte, aqui, aspira antes de tudo o
mais a dissimular-se na forma urbana, esco-
lhendo o mais discreto e subtil dos registos
comunicacionais, em plena ambivalência. É
por aí um monumento imbuído de um es-
pírito contemporâneo, já que a necessida-
de de uma visão unificada do passado, tal
como a encontramos nos monumentos tra-
dicionais, colide com a convicção moderna
de que nem o passado nem os seus signifi-
cados poderão permanecer para sempre os
Sérgio Vicente (projecto), Ana Moreira, Bruno Cidra, Edgar mesmos. (Young, 2003)
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Pires, Nuno Esteves, Ricardo Mendonça e Sara Padrão


(escultores), José Aurélio (coordenação), Liberdade –
Monumento à Revolução de Abril, Lisboa, 2009. A peça foi realizada em 2009 por estudan-
Fotografia de Câmara Municipal de Lisboa. tes da Faculdade de Belas Artes.9 Tê-los-á
In http://www.cm-lisboa.pt/equipamentos/equipamento/
info/liberdade-monumento-a-revolucao-de-abril levado a interiorizar a hipótese de que tradi-
ção minimalista, desde que jamais colocan-
do totalmente de lado a possibilidade da
ironia, pode constituir uma linguagem para
a participação na História, co-enunciando-
-se uma ética para o futuro comum? Trata-se
em todo o caso de uma peça ‘para o Povo’,
mesmo se a maior parte desse povo vai
passar por ela sem reparar na sua presença,
ou sequer compreender a sua mecanicida-
de enquanto facto urbano (o ‘como funcio-
na’). Por outras palavras, o invisível procura
ser menos silêncio, ou ruído, que potência
discursiva, precisamente como acontece, se
quisermos dar um salto imaginário a Lon-
dres, na recente intervenção de Hans Haa-
cke no Fourth plinth em Trafalgar Square,
Gift Horse (2013).

Aí está, e já se vai percebendo que vou ope-


rando no âmbito de uma axiomática. Olho
para este trabalho de Sérgio Vicente (reali-
zado com os seus alunos e a colaboração do
escultor José Aurélio) e revejo-o mentalmen-
te no extremo oposto daquele tipo de mo-

<<
numento com que Charles Chaplin abre o monumento moderno é uma contradição de
filme Luzes da Cidade (1931). A arte pública termos. Assim supera vários impasses pre-
existe sempre em função do que cada épo- cisamente porque radica a eficácia do seu
ca lhe exige. Mas noutra dimensão ainda, e anacronismo numa estratégica (in)visibili-
numa nota muito pessoal, a intervenção de dade, expressão de extrema modéstia de
Sérgio Vicente é também uma réplica – com recursos, adicionalmente impedindo que a
luva de calcário – à hubris erótico-monu- memória colectiva seja naturalizada.
mental de José Cutileiro ali tão perto, entre
as monumentais colinas do Parque Eduardo Pinturas outras, outras esculturas
VII. A sua celebração do 25, com todas as É bonita a ideia de uma imagem urbana.
marcas da autoria (o estilo celebrizado pelo Dito isto, considero que a imagem não é
escultor), é com efeito uma efervescência uma característica estritamente individual, o
urbana efusivamente pós-modernista.10 Não que demarca uma grande diferença entre a
tão invisível quanto isso (até pela orientação minha perspectiva e a de outros sociólogos
vertical), iluminada por projectores de luz e antropólogos, que permanecem obceca-
colorida, a obra consegue até conferir a um dos por uma concepção bastante individual,
passeio nocturno um momento de evasão… ou até mesmo individualista, da imagem.
uma fantasia erótica que quiçá interrompe, Michel Maffesoli
nos olhos das gerações actuais, o que pare-
ce serem os reflexos de uma total indiferen- Estar vs. andar. Ficarmo-nos passivos vs.
ça perante o passado. agir. A cultura do graffiti tem na sua origem
e na sua tradição esta ideia de o gesto ar-
Em suma, não se tratando ainda de um tístico conquistar território, de ocupar a pai-
contramonumento (à la Jochen Gerz), a sagem. Mas ao contrário do monumento
escultura pseudo-minimal de Sérgio Vicen- (mais ou menos tradicional), aceita e pro-
te, qual discreta mnemónica que nos remete move o efémero, o circunstancial, a comu-
para um aspecto preciso do processo histó- nicação urgente de realidades sociais que
rico, representa um modo de a arte integrar de outra forma seriam desconhecidas da
a cidade que já é plenamente consciente da esfera pública. Algumas imagens do graf-
fenomenologia dos seus usos quotidianos. fiti têm aliás um indelével poder evocativo
O trabalho é assumidamente um desenho (que lhes vem na verdade de mais do que
(do) urbano como totalidade experienciá- apenas do facto de serem facebookáveis,
vel: Sérgio Vicente, escultor e docente que instagramáveis, ou twittáveis.
orientou o projecto, explicou ao JN que a pa-
lavra só conseguirá ser lida do ar, pelo que Quando desço das Amoreiras a caminho do
o mais provável é que, quem por ali passe, Rato o que me sobra do mais belo dos gra-
a utilize como zona de estadia.11 É portanto ffitis é não mais que a memória remota des-
uma intervenção no tecido urbano perfei- te… POOW!! BOOM! Assim rezava a pare-
tamente capacitada de que, como já dizia de, tirando partido de um ‘acidente’ viário
Lewis Mumford nos anos 30, a noção de um contra um muro para criar uma efémera afir-

– MARIO CAEIRO 49
mação tautológica que era ao mesmo tem-
po, porque onomatopeica, uma instalação
sonora. Sinestesia incrivelmente oportuna,
deve ter colocado uns milhões de cidadãos
automobilizados a pensar na sua vida.

O que importa então é que a arte urbana


possa rejeitar as grandes mensagens ou os
grandes discursos (o aspecto mais datado
dos cânones), já para não dizer o habitus
Pantónio, POOW!! BOOM!, Lisboa, 2011. consumista, e aderir à pura comunicação da
Fotografia de Target. sua própria consistência informacional. No
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

In http://www.vice.com/pt/read/as-cidades-tambem-podem-ser-
galerias-a-ceu-aberto caso do autor de POOW!! BOOM! (2011)
– Pantónio –, a arte funciona como contra-
dispositivo imaginativo – não confundir
imaginação com fantasia, diria o romântico
Schiller! Ela materializa-se no real do dispo-
sitivo urbano (onde carros vão contra mu-
ros, destruindo-os…), espécie de imagem-
-resto que deixa transparecer uma dança, a
do corpo do writer com o muro, palco ver-
tical do seu craft. Afinal, durante meses foi
virtualmente impossível escapar ao humor
e à graça anónima da acção ‘vandalizadora’
(recorrendo, cirurgicamente, ao registo uni-
versal da BD para ‘dar luta’ às imagens hi-
gh-res dos outdoors publicitários em volta).
Arriscando a perturbação do tráfego, ‘pi-
sando o risco’ e reflectindo a realidade em
toda a sua contingência12 este é o tipo de
arte urbana que vale a pena a todos os ní-
veis – pelo menos é o que se me oferece di-
zer quando, passando de novo aqui, evoco
a sua ausência-presença.

Procuro ir demonstrando que a arte pública


é menos um género que um estado de cons-
ciência. Certamente que sem a produção pe-
los artistas de obras, a arte como coisa públi-
ca seria algo de diferente (e porventura não

<<
tão instrumental ao nível do desenho da ci-
dade), mas o essencial é que, no âmbito da
arte-como-coisa-pública, o artista e os agen-
tes à sua volta entendam que a recepção por
parte do público é aspecto essencial do seu
trabalho. Com a ‘agravante’ de que se tra-
ta na maioria das vezes de um público que
tem mais do que fazer do que apreciar arte
ou aderir ao que poderá muito bem ser en-
tendido como uma absolutamente supérflua
aparição do estético no seu quotidiano.

Claro que, neste braço de ferro com a dis-


ponibilidade do público, o vernacular pode
ser a ‘gazua’ para estabelecer com esse pú-
blico um diálogo que então nasce, quando
a obra é rica de possibilidades interpreta-
tivas. Estou a pensar noutra obra de arte –
esta existindo inequivocamente ‘enquan-
to tal’ –, Portugal a Banhos (2010), de Joana
Vasconcelos, que esteve uma temporada
no Terreiro do Paço13. A peça sintetiza inú-
meras complexidades (e perplexidades) Joana Vasconcelos, Portugal a Banhos, Lisboa, 2010.
Fotografia de Miguel Malaquias. In https://www.flickr.com/photos/
sobre Portugal, precisamente no contexto miguelmalaquias/5176606374
mais adequado possível (Portugal-feito-pis-
cina-à-venda-no-Terreiro-do-Paço, praça das
praças no que diz respeito à identidade na-
cional, em condições ideais de visibilidade
para potenciais compradores…).

Vasconcelos representa uma atitude entre o


lírico e o crítico (entre a cumplicidade e a in-
teractividade) que, se formos além de uma
análise das suas peças meramente como
estratégias de apropriação do imaginário
colectivo e de marketing autopromocional,
funcionam no meio urbano como legítimas
presentificações de debates culturais que se
resolvem precisamente na participação opi-
nativa do público, desde logo e por vezes

– MARIO CAEIRO 51
espectacularmente, no aceso comentário obras, uns vindos de longe outros de perto,
que nos últimos se tem generalizado sobre todos de algures, trazendo as mensagens do
o trabalho. Claro que, em termos de implan- outro, mensagens do mundo. Assim como
tação na forma urbana, decerto que Portugal em tempos aportou à capital das chegadas
a Banhos ao Terreiro do Paço não tem a mes- o corpo de S. Vicente, assim como essa che-
ma amplitude retórica que quando reapare- gada fundamental definiu um destino para
ce nas Docas de Alcântara, mas continua a a cidade e a enobreceu, hoje uma arte con-
impelir-nos a opinar. temporânea de todos os tempos procura ex-
plorar dimensões emergentes de uma sen-
Criar espaço público mítico sibilidade: lisboeta, universal, daqui. Para
A criatividade e a cultura são isso mesmo, ou- chegar a algum lado.
sar desarrumar as ideias e encontrar-lhes no-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

vas caras […] novos caminhos. Podíamos, por O VICENTE assume na cidade um papel
exemplo, pegar num urinol, virá-lo ao contrá- próximo do placebranding, desenvolvendo-
rio, chamá-lo “fonte”. Não sei se alguém já se -se como contributo independente para a
lembrou disso. identidade contemporânea não apenas da
Afonso Cruz Capital mas de Belém em particular. Os seus
conteúdos (esculturas, instalações urbanas,
O dever chama-me. Tenho artistas em Belém instalações vídeo, performances, edição…)
à minha espera, precisamente para arrancar convidam o público a regularmente aferir
com a programação de mais um VICENTE. da evolução do conceito face a cada mo-
Reinventando o mito, desde 2011 é a frase mento presente. Este tipo de opção passa
com que gosto de fazer o pitch da iniciativa, por uma lógica de storytelling que tem natu-
anualmente promovida pelo Projecto Tra- ralmente a ver com o facto de o mito de São
vessa da Ermida. A ideia é abrir um espaço Vicente ser de uma densidade tal, que seria
para o Espaço Público Mítico, conceito que irresponsável tocar o tema – uma narrativa
permite que se possa promover o conheci- fabulosa – sem lhe dar um enquadramento
mento perdido acerca de um mito funda- suficientemente amplo, inclusivo, universal.
mental da cidade de Lisboa, epitomizado na
chegada das relíquias do Mártir em 1173 – e Daqui infiro que a melhor arte pública é
ao mesmo tempo promover novas leituras aquela em que percebemos que a mensa-
da Contemporaneidade. gem é para todos – senão em absoluto (o
que destruiria a eficácia de qualquer con-
No texto de fecho da mais recente edição, ceito como conjunto de opções discretas
sintetizei o carácter da iniciativa: no âmbito de um plano de comunicação),
pelo menos como princípio e hipótese de
VICENTE é um pequeno laboratório de ima- trabalho. A ideia por detrás do VICENTE é o
gens onde cabem paradoxalmente muitos Todos – não por acaso o nome de outro fes-
pensamentos, um filosofar. À Travessa do tival, esse camarário, com evidentes traços
Marta Pinto aportam artistas, autores e suas de arte pública.

<<
Os eventos de VICENTE são assim quase criação e da cidadania dos nossos dias. O
sempre exemplarmente públicos – decor- resultado mais ‘1:1’ deste desejo – a instala-
rendo ‘na rua’ –, e à escala de uma pequena ção dando lugar ao corpo-a-corpo do tea-
travessa lá vamos fazendo pela posteridade tro – foi a dada altura um conjunto de irreve-
de São Vicente mas também – qual labora- rentes performances – passeios pela cidade
tório para se experimentar o (im)possível – pelo performer polaco Krzysztof ‘Leon’
– elaborando um discurso tangível acer- Dziemaszkiewicz – que levei a atravessar a
ca das possibilidades da cidadania criativa cidade durante três dias sucessivos interpe-
(no caso, antes do mais, a de uma entida- lando todas as suas potenciais ‘vítimas’.
de privada que partilha no espaço públi-
co uma estratégia local de regeneração do Entre senhoras idosas de um bairro popu-
tecido e da oferta culturais). Em duas pala- lar e os alt skaters à Praça da Figueira, o que
vras, humildade e ambição em doses idên- o público viu foi a recodificação (Flusser,
ticas pode permitir a um conceito, como a 2007) dos trajes e dos atributos do Santo
uma obra, estabelecer com os cidadãos um (dimensão eminentemente visual), consti-
acordo: vamos pensar o impossivelmente tuindo o conjunto dos percursos uma ‘via
grande através do possivelmente pequeno. sacra’ individual capaz de desafiar os ven-
dilhões da sociedade do espectáculo. Um
Na prática, faço questão que no VICENTE dos figurinos que Leon realizou integral-
– pequeno ‘carrinho de linhas’ no meio das mente em Portugal, durante uma escassa
‘rodas dentadas’ gigantes que se encon- tarde de corte e costura, foi por exemplo
tram em volta (património edificado, insti- uma dalmática de Vicente, feita de… sacos
tuições e equipamentos culturais) – a arte do Pingo Doce.
apareça como coisa natural da matéria ur-
bana, isto é, como uma recodificação do es- Este tipo de acção urbana é da ordem do
tável e do conhecido, e até do expectável, que Thierry Davila chama de cineplástica.14
mais ou menos inusitada conforme o âmbi- Isto é, o artista, já não mero performer, tor-
to de cada conceito tratado. A propósito da na-se por essência móvel e as suas pere-
irreverência deste tipo de projectos, que se grinações o fundamento para novas rea-
abre a uma performática do urbano, o histo- lizações, num quadro operativo15. Mais, a
riador José Sarmento de Matos encontrou cidade, vasto processo, conjunto de veloci-
um termo para dizer o que esta arte faz à ci- dades (Davila), como que se pedonaliza.
dade: a batida do desassossego.
O texto como poética, o rabisco arisco
Na oportunidade específica criada pelo VI- Text Art is no longer defended as a special
CENTE (o projecto teve a origem no desejo, case, nor has it been completely incorpora-
por parte do seu patrono, de ‘voltar a falar- ted into the institutions of art. Rather, its value
-se dos Corvos de Lisboa’…), procuro que and potential is acknowledged by a wide
a performatividade de um mártir cristão do spectrum of contemporary artists who freely
séc. IV pudesse entrar em diálogo com a da combine the use of text with performance,

– MARIO CAEIRO 53
installation, video, photography, drawing,
painting, sculpture and printmaking. 
Dave Beech

A inscrição de textos na cidade, resultante


do trabalho de artistas, é sempre um ape-
lo directo à leitura, que se torna inevitável
(aliás como acontece com as mensagens
publicitárias ou políticas, mas de uma forma
porventura mais cognitiva em termos de
Krzysztof ‘Leon’ Dziemaszkiewicz, Passeios performativos uma relação crítica (e potencialmente trans-
(Projecto VICENTE), Lisboa, 2014.
formativa) com os leitores do espaço urba-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Fotografia de Agata Wiorko, cortesia Projecto Travessa da Ermida.


no. O fenómeno tem sido um importante
factor de contradiscursos que obrigam os
leitores – todos nós – a confrontarmo-nos
com fenómenos como o da nossa própria
alienação face ao mundo que nos rodeia.
Independentemente do registo literário, do
campo semântico ou das ressonâncias es-
pecíficas, esta tendência é ainda um impor-
tante modo de dar (ensinar) a ver a cidade
como superfície e palimpsesto.

Entre todas as expressões mais felizes desta


liberdade da fala artística, vem-me sempre
à memória Everything is going to be alright
[Work n. 203], de Martin Creed, nómada in-
terrupção dadaísta da imagem do edificado
em nome de uma graça social que raramen-
te foi expressa de forma tão luminosamente
linear, exprimindo esperanças e medos uni-
versais…; ou Claire Fontaine, denunciando
num misto de desespero e ironia que CA-
PITALISM KILLS LOVE na fachada da sede
dos mineiros de Durham, um símbolo da re-
sistência ao Thatcherismo…; ou finalmente
Miguel Januário16, que é do meu ponto de
vista brilhantemente retórico, aliando uma
radical economia de meios a uma enorme
capacidade de dizer o povo.

<<
Outra obra absolutamente singular que te- uma faca nas costas [da estátua] de Afonso
nho tido a oportunidade de acompanhar é Henriques e a celebrar [o enterro de Por-
a de Stefan Kornacki. Kornacki tem ‘salva- tugal] com um caixão com a forma do dito
do’ monumentais letterings da destruição17, [limites continentais].) Em Lisboa, é procu-
conseguindo nos últimos anos construir rar por aí… mas dou uma ‘dica’: debaixo da
um quase absurdo léxico de palavras que ponte, junto à Embaixada dos Estados Uni-
outrora encimaram importantes edifícios dos da América, a Sete Rios.
(no caso, na Polónia comunista): KOSMOS,
UNIWERSAM, VICTORIA… A sua continuada relação com o texto ver-
nacular (língua portuguesa vs. inglesa con-
Neste trabalho sobre a ruína (também da forme a situação a criar, cartazes impressos
ideologia, de qualquer uma) há ao mesmo ou tinta negra directamente aplicada às su-
tempo um enorme respeito pela história e perfícies, uma tipografia universal) contrasta
os processos de recontextualização da lei- com a quase ingerência no espaço público
tura (já que todas as ‘obras’, autênticos rea- discursivo que foi a recente intervenção em
dy-mades urbanos – são acompanhadas de Lisboa de Tim Etchells19, com frases (em in-
cuidada documentação participativa [en- glês), evidentemente sobre Arte, numa tipo-
trevistas, documentários] não apenas sobre grafia relativamente requintada: Art Matters.
o que essas palavras significam [digamos Ora ‘Não é tarde nem é cedo’ terá pensa-
que ‘em absoluto’] mas também para quem do o/a vândalo/a que rabiscou várias des-
e quando). Por outras palavras (!), há uma sas inscrições com deliciosos (ou pernicio-
espécie de tradução de um termo urbano sos) comentários, do tipo: [Art that hurts] «?
concreto (uma sinalética historicamente si- DOI? ESTUDASSES!».20
tuada) para outras épocas e situações18.
Aliás, podemos hoje literalmente tocar as A cidade da arte é isto, mais do que a obra
palavras que outrora estavam lá em cima. deste ou o comentário daquele, e indepen-
Agora, cá em baixo, num lugar que é que o dentemente dos graus de violência dos de-
artista escolhe, a sua transparência e poder bates, a cidade é este diálogo, ora públi-
são completamente reconfigurados. E a sua co ora secreto, que umas vezes se fica pela
fragilidade exposta. mente do colectivo, outras surge no esplen-
dor de incompreensões que revelam por
Esta questão entronca num aspecto do pró- sua vez que, sem retórica – o poder-se e sa-
prio discurso que muitos artistas tomam por ber-se falar sobre aquilo que vale a pena – a
adquirido. A língua. Neste aspecto, Januá- arte pública aparece como uma actividade
rio tem sido precioso na inscrição criteriosa criativa dolorosamente desprezível.
dos seus textos, que são verdadeiros diálo-
gos da psique colectiva com a superfície da Resta aqui acrescentar que também um cer-
cidade e, mais globalmente, o momentum to gesto pode ser puro texto, como o prova
cultural da sua recepção (em Guimarães, a rebelde escultura de Maurizio Cattelan em
para a Capital da Cultura, chega a espetar frente à Bolsa de Milão21, o famoso Il Det-

– MARIO CAEIRO 55
to (2010). Cattelan usa o poder da grande
arte caucionada pelo seu próprio sistema
para dar voz ao povo, qual ventríloquo dos
excluídos do mundo financeiro. Fá-lo numa
referência evidente à cultura clássica (utili-
zação precisa do plinto, do efeito de ruína
e da monumentalidade típica da estatuária),
ao mesmo tempo que demonstra que, para
certas coisas serem ditas, há que encontrar
formas radicais para que façam sentido no
dado momento.
Miguel Januário, Vende-se Portugal, Lisboa, 2013.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Fotografia cedida pelo autor.


Entre estas aventuras do texto, como en-
quadrar nas genealogias do político o tex-
to potencial que são os rostos explodidos
de Alexandre Farto? Que palavras deixaram
de ser ditas, para que estes rostos começas-
sem a falar? A contar a sua história? Como
conseguiu este artista realizar um tandem
entre as linguagens da street art, da arte
contemporânea e até da arte pública? Certo
é, há uma sensibilidade retórica por detrás
do que parece a tradução para vários cená-
rios de um mesmo olhar (e de uma mesma
Stefan Kornacki, KOSMOS, UNIWERSAM, VICTORIA, técnica), ganhado em cada circuito uma au-
Cascais, 2014.
tonomia própria. Clever stuff.
Fotografia de Agata Wiorko.

Note-se porém que uma arte unanimemen-


te aceite – como vai sendo o caso de Farto
– como que tende a perder o charme de um
certo antagonismo, ou até de um certo mis-
tério. O que as obras dizem pode assim per-
der sentido de oportunidade, como quan-
do algo muito repetido deixa de ter impacto
comunicativo. Aliás, não porque o trabalho
em si necessariamente o procure, mas por-
que na ânsia de subliminar problemas – o
maior, o do Outro, por exemplo – a socieda-
Tim Etchells, Art that hurts (Artista na Cidade), Lisboa, 2014. de ao fim e ao cabo pede à arte que se limi-
Fotografia de Agata Wiorko, cortesia Projecto Travessa da Ermida.
te a representar os seus fantasmas, evitando

<<
exigir-lhe essa outra função mais complexa, -criação ou mudança onde quer que elas
que seria a de mudar o mundo (parece que possam aparecer. É preciso estar atento e
estou a ouvir Almada Negreiros, na Estação estimular a sensibilidade, sobretudo numa
de Metropolitano do Saldanha). altura em que novas visões do urbanismo
começam a ‘fazer das suas’. Por outro lado,
Não estou a dizer que seja sequer o mo- é evidente que temos dificuldade em ima-
mento – e aqui entre nós, nunca será… – ginar que o Projecto Urbano possa ser uma
para discutir a questão da arte pela arte vs. montagem e uma mobilização de recursos
da arte como política; mas que o trabalho pelos próprios habitantes (Claude, 2000)…
de Farto(s) e Januário(s) – do lado da comu- mais fundamentalmente, esquecemo-nos
nicação urbana – e depois de outros agentes de que a forma deveria seguir… a ficção
de mudança mais discretos (essa arte comu- (Séguret, 2000).
nitária de longa duração que não encaixa na
agenda mediática nem convém às narrati- Em todo o caso, prospectivas à parte, atra-
vas hegemónicas) está a reconfigurar a nos- vessar a cidade é também um exercício de
sa ideia de arte urbana, isso está. Porque rememoração; rememorar memoráveis ac-
vão tocando nos pontos, fazendo ao mesmo ções que o tempo se vai encarregando de
tempo arte e a pedagogia dos possíveis da apagar progressivamente é um exercício
arte enquanto ligação com o social. Tendem fundamental da cidadania e deveria ser um
a ser mediação (Debray, 1997) ao nível de valor inalienável da experiência do público.
um superior entendimento do que é a cida- As instalações e a implantação urbanística
de como palco de pessoas e ideias. da Luzboa (2004 e 2006) por exemplo, hão-
-de diluir-se no nada do tempo, mas como
Rememorar processos, criar lembranças que ainda ressoam na memória de alguns
Dans la gestion des signes urbains, qu’ils lisboetas (e até estrangeiros que por cá an-
s’agissent de signes traduits dans l’espace daram na altura). O essencial é que a expe-
ou de signes échangés entre les spécialis- riência estética de uma determinada gera-
tes, la logique sociale de la prise de décision ção possa encontrar formas e se traduzir
veut que celle-ci se fasse en dehors de tout para novos desafios, já que se o contexto
déterminisme consécutif à une quelconque muda, não muda (pelo menos para já!) algo
dialectique des rapports de force ou d’in- de essencial, o problema de criamos senti-
fluence. do para a nossa vida.
François Séguret
A este nível, certos experimentos urbanos
Enquanto agente de interpelações urba- são potencialmente alimentadores dos so-
nas, percorrer a cidade é para mim reco- nhos de novas gerações de criadores. As-
nhecer sítios potenciais para a realização sim aconteceu comigo anos atrás, quando
de intervenções; o que passa por encontrar ao fazer a Lisboa Capital do Nada (2001) es-
pretextos e oportunidades para criar acon- tava no fundo ainda a reacender as cinzas
tecimentos ou aliar-me a dinâmicas de co- mornas de experimentos como a Alterna-

– MARIO CAEIRO 57
tiva Zero (1977), de Ernesto de Sousa (que ção de traços geometrizantes que funciona
por sua vez trazia para Portugal as inovado- como pórtico e marco urbano num enqua-
ras visões de Harald Szeemann ou Joseph dramento urbanístico e paisagístico muito
Beuys…). É nestes termos que a questão particular – espécie de oblonga ‘praça ver-
da genealogia da arte pública é criticamen- de’. Não seria pouco, até pela clareza com
te essencial, pois há aspectos conceptuais que está implantada no território, conside-
e propriamente metodológicos que impor- rando perspectivas visuais e a significativa
ta conhecer ao longo da história, para hoje circulação viária.
operarmos com maior propriedade.
Mas a peça – de 1995, cuja designação de-
Não deixando de ser verdade que é qua- nuncia a sua localização original, Ribeira
se sempre nos Museus – e não no terreno das Naus – torna-se muito mais significante
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

– que vamos recarregar baterias (teóricas), se nos informarmos acerca de como apa-
a própria possibilidade da arte como coisa rece ali. Quantos dos transeuntes saberão
pública e urbana obriga-nos a estar atentos que resultou do orçamento participativo da
ao que acontece e à forma como partilhar CML, e que portanto foram cidadãos que
essa atenção. É uma questão de saber reco- determinaram que a obra, que antes havia
nhecer ‘os nossos’ em qualquer época – no estado noutro lugar, haveria de encontrar
meu caso, de Schiller a Lefebvre, de Wag- o seu poiso permanente aqui, na Alameda
ner a Debray, Nancy, Latour ou Sloterdijk; das Universidades?
uma questão de partilhar olhares (ao limi-
te, como em Chantal Mouffe, agónicos), fa- É esta a via para o comum que a arte pública
zendo de cada oportunidade o acontecer advoga: promover um saber sobre os ob-
de um potencial de informação urbana que jectos e os processos da arte na cidade; im-
ora é deliberadamente intangível, ora uma plicitamente também sobre as paisagens e,
concreção exemplar e retoricamente eficaz nestas, os nossos corpos, tanto individuais
dos possíveis da cidade. Por isso as obras como colectivos; a arte tornando-se assim
dizem quase sempre muito mais do que pa- matriz do nosso próprio olhar. A arte urba-
rece. Desde que as olhemos através da len- na mais tradicional torna-se concomitante-
te da arte pública – um mix de ética comuni- mente partenaire da mais radicalmente al-
tária, saber colectivo, literacia projectual e, ternativa, o nano imiscui-se nas narrativas
já agora, jargão técnico. do macro, todas as decisões de projecto im-
plicando, num certo grau de transparência
Uma escultura monumental de Charters de e escrutínio, possibilidades outras, tal qual
Almeida à Alameda da Universidade, ao como acontece no discurso – que é de to-
Campo Grande, é, então, formalmente, à su- dos, não pertencendo a ninguém.
perfície, uma coisa: um objecto escultórico
mais ou menos (ir)relevante (terminologia E daí que quando passeio pela cidade há
que ‘roubo’ a Giorgio Agamben), com uma obras que voltam sempre, como fantasmas
escala vincadamente arquitectural, evoca- de um futuro que a arte afirma na singeleza

<<
dos seus processos (e na frontalidade com A arte pública torna tangível a comunidade
que lida com as modalidades, como diria e, nela, a participação (nomeadamente a
Wagner), mas ao mesmo tempo na capaci- do povo no seu próprio destino). Antes de
dade de dizer o imediato da cidade no aqui tudo mais, ela promove a conversação. Ela
e agora dos seus dispositivos. Regresso é nos seus mais surpreendentes momentos
mais uma vez à Luzboa para dar um par de a orquestração criativa de encontros colabo-
exemplos: tivémos uma empresa de men- rativos e conversações, bem para além dos
digos (Javier Núñes Gasco), a lua na terra confinamentos institucionais da galeria ou
(Bruno Peinado) e até eléctricos – na altura do museu (Kester, 2004) A obra de arte total
bem menos photo-opportunities que hoje que é a arte na cidade – Wagner, I wish you
– iluminados (Yann Kersalé). O que mostra were here – é em suma um factor de produ-
como os artistas trabalham os limites de to- ção de imaginação colectiva e de activação
das as (des)codificações, sobretudo quan- instrumental dos mecanismos urbanos. Ela
do assumem um desígnio: o de manifesta- é por isso sempre… do futuro. Precisamen-
rem a graça social, implícita no idear mais te como Richard Wagner antecipou no seu
nobre e profundo da Cidade. ensaio de 1849.

Cabe à arte pública crítica (aproprio-me do Em suma: a arte da cidade começa num
termo cunhado por Krzysztof Wodiczko), sa- olhar sobre a coisa urbana, a cidade na sua
ber ora diluir-se tacticamente entre o espec- quotidianeidade e na sua multidimensiona-
táculo e a provocação, ora aderir ao belo lidade (conceitos lefebvrianos). Aí, formas,
para celebrar o Social Humano, ou ainda, fi- usos, códigos, imagens, paisagens, quais-
nalmente, procurar um compromisso com o quer pretextos servem para inspirar uma
desconhecido, em total entrega ao impon- consciência que cuida do que na cidade
derável (algo que ‘não dá lá muito jeito’ às queremos preservar, mudar e/ou proble-
indústrias criativas). É esta gramática fun- matizar. Ética portanto, que diz muito da
damental que subjaz ao discurso sempre- maturidade de cada comunidade. E que se
mergente que faz da cidade um palco para realiza – o que é raro, senão raríssimo… –,
a visibilidade do que urge comunicar-se e quando é radicalmente interpretada como
um tabuleiro de xadrez (dispositivo), sobre uma fusão da arte com o socius, que é o que
o qual se joga – supremo ludismo – a nossa acontece em projectos de estética dialógica
formação – a Bildung a que se refere Schiller (Kester, 2004) como os de Stephen Willats,
nas suas Cartas sobre a educação estética que encara o seu trabalho como a produção
do homem (de 1795). de cultura socialmente interactiva.22

Plano do poder cidadão, cenário de so- Dito isto, quando o/caro leitor/a passar pela
nhos, discurso exploratório da utopia, a Av. Infante Santo (agora não me dá jeito…),
arte pública transforma a cidade num veí- dê valor aos azulejos de Maria Keil (figura-
culo para todas as sensibilidades se senti- ção da maior qualidade…) mas também aos
rem mais próximas do seu próprio destino. painéis abstractos de Eduardo Nery, cele-

– MARIO CAEIRO 59
brando a luz de Lisboa… preste atenção às Uma rua mais criativa, laboratórios de
últimas da street art mas também à discre- invenção
tíssima escultura de Rui Chafes à entrada do I argue that in order to engage with practi-
Hospital de Santa Maria… mais do que sig- cal problems of public and private space, we
nificados, que sentidos estão em jogo quan- must operate at a theoretical level. We must
do olhamos à nossa volta? E depois sim, po- construct what Julia Kristeva has called “a
nha-se a imaginar. O que poderia fazer falta diagonal axis” between theory and practice,
aqui, e o que mudaria acolá… com quem va- “a place between” the two, where a more in-
leria a pena entabular a conversação? tegrative approach to the making and inter-
pretation of public spaces can begin.
No séc. XVI, Francisco de Holanda23, ilumi- Jane Rendell
nador, arquiteto e pintor soube contribuir,
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

enquanto cidadão e criador, para uma crí- No quadro do nomadismo contemporâ-


tica construtiva do ambiente urbano da ca- neo, a programação de arte pública pode
pital24, já que não o considerava à altura do começar por reconhecer que uma das
exigível. Hoje, é responsabilidade de to- principais responsabilidades da arte é par-
dos os que pudermos contribuirmos tam- ticipar na produção ou co-enunciação de
bém nós para novas lembrãças que tornem conceitos. Um conceito urbano é neste
as nossas cidades – e a Cidade no sentido quadro uma ideia motivadora, que tem de
mais lato – mais habitáveis. Se calhar, gran- implantar-se na malha urbana e ao mesmo
de parte da arte pública é isto, reminders tempo oferecer-se como interface cidadão
para todos nos apercebermos de como um (Nawratek, 2012).
pouco de atenção à forma como a arte dia-
loga com a cidade pode ser um contributo O sucesso deste desígnio estará na capaci-
crucial para o futuro de ambas. dade de desenvolverem-se parcerias trans-
nacionais e multidisciplinares para trazer
Como pode isto traduzir-se numa visão para a ordem do dia, a uma escala e numa
instrumental? Uma hipótese já a seguir, lógica globais, mas com sensibilidade local,
a partir da problemática da localidade, a diversidade dos espaços públicos como
e porventura inspirando-se na noção de um factor de criatividade urbana. Por exem-
que certos lugares estão simplesmente à plo, será que certas ruas, trabalhando em
espera de activação: A cidade pode por- conjunto, podem constituir um novo mod-
tanto ser vista como localidade, mas uma elo de cooperação catalisador de inovação
localidade definida pela proximidade, em urbana? O artista, o programador, o cura-
termos de acessibilidade e interface, não dor, o mediador… o craftsman, o técnico, o
necessariamente associada à localização próprio público podem e devem estar ‘em
espacial. (Nawratek, 2012) rede’, e nesse intercâmbio encontrarem
plataformas para tornar o seu trabalho mais
oportuno? Rochus Aust é um exemplo típico
deste artista que domina a cidade enquan-

<<
to matéria para as suas formas, transforman-
do os próprios meio e vida urbanos num in-
strumento musical (fê-lo à Travessa do Marta
Pinto, âmago do Projecto VICENTE).

E podemos aqui renovar os nossos votos


com Lefebvre precisamente a partir do seu
entendimento da rua como dispositivo co-
mum, público e quotidiano.25

Imaginemos que entramos numa peque- Rochus Aust & DEUTSCHES STROMORCHESTER, Concerto
Móvel na Travessa do Marta Pinto, Lisboa, 2015. Fotografia de
na rua de Lisboa, animada por uma discre-
Agata Wiorko, cortesia Projecto Travessa da Ermida.
ta mas vibrante vida local... sentimo-nos
‘em casa’ porque o espaço é convidativo,
ou uma obra de arte nos chama, ou a fila à
porta de um restaurante denuncia uma boa
cozinha... imaginemos que ao fim dessa rua
entramos diretamente numa calle espanho-
la... tão diferente e, no entanto, transmitindo
um carácter semelhante... imaginemos que
ao final dessa rua espanhola entramos numa
francesa, depois numa italiana, que se bifur-
ca numa alemã e numa turca, desembocan-
do todas numa estónia... Imaginemos uma
rede de ruas assim virtualmente ligadas,
como se existisse entre elas uma passagem
oculta, conectando diferentes lugares onde
a Europa acontece, fervilhando da mesma
vida urbana, pessoas, ideias, iniciativas, num
mosaico de culturas locais. Façamos a car-
tografia intangível de todas essas ruas. Voilá
uma Europa de pequenos factos urbanos a
que acedemos por via de critérios próprios,
como o genuíno, o vintage, o emergente, o
excecional. Seria uma rota 24/24h com pro-
tagonistas e figurantes sempre renovados, a
vivência dos diversos lugares enquanto pal-
cos de atmosferas, estórias, valores.26

– MARIO CAEIRO 61
Em suma, tem de continuar a abrir-se – Expérimentations et Professions,
‘sugerir-se’, ‘rasgar-se’… – espaços para uma Éditions de la Villette, 2000.
cidadania (propriamente) artística (Cam- Debray, Régis; Introdução à
pbell e Martin, 2006). Sendo certo que ela Mediologia, Livros Horizonte, 2004.
é um modo de operar esteticamente, vejo-a Davila, Thierry; Marcher, Créer.
acima de tudo como um modelo plástico Déplacements, flâneries, dérives
para nos apropriarmos todos – artistas e não dans l’art de la fin du XXe siècle,
só – dos mecanismos de subjectivação na Editions du Regard, 2002.
cidade; e portanto também como uma res- Flusser, Vilém; O mundo
posta pragmática às distopias da moderni- codificado: por uma filosofia do
dade. A arte (pública, urbana…) tem neste design e da comunicação, Cosac
âmbito um papel revolucionário (Nawratek, Naify, 2007.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

2012). A rua continua… Grout, Catherine; Pour une réalité


publique de l’art, L’Harmattan,
2000.
Johnstone, Stephen (Ed.); The
Everyday, The MIT Press, 2008.
Kester, Grant H.; Conversation
— Bibliografia Caeiro, Mário; Arte na Cidade – Pieces. Community +
História Contemporânea, Temas e Communication in Modern Art,
Agamben, Giorgio; O que é o Debates/Círculo de Leitores, 2014. University of California Press, 2004.
contemporâneo e outros ensaios, Caeiro, Mário; «Ruas criativas? Landry, Charles; The Sensory
Argos, 2009. Vamos lá! O novo desafio de uma Landscape of Cities, Comedia,
Arendt, Hannah; A Vida do Espírito Europa en route, a caminho de si 2012.
– Pensar [1978], Instituto Piaget, própria», in Arqa – Arquitetura e Campbell, Mary Schmidt; Martin,
2007. Arte, n. 119, julho-agosto 2015. Randy; Artistic Citizenship, Taylor &
Argan, Giulio Carlo; História da arte Campos, Ricardo; Brighenti, Francis, 2006.
como história da cidade, Martins Andrea Mubi; Spinelli, Luciano Nawratek, Krzysztof; Holes in the
Fontes, 2005. (Orgs.); Uma Cidade de Imagens. Whole. Introduction to the Urban
Barrento, João; A palavra Produções e Consumos Visuais Revolutions, Zero Books, 2012.
transversal. Literatura e ideias no em Meio Urbano, Mundos Sociais, Nelson, Robert S.; Shiff, Richard
século XX, Edições Cotovia, 1996. 2011. (Eds.); Critical Terms for Art History,
Barrento, João; O género Collins, Tim; Goto, Reiko; «Eco-art The University of Chicago Press,
intranquilo: anatomia do ensaio Practices», in Miles, Malcolm (Ed.), 2003.
e do fragmento, Assírio & Alvim, New Practives – New Pedagogies, Liggett, Helen; Urban Encounters,
2010. Rouledge, 2005. University of Minnesota Press,
Caeiro, Mário; «A arte pública está Claude, Viviane; «Essai de 2003.
na maneira de olhar», in Smart définition du projet urbain», in Rendell, Jane; «Public Art:
Cities – Cidades Sustentáveis, #8, Hayot, Alain; Sauvage, André between Public and Private», in
Set-Out 2015. (dir.), Le Projet Urbain. Enjeux, Bennett, Sarah; Butler, John (Eds.);

<<
Advances in Art & Urban Futures tender para uma ou mais das Semedo, Alice; «Introdução», in
Voume I. Locality, Regeneration & seguintes posições: lírica, crítica e Semedo, Alice; Lopes, J. Teixeira
Divers[c]ities, Intellect Books, 2000. transformativa. (Coord.); Museus, discursos e
Séguret, François; «Les acteurs 2
Delgado, Manuel; «O Espaço representações, Afrontamento,
et les métiers de la ville et du Público como Representação. 2006.
projet Urbain», in Hayot, Alain; Espaço urbano e espaço social 5
João Barrento (1996):
Sauvage, André (dir.), Le Projet em Henri Lefebvre». Conferência Actualidade não é, para Benjamin,
Urbain. Enjeux, Expérimentations et proferida no âmbito do ciclo «A a categoria mundana que se refere
Professions, Éditions de la Villette, Cidade Resgatada» organizado àquilo que brilha à superfície, ao
2000. pela OASRN, Museu de Serralves, aggiornamento efémero, ao up
Semedo, Alice; «Introdução», in 15 de Maio de 2013. Tradução to date borbulhante, calculado
Semedo, Alice; Lopes, J. Teixeira do espanhol por Pedro Bismarck e imposto. O conceito tem nele
(Coord.); Museus, discursos e e Luís Piteira. Cf. http://www. contornos mais fundos, místicos, e
representações, Afrontamento, revistapunkto.com/2014/01/ implica uma iluminaço súbita do
2006. o-espaco-publico-como- passado pelo presente, motivada
Serrão, Adriana Veríssimo; «A representacao_9694.html por uma afinidade electiva e
paisagem como problema da 3
Ver a reflexão continuada de despoletada por uma explosão de
filosofia», in Serrão, Adriana João Barrento sobre o ensaio sentidos que põe a nu secretas e
Veríssimo (Coord.), Filosofia da e o fragmento, sintetizada em imprevisíveis coincidências entre
Paisagem. Uma Antologia, Centro entrevista recente, de 2013. Cf. presente e passado.
de Filosofia da Universidade de http://www.pequenamorte.net/ 6
Campos, Ricardo; «Introdução»,
Lisboa, 2011. entrevista-com-joao-barrento/#. in Campos, Ricardo; Brighenti,
Wagner, Richard; A Obra de Arte Vhofm7RViko Andrea Mubi; Spinelli, Luciano
do Futuro [1849], Antígona, 2003. 4
Donde que neste quadro à (Orgs.); Uma Cidade de Imagens.
Young, James E.; «Memory/ arte se coloca o desafio de Produções e Consumos Visuais
Monument», in Nelson, Robert S.; constantemente aferir as hipóteses em Meio Urbano, Mundos Sociais,
Shiff, Richard (Eds.); Critical Terms de os actores sociais e os agentes 2011.
for Art History, The University of artísticos constituírem um e o 7
O arquitecto Gonçalo Ribeiro
Chicago Press, 2003. mesmo grupo, ainda que na Telles é autor, entre outros, do
Zanatta, Maria Luiza; «Caminhando efemeridade de um conceito ou Corredor Verde de Monsanto;
com Francisco de Holanda», V de um evento. Para Alice Semedo: da integração da zona ribeirinha
Encontro de História da Arte, IFCH O agente é essencialmente um oriental e ocidental na Estrutura
/ UNICAMP, 2009. fazedor activo de significados: no Verde Principal de Lisboa; dos
entanto, a constituição do mundo jardins da sede da Fundação
— Notas como «significante», «relevante» Calouste Gulbenkian (com António
ou «inteligível» depende da Viana Barreto) e dos projectos do
1
Para Tim Collins e Reiko Goto linguagem compreendida não Vale de Alcântara e da Radial de
(2005), advogados da arte pública como um simples sistema de Benfica, do Vale de Chelas, e do
como eco-prática, a atitude signos e símbolos, mas como um Parque Periférico.
estética dos criadores pode meio para a atividade prática. Cf. 8
Directamente inspirada pelo

– MARIO CAEIRO 63
movimento das águas, Fernanda momento Roy Lichtenstein à beira 18
Em Portugal, Kornacki
Fragateiro concebeu o projecto de da estrada. O mais bonito é que apresentou-se: na Plataforma
um jardim totalmente relvado, em muitas vezes vejo um senhor Revólver, na exposição colectiva
que a modelação do terreno em aproveitar os destroços para se Objet Trouvé (2012), onde instalou
rigorosas curvas de nível, simula sentar a descansar à sombra, e nem duas letras (I e P) da palavra ‘IZBA
o ritmo do oceano, com o fazer e me importo de parar nos semáforos PRZYJĘĆ’ [Serviço de Urgências]
desfazer das ondas. In http://www. vermelhos lá ao lado todo o santo (http://inscriptionproject.
portaldasnacoes.pt/item/fernanda- domingo. Ana Dias Ferreira in blogspot.pt/2012/04/objet-
fragateiro-jardim-das-ondas/ https://cabecacoracao.wordpress. trouve.html); em performance
9
Cf. http://www.cm-lisboa.pt/ com/category/olhos/arte-urbana/ freestyle em frente à Assembleia
equipamentos/equipamento/ 13
Foi entretanto ‘trasladada’ para da República, no mesmo ano,
info/liberdade-monumento-a- a Doca de Santo Amaro. Cf. http:// com a palavra ‘CRISE’ escrita em
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

revolucao-de-abril joanavasconcelos.com/info. ossos adquiridos num talho (


10
Pouco depois da inauguração, aspx?oid=511. https://vimeo.com/89400206);
o povo de Lisboa baptizou 14
Davila: Car tel est, dans le no âmbito do ‘combóio artístico’
aliás a polémica peça, quase domaine de l’art, le destin de la Cosmic Underground (2013), com
carinhosamente, de mamarracho, déambulation: ele est capable de uma reconfiguração teatralizada
mas é curioso como, com o tempo, produire une atitude ou une forme, da palavra ‘UNIWERSAM’
o choque se atenuou. de conduire à une réalisation (https://www.youtube.com/
11
In http://www.jn.pt/PaginaInicial/ plastique à partir du mouvement watch?v=gYnpxxvkpi0) e mais
Interior.aspx?content_id=935682 qu’elle incarne, et cela en dehors recentemente no contexto do
12
Se pensarmos que a melhor ou en complément de la pure et Festival LUMINA, em Cascais
definição de arte urbana é algo simple représentation de la marche (2015), onde três palavras –
que interage com a rua e que (iconographie du déplacement), ou ‘KOSMOS’, ‘UNIWERSAM’ e
é pensado para um espaço em bien ele est tout simplement elle- ‘VICTORIA’ – foram apresentadas
particular como os anéis são même l’attitude, la forme. simultaneamente sob a forma de
pensados para os dedos, então 15
Ao limite, ainda com Davila: uma instalação de luz.
um dos melhores exemplos que Définir un cadre, un protocole, 19
Artista na Cidade [de Lisboa]
temos em Lisboa é mesmo este un dispositif, qui encourage le 2014, projecto que consistiu na
de Pantónio, entre as Amoreiras e développement d’une sucession, inscrição de dez frases em outros
Campo de Ourique. Tão bom que d’une addition d’événements, qui tantos locais de Lisboa, realizado
já foi feito em 2011, outros murais produise quelque chose comme la em colaboração com o Gabinete
vizinhos já chegaram e saíram, e a mise en forme d’un mouvement. de Arte Urbana (GAU). Cf. http://
parede nunca sequer foi arranjada. 16
Street-artist que se tem www.artistanacidade.com/2014/
E tão bom que transformou um celebrizando-se pelas suas frases intervencoes-na-cidade-uma-
acidente – literalmente, porque sempre assinadas ‘+-‘. Cf. http:// colaboracao-com-a-gau/
foi uma carrinha que se despistou maismenos.net/ 20
A ideia partiu da Galeria de
e subiu pelo passeio como 17
http://inscriptionproject. Arte Urbana (GAU) da autarquia,
se estivesse para entrar numa blogspot.pt/2012/04/objet-trouve. que convidou Tim Etchells “a
garagem – no nosso próprio html escrever 10 frases para Lisboa, 10

<<
frases que interpelem os lisboetas Willats shifts the focus of art from 25
Stephen Johnstone: The
e transeuntes e os convidem the phenomenological experience everyday is human. The earth,
a descobrir este artista”. […] O of the creator fabricating an the see, forest, light, night, do not
certo é que alguém terá levado exemplar physical object to the everydayness, which belongs first
o programa à letra e se deixou phenomenological experience of of all to the dense presence of
interpelar pelas frases, ao ponto his co-participants in the spaces great urban centres. We need these
de tomar a iniciativa de sobre and routines of their daily lives. admirable deserts that are the
elas intervir. Por cima dos ditos 23
Maria Luisa Zanatta: Em Da world’s cities for the experience of
idealizados pelo artista inglês, Fabrica que falece à cidade de the everyday to begin to overtake
sempre com um carácter mais Lisboa (1571) o teórico retoma us. The everyday is not at home
ou menos programático sobre o velhas questões insistindo nas in our dwelling-places, it is not in
sentido da arte – “art that hurts”, urgências urbanas. Apresenta offices or churches, any more than
“art that opens eyes” ou “art that uma série de imagens, isto é, in libraries or museums. It is in the
remembers”-, foram feitos riscos lembranças de melhoramentos street – if it is anywhere. Here I find
em graffiti e, acima ou abaixo delas, para Lisboa: portas, pontes, again one of the beautiful moments
apostas inscrições sem aparente calçadas, igrejas, palácios e of Lefebvre’s books. The street, he
ligação ou outro propósito que fortificações que conferiram a notes, has the paradoxical character
o da mera sabotagem. In http:// Holanda a condição do arquiteto of having more importance than
ocorvo.pt/2014/11/17/murais-de- que pensa a cidade. Analisando the places it connects, more living
artista-homenageado-sabado-pela- sua obra, encontramos elementos reality than the things it reflects. The
camara-de-lisboa-vandalizados/ que nos auxiliam a compreender street renders public. ‘The street
21
A peça ganhou a sua designação suas ideias de Arquitetura e de tears from obscurity what is hidden,
final, ‘L.O.V.E’, durante o processo Cidade. publishes what happens elsewhere,
da sua realização. O título 24
Cristiane Maria Rebello in secret; it deforms it, but inserts
inicialmente previsto havia Nascimento: Da Fábrica que it in the social text.’ And yet, what
sido ‘omnia munda mundis’ – falece à cidade de Lisboa não is published in the street is not
significando literalmente ‘para é propriamente um tratado de really divulged; it is said, but this
os [homens] puros, todas as arquitetura, mas uma admoestação ‘is said’ is borne by no word ever
coisas [são] puras’. Cf. http://www. ao rei D. Sebastião a propósito really pronounced, just as rumours
designboom.com/art/maurizio- da importância de dar à cidade are reported without anyone
cattelans-middle-finger-displayed- uma condição à altura do transmitting them and because the
in-milan/ império marítmo português. Cf. one who transmits them accepts
22
Kester: As he [Willats] writes, “My Nascimento, Cristiane Maria being no one.
practice is about representing the Rebello; DA FÁBRICA QUE 26
Cf. Caeiro, Mário; «Ruas criativas?
potential self-organizing richness FALECE À CIDADE DE LISBOA: Vamos lá! O novo desafio de uma
of people within a reductive culture FRANCISCO DE HOLANDA Europa en route, a caminho de si
of objects and possessions. In a ENTRE OS MIRABILIA E OS GUIAS própria», in Arqa – Arquitetura e
society which reduces people I’m TOPOGRÁFICOS DE ROMA, IV Arte, n. 119, julho-agosto 2015.
working to celebrate their richness ENCONTRO DE HISTÓRIA DA
and complexity. […]”. In his projects, ARTE – IFCH / UNICAMP, 2008.

– MARIO CAEIRO 65
Do Monumento Público Tradicional
à Arte Pública Contemporânea

por José Pedro Regatão


Professor na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico
de Lisboa, Doutoramento em Ciências da Arte (Àrea específica: Arte
Pública) e Investigador.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

In this paper we tried to define and discuss the


concept of public art in light of the theoretical
work that justified the creation of this subject, Durante um largo período de tempo a de-
with reference to the main arguments that have signação Arte Pública, entendida enquanto
characterized the discussion on the topic. To that end, categoria artística, suscitou o debate e al-
we present a model based on a set of aesthetic and guma controvérsia nos meios académicos,
conceptual transformation that occurred in art from não apenas por se tratar de um termo rela-
the second half of the twentieth century onwards, tivamente recente no campo historiográfico,
as far as the plastic formulation, and the perspective mas sobretudo pelo facto de este conceito
of a new understanding of the Spectator place are não reunir um consenso generalizado. Antes
concerned. This also implies the recognition of old de mais, é um conceito que veio questionar
values rejection ​​that characterized the traditional as noções tradicionais de monumento es-
public monument and the failure of its own cultórico, a sua forma e função, bem como
compositional structure. Thus it is argued that public o lugar do espetador, convocando novos
art is inseparable from the traditional monument modelos fundados na pesquisa estética de-
crisis, in that it proposes a rupture with this historical senvolvida durante o século XX. Estes mo-
context, promoting a new awareness of its form and delos, para além de terem sido responsáveis
function. For that purpose we present several artistic pela redefinição da obra de arte, introduzi-
projects that illustrate the theoretical and practical ram novas problemáticas na criação artística
implications of this concept. para o espaço público, rejeitando os proces-
sos de representação convencionais.

Acrescente-se ainda a multiplicidade de


perspetivas produzidas no pensamento
teórico nas últimas décadas, onde se con-
frontaram diversas teses e se debateram di-
ferentes casos de estudo1 sobre os requi-

<<
sitos estético-conceptuais da arte pública, algumas das ideias principais para o futu-
propondo diversas perspetivas sobre o seu ro desta disciplina, ao destacar a vertente
papel na sociedade. Se por um lado este social e utilidade pública da arte, em opo-
debate se traduziu no desenvolvimento sição ao que na época consideravam ser a
teórico deste conceito, por outro, suscitou “mediocridade da arte oficial”. Neste con-
alguma confusão e ambiguidade no signifi- texto, foi possível conhecer uma das pri-
cado do termo. Hoje em dia coexistem cor- meiras definições de arte pública de que há
rentes de pensamento que defendem pro- memória, relatada enquanto obra “sublime
pósitos diferentes para a arte pública, uns e útil para a via pública”3, uma noção que
incidem mais na exploração das caracterís- dissipa logo à partida quaisquer dúvidas
ticas físico-percetivas do espaço orientado em relação ao compromisso social presen-
para a experiência do observador, outros te neste conceito.
pelo contrário defendem a sua função so-
cial e educativa, através do estímulo do tra- Cerca de meio século depois encontramos
balho com as comunidades. mais uma referência às denominadas Artes
Públicas pela mão de Gilbert Seldes, desta
Alguns autores consideram que toda a arte vez em alusão a três importantes meios de
é pública, na medida em que as obras per- comunicação de massas em forte expansão
tencentes às coleções dos museus se en- desde os anos 30: a televisão, a rádio e o
contram acessíveis ao grande público, por cinema. Segundo o escritor e crítico ame-
isso a expressão é entendida como pleo- ricano, as Artes Públicas – The Public Arts –
nasmo, visto que a própria noção de arte distinguem-se das outras artes pelo seu ca-
deixa implícita essa ideia. Outros tantos ar- rácter “popular” e “aceitação universal”, por
gumentos críticos questionaram a legitimi- abranger “(…) um vasto número de pessoas
dade da expressão arte pública que, hoje simultaneamente, e o seu efeito não se limi-
em dia, já conquistou a plena aceitação, tar àqueles que as presenciam diretamente”,
tendo afirmado a sua independência en- no sentido de que se converte numa “ma-
quanto disciplina de estudo. téria de preocupação pública”4. Reconhece-
mos, em grande parte, nestas palavras a na-
Embora o conceito de arte pública retrate tureza da arte pública entendida enquanto
uma mudança de paradigma que ocorreu disciplina artística; a par dos meios de infor-
na arte no decurso da segunda metade do mação de massas, também se encontra dis-
século XX, mais concretamente em meados ponível para uma audiência ampla e hetero-
da década de 60, na realidade este termo génea, não se esgotando apenas nos seus
remonta ao final do século XIX, como teste- espectadores diretos, mas, em certos casos,
munha o Primeiro Congresso Internacional “contagiando” toda a comunidade.
de Arte Pública realizado em Bruxelas em
Setembro de 1889 2. Neste encontro, onde Um dos aspetos que melhor caracteriza a
se reuniram diversas entidades governa- arte pública é precisamente o carácter uni-
mentais de vários países, já se perfilavam versal do seu envolvimento com o público,

– JOSÉ PEDRO REGATÃO 67


na medida em que se dirige a toda a so- caráter experimental, em proveito de locais
ciedade e não apenas a um segmento es- que proporcionem maior liberdade artística
pecífico, como geralmente se observa nos e com capacidade para convocar a presen-
lugares institucionais da arte, e por isso ça de novos tipos de público.
participa diretamente no quotidiano social
através dos locais de convívio e lazer que No âmbito dos espaços não convencionais,
integram a própria paisagem urbana. Di- os artistas demonstraram um grande inte-
versos autores reconhecem, também, que resse pelas potencialidades da arte pública
este conceito serviu para distinguir duas enquanto alternativa às galerias e museus,
práticas artísticas distintas, uma dirigida seja pela liberdade e ambição proporciona-
para museus e galerias e outra orientada da pela grande escala capaz de extrapolar o
para os espaços públicos. registo da galeria, seja pela nova importân-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

cia que conferiam ao espetador, solicitando


Poder-se-á questionar o motivo desta sepa- cada vez mais a sua participação6.
ração formal no quadro da arte contempo-
rânea, onde operam cada vez menos limi- Se, por um lado, o conceito de arte pública é
tes concretos entre as disciplinas artísticas o resultado deste conjunto de posições de-
e se observa uma crescente proliferação sencadeadas pelas vanguardas na viragem
de novas técnicas e processos de trabalho dos anos 60 para os anos 70, por outro, re-
responsáveis pela crescente desmaterializa- flete uma mudança de modelo em relação
ção da obra de arte. Na realidade, isto reve- à conceção tradicional de monumento, pro-
la uma nova consciência sobre as relações pondo a substituição dos padrões clássicos
entre arte e o seu contexto, porque o obje- de representação por novos valores de ca-
to deixou de ser entendido enquanto enti- ráter anti-monumental7. Como refere Arlene
dade autónoma para compreender todo o Raven “a arte pública não é mais um herói
ambiente que o rodeia, colocando o espa- a cavalo”8, na medida em que reclama uma
ço real no centro da criação artística. nova independência do modelo do monu-
mento público tradicional.
Importa não esquecer que este fenómeno
é acompanhando por uma atitude de con- Esta transformação profunda na nature-
testação dos artistas ao carácter sacralizado za conceptual e estética da arte coincidiu
e artificial do denominado “cubo branco”, com importantes mudanças político-sociais
metáfora criada por Brian O’Doherty para no Ocidente, nomeadamente na segunda
caracterizar o espaço idealista de museus e metade do século XX, com a queda de um
galerias de arte, local de pura neutralidade conjunto de ditaduras e regimes autoritá-
onde as obras aparecem isoladas do mun- rios que abriram espaço para o surgimento
do real5. Neste âmbito, também, compreen- da democracia e, por conseguinte, da pró-
de o movimento de oposição ao sistema pria liberdade de expressão. Vale a pena
comercial praticado pelas galerias, em par- recordar, a este propósito, o célebre Con-
te comprometendo a exibição de obras de curso Internacional de Escultura dedicado

<<
à construção do Monumento ao Prisioneiro Na verdade, o conceito de arte pública sur-
Político Desconhecido, promovido pelo Ins- ge inevitavelmente ligado à crise do mo-
titute for Contemporary Art em 1952. Este numento público tradicional, entendido no
concurso contou com mais de uma cente- seu sentido original como uma represen-
na de artistas de várias nacionalidades, en- tação comemorativa destinada a preservar
tre os quais se destacam grandes referên- um determinado acontecimento para a pos-
cias da escultura do século XX, como Naum teridade, como define Alois Riegl:
Gabo, Alexander Calder, Barbara Hepwor-
th, Reg Butler, Max Bill e o artista português “Por monumento, no sentido mais antigo e
Jorge Vieira. Para além de propor novas lin- primordial, se entende uma obra realizada
guagens e soluções formais, este concurso pela mão humana e criada com a finalidade
traduzia uma verdadeira oposição político- específica de manter a proeza ou destinos
-ideológica, ao estilo da “Guerra Fria” contra individuais (ou em conjunto destes) sempre
os países comunistas9. De facto, investiga- vivos e presentes na consciência das gera-
ções subsequentes revelaram que os Esta- ções vindouras. […]”12.
dos Unidos da América financiaram discre-
tamente o respetivo concurso com o intuito Neste sentido, é possível afirmar que os
de denunciar a falta de liberdade humana e monumentos públicos tradicionais estão
a trágica situação dos prisioneiros políticos impregnados de uma série de valores –
vítimas dos regimes não democráticos. morais, ideológicos, educativos, estéticos,
simbólicos – que a nossa memória coletiva
Apesar de o programa estético do concur- pretende preservar como um legado às ge-
so não apresentar restrições estilísticas, na rações futuras. Compreende-se assim que
verdade o júri, constituído por uma dezena esta memória seja um elemento fundamen-
de personalidades de prestígio no campo tal da identidade “individual ou coletiva” da
da história de arte, como Herbert Read e nossa sociedade, geradora de determina-
Giulio Carlo Argan, mostrou preferência por dos modelos sociais e, de certo modo, um
abordagens mais abstratas ao tema pro- poderoso “instrumento” de poder, como se
posto, coincidindo em certa medida com observou ao longo da história pelas ações
as diretivas de uma campanha política sim- ideológicas e propagandísticas dos regi-
bolicamente representada pelo recurso à mes totalitários13.
abstração10. Por ironia do destino, aquele
que certamente ficaria conhecido na histó- A maior parte dos valores personificados
ria da arte como um dos primeiros monu- nos monumentos escultóricos tradicionais
mentos modernos, da autoria do escultor foram rejeitados por diversos artistas no de-
inglês Reg Butler, não chegou a ser erguido curso do século XX, tanto em termos con-
no espaço público, permanecendo apenas ceptuais, com a falência dos antigos ideais
em pequena escala11. comemorativos, como em termos estéticos,
ao reivindicar um novo ideário formal em
sintonia com as pesquisas plásticas da mo-

– JOSÉ PEDRO REGATÃO 69


dernidade. A retórica do monumento escul- Um dos exemplos mais emblemáticos des-
tórico tradicional deixou de corresponder ta atitude é a estátua – landmark – da autoria
às exigências da sociedade moderna. No do escultor australiano Charles Robb, uma
plano estético, verifica-se a oposição às pre- representação invertida que homenageia o
missas convencionais do monumento escul- primeiro governador daquela cidade, Char-
tórico, caracterizado pela sua escala monu- les La Trobe, personagem colonial quase
mental, verticalidade, função comemorativa, desconhecida pelos australianos, apesar do
representação figurativa, carácter alegórico seu precioso contributo para o desenvolvi-
e narrativo, bem como a “hierarquização vi- mento de Melbourne17. A natureza deste tri-
sual e simbólica das personagens”14. Desse buto, instalado temporariamente em frente
modo, veio pôr em causa a lógica estrutu- do Museu da Cidade (2004-2006), não só
ral do monumento clássico, abandonando veio questionar a natureza e significado dos
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

as tradicionais convenções estéticas por um monumentos públicos dominantes, como


novo ideário formal fundado na experiência contestar o rigor dos critérios aplicados na
artística contemporânea. Como denota Mar- seleção histórica do mérito. Ao longo da
garet Robinette na década de 70 ao afirmar: história, outros tantos exemplos contesta-
ram e, até, parodiaram a função do monu-
“Hoje, é evidente a mudança das intenções mento público convencional.
da escultura pública. Raramente comemora
heróis e acontecimentos, nem simboliza de- Outro aspeto importante que marca o sur-
terminadas realizações ou objetivos. Em vez gimento do conceito de arte pública é
disso, a sua tarefa parece ser melhorar esteti- o abandono do pedestal protagonizado
camente um lugar […]”15. pela escultura pública moderna; desde o
final do século XIX, assistimos a um longo
Não cremos, no atual panorama, ser pos- processo de independência da escultura
sível recuperar o conceito de monumento em relação à sua base, primeiro pela mão
escultórico tal como propõe Javier Made- de Rodin, e mais tarde de Brancusi, que re-
ruelo no seu interessante ensaio sobre o fim solveram este desafio ao fundir a escultu-
do uso do pedestal16, porque na realidade ra com o seu suporte. O pedestal tem sido
toda a arte pública se afirma enquanto prá- utilizado durante séculos com o propósi-
tica antimonumental, rejeitando qualquer to de erguer monumentos escultóricos e
afinidade com as propostas comemorati- elementos arquitetónicos, com o intuito
vas precedentes. Não surpreende, portan- de fazer sobressair determinados objetos
to, que muitos artistas tenham adotado uma do ambiente em redor e conferir-lhes uma
postura crítica face ao monumento come- certa monumentalidade.
morativo tradicional, desenvolvendo diver-
sos projetos que ridicularizam a sua função Para além da sua condição de elemento es-
na sociedade contemporânea, ao mesmo trutural de origem arquitetónica, adquiriu
tempo que reivindicam a sua imediata re- uma espécie de carácter sagrado ao per-
formulação estética. mitir que qualquer imagem/objeto – reli-

<<
gioso, militar, civil – adquirisse um sentido ele também é entendido como coprodu-
ascensional. O pedestal comporta assim tor da obra, no sentido de que é convoca-
o culto do profundo respeito, da home- do para participar na realização da mesma,
nagem solene, da veneração pública e da através do seu próprio “ato de perceção”
intangibilidade terrestre. Como refere An- ou expressão individual. Por conseguinte,
drew Causey, “[…] o pedestal foi o sinal do a obra não apresenta uma estrutura defi-
privilégio escultórico, o primeiro sinal da nida e acabada, como é comum encontrar
sua diferença em relação às outras coisas nas formas clássicas, mas abre-se a um vas-
[…]”18; mas também nas palavras de Albert to “campo de possibilidades” de interpreta-
Elsen, foi responsável por conferir à escul- ção remetendo para o próprio espectador a
tura um “aspeto raro e precioso”, assumin- sua realização final21.
do, em certa medida, uma postura “não de-
mocrática ou autoritária”19. A nova relação artística construída com o
espectador tornou-se rapidamente na for-
Se é verdade que a independência da es- ça motriz da arte pública, no sentido de
cultura face ao seu suporte representa uma que os artistas começaram a dirigir as suas
importante conquista da escultura moder- intervenções para a exploração das poten-
na, suscitando novas possibilidades plásti- cialidades físico-percetivas da obra, trans-
cas derivadas da crescente autonomia do formando o espectador no seu principal
objeto artístico, não é menos verdade a protagonista. Em consequência disto, mui-
importante transformação que operou no tas obras se definiram em função do movi-
campo da arte pública, conferindo à peça mento, da descoberta e da interação dire-
uma maior liberdade de ação e proximida- ta com o observador, construindo parte do
de com o público. seu significado a partir desse diálogo parti-
cular entre o sujeito e a obra.
Outro aspeto fundamental para caracterizar
este conceito, surge no seguimento desta Jaume Plensa vai ao encontro desta nova
conquista formal, consiste na proximidade consciência do lugar do espectador com a
entre a arte e o público, em consequência obra The Crown Fountain, inaugurada em Ju-
de um novo posicionamento da obra de lho de 2004 no Millenium Park, em Chicago,
arte perante o espectador, uma vez que nos EUA. Duas torres em tijolo de vidro com
deixa de ser entendida enquanto discur- 15 metros de altura, dispõem-se frontalmen-
so “unilateral” para passar a ser “entendida te sobre uma ampla praça em granito, fun-
como uma forma de diálogo entre o artista cionando como telas onde são projetados
e o público”20. Ao promover esta nova for- diversos rostos de cidadãos anónimos, es-
ma de diálogo, cuja inspiração nos reporta colhidos entre diversas organizações sociais
aos movimentos artísticos dos anos 60 e 70, e étnicas daquela cidade. Em determinado
o espectador abandona a sua posição me- momento específico, os lábios dos rostos
ramente contemplativa para desempenhar contraem-se e simulam o jorrar da água pro-
um papel participativo na obra. Por vezes, duzindo um efeito similar às fontes tradicio-

– JOSÉ PEDRO REGATÃO 71


nais. Após terminada a sequência de vídeos, do diálogo formal entre a obra e o meio
onde cada rosto é projetado durante 5 mi- circundante. Por isso, a apreciação da obra
nutos, surge uma cascata de água que cobre está inevitavelmente associada ao seu con-
a fachadas das torres, criando um forte efei- texto, tornando-se num elemento essencial
to visual. Para além do tributo à diversidade para a sua perceção24, como assinalam as
étnica que caracteriza esta cidade, a escul- palavras do escultor Richard Serra:
tura de Jaume Plensa interage fisicamen-
te com o público através dos seus jogos de “[…] Baseado na interdependência da obra e
água, e convida os espectadores a fruírem do local, os trabalhos site-specific dirigem-se
do espaço de modo recreativo. Este projeto criticamente ao conteúdo e contexto do seu
ilustra bem a transformação originada pela lugar. As propostas site-specific permitem
arte pública contemporânea, ao estimular a observar, simultaneamente, as novas rela-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

interação recíproca entre a obra e o espec- ções criadas entre a escultura e o seu contex-
tador, de uma forma original e sem prece- to […]”.interdependência da obra e do local,
dentes na história. os trabalhos site-specific dirigem-se critica-
mente ao conteúdo e contexto do seu lugar.
Para que a relação descrita possa ocorrer As propostas site-specific permitem obser-
na sua máxima eficácia, os artistas tiveram var, simultaneamente, as novas relações cria-
que se adaptar a esta nova realidade, alte- das entre a escultura e o seu contexto […]”25.
rando os seus procedimentos na conceção
da obra pública, rompendo, antes de mais, Deste modo a obra torna-se interdependen-
com o “paradigma modernista”22 responsá- te do local para onde se destina, redesenha
vel pela preservação da autonomia da obra e organiza o espaço em seu redor, criando
perante o seu meio envolvente. um novo campo de significados que alte-
ra a perceção do espaço urbano. Para Lucy
Com o advento do minimalismo, durante o Lippard, a arte site-specific deverá “(…) ter
final da década de 60, assistimos à rutura uma ligação orgânica com o seu lugar (…)” e
dos conceitos tradicionais de escultura: a re- ser encarada como um objeto que faz parte
dução formal em contraponto à representa- do quotidiano do espectador26.
ção, a rejeição do processo de modelação
dos materiais, a oposição ao uso do pedestal Esta ligação próxima entre a obra, o espa-
como elemento de suporte da obra, a con- ço e o próprio espectador representa na
quista do espaço em redor da escultura e o realidade um dos principais fundamentos
reposicionamento do lugar do espectador23. do conceito de arte pública, cuja estrutu-
ra se define por este novo conjunto de re-
Outro aspeto importante que define a arte lações intrínsecas entre a obra de arte e o
pública, é a noção de site-specific que de- espaço urbano.
signa as obras concebidas para um lugar
específico tendo como base as qualidades Enquanto no passado o monumento públi-
físicas desse espaço, através de um profun- co nos ofereceu uma estética formal bem

<<
definida, a partir de cânones académicos cados que lhe foram atribuídos ao longo
que privilegiavam, em grande parte dos da história, este conceito designa todo o
casos, a representação mimética da rea- conjunto de intervenções artísticas, da es-
lidade, utilizando para esse efeito deter- cultura à instalação, do graffiti à performan-
minadas tipologias artísticas, a arte públi- ce (entre outras formas de expressão), rea-
ca contemporânea, pelo contrário, não só lizadas no espaço público (ou relacionadas
introduziu profundas alterações formais, com o mesmo), cuja conceção rejeita a for-
como procurou alargar o seu universo de ma e a função comemorativa tradicional,
referências. Tornou-se, assim, cada vez procurando estabelecer uma relação es-
mais multidisciplinar, assimilando os pro- pecífica com o meio ambiente e o público.
cessos de trabalho e as linguagens de dis- Por outras palavras, este conceito marca o
ciplinas, como a arquitetura, o design de fim da era do monumento público tradicio-
equipamento, a publicidade, a sociologia, nal e abre caminho a uma nova conceção
entre outras. estética, onde a participação e a perceção
sensorial do espectador é cada vez mais
O coletivo composto por artistas, desig- solicitada como parte integrante da obra.
ners e arquitetos designado por Atelier Em relação ao espaço envolvente, outro-
Van Lieshout27 será provavelmente um dos ra entendido como mero cenário, ganha
exemplos mais interessantes desta prática protagonismo, não só enquanto material
multidisciplinar, ao reunir no mesmo proje- plástico mas como elemento gerador da
to uma diversidade de meios provenientes própria forma artística. É, por isso, conside-
de várias disciplinas que vieram problema- rado um elemento fundamental para a ex-
tizar uma série de questões entre a arte e periência fruitiva do observador.
as ciências sociais. É o caso das unidades
móveis auto-suficientes criadas para alber- No domínio temático observa-se o aban-
gar um grupo de cidadãos, este work in dono dos temas clássicos de âmbito na-
progress propõe uma sociedade alterna- cional-historicista, por uma incursão por
tiva à existente, com regras mais flexíveis poéticas pessoais e assuntos do quotidia-
e uma filosofia de vida mais participativa, no, abrangendo, em determinados casos,
aberta à criatividade e à responsabilida- questões sociais (new genre public art).
de individual. Neste sentido, para o Atelier Acresce ainda referir, o modo como ultra-
Van Lieshout não existem limites entre as passou as fronteiras tradicionais entre as
disciplinas, e muito menos “(…) fronteiras disciplinas, apropriando-se da linguagem
entre a arte (pública) e a vida”28. formal e dos elementos operativos de dis-
ciplinas tão díspares entre si, como a arqui-
Chegados praticamente ao termo das nos- tetura, o design ou a sociologia.
sas reflexões, cabe agora resumir as nossas
premissas que definem a arte pública: não Para concluir, a arte pública contemporâ-
obstante as interrogações em redor do ter- nea acompanhou as mudanças profundas
mo “arte pública” e dos diferentes signifi- que ocorreram na relação entre a arte e a

– JOSÉ PEDRO REGATÃO 73


sociedade, fundou novos modelos estéti- — Bibliografia
cos decorrentes do encontro entre a obra,
o espectador e o espaço real. Em lugar ABREU, José Guilherme Ribeiro
das convicções ideológicas do passado, Pinto de – Escultura pública e
que fez questão em desmaterializar ao lon- monumentalidade em Portugal
go da história, propôs uma nova estrutura (1948-1988). Lisboa: Faculdade
dialética entre o artista e o público. de Ciências e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa,
2006. Tese de doutoramento.
CAUSEY, Andrew – Sculpture since
1945. Oxford, New York: Oxford
University Press, 1998. (Oxford
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

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Lisboa: Difel, imp. 1989.
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London: Yale University Press, cop.
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1900-1990: an anthology of
changing ideas. Cabridge, Mass.:

<<
Blackell Publishing, 1993. A arte contemporânea. Mem 6
ROUGE, Isabelle de Maison
LIESHOUT, Atelier Van – The Martins: Editorial inquérito, 2003. – A arte contemporânea. Mem
public art of AVL.Ville. In (Coleção Ideias Feitas; n.º 7). Martins: Editorial Inquérito, 2003.
MATZNER, Florian, ed. Lit. – Public SELDES, Gilbert – The public arts. (Colecção Ideias Feitas). p. 32.
art: a reader.2.ª ed. Rev. Munich: New York: Simon and Schuster, 7
Esta mudança de paradigma
Hatje Cantz Publishers, 2004. 1956. já tinha sido, de certa forma,
LIPPARD, Lucy R. – The lure of esboçada por Auguste Rodin.
the local: senses of place in a — Notas 8
RAVEN, Arlene ed. – Art in public
multicentered society. New York: interest. New York: Da Capo Press,
New Press, cop. 197. 1
Uma das polémicas mais 1993. p. 1. “public art isn’t a hero
MADERUELO, Javier – La pérdida discutidas no contexto on a horse anymore”.
del pedestal. Madrid: Círculo de internacional foi a obra Tilted Arc 9
MICHALSKI, Sergiusz – Public
Belas Artes 1994. de Richard Serra, instalada na monuments: art in political
MATZNER, Florian, ed. Lit. – Public Federal Plaza em Nova Iorque, bondage 1870-1997. London:
art: a reader.2.ª ed. Rev. Munich: em 1981, e demolida oito anos Reaktion Books, 1998. (Essays in
Hatje Cantz Publishers, 2004. depois pela entidade que a Art and Culture). p. 156.
MICHALSKI, Sergiusz – Public encomendou. Também em 10
IDEM, Ibidem., p. 157.
monuments: art in political Portugal, e mais concretamente 11
O escultor inglês Reg Butler
bondage 1870-1997. London: na cidade de Lisboa surgiram obteve o primeiro prémio neste
Reaktion Books, 1998. (Essays in obras controversas, como por concurso, com uma proposta
Art and Culture). exemplo a Homenagem ao 25 de semi-abstracta constituída por
O’DOHERTY, Brian – Inside the Abril, da autoria de João Cutileiro, uma estrutura metálica evocativa
white cube: the ideology of gallery instalado em 1989 no alto do de uma torre de vigia e três
space. Expanded Edition: Berkeley Parque Eduardo VII. figuras humanas. Cumpre dizer
[etc.]: University of California 2
ABREU, José Guilherme Ribeiro que a obra de Jorge Vieira acabou
Press, 1999. Pinto de – Escultura pública e por ser concretizada em Beja
RAVEN, Arlene ed. – Art in public monumentalidade em Portugal quase quarenta anos depois do
interest. New York: Da Capo Press, (1948-1988). Lisboa: Faculdade concurso.
1993. de Ciências e Humanas da 12
RIEGL, Alois – El culto moderno
REYERO, Carlos – La escultura Universidade Nova de Lisboa, a los monumentos: caracteres y
commemorativa en España: la 2006. Tese de doutoramento. p. 2. origen. Madrid: Visor, 1987. (La
edad de oro dele monumento 3
IDEM, Ibidem., p. 3. Balsa de la Medusa; 7) p. 23.
público, 1820-1914. Madrid: 4
SELDES, Gilbert – The public arts. 13
GOFF, Jacques Le – Memória. In
Ediciones Cátedra, cop. 1999. New York: Simon and Schuster, ROMANO, Ruggiero. Enciclopédia
(Cuadernos Arte Cátedra). 1956. p. 298 e 301. Einaudi. [S.l.]: Imprensa Nacional
ROBINETTE, Margaret A. – 5
O’DOHERTY, Brian – Inside the – Casa da Moeda, 1984. Vol. I, p.
Outdoor sculpture: object and white cube: the ideology of gallery 46-47.
environment. New York: Whitney space. Expanded Edition: Berkeley 14
REYERO, Carlos – La escultura
Library of Design, 1976. [etc.]: University of California commemorativa en España: la
ROUGE, Isabelle de Maison – Press, 1999. p. 14. edad de oro dele monumento

– JOSÉ PEDRO REGATÃO 75


público, 1820-1914. Madrid: lugar. KWON, Miwon – One place
Ediciones Cátedra, cop. 1999. after another: site-specific art and
(Cuadernos Arte Cátedra). p. 219- locational identity. Cambridge,
220. Massachusetts: London, England:
15
ROBINETTE, Margaret A. The MIT Press, cop. 2002. p. 11.
– ROBINETTE, Margaret A. – 23
CAUSEY, Andrew – Ob. cit., p. 120-
Outdoor sculpture: object and 122.
environment. New York: Whitney 24
CRIMP, Douglas – Redefining
Library of Design, 1976, p. 20. site specificity. In FOSTER, Hal;
16
Cfr. MADERUELO, Javier – La HUGHES, Gordon ed. – Richard
pérdida del pedestal. Madrid: Serra. Cambridge, Mass. [etc.]: The
Círculo de Belas Artes 1994. p. MIT Press, cop. 2000. (OCTOBER
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

53. Javier Maderuelo propõe, files; n.º 1). p. 151.


baseado na produção artística 25
HARRISON, Charles ed. lit.;
contemporânea, quatro direções WOOD, Paul, ed. lit. – Art in theory,
para recuperar o conceito de 1900-1990: an anthology of
monumento público. changing ideas. Cabridge, Mass.:
17
Cfr. Art Almanac: the essential Blackell Publishing, 1993. p. 1098.
guide to Australia’s Galleries 26
LIPPARD, Lucy R. – The lure of
(February 2006). the local: senses of place in a
18
CAUSEY, Andrew – Sculpture multicentered society. New York:
since 1945. Oxford, New York: New Press, cop. 197. p. 263.
Oxford University Press, 1998. 27
O Atelier Van Lieshout (AVL),
(Oxford History of Art). p. 87. foi fundado pelo artista holandês
19
ELSEN, Abert E. – Rodin’s thinker Joep van Lieshout em 1995,
and the dilemas of modern reunindo uma vasta equipa de
public sculpture. New Haven and colaboradores no campo das artes
London: Yale University Press, cop. plásticas, arquitetura e design.
1985. p. 101. 28
LIESHOUT, Atelier Van –
20
ROUGE, Isabelle de Maison – The public art of AVL.Ville. In
Ob. cit., p. 33. MATZNER, Florian, ed. Lit. – Public
21
ECO, Umberto – A obra aberta. art: a reader.2.ª ed. Rev. Munich:
Lisboa: Difel, imp. 1989. p. 197- Hatje Cantz Publishers, 2004. p.
198. 56.
22
Por “paradigma modernista”
referimo-nos à arte auto-
referencial colocada em
espaços públicos sem reflectir
as características físicas desse

<<
O Vandalismo da Arte Pública

por Victor Correia


Doutoramento em Filosofia Política e Jurídica, na Universidade da
Sorbonne (Paris), Mestre em Estética e Filosofia da Arte, pela Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa. Pós-doutoramento na Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Licenciatura
em Filosofia, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Docente na área de Filosofia

The goal of this article is to analyze the vandalism of


public art, addressing their meaning, their specificity in
relation to other types of vandalism, his motives, and the O conceito de vandalismo e sua relação
possible measures of prevention or correction, to solve com a arte pública
this problem. More than any other artistic expressions, As atitudes de hostilidade, assentes na into-
the public art is particularly vulnerable and susceptible to lerância e na discriminação, tomadas em re-
vandalism, because is placed in the public space, and to lação a determinadas pessoas, têm no que
confront all kinds of public, don’t motivated or touched, diz respeito à cultura material a designação
and is vandalized for political, urban, economic, aesthetic, de vandalismo, que acaba por constituir uma
psychological, moral, and religious reasons. We present forma indireta de intolerância e de discrimi-
some measures and possible solutions of technical nação, destruindo-se os símbolos materiais
character, measures of education and information, we de uma religião, como por exemplo uma
advocate greater suitability for location, more accepted escultura, ou os vestígios arquitetónicos de
places by the public for certain works of art, and also the uma cultura ou civilização, como sucedeu re-
greater involvement of the public around the initiatives centemente com a destruição dos templos
for the public art, and don’t only institutional initiatives. romanos da cidade de Palmira, na Síria, ou
com a destruição das estátuas dos Budas de
— Keywords Bamiyan, pelos Talibã, no Afeganistão.
Public art, vandalism, meaning, reasons, solutions.
O conceito de vandalismo é originário da
palavra Vândalos, que se referia a um povo
de origem germânica oriental, que partici-
pou nas invasões bárbaras nos primeiros
séculos da era cristã, na Europa ocidental, e
que se destacou principalmente pelos seus
métodos cruéis de destruição da proprie-

– VICTOR CORREIA 77
dade alheia e de bens materiais com va-
lor patrimonial e cultural, nomeadamente
as obras de arte. O termo vandalismo sur-
giu no século XVIII, em França, e foi criado
pelo abade Henri Grégoire, bispo de Blois,
como crítica em relação à atitude destrutiva
duma parte da armada republicana de en-
tão, que destruía o património artístico do
Antigo Regime.
A Pequena Sereia, escultura de Edward Eriksen,
Copenhaga, Dinamarca
Historicamente, houve e tem havido situa-
Foto : AP/BJARNE LUETHCKE
http://www.telegraph.co.uk/culture/art/art-features/9593748/When-art- ções de vandalismo resultantes de grandes
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

gets-vandalised.html
convulsões religiosas, como por exemplo o
ataque dos cristãos em relação aos símbo-
los pagãos, ou a Reforma protestante, em
relação ao catolicismo, assim como a guerra
das imagens, que dividiu em grupos a igreja
cristã de Bizâncio. Politicamente, temos por
exemplo as destruições de obras de arte, na
sequência da Revolução Francesa, ou mais
recentemente a destruição de esculturas er-
guidas em praças, representando Marx, En-
gels, Lenine, e Estaline, na Europa de Leste,
na sequência da queda do muro de Berlim.

Aqueles que levam a cabo estes comporta-


mentos, veem neles algo de positivo, veem
neles como que uma passagem de uma so-
ciedade antiga para uma sociedade nova,
nomeadamente o vandalismo político, atra-
vés da destruição dos monumentos ergui-
dos por um Governo anterior, e que consti-
tui o símbolo da transição do Poder, e nem
sequer o encaram como vandalismo. No en-
tanto, para quem está de fora, vê-se nessas
atitudes um ato de vandalismo, nomeada-
mente quando se trata de obras de arte de
reconhecido valor estético. O termo vanda-
lismo assume portanto uma conotação pe-
jorativa, como por exemplo a palavra radi-

<<
calismo, ou extremismo, e atualmente é uma Nuns casos acrescenta-se algo às obras de
termo que se alargou às diferentes línguas, arte, noutros casos retira-se, e noutros ca-
e é geralmente aplicado como sinónimo de sos anula-se a obra, pura e simplesmente.
destruição, saque, violência, devastação, de- O acrescentamento pode ser considerado
predação, em relação a diferentes tipos de uma contribuição necessária, pelo atacan-
objetos, como bancos e canteiros de jardim, te, ou como uma recusa do que está con-
árvores, candeeiros de iluminação pública, templando, e a necessidade de tapá-lo ou
viaturas, monumentos, paredes, vidraças, dissimula-lo com novos significados. Os
tudo o que esteja no espaço público, sendo cortes e riscos apresentam uma intenção
a arte pública um dos principais alvos. de mutilação ou aniquilação, assim como
a substração de material, que personificam
Há que distinguir entre vandalismo públi- claramente o carater agressivo e o desejo
co e vandalismo anónimo. Dentro do van- de transgredir, pura e simplesmente, reve-
dalismo público, temos o institucional (por lando uma intenção destrutiva premedita-
exemplo a destruição de estátuas mandada da, de apropriação, contacto físico, e por
fazer por um novo Governo ou regime po- vezes de furto. Não se deve portanto con-
lítico), e a destruição pelas multidões (por fundir o vandalismo com a destruição aci-
exemplo a destruição de uma estátua, no dental (por exemplo a danificação de uma
âmbito de um motim, ou de uma manifes- escultura ao ser transportada de um local
tação de rua). Dentro do vandalismo anóni- para outro), nem com a sua deterioração
mo temos a destruição feita por um deter- pelo clima, nem com o iconoclasmo (que
minado grupo, sem que ninguém tivesse tem a ver com a destruição de imagens re-
presenciado o facto, como por exemplo um ligiosas).
grupo terrorista organizado, que geralmen-
te costuma reivindicar o atentado, depois A arte pública tem sido um dos alvos prin-
deste ter sido cometido, ou o vandalismo cipais do vandalismo, pois é muitas vezes
feito por um ou mais indivíduos, que agiram alvo de contestação, dado encontrar-se no
em nome próprio. espaço público. Embora nem toda a con-
testação da arte pública leve ao vandalis-
O vandalismo, enquanto ato, consiste em mo, os atos de vandalismo têm subjacen-
destruir, degradar, deteriorar, volunta- te uma contestação, explícita ou implícita.
riamente o bem de outrem, seja um bem A primeira grande contestação, explícita,
público, ou um bem privado, como por em relação a uma obra de arte colocada
exemplo um determinado edifício, e que no espaço público, uma das contestações
é geralmente aplicado sobretudo em rela- que suscitou maior polémica, sucedeu com
ção a monumentos e a obras de arte. Em a estátua a Balzac, esculpida por Rodin, co-
termos práticos consiste em pintar, riscar, locada em Paris, na segunda metade do
cortar, partir, pôr ácido, incendiar, bombar- século XIX, estátua essa muito contestada,
dear, atirar objetos, roubar partes da obra devido à sua linguagem artística inovado-
de arte, ou a obra de arte na sua totalidade. ra, e à ausência de pedestal, e que foi por-

– VICTOR CORREIA 79
tanto mudada várias vezes de local. A sua ção por parte da opinião pública, devido ao
mudança deveu-se a razões de segurança seu conteúdo artístico, suscetível de diver-
e proteção, mas por outro lado a sua des- sas interpretações, como por exemplo a sua
localização é também uma quase vandali- forma, por muitos considerada fálica, e vis-
zação, pois a obra de arte foi concebida e to como pouco adequado para um monu-
realizada para um local específico. mento. Uns defendiam que a Revolução do
25 de Abril merecia uma monumento mais
No século XX um dos exemplos mais co- grandioso, outros defendiam que uma cida-
nhecidos foi o da escultura Tilted Arc, de Ri- de como Lisboa merecia um monumento
chard Serra, que foi retirada pelas autorida- melhor, outros defendiam era a própria arte
des municipais, da Federal Plaza, em Nova que estava em causa, que merecia ser mais
Iorque, em 1989, depois de pública contro- dignificada, e outros contestavam que o 25
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

vérsia, devido ao facto de “impedir” a pas- de Abril precisasse de um monumento. So-


sagem das pessoas na praça onde foi co- bretudo obras de arte como essa, devido à
locada, e também devido à sua linguagem sua linguagem artística inusitada, e encon-
estética, mas outros casos se podem referir trando-se no espaço público, podem pôr
da contestação por motivos estéticos, como o cidadão comum a pensar, despertam-no,
as colunas de Daniel Buren, na cour do Pa- suscitam diversas interrogações, pelo que
lácio Real em Paris, também muito contesta- a participação através do debate pode ser
das pela opinião pública. A instauração de um fator de sociabilidade, de inter-relação,
obras escultóricas de grande porte, uma de de reflexão, e de incentivo para a própria
Henry Moore e outra de Eduardo Chillida, arte, e para os temas políticos que através
em Guernica, levantou também uma polé- dela se pretenda eventualmente evocar. To-
mica, por motivos estéticos, de que se sa- davia, nem sempre assim acontece, e atitu-
lienta o tamanho das esculturas, considera- de mais imediata, proveniente da crítica e
do demasiado grande, polémica essa que do espírito contestatário, é muitas vezes a
passou do âmbito local para a imprensa na- destruição dessas obras de arte, que como
cional. Em Barcelona Alexandre Calder ofe- tal tem a designação de vandalismo.
receu uma das suas esculturas à cidade, que
foi colocada num dos bairros residenciais, Subjacente ao conceito de vandalismo está
do qual foi retirada pouco depois devido à geralmente a ideia de uma destruição mui-
forte contestação, também por motivos es- to violenta e lamentável, de uma perda irre-
téticos, e ao risco de vandalismo por parte parável. Por vezes existem destruições mui-
da população. to violentas e perdas irreparáveis de outros
bens que se encontram no espaço público,
Muitos outros casos se poderiam referir, e algumas delas tanto ou até mais do que as
como por exemplo em Portugal, com o mo- provocadas nas obras de arte, mas a essas
numento erguido ao 25 de Abril, em Lis- destruições não se aplica tanto a designa-
boa, de autoria do escultor João Cutileiro, ção de vandalismo, como para as obras de
e que provocou muita polémica e contesta- arte, pois subjacente ao conceito de vanda-

<<
lismo, embora a destruição, do ponto de vis- contestação e por vezes o vandalismo, pois
ta físico, possa ser menor do que a exercida se estivesse colocada num espaço interior
sobre uma casa de habitação, por exemplo, já não provocaria tanta polémica, por um
está ideia de uma profanação, de uma des- lado porque não seria tão vista, e por ou-
truição que atinge os símbolos de uma cul- tro lado porque, mesmo muito vista, estaria
tura e de um povo. protegida, ou pelo menos mais protegida.

O conceito de vandalismo da arte pública Enquanto que as obras de arte guardadas


pode também ser confundido com o vanda- nos museus, nas galerias, nas igrejas, nos
lismo do espaço público, feito pela própria palácios, e nas coleções particulares, estão
arte pública : algumas esculturas indesejá- protegidas por armários, vitrinas, ou outras
veis, e sobretudo os graffiti, que são atual- barreiras de acesso, assim como por câ-
mente um dos mais controversos exemplos maras de vigilância, seguranças, guardas
de crítica e de oposição, quer da parte de vigilantes, e estão geralmente ligadas a
alguns setores da opinião pública, quer de alarmes, estas obras de arte encontram-se
alguns organismos oficiais, exceto casos iso- totalmente desprotegidas, expostas à mer-
lados de permissão por parte destes últimos cê de tudo e de todos. Qualquer pessoa, de
em determinados locais, o que não impede, noite, e por vezes de dia, pode lá chegar,
mesmo nesses casos, a crítica e a contesta- tocá-las, riscá-las, danificá-las, ou mesmo
ção de alguns setores da opinião pública. furtá-las, sem que ninguém veja, ou mes-
Essa contestação, se por um lado se insurge mo que alguém veja, geralmente não diga
contra aquilo que considera ser vandalismo, nada, não impeça, nem comunique esse
por outro lado ela próprio também o pra- facto às autoridades.
tica, ao destruir determinados graffiti, com
qualidade artística, mesmo que eles não se Outro grande motivo está no facto do fre-
encontrem pintados em casas particulares, quentador do espaço público ser em rela-
ou se encontrem pintados em casas particu- ção a essa arte um espectador involuntário,
lares, autorizados pelos respetivos morado- não motivado, e até forçado, dado que essa
res. Porque razão tudo isso acontece ? É o arte se impõe ao seu olhar em pleno espa-
que veremos no capítulo seguinte. ço público, um espaço que ele percorre, e
que é também seu enquanto transeunte e
Motivos do vandalismo da arte pública cidadão. A arte pública é apresentada a to-
O primeiro grande motivo do vandalismo das as classes sociais, e a todas as pessoas
da arte pública está no facto desta se encon- de diferente nível etário, profissional, e cul-
trar colocado no espaço público, nomea- tural. Resulta daqui a confrontação com um
damente na rua, estando portanto muito público eclético, heterogéneo, não adverti-
vulnerável, e suscetível de ser tocada, mo- do, não sensibilizado, não familiarizado, não
dificada, destruída, ou furtada por qualquer favorável, e sobretudo muito reativo. Uma
pessoa. O facto de se encontrar colocada parte do público não reconhece mesmo a
no espaço público origina mais facilmente a arte pública como arte, ou determinada arte

– VICTOR CORREIA 81
pública como arte, vendo apenas como arte
a que se encontra em museus ou galerias,
igrejas ou palácios, necessitando portanto
de um contexto de localização específica
para o seu reconhecimento enquanto arte.
Associado ao facto do espectador da arte
pública ser um espectador involuntário está
a posição social e económica do homem
comum, a sua formação e a sua educação.
O espaço público é um espaço frequenta-
do por todos, mas ao contrário das galerias,
dos salões de arte, e dos museus, é maio-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Dom Sebastião, escultura de João ritariamente frequentado por pessoas com


Cutileiro, em Lagos, Portugal formações diversas e por vezes opostas,
Foto de Baptista-Bastos, afixada por Carlos
Medina Ribeiro pessoas que não são conhecedoras de arte,
http://sorumbatico.blogspot.pt/2014_09_01_
a qual requer compreensão, uma sensibili-
archive.html
dade própria e motivação, sobretudo a arte
contemporânea.

No que diz respeito aos motivos mais dire-


tos do vandalismo, e de caráter muito di-
verso, existem motivos de carácter político,
isto é, o facto de serem uma homenagem a
personalidades distintas do passado, o cul-
to aos heróis nacionais, e a invocação atra-
vés da arte pública de factos históricos que
já não têm valor nem significado para as
gerações do mundo de hoje, ou que os ti-
nham no passado mas que os deixaram de
o ter, como por exemplo a exaltação de de-
terminados acontecimentos históricos. Em
alguns desses acontecimentos exaltados
pela arte pública tradicional, encontram-se
IDEM. Pormenor do vandalismo expressas, implicitamente ou explicitamen-
Foto de Baptista-Bastos, afixada por Carlos
Medina Ribeiro
te, uma narrativa de desigualdades sociais,
http://sorumbatico.blogspot.pt/2014_09_01_ ou uma exaltação de guerras, e de conquis-
archive.html
tas, como por exemplo o colonialismo. Em
alguns casos não se trata de acontecimen-
tos do passado, mas do próprio presente,
que são alvo de polémica, como por exem-

<<
plo a Revolução do 25 de Abril de 1974, jo de chamar a atenção, conseguindo isso
em Portugal, que alguns com posições po- através do peso mediático que a ação po-
líticas opostas contestam, vandalizando os derá ter, como sucedeu por exemplo na
monumentos erigidos a esse acontecimen- antiga Grécia, com Eróstrato, que destruiu
to político. Noutros casos ainda, dentro dos o templo de Diana, em Éfeso, porque pre-
motivos políticos, temos por exemplo a es- tendia, através desse feito, ficar famoso. Há
cultura de homenagem a um ex líder do também que referir a personalidade proble-
Partido Social Democrata (PSD), Francisco mática de quem comete esses atos de van-
de Sá Carneiro, erguida em Lisboa, e que dalismo, pois em alguns casos são pessoas
foi vandalizada. com problemas psicológicos, como sucede
por exemplo com os incendiários, que des-
Existem também motivos religiosos para troem o património natural. Por vezes é uma
a vandalização da arte pública (por exem- raiva originada por frustrações, que faz das
plo uma escultura que simboliza uma cren- obras de arte o principal alvo, canalizando-
ça, uma fé, que não é respeitada); motivos -se através da destruição dos símbolos cul-
de carácter cultural (por exemplo uma es- turais e sociais os recalcamentos dos au-
tátua a determinado escritor que defendia tores desses atos de vandalismo, como se
determinadas ideias com as quais não se essa mesma destruição fosse uma espécie
concorda); motivos de carácter económi- de triunfo do indivíduo, que transporta para
co (os gastos elevados de dinheiro público essas obras de arte a sua revolta contra a so-
com essas obras de arte, em detrimento de ciedade, e que através da arte pública fica
outras necessidades consideradas mais im- mais visível. Essa atitude aparece principal-
portantes); motivos de carácter nacionalis- mente em relação ao património, e à arte
ta (as populações oporem-se à participação pública em particular, cuja destruição apa-
de artistas estrangeiros); motivos de carác- rece como uma espécie de acontecimento,
ter moral (por exemplo uma estátua com um para que todos possam ver, devido ao facto
corpo humano nú); motivos ligados à agres- dessas obras de arte se encontrarem no es-
sividade do ser humano, e o gosto gratuito paço público. Há ainda a referir o clima de
de fazer mal pura e simplesmente, destruin- tensão política e social em que se vive por
do essas esculturas, ou motivados por uma vezes em alguns países, o ambiente gerado
pura brincadeira, como por exemplo furtar por contestações e manifestações políticas
uma parte de uma escultura, deixando-a in- contra o Governo, a sociedade contestatá-
completa, para provocar o humor por parte ria e violenta do mundo de hoje, ou o am-
do público, mas também uma certa revol- biente de terrorismo que por vezes se vive
ta, como sucedeu recentemente com o fur- em alguns países, em que se vandaliza tudo
to da estátua do rei Dom Afonso Henriques, o que está no espaço público, sendo que
em Guimarães. as manifestações políticas de rua provocam
mais facilmente esse vandalismo. Há tam-
Há alguns ataques que não são anónimos, bém a referir, por vezes, a revolta de adep-
mas que têm a ver também com um dese- tos de determinado clube de futebol, por

– VICTOR CORREIA 83
terem perdido um jogo ou um campeona- Por outro lado, o encargo com obras de
to, e que vêm para a rua e destroem tudo o arte pública encontra-se por vezes tão bu-
que encontram : viaturas, vidrões, árvores, rocratizado ou tão viciado pelo clientelismo
bancos de jardim, sinais de trânsito, assim político, que os critérios para a seleção de
como a arte pública, que é um dos alvos artistas, os procedimentos de adjudicação
mais cobiçáveis, e também o mais lamentá- da obra, o seguimento de projetos ou o
vel, por se tratar de obras de arte. controle da execução, conduzem a uma infi-
nidade de procedimentos aleatórios ou de
Todavia, fora das convulsões sociopolíticas, irregularidades, que levam a que as obras
ou desportivas, os principais motivos, no de arte executadas sejam de qualidade ar-
que diz respeito à arte pública, são os de tística duvidosa, e que provoquem a dece-
carácter estético, e que por vezes têm a ver ção por parte do público. Além disso, tam-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

com a própria obra de arte, o que aliás su- bém sucede o facto da pobreza artística
cede por vezes também a propósito do de- ou da insignificância de muitas das obras
sign urbano em geral, que não se integra de arte se dever à pobreza física ou social
no pano de fundo permanente da cidade e e à insignificância ou pouca visibilidade de
se restringe à sua funcionalidade. Por vezes determinados espaços públicos, que faz
pode não existir com o design urbano deco- com que se invista pouco neles. O espaço
ração, no sentido comum do termo, isto é, público é distante, não está no centro, da ci-
enquanto ornamentação ou embelezamen- dade, por isso fazem-se para ele obras de
to, mas deveria certamente enquadrar-se de arte pobres, o que leva por vezes a contes-
modo a não chocar com o espaço urbano tá-las e a destruí-las.
envolvente, pressupondo a noção clássica
de decoração, que radica antes de mais na Todavia, dentro dos motivos estéticos, o
ideia de conveniência do elemento decora- principal motivo para a contestação e a van-
tivo ao lugar que o acolhe (decorum, de de- dalização provém dos diferentes gostos do
cet, isto é, convém), o que nem sempre su- público, e da frustração provocada pela in-
cede. No caso das esculturas, há casos em capacidade de compreender a arte. Um dos
que algumas delas são desprovidas de es- primeiros e mais significativos exemplos,
cala integrativa, do ponto de vista da sua in- em Portugal, foi o da escultura do rei Dom
serção, de formalização conveniente ou de Sebastião, de autoria do escultor João Cuti-
presença física adequada, e algumas obras leiro, erguida em pleno espaço público, em
ficam colocadas em lugares inadequados Lagos, em 1973, que não tem o ar heroico
ou que têm que competir em presença físi- de outras esculturas representando monar-
ca com uma enorme quantidade de objetos cas, e cujo rosto é o de um jovem demasia-
urbanos, o que faz com que esculturas bem do jovem, que alguns consideram com “cara
executadas, e com valor estético, resultem de menino”, e que suscitou contestação. Por
inoportunas ou inapropriadas para o local, e vezes, trata-se de uma reação a algo que su-
portanto contestadas e vandalizadas. postamente pode suscitar constrangimen-
to nos gostos estéticos do senso comum,

<<
como é o caso de determinadas esculturas nir, evitar, fazer cessar e reprimir os atos de
abstratas, cuja mensagem por vezes subver- destruição intencional do património cul-
siva produz intranquilidade no público, que tural, onde quer que este património se si-
não compreende o seu significado. Isso su- tue”, incluindo portanto o da arte pública.
cede também porque o homem comum en- Essas medidas podem ser provenientes do
contra-se geralmente preso à tradição, que Estado, das autarquias, da própria socieda-
associa a arte ao culto da beleza, e espera de civil organizada (por exemplo, associa-
isso da arte, o que nem sempre sucede na ções de defesa do património), ou do cida-
arte contemporânea, pois se desde os gre- dão anónimo.
gos que se relaciona arte e beleza e se utili-
za o critério de beleza para avaliar uma obra No entanto, não é fácil apresentar medidas
de arte, essa relação é posta em causa por e soluções, para fazer face ao vandalismo
algumas correntes estéticas contemporâ- da arte pública, pois cada caso é um caso.
neas, cujos princípios estão presentes em Têm sido tomadas diversas medidas, algu-
muitas das obras de arte colocadas no es- mas com alguma eficácia, outras meramen-
paço público. te remediativas, e portanto não isentas de
polémica. Por exemplo, no caso de uma
Enquanto na arte pública tradicional os ci- escultura vandalizada, andar-se frequen-
dadãos viam os seus gostos reconhecidos, temente a restaurar uma escultura, devi-
e chegavam a organizar-se subscrições po- do ao seu vandalismo, pode não ser a me-
pulares para se erigir monumentos, e a arte lhor solução, por isso a Câmara Municipal
pública tradicional desempenhava portan- de Lisboa resolveu retirar para o Museu da
to uma função mais gregária, congregando Cidade a escultura Verdade, de autoria do
e agregando a população, na arte pública escultor Teixeira Lopes, que se encontrava
contemporânea, como na arte contempo- na rua do Alecrim, em Lisboa, escultura essa
rânea em geral, habitualmente devido à lin- cujo conteúdo consiste em Eça de Queiroz
guagem artística empregue, existe um di- com uma mulher nua nos braços (simboli-
vórcio entre o grande público e o artista, zando o realismo literário), e que era várias
que fala uma linguagem menos compreen- vezes alvo de vandalismo: riscos, pinturas,
sível pelas populações, o que conduz à si- dedos partidos, etc. A Câmara Municipal
tuação contraditória da arte, apesar de ser substitui essa escultura por uma réplica, em
pública, ou de se pretender pública, não bronze. Alguns cidadãos insurgiram-se con-
ser vista como tendo essa função. tra esse facto, preferindo outras medidas,
como por exemplo a construção de um pe-
Medidas e eventuais soluções destal para essa escultura (pois encontrava-
A Declaração da UNESCO sobre a destrui- -se em contacto com o chão, de fácil acesso
ção do património cultural, de 17 de Ou- por qualquer pessoa). A argumentação em
tubro de 2003, afirma no seu parágrafo III, torno dessa medida consiste essencialmen-
na alínea 1, que “Os Estados devem tomar te em que não nos devemos deixar intimi-
todas as medidas apropriadas para preve- dar, mas sim insistir na permanência das

– VICTOR CORREIA 85
esculturas, pois em alguns casos têm sido
pura e simplesmente retiradas, sem serem
sequer substituídas por qualquer réplica.

Têm sido tomadas diversas medidas pe-


las autarquias, no que diz respeito a outros
exemplos de arte pública espalhada pelo
país, que têm sofrido atos de vandalismo.
Em casos mais drásticos, como o do furto
“The Watch’s Statues”, de autoria de Hebru Brantley, em de esculturas, tem-se substituído essas es-
Chicago Park District. culturas por uma réplica, como sucedeu por
Foto de Antonio Perez, “ChicagoTribune”.
http://www.chicagotribune.com/news/local/breaking/chi-watch-statues- exemplo com o furto do busto de António
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

tuskegee airmen-vandalized-20140720-story.html
Nobre, no Penedo da Saudade, em Coim-
bra. Mas isto são medidas não preventivas,
mas de solução face ao já sucedido. Ora,
há algumas medidas que poderão even-
tualmente ser tomadas, de modo a preve-
nir o vandalismo da arte pública, como por
exemplo a vedação de uma determinada
escultura através de um gradeamento, ou
por exemplo em determinadas esculturas
importantes, colocar mesmo câmaras de
vigilância em edifícios que estão em frente.

Não obstante, há também que resolver de


forma mais profunda o problema, e evitar
essas situações não de forma meramente
defensiva, recorrendo apenas a meios téc-
nicos. Certamente que não compete às po-
líticas de defesa da arte pública resolver os
problemas psicológicos e económicos das
pessoas, que encontram na arte pública
uma das formas de descarregar os seus sen-
timentos de frustração, através dos ataques
de vandalismo, mas competir-lhes-á, certa-
mente, campanhas de informação e de sen-
sibilização para a importância de proteger a
arte pública, e da necessidade do respeito
pelas diferenças artísticas. Os técnicos (ar-
quitetos, urbanistas, designers, artistas) po-

<<
derão também desempenhar um papel de praça, que obrigava as pessoas a contorná-
facilitadores da informação, apresentando -la (apesar da intenção do escultor ter sido
os resultados do trabalho. Poderão organi- essa, de modo a repensar a vivência quoti-
zar-se encontros, fóruns de discussão, para diana do espaço).
análise da situação, e o público intervir não
propriamente na criatividade e no estilo do O caso das pinturas murais e da sua varian-
artista, mas sobre a pertinência das obras, te, os graffiti, é um outro exemplo particu-
defendendo-se eventualmente determina- larmente importante. De modo a que as
dos aspetos e criticando-se outros, desen- pessoas as não destruam por terem sido
volvendo-se tanto quanto possível uma arte feitas em propriedade particular sem auto-
pública aprendida, assumida e apropriada rização do proprietário, deve proporcionar-
pelos cidadãos. -se a oportunidade aos autores dos graffi-
ti de intervirem, de se expressarem através
É importante que o público esteja também dessa forma de arte, de modo criterioso e
envolvido na iniciativa de erigir determina- regulamentado. Essas pinturas devem tam-
das obras de arte pública, e por outro lado bém ser protegidas, e por isso devem po-
contribua para o seu financiamento, fazen- der ser feitas em locais próprios, como por
do sentir mais suas essas obras de arte. De exemplo em muros de jardins públicos, em
forma a evitar-se a oposição e a destruição viadutos, em pontes, em paredes de edifí-
por parte do público, deve procurar-se a im- cios camarários, em grandes placards co-
plantação de obras que tenham significado locados no espaço público, etc. Poderão
para a comunidade, que tenham a ver com também promover-se concursos para a
os valores locais, e que reforcem ou promo- realização de graffiti, de modo a aumentar
vam a identidade do lugar. Devem erigir-se a qualidade da oferta, sendo selecionadas
essas obras em locais onde não anulem o determinadas obras, que embelezarão o
simbolismo dos mesmos, não interfiram espaço urbano, e darão uma melhor ima-
com as atividades aí desempenhadas, e não gem à cidade, e facilitarão uma maior ade-
tapem os campos visuais ou pontos de refe- são do público a essa forma de arte.
rência importantes desses lugares.
Quando se trata de erigir uma determina-
É importante que o público sinta que o pro- da obra de arte pública, como por exemplo
jeto não foi imposto sem consideração das uma escultura, ou um monumento, pode-
suas necessidades, ou dos seus interesses. rão também eventualmente serem orga-
Há que ter a preocupação de evitar que a nizados encontros, debates, fóruns de dis-
obra de arte implique uma mudança de cussão, auditorias, e os inquéritos poderão
usos e vivências do quotidiano, que afetará ser também uma outra forma de fazer ouvir
negativamente a comunidade local e mes- a voz dos cidadãos, a cargo de comissões
mo outros transeuntes, como sucedeu com consultivas, que poderão incluir por exem-
a escultura do Tilted Arc, em Nova Iorque, plo o representante da entidade contra-
escultura colocada de um lado ao outro da tante, o autor do projeto geral, um repre-

– VICTOR CORREIA 87
sentante da comissão de moradores, um mas certamente que numa sociedade domi-
representante da autarquia, e peritos de nada pela iliteracia e onde a arte desempe-
urbanismo, de modo a evitar-se o cliente- nhe um papel pouco importante na educa-
lismo, o economicismo, a fraude, os jogos ção do ser humano, a implantação de obras
de interesse por parte da especulação imo- de arte no espaço público, principalmente a
biliária, e a fraca qualidade dos projetos ur- contemporânea, tenderá a suscitar uma rea-
banos e das obras de arte. ção de estranheza ainda maior, pois os ci-
dadãos tenderão a considerar inútil, imper-
Em termos concretos estas comissões re- tinente e supérflua a sua implantação, pelo
presentativas poderão por exemplo apre- que o ideal será, tanto quanto possível, essa
ciar a seleção de artistas, à luz do mérito educação e formação dos cidadãos, que
artístico e da equidade de oportunidades embora não anule as reações populares de
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

no concurso público, o controle de prazos e vandalismo, pelo menos tenderão a dimi-


custos, a adequação e pertinência da obra, nui-las.
a sua visibilidade e acessibilidade, e outros
aspetos como os referidos atrás, acompa- Certamente que estas e outras medidas
nhando por conseguinte os mecanismos de são discutíveis. Nem todos os cidadãos es-
contratação, aprovação e implementação tão de acordo com determinada obra de
da obra, que embora não solucionem todos arte, e muitos acham-se no direito de as
os problemas, tenderão a diminui-los. destruírem ou vandalizar. Não é fácil solu-
cionar o constrangimento que exerce sobre
A Declaração da UNESCO sobre a destrui- o psiquismo de determinados indivíduos a
ção intencional do património cultural afir- expressão e a mensagem de determinadas
ma também, no seu parágrafo III, na alínea obras de arte. Não é fácil anular o atitude
3, que “Os Estados devem esforçar-se por em relação aos graffiti, pois muitas vezes a
todos os meios apropriados para assegurar contestação não tem a ver apenas com os
o respeito pelo património cultural na socie- locais onde são colocados, mas também
dade, em particular através de programas com o preconceito em relação aos seus au-
de educação, de sensibilização e de infor- tores. A arte pública correrá sempre o risco
mação”. Há obras de arte pública que, como de vandalização, mas estas medidas, como
é sabido, não são alvo de auditoria e de pe- outras, tenderão pelo menos a prevenir
dido de remoção, mas antes de vandalis- essa vandalização, a evitá-la ou a diminui-la,
mo pelo cidadão comum, reação essa que e a sensibilizar o público para o significado
se deve também em grande parte à falta e o valor da arte pública.
de informação e sensibilização sobre as
questões do ambiente urbano, e sobretudo
de educação e formação estética.

Tratando-se de arte pública, não é fácil pro-


porcionar a todos essa educação estética,

<<
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SENIE, Harriet F., Critical Issues

– VICTOR CORREIA 89
Escultura Pública Portuguesa em 1940,
Fora da Exposição de Belém
por Joaquim Saial
Mestre em História da Arte pela UNL; Diploma de Estudos Superiores da Univ.
de Salamanca; Investiga arte pública portuguesa e a história e arte de Vila
Viçosa e Cabo Verde; ex-docente do INP e UCL; publicou vários livros e artigos.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

1940. The world is in the second year of a devastating


war, but peace reigns in Portugal. In Lisbon, the capital of
the country, between inflamed exaltation of patriotism, Num ano de júbilo nacionalista…
unfolds the historical exhibition of the Portuguese 23 de Junho de 1940 foi dia de grande festa
World, commemorating the centennial independence of para Portugal. Abria oficialmente em Belém,
1140 and 1640. With stage in the Lisbon neighborhood Lisboa, a Exposição Histórica do Mundo
of Belém, the show employs the cream of architects, Português, também dita dos Centenários,
painters and sculptors of the country, with practice more por comemorar em simultâneo o de 1140
or less modernist, but the event one is, in artistic terms, (vitória portuguesa no Torneio de Arcos de
an unfulfilled promise, as rightly noted the professor Valdevez, considerado para o efeito de fun-
José-Augusto França. dação da nacionalidade) e o de 1640 (Res-
In the rest of the territory (european and colonial), the tauração da Independência).
celebrations also left track, through greater or lesser
scale patterns. But equally were erected pieces that had Era a primeira do género a ser levada a efei-
nothing to do with the Lisbon event, among statues and to em todo o mundo e os objectivos pro-
busts. What in this year was made in terms of public pagandísticos de teor nacionalista da mes-
sculpture and how these pieces stood against the official ma, expostos no discurso de abertura pelo
framework and a nineteenth century aesthetically comissário Dr. Augusto de Castro eram
persisted, that’s what we intend to show. claros: “em primeiro lugar, a projecção so-
bre o passado – como uma galeria de ima-
— Keywords gens heróicas da fundação e da existência
Arqu., Arquitecto, Esc., Escultor, Escultura, Estátua, Inaug., nacionais, da fundação universal, cristã e
Inauguração, Monumento, Padrão, Padrões. evangelizadora, da Raça, da glória maríti-
ma e colonial do Império; em segundo lu-
gar, a afirmação das forças morais, políticas
e criadoras do presente; em terceiro lugar,
um acto de fé no futuro. Esses três objec-
tivos resumem-se num só: testemunho e

<<
apoteose da consciência nacional.1” Tudo Estatuária equestre
nascera a partir de portaria oficial de 1938 Uma das primeiras notícias do ano de 1940
em que Salazar gizava o plano das come- sobre estatuária pública alude ao monu-
morações. A partir daí, entrou em cena o mento equestre a Mouzinho de Albuquer-
camartelo para demolir edifícios existentes que para Lourenço Marques5, cuja estátua
na zona destinada ao palco comemorati- estava a ser ultimada no Porto, peça de seis
vo de Belém, seguindo-se com o apoio de metros de altura e 10 toneladas de peso,
vasto estaleiro a construção dos pavilhões sugerindo-se que logo que pronto fosse
efémeros e outros espaços necessários ao exposto em Lisboa6. A feitura do memorial
acontecimento, ao mesmo tempo que por ao vencedor do insurrecto Gungunhana
todo o país se sucediam obras de restauro em Chaimite coube após concurso à du-
em edifícios e monumentos nacionais (mui- pla constituída pelo arq. António do Couto
tas vezes polémicas), se edificavam padrões e esc. Simões de Almeida7 que realizaram
comemorativos do evento e se enchiam pá- obra de escasso rasgo, hirta e fria, pouco
ginas e páginas de jornais e revistas com li- consistente com a memória heróica e ro-
teratura alusiva. mântica do homenageado. Na base, para
além de dois baixos-relevos em bronze alu-
Deste sucesso que mobilizou Portugal, fica- sivos a episódios das campanhas bélicas de
ram para a arte pública o Padrão dos Des- Mouzinho, a figura feminina de “Moçam-
cobrimentos2 do arq. Cottinelli Telmo e do bique” acariciava a cabeça de um peque-
esc. Leopoldo de Almeida, quatro cavalos no nativo, ilustrando a protecção da coló-
em fontes da Praça do Império, de António nia aos seus filhos, em simbólica própria da
Duarte, algumas peças junto ao Museu de época…8 Mas outras três estátuas equestres
Arte Popular, de Adelina Oliveira, e pouco faziam carreira neste ano9. A de uma, ain-
mais. A muito germânica estátua da Sobera- da em gesso mas colocada no local onde
nia, de Leopoldo de Almeida, e estátuas de se pretendia erguer a definitiva, foi anulada
D. Afonso Henriques adossadas ao gigan- pelo ciclone de 15 de Fevereiro 1941 que
tesco Portal da Fundação foram destruídas a destruiu10. Tratava-se do monumento ao
com o encerramento do certame3. Porém, marechal Gomes da Costa, delineado pelo
não é dele que queremos tratar. Que arte arq. (também esc.) Alberto Ponce de Cas-
pública nesse ano se lavrou, qual vinha de tro e executado pelo esc. Armando Cor-
trás ou nele teve desenvolvimentos, o que reia, complicada máquina em que cavaleiro
se fez por todo o país e Ultramar neste âm- e cavalo (do qual só se vislumbrava a parte
bito, enquanto Lisboa se embevecia com a fronteira) saíam de bloco vertical decorado
exposição e a quase totalidade dos escul- com escudo(s?), ladeados por figuras que
tores em exercício4 estava arregimentada os ajudavam a progredir. Melhor sorte teve
para o esforço construtivo, é o que tentare- a do antigo governador de Macau coman-
mos descobrir com o presente texto. dante Ferreira do Amaral, do esc. Maximia-
no Alves e do arq. Carlos Rebelo de Andra-
de, inaugurada em 24 de Junho. As alusões

– JOAQUIM SAIAL 91
ao fim trágico do retratado, barbaramente
morto por chineses revoltosos, são óbvias
na movimentação do conjunto, cavalo
de patas dianteiras alçadas e cavaleiro
defendendo-se dos seus assassinos apenas
com um bastão, esquema nunca antes uti-
lizado nas poucas estátuas desta tipologia
erigidas em Portugal11. A do Rei D. João IV,
para Vila Viçosa, configurou-se como a este-
ticamente mais erudita. Realizada pelo esc.
Francisco Franco e com pedestal do arq.
Pardal Monteiro, teve longa e empenhada
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

concepção, em boa e necessária lembrança


funcional “velasquenha”, como com acerto
Estátua do Governador Ferreira do a caracterizou José-Augusto França12. A fei-
Amaral, Macau
tura do monumento estava prevista na por-
taria de 1938 que expunha as orientações
pelas quais se deveriam reger as comemo-
rações centenárias de 40. Em portaria oficial
de 10 de Setembro do mesmo ano de 38,
o ministro das Obras Públicas e Comunica-
ções, engenheiro Duarte Pacheco, determi-
nava que a obra caberia a Francisco Franco
e (em rara atitude de subalternização de um
arquitecto a um escultor) que ao arq. Pardal
Monteiro caberia “como seu assessor, o es-
tudo da urbanização do terreiro e a elabora-
ção do projecto do pedestal”.
Estátua de D. João IV, Vila Viçosa
Guerras e militares
A longa leva de monumentos aos mortos
da Grande Guerra, também ia fazendo a
sua caminhada. O primeiro a ser lançado
fora o de Portalegre, em 192013. Neste ano
de 1940 inauguram-se os de Abrantes, Al-
meida, Faro, Guarda, Lagos, Oeiras e Sintra.
Salientaram-se dois: o de Abrantes, com
autoria dos arq. Camilo Korrodi e Francis-
co Nogueira e esc. Ruy Gameiro, pela mo-
dernidade do cimento-armado da maté-

<<
ria-prima e notável pela qualidade plástica
da “Pátria” que, avantajando-se impante,
ampara dois soldados, um deles moribun-
do14; e o de Oeiras, do arq. Veloso Reis Ca-
melo e esc. Álvaro de Brée, baixo-relevo os-
tensivamente castrense, com seu soldado
brandindo espingarda armada de baione-
ta, enquadrado pela moldura do suporte
arquitectónico15. De guerra também era o
arrastado monumento à Peninsular, do Por-
to, lançado em 1909 mas só inaugurado em
1951, depois de inúmera peripécias e com
os autores (arq. Marques da Silva e esc. Al-
ves de Sousa) já falecidos16 – ao contrário do
de Lisboa, inaugurado em 1933. Para Faro,
um outro monumento de memória guerrei-
ra era anunciado, comemorando a conquis-
ta definitiva do Algarve por D. Afonso III, pa- Ruy Gameiro a trabalhar no
monumento aos mortos da Grande
drão do arq. Rafael Lopes17, em iniciativa de
Guerra, Abrantes
Júlio Dantas, algarvio e presidente da Co-
missão Executiva das Comemorações Cen-
tenárias… e em Arcos de Valdevez surgia a
6 de Junho de 40 outro, muito simples, co-
memorativo do recontro local vencido pe-
las armas de D. Afonso Henriques, com le-
genda alusiva da homenagem feita pelos
“portugueses de 1940”18. Dias depois, a 13,
o ministro da Agricultura inaugurava outro
padrão cilíndrico, este alusivo à batalha de
Ourique19. Pelo Ultramar, alguns semelhan-
tes, também, referentes a outros recontros:
por exemplo, na Guiné, o da pacificação de
Canhambaque; em Angola, o da pacifica-
ção do Amboim20. O de Canhambaque, na
ilha do mesmo nome, nos Bijagós, foi des-
cerrado em meados do ano. Dizia o Diário
de Notícias que lembrava “quantos ali mor-
reram no cumprimento do honroso dever
de impor a ordem a um grupo aguerrido
de indígenas”. E que ele fora “erguido por

– JOAQUIM SAIAL 93
iniciativa e contrato dos habitantes de Ca- Henrique de Carvalho que ali se pretendia
nhambaque que assim quiseram prestar a erigir. Com autoria de Raul Xavier, esc. lu-
justa homenagem à mãe-pátria e ao repre- so-macaense de vasta obra, e do arq. Luís
sentante do governo de Lisboa, sr. tenente- Xavier (seu filho), o custo fora suportado
-coronel Carvalho Viegas”21. O monumento- por subscrição efectuada não só em An-
-padrão do Amboim reportava revolta mais gola, como na Guiné e Índia28. Os singe-
de 20 anos anterior, em registo ideológico los padrões inaugurados em Moçambique
semelhante22. Este modelo simples era o no final do ano em Languene (posto mili-
mais ou menos comum relativo aos padrões tar de Mouzinho de Albuquerque para o
do Ultramar, sobretudo os alusivos a com- seu avanço sobre Chaimite)29, Macontene
bates. E os governadores gerais ou regio- (lugar onde venceu Maguiguana, líder dos
nais também muitas vezes era homenagea- vátuas)30 e Chaimite (lugar onde em 1895
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

dos, como o major de artilharia Veríssimo venceu Gungunhana, imperador de Gaza)31


Sarmento, governador da Lunda que, por mantinham características sobretudo “ar-
iniciativa do governador de Angola, Borges quitectónicas”, praticamente sem escultura.
de Sousa, teve monumento póstumo anun- Inusitado foi o roubo de uma pasta que via-
ciado em Julho23. java no automóvel do arq. Raul Tojal, onde
estavam os planos para um monumento a
No que ainda concerne às colónias, pode- erigir a D. Afonso Henriques em Luanda32.
mos referir o monumento com estátua dis- Com concurso patrocinado pela Liga Na-
creta e de bom efeito, em Bolama, Guiné, cional Africana, ao qual se apresentou uma
ao presidente americano Ulisses Grant24, dezena de maquetas, a vitória coube ao
mediador internacional num diferendo trio constituído pelo esc. António da Cos-
que opôs Portugal à Grã-Bretanha, sobre ta e pelos arq. Faria da Costa e Raul Tojal.
a quem pertenceria a ilha de Bolama. Em- A estátua foi logo ridicularizada por Diogo
bora ventilado em 194025, só foi erigido em de Macedo, na revista Ocidente33. Não se
1955 com autoria do esc. Manuel Pereira da enganava o escultor/crítico, ao argumen-
Silva. Mesmo sem ser directamente alusivo tar que tanto a peça de Costa como as dos
à guerra, é de citar um Monumento evoca- restantes concorrentes tinham sido mal
tivo do esforço da raça no continente afri- bebidas na homóloga de Soares dos Reis,
cano português, desejado para a Praça In- de Guimarães. Mas a hirta figura lá se fez,
fante D. Henrique, no Lobito, com projecto numa África que o Rei Conquistador nunca
de Carlos Mimoso Moreira e apoio muni- soube que existia, apesar do furto do pro-
cipal26. Para o território indiano português jecto que quase ia invalidando semelhante
de Goa, seguia por volta de Outubro uma disparate colonial.
estátua de Afonso de Albuquerque mode-
lada pelo esc. Maximiano Alves27. E para Monarcas
a Lunda, Angola, divulgou-se a 18 de De- Dois monumentos a figuras régias, há muito
zembro na Sala Portugal da Sociedade de executados, tiveram desenvolvimentos: o
Geografia de Lisboa o busto do general de D. Afonso Henriques (Guimarães, da au-

<<
toria do esc. Soares dos Reis) e o de D. Ma- Outras figuras
ria I (Lisboa/Queluz, do esc. João José de A 2 de Fevereiro, Duarte Pacheco recebia
Aguiar). uma comissão que lhe foi pedir para inter-
ceder junto da Câmara Municipal de Lisboa,
No do Rei Fundador houve alteração do pe- a fim de que esta designasse local para a
destal e sítio. Até aí colocado na Praça do erecção de um monumento à memória de
Toural, era trasladado em 21 de Maio de Sidónio Pais, de preferência na zona do Par-
1940 para as cercanias da capela de São Mi- que Eduardo VII, à qual ele respondeu po-
guel, no novo parque do castelo de Guima- sitivamente38. Contudo, o monumento não
rães, oferecendo-se assim à estátua do Rei teve seguimento.
fundo mais consentâneo com o roteiro he-
róico deste34 e a concepção historicista em Poucos dias depois, lembrava-se a oferta
vigor à época. Porém, numa certa contradi- que o Brasil iria fazer a Portugal, no âmbi-
ção, a base primitiva, de teor neo-medieval, to das comemorações centenárias, de um
dava agora lugar a um suporte de concep- grupo estatuário figurando Pedro Álva-
ção modernista. res Cabral e companheiros39. Da autoria
de Rodolfo Bernardelli, é réplica de outro
O monumento à Rainha, constituído pela existente no Rio de Janeiro, inaugurado
sua estátua e mais quatro alegorias alusivas em 1900. Obra complexa, nas suas diver-
a continentes, teve vida extremamente atri- sas personagens e bandeira ondulando ao
bulada. Ideia do intendente Pina Manique, vento40, é claro que nada de novo trouxe à
foi entregue a João José de Aguiar, bolsei- estatuária portuguesa. Veio de barco para
ro casapiano de escultura em Itália. Termi- Lisboa, tem pedestal em mármore cinzento
nado em 1798, chegou a Portugal quatro feito no Porto e inaugurou-se a 30 de No-
anos depois. Com o intendente prestes a vembro, junto ao Jardim da Estrela, Lisboa,
cair em desgraça, quedou-se pelo conven- mais tarde que o previsto, por atrasos na
to do Carmo, Lisboa, até que o quarteto chegada dos bronzes41.
continental foi parar à Avenida da Liberda-
de (a figura real continuou no Carmo35), nos Pela mesma altura, a comissão executiva do
sítios onde estão desde cerca de 1950 as monumento a Camilo Castelo Branco para
estátuas de escritores realizadas por Bara- Lisboa reunia-se no Museu do Carmo, sob
ta Feyo e Leopoldo de Almeida. Muito se a presidência de Eloy do Amaral. Tratava-se
escreveu na imprensa sobre o desejo de de apreciar um ofício da Câmara Municipal
união das cinco peças e em Abril de 1940 propondo que o memorial fosse colocado
ainda se sugeria a integração do monu- algures entre a avenida Duque de Ávila42 e
mento neo-clássico no largo da basílica da as ruas Rodrigues Sampaio e Camilo Cas-
Estrela36, mas ele acabou por ficar em Que- telo Branco e sugeria-se como material a
luz, para onde de início fora previsto37. pedra e não o bronze43. Com concurso fa-
lhado em Janeiro de 192644 e outro con-

– JOAQUIM SAIAL 95
seguido em Julho do mesmo ano, a vitória comparticipação de 200 contos entregues
fora para Anjos Teixeira. Porém, a morte do por Duarte Pacheco para ajudar a cobrir as
escultor em 193545 fez com que a obra não despesas com materiais e fundição49. Mas
se concretizasse e o monumento ao autor tal como acontecera com o monumento a
de “Amor de Perdição” acabou por ser exe- Pedro Álvares Cabral, este não trazia novi-
cutado por António Duarte em 1950, para o dade digna de registo, pese embora a qua-
sítio previsto, com ganhos de sensibilidade lidade naturalista e fama internacional de
certeira e discreta sobre o complexo grupo Benlliure.
literário de Teixeira.
Também em Viseu, previa-se em Maio a
Entretanto, António Sardinha, escritor e inauguração de um busto ao capitão Almei-
doutrinário filosófico do Integralismo Lusi- da Moreira, criador e primeiro director do
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

tano tivera inauguração de busto em Mon- Museu Grão Vasco50.


forte, em bronze de Raul Xavier, inaugura-
do a 16 de Agosto. Um grupo de amigos Em 9 de Julho inaugurava-se em Tomar o
organizou a homenagem que incluiu vestir monumento ao templário Gualdim Pais.
23 adultos indigentes e o baptismo de um Com primeira pedra lançada em 1895, a es-
quarto de hospital com o nome de António tátua ao fundador da cidade levou 45 anos
Sardinha na Misericórdia local…46 para ter concretização51. Inicialmente pre-
vista para o cinzel de Anjos Teixeira, tam-
Por subscrição proporcionada pelo jornal O bém aqui a desaparição do escultor deu a
Povo da Barca que atingiu elevado montan- autoria a outro nome, desta feita Macário
te e foi acrescido com donativo camarário, Diniz, escultor que terminara o curso na Es-
concretizou-se o padrão com interessan- cola de Belas-Artes do Porto com alta clas-
te baixo-relevo alusivo a Frei Agostinho da sificação52. O batalhador ostenta um docu-
Cruz e Diogo Bernardes, irmãos, poetas e fi- mento escrito enrolado na mão direita – que
lhos de Ponte da Barca, feito por artista por- se presume ser o da fundação da cidade ou
tuense cuja identificação desconhecemos e seu foral –, perna do mesmo lado avançan-
inaugurado em 194047. do, mão esquerda repousada entre mon-
tante e escudo. Nada de novo, mais uma
Viriato, o herói primordial, que fora pensa- vez, pese o ar fero e decidido do homena-
do pelo esc. Júlio Vaz Júnior, acabou por ter geado. Acontece que a estátua foi colocada
feitura oferecida pelo esc. espanhol Maria- no pedestal em Março de 1938 mas espe-
no Benlliure, casado com uma portuguesa rou por inauguração oficial a 9 de Julho de
de Viseu, cidade onde o conjunto escultóri- 1940 integrando assim em Tomar as come-
co constituído por figuras em bronze fundi- morações oficiais do duplo centenário.
das no Porto representando o herói lusitano
e seus assassinos foi erigido48 sobre blocos Para Abrantes, que como vimos inaugurou
de granito aparelhados pelo canteiro norte- um dos melhores monumentos aos mortos
nho Francisco Moreira. Os trabalhos tiveram da Grande Guerra neste ano de 40, também

<<
se previa outro ao Condestável Nuno Álva-
res Pereira. A época era de forte valorização
nacional dessa figura e nesta terra a Câma-
ra Municipal, que o patrocinava, continuava
a receber donativos para a sua feitura. En-
tre os 30.367$35 angariados até finais de
Março, mil eram oferta da Rainha D. Amé-
lia que os enviara em carta onde dizia do
Condestável: “É a figura primordial da nos-
sa independência e o símbolo mais puro do
patriotismo, da intrepidez, lealdade e gene- Mon. a Pedro Álvares Cabral (pormenor), Lisboa
rosidade da raça portuguesa”53.

De igual modo militar, para além de explo-


rador e administrador colonial, Serpa Pin-
to tinha em início de Novembro prometi-
do busto na terra natal, Tendais, Cinfães, do
esc. Lima Machado Pereira54. Anunciava-se
que maqueta, já pronta, iria ser passada a
bronze55, o que efectivamente aconteceu,
realizando-se a inauguração do monumen-
to apenas em 194656.

No mesmo dia em que se inaugurou a es-


tátua equestre do governador Ferreira do
Amaral em Macau, anteriormente referida Mon. a Gualdim Pais, Tomar
(24 de Junho), foi descerrada uma outra, do
segundo-tenente de artilharia Vicente Nico-
lau de Mesquita, heróico atacante do Forte
de Passaleão tomado por chineses pouco
depois do assassinato do governador. Erigi-
da por subscrição pública, com o auxílio do
governo da colónia, tal como a de Amaral
esta era da autoria de Maximiano Alves57. A
atitude decidida e valente do militar impos-
ta pelo escultor e o seu historial biográfico
fizeram com que fosse muito danificada em
1966 durante a revolução cultural chinesa
que tinha seguidores militantes no território.

– JOAQUIM SAIAL 97
Demorava então o monumento sem valor de obras que segura, enrolado, numa das
artístico ao general espanhol José Sanju- mãos, tal como vimos na estátua de Gual-
rjo. Previsto comandante da revolta que dim Pais.
deu lugar à guerra civil naquele país, mor-
rera num desastre de aviação em Cascais, Um Cristo-Rei
quando se preparava para seguir para Na área religiosa, sobressai a estátua a Cris-
Burgos encabeçar o movimento que de- to-Rei em Paços de Ferreira60, da autoria do
pois teve como chefes o general Mola e fi- portuense Henrique Moreira. A cerimónia
nalmente Francisco Franco. Em inícios de de inauguração a 6 de Outubro é elucidativa
Maio na Quinta da Marinha, por iniciativa do modelo seguido na altura, na generali-
do Dr. Joaquim (ou Alberto) Madureira es- dade das cerimónias deste tipo: procissão,
tava a erguer-se um bloco de pedra mais missa, discurso, descerramento. No final da
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

ou menos em bruto, com cerca de 14 tone- missa, “o bispo do Porto61 regozijou-se com
ladas, encimado por uma cruz, que lembra- a inauguração do monumento a Cristo-Rei
va o funesto acontecimento58. e com o facto de aquela cerimónia ter sido
integrada nas Comemorações Centenárias.
A 14 de Junho inaugurava-se em Faro, com Dissertou acerca da fundação da naciona-
a presença de Duarte Pacheco, a estátua lidade, dos descobrimentos e da indepen-
do bispo D. Francisco Gomes de Avelar59, dência. O prelado referiu-se à guerra que
renovador da cidade no pós-terramoto de [ensanguentava] o Mundo e pôs em desta-
1755. A iniciativa foi lançada pela Comis- que o sossego do País em comparação com
são Municipal de Turismo do Algarve. A outras nações, afirmando: ‘- Atravessamos
inauguração, em 14 de Junho, estava in- uma hora de glória para Portugal e de tra-
serida no âmbito das iniciativas das Come- gédia para o Mundo inteiro. As outras na-
morações Centenárias, o que demonstra ções estão mergulhadas na penumbra da
o interesse atribuído à peça. “A figura de guerra; nós vivemos um momento em que
coroamento, que apresenta o ilustre prela- a História se perpetua.’” Cerca de três anos
do numa atitude de rara nobreza e energia depois, em 8 de Dezembro de 1943, ainda
e que mede cerca de três metros de alto, Júlio Dantas diria algo semelhante na inau-
chegou ontem à tarde a esta cidade, ten- guração da estátua equestre de D. João IV,
do-se procedido imediatamente à sua co- em Vila Viçosa: “- Na hora em que os po-
locação sobre o pedestal que há dias se vos mais poderosos do Mundo derrubam
encontrava concluído. Todo o monumen- as suas estátuas para fabricar canhões, nós
to é da autoria do distinto escultor sr. Raul agradecemos à Providência ter-nos permi-
Xavier, que tem sido muito felicitado pelo tido destruir em paz alguns canhões para
magnífico trabalho produzido.” Porém, Xa- fazer uma estátua.62”… Quanto à peça, em
vier, oferece-nos uma estátua que embo- granito e com vinte toneladas e onze metros
ra demonstrando alguma dignidade tem de altura, era de certo modo percursora da
pouco rasgo imaginativo, vulgar pela pose que cerca de vinte anos depois foi erigida
e pela simbologia e pobre no óbvio plano em Almada, embora aquela com élan mais

<<
emotivo, na pose da cabeça e dos braços tica, bastas vezes entregues a mestres can-
– o que não foi conseguido na gigantesca teiros locais. A lista é longa e monótona.
estátua da margem sul do Tejo, por motivo Mesmo assim, deixamos uma mostra des-
da ciclópica dimensão e morte prematura tes lembretes das comemorações de 40: a
do autor, Francisco Franco. Henrique Mo- 28 de Julho inauguravam-se os de Caste-
reira, senhor de vasta obra por todo o País, lo Mendo e Almeida, aqui com cenário de
realizou aqui uma peça naturalista honesta uma força da Legião Portuguesa, ao mesmo
que pela sua natureza e época dificilmen- tempo que de igual modo se inaugurava
te podia ter tido outra concepção63. Infeliz- o monumento local aos Mortos da Grande
mente, tal como aconteceu com a estátua Guerra. O de Almeida, de atarracada sec-
de Gomes da Costa no Porto, a do infante D. ção quadrangular, tem cruzes afonsinas na
Henrique no Padrão dos Descobrimentos e base e escudos no topo, por sua vez enci-
a bandeira do monumento a Pedro Álvares mado por esfera armilar e cruz de Cristo69;
Cabral em Lisboa, esta estátua também foi o da Guarda, erigido na Rua Marquês de
destruída por violento temporal, tendo sido Pombal e pertencente à mesma tipologia
entretanto reconstruída64. do de Almeida, inaugurou-se a 3170; tam-
bém no final do mês, era a vez do de Vila
E um desportista Cova, concelho de Vila Nova de Paiva, mais
Um monumento ao desportista Mário Duar- esguio mas também mais aproximado de
te em Aveiro é nota mais ou menos disso- vulgar cruzeiro religioso71; com festejos a 3
nante, num país e numa estatuária pouco e 4 de Agosto, inaugurava-se no segundo
interessada por esta temática e por isso dia o da Covilhã e freguesias do seu conce-
com raros antecedentes65. Praticante hábil lho, no “ponto mais alto de Portugal”. Dias
de várias modalidades, faleceu em 1939 e antes, a 29 de Julho, tinham terminado os
logo no ano seguinte se anunciava monu- trabalhos de “colocação da cruz de D. San-
mento em sua honra no estádio aveirense cho I na Serra da Estrela, sobre a pirâmide
a que deu nome, em projecto do arq. Júlio de 10 metros que marca o ponto mais alto
Sobreiro com medalhão de bronze do esc. de Portugal. Uma inscrição latina referente
Romão Júnior66. aos Centenários foi aberta no grande blo-
co de granito do Covão do Boi, por cima da
Padrões dos Centenários nascente da Pedra Rachada (…) Procede-se
Para além da campanha da Exposição de agora à recolha de lenha para as cinco gran-
Belém, neste ano de 1940 houve ainda uma des fogueiras que, durante a noite de 3 para
outra com ela directamente relacionada: a 4 de Agosto, hão-de iluminar o planalto da
dos chamados “padrões dos centenários”. torre…72”; na mesma altura passava-se pare-
Por todo o País e em alguns lugares do Ul- cida cerimónia em Vila do Conde, de novo
tramar (cidade do Mindelo, na ilha São Vi- com padrão em forma de cruzeiro religio-
cente de Cabo Verde67 e Lobito68, Angola, so (afinal, situavam-no em frente da capela
por exemplo) se plantaram memoriais mui- de Nossa Senhora da Guia) no cimo de um
to simples e com escassa integração artís- escadório de pedra, no local onde existira

– JOAQUIM SAIAL 99
o farol da Guia73. Castelo Novo e Mangual-
de, respectivamente no início e meados de
Agosto, receberam padrões semelhantes
aos da Guarda e Almeida74. A Póvoa de Var-
zim seria contemplada em inícios de Setem-
bro e Viseu a 16, mesmo dia da inaugura-
ção do monumento a Viriato75.

Um caso particular
Numa capital sempre carecida de água,
anunciava-se em 1938 a chegada à cidade
de um caudal diário de cem milhões de li-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

tros. Para comemorar e simbolizar o feito de


Inauguração do Padrão dos engenharia que o possibilitava, decidiu-se a
Centenários de Almeida
Diário de Notícias, 30.07.1940
construção de uma fonte monumental em
Lisboa, na Alameda D. Afonso Henriques.
Coube a autoria deste complexo de arqui-
tectura, escultura, água e luz aos Rebelo de
Andrade que associaram ao empreendi-
mento Maximiano Alves (potentes cariáti-
des sustentando vasos) e Diogo de Macedo
(Tejo equestre, acompanhado de Tágides) e
o pintor e ceramista Jorge Barradas (painéis
laterais em baixo relevo colorido, de majó-
lica). Atrasos sucessivos só permitiram inau-
guração em 1948, oito anos depois da fonte
luminosa da Praça do Império76 e das inti-
mistas figuras mitológicas femininas frente
a arcas de água de Barata Feyo e António
da Costa para os cantos da Praça Afonso de
Albuquerque, Lisboa.

Também integradas nas comemorações do


progresso hidráulico de melhor acesso à
água por parte dos lisboetas e residentes
nos arredores da cidade foram as gigan-
tescas figuras alegóricas designadas como
Fontes, apostas neste ano nos topos dos
dois terminais do sifão de Sacavém. Bastan-
te inusitadas para o nosso meio, então úni-

<<
cas no género pela dimensão e raras pelo
material, cimento armado, foram encomen-
da directa da Câmara Municipal de Lisboa
através de Duarte Pacheco, então seu pre-
sidente77. Com autoria de Maximiano Alves,
apresentavam alguma relação estilística
com as figuras laterais do seu monumento
aos Mortos da Grande Guerra, de Lisboa.
Os dois gigantes assentavam, semi-ajoe-
lhados e de costas voltadas um para o ou-
tro, sobre construções cúbicas destinadas
ao mecanismo do sifão desenhadas pelos "Fontes" no Sifão de Sacavém
irmãos arquitectos Carlos e Guilherme Re-
belo de Andrade78. Fora uma realização de-
morada, com o trabalho em gesso a levar
dois anos e o da passagem a cimento mais
um. Mas em Dezembro de 1942 viram-se
desmanteladas, “em nome da estética”. Di-
zia então o Diário Popular que “Em minia-
tura, as figuras eram de grande efeito. Mas
uma vez em plano de construção definitiva,
assumiam tais proporções que dominavam
a ponte e tudo em redor, revelando dimen-
sões gigantescas que prejudicavam a ideia
de beleza que havia preconcebido a sua
realização.79” Temos assim que a obra mais
invulgar deste período acaba por ser der- Desenho humorístico alusivo às "Fontes" do Sifão de Sacavém
rubada pelo motivo que menos se espera- – Sempre Fixe, 21.04.1938, desenho de Carlos Botelho

ria e sem que saibamos de quem realmen-


te partiu a ordem de destruição – desfecho
só comparável, embora neste caso por mo-
tivos ideológicos, ao do conjunto de Hein
Semke alusivo à primeira Grande Guerra na
Igreja Alemã de Lisboa, partido e enterra-
do nos terrenos do templo cerca de 1935, a
mando das autoridades nazis da embaixada
alemã na capital portuguesa80.

– JOAQUIM SAIAL 101


…uma estatuária tímida, demasiado Da leva de que falámos, salvar-se-ão quatro
oitocentista, avessa ao estrangeiro, ou cinco exemplares, pela maior capacida-
doméstica. de, prática profissional e empenho estético
Mesmo sem sermos exaustivos – que a con- dos seus autores: o “D. João IV” de Franco
tabilidade do espaço do presente artigo e o “Ferreira do Amaral” de Maximiano Al-
não o permite –, vemos que durante este ves, ambos equestres e capazes de mobi-
ano, fora da exposição lisboeta, entre mo- lar bem o espaço em que foram inseridos
numentos em andamento, feitos ao longo – na grande praça ducal de Vila Viçosa a
dele e outros que tiveram início ou se pla- primeira estátua; no distante Macau, junto
nearam, contamos cerca de meia centena, ao mar, a segunda –, o monumento abran-
de desigual aparato e valor estético. Se de tino aos mortos da Grande Guerra, de Ruy
“ouro” era a “idade” desta escultura, com a Gameiro, as expressivas “Fontes”, também
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

classificou António Ferro81, pouco ele brilha- de Maximiano, pouco mais. E se de dentro
va, apenas visível num lampejo mais forte, verdadeira inovação não houve, de fora (ou
aqui e ali (dentro ou fora da exibição de Be- de gente de fora que cá veio ou cá vivia)
lém), deslocada que estava num tempo vi- também não a teve. O “Café” de Portinari,
rado de modo reverente para o século XIX, espécie de submarino subversivo cultural
bebendo o romantismo-realismo de Soares mostrado no Pavilhão do Brasil, nenhum im-
dos Reis e o naturalismo de Teixeira Lopes pacto teve nestas peças escultóricas, quase
– que só faleceu em 1942. A escultura ofi- todas em andamento à data da apresenta-
cial não foi capaz, nestes anos de propagan- ção do quadro em Lisboa. Tal como não a
da nacionalista e consequente exaltação de teve a exposição de pintura e escultura que
heróis internos e coloniais de seguir rumos abriu em 11 de Novembro no Chiado, com
de há muito traçados na escultura pública António Pedro82, António Dacosta e a escul-
internacional avançada. Os artistas signifi- tora Pamela Boden83 que ali exibiu seis es-
cativos estiveram ocupados com a exposi- culturas de teor abstracto em madeira, de
ção ou, caso de Francisco Franco, com obra quem Diogo de Macedo decidiu dizer logo
ainda assim feita nesse contexto. E embora que “não [era] um estandarte revolucioná-
tenham tido trabalho fora dele, muitas das rio”84. E Arpad Szenes, que contraditoria-
realizações externas ao cenário lisboeta fo- mente conseguiu expor no SNI nesse ano
ram executadas por escultores de segunda de 40, ao mesmo tempo foi obrigado a par-
linha – logo, menos interessantes. Para além tir para o Brasil, com a esposa Maria Hele-
disso, parte significativa é de modestos pa- na Vieira da Silva, por ser apátrida como ela,
drões que pontuam até hoje o País, feitos retirada que foi a esta a nacionalidade por-
memória dos Centenários. Alguns descerra- tuguesa. E Semke, que participou marginal-
mentos de estátuas, antes concluídas, foram mente na Exposição, mas também sofreu
programados para coincidirem com o pe- resistência cerrada de colegas portugueses
ríodo festivo das comemorações, demons- ali e no acesso a concursos públicos esta-
trando um esforçado afã de cobertura inau- tuários, por ser estrangeiro85.
gurativa do território.

<<
Nestes tempos estatuários de pouco ouro, SAIAL, Joaquim – Estatuária
decididamente 1953 (Jorge Vieira, maque- Portuguesa dos Anos 30, ed.
ta para um “Monumento ao Prisioneiro Polí- Bertrand Editora, Lisboa, 1991.
tico Desconhecido”86) e 1973 (João Cutilei-
ro, “Rei D. Sebastião”, Lagos) ainda estavam — Notas
muito longe…
1
Diário de Notícias, 24.06.1940,
p. 4.
2
Diário Popular, 05.07.1943, p.
1: o padrão inicial, provisório,
foi desmantelado em Julho e
— Bibliografia Agosto de 1943 por operários da
empresa União de Sucatas que
FRANÇA, José-Augusto – A Arte assim obteve 170 toneladas de
em Portugal no Século XX, ed. ferro e 200 de madeira. O actual,
Livraria Bertrand, Lisboa, 1974. em pedra, data de 1961.
MATOS, Lúcia Almeida – Escultura 3
A escultura da exposição está
em Portugal no Século XX (1910- razoavelmente estudada no nosso
1969), Col. Textos Universitários livro Estatuária Portuguesa dos
de Ciências Sociais e Humanas, Anos 30 (1926-1940), Bertrand
ed. Fundação Calouste Editora, Lisboa, 1991.
Gulbenkian, Fundação para a 4
Anjos Teixeira, António da
Ciência e a Tecnologia, Ministério Costa, António Duarte, Barata
da Ciência, Tecnologia e Ensino Feyo, Canto da Maia, Euclides
Superior, Lisboa, 2007. Vaz, Francisco Franco, Hein
PEREIRA, José Fernandes Semke (alemão radicado em
(direcção) – Dicionário de Lisboa), Irene Lapa, João Fragoso,
Escultura Portuguesa, ed. Leopoldo de Almeida, Maximiano
Caminho, SA, Lisboa, 2005. Alves, Martins Correia, Raul
PORTELA, Artur – Salazarismo Xavier e Ruy Gameiro eram os
e Artes Plásticas, Biblioteca nomes mais sonantes das quase
Breve, ed. Instituto de Cultura e duas dezenas de escultores com
Língua Portuguesa, Ministério da trabalhos presentes na exposição.
Educação e das Universidades, Franco, por estar a realizar a
Lisboa, 1982. estátua de D. João IV para Vila
REGATÃO, José Pedro – Arte Viçosa, particularmente citada no
Pública e os Novos Desafios das programa das comemorações,
Intervenções no Espaço Urbano como veremos.
– Bond, Books on Demand, 5
Actual Maputo, capital de
Quimera Editores, Lda., 1998. Moçambique.

– JOAQUIM SAIAL 103


6
Diário de Notícias, 13.02.1940, 13
Inaug. em 11.11.1935. Projecto 27
Ocidente, n.º 30, Outubro.1940,
p. 5. de Francisco Soares Lacerda p. 133.
7
E participação de Leopoldo de Machado e escultura de Henrique 28
Diário de Notícias, 19.12.1940,
Almeida num dos baixos-relevos Moreira. p. 5.
da base. Este pertencera ao júri do 14
Inaug. em 4 de Junho. O 29
Notícias de Lourenço Marques,
concurso… escultor falecera prematuramente, 28.12.1940, p. 1.
8
O monumento foi desmantelado em 1935, em desastre de mota 30
Ibidem, 29.12.1940, p. 7.
após a independência de com a esposa na estrada de Sintra. 31
Ibidem, 29.12.1940, p. 11.
Moçambique e a estátua Gameiro já fizera um monumento 32
Diário de Notícias, 21.11.1940,
encontra-se hoje exposta na aos Mortos da Grande Guerra p. 4.
Fortaleza/Museu de História Militar para Lourenço Marques de similar 33
Ocidente, n.º 16, Agosto.1939,
de Maputo. valor que ainda existe. p. 488.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

9
Uma, cuja autoria 15
“cuja cerimónia será revestida 34
A 7 de Junho foram postos à
desconhecemos, de reduzidas de grande solenidade, embora venda selos comemorativos com
dimensões, foi inaugurada em não haja cortejo nem foguetes, imagens feitas pelo processo de
08.06.1940 no Portugal dos em atenção ao actual momento talhe doce (inovador em Portugal)
Pequenitos, em Coimbra. Ver internacional, mas apenas uma comemorativos das festas
Diário de Notícias, 09.06.1940, concentração das entidades dos Centenários: maqueta da
p. 1. oficiais e particulares.”, ver Diário Exposição do Mundo Português,
10
E também atirou ao Tejo a de Lisboa, 04.04.1940, p. 3. D. João IV (Vila Viçosa), Padrão
estátua em gesso do Infante D. 16
A vasta parte de escultura foi dos Descobrimentos (Lisboa) e a
Henrique do primitivo e provisório completada por Henrique Moreira referida de D. Afonso Henriques
Padrão dos Descobrimentos. e Sousa Caldas. de Guimarães.
11
A estátua equestre do “Tejo” na 17
Praça de D. Afonso III. Ver Diário 35
Ainda se vê no Diário de Lisboa,
Fonte Monumental da Alameda de Notícias, 17.05.1940, p. 1. 06.11.1940, p. 5, em cerimónia
de D. Afonso Henriques, Lisboa 18
Ibidem, 07.06.1940, p. 1. alusiva ao “Dia do Condestável”.
(fonte plan. em 1938 - inaug. 19
Ibidem, 14.06.1940, p. 1. Erigido 36
Ocidente, n.º 41,
30.05.1948) também tem em Castro Verde. Setembro.1941, p. 436.
configuração rampante. É da 20
Ibidem, 22.07.1940, p. 4. Inaug. 37
Diário de Notícias, 05.04.1940,
autoria do esc. Diogo de Macedo. cerca desta data. p. 2.
A estátua de Ferreira do Amaral 21
Ibidem, 17.07.1940, p. 6. 38
Ibidem, 03.02.1940, p. 5.
veio para Lisboa por altura da 22
Ibidem, 22.07.1940, p. 4. A comissão era constituída
passagem da soberania efectiva 23
Ibidem, 17.07.1940, p. 6. pelo coronel Álvaro César de
de Macau, de Portugal para a 24
Devido ao empenho de Grant, o Mendonça e pelo capitão Teófilo
China. Encontra-se colocada sobre desfecho do pleito em 1870 deu Duarte.
modesto pedestal na Alameda da razão a Portugal sobre a tutela da 39
Ibidem, 17.02.1940, p. 1.
Encarnação, Olivais, Lisboa. ilha. 40
A bandeira foi derrubada pelo
12
FRANÇA, José-Augusto. A Arte 25
Diário de Notícias, 07.08.1940, ciclone de 1941 e em Junho de
em Portugal no Século XX, p. 256, p. 2. 1948 caiu de novo… ver Diário
ed. Livraria Bertrand, Lisboa, 1974. 26
Ibidem, 07.08.1940, p. 5. Popular, 16.06.1948, p. 5.

<<
41
Diário de Notícias, 25.06.1940, Fundida em Vila Nova de Gaia. a de temporal de 1960 com
p. 2. 52
Ibidem, 10.07.1940, p. 1 e reconstrução em 1961 (versão
42
O articulista da notícia queria Ilustração, 16.06.1938, p. 24. mais repetida).
dizer Duque de Loulé. 53
Ibidem, 24.03.1940, p. 2. 65
Um “Jogador de disco” (estátua
43
Diário de Notícias, 18.02.1940, 54
De seu nome verdadeiro de José Netto, inaug. 13.11.1931,
p. 5. António Joaquim Fernandes Lima. na Avenida da Liberdade,
44
Ibidem, 01.01.1926, p. 7 e 55
Diário de Notícias, 06.11.1940, Lisboa, depois no Pavilhão dos
06.01.1927, p. 2. p. 2. Desportos), um monumento ao
45
Ibidem, 12.05.1935, p. 4. 56
Fotografia do gesso pode ser professor de Educação Física Luís
Já nesta altura, através da voz vista no espólio de Abel Salazar, da Costa Monteiro (estátua de
do vogal Pastor de Macedo, a na Fundação Mário Soares, Lisboa. Anjos Teixeira, inaug. 15.05.1932,
comissão discutia o local, caso o 57
Que assim se via representado também na Avenida da Liberdade,
monumento não pudesse vir a ser em mais uma colónia, depois da depois na portaria do Ginásio
erigido no Parque Eduardo VIII, o de Cabo Verde (estátua jacente Clube Português) e o monumento
primeiro previsto. no jazigo da família Serradas, no a Pepe, precocemente falecido
46
Ibidem, 17.08.1940, p. 1 e cemitério do Mindelo, e busto jogador de futebol de “Os
Gazeta dos Caminhos de Ferro, n.º do médico militar Dr. Lereno, Belenenses” (padrão com baixo-
1265, 01.09.1940, p. 587. na cidade da Praia), para além relevo de Leopoldo de Almeida,
47
Diário de Notícias, 25.03.1940, de uma estátua de Afonso de inaug. 23.09.1932, no antigo
p. 5. Albuquerque em Nova Goa, no estádio das Salésias e depois no
48
Inaug. em 16 de Setembro. Estado da Índia, e o apostolado novo estádio do clube no Restelo)
49
Diário de Notícias, 03.09.1940, da catedral de Nova Lisboa (actual são alguns parcos antecedentes
p. 1. Huambo), Angola (1945). próximos deste de Aveiro.
50
Ibidem, 18.05.1940, p. 14. Não 58
Ibidem, 07.05.1940, p. 4. 66
Diário de Notícias, 25.11.1940,
conhecemos o desenvolvimento 59
Diário de Notícias, 12 e p. 5.
desta planeada homenagem que 15.06.1940, p. 4 e 1, 67
Este ainda está no lugar onde foi
também compreendia colocação respectivamente. erigido (Rua de Coco, na cidade
de lápide toponímica em artéria 60
Na realidade no Monte do Pilar, do Mindelo) e bem estimado.
viseense com nome do militar. a cerca de quatro quilómetros de 68
Diário de Notícias, 07.08.1940,
Em http://fotosviseu.blogspot. Paços de Ferreira. p. 2. Posto no adro da igreja de
pt/2015/06/a-casa-museu- 61
D. António Augusto de Castro Nossa Senhora da Arrábida, nesta
almeida-moreira.html (visto Meireles. cidade angolana.
em 29.08.2015) diz-se que em 62
Diário de Lisboa, 08.12.1943, 69
Ibidem, 30.07.1940, p. 1.
25.11.1973, em comemoração do p. 4. 70
Ibidem, 27.07.1940, p. 1.
centenário de nascimento desta 63
Ibidem, 07.10.1940, p. 5, O 71
Ibidem, 29.07.1940, p. 1.
figura, foi inaugurado no jardim da Século Ilustrado, 12.10.1940, p. 9 e 72
Ibidem, 18.07.1940, p. 1 e
Casa Museu Almeida Moreira um Ocidente, Novembro.1940, p. 267. 31.07.1940, p. 2.
busto do capitão esculpido pelo 64
Encontrámos como datas 73
Ibidem, 05.08.1940, p. 2.
“seu amigo Mariano Benlliure”. de destruição na Internet a do 74
Ibidem, 05.08.1940, p. 6 e
51
Ibidem, 22.02.1938, p. 9. ciclone de 1942 e na Wikipedia 18.08.1940, p. 4.

– JOAQUIM SAIAL 105


75
Ibidem, 09.09.1940, p. 5 e 11 de Novembro e encerrou a 23.
ibidem, 17.09.1940, p. 2. Pamela Boden (1905-1981) nasceu
76
Desenho de António Lino e em Derbyshire, Inglaterra, estudou
jogos de água e luz do eng. Carlos em Paris e em 1945 emigrou para
Buigas. Indicação em NOBRE, os Estados Unidos da América.
Pedro Alexandre de Barros Rito 84
Ocidente, n.º 32,
Nunes, Belém e a Exposição Dezembro.1940, p. 461.
do Mundo Português: Cidade, 85
Facto que nos confidenciou em
Urbanidade e Património Urbano, conversa que com ele tivemos
trabalho de projecto de mestrado para entrevista do Diário de
em Património Urbano, Faculdade Notícias, 06.05.1989, na coluna
de Ciências Sociais e Humanas, “Sábado em Perfil”, p. 2: “Estava
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Universidade Nova de Lisboa, proibido [de participar em


2010, p. 33. concursos para monumentos],
77
Acumulou o cargo com o de porque era estrangeiro. Só
ministro das Obras Públicas desde excepcionalmente trabalhei para
25 de Maio de 1938. a Agência Geral das Colónias.
78
Ainda existentes. Mesmo assim, alguns artistas
79
Diário Popular, 09.12.1942, p. 1. escreveram para lá, manifestando
80
Situava-se no “Pátio de o seu repúdio.”
Honra” da igreja (que ainda 86
Diário de Lisboa, 02.04.1953,
existe, na Avenida Columbano p. 12. A maqueta foi premiada
Bordalo Pinheiro, a Palhavã). Era em concurso internacional
constituído por três figuras de promovido pelo Instituto de Artes
soldados, um ileso, um ferido e Contemporâneas, em Londres. A
um terceiro moribundo, amparado ele concorreram 2500 artistas, de
pelo segundo. Intitulava-se 56 países. A escultura de Vieira
“Camaradagem na Derrota”… Para esteve longo tempo exposta
além deste conjunto escultórico na Tate Gallery. Só em 1994 o
viam-se a estátua “Mater Dolorosa” monumento foi executado e
e o baixo-relevo “A Ascensão do erigido em Beja.
Herói” (que subsistem).
81
Discurso de 06.05.1949, in
FERRO, António, Arte Moderna,
ed. SNI, Lisboa, p. 36.
82
Que mais tarde faria pequenas
esculturas surrealistas.
83
A exposição realizou-se na
Galeria (ou Casa) Repe, na Rua
Paiva de Andrade, Lisboa. Abriu a

<<
Monumento Multiculturalidade
– Uma Experiência Participada

por José Francisco Alves


Doutoramento em História da Arte, curador independente e membro da
ABCA, ICOM e ICOMOS. Curador-Chefe do Museu de Arte do Rio Grande
do Sul (2011-2013) e Professor de Escultura do Atelier Livre da Prefeitura de
Porto Alegre. Mantém o site www.public.art.br

Abordage du projet Monument Multiculturalisme, projet


de la Mairie de Almada (Portugal) avec la participation
de l’Université de Lisbonne, inauguré en 2013. Le Almada, situada na margem esquerda do
monument a été érigé après diverses consultations Rio Tejo, fronteira a Lisboa, passou a chamar
directes de la communauté à laquelle il fut destiné. a atenção internacional de instituições aca-
Des citoyens du Bairro da Caparica, Almada, ont dêmicas e artísticas nos últimos anos pela
participé à plusieurs sessions de travail comprenant surpreendente e bem-vinda atitude de en-
une expérimentation artistique (ateliers) et ont décidé carar a arte pública a partir de uma visão es-
non seulement du contenu du monument comme de tratégica para a cidade. No caso, as ações
ses formes. Ce processus a été analysé à la lumière práticas desenvolvidas por essa municipa-
de la théorie de l’art publique, spécialement en ce lidade para o assunto ultrapassou as habi-
qui concerne les auteurs qui abordent la question tuais – e igualmente relevantes – políticas de
communautaire et démocratique de ce genre d’art, ainsi ereção de monumentos representativos e/
qu’en référence à des exemples pratiques de projets ou a instalação de obras de arte em espaços
similaires antérieurs de l’Université de Barcelone. públicos. Apesar de ainda importantes tais
comissionamentos, no sentido de qualifica-
ção da paisagem, memória histórica ou sta-
tus cultural, a cidade de Almada quis ir além.

O Monumento Multiculturalidade, levado a


cabo pela Câmara Municipal de Almada, e
Universidade de Lisboa, apresenta-se como
importante contribuição no universo das di-
versas políticas de arte pública europeias e
americanas. Isto porque o projeto ingres-
sou num terreno difícil, no qual governos

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 107


e instituições evitam “arriscar-se”: obras de com as esculturas em seu mais importante
arte pública erigidas para determinadas co- sítio, a Praça da Sé (1978). Na Europa, o pa-
munidades e com a participação ativa dos radigma mais difundido foi e continua sen-
seus cidadãos na definição dos objetivos e do Barcelona, remodelada a partir dos Jo-
formas dessa arte. Este, de fato, é um tipo gos Olímpicos de 1992, cuja revitalização
de arte desafiador, uma vez que a escala de e regeneração do espelho urbano desde
uma comunidade específica é, para a arte então passou a incluir a arte pública. Obvia-
pública, paradoxalmente mais complexa do mente, este novo tipo de arte, determinado
que a construção de monumentos de gran- pela sua instalação em espaços públicos
des proporções, em sítios urbanos de mé- (majoritariamente abertos), foi acompa-
dias e grandes metrópoles. nhado de uma teorização igualmente sem
precedentes. Paulatinamente, a crítica vol-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Temos no exemplo deste notável projeto tou-se à divulgação desta arte, em seguida
três características a destacar, em razão de introduzindo em grau elevado a politização
seu contexto enquanto obra de arte e elabo- e a polêmica nos discursos. Entre essas re-
ração comunitária: o caráter de monumento, ferências sobre o assunto, podemos ver al-
o processo participado e a autoria coletiva. guns exemplos a seguir.

A obra de arte pública enquanto marco re- A primeira reflexão crítica sobre esta nova
ferencial de uma cultura ou comunidade es- produção pode ter sido o artigo de Amy
pecífica foi uma discussão bastante profícua Goldin, na prestigiada revista Art in Ame-
quando a arte em espaços urbanos passou rica: “O Gueto Estético: algumas reflexões
a fazer seriamente parte do discurso teórico, sobre a Arte Pública” (1974). Conforme a au-
a partir de princípios da década de 1970. A tora, aquilo que era oferecido então como
produção que determinou este novo cam- arte pública seria “na maior parte... ampla
po instaurou-se a partir da inclusão de obras decoração”. Goldin também dava a partida
de arte icônicas em projetos de revitaliza- da grande corrente que começou a definir
ção urbana. Podemos delimitar este históri- criticamente a arte pública: “o problema
co período entre 1969 e 2006, de La Grande verdadeiro é explicar porque, no momento,
Vitesse (cidade de Grand Rapids; artista Ale- virtualmente [arte pública] é uma classifica-
xander Calder) a Cloud Gate (cidade de Chi- ção vazia”.1 Penso que esta autora percebeu
cago; artista Anish Kapoor), ambas escultu- com firmeza – e isso é válido até o presen-
ras públicas nos Estados Unidos da América. te – “que há tão pouca arte pública genuína
em razão justamente de nossa descrença na
Neste período, uma produção numerosa e realidade da própria esfera pública”.
diversificada de obras ao ar livre de câno-
nes moderno e contemporâneo surgiu na Então, conforme o contexto era propício,
América (Estados e Canadá) e Europa. Mes- os que que começaram a teorizar sobre a
mo timidamente, houve reverberação na arte pública politizaram ao máximo os pon-
América Latina, a exemplo de São Paulo, tos de vista. As considerações mais corren-

<<
tes foram aquelas as quais apontavam que No livro que organizou, “Arte na Esfera Pú-
a maior parte da arte pública não represen- blica”, J. W. Mitchell em seu texto introdu-
tava aspectos ligados às comunidades as tório refletiu sobre legitimação, violência e
quais era dirigida e que as novas obras em público, e ponderou que a arte pública é um
espaços urbanos continuavam a ser a mes- meio significativo de violência simbólica.8
ma arte “privada” das galerias e museus. Entretanto, o questionamento teórico mais
Com o tempo, surgiram mais artigos bem comum e prolongado acabou sendo em
como livros específicos que ampliaram es- torno da própria condição “pública” de uma
ses questionamentos. obra de arte pública. Ou seja, se esta pas-
saria a adquirir tal caráter por sua simples
Uma análise crítica muito citada sobre arte colocação em espaços públicos. Nesse sen-
pública até o presente parece ser o contun- tido, Harriet Senie ponderou: “Como algo
dente artigo “Inoperante: a Máquina da Arte pode ser ambos, público (democrático) e
Pública” (1988), de Patricia Phillips. Nele, arte (elitista)?” (1992).9 Uma reflexão similar
a autora atacou a mera condição “pública” fez o artista Daniel Buren: “Porque, quando
desta arte ser exclusivamente em função de falamos sobre um trabalho ao ar livre [...] a
sua propriedade pública (governo) ou de palavra ‘arte’ é juntada ao termo ‘público’?
sua localização (local público), pois “o con- O que está implícito nessa união?”.10 Outro
ceito de ‘público’ é difícil, mutável, talvez autor de referencia no período foi Malcolm
um pouco atrofiado, mas o fato é que a di- Miles, com “Arte, Espaço e Cidade” (1997),
mensão pública é uma construção psicoló- o qual também debruçou-se mais ou me-
gica em lugar de física ou ambiental”.2 Mais nos nas mesmas reflexões.11
adiante, Phillips publicou o artigo “Constru-
ções Públicas” (1995), em um livro coletivo, A par desta infindável discussão teórica em
no qual voltou a questionar: “De onde vem o torno da questão da propriedade ou loca-
público da arte pública de se a vida pública lização da obra como sendo definidora da
está assim, tão perigosamente esvaziada?”3 condição de um trabalho pertencer ou não
Este livro em questão, “Mapeando o terre- à tipologia arte pública, Javier Maderuelo,
no: um novo tipo de arte pública” (1995)4 em 1990, já observava esta situação sob
esteve com três outros entre as coletâneas o prisma do público e não da obra, já que
de textos mais difundidas na década de “trata-se de um tipo de arte cujo destino
1990, as quais buscaram novas e múltiplas é o conjunto de cidadãos não especialista
abordagens, em especial problematizan- em arte contemporânea e cuja localização
do os aspectos comunitário e crítico que a é o espaço público aberto” (grifo nosso).12
arte pública deveria refletir: “Arte no Interes- E este “destino”, afinal, é o maior desafio
se Público” (1989),5 “Arte na Esfera Pública” desta tipologia de arte uma vez que, ain-
(1992),6 “Questões críticas em Arte Pública: da segundo Maderuelo, “a cidade hoje foi
conteúdo, contexto e controvérsia” (1992).7 transformada num campo aberto, cenário
de variadas manifestações estéticas que se
deslocaram dos espaços das galerias e mu-

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 109


seus para enfrentar diretamente a um pú- tão proposta por trabalhos permanentes
blico heterogêneo, de olhar distraído, sem ou temporários elaborados conforme as
tempo para interessar-se por arte e preo- características dos respectivos locais a que
cupado em questões mais pragmáticas do se destinam. Ao mencionar como referên-
cotidiano”.13 Vejo que a denominação do cia o postulado de Jeff Kelley para a distin-
campo arte pública, por esta ótica de Ma- ção entre lugar e local – “um local (site) re-
deruelo, soluciona um pouco esta questão presenta as propriedades físicas do lugar
exaustiva sobre o que é ou não um trabalho (place) [...] enquanto lugares (places) são
de arte pública. Neste sentido, seria aque- os reservatórios do conteúdo humano”17 –
la obra colocada fora dos espaços tradicio- Lippard cunhou um novo termo para o que
nais de arte, a qual transforma o espectador, seria um novo tipo de arte pública, em opo-
o transeunte, em espectador de arte, pela sição ao site-specific: a arte “place-specific”
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

simples colocação de uma obra de arte em (a especificidade do lugar). Assim, “a arte


seus caminhos quotidianos. place-specific” teria “uma ligação orgânica
com a sua localização e, principalmente”,
Entre esse maciço teórico produzido sobre não poderia “ser vista como um objeto fora
arte pública, do qual pinçamos as referên- da vida dos habitantes/espectadores”.18
cias acima por serem os primeiros ques-
tionamentos a enfocarem preocupações Com a instauração ou identificação desta
concernentes ao nosso Monumento Mul- nova tipologia de arte (a place-specificity),
ticulturalidade, a crítica de arte Lucy Li- Lucy Lippard elaborou uma apropriada de-
ppard14 produziu talvez o aporte mais signi- finição de Arte Pública:
ficativo sobre a necessidade de participação
– decisiva – do público na definição de uma Qualquer tipo de arte acessível que se preo-
arte erigida em seu nome. Em 1997, ela pu- cupa, desafia, envolve e consulta o público
blicou “A atração do local – sentidos do lu- para/ou no qual ela seja feita, respeitando a
gar em uma sociedade multicêntrica”,15 um comunidade e o meio ambiente. As outras
denso livro que aprofundou questões apre- coisas – a maioria combustível para as con-
sentadas anteriormente em artigo seu no já trovérsias e a retórica dos meios de comu-
mencionado “Mapeando o terreno [...]”, sob nicação sobre a arte pública – ainda é arte
o título “Olhando em volta: onde estamos, privada, não importa o quanto seja grande,
onde poderíamos estar”.16 exposta, intrusa ou sensacionalista. Perma-
nente e efêmera, objeto e performance, de
Lippard dedicou-se a teorizar sobre a no- preferência interdisciplinar, democrática, às
ção de local, localização e localidade, com vezes funcional ou didática, uma arte públi-
o objetivo de problematizar sobre o lugar ca existe nos corações, mentes, ideologias e
na arte, buscando, inclusive, conceitos da educação de seus públicos, bem como em
geografia e do meio ambiente. De seus en- suas experiências física e sensual.19
foques, questionou o célebre site-specific
(a especificidade do local), ou seja, a ques-

<<
Conforme o final dos anos 1990 se aproxi- front.22 Não é sem razão, inclusive, que no
mava, o complexo teórico sobre arte públi- âmbito da influência deste largo trabalho
ca refreou no sentido de discussões menos da Universidade de Barcelona encontra-se
polêmicas e críticas. Passou-se também a também, efetivamente, o próprio projeto
uma fase de maior interesse por autores e Monumento Multiculturalidade. Enquanto
investigadores que não atuavam no mundo o corpo teórico antes exemplificado (ma-
da arte, oriundos de vários campos, como joritariamente americano) seja majoritaria-
a história, filosofia, sociologia, urbanismo e mente voltado às questões das relações
psicologia social, entre outros. A perspecti- dos projetos com os seus públicos, e por
va de que a arte pública não era somente isso se constituem também em referência
pertencente ao campo artístico coincidiu, para abordarmos o assunto presente, creio
por um lado, com a academização da dis- que os projetos efetivados por meio da
ciplina em universidades; por outro, ao tre- Universidade de Barcelona aportem sub-
mendo boom de legislações (obrigatorie- sídios mais apropriados ao nosso caso em
dade) e incentivos para a colocação de arte tela, um projeto conjunto entre universida-
ao ar livre, em especial na Europa, EUA, Ca- de e câmara municipal.
nadá e Austrália. Nesse quadro, a iniciativa
acadêmica mais efetiva e duradoura ocor- Temos em conta que nos Estados Unidos,
reu na Universidade de Barcelona, que insti- ou, mais amplamente, no dito “primeiro
tuiu à época o Observatório de Arte Pública mundo”, o rol teórico mencionado – além
(atual paudo).20 Posteriormente, o Observa- de outros obviamente – em muito tenha in-
tório desdobrou-se em cursos de mestrado fluenciado a criação de centenas de proje-
e doutorado com enfoque em Arte Pública, tos municipais de arte pública permanente.
Patrimônio Cultural, Regeneração Urbana O mais conhecido desses casos é Nova Ior-
e Espaço Público, a partir de um centro de que, cujo programa municipal de arte pú-
pesquisa, o crpolis.21 blica há décadas tem alocado trabalhos em
comunidades afastadas de Manhattan, mui-
A par da necessidade de investigação e di- tas estigmatizadas devido aos seus vernizes
vulgação teórica, o paudo/crpolis passou multiculturais, cujos processos de comis-
a realizar projetos concretos (ou seja, nas sionamento levam em conta a obrigatorie-
ruas) com administrações municipais (os dade de uma demorada negociação entre
entes que afinal de contas enfrentam a arte os artistas e moradores. Porém, é bom que
pública), em Espanha e Portugal. Também se frise, a politizada – e até mesmo ativis-
ampliou a sua influência por meio de proje- ta – produção teórica americana (e de sua
tos conjuntos, em universidades europeias influência direta: Inglaterra, Canadá e Aus-
e, incluso, nas américas do Sul e Central. trália) é de difícil compreensão e interesse
Isso, sem mencionar a realização de sim- daquilo que ocorre fora de sua órbita. As-
pósios de arte pública em ambos os lados sim, restam à margem desse universo co-
do Atlântico e a edição de publicações, en- mentado, criticado, interessantes experiên-
tre as quais a principal é a On The W@ter- cias em Espanha, Portugal, América Latina,

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 111


e até mesmo em França e Alemanha. O que
a experiência do paudo / crpolis acrescen-
tou ao campo da arte pública internacional
resulta de uma vontade política – institu-
cional – duradoura sobre práticas urbanas
e comunitárias, cujos resultados são cons-
tantemente reprocessados, analisados e
reinterpretados sob a luz de teorias pre-
decessoras às quais se apresentam novos
aportes, com uma característica proposita-
damente interdisciplinar.23
Escultura Casa Barata, Baró de Viver,Distrito de Sant Andreu,
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Barcelona.
Imagem em <fernandofuao.blogspot.com.br>
Entre as iniciativas da Rede paudo conjun-
tamente a câmaras municipais em Espanha
e Portugal destacamos o projeto desenvol-
vido no bairro Baró de Viver,24 Distrito de
Sant Andreu, nordeste de Barcelona. Foi le-
vado a cabo com efetivo envolvimento co-
munitário, em meio à regeneração urbana
participada do local, iniciada por volta de
2004, tais como uma nova rambla, praça
cívica e estação de Metro. No sentido sim-
bólico, este amplo projeto foi também pen-
sado para melhorar a autoestima do bairro,
estigmatizado por sua história ligada às ca-
sas populares (“casas baratas”), construídas
pelo governo em torno de 1928, quando a
região era uma periferia distante de Barce-
lona. No amplo projeto, emergiram dois tra-
balhos de arte pública, o Mural da Memória
e a escultura Casa Barata, (ambos de 2011).
O mural, com 524 m2, ocupa o paredão
acústico que protege o entorno (Passeio de
Santa Coloma) do cruzamento de viadutos
e avenidas expressas; trata-se de um painel
ilustrativo, como um livro gigante, que con-
ta a história do bairro por meio de memó-
rias, fotografias e interesses compartilhados
pelos próprios moradores. A escultura em
homenagem às Cases Barates (casas bara-

<<
tas, em castelhano, ou, casas populares, no Entretanto, de tempos em tempos, pode-
português brasileiro), por sua vez, nos re- mos perceber que fatos e situações podem
porta ao Monumento Multiculturalidade fazer o sentido do monumento sentir-se re-
por ser uma obra de arte de autoria coleti- vigorado e a sociedade parece voltar a ne-
va, comunitária. Foi instalada na extremida- cessitar deles. Corrobora para isto a visão
de mais elevada da Rambla Ciudad d’Asun- do historiador Andreas Huyssen de que a
sión, na junção com o Passeio Santa Colona, “memória”, no mundo inteiro, tornou-se nas
e ergue-se na forma de uma singela casa, últimas décadas “uma obsessão cultural
realizada em betão, como um verdadeiro de monumentais proporções”27 e que a “a
monumento, sem, no entanto, reivindicar noção de monumento como memorial ou
essa condição comemorativa. evento comemorativo público vem conhe-
cendo um retorno triunfante”.28 Este ponto
Este aspecto, assim, nos remete à primeira de vista Huyssen vinha observando em ra-
das três características que queremos des- zão das celebrações da memória do Holo-
tacar no Monumento Multiculturalidade, ou causto, da queda do Muro de Berlim e do
seja, a opção pela ereção de um monumento. fim das ditaduras militares sul-americanas.
Essa “obsessão”, ao que tudo indica, mos-
A par de toda a controvérsia em torno do pa- trou-se fortalecida a partir dos aconteci-
pel do monumento na história da arte e da mentos de 11 de setembro de 2001, em as-
cidade – e Antoni Remesar nos resume que sunto que esse próprio autor debruçou-se
o mesmo pode ser visto como um “conceito posteriormente, sob essa mesma ótica.29 Se
maldito, ou bendito, conforme e como o ob- formos pensar em “memórias traumáticas”
servamos”25 –, eu creio que não restam dúvi- (termo também de Huyssen), quando elas
das de que o monumento é a forma mais re- tomam forma para uma sociedade em par-
conhecível pelo “público geral” daquilo que ticular o são de modo geral na condição de
inequivocamente seja o mais típico exem- monumentos públicos.
plar de arte pública. Assim, a morte anuncia-
da várias vezes desta categoria já não pode Se o culto moderno aos monumentos30 mos-
mais ser levada a sério. O flutuar do dia-a- tra-se atual, em que medida se situa, nessa
-dia da História nos demonstra que a neces- perspectiva, o Monumento Multiculturalida-
sidade dos monumentos vai e vem e cada de? Podemos começar pelo próprio contex-
contexto requer novas abordagens. Néstor to imediato, a própria cidade de Almada.31
Canclini observa o presente de uma mega-
lópole de 22 milhões de pessoas (a Cidade Almada, hoje uma cidade com numeroso
do México) na qual ali os “monumentos es- conjunto de arte pública, numa proporção
tão cansados”; não podem mais ser vistos e elevada de obras de arte ao livre aos pa-
não podem competir com o que hoje se en- drões europeus, se considerarmos a sua
contra agregado ao espaço urbano.26 população e área, surpreendentemente
teve o seu primeiro monumento instalado
ao ar livre recentemente, somente cinco

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 113


anos após a redemocratização do país. O para se mostrarem presentes, atuantes na
grupo estatuário Os Perseguidos (de An- vida da cidade, neste novo período, em es-
jos Teixeira) foi executado em 1969 e inau- pecial os que anteriormente eram privados
gurado em praça pública a 24 de junho de de terem voz na sociedade.
1979, como um monumento a “todos os
homens e mulheres vítimas da persegui- Seguiu-se a partir dos anos 1980 a ereção
ção fascista”32 da ditadura do Estado Novo de monumentos a causas justas, efeméri-
(1933-1974). Antes, a cidade já contava des e homenagens habituais, em contextos
com o gigantesco Cristo Rei (à moda do locais e universais, aspectos do quotidiano
Cristo Redentor; Rio de Janeiro), devoção da vida em cidades democráticas. Assim
católica inaugurada em 1959, emblema- encontramos em Almada monumentos às
ticamente “de costas” à Almada e voltada profissões e homenagens congêneres (As-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

para Lisboa. Porém, seria forçoso crer que sociativismo, Trabalho, Paz, Vida, Liberdade,
esse destino de peregrinação religiosa seja Solidariedade, etc.). Em muitos desses co-
um “monumento de Almada” pelo simples missionamentos observamos o expediente
fato de estar fixado em seu município, uma do concurso aberto a projetos de artistas,
vez que seu objetivo é fitar a capital e ser com financiamento predominantemente
visto de lá, bem como os visitantes que o público. A maioria das obras pertence ao
procuram ignoram solenemente a cidade. campo da escultura, mas também encon-
Esse é um fato que revela a antiga sina de tramos painéis cerâmicos e em relevo, além
Almada durante um largo período de sua de mobiliário urbano diverso (luminárias,
história, a ausência de monumentos, como abrigos, objetos lúdicos), com elaboração
se os monumentos da capital, do outro plástica artística. A linguagem quase abso-
lado do Tejo, suprissem essa deficiência. luta das obras de arte utiliza procedimen-
tos, materiais e cânones contemporâneos,
A partir da redemocratização (1974), Alma- numa exceção às habituais demandas por
da adquiriu o direito de ter um poder au- tradições predecessoras, a exemplo de es-
tônomo e passou a ditar os seus destinos. tatuas ou obeliscos.
Este fato permitiu que finalmente a cidade
passasse a instalar os seus monumentos e Sendo Portugal perfeitamente integrado no
obras de arte. Entre outras iniciativas, a arte espírito da comunidade europeia e mais di-
pública passou a cumprir um papel interes- retamente ao contexto ibérico, como men-
sante na autoestima dos moradores e na cionado antes a Câmara de Almada tem
construção de memória e imaginários cole- participado de projetos de arte pública no
tivos próprios. Se não totalmente represen- âmbito da Universidade de Barcelona. O
tativos – e a arte pública jamais consegue ser exemplo anterior a destacar, nesse sentido,
representativa para toda uma população, a foi “En els marges / nas margens”, iniciativa
maior parte dos monumentos dessa cidade integrada como troca de experiências entre
vinculou-se aos interesses de grupos que projetos artísticos comunitários dos bairros
positivamente buscaram o espaço público Pica-Pau Amarelo (Almada) e Baró de Viver

<<
(Barcelona), em 2011. Para Almada, este foi uma comemoração tradicional (monumen-
mais um incentivo para um passo adiante, to), “não só se dava a oportunidade à comu-
a realização de um projeto de arte pública nidade de participar numa acção concreta
permanente, o Monumento Multicultura- dirigida ao seu território, como se potencia-
lidade, definido de forma participada pela va um maior diálogo e entrosamento social
comunidade do Raposo, junto ao Centro Cí- no seio de uma comunidade bastante com-
vico do bairro Monte de Caparica. plexa e culturalmente diversificada”.33

O comissionamento do monumento foi le- Sob a coordenação de Sérgio Vicente, cerca


vado a cabo pela Escola de Belas Artes da de quarenta moradores, entre crianças, jo-
Universidade de Lisboa, sob coordenação vens e adultos, participaram ativamente de
do professor e escultor Sérgio Vicente, em nada menos que sete Sessões (ou oficinas)
projeto gestado no Centro de Investigação de Trabalho, no Clube Raposense, a partir
e de Estudos em Belas-Artes – CIEBA, o qual de convocação aberta a qualquer residente
foi proposto à Câmara Municipal de Alma- que quizesse participar. O resultado foi sur-
da, para uma realização conjunta. Por sua preendente. Não se escolheu um monumen-
vez, o CRPOLIS, da Universidade de Bar- to específico, mas um conjunto de três es-
celona, acompanhou de perto o projeto, culturas a formar a proposta comemorativa.
numa forma de consultoria. Cada elemento remeteu a uma característi-
ca – ou memória – que os cidadãos escolhe-
A iniciativa foi organizada justamente para ram representar. Tais elementos “convidam
avançar na recente experiência da cidade ao uso e à construção de um lugar de en-
de Almada com a arte pública, desta vez em contro e reflexão, consolidando uma visão
uma atuação direta no seio de uma comuni- poética da experiência e memória coletivas:
dade específica, do Monte de Caparica, cuja a ‘casa’ do estar e da comunhão, o ‘poço’ do
proposta do monumento inseriu-se no com- fazer e da relação com o trabalho, e o ‘obser-
plexo do Centro Cívico de Caparica: par- vatório’ do sentir, das inquietações do des-
que, biblioteca, piscina pública e nova sede conhecido e do conhecer”.34
do Clube Recreativo União Raposense, uma
espécie de centro comunitário local. Assim, Sobre o desenrolar das sessões de traba-
integrado ao novo e moderno complexo co- lho, não nos cabe aqui descrever e analizar
munitário, o monumento encontrou abrigo as discussões no âmbito dos encontros da
para as suas necessidades de orçamento, de comunidade para a realização do monu-
forma a garantir o seu custeio. mento, visto que já plenamente detalhadas
e analisadas em artigos (2012 e 2013).35 A
A denominação do monumento foi no sen- respeito das três esculturas, estruturas de
tido de ressaltar a característica multicul- aço cor-ten, bem verticalizadas, cada uma
tural do local, composta, entre outros, por paira sobre uma forma circular correspon-
ciganos, imigrantes de África e população dente, em betão, com palavras e cores que
de baixa renda. Nesse sentido, por meio de expressam sentidos àquela comunidade. A

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 115


primeira trata-se de um grande cilindro va-
sado sobre um círculo amarelo, com a pala-
vra “sentimos” gravada; a segunda, um po-
liedro irregular, também vasado, sobre um
círculo vermelho: “estamos”; a terceira, uma
forma quase minimal (duas hastes) suporta
um anel sobre o círculo azul: “fazemos”.

Esses conteúdos e significados que aca-


baram por tomar formas de arte foram re-
sultado das sessões, nas quais a comuni-
dade, estimulada pelas experimentações
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

artísticas, “pode gerar conteúdos de auto-


-reconhecimento com o objectivo de ir ad-
Cartaz da 4a. Sessão Pública de quirindo elementos” que ajudaram os par-
discussão do projeto Monumento
ticipantes a “representar as especificidades
Multiculturalidade.
de seu território”.36 Processo este não muito
fácil a ser desenvolvido, o qual certamente
não foi atingido nesse projeto por uma una-
nimidade absoluta, algo que não existe em
qualquer grupo de pessoas que discuta in-
teresses comuns (e incomuns) de sua histó-
ria e de seus quotidianos. Mas o resultado
formal do processo participado – o monu-
mento em si – foi, a meu juízo, surpreen-
dente, pois a paisagem recebeu objetos de
valor formal (dentro de sua simplicidade)
reconhecidos pela comunidade como algo
Uma das Sessões de Trabalho do projeto Monumento que lhes diz respeito.
Multiculturalidade.
Imagem cedida por Sérgio Vicente/FBAUL.
Tais esculturas são também reconhecíveis
como elementos artísticos contemporâneos
uma vez que, obviamente, elas precisaram
de ajustes de escala, linguagem e material,
pela equipa de escultores que participou
do projeto. Porém, isto foi feito com a preo-
cupação de intervir o menos possível nas
propostas originalmente escolhidas. Nes-
se sentido, a participação dos escultores na
definição das formas das esculturas não os

<<
fizeram autores do monumento, e isso não
quer dizer que a forma final não seja im-
portante, pelo contrário. Isto porque, não
se trata, o Monumento Multiculturalidade,
de uma obra sem autores. Ele é um monu-
mento de autoria coletiva, ou seja, de toda
uma comunidade. E este é um aporte novo,
importante, entre os tantos que o projeto
apresenta para o campo da arte pública.

Como mencionado, o processo de consul-


ta optado pelos comissionadores (Câmara e Elemento 1, “Sentimos”.
Foto do autor.
Universidade) foi o de sessões de trabalho
– workshops – com a comunidade. Ou seja,
obviamente dentro da comunidade com os
interessados em se envolverem com este
tipo imcomum de encontro, tanto de as-
sunto (arte) quanto de sistema de discussão
(convocatória). As implicações sociais do
projeto só o tempo poderá responder, com
seus desdobramentos. Este tempo poderá
ajudar a revelar o alcance, o grau de envol-
vimento das pessoas do lugar. Mas um sin-
toma já é evidente: próximo dos três anos
de inauguração do produto final do comis-
sionamento, o monumento, o mesmo se en- Elemento 2, “Estamos”.
Foto do autor.
contra íntegro, bem cuidado pela comuni-
dade a qual destina-se e da qual foi fruto.

Esta intervenção plástica na paisagem do


novo Centro Cívico de Caparica, perten-
cente ao campo da arte pública, nos agre-
gou uma experiência que vai muito além
de aplicações do plano teórico. Trata-se de
um belo exemplo ao nível das práticas ar-
tísticas e democráticas, um processo parti-
cipado que chegou a bom termo, quanto
mais se levarmos em conta que iniciativas
desse tipo não são fáceis de serem levadas Elemento 3, “Fazemos”.
Foto do autor.
a cabo. Temos a considerear que a discus-

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 117


são entre administradores, artistas e co- Public Art. Cambridge: The MIT
munidade sempre corre um risco de não Press, 2000, 454 p.
lograr bons êxitos, mas este não é um “de- Goldin, Amy. The Esthetic Ghetto:
feito” destas iniciativas. Estas dificuldades Some Thoughts About Public
tratam-se, em verdade, de um grande de- Art. Art in America, New York, p.
safio e estímulo. E uma das maiores dificul- 30-35, May–June, 1974.
dades no comissionamento de arte públi- Huyssen, Andreas. Seduzidos
ca, ou seja, a discussão e o envolvimento pela Memória. Rio de Janeiro:
direto da comunidade, o projeto em Alma- Aeroplano, 2000, 118 p.
da soube muito bem enfrentar. _______________. Present Pasts:
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– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

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Revistas On the W@terfront, 13
Hacia la definición de un arte lenguajes escultóricos, 1997 (pág. 8).
Universidade de Barcelona, público. In: Poéticas del lugar – 26
Néstor García Canclini. Arte en
disponíveis em <http://www. Arte Público en España, 2001. la ciudad – Reinventar la historia,
ub.edu/escult/Water/>. 14
Ao longo de sua carreira 2013.

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 119


27
Andreas Huyssen. Seduzidos revues.org>
pela Memória, 2000, pág. 16. 34
<www.m-almada.pt>
28
Idem, p. 42. “Notícias > Monumento à
29
Capítulo Twin Memories: Multiculturalidade inaugurado na
Afterimages of Nine/Eleven, In Caparica”.
Present Pasts: Urban Palimpsests 35
Gato, Ramalhete e Vicente
and the Politics of Memory. (op cit.) e Sérgio Vicente (em
Stanford University Press, 2003 (p. colaboração com Gerbert
158-163). Verheu e Mariana Fernandes),
30
Alöis Riegl. El culto moderno Monumento à Multiculturalidade
a los monumentos. Madrid: em Almada: comunidade,
La Balsa de La Medusa, 1987. identidade e arte pública. In: As
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Publicação original Der Moderne Partes, revista do Atelier Livre da


Denkmalkultus, Viena e Leipzig, Prefeitura de Porto Alegre (Brasil),
1903. n.º 7, Dez. 2012, isbn 2178-8685,
31
A cidade de Almada, para os pag. 23-27.
padrões portugueses, é uma 36
Sérgio Vicente (em colaboração
cidade de porte. É a quarta mais com Verheu e Fernandes), op. cit.
populosa do país, com cerca
de 175.000 habitantes. Para os
padrões brasileiros, onde vivo,
apenas como informação, a
cidade seria apenas a 13.ª cidade
mais populosa do estado do Rio
Grande do Sul, cuja capital é
Porto Alegre.
32
Arte Pública no Concelho
de Almada. Livro-catálogo
da exposição homônima,
Casa da Cerca Centro de Arte
Contemporânea (mar-maio 2004),
Almada. Coordenação de Ana
Isabel Ribeiro, pág. 44.
33
Maria Assunção Gato; Filipa
Ramalhete e Sérgio Vicente.
Hoje somos nós os escultores!
– agencialidade e arte pública
participada em Almada. In:
Cadernos de Arte e Antropologia,
Vol. 2, n.º 1 (2013). <cadernosaa.

<<
Significado de Arte Urbana,
Lisboa 2008–2014

por Pedro Soares Neves


Doutorando, bolseiro do programa HERITAS no CIEBA, FBAUL. Organizador
de diversos encontros científicos internacionais e publicações sobre
"Criatividade Urbana" em Urbancreativity.org

This article pretend to contribute for the clarification


of Arte Urbana (Urban Art) expression, proposing a
geographical (Lisbon) and temporal (2008-2014) A expressão Arte Urbana é de difícil tipifica-
delimitation. This delimitation serves as an anchor for ção e avaliação apesar de institucionalmen-
identifying specific meanings, thoughts, actions and te em Portugal ser amplamente utilizada so-
forms that occurred in determined time and place, bretudo desde 2008. Esta problemática no
but doesn’t exclude references to other temporal and contexto de Lisboa tem características pró-
geographical dimensions. prias. À luz das referências internacionais e
The article development would not be possible without outras nacionais procurarei delimitar as ca-
the international contextualization related with the racterísticas dominantes do que proponho
problematic of Street Art and Graffiti expressions. significar de Arte Urbana em Lisboa entre
A vast array of distinct disciplinary areas approach from 2008 e 2014, algo ao qual estão associadas
different angles the problematic, producing distinct formas e valores a identificar.
points of view that had been relating and recognizing
mutually. The article concludes with a proposal of 3 1 - Breve contextualização internacional
typologies of Lisbon Arte Urbana. Aqui abordo os conceitos de Graffiti, Street
Art e Urban Art. Serão descritas as principais
relações entre estes conceitos e quais as pu-
blicações académicas e não académicas que
os abordam. Começando com o conceito de
Graffiti, e sua associação com a Street Art, e
por fim identificando as distinções entre Ur-
ban Art e a sua tradução direta Arte Urbana.
A palavra Graffiti associa-se a inscrições
não oficiais, não autorizadas, que ocorrem
no espaço público, independentemente da
técnica, meio ou estilo, palavra, por exem-

– PEDRO SOARES NEVES 121


plo, que surge nos relatórios dos arqueólo- O termo Street Art disseminado mais tarde,
gos do séc XIX como forma de diferencia- surge interpretado como algo que se re-
ção entre inscrições oficiais e não oficiais laciona mas que é distinto do termo Graf-
encontradas nas escavações de Pompeia1. fiti. Por exemplo Peter Bengtsen enquadra
Por outro lado, a palavra Graffiti tem sido a designação como referente a um contex-
também utilizada para identificar um con- to social autónomo, como Mundo da Street
junto de convenções estilísticas e subcultu- Art4 que estabelece e define continuamente
rais que se desenvolveram a partir do final as distancias e afinidades nomeadamente
da década de 1960 nos EUA. com o Graffiti subcultural. Outro exemplo é
a abordagem de Anna Waclawek que suge-
Estas interpretações na realidade por vezes re que a Street Art é uma evolução, uma re-
sobrepõem-se e por esta razão surgem su- volta contra, ou uma adição ao Graffiti sub-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

gestões de novas designações na tentati- cultural; em suma, uma contribuição que


va de maior clarificação da especificidade permite uma grande diversidade cultural5.
do Graffiti de origem subcultural dos anos
1960. Por exemplo, Joe Austin, numa pers- Será necessária uma interpretação esbati-
pectiva mais académica, propõe o termo da das fronteiras do significado dos termos
graffiti art2, do interior da subcultura tam- Graffiti e Street art para o melhor entendi-
bém surgem propostas como a de Phase2 mento do conceito de Arte Urbana adopta-
que propôs aerosol art em entrevista publi- do a partir de 2008 em Lisboa. Estes devem
cada na On the Run de 1993, revista Alemã ser observados como campo expandido
dedicada a esta subcultura. Porem estas e indo ao encontro da proposta de Rosalind
outras sugestões de novas designações não Krauss, que aliás partilhou o mesmo espa-
demonstraram capacidade de substituir a ço de apresentação (Artist Space Soho em
utilização do termo Graffiti, quer no contex- Nova Iorque) com os United Graffiti Artists
to académico, quer no contexto subcultural. em Setembro de 19756, o que nos leva a
Subcultura é um conceito vasto e complexo suspeitar de ligações por identificar entre a
dentro dos estudos teóricos sócio-culturais. proposta de campo expandido e as proble-
Está associado à Universidade de Birmin- máticas associadas ao Graffiti subcultural.
gam, mais especificamente ao CCCS (Cen-
ter for Contemporany Cultural Studies), con- 1.1 Produção internacional de
ceito que são revisitados e contestados em conhecimento sobre Graffiti subcultural
parte por novas gerações de investigadores e Street Art
que os confrontam com realidades como o A produção de conhecimento sobre Graf-
Punk ou o HipHop3. O local exacto de onde fiti e Street Art desenvolve-se há aproxima-
se encontram as fronteiras do que se desig- damente 4 décadas. Para o melhor enten-
na por Graffiti esbatem-se ou tornam-se rí- dimento do leitor sugerimos dividir esta
gidas conforme a abordagem. produção em duas grandes componentes:
(1.1.1) a componente académica e (1.1.2) a
componente não académica.

<<
1.1.1 - Dentro da componente académica disciplinar da História da Arte surge por
existem trabalhos de investigação que pro- Jack Stewart que propõe uma abordagem
vêm das mais variadas áreas do conheci- do ponto de vista pedagógico (auto-didác-
mento, como, por exemplo, da sociologia, tico, arte popular) e analisa a sua evolução
etnografia, criminologia, historia cultural e estilística integrada na Historia da Arte14.
historia da arte.
Mais recentemente, o conceito de Street Art
Evidenciam-se tendências que permitem também tem sido abordado do ponto de
propostas para agrupar a informação exis- vista académico.
tente. Existe por exemplo um forte grupo
de publicações referentes aos anos 1970 Como já vimos, a tese de Peter Bengtsen es-
em Nova Iorque, quer do ponto de vista do tabelece-se como uma importante referên-
confronto das narrativas entre o discurso cia, isto por recorrer às mais vastas bases de
oficial e o discurso subcultural7, quer a par- dados existentes sobre Street Art, os forums
tir de abordagens de leitura étnica (Afro/ de discussão que acompanharam o cresci-
Latino Americana)8. mento do fenómeno. No seu trabalho são
feitas considerações sobre as várias inter-
Os estudos Etnográficos existentes são su- pretações dos termos Graffiti, Street Art e Ur-
portados em grande medida por entrevis- ban Art neste caso desenvolvidas pelos pro-
tas que tendem a aprofundar a dimensão tagonistas do que então designou de Street
subcultral, seja desenvolvendo abordagens Art world em direta analogia com o conceito
comparativas Londres - Nova Iorque9, seja de Art worlds de Howard S. Becker’s.
a partir de abordagens mais globais cen-
tradas em casos de estudo como Montreal Explorando a relação entre os conceitos Gra-
por exemplo10. ffiti e Street Art, surge também a designação
pós Graffiti, sustentada e desenvolvida nos
Todavia o Graffiti de Nova-Iorque nos anos trabalhos de Anna Waclawek (2008) e Javier
70 evidencia-se como o caso de estudo Abarca15. Abarca parte de uma análise anco-
mais desenvolvido, desde o reconhecido rada nas subculturas e traça elementos con-
e amplamente divulgado estudo de Craig ceptualmente comuns, já Anna Waclawek
Castleman publicado em 198211 na realida- faz uma análise sobretudo cronológica com
de antecedido pelo primeiro estudo acadé- recurso aos “visual culture studies”.
mico sobre o Graffiti subcultural de NY em
1978 por Andrea Nelli12. Para além de livros ou teses totalmente de-
dicadas aos temas do Graffiti e ou Street Art
A abordagem da área da criminologia (cul- existem também muitos artigos ou capítu-
tural) ganha vigor após o trabalho desen- los isolados importantes. Destes artigos,
volvido por Jeff Ferrel13, e a primeira pu- provavelmente, o mais reconhecido será o
blicação académica originária do campo de Jean Baudrillard “Kool Killer ou l’insur-
rection par les signes” (1976)16. De referir

– PEDRO SOARES NEVES 123


também periódicos como o Crime, Media, À semelhança da produção de conheci-
Culture (da área da Criminologia Cultural) e mento académico, o papel de Nova-Ior-
especificamente a edição do City: analisys que nos anos 70 é central também nas pu-
of urban trends, theory, policy, action. de Fe- blicações não académicas que logo, desde
vereiro – Abril 2010, que abordou em capí- 1974, acompanharam o fenómeno23. De
tulo específico o tema “graffiti, street art and qualquer forma, existe também uma produ-
the city”. ção de conhecimento relevante no que re-
fere à diáspora do fenómeno24, por exem-
De notar que o conceito Street Art (ou em plo, para alguns países da Europa25 como
alguns contextos Urban Art como descre- para a Australia26.
verei em profundidade mais à frente) veio
também trazer novos olhares do ponto de Nesta mesma categoria de publicações não
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

vista académico. Pela sua característica ter- académicas integram-se também os catálo-
ritorial, mas também de discurso que se gos e monografias decorrentes de exposi-
faz para fora e não em exclusivo para den- ções. Aqui o número de publicações é bas-
tro da subcultura, veio permitir abordagens tante vasto, e com a excepção de alguns
de aproximação por parte das disciplinas exemplos que abordam diretamente a rela-
de projeto como design e arquitetura. Seja ção entre Street art e Graffiti27, estas publica-
de um ponto de vista da análise do discur- ções traduzem sobretudo as estratégias de
so sobre o território e seu mapeamento17, abordagem na perspectiva do autor ou das
ou a partir das lógicas de participação e ou instituições como no exemplo do livro Art
colaboração18, na relação com o lugar19, en- in the Streets da exposição homónima do
fim todo um conjunto de referências acadé- MoCa de Los-Angeles em 201128.
micas (teses e publicações resultantes de
investigações) relacionadas com a proble- 1.2 Modelos
mática do espaço público urbano que abor- São vários os modelos de interpreta-
dam direta ou indiretamente formas identi- ção (histórica e conceptual) do Graffiti e
ficáveis como de Street Art, ou Urban Art. da Street Art. No livro Spraycan Art29, de
1987, vem documentado e publicado um
1.1.2 Na componente não académica é mural feito por Chris Pape que retratou o
vastíssimo o número de publicações20 exis- que se considerava uma visão histórica do
tentes e em produção. Existe um conjunto Graffiti à época. Um mural auto explicati-
significativo de colectâneas que recolhem vo com reproduções do estilo e pseudó-
uma amostragem local e ou global21, com nimos relevantes na sua perspectiva. Este
enfoque no género, e ou em tipologias es- é um dos exemplos de vários modelos.
pecificas de intervenções como o clássico Outro exemplo, mais recente, é o cartaz pro-
de 1984 Subway Art de Martha Cooper e duzido por Daniel Feral, Graffiti and Street
Henry Chalfant22. art (2011). Este póster recria o esquema
gráfico criado por Alfred H. Barr Jr. para a
exposição Cubismo e Arte Abstrata, que se

<<
realizou no MOMA de NY em 193630. Con-
sistindo na descrição cronológica e com re-
ferências a conceitos e locais, Feral, inicia a
sua proposta de modelo de interpretação
na sequência do gráfico de Barr.

Colocando no lugar central as designações


Graffiti e Street Art, a partir destas propõe
um conjunto de ligação ao passado e futu-
ro. Apesar das suas carências ao nível de
referências torna-se uma imagem interes-
sante, sobretudo pelo estímulo à reflexão
que representa.

1.3 Urban Art


A designação em inglês Urban Art vem as-
sociada especificamente aos conceitos de
Graffiti e Street Art pela primeira vez na ex-
posição Spank the Monkey de 2006 em Ga-
teshead, Reino Unido31. Surge da proble-
mática gerada pela distância entre a arte
na rua e a arte do mundo estabelecido da
arte, nasce da necessidade de resolver a
questão de abordar a Street Art no contex-
to dos museus, galerias e agentes instituí-
dos no mundo da arte.

Em 2008 o leiloeiro Bonhams iniciou um


conjunto de leilões periódicos especializa-
dos em Urban Art e em 2009 o fórum de
discussão Bansky.info passou a chamar-se
Urban Art Association. Todavia este surgi-
mento da designação surge sem estar de-
finida à partida uma clarificação do que na
realidade representa, quer na sua essência,
quer em relação com os termos Graffiti e ou
Street Art.

Talvez por esta razão gerou reacções di-


vergentes dentro do mundo da Street Art e Cartaz de Daniel Feral, Graffiti and Street Art (2011)

– PEDRO SOARES NEVES 125


também do mundo estabelecido da Arte32. policromia existente com um predomínio
O uso ocasional de Urban Art como sinóni- dos tons cinzentos nos bairros das classes
mo de Street Art frusta alguns membros do altas e principais eixos (por exemplo a Ave-
mundo da Street Art. A conotação e viabi- nida da Liberdade).
lidade comercial da expressão Urban Art
abriu caminho para que o facto de que a co- Apropriações gráficas informais ocorreram
locação de trabalhos na rua e, por vezes, só a sobre esse predominante “cinzentismo”
referência a esta, se terem tornado veículos com a revolução democrática de 1974. Esta
para uma carreira comercial. Esta situação época foi prolífica (por todo o país mas em
veio tornar pouco clara a relação mesmo de particular em Lisboa) no que toca à produ-
quem espontaneamente produz Street Art, ção de murais e colocação de cartazes po-
pois esta rapidamente se transforma na ver- líticos. Neste período particular da história
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

tente de marketing da Urban Art que poten- recente de Portugal os muros das cidades
cialmente mais tarde a irá comercializar. foram, por excelência, a plataforma para a
comunicação38.
2 – Em Lisboa
2.1 – Breve introdução Estas actividades abrandaram de ritmo e con-
A cor das fachadas de Lisboa tem sido fru- finaram-se a meios mais convencionais após
to de controvérsias e diversos contributos a entrada de Portugal na CEE (depois UE) em
ao longo do tempo33. O tema foi o assunto 1983. Já no fim da década de 1980 os murais
central num ciclo de conferências organiza- que resistiram foram-se degradando.
do pelos Amigos de Lisboa em 1949, con-
vidando conhecidos intelectuais, artistas No início da década de 90 começaram a sur-
plásticos e arquitectos para discutir normas gir assinaturas do tipo “tag” a par com ex-
municipais34. pressões gráficas mais ou menos criativas,
como stencil. Inicialmente em locais especí-
O branco – enquanto cor global na (e da) ficos como ao longo das linhas de comboio
cidade de Lisboa – parece em geral residir suburbanas, auto-estradas, etc. Surgiram
na sua frequente referência por antigos via- também a colagem “selvagem” de cartazes
jantes, escritores e pintores (sobretudo os de concertos, touradas, circos e políticos.
anteriores ao século XVIII)35. Estudos pelo
LNEC a pedido da CML confirmaram a Com o evento Lisboa Capital Europeia da
existência, também no Rossio, de estratos Cultura em 94 e a Expo 9839 estas ocorrên-
de revestimentos acabados com guarne- cias diversificaram-se em escala e forma,
cimentos em pasta de cal e coloridos com ocupando locais de vivência boémia noc-
amarelo-ocre36. turna como a 24 de Julho, Santos ou Bairro
Alto. Coincidência ou não esta dinâmica ga-
Segundo Eduardo Nery37, mais tarde, o am- nhou particular força em Lisboa quando em
biente social e político ditatorial do Estado 2003 a autarquia de Barcelona fez aprovar
Novo caracterizou-se pela sobreposição da a “ordenanza de convivencia pacífica” que

<<
aborda a questão das apropriações gráficas em Julho de 2008 na Galeria ZDB) possibi-
informais numa perspectiva de confronto e litou a partilha de opiniões dos principais
erradicação40. actores deste território, incluindo morado-
res, artistas plásticos, jornalistas, autores
De 2004 (Campeonato Europeu de Fute- de Graffiti e Street Art, presidente da Jun-
bol em Portugal) a 2008 (data de despacho ta de Freguesia da Encarnação presidente
municipal que implicou remoção de graffiti, da Associação de Comerciantes do Bairro
street art, cartazes e ou outras inscrições41) Alto, e técnicos municipais. Destes encon-
foram os anos em que se tornava por de- tros surgiu a conclusão de que seria impor-
mais evidente a intensidade e presença das tante dar espaço a algo mais do que me-
camadas de vários anos de apropriações ramente um projecto de limpeza, teria de
gráficas informais em Lisboa, particular- existir uma componente de mediação cul-
mente no Bairro Alto. tural no projecto de reabilitação urbana.

2.2 Bairro Alto 2008 2.3 Arte Urbana


Em Outubro de 2008, através do já referido A necessidade de incorporar desvios im-
despacho, a CML decidiu reduzir o horário previsíveis que ocorrem ao longo do tem-
nocturno dos cafés e bares do Bairro Alto, po conduziu a uma maior flexibilidade nos
horário que tinha sido alargado em a titulo planos urbanísticos a qual culminou na mu-
excepcional em 1994 a propósito de Lisboa dança de representação de planos–ima-
ser Capital Europeia da Cultura e que des- gem para planos de gestão que em Por-
de então não se tinham alterado. tugal ocorreu a partir de 195445. Este facto
ocorreu a uma escala global e ajudou a fa-
A redução de horário, medida danosa para zer cair em desuso o termo Arte Urbana
os comerciantes, tem como “medida de que até então se tinha usado com um senti-
compensação” a limpeza, melhor ilumina- do estritamente urbanístico.
ção e qualificação geral do espaço públi-
co42. Esta situação levou a acções de lim- No contexto português mais recente, em
peza de Graffiti e Street Art no Bairro Alto 1998, António Mega Ferreira, comissário
(Chiado e Bica) que, após alguns concursos executivo da EXPO’98, decide designar de
públicos para remoção e limpeza durante Arte Urbana às intervenções de caracter ar-
2009, integra um conjunto de acções mais tístico no então novo território urbano. Este
vastas, o plano de pormenor da Reabilita- facto originou o crescente uso do termo
ção urbana do Bairro Alto e Bica43. Arte Urbana que tomou a designação como
referente46 de algo novo, de forma distinta
Um momento crucial44 para a criação do da escultura pública e de alguma maneira
projecto que se veio a designar de Galeria mais próxima à Arte Pública47.
de Arte Urbana - GAU foi o encontro de-
nominado Qual o Futuro das Paredes do Em Outubro de 2008 no momento da cria-
Bairro Alto?. Este encontro ( que ocorreu ção da Galeria de Arte Urbana na Calçada

– PEDRO SOARES NEVES 127


da Glória foram colocados um conjunto de na como desenho da cidade (dos pré ou
painéis que serviram de suporte a inter- urbanistas culturalistas), e signos visuais no
venções plásticas que visavam segundo os território que em maior ou menor escala
seus co-responsáveis “confirmar o graffiti e são sinais do uso do e no território.
a street art como reconhecíveis e reconhe-
cidas expressões de arte urbana, como uma A tipologia pré-formal, estável bem defini-
subcultura artística globalmente presente da que compreende o graffiti subcultural e
nas metrópoles mundiais”48. a Street Art nas suas vertentes não comissio-
nadas, tipos de Arte Urbana em permanen-
A este propósito foi publicada uma peque- te negociação de distancias e afinidades.
na brochura49 que contem uma proposta de
justificação da utilização do termo Arte Ur- A tipologia formal é a da institucionaliza-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

bana, neste texto é feita a referência à práti- ção, onde há a ruptura dos pressupostos
ca “artística” de desenhar a cidade, de pré- não comissionados, surgem aqui tipos de
-urbanistas culturalistas como John Ruskin Arte Urbana que se podem designar de mu-
ou William Morris e posteriormente ao ur- ralismo contemporâneo, ou arte pública.
banismo culturalista de Camillo Sitte e Ebe-
nezer Haward50. Seguindo este padrão propõe-se uma sub-
divisão da Arte Urbana em Lisboa (2008–
Ou seja, se por um lado, no contexto da rea- 2014) por: 2.3.1 Arte Urbana como desenho
bilitação urbana do Bairro Alto, na aplicação da cidade e signos visuais; ; 2.3.2 Arte Urba-
do termo Arte Urbana é clara a intenção de na como Graffiti e Street Art; 2.3.3 Arte Urba-
afastar a relação direta com a Street Art ou na como Street Art Murals, Murais de Arte
Graffiti subcultural, por outro lado tentando contemporânea, Arte Pública e ou Urban Art.
manter-se a ligação aos aspectos não co-
missionados do fenómeno desassocia-se 2.3.1 Arte Urbana como desenho da
de práticas próximas da escultura pública cidade e signos visuais
ou arte pública. Este assumir de relações Esta proposta de tipologia de Arte Urbana
ocorre num contexto onde é simultanea- é a menos definida, mas todavia será a mais
mente relembrado o uso da Arte Urbana preponderante durante o nosso quotidiano.
como desenho urbanístico. Indo ao encontro das designações da ten-
dência urbanística culturalista, do desenho
Assim e pela análise até agora desenvolvida das cidades como desenhos com “arte”, in-
tornam-se preponderantes 3 tipologias de clui-se aqui também a dimensão do dese-
fronteiras esbatidas dentro do que se pode nho pelo uso, pela necessidade, da arqui-
designar por Arte Urbana na adopção de tetura sem arquitetos51, que no contexto
2008 pelo Município de Lisboa: português poderá apoiar-se em referências
tão distintas como Orlando Ribeiro52, Raul
A tipologia de formação, onde se incluem Lino53 ou o Inquérito à Arquitetura Popular
tipos de aplicação da expressão Arte Urba- Portuguesa54.

<<
Signos visuais nas suas vertentes, isoladas em grande medida, efémeras, destacando-
ou conjugadas, de: ícones, índices (sinto- -se, sobretudo, pela sua visibilidade mo-
mas) e símbolos55. mentânea; por este facto aumentando os
aspectos relacionados a acção e não tanto
O âmbito espacial da produção informal de com a forma. Todavia, existem também ele-
signos visuais reflecte-se sobretudo na di- mentos que persistem ao tempo, padrões
mensão de proximidade, aquela que é al- e locais de constante utilização, autores e
cançável fisicamente pelo utilizador na sua mundos relacionais do Graffiti da Street Art
vivência quotidiana. Nesta dimensão a arte a analisar.
urbana para além de ser de autor anónimo,
o próprio autor poderá estar na condição Esta tipologia é central na medida em que é
de não estar consciente da sua produção. a partir dela que se justificam e estruturam
as restantes. É pela prevalência de Graffiti e
Arte Urbana como signo visual é abrangen- Street Art nas cidades em geral e em parti-
te, e inclui: caminhos de pé posto; cartazes cular em Lisboa (quantidade anónima e de
sem autorização; desgaste de escadas cau- qualidade questionável) que pressiona o
sado pela passagem de utilizadores; profu- debate, análise e abordagem ao tema.
são de assinaturas (tags) em superfícies vá-
rias; etc. A identificação do seu valor nesta Existe bastante informação disponível em
dimensão será possível sobretudo olhando termos internacionais, e também alguma
para as características do suporte, descu- informação, em termos nacionais apesar
rando a interpretação da mensagem, obser- de não totalmente sistematizada nomeada-
vando sim quais as qualidades do suporte mente em publicações de caracter acadé-
em função por exemplo: dos signos visuais mico. Iniciando por estas será de referir os
identificados, qualidades de visibilidade, da trabalhos de Ricardo Campos56 e Lígia Fer-
textura da superfície, acessibilidade, simbo- ro57 como os iniciadores da análise desta ti-
lismo, entre outras. pologia de Arte Urbana em termos acadé-
micos nacionais.
2.3.2 Arte Urbana como Graffiti e Street
Art Nas publicações não académicas encon-
Nesta categoria enquadram-se as designa- tram-se tentativas ainda no seio da subcul-
ções de Graffiti subcultural e Street Art con- tura, quer de forma amadora quer de forma
forme descrito supra, Graffiti da subcultura estruturada pela primeira vez com a revista
já referida dos anos 60, já que a designa- Subworld. Para além de artigos vários que
ção Graffiti no sentido atribuído pelos ar- durante os últimos anos de 1990 foram ani-
queólogos de Pompeia enquadra-se no mando a comunidade de praticantes em
ponto anterior (2.3.1). franco crescimento, nos primeiros anos de
2000 inicia-se um conjunto de publicações
É evidente que as produções de Graffiti e dedicadas e maior seriedade com a Visual
Street Art, com as suas formas e acções, são, Street Pefromance, de 2007, publicação que

– PEDRO SOARES NEVES 129


contou com prefácio de Martha Cooper58. sas, associada com maior ou menor intensi-
Publicações com carácter misto que abor- dade ao contexto de produção e consumo
dam tanto a vertente não comissionada da “arte instituída” dialogando diretamente
como produções organizadas e apoiadas com agentes, galerias, colecionadores, mu-
(por marcas, como, por exemplo a Redbull). seus, etc. Apesar de distinta na origem as
obras e autores são em tudo semelhantes
Também com carácter misto, encontra-se a aquilo que se propõe afirmar no contexto
publicação regular da GAU, apesar de, na da arte contemporânea.
generalidade, tratar informações de tipo
comissionado inclui uma rubrica de 1 pági- A produção académica nacional existente de
na denominada “observatório” com obras forma direta e exclusiva sobre esta catego-
não comissionadas. Da mesma forma, ten- ria é vaga, encontram-se alguns artigos iso-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

dencialmente obras comissionadas com lados60, ou compilações pontuais61 que, de


pequenos apontamentos de não comissio- certa forma, esbate-se com as outras tipolo-
nadas, já surgem edições recentes de carác- gias sugeridas. No âmbito das abordagens
ter comercial59. a partir das problemáticas associadas à Arte
Contemporânea, existem discursos próxi-
Esse modelo de texto e publicação vai en- mos mas não coincidentes quer pelo angulo
contrando veículo sobretudo em exposi- de pesquisa quer pela abrangência da abor-
ções temáticas e ou através de monografias dagem (como no caso de Marta Traquino62).
que começam por surgir, também por via
internacional sobretudo associadas ao “fe- O material publicado e informação dispo-
nómeno” Vhils, publicações que, apesar de nível sobre esta categoria existe, principal-
tudo, caem dentro da proposta de próxima mente, editado numa perspectiva não aca-
tipologia de Arte Urbana. démica e, em grande medida, constitui uma
vasta quantidade de informação por anali-
2.3.3 Arte Urbana como Street Art Murals, sar em bases de dados, online, ou em pu-
Murais de Arte Contemporânea, Arte blicações impressas. A este nível há infor-
Pública e ou Urban Art mação gerada no contexto da promoção
Foi e é afinal a partir desta tipologia, que de comercial de autores, obras, festivais e ex-
forma generalizada, a população contactou posições, mas também por instituições pú-
e contacta com a dimensão imediatamente blicas, privados dinamizadores e participan-
inteligível da Arte Urbana, que por vias que tes do mundo da Arte Urbana.
reconhecivelmente levaram a uma discutí-
vel valorização do Graffiti subcultural e da É de facto esta a categoria mais tangível e
Street Art (categoria descrita em 2.3.2). perceptível ao nível da facilidade de con-
servação, porem é simultaneamente a que
É importante aqui esclarecer a dimensão demonstra a homogeneidade clássica e tra-
claramente consentida, comissionada, e ços distintivos do Graffiti e Street Art em re-
ou suportada por instituições ou empre- lação a outras vias de criação de artefactos.

<<
Por esta razão, sem o referente do Graffiti De forma distinta à da interpretação da de-
subcultural ou Street Art (categoria descri- signação internacional Urban Art a Arte Ur-
ta em 2.3.2), dissolve-se em transformações bana de 2008 não se afirma inicialmente no
que a vão gradualmente tornando outra contexto comercial, mas sim no contexto
coisa (exemplo: Arte Pública, Arte Contem- institucional, especificamente do Município
porânea). de Lisboa.

3 – Conclusão No assumir da expressão Arte Urbana em


Afinal do que se trata quando se refere Arte 2008 é clara a intenção de englobar na in-
Urbana? Em termos internacionais a desig- terpretação do termo significados prove-
nação tem um significado disperso por vá- nientes do modelo de urbanismo cultura-
rias áreas de actividade, como, por exemplo, lista, assim como é evidente englobar o
em associação ao urbanismo, constituída Graffiti e a Street Art, deixando em aberto a
tangivelmente sobretudo por planos dese- relação com os termos Urban Art que à épo-
nhados e por um mundo de ideias e ideais ca carecia de desenvolvimento.
relacionados com o modelo de urbanismo
culturalista. Como síntese conclusiva, propõem-se 3
tipologias para a Arte Urbana de Lisboa
Concretamente no contexto da interpreta- (2008–2014):
ção da Urban Art associada ao Graffiti sub-
cultural e à Street Art, a expressão surge • Formação; Arte Urbana como desenho da
identificada pela actividade comercial, liga- cidade e signos visuais;
da à venda de obras de Street Art junto de • Pré-formal; Arte Urbana como Graffiti e
colecionadores, museus, galerias e agentes Street Art;
instituídos no mundo da arte. Esta caracterís- • Formal; Arte Urbana como Street Art Mu-
tica comercial da designação Urban Art, fru- rals, Murais de Arte contemporânea, e ou
to de ruptura dentro do mundo da Street Art, Arte Pública.
poderá ser analisada através do vasto con-
junto de publicações apresentadas que es-
truturam o pensamento em torno do Graffiti
subcultural e a Street Art.

Ficou claro que a interpretação de Arte Urba-


na no contexto nacional é distinta conforme
os momentos como por exemplo a Arte Ur-
bana de 1998 e a de 2008. Se no contexto da
Expo98 a Arte Urbana estaria mais próxima
de um sinónimo de Arte Pública ou Escultura
Pública (ou até mesmo design urbano), já em
2008 a interpretação tem outros contornos.

– PEDRO SOARES NEVES 131


— Notas 10
Rahn, Janice (2002) Painting descrição de mais de 400
without permission: Hip Hop publicações de origem ou autoria
1
Jacobson, Staffan (1996) Den Graffiti Subculture. West-Port: italiana: Omodeo ,C. (2014)
spaymalade bilden: graffitimaleriet Bergin & Garvey. Crossboarding: an Italian Paper
som bildform, konstrorelse och 11
Castleman, Craig (1982) Getting History of Graffiti Writing and Street
laroprocess. Diss.Lund: Lund Up: Subway Graffiti in New York. Art, Le Grand Jeu, Parigi: LO/A
University. p.10 Cambridge: MIT Press. Library of Art.
2
Austin, Joe (2010) “More to see 12
Andrea Nelli (2012) Graffiti a 21
Ganz, Nicholas (2004) Graffiti
than a canvas in a white cube: for New York. Rome: Whole Train World: Street Art from Five
an art in the streets”, City: analysis Press. Continents. London: Thames &
of urban trends, culture theory, 13
Ferrel, Jeff (1996) Crimes of Hudson.
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– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

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3
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Punk – Subcultural Authentications 14
Stewart, Jack (1989) Subway 23
Mailer, Norman (1974) The Faith
and the positioning of the Graffiti: An Aesthetic Study of of Graffiti. New York: Praieger
Mainstream, Diss. Uppsala: Graffiti on the subway system of Publishing..
Uppsala University. p.29-42 New York City, 1970-1978. Diss. 24
Caputo, Andrea (2009) All City
4
Bengtsen, Peter (2014) The Street New York: New York University. Writers: the graffiti diaspora.
Art World, Lund. 15
Abarca J. (2010) El postgraffiti, Bagnolet: Kitchen93.
5
Waclawek, Anna (2008) From su escenario y sus raíces: graffiti, 25
Almqvist, Bjorn & Sjostrand,
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Spaces, and Visual Culture, 1970- 16
Baudrillard, Jean (1993) Simbolic Dokument.
2008, Diss. Montreal: Concordia Exchange and Death. London: 26
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University. p.122 Sage Publications. & Stamer, Karl (2009). Kings Way
6
Claudia Gould & Valerie Smith 17
Brook, Richard, NICK Dunn – bebinnings of australian graffiti:
(1998) 5000 Artists Return to Artist (2011) Urban Maps, Instruments of Melbourne 1983-93. Melbourne:
Space: 25 Years. New York: Artist Narrative and Interpretation in the Miegunyah Press.
Space. p.68 City, London: Ashgate 27
Lewishom, Cedar (2008).
7
Austin, Joe (2010). 18
Sanoff, Henry, (2000) Community Street Art: The Graffiti Revolution.
8
Miller, Ivor (2002) Aerosol Participation Methods in Design London: Tate.
Kingdom: Subway Painters of New and Planning. New York: John 28
Deitch, Jeffery; Gastamn, Roger
York City. Jackson : University Press Wiley & Sons & Rose, Aaron (2011) Art in the
of Mississippi. p.15 19
Cowan, Robert (2001) Streets, New York: Skira Rizzoli.
9
Macdonald, Nancy (2001), Placecheck: a users’ guide. 29
Chalfant, Henry & Prigoff, James
The Graffiti Subculture: youth, London: Urban Design Alliance. (1987) Spraycan Art. London:
masculinity and identity in London 20
Por exemplo o livro sobre Thames and Hudson. p.13
and New-York. Basingstoke: livros de C. Omodeo que 30
Barr, Alfred (1936) Cubism and
Palgrave. p.2-3 contém a referência e breve Abstract Art. New York: Museum of

<<
Modern Art. 39
Exposição Internacional de ISCTE-IUL. p.209
31
Bengtsen, Peter (2014), p.67. Lisboa de 1998[1] , cujo tema 45
Lobo, Margarida Sousa (1995)
32
Collings Matthew (2008), foi “Os oceanos: um património Planos de Urbanização. A Época de
Banksy’s ideas have the values of a para o futuro”, realizou-se em Duarte Pacheco, Porto: DGOTDU/
joke. NY: The Times, 28 de Janeiro Lisboa, Portugal de 22 de maio FAUP. p. 13
33
Assunto abordado por exemplo a 30 de setembro de 1998. Teve 46
José Manuel Ressano Garcia
em artigo de Eduardo Rodrigues o propósito de comemorar os Lamas (2000) Morfologia Urbana e
de Carvalho sobre “O colorido 500 anos dos Descobrimentos desenho da cidade. 2ª ed., p. 152.
dos prédios de Lisboa”, publicado Portugueses. 47
Regatão, José Pedro (2007) Arte
na Revista Municipal, n. º 3, 1949, 40
Para mais informações sobre Pública e os Novos Desafios das
pp.11. esta medida consultar: http:// Intervenções no Espaço Urbano.
34
Com a participação de Pereira www.bcn.cat/publicacions/b_ Lisboa:.Bond.
Coelho, Abel Manta, Carlos informacio/bi_93/convivencia_ 48
Carvalho, Jorge Ramos; Câmara,
Botelho, Martins Barata, Diogo castella.pdf (visitado em Silvia (2014) Lisboa, Capital da Arte
de Macedo, Norberto de Araújo, 12/10/2015) Urbana, revista On the W@terfront,
Armando de Lucena, Cristino da 41
Despacho sobre sobre regime nº30, Barcelona
Silva, Paulino Montez, Gustavo de horários para o Bairro Alto do 49
Esta brochura acompanha uma
de Matos Sequeira, e ainda o então Presidente da Câmara de caixa com postais que reproduzem
“anónimo” João Triste ; Sequeira, Lisboa, António Costa, a 14 de paineis executados na calçada
M. (1949) A cor de Lisboa. Outubro de 2008. da glória, actividade promovida
Depoimentos de Amigos de 42
Ver noticia (consultado a pela CML com o apoio da marca
Lisboa. Lisboa: Olisipo 45. 12/10/2015) http://www.publico. de vestuário Friday’s project em
35
Aguiar, J. e Veiga, R. (editores), pt/local/noticia/plano-para- Outubro de 2008.
Revestimentos de paredes em limpar-bairro-alto-preve-processo- 50
Choay, Françoise (2003) O
edifícios antigos, Cadernos sumario-para-graffiters-1345890 Urbanismo: Utopia e realidades de
Edifícios nº2, Outubro, Lisboa, 43
Aprovada a elaboração do uma antologia; São Paulo: Editora
LNEC, 2002. plano, termos de referência, Perspectiva. p.115, p.203
36
Aguiar, José, 2003, Planear e dispensa de avaliação ambiental 51
Rudofsky B (1964) Architecture
Projectar a Conservação da Cor e abertura do período de without architects: A shoort
na Cidade Histórica: experiências participação pública preventiva, introduction to non-pedrigreed
havidas e problemas que na reunião de Câmara de 21 de architecture. London: Academy
subsistem, LNEC, Comunicação ao Julho de 2010, de acordo com a Editions.
III ENCORE, Lisboa proposta nº 408/2010.Participação 52
Ribeiro, Orlando (1945) Portugal,
37
Nery, E. (1987) A cor de Lisboa. Preventiva de 26 de agosto de o Mediterrâneo e o Atlântico.
Lisboa: Povos e Culuras 2. p.571- 2010 a 7 de outubro de 2010. Coimbra: Coimbra Editora.
593 44
Ferro, Lígia (2011) Da rua para 53
Lino, Raul, (1918) A Nossa Casa –
38
Mascarenhas, João Mário, o mundo: configurações do Apontamentos sobre o bom gosto
(1998) Murais de Abril (1974), graffiti e do parkour e campos na construção de casas simples,
Biblioteca-Museu República e de possibilidades urbanas Diss. Lisboa: Atlântica.
Resistência, Lisboa Departamento de Sociologia do 54
AA.VV (1961) Inquérito

– PEDRO SOARES NEVES 133


à Arquitectura Popular em
Portugal. Sindicato Nacional dos
Arquitectos, Lisboa.
55
Schaff, Adam (1968) Introdução
à semântica. Coimbra: Almedina.
p.158
56
Campos, Ricardo (2007)
Pintando a cidade. Uma
abordagem antropológica ao
graffiti urbano, Dissertação de
Doutoramento em Antropologia,
especialidade de Antropologia
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Visual, Lisboa, Universidade


Aberta.
57
Ferro, Lígia (2011)
58
AA.VV. (2007) Visual Street
Pefromance. Lisboa.
59
Galeria de Arte Urbana de
Lisboa (GAU) (2014) Street Art
Lisbon - Vol. 1”, Zest, Lisboa.
60
Neves, Pedro Soares; Simões, D.
(Coord.) (2014) Lisbon Street Art
& Urban Creatvity, International
Conference. Lisboa: Faculdade de
Belas-Artes da Universidade de
Lisboa, CIEBA, FCT.
61
Quaresma, José (2013) Do
Graffiti, Passado e Presente de
uma Expressão de Risco, coord..
Lisboa: Faculdade de Belas-Artes
da Universidade de Lisboa, CIEBA,
FCT, ed. CD-ROM.
62
Traquino, Marta (2010) A
Construção do Lugar pela Arte
Contemporânea. Ribeirão: Edições
Húmus.

<<
Escultura e a Re-Simbolização do Espaço
Público no Pós-25 de Abril: A Evocação de
“Os Perseguidos” em Almada

por Sérgio Vicente


Assistente e doutorando na FBAUL. Mestre em Design Urbano pela
Universidade de Barcelona. Artista plástico e investigador em escultura,
cidadania e espaço público.

Sculpture in the process of re-symbolization of the


civic centre of the City of Almada, in the first years
after the 1974 Carnation Revolution, corresponded to Na sequência da destituição dos órgãos au-
a strategy of re-elaboration of collective memory. With tárquicos do Estado Novo em 1974, consi-
the renaming of streets and squares and the imposing dera-se o ano e data da Revolução como
of new forms and symbols on public space, there um marco para a escultura em Almada, por-
was an accelerated renewal of urban and historical que a partir desse momento preciso foi indi-
identity. After 1974, this meant a conflict between the gitada a Comissão Democrática Administra-
experience of the public space and the new narratives tiva Municipal1 que se manteve em funções
that sculpture pieces implemented upon it. até às eleições autárquicas de dezembro de
Departing from the history of the monument “The 1976 e o Poder Local iniciou a encomenda
Persecuted” (1979), we will analyse the most de escultura pública e, ao mesmo tempo, se
significant socio-territorial factors in the municipality deu início ao processo de substituição dos
of Almada that contributed to the monument’s símbolos do Estado Novo no concelho2. Os
affirmation as an identitary landmark in the city. novos símbolos da jovem democracia nas-
ceram então num claro exercício de supres-
são da identidade fascista do espaço públi-
co da cidade. Procurou-se criar uma nova
‘monumentalidade’ e novos espaços de
memória no ‘centro cívico’ almadense.

Entre 74 e 76, a Comissão Administrativa do


concelho de Almada, em consonância com
o ambiente revolucionário, delineou em
confronto com a realidade urbanística do

– SÉRGIO VICENTE 135


concelho, além de medidas que visaram a concelho. As novas formas de organização
alteração da forma de gestão territorial, um popular3, que contribuíram sobremanei-
processo político associado de gestão sim- ra para o estabelecimento de modelos de
bólica do espaço através da arte, com refle- governação participativa local, ganharam
xos diretos sobre os elementos de retenção forma com a constituição de Comissões de
da memória do espaço urbano herdado do Trabalhadores, Assembleias Populares ou
Estado Novo. Uma atuação de forte pendor Comissões de Moradores, por exemplo.
interventivo sobre o território, que impôs Oliveira (1996: 353) sustenta que as Co-
uma direção na evolução da imagem urba- missões de Moradores foram fundamentais
na da cidade até hoje. Desenvolveu-se um para a rutura com o corporativismo base da
processo de apagamento dos elementos forma de organização do poder local que
de memória anterior a 25 de Abril de 1974, vinha do antigo regime. E permitiram, com
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

através da substituição do nome das arté- a sua dinâmica popular, levar à comunidade
rias conotadas com o tempo da ditadura o esclarecimento político e o debate sobre
por novos nomes identificados com a resis- o planeamento urbano local em novas for-
tência antifascista e ou evocativos dos valo- mas de organização comunitárias.
res da Revolução. E não foi por acaso que as
primeiras esculturas fossem colocadas no Foi neste momento de profundas alterações
centro cívico de Almada em 1974 e 1979. nos modos de relacionamento, de aproxi-
mação à realidade social, que se atuou na
Em Almada sentiu-se bem toda a capacida- transformação direta do espaço urbano. As
de de iniciativa do período revolucionário. equipas que trabalharam no terreno eram,
A descentralização do aparelho de Estado em muitos casos, multifuncionais nas quais a
e a operacionalidade técnica do Município componente de animação cultural ganhava
contribuíram para que o ‘poder autárquico’ sentido interventivo junto das populações.
fosse consolidado em sintonia com a ‘mobi- O período revolucionário moldou a visão
lização popular’, de modo a serem implan- e a ação de muitos artistas comprometidos
tadas medidas mais focadas na procura de com as profundas alterações da realidade
formas alternativas de gestão administrativa social portuguesa a partir de 1974. Metafo-
com pendor participativo: um movimento ricamente, os resultados das ações coletivas
impulsionador de grandes avanços na salu- de grupos de artistas plásticos ou popula-
bridade e qualidade de vida mediante um res sobre esculturas públicas depois do 25
trabalho conjunto com as populações. Deu- de Abril, poderão ser encarados como o iní-
-se assim um primeiro passo para o contro- cio e fim de um período de ‘arte com a revo-
lo do processo de urbanização clandesti- lução’. Falamos do ato público do amorta-
na do concelho, aprovaram-se medidas de lhar da estátua de Salazar no Palácio Foz, “A
contenção das políticas urbanas herdadas arte fascista faz mal à vista”, no dia 28 maio
do antigo regime e, por outro lado, pro- de 1974, pelo Movimento Democrático dos
moveram-se políticas de infraestruturação Artistas Plásticos4. E no lado oposto da revo-
e saneamento em áreas problemáticas do lução, em fevereiro de 78 a tentativa de re-

<<
colocação da cabeça na estátua de Leopol-
do de Almeida alusiva a Salazar, em Santa
Comba Dão, por um grupo de cidadãos, um
ano depois de Portugal ter pedido oficial-
mente a adesão à CEE (5 de abril de 1977)5.

Neste período pós-25 de Abril a admi-


nistração técnica e política municipal não
deixou de encarar a necessidade de intro-
duzir elementos de arte urbana re-simboli-
zando o território. Foi até à década de 80, Bairro Clandestino na Quinta da Alegria. Cacilhas, década de 70.
Fotografia: Júlio Diniz | Cedência: Museu da Cidade/ Câmara Municipal
que em áreas urbanas reconvertidas, veri- de Almada
ficam-se as homenagens civis (por subscri-
ção pública) a personalidades almadenses
como o médico José Pessoa, com um pro-
jeto de Lagoa Henriques e Manuel Carga-
leiro. Ficaram também o Monumento ao
Bombeiro, de Anjos Teixeira, bem como a
evocação de Fernão Mendes Pinto, assina-
lando em 1983 o quarto centenário da sua
morte, e para a qual se retomou uma en-
comenda a António Duarte para na praça
S. João Batista, feita em 1973. E ensaia-se,
igualmente, um controverso concurso pú-
blico para o Monumento ao Pescador na
Costa da Caparica.

Em Almada há uma diferença clara na for-


ma como a jovem democracia gerou o seu
espaço simbólico em relação ao Estado
Novo. O regime salazarista convocou os
seus símbolos de forma impositiva, pressu-
pondo uma conceção ideológica sobre a
organização do espaço público e a forma
como se organizam e leem os seus símbo-
los na malha da cidade. O Poder Local, sob
a égide da Comissão Administrativa, teve
na génese da sua intervenção urbana o
uso dos símbolos do novo regime, ou seja,
convocou os valores do ‘Povo’ na constru-

– SÉRGIO VICENTE 137


ção dos seus primeiros marcos representa- Pacheco e coadjuvadas pelo autoritarismo
tivos e logo no ‘centro cívico’ da cidade do do regime, se mostravam em conformidade
Estado Novo. com o dito modelo de espaço”.

Por outro lado, está presente nesta nova Em Almada, o processo de urbanização do
realidade a dimensão política, e por con- Centro Cívico foi sinónimo da hierarquiza-
seguinte de expressão de poder, que as ção funcional e morfológica da vivência da
potencialidades de efabulação simbólica cidade. Isto é, a visão planificadora de De
do espaço vão permitir ao novo regime, Gröer previu o assento das classes sociais
já que a identidade coletiva encontrou os segundo critérios de estratificação social.
seus ecos na forma como o espaço se reor- As classes trabalhadoras e porventura mais
ganizou ao nível simbólico. pobres, que procuravam as rendas baixas
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

e as habitações mais próximas da indústria,


O Centro Cívico de Almada6 foi sujeito à num concelho de imanente vocação indus-
mais forte ação ideológica depois da data trial como era então o de Almada, viam-se
da Revolução por parte dos governantes lo- empurradas para zonas periféricas do cen-
cais. De facto, o paradigma de cidade preco- tro cívico em bairros operários ou casas
nizado por Etienne De Gröer para Almada7, económicas. Como o foram mais tarde o
que encontrara eco nos gabinetes gover- Bairro de Nossa Senhora da Conceição na
namentais do Estado Novo, constituiu-se zona do Pombal, inaugurado em 1952, na
ao nível da identidade urbana como a mais Cova da Piedade. Para a classe média que
pesada herança para a jovem democracia. se fixaria em torno da área central, propu-
Souza Lôbo (1995) defende, a este propósi- nha-se, por exemplo, a ocupação de habi-
to, que o pensamento urbanístico da déca- tações com rendas de custos controlados
da de 40 e princípios de 50, sob a influência que ladeiam as principais avenidas, já que
da presença de Etienne De Gröer, esteve esses grupos, mantendo embora uma es-
imbuído do modelo da ‘cidade jardim’ de treita relação laboral com Lisboa, encontra-
Ebenezer Howard. Ao que não é alheio o vam na apetecível relação bucólica com a
facto de De Gröer ([1946] 2004) considerar periferia, o local ajustado a uma visão dou-
que a visão de Howard do urbanismo seria trinária de qualidade de vida em família.
o alicerce do urbanismo moderno. Cristina
Cavaco (2009: 171) acrescenta que Na sua organização funcional, o ‘centro cí-
vico’ foi o local onde foram implantados os
“(...) enquanto se procurava passar para o principais equipamentos públicos de forte
espaço construído essas mesmas diligên- carácter simbólico para o regime. Assim,
cias formais e conceptuais, havia mecanis- esquematicamente, ‘rasgou-se’ uma gran-
mos operatórios e diretrizes políticas que, de praça que, de forma marcante, repre-
no quadro das bases doutrinárias do urba- senta o poder. E é ali que encontramos o
nismo moderno em Portugal, desencadea- antigo Largo Cavaleiro Ferreira, agora Ga-
dos pelo empreendedorismo fundador de briel Pedro, associando-lhe esquematica-

<<
mente a presença do jardim público, tribu-
nal, bombeiros, igreja e mercado.

Em 74 a Comissão Administrativa, pressio-


nada para agir no imediato, atribuiu logo
em Maio à Comissão de Problemas Locais
do Movimento Democrático do Concelho
de Almada8 a responsabilidade de sugerir
as alterações toponímicas que entendesse
necessárias e elaborar e propor a lista de
nomes que deveriam ser dados às ruas, lar- Plano Parcial de Urbanização de Almada: Relativo à
Localização do Centro Cívico e Zona Imediata.
gos e praças nesta área urbana de Almada.
Fonte: Arquivo Histórico da Cidade de Almada

Em 4 de julho, o edital da comissão propo-


ria que a Rua Oliveira Salazar e a Av. Fre-
derico Ulrich passassem a denominar-se,
respetivamente, Rua da Liberdade e Av. 25
de Abril. Do mesmo modo, o Largo Cava-
leiro Ferreira passaria a nomear-se Largo
Gabriel Pedro. Por seu turno, em Cacilhas,
o Largo Costa Pinto passaria a chamar-se
Largo Alfredo Dinis (Alex). Em Agosto, e já
com a nomeação de uma Comissão Muni-
cipal de Toponímia9 propor-se-ia para a fre-
guesia de Almada a alteração dos nomes
da Praceta Henrique Tenreiro para Dr. Ar-
lindo Vicente e o Jardim Sá Linhares para
Jardim Doutor Alberto Araújo10; a Praça da
Renovação passaria a Praça do Movimento
das Forças Armadas11, cujo nome foi alte-
rado em homenagem ao MFA, numa inicia-
tiva pública realizada no dia 25 de agosto
de 197412.

Com este processo administrativo as princi-


pais artérias e praças que delimitam o cen-
tro cívico foram sujeitas a um ato de am-
nésia forçada num importante campo de
afirmação simbólica no fascismo. É eviden-
te que esta ação pressupôs que o Estado

– SÉRGIO VICENTE 139


Novo e os seus órgãos de gestão adminis-
trativa local interpretassem de forma eficaz
o modelo morfológico que o plano de ur-
banização do centro cívico preconizava, ao
propor uma nomenclatura fortemente ideo-
logizada para as principais artérias da ‘nova
Almada’, e deste modo, exacerbar e selar o
sistema doutrinário inscrito no modelo de
desenvolvimento do planeamento urbano
e enaltecer os seus intérpretes. Atribuíram
Em Cacilhas, desde 4 de julho de 1974, o Largo Costa Pinto de forma seletiva o nome de avenidas a fi-
passaria a chamar-se Largo Alfredo Dinis (Alex).
guras de destaque do regime e a praças no-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Cedência: Museu da Cidade/ Câmara Municipal de Almada


mes de figuras ligadas ao regime local, rea-
lidade à qual a jovem democracia esteve
atenta e rapidamente procurou converter e
atualizar dentro dos novos valores.

O significado da escultura para a adminis-


tração local pós-25 de Abril, deverá ser en-
tendido segundo duas realidades: ou foi
uma expressão mais radical da cidadania
com raízes na vontade popular, sendo a ad-
ministração um simples agente de viabiliza-
ção legal da iniciativa; ou foi, por outro lado,
uma ação impositiva, vista de cima para bai-
xo, uma visão administrativa na construção
de uma nova e fundacional identidade ur-
bana. Brandão (2008: 17) salienta que a
arte pública teve sempre um papel impor-
tante na organização simbólica da cidade
e é, portanto, uma ferramenta política ape-
tecível para um poder dominante. Mas, por
outro lado, o mesmo autor também lembra
que a democracia hoje, na sua génese, con-
voca a população para a construção dos
seus símbolos de representação pública.
Mais do que a afirmação de valores simbóli-
cos construídos pela administração pública,
a dimensão democrática da arte no espaço
público deve ser feita pela participação de

<<
todos na sua construção. Argan (1993:255) interveio quando se chegou ao processo de
já salientara a impossibilidade de se discutir instalação da obra no antigo Jardim Sá Li-
a possibilidade da escultura sem a confron- nhares17, que fora renomeado em Agosto
tar com o ambiente urbano que a abarca: de 1974 como Jardim Doutor Alberto Araú-
jo, e que viria a receber o busto18 deste,
“(...) a cidade está para a sociedade assim concebido por Vasco da Conceição em De-
como o objeto está para o individuo. A so- zembro do mesmo ano19.
ciedade se reconhece na cidade como o
individuo no objeto; a cidade, portanto, é O busto seria realizado pelo escultor que
um objeto de uso coletivo. Não só isso, a já participara na conceção do ‘incomple-
cidade também é identificável com a arte to’ monumento ao Estatuto Nacional do
porquanto resulta objetivamente da con- Trabalho para a Costa da Caparica, no 10º
vergência de todas as técnicas artísticas na aniversário da colónia de férias ‘Um Lu-
formação de um ambiente tanto mais vital gar ao Sol’, da FNAT, em 1948. Vasco da
quanto mais rico em valores estéticos”. Conceição deixou bem vincado, nos anos
40, e aproveitando a temática e o contex-
Provavelmente, o modelo de implantação de to da execução da obra na colónia de fé-
escultura na cidade apostou numa decisão rias, o seu comprometimento estético e
compartilhada entre a administração local e a principalmente político com o neorrealis-
população nos anos subsequentes à Revolu- mo, confrontando as estruturas da FNAT
ção. Não é obra do acaso o facto de a maior e da organização corporativa do trabalho.
parte dos monumentos da primeira década No entanto, aquela que foi a sua primeira
de democracia terem sido inaugurados pela obra em Almada em democracia não tem o
administração local sob a bandeira da subs- mesmo fulgor da anterior: pareceria que o
crição pública, à qual esteve normalmente resultado estava amarrado ao comprome-
associada uma comissão promotora consti- timento político que a homenagem impu-
tuída por ilustres personalidades locais. nha no momento da Revolução.

O primeiro exemplo é a homenagem pres- As celebrações ocorreram no dia 14 de de-


tada ao cidadão almadense Alberto de zembro de 74, e consistiram numa marato-
Araújo, passados poucos meses após o 25 na de descerramento de placas evocativas
de Abril. Neste caso, a Comissão Democrá- de Alberto de Araújo. Uma no Pragal (Bairro
tica Administrativa da Câmara Municipal do Matadouro) e outras na Costa da Capa-
de Almada associou-se a uma comissão de rica, na Charneca da Caparica, na Cova da
democratas do concelho13 encarregada de Piedade, na Sobreda da Caparica e no Mon-
promover uma subscrição pública14. Era en- te de Caparica. E seria mais tarde, pelas 16
cabeçada por José Alaiz15 e tinha por obje- horas do mesmo dia, no jardim com o mes-
tivo evocar a vida e resistência ao fascismo mo nome em Almada, que se inaugurou o
de um destacado almadense, membro do seu busto na presença de elementos do Co-
Partido Comunista Português16. O Município mité Central do PCP, das Juntas de Fregue-

– SÉRGIO VICENTE 141


sia, da Comissão Democrática Administrati-
va da CMA, seguindo-se a homenagem no
cemitério local.

Com a conclusão do processo do busto de


Alberto Araújo, a Comissão Administrativa
da autarquia recebeu da Comissão Organi-
zadora da Homenagem o relatório final da
comissão que aponta a existência de um
excedente monetário da subscrição públi-
As celebrações de homenagem a Alberto de Araújo ca. Este facto vem demonstrar que esta ini-
ocorreram no dia 14 de Dezembro de 74, no jardim com o
ciativa foi suportada por uma vontade po-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

mesmo nome em Almada.


Cedência: Museu da Cidade/ Câmara Municipal de Almada pular legitimadora, que não teve paralelo
em iniciativas futuras. As obras que a edi-
lidade decidiu encomendar depois e mar-
cadas por forte pendor político, estiveram
sempre amarradas a comissões promoto-
ras que, diga-se, não aparentam ter tido
por base a iniciativa popular. Estas comis-
sões funcionaram, principalmente, para o
executivo diluir o peso político da iniciativa
autárquica. Foi assim que passados cinco
anos, em 1979, bem no centro da cidade
programada pelo Estado Novo, na central
Praça do Movimento das Forças Armadas
Postal ilustrado da década de 60, da Colónia de Férias ‘um (Praça da Renovação até agosto de 1974)
Lugar ao Sol’. Com o Monumento comemorativo do Estatuto
foi inaugurado o Monumento aos Perse-
do Trabalho Nacional e do 10º Aniversário’ da colónia da
FNAT, obra de Vasco da Conceição de 1948. guidos, de Anjos Teixeira, com o intuito de
Cedência: Museu da Cidade/ Câmara Municipal de Almada homenagear ‘todos os homens e mulheres
vítimas da perseguição fascista’ e não o
Monumento ao Trabalho de Joaquim Cor-
reia com projeto de 1974, contratualizado
em vésperas da Revolução.

O monumento nasceu sob controvér-


sia e foi legitimado politicamente a partir
de iniciativa autárquica na forma de uma
comissão cívica e de uma inconsequente
subscrição pública.

<<
O monumento Os Perseguidos e uma ter sido feita sem qualquer traço de enco-
nova organização simbólica da cidade menda e apenas em reação à situação polí-
Tinham passado três anos sobre a Revolu- tica que se vivia no momento, um protesto
ção, e no primeiro ano de mandato de José à ‘farsa’ eleitoral de Marcelo Caetano, coin-
Martins Vieira na Presidência da Câmara cidindo com um ano em que a repressão
de Almada, após as primeiras eleições li- mais se fez sentir no concelho22.
vres para o Poder Local em 1976, o Jornal
de Almada, na sua edição de Novembro de Assim, decidiu a autarquia adquirir a obra
197720, noticiava que o Município manifes- de Anjos Teixeira que seria inaugurada em
tara publicamente a vontade de erigir uma 1979, dez anos passados sobre a sua conce-
nova estátua para Almada. ção. O local escolhido para implantar a es-
cultura foi o Largo do Movimento das For-
Foi o vereador da Cultura, o jovem Francis- ças Armadas no coração do centro cívico de
co Simões21, que acabara de concluir o cur- Almada, embora se salientasse na proposta
so de Escultura na Academia de Música e levada a reunião de Câmara23, que a esco-
Belas Artes da Madeira e que naturalmen- lha deste local não se sustentava numa de-
te se terá cruzado com o professor escultor cisão, mas era uma mera sugestão, estando
Pedro Anjos Teixeira naquela instituição, o local definitivo dependente de uma aus-
confrontou-se com a existência de uma sua cultação popular que nunca ocorreu.
escultura denominada ‘Os Perseguidos’, de
1969. Esta terá sido concebida por Anjos À data da inauguração ainda não se con-
Teixeira como ‘obra protesto’ em solida- seguira reunir a verba total para cobrir os
riedade para com os homens e mulheres custos para a realização do monumento,
do povo e com os intelectuais antifascistas angariada através de uma subscrição pú-
perseguidos pela ditadura. Respondendo blica24, assumindo assim a contribuição vo-
na perfeição ao sentimento da viva home- luntária dos cidadãos como forma coletiva
nagem dos almadenses a todos os antifas- de homenagem aos seus conterrâneos an-
cistas locais. tifascistas. Este assunto trouxe alguma con-
trovérsia em sessão de Câmara, já que, no
A história desta escultura funde-se com a momento de discussão da aprovação do
história do próprio escultor. Pedro Anjos valor de encomenda da fundição, o verea-
Teixeira foi um opositor assumido do regi- dor Jorge Martins fez uma declaração de
me fascista. Este já sentira na pele os efei- voto, destacando na ocasião a necessida-
tos da perseguição e saneamento político. de de o dinheiro investido poder ser apli-
E o vereador aconselhou a sua aquisição cado em outras rubricas mais prementes,
num contexto local de reafirmação dos va- além de salientar que estava em curso uma
lores da revolução e exacerbação da cultura subscrição pública e era necessário esperar
como uma conquista do novo poder local pelos resultados da angariação para perce-
eleito. Além disso, um fator de valorização ber que tipo de investimento o Município
simbólica da obra estava no facto de esta teria de fazer. No entanto, a Câmara confir-

– SÉRGIO VICENTE 143


mara a decisão ao adjudicar à empresa de em sua memória propõem: 1º- Que seja eri-
fundição de bronzes artísticos – Bernardino gido na freguesia da Cova da Piedade um
Inácio Leite —, a fundição da escultura dos monumento em recordação daqueles que
Perseguidos25, justificando que o valor da tombaram pela causa da liberdade. 2º- Que
Cultura26 é um bem primário a promover. este monumento seja feito por subscrição
Além disso, havia o intuito de a sua inaugu- pública. (...) Esta proposta foi aprovada por
ração coincidir com o aniversário da cidade unanimidade dos presentes, e transcrita na
no ano de 1979. ata n.º 5 do diário das sessões da Assem-
bleia de Freguesia da Cova da Piedade”.
As controvérsias políticas em torno do mo-
numento não acabaram aqui. Em sessão de A proposta fora aprovada em Assembleia
Câmara a 6 de julho do mesmo ano, uma Municipal, e afirmava-se que a presidência
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

moção denominada Inauguração do Monu- da autarquia fez sua a ideia de um monu-


mento aos Perseguidos27, os vereadores Ar- mento de homenagem àqueles que luta-
tur Cortez, Hortênsia de Sousa, Domingos ram pela liberdade. Subentende-se que a
Jacinto e José Ribeiro mostraram a sua in- presidência, tendo tido conhecimento da
satisfação pelo sigilo com que todo o pro- escultura de Anjos Teixeira, encomendou,
cesso de aquisição e implantação foi desen- num ato de antecipação política, uma cópia
volvido. Salientaram que a escolha do local em bronze da obra.
de implantação esteve até ao último mo-
mento sob segredo, contrariando a aber- O monumento foi inaugurado no dia 24 de
tura para a auscultação pública prometida, junho de 1979, pelas 10 horas da manhã,
tal como toda a documentação inerente à integrado nas festas da cidade de Alma-
inauguração do respetivo monumento. Por da, e o Boletim Municipal faz referência ao
outro lado, vincavam que para a inaugura- monumento como um caso único na nova
ção era evidente no protocolo a parcialida- Democracia29 e valorizar-se-ia a obra a ser
de da representação social e política. Pelos inaugurada na principal artéria da cidade
documentos, adivinha-se que esta foi uma como o único monumento aos persegui-
investida política concertada pela oposição dos pelo fascismo erigido, ao tempo, na Pe-
na Câmara, já que na edição do mesmo dia, nínsula Ibérica30.
o Jornal de Almada28 publicava um texto
no qual se lembrava que em data anterior Já se tinha conhecimento de quem esta-
à aprovação da ideia de erigir um monu- ria oficialmente presentes na cerimónia, a
mento aos antifascistas pelos órgãos cama- partir de informações recolhidas em confe-
rários, uma moção apresentada pelo grupo rência de imprensa nos Paços do Concelho
socialista da Junta de Freguesia de Cova da por representantes da Câmara e da União
Piedade, já o propusera. Ou seja, de Resistentes Antifascista Portugueses,
dias antes da inauguração: “O descerra-
“(...) os representantes do Partido Socialis- mento será feito por um coletivo de forças
ta na AFCP lembram todos com saudade e, democráticas, representado por um operá-

<<
rio corticeiro, um intelectual, uma mulher,
um representante dos mais sacrificados na
luta pela liberdade e por um jovem”31 re-
latava-se na sessão. Foram também desta-
cados os nomes de antifascistas carismáti-
cos, como Cândido Pires Capilé, morto a
tiro numa artéria da cidade, Alberto Araú-
jo, que sucumbiu aos maus tratos na prisão
e já fora homenageado em Almada, Álva-
ro Ferreira e Augusto Valdez que passaram
longos anos no Tarrafal. Ato inaugural do monumento Aos Perseguidos, no dia 24 de
junho de 1979, na Praça do Movimento das Forças Armadas,
integrado nas festas da cidade de Almada.
Martins Vieira32 referiria no ato inaugural Fonte: Flores (1985: 255)

que, passados dez anos sobre os aconteci-


mentos de 69, o monumento impunha-se
na cidade como “(...) uma página de resis-
tência”33. Não deixando de fazer uma refe-
rência à motivação política que levou Anjos
Teixeira a realizar a obra e o facto de centrar
o discurso sobre o autor, deu espaço para
que as interpretações e leituras da obra
por parte do público estivessem ancoradas
num sentimento solidário com as causas do
artista e não com o confronto com o realis-
mo pouco sedutor de uma manifesta home-
nagem aos antifascistas almadenses. A este
prepósito Pereira (2005: 578) constata que
obra no percurso de Pedro Anjos Teixeira
evidencia-se por “(...) uma excessiva mode-
lação das massas musculares, a par do seu
pendor classicizante”. Que só encontra pa-
ralelo numa outra sua obra de 1935: ‘Ho-
mem a lutar com o polvo’.

Sobre o autor da obra, os vespertinos refe-


riam que Anjos Teixeira34, professor da Es-
cola Superior de Belas Artes na Madeira, ti-
nha inúmeros trabalhos em praças públicas
no país e na União Soviética. E valorizavam o
facto de “se tratar de um trabalho sem o ca-

– SÉRGIO VICENTE 145


rácter de encomenda, mas sim com a força tência antifascista do monumento ‘Os Per-
de quem vivia e sentia diretamente as preo- seguidos’, confirma a ideia segundo a qual
cupações do povo português”35, sendo o é no espaço público, e nas diversas formas
seu universo de referências o mundo do tra- de o apropriar que se constrói a identida-
balho e dos seus representantes36. de urbana. Um processo social de desen-
volvimento assente na consumação da vida
O monumento foi inaugurado com a guarda quotidiana, ou seja, a partir das relações so-
de honra de um grupo de antifascistas tarra- ciais estabelecidas e na atividade das pes-
falistas37 no centro da Praça, que foi sujeita a soas em função dos usos sociais do espaço
renovação, calcetada à portuguesa com mo- urbano. Pol & Valera (1999: 6) apontam ain-
tivos inspirados nos símbolos das ex FEPU e da que a identidade constitui-se como uma
APU, ou seja, losangos e argolas38. E foi no ação de mediação, interação entre o sujeito
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

embasamento da escultura que se inscre- e o espaço. Neste sentido, a identidade so-


veu, ‘Aos que deram a liberdade e até a pró- cial urbana (Brandão, 2008: 15) constrói-se
pria vida pela liberdade dos outros’. no sentimento e na relação de pertença a
um ambiente, seja o lugar ou a cidade que
Constata-se que o monumento é ainda hoje reconhecemos. E no caso de Almada, a au-
referência identitária por todos aqueles que tarquia foi o agente que forçou a reconstru-
se vêem representados nos valores demo- ção da identidade urbana depois de 74.
cráticos que a revolução despoletou em Al-
mada (Vicente, 2006: 12). A Praça é hoje o O monumento impôs-se durante muito
espaço no qual as manifestações coletivas tempo como um pilar urbano da identida-
ganham maior carga emocional nas come- de pós-25 de Abril. Num momento em que
morações anuais da data da revolução de para algumas franjas da população a obra
1974, tal como continua a ser o local onde ainda enaltece e glorifica um sentimento
uma franja da população se manifesta em comum de uma história de lutas e resistên-
momentos de crise política. O monumento cia, as obras do metro de superfície realiza-
veio assumindo deste modo uma posição das a partir de 2003 no concelho de Almada
urbana de inequívoco valor identitário. e Seixal, provocaram profundas alterações
nas avenidas Dom Afonso Henriques e Dom
Ou como refere Ribeiro (2005: 44), a obra Nuno Álvares Pereira, obrigando ao desvio
de Pedro Anjos Teixeira continua a ser o mo- do monumento para uma lateral da Praça
numento mais representativo do concelho, do MFA em 200739. Passados 28 anos e com
no qual a autarquia reconhece uma heran- base em opções técnicas de desenho urba-
ça histórica que é fundamental recordar. E no, o monumento aos Perseguidos perdeu
facilmente reconhecemos que a ritualização irremediavelmente o peso simbólico da sua
de determinados comportamentos sociais centralidade inicial, passando agora a com-
assumidos por incentivo camarário, nomea- petir com os outros equipamentos do espa-
damente as comemorações anuais do 25 ço público por um protagonismo identitário
de Abril, sob o peso da memória da resis- e urbano de outros tempos.

<<
A Escultura na cidade: a reconstrução
da memória
Os novos órgãos autárquicos não enceta-
ram, logo em 1974, uma política de abafa-
mento e ocultação dos elementos escultó-
ricos de simbologia fascista na cidade. Os
pouco relevantes monumentos preexisten-
tes estavam predominantemente ligados a
causas civis. No entanto, consideramos o
Monumento aos Mortos do Ultramar na Tra-
faria, como aquele que foi sujeito à elimina- O monumento Aos Perseguidos em 2007, na Praça do
Movimento das Forças Armadas em Almada.
ção dos seus símbolos fascistas pela ação
Fonte: Anabela Luís/ Câmara Municipal de Almada
política revolucionária.

Por outro lado, o processo de urbanização


de Almada no Estado Novo não trouxe con-
sigo, como refere Helena Elias (2006), os
monumentos de cariz historicista, idealiza-
dos para os novos centros de vilas e cidades
sujeitas a plano de urbanização. Na verdade,
a estatuária do Estado Novo, principalmen-
te no contexto do Ministério das Obras Pú-
blicas e dos Planos Gerais de Urbanização,
nunca tinha chegado à margem esquerda
do Tejo: não está demonstrado ter sido pro-
posta no âmbito do Ministério das Obras Pú-
blicas, aproveitando o incentivo às artes sob
a égide do Estado, a introdução de monu- Fotografia do Monumento aos Mortos
mentos no Centro Cívico que acompanhas- no Ultramar na Praça da República
na Trafaria hoje sem as inscrições em
sem o acerto do espaço público de Almada bronze sobre o plinto.
com os parâmetros ideológicos do regime. Cedência: Museu da Cidade/ Câmara
Municipal de Almada

Foi no início dos anos 70 que se deu a ele-


vação de Almada à categoria de cidade, a
21 de junho de 197340. E foi nesse momen-
to que a autarquia apostou numa política
de afirmação estratégica da recém-criada
cidade, e lançou as bases para um ansiado
programa monumental. O número de enco-
mendas de escultura aprovadas em reunião

– SÉRGIO VICENTE 147


da Câmara até ao 25 de Abril de 1974, não
só vinha marcar o chão da nova cidade com
elementos escultóricos de valorização patri-
monial e urbanística, como visavam enalte-
cer os valores culturais e principalmente um
passado histórico comum. A homenagem
a personalidades reconhecidas naturais de
Almada seria o ponto mais alto da afirma-
ção da nova cidade.

Inauguração do monumento a Fernão Mendes Pinto, a dia 31 Foi com a época marcelista e num momento
de dezembro de 1983, no Pragal.
de maior autonomia política na área autár-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Cedência: Museu da Cidade/ Câmara Municipal de Almada


quica, que se possibilitou a conjugação de
esforços intermunicipais para que o Municí-
pio de Lisboa e a administração da penín-
sula de Setúbal patrocinassem algumas das
propostas de monumentos para Almada41.

Os monumentos encomendados no oca-


so do regime42 foram programaticamente
reassumidos pelos orgãos de gestão demo-
crática e construídos sob um novo prisma
ideológico, num contexto urbano diferen-
ciado e por outros escultores. A este res-
peito Meecham & Sheldon (2004: 549-568)
referem que os monumentos são um lugar
de ritualização de comportamentos cole-
tivos. Em Almada perceber-se que embora
o tempo de realização das obras seja outro,
identificam-se as mesmas temáticas simbóli-
cas que são difundidas e compartilhadas pe-
los seus habitantes. Valores que contribuem
para a afirmação identitária ou, pelo menos,
de uma memória coletiva portadora de um
léxico próprio ao qual subjaz a expressão ou
construção cultural de uma comunidade.

Veja-se o Fernão Mendes Pinto, de António


Duarte, uma encomenda do Estado Novo
para homenagear o navegador e escritor

<<
no primeiro aniversário da cidade de Alma- Em Almada, ainda hoje, a identidade dos
da em 1974, que inicialmente foi concebido lugares é indissociável do fortalecimento
para ser colocado sobre um aparato céni- de uma ‘memória histórica’, sendo deter-
co de jorros de água de uma fonte monu- minante o domínio simbólico do espaço
mental e na Praça S. João Baptista, no prin- público pela autarquia, ao implantar mon-
cipal eixo da cidade, onde se construiriam umentos de cariz politizado, influenciando
os novos Paços do Concelho. Ali apresen- e estabelecendo parâmetros significantes
tava-se como um objeto impositivo na ci- para a construção de uma memória do lu-
dade, ou seja, a afirmação local, política e gar. Ou seja, a administração local foi con-
pública de uma instituição administrativa struindo ao longo de 40 anos uma narrativa
vital para o Estado Novo. E depois, já nos histórica própria, adequada à afirmação dos
anos 80, o monumento acabou sobre um valores democráticos que o novo regime
plinto em betão vigoroso e simples, numa em 1974 manifestou de forma contundente
relação compositiva aprovada provavel- sobre o espaço público.
mente por António Duarte e de acordo com
os postulados compositivos do monumen-
to maquetado dez anos antes. Pressupondo
obrigatoriamente uma leitura do conjunto
de baixo para cima. E, agora localizado fora
do lugar de celebração do regime (o Cen-
tro Cívico), no sítio onde Fernão Mendes
Pinto terá vivido e morrido em 1583, no Pra-
gal, valorizou-se com a sua implantação a
dimensão humanizada do homenageado,
contrariando o inicial pendor historicista e
celebratório da ditadura.

Os novos monumentos na cidade a partir


de abril de 1974 corresponderam na sua
génese programática a uma estratégia de
reposição de memória coletiva, ao que se
associa o facto de se renomearem ruas e
praças, e se imporem novas formas, símbo-
los de substituição no espaço público. Per-
cebemos a imposição de símbolos como
uma acelerada experiência constitutiva da
identidade do espaço urbano, a qual sub-
entende, uma conflituosa troca entre ex-
periência e novas narrativas inerentes à con-
strução do espaço público.

– SÉRGIO VICENTE 149


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– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

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das Administrações Central e W@terfront, (7), 41–46. Herculano Pires como apontam

<<
Policarpo & Mateus (1999 2005: diga-se que a 2 de fevereiro de 8
Câmara Municipal de Almada
206), como vogais Ana Maria 1975 realizou-se a Assembleia (1974, Mai. 30). Reunião de
Correia Antunes, António de Popular do concelho de Almada, Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro
Almeida Santos, Eduardo Ferreira reunindo 400 delegados das 84, fl. 157v).
Alcântara, Fernando de Brito organizações populares e 9
Câmara Municipal de Almada
Mateus, Herculano Rodrigues institucionais existentes no (1974, Jul. 4). Reunião de Órgãos
Pires e Nuno Manuel Perfeito concelho. Autárquicos. (Atas). (Livro 84, fl.
Cabeçadas. No dia 23 de maio a 4
Deste movimento fazia parte, 191).
comissão entrou em atividade até entre outros, Rogério Ribeiro, 10
Câmara Municipal de Almada
ao dia 12 de dezembro de 1976, um dos seus fundadores e (1974, Ago. 8). Reunião de Órgãos
data das primeiras eleições para as posteriormente ligado de forma Autárquicos. (Atas). (Livro 85, fl.
autarquias. intensa a Almada. 41-42).
2
Importa referir que sobre este 5
Como salienta Oliveira 11
Câmara Municipal de Almada
assunto, Ricart & Remesar (2014) (1996: 362) a adesão à CEE na (1974, Ago. 16). Reunião de
discutem de forma impressiva as perspectiva de Mário Soares Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro
‘estratégias da memória’ por parte — Primeiro Ministro vindo das 85, fl. 48).
da municipalidade de Barcelona eleições Legislativas de 1976 — 12
Homenagem que tinha sido
confrontada com a necessidade de “(...) a integração de Portugal no organizada pelos partidos políticos
equacionar o seu passado através processo de construção europeia da Coligação Governamental,
da gestão do seu património implicava uma tríplice garantia: com o apoio do Movimento
e da arte pública na cidade, era, em primeiro lugar, um Democrático Português, do
num processo de normalização acordo de regime entre aquelas Movimento da Juventude
histórica. A recuperação de forças políticas que defendiam a Trabalhadora e Movimento
elementos ou monumentos democracia representativa; era, Democrático da Mulher. [Câmara
derrubados pelo franquismo, ou depois, a ‘protecção’ exterior Municipal de Almada (1974,
a eliminação dos monumentos para o próprio processo de Ago. 16). Reunião de Órgãos
franquistas e as homenagens consolidação e enraizamento Autárquicos. (Atas). (Livro 85, fl.
realizadas na democracia, são da democracia e, finalmente, 48)]
reflexo de uma política de atuação a afirmação de um novo 13
Câmara Municipal de Almada
sobre o espaço público que vem posicionamento de Portugal no (1974, Dez. 12). Reunião de
sendo desenvolvida sob o lema concerto das Nações”. Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro
‘década da memória histórica’. Os 6
Arquitecto-Urbanista Etiénne 141-142, Ata 47, fl. 2)
autores concluem que a política de De Gröer: Plano Parcial de 14
Destaque (1999, Jan.). Boletim
supressão de símbolos sem uma Urbanização de Almada Relativo Municipal. (36), 2. Almada.
estratégia efetiva de regeneração à Localização do Centro Cívico, 15
José Alaiz, que viria a falecer
monumental do lugar, leva à 1947. nesse mesmo ano, esteve sempre
permanência de espaços sem 7
Arquitectos-Urbanistas Etiénne ligado ao movimento associativo
memória. De Gröer e Faria da Costa: Plano almadense. Foi fundador do
3
Como exemplo da importância Geral de Urbanização de Almada, quinzenário A Voz de Almada,
das organizações populares s/ data (2ª metade anos 40). publicado pela primeira vez a 1 de

– SÉRGIO VICENTE 151


Janeiro de 1927. Almada. uso dos troféus como símbolo da
16
Alberto Emílio de Araújo foi 21
Francisco Simões foi vereador cidade, a partir da ideia de uma
uma figura ilustre almadense, da Câmara Municipal de Almada, representação identitária que a
que viveu entre 1909 e 1955. é natural de Porto Brandão, e cidade procurava afirmar. Em:
Licenciado em Filosofia Clássica assinava Francisco Simões escultor Câmara Municipal de Almada
e Estudos Canónicos, fez parte e Francisco de Almada pintor. Em: (1982, Jan. 08). Reunião de Órgãos
do Comité Central do PCP na Pintor e escultor. Francisco Simões Autárquicos. (Atas). (Livro 151, Ata
clandestinidade, e foi secretário é artista que orgulha terra natal. 1, fl. 13)
geral após a morte de Bento (1984, Jul., 25). A Capital. Lisboa. 27
CMA, Órgãos do Município,
Gonçalves no Tarrafal. Foi redator 22
Os Nossos Monumentos. (1978, Câmara Municipal, Atas, Livro 148,
principal do jornal Avante! e Jan.). Autarquias Povo. (1). Almada. Ata 14, fl. 258, 6 de julho de 1979
colaborou na Seara Nova e noutras 23
Câmara Municipal de Almada 28
Semedo, F. (1979, Jul. 06). O que
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

publicações de índole literária. (1977, Out. 21). Reunião de ficou por dizer na Inauguração do
Acabaria por morrer vítima das Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro Monumento. Jornal de Almada.
sequelas do desterro no Tarrafal. 146, Ata 24, fl. 110) Almada.
17
O Comandante Sá Linhares foi 24
O monumento aos Perseguidos 29
Os Nossos Monumentos. (1978,
presidente da Câmara Municipal foi adquirido por subscrição Jan.). Autarquias Povo. (1). Almada.
de Almada entre 1947 e 1951, pública para não sobrecarregar 30
Monumento ‘Os Perseguidos’
imediatamente anterior a Aquiles o orçamento da Câmara, em: inaugurado em Almada.
Monteverde. Monumento em Almada aos Homenagem do povo do
18
Transcrição do texto gravado Perseguidos pelo Fascismo. (1979) Concelho aos Resistentes
na parte traseira do pedestal O Diário. Lisboa. Antifascistas. (1979, Jul./ Ago./
do busto: Vitima do fascismo 25
Esta adjudicação vem de Set.). Autarquias Povo. (12).
ainda jovem; professor do liceu; despacho da presidência de 5 de Almada.
foi atirado para o Campo de abril de 1978 e o valor em causa 31
Almada ergue Monumento aos
Concentração do Tarrafal onde foi de trezentos e cinquenta mil Perseguidos. (1979, Jun. 23) A
suportou todas as violências escudos para uma peça que no Capital. Lisboa.
ali praticadas; poucos anos final teria 2 metros de altura sobre 32
Inaugurado monumento em
após a saída daquele campo base em pedra com 1,5 metros. Almada aos perseguidos pelo
da morte veio a falecer vítima Em: Câmara Municipal de Almada fascismo. (1979, Jun. 25) Diário de
de tuberculose agravada pelos (1978, Mai. 19). Reunião de Notícias. Almada.
trabalhos forçados a que foi sujeito Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro 33
As lutas dos antifascistas
durante 8 anos. 147, Ata 11, fl. 110) Almadenses foram nomeadas
19
Câmara Municipal de Almada 26
A Câmara Municipal realizaria pelo representante da União
(1976) Relatório de atividades da posteriormente, já em 1982, de Resistentes Antifascistas
Comissão Administrativa. (16 de quatrocentas réplicas do Portugueses, Manuel Cabrita,
maio de 1974 a 30 de novembro monumento aos Perseguidos em bem como as greves de 1942,
de 1976). Almada. material que imitasse o original 43, 45, e 49, e o envolvimento
20
Uma estátua para Almada. com um assentamento em mogno, entusiástico dos Almadenses
(1977, Nov. 11). Jornal de Almada. isto para que o Município fizesse nas eleições presidenciais de

<<
58, apoiando a candidatura do Barbeitos antifascista preso do 41
Logo em 13 de novembro de
general Humberto Delgado, nas Tarrafal. Ainda, uma mulher 1973 a autarquia adjudicou a
manifestações de rua de 1961 e 62 lutadora, um jovem, um operário, Vasco Pereira da Conceição um
e nas campanhas de 1969 e 1973. um representante do movimento monumento que homenageasse
Também se evocaram as figuras associativo, cinco individualidades Columbano Bordalo Pinheiro;
de Alex (Alfredo Dinis), Gabriel galardoadas com a medalha de de seguida, a 18 de dezembro
Pedro e Alberto Araújo, José Elias ouro de Almada, os presidentes de 1973 a Câmara aprovara
Garcia, José Alaiz, José Carlos das Câmaras Municipais do nosso uma encomenda a António
Pinto Gonçalves, Herculano Pires, distrito ou seus representantes, Duarte, com base numa oferta
Felizardo Artur. Reforçava-se assim os presidentes das Juntas e da Câmara Municipal de Lisboa,
a ideia de que o monumento Assembleias de Freguesias do para um monumento que a
era uma homenagem a todos os nosso concelho, os comandantes autarquia decidira ser a Fernão
democratas antifascistas, a ‘todos dos B.V. de Cacilhas e da Trafaria, Mendes Pinto; Apresentar-
os perseguidos’ pelo antigo um representante da União de se-ia igualmente em reunião de
regime. Sindicatos de Almada e a sobrinha Câmara de 5 de março de 1974, a
34
Para consulta da biografia de do conhecido dirigentes do PS, deliberação sobre uma proposta
Pedro Anjos Teixeira ver: Castro, I. Edmundo Pedro. de um Monumento ao Trabalho,
de. (2005). Anjos Teixeira, Artur e 38
Inaugurado um monumento encomendado ao professor
Pedro: vida e obra. Sintra: Câmara aos perseguidos. (1979, Jun. 29). Joaquim Correia, aprovado e
Municipal de Sintra. Jornal de Almada. Almada. mandado erigir na Praça da
35
“Os Perseguidos”: monumento 39
A nova localização foi Renovação (atual Praça do
antifascista a inaugurar na cidade considerada pelo Município Movimento das Forças Armadas) e
de Almada no próximo dia 24 do privilegiada em relação à um monumento ao Bombeiro, do
corrente. (1979, Jun. 06). Diário de anterior, sustenta-se por passar arquiteto Castro Lobo.
Lisboa. Lisboa. a estar localizada sobre um 42
Três meses passados sobre
36
“Os Perseguidos” Nota Alta nas ‘pódio suspenso’ ganhando a Revolução, a nova Comissão
Festas da Cidade. (1979, Jun. 1). protagonismo na envolvente. Administrativa, em reunião de
Praia do Sol. Almada. A passagem do Metro Sul do Câmara presidida por Fernando
37
Subiram ao estrado o Tejo pelo centro da praça torna Proença de Almeida, decidiu
Governador Civil, os presidentes a área uma praça dura, na em consequência da precária
dos diversos organismos qual as tonalidades de pedra situação financeira da Câmara e
da Câmara (havia Conselho se organizam de acordo com com base numa decisão unânime,
Municipal), o embaixador os diferentes usos do solo. comunicar aos escultores a
da Checoslováquia (Almada [Intervenção no centro. Obras suspensão imediata dos trabalho
geminara-se com Ostrava), os em breve na Praça MFA. (2007, de encomenda dos monumentos.
representantes partidários, entre Jun.). Boletim Municipal. (128), 18. [Câmara Municipal de Almada
eles, Herculano Pires pelo PS (que Almada] (1974, Jun. 20). Reunião de Órgãos
viria a ter homenagem póstuma 40
Almada passa de vila a cidade a Autárquicos. (Atas). (Livro 140, Ata
em escultura), Lopes Graça e 21 de junho de 1973 pelo Dec. Lei 23)]
Romeu Correia, também Henrique nº308/73 de 16 de junho.

– SÉRGIO VICENTE 153


Duas Narrativas para o Meu País
nos Painéis de Almada Negreiros

p o r C r i s t i n a A z e v e d o Ta v a r e s
Professora Associada de Ciências da Arte e do Património na FBAUL e no
PD-FCTAS da FCUL, Investigadora integrada do CFCUL, Head de Arte e
Ciência, investigadora colaboradora do CIEBA.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

La présence de l’œuvre d’Almada Negreiros au cours du


XXe siècle est encore un sujet de réflexion aujourd’hui:
son travail se joue en multiples facettes et dans les Almada Negreiros (1893, S. Tomé e Princí-
mouvements modernes et a été la pour longtemps et pe-1970, Lisboa) artista multifacetado, «po-
sans doute il a exercé de nombreuses influences sur liapto» no entender de Pessoa, «um farol
d’autres artistes. numa época» para Cotinelli Telmo, um «por-
tuguês sem mestre», no dizer do Professor
La modernité d’ Almada a vécu de la figuration et de José-Augusto França, quando inicia os mu-
l’abstraction, mais pour les stations maritimes il y a rais para a primeira gare de Lisboa, é um ar-
surtout travaillé les racines de la culture populaire . tista plástico com uma carreira confirmada.
Almada nous raconte une histoire, réel et fantastique
avec des rapports plastiques aux vitraux de l´Église de Para trás ficavam os anos de desenhador e
Fátima, comme on voit a Alcântara, mais il va près du publicitário da «Alfaiataria Cunha» (1913),
cubisme avec Conde de Óbidos. Ici c’est le drame du a participação em inúmeros jornais e revis-
peuple qui a parti pour d’autres pays, et cette dénonce tas, algumas como diretor, desde a «Luta»,
a mis an danger les fresques. Mais malgré tout Almada «Papagaio Real «, «ABC a rir» e o empenho
continue a rêver de sa Lisbonne près du Tejo qu’il avait vanguardista interessado no futurismo na
travaillé avant. participação no Orfeu como poeta. De 1915
datam a «Cena do Ódio» dedicada a Álvaro
de Campos, o «Manifesto Anti-Dantas», a no-
vela «Engomadeira» publicada dois anos de-
pois, «Litoral» dedicado a Amadeo em 1916,
e a «Conferência Futurista» de 1917 no Teatro
República, atualmente S. Luís, em que a per-
formance e a palavra se juntaram. No mes-
mo ano publicou ainda «K4 Quadrado Azul»
numa tipografia do Norte por intermédio de

<<
Amadeo, que foi motivo de um quadro de dos temas prediletos de Cézanne. Almada
Eduardo Viana, e motivo para a prisão de figuraria com Eduardo Viana, António Soa-
Viana e do casal Delaunay, devido às suspei- res, Jorge Barradas, Stuart Carvalhais, Ber-
tas de espionagem. Entretanto e desde Maio nardo Marques e José Pacheco, que havia
de 1912, Almada participou em Lisboa no I proposto esta seleção de nomes juntamen-
Salão dos Humoristas Portugueses, depois te com Norberto Araújo, para a decoração
mais duas vezes em 1913 e 1920, afirmando do café que se tornaria símbolo da moder-
a sua posição de transgressão relativamen- nidade de Lisboa e lugar de convívio artísti-
te aos valores tradicionais e académicos, co- co e intelectual durante décadas. Um outra
muns a uma série de artistas incluindo Can- pintura de dimensões razoáveis seria o «Nu»
to da Maia, António Soares, Jorge Barradas, destinado ao vestiário das senhoras, enco-
Stuart Carvalhais ou Botelho. mendado em 1926 para o Bristol Clube, e
que nesse ano por vontade do proprietário
Os anos 20 depois da «aventura futurista» Mário Ribeiro sofre uma remodelação com
foram marcados pela presença de Alma- a colocação de obras de escultores e pin-
da na «Exposição dos 5 Independentes» tores modernistas. Para além de Almada e
(1923), continuando a publicar: «Pierrot e Eduardo Viana, havia ainda esculturas de
Alecrim» de 1924 e «Nome de Guerra» no Canto da Maia e Leopoldo de Almeida. Nu
ano seguinte, e a trabalhar como desenha- pálido, e vertiginosamente alongado, qual
dor no «Sempre Fixe», «Diário de Notícias» Vénus de inspiração modernista, olhando-
e «Diário de Lisboa» e realizando também -se languidamente no espelho, sobressai
cartazes. Colabora na «Ilustração Portugue- o corte do cabelo «a la garçonne» que as
sa» dirigida por António Ferro e no «ABC a estrelas de cinema nos anos 20 exibiam na
rir» e na revista «Contemporânea». Ainda afirmação da modernização de costumes.
em 1925 duas pinturas suas, haviam de ser Um nota de cor vibra em toda a composi-
penduradas na Brasileira do Chiado remo- ção: umas chinelas de salto alto soltas nos
delada então, sendo primeiro mostradas pés, completando a notação erótica.
na S.N.B.A. Tratam-se de «Auto-retrato» e
«Banhistas». A primeira dando conta de um Nos finais de 20, Almada parte para Madrid
auto retrato em grupo em torno de uma colaborando nas revistas Gaceta Literaria,
messa de café, no qual figuravam (da es- no diário El Sol e La Farsa, entre outros, es-
querda para a direita) a bailarina e atriz es- creve duas peças para teatro e realiza em
panhola Júlia de Aguilar, a atriz Aurora Gil e 1929 as decorações murais para vários ci-
o Prof. Dória Nazaré e Almada, dando ecos nemas como o Cine-Teatro San Carlos que
do expressionismo e do cubismo.»Banhis- comemorava a entrada do cinema sonoro.
tas» apresenta numa composição de volu- Regressa a Portugal em 1931, depois de ter
mes planificados, duas figuras femininas em acabado a peça «Público em cena» que só
fato de banho e touca sentadas numa rocha, será publicada postumamente em 1971.
tendo o mar e um barco à vela como pano
de fundo, evocando simplificadamente um

– CRISTINA AZEVEDO TAVARES 155


Na década de 30, Almada firma alguma es- Pardal Monteiro, a inscrever-se num bairro
tabilidade casando-se com Sara Afonso, e novo e numa nova paróquia (freguesia das
nascem os filhos respetivamente em 1934 Avenidas Novas) por vontade do Cardeal
e 1938. Participa em diversas exposições na Cerejeira. Dois anos depois Almada seria
S.N.B.A., nomeadamente o II Salão de Arte um dos artistas decoradores da Exposição
Moderna (1938), pois esta instituição torna- do Mundo Português realizando vitrais para
-se permeável aos modernistas depois da o Pavilhão da Colonização e vários cartazes
«Questão do Novos» em 1921, em que An- comemorativos. Executa os dois painéis
tónio Ferro assume protagonismo na de- para a estação dos Correio de Aveiro e ou-
fesa dos «novos» contra «os bota de elás- tro para os Restauradores destruídos em
tico», coadjuvado por Almada. E em 1933 1951, que Cotinelli Telmo considerava de-
realiza na Galeria UP de António Pedro tentores de uma «Doce humanidade (...) -
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

uma exposição individual, e no Clube Ale- nessas figuras de mulheres: a que se afin-
mão uma exposição com o escultor alemão ca na escrita da carta e a que se deleita na
Hein Semke, chegado a Portugal um anos leitura da carta recebida» (...).1 Entre 1939
antes, e o designer suíço Fred Kradolfer, e 1940 realizou os frescos com temas varia-
que desde 1928 estava instalado no nosso dos desde o planisfério e quatro alegorias
país. Ainda em 1933 Almada desenha dois a Portugal e à Imprensa para o edifício do
cartazes para o filme de Cotinelli Telmo «A Diário de Notícias na Av. da Liberdade da
Canção de Lisboa» e um para o Secretaria- traça de Pardal Monteiro.
do de Propaganda Nacional («Votai a Nova
Constituição»), marcando a sua colabora- Em 1941 tem lugar a exposição individual
ção com o Estado Novo. “Almada-Trinta Anos de Desenho”, realiza-
da pelo S.P.N. e também participa na 6ª Ex-
Em 1935 projeta um painel decorativo para posição de Arte Moderna do S.P.N. entre
a Casa da Moeda convidado pelo arquite- outras. No ano seguinte a consagração é
to Jorge Segurado, mas que não vem a ser reconhecida amplamente através da atri-
executado, e no ano seguinte, estuda o pai- buição do Prémio Columbano na 7ª Ex-
nel decorativo para o Café Arcadas no Esto- posição de Arte Moderna do S.P.N. com a
ril em colaboração com o arquiteto Carlos pintura “Mulher” (Lisboa).
Ramos. Com este mesmo arquiteto e o es-
cultor Leopoldo de Almeida realiza o proje- O ano de 1943 traz a encomenda dos
to que concorre ao II Concurso para o Mo- frescos para a Gare Marítimas, através do
numento ao Infante de Sagres. Eng. Duarte Pacheco apreciador da obra
de Almada(segundo o testemunho de
Em 1938 Almada conclui os vitrais de índole Sara Afonso). Iniciam-se os primeiros es-
mais naturalista e inspirados nos textos bí- tudos dos frescos que seriam terminados
blicos para a Igreja de Nossa Senhora de Fá- em 1945 e o tema escolhido pelo pintor
tima na Av. de Berna em Lisboa, edifício de para um dos trípticos foi a lenda da Nau
linhas modernas, projetado pelo arquiteto Catrineta, romance popular, que segundo

<<
Rui-Mário Gonçalves, o pintor considera- pelas mesmas dimensões 6,20 metros de
va que unia a “tradição popular” ao tema altura por 4 de largura. No primeiro fres-
do “mar”2. Almeida Garrett tinha-o incluído co o capitão e o gajeiro do alto dos mas-
no seu Romanceiro (1843-1851) e a prove- tros procuram ver com um óculo as terras
niência tem a ver com o relato da História de Portugal, enquanto os marinheiros de-
Trágico- Marítima em que se narra o nau- sesperados olham para as solas cozidas. A
frágio de um barco vindo do Brasil que fica mesa tem um tambor pousado e cartas de
à deriva por ser atacado por corsários. “A jogar espalhadas, e nas velas está o diabo
Nau Catrineta” evoca a vida dos marinhei- e um esqueleto simbolizando a morte. No
ros portugueses embarcados e à deriva, segundo fresco vemos apenas uma par-
comendo sola que estava de molho desde te dos mastro principal e a as velas com o
a véspera. É uma narrativa com um fundo anjo da guarda a proteger a nau. Ao longe
real misturada com a fantasia, que encarna numa falésia está um cavalo branco, e mais
a luta do bem contra o mal e a saudade. distantes as três filhas do capitão, uma a co-
O gajeiro transforma-se na figura do diabo zer, outra a fiar e a última a chorar. Por fim
que não aceita casar com umas das filhas o terceiro fresco mostra-nos o final, a nau
do capitão - a mais formosa - pois preten- varada, o capitão salvo abraçando as três fi-
de roubar-lhe a alma, mas o capitão res- lhas, rodeado pelos marinheiros e popula-
ponde-lhe: «Renego de ti demónio/Que res, incluindo um marujo e uma mulher de
me estavas a tentar!/A minha alma é só de vermelho que Almada teria visto anterior-
Deus;/O corpo só do mar»3. É a vez do anjo mente e retratou aqui, e no topo esquerdo
bom intervir evitando que o capitão se afo- o anjo da guarda em pé triunfando sobre
gue, e assim a Nau Catrineta acaba por va- o demónio vencido, espezinhado no chão.
rar em terra, terminando num final feliz.
Do outro lado, o tríptico é constituído por
Com esta narrativa, que evoca a epopeia de imagens de Lisboa representando três vis-
um povo, e a presença dos seus valores mo- tas da cidade. Todas elas partem da zona do
rais, Almada apropria-se de um discurso de rio para a urbe e descrevem tarefas carac-
cariz popular- sabendo que essa apropria- terísticas da vida à beira Tejo: no primeiro
ção do popular genuíno era parte consti- fresco, no primeiro plano, mulheres robus-
tutiva do porta estandarte do modernismo tas, as varinas, «seus troncos varonis recor-
por toda a Europa fora - mais do que expor dam-me pilastras»4 cantadas assim por Ce-
um dos aspetos defendidos pela «política sário Verde no poema O sentimento dum
do espírito» de António Ferro, a quem falta- ocidental I Avé- Marias e também Almada,
vam poucos anos para ser destronado. varinas carregando à cabeça canastas de
carvão empilhado em pirâmide, e percor-
A lenda da Nau Catrineta é apresentada rendo descalças um passadiço, tendo por
em três frescos estabelecendo uma conti- pano de fundo os barcos; no segundo fres-
nuidade narrativa que não existe na outra co, em primeiro plano uma vista das trainei-
parede oposta, aliás suportada também ras de chaminés listadas a vermelho e bran-

– CRISTINA AZEVEDO TAVARES 157


co e por detrás os barcos típicos do rio Tejo Por último, o fresco intitulado «Ó terra
como o varino e uma fragata; e no terceiro onde nasci» uma cena rústica, em tempo
fresco as peixeiras separando o peixe para a de romaria, mostra-nos o namoro do ma-
venda enquanto uma delas coloca a canas- rujo e da rapariga de vestido e xaile ver-
ta à cabeça, tendo este momento como ce- melhos junto a uma ermida decorada fitas
nário o rio com os varinos e fragatas, e por e balões. Mais ao longe uma mulher debai-
detrás a Sé de Lisboa e o Castelo e S. Jorge xo de um chapéu de sol vende queijadas e
ao fundo. Por cima uma frase Quem não viu atrás à sombra de uma árvore um grupo jo-
Lisboa não viu coisa boa. vens faz um piquenique. Mais distante po-
demos ver o topo de uma pequena aldeia
Dois outros frescos avulso representam a caiada, com as casa sobrepostas umas nas
Lenda do Milagre da Nazaré segundo a outras sobre a colina.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

qual o intrépido D. Fuas Roupinho, cavalei-


ro templário e primeiro Almirante da Arma- Este lirismo quase nostálgico de uma Lis-
da Portuguesa que lutou contra os mouros boa virada ao Tejo e de um Portugal rústico,
sob o comando de D. Afonso Henriques, segundo Rui-Mário Gonçalves estabelece li-
se salvou ao não ter caído num precipício gações naturais à « Histoire du Portugal par
da Nazaré quando caçava um veado, em Coeur» que Almada havia escrito, em Pa-
dia de nevoeiro. Em aflição e desespero ao ris em 1919. Observamos uma linguagem
evocar o nome de Nossa Senhora, milagro- simplificada mas de raiz naturalista, não
samente cavalo e cavaleiro são salvos, mas sendo alheia também à fotografia da épo-
o testemunho desse momento ficou na ro- ca ou os filmes de Leitão de Barros como
cha onde se podem ver as marcas das patas «Nazaré, Praia dos Pescadores» (1929) e
traseiras do cavalo. (Bico do Milagre). Reco- «Maria do Mar» (1930). Contudo a receção
nhecido, D. Fuas Roupinho mandou erguer positiva por parte do público a estes frescos
uma ermida no local onde ocorreu este epi- decorativos não foi repetida na intervenção
sódio. A pintura oferece-nos o momento em de Almada Negreiros na Gare Marítima da
que o cavalo de D. Fuas afinca as patas tra- Rocha do Conde Óbidos.
seiras no solo e o veado cai no precipício.
Ao longe surge a imagem de Nossa Senho- Para estes segundos frescos, os estudos
ra. Por debaixo da falésia a praia mostra-nos iniciais são datados de 1945, e ficariam ter-
os pescadores nas suas fainas vestindo ca- minados em 1948, pois Almada trabalhou
misas e calças de quadrados, capa e barre- nesta obra durante dois anos e meio, e só
te de lã na cabeça trazendo as redes do mar depois os começou a executar sozinho,
para a areia quente da praia, enquanto as sem ajudante. Inicialmente pensou como
mulheres de capa e de chapéu com borla tema tratar do episódio mítico do «Rapto
estão a cozer as redes, e um pescador dor- da Europa» tendo depois desistido. São
mita à sombra do barco varado em terra. Ao dois grupos de uatro frescos: um tem por
lado uma âncora e uma corda desenham base a vida ribeirinha, estabelecendo uma
sombras e arabescos na areia. continuidade narrativa com as pinturas da

<<
gare anterior; o outro grupo foca um tema pé olha atentamente para a trapezista. À
novo na obra mural de Almada: a partida frente um barco com o rapaz do tambor, um
das gentes, emigrando para outras para- outro saltimbanco e uma mulher com um ar
gens, através do mar em navios de grande cansado. No último plano estão os popula-
calado, para a América do Sul, Brasil sobre- res de olhos bem abertos, narizes empina-
tudo e também África, assim como a che- dos no ar e pés fincados no chão.
gada de outros.
Do outro lado, apenas o cais com as pes-
A ligação ao rio Tejo e ao mar, não é novi- soas a despedirem-se uns dos outros, os
dade relativamente à narrativa anterior em que partem e os que ficam, tal como José-
Alcântara, mas o tema da emigração e a Augusto França afirmou «Os emigrantes
linguagem mais próxima do cubismo pra- com a sua bagagem de esperança e já de
ticado nos anos do pós-guerra com André saudade» 5, e por último, um homem traba-
Lhote, Pignon e Fougeron, afastam definiti- lhando nas obras do porto subindo os an-
vamente Almada do naturalismo lírico ainda daimes, e por detrás a proa do navio com
presente na gare anterior. um marinheiro. O contraste entre uma nova
vida e o quotidiano de quem fica.
O tríptico evocando Lisboa foca o domin-
go lisboeta à beira Tejo: Um passeio numa A geometria das composições que era sen-
bateira, representando uma mulher tenta tida na primeira gare, é agora muito mais
agarrar um chapéu de palha de criança que saliente pelo jogo de alinhamento das figu-
se precipita na água, um rapaz sentado no ras, pelas retas e diagonais das escadas e
cais segurando uma rede de pesca, um ca- dos guindastes, pelas traves de madeira do
sal abraçado, e no fundo uma janela aber- andaime sobreposto à murada da proa do
ta de uma casa burguesa com um terraço navio. As figuras, ainda na série dos saltim-
por cima, com um jovem casal apoiando- bancos são planificadas, geometrizadas, ou
-se no parapeito, e mais afastada uma trai- cruzando os xailes e os corpos em abraços
neira. O seguinte fresco tem como cenário sofredores, ou ainda como meras sombras
um estaleiro, e retoma o tema das varinas encostadas ao cais. E embora a harmonia
uma com a canasta à cabeça e a outra sen- cromática se rompa aqui e ali em vermelhos
tada apoiando o queixo na mão. Por detrás, saturados, laranjas e azuis, o desenho e a li-
um barco em reparação. Ainda no primei- nearidade dominam as composições como
ro plano estão dois rapazes numa bateira, uma espécie de malha subjacente.
um segura um remo e o outro uma grande
rede de pesca. No último fresco, temos um Tal como foi referido anteriormente estes
grupo de saltimbancos no plano médio: frescos das última gare não foram tão bem
o homem que cospe fogo e os acrobatas, aceites como os primeiros. Sara Afonso6
uma dos quais está agarrada ao trapézio nos seus testemunhos contava que as pes-
por uma perna e uma mão, enquanto um soas não gostavam das gentes dos circo,
faz acrobacias no solo, e a outra figura em os saltimbancos que Almada representou,

– CRISTINA AZEVEDO TAVARES 159


e que ainda quando o mestre estava aca- cluindo o poeta e seu amigo Fernando Pes-
bar os frescos, sentiu reações negativas de soa. Nos anos cinquenta o abstracionismo
quem por ali passava. Contudo ao focar o começa a ter maior visibilidade na obra de
tema da emigração, Almada participava na Almada de tal modo que tomará conta de-
denúncia da situação difícil em que o povo liberadamente da última obra que realizou,
se encontrava, sob o domínio de um regime precisamente “Começar”.
ditatorial, que não abria mão, mesmo numa
Europa vivendo o pós-guerra. Por isso, Igualmente na mesma década no ano de
houve vontade de que estes frescos, acusa- 1955, um pintor de uma outra geração, Luís
dos «por excesso de modernismo»7 fossem Dourdil pintava um fresco de dimensões
destruídos, como haviam sido os frescos no grandes no Café Império, que sofreu restau-
Cinema Batalha por vontade do Presidente ro recentemente, em 2014, ano que marcou
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

da Câmara do Porto, à altura. Evocativos das o centenário sobre o nascimento do pintor.


festas de S. João e pintados por Júlio Pomar Dourdil realiza um mural intimista pintado a
em 1946 e 47, tendo o cinema sido inau- têmpera, afastando-se das epopeias de Al-
gurado com os frescos inacabados, pois o mada. Coloca todas as figuras majestosas e
pintor havia sido preso, as pinturas são apa- monumentais conversando entre si, jogan-
gadas em 1948, e outras obras de escultu- do-se em planos geometrizados e grandes
ra que decoravam o edifício foram mutila- manchas de cor, leves, como o sussurro das
das. Contudo em Lisboa, a intervenção do palavras, ditas no café, por debaixo do tilin-
Dr. João Couto, historiador de reconhecido tar das chávenas e das colheres. Nada tem a
mérito, Director do Museu Nacional de Arte ver com Almada e muito menos com os fres-
Antiga, e que desempenhava funções de cos das gares. É um outro tempo, e disso Al-
vogal na Junta Nacional da Educação, sain- mada nos soube dar conta como ninguém.
do em defesa da obra de Almada Negrei-
ros, impediu que tal viesse a acontecer. Este texto foi apresentado no Colóquio “Do quadro na nar-
ração à pintura narrativa/ Du tableau dans le récit à la pein-
Nos anos 50, Almada deu continuidade à ture narrative” que teve lugar na Casa das Histórias, Cas-
sua obra como decorador: realizou painéis cais de 18 a 20 de Fevereiro de 2014.
em mosaico (Bloco das Águas Livres), vitrais
(Fábrica de Fogões Portugal), tapeçarias
(Hotel Ritz, Tribunal de Contas) e toda a in-
tervenção artística em pedra incisa da cida-
de universitária de Lisboa, indo culminar no
Painel Começar (1969) na Fundação Calous-
te Gulbenkian. Contudo, Almada não volta-
ria a repetir nenhuma das narrativas ante-
riores integradas nas gares, embora tenha
retomado mitos e lendas e relembrado as
figuras marcantes da cultura portuguesa, in-

<<
– Bibliografia in “PacheKo, Almada e a
Contemporânea”[coord. de Daniel
Almada Negreiros (dir. Joaquim Pires]. Lisboa: Ed. Centro Nacional
Vieira). Lisboa: Ed. Bertrand de Cultura, Bertrand, 1993.
Editora, 2006 (dir. Joaquim Vieira).
Centro Cultural De Belém - – Notas
Almada a Cena do Corpo;
comissário José Monterroso 1
In CENTRO CULTURAL DE
Teixeira. Lisboa: Ed. Fundação das BELÉM - Almada a Cena
Descobertas Centro Cultural de do Corpo; comissário José
Belém, 1994. Monterroso Teixeira. Lisboa:
França, José-Augusto - Almada Ed. Fundação das Descobertas
o Português sem mestre. Lisboa: Centro Cultural de Belém, 1994.
Estúdios Cor, 1974. (pág.101)
Fundação Calouste Gulbenkian 2
In FUNDAÇÃO Calouste
- Os anos 40 na arte portuguesa; Gulbenkian - Almada. Lisboa:
comissário Fernando de Azevedo, Acarte, 1985.
programação José-Augusto 3
In GARES Marítimas Passenger
França. Lisboa: Ed. Fundação Terminals Alcântara Rocha do
Calouste Gulbenkian, 1982. Vol.1 Conde de Óbidos. Lisboa: Ed.
(6 volumes). APL- Administração do Porto de
Fundação Calouste Gulbenkian - Lisboa, S.A., 1999.
Almada. Lisboa: Acarte, 1985. 4
In GARES Marítimas Passenger
Gares Marítimas Passenger Terminals Alcântara Rocha do
Terminals Alcântara Rocha Do Conde de Óbidos. Lisboa: Ed.
Conde De Óbidos. Lisboa: Ed. APL- Administração do Porto de
APL- Administração do Porto de Lisboa, S.A., 1999.
Lisboa, S.A., 1999. 5
In FRANÇA, José-Augusto -
Negreiros, Maria José Almada, Almada o Português sem mestre.
Conversas com Sarah Afonso. Lisboa: Estúdios Cor, 1974.
Lisboa: Ed. Arcádia, 1982. 6
Ver de Maria José Almada
Revista de História da Arte, vol.2 Negreiros , Conversas com Sara
, Almada Negreiros. Lisboa: Ed. Afonso. Lisboa: Ed. Arcádia, 1982
Instituto de História da Arte, FCSH 7
IN FUNDAÇÃO CALOUSTE
UNL,2012 [Consultado 31 de GULBENKIAN - Os anos 40 na arte
Agosto de 2015].Disponível em portuguesa; Lisboa: Ed. Fundação
URL: http/ficheiros/Revista%20 Calouste Gulbenkian, 1982. Vol.1
Almada%20Negreiros.pdf.
Tavares, Cristina De Azevedo,
“José Pacheco e os Novos”,

– CRISTINA AZEVEDO TAVARES 161


Olhar em Movimento: As Intervenções
Cerâmicas de Catarina e Rita Almada
Negreiros no Ascensor da Bica e na Estação
Sul/Sueste do Terreiro do Paço

por Daniela Simões


– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Mestre em História da Arte pela FCSH-UNL, investigadora e bolseira do


Instituto de História da Arte - Fundação Millennium BCP.

Catarina and Rita Almada Negreiros are two Portuguese


Lisbon based architects whose work goes far beyond the
architecture field. During the last years they have created Introdução
several urban artistic interventions which aim to question Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão
the perception act by challenging the viewer’s vision ali perante nós, só lá estão porque despertam
through optical illusions based on colour, line, relief and um eco no nosso corpo, porque ele as acolhe.
movement, rescuing some of the main principles of Op (MERLEAU-PONTY:1992, 23)
Art and Kinetic Art to the Portuguese contemporary art
scene. This article describes and analyzes two of their A Fenomenologia da Percepção constituiu
major works – Cota Zero (2011) and Vai Vem (2013) – um dos campos de investigação centrais da
both using tiles as the preeminent material and both obra filosófica de Maurice Merleau-Ponty
located in central transport infrastructures of the city, (1908-1961), cujo trabalho foi marcado por
showing how these interventions interfere and interact um interrogar constante da percepção, en-
with the users’ perception during their daily journeys. quanto processo simultâneo de descodifi-
The privileged relation Portuguese art has established cação e construção do mundo. Encarando-
with the use of tiles during the last five centuries, make -a como um acto corpóreo, isto é, assente
them a frequent choice by contemporary architects and nas sensações recolhidas pelos sentidos,
artists whose projects and works aim to rehabilitate and é através do corpo que o indivíduo atribui
“humanize” old and (sometimes) degraded parts of the sentido à realidade, pois, como refere o au-
city and thus addressing new meanings and functions to tor, só se vê aquilo para que se olha (MER-
the public space. LEAU-PONTY:1992, 19), reforçando assim a
Hence, it is also important to question how the relation interacção contínua entre corpo, espaço e
between public art and public space takes place movimento como base do fenómeno per-
nowadays and how can the first contribute to a better and ceptivo. O movimento assume-se, por isso,
more profitable relation between the city and its citizens. como a chave da recolha de informação

<<
sensorial, uma vez que as sensações apa- concepção de intervenções artísticas em es-
recem associadas a movimentos e cada ob- paços públicos, onde a utilização do azulejo
jecto convida à realização de um gesto, não se assume como marca fundamental. Partin-
havendo, pois, representação, mas criação, do da problematização dos desafios que se
novas possibilidades de interpretação das colocam à arte pública na sua relação com
diferentes situações existenciais (NÓBRE- o espaço público e seus utilizadores, serão
GA:2008, 142). apresentadas duas intervenções das auto-
ras - Cota Zero (2011) e Vai Vem (2013) –
A proposta da fenomenologia da percep- analisando o modo como estas interagem
ção, aliada aos estudos da Gestalt (dos quais com a toponímia, arquitectura e imaginário
a primeira foi igualmente devedora) estive- da cidade de Lisboa e, em particular, com as
ram na base de muitas das propostas artís- estruturas que as acolhem, ambas ligadas
ticas desenvolvidas ao longo da segunda ao transporte de passageiros – O Ascensor
metade do século XX1, as quais procuraram da Bica (Raoul Mesnier du Ponsard, 1892) e
questionar a percepção da obra de arte por o novo átrio da Estação Sul Sueste (Cottinel-
parte do espectador, através da introdução li Telmo, 1932) respectivamente.
de movimento nas próprias criações artís-
ticas, desafiando, desta forma, o carácter Os desafios da Arte Pública na cidade
estável e unificado da imagem percepcio- contemporânea
nada. Este desejo de interpelação do obser- Desde o final dos anos 60 que se vem as-
vador desprevenido, com vista à criação de sistindo à generalização do conceito de arte
uma conexão sensorial com a obra, tão fu- pública, o qual, não obstante as diferentes
gaz quanto mutável, permanece e renova-se acepções e significados que comporta, en-
(talvez mais do que nunca) no cenário actual contra-se intimamente ligado à ideia de es-
da arte contemporânea, não só em contexto paço público3. Ainda que recorrendo a uma
museográfico e galerístico, mas também, e certa generalização, poder-se-á afirmar que
sobretudo, no espaço público, aquando da o termo arte pública se refere às obras de
concepção de obras que integram o espaço arte e intervenções artísticas concebidas
urbano, renovando estruturas pré-existentes para espaços de acesso público4, com vis-
ou integrando novas edificações. Na base ta à criação de uma relação mais próxima
destas intervenções encontra-se frequente- entre estes e as comunidades e utentes que
mente um desejo de reabilitação e “huma- neles circulam e que com eles se relacio-
nização” destes locais, atribuindo-lhes novas nam5. Ou seja, a arte pública desvela e re-
funções e possibilitando o seu usufruto por vela um lugar, faz parte do quotidiano dos
parte da(s) comunidade(s). seus utentes, e pode dizer-se que simulta-
neamente produz como que uma suspen-
Estes parecem ser os pressupostos do tra- são desse mesmo quotidiano, transforma o
balho de Catarina Almada Negreiros (1972) espaço público em espaço real, povoado
e Rita Almada Negreiros (1969)2, cujo exer- e diversificado, suprime um espaço inicial-
cício da arquitectura é acompanhado pela mente vazio para o tornar transformável e

– DANIELA SIMÕES 163


habitável. A presença da obra de arte no es- through the space, not to be aroused by it.
paço público convida o espectador a ima- The physical condition of the travelling body
ginar como se pode dispor esse espaço, na reinforces this sense of disconnection from
situação que tem pela frente face a um dado space. Sheer velocity makes it hard to focus
local e a uma dada obra de arte, e como se one’s attention on the passing scene (SEN-
podem mudar as distâncias vividas no espa- NETT: 1994, 17-18).
ço público (CORREIA:2013, 25-26). No fun-
do, trata-se da criação de um diálogo único Os transportes como espaço privilegiado
e íntimo entre o indivíduo e o espaço que o para a Arte Pública em Portugal
acolhe, tornando este último mais habitável O papel central dos transportes nas cida-
através da experiência sensorial e atribuição des, verdadeiras artérias de comunicação,
de significado que o primeiro lhe confere6. responsáveis por fluxos diários de passagei-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

ros, cujas estruturas se destacam e impõem


Porém, este reequacionar da relação entre ao longo do traçado urbano, tem levado a
indivíduo e espaço público que a arte públi- que, nas últimas décadas, sejam encarados
ca promove parte, frequentemente, de uma como locais privilegiados para a criação de
atitude crítica por parte de artistas (também obras de arte pública. Tal opção, quer por
verificável nos campos da arquitectura, ur- parte de artistas, quer das entidades res-
banismo e design) em relação à descone- ponsáveis pelas comissões, baseia-se não
xão entre corpo e espaço que caracteriza só no elevado número de indivíduos que,
o dia-a-dia na cidade contemporânea. Esta por via da utilização do transporte, contac-
desconexão apresenta a sua génese no sé- tarão com as obras, mas também porque
culo XIX, aquando da formação da cidade a presença de obras de arte em estações
oitocentista7, caracterizada pela sensação (comboios, metro), cais (fluviais, marítimos),
de anonimato entre os seus habitantes, mas terminais (rodoviários) e aeroportos fun-
também pela ideia de movimento contínuo, cionam em muitos casos como um factor
fruto não só da crescente velocidade dos de encorajamento para a sua utilização, ao
transportes, como do aumento demográ- tornarem os seus espaços arquitectónicos
fico no espaço urbano. O indivíduo é, por mais atractivos visualmente, enfatizando as-
isso, embalado num ritmo que é o da pró- sim, para além da dimensão física, a com-
pria cidade, tão rápido quanto fragmenta- ponente social do local (MILES:1997, 132)8.
do, deixando poucas oportunidades para o
exercício da experiência sensível. Tal como Em Portugal, a criação da rede do Metropo-
apontado por Richard Sennett, este ador- litano de Lisboa9, cujo autor do projecto foi
mecimento dos sentidos é um resultado o arquitecto Francisco Keil do Amaral (1910-
of the physical experience which made the 1975) reflecte esta atitude na opção pelo
new geography possible, the geography of emprego do azulejo na decoração de todas
speed (....) As urban space becomes a mere as estações, familiarizando, deste modo, os
function of motion, it thus becomes less utentes com o novo transporte através da
stimulating in itself; the driver wants to go presença de um material caro à tradição ar-

<<
quitectónica nacional. Para além da neces- (1926-), Manuel Cargaleiro (1927-), entre
sidade de tornar as novas estações visual- vários outros. No contexto do presente ar-
mente apelativas e acolhedoras, restrições tigo considera-se relevante salientar a obra
orçamentais estiveram na base da opção de Eduardo Nery, uma vez que, tal como os
de Keil do Amaral pela integração do azu- revestimentos azulejares criados por Ma-
lejo no revestimento das paredes dos átrios, ria Keil para a rede de metropolitano de
escadarias gares de cada estação, tendo o Lisboa, também os da autoria deste artista
arquitecto escolhido Maria Keil (1914-2012) apresentam polos de contacto com as pro-
para a concepção dos respectivos projectos postas de Catarina e Rita Almada Negreiros.
cerâmicos. Estes deveriam aliar a compo-
nente artística à da funcionalidade do local Eduardo Nery foi um dos primeiros artistas
que os acolhia, segundo os novos pressu- portugueses cuja obra apresentou, ao lon-
postos modernistas, pelo que uma das di- go das décadas de 60 e 70, preocupações
rectrizes impostas foi a do predomínio de semelhantes às do movimento Op Art, no-
uma decoração geométrica, uma vez que, meadamente no questionamento da ambi-
porque os espaços a animar eram zonas de guidade perceptiva do objecto através da
passagem, não deveria haver lugar para mo- exploração e inclusão de jogos de trompe
tivos que provocassem a paragem dos uten- l’óeil suas nas telas e, posteriormente, nas
tes (CASTEL-BRANCO: 2000, 14). Maria Keil tapeçarias e painéis azulejares concebidos.
concebeu assim composições assentes na Com uma régua rodando geometricamen-
sua maioria em padrões geométricos cujos te sobre si própria ou em vários sentidos da
ritmos e dinâmicas não só se adaptassem superfície – como processo despertador de
às características arquitectónicas dos espa- imagem – cria paisagens de abstracta, e ao
ços a revestir (átrios, lanços de escadas, ...), mesmo tempo, lírica espacialidade. (…) O
como ao ritmo apressado dos passageiros10. princípio da economia na aplicação de co-
res (…), o seu limitado uso em degradé, e
Para além destes aspectos, o emprego do os jogos geométricos puros, as figuras pu-
azulejo em grande escala permitiu reabili- ras (círculo, o triângulo, o quadrado, a linha
ta-lo no contexto do movimento moderno recta), os volumes autênticos ou sugeridos
na arquitectura, resgatando-o da secunda- virão estruturar, depois, um alfabeto próprio
rização a que havia sido votado no período e, seguidamente, um discurso, ou mesmo
inicial do Estado Novo. Esta atitude de va- vários discursos, inovador. No qual, ou nos
lorização e exploração das potencialidades quais, o espaço, a condição da espacialida-
do azulejo no espaço urbano encontra-se de, do plano, da profundidade, é sempre o
patente em várias intervenções de arte pú- dispertar da acção visual11 ou de diversas
blica ao longo da cidade de Lisboa (e não acções e, simultaneamente, os seus ecrãs
só), das quais se destacam os trabalhos de (AZEVEDO:1997, 20-21).
Eduardo Nery (1938-2013), Rolando Sá No-
gueira (1921-2002), Querubim Lapa (1925- Tais premissas encontram-se presentes nas
), João Abel Manta (1928-), Júlio Pomar várias obras de revestimento azulejar cria-

– DANIELA SIMÕES 165


das por Eduardo Nery para espaços públi- contribuiu, por um lado, para o alargamen-
cos, nomeadamente para a Sociedade de to das potencialidades e funções do azulejo
Cervejas em Vialonga (1966); a decoração na sua relação com a arquitectura e urbanis-
do Banco Nacional Ultramarino em Torres mo, por outro foram estas mesmas poten-
Vedras (1972); o revestimento tridimensio- cialidades e marcas estruturais – cor, brilho,
nal para o pátio do Centro de Saúde de cambiantes de luz, efeitos ópticos, relevo,...
Mértola (1981); um painel para o Museu da – que levaram a que inúmeros artistas o ele-
Água da EPAL, Prémio Municipal de Azule- gessem como protagonista no processo de
jaria (1987); o conjunto cerâmico para o in- questionamento do acto perceptivo que as
terior da Sede do Banco Nacional de Crédi- suas obras propõem.
to Imobiliário (1991), actual Banco BIC, em
Lisboa; o revestimento dos pilares dos via- Neste contexto insere-se o contributo de
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

dutos da Segunda Circular no Campo Gran- Catarina e Rita Almada Negreiros que, ao
de, em Lisboa; a estação Campo Grande do longo dos últimos anos, em várias das inter-
Metropolitanos de Lisboa (1993); um painel venções realizadas na capital, optaram pelo
de placas cerâmicas e viadutos da Av. Infan- emprego do azulejo, em particular do “azu-
te Santo, Lisboa (1994 e 2002) e uma grande lejo cinético”, concebido em parceria com
intervenção para o exterior da Estação de a fábrica Viúva Lamego e que recupera as
Tratamentos de Água da Asseiceira, em To- dimensões 14x14cm, características da azu-
mar (2010) (http://redeazulejo.fl.ul.pt/noti- lejaria nacional. Este modelo azulejar, cujo
cias,0,589.aspx). As intervenções de Eduar- perfil em ziguezague, aliado ao possível uso
do Nery e Maria Keil são, por isso, exemplos de duas cores e as diferentes configurações
primordiais do emprego do azulejo em es- - plano, com uma dobra, com duas dobras
paços públicos com vista à sua humaniza- ou com quatro dobras -, mostra e propõe ao
ção, tornando-os não só mais atractivos observador, conforme a sua posição, dife-
para aqueles que os utilizam, como, em al- rentes percepções (GONÇALVES: 2011, 16),
guns casos, contribuindo activamente para baseadas nos ritmos e texturas recriadas.
a reabilitação urbana da área envolvente. Tais ritmos dividem-se, segundo as auto-
ras, em dinâmico – resultante da circulação
Cota Zero (2011) e Vai Vem (2013): do transeunte no espaço – e estático – fruto
Olhar em movimento da própria textura dos azulejos (GONÇAL-
O percurso até ao momento realizado per- VES: 2011, 16). O movimento é, por isso,
mitiu salientar questões centrais para a pro- uma peça chave no trabalho das duas ar-
blematização da arte pública no contexto quitectas, uma vez que é através do “jogo”
da cidade contemporânea, sem descuidar de posicionamentos que o observador es-
o caso português, em particular o lugar ful- tabelece com a obra nos vários momentos,
cral ocupado pelo azulejo neste campo. que a ambiguidade perceptiva do objecto
Este serviu de “matéria-prima” à concepção artístico se define, na ilusão de formas e es-
de inúmeras obras de arte pública ao longo paços que pretendem pôr em causa a apa-
dos últimos 60 anos, pelo que, se tal opção rente naturalidade e estabilidade do acto

<<
perceptivo, salientando, ao invés, a comple- blica: a sua especificidade para com o lo-
xidade e artificialidade do mesmo, na me- cal que o acolhe, ou seja, o seu carácter de
dida em que, como salienta Merleau-Ponty site-specific15. Tal característica consiste no
pensar é experimentar, operar, transformar, facto de este ter sido concebido e projecta-
com a única reserva de uma verificação ex- do tendo em conta não só as características
perimental, na qual não intervêm senão fe- topográficas, paisagísticas, arquitectónicas
nómenos altamente “trabalhados” e que os e funcionais do local, mas também a com-
nossos aparelhos, mais do que registarem, ponente social e cultural que o define – va-
produzem (MERLEAU-PONTY:1992,14). lor histórico, tipos de utilizadores, …- de tal
modo que, fora deste contexto que é o seu,
A procura de um confronto entre a imedia- a obra deixa de fazer sentido ou, no míni-
tez da experiência sensorial e a lógica do mo, vê-o diminuído.
raciocínio ancora o trabalho de Catarina e
Rita Almada Negreiros na herança da arte Neste âmbito, Cota Zero define-se como o
cinética e, em alguns casos, no tratamen- protagonista do novo átrio da Estação Flu-
to formal da Op Art, dada a prevalência de vial Sul Sueste, resultante da ampliação le-
composições abstractas, com recurso quer vada a cabo pelo atelier de Daciano Costa,
a figuras geométricas (Vai Vem), quer a va- com vista à criação de uma plataforma de
riações tonais (Cota Zero) que, pela sua re- ligação entre a recente estação de metro
petição e conjugação, produzem estímulos do Terreiro do Paço (Linha Azul) e as em-
visuais12 de direcção, profundidade e mo- barcações da Transtejo. A intervenção de-
vimento cuja necessidade de organização senvolve-se ao longo do tecto (17x23m) e
introduz na obra uma dimensão temporal13. das oito colunas (0,6m de diâmetro; pé di-
O facto de as intervenções em questão in- reito de 5,6m) que o suportam, que são na
tegrarem estruturas arquitectónicas ligadas íntegra revestidos por azulejo de formato
ao transporte de passageiros, onde diaria- quadrangular (14x14cm)16, adaptando-se
mente circulam milhares de pessoas num este à superfície arquitectónica, veiculan-
ritmo apressado e contínuo (Cota Zero), do, deste modo, a sensação de um espaço
aliado ao próprio trajecto realizado pelo unificado. Tal como apontado pelas auto-
transporte (Elevador da Bica em Vai Vem), ras, neste espaço coexistem dois movimen-
asseguram não só a presença do movi- tos fortes: a chegada do barco à Cota Zero,
mento necessário à experiência sensorial pela superfície da água, e a chegada do me-
da obra, como prolongam-na no tempo e tropolitano, a uma cota negativa. A ligação
no espaço14, tornando-a, por isso, em algo entre estes dois movimentos é feita ao nível
processual, em constante redefinição. da superfície da água. A união entre estes
dois fluxos faz-se aqui e é desta especifici-
A estreita relação que estas obras estabele- dade do lugar que surge a ideia base desta
cem com as estruturas arquitectónicas que intervenção: uma reflexão sobre a Cota Zero
integram remete igualmente para uma das (http://can-ran.com/#/cota-zero/). Esta, que
marcas mais comuns no objecto de arte pú- em geografia, indica o nível médio do mar,

– DANIELA SIMÕES 167


constituindo, por isso, uma referência para
a construção de cartas topográficas, serve
neste contexto de denominação a um espa-
ço que, também ele se assume como ponto
de partida, quer para o Rio Tejo que ao fun-
do se vislumbra, quer para a cidade, por via
da entrada no metropolitano, ou simples-
mente da saída para o exterior da estação.

A evocação da água é notória, quer pelo


título escolhido, quer pela proximidade
Vista geral de Cota Zero (2011). Destaca-se o movimento de com o rio, de tal forma que o revestimen-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

entrada e saída de passageiros no átrio, bem como o fluxo to azulejar empregue se aproxima da ima-
proveniente da estação de metro do Terreiro do Paço.
Fotografia da autora (2015). gem de uma superfície aquática em que
formas circulares sugerem ser geradas pe-
las colunas e é recriada uma ligação en-
tre a superfície plana e brilhante do tecto
e as colunas. Desta relação/reflexão nasce
um espaço virtual, colocando o espectador
num novo lugar (http://can-ran.com/#/co-
ta-zero/). Este efeito de círculos concêntri-
cos, aliado a um esbatimento das suas for-
mas por meio de suaves gradações tonais
– que a Psicologia da Forma denomina de
moiré effect17 – foi conseguido através do
emprego de vinte tonalidades diferentes
de azulejo, desde o branco até ao preto,
Pormenor do revestimento azulejar do tecto e das colunas. passando por vários tons de azul18, sendo
Fotografia da autora (2015).
exactamente esta variação tonal a respon-
sável pelo efeito óptico que introduz a ilu-
são de profundidade e movimento numa
superfície que é, afinal, plana e estática. As
cambiantes de luz simuladas pelas diferen-
tes tonalidades, aliadas ao brilho e reflexos
lumínicos que caracterizam o azulejo, inter-
vêm activamente na sensação de mutação
contínua desta obra, enfatizada pela deslo-
cação no espaço do observador.

<<
Quanto a Vai Vem, trata-se de uma interven-
ção formada por dois painéis azulejares que
revestem os dois muros que ladeiam a es-
trutura do Ascensor da Bica19, destacando
a presença do histórico transporte e enfati-
zando os movimentos de subida e descida
por ele realizados. Estes painéis apresen-
tam composições idênticas, dispostas si-
metricamente de cada um dos lados do as-
censor, formadas pela repetição de motivos
de cariz geométrico que, no seu todo, ori- Vista geral de Vai Vem (2013) e do seu enquadramento nos
muros que ladeiam o Ascensor da Bica.
ginam dois padrões distintos que se suce-
Fotografia da autora (2015).
dem subtilmente. Devido à sua localização,
estes padrões são apenas visíveis em pers-
pectiva, pelo que é aquando da subida ou
descida que as duas imagens vão-se mos-
trando, misturando e sobrepondo, até que
a imagem frontal se converta em imagem
abstracta (http://can-ran.com/#/vai-vem/). A
obra revela-se assim à medida que o per-
curso é feito, introduzindo a já mencionada
dimensão de tempo.

Como motivo principal da composição


destaca-se a sucessão de setas que, numa
perspectiva ilusionística de estruturas pe- Eléctrico realizando o percurso ascendente, o qual parece ser
riódicas20, parecem não só apontar os dois sugerido pelo padrão de setas presente no painel.

sentidos do percurso – vai/vem – mais tam-


bém acentuar a inclinação do mesmo, numa
aproximação à sinalética de trânsito que an-
tecipa os diferentes acidentes de percurso.
Catarina e Rita Almada Negreiros optaram
pelo uso exclusivo do preto e do branco21,
assim como pela alternância entre azulejo
liso e “azulejo cinético”22 cujo relevo pare-
ce simular uma gradação de tons cinzentos,
ainda que se trate de uma entre as várias ilu-
sões de óptica que esta obra comporta. Tal
escolha cromática remete igualmente para
as cores da cidade de Lisboa, bem como

– DANIELA SIMÕES 169


para um certo universo digital, pela suges-
tão de “pixelização” que algumas das partes
do revestimento azulejar comportam.

Considerações Finais
As relações que se estabelecem entre in-
divíduo e espaço público assumem uma
crescente complexidade no contexto da
cidade contemporânea, não apenas do
ponto de vista urbanístico e paisagístico com
a crescente densificação da malha urbana,
Pormenor de uma das extremidades do padrão, das linhas de transportes e deslocações
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

destacando-se a presença do “azulejo cinético”. diárias de passageiros, mas também sob o


Fotografia da autora (2015).
prisma cultural e social, na relação de per-
tença e participação que o indivíduo esta-
belece com o espaço público no seu quo-
tidiano. A arte pública apresenta-se como
um agente central no estreitar destas liga-
ções, incentivando novas leituras do espaço
público através de um questionamento dos
moldes em que decorre o acto perceptivo.

É este o campo de investigação de Catari-


na e Rita Almada Negreiros, cujo recurso ao
azulejo como material privilegiado nas suas
intervenções permite ancorá-las a uma tra-
Pormenor da assinatura da obra, verificando-se a alternância dição de valorização deste material já cons-
entre azulejos lisos e relevados.
tatada nos trabalhos de Maria Keil e Eduar-
Fotografia da autora (2015).
do Nery. Para além deste aspecto, outros
pontos de contacto podem ser sublinha-
dos: a preferência por espaços e infra-estru-
turas ligadas ao transporte de passageiros,
o emprego de formas abstractas e geomé-
tricas, bem como de tonalidades que, pelos
efeitos ilusionísticos produzidos, remetem
(tal como na obra de Eduardo Nery) para
um vocabulário próximo da Op Art, e ainda
o papel fulcral desempenhado pelo movi-
mento no processo interacção entre obra e
observador. Tal proximidade de princípios

<<
levou ainda a que, em 2009, Catarina e Rita – Bibliografia
Almada Negreiros colaborassem com Maria
Keil na concepção dos padrões azulejares – Obras consultadas
que decoram a estação de metro de São Se- BARRETT, Cyrill, Op Art. London:
bastião, sendo que, enquanto o revestimen- Studio Vista, 1970
to das paredes do átrio e escadarias ficou a BEAUDELAIRE, Charles, O Pintor
cargo das primeiras (tendo aí sido empre- da Vida Moderna. Lisboa: Vega,
gue o “azulejo cinético” pela primeira vez), 1992 (1863)
Maria Keil ocupou-se das paredes das plata- CASTE-BRANCO, João Pereira,
formas, dialogando de uma forma profícua Azulejos no Metropolitano de
os dois revestimentos criados. Lisboa. Lisboa: Metropolitano de
Lisboa, 1990
O jogo de formas, cores e relevos (por via CORREIA, Vítor, Arte pública, seu
do emprego do “azulejo cinético”) em que significado e função. Lisboa: Fonte
as intervenções de Catarina e Rita se ba- da Palavra, 2013
seiam, se por um lado se apresentam como ECO, Umberto, A Obra Aberta.
atractivas para a visão, por outro lado desa- São Paulo: Editora Perspectiva,
fiam-na, pois nelas reside uma ambiguida- S.A., 1991 (1962)
de e ilusionismo que, aliados à forma ines- GONÇALVES, Clara Germana, No
perada como se apresentam ao observador, Ritmo: A arquitectura de Catarina
convidam a uma interrogação sobre esse e Rita Almada Negreiros. In Jornal
encontro constante que é o do corpo com o de Arquitectos, nº242, Jul-Set
mundo. As duas obras azulejares analisadas 2011, pp.14-17
– Cota Zero e Vai Vem - apresentam-se como MECO, José, Os Azulejos do
fruto de um trabalho multifacetado, onde se Metropolitano de Lisboa. In Artes
congregam áreas como a arquitectura, artes Plásticas, nº10, Maio 1991, pp.25-
plásticas e design, num espírito de diálogo 28
que se encontra na génese dos Ateliers de MERLEAU-PONTY, Maurice, O
Santa Catarina. Olho e o Espírito. Lisboa: Vega,
1992 (1961)
MILES, Malcom, Art, Space and
the City: Public art and urban
features. New York/London:
Routledge, 1997
SENNETT, Richard, Flesh and
Stone: The Body and the City
in Western Civilization. New
York/ London: W. W. Norton &
Company, 1994

– DANIELA SIMÕES 171


— Em linha fundaram os Ateliers de Santa Lustre 177 (intervenção no
NÓBREGA, Teresinha Petrúcia da, Catarina em 2000. Segundo átrio do edifício de habitação
Corpo, Conhecimento e Percepção revelam, neste espaço colectivo Lisboa Loft, 2003), Estratégia
em Merleau-Ponty. Universidade de ateliers onde trabalham, de Iluminação (projecto de
Federal do Rio Grande do Norte, coexistem, para além da iluminação inserido no conjunto
2008. Disponível em: arquitectura, diferentes actividades residencial Campolide Parque,
http://www.scielo.br/pdf/epsic/ que se relacionam com um em Lisboa, Arq. José Soalheiro e
v13n2/06.pdf sentido amplo do termo design: Teresa Castro, 2006), Cais Fluvial
http://can-ran.com/#/vai-vem/ urbanismo, design industrial, do Aeroporto de Linzhi (projecto
http://can-ran.com/#/cota-zero/ design gráfico, Web design, vídeo, arquitectónico, Tibete, 2008), Cota
Elas trabalham a arquitectura música artes plásticas, ilustração. Zero (intervenção plástica com
azulejar. In Dinheiro Vivo, Acredita-se que, cruzando quer recurso ao revestimento azulejar
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

04/05/2012. Disponível em: diferentes modos de pensar do tecto e das colunas do novo
http://www.dinheirovivo.pt/faz/ uma mesma disciplina, quer átrio da Estação Sul/Sueste no
pessoas/interior.aspx?content_ outros modos de pensar e fazer Terreiro do Paço, 2011, Vencedor
id=3913881&page=2 (num sentido lato), as diferentes do Prémio SOS Azulejo 2011 e um
http://redeazulejo.fl.ul.pt/ colaborações concorrem para dos finalistas do prémio European
noticias,0,589.aspx um enriquecimento de cada área Prize for Urban Public Space),
específica. (…) Neste “atelier tratamento plástico da Estação
– Notas de arquitectura” nem todos os de Metro de São Sebastião
trabalhos desenvolvidos são (revestimento azulejar em parceria
1
Como exemplo destas os “habituais” projectos de com Maria Keil, 2012), Vai Vem
propostas destacam-se a Op arquitectura. Mas ainda que o (painéis de azulejo nos muros
Art, Kinetic Art (Arte Cinética), não sejam são, na realidade, quer anexos ao Ascensor da Bica,
Colour Field Painting, Minimal determinantes na identidade do 2013), Reminiscência (escultura,
Art (Minimalismo), Performance objecto arquitectónico em que Avenida Ribeira das Naus, Lisboa,
Art, Hiper Realismo, entre se inserem, quer veículos de uma 2014). Website: http://can-ran.
outras. Contudo, as pesquisas ideia e arquitectura em que os com/
relacionadas com as implicações aspectos sensitivos são como 3
A problematização do conceito
do movimento na obra artística fundamentais. Fundamentais de espaço público e das suas
e do seu impacto na percepção na caracterização do espaço: diferentes leituras e significados
haviam já sido afloradas ao potencializa-se a capacidade é abordada por Victor Correia
longo da primeira metade de própria da arquitectura, de em Arte Pública, seu significado e
novecentos, com as propostas alterar – (re)criar – o indiferente, função. Lisboa: Fonte da Palavra,
do Cubismo, Futurismo, o vago: ou seja, a capacidade 2013. Partindo da proposta de
Construtivismo, Orfismo e em do “desenho” adjectivar as definição deste autor, o espaço
alguns trabalhos dadaístas, em formas (GONÇALVES:2011, 14). público é entendido como um
particular na obra de Marcel Como principais intervenções espaço em que a vida dos cidadãos
Duchamp (1887-1968). da autoria de Catarina e Rita se desenrola e se efectiva, ou
2
Catarina e Rita Almada Negreiros Almada Negreiros destacam-se potencialmente, concedendo à

<<
componente social urbanística tentativa de uniformização de de organismo perfeitamente
um lugar central na constituição gostos e comportamentos, calibrado, é também aberta, isto
das práticas sociais e culturais. segrega comunidades e grupos é, passível de mil interpretações
Ou seja, trata-se de um espaço pelo seu “não encaixe” nos diferentes, sem que isso redunde
físico e material, aberto, de inter- padrões dominantes (Graffiti, na alteração da sua irreproduzível
ligação e controlo das diferenças Street Art, Performance, …). Esta singularidade. Cada fruição é,
sociais, étnicas e culturais, que se questão traduz-se igualmente assim, uma “interpretação” e uma
condensa sobretudo na cidade numa outra, isto é, nos públicos “execução”, pois em cada fruição
contemporânea (CORREIA:2013, 9). da arte pública, dado que não a obra revive dentro de uma
4
Como exemplos de espaços de existe um público (uniforme, perspectiva original (ECO:1991,
acesso público citam-se ruas e com as mesmas características e 40).
praças, edifícios administrativos e interesses), mas vários tipos de 7
No contexto da formação da
governativos, parques e jardins, público, pelo que a concepção cidade oitocentista destaca-se o
escolas, hospitais, tribunais, de intervenções de arte pública texto O Pintor da Vida Moderna
estações de comboio e metro, com base numa visão generalista (1863) da autoria de Charles
entre outros. A instalação de do público a que esta se destina Baudelaire (1821-1967), no
obras nestes espaços resulta leva frequentemente a uma falta qual o autor descreve a Paris
frequentemente de actividade de interesse e participação na haussemaniana, “capital do
mecenática, mas também de recepção e interacção com a obra, mundo”, introduzindo o leitor à
encomendas realizadas pelos já que esta apenas parece apelar figura do flâneur. Para este, eleger
órgãos administrativos (de cariz e ser acessível a uma minoria. domicílio no meio da multidão,
público ou privado), municipais Não obstante a importância de no inconstante, no movimento, no
ou mesmo estatais. Ainda que do tais questões, o presente texto fugitivo e no infinito, constitui um
ponto de vista da propriedade, opta por deixa-las de parte, imenso gozo. Estar fora de casa
estas obras de arte possam estar devido a serem outras as que e, no entanto, sentir-se em todo o
situadas em espaços privados pretende abordar. Para uma lado em casa; ver o mundo, estar
(não pertencentes ao Estado), leitura mais aprofundada sobre as no centro do mundo, permanecer
se estes forem concebidos para contradições da arte pública no escondido do mundo, tais são
usufruto público, as criações que se refere aos seus públicos alguns dos pequenos prazeres
artísticas neles presentes e recepção sugere-se a leitura destes espíritos independentes,
deverão ser consideradas como do capítulo The contradictions apaixonados, imparciais, que
manifestações de arte pública. of public art, parte integrante a língua apenas pode definir
5
No entanto, muitos são os da obra Art Space and the City de um modo imperfeito
exemplos de arte pública criada (MILES:1997). (BAUDELAIRE:1992,18)
à margem das encomendas 6
Neste contexto vale a pena 8
Tal atitude havia já sido
institucionais, funcionando relembrar Umberto Eco quando preconizada por Hector
muitas vezes como uma crítica ao na sua publicação seminal A Guimard (1867-1942), aquando
próprio modo de funcionamento Obra Aberta (1962) afirma que da concepção das entradas e
das mesmas, assim como da uma obra de arte, forma acabada respectivas estruturas decorativas
própria sociedade que, na sua e “fechada” na sua perfeição art nouveau do Metropolitano

– DANIELA SIMÕES 173


de Paris, inaugurado entre 1899 evidente mas fundamental is bluffed by its vain attempts
e 1900. Os metropolitanos recusa do padrão em tradicional to organize the data before it.
de Londres e Nova Iorque disposição serial, criando uma (…) The Op artist, therefore,
(inaugurados ainda no século “obsessiva construção por “provokes” the spectator. But the
XIX) demarcaram-se igualmente sobrearticulação de planos – initial situation which he presents
pela atenção que foi dada à redes de movimento, como se is “pre-planned” and confines the
decoração das gares, plataformas a parede se desmultiplicasse spectator’s activity to more or less
e corredores, através do emprego numa espacialidade imaterial optical response. Nevertheless,
de azulejo, essencialmente de cortinas entreabertas it is impossible for the spectator
de produção industrial, cujo (CASTEL-BRANCO: 2000, 14). A to remain inactive: he must react
vocabulário oscilou entre o do intensidade cromática e o brilho (BARRETT: 1970, 102-104).
Modern Style e o da Arte Deco. que caracterizam o azulejo, 13
Ainda que seja possível
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

9
O início da construção do aliados à malha reticular em que argumentar que tal dimensão
primeiro troço do projecto assentam intervêm activamente no temporal se verifica aquando
teve início em Agosto de 1955, diálogo pretendido, acentuando do processo de recepção de
tendo as primeiras estações sido ainda mais a concepção global qualquer objecto artístico, no
inauguradas em Dezembro de da decoração de cada espaço, caso das obras de cariz op art e
1959. partindo do todo para as diversas cinéticas tal dimensão temporal
10
Ainda que maioritariamente partes, e da necessidade de deriva da noção de movimento,
compostos por motivos seriados, não apagar o azulejo enquanto uma vez que this kind of
os revestimentos concebidos material formado pela repetição movement is not always apparent
por Maria Keil procuraram a de placas com forma seriada at once. It usually requires a certain
fuga à repetição infinita do (MECO: 1991,28). amount of concentration on the
módulo azulejar, através quer 11
Um dos conceitos criados por picture before it takes place (…).
do diálogo entre vários padrões, Eduardo Nery para a ancoragem We observe something which we
quer da introdução de subtis teórica do seu trabalho foi o could not have observed before,
variações nos mesmos, capazes de “Mobilidade Visual”, ou seja, since a period of time is required
de “prender” o observador - “a permanente mudança dos for this phenomenon to happen.
utente, levando-o a questionar o dados perceptivos, tanto no (…) There is also, corresponding to
todo percepcionado. Tal como campo operativo concreto como formal movement, a kind of formal
apontado pela artista, cada na fluidez das memórias que tempo. This may be due to speed
revestimento é concebido como atravessam a face equívoca dos of the eye movement or to visual
uma arquitectura cenográfica objectos”. Percepção e memória equivalent of suggestion of slow,
instauradora de um espaço lugar exactamente (AZEVEDO:1997, 21). fast, endless or arrested movement
autónomo, por articulação de 12
Tal como apontado por Cyrill (BARRETT: 1970, 99).
segmentos de padrões, dispostos Barrett, where the elements are 14
Neste caso o tempo que é
de modo irregular e dinâmico, em simple and continuously repeated o necessário para realizar o
função dos ritmos de utilização, over the surface, where the surface percurso, isto é, a deslocação no
ascendente e descendente, pattern is homogeneous and no espaço.
dos lances das escadas, com element is dominant, the eye 15
Ainda que o carácter de site-

<<
specific seja uma das marcas conhecido na Psicologia das and incisive, and clear definition of
mais comuns da arte pública, Formas como “periodic structures” form is essential for certain kinds of
nem sempre esta especificidade define-se como functions which optical effect (BARRETT: 1970, 38).
se verifica, podendo o artista repeat the same values at regular 22
O azulejo cinético havia já
realizar várias reproduções da intervals, as the variable increases sido empregue no revestimento
mesma obra e integra-la em or decreases uniformly. In less da estação de metro de São
contextos arquitectónicos e technical language, they consist of Sebastião, realizado em 2009.
urbanísticos variados. Outro a repetition of simple geometrical
aspecto associado à arte pública é elements – lines, squares, circles,
a sua presença quotidiana na vida triangles, etc. The characteristic
das populações, embora muitas feature of a periodic structure
das manifestações artísticas deste is that the elements are virtually
tipo se definam essencialmente anonymous; that is, one can
pelo seu carácter efémero, como observe them individually with
é o caso do graffiti, do cartaz, da difficulty or not at all. (…) They
performance, entre outros. merge or fuse together to form a
16
O revestimento azulejar ocupa recognizable image in black and
uma área total de 480m . 2
white and various shades of grey
17
“Moiré” is a French Word (…) (BARRETT:1970, 38).
meaning “watered” and was first 21
Citando novamente Cyrill
applied to fabrics known in English Barret, the use to which Op artists
as “watered-silk”. The water –like put their visual effects can most
effect is produced by doubling a easily be demonstrated in black
glossy fabric with a parallel weave and white. (…) The reason for
so that the parallel cords are nearly this is twofold. First, most optical
aligned, and pressing the surface effects can be achieved by the
together (BARRETT: 1970, 65). use of black and white alone. By
18
Segundo as autoras, no excluding colour, the artist can
revestimento do tecto foram produce the effects he wants
utilizados dez tons – os mais claros without the added complexities
– e nas colunas os restantes dez which colour brings with it. (…)
– mais escuros (http://can-ran. Secondly, black and white is more
com/#/cota-zero/). dramatic in its effect. It is more
19
Num total de 52m2 de dynamic; it carries more punch;
revestimento azulejar, it affords a greater contrast. Black
articulando-se com o projecto de and white act like complementary
requalificação da Bica, da autoria colours but with greater effect
da arquitecta Teresa Nunes da because of the strong contrast
Ponte. between them. The contrast also
20
O movimento ilusionista helps to make the forms clear-cut

– DANIELA SIMÕES 175


A Arte de José Datrino,
O 'Profeta Gentileza', e suas 56 Inscrições
nas Pilastras do Viaduto da Avenida Brasil
no Rio de Janeiro

por Angela Ancora da Luz


– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Historiadora e Crítica de Arte, vice-Presidente da ABCA, Professora da


Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Le «Prophète Gentillesse» comme il est connu, a cherché


à humaniser la ville de Rio de Janeiro, avec des peintures
réalisées, sur les piliers du viaduc de l’Avenida Brasil «  Gentileza gera gentileza  », tema que se
(Avenue Brésil), près de la zone portuaire. Lieu de tornou a marca de José Datrino1, e que o in-
circulation de plus de cent mille véhicules, par jour, dentifica no universo de sua produção artís-
l’oeuvre est présentée avec le caractère de «livre urbain», tica, tornou-se o fulcro de uma mensagem
avec des mots peints, en titres superposés et révélés, profética, proclamada pela boca de um ho-
sur des murs, formellement, dans d’une composition mem simples que deambulava pela cidade
constructive. Le message de paix et d’amour cherche do Rio de Janeiro e pintava mensagens nos
à neutraliser l’agression de la ville, donnant des pilares do Viaduto da Avenida Brasil. Sua
encouragements pour ceux qui passent et l’espoir à ceux arte foi aos poucos modificando o cinza dos
qui prennent refuge, dans les travées du viaduc. Les muros, colorindo de esperança a vida dos
phrases apparaissent comme des versets numérotés, que por ali passavam, revelando-se como li-
commeun poème mystique, qui fait partie du patrimoine vro aberto para inspirar o povo.
culturel de la ville de Rio de Janeiro. Les panneaux ont
été peints, dans les années 1980, sur 55 piliers du viaduc Durante a década de 1980 o artista pintou
et la peinture enregistrée par la Mairie, en 2000, à rester suas mensagens nos pilares do viaduto. Fo-
en tantque mémoire de la ville. L’oeuvre de Gentillesse ram 56 inscrições muralistas, textos pautados,
intervient dans les zones urbaines, avec une force que guardam uma sequência a ser lida, pre-
indéniable et sera présentée comme un objet d’étude, ferencialmente, da última para a primeira pi-
pour que nous puissions mieux discuter des questions lastra, aonde o profeta ficava, acenando para
liées à l’art public. o povo e proclamando sua mensagem.

<<
Na década seguinte, alguns vândalos dani- bom termo o projeto. Os custos foram co-
ficaram os murais que foram então cober- bertos pelo Operador Nacional do Sistema
tos com tinta cinza pela COMLURB2. A po- Elétrico (ONS).
pulação reclamou. Vozes se levantaram de
todos os cantos clamando por « gentileza ». Para se ter uma idéia do impacto que o Pro-
Marisa Monte3 e Gonzaguinha4 compuseram feta Gentileza causava com suas frases de
músicas que exaltavam a mensagem deste encorajamento, em 2009, quando foi ao ar
artista que sai do anonimato para se tornar a telenovela “Caminho das Índias”, a auto-
referência na arte pública do Rio de Janeiro. ra Gloria Perez fez uma homenagem a José
Datrino, trazendo-o à vida6 através do ator
Através das cartas enviadas às redações dos Paulo José, que perambulava pelas ruas do
jornais as pessoas se posicionavam. Entre- Rio com seu estandarte e sua pregação.
vistas colhidas nas ruas, por pessoas que
passavam diariamente pelo local, davam Para Washington Fajardo, presidente do Ins-
conta do sentimento de perda que a popu- tituto Rio Patrimônio da Humanidade e do
lação manifestava diante dos muros cinzas. Conselho Municipal de Proteção do Patrimô-
Por iniciativa da Pró-Reitoria de Extensão da nio Cultural, os murais de Gentileza vão per-
Universidade Federal Fluminense, o projeto manecer. O mais recente ataque veio des-
« Rio com Gentileza » foi elaborado, objeti- ta vez do planejamento urbano da cidade,
vando a restauração e preservação dos mu- pois três dos cinqüenta e seis pilares do via-
rais, dando atendimento às vozes de Marina duto estavam no último trecho do elevado
Monte e Gonzaguinha e ao apelo popular que foi demolido, de acordo com o plano
através da mídia. O Consórcio Novo Rio, a de mobilidade urbana para a zona portuá-
Socicam5, a Secretaria Municipal de Cultu- ria da cidade. Fajardo foi taxativo ao afirmar:
ra do Rio de Janeiro e as empresas Ponto
de Bala, Fosroc Reax Tintas, GP Andaimes e “— Vão passar mais mil anos e as pinturas vão
Wherever se uniram em apoio ao empreen- ficar ali. É a obra de um personagem urbano,
dimento e, a partir de 1999 começa a recu- que surge pela cidade e que traz uma men-
peração dos mesmos até que em maio de sagem mística. São pinturas organizadas
2000 a restauração é concluída e a obra como versículos. Por isso, têm numeração”7
tombada pela Prefeitura.
O cumprimento da promessa se iniciou com
Anos mais tarde, em março de 2011, novo a sua preservação, pois, os três pilares que
projeto de restauração é elaborado, como estavam na área da demolição tiveram ape-
presente pelo aniversário para a cidade. nas a parte superior, chamada de tabulei-
Desta vez, o movimento “Rio com Gentile- ro, retirada, sendo mantidos os pilares que
za”, que fora criado em 1999, na Universi- guardam as mensagens e proclamações de
dade Federal Fluminense (UFF), reúne uma Gentileza. Os demais estavam fora da área
equipe formada por dois restauradores e prevista para a demolição.
quatro pintores assistentes que levam a

– ANGELA ANCORA DA LUZ 177


“Onde tiver pintura do Gentileza, nós vamos diferentes fenômenos da sociedade urba-
manter as pilastras! Garante Paes [prefeito na, defendendo que a identidade de uma
da cidade do Rio de Janeiro]. A idéia é que cidade torna-se mais importante do que a
elas fiquem intactas na Avenida Rodrigues sua própria herança.
Alves. Mas ainda há, segundo o coordena-
dor do Programa Maravilha Cultural e res- Os escritos do Profeta Gentileza criaram
ponsável por projetos de preservação do uma identidade para o local do qual se
Patrimônio e História da Região, Alberto apoderaram. Sua pintura vai além de versos
Silva, a possibilidade de serem removidas superpostos, divididos em faixas paralelas,
para outro local, como uma praça, um me- como os registros da pintura egípcia.
morial ou mesmo um museu. Nenhuma das
pilastras com a arte do caminhante incansá- Sobre um espaço organizado entre duas fai-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

vel José Datrino (nome verdadeiro de Gen- xas horizontais as letras adquirem a estatura
tileza), todavia, será derrubada [...] A idéia é de figuras que se ajustam lado a lado e vão
preservá-las de qualquer jeito, com um tra- criando um tecido rigoroso. As palavras, or-
tamento urbanístico, mas ainda não há uma denadoras das imagens, não estão subme-
definição do que será feito».8 tidas ao rigor ortográfico, elas são figuras
repletas de significados, não apenas no que
O que faz uma obra pública adquirir tal força concerne ao entendimento da própria pa-
de permanência, apesar de exposta a todas lavra, mas elas são plurívocas e simbólicas.
as possibilidades de agressão e desapare-
cimento? O que mobilizou o povo a se unir Em suas imagens surgem outros entendi-
pela preservação dos murais? O que deter- mentos revelados apenas aos que alcan-
minou que, após ser coberta pela tinta cinza, çam a mesma sintonia espiritual de Gentile-
quando deixou de existir na concretude visí- za. “UNIVVVERRSSO” está assim registrado
vel dos passantes pudesse continuar a pro- porque a repetição das letras não se deu
clamar sua mensagem de AMORRR com três por descuido ou erro, mas pela carga da
“erres”9 e com tal força, que ressurgiu restau- mensagem que o profeta desejava procla-
rada por ordem da própria prefeitura? mar. As letras repetidas, como por exemplo,
os ‘três vês’ de ‘univvverso’, sinalizavam uma
A arte pública tem como cenário a cidade existência superior e não a comum. Assim,
e existe no imaginário do povo que transita para cada alteração ortográfica criada pelo
por suas ruas e logradouros. Não podemos artista a palavra continuava a revelar o seu
pensar em cidade apenas como um conjun- significado primeiro, mas passava, também,
to de edificações que estão dispostas nos a emitir novos significados para os que do-
traçados regulares de um espaço delimita- minavam os códigos do profeta.
do e que possuem organização e distribui-
ção ordenadas de funções públicas. Para Os painéis eram coloridos em função das le-
Argan, a cidade é muito mais do que isto10. tras e das faixas que delimitavam o espaço.
Para ele a arte tem as explicações para os Verde, amarelo, azul, preto, branco eram as

<<
mais utilizadas. Havia o vermelho, menos uti-
lizado, mas presente em alguns pequenos
textos, como fundo a destacar as palavras.

A grande intervenção na cidade se deu


como vocação maior de José Datrino, que
necessitava reverberar, como o profeta no
deserto, o aconselhamento para que o povo
meditasse na necessidade de uma nova Caracteres desenhados por Gentileza e
transpostos para fonte digital.12
conduta ética e moral11. Mas ele gritava em
silêncio, clamando em textos que foram co-
brindo os pilares do viaduto da Avenida
Brasil. Ele também carregava estandartes
com seus escritos, sempre seguindo a mes-
ma poética de registros. Com as longas bar-
bas e a túnica que ia aos pés ele era uma
figura que se destacava nas ruas da cidade.
Levava flores para distribuir enquanto em-
punhava o estandarte para proclamar este
novo tempo messiânico que ia anunciando.
Não recebia dinheiro pelo que oferecia. Era
anticapitalista. Grafava capitalismo com “e”
criando um duplo significado: “CAPETALIS-
MO”. Sua máxima era: GENTILEZA + GERA
=> GENTILEZA.

Do ponto de vista gráfico, e aqui podemos


observar um acento importante de arte gráfi-
ca em sua pintura, o artista cria uma tipologia
própria para grafar suas letras e caracteres.

Os cinqüenta e seis painéis pintados nas pi-


lastras do viaduto compõem uma obra mu-
ral, em capítulos, numa extensão de cerca de
1500 metros, na zona portuária do Rio. Genti-
leza escreveu sua mensagem propositalmen-
te na entrada da cidade, segundo o historia-
dor Leonardo Guelman, que observa como o
artista planejava e projetava sua obra:

– ANGELA ANCORA DA LUZ 179


“O profeta planejou-a realizando, previamen- cas que já o aproximam das descrições dos
te, um caderno de rascunhos com manuscri- profetas do Antigo Testamento e reforçam o
tos. Sua espacialização segue a coerência de significado do que proclamava. Havia ainda
seus conteúdos, por isso estabeleceu cuida- os atributos que reforçavam a carga mística
dosamente a seqüência das mensagens, nu- de Gentileza. Ele levava um estandarte com
merando as pilastras. Nada é aleatório.”13 sua mensagem de apresentação. Da mes-
ma forma que nos muros, ele usou a com-
Pela seqüência das mensagens a obra ad- posição em faixas mantendo o padrão que
quire o caráter de “Livro urbano”, conforme confere identidade à obra do artista e apre-
ressalta Leonardo Guelman. Um livro para senta o resumo preciso de sua mensagem
ser lido, para ser assimilado no contexto da mística. Na primeira linha, ao alto, vemos a
própria cidade. Obra urbana, pública, que representação de três estrelas. Logo abaixo
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

instaurou a identidade de seu artista nos se seguem as apresentações. “DEUS 1º >


muros do viaduto. PAE >” e, a seguir, ocupando toda a exten-
são da faixa a palavra “GENTILEZA”, alguns
Gentileza, que é a palavra chave de seus tex- signos e números; seguem-se as demais
tos, torna-se também seu nome. Ela está car- faixas com os dizeres “CRRIADO”, “UNIV-
regada de atributos de generosidade e re- VVERRSSO”, “2º FILHO”, “JESSUSS”, “PORR
ciprocidade, conforme Guelman esclarece. GENTILEZA”, “SANTO”, “IRRMÃO”, “3º ESPÍ-
Para José Datrino não se deveria pedir “por RITO SANTO”, “JOZZE AGRADECIDO”, “SE-
favor,” mas, “por gentileza”, isto porque o fa- NHOR”, “PAPAE DE JESSUSS”, “SANTO”, 4º
vor guarda certo interesse das partes, solici- SSENHORRA”, “MAMÃE”, “MARRIA”, “APAR-
ta retribuição, portanto está de acordo com RECIDA”, “COM”, “AMORRR”, “E”, “HONRRA”.
a visão capitalista da sociedade, enquanto
gentileza revela gratuidade, generosida- Na parte superior do estandarte ele colo-
de. “Favor” e “obrigado” são palavras que cava as flores, os cata-ventos, que simboli-
condenam, enquanto “gentileza” e “agrade- zavam como a mente humana deveria ser:
cido” são palavras que libertam. Para ele a livre e fluida, além de palmas e pequenos
natureza entrega-nos tudo gratuitamente, enfeites. Sua bata era também decorada
diferente do mundo capitalista, que para o com aplicações retangulares com dizeres
profeta era uma sociedade “capetalista”, ou que endossavam o conteúdo de sua men-
seja, “do capeta”, que deveria ser aniquilada sagem. Ele se considerava um jardineiro de
pelo poder do amor e da gentileza. Deus, sendo que as flores eram os homens
que ele deveria cuidar. Calçava sapatos tam-
Além da força da mensagem pintada ao bém por ele decorados com elementos sim-
longo de quase um quilômetro e meio de bólicos que completavam o conjunto deste
muros, a obra tem um componente perfor- homem, quase uma parte viva de seus mu-
mático na pessoa do próprio artista. Suas rais, que podia andar livremente levando
longas barbas, seu rosto vincado de sulcos, com ele a mensagem para alcançar os que
olhos brilhantes e fundos são característi- estavam distantes dos muros do viaduto.

<<
As aparições de Gentileza no espaço públi- Como artista performático a percorrer a ci-
co da cidade eram sempre performáticas. dade ele cunhava ditos de fácil assimilação,
Sua obra era engajada, como convém à arte reforçando a mensagem que transmitia. Por
pública, que deve estabelecer com o frui- exemplo: “se a saia sobe a moral desce e se
dor o fluxo de seus próprios interesses, de- a saia desce a moral sobe”. Levava desta for-
sejos, anseios, sejam místicos ou políticos, ma uma mensagem moralista que, não ra-
de informação ou de denúncia, de clamor ras vezes procurava ser imposta com certo
ou de reflexão. tom de agressividade. Era paradoxal. Com
um semblante sereno, quase angelical, ele
A finalidade precípua da arte pública é a se agitava quando via mulheres com batons
criação de um espaço de discussão dentro fortes e chamativos, usando roupas justas e
do espaço da cidade. Não objetiva o seu curtas. Ele vociferava, ameaçava apocalipti-
embelezamento, mas a conscientização do camente e seguia, sempre utilizando o espa-
povo da cidade em relação ao seu momen- ço público para se comunicar, quer através
to. “A arte pública deixa de atender priori- de seu “Livro Urbano”, quer em seu embate
tariamente ao embelezamento urbano e pessoal pelas ruas da cidade, distribuindo
surge como a possibilidade de redefinir flores como o “bom jardineiro de Deus.”.
a experiência do lugar, por meio da expe-
riência de um sítio expandido.”14 É o que se Nos muros ele pintava seus textos seguin-
observa na arte do Profeta Gentileza cujas do duas possibilidades. A de que fossem
cinqüenta e seis inscrições nas pilastras do lidos pelos passageiros de ônibus, ou que
viaduto redefiniram a experiência do lugar e fossem alcançados pelos que viajam em
continuam interagindo com as pessoas. carros. No primeiro caso, a velocidade do
veículo não permitiria a leitura total de
A ordem ideal para a leitura de suas mensa- cada painel, mas ficariam as palavras cha-
gens deve seguir a seqüência do último pai- ves, destacadas pelo profeta em sua pre-
nel, o de número 55, para o primeiro, no sen- gação. O fruidor teria apenas a percepção
tido Caju => Av. Francisco Bicalho. São 56 do todo e a retenção de algumas frases.
inscrições ao todo.15 Ele inicia sua mensagem A mais emblemática: “GENTILEZA GERA
ensinando ao público que o mundo é uma GENTILEZA”. No segundo caso, o motoris-
escola e que as palavras “Gentileza” e “Agra- ta poderia imprimir uma velocidade menor
decido” devem substituir às que normalmen- ao carro e conseguir ler uma quantidade
te são usadas como “Por favor” e “Obrigado”. maior de suas reflexões.
A primeira porque, como já foi esclarecido,
implica numa obrigação, exigindo uma tro- A arte pública não nasce para ser contem-
ca, enquanto a segunda, deve ser eliminada, plada de uma só vez. Ela necessita do tem-
pois ninguém deve ser “obrigado” a coisa al- po cumulativo, das muitas passagens pelo
guma. O homem nasceu para ser livre, para local em que ela se encontra, de ser lida
respeitar a natureza, devendo tomar cuidado aos pedaços, ser contemplada em diferen-
com o vício, com a nudez e com o carnaval. tes ângulos, ser acrescentada a cada en-

– ANGELA ANCORA DA LUZ 181


contro pela própria obra de modo a que Durante muito tempo o Rio de Janeiro foi
possa ampliar-se sucessivamente. a capital do Brasil e conferia o caráter ofi-
cial ao que aqui se realizava. A nação era
“O artista deve ter a consciência de que a vista por seu intermédio. Com a mudança
obra não será contemplada de uma só vez da capital para Brasília, em 1960, o Rio não
e por inteiro pelo transeunte, mas que este perdeu a força de ser um dos pólos mais in-
absorverá gradativamente a imagem da fluentes na divulgação das idéias para todo
obra na medida em que transita no ambien- o cenário nacional, o que nos leva a pensar
te onde ela se encontra instalada, até formar que a escolha do Rio, por Gentileza, foi em-
o todo em sua memória”.16 blemática. Ele sabia que a cidade divulga-
ria suas idéias e mensagens, sendo, portan-
Diferente de outros artistas que têm patroci- to, necessário buscar o melhor canal para a
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

nadores para realizarem a arte pública, Gen- veiculação das mesmas. A importância do
tileza não aceitava dinheiro por seu trabalho. viaduto na zona portuária, junto à rodoviá-
Era uma espécie de missionário que deveria ria era a escolha acertada. Gentileza intui a
distribuir gratuitamente o que havia recebido. força do local escolhido, como pólo de di-
vulgação de seu discurso visual.
Por outro lado, a arte pública possibilita ao
artista uma experiência mais dinâmica e so- A zona portuária era uma região de grande
cial do que aquele que cria no interior de seu permissividade moral, de baixa qualidade de
ateliê. Ele não está preocupado em “vender” vida, de expressivo volume de pessoas que
sua obra. Se for patrocinado ele vai receber se misturavam heterogeneamente aos que
pelo trabalho o valor acordado, mas, se for chegavam de minuto a minuto na Rodoviá-
trabalhar por conta própria vai arcar com os ria Novo Rio. Além disso, o viaduto da Ave-
custos. É este o caso de Gentileza. nida Brasil, no trecho do Caju, era um lugar
sombrio, próximo aos grandes cemitérios
Deve ser lembrado que o artista que cria na da cidade. Uma área que não acolhia o tran-
rua, já está imerso no ambiente que lhe so- seunte. O tom cinza das pilastras despertou
licita a obra, não por uma encomenda con- em Gentileza o desejo de recobri-las com
tratada, mas por uma necessidade de diá- suas mensagens coloridas. Como hera que
logo permanente com o espaço público e se apega ao muro e o cobre, mudando suas
o povo. características, a intervenção visual provoca-
da pelo artista ao longo de um quilômetro
José Datrino percebe que o Rio é a gran- e meio na via pública seduziu os que passa-
de metrópole com força necessária para vam diariamente pelo local e trouxe curiosos
divulgar sua arte e mensagem em todo o que se impactavam com as mensagens.
território nacional. Como andarilho ele vai
a muitos lugares, mas volta para o Rio. Na arte pública o observador deixa de ser
um espectador distanciado e se torna parte
integrante da própria obra. Ele não vê, ape-

<<
nas, ele é apreendido pela obra e a leva em plena solidão tornamo-nos parte do seu re-
sua memória. A superposição de experiên- pertório total, e todos os nossos sentidos
cias visuais experimentadas a cada vez que entram em perfeita sincronia com o seu
passa pelos locais em que ela se encontra universo”.18 Para o escultor, quando somos
vai construindo “a sua obra”, presente, im- apreendidos pela obra ela não nos deixa
possível de ser desfeita, mesmo que a origi- mais e, para reforçar sua reflexão, Moriconi
nal venha a ser destruída. nos diz que a obra é mais fiel que o homem,
pois ela não nos esquece e nos procura.
O entendimento de “sua obra” se dá a partir
da apreensão de cada fruidor, uma vez que Mesmo no curto espaço de tempo em que
é quase impossível que ele apreenda toda a ela foi coberta de tinta cinza a obra conti-
obra em seus detalhes e informações. É com nuou a procurar os seus alvos, ou seja, “a
o que ele experimenta do objeto, no caso da nós” e a força com que o público se levantou
arte pública, que “a sua obra” é construída. em direção a ela, que já não estava lá, tor-
nou possível sua restauração e seu retorno
Didi-Hubermann destaca o poder da obra ao local de origem, porque efetivamente
de arte quando ela “nos olha”: “nós” éramos parte de seu repertório e não
podíamos desaparecer.
O que vemos só vale – só vive – em nossos
olhos pelo que nos olha. Inelutável, porém é a A arte pública deve ser inicialmente estuda-
cisão que separa dentro de nós o que vemos da no contexto da modernidade. Um dos
daquilo que nos olha. Seria preciso assim par- primeiros grandes movimentos que desta-
tir de novo desse paradoxo em que o ato de camos neste sentido é o do muralismo me-
ver só se manifesta ao abrir-se em dois.17 xicano que se inicia após a revolução de
1910. É certo que, se nos detemos a obser-
A força da obra de arte em relação ao frui- var a arte dos murais percebemos que ela
dor deve ser considerada, no caso de José é talvez a mais antiga expressão artística do
Datrino, na medida em que ele se lança no homem no planeta, isto pensando nas pin-
espaço público e vai ao encontro das pilas- turas parietais da Pré-História que já testifi-
tras cinza. Diferente do impacto de um ou- cavam a necessidade do homem em se ex-
tdoor, cuja linguagem é predeterminada pressar utilizando as paredes e muros como
em função do consumo, a obra de Gentile- suportes naturais para sua arte. Mas a arte
za nos alcança pela necessidade íntima de pública sobre a qual trazemos algumas re-
uma ética esquecida e de uma desesperan- flexões é uma prática social que vai buscar
ça crescente nas grandes metrópoles. Para no espaço urbano o veículo de mudanças
Roberto Moriconi, escultor performático que deseja promover a partir de poéticas,
que viveu no Brasil até sua morte em 1993, escultóricas ou pictóricas, capazes de plas-
“olhar é uma opção de altíssimo risco”, por- mar idéias e constituir intervenções neces-
que podemos ser introjetados pela obra e sárias a criação de um campo em que as
passamos de observadores para alvos. “Em fronteiras entre a política, a sociedade, a

– ANGELA ANCORA DA LUZ 183


cultura e a ideologia são fluidas, mas pos-
suem um acento eminentemente crítico. O
exemplo maior é a arte do grafite.

Nas pinturas de Gentileza percebemos uma


grande afinidade com os grafites contem-
porâneos. Há uma navalha crítica cortante,
que penetra na alma do povo trazendo ex-
periências catárticas. À medida que vai se
tornando coletiva a obra começa a sair dos
http://www.hojemais.com.br/andradina/noticia/geral/ muros, sendo levada em pequenas frases
exposicao-traz-historia-e-curiosidades-sobre-o-profeta-
para outros suportes. Adesivos para carros,
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

gentileza (foto divulgação)


imãs de geladeira, pulseiras, camisetas es-
tampadas, enfim, toda a sorte de objetos
que pertencem ao universo dos diferentes
grupos sociais e culturais da cidade, que
desfaz suas fronteiras e se aproxima através
dos dizeres: “Gentileza gera gentileza”.

Os grafites surgiram como figuras pinta-


das nos muros da cidade de Nova York, na
http://oglobo.globo.com/rio/projeto-recupera-os-56- década de 1970, diferindo das pichações,
paineis-de-gentileza-pintados-em-pilares-de-viadutos-da- que utilizavam letras existentes ou criadas
cidade-2817194 Restauração de murais do profeta Gentileza
(foto: divulgação) como signos de seus autores. Ambos ti-
nham a função social de liberdade de ex-
pressão, procurando ocupar o espaço da
cidade utilizando um veículo que estives-
se ao alcance da população. Enquanto os
grafites evoluíram para serem absorvidos
como arte, as pichações continuaram a ser
discriminadas e, quase sempre, considera-
das atos de vandalismo.

Podemos fazer uma aproximação dos grafi-


tes de José Datrino com as obras de Jenny
Holzer. O que nela se observa é a utilização
de frases que partem de verdades óbvias,
como “A revolução começa com mudanças
no indivíduo” ou, ainda, quando ela busca
a inspiração em textos que revelam o seu

<<
discurso social, em frases inflamadas proje- “Deus”, “bondade”, “perfeição”, “capitalis-
tando sua indignação. Já em Datrino os tex- mo”, “Jesus”, “humanidade” e muitas outras
tos são aconselhadores, buscam o sentido cujos significados reforçam a mensagem de
de elevar o cidadão, trazendo uma esperan- Paz, de organização, de perdão e trabalho.
ça nova. Alguns são até apocalípticos, mas Desta forma, elas se tornam pregnantes e se
sempre revelam a existência de alguém que destacam da parede estimulando a percep-
nos olha e nos ama, enquanto somos nós a ção e possibilitando a reflexão.
olhar o grafite escrito numa caligrafia que,
por si só, já é uma criação à parte. Haveria No espaço público a obra adquire uma di-
ainda muitos outros grafiteiros que pode- mensão peculiar. Não apenas pelo resulta-
ríamos cotejar com o Profeta Gentileza, mas do visual que fica registrado, mas porque o
queremos apresentar especificamente este artista também está presente. No caso de
artista singular, um filósofo ingênuo com Gentileza ele atuava como parte da obra e
aptidões artísticas e como ele interveio no agente de sua propaganda. Ele se deixava
espaço público. fotografar, conversava, oferecia flores e re-
forçava de modo inequívoco a permanên-
No caso dos murais de Gentileza, eles se si- cia da obra.
tuam na fronteira dos grafites e pichações,
tendo sido tombados pelo Patrimônio Cul- Desde a escuridão dos tempos, em que o ho-
tural da Cidade do Rio de Janeiro como um mem pintava nas cavernas, a arte manifestou
bem que confere identidade à própria cida- sua força como veículo de comunicação, sur-
de e assim foram instaurados como “obra gindo no espaço público ao alcance dos deu-
de arte”. ses e dos homens. Foram necessários mui-
tos séculos para que o homem fizesse suas
O artista utiliza letras e signos, o que aproxi- primeiras exposições artísticas com o senti-
maria sua pintura das pichações, porém não do de levar as obras ao público para serem
possui o caráter de liberdade gestual, de mostradas, apreciadas e, até adquiridas. Sa-
movimento e ação da letra em relação ao be-se que a primeira exposição com tais ca-
espaço. As composições possuem caráter racterísticas só veio a ocorrer no Renascimen-
construtivo e as letras são figuras pintadas, to, sendo organizada por Giorgi Vasari nas
numa tipologia criada pelo artista, que ne- exéquias de Michelângelo. Com a aquisição
las identifica sua força autoral, o que nos faz das obras de arte surgiu o colecionismo e, já
considerá-lo “grafiteiro”. Ela possui carac- no século XVII os museus modernos, a partir
terísticas contemporâneas, na medida em de doações de coleções particulares. As fa-
que parece ter consciência do olhar frag- mílias principescas acumulavam objetos de
mentado dos transeuntes e da velocidade arte da antiguidade, tesouros e curiosidades
dos veículos que não permitem o tempo de que conferiam status aos proprietários. Os
olhar reflexivo aos seus passageiros. As pa- museus19, como guarda destes tesouros que
lavras são repetitivas e redundantes, como preservaram a memória das civilizações e dos
“gentileza”, ”amor”, “agradecido”, “natureza”, povos tiveram seu apogeu no século XVIII.

– ANGELA ANCORA DA LUZ 185


Durante os séculos seguintes eles foram – Bibliografia
os “guardas dos tesouros da humanidade”,
mas, a partir do advento da arte moderna ARGAN, Giulio Carlo – História da
e, mais precisamente na contemporaneida- Arte como História da Cidade. São
de, a arte foi deixando os museus na direção Paulo: Martins Fontes, 1992.
de um público maior e encontrou nas ruas o DIDI-HUBERMAN, Georges – O
espaço público por excelência para criar e que vemos, o que nos olha. São
apresentar suas obras. As condições locais Paulo: Editora 34,1998.
determinaram o caráter efêmero de certas GUELMAN, Leonardo Caravana
obras, sobretudo as pintadas nos muros da – Univvverrsso Gentileza. Rio de
cidade, mas a documentação das mesmas Janeiro: Ed. Mundo das Idéias,
passou a se constituir num novo arquivo da 2009.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

memória para a preservação destas obras. GUYAU, Jean-Marie – A arte do


ponto de vista sociológico. São
No espaço público das ruas e praças, a arte Paulo: Martins Fontes, 2009.
foi assumindo o papel de meio de reflexão LUZ, Angela Ancora da – Roberto
do homem no mundo, sem perder sua con- Moriconi. Vida e obra. Rio de
dição de lugar. Nas pilastras do viaduto da Janeiro: Editora Caligrama, 2012
Avenida Brasil, os murais do profeta Gentile- PALLAMIN, Vera Maria – Arte
za, filósofo, artista, profeta e andarilho, pro- urbana. São Paulo: região central
movem uma declaração ética, moral e reli- (1945 – 1998): obras de caráter
giosa que não se constitui como produto, temporário e permanente. São
na medida em que não pode ser comprada Paulo: Annablume: FAPESP, 2000.
ou vendida, mas uma intervenção visual que SILVA, Fernando Pedro da –
instaurou um espaço de discussão dentro Arte Pública: Diálogo com as
do espaço da cidade. comunidades. Belo Horizonte:
Editora C/Arte, 2005.

– Sites visitados
<http://oglobo.globo.com/rio/
rio-450/pinturas-de-gentileza-vao-
ser-mantidas-com-desmonte-do-
elevado-da-perimetral-13283522>
em 28 de agosto de 2015
<http://www.cultura.rj.gov.br/
artigos/livro-urbano-de-gentileza>
em 28 de agosto de 2015.
<http://sociologiaemdebatemeta.
blogspot.com.br/2012/02/profeta-
gentileza-sera-que-ele-estava.

<<
html> em 1 de setembro de 2
Companhia Municipal de artigo-blog/ghentileza-regular-e-
2015. Limpeza Urbana (COMLURB) original
<http://www.tipomakhia.com/ 3
https://www.youtube.com/ 13
Guelman, Leonardo Caravana
artigo-blog/ghentileza-regular-e- watch?v=mpDHQVhyUrY – Univvversso Gentileza. Rio de
original> em 2 de setembro de 4
https://www.youtube. Janeiro: Ed.Mundo das Idéias.
2015. com/watch?v=j5cewnEzc- 2009. P.48
FY&list=RDj5cewnEzcFY#t=82 SILVA, Fernando Pedro da –
14

– Notas 5
A SOCICAM é uma empresa Arte pública. Diálogo com as
brasileira prestadora de serviços comunidades. Belo Horizonte: C/
1
José Datrino nasceu em de gestão, integrada no apoio Arte, 2005. P. 12
Cafelândia-SP, no dia 11 de de passageiros e atendimento ao 15
Uma das pilastras possui dois
abril de 1917 e faleceu em cidadão. murais.
Mirandópolis-SP em 28 de maio 6
O Profeta Gentileza faleceu em Id. P.28
16

de 1996. Cresceu no campo, 29 de maio de 1996. DIDI-HUBERMAN – O que vemos,


17

trabalhando na roça e amansando http://oglobo.globo.com/rio/rio-


7
o que nos olha. São Paulo: Editora
burros. Por volta dos doze anos 450/pinturas-de-gentileza-vao- 34, 1998. P.29
passou a ter visões premonitórias ser-mantidas-com-desmonte-do- LUZ, Angela Ancora da – Roberto
18

de sua missão o que levou seus elevado-da-perimetral-13283522 Moriconi. Vida e obra. Rio de
pais a buscarem tratamento com http://www.cultura.rj.gov.br/
8
Janeiro: Editora Caligrama, 2012.
curandeiros locais. Mais tarde artigos/livro-urbano-de-gentileza P.125
fugiu para o Rio de Janeiro. Casou- 9
Para Gentileza, AMOR com um A palavra ‘museu’ tem origem
19

se e teve cinco filhos. Tornou- “erre” era o amor material, já com grega. ‘Mouseion’ era o templo
se um pequeno empresário três erres era o Amor da Trindade, das nove musas filhas de Zeus
de transportes até que, com o ou seja, do Pai, do Filho e do e Mnemosine, a deusa da
incêndio do Gran Circus Norte- Espírito Santo, portanto completo. memória. Era o local destinado
Americano em Niterói, ocorrido 10
ARGAN, Giulio Carlo – História à contemplação, aos estudos
em 17 de dezembro de 1961, ele da Arte como História da Cidade. científicos, literários e artísticos,
vai para o local do incêndio que São Paulo: Martins Fontes, 1992. pois as musas eram ligadas às
vitimou cerca de 500 pessoas 11
Há muitas controvérsias em artes e à ciência. Como eram filhas
dirigindo um de seus caminhões. relação ao comportamento do de Mnemosine, o local estava
A tragédia tem enorme impacto profeta, pois, apesar de todo associado á guarda da ‘memória’.
em José Datrino, que afirmava o discurso em que pregava a
ter ouvido vozes orientando que gentileza, em muitas vezes ele era
largasse tudo, se desapegasse “agressivo, moralista e desbocado
dos bens materiais, do mundo [...] Vociferava, ofendia e
capitalista e cumprisse sua missão ameaçava espancar transeuntes”
na terra. Ele parte para Niterói e (http://sociologiaemdebatemeta.
faz no local das cinzas do incêndio blogspot.com.br/2012/02/profeta-
uma plantação de flores. Nascia ali gentileza-sera-que-ele-estava.html)
o Profeta Gentileza. 12
http://www.tipomakhia.com/

– ANGELA ANCORA DA LUZ 187


A Olhar para as Paredes

p o r M a r t a Tr a q u i n o
Artista e investigadora em arte contemporânea. Em 2013 iniciou
investigação teórica e prática em pós-doutoramento ao abrigo da FBAUL
com o apoio da FCT.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

This text proposes an exercise of thought on ‘the wall’


in the city as a barometer for the observation of certain
sociabilities and movements’ qualities of individuals, Parede. Um lado de lá, um lado de cá. Den-
determining or conditioning points of view, or while a tro. Fora. Antes, durante, depois. A constru-
mediation device between the realities that it physically ção de espaço pela sua subtracção. O que
separates and the relationship between collective and oculta, o que separa, o que revela. O que
individual memory. The walls in the cities are one of the contém. Tempo.
supports/mediums most used for the public expression
of individual subjectivities, from many different No seu documentário En Construccìon, con-
backgrounds and purposes, legal or illegal, in particular cluído em 2001, Luis Guerín acompanha a
from the field of artistic interventions that usually are reabilitação do bairro El Raval no distrito
designated as ‘public art’. However, it is rarely taken from Ciutat Vella de Barcelona. Deteve-se so-
a critically attentive approach to the metaphorical or bre a construção de um novo condomínio
documental potential which may contain from the start, numa zona muito antiga e degradada, com
inseparable from the urban context in which it operates, elevados índices de marginalidade e pros-
from it’s dynamic possibilities, like a living organism tituição, sendo uma grande parte da pop-
constantly ‘breathing’ in/with the city. ulação constituída por imigrantes e idosos
com poucos recursos. Uma zona também
cheia de vitalidade, local de habitação e
de diversos pequenos comércios, onde só
é possível construir de novo sob a destru-
ição do antigo. Quando tal acontece, inevi-
tavelmente a memória do passado do bair-
ro emerge à luz do dia. Memória de outros
modos de fazer e de habitar que se revela
momentaneamente através do processo do
seu apagamento. Não só desaparecem os
vestígios materiais que a contêm mas tam-

<<
bém a possibilidade do seu lembrar partil-
hado, uma vez que tais processos de reabil-
itação implicam a exclusão dos residentes.
Situação comum a muitas cidades europe-
ias cujos centros históricos são sujeitos a
planos de reabilitação que visam a substi-
tuição dos antigos edifícios de habitação, e
das pessoas que neles vivem, por condomí-
nios privados, hotéis de luxo, lojas gourmet
e outros espaços afins.

Guerín reincide na alternância entre as ima- José Luis Guerin, En Construccìon, 2001 (fotogramas do filme).
© José Luís Guerín.
gens da queda da velha arquitectura e as Fonte: http://cineyarquitectura.blogspot.pt/2008/08/en-construccin-
imagens do erguer da nova arquitectura, 1998-director-jos-lus.html

dando a certa altura escuta aos pensamen-


tos e conversas dos fazedores das pare-
des conforme ocorrem espontaneamente
durante o processo de construção. Con-
tam-se factos sobre a vida destes homens,
sonhos e desilusões, alegrias e tristezas, so-
bre a vida de alguns dos moradores e do
quotidiano do bairro, sobre Barcelona, so-
bre o mundo, onde passado e presente se
conjugam. Um amplo mosaico de histórias
por diversas geografias é composto a par-
tir apenas de uma pequena área do bair-
ro, lembrando que as paredes são feitas
de muito mais do que apenas materiais e José Luis Guerin, En Construccìon, 2001 (fotogramas do filme).
© José Luís Guerín.
técnicas de construção porque são feitas
Fonte: http://cineyarquitectura.blogspot.pt/2008/08/en-construccin-
também pelos muitos e muitos dias das vi- 1998-director-jos-lus.html

das de pessoas. Guerín foca a sua atenção


em elementos simples consequentes da
acção e interacção humana durante o fazer
das paredes. Raramente recorre aos planos
que mostram ruas ou praças. A narrativa
decorre à medida que as paredes perdem
e ganham forma, através de um olhar per-
sistente, que vai e volta, ao longo de um
tempo que se demora.

– MARTA TRAQUINO 189


Tomo o exemplo deste documentário de a atenção sobre o que se encontra de um
Guerín como introdução a esta proposta de lado ou de outro, separado e/ou protegido,
reflexão sobre ‘a parede’ na cidade enquan- mas considerando sobretudo o próprio es-
to barómetro para a observação de certas paço intermédio que o limite em si mesmo
sociabilidades e qualidades de movimentos constitui, entendido como possível zona de
dos indivíduos, determinantes ou condicio- contacto, de transferências.
nantes de pontos de vista, ou enquanto dis-
positivo de mediação entre as realidades As paredes têm peso, mas a palavra ‘peso’
que fisicamente separa e da relação entre parece ter apenas conotações negativas
memória colectiva e individual. As paredes para a cultura ocidental no mundo actual,
nas cidades são um dos suportes/meios sobretudo se tivermos em conta como (pelo
mais utlizados para a expressão pública de contrário) à palavra ‘leveza’ sempre se as-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

subjectividades individuais ou colectivas sociam conotações positivas. Este facto é


das mais diversas origens e propósitos, le- evidente, por exemplo, na publicidade de
gais ou ilegais, nomeadamente para inter- produtos que tanto se pode referir com os
venções artísticas do domínio do que com- mesmos termos ao corpo, como a um car-
mumente se designa como ‘arte pública’. ro ou a um ambiente. Também na arquitec-
No entanto, raramente são tomadas a partir tura das últimas décadas predomina uma
de uma abordagem criticamente atenta ao tendência que valoriza a dissolução do peso
potencial metafórico ou documental que ou da desmaterialização dos limites, a qual
à partida podem conter, indissociável do na prática se traduz, sobretudo, pela ex-
contexto urbano em que se inserem. Este ploração dos efeitos visuais nas superficies
texto surge assim como a tentativa de um dos edifícios. Uma das vias pelas quais esta
exercício neste sentido, considerando que tendência se tem desenvolvido é a que esta-
as paredes podem ser “entendidas como bele analogia entre a arquitecutra e o têxtil,
zonas de convergência entre o material e nomeadamente através do efeito da ‘pare-
o imaterial” (Brighenti, 2009: 68). Podem de cortina’. Desde meados do século XIX,
evidenciar factos, questões e conclusões enquanto novidade introduzida pela en-
sobre ‘fronteiras’ que estruturam a urbani- tão emergente arquitectura do ferro e do
dade, tanto de ordem física como psíqui- vidro, a ‘parede cortina’ começou a ser um
ca e, consequentemente, cultural, social e termo comum na linguagem arquitectónica
política, não esquecendo que a sua materi- para definir o sistema de cobertura exterior
alidade tanto se desenvolve verticalmente de um edíficio no qual as paredes não têm
como horizontalmente. necessariamente carácter estrutural. Rela-
cionado com funcionalidades e modos de
Proponho pensar ‘a parede’ a partir das produção específicos possibilitados pela
suas possibilidades dinâmicas, como sendo Revolução Industrial, desde então o termo
uma espécie de organismo vivo que respi- tornar-se-ia uma das metáforas mas suges-
ra na/com a cidade. Não excluindo a sua tivas da arquitectura. Ao longo do século XX
função de limite, muito pelo contrário, nem a ‘parede cortina’, a par das evoluções tec-

<<
nológicas, sobretudo as digitais que abri- de rede metálica) que sugerem tratar-se de
ram novos caminhos para a concepção de uma matéria têxtil de grandes dimensões
formas curvas e dinâmicas, tornou-se con- em permanente mutação formal. Efeito que
ceptualmente e esteticamente um tema se efectiva visualmente a partir de uma cer-
estimulante na obra de alguns arquitectos ta distância física do edifício. Esta cobertura
consagrados. A partir de finais da década de pode também, por vezes, estender-se deste
oitenta do século XX, ganhou novos contor- à área que o envolve exteriormente, funcio-
nos na relação com a orientação das teorias nando como um toldo. Área que é contem-
do espaço rumo ao paradigma da ‘liquidez’, plada no projecto com o objectivo de ser
sobre o qual assenta, segundo o sociólogo uma zona de transição, geradora de vários
Zygmunt Bauman (2007), a contemporanei- ‘níveis’ de espaço público, entre o edifício e
dade. Movimento, flexibilidade, fluidez, in- a cidade propriamente dita. Tomemos como
teractividade, transitoriedade, leveza, são exemplo desta descrição o Grand Theatre
conceitos aos quais a arquitectura desde D’Albi concluído em 2014.
então procura dar forma através da analo-
gia com a tecnologia e a semântica do têx- ‘Envelope’, ‘vestimenta’, ‘curvas e contra-cur-
til, tornando-se assim representativa de uma vas’, ‘pele’, são termos utilizados no sumário
sociedade na qual, como refere Bauman, de apresentação do projecto do teatro pelo
as vidas dos homens e mulheres decorrem ateliê de Perrault (publicado em 2012 no
mais no sentido de ‘procurar e experimentar seu website). Termos que apelam a uma
sensações’ do que no de ‘fazer coisas’. dimensão táctil mas que, no entanto, pela
monumentalidade do edifício só podem ser
Um dos arquitectos cuja obra explora a ‘interpretados’ pelo olhar sugestionado a
tendência com base na ‘parede cortina’, des- atribuir leveza ao que na realidade tem peso,
de o final da década de oitenta do século XX, liberdade de movimento ao que é fixo, liris-
é Dominique Perrault. O seu ateliê foi o pri- mo ao que é da ordem do rigor e da razão.
meiro a desenvolver e a utilizar rede metálica, Pretende-se assim, segundo as intenções
o elemento chave para a qualidade emotiva de Perrault, realizar a ‘monumentalidade’ e
que Perrault (2006) diz procurar na arquitec- a ‘desmaterialização’ em simultâneo, uma
tura através da pesquisa dos jogos de luz. obra arquitectónica que se torne um símbo-
Permeabilidade, inter-relação, transição, ou lo identitário da cidade estando sempre em
movimento são conceitos que funcionam actualização, como uma ‘obra-acontecimen-
como directrizes na sua obra por relação to’, a conciliação entre a ordem e o acaso.
com um entendimento da ‘parede’ enquanto Contudo, alguma contradição parece estar
elemento ‘não separador’. A materialização contida na relação entre estas intenções e
destes subentende-se pelos efeitos de a sua efectiva concretização. Para Perrault, a
uma cobertura construída sobre o primeiro questão essencial é a de como conseguir li-
corpo do edifício, com características de gar a disposição de um volume no espaço
textura, maleabilidade e penetrabilidade com o seu contexto. A rede metálica, pelo
pela luz (como as possibilitadas pelo ‘tecido’ efeito análogo ao de um ‘tecido’, é o mate-

– MARTA TRAQUINO 191


rial/meio que Perrault considera ideal para
a criação de um ‘espaço-entre’ onde esta
ligação acontece, pois para além de funcio-
nar como um ‘filtro’ mediador dos efeitos
da luz, da chuva e do vento sobre o edifício,
constituí também um prolongamento estru-
tural deste com um efeito de redução pro-
gressiva da sua densidade física no espaço
envolvente. Nesta gradação de peso, que se
apresenta variavelmente ao sentido da visão
Dominique Perrault, Grand Theatre D’Albi, 2009-14. na medida em que o corpo do observador
© Dominique Perrault Architecture.
se aproxima ou se afasta, está implícita a
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Fonte: http://archcase.com/dominiqueperrault/portfolio/grand-
theatre-dalbi/ ideia de Perrault de uma arquitectura ‘aber-
ta’ e ‘mutável’, impermanente. No entanto,
trata-se na realidade da sobreposição de um
invólucro a outro. O mesmo será dizer que
se trata, efectivamente, da sobreposição de
uma arquitectura a outra, sobretudo se for
tida em conta a relação formal (e funcio-
nal) que existe entre a cobertura de rede
metálica e uma tenda (sendo a tenda uma
modalidade de arquitectura que ainda hoje
se pratica, como é o caso das tendas dos
nómadas na Mongólia ou, num exemplo até
mais próximo do teatro, o caso das tendas
Dominique Perrault, Grand Theatre D’Albi, 2009-14. de circo). O Grand Theatre D’Albi sugere a
© Dominique Perrault Architecture.
analogia com uma tenda gigante contendo
Fonte: http://archcase.com/dominiqueperrault/portfolio/grand-
theatre-dalbi/ um edíficio. Poderá, como defende Perrault,
este efeito ser representativo, mesmo num
plano metafórico, da ligação entre o edifício
e o seu contexto envolvente? Ou não resul-
tará afinal numa ‘dilatação’ dos limites do
edifício em causa? Porque ainda que a acção
da luz sobre a rede metálica possa sugerir
ao olhar a impermanência e a fluidez, as pro-
priedades dos materiais utilizados garantem
resistência a longo prazo, são pesados, não
são propriamente mutáveis a um toque de
mão como pode acontecer com a parede
de uma tenda verdadeira.

<<
Na verdade, trata-se de uma arquitectu- que se mostram abertos à vista de todos po-
ra com duplo sistema de parede exterior, dem não ser efectivamente ‘públicos’, como
pois a rede metálica, à parte das suas analo- acontece com muitos dos espaços amplos
gias técnicas e metafóricas com as proprie- que circundam edíficios monumentais, sím-
dades do têxtil, constituí inevitavelmente bolos de identidade local e nacional, con-
um imponente limite físico. No Grand The- trolados por sistemas de vigilância que ga-
atre D’Albi observamos uma ‘duplicação’ rantem o nivelamento dos modos de estar.
da fachada do edíficio e não propriamente
a sua ‘diluição’, o que é contrário ao que É nas cidades que, actualmente, se
sugere Perrault (2006) quando refere que identificam as novas modalidades de
a utilização do ‘tecido’ metálico na sua ar- fronteiras. Por exemplo, é curioso ter em
quitectura confere a ligação desta à geogra- conta como paralelamente aos processos
fia do sítio. Paradoxalmente, é pretendida a de abertura das fronteiras territoriais en-
desconstrução da separação entre interior tre os países europeus ao longo do século
e exterior que habitualmente caracteriza XX, as cidades têm vindo a tornar-se cada
a arquitectura quando, de facto, o edifício vez mais fragmentadas pela criação no seu
em causa se destina a funções, usos e con- interior de territórios que praticam a segre-
teúdos cuja efectivação implica necessar- gação e, consequentemente, o conflito. Os
iamente o distanciamento e protecção em mais fáceis de se circunscrever, pela sua evi-
relação ao exterior. Os limites físicos têm dência física, são os territórios murados des-
aqui de existir, são um facto imprescindível tinados a habitação, derivados de escolhas
do modelo da arquitectura em causa. De- residenciais praticadas por certas catego-
vem até ser facilmente identificáveis, pois rias sociais, economicamente mais favore-
em edifícios de tal sofisticação e imponên- cidas. O sociólogo Richard Sennett (2005)
cia a vigilância não se faz apenas à entrada considera que cada vez que uma comuni-
mas em toda a sua área envolvente. Contu- dade murada se ergue um novo gueto pas-
do, o que importa aqui salientar é a nature- sa a existir, tornando-se necessário analisar
za da relação entre o discurso e a prática a cumplicidade deste tipo de construção
nesta tendência da arquitectura, pois não com a violência e a insegurança na cidade,
podendo ser concretamente ‘aberta’ é con- pois trata-se de um modo de habitar que
tudo sustida por argumentos e por efeitos recusa o civismo, que pressupõe que as dif-
visuais que evocam a sugestão da ‘desma- erenças devem ser policiadas. Nesta prática
terialização’ das suas propriedades físicas. de muralhar voluntário, as fronteiras que as
Em causa está uma ‘camuflagem’ dos lim- paredes são devem ser entendidas como
ites do edifício que provoca um efeito ilu- dispositivo simultaneamente de territorial-
sionista na percepção da diferenciação e idade e de visibilidade. Como refere o so-
separação entre espaço privado e espaço ciólogo Andrea Brighenti (2009), quando os
público, ou mesmo a criação de espaços territórios são definidos por paredes, é a di-
‘pseudo-públicos’ que tendem a predomi- mensão da verticalidade destas que está em
nar cada vez mais nas cidades. Os espaços questão e, consequentemente, o seu sig-

– MARTA TRAQUINO 193


nificado mais imediato que é o de ‘impedi- quitectónicas existentes, podem ser de-
mento’. Trata-se da afirmação de ‘um dentro’ tentores de maior poder de intervenção,
e de ‘um fora’, da gestão de possibilidades ainda que éfemera, do que os arquitectos.
e impossibilidades de comunicação pelo Podem praticar conceitos que, efectiva-
controlo dos modos de circulação das pes- mente, não se esgotam no objecto realiza-
soas. Contudo, neste modo de demarcação do, com a vantagem de se desenvolverem
territorial, as paredes são elas mesmas tam- através de processos experimentais. No-
bém territórios, pois constituem horizontes meadamente pela liberdade de acção que
de significados que se estendem ao nível a prática artística pode ter quando não está
do olhar do habitante da cidade. Brighenti ao serviço da encomenda nem dependente
alerta que nesta característica se encontra o da condição de um resultado que perdure
segundo significado da verticalidade que é fisicamente, como no caso desta obra de
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

a ‘superficialidade’. Com ou sem inscrições Christo e Jeanne-Claude. Apesar das suas


que possam ocorrer imprevisiveis ao seu proporções monumentais, não só de esca-
propósito, a ‘superfície’ é, logo à partida, co- la mas também no que respeita aos meios
municante. No caso das comunidades mu- técnicos e humanos necessários à sua real-
radas, a superfície em cerco é significante ização, Wrapped Reichstag não dependeu
de abuso de poder e ostentação de rique- de qualquer espécie de patrocínio con-
za material face ao exterior do qual se de- forme a opção que o casal sempre teve em
marca. No entanto, há que salientar que nas ser totalmente independente e livre na sua
novas modalidades de fronteiras que emer- criação artística. Coerente também com tal
gem na cidade a ‘imaterialidade’ é uma car- opção é a natureza programadamente tem-
acterística que predomina. porária dos projectos. Neste caso, a monta-
gem decorreu entre 17 e 24 de Junho de
Os edifícios ‘cobertos’ de Perrault, como o 1995 e a obra permaneceu apenas até 7
exemplo referido, evocam os edifícios ‘em- de Julho seguinte. No entanto a ideia sur-
brulhados’ pelo casal de artistas Christo e giu em 1971, dez anos após o início da con-
Jeanne-Claude. Desde o início da déca- strução do Muro de Berlim, mas só em 1994
da de sessenta do século XX estes artistas (já após a reunificação da Alemanha) os ar-
sempre trabalharam de um modo singular tistas conseguiram obter autorização para
a relação entre a arquitectura de carácter ‘embrulhar’ o edifício com mais de 100.000
permanente e as propriedades da matéria metros quadrados de tecido polipropileno
têxtil (presentemente, apesar da morte de à prova de fogo, coberto por alumínio, e
Jeanne-Claude em 2009, Christo prosseg- 15.600 metros de corda. A fase final de um
ue o mesmo âmbito de trabalho). Tomemos processo que levou 25 anos, envolvendo,
como exemplo a obra Wrapped Reichstag entre outras acções, reuniões com centenas
(1971-95), realizada em Berlim. de membros dos parlamentos de ambas as
partes da Alemanha então dividida (RDA e
Quando os artistas interveêm sobre o es- e RFA), tendo mesmo havido sessão parla-
paço físico, questionando as estruturas ar- mentar para votação sobre a realização ou

<<
não do projecto. Construído no final do sé-
culo XIX, o Reichstag foi a primeira sede de
um parlamento democrático alemão, tor-
nando-se ao longo do século XX um po-
tente símbolo de memória colectiva não só
da Alemanha mas também da Europa. Da
Républica de Weimar ao Regime Nazi, do
abandono após o incêndio de 1933 à metá-
fora de uma cidade e país divididos.

Interessa aqui considerar a obra Wrapped


Reichstag em contraposição com o referido Christo e Jeanne-Claude, Wrapped Reichstag,
[1971-95] 1995, Berlim. © 1995 Christo
atrás a propósito do Grand Theatre D’Albi
(Photo: Wolfgang Volz).
de Perrault. Tomando a arquitectura, a pri- Fonte: http://www.theartsdesk.com/sites/default/files/imagecache/

meira foi literalmente uma ‘obra-aconte- mast_image_landscape/mastimages/Wrapped%20Reichstag%20


C%20Christo.jpg
cimento’ não pela pretensão da ‘diluição’
das paredes do edifício quando estas inevi-
tavelmente existiam mas, ao contrário, pela
sua afirmação através de activar um outro
modo de as dar a ver que, paradoxalmente,
aconteceu pelo efeito da sua ocultação. O
envolvimento de todo o edifício com o te-
cido branco prateado acentuou e actual-
izou a sua presença, a sua massa concre-
ta, sem efeitos de ilusão ou ambiguidade
na percepção da demarcação dos limites
em relação ao espaço exterior. Um efeito
‘parede cortina’ deu-se de modo literal so-
bre o edifício, possibilitando a acessibil-
idade não só às propriedades visuais mas
também tácteis do têxtil. Durante quatorze
dias a nova ‘pele’ do Reichstag reagiu à pas-
sagem do vento, reconfigurando assim os
contornos da memória que a sua existência
de mais um século evoca. A este respeito
foi notável a opção dos artistas pela opaci-
dade do tecido, contrariamente à opção
pela ‘transparência’ que a arquitectura tem
vindo a praticar na sua analogia conceptual
e técnica com as características do têxtil. A

– MARTA TRAQUINO 195


opacidade criou um certo silêncio sobre o arquitectura conforme sugerida nos referi-
edifício, abrindo espaço para uma interpre- dos argumentos de Perrault, aqui toma-
tação renovada sobre a sua existência. Em dos como representativos do que consid-
analogia com o que refere o crítico cultural ero ser uma tendência actual na prática e
Andreas Huyssen (2003), teoria de agentes responsáveis pela rep-
resentação do espaço urbano, orientada
“Num contexto público e discursivo mais pelo discurso ‘politicamente correcto’ de-
amplo, o velar de Christo funcionou de fac- fensor da ‘diluição’ dos limites entre zonas.
to como uma estratégia para tornar visível, Tal discurso tem sido sobretudo útil a ex-
desvelar, para revelar o que estava escondi- ercícios de estilo que se revelam debilita-
do quando era visível. Conceptualmente, o dos no que respeita à necessidade de uma
velar do Reichstag teve outro efeito salutar: revisão da ideia de ‘diferença’ à luz da plu-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

silenciou a voz dos políticos como era habi- riculturalidade característica da população
tual, a memória dos discursos das suas ja- de qualquer actual cidade europeia e a sua
nelas, o levantamento das bandeiras alemã relação com o fosso cada vez maior entre
ou soviética no telhado e a retórica política ricos e pobres. Exercícios, como tal, ten-
oficial no interior. Assim, abriu um espaço dencialmente configurantes de espaços
para reflexão e contemplação, bem como que sendo designados de públicos são no
para a memória. A transitoriedade do even- entanto de acesso restrito, não necessari-
to em si — os artistas recusaram prolongar a amente pelo controlo através de barreiras
mostra sob demanda popular — era tal que de ordem física mas por outras aparente-
iluminou a temporalidade e a historicidade mente mais leves como, por exemplo, o fil-
do espaço construído, a relação ténue en- tro selectivo da capacidade de poder de
tre lembrar e esquecer.” (Huyssen, 2003: 36) compra face à tipologia das actividades de
consumo que acolhem e promovem. Tor-
Uma alusão à representação do paneja- na-se fundamental questionar do que tra-
mento na História da Pintura e da Escultu- ta exactamente uma prática de arquitectura
ra Ocidentais parece estar presente nesta e de planeamento urbano quando intenta
relação do têxtil (e a sua opacidade) com ‘diluir’ os limites entre espaços, pois neg-
o edifício. Ao envolver os corpos, o pane- ligenciar a factual existência destes pode
jamento não distrai o olhar da interpre- levar tal prática a colaborar na criação de
tação das formas que oculta. Pelo contrário, um modelo de cidade onde a ‘indiferença’
faz perscrutar mais sobre estas, sobretudo face à ‘diferença’ predomine. Torna-se en-
quanto mais elaborado for o trabalho do tão urgente a identificação dos ‘limites’
claro-escuro, ou seja, a representação dos na cidade, a sua confrontação, a sua inter-
efeitos da luz sobre a matéria. Pode tam- rogação através da experiência de os at-
bém acentuar a sugestão do movimento ravessar, para que se possa conhecer o que
dos corpos, sem no entanto sugerir a sua está em cada um dos lados, ambos partes
‘desmaterialização’. Num entendimento da mesma urbanidade.
oposto segue a relação entre o têxtil e a

<<
No seu documentário In Comparison (2009),
Harun Farocki aborda de modo supreenden-
te e essencial os processos de construção
de paredes enquanto espelho de diferença
e diversidade culturais, partindo da consid-
eração do elemento básico da sua estrutura:
o tijolo. Observou processos de produção
de tijolos em diversos países, cuja sequência
na estrutura do documentário se organiza
de modo crescente em função da situação
económica, dos países mais pobres aos mais
ricos. O primeiro acontece em Burkina Faso Harun Farocki, In Comparison, 2009
(fotogramas do filme).
com os esforços colectivos de uma comuni-
© Harun Farocki.
dade de pessoas com diferentes gerações
que realiza todas as etapas da construção
de um edifício pelas suas próprias mãos, at-
ravés da acção conjunta com base na coor-
denação espontânea dos movimentos dos
corpos. O último decorre no contexto de
produção industrial de tijolos tecnologica-
mente mais avançado, na Alemanha, onde
as poucas pessoas necessárias ao proces-
so trabalham isoladas com as máquinas, de-
sempenhando poucos gestos quase restri-
tos apenas ao movimento dos olhos. Farocki
cria assim um incisivo retrato global no qual
diferenças culturais, sociais e económicas se
revelam pela duração específica do modo
de produção de tijolos e, consequente, do
modo de construção de paredes que prati-
cam. Uma metáfora poderosa sugerindo
que as diferenças entre as culturas se de-
terminam pelo ‘tempo do tijolo’ que pro-
duzem. Para Farocki os tijolos ‘ressoam’ os
fundamentos das nossas sociedades, mas
ainda não aprendemos a ouvi-los. Andres
Lepik (2010), curador e historiador de arte,
refere o seguinte na análise que faz deste
documentário, “In Comparision apresenta o
tijolo como uma metáfora global para a in-

– MARTA TRAQUINO 197


teracção humana nos processos de constru- tão de ser uma representação no espaço
ção e resultados finais construídos. O filme para se tornarem experiência, ou por outras
começa em Gando, Burkina Faso — uma al- palavras, um possível espaço de represen-
deia num dos países mais pobres do mun- tação para quem os pratica, zonas para o
do. Os tijolos para um pequeno hospital es- exercício da subjectividade.
tão a ser manufacturados pela comunidade
da aldeia, simplesmente através do uso das Este texto integra conteúdos da tese de doutoramento:
mãos e dos pés. Homens, mulheres e crian- Traquino, Marta, Ser na cidade: urbanidade e prática artís-
ças falam e riem juntos através do proces- tica, percepções e acções, Orient.: Prof.ª Mª João Gamito,
so (…) A meio do filme (…) imagens de uma FBAUL, 2012. Todas as citações têm tradução livre pela au-
nova fábrica de tijolos alemã com proces- tora. O texto não segue o acordo ortográfico.
sos de produção totalmente automatizados.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

A única pessoa que ainda está na imagem


é um operário sentado de braços cruzados
junto a um computador rodeado por máqui-
nas. Durante todo o processo, o ser humano
nunca toca o material básico, a terra, nem o
produto concreto, o tijolo.” (Lepik, 2010)

Modos de observação em torno do enfor-


mar das paredes dão ênfase à dimensão
de temporalidade que estas subentendem.
Não a temporalidade apenas por sugestão
visual que, por exemplo, pode derivar das
metamorfoses de cor e textura nas suas su-
perficies, mas a temporalidade que é ac-
tivada pelo movimento do corpo que ousa
indagar sobre o que ‘oculta’ aquilo que se
dá a ver, sobre o que pode um limite mostrar
através de si mesmo, no seu ‘porquê’ e
‘como’. A existência de limites no espaço
físico, como os constituidos por paredes, é
inerente à efectiva limitação ou restrição de
movimentos. De um modo ou de outro, é
como a imposição de distância ideológica
na proximidade espacial, mas movimentos
não expectáveis do olhar ou do corpo po-
dem questionar e revelar a natureza destes
limites, confrontando o seu desígnio com o
momento presente. Os limites deixam en-

<<
– Bibliografia Sennett-Civility-Bulletin1.pdf,
acedido em Dez. 2009.
BAUMAN, Zygmunt ([2005] 2006), — (2007), “The Open City”, in
Confiança e Medo na Cidade, BURDETT, Ricky e SUDJIC, Deyan,
Lisboa: Relógio D’Água Editores. (eds.), (2007), The Endless City
— ([1995] 2007), A Vida – The Urban Age Project by the
Fragmentada – Ensaios sobre London School of Economics
a Moral Pós-Moderna, Lisboa: and Deutsche Bank’s Alfred
Relógio D’Água Editores. Herrhausen. Society, London:
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SENNETT, Richard (2005),
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ac.uk/collections/urbanAge/0_
downloads/archive/Richard_

199
Arte Pública e Política1

por Cristina Pratas Cruzeiro


Professora Assistente Convidada na FBAUL e Investigadora do CIEBA.

The notion of Public Art has been moving in a terrain


open to redefinitions and interpretations. This fact
derives, among others, from the artistic dynamics No decorrer da década de noventa do sé-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

developed in the second half of the twentieth century culo XX, a noção de Arte Pública foi profi-
and from the identity expansion of the traditional cuamente discutida nos EUA a partir do
disciplines. But it also stems from the fact that in our comprometimento social que alguns artis-
days this notion it is applied to artistic interventions with tas manifestavam nas suas obras. Dela re-
very different purposes. Nevertheless, it is possible to sultou a proposta de uma nova tipologia
understand the convergence of the critical discourse to artística, então denominada de ‘novo gé-
a characterization of the notion of Public Art based on nero de arte pública’. A designação surgiu
two elements: the relationship with the Space and the pela primeira vez numa edição publicada
relationship with the Public. But these concepts have em 1995, que reunia as intervenções ocorri-
extended the perimeters of its significance. On the one das no simpósio ‘Mapping the Terrain: New
hand, the Space it has been understood through an Genre Public Art’, realizado em 1991 no San
anthropological and social dimension. On the other hand, Francisco Museum of Modern Art. Suzanne
the connection between the Politics and Public 2 became Lacy, a quem coube o trabalho de edição
central to some artistic practices. This text it is precisely do volume com o mesmo título, destacava
about the relation of the Public Art with the Politics. aí o papel pioneiro e o contributo da inicia-
tiva para um conhecimento e compreensão
de produções artísticas cuja contextualiza-
ção teórica ocorria até ao momento a par-
tir da designação lata de ‘artistas políticos’
(Lacy, 1995, p.12).

A introdução de Lacy veiculava o ‘novo gé-


nero de arte pública’ a questões de ordem
social, o que no seu entender evidenciava
uma convergência histórica com o desen-
volvimento de vários grupos de vanguarda,
como os feministas, marxistas e de outros
activistas (Lacy, 1995, p.25). A designação

<<
tinha em conta o facto de determinadas procedimentos metodológicos e de inte-
práticas artísticas se centrarem numa inter- racção com uma audiência ampla e diver-
venção social baseada na interacção con- sificada – assente em assuntos relevantes
tinuada com diferentes segmentos da po- para as suas vidas – e com uma actuação no
pulação ou com comunidades específicas, terreno social que privilegiava questões de
alargando dessa forma o perímetro da con- ordem cultural (Lacy, 1995, p.20), uma op-
textualidade que, até aí, tinha estado afecto ção alinhada com os caminhos que então se
ao princípio da espacialidade. Lacy descre- trilhavam no domínio político.
ve-as considerando que “They have enga-
ged broad, layered, or atypical audiences, A indexação destas práticas artísticas à in-
and they imply or state ideas about social tervenção social e política motivou desde
change and interaction. Most important, the logo uma série de reflexões teóricas de cariz
artists selected provide different models of ideológico que importa conhecer. Tradicio-
practice and ideology.” (1995, p.13). nalmente, os artistas com uma intervenção
social de relevo – fosse enquanto cidadãos
Para Suzanne Lacy, as características que ou enquanto artistas – estavam maioritaria-
uniam determinadas práticas e em simul- mente afectos ao marxismo. Mas durante as
tâneo as distinguiam das restantes centra- décadas de setenta e de oitenta, ao mesmo
vam-se na sensibilidade relativamente à au- tempo que a reconstrução teórica da obra
diência, à estratégia social e à sua eficácia de Marx era abundante e dirigida por orien-
real (Lacy, 1995, p.20). Ainda assim, a auto- tações filosóficas distintas como as de Györ-
ra destacava de entre elas o ‘público’ como gy Lukács, Ernst Bloch, Antonio Gramsci ou
a componente essencial do trabalho, con- Louis Althusser, diferentes organizações po-
siderando que a relação entre o artista e a líticas de fundamento marxista colapsavam.
audiência poderia, em si mesma, tornar-se Simultaneamente, assistia-se de forma glo-
a obra de arte (Lacy, 1995, p.20). Para Lacy, balizada à privatização de todos os aspec-
estas práticas apenas podiam ser relacio- tos da existência social e da dominação do
nadas com as do espectro político em ter- poder capitalista (Bidet e Kouvelakis, 2008,
mos teóricos, uma vez que as áreas sociais p.5 e 6). Com a queda do Muro de Berlim
em que actuavam – por exemplo a oposição em 1989 e o fim da URSS em 1991, sucede-
ao racismo, a violência sobre as mulheres, a ram-se os vaticínios de morte do marxismo.
Sida ou a ecologia – “are as much a recoun- A eles, juntaram-se os discursos analíticos
ting of a traditional leftist agenda as they do pós-modernismo, as teorias do fim da
are the subject matter of new genre public História e as da derrota do marxismo sobre
art.” (Lacy, 1995, p.30). A autora sugeria a o capitalismo como, entre outros, Francis
existência de campos de actuação distintos Fukuyama defendeu em ‘The End of History
entre as práticas artísticas abrangidas pela and the Last Man’, de 1992.
nova designação e as restantes práticas ar-
tísticas assentes numa intervenção social e Esta conjuntura, onde “this theoretical tra-
política. A diferenciação tinha em conta os de-off made in the name of deconstructing

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 201


grand historical and political narratives came ‘Hegemony and Socialist Strategy: Towards
at the very moment when capitalism emer- a Radical Democratic Politics’, publicada em
ged as the totalizing world system” (Shole- 1985, onde propõem que os objectivos de
tte, 2011, p.15), não foi coincidência. Não uma nova esquerda assentem na criação de
obstante, determinou uma alteração subs- uma democracia radicalizada e plural que
tancial no panorama do pensamento crítico, articule a luta de diferentes grupos e formas
das ideologias e também da sua influência de subordinação como a classe, a raça, o
sobre críticos, artistas e práticas artísticas. sexo, assim como as causas dos movimen-
tos ecológicos, antinucleares ou anti-institu-
A incidência nos conflitos gerados fora do cionais (Laclau e Mouffe, 1987, p.6).
contexto económico ganhou bastante ex-
pressividade a partir da segunda metade A influência destes autores para o pensa-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

do século XX, sobretudo nos EUA. Estes mento crítico produzido no contexto das
conflitos, associados ao contexto cultural – artes, durante os anos noventa, raramen-
como as questões de género, de raça, de te tem sido equacionada no que se refere
identidade – procuraram com frequência à reflexão que determinados autores fize-
instalar-se num ‘novo’ pensamento de es- ram durante este período sobre a relação
querda veiculado ao feminismo e/ou ao das artes com a Política. Não obstante, esse
pós-colonialismo, afastando-se da análise equacionamento é fundamental para o en-
social marxista. quadramento ideológico de algumas tipo-
logias artísticas inseridas no perímetro da
Durante este período, o pensamento filosófi- Arte Pública, assim como o é para caracte-
co ‘pós-marxista’ e ‘neo-marxista’3 de Ernest rizar a re-focagem do contexto artístico na-
Laclau e Chantal Mouffe, Paulo Freire e Hen- quele período em matéria de intervenção
ry Giroux ou ainda de activistas associados social e política.
às teorias feministas como bell hooks, tor-
nou-se uma referência para alguns círculos No mesmo ano em que Chantal Mouffe e
e tipologias artísticas, nomeadamente as do Ernest Laclau publicaram o volume atrás
‘novo género de arte pública’. Nele, a con- referido – 1985 –, Hal Foster publicou ‘For
vergência com o marxismo assenta apenas a Concept of the Political in Contemporary
na forma “in which Marx discloses the shor- Art’, onde propunha fazer uma reflexão so-
tcomings of modern democratic theory (…) bre a conjuntura político-artística dos anos
namely, free and equal development of a oitenta a partir de uma revisão das relações
self-determining community.” (Tønder e Tho- entre os domínios cultural e político e en-
massen, 2005, p.2). As divergências são mais tre o social e o económico (Foster, 1985,
profundas, assentando num pensamento p.140). Neste ensaio, que se aproxima às
que considera o marxismo desactualizado considerações tecidas no contexto do pós-
na sua estruturação e análise social, eco- -marxismo, Foster reiterava que o modelo
nómica e política. É isso que, por exemplo, social marxista, baseado na luta de classes,
Ernest Laclau e Chantal Mouffe sustêm em estava ultrapassado. A definição de clas-

<<
se era, no seu entender, uma praxis social Hal Foster partia da análise baseada na
específica e não um dado histórico perma- comutação entre a cultura e a economia
nente que pudesse ser representado (1985, (Foster, 1985, p.146) pelo que defendia uma
p.143). Por isso argumentava que: radical alteração estratégica da arte crítica
em relação às utilizadas durante as primei-
Today progressive social forces in the west ras vanguardas. Se aí a estratégia tinha as-
cannot be defined strictly in terms of “pro- sentado na transgressão cultural e política,
ductive man” – for two reasons. Historically, agora ela deveria assentar na resistência
women, blacks, students...were no long su- e interferência (Foster, 1985, p.149) políti-
bordinate in production or consigned to a ca, efectuada directamente no campo da
realm outside it – to consumption or culture; cultura (Foster, 1985, p.154). Isso exigia da
and socially, the site of struggle for these po- arte uma concepção de cultura como es-
litical forces is as much the cultural code of paço conflitual onde era possível oferecer
representation as the means of production, resistência e interferir com os sistemas de
as much homo significans as homo œcono- produção simbólica e com os processos de
micus. (Foster, 1985, p.142). circulação que controlam as representações
culturais. Era esse o lugar possível para tra-
Hal Foster formulava então a questão: “if it balhar no sentido da transformação social.
can no longer be conceived as representa-
tive of a class, materially productive or cul- O ensaio de Hal Foster terminava sugerin-
turally vanguard, how and where is political do uma distinção entre ‘arte política’ e ‘arte
art to be posed?” (Foster, 1985, p.140). Em com uma política’. Para o autor, a primeira
resposta, afirmava que o poder não pode- mantinha-se encerrada num código retóri-
ria continuar e ser exercido exclusivamente co, pelo que reproduzia representações
ou maioritariamente através do controlo dos ideológicas enquanto que a segunda, im-
meios de produção, mas através do controlo plicada com um posicionamento estrutural
dos meios de representação (1992, p.260). de pensamento, procurava uma prática ma-
Desta forma, a arte política não poderia con- terial efectiva com a totalidade social (1985,
tinuar a ser concebida apenas “as a repre- p.155). Dadas as estratégias de actuação,
sentation of a class subject (…) or an instru- o autor considera que a última procurava
ment of revolutionary change (…).” (Foster, produzir um conceito de ‘político’ relevante
1985, p.143), valores transversais à socie- para a época (Foster, 1985, p.155), evitan-
dade, tendo antes que ser concebida para do dessa forma a apropriação e dominação
“specific uses and material effects (...)” (Fos- pelo poder.
ter, 1985, p.143). Para que isso acontecesse,
tornava-se necessário “see in the social for- Em 1996, Hal Foster clarificava a sua per-
mation not a “total system” but a conjuncture spectiva, publicando o texto ‘The artist as
of practices, many adversarial, where the etnographer’. A partir da recuperação do
cultural is an arena in which active contesta- pensamento que Walter Benjamin expres-
tion is possible” (Foster, 1985, p.149). sou em 1934 no texto ‘Der Autor als Produ-

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 203


zent’ (O autor enquanto produtor), o autor Lugares e considera que “When this kind
considerou que a partir dos anos oitenta of research into social belonging is incor-
vários artistas e críticos começaram a tra- porated into interactive and participatory
balhar em versões contemporâneas do par- art forms, collective views of place can be
adigma aí expresso. Mas a par do modelo arrived at. It provides ways to understand
do ‘autor enquanto produtor’, Hal Foster how human occupants are also part of the
identifica o nascimento de um novo par- environment rather then merely invaders
adigma, o do ‘artista enquanto etnógrafo’ (but that too).” (Lippard, 1995, p.116). As-
(1999, p.172). Estruturalmente similares, sim, no seu entender, as práticas artísticas
os dois consideram que o lugar da trans- comprometidas com o contexto social –
formação política é simultaneamente o lu- por ela denominadas de “art of place” (Lip-
gar da transformação artística (Foster, 1999, pard, 1995, p.119) – deviam trabalhar com
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

p.173). O que os distingue é o sujeito pelo as particularidades humanas geradas nos


qual o artista comprometido luta, uma vez Lugares, centrando-se nesse microcosmos
que no modelo do artista como produtor para dele retirar as dimensões práticas, so-
o sujeito é definido em termos da relação ciais e políticas da comunidade.
económica e no modelo do artista como
etnógrafo é definido em termos da identi- As práticas artísticas compreendidas nes-
dade cultural (Foster, 1999, p.173). ta tradição teórica são várias e os propósit-
os que as movem também. Não obstante,
O paradigma etnográfico identificado por o seu eixo central – o contacto directo com
Hal Foster, de onde se destaca o carácter determinadas comunidades – é tenden-
antropológico das práticas artísticas, é tam- cialmente entendido como o elemento de
bém evidenciado no volume editado por maior significância política. De tal forma que
Suzanne Lacy como sendo uma característi- “a community art project has only ‘succeed-
ca do ‘novo género de arte pública’. Lucy ed’ when it realizes an interaction between
Lippard, no texto ‘Looking around: where we participants and the artist and wider com-
are, where we could be’, aí incluso, propõe munity at which it was aimed.” (De Bruyne
que se volte a olhar em redor, ao que está e Gielen, 2011, p.21). Para o enquadramen-
ao alcance dos olhos e do corpo. Conside- to da questão, é importante referir que as
ra a autora que “because we have lost our metodologias colaborativas e participativas
own places in the world, we have lost re- estavam a assumir neste período uma forte
spect for the earth, and treat it badly.” (Lip- proeminência. Por exemplo, na mesma al-
pard, 1995, p.115). A noção antropológica tura em que o perímetro de actuação con-
de Lugar é definida por Lippard como um ceptual do ‘novo género de arte pública’
espaço social com conteúdo humano, at- estava a sedimentar-se, Nicolas Bourriaud
ravés do qual se podem compreender as in- escrevia ‘Esthétique Rélationnel’ (publica-
terligações pessoais, sociais e culturais. Pos- do em 1997), dedicado à arte centrada nas
tula por isso a necessidade de aprofundar interacções humanas e no seu contexto so-
a reflexão sobre a experiência pública dos cial (Bourriaud, 2008, p.13). Tal como Lip-

<<
pard, o autor identifica nas ‘microutopias’ Ernest Laclau e Chantal Mouffe, “a duo of
do presente a significância política da arte anti-Marxist Leftists (...) attempted to prove
relacional. Mas como Claire Bishop obser- that any universal economic explanation of
va, a mesma tende a centrar-se não no es- society is merely a fetish or myth dreamed
paço social mas na relação entre o artista up by Marx and elaborated on by his follow-
e o espectador (Bishop, 2004, p.56). Isso é ers.” (2011, p.14). Sholette rejeita liminar-
também notado por Christian Kavragna em mente a visão ‘horizontal’ do pluralismo de-
relação ao ‘novo género de arte pública’: fendido por Mouffe e Laclau assim como o
facto de considerarem que:
The rhetoric of the NGPA hardly obscures
the process of “othering”, the construction No one privileged signifier—such as the
of an “other” as a condition for further pro- economy or class status—could possibly af-
jections. The “others” are not only poor and fect all of these positions [as posições de
disadvantaged, they are also representati- conflito social] because capitalism is not a
ves of what is genuine and real, so that they totality, it is instead a text with a multiplici-
are at once both needy and a source of in- ty of interpretive possibilities that generate
spiration (1998). merely local conflicts of power and temporal
moments of subjectivity (2011, p.14).
O discurso de Lacy, de Foster, de Lippard
e de outros autores como Rosalyn Deut- Naturalmente que este debate não está en-
sche4 ou Nicolas Bourriaud relevava uma cerrado e dele tem resultado uma extensa
intervenção social segmentada face a uma profusão de relacionamentos da Arte Públi-
intervenção social dirigida ao contexto ca com o Político. Um dos efeitos mais evi-
económico e político hegemónico. Chris- dentes tem sido o crescimento de propos-
tian Kavragna considerou por isso que tas terminológicas e sub-tipologias dentro
“What is noticeable about the programma- do tecto abrangente da Arte Pública, cu-
tic writings by Lacy and Jacob, but also by jos propósitos se enunciam como políti-
Lucy Lippard, Suzi Gablik and Arlene Raven, cos5. Mas a questão essencial passa pela
is that political analysis is largely missing, dimensão ideológica que esses propósitos
even though there is much talk of social têm, assim como pela interrogação acer-
change at the same time.” (1998). Contudo, ca da sua relação com o sistema capitalista
a omissão da análise política dos discursos neoliberal e com a Política.
críticos sobre arte destes autores não era
casual. Acontecia porque eram enformadas O BAVO, um colectivo sediado em Roter-
por teorias políticas ideológicamente alin- dão, fundado pelos arquitectos-filósofos
hadas com um pensamento sobre as dinâ- Gideon Boie e Matthias Pauwels, tem de-
micas sociais marcadamente niilista e em senvolvido uma investigação nesta matéria,
muitos aspectos anti-marxista. A este res- designando as práticas artísticas sem pro-
peito, por exemplo, o artista Gregory Sho- pósitos políticos dirigidos para o comba-
lette sustenta que toda a teoria política de te às estruturas hegemónicas de poder de

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 205


“NGO art”, ou seja, arte ONG (Organização e De Roo, 2011, p.289). O objectivo passa
não governamental). Este colectivo centra por “do what can be done within the realms
a sua pesquisa e acção na dimensão polí- of possibility and to offer instant relief or em-
tica da arte, na arquitectura e planeamento powerment through a concrete project or
urbano, através da filosofia e psicanálise e intervention” (De Cauter, L. e De Roo, 2011,
sustenta que: p.291) e não por “initiating long-term politi-
cal processes in which ‘the impossible is de-
It is no doubt noble and much-needed that manded’ and of which no one knows wheth-
artists undertake some direct action in the of- er they will ultimately produce a concrete
ten harrowing social situations that continue improvement for the social groups in ques-
to exist in our current societies (...). When it tion.” (De Cauter, L. e De Roo, 2011, p.291).
comes to gauging the effectiveness of the-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

se socially committed practices in tackling Para o colectivo, a questão do enquadra-


the problems at hand in a more fundamen- mento num projecto social de fundo aca-
tal sense, however, they are often found la- ba por ser essencial no momento de aufer-
cking. (...) They reason and operate more like ir sobre a intervenção política das práticas
humanitarian organizations or NGOs: rather artísticas contemporâneas. Isto determina
than addressing the larger, political issues, uma actividade político-artística prolonga-
they focus on what they can do immediately da, pelo que se torna impossível a obtenção
for the affected individuals or groups within de efeitos a curto prazo, como diferentes
the limitations of the feasible. With these or- práticas artísticas comunitárias e relacionais
ganizations they share a high measure of pretendem. O BAVO sustém inclusive que a
self-censorship. It is a known fact that huma- compulsão em atingir resultados imediatos
nitarian organizations deliberately avoid ta- não só condena os artistas comprometidos
ckling head-on controversial political issues a uma neutralidade política como os torna
for fear that the relief effort might be com- extremamente vulneráveis politicamente
promised (...). NGO-art is in fact characteri- (De Cauter, L. e De Roo, 2011, p.291).
zed by a denial of politics: the question of
what can be done here and now, and how Em certa medida, a análise deste colectivo
this can be achieved most efficiently is more coloca em destaque a importância que as di-
important than exposing and combating ferentes concepções de intervenção política
more underlying structures – which should no espaço social têm na concepção e estru-
be the essence of politics (De Cauter, L. e De turação da prática artística. Em relação à
Roo, 2011, p.291). Arte Pública na sua dimensão comunitária,
a análise do investigador Pascal Gielen con-
O colectivo artístico destaca a acção direc- tribuí para uma melhor compreensão desta
ta, uma característica essencial das práticas problemática. Em ‚Mapping Community Art‘
artísticas de carácter colaborativo, participa- (2011), o autor considera que “an engaged
tivo e relacional, como denotadora do prag- artist, who sincerely wishes to make a po-
matismo próprio das mesmas (De Cauter, L. litical statement, forces himself into a par-

<<
ticulary complex role. This is especially the propósito subversivo (De Bruyne, P. e Gielen,
case when he tries to substantiate this social P., 2011, p.21). Isto complexifica a questão,
claim from an artistic position.” (De Bruyne, mas traz simultaneamente à luz a importân-
P. e Gielen, 2011, p.18). A complexidade cia de se identificar o carácter intencional da
que Gielen identifica está relacionada com prática artística, considerando os propósitos
o que considera ser um frágil equilíbrio en- políticos da mesma como uma característica
tre o contexto artístico e o contexto político, essencial a investigar.
podendo um levar à anulação do outro (De
Bruyne, P. e Gielen, P., 2011, p.19). Gielen afirma que a estética auto-relacional
digestiva está tradicionalmente afecta à arte
Pascal Gielen considera existirem dois posi- em espaços públicos onde o artista, embora
cionamentos extremos na arte comunitária. possa ter a participação da comunidade lo-
Um responde à noção de 'estética auto-rel- cal, de instituições públicas ou de empresas
acional' e acontece quando o trabalho serve locais (ao nível do patrocínio, por exemplo),
a identidade do artista e o outro pressupõe segue a sua assinatura artística (De Bruyne,
a existência da noção de‚ 'estética alter-rela- P. e Gielen, P., 2011, p.23). É frequente nest-
cional' e acontece quando o trabalho serve es casos o artista trabalhar com organi-
a identidade do Outro (De Bruyne, P. e Giel- zações focadas em Arte no Espaço Público
en, P., 2011, p.18). Estes dois posicionamen- (comuns nos EUA e em alguns países euro-
tos sugerem que a arte comunitária pode peus) que servem de intermediárias neste
seguir duas direcções: obedecer às regras processo, a fim de encontrar consensos, ou
da arte profissional ou servir exclusivamente de instituições ligadas ao Poder local ou
a interacção social levando inevitavelmente central. Este posicionamento é aquele que
a um suicídio artístico (De Bruyne, P. e Giel- mais directamente se associa ao âmbito da
en, P., 2011, p.20 e 21). Ainda assim, consid- escultura e da edificação objectual, embo-
era o autor, o sucesso do trabalho depende ra possam existir projectos fora desse con-
de um correcto equilíbrio entre os dois texto. Por seu turno, a estética alter-rela-
posicionamentos (De Bruyne, P. e Gielen, P., cional digestiva prima por procurar atingir
2011, p.21). resultados sociais, colocando num plano se-
cundário a assinatura artística (De Bruyne, P.
O que se julga ser essencial nesta análise é e Gielen, P., 2011, p.25). Nela, podem inclu-
que Gielen sublinha que o propósito que ir-se todos os projectos onde acreditar “in
conduz o trabalho para a interacção social the healing effects of the arts is remarkably
determina que o mesmo possa ser consider- strong” (De Bruyne, P. e Gielen, P., 2011,
ado subversivo ou digestivo. A divisão entre p.25) e cujo objectivo artístico passa pela
os dois pólos não é intransponível pelo que integração social de determinados elemen-
a uma estética auto-relacional não tem que tos da comunidade.
corresponder necessariamente um propósi-
to digestivo, assim como a uma estética al- Um exemplo que se julga paradigmático
ter-relacional não tem que corresponder um deste posicionamento é o projecto‚ 'mega-

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 207


fone.net'6 dirigido entre
2004 e 2014 pelo artista es-
panhol Antoni Abad. O pro-
jecto consiste em convidar
grupos de pessoas em risco
de exclusão social a expres-
sarem-se na primeira pes-
soa. Escolhido o grupo é
cedido a cada participante
um telemóvel com câmara
Antoni Abad, 'Megafone.net', 2003 - Mapa com a sinalização dos locais para que registe episódios
onde o projecto se desenvolveu até ao momento. Página de rosto do sítio
do seu quotidiano e os
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

da Internet do Projecto
(Apud http://www.megafone.net/site/index) publique directamente no
sítio da Internet7. O ‘mega-
fone.net’ caracteriza-se in-
equivocamente por encon-
trar na arte uma plataforma
de sociabilidade que neste
caso se traduz por dar voz
a determinadas comuni-
dades fragilizadas. Como o
próprio website do projec-
to refere, a intenção é que o
dispositivo tecnológico en-
Vista da exposição 'Antoni Abad. megafone.net/ tregue a cada participante
2004-2014'. MACBA
possa actuar como um
Foto: Miquel Coll (Apud http://www.macba.cat/es/10-anyos-de-megafone-net)
megafone, amplificando a
voz de indivíduos e grupos
frequentemente ignorados e incompreendi-
dos pelos meios de comunicação principais
(Megafone.net, 2013). Aqui, o artista fala em
discurso indirecto, cedendo o espaço que
lhe é concedido enquanto artista a outros
que em condições regulares não o teriam,
pelo que se trata de uma prática alter-rel-
acional. Considera-se que a mesma é ‘di-
gestiva’ por duas razões: em primeiro lugar
porque o projecto advoga o objectivo de
deixar falar o outro, impedido pelos média
de o fazer. Acaba portanto por se substitu-

<<
ir aos mesmos, transferindo a responsabili-
dade de serviço público para si mesmo sem
que isso se traduza em qualquer alteração
na atitude dos referidos meios de comuni-
cação social. Não existe neste trabalho a in-
tenção de ir mais longe a este nível, exigin-
do por exemplo que os média cumprissem
a sua função, mas antes substituir-se a eles
numa função que diríamos ser protésica. A
outra razão, mais evidente, prende-se com
o suporte financeiro do projecto, dado por Francis Alÿs, 'Turista', 1994 – Fotografia, 9.9 x 15.1 cm.
(Apud http://www.stedelijk.nl/en/artwork/82250-turista)
instituições sociais, culturais ou artísticas e
também por empresas privadas, especial-
mente as dirigidas às telecomunicações8. O
artista coloca-se numa posição de facilitador
das políticas financeiras empresariais que
primam com frequência pelo apoio a iniciati-
vas de cariz social com o objectivo de ganhar
estatuto social e em simultâneo benefícios
fiscais, pelo que de certa forma, sendo al-
ter-relacional, este projecto colabora mais na
manutenção do sistema social e político em
vigor do que na sua alteração profunda.

A estética auto-relacional subversiva acon-


tece quando o artista potencia a sua própria
assinatura artística, o que resulta num tra-
balho indiscutivelmente aceite nas institu-
ições artísticas (De Bruyne, P. e Gielen, P.,
2011, p.25). Um exemplo que se conside-
ra clarificador deste posicionamento é o do
artista Francis Alÿs. De nacionalidade belga,
escolheu o México como residência desde
meados dos anos oitenta, desenvolvendo
um percurso artístico dirigido à exploração
da urbanidade, à relação entre a política e a
poética artística e à esfera pública. Pode-se
dizer que a sua base de trabalho é a per-
formance, no sentido em que procura criar
eventos que envolvem um reconhecimen-

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 209


to do espaço e da esfera pública e onde ser pensada como artística, ainda que recor-
a análise política concreta se interliga com ra à estética. Pascal Gielen utiliza a Parada
uma linguagem poética individualizada. Es- do Orgulho Gay como exemplo. Segundo
tes eventos são registados maioritariamente o autor, neste posicionamento, a estética é
em vídeo e fotografia e depois trabalhados utilizada para servir a intervenção e luta so-
em meios muito distintos. cial e a lógica da sua utilização pode ser eq-
uiparada à que Mikhail Bakhtin atribuiu ao
‘Turista’, uma fotografia de 1994 é disso ex- carnavalesco: produzir uma inversão sim-
emplo. Quando se muda para o México, bólica. Pode-se por isso dizer que o posi-
Alÿs apercebe-se que a sua condição de es- cionamento compreendido na estética
trangeiro envolve um forte sentimento de alter-relacional subversiva se encontra pre-
exclusão social e cultural. Para o reiterar, co- sente de forma veemente em diversos mov-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

loca-se lado a lado com trabalhadores de imentos e associações de carácter social


diferentes actividades que, numa situação criados nos últimos anos com o propósi-
de precariedade laboral sem direitos, ofere- to central de resistência ao capitalismo e
cem diariamente os seus serviços de canali- política neoliberal, designados comum-
zador, pintor ou electricista na praça Zócalo, mente nos meios de comunicação social
no centro da Cidade do México. Na fotogra- como movimentos anti-globalização.
fia, vemo-lo junto aos demais, oferecendo-
-se para trabalhar enquanto turista. O ques- Embora com antecedentes, trata-se de um
tionamento político do artista não implica a fenómeno recente. O seu crescimento re-
renúncia à presença autoral mas o conteú- monta ao início da década de noventa e
do subversivo da obra é explícito. Outros embora no seu âmago existam profundas
trabalhos do artista partilham das mesmas distinções ideológicas e operativas – des-
características, como ‘When Faith Moves de as mais claras às mais dispersas e difusas
Mountains’, realizado no Peru em 2002, que – como caracterização essencial pode ser
implicou inclusive a colaboração de Cu- apontada a dimensão global “en sus efectos
auhtémoc Medina e Rafael Ortega, para y en el alcance del mensaje que lanzan (...),
além de cerca de quinhentas outras pes- en la escala de sus redes y en la dimensión
soas da comunidade local. Aqui, a dimensão de los problemas sobre los que trabajan (...)
política, ainda que metaforizada, instala-se y en la movilidad y circulación de sus com-
no domínio da esfera pública, onde precis- portamientos rebeldes (...).” (Fernández-Sa-
amente as causas da exclusão social devem vater, A. et al, 2004, p.206). Essa dimensão
ser debatidas na sua relação com o poder global pode ser explicada de variadas for-
económico, social e político. mas. Embora se possa ver nela reminiscên-
cias de ideologias internacionalistas, o que
Por último, a estética alter-relacional subver- move a sua existência são fundamental-
siva acontece quando a prática artística se mente os processos de globalização inten-
dilui em movimentos e organizações políti- sificados no decorrer da década de noven-
cas e sociais. Aliás, a prática pode até nunca ta. Para além disso, a influência filosófica de

<<
determinadas orientações de esquerda que
promulgariam a designada ‘crise da repre-
sentação’ está também presente, traduzin-
do-se na rejeição por todas as formas de or-
ganização política ‘institucional’ e no apelo
à auto-organização.

Destes movimentos, destacam-se aqueles


que se centram na acção directa, utilizan-
do-a como método primordial de inter-
venção política. A acção directa, mantida
por vários movimentos anti-globalização
organizados fora das instituições políticas,
tem um vínculo expresso aos movimentos
anarquistas e a algumas correntes de au- Reclaim the streets, Cartaz, 1995
(Apud http://rts.gn.apc.org/poster1.htm)
to-organização, como o Operaísmo italia-
no protagonizado por Toni Negri. Mas do
ponto de vista do entendimento da estética
tem uma clara relação com formas de per-
formatividade criadas no decorrer dos anos
setenta, entre as quais se destaca o Teatro
do Oprimido, um sistema de exercícios, jo-
gos e técnicas teatrais, criado por Augusto
Boal em 1971.

O colectivo londrino ‘Reclaim the Streets’


(1991-2002) integra um dos primeiros ex-
emplos em matéria de actuação integra-
da em movimentos sociais. Caracterizado
pela organização de raves e festas ilegais
de carácter político, o colectivo esteve ini-
cialmente centrado na questão da ecolo-
gia, tendo organizado alguns protestos an-
ti-rodoviários, como a pintura de ciclovias
nas estradas ou a sua ocupação por breves Reclaim the streets, Cartaz, 1995
(Apud http://rts.gn.apc.org/poster1.htm)
períodos por forma a interromper o tráfego
rodoviário. Após um período de interreg-
no na sua actividade – que durou sensivel-
mente cerca de três anos – o Reclaim the
Streets voltou a reunir-se e depressa alar-

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 211


gou o seu foco de contestação para o siste- que merere reflexão aprofundada. Se do
ma capitalista. ponto de vista metodológico, conceptual,
estrutural, imagético e poético existem dif-
Uma das questões mais marcantes da ac- erenças que substanciam a identificação e
tuação deste colectivo foi sempre, desde o caracterização de tipologias distintas den-
início, a forte componente estética utilizada tro do mesmo tecto, também do ponto de
nos protestos, facto que levou a historiado- vista político isso acontece. Por norma, a
ra de arte Julia Ramírez Blanco a afirmar que noção de Arte Pública tem estado afecta a
“What makes its events fascinating is that noções de especificidade espacial. Mesmo
they occupy the ambiguous meeting space depois das suas sucessivas redefinições,
between aesthetic creativity, social imagina- ocorridas a partir da década de noventa do
tion and political action. Their discourse and século XX, esta alocação à problematização
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

praxis borrow something from each of these espacial manteve-se determinante, tanto
three fields while simultaneously belonging ao nível do delineamento genealógico e
to all of them.” (2013). histórico como ao nível da sua delimitação
conceptual. Mas a afectação à Política e à in-
A estética alter-relacional subversiva, aqui tervenção social aconteceu desde o início.
incluída em práticas artísticas comunitárias, Importa por isso, na análise crítica que se
parte de uma inversão da questão arte/ faz destas práticas artísticas, equacionar os
política, ou seja, considera que não é no seio efeitos sociais e políticos e neles, a relação
de movimentos artísticos, por mais politiza- mantida com a sociedade capitalista e com
dos que sejam, que a intervenção política o neoliberalismo global, reflectindo de que
da arte se torna relevante. Ela torna-se rel- forma as mesmas contribuem para a ma-
evante quando os movimentos sociais e nutenção ou derrube do mesmo.
políticos a utilizam enquanto ferramenta de
acção. Assim, a centralidade do problema
não é estético, é social. Não obstante, a es-
tética funde-se num campo expandido de
práticas diversas com um só objectivo: a al-
teração social. Em boa verdade, a questão
que aqui é colocada centra-se na articu-
lação entre a arte e a produção e não en-
tre a arte e a recepção, como acontece com
muitas das práticas descendentes do ‘novo
género de arte pública’, pelo que o seu
perímetro de actuação se encontra simulta-
neamente no âmbito do activismo artístico.

A veiculação da Arte Pública a questões de


ordem social e política é pois uma questão

<<
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dadnomada.net/spip.php?ar- Lacy, S. (Ed.) (1995) Mapping the que desenvolveram o seu
ticle188&varrecherche=Ingre- terrain: New Genre Public Art. pensamento à luz das novas

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 213


tendências surgidas após os anos 2014), com ciganos (Lleida e
oitenta. Jacques Bidet e Stathis Léon, 2005), com prostitutas
Kouvelakis distinguem os termos e prostitutos (Madrid, 2005),
da seguinte forma: com imigrantes nicaraguenses
4
Although it is not always easy (Costa Rica, 2006-2007), com
to distinguish between the two, motociclistas (motoboy) (São
they are differentiated in principle Paulo, 2007-2015), com pessoas
in as much as the one seems to com mobilidade limitada
proclaim the exhaustion of the (Genebra, 2008), com pessoas
Marxist paradigm, whereas the desmobilizadas ou deslocadas
other introduces problematics (Colômbia, 2009-2010), com
which, while maintaining a special saharauis em campos de
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

relationship with certain ideas refugiados (Argélia, 2009-2011),


derived from Marx, reinterpret com pessoas com deficiência
them in new contexts or combine visual (Barcelona, 2010-2011),
them with different traditions. com imigrantes em Nova Iorque
(Bidet e Kouvelakis, 2008, p.XIII). (2011-2013) e com pessoas com
5
A este respeito ver por exemplo mobilidade reduzida (Montréal,
os textos ‘Evictions: Art and 2012-2014).
spatial politics’ (1996), ‘Men in 8
No website do projecto (http://
Space’ (1989) e ‘Agoraphofia’ www.megafone.net) é possível
(1996). aceder aos patrocínios e apoios
6
Como Miwon Kwon fez em ‘One financeiros de cada trabalho.
Place After Another: Site-Specific
Art and Locational Identity’,
publicado em 2002, propondo
que as diversas noções surgidas
nas últimas quatro décadas em
relação à arte pública fossem
organizadas em três distintos
paradigmas: arte em espaços
públicos, arte como espaço
público e arte como interesse
público.
6
É possível acompanhar todo o
projecto no website http://www.
megafone.net/site/index
7
Até ao momento foram
desenvolvidos treze trabalhos:
com taxistas (México, 2004-

<<
Alguns Factores Determinantes
para o Impacto da Arte Urbana em Lisboa1

por Sílvia Câmara

Coordenadora da Galeria de Arte Urbana (GAU) gerida pelo Departamento


de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa. Mestre em História
da Arte Contemporânea pela Universidade Nova de Lisboa.

To elaborate briefly the survey of some seminal factors in


the evolution of graffiti and street art expressions in the
city of Lisbon, is the analytical challenge of this article. I
Particularly focused on the creations of the 21st century, No âmbito das manifestações plásticas as-
the inquiry outlines a summary overview of these sociadas à produção do graffiti e da street
manifestations, from its beginnings in the Portuguese art, a cidade de Lisboa granjeou, sobretu-
capital, also going back to April 25, 1974 and the do na segunda década do século XXI, uma
subsequent production of revolutionary muralism. The posição particular no panorama europeu. O
main reasons given for the current status of the urban volume de obras realizadas, cerca de 400
art phenomenon in Lisbon, characterize the authors trabalhos entre os patentes e os entretanto
community involved; point the interest shown by various perdidos; a amplitude das suas escalas, ex-
political bodies, social and business entities; refer to the pandindo-se entre uma dimensão de cariz
impact of the financial crisis that marked the country monumental, por vezes com mais de uma
in recent years; allude to the media, with national and dezena de andares intervencionados num
international coverage on this plastic universe; mention único edifício, e uma reduzida compleição,
the touristic attraction of urban art and describe the work circunscrita à superfície de um armário téc-
done by the Cultural Heritage Department of Lisbon nico; a dispersão pela malha urbana, atin-
Municipality, through the Urban Art Gallery, in its various gindo tanto a área central da cidade, como
working fields. alguns dos pólos que marcaram a sua ex-
pansão urbanística, o caso das Avenidas
Novas ou até o núcleo dos Parque das Na-
ções e tanto bairros de elevado estrato so-
cioeconómico, como bairros municipais; e
ainda a diversidade de discursos, de gera-
ções, de carreiras, de nacionalidades dos
autores envolvidos, afirmam-se como indí-

– SÍLVIA CÂMARA 215


cios da vitalidade que este fenómeno con- culo XX, em território norte-americano, res-
quistou na capital portuguesa. pectivamente em Filadélfia e Nova Iorque,
com a proliferação do tag, enquanto assi-
O levantamento de alguns factores que se natura do alter-ego do seu autor, o writer3.
nos afiguram determinantes para o actual Em Lisboa, se a sua herança pode retroce-
impacto da arte urbana em Lisboa, pro- der até aos murais propagandísticos execu-
posto por este artigo, resulta do trabalho tados nos anos subsequentes à Revolução
realizado no seio da Câmara Municipal de de 1974, como verificaremos adiante neste
Lisboa (CML), nomeadamente no seu De- artigo, as obras inaugurais, que implicam o
partamento de Património Cultural, cuja ac- modus operandi, as narrativas, os símbolos
ção dedicada às manifestações do graffiti e e os rituais próprios desta comunidade ar-
da street art, praticadas num quadro lega- tística, ocorrem no final da década de 80,
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

lizado, tem vindo a ser desenvolvida pela deflagrando-se na zona de Carcavelos, até
Galeria de Arte Urbana (GAU), desde 2008. chegarem à capital, especialmente em nú-
Constitui pois, uma abordagem decorrente cleos como o ainda hoje activo, muro das
da nossa reflexão e investigação produzi- Amoreiras, junto à Av. Conselheiro Fernan-
das neste campo estético, da concepção da do de Sousa4. Trata-se portanto, de tendên-
estratégia promovida pela GAU nas distin- cias recentes, com aproximadamente 30
tas áreas de actuação que a configuram, na anos de presença na cidade, disponibilizan-
participação em inúmeros projectos organi- do-se ainda num diminuto hiato temporal à
zados e apoiados, na observação e relacio- observação, fruição, análise e estudo.
namento directos com os criadores e agen-
tes associados a estas práticas artísticas, Tal contemporaneidade, o facto de o fenó-
mas também com a população confrontada meno estar a acontecer hic et nunc, permi-
com estas manifestações, nos seus vários te-nos percepcionar as céleres mutação e
papéis sociais, enquanto residente, proprie- ampliação da comunidade ligada à produ-
tária, empresária, turista, entre outros. ção do graffiti e da street art, em Lisboa e
noutras cidades a nível mundial, aspectos
Dentro das principais dificuldades episte- que não apenas reflectem um carácter de
mológicas inerentes ao presente objecto de transitoriedade no interior deste domínio
estudo, realça-se a proximidade temporal plástico, como incutem uma permanente
do fenómeno, cuja génese pode eventual- necessidade de actualização por parte dos
mente remeter para ancestrais gestos pictó- seus investigadores5. Traçar cenários exaus-
ricos e caligráficos, plasmados em registos tivos, consultar taxionomias sedimentadas,
pré-históricos ou articulados na Antiguida- obter dados consolidados, constituem tare-
de Clássica2 ou até em criações de um mu- fas bastante inacessíveis ou até vãs, peran-
ralismo mais recente, em diferentes corren- te a produção criativa em causa. Revela-se
tes novecentistas, mas cujo principal corpus para mais como uma situação globalizada,
de expressão, emerge na segunda metade não só na sua faceta de manifestação sub-
da década de 60 e início da seguinte, no sé- versiva e anti-sistémica, como na sua ver-

<<
tente comissariada e autorizada, surgindo tas estruturas artísticas, consequentemente
constantemente novas iniciativas. Assim e pouco reconhecida pelo pensamento, pela
na ausência de manuais de boas práticas, crítica, pelo mercado, pela maioria das en-
importa aceitar a impossibilidade de uma tidades museais, ao ser germinada no seio
visão holística e definitiva sobre estas ex- de uma comunidade originalmente autodi-
pressões, adoptando um entendimento di- dacta e anónima, ditaram uma clara falta de
nâmico e disponível perante o movimento interesse académico, que se traduzia igual-
perpétuo dos acontecimentos. mente numa fraca produção bibliográfica.
Esta lacuna será outro dos obstáculos ao
Outra dificuldade reside na forte ambiva- seu estudo, situação que começa a ser su-
lência e nas estruturantes contradições que primida, de forma predominante, por disci-
percorrem as posturas de toda esta comu- plinas sociais, como a antropologia visual, a
nidade, perante os desafios que presente- sociologia urbana, muito mais recentemen-
mente lhe são colocados. O pontual ape- te pela história da arte8, e por uma crescen-
lo das galerias e da curadoria, a resposta te vaga de publicações ligadas ao tema.
às encomendas, a atracção pelas marcas, a
sujeição ao processo de legalização, até a Perante o exposto, qual a relevância desta
opção por certos suportes, técnicas e plas- temática na análise da actuação artística na
ticidades, são encaradas por alguns criado- esfera pública? O fenómeno encerra uma
res como processos de “domesticação”, de vertente vandálica que atinge claramente
aniquilação da rebeldia e do descompro- outras expressões plásticas presentes no
metimento (com excepção das regras gera- espaço público, componente que mais do
das pelos pares) que pautou o espírito ori- que se combater cegamente, apenas atra-
ginal das práticas do graffiti e de uma certa vés de vastas campanhas de limpeza, urge
“deontologia” concebida pelos writers6. Se também ser compreendido pelas orgãos
em Lisboa, se encontram cada vez mais ar- responsáveis pela salvaguarda do patrimó-
tistas a trabalharem exclusivamente num nio, enquanto forma de expressão, gesto de
campo autorizado, surgem também auto- rebeldia, sinal de afirmação, acto de demar-
res a produzirem somente registos ilegais, cação do território, perante as condições de
em meios como carruagens de comboios, vida na urbe contemporânea, por parte de
a pièce de résistance do universo ligado ao uma camada adolescente da população9,
graffiti7. Estas facetas, entre outras, espe- estrato aliás cada vez mais jovem. Muitas ci-
lham bem a complexidade do terreno que dades, têm acolhido uma crescente presen-
estamos a percorrer, expondo a subtileza e ça de obras predominantemente parietais,
a delicadeza das matérias em causa. nem sempre de cariz site-specific, criadas
por esta comunidade, produções que trou-
Por outro lado, o estado coevo, conjugado xeram para o espaço público, todo um novo
não só com a natureza efémera da arte ur- grupo composto por artistas emergentes,
bana e a origem de praxis ilegal, mas tam- traduzindo-se numa efectiva regeneração
bém com uma proveniência distante de cer- da intervenção estética na malha urbana,

– SÍLVIA CÂMARA 217


processo que importa compreender para trouxe intrinsecamente para os muros da ci-
mais proficuamente se integrar. Tais ma- dade, uma explosão de revindicações pro-
nifestações aportam igualmente múltiplas postas por movimentos políticos, partidos,
repercussões, de diferentes índoles tão di- sindicatos, artistas. Quebrar o jugo do regi-
versas como as sociais, as urbanísticas, as me ditatorial que havia governado o país du-
culturais, as políticas, as económicas, as me- rante cerca de quatro décadas, denotava-se
diáticas, complexidade de impactos que se igualmente numa nova ocupação do espaço
torna premente ser apreendida para a ac- público, por parte dos cidadãos, agora livres
tual administração do território10. Enfim, não no pensamento e na expressão das suas pa-
reflectir e estudar tais registos artísticos, sig- lavras e da sua iconografia11. As obras então
nificaria negligenciar e discriminar um vi- concebidas derivavam mais de um esforço
goroso panorama plástico, que de algum provindo das estruturas políticas e menos de
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

modo, tem enformado o mais recente esta- um ensejo concretizado por certa elite criati-
do da arte em espaço público. va, apesar de algumas intervenções produzi-
das por artistas plásticos, como o vasto mural
II conjunto, realizado na Galeria Nacional de
A interrogação subjacente a este artigo, Arte Moderna, em Belém, no ano da Revo-
nasce do interesse em descortinar quais as lução e no qual participaram nomes presti-
principais razões para o fenómeno da arte giados, como Júlio Pomar, Nikias Skapinakis,
urbana ter adquirido a presente expres- Vespeira, entre outros12, ou ainda a interven-
são em Lisboa, identificar alguns dos facto- ção executada no piso da Rua do Carmo, em
res que estimularam este tipo de interven- Agosto de 1974, envolvendo o grupo Acre13.
ções artísticas, alimentando a pujança que O património estético trabalhado, emanava
as manifestações do graffiti e da street art essencialmente de uma linguagem gráfica
hoje patenteiam nas ruas da cidade. Nes- delineada pelo marxismo-leninismo e pelo
se reconhecimento, constatámos que há maoismo, quer em termos formais, quer cro-
causas que se tornam efeitos e efeitos que máticos, adaptada tão mimética ou espon-
se tornam causas, dialéctica presente num taneamente, quanto permitia a capacidade
processo pautado pelo dinamismo, pela ex- técnica e imagética dos seus autores. Consis-
ponenciação da comunidade, dos eventos, tiam em peças com claros fitos políticos, que
dos trabalhos, dos lugares onde se inscreve portanto procuravam ser eficazes na comu-
este universo plástico, como foi apontado. nicação, ao despertar, consciencializar, enga-
jar, activar comportamentos nos indivíduos,
Antes de mais, julgamos ser relevante refe- através de mensagens de assinalável impac-
rir a herança do muralismo propagandísti- to visual, com frases imperativas de interpre-
co, eclodido imediatamente após o 25 de tação imediata14. Tal acervo original de mu-
Abril de 1974 e prolongando-se durante rais encontra-se hoje, totalmente perdido,
todo o Processo Revolucionário em Curso. entre as vicissitudes construtivas e urbanísti-
A consignação das liberdades primordiais cas da cidade, legado apenas resgatado de
espoletada pela transição à Democracia, modo tangível, por alguns núcleos fotográfi-

<<
cos, actualmente sob a guarda de entidades
como a Fundação Mário Soares15, o Arqui-
vo Fotográfico da CML16, o Centro de Do-
cumentação 25 de Abril, pertencente à Uni-
versidade de Coimbra17. Todavia, a memória
persiste nas gerações que experienciaram
directamente os acontecimentos do PREC,
gerando certa abertura para as intervenções
do muralismo da actualidade, também ele
atento a essa herança, como o testemunham
o projecto “40 Anos/40 Murais”, organizado Carlos Farinha, Exposição “Venham mais 7!”,
Painel da GAU, Calçada da Glória, 2014
por António Alves e a Associação APAURB18 © CML | DPC | José Vicente 2014
ou a exposição “Venham mais 7!” decorrida
em 2014, nos painéis da GAU, sitos na Calça-
da da Glória e Largo da Oliveirinha19.

Outro factor que nos parece fulcral alinhar,


consiste na maturidade estética e empreen-
dedora que a comunidade de arte urbana
foi obtendo ao longo do seu percurso, na
cidade de Lisboa, como o demonstrava a
produção de hall-of-fame, obras de maior
dimensão e exigência plástica, realizadas
especialmente, no já mencionado, muro Nomen, Slap & Kurtz, Muro das Amoreiras,
Av. Conselheiro Fernando de Sousa, 2012,
das Amoreiras, a partir da primeira metade
© CML | DPC | José Vicente 2012
da década de 90. Nesse período inaugural,
sobressaíam criadores como Wize (poste-
riormente denominado Nomen), ainda hoje
bastante activo no local20, ou Exas e Youth21.
Um pouco antes, durante os anos de 1980,
nas ruas do Bairro Alto, considerado o bair-
ro cultural e boémio da cidade de Lisboa,
onde foram proliferando as empresas cria-
tivas, as actividades artísticas, os locais de
restauração e vivência nocturna22, e dada a
proximidade de alguns estabelecimentos
de ensino dedicados às práticas plásticas
e gráficas como a Faculdade de Belas-Ar-
tes da Universidade de Lisboa e do Palácio
Quintela, antiga sede do IADE, apareciam

– SÍLVIA CÂMARA 219


obras de menor dimensão, ligadas a técni- plasticidades e apoiando os seus projec-
cas como o stencil23. tos, como as duas derradeiras edições da
VSP, na cidade.
Assim, ainda antes da definição de uma
estratégia municipal implementada pela Aquando da implementação de um pro-
GAU, desde 2008, estas expressões exi- grama de reabilitação do Bairro Alto, que
biam já uma considerável consistência pic- implicava entre outras medidas, a remo-
tórica e temática, dentro de uma hetero- ção das inscrições patentes nos seus princi-
geneidade de plasticismos que podiam pais eixos, a CML funda a GAU, inicialmen-
inspirar-se em correntes internacionais te constituída por um conjunto de painéis,
associadas a este universo, mas não dei- instalados na Calçada da Glória, nesta fase
xavam de decorrer da afirmação da sin- avultando-se o papel do Grupo Regojo, en-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

gularidade presente nalgumas autorias quanto patrocinador, e de Pedro Soares Ne-


nacionais. Os criadores portugueses or- ves, elemento ligado à comunidade. Nesse
ganizavam-se em diversas crews, grupos núcleo de suportes, realiza-se em Outubro
de writers com afinidades que frequente- do mesmo ano, uma primeira exposição
mente actuavam em conjunto, e ocorre- que reúne alguns dos mais notáveis artis-
ram estimulantes visitas de alguns autores tas portugueses, de distintas gerações. E
a actuarem no estrangeiro, como o actual- no princípio de 2009, o Departamento de
mente reconhecido André24. Na capital, Património Cultural da edilidade, assume a
surgiam as primeiras iniciativas promovi- tutela daquele espaço, delineando uma es-
das pela comunidade, com destaque para tratégia para a arte urbana que versava não
a VSP – Visual Street Performance, projec- apenas aqueles painéis, mas ponderava ou-
to com 6 edições, organizadas entre 2005 tros territórios na cidade, como passíveis de
e 2010, que reunia algumas das figuras receberem intervenções de arte urbana27.
mais prestigiadas deste universo, como Rapidamente, no contexto dessa actuação,
Hium, Klit, Mar, Ram, Vhils, entre outros25. a Galeria giza uma abordagem do proble-
O evento decorreu em vários edifícios, es- ma que para além de pugnar pela salva-
paços abertos ao público, envolvendo tan- guarda e a preservação do património artís-
to a mostra e comercialização de trabalhos tico e cultural de Lisboa, procura promover
de menor escala, como a produção de tra- e sensibilizar para o fenómeno da arte ur-
balhos parietais e instalações, sendo de bana, defendendo que poderá ser compatí-
assinalar que Vhils realiza neste contexto, vel, frutuosa e harmoniosa uma convivência
a sua primeira obra em baixo relevo, com entre os discursos artísticos até então utili-
perfuração do reboco, técnica pela qual zados nas produções ligadas à arte pública
se tornou mundialmente reconhecido26. patente na cidade e outras intervenções de-
Desta forma, o aparecimento da GAU veio rivadas do universo do graffiti e da street art.
incrementar este ímpeto já presente na Para tal, inicia um diálogo com a comunida-
comunidade, proporcionando-lhe novas de, reforçando relações de confiança com
oportunidades para aprofundar as suas algumas das figuras prestigiadas do meio.

<<
Promovendo não só as suas próprias ini- No contexto do apoio às actividades de
ciativas, como suportando e apoiando os produção artística, concebidas pela comu-
eventos organizados por terceiros, a Ga- nidade, realçamos dois dos eventos mais
leria alarga a sua área de intervenção. As- emblemáticos da cidade de Lisboa – o pro-
sim, adopta logo nesse ano de 2009, como jecto “Crono” e a plataforma “Underdogs”.
campos essenciais à sua actuação, para O primeiro, idealizado por Vhils, Pedro Soa-
além necessariamente da curadoria e da res Neves e Angelo Milano, notabiliza-se a
produção de eventos, as campanhas e ac- partir das monumentais intervenções rea-
ções de divulgação e sensibilização para lizadas num conjunto de três imóveis, loca-
a importância do enquadramento das prá- lizado na Avenida Fontes Pereira de Melo,
ticas do graffiti e da street art, num plano um dos principais eixos viários da cidade,
legalizado. E ainda a inventariação de re- por parte de alguns dos reconhecidos no-
gistos, levantamento que recua até à Revo- mes da street art estrangeira, referimo-nos a
lução de 1974 e avança até à actualidade, OsGémeos33, Blu, Sam3, EricaIlCane e Lucy
inventário divulgado permanentemente McLauchlan34. Será a sua escolha como uma
pela Galeria em diferentes meios, como o das mais importantes obras de arte urbana a
Google Art Project28. Mas também o apoio nível mundial, num artigo da autoria de Tris-
ao debate, à investigação e à publicação, tan Manco, publicado pelo The Guardian35,
através da organização de seminários, da que começa a oferecer a Lisboa uma posi-
participação em aulas, conferências e con- ção de destaque no cenário internacional.
gressos, de parcerias com investigadores e
editoras, o caso de Ricardo Campos, para a Por sua vez, Vhils e Pauline Foessel no âm-
sua obra “Porque Pintamos a Cidade? Uma bito da plataforma “Underdogs”36, criada no
Abordagem Etnográfica do Graffiti Urba- seu formato actual, no ano de 2013 e con-
no” publicada pela Fim de Século ou a edi- tando com o apoio da GAU, têm vindo a reu-
ção de “Street Art Lisbon”29, lançada pela nir em Lisboa, alguns reconhecidos autores
Zestbooks. A animação e pedagogia, orga- estrangeiros, a par com criadores nacionais.
nizando e apoiando entre outras iniciativas, Apenas para elencar alguns: os brasileiros
o projecto “Lata 65” no âmbito do progra- Nunca e Finok; o polaco Sainer; o espanhol
ma municipal do “Orçamento Participativo”, Okuda; a dupla norte-americana Cyrcle; os
em colaboração neste caso, com Lara Seixo portugueses MaisMenos e AkaCorleone37.
Rodrigues, projecto que se propõe aproxi-
mar a população sénior destas tendências Assim, do interesse político, da consciência
visuais30. Por fim, as relações internacionais, democrática em como seria relevante dedi-
estruturando candidaturas e projectos in- car um tempo e um espaço próprios a uma
ternacionais, integrando redes ligadas à comunidade de artistas que vinha sendo
arte urbana, como a Urban Creativity Allian- afastada da intervenção plástica na malha
ce31 e a RAIU- Rede Luso-Brasileira de Pes- urbana, arredados maioritariamente para
quisa em Artes e Intervenções Urbanas32. práticas não autorizadas, nasce a GAU, plata-
forma municipal a actuar num terreno nunca

– SÍLVIA CÂMARA 221


antes desbravado pela edilidade, então com
raros casos de estudo internacionais, como
o programa implementado pela cidade de
Filadélfia38. Por outro lado, desde os primór-
dios da criação da Galeria, torna-se clara a
exigência de trabalhar em várias frentes, ter-
ritórios, escalas, suportes, plasticidades, ge-
rações, laborando nas diferentes facetas do
fenómeno, com múltiplas prioridades, entre
elas a renovação da intervenção plástica em
espaço público, a desconstrução de precon-
Os Gémeos & Blu, Projecto “Crono”, ceitos associados às expressões do graffiti e
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Av. Fontes Pereira de Melo, 2010, da street art, a elevação do seu estatuto es-
© CML | GAU 2010
tético e profissional, a introdução de activi-
dades culturais em zonas carenciadas da ci-
dade. A conjugação de todas estas áreas de
actuação sob o signo de diversos propósi-
tos, parece também contribuir para a esta-
bilização de um terreno fértil à expansão e
diversificação do fenómeno da arte urbana,
na cidade de Lisboa.

Outra das variáveis decisivas na evolução


deste universo plástico, na cidade de Lis-
boa, assenta no significativo crescimento e
progressivo ecletismo da comunidade artís-
tica implicada. A produção de diversas ac-
tividades que envolvem a intervenção em
suportes de menor escala, como o progra-
ma “Reciclar o Olhar” com trabalhos execu-
tados em vidrões39 ou até a “Mostra de Arte
Urbana”40 decorrida nos já referidos painéis
da GAU ou ainda as obras criadas no muro
Sainer, Projecto “Underdogs”, Av. Afonso Costa, 2015, do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa
© CML | DPC | José Vicente 2015
(antigo Hospital Júlio de Matos), no âmbi-
to do projecto “Rostos do Muro Azul”41, tem
proporcionado a muitos autores o “ritual
de iniciação” na praxis da arte urbana. Em
todas as fases dos concursos dos quais re-
sultam a realização das peças nestas inicia-

<<
tivas, surgem criadores que nunca antes ha-
viam trabalhado em espaço público e que
almejam adquirir alguma experiência neste
campo, conviverem com autores de gera-
ções anteriores, darem-se a conhecer às en-
tidades organizadoras.

Por outro lado, o constante aparecimento


de novos autores, tem como consequência
uma crescente heterogeneidade plástica,
com recurso a outras técnicas, imagéticas,
iconografias e posturas perante os códigos
originais que orientavam o comportamento
no interior da comunidade. Esta diversifica-
ção resulta também da introdução de per-
cursos académicos através de elementos Guilherme Filipe, Projecto “Reciclar o Olhar”, 2014,
© CML | DPC | José Vicente 2014
com formação na área das Belas-Artes, do
Design Gráfico, da Arquitec-
tura ou com experiência no
domínio da ilustração e da
banda desenhada, no seio
de uma realidade que ini-
cialmente, na geração deno-
minada old-school, se fazia
de modo autodidacta, com
uma aprendizagem bastan-
te prolongada e directamen- Saddo, Projecto “Rostos do Muro Azul”,
Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, Rua das Murtas, 2014,
te na rua. Nesta profunda © CML | DPC | José Vicente 2014
transformação, o surgimen-
to de mais mulheres é igual-
mente um aspecto a assi-
nalar, numa comunidade
predominantemente com-
posta por elementos mas-
culinos, possivelmente mais
aptos para enfrentar situa-
ções geradas pela ilega-
lidade42. A concepção de Tamara Alves, Projecto “25 de Abril Hoje”,
Assembleia Municipal de Lisboa, Fórum Lisboa, Av. de Roma, 2014,
obras num quadro autoriza- © CML | DPC | José Vicente 2014
do, destituído de riscos na

– SÍLVIA CÂMARA 223


relação com as autoridades, facilita o traba- de roteiros e visitas guiadas44, o merchan-
lho produzido pelas criadoras que assumem dise, as edições, a instalação de pequenas
hoje posições de relevo neste panorama galerias a trabalharem exclusivamente com
plástico, salientando-se entre outras, figuras street artists, ou ainda que com menor ex-
como Kruella d’Enfer, Glam, Leonor Brilha, pressão, a procura de exibição e comercia-
Maria Imaginário, Mariana Dias Coutinho, Ta- lização de peças por parte de espaços ga-
mara Alves, Vanessa Teodoro, Wasted Rita. lerísticos firmados no panorama artístico
nacional, o caso da Agência Vera Cortês45.
Por outro lado, o facto de a GAU defender
a remuneração destas obras, no sentido da Perante estas circunstâncias, observa-se
sua dignificação enquanto produção criati- uma crescente atenção quer por parte de
va, de elevação do seu estatuto perante os residentes e/ou proprietários do edifica-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

outros campos artísticos, posicionam a arte do, quer por parte de entidades gestoras
urbana como uma oportunidade de tra- do território e empresas interessadas em
balho num cenário de crise financeira que desenvolverem projectos neste domínio.
atingiu fortemente muitas das áreas onde Essa procura obedece a diversas finalida-
paralelamente estes autores desenvolviam des – busca-se não apenas retardar o apare-
as suas carreiras profissionais, por exemplo cimento de inscrições vandálicas em deter-
no mercado publicitário. Estas carências en- minados espaços, mas também promover
frentadas pelo país, implicaram igualmente certa valorização patrimonial; revitalizar e
uma redução na procura de suportes parie- dignificar áreas mais abandonadas, degra-
tais para a instalação de telas publicitárias, dadas e “deprimidas”; reforçar o diálogo
pelos elevados montantes dispendidos em multicultural e intergeracional, a inclusão
taxas e logística, situação que de alguma social e o enraizamento territorial que o de-
forma, ofereceu uma maior margem de ma- senvolvimento de algumas metodologias
nobra ao aparecimento de obras artísticas artísticas pode estimular; aprofundar estra-
em fachadas e empenas com forte visibili- tégias de responsabilidade social e cultural;
dade. Ainda assim e dado também tratar- aproximar-se de públicos urbanitas e juve-
-se de uma comunidade bastante jovem43, nis que claramente se identificam com es-
os valores praticados são inferiores aos en- tes léxicos visuais; partilhar o protagonismo
volvidos na produção de peças com mate- mediático atingido por estas manifestações
riais mais perenes e onerosos, e por cria- na cidade de Lisboa, entre outros intuitos.
dores reconhecidos pelo mercado da arte. Neste campo da colaboração com marcas e
Desfrutando igualmente da proliferação e grupos empresariais, apontamos o projecto
notoriedade que estas manifestações têm “Natureza Viva”46 concretizado entre 2013
usufruído em Lisboa, identificam-se novas e 2014, com a companhia francesa Immo-
oportunidades de negócio e a criação de chan, proprietária dos Centros Comerciais
micro-empresas vocacionadas para a pres- Alegro, que se traduziu na elaboração de
tação de serviços ou a concepção de ma- um tríptico de intervenções, em Setúbal, Al-
teriais neste contexto, como a organização fragide e Lisboa, nomeadamente em dois

<<
dos pilares da Ponte 25 de Abril, em todos
os locais com o mesmo grupo de artistas –
José Carvalho, Klit, Kruella d’Enfer, Mosaik,
Regg, Tamara Alves, Violant.

A já apontada cobertura mediática, pare-


ce-nos merecer uma menção particular,
pois tem vindo a intensificar-se no decorrer
dos últimos anos, tanto nos meios nacio-
nais, como nos media internacionais. Entre
estes, apontaremos o New York Times, o
El Pais, o L’Express, a France Press, a RAI, o
Tagesspiegel, numa cobertura permanen-
temente levantada pela GAU, com um ba-
lanço de clipping em 2014, de 192 peças
jornalísticas registadas. Obviamente que Mosaik, Klit, Kruella d’Enfer & José Carvalho, Projecto
“Natureza Viva”, Pilares da Ponte 25 de Abril,
esta atenção mediática, traz um relevante
Calçada da Tapada, 2014,
nível de exposição para o fenómeno, junto © CML|DPC|José Vicente 2014

de um público cada vez mais vasto, atrain-


do consequentemente autores, agentes,
associações, marcas e empresas, instân-
cias de gestão autárquica e outras entida-
des políticas, residentes e proprietários. E
o atractivo turístico que a produção de arte
urbana constitui para a cidade de Lisboa,
alimenta-se de forma idêntica, a partir des-
te interesse jornalístico e de toda a divul-
gação impulsionada pelas redes sociais e
outras plataformas digitais. As manifesta-
ções do graffiti e da street art, para além
de impulsionarem um turismo próprio, de
indivíduos que peregrinam pelo mundo no
sentido de visitarem obras, posicionam-se
como um apelo importante para um públi-
co com uma faixa etária entre os 25 e os
34 anos, que viaja muito numa modalidade
de City Break e em companhias Low Cost,
inseridos numa geração de consumidores
3.0 que busca um conjunto de vivências
autênticas, originais, emotivas, sensitivas47.

– SÍLVIA CÂMARA 225


Daí a inclusão de referências dedicadas a – Bibliografia
esta matéria nalgumas publicações turísti-
cas, como a National Geographic Traveler AAVV, Lisbon Street Art & Urban
Magazine, e a crescente oferta de visitas Creativity – 2014 International
guiadas dedicadas ao tema (ver nota 44), Conference, Urbancreativity.org,
o que já acontecia noutras cidades euro- Lisboa, 2014.
peias como Londres e Berlim48. CAMPOS, Ricardo, Porque
Pintamos a Cidade? Uma
III Abordagem Etnográfica do Graffiti
Considerada a estratégia municipal para o Urbano, Fim de Século - Edições,
graffiti e a street art, como exemplo de boas Col. Antropológica, 2010.
práticas na plataforma Cultura 21 da orga- COSTA, Pedro, Bairro Alto-Chiado,
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

nização mundial CGLU-Cidades e Governos Efeitos de Meio e Desenvolvimento


Locais Unidos49 e tendo o Huffington Post, Sustentável de um Bairro Cultural,
na sua edição de 17 de Abril de 2014, co- Câmara Municipal de Lisboa, Col.
locado a cidade de Lisboa, no sexto lugar Lisboa: Estudos Sociais, 2009.
entre as 26 cidades a nível mundial, mais COSTA e LOPES, Pedro e Ricardo,
interessantes para se observar criações de Is street art institutionalizable?
arte urbana50, a capital portuguesa e toda a Challenges to an alternative urban
comunidade artística a actuarem nesse ter- policy in Lisbon, Working Paper nº
ritório, alcançaram uma posição singular no 2014/08, Dinamia’Cet, ISCTE-IUL,
panorama internacional. Este artigo inten- 2014.
tou elencar alguns factores que inspiraram, DANYSZ, Magda, From Style
alavancaram, alicerçaram a expressão que Writing to Art – A Street Art
estas práticas aqui atingiram, num processo Anthology, Drago.
em que as próprias criações e os seus refle- MIRANDA, Rita, Debaixo de uma
xos no espaço público e na sociedade, gera- parede cinza… existe um amor
ram mais artistas, intervenções e projectos. pela nossa Cidade. (OsGemeos)
Todavia, ainda que algumas causas tenham Cidade Turismo e Arte Urbana
sido aludidas e algumas outras se pudes- na área metropolitana de Lisboa,
sem adicionar, o âmago da questão pare- Dissertação Mestrado em Turismo
ce esquivar-se, parece furtar-se ao elenco e Comunicação, Faculdade de
apresentado. Possivelmente só numa cida- Letras da Universidade de Lisboa,
de democrática, livre, criativa, vigorosa, dis- 2015.
ponível para a novidade, atenta ao outro, se Coord. QUARESMA, José, O
tornou possível traçar este percurso. E estes Chiado da Dramaturgia e da
são talvez os atributos mais determinantes Performance – Arte na Esfera
para a compreensão do fenómeno da arte Pública, CIEBA-FBAUL/LESA,
urbana em Lisboa. Lisboa, 2014.
STAHL, Johannes, Street Art, h. f.

<<
ullmann, Col. Art Pocket, Berlin, Lisboa, Vol. 5, Julho, 2014. <http://issuu.com/
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WACłAWEK, Anna, Graffiti and Lisboa, Vol. 6, Outubro, 2014. revistagauvol2_issuu>
Street Art, Thames & Hudson, Col. História, Nova Série, nº 1, Outubro, <http://issuu.com/
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– Catálogos – Sitografia portugue____s_issuu>
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LEWISOHN, Cedar, Street Art – The art-tour> municipal_lisboa/docs/revista_
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lá, o céu é lá, Fundação de Arte <http://www.estreladalva.pt/index. <http://muralarts.org>
Moderna e Contemporânea php/pt/tours/tours-tematicos/ <http://redeartesurbanas.wix.com/
Colecção Berardo, 2010. street-art-tour> raiu>
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Fundação Mário Soares, Lisboa, galeriadearteurbana> tours/>
2009. <https://www.facebook.com/ <http://www.theguardian.com/
Street Art Lisbon, Zestbooks, Lata65> culture/gallery/2011/aug/07/art>
Lisboa, 2014. <http://www.fmsoares.pt>/ <http://www.under-dogs.net/>
Underdogs, Vera Cortês Agência <https://www.google.com/ <http://www.inward.it/piattaforme/
de Arte, 2010. culturalinstitute/collection/ urban-creativity-alliance-2>
Visual Street Performance, Lisboa, galeria-de-arte-urbana?hl=pt- <http://www.veracortes.com/>
2007. PT&projectId=street-art>
– Publicações periódicas <http://www.huffingtonpost. – Notas
Finisterra, XLVI, nº 92, 2011 com/2014/04/17/best-street-art-
Revista GAU, Câmara Municipal de cities_n_5155653.html> 1
Este artigo não foi redigido
Lisboa, Vol. 1, Novembro, 2012. <http://issuu.com/unidade/docs/ segundo o actual Acordo
Revista GAU, Câmara Municipal de crono_lisboa_2010-2011> Ortográfico.
Lisboa, Vol. 2, Abril, 2013 <http://issuu.com/ 2
Cedar LEWISOHN, Street Art – The
Revista GAU, Câmara Municipal de galeriadearteurbana/docs/livro_ Graffiti Revolution, Tate Publishing,
Lisboa, Vol. 3, Janeiro, 2014. gau_3anos_web> London, 2009, pp. 26-27.
Revista GAU, Câmara Municipal de <http://issuu.com/ 3
Ricardo CAMPOS, Porque
Lisboa, Vol. 4, Abril, 2014 galeriadearteurbana/docs/gau_ Pintamos a Cidade? Uma
Revista GAU, Câmara Municipal de vol01_2012_issuu> Abordagem Etnográfica do Graffiti

– SÍLVIA CÂMARA 227


Urbano, Fim de Século - Edições, Ribeiro, Clara Menéres e Lima Desenvolvimento Sustentável
Col. Antropológica, 2010, pp. Carvalho. Cf. Fernando Rosa de um Bairro Cultural, Câmara
91-94. DIAS, “Dois momentos históricos Municipal de Lisboa, Col. Lisboa:
4
Miguel MOORE, “Sous les Pavés, da performance no Chiado: as Estudos Sociais, 2009, p. 13.
La Plage…”, in Underdogs, Vera acções futuristas e o Grupo Acre”, 23
Miguel MOORE, “Sous les Pavés,
Cortês Agência de Arte, 2010, p. 9. in Coord. José QUARESMA, O La Plage…”, op. cit, p. 13.
5
Agata Dourado SEQUEIRA, “Out Chiado da Dramaturgia e da 24
Miguel MOORE, “Sous les Pavés,
in the Streets: The possibilities Performance – Arte na Esfera La Plage…”, op. cit, pp. 10-13.
and implications of making art in Pública, CIEBA-FBAUL/LESA, André realizou no ano de 2014,
the city’s public space”, in Lisbon Lisboa, 2014, p. 65. uma exposição individual no
Street Art & Urban Creativity – 14
Maria Adelaide GINGA, “Os MUDE – Museu do Design e da
2014 International Conference, Murais de Abril”, op. cit., pp. 39. Moda. Cf. em http://www.mude.pt/
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

Urbancreativity.org, 2014, Lisboa, 15


Os Murais do 25 de Abril, exposicoes/andre-saraiva_6.html
p. 118. Fundação Mário Soares, Lisboa, 25
Visual Street Performance, Lisboa,
6
Cedar LEWISOHN, op. cit., p. 127. 2009 e cf. em http://www.fmsoares. 2007.
7
Anna WACłAWEK, Graffiti and pt/ 26
Alexandre FARTO aka Vhils,
Street Art, Thames & Hudson, Col. 16
Cf. em http://arquivomunicipal. Dissecção, Fundação EDP/Museu
World of Art, London, 2011, p. 48. cm-lisboa.pt/pt/ da Electricidade, Lisboa, 2014.
8
Pedro Soares NEVES e Daniela V. 17
Cf. em http://www.cd25a.uc.pt/ 27
Galeria de Arte Urbana – 3 Anos,
Freitas SIMÕES, “Street & Urban 18
Cf. em http://40anos40murais. Câmara Municipal de Lisboa,
Creativity”, in Lisbon Street Art & weebly.com/ Departamento de Património
Urban Creativity – 2014 International 19
Cf. em Revista GAU, Cultural, 2012, p. 5.
Conference, op. cit., p. 8. Câmara Municipal de Lisboa, 28
Cf. em https://www.google.
9
Ricardo CAMPOS, op. cit., p. 24. Vol. 4, Abril 2014, também com/culturalinstitute/collection/
10
Pedro COSTA e Ricardo LOPES, disponível em http://issuu.com/ galeria-de-arte-urbana?hl=pt-
Is street art institutionalizable? galeriadearteurbana/docs/ PT&projectId=street-art
Challenges to an alternative urban gau_vol4_pt ; Revista GAU, 29
Street Art Lisbon, Zestbooks,
policy in Lisbon, Working Paper nº Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 2014.
2014/08, Dinamia’Cet, ISCTE-IUL, Vol. 5, Julho 2014 , também 30
Cf. Em https://www.facebook.
2014, p. 22. disponível em http://issuu.com/ com/Lata65
11
André CARMO, “Revolutionary galeriadearteurbana/docs/gau_5_ 31
Cf. em http://www.inward.it/
Landscapes: The PCTP/MRPP issuu piattaforme/urban-creativity-
Mural Paintings in the Lisbon 20
Co-autor dos conhecidos murais alliance-2
Metropolitan Area”, in Finisterra, de cariz político representativos 32
Cf. em http://redeartesurbanas.
XLVI, nº 92, 2011, p. 31. das figuras de Passos Coelho, Paulo wix.com/raiu
12
Maria Adelaide GINGA, “Os Portas e Angela Merkel. 33
Concomitantemente, realizavam
Murais de Abril” in Revista História, 21
Miguel MOORE, “Sous les Pavés, uma exposição individual no
Nova Série, nº 1, Outubro, 1994, La Plage…”, op. cit., p. 9. Museu Colecção Berardo. Cf. Os
pp. 36-37. 22
Pedro COSTA, Bairro Alto- Gémeos - Para quem mora lá, o céu
13
Composto por Alfredo Queiroz Chiado, Efeitos de Meio e é lá, Fundação de Arte Moderna

<<
e Contemporânea Colecção portugue____s_issuu ; Revista GAU, docs/revista_gau_vol_o6_2014
Berardo, 2010. Câmara Municipal de Lisboa, Vol. 6, 42
Ricardo CAMPOS, op. cit., pp
34
Cf. em http://issuu.com/unidade/ Outubro 2014, também disponível 194-198.
docs/crono_lisboa_2010-2011 em http://issuu.com/camara_ 43
Com os elementos mais
35
Cf. em http://www.theguardian. municipal_lisboa/docs/revista_ velhos a atingirem nesta fase,
com/culture/gallery/2011/aug/07/art gau_vol_o6_2014 aproximadamente os 40 anos de
36
Cf. em http://www.under-dogs.net/ 40
Cf. Revista GAU, Câmara idade.
37
Cf. Revista GAU, Câmara Municipal de Lisboa, Vol. 1, 44
Cf. em http://www.under-dogs.
Municipal de Lisboa, Vol. 3, Novembro, 2012, também net/news/underdogs-public-art-
Janeiro de 2014, também disponível em http://issuu.com/ tour/ e http://www.estreladalva.
disponível em http://issuu.com/ galeriadearteurbana/docs/gau_ pt/index.php/pt/tours/tours-
galeriadearteurbana/docs/ vol01_2012_issuu ; Revista GAU, tematicos/street-art-tour
gau_3_portugue____s_issuu ; Câmara Municipal de Lisboa, Vol. 6, 45
Underdogs, op. cit. e em http://
Revista GAU, Câmara Municipal Outubro 2014, também disponível www.veracortes.com/
de Lisboa, Vol. 5, Julho 2014, em http://issuu.com/camara_ 46
Revista GAU, Câmara Municipal
também disponível em http:// municipal_lisboa/docs/revista_ de Lisboa, Vol. 4, Abril 2014,
issuu.com/galeriadearteurbana/ gau_vol_o6_2014 também disponível em http://
docs/gau_5_issuu ; Revista GAU, 41
Cf. Revista GAU, Câmara Municipal issuu.com/galeriadearteurbana/
Câmara Municipal de Lisboa, Vol. 6, de Lisboa, Vol. 1, Novembro, 2012, docs/gau_vol4_pt
Outubro 2014, também disponível também disponível em http:// 47
Rita MIRANDA, Debaixo de uma
em http://issuu.com/camara_ issuu.com/galeriadearteurbana/ parede cinza… existe um amor
municipal_lisboa/docs/revista_ docs/gau_vol01_2012_issuu ; pela nossa Cidade. (OsGemeos)
gau_vol_o6_2014 Revista GAU, Câmara Municipal Cidade Turismo e Arte Urbana
38
Cf. o programa Mural Arts de Lisboa, Vol. 2, Abril 2013, na área metropolitana de Lisboa,
Program em http://muralarts.org também disponível em http:// Dissertação Mestrado em Turismo
39
Cf. Revista GAU, Câmara issuu.com/galeriadearteurbana/ e Comunicação, Faculdade de
Municipal de Lisboa, Vol. 1, docs/revistagauvol2_issuu ; Letras da Universidade de Lisboa,
Novembro, 2012, também Revista GAU, Câmara Municipal 2015, pp. 27-33.
disponível em http://issuu.com/ de Lisboa, Vol. 3, Janeiro 2014, 48
Cf. por exemplo em http://
galeriadearteurbana/docs/gau_ também disponível em http:// streetartlondon.co.uk/tours/ e
vol01_2012_issuu ; Revista GAU, issuu.com/galeriadearteurbana/ http://alternativeberlin.com/berlin-
Câmara Municipal de Lisboa, docs/gau_3_portugue____s_issuu ; graffiti-workshop-and-street-art-tour
Vol. 2, Abril 2013, também Revista GAU, Câmara Municipal de 49
Cf. em http://www.
disponível em http://issuu.com/ Lisboa, Vol. 4, Abril 2014, também agenda21culture.net/images/a21c/
galeriadearteurbana/docs/ disponível em http://issuu.com/ bones_practiques/pdf/LISBON-
revistagauvol2_issuu ; Revista galeriadearteurbana/docs/gau_ ENG.pdf
GAU, Câmara Municipal de Lisboa, vol4_pt ; Revista GAU, Câmara 50
Cf. em http://www.
Vol. 3, Janeiro 2014, também Municipal de Lisboa, Vol. 6, Outubro huffingtonpost.com/2014/04/17/
disponível em http://issuu.com/ 2014, também disponível em http:// best-street-art-cities_n_5155653.
galeriadearteurbana/docs/gau_3_ issuu.com/camara_municipal_lisboa/ html

– SÍLVIA CÂMARA 229


A Filha Bastarda da Arte

p o r M a u r o Tr i n d a d e
Doutor pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e professor do Departamento de História e Teoria da Arte do
Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

L’institutionnalisation du graffiti dans le champ de l’art


– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

n’arrive pas sans clivages ni contradictions, dans lesquels


ses pratiques et ses concepts semblent entrer en conflit Na galeria de vilões magistrais que Shakes-
avec le champ même de l’art qui l’absorbe, en un abîme peare nos legou, talvez nenhum se compa-
de valeurs et intérêts, dans la formation des artistes re ao dissimulado, envolvente e sedutor Ri-
et l’appréciation des oeuvres. L’un des rares artistes cardo III, incapaz de viver sob as grinaldas
du graffiti dans l’oeuvre est dans la rue, les galeries et da paz e ao som lascivo do alaúde, após
les centres culturels, Toz - Tomas Viana - analyses son a vitória da casa de York sobre Lancaster.
assimilation par le marché et les institutions. Seu desconforto reside na incapacidade
para o amor e para a alegria, pois é um
ser abjeto contra o qual até os cães inves-
tem. Imperfeito e lançado antes da hora
para esse mundo que respira, resta ao Du-
que de Gloucester “armar conjuras, tramas
perigosas, por entre sonhos, acusações e
ébrias profecias”1, em desacordo com a fe-
licidade que ele próprio ajudou a criar. Ele
não vive para a vitória, mas para o comba-
te, não para a paz, mas para a carnificina.
Aproveito as trevas que o personagem ali-
menta como metáfora ao papel do graffiti
na unanimidade artsy de nossa era, na qual
a experiência estética pode ser encontrada
em qualquer parte e a qualquer momento,
mesmo em ações que ainda hoje são crimi-
nalizadas. Não há descontentamento sob o
glorioso sol da arte contemporânea?

<<
Tomas Viana, o Toz, é um grafiteiro baia- lavras pintadas nas ruas para a difusão de
no radicado no Rio de Janeiro que, des- ideias e comportamentos. Na mesma déca-
de 1996, pinta com sprays muros, viadu- da, jovens negros e hispânicos moradores
tos e outras construções pela cidade e que de Nova Iorque e de outras cidades iriam se
tem feito sucesso no mercado de arte, com bater contra as configurações simbólicas do
obras espalhadas por todo o Brasil e em di- espaço urbano após a repressão aos “gran-
versos países da Europa. Quando começou des motins urbanos de 1966-1970”4, como
a colorir as ruas do Rio, a arte e o mundo da nota Jean Baudrillard. Dividida em zonas de
arte não tinham a menor importância para ocupação sociais e raciais, a cidade é igual-
os grafiteiros. Segundo ele, mente ordenada por um sistema de signos
que define as normas de conduta e o laisser
“Eram mundos distintos que continuam to- passer de seus habitantes: não é coincidên-
talmente distintos. Mas agora as coisas estão cia que os vagões de metrô tenham sido um
mais confusas. Há grafiteiros em galerias e dos alvos iniciais do graffiti.
artistas que vão grafitar. E os grafiteiros que
estão em galerias não têm força para ‘puxar’ As cronologias desenvolvidas pelos pri-
para dentro os que estão de fora. Não é um meiros autores (GITAHY, 1999) indicam
movimento. É cada um por si. Mesmo quando que o graffiti passou a ter importância no
são feitas exposições, não há aprofundamen- Brasil por volta de 1975, quando John
to, apenas alguém chama os artistas mais pró- Howard, Alex Vallauri e Waldemar Zaidler,
ximos, porque praticamente não existem cura- entre outros, espalharam pela cidade de
dores especializados. Penso no graffiti como a São Paulo seus trabalhos pioneiros. Na dé-
filha bastarda da arte contemporânea.”2 cada seguinte, surgia uma nova geração de
grafiteiros sob a influência do hip hop nor-
A despeito de seu caráter fundador na ex- te-americano, tendência que prosseguiu
periência plástica e pictográfica e de seus nos anos 1990 e segue até hoje. Toz per-
múltiplos contextos, o graffiti como o co- tence a esse grupo que, de maneira geral,
nhecemos “é como uma versão artesanal não tinha qualquer formação artística mais
do ritmo fragmentário e heteróclito do vi- aprofundada. Na época nunca tinha ouvi-
deoclip”3 e torna-se conhecido a partir da do falar em Tunga, Waltércio Caldas, Anto-
segunda metade do século XX. Ele sofreu nio Dias ou qualquer outro artista de des-
influências localizadas do muralismo mexi- taque na arte contemporânea brasileira.
cano pós-revolução de 1910 que, com seu Suas referências eram Os Gêmeos, Binho,
caráter político, resgatou tradições visuais Tinho, Espeto e outros grafiteiros paulista-
pré-colombianas e deslocou a apreciação nos que já atuavam há cerca de 10 anos.
da arte para os espaços públicos. E, de Os parceiros (Fabio) Ema, (Marcelo) Eco e
forma mais abrangente, a revolta estudan- Akuma (Soares) e Airá O Crespo, além de
til de maio de 1968, em Paris, revelou aos (Marcelo) Ment e Mackintal foram conheci-
writers, como se denominavam os primei- dos nas ruas e no Zoeira Hip Hop, festa mu-
ros grafiteiros, o caráter epidêmico das pa- sical promovida no bairro da Lapa, no Cen-

– MAURO TRINDADE 231


tro do Rio de Janeiro, pela produtora Elza na aquele que “pichar, grafitar ou por outro
Cohen, e que envolvia rap, break e graffiti. meio conspurcar edificação ou monumento
urbano”, com uma pena de detenção que
Três crews – equipes – se destacavam: o pode chegar a um ano de detenção e mul-
Nação, com grafiteiros da Zona Norte da ta. Em caso de grafitagem sobre bens tomba-
cidade, outro vindo do município de São dos, a pena aumenta em seis meses. Para Toz
Gonçalo, na região metropolitana do Rio de – representado no Rio de Janeiro pela galeria
Janeiro, e o Fleshbeck, da Zona Sul, do qual Movimento – e para a maioria dos grafiteiros,
Toz fazia parte. Alguns grafiteiros, como a ilegalidade faz parte do jogo.
Acme, andavam sozinhos. “Nem a popula-
ção, nem a prefeitura tinha conhecimento “O meu graffiti é ilegal. E é preciso muita
do que a gente fazia. A cidade era um gran- vontade e se espalhar. Isso é do graffiti. Há
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

de playground”5, comenta o artista. algumas formas de você ser respeitado. Pri-


meiro tem de forte, fisicamente forte. Depois
A estratégia de ocupação dos espaços ur- você tem de ter um desenho foda! Que todo
banos era territorial, com a ampliação das mundo admire seu estilo. E depois tem de
áreas grafitadas conforme a ausência de ou- se arriscar. Ir onde ninguém consegue ir. O
tras obras. A demarcação de caráter identi- cara que faz coisa na rua e ninguém vê não é
tário dominou a atividade desses grafiteiros importante. Você tem de fazer algo que im-
sem, entretanto, que houvesse enfrenta- pacte a todo mundo. A rua cobra. Você tem
mentos no caso de possíveis “invasões”. Arte de ter força. Por exemplo, ao grafitar na (au-
efêmera, o graffiti convive e se funde a ou- toestrada) Lagoa-Barra, é só dar um passo
tros graffitis, até desaparecer por completo. em falso e você morre. O que faz o graffiti
Para Toz, essa é a regra do jogo do graffiti: a ser forte é a atitude. E é isso que tem de le-
ausência de regras. var para a galeria, a atitude.”7

“A rua é de todo mundo. Às vezes tem um Demorou muito tempo para que diversas
moleque doidão que sai pichando tudo. E instituições públicas e privadas passas-
usam o suporte do desenho alheio. Não há sem a dar espaço para o graffiti, ao mes-
regras, não há moral, picha tudo. A regra mo que livros a respeito de arte urbana
é não respeitar ninguém, igreja, prédio. É fossem lançados em diversos países e es-
anarquia.”6 tudos acadêmicos dessem atenção ao fe-
nômeno. Alguns livros e ensaios chegaram
Durante todos esses anos, o graffiti continuou a ser publicados de forma esparsa em anos
a ser qualificado pela imprensa como uma anteriores, desde artigos sobre Pompeia e
forma de vandalismo e dificilmente era en- Roma antiga até igrejas medievais rabis-
carado de maneira artística pelas instituições cadas per saecula saeculorum. Em um tra-
e pela população em geral. Desde 1998, pi- balho pioneiro, o pesquisador norte-ame-
chação ou graffiti sujeitam-se à Lei N.º 9.605, ricano Robert Reisner, procurou preservar
a Lei dos Crimes Ambientais, que incrimi- e reavaliar o graffiti, até então considera-

<<
do pornográfico, estúpido e destrutivo. fiteiros ainda era considerada degradante
Reisner realizou uma pesquisa aprofunda- do espaço urbano e do mobiliário público.
da que apontou diferenças entre o graffi- Em uma reportagem na Esquire de maio
ti tradicional e as novas modalidades que de 1974, Mailer dedicou 17 páginas a Cay
passaram a ser praticadas nas grandes ci- 161, pertencente a uma das primeiras ge-
dades. Em Graffiti: Two thousand years of rações de desenhistas nova-iorquinos a co-
wall writing (1971) e, mais tarde, em En- brir os muros e os vagões do metrô daque-
ciclopedy of graffiti (1974), ele analisa es- la cidade com tags – assinaturas grafitada
ses desenhos e escritos em diversos espa- nas paredes. O autor de Os nus e os mor-
ços sociais, em particular, onde e quando tos não economizou elogios ao artista e o
o grafiteiro podia deixar suas mensagens comparou ao melhor do Trecento:
sem temer censuras por abordar temas
“muito mais viscerais” (Reisner, 1971: 4). “...tão famoso no mundo dos graffitis de mu-
Com o interesse em alcançar visibilidade ros e metrôs quanto Giotto pode ter sido
para seus escritos, os grafiteiros procura- quando seu nome começou a circular nos
vam escrever e pintar em espaços abertos, circuitos das oficinas que levaram de Masac-
cujas mensagens, sugere Reisner, traziam cio, através de Piero della Francesca, a Boti-
informações vitais a respeito da indiscipli- celli, Michelangelo, Leonardo e Rafael.”8
na, sobre o funcionamento de mentes de-
bilitadas, de ególatras ou entediados (Reis- Mailer traça um longo perfil não apenas de
ner 1974: 8). Suas pesquisas centradas em Cay 161, mas de toda uma geração de ar-
graffitis latrinários e de rua apontaram pela tistas, cujo trabalho até então era classifica-
primeira vez para o contexto onde se reali- do como vandalismo puro e simples. Para
zam os graffitis e as implicações que a am- o escritor, as palavras escritas nas tipolo-
biência imprime aos conteúdos. gias originais do graffiti eram o sinal de um
apocalipse cultural, indicativas de um no
Coube a Norman Mailer, porém, ser a voz future que se tornaria frequente na litera-
tonitruante em defesa do graffiti. Ele o di- tura e no cinema dos anos seguintes. Em
fundiu em uma nova perspectiva dentro da uma prosa abundante e caudalosa de ima-
revista Esquire, que gozava de forte acei- gens, o escritor identifica nos rabiscos das
tação na intelligentsia dos Estados Unidos. ruas de Nova Iorque a ascensão de uma
Na década de 1930, escritores do porte de arte ainda indecifrável e profética.
Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Al-
berto Moravia e André Gide já figuravam “Estamos no fim possível da civilização. Nos-
em suas páginas. E, durante os anos 1960 so instinto, exausto e cabalmente poluído,
e 1970, a revista apoiou o chamado New sonha com algum tipo de limpeza ou puri-
Journalism, com a publicação de longas ficação que não encontramos; impulsos tri-
reportagens de caráter literário de Gay Ta- bais despontam no mundo inteiro. A linha
lese, Tom Wolfe, Tim O’Brien e do próprio genealógica de artistas isolados e da obra
Mailer. Há cerca de 40 anos, a ação dos gra- solitária atravessa toda extensão de Miche-

– MAURO TRINDADE 233


langelo até Shoot de Chris Burden, e, se nos e nossa identidade só podem se perceber
fizessem voltar ao imperativo emocional da num espelho. Se nosso nome é tremendo
pintura rupestre e tentar rabiscar alguma para nós, ele tampouco é real – como se ti-
coisa no mundo diante de nós para tentar véssemos vindo de outros lugares que não
descobrir se existe o desastre, é o artista de o nome, e vivido outras vidas. Vai ver esse
computador do Guggenheim que podemos é o eco inaudito dos graffitis, a vibração
compreender mais facilmente do que os au- do desconforto profundo que eles incitam,
tores de graffiti. Eles ainda são outra coisa.”9 como se a música inaudita de sua procla-
mação e/ou de sua missa, a agitação inten-
A genealogia descrita pelo escritor com- cional de sua folhagem, fosse o arauto de
preende o estatuto social do artista ociden- um apocalipse qualquer que se aproxima,
tal e sua identidade única e original como cada vez menos distante. Os graffitis tar-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

uma herança do Renascimento, que che- dam na porta dos nossos metrôs como um
ga às performances de Chris Burden e ao memento daquilo que eles bem podem ter
“artista de computador”, expressão precá- sido, nossa primeira arte do karma, como
ria para os novos experimentos mais tarde se, com efeito, todas as vidas jamais vivi-
classificados como “arte digital”. O caráter das soassem agora como as trombetas dos
anônimo, grupal e desvinculado das insti- exércitos em toda a cordilheira invisível.”10
tuições artísticas dessa primeira geração
de grafiteiros espanta Mailer, que aponta A valorização do graffiti parece igualmen-
para a vitalidade do graffiti em relação à te uma consequência lógica dos desdo-
arte contemporânea exposta nos grandes bramentos da arte moderna e contempo-
museus. Para o escritor, são as letras desses rânea. Essa ampliação do campo artístico
nomes inescrutáveis que anunciam o fim de pode ser apontada como resultado dire-
uma era e, talvez, o início de uma nova arte: to da descategorização da arte ocorrida a
partir do dadaísmo e do surrealismo, com
“Não obstante, ainda há um mistério. De seus ready-made e object trouvé, operação
que combate vêm as letras curiosas dos de ressignificação dos objetos do cotidia-
graffitis, com suas caligrafias chinesas e no como, dez anos antes da reportagem de
arábicas; de que conexões com o passa- Mailer, defendia Arthur Danto em seu céle-
do são essas luzes e fulgores de chama tão bre artigo Artworld, a respeito exposição de
semelhantes ao alfabeto hebreu, onde a Andy Warhol na Stable Gallery, com caixas
própria forma da letra era adorada como de sabão Brillo Box.
manifestação do Senhor; não, não basta
pensar no desejo infantil de ver seu nome Se o mercado de arte ainda não absorvia os
passar em letras grandes o bastante para trabalhos desses primeiros writers, o mundo
fazer seu ego ecoar por toda a cidade, não, da arte mostrou-se mais amplo e tolerante
é quase como se tivéssemos que voltar a al- com eles. Do outro lado dos Estados Uni-
gum sentido primevo da existência, àquela dos, o artista e curador nicaraguense Rolan-
curiosa sugestão de como nossa existência do Castellón vai realizar uma das primeiras

<<
exposições inteiramente dedicadas à nova A aceitação do graffiti como forma artísti-
arte. Aesthetics of Graffiti foi apresentada no ca é exemplar nesse contexto. Enquanto os
Museu de Arte Moderna de São Francisco rabiscos de nomes e frases emergiam do
entre abril e julho de 1978, com nada me- metrô de Nova Iorque, a pintura tradicional
nos que 94 artistas envolvidos, desde grafi- enfrentava uma profunda crise deflagrada
teiros mais ou menos anônimos até nomes desde a chegada dos textos críticos de, en-
de destaque na arte americana, como Ro- tre outros, Joseph Kosuth e Sol LeWitt, pu-
bert Rauschemberg e Edward Ruscha. A ex- blicados em 1969. Sob a influência da filo-
posição representava ainda uma tentativa sofia de Wittgenstein e uma interpretação
de artistas latinos conquistarem um espaço particular da Crítica do Juízo, de Kant, Kosu-
dentro do universo artístico norte-america- th rejeita a compreensão da arte em bases
no, com formas e práticas mais populares. morfológicas e que as obras de arte não se-
Em seu texto de apresentação, Castellón riam mais do itens de colecionador. “As pin-
afirmava esperar que, fora de seu ambiente turas de Van Gogh não valem mais do que
costumeiro, as pichações pudessem ser vis- sua palheta”13, escreve.
tas por suas qualidades visuais e estéticas
e que, “através do processo de integração Sol LeWitt, por sua vez, ataca a categoriza-
consciente com artistas de estúdio, o graffi- ção da arte com suas Sentenças sobre arte
ti, assim, tornar-se oficialmente sancionado conceitual, nas quais afirma que quando pa-
como ‘belas artes’”11. lavras “como ‘pintura’ e ‘escultura’ são usa-
das, elas conotam toda uma tradição e em
Hans Belting nota, em seu seminal O fim da consequência implicam uma aceitação des-
história da arte, que a arte multiplicou-se e sa tradição, impondo assim limitações ao
“se dissolveu num espectro de fenômenos artista, que relutaria em fazer uma arte que
opostos que há muito tempo aceitamos fosse além das limitações.”14
como arte, antes mesmo de termos forma-
do um conceito a seu respeito”12. Além de O graffiti anárquico, inculto e desrespei-
museus, galerias, surgem feiras e centros toso com objetos sagrados da arte, como
culturais espalhados em todo o mundo, edi- monumentos e prédios históricos, lenta-
ções cada vez mais frequentes de livros de mente começou a ser tratado como uma
arte e uma proliferação de artistas em toda prática artística nova e cheia de vitalidade.
parte. A arte e a experiência estética estão Mesmo a repetição de seus escritos e de-
nas ruas e praças, na alimentação e no ves- senhos passou a ser visto dentro de uma
tuário, no trabalho e no lazer. De seus tem- perspectiva da história da arte. A seriali-
plos privilegiados, dos monumentos e dos zação industrial, assunto frequentemente
locais de troca, a arte se irradia sobre todos abordado pela arte pop, também seria te-
os campos da vida, em ações, produtos cul- matizado pelo graffiti. Não demora muito
turais e uma incessante produção de ima- tempo para que galerias de arte passas-
gens midiáticas que envolvem a noosfera. sem a convidar alguns grafiteiros para ex-
por seus trabalhos, desta vez feito sobre

– MAURO TRINDADE 235


papel ou tela, enquanto órgãos de fomen- lo e Lisboa dispõem há alguns anos de ór-
to à cultura no Brasil e em outros países co- gãos públicos que fomentam e disciplinam
missionaram trabalhos. Ao mesmo tempo, o graffiti em seus espaços15.
uma vasta rede de grafiteiros e simpatizan-
tes desenvolvida através da internet estrei- No lugar de ocorrer uma fusão ao circuito
tou laços entre artistas de todo o mundo e de galerias e museus, porém, a maioria des-
permitiu que a obra de diversos deles cir- ses eventos é realizado em um setor parale-
culasse mundo afora. Em 2006, obras dos lo, no qual público e produtores são inteira-
Gêmeos estiveram no BALTIC Centre for mente diferentes daqueles dos vernissages
Contemporary Art, em Gateshead, na Ingla- e exposições. Se a legitimação da obra de
terra, para a mostra Spank the Monkey, ao arte acontece através de sua inclusão no
lado de trabalhos de artista de rua Bansky mundo da arte, o graffiti necessita de uma
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

e da pintora japonesa Chiho Aoshima. Em nova classificação, pois nem material nem
2008, em Belo Horizonte, o grafiteiro Bi- ideologicamente ela necessita dos apre-
nho Ribeiro organizou a 1ª Bienal de Graffi- ciadores da “arte contemporânea erudita”,
ti, com alguns segmentos artísticos que se como define Toz:
tornariam recorrentes nestes encontros e
festivais pelo Brasil: música – rap e hip hop “É uma cultura mundial muito forte que não
–, dança – break –, poesia – com os MCs – depende dos meios normais da arte. Não há
e, naturalmente artes visuais, com o grafite. críticos de arte nem curadores. Ela sobrevi-
veu e sobrevive pelas próprias pernas, pelo
Hoje já é rotineira no Brasil a realização de próprio público. Os livros e as revistas de
feiras e festivais nos quais a fórmula da cul- graffiti são financiados por quem as compra.
tura hip hop é repetida. Entre muitos ou- Ele é tão forte de público que não se preo-
tros exemplos, em 2015, ocorreu o 7º Re- cupa com o mercado de arte contemporâ-
cifusion, no Recife, com oficinas de “live nea. Tem um público que vai à Homegrow,
paint” e “produção de graffiti”. Em Salva- que é uma loja-galeria em Ipanema (no Rio
dor, o Bahia de Todas as Cores promoveu de Janeiro) que vende graffitis. E em São
a pintura de um mural gigante na comu- Paulo há várias delas.”16
nidade de Itinga, com a produção de um
gigantesco painel de graffiti. Em São Pau- A criação de uma economia própria, com
lo, é comemorado desde 2004, o Dia do seus próprios agentes e instâncias revelam
Graffiti. Ele foi instituído em São Paulo pela que os processos de institucionalização do
Lei Municipal 13903, que homenageia graffiti realizam-se em uma relação de po-
Alex Vallauri, morto em 1987. Em Maceió, der com o mundo da arte, onde seu valor
Rio de Janeiro, Joinville, São João Del-Rey, de troca e seu valor cultural estão até certo
Campos de Goytacazes, Corumbá, Chape- ponto desgarrados. A apreciação estética
có e diversas outras cidades realizaram fes- do graffiti parece, assim, constituir-se fora
tivais com grafitagens e oficinas de street do campo da arte, através de uma retórica
art. Tanto Rio de Janeiro, quanto São Pau- distinta e em um meio social igualmente

<<
distinto, o que explica a dificuldade e talvez lares por pessoas para absorver calorias.
até o desinteresse de sua inclusão na arte. Mas por um feito estético”. Com a crescen-
Talvez por isso as ações de institucionaliza- te estetização da alimentação, refeições rá-
ção do graffiti passem menos pelos museus pidas oferecidos em kombis e vans pelas
e galerias de arte do que por políticas de ruas das cidades, agora garbosamente tra-
cultura oficiais que disciplinam os espaços tadas como food trucks, transformam um
públicos a serem grafitados, em uma legis- reles sanduíche em uma experiência com-
latura do louvável e do interdito. parável a jantar no El Bulli, do chef Ferran
Adrià, cujo lema era “comer conhecimen-
Em recente palestra no Rio de Janeiro, o crí- to para alimentar a criatividade”. Há me-
tico Hans Ulrich Gumbrecht apresentou al- nos de um ano, esses veículos eram conhe-
gumas das ideias contidas em seu novo li- cidos pelos moradores do Rio de Janeiro
vro Nosso amplo presente, no qual comenta como “podrões”, tanto devido ao mau esta-
a estetização da vida cotidiana, na qual tudo do de conversação quanto à qualidade de
está sujeito a um “olhar estético”. O escritor seus produtos. A descrição de seus ingre-
pressupõe que não existem mais quaisquer dientes – “carne de vitela cuidadosamente
diferenças entre a experiência estética e a moída e acrescida de ervas finas, sal mari-
vida cotidiana, exatamente ao contrário do nho e pimenta negra moída na hora” – e de
pensamento fundado na terceira Crítica seu preparo – “grelhada por vinte minutos
kantiana e sua concepção de desinteresse em temperatura alta o bastante para selar
e autonomia da arte. Hoje a experiência es- a peça de carne e evitar a perda dos sucos
tética estaria presente em todos os aspec- e da maciez” – evidencia o esforço em im-
tos da vida, sem que a interpretação herme- primir às refeições ligeiras uma dimensão
nêutica supere o aspecto fenomenológico de experiência estética digna de Brillat-Sa-
do acontecimento, em uma situação precá- varin. Dessa forma, bolinhos doces transfor-
ria que marca toda a experiência estética mam-se em cupcakes, picolés – sorvetes em
ocidental da atualidade. Assim ela estaria Portugal – em paleta mexicana, e doses de
imbricada ao cotidiano e ao mercado. “Não aguardentes em shots.
existe, por exemplo, roupa para comprar
que não ofereça algum efeito estético. Até a Gumbrecht acredita que a estetização do
roupa profissional conta com certos efeitos cotidiano ocorre de três maneiras. Primei-
estéticos”, observa. ro, com sua irrupção no próprio cotidiano,
quando em situações aparentemente ba-
Gumbrecht incluiu em suas observações a nais e costumeiras, surge algo com dimen-
crescente “gourmetização” do mundo, na são estética. Segundo, com o aumento da
qual uma refeição nunca é uma simples ab- funcionalidade dos objetos – à exemplo da
sorção de calorias. “A comida tem de ter sa- Bauhaus – que transformam nossa relação
bores específicos e também uma apresen- com o que está à nossa volta. Terceiro, de
tação linda em um restaurante lindo. E você forma epifânica, quando passamos a olhar
não vai a um restaurante que custa 500 dó- objetos do cotidiano de forma diferente,

– MAURO TRINDADE 237


quando uma simples árvore ganha uma di-
mensão estética nunca antes apercebida. O
grafite se enquadraria no primeiro caso.

Para Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, a estra-


tégia cultural no capitalismo tardio envolve
uma produção ininterrupta de objetos estéti-
cos muito além do campo de produção eru-
dita, com arquiteturas-espetáculo em mu-
seus feéricos, hotéis de charme, onipresença
de produtos sonoros, em um muzak perma-
nente e, cada vez mais, imagens permanen-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

tes em dispositivos móveis permanentes. Os – Bibliografia


autores defendem que a era da globalização
e da “financeirização, da desregulamentação BAUDRILLARD, Jean. L’échange
e da excrescência de suas operações, tam- symbolique et la mort. Paris:
bém é a que está marcada por outra espécie Gallimard, 1976.
de inflação: a inflação estética.”17 BELTING, Hans. O fim da história
da arte – uma revisão dez anos
Nessa nova era superestetizada, “um impé- depois. São Paulo: Cosacnaify,
rio no qual os sóis da arte nunca se põem”18, 2006.
os valores históricos da arte e da cultura en- CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas
tram em crise e a arte encontra novas con- híbridas: Estratégias para entrar e
junções capazes de justificá-la. Nesse senti- sair da modernidade. São Paulo:
do as transformações internacionais da arte Edusp, 1998.
e de suas formas de exibição e legitimação CANEVACCI, Massimo.
são sintomáticas, com o crescimento expo- Antropologia da comunicação
nencial das feiras de arte e certo descenso visual. DP&A: Rio de Janeiro, 2001.
das antigas bienais. O graffiti nesse contex- CASTELLÓN, Rolando (Curator).
to permanece na intersecção entre o trans- Aesthetics of Graffiti – April 28-
gressivo, que define territórios e resinifica o July 2, 1978 (catálogo). São
espaço urbano, e a absorção pelo campo Francisco: San Francisco Museum
da arte, hesitante em abonar uma prática of Modern Art, 1978.
iconoclasta alheia a sua própria dinâmica. COOPER, M and Chalfant, H.
Para Toz, “o graffiti é mesmo a filha bastarda Subway Art. London: Thames and
da arte, mas é muito talentosa. Cedo ou tar- Hudson, 1984.
de a família vai ter de abraçá-la.” Certamen- GITAHY, Celso. O que é Graffiti?
te não será por amor. São Paulo: Editora Brasiliense,
1999
GUMBRECHT, Hans Ulrich. A

<<
experiência estética perdeu a sua 5
Entrevista ao autor. think of the childlike desire to see
“autonomia”? Uma dupla reflexão 6
Idem. one’s name ride by in letters large
genealógica. Palestra. Rio de 7
Ibidem. enough to scream your ego across
Janeiro: Museu de Arte do Rio, 8
“Giotto may have been when the city, no it is almost as if we must
25 de agosto de 2015. Disponível his name first circulated through go back into some more primeval
em https://www.youtube.com/ the circuits of those workshops sense of existence, into that curious
watch?v=GRxr8NCHiQo. Acesso which led from Masaccio through intimation of how our existence
em 03/09/2015. Piero Della Francesca to Botticelli, and our identity may perceive
_______. Nosso amplo presente. Michelangelo and Raphael”. each other only as in a mirror. If
São Paulo: Unesp, 2015. MAILER, Norman. The Faith of our name is enormous to us, it is
LIPOVETSKY, Gilles & Jean Serroy. graffiti. Nova Iorque: Esquire, maio also not real - as if we have come
A estetização do mundo: Viver de 1974, pp. 77. from other places than the name,
na era do capitalismo artista. São 9
“We are at the possible end of and lived in other lives. Perhaps
Paulo: Companhia das Letras, civilization, and our instint, battered, that is the unheard echo of graffiti,
2015. all-polluted dreams of some the vibration of that profound
MAILER, Norman. The Faith of cleansing we have not found; tribal discomfort it arouses, as if the
graffiti. Nova Iorque: Esquire, maio impulses start up across the worlds. unheard music of this proclamation
de 1974, pp. 77-88; pp. 154-158. The descending line of isolated and/or its mess, the rapt intent
REISNER, Robert. Graffiti: Two artist and the solitary work goes seething of its foliage, is the herald
thousand years of wall writing. from Michelangelo all the way of some oncoming apocalypse less
Chicago: Cowles Book Company, down Chris Burden’s Shoot, and and less far away. Graffiti lingers
1971. if we are cast back into emotional on our subway door as a memento
_______. Encyclopedia of Graffiti. imperative of the cave painting and of what it may well have been, our
New York: Macmillan Publishing, trying to make some scratch in the first art of karma, as if indeed all the
1974. world before us in order that we lives ever lived are sounding now
may discover if disaster exists, it is like the bugles of gathering armies
– Notas the Guggenheim coumputer artist across the unseen ridge.” Ibidem,
we can comprehend more easily p. 157-158.
1
SHAKESPEARE, William. Ricardo than the writers of graffiti. They are 11
CASTELLÓN, Rolando (Curator).
III. Rio de Janeiro: Agir, 2008. still something other.” Idem, p. 157. Aesthetics of Graffiti – April 28-
Tradução de Carlos Alberto 10
“Yet there is a mystery still. From July 2, 1978 (catálogo). São
Nunes. which combat came these curious Francisco: San Francisco Museum
2
Entrevista ao autor. letters of graffiti, with their chinese of Modern Art, 1978, p. 3-4.
3
CANCLINI, Néstor Garcia. and arabic calligraphies; out of 12
BELTING, Hans. O fim da história
Culturas híbridas: Estratégias para what connection to the past are da arte – uma revisão dez anos
entrar e sair da modernidade. São these lights and touches of flame depois. São Paulo: Cosacnaify,
Paulo: Edusp, 1998, p. 338. so much like hebrew alphabet 2006.p. 19.
4
BAUDRILLARD, Jean. L’échange where the form of the letter itself 13
KOSUTH, Joseph. Arte depois
symbolique et la mort. Paris: was worshiped as a manifest of da filosofia, in FERREIRA, Glória
Gallimard, p. 119. the Lord; no it is not enough to & COTRIM, Cecília. Escrito de

– MAURO TRINDADE 239


artistas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editora, 2006, pp. 210-234.
14
LeWITT, Sol. Sentenças sobre
arte conceitual, in FERREIRA,
Glória & COTRIM, Cecília. Escrito
de artistas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editora, 2006, p. 205-207.
15
A Secretaria Municipal de
Cultura do Rio de Janeiro
criou, em 2013, o Eixo Rio, que
tanto incentiva graffitis e outras
ações artísticas urbanas, quanto
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA

denuncia práticas de pichação


em monumentos. Secretaria
Municipal de Cultura de São Paulo
promove a Bienal do Grafite no
Parque do Ibirapuera e, desde o
ano passado, transforma cerca
de 70 muros da avenida 23 de
maio em espaço franqueado ao
graffiti. Lisboa goza do Gabinete
de Arte Urbana, ligado à Câmara
Municipal, cuja ação incentivou
e comissionou grafiteiros de
diversos países a atuarem na
capital, com resultados elogiados
pelo Presidente de Turismo de
Portugal João Cotrim Figueiredo.
Disponível em: http://www.
publico.pt/local/noticia/arte-
urbana-de-lisboa-e-cada-vez-mais-
uma-atraccao-turistica-1693672.
Acesso em 09/09/2015.
16
Entrevista ao autor.
17
LIPOVETSKY, Gilles & Jean
Serroy. A estetização do mundo:
Viver na era do capitalismo artista.
São Paulo: Companhia das Letras,
2015, p. 39.
18
Idem.

<<
Estudos de Historiografia e Crítica de Arte Portuguesa
Historiografia da Arte Portuguesa:
Pioneiros e Precursores
por Margarida Calado
Professora Associada de Ciências da Arte e do
Património na FBAUL, Coordenadora do Mestrado em
Educação Artística e co-coordenadora do Mestrado em
Ensino das Artes Visuais.
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

A primeira vez que me propus escrever sobre o


tema foi nos anos 70 e a proposta, inicialmente
recusada pelo director de uma revista que então Os nossos cronistas medievais não nos
se iniciava, foi aproveitada por um jovem aluno legaram informações sobre a construção
de Belas Artes, Pedro Cabrita Reis, para a revista de edifícios nem descreveram obras de
da Associação de Estudantes, Arte Opinião. arte. Temos de esperar pelo séc. XVI para
Por este facto quero começar por lhe prestar a encontrar informação relevante para a
minha homenagem. Essa série de artigos é aliás construção de uma história da arte nacio-
parcialmente retomada neste texto. nal, e mais precisamente por Francisco de
Holanda, educado em ambiente huma-
nista e viajado por Itália e França. É certo
que a sua obra diz mais respeito à teoria
da arte, mas faz eco da construção renas-
centista da história da arte que após o pe-
ríodo antigo, encontrava uma época de
decadência e de trevas, marcada pelas in-
vasões bárbaras, a que sucedia o renascer
na Itália do séc. XIII para XIV, com artistas
como Simone Martini e Giotto:

Então primeiramente a pintura começou a


ressurgir muito contrita e castigada. Ressur-
gir, não; mas a mover-se um pouco na cova
onde estava. E isto foi por ventura no ditoso
tempo do gentil Francisco Petrarca por seu
amigo Simon, pintor daquela idade, e Giot-
to. (Holanda, 1984a, 25)

<<
E da mesma maneira aponta alguns artistas um Senhor atado à coluna, que dois homens
do séc. XV, como Pordenone, em Veneza, estão açoitando, em uma capela do Mostei-
ou Mantegna em Pádua, a que se sucedem ro da Trindade. (Holanda, 1984a, 37-38)
Leonardo da Vinci e Rafael de Urbino que
abriram os fermosos olhos da pintura (Ho- A verdade é que aqui Holanda parece não
landa, 1984a, 25) e finalmente Miguel Ân- ter consciência de que Nuno Gonçalves era
gelo, que lhe deu espírito vital e a restituiu afinal contemporâneo de Mantegna e pos-
quase em seu primeiro ver e prisca animosi- terior portanto a Giotto e Simone Martini,
dade (Holanda, 1984a, 25-26). dalguma maneira acentuando que quando
em Itália se dava o renascer da pintura an-
Considerando que o «Da Pintura Antiga» tiga, ainda aqui em Portugal se viviam tem-
terá sido escrito no regresso de Itália, por- pos bárbaros, ou seja a Idade Média.
tanto na década de 1540, poder-se-á dizer
que é contemporânea, senão anterior, à sis- A mesma falta de uma relação cronológi-
tematização apresentada por Vasari na obra ca se pode verificar nas «tábuas» que apre-
publicada em 1550, mas certamente escri- senta no final da obra «Diálogos em Roma»,
ta ao longo da mesma década e, portanto, onde mistura artistas do séc. XV e XVI, pare-
aqui Holanda apresenta uma evolução não cendo ter como critério a importância rela-
muito afastada daquele que é considerado tiva, já que refere em primeiro lugar Miguel
o primeiro historiador de arte. Ângelo tanto para a pintura como para a es-
cultura e só no final refere:
Relativamente à pintura portuguesa na épo-
ca medieval, designa-a de velha, explicitan- 20. M. Jacome, italiano, pintor de El-Rei D.
do que se trata das coisas que se faziam no João de boa memória.
tempo velho dos reis de Castela e de Por-
tugal, jazendo a boa pintura ainda na cova. 21. O pintor português, ponho entre os fa-
(Holanda, 1984a, 37) mosos, que pintou o altar de S. Vicente de
Lisboa (Holanda, 1984b, 90).
E a propósito afirma, iniciando um dos te-
mas mais tratados na historiografia da arte Relativamente à iluminura refere em primei-
portuguesa: ro lugar, A António d’Ollanda, meu pai…por
ser o primeiro que fez e achou em Portugal o
E neste capítulo quero fazer menção de um fazer suave de preto e branco, muito melhor
pintor português que sinto que merece me- que em outra parte do mundo e o que ilu-
mória, pois em tempo mui bárbaro quis imi- minou uns livros que El-Rei D. Manuel, que
tar nalguma maneira o cuidado e a discrição a santa glória haja, deu a Belém, vindos de
dos antigos e italianos pintores. E este foi Itália (Holanda, 1984b, 90).
Nuno Gonçalves, pintor de el-Rei dom Afon-
so, que pintou na Sé de Lisboa o Altar de S. Quanto à arquitectura, refere-se a si próprio
Vicente; e creio que também é da sua mão em último lugar, num grupo que tem à ca-

– MARGARIDA CALADO 243


beça Bramante mas curiosamente nunca re- das inscrições romanas do que propriamen-
fere Brunelleschi: Eu, Francisco d’Ollanda, te com a descrição dos monumentos.
que escrevo estas coisas, sou o derradeiro
dos arquitectores (Holanda, 1984b, 91). Ao longo do século XVII continuarão a ser
escritos textos, publicados ou não, que des-
Não há da parte de Holanda, um esforço de crevem a cidade de Lisboa e são tanto mais
investigação no que à história da arte diz úteis quanto é certo que em 1755 essa cida-
respeito e o próprio assume que assim é, de praticamente desapareceu. No contexto
ao terminar pedindo a quem o melhor en- da ocupação filipina, ou se quisermos, do
tender que, se sabe doutros mestres mais governo dual dos Filipes, haveria a ideia de
famosos, que os ponha em seus lugares, e trazer para Lisboa a capital de um império
emende o que eu não soube melhor eleger que abrangia uma grande parte do mundo
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

nem acertar. conhecido e que fazia mais sentido ser go-


vernado a partir de uma cidade com por-
E ressalva: Mas pareceu-me conveniente to com as características que tinha Lisboa.
ajuntar a este livro sua memória, a qual vive- São valiosos para a história da arte Do Sítio
rá alguns anos (Holanda, 1984b, 92). de Lisboa, de Luís Mendes de Vasconcelos
(1608); o Livro das Grandezas de Lisboa, de
Um capítulo importante da historiografia é a Fr. Nicolau de Oliveira (1620); Das Antigui-
história da cidade de Lisboa, de que se des- dades da mui nobre Cidade de Lisboa de
tacam duas obras de meados do séc. XVI, António Coelho Gasco, obra manuscrita, de
contemporâneas portanto de Holanda: a de 1626; a História Ecclesiastica da Igreja de
Damião de Góis, Urbis Olisiponis Descrip- Lisboa de D. Rodrigo da Cunha (1642) ou
tio, editada em Évora em 1554, e o Summa- a I Parte da fundação, antiguidades e gran-
rio em que brevemente se contem algumas dezas da mui insigne cidade de Lisboa de
cousas assim eclesiásticas como seculares Luís Marinho de Azevedo (1652) (Gonçal-
que há na cidade de Lisboa, de Cristóvão ves, 1962, 12).
Rodrigues de Oliveira. De notar que o mes-
mo Damião de Góis, na sua Crónica do Feli- Logicamente que obras de carácter religio-
císsimo Rei D. Manuel, na 4ª parte, publica- so como as crónicas das Ordens Religio-
da em 1567, inclui uma dissertação acerca sas fornecem elementos importantes para
«das novas igrejas, mosteiros, castelos, for- a história dos edifícios, mas foram escritas
talezas e outras obras que o rei D. Manuel com intenções diferentes, pelo que as de-
fez construir e das que fez restaurar» (Gon- vemos considerar como fontes, mas não
çalves, 1962, 6). fazem parte da historiografia da arte. Não
podemos ignorar, a nível da investigação
O humanista André de Resende, quer na histórica a Crónica de Cister de Frei Bernar-
sua Das Antiguidades da Lusitânia, quer na do de Brito, a História de S. Domingos de
História da Antiguidade da Cidade de Évora Frei Luís de Sousa, continuada por Frei Lu-
parece mais preocupado com a transcrição cas de Santa Catarina, ou a História Seráfica

<<
da Ordem dos Frades Menores de Frei Ma- A lista podia ser muito alargada com con-
nuel da Esperança, continuada por Frei Fer- tinuidade no século XIX e sobre o assunto
nando da Soledade, não esquecendo a va- existem dissertações e teses, mas não se
liosa obra anónima História dos Mosteiros, deve esquecer que muitas destas memórias
Conventos e Casas religiosas de Lisboa1, es- não tinham qualquer preocupação científi-
crita nos inícios do séc. XVIII mas só publica- ca e eram mesmo escritas no regresso das
da no século XX, ou o Santuário Mariano de viagens, pelo que podem conter erros e
Frei Agostinho de Santa Maria, igualmente confusões.
da primeira metade do século XVIII2.
Um dos casos mais patentes é a referência
Outra contribuição importante é dada pe- a uma estátua equestre de D. João V pelo
las narrativas de viagens, que podem obe- autor anónimo da «Descrição da Cidade de
decer a um registo oficial e panegírico, ou Lisboa» em 1730, que ao falar do arsenal
ter o carácter de memórias, que se tornam afirma que é um edifício com bastante bele-
mais abundantes a partir do século XVIII, za e onde há pouco se colocou uma estátua
época que corresponde a um desenvolvi- equestre do rei. (Chaves, 1983, 43). A verda-
mento do hábito de viajar – o grand tour – de é que não existe mais nenhuma referên-
com uma intenção mais turística, sobretudo cia a tal monumento, embora se conheçam
com vista ao conhecimento de monumen- desenhos de Carlos Mardel, aliás posterio-
tos, usos e costumes, ou ainda com fins polí- res, para uma fonte com a estátua real.
ticos próximos do que hoje se chama espio-
nagem. No primeiro caso temos a Relazione Dados os hábitos da época, a ser verdade,
del Viaggio del Portogallo e Galizia de Cos- haveria com certeza uma inauguração noti-
me de Médicis, capítulo da obra mais am- ciada na «Gazeta de Lisboa» para não men-
pla, Relação da viagem por Espanha e Portu- cionar outros textos de carácter panegírico
gal de 1668-1669, que viria a ser publicada e comemorativo.
em Madrid, em 1933 (Gonçalves, 1962, 13).
No segundo caso temos as diferentes nar- A verdade é que o tipo de fontes mencio-
rativas do tempo de D. João V, publicadas nadas diz sobretudo respeito a edifícios e
pela Biblioteca Nacional sob o título genéri- monumentos e quase nada nos diz sobre
co de O Portugal de D. João V visto por três os seus autores ou sobre as pinturas que os
forasteiros (1983) ou o Diário de William decoravam.
Beckford em Portugal e Espanha (1983) ou
as mais recentes Observações de uma via- Entretanto, ao longo do séc. XVII, e dada a
gem a Portugal e Espanha (1760), de Tho- ausência da Corte em Madrid, as artes eram
mas Pitt (2006), obra prefaciada por Maria sobretudo patrocinadas pela Igreja e pelas
João Baptista Neto e publicada sob a égide Ordens Religiosas, responsáveis não só pela
do Ministério da Cultura e da Universidade construção de novos edifícios mas sobretu-
de Lisboa. do pela decoração dos já existentes, reves-
tindo-os de azulejos, completando os altares

– MARGARIDA CALADO 245


com retábulos de talha dourada que enqua- ção social dos pintores e de como eram mal
dravam pintura e imaginária, em madeira apreciados ao contrário do que acontecia
ou barro. Não havia grandes artistas que se noutros países.
destacassem e o exemplo de Vasari3 em Flo-
rença ou de Karel van Mander4 no norte da Em 1668 Portugal tinha finalmente assinado
Europa não foi seguido em Portugal pelo a paz com a Espanha, mas as guerras da Res-
menos até final do século XVII. tauração esgotaram o país e durante esse
período a prioridade foi para a arquitectura
A realização de obras de carácter religio- militar, face à necessidade de garantir a de-
so, pela sua vertente devocional, deveria fesa das fronteiras terrestres e a segurança
ser encarada como serviço de Deus e a do litoral. Tal facto justifica que em 1680, um
exaltação dos seus criadores não seria cer- engenheiro militar português, Luís Serrão Pi-
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

tamente vista com bons olhos pela Igreja mentel, tenha publicado o Método Lusitano
contra-reformista. de Desenhar as Fortificações das Praças Re-
gulares e Irregulares, Fortes de Campanha e
No entanto, algumas excepções existem outras obras pertencentes à Arquitectura Mi-
a esta situação, uma delas rara ou mes- litar, sendo esta a primeira obra teórica que
mo única no contexto europeu, que é a consagra a arquitectura e engenharia mili-
homenagem a Bento Coelho da Silveira tares portuguesas, cuja história se continua
promovida pela Academia dos Singulares, para além do Terramoto de 1755, e que se
organizada e compilada em 16705. Prova- concretizou em obras como as praças de El-
velmente tratava-se de criar um ambiente vas, Valença ou Almeida, mas também no
favorável à criação de uma Academia a ser Aqueduto das Águas Livres.
dirigida pelo próprio Bento Coelho, como
sugere Luís de Moura Sobral, o que não se Face a esta situação, não havia um mecenato
veio a concretizar. expressivo nem da Casa Real nem da nobre-
za, embora após as Guerras da Restauração,
É exactamente neste contexto que nos tenham surgido algumas obras patrocina-
surge o texto manuscrito de Félix da Costa das pelos membros da nobreza envolvidos
Meesen, Antiguidade da Arte da Pintu- na guerra, como é o caso dos Marqueses de
ra, datado de 1696, mas que só viria a ser Fronteira, que não só construíram uma casa
publicado no século XX por George Ku- nobre nos arredores de Lisboa (S. Domingos
bler. Félix da Costa (1639-1712), pintor e de Benfica) como a decoraram com azulejos
teórico, pretendia o reconhecimento da nacionais e importados e com esculturas em
sua profissão como liberal e procurava mármore também importadas.
demonstrar não só a excelência da pintu-
ra, mas também a sua antiguidade. Deve A qualidade das obras pictóricas então rea-
ter redigido a sua obra entre 1685 e 1688, lizadas revela claramente a falta de conhe-
tendo a intenção de a imprimir o que não cimentos a nível do desenho, da anatomia
aconteceu. Tem consciência plena da situa- e até da perspectiva, ensinamentos que na

<<
época se obtinham a nível de academias Teixeira, Fernão Gomes, Simão Roiz (Rodri-
como a de Florença, fundada por Vasari, a gues), Amaro do Vale, Afonso Sanches, Do-
de S. Lucas em Roma, de Zuccaro, ambas mingos Vieira, Francisco Nunes, Diogo da
remontando ao século XVI, ou a mais próxi- Cunha, André Reinoso, Diogo Pereira, Jose-
ma Académie Royale de Peinture et Sculptu- fa de Ayala, Marcos da Cruz, entre outros,
re, fundada em 1648 em França. Para Félix todos da segunda metade do século XVI e
da Costa a fundação da Academia era uma XVII com excepção de Gregório Lopes que
necessidade urgente, embora não tivesse a faleceu em 1550. É curioso que tendo risca-
compreensão da sociedade portuguesa de do em 1693 o retábulo de pedraria para a
então, pelo que no resumo final altera a sua Capela de S. Vicente na Sé de Lisboa (Cae-
posição, afirmando que se não for possível tano, 1989, 288) não faça qualquer referên-
criar uma Academia ao menos seja designa- cia a Nuno Gonçalves.
do um pintor – chefe que tivesse a missão de
velar pela qualidade das obras realizadas. A título de exemplo, transcrevemos o que
diz de Campelo (fl. 106):
Tal como Holanda – e procurando demons-
trar a nobreza e liberalidade da pintura António Campelo Pintor, que seguio em
– afirma que Deus foi, como criador, o pri- muita parte a Escola de Michael Angelo Bo-
meiro dos pintores, e traça uma história, di- narrote, assim na força do debucho, como
remos internacional, da pintura que inicia parte do colorido; se bem já com outra in-
com Tubalcano, na 6ª geração de Adão (ou teligência no mexido das cores. Do qual se
seja, recorre ao Antigo Testamento) e pros- vem suas obras em Belém no claustro e hum
segue para a Grécia com os muito citados painel de Cristo com a cruz às costas prodi-
Zeuxis e Apeles, recorrendo igualmente à gioso,6 que merecia outro lugar, e outro tra-
ideia de que as invasões bárbaras puseram to, que o que tem e várias pinturas suas em
fim à pintura que ressurgiria com Cimabue outra Igrejas. Floreceu em tempo del Rey
e prosseguiria a sua evolução ascendente Dom João o Terceiro.
até Miguel Ângelo e Rafael. Procura tam-
bém acentuar as honras que muitos pinto- Esta breve contribuição de Félix da Costa é
res receberam, inspirando-se não só em Va- uma das fontes utilizadas por Cirilo Volkmar
sari mas noutros autores. Machado que exalta a sua contribuição para
os inícios da história da pintura, do que fala-
Relativamente à pintura portuguesa acres- remos num próximo artigo.
centa uma série de Memorias de 19 Pintores,
enriquecidas com alguns dados biográficos No entanto nem D. Pedro II nem seu filho
e artísticos e portanto com mais conteúdo D. João V, apesar do manifesto patrocínio às
do que as Tábuas de Holanda, embora cin- artes, chegaram a fundar uma Academia de
gindo-se à pintura. Refere os pintores que Artes em Portugal, mas esse é outro tema a
receberam protecção régia como Gregório abordar.
Lopes, José de Avelar, Gaspar Dias, Diogo

– MARGARIDA CALADO 247


Regressando à temática principal que nos cripçam Corografica do Reyno de Portugal
orienta ou seja, a historiografia, e em parti- de António de Oliveira Freire (1789); o Ma-
cular a historiografia da arte, é de salientar a ppa de Portugal Antigo e Moderno de João
fundação por D. João V , em 1720, da Aca- Baptista de Castro (5 volumes, 1745-1758);
demia Real de História Portuguesa, da qual o Dicionário Geográfico do Padre Luís Car-
sairá um conjunto notável de obras de ca- doso, de que foram apenas publicados dois
rácter monumental, importantes para a his- volumes correspondentes às primeiras le-
tória em geral mas também para a história tras do alfabeto (A-C) (1747-1752) e do
da arte em particular. Citaremos a Colecção mesmo autor o Portugal sacro e profano (3
de Documentos e Memórias em quinze volu- volumes, 1767-1768).
mes; as Memórias para a história eclesiástica
do Arcebispado de Braga, em quatro volu- Todas estas obras são inventariações exaus-
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

mes (1732-1747), de Jerónimo Contador de tivas e realizadas com critérios objectivos, e


Argote; a História Genealógica da Casa Real que foram continuadas no século XIX pelos
Portuguesa, de D. António Caetano de Sou- dicionários corográficos de que se destaca
sa, que com as Provas atinge os dezanove o Portugal Antigo e Moderno de Pinho Leal.
volumes (1735-1748); a Bibliotheca Lusitana
de Diogo Barbosa Machado (1741-1751), Ainda na primeira metade do século XVIII é
entre outras (Gonçalves, 1962, 14). publicada a Carta apologética e analytica,
que pela ingenuidade da Pintura, em quan-
Mas uma das principais consequências da to sciencia escreveu José Gomes da Cruz,
fundação da Academia foi a publicação em em 1752, a pedido do pintor André Gonçal-
30 de Agosto de 1721 do Alvará sobre o ves, e que é mais um documento em defesa
Património, o segundo a existir na Europa7, do estatuto da pintura como arte liberal, a
que salvaguardava os Monumentos antigos que Diogo Barbosa Machado acrescentou
que havia, & se podião descobrir no Rey- uma lista dos famosos corifeus da pintura.
no, dos tempos em que nelle dominarão os
Phenices, Gregos, Penos, Romanos, Godos, Na sequência do Terramoto de 1755, que
& Arabios, … que poderão existir nos Ede- destruiu não só uma parte substancial da
ficios, Estatuas, Cippos, Laminas, Chapas, cidade de Lisboa, mas afectou muitas ou-
Medalhas, Moedas & outros artefactos… tras povoações e edifícios por esse país
(Pereira, 1989, 27). Quem encontrasse es- fora, foi dirigida aos párocos das diversas
ses vestígios era obrigado a comunicar e igrejas o pedido de um relato do estado
se não o fizesse, consoante a classe social, em que tinham ficado os edifícios das suas
podia ser punido ou apenas incorrer no paróquias. O resultado é diferente, porque
desagrado do rei. as respostas foram dadas com diferente
desenvolvimento mas a verdade é que as
São ainda de referir as corografias, como a Memórias Paroquiais de 1758 constituem
Corographia Portugueza de António Carva- de modo geral um documento incontor-
lho da Costa (3 volumes, 1706-1712); Des- nável para quem estuda a arte portuguesa

<<
anterior ao Terramoto encontrando-se al- acentuar que, apesar do seu interesse como
gumas publicadas8. Francisco Luís Pereira documento pessoal, não apresenta impar-
de Sousa publicou em 1928 uma obra em cialidade do ponto de vista histórico, no-
vários volumes em que se inventariam os meadamente porque Vieira Lusitano não ti-
estragos deixados pelo Terramoto: O Ter- nha uma boa relação com o arquitecto João
remoto do 1º de Novembro de 1755 em Frederico Ludovice.
Portugal, onde transcreve muitos dos do-
cumentos existentes quer na Torre do Tom- Uma outra fonte para o estudo da história
bo quer na Biblioteca Nacional. está na epistolografia, não como género li-
terário, mas a que tem carácter documen-
Ainda relativamente ao século XVIII, cons- tal, como as Cartas da Rainha D. Mariana Vi-
titui uma fonte importante para a pesquisa tória para sua família de Espanha, editadas
da história da arte a «Gazeta de Lisboa», pu- por Caetano Beirão10 e que apesar do título
blicada semanalmente a partir de 1715, e cobrem toda a sua vida em Portugal, desde
que além de uma extensa parte dedicada que aqui chegou em 1729, e onde se fazem
a questões políticas internacionais e nacio- algumas referências a questões artísticas
nais, tinha uma secção final, de cariz eminen- para além de ser um documento notável
temente social, que tanto falava das igrejas sobre a vida quotidiana na Corte Portugue-
que a Rainha D. Maria Ana de Áustria visi- sa. Existem também publicadas cartas de D.
tava nas suas devoções como podia referir Maria Bárbara, rainha de Espanha, para D.
uma descoberta arqueológica ou a oferta de João V com algumas observações interes-
uma imagem a determinada igreja ou ainda santes para a história da música.
a fundação ou sagração de outra. Além da
Gazeta editada, houve outras que permane- Ao longo do século XVIII, surgiram obras
ceram manuscritas como o «Mercúrio de Lis- diversas no campo da engenharia militar
boa» ou o «Folheto de Lisboa», manuscritos (O engenheiro Português de Manuel de
que podemos encontrar na Biblioteca Na- Azevedo Fortes, em 1728-29), como no da
cional ou na Biblioteca Pública de Évora. teoria da arte, nomeadamente os Artefac-
tos simetríacos e Geométricos do Padre
Finalmente há ainda que mencionar a auto- Inácio da Piedade Vasconcelos, de 1733,
biografia escrita pelo pintor Vieira Lusitano ou as diversas obras de Machado de Cas-
já no final da vida, depois da morte de D. tro, algumas das quais editadas já nos iní-
Inês Helena, sua mulher, e quando se reco- cios do século XIX.
lheu ao Convento de Xabregas, que ele in-
titulou O Insigne Pintor e Leal Esposo9. Essa Será de facto no primeiro quartel do sécu-
autobiografia, escrita em verso, narra não lo XIX que nos surgem as que podemos
apenas os factos aventurosos relativos à considerar verdadeiramente as primeiras
sua vida conjugal, como refere as suas via- obras da historiografia da arte portuguesa,
gens a Itália e nos fornece alguns elemen- que abordaremos em próximo artigo, subli-
tos de ordem histórica. Há no entanto que nhando a importância da obra de Cirilo por

– MARGARIDA CALADO 249


ser a primeira que além de pintores, men-
ciona arquitectos, escultores e gravadores:

Regras da Arte da Pintura, de José da Cunha


Taborda (1815) a que Acresce memoria dos
mais famosos pintores portugueses e dos
melhores quadros seus que escrevia o tra-
ductor.
– Bibliografia
Ensaio sobre História da Arte da Pintura
CAETANO, Joaquim Oliveira
de Almeida Garrett (1818-1822), dividida
(1989) – Meesen, Félix da Costa.
numa parte europeia e numa parte dedica-
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

Dicionário da Arte Barroca


da à pintura portuguesa. em Portugal. Lisboa: Editorial
Presença
Collecção de Memórias Relativas às vidas CALADO, Margarida (1978-
dos pintores, e escultores, architetos, e 1979) – Acerca da historiografia
da arte portuguesa. ArteOpinião.
gravadores portuguezes, E dos Estrangei-
Associação de Estudantes da
ros que estiverão em Portugal, recolhidas
Escola Superior de Belas Artes
e ordenadas por Cyrillo Volkmar Machado. de Lisboa. Nº 1 a 5 (Dezembro de
Lisboa, 1823. 1978 a Abril de 1979)
GONÇALVES, António Manuel
(1962) – Historiografia da Arte em
Portugal. Boletim da Biblioteca
da Universidade de Coimbra.
Vol. XXV. Coimbra (Comunicação
à Secção de Belas-Artes do IV
Colóquio Internacional de Estudos
Luso-Brasileiros, de Salvador da
Baía, Brasil – Agosto, 1959
HOLANDA, Francisco de (1984a)
– Da pintura antiga. Lisboa: Livros
Horizonte - (1984b) – Diálogos em
Roma. Lisboa: Livros Horizonte
KUBLER, George (Introduction
and notes) (1967) – The Antiquity
of the art of Painting by Félix da
Costa. New Haven and London:
Yale University Press
PEREIRA, José Fernandes (1989)
– Património. Claro-Escuro. Revista
de Estudos Barrocos. Nº 2-3.
Lisboa: Quimera, Maio/Novembro
de 1989

<<
– Notas monumental da portaria do
Mosteiro de Santa Maria de
1
Obra manuscrita que veio Belém e que foi restaurada
a ser publicada pela Câmara para a exposição «Jerónimos –
Municipal de Lisboa em 1950, 4 séculos de Pintura». Sobre o
com advertência de Durval Pires assunto ver o artigo de Joaquim
de Lima. de Oliveira Caetano «Campelo
2
Destacamos o Tomo Primeyro nos Jerónimos: os Fragmentos da
Que compreende as Imagens Fama» publicado no Catálogo da
de Nossa Senhora, que se Exposição (p. 96)
venerão na Corte, & Cidade de 7
Sobre o tema publiquei um
Lisboa, publicado em 1707, e o pequeno texto cuja referência
Tomo VII – História das Imagens deixo: Margarida Calado (1985)
milagrosas de Nossa Senhora E – Portugal detentor da segunda
milagrosamente aparecidas, & mais antiga legislação da Europa
suplemento daquelas que nos sobre Património. Jornal do
ficarão por referir em os seis tomos Património. Direcção de José
antecedentes por falta de inteyra Hormigo. Nº 1. Janeiro Fevereiro
noticia, publicado em 1721 Março de 1985
3
Giorgio Vasari é o autor de Le Os manuscritos originais
Vite de’ più eccelenti Architetti, encontram-se no Arquivo Nacional
Pittori e Scultori Italiani da da Torre do Tombo onde podem
Cimabue insino a’ tempi nostri, ser consultados.
com 1ª edição em 1550 e 2ª em 8
Fernando Portugal e Alfredo
1568, obra considerada a primeira Matos – Lisboa em 1758.
história da arte, já referida a Memórias Paroquiais de Lisboa.
propósito de Francisco de Holanda Lisboa, 1974
4
Karel van Mander (Meulebeke, 9
Francisco Vieira Lusitano – O
1548 – Amesterdão, 1606) foi um Insigne Pintor e Leal Esposo.
pintor que a exemplo de Vasari Historia Verdadeira que elle
publicou Schilder-Boeck (O livro escreve em Cantos Lyricos. E
da Pintura), cuja primeira edição oferece ao Illus. E Excellent.
data de 1604 e de que existe uma Senhor José Da Cunha Gran
edição seleccionada Vidas de Ataíde e Mello, Conde e Senhor
Pintores Flamengos, Holandeses e de Povolide, do Conselho de Sua
Alemães. Madrid: Casimiro, 2012 Magestade Fidelissima, Gentil-
5
Esta homenagem foi Homem de sua Real Camara,
exaustivamente estudada por Comendador da Ordem de
Luís de Moura Sobral em Pintura Cristo, Alcaide Mor da Vila de
e Poesia na época barroca. A Sernancelhe, etc. Lisboa, 1780
homenagem da Academia dos 10
Caetano Beirão – Cartas
Singulares a Bento Coelho da da Rainha D. Mariana Vitória
Silveira. Lisboa: Estampa, 1994 para a sua família de Espanha.
6
Trata-se da obra de cerca de Apresentadas e anotadas por…
1570, um óleo sobre madeira Vol. I (1721-1748). Lisboa:
hoje no Museu Nacional de Arte Empresa Nacional de Publicidade,
Antiga, proveniente da escadaria 1936

– MARGARIDA CALADO 251


Três Jornais de Belas-Artes
do Século XIX em Portugal
por Eduardo Duarte
Prof. Auxiliar de Ciências da Arte e do Património na
FBAUL, Investigador do CIEBA, Responsável do 2.ª Ciclo
das Ciências da Arte e Coordenador do Mestrado em
Museologia e Museografia.
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

The 19th century has known in our country, three


important publications related to the Fine Arts:
the Jornal de Bellas-Artes ou Mnémosine Lusitana Portugal quase nunca teve uma relação har-
(1816-1817), the Jornal das Bellas-Artes (1843- moniosa com as Belas-Artes. Na verdade, são
1846 e 1848) and the Jornal de Bellas-Artes (1857- muitos os artistas que a isso se referem, des-
1858). Due to their theoretical and artistic impact, de Francisco de Holanda (1517-1584) a Joa-
the last two are the most relevant, since the first, quim Machado de Castro (1734-1822). Como
formal and aesthetically, still belongs largely to the sabemos, essa situação continuou no século
18th century. XIX e ainda hoje, teimosamente, persiste.
In the Journal das Bellas-Artes collaborated authors
and essential writers like Garrett, Herculano, Francisco de Holanda, logo no primeiro dos
Castilho, Varnhagen and artists such as Roquemont, seus célebres Diálogos de Roma (1548), di-
Fonseca, Manuel Maria Bordalo Pinheiro, Sendim rigindo-se a Miguel Ângelo e contextua-
and Paulino dos Reis, among others. lizando a arte em Portugal, refere, numa
In the Jornal de Bellas-Artes colaborated several passagem habitualmente esquecida, mas
writers, among which we highlight Bulhão Pato, paradigmática desta situação:
Mendes Leal and romantic artists who were part
of the framework Cinco Artistas em Sintra (1855): “[…] nós outros, os Portugueses, ainda que
Anunciação, Metrass, Cristino, Victor Bastos and alguns nasçamos de gentis engenhos e es-
José Rodrigues. Having been almost the only píritos, como nascem muitos, todavia temos
publications that contemplated the fine arts, it will por desprezo e galantaria fazer pouca conta
be elaborated a theoretical and formal analysis of das artes, e quase nos injuriamos de saber
these periodicals. muito delas, onde sempre as deixamos im-
perfeitas e sem acabar.”1
— Keywords
Fine-Arts, Journals, Romanticism, Portugal Também o escultor Machado de Castro,
numa carta dirigida a pessoa indetermina-
da, mas datada de 3 de Fevereiro de 1817, e

<<
com um tom de revolta contida em relação Como facilmente se imagina, a Mnémosi-
àqueles que o caluniavam a si e ao seu tra- ne Lusitana (como geralmente é conheci-
balho, escreve: da) teve vida breve, dois anos, 1816-1817,
como a maioria dos periódicos no século
“Em Portugal influe Astro maligno destrui- XIX, mas marcou, sem dúvida, uma novida-
dor das Bellas Artes!!!”2 de editorial muito importante. Não apenas
na questão literária, na teoria da arte e do
Camões (1524/25-1579/80), n’Os Lusíadas, património, mas também como importante
lamentando-se de que os chefes militares documento iconográfico, mercê das gravu-
portugueses sempre tenham desprezado ras que apresentava.
as artes, ao contrário de Octávio, César, Ci-
pião, Alexandre, entre capitães Romanos, O texto de apresentação fazia, como era ha-
Gregos ou Bárbaros3, escreve o célebre e bitual, o elogio ao Príncipe D. João e uma
paradigmático verso: crítica ao “Usurpador”, não revelando se-
quer o seu nome. Toda essa introdução re-
“Porque quem não sabe arte, não na estima.”4 vela que se trata, de facto, de um “Jornal Pa-
triotico” que até então não existia e que o
Com estas críticas, a que poderíamos próprio título de Redacção Patriótica pou-
juntar tantas outras, como as de Cyrilo cas dúvidas deixava.
Volkmar Machado (1748-1823), entende-
se a escassíssima publicação de livros e de Era intento do periódico recordar a memó-
periódicos relativos às Belas-Artes e à teoria ria do passado, quando os Portugueses fo-
destas. ram o “assombro do mundo”, com os des-
cendentes dos Pereiras, Albuquerques,
Jornal de Bellas-Artes ou Mnémosine Cunhas, Almeidas, Castros e tantos outros,
Lusitana. Redacção Patriótica que não degeneraram o bem da Pátria, an-
Só em 1816 surgiu uma publicação periódi- tes lançando em confusão os inimigos da
ca dedicada de facto às Belas-Artes e, mais “Gloria Lusa.”5 O programa editorial do pe-
importante, com essa designação no seu tí- riódico estava elencado da seguinte forma:
tulo completo de Jornal de Bellas-Artes ou
Mnémosine Lusitana. Redacção Patriótica e “1.º Memorias das acções dos Guerreiros
cujo director era Pedro Alexandre Cavroé Portuguezes na recente, e nas antigas Cam-
(1776-1844). panhas, de que os Escriptores Estrangeiros
tenhão feito honrosa menção.
Num contexto difícil, marcado pela pre-
sença do futuro D. João VI no Brasil (1807- Refutação de algumas opiniões dos mes-
1821) e por uma situação grave para o país, mos Escriptores sobre Portugal, etc.
que havia sofrido, havia poucos anos, três
invasões francesas (1807, 1809 e 1810), é 2.º Descripção dos edifícios, e monumentos
notável que tenha surgido esta publicação. mais notáveis de Lisboa; justa avaliação do

– EDUARDO DUARTE 253


seu merecimento. Dos sitias amenos, ricos interessante artigo com o título: Da Estatuá-
em Botânica, etc.; com huma estampa em ria, e Escultura em pedra em Portugal9, entre
cada quarto Numero. outras matérias sobre Belas-Artes.

3.º Artes, e Officios; o esmero a que tem Este artigo sobre escultura é, recorde-se, tal-
chegado algumas Artes, e Officios em Por- vez a primeira tentativa para fazer uma sín-
tugal; novos inventos; meios de excitar a in- tese da história desta expressão artística em
dustria; nomes, e moradas dos principaes Portugal. Cavroé esboça uma breve história
Artistas em Lisboa; suas obras, etc. da escultura nacional em 5 páginas. Como
exemplo mais antigo no território nacional,
4.º Poezias; Composições não impressas de evoca a cidade de Évora como os capitéis
Authores acreditados; reimpressão de algu- coríntios do seu célebre Templo de Diana
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

mas rarissimas, etc. (que não foram importados de Atenas ou


Roma, mas antes obra de escultores locais
5.º Curiosidades; Indicação das cousas dig- que testemunham que “na Lusitania havia
nas de serem attendidas dos curiosos, e via- bons Escultores”10. É igualmente apresen-
jantes; seu merecimento, etc. tado o exemplo de Beja, com as suas cima-
lhas, frisos, estátuas e lápides, achadas nas
6.º Anecdotas, Historias, e Ditos sentencio- escavações ordenadas pelo prelado da dio-
sos, nos quaes se encontrem, ou elogio á cese, D. Fr. Manuel do Cenáculo11. Durante a
Nação, ou aquella agudeza natural, e pró- Idade Média, Cavroé destaca a escultura (e a
pria da lingua Portugueza.”6 arquitectura), em Alcobaça, nos Túmulos de
Pedro e Inês de Castro, no Convento de Cris-
Grande parte do conteúdo do Jornal de to em Tomar, no Mosteiro da Batalha e nos
Bellas-Artes ou Mnémosine Lusitana. Redac- Jerónimos (Bellem), “talvez no género gho-
ção Patriótica versa as histórias de Portugal, tico os melhores do mundo”, citando Mur-
recentes - como, por exemplo, episódios das phy12. Refere ainda o Mosteiro de S. Vicente
Invasões Francesas -, e passadas, descrições de Fora e o Claustro dos Filipes em Tomar
de edifícios e monumentos, procurando va- (“de 1580 a 1640”) como exemplos, ape-
lorizar o património edificado, inclusivamen- sar de “nunca tão brilhantes, e honrados”
te com algumas gravuras, mas também mui- como as obras nos reinados de D. João V, D.
ta literatura, como poesias, odes, sonetos e José I e D. Maria I (ideia de manifesto pen-
as prometidas anedotas, algumas delas so- dor nacionalista). Do século XVIII, o autor
bre jesuítas, e ainda curiosidades. menciona Alexandre Giusti (Justi), José de
Almeida, Machado de Castro, João José de
Do 1.º volume, destaca-se, por exemplo, a Aguiar, Amatucci, Faustino José Rodrigues,
descrição da Praça do Comércio e da sua Joaquim José de Barros, Alexandre Gomes,
Estátua Equestre7, uma pormenorizada des- Francisco Leal Garcia e António Ferreira, re-
crição das Aulas Régias e Públicas de Dese- cordando as principais obras de cada um
nho Histórico e de Arquitectura Civil8 ou um deles. Por fim, lembra que “de todos os nos-

<<
sos Estatuários o mais famoso he o immortal
Manoel Pereira” que “Em Itália he tão conhe-
cido o seu nome, como entre nós pôde ser
o de Bernini.”13 O texto de Cavroé é muito
interessante, pois refere e completa por ve-
zes obras de todos estes escultores, sendo
uma espécie de esboço, para as entradas
que Cyrilo Volkmar Machado publicará na
conhecida Colecção de Memórias (1823)14.

Os frontispícios da Mnémosine Lusitana dos


anos de 1816 e 1817 apresentam as armas
reais de Portugal, numa antiga tradição que
podemos remontar à época manuelina e
que surge, da mesma forma, no primeiro
periódico português, a Gazeta em que se Mnémosine Lusitana, 1816

relatam as novas todas… de 1641.

O 1.º volume da Mnémosine Lusitana, de


1816, apresenta 26 números, num total de
432 páginas, e o 2.º volume, de 1817, tem
igualmente 26 números e 420 páginas.
Cada número apresenta 6 gravuras a água-
-forte desenhadas por Pedro Alexandre
Cavroé, director da Mnémosine Lusitana,
e abertas por António Manuel da Fonseca
(1796-1890)15.

Como se pretendia no programa editorial,


respeitou-se o número de gravuras, uma a
cada quatro números, mas apenas no 1.º vo-
lume, de 1816. No 2.º volume, de 1817, não
existe essa periodicidade. As gravuras são
todas hors-texte. Se as de formato vertical
estão naturalmente encadernadas como as
páginas do periódico, as de formato hori-
zontal foram colocadas nessa posição, sen-
do necessário o leitor voltar o livro para as
poder contemplar.

– EDUARDO DUARTE 255


As gravuras apresentadas são as seguintes:
1.º Vol., 1816, Aqueduto das Águas Livres,
n.º 4; Monumento sepulcral erigido no Ce-
mitério dos Ingleses ao Príncipe de Valdeck,
n.º 8; Real Teatro de S. Carlos, n.º 12; Moi-
nho movido por água, n.º 17; Convento de
N. Senhora de Jesus, n.º 22; Palácio do Go-
verno, n.º 26. 2.º Vol., 1817, Igreja da Basíli-
ca de Santa Maria, n.º 6; Casa de Campo e
Quinta Real de Belém, n.º 11; Terreiro Públi-
co de Lisboa, n.º 19; Arsenal Real do Exér-
cito, n.º 24; Duas máquinas muito úteis, n.º
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

Mnemosine Lusitana, 1817- Igreja da 24; Colégio Real dos Nobres, n.º 26.
Basílica de Santa Maria

Estas gravuras, com os respectivos textos,


descrevem apenas um monumento antigo
(Basílica de Santa Maria, Sé de Lisboa), sen-
do os restantes edifícios e construções do
século XVIII. É igualmente interessante re-
gistar a referência a um moinho (inventado
por Filipe Arnaud)16 e duas máquinas (para
moer farinha em casas particulares e para
peneirar) de criação inglesa17. A presença
destas máquinas na Mnémosine Lusitana
são consequência da tímida industrializa-
ção portuguesa ocorrida durante o consula-
do do marquês de Pombal e, principalmen-
Mnémosine Lusitana, 1816 - Moinho te, de um interesse na engenharia mecânica
que hoje se poderia considerar como próxi-
ma do design de equipamento.

Em termos compositivos e de design de co-


municação, o Jornal de Bellas-Artes ou Mné-
mosine Lusitana. Redacção Patriótica, com o
texto a uma coluna, é continuador do gra-
fismo do século XVIII, que se observa, por
exemplo, em inúmeras publicações patroci-
nadas pela Casa Literária do Arco do Cego
ou na Impressão Régia onde se imprimiu
este periódico.

<<
Jornal das Bellas-Artes tória da arte”. Era igualmente intuito do Jor-
Muito diferente em termos formais e, de res- nal das Bellas-Artes reproduzir os “grandes
to, muito mais focalizado na temática das Be- monumentos da arte antiga e moderna que
las-Artes era o Jornal das Bellas-Artes (1843- enriquecem outros paizes.” Os quadros, es-
1846 e 1848). Este foi, como se refere no tátuas, relevos e edifícios seriam acompa-
início, “Patrocinado sob os auspicios de uma nhados pela sua história, análise e aprecia-
reunião de litteratos e artistas”. O presidente ção. As biografias dos artistas mais distintos,
era Almeida Garrett (1799-1854), o vice-pre- principalmente os nacionais, estariam ainda
sidente, o pintor António Manuel da Fonse- presentes. Finalmente, o periódico iria no-
ca (que já havia colaborado na Mnémosi- ticiar todas as ocorrências, descobertas ou
ne Lusitana) e o secretário, António da Silva novas produções que interessavam à arte e
Túlio (1818-1884). Colaboraram autores e que faziam a sua história contemporânea18.
escritores incontornáveis como Alexandre
Herculano (1810-1877), António Feliciano Como facilmente se constata, eram mui-
de Castilho (1800-1875), Francisco Adolfo to ambiciosos os propósitos deste jornal,
de Varnhagen (1816-1878) e artistas como manifestando Garrett um grande interesse
Augusto Roquemont (1804-1852), José Ma- pela “história da arte”, como o próprio es-
ria Baptista Coelho (1812-1891), Manuel creve. Pensamos que este deve ser um dos
Maria Bordalo Pinheiro (1815-1880), Maurí- primeiros textos, no qual surge esta expres-
cio José Sendim (1790-1870), Máximo Pau- são. Esta Introdução, habitualmente muito
lino dos Reis (1778-1865) e Pedro Augusto esquecida, é uma peça fundamental para a
Guglielmi (c. 1837-1852), entre outros. história, teoria da arte, estudo e defesa do
património nacional do século XIX.
A introdução do jornal, redigida por Almei-
da Garrett, referia que o periódico tinha Cada número do Jornal das Bellas-Artes de-
como objectivo “ilustrar as nossas glórias veria ter uma periodicidade mensal e pos-
passadas”. Pretendia-se, de igual modo, au- suiria, pelo menos, 16 páginas e duas es-
xiliar a “sublime e patriotica idea que orga- tampas gravadas ou litografadas19.
nisou a Academia das Bellas-Artes de Lisboa
e os outros Institutos connexos”. Um outro Nas mesmas informações, menciona-se
propósito do Jornal das Bellas-Artes era re- também os preços das assinaturas e os lo-
produzir pela gravura e pela litografia todos cais de compra do periódico20. No primeiro
os “quadros dos nossos mestres” a par das número do jornal, na sua contra-capa, afir-
outras “escolas” que existiam nos repositó- mava-se que os assinantes receberiam, ao
rios públicos e nas colecções particulares. fim de 12 números, um frontispício com or-
natos análogos aos assuntos que eram tra-
Também a escultura e a arquitectura não se- tados no periódico e ainda o índice geral
riam esquecidas, assim como as medalhas, das matérias do volume21.
moedas e os demais objectos que se pu-
dessem considerar “documentos para a his-

– EDUARDO DUARTE 257


O Jornal das Bellas-Artes foi impresso na Ti-
pografia da Sociedade de Propaganda dos
Conhecimentos Úteis, n.º I e II; na Imprensa
Nacional, n.º III-VI; e na tipografia do Pano-
rama, n.º I-III do Tomo II22.

Os editores foram Manuel Maria Bordalo Pi-


nheiro, pai de Rafael e Columbano Bordalo
Pinheiro, e José Maria Baptista Coelho23. A
mancha do texto é a duas colunas separa-
das por uma linha vertical.
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

Além da componente de ilustração que os-


Jornal das Bellas-Artes, 1843 tenta, o Jornal das Bellas-Artes é inequivo-
camente do século XIX, em termos de tipo-
grafia, e a escolha dos caracteres revela um
típico eclectismo gráfico oitocentista. O títu-
lo, por exemplo, deve ter sido desenhado.
Somos levados a colocar esta hipótese pela
irregularidade da letra. Foram utilizados três
tipos de letras, todas elas em relevo, de que
resulta uma composição bastante dinâmi-
ca e interessante, apesar dos seus limitados
recursos gráficos. O título surpreende pelo
preto e branco e, principalmente, pelo mo-
vimento da inclinação do “das”24.

Mas uma das mais importantes novidades


editoriais que o Jornal das Bellas-Artes apre-
senta, talvez mesmo a mais relevante, é a
questão gráfica e a da ilustração que acom-
panhava o texto. Num país com parcos recur-
sos ao nível da gravura, como se verifica no
quase sempre pobre panorama da sua his-
tória em Portugal, não deixa de ser extraor-
dinário um periódico ter essa preocupação.

Na verdade, podemos contabilizar, em


118 páginas25, 16 gravuras de página intei-
ra (hors-texte) e mais 16 imagens peque-

<<
nas dentro do texto, num total de 32 gra- geração romântica. O longo texto a descre-
vuras. Estas gravuras podem ser quadros, ver o quadro reproduzido (S. Bruno em ora-
composições gráficas de início de texto ou ção), que pertenceu à Cartuxa de Laveiras,
simplesmente uma letra desenhada. A mé- foi escrito por António Feliciano de Casti-
dia de gravuras por página no Jornal das lho28. Após este, surge uma biografia desse
Bellas-Artes é de aproximadamente 3,7, o pintor por José Maria da Silva Leal (1812-
que dá ideia da importância da ilustração 1883)29. Por fim, a presença do Túmulo de D.
neste periódico. Dinis revela, obviamente, o gosto romântico
pela Idade Média e arte dessa época.
Em termos de gravuras de página inteira,
é ainda interessante constatarmos que as A par das gravuras de página inteira, o Jor-
duas primeiras reproduzem dois quadros nal das Bellas-Artes apresenta ainda algu-
atribuídos ao mítico Grão Vasco (Epipha- mas composições gráficas muito interes-
nia e S. João Baptista), um de Domingos santes no meio do texto, com composições,
Sequeira (S. Bruno em oração), a reprodu- algumas não assinadas, e letras iniciais. Des-
ção do Túmulo de D. Dinis, em Odivelas, e tas, destacam-se as gravuras desenhadas
um quadro de Rafael de Urbino. Todos es- por Bordalo Pinheiro e gravadas por José
tes quadros pertenciam, como se informa, à Baptista Coelho30 que ilustram os romances
Academia de Belas-Artes de Lisboa. Rei Ramiro e Miragaia de Garrett com letras
e composições fantasistas, povoadas de
O aparecimento no início do Jornal das personagens da Idade Média. Na primeira
Bellas-Artes de duas obras que se pensava, composição gráfica, na qual se observa um
na época, serem de Grão Vasco é sintomá- R, surge mesmo uma janela manuelina com
tico do papel que este mítico pintor portu- duas cordas atadas na zona superior31.
guês tinha no imaginário artístico nacional
de Oitocentos. Aliás, Almeida Garrett evoca Também as ilustrações do artigo O Castello
Grão Vasco no fim da sua Introdução, refe- d’Almourol, escrito pelo conde de Mello, são
rindo não poder ser deste pintor todos os muito interessantes, sobretudo a última, com
quadros que se lhe atribuem, como Home- uma varanda de inspiração manuelina, com
ro poderá não ter escrito todas as rapsódias dois medalhões, sobre o castelo do Tejo32.
da Ilíada e da Odisseia. Contudo, Garrett
promete estar atento a esta questão e irá De temática manuelina é a ilustração do ar-
entrar “a tempo e com lealdade, na liça.”26 tigo Porta lateral da Egreja de S. Julião, em
Como se sabe, só após os trabalhos do con- Setubal, de Varnhagen, também de Borda-
de Raczinsky (1846 e 1847)27 é que se co- lo Pinheiro, povoada com algumas pessoas,
meçou a definir melhor esta personalidade um cão e um galo, num pequeno trecho de
artística. desenho romântico de costumes33.

Quanto a Sequeira, recordemos que sem- Quatro letras do Jornal das Bellas-Artes me-
pre foi um pintor muito considerado pela recem referência, devido à sua qualidade

– EDUARDO DUARTE 259


gráfica. Inspirando-se numa iluminura de
grafismo celta, é um A34 e um P35. Também
um E clássico surge no interior de uma jane-
la manuelina36. Um Q é definido por ramos,
flores, folhas e insectos37.

Dos vários textos importantes inseridos no


Jornal das Bellas-Artes, destacam-se, além
da referida biografia de Domingos Sequei-
ra por Silva Leal, um texto de Almeida Gar-
rett com o título Claustro de Belem38 (no
qual o Mosteiro da Batalha é descrito, ape-
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

sar de belo, como quase puramente nor-


mando, em contraste com o Mosteiro dos
Jerónimos, que era, segundo o escritor, ver-
dadeiramente português) e ainda o já cita-
do estudo de Varnhagen sobre o Portal la-
teral da Igreja de S. Julião, em Setúbal39, no
Jornal das Bellas-Artes, Rei Ramiro qual se fazia uma profunda reflexão sobre
o conceito do “typo do estylo manuelino.”40
Curiosamente, e dentro das preocupações
editoriais do Jornal das Bellas-Artes, ambos
os textos eram acompanhados por gravuras
de João Pedro Monteiro (1823/26-1853) e
de Bordalo Pinheiro, respectivamente. Tam-
bém relevante foi a descrição e, de certo
modo, a crítica de arte que surgiu a propó-
sito da Exposição da Academia das Bellas-
-Artes de Lisboa. 184341. O texto, bastante
longo, e que deve ser de Almeida Garrett,
faz uma descrição da segunda exposição
organizada pela Academia de Belas-Artes
de Lisboa, depois da primeira de 1840, se-
gundo as várias aulas (Desenho Histórico,
Pintura Histórica, Aula de Pintura de Paisa-
gem, Aula de Desenho de Arquitectura Ci-
vil, Aula de Gravura e Aula e Laboratório de
Escultura), enumerando as obras premiadas
e, dentro da filosofia do periódico, apresen-
Jornal das Bellas-Artes, O Castello d’Almourol tando três gravuras, o célebre Eneias salvan-

<<
do a Anchises, de António Manuel da Fon- ca é feita à estátua de Gil Vicente, por estar
seca; A Volta do Filho Pródigo, de António “curvada de mais, o que produz mau effeito
Tomás da Fonseca (1822-1894), filho do an- vista de lado; talvez haja em toda ella um
terior, e o baixo-relevo Juramento de Viria- sentimento da humilhação.” Segundo o crí-
to, de Francisco de Paula Araújo Cerqueira tico, faltava-lhe a “nobreza e a magestade
(1808-1855)42. da estatua romana” e Gil Vicente, curvado,
“apoia a mão esquerda sobre o peito, e pa-
Uma outra característica interessante que o rece estender o braço direito ao viandante
Jornal das Bellas-Artes introduziu nos últi- que passa…”46
mos números, em 1848, foi a presença de
uma secção designada Album sobre pe- Jornal de Bellas-Artes
quenas notícias da actualidade43. Assim, No Jornal de Bellas-Artes (1857-1858), com
foi noticiada a morte precoce, aos 23 anos, 8 números47, colaboraram também vários
do gravador e colaborador do Jornal das escritores, dos quais destacamos Castilho,
Bellas-Artes Ernesto Gerard; a chegada, em Bulhão Pato (1828-1912), Gomes de Amo-
Janeiro, de Francisco Metrass (1825-1861) rim (1827-1891), Mendes Leal (1820-1886)
e do visconde de Meneses (1817-1878) de e os artistas românticos que contemplamos
Roma e de um périplo que haviam realiza- no quadro Cinco Artistas em Sintra (1855):
do por várias cidades europeias; a estreia Tomás da Anunciação (1818-1879), Fran-
do jovem pianista Lozano e uma desenvol- cisco Metrass, João Cristino da Silva (1829-
vida notícia sobre a Academia Filarmónica 1877), Victor Bastos (1829-1894) e José Ro-
de Lisboa, fundada em 1838. drigues (1828-1887), além de António José
Patrício (1827-1858) e Leonel Marques Pe-
Finalmente, no último número do Jornal reira (1828-1892).
das Bellas-Artes surge, na mesma secção,
um texto, não assinado, de crítica de arte No texto de apresentação, José Eduardo de
intitulado Inauguração das Estatuas sobre Magalhães Coutinho (1815-1895)48 refere
o Frontão do Theatro Nacional44. Apesar de que as causas para o “pouco aumento das
as estátuas honrarem o seu autor, Francis- Bellas-Artes portuguezas” foram o “desam-
co de Assis Rodrigues (1801-1877)45, pelo paro, e o esquecimento” por aqueles que
desenho “assaz correcto e estudado, as rou- as deveriam proteger e os que as deviam
pas cheias de graça e naturalidade”, o pro- apreciar nem sequer suspeitavam que elas
grama é severamente criticado. As estátuas existissem49. Seguidamente, o médico faz
sobre o frontão não deveriam estar sepa- um elogio da Anatomia e da sua importân-
radas do grupo de Apolo e das Musas no cia para as Belas-Artes. Escreve ainda uma
tímpano do mesmo; depois, em vez de as breve síntese histórica dessa disciplina fun-
estátuas da Tragédia e da Comédia a ladea- damental para a Medicina.
rem Gil Vicente, deveriam estar, por exem-
plo, o “tragico Ferreira” (António Ferreira), No mesmo número, o visconde de Jurome-
Camões ou mesmo Garrett. Uma outra críti- nha (1807-1887), conhecido escritor e histo-

– EDUARDO DUARTE 261


riador, escreve que o Jornal de Bellas-Artes A composição do frontispício do periódi-
havia sido empreendido por alguns artistas co, desenhada por Victor Bastos e gravada
portugueses que pretendiam esclarecer-se por João Pedroso (1823-1890)60, apresenta-
a si e ao público na história da arte50. Refere -se bastante clássica na sua simetria. Obra
o importante contributo das obras do con- de um pintor, mas que se iria dedicar à es-
de de Raczynski51 e os nobres esforços de cultura (Victor Bastos foi o mais importante
José da Cunha Taborda (1766-1836) e de escultor do romantismo português e autor
Cyrilo Volkmar Machado52, afirmando, como do Monumento a Camões, no Chiado, em
no Jornal das Belas-Artes, que em Portugal Lisboa, 1867), coloca, na parte superior, três
a História da Arte estava na infância, haven- mulheres, em tronco nu e bastante dinâmi-
do numerosos arquivos para explorar e ex- cas, a coroarem outras três figuras femininas
cursões artísticas a empreender53. em baixo que representam a Pintura, a Es-
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

cultura e a Arquitectura. A primeira está ao


Além de peças literárias e poéticas de vá- centro, com uma paleta; a Escultura, do seu
rios autores, como os referidos Feliciano lado direito, segura um maço, apresentan-
de Castilho54 ou Bulhão Pato, o Jornal de do uma cabeça esculpida aos pés; e a Ar-
Bellas-Artes apresenta artigos sobre esté- quitectura, do lado esquerdo, numa atitude
tica55, biografias artísticas56, descrições de pensativa ao colocar a mão no queixo e a
obras da geração romântica e dois cursos olhar para baixo. Esta parece, deste modo,
que ficaram incompletos, devido ao fim do ser mais meditabunda e teórica que as suas
jornal: Introducção a um Curso de Anatomia irmãs Pintura e a Escultura; segura um com-
applicada ás Bellas Artes de José Eduardo passo e tem um desenho no chão; ao seu
de Magalhães Coutinho57 e Estudos de Ar- lado, contemplam-se ainda três livros, numa
chitectura Civil de José da Costa Sequeira alusão evidente aos tratados de arquitec-
(1800-1872)58. Finalmente, no artigo intitula- tura. Curiosamente, a Escultura olha para a
do Reliquias da Arte Portuguesa no Districto Pintura, como que significando a sua proxi-
de Coimbra59, faz-se a defesa do património midade artística e está à direita desta. Atrás
artístico dessa região e do país em geral. da Escultura, surge uma estátua feminina e
vários vasos esculpidos, que se encontram
Como nos últimos números do periódico ao seu lado. A Arquitectura, por sua vez,
que anteriormente descrevemos, o Jornal está à frente de um capitel, de uma coluna
de Bellas-Artes apresenta, no fim de cada e de vários ornatos arquitectónicos, que se
número, uma Chronica Mensal e um Noti- vislumbram à sua esquerda.
ciario sobre exposições em Lisboa, Porto e
até em Paris; obras de artistas que estavam Toda esta composição alegórica, das três fi-
a ser realizadas; concursos para professores lhas do Desenho a serem coroadas por figu-
nas Belas-Artes; álbuns de fotografias; notí- ras que se assemelham a deusas clássicas e
cias de teatro e música, de lançamento de à Vénus de Milo, encontra-se dentro de uma
livros e até da inauguração de um estabele- moldura circular, com hera na parte supe-
cimento fotográfico em Lisboa. rior, exibindo, ao centro, a legenda Jornal

<<
de Bellas-Artes. Em baixo, numa base arqui-
tectónica sobre duas consolas, encontra-se
a data da fundação deste periódico.

Uma análise formal ao Jornal de Bellas-Artes


revela 128 páginas e 58 gravuras (17 hors-
-texte e 41 pequenas). Uma outra constata-
ção imediata é a de que nesta publicação
periódica proliferam as imagens no meio do
texto, também este a duas colunas. A anima-
ção gráfica é, por isso, muito maior que no
Jornal das Bellas-Artes. As letras são acom-
panhadas, muitas vezes, por imagens e tam-
bém elas dialogam e estabelecem várias re-
lações com a mancha de texto, que assim se
dinamiza a cada instante e se torna imprevis-
ta. Este aspecto é absolutamente original e
não se observa em publicações anteriores.
Jornal de Bellas-Artes, 1857
De facto, cada número inicia-se com uma
composição que desenha uma letra fanta-
sista quase sempre com impacto visual e
que corta a estática coluna de texto61. No
fim de cada número, também surgem com-
posições gráficas ou pequenos desenhos.
Além dos hors-texte, das obras mais im-
portantes da geração romântica, como, por
exemplo, de Anunciação, Metrass, Cristino,
Bastos, José Rodrigues, Patrício, Marques
Pereira e D. Fernando II (1816-1885), quase
sempre acompanhadas de textos e de poe-
sias, são muito interessantes e variadas as
pequenas composições dentro da mancha
gráfica. Essas imagens podem ser unica-
mente ilustrações de textos ou de poesias,
mas igualmente letras, paisagens, flores e
figuras femininas. Sobretudo estas últimas,
desenhadas por Francisco Metrass, lem-
bram inequivocamente a Grécia e a Antigui-
dade Clássica, num contexto que também é Jornal de Bellas-Artes, Abril 1857

– EDUARDO DUARTE 263


profundamente romântico pela paisagem à linha que divide as duas colunas. Por uma
volta. Partindo do seu célebre Nu de costas vez, uma gravura, ao centro, chega mesmo
(1855), este pintor voltou ao tema e colocou a reduzir cada uma das colunas66.
pequenas figuras sobre linhas imaginárias,
como que suspensas no texto e a voarem62 Conclusão
à frente de plantas semelhantes a cascatas Num país habitualmente pouco dado ao
de água63. Literalmente, algumas das figu- universo das artes plásticas, o simples fac-
ras de Metrass pairam por entre as palavras. to de alguns autores pensarem em jornais
A última imagem do Jornal de Bellas-Artes dedicados às Belas-Artes era, por si só, um
como que se despede de nós, numa dia- feito notável. Também a precocidade, a
gonal ascendente, fugindo do texto, em di- qualidade e o arrojo gráficos devem ser va-
recção ao espaço em branco da página e lorizados nas duas publicações, principal-
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

da nossa imaginação... Com um manto por mente no Jornal de Bellas-Artes. Convém


cima do corpo nu, a figura parece estar de sublinhar ainda que os desenhadores das
partida do periódico. Uma das composi- gravuras não eram quaisquer ineptos ar-
ções mais complexas, com várias figuras fe- tistas, gravadores ou tipógrafos, mas toda
mininas, quais ninfas numa floresta, chegou uma geração de pintores e de escultores
a ser repetida64. que se fizeram representar no quadro Cinco
Artistas em Sintra. Se esta tela é o manifes-
O Jornal de Bellas-Artes representa, deste to plástico da geração romântica, o Jornal
modo, um grande avanço em relação ao an- de Bellas-Artes é, inequivocamente, o seu
terior jornal, em termos gráficos e na impor- manifesto e testemunho gráfico. Não pode-
tância que a imagem começou a revelar. Se mos, portanto, estar de acordo com a críti-
os hors-texte são em número semelhante (16 ca ligeira e injusta de que o resultado não
e 17, respectivamente), o número de gravu- foi brilhante67. Aliás, se dúvidas existissem,
ras pequenas subiu bastante (de 16 para 41). periódicos posteriores, como Artes e Le-
tras (1872-1875), O Ocidente (1878-1915),
Em suma, podemos afirmar que foi com o A Arte (1879-1881) continuaram a usar e a
Jornal de Bellas-Artes que as imagens co- explorar a imagem, mas apenas trinta, quin-
meçaram a passear por entre as palavras, ze anos, respectivamente, depois dos dois
principalmente com as notáveis gravuras periódicos analisados.
desenhadas por Metrass. Outra questão
gráfica que pensamos ser importante é o Recorde-se, ainda, que em relação ao ante-
facto de o Jornal de Bellas-Artes ter mais rior O Panorama (1837-1868), o Jornal das
espaço em branco nas páginas que o ante- Bellas-Artes e o Jornal de Bellas-Artes apre-
rior Jornal das Bellas-Artes. Aliás, o tamanho sentavam uma componente gráfica e uma
dos periódicos também vai aumentando65. sistematização ao nível da imagem muito
Deste modo, as pequenas gravuras podem superior ao célebre periódico publicado
surgir no início das colunas, no fim ou mes- pela Sociedade Propagadora dos Conhe-
mo no meio das páginas, interrompendo a cimentos Úteis. De facto, a qualidade das

<<
imagens de O Panorama era, por vezes, me- esforçadas gravuras, passando pelo Jornal
díocre e estas ocupavam invariavelmente das Bellas-Artes, no qual estas começam
metade da página (com mancha de texto a ter um maior protagonismo até ao gra-
também a duas colunas) ou hors-texte. ficamente surpreendente Jornal de Belas
Artes, observamos que as imagens pare-
Mesmo um jornal dedicado às Belas-Ar- cem autonomizar-se no periódico e dialo-
tes francesas e internacionais, como a Ga- gar, cada vez mais, com a mancha de texto,
zette des Beaux-Arts. Courrier Européen de ganhando, desta forma, vida própria. Nas
l’Art et de la Curiosité, fundada em 1859 por Belas-Artes e nos seus jornais a imagem
Charles Blanc (1813-1882)68, não tem a qua- começava a ter tanta ou mais importância
lidade gráfica do Jornal de Bellas-Artes. O que o texto.
periódico francês, a uma coluna de texto, os-
tenta gravuras hors-texte e outras inseridas
na mancha do texto. Como seria de esperar,
a maior parte das suas gravuras tem grande
qualidade formal e técnica. Contudo, talvez
o que mais surpreenda neste periódico fran-
cês é a quase total subordinação das ima-
gens ao texto, que é graficamente muito
denso. A Gazette des Beau-Arts é um enor-
me livro, exibindo muito pontualmente algu-
mas imagens e letras iniciais trabalhadas.

Os três jornais com a designação de Belas-


-Artes que marcam o panorama editorial
português do século XIX são interessan-
tes casos de estudo. Não apenas ao nível
dos seus textos num quadro conceptual
em que se pretendia apresentar e estudar
a história da arte nacional e do estrangeiro,
mas igualmente pela defesa do património
artístico português.

Também as questões ligadas ao design de


comunicação nestes periódicos revelam
uma cada vez maior presença de gravuras
que são fundamentais como ilustração de
peças artísticas, antigas ou contemporâ-
neas, e das narrativas literárias e poéticas.
Da Mnémosine Lusitana, com poucas mas

– EDUARDO DUARTE 265


— Referências
XIX. Lisboa: Biblioteca Nacional, 13
Jornal de Bellas-Artes ou
DUARTE, Eduardo - Desenho 2002. Vol. II. Mnémosine Lusitana. Redacção
romântico português. Cinco SOARES, Ernesto - Evolução Patriótica, n.º 1 (1816), p. 211.
artistas desenham em Sintra. da Gravura de Madeira em São destacados, como obras do
Lisboa: [s.n.], 2006. Tese de Portugal. Séculos XV a XIX. Lisboa: escultor Manuel Pereira, o célebre
Doutoramento em Ciências da Publicações Culturais da Câmara S. Bruno na Rua de Alcalá, em
Arte na Faculdade de Belas-Artes Municipal de Lisboa, 1951. Madrid, que “Filippe II mandava
de Lisboa da Universidade de SOARES, Ernesto - História da ao seu cocheiro, que andasse
Lisboa. Gravura Artística em Portugal. muito devagar, quando por alli
Disponível em: http://repositorio. Nova Edição. Lisboa: Livraria passava, para ter mais tempo de a
ul.pt/bitstream/10451/8277/4/ SamCarlos, 1971. contemplar, e admirar”, e um Cristo
ULFBA_TES%20250_VOL.%202.pdf que, segundo se dizia, estava na
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

FRANÇA, José-Augusto - A Arte — Notas Igreja de S. Domingos de Benfica.


em Portugal no Século XIX. 3.ª ed. No fim da vida, Manuel Pereira,
Venda Nova: Bertrand Editora, 1
HOLANDA, Francisco - Diálogos já cego, pelo tacto, emendava as
1990. Vol. I. em Roma. Lisboa: Livros Horizonte, obras dos seus discípulos.
HOLANDA, Francisco - Diálogos 1984, p. 31. 14
MACHADO, Cyrillo Volkmar -
em Roma. Lisboa: Livros 2
LIMA, Henrique de Campos Collecção de Memorias, relativas
Horizonte, 1984. Ferreira Lima - Joaquim ás Vidas dos Pintores, e Escultores,
Jornal das Bellas-Artes (1843- Machado de Castro. Escultor Architetos, e Gravadores
1846 e 1848). Conimbricense. Notícia biográfica Portugueses, e dos Estrangeiros,
Jornal de Bellas-Artes (1857- e compilação dos seus escritos que estiverão em Portugal. Lisboa:
1858). dispersos. Coimbra: Imprensa da Imp. de Victorino Rodrigues da
Jornal de Bellas-Artes ou Universidade, 1925, p. 322. Silva, 1823.
Mnémosine Lusitana. Redacção 3
Os Lusíadas, Canto V, 92-98. 15
SOARES, Ernesto - História da
Patriótica (1816-1817). 4
Ibid., Canto V, 97. Gravura Artística em Portugal.
LIMA, Henrique de Campos 5
Jornal de Bellas-Artes ou Lisboa: Livraria SamCarlos, 1971,
Ferreira Lima - Joaquim Mnémosine Lusitana. Redacção vol. I, pp. 284-285. António Manuel
Machado de Castro. Escultor Patriótica. Lisboa: Na Impressão da Fonseca assina: “Fonca F.o” e
Conimbricense. Notícia biográfica Régia, n.º 1 (1816), pp. 3-4. “Fonca Filho”. António Manuel da
e compilação dos seus escritos 6
Ibid., p. 5. Fonseca era filho de João Tomás
dispersos. Coimbra: Imprensa da 7
Ibid., pp. 27-33. da Fonseca (1754-1835).
Universidade, 1925. 8
Ibid., pp. 80-85. 16
Jornal de Bellas-Artes ou
O Panorama: jornal litterário 9
Ibid., pp. 207-211. Mnémosine Lusitana. Redacção
e instructivo da Sociedade 10
Ibid., p. 208. Patriótica, n.º I (1816), pp. 279-282.
Propagadora dos Conhecimentos 11
Ibid. O moinho foi mandado executar
Úteis (1837-1868). 12
Ibid. MURPHY, James - Plans, por D. José António de Meneses
RAFAEL, Gina Guedes ; SANTOS, Elevations, Sections and Views of e Sousa, principal da Santa Cúria
Manuela (Org. e Coord.) - Jornais the Church of Batalha. London: I. & Patriarcal e governador do Reino.
e Revistas Portuguesas do Século J. Taylor, 1795. Segundo o texto, o moinho era

<<
“utilissimo nas Províncias faltas 22
Este último tomo surge no I, n.º VI (1844), p. 83. Ambas as
de agua e fartas de trigo, como original como tomo I, mas poderá gravuras não estão assinadas, mas
no Alemtéjo” (p. 281). O modelo tratar-se de uma gralha, pois devem ser da parceria Bordalo
esteve na Casa do Risco das Obras deveria ser tomo II. Pinheiro e Baptista Coelho.
Públicas e fez uma demonstração 23
SOARES, Ernesto - Evolução 33
Jornal das Bellas-Artes, tomo I,
pública em Alcântara e foi da Gravura de Madeira em n.º III (Dez. 1843), p. 43.
remetido para o Rio de Janeiro Portugal. Séculos XV a XIX. Lisboa: 34
Jornal das Bellas-Artes, tomo I
para ser apresentado a D. João Publicações Culturais da Câmara [sic.] tomo II, n.º I (1846), p. 1.
VI (pp. 281-282). A gravura deste Municipal de Lisboa, 1951, p. 35
Jornal das Bellas-Artes, tomo I,
moinho foi copiada por Cavroé e 43. José Maria Baptista Coelho n.º II (Nov. 1843), p. 33.
gravada por António Manuel da foi um laborioso gravador em 36
Jornal das Bellas-Artes, tomo I
Fonseca. madeira com grandes qualidades, [sic.] tomo II, n.º I (1846), p. 2.
17
Jornal de Bellas-Artes ou que trabalhou em parceria com 37
Jornal das Bellas-Artes, tomo I
Mnémosine Lusitana. Redacção Bordalo Pinheiro no Panorama e na [sic.], n.º II, Segunda Série (1848),
Patriótica, n.º I, Segundo Volume Ilustração Luso-Brasileira. p. 17.
(1817), pp. 374-378. As duas 24
O título deve ter sido desenhado 38
Jornal das Bellas-Artes, tomo I,
máquinas foram inventadas por Mr. por Manuel Maria Bordalo Pinheiro, n.º VI (1844), pp. 87-88.
T. Rustall de Purbrockheath, perto que, como já referimos, era um dos 39
Jornal das Bellas-Artes, tomo I,
de Portsmouth, tendo recebido da editores do jornal e um incansável n.º III (Dez. 1843), pp. 43-44.
Sociedade das Artes um prémio de gravador e ilustrador em vários 40
Ibid., p. 44.
40 guinéus. (p. 374). jornais e revistas. 41
Jornal das Bellas-Artes, tomo I,
18
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, 25
O Jornal das Bellas-Artes tem, na n.º IV (1844), pp. 55-66.
n.º I (Out. 1943), Introdução, pp. sua 1.ª série, 94 páginas (de 1 a 94) 42
Não deixa de ser interessante
1-2. e, na segunda, 24 (da p. 1 à 24). a coincidência de se revelar o
19
Ibid., p. final deste número. 26
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, quadro de António Manuel da
20
A assinatura por 3 meses era n.º I (Out. 1943), Introdução, p. 2. Fonseca, Eneias salvando seu pai
de 1.200 réis; seis meses, 2.160; 27
RACZYNSKI, Comte A. – Les Arts Anquises do incêndio de Tróia
um ano, 4.200 réis; avulso, 440. en Portugal. Paris: Jules Renouard (actualmente no Palácio Nacional
Subscrevia-se na rua do Arco do et Cie, Libraires-Éditeurs, 1846 e de Mafra), numa litografia hors-
Bandeira, n.º 59, 2.º andar. Era Dictionnaire Historico-Artistique du texte de Pedro Augusto Guglielmi
vendido na Rua Augusta, n.º 1, Portugal. Paris: Jules Renouard et (ca. 1837-1852), e do seu filho,
120 e 195; Rua do Ouro, n.º 62 C , Libraires-Éditeurs, 1847.
ie
António Tomás, numa gravura
e 93; Chiado, n.º 6; Calçada dos 28
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, linear não assinada, mas que deve
Paulistas, n.º 54; Rua da Esperança, n.º II (Nov. 1943), pp. 20-27. ser, com toda a certeza, do mesmo
n.º 150. Vendia-se no Porto (na 29
Ibid., pp. 28-32. Tomás da Fonseca. Quanto ao
Loja de Novaes) e em Coimbra (na 30
Jornal das Bellas-Artes, tomo relevo de Cerqueira, foi desenhado
Imprensa da Universidade). I, n.º I (Out. 1943), p. final deste por Tomás da Anunciação,
21
Jornal das Bellas-Artes, tomo número. supervisionado por António
I, n.º I (Out. 1943), p. final deste 31
Ibid., p. 10. Manuel da Fonseca e gravado por
número 32
Jornal das Bellas-Artes, tomo António Tomás da Fonseca.

– EDUARDO DUARTE 267


43
Jornal das Bellas-Artes, tomo I 50
Ibid., p. 5. 58
Jornal de Bellas Artes, n.º 2, Fev.
[sic.], n.º I, Segunda Série (1848), 51
O próprio Raczynski confessa (1857), pp. 6-8; n.º 3, Mar. (1857),
p. 6. Neste mesmo número (p. 8), que teve para os seus livros sobre a pp. 1-3; n.º 4, Abr. (1857), pp. 4-6;
escreve-se que o Álbum do Jornal arte em Portugal o precioso auxílio n.º 5, Mai. (1857), pp. 2-3; n.º 6, Jun.
só deveria incluir “[…] cousas do visconde de Juromenha. (1857), pp. 5-7; n.º 7 (1858), pp.
novas, ou interessantes, e estas 52
Jornal de Bellas Artes, n.º 1, Jan. 11-13; n.º 8 (1858), pp. 10-14. José
consignadas com simplicidade e (1857), p. 5. da Costa Sequeira, sobrinho de
concisão […]”. 53
Ibid., p. 6. O visconde de Domingos Sequeira, foi professor
44
Jornal das Bellas-Artes, tomo I Juromenha revela ao longo de arquitectura na Academia de
[sic.], n.º III, Segunda Série (1848), do Jornal de Bellas-Artes uma Belas-Artes de Lisboa e autor de
p. 24. Descripção dos quadros remetidos várias obras teóricas.
45
Francisco de Assis Rodrigues pelo gravador francez João 59
Jornal de Bellas Artes, n.º 4, Abr.
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

nunca é identificado no artigo. Mariette mandou a el-rey D. João V. (1857), pp. 7-9, da autoria de J. P.
46
Jornal das Bellas-Artes, tomo I 54
Castilho, além de textos Fernandes Tomás Pipa
[sic.], n.º III, Segunda Série (1848), literários e poemas, escreve uma 60
SOARES, Ernesto - Evolução da
p. 24. O resto do artigo é um interessante Carta d’um poeta a um Gravura de Madeira em Portugal.
pouco confuso nas referências à esculptor, Jornal de Bellas Artes, n.º Séculos XV a XIX, pp. 54-55.
estética e à história da literatura 6, Jun. (1857), pp. 2-5 e Fundação João Pedroso Gomes da Silva foi
portuguesa, italiana, francesa (da de um Campo Elysio, Jornal de pintor, gravador e professor de
época de Luís XIV). Bellas Artes, n.º 8 (1858), pp. 14-16. gravura na Escola de Belas-Artes
47
No primeiro ano (1857), foram Nestes dois textos, o escritor de Lisboa. Colaborou em vários
publicados 6 números (de Janeiro defendia um cemitério em Lisboa periódicos e fez o célebre álbum
a Junho) e, no segundo ano dedicado aos portugueses ilustres A Gravura de Madeira em Portugal
(1858), apenas dois números (sem da literatura, com esculturas. (1872 e 1876).
indicação dos meses). 55
Qual é o fim da Arte? Da autoria 61
A composição do n.º 1, que
48
Jornal de Bellas Artes, n.º 1, Jan. de F. Sequeira Barreto, Jornal de desenha a letra E, é formada
(1857), pp. 1-3. José Eduardo de Bellas Artes, n.º 1, Jan. (1857), pp. por um homem em cima de um
Magalhães Coutinho foi director e 7-8; n.º 2, Fev. (1857), pp. 8-10; n.º burro, estando por baixo uma
lente da Escola Médico-Cirúrgica 4, Abr. (1857), pp. 12-13. figura de animal fantástico e, do
de Lisboa, primeiro médico da Real 56
Surgiram as biografias artísticas lado esquerdo, figuras femininas
Câmara, obstetra, director da Real de João Pedro Monteiro (1823/26- a pintarem uma grande tela; está
Biblioteca da Ajuda, membro do 1853), Jornal de Bellas Artes, n.º assinada Colaço, devendo ser
Conselho Superior de Instrução 2, Fev. (1857), pp. 5-6 e de Luís José Daniel Colaço, pai do pintor
Pública e deputado, entre outros Canina, Jornal de Bellas Artes, n.º e azulejista Jorge Colaço (1868-
cargos da maior relevância. Pelo 3, Mar. (1857), pp. 13-14, ambas de 1942). O mesmo José Daniel
texto de apresentação, assinado, Joaquim António Marques. Colaço escreve a Viagem de sua
Magalhães Coutinho deverá ter 57
Jornal de Bellas Artes, n.º 1, Jan. majestade el-rei D. Fernando a
sido um dos directores deste (1857), pp. 8-9; n.º 2, Fev. (1857), Tanger, Jornal de Bellas Artes, n.º
jornal. p. 1; n.º 3, Mar. (1857), pp. 6-7; n.º 5, Mai. (1857), pp. 1-2; n.º 7 (1858),
49
Ibid., p. 1. 4, Abr. (1857), pp. 1-4. pp. 2-6; n.º 8 (1858), pp. 1-4. Este

<<
texto está incompleto, pois no Jornal das Bellas-Artes, 28 cm e o
último número está a indicação de Jornal de Bellas-Artes, 31 cm, Vd.
que continuava. RAFAEL, Gina Guedes ; SANTOS,
62
As pequenas figuras nuas de Manuela (Org. e Coord.) - Jornais
Metrass surgem numa grande e Revistas Portuguesas do Século
composição, suspensas no XIX. Lisboa: Biblioteca Nacional,
arvoredo, formando um C, na 2002, vol II, pp. 23, 28-29.
primeira página (n.º 4, Abr. 1857, 66
Jornal de Bellas Artes, n.º 8
p. 1) e é repetida numa outra (1858), p. 9.
página (n.º 6, Jun. 1857, p. 5). 67
FRANÇA, José-Augusto - A Arte
Também merece destaque a em Portugal no Século XIX. 3.ª ed.
composição de Leda e o Cisne Venda Nova: Bertrand Editora,
(n.º 3, Mar. 1857, p. 6) e outras 1990, vol. I, p. 406.
duas figuras a voarem com um 68
Charles Blanc foi historiador,
grande manto sobre o seu corpo crítico de arte, gravador e director
nu (n.º 1, Jan. 1857, p. 15), esta da École des Beaux-Arts. Entre
com um morcego a voar perto de a sua numerosa bibliografia
si, e a última figura do periódico destaca-se o conhecido Grammaire
(n.º 8, 1858, p. 16). des Arts du Dessin. Architecture,
De Metrass são ainda dois sculpture, peinture: jardins,
desenhos de meninos: um a gravure en pierres fines, gravure
pintar uma grande tela (n.º 2, Fev. en médailles... (1867) que teve
1857, p. 10) e outros dois a voar, várias edições nos séculos XIX e
um deles com asas, segurando XX (1870, 1876, 1880, 1881, 1888,
uma bandeira com a palavra: Fim 1889, 1970, 1991, 2000 e ainda
(n.º 2, Fev. 1857, p. 16). traduções em inglês e castelhano).
Também Victor Bastos utilizou O livro teve grande projecção
pequenas figuras femininas, na Europa, surgindo ainda hoje,
junto de densa vegetação na com alguma frequência, nos
composição da primeira página do alfarrabistas portugueses.
n.º 2, Fev. 1857.
63
DUARTE, Eduardo - Desenho
romântico português. Cinco artistas
desenham em Sintra. Lisboa: [s.n.],
2006, vol. II, p. 550.
64
Jornal de Bellas Artes, n.º 4, Abr.
(1857), p. 1; n.º 6, Jun. (1857), p. 5.
65
O Jornal de Bellas-Artes ou
Mnémosine Lusitana. Redacção
Patriótica tem 19 cm de altura; o

– EDUARDO DUARTE 269


A Crítica de Arte Portuguesa na «Década
do Silêncio» (Estudos para a História da
Crítica de Arte na Década de 1950)1
por Fernando Rosa Dias

Professor Auxiliar de Ciências da Arte e do Património


na FBAUL, Investigador do CIEBA, Responsável do 3.º
Ciclo das Ciências da Arte e coordenador do Mestrado
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

de Crítica, Curadoria e Teorias da Arte

En définissant quatre typologies de critiques d’art


– dérivations de journalisme; entre le journalisme
et le professionnalisme; critiques comme hommes «Uma das aflições da vida artística portuguesa
de lettres (poètes et écrivains); et artistes comme é a falta total de crítica de arte»
critiques d’art – on présentent un aperçu de cette (José-Augusto França, 1958)
activité au Portugal, durant les années 1950, avec
une attention à ses protagonistes plus importants. Já apresentada como a «década do silên-
Le texte cherche à comprendre le difficile passage cio»2, os anos de 1950 foram um particular
de cette pratique dans les années qui ont suivi parêntesis cultural, entre as cisões do anos
l’embarras du Régime dans le second après-guerre, 40, do neorealismo e do surrealismo, como
et à la croisée de différents mouvements artistiques, ainda dos primeiros projectos abstractos
mais en vue de le lancement d’une revendication (emergentes da escola do Porto) e do mo-
de la professionnalisation de cette activité et la dernismo do Secretariado de Propaganda
formation d’une décennie d’or de la critique d’art au Nacional (SPN, entretanto SNI). A década
Portugal – les 1960. estava na ressaca da euforia ideológica do
neorealismo, esta vítima da censura, de per-
seguição e em crise estética, mas ainda me-
mória; e do surrealismo, desde a pintura ex-
posta por António Pedro e António Dacosta
em 1940 na Casa Repe, ainda sem preten-
der fazer oposição ao regime, mas já sen-
do outra coisa em margem estética, até ao
Grupo Surrealista formado em 1948, e que
expunha em 1949, para logo se cingir, mas
assumindo clara oposição ao regime. Mas

<<
sobrevivia ainda o modernismo do Secreta- uma prática de história da arte que o críti-
riado (SPN) de António Ferro, colocado em co também assumiria em plural actividade.
1950 fora da orientação do Secretariado Sem autonomia especulativa nem densida-
que fora seu e que a si não saberia sobrevi- de filosófica, a teoria da arte portuguesa es-
ver, modernismo este que se descobria fora coava na crítica de arte e na própria necessi-
do tempo e que hesitava numa renovação dade desta de ir definindo operativamente
para a qual não encontrava saída. À entra- os seus conceitos. Mais do que orientadora
da, a década de 50 sofreu a afirmação do e programática, a teoria era esclarecimen-
surrealismo em polémicas que sabiam ser to ou explicação pontual de uma prática da
estéticas, primeiro, mas logo depois tam- crítica de arte, cuja efemeridade e contin-
bém ideológicas; para culminar no sucesso gência dificultava um devido fundamento e
da abstracção, que afinal fora o seu deam- sistematização.
bular e alicerçar de raízes em terreno difí-
cil por sementes que já tinham sido lança- Para apresentar a crítica de arte da década e
das na década anterior. Esta passagem da os seus principais protagonistas, propomos
euforia ética para a estética foi outra pará- a seguinte organização, segundo tipologias
bola silenciosa da década, que se desviou dos «profissionais» da actividade:
da carga ideológica dos significados sociais
para ir ao encontro de uma dimensão esté- 1. Derivações do jornalismo
tica que se refugiava no reconhecimento e
autonomia dos significantes. A assimilação 2. Entre o jornalismo e a profissionalização
sócio-cultural da abstracção foi a sua prin-
cipal história. Tudo isso interessou, em inci- 3. Críticos homens de letras (poetas e
dências e debates teórico-críticos, com alte- escritores)
rações ao longo e na transição das décadas
de 1950 e 1960. 4. Artistas como críticos de arte

Acompanhando um processo de profis- Se a necessidade e desejo de profissionali-


sionalização da crítica de arte que se de- zação se começava a proclamar, a verdade é
sejou na década de 1960, uma teoria que que não havia mecanismos claros para essa
orientasse essa crítica tornava-se necessá- profissionalização do crítico de arte. Não
ria. Contudo, ela foi-se construindo com a havendo cursos superiores de história da
própria actividade crítica, com as fragilida- arte, mas apenas cadeiras curriculares dos
des dai advindas, sem outro tratamento ou cursos de História (e só depois de reformas
aprofundamento teórico – com excepção após a Revolução de Abril de 1974 surgem
esforçadas por parte de Mário Dionísio num as variantes de história da arte e os primei-
processo de maturação do neo-realismo, ros mestrados, anexados aos cursos da His-
ou mais tarde, da sociologia da arte de ma- tória) ou da Escola Superior de Belas Artes
triz francasteliana em José-Augusto Fran- (que tradicionalmente tinha uma compo-
ça, mas que daria melhor entendimento a nentes teórica centrada na história da arte

– FERNANDO ROSA DIAS 271


que concorreria ainda com as da variante de ela própria legitimadora da actividade. Nes-
história da arte, quando criadas), as tipolo- ta crítica jornalística dominava a tendência
gias indicadas definem as possibilidades do para o ecletismo, que tendia a hesitar pe-
tempo. A Estética estava mais arredada, sem rante as manifestações mais arrojadas de
interessar os cursos de Filosofia até pratica- modernidade no panorama artístico por-
mente ao final do século, onde começou a tuguês, o que à distância histórica tende a
crescer substancialmente. Estas duas vias, apresentar um sentido abonatório na ava-
história da arte e/ou estética, que podiam liação dessas mesmas manifestações – ou a
servir de alicerces à formação do crítico de ler nalguma crítica negativa a certas linhas
arte, só começariam a ter possibilidade real modernistas o próprio arrojo destas (em
nos últimos decénios do século XX. escala portuguesa), num desentendimento
que, apesar de tudo, se procurava descul-
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

A desejada profissionalização só iria acon- par nesse julgamento menos simpático.


tecer com apoio na criação da AICA e após
resolução de atávico impasse que retarda- A partir da boa formação humanística que
ra a secção portuguesa. A essa importante tinham muitos jornalistas, e por necessida-
renovação da secção portuguesa da AICA des de preencher de modo regular as cróni-
dedicaremos próximo ensaio. Mas, entre as cas críticas de arte, houve vários que tiveram
possibilidades da «década do silêncio» e uma actividade mais ou menos constante e
essa renovação, definia-se, para a historia mais ou menos especializada de crítico de
da cultura portuguesa, os tempos de ouro arte. Com alguma regularidade refiram-se
da crítica de arte em Portugal, que seria cer- os exemplos de Luís Teixeira (1904-1978)6
tamente os 60 e, em parte, os 70. Nos anos no Diário de Notícias, Julião Quintinha
80 da continuidade era já mudança e crise – (1886-1968)7 na República ou, um pouco
nascendo aí o plano inclinado de uma crise mais tarde, Artur Portela Filho (n.1937) no
geral na crítica de arte que, como em qua- Diário de Lisboa8.
se todas as crises, talvez seja uma redefini-
ção, com outros desafios de esclarecimen- Assumindo uma clara dimensão jornalística,
to para o presente. sublinhe-se Quirino Teixeira (n.1933) que se
dedicou a estudos e reportagens de divul-
1. Derivações do jornalismo gação artística, tanto em jornais portugueses
Para a prática de crítica de arte dos perió- como espanhóis9, centrando-se mais na re-
dicos dos anos de 1950, sobretudo nos portagem com entrevista, no encontro com
jornais, deu-se vasta continuidade e até artistas plásticos (embora não só?). Evitando
consistência à tradição dos «jornalistas de o julgamento do crítico de arte, acabava por
boa vontade»3 ou «repórteres de arte»4, tal dar mais justiça a uma actividade de jornalis-
como era referido em 1947 na constatação ta do que de crítico. Nos finais dos anos de
de uma ausência de profissionalismo5, al- 1950 colaborou sobretudo no Diário da Ma-
guns firmados através de uma experiência nhã. Mais tarde dirigiu revistas de turismo e
assente numa regularidade que se tornava cultura (Gazeta de Artes e Artes, 1988).

<<
2. Entre o jornalismo e a (o  Prémio António Enes) do SPN – com a
profissionalização obra Os Voronoffs da Democracia. Forma-
Fernando de Pamplona (1909-1999)10, no do em Filologia Românica, aprofundaria
Diário da Manhã e nos microfones da Emis- os seus estudos sobre história e crítica de
sora Nacional dominou a década de 1950 Arte, publicando várias obras, e nesse âm-
com grande regularidade, acompanhando bito obtinha o  Prémio José de Figueiredo
quase todas as exposições de artes visuais pela Academia Nacional das Belas-Artes,
de Lisboa, e depois de outra relevância esté- nos anos de 1943, 1954 e 1983, o que lhe
tico-ideológica própria ao regime que assu- daria um decisivo prestígio nacional.
mira nos anos 40, desenvolvia um bem mais
tolerante e generoso ecletismo nos anos 50, Fernando de Pamplona foi uma das vozes
numa crítica que acabava mais por divulgar que nos anos 40 mais defendeu uma via
que crivar. Depois de um rigor ideológi- austera para uma modernidade do regi-
co de separação de águas, caia numa que me, dentro de uma estilização que tinha em
tudo parecia aceitar. Apesar deste processo Eduardo Malta um dos nomes que mais elo-
de quase indiferenciação e de estar atento giava. E se houve uma teoria estética mo-
às expressões modernas que se iam expon- dernista e fascista do Estado Novo de carác-
do, não deixou de lhe enjeitar os arrojos, so- ter reacionária e até contrária à de António
bretudo no âmbito da abstracção. Sendo o Ferro, um modernismo austero, de regres-
crítico regular do jornal mais porta-voz do so à ordem e de recusa da vanguarda, essa
Estado Novo, foi o crítico que mais reagiu teoria teve nas páginas de Rumos da Arte
negativamente às Exposições Gerais – so- Portuguesa (1944) de Fernando de Pamplo-
bretudo as Segundas Gerais em 1947, que na dos seus momentos mais marcantes11.
foi um ponto agudo de um gesto de recu-
sa por parte da actividade crítica de Fernan- Neste impressionante livro de estética fas-
do de Pamplona, tal como foi dos mais vio- cista, o crítico defendia o que devia ser a
lentos crítico das exposições surrealistas de arte moderna do seu tempo. Para tal atacava
1940 e 1949. Renitente na recepção de mo- o «desenraizamento» defendendo uma tra-
vimentos mais modernos, como o surrealis- dição nacional, na necessidade de comedir
mo e a abstracção, foi ao longo dos anos 50 as referências cosmopolitas com um equilí-
mais tolerante e, por isso, mais eclético. Ra- brio entre o que é internacional e nacional.
ramente falhava uma exposição de Lisboa No capítulo IV fazia uma defesa da tradição,
nas suas regulares crónicas. como soma de qualidades: «A arte dos de-
senraizados será, como a sua vida, um eter-
Seria professor liceal do 2.º Grupo (Por- no recomeço, um aflitivo tatear na sombra»
tuguês e Francês) do Ensino Técnico, que (p.50), propondo no capítulo seguinte uma
manteve em simultâneo com a actividade articulação entre arte internacional e nacio-
que vinha tendo desde a juventude, de es- nal. No capítulo VI acusava os «novos bár-
critor e jornalista. Em 1934 ganhava o pri- baros», afirmando: «Não estamos perante
meiro de vários prémios de jornalismo mera manifestação de exotismo: achamo-

– FERNANDO ROSA DIAS 273


-nos em presença dum facto mil vezes mais mostrando-se cada vez mais abrangente.
grave – a proliferação, em plena Europa, Em 1954 começaria a lançar um Dicionário
duma arte de orientais e de mulatos (…). de Pintores e Escultores Portugueses ou que
Apenas registamos a sua inferioridade ma- trabalharam em Portugal, que teria cinco vo-
nifesta (salvo raras excepções) no domínio lumes e várias edições. A obra é vasta, em-
das artes plásticas e portanto a sua rotun- bora irregular na pertinência das entradas e
da incompetência para, nesse particular, na informação – e hoje objecto interessante
darem lições aos europeus, que, através de para encontrar informação de artistas mais
mais de dois milénios, plasmaram obras pri- esquecidos pela historiografia da arte.
mas sem conta e sem par» (pp.70-71),
Gustavo Matos Sequeira (1880-1962) teve
No capítulo VII, atacava o anarquismo («é o também actividade regular na crítica de ar-
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

fruto negro do individualismo»), do impro- tes plásticas em O Século. Além de jornalis-


viso e do individualismo, com as suas facili- ta, apresentou-se como historiador de arte
dades técnicas, a sua saída da ordem e dos e autor dramático, sendo considerado uma
evangelhos. Afirmava ainda que a pintura autoridade sobre a história de Lisboa. Não
abstracta era «por definição um absurdo». chegando a concluir formação superior uni-
O surrealismo, que se manifestara pouco versitária, frequentou a Escola Politécnica
antes com a exposição de António Pedro de Lisboa, o Instituto Industrial e o Curso
e António Dacosta em finais de 1940, tam- Superior de Letras12.
bém era um dos movimentos mais visados:
«(….): o culto fervoroso do actual: é hoje O desejo de profissionalização da crítica
também o herdeiro confesso do expres- de arte efectuava-se com uma base de his-
sionismo, do “fauvismo”. Do futurismo, do tória da arte, ao qual a estrutura académi-
cubismo – de tôdas as monstruosas heresias ca nacional não dava grande especialidade,
de ontem, já tombadas dos seus pedestais obrigando a exercícios autodidáctas. Era
(…)… Se as analisarmos uma a uma, não foi apenas uma aproximação ao que seria de-
por necrofilia, mas por as vermos renascer senvolvido nos finais da década de 1960,
(…) germes doentios de outras manifesta- com o papel de José-Augusto França e a re-
ções inquietantes da actualidade, como o novação da secção da AICA portuguesa.
sobrealismo, directa consequência das teo-
rias expressionistas combinadas com a psi- 3. Artistas como críticos de arte
canálise de Freud». Estas teorias podem Outra via de profissionalização, nascida for-
mesmo apresentar-se como um confronto mação que se poderia ter no âmbito das ar-
ao próprio António Ferro, e ao modo como tes, por exemplo com a componente teóri-
este deixava certas vias estéticas integrarem ca de história da arte que existia na Escola
as exposições de arte moderna do SPN. Ao Superior de Belas Artes (actual FBAUL), é
longo dos anos 50, sobretudo na segunda dos próprios artistas como críticos, que vi-
metade, o crítico atenuava esta intransigên- nha encontrando desde a década de 40 um
cia com os movimentos mais modernos, impressionante crescimento.

<<
Alguma actividade, por experiência prática visuais, que seria uma das mais relevantes
e proximidade de investigação das artes vi- dos anos de 1940 e até ao seu falecimento
suais, era efectuada por artistas que se viam em 1959. Desde os anos 20 foi apresentan-
como que «obrigados a desdobrar-se em do crónicas de crítica ou ensaios teóricos e
críticos»13 (o que levará a algum debate de históricos sobre arte portuguesa, em várias
carácter mais deontológico do que de com- revistas tais como Ilustração, Revista Portu-
petências nos anos 60), fornecendo um in- guesa, Seara Nova (anos 20), O Diabo (anos
diciamento profissional a explorar que, pelo 30) ou o Mundo Literário (anos 40). No iní-
menos, ultrapassava a mera e normalmente cio dos anos 40 publicava na revista Aven-
inócua boa vontade jornalística. Num meio tura um conjunto de artigos com o nome
cultural com pouca profissionalização da «Subsídios para a História da Arte Moder-
prática crítica esta poderia ser uma das vias na em Portugal», que seria um dos primei-
paradigmáticas de uma afirmação de com- ros trabalhos de sistematização da história
petências – e esse entendimento seria uma da arte moderna portuguesa. Até finais da
das marcas dos anos de 1960. Assim, sur- década de 50, teria uma marcante activida-
gia uma linha de artistas plásticos e arqui- de de crítico de arte com as suas regulares
tectos que praticavam a actividade crítica «notas de arte» na revista Ocidente, passan-
com a melhor formação possível de então do depois a dedicar-se mais a uma activida-
em Portugal, assente nas escolas e prática de de investigação histórica orientada em
de Belas-Artes. Alguns nomes pertenciam monografias de artistas plásticos portugue-
a outras práticas artísticas, mas com algum ses dos séculos XIX e XX. Foi ainda direc-
exercício, mais ou menos profissional, nas tor do Museu de Arte Contemporânea (do
artes plásticas. Apenas uma questão ética, Chiado) entre 1944 e 1959, no que se tem
implicada no facto de artistas plásticos es- considerado uma das melhores gestões
tarem a julgar outros artistas plásticos, per- culturais da história deste Museu, enquan-
turbava esta orientação – questão deontoló- to de arte contemporânea, e que só teria
gica que se acendeu várias vezes, nos anos sido prejudicado por limitações financeiras.
60, sendo de destacar a discussão em torno Mas no percurso de Diogo de Macedo, a
e no seio do Júri do Prémio GM67 ou em sua afirmação como historiador e crítico de
algumas opções dos críticos para as exposi- arte foi acompanhada pela desistência do
ções AICA-SNBA/72 e 74, sobretudo as de escultor. Significou, contudo, um primeiro
Rocha de Sousa. sentido para uma profissionalização da ac-
tividade de crítico de arte.
Diogo de Macedo (1889-1959) foi um dos
primeiros e mais distintos casos de grande Dos contemporâneos de Diogo de Mace-
consideração de um artista que exerceria a do, refira-se ainda Leitão de Barros (1896-
prática crítica. Escultor de formação, activo 1967), pintor, fotógrafo e cineasta que teve
nos anos de 1920 e 1930, que iria abando- prática crítica em Ilustração, O Século, e
nando no desenvolvimento de numa activi- mais tarde colaborações em O Dia e Jor-
dade teórica de crítico e ensaísta de artes nal de Notícias14, ou Roberto Nobre (1903-

– FERNANDO ROSA DIAS 275


1969), inicialmente pintor, depois teórico e se total da sua produção artística em finais
crítico de cinema que mantinha interesse dos anos 40, para praticamente se perder
nas artes plásticas, com actividade crítica na década seguinte, actividade que só reto-
em O Primeiro de Janeiro e com colabora- maria em finais da década de 1970. O seu
ções em O Comércio do Porto. Ligeiramen- discurso crítico era algo lacónico, com uma
te posterior, indique-se ainda o pintor José tendência quase aforística, parecendo que-
Júlio (1916-1963), que teria efémera activi- rer concentrar a expressão certeira relativa
dade de crítico em «crónica de exposições» à exposição ou autor em causa, ou sobre a
no periódico Ler, reduzida na relativamente própria arte, numa acuidade que foi elogia-
curta duração do semanário (1953-1954). da por amigos que partilhavam com ele a
visita de exposições, como José-Augusto
O pintor António Dacosta, herói da aven- França, Júlio Pomar ou Fernando Azevedo.
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

tura surrealista de 1940 na Casa Repe com


António Pedro, após colaboração com tex- Por razões de doutrina estético-ideológica,
tos e ilustrações nos periódicos Acção, Va- sobretudo após a saída do regime no se-
riante e Panorama (nesta faria alguma crítica gundo pós-Guerra, alguns artistas plásticos
de arte), teria nas páginas do Diário Popu- ligados ao neo-realismo, tiveram grande
lar o seu primeiro trabalho regular de crítico necessidade de praticar a crítica, com orien-
de arte15. A sua primeira crónica crítica pu- tações doutrinais próprias.
blicada neste diário vespertino saia a 27 de
janeiro de 1943; a 9 de abril de 1947 pas- A actividade crítica e intervencionista do
sou a efetuar crónicas a partir de Paris (para pintor Lima de Freitas (1927-1998) atra-
onde partia como uma bolsa de um ano, vessou décadas e periódicos, em vários
mas onde continuaria, ficando a morar em com regularidade, tais como Átomo (des-
França o resto da vida); a última, para o Diá- de 1951), Mundo Literário (1952, neste caso
rio de Lisboa, será a 16 de Agosto de 1950 mais pontual), Vértice (desde 1953), Diá-
rio Popular (cerca de 1972), Artes Plásticas
Começaria depois a colaborar no jornal bra- (1974) ou no suplemento Ao Km Zero (su-
sileiro O Estado de São Paulo, com crónicas plemento de Reconquista) (cerca de 1970),
culturais de Paris a partir de 1955 (a primei- além de colaborações dispersas em Seara
ra crónica seria a 27 de novembro de 1955; Nova, Arquitectura, Portucale, Jornal de No-
a última a 28 de novembro de 1980), fazen- tícias, Jornal Novo ou Século Ilustrado. Em
do parte de um círculo de colaborações de finais dos anos 50, os seus textos seriam de
portugueses no jornal brasileiro que tinha particular violência contra a abstracção, tor-
ainda os nomes dos amigos Adolfo Casais nando-o um dos mais activos críticos, em
Monteiro, Novais Teixeira ou José-Augus- desejo de querela aberta, com esta via esté-
to França. Esta longa prática de escrita de tica – que exactamente se vinha dificilmente
crónicas críticas (entre 1943-1980) sobre impondo ao longo da década.
arte e cultura (no Diário Popular e n’O Esta-
do de São Paulo) levou à interrupção qua-

<<
Assumindo-se como «um pintor que nunca xão teórica sobre o sentido da arte e das
acreditou na pintura pura», posicionando- suas práticas éticas e estéticas, que já an-
-se na «querela da forma e do conteúdo», tes trabalhava, mas agora com maior auto-
«contra a arte “abstracta”»16, Lima de Freitas nomia, como um ensaio paralelo de escla-
criticou e resistiu ao que chamou a falsa li- recimento e guia da sua própria prática. Na
berdade criadora dos puristas da forma e a fase neo-realista colaborou em vários perió-
sua «metafísica da forma», acusando a des- dicos, tais como A Tarde, no qual dirigiu a
confiança e o desprezo pelo tema que estes página cultural A Arte (1945), Mundo Lite-
viam como impuro17. Defendendo a profun- rário (1946), Seara Nova (a partir de 1946),
didade do tema, para lá da superficialidade Arquitectura Portuguesa (1952) ou Vértice
do motivo prévio, como «profusão inespe- (a partir de 1953). Por vezes os seus textos
rada de valores» «que surdamente coman- surgiam reproduzidos em periódicos do an-
dam a energia das formas»18, encontrava tigo Ultramar, como foi o caso de Itinerário
aí a «razão última da obra». Vendo na abs- de Lourenço Marques (1948).
tracção uma incomunicação vaidosa, onde
a forma se encerra na sua própria interio- Pertencendo já ao panorama cultural entre
ridade, defendia que «a arte» era antes «a as décadas de 1950 e seguintes, Mário de
formação de conteúdos» «emergindo em Oliveira (n.1916), arquitecto e pintor, teria
formas»19. A liberdade procurada pela mo- actividade regular como crítico, sobretudo
dernidade, que levou ao extremo da «liber- no Diário Popular (1952-1961), depois no
dade de não ter tema», revelou-se no se- Diário de Notícias (1965-1973) ou ainda em
gundo pós-Guerra de uma «extremidade O País (1978). Faria parte da secção portu-
patológica»20: «Os cultores do gratuito em guesa da AICA.
arte esquecem que a originalidade reside
na reestruturação dos temas, e não na cria- Fernando de Azevedo (1923-2002), pin-
ção ex nihilo, fora dos temas»21. Mais tarde, tor inicialmente ligado ao neo-realismo,
entre os anos 70 e 80, o pintor desenvolveu mas com uma obra desenvolvida no âmbi-
o simbolismo do tema, reencontrando-lhe to do surrealismo português (desde cerca
uma produndidade abstracta por assimila- de 1948) na altura em que iniciava também
ção de uma geometria sagrada, tendo para uma actividade de crítico de arte (desde
isso criado afinidades com teorias de An- cerca de 1947). Começou por exercer uma
tónio Quadros (Poeta), Gilbert Durand e o actividade de crítico e ensaísta em Unicór-
último Almada Negreiros. nio, Mundo Literário (1946-1947) e Horizon-
te, mas a sua intervenção mais regular foi ao
O pintor Júlio Pomar (n.1926) teve assinalá- longo das décadas de 1960 e seguintes, na
vel actividade crítica enquanto enquadrado colaboração com as revistas da FCG, Coló-
na estética neo-realista, depois enfraqueci- quio e Colóquio Artes. Além deste exercício
da com a crise desta orientação estética na crítico em periódicos, teve uma vasta cola-
segunda metade dos anos de 1950. Passa- boração em textos de apresentação para ca-
va então a centrar-se no texto como refle- tálogos de exposições em diferentes gale-

– FERNANDO ROSA DIAS 277


rias ou, sobretudo, da FCG e da SNBA. Dele mente, acabava por se estender articulan-
diria José-Augusto França em homenagem do vários tipos de manifestações artísticas e
póstuma: «(…) podia ser o melhor crítico culturais na primeira metade do século XX.
de arte da nossa geração, se quisesse sê-lo Da experiência pontual de Fernando Pessoa
em continuidade e profissão»22. E compara- com uma crítica a uma exposição de Alma-
va ao caso de António Dacosta, ambos seus da Negreiros, à maior intervenção dos teóri-
amigos, e ambos com essa «sensibilidade cos e escritores presencistas25, ficou alguma
inteligente e com inteligência sensível»23. tradição atenta à arte moderna portuguesa
com continuidades para a segunda metade
A actividade de Fernando Azevedo como do século.
crítico crescia na década de 60, devido ao
seu envolvimento com o Serviço de Expo- Nos anos 30 e 40, a geração presencista ti-
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

sições da Fundação Calouste Gulbenkian e nha tido uma marcante acção e teorização
com a revista Colóquio, com notório prejuí- da actividade da crítica, centrada na literatu-
zo da sua produção artística. Envolvia-se as- ra, mas com abordagens no âmbito do cine-
sim com as alterações e dinâmicas trazidas ma ou das artes plásticas, sobretudo, José
com os anos 60, em grande parte derivadas Régio, João Gaspar Simões e Casais Mon-
do aparecimento da FCG. Outros nomes de teiro. Nas páginas da Presença, foi marcante
artistas plásticos com regular prática crítica a defesa da 1ª Exposição do Independen-
surgiam nesta década de 60, dando conti- tes de 193026. João Gaspar Simões também
nuidade a esta linha, caso de Júlio Giraldes deixaria um dos primeiros textos a debater
(n.1923), Rocha de Sousa ou Eurico Gonçal- a questão da abstracção, a propósito de ex-
ves, que deixaremos para outro ensaio. posição de Vieira da Silva27.

4. Críticos homens de letras No início dos anos 40, o escritor Carlos


(poetas e escritores) Queiroz (1907-1949)28 deixaria um ensaio
Outra linha tradicional na actividade de crí- de síntese da história da Arte Moderna por-
ticos de arte surgia da prática da escrita de tuguesa que fazia das primeiras resenhas
nomes da literatura, ou ainda por formação da história da arte moderna portuguesa29,
variada no domínio das ciências sociais e tal como no âmbito da Exposição de Ilus-
humanas, que pareciam seguir as origens tradores Modernos no SPN, faria uma breve
do século XVIII da actividade de crítico de história do desenho moderno30. Faria várias
arte, enquanto mediadores de uma prática crónicas de críticas de arte nos primeiros
especializada a um público anónimo e não tempos do Diário Popular ou, ao longo da
especializado (alguns não deixavam de se década, na Panorama.
apresentar como jornalistas)24. Esta proxi-
midade nas ciências humanas flectia uma Mais recentemente, a aparecer em finais da
actividade que já não era propriamente de década de 1950, temos o exemplo de Fer-
jornalista, mas de cronista, como base da nando Guedes (n.1929)31, poeta e crítico
actividade de crítico de arte – que, normal- de arte activo entre as décadas de 1950 e

<<
1960. Tendo sido director do Tempo Pre- beiro), tendo depois escrito o romance An-
sente entre 1959 e 1962, e crítico regular jo-Demónio, os livros e novelas Filhos do
de artes plásticas do Diário da Manhã, teve Diabo (prémio Fialho de Almeida) e Filhos
ainda colaboração de carácter teórico-críti- de Deus. Teve representadas as peças Ca-
co em periódicos como Graal, Rumo, Pano- milo e Fanny e Má sorte. Foi um dos mem-
rama, Praça Nova, Diário Ilustrado ou Diário bros fundadores e directores do Centro
de Notícias32. Interessado pela arte abstrac- Português de Escritores e redactora de Re-
ta, publicaria ensaios que defendiam a im- pública e Diário de Lisboa e chefe de redac-
portância dos artistas plásticos do Porto na ção de Vida Mundial e Vida Mundial Ilustra-
sua genealogia na arte portuguesa33. do. Mas, sobretudo e durante muitos anos,
foi redactora no Diário de Notícias, onde
Também escritor, Alfredo Margarido exerceu funções de crítica de teatro, baila-
(n.1928)34 colaborou como crítico de ar- do e artes plásticas, com especial activida-
tes plásticas na Seara Nova (1958), no 57 de nas décadas de 1960 e 1970.
(1958), no Diário Ilustrado (1959) dirigindo
o suplemento literário ou ainda no Diário de Sellés Paes (Joaquim Sellés Paes de Villas-
Notícias (1963). Teria maior relevância e re- -Boas), nascido em Madrid em 1913, foi di-
gularidade ao substituir Rui Mário Gonçal- rector-fundador da revista de Arqueologia
ves nas críticas de artes plásticas do Jornal Boletim do Grupo Alcaides de Faria, e publi-
de Artes e Letras, a partir de Dezembro de cou vários estudos de etnologia e de artes
1963, e até Outubro de 1964, altura em que plásticas. Desenvolveu uma regular activida-
partia como bolseiro da FCG, regressan- de de crítico de arte em vários periódicos,
do Fernando Pernes (primeiro crítico regu- entre finais da década de 1950 e inícios da
lar do periódico que tinha sido substituído seguinte, tais como O Debate, de orienta-
por Rui Mário Gonçalves também devido a ção monárquica, depois no Diário Ilustrado
uma bolsa35). Era habitual em Alfredo Mar- (desde 1956) e na segunda metade dos nú-
garido introduzir em cada crítica, uma pré- meros da terceira série da revista Panorama
via e autónoma reflexão teórica em torno (1959-1961). Numa defesa histórica da acti-
da prática crítica. Partindo da antropologia, vidade do SPN-SNI, procurava efectuar um
e estendendo-se à sociologia e à história, olhar crítico sobre a arte contemporânea
interessava-se por várias manifestações ar- portuguesa como sua continuadora, numa
tísticas além das artes plásticas, tais como a articulação que deixaria explícita em ensaio
literatura e o cinema. Faria carreira de do- de 1962: Da Arte Moderna em Portugal37.
cência Universitária em Paris.
Foi no cruzamento destas vias, onde o pro-
No Diário de Notícias foi bastante regular a fissionalismo se desejava (mais ou me-
actividade de Manuela de Azevedo (M. A.) nos) que, ao longo dos anos da década de
(n.1911)36, sobretudo na crítica de teatro e 1960, se definiu um grupo de críticos de
artes plásticas. Começou a carreira literária arte com vontade de assumir uma dimen-
com Claridade (prefaciado por Aquilino Ri- são profissional, especializada e indepen-

– FERNANDO ROSA DIAS 279


dente, articuladas num esforço de mudan- «Esta actualização nunca actualizada, essa
ças culturais38. Este grupo foi adquirindo inexequível contemporaneidade de nós
uma autoridade considerável ao longo da mesmos (…) que se traduz, paradoxalmente
década, sobretudo a partir do I Encontro por uma auto-actualização (…) é, afinal e
de Críticos de Arte (1967) e de renovação só uma forma paroxística da nossa vivência
da secção portuguesa da AICA (1968), pro- cultural em todos os demais domínios”
curando ultrapassar uma dominante crítica (Eduardo Lourenço, «Os círculos de Delaunay ou o estatuto da
amadora de jornalistas. Se alguns críticos nossa pintura», 1971).
dos anos de 1950 anunciavam uma maior
profissionalização e especialização, casos «Porque a crítica de arte é uma disciplina a
da actividade que José-Augusto França já criar, ou a recriar, (…)»
então desenvolvia, de Ernesto de Sousa, ou (José-Augusto França, 1966 )
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

ainda de Fernando Guedes ou mesmo de


Sélles Paes, seria na década seguinte que
essa dimensão se acentuaria, no sentido
em que o crítico não efectuava apenas uma
avaliação da produção artística mas, inclu- — Notas
sive, trazia uma consciência orientadora e
1
Este texto é uma adaptação
dinamizadora – e a colaboração que se de-
e actualização de partes do
senvolveria com galerias e instituições seria nosso trabalho para a tese de
disso marca. O papel de mudança estaria doutoramento. Fernando Rosa
centrado em José-Augusto França, Rui Má- Dias, A Nova-Figuração nas Artes
rio Gonçalves, Fernando Pernes ou Fran- Plásticas em Portugal (1958-
cisco Bronze, alguns deles já começando a 1975) (3 volumes), Tese de
Doutoramento em Ciências da
actuar nesta década do silêncio, com a sua
Arte, Lisboa, Universidade de
reforma da secção da AICA em 1968, com Lisboa, Faculdade de Belas Artes,
dimensão programática, a que se poderia 2008.
acrescentar um renovado Ernesto de Sousa, 2
Rui Mário Gonçalves, “A década
que iria aparecer com outra dinâmica crítica do silêncio, 1951-1960”, in
e doutrinal com relevante actuação na dé- catálogo da exposição: Arte
Portuguesa nos Anos 50, Beja:
cada de 1970. Disso falaremos noutro en-
Biblioteca Nacional de Beja,
saio, que continuará e fechará este, centra- Outubro-Novembro 1992; Lisboa:
do nos anos 60. Seria o fim da década do Sociedade Nacional de Belas-
silêncio, que só a passagem dos anos 60 Artes, Janeiro-Fevereiro 1993.
poderiam protagonizar, da qual adiantámos 3
José-Augusto França, A Arte em
alguns nomes também aí bem activos – e a Portugal no século XX (1911-1961),
Lisboa: Bertrand Editora, 1991,
revolução de Abril de 1974 naturalmente
p.470.
consagrar. 4
«Em Portugal somente existem
repórteres de arte – pessoas que
vão às exposições fazer relatos,

<<
às vezes literários» (anónimo), Livros e das Bibliotecas] [consulta: Portugueses, Vol.IV, Lisboa, 1997,
Horizonte, nº14, 1ª quinzena Novembro 2007] in: http://www.iplb.pt/pls/diplb
Setembro 1947. 9
Quirino Teixeira entrevistou [endereço da Direcção Geral dos
5
Ibidem. Salvador Dali, Juan Miro, Modest Livros e das Bibliotecas] [consulta:
6
Para biografia de Quirino Teixeira, Cuixart, Juan Tharrats, Villa- Novembro 2007]
cf. Dicionário Cronológico de Casas, António Buero-Vallejo, 11
Fernando de Pamplona,
Autores Portugueses, Vol.IV, Lisboa, Camilo José Cela, Ana Maria Rumos da Arte Portuguesa, Porto:
1997, in: http://www.iplb.pt/pls/ Matute, Fernando Sabino, Manuel Portucalense Editora, 1944.
diplb [endereço da Direcção Cargaleiro, Thomás de Melo (Tom), 12
Cf. António Valdemar, «Matos
Geral dos Livros e das Bibliotecas] entre outros. Contudo, as mais Sequeira, um dos mais notáveis
[consulta: Novembro 2007] importantes foram as efectuadas a olisipógrafos do século XX» (26-8
7
«Em 1920 veio para Lisboa Fernando Namora, Jorge Amado 2013), in http://www.publico.pt/
para exercer o jornalismo e Artur Bual que tiveram direito a opiniao/jornal/matos-sequeira-um-
profissional, ingressando no edição em livro. Para biografia de dos-mais-notaveis-olisipografos-
Século. Trabalhou também no Quirino Teixeira, cf. as indicadas do-seculo-xx-25130098
Diário Popular, no Diário Liberal, nas suas edições: Teorias e Práticas 13
José-Augusto França, A Arte em
em O Diabo, na Mala da Europa da Promoção Turística Portuguesa Portugal no século XX (1911-1961),
e nas Actualidades, sendo chefe (ed. Autor, 1977); Em Outubro Lisboa: Bertrand Editora, 1991,
de redacção do Diário da Tarde, com Fernando Namora (Flamingo, p.471.
do Diário da Noite, do Jornal 1987). 14
Para biografia mais alargada
da Europa e da revista Turismo. 10
Filho de José César de Araújo de Leitão de Barros, cf. catálogo
Colaborou ainda noutros jornais, Rangel e de Alda Luísa de Sá da cinemateca Leitão de Barros,
como no Notícias, de Lourenço Passos, nasceu na cidade do Porto Lisboa: Cinemateca Portuguesa,
Marques, e na Tribuna, de Santos. a 1 de Maio de 1909. Terminados 1982, pp.14-18.
Redactor da República, foi os estudos liceais, matriculou-se 15
A produção crítica de António
depois seu colaborador, desde na 1.ª Faculdade de Letras do Dacosta teve publicação bastante
que se aposentou, em 1956». Porto, concluindo a licenciatura completa, só com algumas faltas
Dicionário Cronológico de Autores em Filologia Românica com a na sua colaboração no Estado de
Portugueses, Vol.III, Lisboa, 1994, classificação de 18 valores, a São Paulo, sobretudo na década
in: http://www.iplb.pt/pls/diplb 27 de Julho de 1931. Em 1956 de 1960. Cf. António Dacosta,
[endereço da Direcção Geral dos participou no IV Congresso da Dacosta em Paris, Lisboa: Assírio
Livros e das Bibliotecas] [consulta: União Nacional (Maio a Junho - & Alvim, 1999. Alguns fragmentos
Novembro 2007] Lisboa), na secção de Educação de crónicas ausentes neste volume
8
Embora convergindo para Cultura. Passados três anos foi encontram-se em «seçecção» no
a crítica literária, teve uma nomeado Inspector Superior do catálogo: António Dacosta, Lisboa:
intervenção abrangente, aceitando Ensino Técnico, tendo assumido, Fundação Calouste Gulbenkian.
quaisquer querelas. Também ainda, as funções de Professor Centro de Arte Moderna, 23
escritor e ensaísta, no âmbito Metodólogo do ensino do Francês. Fevereiro a 27 Março 1988; Porto:
das artes plásticas seria o autor Para biografia de Fernando de Fundação de Serralves. Casa de
das edições Salazarismo e Artes Pamplona, Pela escrita da peça Serralves 8 Abril a 8 de Maio 1988,
Plásticas (1982) e Francisco Franco Quando Salomão voltou foi s.p.
e o «zarquismo» (1997). Para agraciado, em 1960, com o Prémio 16
Lima de Freitas; Pintura
biografia de Artur Portela Filho, cf. do Teatro do Secretariado Nacional incómoda, Lisboa: Publicações
Dicionário Cronológico de Autores de Informação; também foi eleito Dom Quixote, 1965, pp.11-13.
Portugueses, Vol.VI, Lisboa, 1999, vogal e secretário da Academia 17
Cf. Ibidem, p.17.
in: http://www.iplb.pt/pls/diplb de Belas-Artes de Lisboa. cf. 18
Cf. Lima de Freitas, “O tema na
[endereço da Direcção Geral dos Dicionário Cronológico de Autores pintura”, in Ibidem, pp.22-23.

– FERNANDO ROSA DIAS 281


19
Ibidem, p.33. Patrícia Esquível, Op.cit., pp.106- da Moeda, 1985.
20
Ibidem, p.37. 113. 34
Para biografia de Alfredo
21
Ibidem, p.51. 28
Como teórico literário e poeta, Margarido, cf. Dicionário
22
José-Augusto França, in catálogo publicou em diversas revistas e Cronológico de Autores
da exposição: Fernando Azevedo, folhas literárias, sendo uma figura Portugueses, Vol.V, Lisboa, 1998,
Vila Nova de Cerveira: Museu da marcante nas páginas da Presença, in: http://www.iplb.pt/pls/diplb
Bienal de Cerveira, 7 Junho a 5 estendendo-se a periódicos como [endereço da Direcção Geral dos
Julho 2003; Pontevedra: Museu Ocidente, Atlântico, Revista de Livros e das Bibliotecas] [consulta:
de Pontevedra, 21 Novembro Portugal, Momento, Aventura, Novembro 2007].
a 21 Dezembro 2003; Lisboa: Vamos Ler e a revista Litoral que 35
Cf. “Os nossos críticos de artes
Sociedade Nacional de Belas foi dirigida pelo próprio. De plásticas”, in Jornal de Letras e
Artes, 10 Janeiro a 14 Fevereiro modo mais esporádico colaborou Artes, Lisboa, nº160, 21 Outubro
2004. nas revistas Contemporânea 1964, p.1.
23
José-Augusto França, «Fernando (1915-1926), Ilustração  (1926-) 36
Para biografia de Manuela
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

de Azevedo, crítico», in Fernando e Sudoeste (1935) e na revista de Azevedo, cf. Dicionário


de Azevedo – ensaio e crítica, de poesia Altura  (1945). Esteve Cronológico de Autores
Lisboa: Sociedade Nacional de ligado a aristocracia, casando com Portugueses, Vol.IV, Lisboa, 1997,
Belas Artes, Atgena, 2013. P.18. sobrinha materna do 1.º Visconde in: http://www.iplb.pt/pls/diplb
24
Cf. Francisco Calvo Serraller, de Idanha e sobrinha-neta do 1.º [endereço da Direcção Geral dos
“Orígenes y desarrollo de un Visconde de Vila-Boim, de quem Livros e das Bibliotecas] [consulta:
género: la crítica de arte”; “El teve cinco filhos. Novembro 2007].
Salón”, in Historia de las ideas 29
Carlos Queiroz, «Da Arte 37
Cf. Sellés Paes, Da Arte Moderna
estéticas y de las teorías artísticas Moderna em Portugal», in Variante, em Portugal. Elementos para a sua
contemporáneas, volumen I (ed. Lisboa, nº1, Primavera 1943, pp.21- história Lisboa: Edições Panorama,
Valeriano Bozal), Madrid: Visor 23. 1962.
1996, pp.148-178. 30
Carlos Queiroz, «Ilustradores 38
Cf. Rui Mário Gonçalves,
25
Cf. Patrícia Esquível, Teoria e Modernos Portugueses – A entrevista in «Rui Mário Gonçalves,
Crítica da Arte em Portugal (1921- propósito de uma Exposição», “Falta-nos a presença de artistas
1940), Lisboa: Edições Colibri, Atlântico – Revista Luso-Brasileira, qualificados — sejam portugueses
IHA, Faculdade de Ciências Rio de Janeiro: Departamento de ou estrangeiros”», in Jornal de
Sociais e Humanas, Universidade Imprensa e Propaganda; Lisboa: Letras e Artes, Lisboa, nº156, 23
de Lisboa, 2007 [edição de Secretariado da Propaganda Setembro 1964, pp.16, 12.
tese de mestrado de 1996]. Ou Nacional, nº2, 1942, pp.336-343.
ainda: Fernando Paulo Rosa 31
Para biografia de Fernando
Dias, Ecos Expressionistas na Guedes, cf. Dicionário Cronológico
Pintura Portuguesa (1910-1940), de Autores Portugueses, Vol.V,
(2 volumes), Dissertação de Lisboa, 1998, in: http://www.iplb.
Mestrado, Lisboa, Universidade pt/pls/diplb [endereço da Direcção
Nova de Lisboa, Faculdade de Geral dos Livros e das Bibliotecas]
Ciências Sociais e Humanas, [consulta: Novembro 2007].
Novembro 1997, pp.123-137. 32
Cf. Fernando Guedes, Pintura,
26
Para estudo, cf. Fernando Rosa Pintores, Etc., Lisboa: Edições
Dias, Op.cit., pp.163-169. Panorama, 1962.
27
João Gaspar Simões. 33
Cf. Fernando Guedes, Estudos
«Introdução à Pintura Abstracta», in sobre artes plásticas. Os anos 40
Diário de Lisboa, 17 Janeiro 1936. em Portugal e outros estudos,
Para estudo desta questão, cf. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa

<<
Exposição Artistas Portuguesas
e o Papel da Mulher
na Arte da Pós-Revolução
Por Claudia Simenta Rodrigues
Artista plástica e membro do Atelier 39|93,
Coordenadora da Área de Galerias da Divisão de
Cultura da Câmara Municipal de Loures, Mestranda em
Crítica, Curadoria e Teorias da Arte pela FBAUL

In the beginning of 1977, after the portuguese


revolution of April 1974, the National Society
of Fine Arts had an opened event that brought «As mulheres são assim. Mais desembara-
together three exhibitions and the presentation çadas do que os homens, quando despem
of several other cultural manifestations. o casaco.
The event exclusively dedicated to women’s art Foi assim, agora também que as mulheres
and to the discussion of what meant to be a resolveram comparecer em força e desem-
woman in Portugal in that period was, in fact, baraço na exposição que as Belas-Artes
an historical testimony of the changes that were inauguraram. Se se excluir a cave, dir-se-á
being made and for which women played a que todos os andares e seus espaços foram
fundamental role in all levels. ocupados: pintura do Século XIX, saída dos
The various documents consulted and the arcazes do Museu de Arte Contemporânea,
contacts made with some of the artists who livros de autoras portuguesas e outros acer-
participated both in the exhibition and in its ca delas, as que foram «sexo fraco». Ora, pa-
organization, reveal a cultural event which, for its rando aqui nestas zonas, dir-se-á que, preci-
historical-temporal framework, assumed a huge samente, é nessas do sexo que as mulheres
importance for its time, being something yet arregaçam as mangas, deixando muito en-
today with no parallel. vergonhadas as pintoras americanas, ino-
centes entretidas com histórias de ratinhos
ou pintura cerebral…»1

No início de 1977, no rescaldo de uma revo-


lução que prometia devolver ao povo portu-
guês as suas liberdades, entre as quais uma
das de maior valor – a liberdade de expres-

– CLAUDIA SIMENTA RODRIGUES 283


são – teve lugar, na Sociedade Nacional de
Belas Artes, uma exposição que reconhecia
e apresentava publicamente o valor da mu-
lher enquanto recurso ativo e participante na
construção do mundo artístico português.

A exposição, realizada no âmbito de uma


outra proveniente dos Estados Unidos da
América e que cumpria um programa de iti-
nerância por Portugal – Liberation, 14 Artistas
Americanas – reunia obras de algumas cria-
doras do mundo artístico português que, su-
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

jeito por tanto tempo a constantes avanços


e recuos, dava agora sinais evidentes de de-
sentorpecimento, apresentando uma nova
Capa do catálogo | Janeiro – Fevereiro de 1977 dinâmica e vitalidade.
Exposição realizada pela Sociedade Nacional de Belas
Artes com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura, da
Fundação Calouste Gulbenkian e do Museu Nacional de Arte A juntar a estas duas exposições teve lugar
Contemporânea. uma outra, singela homenagem a artistas
portuguesas já desparecidas, realizada com
o apoio e colaboração do Museu Nacional
de Arte Contemporânea, que para ela cedeu
obras do seu acervo.

Contudo, o evento realizado na Socieda-


de Nacional de Belas Artes não se resumiu
à apresentação destas três exposições. Tra-
tou-se de um acontecimento muito mais
complexo, composto por um conjunto de
manifestações culturais exclusivamente de-
dicadas à criatividade no feminino e ao ser-
-se mulher e artista em Portugal, no final da
década de 70, no período da pós-revolu-
ção. Paralelamente à programação de expo-
sições foi elaborado um programa de dife-
rentes atividades culturais, onde se incluíam
a música, o teatro, a poesia e o debater do
papel da mulher na arte e na sociedade con-
temporânea da época.

<<
Pelo seu enquadramento histórico-tempo- que se dá uma considerável proliferação
ral, esta exposição assumiu grande impor- dos salões coletivos e se desenvolvem
tância, revelando-se num acontecimento novas formas radicais de criação artística,
cultural sem paralelo ainda hoje nos nossos em tudo distintas dos tradicionais conceitos
dias. Achou-se, portanto, oportuno analisar de pintura e escultura.
mais profundamente, na concretização des-
te ensaio, o referido evento enquanto acon- Os anos 70 vêm, assim, dar um novo impul-
tecimento histórico e cultural, abordando so ao já iniciado nos anos 60, no campo do
de forma pormenorizada as iniciativas que experimentalismo português, dentro das
dele fizeram parte, assim como o seu im- designadas novas disciplinas artísticas (per-
pacto na arte e na sociedade da época e as formance, instalação, happenings, rituais, in-
suas repercussões na arte dos nossos dias. tervenções, etc.) que se prolongam até mea-
dos da década de 80 e dão origem a novas
PORTUGAL NOS ANOS 70 – A arte, a formas de produção e expressão. No segui-
liberdade e as mulheres mento de um período definido por António
Os anos 70 são caracterizados, por João Pi- Rodrigues como «de rutura em relação à arte
nharanda, como «uma década contraditória portuguesa das décadas anteriores»3, nos
e complexa»2; uma década de consagração anos 70 procuram-se registos que fujam aos
de alguns dos artistas revelados nos anos suportes tradicionais e o estreitar da relação
60, de grande dinamismo no designado entre a arte e a vida, de que Lourdes Castro
“mercado da arte”, mas também de grande é exemplo com os seus lençóis de «sombras
crise no setor. O início da década de 70 ca- deitadas» (1969) e Ana Vieira, com as suas
racteriza-se fundamentalmente por um de- instalações em torno dos ambientes domés-
sinteresse institucional generalizado pela ticos, como é o caso da sua casa translúcida
arte que se traduz numa total ausência de mas impenetrável (Galeria Ogiva, 1972). É
políticas culturais (sendo apenas de notar também neste contexto que surge a poesia
alguns acontecimentos pontuais promovi- visual ou experimental, que explora precisa-
dos pelo governo), na inexistência de mu- mente os limites entre escrita e artes plásti-
seus de arte moderna, no fechamento do cas e que tem em Ana Hatherly uma das suas
País ao exterior que se reflete num desco- grandes representantes.
nhecimento do que se faz lá fora em termos
artísticos (nomeadamente EUA e países do Um dos acontecimentos mais marcantes
Leste) e pela sobreposição das entidades desta década e que, sem dúvida, provocou
privadas às competências e responsabilida- o corte radical em termos artísticos, foi a re-
des do Estado com o aparecimento de al- volução militar de abril de 1974. As ruturas
guns (esporádicos) apoios empresariais a provocadas por este acontecimento políti-
ações culturais por parte de entidades co- co vieram alterar o modo de encarar, per-
merciais e bancárias. É também nesta altura cecionar e perspetivar a arte. A Revolução
que se regista o surgimento de um pequeno de Abril e o fim da ditadura clarificaram al-
mercado (que se irá retrair a partir de 1973), guns aspetos da realidade do País, nomea-

– CLAUDIA SIMENTA RODRIGUES 285


damente, a existência de um mercado de É nos anos 70 que o pensamento feminista
arte pouco sustentado, com constantes si- começa a ganhar um posicionamento
tuações de crescimento e retração, que no mais central, sobretudo nos contextos
entender de Gonçalo Pena revelaria, assim, norte-americano e britânico, em parte
a sua «fragilidade […] após a revolução de devido às profundas transformações
74, verificando-se então uma brusca quebra político-sociais que se fazem sentir e que,
de confiança provocada pela imediata crise segundo Filipa Lowndes Vicente provocam
económica, provocando a falência de mui- «o desenvolvimento de uma perspetiva
tas das galerias dos finais de 60»4. Por ou- feminista no interior das ciências sociais e
tro lado, estes acontecimentos contribuíram humanas».6 Em Portugal, no entanto, estas
também para uma efetiva libertação em ter- questões sentem-se de forma mais ténue. A
mos artísticos, ao tornarem possível uma situação política vivida, a mudança de regi-
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

maior abertura ao exterior, que teve como me, a tomada de consciência por parte da
consequência a descoberta (apesar de tar- sociedade civil, a construção de uma demo-
dia) da arte conceptual. cracia consolidada assente nas liberdades e
direitos dos cidadãos e a própria redefini-
Outro aspeto que durante este período se ção do ensino, poderão ter sido as causas
começa a destacar é o papel das mulheres mais diretas para a escassez de atenção de-
na sociedade e, em particular, na produção dicada ao estudo e teorização das questões
artística. Durante um longo período, a arte do feminismo no meio académico.
feita por mulheres ao contrário de inexis-
tente, foi uma “arte sem história”5, descon- Contudo, fora do contexto académico as
siderada pelos historiadores de arte tanto mudanças vão-se fazendo sentir. Ernesto de
no contexto português como internacional. Sousa, por exemplo, surge como figura cen-
Em Portugal, são escassos os casos de mu- tral na compreensão daquilo que foi a dé-
lheres-artistas consagradas no decurso de cada de 70. Artista, cineasta, crítico de arte,
séculos e séculos de história de arte. Pou- organizador de exposições, foi o responsá-
cos são os nomes que conseguimos referir; vel pelo aparecimento de uma geração de
vem-nos à memória Josefa de Óbidos (du- artistas com uma produção artística diferen-
rante o período Barroco), Maria Helena Viei- ciada e inovadora, a que a Alternativa Zero
ra da Silva (após a II Guerra Mundial), Paula (1977) deu visibilidade e projeção e na qual
Rego e Lourdes Castro (a partir de 60/70) Clara Menéres participou com a sua Mulher-
e, mais recentemente, Joana Vasconcelos. -Terra-Vida (um torso feminino, inteiramente
É de notar, contudo, que apesar de escas- moldado com relva plantada, criado especi-
sos, todos estas artistas são personagens in- ficamente para a mostra).
contornáveis no estudo da história de arte
portuguesa, assumindo-se como figuras de A agitação política, social e cultural senti-
destaque tanto a nível nacional como inter- da no pós-25 de Abril ultrapassou todas
nacional. as previsões, havendo uma grande adesão
por parte dos criadores artísticos (operado-

<<
res artísticos, conforme Ernesto de Sousa), cultural antifascista, e representantes reais
que se organizaram na apresentação de dos interesses de artistas e críticos de arte.
propostas e reformas. Entre 1974 e 1977
foi possível a integração de representantes É assim, neste contexto, e um pouco
de artistas e críticos de arte, nas comissões em reação à situação que se fazia sentir,
consultivas da Secretaria de Estado da Cul- que na segunda metade da década de
tura, com o intuito de contribuir, de forma 70 se generalizam as ações de carácter
ativa, na definição de uma política cultural coletivo, que resultam num conjunto muito
para o País. significativo de exposições8, happenings e
pinturas murais de carácter interventivo, de
A situação começa, contudo, a mudar a par- que é exemplo o painel realizado a 10 de
tir de 1977, sendo percetível uma diminui- Junho de 1974, pelo Movimento Democrá-
ção na liberdade de ação por parte dos in- tico de Artistas Plásticos, e que contou com
telectuais. Rui Mário Gonçalves refere-se a a participação de diversas mulheres artistas,
este período como «uma temporada em entre as quais Teresa Dias Coelho, Teresa
que a palavra «silenciamento» parece ser Magalhães, Fátima Vaz, Ana Vieira, Helena
a mais recorrível para descrever o que ro- Almeida, Alice Jorge, Emília Nadal, Menez
deou oficialmente a vontade de expres- e Maria Velez.
são.»7 É nesta altura que se mandam apagar
paredes e desfazer comissões consultivas, Os anos 70 apresentam-se, assim, como um
entre outras ações representativas desta período conturbado, mas libertador, criati-
desvitalização. É notório o real desinteresse vo e aberto a novas possibilidades, construí-
governamental pela cultura. A liberdade de do com o apoio de uma sociedade artística
expressão e o espírito crítico são os moto- ativa (e reativa perante a inércia e imprepa-
res fundamentais para a manutenção de ração institucional) na qual as mulheres tive-
uma cultura viva, contudo podem gerar in- ram um papel fundamental.
cómodo aos decisores políticos. Assim, a
ausência de uma política cultural compe- ARTISTAS PORTUGUESAS – o início
tente manteve-se ao longo dos anos, dan- da revolução cultural no rescaldo da
do origem a ações contraditórias por par- Revolução de Abril
te dos sucessivos governos, incapazes de Liberation – 14 Artistas Americanas.
definir programas coerentes para a cultura. Em Dezembro de 1976, no Centro de Arte
As grandes iniciativas que foram ocorrendo Contemporânea do Museu Nacional de
durante este conturbado período, foram or- Soares dos Reis, teve lugar uma exposição,
ganizadas por instituições culturais com um proveniente dos Estados Unidos da América,
grande know-how cultural, como era o caso denominada Liberation – 14 Artistas
da Sociedade Nacional de Belas Artes e Americanas. Esta exposição, no seguimento
da Association Internationale des Critiques do programa de itinerância que cumpria,
d’Art, entre outras; instituições democrati- pela Europa, veio a Lisboa por intermédio
camente organizadas, polos de resistência do Serviço de Imprensa e Cultura da

– CLAUDIA SIMENTA RODRIGUES 287


Embaixada dos Estados Unidos da América,
que propôs à Sociedade Nacional de Belas-
Artes a apresentação da mesma nos seus
salões, no âmbito do Ano Internacional da
Mulher. Constituída por 27 obras de pintura
e escultura de 14 artistas americanas e
patente, na Sociedade Nacional de Belas
Artes, entre 25 de Janeiro e 15 de Fevereiro
de 1977, esta exposição apresentava
ao público português a pluralidade de
estilos e expressões muito característicos
da Arte Americana dos anos 70, sendo
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

a primeira oportunidade para o público


europeu ter contacto com o «específico
vetor evolutivo»9 da produção artística
norte-americana, conforme refere Jane
Desdobrável da exposição | 25 de Livingston no desdobrável da exposição.
Janeiro de 1977. Exposição realizada Também Beth Coffelt considerou ser esta
na Sociedade Nacionalde Belas Artes,
promovida pelo Serviço de Imprensa uma exposição altamente representativa
e Cultura da Embaixada dos Estados da produção artística da América de então,
Unidos da América.
defendendo na conferência realizada a 26
de Janeiro, na Sociedade Nacional de Belas
Artes, a importância crescente da mulher no
meio artístico (só possível através de uma
luta intensa que foi forçada a travar contra
a irrelevância a que foi votada ao longo
de séculos e séculos de história de arte) e
classificando a arte masculina como «menos
interessante»10 do que a das mulheres.

Nesta exposição foi possível observar


as obras de Jennifer Bartlett, Lynda Ben-
glis, Lee Bontecou, Elena Borstein, Manon
Cleary, Mary Corse, Rebecca Davenport,
Claudia Demonte, Janet Fish, Nancy Gra-
ves, Harriet Korman, Ann McCoy, Susan Weil
e Jacqueline Winsor.

<<
Artistas Portuguesas. A Comissão Organizadora desta exposição,
Paralelamente à inauguração da exposição constituída por Emília Nadal, Sílvia Chicó e
Liberation – 14 Artistas Americanas teve lu- Clara Menéres, representantes do núcleo fe-
gar, entre 25 de janeiro e 20 de fevereiro de minino da direção da Sociedade Nacional
1977, a exposição Artistas Portuguesas que de Belas Artes à época, referir-se-ia à mes-
Manuela de Azevedo descreve, no seu ar- ma como uma mostra da «pluralidade de
tigo publicado no Diário de Notícias de 27 tendências existentes na arte portuguesa […]
de janeiro de 1977, como um evento em na qual colaboraram nomes bem conhecidos
«que as mulheres resolveram comparecer do nosso meio artístico».12 Esta exposição,
em força e desembaraço […] as que foram ainda no entender da sua Comissão Organi-
«sexo fraco» […] arregaçam as mangas, dei- zadora, seria a primeira exposição de artis-
xando muito envergonhadas as pintoras tas portuguesas a focar a forte presença fe-
americanas, inocentes entretidas com his- minina numa área onde aparentemente teria
tórias de ratinhos ou pintura cerebral…»11. uma presença pouca expressiva, sendo ape-
nas possível nomear raras e cirúrgicas exce-
Realizada no âmbito das comemorações ções do passado e do presente.
do 75º aniversário da Sociedade Nacional
de Belas Artes, e tendo o apoio da Secre- Emília Nadal sempre recusou a existência de
taria de Estado da Cultura, da Fundação quaisquer discriminações no seio do meio
Gulbenkian e do Museu Nacional de Arte artístico tendo expressado isso mesmo em
Contemporânea, a exposição contou com entrevista ao Diário de Notícias, a 2 de feve-
a participação de Alice Gentil Martins, Alice reiro de 1977, referindo que a situação exis-
Jorge, Amália Andrade, Ana Hatherly, Ana tente não justificava a necessidade de uma
Vieira, Assunção Venâncio, Clara Estrela, tomada de posição nesse campo. Apesar
Clara Menéres, Dorita Castel-Branco, Emília disso, houve sempre uma tendência natural
Nadal, Estreia, Fernanda Nobre, Graça Mo- de conotar a exposição com questões liga-
rais, Gracinda Candeias, Inês Guerreiro, Isa- das a reivindicações de carácter feminista.
bel Laginhas, Ivone Balette, Kukas, Lourdes Este facto levou a que, no início do processo
Leite, Manuela Correia de Sousa, Maria Ân- de organização da mesma, tivessem surgido
gela de Brito Pereira, Maria Antónia Azeve- determinadas polémicas com algumas das
do, Maria Antónia Correia Martins Gomes, artistas, que se recusavam a participar na ex-
Maria Benamor, Maria do Carmo Galvão posição se ela assumisse tais objetivos, uma
Teles, Maria Flávia de Monsaraz, Maria Ga- vez que não se sentiam atingidas por esse
briel, Maria Keil, Maria Rolão, Maria Velez, tipo de questões no seio do meio artístico.
Marília Viegas, Matilde Marçal, Menez, Pau- O objetivo da exposição passava, assim, por
la Rego, Pissarro, Rosa Fazenda, Salette Ta- promover «um interessante estudo sobre as
vares, Sarah Afonso, Teresa Ferrand, Teresa constantes específicas da expressão artística
Magalhães e do Grupo Puzzle. da mulher e que, podendo tornar-se um
tema polémico, não só pela exposição em
si mas pelas manifestações culturais que

– CLAUDIA SIMENTA RODRIGUES 289


a acompanham e pelos ecos que poderia
levantar, ser uma excelente ocasião para
equacionar problemas e definir posições.
Enfim, chamar a atenção do grande público
para a real importância da mulher na vida
cultural portuguesa [e transmitir uma]
«mensagem de intervenção crítica e de
vitalidade criadora.»13

Sendo incontestável a sua ligação às ques-


tões do feminino, esta não pretendia, portan-
to, ser uma exposição feminista. E essa era
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

também a opinião de Salette Tavares que, no


prefácio do catálogo da exposição, defendia
a vontade de libertação «do complicado en-
redo da reivindicação», não obstante a juste-
za e as inegáveis conquistas obtidas por in-
termédio das ações e lutas feministas. Dizia
Salette Tavares que esta exposição pretendia
antes de mais ser «uma boa oportunidade
Emília Nadal | Decomposição V - A viagem para uma confrontação entre mulheres. […]
123 x 90 cm | 1975
a grande afirmação da criatividade […] fren-
Fotografia cedida pela artista
te a frente as diversas maneiras de uma mu-
lher ser artista em Portugal […] a certeza de
que os caminhos são múltiplos e todos váli-
dos. Quando autênticos.»14

A seleção das obras para a exposição Artis-


tas Portuguesas foi realizada por concurso,
tendo sido escolhidas 73 de 171 obras apre-
sentadas15. No catálogo da exposição Sílvia
Chicó indica a constituição do Júri, referindo
fazerem parte do mesmo «dois membros da
Sociedade Nacional de Belas-Artes – Clara
Menéres e Emília Nadal – […] um membro
da Secção Portuguesa da Association
Internacionale des Critiques d’ Art – Salette
Tavares – e dois representantes dos artistas –
Rocha de Sousa e Sílvia Chicó.»16

<<
A maioria das obras foram realizadas es-
pecificamente para a exposição, resul-
tando num conjunto muito expressivo da
«multiplicidade de tendências e técnicas
de expressão características da arte
contemporânea» que reunia obras des-
de a «pintura à criação de ambientes, da
colagem à escultura»17, tapeçaria, joias,
entre outras formas de produção artística.
Para José Luís Porfírio, contudo, a exposição
apresentava uma seleção pouco rigorosa,
assente em critérios debilmente estrutura- Teresa Magalhães | Sem Título
dos, apresentando tanto nomes com algum 1976 | Acrílico sobre tela | 140 x 200 cm
Fotografia cedida pela artista
reconhecimento no meio artístico da época,
como nomes menos conhecidos, seleciona-
dos por intermédio de um concurso aberto
a todas as mulheres-artistas. Descreve-nos
uma exposição organizada ao jeito de «um
inventário da situação existente ao nível
das atitudes dos objectos contrapondo-
-se à selecção mais actualizada do lado
americano.»18

Posteriormente à apresentação da exposi-


ção em Portugal, houve a possibilidade das
artistas participantes apresentarem o seu
trabalho no exterior, tenho sido organizada
uma itinerância da exposição a Paris, onde
esteve patente no Centre Culturel Portugais
da Fundação Calouste Gulbenkian.

Artistas Portuguesas já desaparecidas. Rosa Fazenda | Freira, 1975

A terceira exposição organizada no âmbito


deste evento cultural teve, de acordo com
Maria de Lourdes Bártholo, o objetivo de
ser uma «singela homenagem»19 a artistas já
desaparecidas, da segunda metade do sé-
culo XIX e inícios do século XX, que conse-
guiram fazer prevalecer a sua obra no seio
de uma sociedade para qual a arte era uma

– CLAUDIA SIMENTA RODRIGUES 291


área unicamente reservada ao sexo mascu-
lino, assumindo por isso a designação de
“pioneiras”.

A exposição esteve patente de 25 de janei-


ro a 20 de fevereiro de 1977, na Socieda-
de Nacional de Belas Artes e o conjunto de
artistas que integravam esta exposição era
constituído por Maria Augusta Bordalo Pi-
nheiro, Aurélia de Souza, Sofia de Souza,
Emília Santos Braga, Milly Possoz, Eduarda
Lapa, Estrela de Faria e Teresa Sousa.
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

A organização da exposição contou com o


forte contributo do Museu Nacional de Arte
Contemporânea, que muito gentilmente
cedeu todas as obras que integraram a ex-
posição e para a qual foi realizado um catá-
logo prefaciado pela diretora do museu na
altura, Maria de Lourdes Bártholo.

Atividades programadas no âmbito das


três exposições.
Paralelamente às exposições tiveram lugar
outras manifestações culturais de diferen-
tes tipologias, as quais, segundo Sílvia Chi-
có20, pretendiam fazer o balanço da produ-
ção artística feminina até aí e da que se fazia
em 1977, mostrando o que tinha sido a in-
tervenção da mulher, no campo das artes e
ao longo dos tempos, em Portugal. Tinham
o objetivo de discutir o papel cultural da
mulher na sociedade portuguesa da épo-
ca e geraram muita polémica «apesar de
não se pretenderem como uma iniciativa de
Vernissage da exposição ARTISTES PORTUGAISES carácter feminista. Não podiam deixar de o
Paris, 28 de Março de 1977
ser: o próprio facto de terem sido agrupadas
Arquivos Gulbenkian (PRS 04805)
obras apenas de mulheres constituiu motivo
de surpresa e interrogação para um público
não habituado a intervenções semelhantes.

<<
Protestos houve também daqueles que longo dos tempos; aspetos do ser mulher e
[consideravam] que a mulher não [sofria] na bailarina em Portugal.
vida artística qualquer discriminação».21
6 de Fevereiro | 18.30 – Concerto | Grupo
De 24 de janeiro a 18 de fevereiro de 1977, de Música Contemporânea de Lisboa: inter-
foi possível assistir a diversas manifesta- pretação de composições de Clotilde Rosa,
ções artísticas entre as quais música, poe- Constança Capdeville e Maria de Lourdes
sia, literatura e vídeo, distribuídas por uma Martins (asseguradas pelo Grupo de Música
programação diversificada que englobava Contemporânea de Lisboa), partindo de im-
conferências, colóquios, concertos, recitais, provisos gráficos realizados por artistas plás-
projeção de filmes e debates, e nas quais ticos e pelo público.
participaram nomes como Eunice Muñoz,
Lurdes Norberto, Glicínia Quartin, Julieta Al- 7 de Fevereiro | 18.30 – Concerto de vio-
meida Rodrigues, Maria Antónia Palla, Antó- loncelo e piano | Teresa Portugal Núncio e
nia de Sousa, entre outras. Jorge Moyano: interpretação de peças de
Bach, Franchoeur e Schumann.
A programação definida contemplava, en-
tão, as seguintes iniciativas: 8 de Fevereiro | 18.30 – Recital de piano |
Maria Teresa Paiva: interpretações de obras
24 de Janeiro | 9.30 - Conferência de im- de Carlos Seixas, Mozart, Schubert e Chopin,
prensa: apresentação do evento e dos seus acompanhadas de notas explicativas sobre
objetivos, pela Comissão Organizadora. os compositores e a sua época, dadas pela
solista Maria Teresa Paiva.
25 de Fevereiro | 21.00 – Abertura do even-
to e inauguração das exposições 9 de Fevereiro | 18.30 – Recital de poesia e
literatura | Eunice Muñoz, Glicínia Quartin
26 de Janeiro | 21.30 - Conferência «Mulhe- e Lurdes Norberto: apresentação de obras
res artistas» | Beth Coffelt: apresentação da poéticas de autoras portuguesas através
exposição Liberation – 14 artistas americanas dos tempos.
e debate sobre a arte americana dos anos
70 feita por mulheres. 10 de Fevereiro | 21.00 – Recital de Canto |
Dulce Cabrita (voz) e Maestro Filipe de Sou-
28 de Janeiro | 21.30 – Conferência «Mulher sa (piano): interpretação de obras de Pur-
portuguesa, que mito que realidade?» | Ju- cell, Pergolesi, Händel, Mozart, Alban Berg
lieta Almeida Rodrigues: o papel da mulher e Fernando Lopes Graça, e dos poetas He-
na sociedade contemporânea. bbel e Mombert.

5 de Fevereiro | 18.30 – Colóquio «A mulher 11 de Fevereiro | 18.30 – Projeção do filme


e o bailado» | Armando Jorge e Isabel Santa experimental «Revolução» | Ana Hatherly e
Rosa: o papel da mulher como bailarina ao Alexandre Gonçalves

– CLAUDIA SIMENTA RODRIGUES 293


14, 16 e 18 de Fevereiro | 18.00 – Projeção À semelhança do que acontecia nos Estados
dos filmes «Nascer, viver e morrer», «Uma Al- Unidos da América, o evento cultural
zira como tantas outras», «Uma família alen- realizado em 1977, na Sociedade Nacional
tejana», «As atadeiras de Peniche», «O caso de Belas Artes procurava dar a conhecer ao
Sogantal» e «Por uma coroa Sueca» da série grande público a arte feita por mulheres e
«Nome de Mulher» | Maria Antónia Palla e afirmar (ou confirmar) a sua presença, des-
Antónia de Sousa de sempre, no espaço artístico português;
mostrar que o silêncio a que foram votadas
17 de Fevereiro | 21.30 – «A mulher e a cria- se deveu, um pouco no seguimento do re-
tividade» | Maria Antónia Fiadeiro, Maria An- ferido por Coffelt, ao facto de não terem
tónia Palla, Maria José Paixão, Salette Tava- «acesso a uma educação que as preparasse
res e Teresa Ambrósio: o papel da mulher na para isso.»23
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

arte e quais as razões do seu discreto apare-


cimento no seio do meio artístico. A exposição de 1977 revelava assim uma
«multiplicidade de tendências e técnicas
Devido à programação diversificada organi- de expressão características da arte
zada em paralelo com as três exposições, o contemporânea»24 fazendo deste evento
evento realizado na Sociedade Nacional de uma ótima oportunidade de confronto dos
Belas Artes atingiu um nível de complexida- contrastes existentes entre as diferentes
de bastante maior, tornando-se num espa- formas de expressão artística no feminino
ço de discussão e reflexão sobre a condição (contrapondo a produção nacional com a
da mulher na sociedade portuguesa e so- produção proveniente dos Estados Unidos
bre a sua produção e presença na vida artís- da América) e de debate de diversas ques-
tica em Portugal. tões ligadas ao ser-se mulher e artista, na
década de 70, em Portugal. Da mesma for-
O IMPACTO DO EVENTO CULTURAL ma, e segundo José Luís Porfírio, foi ainda
ORGANIZADO NA S.N.B.A. – Ecos e uma das mais interessantes tentativas de
repercussões de 1977 aos dias de hoje contrariar a tendência instalada de realiza-
Conforme referido pela crítica de arte ame- ção de «exposições individuais, bem como
ricana, Beth Coffelt, na conferência Mulheres a organização de salões colectivos que [re-
Artistas, realizada a 26 de janeiro na Socieda- sultavam] invariavelmente numa confusão
de Nacional de Belas Artes, a arte no femini- de critérios e de propostas estéticas que
no, enquanto movimento político e cultural, mutuamente se [anulavam]».25
nasceu com Gloria Steinem no início da déca-
da de 70. No final da década, contudo, ela sur- Como já foi referido, apesar de, de acordo
ge-nos «menos política, menos ruidosa, mas com o defendido pela Comissão Organi-
subtil, infinitamente mais fascinante […] É a zadora26, este evento não ter a intenção de
própria personalidade da arte das mulheres ser uma ação com carácter feminista, dado
que começa a surgir: com a sua visão interior as artistas participantes não sentirem a sua
e as suas emoções mais tranquilas.»22 condição feminina como motivo de discri-

<<
minação face aos seus pares masculinos, qualquer outro, em especial a pintura, que
sentindo-se acarinhadas e recebidas, pelo requeria uma disponibilidade de espaço e
público e pela crítica, com a mesma aber- tempo muitas vezes inacessíveis à mulher.30
tura que os demais artistas, a verdade é que
nos anos 70 (e à semelhança do que ainda Apesar de não vedada ao sexo feminino, a
hoje se verifica) as mulheres permaneciam cultura permaneceu durante muito tempo
uma minoria no seio do grupo dos artistas sob a “jurisdição” masculina. Segundo Fi-
mais cotados27. lipa Lowndes Vicente «ter nascido mulher
foi sempre um entrave ao ser artista: da
Para Maria Antónia Palla esta negação do falta de acesso ao ensino artístico ou às
feminismo por parte das mulheres, justifi- possibilidades de viajar, das condicionantes
cava-se pelo medo de perder o poder e/ sociais à profissionalização feminina, sem
ou privilégios que julgavam ter conquis- esquecer o peso das responsabilidades
tado, adotando um posicionamento qual familiares.»31 Dada a incontestável qualida-
«escravo que [adota] a ideologia do se- de da produção artística feminina e na im-
nhor».28 Partindo deste pressuposto Palla possibilidade de controlar a presença das
lança a questão já anteriormente aflorada mulheres no meio artístico, houve sempre
por Coffelt: «[…] porque razão, na história uma tentativa de a minimizar sob o pretex-
de arte portuguesa, as pintoras são raras?»29 to das obrigações e responsabilidades para
Não tendo, por isso, a pretensão de ser uma com o lar e a família, forçando à mulher
ação feminista, o evento organizado veio apenas à única opção de se dedicar a uma
possibilitar o refletir sobre problemas que tipologia de produção: a doméstica. Numa
as artistas portuguesas insistiam em não época de suposta liberdade (pós-25 de
considerar, quer fosse por hábito ou inércia: Abril) e de direitos igualitários para todos
o posicionamento da sociedade face a cria- os cidadãos, o papel da mulher na socieda-
tividade no feminino. de continuava confinado às tarefas do lar,
sendo-lhe quase sempre vedado o acesso a
Seria a posição subalterna da mulher, na uma formação especializada e a um empre-
sociedade, limitação a uma expressividade go condigno e remunerado.
criativa plena? Como justificar a prolifera-
ção de mulheres no campo da literatura ex- Tendo a mulher como tema central, este
tremamente contrastante com a sua exígua foi, certamente, um evento de extrema re-
presença em áreas como a pintura ou a mú- levância no abrir de portas e no mudar de
sica? Maria Antónia Palla responde a estas mentalidades, que possibilitaram à mulher
questões referindo Virgínia Woolf em Um um papel um pouco mais ativo na socieda-
quarto para si própria, para quem a subtile- de de hoje e onde se falou, acima de tudo,
za, descrição e acessibilidade que o uso do de arte e de intervenção. Foi, assim, possí-
papel e do lápis permitiam, era por si só jus- vel perceber que a arte produzida por mu-
tificativa de uma preferência feminina por lheres começava a adquirir, ao contrário
este meio de expressão em detrimento de do que era defendido pela Comissão Or-

– CLAUDIA SIMENTA RODRIGUES 295


ganizadora, uma especificidade, uma lin-
guagem própria; que a mulher tinha agora
consciência de si própria e das suas capa-
cidades, manifestando-se estas nos mais
diversos campos da criatividade, nomea-
damente na pintura, literatura, cinema, mú-
sica, teatro, entre outros.

Apesar de não ter sido a primeira vez que se


realizou um evento deste tipo em Portugal32,
pela sua especificidade, escala, importância
Ana Vieira - Santa Paz Doméstica, Domesticada?, 1977, e pelo questionamento e reflexão que le-
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

Dimensões variáveis | Coleção da autora. vantou à sua volta, este assumiu-se, em ter-
Fonte: www.anavieira.com | Copyright © 2014 Ana Vieira
mos históricos, como documento/testemu-
nho das mudanças que já se vinham a sentir
desde a década de 60 e, simultaneamen-
te, como refere Maria Antónia Palla, como
um «registo da presença das mulheres
portuguesas neste país e neste mundo»33.

Sendo assim inegável a importância e rele-


vância do evento, a perceção que fica, no
entanto, é que o mesmo ficou aquém das
expetativas no que diz respeito ao atin-
gir o grande público. A sociedade da épo-
ca, sendo uma sociedade que usufruía de
uma liberdade recente, era ainda, no enten-
der de Ana Vieira, retraída e impreparada,
que se revia numa produção de cariz mais
popular, tradicionalista, decorativa, do que
numa produção inovadora, intelectualizada,
contemporânea e feita exclusivamente por
mulheres.34 Também para Clara Menéres
a arte era apenas objeto de apreciação de
um grupo extremamente restrito e fechado,
sendo que a generalidade das pessoas se
identificava com uma tipologia de objetos
de gosto mais popular.35

<<
Apesar de ser esta a realidade da época, a
arte que se pôde ali apreciar era represen-
tativa de um afirmar da mulher enquanto
ser criador, de convicções fortes, lingua-
gem própria e grande irreverência expres-
siva e estética, abordando muitas vezes te-
máticas ligadas ao corpo (em todas as suas
vertentes, sem qualquer tipo de constrangi-
mentos ou restrições) e questões relaciona-
das com a casa e a família, que se tornam
muito evidentes nas obras de artistas como
Ana Vieira, Rosa Fazenda ou Clara Menéres.
Tomemos, por exemplo, o caso da instala-
ção Santa paz doméstica, domesticada? de
Ana Vieira que se trata de um claro protesto
não só às funções habitualmente atribuídas
às mulheres, como também à própria
passividade das mulheres perante a vida
que lhes era destinada.

O caminho iniciado pelas mulheres no de-


correr dos anos 60 e 70 e que veio a reper-
cutir-se no decorrer dos anos 80, invadindo
toda a cena internacional com o reconheci-
mento dos críticos e do mercado artístico,
com a contaminação das artes pela estéti-
ca feminina e com igual abertura à arte pro-
duzida no feminino, sem diferenciação de
género, veio igualmente a ter, no entender
de Emília Nadal36, repercussões no territó-
rio nacional apesar de forma extremamente
lenta; tão lenta que, ainda hoje, podemos
observar a existência de notórias discrepân-
cias entre o reconhecimento profissional a Ana Vieira - Santa Paz Doméstica, Domesticada?, 1977,
Dimensões variáveis | Coleção da autora.
que são votados os artistas mediante o gé-
Fonte: www.anavieira.com | Copyright © 2014 Ana Vieira
nero, não obstante nos estabelecimentos
de ensino superior artístico, o número de
mulheres inscritas ser ainda consideravel-
mente superior37.

– CLAUDIA SIMENTA RODRIGUES 297


manifestações culturais promovida
Assim, podemos concluir que, indepen- pela Sociedade Nacional de Belas-
dentemente da recetividade e entendi- Artes. Primeiro de Janeiro, 25 de
mento das verdadeiras intenções, da pre- janeiro de 1977, p. 5
sente exposição, pelo público, este foi um (Biblioteca Nacional de Portugal/
evento integrado num período que marcou COTA: J 2044 G)
AZEVEDO, Manuela de - Mulheres
o início de um difícil e lento processo de
mostram aos homens quanto
libertação de estereótipos e de reconheci- são “desembaraçadas”. Diário de
mento da mulher enquanto força motora Notícias, 27 de janeiro de 1977,
da sociedade e que antecipou uma temáti- p. 4
ca que só viria ser abordada de forma mais (Biblioteca Nacional de Portugal/
COTA: F 5701)
sistemática (apesar de nem sempre de for-
Duas exposições nas Belas-Artes.
ma constante) décadas depois.38 Tratou-se
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

Jornal de Notícias, 27 de janeiro


de um evento que acabou por se transfor- de 1977, p. 6
mar numa oportunidade única de discus- (Biblioteca Nacional de Portugal/
são da situação e do papel da mulher na COTA: FP 179)
sociedade de então, incentivando o diálo- 14 artistas americanas nas Belas-
Artes. Primeiro de Janeiro, 27 de
go e a reflexão entre homens e mulheres.
janeiro de 1977, p. 3
Um processo lento que, ainda hoje, se en-
(Biblioteca Nacional de Portugal/
contra em movimento e evolução e que COTA: J 2044 G)
tem vindo a sofrer, ao longo dos tempos, Belas-Artes promove
alguns avanços e recuos. manifestações culturais sobre o
papel da mulher. A Capital, 28 de
janeiro de 1977, p.21
(Biblioteca Nacional de Portugal/
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TAVARES, Salette. In Nacional de Belas Artes, ed. lit.. –
Babel, 2012. PORTUGAL. Sociedade Nacional Op. Cit, julho de 1978, p. 28-29.
6
VICENTE, Filipa Lowndes – de Belas Artes, ed. lit.. - Artistas 24
CHICÓ, Sílvia. In PORTUGAL.
História da Arte e feminismo: uma Portuguesas. Janeiro/Fevereiro Sociedade Nacional de Belas
reflexão sobre o caso português. 1977. Tavares, Salette, introd. Artes, ed. lit.. – Op. Cit, julho de
Revista de História da Arte. Lisboa: SNBA, 1977, p. 5-6. 1978, p. 1.
Práticas da Teoria, nº 10, p. 211. 15
Teresa Magalhães refere ter sido 25
PORFÍRIO, José Luís – Op. Cit.,
7
GONÇALVES, Rui Mário – uma das artistas participantes no fevereiro de 1977, p. 64-65.
Vontade de Mudança. Cinco inquérito realizado no decorrer 26
Refira-se, contudo, que no
décadas de artes plásticas. Lisboa: da investigação para este ensaio seio da própria Comissão
Caminho - Coleção Universitária, (ver RODRIGUES, Claudia Simenta Organizadora esta questão
2004, p. 126 – Questionário | Exposição não era pacífica, havendo entre
8
Alternativa Zero, Erotismo “Artistas Portuguesas” – Teresa os seus membros algumas
na Arte Moderna Portuguesa, Magalhães. Lisboa, 2015 ) divergências de posicionamento
Mitologias Locais, Fotografia na 16
CHICÓ, Sílvia. In PORTUGAL. no que concerne aos reais
Arte Moderna, O Papel como Sociedade Nacional de Belas objetivos do evento.
Suporte da Expressão são alguns Artes, ed. lit.. – Op. Cit, julho de 27
Os anos 70 foram uma época
exemplos dessas exposições. 1978, p. 1. de grandes mudanças a diversos
9
LIVINGSTON, Jane. In Portugal. 17
“A mulher como artista” na níveis, nomeadamente a nível
Sociedade Nacional de Belas Sociedade de Belas-Artes. Diário intelectual e político o que,
Artes, ed. lit.; PORTUGAL. de Notícias, 25 de janeiro de 1977, segundo Teresa Magalhães, veio
Embaixada dos Estados Unidos, p. 4. a permitir alguma autonomia
ed. lit.. – Liberation – 14 Artistas 18
PORFÍRIO, José Luís – Carta de e liberdade de expressão às
Americanas. Livingston, Jane, Lisboa. Colóquio Artes. Lisboa: mulheres e «foi uma época em as
introd.. Lisboa: S.N.B.A., 1977. Fundação Calouste Gulbenkian, nº mulheres apareceram bastante,
10
COFFELT, Beth – Mulheres 31, fevereiro de 1977, p. 64-65. estando presentes em inúmeras
Artistas. In PORTUGAL. Sociedade 19
BÁRTHOLO, Maria de Lourdes. manifestações, mas a maior parte
Nacional de Belas Artes, ed. lit. In Portugal. Sociedade Nacional delas desistiu em prosseguir. Não
– Artistas Portuguesas. Janeiro/ de Belas Artes, ed. lit. – Artistas havia nenhumas condições que
Fevereiro 1977. Chicó, Sílvia, Portuguesas. Janeiro/Fevereiro facilitassem esse difícil e heroico
introd.; Bártholo, Maria de 1977. Bártholo, Maria de Lourdes, percurso.» (in RODRIGUES,
Lourdes, apresent.; Bandeira, introd.. Lisboa: S.N.B.A., 1977, Claudia Simenta – Questionário |
Françoise, trad.; Fior, Robim, trad.. p. 3. Exposição “Artistas Portuguesas”
Lisboa: S.N.B.A., julho de 1978, p. 20
CHICÓ, Sílvia. In PORTUGAL. – Teresa Magalhães. Lisboa, 2015,
28-29. Sociedade Nacional de Belas p.2).
11
AZEVEDO, Manuela de – Op. Artes, ed. lit.. – Op. Cit, julho de 28
PALLA, Maria Antónia – Arte no
Cit., 27 jan. 1977, p. 4. 1978, p. 1. “feminino”. As mulheres criam uma
12
NADAL, Emília; CHICÓ, Sílvia; 21
CHICÓ, Sílvia. In PORTUGAL. arte própria? O Século Ilustrado, 4
MENERES, Clara – Conferência Sociedade Nacional de Belas de fevereiro de 1977, p. 6-11.
de imprensa. In PORTUGAL. Artes, ed. lit.. – Op. Cit, julho de 29
PALLA, Maria Antónia – Op. Cit.,
Sociedade Nacional de Belas 1978, p. 1. 4 de fevereiro de 1977, p. 6-11.
Artes, ed. lit.. – Op. Cit, julho de 22
COFFELT, Beth – Mulheres 30
PALLA, Maria Antónia – Op. Cit.,
1978, p.28. Artistas. In PORTUGAL. Sociedade 4 de fevereiro de 1977, p. 6-11.

301
31
VICENTE, Filipa Lowndes – A Outubro de 2008, p. 3.
arte sem história: mulheres e 37
Em 2014, dos 35.492 alunos
cultura artística (séculos XVI-XX). matriculados no ensino superior,
Lisboa: Babel, 2012. nas áreas de Artes e Humanidades,
32
Em 1947 teve também 58% eram mulheres. In PORDATA
lugar na S.N.B.A. uma outra - Alunos Matriculados do Ensino
exposição, intitulada Exposição Superior - Por área de educação e
das Mulheres Escritoras de formação.
todo o mundo e organizada 38
Filipa Lowndes Vicente refere
pelo Conselho Nacional das no seu artigo História da arte e
Mulheres Portuguesas que, feminismo: uma reflexão sobre
segundo Manuela de Azevedo o caso português a existência,
(in AZEVEDO, Manuela – Op. Cit., «nos últimos anos, [de] um claro
27 de janeiro de 1977, p. 4), teve despertar crítico da história da arte
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

à sua frente Maria Lamas, tendo portuguesa em relação a estes


decorrido ainda no tempo em temas, mesmo que, por vezes,
que a liberdade de expressão ainda disperso e fragmentado em
era uma realidade longínqua. conferências e artigos escritos
Esta exposição foi parcialmente sob diferentes perspetivas, mas
reposta em Março de 1990, pelo centrados sobretudo em estudos
MDM, com o apoio da Sociedade de caso». In VICENTE, Filipa
Nacional de Belas-Artes. Lowndes – Op. Cit., p. 213.
Ao longo dos anos têm sido
realizadas outras exposições
exclusivamente de mulheres e
de arte no feminino, mas sem
o número de manifestações
culturais multidisciplinares que
estiveram associadas ao evento
e que contribuíram de forma
determinante para o seu sucesso.
33
PALLA, Maria Antónia – Op. Cit., 4
de fevereiro de 1977, p. 6-11.
34
RODRIGUES, Claudia Simenta –
Entrevista a Ana Vieira. Lisboa, 2015,
p.1.
35
Opinião emitida em conversa
informal realizada ao telefone a 6
de junho de 2015.
36
NADAL, Emília – De Paula Rego
a Joana Vasconcelos. O Feminino
Exasperado (resumo). Colóquio
Internacional “Olhares sobre a
Mulher e o Feminino no Centenário
de Simone Beauvoir”. Lisboa:
Faculdade de Ciências Humanas/
Universidade Católica Portuguesa,

<<
S
egue-se um conjunto de exercícios de crí-
tica de arte, desenvolvidos sobretudo na
unidade curricular de Estudos de Crítica
de Arte I e II do Mestrado de Crítica, Curadoria
e Teorias da Arte. Considerando que o melhor
modo de assimilar a prática da crítica de arte é,
como em muitas coisas, exercendo-a, esta parte
da Convocarte consagra esse sentido da palavra
«exercício».

Crítica de Exposições e Eventos Culturais


Por outro lado, considerando a rarefacção da
crítica de arte no seu tradicional espaço dos
periódicos (jornais e revistas), com uma deslo-
cação parcial para a internet, em sites raramen-
te especializados, implicando um preocupante
défice de crítica no espaço público de recepção
das questões artísticas (deixando várias exposi-
ções, normalmente as que mais precisavam, sem
qualquer reacção crítica), este pretende ser o
lançamento de um espaço que procura deixar
publicada uma amostra de crítica de exposições
recentes. A crítica de arte, nascida e desenvolvi-
da nos periódicos desde o século XVIII, acom-
panhada duma admissão resiliente por parte da
Universidade, parece que se perde na primeira
enquanto se começa a admitir (e sobreviver) na
segunda.

A escolha das exposições criticadas é da opção


de cada autor. Foi da responsabilidade dos pro-
fessores e da coordenação o acompanhamento
através duma interlocução de tutoria, habitual na
Universidade, como um pequeno espaço de dis-
cussão que implicou, em certos casos, alterações
por parte dos autores até às versões aqui publi-
cadas. Se estas práticas críticas nascem de mes-
trandos e doutorandos da FBAUL, o espaço está
aberto a colaborações exteriores que se queiram
propor à coordenação da Convocarte.

A Coordenação Geral
Fátima Mendonça O universo de Fátima Mendonça desenvolve-se
na confrontação entre o imaginário da infância
– Operando (Com) O Medo e a realidade da idade adulta. A sua obra é por
isso invenção, fantasia e ironia, denotando, na
Exposição Retrospetiva sua construção, uma forte ligação à casa e à vida
doméstica e o recurso a uma simbologia que lhe
Centro de Arte Manuel de Brito, Algés é muito própria e à qual recorre com frequência
26 Setembro 2014 – 15 Setembro 2015 nas suas representações.

Exposição «A Cura - Operação ao No Centro de Arte Manuel de Brito apresenta-se


cérebro» assim uma exposição comemorativa dos 50 anos
da artista, composta exclusivamente por obras da
Galeria 111, Lisboa coleção da instituição, que sendo uma coletânea
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

15 Novembro – 31 Dezembro 2014 extremamente relevante da sua obra, permite-nos


ter a perceção do que foi o seu percurso até hoje.
por Claudia Simenta Rodrigues
Através de séries como A casa do desarranjo,
Eu tenho medo; lá, lá lá, lá, lá..., Para te fazer não
tem nada que saber, Assim... assim... assim...
«[O medo] acompanha-me a vida toda. […] aos para gostares mais de mim, Para Cegar o Medo,
poucos, ele instala-se e não o consigo mandar Casa-Carrossel, entre outras, é nos apresentada
embora. Tenho medo, tenho medo. […] Fujo do uma evolução iconográfica em crescendo, cada
medo, mas é ele que me faz pintar e ser quem vez mais exacerbada, que é representativa dos
sou da forma que sou.» (Fátima Mendonça em estados de alma da artista, mas que nos toma
entrevista à 30 Dias|Oeiras). também a nós, espectadores, e nos contrai so-
bre aquela que é a nossa própria realidade, ao
Há precisamente 50 anos que Fátima Mendon- ponto de quase nos sentirmos implodir.
ça opera (com) o medo. Desde sempre o sentiu.
Sempre esteve presente de uma forma ou de ou- Subitamente, contudo, retornamos ao ponto de
tra. O medo como base da construção humana, partida e apercebemo-nos que estivemos sem-
na sua mais extensa indefinição, enquanto cria- pre a caminhar em círculos, dando voltas e voltas
ção de uma realidade/fantasia infantil. Fátima num emaranhado obsessivo de pensamentos,
sempre teve medo. Medo de um todo indefini- sentimentos e sensações, que constroem uma
do, grandioso, castrador, visceral. narrativa (a narrativa da vida real/ilusória de Fáti-
ma Mendonça), de representação simbólica mui-
Foi nas Belas-Artes de Lisboa, através da pintura, to própria, construída nos ambientes domésticos
que Fátima Mendonça encontrou forma de lidar já anteriormente referidos. Nestes espaços en-
com esse medo; um medo que, por todas as ra- contramos meninas de corpos desengonçados e
zões que lhe são intrínsecas, é criador e criativo frágeis, bolos e doces, coelhinhos, toureiras em
e que se permite ser transposto para a tela em lutas cruéis de arena, jaulas com meninas-mulher
emaranhados difusos (e confusos) de linhas, re- de saltos altos e corpos dilacerados e feridos;
des, tricotados, contornos, cromatismos vibran- tudo elementos que habitam o universo constru-
tes e palavras. Muitas palavras. ído de Fátima Mendonça.

<<
«[…] o sentimento é sempre o mesmo […] O
que me levou a pintar os primeiros trabalhos
a escuro que se vê no CAMB é o mesmo que
me levou a pintar os meus últimos trabalhos.
É o mesmo núcleo. É como se fosse o mesmo
cheiro. É sempre o mesmo sentimento, sempre.»
(in 30 Dias|Oeiras).

As obras presentes na exposição do CAMB são


quase todas de grande dimensão, podendo
ser feito o paralelo ao modo de construção do
nosso próprio pensamento: a sua dimensão re-
sulta da justaposição de várias telas de menores A Cura – Operação ao cérebro (2014),
dimensões - fragmentos do pensamento - que Galeria 111 (Lisboa)

só depois de unidos compõem o todo que é o


modo de pensar e sentir de Fátima Mendonça. «Defendo-me muito pouco, confesso que não
sou uma pessoa de grandes tapumes.» (in 30
Numa das salas centrais surgem-nos quatro te- Dias|Oeiras).
las gigantescas, que ocupam todo o espaço e
o fecham sobre nós. Sentimo-nos invadidos, Nos seus trabalhos a tónica não se coloca tanto
tomados pelo mesmo medo que ao longo dos ao nível da técnica ou do modo de represen-
anos tem amedrontado a artista. Somos, assim, tação. Muitas vezes o desenho, de carácter re-
forçosamente transportados para o seu universo correntemente infantil, extravasa os limites do
e obrigados a ver o mundo pelos seus olhos (ou suporte, e aquilo que nos é dado é apenas uma
forçados a ser alvo da observação dos inúmeros pequena parcela do pensamento compulsivo
olhos presentes nalguns dos seus trabalhos). da artista. O que é verdadeiramente relevante
é o grafar desse pensamento no suporte e a
Percorrendo as salas de exposição do CAMB, rapidez com que o mesmo é transposto para a
constatamos que cada obra não se finaliza na tela; quase como se a artista sentisse uma ne-
sua última pincelada; esta dá o mote para a cessidade premente e constante de purga, de
próxima obra que irá nascer e assim se cria a purificação do seu corpo de impurezas ou ma-
narrativa que caracteriza o trabalho e o universo térias indesejáveis (o medo). Neste contexto,
da artista. O seu trabalho é homogéneo; aqui as palavras que se inscrevem na tela resultam
tudo se inter-relaciona, tudo está conectado. de uma escrita automática; são ladainhas, pre-
Apesar da aparente incoerência (para muitos ces a que a artista recorre para exorcizar esse
loucura) que possa ressaltar da sua obra, Fá- medo.
tima Mendonça é uma mulher extremamente
coerente no discurso que nos apresenta; na sua A exposição do CAMB encontra-se, no entan-
obra tudo bate certo, tudo encaixa. Não é uma to, incompleta. Para assistirmos ao culminar de
pessoa de ocultações; tudo o que pensa, tudo todo este processo, temos que forçosamente
o que lhe trespassa o íntimo é transposto para nos deslocar ao número 113 do Campo Gran-
a tela. de, à Galeria 111, espaço com a qual a Fátima
Mendonça mantém uma relação de grande

305
proximidade deste que começou a expor os nião para operação pouco favorável». Estas fun-
seus trabalhos, no início dos anos 90. cionam como legendas, como descritores da
obra e da intervenção que irá ser realizada.
Aqui somos convidados a assistir ao processo de
“Operar o medo”. A exposição A Cura – Operação Nesta série há ainda uma preocupação estética;
ao cérebro, com trabalhos de menor dimensão, a de ocultar, após a intervenção, a “bolsa tricota-
apresenta-nos a operação à cabeça de artista da” que pende do crânio e incomoda a “doente”.
com o objetivo de acabar de vez com a presença Para tal a artista sugere a criação de um “pentea-
deste medo irracional e extemporâneo. do moderno” com bolos a decorar, reportando-
-nos a outras obras do passado.
Desta feita, o suporte utilizado é maioritariamen-
te o papel, numa aparente sugestão a um conce- No fim de tudo, feito o percurso e operado o
ber de um projeto de intervenção “médica” (se mal, cabe-nos perguntar: e agora? Que caminho
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

assim lhe podemos chamar) e não tanto a uma poderá Fátima Mendonça seguir a partir daqui?
representação da operação em si; trata-se da Tudo dependerá do sucesso (ou não) da opera-
planificação da intervenção a realizar. ção realizada. Contudo, deveremos ter em men-
te que do sucesso desta operação poderá provir
Aqui e ali, surge-nos uma ou outra tela, expla- o risco de extinção do motor criativo da obra
nando de forma mais concisa a referida opera- artística de Fátima Mendonça - o próprio Medo.
ção ao cérebro noticiada como a “Cura” da ar-
tista: «Procedimento experimental de recurso!
1 – Couro cabeludo afastado; 2 – Osso craniano
cortado; 3 – Cérebro à vista – exposto; 4 –
Cérebro intervencionado – operado; 5 – Voltar a
a colocar a “tampa”; 6 – Coser couro cabeludo; 7
– Observar comportamento; 8 – Tirar da paciente
o medo doentio.»

Somos então confrontados com uma série de


representações de cabeças abertas, por onde
vemos sair os males que afetam a artista, na bus-
ca incessante de uma cura para os seus medos.
Numa das representações da intervenção é in-
troduzida, no cérebro, uma imagem de Nossa
Senhora de Fátima, noutra são mãos postas a re-
zar; tudo na derradeira tentativa de lidar de vez
com este Medo, invasor de mentes e castrador
de sentimentos.

Acompanham as obras mensagens como: «Ten-


tativa 207 - O medo – Possível tratamento da
Maria de Fátima», «Tirar os males. Tão amados.»,
«Para deitar o medo cá para fora» e «obs.: Opi-

<<
José de Guimarães no TMG
Exposição 'Provas de Contacto'
do Stencil ao Digital:
Processos de Transferência
da Imagem
Galeria de Arte do TMG, Teatro Municipal da Guarda
27 de Setembro – 31 Dezembro 2014

por Joana Correia Saraiva


José de Guimarães, Gioconda Negra
(1975)

A exposição ‘Provas de Contacto’ de José de aptidão para imaginar e criar, desenvolvendo


Guimarães, inaugurada no passado dia 27 de assim um código imagético único e distintivo
Setembro na Galeria de Arte do TMG, Teatro de qualquer outra composição realizada pelos
Municipal da Guarda, reflete uma vida artística artistas seus contemporâneos. Com organização
repleta de viagens e vivências pelo globo, com conjunta entre o Teatro Municipal da Guarda e o
um caráter particular na composição de cada CIAJG, Centro Internacional de Arte José de Gui-
imagem, de cada obra. José de Guimarães, marães e com curadoria de Nuno Faria, curador
pseudónimo eleito por José Maria Fernandes responsável do CIAJG, a exposição apresenta
Marques, em homenagem à cidade de onde é técnicas de produção de imagem por transferên-
natural, Guimarães, possui um abastado percur- cias, entre a gravura e o stencil, tão próprias do
so artístico, com inúmeros prémios, nacionais e artista. Todo o conjunto apresentado possui uma
internacionais atribuídos e obra presente nos vá- linha comum, condutora, a colocação de uma
rios continentes. Alguns dos prémios recebidos frase, de um número, ou letras soltas, em cada
e que merecem ser referidos, sem desprimor peça, em todas as peças. Nas imagens retratadas
para os restantes, contudo estes tendo sido os predominam as influências africanas com inter-
primeiros, marcaram o início de uma carreira atu- pretação de mulheres, como é exemplo a série
almente consolidada, são o Prémio de Gravura Negreiros, com a técnica monotípica, tinta de im-
no Salão de Arte Moderna da Cidade de Luanda pressão aquosa e vidro moído sobre papel. Num
em 1968, Medalha de Bronze do Prix Europe de total de dezassete peças, esta série representa fi-
Peinture de la Ville de Ostende em 1980. Com guras bidimensionais monocromáticas, despidas
licenciatura em Engenharia, tendo-se também e de perfil. A linha condutora referida é bem visí-
inscrito posteriormente em Arquitetura na Es- vel nesta série, onde as imagens de números se
cola Superior de Belas Artes de Lisboa, foi nas sobrepõem às figuras humanas representadas,
artes plásticas que sobressaiu, unindo sobretudo num negativo cromático. Uma outra série que-
a arte aos estudos de etnografia africana. Com bra inteiramente o padrão ritmado da série an-
cooperação de Gil Teixeira Lopes no desenho e terior, com composições coloridas e recorrendo
de Teresa de Sousa na pintura, adquiriu o supor- a uma aparente colagem de formas articuladas
te necessário, aliado claramente à sua própria entre si, representante de membros humanos ou

307
de temas de cariz político, transmitindo um com- Víktor Ferrando
pleto domínio do artista na prática da gravura,
lembrando algumas obras de Picasso. Algumas Exposição «Planet Ferrovia
das obras a destacar são sem dúvida a Gioconda Sector IX Via Lusitânea»
Negra, Mulher ao Espelho, o Grande Nu e o 1º
Maio III, todos criadas entre 1973 e 1979. Todas Centro de Cultura Contemporânea
elas realizadas com a técnica serigrafia. A série de Castelo Branco
seguinte é marcada por obras experimentais e 15 Novembro 2014 – 5 Abril 2015
de cronologia anterior, da década de 60, e com
a técnica de xilogravura, com é exemplo a peça por Mariana Salgueiro
Múmero8, de 1968. Sobre cavaletes e protegi-
dos com um painel de vidro, para evitar o toque
dos mais curiosos, estão dispostos inúmeros
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

stencil, utilizados da realização de tantas des- Depois da abertura do Centro de Cultura Con-
tas obras agora aqui apresentadas, material de temporânea em Outubro de 2013, com a expo-
trabalho que, ao longo dos anos, ao longo das sição “Arte Latino Americana”, que apresentou
décadas, acompanharam o artista, fizeram dele obras da Coleção Berardo, a exposição “Planet
e da sua obra o que ela representa hoje para um Ferrovia Sector IX Via Lusitânea” veio dar continui-
visitante, para cada visitante, para a história da dade ao programa do CCCCB. Esta nova exposi-
arte de uma país, este país. ção, comissariada por Guida Maria Loureiro, veio
apresentar várias instalações de Víktor Ferrando.

O artista valenciano teve um percurso eclético e


sobretudo autodidata, porém, nesta exposição,
assume o seu interesse pelo futurismo italiano,
começando logo pelo texto que abre a exposi-
ção, o ponto 11 do Manifesto Técnico do Futuris-
mo (1912), escrito por Filippo Tommaso Marinetti.

Ainda antes de entrar no espaço do Centro de


Cultura Contemporânea somos cumprimenta-
dos por quatro grandes esculturas de material
ferroviário reutilizado, que nos elucidam sobre
o tipo de material com que este artista trabalha.
Embora num primeiro momento tenha pensado
que representavam peixes, as grandes escultu-
ras são a reflecção de um imaginário ligado ao
espaço. As esculturas-instalações representam
Neptuno, Vénus, Marte e Titã.

No interior, as cinco salas do primeiro piso são


espaços amplos que albergam as instalações
que nos contam a primeira parte da história.

<<
Na primeira sala, a peça “Marinetti Il Desinfec- dos pelo chão. Os significados de cada peça são
tadore”, Ferrando introduz o mote futurista da descritos de forma complexa, mas a peça atinge
narrativa e faz uma homenagem ao Futurismo o objetivo de passar uma ideia de abandono e
italiano. Com especial destaque para Marinetti, tristeza sem precisar de explicações rebuscadas.
personalizado na figura central, os percursores
do futurismo são representados pelas malas de A quinta sala apresenta um vídeo sobre o artis-
viagem flutuantes. Contudo, esta afirmação de ta que se resume à passagem de um conjunto
influências é revelada numa imagem depressiva, de fotografias tiradas noutros espaços onde a
que recorda o que foi abandonado nos campos exposição “Planet Ferrovia Sector IX Via Lusitâ-
de concentração nazis após a chegada dos Alia- nea” foi apresentada. Esteticamente não é muito
dos. É uma partida para um novo lugar, que não relevante, nem introduz informação que revele
se sabe se é bom ou mau, deixando uma terra magicamente os significados escondidos das
abandonada, solitária. restantes peças da exposição, daí ser perfeita-
mente dispensável.
Na segunda sala, Ferrando cria uma instalação
que tem como intenção dar dimensão material Ferrando sugere com as últimas duas peças uma
ao Movimento Fluxus, em que normalmente é colonização de Marte, após a destruição da Terra
o artista o próprio suporte da arte. Esta peça é - a narrativa das primeiras peças. A estética tor-
descrita como um pedido de ajuda para pôr fim na-se mais acessível nos últimos dois momentos,
à fome especialmente dirigido ao presidente o que nos leva a perguntar se não deveriam ser,
dos EUA, Barack Obama. Contudo, esta intenção por isso, as primeiras peças a apresentar - é uma
nem após a leitura da folha de sala se torna clara, questão para a curadoria.
talvez porque a estética do artista é muito pesso-
al e é especialmente virada para o seu próprio A sexta sala mostra, assim, um conjunto de cin-
sentimento e não se parece preocupar em co- co esculturas inspiradas nos satélites de Marte.
municar com o público. A estética é semelhante à das peças exteriores,
que representam planetas, mas é acompanhada
“DJ Lambreta” e “Simbiotic Interlock”, que ocu- por cabeças humanoides: crânios transparentes,
pam a terceira e quarta salas, respetivamente, mostrando cérebros, e cara tapada com másca-
fazem uso de alguns elementos comuns. As lam- ras de gás: uma Humanidade desumanizada. A
bretas e o carro são símbolos de uma tecnologia peça seguinte, uma estrutura que sustenta for-
decadente que se alimenta do ser humano e que mas de sapateiro sobre carris, é uma marcha de
o esvazia de poder sobre si próprio. Em “DJ Lam- um exército ou tao somente de um povo pobre
breta” o manequim decapitado é um ser humano à procura de melhores oportunidades sobre um
autómato, que não funciona por si, e em “Sim- novo terreno, ainda por conhecer. A ideia de eva-
biotic Interlock” vemos como a tecnologia não são da Terra ganha aqui uma atualidade brutal,
funcionaria sem humanos, mas que estes se con- especialmente numa altura em que assistimos à
tinuam a deixar dominar e destruir dessa forma. destruição do nosso próprio planeta. Fazemos
mesmo um paralelo com outras expressões des-
“Desolation” é a última peça do primeiro piso e te sentimento de preocupação com o planeta,
termina a primeira parte da história. Tendo em com filmes como “Interstellar” (2014) - atualmen-
conta as peças anteriores, esta é minimalista, te nomeado para os Óscares - ou documentários
com elementos isolados e desolados, espalha- como “Cowspiracy” (2014).

309
Ao terminar a visita a palavra que fica, acima de Salette Tavares
tudo, é desolação. É um sentimento de vazio
amargo de uma Humanidade expulsa da sua Exposição «Salette Tavares:
própria casa. A reutilização de materiais úteis, Poesia Espacial»
ou seja materiais com um outro fim que não o
estético-artístico, é um elemento que aumenta FCG-CAM – Galeria, Lisboa
a sensação de abandono e de desumanização 17 Outubro 2014 (inauguração) – 25 janeiro 2015
presente em toda a exposição. Mesmo nos últi-
mos momentos da exposição - em que, segundo por Margarida Eloy
a narrativa, a Humanidade se expande, chega
mais longe e ocupa outros planetas - o sentimen-
to de desumanização ainda está presente: a hu-
manidade não é mais humana, é metálica, vazia. Encontra-se presente na galeria de exposições
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

temporárias do CAM da Gulbenkian a exposição


No exterior, a mensagem parece, contudo, mais “Salette Tavares: poesia espacial”, com curadoria
otimista - à noite, brilhante mesmo (as instala- de Margarida Brito Alves e Patrícia Rosas.
ções têm leds que acendem à noite). Esta é uma
chamada de atenção para um Universo com Salette Tavares (1922-1994), foi uma escritora
muito por descobrir, muita luz para procurar. É Portuguesa nascida em Moçambique, formada
também interessante perceber que a exposição em Filosofia e Estética. Embora tenha produzido
começa e termina neste mesmo ponto, com as diversas obras literárias e artísticas, ficou conhe-
instalações exteriores, que representam plane- cida sobretudo pelo seu envolvimento na poesia
tas: o eterno Universo, que já existia muito antes experimental dos anos 60. A sua obra cruzou a
de existir a Terra e continuará a existir muito de- produção literária e a prática artística, estenden-
pois da Humanidade desparecer. do-se à poesia visual, à sua exploração tridimen-
sional e à produção de objetos.

Trata-se de uma retrospetiva da carreira de Sal-


lete Tavares e de um aspecto muito presente na
sua obra, a exploração da “dialética das formas”.
Para esta mostra foram reunidos trabalhos em
múltiplos domínios, alguns deles inéditos e ou-
tros reconstruídos para esta mostra.

A abordagem relativa à “Dialética das formas”,


trata-se de uma exploração do discurso e da
linguagem enquanto forma física e espacial.
Salette trabalha a poesia, não como linguagem
escrita, mas sim como linguagem espacial, tridi-
mensional. Procura dar forma á poesia, tirando
proveito da tipografia das palavras e da pontua-
ção, criando ritmos esculturais que se espalham
pelo espaço expositivo.

<<
A exposição divide-se em três salas, a primeira,
com um corredor inicial onde se observam tex-
tos de Salette nas paredes e três obras, um qua-
dro com desenho e escrita, uma chapa de metal
com letras marcadas que explora a tipografia da
palavra Alquerubim, e no fundo do corredor
uma peça escultórica, um mobile de aço inox,
onde se pode observar a junção de inúmeras
letras do alfabeto, esta peça foi inspirada pelo
poema “Maquinin”, que deu nome à peça criada
em 1963.

Ao entrar na segunda sala observamos uma di-


versidade de objetos artísticos, desde desenho, Maquinim, 1963-2010 [Réplica única de
mobile em aço inox. 40 x 40 x 200 cm.
escultura, instalação e fotografia.
Col. Tiago Aranda Vianna da Motta
Brandão
No centro da sala é possível observar uma mesa
com uma peça que pretende ilustrar a frase po-
pular “O rato roeu a rolha do rei da Rússia”, tal segundo tipo de abordagem face à linguagem,
como esta, existem outras representações seme- é através do uso do suporte da linguagem para
lhantes, como o cartaz tipográfico com o nome realçar a ausência dos seus elementos, palavras
“O menino Ivo” de 1963. e pontuação.

Junto à parede encontra-se uma mesa cheia de Até aqui, a autora explorou a linguagem enquan-
objetos escultóricos, de madeira, feitos pela artis- to forma, utilizando os elementos da escrita, nesta
ta. Embora não sejam, uma exploração direta da segunda abordagem foca-se na ausência destes
palavra e do discurso, parecem-me suscitar a ideia elementos, pelo uso do silêncio. Em “livros efé-
que estas obras são a projeção simples do signi- meros” de 1979, podemos observar dois livros
ficado do seu titulo. Isto é, as figuras presentes na feitos de seda onde não foi impresso nenhum
mesa, têm o titulo daquilo que parecem represen- texto. Os livros, são conhecidos como suportes
tar, ao observar-mos uma figura de um cavalo, no- de linguagem, neste caso da linguagem escrita,
tamos que o titulo dessa obra é a palavra cavalo. A algo que foi certamente pensado pela artista. Sa-
autora pretende assim, a anulação de uma dimen- lette, viu nos livros a potencialidade da lingua-
são simbólica e a presença do significado direto gem como discurso, e como parte integrante do
da palavra sob o objeto representado. discurso, o silêncio, elemento que embora seja
fulcral, é muitas vezes esquecido na linguagem.
Existe uma constante exploração da linguagem, Os “Livros efémeros” são livros cujas páginas se
que se bifurca. Salette explora dois tipos de mantiveram em branco, onde nada foi impresso,
abordagem face à linguagem. A primeira, é a lin- e apenas se observam folhas vazias de caracte-
guagem enquanto forma, pelo uso dos elemen- res. A autora, conseguiu com esta peça, dar uma
tos da palavra e da pontuação. Como se observa abordagem da linguagem enquanto forma e ao
na maioria das peças da exposição, e sobretudo mesmo tempo enquanto ausência. Salette utiliza
na peça “Jarra pontos e vírgulas” de 1959/63. O o silêncio como elemento que simboliza a ausên-

311
cia de forma, mas ao mesmo tempo torna este curso que Salette apresenta nas suas obras de
elemento físico ao colocá-lo sobre o suporte do linguagem física e tridimensional permitem um
livro, o branco é aqui a versão física do silêncio, dialogo com o espetador, devido á forma como
é a sensação do nada e do vazio. Mas não deve- estas obras reagem com o espaço e o movimen-
mos esquecer que o silêncio é um elemento im- to, mas também porque partilham a mesma con-
portante do discurso, que não é exato, mas que é dição física que o ser humano.
extremamente simbólico. Pode simbolizar diver-
sas intenções: desde a falta de conhecimento, à Embora as obras sejam de diferentes tipos,
pausa de pensamento, e à abstinência conscien- como cartazes, esculturas, instalações, partilham
te do discurso. a mesma noção de “Poesia espacial”, de lingua-
gem tridimensional através da exploração da
Ainda neste espaço, está presente uma montra, palavra como forma, esta partilha de conteúdo
onde se encontram os estudos para as obras concede à exposição alguma coerência.
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

desenvolvidas por Salette Tavares ao longo dos


anos, e alguns livros que inspiraram estas cria- Entende-se que ao ser uma exposição retrospe-
ções. Existe também uma mesa onde podemos tiva, possa existir um certo carácter biográfico na
observar fotografias que parecem fazer parte da forma como as obras são apresentadas, a pre-
infância da artista. sença de uma mesa com fotografias da autora
acaba por se mostrar bastante acessória, pois
Na terceira e última sala existe apenas um ob- não está ligada à noção da poesia espacial, nem
jecto, um mobile em cobre cromado. Esta peça se liga organicamente com as obras expostas,
tem o nome de Bailia e é uma réplica da peça não enriquece o espólio da exposição.
original de 1979, este mobile foi criado como
uma representação tridimensional do poema A exposição mostra coerência temática que une
“Bailia das avelaneiras” do trovador Aitas Nunes a diversidade formal. A iluminação é difusa, e
de Santiago. Ao ver a peça com pormenor com- não parece ter em atenção a tridimensionalida-
preendemos que são as frases do poema que de dos objetos, tornando-os, à primeira vista,
observamos, e que através da iluminação de um objetos planos e sem grande interesse escul-
único foco de luz, e da movimentação própria do tórico. Esta percepção é alterada quando nos
mobile, este poema ganha uma nova vida peran- aproxima-mos das obras e entendemos que as
te o espectador, trata-se de uma forma inovado- suas potencialidades visuais e escultóricas po-
ra de ler e sentir a poesia. deriam ser exploradas pelo uso de outra ilumi-
nação, mais especializada, que permitisse um
Esta exposição apresenta-se como uma retros- maior destaque da obra face ao ambiente que
petiva do trabalho de Salette Tavares, embora o a rodeia.
que seja aqui trabalhado seja a tridimensionali-
dade da linguagem escrita que ganha aqui uma A ferramenta da luz poderia completar a explo-
nova vida e uma nova compreensão. Enquanto ração da linguagem enquanto forma, apoiando
o palavreado das obras literárias apresenta um a noção presente na obra de Salette Tavares.
discurso individual e de certa forma egoísta, vis-
to que que o leitor tem de chegar à história que
ali está, no seu meio especifico e que nenhuma
intersecção física pode ter com quem a lê. O dis-

<<
A Galeria Virtual do e assim evitar deixarmo-nos naufragar no jargão
tecnologista que inevitavelmente rodeia a cha-
Post-Screen Festival 2014 mada “arte digital”, e cujo efeito mais perverso
pode ser o de camuflar ou confundir o potencial
FBAUL valor artístico da obra em questão. De resto, tal-
Novembro 2014 vez seja a esse efeito de fetichização que se pos-
sam atribuir as conotações negativas com que
por Diogo Freitas da Costa parte importante da crítica contemporânea tem
encarado a arte produzida no terreno dos meios
digitais, como lamenta Josephine Bosma (http://
www.josephinebosma.com/web/node/98), alu-
Em lugar algum. dindo a autores como Bourriaud; Foster; Jame-
son; Krauss; Virilio ou Rancière.
O certame organizado pela secção de Ciberarte
do Centro de Investigação e Estudos Belas Artes A consciência do ecrã enquanto dispositivo que
(CIEBA) - Post-Screen Festival 2014 - apresenta- medeia a experiência estética retirada de um ob-
-se como a 1ª edição de um Festival Internacio- jeto artístico pode fazer-se remontar ao lendário
nal de Arte, Novos Media e Ciberulturas. Para episódio, segundo o qual Parrásio de Éfeso, no
o efeito, Ana Vicente e Helena Ferreira (CIEBA- século 4aC., terá pintado uma cortina que levou
-FBAUL) conceberam um programa que se des- o seu rival Zeuxis a querer afastá-la para ver o
dobra num conjunto eventos de natureza diversa que escondia, acabando por “descobrir” apenas
– workshops, conferências e exposições – a de- o seu engano. A noção de que o médium interfe-
correr simultaneamente na Faculdade de Belas re ativamente na própria perceção do fenómeno
Artes de Lisboa durante o mês de Novembro. artístico, e por inerência sobre a realidade que
Embora querendo aqui cingir-nos à vertente ex- aquele quis representar, não será exatamente
positiva deste festival, estaríamos a omitir um dos um dado novo. Na história das artes visuais en-
seus aspetos mais relevantes, e até a desvirtuar a contramos inúmeros momentos em que a intro-
própria experiência dos trabalhos reunidos, se dução de dispositivos técnicos e tecnológicos
não tomássemos nota da abrangência de um fes- vieram confirmar e atualizar esse dado. E de
tival que, a par de uma vincada aproximação dos facto, especificamente no que se refere à ideia
meios académicos e artístico claramente aposta- de “ecrã”, é impossível não pensar nas sucessivas
da na transdisciplinaridade e transnacionalidade abordagens ao plano pictórico - desde a “janela”
– reunindo investigadores e artistas de várias uni- renascentista à grelha modernista, para não fa-
versidades nacionais e internacionais – deve ser lar, evidentemente, de toda essa revolução que
entendido, antes de mais, como um evento inte- a fotografia e o cinema vieram introduzir neste
grado e construído numa lógica de networking. domínio. A esse propósito, lembramos que em
2014 celebrou-se o quinquagésimo aniversário
Confrontados com o conjunto de obras realiza- da publicação do livro de Mashal Mcluhan, Un-
das no âmbito de um festival como este, expli- derstanding Media, obra que se assumiu como
citamente centrado na “questão da utilização de marco inaugural do debate em torno da própria
ecrãs e o seu impacto no pensamento contem- ideia de comunicação numa era de mediatiza-
porâneo”, é importante começar por ancorar os ção, na qual o ecrã tem vindo a assumir um papel
seus desígnios numa tradição mais abrangente, cada vez mais preponderante. Os ecrãs de hoje

313
Antes de mais, a galeria virtual deste Post-Scre-
en Festival tem o efeito de tornar o ecrã visível.
Não será esta afirmação uma mera banalidade
se pensarmos que um dos grandes objetivos da
indústria da tecnológia áudio-visual, tem sido
justamente o de criar aparelhos que pelo seu
desenho e atributos técnicos permitam uma ex-
periência em que o ecrã se torne cada vez mais
um elemento invisível, imperceptivel ao olho nu.
A visibilidade ou invisibilidade do ecrã, torna-se
patente em muitas das peças da exposição: En-
Fotograma de A Particular Nowhere, de Sterling Crsipin contramos trabalhos como Researching the Ei-
chman trial (session nº 01), de Kineret Lourie, ou
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Resolution Transformation de Laurus Edelbacher,


trazem consigo a promessa de envolvência, in- que evidenciam essa moldura visual mediante o
teligência, interatividade; atributos com os quais recurso a múltiplas projeções ou a ecrãs dividi-
se pretende dar ao espetador um simulacro per- dos; outros que fazem uma utilização de cariz ci-
feito de realidade. Dito de outro modo, os ecrãs nematográfico, mais próximas do enquadramen-
da era digital enaltecem a possibilidade de uma to, ou “janela” tradicional como All that is Solid
vivência virtual, omnipresente mas ao mesmo Melts into Data (Boaz Levin e Ryan Jeffery); e ain-
tempo ausente, como observa Paul Virilio, infor- da outras assumindo a eliminação da moldura,
mada mas ao mesmo tempo alienada, monitori- como no hipnótico God, the Devil in the Detail.
zada mas ao mesmo tempo cega.
Mas talvez seja preciso voltar a recuar no tem-
Nesse sentido, a opção dos curadores de “mon- po para encontrar aquela que na minha opinião
tar” a exposição numa galeria virtual é inques- continua a ser uma chave mestra para compre-
tionavelmente uma forma eficaz de nos situar, ender a extensão das transformações que os
enquanto espetadores, frente ao tema do “ecrã”, desenvolvimentos tecnológicos introduziram
configurando desde logo uma pista importan- na arte feita no último século, e nas quais uma
te para a sua problematização numa época em exposição como a que nos é trazida pelo Post-
que, quer se queira quer não, os meios digitais -screen Festival, está evidentemente implicada.
estão irreversivelmente estabelecidos no pano- Refiro-me ao texto clássico de Walter Benjamin
rama das artes plásticas. A galeria virtual em que A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade
se alojam as obras dos autores incluídos nesta Técnica, escrito em 1936. Não por acaso o títu-
coletiva, estabelece desde logo uma condição lo já foi inclusivamente readaptado ao contexto
prévia, ligada à subversão das coordenadas dos meios digitais, e rebatizado como A Obra de
espaciais e temporais que convencionalmente Arte na Era da Reprodução Digital (título de um
determinam a montagem e fruição de uma ex- ensaio de Douglas Davis, publicado na revista di-
posição num espaço físico, servindo como dis- gital Leonardo (Vol. 28, No. 5).
positivo de ativação de todo o um repertório
temático e conceptual Muito resumidamente, o texto de Benjamin des-
creve os efeitos que os avanços nos processos
. de reprodutibilidade tiveram sobre o conjunto

<<
de características até então consideradas ineren- Exposição «7 Mil Milhões
tes ao objeto artístico – a unicidade, originalida-
de, proveniência - que garantiam alguns dos va- de Outros»
lores que lhe eram essenciais - como seja a ideia
de “autenticidade” - e que constituíam aquilo Parceria Fundação EDP,
a que Benjamin apelidou de “aura” da obra de Projeto Memória e Good Planet
arte. Benjamin conclui que as novas transforma-
Foundation
ções convergiam precisamente para a degrada-
ção dessa aura graças, entre outras coisas, à sua
capacidade de depreciar a “presença” do origi- Museu da Eletricidade, Lisboa
nal; pôr em causa a autoridade do objeto físico 8 Novembro 2014 – 8 Fevereiro 2015
da obra; substituir características de permanên-
cia e unicidade, pela transitoriedade e reprodu- por Carina Fonseca
tibilidade. Benjamin vaticina ainda algumas das
consequências – por vezes paradoxais – desta
verdadeira revolução para a arte, entre as quais
a irreconciliável aproximação do espetador face “Quem são, como vivem, o que sonham, o que
aos novos modos que a arte tem de se lhe apre- têm a dizer os 7 mil milhões de habitantes do
sentar e a alienação em que paralelamente o in- planeta? O que os une e os separa? Uma expo-
duz face a realidade que o rodeia. sição que é o retrato vivo da humanidade dos
nossos dias.”
Nessa perspetiva, é inquestionável que as obras
de arte digital como as que nos traz o post-screen Não é uma exposição de arte, contudo...
festival, ainda estão a participar nesse movimen-
to de progressiva dessacralização da obra de arte Não é propriamente uma exposição de obras
de que os falava Benjamin, agora elevada muito de arte, mas artística na forma de comunicar
para além da questão da mera reprodutibilida- com o visitante. Há uma sensibilização humana
de. Confrontados com obras como A Particular através, não de objetos, mas de histórias conta-
Nowhere de Sterling Crispin, que reclamam para das na primeira pessoa.
si a consumação dessa desintegração do objeto
de arte, a pergunta que se nos coloca hoje é a de Vagueando pelo espaço, como quem salta de
saber até que ponto isso não implica necessaria- sala para sala, de tema para tema, saltamos de
mente também a anulação do espetador? espaços como quem salta de realidades, per-
correndo um labirinto de memórias.

Não é uma exposição de arte, contudo...

A opção expositiva vai muito de encontro ao


conceito da black box (caixa preta, sala negra),
uma referência à câmera obscura na fotografia,
que transporta quem lá está para uma realida-
de paralela envolta em mistério. Poderia ter as-
sumido o conceito literal de white cube (cubo

315
branco, sala branca), uma opção expositiva mui- tecnológica corrente. São estas tecnologias que
to usada por curadores de arte contemporânea levam à globalização e um conjunto de fenóme-
nos dias de hoje. Contudo, o negro recria salas nos ligados a isso. É uma exposição que está
de cinema, tornando a imagem mais definida e a ser muito bem recebida e tornou-se popular
uma maior noção de proximidade. A atenção entre as novas gerações, pois um mundo sem
do observador vai se focar numa imagem em jogos de vídeo, efeitos especiais de computa-
movimento que sucessivamente vai alterando. dor, internet, telemoveis etc., é inconcebível.
Deixa no ar uma sensação de solidão confortá-
vel onde não existe tempo nem espaço – ape- Este tipo de projetos ganha relevância no mun-
nas o eu e o outro. do da arte, contudo, a sua autenticidade e uni-
cidade continua a ser questionada, recusando
É um projeto desafiante, tanto na sua criação por vezes a sua essência enquanto obra de arte.
como na forma de o expor. Este tipo de traba- Alexandre Melo, em Sistema da arte contem-
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

lho é difícil de recolher, preservar e exibir, e pro- porânea, chega a afirrmar que o que é ou não
jetos em “tempo real” tornam-se impraticáveis considerado arte varía de uma sociedade e de
nos museus. Sou da mesma opinião de vários uma época para outra, no tempo e no espaço,
outros estudiosos no seio da arte multimédia. havendo mesmo épocas e sociedades em que
Tal como Christiane Paul afirma no seu livro: New tal noção não existe. E acrescenta, se um objeto
media in the white cube and beyond: curatorial for consensualmente comentado, transaciona-
models for digital art, as instituições não estão do e exposto como se fosse uma obra de arte,
preparadas para mostrar este tipo de trabalhos. na sociedade e na situação onde se insere, ele
A grande maioria das instituições, nacionais e é uma obra de arte.
internacionais, simplesmente não compreende
esta forma artística, não incluem nas suas cole- Põe em causa o conceito, por exemplo de Wal-
ções este tipo de arte e não as expõem, criando ter Benjamim, de autenticidade enquanto aqui
lacunas acentuadas na história da arte. O Mu- e agora da obra de arte – a sua existência única
seu da Eletricidade consegue assim trazer para no lugar em que se encontra.
dentro das suas “quatro paredes”, algo que para
a maioria dos museus seria impraticável. Algo curioso neste tipo de trabalhos é a possi-
bilidade de poder ser visto em vários lugares ao
Não é uma exposição de arte, contudo... mesmo tempo, porém, exibidos de forma dife-
rente, dependendo de uma variedade de fatores
É uma exposição que questiona museus e gale- como a opção do produtor, o espaço de exibição,
rias, na sua noção de história, património e tem- ou mesmo as pessoas envolvidas na instalação.
po. Estes são cada vez mais espaços de memó-
ria. Lidam com coisas, objetos, materialidade e Todo o projeto, com descrição e lmagens, está
aparentemente permanecem resistentes às al- acessível na internet. Embora haja uma demo-
terações de discurso que as novas tecnologias cratização aparente da arte, uma vez que há a
criaram. tentativa de chegar ao maior número possível
de pessoas, esta premissa não é realista. Embo-
A importância desta exposição pode não ser ra seja uma exposição itinerante e desenvolvida
óbvia, contudo apresenta uma profunda re- na internet, não chega a todos, embora tente! É
flexão sobre a condição humana e a condição no fundo uma produção com grande qualidade

<<
que faz refletir, chorar e rir, que mexe com os sen- Shadow of a Doubt
tidos e nos deixa indefesos perante a realidade.
Exposição «Shadow of a Doubt»
Não é uma exposição de arte, contudo...
Fotografia no Chiado8, Lisboa
Aquilo que escolhemos mostrar hoje e preservar 13 Novembro 2014 – 31 de Dezembro 2014
para as futuras gerações, determinará o futuro. (prolongada até 30 Janeiro 2015)
Esta exposição torna-se assim, como o próprio
texto de apresentação refere, “o retrato vivo da por Joana Ottone
humanidade dos nossos dias”.

A exposição colectiva de fotografia Shadow of


a Doubt esteve patente no Chiado8 – Arte Con-
temporânea, inicialmente de 13 de Novembro
de 2014 a 31 de Dezembro de 2014, prolongou-
-se depois até dia 30 de Janeiro de 2015.

Num espaço organizado de forma complexa, a


ocupação total das paredes das salas principais e
das zonas de passagem entre elas, reforça a multi-
plicidade dos olhares dos treze artistas presentes.

Destaca-se, com maior número de obras, José


M. Rodrigues, com trabalhos, não só fotográfi-
cos, mas também de instalação. Os outros artis-
tas estão representados por apenas um trabalho,
ou uma série.

Todos estes trabalhos são provenientes de cole-


ções portuguesas, tendo sido retirados do seu
contexto conceptual e temporal para integrarem
esta exposição. Contemplando obras datadas,
desde 1982 a 2014, não se estabelecem, de uma
forma imediata, relações formais ou temáticas.

O circuito desta exposição inicia-se com a obra


mais antiga, Elementos 20 de José M. Rodrigues,
em destaque, de frente para a entrada. De notar,
que não existe um itinerário ou cronologia de-
finidos, podendo-se passar, livremente, de sala
para sala. A restante obra de José M. Rodrigues
distribui-se por mais três espaços: uma sala com

317
das nuvens no céu estabelece uma abertura ao
mundo exterior.

O terceiro, e último, espaço onde é exibida a


obra de José M. Rodrigues, Prumo, encontra-se
no corredor que dá para a saída. Sobre uma ba-
cia com água (e um peixe encarnado) encontra-
-se um fio de prumo, onde está impressa a ima-
gem de um coração. A cor dourada presente nas
molduras das duas salas, nas aplicações da pri-
meira instalação e no Prumo, cria conexões (ain-
da que subtis) entre as obras deste artista.
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Os restantes doze artistas têm a sua obra distri-


Catherine Bertola, Me And Keanu buída por duas salas. As suas fotografias apre-
(2001)
sentam-se com formatos muito variados, dispos-
tas em conjuntos ou isoladas, com molduras de
as fotografias dispostas em redor de um objec- distintas cores e materiais, que exaltam a diferen-
to, um pequeno espaço de passagem com uma ça e a multiplicidade de “olhares”.
instalação e uma fotografia, e outra instalação,
sobre a bacia com água, existente na galeria. Na Numa das salas coabitam paisagens (interiores
primeira sala, todos os trabalhos fotográficos, a e exteriores) e retratos, de sete dos fotógrafos,
cores, são emoldurados a dourado, tendo todos numa aparente desordem expositiva. As duas
a mesma dimensão. Estas fotografias relacionam- fotografias, respectivamente de Anya Gallaccio
-se com o objecto no centro da sala, um coração e Sarah Jones, revelam paisagens naturais ver-
no interior de uma redoma. Se algumas das ima- dejantes onde se perdem personagens que se
gens têm ligações cromáticas óbvias entre elas, relacionam com o espaço envolvente de forma
o conjunto apresenta fortes discrepâncias que algo enigmática. Este tipo de relação persona-
dificultam a leitura. Porém, a unidade criada pela gem/espaço é também visível na obra Looking
montagem cuidada cria um ambiente propício à Out de Sam Taylor-Wood, embora esta ocorra
evocação e à narrativa. num interior. As fotografias de Pedro Lobo, Ra-
chel Whiteread e Sarah Dobai retratam espa-
No pequeno espaço, entre a primeira sala e uma ços interiores desabitados, onde os vestígios da
das salas que se seguem, encontra-se um insta- presença humana expressam o abandono e a
lação e uma única fotografia. A instalação, sem ausência. Os dois retratos, de Catherine Bertola,
título, realizada em 2014, conjuga a fotografia a pelo uso do enquadramento em grande plano e
preto e branco, de um céu nublado, com um pla- de uma técnica inusitada (impressos em puzzle,
ca de acrílico com algumas aplicações douradas. com os olhos deliberadamente trocados) con-
Do lado oposto da divisão, pode-se observar trasta fortemente com o aspecto mais “clássico”
uma fotografia a preto e branco de um caracol das outras obras.
com uma moldura, tal como as da sala anterior,
dourada. Esta divisão, possuí a sua própria narra- Na outra sala, domina a obra de Trevor Apple-
tiva, e por ser um espaço tão fechado, a imagem son, uma série de sete retratos individuais (sobre

<<
fundo negro) que ocupa toda uma parede. As texto do catálogo, quer do conjunto de obras,
duas fotografias, de Paul Graham, da série Tele- conclui-se que a segunda hipótese se põe como
vision Portrait, com as suas tonalidades escuras a mais provável.
e um personagem que se destaca, conjugam-se
facilmente com as obras anteriores. A iluminação “As distâncias do olhar aproximam-se. Espaços
nestes trabalhos é um factor determinante para iguais? Simetria? Não há regras. Está tudo liga-
a exaltação da personagem. No entanto, as res- do para nos mostrar o milagre. Cada momento
tantes imagens contrastam com esta “estética” é outro e mais outro, mas todos ligados entre si
pelas suas cores maisclaras e vivas. A fotografia são, em conjunto, o espaço da materialização da
de Tracey Emin, Outside Myself estabelece, de imagem.” (José M. Rodrigues)
certa forma, uma ligação entre os retratos e as
restantes fotografias. A personagem retratada a
ler, tendo como fundo uma zona desértica, cria
essa ligação. As duas séries restantes não con-
têm figura humana, apesar de apresentarem
vestígios da sua presença, aproximando-se das
obras observadas na outra sala. A série de João
Paulo Serafim, A invenção da memória, represen-
ta imagens de um arquivo onde os documentos
se organizam e alinham. Numa outra forma de
preservação da memória, Nigel Shafran retra-
ta parte de uma cozinha, fotografada em vários
dias, ao longo do ano de 2010.

Toda esta diversidade parece confrontar as teo-


rias e métodos expositivos considerados para-
digmáticos: ao invés de paredes quase vazias,
de obras organizadas de forma cronológica, por
dimensão e/ou formato, por proposta temática –
assiste-se a um acumular de visões, que surgem
simultaneamente, provocando no observador
alguma perplexidade...

Se um dos aspectos mais interessante desta ex-


posição era o facto do seu curador participar
também enquanto artista, questionamos qual o
peso que os seu trabalhos adquirem: foi a partir
das suas obras que foi feita a escolha das outras
imagens/artistas, ou a partir destas, nasceu a se-
leção e montagem da sua obra? Pretende José
M. Rodrigues coordenar os seus trabalhos com
os dos outros fotógrafos ou exaltar as diferenças
entre pontos de vista? A partir da leitura quer do

319
André Príncipe – Antena 2 duas experiências de quase morte que o fotó-
grafo sentiu nos últimos três anos. A primeira
Exposição «Antena 2» remonta a 2012, o artista vivia numa caravana
e estava a viajar pelo País; a segunda, em 2013,
Galeria Pedro Alfacinha numa cozinha, no centro da cidade de Lisboa.
21 Novembro 2014 – 7 Fevereiro 2015 Em ambas as vezes despertou e voltou para a
realidade enquanto um rádio imperturbável, a
por David Gonçalves partir da sua trincheira que não fora afectada
pelo tempo, o posto de rádio da Antena 2 esta-
va sintonizado e audível. É esta experimentação
de susto, de uma quase morte que é revelada,
É na recente inaugurada galeria de fotografia confronta o espectador através de imagens que
Pedro Alfacinha que ocorre o regresso do fo- vêm de todas as direcções, como se testemu-
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

tógrafo, cineasta e editor André Príncipe (Por- nhassem a abertura de uma porta do tempo; as-
to, 1976) às exposições de fotografia, desde a sim o artista desafia o public para se enquadrar
última, em 2006. Artista de mil ofícios estreou no papel de explorador do ambiente que ele
recentemente, no Cinema Ideal, Campo de Fla- próprio criara, na procura de entender o terri-
mingos sem Flamingos e comemora cinco anos tório, das imagens e, sobretudo, das histórias.
desde a criação da sua editora de livros de fo- Este lado de explorador implicará uma estra-
tografia na companhia do fotógrafo José Pedro nheza perante um terreno que é visto como a
Cortês, a Pierre von Kleist. primeira vez.

Se na obra de André Príncipe o público está ha- Este posto de rádio é considerado pelo artis-
bituado a um padrão narrativo e documental da ta como o “último reduto cultural” do Serviço
viagem e à imagem em movimento então, esta Público onde a Cultura predomina em vez do
exposição coloca de lado esse paradigma para actualizar constante e agressivo de temas como
ensaiar um conjunto de imagens autobiográfi- o desemprego, a instabilidade social, a crise, o
cas, registadas de 2012 a 2014, a partir de duas programa de ajuda financeira, ou seja, longe do
experiências pessoais. A distância que o públi- país real em que as notícias são dadas num tem-
co tem com as imagens bem como os diferen- po curto e numa forma deturpada. Numa luta
tes níveis de intimidade vão intensificando-se à contra estes poderes maliciosos e dramáticos
medida que as observamos numa espécie de nascem as imagens como se fossem gritos de
atlas, defendido fortemente pelo artista, onde esperança.
qualquer referência territorial torna-se inexis-
tente mas, é possível verificar diferentes expe- Neste universo alternativo surge uma dissidên-
riências e expressões. cia entre um novo mundo e o mundo conhecido
como o real, um esquecimento, propositada-
Antena 2 é um palco de combate indefinido que mente assumido, de restrições e leis que impe-
revela a harmonia desconcertante de imagens, çam o progresso para o exterior dos confina-
que circulam a um ritmo constante, esboçando mentos e barreiras que nos tentam regular, no
se em distintas direcções. É perante este cená- dúbio processo de construção de um idealism
rio que a estação de rádio pública entra como o visto como um modelo de perfeccionismo.
complemento musical, ideal para um relato de

<<
Assumindo uma posição clara de protesto pe-
rante a ideia de independência “distorcida”, da
qual somos bombardeados no quotidiano pe-
las instituições e poder, o fotógrafo orquestra
um registo visual numa prática diária que relata
as relações que estabelece com as pessoas, os
animais e as coisas. O automatismo do gesto de
fotografar nasce destas múltiplas ligações que
são estabelecidas tendo em conta, também, o
modo como os corpos e as figuras se moldam
perante um espaço em constante mutação. É
nesta mutação que o artista constrói o discurso
narrativo de tudo aquilo que se apresenta como
livre sem esquecer a mortalidade e o caricato André Príncipe, [sem título] da série Antena 2, 2014,
140x180cm
daquilo que observa.

Tudo é apresentado como prova documental. uma delas tem. E o que será delas depois de
Existe espaço para os amigos, o urbano, os ani- tomarem a bebida e abandonarem aquele es-
mais e momentos de confraternização, sendo paço? Nada disso importa, o relevante é o que
que estes se suspendem e congelam no tempo. se passa naquele instante, naquela recordação
Desde a rebentação das ondas assemelhando- de adolescência, em que todos estiveram jun-
-se a uma porta entre o mundo do artista e o tos no mesmo lugar.
mundo real sendo que esta estivesse para lá do
horizonte, a rapariga totalmente despida que A invocação da figura da mulher é uma cons-
se seca perante uma bacia antiga num canto tante, com um papel de destaque, revelando a
do quarto numa prática improvável nos dias de importância que o artista lhes atribui. Outra das
hoje, o homem sozinho sentado no banco da suas imagens, com uma jovem num ambiente
paragem do autocarro, até às raparigas no sofá de festa num bar e que aparenta estar no fim
como quem lembra um olhar retrospectivo ou da idade da adolescência; de cigarro e copo
uma revisitação que nunca deve ter fim. Esta na mão sugere que chegou à pouco tempo. De
última imagem das jovens reunidas tem uma cabelos longos, olhos azuis e um ligeiro afasta-
escala que capta de imediato a atenção, bem mento dos lábios, esta observa na direção do
como todo o momento que ali se passa. Um espectador com um olhar penetrante, como se
convívio normal entre um olhar atento, uma ex- dialogasse em silêncio um interesse misterioso
pressão de sorriso e a distração de quem perde perante quem a observa e exigisse um momen-
o olhar no chão, um copo em cima de uma per- to de reflexão perante a confusão em seu redor,
na, o cigarro e a garrafa que existem nos gestos dela e de quem a observa nos olhos.
de uma jovem, não há espaço para a solidão e
as três jovens habitam o espaço à sua manei- Por detrás de cada imagem existirá, sempre,
ra como se tratasse de qualquer espectador na uma diferente melodia da estação de rádio pú-
companhia de amigos mesmo sem que haja o blica: melodias trágicas, cómicas, alegres, sau-
devido conhecimento do motivo que as leva dosas, deprimidas, nostálgicas. Cada música é
a estar na sala, bem como a história que cada uma emoção e uma história, cabendo ao espec-

321
tador construir uma sequência lógica de forma Francisco Tropa
a criar um ritmo próprio, para assim, compreen-
der e rever-se no ambiente originado por estas Exposição «Tesouros Submersos
imagens que nada trazem de novo a não ser do Antigo Egipto»
um reconhecimento daquilo que se deu e quis
eternizar na memória. Deixá-las cair na indife- Museu da Cidade – Pavilhão Branco,
rença ou no silêncio é como se o rádio tivesse, Campo Grande, 245, Lisboa
por fim, deixado de tocar e a morte finalmente 7 Dezembro – 22 Fevereiro 2015
se desse num último e derradeiro ato de vitória.
por Cláudio Ramos
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Notas para um desenho

“Levado pela minha desejosa vontade, vagueio


para ver a grande cópia das várias e estranhas
formas feitas pela natureza artificiosa, retorcen-
do-me ainda mais por entre os sombreados esco-
lhos, cheguei à entrada de uma grande caverna,
ante a qual, fiquei assaz estupefacto e ignorante
de tal coisa, os meus rins dobrados em arco, e
posada a mão cansada sobre o joelho, e com a
direita fiz sombra às pestanas baixas e fechadas;
e continuamente dobrando-me aqui e ali para
ver se dentro se discernisse alguma coisa; e isto
vetando-me a grande obscuridade que lá dentro
havia. E tendo estado <assim> demoradamente,
súbito crescem em mim duas coisas: medo e de-
sejo: medo pelo ameaçante e escuro antro, dese-
jo de ver se lá dentro houvesse alguma coisa mi-
lagrosa.” LEONARDO DA VINCI, Código Arundel
155 R. in Desenho / A Transparência dos Signos
de Pedro A.H. Paixão

Tesouros Submersos do Antigo Egipto, TSAE, re-


sulta de um registo alargado que recorre a varia-
díssimas técnicas e não se prende a uma disciplina
em concreto. Encontramos neste lugar o território
da escultura, mas também o da pintura ou da fo-
tografia. O que está no esqueleto deste processo,
neste ato de constituir, é o desenho. Desenhar é
por excelência o campo do pensamento.

<<
O trabalho de Francisco Tropa tem em si a impor-
tância do tempo no fazer, o tempo que permite
a construção de um corpo de trabalho complexo
e vasto. Em 2008 TSAE teve a sua primeira reve-
lação ao público, levantando o véu daquilo que
Francisco Tropa denominou de uma arqueologia
ficcionada.

Aquilo que agora nos chega de TSAE revela-se


por entre uma suposta arquitetura. Um mapa as-
sinala um lugar específico, composto por suces-
sivos níveis aos quais pertencem os objetos ali Sem título, 2008. Frasco de Vidro, areia, ouro e mármore -
pormenor.
expostos, como se pertencessem a um espólio
Fotografia Pedro Tropa
que é ali revelado.

O lugar evocado parece situar-se nos nossos an- próprio artista, já o macho e a fémea surgem em
típodas, transporta-nos para aquilo a que pode- peças de madeira desenhadas e talhadas para
mos chamar de um antigo templo, uma caverna um determinado sistema de encaixe, sublinhan-
enigmática onde das sombras brota a luz, figu- do assim, o que tem sido uma constante ao longo
rando uma qualquer intenção mágica. O artista do trabalho do artista: o masculino e o feminino.
explora diferentes núcleos como a Parte Submer- A morte é outra constante no seu discurso, uma
sa, a Câmara Violada sugerindo um espaço par- das preocupações estruturais que define o Ho-
cialmente pilhado, a Terra Platónica revelando-se mem e que tem uma relação intima com a arte.
como um lugar intocável, suspenso no tempo, e Impõe-se entre os símbolos e a matéria, com re-
o Poço que sugere uma outra passagem para ferências ao Purgatório ou ao Inferno, presente
possíveis campos desconhecidos. Deixando em nos intervalos entre a convivência de épocas e
aberto, a possibilidade de um novo momento, na fragilidade real ou induzida nas suas peças.
que nos revele o que ainda está por descobrir.
A obra de Francisco Tropa assemelha-se a um Ao longo da exposição, mapas vão pontuando
desenho em constante movimento, um desenho as salas que visitamos, mapas que nomeiam e
que busca por um hipotético final, mas sem que referenciam esse outro lugar evocado e que in-
nunca chegue a ele, até porque provavelmente clusive nos interpelam com possíveis pontos de
não há onde chegar. vista, afinal as questões da visualidade nunca são
livres do nosso corpo, do espaço que ocupamos,
Dentro de cada um dos núcleos, objetos. Muitos da nossa posição num determinado campo cog-
destes objetos, organizam-se em dicotomias, nitivo, a dada altura na Câmara Violada Francisco
como os desenhos de areia. São desenhos que Tropa aponta ao espetador pontos de contem-
emergem do negativo sob a forma de estruturas plação, conduzindo assim o campo visual de
geométricas, que surgem por entre o vazio dos quem contempla a sua obra. Ainda na Câmara
corpos de madeira desenhando sobre a mesa a Violada encontramos uma mesa onde se apre-
primeira das dicotomias: o positivo e o negativo. sentam quatro frágeis caixas de latão. Estas su-
Também o rei e a rainha se impõe, mas desta, gerem processos naturais de desgaste, colocan-
sob a forma de vidro soprado e nomeados pelo do em confronto a questão da permanência em

323
contraponto à sua aparência que induz a uma gesto de polvilhar com areia da praia as formas
inexorável degradação. Estaremos aqui perante geométricas de madeira, revelando assim
a questão do tempo e inevitavelmente da morte. assombrosos desenhos duma frágil beleza.
A mesa é uma figura recorrente no trabalho do
artista, é um território de ação, que assegura a Na obra de Francisco Tropa não há um dentro e
elevação de matérias aparentemente periclitan- um fora, há uma cosmologia. É um lugar de de-
tes. De passagem pelo Poço visitamos o Inferno senho, de pensamento, onde se transfiguram as
e o Purgatório, terra de sombra, onde podemos coisas em seres e universo. Tesouros Submersos
contemplar duas imagens criadas pelo artista do Antigo Egipto é esse estado de transgressão.
através da luz que incide sobre o vidro soprado,
projetando na parede uma micropaisagem.

Chegados à Terra Platónica, o nosso olhar é ple-


– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

no de espanto, trata-se de um lugar inviolável,


como se estivesse mergulhado num soporífero.
Onde os objetos apresentam cores vivas, belas
arquiteturas de latão e vidro colorido, serigrafias
pulsantes, é um campo de transcendência.

Francisco Tropa, tem na natureza do seu ato


criativo, uma relação privilegiada com os jogos
da imaginação. Tesouros Submersos do Antigo
Egipto é o fruto dessa imaginação fortemente
marcada pelo uso de códigos e processos ar-
tísticos, algum deles declaradamente ducham-
pianos. Também Raymond Roussel e Julio Verne
emergem do mapa de referências do artista,
assim como as relações encriptadas com a ma-
triz judaico-cristã da cultura ocidental, presentes
através de conceitos como: céu/terra; alma/cor-
po; purgatório/inferno.

A cosmologia platónica é outro elemento de


constituição da sua linguagem, seja através das
palavras, seja através das imagens.

É a criação de um complexo universo, aquilo a


que assistimos, um universo onde o léxico que
o compõe passa por conceitos como alegoria,
tempo, cinética, cenário e encenação, memória e
convocação, a luz, o divino, o celestial, o sagrado
e o fúnebre, tudo isto emana do seu discurso,
encontramos inclusive o gesto originário, no

<<
Carla Cabanas vir sobre a imagem sobretudo fotográfica, aquilo
que o tempo transforma em ausência é tornado
Exposição «A Palavra Arquivada» visível através dos pedaços que são directamen-
te apagados do suporte, seja ele qual seja. A ima-
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa gem ganha a vida que só a própria vida tem e
19 Dezembro 2014 – 14 Março 2015 torna-se representação do que só a vida é.

por Rita Branco Desta vez, é a partir da palavra desaparecida que


somos confrontados com a impiedade do tem-
po que, sem nos dar tréguas, vai distorcendo e
destruindo o que da vida foi guardado. Mas o
A Palavra Arquivada é o álbum número seis da que dantes era riscado é agora cortado, retira-
série O Que Ficou Do Que Foi criada por Carla do, fazendo com que o vazio atravesse o papel,
Cabanas (Lisboa, 1979). Desde o passado recen- atribuindo-lhe uma nova tridimensionalidade. A
te de 2010, a imprecisão da memória e a inevi- pequena sala do Arquivo Fotográfico está cheia
tabilidade do tempo são aspectos fundamentais de memórias, mas termina aí a diversidade: as
no trabalho que a artista tem vindo a desenvolver várias peças são todas diferentes, mas sem-
na forma de colecção de imagens. Em 2013, os pre a mesma. É à média luz que os mostruários
conjuntos de fotografias deram lugar a conjunto parecem também funcionar como caixas-fortes,
de postais e é agora, na sua mais recente expo- protegendo da contínua ruína a beleza das
sição patente no Arquivo Fotográfico Municipal delicadas peças que lembram, sozinhas, algo
de Lisboa, até 14 de Março de 2015, que a inter- frágil e susceptível. Mas a susceptibilidade vai
venção manual deixa de o ser, aperfeiçoando a para lá da forma destes objectos tornados ima-
sua precisão com a introdução do automatismo culados. É nos postais escritos, meio de comu-
do recorte a laser. nicação também ele perdido no passar dos dias,
que vamos aqui procurando o que ficou do que
Recordações com um século de idade fechadas foi. Uma cidade de partida, outra de destino.
em pequenas vitrines, proibidas de repente ao Uma data, talvez. De um lado texto apagado, do
total esquecimento, paradas no tempo que as outro imagem cravada com a memória do texto
foi consumindo. Os postais provenientes da co- apagado e, a seus pés, os vestígios do que dali
lecção pessoal da artista e do acervo do Arquivo foi eliminado com um recorte cirúrgico só conse-
Municipal de Lisboa, datados do início do sécu- guido à maquina. O que se perdeu de orgânico
lo vinte, são testemunhos de um passado quase no trabalho da artista, ganhou-se em pormenor,
esquecido de pessoas que não sabemos quem mas se há coisa que não faz parte do universo da
são. Uma e depois outra e depois outra. Com a memória é a precisão. O mesmo tempo que nos
curadoria de Sofia Castro, este caminho de vitri- consome e faz morrer, transforma o que guarda-
nes iluminadas, montras de histórias das quais já mos em recordação, em pequenos pedaços de
há um muito que não se sabe mais contar, apre- uma trama que deixamos de saber de cor. Não
senta-nos uma continuação do que tem vindo a escolhemos lembrar, não escolhemos esquecer.
orientar o percurso artístico de Carla Cabanas: a A definição perde-se, a lembrança torna-se tur-
perda da memória e a passagem do tempo pelos va, o que era um todo fica a ser em bocados. É
documentos e imagens. Ao longo desta sua série a distância temporal que nos afasta daquilo que
mais significante, onde a artista tem vindo a inter- já não é e tudo possui em si mesmo a fatalidade

325
de vir a não ser: o que é transformar-se-á sem- Imagerie – Casa de
pre no que foi, o que foi passará sempre a não
ser mais. Nos álbuns anteriores, a intervenção Imagens
de Carla Cabanas era manual. Não deixando de
ser precisa, não era exacta. O traço cru e deste- Exposição «Os Diários da TOSCA»
mido, de linhas não direitas, anunciava o que foi
esquecido sobre o que ficou, da mesma forma Bartô do Chapitô
que o tempo apaga sem pedir permissão. Mas 14 Janeiro 2015 – 14 Fevereiro 2015
nesta sexta vez de O Que Ficou Do Que Foi, as
palavras que contam as vidas quase esquecidas por Catarina Pinto
de quem não conhecemos, vão caindo, uma por
uma, desaparecendo da superfície que outrora
julgou ser para sempre e que foi assim transfor-
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

mada numa história sem história. No passado dia 14 de Janeiro de 2015, no Bar-
tô do Chapitô, pelas 22:00 horas, teve lugar a
Os postais de agora, tal como as fotografias de inauguração da exposição estenopeica do ateliê
antes, simbolizam a tentativa de tornar imortal o Imagerie – Casa de Imagens, intitulada Os Diá-
que sabemos ser efémero: a nossa realidade. A rios da TOSCA, estará patente de terça-feira a
partir deles e ao longo dos últimos anos, a obra domingo, das 22:00 horas às 2:00 horas, até dia
em construção de Carla Cabanas tem vindo a ex- 14 de Fevereiro de 2015.
plorar a criação de outras dimensões através da
destruição da já existente. Em constante desen- O Chapitô é uma instituição onde a Formação, a
volvimento, esta série não falhou nunca na reve- Criação, a Animação e a Intervenção se tornam
lação de que a transformação a que o tempo nos uma só, sempre numa perspectiva vanguardista
condena é inevitável. do humanismo, há trinta anos.

O ateliê Imagerie – Casa de Imagens, fundado em


2008 pela mão de Magda Fernandes e José Do-
mingos, é um espaço de aprendizagem e parti-
lha de conhecimentos acerca da fotografia, onde
se realizam exposições com artistas que desejam
fugir ao circuito cerimonial das galerias de arte.
Os seus fundadores auto-intitulam-se como “no-
vos primitivos”, pela fotografia que produzem.

A Tosca “pela máquina em si, que tem uma apa-


rência tosca” é uma câmara artesanal estenopei-
ca, ou seja, pinhole, e através dela é captada a
relação entre Magda Fernandes, fotógrafa de
formação, e José Domingos, argumentista de
profissão e fotógrafo por paixão, criadores da
máquina em questão.

<<
A exposição fotográfica conta com dez ima- realidade resulta pois o ambiente torna-se inti-
gens narrativas analógicas a preto e branco, mista, descontraído e acolhedor.
feitas especificamente para a sua realização,
que curiosamente foram das primeiras ima- Contudo, alguns aspectos poderiam ser me-
gens produzidas com a câmara estenopeica. lhorados, como por exemplo a distribuição
Estas imagens produzidas por Magda Fernandes do Bartô, as mesas e as cadeiras poderiam ser
e José Domingos resultam da colagem de três a retiradas, dando aos espectadores a liberda-
cinco imagens 12 x 12, ou seja, os autores foto- de de se aproximarem mais das imagens, ha-
grafam inúmeras vezes a mesma coisa embora vendo também mais espaço para circular, o
cada imagem seja distinta, revelando diversos que facilitaria a observação das fotografias.
enquadramentos, profundidades de campo e Em breve irá ser publicado o nº1 da TOSCAzine,
planos fotográficos de quadrado para quadra- onde muito provavelmente será possível visuali-
do; após são revelados os negativos e cada zar as imagens apresentadas nesta exposição Os
imagem é impressa sendo cortados os elemen- Diários da TOSCA.
tos necessários de forma a conceber uma única
imagem, criando uma espécie de puzzle que dá A TOSCAzine é uma pequena auto-publicação
por um lado uma sensação de quietude e por com projectos fotográficos dos autores e de con-
outro uma sensação de desordem; posterior- vidados que tenham em sua posse uma máquina
mente as imagens finalizadas são colocadas em estenopeica Tosca e que produzam fotografia pi-
suporte de cartão prensado. Este suporte pode- nhole ou que estejam dispostos a produzi-la. Curio-
ria ser melhorado, talvez em K-Line de três milí- samente a máquina estenopeica Tosca foi criada
metros, o que leva os próprios autores a afirma- pelo casal e pode até ser-lhes encomendada por
rem que realmente a montagem da exposição apenas vinte euros com direito a um pequeno li-
Os Diários da Tosca foi feita com alguma rapidez. vro de instruções também criado pelos autores.
Estas imagens, relativamente ao seu proces- Conclusivamente, Os Diários da TOSCA é uma ex-
so fotográfico, remontam à fotografia pro- posição agradável onde se denota a paixão pela
duzida pelo fotógrafo e pintor inglês David fotografia, partilhada por Magda Fernandes e
Hockney e à fotografia criada pelo fotógrafo José Domingos, recomendada a todos os aman-
americano Duane Michaels, não só pelos te- tes não só de fotografia mas também de arte.
mas apresentados mas também pelo preto
e branco constituído por várias tonalidades.
Nas imagens apresentadas, o casal dá a co-
nhecer a sua rotina quotidiana, pormeno-
res do seu lar em Campo de Ourique e até
o seu animal de estimação; de certa forma
pode até declarar-se que o conjunto de ima-
gens exibidas forma um álbum de família.
Denota-se que a apresentação pensada para
esta exposição não foi realmente cuidada, em-
bora talvez tenha sido esse o intuito a transmi-
tir ao espectador, de forma a não se tornar num
espaço demasiado formal e intimidador, sendo
que as imagens são bastante pessoais; o que na

327
Finok relações entre artistas e agentes culturais, com o
objectivo da proliferação da arte urbana, tanto
Exposição «Enterro do Galo» por locais de exposição e pela cidade de Lisboa.
A galeria física, porque a galeria estende-se pela
Galeria Underdogs cidade com os múltiplos trabalhos realizados por
30 Janeiro – 28 Fevereiro 2015 diversos artistas convidados, encontra-se num ar-
mazém na zona do Braço de Prata, Lisboa. É gale-
por Margarida Barros ria informal e, até, alternativa, que alberga expo-
sições individuais e colectivas, sempre dentro da
linguagem da street art. Conseguinte, a inaugu-
ração da exposição foi de um ambiente informal
“Enterro do Galo” é uma exposição individual do e alternativo, com várias presenças de indivíduos
artista contemporâneo Finok (Raphael Sogarra), do mundo da street art, entre outros ligados ao
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

na galeria Underdogs, patente de 30 de Janeiro mundo da arte contemporânea.


a 28 de Fevereiro de 2015.
O tema da exposição, como o próprio nome indi-
Finok é um artista de arte contemporânea ligado ca, está relacionada com rituais de crença de raiz
à linguagem da cultura urbana. É um jovem artis- espiritual, religiosa e popular de grande influên-
ta de apenas 29 anos que já é dos mais prolíferos cia sincrética. Rituais não só de origem brasileira
na zona do epicentro da América do Sul na cul- mas também portuguesa. Esta ligação é reflecti-
tura do graffiti. Vive em São Paulo, cidade que é da pela peça composta por quatro balões de ar
conhecida pela sua arte urbana, e cresceu num quente, obra sem título. Representam os balões
bairro operário, Cambuci, que nos anos 90 foi o lançados nas festividades portuguesas dos San-
epicentro do graffiti sul-americano. É das suas ori- tos Populares, mais precisamente no São João
gens que parte a sua temática, ligada às tradições no Porto, prática também realizada no Brasil em
populistas e vernaculares, em junção com a rea- várias celebrações. Esta peça dá as boas vindas
lidade, mais contemporânea da cidade urbana. à exposição, sendo a obra que mais se destaca
devido a ser composta por quatro elementos,
A exposição é composta por oito peças autênti- de grandes dimensões, colocados em quatro
cas, e mesmo sendo numa galeria, o intuito não é pontos da sala, com uma estrutura quadrangu-
a venda, mas a partilha com o público do trabalho lar. As suas cores vivas e a iluminação interior
deste artista de street art. Os trabalhos vão desde criam um grande destaque das outras obras.
escultura, a pintura e instalações, mesmo as pintu- Contudo, ao fundo da sala e centrada, está outra
ras são um misto de escultura em madeira (MDF) peça muito chamativa, uma instalação de pipas,
trabalhadas em baixo e alto relevo. Para além das ou papagaios de papel, que nos transfere para o
peças expostas, também, foi realizada uma obra topo dos prédios de São Paulo, onde é costume
exterior, na rua de Manica 3, Olivais Sul, Lisboa, serem lançados, principalmente por crianças,
peça que integra a exposição, demonstrando o como forma de diversão e, até, competição.
trabalho do artista fora das quatro paredes.
Um elemento de grande predominância figurati-
A galeria Underdogs é uma plataforma cultural de va, na obra de Finok, são as máscaras e as caras
arte contemporânea ligada às novas linguagens diversas e expressivas. A sua figuração é muito
da cultura urbana. Tem vindo a estabelecer várias característica de São Paulo. Se observarmos o

<<
trabalho dos artistas Os Gémeos ou de Crânio, Outra peça de destaque na exposição é uma es-
ambos de São Paulo, onde no seu trabalho, tam- cultura de madeira pendurada na parede, intitu-
bém, predomina a figuração num estilo ilustrati- lada “Erro”. A obra não se resume apenas à peça
vo, quase que caricatural. Mas não é só na figu- física, é acompanhada de velas brancas acesas
ração que existem semelhantes que marcam a no chão, que lhe atribuí uma conotação de culto.
imagética da arte urbana paulista, a cor é também A peça é um tridente, que nas suas extremidades
uma característica muito vincada nestes três artis- contem outros elementos, compostos por: três
tas. A cor é para além de uma característica uma máscaras em forma de gota, outro tridente em
tradição dentro da comunidade writer paulista, posição inversa, uma âncora e um elemento tribal.
em que cada individuo escolhe uma cor para o Esta peça invoca a rituais de culto pagão, caracte-
seu trabalho de rua. No trabalho de Os Gémios rística comum na sua obra, com provável nature-
a cor predominante é o amarelo, em Crânio é o za sincrética. O facto de a obra se intitular “Erro”
azul e em Finok é o verde. A cor verde tem acom- dá origem a uma múltipla interpretação, que nos
panhado sempre o trabalho deste artista, tanto leva a reflectir sobre o acto de culto/adoração e
na rua como no estúdio, mas é no estúdio que os “erros” cometidos em nome do mesmo.
expande sua paleta para as mais variadas cores,
mas sempre sem esquecer a influência do verde Plasticamente é um artista bastante diversificado
nas outras cores. Daí a outra cor mais utlizada em trabalhando a madeira, têxteis, pintura acrílica e
quase toda a obra de Finok ser o vermelho, cor em aerossol. Mesmo se não tivéssemos conhe-
complementar do verde. Assim, quase toda a sua cimento da sua ligação ao graffiti/street art esta
obra é composta, predominantemente, por estas é bastante notório em, quase, toda a sua obra
duas cores nas suas variadas nuance. devido à utilização de aerossol ou spray, comum
na prática da arte urbana. Toda a sua técnica
A peça “O Egoísta” dá imagem ao panfleto infor- de pintura remete para a cultura graffiti, com o
mativo da exposição, panfleto que pode ser qua- uso do stencil, cores solidas, sombras marcadas
se como um print que podemos emoldurar, de- e quase que padronizadas, onde é possível ver
vido à sua alta qualidade de imagem. A imagem a sobreposição solida da tinta como que se de
não esta reproduzida na sua totalidade sendo uma peça de arte urbana se trata-se.
um pormenor central da peça. A figura central é
um homem a pescar um peixe, mas é um homem A exposição é pequena e simples, contudo de-
hibrido de peixe, sendo a sua parte inferior do monstra eficazmente a obra deste jovem artista
corpo uma cauda de peixe, igual à do peixe que em início de carreira. A plataforma Underdogs
pesca. No cimo da peça observamos, como que, consegue, assim, mostrar ao público as poten-
uma moldura de madeira com a palavra “contra” cialidades que estes novos artistas e a cultura ur-
gravada. A junção da palavra gravada, da figura- bana podem trazer à arte contemporânea, uma
ção e do nome da obra, cria como que um para- vertente artística inicialmente marginalizada e
doxo. Isto porque, um homem-peixe que pesca agora institucionalmente musealizada.
um peixe é como se estivesse a pescar a ele mes-
mo, concebendo um dilema ético que é reforça-
do com as duas palavras: “egoísta” e “contra”. As
relações entre os três elementos podem levar às
mais variadas interpretações, fazendo com que a
sua própria interpretação seja um paradoxo.

329
Modernidades: Fotografia inicio da Segunda Guerra Mundial, até a uma su-
cessão de golpes de Estado, acabando no golpe
Brasileira (1940 -1964) militar de 1964. O espaço envolvente faz lembrar
um quase labirinto, que se desfaz após o olhar se
Fundação Calouste Gulbenkian direcionar para o tecto baixo, de betão escuro e
Galeria de Exposições Temporárias acinzentado, fazendo maquinalmente com que a
Edifício Sede - Piso -1, Lisboa área se torne gélida e pesada. Todo o espaço é
branco, desde as paredes que rodeiam as obras,
21 Fevereiro– 19 Abril 2015
às densas divisórias colocadas no meio da sala
por Lara Neto paralelepipédica. É um espaço inteiramente
desguarnecido de cores quentes, exceptuando
a cor castanha amena das molduras, todas elas
quadradas, tendo como escopo não só indicar
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Modernidades: Fotografia Brasileira (1940- a obra, mas direcionando o olhar para a mes-
1964), é uma exposição temporária, resultado ma, sem que a moldura distraia uma observa-
da parceria entre o Instituto Moreira Salles, no ção mais aproximada. Este aspecto é reforçado
Rio de Janeiro, o Staatliche Museen zu Berlin, pelos vidros Anti-Reflexo e ainda uma segunda
e o Programa Gulbenkian Próximo Futuro, de moldura interior de cor branca, cortada de forma
Arte Contemporânea. José Medeiros, Marcel precisa, de acordo com o formato das imagens,
Gautherot, Thomaz Farkas e Hans Gunter Flieg fazendo com que todas estejam devidamente
são os quatro fotógrafos que invadem o espaço protegidas. Toda a sala está, portanto, nitidamen-
com as suas imagens de um claro-escuro inten- te preparada para uma leitura mais facilitada das
so e linhas absolutamente definidas e cortantes. obras. As cores neutras, em conjunto com os pe-
Três são estrangeiros, que nascem na Europa e quenos holofotes colocados no tecto – um para
partem rumo ao Brasil com tenra idade. Marcel, cada fotografia - manipulam a visão, obrigando a
o mais longevo dos seus camaradas, nasce em que o olhar apenas se dirija às imagens impres-
1910 em Paris e falece em 1996 no Rio de Ja- sas em gelatina de prata, graças à representação
neiro. Thomaz, o húngaro de Budapeste, nasce das sombras e das formas marcadamente negras
em 1924 e acaba por desaparecer já no século que se contrastam com o ambiente proporciona-
XIX, no ano de 2011, em São Paulo. Hans é o do em redor. Para além do propósito da ausên-
único dos três que ainda se encontra em plena cia de cor, o texto de apresentação e a ficha téc-
vivência, tendo nascido em 1923, na cidade de nica que se encontra no início da exposição, são
Chemnitz, na Alemanha. Por último, o fotografo elementos valorosos que praticamente passam
brasileiro e aquele que parte mais cedo, José despercebidos a quem ali entra, não só por não
Medeiros, nasce em 1921 no município de Te- estar de forma clara ao alcance do olhar, mas
resina, e morre em 1990. São artistas cujas ima- igualmente por se encontrar na direção de uma
gens apresentam-se puramente ligadas aos ge- luz mais fraca. O tipo e a robustez da letra esco-
nes da fotografia analógica, que se encontram lhida são ainda outros pontos fracos, sendo que
no entanto totalmente desprovidas de grão ou os caracteres têm um espaçamento demasiado
deficiências técnicas. As imagens expostas mos- acentuado, o que dificulta a leitura, tornando-a
tram uma visão crua e ríspida de um Brasil em mais lenta e fazendo com que haja um cansaço
fase de industrialização e mudança, passando visual que se devia evitar, devido às fotografias
pela Fundação do Estado Novo, seguido pelo que se vêm de seguida.

<<
Ao todo são cento e dez imagens, sem contar de Marcel Gautherot, mais uma vez mira-se um
com os quatro retratos dos autores, cada um co- retrato em que o autor está com a sua máquina
locado de forma cuidada no começo das suas de ofício, como se estivesse a fotografar o ob-
representações naturalistas ou citadinas. As fo- servador do lado de fora, tendo as suas imagens
tografias estão, portanto, divididas por autor e como fundo. Assim como em José Medeiros, as
igualmente separadas por temas. Os autores fotografias encontram-se divididas por quatro
encontram-se ainda distribuídos ao longo da secções, ocupando duas metades de parede e
exposição, estranhamente, pelo seu óbito e não uma em absoluto. Começam por seis, e de fren-
nascimento, juntamente com os diferentes estilos te residem doze, em seguida observam-se mais
fotográficos: José Medeiros, o fotojornalista da seis e na fachada da frente estão oito, fazendo
classe superior e da classe operária; Marcel Gau- um todo de cinquenta, mais uma vez completa-
therot, claramente interessado na beleza da flo- mente desfasadas das secções anteriores. Por
resta amazónica, nos populares e nas suas festas fim, a obra de Hans Gunter Flieg, é repartida
e no quotidiano dos mais desfavorecidos; Tho- em duas ramificações, sendo que de um lado
maz Farkas, um apaixonado pelas formas, não só encontram-se nove fotografias e de frente estão
de prédios, como também de pessoas; e Hans doze que se subdividem em nove e três, fazendo
Gunter Flieg, o fotografo da precisão técnica, um todo de vinte e uma fotografias. Por conse-
com imagens industriais, teatrais e misteriosas. guinte, entende-se a intenção dos curadores, Sa-
muel Tintan Jr, Ludger Derenthal e António Pinto
O circuito tem então início em José Medeiros, Ribeiro, de posicionar as fotografias consoante
figurado pelo seu retrato, sentado a beber um a quantidade relativa a cada autor, mas não se
chá. Estão representadas trinta e duas fotogra- compreende a configuração separada que as
fias deste autor, separadas por quatro paredes, imagens mostram, o porquê de ora estarem seis,
sendo que primeiro são visíveis dez, do outro ora estarem doze, acabando por não haver um
lado da taipa estão seis, de frente encontram-se fio condutor entre todas, considerando que há
mais dez, e na retaguarda apresentam-se ainda que ter em atenção o facto de ser uma exposição
seis, criando portanto um segmento duplo de colectiva e não individual.
imagens de dez por seis. Thomaz Farkas é o pró-
ximo nome da lista, retratado com a sua máqui- Segundo textos, as fotografias apresentadas na
na fotográfica na mão. É visível um desfasamento exibição, na sua maioria, são de uma grande
de imagens comparativamente ao autor anterior, variedade estilística e de um registo documen-
sendo que agora são apenas representadas se- tal valioso sobre um país vasto e contraditório.
tenta e duas, mais uma vez fragmentadas em dez Destaca-se a imagem “Gavéa, Rio de Janeiro” de
por seis, mas com a particularidade de na pa- 1952, do autor José Medeiros, uma fotografia
rede de fronte das seis imagens, estarem nove. que representa um dos bairros nobres da classe
Não se entende o porquê deste corte face à es- alta da capital, que mostra a praia de Copaca-
trutura inicial, e os mais atentos questionam-se bana com o morro dos dois irmãos como fundo.
sobre o motivo, sendo que não existe qualquer Entre eles, estão dois carros, estacionados jun-
folha de sala que possa eventualmente ter a res- to à berma, com um homem que surge proxi-
posta que se requer, e o catálogo da exposição mamente unido ao parapeito, tornando-a uma
não tem qualquer informação relativamente à imagem desprovida de qualquer elemento mais
quantidade desajustada ou ao posicionamento simples e modesto. Thomaz Farkas por sua vez,
das fotografias expostas. Observa-se a fotografia apresenta uma imagem em particular que nada

331
tem a ver com “Gavéa, Rio de Janeiro”, excetu- uma relação mais intima do público com a ima-
ando o registo monocromático. “São Paulo” de gem. Modernidades: Fotografia Brasileira (1940-
1950-1960 faz parte de um conjunto de imagens 1964), pretende assim ser uma exposição preen-
de sombras e perspectivas num tom mais artísti- chida de fotografias que questionam o ciclo da
co, que fazem lembrar as assombrosas fotogra- modernização das principais cidades e zonas do
fias do mestre Henri Cartier-Bresson. Numa vista país da época de Getúlio Vargas, com finalidade
de cima, um homem paira ao lado da sua bici- de alcançar um público geral com especial inte-
cleta junto à linha de caminhos-de-ferro, dando resse pela vida de um Brasil vibrante, mundano
a ideia que vai de regresso de casa. Em Marcel e cosmopolita.
Gautherot, destaca-se uma imagem da “Pesca
do Xáreu” de 1940, um ritual que se prolonga até
aos dias de hoje em Salvador da Bahia. Avistam-
-se junto à praia vinte e sete jovens no momento
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

em que puxam a corda da rede para fora do mar,


uma imagem que mostra nitidamente a vida sô-
frega dos mais desvalidos. Hans Gunter Lieg por
sua vez é o único que destaca a realidade dentro
das fábricas industriais, com a fotografia de um
inigualável paralelismo, de uma fábrica em São
Paulo com a data de 1960, mostrando um registo
visivelmente mais cuidado.

Todas as imagens da exposição são de extremo


interesse histórico mas não se encontram direta-
mente ligadas, quer seja em estilo ou em tema
e por vezes algumas até podem ser excluídas
que não se nota diferença relativamente a uma
leitura visual. No entanto, como um todo, for-
mam o conjunto de fotografias que melhor re-
tratam o Brasil vanguardista dos anos quarenta,
cinquenta e sessenta. Destacam-se várias ima-
gens de carácter documental forte, mas outras
fracas em termos de fotojornalismo, visto que se
a intenção é documentar um país pleno de de-
ficiências, não faz qualquer sentido cortar essa
linha de trabalho com imagens de carácter visual
imperceptíveis. A falta de um suporte baixo para
que o público possa utilizar para apreciar e en-
tender as fotografias de outra perspetiva, é ou-
tro elemento imprescindível face ao padrão da
exposição, sendo que a forma como a sala está
projetada merecia outra atenção. Não interessa
só olhar sem perceber, interessa sim intencionar

<<
Do Desenho e do Ordenar pontuado, aqui e ali, de aguadas de cinzentos,
de subtis pormenores de cor, ou de zonas vin-
do Tempo: Catarina Patrício cadamente definidas (até violentamente corta-
e Emília Nadal na das) por recurso a um exacerbar da técnica do
claro-escuro.
Galeria São Mamede
«Em cada desenho uma série de linhas se
Catarina Patrício cruzam, criando uma efabulação permanente.
Exposição «Two days before the O método que preside a estes efeitos é
difícil de apreender. O interesse de Catarina
day after tomorrow»
Patrício pelo cinema ressalta do cinematismo
SÃO MAMEDE – Galeria de arte contido, prestes a explodir em cada uma das
imagens, quase todas “desviadas” de filmes
26 Maio 15 – 23 Junho 15
cuidadosamente escolhidos, de cineastas
Emília Nadal como Kubrick, Dreyer, Tarkovsky, Muybridge
que surge insistentemente nesta série.» (José
Exposição «O Tempo e a Forma» Bragança de Miranda, “A Linha da Terra” in O
Resto e o Gesto: Desenhos para o Século XXI,
SÃO MAMEDE – Galeria de arte
Fundação Côa Parque, 2014)
26 Maio 15 – 23 Junho 15
Os desenhos de Catarina Patrício partem quase
por Claudia Simenta Rodrigues
sempre de uma imagética cinematográfica que
nos é reconhecível, que nos é familiar. Contudo,
o processo de execução que utiliza remete-nos,
No espaço de traça pombalina da galeria de segundo José Bragança de Miranda, autor do
São Mamede, em Lisboa, dá-se o encontro for- texto da exposição, para a técnica do cut-up
tuito do desenhar de duas artistas. Emília Nadal de Burroughs e Gysin, através da qual ela cria
e Catarina Patrício apresentam-nos as suas pro- uma nova narrativa (a sua) a partir dos estilha-
postas cujas fundações assentam em diferentes ços daquela que lhe deu origem. Ela fragmenta,
conceitos de tempo e da passagem deste. Fa- destrói, quebrando as linhas de associação que
lam-nos de um tempo por vezes lento, por ve- ligam os momentos temporais da narrativa ori-
zes acelerado; de um tempo vivido ou simples- ginal, para a seguir proceder ao acoplamento
mente intuído; de um tempo que se prolonga de uma nova imagética, de uma nova simbolo-
ou que se perde. Falam-nos do ritmo do tempo, gia, desenhando uma linha (outra) de associa-
do ritmo do mundo. ção na reconstrução de uma nova narrativa.

Catarina Patrício apresenta-nos desenhos de «De facto, cortar as linhas de associação


grande formato de uma figuração por vezes que criam as estórias repetitivas e tristes
hiper-realista, por vezes apenas esboçada; ora que caraterizam história, implica antes de
constituída a partir de um registo de grande mais revelar a própria linha, dar conta da
expressividade gestual, ora a partir de uma ex- sua necessidade. Mais ainda, é evidente que
trema contenção e economia de meios. A gra- desde que se trace algo, que se junte seja o
fite é o material dominante, sendo o desenho que for, se recompõe a linha, ou se descobre

333
Calendário (junho)
Desenho a tinta s/ tela, 23 x 80 cm, 2010
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

que a linha está ao trabalho, inexoravelmente. potenciadora do desenvolvimento da arte e do


[…]» (José Bragança de Miranda, “A Linha da cinema.
Terra” in O Resto e o Gesto: Desenhos para o
Século XXI, Fundação Côa Parque, 2014) Uma das suas grandes preocupações é, assim
como para Paul Virilio, a utilização da tecno-
«Tudo se joga no ordenamento do tempo» logia enquanto forma de supressão do corpo,
conforme referiu Paul Virilio em entrevista à de anulação da corporalidade, de alteração do
revista Cahiers du Cinéma e é nesse reordenar espaço geográfico em todas as suas escalas.
do tempo que Catarina Patrício constrói as suas Contudo, e de acordo com a visão de Simon-
narrativas. Bill Viola fala-nos, a propósito da sua don, a libertação do homem poderá, pelo con-
obra, da pouca fiabilidade do vídeo, enquanto trário, passar precisamente pela libertação da
instrumento de registo da realidade, precisa- máquina se pensarmos que o trabalho que hoje
mente por conferir uma certa maleabilidade ao consideramos como “libertador do homem” –
tempo, por permitir trabalhar o tempo. Da mes- as denominadas “manualidades” – foi outrora
ma forma, nas obras de Catarina Patrício o tempo trabalho de escravos.
é igualmente algo de maleável, moldável, passí-
vel de ser distendido ou comprimido; o tempo Numa das obras patentes na exposição somos
dobra-se sobre si mesmo, inverte-se, reflete-se, confrontados, pela artista, com a questão: Et ta
desdobra-se numa simultaneidade de eventos délivrance? A pergunta leva-nos a refletir sobre
que acontecendo na mesma temporalidade, se serão as máquinas a razão da nossa moderna
ocorrem, contudo, em espacialidades diferentes. escravidão ou se, pelo contrário, serão a razão da
nossa tão desejada liberdade? Fica a questão…
Outra das premissas do trabalho de Catarina
Patrício encontra-se relacionada com o desen- Diferentemente do que acontece com Catari-
volvimento tecnológico global e o impacto des- na Patrício, o tempo de Emília Nadal é outro.
te no Homem e na Humanidade. Interessam-lhe Longe da velocidade tecnológica da máquina,
as contaminações multidirecionais que envol- longe da loucura da urbanidade e do tempo
vem a arte, enquanto forma de expressão, o acelerado da denominada modernidade, Emília
cinema, enquanto delineador/criador de narra- Nadal permite-nos respirar propondo-nos um
tivas, e a tecnologia militar (a guerra), enquanto tempo de reflexão, de contemplação.

<<
Na exposição “O Tempo e a Forma” apresen-
ta-nos desenhos-calendário, metamorfoses do
natural que decorrem num tempo próprio da
Natureza, um tempo do qual nos encontramos
privados pela velocidade que nós mesmos im-
primimos à nossa vida.

Emília Nadal já não se rege por esse andar (ou


correr?) do tempo. O seu tempo, hoje, é o da
contemplação, da observação, do ver. José-
-Augusto França, no texto que redigiu para a Como deixei de me apoquentar e adorei a bomba #2
exposição fala-nos, a propósito do desenhar Grafite e tinta s/ papel, 92 x 150 cm, 2012

de outro artista, que este «andava cansado


da imaginação e apetecia-lhe uma humildade
que não tinha». E, de facto, é situação que mui- e entendida, que ao artista humildemente
to bem se aplica aqui. A ironia social de outros apetece, sem dar satisfações a quem de coisas
tempos deu lugar à poética da sinceridade e da mais vistosas, de brochas largas ou formas
paz de espírito, do virtuosismo do saber fazer encarrapitadas» e, tratando-se Emília Nadal
que se verte para representações da Natureza e de um muito estimado pilar da nossa Arte Por-
de «raminhos floridos», para uma organicidade tuguesa, com contas saldadas, provas dadas e
contemplativa, que resulta em reinterpretações objetivos cumpridos, apetece-lhe agora apenas
de calendários, estações, metamorfoses, da e só contemplar a Natureza; e eu atrevo-me a
passagem do tempo. acrescentar: só, porque sim.

As razões desta mudança de paradigma resi-


dem unicamente no pensar da própria Emília
Nadal, permanecendo para nós desconheci-
das, mas poderemos sempre especular e refe-
rir, como Helena Osório no seu artigo sobre a
exposição, que tudo isto acontece porque «ba-
nhados pelo panorama selvático de um mundo
pleno de violência e de injustiças, os artistas
repensam o passado, o presente e o que se
avizinha, mercê das conclusões que destes se
retiram».

Assim, podemos concluir, que caberá agora a


outras gerações (como a da Catarina, porven-
tura?) a incumbência de reordenar o nosso
tempo, de encontrar novas formas de nos rees-
truturar enquanto indivíduos, novas formas de
“arrumar” a casa. Porque, com diz José-Augus-
to França, «assim também vai a poesia, vivida

335
Guilherme Parente Embora seja de certo modo uma “estrela”, da
Arte Contemporânea Portuguesa, Guilherme é
– Águas de Transcendência uma pessoa muito afável e doce, como as suas
pinturas e sem qualquer vaidade narcisista.
Exposição «Águas Régias»
Guilherme Parente conheceu a Galeria VIA IDEA
Azeitão: Galeria Via Idea através do seu velho amigo e colega da Socieda-
20 Junho – 15 Julho 2015 de de Belas Artes, António Osório de Castro que
fez a ponte entre o artista e a Galeria.
por Raquel Farelo
Após o convite da Galeria VIA IDEA, Guilherme
Parente propôs uma exposição mista, com pintu-
ras e aguarelas, mostrando assim duas técnicas
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

A exposição “Águas Régias” realizou-se no dia e materiais. E subsequentemente a variação pre-


20 de Junho às 18h na Galeria de Arte Contem- ços, permitindo uma maior amplitude de públi-
porânea, VIA IDEA, que apresentou uma expo- co na aquisição das obras.
sição individual do artista Guilherme Parente
(Lisboa, 1940). A exposição inaugurou na véspera do solstício
de Verão às 18h, um Sábado quente com tempe-
O Artista Guilherme Parente estudou pintura raturas de 34ª, onde a praia foi o local eleito dos
com o Mestre Roberto de Araújo, na Sociedade Portugueses nesse dia, influenciando a chegada
Nacional de Belas Artes, pessoa que muito in- atempada de muitos ao evento, os convidados
fluenciou o seu trabalho. Frequentou curso de só começaram a chegar por volta das 19h, mas
gravura na Cooperativa Gravura e fez parte de rapidamente o espaço se compôs com artistas,
uma geração de artistas que desde a década de amigos, curiosos e críticos.
50, procuraram formação no estrangeiro.
Guilherme Parente foi descrito por Augusto
Em 1968 Guilherme Parente ruma para Lon- França como um “pintor lírico e fora do tempo”.
dres, onde permanece até 1970. Admitido pela
Slade School of Fine Art como bolseiro da Gul- Lírico com certeza, pelo universo poético da sua
benkian. Cinco anos após o regresso é galar- pintura e fora do tempo, não porque tenha nas-
doado com o prémio Malhoa e mais tarde em cido aquém do tempo, ou para além deste mas
1989 com o prémio de pintura da Sociedade porque, o tempo é um conceito desconhecido e
Nacional de Belas Artes, sendo desde então um inexistente neste mundo das ideias imaginadas.
artista com mérito reconhecido. Hoje é consi-
derado um dos artistas Portugueses mais con- Expôs, na VIA IDEA, uma tela enorme de 2.10
sagrados internacionalmente, expondo indivi- X140 sem engradamento com o título: “Por ma-
dualmente, em Portugal, na Bélgica, Alemanha, res nunca antes navegados” e uma outra “a tra-
França, Inglaterra, Japão e nos Estados Unidos.  vessia “, sobre madeira de pau-santo com a figu-
Está representado no Ministério da Cultura, na Fun- ra de um barco, com um elemento tridimensional
dação Nacional Soares dos Reis, no Museu Nacio- colado: “escantilhão” incorporando na pintura
nal de Arte Contemporânea, na Fundação Calous- incorporando a ondulação da bandeira presa na
te Gulbenkian e no Museu Machado de Castro. vela, esta temática não é mágoa das atlântidas

<<
perdidas, ou do saudosismo dos Descobrimen-
tos que anima, mas a esperança, ou desejo de
uma recriação da sua expressão.

O símbolo é usado como uma linguagem com


dupla intencionalidade logo necessita de ser in-
terpretado, como o barco, símbolo da travessia
da vida e da  morte.  Representa a viagem  cum-
prida ao  longo da vida, ou a  travessia  que leva
a  alma para um outro lugar ou relacionar-se à
travessia em direção à vida, ao nascimento.

A sua obra revela um entusiasmo intrínseco e na-


tural na conceção da viagem da vida, onde atra- "Por onde o tempo não passou."
vés das suas pinturas somos transportados para
uma outra realidade, doce, terna e suave e por
vezes melancólica. que se perpetuam na imaginação do próprio e
na sua dimensão criativa.
Guilherme Parente usa as cores vivas, vibrantes
e puras, existindo sempre uma luz quente e re- Seu professor e Mestre Cid dos Santos, conjun-
confortante nas suas telas. Como já o tinha dito tamente com Anthony Gross, reconheceram nele
José Augusto França, “Na pintura – pintura de um “artista sensível, dotado de imaginação”.
Guilherme Parente, jamais faz mau tempo, por
impossibilidade metafisica.” Estamos perante um artista que viaja do sonho
para a matéria. Usa o seu lirismo para narrar um
Nas aguarelas apresentadas notamos uma leve- mundo simbólico, onde os objetos e figuras, são
za do gesto que se construiu desde a sua infân- muito mais que meras representações gráficas.
cia, quando habitualmente desenhava figuras de Elas representam signos e mitos que revelam um
chapéu-de-chuva que a sua mãe guardou reli- pensamento profundo de Ser.
giosamente. Ele é um homem com espirito de
criança, por isso não admira que seja um apai- É uma pintura onde o sonho é tornado visível,
xonado pela arte das mesmas, capazes de criar onde não existe tempo porque as emoções, afetos
livre de modelos. e imaginação não se quantificam, só se sentem.

No próprio trabalho ele usa uma simplicidade se- As suas pinturas comunicam intimamente com
melhante à usada por elas, empregando cores in- observador, na medida em cada um constrói a
tensas inspiradas por uma viagem ou por um so- sua história, partindo das imagens mais ou menos
nho recriando um mundo através da imaginação simplificadas que a composição apresenta mas
quando percecionadas de modo invulgar, po-
A sua sensibilidade, intuição e devaneio voltado dem ser reveladoras conduzindo a um estado de
à infância, convergem num mundo onírico e sim- liberdade, como quando sonhamos acordados …
bólico, criando figuras e objetos do fantástico

337
Inspirado pelo elixir da vida, Guilherme Parente
pinta, “cá é lá”, sendo um alquimista no ateliê,
transformando a matéria com que pinta numa
arte reveladora do fantástico mistério da vida.

O nome que intitula a exposição é ambíguo, se


por um lado tem uma referência direta às águas
reais, à memória histórica de um Povo de nave-
gadores e descobridores, onde eramos o Povo
Rei do Mar, por outro podemos pensar que a
utilização da folha de ouro nas suas pinturas con-
fere uma analogia à, “Água-régia”, (líquido capaz
de dissolver metais nobres) porque como ela, a
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

sua pintura também dissolve o observador na


sua narrativa simbólica e transforma-o, alcançan-
do a verdade e curando-o dos males da vida.

A pintura Guilherme Parente agradece à vida, à


obra de Deus e um dia… uma das suas telas se
transformará na “ Grande Obra “, obtendo o elixir
da imortalidade a água de transcendência.

<<
Actividades Convocarte

Encontros com Críticos de Arte – Homenagem a


Rui Mário Gonçalves

Ao longo do mês de Maio de 2015,


organizou-se o 1º ciclo de Encontros
com Críticos de Arte, decorridas às
segundas no Auditório Lagoa Henri-
ques da FBAUL. Sucedidas no âmbi-
to do Mestrado de Crítica, Curado-
ria e Teorias de Arte, e de linhas de
trabalho do CIEBA-secção Francisco
d’Holanda, o evento teve o envolvi-
mento da revista Convocarte, a par-
tir da sua proximidade com linhas de
investigação sobre a historiografia,
a crítica e a teoria estética em Portu-
gal, cujos contributos são patentes
na segunda pasta de ensaios desta
edição. O evento pretende deixar
alguns contributos que compensem
a carência de estudos relativos aos
discursos sobre arte em Portugal,
sobretudo no caso da crítica de arte.
Sendo um trabalho da Área de Ciên-
cias da Arte e do Património, teve a
organização dos Professores Cristi-
na Tavares e Fernando Rosa Dias.

Este ano, os encontros fizeram uma homenagem a Rui Mário Gonçalves, um


dos mais destacados críticos de arte portuguesa da segunda metade do sé-
culo XX, que nos abandonara cerca de um ano antes, em Maio de 2014. Para
os próximos encontros prepara-se uma sessão especial mais alargada sobre
Rui Mário Gonçalves, abordando a sua importância em diferentes facetas,

339
tais como crítico de arte, historiador de arte
ou curador.

Os problemas actuais do exercício da crítica


de arte, tal como as suas relações com a prá-
tica curatorial, ou as suas contribuições para
a teoria e história da arte, foram aspectos co-
locados em debate e reflexão. Com cerca de
Encontros com Críticos de Arte – sessão com o
Professor José-Augusto França, 4 Maio 2015. 2 horas, as sessões decorreram não propria-
[Da esquerda para a direita: Cristina Tavares,
mente como uma conferência nem como um
José Augusto França e Fernando Rosa Dias]
aula, mas como depoimentos pessoais, de-
senvolvidos em tom de conversa com os mo-
– CONVOCARTE N.º1 | ACTIVIDADES CONVOCARTE

deradores e com os interessados presentes.


Apesar do desenvolvimento livre, as sessões decorreram com a seguinte
preocupação estrutural, mais ou menos pela mesma ordem:

• Uma breve apresentação biográfica inicial de cada crítico convidado,


por vezes desenvolvida pelo próprio.
• Uma direcção sobre  histórias e memórias pessoais da actividade de
crítico de arte.
• Tentar definir e problematizar, a partir da experiência pessoal, a activi-
dade de crítico de arte.
• Discutir a situação actual da actividade de crítico de arte.
• Em todos estes parâmetros interessaram possíveis relações com a ex-
periência da curadoria, da história ou das teorias da arte, seja algum con-
tributo pessoal, seja algum posicionamento pessoal.
• No caso deste ano de 2015, houve ainda a preocupação de apresentar
testemunhos pessoas relativos a Rui Mário Gonçalves.

As sessões decorreram com os seguintes convidados:

• José-Augusto França – 4 Maio 2015


• Sandra Vieira Jürgens – 11 Maio 2015
• José-Luís Porfírio –18 Maio 2015
• Sílvia Chicó – 25 Maio 2015

Os convidados abarcavam assim, geracionalmente, um tempo vasto de


percurso da crítica de arte em Portugal. José-Augusto França, actuante
desde a década de 1940, é uma figura incontornável da crítica e história
da arte em Portugal, tendo feito a primeira grande sistematização da histó-

<<
ria de Arte Portuguesa da Era Contemporânea, e tendo também sido parte
essencial dela. A cumplicidade com Rui Mário Gonçalves, os esforços de
profissionalização da crítica de arte, com a reforma da secção Portuguesa
da AICA em finais dos anos 60, tal como reflexões sobre o que é a activi-
dade, foram alguns dos motes da sua intervenção. José Luís Porfírio, com
carreira no âmbito museográfico, tendo sido director durante vários anos
do Museu de Arte Antiga, apresentou o seu diálogo com a prática crítica,
que tem exercido regularmente desde os anos 60, transportando essa ex-
periência de décadas, desde tempos dinâmicos da actividade até à sua
derrisão actual. Sandra Vieira Jürgens, representando gerações mais re-
centes, apresentou envolvimentos da crítica com a curadoria e o uso de
plataformas digitais para as quais se tem deslocado a crítica de arte, abrin-
do espaços de discussão sobre a actividade nestes novos suportes de que
precursora. Sílvia Chicó iniciou a sua apresentação com reflexões sobre
a vasta actividade de Rui Mário Gonçalves, tendo numa segunda parte,
apresentado o seu percurso pessoal, enquanto crítica, professora e cura-
dora, com atenção ao lugar do feminino nestas áreas.

As sessões videogravadas podem ser vistas em:

11 de maio – https://educast.fccn.pt/vod/clips/1680fq51w7/link_box
18 de maio – https://educast.fccn.pt/vod/clips/1ojgjnzd3g/link_box
25 de maio – https://educast.fccn.pt/vod/clips/2khzgjmdri/link_box

341
Procedimentos e Orientações de
Publicação em Convocarte
Conselho Científico Editorial e Pares Académicos
do nº1 de Convocarte

Pares Académicos Internos à FBAUL:

• Fernando Rosa Dias – Professor Auxiliar de Ciências da Arte, FBAUL, Investi-


– CONVOCARTE N.º1 | PROCEDIMENTOS E ORIENTAÇÕES DE PUBLICAÇÃO EM CONVOCARTE

gador do CIEBA, secção Francisco d’Holanda – Coordenação Geral da Revista


Convocarte
• Cristina Azevedo Tavares – Professora Associada de Ciências da Arte e do Pa-
trimónio na FBAUL e no PD-FCTAS da FCUL, Investigadora integrada do CFCUL,
Head de Arte e Ciência,  investigadora colaboradora do CIEBA​.
• Eduardo Duarte – Prof. Auxiliar de Ciências da Arte e do Património na FBAUL,
Investigador do CIEBA, Responsável do 2.ºCiclo das Ciências da Arte e Coorde-
nador do Mestrado em Museologia e Museografia.

Pares Académicos Exteriores à FBAUL:

• José Pedro Regatão – Professor na Escola Superior de Educação do Institu-


to Politécnico de Lisboa, Doutoramento em Ciências da Arte (Área Específica:
Arte Pública), Investigador - Coordenador do Dossier Temático do nº2 da revista
Convocarte: «Arte Pública» (convidado):
• Angela Ancora da Luz – Historiadora e Crítica de Arte, vice-Presidente da
ABCA, Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
• Isabel Nogueira - Doutorada em Belas-Artes, em Ciências e Teorias da Arte
(FBAUL) e pós-doutorada em História e Teoria da Arte Contemporânea e Teoria
da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne).
Professora Universitária, Investigadora de Arte Contemporânea e Curadora in-
dependente. 
• Javier Maderuelo – Catedrático de Composición Arquitectónica, Universidad
de Alcalá. Encargado de investigación en Archivo Lafuente.
• Juan Carlos Ramos Guadix – Artista plástico, Gravador, Profesor Titular, Depar-
tamento de Dibujo, Faculdad de Bellas Artes, Universidad de Granada.
• Raquel Henriques da Silva – Professora Associada da FCSH-UNL. Directora do
Instituto de História da Arte FCSH-UNL.

<<
O Espírito da Revista Convocarte

A revista é de suporte digital e pretende convocar para discussão especialistas de te-


mas das artes, a partir de diferentes formações das artes e humanísticas: historiadores
de arte, filósofos da estética, críticos e teóricos da arte, curadores, museólogos, de
áreas afins interessadas pelas questões da arte, tais como antropologia, sociologia,
psicologia e psicanálise, estudos da linguagem e do signo, etc… ou os próprios artis-
tas. O seu princípio é ter um Tema, em torno de questões da arte, que domina cada
número e que é o centro de uma Convocação para a reflexão e discussão.

A Convocarte assume o português como língua base, estendendo a recepção de tex-


tos a línguas tradicionais no mundo universitário português: espanhol, inglês e fran-
cês. O Conselho Científico Editorial trabalhará nessas diferentes línguas sempre que
necessário, com envio dos textos de modo ajustado a essas competências. Os textos
podem ser enviados escritos em cada uma destas línguas, defendendo-se pluralida-
de, mas com a preferência de que cada autor escrevesse e pensasse na sua lingua-
gem de formação base. Se a FBAUL é o seu natural centro de edição e convocação, o
seu alcance é plural e cosmopolita.

É uma revista com Leitura e Revisão de Pares (peer review), sem chamada de textos
(call for papers) mas com base na discussão e sugestão. A principal função é criar um
espaço de discussão e publicação de questões múltiplas do mundo (plural) das artes.

Processos Editoriais

O controlo científico e editorial do Dossier Temático, que especifica cada número da


Convocarte, com colaborações de fundo mais alargadas, funciona a partir de textos
solicitados por convites directos aos autores, a partir de uma Coordenação Geral
e em consulta do Conselho Científico Editorial constituída para cada número, que
coordena cada dossier temático e que constituirá o painel de Revisão de Pares (Peer
Review). Neste sentido não será efectuada nenhuma chamada aberta de textos (Call
for Papers). Contudo, investigadores interessados poderão apresentar textos à re-
vista, com consulta prévia através de curriculum científico e explicitação da questão
a abordar, que serão depois apreciados pelo Conselho Científico Científico (cada
tema é anunciado no número anterior).

Não há submissão de textos, e é nesse espírito que deve actuar o Conselho Cientí-
fico Editorial. A relevância deste método de revisão de pares (com espírito de dis-

343
cussão de pares) é criar um espaço de debate e partilha científicos pré-editorial, que
pretende ser uma forma aberta e dialogante entre especialistas das Ciências da Arte
em geral. Por isso, a revisão não é duplamente cega, mas apenas para os autores.
Qualquer membro do Conselho Científico Editorial que apresente texto para o Dos-
sier Temático, terá que colocar o seu trabalho também em processo de revisão. Ne-
nhum elemento do Conselho Científico Editorial faz revisão do seu texto ou de um
autor que tenha proposta. É apenas a Coordenação que tem a função de organizar
e distribuir os textos para revisão.

Com rigor e partilhas científicas, pretendemos encontrar uma plataforma de revisão


de pares mais ajustada às áreas humanísticas e artísticas relativamente ao modelo do-
minante, muito anglo-saxónico e mais apropriado às Ciências Exactas e Tecnológicas.
– CONVOCARTE N.º1 | PROCEDIMENTOS E ORIENTAÇÕES DE PUBLICAÇÃO EM CONVOCARTE

Os trabalhos do Conselho Científico Editorial centram-se apenas no Dossier Temá-


tico, mais alargado e central em cada edição. As restantes pastas da revista, resul-
tam de trabalhos no âmbito de ciclos de formação da FBAUL em articulação com
linhas de investigação do CIEBA, cabendo a sua revisão a coordenadores de linhas
de investigação do CIEBA e à Coordenação Geral. Contudo, em casos específicos, a
Coordenação poderá, relativamente a um destes textos, fazer uma consulta a mem-
bros do Conselho Científico Editorial.

— Funções do Conselho Científico Editorial:

1. Sugestão de investigadores especializados do Dossier para colaborarem no nú-


mero correspondente.
2. Apreciação de textos/ensaios, através de breve texto com os seguintes parâme-
tros e critérios:
a) Ajustamento do texto/ensaio à política editorial da revista, enquanto revista
Universitária no âmbito das Artes e Humanidades.
b) A adequação do texto/ensaio ao Tema do Dossier.
c) Originalidade do objecto da investigação ou da reflexão.
d) Linguagem especializada, competente e adequada aos problemas em foco.
e) Qualidade científica e metodológica na pesquisa e investigação, tal como na
escrita e argumentação.
f) Competência argumentativa e crítica.
g) Domínio de conhecimentos artísticos, históricos, estéticos, e filosóficos.

3. Sugerir melhorias de alterações em forma de breve comentário, se consideradas


necessárias, em função dos parâmetros anteriores ou outros afins (máximo de 1000
caracteres).

Cada texto do Dossier Temático será apreciado por dois revisores do Conselho Cien-
tífico Editorial.

<<
As propostas são sempre distribuídas por elementos do Conselho Científico Edito-
rial que não estão na origem da indigitação dos candidatos ou que não correspon-
dam aos próprios.

Sendo um sistema por convite de investigadores especializados, e centrado em su-


gestões, o processo de revisão de pares não será feito sobre os abstracts, mas sobre
o texto final.

Reserva-se à Coordenação, com base nas apreciações das considerações do Conse-


lho Científico Editorial, a recusa de edição de algum dos textos, seja por desajusta-
mento ao Tema, ao défice científico ou à recusa em efectuar alterações a partir das
sugestões de leitura do Conselho Científico Editorial.

A Coordenação pode consultar o Conselho Científico Editorial, ou alguns dos seus


membros, para questões específicas, de dúvida e com carácter de excepção, que
surjam ao longo dos trabalhos.

— Formato dos textos candidatos ao Dossier Temático:

1. Texto geral de c.30.000 (ou entre 20.000 e 35.000) caracteres sem espaços.
2. Um resumo (abstract) em inglês ou francês de c.850 caracteres sem espaços.
3. Utilização coerente de princípios universitários de indicação das fontes documen-
tais e bibliográficas (o sistema e norma adoptados serão da opção de cada autor, mas
o Conselho Científico Editorial pode pronunciar-se sobre a sua adequação e rigor).
4. Relativamente à redacção dos textos em português a Coordenação deixa a cada
autor a liberdade e responsabilidade de escolha da utilização o último acordo orto-
gráfico ou da anterior ortografia [a actual coordenação geral de Convocarte reserva-
-se, apenas para os seus textos, a não seguir o mais recente acordo].
5. Os textos podem ser apresentados nas seguintes línguas, adequadas à origem e
formação dos respectivos autores: português, espanhol, francês ou inglês.
6. Inclusão, até ao máximo de 8 imagens para reprodução ao longo do texto (as ima-
gens poderão ser a cores; os processo de autorização e a responsabilidade dos di-
reitos de reprodução das imagens são da responsabilidade do autor do texto). As
imagens que acompanham os textos devem ser enviadas em pasta própria denomi-
nada Imagens-nome autor. Todas as imagens terão de ser de alta qualidade para im-
pressão com resolução de 300 dpi e em formato tiff ou jpg. Um documento de texto
deverá ser enviado com a descrição das legendas. Os nomes atribuídos às imagens
devem ser iguais aos nomes usados na referência de localização no texto que acom-
panham e, caso seja necessário, os respectivos créditos. As imagens devem estar por
ordem com o nome da imagem antecedendo a respectiva legenda (ex: imagem 1 -
legenda da imagem 1 + créditos de imagem 1). À Coordenação Geral reserva-se o
direito de excluir as imagens que não cumpram os critérios descritos.

345
7. Direitos de autor: dentro do abrigo das edições da Universidade de Lisboa. Cada
autor será responsabilidade por qualquer acto de plágio ou de indevida autoriza-
ção de reprodução de imagens ou trechos que escapem à supervisão do Conselho
Científico Editorial.

Qualquer outra excepção será apreciada pelo Conselho Científico Editorial e fará par-
te do seu comentário. A decisão final dessas excepções caberá à Coordenação Geral
e ao Coordenador do Dossier Temático.

A Convocarte é uma revista digital pública da FBAUL. OS autores cedem os direitos a


essa publicação através do mundo universitário. Os direitos específicos de publicação
e divulgação dos trabalhos da Convocarte passam, por inerência, a ser propriedade
da Universidade de Lisboa, segundo os seus regulamentos, à qual pertence a FBAUL.
– CONVOCARTE N.º1 | PROCEDIMENTOS E ORIENTAÇÕES DE PUBLICAÇÃO EM CONVOCARTE

— Sequência e processos de trabalho:

Determinado o Conselho Científico Editorial para cada número, segue-se a seguinte


sequência de trabalhos, cada qual com data limite, segundo calendário a definir em
cada proposta de trabalhos na preparação de cada número.

1. Sugestão de autores/ensaístas por parte do Conselho Científico Editorial e recep-


ção de propostas de textos exteriores por parte da Coordenação (a selecção inicial
das propostas exteriores são da responsabilidade da Coordenação Geral e do Dossier
Temático, com consulta de membros do Conselho Científico Editorial, se considerado
necessário).
2. Convocação dos textos finais aos autores em data a calendarizar para cada número.
3. Envio dos textos ao Conselho Científico Editorial, com princípios e grelha de apre-
ciação (dois para cada texto).
4. Recepção das apreciações da Coordenação e reenvio para os autores para altera-
ções ou correcções, a partir das sugestões do Conselho Científico Editorial.
5. Envio dos textos alterados e/ou corrigidos para a paginação. A paginação ainda
será devolvida aos autores para últimos acertos (já não de alteração do texto).
6. Lançamento

Os comentários do Conselho Científico Editorial são devolvidos aos autores tal como
chegam à Coordenação Geral e Temática, mantendo-se todas as opções pessoais da
apreciação qualitativa. Embora sejam sugestões, sublinha-se uma sua leitura atenta por
parte dos autores. Pretende-se depois que, perante estas análises críticas, estes ponde-
rem necessárias alterações: revendo, corrigindo, justificando, cortando, acrescentando,
deslocando, etc. A principal intenção da apreciação qualitativa, destaque-se, é a melho-
ria qualitativa dos textos através de um plano intersubjectivo de funcionamento.

<<
— Proposta externa de Texto/ensaio para a revista Convocarte

A coordenação pode aceitar, para o Dossier Temático, propostas de trabalhos exte-


riores ao processo de convites do Conselho Científico Editorial. Para isso, a proposta
deve ser enviada para a Coordenação através do email da revista Convocarte [con-
vocarte@fba.ul.pt], acompanhada dos seguintes elementos:
a) Curriculum Vitae académico e de investigação, sobretudo centrado em traba-
lhos relativos ao tema do Dossier.
b) Um resumo até 1000 palavras sem espaços da proposta do seu trabalho.
c) Carta ou email de motivação.

A proposta deve seguir as orientações de cada tema apresentadas no final de cada


número de Convocarte.

Sendo aceite pela Coordenação, os trabalhos seguem os processos gerais dos ou-
tros textos, para leituras e sugestões do Conselho Científico Editorial.

Também podem ser propostos textos para as restantes pastas da revista Convocarte,
ficando neste caso à responsabilidade da Coordenação Geral, com possíveis con-
sultas a membros do Conselho Científico Editorial ou a Coordenadores de linhas de
investigação do CIEBA.

347
Apresentação do Dossier Temático
do n.º2 de Convocarte:
«Arte e Geometria»

A Geometria é uma das mais importantes matérias de estudo, transversal a todas


as grandes civilizações da Antiguidade. A sua utilidade revelava-se nas práticas de
construção arquitectónica, bem como no aprofundamento do conhecimento sobre
a terra ou no desenvolvimento da astronomia. A importância do teorema de Pitágo-
ras é sobejamente conhecida e a extensa recolha de definições, postulados, propo-
– CONVOCARTE N.º1 | PROCEDIMENTOS E ORIENTAÇÕES DE PUBLICAÇÃO EM CONVOCARTE

sições e provas matemáticas levada a cabo por Euclides dá nome a um ramo da pró-
pria Geometria (Euclidiana), além de enformar o pensamento de múltiplos filósofos,
astrónomos e matemáticos durante séculos.

A compreensão do espaço através da Geometria reflecte-se ainda na importância


das inúmeras associações simbólicas de que é alvo, sendo por exemplo posta ao
serviço de fundamentos religiosos, tanto no Ocidente como no Oriente. Seja pela
exploração de padrões, pelo estudo das proporções, pela riqueza conferida à com-
posição visual ou pela determinação e desenvolvimento dos fundamentos da pers-
pectiva linear, a Geometria tem um lugar de importância maior na história da Arte.
Em épocas mais recentes a exploração da Geometria continuou a trazer novidade e
mudança, particularmente nas artes visuais, senão note-se a importância do cubis-
mo, da abstracção geométrica ou mesmo da op art.

Isto faz com que o estudo abrangente das várias formas de aplicação da Geometria
na Arte seja essencial. Aceitando que a bibliografia existente no campo da análise
geométrica e composicional de pintura, arquitectura ou escultura é considerável, é
inevitável notar que a mesma deve mais à iniciativa individual dos seus autores do
que a uma linha metodológica estabelecida, como acontece por exemplo na história
da arte ou outros campos de análise da imagem (casos de Charles Bouleau, Matila
Ghyka, Robert Lawlor ou Martin Kemp).

Reunir estratégias de investigação mais recentes sobre o tema contribuirá para clarificar
e enriquecer metodologias no campo da Geometria aplicada à Arte. Estudos de caso
podem incluir ainda artistas plásticos contemporâneos que fazem uso de propriedades
geométricas na sua obra, aplicações que entrecruzam ciências e percepção visual (como
o caso da cartografia) ou mesmo o estudo da relação da Geometria com a simbologia.

Contudo, o tema, com vasta profundidade histórica, artística e cultural, tem estado
esquecido nos debates recentes do mundo universitário, como que fora de moda,

<<
pelo que a sua convocação de estudos actuais, se apresente um desafio particular
a que a Convocarte resolveu avocar. Apresentamos alguns motes, com exemplos
genéricos, de desenvolvimentos possíveis de propostas de texto. Longe de ser ex-
clusiva, esta é uma amostra das potencialidades do tema:

• A Geometria na arte, caso da tratadística e a sua preocupação com as medi-


das, desde a antiguidade até, pelo menos, ao modulor de Le Corbusier.
• A Geometria como instrumento de estudo da obra de arte, na história e nas
teorias da arte, caso dos famosos estudos de Panofsky sobre as proporções na
representação do corpo ou sobre a perspectiva, ou estudos de análise de ima-
gem e de composição e a averiguação de princípios geométricos-matemáti-
cos nas obras, tais como a regra de ouro.
• A utilização de princípios geométricos em movimentos, estilos ou técnicas
artísticas, como a abstracção geométrica, a op art, os padrões geométricos na
tradição do azulejo, em culturas não figurativas, etc.
• A Geometria nas várias artes: a métrica na música e na poesia; a regra de
ouro na composição de obras de várias artes visuais, da pintura à tipografia; o
canon da figura humana, etc.
• A Geometria na relação entre as artes, em modos de analogia ou de inter-
ferência; por exemplo a utilização de padrões geométricos na decoração de
edifícios arquitectónicos ou de espaços urbanos.
• O confronto de tempos e movimentos culturais mais marcados pela Geome-
tria, com outros menos aderentes.
• A Geometria e a educação artística, como disciplina basilar em diferentes es-
paços e níveis de ensino artístico.
• O debate da actualidade da Geometria na arte e a sua possível actualidade
ou mesmo crise (ver em exemplo o ensaio de Peter Halley: «A Crise da Geome-
tria», in Arts Magazine, nº10, 1984).

O especialista convidado para co-coordenar o Dossier Temático, é o investigador


do CIEBA Simão Palmeirim. Formado em Pintura pela FBAUL e com o mestrado
em Fine Arts pela Central Saint Martins College of Art com a tese Sublime after ob-
jecthood and awareness of scale, terminado em 2009, tendo já entregue tese de
doutoramento (FBAUL) em Ciências da Arte com o título A aquisição do espaço
plástico renascentista na Pintura Portuguesa de 141 a 1525 - competências geomé-
tricas e compositivas do final da Idade Média ao início do Renascimento. Além de
se debruçar sobre a importância da Geometria na Pintura da época que a tese de
doutoramento abarca, Simão Palmeirim tem trabalhado em parceria com Pedro J.
Freitas (FCUL) e o projecto “Modernismo Online: Arquivo Virtual da Geração de
Orpheu”, particularmente no que diz respeito à obra plástica de Almada Negreiros.
Esta colaboração levou recentemente à edição (em co-autoria com Pedro Freitas)
de artigos como “Almada Negreiros and the geometric canon” Journal of Mathe-
matics and the Arts, Oxford: Taylor and Francis, 2015; Os Problemas de Matemática

349
de Almada Negreiros, atas do Encontro Nacional da SPM, 2014; “A linguagem do
quadrado” Cinequanon, nº 8, FLUL, 2014; “Geometria na obra abstracta de Almada
Negreiros. Quatro composições de 1957” Revista de História da Arte, série W nº 2,
2014 e do livro (no prelo) Livro de problemas de Almada Negreiros, SPM.

Fernando Rosa Dias | Simão Palmeirim

Calendário para o N.º 2


Janeiro/Junho de 2016
– CONVOCARTE N.º1 | PROCEDIMENTOS E ORIENTAÇÕES DE PUBLICAÇÃO EM CONVOCARTE

Convocação e concepção de textos

Junho de 2016
Entrega de textos pelos autores

Julho/Agosto de 2016
Revisão de Pares

Setembro de 2016
Reajustamento dos autores perante revisão de pares

Outubro/Novembro de 2016
Paginação

Dezembro de 2016
Revisões e acertos finais

Janeiro de 2017
Lançamento/apresentação

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