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análise da ode de ricardo reis "anjos ou deuses"

“Anjos ou deuses” é uma das odes de Ricardo Reis, escrita em 1914 e inicialmente
preparada para inserção no chamado “projecto de 1914”.

Quanto à sua análise, diremos o seguinte:

Inserção na obra e no autor:

Não podemos falar de uma “Obra de Ricardo Reis”, porque em rigor Fernando Pessoa não
chegou a preparar as odes e demais poemas deste heterónimo numa forma que nos
levasse a falar numa obra congruente e definida. Por isso, a ode em questão enquadra-se
no quadro das odes iniciais, nomeadamente aquelas inseridas num projecto de 1914, no
que mais se aproxima de um verdadeiro livro de odes de Ricardo Reis, que nunca chegou
verdadeiramente a existir. Mas mesmo assim, é uma ode clássica de Reis, marcada pelo
rigor da forma e pela escolha do tema.

Tema e assunto:

O tema desta ode será os deuses, ou mais propriamente a relação entre homens e deuses.
Trata-se de um tema recorrente em Reis, e um tema da poesia clássica da antiguidade,
presente nomeadamente em Horácio, grande inspirador deste heterónimo.

Sentimentos do eu poético:

Julgo que o sentimento prevalente de Reis seja a aceitação objectiva de um facto. Se é


verdade que Reis muitas das vezes se angustia com o seu pensamento, aqui ele constata o
que para ele é um facto objectivo – que os homens se relacionam com os deuses, como o
gado se relaciona com os homens. Se algo transparece é uma óbvia desilusão com a
realidade, porque ao mesmo tempo que assume a consciência da verdade, o poeta assume
a inconsequência de querer saber mais. O eu poético pode assim dizer-se fracturado,
incapaz, mas sobretudo consciente.

Estrutura externa:

A métrica identifica-se como sendo derivada da métrica clássica das odes horacianas: a
estrofe alcaica Horaciana - odes de quatro versos, com versos brancos e sem rima. Dá por
isso total corpo à estrutura-maior: Estrofe, antiestrofe e epodo – tema, desenvolvimento
(resposta ao tema) e conclusão do poema.

Análise estilística:

Esta ode é pobre em recursos estilísticos, mas mesmo assim se observa o uso de
aliterações e repetições (por ex. “de nós”), assim como de metáfora (“como acima dos
gados”) e metonímia.

análise do poema "mestre, são plácidas..."
 de alberto caeiro

Para compreender Ricardo Reis há que compreender a face mais rígida de Pessoa, a sua
face helenista, de cultor do classicismo. Porque Reis é sobretudo isso - rigor, forma,
disciplina. Neste heterónimo Pessoa põe essa sua faceta que lhe veio provavelmente da
sua educação sobre moldes britânicos, quando residia ainda na África do Sul.
Como clássico, Reis prescreve a quem o lê estritas leis de conduta, que seguem sempre
cânones muito bem definidos e baseados em apenas alguns princípios inabaláveis. Como
Caeiro ele afasta-se da vida, mas tem já perante ela uma outra perspectiva que não é
apenas de abandono - Reis aceita o que a vida lhe dá, e vê nessa aceitação a sua nobreza
em resistir às adversidades (estoicismo) ao mesmo tempo que se deleita na contemplação
das coisas que acontecem sem que eles intervenha (epicurismo).

Como regra latina que é, a filosofia de Reis assemelha-se ao funcionar de um relógio - tem
uma cadência certa e perene e fala ao coração mas de modo a não nos emocionar. Tem
uma grande tristeza, mas que se apaga em significado perante o modo solene como ele se
nos apresenta. Reis é acima de tudo um sobrevivente, que escolhe a vida que tem como
um soldado escolhe morrer pela sua Pátria.
Os temas que aborda são os temas clássicos e nada mais do que isso. Fala da morte e da
vida, do prazer e da dor, dos homens e dos deuses. Não é abstracto e o seu léxico é por
isso mesmo limitado e mesmo repetitivo.

Os seus poemas são odes - ode quer dizer canção - geralmente de quatro versos, dois
decassilábicos e dois hexassilábicos com versos brancos e sem rima. Embora Reis varie,
este seria o esquema ideal, denominado estrofe alcaica Horaciana.

A ode define-se também por seguir uma estrutura rígida em três partes: estrofe,
antiestrofe e epodo - tema, desenvolvimento (resposta ao tema) e conclusão do poema.

Mas passemos ao poema em questão.

Escrito em 12/6/1914 o poema supostamente seria o poema inicial do projectado livro de


Odes de Ricardo Reis, num dos projectos de Fernando Pessoa, nunca acabado. A
importância de ser um poema de abertura é crucial, veremos já porquê.

Reis começa onde Caeiro acabara. O "Mestre" a quem ele se refere é obviamente o
"Mestre" Caeiro. Ora, Reis, como discípulo, presta homenagem ao Mestre quando inicia a
sua própria obra. Mas a sua homenagem é de certo modo insidiosa, porque ao
homenageá-lo, Reis simultaneamente mata a sua influência, nega-o, supera-o, para ser
ele também o seu próprio Mestre.

O tema é então um tributo, a Caeiro. Mas um tributo terrível. Reis prepara-se para negar
Caeiro. Ele diz: "Mestre, são plácidas / Todas as horas / Que nós perdemos, / Se no perdê-
las, / Qual numa jarra, / Nós pomos flores.", ou seja, não nos devemos afastar totalmente
da vida, porque as horas perdidas em viver nunca são verdadeiramente perdidas, se as
tornarmos num símbolo concreto, se lhes dermos as nobreza de as aceitar viver.

Reis quer distanciar-se de Caeiro, que falhara na sua missão, especialmente escrevendo os
"Poemas Inconjuntos" e o "Pastor Amoroso". Reis mostra que tem uma nova perspectiva.

É um afastamento como o de Caeiro, mas um afastamento diferente que não nega a vida,
antes a aceita como inevitável. Se é inevitável - diz Reis - devemos aceitá-la com nobreza,
sofrer estoicamente a vida.

Escolhe Reis as flores como símbolo máximo da beleza fixa, mas ao mesmo tempo
efémera - como a própria vida. Colocadas na jarra, as horas tornam-se imóveis e eternas,
nunca cessam nem envelhecem, mas ao mesmo tempo sentem-se acabar num momento.
O ideal estético aqui sobrepõe-se à realidade imanente - Reis idealiza a vida para a
aceitar.

O verso seguinte confirma o que dizemos. "Não há tristezas / Nem alegrias (...)", ou seja,
não existem emoções, se ao menos saibamos não viver a vida. O sofrimento pode ser
evitado, evitando a vida ela mesma, evitando ser vividos por ela em vez de sermos nós a
vivê-la.

O que fazer então? Reis aconselha-nos a "decorrê-la / Tranquilos , plácidos", como


"crianças", com os "olhos cheios de Natureza". Essa Natureza que ele certamente
desconhece, como Caeiro desconhecia e apenas cantava, mas que é ainda o alvo da sua
atenção como poeta Pagão.

Passando pela vida, num "leve descanso", Reis espera não ter de se confrontar com os
mesmos obstáculos do seu Mestre Caeiro. Parece afirmar perante si próprio que a sua
missão está de certo modo facilitada - ele escolhe o seu próprio caminho e não precisa de
se descobrir. A sua natureza é uma afirmação, uma escolha e não uma descoberta.

É uma questão de deixar "o tempo ir" - certamente não uma opinião do próprio Fernando
Pessoa que tão interventivo era no seu tempo - para que tudo finde um dia futuro.

Resistir - isso está fora de questão, correndo o risco de enfurecer o deus que come os seus
próprios filhos. (Será Saturno a devorar os próprios filhos, seguindo o mito Romano, na
imagem marcante de Goya?).

A calma necessária para esta falta de actividade, para esta ataraxia, é aprendida com a
Natureza. Eis o papel da Natureza em Reis - como exemplo eficaz de algo que passa pelo
tempo mas que fica sempre igual, que em rigor aceita o tempo e a mudança com nobreza.
Basta que aprendamos com ela a ficar imóveis perante o tempo, que decidamos não
mudar nada à nossa volta. "Colhamos flores" e "molhemos as mãos nos rios calmos".

Como girassóis que olham o Sol - nova referência a uma flor - Reis espera que assim
passemos ao lado de tudo, incólumes, sem influir nem sermos modificados, quase que
figuras estranhas em sombra, pintados num qualquer quadro, sem grande pormenor, mas
ainda assim almas humanas, ainda assim vidas conscientes.

Eis o testemunho pagão de um crente nos deuses antigos. Porque crê neles todos não crê
em nenhum e o seu sentimento frio é "inteligente"; nas suas próprias palavras.
Sentimento religioso vindo da inteligência que confronta o que o homem tem de divino
com o que pode ter de profano e que no final deixa muito pouco - um resto ralo, uma água
descolorada a que chamar vida.

análise da ode "sofro, lídia o medo do destino"

Nascido (literariamente) em 1897, Ricardo Reis tem de pessoa a sua disciplina mental, que
falta por exemplo a Álvaro de Campos.

Segundo muitos dos críticos, Ricardo Reis é aquele, de entre os heterónimos, aquele que
se aproxima mais de Pessoa-ele-próprio. Ou seja, aquele em que a forma e o conteúdo
dos seus poemas mais se aproxima da verdadeira intenção de Pessoa. Pois se Campos é o
modernismo em si mesmo e Caeiro é a ascese, a despersonalização completa, a Reis resta
o tudo que é ainda Pessoa em si mesmo.

Reis é analítico, como Pessoa é analítico e como ele, também segue uma herança
eminentemente clássica, conservadora, que não está presente nos outros heterónimos.
Reis destaca-se da poesia que Pessoa escreve em nome próprio, talvez mais pelo seu
poder de síntese. Reis é imbuído de um sentimento religioso, mesmo sendo adepto do
paganismo, pois tem um panteão de deuses, que mesmo dentro da natureza, podem
aceitar Cristo. É porventura essa também a crença de Pessoa, que se considera um
"cristão gnóstico", oposto às igrejas organizadas. Reis é como Pessoa, favorável à
monarquia, favorável a uma visão de nobre sobre a vida que nos oprime, no que isso tem
de inglês, de indiferente.

Ás Odes de Ricardo Reis, vários críticos têm achado semelhanças nas Odes do poeta
clássico Horácio. No que ambas têm de avisos nobres, no que ambas transmitem de uma
visão da vida permeada pela calma e pela filosofia prática.

Se bem que é verdade que há semelhanças, Pessoa-Reis não é como Horácio, defensor de
vida dentro dos mesmos moldes. Pois que Horácio defende uma visão epicurista da vida,
em que se devem degustar os pequenos prazeres do momento e não as promessas
eternas do futuro, enquanto Pessoa-Reis defende precisamente a renúncia do amor. Aqui
acha-se uma qualidade essencial de Pessoa: a de sempre filtrar as suas influências (como
indicou António Quadros). Pois que se ele recebe Horácio, não o copia, mas filtra-o por
outros olhos.

Parece-me que, numa análise mais próxima, esta incapacidade de amar, ou a descrença
no amor, é uma coisa muito própria de Pessoa, relacionada com a sua infância e também
com a sua idade adulta. Ele um homem sempre desiludido com a "traição" da mãe, que,
adulto, desconfia do amor de outras mulheres, afastando-se delas, mas sempre desejando
o que não pretende alcançar.

Passando em concreto à análise da Ode que me pede:

É um diálogo do poeta com Lídia.

Há que notar uma coisa muito importante - destacada pelo iminente critico Pessoano Angel
Crespo - que é o facto de tanto Lídia como o seu interlocutor são "crianças grandes", que
nunca se tocam nem se beijam.

Parece-me que Pessoa dialoga consigo mesmo, projectando o seu medo e desilusão numa
figura feminina, que encarna simultaneamente a figura da sua mãe e da sua amante.

Os seguintes temas estão nesta Ode: 1) o medo do futuro para além da segurança da
infância ("Sofro, Lídia, do medo do destino); 2) o ideal de "uma vida passiva e silenciosa"
(Angel Crespo) ("Deixem-me os deuses minha vida sempre sem renovar); 3) a infância
como idade ideal, para os espíritos puros (como ele e Lídia, ambos simbolicamente
crianças) (Ficando eu quase sempre o mesmo/Indo para a velhice como um dia entre no
anoitecer).

Estes temas, que encontramos em Reis, são temas Pessoanos, mas de um Pessoa
genuíno, um Pessoa verdadeiro, por detrás das suas máscaras e realidades alternativas.
São os temas da sua poesia sincera, usando palavras de Gaspar Simões, seu primeiro
biógrafo.

É Pessoa ele próprio que atravessa estas palavras sentidas. "Sofro, Lídia o medo do
destino", porque não queria o futuro, por medo de não poder regressar ao passado feliz
que conhecera. "A leve pedra que um momento ergue/As lisas rodas do meu carro, aterra/
meu coração", ou seja, o movimento que o faz avançar, arruína-lhe as esperanças que ele
constrói, sempre irrealizáveis, idealizadas, e por isso o movimento é doloroso, parte-lhe o
coração esperar pelo melhor. "Tudo quanto me ameaça de mudar-me", tudo quanto seja
novo, melhor ou pior, tudo o que seja mudança. "Para melhor que seja, odeio e
fujo./Deixem-me os deuses minha vida sempre sem renovar", porque o que nunca muda,
é o que é certo, o que se pode controlar e conhecer, e o desconhecido é sempre pior para
quem tem medo de conhecer, por se ter protegido, fechando-se a ele. "Meus dias, mas
que um passe outro passe/ficando eu sempre quase o mesmo; indo/para a velhice como
um dia/Entra no anoitecer", ou seja, que a vida passe por mim, sem que eu passe pela
vida, pois se eu me deixar assim, só símbolo, distante, eu não sofrerei mais, eu pelo
menos não vou correr o risco de sofrer na vida a desilusão que já senti e que tanto me
marcou nela.

análise do poema "prefiro rosas, meu amor, à pátria"

O poema "Prefiro rosas..." de Ricardo Reis, como outros deste heterónimo de Fernando
Pessoa, é marcado por temas fortes e constantes da sua obra. Nomeadamente
observamos, quase de imediato, a atitude expectante perante a vida, a resignação e a
nobreza de espectador perante a realidade que se desenrola perante os seus olhos.
Heterónimo clássico por definição, Reis tem de Pessoa toda a sua disciplina mental,
incorporando quase em ícone um classicismo perfeito, quer na forma quer no conteúdo
dos seus poemas. Terá surgido a Pessoa como contraposição ao futurismo, representando
em teoria uma perfeita imagem do passado no presente - um verdadeiro poeta
neoclássico.
Por ser clássico Reis traz uma atitude contemplativa da vida, mas que já não é ingénua
como a de Caeiro. Reis é um homem perturbado e a sua aceitação, a sua ataraxia é uma
aceitação muito menos pacífica. Por isso podemos dizer que Reis vê na sua atitude perante
a vida uma decisão nobre e não apenas uma inevitabilidade, embora esta última
perspectiva seja também essencial para o compreender.
Reis sabe que é diferente da Natureza e está revoltado com isso, em vez de, como Caeiro,
procurar a proximidade com as coisas. Afasta-se para dentro e encontra nesse
afastamento a razão de viver. Austero e contido, ele é - usando palavras de Jacinto do
Prado Coelho - civilizado, na beleza do artificio e na prática constante e perfeccionista da
Ode.
Esta indiferença, aceitação da vida, recusa do esforço ou do compromisso - tudo isto
encontramos nesta Ode que analisamos agora.
"Prefiro rosas, meu amor, à pátria, / E antes magnólias amo / Que a glória e a virtude." -
Reis demite-se da vida, e prefere as flores à realidade. Não é em vão que Reis clama pelas
rosas ao iniciar este poema. As rosas, para os Gregos representam um ideal estético por
excelência e opõe-se eficazmente à realidade crua e dolorosa da vida imposta. Estas
flores, sobretudo as rosas, são um símbolo da contraposição entre o ideal estético nobre
do poeta face à obrigação de viver. Efémeras e belas, as flores não prolongam a dor. Reis
prefere as rosas (símbolo do amor), mas ama as magnólias (símbolo da nobreza).
"Logo que a vida me não canse, deixo / Que a vida por mim passe / Logo que eu fique o
mesmo." - marcada indiferença pela vida, um leit motif de Reis ao longo de todas as suas
odes. A vida ao passar, deixa-o na margem do rio, do mesmo rio onde ele se senta com
Lídia, apenas a observar. Ser alheio, ser estrangeiro é a forma de Reis se proteger da dor,
mesmo que assim tenha de se proteger da vida. De notar também aqui os traços clássicos
("Logo que a vida" e "Que a vida").
"Que importa àquele a quem já nada importa / Que um perca e outro vença, /
Se a aurora raia sempre," - o ritmo morto do poema sugere isto mesmo, que Reis está
indiferente à vida, às tribulações e movimento, em favor de um "quietismo" assustador,
mas ao mesmo tempo mágico e infinito. Para além do homem e das suas preocupações,
afinal está o destino e a natureza. Tudo se move e acontece mesmo sem as nossas acções
e o egoísmo (de quem vence ou perde) dilui-se no momento.
"Se cada ano com a primavera / As folhas aparecem / E com o Outono cessam?" - eis o
reforço do que dizíamos antes. Os ritmos incessantes da natureza. Da primavera (símbolo
da renovação) e do Outono (símbolo da negatividade e do fluir do tempo).
"E o resto, as outras coisas que os humanos / Acrescentam à vida, /
Que me aumentam na alma?" - o que os homens acrescentam à vida opõe-se ao que é
natural, às flores de gosto clássico. O passar pela vida sem a modificar opõe-se também à
mudança, ao que os homens acrescentam à vida.
A interrogação retórica de Reis fica no ar e leva-nos de novo à pátria (em minúsculas,
diminuída), à glória e à virtude - "as outras coisas".
"Nada, salvo o desejo de indiferença / E a confiança mole / Na hora fugitiva." - responde
Reis à sua própria interrogação. As coisas da vida trazem-lhe apenas indiferença. Reis
espera apenas pela "hora fugitiva", pelo passar do tempo, e fica sereno, sempre igual.
Veja-se agora como é curioso todo o poema. Reis dirige-se a alguém (ao seu amor), mas
fala como a um confidente, de maneira calma e solitária. Como se quem o ouvisse não
existisse, senão na sua concepção ideal. Até a maneira como o vocativo está intercalado
no verso 1 é clássica, fria, formal. Reis fala, mas é como se falasse consigo mesmo, não
conseguindo quebrar a barreira que o impede de se encarar o exterior. Esta contemplação,
sinal do seu epicurismo, não permite comunicação sincera, nem laços emocionais.
Estilisticamente o poema constitui-se por 6 estrofes isomórficas, com um verso
decassílabico e dois hexassílabos cada. Os versos são brancos, sem rima, uma marca
também de Reis, que lhe advém da influência Horaciana.

análise do poema "mestre, são plácidas..."
 de alberto caeiro

Para compreender Ricardo Reis há que compreender a face mais rígida de Pessoa, a sua
face helenista, de cultor do classicismo. Porque Reis é sobretudo isso - rigor, forma,
disciplina. Neste heterónimo Pessoa põe essa sua faceta que lhe veio provavelmente da
sua educação sobre moldes britânicos, quando residia ainda na África do Sul.
Como clássico, Reis prescreve a quem o lê estritas leis de conduta, que seguem sempre
cânones muito bem definidos e baseados em apenas alguns princípios inabaláveis. Como
Caeiro ele afasta-se da vida, mas tem já perante ela uma outra perspectiva que não é
apenas de abandono - Reis aceita o que a vida lhe dá, e vê nessa aceitação a sua nobreza
em resistir às adversidades (estoicismo) ao mesmo tempo que se deleita na contemplação
das coisas que acontecem sem que eles intervenha (epicurismo).

Como regra latina que é, a filosofia de Reis assemelha-se ao funcionar de um relógio - tem
uma cadência certa e perene e fala ao coração mas de modo a não nos emocionar. Tem
uma grande tristeza, mas que se apaga em significado perante o modo solene como ele se
nos apresenta. Reis é acima de tudo um sobrevivente, que escolhe a vida que tem como
um soldado escolhe morrer pela sua Pátria.

Os temas que aborda são os temas clássicos e nada mais do que isso. Fala da morte e da
vida, do prazer e da dor, dos homens e dos deuses. Não é abstracto e o seu léxico é por
isso mesmo limitado e mesmo repetitivo.

Os seus poemas são odes - ode quer dizer canção - geralmente de quatro versos, dois
decassilábicos e dois hexassilábicos com versos brancos e sem rima. Embora Reis varie,
este seria o esquema ideal, denominado estrofe alcaica Horaciana.

A ode define-se também por seguir uma estrutura rígida em três partes: estrofe,
antiestrofe e epodo - tema, desenvolvimento (resposta ao tema) e conclusão do poema.

Mas passemos ao poema em questão.

Escrito em 12/6/1914 o poema supostamente seria o poema inicial do projectado livro de


Odes de Ricardo Reis, num dos projectos de Fernando Pessoa, nunca acabado. A
importância de ser um poema de abertura é crucial, veremos já porquê.

Reis começa onde Caeiro acabara. O "Mestre" a quem ele se refere é obviamente o
"Mestre" Caeiro. Ora, Reis, como discípulo, presta homenagem ao Mestre quando inicia a
sua própria obra. Mas a sua homenagem é de certo modo insidiosa, porque ao
homenageá-lo, Reis simultaneamente mata a sua influência, nega-o, supera-o, para ser
ele também o seu próprio Mestre.

O tema é então um tributo, a Caeiro. Mas um tributo terrível. Reis prepara-se para negar
Caeiro. Ele diz: "Mestre, são plácidas / Todas as horas / Que nós perdemos, / Se no perdê-
las, / Qual numa jarra, / Nós pomos flores.", ou seja, não nos devemos afastar totalmente
da vida, porque as horas perdidas em viver nunca são verdadeiramente perdidas, se as
tornarmos num símbolo concreto, se lhes dermos as nobreza de as aceitar viver.

Reis quer distanciar-se de Caeiro, que falhara na sua missão, especialmente escrevendo os
"Poemas Inconjuntos" e o "Pastor Amoroso". Reis mostra que tem uma nova perspectiva.

É um afastamento como o de Caeiro, mas um afastamento diferente que não nega a vida,
antes a aceita como inevitável. Se é inevitável - diz Reis - devemos aceitá-la com nobreza,
sofrer estoicamente a vida.

Escolhe Reis as flores como símbolo máximo da beleza fixa, mas ao mesmo tempo
efémera - como a própria vida. Colocadas na jarra, as horas tornam-se imóveis e eternas,
nunca cessam nem envelhecem, mas ao mesmo tempo sentem-se acabar num momento.
O ideal estético aqui sobrepõe-se à realidade imanente - Reis idealiza a vida para a
aceitar.

O verso seguinte confirma o que dizemos. "Não há tristezas / Nem alegrias (...)", ou seja,
não existem emoções, se ao menos saibamos não viver a vida. O sofrimento pode ser
evitado, evitando a vida ela mesma, evitando ser vividos por ela em vez de sermos nós a
vivê-la.

O que fazer então? Reis aconselha-nos a "decorrê-la / Tranquilos , plácidos", como


"crianças", com os "olhos cheios de Natureza". Essa Natureza que ele certamente
desconhece, como Caeiro desconhecia e apenas cantava, mas que é ainda o alvo da sua
atenção como poeta Pagão.

Passando pela vida, num "leve descanso", Reis espera não ter de se confrontar com os
mesmos obstáculos do seu Mestre Caeiro. Parece afirmar perante si próprio que a sua
missão está de certo modo facilitada - ele escolhe o seu próprio caminho e não precisa de
se descobrir. A sua natureza é uma afirmação, uma escolha e não uma descoberta.

É uma questão de deixar "o tempo ir" - certamente não uma opinião do próprio Fernando
Pessoa que tão interventivo era no seu tempo - para que tudo finde um dia futuro.

Resistir - isso está fora de questão, correndo o risco de enfurecer o deus que come os seus
próprios filhos. (Será Saturno a devorar os próprios filhos, seguindo o mito Romano, na
imagem marcante de Goya?).

A calma necessária para esta falta de actividade, para esta ataraxia, é aprendida com a
Natureza. Eis o papel da Natureza em Reis - como exemplo eficaz de algo que passa pelo
tempo mas que fica sempre igual, que em rigor aceita o tempo e a mudança com nobreza.
Basta que aprendamos com ela a ficar imóveis perante o tempo, que decidamos não
mudar nada à nossa volta. "Colhamos flores" e "molhemos as mãos nos rios calmos".

Como girassóis que olham o Sol - nova referência a uma flor - Reis espera que assim
passemos ao lado de tudo, incólumes, sem influir nem sermos modificados, quase que
figuras estranhas em sombra, pintados num qualquer quadro, sem grande pormenor, mas
ainda assim almas humanas, ainda assim vidas conscientes.

Eis o testemunho pagão de um crente nos deuses antigos. Porque crê neles todos não crê
em nenhum e o seu sentimento frio é "inteligente"; nas suas próprias palavras.
Sentimento religioso vindo da inteligência que confronta o que o homem tem de divino
com o que pode ter de profano e que no final deixa muito pouco - um resto ralo, uma água
descolorada a que chamar vida.

diferenças entre fernando pessoa e ricardo reis


Eduardo Lourenço, pessoano reconhecido, escreve no seu "Pessoa Revisitado", que Ricardo
Reis não aparece a Pessoa, como Caeiro tinha aparecido, como solução a um problema de
irrealidade. De facto, enquanto Caeiro tinha tido uma aparição necessária, para que o
poeta "regressasse à Terra", Reis surge de uma cogitação mais cuidada, de um plano
intencional e deliberado.

Pessoa surge mais verdadeiro em Reis do que por exemplo em Caeiro. Isto porque em
Reis, Pessoa se expressa mais livremente, usando temas que lhe são queridos, só os
filtrando por um filtro de antiguidade clássica, que se de classicismo apresenta a forma -
as odes - é imbuída de um iminente espírito de modernidade, de moderna angústia.

Pessoa parece a muitos, pelo menos aos que o analisam, um poeta sem sentido objectivo.
Como indica Lourenço, corroborado por Gaspar Simões e outros, Pessoa não é capaz de
"poesia objectiva", seja isso o que for. Se Caeiro sente de menos, Reis sente demais,
mesmo negando este os deuses e o outro deixando neles toda a responsabilidade da
Criação.

Amante do exacto (nas palavras de Jacinto do Prado Coelho), Reis têm um espírito
preciso, é médico, anseia pela perfeição e chega a uma irrealidade, demasiado analítica,
demasiado feita em pedaços. Reis diz, como Caeiro, para apreciarmos a vida, mas Caeiro é
ingénuo - aceita, Reis é metódico - ressente. Reis quer iludir (Prado Coelho), e Caeiro quer
ignorar. Isto quer dizer simplesmente isso: enquanto Caeiro aceita e procura a beleza,
Reis tortura-se e pretende transformar tudo em símbolo, num paganismo sincero, mas
angustiante. Por alguma razão Caeiro aceita um Deus benevolente, mesmo numa
cristandade mole, ao sol da pastorícia, porque um Deus ao menos tira do homem a
responsabilidade de questionar. E este conforto, Reis não o sente nem o pode ter, como
Pessoa-ele mesmo não sente, nem pode ter.

Reis é um instintivo, mas não um intuitivo. Porque Reis é "civilizado", "moderno",


"angustiado". Reis vem depois do cristianismo, vem com a modernidade, pondo tudo em
causa, mas não para negar, antes para colocar em símbolos as certezas anteriores,
ressentido com a falta de conhecimento verdadeiro sobre o mundo. Num existencialismo
sem o ser, num existencialismo horaciano, num existencialismo simbólico e lírico, Reis
goza com os deuses, trazendo o Olimpo a um novo significado: os deuses ficam a ver o
sofrimento humano, mas não fazem mais do que isso, e são inúteis, como Reis diz "cheios
de eternidade e desprezo por nós». Acima dos deuses há o fado, o destino, que rege
mesmo as divindades. É isso em que Pessoa-Reis acredita, uma crença proibida, porque
traz a angústia aos próprios deuses, feitos também eles prisioneiros de um destino que
lhes escapa.

O medo do futuro, do destino, é um tema recorrente em Reis. E um tema recorrente em


Pessoa. Porque ambos são um, o medo do futuro é o mesmo medo. É o medo de mudar, o
medo de ter de crescer - é Lídia, companheira do poeta, um símbolo perfeito de
infantilidade, que nunca cresce. Pessoa teme o futuro, porque se prende a um passado
que o reconforta e que o magoou.

Pessoa sempre elogia figuras desinteressadas em viver, seja Lidia, que o ouve, seja um
major reformado que enche os sonhos de Bernardo Soares. Da abdicação faz ele uma
coisa de um nobre e não de um renegado, para se sentir elevado ao senti-la no seu intimo.
Temendo o destino, ele constrói uma realidade em que é ele a submeter-se a Ele e não a
ser submetido. É assim com Reis, que se vê monárquico, nobre, altivo, civilizado, médico,
com educação clássica, conhecedor dos clássicos Gregos, de Horácio e Homero, de
Epicuro.

Ataraxia - calma de espírito, resignação - e em Reis sobretudo: indiferença. Este é a


palavra chave para resumir a atitude de Reis-Pessoa, e também de Pessoa-Reis, perante a
vida.

Vemos que em muito Reis e Pessoa se aproximam. Ambos são analíticos, ambos
classicistas, conservadores, admiradores da monarquia, recusando a importância
tradicional dos deuses (Pessoa considerava-se um «cristão gnóstico»), com medo do
futuro e medo de se dar ao amor de uma mulher (Lídia é a figura de amante que Pessoa
mais aprecia pensar - distante e simbólica, criança, não ameaçadora e impossível de ter).

Mas em que se diferenciam?


Nesta passagem de uma carta ao critico Adolfo Casais Monteiro, Pessoa explica:

"Como escrevo em nome destes três? Caeiro, por pira e inesperada inspiração, sem saber
ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta,
que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para
escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas
coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento,
de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela
prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade
a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o
raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a
esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português,
Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo»,
etc. Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para
mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil,
até porque é mais espontânea em verso.)".

Pessoa diz que Reis escreve "melhor do que ele", ou seja, de modo mais preciso e cuidado,
mais formal, ao ponto de ser "exagerado" ou seu "purismo". Diz ainda Pessoa que lhe é
difícil escrever a prosa de Reis, porque lhe é mais fácil a simulação. Parece uma
contradição, ser mais fácil ser simular

do que ser sincero, mas era assim Pessoa.

Pessoa escreve em Reis coisas que ele mesmo não pode escrever. Este uma das razões
porque Pessoa é considerado famosamente um "insincero verídico" (expressão de Adolfo
Casais Monteiro), que fala a verdade que sente, mas por outras bocas que não a sua.

As escritas de Pessoa ortónimo (em nome próprio), é realmente distinta da dos seus
heterónimos. Mas apenas porque nela não há realmente uma "filosofia prática" (Prado
Coelho), mas anseios, medos frios, angústias vazias. É uma poesia de inteligência, límpida
e quase demasiado lúcida. Só comovido com coisas simbólicas, nunca com ele mesmo.
Autor da Mensagem, canto de cisne da civilização portuguesa, mas construtor de mitos,
ocultista. Prado Coelho sintetiza Pessoa lírico com uma expressão de Pessoa: «uma viúva
pobre que nunca chora», musical e triste.

Em verdade, os temas sinceros de Pessoa - sobretudo a infância, o medo de amar deixado


pela traição da mãe que o "abandonou" muito jovem - são tratados pelos heterónimos.
Serão demasiado dolorosos? Demasiado perigosos para ele ser sincero, sem ser em
simulação? Talvez. Julgo que só por uma vez o seu génio transparece em seu próprio
nome, e isso no poema "Menino de sua mãe", quando o poeta tem já 38 anos. Talvez
então ele já sentisse começar a ser sincero.

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