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ARTIGO ARTICLE 17

Amostragem por saturação em pesquisas


qualitativas em saúde: contribuições teóricas

Saturation sampling in qualitative health research:


theoretical contributions

Bruno José Barcellos Fontanella 1


Janete Ricas 2
Egberto Ribeiro Turato 3

Abstract Introdução

1 Departamento de Medicina,
The transparency and clarity of research reports, Amostragem por saturação é uma ferramenta
Universidade Federal de São
Carlos, São Carlos, Brasil. emphasizing the data collection stage, are con- conceitual freqüentemente empregada nos re-
2 Faculdade de Medicina, sidered important parameters for evaluating latórios de investigações qualitativas em dife-
Universidade Federal de
the scientific rigor of qualitative studies. The rentes áreas no campo da Saúde, entre outras.
Minas Gerais, Belo Horizonte,
Brasil. current paper aims to analyze the use of satura- É usada para estabelecer ou fechar o tamanho
3 Faculdade de Ciências tion sampling as a methodological concept, fre- final de uma amostra em estudo, interrompendo
Médicas, Universidade
quently employed in descriptions of qualitative a captação de novos componentes. Objetivamos,
Estadual de Campinas,
Campinas, Brasil. studies in various areas of knowledge, particu- neste artigo, refletir criticamente sobre alguns
larly in the field of health care. We discuss and fundamentos metodológicos e técnicos de seu
Correspondência
confront the following topics: definition of sam- emprego.
B. J. B. Fontanella
Departamento de Medicina, pling closure by theoretical saturation; difficul- O fechamento amostral por saturação teórica
Universidade Federal de ties in the acceptance and operationalization of é operacionalmente definido como a suspensão
São Carlos.
Rodovia Washington Luís,
intentional samples (with examples), adequate de inclusão de novos participantes quando os
Km 235, São Carlos, SP size of the intentional sample, the significance dados obtidos passam a apresentar, na avaliação
13565-905, Brasil. of valuing what is repeated or the differences do pesquisador, uma certa redundância ou re-
bruno.fontanella@uol.com.br
contained in the sample reports, inadequate us- petição 1, não sendo considerado relevante per-
es of expressions containing the term saturation, sistir na coleta de dados. Noutras palavras, as in-
and finally possible metaphors for understand- formações fornecidas pelos novos participantes
ing the concept. da pesquisa pouco acrescentariam ao material
já obtido, não mais contribuindo significativa-
Sampling Studies; Qualitative Research; Meth- mente para o aperfeiçoamento da reflexão teó-
odology rica fundamentada nos dados que estão sendo
coletados. Esta conotação/definição já vinha
presente no texto que parece ter inaugurado o
uso da expressão saturação teórica (theoretical
saturation) 2.
No entanto, é necessário problematizá-la
porque, embora possa parecer um procedimento
decorrente de uma constatação facilmente atin-
gível, muitas vezes a averiguação de saturação

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pode ser feita de maneira acrítica ou excessiva- construídos a partir de conceitos prévios do pes-
mente subjetivista. No extremo, o emprego da ex- quisador 4.
pressão pode se apoiar apenas no consenso que Os diferentes paradigmas científicos com-
atualmente existe, entre os pesquisadores quali- portam e prescrevem diferentes tipos de cons-
tativistas, sobre a propriedade de utilização deste trução de amostras. Aquelas utilizadas nas
recurso metodológico, faltando, entretanto, sufi- pesquisas qualitativas são, talvez, as mais con-
ciente discriminação quanto ao seu significado, troversas aos olhos de leitores e pesquisadores
ferindo assim a transparência da investigação. acostumados às ciências de inspiração positi-
Glaser & Strauss 2 originalmente conceitua- vista, historicamente hegemônicas na produ-
ram saturação teórica como sendo a constatação ção científica na área da saúde. Tais ciências
do momento de interromper a captação de in- supõem que o fato existe por si, cabendo ao
formações (obtidas junto a uma pessoa ou gru- observador descrevê-lo e enunciar seus nexos
po) pertinentes à discussão de uma determinada causais, não importando a imaginação e outras
categoria dentro de uma investigação qualitativa questões subjetivas na elaboração das teorias
sociológica. Na expressão dos autores, tratar-se- na consciência do cientista.
ia de uma confiança empírica de que a categoria
está saturada, levando-se em consideração uma
combinação dos seguintes critérios: os limites Amostragens intencionais são válidas?
empíricos dos dados, a integração de tais dados
com a teoria (que, por sua vez, tem uma deter- Nesta linha argumentativa, são comuns as as-
minada densidade) e a sensibilidade teórica de serções de que as amostras não probabilísticas
quem analisa os dados. não são subconjuntos suficientemente represen-
tativos da realidade empírica em foco e das po-
pulações estudadas, porque suas características
Amostragem como fonte de validação inviabilizariam um tratamento estatístico dos
das pesquisas resultados, de modo a permitir sua generaliza-
ção. A aplicação ficaria, assim, limitada à própria
A importância do estudo dos processos de amos- amostra (isto é, teria uma baixa validade externa,
tragem relaciona-se estreitamente ao conceito embora com adequada validade interna) 5,6.
de validade científica 3. Sem dúvida, a forma de Esse tipo de argumento enfatiza, a nosso ver
constituição de um subconjunto supostamen- equivocadamente, a idéia de que a represen-
te representativo do contexto sob investigação tatividade é alcançada apenas por algo como
(isto é, da realidade empírica pesquisada) é um uma imagem em tamanho reduzido do contex-
importante recurso de validação de estudos to, tomado como tendo seus atributos homo-
científicos, uma vez que os dados a serem traba- geneamente distribuídos no universo de seus
lhados emergem fundamentalmente – embora componentes. Bastaria, por isso, selecionar ale-
parcialmente – dos elementos que compõem tal atoriamente um número suficiente deles para
subconjunto. A constituição desse subconjunto evitar, estatisticamente, que as exceções fossem
transcorre paralelamente à de outros elemen- tomadas como regra.
tos cruciais de validação científica: o desenho Essa visão não valoriza o fato de que, quan-
da pesquisa (seja experimental ou de campo), do se trata de questões psicossociais do ser hu-
o recorte do objeto e formulação do problema, mano, o desempenho de um atributo, mesmo
a formulação dos pressupostos ou hipóteses, a que de maneira superdimensionada por indiví-
escolha dos instrumentos de coleta de dados e os duos típicos quanto a determinado parâmetro
quadros de referenciais teóricos de interpretação em investigação (e, talvez por isso mesmo, es-
dos resultados. peciais candidatos a serem selecionados), re-
O supracitado advérbio “parcialmente” lem- vele funções ou características representativas
bra que o campo de observação não é a fonte daquele mesmo contexto. Por exemplo, em um
exclusiva dos achados e explica-se pelos ques- estudo sobre crenças que sustentam as práti-
tionamentos sobre o que seriam as essências dos cas curativas alternativas de uma comunidade
diferentes objetos científicos, suas propriedades rural, poderiam ser entrevistados, como infor-
e determinações básicas, bem como das possi- mantes-chave, uma benzedeira, um raizeiro e
bilidades de conhecimento sobre eles, ou seja, um curandeiro aos quais a comunidade recor-
por questões de natureza ontológica. Tais pro- resse. As crenças que sustentam suas práticas
priedades, determinações e conhecimentos são estariam difundidas na comunidade, mas con-
organizados psicológica e socioculturalmente, centradas nestes indivíduos.
sendo impossível desconsiderar que os dados A despeito desse tipo de crítica, a maioria dos
não advêm passivamente da realidade, mas são estudiosos de metodologia científica prevê o em-

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AMOSTRAGEM POR SATURAÇÃO EM PESQUISAS QUALITATIVAS EM SAÚDE 19

prego de amostras não probabilísticas, depen- pessoas), co-morbidade psiquiátrica que difi-
dendo dos objetivos da investigação. cultasse a persistência no tratamento, negação
Já sob a ótica dos pesquisadores que utili- psicológica da doença, família não colaboradora,
zam métodos compreensivo-interpretativos – ou unidades de saúde com falha na gestão do cuida-
qualitativos – os processos não probabilísticos do, entre outras.
de amostragem também podem representar Diante do problema e das hipóteses, o pes-
uma fase difícil de planejar e empreender. Tais quisador decide, então, entrevistar indivíduos ou
dificuldades muitas vezes parecem se relacionar realizar grupos focais, isto é, elege uma técnica
à fundamentação teórica que constrói o objeto de coleta de dados. A questão que se segue é:
em investigação e, portanto, quais os indivíduos quais devem ser os participantes?
mais adequados para serem incluídos na amos- Neste ponto da elaboração do projeto de
tra (ou seja, a adequação da amostra ao objeto pesquisa, pensa-se nos seguintes subgrupos que
de estudo). Para garantir qualidade às pesquisas poderiam fornecer dados para responder ao pro-
qualitativas, é necessário congruência entre os blema formulado:
paradigmas teóricos (que fundamentam a defi- • pacientes sem adesão ao tratamento e hospi-
nição do objeto e a formulação do problema) e talizados por esse motivo;
os métodos e técnicas empregados (para abordar • pacientes sem adesão ao tratamento, mesmo
a realidade empírica) 7. não hospitalizados;
Em termos operacionais, a questão que orien- • pacientes com boa adesão ao tratamento, mas
ta a amostragem não probabilística relaciona-se que poderiam relatar as dificuldades práticas pa-
à homogeneidade fundamental 8,9 que deveria ra manterem o seguimento ambulatorial;
estar presente na amostra, isto é, aos atributos • familiares desses pacientes;
definidos como essenciais, presentes na inter- • profissionais de saúde que sabem informar
secção do conjunto de características gerais dos estas questões pela experiência acumulada na
componentes amostrais. Ocorrida essa defini- abordagem dessa clientela.
ção, a escolha dos elementos amostrais advirá de Como referido, o subgrupo que constituirá
um caminho mais prático, na dependência direta a amostra não poderá ser casualmente escolhi-
dos objetivos da investigação, pois a um mesmo do, porque deve corresponder ao objeto de pes-
objeto podem corresponder diferentes objetivos quisa, já que este é o mesmo e está presente em
de pesquisa. todos os subgrupos (adesão ao tratamento para
tuberculose). A escolha deverá recair no subgru-
po que melhor atender aos objetivos específicos
O objeto, os objetivos e os da pesquisa. Estes, por sua vez, dependem dos
componentes da amostra pressupostos e dos limites que se quer dar ao es-
tudo. Pode-se escolher conhecer especificamen-
Para esclarecimento, citemos um exemplo hipo- te o ponto de vista dos agentes comunitários, ou
tético: de outros trabalhadores da saúde, ou da família,
Trabalhando em hospital para pacientes com ou do paciente que não abandonou ou do que
tuberculose, um pesquisador preocupado com abandonou etc.
adesão ao tratamento (→ objeto de pesquisa) ve- Portanto, embora o recorte do objeto deter-
rifica que a maioria dos casos internados relacio- mine indiretamente os componentes amostrais,
na-se à reagudização do quadro clínico, aparen- estes são mais especificamente definidos pelos
temente relacionada ao abandono de tratamento objetivos. Na situação exemplificada, aceitando-
proposto (→ problema delimitado). se que o objeto-tema é adesão ao tratamento da
Um exemplo de questionamento central a tuberculose, a amostra deveria ser constituída
ser investigado poderia ser assim redigido: “Que por quem tem um discurso sobre o assunto, se-
fatores o paciente associa ao fenômeno de sua jam profissionais de saúde, agentes comunitá-
não-adesão ao tratamento e que sentidos psico- rios, familiares e amigos, sejam, evidentemente,
lógicos e socioculturais tais motivos têm para si?” os próprios doentes.
(→ problema formulado).
As hipóteses poderiam ser as mais variadas:
dificuldades objetivas de acesso ao tratamento Tamanho adequado da amostra
(físicas, sociais, econômicas, relacionais etc.), intencional
efeitos colaterais percebidos como da medica-
ção, falta de motivação psicológica (por não acre- Até aqui, discutimos a primeira de duas pergun-
ditar na eficácia, não acreditar que conseguiria tas que devem ser feitas na busca de uma amostra
seguir à risca o tratamento, não desejar se curar, adequada aos objetivos de uma pesquisa: quem
ou ainda, querer morrer ou contaminar outras selecionar? Outra pergunta crucial é: quantos se-

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lecionar? Isto é, qual o tamanho do grupo desses de uma dezena de possibilidades – porém seu
sujeitos. fechamento freqüentemente se dará por redun-
Nos estudos qualitativos, a questão “quan- dância de informações ou saturação, tema maior
tos?” nos parece de importância relativamente da presente discussão.
secundária em relação à questão “quem?”, em- Outras técnicas de interrupção de captação
bora, na prática, representem estratégias inse- de elementos amostrais podem ser confundi-
paráveis. Afinal, o que há de mais significativo das com a técnica da saturação. Foge do esco-
nas amostras intencionais ou propositais não se po deste artigo discuti-las, não obstante serem
encontra na quantidade final de seus elementos freqüentemente empregadas: o fechamento por
(o “N” dos epidemiologistas), mas na maneira exaustão (em que são incluídos todos os indi-
como se concebe a representatividade desses víduos disponíveis) e por cotas (em que se pré-
elementos e na qualidade das informações ob- determina a necessidade de contemplar algu-
tidas deles. mas características secundárias dos elementos
Apesar desta importância secundária, o esta- amostrais – faixa etária e sexo, por exemplo, cujos
belecimento de um número amostral fechado é indivíduos que as retêm serão deliberadamente
inevitável (como em qualquer empreendimento procurados). Em nenhuma delas há a procura
investigativo não censitário). Um erro metodo- apriorística por seguir uma lógica probabilística,
lógico no estabelecimento desse número final ainda que os participantes da pesquisa possam
pode comprometer a credibilidade dos achados advir de uma seleção desse tipo. Quando, por
e das análises realizadas 10. exemplo, num mesmo grande empreendimento
Nas pesquisas qualitativas, de qualquer for- de pesquisa convivem projetos de tratamentos
ma, este fechamento amostral ocorrerá por cri- quantitativos e qualitativos, a praticidade pode
térios de seleção que não consideram mensura- fazer que a fonte de recrutamento dos sujeitos
ções das ocorrências estudadas, ao contrário das seja a seleção randômica (por exemplo, no estu-
pesquisas quantitativas que, ao utilizarem amos- do de Loyola Filho et al. 12).
tragem probabilística, não devem prescindir des-
ta caracterização ao calcularem o “N” adequado
aos cálculos estatísticos. Saturação: exemplo operacional de
Diferentemente das pesquisas quantitativas, como constatar
a seleção dos elementos amostrais em pesqui-
sas qualitativas não decorre da mensuração da A avaliação da saturação teórica a partir de
distribuição de categorias como nos estudos uma amostra é feita por um processo contínuo
matematizados de características clínicas e de análise dos dados, começado já no início do
bio-sociodemográficas (como diagnósticos no- processo de coleta. Tendo em vista as questões
sográficos, perfis de personalidade, eficácia de colocadas aos entrevistados, que refletem os ob-
terapêuticas medicamentosas, idade, sexo, pro- jetivos da pesquisa, essa análise preliminar busca
cedência, tipo de moradia, situação conjugal, o momento em que pouco de substancialmente
escolaridade etc.). Isso não é necessário porque novo aparece, considerando cada um dos tópicos
os critérios a que os estudos qualitativos visam abordados (ou identificados durante a análise) e
não obedecem aos mesmos padrões de distri- o conjunto dos entrevistados.
buição de parâmetros biológicos ou dos fenô- Propomos na Tabela 1 uma representação es-
menos naturais em geral. A seleção dos elemen- quemática de um processo de coleta de informa-
tos decorre, sobretudo, da preocupação de que ções, em que os participantes apresentam suas
a amostra contenha e espelhe certas dimensões percepções e atribuições de significados sobre
do contexto 8, algumas delas em contínua cons- determinado tópico.
trução histórica. Note-se que nenhum dos discursos é igual a
A desnecessária representatividade estatísti- outro, no entanto todos apresentam elementos
ca é um dos motivos pelos quais as amostras qua- comuns com algum outro. No início, os acrés-
litativas são menores do que as necessárias nos cimos aos anteriores são evidentes. Posterior-
estudos quantitativos. No entanto, a necessidade mente, os acréscimos vão se rareando até que
de “fechamento” amostral exige do pesquisador deixam de aparecer a partir da entrevista 9.
a explicitação dos critérios para interromper a Após mais seis entrevistas confirmou-se a re-
seleção de casos novos, tornando-os inteligíveis petição.
aos futuros leitores dos relatórios e norteadores Nesse momento, poderíamos dizer que o
do andamento prático dos procedimentos de discurso do grupo amostral sobre o tópico em
captação. questão era {a,b,c,d,e,f,g,h,i,j,k,l}. Seria imprová-
Variadas são as técnicas para realizar uma vel que novas idéias aparecessem, mesmo que
amostra intencional, tendo Patton 11 listado mais chegássemos ao dobro das entrevistas.

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AMOSTRAGEM POR SATURAÇÃO EM PESQUISAS QUALITATIVAS EM SAÚDE 21

Entretanto, se na entrevista 25 aparecesse Tabela 1


o conjunto de informações {r,t,z}, poderíamos
Representação de um processo de coleta de informações (atribuições de significados quanto
supor que o informante pertence a outro grupo
ao tema “X”).
cultural ou que está à margem de sua cultura (po-
dendo, por exemplo, ser considerado portador
de graves problemas mentais, ou um sujeito cuja Entrevistado Conteúdo manifesto do entrevistado ou inferido pelo pesquisador

particular visão de mundo aponta para uma ten-


dência futura do grupo). Não sendo uma desco- 1 Afirma pensar: a,b,c,d

berta deste tipo o nosso objetivo, poderíamos ter 2 Relata ter vivenciado: c,e,f

parado na entrevista 15 ou 13. 3 Sugere a possibilidade de: a,d,g

Expomos na Tabela 2 uma análise preliminar 4 Relata saber: f,g,d

de entrevistas de um estudo qualitativo sobre 5 Opina não ser possível: h,b,d,k

adesão de pais de crianças deficientes ao trata- 6 Refere acreditar: f,b,c,h

mento, em realização na Universidade Federal de 7 Já conversou a respeito: c,i,g

Minas Gerais (UFMG). A categoria em questão é 8 Permite inferências sobre: b,c,d,j,f,k

“sentimentos dos pais diante da constatação de 9 Relata ter vivenciado: k,d,b,c,h,l

ter um filho deficiente”. 10 Já pensou, não acredita mais: d,h

Obsserve-se que a entrevista 2 acrescenta 11 Afirma pensar: a,d,f,c,h,l

bastante à primeira, mas a 3 e 4 já acrescentam 12 Relata ter vivenciado: a,b,j,l,h

menos, considerando o conjunto de informa- 13 Permite inferências: l,f,a

ções obtidas na duas primeiras. Daí por diante,o 14 Relata ter vivenciado: f,d,l,a,c,k

acréscimo ou não existe ou é considerado peque- 15 Relata ter vivenciado: c,f,b,h

no. Diante disso, existe uma possibilidade de que


a saturação tenha ocorrido com relação a este
objetivo nas 11 primeiras entrevistas, o que pode
e deve ainda ser confirmado com mais entrevis-
Tabela 2
tas, talvez uma ou duas.
Os sentimentos de tristeza, negação, deses- Análise preliminar de entrevistas de estudo sobre adesão de pais de crianças deficientes ao
pero, decepção, susto, frustração, medo, revolta, tratamento (categoria: sentimentos relatados e vivenciados).
vergonha, rejeição, culpa, resignação, aceitação
com o passar do tempo e desenvolvimento de
Entrevistado Conteúdo manifesto do entrevistado ou inferido pelo pesquisador
apego excessivo são os que o grupo manifesta
diante dessa vivência, ou permite que o pesqui-
1 Permite inferências: negação
sador infira estarem presentes. Com esse conjun-
Relata ter vivenciado: resignação
to de dados, este poderá considerar ter elementos
Opina ser possível: aceitação com o passar do tempo
suficientes para novas e substanciais elaborações
2 Relata ter vivenciado: desespero, decepção, susto, frustração, medo
teórico-conceituais sobre a categoria em ques-
Sugere a possibilidade: desenvolvimento de apego excessivo
tão, aprofundando o conhecimento sobre o tema
3 Relata ter vivenciado: desespero, medo, resignação, aceitação com
geral investigado.
o passar do tempo
Porém, se também for de seu interesse a for-
4 Relata ter vivenciado: desespero, decepção, susto, frustração,
ma como tais sentimentos são expressos pelos
revolta
informantes (por exemplo, que comportamentos
5 Não acrescenta
pregressos são associados pelos informantes a
6 Relata ter vivenciado: vergonha, resignação
esses sentimentos), a pré-análise em busca de
Opina ser possível: rejeição
saturação deve recomeçar. Para esta nova cate-
7 Relata ter vivenciado: tristeza, medo
goria, e para as demais que sejam elaboradas, a
8 Não acrescenta
saturação poderá ocorrer em outro ponto do pro-
9 Não acrescenta
cesso de coleta de dados, não necessariamente
10 Relata ter vivenciado: tristeza, vergonha
na entrevista 11.
Permite inferências: culpa
Note-se que tratamos neste exemplo de uma
11 Não acrescenta
pré-categoria, pois, diante do objeto de pesqui-
sa “adesão de pais de deficientes ao tratamento”,
é de certa forma previsível que os sentimentos
vivenciados pelos participantes da amostra ve-
nham a se constituir como uma categoria de aná-
lise ou mesmo um objetivo específico do estudo.

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Indo a campo sem pré-categorias avaliação e tratamento mental dos dados pelo
pesquisador com base em seu escopo teórico e
Diferentemente deste exemplo, há situações em que, a partir deste, julga-os já suficientes.
que o pesquisador vai a campo sem pré-catego- Um segundo emprego controverso, e talvez
rias explicitadas. É o caso de estudos com um equivocado, refere-se à expressão amostra sa-
caráter exploratório ainda mais marcante, nos turada quando, na prática, o fechamento amos-
quais a população é desconhecida, e não existem tral se deu por exaustão (os participantes foram
problemas ou objetivos específicos nitidamente todos os que faziam parte do universo definido
delimitados, tampouco hipóteses ou pressupos- pelo pesquisador). No estudo de Goulart et al. 13,
tos claramente definidos. por exemplo, sobre as representações das mães
Este pode ser o caso de muitos estudos etno- quanto ao processo de morte de seus filhos no
gráficos na área da saúde, os quais pressupõem primeiro ano de vida, num bairro de Belo Hori-
a imersão parcial ou total do pesquisador na zonte, Minas Gerais, todas aquelas cujos filhos
cultura abordada. Dos fenômenos observados, faleceram num determinado período foram en-
reportados e vivenciados, ele fará necessaria- trevistadas. Neste caso, a palavra utilizada para
mente, mesmo que não intencionalmente, um descrever seu fechamento não parece corres-
recorte, que constituirá o seu relato e será objeto ponder ao efetivamente realizado. É possível,
de suas reflexões, constituindo objetivos decla- porém, que uma amostra fechada por exaustão
rados a posteriori. Esses objetivos, embora não seja suficiente para saturar algumas ou todas as
anteriormente explicitados ou discerníveis, já categorias formuladas pelo pesquisador. Tratar-
faziam parte ou então passaram a fazer parte do se-ia, no entanto, de uma constatação de satu-
estudo, à medida que este se desenvolveu. ração não decorrente do próprio processo de
Numa situação desse tipo, o pesquisador pesquisa.
provavelmente não interromperia sua busca en- A expressão “pouco a acrescentar” pode
quanto novas explicações, significados ou visões igualmente ser problematizada: o que seriam
de mundo estivessem surgindo sobre os assuntos “poucos” dados novos ou “certa reincidência das
e fatos focalizados. Diante disso, diríamos que o informações” 8, as quais justificariam a interrup-
pesquisador sempre virá a julgar, mesmo de for- ção de coleta de dados?
ma não intencional, se houve saturação teórica “Pouco a acrescentar” toma como referência
dos significados, representações e simbolizações aquilo que o pesquisador objetivou atingir, um
que a cultura estudada atribui aos fenômenos certo grau de aperfeiçoamento teórico da discus-
focados. são de uma categoria. O conteúdo das respostas
dos informantes às questões formuladas (e im-
plícitas nos objetivos) “pouco acrescentam” a tal
Empregos polêmicos de saturação aperfeiçoamento. Contudo, outro pesquisador
ou o mesmo, achando necessário aprofundar a
Consideramos cabível, neste ponto, comentar discussão ou se apoiando em referenciais teóri-
alguns empregos polêmicos do termo saturação. cos diferentes, podem sentir que necessitam de
Eles têm sido observados por nós, algumas vezes, mais ou de outros dados.
em situações de exposição oral de argumentos Além disso, dependendo dos objetivos da
em eventos ou reuniões científicas e em relató- investigação, no momento em que fica bem
rios escritos (artigos e teses). caracterizado que um determinado conjunto
Primeiramente, o termo pode assumir uma de percepções a partir da amostra é repetitivo,
conotação que sugere que o pesquisador ficou as diferenças que venham a se apresentar po-
saturado, ou seja, farto de entrevistar e ouvir dem ser mais valorizadas e exploradas. Pode ser
respostas semelhantes, resolvendo então in- um momento de questionar sobre um possível
terromper a coleta de dados. Caso ocorra, tal movimento que esteja levando o pesquisador
fenômeno estaria situado na esfera mental do a simplificar excessivamente sua análise. Ca-
pesquisador e não seria, obviamente, um parâ- sos desviantes ajudariam a melhor demarcar a
metro metodológico para encerrar a captação extensão das análises, apontando seus limites,
de novos elementos. Tratar-se-ia possivelmente e uma maior variedade da representação (in-
de um estado de impaciência, reflexo de uma cluindo esses casos extremos ou negativos, ma-
predisposição para perceber somente alguns ximizando a representação de grupos numerica-
fenômenos 10, talvez mais aderidos à realidade mente minoritários da população em estudo 14)
empírica. mostraria o compromisso com a transparência
Por outro lado, o eventual emprego da expres- da investigação.
são pesquisador saturado pode corresponder a
uma figura de linguagem referente à percepção,

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Valorizar o que se repete ou as aprofundamento pode corresponder a diferentes


diferenças? fenômenos, de acordo com a linha teórica adota-
da. Em sociologia, por exemplo, corresponderia
Observe-se, então, que o fechamento da amos- à investigação dos modos como se concretizam,
tra resulta de um balanço que o pesquisador faz nos indivíduos, os comportamentos inerentes à
sobre valorizar, no conjunto das informações estrutura de uma sociedade 16. Em psicanálise,
obtidas, as diferenças ou, em contraposição, o por seu turno, corresponderia à investigação da
que se repete. Isso leva à reflexão sobre a relação dinâmica transferencial ímpar entre um entre-
indivíduo-grupo e sobre qual desses aspectos a vistado e um pesquisador 17.
abordagem teórica do pesquisador privilegia. Considerando um mesmo estudo, diferentes
Segundo os teóricos da Análise do Discurso, tipos de informações e objetivos específicos terão
lê-se na fala de um indivíduo o discurso do grupo diferentes momentos de saturação. Por exemplo,
e o seu próprio discurso 15. Diz-se “seu próprio numa pesquisa sobre acidente escolar, da qual
discurso” não no sentido de ter sido construí- um de nós participou (J. R.) 18, considerou-se que
do fora de um contexto histórico e interacional, todos os conceitos sobre o que é acidente apare-
independente das condições de sua produção ceram nas primeiras 11 de um total 17 entrevistas
e das determinações históricas e sociais de sua realizadas com coordenadores de escolas de en-
formação, mas no sentido da forma original pe- sino fundamental. Já as diferentes atribuições de
la qual esse discurso mais amplo foi assimilado responsabilidade sobre a prevenção de acidente
e organizado pelo indivíduo. As diferenças (o apareceram nas 13 primeiras. A maior ou menor
que se percebe como individualizações da fala) homogeneidade da amostra no que diz respeito
seriam as nuances que a linguagem adquire ao à cultura, tradição, gênero, faixa etária, experiên-
ser assimilada às vivências pessoais e aos con- cia vivida etc., também influenciará o momento
tornos que o enunciado adquire, determinados de saturação. No estudo citado, sendo todos os
pelas condições imediatas da enunciação. Tais entrevistados profissionais de escolas privadas,
condições imediatas (onde se diz, de onde se diz de classes sócio-econômicas média e alta, presu-
e para quem se diz) definem para o sujeito o que me-se que a saturação tenha ocorrido mais rapi-
pode, o que deve e como pode ser dito naquele damente do que se tivessem sido entrevistados
momento e situação. Mas as possibilidades de também coordenadores de escolas públicas de
um indivíduo dizer são limitadas pelo tempo e bairros pobres. Uma amostra constituída somen-
espaço social a que pertence, o que o leva a ser te de jovens adultos diabéticos, com o objetivo
identificado, pelo observador, como pertencente de captar representações relativas à restrição de
a um determinado grupo. alimentos, estaria saturada mais rapidamente do
Dessa forma, as semelhanças predomi- que se lá inseríssemos jovens adultos não diabé-
nantemente indicarão, na perspectiva social, ticos, e assim por diante.
o discurso do grupo, da formação social à qual Num extremo deste raciocínio, estaria um
pertence o sujeito ou, na perspectiva psicana- processo de amostragem que não se satura ou que
lítica, as estruturas do aparelho psíquico mais “satura o pesquisador”. Seria o caso, por exemplo,
universais ou gerais. Por sua vez, as diferenças se resolvêssemos pesquisar em profundidade as
marcarão as vivências pessoais e as condições vivências de luto pela perda de um filho, obtendo
imediatas de produção da fala, podendo incluir histórias de vida tópicas de pessoas que vivencia-
os fenômenos ditos transferenciais na relação ram essa perda. Em tese, tantas seriam as formas
com pesquisador ou com a instituição onde a quantos seriam os indivíduos.
pesquisa é conduzida. Consideramos, então, que, dependendo do
Logo, a constatação de saturação depende objeto ou do problema focalizado, diferentes
dos objetivos do pesquisador: se ele tem como níveis de abrangência do contexto investigado
objetivo a captação daquilo que caracteriza o são requeridos, na tentativa de captar os dife-
grupo, a saturação amostral se dá num deter- rentes tipos ou níveis de simbolização presentes
minado nível. Este nível poderá garantir maior nas manifestações individuais dos participantes
validade externa, ou seja, maior transferibilida- de uma pesquisa: número de indivíduos repre-
de das interpretações para contextos mais am- sentantes desse contexto, diferentes tempos de
plos. Porém, se lhe interessa o conhecimento duração de entrevista ou capacidades de insight
aprofundado do sujeito, essa saturação poderá, dos entrevistados, assim como diferentes níveis
hipoteticamente, nunca ocorrer. Buscar-se-ia, de aprofundamento interpretativo por parte do
neste último caso, uma maior validade interna pesquisador. Por exemplo, em pesquisa sobre vi-
das interpretações, ou seja, um aprofundamento vências emocionais a respeito de determinado
nos sujeitos que compõem a amostra, sem a pre- problema de saúde, dependendo do nível focado,
ocupação precípua de ampla generalização. Tal nova entrevista com um mesmo sujeito pode ser

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necessária para que o pesquisador conclua a res- contexto mais amplo e, como vimos, eles influen-
peito de determinado mecanismo de defesa uti- ciam diretamente todos os aspectos do processo
lizado pelo entrevistado que, por sua vez, poderia de amostragem.
também precisar de mais tempo para tornar tal Para ilustração desses fatores, alguns deles
mecanismo evidente. imponderáveis, comparamos a saturação, nesse
sentido amplo, ao conceito de saturação na área
físico-química. Recorremos ao auxílio de metá-
Abrangência da generalização foras advindas desta área do conhecimento que,
ao que nos parece, encontram-se implícitas já na
Do primeiro exemplo mencionado (acidente es- origem da formulação do conceito de saturação
colar), teríamos resultados que se aplicariam ao teórica 2.
grupo como um todo e, mesmo que parcialmen- Nesta área do conhecimento, o termo satura-
te, a cada indivíduo. A generalização se apoiaria ção é empregado para descrever comportamen-
na análise das semelhanças históricas, sociais tos de materiais (solutos) transferidos para um
e culturais entre o grupo estudado e o foco da meio específico (solvente): uma solução está sa-
aplicação. Do segundo caso (luto), quanto mais turada quando a concentração do soluto é a má-
aprofundássemos, mais teríamos resultados que xima possível para as determinadas condições
se restringiriam aos indivíduos pesquisados. A físico-químicas do solvente (temperatura e pres-
generalização possível, aqui, apoiar-se-ia na ava- são, por exemplo). Outra possibilidade de empre-
liação caso a caso dos sujeitos que compuseram a go físico-químico dessa expressão se dá quando
amostra e no julgamento dos leitores do relatório um determinado material gasoso se encontra em
de pesquisa sobre a plausibilidade de aplicação equilíbrio com seu estado líquido, sendo impos-
dos resultados apresentados em casos e settings sível uma transferência maior de um estado para
específicos. Essas diferenças nos remetem nova- outro, também em determinadas condições.
mente à afirmação de que saturar ou não, bem Dir-se-ia, portanto, que o processo de coleta
como o momento em que isto acontece, depende de dados se satura quando há a percepção de que
dos objetos e dos objetivos do pesquisador. os dados novos a serem coletados decantam-se,
isto é, não são diluídos ou absorvidos na formu-
lação teórica que se processa, não mais contri-
Recurso a metáforas para compreender buindo para seu adensamento. Isso se daria por
saturação diferentes motivos:
• Por questões práticas do processo de pesqui-
Com base no exposto, parece inerente à técnica sa, como possibilidade de acesso aos informan-
de fechamento amostral por saturação um cer- tes, tempo disponível para a sua realização ou a
to grau de imprecisão ou aproximação quanto a abrangência ou tamanho possíveis do relatório. A
um número ideal de componentes. Isto é exem- metáfora química seria a de um continente (um
plificado pelo simples fato de que a constatação frasco) com pouca capacidade e que comporta
de redundância de informações depende dire- pouco solvente e, em decorrência, pouco soluto
tamente de certa quantidade de entrevistas re- (em termos absolutos). Exemplificando: em uma
alizadas posteriormente à saturação. Assim, o pesquisa em andamento sobre violência domés-
ponto exato de saturação amostral é determi- tica contra a criança, da qual um de nós parti-
nado, logicamente, sempre a posteriori, embora cipa, os pais de classe média e alta não foram
sua ocorrência tenha sido prevista no desenho entrevistados por impossibilidade de acesso.
da pesquisa. • Por questões ontológicas, quando o material
Na medida em que as ferramentas utilizadas obtido não é solúvel nas ferramentas ou para-
na constatação de saturação não são de ordem digmas interpretativos disponíveis; isto é, alguns
matemática, e sim cognitiva (envolvendo a per- objetos não seriam reconhecíveis e, assim sendo,
cepção do pesquisador e seu domínio teórico), seria impossível serem utilizados e interpretados
vários parecem ser os fatores que intervêm nesse (diluídos). Na falta de um referencial teórico sufi-
processo, podendo influenciar a decisão de in- cientemente denso (utilizando termo de Glaser &
terromper o recrutamento da amostra por con- Strauss 2), o pesquisador não conseguiria trans-
siderá-la saturada, usando agora a expressão no formar certos aspectos do contexto com que se
sentido de “amostra completa”. Cabe ressaltar, defronta em dados, resultando em pontos-cegos
ainda, que qualquer projeto de pesquisa se insere ao conhecimento.
num contexto que extrapola questões puramen- • Por questões cognitivas e das dinâmicas psi-
te metodológicas, situando-se num determina- cológicas e culturais do pesquisador e ou dos
do contexto político de produção científica. Os pesquisados. Quando essas questões estão pre-
objetivos de pesquisa inserem-se também neste sentes, talvez correspondam aos elementos beta

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AMOSTRAGEM POR SATURAÇÃO EM PESQUISAS QUALITATIVAS EM SAÚDE 25

conceituados pelo psicanalista Bion 19: elemen- simbólicos culturais dos participantes, elas po-
tos dos participantes da pesquisa não apreen- dem ser vistas como uma variação dos citados
didos (neste caso, por quem coleta e analisa os elementos beta: símbolos cognitivamente não
dados), sendo então mentalmente descartados, perceptíveis ao pesquisador, pontos psicológica
não absorvidos, rejeitados de antemão por uma e culturalmente cegos.
simples impossibilidade psicológica de serem Nestes casos, a metáfora química seria a de
percebidos. No caso das pesquisas qualitativas um solvente (pesquisador) que, em virtude da
na área clínica, por exemplo, em que os ele- baixa temperatura (isto é, insuficientes condi-
mentos de angústia da dupla pesquisador-en- ções cognitivas, culturais ou psicológicas), ab-
trevistado estão profundamente atuantes, este sorve e comporta pouco soluto.
talvez seja um dos principais determinantes do • Por questões metodológicas do desenho da
decantamento (descarte) de possíveis dados. O pesquisa: o objetivo geral do estudo é restrito,
fenômeno pode decorrer de questões do pró- o caráter exploratório dado à investigação é pe-
prio pesquisador – incapaz de escutar e analisar queno, objetivando responder pontualmente a
certos conteúdos, por uma dificuldade de rap- uma ou a poucas questões. Metaforicamente,
port com determinado entrevistado –, ou dos não haveria incapacidades, insuficiências ou ca-
sujeitos pesquisados – incapazes de transmiti- racterísticas inerentes aos materiais (solvente/
los de maneira inteligível ou psicologicamente soluto – pesquisador/pesquisados) que os tor-
audível, ou mesmo de percebê-los – ou, ainda, nariam pouco compatíveis, mas uma opção por
da interação entre ambos. Trata-se de fenômeno restringir o que será utilizado de ambos. Exem-
análogo ao comentado quanto às questões on- plificando: o objetivo pode se limitar à identifi-
tológicas, com a diferença de que haveria, neste cação dos termos mais comuns utilizados por
caso, ferramentas teóricas interpretativas sufi- uma população, para aperfeiçoar um questio-
cientes, não ocorrendo, porém, a apreensão de nário padronizado. Neste caso, a investigação
dados. estaria exposta a dúvidas sobre o seu caráter de
Considerando todo o grupo amostral, essa pesquisa científica, já que é necessário algum re-
dificuldade é minimizada pelo fato de outras conhecimento, por parte do meio científico, de
pessoas serem também entrevistadas, já que as que os dados coletados se refiram a um contexto
informações individuais se complementam e/ou mais amplo em termos de espaço ou tempo do
se sobrepõem. O que não foi apreendido a par- que a dos próprios dados. Talvez possa ser consi-
tir da interação com um participante, poderá ser derado procedimento eminentemente técnico, e
com um outro. não propriamente científico.
A interrupção da coleta de dados decorre de
um juízo consciente do pesquisador. Todavia, no
caso supracitado, haveria processos não cons- Conclusão
cientes influenciando a coleta, representando
coisas que “não podem ser ditas ou não podem O conceito de saturação teórica é amplamente
ser ouvidas”, ficando indisponíveis para o pes- utilizado em pesquisas qualitativas na área da
quisador, para o pesquisado ou para ambos. Isso saúde, sendo invariavelmente citado em estudos
influenciaria também a análise dos dados efeti- metodológicos que contemplam o tópico amos-
vamente colhidos, pois essas questões enviesam tragem intencional.
o olhar e a reflexão do pesquisador. Este poderia, O conceito encontra respaldo científico no
desavisadamente, decidir por um ponto de sa- pressuposto da constituição social do sujeito que,
turação incorreto para seus objetivos, pois não na Teoria das Representações Sociais, reflete-se
estaria consciente da presença desse fenômeno. no conceito de determinação social das repre-
Porém, estando o corpus das entrevistas disponí- sentações individuais e, na Análise do Discurso,
vel, outros leitores/analistas de dados poderiam no conceito de determinação histórica e social
perceber indícios de sua ocorrência e considerar das formações discursivas e da fala 15,20.
que o mais correto teria sido outro ponto de sa- Amostragem por saturação é uma ferramenta
turação. Trata-se de um exemplo de como pode conceitual de inequívoca aplicabilidade prática,
se originar a imprecisão no número amostral, podendo, a partir de sucessivas análises paralelas
comentada anteriormente. à coleta de dados, nortear sua finalização.
Quando as questões culturais estão presen- O ponto de saturação da amostra depende
tes, advindas, por exemplo, de posição excessi- indiretamente do referencial teórico usado pelo
vamente etnocêntrica do pesquisador (pouca pesquisador e do recorte do objeto e diretamente
familiaridade com o objeto de estudo, barreiras dos objetivos definidos para a pesquisa, do nível
de linguagem, insuficiente aculturação etc.), de profundidade a ser explorado (dependente do
incapacitando-o a compreender certos valores referencial teórico) e da homogeneidade da po-

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pulação estudada. Entretanto, por ser uma ferra- fatores identificados que possam ter contribuído
menta inerentemente influenciada por fenôme- para a decisão de um determinado ponto de sa-
nos cognitivos e afetivos da dupla pesquisador- turação amostral. Deve-se evitar a simples men-
pesquisados, na prática da pesquisa qualitativa ção à utilização desse recurso metodológico, algo
o encontro desse ponto de saturação está sujeito possivelmente representativo de uma ilusão de
a imprecisões. transparência 21 de um procedimento comple-
Consideramos fundamental para o rigor xo, que contribui decisivamente para a validade
científico e transparência das pesquisas quali- científica do instrumento de coleta e análise de
tativas a menção, no relatório, do conjunto de dados.

Resumo Colaboradores

A transparência e a clareza dos relatórios de pesquisa, Os três autores contribuíram igualmente para a redação
destacando a etapa de coleta de dados, são conside- do artigo, tendo B. J. B. Fontanella compilado e organi-
radas parâmetros importantes de avaliação do rigor zado as progressivas modificações que resultaram no
científico dos estudos qualitativos. Este texto visa a texto final.
refletir sobre o emprego do conceito metodológico de
amostragem por saturação teórica, empregado fre-
qüentemente nas descrições de pesquisas qualitativas
nas diversas áreas do conhecimento, relevantemente,
no campo da atenção à saúde. Discutimos e problema-
tizamos os seguintes tópicos: definição de fechamento
amostral por saturação teórica; dificuldades de acei-
tação e operacionalização de amostras intencionais
(exemplificando-as), o tamanho adequado da amos-
tra intencional, o significado de valorizar o que se re-
pete ou as diferenças contidas nos relatos da amostra,
os usos inadequados de expressões que empregam o
termo saturação e, finalmente, possíveis metáforas pa-
ra compreender o conceito.

Amostragem; Pesquisa Qualitativa; Metodologia

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Recebido em 16/Jan/2007
Versão final reapresentada em 24/Mai/2007
Aprovado em 25/Jun/2007

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