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A
– CONVOCARTE N.º1 | EDITORIAL
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va privilegiada, útil aos mecanismos das ar- espaços artísticos de formação superior2.
tes e humanísticas, e que nos sugere a tra-
dição, tão importante na cultura portuguesa A estrutura base da Convocarte assenta em
dos últimos dois séculos, da tertúlia artísti- três partes ou pastas que conjugam diferen-
ca e literária. A convocação da alteridade na tes intenções:
constituição de um grupo plural de discus-
são em torno de um tema é a nossa propos- 1. O Dossier Temático, central neste projec-
ta capital de Convocarte. to editorial, que caracteriza com um tema
particular cada número na convocação de
Aproveitando os meios digitais, esta revista especialistas. Os ensaios do Dossier Temá-
pretende ser um mecanismo científico ágil tico tiveram, neste primeiro número dedica-
e dinâmico, com uma larga plataforma de do à Arte Pública, o seguinte plano de se-
modos de reflexão sobre as artes (sobre- quência que define a ordem do seu índice
tudo visuais), sendo expressão do modo (uma orientação base para futuros números,
sincrético de funcionamento afecto à área embora passível de ajustamentos particula-
científica de Ciências da Arte e do Patrimó- res, consoante os temas):
nio (aberto a outras especialidades interes-
sadas em contribuir para a reflexão sobre • Textos teóricos ou doutrinais relativos
as artes em geral), incorporando ensaios de ao tema, mais perto do âmbito da filoso-
predomínio teórico enraizado nos mais pre- fia, da estética ou da teoria da arte.
dominantes modos de discurso sobre arte: • Textos históricos, com panoramas ou
História da arte, Crítica de Arte, Estética, abordando tempos históricos.
Teorias da Arte e Curadoria. A revista pre- • Estudos de Caso.
tende ser uma plataforma de recepção de • Extensões ou confluências do tema –
trabalhos realizados no âmbito de linhas de no caso, Novos Géneros ou Fronteiras
investigação do CIEBA, sobretudo da sec- da Arte Pública.
ção Francisco d’Holanda. Nesta sequência
procurará estar perto de trabalhos produzi- 2. Um bloco de Estudos de Historiografia e
dos nos mestrados e doutoramento de es- Crítica de Arte Portuguesa, que inclui traba-
pecialidade das Ciências da Arte. Contudo, lhos desenvolvidos no âmbito das Ciências
o enquadramento na FBAUL fornece a esta da Arte, nos ciclos de formação e em linhas
dominante teórico uma dimensão peculiar, de investigação do CIEBA/Francisco d’Ho-
uma proximidade com a produção artísticas landa. São contributos para o estudo dos
e a convocação dos próprios artistas para discursos sobre a arte, com relevância maior
essa reflexão – esta proximidade não só es- na cultura portuguesa, em torno da historio-
tabelece modos particulares aos modos das grafia da arte, da crítica, da estética, etc.
Ciências da Arte no contexto da FBAUL1,
como abona o mais recente desenvolvi- 3. A última parte incorpora um conjunto de
mento de uma noção de Investigação em críticas de exposições e eventos artísticos
Arte que tem marcado os últimos anos dos decorridos ao longo do ano anterior, procu-
7
rando desenvolver uma plataforma de rela- a sua teorização está patente em vários co-
ção com eventos artísticos concretos. Este laboradores deste número, com formação
espaço crítico e de reflexão, de ligação do artística e alguns com produção regular –
espaço universitário à comunidade cultural e aspecto a que se pretende dar seguimento
artística em geral, procura contribuir com um em futuros números.
espaço dialogante de produção de fortuna
crítica das mais diversas actividades artísticas A constituição de um Conselho Científico
correntes, sobretudo afins às artes visuais. Editorial procura salvaguardar a qualidade
científica da revista, tendo esta as funções
Entre estas partes que a revista compõe, tem de sugestão de autores e de revisão de en-
centralidade o dossier temático que carac- saios com apreciações qualitativas, com
teriza cada número. Sendo mais alargado possíveis sugestões de melhoria. Uma das
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e aprofundado, procura abordar um tema suas primeiras funções é essa proposta dos
especial no campo das artes. Para cada nú- ensaístas. O sistema de convites procura
mero há um especialista convidado para a orientar a harmonia e equilíbrio dos conteú-
sua coordenação desse dossier temático e dos, propondo pluralidade de perspectivas,
que vai integrar o Conselho Científico Edi- mas evitando tanto redundâncias como au-
torial. O sistema de solicitação de textos é sências de questões relevantes do tema.
por convite e com base na confiança cien- Em futuros números, o Conselho Científico
tífica de outros especialistas, funcionando Editorial aceitará propostas exterior, não no
o Conselho Científico Editorial não como modelo de call for papers, mas de vontade
modo de escrutínio (não há submissão de de adesão e participar na discussão de um
textos), mas de disposição de um espaço tema no âmbito das artes. Fica assim anun-
de discussão a todos os textos. É com estas ciado, no final, o tema seguinte no final de
coordenadas que convidámos a participar cada Convocarte.
no nosso primeiro número, com coordena-
ção especial do dossier-tema em torno da Relativamente à revisão de pares, não
questão da arte pública (Arte Pública: No- seguimos a generalização recente do mode-
vas Práticas e Fronteiras), o Professor José lo de origem anglo-saxónica e das Faculda-
Pedro Regatão, com recente doutoramento des de tradição mais positivista, declinando
nesta área. que este modelo se apresente como único
nas Ciências em geral. Consideramos que
Se as Ciências das Artes têm afinidades este modelo, que se vem insinuando com
óbvias com o campo universitário das Ar- parca discussão nas artes e humanísticas
tes e Humanidades, elas devem considerar- (ou nas Ciências do Espírito)3, tem dimen-
-se no modo como se desenvolvem numa sões perniciosas nesta área, onde a tradição
Escola de Belas Artes, onde a sua tendên- da discussão e da crítica têm sido, desde há
cia para o sincretismo e para a proximidade muito, essenciais nos seus mecanismos de
com a produção artística se tornam naturais. funcionamento. Assim, o que pretendemos
Essa aproximação a dilemas da produção e foi criar um modelo de discussão de pares
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(mais do que revisão) insistindo da aprecia- humanísticas, consideramos que os siste-
ção qualitativa (e não quantitativa). A necessi- mas, e até as normas, podem ser escolhidos
dade de certa protecção científica por parte com oportunidade específica consoante as
das ciências do fenómeno ou dos números, características de cada texto. A defesa desta
ou se quisermos, das ciências naturais ou pluralidade produz em nós uma coerência
das exactas, perante interesses particulares, bem mais importante que a uniformidade.
sobretudo de âmbito económico, lançan- Nos textos em português, também optámos
do produtos que invadem o espaço público por deixar à consideração de cada autor
como pseudociência, criaram um necessá- outras decisões de funcionamentos: como
rio modelo de call por papers e peer-review a aceitação ou não do acordo ortográfico
que nas artes e humanidades tem menos (que nos recusamos a impor), e a tradução
pertinência – porque nestas as ameaças do (ou não) de citações noutras línguas utiliza-
mercado são menos; e porque estas não se das nos trabalhos, etc.
desejam exactas, emergindo da discussão e
da crítica, para funcionarem com outra den- Nesta mesma linha de questões, considera-
sidade de planos históricos (que não coinci- mos prejudicial às tradições e fundamentos
de com o plano mais recente de um «estado das artes e humanísticas, o recente domínio
da arte», outra expressão aqui desajustada) do inglês como língua da Universidade Eu-
e de graus de subjectividade. Não procuram ropeia. Defendemos a multiplicidade das
o rigor do fenómeno ou da função, mas es- línguas, onde o inglês é uma língua entre
peculam nos conceitos. O mundo da arte, so- outras, na mesma linha com que Gadamer
bretudo no plano teórico em que aqui mais louvou o projecto Europeu: «Pode, decer-
se manifesta, está bem perto desta tradição to, prever-se uma língua única para o futuro
– afinal, arte não é (apenas) um fenómeno fí- das ciências naturais, mas a questão é dife-
sico, mas (sobretudo) simbólico. rente no caso das ciências do espírito»4. A
revista está aberta a textos noutras línguas
Na mesma ordem de ideias, e contra a ten- que circulam com facilidade no nosso âm-
dência de implementação de normas das bito universitário (espanhol, francês, inglês),
mesmas origens universitárias, a invadirem mas com o princípio de que cada autor pen-
as humanísticas, assumimos a opção edi- se e escreva na sua língua natural.
torial da liberdade de escolha, por parte
de cada autor, de sistemas (autor/citação Agradecemos a todos os colaboradores
ou autor/data) e normas (ISO-690; EP-405; neste arranque de mais um projecto que
APA, MLA, Chicago, etc.) na indicação de procuramos que seja um contributo positi-
bibliografia e documentação. Esta recu- vo para a área das artes e humanidades e
sa de imposição de apenas uma norma, é a FBAUL: ao Conselho Científico Editorial,
também porque consideramos que cer- pelo modo exemplar como trabalhou este
tas orientações únicas têm servido para diálogo entre pares; aos ensaístas, por nos
arrancar às humanísticas as suas tradições. cederem o seu trabalho, por vezes de vários
E, pela nossa experiência universitária nas anos, dispondo-o a este espaço de diálogo
9
com ao Conselho Científico Editorial; aos Letras, 2015; Investigação
designers pelo modo como entenderam em Arte e Design: Fendas no
em modo gráficos, na paginação e na estru- Método e na Criação (Vol.II)
tura, o espírito da revista; aos colegas, pro- (coordenação de Fernando
fessores e investigadores, de Ciências da Rosa Dias, José Quaresma,
Arte e do Património e da secção Francisco Juan Carlos Guadix), Lisboa:
d´Holanda do CIEBA, mesmo aos que não Universidade de Lisboa,
estão neste número, por apoiarem este tra- Faculdade de Belas Artes,
balho; e aos diferentes serviços da Faculda- 2011; Investigação em Arte –
de, com destaque às Relações Públicas, que Uma Floresta, muitos caminhos
nos ajudaram na melhor inserção editorial (coordenação de Fernando
desta edição no site da FBAUL e na sua di- Rosa Dias, José Quaresma,
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José Guilherme Abreu
Herbert Rolim
Mário Caeiro
José Pedro Regatão
Victor Correia
Joaquim Saial
José Francisco Alves
Pedro Soares Neves
Sérgio Vicente
Cristina Azevedo Tavares
Daniela Simões
Angela Ancora da Luz
Marta Traquino
Cristina Pratas Cruzeiro
Ar te Pública
Sílvia Câmara
Mauro Trindade
Introdução
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
A
o longo de mais de meio século de
produção teórica dirigida ao estu-
do da arte pública, podemos hoje
identificar várias linhas de pensamento que
originaram diferentes perspetivas e abor-
dagens ao tema. À luz dessa investigação
produzida em diversas partes do mundo,
foi possível constituir um quadro teórico
específico para a compreensão e análise
deste fenómeno. Isto permitiu obter algu-
mas respostas para as questões que se co-
locavam sobre o assunto, nomeadamente
a questão de fundo que se prende com a
origem e significado da arte pública, mas
também com a sua função na cidade con-
temporânea. Sabemos hoje que as cidades
enfrentam diversos desafios não só em ter-
mos urbanísticos e arquitetónicos, com a
necessidade de planificar e organizar o es-
paço, mas também no campo da sustenta-
bilidade, da preservação do património e
da sua estética urbana.
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diversos desafios a esta disciplina. É impor- são evidentes quer do ponto de vista esté-
tante referir o desenvolvimento de determi- tico, quer na sua dimensão social e econó-
nadas vertentes que vieram expandir este mica, como testemunham diversos estudos
campo teórico, como é o caso da street art que avaliaram o seu impacto. A importân-
que nos tem oferecido uma produção artís- cia da implementação destes programas,
tica diversa e estimulante. Para além do for- que em boa parte tiveram na base um sen-
te impacto que gerou no espaço público, tido de valorização do espaço urbano, pro-
as propostas daqui resultantes destacaram- porcionou a criação de obras artísticas que
-se pela sua originalidade e poder subver- constituem hoje referências locais e inter-
sivo. Neste sentido, não só revitalizaram o nacionais. Seja, de natureza permanente ou
lado da contra-cultura da arte, como fizeram efémera, proliferam programas de arte pú-
emergir novos campos de debate que se blica um pouco por todo o mundo, tendo
afiguram profícuos para o desenvolvimento em vista melhorar esteticamente o ambien-
desta disciplina. te urbano e proporcionar uma melhor qua-
lidade de vida ao cidadão.
É estimulante perceber que a arte pública é
uma área de estudo dinâmica, inesgotável Esta primeira edição da Revista Convocarte
e universal, na medida em que é constan- dedicada ao estudo da Arte Pública, cons-
temente alimentada pela produção artísti- titui-se enquanto espaço aberto para a dis-
ca contemporânea e se concretiza no quo- cussão, partilha e reflexão sobre uma das
tidiano das nossas cidades. Por outro lado, problemáticas mais atuais e pertinentes
continua a reinventar-se revelando grandes dos estudos artísticos. Aqui se reúnem um
possibilidades expressivas, através de pro- conjunto de ensaios produzidos por alguns
postas que promovem novas experiências dos principais especialistas e investigado-
estético-percetivas. A popularidade que al- res do tema, que analisam e abordam o fe-
cançou nos nossos dias, derivado de uma nómeno em diferentes perspetivas. Esta
maior atenção por parte de particulares e publicação universitária não só representa
instituições, aparece formalizada no discurso uma oportunidade para incentivar o estu-
público da “sociedade hipermoderna”. Para do e a reflexão sobre a arte pública, como
esse efeito, também se observa a exposição também contribui para a consolidação e o
mediática de algumas obras e artistas, contri- avanço do conhecimento desta área.
buindo em boa parte para o alargamento do
interesse por esta área artística. José Pedro Regatão
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As Origens Históricas da Arte Pública
Our study states the role that applied arts, as they were
meant by Arts and Crafts movement’s socialistic ideario,
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produção monumental não se designava bito da sua abrangência, âmbito esse que,
Arte Pública, porque não existiam coleções como parece óbvio, se encontra em fase de
privadas que dela se diferenciassem, e que problemático e inusitado alargamento.
com ela estabelecessem uma coabitação
ou tensão dialéticas. Tentado encontrar uma correspondência
histórica, uma revolução similar, ou pelo
Foi na Bélgica e nos Estados Unidos, em fi- menos equivalente, ocorreu no século XIX
nais do séc. XIX, que pela primeira vez sur- com a delimitação das cidades, depois de
giram sociedades que explicitamente se terem sido suprimidas as suas muralhas. De
designavam como promotoras da Arte Pú- espaços bem definidos e confinados, as ci-
blica, devendo por isso situar-se aí as ori- dades tornaram-se espaços difusos. Abri-
gens do ciclo da Arte Pública moderna: ram-se ao território circundante, perderam
aquele em que a Arte Pública se opõe ao o aspeto de estruturas fechadas, mas como
sistema de coleções mercantilizadas e/ou é evidente não desapareceram. Pelo contrá-
institucionalizadas de obras de arte. rio, expandiram-se, tornando-se metrópoles
e agregando-se em extensas conurbações.
2. Complexo conceptual da Arte Pública
Como refere José Bragança de Miranda, a Assim sendo, um primeiro problema surge:
noção de espaço público presentemente en- sem poder usar a regra da delimitação to-
contra-se em crise, pois se não é controverso pológica, o que poderá em seu lugar servir
o seu significado, mais problemático se tor- de critério para delimitar o conceito de Arte
na proceder à sua delimitação, pois como o Pública?
autor afirma “o que está entrando em crise é
a noção de um espaço público bem definido, Para o fazer, a nossa proposta é utilizar um cri-
um espaço entre outros, como seria o sector tério, por assim dizer, programático. Em vez
privado, o governo, ou o estado”1. de um critério único e exclusivo, preferimos
reunir uma série de aspetos e de premissas
Importa tirar desta circunstância as devidas (uma organização sistémica) que permitam
ilações, pois não sendo o conceito de espa- estabelecer um corpus coerente e que resul-
ço público, pelo menos atualmente, um con- tem de um modus operandi comum.
ceito bem delimitado, tornam-se destituídas
de valor epistemológico todas as definições Ou seja, em vez de definir um conceito, es-
que se estabeleçam, tomando como ponto tabelecer um complexo conceptual.
de partida esse critério, facto que serve para
evidenciar desde logo o carácter equívoco E esse complexo conceptual formula-se
da expressão “Arte no Espaço Público”. como corpus e modus operandi de um
ideário.
O facto da noção de espaço público se ter
tornado difusa e multidimensional, denota a E qual seria o ideário da Arte Pública?
revolução pelo que tem vindo a passar o âm-
tivo, ou seja, pelo seu regime específico de Pelo acima exposto, a nossa tese é que aqui-
produção, distinto do restante segmento lo que melhor caracteriza e diferencia a Arte
das artes plásticas. Pública é a circunstância da mesma ser de-
tentora de um ideário que a diferencia das
Para compreender adequadamente o regi- restantes modalidades de produção artísti-
me de produção da Arte Pública, importa ca, na medida em que visa aproximar a arte
convocar a distinção que Nelson Goodman dos cidadãos, usando meios, linguagens e
estabelece entre artes autográficas e artes formas que sirvam para o seu uso, prazer e/
alográficas2. ou instrução.
<<
porânea se encontram exercícios formais ou Vamos abordar aqui somente o primeiro
tipologias que não se distinguem dos res- dos dois núcleos, que de resto é o mais re-
tantes segmentos de produção. levante para o conhecimento da origem da
Arte Pública moderna.
De resto, retomando o raciocínio, o ideário
particular que diferencia hoje a Arte Públi- Esse núcleo organizou-se na Bélgica, como
ca não é inédito, e inclusive para melhor o legado e adaptação do movimento Arts and
captar e analisar, convém mesmo remontar Crafs, que irrompeu, na segunda metade
às suas origens, pois é ali que se descobrem do século XIX, na Grã-Bretanha, à volta de
os enunciados e os preceitos que a esse tí- John Ruskin de William Morris.
tulo são mais esclarecedores.
Como o manual de leitura do tradutor e
É que a Arte Pública, contrariamente ao que professor holandês Taco de Beer o demons-
a literatura anglo-saxónica tem sustentado, tra4, o livro “News from Nowhere” de William
não tem origem nos programas Art in Ar- Morris é ali mencionado, comprovando-se
chitecture do após-guerra, nem sequer nos assim a receção do movimento Arts and
programas do New Deal, como o Federal Crafts nos Países Baixos, logo em 1874.
Art Project ou o National Edowement for the
Arts, lançados pela Administração Roose- De citado e conhecido nos Países Baixos
velt, nos Anos 30. em 1874, a partir da década seguinte o
movimento britânico passa a ser adotado
A sua origem é bastante anterior, já que re- e difundido por Henry van de Velde, que
monta à segunda metade do século XIX, na o dissemina pela Bélgica e pela Alemanha,
medida em que o embrião mais antigo da definindo uma estética de caráter ornamen-
Arte Pública se forma na Europa como pro- tal e utilitário, sob a égide e o primado das
longamento natural do movimento Arts and Artes Aplicadas.
Crafts, de onde procede, justamente, o seu
ideário, e onde vem beber os enunciados O segundo núcleo surgiu nos Estados Uni-
estéticos e programas artísticos que logo dos, depois da Exposição Universal de Chi-
adota e proclama. cago (1893), influenciado pelo revivalismo
neoclássico e pelo ecletismo arquitetóni-
Ligeiramente mais recente do que este, um co da École des Beaux-Arts de Paris, e teve
segundo núcleo com características diver- como principais mentores o arquiteto nor-
sas forma-se também nos Estados Unidos, te-americano Daniel Burnham e o escultor,
em torno do movimento City Beautiful, de- também norte-americano, Augustus Saint-
notando este características monumentais -Gaudens, mediante uma conceção sobre-
e ecléticas, ao passo que o movimento Arts tudo monumental, sob a designação de
and Crafts possuía características ornamen- City Beautiful Movement, como já vimos.
tais e socializantes, na mira do tal ideário.
“The first Dutch publication in which William E o historiador, logo a seguir, introduz dois
Morris was mentioned dates from 1874. In novos aspetos que são determinantes para a
that year a textbook on English literature for fundamentação da tese de que a Arte Públi-
secondary education introduces Morris as a ca moderna tem a sua origem nas Artes Apli-
lesser known though gifted author. In 1890 cadas:
‘A kings’s lesson’ (‘De les van eenen koning’)
appears in the popular weekly De Amster- “Un des artistes venus après Morris, dont le
dammer. This first translation of Morris’s was nom s’identifie le mieux avec le mouvement
followed by translation of News from Nowhe- dont il s’agit, fut Henry Van de Velde. Dans
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re, to be published in installments in the so- le vaste domaine de l’art appliqué, aucune
cialist magazine in Recht voor Allen. This pu- branche n’a échappé à son action. Le meuble,
blication was not finished, but a complete l’appareil d’éclairage, le bijou, le papier
translation was published as a book in 1897. de tenture, voire la céramique et la reliure
By then Morris was already a rather well-k- appartiennent à son domaine. Tous ont été
nown figure in socialist and artistic circles. de sa part l’objet de combinaisons non seu-
The bibliography shows that also during the lement ingénieuses, mais d’un goût délicat”7.
20th century a small but constant stream of
publications on his life and work has appea- O pintor e arquiteto belga Henry van de Vel-
red in the Netherlands and Flanders”5. de foi um recetor atento da literatura (e do
ideário) do movimento Arts and Crafts e, logo
Outro testemunho coincidente, e mais anti- em 1894, publicava um artigo na revista La
go, encontra-se na obra, por assim dizer clás- Société Nouvelle com o título “Déblaiement
sica, do historiador da arte de nacionalidade d’Art”8 (Depuração da Arte), onde anunciava
belga Henry Adriaan Hymans, que citando o fim da “pintura de cavalete”, pois esta ha-
um artigo da revista francesa L’Art Décoratif, via-se tornado decadente e de mau gosto,
publicado em 1 de outubro de 1898, refere: por se colocar ao serviço da “corrompida e
caduca” sociedade burguesa, como explica:
“L’Angleterre, qui donne le signal du départ
dans la voie des transformations, s’est arrêtée “Ce qui ne profite qu’à un seul est bien près
en chemin successeurs de Morris et de Crâne d’être inutile et dans la société prochaine, il
s’immobilisent dans l’œuvre de ces premiers ne sera considéré que ce qui est utile et profi-
apôtres de l’art nouveau. Leurs vrais continua- table à tous. Et quand les artistes songeront à
teurs sont les Belges qui, reprenant le mou- faire œuvre utile, ce qui ne les déconsidérera
vement anglais à l’origine, surent en dévelo- aucunement, ce sera la fin du tableau, de la
pper les conséquences, débarrasser la voie statue qui sont des expressions épuisées et
des attaches au passé, trouver les formes scrofuleuses”9.
nouvelles, et surtout définir nettement dans
<<
Henry van de Velde não estava sozinho neste
ideário a favor de uma nova arte ornamental
e aplicada e dedicou-se mesmo a projetar e
construir obras públicas, incluindo memorais
arquitetónicos e monumentos escultóricos.
Intervenções pontuais: Grand Place, Petit d’Italie: Rome, Naples, Florence, Ravenne,
Sablon, Joseph Stevens… Venise, etc. Il est frappé par la beauté ur-
Pioneiro da aglomeração urbana planificada. baine et l’harmonie qui règne de manière
Valorização do décor urbano: concursos de ambiante dans ces villes. De retour en Bel-
arte decorativa. gique, il débute son activité d’esthète en
Promoção do turismo: Société Bruxelles-A- rédigeant un essai intitulé «L’Art régénéra-
ttractions. teur». Il y dépeint sa volonté d’un art nou-
Criação de um cupão municipal de trans- veau basé sur une renaissance esthétique et
porte social. sociale et le souhait de réformer l’art de la fin
Criação de uma tarifa única em todos os du XIXe siècle ainsi que les institutions qui
tramways (elétricos) para os turistas. lui sont consacrées. Il donne à cet art le nom
d’«art public»”10.
Sob a sua inspiração, em 1893 foi criada em
Bruxelas uma sociedade de artes decorati- No artigo L’Art Régénérateur é utilizada,
vas com a designação de “L’Œuvre de l’art provavelmente pela primeira vez, a expres-
appliqué à la rue et aux objets d’utilité publi- são Arte Pública para designar um segmen-
que”, que teve como promotor inicial o pin- to de produção artística destinada a todos
tor Eugène Broerman, e que logrou obter os cidadãos, expressão essa que, segundo
a colaboração dos arquitetos Victor Horta Marcel Smets, surgia como abreviatura do
e Edmond de Vigne, do pintor Alfred Cuy- nome da referida Sociedade, demasiado
senaar, do escultor Jef Lambeaux, entre ou- longo para ser usado comodamente como
tros nomes bem conhecidos. designação. Por outro lado, a ideia apre-
sentada no referido artigo de Broerman11
A partir de abril de 1894, essa sociedade se- não era inédita, tendo colhido a sua origem
ria presidida pelo próprio Charles Buls. em Saint-Simon, como já foi observado por
Marguerite Thibert12.
<<
Os objetivos da mencionada Sociedade de
Artes Decorativas bruxelense eram:
Esta sociedade de Artes Aplicadas tem rele- Société L’Œuvre de l’Art à la Rue et aux Objets d’Utilité
Publique, Sala na Exposição Internacional de Bruxelas, 1897,
vância não tanto pelas suas consequências
Académie Royale des Beaux-Arts, Bruxelles, p. 172.
práticas, uma vez que centrou a sua ação
mais na esfera da propaganda do seu ideá-
rio, do que na promoção de programas de
intervenção.
suas iniciativas.
Catálogo do I Congresso Internacional
de Arte Pública, 1898, Bruxelas.
Esse movimento culminou na organização
de quatro congressos internacionais, entre
os anos de 1898 e 1910, que se realizaram
em Bruxelas, em 1898, em Paris, em 1900,
em Liège, em 1905, e de novo em Bruxelas,
em 1910. Esses Congressos reuniram um
grande número de representações oficiais,
as quais compreenderam destacadas figu-
ras dos governos de países da Europa, da
América do Norte o do Sul, e Ásia, entre os
quais se encontrava uma representação ofi-
cial do Município de Madrid15, assim como
de dezenas de Câmaras Municipais, entre
as quais as de Lisboa e de Coimbra.
Revista L’Art Public, nº II, 1908, Bruxelas. Além disso, dois destes congressos produ-
ziram importantes catálogos16, a partir dos
quais é possível traçar as linhas mestras da-
quele que foi o primeiro programa inter-
nacional de desenvolvimento de uma Arte
para Todos, sendo uma das resoluções do
Congresso de Liège de 1905 fundar um Ór-
gão Internacional permanente a favor da
Arte Pública, órgão esse que teve a desig-
nação de “Institut Internacional d’Art Public”,
o qual, a partir de 1907, teve como porta-
<<
-voz a revista L’Art Public, que se editou até 4. A condição contemporânea da Arte
1912, num total de doze números. Pública
Relativamente à situação atual da Arte
Não cabe aqui esmiuçar os êxitos e os ma- Pública, consideramos que a presente
logros deste movimento pioneiro a favor da condição é inversa, comparativamente à
disseminação do ideário da Arte Pública. original. Hoje, o seu conceito é claramente
mais limitado.
Em vez disso, que requeria um outro de-
senvolvimento e fôlego, para a nossa inda- Se é certo que os conceitos, as formas, as
gação em torno da origem e da natureza linguagens e as problemáticas que ema-
da Arte Pública, importa apurar o horizonte nam da estética contemporânea têm conta-
de aplicação do conceito de Arte Pública minado a Arte Pública e, correlativamente,
enunciado e praticado por este movimen- se não é menos verdade que a Arte Pública
to internacional. tem por seu turno contribuído para introdu-
zir novas possibilidades e novos meios de
Sobre este aspeto particular, Marcel Smets intervenção estética, o que acontece é que
observa: presentemente mau grado toda essa diver-
sidade se concentra quase exclusivamente
“Ce qui frappe surtout c’est l’extrême diver- no território das artes plásticas, o que não
sité des sujets qu’on y aborde. L’Art Publique sucedia com o referido movimento belga,
s’applique aussi bien à l’éducation qu’au onde o universo de incidência abrangia as
théâtre, à la législation, la restauration, les áreas que passamos a discriminar:
qualités et la profession de l’artiste, la con-
servation, des sites, le tracé urbain et le l’as- Educação
pect du domaine public. Au cours des douze Teatro
années qui séparent le premier congrès du Legislação
dernier, aucun de ces domaines ne s’impo- Restauro
sent, même si le nombre de contributions se Música popular
rapportant à l’aménagement urbain s’accroit Mobiliário urbano
graduellement”17. Profissão artística
Conservação de sítios
Refletindo sobre estas palavras, importa ad- Traçado urbano
vertir para o caráter ao mesmo tempo pro- Aspeto do domínio público
gressista e conservador deste movimen-
to. Por um lado, muito avançado no que Pelas áreas listadas, percebemos que o mo-
se relaciona com a amplitude da noção de vimento a favor da Arte Pública se concebia
Arte Pública que defendia. Por outro, muito não apenas como uma dinâmica de produ-
conservador pelos seus referenciais estéti- ção artística, mas também, e de forma parti-
cos, sendo o mais relevante a escultura rea- cularmente atenta, como um movimento de
lista de Constantin Meunier (1831-1905). defesa patrimonial.
<<
Por isso, consideramos que o significado da O movimento a favor da Arte Pública na Bél-
Arte Pública contemporânea se esclarece gica fracassou e, notoriamente, não resistiu
com maior acuidade a partir da compreen- ao embate da modernidade, que pela mes-
são do nascimento e do ocaso do movi- ma época começava a apresentar resulta-
mento belga a que nos vimos referindo. dos que Broerman não foi capaz de prever
ou assimilar.
Assim, se os fatores da formação da Arte
Pública moderna na Bélgica, hoje, nos pa- Tentando sintetizar, o tema da origem e do
recem claros, e se os mesmos se podem significado atual da Arte Pública, parece-
relacionar com a afirmação económica e -nos legítimo retirar as seguintes ilações:
política da Bélgica oitocentista, sob o subs-
trato do seu desenvolvimento industrial e O âmbito da Arte Pública confina-se hoje à
sua independência política, o impasse (e esfera das artes plásticas, sendo mais limita-
posterior ocaso) do movimento belga dos do do que nos finais do séc. XIX.
Congressos Internacionais de Arte Pública,
segundo Marcel Smets, explica-se assim: A Arte Pública emergiu da modernidade
sob o primado das Artes Aplicadas, mas a
“Les Congrès de l’Art Public ne donnent pas modernidade rejeitou o ideário utópico da
lieu à des tendances affirmées. Ils se distin- primeira, privilegiando o primado da inova-
guent par l’émulation qu’ils provoquent, et ção estética e da vanguarda.
par la coexistence en leur sein de tendan-
ces contradictoires qui caractérisent l’avè- A modernidade emergente hostilizou qual-
nement d’une discipline en formation. Leu- quer a ideia de continuidade, provocou a
rs apports concernant l’urbanisme sont dus blocagem do ideário utópico da Arte Públi-
à des contributions personnelles et non au ca e levou à perda da sua identidade.
débat entre participants. À aucune de ces
quatre assemblées, les communications ne O surto atual de arte pública contemporâ-
font preuve d’innovation. Elles semblent tout nea resulta do desbloquear do movimento
au moins destinées à vulgariser le savoir do final do séc. XIX, operado pela pós-mo-
professionnel de l’époque et il parait logi- dernidade, reabilitando a função cívica, uti-
que que Buls ait réservé à d’autres réunions, litária e lúdica da obra de arte, ligando-se
plus spécialisés, les allocutions qui reflètent à vida.
le plus étroitement ses conceptions concer-
nant l’aménagement urbain. Il est plus que
symptomatique que le dernier Congrès de
l’Art Public se soit déroulé presque en même
temps que la Fameuse Town Planning, Con-
férence de Londres, sans que ses initiateu-
rs à Londres, se soient aperçus qu’ils étaient
dépassés par les évènements”19.
2007, Lisboa. Acessível em URL: Belgique, vol. IV, 1921. de – Política e Modernidade.
http://dspace.universia.net/ MIRANDA, José Bragança Linguagem e Violência na Cultura
handle/2024/931. de – Política e Modernidade. Contemporânea. Lisboa: Edições
ARENDT, Hannah – A Condição Linguagem e Violência na Cultura Colibri, 1997, p. 156.
Humana. Lisboa: Relógio de Água, Contemporânea. Lisboa: Edições 2
Arte alográfica opõe-se a arte
2001. Colibri, 1997. autográfica, tal como explica
ARMAJANI, Siah – Manifiesto REMESAR, Antoni – Para una Roberto Grau: “Existem dois
La Escultura Pública en el Teoría del Arte Público. Proyectos tipos de arte: as autográficas, que
Contexto de la Democracia y Lenguajes escultóricos. importam apenas em compreensão
Norteamericana, in AA.VV, Espacios Memoria para el concurso de da obra, completada somente
de Lectura. Barcelona: Museu d’Art cátedra. Barcelona: Universitat de pelo autor, independente da
Contemporani de Barcelona, 1995, Barcelona, 1997. reprodução do intérprete, como
pp. 35-37. SMETS, Marcel – Charles Buls. Les por exemplo, a arte da pintura; e as
BROERMAN, Eugène – «L’Art Principes de l’Art Urbain, Liège : artes alográficas, que importam em
Régénérateur», in La Fédération Pierre Mardaga, 1995. compreensão e reprodução, sendo
artistique, n.os 2-5, 6-20 novembre THIBERT, Marguerite – Le Rôle imprescindível para apreciação
1892. Social de l’Art d’Après les Saint- da obra a mediação do intérprete;
BROERMAN, Eugène (coord.) Simonians. Paris: Librairie des como exemplo temos o teatro e a
– L’Art Public. Revue de L’Institut Sciences Economiques et Sociales, música”.
International de L’Art Public, nº I a [1920]. 3
REMESAR, Antoni – Para una
XII, Bruxelles, Institut International TIBBE, Lieske – Art and the Beauty Teoría del Arte Público. Proyectos
de l’Art Public, (1907-1912). of the Earth. The Reception of News y Lenguajes escultóricos. Memoria
CHERON, Céline – L’Œuvre de from Nowhere in the Low Countries para el concurso de cátedra,
l’art appliqué à la rue et aux objets – English version of: Nieuws uit Universitat de Barcelona, 1997,
d’utilité publique (1894-c.1905): Nergensoord. Natuursymboliek Barcelona, p. 206.
étude d’une société bruxelloise en de receptie van William 4
“William Morris”, In, DE BEER, Taco
d’art décoratif, in VIIIème Congrès Morris in Nederland en België, H. – The Literary Reader. A Reading-
de l’Association des Cercles In, De Negentiende Eeuw, (The book for the higher classes in
<<
schools and for home teaching. 11
BROERMAN E. – «L’Art
Part II. The nineteenth century Part Régénérateur», in La Fédération
II. Kuilenburg: Blom & Olivierse, artistique, n.os 2-5, Bruxelles, 6-20
1887, p. 294. novembre 1892, pp. 15-16; 27-29;
5
TIBBE, Lieske, Art and the Beauty 39-41; 51-52.
of the Earth. The Reception of News 12
Vd. THIBERT, Marguerite – Le
from Nowhere in the Low Countries Rôle Social de l’Art d’Après les
– English version of: Nieuws uit Saint-Simonians. Paris: Librairie des
Nergensoord. Natuursymboliek Sciences Économiques et Sociales,
en de receptie van William [1920], p. 53.
Morris in Nederland en België, 13
AA.VV., Premier Congrès
In, De Negentiende Eeuw, (The International de l’Art Public tenu a
Nineteenth Century), nº 25, Leyden: Bruxelles du 24 au 29 septembre
Nederlandse Letterkunde, (The 1898. Bruxelles: Académie Royale
Society of Dutch Literature), 2001, des Beaux-Arts, [s.d.], p. 17.
p. 233. 14
Ibidem, p. 18.
6
HYMANS, Henry – L’Art au XVII 15
Presidida por Enrique Fort,
et XIX Siècle dans les Pays Bas. professor na Escuela Superior de
Bruxelles : Académie Royale de Arquitectura de Madrid.
Belgique, vol. IV, 1921, p. 345. 16
AA.VV., Premier Congrès
7
Idem, ibidem. International de l’Art Public tenu a
8
Título de una conferencia Bruxelles du 24 au 29 septembre
pronunciada, en 1894, por Henry 1898. [S.l., Académie Royale
van de Velde, durante la exposición des Beaux-Arts., s.d.] ; AA.VV.,
anual del grupo artístico de IIIe Congrès International de
Bruselas “La Libre Esthétique”. l’Art Public tenu à Liège 12-21
9
VELDE, Henry van de – Septembre 1905. [S.l., Académie
Déblaiement d’art. Bruxelles: Royale des Beaux-Arts., s.d.]
Archives d’Architecture Moderne, 17
SMETS, Marcel – Charles Buls. Les
1979 (1895), p. 20. Principes de l’Art Urbain, Liège :
10
CHERON, Céline – L’Œuvre de Pierre Mardaga, 1995, p. 146.
l’art appliqué à la rue et aux objets 18
ARMAJANI, Siah – Manifiesto:
d’utilité publique (1894-c.1905): La Escultura Pública en el
étude d’une société bruxelloise Contexto de la Democracia
d’art décoratif, in Actes du LVe Norteamericana, in AA.VV, Espacios
Congrès de la Fédération des de Lectura. Barcelona: Museu d’Art
Cercles d’Archéologie et d’Histoire Contemporani de Barcelona, 1995,
de Belgique, 28-31 Août. Namur, pp. 35-37.
Presses universitaires de Namur, 19
SMETS, Marcel – Charles Buls…,
Belgique, 2011, p. 701. p. 147.
<<
dentro da experiência estética proposta, os complexidades que a expresão arte públi-
processos de comunicação enquanto instru- ca relacional abriga no seu itinerário histó-
mentos concretos para interligar pessoas e rico, com a ressalva de aqui limitar-se a uma
grupos” (BOURRIAUD, 2009, p. 60). síntese, longe de esgotar o assunto. Antes
disto, precisamos fazer notar que cada vez
Neste caso, conforme observa, mais do que mais o conceito de arte pública parece es-
os aspectos formais de um campo simbóli- capar a uma definição circunscrita, em ra-
co ou material, como território autônomo e zão do que achamos pertinente a longa
particular da arte, “atesta uma inversão radi- transcrição abaixo:
cal dos objetivos estéticos, culturais e polí-
ticos, postulados pela arte moderna” (p. 20) Definir uma arte que seja pública obriga a
no sentido de libertar-se da pureza da arte considerar as dificuldades que rondam a
que não se mistura, o que altera a ideia de noção deste conceito. Em sentido literal, se-
progresso histórico (o “novo” e a superação riam as obras que pertencem aos museus e
do “novo”) de que os manifestos modernis- acervos, ou os monumentos nas ruas e pra-
tas do século XX foram reféns. É também o ças, que são de acesso livre.
que ele chama “obra de arte como inters-
tício social”, numa analogia às relações de (...) O sentido corrente do conceito refere-
escambo sem interesse de lucro, ante à eco- -se à arte realizada fora dos espaços tradi-
nomia capitalista, em que cambialmente se cionalmente dedicados a ela, os museus e
operam as trocas intelectuais, afetivas, críti- galerias. Fala-se de uma arte em espaços
cas, culturais etc., como produtos de sociali- públicos, ainda que o termo possa designar
dade. Do seu ponto de vista, trata-se de per- também interferências artísticas em espaços
ceber as práticas de arte cocntemporânea privados, como hospitais e aeroportos. A
mais pelo ângulo das “formações” do que ideia geral é que se trata de arte fisicamente
das “formas”, em que pesa, no lugar de suas acessível, que modifica a paisagem circun-
especificidades internas, estilo e assinatura, dante, de modo permanente ou temporário.
o valor das forças externas com que dinami-
za “relações entre indivíduos ou grupos, en- (...) A arte pública deve ser pensada den-
tre o artista e o mundo e, por transitividade, tro da tendência da arte contemporâ-
relações entre o espectador e o mundo” (p. nea de se voltar para o espaço, seja ele o
37) pelo que se potencializa sua capacida- espaço da galeria, o ambiente natural ou
de de diálogo com outras formações, sejam as áreas urbanas. Diante da expansão da
estas do âmbito artístico ou não. obra no espaço, o espectador deixa de ser
observador distanciado e torna-se parte
Dito isto, é o caso de trazer para a arte pú- integrante do trabalho (neste sentido, difícil
blica contemporânea considerações so- parece, algumas vezes, localizar os limites
bre a presença deste fenômeno, ou seja, entre arte pública e arte ambiental).1
as bases fundantes das bifurcações, inter-
secções, entrecruzamentos, conjunções e
– HERBERT ROLIM 29
Embora não haja um senso comum quan- no sentido inverso restringindo seu alcan-
to à sua definição, esta ambivalência de ce para o âmbito do particular.
conceitos não é excludente, pelo contrá-
rio, tem como base a mesma estrutura que Com estas observações iniciais, introduzi-
se forma a partir de um entendimento de mos o relacional na arte pública, ponto de
espaço público onde se operam as corre- partida para uma compreensão da fecundi-
lações entre “lugar”, como espaço compar- dade desse fenômeno, de sua penetração
tilhado; “público”, que são seus agentes in- vinculada às formas de significação estéti-
terlocutores; e “identidade”, pela qual se cas com base nas relaçoes convivais.
acionam as relações sociais e simbólicas. A
crítica de arte Lisette Lagnado diante das Paradigmas, mediações e variáveis da
mais de trinta respostas do que é arte pú- arte pública
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
blica, lançada pelo site “trópico” aos artis- No texto Arte pública: alguns paradigmas,
tas, críticos, historiadores e curados, chega o antropólogo e curador José António Fer-
à conclusão que: nandes Dias (2007, pp. 103-111) procu-
ra distinguir três paradigmas em torno da
trata-se de uma vontade de deselitizar a ideia de arte pública que, segundo ele,
produção artística, abrindo-a para a parti- “têm vindo a acontecer” e que são:
cipação coletiva, em resposta aos intolerá-
veis processos de exclusão em curso na so- 1 – “arte em espaços públicos”: a preocupa-
ciedade contemporânea. Cresce o tom de ção do artista está em evidenciar as qualida-
defesa da interdisciplinaridade entre as es- des estéticas do objeto artístico, enquanto
feras estéticas e sociopolíticas, debate que obra autônoma, em que a paisagem, na qual
envolve artistas e não-artistas.2 está inserida, funciona mais como uma mol-
dura, “sem que as características particula-
Em oposição à ideia de espaço privado, res do sítio como entidade física, arquitetô-
precisamos entender que há no espaço nica ou geográfica tenha outra importância
público um sentido de “«lugar comum» de que não os desafios formais de composição
absorção, presentificação, captação e res- que põem ao escultor” (p. 105).
tituição que comporta a ideia de «domínio
público» para a qual, na opinião do inves- 2 – “arte como espaço público”: a obra aqui
tigador José Guilherme Abreu (2003, pp. leva em conta as relações entre o ambiente
1-2), deve haver uma intencionalidade de e o público, o que tem a ver com a especi-
entrecruzamento dos “níveis de percepção ficidade do sítio (site-specific) e o desloca-
que visam à realidade, com os níveis de re- mento do espectador, recursos inicialmente
presentação visados pela consciência (...)” explorados pelo minimalismo que podem
com os quais as experiências e os hábitos tanto ser no sentido integrativo e assimilati-
culturais específicos são ativados e com- vo como interruptivo e intervencionista.
partilhados. Por outro lado, no espaço pri-
vado o comportamento intencional se dá
<<
3 – “arte no interesse público”: as relações ordem do relacional com o divino. Mesmo
entre o ambiente e os agentes culturais são em se tratando de obras em que os acon-
de outra ordem, para além das questões de tecimentos, o engenho e as conquistas hu-
fisicalidade e, normalmente, estão ligados manas sejam proclamados, há referências
a projetos temporários em que o público ao divino nessas crônicas visuais, como se
é componente de sua poética, “neste sen- o poder vigente a ele estivesse associado.
tido, é parte de uma problemática espacio- Este fenômeno, de forma mais ou menos
-política, é um discurso que combina ideias persistente, estendeu-se até o Renascimen-
acerca da arte, da arquitectura e do design to (Séculos XIV-XVI) quando a arte no seu
urbano, com teorias da cidade, do espaço campo mediador de relações passa a vol-
social e do espaço público” (p. 109). tar-se também para os espaços de interli-
gação entre homem e mundo, que dizem
Estamos nos referindo a uma arte que migra respeito ao lugar do indivíduo diante da ex-
do monumental para o conceito, da forma tensão do universo.
para a (form)ação, do lugar específico para
a impermanência da arte desenraizada e Estamos falando do segundo modo de pro-
efêmera, das relações espaço/tempo fecha- dução de arte quanto ao caráter relacional,
das para as zonas de convivência sócioes- ou seja, do homem e dele mesmo como su-
paciais, abertas, próprias da arte pública jeito do mundo, na condição de observador
relacional de nossos dias, em que conta as e de sujeito/objeto observado, isto graças
relações inter-humanas. Em face do modo aos avanços das ciências e das artes com a
como as relações são objetivadas, nas pa- perspectiva e o naturalismo anatômico de
lavras de Bourriaud (2009, p. 38) “seria pos- Leonardo da Vinci (1452-1519). A ideia de
sível escrever uma história da arte como a que a terra não era o centro do universo e
história desta produção de relações com o se movia num espaço contínuo, defendida
mundo, levantando ingenuamente a ques- por Galileu, foi fundamental para que as
tão da natureza das relações inventadas pe- concepções de espaço avançassem em di-
las obras”, alçando seu valor como proprie- reção ao século XVIII e alcançassem depois
dade singular e origem de sua razão de ser. seu sentido moderno, notadamente no que
Dessa forma é possível delinear um panora- diz respeito aos aspectos naturais e organi-
ma histórico conforme o vetor para o qual zacionais da vida em sua abrangência. Não
se incline o foco da arte: como mediador que a presença do divino se tivesse esvazia-
entre humanidade e divindade, humanida- do, no entanto sua representação havia se
de e mundo (objeto) e humanidade e rela- humanizado.
ções-humanas.
Para o fílósofo francês Michel Foucault
No primeiro caso, a mediação da arte en- (1998)3 o grande valor desta descober-
tre homem e desígnios divinos se dá nas ta está na passagem da noção de espaço
relações do indivíduo com o que se expan- como “localização”, em forma de fixação e
de para além dos limites ordinários, numa hierarquização quanto às especificidades
– HERBERT ROLIM 31
de natureza moral dos lugares (sagrado/ suas explorações entre “homem e objetos”,
profano, divino/humano, permitido/proi- tudo isto tem, em comum, a natureza rela-
bido etc.) assim pensada na Idade Média cional da arte, como já dissemos. Lembran-
(séculos V-XV) para o sentido de “exten- do que, no entanto, o que se altera agora é
são” face a amplitude e abertura do espa- o grau de sentido de “relação”, sofrido pe-
ço descoberto pelo homem, até chegar à los modos de pensamento e produção his-
compreensão de espaço hoje e aí não mais tórica da arte, que, sucessivamente, vão se
como extensão, mas como um conjunto de alterando ao longo do tempo, num deslo-
pontos ou elementos especializados e in- camento contínuo, em que as relações, an-
dividualizados que se conectam em rede, tes almejadas como fim, na atualidade, pas-
site, conforme sua ativação (privado/públi- sam a ser percebidas também como meio
co, doméstico/social, lazer/trabalho, local/ formal, isto é, enquanto forma relacional. É
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
variável) que tem a ver com “interpretação/ Em 1955, simultâneo aos happenings, sur-
exibição” correspondente ao mixed media giu uma corrente interessada pelas ques-
dos dias atuais, em que estamos mergulha- tões do “movimento” na arte, como pôde
dos, cujo emersão deve-se às atualizações ser vista na exposição de Arte Cinética Le
do pensamento moderno pela sociedade Mouvement, na Galeria Denise René, em Pa-
pós-industrial. ris. Em reexame às teses estéticas do cons-
trutivismo russo, os artistas cinéticos pensa-
As vanguardas dos anos sessenta ram em como suas obras poderiam avançar
A entrada na década de 1960 é marcada no sentido ambiental, na forma como a pro-
por uma agitação que se aproxima da variá- blemática do tempo e movimento, antes le-
vel de “apresentação”, mencionada há pou- vantada por Pevsner (1902-1983) e Gabo
co. Comecemos apontando seus antece- (1890-1977) no Manifesto Realista de 1920
dentes, os happenings (acontecimentos) de em sua forma mais literal, se resolveria pela
1952, tidos como os primeiros, assim reco- experiência sensorial, recorrendo a efeitos
nhecidos, realizados na Carolina do Norte, físicos reais e virtuais, que dependiam de
Estados Unidos, pelo compositor, escritor uma articulação pró-ativa entre espectador,
e artista, John Cage (1912-1992) cuja teo- obra e ambiente.
ria musical influenciou fortemente o cenário
artístico de então, sobretudo no que se re- Por sua vez, a ligação da expressão Arte Pop,
fere à participação do público e à conjun- na década de 1950, com o repertório da
ção poética da música, teatro e artes plás- cultura de massa, acabou por se constituir
ticas em suas apresentações. Seu método em uma corrente que substituia a inflexão
de composição, que consistia na integração e o subjetivismo do Expressionismo Abstra-
do acaso e na posição do espectador em to por assuntos ligados ao meio urbano, no
situação de atenção e atitude participativa, qual procurava imiscuir-se. A princípio, sur-
isto para que a obra atingisse plenamente giu em Londres e, imediatamente foi assimi-
sua poética, orientou toda uma geração. lada pela sociedade consumista americana,
O artista Allan Kaprow (1927-2006) como bem à vontade com os produtos do capi-
seu aluno, soube explorar bem as lições do talismo urbano: períodicos, publicidade,
mestre: seus happenings tornaram-se refe- embalagens de produtos alimentícios e de
rência para os processos de assentamento higiene, eletrodomésticos, indústria da cul-
das categorias instalação e performance, tura e do entretenimento, imagens de ído-
enquanto campos agregadores, desde que los, enfim, tudo aquilo que escapara às van-
a Bienal de Veneza de 1976, com o tema guardas modernistas em relação à tradição
Environmental art, trouxe o assunto para o figurativa e realista da arte. O que vemos
centro das discussões, hoje largamente pra- a seguir é a colocação da obra de arte no
ticadas e fundamentais para o entendimen- patamar de identificação com os produtos
to das intervenções urbanas no âmbito da de consumo, sem o objetivo de buscar sua
estética relacional. institucionalização oficial, mas de sair dela
e comunicar-se com a sociedade em geral.
– HERBERT ROLIM 33
Simultânea à pop art, lembremos que, 1986), levou às últimas consequências, cuja
numa direção oposta a esta, havia também prática tinha por princípio pensar “relações”
uma plena ativação do movimento político, como forma de arte, educação e política, in-
social, artístico e cultural, movida pela Inter- tercambiáveis no sua forma de efetivação,
nacional Situacionista, que, desde 1957, na dialógicas enquanto prática ativista da arte,
Itália, vinha se pronunciando sob a influên- em função de que pautou sua vida/perfor-
cia do marxismo, cujo agitador mais co- mance de artista/professor/pesquisador ao
nhecido foi o teórico libertário, cineasta e fundar a Universidade Livre Internacional
escritor Guy Debord (1931-1994) autor de (F.I.U.) e estruturar um pensamento a que
A sociedade do espetáculo, sua obra mais chamou “escultura social”.
conhecida, escrita em 1967. No âmbito da
arte, ele fala em “superação da arte” para A maneira Fluxus de agir esteve presente
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
clara alusão de esgotamento dos princípios todo orgânico por escala” (OITICICA, 1986,
formais de beleza ou de como estes esca- p.78). Trata-se de uma concepção que al-
pariam aos limites da retina. tera todas as anteriores categorias de arte
(pintura, escultura, etc.) baseada na liberda-
A obra de Lygia Clark (1920-1988) é de de meios e na proposição participativa
exemplar desse entendimento desde as do espectador.
pinturas de 1954 quando a artista extrapola
o campo pictórico e avança o espaço da Em paralelo, entre 1965 e 1968, nos Esta-
moldura, rompendo os limites que separam dos Unidos, despontava o Minimalismo, no
a ficção da realidade, e que Ferreira Gullar campo da escultura, particularizado pela fi-
chamou de não-objeto por não ser nem sicalidade, tamanho geralmente de gran-
pintura, nem escultura, nem objeto utilitário. des dimensões, construção simplificada
Segue-se daí um percurso que vai da pintura dos sistemas visuais, utilização de materiais
à escultura, da parede à participação do produzidos industrialmente (chapas de aço,
espectador e desta à extrapolação das lâmpadas tubulares, tijolos...) repetições de
fronteiras entre arte e vida com que chegou unidades independentes e, abstraçãoprin-
à Estruturação do Self (1976-1988) sua últi- cipalmente, distanciamento de qualquer
ma pesquisa de um “possível”, em que os personalismo lírico ou ideológico. Deste
sentidos de alteridade e corporeidade fo- pendor da arte minimalista, interessa abor-
ram trabalhados a título de resultados tera- darmos o que dele se pode observar em
pêuticos, quer dizer, os objetos tornam-se proveito do sentido de construção de lugar
dispositivos relacionais, pelos quais pro- e sua dimensão relacional. Na série Mirro-
positora, coisas e corpos (espectadores) se red Boxes, de 1965, por exemplo, em que o
harmonizam em uma totalidade. artista Robert Morris (1931) se utiliza de um
conjunto de cubos revestidos de espelhos e
De igual importância para o avanço do fa- os leva para a galeria, o “Caminhar em torno
tor de mediação relacional da arte, temos a e por entre as partes separadas desta escul-
pesquisa de Hélio Oiticica (1937-1980) que tura permite ao indivíduo vivenciar o espa-
se amplia da natureza complexa da estrutu- ço da galeria, o próprio corpo e dos outros
ra-cor, em seu estado puro como ação, ao como uma realidade fraturada e disjuntiva”
“projeto ambiental” de uma nova sensibili- (ARCHER, 2012, p. 57).
dade. O aspecto relevante deste projeto de
trabalho é, sem dúvida, o conceito de “ma- Surgidas daí, no final dos anos 1960, estas
nifestação ambiental” que é sua própria ma- questões se afinam com o conceito de site-s-
nifestação criadora, transformada em pro- pecificity (especifidade do sítio) algo como
grama (“programa ambiental”) e que está fisicamente preso às determinações do lu-
enraizada nos “Núcleos, Penetráveis, Bóli- gar, inicialmente ligado à ideia de site-spe-
des e Parangolés, cada qual com sua carac- cific (sítio especifico) no sentido do jargão
terística ambiental definida, mas de tal ma- da arte contemporânea de implicar o ob-
neira relacionados como que formando um jeto/escultura às características do espaço
– HERBERT ROLIM 35
físico e à experiência visual do espectador fatores importantes que iriam caracterizar
em tempo real (aqui-agora), em que o con- as alterações estéticas da década de 1970.
teúdo e significado se completa na prática Um deles é a conjunção de arte, natureza e
relacional do sujeito com o objeto e o lugar. realidade. Disto resulta a penetrabilidade
Para a teórica Miwon Kwon (2008, p. 168): da obra, com implicações diretas na expe-
riência/reação ao praticá-la.
A (nova-vanguardista) aspiração de exceder
as limitações das linguagens tradicionais, Considerando o caráter efêmero desta obra
como pintura e escultura, tal como seu ce- e sua localização invulgar, havia interesse,
nário institucional; o desafio epistemológi- do artista, “em desenvolver uma teoria da
co de realocar o significado interno do ob- relação entre um local particular no meio
jeto artístico para as contingências de seu ambiente (que ele chamava ‘sítio’) e os es-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
como imagem estética e feita pelo artista, Data desta época um processo de constru-
e sua recepção pela simples contemplação, ção de novos modos de intervenções artís-
as quais, a começar por Duchamp (1887- ticas e crítica de arte, como a reconstitui-
1968), vinham sendo questionadas em ra- ção da secção portuguesa da Associação
zão de uma arte-conceito que não estivesse Internacional de Críticos de Arte (AICA) em
pautada apenas nos sentidos. Com o tem- 1969, e o despontar da arte relacional em
po, a resistência da “arte como questão”, Portugal, a partir, por exemplo, de experiên-
caracterizada pela crítica, tomada de cons- cias como a do Grupo Acre (1974-1977) e
ciência e protesto, investiu cada vez mais, do Grupo Puzzle (1975-1981) sobre as quais
tanto em relação ao sistema institucional, Isabel Nogueira ressalta:
artístico, quanto ao contexto social e políti-
co, operando com as ideias, o corpo, o meio A seu modo, ambos os agrupamentos se as-
ambiente, as minorias e causas sociais. sumiram como portadores de uma lingua-
gem plástico-performativa, inovadora no
Um rápido apanhado do que foi a década contexto português, de vertente concep-
de 70 em Portugal, sob a influência de um tualista, social e artisticamente interventiva.
início de abertura política e social, à luz do Aliás, é justamente pela reconstituição da
movimento revolucionário de 25 de abril, intervenção do Grupo Acre na Rua do Car-
nos faz lembrar o que ela representou em mo (Agosto de 1974) com a pintura de cír-
termos de reformulação estética, sobretu- culos amarelos e rosa no pavimento da rua,
do no que diz respeito à experimentação. A que se acede à entrada principal do Centro
investigadora Isabel Nogueira, cuja tese de de Arte Moderna.7
doutorado versa sobre o pensamento críti-
co da década de 1970 em Portugal, esboça É digna de nota também, no tocante aos
um perfil deste período: aspectos relacionais da arte em Portugal, a
grande festa popular de 10 de junho de 1974,
Foi a época de FESTA, de militância e dos animada pelo Movimento Democrático de
eventos artísticos colectivos “ao serviço do Artistas Plásticos na Galeria Nacional de
Povo”, desde as pinturas murais “da revo- Arte Moderna, que ativou num só ambiente
lução”, até ao incremento de um modo de uma variedade de linguagens, interligando
operar mais ligado à exaltação do artista/ apresentações musicais, teatrais e um painel
criador, na procura de uma identidade ar- de 4,5m x 24m, produzido por quarenta e
tística, estética e mesmo poética. Foi igual- oito artistas. Acionado pela liberdade de
mente a altura da expressão longamente criação, o clima de coletividade se agudizou
contida e dos slogans: “A arte fascista faz e acionou o público em geral. No mesmo
mal à vista” (Marcelino Vespeira), “Contra a local onde fora pintado este painel, em
agressividade, criatividade”, ou “A qualida- 1977, deu-se a exposição, Alternativa zero,
de estética é progressista; a mediocridade tida como um marco de transição do mo-
é reaccionária” (Salette Tavares).6 dernismo para o pós-moderno, sob a lide-
rança de Ernesto de Sousa e a participação
– HERBERT ROLIM 37
de vários artistas e colaboradores. O termo o trânsito livre dos pedestres, obrigando-os
“zero” que encabeça o título da exposição a circundá-la. Diante da recusa do artista à
original expressa o zero inicial, como pon- sugestão de sua remoção para outro lugar
to demarcatório da ruptura com o moderno uma vez que, enquanto site-specific, sua es-
e a abertura para uma nova postura crítica, cala, tamanho e localização só tinham sen-
que passa pelo processo de conceituação, tido naquele contexto, como ele mesmo
desmaterialização do objeto artístico, que- disse: “removê-lo é destruí-lo”, o fato é que,
bra dos suportes, desconstrução do sentido depois de uma luta judicial de quatro anos,
de originalidade e autonomia, reformula- o trabalho foi considerado pela General Ser-
ção da experiência estética, abrangendo ar- vices Administration (GSA), sua financiadora,
tista, obra e espectador, num estreitamento como “opressor do espaço”, razão pela qual
da relação “arte-vida”. foi removido e desmontado em 1989.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
Indo contra o menor sentido dos hábitos e Deste modo, diferentes debates culturais,
desejos institucionais, e continuando a re- um conceito teórico, uma questão social,
sistir a mercantilização da arte no/para o um problema político, uma estrutura institu-
mercado de arte, a arte site-specific adota cional (não necessariamente uma instituição
estratégias que são ou agressivamente an- de arte), uma comunidade ou evento sazo-
tivisuais – informativas, textuais, expositi- nal, uma condição histórica, mesmo forma-
vas, didáticas – ou imateriais como um todo ções particulares do desejo, são agora con-
– gestos, eventos, performances limitadas siderados sites. (KWON, 2008, p. 172).
pelo tempo. O “trabalho” não quer mais ser
um substantivo/objeto, mas um verbo/pro- Pelo que vemos, o modelo intervencionista
cesso, provocando a acuidade crítica (não de site assume contornos de caráter discur-
somente física) do espectador no que con- sivo de efeito receptivo conceitual, de sen-
cerne às condições ideológicas desta expe- sibilização cultural, relacional, portanto de
riência. Neste contexto, a garantia de uma orientação coletiva e de vivência urbana,
relação específica entre um trabalho de arte enquanto exercício de cidadania, tal como
e o seu “site” não está baseada na perma- as vanguardas da década de 1960 e 1970
nência física desta relação (conforme exigia almejaram, e a que a década de 1990 impri-
Serra, por exemplo), mas antes no reconhe- miu novas questões:
cimento da sua impermanência móvel, para
ser experimentada como uma situação irre- (...) no fato de que esta geração de artistas
petível e evanescente. (KWON, 2008, p. 170) não considera a intersubjetividade e a in-
teração como artifícios teóricos em voga,
Os sites-specific, deste modo, devem ser nem como coadjuvantes (pretextos) para
compreendidos como site-oriented, po- uma prática tradicional da arte: ela as con-
tencializados pela experiência urbana de sidera como ponto de partida e de chega-
natureza social, baseada na referência do da, em suma, como os principais elementos
lugar, pela relação das pessoas entre si, no a dar forma à sua atividade. (BOURRIAUD,
compartilhamento das questões de violên- 2009, p. 62)
cia, saúde, moradia, educação, gênero, re-
ligião, cidadania etc., numa dimensão críti- A década de 1990 acabou por colocar em
ca e conceitual da arte que não cabe num curso a prática artística de modelos de so-
objeto único nem no enraizamento deste cialidade, um sistema de arte pública, cujo
com o lugar físico, podendo tanto acon- agenciamento supera o consumo estéti-
tecer em logradouros, escolas, hospitais, co. Mesmo que este fenômeno não tenha
aeroportos, prisões, igrejas, shoppings..., acontecido em alto grau de intensidade e
quanto penetrar nas redes sociais da in- escala globalizante, nesta década, é possí-
ternet, ondas do rádio, sinais de tv, mídia vel assinalar sua inserção em vários países,
impressa..., como interagir com diferentes pelo menos identificar os caminhos que lhe
áreas do conhecimento: abriram espaço. No caso de Portugal, pode-
mos começar citando as “festas da cidade”,
– HERBERT ROLIM 39
por três anos consecutivos, no começo da em favor da ideia de uma cidadania ativa e
década, como exemplo de intervenção ar- participativa” (CAEIRO, 2001, p. 10).
tística de caráter relacional. Para o pesquisa-
dor Telmo Garção Lopes (2005/2006, p. 19), Chegamos, assim, ao cerne da estética rela-
no entanto foi com o evento Lisboa 94, Ca- cional, vista na perspectiva da dimensão hu-
pital Européia da Cultura que Portugal ini- mana, graças a participação e colaboração
ciou um processo “de dotar de importância intersubjetiva de um corpo coletivo, interes-
significativa os impactos da Arte Pública no sado em produzir espaços-tempos convivais.
Design Urbano e nas tensões da estrutura
da cidade a uma escala territorial”, aconteci- Considerações em continuum
mento que iria refletir, de forma mais proe- É preciso dizer que, mesmo dando-se a pas-
minente, com a Exposição Mundial de 1998 sagem, ascensão e declínio dos modelos de
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
contemplação para a consciência crítica. — Bibliografia
Precisamos ter em mente que ações artís-
ticas desta natureza, efetivamente, não ob- ABREU, José Guilherme. Um
jetivam resolver problemas sociais, mas sim modelo fenomenológico para
problematizar mecanismos de intervenção a escultura pública. Revista
e criar meios relacionais de como lidar com Faculdade de Letras Ciências e
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– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
Deambulação pela Arte (como Coisa) Pública
– MARIO CAEIRO 43
encontro da cidade consigo própria através na forma e no meio urbanos, precisamen-
da arte. Por outras palavras, parto da ideia te porque resultado aferível de um conjunto
fundamental do espectador em Hannah de tensões – identificar vs. agir; imaginar vs.
Arendt e articulo-a com uma abordagem fazer; apreciar vs. reflectir… – que são resol-
potencialmente transformativa1 (Collins e vidas como que por magia na obra de arte
Goto, 2005) da obra-espectáculo que é a ci- – chamemos-lhe pública ou urbana… – que
dade; laboro no seio da ideia lefebvreana funciona então, enquanto fragmento de/na
do espaço(-tempo) citadino como historica- cidade, como um enunciado ensaístico e,
mente produzido, hipersocializado (Delga- ao limite, como aforismo urbano.3 Nesta óp-
do, 2013), que encaro como a própria ma- tica, a arte é a afirmação poética da cidade
triz da vida urbana: a produzir um discurso em aberto sobre si
mesma. Uma prática da representação viva
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
tética; entre obras que fazem parte da pai- sificadas, sendo apropriados por distintas
sagem do dia-a-dia (quer queiramos quer entidades e grupos sociais como mecanis-
não) e outras que vão delicada- e quase in- mos fundamentais para a acção. A publi-
visivelmente criando uma sensibilidade crí- cidade que toma o espaço público, a vi-
tica abaixo do radar (mas perfeitamente in- deovigilância sob o controlo do Estado, as
tegradas movimento global,) procuro que gramáticas subversivas representadas pelos
a minha e nossa consciência dos lugares e graffiti e pela street art ou os estilos juvenis
das pessoas encontre na criação artística urbanos, são, entre muitos outros exemplos,
um espelho que abra possibilidades à re- fenómenos que nos demonstram a crucial
presentação de mais do que apenas o gos- relevância de um estudo mais detalhado
to (de alguns). Mesmo quando tal espelho das práticas e das estratégias engendradas
parece quebrado, o que vejo são em todo pelos diferentes actores nestas operações
o caso fascinantes impermanências de uma que buscam adquirir visibilidade no espa-
espécie de sentido de totalidade, no âmbi- ço público urbano, intervindo na ecologia
to do qual a arte subsiste como campo de visual urbana.”6
encontros vitais.
Mensagens (na garrafa)
Proponho-me em suma, ao evocar o que Mostly, I believe an artist doesn’t create
vejo por aí (e o que na sombra desse olhar something, but is there to sort through, to
me ocorre) revisitar alguns caminhos essen- show, to point out what already exists, to
ciais da arte contemporânea que manifesta put into form and sometimes reformulate it.
o seu interesse pela cidade, investigando o Annette Messager
seu papel comunicacional na actualidade5
urbana. As obras de que falarei são como Saldanha. São duas, talvez três da manhã.
que figuras de uma família, senão de uma Mas a cena surge-nos a qualquer hora do
genealogia que assim homenageio, mesmo dia, em muitos lugares de Lisboa. Em cima
sem a querer ou saber nomear. Aqui entre de um caixote do lixo, uma garrafa de cer-
nós, reconheceremos os nossos – ou não veja e uma lata de Monster, foram coloca-
fosse função essencial da arte na cidade dos, metodicamente arrumados, como que
afirmar-se a si própria e à sua comunidade num plinto. Porque é que não foram sim-
sempremergente, até porque só assim con- plesmente atirados para o chão ou, já ago-
tribui para essa outra e maior obra de arte ra, para o interior do caixote do lixo? Que
que é a própria cidade. fenómenos da acção corrente e da comuni-
cação interpessoal estão ali em causa, nesta
Ricardo Campos, num quadro de ideias que espécie de assemblage ou de impromptu?
engloba decisivamente a de um urbanismo
vertical, complementa: Quando passo, posso fingir que isto não
me afecta nem ao meu mundo, como se
”Actualmente, as imagens e os dispositivos não fosse comigo. Ou posso achar que tal
visuais desempenham funções muito diver- espécie de nano-performance é da ordem
– MARIO CAEIRO 45
do puro vandalismo. Mas lá está, como esta- sensorial da cidades. Mas outra coisa é cer-
belecer o nexo crítico para dizer a pequena ta: se a arte na cidade começa pelo saber
distância que vai entre encararmos a cena olhar, ela tem de basear-se numa perspec-
como simples vandalismo (afinal, não tarda, tiva ética de onde partamos para pensar (e
vai haver cacos pelo chão…?!?) ou uma es- depois arriscar) a acção. Em suma e noutros
pécie de natureza morta anónima – ocorre- termos, no discurso de uma obra ou situa-
-me essa obra-prima da ressonância entre o ção o modo de participação para que so-
lixo e a paisagem que é Island Within an Is- mos convocados pode ser ou não propício
land (2009), de Gabriel Orozco)… –, um rea- ao próprio fenómeno de a arte aparecer.
dy made cuidadosamente equilibrado no Nomeadamente como coisa pública.
mobiliário urbano? E se tudo isto sou só eu
a delirar, no furor da interpretação? Ora certos fenómenos desta projectualida-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
cia mais premente das nossas capacidades rito e não nas coisas, não é um dado em-si,
performativas. (Campos, 2011) mas implica um para-si. (Serrão, 2011)
– MARIO CAEIRO 47
A obra de arte, aqui, aspira antes de tudo o
mais a dissimular-se na forma urbana, esco-
lhendo o mais discreto e subtil dos registos
comunicacionais, em plena ambivalência. É
por aí um monumento imbuído de um es-
pírito contemporâneo, já que a necessida-
de de uma visão unificada do passado, tal
como a encontramos nos monumentos tra-
dicionais, colide com a convicção moderna
de que nem o passado nem os seus signifi-
cados poderão permanecer para sempre os
Sérgio Vicente (projecto), Ana Moreira, Bruno Cidra, Edgar mesmos. (Young, 2003)
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
numento com que Charles Chaplin abre o monumento moderno é uma contradição de
filme Luzes da Cidade (1931). A arte pública termos. Assim supera vários impasses pre-
existe sempre em função do que cada épo- cisamente porque radica a eficácia do seu
ca lhe exige. Mas noutra dimensão ainda, e anacronismo numa estratégica (in)visibili-
numa nota muito pessoal, a intervenção de dade, expressão de extrema modéstia de
Sérgio Vicente é também uma réplica – com recursos, adicionalmente impedindo que a
luva de calcário – à hubris erótico-monu- memória colectiva seja naturalizada.
mental de José Cutileiro ali tão perto, entre
as monumentais colinas do Parque Eduardo Pinturas outras, outras esculturas
VII. A sua celebração do 25, com todas as É bonita a ideia de uma imagem urbana.
marcas da autoria (o estilo celebrizado pelo Dito isto, considero que a imagem não é
escultor), é com efeito uma efervescência uma característica estritamente individual, o
urbana efusivamente pós-modernista.10 Não que demarca uma grande diferença entre a
tão invisível quanto isso (até pela orientação minha perspectiva e a de outros sociólogos
vertical), iluminada por projectores de luz e antropólogos, que permanecem obceca-
colorida, a obra consegue até conferir a um dos por uma concepção bastante individual,
passeio nocturno um momento de evasão… ou até mesmo individualista, da imagem.
uma fantasia erótica que quiçá interrompe, Michel Maffesoli
nos olhos das gerações actuais, o que pare-
ce serem os reflexos de uma total indiferen- Estar vs. andar. Ficarmo-nos passivos vs.
ça perante o passado. agir. A cultura do graffiti tem na sua origem
e na sua tradição esta ideia de o gesto ar-
Em suma, não se tratando ainda de um tístico conquistar território, de ocupar a pai-
contramonumento (à la Jochen Gerz), a sagem. Mas ao contrário do monumento
escultura pseudo-minimal de Sérgio Vicen- (mais ou menos tradicional), aceita e pro-
te, qual discreta mnemónica que nos remete move o efémero, o circunstancial, a comu-
para um aspecto preciso do processo histó- nicação urgente de realidades sociais que
rico, representa um modo de a arte integrar de outra forma seriam desconhecidas da
a cidade que já é plenamente consciente da esfera pública. Algumas imagens do graf-
fenomenologia dos seus usos quotidianos. fiti têm aliás um indelével poder evocativo
O trabalho é assumidamente um desenho (que lhes vem na verdade de mais do que
(do) urbano como totalidade experienciá- apenas do facto de serem facebookáveis,
vel: Sérgio Vicente, escultor e docente que instagramáveis, ou twittáveis.
orientou o projecto, explicou ao JN que a pa-
lavra só conseguirá ser lida do ar, pelo que Quando desço das Amoreiras a caminho do
o mais provável é que, quem por ali passe, Rato o que me sobra do mais belo dos gra-
a utilize como zona de estadia.11 É portanto ffitis é não mais que a memória remota des-
uma intervenção no tecido urbano perfei- te… POOW!! BOOM! Assim rezava a pare-
tamente capacitada de que, como já dizia de, tirando partido de um ‘acidente’ viário
Lewis Mumford nos anos 30, a noção de um contra um muro para criar uma efémera afir-
– MARIO CAEIRO 49
mação tautológica que era ao mesmo tem-
po, porque onomatopeica, uma instalação
sonora. Sinestesia incrivelmente oportuna,
deve ter colocado uns milhões de cidadãos
automobilizados a pensar na sua vida.
In http://www.vice.com/pt/read/as-cidades-tambem-podem-ser-
galerias-a-ceu-aberto caso do autor de POOW!! BOOM! (2011)
– Pantónio –, a arte funciona como contra-
dispositivo imaginativo – não confundir
imaginação com fantasia, diria o romântico
Schiller! Ela materializa-se no real do dispo-
sitivo urbano (onde carros vão contra mu-
ros, destruindo-os…), espécie de imagem-
-resto que deixa transparecer uma dança, a
do corpo do writer com o muro, palco ver-
tical do seu craft. Afinal, durante meses foi
virtualmente impossível escapar ao humor
e à graça anónima da acção ‘vandalizadora’
(recorrendo, cirurgicamente, ao registo uni-
versal da BD para ‘dar luta’ às imagens hi-
gh-res dos outdoors publicitários em volta).
Arriscando a perturbação do tráfego, ‘pi-
sando o risco’ e reflectindo a realidade em
toda a sua contingência12 este é o tipo de
arte urbana que vale a pena a todos os ní-
veis – pelo menos é o que se me oferece di-
zer quando, passando de novo aqui, evoco
a sua ausência-presença.
<<
tão instrumental ao nível do desenho da ci-
dade), mas o essencial é que, no âmbito da
arte-como-coisa-pública, o artista e os agen-
tes à sua volta entendam que a recepção por
parte do público é aspecto essencial do seu
trabalho. Com a ‘agravante’ de que se tra-
ta na maioria das vezes de um público que
tem mais do que fazer do que apreciar arte
ou aderir ao que poderá muito bem ser en-
tendido como uma absolutamente supérflua
aparição do estético no seu quotidiano.
– MARIO CAEIRO 51
espectacularmente, no aceso comentário obras, uns vindos de longe outros de perto,
que nos últimos se tem generalizado sobre todos de algures, trazendo as mensagens do
o trabalho. Claro que, em termos de implan- outro, mensagens do mundo. Assim como
tação na forma urbana, decerto que Portugal em tempos aportou à capital das chegadas
a Banhos ao Terreiro do Paço não tem a mes- o corpo de S. Vicente, assim como essa che-
ma amplitude retórica que quando reapare- gada fundamental definiu um destino para
ce nas Docas de Alcântara, mas continua a a cidade e a enobreceu, hoje uma arte con-
impelir-nos a opinar. temporânea de todos os tempos procura ex-
plorar dimensões emergentes de uma sen-
Criar espaço público mítico sibilidade: lisboeta, universal, daqui. Para
A criatividade e a cultura são isso mesmo, ou- chegar a algum lado.
sar desarrumar as ideias e encontrar-lhes no-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
vas caras […] novos caminhos. Podíamos, por O VICENTE assume na cidade um papel
exemplo, pegar num urinol, virá-lo ao contrá- próximo do placebranding, desenvolvendo-
rio, chamá-lo “fonte”. Não sei se alguém já se -se como contributo independente para a
lembrou disso. identidade contemporânea não apenas da
Afonso Cruz Capital mas de Belém em particular. Os seus
conteúdos (esculturas, instalações urbanas,
O dever chama-me. Tenho artistas em Belém instalações vídeo, performances, edição…)
à minha espera, precisamente para arrancar convidam o público a regularmente aferir
com a programação de mais um VICENTE. da evolução do conceito face a cada mo-
Reinventando o mito, desde 2011 é a frase mento presente. Este tipo de opção passa
com que gosto de fazer o pitch da iniciativa, por uma lógica de storytelling que tem natu-
anualmente promovida pelo Projecto Tra- ralmente a ver com o facto de o mito de São
vessa da Ermida. A ideia é abrir um espaço Vicente ser de uma densidade tal, que seria
para o Espaço Público Mítico, conceito que irresponsável tocar o tema – uma narrativa
permite que se possa promover o conheci- fabulosa – sem lhe dar um enquadramento
mento perdido acerca de um mito funda- suficientemente amplo, inclusivo, universal.
mental da cidade de Lisboa, epitomizado na
chegada das relíquias do Mártir em 1173 – e Daqui infiro que a melhor arte pública é
ao mesmo tempo promover novas leituras aquela em que percebemos que a mensa-
da Contemporaneidade. gem é para todos – senão em absoluto (o
que destruiria a eficácia de qualquer con-
No texto de fecho da mais recente edição, ceito como conjunto de opções discretas
sintetizei o carácter da iniciativa: no âmbito de um plano de comunicação),
pelo menos como princípio e hipótese de
VICENTE é um pequeno laboratório de ima- trabalho. A ideia por detrás do VICENTE é o
gens onde cabem paradoxalmente muitos Todos – não por acaso o nome de outro fes-
pensamentos, um filosofar. À Travessa do tival, esse camarário, com evidentes traços
Marta Pinto aportam artistas, autores e suas de arte pública.
<<
Os eventos de VICENTE são assim quase criação e da cidadania dos nossos dias. O
sempre exemplarmente públicos – decor- resultado mais ‘1:1’ deste desejo – a instala-
rendo ‘na rua’ –, e à escala de uma pequena ção dando lugar ao corpo-a-corpo do tea-
travessa lá vamos fazendo pela posteridade tro – foi a dada altura um conjunto de irreve-
de São Vicente mas também – qual labora- rentes performances – passeios pela cidade
tório para se experimentar o (im)possível – pelo performer polaco Krzysztof ‘Leon’
– elaborando um discurso tangível acer- Dziemaszkiewicz – que levei a atravessar a
ca das possibilidades da cidadania criativa cidade durante três dias sucessivos interpe-
(no caso, antes do mais, a de uma entida- lando todas as suas potenciais ‘vítimas’.
de privada que partilha no espaço públi-
co uma estratégia local de regeneração do Entre senhoras idosas de um bairro popu-
tecido e da oferta culturais). Em duas pala- lar e os alt skaters à Praça da Figueira, o que
vras, humildade e ambição em doses idên- o público viu foi a recodificação (Flusser,
ticas pode permitir a um conceito, como a 2007) dos trajes e dos atributos do Santo
uma obra, estabelecer com os cidadãos um (dimensão eminentemente visual), consti-
acordo: vamos pensar o impossivelmente tuindo o conjunto dos percursos uma ‘via
grande através do possivelmente pequeno. sacra’ individual capaz de desafiar os ven-
dilhões da sociedade do espectáculo. Um
Na prática, faço questão que no VICENTE dos figurinos que Leon realizou integral-
– pequeno ‘carrinho de linhas’ no meio das mente em Portugal, durante uma escassa
‘rodas dentadas’ gigantes que se encon- tarde de corte e costura, foi por exemplo
tram em volta (património edificado, insti- uma dalmática de Vicente, feita de… sacos
tuições e equipamentos culturais) – a arte do Pingo Doce.
apareça como coisa natural da matéria ur-
bana, isto é, como uma recodificação do es- Este tipo de acção urbana é da ordem do
tável e do conhecido, e até do expectável, que Thierry Davila chama de cineplástica.14
mais ou menos inusitada conforme o âmbi- Isto é, o artista, já não mero performer, tor-
to de cada conceito tratado. A propósito da na-se por essência móvel e as suas pere-
irreverência deste tipo de projectos, que se grinações o fundamento para novas rea-
abre a uma performática do urbano, o histo- lizações, num quadro operativo15. Mais, a
riador José Sarmento de Matos encontrou cidade, vasto processo, conjunto de veloci-
um termo para dizer o que esta arte faz à ci- dades (Davila), como que se pedonaliza.
dade: a batida do desassossego.
O texto como poética, o rabisco arisco
Na oportunidade específica criada pelo VI- Text Art is no longer defended as a special
CENTE (o projecto teve a origem no desejo, case, nor has it been completely incorpora-
por parte do seu patrono, de ‘voltar a falar- ted into the institutions of art. Rather, its value
-se dos Corvos de Lisboa’…), procuro que and potential is acknowledged by a wide
a performatividade de um mártir cristão do spectrum of contemporary artists who freely
séc. IV pudesse entrar em diálogo com a da combine the use of text with performance,
– MARIO CAEIRO 53
installation, video, photography, drawing,
painting, sculpture and printmaking.
Dave Beech
<<
Outra obra absolutamente singular que te- uma faca nas costas [da estátua] de Afonso
nho tido a oportunidade de acompanhar é Henriques e a celebrar [o enterro de Por-
a de Stefan Kornacki. Kornacki tem ‘salva- tugal] com um caixão com a forma do dito
do’ monumentais letterings da destruição17, [limites continentais].) Em Lisboa, é procu-
conseguindo nos últimos anos construir rar por aí… mas dou uma ‘dica’: debaixo da
um quase absurdo léxico de palavras que ponte, junto à Embaixada dos Estados Uni-
outrora encimaram importantes edifícios dos da América, a Sete Rios.
(no caso, na Polónia comunista): KOSMOS,
UNIWERSAM, VICTORIA… A sua continuada relação com o texto ver-
nacular (língua portuguesa vs. inglesa con-
Neste trabalho sobre a ruína (também da forme a situação a criar, cartazes impressos
ideologia, de qualquer uma) há ao mesmo ou tinta negra directamente aplicada às su-
tempo um enorme respeito pela história e perfícies, uma tipografia universal) contrasta
os processos de recontextualização da lei- com a quase ingerência no espaço público
tura (já que todas as ‘obras’, autênticos rea- discursivo que foi a recente intervenção em
dy-mades urbanos – são acompanhadas de Lisboa de Tim Etchells19, com frases (em in-
cuidada documentação participativa [en- glês), evidentemente sobre Arte, numa tipo-
trevistas, documentários] não apenas sobre grafia relativamente requintada: Art Matters.
o que essas palavras significam [digamos Ora ‘Não é tarde nem é cedo’ terá pensa-
que ‘em absoluto’] mas também para quem do o/a vândalo/a que rabiscou várias des-
e quando). Por outras palavras (!), há uma sas inscrições com deliciosos (ou pernicio-
espécie de tradução de um termo urbano sos) comentários, do tipo: [Art that hurts] «?
concreto (uma sinalética historicamente si- DOI? ESTUDASSES!».20
tuada) para outras épocas e situações18.
Aliás, podemos hoje literalmente tocar as A cidade da arte é isto, mais do que a obra
palavras que outrora estavam lá em cima. deste ou o comentário daquele, e indepen-
Agora, cá em baixo, num lugar que é que o dentemente dos graus de violência dos de-
artista escolhe, a sua transparência e poder bates, a cidade é este diálogo, ora públi-
são completamente reconfigurados. E a sua co ora secreto, que umas vezes se fica pela
fragilidade exposta. mente do colectivo, outras surge no esplen-
dor de incompreensões que revelam por
Esta questão entronca num aspecto do pró- sua vez que, sem retórica – o poder-se e sa-
prio discurso que muitos artistas tomam por ber-se falar sobre aquilo que vale a pena – a
adquirido. A língua. Neste aspecto, Januá- arte pública aparece como uma actividade
rio tem sido precioso na inscrição criteriosa criativa dolorosamente desprezível.
dos seus textos, que são verdadeiros diálo-
gos da psique colectiva com a superfície da Resta aqui acrescentar que também um cer-
cidade e, mais globalmente, o momentum to gesto pode ser puro texto, como o prova
cultural da sua recepção (em Guimarães, a rebelde escultura de Maurizio Cattelan em
para a Capital da Cultura, chega a espetar frente à Bolsa de Milão21, o famoso Il Det-
– MARIO CAEIRO 55
to (2010). Cattelan usa o poder da grande
arte caucionada pelo seu próprio sistema
para dar voz ao povo, qual ventríloquo dos
excluídos do mundo financeiro. Fá-lo numa
referência evidente à cultura clássica (utili-
zação precisa do plinto, do efeito de ruína
e da monumentalidade típica da estatuária),
ao mesmo tempo que demonstra que, para
certas coisas serem ditas, há que encontrar
formas radicais para que façam sentido no
dado momento.
Miguel Januário, Vende-se Portugal, Lisboa, 2013.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
exigir-lhe essa outra função mais complexa, -criação ou mudança onde quer que elas
que seria a de mudar o mundo (parece que possam aparecer. É preciso estar atento e
estou a ouvir Almada Negreiros, na Estação estimular a sensibilidade, sobretudo numa
de Metropolitano do Saldanha). altura em que novas visões do urbanismo
começam a ‘fazer das suas’. Por outro lado,
Não estou a dizer que seja sequer o mo- é evidente que temos dificuldade em ima-
mento – e aqui entre nós, nunca será… – ginar que o Projecto Urbano possa ser uma
para discutir a questão da arte pela arte vs. montagem e uma mobilização de recursos
da arte como política; mas que o trabalho pelos próprios habitantes (Claude, 2000)…
de Farto(s) e Januário(s) – do lado da comu- mais fundamentalmente, esquecemo-nos
nicação urbana – e depois de outros agentes de que a forma deveria seguir… a ficção
de mudança mais discretos (essa arte comu- (Séguret, 2000).
nitária de longa duração que não encaixa na
agenda mediática nem convém às narrati- Em todo o caso, prospectivas à parte, atra-
vas hegemónicas) está a reconfigurar a nos- vessar a cidade é também um exercício de
sa ideia de arte urbana, isso está. Porque rememoração; rememorar memoráveis ac-
vão tocando nos pontos, fazendo ao mesmo ções que o tempo se vai encarregando de
tempo arte e a pedagogia dos possíveis da apagar progressivamente é um exercício
arte enquanto ligação com o social. Tendem fundamental da cidadania e deveria ser um
a ser mediação (Debray, 1997) ao nível de valor inalienável da experiência do público.
um superior entendimento do que é a cida- As instalações e a implantação urbanística
de como palco de pessoas e ideias. da Luzboa (2004 e 2006) por exemplo, hão-
-de diluir-se no nada do tempo, mas como
Rememorar processos, criar lembranças que ainda ressoam na memória de alguns
Dans la gestion des signes urbains, qu’ils lisboetas (e até estrangeiros que por cá an-
s’agissent de signes traduits dans l’espace daram na altura). O essencial é que a expe-
ou de signes échangés entre les spécialis- riência estética de uma determinada gera-
tes, la logique sociale de la prise de décision ção possa encontrar formas e se traduzir
veut que celle-ci se fasse en dehors de tout para novos desafios, já que se o contexto
déterminisme consécutif à une quelconque muda, não muda (pelo menos para já!) algo
dialectique des rapports de force ou d’in- de essencial, o problema de criamos senti-
fluence. do para a nossa vida.
François Séguret
A este nível, certos experimentos urbanos
Enquanto agente de interpelações urba- são potencialmente alimentadores dos so-
nas, percorrer a cidade é para mim reco- nhos de novas gerações de criadores. As-
nhecer sítios potenciais para a realização sim aconteceu comigo anos atrás, quando
de intervenções; o que passa por encontrar ao fazer a Lisboa Capital do Nada (2001) es-
pretextos e oportunidades para criar acon- tava no fundo ainda a reacender as cinzas
tecimentos ou aliar-me a dinâmicas de co- mornas de experimentos como a Alterna-
– MARIO CAEIRO 57
tiva Zero (1977), de Ernesto de Sousa (que ção de traços geometrizantes que funciona
por sua vez trazia para Portugal as inovado- como pórtico e marco urbano num enqua-
ras visões de Harald Szeemann ou Joseph dramento urbanístico e paisagístico muito
Beuys…). É nestes termos que a questão particular – espécie de oblonga ‘praça ver-
da genealogia da arte pública é criticamen- de’. Não seria pouco, até pela clareza com
te essencial, pois há aspectos conceptuais que está implantada no território, conside-
e propriamente metodológicos que impor- rando perspectivas visuais e a significativa
ta conhecer ao longo da história, para hoje circulação viária.
operarmos com maior propriedade.
Mas a peça – de 1995, cuja designação de-
Não deixando de ser verdade que é qua- nuncia a sua localização original, Ribeira
se sempre nos Museus – e não no terreno das Naus – torna-se muito mais significante
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
– que vamos recarregar baterias (teóricas), se nos informarmos acerca de como apa-
a própria possibilidade da arte como coisa rece ali. Quantos dos transeuntes saberão
pública e urbana obriga-nos a estar atentos que resultou do orçamento participativo da
ao que acontece e à forma como partilhar CML, e que portanto foram cidadãos que
essa atenção. É uma questão de saber reco- determinaram que a obra, que antes havia
nhecer ‘os nossos’ em qualquer época – no estado noutro lugar, haveria de encontrar
meu caso, de Schiller a Lefebvre, de Wag- o seu poiso permanente aqui, na Alameda
ner a Debray, Nancy, Latour ou Sloterdijk; das Universidades?
uma questão de partilhar olhares (ao limi-
te, como em Chantal Mouffe, agónicos), fa- É esta a via para o comum que a arte pública
zendo de cada oportunidade o acontecer advoga: promover um saber sobre os ob-
de um potencial de informação urbana que jectos e os processos da arte na cidade; im-
ora é deliberadamente intangível, ora uma plicitamente também sobre as paisagens e,
concreção exemplar e retoricamente eficaz nestas, os nossos corpos, tanto individuais
dos possíveis da cidade. Por isso as obras como colectivos; a arte tornando-se assim
dizem quase sempre muito mais do que pa- matriz do nosso próprio olhar. A arte urba-
rece. Desde que as olhemos através da len- na mais tradicional torna-se concomitante-
te da arte pública – um mix de ética comuni- mente partenaire da mais radicalmente al-
tária, saber colectivo, literacia projectual e, ternativa, o nano imiscui-se nas narrativas
já agora, jargão técnico. do macro, todas as decisões de projecto im-
plicando, num certo grau de transparência
Uma escultura monumental de Charters de e escrutínio, possibilidades outras, tal qual
Almeida à Alameda da Universidade, ao como acontece no discurso – que é de to-
Campo Grande, é, então, formalmente, à su- dos, não pertencendo a ninguém.
perfície, uma coisa: um objecto escultórico
mais ou menos (ir)relevante (terminologia E daí que quando passeio pela cidade há
que ‘roubo’ a Giorgio Agamben), com uma obras que voltam sempre, como fantasmas
escala vincadamente arquitectural, evoca- de um futuro que a arte afirma na singeleza
<<
dos seus processos (e na frontalidade com A arte pública torna tangível a comunidade
que lida com as modalidades, como diria e, nela, a participação (nomeadamente a
Wagner), mas ao mesmo tempo na capaci- do povo no seu próprio destino). Antes de
dade de dizer o imediato da cidade no aqui tudo mais, ela promove a conversação. Ela
e agora dos seus dispositivos. Regresso é nos seus mais surpreendentes momentos
mais uma vez à Luzboa para dar um par de a orquestração criativa de encontros colabo-
exemplos: tivémos uma empresa de men- rativos e conversações, bem para além dos
digos (Javier Núñes Gasco), a lua na terra confinamentos institucionais da galeria ou
(Bruno Peinado) e até eléctricos – na altura do museu (Kester, 2004) A obra de arte total
bem menos photo-opportunities que hoje que é a arte na cidade – Wagner, I wish you
– iluminados (Yann Kersalé). O que mostra were here – é em suma um factor de produ-
como os artistas trabalham os limites de to- ção de imaginação colectiva e de activação
das as (des)codificações, sobretudo quan- instrumental dos mecanismos urbanos. Ela
do assumem um desígnio: o de manifesta- é por isso sempre… do futuro. Precisamen-
rem a graça social, implícita no idear mais te como Richard Wagner antecipou no seu
nobre e profundo da Cidade. ensaio de 1849.
Cabe à arte pública crítica (aproprio-me do Em suma: a arte da cidade começa num
termo cunhado por Krzysztof Wodiczko), sa- olhar sobre a coisa urbana, a cidade na sua
ber ora diluir-se tacticamente entre o espec- quotidianeidade e na sua multidimensiona-
táculo e a provocação, ora aderir ao belo lidade (conceitos lefebvrianos). Aí, formas,
para celebrar o Social Humano, ou ainda, fi- usos, códigos, imagens, paisagens, quais-
nalmente, procurar um compromisso com o quer pretextos servem para inspirar uma
desconhecido, em total entrega ao impon- consciência que cuida do que na cidade
derável (algo que ‘não dá lá muito jeito’ às queremos preservar, mudar e/ou proble-
indústrias criativas). É esta gramática fun- matizar. Ética portanto, que diz muito da
damental que subjaz ao discurso sempre- maturidade de cada comunidade. E que se
mergente que faz da cidade um palco para realiza – o que é raro, senão raríssimo… –,
a visibilidade do que urge comunicar-se e quando é radicalmente interpretada como
um tabuleiro de xadrez (dispositivo), sobre uma fusão da arte com o socius, que é o que
o qual se joga – supremo ludismo – a nossa acontece em projectos de estética dialógica
formação – a Bildung a que se refere Schiller (Kester, 2004) como os de Stephen Willats,
nas suas Cartas sobre a educação estética que encara o seu trabalho como a produção
do homem (de 1795). de cultura socialmente interactiva.22
Plano do poder cidadão, cenário de so- Dito isto, quando o/caro leitor/a passar pela
nhos, discurso exploratório da utopia, a Av. Infante Santo (agora não me dá jeito…),
arte pública transforma a cidade num veí- dê valor aos azulejos de Maria Keil (figura-
culo para todas as sensibilidades se senti- ção da maior qualidade…) mas também aos
rem mais próximas do seu próprio destino. painéis abstractos de Eduardo Nery, cele-
– MARIO CAEIRO 59
brando a luz de Lisboa… preste atenção às Uma rua mais criativa, laboratórios de
últimas da street art mas também à discre- invenção
tíssima escultura de Rui Chafes à entrada do I argue that in order to engage with practi-
Hospital de Santa Maria… mais do que sig- cal problems of public and private space, we
nificados, que sentidos estão em jogo quan- must operate at a theoretical level. We must
do olhamos à nossa volta? E depois sim, po- construct what Julia Kristeva has called “a
nha-se a imaginar. O que poderia fazer falta diagonal axis” between theory and practice,
aqui, e o que mudaria acolá… com quem va- “a place between” the two, where a more in-
leria a pena entabular a conversação? tegrative approach to the making and inter-
pretation of public spaces can begin.
No séc. XVI, Francisco de Holanda23, ilumi- Jane Rendell
nador, arquiteto e pintor soube contribuir,
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
to matéria para as suas formas, transforman-
do os próprios meio e vida urbanos num in-
strumento musical (fê-lo à Travessa do Marta
Pinto, âmago do Projecto VICENTE).
Imaginemos que entramos numa peque- Rochus Aust & DEUTSCHES STROMORCHESTER, Concerto
Móvel na Travessa do Marta Pinto, Lisboa, 2015. Fotografia de
na rua de Lisboa, animada por uma discre-
Agata Wiorko, cortesia Projecto Travessa da Ermida.
ta mas vibrante vida local... sentimo-nos
‘em casa’ porque o espaço é convidativo,
ou uma obra de arte nos chama, ou a fila à
porta de um restaurante denuncia uma boa
cozinha... imaginemos que ao fim dessa rua
entramos diretamente numa calle espanho-
la... tão diferente e, no entanto, transmitindo
um carácter semelhante... imaginemos que
ao final dessa rua espanhola entramos numa
francesa, depois numa italiana, que se bifur-
ca numa alemã e numa turca, desembocan-
do todas numa estónia... Imaginemos uma
rede de ruas assim virtualmente ligadas,
como se existisse entre elas uma passagem
oculta, conectando diferentes lugares onde
a Europa acontece, fervilhando da mesma
vida urbana, pessoas, ideias, iniciativas, num
mosaico de culturas locais. Façamos a car-
tografia intangível de todas essas ruas. Voilá
uma Europa de pequenos factos urbanos a
que acedemos por via de critérios próprios,
como o genuíno, o vintage, o emergente, o
excecional. Seria uma rota 24/24h com pro-
tagonistas e figurantes sempre renovados, a
vivência dos diversos lugares enquanto pal-
cos de atmosferas, estórias, valores.26
– MARIO CAEIRO 61
Em suma, tem de continuar a abrir-se – Expérimentations et Professions,
‘sugerir-se’, ‘rasgar-se’… – espaços para uma Éditions de la Villette, 2000.
cidadania (propriamente) artística (Cam- Debray, Régis; Introdução à
pbell e Martin, 2006). Sendo certo que ela Mediologia, Livros Horizonte, 2004.
é um modo de operar esteticamente, vejo-a Davila, Thierry; Marcher, Créer.
acima de tudo como um modelo plástico Déplacements, flâneries, dérives
para nos apropriarmos todos – artistas e não dans l’art de la fin du XXe siècle,
só – dos mecanismos de subjectivação na Editions du Regard, 2002.
cidade; e portanto também como uma res- Flusser, Vilém; O mundo
posta pragmática às distopias da moderni- codificado: por uma filosofia do
dade. A arte (pública, urbana…) tem neste design e da comunicação, Cosac
âmbito um papel revolucionário (Nawratek, Naify, 2007.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
Advances in Art & Urban Futures tender para uma ou mais das Semedo, Alice; «Introdução», in
Voume I. Locality, Regeneration & seguintes posições: lírica, crítica e Semedo, Alice; Lopes, J. Teixeira
Divers[c]ities, Intellect Books, 2000. transformativa. (Coord.); Museus, discursos e
Séguret, François; «Les acteurs 2
Delgado, Manuel; «O Espaço representações, Afrontamento,
et les métiers de la ville et du Público como Representação. 2006.
projet Urbain», in Hayot, Alain; Espaço urbano e espaço social 5
João Barrento (1996):
Sauvage, André (dir.), Le Projet em Henri Lefebvre». Conferência Actualidade não é, para Benjamin,
Urbain. Enjeux, Expérimentations et proferida no âmbito do ciclo «A a categoria mundana que se refere
Professions, Éditions de la Villette, Cidade Resgatada» organizado àquilo que brilha à superfície, ao
2000. pela OASRN, Museu de Serralves, aggiornamento efémero, ao up
Semedo, Alice; «Introdução», in 15 de Maio de 2013. Tradução to date borbulhante, calculado
Semedo, Alice; Lopes, J. Teixeira do espanhol por Pedro Bismarck e imposto. O conceito tem nele
(Coord.); Museus, discursos e e Luís Piteira. Cf. http://www. contornos mais fundos, místicos, e
representações, Afrontamento, revistapunkto.com/2014/01/ implica uma iluminaço súbita do
2006. o-espaco-publico-como- passado pelo presente, motivada
Serrão, Adriana Veríssimo; «A representacao_9694.html por uma afinidade electiva e
paisagem como problema da 3
Ver a reflexão continuada de despoletada por uma explosão de
filosofia», in Serrão, Adriana João Barrento sobre o ensaio sentidos que põe a nu secretas e
Veríssimo (Coord.), Filosofia da e o fragmento, sintetizada em imprevisíveis coincidências entre
Paisagem. Uma Antologia, Centro entrevista recente, de 2013. Cf. presente e passado.
de Filosofia da Universidade de http://www.pequenamorte.net/ 6
Campos, Ricardo; «Introdução»,
Lisboa, 2011. entrevista-com-joao-barrento/#. in Campos, Ricardo; Brighenti,
Wagner, Richard; A Obra de Arte Vhofm7RViko Andrea Mubi; Spinelli, Luciano
do Futuro [1849], Antígona, 2003. 4
Donde que neste quadro à (Orgs.); Uma Cidade de Imagens.
Young, James E.; «Memory/ arte se coloca o desafio de Produções e Consumos Visuais
Monument», in Nelson, Robert S.; constantemente aferir as hipóteses em Meio Urbano, Mundos Sociais,
Shiff, Richard (Eds.); Critical Terms de os actores sociais e os agentes 2011.
for Art History, The University of artísticos constituírem um e o 7
O arquitecto Gonçalo Ribeiro
Chicago Press, 2003. mesmo grupo, ainda que na Telles é autor, entre outros, do
Zanatta, Maria Luiza; «Caminhando efemeridade de um conceito ou Corredor Verde de Monsanto;
com Francisco de Holanda», V de um evento. Para Alice Semedo: da integração da zona ribeirinha
Encontro de História da Arte, IFCH O agente é essencialmente um oriental e ocidental na Estrutura
/ UNICAMP, 2009. fazedor activo de significados: no Verde Principal de Lisboa; dos
entanto, a constituição do mundo jardins da sede da Fundação
— Notas como «significante», «relevante» Calouste Gulbenkian (com António
ou «inteligível» depende da Viana Barreto) e dos projectos do
1
Para Tim Collins e Reiko Goto linguagem compreendida não Vale de Alcântara e da Radial de
(2005), advogados da arte pública como um simples sistema de Benfica, do Vale de Chelas, e do
como eco-prática, a atitude signos e símbolos, mas como um Parque Periférico.
estética dos criadores pode meio para a atividade prática. Cf. 8
Directamente inspirada pelo
– MARIO CAEIRO 63
movimento das águas, Fernanda momento Roy Lichtenstein à beira 18
Em Portugal, Kornacki
Fragateiro concebeu o projecto de da estrada. O mais bonito é que apresentou-se: na Plataforma
um jardim totalmente relvado, em muitas vezes vejo um senhor Revólver, na exposição colectiva
que a modelação do terreno em aproveitar os destroços para se Objet Trouvé (2012), onde instalou
rigorosas curvas de nível, simula sentar a descansar à sombra, e nem duas letras (I e P) da palavra ‘IZBA
o ritmo do oceano, com o fazer e me importo de parar nos semáforos PRZYJĘĆ’ [Serviço de Urgências]
desfazer das ondas. In http://www. vermelhos lá ao lado todo o santo (http://inscriptionproject.
portaldasnacoes.pt/item/fernanda- domingo. Ana Dias Ferreira in blogspot.pt/2012/04/objet-
fragateiro-jardim-das-ondas/ https://cabecacoracao.wordpress. trouve.html); em performance
9
Cf. http://www.cm-lisboa.pt/ com/category/olhos/arte-urbana/ freestyle em frente à Assembleia
equipamentos/equipamento/ 13
Foi entretanto ‘trasladada’ para da República, no mesmo ano,
info/liberdade-monumento-a- a Doca de Santo Amaro. Cf. http:// com a palavra ‘CRISE’ escrita em
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
frases que interpelem os lisboetas Willats shifts the focus of art from 25
Stephen Johnstone: The
e transeuntes e os convidem the phenomenological experience everyday is human. The earth,
a descobrir este artista”. […] O of the creator fabricating an the see, forest, light, night, do not
certo é que alguém terá levado exemplar physical object to the everydayness, which belongs first
o programa à letra e se deixou phenomenological experience of of all to the dense presence of
interpelar pelas frases, ao ponto his co-participants in the spaces great urban centres. We need these
de tomar a iniciativa de sobre and routines of their daily lives. admirable deserts that are the
elas intervir. Por cima dos ditos 23
Maria Luisa Zanatta: Em Da world’s cities for the experience of
idealizados pelo artista inglês, Fabrica que falece à cidade de the everyday to begin to overtake
sempre com um carácter mais Lisboa (1571) o teórico retoma us. The everyday is not at home
ou menos programático sobre o velhas questões insistindo nas in our dwelling-places, it is not in
sentido da arte – “art that hurts”, urgências urbanas. Apresenta offices or churches, any more than
“art that opens eyes” ou “art that uma série de imagens, isto é, in libraries or museums. It is in the
remembers”-, foram feitos riscos lembranças de melhoramentos street – if it is anywhere. Here I find
em graffiti e, acima ou abaixo delas, para Lisboa: portas, pontes, again one of the beautiful moments
apostas inscrições sem aparente calçadas, igrejas, palácios e of Lefebvre’s books. The street, he
ligação ou outro propósito que fortificações que conferiram a notes, has the paradoxical character
o da mera sabotagem. In http:// Holanda a condição do arquiteto of having more importance than
ocorvo.pt/2014/11/17/murais-de- que pensa a cidade. Analisando the places it connects, more living
artista-homenageado-sabado-pela- sua obra, encontramos elementos reality than the things it reflects. The
camara-de-lisboa-vandalizados/ que nos auxiliam a compreender street renders public. ‘The street
21
A peça ganhou a sua designação suas ideias de Arquitetura e de tears from obscurity what is hidden,
final, ‘L.O.V.E’, durante o processo Cidade. publishes what happens elsewhere,
da sua realização. O título 24
Cristiane Maria Rebello in secret; it deforms it, but inserts
inicialmente previsto havia Nascimento: Da Fábrica que it in the social text.’ And yet, what
sido ‘omnia munda mundis’ – falece à cidade de Lisboa não is published in the street is not
significando literalmente ‘para é propriamente um tratado de really divulged; it is said, but this
os [homens] puros, todas as arquitetura, mas uma admoestação ‘is said’ is borne by no word ever
coisas [são] puras’. Cf. http://www. ao rei D. Sebastião a propósito really pronounced, just as rumours
designboom.com/art/maurizio- da importância de dar à cidade are reported without anyone
cattelans-middle-finger-displayed- uma condição à altura do transmitting them and because the
in-milan/ império marítmo português. Cf. one who transmits them accepts
22
Kester: As he [Willats] writes, “My Nascimento, Cristiane Maria being no one.
practice is about representing the Rebello; DA FÁBRICA QUE 26
Cf. Caeiro, Mário; «Ruas criativas?
potential self-organizing richness FALECE À CIDADE DE LISBOA: Vamos lá! O novo desafio de uma
of people within a reductive culture FRANCISCO DE HOLANDA Europa en route, a caminho de si
of objects and possessions. In a ENTRE OS MIRABILIA E OS GUIAS própria», in Arqa – Arquitetura e
society which reduces people I’m TOPOGRÁFICOS DE ROMA, IV Arte, n. 119, julho-agosto 2015.
working to celebrate their richness ENCONTRO DE HISTÓRIA DA
and complexity. […]”. In his projects, ARTE – IFCH / UNICAMP, 2008.
– MARIO CAEIRO 65
Do Monumento Público Tradicional
à Arte Pública Contemporânea
<<
sitos estético-conceptuais da arte pública, algumas das ideias principais para o futu-
propondo diversas perspetivas sobre o seu ro desta disciplina, ao destacar a vertente
papel na sociedade. Se por um lado este social e utilidade pública da arte, em opo-
debate se traduziu no desenvolvimento sição ao que na época consideravam ser a
teórico deste conceito, por outro, suscitou “mediocridade da arte oficial”. Neste con-
alguma confusão e ambiguidade no signifi- texto, foi possível conhecer uma das pri-
cado do termo. Hoje em dia coexistem cor- meiras definições de arte pública de que há
rentes de pensamento que defendem pro- memória, relatada enquanto obra “sublime
pósitos diferentes para a arte pública, uns e útil para a via pública”3, uma noção que
incidem mais na exploração das caracterís- dissipa logo à partida quaisquer dúvidas
ticas físico-percetivas do espaço orientado em relação ao compromisso social presen-
para a experiência do observador, outros te neste conceito.
pelo contrário defendem a sua função so-
cial e educativa, através do estímulo do tra- Cerca de meio século depois encontramos
balho com as comunidades. mais uma referência às denominadas Artes
Públicas pela mão de Gilbert Seldes, desta
Alguns autores consideram que toda a arte vez em alusão a três importantes meios de
é pública, na medida em que as obras per- comunicação de massas em forte expansão
tencentes às coleções dos museus se en- desde os anos 30: a televisão, a rádio e o
contram acessíveis ao grande público, por cinema. Segundo o escritor e crítico ame-
isso a expressão é entendida como pleo- ricano, as Artes Públicas – The Public Arts –
nasmo, visto que a própria noção de arte distinguem-se das outras artes pelo seu ca-
deixa implícita essa ideia. Outros tantos ar- rácter “popular” e “aceitação universal”, por
gumentos críticos questionaram a legitimi- abranger “(…) um vasto número de pessoas
dade da expressão arte pública que, hoje simultaneamente, e o seu efeito não se limi-
em dia, já conquistou a plena aceitação, tar àqueles que as presenciam diretamente”,
tendo afirmado a sua independência en- no sentido de que se converte numa “ma-
quanto disciplina de estudo. téria de preocupação pública”4. Reconhece-
mos, em grande parte, nestas palavras a na-
Embora o conceito de arte pública retrate tureza da arte pública entendida enquanto
uma mudança de paradigma que ocorreu disciplina artística; a par dos meios de infor-
na arte no decurso da segunda metade do mação de massas, também se encontra dis-
século XX, mais concretamente em meados ponível para uma audiência ampla e hetero-
da década de 60, na realidade este termo génea, não se esgotando apenas nos seus
remonta ao final do século XIX, como teste- espectadores diretos, mas, em certos casos,
munha o Primeiro Congresso Internacional “contagiando” toda a comunidade.
de Arte Pública realizado em Bruxelas em
Setembro de 1889 2. Neste encontro, onde Um dos aspetos que melhor caracteriza a
se reuniram diversas entidades governa- arte pública é precisamente o carácter uni-
mentais de vários países, já se perfilavam versal do seu envolvimento com o público,
<<
à construção do Monumento ao Prisioneiro Na verdade, o conceito de arte pública sur-
Político Desconhecido, promovido pelo Ins- ge inevitavelmente ligado à crise do mo-
titute for Contemporary Art em 1952. Este numento público tradicional, entendido no
concurso contou com mais de uma cente- seu sentido original como uma represen-
na de artistas de várias nacionalidades, en- tação comemorativa destinada a preservar
tre os quais se destacam grandes referên- um determinado acontecimento para a pos-
cias da escultura do século XX, como Naum teridade, como define Alois Riegl:
Gabo, Alexander Calder, Barbara Hepwor-
th, Reg Butler, Max Bill e o artista português “Por monumento, no sentido mais antigo e
Jorge Vieira. Para além de propor novas lin- primordial, se entende uma obra realizada
guagens e soluções formais, este concurso pela mão humana e criada com a finalidade
traduzia uma verdadeira oposição político- específica de manter a proeza ou destinos
-ideológica, ao estilo da “Guerra Fria” contra individuais (ou em conjunto destes) sempre
os países comunistas9. De facto, investiga- vivos e presentes na consciência das gera-
ções subsequentes revelaram que os Esta- ções vindouras. […]”12.
dos Unidos da América financiaram discre-
tamente o respetivo concurso com o intuito Neste sentido, é possível afirmar que os
de denunciar a falta de liberdade humana e monumentos públicos tradicionais estão
a trágica situação dos prisioneiros políticos impregnados de uma série de valores –
vítimas dos regimes não democráticos. morais, ideológicos, educativos, estéticos,
simbólicos – que a nossa memória coletiva
Apesar de o programa estético do concur- pretende preservar como um legado às ge-
so não apresentar restrições estilísticas, na rações futuras. Compreende-se assim que
verdade o júri, constituído por uma dezena esta memória seja um elemento fundamen-
de personalidades de prestígio no campo tal da identidade “individual ou coletiva” da
da história de arte, como Herbert Read e nossa sociedade, geradora de determina-
Giulio Carlo Argan, mostrou preferência por dos modelos sociais e, de certo modo, um
abordagens mais abstratas ao tema pro- poderoso “instrumento” de poder, como se
posto, coincidindo em certa medida com observou ao longo da história pelas ações
as diretivas de uma campanha política sim- ideológicas e propagandísticas dos regi-
bolicamente representada pelo recurso à mes totalitários13.
abstração10. Por ironia do destino, aquele
que certamente ficaria conhecido na histó- A maior parte dos valores personificados
ria da arte como um dos primeiros monu- nos monumentos escultóricos tradicionais
mentos modernos, da autoria do escultor foram rejeitados por diversos artistas no de-
inglês Reg Butler, não chegou a ser erguido curso do século XX, tanto em termos con-
no espaço público, permanecendo apenas ceptuais, com a falência dos antigos ideais
em pequena escala11. comemorativos, como em termos estéticos,
ao reivindicar um novo ideário formal em
sintonia com as pesquisas plásticas da mo-
<<
gioso, militar, civil – adquirisse um sentido ele também é entendido como coprodu-
ascensional. O pedestal comporta assim tor da obra, no sentido de que é convoca-
o culto do profundo respeito, da home- do para participar na realização da mesma,
nagem solene, da veneração pública e da através do seu próprio “ato de perceção”
intangibilidade terrestre. Como refere An- ou expressão individual. Por conseguinte,
drew Causey, “[…] o pedestal foi o sinal do a obra não apresenta uma estrutura defi-
privilégio escultórico, o primeiro sinal da nida e acabada, como é comum encontrar
sua diferença em relação às outras coisas nas formas clássicas, mas abre-se a um vas-
[…]”18; mas também nas palavras de Albert to “campo de possibilidades” de interpreta-
Elsen, foi responsável por conferir à escul- ção remetendo para o próprio espectador a
tura um “aspeto raro e precioso”, assumin- sua realização final21.
do, em certa medida, uma postura “não de-
mocrática ou autoritária”19. A nova relação artística construída com o
espectador tornou-se rapidamente na for-
Se é verdade que a independência da es- ça motriz da arte pública, no sentido de
cultura face ao seu suporte representa uma que os artistas começaram a dirigir as suas
importante conquista da escultura moder- intervenções para a exploração das poten-
na, suscitando novas possibilidades plásti- cialidades físico-percetivas da obra, trans-
cas derivadas da crescente autonomia do formando o espectador no seu principal
objeto artístico, não é menos verdade a protagonista. Em consequência disto, mui-
importante transformação que operou no tas obras se definiram em função do movi-
campo da arte pública, conferindo à peça mento, da descoberta e da interação dire-
uma maior liberdade de ação e proximida- ta com o observador, construindo parte do
de com o público. seu significado a partir desse diálogo parti-
cular entre o sujeito e a obra.
Outro aspeto fundamental para caracterizar
este conceito, surge no seguimento desta Jaume Plensa vai ao encontro desta nova
conquista formal, consiste na proximidade consciência do lugar do espectador com a
entre a arte e o público, em consequência obra The Crown Fountain, inaugurada em Ju-
de um novo posicionamento da obra de lho de 2004 no Millenium Park, em Chicago,
arte perante o espectador, uma vez que nos EUA. Duas torres em tijolo de vidro com
deixa de ser entendida enquanto discur- 15 metros de altura, dispõem-se frontalmen-
so “unilateral” para passar a ser “entendida te sobre uma ampla praça em granito, fun-
como uma forma de diálogo entre o artista cionando como telas onde são projetados
e o público”20. Ao promover esta nova for- diversos rostos de cidadãos anónimos, es-
ma de diálogo, cuja inspiração nos reporta colhidos entre diversas organizações sociais
aos movimentos artísticos dos anos 60 e 70, e étnicas daquela cidade. Em determinado
o espectador abandona a sua posição me- momento específico, os lábios dos rostos
ramente contemplativa para desempenhar contraem-se e simulam o jorrar da água pro-
um papel participativo na obra. Por vezes, duzindo um efeito similar às fontes tradicio-
interação recíproca entre a obra e o espec- ções criadas entre a escultura e o seu contex-
tador, de uma forma original e sem prece- to […]”.interdependência da obra e do local,
dentes na história. os trabalhos site-specific dirigem-se critica-
mente ao conteúdo e contexto do seu lugar.
Para que a relação descrita possa ocorrer As propostas site-specific permitem obser-
na sua máxima eficácia, os artistas tiveram var, simultaneamente, as novas relações cria-
que se adaptar a esta nova realidade, alte- das entre a escultura e o seu contexto […]”25.
rando os seus procedimentos na conceção
da obra pública, rompendo, antes de mais, Deste modo a obra torna-se interdependen-
com o “paradigma modernista”22 responsá- te do local para onde se destina, redesenha
vel pela preservação da autonomia da obra e organiza o espaço em seu redor, criando
perante o seu meio envolvente. um novo campo de significados que alte-
ra a perceção do espaço urbano. Para Lucy
Com o advento do minimalismo, durante o Lippard, a arte site-specific deverá “(…) ter
final da década de 60, assistimos à rutura uma ligação orgânica com o seu lugar (…)” e
dos conceitos tradicionais de escultura: a re- ser encarada como um objeto que faz parte
dução formal em contraponto à representa- do quotidiano do espectador26.
ção, a rejeição do processo de modelação
dos materiais, a oposição ao uso do pedestal Esta ligação próxima entre a obra, o espa-
como elemento de suporte da obra, a con- ço e o próprio espectador representa na
quista do espaço em redor da escultura e o realidade um dos principais fundamentos
reposicionamento do lugar do espectador23. do conceito de arte pública, cuja estrutu-
ra se define por este novo conjunto de re-
Outro aspeto importante que define a arte lações intrínsecas entre a obra de arte e o
pública, é a noção de site-specific que de- espaço urbano.
signa as obras concebidas para um lugar
específico tendo como base as qualidades Enquanto no passado o monumento públi-
físicas desse espaço, através de um profun- co nos ofereceu uma estética formal bem
<<
definida, a partir de cânones académicos cados que lhe foram atribuídos ao longo
que privilegiavam, em grande parte dos da história, este conceito designa todo o
casos, a representação mimética da rea- conjunto de intervenções artísticas, da es-
lidade, utilizando para esse efeito deter- cultura à instalação, do graffiti à performan-
minadas tipologias artísticas, a arte públi- ce (entre outras formas de expressão), rea-
ca contemporânea, pelo contrário, não só lizadas no espaço público (ou relacionadas
introduziu profundas alterações formais, com o mesmo), cuja conceção rejeita a for-
como procurou alargar o seu universo de ma e a função comemorativa tradicional,
referências. Tornou-se, assim, cada vez procurando estabelecer uma relação es-
mais multidisciplinar, assimilando os pro- pecífica com o meio ambiente e o público.
cessos de trabalho e as linguagens de dis- Por outras palavras, este conceito marca o
ciplinas, como a arquitetura, o design de fim da era do monumento público tradicio-
equipamento, a publicidade, a sociologia, nal e abre caminho a uma nova conceção
entre outras. estética, onde a participação e a perceção
sensorial do espectador é cada vez mais
O coletivo composto por artistas, desig- solicitada como parte integrante da obra.
ners e arquitetos designado por Atelier Em relação ao espaço envolvente, outro-
Van Lieshout27 será provavelmente um dos ra entendido como mero cenário, ganha
exemplos mais interessantes desta prática protagonismo, não só enquanto material
multidisciplinar, ao reunir no mesmo proje- plástico mas como elemento gerador da
to uma diversidade de meios provenientes própria forma artística. É, por isso, conside-
de várias disciplinas que vieram problema- rado um elemento fundamental para a ex-
tizar uma série de questões entre a arte e periência fruitiva do observador.
as ciências sociais. É o caso das unidades
móveis auto-suficientes criadas para alber- No domínio temático observa-se o aban-
gar um grupo de cidadãos, este work in dono dos temas clássicos de âmbito na-
progress propõe uma sociedade alterna- cional-historicista, por uma incursão por
tiva à existente, com regras mais flexíveis poéticas pessoais e assuntos do quotidia-
e uma filosofia de vida mais participativa, no, abrangendo, em determinados casos,
aberta à criatividade e à responsabilida- questões sociais (new genre public art).
de individual. Neste sentido, para o Atelier Acresce ainda referir, o modo como ultra-
Van Lieshout não existem limites entre as passou as fronteiras tradicionais entre as
disciplinas, e muito menos “(…) fronteiras disciplinas, apropriando-se da linguagem
entre a arte (pública) e a vida”28. formal e dos elementos operativos de dis-
ciplinas tão díspares entre si, como a arqui-
Chegados praticamente ao termo das nos- tetura, o design ou a sociologia.
sas reflexões, cabe agora resumir as nossas
premissas que definem a arte pública: não Para concluir, a arte pública contemporâ-
obstante as interrogações em redor do ter- nea acompanhou as mudanças profundas
mo “arte pública” e dos diferentes signifi- que ocorreram na relação entre a arte e a
History of Art).
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MATZNER, Florian, ed. Lit. – Public SELDES, Gilbert – The public arts. (Colecção Ideias Feitas). p. 32.
art: a reader.2.ª ed. Rev. Munich: New York: Simon and Schuster, 7
Esta mudança de paradigma
Hatje Cantz Publishers, 2004. 1956. já tinha sido, de certa forma,
LIPPARD, Lucy R. – The lure of esboçada por Auguste Rodin.
the local: senses of place in a — Notas 8
RAVEN, Arlene ed. – Art in public
multicentered society. New York: interest. New York: Da Capo Press,
New Press, cop. 197. 1
Uma das polémicas mais 1993. p. 1. “public art isn’t a hero
MADERUELO, Javier – La pérdida discutidas no contexto on a horse anymore”.
del pedestal. Madrid: Círculo de internacional foi a obra Tilted Arc 9
MICHALSKI, Sergiusz – Public
Belas Artes 1994. de Richard Serra, instalada na monuments: art in political
MATZNER, Florian, ed. Lit. – Public Federal Plaza em Nova Iorque, bondage 1870-1997. London:
art: a reader.2.ª ed. Rev. Munich: em 1981, e demolida oito anos Reaktion Books, 1998. (Essays in
Hatje Cantz Publishers, 2004. depois pela entidade que a Art and Culture). p. 156.
MICHALSKI, Sergiusz – Public encomendou. Também em 10
IDEM, Ibidem., p. 157.
monuments: art in political Portugal, e mais concretamente 11
O escultor inglês Reg Butler
bondage 1870-1997. London: na cidade de Lisboa surgiram obteve o primeiro prémio neste
Reaktion Books, 1998. (Essays in obras controversas, como por concurso, com uma proposta
Art and Culture). exemplo a Homenagem ao 25 de semi-abstracta constituída por
O’DOHERTY, Brian – Inside the Abril, da autoria de João Cutileiro, uma estrutura metálica evocativa
white cube: the ideology of gallery instalado em 1989 no alto do de uma torre de vigia e três
space. Expanded Edition: Berkeley Parque Eduardo VII. figuras humanas. Cumpre dizer
[etc.]: University of California 2
ABREU, José Guilherme Ribeiro que a obra de Jorge Vieira acabou
Press, 1999. Pinto de – Escultura pública e por ser concretizada em Beja
RAVEN, Arlene ed. – Art in public monumentalidade em Portugal quase quarenta anos depois do
interest. New York: Da Capo Press, (1948-1988). Lisboa: Faculdade concurso.
1993. de Ciências e Humanas da 12
RIEGL, Alois – El culto moderno
REYERO, Carlos – La escultura Universidade Nova de Lisboa, a los monumentos: caracteres y
commemorativa en España: la 2006. Tese de doutoramento. p. 2. origen. Madrid: Visor, 1987. (La
edad de oro dele monumento 3
IDEM, Ibidem., p. 3. Balsa de la Medusa; 7) p. 23.
público, 1820-1914. Madrid: 4
SELDES, Gilbert – The public arts. 13
GOFF, Jacques Le – Memória. In
Ediciones Cátedra, cop. 1999. New York: Simon and Schuster, ROMANO, Ruggiero. Enciclopédia
(Cuadernos Arte Cátedra). 1956. p. 298 e 301. Einaudi. [S.l.]: Imprensa Nacional
ROBINETTE, Margaret A. – 5
O’DOHERTY, Brian – Inside the – Casa da Moeda, 1984. Vol. I, p.
Outdoor sculpture: object and white cube: the ideology of gallery 46-47.
environment. New York: Whitney space. Expanded Edition: Berkeley 14
REYERO, Carlos – La escultura
Library of Design, 1976. [etc.]: University of California commemorativa en España: la
ROUGE, Isabelle de Maison – Press, 1999. p. 14. edad de oro dele monumento
<<
O Vandalismo da Arte Pública
– VICTOR CORREIA 77
dade alheia e de bens materiais com va-
lor patrimonial e cultural, nomeadamente
as obras de arte. O termo vandalismo sur-
giu no século XVIII, em França, e foi criado
pelo abade Henri Grégoire, bispo de Blois,
como crítica em relação à atitude destrutiva
duma parte da armada republicana de en-
tão, que destruía o património artístico do
Antigo Regime.
A Pequena Sereia, escultura de Edward Eriksen,
Copenhaga, Dinamarca
Historicamente, houve e tem havido situa-
Foto : AP/BJARNE LUETHCKE
http://www.telegraph.co.uk/culture/art/art-features/9593748/When-art- ções de vandalismo resultantes de grandes
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
gets-vandalised.html
convulsões religiosas, como por exemplo o
ataque dos cristãos em relação aos símbo-
los pagãos, ou a Reforma protestante, em
relação ao catolicismo, assim como a guerra
das imagens, que dividiu em grupos a igreja
cristã de Bizâncio. Politicamente, temos por
exemplo as destruições de obras de arte, na
sequência da Revolução Francesa, ou mais
recentemente a destruição de esculturas er-
guidas em praças, representando Marx, En-
gels, Lenine, e Estaline, na Europa de Leste,
na sequência da queda do muro de Berlim.
<<
calismo, ou extremismo, e atualmente é uma Nuns casos acrescenta-se algo às obras de
termo que se alargou às diferentes línguas, arte, noutros casos retira-se, e noutros ca-
e é geralmente aplicado como sinónimo de sos anula-se a obra, pura e simplesmente.
destruição, saque, violência, devastação, de- O acrescentamento pode ser considerado
predação, em relação a diferentes tipos de uma contribuição necessária, pelo atacan-
objetos, como bancos e canteiros de jardim, te, ou como uma recusa do que está con-
árvores, candeeiros de iluminação pública, templando, e a necessidade de tapá-lo ou
viaturas, monumentos, paredes, vidraças, dissimula-lo com novos significados. Os
tudo o que esteja no espaço público, sendo cortes e riscos apresentam uma intenção
a arte pública um dos principais alvos. de mutilação ou aniquilação, assim como
a substração de material, que personificam
Há que distinguir entre vandalismo públi- claramente o carater agressivo e o desejo
co e vandalismo anónimo. Dentro do van- de transgredir, pura e simplesmente, reve-
dalismo público, temos o institucional (por lando uma intenção destrutiva premedita-
exemplo a destruição de estátuas mandada da, de apropriação, contacto físico, e por
fazer por um novo Governo ou regime po- vezes de furto. Não se deve portanto con-
lítico), e a destruição pelas multidões (por fundir o vandalismo com a destruição aci-
exemplo a destruição de uma estátua, no dental (por exemplo a danificação de uma
âmbito de um motim, ou de uma manifes- escultura ao ser transportada de um local
tação de rua). Dentro do vandalismo anóni- para outro), nem com a sua deterioração
mo temos a destruição feita por um deter- pelo clima, nem com o iconoclasmo (que
minado grupo, sem que ninguém tivesse tem a ver com a destruição de imagens re-
presenciado o facto, como por exemplo um ligiosas).
grupo terrorista organizado, que geralmen-
te costuma reivindicar o atentado, depois A arte pública tem sido um dos alvos prin-
deste ter sido cometido, ou o vandalismo cipais do vandalismo, pois é muitas vezes
feito por um ou mais indivíduos, que agiram alvo de contestação, dado encontrar-se no
em nome próprio. espaço público. Embora nem toda a con-
testação da arte pública leve ao vandalis-
O vandalismo, enquanto ato, consiste em mo, os atos de vandalismo têm subjacen-
destruir, degradar, deteriorar, volunta- te uma contestação, explícita ou implícita.
riamente o bem de outrem, seja um bem A primeira grande contestação, explícita,
público, ou um bem privado, como por em relação a uma obra de arte colocada
exemplo um determinado edifício, e que no espaço público, uma das contestações
é geralmente aplicado sobretudo em rela- que suscitou maior polémica, sucedeu com
ção a monumentos e a obras de arte. Em a estátua a Balzac, esculpida por Rodin, co-
termos práticos consiste em pintar, riscar, locada em Paris, na segunda metade do
cortar, partir, pôr ácido, incendiar, bombar- século XIX, estátua essa muito contestada,
dear, atirar objetos, roubar partes da obra devido à sua linguagem artística inovado-
de arte, ou a obra de arte na sua totalidade. ra, e à ausência de pedestal, e que foi por-
– VICTOR CORREIA 79
tanto mudada várias vezes de local. A sua ção por parte da opinião pública, devido ao
mudança deveu-se a razões de segurança seu conteúdo artístico, suscetível de diver-
e proteção, mas por outro lado a sua des- sas interpretações, como por exemplo a sua
localização é também uma quase vandali- forma, por muitos considerada fálica, e vis-
zação, pois a obra de arte foi concebida e to como pouco adequado para um monu-
realizada para um local específico. mento. Uns defendiam que a Revolução do
25 de Abril merecia uma monumento mais
No século XX um dos exemplos mais co- grandioso, outros defendiam que uma cida-
nhecidos foi o da escultura Tilted Arc, de Ri- de como Lisboa merecia um monumento
chard Serra, que foi retirada pelas autorida- melhor, outros defendiam era a própria arte
des municipais, da Federal Plaza, em Nova que estava em causa, que merecia ser mais
Iorque, em 1989, depois de pública contro- dignificada, e outros contestavam que o 25
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
lismo, embora a destruição, do ponto de vis- contestação e por vezes o vandalismo, pois
ta físico, possa ser menor do que a exercida se estivesse colocada num espaço interior
sobre uma casa de habitação, por exemplo, já não provocaria tanta polémica, por um
está ideia de uma profanação, de uma des- lado porque não seria tão vista, e por ou-
truição que atinge os símbolos de uma cul- tro lado porque, mesmo muito vista, estaria
tura e de um povo. protegida, ou pelo menos mais protegida.
– VICTOR CORREIA 81
pública como arte, vendo apenas como arte
a que se encontra em museus ou galerias,
igrejas ou palácios, necessitando portanto
de um contexto de localização específica
para o seu reconhecimento enquanto arte.
Associado ao facto do espectador da arte
pública ser um espectador involuntário está
a posição social e económica do homem
comum, a sua formação e a sua educação.
O espaço público é um espaço frequenta-
do por todos, mas ao contrário das galerias,
dos salões de arte, e dos museus, é maio-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
plo a Revolução do 25 de Abril de 1974, jo de chamar a atenção, conseguindo isso
em Portugal, que alguns com posições po- através do peso mediático que a ação po-
líticas opostas contestam, vandalizando os derá ter, como sucedeu por exemplo na
monumentos erigidos a esse acontecimen- antiga Grécia, com Eróstrato, que destruiu
to político. Noutros casos ainda, dentro dos o templo de Diana, em Éfeso, porque pre-
motivos políticos, temos por exemplo a es- tendia, através desse feito, ficar famoso. Há
cultura de homenagem a um ex líder do também que referir a personalidade proble-
Partido Social Democrata (PSD), Francisco mática de quem comete esses atos de van-
de Sá Carneiro, erguida em Lisboa, e que dalismo, pois em alguns casos são pessoas
foi vandalizada. com problemas psicológicos, como sucede
por exemplo com os incendiários, que des-
Existem também motivos religiosos para troem o património natural. Por vezes é uma
a vandalização da arte pública (por exem- raiva originada por frustrações, que faz das
plo uma escultura que simboliza uma cren- obras de arte o principal alvo, canalizando-
ça, uma fé, que não é respeitada); motivos -se através da destruição dos símbolos cul-
de carácter cultural (por exemplo uma es- turais e sociais os recalcamentos dos au-
tátua a determinado escritor que defendia tores desses atos de vandalismo, como se
determinadas ideias com as quais não se essa mesma destruição fosse uma espécie
concorda); motivos de carácter económi- de triunfo do indivíduo, que transporta para
co (os gastos elevados de dinheiro público essas obras de arte a sua revolta contra a so-
com essas obras de arte, em detrimento de ciedade, e que através da arte pública fica
outras necessidades consideradas mais im- mais visível. Essa atitude aparece principal-
portantes); motivos de carácter nacionalis- mente em relação ao património, e à arte
ta (as populações oporem-se à participação pública em particular, cuja destruição apa-
de artistas estrangeiros); motivos de carác- rece como uma espécie de acontecimento,
ter moral (por exemplo uma estátua com um para que todos possam ver, devido ao facto
corpo humano nú); motivos ligados à agres- dessas obras de arte se encontrarem no es-
sividade do ser humano, e o gosto gratuito paço público. Há ainda a referir o clima de
de fazer mal pura e simplesmente, destruin- tensão política e social em que se vive por
do essas esculturas, ou motivados por uma vezes em alguns países, o ambiente gerado
pura brincadeira, como por exemplo furtar por contestações e manifestações políticas
uma parte de uma escultura, deixando-a in- contra o Governo, a sociedade contestatá-
completa, para provocar o humor por parte ria e violenta do mundo de hoje, ou o am-
do público, mas também uma certa revol- biente de terrorismo que por vezes se vive
ta, como sucedeu recentemente com o fur- em alguns países, em que se vandaliza tudo
to da estátua do rei Dom Afonso Henriques, o que está no espaço público, sendo que
em Guimarães. as manifestações políticas de rua provocam
mais facilmente esse vandalismo. Há tam-
Há alguns ataques que não são anónimos, bém a referir, por vezes, a revolta de adep-
mas que têm a ver também com um dese- tos de determinado clube de futebol, por
– VICTOR CORREIA 83
terem perdido um jogo ou um campeona- Por outro lado, o encargo com obras de
to, e que vêm para a rua e destroem tudo o arte pública encontra-se por vezes tão bu-
que encontram : viaturas, vidrões, árvores, rocratizado ou tão viciado pelo clientelismo
bancos de jardim, sinais de trânsito, assim político, que os critérios para a seleção de
como a arte pública, que é um dos alvos artistas, os procedimentos de adjudicação
mais cobiçáveis, e também o mais lamentá- da obra, o seguimento de projetos ou o
vel, por se tratar de obras de arte. controle da execução, conduzem a uma infi-
nidade de procedimentos aleatórios ou de
Todavia, fora das convulsões sociopolíticas, irregularidades, que levam a que as obras
ou desportivas, os principais motivos, no de arte executadas sejam de qualidade ar-
que diz respeito à arte pública, são os de tística duvidosa, e que provoquem a dece-
carácter estético, e que por vezes têm a ver ção por parte do público. Além disso, tam-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
com a própria obra de arte, o que aliás su- bém sucede o facto da pobreza artística
cede por vezes também a propósito do de- ou da insignificância de muitas das obras
sign urbano em geral, que não se integra de arte se dever à pobreza física ou social
no pano de fundo permanente da cidade e e à insignificância ou pouca visibilidade de
se restringe à sua funcionalidade. Por vezes determinados espaços públicos, que faz
pode não existir com o design urbano deco- com que se invista pouco neles. O espaço
ração, no sentido comum do termo, isto é, público é distante, não está no centro, da ci-
enquanto ornamentação ou embelezamen- dade, por isso fazem-se para ele obras de
to, mas deveria certamente enquadrar-se de arte pobres, o que leva por vezes a contes-
modo a não chocar com o espaço urbano tá-las e a destruí-las.
envolvente, pressupondo a noção clássica
de decoração, que radica antes de mais na Todavia, dentro dos motivos estéticos, o
ideia de conveniência do elemento decora- principal motivo para a contestação e a van-
tivo ao lugar que o acolhe (decorum, de de- dalização provém dos diferentes gostos do
cet, isto é, convém), o que nem sempre su- público, e da frustração provocada pela in-
cede. No caso das esculturas, há casos em capacidade de compreender a arte. Um dos
que algumas delas são desprovidas de es- primeiros e mais significativos exemplos,
cala integrativa, do ponto de vista da sua in- em Portugal, foi o da escultura do rei Dom
serção, de formalização conveniente ou de Sebastião, de autoria do escultor João Cuti-
presença física adequada, e algumas obras leiro, erguida em pleno espaço público, em
ficam colocadas em lugares inadequados Lagos, em 1973, que não tem o ar heroico
ou que têm que competir em presença físi- de outras esculturas representando monar-
ca com uma enorme quantidade de objetos cas, e cujo rosto é o de um jovem demasia-
urbanos, o que faz com que esculturas bem do jovem, que alguns consideram com “cara
executadas, e com valor estético, resultem de menino”, e que suscitou contestação. Por
inoportunas ou inapropriadas para o local, e vezes, trata-se de uma reação a algo que su-
portanto contestadas e vandalizadas. postamente pode suscitar constrangimen-
to nos gostos estéticos do senso comum,
<<
como é o caso de determinadas esculturas nir, evitar, fazer cessar e reprimir os atos de
abstratas, cuja mensagem por vezes subver- destruição intencional do património cul-
siva produz intranquilidade no público, que tural, onde quer que este património se si-
não compreende o seu significado. Isso su- tue”, incluindo portanto o da arte pública.
cede também porque o homem comum en- Essas medidas podem ser provenientes do
contra-se geralmente preso à tradição, que Estado, das autarquias, da própria socieda-
associa a arte ao culto da beleza, e espera de civil organizada (por exemplo, associa-
isso da arte, o que nem sempre sucede na ções de defesa do património), ou do cida-
arte contemporânea, pois se desde os gre- dão anónimo.
gos que se relaciona arte e beleza e se utili-
za o critério de beleza para avaliar uma obra No entanto, não é fácil apresentar medidas
de arte, essa relação é posta em causa por e soluções, para fazer face ao vandalismo
algumas correntes estéticas contemporâ- da arte pública, pois cada caso é um caso.
neas, cujos princípios estão presentes em Têm sido tomadas diversas medidas, algu-
muitas das obras de arte colocadas no es- mas com alguma eficácia, outras meramen-
paço público. te remediativas, e portanto não isentas de
polémica. Por exemplo, no caso de uma
Enquanto na arte pública tradicional os ci- escultura vandalizada, andar-se frequen-
dadãos viam os seus gostos reconhecidos, temente a restaurar uma escultura, devi-
e chegavam a organizar-se subscrições po- do ao seu vandalismo, pode não ser a me-
pulares para se erigir monumentos, e a arte lhor solução, por isso a Câmara Municipal
pública tradicional desempenhava portan- de Lisboa resolveu retirar para o Museu da
to uma função mais gregária, congregando Cidade a escultura Verdade, de autoria do
e agregando a população, na arte pública escultor Teixeira Lopes, que se encontrava
contemporânea, como na arte contempo- na rua do Alecrim, em Lisboa, escultura essa
rânea em geral, habitualmente devido à lin- cujo conteúdo consiste em Eça de Queiroz
guagem artística empregue, existe um di- com uma mulher nua nos braços (simboli-
vórcio entre o grande público e o artista, zando o realismo literário), e que era várias
que fala uma linguagem menos compreen- vezes alvo de vandalismo: riscos, pinturas,
sível pelas populações, o que conduz à si- dedos partidos, etc. A Câmara Municipal
tuação contraditória da arte, apesar de ser substitui essa escultura por uma réplica, em
pública, ou de se pretender pública, não bronze. Alguns cidadãos insurgiram-se con-
ser vista como tendo essa função. tra esse facto, preferindo outras medidas,
como por exemplo a construção de um pe-
Medidas e eventuais soluções destal para essa escultura (pois encontrava-
A Declaração da UNESCO sobre a destrui- -se em contacto com o chão, de fácil acesso
ção do património cultural, de 17 de Ou- por qualquer pessoa). A argumentação em
tubro de 2003, afirma no seu parágrafo III, torno dessa medida consiste essencialmen-
na alínea 1, que “Os Estados devem tomar te em que não nos devemos deixar intimi-
todas as medidas apropriadas para preve- dar, mas sim insistir na permanência das
– VICTOR CORREIA 85
esculturas, pois em alguns casos têm sido
pura e simplesmente retiradas, sem serem
sequer substituídas por qualquer réplica.
tuskegee airmen-vandalized-20140720-story.html
Nobre, no Penedo da Saudade, em Coim-
bra. Mas isto são medidas não preventivas,
mas de solução face ao já sucedido. Ora,
há algumas medidas que poderão even-
tualmente ser tomadas, de modo a preve-
nir o vandalismo da arte pública, como por
exemplo a vedação de uma determinada
escultura através de um gradeamento, ou
por exemplo em determinadas esculturas
importantes, colocar mesmo câmaras de
vigilância em edifícios que estão em frente.
<<
derão também desempenhar um papel de praça, que obrigava as pessoas a contorná-
facilitadores da informação, apresentando -la (apesar da intenção do escultor ter sido
os resultados do trabalho. Poderão organi- essa, de modo a repensar a vivência quoti-
zar-se encontros, fóruns de discussão, para diana do espaço).
análise da situação, e o público intervir não
propriamente na criatividade e no estilo do O caso das pinturas murais e da sua varian-
artista, mas sobre a pertinência das obras, te, os graffiti, é um outro exemplo particu-
defendendo-se eventualmente determina- larmente importante. De modo a que as
dos aspetos e criticando-se outros, desen- pessoas as não destruam por terem sido
volvendo-se tanto quanto possível uma arte feitas em propriedade particular sem auto-
pública aprendida, assumida e apropriada rização do proprietário, deve proporcionar-
pelos cidadãos. -se a oportunidade aos autores dos graffi-
ti de intervirem, de se expressarem através
É importante que o público esteja também dessa forma de arte, de modo criterioso e
envolvido na iniciativa de erigir determina- regulamentado. Essas pinturas devem tam-
das obras de arte pública, e por outro lado bém ser protegidas, e por isso devem po-
contribua para o seu financiamento, fazen- der ser feitas em locais próprios, como por
do sentir mais suas essas obras de arte. De exemplo em muros de jardins públicos, em
forma a evitar-se a oposição e a destruição viadutos, em pontes, em paredes de edifí-
por parte do público, deve procurar-se a im- cios camarários, em grandes placards co-
plantação de obras que tenham significado locados no espaço público, etc. Poderão
para a comunidade, que tenham a ver com também promover-se concursos para a
os valores locais, e que reforcem ou promo- realização de graffiti, de modo a aumentar
vam a identidade do lugar. Devem erigir-se a qualidade da oferta, sendo selecionadas
essas obras em locais onde não anulem o determinadas obras, que embelezarão o
simbolismo dos mesmos, não interfiram espaço urbano, e darão uma melhor ima-
com as atividades aí desempenhadas, e não gem à cidade, e facilitarão uma maior ade-
tapem os campos visuais ou pontos de refe- são do público a essa forma de arte.
rência importantes desses lugares.
Quando se trata de erigir uma determina-
É importante que o público sinta que o pro- da obra de arte pública, como por exemplo
jeto não foi imposto sem consideração das uma escultura, ou um monumento, pode-
suas necessidades, ou dos seus interesses. rão também eventualmente serem orga-
Há que ter a preocupação de evitar que a nizados encontros, debates, fóruns de dis-
obra de arte implique uma mudança de cussão, auditorias, e os inquéritos poderão
usos e vivências do quotidiano, que afetará ser também uma outra forma de fazer ouvir
negativamente a comunidade local e mes- a voz dos cidadãos, a cargo de comissões
mo outros transeuntes, como sucedeu com consultivas, que poderão incluir por exem-
a escultura do Tilted Arc, em Nova Iorque, plo o representante da entidade contra-
escultura colocada de um lado ao outro da tante, o autor do projeto geral, um repre-
– VICTOR CORREIA 87
sentante da comissão de moradores, um mas certamente que numa sociedade domi-
representante da autarquia, e peritos de nada pela iliteracia e onde a arte desempe-
urbanismo, de modo a evitar-se o cliente- nhe um papel pouco importante na educa-
lismo, o economicismo, a fraude, os jogos ção do ser humano, a implantação de obras
de interesse por parte da especulação imo- de arte no espaço público, principalmente a
biliária, e a fraca qualidade dos projetos ur- contemporânea, tenderá a suscitar uma rea-
banos e das obras de arte. ção de estranheza ainda maior, pois os ci-
dadãos tenderão a considerar inútil, imper-
Em termos concretos estas comissões re- tinente e supérflua a sua implantação, pelo
presentativas poderão por exemplo apre- que o ideal será, tanto quanto possível, essa
ciar a seleção de artistas, à luz do mérito educação e formação dos cidadãos, que
artístico e da equidade de oportunidades embora não anule as reações populares de
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
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– VICTOR CORREIA 89
Escultura Pública Portuguesa em 1940,
Fora da Exposição de Belém
por Joaquim Saial
Mestre em História da Arte pela UNL; Diploma de Estudos Superiores da Univ.
de Salamanca; Investiga arte pública portuguesa e a história e arte de Vila
Viçosa e Cabo Verde; ex-docente do INP e UCL; publicou vários livros e artigos.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
apoteose da consciência nacional.1” Tudo Estatuária equestre
nascera a partir de portaria oficial de 1938 Uma das primeiras notícias do ano de 1940
em que Salazar gizava o plano das come- sobre estatuária pública alude ao monu-
morações. A partir daí, entrou em cena o mento equestre a Mouzinho de Albuquer-
camartelo para demolir edifícios existentes que para Lourenço Marques5, cuja estátua
na zona destinada ao palco comemorati- estava a ser ultimada no Porto, peça de seis
vo de Belém, seguindo-se com o apoio de metros de altura e 10 toneladas de peso,
vasto estaleiro a construção dos pavilhões sugerindo-se que logo que pronto fosse
efémeros e outros espaços necessários ao exposto em Lisboa6. A feitura do memorial
acontecimento, ao mesmo tempo que por ao vencedor do insurrecto Gungunhana
todo o país se sucediam obras de restauro em Chaimite coube após concurso à du-
em edifícios e monumentos nacionais (mui- pla constituída pelo arq. António do Couto
tas vezes polémicas), se edificavam padrões e esc. Simões de Almeida7 que realizaram
comemorativos do evento e se enchiam pá- obra de escasso rasgo, hirta e fria, pouco
ginas e páginas de jornais e revistas com li- consistente com a memória heróica e ro-
teratura alusiva. mântica do homenageado. Na base, para
além de dois baixos-relevos em bronze alu-
Deste sucesso que mobilizou Portugal, fica- sivos a episódios das campanhas bélicas de
ram para a arte pública o Padrão dos Des- Mouzinho, a figura feminina de “Moçam-
cobrimentos2 do arq. Cottinelli Telmo e do bique” acariciava a cabeça de um peque-
esc. Leopoldo de Almeida, quatro cavalos no nativo, ilustrando a protecção da coló-
em fontes da Praça do Império, de António nia aos seus filhos, em simbólica própria da
Duarte, algumas peças junto ao Museu de época…8 Mas outras três estátuas equestres
Arte Popular, de Adelina Oliveira, e pouco faziam carreira neste ano9. A de uma, ain-
mais. A muito germânica estátua da Sobera- da em gesso mas colocada no local onde
nia, de Leopoldo de Almeida, e estátuas de se pretendia erguer a definitiva, foi anulada
D. Afonso Henriques adossadas ao gigan- pelo ciclone de 15 de Fevereiro 1941 que
tesco Portal da Fundação foram destruídas a destruiu10. Tratava-se do monumento ao
com o encerramento do certame3. Porém, marechal Gomes da Costa, delineado pelo
não é dele que queremos tratar. Que arte arq. (também esc.) Alberto Ponce de Cas-
pública nesse ano se lavrou, qual vinha de tro e executado pelo esc. Armando Cor-
trás ou nele teve desenvolvimentos, o que reia, complicada máquina em que cavaleiro
se fez por todo o país e Ultramar neste âm- e cavalo (do qual só se vislumbrava a parte
bito, enquanto Lisboa se embevecia com a fronteira) saíam de bloco vertical decorado
exposição e a quase totalidade dos escul- com escudo(s?), ladeados por figuras que
tores em exercício4 estava arregimentada os ajudavam a progredir. Melhor sorte teve
para o esforço construtivo, é o que tentare- a do antigo governador de Macau coman-
mos descobrir com o presente texto. dante Ferreira do Amaral, do esc. Maximia-
no Alves e do arq. Carlos Rebelo de Andra-
de, inaugurada em 24 de Junho. As alusões
– JOAQUIM SAIAL 91
ao fim trágico do retratado, barbaramente
morto por chineses revoltosos, são óbvias
na movimentação do conjunto, cavalo
de patas dianteiras alçadas e cavaleiro
defendendo-se dos seus assassinos apenas
com um bastão, esquema nunca antes uti-
lizado nas poucas estátuas desta tipologia
erigidas em Portugal11. A do Rei D. João IV,
para Vila Viçosa, configurou-se como a este-
ticamente mais erudita. Realizada pelo esc.
Francisco Franco e com pedestal do arq.
Pardal Monteiro, teve longa e empenhada
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
ria-prima e notável pela qualidade plástica
da “Pátria” que, avantajando-se impante,
ampara dois soldados, um deles moribun-
do14; e o de Oeiras, do arq. Veloso Reis Ca-
melo e esc. Álvaro de Brée, baixo-relevo os-
tensivamente castrense, com seu soldado
brandindo espingarda armada de baione-
ta, enquadrado pela moldura do suporte
arquitectónico15. De guerra também era o
arrastado monumento à Peninsular, do Por-
to, lançado em 1909 mas só inaugurado em
1951, depois de inúmera peripécias e com
os autores (arq. Marques da Silva e esc. Al-
ves de Sousa) já falecidos16 – ao contrário do
de Lisboa, inaugurado em 1933. Para Faro,
um outro monumento de memória guerrei-
ra era anunciado, comemorando a conquis-
ta definitiva do Algarve por D. Afonso III, pa- Ruy Gameiro a trabalhar no
monumento aos mortos da Grande
drão do arq. Rafael Lopes17, em iniciativa de
Guerra, Abrantes
Júlio Dantas, algarvio e presidente da Co-
missão Executiva das Comemorações Cen-
tenárias… e em Arcos de Valdevez surgia a
6 de Junho de 40 outro, muito simples, co-
memorativo do recontro local vencido pe-
las armas de D. Afonso Henriques, com le-
genda alusiva da homenagem feita pelos
“portugueses de 1940”18. Dias depois, a 13,
o ministro da Agricultura inaugurava outro
padrão cilíndrico, este alusivo à batalha de
Ourique19. Pelo Ultramar, alguns semelhan-
tes, também, referentes a outros recontros:
por exemplo, na Guiné, o da pacificação de
Canhambaque; em Angola, o da pacifica-
ção do Amboim20. O de Canhambaque, na
ilha do mesmo nome, nos Bijagós, foi des-
cerrado em meados do ano. Dizia o Diário
de Notícias que lembrava “quantos ali mor-
reram no cumprimento do honroso dever
de impor a ordem a um grupo aguerrido
de indígenas”. E que ele fora “erguido por
– JOAQUIM SAIAL 93
iniciativa e contrato dos habitantes de Ca- Henrique de Carvalho que ali se pretendia
nhambaque que assim quiseram prestar a erigir. Com autoria de Raul Xavier, esc. lu-
justa homenagem à mãe-pátria e ao repre- so-macaense de vasta obra, e do arq. Luís
sentante do governo de Lisboa, sr. tenente- Xavier (seu filho), o custo fora suportado
-coronel Carvalho Viegas”21. O monumento- por subscrição efectuada não só em An-
-padrão do Amboim reportava revolta mais gola, como na Guiné e Índia28. Os singe-
de 20 anos anterior, em registo ideológico los padrões inaugurados em Moçambique
semelhante22. Este modelo simples era o no final do ano em Languene (posto mili-
mais ou menos comum relativo aos padrões tar de Mouzinho de Albuquerque para o
do Ultramar, sobretudo os alusivos a com- seu avanço sobre Chaimite)29, Macontene
bates. E os governadores gerais ou regio- (lugar onde venceu Maguiguana, líder dos
nais também muitas vezes era homenagea- vátuas)30 e Chaimite (lugar onde em 1895
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
toria do esc. Soares dos Reis) e o de D. Ma- Outras figuras
ria I (Lisboa/Queluz, do esc. João José de A 2 de Fevereiro, Duarte Pacheco recebia
Aguiar). uma comissão que lhe foi pedir para inter-
ceder junto da Câmara Municipal de Lisboa,
No do Rei Fundador houve alteração do pe- a fim de que esta designasse local para a
destal e sítio. Até aí colocado na Praça do erecção de um monumento à memória de
Toural, era trasladado em 21 de Maio de Sidónio Pais, de preferência na zona do Par-
1940 para as cercanias da capela de São Mi- que Eduardo VII, à qual ele respondeu po-
guel, no novo parque do castelo de Guima- sitivamente38. Contudo, o monumento não
rães, oferecendo-se assim à estátua do Rei teve seguimento.
fundo mais consentâneo com o roteiro he-
róico deste34 e a concepção historicista em Poucos dias depois, lembrava-se a oferta
vigor à época. Porém, numa certa contradi- que o Brasil iria fazer a Portugal, no âmbi-
ção, a base primitiva, de teor neo-medieval, to das comemorações centenárias, de um
dava agora lugar a um suporte de concep- grupo estatuário figurando Pedro Álva-
ção modernista. res Cabral e companheiros39. Da autoria
de Rodolfo Bernardelli, é réplica de outro
O monumento à Rainha, constituído pela existente no Rio de Janeiro, inaugurado
sua estátua e mais quatro alegorias alusivas em 1900. Obra complexa, nas suas diver-
a continentes, teve vida extremamente atri- sas personagens e bandeira ondulando ao
bulada. Ideia do intendente Pina Manique, vento40, é claro que nada de novo trouxe à
foi entregue a João José de Aguiar, bolsei- estatuária portuguesa. Veio de barco para
ro casapiano de escultura em Itália. Termi- Lisboa, tem pedestal em mármore cinzento
nado em 1798, chegou a Portugal quatro feito no Porto e inaugurou-se a 30 de No-
anos depois. Com o intendente prestes a vembro, junto ao Jardim da Estrela, Lisboa,
cair em desgraça, quedou-se pelo conven- mais tarde que o previsto, por atrasos na
to do Carmo, Lisboa, até que o quarteto chegada dos bronzes41.
continental foi parar à Avenida da Liberda-
de (a figura real continuou no Carmo35), nos Pela mesma altura, a comissão executiva do
sítios onde estão desde cerca de 1950 as monumento a Camilo Castelo Branco para
estátuas de escritores realizadas por Bara- Lisboa reunia-se no Museu do Carmo, sob
ta Feyo e Leopoldo de Almeida. Muito se a presidência de Eloy do Amaral. Tratava-se
escreveu na imprensa sobre o desejo de de apreciar um ofício da Câmara Municipal
união das cinco peças e em Abril de 1940 propondo que o memorial fosse colocado
ainda se sugeria a integração do monu- algures entre a avenida Duque de Ávila42 e
mento neo-clássico no largo da basílica da as ruas Rodrigues Sampaio e Camilo Cas-
Estrela36, mas ele acabou por ficar em Que- telo Branco e sugeria-se como material a
luz, para onde de início fora previsto37. pedra e não o bronze43. Com concurso fa-
lhado em Janeiro de 192644 e outro con-
– JOAQUIM SAIAL 95
seguido em Julho do mesmo ano, a vitória comparticipação de 200 contos entregues
fora para Anjos Teixeira. Porém, a morte do por Duarte Pacheco para ajudar a cobrir as
escultor em 193545 fez com que a obra não despesas com materiais e fundição49. Mas
se concretizasse e o monumento ao autor tal como acontecera com o monumento a
de “Amor de Perdição” acabou por ser exe- Pedro Álvares Cabral, este não trazia novi-
cutado por António Duarte em 1950, para o dade digna de registo, pese embora a qua-
sítio previsto, com ganhos de sensibilidade lidade naturalista e fama internacional de
certeira e discreta sobre o complexo grupo Benlliure.
literário de Teixeira.
Também em Viseu, previa-se em Maio a
Entretanto, António Sardinha, escritor e inauguração de um busto ao capitão Almei-
doutrinário filosófico do Integralismo Lusi- da Moreira, criador e primeiro director do
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
se previa outro ao Condestável Nuno Álva-
res Pereira. A época era de forte valorização
nacional dessa figura e nesta terra a Câma-
ra Municipal, que o patrocinava, continuava
a receber donativos para a sua feitura. En-
tre os 30.367$35 angariados até finais de
Março, mil eram oferta da Rainha D. Amé-
lia que os enviara em carta onde dizia do
Condestável: “É a figura primordial da nos-
sa independência e o símbolo mais puro do
patriotismo, da intrepidez, lealdade e gene- Mon. a Pedro Álvares Cabral (pormenor), Lisboa
rosidade da raça portuguesa”53.
– JOAQUIM SAIAL 97
Demorava então o monumento sem valor de obras que segura, enrolado, numa das
artístico ao general espanhol José Sanju- mãos, tal como vimos na estátua de Gual-
rjo. Previsto comandante da revolta que dim Pais.
deu lugar à guerra civil naquele país, mor-
rera num desastre de aviação em Cascais, Um Cristo-Rei
quando se preparava para seguir para Na área religiosa, sobressai a estátua a Cris-
Burgos encabeçar o movimento que de- to-Rei em Paços de Ferreira60, da autoria do
pois teve como chefes o general Mola e fi- portuense Henrique Moreira. A cerimónia
nalmente Francisco Franco. Em inícios de de inauguração a 6 de Outubro é elucidativa
Maio na Quinta da Marinha, por iniciativa do modelo seguido na altura, na generali-
do Dr. Joaquim (ou Alberto) Madureira es- dade das cerimónias deste tipo: procissão,
tava a erguer-se um bloco de pedra mais missa, discurso, descerramento. No final da
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
ou menos em bruto, com cerca de 14 tone- missa, “o bispo do Porto61 regozijou-se com
ladas, encimado por uma cruz, que lembra- a inauguração do monumento a Cristo-Rei
va o funesto acontecimento58. e com o facto de aquela cerimónia ter sido
integrada nas Comemorações Centenárias.
A 14 de Junho inaugurava-se em Faro, com Dissertou acerca da fundação da naciona-
a presença de Duarte Pacheco, a estátua lidade, dos descobrimentos e da indepen-
do bispo D. Francisco Gomes de Avelar59, dência. O prelado referiu-se à guerra que
renovador da cidade no pós-terramoto de [ensanguentava] o Mundo e pôs em desta-
1755. A iniciativa foi lançada pela Comis- que o sossego do País em comparação com
são Municipal de Turismo do Algarve. A outras nações, afirmando: ‘- Atravessamos
inauguração, em 14 de Junho, estava in- uma hora de glória para Portugal e de tra-
serida no âmbito das iniciativas das Come- gédia para o Mundo inteiro. As outras na-
morações Centenárias, o que demonstra ções estão mergulhadas na penumbra da
o interesse atribuído à peça. “A figura de guerra; nós vivemos um momento em que
coroamento, que apresenta o ilustre prela- a História se perpetua.’” Cerca de três anos
do numa atitude de rara nobreza e energia depois, em 8 de Dezembro de 1943, ainda
e que mede cerca de três metros de alto, Júlio Dantas diria algo semelhante na inau-
chegou ontem à tarde a esta cidade, ten- guração da estátua equestre de D. João IV,
do-se procedido imediatamente à sua co- em Vila Viçosa: “- Na hora em que os po-
locação sobre o pedestal que há dias se vos mais poderosos do Mundo derrubam
encontrava concluído. Todo o monumen- as suas estátuas para fabricar canhões, nós
to é da autoria do distinto escultor sr. Raul agradecemos à Providência ter-nos permi-
Xavier, que tem sido muito felicitado pelo tido destruir em paz alguns canhões para
magnífico trabalho produzido.” Porém, Xa- fazer uma estátua.62”… Quanto à peça, em
vier, oferece-nos uma estátua que embo- granito e com vinte toneladas e onze metros
ra demonstrando alguma dignidade tem de altura, era de certo modo percursora da
pouco rasgo imaginativo, vulgar pela pose que cerca de vinte anos depois foi erigida
e pela simbologia e pobre no óbvio plano em Almada, embora aquela com élan mais
<<
emotivo, na pose da cabeça e dos braços tica, bastas vezes entregues a mestres can-
– o que não foi conseguido na gigantesca teiros locais. A lista é longa e monótona.
estátua da margem sul do Tejo, por motivo Mesmo assim, deixamos uma mostra des-
da ciclópica dimensão e morte prematura tes lembretes das comemorações de 40: a
do autor, Francisco Franco. Henrique Mo- 28 de Julho inauguravam-se os de Caste-
reira, senhor de vasta obra por todo o País, lo Mendo e Almeida, aqui com cenário de
realizou aqui uma peça naturalista honesta uma força da Legião Portuguesa, ao mesmo
que pela sua natureza e época dificilmen- tempo que de igual modo se inaugurava
te podia ter tido outra concepção63. Infeliz- o monumento local aos Mortos da Grande
mente, tal como aconteceu com a estátua Guerra. O de Almeida, de atarracada sec-
de Gomes da Costa no Porto, a do infante D. ção quadrangular, tem cruzes afonsinas na
Henrique no Padrão dos Descobrimentos e base e escudos no topo, por sua vez enci-
a bandeira do monumento a Pedro Álvares mado por esfera armilar e cruz de Cristo69;
Cabral em Lisboa, esta estátua também foi o da Guarda, erigido na Rua Marquês de
destruída por violento temporal, tendo sido Pombal e pertencente à mesma tipologia
entretanto reconstruída64. do de Almeida, inaugurou-se a 3170; tam-
bém no final do mês, era a vez do de Vila
E um desportista Cova, concelho de Vila Nova de Paiva, mais
Um monumento ao desportista Mário Duar- esguio mas também mais aproximado de
te em Aveiro é nota mais ou menos disso- vulgar cruzeiro religioso71; com festejos a 3
nante, num país e numa estatuária pouco e 4 de Agosto, inaugurava-se no segundo
interessada por esta temática e por isso dia o da Covilhã e freguesias do seu conce-
com raros antecedentes65. Praticante hábil lho, no “ponto mais alto de Portugal”. Dias
de várias modalidades, faleceu em 1939 e antes, a 29 de Julho, tinham terminado os
logo no ano seguinte se anunciava monu- trabalhos de “colocação da cruz de D. San-
mento em sua honra no estádio aveirense cho I na Serra da Estrela, sobre a pirâmide
a que deu nome, em projecto do arq. Júlio de 10 metros que marca o ponto mais alto
Sobreiro com medalhão de bronze do esc. de Portugal. Uma inscrição latina referente
Romão Júnior66. aos Centenários foi aberta no grande blo-
co de granito do Covão do Boi, por cima da
Padrões dos Centenários nascente da Pedra Rachada (…) Procede-se
Para além da campanha da Exposição de agora à recolha de lenha para as cinco gran-
Belém, neste ano de 1940 houve ainda uma des fogueiras que, durante a noite de 3 para
outra com ela directamente relacionada: a 4 de Agosto, hão-de iluminar o planalto da
dos chamados “padrões dos centenários”. torre…72”; na mesma altura passava-se pare-
Por todo o País e em alguns lugares do Ul- cida cerimónia em Vila do Conde, de novo
tramar (cidade do Mindelo, na ilha São Vi- com padrão em forma de cruzeiro religio-
cente de Cabo Verde67 e Lobito68, Angola, so (afinal, situavam-no em frente da capela
por exemplo) se plantaram memoriais mui- de Nossa Senhora da Guia) no cimo de um
to simples e com escassa integração artís- escadório de pedra, no local onde existira
– JOAQUIM SAIAL 99
o farol da Guia73. Castelo Novo e Mangual-
de, respectivamente no início e meados de
Agosto, receberam padrões semelhantes
aos da Guarda e Almeida74. A Póvoa de Var-
zim seria contemplada em inícios de Setem-
bro e Viseu a 16, mesmo dia da inaugura-
ção do monumento a Viriato75.
Um caso particular
Numa capital sempre carecida de água,
anunciava-se em 1938 a chegada à cidade
de um caudal diário de cem milhões de li-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
cas no género pela dimensão e raras pelo
material, cimento armado, foram encomen-
da directa da Câmara Municipal de Lisboa
através de Duarte Pacheco, então seu pre-
sidente77. Com autoria de Maximiano Alves,
apresentavam alguma relação estilística
com as figuras laterais do seu monumento
aos Mortos da Grande Guerra, de Lisboa.
Os dois gigantes assentavam, semi-ajoe-
lhados e de costas voltadas um para o ou-
tro, sobre construções cúbicas destinadas
ao mecanismo do sifão desenhadas pelos "Fontes" no Sifão de Sacavém
irmãos arquitectos Carlos e Guilherme Re-
belo de Andrade78. Fora uma realização de-
morada, com o trabalho em gesso a levar
dois anos e o da passagem a cimento mais
um. Mas em Dezembro de 1942 viram-se
desmanteladas, “em nome da estética”. Di-
zia então o Diário Popular que “Em minia-
tura, as figuras eram de grande efeito. Mas
uma vez em plano de construção definitiva,
assumiam tais proporções que dominavam
a ponte e tudo em redor, revelando dimen-
sões gigantescas que prejudicavam a ideia
de beleza que havia preconcebido a sua
realização.79” Temos assim que a obra mais
invulgar deste período acaba por ser der- Desenho humorístico alusivo às "Fontes" do Sifão de Sacavém
rubada pelo motivo que menos se espera- – Sempre Fixe, 21.04.1938, desenho de Carlos Botelho
classificou António Ferro81, pouco ele brilha- de Maximiano, pouco mais. E se de dentro
va, apenas visível num lampejo mais forte, verdadeira inovação não houve, de fora (ou
aqui e ali (dentro ou fora da exibição de Be- de gente de fora que cá veio ou cá vivia)
lém), deslocada que estava num tempo vi- também não a teve. O “Café” de Portinari,
rado de modo reverente para o século XIX, espécie de submarino subversivo cultural
bebendo o romantismo-realismo de Soares mostrado no Pavilhão do Brasil, nenhum im-
dos Reis e o naturalismo de Teixeira Lopes pacto teve nestas peças escultóricas, quase
– que só faleceu em 1942. A escultura ofi- todas em andamento à data da apresenta-
cial não foi capaz, nestes anos de propagan- ção do quadro em Lisboa. Tal como não a
da nacionalista e consequente exaltação de teve a exposição de pintura e escultura que
heróis internos e coloniais de seguir rumos abriu em 11 de Novembro no Chiado, com
de há muito traçados na escultura pública António Pedro82, António Dacosta e a escul-
internacional avançada. Os artistas signifi- tora Pamela Boden83 que ali exibiu seis es-
cativos estiveram ocupados com a exposi- culturas de teor abstracto em madeira, de
ção ou, caso de Francisco Franco, com obra quem Diogo de Macedo decidiu dizer logo
ainda assim feita nesse contexto. E embora que “não [era] um estandarte revolucioná-
tenham tido trabalho fora dele, muitas das rio”84. E Arpad Szenes, que contraditoria-
realizações externas ao cenário lisboeta fo- mente conseguiu expor no SNI nesse ano
ram executadas por escultores de segunda de 40, ao mesmo tempo foi obrigado a par-
linha – logo, menos interessantes. Para além tir para o Brasil, com a esposa Maria Hele-
disso, parte significativa é de modestos pa- na Vieira da Silva, por ser apátrida como ela,
drões que pontuam até hoje o País, feitos retirada que foi a esta a nacionalidade por-
memória dos Centenários. Alguns descerra- tuguesa. E Semke, que participou marginal-
mentos de estátuas, antes concluídas, foram mente na Exposição, mas também sofreu
programados para coincidirem com o pe- resistência cerrada de colegas portugueses
ríodo festivo das comemorações, demons- ali e no acesso a concursos públicos esta-
trando um esforçado afã de cobertura inau- tuários, por ser estrangeiro85.
gurativa do território.
<<
Nestes tempos estatuários de pouco ouro, SAIAL, Joaquim – Estatuária
decididamente 1953 (Jorge Vieira, maque- Portuguesa dos Anos 30, ed.
ta para um “Monumento ao Prisioneiro Polí- Bertrand Editora, Lisboa, 1991.
tico Desconhecido”86) e 1973 (João Cutilei-
ro, “Rei D. Sebastião”, Lagos) ainda estavam — Notas
muito longe…
1
Diário de Notícias, 24.06.1940,
p. 4.
2
Diário Popular, 05.07.1943, p.
1: o padrão inicial, provisório,
foi desmantelado em Julho e
— Bibliografia Agosto de 1943 por operários da
empresa União de Sucatas que
FRANÇA, José-Augusto – A Arte assim obteve 170 toneladas de
em Portugal no Século XX, ed. ferro e 200 de madeira. O actual,
Livraria Bertrand, Lisboa, 1974. em pedra, data de 1961.
MATOS, Lúcia Almeida – Escultura 3
A escultura da exposição está
em Portugal no Século XX (1910- razoavelmente estudada no nosso
1969), Col. Textos Universitários livro Estatuária Portuguesa dos
de Ciências Sociais e Humanas, Anos 30 (1926-1940), Bertrand
ed. Fundação Calouste Editora, Lisboa, 1991.
Gulbenkian, Fundação para a 4
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Ciência e a Tecnologia, Ministério Costa, António Duarte, Barata
da Ciência, Tecnologia e Ensino Feyo, Canto da Maia, Euclides
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PEREIRA, José Fernandes Semke (alemão radicado em
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Caminho, SA, Lisboa, 2005. Alves, Martins Correia, Raul
PORTELA, Artur – Salazarismo Xavier e Ruy Gameiro eram os
e Artes Plásticas, Biblioteca nomes mais sonantes das quase
Breve, ed. Instituto de Cultura e duas dezenas de escultores com
Língua Portuguesa, Ministério da trabalhos presentes na exposição.
Educação e das Universidades, Franco, por estar a realizar a
Lisboa, 1982. estátua de D. João IV para Vila
REGATÃO, José Pedro – Arte Viçosa, particularmente citada no
Pública e os Novos Desafios das programa das comemorações,
Intervenções no Espaço Urbano como veremos.
– Bond, Books on Demand, 5
Actual Maputo, capital de
Quimera Editores, Lda., 1998. Moçambique.
9
Uma, cuja autoria 15
“cuja cerimónia será revestida 34
A 7 de Junho foram postos à
desconhecemos, de reduzidas de grande solenidade, embora venda selos comemorativos com
dimensões, foi inaugurada em não haja cortejo nem foguetes, imagens feitas pelo processo de
08.06.1940 no Portugal dos em atenção ao actual momento talhe doce (inovador em Portugal)
Pequenitos, em Coimbra. Ver internacional, mas apenas uma comemorativos das festas
Diário de Notícias, 09.06.1940, concentração das entidades dos Centenários: maqueta da
p. 1. oficiais e particulares.”, ver Diário Exposição do Mundo Português,
10
E também atirou ao Tejo a de Lisboa, 04.04.1940, p. 3. D. João IV (Vila Viçosa), Padrão
estátua em gesso do Infante D. 16
A vasta parte de escultura foi dos Descobrimentos (Lisboa) e a
Henrique do primitivo e provisório completada por Henrique Moreira referida de D. Afonso Henriques
Padrão dos Descobrimentos. e Sousa Caldas. de Guimarães.
11
A estátua equestre do “Tejo” na 17
Praça de D. Afonso III. Ver Diário 35
Ainda se vê no Diário de Lisboa,
Fonte Monumental da Alameda de Notícias, 17.05.1940, p. 1. 06.11.1940, p. 5, em cerimónia
de D. Afonso Henriques, Lisboa 18
Ibidem, 07.06.1940, p. 1. alusiva ao “Dia do Condestável”.
(fonte plan. em 1938 - inaug. 19
Ibidem, 14.06.1940, p. 1. Erigido 36
Ocidente, n.º 41,
30.05.1948) também tem em Castro Verde. Setembro.1941, p. 436.
configuração rampante. É da 20
Ibidem, 22.07.1940, p. 4. Inaug. 37
Diário de Notícias, 05.04.1940,
autoria do esc. Diogo de Macedo. cerca desta data. p. 2.
A estátua de Ferreira do Amaral 21
Ibidem, 17.07.1940, p. 6. 38
Ibidem, 03.02.1940, p. 5.
veio para Lisboa por altura da 22
Ibidem, 22.07.1940, p. 4. A comissão era constituída
passagem da soberania efectiva 23
Ibidem, 17.07.1940, p. 6. pelo coronel Álvaro César de
de Macau, de Portugal para a 24
Devido ao empenho de Grant, o Mendonça e pelo capitão Teófilo
China. Encontra-se colocada sobre desfecho do pleito em 1870 deu Duarte.
modesto pedestal na Alameda da razão a Portugal sobre a tutela da 39
Ibidem, 17.02.1940, p. 1.
Encarnação, Olivais, Lisboa. ilha. 40
A bandeira foi derrubada pelo
12
FRANÇA, José-Augusto. A Arte 25
Diário de Notícias, 07.08.1940, ciclone de 1941 e em Junho de
em Portugal no Século XX, p. 256, p. 2. 1948 caiu de novo… ver Diário
ed. Livraria Bertrand, Lisboa, 1974. 26
Ibidem, 07.08.1940, p. 5. Popular, 16.06.1948, p. 5.
<<
41
Diário de Notícias, 25.06.1940, Fundida em Vila Nova de Gaia. a de temporal de 1960 com
p. 2. 52
Ibidem, 10.07.1940, p. 1 e reconstrução em 1961 (versão
42
O articulista da notícia queria Ilustração, 16.06.1938, p. 24. mais repetida).
dizer Duque de Loulé. 53
Ibidem, 24.03.1940, p. 2. 65
Um “Jogador de disco” (estátua
43
Diário de Notícias, 18.02.1940, 54
De seu nome verdadeiro de José Netto, inaug. 13.11.1931,
p. 5. António Joaquim Fernandes Lima. na Avenida da Liberdade,
44
Ibidem, 01.01.1926, p. 7 e 55
Diário de Notícias, 06.11.1940, Lisboa, depois no Pavilhão dos
06.01.1927, p. 2. p. 2. Desportos), um monumento ao
45
Ibidem, 12.05.1935, p. 4. 56
Fotografia do gesso pode ser professor de Educação Física Luís
Já nesta altura, através da voz vista no espólio de Abel Salazar, da Costa Monteiro (estátua de
do vogal Pastor de Macedo, a na Fundação Mário Soares, Lisboa. Anjos Teixeira, inaug. 15.05.1932,
comissão discutia o local, caso o 57
Que assim se via representado também na Avenida da Liberdade,
monumento não pudesse vir a ser em mais uma colónia, depois da depois na portaria do Ginásio
erigido no Parque Eduardo VIII, o de Cabo Verde (estátua jacente Clube Português) e o monumento
primeiro previsto. no jazigo da família Serradas, no a Pepe, precocemente falecido
46
Ibidem, 17.08.1940, p. 1 e cemitério do Mindelo, e busto jogador de futebol de “Os
Gazeta dos Caminhos de Ferro, n.º do médico militar Dr. Lereno, Belenenses” (padrão com baixo-
1265, 01.09.1940, p. 587. na cidade da Praia), para além relevo de Leopoldo de Almeida,
47
Diário de Notícias, 25.03.1940, de uma estátua de Afonso de inaug. 23.09.1932, no antigo
p. 5. Albuquerque em Nova Goa, no estádio das Salésias e depois no
48
Inaug. em 16 de Setembro. Estado da Índia, e o apostolado novo estádio do clube no Restelo)
49
Diário de Notícias, 03.09.1940, da catedral de Nova Lisboa (actual são alguns parcos antecedentes
p. 1. Huambo), Angola (1945). próximos deste de Aveiro.
50
Ibidem, 18.05.1940, p. 14. Não 58
Ibidem, 07.05.1940, p. 4. 66
Diário de Notícias, 25.11.1940,
conhecemos o desenvolvimento 59
Diário de Notícias, 12 e p. 5.
desta planeada homenagem que 15.06.1940, p. 4 e 1, 67
Este ainda está no lugar onde foi
também compreendia colocação respectivamente. erigido (Rua de Coco, na cidade
de lápide toponímica em artéria 60
Na realidade no Monte do Pilar, do Mindelo) e bem estimado.
viseense com nome do militar. a cerca de quatro quilómetros de 68
Diário de Notícias, 07.08.1940,
Em http://fotosviseu.blogspot. Paços de Ferreira. p. 2. Posto no adro da igreja de
pt/2015/06/a-casa-museu- 61
D. António Augusto de Castro Nossa Senhora da Arrábida, nesta
almeida-moreira.html (visto Meireles. cidade angolana.
em 29.08.2015) diz-se que em 62
Diário de Lisboa, 08.12.1943, 69
Ibidem, 30.07.1940, p. 1.
25.11.1973, em comemoração do p. 4. 70
Ibidem, 27.07.1940, p. 1.
centenário de nascimento desta 63
Ibidem, 07.10.1940, p. 5, O 71
Ibidem, 29.07.1940, p. 1.
figura, foi inaugurado no jardim da Século Ilustrado, 12.10.1940, p. 9 e 72
Ibidem, 18.07.1940, p. 1 e
Casa Museu Almeida Moreira um Ocidente, Novembro.1940, p. 267. 31.07.1940, p. 2.
busto do capitão esculpido pelo 64
Encontrámos como datas 73
Ibidem, 05.08.1940, p. 2.
“seu amigo Mariano Benlliure”. de destruição na Internet a do 74
Ibidem, 05.08.1940, p. 6 e
51
Ibidem, 22.02.1938, p. 9. ciclone de 1942 e na Wikipedia 18.08.1940, p. 4.
<<
Monumento Multiculturalidade
– Uma Experiência Participada
Temos no exemplo deste notável projeto tou-se à divulgação desta arte, em seguida
três características a destacar, em razão de introduzindo em grau elevado a politização
seu contexto enquanto obra de arte e elabo- e a polêmica nos discursos. Entre essas re-
ração comunitária: o caráter de monumento, ferências sobre o assunto, podemos ver al-
o processo participado e a autoria coletiva. guns exemplos a seguir.
A obra de arte pública enquanto marco re- A primeira reflexão crítica sobre esta nova
ferencial de uma cultura ou comunidade es- produção pode ter sido o artigo de Amy
pecífica foi uma discussão bastante profícua Goldin, na prestigiada revista Art in Ame-
quando a arte em espaços urbanos passou rica: “O Gueto Estético: algumas reflexões
a fazer seriamente parte do discurso teórico, sobre a Arte Pública” (1974). Conforme a au-
a partir de princípios da década de 1970. A tora, aquilo que era oferecido então como
produção que determinou este novo cam- arte pública seria “na maior parte... ampla
po instaurou-se a partir da inclusão de obras decoração”. Goldin também dava a partida
de arte icônicas em projetos de revitaliza- da grande corrente que começou a definir
ção urbana. Podemos delimitar este históri- criticamente a arte pública: “o problema
co período entre 1969 e 2006, de La Grande verdadeiro é explicar porque, no momento,
Vitesse (cidade de Grand Rapids; artista Ale- virtualmente [arte pública] é uma classifica-
xander Calder) a Cloud Gate (cidade de Chi- ção vazia”.1 Penso que esta autora percebeu
cago; artista Anish Kapoor), ambas escultu- com firmeza – e isso é válido até o presen-
ras públicas nos Estados Unidos da América. te – “que há tão pouca arte pública genuína
em razão justamente de nossa descrença na
Neste período, uma produção numerosa e realidade da própria esfera pública”.
diversificada de obras ao ar livre de câno-
nes moderno e contemporâneo surgiu na Então, conforme o contexto era propício,
América (Estados e Canadá) e Europa. Mes- os que que começaram a teorizar sobre a
mo timidamente, houve reverberação na arte pública politizaram ao máximo os pon-
América Latina, a exemplo de São Paulo, tos de vista. As considerações mais corren-
<<
tes foram aquelas as quais apontavam que No livro que organizou, “Arte na Esfera Pú-
a maior parte da arte pública não represen- blica”, J. W. Mitchell em seu texto introdu-
tava aspectos ligados às comunidades as tório refletiu sobre legitimação, violência e
quais era dirigida e que as novas obras em público, e ponderou que a arte pública é um
espaços urbanos continuavam a ser a mes- meio significativo de violência simbólica.8
ma arte “privada” das galerias e museus. Entretanto, o questionamento teórico mais
Com o tempo, surgiram mais artigos bem comum e prolongado acabou sendo em
como livros específicos que ampliaram es- torno da própria condição “pública” de uma
ses questionamentos. obra de arte pública. Ou seja, se esta pas-
saria a adquirir tal caráter por sua simples
Uma análise crítica muito citada sobre arte colocação em espaços públicos. Nesse sen-
pública até o presente parece ser o contun- tido, Harriet Senie ponderou: “Como algo
dente artigo “Inoperante: a Máquina da Arte pode ser ambos, público (democrático) e
Pública” (1988), de Patricia Phillips. Nele, arte (elitista)?” (1992).9 Uma reflexão similar
a autora atacou a mera condição “pública” fez o artista Daniel Buren: “Porque, quando
desta arte ser exclusivamente em função de falamos sobre um trabalho ao ar livre [...] a
sua propriedade pública (governo) ou de palavra ‘arte’ é juntada ao termo ‘público’?
sua localização (local público), pois “o con- O que está implícito nessa união?”.10 Outro
ceito de ‘público’ é difícil, mutável, talvez autor de referencia no período foi Malcolm
um pouco atrofiado, mas o fato é que a di- Miles, com “Arte, Espaço e Cidade” (1997),
mensão pública é uma construção psicoló- o qual também debruçou-se mais ou me-
gica em lugar de física ou ambiental”.2 Mais nos nas mesmas reflexões.11
adiante, Phillips publicou o artigo “Constru-
ções Públicas” (1995), em um livro coletivo, A par desta infindável discussão teórica em
no qual voltou a questionar: “De onde vem o torno da questão da propriedade ou loca-
público da arte pública de se a vida pública lização da obra como sendo definidora da
está assim, tão perigosamente esvaziada?”3 condição de um trabalho pertencer ou não
Este livro em questão, “Mapeando o terre- à tipologia arte pública, Javier Maderuelo,
no: um novo tipo de arte pública” (1995)4 em 1990, já observava esta situação sob
esteve com três outros entre as coletâneas o prisma do público e não da obra, já que
de textos mais difundidas na década de “trata-se de um tipo de arte cujo destino
1990, as quais buscaram novas e múltiplas é o conjunto de cidadãos não especialista
abordagens, em especial problematizan- em arte contemporânea e cuja localização
do os aspectos comunitário e crítico que a é o espaço público aberto” (grifo nosso).12
arte pública deveria refletir: “Arte no Interes- E este “destino”, afinal, é o maior desafio
se Público” (1989),5 “Arte na Esfera Pública” desta tipologia de arte uma vez que, ain-
(1992),6 “Questões críticas em Arte Pública: da segundo Maderuelo, “a cidade hoje foi
conteúdo, contexto e controvérsia” (1992).7 transformada num campo aberto, cenário
de variadas manifestações estéticas que se
deslocaram dos espaços das galerias e mu-
<<
Conforme o final dos anos 1990 se aproxi- front.22 Não é sem razão, inclusive, que no
mava, o complexo teórico sobre arte públi- âmbito da influência deste largo trabalho
ca refreou no sentido de discussões menos da Universidade de Barcelona encontra-se
polêmicas e críticas. Passou-se também a também, efetivamente, o próprio projeto
uma fase de maior interesse por autores e Monumento Multiculturalidade. Enquanto
investigadores que não atuavam no mundo o corpo teórico antes exemplificado (ma-
da arte, oriundos de vários campos, como joritariamente americano) seja majoritaria-
a história, filosofia, sociologia, urbanismo e mente voltado às questões das relações
psicologia social, entre outros. A perspecti- dos projetos com os seus públicos, e por
va de que a arte pública não era somente isso se constituem também em referência
pertencente ao campo artístico coincidiu, para abordarmos o assunto presente, creio
por um lado, com a academização da dis- que os projetos efetivados por meio da
ciplina em universidades; por outro, ao tre- Universidade de Barcelona aportem sub-
mendo boom de legislações (obrigatorie- sídios mais apropriados ao nosso caso em
dade) e incentivos para a colocação de arte tela, um projeto conjunto entre universida-
ao ar livre, em especial na Europa, EUA, Ca- de e câmara municipal.
nadá e Austrália. Nesse quadro, a iniciativa
acadêmica mais efetiva e duradoura ocor- Temos em conta que nos Estados Unidos,
reu na Universidade de Barcelona, que insti- ou, mais amplamente, no dito “primeiro
tuiu à época o Observatório de Arte Pública mundo”, o rol teórico mencionado – além
(atual paudo).20 Posteriormente, o Observa- de outros obviamente – em muito tenha in-
tório desdobrou-se em cursos de mestrado fluenciado a criação de centenas de proje-
e doutorado com enfoque em Arte Pública, tos municipais de arte pública permanente.
Patrimônio Cultural, Regeneração Urbana O mais conhecido desses casos é Nova Ior-
e Espaço Público, a partir de um centro de que, cujo programa municipal de arte pú-
pesquisa, o crpolis.21 blica há décadas tem alocado trabalhos em
comunidades afastadas de Manhattan, mui-
A par da necessidade de investigação e di- tas estigmatizadas devido aos seus vernizes
vulgação teórica, o paudo/crpolis passou multiculturais, cujos processos de comis-
a realizar projetos concretos (ou seja, nas sionamento levam em conta a obrigatorie-
ruas) com administrações municipais (os dade de uma demorada negociação entre
entes que afinal de contas enfrentam a arte os artistas e moradores. Porém, é bom que
pública), em Espanha e Portugal. Também se frise, a politizada – e até mesmo ativis-
ampliou a sua influência por meio de proje- ta – produção teórica americana (e de sua
tos conjuntos, em universidades europeias influência direta: Inglaterra, Canadá e Aus-
e, incluso, nas américas do Sul e Central. trália) é de difícil compreensão e interesse
Isso, sem mencionar a realização de sim- daquilo que ocorre fora de sua órbita. As-
pósios de arte pública em ambos os lados sim, restam à margem desse universo co-
do Atlântico e a edição de publicações, en- mentado, criticado, interessantes experiên-
tre as quais a principal é a On The W@ter- cias em Espanha, Portugal, América Latina,
Barcelona.
Imagem em <fernandofuao.blogspot.com.br>
Entre as iniciativas da Rede paudo conjun-
tamente a câmaras municipais em Espanha
e Portugal destacamos o projeto desenvol-
vido no bairro Baró de Viver,24 Distrito de
Sant Andreu, nordeste de Barcelona. Foi le-
vado a cabo com efetivo envolvimento co-
munitário, em meio à regeneração urbana
participada do local, iniciada por volta de
2004, tais como uma nova rambla, praça
cívica e estação de Metro. No sentido sim-
bólico, este amplo projeto foi também pen-
sado para melhorar a autoestima do bairro,
estigmatizado por sua história ligada às ca-
sas populares (“casas baratas”), construídas
pelo governo em torno de 1928, quando a
região era uma periferia distante de Barce-
lona. No amplo projeto, emergiram dois tra-
balhos de arte pública, o Mural da Memória
e a escultura Casa Barata, (ambos de 2011).
O mural, com 524 m2, ocupa o paredão
acústico que protege o entorno (Passeio de
Santa Coloma) do cruzamento de viadutos
e avenidas expressas; trata-se de um painel
ilustrativo, como um livro gigante, que con-
ta a história do bairro por meio de memó-
rias, fotografias e interesses compartilhados
pelos próprios moradores. A escultura em
homenagem às Cases Barates (casas bara-
<<
tas, em castelhano, ou, casas populares, no Entretanto, de tempos em tempos, pode-
português brasileiro), por sua vez, nos re- mos perceber que fatos e situações podem
porta ao Monumento Multiculturalidade fazer o sentido do monumento sentir-se re-
por ser uma obra de arte de autoria coleti- vigorado e a sociedade parece voltar a ne-
va, comunitária. Foi instalada na extremida- cessitar deles. Corrobora para isto a visão
de mais elevada da Rambla Ciudad d’Asun- do historiador Andreas Huyssen de que a
sión, na junção com o Passeio Santa Colona, “memória”, no mundo inteiro, tornou-se nas
e ergue-se na forma de uma singela casa, últimas décadas “uma obsessão cultural
realizada em betão, como um verdadeiro de monumentais proporções”27 e que a “a
monumento, sem, no entanto, reivindicar noção de monumento como memorial ou
essa condição comemorativa. evento comemorativo público vem conhe-
cendo um retorno triunfante”.28 Este ponto
Este aspecto, assim, nos remete à primeira de vista Huyssen vinha observando em ra-
das três características que queremos des- zão das celebrações da memória do Holo-
tacar no Monumento Multiculturalidade, ou causto, da queda do Muro de Berlim e do
seja, a opção pela ereção de um monumento. fim das ditaduras militares sul-americanas.
Essa “obsessão”, ao que tudo indica, mos-
A par de toda a controvérsia em torno do pa- trou-se fortalecida a partir dos aconteci-
pel do monumento na história da arte e da mentos de 11 de setembro de 2001, em as-
cidade – e Antoni Remesar nos resume que sunto que esse próprio autor debruçou-se
o mesmo pode ser visto como um “conceito posteriormente, sob essa mesma ótica.29 Se
maldito, ou bendito, conforme e como o ob- formos pensar em “memórias traumáticas”
servamos”25 –, eu creio que não restam dúvi- (termo também de Huyssen), quando elas
das de que o monumento é a forma mais re- tomam forma para uma sociedade em par-
conhecível pelo “público geral” daquilo que ticular o são de modo geral na condição de
inequivocamente seja o mais típico exem- monumentos públicos.
plar de arte pública. Assim, a morte anuncia-
da várias vezes desta categoria já não pode Se o culto moderno aos monumentos30 mos-
mais ser levada a sério. O flutuar do dia-a- tra-se atual, em que medida se situa, nessa
-dia da História nos demonstra que a neces- perspectiva, o Monumento Multiculturalida-
sidade dos monumentos vai e vem e cada de? Podemos começar pelo próprio contex-
contexto requer novas abordagens. Néstor to imediato, a própria cidade de Almada.31
Canclini observa o presente de uma mega-
lópole de 22 milhões de pessoas (a Cidade Almada, hoje uma cidade com numeroso
do México) na qual ali os “monumentos es- conjunto de arte pública, numa proporção
tão cansados”; não podem mais ser vistos e elevada de obras de arte ao livre aos pa-
não podem competir com o que hoje se en- drões europeus, se considerarmos a sua
contra agregado ao espaço urbano.26 população e área, surpreendentemente
teve o seu primeiro monumento instalado
ao ar livre recentemente, somente cinco
para Lisboa. Porém, seria forçoso crer que sociativismo, Trabalho, Paz, Vida, Liberdade,
esse destino de peregrinação religiosa seja Solidariedade, etc.). Em muitos desses co-
um “monumento de Almada” pelo simples missionamentos observamos o expediente
fato de estar fixado em seu município, uma do concurso aberto a projetos de artistas,
vez que seu objetivo é fitar a capital e ser com financiamento predominantemente
visto de lá, bem como os visitantes que o público. A maioria das obras pertence ao
procuram ignoram solenemente a cidade. campo da escultura, mas também encon-
Esse é um fato que revela a antiga sina de tramos painéis cerâmicos e em relevo, além
Almada durante um largo período de sua de mobiliário urbano diverso (luminárias,
história, a ausência de monumentos, como abrigos, objetos lúdicos), com elaboração
se os monumentos da capital, do outro plástica artística. A linguagem quase abso-
lado do Tejo, suprissem essa deficiência. luta das obras de arte utiliza procedimen-
tos, materiais e cânones contemporâneos,
A partir da redemocratização (1974), Alma- numa exceção às habituais demandas por
da adquiriu o direito de ter um poder au- tradições predecessoras, a exemplo de es-
tônomo e passou a ditar os seus destinos. tatuas ou obeliscos.
Este fato permitiu que finalmente a cidade
passasse a instalar os seus monumentos e Sendo Portugal perfeitamente integrado no
obras de arte. Entre outras iniciativas, a arte espírito da comunidade europeia e mais di-
pública passou a cumprir um papel interes- retamente ao contexto ibérico, como men-
sante na autoestima dos moradores e na cionado antes a Câmara de Almada tem
construção de memória e imaginários cole- participado de projetos de arte pública no
tivos próprios. Se não totalmente represen- âmbito da Universidade de Barcelona. O
tativos – e a arte pública jamais consegue ser exemplo anterior a destacar, nesse sentido,
representativa para toda uma população, a foi “En els marges / nas margens”, iniciativa
maior parte dos monumentos dessa cidade integrada como troca de experiências entre
vinculou-se aos interesses de grupos que projetos artísticos comunitários dos bairros
positivamente buscaram o espaço público Pica-Pau Amarelo (Almada) e Baró de Viver
<<
(Barcelona), em 2011. Para Almada, este foi uma comemoração tradicional (monumen-
mais um incentivo para um passo adiante, to), “não só se dava a oportunidade à comu-
a realização de um projeto de arte pública nidade de participar numa acção concreta
permanente, o Monumento Multicultura- dirigida ao seu território, como se potencia-
lidade, definido de forma participada pela va um maior diálogo e entrosamento social
comunidade do Raposo, junto ao Centro Cí- no seio de uma comunidade bastante com-
vico do bairro Monte de Caparica. plexa e culturalmente diversificada”.33
<<
fizeram autores do monumento, e isso não
quer dizer que a forma final não seja im-
portante, pelo contrário. Isto porque, não
se trata, o Monumento Multiculturalidade,
de uma obra sem autores. Ele é um monu-
mento de autoria coletiva, ou seja, de toda
uma comunidade. E este é um aporte novo,
importante, entre os tantos que o projeto
apresenta para o campo da arte pública.
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lenguajes escultóricos. Memoria public sphere, 1992. no artigo de 1995 (p. 121) e
para el Concurso de Catedra 7
Harriet Senie &, Sally Webster ampliada no livro de 1997 (p.
[Universidad de Barcelona], 1997 (Org.). Critical Issues in Public 264).
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PAUDO: Observatório de Arte
Raven, Arlene (Org.). Art in The Controversy, 1992. Pública e Projeto Urbano (Public
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Artigo introdutório do livro The Art & Urban Design Observatory).
Capo Press, 1992 (1989), 378 p. violence of public art – do the <http://www.ub.edu/escult/html/
Schmidt, Mary & Martin, Randy right thing, 1992. cast/paudo.html>.
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Harriet Senie. Contemporary 21
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<http://www.ub.edu/escult/
Senie, Harriet & Webster, 1992. Water/index.htm>.
Sally (Org.). Critical Issues in 10
Can art get down from its 23
Ver sobre isso em Inclusion and
Public Art: Content, Context, pedestal and the raise to street empowerment in public art and
and Controversy. Washington: level? In: Contemporary Sculpture urban design, Antoni Remesar et
Smithsonian, 1992, 316 p. – Projects in Münster 1997. al, In On the W@terfront, Vol 24,
Senie, Harriet. Contemporary 11
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El espacio raptado – wordpress.com/>.
New York: Oxford University Interferencias entre Arquitectura y 25
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Press, 1992, 276 p. Escultura, 1990, p. 164. del Arte Público – proyectos y
Revistas On the W@terfront, 13
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Universidade de Barcelona, público. In: Poéticas del lugar – 26
Néstor García Canclini. Arte en
disponíveis em <http://www. Arte Público en España, 2001. la ciudad – Reinventar la historia,
ub.edu/escult/Water/>. 14
Ao longo de sua carreira 2013.
<<
Significado de Arte Urbana,
Lisboa 2008–2014
<<
1.1.1 - Dentro da componente académica disciplinar da História da Arte surge por
existem trabalhos de investigação que pro- Jack Stewart que propõe uma abordagem
vêm das mais variadas áreas do conheci- do ponto de vista pedagógico (auto-didác-
mento, como, por exemplo, da sociologia, tico, arte popular) e analisa a sua evolução
etnografia, criminologia, historia cultural e estilística integrada na Historia da Arte14.
historia da arte.
Mais recentemente, o conceito de Street Art
Evidenciam-se tendências que permitem também tem sido abordado do ponto de
propostas para agrupar a informação exis- vista académico.
tente. Existe por exemplo um forte grupo
de publicações referentes aos anos 1970 Como já vimos, a tese de Peter Bengtsen es-
em Nova Iorque, quer do ponto de vista do tabelece-se como uma importante referên-
confronto das narrativas entre o discurso cia, isto por recorrer às mais vastas bases de
oficial e o discurso subcultural7, quer a par- dados existentes sobre Street Art, os forums
tir de abordagens de leitura étnica (Afro/ de discussão que acompanharam o cresci-
Latino Americana)8. mento do fenómeno. No seu trabalho são
feitas considerações sobre as várias inter-
Os estudos Etnográficos existentes são su- pretações dos termos Graffiti, Street Art e Ur-
portados em grande medida por entrevis- ban Art neste caso desenvolvidas pelos pro-
tas que tendem a aprofundar a dimensão tagonistas do que então designou de Street
subcultral, seja desenvolvendo abordagens Art world em direta analogia com o conceito
comparativas Londres - Nova Iorque9, seja de Art worlds de Howard S. Becker’s.
a partir de abordagens mais globais cen-
tradas em casos de estudo como Montreal Explorando a relação entre os conceitos Gra-
por exemplo10. ffiti e Street Art, surge também a designação
pós Graffiti, sustentada e desenvolvida nos
Todavia o Graffiti de Nova-Iorque nos anos trabalhos de Anna Waclawek (2008) e Javier
70 evidencia-se como o caso de estudo Abarca15. Abarca parte de uma análise anco-
mais desenvolvido, desde o reconhecido rada nas subculturas e traça elementos con-
e amplamente divulgado estudo de Craig ceptualmente comuns, já Anna Waclawek
Castleman publicado em 198211 na realida- faz uma análise sobretudo cronológica com
de antecedido pelo primeiro estudo acadé- recurso aos “visual culture studies”.
mico sobre o Graffiti subcultural de NY em
1978 por Andrea Nelli12. Para além de livros ou teses totalmente de-
dicadas aos temas do Graffiti e ou Street Art
A abordagem da área da criminologia (cul- existem também muitos artigos ou capítu-
tural) ganha vigor após o trabalho desen- los isolados importantes. Destes artigos,
volvido por Jeff Ferrel13, e a primeira pu- provavelmente, o mais reconhecido será o
blicação académica originária do campo de Jean Baudrillard “Kool Killer ou l’insur-
rection par les signes” (1976)16. De referir
vista académico. Pela sua característica ter- académicas integram-se também os catálo-
ritorial, mas também de discurso que se gos e monografias decorrentes de exposi-
faz para fora e não em exclusivo para den- ções. Aqui o número de publicações é bas-
tro da subcultura, veio permitir abordagens tante vasto, e com a excepção de alguns
de aproximação por parte das disciplinas exemplos que abordam diretamente a rela-
de projeto como design e arquitetura. Seja ção entre Street art e Graffiti27, estas publica-
de um ponto de vista da análise do discur- ções traduzem sobretudo as estratégias de
so sobre o território e seu mapeamento17, abordagem na perspectiva do autor ou das
ou a partir das lógicas de participação e ou instituições como no exemplo do livro Art
colaboração18, na relação com o lugar19, en- in the Streets da exposição homónima do
fim todo um conjunto de referências acadé- MoCa de Los-Angeles em 201128.
micas (teses e publicações resultantes de
investigações) relacionadas com a proble- 1.2 Modelos
mática do espaço público urbano que abor- São vários os modelos de interpreta-
dam direta ou indiretamente formas identi- ção (histórica e conceptual) do Graffiti e
ficáveis como de Street Art, ou Urban Art. da Street Art. No livro Spraycan Art29, de
1987, vem documentado e publicado um
1.1.2 Na componente não académica é mural feito por Chris Pape que retratou o
vastíssimo o número de publicações20 exis- que se considerava uma visão histórica do
tentes e em produção. Existe um conjunto Graffiti à época. Um mural auto explicati-
significativo de colectâneas que recolhem vo com reproduções do estilo e pseudó-
uma amostragem local e ou global21, com nimos relevantes na sua perspectiva. Este
enfoque no género, e ou em tipologias es- é um dos exemplos de vários modelos.
pecificas de intervenções como o clássico Outro exemplo, mais recente, é o cartaz pro-
de 1984 Subway Art de Martha Cooper e duzido por Daniel Feral, Graffiti and Street
Henry Chalfant22. art (2011). Este póster recria o esquema
gráfico criado por Alfred H. Barr Jr. para a
exposição Cubismo e Arte Abstrata, que se
<<
realizou no MOMA de NY em 193630. Con-
sistindo na descrição cronológica e com re-
ferências a conceitos e locais, Feral, inicia a
sua proposta de modelo de interpretação
na sequência do gráfico de Barr.
tente de marketing da Urban Art que poten- recente de Portugal os muros das cidades
cialmente mais tarde a irá comercializar. foram, por excelência, a plataforma para a
comunicação38.
2 – Em Lisboa
2.1 – Breve introdução Estas actividades abrandaram de ritmo e con-
A cor das fachadas de Lisboa tem sido fru- finaram-se a meios mais convencionais após
to de controvérsias e diversos contributos a entrada de Portugal na CEE (depois UE) em
ao longo do tempo33. O tema foi o assunto 1983. Já no fim da década de 1980 os murais
central num ciclo de conferências organiza- que resistiram foram-se degradando.
do pelos Amigos de Lisboa em 1949, con-
vidando conhecidos intelectuais, artistas No início da década de 90 começaram a sur-
plásticos e arquitectos para discutir normas gir assinaturas do tipo “tag” a par com ex-
municipais34. pressões gráficas mais ou menos criativas,
como stencil. Inicialmente em locais especí-
O branco – enquanto cor global na (e da) ficos como ao longo das linhas de comboio
cidade de Lisboa – parece em geral residir suburbanas, auto-estradas, etc. Surgiram
na sua frequente referência por antigos via- também a colagem “selvagem” de cartazes
jantes, escritores e pintores (sobretudo os de concertos, touradas, circos e políticos.
anteriores ao século XVIII)35. Estudos pelo
LNEC a pedido da CML confirmaram a Com o evento Lisboa Capital Europeia da
existência, também no Rossio, de estratos Cultura em 94 e a Expo 9839 estas ocorrên-
de revestimentos acabados com guarne- cias diversificaram-se em escala e forma,
cimentos em pasta de cal e coloridos com ocupando locais de vivência boémia noc-
amarelo-ocre36. turna como a 24 de Julho, Santos ou Bairro
Alto. Coincidência ou não esta dinâmica ga-
Segundo Eduardo Nery37, mais tarde, o am- nhou particular força em Lisboa quando em
biente social e político ditatorial do Estado 2003 a autarquia de Barcelona fez aprovar
Novo caracterizou-se pela sobreposição da a “ordenanza de convivencia pacífica” que
<<
aborda a questão das apropriações gráficas em Julho de 2008 na Galeria ZDB) possibi-
informais numa perspectiva de confronto e litou a partilha de opiniões dos principais
erradicação40. actores deste território, incluindo morado-
res, artistas plásticos, jornalistas, autores
De 2004 (Campeonato Europeu de Fute- de Graffiti e Street Art, presidente da Jun-
bol em Portugal) a 2008 (data de despacho ta de Freguesia da Encarnação presidente
municipal que implicou remoção de graffiti, da Associação de Comerciantes do Bairro
street art, cartazes e ou outras inscrições41) Alto, e técnicos municipais. Destes encon-
foram os anos em que se tornava por de- tros surgiu a conclusão de que seria impor-
mais evidente a intensidade e presença das tante dar espaço a algo mais do que me-
camadas de vários anos de apropriações ramente um projecto de limpeza, teria de
gráficas informais em Lisboa, particular- existir uma componente de mediação cul-
mente no Bairro Alto. tural no projecto de reabilitação urbana.
bana, neste texto é feita a referência à práti- ção, onde há a ruptura dos pressupostos
ca “artística” de desenhar a cidade, de pré- não comissionados, surgem aqui tipos de
-urbanistas culturalistas como John Ruskin Arte Urbana que se podem designar de mu-
ou William Morris e posteriormente ao ur- ralismo contemporâneo, ou arte pública.
banismo culturalista de Camillo Sitte e Ebe-
nezer Haward50. Seguindo este padrão propõe-se uma sub-
divisão da Arte Urbana em Lisboa (2008–
Ou seja, se por um lado, no contexto da rea- 2014) por: 2.3.1 Arte Urbana como desenho
bilitação urbana do Bairro Alto, na aplicação da cidade e signos visuais; ; 2.3.2 Arte Urba-
do termo Arte Urbana é clara a intenção de na como Graffiti e Street Art; 2.3.3 Arte Urba-
afastar a relação direta com a Street Art ou na como Street Art Murals, Murais de Arte
Graffiti subcultural, por outro lado tentando contemporânea, Arte Pública e ou Urban Art.
manter-se a ligação aos aspectos não co-
missionados do fenómeno desassocia-se 2.3.1 Arte Urbana como desenho da
de práticas próximas da escultura pública cidade e signos visuais
ou arte pública. Este assumir de relações Esta proposta de tipologia de Arte Urbana
ocorre num contexto onde é simultanea- é a menos definida, mas todavia será a mais
mente relembrado o uso da Arte Urbana preponderante durante o nosso quotidiano.
como desenho urbanístico. Indo ao encontro das designações da ten-
dência urbanística culturalista, do desenho
Assim e pela análise até agora desenvolvida das cidades como desenhos com “arte”, in-
tornam-se preponderantes 3 tipologias de clui-se aqui também a dimensão do dese-
fronteiras esbatidas dentro do que se pode nho pelo uso, pela necessidade, da arqui-
designar por Arte Urbana na adopção de tetura sem arquitetos51, que no contexto
2008 pelo Município de Lisboa: português poderá apoiar-se em referências
tão distintas como Orlando Ribeiro52, Raul
A tipologia de formação, onde se incluem Lino53 ou o Inquérito à Arquitetura Popular
tipos de aplicação da expressão Arte Urba- Portuguesa54.
<<
Signos visuais nas suas vertentes, isoladas em grande medida, efémeras, destacando-
ou conjugadas, de: ícones, índices (sinto- -se, sobretudo, pela sua visibilidade mo-
mas) e símbolos55. mentânea; por este facto aumentando os
aspectos relacionados a acção e não tanto
O âmbito espacial da produção informal de com a forma. Todavia, existem também ele-
signos visuais reflecte-se sobretudo na di- mentos que persistem ao tempo, padrões
mensão de proximidade, aquela que é al- e locais de constante utilização, autores e
cançável fisicamente pelo utilizador na sua mundos relacionais do Graffiti da Street Art
vivência quotidiana. Nesta dimensão a arte a analisar.
urbana para além de ser de autor anónimo,
o próprio autor poderá estar na condição Esta tipologia é central na medida em que é
de não estar consciente da sua produção. a partir dela que se justificam e estruturam
as restantes. É pela prevalência de Graffiti e
Arte Urbana como signo visual é abrangen- Street Art nas cidades em geral e em parti-
te, e inclui: caminhos de pé posto; cartazes cular em Lisboa (quantidade anónima e de
sem autorização; desgaste de escadas cau- qualidade questionável) que pressiona o
sado pela passagem de utilizadores; profu- debate, análise e abordagem ao tema.
são de assinaturas (tags) em superfícies vá-
rias; etc. A identificação do seu valor nesta Existe bastante informação disponível em
dimensão será possível sobretudo olhando termos internacionais, e também alguma
para as características do suporte, descu- informação, em termos nacionais apesar
rando a interpretação da mensagem, obser- de não totalmente sistematizada nomeada-
vando sim quais as qualidades do suporte mente em publicações de caracter acadé-
em função por exemplo: dos signos visuais mico. Iniciando por estas será de referir os
identificados, qualidades de visibilidade, da trabalhos de Ricardo Campos56 e Lígia Fer-
textura da superfície, acessibilidade, simbo- ro57 como os iniciadores da análise desta ti-
lismo, entre outras. pologia de Arte Urbana em termos acadé-
micos nacionais.
2.3.2 Arte Urbana como Graffiti e Street
Art Nas publicações não académicas encon-
Nesta categoria enquadram-se as designa- tram-se tentativas ainda no seio da subcul-
ções de Graffiti subcultural e Street Art con- tura, quer de forma amadora quer de forma
forme descrito supra, Graffiti da subcultura estruturada pela primeira vez com a revista
já referida dos anos 60, já que a designa- Subworld. Para além de artigos vários que
ção Graffiti no sentido atribuído pelos ar- durante os últimos anos de 1990 foram ani-
queólogos de Pompeia enquadra-se no mando a comunidade de praticantes em
ponto anterior (2.3.1). franco crescimento, nos primeiros anos de
2000 inicia-se um conjunto de publicações
É evidente que as produções de Graffiti e dedicadas e maior seriedade com a Visual
Street Art, com as suas formas e acções, são, Street Pefromance, de 2007, publicação que
<<
Por esta razão, sem o referente do Graffiti De forma distinta à da interpretação da de-
subcultural ou Street Art (categoria descri- signação internacional Urban Art a Arte Ur-
ta em 2.3.2), dissolve-se em transformações bana de 2008 não se afirma inicialmente no
que a vão gradualmente tornando outra contexto comercial, mas sim no contexto
coisa (exemplo: Arte Pública, Arte Contem- institucional, especificamente do Município
porânea). de Lisboa.
2010. p.33-47 criminality, Boston: Northeastern, (1984) Subway Art. New York:
3
Hannerz, Erik, (2013) Performing University Press Thames and Hudson.
Punk – Subcultural Authentications 14
Stewart, Jack (1989) Subway 23
Mailer, Norman (1974) The Faith
and the positioning of the Graffiti: An Aesthetic Study of of Graffiti. New York: Praieger
Mainstream, Diss. Uppsala: Graffiti on the subway system of Publishing..
Uppsala University. p.29-42 New York City, 1970-1978. Diss. 24
Caputo, Andrea (2009) All City
4
Bengtsen, Peter (2014) The Street New York: New York University. Writers: the graffiti diaspora.
Art World, Lund. 15
Abarca J. (2010) El postgraffiti, Bagnolet: Kitchen93.
5
Waclawek, Anna (2008) From su escenario y sus raíces: graffiti, 25
Almqvist, Bjorn & Sjostrand,
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Negotiating Art Worlds, Urban Madrid: Universidad Complutense. 3, Trans Europe Ex-press. Astra:
Spaces, and Visual Culture, 1970- 16
Baudrillard, Jean (1993) Simbolic Dokument.
2008, Diss. Montreal: Concordia Exchange and Death. London: 26
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University. p.122 Sage Publications. & Stamer, Karl (2009). Kings Way
6
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Brook, Richard, NICK Dunn – bebinnings of australian graffiti:
(1998) 5000 Artists Return to Artist (2011) Urban Maps, Instruments of Melbourne 1983-93. Melbourne:
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7
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Sanoff, Henry, (2000) Community Street Art: The Graffiti Revolution.
8
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of Mississippi. p.15 19
Cowan, Robert (2001) Streets, New York: Skira Rizzoli.
9
Macdonald, Nancy (2001), Placecheck: a users’ guide. 29
Chalfant, Henry & Prigoff, James
The Graffiti Subculture: youth, London: Urban Design Alliance. (1987) Spraycan Art. London:
masculinity and identity in London 20
Por exemplo o livro sobre Thames and Hudson. p.13
and New-York. Basingstoke: livros de C. Omodeo que 30
Barr, Alfred (1936) Cubism and
Palgrave. p.2-3 contém a referência e breve Abstract Art. New York: Museum of
<<
Modern Art. 39
Exposição Internacional de ISCTE-IUL. p.209
31
Bengtsen, Peter (2014), p.67. Lisboa de 1998[1] , cujo tema 45
Lobo, Margarida Sousa (1995)
32
Collings Matthew (2008), foi “Os oceanos: um património Planos de Urbanização. A Época de
Banksy’s ideas have the values of a para o futuro”, realizou-se em Duarte Pacheco, Porto: DGOTDU/
joke. NY: The Times, 28 de Janeiro Lisboa, Portugal de 22 de maio FAUP. p. 13
33
Assunto abordado por exemplo a 30 de setembro de 1998. Teve 46
José Manuel Ressano Garcia
em artigo de Eduardo Rodrigues o propósito de comemorar os Lamas (2000) Morfologia Urbana e
de Carvalho sobre “O colorido 500 anos dos Descobrimentos desenho da cidade. 2ª ed., p. 152.
dos prédios de Lisboa”, publicado Portugueses. 47
Regatão, José Pedro (2007) Arte
na Revista Municipal, n. º 3, 1949, 40
Para mais informações sobre Pública e os Novos Desafios das
pp.11. esta medida consultar: http:// Intervenções no Espaço Urbano.
34
Com a participação de Pereira www.bcn.cat/publicacions/b_ Lisboa:.Bond.
Coelho, Abel Manta, Carlos informacio/bi_93/convivencia_ 48
Carvalho, Jorge Ramos; Câmara,
Botelho, Martins Barata, Diogo castella.pdf (visitado em Silvia (2014) Lisboa, Capital da Arte
de Macedo, Norberto de Araújo, 12/10/2015) Urbana, revista On the W@terfront,
Armando de Lucena, Cristino da 41
Despacho sobre sobre regime nº30, Barcelona
Silva, Paulino Montez, Gustavo de horários para o Bairro Alto do 49
Esta brochura acompanha uma
de Matos Sequeira, e ainda o então Presidente da Câmara de caixa com postais que reproduzem
“anónimo” João Triste ; Sequeira, Lisboa, António Costa, a 14 de paineis executados na calçada
M. (1949) A cor de Lisboa. Outubro de 2008. da glória, actividade promovida
Depoimentos de Amigos de 42
Ver noticia (consultado a pela CML com o apoio da marca
Lisboa. Lisboa: Olisipo 45. 12/10/2015) http://www.publico. de vestuário Friday’s project em
35
Aguiar, J. e Veiga, R. (editores), pt/local/noticia/plano-para- Outubro de 2008.
Revestimentos de paredes em limpar-bairro-alto-preve-processo- 50
Choay, Françoise (2003) O
edifícios antigos, Cadernos sumario-para-graffiters-1345890 Urbanismo: Utopia e realidades de
Edifícios nº2, Outubro, Lisboa, 43
Aprovada a elaboração do uma antologia; São Paulo: Editora
LNEC, 2002. plano, termos de referência, Perspectiva. p.115, p.203
36
Aguiar, José, 2003, Planear e dispensa de avaliação ambiental 51
Rudofsky B (1964) Architecture
Projectar a Conservação da Cor e abertura do período de without architects: A shoort
na Cidade Histórica: experiências participação pública preventiva, introduction to non-pedrigreed
havidas e problemas que na reunião de Câmara de 21 de architecture. London: Academy
subsistem, LNEC, Comunicação ao Julho de 2010, de acordo com a Editions.
III ENCORE, Lisboa proposta nº 408/2010.Participação 52
Ribeiro, Orlando (1945) Portugal,
37
Nery, E. (1987) A cor de Lisboa. Preventiva de 26 de agosto de o Mediterrâneo e o Atlântico.
Lisboa: Povos e Culuras 2. p.571- 2010 a 7 de outubro de 2010. Coimbra: Coimbra Editora.
593 44
Ferro, Lígia (2011) Da rua para 53
Lino, Raul, (1918) A Nossa Casa –
38
Mascarenhas, João Mário, o mundo: configurações do Apontamentos sobre o bom gosto
(1998) Murais de Abril (1974), graffiti e do parkour e campos na construção de casas simples,
Biblioteca-Museu República e de possibilidades urbanas Diss. Lisboa: Atlântica.
Resistência, Lisboa Departamento de Sociologia do 54
AA.VV (1961) Inquérito
<<
Escultura e a Re-Simbolização do Espaço
Público no Pós-25 de Abril: A Evocação de
“Os Perseguidos” em Almada
através da substituição do nome das arté- a sua dinâmica popular, levar à comunidade
rias conotadas com o tempo da ditadura o esclarecimento político e o debate sobre
por novos nomes identificados com a resis- o planeamento urbano local em novas for-
tência antifascista e ou evocativos dos valo- mas de organização comunitárias.
res da Revolução. E não foi por acaso que as
primeiras esculturas fossem colocadas no Foi neste momento de profundas alterações
centro cívico de Almada em 1974 e 1979. nos modos de relacionamento, de aproxi-
mação à realidade social, que se atuou na
Em Almada sentiu-se bem toda a capacida- transformação direta do espaço urbano. As
de de iniciativa do período revolucionário. equipas que trabalharam no terreno eram,
A descentralização do aparelho de Estado em muitos casos, multifuncionais nas quais a
e a operacionalidade técnica do Município componente de animação cultural ganhava
contribuíram para que o ‘poder autárquico’ sentido interventivo junto das populações.
fosse consolidado em sintonia com a ‘mobi- O período revolucionário moldou a visão
lização popular’, de modo a serem implan- e a ação de muitos artistas comprometidos
tadas medidas mais focadas na procura de com as profundas alterações da realidade
formas alternativas de gestão administrativa social portuguesa a partir de 1974. Metafo-
com pendor participativo: um movimento ricamente, os resultados das ações coletivas
impulsionador de grandes avanços na salu- de grupos de artistas plásticos ou popula-
bridade e qualidade de vida mediante um res sobre esculturas públicas depois do 25
trabalho conjunto com as populações. Deu- de Abril, poderão ser encarados como o iní-
-se assim um primeiro passo para o contro- cio e fim de um período de ‘arte com a revo-
lo do processo de urbanização clandesti- lução’. Falamos do ato público do amorta-
na do concelho, aprovaram-se medidas de lhar da estátua de Salazar no Palácio Foz, “A
contenção das políticas urbanas herdadas arte fascista faz mal à vista”, no dia 28 maio
do antigo regime e, por outro lado, pro- de 1974, pelo Movimento Democrático dos
moveram-se políticas de infraestruturação Artistas Plásticos4. E no lado oposto da revo-
e saneamento em áreas problemáticas do lução, em fevereiro de 78 a tentativa de re-
<<
colocação da cabeça na estátua de Leopol-
do de Almeida alusiva a Salazar, em Santa
Comba Dão, por um grupo de cidadãos, um
ano depois de Portugal ter pedido oficial-
mente a adesão à CEE (5 de abril de 1977)5.
Por outro lado, está presente nesta nova Em Almada, o processo de urbanização do
realidade a dimensão política, e por con- Centro Cívico foi sinónimo da hierarquiza-
seguinte de expressão de poder, que as ção funcional e morfológica da vivência da
potencialidades de efabulação simbólica cidade. Isto é, a visão planificadora de De
do espaço vão permitir ao novo regime, Gröer previu o assento das classes sociais
já que a identidade coletiva encontrou os segundo critérios de estratificação social.
seus ecos na forma como o espaço se reor- As classes trabalhadoras e porventura mais
ganizou ao nível simbólico. pobres, que procuravam as rendas baixas
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
mente a presença do jardim público, tribu-
nal, bombeiros, igreja e mercado.
<<
todos na sua construção. Argan (1993:255) interveio quando se chegou ao processo de
já salientara a impossibilidade de se discutir instalação da obra no antigo Jardim Sá Li-
a possibilidade da escultura sem a confron- nhares17, que fora renomeado em Agosto
tar com o ambiente urbano que a abarca: de 1974 como Jardim Doutor Alberto Araú-
jo, e que viria a receber o busto18 deste,
“(...) a cidade está para a sociedade assim concebido por Vasco da Conceição em De-
como o objeto está para o individuo. A so- zembro do mesmo ano19.
ciedade se reconhece na cidade como o
individuo no objeto; a cidade, portanto, é O busto seria realizado pelo escultor que
um objeto de uso coletivo. Não só isso, a já participara na conceção do ‘incomple-
cidade também é identificável com a arte to’ monumento ao Estatuto Nacional do
porquanto resulta objetivamente da con- Trabalho para a Costa da Caparica, no 10º
vergência de todas as técnicas artísticas na aniversário da colónia de férias ‘Um Lu-
formação de um ambiente tanto mais vital gar ao Sol’, da FNAT, em 1948. Vasco da
quanto mais rico em valores estéticos”. Conceição deixou bem vincado, nos anos
40, e aproveitando a temática e o contex-
Provavelmente, o modelo de implantação de to da execução da obra na colónia de fé-
escultura na cidade apostou numa decisão rias, o seu comprometimento estético e
compartilhada entre a administração local e a principalmente político com o neorrealis-
população nos anos subsequentes à Revolu- mo, confrontando as estruturas da FNAT
ção. Não é obra do acaso o facto de a maior e da organização corporativa do trabalho.
parte dos monumentos da primeira década No entanto, aquela que foi a sua primeira
de democracia terem sido inaugurados pela obra em Almada em democracia não tem o
administração local sob a bandeira da subs- mesmo fulgor da anterior: pareceria que o
crição pública, à qual esteve normalmente resultado estava amarrado ao comprome-
associada uma comissão promotora consti- timento político que a homenagem impu-
tuída por ilustres personalidades locais. nha no momento da Revolução.
<<
O monumento Os Perseguidos e uma ter sido feita sem qualquer traço de enco-
nova organização simbólica da cidade menda e apenas em reação à situação polí-
Tinham passado três anos sobre a Revolu- tica que se vivia no momento, um protesto
ção, e no primeiro ano de mandato de José à ‘farsa’ eleitoral de Marcelo Caetano, coin-
Martins Vieira na Presidência da Câmara cidindo com um ano em que a repressão
de Almada, após as primeiras eleições li- mais se fez sentir no concelho22.
vres para o Poder Local em 1976, o Jornal
de Almada, na sua edição de Novembro de Assim, decidiu a autarquia adquirir a obra
197720, noticiava que o Município manifes- de Anjos Teixeira que seria inaugurada em
tara publicamente a vontade de erigir uma 1979, dez anos passados sobre a sua conce-
nova estátua para Almada. ção. O local escolhido para implantar a es-
cultura foi o Largo do Movimento das For-
Foi o vereador da Cultura, o jovem Francis- ças Armadas no coração do centro cívico de
co Simões21, que acabara de concluir o cur- Almada, embora se salientasse na proposta
so de Escultura na Academia de Música e levada a reunião de Câmara23, que a esco-
Belas Artes da Madeira e que naturalmen- lha deste local não se sustentava numa de-
te se terá cruzado com o professor escultor cisão, mas era uma mera sugestão, estando
Pedro Anjos Teixeira naquela instituição, o local definitivo dependente de uma aus-
confrontou-se com a existência de uma sua cultação popular que nunca ocorreu.
escultura denominada ‘Os Perseguidos’, de
1969. Esta terá sido concebida por Anjos À data da inauguração ainda não se con-
Teixeira como ‘obra protesto’ em solida- seguira reunir a verba total para cobrir os
riedade para com os homens e mulheres custos para a realização do monumento,
do povo e com os intelectuais antifascistas angariada através de uma subscrição pú-
perseguidos pela ditadura. Respondendo blica24, assumindo assim a contribuição vo-
na perfeição ao sentimento da viva home- luntária dos cidadãos como forma coletiva
nagem dos almadenses a todos os antifas- de homenagem aos seus conterrâneos an-
cistas locais. tifascistas. Este assunto trouxe alguma con-
trovérsia em sessão de Câmara, já que, no
A história desta escultura funde-se com a momento de discussão da aprovação do
história do próprio escultor. Pedro Anjos valor de encomenda da fundição, o verea-
Teixeira foi um opositor assumido do regi- dor Jorge Martins fez uma declaração de
me fascista. Este já sentira na pele os efei- voto, destacando na ocasião a necessida-
tos da perseguição e saneamento político. de de o dinheiro investido poder ser apli-
E o vereador aconselhou a sua aquisição cado em outras rubricas mais prementes,
num contexto local de reafirmação dos va- além de salientar que estava em curso uma
lores da revolução e exacerbação da cultura subscrição pública e era necessário esperar
como uma conquista do novo poder local pelos resultados da angariação para perce-
eleito. Além disso, um fator de valorização ber que tipo de investimento o Município
simbólica da obra estava no facto de esta teria de fazer. No entanto, a Câmara confir-
<<
rio corticeiro, um intelectual, uma mulher,
um representante dos mais sacrificados na
luta pela liberdade e por um jovem”31 re-
latava-se na sessão. Foram também desta-
cados os nomes de antifascistas carismáti-
cos, como Cândido Pires Capilé, morto a
tiro numa artéria da cidade, Alberto Araú-
jo, que sucumbiu aos maus tratos na prisão
e já fora homenageado em Almada, Álva-
ro Ferreira e Augusto Valdez que passaram
longos anos no Tarrafal. Ato inaugural do monumento Aos Perseguidos, no dia 24 de
junho de 1979, na Praça do Movimento das Forças Armadas,
integrado nas festas da cidade de Almada.
Martins Vieira32 referiria no ato inaugural Fonte: Flores (1985: 255)
<<
A Escultura na cidade: a reconstrução
da memória
Os novos órgãos autárquicos não enceta-
ram, logo em 1974, uma política de abafa-
mento e ocultação dos elementos escultó-
ricos de simbologia fascista na cidade. Os
pouco relevantes monumentos preexisten-
tes estavam predominantemente ligados a
causas civis. No entanto, consideramos o
Monumento aos Mortos do Ultramar na Tra-
faria, como aquele que foi sujeito à elimina- O monumento Aos Perseguidos em 2007, na Praça do
Movimento das Forças Armadas em Almada.
ção dos seus símbolos fascistas pela ação
Fonte: Anabela Luís/ Câmara Municipal de Almada
política revolucionária.
Inauguração do monumento a Fernão Mendes Pinto, a dia 31 Foi com a época marcelista e num momento
de dezembro de 1983, no Pragal.
de maior autonomia política na área autár-
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
no primeiro aniversário da cidade de Alma- Em Almada, ainda hoje, a identidade dos
da em 1974, que inicialmente foi concebido lugares é indissociável do fortalecimento
para ser colocado sobre um aparato céni- de uma ‘memória histórica’, sendo deter-
co de jorros de água de uma fonte monu- minante o domínio simbólico do espaço
mental e na Praça S. João Baptista, no prin- público pela autarquia, ao implantar mon-
cipal eixo da cidade, onde se construiriam umentos de cariz politizado, influenciando
os novos Paços do Concelho. Ali apresen- e estabelecendo parâmetros significantes
tava-se como um objeto impositivo na ci- para a construção de uma memória do lu-
dade, ou seja, a afirmação local, política e gar. Ou seja, a administração local foi con-
pública de uma instituição administrativa struindo ao longo de 40 anos uma narrativa
vital para o Estado Novo. E depois, já nos histórica própria, adequada à afirmação dos
anos 80, o monumento acabou sobre um valores democráticos que o novo regime
plinto em betão vigoroso e simples, numa em 1974 manifestou de forma contundente
relação compositiva aprovada provavel- sobre o espaço público.
mente por António Duarte e de acordo com
os postulados compositivos do monumen-
to maquetado dez anos antes. Pressupondo
obrigatoriamente uma leitura do conjunto
de baixo para cima. E, agora localizado fora
do lugar de celebração do regime (o Cen-
tro Cívico), no sítio onde Fernão Mendes
Pinto terá vivido e morrido em 1583, no Pra-
gal, valorizou-se com a sua implantação a
dimensão humanizada do homenageado,
contrariando o inicial pendor historicista e
celebratório da ditadura.
<<
Policarpo & Mateus (1999 2005: diga-se que a 2 de fevereiro de 8
Câmara Municipal de Almada
206), como vogais Ana Maria 1975 realizou-se a Assembleia (1974, Mai. 30). Reunião de
Correia Antunes, António de Popular do concelho de Almada, Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro
Almeida Santos, Eduardo Ferreira reunindo 400 delegados das 84, fl. 157v).
Alcântara, Fernando de Brito organizações populares e 9
Câmara Municipal de Almada
Mateus, Herculano Rodrigues institucionais existentes no (1974, Jul. 4). Reunião de Órgãos
Pires e Nuno Manuel Perfeito concelho. Autárquicos. (Atas). (Livro 84, fl.
Cabeçadas. No dia 23 de maio a 4
Deste movimento fazia parte, 191).
comissão entrou em atividade até entre outros, Rogério Ribeiro, 10
Câmara Municipal de Almada
ao dia 12 de dezembro de 1976, um dos seus fundadores e (1974, Ago. 8). Reunião de Órgãos
data das primeiras eleições para as posteriormente ligado de forma Autárquicos. (Atas). (Livro 85, fl.
autarquias. intensa a Almada. 41-42).
2
Importa referir que sobre este 5
Como salienta Oliveira 11
Câmara Municipal de Almada
assunto, Ricart & Remesar (2014) (1996: 362) a adesão à CEE na (1974, Ago. 16). Reunião de
discutem de forma impressiva as perspectiva de Mário Soares Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro
‘estratégias da memória’ por parte — Primeiro Ministro vindo das 85, fl. 48).
da municipalidade de Barcelona eleições Legislativas de 1976 — 12
Homenagem que tinha sido
confrontada com a necessidade de “(...) a integração de Portugal no organizada pelos partidos políticos
equacionar o seu passado através processo de construção europeia da Coligação Governamental,
da gestão do seu património implicava uma tríplice garantia: com o apoio do Movimento
e da arte pública na cidade, era, em primeiro lugar, um Democrático Português, do
num processo de normalização acordo de regime entre aquelas Movimento da Juventude
histórica. A recuperação de forças políticas que defendiam a Trabalhadora e Movimento
elementos ou monumentos democracia representativa; era, Democrático da Mulher. [Câmara
derrubados pelo franquismo, ou depois, a ‘protecção’ exterior Municipal de Almada (1974,
a eliminação dos monumentos para o próprio processo de Ago. 16). Reunião de Órgãos
franquistas e as homenagens consolidação e enraizamento Autárquicos. (Atas). (Livro 85, fl.
realizadas na democracia, são da democracia e, finalmente, 48)]
reflexo de uma política de atuação a afirmação de um novo 13
Câmara Municipal de Almada
sobre o espaço público que vem posicionamento de Portugal no (1974, Dez. 12). Reunião de
sendo desenvolvida sob o lema concerto das Nações”. Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro
‘década da memória histórica’. Os 6
Arquitecto-Urbanista Etiénne 141-142, Ata 47, fl. 2)
autores concluem que a política de De Gröer: Plano Parcial de 14
Destaque (1999, Jan.). Boletim
supressão de símbolos sem uma Urbanização de Almada Relativo Municipal. (36), 2. Almada.
estratégia efetiva de regeneração à Localização do Centro Cívico, 15
José Alaiz, que viria a falecer
monumental do lugar, leva à 1947. nesse mesmo ano, esteve sempre
permanência de espaços sem 7
Arquitectos-Urbanistas Etiénne ligado ao movimento associativo
memória. De Gröer e Faria da Costa: Plano almadense. Foi fundador do
3
Como exemplo da importância Geral de Urbanização de Almada, quinzenário A Voz de Almada,
das organizações populares s/ data (2ª metade anos 40). publicado pela primeira vez a 1 de
publicações de índole literária. (1977, Out. 21). Reunião de ficou por dizer na Inauguração do
Acabaria por morrer vítima das Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro Monumento. Jornal de Almada.
sequelas do desterro no Tarrafal. 146, Ata 24, fl. 110) Almada.
17
O Comandante Sá Linhares foi 24
O monumento aos Perseguidos 29
Os Nossos Monumentos. (1978,
presidente da Câmara Municipal foi adquirido por subscrição Jan.). Autarquias Povo. (1). Almada.
de Almada entre 1947 e 1951, pública para não sobrecarregar 30
Monumento ‘Os Perseguidos’
imediatamente anterior a Aquiles o orçamento da Câmara, em: inaugurado em Almada.
Monteverde. Monumento em Almada aos Homenagem do povo do
18
Transcrição do texto gravado Perseguidos pelo Fascismo. (1979) Concelho aos Resistentes
na parte traseira do pedestal O Diário. Lisboa. Antifascistas. (1979, Jul./ Ago./
do busto: Vitima do fascismo 25
Esta adjudicação vem de Set.). Autarquias Povo. (12).
ainda jovem; professor do liceu; despacho da presidência de 5 de Almada.
foi atirado para o Campo de abril de 1978 e o valor em causa 31
Almada ergue Monumento aos
Concentração do Tarrafal onde foi de trezentos e cinquenta mil Perseguidos. (1979, Jun. 23) A
suportou todas as violências escudos para uma peça que no Capital. Lisboa.
ali praticadas; poucos anos final teria 2 metros de altura sobre 32
Inaugurado monumento em
após a saída daquele campo base em pedra com 1,5 metros. Almada aos perseguidos pelo
da morte veio a falecer vítima Em: Câmara Municipal de Almada fascismo. (1979, Jun. 25) Diário de
de tuberculose agravada pelos (1978, Mai. 19). Reunião de Notícias. Almada.
trabalhos forçados a que foi sujeito Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro 33
As lutas dos antifascistas
durante 8 anos. 147, Ata 11, fl. 110) Almadenses foram nomeadas
19
Câmara Municipal de Almada 26
A Câmara Municipal realizaria pelo representante da União
(1976) Relatório de atividades da posteriormente, já em 1982, de Resistentes Antifascistas
Comissão Administrativa. (16 de quatrocentas réplicas do Portugueses, Manuel Cabrita,
maio de 1974 a 30 de novembro monumento aos Perseguidos em bem como as greves de 1942,
de 1976). Almada. material que imitasse o original 43, 45, e 49, e o envolvimento
20
Uma estátua para Almada. com um assentamento em mogno, entusiástico dos Almadenses
(1977, Nov. 11). Jornal de Almada. isto para que o Município fizesse nas eleições presidenciais de
<<
58, apoiando a candidatura do Barbeitos antifascista preso do 41
Logo em 13 de novembro de
general Humberto Delgado, nas Tarrafal. Ainda, uma mulher 1973 a autarquia adjudicou a
manifestações de rua de 1961 e 62 lutadora, um jovem, um operário, Vasco Pereira da Conceição um
e nas campanhas de 1969 e 1973. um representante do movimento monumento que homenageasse
Também se evocaram as figuras associativo, cinco individualidades Columbano Bordalo Pinheiro;
de Alex (Alfredo Dinis), Gabriel galardoadas com a medalha de de seguida, a 18 de dezembro
Pedro e Alberto Araújo, José Elias ouro de Almada, os presidentes de 1973 a Câmara aprovara
Garcia, José Alaiz, José Carlos das Câmaras Municipais do nosso uma encomenda a António
Pinto Gonçalves, Herculano Pires, distrito ou seus representantes, Duarte, com base numa oferta
Felizardo Artur. Reforçava-se assim os presidentes das Juntas e da Câmara Municipal de Lisboa,
a ideia de que o monumento Assembleias de Freguesias do para um monumento que a
era uma homenagem a todos os nosso concelho, os comandantes autarquia decidira ser a Fernão
democratas antifascistas, a ‘todos dos B.V. de Cacilhas e da Trafaria, Mendes Pinto; Apresentar-
os perseguidos’ pelo antigo um representante da União de se-ia igualmente em reunião de
regime. Sindicatos de Almada e a sobrinha Câmara de 5 de março de 1974, a
34
Para consulta da biografia de do conhecido dirigentes do PS, deliberação sobre uma proposta
Pedro Anjos Teixeira ver: Castro, I. Edmundo Pedro. de um Monumento ao Trabalho,
de. (2005). Anjos Teixeira, Artur e 38
Inaugurado um monumento encomendado ao professor
Pedro: vida e obra. Sintra: Câmara aos perseguidos. (1979, Jun. 29). Joaquim Correia, aprovado e
Municipal de Sintra. Jornal de Almada. Almada. mandado erigir na Praça da
35
“Os Perseguidos”: monumento 39
A nova localização foi Renovação (atual Praça do
antifascista a inaugurar na cidade considerada pelo Município Movimento das Forças Armadas) e
de Almada no próximo dia 24 do privilegiada em relação à um monumento ao Bombeiro, do
corrente. (1979, Jun. 06). Diário de anterior, sustenta-se por passar arquiteto Castro Lobo.
Lisboa. Lisboa. a estar localizada sobre um 42
Três meses passados sobre
36
“Os Perseguidos” Nota Alta nas ‘pódio suspenso’ ganhando a Revolução, a nova Comissão
Festas da Cidade. (1979, Jun. 1). protagonismo na envolvente. Administrativa, em reunião de
Praia do Sol. Almada. A passagem do Metro Sul do Câmara presidida por Fernando
37
Subiram ao estrado o Tejo pelo centro da praça torna Proença de Almeida, decidiu
Governador Civil, os presidentes a área uma praça dura, na em consequência da precária
dos diversos organismos qual as tonalidades de pedra situação financeira da Câmara e
da Câmara (havia Conselho se organizam de acordo com com base numa decisão unânime,
Municipal), o embaixador os diferentes usos do solo. comunicar aos escultores a
da Checoslováquia (Almada [Intervenção no centro. Obras suspensão imediata dos trabalho
geminara-se com Ostrava), os em breve na Praça MFA. (2007, de encomenda dos monumentos.
representantes partidários, entre Jun.). Boletim Municipal. (128), 18. [Câmara Municipal de Almada
eles, Herculano Pires pelo PS (que Almada] (1974, Jun. 20). Reunião de Órgãos
viria a ter homenagem póstuma 40
Almada passa de vila a cidade a Autárquicos. (Atas). (Livro 140, Ata
em escultura), Lopes Graça e 21 de junho de 1973 pelo Dec. Lei 23)]
Romeu Correia, também Henrique nº308/73 de 16 de junho.
p o r C r i s t i n a A z e v e d o Ta v a r e s
Professora Associada de Ciências da Arte e do Património na FBAUL e no
PD-FCTAS da FCUL, Investigadora integrada do CFCUL, Head de Arte e
Ciência, investigadora colaboradora do CIEBA.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
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Amadeo, que foi motivo de um quadro de dos temas prediletos de Cézanne. Almada
Eduardo Viana, e motivo para a prisão de figuraria com Eduardo Viana, António Soa-
Viana e do casal Delaunay, devido às suspei- res, Jorge Barradas, Stuart Carvalhais, Ber-
tas de espionagem. Entretanto e desde Maio nardo Marques e José Pacheco, que havia
de 1912, Almada participou em Lisboa no I proposto esta seleção de nomes juntamen-
Salão dos Humoristas Portugueses, depois te com Norberto Araújo, para a decoração
mais duas vezes em 1913 e 1920, afirmando do café que se tornaria símbolo da moder-
a sua posição de transgressão relativamen- nidade de Lisboa e lugar de convívio artísti-
te aos valores tradicionais e académicos, co- co e intelectual durante décadas. Um outra
muns a uma série de artistas incluindo Can- pintura de dimensões razoáveis seria o «Nu»
to da Maia, António Soares, Jorge Barradas, destinado ao vestiário das senhoras, enco-
Stuart Carvalhais ou Botelho. mendado em 1926 para o Bristol Clube, e
que nesse ano por vontade do proprietário
Os anos 20 depois da «aventura futurista» Mário Ribeiro sofre uma remodelação com
foram marcados pela presença de Alma- a colocação de obras de escultores e pin-
da na «Exposição dos 5 Independentes» tores modernistas. Para além de Almada e
(1923), continuando a publicar: «Pierrot e Eduardo Viana, havia ainda esculturas de
Alecrim» de 1924 e «Nome de Guerra» no Canto da Maia e Leopoldo de Almeida. Nu
ano seguinte, e a trabalhar como desenha- pálido, e vertiginosamente alongado, qual
dor no «Sempre Fixe», «Diário de Notícias» Vénus de inspiração modernista, olhando-
e «Diário de Lisboa» e realizando também -se languidamente no espelho, sobressai
cartazes. Colabora na «Ilustração Portugue- o corte do cabelo «a la garçonne» que as
sa» dirigida por António Ferro e no «ABC a estrelas de cinema nos anos 20 exibiam na
rir» e na revista «Contemporânea». Ainda afirmação da modernização de costumes.
em 1925 duas pinturas suas, haviam de ser Um nota de cor vibra em toda a composi-
penduradas na Brasileira do Chiado remo- ção: umas chinelas de salto alto soltas nos
delada então, sendo primeiro mostradas pés, completando a notação erótica.
na S.N.B.A. Tratam-se de «Auto-retrato» e
«Banhistas». A primeira dando conta de um Nos finais de 20, Almada parte para Madrid
auto retrato em grupo em torno de uma colaborando nas revistas Gaceta Literaria,
messa de café, no qual figuravam (da es- no diário El Sol e La Farsa, entre outros, es-
querda para a direita) a bailarina e atriz es- creve duas peças para teatro e realiza em
panhola Júlia de Aguilar, a atriz Aurora Gil e 1929 as decorações murais para vários ci-
o Prof. Dória Nazaré e Almada, dando ecos nemas como o Cine-Teatro San Carlos que
do expressionismo e do cubismo.»Banhis- comemorava a entrada do cinema sonoro.
tas» apresenta numa composição de volu- Regressa a Portugal em 1931, depois de ter
mes planificados, duas figuras femininas em acabado a peça «Público em cena» que só
fato de banho e touca sentadas numa rocha, será publicada postumamente em 1971.
tendo o mar e um barco à vela como pano
de fundo, evocando simplificadamente um
uma exposição individual, e no Clube Ale- nessas figuras de mulheres: a que se afin-
mão uma exposição com o escultor alemão ca na escrita da carta e a que se deleita na
Hein Semke, chegado a Portugal um anos leitura da carta recebida» (...).1 Entre 1939
antes, e o designer suíço Fred Kradolfer, e 1940 realizou os frescos com temas varia-
que desde 1928 estava instalado no nosso dos desde o planisfério e quatro alegorias
país. Ainda em 1933 Almada desenha dois a Portugal e à Imprensa para o edifício do
cartazes para o filme de Cotinelli Telmo «A Diário de Notícias na Av. da Liberdade da
Canção de Lisboa» e um para o Secretaria- traça de Pardal Monteiro.
do de Propaganda Nacional («Votai a Nova
Constituição»), marcando a sua colabora- Em 1941 tem lugar a exposição individual
ção com o Estado Novo. “Almada-Trinta Anos de Desenho”, realiza-
da pelo S.P.N. e também participa na 6ª Ex-
Em 1935 projeta um painel decorativo para posição de Arte Moderna do S.P.N. entre
a Casa da Moeda convidado pelo arquite- outras. No ano seguinte a consagração é
to Jorge Segurado, mas que não vem a ser reconhecida amplamente através da atri-
executado, e no ano seguinte, estuda o pai- buição do Prémio Columbano na 7ª Ex-
nel decorativo para o Café Arcadas no Esto- posição de Arte Moderna do S.P.N. com a
ril em colaboração com o arquiteto Carlos pintura “Mulher” (Lisboa).
Ramos. Com este mesmo arquiteto e o es-
cultor Leopoldo de Almeida realiza o proje- O ano de 1943 traz a encomenda dos
to que concorre ao II Concurso para o Mo- frescos para a Gare Marítimas, através do
numento ao Infante de Sagres. Eng. Duarte Pacheco apreciador da obra
de Almada(segundo o testemunho de
Em 1938 Almada conclui os vitrais de índole Sara Afonso). Iniciam-se os primeiros es-
mais naturalista e inspirados nos textos bí- tudos dos frescos que seriam terminados
blicos para a Igreja de Nossa Senhora de Fá- em 1945 e o tema escolhido pelo pintor
tima na Av. de Berna em Lisboa, edifício de para um dos trípticos foi a lenda da Nau
linhas modernas, projetado pelo arquiteto Catrineta, romance popular, que segundo
<<
Rui-Mário Gonçalves, o pintor considera- pelas mesmas dimensões 6,20 metros de
va que unia a “tradição popular” ao tema altura por 4 de largura. No primeiro fres-
do “mar”2. Almeida Garrett tinha-o incluído co o capitão e o gajeiro do alto dos mas-
no seu Romanceiro (1843-1851) e a prove- tros procuram ver com um óculo as terras
niência tem a ver com o relato da História de Portugal, enquanto os marinheiros de-
Trágico- Marítima em que se narra o nau- sesperados olham para as solas cozidas. A
frágio de um barco vindo do Brasil que fica mesa tem um tambor pousado e cartas de
à deriva por ser atacado por corsários. “A jogar espalhadas, e nas velas está o diabo
Nau Catrineta” evoca a vida dos marinhei- e um esqueleto simbolizando a morte. No
ros portugueses embarcados e à deriva, segundo fresco vemos apenas uma par-
comendo sola que estava de molho desde te dos mastro principal e a as velas com o
a véspera. É uma narrativa com um fundo anjo da guarda a proteger a nau. Ao longe
real misturada com a fantasia, que encarna numa falésia está um cavalo branco, e mais
a luta do bem contra o mal e a saudade. distantes as três filhas do capitão, uma a co-
O gajeiro transforma-se na figura do diabo zer, outra a fiar e a última a chorar. Por fim
que não aceita casar com umas das filhas o terceiro fresco mostra-nos o final, a nau
do capitão - a mais formosa - pois preten- varada, o capitão salvo abraçando as três fi-
de roubar-lhe a alma, mas o capitão res- lhas, rodeado pelos marinheiros e popula-
ponde-lhe: «Renego de ti demónio/Que res, incluindo um marujo e uma mulher de
me estavas a tentar!/A minha alma é só de vermelho que Almada teria visto anterior-
Deus;/O corpo só do mar»3. É a vez do anjo mente e retratou aqui, e no topo esquerdo
bom intervir evitando que o capitão se afo- o anjo da guarda em pé triunfando sobre
gue, e assim a Nau Catrineta acaba por va- o demónio vencido, espezinhado no chão.
rar em terra, terminando num final feliz.
Do outro lado, o tríptico é constituído por
Com esta narrativa, que evoca a epopeia de imagens de Lisboa representando três vis-
um povo, e a presença dos seus valores mo- tas da cidade. Todas elas partem da zona do
rais, Almada apropria-se de um discurso de rio para a urbe e descrevem tarefas carac-
cariz popular- sabendo que essa apropria- terísticas da vida à beira Tejo: no primeiro
ção do popular genuíno era parte consti- fresco, no primeiro plano, mulheres robus-
tutiva do porta estandarte do modernismo tas, as varinas, «seus troncos varonis recor-
por toda a Europa fora - mais do que expor dam-me pilastras»4 cantadas assim por Ce-
um dos aspetos defendidos pela «política sário Verde no poema O sentimento dum
do espírito» de António Ferro, a quem falta- ocidental I Avé- Marias e também Almada,
vam poucos anos para ser destronado. varinas carregando à cabeça canastas de
carvão empilhado em pirâmide, e percor-
A lenda da Nau Catrineta é apresentada rendo descalças um passadiço, tendo por
em três frescos estabelecendo uma conti- pano de fundo os barcos; no segundo fres-
nuidade narrativa que não existe na outra co, em primeiro plano uma vista das trainei-
parede oposta, aliás suportada também ras de chaminés listadas a vermelho e bran-
<<
gare anterior; o outro grupo foca um tema pé olha atentamente para a trapezista. À
novo na obra mural de Almada: a partida frente um barco com o rapaz do tambor, um
das gentes, emigrando para outras para- outro saltimbanco e uma mulher com um ar
gens, através do mar em navios de grande cansado. No último plano estão os popula-
calado, para a América do Sul, Brasil sobre- res de olhos bem abertos, narizes empina-
tudo e também África, assim como a che- dos no ar e pés fincados no chão.
gada de outros.
Do outro lado, apenas o cais com as pes-
A ligação ao rio Tejo e ao mar, não é novi- soas a despedirem-se uns dos outros, os
dade relativamente à narrativa anterior em que partem e os que ficam, tal como José-
Alcântara, mas o tema da emigração e a Augusto França afirmou «Os emigrantes
linguagem mais próxima do cubismo pra- com a sua bagagem de esperança e já de
ticado nos anos do pós-guerra com André saudade» 5, e por último, um homem traba-
Lhote, Pignon e Fougeron, afastam definiti- lhando nas obras do porto subindo os an-
vamente Almada do naturalismo lírico ainda daimes, e por detrás a proa do navio com
presente na gare anterior. um marinheiro. O contraste entre uma nova
vida e o quotidiano de quem fica.
O tríptico evocando Lisboa foca o domin-
go lisboeta à beira Tejo: Um passeio numa A geometria das composições que era sen-
bateira, representando uma mulher tenta tida na primeira gare, é agora muito mais
agarrar um chapéu de palha de criança que saliente pelo jogo de alinhamento das figu-
se precipita na água, um rapaz sentado no ras, pelas retas e diagonais das escadas e
cais segurando uma rede de pesca, um ca- dos guindastes, pelas traves de madeira do
sal abraçado, e no fundo uma janela aber- andaime sobreposto à murada da proa do
ta de uma casa burguesa com um terraço navio. As figuras, ainda na série dos saltim-
por cima, com um jovem casal apoiando- bancos são planificadas, geometrizadas, ou
-se no parapeito, e mais afastada uma trai- cruzando os xailes e os corpos em abraços
neira. O seguinte fresco tem como cenário sofredores, ou ainda como meras sombras
um estaleiro, e retoma o tema das varinas encostadas ao cais. E embora a harmonia
uma com a canasta à cabeça e a outra sen- cromática se rompa aqui e ali em vermelhos
tada apoiando o queixo na mão. Por detrás, saturados, laranjas e azuis, o desenho e a li-
um barco em reparação. Ainda no primei- nearidade dominam as composições como
ro plano estão dois rapazes numa bateira, uma espécie de malha subjacente.
um segura um remo e o outro uma grande
rede de pesca. No último fresco, temos um Tal como foi referido anteriormente estes
grupo de saltimbancos no plano médio: frescos das última gare não foram tão bem
o homem que cospe fogo e os acrobatas, aceites como os primeiros. Sara Afonso6
uma dos quais está agarrada ao trapézio nos seus testemunhos contava que as pes-
por uma perna e uma mão, enquanto um soas não gostavam das gentes dos circo,
faz acrobacias no solo, e a outra figura em os saltimbancos que Almada representou,
<<
– Bibliografia in “PacheKo, Almada e a
Contemporânea”[coord. de Daniel
Almada Negreiros (dir. Joaquim Pires]. Lisboa: Ed. Centro Nacional
Vieira). Lisboa: Ed. Bertrand de Cultura, Bertrand, 1993.
Editora, 2006 (dir. Joaquim Vieira).
Centro Cultural De Belém - – Notas
Almada a Cena do Corpo;
comissário José Monterroso 1
In CENTRO CULTURAL DE
Teixeira. Lisboa: Ed. Fundação das BELÉM - Almada a Cena
Descobertas Centro Cultural de do Corpo; comissário José
Belém, 1994. Monterroso Teixeira. Lisboa:
França, José-Augusto - Almada Ed. Fundação das Descobertas
o Português sem mestre. Lisboa: Centro Cultural de Belém, 1994.
Estúdios Cor, 1974. (pág.101)
Fundação Calouste Gulbenkian 2
In FUNDAÇÃO Calouste
- Os anos 40 na arte portuguesa; Gulbenkian - Almada. Lisboa:
comissário Fernando de Azevedo, Acarte, 1985.
programação José-Augusto 3
In GARES Marítimas Passenger
França. Lisboa: Ed. Fundação Terminals Alcântara Rocha do
Calouste Gulbenkian, 1982. Vol.1 Conde de Óbidos. Lisboa: Ed.
(6 volumes). APL- Administração do Porto de
Fundação Calouste Gulbenkian - Lisboa, S.A., 1999.
Almada. Lisboa: Acarte, 1985. 4
In GARES Marítimas Passenger
Gares Marítimas Passenger Terminals Alcântara Rocha do
Terminals Alcântara Rocha Do Conde de Óbidos. Lisboa: Ed.
Conde De Óbidos. Lisboa: Ed. APL- Administração do Porto de
APL- Administração do Porto de Lisboa, S.A., 1999.
Lisboa, S.A., 1999. 5
In FRANÇA, José-Augusto -
Negreiros, Maria José Almada, Almada o Português sem mestre.
Conversas com Sarah Afonso. Lisboa: Estúdios Cor, 1974.
Lisboa: Ed. Arcádia, 1982. 6
Ver de Maria José Almada
Revista de História da Arte, vol.2 Negreiros , Conversas com Sara
, Almada Negreiros. Lisboa: Ed. Afonso. Lisboa: Ed. Arcádia, 1982
Instituto de História da Arte, FCSH 7
IN FUNDAÇÃO CALOUSTE
UNL,2012 [Consultado 31 de GULBENKIAN - Os anos 40 na arte
Agosto de 2015].Disponível em portuguesa; Lisboa: Ed. Fundação
URL: http/ficheiros/Revista%20 Calouste Gulbenkian, 1982. Vol.1
Almada%20Negreiros.pdf.
Tavares, Cristina De Azevedo,
“José Pacheco e os Novos”,
<<
sensorial, uma vez que as sensações apa- concepção de intervenções artísticas em es-
recem associadas a movimentos e cada ob- paços públicos, onde a utilização do azulejo
jecto convida à realização de um gesto, não se assume como marca fundamental. Partin-
havendo, pois, representação, mas criação, do da problematização dos desafios que se
novas possibilidades de interpretação das colocam à arte pública na sua relação com
diferentes situações existenciais (NÓBRE- o espaço público e seus utilizadores, serão
GA:2008, 142). apresentadas duas intervenções das auto-
ras - Cota Zero (2011) e Vai Vem (2013) –
A proposta da fenomenologia da percep- analisando o modo como estas interagem
ção, aliada aos estudos da Gestalt (dos quais com a toponímia, arquitectura e imaginário
a primeira foi igualmente devedora) estive- da cidade de Lisboa e, em particular, com as
ram na base de muitas das propostas artís- estruturas que as acolhem, ambas ligadas
ticas desenvolvidas ao longo da segunda ao transporte de passageiros – O Ascensor
metade do século XX1, as quais procuraram da Bica (Raoul Mesnier du Ponsard, 1892) e
questionar a percepção da obra de arte por o novo átrio da Estação Sul Sueste (Cottinel-
parte do espectador, através da introdução li Telmo, 1932) respectivamente.
de movimento nas próprias criações artís-
ticas, desafiando, desta forma, o carácter Os desafios da Arte Pública na cidade
estável e unificado da imagem percepcio- contemporânea
nada. Este desejo de interpelação do obser- Desde o final dos anos 60 que se vem as-
vador desprevenido, com vista à criação de sistindo à generalização do conceito de arte
uma conexão sensorial com a obra, tão fu- pública, o qual, não obstante as diferentes
gaz quanto mutável, permanece e renova-se acepções e significados que comporta, en-
(talvez mais do que nunca) no cenário actual contra-se intimamente ligado à ideia de es-
da arte contemporânea, não só em contexto paço público3. Ainda que recorrendo a uma
museográfico e galerístico, mas também, e certa generalização, poder-se-á afirmar que
sobretudo, no espaço público, aquando da o termo arte pública se refere às obras de
concepção de obras que integram o espaço arte e intervenções artísticas concebidas
urbano, renovando estruturas pré-existentes para espaços de acesso público4, com vis-
ou integrando novas edificações. Na base ta à criação de uma relação mais próxima
destas intervenções encontra-se frequente- entre estes e as comunidades e utentes que
mente um desejo de reabilitação e “huma- neles circulam e que com eles se relacio-
nização” destes locais, atribuindo-lhes novas nam5. Ou seja, a arte pública desvela e re-
funções e possibilitando o seu usufruto por vela um lugar, faz parte do quotidiano dos
parte da(s) comunidade(s). seus utentes, e pode dizer-se que simulta-
neamente produz como que uma suspen-
Estes parecem ser os pressupostos do tra- são desse mesmo quotidiano, transforma o
balho de Catarina Almada Negreiros (1972) espaço público em espaço real, povoado
e Rita Almada Negreiros (1969)2, cujo exer- e diversificado, suprime um espaço inicial-
cício da arquitectura é acompanhado pela mente vazio para o tornar transformável e
<<
quitectónica nacional. Para além da neces- (1926-), Manuel Cargaleiro (1927-), entre
sidade de tornar as novas estações visual- vários outros. No contexto do presente ar-
mente apelativas e acolhedoras, restrições tigo considera-se relevante salientar a obra
orçamentais estiveram na base da opção de Eduardo Nery, uma vez que, tal como os
de Keil do Amaral pela integração do azu- revestimentos azulejares criados por Ma-
lejo no revestimento das paredes dos átrios, ria Keil para a rede de metropolitano de
escadarias gares de cada estação, tendo o Lisboa, também os da autoria deste artista
arquitecto escolhido Maria Keil (1914-2012) apresentam polos de contacto com as pro-
para a concepção dos respectivos projectos postas de Catarina e Rita Almada Negreiros.
cerâmicos. Estes deveriam aliar a compo-
nente artística à da funcionalidade do local Eduardo Nery foi um dos primeiros artistas
que os acolhia, segundo os novos pressu- portugueses cuja obra apresentou, ao lon-
postos modernistas, pelo que uma das di- go das décadas de 60 e 70, preocupações
rectrizes impostas foi a do predomínio de semelhantes às do movimento Op Art, no-
uma decoração geométrica, uma vez que, meadamente no questionamento da ambi-
porque os espaços a animar eram zonas de guidade perceptiva do objecto através da
passagem, não deveria haver lugar para mo- exploração e inclusão de jogos de trompe
tivos que provocassem a paragem dos uten- l’óeil suas nas telas e, posteriormente, nas
tes (CASTEL-BRANCO: 2000, 14). Maria Keil tapeçarias e painéis azulejares concebidos.
concebeu assim composições assentes na Com uma régua rodando geometricamen-
sua maioria em padrões geométricos cujos te sobre si própria ou em vários sentidos da
ritmos e dinâmicas não só se adaptassem superfície – como processo despertador de
às características arquitectónicas dos espa- imagem – cria paisagens de abstracta, e ao
ços a revestir (átrios, lanços de escadas, ...), mesmo tempo, lírica espacialidade. (…) O
como ao ritmo apressado dos passageiros10. princípio da economia na aplicação de co-
res (…), o seu limitado uso em degradé, e
Para além destes aspectos, o emprego do os jogos geométricos puros, as figuras pu-
azulejo em grande escala permitiu reabili- ras (círculo, o triângulo, o quadrado, a linha
ta-lo no contexto do movimento moderno recta), os volumes autênticos ou sugeridos
na arquitectura, resgatando-o da secunda- virão estruturar, depois, um alfabeto próprio
rização a que havia sido votado no período e, seguidamente, um discurso, ou mesmo
inicial do Estado Novo. Esta atitude de va- vários discursos, inovador. No qual, ou nos
lorização e exploração das potencialidades quais, o espaço, a condição da espacialida-
do azulejo no espaço urbano encontra-se de, do plano, da profundidade, é sempre o
patente em várias intervenções de arte pú- dispertar da acção visual11 ou de diversas
blica ao longo da cidade de Lisboa (e não acções e, simultaneamente, os seus ecrãs
só), das quais se destacam os trabalhos de (AZEVEDO:1997, 20-21).
Eduardo Nery (1938-2013), Rolando Sá No-
gueira (1921-2002), Querubim Lapa (1925- Tais premissas encontram-se presentes nas
), João Abel Manta (1928-), Júlio Pomar várias obras de revestimento azulejar cria-
dutos da Segunda Circular no Campo Gran- Catarina e Rita Almada Negreiros que, ao
de, em Lisboa; a estação Campo Grande do longo dos últimos anos, em várias das inter-
Metropolitanos de Lisboa (1993); um painel venções realizadas na capital, optaram pelo
de placas cerâmicas e viadutos da Av. Infan- emprego do azulejo, em particular do “azu-
te Santo, Lisboa (1994 e 2002) e uma grande lejo cinético”, concebido em parceria com
intervenção para o exterior da Estação de a fábrica Viúva Lamego e que recupera as
Tratamentos de Água da Asseiceira, em To- dimensões 14x14cm, características da azu-
mar (2010) (http://redeazulejo.fl.ul.pt/noti- lejaria nacional. Este modelo azulejar, cujo
cias,0,589.aspx). As intervenções de Eduar- perfil em ziguezague, aliado ao possível uso
do Nery e Maria Keil são, por isso, exemplos de duas cores e as diferentes configurações
primordiais do emprego do azulejo em es- - plano, com uma dobra, com duas dobras
paços públicos com vista à sua humaniza- ou com quatro dobras -, mostra e propõe ao
ção, tornando-os não só mais atractivos observador, conforme a sua posição, dife-
para aqueles que os utilizam, como, em al- rentes percepções (GONÇALVES: 2011, 16),
guns casos, contribuindo activamente para baseadas nos ritmos e texturas recriadas.
a reabilitação urbana da área envolvente. Tais ritmos dividem-se, segundo as auto-
ras, em dinâmico – resultante da circulação
Cota Zero (2011) e Vai Vem (2013): do transeunte no espaço – e estático – fruto
Olhar em movimento da própria textura dos azulejos (GONÇAL-
O percurso até ao momento realizado per- VES: 2011, 16). O movimento é, por isso,
mitiu salientar questões centrais para a pro- uma peça chave no trabalho das duas ar-
blematização da arte pública no contexto quitectas, uma vez que é através do “jogo”
da cidade contemporânea, sem descuidar de posicionamentos que o observador es-
o caso português, em particular o lugar ful- tabelece com a obra nos vários momentos,
cral ocupado pelo azulejo neste campo. que a ambiguidade perceptiva do objecto
Este serviu de “matéria-prima” à concepção artístico se define, na ilusão de formas e es-
de inúmeras obras de arte pública ao longo paços que pretendem pôr em causa a apa-
dos últimos 60 anos, pelo que, se tal opção rente naturalidade e estabilidade do acto
<<
perceptivo, salientando, ao invés, a comple- blica: a sua especificidade para com o lo-
xidade e artificialidade do mesmo, na me- cal que o acolhe, ou seja, o seu carácter de
dida em que, como salienta Merleau-Ponty site-specific15. Tal característica consiste no
pensar é experimentar, operar, transformar, facto de este ter sido concebido e projecta-
com a única reserva de uma verificação ex- do tendo em conta não só as características
perimental, na qual não intervêm senão fe- topográficas, paisagísticas, arquitectónicas
nómenos altamente “trabalhados” e que os e funcionais do local, mas também a com-
nossos aparelhos, mais do que registarem, ponente social e cultural que o define – va-
produzem (MERLEAU-PONTY:1992,14). lor histórico, tipos de utilizadores, …- de tal
modo que, fora deste contexto que é o seu,
A procura de um confronto entre a imedia- a obra deixa de fazer sentido ou, no míni-
tez da experiência sensorial e a lógica do mo, vê-o diminuído.
raciocínio ancora o trabalho de Catarina e
Rita Almada Negreiros na herança da arte Neste âmbito, Cota Zero define-se como o
cinética e, em alguns casos, no tratamen- protagonista do novo átrio da Estação Flu-
to formal da Op Art, dada a prevalência de vial Sul Sueste, resultante da ampliação le-
composições abstractas, com recurso quer vada a cabo pelo atelier de Daciano Costa,
a figuras geométricas (Vai Vem), quer a va- com vista à criação de uma plataforma de
riações tonais (Cota Zero) que, pela sua re- ligação entre a recente estação de metro
petição e conjugação, produzem estímulos do Terreiro do Paço (Linha Azul) e as em-
visuais12 de direcção, profundidade e mo- barcações da Transtejo. A intervenção de-
vimento cuja necessidade de organização senvolve-se ao longo do tecto (17x23m) e
introduz na obra uma dimensão temporal13. das oito colunas (0,6m de diâmetro; pé di-
O facto de as intervenções em questão in- reito de 5,6m) que o suportam, que são na
tegrarem estruturas arquitectónicas ligadas íntegra revestidos por azulejo de formato
ao transporte de passageiros, onde diaria- quadrangular (14x14cm)16, adaptando-se
mente circulam milhares de pessoas num este à superfície arquitectónica, veiculan-
ritmo apressado e contínuo (Cota Zero), do, deste modo, a sensação de um espaço
aliado ao próprio trajecto realizado pelo unificado. Tal como apontado pelas auto-
transporte (Elevador da Bica em Vai Vem), ras, neste espaço coexistem dois movimen-
asseguram não só a presença do movi- tos fortes: a chegada do barco à Cota Zero,
mento necessário à experiência sensorial pela superfície da água, e a chegada do me-
da obra, como prolongam-na no tempo e tropolitano, a uma cota negativa. A ligação
no espaço14, tornando-a, por isso, em algo entre estes dois movimentos é feita ao nível
processual, em constante redefinição. da superfície da água. A união entre estes
dois fluxos faz-se aqui e é desta especifici-
A estreita relação que estas obras estabele- dade do lugar que surge a ideia base desta
cem com as estruturas arquitectónicas que intervenção: uma reflexão sobre a Cota Zero
integram remete igualmente para uma das (http://can-ran.com/#/cota-zero/). Esta, que
marcas mais comuns no objecto de arte pú- em geografia, indica o nível médio do mar,
entrada e saída de passageiros no átrio, bem como o fluxo to azulejar empregue se aproxima da ima-
proveniente da estação de metro do Terreiro do Paço.
Fotografia da autora (2015). gem de uma superfície aquática em que
formas circulares sugerem ser geradas pe-
las colunas e é recriada uma ligação en-
tre a superfície plana e brilhante do tecto
e as colunas. Desta relação/reflexão nasce
um espaço virtual, colocando o espectador
num novo lugar (http://can-ran.com/#/co-
ta-zero/). Este efeito de círculos concêntri-
cos, aliado a um esbatimento das suas for-
mas por meio de suaves gradações tonais
– que a Psicologia da Forma denomina de
moiré effect17 – foi conseguido através do
emprego de vinte tonalidades diferentes
de azulejo, desde o branco até ao preto,
Pormenor do revestimento azulejar do tecto e das colunas. passando por vários tons de azul18, sendo
Fotografia da autora (2015).
exactamente esta variação tonal a respon-
sável pelo efeito óptico que introduz a ilu-
são de profundidade e movimento numa
superfície que é, afinal, plana e estática. As
cambiantes de luz simuladas pelas diferen-
tes tonalidades, aliadas ao brilho e reflexos
lumínicos que caracterizam o azulejo, inter-
vêm activamente na sensação de mutação
contínua desta obra, enfatizada pela deslo-
cação no espaço do observador.
<<
Quanto a Vai Vem, trata-se de uma interven-
ção formada por dois painéis azulejares que
revestem os dois muros que ladeiam a es-
trutura do Ascensor da Bica19, destacando
a presença do histórico transporte e enfati-
zando os movimentos de subida e descida
por ele realizados. Estes painéis apresen-
tam composições idênticas, dispostas si-
metricamente de cada um dos lados do as-
censor, formadas pela repetição de motivos
de cariz geométrico que, no seu todo, ori- Vista geral de Vai Vem (2013) e do seu enquadramento nos
muros que ladeiam o Ascensor da Bica.
ginam dois padrões distintos que se suce-
Fotografia da autora (2015).
dem subtilmente. Devido à sua localização,
estes padrões são apenas visíveis em pers-
pectiva, pelo que é aquando da subida ou
descida que as duas imagens vão-se mos-
trando, misturando e sobrepondo, até que
a imagem frontal se converta em imagem
abstracta (http://can-ran.com/#/vai-vem/). A
obra revela-se assim à medida que o per-
curso é feito, introduzindo a já mencionada
dimensão de tempo.
Considerações Finais
As relações que se estabelecem entre in-
divíduo e espaço público assumem uma
crescente complexidade no contexto da
cidade contemporânea, não apenas do
ponto de vista urbanístico e paisagístico com
a crescente densificação da malha urbana,
Pormenor de uma das extremidades do padrão, das linhas de transportes e deslocações
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
levou ainda a que, em 2009, Catarina e Rita – Bibliografia
Almada Negreiros colaborassem com Maria
Keil na concepção dos padrões azulejares – Obras consultadas
que decoram a estação de metro de São Se- BARRETT, Cyrill, Op Art. London:
bastião, sendo que, enquanto o revestimen- Studio Vista, 1970
to das paredes do átrio e escadarias ficou a BEAUDELAIRE, Charles, O Pintor
cargo das primeiras (tendo aí sido empre- da Vida Moderna. Lisboa: Vega,
gue o “azulejo cinético” pela primeira vez), 1992 (1863)
Maria Keil ocupou-se das paredes das plata- CASTE-BRANCO, João Pereira,
formas, dialogando de uma forma profícua Azulejos no Metropolitano de
os dois revestimentos criados. Lisboa. Lisboa: Metropolitano de
Lisboa, 1990
O jogo de formas, cores e relevos (por via CORREIA, Vítor, Arte pública, seu
do emprego do “azulejo cinético”) em que significado e função. Lisboa: Fonte
as intervenções de Catarina e Rita se ba- da Palavra, 2013
seiam, se por um lado se apresentam como ECO, Umberto, A Obra Aberta.
atractivas para a visão, por outro lado desa- São Paulo: Editora Perspectiva,
fiam-na, pois nelas reside uma ambiguida- S.A., 1991 (1962)
de e ilusionismo que, aliados à forma ines- GONÇALVES, Clara Germana, No
perada como se apresentam ao observador, Ritmo: A arquitectura de Catarina
convidam a uma interrogação sobre esse e Rita Almada Negreiros. In Jornal
encontro constante que é o do corpo com o de Arquitectos, nº242, Jul-Set
mundo. As duas obras azulejares analisadas 2011, pp.14-17
– Cota Zero e Vai Vem - apresentam-se como MECO, José, Os Azulejos do
fruto de um trabalho multifacetado, onde se Metropolitano de Lisboa. In Artes
congregam áreas como a arquitectura, artes Plásticas, nº10, Maio 1991, pp.25-
plásticas e design, num espírito de diálogo 28
que se encontra na génese dos Ateliers de MERLEAU-PONTY, Maurice, O
Santa Catarina. Olho e o Espírito. Lisboa: Vega,
1992 (1961)
MILES, Malcom, Art, Space and
the City: Public art and urban
features. New York/London:
Routledge, 1997
SENNETT, Richard, Flesh and
Stone: The Body and the City
in Western Civilization. New
York/ London: W. W. Norton &
Company, 1994
04/05/2012. Disponível em: diferentes modos de pensar do tecto e das colunas do novo
http://www.dinheirovivo.pt/faz/ uma mesma disciplina, quer átrio da Estação Sul/Sueste no
pessoas/interior.aspx?content_ outros modos de pensar e fazer Terreiro do Paço, 2011, Vencedor
id=3913881&page=2 (num sentido lato), as diferentes do Prémio SOS Azulejo 2011 e um
http://redeazulejo.fl.ul.pt/ colaborações concorrem para dos finalistas do prémio European
noticias,0,589.aspx um enriquecimento de cada área Prize for Urban Public Space),
específica. (…) Neste “atelier tratamento plástico da Estação
– Notas de arquitectura” nem todos os de Metro de São Sebastião
trabalhos desenvolvidos são (revestimento azulejar em parceria
1
Como exemplo destas os “habituais” projectos de com Maria Keil, 2012), Vai Vem
propostas destacam-se a Op arquitectura. Mas ainda que o (painéis de azulejo nos muros
Art, Kinetic Art (Arte Cinética), não sejam são, na realidade, quer anexos ao Ascensor da Bica,
Colour Field Painting, Minimal determinantes na identidade do 2013), Reminiscência (escultura,
Art (Minimalismo), Performance objecto arquitectónico em que Avenida Ribeira das Naus, Lisboa,
Art, Hiper Realismo, entre se inserem, quer veículos de uma 2014). Website: http://can-ran.
outras. Contudo, as pesquisas ideia e arquitectura em que os com/
relacionadas com as implicações aspectos sensitivos são como 3
A problematização do conceito
do movimento na obra artística fundamentais. Fundamentais de espaço público e das suas
e do seu impacto na percepção na caracterização do espaço: diferentes leituras e significados
haviam já sido afloradas ao potencializa-se a capacidade é abordada por Victor Correia
longo da primeira metade de própria da arquitectura, de em Arte Pública, seu significado e
novecentos, com as propostas alterar – (re)criar – o indiferente, função. Lisboa: Fonte da Palavra,
do Cubismo, Futurismo, o vago: ou seja, a capacidade 2013. Partindo da proposta de
Construtivismo, Orfismo e em do “desenho” adjectivar as definição deste autor, o espaço
alguns trabalhos dadaístas, em formas (GONÇALVES:2011, 14). público é entendido como um
particular na obra de Marcel Como principais intervenções espaço em que a vida dos cidadãos
Duchamp (1887-1968). da autoria de Catarina e Rita se desenrola e se efectiva, ou
2
Catarina e Rita Almada Negreiros Almada Negreiros destacam-se potencialmente, concedendo à
<<
componente social urbanística tentativa de uniformização de de organismo perfeitamente
um lugar central na constituição gostos e comportamentos, calibrado, é também aberta, isto
das práticas sociais e culturais. segrega comunidades e grupos é, passível de mil interpretações
Ou seja, trata-se de um espaço pelo seu “não encaixe” nos diferentes, sem que isso redunde
físico e material, aberto, de inter- padrões dominantes (Graffiti, na alteração da sua irreproduzível
ligação e controlo das diferenças Street Art, Performance, …). Esta singularidade. Cada fruição é,
sociais, étnicas e culturais, que se questão traduz-se igualmente assim, uma “interpretação” e uma
condensa sobretudo na cidade numa outra, isto é, nos públicos “execução”, pois em cada fruição
contemporânea (CORREIA:2013, 9). da arte pública, dado que não a obra revive dentro de uma
4
Como exemplos de espaços de existe um público (uniforme, perspectiva original (ECO:1991,
acesso público citam-se ruas e com as mesmas características e 40).
praças, edifícios administrativos e interesses), mas vários tipos de 7
No contexto da formação da
governativos, parques e jardins, público, pelo que a concepção cidade oitocentista destaca-se o
escolas, hospitais, tribunais, de intervenções de arte pública texto O Pintor da Vida Moderna
estações de comboio e metro, com base numa visão generalista (1863) da autoria de Charles
entre outros. A instalação de do público a que esta se destina Baudelaire (1821-1967), no
obras nestes espaços resulta leva frequentemente a uma falta qual o autor descreve a Paris
frequentemente de actividade de interesse e participação na haussemaniana, “capital do
mecenática, mas também de recepção e interacção com a obra, mundo”, introduzindo o leitor à
encomendas realizadas pelos já que esta apenas parece apelar figura do flâneur. Para este, eleger
órgãos administrativos (de cariz e ser acessível a uma minoria. domicílio no meio da multidão,
público ou privado), municipais Não obstante a importância de no inconstante, no movimento, no
ou mesmo estatais. Ainda que do tais questões, o presente texto fugitivo e no infinito, constitui um
ponto de vista da propriedade, opta por deixa-las de parte, imenso gozo. Estar fora de casa
estas obras de arte possam estar devido a serem outras as que e, no entanto, sentir-se em todo o
situadas em espaços privados pretende abordar. Para uma lado em casa; ver o mundo, estar
(não pertencentes ao Estado), leitura mais aprofundada sobre as no centro do mundo, permanecer
se estes forem concebidos para contradições da arte pública no escondido do mundo, tais são
usufruto público, as criações que se refere aos seus públicos alguns dos pequenos prazeres
artísticas neles presentes e recepção sugere-se a leitura destes espíritos independentes,
deverão ser consideradas como do capítulo The contradictions apaixonados, imparciais, que
manifestações de arte pública. of public art, parte integrante a língua apenas pode definir
5
No entanto, muitos são os da obra Art Space and the City de um modo imperfeito
exemplos de arte pública criada (MILES:1997). (BAUDELAIRE:1992,18)
à margem das encomendas 6
Neste contexto vale a pena 8
Tal atitude havia já sido
institucionais, funcionando relembrar Umberto Eco quando preconizada por Hector
muitas vezes como uma crítica ao na sua publicação seminal A Guimard (1867-1942), aquando
próprio modo de funcionamento Obra Aberta (1962) afirma que da concepção das entradas e
das mesmas, assim como da uma obra de arte, forma acabada respectivas estruturas decorativas
própria sociedade que, na sua e “fechada” na sua perfeição art nouveau do Metropolitano
9
O início da construção do aliados à malha reticular em que argumentar que tal dimensão
primeiro troço do projecto assentam intervêm activamente no temporal se verifica aquando
teve início em Agosto de 1955, diálogo pretendido, acentuando do processo de recepção de
tendo as primeiras estações sido ainda mais a concepção global qualquer objecto artístico, no
inauguradas em Dezembro de da decoração de cada espaço, caso das obras de cariz op art e
1959. partindo do todo para as diversas cinéticas tal dimensão temporal
10
Ainda que maioritariamente partes, e da necessidade de deriva da noção de movimento,
compostos por motivos seriados, não apagar o azulejo enquanto uma vez que this kind of
os revestimentos concebidos material formado pela repetição movement is not always apparent
por Maria Keil procuraram a de placas com forma seriada at once. It usually requires a certain
fuga à repetição infinita do (MECO: 1991,28). amount of concentration on the
módulo azulejar, através quer 11
Um dos conceitos criados por picture before it takes place (…).
do diálogo entre vários padrões, Eduardo Nery para a ancoragem We observe something which we
quer da introdução de subtis teórica do seu trabalho foi o could not have observed before,
variações nos mesmos, capazes de “Mobilidade Visual”, ou seja, since a period of time is required
de “prender” o observador - “a permanente mudança dos for this phenomenon to happen.
utente, levando-o a questionar o dados perceptivos, tanto no (…) There is also, corresponding to
todo percepcionado. Tal como campo operativo concreto como formal movement, a kind of formal
apontado pela artista, cada na fluidez das memórias que tempo. This may be due to speed
revestimento é concebido como atravessam a face equívoca dos of the eye movement or to visual
uma arquitectura cenográfica objectos”. Percepção e memória equivalent of suggestion of slow,
instauradora de um espaço lugar exactamente (AZEVEDO:1997, 21). fast, endless or arrested movement
autónomo, por articulação de 12
Tal como apontado por Cyrill (BARRETT: 1970, 99).
segmentos de padrões, dispostos Barrett, where the elements are 14
Neste caso o tempo que é
de modo irregular e dinâmico, em simple and continuously repeated o necessário para realizar o
função dos ritmos de utilização, over the surface, where the surface percurso, isto é, a deslocação no
ascendente e descendente, pattern is homogeneous and no espaço.
dos lances das escadas, com element is dominant, the eye 15
Ainda que o carácter de site-
<<
specific seja uma das marcas conhecido na Psicologia das and incisive, and clear definition of
mais comuns da arte pública, Formas como “periodic structures” form is essential for certain kinds of
nem sempre esta especificidade define-se como functions which optical effect (BARRETT: 1970, 38).
se verifica, podendo o artista repeat the same values at regular 22
O azulejo cinético havia já
realizar várias reproduções da intervals, as the variable increases sido empregue no revestimento
mesma obra e integra-la em or decreases uniformly. In less da estação de metro de São
contextos arquitectónicos e technical language, they consist of Sebastião, realizado em 2009.
urbanísticos variados. Outro a repetition of simple geometrical
aspecto associado à arte pública é elements – lines, squares, circles,
a sua presença quotidiana na vida triangles, etc. The characteristic
das populações, embora muitas feature of a periodic structure
das manifestações artísticas deste is that the elements are virtually
tipo se definam essencialmente anonymous; that is, one can
pelo seu carácter efémero, como observe them individually with
é o caso do graffiti, do cartaz, da difficulty or not at all. (…) They
performance, entre outros. merge or fuse together to form a
16
O revestimento azulejar ocupa recognizable image in black and
uma área total de 480m . 2
white and various shades of grey
17
“Moiré” is a French Word (…) (BARRETT:1970, 38).
meaning “watered” and was first 21
Citando novamente Cyrill
applied to fabrics known in English Barret, the use to which Op artists
as “watered-silk”. The water –like put their visual effects can most
effect is produced by doubling a easily be demonstrated in black
glossy fabric with a parallel weave and white. (…) The reason for
so that the parallel cords are nearly this is twofold. First, most optical
aligned, and pressing the surface effects can be achieved by the
together (BARRETT: 1970, 65). use of black and white alone. By
18
Segundo as autoras, no excluding colour, the artist can
revestimento do tecto foram produce the effects he wants
utilizados dez tons – os mais claros without the added complexities
– e nas colunas os restantes dez which colour brings with it. (…)
– mais escuros (http://can-ran. Secondly, black and white is more
com/#/cota-zero/). dramatic in its effect. It is more
19
Num total de 52m2 de dynamic; it carries more punch;
revestimento azulejar, it affords a greater contrast. Black
articulando-se com o projecto de and white act like complementary
requalificação da Bica, da autoria colours but with greater effect
da arquitecta Teresa Nunes da because of the strong contrast
Ponte. between them. The contrast also
20
O movimento ilusionista helps to make the forms clear-cut
<<
Na década seguinte, alguns vândalos dani- bom termo o projeto. Os custos foram co-
ficaram os murais que foram então cober- bertos pelo Operador Nacional do Sistema
tos com tinta cinza pela COMLURB2. A po- Elétrico (ONS).
pulação reclamou. Vozes se levantaram de
todos os cantos clamando por « gentileza ». Para se ter uma idéia do impacto que o Pro-
Marisa Monte3 e Gonzaguinha4 compuseram feta Gentileza causava com suas frases de
músicas que exaltavam a mensagem deste encorajamento, em 2009, quando foi ao ar
artista que sai do anonimato para se tornar a telenovela “Caminho das Índias”, a auto-
referência na arte pública do Rio de Janeiro. ra Gloria Perez fez uma homenagem a José
Datrino, trazendo-o à vida6 através do ator
Através das cartas enviadas às redações dos Paulo José, que perambulava pelas ruas do
jornais as pessoas se posicionavam. Entre- Rio com seu estandarte e sua pregação.
vistas colhidas nas ruas, por pessoas que
passavam diariamente pelo local, davam Para Washington Fajardo, presidente do Ins-
conta do sentimento de perda que a popu- tituto Rio Patrimônio da Humanidade e do
lação manifestava diante dos muros cinzas. Conselho Municipal de Proteção do Patrimô-
Por iniciativa da Pró-Reitoria de Extensão da nio Cultural, os murais de Gentileza vão per-
Universidade Federal Fluminense, o projeto manecer. O mais recente ataque veio des-
« Rio com Gentileza » foi elaborado, objeti- ta vez do planejamento urbano da cidade,
vando a restauração e preservação dos mu- pois três dos cinqüenta e seis pilares do via-
rais, dando atendimento às vozes de Marina duto estavam no último trecho do elevado
Monte e Gonzaguinha e ao apelo popular que foi demolido, de acordo com o plano
através da mídia. O Consórcio Novo Rio, a de mobilidade urbana para a zona portuá-
Socicam5, a Secretaria Municipal de Cultu- ria da cidade. Fajardo foi taxativo ao afirmar:
ra do Rio de Janeiro e as empresas Ponto
de Bala, Fosroc Reax Tintas, GP Andaimes e “— Vão passar mais mil anos e as pinturas vão
Wherever se uniram em apoio ao empreen- ficar ali. É a obra de um personagem urbano,
dimento e, a partir de 1999 começa a recu- que surge pela cidade e que traz uma men-
peração dos mesmos até que em maio de sagem mística. São pinturas organizadas
2000 a restauração é concluída e a obra como versículos. Por isso, têm numeração”7
tombada pela Prefeitura.
O cumprimento da promessa se iniciou com
Anos mais tarde, em março de 2011, novo a sua preservação, pois, os três pilares que
projeto de restauração é elaborado, como estavam na área da demolição tiveram ape-
presente pelo aniversário para a cidade. nas a parte superior, chamada de tabulei-
Desta vez, o movimento “Rio com Gentile- ro, retirada, sendo mantidos os pilares que
za”, que fora criado em 1999, na Universi- guardam as mensagens e proclamações de
dade Federal Fluminense (UFF), reúne uma Gentileza. Os demais estavam fora da área
equipe formada por dois restauradores e prevista para a demolição.
quatro pintores assistentes que levam a
vel José Datrino (nome verdadeiro de Gen- xas horizontais as letras adquirem a estatura
tileza), todavia, será derrubada [...] A idéia é de figuras que se ajustam lado a lado e vão
preservá-las de qualquer jeito, com um tra- criando um tecido rigoroso. As palavras, or-
tamento urbanístico, mas ainda não há uma denadoras das imagens, não estão subme-
definição do que será feito».8 tidas ao rigor ortográfico, elas são figuras
repletas de significados, não apenas no que
O que faz uma obra pública adquirir tal força concerne ao entendimento da própria pa-
de permanência, apesar de exposta a todas lavra, mas elas são plurívocas e simbólicas.
as possibilidades de agressão e desapare-
cimento? O que mobilizou o povo a se unir Em suas imagens surgem outros entendi-
pela preservação dos murais? O que deter- mentos revelados apenas aos que alcan-
minou que, após ser coberta pela tinta cinza, çam a mesma sintonia espiritual de Gentile-
quando deixou de existir na concretude visí- za. “UNIVVVERRSSO” está assim registrado
vel dos passantes pudesse continuar a pro- porque a repetição das letras não se deu
clamar sua mensagem de AMORRR com três por descuido ou erro, mas pela carga da
“erres”9 e com tal força, que ressurgiu restau- mensagem que o profeta desejava procla-
rada por ordem da própria prefeitura? mar. As letras repetidas, como por exemplo,
os ‘três vês’ de ‘univvverso’, sinalizavam uma
A arte pública tem como cenário a cidade existência superior e não a comum. Assim,
e existe no imaginário do povo que transita para cada alteração ortográfica criada pelo
por suas ruas e logradouros. Não podemos artista a palavra continuava a revelar o seu
pensar em cidade apenas como um conjun- significado primeiro, mas passava, também,
to de edificações que estão dispostas nos a emitir novos significados para os que do-
traçados regulares de um espaço delimita- minavam os códigos do profeta.
do e que possuem organização e distribui-
ção ordenadas de funções públicas. Para Os painéis eram coloridos em função das le-
Argan, a cidade é muito mais do que isto10. tras e das faixas que delimitavam o espaço.
Para ele a arte tem as explicações para os Verde, amarelo, azul, preto, branco eram as
<<
mais utilizadas. Havia o vermelho, menos uti-
lizado, mas presente em alguns pequenos
textos, como fundo a destacar as palavras.
<<
As aparições de Gentileza no espaço públi- Como artista performático a percorrer a ci-
co da cidade eram sempre performáticas. dade ele cunhava ditos de fácil assimilação,
Sua obra era engajada, como convém à arte reforçando a mensagem que transmitia. Por
pública, que deve estabelecer com o frui- exemplo: “se a saia sobe a moral desce e se
dor o fluxo de seus próprios interesses, de- a saia desce a moral sobe”. Levava desta for-
sejos, anseios, sejam místicos ou políticos, ma uma mensagem moralista que, não ra-
de informação ou de denúncia, de clamor ras vezes procurava ser imposta com certo
ou de reflexão. tom de agressividade. Era paradoxal. Com
um semblante sereno, quase angelical, ele
A finalidade precípua da arte pública é a se agitava quando via mulheres com batons
criação de um espaço de discussão dentro fortes e chamativos, usando roupas justas e
do espaço da cidade. Não objetiva o seu curtas. Ele vociferava, ameaçava apocalipti-
embelezamento, mas a conscientização do camente e seguia, sempre utilizando o espa-
povo da cidade em relação ao seu momen- ço público para se comunicar, quer através
to. “A arte pública deixa de atender priori- de seu “Livro Urbano”, quer em seu embate
tariamente ao embelezamento urbano e pessoal pelas ruas da cidade, distribuindo
surge como a possibilidade de redefinir flores como o “bom jardineiro de Deus.”.
a experiência do lugar, por meio da expe-
riência de um sítio expandido.”14 É o que se Nos muros ele pintava seus textos seguin-
observa na arte do Profeta Gentileza cujas do duas possibilidades. A de que fossem
cinqüenta e seis inscrições nas pilastras do lidos pelos passageiros de ônibus, ou que
viaduto redefiniram a experiência do lugar e fossem alcançados pelos que viajam em
continuam interagindo com as pessoas. carros. No primeiro caso, a velocidade do
veículo não permitiria a leitura total de
A ordem ideal para a leitura de suas mensa- cada painel, mas ficariam as palavras cha-
gens deve seguir a seqüência do último pai- ves, destacadas pelo profeta em sua pre-
nel, o de número 55, para o primeiro, no sen- gação. O fruidor teria apenas a percepção
tido Caju => Av. Francisco Bicalho. São 56 do todo e a retenção de algumas frases.
inscrições ao todo.15 Ele inicia sua mensagem A mais emblemática: “GENTILEZA GERA
ensinando ao público que o mundo é uma GENTILEZA”. No segundo caso, o motoris-
escola e que as palavras “Gentileza” e “Agra- ta poderia imprimir uma velocidade menor
decido” devem substituir às que normalmen- ao carro e conseguir ler uma quantidade
te são usadas como “Por favor” e “Obrigado”. maior de suas reflexões.
A primeira porque, como já foi esclarecido,
implica numa obrigação, exigindo uma tro- A arte pública não nasce para ser contem-
ca, enquanto a segunda, deve ser eliminada, plada de uma só vez. Ela necessita do tem-
pois ninguém deve ser “obrigado” a coisa al- po cumulativo, das muitas passagens pelo
guma. O homem nasceu para ser livre, para local em que ela se encontra, de ser lida
respeitar a natureza, devendo tomar cuidado aos pedaços, ser contemplada em diferen-
com o vício, com a nudez e com o carnaval. tes ângulos, ser acrescentada a cada en-
nadores para realizarem a arte pública, Gen- veiculação das mesmas. A importância do
tileza não aceitava dinheiro por seu trabalho. viaduto na zona portuária, junto à rodoviá-
Era uma espécie de missionário que deveria ria era a escolha acertada. Gentileza intui a
distribuir gratuitamente o que havia recebido. força do local escolhido, como pólo de di-
vulgação de seu discurso visual.
Por outro lado, a arte pública possibilita ao
artista uma experiência mais dinâmica e so- A zona portuária era uma região de grande
cial do que aquele que cria no interior de seu permissividade moral, de baixa qualidade de
ateliê. Ele não está preocupado em “vender” vida, de expressivo volume de pessoas que
sua obra. Se for patrocinado ele vai receber se misturavam heterogeneamente aos que
pelo trabalho o valor acordado, mas, se for chegavam de minuto a minuto na Rodoviá-
trabalhar por conta própria vai arcar com os ria Novo Rio. Além disso, o viaduto da Ave-
custos. É este o caso de Gentileza. nida Brasil, no trecho do Caju, era um lugar
sombrio, próximo aos grandes cemitérios
Deve ser lembrado que o artista que cria na da cidade. Uma área que não acolhia o tran-
rua, já está imerso no ambiente que lhe so- seunte. O tom cinza das pilastras despertou
licita a obra, não por uma encomenda con- em Gentileza o desejo de recobri-las com
tratada, mas por uma necessidade de diá- suas mensagens coloridas. Como hera que
logo permanente com o espaço público e se apega ao muro e o cobre, mudando suas
o povo. características, a intervenção visual provoca-
da pelo artista ao longo de um quilômetro
José Datrino percebe que o Rio é a gran- e meio na via pública seduziu os que passa-
de metrópole com força necessária para vam diariamente pelo local e trouxe curiosos
divulgar sua arte e mensagem em todo o que se impactavam com as mensagens.
território nacional. Como andarilho ele vai
a muitos lugares, mas volta para o Rio. Na arte pública o observador deixa de ser
um espectador distanciado e se torna parte
integrante da própria obra. Ele não vê, ape-
<<
nas, ele é apreendido pela obra e a leva em plena solidão tornamo-nos parte do seu re-
sua memória. A superposição de experiên- pertório total, e todos os nossos sentidos
cias visuais experimentadas a cada vez que entram em perfeita sincronia com o seu
passa pelos locais em que ela se encontra universo”.18 Para o escultor, quando somos
vai construindo “a sua obra”, presente, im- apreendidos pela obra ela não nos deixa
possível de ser desfeita, mesmo que a origi- mais e, para reforçar sua reflexão, Moriconi
nal venha a ser destruída. nos diz que a obra é mais fiel que o homem,
pois ela não nos esquece e nos procura.
O entendimento de “sua obra” se dá a partir
da apreensão de cada fruidor, uma vez que Mesmo no curto espaço de tempo em que
é quase impossível que ele apreenda toda a ela foi coberta de tinta cinza a obra conti-
obra em seus detalhes e informações. É com nuou a procurar os seus alvos, ou seja, “a
o que ele experimenta do objeto, no caso da nós” e a força com que o público se levantou
arte pública, que “a sua obra” é construída. em direção a ela, que já não estava lá, tor-
nou possível sua restauração e seu retorno
Didi-Hubermann destaca o poder da obra ao local de origem, porque efetivamente
de arte quando ela “nos olha”: “nós” éramos parte de seu repertório e não
podíamos desaparecer.
O que vemos só vale – só vive – em nossos
olhos pelo que nos olha. Inelutável, porém é a A arte pública deve ser inicialmente estuda-
cisão que separa dentro de nós o que vemos da no contexto da modernidade. Um dos
daquilo que nos olha. Seria preciso assim par- primeiros grandes movimentos que desta-
tir de novo desse paradoxo em que o ato de camos neste sentido é o do muralismo me-
ver só se manifesta ao abrir-se em dois.17 xicano que se inicia após a revolução de
1910. É certo que, se nos detemos a obser-
A força da obra de arte em relação ao frui- var a arte dos murais percebemos que ela
dor deve ser considerada, no caso de José é talvez a mais antiga expressão artística do
Datrino, na medida em que ele se lança no homem no planeta, isto pensando nas pin-
espaço público e vai ao encontro das pilas- turas parietais da Pré-História que já testifi-
tras cinza. Diferente do impacto de um ou- cavam a necessidade do homem em se ex-
tdoor, cuja linguagem é predeterminada pressar utilizando as paredes e muros como
em função do consumo, a obra de Gentile- suportes naturais para sua arte. Mas a arte
za nos alcança pela necessidade íntima de pública sobre a qual trazemos algumas re-
uma ética esquecida e de uma desesperan- flexões é uma prática social que vai buscar
ça crescente nas grandes metrópoles. Para no espaço urbano o veículo de mudanças
Roberto Moriconi, escultor performático que deseja promover a partir de poéticas,
que viveu no Brasil até sua morte em 1993, escultóricas ou pictóricas, capazes de plas-
“olhar é uma opção de altíssimo risco”, por- mar idéias e constituir intervenções neces-
que podemos ser introjetados pela obra e sárias a criação de um campo em que as
passamos de observadores para alvos. “Em fronteiras entre a política, a sociedade, a
<<
discurso social, em frases inflamadas proje- “Deus”, “bondade”, “perfeição”, “capitalis-
tando sua indignação. Já em Datrino os tex- mo”, “Jesus”, “humanidade” e muitas outras
tos são aconselhadores, buscam o sentido cujos significados reforçam a mensagem de
de elevar o cidadão, trazendo uma esperan- Paz, de organização, de perdão e trabalho.
ça nova. Alguns são até apocalípticos, mas Desta forma, elas se tornam pregnantes e se
sempre revelam a existência de alguém que destacam da parede estimulando a percep-
nos olha e nos ama, enquanto somos nós a ção e possibilitando a reflexão.
olhar o grafite escrito numa caligrafia que,
por si só, já é uma criação à parte. Haveria No espaço público a obra adquire uma di-
ainda muitos outros grafiteiros que pode- mensão peculiar. Não apenas pelo resulta-
ríamos cotejar com o Profeta Gentileza, mas do visual que fica registrado, mas porque o
queremos apresentar especificamente este artista também está presente. No caso de
artista singular, um filósofo ingênuo com Gentileza ele atuava como parte da obra e
aptidões artísticas e como ele interveio no agente de sua propaganda. Ele se deixava
espaço público. fotografar, conversava, oferecia flores e re-
forçava de modo inequívoco a permanên-
No caso dos murais de Gentileza, eles se si- cia da obra.
tuam na fronteira dos grafites e pichações,
tendo sido tombados pelo Patrimônio Cul- Desde a escuridão dos tempos, em que o ho-
tural da Cidade do Rio de Janeiro como um mem pintava nas cavernas, a arte manifestou
bem que confere identidade à própria cida- sua força como veículo de comunicação, sur-
de e assim foram instaurados como “obra gindo no espaço público ao alcance dos deu-
de arte”. ses e dos homens. Foram necessários mui-
tos séculos para que o homem fizesse suas
O artista utiliza letras e signos, o que aproxi- primeiras exposições artísticas com o senti-
maria sua pintura das pichações, porém não do de levar as obras ao público para serem
possui o caráter de liberdade gestual, de mostradas, apreciadas e, até adquiridas. Sa-
movimento e ação da letra em relação ao be-se que a primeira exposição com tais ca-
espaço. As composições possuem caráter racterísticas só veio a ocorrer no Renascimen-
construtivo e as letras são figuras pintadas, to, sendo organizada por Giorgi Vasari nas
numa tipologia criada pelo artista, que ne- exéquias de Michelângelo. Com a aquisição
las identifica sua força autoral, o que nos faz das obras de arte surgiu o colecionismo e, já
considerá-lo “grafiteiro”. Ela possui carac- no século XVII os museus modernos, a partir
terísticas contemporâneas, na medida em de doações de coleções particulares. As fa-
que parece ter consciência do olhar frag- mílias principescas acumulavam objetos de
mentado dos transeuntes e da velocidade arte da antiguidade, tesouros e curiosidades
dos veículos que não permitem o tempo de que conferiam status aos proprietários. Os
olhar reflexivo aos seus passageiros. As pa- museus19, como guarda destes tesouros que
lavras são repetitivas e redundantes, como preservaram a memória das civilizações e dos
“gentileza”, ”amor”, “agradecido”, “natureza”, povos tiveram seu apogeu no século XVIII.
– Sites visitados
<http://oglobo.globo.com/rio/
rio-450/pinturas-de-gentileza-vao-
ser-mantidas-com-desmonte-do-
elevado-da-perimetral-13283522>
em 28 de agosto de 2015
<http://www.cultura.rj.gov.br/
artigos/livro-urbano-de-gentileza>
em 28 de agosto de 2015.
<http://sociologiaemdebatemeta.
blogspot.com.br/2012/02/profeta-
gentileza-sera-que-ele-estava.
<<
html> em 1 de setembro de 2
Companhia Municipal de artigo-blog/ghentileza-regular-e-
2015. Limpeza Urbana (COMLURB) original
<http://www.tipomakhia.com/ 3
https://www.youtube.com/ 13
Guelman, Leonardo Caravana
artigo-blog/ghentileza-regular-e- watch?v=mpDHQVhyUrY – Univvversso Gentileza. Rio de
original> em 2 de setembro de 4
https://www.youtube. Janeiro: Ed.Mundo das Idéias.
2015. com/watch?v=j5cewnEzc- 2009. P.48
FY&list=RDj5cewnEzcFY#t=82 SILVA, Fernando Pedro da –
14
– Notas 5
A SOCICAM é uma empresa Arte pública. Diálogo com as
brasileira prestadora de serviços comunidades. Belo Horizonte: C/
1
José Datrino nasceu em de gestão, integrada no apoio Arte, 2005. P. 12
Cafelândia-SP, no dia 11 de de passageiros e atendimento ao 15
Uma das pilastras possui dois
abril de 1917 e faleceu em cidadão. murais.
Mirandópolis-SP em 28 de maio 6
O Profeta Gentileza faleceu em Id. P.28
16
de sua missão o que levou seus elevado-da-perimetral-13283522 Moriconi. Vida e obra. Rio de
pais a buscarem tratamento com http://www.cultura.rj.gov.br/
8
Janeiro: Editora Caligrama, 2012.
curandeiros locais. Mais tarde artigos/livro-urbano-de-gentileza P.125
fugiu para o Rio de Janeiro. Casou- 9
Para Gentileza, AMOR com um A palavra ‘museu’ tem origem
19
se e teve cinco filhos. Tornou- “erre” era o amor material, já com grega. ‘Mouseion’ era o templo
se um pequeno empresário três erres era o Amor da Trindade, das nove musas filhas de Zeus
de transportes até que, com o ou seja, do Pai, do Filho e do e Mnemosine, a deusa da
incêndio do Gran Circus Norte- Espírito Santo, portanto completo. memória. Era o local destinado
Americano em Niterói, ocorrido 10
ARGAN, Giulio Carlo – História à contemplação, aos estudos
em 17 de dezembro de 1961, ele da Arte como História da Cidade. científicos, literários e artísticos,
vai para o local do incêndio que São Paulo: Martins Fontes, 1992. pois as musas eram ligadas às
vitimou cerca de 500 pessoas 11
Há muitas controvérsias em artes e à ciência. Como eram filhas
dirigindo um de seus caminhões. relação ao comportamento do de Mnemosine, o local estava
A tragédia tem enorme impacto profeta, pois, apesar de todo associado á guarda da ‘memória’.
em José Datrino, que afirmava o discurso em que pregava a
ter ouvido vozes orientando que gentileza, em muitas vezes ele era
largasse tudo, se desapegasse “agressivo, moralista e desbocado
dos bens materiais, do mundo [...] Vociferava, ofendia e
capitalista e cumprisse sua missão ameaçava espancar transeuntes”
na terra. Ele parte para Niterói e (http://sociologiaemdebatemeta.
faz no local das cinzas do incêndio blogspot.com.br/2012/02/profeta-
uma plantação de flores. Nascia ali gentileza-sera-que-ele-estava.html)
o Profeta Gentileza. 12
http://www.tipomakhia.com/
p o r M a r t a Tr a q u i n o
Artista e investigadora em arte contemporânea. Em 2013 iniciou
investigação teórica e prática em pós-doutoramento ao abrigo da FBAUL
com o apoio da FCT.
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA
<<
bém a possibilidade do seu lembrar partil-
hado, uma vez que tais processos de reabil-
itação implicam a exclusão dos residentes.
Situação comum a muitas cidades europe-
ias cujos centros históricos são sujeitos a
planos de reabilitação que visam a substi-
tuição dos antigos edifícios de habitação, e
das pessoas que neles vivem, por condomí-
nios privados, hotéis de luxo, lojas gourmet
e outros espaços afins.
Guerín reincide na alternância entre as ima- José Luis Guerin, En Construccìon, 2001 (fotogramas do filme).
© José Luís Guerín.
gens da queda da velha arquitectura e as Fonte: http://cineyarquitectura.blogspot.pt/2008/08/en-construccin-
imagens do erguer da nova arquitectura, 1998-director-jos-lus.html
<<
nológicas, sobretudo as digitais que abri- de rede metálica) que sugerem tratar-se de
ram novos caminhos para a concepção de uma matéria têxtil de grandes dimensões
formas curvas e dinâmicas, tornou-se con- em permanente mutação formal. Efeito que
ceptualmente e esteticamente um tema se efectiva visualmente a partir de uma cer-
estimulante na obra de alguns arquitectos ta distância física do edifício. Esta cobertura
consagrados. A partir de finais da década de pode também, por vezes, estender-se deste
oitenta do século XX, ganhou novos contor- à área que o envolve exteriormente, funcio-
nos na relação com a orientação das teorias nando como um toldo. Área que é contem-
do espaço rumo ao paradigma da ‘liquidez’, plada no projecto com o objectivo de ser
sobre o qual assenta, segundo o sociólogo uma zona de transição, geradora de vários
Zygmunt Bauman (2007), a contemporanei- ‘níveis’ de espaço público, entre o edifício e
dade. Movimento, flexibilidade, fluidez, in- a cidade propriamente dita. Tomemos como
teractividade, transitoriedade, leveza, são exemplo desta descrição o Grand Theatre
conceitos aos quais a arquitectura desde D’Albi concluído em 2014.
então procura dar forma através da analo-
gia com a tecnologia e a semântica do têx- ‘Envelope’, ‘vestimenta’, ‘curvas e contra-cur-
til, tornando-se assim representativa de uma vas’, ‘pele’, são termos utilizados no sumário
sociedade na qual, como refere Bauman, de apresentação do projecto do teatro pelo
as vidas dos homens e mulheres decorrem ateliê de Perrault (publicado em 2012 no
mais no sentido de ‘procurar e experimentar seu website). Termos que apelam a uma
sensações’ do que no de ‘fazer coisas’. dimensão táctil mas que, no entanto, pela
monumentalidade do edifício só podem ser
Um dos arquitectos cuja obra explora a ‘interpretados’ pelo olhar sugestionado a
tendência com base na ‘parede cortina’, des- atribuir leveza ao que na realidade tem peso,
de o final da década de oitenta do século XX, liberdade de movimento ao que é fixo, liris-
é Dominique Perrault. O seu ateliê foi o pri- mo ao que é da ordem do rigor e da razão.
meiro a desenvolver e a utilizar rede metálica, Pretende-se assim, segundo as intenções
o elemento chave para a qualidade emotiva de Perrault, realizar a ‘monumentalidade’ e
que Perrault (2006) diz procurar na arquitec- a ‘desmaterialização’ em simultâneo, uma
tura através da pesquisa dos jogos de luz. obra arquitectónica que se torne um símbo-
Permeabilidade, inter-relação, transição, ou lo identitário da cidade estando sempre em
movimento são conceitos que funcionam actualização, como uma ‘obra-acontecimen-
como directrizes na sua obra por relação to’, a conciliação entre a ordem e o acaso.
com um entendimento da ‘parede’ enquanto Contudo, alguma contradição parece estar
elemento ‘não separador’. A materialização contida na relação entre estas intenções e
destes subentende-se pelos efeitos de a sua efectiva concretização. Para Perrault, a
uma cobertura construída sobre o primeiro questão essencial é a de como conseguir li-
corpo do edifício, com características de gar a disposição de um volume no espaço
textura, maleabilidade e penetrabilidade com o seu contexto. A rede metálica, pelo
pela luz (como as possibilitadas pelo ‘tecido’ efeito análogo ao de um ‘tecido’, é o mate-
Fonte: http://archcase.com/dominiqueperrault/portfolio/grand-
theatre-dalbi/ ideia de Perrault de uma arquitectura ‘aber-
ta’ e ‘mutável’, impermanente. No entanto,
trata-se na realidade da sobreposição de um
invólucro a outro. O mesmo será dizer que
se trata, efectivamente, da sobreposição de
uma arquitectura a outra, sobretudo se for
tida em conta a relação formal (e funcio-
nal) que existe entre a cobertura de rede
metálica e uma tenda (sendo a tenda uma
modalidade de arquitectura que ainda hoje
se pratica, como é o caso das tendas dos
nómadas na Mongólia ou, num exemplo até
mais próximo do teatro, o caso das tendas
Dominique Perrault, Grand Theatre D’Albi, 2009-14. de circo). O Grand Theatre D’Albi sugere a
© Dominique Perrault Architecture.
analogia com uma tenda gigante contendo
Fonte: http://archcase.com/dominiqueperrault/portfolio/grand-
theatre-dalbi/ um edíficio. Poderá, como defende Perrault,
este efeito ser representativo, mesmo num
plano metafórico, da ligação entre o edifício
e o seu contexto envolvente? Ou não resul-
tará afinal numa ‘dilatação’ dos limites do
edifício em causa? Porque ainda que a acção
da luz sobre a rede metálica possa sugerir
ao olhar a impermanência e a fluidez, as pro-
priedades dos materiais utilizados garantem
resistência a longo prazo, são pesados, não
são propriamente mutáveis a um toque de
mão como pode acontecer com a parede
de uma tenda verdadeira.
<<
Na verdade, trata-se de uma arquitectu- que se mostram abertos à vista de todos po-
ra com duplo sistema de parede exterior, dem não ser efectivamente ‘públicos’, como
pois a rede metálica, à parte das suas analo- acontece com muitos dos espaços amplos
gias técnicas e metafóricas com as proprie- que circundam edíficios monumentais, sím-
dades do têxtil, constituí inevitavelmente bolos de identidade local e nacional, con-
um imponente limite físico. No Grand The- trolados por sistemas de vigilância que ga-
atre D’Albi observamos uma ‘duplicação’ rantem o nivelamento dos modos de estar.
da fachada do edíficio e não propriamente
a sua ‘diluição’, o que é contrário ao que É nas cidades que, actualmente, se
sugere Perrault (2006) quando refere que identificam as novas modalidades de
a utilização do ‘tecido’ metálico na sua ar- fronteiras. Por exemplo, é curioso ter em
quitectura confere a ligação desta à geogra- conta como paralelamente aos processos
fia do sítio. Paradoxalmente, é pretendida a de abertura das fronteiras territoriais en-
desconstrução da separação entre interior tre os países europeus ao longo do século
e exterior que habitualmente caracteriza XX, as cidades têm vindo a tornar-se cada
a arquitectura quando, de facto, o edifício vez mais fragmentadas pela criação no seu
em causa se destina a funções, usos e con- interior de territórios que praticam a segre-
teúdos cuja efectivação implica necessar- gação e, consequentemente, o conflito. Os
iamente o distanciamento e protecção em mais fáceis de se circunscrever, pela sua evi-
relação ao exterior. Os limites físicos têm dência física, são os territórios murados des-
aqui de existir, são um facto imprescindível tinados a habitação, derivados de escolhas
do modelo da arquitectura em causa. De- residenciais praticadas por certas catego-
vem até ser facilmente identificáveis, pois rias sociais, economicamente mais favore-
em edifícios de tal sofisticação e imponên- cidas. O sociólogo Richard Sennett (2005)
cia a vigilância não se faz apenas à entrada considera que cada vez que uma comuni-
mas em toda a sua área envolvente. Contu- dade murada se ergue um novo gueto pas-
do, o que importa aqui salientar é a nature- sa a existir, tornando-se necessário analisar
za da relação entre o discurso e a prática a cumplicidade deste tipo de construção
nesta tendência da arquitectura, pois não com a violência e a insegurança na cidade,
podendo ser concretamente ‘aberta’ é con- pois trata-se de um modo de habitar que
tudo sustida por argumentos e por efeitos recusa o civismo, que pressupõe que as dif-
visuais que evocam a sugestão da ‘desma- erenças devem ser policiadas. Nesta prática
terialização’ das suas propriedades físicas. de muralhar voluntário, as fronteiras que as
Em causa está uma ‘camuflagem’ dos lim- paredes são devem ser entendidas como
ites do edifício que provoca um efeito ilu- dispositivo simultaneamente de territorial-
sionista na percepção da diferenciação e idade e de visibilidade. Como refere o so-
separação entre espaço privado e espaço ciólogo Andrea Brighenti (2009), quando os
público, ou mesmo a criação de espaços territórios são definidos por paredes, é a di-
‘pseudo-públicos’ que tendem a predomi- mensão da verticalidade destas que está em
nar cada vez mais nas cidades. Os espaços questão e, consequentemente, o seu sig-
<<
não do projecto. Construído no final do sé-
culo XIX, o Reichstag foi a primeira sede de
um parlamento democrático alemão, tor-
nando-se ao longo do século XX um po-
tente símbolo de memória colectiva não só
da Alemanha mas também da Europa. Da
Républica de Weimar ao Regime Nazi, do
abandono após o incêndio de 1933 à metá-
fora de uma cidade e país divididos.
silenciou a voz dos políticos como era habi- riculturalidade característica da população
tual, a memória dos discursos das suas ja- de qualquer actual cidade europeia e a sua
nelas, o levantamento das bandeiras alemã relação com o fosso cada vez maior entre
ou soviética no telhado e a retórica política ricos e pobres. Exercícios, como tal, ten-
oficial no interior. Assim, abriu um espaço dencialmente configurantes de espaços
para reflexão e contemplação, bem como que sendo designados de públicos são no
para a memória. A transitoriedade do even- entanto de acesso restrito, não necessari-
to em si — os artistas recusaram prolongar a amente pelo controlo através de barreiras
mostra sob demanda popular — era tal que de ordem física mas por outras aparente-
iluminou a temporalidade e a historicidade mente mais leves como, por exemplo, o fil-
do espaço construído, a relação ténue en- tro selectivo da capacidade de poder de
tre lembrar e esquecer.” (Huyssen, 2003: 36) compra face à tipologia das actividades de
consumo que acolhem e promovem. Tor-
Uma alusão à representação do paneja- na-se fundamental questionar do que tra-
mento na História da Pintura e da Escultu- ta exactamente uma prática de arquitectura
ra Ocidentais parece estar presente nesta e de planeamento urbano quando intenta
relação do têxtil (e a sua opacidade) com ‘diluir’ os limites entre espaços, pois neg-
o edifício. Ao envolver os corpos, o pane- ligenciar a factual existência destes pode
jamento não distrai o olhar da interpre- levar tal prática a colaborar na criação de
tação das formas que oculta. Pelo contrário, um modelo de cidade onde a ‘indiferença’
faz perscrutar mais sobre estas, sobretudo face à ‘diferença’ predomine. Torna-se en-
quanto mais elaborado for o trabalho do tão urgente a identificação dos ‘limites’
claro-escuro, ou seja, a representação dos na cidade, a sua confrontação, a sua inter-
efeitos da luz sobre a matéria. Pode tam- rogação através da experiência de os at-
bém acentuar a sugestão do movimento ravessar, para que se possa conhecer o que
dos corpos, sem no entanto sugerir a sua está em cada um dos lados, ambos partes
‘desmaterialização’. Num entendimento da mesma urbanidade.
oposto segue a relação entre o têxtil e a
<<
No seu documentário In Comparison (2009),
Harun Farocki aborda de modo supreenden-
te e essencial os processos de construção
de paredes enquanto espelho de diferença
e diversidade culturais, partindo da consid-
eração do elemento básico da sua estrutura:
o tijolo. Observou processos de produção
de tijolos em diversos países, cuja sequência
na estrutura do documentário se organiza
de modo crescente em função da situação
económica, dos países mais pobres aos mais
ricos. O primeiro acontece em Burkina Faso Harun Farocki, In Comparison, 2009
(fotogramas do filme).
com os esforços colectivos de uma comuni-
© Harun Farocki.
dade de pessoas com diferentes gerações
que realiza todas as etapas da construção
de um edifício pelas suas próprias mãos, at-
ravés da acção conjunta com base na coor-
denação espontânea dos movimentos dos
corpos. O último decorre no contexto de
produção industrial de tijolos tecnologica-
mente mais avançado, na Alemanha, onde
as poucas pessoas necessárias ao proces-
so trabalham isoladas com as máquinas, de-
sempenhando poucos gestos quase restri-
tos apenas ao movimento dos olhos. Farocki
cria assim um incisivo retrato global no qual
diferenças culturais, sociais e económicas se
revelam pela duração específica do modo
de produção de tijolos e, consequente, do
modo de construção de paredes que prati-
cam. Uma metáfora poderosa sugerindo
que as diferenças entre as culturas se de-
terminam pelo ‘tempo do tijolo’ que pro-
duzem. Para Farocki os tijolos ‘ressoam’ os
fundamentos das nossas sociedades, mas
ainda não aprendemos a ouvi-los. Andres
Lepik (2010), curador e historiador de arte,
refere o seguinte na análise que faz deste
documentário, “In Comparision apresenta o
tijolo como uma metáfora global para a in-
<<
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199
Arte Pública e Política1
developed in the second half of the twentieth century culo XX, a noção de Arte Pública foi profi-
and from the identity expansion of the traditional cuamente discutida nos EUA a partir do
disciplines. But it also stems from the fact that in our comprometimento social que alguns artis-
days this notion it is applied to artistic interventions with tas manifestavam nas suas obras. Dela re-
very different purposes. Nevertheless, it is possible to sultou a proposta de uma nova tipologia
understand the convergence of the critical discourse to artística, então denominada de ‘novo gé-
a characterization of the notion of Public Art based on nero de arte pública’. A designação surgiu
two elements: the relationship with the Space and the pela primeira vez numa edição publicada
relationship with the Public. But these concepts have em 1995, que reunia as intervenções ocorri-
extended the perimeters of its significance. On the one das no simpósio ‘Mapping the Terrain: New
hand, the Space it has been understood through an Genre Public Art’, realizado em 1991 no San
anthropological and social dimension. On the other hand, Francisco Museum of Modern Art. Suzanne
the connection between the Politics and Public 2 became Lacy, a quem coube o trabalho de edição
central to some artistic practices. This text it is precisely do volume com o mesmo título, destacava
about the relation of the Public Art with the Politics. aí o papel pioneiro e o contributo da inicia-
tiva para um conhecimento e compreensão
de produções artísticas cuja contextualiza-
ção teórica ocorria até ao momento a par-
tir da designação lata de ‘artistas políticos’
(Lacy, 1995, p.12).
<<
tinha em conta o facto de determinadas procedimentos metodológicos e de inte-
práticas artísticas se centrarem numa inter- racção com uma audiência ampla e diver-
venção social baseada na interacção con- sificada – assente em assuntos relevantes
tinuada com diferentes segmentos da po- para as suas vidas – e com uma actuação no
pulação ou com comunidades específicas, terreno social que privilegiava questões de
alargando dessa forma o perímetro da con- ordem cultural (Lacy, 1995, p.20), uma op-
textualidade que, até aí, tinha estado afecto ção alinhada com os caminhos que então se
ao princípio da espacialidade. Lacy descre- trilhavam no domínio político.
ve-as considerando que “They have enga-
ged broad, layered, or atypical audiences, A indexação destas práticas artísticas à in-
and they imply or state ideas about social tervenção social e política motivou desde
change and interaction. Most important, the logo uma série de reflexões teóricas de cariz
artists selected provide different models of ideológico que importa conhecer. Tradicio-
practice and ideology.” (1995, p.13). nalmente, os artistas com uma intervenção
social de relevo – fosse enquanto cidadãos
Para Suzanne Lacy, as características que ou enquanto artistas – estavam maioritaria-
uniam determinadas práticas e em simul- mente afectos ao marxismo. Mas durante as
tâneo as distinguiam das restantes centra- décadas de setenta e de oitenta, ao mesmo
vam-se na sensibilidade relativamente à au- tempo que a reconstrução teórica da obra
diência, à estratégia social e à sua eficácia de Marx era abundante e dirigida por orien-
real (Lacy, 1995, p.20). Ainda assim, a auto- tações filosóficas distintas como as de Györ-
ra destacava de entre elas o ‘público’ como gy Lukács, Ernst Bloch, Antonio Gramsci ou
a componente essencial do trabalho, con- Louis Althusser, diferentes organizações po-
siderando que a relação entre o artista e a líticas de fundamento marxista colapsavam.
audiência poderia, em si mesma, tornar-se Simultaneamente, assistia-se de forma glo-
a obra de arte (Lacy, 1995, p.20). Para Lacy, balizada à privatização de todos os aspec-
estas práticas apenas podiam ser relacio- tos da existência social e da dominação do
nadas com as do espectro político em ter- poder capitalista (Bidet e Kouvelakis, 2008,
mos teóricos, uma vez que as áreas sociais p.5 e 6). Com a queda do Muro de Berlim
em que actuavam – por exemplo a oposição em 1989 e o fim da URSS em 1991, sucede-
ao racismo, a violência sobre as mulheres, a ram-se os vaticínios de morte do marxismo.
Sida ou a ecologia – “are as much a recoun- A eles, juntaram-se os discursos analíticos
ting of a traditional leftist agenda as they do pós-modernismo, as teorias do fim da
are the subject matter of new genre public História e as da derrota do marxismo sobre
art.” (Lacy, 1995, p.30). A autora sugeria a o capitalismo como, entre outros, Francis
existência de campos de actuação distintos Fukuyama defendeu em ‘The End of History
entre as práticas artísticas abrangidas pela and the Last Man’, de 1992.
nova designação e as restantes práticas ar-
tísticas assentes numa intervenção social e Esta conjuntura, onde “this theoretical tra-
política. A diferenciação tinha em conta os de-off made in the name of deconstructing
do século XX, sobretudo nos EUA. Estes mento crítico produzido no contexto das
conflitos, associados ao contexto cultural – artes, durante os anos noventa, raramen-
como as questões de género, de raça, de te tem sido equacionada no que se refere
identidade – procuraram com frequência à reflexão que determinados autores fize-
instalar-se num ‘novo’ pensamento de es- ram durante este período sobre a relação
querda veiculado ao feminismo e/ou ao das artes com a Política. Não obstante, esse
pós-colonialismo, afastando-se da análise equacionamento é fundamental para o en-
social marxista. quadramento ideológico de algumas tipo-
logias artísticas inseridas no perímetro da
Durante este período, o pensamento filosófi- Arte Pública, assim como o é para caracte-
co ‘pós-marxista’ e ‘neo-marxista’3 de Ernest rizar a re-focagem do contexto artístico na-
Laclau e Chantal Mouffe, Paulo Freire e Hen- quele período em matéria de intervenção
ry Giroux ou ainda de activistas associados social e política.
às teorias feministas como bell hooks, tor-
nou-se uma referência para alguns círculos No mesmo ano em que Chantal Mouffe e
e tipologias artísticas, nomeadamente as do Ernest Laclau publicaram o volume atrás
‘novo género de arte pública’. Nele, a con- referido – 1985 –, Hal Foster publicou ‘For
vergência com o marxismo assenta apenas a Concept of the Political in Contemporary
na forma “in which Marx discloses the shor- Art’, onde propunha fazer uma reflexão so-
tcomings of modern democratic theory (…) bre a conjuntura político-artística dos anos
namely, free and equal development of a oitenta a partir de uma revisão das relações
self-determining community.” (Tønder e Tho- entre os domínios cultural e político e en-
massen, 2005, p.2). As divergências são mais tre o social e o económico (Foster, 1985,
profundas, assentando num pensamento p.140). Neste ensaio, que se aproxima às
que considera o marxismo desactualizado considerações tecidas no contexto do pós-
na sua estruturação e análise social, eco- -marxismo, Foster reiterava que o modelo
nómica e política. É isso que, por exemplo, social marxista, baseado na luta de classes,
Ernest Laclau e Chantal Mouffe sustêm em estava ultrapassado. A definição de clas-
<<
se era, no seu entender, uma praxis social Hal Foster partia da análise baseada na
específica e não um dado histórico perma- comutação entre a cultura e a economia
nente que pudesse ser representado (1985, (Foster, 1985, p.146) pelo que defendia uma
p.143). Por isso argumentava que: radical alteração estratégica da arte crítica
em relação às utilizadas durante as primei-
Today progressive social forces in the west ras vanguardas. Se aí a estratégia tinha as-
cannot be defined strictly in terms of “pro- sentado na transgressão cultural e política,
ductive man” – for two reasons. Historically, agora ela deveria assentar na resistência
women, blacks, students...were no long su- e interferência (Foster, 1985, p.149) políti-
bordinate in production or consigned to a ca, efectuada directamente no campo da
realm outside it – to consumption or culture; cultura (Foster, 1985, p.154). Isso exigia da
and socially, the site of struggle for these po- arte uma concepção de cultura como es-
litical forces is as much the cultural code of paço conflitual onde era possível oferecer
representation as the means of production, resistência e interferir com os sistemas de
as much homo significans as homo œcono- produção simbólica e com os processos de
micus. (Foster, 1985, p.142). circulação que controlam as representações
culturais. Era esse o lugar possível para tra-
Hal Foster formulava então a questão: “if it balhar no sentido da transformação social.
can no longer be conceived as representa-
tive of a class, materially productive or cul- O ensaio de Hal Foster terminava sugerin-
turally vanguard, how and where is political do uma distinção entre ‘arte política’ e ‘arte
art to be posed?” (Foster, 1985, p.140). Em com uma política’. Para o autor, a primeira
resposta, afirmava que o poder não pode- mantinha-se encerrada num código retóri-
ria continuar e ser exercido exclusivamente co, pelo que reproduzia representações
ou maioritariamente através do controlo dos ideológicas enquanto que a segunda, im-
meios de produção, mas através do controlo plicada com um posicionamento estrutural
dos meios de representação (1992, p.260). de pensamento, procurava uma prática ma-
Desta forma, a arte política não poderia con- terial efectiva com a totalidade social (1985,
tinuar a ser concebida apenas “as a repre- p.155). Dadas as estratégias de actuação,
sentation of a class subject (…) or an instru- o autor considera que a última procurava
ment of revolutionary change (…).” (Foster, produzir um conceito de ‘político’ relevante
1985, p.143), valores transversais à socie- para a época (Foster, 1985, p.155), evitan-
dade, tendo antes que ser concebida para do dessa forma a apropriação e dominação
“specific uses and material effects (...)” (Fos- pelo poder.
ter, 1985, p.143). Para que isso acontecesse,
tornava-se necessário “see in the social for- Em 1996, Hal Foster clarificava a sua per-
mation not a “total system” but a conjuncture spectiva, publicando o texto ‘The artist as
of practices, many adversarial, where the etnographer’. A partir da recuperação do
cultural is an arena in which active contesta- pensamento que Walter Benjamin expres-
tion is possible” (Foster, 1985, p.149). sou em 1934 no texto ‘Der Autor als Produ-
<<
pard, o autor identifica nas ‘microutopias’ Ernest Laclau e Chantal Mouffe, “a duo of
do presente a significância política da arte anti-Marxist Leftists (...) attempted to prove
relacional. Mas como Claire Bishop obser- that any universal economic explanation of
va, a mesma tende a centrar-se não no es- society is merely a fetish or myth dreamed
paço social mas na relação entre o artista up by Marx and elaborated on by his follow-
e o espectador (Bishop, 2004, p.56). Isso é ers.” (2011, p.14). Sholette rejeita liminar-
também notado por Christian Kavragna em mente a visão ‘horizontal’ do pluralismo de-
relação ao ‘novo género de arte pública’: fendido por Mouffe e Laclau assim como o
facto de considerarem que:
The rhetoric of the NGPA hardly obscures
the process of “othering”, the construction No one privileged signifier—such as the
of an “other” as a condition for further pro- economy or class status—could possibly af-
jections. The “others” are not only poor and fect all of these positions [as posições de
disadvantaged, they are also representati- conflito social] because capitalism is not a
ves of what is genuine and real, so that they totality, it is instead a text with a multiplici-
are at once both needy and a source of in- ty of interpretive possibilities that generate
spiration (1998). merely local conflicts of power and temporal
moments of subjectivity (2011, p.14).
O discurso de Lacy, de Foster, de Lippard
e de outros autores como Rosalyn Deut- Naturalmente que este debate não está en-
sche4 ou Nicolas Bourriaud relevava uma cerrado e dele tem resultado uma extensa
intervenção social segmentada face a uma profusão de relacionamentos da Arte Públi-
intervenção social dirigida ao contexto ca com o Político. Um dos efeitos mais evi-
económico e político hegemónico. Chris- dentes tem sido o crescimento de propos-
tian Kavragna considerou por isso que tas terminológicas e sub-tipologias dentro
“What is noticeable about the programma- do tecto abrangente da Arte Pública, cu-
tic writings by Lacy and Jacob, but also by jos propósitos se enunciam como políti-
Lucy Lippard, Suzi Gablik and Arlene Raven, cos5. Mas a questão essencial passa pela
is that political analysis is largely missing, dimensão ideológica que esses propósitos
even though there is much talk of social têm, assim como pela interrogação acer-
change at the same time.” (1998). Contudo, ca da sua relação com o sistema capitalista
a omissão da análise política dos discursos neoliberal e com a Política.
críticos sobre arte destes autores não era
casual. Acontecia porque eram enformadas O BAVO, um colectivo sediado em Roter-
por teorias políticas ideológicamente alin- dão, fundado pelos arquitectos-filósofos
hadas com um pensamento sobre as dinâ- Gideon Boie e Matthias Pauwels, tem de-
micas sociais marcadamente niilista e em senvolvido uma investigação nesta matéria,
muitos aspectos anti-marxista. A este res- designando as práticas artísticas sem pro-
peito, por exemplo, o artista Gregory Sho- pósitos políticos dirigidos para o comba-
lette sustenta que toda a teoria política de te às estruturas hegemónicas de poder de
<<
ticulary complex role. This is especially the propósito subversivo (De Bruyne, P. e Gielen,
case when he tries to substantiate this social P., 2011, p.21). Isto complexifica a questão,
claim from an artistic position.” (De Bruyne, mas traz simultaneamente à luz a importân-
P. e Gielen, 2011, p.18). A complexidade cia de se identificar o carácter intencional da
que Gielen identifica está relacionada com prática artística, considerando os propósitos
o que considera ser um frágil equilíbrio en- políticos da mesma como uma característica
tre o contexto artístico e o contexto político, essencial a investigar.
podendo um levar à anulação do outro (De
Bruyne, P. e Gielen, P., 2011, p.19). Gielen afirma que a estética auto-relacional
digestiva está tradicionalmente afecta à arte
Pascal Gielen considera existirem dois posi- em espaços públicos onde o artista, embora
cionamentos extremos na arte comunitária. possa ter a participação da comunidade lo-
Um responde à noção de 'estética auto-rel- cal, de instituições públicas ou de empresas
acional' e acontece quando o trabalho serve locais (ao nível do patrocínio, por exemplo),
a identidade do artista e o outro pressupõe segue a sua assinatura artística (De Bruyne,
a existência da noção de‚ 'estética alter-rela- P. e Gielen, P., 2011, p.23). É frequente nest-
cional' e acontece quando o trabalho serve es casos o artista trabalhar com organi-
a identidade do Outro (De Bruyne, P. e Giel- zações focadas em Arte no Espaço Público
en, P., 2011, p.18). Estes dois posicionamen- (comuns nos EUA e em alguns países euro-
tos sugerem que a arte comunitária pode peus) que servem de intermediárias neste
seguir duas direcções: obedecer às regras processo, a fim de encontrar consensos, ou
da arte profissional ou servir exclusivamente de instituições ligadas ao Poder local ou
a interacção social levando inevitavelmente central. Este posicionamento é aquele que
a um suicídio artístico (De Bruyne, P. e Giel- mais directamente se associa ao âmbito da
en, P., 2011, p.20 e 21). Ainda assim, consid- escultura e da edificação objectual, embo-
era o autor, o sucesso do trabalho depende ra possam existir projectos fora desse con-
de um correcto equilíbrio entre os dois texto. Por seu turno, a estética alter-rela-
posicionamentos (De Bruyne, P. e Gielen, P., cional digestiva prima por procurar atingir
2011, p.21). resultados sociais, colocando num plano se-
cundário a assinatura artística (De Bruyne, P.
O que se julga ser essencial nesta análise é e Gielen, P., 2011, p.25). Nela, podem inclu-
que Gielen sublinha que o propósito que ir-se todos os projectos onde acreditar “in
conduz o trabalho para a interacção social the healing effects of the arts is remarkably
determina que o mesmo possa ser consider- strong” (De Bruyne, P. e Gielen, P., 2011,
ado subversivo ou digestivo. A divisão entre p.25) e cujo objectivo artístico passa pela
os dois pólos não é intransponível pelo que integração social de determinados elemen-
a uma estética auto-relacional não tem que tos da comunidade.
corresponder necessariamente um propósi-
to digestivo, assim como a uma estética al- Um exemplo que se julga paradigmático
ter-relacional não tem que corresponder um deste posicionamento é o projecto‚ 'mega-
da Internet do Projecto
(Apud http://www.megafone.net/site/index) publique directamente no
sítio da Internet7. O ‘mega-
fone.net’ caracteriza-se in-
equivocamente por encon-
trar na arte uma plataforma
de sociabilidade que neste
caso se traduz por dar voz
a determinadas comuni-
dades fragilizadas. Como o
próprio website do projec-
to refere, a intenção é que o
dispositivo tecnológico en-
Vista da exposição 'Antoni Abad. megafone.net/ tregue a cada participante
2004-2014'. MACBA
possa actuar como um
Foto: Miquel Coll (Apud http://www.macba.cat/es/10-anyos-de-megafone-net)
megafone, amplificando a
voz de indivíduos e grupos
frequentemente ignorados e incompreendi-
dos pelos meios de comunicação principais
(Megafone.net, 2013). Aqui, o artista fala em
discurso indirecto, cedendo o espaço que
lhe é concedido enquanto artista a outros
que em condições regulares não o teriam,
pelo que se trata de uma prática alter-rel-
acional. Considera-se que a mesma é ‘di-
gestiva’ por duas razões: em primeiro lugar
porque o projecto advoga o objectivo de
deixar falar o outro, impedido pelos média
de o fazer. Acaba portanto por se substitu-
<<
ir aos mesmos, transferindo a responsabili-
dade de serviço público para si mesmo sem
que isso se traduza em qualquer alteração
na atitude dos referidos meios de comuni-
cação social. Não existe neste trabalho a in-
tenção de ir mais longe a este nível, exigin-
do por exemplo que os média cumprissem
a sua função, mas antes substituir-se a eles
numa função que diríamos ser protésica. A
outra razão, mais evidente, prende-se com
o suporte financeiro do projecto, dado por Francis Alÿs, 'Turista', 1994 – Fotografia, 9.9 x 15.1 cm.
(Apud http://www.stedelijk.nl/en/artwork/82250-turista)
instituições sociais, culturais ou artísticas e
também por empresas privadas, especial-
mente as dirigidas às telecomunicações8. O
artista coloca-se numa posição de facilitador
das políticas financeiras empresariais que
primam com frequência pelo apoio a iniciati-
vas de cariz social com o objectivo de ganhar
estatuto social e em simultâneo benefícios
fiscais, pelo que de certa forma, sendo al-
ter-relacional, este projecto colabora mais na
manutenção do sistema social e político em
vigor do que na sua alteração profunda.
<<
determinadas orientações de esquerda que
promulgariam a designada ‘crise da repre-
sentação’ está também presente, traduzin-
do-se na rejeição por todas as formas de or-
ganização política ‘institucional’ e no apelo
à auto-organização.
praxis borrow something from each of these espacial manteve-se determinante, tanto
three fields while simultaneously belonging ao nível do delineamento genealógico e
to all of them.” (2013). histórico como ao nível da sua delimitação
conceptual. Mas a afectação à Política e à in-
A estética alter-relacional subversiva, aqui tervenção social aconteceu desde o início.
incluída em práticas artísticas comunitárias, Importa por isso, na análise crítica que se
parte de uma inversão da questão arte/ faz destas práticas artísticas, equacionar os
política, ou seja, considera que não é no seio efeitos sociais e políticos e neles, a relação
de movimentos artísticos, por mais politiza- mantida com a sociedade capitalista e com
dos que sejam, que a intervenção política o neoliberalismo global, reflectindo de que
da arte se torna relevante. Ela torna-se rel- forma as mesmas contribuem para a ma-
evante quando os movimentos sociais e nutenção ou derrube do mesmo.
políticos a utilizam enquanto ferramenta de
acção. Assim, a centralidade do problema
não é estético, é social. Não obstante, a es-
tética funde-se num campo expandido de
práticas diversas com um só objectivo: a al-
teração social. Em boa verdade, a questão
que aqui é colocada centra-se na articu-
lação entre a arte e a produção e não en-
tre a arte e a recepção, como acontece com
muitas das práticas descendentes do ‘novo
género de arte pública’, pelo que o seu
perímetro de actuação se encontra simulta-
neamente no âmbito do activismo artístico.
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ticle188&varrecherche=Ingre- terrain: New Genre Public Art. pensamento à luz das novas
<<
Alguns Factores Determinantes
para o Impacto da Arte Urbana em Lisboa1
lizado, tem vindo a ser desenvolvida pela deflagrando-se na zona de Carcavelos, até
Galeria de Arte Urbana (GAU), desde 2008. chegarem à capital, especialmente em nú-
Constitui pois, uma abordagem decorrente cleos como o ainda hoje activo, muro das
da nossa reflexão e investigação produzi- Amoreiras, junto à Av. Conselheiro Fernan-
das neste campo estético, da concepção da do de Sousa4. Trata-se portanto, de tendên-
estratégia promovida pela GAU nas distin- cias recentes, com aproximadamente 30
tas áreas de actuação que a configuram, na anos de presença na cidade, disponibilizan-
participação em inúmeros projectos organi- do-se ainda num diminuto hiato temporal à
zados e apoiados, na observação e relacio- observação, fruição, análise e estudo.
namento directos com os criadores e agen-
tes associados a estas práticas artísticas, Tal contemporaneidade, o facto de o fenó-
mas também com a população confrontada meno estar a acontecer hic et nunc, permi-
com estas manifestações, nos seus vários te-nos percepcionar as céleres mutação e
papéis sociais, enquanto residente, proprie- ampliação da comunidade ligada à produ-
tária, empresária, turista, entre outros. ção do graffiti e da street art, em Lisboa e
noutras cidades a nível mundial, aspectos
Dentro das principais dificuldades episte- que não apenas reflectem um carácter de
mológicas inerentes ao presente objecto de transitoriedade no interior deste domínio
estudo, realça-se a proximidade temporal plástico, como incutem uma permanente
do fenómeno, cuja génese pode eventual- necessidade de actualização por parte dos
mente remeter para ancestrais gestos pictó- seus investigadores5. Traçar cenários exaus-
ricos e caligráficos, plasmados em registos tivos, consultar taxionomias sedimentadas,
pré-históricos ou articulados na Antiguida- obter dados consolidados, constituem tare-
de Clássica2 ou até em criações de um mu- fas bastante inacessíveis ou até vãs, peran-
ralismo mais recente, em diferentes corren- te a produção criativa em causa. Revela-se
tes novecentistas, mas cujo principal corpus para mais como uma situação globalizada,
de expressão, emerge na segunda metade não só na sua faceta de manifestação sub-
da década de 60 e início da seguinte, no sé- versiva e anti-sistémica, como na sua ver-
<<
tente comissariada e autorizada, surgindo tas estruturas artísticas, consequentemente
constantemente novas iniciativas. Assim e pouco reconhecida pelo pensamento, pela
na ausência de manuais de boas práticas, crítica, pelo mercado, pela maioria das en-
importa aceitar a impossibilidade de uma tidades museais, ao ser germinada no seio
visão holística e definitiva sobre estas ex- de uma comunidade originalmente autodi-
pressões, adoptando um entendimento di- dacta e anónima, ditaram uma clara falta de
nâmico e disponível perante o movimento interesse académico, que se traduzia igual-
perpétuo dos acontecimentos. mente numa fraca produção bibliográfica.
Esta lacuna será outro dos obstáculos ao
Outra dificuldade reside na forte ambiva- seu estudo, situação que começa a ser su-
lência e nas estruturantes contradições que primida, de forma predominante, por disci-
percorrem as posturas de toda esta comu- plinas sociais, como a antropologia visual, a
nidade, perante os desafios que presente- sociologia urbana, muito mais recentemen-
mente lhe são colocados. O pontual ape- te pela história da arte8, e por uma crescen-
lo das galerias e da curadoria, a resposta te vaga de publicações ligadas ao tema.
às encomendas, a atracção pelas marcas, a
sujeição ao processo de legalização, até a Perante o exposto, qual a relevância desta
opção por certos suportes, técnicas e plas- temática na análise da actuação artística na
ticidades, são encaradas por alguns criado- esfera pública? O fenómeno encerra uma
res como processos de “domesticação”, de vertente vandálica que atinge claramente
aniquilação da rebeldia e do descompro- outras expressões plásticas presentes no
metimento (com excepção das regras gera- espaço público, componente que mais do
das pelos pares) que pautou o espírito ori- que se combater cegamente, apenas atra-
ginal das práticas do graffiti e de uma certa vés de vastas campanhas de limpeza, urge
“deontologia” concebida pelos writers6. Se também ser compreendido pelas orgãos
em Lisboa, se encontram cada vez mais ar- responsáveis pela salvaguarda do patrimó-
tistas a trabalharem exclusivamente num nio, enquanto forma de expressão, gesto de
campo autorizado, surgem também auto- rebeldia, sinal de afirmação, acto de demar-
res a produzirem somente registos ilegais, cação do território, perante as condições de
em meios como carruagens de comboios, vida na urbe contemporânea, por parte de
a pièce de résistance do universo ligado ao uma camada adolescente da população9,
graffiti7. Estas facetas, entre outras, espe- estrato aliás cada vez mais jovem. Muitas ci-
lham bem a complexidade do terreno que dades, têm acolhido uma crescente presen-
estamos a percorrer, expondo a subtileza e ça de obras predominantemente parietais,
a delicadeza das matérias em causa. nem sempre de cariz site-specific, criadas
por esta comunidade, produções que trou-
Por outro lado, o estado coevo, conjugado xeram para o espaço público, todo um novo
não só com a natureza efémera da arte ur- grupo composto por artistas emergentes,
bana e a origem de praxis ilegal, mas tam- traduzindo-se numa efectiva regeneração
bém com uma proveniência distante de cer- da intervenção estética na malha urbana,
modo, tem enformado o mais recente esta- um ensejo concretizado por certa elite criati-
do da arte em espaço público. va, apesar de algumas intervenções produzi-
das por artistas plásticos, como o vasto mural
II conjunto, realizado na Galeria Nacional de
A interrogação subjacente a este artigo, Arte Moderna, em Belém, no ano da Revo-
nasce do interesse em descortinar quais as lução e no qual participaram nomes presti-
principais razões para o fenómeno da arte giados, como Júlio Pomar, Nikias Skapinakis,
urbana ter adquirido a presente expres- Vespeira, entre outros12, ou ainda a interven-
são em Lisboa, identificar alguns dos facto- ção executada no piso da Rua do Carmo, em
res que estimularam este tipo de interven- Agosto de 1974, envolvendo o grupo Acre13.
ções artísticas, alimentando a pujança que O património estético trabalhado, emanava
as manifestações do graffiti e da street art essencialmente de uma linguagem gráfica
hoje patenteiam nas ruas da cidade. Nes- delineada pelo marxismo-leninismo e pelo
se reconhecimento, constatámos que há maoismo, quer em termos formais, quer cro-
causas que se tornam efeitos e efeitos que máticos, adaptada tão mimética ou espon-
se tornam causas, dialéctica presente num taneamente, quanto permitia a capacidade
processo pautado pelo dinamismo, pela ex- técnica e imagética dos seus autores. Consis-
ponenciação da comunidade, dos eventos, tiam em peças com claros fitos políticos, que
dos trabalhos, dos lugares onde se inscreve portanto procuravam ser eficazes na comu-
este universo plástico, como foi apontado. nicação, ao despertar, consciencializar, enga-
jar, activar comportamentos nos indivíduos,
Antes de mais, julgamos ser relevante refe- através de mensagens de assinalável impac-
rir a herança do muralismo propagandísti- to visual, com frases imperativas de interpre-
co, eclodido imediatamente após o 25 de tação imediata14. Tal acervo original de mu-
Abril de 1974 e prolongando-se durante rais encontra-se hoje, totalmente perdido,
todo o Processo Revolucionário em Curso. entre as vicissitudes construtivas e urbanísti-
A consignação das liberdades primordiais cas da cidade, legado apenas resgatado de
espoletada pela transição à Democracia, modo tangível, por alguns núcleos fotográfi-
<<
cos, actualmente sob a guarda de entidades
como a Fundação Mário Soares15, o Arqui-
vo Fotográfico da CML16, o Centro de Do-
cumentação 25 de Abril, pertencente à Uni-
versidade de Coimbra17. Todavia, a memória
persiste nas gerações que experienciaram
directamente os acontecimentos do PREC,
gerando certa abertura para as intervenções
do muralismo da actualidade, também ele
atento a essa herança, como o testemunham
o projecto “40 Anos/40 Murais”, organizado Carlos Farinha, Exposição “Venham mais 7!”,
Painel da GAU, Calçada da Glória, 2014
por António Alves e a Associação APAURB18 © CML | DPC | José Vicente 2014
ou a exposição “Venham mais 7!” decorrida
em 2014, nos painéis da GAU, sitos na Calça-
da da Glória e Largo da Oliveirinha19.
<<
Promovendo não só as suas próprias ini- No contexto do apoio às actividades de
ciativas, como suportando e apoiando os produção artística, concebidas pela comu-
eventos organizados por terceiros, a Ga- nidade, realçamos dois dos eventos mais
leria alarga a sua área de intervenção. As- emblemáticos da cidade de Lisboa – o pro-
sim, adopta logo nesse ano de 2009, como jecto “Crono” e a plataforma “Underdogs”.
campos essenciais à sua actuação, para O primeiro, idealizado por Vhils, Pedro Soa-
além necessariamente da curadoria e da res Neves e Angelo Milano, notabiliza-se a
produção de eventos, as campanhas e ac- partir das monumentais intervenções rea-
ções de divulgação e sensibilização para lizadas num conjunto de três imóveis, loca-
a importância do enquadramento das prá- lizado na Avenida Fontes Pereira de Melo,
ticas do graffiti e da street art, num plano um dos principais eixos viários da cidade,
legalizado. E ainda a inventariação de re- por parte de alguns dos reconhecidos no-
gistos, levantamento que recua até à Revo- mes da street art estrangeira, referimo-nos a
lução de 1974 e avança até à actualidade, OsGémeos33, Blu, Sam3, EricaIlCane e Lucy
inventário divulgado permanentemente McLauchlan34. Será a sua escolha como uma
pela Galeria em diferentes meios, como o das mais importantes obras de arte urbana a
Google Art Project28. Mas também o apoio nível mundial, num artigo da autoria de Tris-
ao debate, à investigação e à publicação, tan Manco, publicado pelo The Guardian35,
através da organização de seminários, da que começa a oferecer a Lisboa uma posi-
participação em aulas, conferências e con- ção de destaque no cenário internacional.
gressos, de parcerias com investigadores e
editoras, o caso de Ricardo Campos, para a Por sua vez, Vhils e Pauline Foessel no âm-
sua obra “Porque Pintamos a Cidade? Uma bito da plataforma “Underdogs”36, criada no
Abordagem Etnográfica do Graffiti Urba- seu formato actual, no ano de 2013 e con-
no” publicada pela Fim de Século ou a edi- tando com o apoio da GAU, têm vindo a reu-
ção de “Street Art Lisbon”29, lançada pela nir em Lisboa, alguns reconhecidos autores
Zestbooks. A animação e pedagogia, orga- estrangeiros, a par com criadores nacionais.
nizando e apoiando entre outras iniciativas, Apenas para elencar alguns: os brasileiros
o projecto “Lata 65” no âmbito do progra- Nunca e Finok; o polaco Sainer; o espanhol
ma municipal do “Orçamento Participativo”, Okuda; a dupla norte-americana Cyrcle; os
em colaboração neste caso, com Lara Seixo portugueses MaisMenos e AkaCorleone37.
Rodrigues, projecto que se propõe aproxi-
mar a população sénior destas tendências Assim, do interesse político, da consciência
visuais30. Por fim, as relações internacionais, democrática em como seria relevante dedi-
estruturando candidaturas e projectos in- car um tempo e um espaço próprios a uma
ternacionais, integrando redes ligadas à comunidade de artistas que vinha sendo
arte urbana, como a Urban Creativity Allian- afastada da intervenção plástica na malha
ce31 e a RAIU- Rede Luso-Brasileira de Pes- urbana, arredados maioritariamente para
quisa em Artes e Intervenções Urbanas32. práticas não autorizadas, nasce a GAU, plata-
forma municipal a actuar num terreno nunca
Av. Fontes Pereira de Melo, 2010, da street art, a elevação do seu estatuto es-
© CML | GAU 2010
tético e profissional, a introdução de activi-
dades culturais em zonas carenciadas da ci-
dade. A conjugação de todas estas áreas de
actuação sob o signo de diversos propósi-
tos, parece também contribuir para a esta-
bilização de um terreno fértil à expansão e
diversificação do fenómeno da arte urbana,
na cidade de Lisboa.
<<
tivas, surgem criadores que nunca antes ha-
viam trabalhado em espaço público e que
almejam adquirir alguma experiência neste
campo, conviverem com autores de gera-
ções anteriores, darem-se a conhecer às en-
tidades organizadoras.
outros campos artísticos, posicionam a arte do, quer por parte de entidades gestoras
urbana como uma oportunidade de tra- do território e empresas interessadas em
balho num cenário de crise financeira que desenvolverem projectos neste domínio.
atingiu fortemente muitas das áreas onde Essa procura obedece a diversas finalida-
paralelamente estes autores desenvolviam des – busca-se não apenas retardar o apare-
as suas carreiras profissionais, por exemplo cimento de inscrições vandálicas em deter-
no mercado publicitário. Estas carências en- minados espaços, mas também promover
frentadas pelo país, implicaram igualmente certa valorização patrimonial; revitalizar e
uma redução na procura de suportes parie- dignificar áreas mais abandonadas, degra-
tais para a instalação de telas publicitárias, dadas e “deprimidas”; reforçar o diálogo
pelos elevados montantes dispendidos em multicultural e intergeracional, a inclusão
taxas e logística, situação que de alguma social e o enraizamento territorial que o de-
forma, ofereceu uma maior margem de ma- senvolvimento de algumas metodologias
nobra ao aparecimento de obras artísticas artísticas pode estimular; aprofundar estra-
em fachadas e empenas com forte visibili- tégias de responsabilidade social e cultural;
dade. Ainda assim e dado também tratar- aproximar-se de públicos urbanitas e juve-
-se de uma comunidade bastante jovem43, nis que claramente se identificam com es-
os valores praticados são inferiores aos en- tes léxicos visuais; partilhar o protagonismo
volvidos na produção de peças com mate- mediático atingido por estas manifestações
riais mais perenes e onerosos, e por cria- na cidade de Lisboa, entre outros intuitos.
dores reconhecidos pelo mercado da arte. Neste campo da colaboração com marcas e
Desfrutando igualmente da proliferação e grupos empresariais, apontamos o projecto
notoriedade que estas manifestações têm “Natureza Viva”46 concretizado entre 2013
usufruído em Lisboa, identificam-se novas e 2014, com a companhia francesa Immo-
oportunidades de negócio e a criação de chan, proprietária dos Centros Comerciais
micro-empresas vocacionadas para a pres- Alegro, que se traduziu na elaboração de
tação de serviços ou a concepção de ma- um tríptico de intervenções, em Setúbal, Al-
teriais neste contexto, como a organização fragide e Lisboa, nomeadamente em dois
<<
dos pilares da Ponte 25 de Abril, em todos
os locais com o mesmo grupo de artistas –
José Carvalho, Klit, Kruella d’Enfer, Mosaik,
Regg, Tamara Alves, Violant.
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Finisterra, XLVI, nº 92, 2011 com/2014/04/17/best-street-art-
Revista GAU, Câmara Municipal de cities_n_5155653.html> 1
Este artigo não foi redigido
Lisboa, Vol. 1, Novembro, 2012. <http://issuu.com/unidade/docs/ segundo o actual Acordo
Revista GAU, Câmara Municipal de crono_lisboa_2010-2011> Ortográfico.
Lisboa, Vol. 2, Abril, 2013 <http://issuu.com/ 2
Cedar LEWISOHN, Street Art – The
Revista GAU, Câmara Municipal de galeriadearteurbana/docs/livro_ Graffiti Revolution, Tate Publishing,
Lisboa, Vol. 3, Janeiro, 2014. gau_3anos_web> London, 2009, pp. 26-27.
Revista GAU, Câmara Municipal de <http://issuu.com/ 3
Ricardo CAMPOS, Porque
Lisboa, Vol. 4, Abril, 2014 galeriadearteurbana/docs/gau_ Pintamos a Cidade? Uma
Revista GAU, Câmara Municipal de vol01_2012_issuu> Abordagem Etnográfica do Graffiti
<<
e Contemporânea Colecção portugue____s_issuu ; Revista GAU, docs/revista_gau_vol_o6_2014
Berardo, 2010. Câmara Municipal de Lisboa, Vol. 6, 42
Ricardo CAMPOS, op. cit., pp
34
Cf. em http://issuu.com/unidade/ Outubro 2014, também disponível 194-198.
docs/crono_lisboa_2010-2011 em http://issuu.com/camara_ 43
Com os elementos mais
35
Cf. em http://www.theguardian. municipal_lisboa/docs/revista_ velhos a atingirem nesta fase,
com/culture/gallery/2011/aug/07/art gau_vol_o6_2014 aproximadamente os 40 anos de
36
Cf. em http://www.under-dogs.net/ 40
Cf. Revista GAU, Câmara idade.
37
Cf. Revista GAU, Câmara Municipal de Lisboa, Vol. 1, 44
Cf. em http://www.under-dogs.
Municipal de Lisboa, Vol. 3, Novembro, 2012, também net/news/underdogs-public-art-
Janeiro de 2014, também disponível em http://issuu.com/ tour/ e http://www.estreladalva.
disponível em http://issuu.com/ galeriadearteurbana/docs/gau_ pt/index.php/pt/tours/tours-
galeriadearteurbana/docs/ vol01_2012_issuu ; Revista GAU, tematicos/street-art-tour
gau_3_portugue____s_issuu ; Câmara Municipal de Lisboa, Vol. 6, 45
Underdogs, op. cit. e em http://
Revista GAU, Câmara Municipal Outubro 2014, também disponível www.veracortes.com/
de Lisboa, Vol. 5, Julho 2014, em http://issuu.com/camara_ 46
Revista GAU, Câmara Municipal
também disponível em http:// municipal_lisboa/docs/revista_ de Lisboa, Vol. 4, Abril 2014,
issuu.com/galeriadearteurbana/ gau_vol_o6_2014 também disponível em http://
docs/gau_5_issuu ; Revista GAU, 41
Cf. Revista GAU, Câmara Municipal issuu.com/galeriadearteurbana/
Câmara Municipal de Lisboa, Vol. 6, de Lisboa, Vol. 1, Novembro, 2012, docs/gau_vol4_pt
Outubro 2014, também disponível também disponível em http:// 47
Rita MIRANDA, Debaixo de uma
em http://issuu.com/camara_ issuu.com/galeriadearteurbana/ parede cinza… existe um amor
municipal_lisboa/docs/revista_ docs/gau_vol01_2012_issuu ; pela nossa Cidade. (OsGemeos)
gau_vol_o6_2014 Revista GAU, Câmara Municipal Cidade Turismo e Arte Urbana
38
Cf. o programa Mural Arts de Lisboa, Vol. 2, Abril 2013, na área metropolitana de Lisboa,
Program em http://muralarts.org também disponível em http:// Dissertação Mestrado em Turismo
39
Cf. Revista GAU, Câmara issuu.com/galeriadearteurbana/ e Comunicação, Faculdade de
Municipal de Lisboa, Vol. 1, docs/revistagauvol2_issuu ; Letras da Universidade de Lisboa,
Novembro, 2012, também Revista GAU, Câmara Municipal 2015, pp. 27-33.
disponível em http://issuu.com/ de Lisboa, Vol. 3, Janeiro 2014, 48
Cf. por exemplo em http://
galeriadearteurbana/docs/gau_ também disponível em http:// streetartlondon.co.uk/tours/ e
vol01_2012_issuu ; Revista GAU, issuu.com/galeriadearteurbana/ http://alternativeberlin.com/berlin-
Câmara Municipal de Lisboa, docs/gau_3_portugue____s_issuu ; graffiti-workshop-and-street-art-tour
Vol. 2, Abril 2013, também Revista GAU, Câmara Municipal de 49
Cf. em http://www.
disponível em http://issuu.com/ Lisboa, Vol. 4, Abril 2014, também agenda21culture.net/images/a21c/
galeriadearteurbana/docs/ disponível em http://issuu.com/ bones_practiques/pdf/LISBON-
revistagauvol2_issuu ; Revista galeriadearteurbana/docs/gau_ ENG.pdf
GAU, Câmara Municipal de Lisboa, vol4_pt ; Revista GAU, Câmara 50
Cf. em http://www.
Vol. 3, Janeiro 2014, também Municipal de Lisboa, Vol. 6, Outubro huffingtonpost.com/2014/04/17/
disponível em http://issuu.com/ 2014, também disponível em http:// best-street-art-cities_n_5155653.
galeriadearteurbana/docs/gau_3_ issuu.com/camara_municipal_lisboa/ html
p o r M a u r o Tr i n d a d e
Doutor pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e professor do Departamento de História e Teoria da Arte do
Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
<<
Tomas Viana, o Toz, é um grafiteiro baia- lavras pintadas nas ruas para a difusão de
no radicado no Rio de Janeiro que, des- ideias e comportamentos. Na mesma déca-
de 1996, pinta com sprays muros, viadu- da, jovens negros e hispânicos moradores
tos e outras construções pela cidade e que de Nova Iorque e de outras cidades iriam se
tem feito sucesso no mercado de arte, com bater contra as configurações simbólicas do
obras espalhadas por todo o Brasil e em di- espaço urbano após a repressão aos “gran-
versos países da Europa. Quando começou des motins urbanos de 1966-1970”4, como
a colorir as ruas do Rio, a arte e o mundo da nota Jean Baudrillard. Dividida em zonas de
arte não tinham a menor importância para ocupação sociais e raciais, a cidade é igual-
os grafiteiros. Segundo ele, mente ordenada por um sistema de signos
que define as normas de conduta e o laisser
“Eram mundos distintos que continuam to- passer de seus habitantes: não é coincidên-
talmente distintos. Mas agora as coisas estão cia que os vagões de metrô tenham sido um
mais confusas. Há grafiteiros em galerias e dos alvos iniciais do graffiti.
artistas que vão grafitar. E os grafiteiros que
estão em galerias não têm força para ‘puxar’ As cronologias desenvolvidas pelos pri-
para dentro os que estão de fora. Não é um meiros autores (GITAHY, 1999) indicam
movimento. É cada um por si. Mesmo quando que o graffiti passou a ter importância no
são feitas exposições, não há aprofundamen- Brasil por volta de 1975, quando John
to, apenas alguém chama os artistas mais pró- Howard, Alex Vallauri e Waldemar Zaidler,
ximos, porque praticamente não existem cura- entre outros, espalharam pela cidade de
dores especializados. Penso no graffiti como a São Paulo seus trabalhos pioneiros. Na dé-
filha bastarda da arte contemporânea.”2 cada seguinte, surgia uma nova geração de
grafiteiros sob a influência do hip hop nor-
A despeito de seu caráter fundador na ex- te-americano, tendência que prosseguiu
periência plástica e pictográfica e de seus nos anos 1990 e segue até hoje. Toz per-
múltiplos contextos, o graffiti como o co- tence a esse grupo que, de maneira geral,
nhecemos “é como uma versão artesanal não tinha qualquer formação artística mais
do ritmo fragmentário e heteróclito do vi- aprofundada. Na época nunca tinha ouvi-
deoclip”3 e torna-se conhecido a partir da do falar em Tunga, Waltércio Caldas, Anto-
segunda metade do século XX. Ele sofreu nio Dias ou qualquer outro artista de des-
influências localizadas do muralismo mexi- taque na arte contemporânea brasileira.
cano pós-revolução de 1910 que, com seu Suas referências eram Os Gêmeos, Binho,
caráter político, resgatou tradições visuais Tinho, Espeto e outros grafiteiros paulista-
pré-colombianas e deslocou a apreciação nos que já atuavam há cerca de 10 anos.
da arte para os espaços públicos. E, de Os parceiros (Fabio) Ema, (Marcelo) Eco e
forma mais abrangente, a revolta estudan- Akuma (Soares) e Airá O Crespo, além de
til de maio de 1968, em Paris, revelou aos (Marcelo) Ment e Mackintal foram conheci-
writers, como se denominavam os primei- dos nas ruas e no Zoeira Hip Hop, festa mu-
ros grafiteiros, o caráter epidêmico das pa- sical promovida no bairro da Lapa, no Cen-
“A rua é de todo mundo. Às vezes tem um Demorou muito tempo para que diversas
moleque doidão que sai pichando tudo. E instituições públicas e privadas passas-
usam o suporte do desenho alheio. Não há sem a dar espaço para o graffiti, ao mes-
regras, não há moral, picha tudo. A regra mo que livros a respeito de arte urbana
é não respeitar ninguém, igreja, prédio. É fossem lançados em diversos países e es-
anarquia.”6 tudos acadêmicos dessem atenção ao fe-
nômeno. Alguns livros e ensaios chegaram
Durante todos esses anos, o graffiti continuou a ser publicados de forma esparsa em anos
a ser qualificado pela imprensa como uma anteriores, desde artigos sobre Pompeia e
forma de vandalismo e dificilmente era en- Roma antiga até igrejas medievais rabis-
carado de maneira artística pelas instituições cadas per saecula saeculorum. Em um tra-
e pela população em geral. Desde 1998, pi- balho pioneiro, o pesquisador norte-ame-
chação ou graffiti sujeitam-se à Lei N.º 9.605, ricano Robert Reisner, procurou preservar
a Lei dos Crimes Ambientais, que incrimi- e reavaliar o graffiti, até então considera-
<<
do pornográfico, estúpido e destrutivo. fiteiros ainda era considerada degradante
Reisner realizou uma pesquisa aprofunda- do espaço urbano e do mobiliário público.
da que apontou diferenças entre o graffi- Em uma reportagem na Esquire de maio
ti tradicional e as novas modalidades que de 1974, Mailer dedicou 17 páginas a Cay
passaram a ser praticadas nas grandes ci- 161, pertencente a uma das primeiras ge-
dades. Em Graffiti: Two thousand years of rações de desenhistas nova-iorquinos a co-
wall writing (1971) e, mais tarde, em En- brir os muros e os vagões do metrô daque-
ciclopedy of graffiti (1974), ele analisa es- la cidade com tags – assinaturas grafitada
ses desenhos e escritos em diversos espa- nas paredes. O autor de Os nus e os mor-
ços sociais, em particular, onde e quando tos não economizou elogios ao artista e o
o grafiteiro podia deixar suas mensagens comparou ao melhor do Trecento:
sem temer censuras por abordar temas
“muito mais viscerais” (Reisner, 1971: 4). “...tão famoso no mundo dos graffitis de mu-
Com o interesse em alcançar visibilidade ros e metrôs quanto Giotto pode ter sido
para seus escritos, os grafiteiros procura- quando seu nome começou a circular nos
vam escrever e pintar em espaços abertos, circuitos das oficinas que levaram de Masac-
cujas mensagens, sugere Reisner, traziam cio, através de Piero della Francesca, a Boti-
informações vitais a respeito da indiscipli- celli, Michelangelo, Leonardo e Rafael.”8
na, sobre o funcionamento de mentes de-
bilitadas, de ególatras ou entediados (Reis- Mailer traça um longo perfil não apenas de
ner 1974: 8). Suas pesquisas centradas em Cay 161, mas de toda uma geração de ar-
graffitis latrinários e de rua apontaram pela tistas, cujo trabalho até então era classifica-
primeira vez para o contexto onde se reali- do como vandalismo puro e simples. Para
zam os graffitis e as implicações que a am- o escritor, as palavras escritas nas tipolo-
biência imprime aos conteúdos. gias originais do graffiti eram o sinal de um
apocalipse cultural, indicativas de um no
Coube a Norman Mailer, porém, ser a voz future que se tornaria frequente na litera-
tonitruante em defesa do graffiti. Ele o di- tura e no cinema dos anos seguintes. Em
fundiu em uma nova perspectiva dentro da uma prosa abundante e caudalosa de ima-
revista Esquire, que gozava de forte acei- gens, o escritor identifica nos rabiscos das
tação na intelligentsia dos Estados Unidos. ruas de Nova Iorque a ascensão de uma
Na década de 1930, escritores do porte de arte ainda indecifrável e profética.
Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Al-
berto Moravia e André Gide já figuravam “Estamos no fim possível da civilização. Nos-
em suas páginas. E, durante os anos 1960 so instinto, exausto e cabalmente poluído,
e 1970, a revista apoiou o chamado New sonha com algum tipo de limpeza ou puri-
Journalism, com a publicação de longas ficação que não encontramos; impulsos tri-
reportagens de caráter literário de Gay Ta- bais despontam no mundo inteiro. A linha
lese, Tom Wolfe, Tim O’Brien e do próprio genealógica de artistas isolados e da obra
Mailer. Há cerca de 40 anos, a ação dos gra- solitária atravessa toda extensão de Miche-
uma herança do Renascimento, que che- dam na porta dos nossos metrôs como um
ga às performances de Chris Burden e ao memento daquilo que eles bem podem ter
“artista de computador”, expressão precá- sido, nossa primeira arte do karma, como
ria para os novos experimentos mais tarde se, com efeito, todas as vidas jamais vivi-
classificados como “arte digital”. O caráter das soassem agora como as trombetas dos
anônimo, grupal e desvinculado das insti- exércitos em toda a cordilheira invisível.”10
tuições artísticas dessa primeira geração
de grafiteiros espanta Mailer, que aponta A valorização do graffiti parece igualmen-
para a vitalidade do graffiti em relação à te uma consequência lógica dos desdo-
arte contemporânea exposta nos grandes bramentos da arte moderna e contempo-
museus. Para o escritor, são as letras desses rânea. Essa ampliação do campo artístico
nomes inescrutáveis que anunciam o fim de pode ser apontada como resultado dire-
uma era e, talvez, o início de uma nova arte: to da descategorização da arte ocorrida a
partir do dadaísmo e do surrealismo, com
“Não obstante, ainda há um mistério. De seus ready-made e object trouvé, operação
que combate vêm as letras curiosas dos de ressignificação dos objetos do cotidia-
graffitis, com suas caligrafias chinesas e no como, dez anos antes da reportagem de
arábicas; de que conexões com o passa- Mailer, defendia Arthur Danto em seu céle-
do são essas luzes e fulgores de chama tão bre artigo Artworld, a respeito exposição de
semelhantes ao alfabeto hebreu, onde a Andy Warhol na Stable Gallery, com caixas
própria forma da letra era adorada como de sabão Brillo Box.
manifestação do Senhor; não, não basta
pensar no desejo infantil de ver seu nome Se o mercado de arte ainda não absorvia os
passar em letras grandes o bastante para trabalhos desses primeiros writers, o mundo
fazer seu ego ecoar por toda a cidade, não, da arte mostrou-se mais amplo e tolerante
é quase como se tivéssemos que voltar a al- com eles. Do outro lado dos Estados Uni-
gum sentido primevo da existência, àquela dos, o artista e curador nicaraguense Rolan-
curiosa sugestão de como nossa existência do Castellón vai realizar uma das primeiras
<<
exposições inteiramente dedicadas à nova A aceitação do graffiti como forma artísti-
arte. Aesthetics of Graffiti foi apresentada no ca é exemplar nesse contexto. Enquanto os
Museu de Arte Moderna de São Francisco rabiscos de nomes e frases emergiam do
entre abril e julho de 1978, com nada me- metrô de Nova Iorque, a pintura tradicional
nos que 94 artistas envolvidos, desde grafi- enfrentava uma profunda crise deflagrada
teiros mais ou menos anônimos até nomes desde a chegada dos textos críticos de, en-
de destaque na arte americana, como Ro- tre outros, Joseph Kosuth e Sol LeWitt, pu-
bert Rauschemberg e Edward Ruscha. A ex- blicados em 1969. Sob a influência da filo-
posição representava ainda uma tentativa sofia de Wittgenstein e uma interpretação
de artistas latinos conquistarem um espaço particular da Crítica do Juízo, de Kant, Kosu-
dentro do universo artístico norte-america- th rejeita a compreensão da arte em bases
no, com formas e práticas mais populares. morfológicas e que as obras de arte não se-
Em seu texto de apresentação, Castellón riam mais do itens de colecionador. “As pin-
afirmava esperar que, fora de seu ambiente turas de Van Gogh não valem mais do que
costumeiro, as pichações pudessem ser vis- sua palheta”13, escreve.
tas por suas qualidades visuais e estéticas
e que, “através do processo de integração Sol LeWitt, por sua vez, ataca a categoriza-
consciente com artistas de estúdio, o graffi- ção da arte com suas Sentenças sobre arte
ti, assim, tornar-se oficialmente sancionado conceitual, nas quais afirma que quando pa-
como ‘belas artes’”11. lavras “como ‘pintura’ e ‘escultura’ são usa-
das, elas conotam toda uma tradição e em
Hans Belting nota, em seu seminal O fim da consequência implicam uma aceitação des-
história da arte, que a arte multiplicou-se e sa tradição, impondo assim limitações ao
“se dissolveu num espectro de fenômenos artista, que relutaria em fazer uma arte que
opostos que há muito tempo aceitamos fosse além das limitações.”14
como arte, antes mesmo de termos forma-
do um conceito a seu respeito”12. Além de O graffiti anárquico, inculto e desrespei-
museus, galerias, surgem feiras e centros toso com objetos sagrados da arte, como
culturais espalhados em todo o mundo, edi- monumentos e prédios históricos, lenta-
ções cada vez mais frequentes de livros de mente começou a ser tratado como uma
arte e uma proliferação de artistas em toda prática artística nova e cheia de vitalidade.
parte. A arte e a experiência estética estão Mesmo a repetição de seus escritos e de-
nas ruas e praças, na alimentação e no ves- senhos passou a ser visto dentro de uma
tuário, no trabalho e no lazer. De seus tem- perspectiva da história da arte. A seriali-
plos privilegiados, dos monumentos e dos zação industrial, assunto frequentemente
locais de troca, a arte se irradia sobre todos abordado pela arte pop, também seria te-
os campos da vida, em ações, produtos cul- matizado pelo graffiti. Não demora muito
turais e uma incessante produção de ima- tempo para que galerias de arte passas-
gens midiáticas que envolvem a noosfera. sem a convidar alguns grafiteiros para ex-
por seus trabalhos, desta vez feito sobre
e da pintora japonesa Chiho Aoshima. Em nova classificação, pois nem material nem
2008, em Belo Horizonte, o grafiteiro Bi- ideologicamente ela necessita dos apre-
nho Ribeiro organizou a 1ª Bienal de Graffi- ciadores da “arte contemporânea erudita”,
ti, com alguns segmentos artísticos que se como define Toz:
tornariam recorrentes nestes encontros e
festivais pelo Brasil: música – rap e hip hop “É uma cultura mundial muito forte que não
–, dança – break –, poesia – com os MCs – depende dos meios normais da arte. Não há
e, naturalmente artes visuais, com o grafite. críticos de arte nem curadores. Ela sobrevi-
veu e sobrevive pelas próprias pernas, pelo
Hoje já é rotineira no Brasil a realização de próprio público. Os livros e as revistas de
feiras e festivais nos quais a fórmula da cul- graffiti são financiados por quem as compra.
tura hip hop é repetida. Entre muitos ou- Ele é tão forte de público que não se preo-
tros exemplos, em 2015, ocorreu o 7º Re- cupa com o mercado de arte contemporâ-
cifusion, no Recife, com oficinas de “live nea. Tem um público que vai à Homegrow,
paint” e “produção de graffiti”. Em Salva- que é uma loja-galeria em Ipanema (no Rio
dor, o Bahia de Todas as Cores promoveu de Janeiro) que vende graffitis. E em São
a pintura de um mural gigante na comu- Paulo há várias delas.”16
nidade de Itinga, com a produção de um
gigantesco painel de graffiti. Em São Pau- A criação de uma economia própria, com
lo, é comemorado desde 2004, o Dia do seus próprios agentes e instâncias revelam
Graffiti. Ele foi instituído em São Paulo pela que os processos de institucionalização do
Lei Municipal 13903, que homenageia graffiti realizam-se em uma relação de po-
Alex Vallauri, morto em 1987. Em Maceió, der com o mundo da arte, onde seu valor
Rio de Janeiro, Joinville, São João Del-Rey, de troca e seu valor cultural estão até certo
Campos de Goytacazes, Corumbá, Chape- ponto desgarrados. A apreciação estética
có e diversas outras cidades realizaram fes- do graffiti parece, assim, constituir-se fora
tivais com grafitagens e oficinas de street do campo da arte, através de uma retórica
art. Tanto Rio de Janeiro, quanto São Pau- distinta e em um meio social igualmente
<<
distinto, o que explica a dificuldade e talvez lares por pessoas para absorver calorias.
até o desinteresse de sua inclusão na arte. Mas por um feito estético”. Com a crescen-
Talvez por isso as ações de institucionaliza- te estetização da alimentação, refeições rá-
ção do graffiti passem menos pelos museus pidas oferecidos em kombis e vans pelas
e galerias de arte do que por políticas de ruas das cidades, agora garbosamente tra-
cultura oficiais que disciplinam os espaços tadas como food trucks, transformam um
públicos a serem grafitados, em uma legis- reles sanduíche em uma experiência com-
latura do louvável e do interdito. parável a jantar no El Bulli, do chef Ferran
Adrià, cujo lema era “comer conhecimen-
Em recente palestra no Rio de Janeiro, o crí- to para alimentar a criatividade”. Há me-
tico Hans Ulrich Gumbrecht apresentou al- nos de um ano, esses veículos eram conhe-
gumas das ideias contidas em seu novo li- cidos pelos moradores do Rio de Janeiro
vro Nosso amplo presente, no qual comenta como “podrões”, tanto devido ao mau esta-
a estetização da vida cotidiana, na qual tudo do de conversação quanto à qualidade de
está sujeito a um “olhar estético”. O escritor seus produtos. A descrição de seus ingre-
pressupõe que não existem mais quaisquer dientes – “carne de vitela cuidadosamente
diferenças entre a experiência estética e a moída e acrescida de ervas finas, sal mari-
vida cotidiana, exatamente ao contrário do nho e pimenta negra moída na hora” – e de
pensamento fundado na terceira Crítica seu preparo – “grelhada por vinte minutos
kantiana e sua concepção de desinteresse em temperatura alta o bastante para selar
e autonomia da arte. Hoje a experiência es- a peça de carne e evitar a perda dos sucos
tética estaria presente em todos os aspec- e da maciez” – evidencia o esforço em im-
tos da vida, sem que a interpretação herme- primir às refeições ligeiras uma dimensão
nêutica supere o aspecto fenomenológico de experiência estética digna de Brillat-Sa-
do acontecimento, em uma situação precá- varin. Dessa forma, bolinhos doces transfor-
ria que marca toda a experiência estética mam-se em cupcakes, picolés – sorvetes em
ocidental da atualidade. Assim ela estaria Portugal – em paleta mexicana, e doses de
imbricada ao cotidiano e ao mercado. “Não aguardentes em shots.
existe, por exemplo, roupa para comprar
que não ofereça algum efeito estético. Até a Gumbrecht acredita que a estetização do
roupa profissional conta com certos efeitos cotidiano ocorre de três maneiras. Primei-
estéticos”, observa. ro, com sua irrupção no próprio cotidiano,
quando em situações aparentemente ba-
Gumbrecht incluiu em suas observações a nais e costumeiras, surge algo com dimen-
crescente “gourmetização” do mundo, na são estética. Segundo, com o aumento da
qual uma refeição nunca é uma simples ab- funcionalidade dos objetos – à exemplo da
sorção de calorias. “A comida tem de ter sa- Bauhaus – que transformam nossa relação
bores específicos e também uma apresen- com o que está à nossa volta. Terceiro, de
tação linda em um restaurante lindo. E você forma epifânica, quando passamos a olhar
não vai a um restaurante que custa 500 dó- objetos do cotidiano de forma diferente,
<<
experiência estética perdeu a sua 5
Entrevista ao autor. think of the childlike desire to see
“autonomia”? Uma dupla reflexão 6
Idem. one’s name ride by in letters large
genealógica. Palestra. Rio de 7
Ibidem. enough to scream your ego across
Janeiro: Museu de Arte do Rio, 8
“Giotto may have been when the city, no it is almost as if we must
25 de agosto de 2015. Disponível his name first circulated through go back into some more primeval
em https://www.youtube.com/ the circuits of those workshops sense of existence, into that curious
watch?v=GRxr8NCHiQo. Acesso which led from Masaccio through intimation of how our existence
em 03/09/2015. Piero Della Francesca to Botticelli, and our identity may perceive
_______. Nosso amplo presente. Michelangelo and Raphael”. each other only as in a mirror. If
São Paulo: Unesp, 2015. MAILER, Norman. The Faith of our name is enormous to us, it is
LIPOVETSKY, Gilles & Jean Serroy. graffiti. Nova Iorque: Esquire, maio also not real - as if we have come
A estetização do mundo: Viver de 1974, pp. 77. from other places than the name,
na era do capitalismo artista. São 9
“We are at the possible end of and lived in other lives. Perhaps
Paulo: Companhia das Letras, civilization, and our instint, battered, that is the unheard echo of graffiti,
2015. all-polluted dreams of some the vibration of that profound
MAILER, Norman. The Faith of cleansing we have not found; tribal discomfort it arouses, as if the
graffiti. Nova Iorque: Esquire, maio impulses start up across the worlds. unheard music of this proclamation
de 1974, pp. 77-88; pp. 154-158. The descending line of isolated and/or its mess, the rapt intent
REISNER, Robert. Graffiti: Two artist and the solitary work goes seething of its foliage, is the herald
thousand years of wall writing. from Michelangelo all the way of some oncoming apocalypse less
Chicago: Cowles Book Company, down Chris Burden’s Shoot, and and less far away. Graffiti lingers
1971. if we are cast back into emotional on our subway door as a memento
_______. Encyclopedia of Graffiti. imperative of the cave painting and of what it may well have been, our
New York: Macmillan Publishing, trying to make some scratch in the first art of karma, as if indeed all the
1974. world before us in order that we lives ever lived are sounding now
may discover if disaster exists, it is like the bugles of gathering armies
– Notas the Guggenheim coumputer artist across the unseen ridge.” Ibidem,
we can comprehend more easily p. 157-158.
1
SHAKESPEARE, William. Ricardo than the writers of graffiti. They are 11
CASTELLÓN, Rolando (Curator).
III. Rio de Janeiro: Agir, 2008. still something other.” Idem, p. 157. Aesthetics of Graffiti – April 28-
Tradução de Carlos Alberto 10
“Yet there is a mystery still. From July 2, 1978 (catálogo). São
Nunes. which combat came these curious Francisco: San Francisco Museum
2
Entrevista ao autor. letters of graffiti, with their chinese of Modern Art, 1978, p. 3-4.
3
CANCLINI, Néstor Garcia. and arabic calligraphies; out of 12
BELTING, Hans. O fim da história
Culturas híbridas: Estratégias para what connection to the past are da arte – uma revisão dez anos
entrar e sair da modernidade. São these lights and touches of flame depois. São Paulo: Cosacnaify,
Paulo: Edusp, 1998, p. 338. so much like hebrew alphabet 2006.p. 19.
4
BAUDRILLARD, Jean. L’échange where the form of the letter itself 13
KOSUTH, Joseph. Arte depois
symbolique et la mort. Paris: was worshiped as a manifest of da filosofia, in FERREIRA, Glória
Gallimard, p. 119. the Lord; no it is not enough to & COTRIM, Cecília. Escrito de
<<
Estudos de Historiografia e Crítica de Arte Portuguesa
Historiografia da Arte Portuguesa:
Pioneiros e Precursores
por Margarida Calado
Professora Associada de Ciências da Arte e do
Património na FBAUL, Coordenadora do Mestrado em
Educação Artística e co-coordenadora do Mestrado em
Ensino das Artes Visuais.
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA
<<
E da mesma maneira aponta alguns artistas um Senhor atado à coluna, que dois homens
do séc. XV, como Pordenone, em Veneza, estão açoitando, em uma capela do Mostei-
ou Mantegna em Pádua, a que se sucedem ro da Trindade. (Holanda, 1984a, 37-38)
Leonardo da Vinci e Rafael de Urbino que
abriram os fermosos olhos da pintura (Ho- A verdade é que aqui Holanda parece não
landa, 1984a, 25) e finalmente Miguel Ân- ter consciência de que Nuno Gonçalves era
gelo, que lhe deu espírito vital e a restituiu afinal contemporâneo de Mantegna e pos-
quase em seu primeiro ver e prisca animosi- terior portanto a Giotto e Simone Martini,
dade (Holanda, 1984a, 25-26). dalguma maneira acentuando que quando
em Itália se dava o renascer da pintura an-
Considerando que o «Da Pintura Antiga» tiga, ainda aqui em Portugal se viviam tem-
terá sido escrito no regresso de Itália, por- pos bárbaros, ou seja a Idade Média.
tanto na década de 1540, poder-se-á dizer
que é contemporânea, senão anterior, à sis- A mesma falta de uma relação cronológi-
tematização apresentada por Vasari na obra ca se pode verificar nas «tábuas» que apre-
publicada em 1550, mas certamente escri- senta no final da obra «Diálogos em Roma»,
ta ao longo da mesma década e, portanto, onde mistura artistas do séc. XV e XVI, pare-
aqui Holanda apresenta uma evolução não cendo ter como critério a importância rela-
muito afastada daquele que é considerado tiva, já que refere em primeiro lugar Miguel
o primeiro historiador de arte. Ângelo tanto para a pintura como para a es-
cultura e só no final refere:
Relativamente à pintura portuguesa na épo-
ca medieval, designa-a de velha, explicitan- 20. M. Jacome, italiano, pintor de El-Rei D.
do que se trata das coisas que se faziam no João de boa memória.
tempo velho dos reis de Castela e de Por-
tugal, jazendo a boa pintura ainda na cova. 21. O pintor português, ponho entre os fa-
(Holanda, 1984a, 37) mosos, que pintou o altar de S. Vicente de
Lisboa (Holanda, 1984b, 90).
E a propósito afirma, iniciando um dos te-
mas mais tratados na historiografia da arte Relativamente à iluminura refere em primei-
portuguesa: ro lugar, A António d’Ollanda, meu pai…por
ser o primeiro que fez e achou em Portugal o
E neste capítulo quero fazer menção de um fazer suave de preto e branco, muito melhor
pintor português que sinto que merece me- que em outra parte do mundo e o que ilu-
mória, pois em tempo mui bárbaro quis imi- minou uns livros que El-Rei D. Manuel, que
tar nalguma maneira o cuidado e a discrição a santa glória haja, deu a Belém, vindos de
dos antigos e italianos pintores. E este foi Itália (Holanda, 1984b, 90).
Nuno Gonçalves, pintor de el-Rei dom Afon-
so, que pintou na Sé de Lisboa o Altar de S. Quanto à arquitectura, refere-se a si próprio
Vicente; e creio que também é da sua mão em último lugar, num grupo que tem à ca-
<<
da Ordem dos Frades Menores de Frei Ma- A lista podia ser muito alargada com con-
nuel da Esperança, continuada por Frei Fer- tinuidade no século XIX e sobre o assunto
nando da Soledade, não esquecendo a va- existem dissertações e teses, mas não se
liosa obra anónima História dos Mosteiros, deve esquecer que muitas destas memórias
Conventos e Casas religiosas de Lisboa1, es- não tinham qualquer preocupação científi-
crita nos inícios do séc. XVIII mas só publica- ca e eram mesmo escritas no regresso das
da no século XX, ou o Santuário Mariano de viagens, pelo que podem conter erros e
Frei Agostinho de Santa Maria, igualmente confusões.
da primeira metade do século XVIII2.
Um dos casos mais patentes é a referência
Outra contribuição importante é dada pe- a uma estátua equestre de D. João V pelo
las narrativas de viagens, que podem obe- autor anónimo da «Descrição da Cidade de
decer a um registo oficial e panegírico, ou Lisboa» em 1730, que ao falar do arsenal
ter o carácter de memórias, que se tornam afirma que é um edifício com bastante bele-
mais abundantes a partir do século XVIII, za e onde há pouco se colocou uma estátua
época que corresponde a um desenvolvi- equestre do rei. (Chaves, 1983, 43). A verda-
mento do hábito de viajar – o grand tour – de é que não existe mais nenhuma referên-
com uma intenção mais turística, sobretudo cia a tal monumento, embora se conheçam
com vista ao conhecimento de monumen- desenhos de Carlos Mardel, aliás posterio-
tos, usos e costumes, ou ainda com fins polí- res, para uma fonte com a estátua real.
ticos próximos do que hoje se chama espio-
nagem. No primeiro caso temos a Relazione Dados os hábitos da época, a ser verdade,
del Viaggio del Portogallo e Galizia de Cos- haveria com certeza uma inauguração noti-
me de Médicis, capítulo da obra mais am- ciada na «Gazeta de Lisboa» para não men-
pla, Relação da viagem por Espanha e Portu- cionar outros textos de carácter panegírico
gal de 1668-1669, que viria a ser publicada e comemorativo.
em Madrid, em 1933 (Gonçalves, 1962, 13).
No segundo caso temos as diferentes nar- A verdade é que o tipo de fontes mencio-
rativas do tempo de D. João V, publicadas nadas diz sobretudo respeito a edifícios e
pela Biblioteca Nacional sob o título genéri- monumentos e quase nada nos diz sobre
co de O Portugal de D. João V visto por três os seus autores ou sobre as pinturas que os
forasteiros (1983) ou o Diário de William decoravam.
Beckford em Portugal e Espanha (1983) ou
as mais recentes Observações de uma via- Entretanto, ao longo do séc. XVII, e dada a
gem a Portugal e Espanha (1760), de Tho- ausência da Corte em Madrid, as artes eram
mas Pitt (2006), obra prefaciada por Maria sobretudo patrocinadas pela Igreja e pelas
João Baptista Neto e publicada sob a égide Ordens Religiosas, responsáveis não só pela
do Ministério da Cultura e da Universidade construção de novos edifícios mas sobretu-
de Lisboa. do pela decoração dos já existentes, reves-
tindo-os de azulejos, completando os altares
tamente vista com bons olhos pela Igreja mentel, tenha publicado o Método Lusitano
contra-reformista. de Desenhar as Fortificações das Praças Re-
gulares e Irregulares, Fortes de Campanha e
No entanto, algumas excepções existem outras obras pertencentes à Arquitectura Mi-
a esta situação, uma delas rara ou mes- litar, sendo esta a primeira obra teórica que
mo única no contexto europeu, que é a consagra a arquitectura e engenharia mili-
homenagem a Bento Coelho da Silveira tares portuguesas, cuja história se continua
promovida pela Academia dos Singulares, para além do Terramoto de 1755, e que se
organizada e compilada em 16705. Prova- concretizou em obras como as praças de El-
velmente tratava-se de criar um ambiente vas, Valença ou Almeida, mas também no
favorável à criação de uma Academia a ser Aqueduto das Águas Livres.
dirigida pelo próprio Bento Coelho, como
sugere Luís de Moura Sobral, o que não se Face a esta situação, não havia um mecenato
veio a concretizar. expressivo nem da Casa Real nem da nobre-
za, embora após as Guerras da Restauração,
É exactamente neste contexto que nos tenham surgido algumas obras patrocina-
surge o texto manuscrito de Félix da Costa das pelos membros da nobreza envolvidos
Meesen, Antiguidade da Arte da Pintu- na guerra, como é o caso dos Marqueses de
ra, datado de 1696, mas que só viria a ser Fronteira, que não só construíram uma casa
publicado no século XX por George Ku- nobre nos arredores de Lisboa (S. Domingos
bler. Félix da Costa (1639-1712), pintor e de Benfica) como a decoraram com azulejos
teórico, pretendia o reconhecimento da nacionais e importados e com esculturas em
sua profissão como liberal e procurava mármore também importadas.
demonstrar não só a excelência da pintu-
ra, mas também a sua antiguidade. Deve A qualidade das obras pictóricas então rea-
ter redigido a sua obra entre 1685 e 1688, lizadas revela claramente a falta de conhe-
tendo a intenção de a imprimir o que não cimentos a nível do desenho, da anatomia
aconteceu. Tem consciência plena da situa- e até da perspectiva, ensinamentos que na
<<
época se obtinham a nível de academias Teixeira, Fernão Gomes, Simão Roiz (Rodri-
como a de Florença, fundada por Vasari, a gues), Amaro do Vale, Afonso Sanches, Do-
de S. Lucas em Roma, de Zuccaro, ambas mingos Vieira, Francisco Nunes, Diogo da
remontando ao século XVI, ou a mais próxi- Cunha, André Reinoso, Diogo Pereira, Jose-
ma Académie Royale de Peinture et Sculptu- fa de Ayala, Marcos da Cruz, entre outros,
re, fundada em 1648 em França. Para Félix todos da segunda metade do século XVI e
da Costa a fundação da Academia era uma XVII com excepção de Gregório Lopes que
necessidade urgente, embora não tivesse a faleceu em 1550. É curioso que tendo risca-
compreensão da sociedade portuguesa de do em 1693 o retábulo de pedraria para a
então, pelo que no resumo final altera a sua Capela de S. Vicente na Sé de Lisboa (Cae-
posição, afirmando que se não for possível tano, 1989, 288) não faça qualquer referên-
criar uma Academia ao menos seja designa- cia a Nuno Gonçalves.
do um pintor – chefe que tivesse a missão de
velar pela qualidade das obras realizadas. A título de exemplo, transcrevemos o que
diz de Campelo (fl. 106):
Tal como Holanda – e procurando demons-
trar a nobreza e liberalidade da pintura António Campelo Pintor, que seguio em
– afirma que Deus foi, como criador, o pri- muita parte a Escola de Michael Angelo Bo-
meiro dos pintores, e traça uma história, di- narrote, assim na força do debucho, como
remos internacional, da pintura que inicia parte do colorido; se bem já com outra in-
com Tubalcano, na 6ª geração de Adão (ou teligência no mexido das cores. Do qual se
seja, recorre ao Antigo Testamento) e pros- vem suas obras em Belém no claustro e hum
segue para a Grécia com os muito citados painel de Cristo com a cruz às costas prodi-
Zeuxis e Apeles, recorrendo igualmente à gioso,6 que merecia outro lugar, e outro tra-
ideia de que as invasões bárbaras puseram to, que o que tem e várias pinturas suas em
fim à pintura que ressurgiria com Cimabue outra Igrejas. Floreceu em tempo del Rey
e prosseguiria a sua evolução ascendente Dom João o Terceiro.
até Miguel Ângelo e Rafael. Procura tam-
bém acentuar as honras que muitos pinto- Esta breve contribuição de Félix da Costa é
res receberam, inspirando-se não só em Va- uma das fontes utilizadas por Cirilo Volkmar
sari mas noutros autores. Machado que exalta a sua contribuição para
os inícios da história da pintura, do que fala-
Relativamente à pintura portuguesa acres- remos num próximo artigo.
centa uma série de Memorias de 19 Pintores,
enriquecidas com alguns dados biográficos No entanto nem D. Pedro II nem seu filho
e artísticos e portanto com mais conteúdo D. João V, apesar do manifesto patrocínio às
do que as Tábuas de Holanda, embora cin- artes, chegaram a fundar uma Academia de
gindo-se à pintura. Refere os pintores que Artes em Portugal, mas esse é outro tema a
receberam protecção régia como Gregório abordar.
Lopes, José de Avelar, Gaspar Dias, Diogo
<<
anterior ao Terramoto encontrando-se al- acentuar que, apesar do seu interesse como
gumas publicadas8. Francisco Luís Pereira documento pessoal, não apresenta impar-
de Sousa publicou em 1928 uma obra em cialidade do ponto de vista histórico, no-
vários volumes em que se inventariam os meadamente porque Vieira Lusitano não ti-
estragos deixados pelo Terramoto: O Ter- nha uma boa relação com o arquitecto João
remoto do 1º de Novembro de 1755 em Frederico Ludovice.
Portugal, onde transcreve muitos dos do-
cumentos existentes quer na Torre do Tom- Uma outra fonte para o estudo da história
bo quer na Biblioteca Nacional. está na epistolografia, não como género li-
terário, mas a que tem carácter documen-
Ainda relativamente ao século XVIII, cons- tal, como as Cartas da Rainha D. Mariana Vi-
titui uma fonte importante para a pesquisa tória para sua família de Espanha, editadas
da história da arte a «Gazeta de Lisboa», pu- por Caetano Beirão10 e que apesar do título
blicada semanalmente a partir de 1715, e cobrem toda a sua vida em Portugal, desde
que além de uma extensa parte dedicada que aqui chegou em 1729, e onde se fazem
a questões políticas internacionais e nacio- algumas referências a questões artísticas
nais, tinha uma secção final, de cariz eminen- para além de ser um documento notável
temente social, que tanto falava das igrejas sobre a vida quotidiana na Corte Portugue-
que a Rainha D. Maria Ana de Áustria visi- sa. Existem também publicadas cartas de D.
tava nas suas devoções como podia referir Maria Bárbara, rainha de Espanha, para D.
uma descoberta arqueológica ou a oferta de João V com algumas observações interes-
uma imagem a determinada igreja ou ainda santes para a história da música.
a fundação ou sagração de outra. Além da
Gazeta editada, houve outras que permane- Ao longo do século XVIII, surgiram obras
ceram manuscritas como o «Mercúrio de Lis- diversas no campo da engenharia militar
boa» ou o «Folheto de Lisboa», manuscritos (O engenheiro Português de Manuel de
que podemos encontrar na Biblioteca Na- Azevedo Fortes, em 1728-29), como no da
cional ou na Biblioteca Pública de Évora. teoria da arte, nomeadamente os Artefac-
tos simetríacos e Geométricos do Padre
Finalmente há ainda que mencionar a auto- Inácio da Piedade Vasconcelos, de 1733,
biografia escrita pelo pintor Vieira Lusitano ou as diversas obras de Machado de Cas-
já no final da vida, depois da morte de D. tro, algumas das quais editadas já nos iní-
Inês Helena, sua mulher, e quando se reco- cios do século XIX.
lheu ao Convento de Xabregas, que ele in-
titulou O Insigne Pintor e Leal Esposo9. Essa Será de facto no primeiro quartel do sécu-
autobiografia, escrita em verso, narra não lo XIX que nos surgem as que podemos
apenas os factos aventurosos relativos à considerar verdadeiramente as primeiras
sua vida conjugal, como refere as suas via- obras da historiografia da arte portuguesa,
gens a Itália e nos fornece alguns elemen- que abordaremos em próximo artigo, subli-
tos de ordem histórica. Há no entanto que nhando a importância da obra de Cirilo por
<<
– Notas monumental da portaria do
Mosteiro de Santa Maria de
1
Obra manuscrita que veio Belém e que foi restaurada
a ser publicada pela Câmara para a exposição «Jerónimos –
Municipal de Lisboa em 1950, 4 séculos de Pintura». Sobre o
com advertência de Durval Pires assunto ver o artigo de Joaquim
de Lima. de Oliveira Caetano «Campelo
2
Destacamos o Tomo Primeyro nos Jerónimos: os Fragmentos da
Que compreende as Imagens Fama» publicado no Catálogo da
de Nossa Senhora, que se Exposição (p. 96)
venerão na Corte, & Cidade de 7
Sobre o tema publiquei um
Lisboa, publicado em 1707, e o pequeno texto cuja referência
Tomo VII – História das Imagens deixo: Margarida Calado (1985)
milagrosas de Nossa Senhora E – Portugal detentor da segunda
milagrosamente aparecidas, & mais antiga legislação da Europa
suplemento daquelas que nos sobre Património. Jornal do
ficarão por referir em os seis tomos Património. Direcção de José
antecedentes por falta de inteyra Hormigo. Nº 1. Janeiro Fevereiro
noticia, publicado em 1721 Março de 1985
3
Giorgio Vasari é o autor de Le Os manuscritos originais
Vite de’ più eccelenti Architetti, encontram-se no Arquivo Nacional
Pittori e Scultori Italiani da da Torre do Tombo onde podem
Cimabue insino a’ tempi nostri, ser consultados.
com 1ª edição em 1550 e 2ª em 8
Fernando Portugal e Alfredo
1568, obra considerada a primeira Matos – Lisboa em 1758.
história da arte, já referida a Memórias Paroquiais de Lisboa.
propósito de Francisco de Holanda Lisboa, 1974
4
Karel van Mander (Meulebeke, 9
Francisco Vieira Lusitano – O
1548 – Amesterdão, 1606) foi um Insigne Pintor e Leal Esposo.
pintor que a exemplo de Vasari Historia Verdadeira que elle
publicou Schilder-Boeck (O livro escreve em Cantos Lyricos. E
da Pintura), cuja primeira edição oferece ao Illus. E Excellent.
data de 1604 e de que existe uma Senhor José Da Cunha Gran
edição seleccionada Vidas de Ataíde e Mello, Conde e Senhor
Pintores Flamengos, Holandeses e de Povolide, do Conselho de Sua
Alemães. Madrid: Casimiro, 2012 Magestade Fidelissima, Gentil-
5
Esta homenagem foi Homem de sua Real Camara,
exaustivamente estudada por Comendador da Ordem de
Luís de Moura Sobral em Pintura Cristo, Alcaide Mor da Vila de
e Poesia na época barroca. A Sernancelhe, etc. Lisboa, 1780
homenagem da Academia dos 10
Caetano Beirão – Cartas
Singulares a Bento Coelho da da Rainha D. Mariana Vitória
Silveira. Lisboa: Estampa, 1994 para a sua família de Espanha.
6
Trata-se da obra de cerca de Apresentadas e anotadas por…
1570, um óleo sobre madeira Vol. I (1721-1748). Lisboa:
hoje no Museu Nacional de Arte Empresa Nacional de Publicidade,
Antiga, proveniente da escadaria 1936
<<
com um tom de revolta contida em relação Como facilmente se imagina, a Mnémosi-
àqueles que o caluniavam a si e ao seu tra- ne Lusitana (como geralmente é conheci-
balho, escreve: da) teve vida breve, dois anos, 1816-1817,
como a maioria dos periódicos no século
“Em Portugal influe Astro maligno destrui- XIX, mas marcou, sem dúvida, uma novida-
dor das Bellas Artes!!!”2 de editorial muito importante. Não apenas
na questão literária, na teoria da arte e do
Camões (1524/25-1579/80), n’Os Lusíadas, património, mas também como importante
lamentando-se de que os chefes militares documento iconográfico, mercê das gravu-
portugueses sempre tenham desprezado ras que apresentava.
as artes, ao contrário de Octávio, César, Ci-
pião, Alexandre, entre capitães Romanos, O texto de apresentação fazia, como era ha-
Gregos ou Bárbaros3, escreve o célebre e bitual, o elogio ao Príncipe D. João e uma
paradigmático verso: crítica ao “Usurpador”, não revelando se-
quer o seu nome. Toda essa introdução re-
“Porque quem não sabe arte, não na estima.”4 vela que se trata, de facto, de um “Jornal Pa-
triotico” que até então não existia e que o
Com estas críticas, a que poderíamos próprio título de Redacção Patriótica pou-
juntar tantas outras, como as de Cyrilo cas dúvidas deixava.
Volkmar Machado (1748-1823), entende-
se a escassíssima publicação de livros e de Era intento do periódico recordar a memó-
periódicos relativos às Belas-Artes e à teoria ria do passado, quando os Portugueses fo-
destas. ram o “assombro do mundo”, com os des-
cendentes dos Pereiras, Albuquerques,
Jornal de Bellas-Artes ou Mnémosine Cunhas, Almeidas, Castros e tantos outros,
Lusitana. Redacção Patriótica que não degeneraram o bem da Pátria, an-
Só em 1816 surgiu uma publicação periódi- tes lançando em confusão os inimigos da
ca dedicada de facto às Belas-Artes e, mais “Gloria Lusa.”5 O programa editorial do pe-
importante, com essa designação no seu tí- riódico estava elencado da seguinte forma:
tulo completo de Jornal de Bellas-Artes ou
Mnémosine Lusitana. Redacção Patriótica e “1.º Memorias das acções dos Guerreiros
cujo director era Pedro Alexandre Cavroé Portuguezes na recente, e nas antigas Cam-
(1776-1844). panhas, de que os Escriptores Estrangeiros
tenhão feito honrosa menção.
Num contexto difícil, marcado pela pre-
sença do futuro D. João VI no Brasil (1807- Refutação de algumas opiniões dos mes-
1821) e por uma situação grave para o país, mos Escriptores sobre Portugal, etc.
que havia sofrido, havia poucos anos, três
invasões francesas (1807, 1809 e 1810), é 2.º Descripção dos edifícios, e monumentos
notável que tenha surgido esta publicação. mais notáveis de Lisboa; justa avaliação do
3.º Artes, e Officios; o esmero a que tem Este artigo sobre escultura é, recorde-se, tal-
chegado algumas Artes, e Officios em Por- vez a primeira tentativa para fazer uma sín-
tugal; novos inventos; meios de excitar a in- tese da história desta expressão artística em
dustria; nomes, e moradas dos principaes Portugal. Cavroé esboça uma breve história
Artistas em Lisboa; suas obras, etc. da escultura nacional em 5 páginas. Como
exemplo mais antigo no território nacional,
4.º Poezias; Composições não impressas de evoca a cidade de Évora como os capitéis
Authores acreditados; reimpressão de algu- coríntios do seu célebre Templo de Diana
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA
<<
sos Estatuários o mais famoso he o immortal
Manoel Pereira” que “Em Itália he tão conhe-
cido o seu nome, como entre nós pôde ser
o de Bernini.”13 O texto de Cavroé é muito
interessante, pois refere e completa por ve-
zes obras de todos estes escultores, sendo
uma espécie de esboço, para as entradas
que Cyrilo Volkmar Machado publicará na
conhecida Colecção de Memórias (1823)14.
Mnemosine Lusitana, 1817- Igreja da 24; Colégio Real dos Nobres, n.º 26.
Basílica de Santa Maria
<<
Jornal das Bellas-Artes tória da arte”. Era igualmente intuito do Jor-
Muito diferente em termos formais e, de res- nal das Bellas-Artes reproduzir os “grandes
to, muito mais focalizado na temática das Be- monumentos da arte antiga e moderna que
las-Artes era o Jornal das Bellas-Artes (1843- enriquecem outros paizes.” Os quadros, es-
1846 e 1848). Este foi, como se refere no tátuas, relevos e edifícios seriam acompa-
início, “Patrocinado sob os auspicios de uma nhados pela sua história, análise e aprecia-
reunião de litteratos e artistas”. O presidente ção. As biografias dos artistas mais distintos,
era Almeida Garrett (1799-1854), o vice-pre- principalmente os nacionais, estariam ainda
sidente, o pintor António Manuel da Fonse- presentes. Finalmente, o periódico iria no-
ca (que já havia colaborado na Mnémosi- ticiar todas as ocorrências, descobertas ou
ne Lusitana) e o secretário, António da Silva novas produções que interessavam à arte e
Túlio (1818-1884). Colaboraram autores e que faziam a sua história contemporânea18.
escritores incontornáveis como Alexandre
Herculano (1810-1877), António Feliciano Como facilmente se constata, eram mui-
de Castilho (1800-1875), Francisco Adolfo to ambiciosos os propósitos deste jornal,
de Varnhagen (1816-1878) e artistas como manifestando Garrett um grande interesse
Augusto Roquemont (1804-1852), José Ma- pela “história da arte”, como o próprio es-
ria Baptista Coelho (1812-1891), Manuel creve. Pensamos que este deve ser um dos
Maria Bordalo Pinheiro (1815-1880), Maurí- primeiros textos, no qual surge esta expres-
cio José Sendim (1790-1870), Máximo Pau- são. Esta Introdução, habitualmente muito
lino dos Reis (1778-1865) e Pedro Augusto esquecida, é uma peça fundamental para a
Guglielmi (c. 1837-1852), entre outros. história, teoria da arte, estudo e defesa do
património nacional do século XIX.
A introdução do jornal, redigida por Almei-
da Garrett, referia que o periódico tinha Cada número do Jornal das Bellas-Artes de-
como objectivo “ilustrar as nossas glórias veria ter uma periodicidade mensal e pos-
passadas”. Pretendia-se, de igual modo, au- suiria, pelo menos, 16 páginas e duas es-
xiliar a “sublime e patriotica idea que orga- tampas gravadas ou litografadas19.
nisou a Academia das Bellas-Artes de Lisboa
e os outros Institutos connexos”. Um outro Nas mesmas informações, menciona-se
propósito do Jornal das Bellas-Artes era re- também os preços das assinaturas e os lo-
produzir pela gravura e pela litografia todos cais de compra do periódico20. No primeiro
os “quadros dos nossos mestres” a par das número do jornal, na sua contra-capa, afir-
outras “escolas” que existiam nos repositó- mava-se que os assinantes receberiam, ao
rios públicos e nas colecções particulares. fim de 12 números, um frontispício com or-
natos análogos aos assuntos que eram tra-
Também a escultura e a arquitectura não se- tados no periódico e ainda o índice geral
riam esquecidas, assim como as medalhas, das matérias do volume21.
moedas e os demais objectos que se pu-
dessem considerar “documentos para a his-
<<
nas dentro do texto, num total de 32 gra- geração romântica. O longo texto a descre-
vuras. Estas gravuras podem ser quadros, ver o quadro reproduzido (S. Bruno em ora-
composições gráficas de início de texto ou ção), que pertenceu à Cartuxa de Laveiras,
simplesmente uma letra desenhada. A mé- foi escrito por António Feliciano de Casti-
dia de gravuras por página no Jornal das lho28. Após este, surge uma biografia desse
Bellas-Artes é de aproximadamente 3,7, o pintor por José Maria da Silva Leal (1812-
que dá ideia da importância da ilustração 1883)29. Por fim, a presença do Túmulo de D.
neste periódico. Dinis revela, obviamente, o gosto romântico
pela Idade Média e arte dessa época.
Em termos de gravuras de página inteira,
é ainda interessante constatarmos que as A par das gravuras de página inteira, o Jor-
duas primeiras reproduzem dois quadros nal das Bellas-Artes apresenta ainda algu-
atribuídos ao mítico Grão Vasco (Epipha- mas composições gráficas muito interes-
nia e S. João Baptista), um de Domingos santes no meio do texto, com composições,
Sequeira (S. Bruno em oração), a reprodu- algumas não assinadas, e letras iniciais. Des-
ção do Túmulo de D. Dinis, em Odivelas, e tas, destacam-se as gravuras desenhadas
um quadro de Rafael de Urbino. Todos es- por Bordalo Pinheiro e gravadas por José
tes quadros pertenciam, como se informa, à Baptista Coelho30 que ilustram os romances
Academia de Belas-Artes de Lisboa. Rei Ramiro e Miragaia de Garrett com letras
e composições fantasistas, povoadas de
O aparecimento no início do Jornal das personagens da Idade Média. Na primeira
Bellas-Artes de duas obras que se pensava, composição gráfica, na qual se observa um
na época, serem de Grão Vasco é sintomá- R, surge mesmo uma janela manuelina com
tico do papel que este mítico pintor portu- duas cordas atadas na zona superior31.
guês tinha no imaginário artístico nacional
de Oitocentos. Aliás, Almeida Garrett evoca Também as ilustrações do artigo O Castello
Grão Vasco no fim da sua Introdução, refe- d’Almourol, escrito pelo conde de Mello, são
rindo não poder ser deste pintor todos os muito interessantes, sobretudo a última, com
quadros que se lhe atribuem, como Home- uma varanda de inspiração manuelina, com
ro poderá não ter escrito todas as rapsódias dois medalhões, sobre o castelo do Tejo32.
da Ilíada e da Odisseia. Contudo, Garrett
promete estar atento a esta questão e irá De temática manuelina é a ilustração do ar-
entrar “a tempo e com lealdade, na liça.”26 tigo Porta lateral da Egreja de S. Julião, em
Como se sabe, só após os trabalhos do con- Setubal, de Varnhagen, também de Borda-
de Raczinsky (1846 e 1847)27 é que se co- lo Pinheiro, povoada com algumas pessoas,
meçou a definir melhor esta personalidade um cão e um galo, num pequeno trecho de
artística. desenho romântico de costumes33.
Quanto a Sequeira, recordemos que sem- Quatro letras do Jornal das Bellas-Artes me-
pre foi um pintor muito considerado pela recem referência, devido à sua qualidade
<<
do a Anchises, de António Manuel da Fon- ca é feita à estátua de Gil Vicente, por estar
seca; A Volta do Filho Pródigo, de António “curvada de mais, o que produz mau effeito
Tomás da Fonseca (1822-1894), filho do an- vista de lado; talvez haja em toda ella um
terior, e o baixo-relevo Juramento de Viria- sentimento da humilhação.” Segundo o crí-
to, de Francisco de Paula Araújo Cerqueira tico, faltava-lhe a “nobreza e a magestade
(1808-1855)42. da estatua romana” e Gil Vicente, curvado,
“apoia a mão esquerda sobre o peito, e pa-
Uma outra característica interessante que o rece estender o braço direito ao viandante
Jornal das Bellas-Artes introduziu nos últi- que passa…”46
mos números, em 1848, foi a presença de
uma secção designada Album sobre pe- Jornal de Bellas-Artes
quenas notícias da actualidade43. Assim, No Jornal de Bellas-Artes (1857-1858), com
foi noticiada a morte precoce, aos 23 anos, 8 números47, colaboraram também vários
do gravador e colaborador do Jornal das escritores, dos quais destacamos Castilho,
Bellas-Artes Ernesto Gerard; a chegada, em Bulhão Pato (1828-1912), Gomes de Amo-
Janeiro, de Francisco Metrass (1825-1861) rim (1827-1891), Mendes Leal (1820-1886)
e do visconde de Meneses (1817-1878) de e os artistas românticos que contemplamos
Roma e de um périplo que haviam realiza- no quadro Cinco Artistas em Sintra (1855):
do por várias cidades europeias; a estreia Tomás da Anunciação (1818-1879), Fran-
do jovem pianista Lozano e uma desenvol- cisco Metrass, João Cristino da Silva (1829-
vida notícia sobre a Academia Filarmónica 1877), Victor Bastos (1829-1894) e José Ro-
de Lisboa, fundada em 1838. drigues (1828-1887), além de António José
Patrício (1827-1858) e Leonel Marques Pe-
Finalmente, no último número do Jornal reira (1828-1892).
das Bellas-Artes surge, na mesma secção,
um texto, não assinado, de crítica de arte No texto de apresentação, José Eduardo de
intitulado Inauguração das Estatuas sobre Magalhães Coutinho (1815-1895)48 refere
o Frontão do Theatro Nacional44. Apesar de que as causas para o “pouco aumento das
as estátuas honrarem o seu autor, Francis- Bellas-Artes portuguezas” foram o “desam-
co de Assis Rodrigues (1801-1877)45, pelo paro, e o esquecimento” por aqueles que
desenho “assaz correcto e estudado, as rou- as deveriam proteger e os que as deviam
pas cheias de graça e naturalidade”, o pro- apreciar nem sequer suspeitavam que elas
grama é severamente criticado. As estátuas existissem49. Seguidamente, o médico faz
sobre o frontão não deveriam estar sepa- um elogio da Anatomia e da sua importân-
radas do grupo de Apolo e das Musas no cia para as Belas-Artes. Escreve ainda uma
tímpano do mesmo; depois, em vez de as breve síntese histórica dessa disciplina fun-
estátuas da Tragédia e da Comédia a ladea- damental para a Medicina.
rem Gil Vicente, deveriam estar, por exem-
plo, o “tragico Ferreira” (António Ferreira), No mesmo número, o visconde de Jurome-
Camões ou mesmo Garrett. Uma outra críti- nha (1807-1887), conhecido escritor e histo-
<<
de Bellas-Artes. Em baixo, numa base arqui-
tectónica sobre duas consolas, encontra-se
a data da fundação deste periódico.
<<
imagens de O Panorama era, por vezes, me- esforçadas gravuras, passando pelo Jornal
díocre e estas ocupavam invariavelmente das Bellas-Artes, no qual estas começam
metade da página (com mancha de texto a ter um maior protagonismo até ao gra-
também a duas colunas) ou hors-texte. ficamente surpreendente Jornal de Belas
Artes, observamos que as imagens pare-
Mesmo um jornal dedicado às Belas-Ar- cem autonomizar-se no periódico e dialo-
tes francesas e internacionais, como a Ga- gar, cada vez mais, com a mancha de texto,
zette des Beaux-Arts. Courrier Européen de ganhando, desta forma, vida própria. Nas
l’Art et de la Curiosité, fundada em 1859 por Belas-Artes e nos seus jornais a imagem
Charles Blanc (1813-1882)68, não tem a qua- começava a ter tanta ou mais importância
lidade gráfica do Jornal de Bellas-Artes. O que o texto.
periódico francês, a uma coluna de texto, os-
tenta gravuras hors-texte e outras inseridas
na mancha do texto. Como seria de esperar,
a maior parte das suas gravuras tem grande
qualidade formal e técnica. Contudo, talvez
o que mais surpreenda neste periódico fran-
cês é a quase total subordinação das ima-
gens ao texto, que é graficamente muito
denso. A Gazette des Beau-Arts é um enor-
me livro, exibindo muito pontualmente algu-
mas imagens e letras iniciais trabalhadas.
<<
“utilissimo nas Províncias faltas 22
Este último tomo surge no I, n.º VI (1844), p. 83. Ambas as
de agua e fartas de trigo, como original como tomo I, mas poderá gravuras não estão assinadas, mas
no Alemtéjo” (p. 281). O modelo tratar-se de uma gralha, pois devem ser da parceria Bordalo
esteve na Casa do Risco das Obras deveria ser tomo II. Pinheiro e Baptista Coelho.
Públicas e fez uma demonstração 23
SOARES, Ernesto - Evolução 33
Jornal das Bellas-Artes, tomo I,
pública em Alcântara e foi da Gravura de Madeira em n.º III (Dez. 1843), p. 43.
remetido para o Rio de Janeiro Portugal. Séculos XV a XIX. Lisboa: 34
Jornal das Bellas-Artes, tomo I
para ser apresentado a D. João Publicações Culturais da Câmara [sic.] tomo II, n.º I (1846), p. 1.
VI (pp. 281-282). A gravura deste Municipal de Lisboa, 1951, p. 35
Jornal das Bellas-Artes, tomo I,
moinho foi copiada por Cavroé e 43. José Maria Baptista Coelho n.º II (Nov. 1843), p. 33.
gravada por António Manuel da foi um laborioso gravador em 36
Jornal das Bellas-Artes, tomo I
Fonseca. madeira com grandes qualidades, [sic.] tomo II, n.º I (1846), p. 2.
17
Jornal de Bellas-Artes ou que trabalhou em parceria com 37
Jornal das Bellas-Artes, tomo I
Mnémosine Lusitana. Redacção Bordalo Pinheiro no Panorama e na [sic.], n.º II, Segunda Série (1848),
Patriótica, n.º I, Segundo Volume Ilustração Luso-Brasileira. p. 17.
(1817), pp. 374-378. As duas 24
O título deve ter sido desenhado 38
Jornal das Bellas-Artes, tomo I,
máquinas foram inventadas por Mr. por Manuel Maria Bordalo Pinheiro, n.º VI (1844), pp. 87-88.
T. Rustall de Purbrockheath, perto que, como já referimos, era um dos 39
Jornal das Bellas-Artes, tomo I,
de Portsmouth, tendo recebido da editores do jornal e um incansável n.º III (Dez. 1843), pp. 43-44.
Sociedade das Artes um prémio de gravador e ilustrador em vários 40
Ibid., p. 44.
40 guinéus. (p. 374). jornais e revistas. 41
Jornal das Bellas-Artes, tomo I,
18
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, 25
O Jornal das Bellas-Artes tem, na n.º IV (1844), pp. 55-66.
n.º I (Out. 1943), Introdução, pp. sua 1.ª série, 94 páginas (de 1 a 94) 42
Não deixa de ser interessante
1-2. e, na segunda, 24 (da p. 1 à 24). a coincidência de se revelar o
19
Ibid., p. final deste número. 26
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, quadro de António Manuel da
20
A assinatura por 3 meses era n.º I (Out. 1943), Introdução, p. 2. Fonseca, Eneias salvando seu pai
de 1.200 réis; seis meses, 2.160; 27
RACZYNSKI, Comte A. – Les Arts Anquises do incêndio de Tróia
um ano, 4.200 réis; avulso, 440. en Portugal. Paris: Jules Renouard (actualmente no Palácio Nacional
Subscrevia-se na rua do Arco do et Cie, Libraires-Éditeurs, 1846 e de Mafra), numa litografia hors-
Bandeira, n.º 59, 2.º andar. Era Dictionnaire Historico-Artistique du texte de Pedro Augusto Guglielmi
vendido na Rua Augusta, n.º 1, Portugal. Paris: Jules Renouard et (ca. 1837-1852), e do seu filho,
120 e 195; Rua do Ouro, n.º 62 C , Libraires-Éditeurs, 1847.
ie
António Tomás, numa gravura
e 93; Chiado, n.º 6; Calçada dos 28
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, linear não assinada, mas que deve
Paulistas, n.º 54; Rua da Esperança, n.º II (Nov. 1943), pp. 20-27. ser, com toda a certeza, do mesmo
n.º 150. Vendia-se no Porto (na 29
Ibid., pp. 28-32. Tomás da Fonseca. Quanto ao
Loja de Novaes) e em Coimbra (na 30
Jornal das Bellas-Artes, tomo relevo de Cerqueira, foi desenhado
Imprensa da Universidade). I, n.º I (Out. 1943), p. final deste por Tomás da Anunciação,
21
Jornal das Bellas-Artes, tomo número. supervisionado por António
I, n.º I (Out. 1943), p. final deste 31
Ibid., p. 10. Manuel da Fonseca e gravado por
número 32
Jornal das Bellas-Artes, tomo António Tomás da Fonseca.
nunca é identificado no artigo. Mariette mandou a el-rey D. João V. (1857), pp. 7-9, da autoria de J. P.
46
Jornal das Bellas-Artes, tomo I 54
Castilho, além de textos Fernandes Tomás Pipa
[sic.], n.º III, Segunda Série (1848), literários e poemas, escreve uma 60
SOARES, Ernesto - Evolução da
p. 24. O resto do artigo é um interessante Carta d’um poeta a um Gravura de Madeira em Portugal.
pouco confuso nas referências à esculptor, Jornal de Bellas Artes, n.º Séculos XV a XIX, pp. 54-55.
estética e à história da literatura 6, Jun. (1857), pp. 2-5 e Fundação João Pedroso Gomes da Silva foi
portuguesa, italiana, francesa (da de um Campo Elysio, Jornal de pintor, gravador e professor de
época de Luís XIV). Bellas Artes, n.º 8 (1858), pp. 14-16. gravura na Escola de Belas-Artes
47
No primeiro ano (1857), foram Nestes dois textos, o escritor de Lisboa. Colaborou em vários
publicados 6 números (de Janeiro defendia um cemitério em Lisboa periódicos e fez o célebre álbum
a Junho) e, no segundo ano dedicado aos portugueses ilustres A Gravura de Madeira em Portugal
(1858), apenas dois números (sem da literatura, com esculturas. (1872 e 1876).
indicação dos meses). 55
Qual é o fim da Arte? Da autoria 61
A composição do n.º 1, que
48
Jornal de Bellas Artes, n.º 1, Jan. de F. Sequeira Barreto, Jornal de desenha a letra E, é formada
(1857), pp. 1-3. José Eduardo de Bellas Artes, n.º 1, Jan. (1857), pp. por um homem em cima de um
Magalhães Coutinho foi director e 7-8; n.º 2, Fev. (1857), pp. 8-10; n.º burro, estando por baixo uma
lente da Escola Médico-Cirúrgica 4, Abr. (1857), pp. 12-13. figura de animal fantástico e, do
de Lisboa, primeiro médico da Real 56
Surgiram as biografias artísticas lado esquerdo, figuras femininas
Câmara, obstetra, director da Real de João Pedro Monteiro (1823/26- a pintarem uma grande tela; está
Biblioteca da Ajuda, membro do 1853), Jornal de Bellas Artes, n.º assinada Colaço, devendo ser
Conselho Superior de Instrução 2, Fev. (1857), pp. 5-6 e de Luís José Daniel Colaço, pai do pintor
Pública e deputado, entre outros Canina, Jornal de Bellas Artes, n.º e azulejista Jorge Colaço (1868-
cargos da maior relevância. Pelo 3, Mar. (1857), pp. 13-14, ambas de 1942). O mesmo José Daniel
texto de apresentação, assinado, Joaquim António Marques. Colaço escreve a Viagem de sua
Magalhães Coutinho deverá ter 57
Jornal de Bellas Artes, n.º 1, Jan. majestade el-rei D. Fernando a
sido um dos directores deste (1857), pp. 8-9; n.º 2, Fev. (1857), Tanger, Jornal de Bellas Artes, n.º
jornal. p. 1; n.º 3, Mar. (1857), pp. 6-7; n.º 5, Mai. (1857), pp. 1-2; n.º 7 (1858),
49
Ibid., p. 1. 4, Abr. (1857), pp. 1-4. pp. 2-6; n.º 8 (1858), pp. 1-4. Este
<<
texto está incompleto, pois no Jornal das Bellas-Artes, 28 cm e o
último número está a indicação de Jornal de Bellas-Artes, 31 cm, Vd.
que continuava. RAFAEL, Gina Guedes ; SANTOS,
62
As pequenas figuras nuas de Manuela (Org. e Coord.) - Jornais
Metrass surgem numa grande e Revistas Portuguesas do Século
composição, suspensas no XIX. Lisboa: Biblioteca Nacional,
arvoredo, formando um C, na 2002, vol II, pp. 23, 28-29.
primeira página (n.º 4, Abr. 1857, 66
Jornal de Bellas Artes, n.º 8
p. 1) e é repetida numa outra (1858), p. 9.
página (n.º 6, Jun. 1857, p. 5). 67
FRANÇA, José-Augusto - A Arte
Também merece destaque a em Portugal no Século XIX. 3.ª ed.
composição de Leda e o Cisne Venda Nova: Bertrand Editora,
(n.º 3, Mar. 1857, p. 6) e outras 1990, vol. I, p. 406.
duas figuras a voarem com um 68
Charles Blanc foi historiador,
grande manto sobre o seu corpo crítico de arte, gravador e director
nu (n.º 1, Jan. 1857, p. 15), esta da École des Beaux-Arts. Entre
com um morcego a voar perto de a sua numerosa bibliografia
si, e a última figura do periódico destaca-se o conhecido Grammaire
(n.º 8, 1858, p. 16). des Arts du Dessin. Architecture,
De Metrass são ainda dois sculpture, peinture: jardins,
desenhos de meninos: um a gravure en pierres fines, gravure
pintar uma grande tela (n.º 2, Fev. en médailles... (1867) que teve
1857, p. 10) e outros dois a voar, várias edições nos séculos XIX e
um deles com asas, segurando XX (1870, 1876, 1880, 1881, 1888,
uma bandeira com a palavra: Fim 1889, 1970, 1991, 2000 e ainda
(n.º 2, Fev. 1857, p. 16). traduções em inglês e castelhano).
Também Victor Bastos utilizou O livro teve grande projecção
pequenas figuras femininas, na Europa, surgindo ainda hoje,
junto de densa vegetação na com alguma frequência, nos
composição da primeira página do alfarrabistas portugueses.
n.º 2, Fev. 1857.
63
DUARTE, Eduardo - Desenho
romântico português. Cinco artistas
desenham em Sintra. Lisboa: [s.n.],
2006, vol. II, p. 550.
64
Jornal de Bellas Artes, n.º 4, Abr.
(1857), p. 1; n.º 6, Jun. (1857), p. 5.
65
O Jornal de Bellas-Artes ou
Mnémosine Lusitana. Redacção
Patriótica tem 19 cm de altura; o
<<
sobrevivia ainda o modernismo do Secreta- uma prática de história da arte que o críti-
riado (SPN) de António Ferro, colocado em co também assumiria em plural actividade.
1950 fora da orientação do Secretariado Sem autonomia especulativa nem densida-
que fora seu e que a si não saberia sobrevi- de filosófica, a teoria da arte portuguesa es-
ver, modernismo este que se descobria fora coava na crítica de arte e na própria necessi-
do tempo e que hesitava numa renovação dade desta de ir definindo operativamente
para a qual não encontrava saída. À entra- os seus conceitos. Mais do que orientadora
da, a década de 50 sofreu a afirmação do e programática, a teoria era esclarecimen-
surrealismo em polémicas que sabiam ser to ou explicação pontual de uma prática da
estéticas, primeiro, mas logo depois tam- crítica de arte, cuja efemeridade e contin-
bém ideológicas; para culminar no sucesso gência dificultava um devido fundamento e
da abstracção, que afinal fora o seu deam- sistematização.
bular e alicerçar de raízes em terreno difí-
cil por sementes que já tinham sido lança- Para apresentar a crítica de arte da década e
das na década anterior. Esta passagem da os seus principais protagonistas, propomos
euforia ética para a estética foi outra pará- a seguinte organização, segundo tipologias
bola silenciosa da década, que se desviou dos «profissionais» da actividade:
da carga ideológica dos significados sociais
para ir ao encontro de uma dimensão esté- 1. Derivações do jornalismo
tica que se refugiava no reconhecimento e
autonomia dos significantes. A assimilação 2. Entre o jornalismo e a profissionalização
sócio-cultural da abstracção foi a sua prin-
cipal história. Tudo isso interessou, em inci- 3. Críticos homens de letras (poetas e
dências e debates teórico-críticos, com alte- escritores)
rações ao longo e na transição das décadas
de 1950 e 1960. 4. Artistas como críticos de arte
<<
2. Entre o jornalismo e a (o Prémio António Enes) do SPN – com a
profissionalização obra Os Voronoffs da Democracia. Forma-
Fernando de Pamplona (1909-1999)10, no do em Filologia Românica, aprofundaria
Diário da Manhã e nos microfones da Emis- os seus estudos sobre história e crítica de
sora Nacional dominou a década de 1950 Arte, publicando várias obras, e nesse âm-
com grande regularidade, acompanhando bito obtinha o Prémio José de Figueiredo
quase todas as exposições de artes visuais pela Academia Nacional das Belas-Artes,
de Lisboa, e depois de outra relevância esté- nos anos de 1943, 1954 e 1983, o que lhe
tico-ideológica própria ao regime que assu- daria um decisivo prestígio nacional.
mira nos anos 40, desenvolvia um bem mais
tolerante e generoso ecletismo nos anos 50, Fernando de Pamplona foi uma das vozes
numa crítica que acabava mais por divulgar que nos anos 40 mais defendeu uma via
que crivar. Depois de um rigor ideológi- austera para uma modernidade do regi-
co de separação de águas, caia numa que me, dentro de uma estilização que tinha em
tudo parecia aceitar. Apesar deste processo Eduardo Malta um dos nomes que mais elo-
de quase indiferenciação e de estar atento giava. E se houve uma teoria estética mo-
às expressões modernas que se iam expon- dernista e fascista do Estado Novo de carác-
do, não deixou de lhe enjeitar os arrojos, so- ter reacionária e até contrária à de António
bretudo no âmbito da abstracção. Sendo o Ferro, um modernismo austero, de regres-
crítico regular do jornal mais porta-voz do so à ordem e de recusa da vanguarda, essa
Estado Novo, foi o crítico que mais reagiu teoria teve nas páginas de Rumos da Arte
negativamente às Exposições Gerais – so- Portuguesa (1944) de Fernando de Pamplo-
bretudo as Segundas Gerais em 1947, que na dos seus momentos mais marcantes11.
foi um ponto agudo de um gesto de recu-
sa por parte da actividade crítica de Fernan- Neste impressionante livro de estética fas-
do de Pamplona, tal como foi dos mais vio- cista, o crítico defendia o que devia ser a
lentos crítico das exposições surrealistas de arte moderna do seu tempo. Para tal atacava
1940 e 1949. Renitente na recepção de mo- o «desenraizamento» defendendo uma tra-
vimentos mais modernos, como o surrealis- dição nacional, na necessidade de comedir
mo e a abstracção, foi ao longo dos anos 50 as referências cosmopolitas com um equilí-
mais tolerante e, por isso, mais eclético. Ra- brio entre o que é internacional e nacional.
ramente falhava uma exposição de Lisboa No capítulo IV fazia uma defesa da tradição,
nas suas regulares crónicas. como soma de qualidades: «A arte dos de-
senraizados será, como a sua vida, um eter-
Seria professor liceal do 2.º Grupo (Por- no recomeço, um aflitivo tatear na sombra»
tuguês e Francês) do Ensino Técnico, que (p.50), propondo no capítulo seguinte uma
manteve em simultâneo com a actividade articulação entre arte internacional e nacio-
que vinha tendo desde a juventude, de es- nal. No capítulo VI acusava os «novos bár-
critor e jornalista. Em 1934 ganhava o pri- baros», afirmando: «Não estamos perante
meiro de vários prémios de jornalismo mera manifestação de exotismo: achamo-
<<
Alguma actividade, por experiência prática visuais, que seria uma das mais relevantes
e proximidade de investigação das artes vi- dos anos de 1940 e até ao seu falecimento
suais, era efectuada por artistas que se viam em 1959. Desde os anos 20 foi apresentan-
como que «obrigados a desdobrar-se em do crónicas de crítica ou ensaios teóricos e
críticos»13 (o que levará a algum debate de históricos sobre arte portuguesa, em várias
carácter mais deontológico do que de com- revistas tais como Ilustração, Revista Portu-
petências nos anos 60), fornecendo um in- guesa, Seara Nova (anos 20), O Diabo (anos
diciamento profissional a explorar que, pelo 30) ou o Mundo Literário (anos 40). No iní-
menos, ultrapassava a mera e normalmente cio dos anos 40 publicava na revista Aven-
inócua boa vontade jornalística. Num meio tura um conjunto de artigos com o nome
cultural com pouca profissionalização da «Subsídios para a História da Arte Moder-
prática crítica esta poderia ser uma das vias na em Portugal», que seria um dos primei-
paradigmáticas de uma afirmação de com- ros trabalhos de sistematização da história
petências – e esse entendimento seria uma da arte moderna portuguesa. Até finais da
das marcas dos anos de 1960. Assim, sur- década de 50, teria uma marcante activida-
gia uma linha de artistas plásticos e arqui- de de crítico de arte com as suas regulares
tectos que praticavam a actividade crítica «notas de arte» na revista Ocidente, passan-
com a melhor formação possível de então do depois a dedicar-se mais a uma activida-
em Portugal, assente nas escolas e prática de de investigação histórica orientada em
de Belas-Artes. Alguns nomes pertenciam monografias de artistas plásticos portugue-
a outras práticas artísticas, mas com algum ses dos séculos XIX e XX. Foi ainda direc-
exercício, mais ou menos profissional, nas tor do Museu de Arte Contemporânea (do
artes plásticas. Apenas uma questão ética, Chiado) entre 1944 e 1959, no que se tem
implicada no facto de artistas plásticos es- considerado uma das melhores gestões
tarem a julgar outros artistas plásticos, per- culturais da história deste Museu, enquan-
turbava esta orientação – questão deontoló- to de arte contemporânea, e que só teria
gica que se acendeu várias vezes, nos anos sido prejudicado por limitações financeiras.
60, sendo de destacar a discussão em torno Mas no percurso de Diogo de Macedo, a
e no seio do Júri do Prémio GM67 ou em sua afirmação como historiador e crítico de
algumas opções dos críticos para as exposi- arte foi acompanhada pela desistência do
ções AICA-SNBA/72 e 74, sobretudo as de escultor. Significou, contudo, um primeiro
Rocha de Sousa. sentido para uma profissionalização da ac-
tividade de crítico de arte.
Diogo de Macedo (1889-1959) foi um dos
primeiros e mais distintos casos de grande Dos contemporâneos de Diogo de Mace-
consideração de um artista que exerceria a do, refira-se ainda Leitão de Barros (1896-
prática crítica. Escultor de formação, activo 1967), pintor, fotógrafo e cineasta que teve
nos anos de 1920 e 1930, que iria abando- prática crítica em Ilustração, O Século, e
nando no desenvolvimento de numa activi- mais tarde colaborações em O Dia e Jor-
dade teórica de crítico e ensaísta de artes nal de Notícias14, ou Roberto Nobre (1903-
<<
Assumindo-se como «um pintor que nunca xão teórica sobre o sentido da arte e das
acreditou na pintura pura», posicionando- suas práticas éticas e estéticas, que já an-
-se na «querela da forma e do conteúdo», tes trabalhava, mas agora com maior auto-
«contra a arte “abstracta”»16, Lima de Freitas nomia, como um ensaio paralelo de escla-
criticou e resistiu ao que chamou a falsa li- recimento e guia da sua própria prática. Na
berdade criadora dos puristas da forma e a fase neo-realista colaborou em vários perió-
sua «metafísica da forma», acusando a des- dicos, tais como A Tarde, no qual dirigiu a
confiança e o desprezo pelo tema que estes página cultural A Arte (1945), Mundo Lite-
viam como impuro17. Defendendo a profun- rário (1946), Seara Nova (a partir de 1946),
didade do tema, para lá da superficialidade Arquitectura Portuguesa (1952) ou Vértice
do motivo prévio, como «profusão inespe- (a partir de 1953). Por vezes os seus textos
rada de valores» «que surdamente coman- surgiam reproduzidos em periódicos do an-
dam a energia das formas»18, encontrava tigo Ultramar, como foi o caso de Itinerário
aí a «razão última da obra». Vendo na abs- de Lourenço Marques (1948).
tracção uma incomunicação vaidosa, onde
a forma se encerra na sua própria interio- Pertencendo já ao panorama cultural entre
ridade, defendia que «a arte» era antes «a as décadas de 1950 e seguintes, Mário de
formação de conteúdos» «emergindo em Oliveira (n.1916), arquitecto e pintor, teria
formas»19. A liberdade procurada pela mo- actividade regular como crítico, sobretudo
dernidade, que levou ao extremo da «liber- no Diário Popular (1952-1961), depois no
dade de não ter tema», revelou-se no se- Diário de Notícias (1965-1973) ou ainda em
gundo pós-Guerra de uma «extremidade O País (1978). Faria parte da secção portu-
patológica»20: «Os cultores do gratuito em guesa da AICA.
arte esquecem que a originalidade reside
na reestruturação dos temas, e não na cria- Fernando de Azevedo (1923-2002), pin-
ção ex nihilo, fora dos temas»21. Mais tarde, tor inicialmente ligado ao neo-realismo,
entre os anos 70 e 80, o pintor desenvolveu mas com uma obra desenvolvida no âmbi-
o simbolismo do tema, reencontrando-lhe to do surrealismo português (desde cerca
uma produndidade abstracta por assimila- de 1948) na altura em que iniciava também
ção de uma geometria sagrada, tendo para uma actividade de crítico de arte (desde
isso criado afinidades com teorias de An- cerca de 1947). Começou por exercer uma
tónio Quadros (Poeta), Gilbert Durand e o actividade de crítico e ensaísta em Unicór-
último Almada Negreiros. nio, Mundo Literário (1946-1947) e Horizon-
te, mas a sua intervenção mais regular foi ao
O pintor Júlio Pomar (n.1926) teve assinalá- longo das décadas de 1960 e seguintes, na
vel actividade crítica enquanto enquadrado colaboração com as revistas da FCG, Coló-
na estética neo-realista, depois enfraqueci- quio e Colóquio Artes. Além deste exercício
da com a crise desta orientação estética na crítico em periódicos, teve uma vasta cola-
segunda metade dos anos de 1950. Passa- boração em textos de apresentação para ca-
va então a centrar-se no texto como refle- tálogos de exposições em diferentes gale-
sições da Fundação Calouste Gulbenkian e nha tido uma marcante acção e teorização
com a revista Colóquio, com notório prejuí- da actividade da crítica, centrada na literatu-
zo da sua produção artística. Envolvia-se as- ra, mas com abordagens no âmbito do cine-
sim com as alterações e dinâmicas trazidas ma ou das artes plásticas, sobretudo, José
com os anos 60, em grande parte derivadas Régio, João Gaspar Simões e Casais Mon-
do aparecimento da FCG. Outros nomes de teiro. Nas páginas da Presença, foi marcante
artistas plásticos com regular prática crítica a defesa da 1ª Exposição do Independen-
surgiam nesta década de 60, dando conti- tes de 193026. João Gaspar Simões também
nuidade a esta linha, caso de Júlio Giraldes deixaria um dos primeiros textos a debater
(n.1923), Rocha de Sousa ou Eurico Gonçal- a questão da abstracção, a propósito de ex-
ves, que deixaremos para outro ensaio. posição de Vieira da Silva27.
<<
1960. Tendo sido director do Tempo Pre- beiro), tendo depois escrito o romance An-
sente entre 1959 e 1962, e crítico regular jo-Demónio, os livros e novelas Filhos do
de artes plásticas do Diário da Manhã, teve Diabo (prémio Fialho de Almeida) e Filhos
ainda colaboração de carácter teórico-críti- de Deus. Teve representadas as peças Ca-
co em periódicos como Graal, Rumo, Pano- milo e Fanny e Má sorte. Foi um dos mem-
rama, Praça Nova, Diário Ilustrado ou Diário bros fundadores e directores do Centro
de Notícias32. Interessado pela arte abstrac- Português de Escritores e redactora de Re-
ta, publicaria ensaios que defendiam a im- pública e Diário de Lisboa e chefe de redac-
portância dos artistas plásticos do Porto na ção de Vida Mundial e Vida Mundial Ilustra-
sua genealogia na arte portuguesa33. do. Mas, sobretudo e durante muitos anos,
foi redactora no Diário de Notícias, onde
Também escritor, Alfredo Margarido exerceu funções de crítica de teatro, baila-
(n.1928)34 colaborou como crítico de ar- do e artes plásticas, com especial activida-
tes plásticas na Seara Nova (1958), no 57 de nas décadas de 1960 e 1970.
(1958), no Diário Ilustrado (1959) dirigindo
o suplemento literário ou ainda no Diário de Sellés Paes (Joaquim Sellés Paes de Villas-
Notícias (1963). Teria maior relevância e re- -Boas), nascido em Madrid em 1913, foi di-
gularidade ao substituir Rui Mário Gonçal- rector-fundador da revista de Arqueologia
ves nas críticas de artes plásticas do Jornal Boletim do Grupo Alcaides de Faria, e publi-
de Artes e Letras, a partir de Dezembro de cou vários estudos de etnologia e de artes
1963, e até Outubro de 1964, altura em que plásticas. Desenvolveu uma regular activida-
partia como bolseiro da FCG, regressan- de de crítico de arte em vários periódicos,
do Fernando Pernes (primeiro crítico regu- entre finais da década de 1950 e inícios da
lar do periódico que tinha sido substituído seguinte, tais como O Debate, de orienta-
por Rui Mário Gonçalves também devido a ção monárquica, depois no Diário Ilustrado
uma bolsa35). Era habitual em Alfredo Mar- (desde 1956) e na segunda metade dos nú-
garido introduzir em cada crítica, uma pré- meros da terceira série da revista Panorama
via e autónoma reflexão teórica em torno (1959-1961). Numa defesa histórica da acti-
da prática crítica. Partindo da antropologia, vidade do SPN-SNI, procurava efectuar um
e estendendo-se à sociologia e à história, olhar crítico sobre a arte contemporânea
interessava-se por várias manifestações ar- portuguesa como sua continuadora, numa
tísticas além das artes plásticas, tais como a articulação que deixaria explícita em ensaio
literatura e o cinema. Faria carreira de do- de 1962: Da Arte Moderna em Portugal37.
cência Universitária em Paris.
Foi no cruzamento destas vias, onde o pro-
No Diário de Notícias foi bastante regular a fissionalismo se desejava (mais ou me-
actividade de Manuela de Azevedo (M. A.) nos) que, ao longo dos anos da década de
(n.1911)36, sobretudo na crítica de teatro e 1960, se definiu um grupo de críticos de
artes plásticas. Começou a carreira literária arte com vontade de assumir uma dimen-
com Claridade (prefaciado por Aquilino Ri- são profissional, especializada e indepen-
<<
às vezes literários» (anónimo), Livros e das Bibliotecas] [consulta: Portugueses, Vol.IV, Lisboa, 1997,
Horizonte, nº14, 1ª quinzena Novembro 2007] in: http://www.iplb.pt/pls/diplb
Setembro 1947. 9
Quirino Teixeira entrevistou [endereço da Direcção Geral dos
5
Ibidem. Salvador Dali, Juan Miro, Modest Livros e das Bibliotecas] [consulta:
6
Para biografia de Quirino Teixeira, Cuixart, Juan Tharrats, Villa- Novembro 2007]
cf. Dicionário Cronológico de Casas, António Buero-Vallejo, 11
Fernando de Pamplona,
Autores Portugueses, Vol.IV, Lisboa, Camilo José Cela, Ana Maria Rumos da Arte Portuguesa, Porto:
1997, in: http://www.iplb.pt/pls/ Matute, Fernando Sabino, Manuel Portucalense Editora, 1944.
diplb [endereço da Direcção Cargaleiro, Thomás de Melo (Tom), 12
Cf. António Valdemar, «Matos
Geral dos Livros e das Bibliotecas] entre outros. Contudo, as mais Sequeira, um dos mais notáveis
[consulta: Novembro 2007] importantes foram as efectuadas a olisipógrafos do século XX» (26-8
7
«Em 1920 veio para Lisboa Fernando Namora, Jorge Amado 2013), in http://www.publico.pt/
para exercer o jornalismo e Artur Bual que tiveram direito a opiniao/jornal/matos-sequeira-um-
profissional, ingressando no edição em livro. Para biografia de dos-mais-notaveis-olisipografos-
Século. Trabalhou também no Quirino Teixeira, cf. as indicadas do-seculo-xx-25130098
Diário Popular, no Diário Liberal, nas suas edições: Teorias e Práticas 13
José-Augusto França, A Arte em
em O Diabo, na Mala da Europa da Promoção Turística Portuguesa Portugal no século XX (1911-1961),
e nas Actualidades, sendo chefe (ed. Autor, 1977); Em Outubro Lisboa: Bertrand Editora, 1991,
de redacção do Diário da Tarde, com Fernando Namora (Flamingo, p.471.
do Diário da Noite, do Jornal 1987). 14
Para biografia mais alargada
da Europa e da revista Turismo. 10
Filho de José César de Araújo de Leitão de Barros, cf. catálogo
Colaborou ainda noutros jornais, Rangel e de Alda Luísa de Sá da cinemateca Leitão de Barros,
como no Notícias, de Lourenço Passos, nasceu na cidade do Porto Lisboa: Cinemateca Portuguesa,
Marques, e na Tribuna, de Santos. a 1 de Maio de 1909. Terminados 1982, pp.14-18.
Redactor da República, foi os estudos liceais, matriculou-se 15
A produção crítica de António
depois seu colaborador, desde na 1.ª Faculdade de Letras do Dacosta teve publicação bastante
que se aposentou, em 1956». Porto, concluindo a licenciatura completa, só com algumas faltas
Dicionário Cronológico de Autores em Filologia Românica com a na sua colaboração no Estado de
Portugueses, Vol.III, Lisboa, 1994, classificação de 18 valores, a São Paulo, sobretudo na década
in: http://www.iplb.pt/pls/diplb 27 de Julho de 1931. Em 1956 de 1960. Cf. António Dacosta,
[endereço da Direcção Geral dos participou no IV Congresso da Dacosta em Paris, Lisboa: Assírio
Livros e das Bibliotecas] [consulta: União Nacional (Maio a Junho - & Alvim, 1999. Alguns fragmentos
Novembro 2007] Lisboa), na secção de Educação de crónicas ausentes neste volume
8
Embora convergindo para Cultura. Passados três anos foi encontram-se em «seçecção» no
a crítica literária, teve uma nomeado Inspector Superior do catálogo: António Dacosta, Lisboa:
intervenção abrangente, aceitando Ensino Técnico, tendo assumido, Fundação Calouste Gulbenkian.
quaisquer querelas. Também ainda, as funções de Professor Centro de Arte Moderna, 23
escritor e ensaísta, no âmbito Metodólogo do ensino do Francês. Fevereiro a 27 Março 1988; Porto:
das artes plásticas seria o autor Para biografia de Fernando de Fundação de Serralves. Casa de
das edições Salazarismo e Artes Pamplona, Pela escrita da peça Serralves 8 Abril a 8 de Maio 1988,
Plásticas (1982) e Francisco Franco Quando Salomão voltou foi s.p.
e o «zarquismo» (1997). Para agraciado, em 1960, com o Prémio 16
Lima de Freitas; Pintura
biografia de Artur Portela Filho, cf. do Teatro do Secretariado Nacional incómoda, Lisboa: Publicações
Dicionário Cronológico de Autores de Informação; também foi eleito Dom Quixote, 1965, pp.11-13.
Portugueses, Vol.VI, Lisboa, 1999, vogal e secretário da Academia 17
Cf. Ibidem, p.17.
in: http://www.iplb.pt/pls/diplb de Belas-Artes de Lisboa. cf. 18
Cf. Lima de Freitas, “O tema na
[endereço da Direcção Geral dos Dicionário Cronológico de Autores pintura”, in Ibidem, pp.22-23.
<<
Exposição Artistas Portuguesas
e o Papel da Mulher
na Arte da Pós-Revolução
Por Claudia Simenta Rodrigues
Artista plástica e membro do Atelier 39|93,
Coordenadora da Área de Galerias da Divisão de
Cultura da Câmara Municipal de Loures, Mestranda em
Crítica, Curadoria e Teorias da Arte pela FBAUL
<<
Pelo seu enquadramento histórico-tempo- que se dá uma considerável proliferação
ral, esta exposição assumiu grande impor- dos salões coletivos e se desenvolvem
tância, revelando-se num acontecimento novas formas radicais de criação artística,
cultural sem paralelo ainda hoje nos nossos em tudo distintas dos tradicionais conceitos
dias. Achou-se, portanto, oportuno analisar de pintura e escultura.
mais profundamente, na concretização des-
te ensaio, o referido evento enquanto acon- Os anos 70 vêm, assim, dar um novo impul-
tecimento histórico e cultural, abordando so ao já iniciado nos anos 60, no campo do
de forma pormenorizada as iniciativas que experimentalismo português, dentro das
dele fizeram parte, assim como o seu im- designadas novas disciplinas artísticas (per-
pacto na arte e na sociedade da época e as formance, instalação, happenings, rituais, in-
suas repercussões na arte dos nossos dias. tervenções, etc.) que se prolongam até mea-
dos da década de 80 e dão origem a novas
PORTUGAL NOS ANOS 70 – A arte, a formas de produção e expressão. No segui-
liberdade e as mulheres mento de um período definido por António
Os anos 70 são caracterizados, por João Pi- Rodrigues como «de rutura em relação à arte
nharanda, como «uma década contraditória portuguesa das décadas anteriores»3, nos
e complexa»2; uma década de consagração anos 70 procuram-se registos que fujam aos
de alguns dos artistas revelados nos anos suportes tradicionais e o estreitar da relação
60, de grande dinamismo no designado entre a arte e a vida, de que Lourdes Castro
“mercado da arte”, mas também de grande é exemplo com os seus lençóis de «sombras
crise no setor. O início da década de 70 ca- deitadas» (1969) e Ana Vieira, com as suas
racteriza-se fundamentalmente por um de- instalações em torno dos ambientes domés-
sinteresse institucional generalizado pela ticos, como é o caso da sua casa translúcida
arte que se traduz numa total ausência de mas impenetrável (Galeria Ogiva, 1972). É
políticas culturais (sendo apenas de notar também neste contexto que surge a poesia
alguns acontecimentos pontuais promovi- visual ou experimental, que explora precisa-
dos pelo governo), na inexistência de mu- mente os limites entre escrita e artes plásti-
seus de arte moderna, no fechamento do cas e que tem em Ana Hatherly uma das suas
País ao exterior que se reflete num desco- grandes representantes.
nhecimento do que se faz lá fora em termos
artísticos (nomeadamente EUA e países do Um dos acontecimentos mais marcantes
Leste) e pela sobreposição das entidades desta década e que, sem dúvida, provocou
privadas às competências e responsabilida- o corte radical em termos artísticos, foi a re-
des do Estado com o aparecimento de al- volução militar de abril de 1974. As ruturas
guns (esporádicos) apoios empresariais a provocadas por este acontecimento políti-
ações culturais por parte de entidades co- co vieram alterar o modo de encarar, per-
merciais e bancárias. É também nesta altura cecionar e perspetivar a arte. A Revolução
que se regista o surgimento de um pequeno de Abril e o fim da ditadura clarificaram al-
mercado (que se irá retrair a partir de 1973), guns aspetos da realidade do País, nomea-
maior abertura ao exterior, que teve como me, a tomada de consciência por parte da
consequência a descoberta (apesar de tar- sociedade civil, a construção de uma demo-
dia) da arte conceptual. cracia consolidada assente nas liberdades e
direitos dos cidadãos e a própria redefini-
Outro aspeto que durante este período se ção do ensino, poderão ter sido as causas
começa a destacar é o papel das mulheres mais diretas para a escassez de atenção de-
na sociedade e, em particular, na produção dicada ao estudo e teorização das questões
artística. Durante um longo período, a arte do feminismo no meio académico.
feita por mulheres ao contrário de inexis-
tente, foi uma “arte sem história”5, descon- Contudo, fora do contexto académico as
siderada pelos historiadores de arte tanto mudanças vão-se fazendo sentir. Ernesto de
no contexto português como internacional. Sousa, por exemplo, surge como figura cen-
Em Portugal, são escassos os casos de mu- tral na compreensão daquilo que foi a dé-
lheres-artistas consagradas no decurso de cada de 70. Artista, cineasta, crítico de arte,
séculos e séculos de história de arte. Pou- organizador de exposições, foi o responsá-
cos são os nomes que conseguimos referir; vel pelo aparecimento de uma geração de
vem-nos à memória Josefa de Óbidos (du- artistas com uma produção artística diferen-
rante o período Barroco), Maria Helena Viei- ciada e inovadora, a que a Alternativa Zero
ra da Silva (após a II Guerra Mundial), Paula (1977) deu visibilidade e projeção e na qual
Rego e Lourdes Castro (a partir de 60/70) Clara Menéres participou com a sua Mulher-
e, mais recentemente, Joana Vasconcelos. -Terra-Vida (um torso feminino, inteiramente
É de notar, contudo, que apesar de escas- moldado com relva plantada, criado especi-
sos, todos estas artistas são personagens in- ficamente para a mostra).
contornáveis no estudo da história de arte
portuguesa, assumindo-se como figuras de A agitação política, social e cultural senti-
destaque tanto a nível nacional como inter- da no pós-25 de Abril ultrapassou todas
nacional. as previsões, havendo uma grande adesão
por parte dos criadores artísticos (operado-
<<
res artísticos, conforme Ernesto de Sousa), cultural antifascista, e representantes reais
que se organizaram na apresentação de dos interesses de artistas e críticos de arte.
propostas e reformas. Entre 1974 e 1977
foi possível a integração de representantes É assim, neste contexto, e um pouco
de artistas e críticos de arte, nas comissões em reação à situação que se fazia sentir,
consultivas da Secretaria de Estado da Cul- que na segunda metade da década de
tura, com o intuito de contribuir, de forma 70 se generalizam as ações de carácter
ativa, na definição de uma política cultural coletivo, que resultam num conjunto muito
para o País. significativo de exposições8, happenings e
pinturas murais de carácter interventivo, de
A situação começa, contudo, a mudar a par- que é exemplo o painel realizado a 10 de
tir de 1977, sendo percetível uma diminui- Junho de 1974, pelo Movimento Democrá-
ção na liberdade de ação por parte dos in- tico de Artistas Plásticos, e que contou com
telectuais. Rui Mário Gonçalves refere-se a a participação de diversas mulheres artistas,
este período como «uma temporada em entre as quais Teresa Dias Coelho, Teresa
que a palavra «silenciamento» parece ser Magalhães, Fátima Vaz, Ana Vieira, Helena
a mais recorrível para descrever o que ro- Almeida, Alice Jorge, Emília Nadal, Menez
deou oficialmente a vontade de expres- e Maria Velez.
são.»7 É nesta altura que se mandam apagar
paredes e desfazer comissões consultivas, Os anos 70 apresentam-se, assim, como um
entre outras ações representativas desta período conturbado, mas libertador, criati-
desvitalização. É notório o real desinteresse vo e aberto a novas possibilidades, construí-
governamental pela cultura. A liberdade de do com o apoio de uma sociedade artística
expressão e o espírito crítico são os moto- ativa (e reativa perante a inércia e imprepa-
res fundamentais para a manutenção de ração institucional) na qual as mulheres tive-
uma cultura viva, contudo podem gerar in- ram um papel fundamental.
cómodo aos decisores políticos. Assim, a
ausência de uma política cultural compe- ARTISTAS PORTUGUESAS – o início
tente manteve-se ao longo dos anos, dan- da revolução cultural no rescaldo da
do origem a ações contraditórias por par- Revolução de Abril
te dos sucessivos governos, incapazes de Liberation – 14 Artistas Americanas.
definir programas coerentes para a cultura. Em Dezembro de 1976, no Centro de Arte
As grandes iniciativas que foram ocorrendo Contemporânea do Museu Nacional de
durante este conturbado período, foram or- Soares dos Reis, teve lugar uma exposição,
ganizadas por instituições culturais com um proveniente dos Estados Unidos da América,
grande know-how cultural, como era o caso denominada Liberation – 14 Artistas
da Sociedade Nacional de Belas Artes e Americanas. Esta exposição, no seguimento
da Association Internationale des Critiques do programa de itinerância que cumpria,
d’Art, entre outras; instituições democrati- pela Europa, veio a Lisboa por intermédio
camente organizadas, polos de resistência do Serviço de Imprensa e Cultura da
<<
Artistas Portuguesas. A Comissão Organizadora desta exposição,
Paralelamente à inauguração da exposição constituída por Emília Nadal, Sílvia Chicó e
Liberation – 14 Artistas Americanas teve lu- Clara Menéres, representantes do núcleo fe-
gar, entre 25 de janeiro e 20 de fevereiro de minino da direção da Sociedade Nacional
1977, a exposição Artistas Portuguesas que de Belas Artes à época, referir-se-ia à mes-
Manuela de Azevedo descreve, no seu ar- ma como uma mostra da «pluralidade de
tigo publicado no Diário de Notícias de 27 tendências existentes na arte portuguesa […]
de janeiro de 1977, como um evento em na qual colaboraram nomes bem conhecidos
«que as mulheres resolveram comparecer do nosso meio artístico».12 Esta exposição,
em força e desembaraço […] as que foram ainda no entender da sua Comissão Organi-
«sexo fraco» […] arregaçam as mangas, dei- zadora, seria a primeira exposição de artis-
xando muito envergonhadas as pintoras tas portuguesas a focar a forte presença fe-
americanas, inocentes entretidas com his- minina numa área onde aparentemente teria
tórias de ratinhos ou pintura cerebral…»11. uma presença pouca expressiva, sendo ape-
nas possível nomear raras e cirúrgicas exce-
Realizada no âmbito das comemorações ções do passado e do presente.
do 75º aniversário da Sociedade Nacional
de Belas Artes, e tendo o apoio da Secre- Emília Nadal sempre recusou a existência de
taria de Estado da Cultura, da Fundação quaisquer discriminações no seio do meio
Gulbenkian e do Museu Nacional de Arte artístico tendo expressado isso mesmo em
Contemporânea, a exposição contou com entrevista ao Diário de Notícias, a 2 de feve-
a participação de Alice Gentil Martins, Alice reiro de 1977, referindo que a situação exis-
Jorge, Amália Andrade, Ana Hatherly, Ana tente não justificava a necessidade de uma
Vieira, Assunção Venâncio, Clara Estrela, tomada de posição nesse campo. Apesar
Clara Menéres, Dorita Castel-Branco, Emília disso, houve sempre uma tendência natural
Nadal, Estreia, Fernanda Nobre, Graça Mo- de conotar a exposição com questões liga-
rais, Gracinda Candeias, Inês Guerreiro, Isa- das a reivindicações de carácter feminista.
bel Laginhas, Ivone Balette, Kukas, Lourdes Este facto levou a que, no início do processo
Leite, Manuela Correia de Sousa, Maria Ân- de organização da mesma, tivessem surgido
gela de Brito Pereira, Maria Antónia Azeve- determinadas polémicas com algumas das
do, Maria Antónia Correia Martins Gomes, artistas, que se recusavam a participar na ex-
Maria Benamor, Maria do Carmo Galvão posição se ela assumisse tais objetivos, uma
Teles, Maria Flávia de Monsaraz, Maria Ga- vez que não se sentiam atingidas por esse
briel, Maria Keil, Maria Rolão, Maria Velez, tipo de questões no seio do meio artístico.
Marília Viegas, Matilde Marçal, Menez, Pau- O objetivo da exposição passava, assim, por
la Rego, Pissarro, Rosa Fazenda, Salette Ta- promover «um interessante estudo sobre as
vares, Sarah Afonso, Teresa Ferrand, Teresa constantes específicas da expressão artística
Magalhães e do Grupo Puzzle. da mulher e que, podendo tornar-se um
tema polémico, não só pela exposição em
si mas pelas manifestações culturais que
<<
A maioria das obras foram realizadas es-
pecificamente para a exposição, resul-
tando num conjunto muito expressivo da
«multiplicidade de tendências e técnicas
de expressão características da arte
contemporânea» que reunia obras des-
de a «pintura à criação de ambientes, da
colagem à escultura»17, tapeçaria, joias,
entre outras formas de produção artística.
Para José Luís Porfírio, contudo, a exposição
apresentava uma seleção pouco rigorosa,
assente em critérios debilmente estrutura- Teresa Magalhães | Sem Título
dos, apresentando tanto nomes com algum 1976 | Acrílico sobre tela | 140 x 200 cm
Fotografia cedida pela artista
reconhecimento no meio artístico da época,
como nomes menos conhecidos, seleciona-
dos por intermédio de um concurso aberto
a todas as mulheres-artistas. Descreve-nos
uma exposição organizada ao jeito de «um
inventário da situação existente ao nível
das atitudes dos objectos contrapondo-
-se à selecção mais actualizada do lado
americano.»18
<<
Protestos houve também daqueles que longo dos tempos; aspetos do ser mulher e
[consideravam] que a mulher não [sofria] na bailarina em Portugal.
vida artística qualquer discriminação».21
6 de Fevereiro | 18.30 – Concerto | Grupo
De 24 de janeiro a 18 de fevereiro de 1977, de Música Contemporânea de Lisboa: inter-
foi possível assistir a diversas manifesta- pretação de composições de Clotilde Rosa,
ções artísticas entre as quais música, poe- Constança Capdeville e Maria de Lourdes
sia, literatura e vídeo, distribuídas por uma Martins (asseguradas pelo Grupo de Música
programação diversificada que englobava Contemporânea de Lisboa), partindo de im-
conferências, colóquios, concertos, recitais, provisos gráficos realizados por artistas plás-
projeção de filmes e debates, e nas quais ticos e pelo público.
participaram nomes como Eunice Muñoz,
Lurdes Norberto, Glicínia Quartin, Julieta Al- 7 de Fevereiro | 18.30 – Concerto de vio-
meida Rodrigues, Maria Antónia Palla, Antó- loncelo e piano | Teresa Portugal Núncio e
nia de Sousa, entre outras. Jorge Moyano: interpretação de peças de
Bach, Franchoeur e Schumann.
A programação definida contemplava, en-
tão, as seguintes iniciativas: 8 de Fevereiro | 18.30 – Recital de piano |
Maria Teresa Paiva: interpretações de obras
24 de Janeiro | 9.30 - Conferência de im- de Carlos Seixas, Mozart, Schubert e Chopin,
prensa: apresentação do evento e dos seus acompanhadas de notas explicativas sobre
objetivos, pela Comissão Organizadora. os compositores e a sua época, dadas pela
solista Maria Teresa Paiva.
25 de Fevereiro | 21.00 – Abertura do even-
to e inauguração das exposições 9 de Fevereiro | 18.30 – Recital de poesia e
literatura | Eunice Muñoz, Glicínia Quartin
26 de Janeiro | 21.30 - Conferência «Mulhe- e Lurdes Norberto: apresentação de obras
res artistas» | Beth Coffelt: apresentação da poéticas de autoras portuguesas através
exposição Liberation – 14 artistas americanas dos tempos.
e debate sobre a arte americana dos anos
70 feita por mulheres. 10 de Fevereiro | 21.00 – Recital de Canto |
Dulce Cabrita (voz) e Maestro Filipe de Sou-
28 de Janeiro | 21.30 – Conferência «Mulher sa (piano): interpretação de obras de Pur-
portuguesa, que mito que realidade?» | Ju- cell, Pergolesi, Händel, Mozart, Alban Berg
lieta Almeida Rodrigues: o papel da mulher e Fernando Lopes Graça, e dos poetas He-
na sociedade contemporânea. bbel e Mombert.
<<
minação face aos seus pares masculinos, qualquer outro, em especial a pintura, que
sentindo-se acarinhadas e recebidas, pelo requeria uma disponibilidade de espaço e
público e pela crítica, com a mesma aber- tempo muitas vezes inacessíveis à mulher.30
tura que os demais artistas, a verdade é que
nos anos 70 (e à semelhança do que ainda Apesar de não vedada ao sexo feminino, a
hoje se verifica) as mulheres permaneciam cultura permaneceu durante muito tempo
uma minoria no seio do grupo dos artistas sob a “jurisdição” masculina. Segundo Fi-
mais cotados27. lipa Lowndes Vicente «ter nascido mulher
foi sempre um entrave ao ser artista: da
Para Maria Antónia Palla esta negação do falta de acesso ao ensino artístico ou às
feminismo por parte das mulheres, justifi- possibilidades de viajar, das condicionantes
cava-se pelo medo de perder o poder e/ sociais à profissionalização feminina, sem
ou privilégios que julgavam ter conquis- esquecer o peso das responsabilidades
tado, adotando um posicionamento qual familiares.»31 Dada a incontestável qualida-
«escravo que [adota] a ideologia do se- de da produção artística feminina e na im-
nhor».28 Partindo deste pressuposto Palla possibilidade de controlar a presença das
lança a questão já anteriormente aflorada mulheres no meio artístico, houve sempre
por Coffelt: «[…] porque razão, na história uma tentativa de a minimizar sob o pretex-
de arte portuguesa, as pintoras são raras?»29 to das obrigações e responsabilidades para
Não tendo, por isso, a pretensão de ser uma com o lar e a família, forçando à mulher
ação feminista, o evento organizado veio apenas à única opção de se dedicar a uma
possibilitar o refletir sobre problemas que tipologia de produção: a doméstica. Numa
as artistas portuguesas insistiam em não época de suposta liberdade (pós-25 de
considerar, quer fosse por hábito ou inércia: Abril) e de direitos igualitários para todos
o posicionamento da sociedade face a cria- os cidadãos, o papel da mulher na socieda-
tividade no feminino. de continuava confinado às tarefas do lar,
sendo-lhe quase sempre vedado o acesso a
Seria a posição subalterna da mulher, na uma formação especializada e a um empre-
sociedade, limitação a uma expressividade go condigno e remunerado.
criativa plena? Como justificar a prolifera-
ção de mulheres no campo da literatura ex- Tendo a mulher como tema central, este
tremamente contrastante com a sua exígua foi, certamente, um evento de extrema re-
presença em áreas como a pintura ou a mú- levância no abrir de portas e no mudar de
sica? Maria Antónia Palla responde a estas mentalidades, que possibilitaram à mulher
questões referindo Virgínia Woolf em Um um papel um pouco mais ativo na socieda-
quarto para si própria, para quem a subtile- de de hoje e onde se falou, acima de tudo,
za, descrição e acessibilidade que o uso do de arte e de intervenção. Foi, assim, possí-
papel e do lápis permitiam, era por si só jus- vel perceber que a arte produzida por mu-
tificativa de uma preferência feminina por lheres começava a adquirir, ao contrário
este meio de expressão em detrimento de do que era defendido pela Comissão Or-
Dimensões variáveis | Coleção da autora. vantou à sua volta, este assumiu-se, em ter-
Fonte: www.anavieira.com | Copyright © 2014 Ana Vieira
mos históricos, como documento/testemu-
nho das mudanças que já se vinham a sentir
desde a década de 60 e, simultaneamen-
te, como refere Maria Antónia Palla, como
um «registo da presença das mulheres
portuguesas neste país e neste mundo»33.
<<
Apesar de ser esta a realidade da época, a
arte que se pôde ali apreciar era represen-
tativa de um afirmar da mulher enquanto
ser criador, de convicções fortes, lingua-
gem própria e grande irreverência expres-
siva e estética, abordando muitas vezes te-
máticas ligadas ao corpo (em todas as suas
vertentes, sem qualquer tipo de constrangi-
mentos ou restrições) e questões relaciona-
das com a casa e a família, que se tornam
muito evidentes nas obras de artistas como
Ana Vieira, Rosa Fazenda ou Clara Menéres.
Tomemos, por exemplo, o caso da instala-
ção Santa paz doméstica, domesticada? de
Ana Vieira que se trata de um claro protesto
não só às funções habitualmente atribuídas
às mulheres, como também à própria
passividade das mulheres perante a vida
que lhes era destinada.
<<
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5
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artística (século XVI-XX). Lisboa: 14
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Babel, 2012. PORTUGAL. Sociedade Nacional Op. Cit, julho de 1978, p. 28-29.
6
VICENTE, Filipa Lowndes – de Belas Artes, ed. lit.. - Artistas 24
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reflexão sobre o caso português. 1977. Tavares, Salette, introd. Artes, ed. lit.. – Op. Cit, julho de
Revista de História da Arte. Lisboa: SNBA, 1977, p. 5-6. 1978, p. 1.
Práticas da Teoria, nº 10, p. 211. 15
Teresa Magalhães refere ter sido 25
PORFÍRIO, José Luís – Op. Cit.,
7
GONÇALVES, Rui Mário – uma das artistas participantes no fevereiro de 1977, p. 64-65.
Vontade de Mudança. Cinco inquérito realizado no decorrer 26
Refira-se, contudo, que no
décadas de artes plásticas. Lisboa: da investigação para este ensaio seio da própria Comissão
Caminho - Coleção Universitária, (ver RODRIGUES, Claudia Simenta Organizadora esta questão
2004, p. 126 – Questionário | Exposição não era pacífica, havendo entre
8
Alternativa Zero, Erotismo “Artistas Portuguesas” – Teresa os seus membros algumas
na Arte Moderna Portuguesa, Magalhães. Lisboa, 2015 ) divergências de posicionamento
Mitologias Locais, Fotografia na 16
CHICÓ, Sílvia. In PORTUGAL. no que concerne aos reais
Arte Moderna, O Papel como Sociedade Nacional de Belas objetivos do evento.
Suporte da Expressão são alguns Artes, ed. lit.. – Op. Cit, julho de 27
Os anos 70 foram uma época
exemplos dessas exposições. 1978, p. 1. de grandes mudanças a diversos
9
LIVINGSTON, Jane. In Portugal. 17
“A mulher como artista” na níveis, nomeadamente a nível
Sociedade Nacional de Belas Sociedade de Belas-Artes. Diário intelectual e político o que,
Artes, ed. lit.; PORTUGAL. de Notícias, 25 de janeiro de 1977, segundo Teresa Magalhães, veio
Embaixada dos Estados Unidos, p. 4. a permitir alguma autonomia
ed. lit.. – Liberation – 14 Artistas 18
PORFÍRIO, José Luís – Carta de e liberdade de expressão às
Americanas. Livingston, Jane, Lisboa. Colóquio Artes. Lisboa: mulheres e «foi uma época em as
introd.. Lisboa: S.N.B.A., 1977. Fundação Calouste Gulbenkian, nº mulheres apareceram bastante,
10
COFFELT, Beth – Mulheres 31, fevereiro de 1977, p. 64-65. estando presentes em inúmeras
Artistas. In PORTUGAL. Sociedade 19
BÁRTHOLO, Maria de Lourdes. manifestações, mas a maior parte
Nacional de Belas Artes, ed. lit. In Portugal. Sociedade Nacional delas desistiu em prosseguir. Não
– Artistas Portuguesas. Janeiro/ de Belas Artes, ed. lit. – Artistas havia nenhumas condições que
Fevereiro 1977. Chicó, Sílvia, Portuguesas. Janeiro/Fevereiro facilitassem esse difícil e heroico
introd.; Bártholo, Maria de 1977. Bártholo, Maria de Lourdes, percurso.» (in RODRIGUES,
Lourdes, apresent.; Bandeira, introd.. Lisboa: S.N.B.A., 1977, Claudia Simenta – Questionário |
Françoise, trad.; Fior, Robim, trad.. p. 3. Exposição “Artistas Portuguesas”
Lisboa: S.N.B.A., julho de 1978, p. 20
CHICÓ, Sílvia. In PORTUGAL. – Teresa Magalhães. Lisboa, 2015,
28-29. Sociedade Nacional de Belas p.2).
11
AZEVEDO, Manuela de – Op. Artes, ed. lit.. – Op. Cit, julho de 28
PALLA, Maria Antónia – Arte no
Cit., 27 jan. 1977, p. 4. 1978, p. 1. “feminino”. As mulheres criam uma
12
NADAL, Emília; CHICÓ, Sílvia; 21
CHICÓ, Sílvia. In PORTUGAL. arte própria? O Século Ilustrado, 4
MENERES, Clara – Conferência Sociedade Nacional de Belas de fevereiro de 1977, p. 6-11.
de imprensa. In PORTUGAL. Artes, ed. lit.. – Op. Cit, julho de 29
PALLA, Maria Antónia – Op. Cit.,
Sociedade Nacional de Belas 1978, p. 1. 4 de fevereiro de 1977, p. 6-11.
Artes, ed. lit.. – Op. Cit, julho de 22
COFFELT, Beth – Mulheres 30
PALLA, Maria Antónia – Op. Cit.,
1978, p.28. Artistas. In PORTUGAL. Sociedade 4 de fevereiro de 1977, p. 6-11.
301
31
VICENTE, Filipa Lowndes – A Outubro de 2008, p. 3.
arte sem história: mulheres e 37
Em 2014, dos 35.492 alunos
cultura artística (séculos XVI-XX). matriculados no ensino superior,
Lisboa: Babel, 2012. nas áreas de Artes e Humanidades,
32
Em 1947 teve também 58% eram mulheres. In PORDATA
lugar na S.N.B.A. uma outra - Alunos Matriculados do Ensino
exposição, intitulada Exposição Superior - Por área de educação e
das Mulheres Escritoras de formação.
todo o mundo e organizada 38
Filipa Lowndes Vicente refere
pelo Conselho Nacional das no seu artigo História da arte e
Mulheres Portuguesas que, feminismo: uma reflexão sobre
segundo Manuela de Azevedo o caso português a existência,
(in AZEVEDO, Manuela – Op. Cit., «nos últimos anos, [de] um claro
27 de janeiro de 1977, p. 4), teve despertar crítico da história da arte
– CONVOCARTE N.º1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA
<<
S
egue-se um conjunto de exercícios de crí-
tica de arte, desenvolvidos sobretudo na
unidade curricular de Estudos de Crítica
de Arte I e II do Mestrado de Crítica, Curadoria
e Teorias da Arte. Considerando que o melhor
modo de assimilar a prática da crítica de arte é,
como em muitas coisas, exercendo-a, esta parte
da Convocarte consagra esse sentido da palavra
«exercício».
A Coordenação Geral
Fátima Mendonça O universo de Fátima Mendonça desenvolve-se
na confrontação entre o imaginário da infância
– Operando (Com) O Medo e a realidade da idade adulta. A sua obra é por
isso invenção, fantasia e ironia, denotando, na
Exposição Retrospetiva sua construção, uma forte ligação à casa e à vida
doméstica e o recurso a uma simbologia que lhe
Centro de Arte Manuel de Brito, Algés é muito própria e à qual recorre com frequência
26 Setembro 2014 – 15 Setembro 2015 nas suas representações.
<<
«[…] o sentimento é sempre o mesmo […] O
que me levou a pintar os primeiros trabalhos
a escuro que se vê no CAMB é o mesmo que
me levou a pintar os meus últimos trabalhos.
É o mesmo núcleo. É como se fosse o mesmo
cheiro. É sempre o mesmo sentimento, sempre.»
(in 30 Dias|Oeiras).
305
proximidade deste que começou a expor os nião para operação pouco favorável». Estas fun-
seus trabalhos, no início dos anos 90. cionam como legendas, como descritores da
obra e da intervenção que irá ser realizada.
Aqui somos convidados a assistir ao processo de
“Operar o medo”. A exposição A Cura – Operação Nesta série há ainda uma preocupação estética;
ao cérebro, com trabalhos de menor dimensão, a de ocultar, após a intervenção, a “bolsa tricota-
apresenta-nos a operação à cabeça de artista da” que pende do crânio e incomoda a “doente”.
com o objetivo de acabar de vez com a presença Para tal a artista sugere a criação de um “pentea-
deste medo irracional e extemporâneo. do moderno” com bolos a decorar, reportando-
-nos a outras obras do passado.
Desta feita, o suporte utilizado é maioritariamen-
te o papel, numa aparente sugestão a um conce- No fim de tudo, feito o percurso e operado o
ber de um projeto de intervenção “médica” (se mal, cabe-nos perguntar: e agora? Que caminho
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
assim lhe podemos chamar) e não tanto a uma poderá Fátima Mendonça seguir a partir daqui?
representação da operação em si; trata-se da Tudo dependerá do sucesso (ou não) da opera-
planificação da intervenção a realizar. ção realizada. Contudo, deveremos ter em men-
te que do sucesso desta operação poderá provir
Aqui e ali, surge-nos uma ou outra tela, expla- o risco de extinção do motor criativo da obra
nando de forma mais concisa a referida opera- artística de Fátima Mendonça - o próprio Medo.
ção ao cérebro noticiada como a “Cura” da ar-
tista: «Procedimento experimental de recurso!
1 – Couro cabeludo afastado; 2 – Osso craniano
cortado; 3 – Cérebro à vista – exposto; 4 –
Cérebro intervencionado – operado; 5 – Voltar a
a colocar a “tampa”; 6 – Coser couro cabeludo; 7
– Observar comportamento; 8 – Tirar da paciente
o medo doentio.»
<<
José de Guimarães no TMG
Exposição 'Provas de Contacto'
do Stencil ao Digital:
Processos de Transferência
da Imagem
Galeria de Arte do TMG, Teatro Municipal da Guarda
27 de Setembro – 31 Dezembro 2014
307
de temas de cariz político, transmitindo um com- Víktor Ferrando
pleto domínio do artista na prática da gravura,
lembrando algumas obras de Picasso. Algumas Exposição «Planet Ferrovia
das obras a destacar são sem dúvida a Gioconda Sector IX Via Lusitânea»
Negra, Mulher ao Espelho, o Grande Nu e o 1º
Maio III, todos criadas entre 1973 e 1979. Todas Centro de Cultura Contemporânea
elas realizadas com a técnica serigrafia. A série de Castelo Branco
seguinte é marcada por obras experimentais e 15 Novembro 2014 – 5 Abril 2015
de cronologia anterior, da década de 60, e com
a técnica de xilogravura, com é exemplo a peça por Mariana Salgueiro
Múmero8, de 1968. Sobre cavaletes e protegi-
dos com um painel de vidro, para evitar o toque
dos mais curiosos, estão dispostos inúmeros
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
stencil, utilizados da realização de tantas des- Depois da abertura do Centro de Cultura Con-
tas obras agora aqui apresentadas, material de temporânea em Outubro de 2013, com a expo-
trabalho que, ao longo dos anos, ao longo das sição “Arte Latino Americana”, que apresentou
décadas, acompanharam o artista, fizeram dele obras da Coleção Berardo, a exposição “Planet
e da sua obra o que ela representa hoje para um Ferrovia Sector IX Via Lusitânea” veio dar continui-
visitante, para cada visitante, para a história da dade ao programa do CCCCB. Esta nova exposi-
arte de uma país, este país. ção, comissariada por Guida Maria Loureiro, veio
apresentar várias instalações de Víktor Ferrando.
<<
Na primeira sala, a peça “Marinetti Il Desinfec- dos pelo chão. Os significados de cada peça são
tadore”, Ferrando introduz o mote futurista da descritos de forma complexa, mas a peça atinge
narrativa e faz uma homenagem ao Futurismo o objetivo de passar uma ideia de abandono e
italiano. Com especial destaque para Marinetti, tristeza sem precisar de explicações rebuscadas.
personalizado na figura central, os percursores
do futurismo são representados pelas malas de A quinta sala apresenta um vídeo sobre o artis-
viagem flutuantes. Contudo, esta afirmação de ta que se resume à passagem de um conjunto
influências é revelada numa imagem depressiva, de fotografias tiradas noutros espaços onde a
que recorda o que foi abandonado nos campos exposição “Planet Ferrovia Sector IX Via Lusitâ-
de concentração nazis após a chegada dos Alia- nea” foi apresentada. Esteticamente não é muito
dos. É uma partida para um novo lugar, que não relevante, nem introduz informação que revele
se sabe se é bom ou mau, deixando uma terra magicamente os significados escondidos das
abandonada, solitária. restantes peças da exposição, daí ser perfeita-
mente dispensável.
Na segunda sala, Ferrando cria uma instalação
que tem como intenção dar dimensão material Ferrando sugere com as últimas duas peças uma
ao Movimento Fluxus, em que normalmente é colonização de Marte, após a destruição da Terra
o artista o próprio suporte da arte. Esta peça é - a narrativa das primeiras peças. A estética tor-
descrita como um pedido de ajuda para pôr fim na-se mais acessível nos últimos dois momentos,
à fome especialmente dirigido ao presidente o que nos leva a perguntar se não deveriam ser,
dos EUA, Barack Obama. Contudo, esta intenção por isso, as primeiras peças a apresentar - é uma
nem após a leitura da folha de sala se torna clara, questão para a curadoria.
talvez porque a estética do artista é muito pesso-
al e é especialmente virada para o seu próprio A sexta sala mostra, assim, um conjunto de cin-
sentimento e não se parece preocupar em co- co esculturas inspiradas nos satélites de Marte.
municar com o público. A estética é semelhante à das peças exteriores,
que representam planetas, mas é acompanhada
“DJ Lambreta” e “Simbiotic Interlock”, que ocu- por cabeças humanoides: crânios transparentes,
pam a terceira e quarta salas, respetivamente, mostrando cérebros, e cara tapada com másca-
fazem uso de alguns elementos comuns. As lam- ras de gás: uma Humanidade desumanizada. A
bretas e o carro são símbolos de uma tecnologia peça seguinte, uma estrutura que sustenta for-
decadente que se alimenta do ser humano e que mas de sapateiro sobre carris, é uma marcha de
o esvazia de poder sobre si próprio. Em “DJ Lam- um exército ou tao somente de um povo pobre
breta” o manequim decapitado é um ser humano à procura de melhores oportunidades sobre um
autómato, que não funciona por si, e em “Sim- novo terreno, ainda por conhecer. A ideia de eva-
biotic Interlock” vemos como a tecnologia não são da Terra ganha aqui uma atualidade brutal,
funcionaria sem humanos, mas que estes se con- especialmente numa altura em que assistimos à
tinuam a deixar dominar e destruir dessa forma. destruição do nosso próprio planeta. Fazemos
mesmo um paralelo com outras expressões des-
“Desolation” é a última peça do primeiro piso e te sentimento de preocupação com o planeta,
termina a primeira parte da história. Tendo em com filmes como “Interstellar” (2014) - atualmen-
conta as peças anteriores, esta é minimalista, te nomeado para os Óscares - ou documentários
com elementos isolados e desolados, espalha- como “Cowspiracy” (2014).
309
Ao terminar a visita a palavra que fica, acima de Salette Tavares
tudo, é desolação. É um sentimento de vazio
amargo de uma Humanidade expulsa da sua Exposição «Salette Tavares:
própria casa. A reutilização de materiais úteis, Poesia Espacial»
ou seja materiais com um outro fim que não o
estético-artístico, é um elemento que aumenta FCG-CAM – Galeria, Lisboa
a sensação de abandono e de desumanização 17 Outubro 2014 (inauguração) – 25 janeiro 2015
presente em toda a exposição. Mesmo nos últi-
mos momentos da exposição - em que, segundo por Margarida Eloy
a narrativa, a Humanidade se expande, chega
mais longe e ocupa outros planetas - o sentimen-
to de desumanização ainda está presente: a hu-
manidade não é mais humana, é metálica, vazia. Encontra-se presente na galeria de exposições
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
<<
A exposição divide-se em três salas, a primeira,
com um corredor inicial onde se observam tex-
tos de Salette nas paredes e três obras, um qua-
dro com desenho e escrita, uma chapa de metal
com letras marcadas que explora a tipografia da
palavra Alquerubim, e no fundo do corredor
uma peça escultórica, um mobile de aço inox,
onde se pode observar a junção de inúmeras
letras do alfabeto, esta peça foi inspirada pelo
poema “Maquinin”, que deu nome à peça criada
em 1963.
Junto à parede encontra-se uma mesa cheia de Até aqui, a autora explorou a linguagem enquan-
objetos escultóricos, de madeira, feitos pela artis- to forma, utilizando os elementos da escrita, nesta
ta. Embora não sejam, uma exploração direta da segunda abordagem foca-se na ausência destes
palavra e do discurso, parecem-me suscitar a ideia elementos, pelo uso do silêncio. Em “livros efé-
que estas obras são a projeção simples do signi- meros” de 1979, podemos observar dois livros
ficado do seu titulo. Isto é, as figuras presentes na feitos de seda onde não foi impresso nenhum
mesa, têm o titulo daquilo que parecem represen- texto. Os livros, são conhecidos como suportes
tar, ao observar-mos uma figura de um cavalo, no- de linguagem, neste caso da linguagem escrita,
tamos que o titulo dessa obra é a palavra cavalo. A algo que foi certamente pensado pela artista. Sa-
autora pretende assim, a anulação de uma dimen- lette, viu nos livros a potencialidade da lingua-
são simbólica e a presença do significado direto gem como discurso, e como parte integrante do
da palavra sob o objeto representado. discurso, o silêncio, elemento que embora seja
fulcral, é muitas vezes esquecido na linguagem.
Existe uma constante exploração da linguagem, Os “Livros efémeros” são livros cujas páginas se
que se bifurca. Salette explora dois tipos de mantiveram em branco, onde nada foi impresso,
abordagem face à linguagem. A primeira, é a lin- e apenas se observam folhas vazias de caracte-
guagem enquanto forma, pelo uso dos elemen- res. A autora, conseguiu com esta peça, dar uma
tos da palavra e da pontuação. Como se observa abordagem da linguagem enquanto forma e ao
na maioria das peças da exposição, e sobretudo mesmo tempo enquanto ausência. Salette utiliza
na peça “Jarra pontos e vírgulas” de 1959/63. O o silêncio como elemento que simboliza a ausên-
311
cia de forma, mas ao mesmo tempo torna este curso que Salette apresenta nas suas obras de
elemento físico ao colocá-lo sobre o suporte do linguagem física e tridimensional permitem um
livro, o branco é aqui a versão física do silêncio, dialogo com o espetador, devido á forma como
é a sensação do nada e do vazio. Mas não deve- estas obras reagem com o espaço e o movimen-
mos esquecer que o silêncio é um elemento im- to, mas também porque partilham a mesma con-
portante do discurso, que não é exato, mas que é dição física que o ser humano.
extremamente simbólico. Pode simbolizar diver-
sas intenções: desde a falta de conhecimento, à Embora as obras sejam de diferentes tipos,
pausa de pensamento, e à abstinência conscien- como cartazes, esculturas, instalações, partilham
te do discurso. a mesma noção de “Poesia espacial”, de lingua-
gem tridimensional através da exploração da
Ainda neste espaço, está presente uma montra, palavra como forma, esta partilha de conteúdo
onde se encontram os estudos para as obras concede à exposição alguma coerência.
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
<<
A Galeria Virtual do e assim evitar deixarmo-nos naufragar no jargão
tecnologista que inevitavelmente rodeia a cha-
Post-Screen Festival 2014 mada “arte digital”, e cujo efeito mais perverso
pode ser o de camuflar ou confundir o potencial
FBAUL valor artístico da obra em questão. De resto, tal-
Novembro 2014 vez seja a esse efeito de fetichização que se pos-
sam atribuir as conotações negativas com que
por Diogo Freitas da Costa parte importante da crítica contemporânea tem
encarado a arte produzida no terreno dos meios
digitais, como lamenta Josephine Bosma (http://
www.josephinebosma.com/web/node/98), alu-
Em lugar algum. dindo a autores como Bourriaud; Foster; Jame-
son; Krauss; Virilio ou Rancière.
O certame organizado pela secção de Ciberarte
do Centro de Investigação e Estudos Belas Artes A consciência do ecrã enquanto dispositivo que
(CIEBA) - Post-Screen Festival 2014 - apresenta- medeia a experiência estética retirada de um ob-
-se como a 1ª edição de um Festival Internacio- jeto artístico pode fazer-se remontar ao lendário
nal de Arte, Novos Media e Ciberulturas. Para episódio, segundo o qual Parrásio de Éfeso, no
o efeito, Ana Vicente e Helena Ferreira (CIEBA- século 4aC., terá pintado uma cortina que levou
-FBAUL) conceberam um programa que se des- o seu rival Zeuxis a querer afastá-la para ver o
dobra num conjunto eventos de natureza diversa que escondia, acabando por “descobrir” apenas
– workshops, conferências e exposições – a de- o seu engano. A noção de que o médium interfe-
correr simultaneamente na Faculdade de Belas re ativamente na própria perceção do fenómeno
Artes de Lisboa durante o mês de Novembro. artístico, e por inerência sobre a realidade que
Embora querendo aqui cingir-nos à vertente ex- aquele quis representar, não será exatamente
positiva deste festival, estaríamos a omitir um dos um dado novo. Na história das artes visuais en-
seus aspetos mais relevantes, e até a desvirtuar a contramos inúmeros momentos em que a intro-
própria experiência dos trabalhos reunidos, se dução de dispositivos técnicos e tecnológicos
não tomássemos nota da abrangência de um fes- vieram confirmar e atualizar esse dado. E de
tival que, a par de uma vincada aproximação dos facto, especificamente no que se refere à ideia
meios académicos e artístico claramente aposta- de “ecrã”, é impossível não pensar nas sucessivas
da na transdisciplinaridade e transnacionalidade abordagens ao plano pictórico - desde a “janela”
– reunindo investigadores e artistas de várias uni- renascentista à grelha modernista, para não fa-
versidades nacionais e internacionais – deve ser lar, evidentemente, de toda essa revolução que
entendido, antes de mais, como um evento inte- a fotografia e o cinema vieram introduzir neste
grado e construído numa lógica de networking. domínio. A esse propósito, lembramos que em
2014 celebrou-se o quinquagésimo aniversário
Confrontados com o conjunto de obras realiza- da publicação do livro de Mashal Mcluhan, Un-
das no âmbito de um festival como este, expli- derstanding Media, obra que se assumiu como
citamente centrado na “questão da utilização de marco inaugural do debate em torno da própria
ecrãs e o seu impacto no pensamento contem- ideia de comunicação numa era de mediatiza-
porâneo”, é importante começar por ancorar os ção, na qual o ecrã tem vindo a assumir um papel
seus desígnios numa tradição mais abrangente, cada vez mais preponderante. Os ecrãs de hoje
313
Antes de mais, a galeria virtual deste Post-Scre-
en Festival tem o efeito de tornar o ecrã visível.
Não será esta afirmação uma mera banalidade
se pensarmos que um dos grandes objetivos da
indústria da tecnológia áudio-visual, tem sido
justamente o de criar aparelhos que pelo seu
desenho e atributos técnicos permitam uma ex-
periência em que o ecrã se torne cada vez mais
um elemento invisível, imperceptivel ao olho nu.
A visibilidade ou invisibilidade do ecrã, torna-se
patente em muitas das peças da exposição: En-
Fotograma de A Particular Nowhere, de Sterling Crsipin contramos trabalhos como Researching the Ei-
chman trial (session nº 01), de Kineret Lourie, ou
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
<<
de características até então consideradas ineren- Exposição «7 Mil Milhões
tes ao objeto artístico – a unicidade, originalida-
de, proveniência - que garantiam alguns dos va- de Outros»
lores que lhe eram essenciais - como seja a ideia
de “autenticidade” - e que constituíam aquilo Parceria Fundação EDP,
a que Benjamin apelidou de “aura” da obra de Projeto Memória e Good Planet
arte. Benjamin conclui que as novas transforma-
Foundation
ções convergiam precisamente para a degrada-
ção dessa aura graças, entre outras coisas, à sua
capacidade de depreciar a “presença” do origi- Museu da Eletricidade, Lisboa
nal; pôr em causa a autoridade do objeto físico 8 Novembro 2014 – 8 Fevereiro 2015
da obra; substituir características de permanên-
cia e unicidade, pela transitoriedade e reprodu- por Carina Fonseca
tibilidade. Benjamin vaticina ainda algumas das
consequências – por vezes paradoxais – desta
verdadeira revolução para a arte, entre as quais
a irreconciliável aproximação do espetador face “Quem são, como vivem, o que sonham, o que
aos novos modos que a arte tem de se lhe apre- têm a dizer os 7 mil milhões de habitantes do
sentar e a alienação em que paralelamente o in- planeta? O que os une e os separa? Uma expo-
duz face a realidade que o rodeia. sição que é o retrato vivo da humanidade dos
nossos dias.”
Nessa perspetiva, é inquestionável que as obras
de arte digital como as que nos traz o post-screen Não é uma exposição de arte, contudo...
festival, ainda estão a participar nesse movimen-
to de progressiva dessacralização da obra de arte Não é propriamente uma exposição de obras
de que os falava Benjamin, agora elevada muito de arte, mas artística na forma de comunicar
para além da questão da mera reprodutibilida- com o visitante. Há uma sensibilização humana
de. Confrontados com obras como A Particular através, não de objetos, mas de histórias conta-
Nowhere de Sterling Crispin, que reclamam para das na primeira pessoa.
si a consumação dessa desintegração do objeto
de arte, a pergunta que se nos coloca hoje é a de Vagueando pelo espaço, como quem salta de
saber até que ponto isso não implica necessaria- sala para sala, de tema para tema, saltamos de
mente também a anulação do espetador? espaços como quem salta de realidades, per-
correndo um labirinto de memórias.
315
branco, sala branca), uma opção expositiva mui- tecnológica corrente. São estas tecnologias que
to usada por curadores de arte contemporânea levam à globalização e um conjunto de fenóme-
nos dias de hoje. Contudo, o negro recria salas nos ligados a isso. É uma exposição que está
de cinema, tornando a imagem mais definida e a ser muito bem recebida e tornou-se popular
uma maior noção de proximidade. A atenção entre as novas gerações, pois um mundo sem
do observador vai se focar numa imagem em jogos de vídeo, efeitos especiais de computa-
movimento que sucessivamente vai alterando. dor, internet, telemoveis etc., é inconcebível.
Deixa no ar uma sensação de solidão confortá-
vel onde não existe tempo nem espaço – ape- Este tipo de projetos ganha relevância no mun-
nas o eu e o outro. do da arte, contudo, a sua autenticidade e uni-
cidade continua a ser questionada, recusando
É um projeto desafiante, tanto na sua criação por vezes a sua essência enquanto obra de arte.
como na forma de o expor. Este tipo de traba- Alexandre Melo, em Sistema da arte contem-
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
lho é difícil de recolher, preservar e exibir, e pro- porânea, chega a afirrmar que o que é ou não
jetos em “tempo real” tornam-se impraticáveis considerado arte varía de uma sociedade e de
nos museus. Sou da mesma opinião de vários uma época para outra, no tempo e no espaço,
outros estudiosos no seio da arte multimédia. havendo mesmo épocas e sociedades em que
Tal como Christiane Paul afirma no seu livro: New tal noção não existe. E acrescenta, se um objeto
media in the white cube and beyond: curatorial for consensualmente comentado, transaciona-
models for digital art, as instituições não estão do e exposto como se fosse uma obra de arte,
preparadas para mostrar este tipo de trabalhos. na sociedade e na situação onde se insere, ele
A grande maioria das instituições, nacionais e é uma obra de arte.
internacionais, simplesmente não compreende
esta forma artística, não incluem nas suas cole- Põe em causa o conceito, por exemplo de Wal-
ções este tipo de arte e não as expõem, criando ter Benjamim, de autenticidade enquanto aqui
lacunas acentuadas na história da arte. O Mu- e agora da obra de arte – a sua existência única
seu da Eletricidade consegue assim trazer para no lugar em que se encontra.
dentro das suas “quatro paredes”, algo que para
a maioria dos museus seria impraticável. Algo curioso neste tipo de trabalhos é a possi-
bilidade de poder ser visto em vários lugares ao
Não é uma exposição de arte, contudo... mesmo tempo, porém, exibidos de forma dife-
rente, dependendo de uma variedade de fatores
É uma exposição que questiona museus e gale- como a opção do produtor, o espaço de exibição,
rias, na sua noção de história, património e tem- ou mesmo as pessoas envolvidas na instalação.
po. Estes são cada vez mais espaços de memó-
ria. Lidam com coisas, objetos, materialidade e Todo o projeto, com descrição e lmagens, está
aparentemente permanecem resistentes às al- acessível na internet. Embora haja uma demo-
terações de discurso que as novas tecnologias cratização aparente da arte, uma vez que há a
criaram. tentativa de chegar ao maior número possível
de pessoas, esta premissa não é realista. Embo-
A importância desta exposição pode não ser ra seja uma exposição itinerante e desenvolvida
óbvia, contudo apresenta uma profunda re- na internet, não chega a todos, embora tente! É
flexão sobre a condição humana e a condição no fundo uma produção com grande qualidade
<<
que faz refletir, chorar e rir, que mexe com os sen- Shadow of a Doubt
tidos e nos deixa indefesos perante a realidade.
Exposição «Shadow of a Doubt»
Não é uma exposição de arte, contudo...
Fotografia no Chiado8, Lisboa
Aquilo que escolhemos mostrar hoje e preservar 13 Novembro 2014 – 31 de Dezembro 2014
para as futuras gerações, determinará o futuro. (prolongada até 30 Janeiro 2015)
Esta exposição torna-se assim, como o próprio
texto de apresentação refere, “o retrato vivo da por Joana Ottone
humanidade dos nossos dias”.
317
das nuvens no céu estabelece uma abertura ao
mundo exterior.
<<
fundo negro) que ocupa toda uma parede. As texto do catálogo, quer do conjunto de obras,
duas fotografias, de Paul Graham, da série Tele- conclui-se que a segunda hipótese se põe como
vision Portrait, com as suas tonalidades escuras a mais provável.
e um personagem que se destaca, conjugam-se
facilmente com as obras anteriores. A iluminação “As distâncias do olhar aproximam-se. Espaços
nestes trabalhos é um factor determinante para iguais? Simetria? Não há regras. Está tudo liga-
a exaltação da personagem. No entanto, as res- do para nos mostrar o milagre. Cada momento
tantes imagens contrastam com esta “estética” é outro e mais outro, mas todos ligados entre si
pelas suas cores maisclaras e vivas. A fotografia são, em conjunto, o espaço da materialização da
de Tracey Emin, Outside Myself estabelece, de imagem.” (José M. Rodrigues)
certa forma, uma ligação entre os retratos e as
restantes fotografias. A personagem retratada a
ler, tendo como fundo uma zona desértica, cria
essa ligação. As duas séries restantes não con-
têm figura humana, apesar de apresentarem
vestígios da sua presença, aproximando-se das
obras observadas na outra sala. A série de João
Paulo Serafim, A invenção da memória, represen-
ta imagens de um arquivo onde os documentos
se organizam e alinham. Numa outra forma de
preservação da memória, Nigel Shafran retra-
ta parte de uma cozinha, fotografada em vários
dias, ao longo do ano de 2010.
319
André Príncipe – Antena 2 duas experiências de quase morte que o fotó-
grafo sentiu nos últimos três anos. A primeira
Exposição «Antena 2» remonta a 2012, o artista vivia numa caravana
e estava a viajar pelo País; a segunda, em 2013,
Galeria Pedro Alfacinha numa cozinha, no centro da cidade de Lisboa.
21 Novembro 2014 – 7 Fevereiro 2015 Em ambas as vezes despertou e voltou para a
realidade enquanto um rádio imperturbável, a
por David Gonçalves partir da sua trincheira que não fora afectada
pelo tempo, o posto de rádio da Antena 2 esta-
va sintonizado e audível. É esta experimentação
de susto, de uma quase morte que é revelada,
É na recente inaugurada galeria de fotografia confronta o espectador através de imagens que
Pedro Alfacinha que ocorre o regresso do fo- vêm de todas as direcções, como se testemu-
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
tógrafo, cineasta e editor André Príncipe (Por- nhassem a abertura de uma porta do tempo; as-
to, 1976) às exposições de fotografia, desde a sim o artista desafia o public para se enquadrar
última, em 2006. Artista de mil ofícios estreou no papel de explorador do ambiente que ele
recentemente, no Cinema Ideal, Campo de Fla- próprio criara, na procura de entender o terri-
mingos sem Flamingos e comemora cinco anos tório, das imagens e, sobretudo, das histórias.
desde a criação da sua editora de livros de fo- Este lado de explorador implicará uma estra-
tografia na companhia do fotógrafo José Pedro nheza perante um terreno que é visto como a
Cortês, a Pierre von Kleist. primeira vez.
Se na obra de André Príncipe o público está ha- Este posto de rádio é considerado pelo artis-
bituado a um padrão narrativo e documental da ta como o “último reduto cultural” do Serviço
viagem e à imagem em movimento então, esta Público onde a Cultura predomina em vez do
exposição coloca de lado esse paradigma para actualizar constante e agressivo de temas como
ensaiar um conjunto de imagens autobiográfi- o desemprego, a instabilidade social, a crise, o
cas, registadas de 2012 a 2014, a partir de duas programa de ajuda financeira, ou seja, longe do
experiências pessoais. A distância que o públi- país real em que as notícias são dadas num tem-
co tem com as imagens bem como os diferen- po curto e numa forma deturpada. Numa luta
tes níveis de intimidade vão intensificando-se à contra estes poderes maliciosos e dramáticos
medida que as observamos numa espécie de nascem as imagens como se fossem gritos de
atlas, defendido fortemente pelo artista, onde esperança.
qualquer referência territorial torna-se inexis-
tente mas, é possível verificar diferentes expe- Neste universo alternativo surge uma dissidên-
riências e expressões. cia entre um novo mundo e o mundo conhecido
como o real, um esquecimento, propositada-
Antena 2 é um palco de combate indefinido que mente assumido, de restrições e leis que impe-
revela a harmonia desconcertante de imagens, çam o progresso para o exterior dos confina-
que circulam a um ritmo constante, esboçando mentos e barreiras que nos tentam regular, no
se em distintas direcções. É perante este cená- dúbio processo de construção de um idealism
rio que a estação de rádio pública entra como o visto como um modelo de perfeccionismo.
complemento musical, ideal para um relato de
<<
Assumindo uma posição clara de protesto pe-
rante a ideia de independência “distorcida”, da
qual somos bombardeados no quotidiano pe-
las instituições e poder, o fotógrafo orquestra
um registo visual numa prática diária que relata
as relações que estabelece com as pessoas, os
animais e as coisas. O automatismo do gesto de
fotografar nasce destas múltiplas ligações que
são estabelecidas tendo em conta, também, o
modo como os corpos e as figuras se moldam
perante um espaço em constante mutação. É
nesta mutação que o artista constrói o discurso
narrativo de tudo aquilo que se apresenta como
livre sem esquecer a mortalidade e o caricato André Príncipe, [sem título] da série Antena 2, 2014,
140x180cm
daquilo que observa.
Tudo é apresentado como prova documental. uma delas tem. E o que será delas depois de
Existe espaço para os amigos, o urbano, os ani- tomarem a bebida e abandonarem aquele es-
mais e momentos de confraternização, sendo paço? Nada disso importa, o relevante é o que
que estes se suspendem e congelam no tempo. se passa naquele instante, naquela recordação
Desde a rebentação das ondas assemelhando- de adolescência, em que todos estiveram jun-
-se a uma porta entre o mundo do artista e o tos no mesmo lugar.
mundo real sendo que esta estivesse para lá do
horizonte, a rapariga totalmente despida que A invocação da figura da mulher é uma cons-
se seca perante uma bacia antiga num canto tante, com um papel de destaque, revelando a
do quarto numa prática improvável nos dias de importância que o artista lhes atribui. Outra das
hoje, o homem sozinho sentado no banco da suas imagens, com uma jovem num ambiente
paragem do autocarro, até às raparigas no sofá de festa num bar e que aparenta estar no fim
como quem lembra um olhar retrospectivo ou da idade da adolescência; de cigarro e copo
uma revisitação que nunca deve ter fim. Esta na mão sugere que chegou à pouco tempo. De
última imagem das jovens reunidas tem uma cabelos longos, olhos azuis e um ligeiro afasta-
escala que capta de imediato a atenção, bem mento dos lábios, esta observa na direção do
como todo o momento que ali se passa. Um espectador com um olhar penetrante, como se
convívio normal entre um olhar atento, uma ex- dialogasse em silêncio um interesse misterioso
pressão de sorriso e a distração de quem perde perante quem a observa e exigisse um momen-
o olhar no chão, um copo em cima de uma per- to de reflexão perante a confusão em seu redor,
na, o cigarro e a garrafa que existem nos gestos dela e de quem a observa nos olhos.
de uma jovem, não há espaço para a solidão e
as três jovens habitam o espaço à sua manei- Por detrás de cada imagem existirá, sempre,
ra como se tratasse de qualquer espectador na uma diferente melodia da estação de rádio pú-
companhia de amigos mesmo sem que haja o blica: melodias trágicas, cómicas, alegres, sau-
devido conhecimento do motivo que as leva dosas, deprimidas, nostálgicas. Cada música é
a estar na sala, bem como a história que cada uma emoção e uma história, cabendo ao espec-
321
tador construir uma sequência lógica de forma Francisco Tropa
a criar um ritmo próprio, para assim, compreen-
der e rever-se no ambiente originado por estas Exposição «Tesouros Submersos
imagens que nada trazem de novo a não ser do Antigo Egipto»
um reconhecimento daquilo que se deu e quis
eternizar na memória. Deixá-las cair na indife- Museu da Cidade – Pavilhão Branco,
rença ou no silêncio é como se o rádio tivesse, Campo Grande, 245, Lisboa
por fim, deixado de tocar e a morte finalmente 7 Dezembro – 22 Fevereiro 2015
se desse num último e derradeiro ato de vitória.
por Cláudio Ramos
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
<<
O trabalho de Francisco Tropa tem em si a impor-
tância do tempo no fazer, o tempo que permite
a construção de um corpo de trabalho complexo
e vasto. Em 2008 TSAE teve a sua primeira reve-
lação ao público, levantando o véu daquilo que
Francisco Tropa denominou de uma arqueologia
ficcionada.
O lugar evocado parece situar-se nos nossos an- próprio artista, já o macho e a fémea surgem em
típodas, transporta-nos para aquilo a que pode- peças de madeira desenhadas e talhadas para
mos chamar de um antigo templo, uma caverna um determinado sistema de encaixe, sublinhan-
enigmática onde das sombras brota a luz, figu- do assim, o que tem sido uma constante ao longo
rando uma qualquer intenção mágica. O artista do trabalho do artista: o masculino e o feminino.
explora diferentes núcleos como a Parte Submer- A morte é outra constante no seu discurso, uma
sa, a Câmara Violada sugerindo um espaço par- das preocupações estruturais que define o Ho-
cialmente pilhado, a Terra Platónica revelando-se mem e que tem uma relação intima com a arte.
como um lugar intocável, suspenso no tempo, e Impõe-se entre os símbolos e a matéria, com re-
o Poço que sugere uma outra passagem para ferências ao Purgatório ou ao Inferno, presente
possíveis campos desconhecidos. Deixando em nos intervalos entre a convivência de épocas e
aberto, a possibilidade de um novo momento, na fragilidade real ou induzida nas suas peças.
que nos revele o que ainda está por descobrir.
A obra de Francisco Tropa assemelha-se a um Ao longo da exposição, mapas vão pontuando
desenho em constante movimento, um desenho as salas que visitamos, mapas que nomeiam e
que busca por um hipotético final, mas sem que referenciam esse outro lugar evocado e que in-
nunca chegue a ele, até porque provavelmente clusive nos interpelam com possíveis pontos de
não há onde chegar. vista, afinal as questões da visualidade nunca são
livres do nosso corpo, do espaço que ocupamos,
Dentro de cada um dos núcleos, objetos. Muitos da nossa posição num determinado campo cog-
destes objetos, organizam-se em dicotomias, nitivo, a dada altura na Câmara Violada Francisco
como os desenhos de areia. São desenhos que Tropa aponta ao espetador pontos de contem-
emergem do negativo sob a forma de estruturas plação, conduzindo assim o campo visual de
geométricas, que surgem por entre o vazio dos quem contempla a sua obra. Ainda na Câmara
corpos de madeira desenhando sobre a mesa a Violada encontramos uma mesa onde se apre-
primeira das dicotomias: o positivo e o negativo. sentam quatro frágeis caixas de latão. Estas su-
Também o rei e a rainha se impõe, mas desta, gerem processos naturais de desgaste, colocan-
sob a forma de vidro soprado e nomeados pelo do em confronto a questão da permanência em
323
contraponto à sua aparência que induz a uma gesto de polvilhar com areia da praia as formas
inexorável degradação. Estaremos aqui perante geométricas de madeira, revelando assim
a questão do tempo e inevitavelmente da morte. assombrosos desenhos duma frágil beleza.
A mesa é uma figura recorrente no trabalho do
artista, é um território de ação, que assegura a Na obra de Francisco Tropa não há um dentro e
elevação de matérias aparentemente periclitan- um fora, há uma cosmologia. É um lugar de de-
tes. De passagem pelo Poço visitamos o Inferno senho, de pensamento, onde se transfiguram as
e o Purgatório, terra de sombra, onde podemos coisas em seres e universo. Tesouros Submersos
contemplar duas imagens criadas pelo artista do Antigo Egipto é esse estado de transgressão.
através da luz que incide sobre o vidro soprado,
projetando na parede uma micropaisagem.
<<
Carla Cabanas vir sobre a imagem sobretudo fotográfica, aquilo
que o tempo transforma em ausência é tornado
Exposição «A Palavra Arquivada» visível através dos pedaços que são directamen-
te apagados do suporte, seja ele qual seja. A ima-
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa gem ganha a vida que só a própria vida tem e
19 Dezembro 2014 – 14 Março 2015 torna-se representação do que só a vida é.
325
de vir a não ser: o que é transformar-se-á sem- Imagerie – Casa de
pre no que foi, o que foi passará sempre a não
ser mais. Nos álbuns anteriores, a intervenção Imagens
de Carla Cabanas era manual. Não deixando de
ser precisa, não era exacta. O traço cru e deste- Exposição «Os Diários da TOSCA»
mido, de linhas não direitas, anunciava o que foi
esquecido sobre o que ficou, da mesma forma Bartô do Chapitô
que o tempo apaga sem pedir permissão. Mas 14 Janeiro 2015 – 14 Fevereiro 2015
nesta sexta vez de O Que Ficou Do Que Foi, as
palavras que contam as vidas quase esquecidas por Catarina Pinto
de quem não conhecemos, vão caindo, uma por
uma, desaparecendo da superfície que outrora
julgou ser para sempre e que foi assim transfor-
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
mada numa história sem história. No passado dia 14 de Janeiro de 2015, no Bar-
tô do Chapitô, pelas 22:00 horas, teve lugar a
Os postais de agora, tal como as fotografias de inauguração da exposição estenopeica do ateliê
antes, simbolizam a tentativa de tornar imortal o Imagerie – Casa de Imagens, intitulada Os Diá-
que sabemos ser efémero: a nossa realidade. A rios da TOSCA, estará patente de terça-feira a
partir deles e ao longo dos últimos anos, a obra domingo, das 22:00 horas às 2:00 horas, até dia
em construção de Carla Cabanas tem vindo a ex- 14 de Fevereiro de 2015.
plorar a criação de outras dimensões através da
destruição da já existente. Em constante desen- O Chapitô é uma instituição onde a Formação, a
volvimento, esta série não falhou nunca na reve- Criação, a Animação e a Intervenção se tornam
lação de que a transformação a que o tempo nos uma só, sempre numa perspectiva vanguardista
condena é inevitável. do humanismo, há trinta anos.
<<
A exposição fotográfica conta com dez ima- realidade resulta pois o ambiente torna-se inti-
gens narrativas analógicas a preto e branco, mista, descontraído e acolhedor.
feitas especificamente para a sua realização,
que curiosamente foram das primeiras ima- Contudo, alguns aspectos poderiam ser me-
gens produzidas com a câmara estenopeica. lhorados, como por exemplo a distribuição
Estas imagens produzidas por Magda Fernandes do Bartô, as mesas e as cadeiras poderiam ser
e José Domingos resultam da colagem de três a retiradas, dando aos espectadores a liberda-
cinco imagens 12 x 12, ou seja, os autores foto- de de se aproximarem mais das imagens, ha-
grafam inúmeras vezes a mesma coisa embora vendo também mais espaço para circular, o
cada imagem seja distinta, revelando diversos que facilitaria a observação das fotografias.
enquadramentos, profundidades de campo e Em breve irá ser publicado o nº1 da TOSCAzine,
planos fotográficos de quadrado para quadra- onde muito provavelmente será possível visuali-
do; após são revelados os negativos e cada zar as imagens apresentadas nesta exposição Os
imagem é impressa sendo cortados os elemen- Diários da TOSCA.
tos necessários de forma a conceber uma única
imagem, criando uma espécie de puzzle que dá A TOSCAzine é uma pequena auto-publicação
por um lado uma sensação de quietude e por com projectos fotográficos dos autores e de con-
outro uma sensação de desordem; posterior- vidados que tenham em sua posse uma máquina
mente as imagens finalizadas são colocadas em estenopeica Tosca e que produzam fotografia pi-
suporte de cartão prensado. Este suporte pode- nhole ou que estejam dispostos a produzi-la. Curio-
ria ser melhorado, talvez em K-Line de três milí- samente a máquina estenopeica Tosca foi criada
metros, o que leva os próprios autores a afirma- pelo casal e pode até ser-lhes encomendada por
rem que realmente a montagem da exposição apenas vinte euros com direito a um pequeno li-
Os Diários da Tosca foi feita com alguma rapidez. vro de instruções também criado pelos autores.
Estas imagens, relativamente ao seu proces- Conclusivamente, Os Diários da TOSCA é uma ex-
so fotográfico, remontam à fotografia pro- posição agradável onde se denota a paixão pela
duzida pelo fotógrafo e pintor inglês David fotografia, partilhada por Magda Fernandes e
Hockney e à fotografia criada pelo fotógrafo José Domingos, recomendada a todos os aman-
americano Duane Michaels, não só pelos te- tes não só de fotografia mas também de arte.
mas apresentados mas também pelo preto
e branco constituído por várias tonalidades.
Nas imagens apresentadas, o casal dá a co-
nhecer a sua rotina quotidiana, pormeno-
res do seu lar em Campo de Ourique e até
o seu animal de estimação; de certa forma
pode até declarar-se que o conjunto de ima-
gens exibidas forma um álbum de família.
Denota-se que a apresentação pensada para
esta exposição não foi realmente cuidada, em-
bora talvez tenha sido esse o intuito a transmi-
tir ao espectador, de forma a não se tornar num
espaço demasiado formal e intimidador, sendo
que as imagens são bastante pessoais; o que na
327
Finok relações entre artistas e agentes culturais, com o
objectivo da proliferação da arte urbana, tanto
Exposição «Enterro do Galo» por locais de exposição e pela cidade de Lisboa.
A galeria física, porque a galeria estende-se pela
Galeria Underdogs cidade com os múltiplos trabalhos realizados por
30 Janeiro – 28 Fevereiro 2015 diversos artistas convidados, encontra-se num ar-
mazém na zona do Braço de Prata, Lisboa. É gale-
por Margarida Barros ria informal e, até, alternativa, que alberga expo-
sições individuais e colectivas, sempre dentro da
linguagem da street art. Conseguinte, a inaugu-
ração da exposição foi de um ambiente informal
“Enterro do Galo” é uma exposição individual do e alternativo, com várias presenças de indivíduos
artista contemporâneo Finok (Raphael Sogarra), do mundo da street art, entre outros ligados ao
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
<<
trabalho dos artistas Os Gémeos ou de Crânio, Outra peça de destaque na exposição é uma es-
ambos de São Paulo, onde no seu trabalho, tam- cultura de madeira pendurada na parede, intitu-
bém, predomina a figuração num estilo ilustrati- lada “Erro”. A obra não se resume apenas à peça
vo, quase que caricatural. Mas não é só na figu- física, é acompanhada de velas brancas acesas
ração que existem semelhantes que marcam a no chão, que lhe atribuí uma conotação de culto.
imagética da arte urbana paulista, a cor é também A peça é um tridente, que nas suas extremidades
uma característica muito vincada nestes três artis- contem outros elementos, compostos por: três
tas. A cor é para além de uma característica uma máscaras em forma de gota, outro tridente em
tradição dentro da comunidade writer paulista, posição inversa, uma âncora e um elemento tribal.
em que cada individuo escolhe uma cor para o Esta peça invoca a rituais de culto pagão, caracte-
seu trabalho de rua. No trabalho de Os Gémios rística comum na sua obra, com provável nature-
a cor predominante é o amarelo, em Crânio é o za sincrética. O facto de a obra se intitular “Erro”
azul e em Finok é o verde. A cor verde tem acom- dá origem a uma múltipla interpretação, que nos
panhado sempre o trabalho deste artista, tanto leva a reflectir sobre o acto de culto/adoração e
na rua como no estúdio, mas é no estúdio que os “erros” cometidos em nome do mesmo.
expande sua paleta para as mais variadas cores,
mas sempre sem esquecer a influência do verde Plasticamente é um artista bastante diversificado
nas outras cores. Daí a outra cor mais utlizada em trabalhando a madeira, têxteis, pintura acrílica e
quase toda a obra de Finok ser o vermelho, cor em aerossol. Mesmo se não tivéssemos conhe-
complementar do verde. Assim, quase toda a sua cimento da sua ligação ao graffiti/street art esta
obra é composta, predominantemente, por estas é bastante notório em, quase, toda a sua obra
duas cores nas suas variadas nuance. devido à utilização de aerossol ou spray, comum
na prática da arte urbana. Toda a sua técnica
A peça “O Egoísta” dá imagem ao panfleto infor- de pintura remete para a cultura graffiti, com o
mativo da exposição, panfleto que pode ser qua- uso do stencil, cores solidas, sombras marcadas
se como um print que podemos emoldurar, de- e quase que padronizadas, onde é possível ver
vido à sua alta qualidade de imagem. A imagem a sobreposição solida da tinta como que se de
não esta reproduzida na sua totalidade sendo uma peça de arte urbana se trata-se.
um pormenor central da peça. A figura central é
um homem a pescar um peixe, mas é um homem A exposição é pequena e simples, contudo de-
hibrido de peixe, sendo a sua parte inferior do monstra eficazmente a obra deste jovem artista
corpo uma cauda de peixe, igual à do peixe que em início de carreira. A plataforma Underdogs
pesca. No cimo da peça observamos, como que, consegue, assim, mostrar ao público as poten-
uma moldura de madeira com a palavra “contra” cialidades que estes novos artistas e a cultura ur-
gravada. A junção da palavra gravada, da figura- bana podem trazer à arte contemporânea, uma
ção e do nome da obra, cria como que um para- vertente artística inicialmente marginalizada e
doxo. Isto porque, um homem-peixe que pesca agora institucionalmente musealizada.
um peixe é como se estivesse a pescar a ele mes-
mo, concebendo um dilema ético que é reforça-
do com as duas palavras: “egoísta” e “contra”. As
relações entre os três elementos podem levar às
mais variadas interpretações, fazendo com que a
sua própria interpretação seja um paradoxo.
329
Modernidades: Fotografia inicio da Segunda Guerra Mundial, até a uma su-
cessão de golpes de Estado, acabando no golpe
Brasileira (1940 -1964) militar de 1964. O espaço envolvente faz lembrar
um quase labirinto, que se desfaz após o olhar se
Fundação Calouste Gulbenkian direcionar para o tecto baixo, de betão escuro e
Galeria de Exposições Temporárias acinzentado, fazendo maquinalmente com que a
Edifício Sede - Piso -1, Lisboa área se torne gélida e pesada. Todo o espaço é
branco, desde as paredes que rodeiam as obras,
21 Fevereiro– 19 Abril 2015
às densas divisórias colocadas no meio da sala
por Lara Neto paralelepipédica. É um espaço inteiramente
desguarnecido de cores quentes, exceptuando
a cor castanha amena das molduras, todas elas
quadradas, tendo como escopo não só indicar
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
Modernidades: Fotografia Brasileira (1940- a obra, mas direcionando o olhar para a mes-
1964), é uma exposição temporária, resultado ma, sem que a moldura distraia uma observa-
da parceria entre o Instituto Moreira Salles, no ção mais aproximada. Este aspecto é reforçado
Rio de Janeiro, o Staatliche Museen zu Berlin, pelos vidros Anti-Reflexo e ainda uma segunda
e o Programa Gulbenkian Próximo Futuro, de moldura interior de cor branca, cortada de forma
Arte Contemporânea. José Medeiros, Marcel precisa, de acordo com o formato das imagens,
Gautherot, Thomaz Farkas e Hans Gunter Flieg fazendo com que todas estejam devidamente
são os quatro fotógrafos que invadem o espaço protegidas. Toda a sala está, portanto, nitidamen-
com as suas imagens de um claro-escuro inten- te preparada para uma leitura mais facilitada das
so e linhas absolutamente definidas e cortantes. obras. As cores neutras, em conjunto com os pe-
Três são estrangeiros, que nascem na Europa e quenos holofotes colocados no tecto – um para
partem rumo ao Brasil com tenra idade. Marcel, cada fotografia - manipulam a visão, obrigando a
o mais longevo dos seus camaradas, nasce em que o olhar apenas se dirija às imagens impres-
1910 em Paris e falece em 1996 no Rio de Ja- sas em gelatina de prata, graças à representação
neiro. Thomaz, o húngaro de Budapeste, nasce das sombras e das formas marcadamente negras
em 1924 e acaba por desaparecer já no século que se contrastam com o ambiente proporciona-
XIX, no ano de 2011, em São Paulo. Hans é o do em redor. Para além do propósito da ausên-
único dos três que ainda se encontra em plena cia de cor, o texto de apresentação e a ficha téc-
vivência, tendo nascido em 1923, na cidade de nica que se encontra no início da exposição, são
Chemnitz, na Alemanha. Por último, o fotografo elementos valorosos que praticamente passam
brasileiro e aquele que parte mais cedo, José despercebidos a quem ali entra, não só por não
Medeiros, nasce em 1921 no município de Te- estar de forma clara ao alcance do olhar, mas
resina, e morre em 1990. São artistas cujas ima- igualmente por se encontrar na direção de uma
gens apresentam-se puramente ligadas aos ge- luz mais fraca. O tipo e a robustez da letra esco-
nes da fotografia analógica, que se encontram lhida são ainda outros pontos fracos, sendo que
no entanto totalmente desprovidas de grão ou os caracteres têm um espaçamento demasiado
deficiências técnicas. As imagens expostas mos- acentuado, o que dificulta a leitura, tornando-a
tram uma visão crua e ríspida de um Brasil em mais lenta e fazendo com que haja um cansaço
fase de industrialização e mudança, passando visual que se devia evitar, devido às fotografias
pela Fundação do Estado Novo, seguido pelo que se vêm de seguida.
<<
Ao todo são cento e dez imagens, sem contar de Marcel Gautherot, mais uma vez mira-se um
com os quatro retratos dos autores, cada um co- retrato em que o autor está com a sua máquina
locado de forma cuidada no começo das suas de ofício, como se estivesse a fotografar o ob-
representações naturalistas ou citadinas. As fo- servador do lado de fora, tendo as suas imagens
tografias estão, portanto, divididas por autor e como fundo. Assim como em José Medeiros, as
igualmente separadas por temas. Os autores fotografias encontram-se divididas por quatro
encontram-se ainda distribuídos ao longo da secções, ocupando duas metades de parede e
exposição, estranhamente, pelo seu óbito e não uma em absoluto. Começam por seis, e de fren-
nascimento, juntamente com os diferentes estilos te residem doze, em seguida observam-se mais
fotográficos: José Medeiros, o fotojornalista da seis e na fachada da frente estão oito, fazendo
classe superior e da classe operária; Marcel Gau- um todo de cinquenta, mais uma vez completa-
therot, claramente interessado na beleza da flo- mente desfasadas das secções anteriores. Por
resta amazónica, nos populares e nas suas festas fim, a obra de Hans Gunter Flieg, é repartida
e no quotidiano dos mais desfavorecidos; Tho- em duas ramificações, sendo que de um lado
maz Farkas, um apaixonado pelas formas, não só encontram-se nove fotografias e de frente estão
de prédios, como também de pessoas; e Hans doze que se subdividem em nove e três, fazendo
Gunter Flieg, o fotografo da precisão técnica, um todo de vinte e uma fotografias. Por conse-
com imagens industriais, teatrais e misteriosas. guinte, entende-se a intenção dos curadores, Sa-
muel Tintan Jr, Ludger Derenthal e António Pinto
O circuito tem então início em José Medeiros, Ribeiro, de posicionar as fotografias consoante
figurado pelo seu retrato, sentado a beber um a quantidade relativa a cada autor, mas não se
chá. Estão representadas trinta e duas fotogra- compreende a configuração separada que as
fias deste autor, separadas por quatro paredes, imagens mostram, o porquê de ora estarem seis,
sendo que primeiro são visíveis dez, do outro ora estarem doze, acabando por não haver um
lado da taipa estão seis, de frente encontram-se fio condutor entre todas, considerando que há
mais dez, e na retaguarda apresentam-se ainda que ter em atenção o facto de ser uma exposição
seis, criando portanto um segmento duplo de colectiva e não individual.
imagens de dez por seis. Thomaz Farkas é o pró-
ximo nome da lista, retratado com a sua máqui- Segundo textos, as fotografias apresentadas na
na fotográfica na mão. É visível um desfasamento exibição, na sua maioria, são de uma grande
de imagens comparativamente ao autor anterior, variedade estilística e de um registo documen-
sendo que agora são apenas representadas se- tal valioso sobre um país vasto e contraditório.
tenta e duas, mais uma vez fragmentadas em dez Destaca-se a imagem “Gavéa, Rio de Janeiro” de
por seis, mas com a particularidade de na pa- 1952, do autor José Medeiros, uma fotografia
rede de fronte das seis imagens, estarem nove. que representa um dos bairros nobres da classe
Não se entende o porquê deste corte face à es- alta da capital, que mostra a praia de Copaca-
trutura inicial, e os mais atentos questionam-se bana com o morro dos dois irmãos como fundo.
sobre o motivo, sendo que não existe qualquer Entre eles, estão dois carros, estacionados jun-
folha de sala que possa eventualmente ter a res- to à berma, com um homem que surge proxi-
posta que se requer, e o catálogo da exposição mamente unido ao parapeito, tornando-a uma
não tem qualquer informação relativamente à imagem desprovida de qualquer elemento mais
quantidade desajustada ou ao posicionamento simples e modesto. Thomaz Farkas por sua vez,
das fotografias expostas. Observa-se a fotografia apresenta uma imagem em particular que nada
331
tem a ver com “Gavéa, Rio de Janeiro”, excetu- uma relação mais intima do público com a ima-
ando o registo monocromático. “São Paulo” de gem. Modernidades: Fotografia Brasileira (1940-
1950-1960 faz parte de um conjunto de imagens 1964), pretende assim ser uma exposição preen-
de sombras e perspectivas num tom mais artísti- chida de fotografias que questionam o ciclo da
co, que fazem lembrar as assombrosas fotogra- modernização das principais cidades e zonas do
fias do mestre Henri Cartier-Bresson. Numa vista país da época de Getúlio Vargas, com finalidade
de cima, um homem paira ao lado da sua bici- de alcançar um público geral com especial inte-
cleta junto à linha de caminhos-de-ferro, dando resse pela vida de um Brasil vibrante, mundano
a ideia que vai de regresso de casa. Em Marcel e cosmopolita.
Gautherot, destaca-se uma imagem da “Pesca
do Xáreu” de 1940, um ritual que se prolonga até
aos dias de hoje em Salvador da Bahia. Avistam-
-se junto à praia vinte e sete jovens no momento
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
<<
Do Desenho e do Ordenar pontuado, aqui e ali, de aguadas de cinzentos,
de subtis pormenores de cor, ou de zonas vin-
do Tempo: Catarina Patrício cadamente definidas (até violentamente corta-
e Emília Nadal na das) por recurso a um exacerbar da técnica do
claro-escuro.
Galeria São Mamede
«Em cada desenho uma série de linhas se
Catarina Patrício cruzam, criando uma efabulação permanente.
Exposição «Two days before the O método que preside a estes efeitos é
difícil de apreender. O interesse de Catarina
day after tomorrow»
Patrício pelo cinema ressalta do cinematismo
SÃO MAMEDE – Galeria de arte contido, prestes a explodir em cada uma das
imagens, quase todas “desviadas” de filmes
26 Maio 15 – 23 Junho 15
cuidadosamente escolhidos, de cineastas
Emília Nadal como Kubrick, Dreyer, Tarkovsky, Muybridge
que surge insistentemente nesta série.» (José
Exposição «O Tempo e a Forma» Bragança de Miranda, “A Linha da Terra” in O
Resto e o Gesto: Desenhos para o Século XXI,
SÃO MAMEDE – Galeria de arte
Fundação Côa Parque, 2014)
26 Maio 15 – 23 Junho 15
Os desenhos de Catarina Patrício partem quase
por Claudia Simenta Rodrigues
sempre de uma imagética cinematográfica que
nos é reconhecível, que nos é familiar. Contudo,
o processo de execução que utiliza remete-nos,
No espaço de traça pombalina da galeria de segundo José Bragança de Miranda, autor do
São Mamede, em Lisboa, dá-se o encontro for- texto da exposição, para a técnica do cut-up
tuito do desenhar de duas artistas. Emília Nadal de Burroughs e Gysin, através da qual ela cria
e Catarina Patrício apresentam-nos as suas pro- uma nova narrativa (a sua) a partir dos estilha-
postas cujas fundações assentam em diferentes ços daquela que lhe deu origem. Ela fragmenta,
conceitos de tempo e da passagem deste. Fa- destrói, quebrando as linhas de associação que
lam-nos de um tempo por vezes lento, por ve- ligam os momentos temporais da narrativa ori-
zes acelerado; de um tempo vivido ou simples- ginal, para a seguir proceder ao acoplamento
mente intuído; de um tempo que se prolonga de uma nova imagética, de uma nova simbolo-
ou que se perde. Falam-nos do ritmo do tempo, gia, desenhando uma linha (outra) de associa-
do ritmo do mundo. ção na reconstrução de uma nova narrativa.
333
Calendário (junho)
Desenho a tinta s/ tela, 23 x 80 cm, 2010
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
<<
Na exposição “O Tempo e a Forma” apresen-
ta-nos desenhos-calendário, metamorfoses do
natural que decorrem num tempo próprio da
Natureza, um tempo do qual nos encontramos
privados pela velocidade que nós mesmos im-
primimos à nossa vida.
335
Guilherme Parente Embora seja de certo modo uma “estrela”, da
Arte Contemporânea Portuguesa, Guilherme é
– Águas de Transcendência uma pessoa muito afável e doce, como as suas
pinturas e sem qualquer vaidade narcisista.
Exposição «Águas Régias»
Guilherme Parente conheceu a Galeria VIA IDEA
Azeitão: Galeria Via Idea através do seu velho amigo e colega da Socieda-
20 Junho – 15 Julho 2015 de de Belas Artes, António Osório de Castro que
fez a ponte entre o artista e a Galeria.
por Raquel Farelo
Após o convite da Galeria VIA IDEA, Guilherme
Parente propôs uma exposição mista, com pintu-
ras e aguarelas, mostrando assim duas técnicas
– CONVOCARTE N.º1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS
<<
perdidas, ou do saudosismo dos Descobrimen-
tos que anima, mas a esperança, ou desejo de
uma recriação da sua expressão.
No próprio trabalho ele usa uma simplicidade se- As suas pinturas comunicam intimamente com
melhante à usada por elas, empregando cores in- observador, na medida em cada um constrói a
tensas inspiradas por uma viagem ou por um so- sua história, partindo das imagens mais ou menos
nho recriando um mundo através da imaginação simplificadas que a composição apresenta mas
quando percecionadas de modo invulgar, po-
A sua sensibilidade, intuição e devaneio voltado dem ser reveladoras conduzindo a um estado de
à infância, convergem num mundo onírico e sim- liberdade, como quando sonhamos acordados …
bólico, criando figuras e objetos do fantástico
337
Inspirado pelo elixir da vida, Guilherme Parente
pinta, “cá é lá”, sendo um alquimista no ateliê,
transformando a matéria com que pinta numa
arte reveladora do fantástico mistério da vida.
<<
Actividades Convocarte
339
tais como crítico de arte, historiador de arte
ou curador.
<<
ria de Arte Portuguesa da Era Contemporânea, e tendo também sido parte
essencial dela. A cumplicidade com Rui Mário Gonçalves, os esforços de
profissionalização da crítica de arte, com a reforma da secção Portuguesa
da AICA em finais dos anos 60, tal como reflexões sobre o que é a activi-
dade, foram alguns dos motes da sua intervenção. José Luís Porfírio, com
carreira no âmbito museográfico, tendo sido director durante vários anos
do Museu de Arte Antiga, apresentou o seu diálogo com a prática crítica,
que tem exercido regularmente desde os anos 60, transportando essa ex-
periência de décadas, desde tempos dinâmicos da actividade até à sua
derrisão actual. Sandra Vieira Jürgens, representando gerações mais re-
centes, apresentou envolvimentos da crítica com a curadoria e o uso de
plataformas digitais para as quais se tem deslocado a crítica de arte, abrin-
do espaços de discussão sobre a actividade nestes novos suportes de que
precursora. Sílvia Chicó iniciou a sua apresentação com reflexões sobre
a vasta actividade de Rui Mário Gonçalves, tendo numa segunda parte,
apresentado o seu percurso pessoal, enquanto crítica, professora e cura-
dora, com atenção ao lugar do feminino nestas áreas.
11 de maio – https://educast.fccn.pt/vod/clips/1680fq51w7/link_box
18 de maio – https://educast.fccn.pt/vod/clips/1ojgjnzd3g/link_box
25 de maio – https://educast.fccn.pt/vod/clips/2khzgjmdri/link_box
341
Procedimentos e Orientações de
Publicação em Convocarte
Conselho Científico Editorial e Pares Académicos
do nº1 de Convocarte
<<
O Espírito da Revista Convocarte
É uma revista com Leitura e Revisão de Pares (peer review), sem chamada de textos
(call for papers) mas com base na discussão e sugestão. A principal função é criar um
espaço de discussão e publicação de questões múltiplas do mundo (plural) das artes.
Processos Editoriais
Não há submissão de textos, e é nesse espírito que deve actuar o Conselho Cientí-
fico Editorial. A relevância deste método de revisão de pares (com espírito de dis-
343
cussão de pares) é criar um espaço de debate e partilha científicos pré-editorial, que
pretende ser uma forma aberta e dialogante entre especialistas das Ciências da Arte
em geral. Por isso, a revisão não é duplamente cega, mas apenas para os autores.
Qualquer membro do Conselho Científico Editorial que apresente texto para o Dos-
sier Temático, terá que colocar o seu trabalho também em processo de revisão. Ne-
nhum elemento do Conselho Científico Editorial faz revisão do seu texto ou de um
autor que tenha proposta. É apenas a Coordenação que tem a função de organizar
e distribuir os textos para revisão.
Cada texto do Dossier Temático será apreciado por dois revisores do Conselho Cien-
tífico Editorial.
<<
As propostas são sempre distribuídas por elementos do Conselho Científico Edito-
rial que não estão na origem da indigitação dos candidatos ou que não correspon-
dam aos próprios.
1. Texto geral de c.30.000 (ou entre 20.000 e 35.000) caracteres sem espaços.
2. Um resumo (abstract) em inglês ou francês de c.850 caracteres sem espaços.
3. Utilização coerente de princípios universitários de indicação das fontes documen-
tais e bibliográficas (o sistema e norma adoptados serão da opção de cada autor, mas
o Conselho Científico Editorial pode pronunciar-se sobre a sua adequação e rigor).
4. Relativamente à redacção dos textos em português a Coordenação deixa a cada
autor a liberdade e responsabilidade de escolha da utilização o último acordo orto-
gráfico ou da anterior ortografia [a actual coordenação geral de Convocarte reserva-
-se, apenas para os seus textos, a não seguir o mais recente acordo].
5. Os textos podem ser apresentados nas seguintes línguas, adequadas à origem e
formação dos respectivos autores: português, espanhol, francês ou inglês.
6. Inclusão, até ao máximo de 8 imagens para reprodução ao longo do texto (as ima-
gens poderão ser a cores; os processo de autorização e a responsabilidade dos di-
reitos de reprodução das imagens são da responsabilidade do autor do texto). As
imagens que acompanham os textos devem ser enviadas em pasta própria denomi-
nada Imagens-nome autor. Todas as imagens terão de ser de alta qualidade para im-
pressão com resolução de 300 dpi e em formato tiff ou jpg. Um documento de texto
deverá ser enviado com a descrição das legendas. Os nomes atribuídos às imagens
devem ser iguais aos nomes usados na referência de localização no texto que acom-
panham e, caso seja necessário, os respectivos créditos. As imagens devem estar por
ordem com o nome da imagem antecedendo a respectiva legenda (ex: imagem 1 -
legenda da imagem 1 + créditos de imagem 1). À Coordenação Geral reserva-se o
direito de excluir as imagens que não cumpram os critérios descritos.
345
7. Direitos de autor: dentro do abrigo das edições da Universidade de Lisboa. Cada
autor será responsabilidade por qualquer acto de plágio ou de indevida autoriza-
ção de reprodução de imagens ou trechos que escapem à supervisão do Conselho
Científico Editorial.
Qualquer outra excepção será apreciada pelo Conselho Científico Editorial e fará par-
te do seu comentário. A decisão final dessas excepções caberá à Coordenação Geral
e ao Coordenador do Dossier Temático.
Os comentários do Conselho Científico Editorial são devolvidos aos autores tal como
chegam à Coordenação Geral e Temática, mantendo-se todas as opções pessoais da
apreciação qualitativa. Embora sejam sugestões, sublinha-se uma sua leitura atenta por
parte dos autores. Pretende-se depois que, perante estas análises críticas, estes ponde-
rem necessárias alterações: revendo, corrigindo, justificando, cortando, acrescentando,
deslocando, etc. A principal intenção da apreciação qualitativa, destaque-se, é a melho-
ria qualitativa dos textos através de um plano intersubjectivo de funcionamento.
<<
— Proposta externa de Texto/ensaio para a revista Convocarte
Sendo aceite pela Coordenação, os trabalhos seguem os processos gerais dos ou-
tros textos, para leituras e sugestões do Conselho Científico Editorial.
Também podem ser propostos textos para as restantes pastas da revista Convocarte,
ficando neste caso à responsabilidade da Coordenação Geral, com possíveis con-
sultas a membros do Conselho Científico Editorial ou a Coordenadores de linhas de
investigação do CIEBA.
347
Apresentação do Dossier Temático
do n.º2 de Convocarte:
«Arte e Geometria»
sições e provas matemáticas levada a cabo por Euclides dá nome a um ramo da pró-
pria Geometria (Euclidiana), além de enformar o pensamento de múltiplos filósofos,
astrónomos e matemáticos durante séculos.
Isto faz com que o estudo abrangente das várias formas de aplicação da Geometria
na Arte seja essencial. Aceitando que a bibliografia existente no campo da análise
geométrica e composicional de pintura, arquitectura ou escultura é considerável, é
inevitável notar que a mesma deve mais à iniciativa individual dos seus autores do
que a uma linha metodológica estabelecida, como acontece por exemplo na história
da arte ou outros campos de análise da imagem (casos de Charles Bouleau, Matila
Ghyka, Robert Lawlor ou Martin Kemp).
Reunir estratégias de investigação mais recentes sobre o tema contribuirá para clarificar
e enriquecer metodologias no campo da Geometria aplicada à Arte. Estudos de caso
podem incluir ainda artistas plásticos contemporâneos que fazem uso de propriedades
geométricas na sua obra, aplicações que entrecruzam ciências e percepção visual (como
o caso da cartografia) ou mesmo o estudo da relação da Geometria com a simbologia.
Contudo, o tema, com vasta profundidade histórica, artística e cultural, tem estado
esquecido nos debates recentes do mundo universitário, como que fora de moda,
<<
pelo que a sua convocação de estudos actuais, se apresente um desafio particular
a que a Convocarte resolveu avocar. Apresentamos alguns motes, com exemplos
genéricos, de desenvolvimentos possíveis de propostas de texto. Longe de ser ex-
clusiva, esta é uma amostra das potencialidades do tema:
349
de Almada Negreiros, atas do Encontro Nacional da SPM, 2014; “A linguagem do
quadrado” Cinequanon, nº 8, FLUL, 2014; “Geometria na obra abstracta de Almada
Negreiros. Quatro composições de 1957” Revista de História da Arte, série W nº 2,
2014 e do livro (no prelo) Livro de problemas de Almada Negreiros, SPM.
Junho de 2016
Entrega de textos pelos autores
Julho/Agosto de 2016
Revisão de Pares
Setembro de 2016
Reajustamento dos autores perante revisão de pares
Outubro/Novembro de 2016
Paginação
Dezembro de 2016
Revisões e acertos finais
Janeiro de 2017
Lançamento/apresentação
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