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Um antegosto do céu

uma abordagem bíblica e equilibrada do poder curador de Deus

David Petts

Sobre o Autor

Após vários anos no ministério pastoral, o Dr. David Petts serviu como
Director de Mattersey Hall entre 1977 e 2004. Agora, como professor
internacional da Bíblia, realiza seminários e estudos bíblicos e prega em igrejas,
institutos e universidades.
Embora o ministério de David seja transdenominacional, como pastor das
Assembleias de Deus muito do seu ministério tem-se desenvolvido no âmbito do
movimento pentecostal. Serviu como:

Presidente da Associação Pentecostal Teológica Europeia


Vice-presidente da Comunhão Pentecostal Europeia
Membro do Comité Executivo da Comunhão Pentecostal Mundial.

Ex-bolseiro de Brasenose College, Oxford, o percurso académico de David


inclui um MA, um MTh e um PhD em Teologia. É Professor Honorário da
Universidade de Gales. É casado com Eileen de quem tem recebido um forte apoio
para o seu ministério durante mais de 40 anos. Os seus três filhos são todos
casados e activamente envolvidos no ministério cristão.
Para mais informações, consultar a sua página

www.davidpetts.org
Índice

INTRODUÇÃO
Um milagre extraordinário

PRIMEIRA PARTE - PASSAGENS BÍBLICAS SOBRE CURA

CAPÍTULO UM

Porquê crer que Deus cura?

No Velho Testamento

No Ministério de Jesus

Nos Actos dos Apóstolos


No ensino da primitiva igreja

CAPÍTULO DOIS

Cura no Velho Testamento

Diferentes usos da palavra «cura»

Promessas de cura no Velho Testamento


Exemplos de cura no Velho Testamento
Exemplos de pessoas que não foram curadas
Dificuldades com o conceito de o Senhor enviar a doença
A Promessa do Messias

CAPÍTULO TRÊS

Lições sobre cura em Mateus

O Homem com Lepra (vv. 1-4)


A Fé do Centurião (vv. 5-13)
Jesus cura muitos vv. 14-17)
Conclusão

CAPÍTULO QUATRO

Lições sobre cura em Marcos

Jairo e a mulher doente

Semelhanças e diferenças entre eles


Como foram supridas as suas necessidades
Mais do que cura
Conclusão

CAPÍTULO CINCO

Lições sobre cura em Lucas

O paralítico (5:17-26)

A mulher com a coluna curvada (13:10-17)


Os dez leprosos (17:11-19)
Conclusão

CAPÍTULO SEIS

Lições sobre cura em João

O paralítico no tanque de Betesda (João 5:1-15)

O cego de nascença (João 9:1-25)


Conclusão

CAPÍTULO SETE
Lições sobre cura dadas pelos primeiros discípulos

A chamada dos Doze

O envio dos setenta


A Grande Comissão (Marcos 16:15-seg.)
Conclusão

CAPÍTULO OITO

Lições sobre cura em Actos

A cura do coxo à entrada do templo

A cura dos doentes na ilha de Malta


Conclusão

CAPÍTULO NOVE

Lições sobre cura nas epístolas - Tiago

O contexto geral em que se enquadram os versículos

A intenção precisa dos versículos


As razões de a cura poder não ser um resultado imediato
Conclusão

SEGUNDA PARTE - UMA TEOLOGIA BÍBLICA DA CURA

CAPÍTULO DEZ

De onde vem a doença?

A doença resulta do pecado de Adão

A doença provocada por pecado pessoal


A doença infligida por Satanás
A doença pode vir de Deus?

CAPÍTULO ONZE

Jesus morreu pelas nossas doenças?

Explicação da Doutrina

O argumento de Mateus 8:17


O argumento de 1 Pedro 2:24
Conclusão

CAPÍTULO DOZE

A Cura e o Evangelho de Salvação

A cura faz parte da salvação?


A cura faz parte do evangelho?

CAPÍTULO TREZE

Cura e Fé
Casos em que o doente tem fé para ser curado

Casos em que mais alguém tem fé para a cura


Lições gerais sobre a fé

CAPÍTULO CATORZE
Cura como dom espiritual
A natureza dos dons espirituais

O propósito dos dons espirituais


Receber os dons espirituais

CAPÍTULO QUINZE
Cristãos doentes no Novo Testamento

A Fraqueza e o Espinho na Carne de Paulo

Trófimo, Epafrodito e Timóteo


Os Coríntios

CAPÍTULO DEZASSEIS

Cura Médica

Passagens que possivelmente revelam uma atitude negativa.

Passagens que revelam uma atitude positiva.


A hodierna atitude correcta

CAPÍTULO DEZASSETE
Cura e sofrimento
O sofrimento faz parte do propósito de Deus para o Seu povo?
O sofrimento no Novo Testamento inclui a doença?
Sofremos porque estamos a viver num universo caído
O próprio Deus entrou no nosso sofrimento

CAPÍTULO DEZOITO

Um sabor a céu

A cura derradeira – a redenção do corpo.

A obra do Espírito como um antegosto dessa cura final


Conclusão

TERCEIRA PARTE - A CURA NA PRÁTICA


CAPÍTULO DEZANOVE

A cura no evangelismo e no ministério pastoral

Defesa de uma visão biblicamente equilibrada sobre a cura

Cura dos doentes na obra do evangelismo


Oração pelos doentes no ministério pastoral
Saber lidar com sensibilidade com quem não for curado

CAPÍTULO VINTE

A mais importante de todas as curas

Porque precisamos de salvação

Os meios de salvação

APÊNDICE

Problemas com a reivindicação de promessas


INTRODUÇÃO

Um milagre extraordinário

Cresci a crer em milagres. Desde os meus mais tenros anos de idade, recordo-
me de me dizerem como uma das minhas tias foi miraculosamente curada em
resposta à oração. Chamava-se May e era surda-muda desde nascença. Quando
tinha cerca de vinte anos, a minha avó levou-a a um culto de cura realizado pelo
evangelista pentecostal George Jeffreys, que lhe impôs as mãos e orou por ela.
A princípio não houve manifestação imediata de cura, mas ao voltarem para
casa para Poplar no East End de Londres, desceram para apanhar o metropolitano.
De repente, com uma expressão de choque no rosto, a tia May levou ambas as mãos
aos ouvidos. Podia ouvir o barulho do comboio a aproximar-se pelo túnel em direcção
ao cais de embarque!
Desde que nasceu até àquele dia, nunca ouvira, mas agora podia ouvir e poucas
semanas depois começava a falar. O meu pai, Stanley Petts, era seu irmão mais novo
e quando, anos mais tarde, me contaram na escola que não havia milagres, ele
apressou-se a recordar-me a cura da tia May. Suponho que é por essa razão que
nunca duvidei do poder de Deus operar milagres e creio com firmeza que devemos
esperar ver hoje milagres. Por isso, sempre tive um interesse especial por milagres
de cura.
Mas a cura de minha tia não é a única razão para esse interesse. Já vi alguns
milagres espantosos de cura no ministério de evangelistas pentecostais como T. L.
Osborn e Reihnardt Bonnke e experimentei também algumas respostas maravilhosas
à oração por cura no meu ministério pessoal, algumas das quais registadas mais
tarde neste livro. Por outro lado, ao fim de muitos anos de ministério pastoral,
tenho visto com alegria homens e mulheres de fé sofrerem doenças que não eram
curadas, mesmo depois de muita oração. E, no entanto, sou pastor de uma
denominação que oficialmente crê na cura e, na verdade, essa cura está disponível
«na expiação».
Talvez seja por isso que quando me sugeriram que fizesse uma pós-graduação
em teologia, decidi que o meu doutoramento seria sobre o tema da cura e da
expiação (1). A minha conclusão foi que embora haja sem dúvida um sentido em que a
cura divina surge em resultado da morte expiatória de Jesus, é apesar de tudo um
erro afirmar que Jesus levou na cruz as nossas doenças no mesmo sentido em que
carregou os nossos pecados.
A minha compreensão de cura em relação à expiação é que a doença no mundo
é um resultado do pecado de Adão. A morte de Cristo na cruz lidou com o pecado de
Adão. Portanto, a morte de Cristo lidou também com a causa da doença.
Consequentemente, os cristãos podem esperar hoje a cura. Mas o resultado final da
vitória de Cristo no Calvário só será consumada quando Ele voltar segunda vez.
Portanto, alguns cristãos podem não ser curados antes da vinda de Jesus. As curas
experimentadas hoje devem ser vistas como a obra do Espírito que é as primícias da
idade vindoura. Esta é a compreensão reflectida neste livro.
Como cristão que crê na Bíblia, estou convencido que o lugar onde procurar as
respostas às nossas perguntas encontra-se na Bíblia. Claro que há mistérios sobre o
sofrimento que não resolveremos deste lado do céu, mas tudo o que Deus quer que
saibamos a Seu respeito aqui é revelado na Bíblia (Deuteronómio 29:29).
Isso, claro, parece muito simples mas de facto há em geral mais do que uma
forma de encarar a verdade e o tema da cura não é excepção. A Bíblia faz algumas
afirmações muito claras sobre o poder e a disponibilidade de Deus em curar, mas
também fala em locais em que Deus envia a doença e descreve casos de pessoas
justas que adoeceram.
Assim, neste livro, tentei responder a algumas dessas perguntas difíceis que
muitos de nós enfrentam. Na Primeira Parte, analisamos a maioria das curas
registadas na Bíblia e procuramos aprender o possível com cada uma delas. Depois,
na Segunda Parte, adoptamos uma abordagem mais teológica e tentamos juntar
algumas das lições que aprendemos na Primeira Parte e, ao fazê-lo, desenvolver uma
doutrina bíblica equilibrada de cura que, assim espero, não só encorajará a fé para a
cura como também oferecerá esperança aos que ainda não foram curados. Por fim,
na Terceira Parte, consideramos abordagens práticas ao ministério dos doentes
hoje.

NOTAS
(1) Petts, David, Healing and the Atonement, Tese de doutoramento
apresentada na Universidade de Nottingham, 1993. A partir de agora referir-me-ei
a ela apenas como Thesis.
PRIMEIRA PARTE
PASSAGENS BÍBLICAS SOBRE CURA

CAPÍTULO UM

Porquê crer que Deus cura?

A Bíblia revela de modo muito claro que Deus é um Deus sarador. Neste
primeiro capítulo, a nossa abordagem será muito simples Vamos analisar um leque de
passagens bíblicas que mostram que Deus não só é capaz como está disposto a curar
o Seu povo. Isso não significa, naturalmente, que não haja problemas em crer na
cura divina (1), em especial por parte dos que viram um ente querido sofrer ou
morrer apesar das suas orações. Mais tarde, falaremos mais sobre o assunto, mas
por agora, é importante compreender por que razão, se cremos que a Bíblia é a
Palavra de Deus, devemos crer de facto hoje na cura divina. Neste capítulo, iremos
mostrar que a Bíblia revela que Deus é um Deus que cura:

• No Velho Testamento.
• No ministério de Jesus.
• Nos Actos dos Apóstolos
• No ensino da primitiva igreja.

No Velho Testamento

Há várias passagens no Velho Testamento que mostram o poder e a


disponibilidade de Deus curar. Talvez a mais importante seja Êxodo 15:26, onde
Deus diz:

Se ouvires atento a voz do Senhor teu Deus e obrares o que é recto diante de
Seus olhos e inclinares os teus ouvidos aos Seus mandamentos e guardares
todos os Seus estatutos, nenhuma das enfermidades porei sobre ti, que pus
sobre o Egipto, porque eu sou o Senhor que te sara.

No capítulo seguinte, analisaremos mais de perto esta e outras promessas de


cura do Velho Testamento.
No Ministério de Jesus

Várias passagens do Novo Testamento indicam que, na pessoa de Jesus, temos


uma revelação clara de como Deus é. Na realidade, Jesus é Deus (2). João 1:1
refere-se a Jesus como «a Palavra» e diz-nos que a Palavra era Deus. Hebreus 1:3
declara que:

O Filho é o resplendor da Sua glória e a representação exacta do Seu ser


e Colossenses 1:16 revela que

Ele é a imagem do Deus invisível.

Estes versículos mostram-nos claramente não só que Jesus mais não era que
Deus em carne humana, como se queremos saber como Deus é, O veremos na pessoa
de Jesus (cf. João 14:9).
Ora, se concentrarmos a atenção na vida e no ministério do Senhor Jesus,
torna-se claramente evidente que Jesus revela Deus como um Deus que cura.
Consideremos as passagens seguintes:

E percorria Jesus toda a Galileia, ensinando nas suas sinagogas e pregando o


Evangelho do reino e curando todas as enfermidades e moléstias entre o povo.
E a sua fama correu por toda a Síria e traziam-lhe todos os que padeciam,
acometidos de várias enfermidades e tormentos, os endemoninhados, os
lunáticos e os paralíticos e ele os curava. (Mateus 4:23-24).

E ele com a sua palavra expulsou deles os espíritos e curou todos os que
estavam enfermos. (Mateus 8:16).

E percorria Jesus todas as cidades e aldeias, ensinando nas sinagogas deles e


pregando o evangelho do reino e curando todas as enfermidades e moléstias
entre o povo (Mateus 9:35).

E onde quer que entrava, ou em cidade ou aldeia ou no campo, apresentavam os


enfermos ... e todos os que lhe tocavam saravam. (Marcos 6:56).

E grande multidão de povo ... que tinha vindo para o ouvir e serem curados das
suas enfermidades, como também os atormentados dos espíritos imundos; e
eram curados. E toda a multidão procurava tocar-lhe, porque saía dele virtude
e curava todos. (Lucas 6:17-19). (3)
Estas passagens declaram de forma enfática que em muitas ocasiões Jesus
curou todos os doentes e embora houvesse momentos em que Jesus não curou
ninguém presente (e.g. os que se encontravam no tanque de Betesda, em João 5),
certamente nunca recusou curar os que iam a Ele em fé. Mais ainda, é-nos dito que
Ele ordenou aos Seus discípulos que curassem os doentes. Em Mateus 10:1, 7-8,
lemos:

Deu-lhes poder sobre os espíritos imundos e para curarem toda a enfermidade


e todo o mal...
E indo, pregai dizendo: É chegado o reino dos céus. Curai os enfermos, limpai
os leprosos, ressuscitai os mortos, expulsai os demónios... (4)

E a comissão para os Seus discípulos curarem os doentes não se limitou ao


período do ministério terreno de Jesus. Era clara intenção de Jesus que deveria
continuar após a Sua ascensão ao céu. Depois de dar aos discípulos a grande
comissão de irem a todo o mundo e pregarem as boas novas a toda a criatura,
prometeu-lhes em Marcos 167:17-20 que

...estes sinais seguirão aos que crerem. Em meu nome expulsarão os demónios...
e porão as mãos sobre os enfermos e os curarão.

A autenticidade de Marcos 16:9-20 é por vezes posta em causa com base na


ideia de que estes versículos não se encontram nos manuscritos mais antigos.
Contudo, é claro em Actos dos Apóstolos que a maioria destes sinais foram
experimentados pelos primitivos cristãos e que a cura em particular era uma
ocorrência frequente. É para os Actos dos Apóstolos que viraremos agora a nossa
atenção.

Nos Actos dos Apóstolos

Em Actos 1:1, Lucas diz-nos que no Evangelho escreveu sobre tudo o que Jesus
começou a fazer. Isso parece sugerir que em Actos está disposto a falar-nos das
cosias que Jesus continuaria a fazer através dos Seus discípulos, pelo poder do
Espírito Santo. Logo, não é de surpreender que os milagres de cura, tão
proeminentes no ministério de Jesus quando esteve na terra continuem como
principal característica da história de Lucas em Actos.
Em Actos 3:1-9, Pedro e João dirigem-se ao templo à hora da oração quando
um pedinte coxo de nascença lhes pede esmola. Pedro responde:
Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho, isso te dou: Em nome de Jesus
Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda (v. 6).

O espantoso milagre que se seguiu resultou numa grande oportunidade de


pregar o Evangelho e na conversão de milhares de pessoas (cf. Actos 4:4).
Não é de surpreender, então, que os primeiros discípulos reconhecessem a
importância da cura como um sinal que confirmava a mensagem que pregavam. É por
isso que oraram em Actos 4:29-30:

Senhor... concede aos Teus servos que falem com toda a ousadia a Tua palavra.
Estende a Tua mão para curar e para que se façam sinais e prodígios pelo nome
do Teu santo Filho Jesus.

E o Senhor fez exactamente isso. As pessoas levaram os doentes para as ruas


e colocaram-nos nas camas e nas enxergas. As multidões reuniram-se vindas das
cidades à volta de Jerusalém e todos os doentes foram curados (Actos 5:14-16).
Em Actos 6:8, lemos que Estêvão fez grandes maravilhas e sinais miraculosos
entre o povo. De modo semelhante, Filipe dirigiu-se à Samaria e pregou Cristo ao
povo dali. Lucas conta-nos que

As multidões prestavam atenção ao que Filipe dizia porque ouviam e viam os


sinais que ele fazia: pois que os espíritos imundos saíam de muitos que os
tinham, clamando em alta voz e muitos paralíticos e coxos eram curados.
(Actos 8:6-8).

E a cura continua por todo o livro de Actos. Pedro cura um coxo chamado
Eneias e ressuscita uma mulher chamada Dorcas (9:33-42). Paulo cura um paralítico
em Listra (14:8-10) e é utilizado de uma forma extraordinária na cura de doentes
em Éfeso (19:11-12), ressuscitando Eutico (20:9-12) e curando o doente da ilha de
Malta (28:1-10).

No ensino da primitiva igreja

Assim, Deus revelou-Se como um Deus que cura no Velho Testamento, na vida
de Jesus quando esteve na terra e através do ministério dos primeiros discípulos
em Actos dos Apóstolos. Mais ainda, o ensino que se encontra nas epístolas do Novo
Testamento dá força à perspectiva de que se esperava que a cura fosse uma
característica regular da vida da igreja.
Em 1 Coríntios 12:8-19, em que Paulo fala dos dons sobrenaturais dados pelo
Espírito Santo a certos cristãos para o benefício da igreja (5), ele menciona dons de
cura. Mais tarde, discutiremos com mais pormenor esta questão mas por agora é
importante notar que não é sugerido em parte alguma do Novo Testamento que
estes dons estavam destinados a cessar com a morte dos primeiros apóstolos, como
os «cessacionistas» têm sugerido. É claro, a partir de 1 Coríntios 1:7 que Paulo
esperava que estes dons continuassem na igreja até à segunda vinda do Senhor
Jesus e que apenas quando a «perfeição viesse» (1 Coríntios 13:10), tais dons se
tornariam desnecessários. (6)

Finalmente, em Tiago 5:14, os Cristãos que estão doentes recebem instruções


específicas quanto ao que devem fazer. Devem chamar os anciãos da igreja que os
ungirão com óleo no nome do Senhor. É-nos depois dito que a oração oferecida em
fé curará o doente. De novo, isto é algo de que iremos falar mais à frente de modo
pormenorizado. Por agora, basta notar que este não é claramente um caso de cura
médica, pois é a oração, não o óleo que sarará o enfermo e quem é chamado são os
anciãos da igreja, não o pessoal médico (7). Esta é provavelmente a promessa mais
clara de cura divina para o Cristão que se encontra nas páginas do Novo
Testamento.

Resumindo, então, procurámos neste capítulo apresentar uma base bíblica para
se crer na cura divina. De forma muito simples, a Bíblia revela que Deus é um Deus
que cura, tanto no Velho como no Novo Testamento. É o que se vê especialmente na
vida de Jesus e no ministério dos primeiros cristãos. Como Deus não muda, há todas
as razões para crer que Ele ainda hoje cura os doentes e o testemunho de milhões é
que Ele o faz.
No capítulo seguinte, voltaremos ao Velho Testamento e examinaremos com
mais pormenor o que ele tem a dizer sobre este tema importante.

NOTAS
(1) A expressão «cura divina» é em geral assumida como significando cura por
Deus sem o envolvimento de ajuda médica. Por essa razão, cura divina é em geral,
embora nem sempre, miraculosa. Num capítulo posterior, falaremos da forma como
Deus também usa a profissão médica na cura.
(2) Para mais provas da deidade de Cristo, ver Petts, D., You’d Better Believe
It! Mattersey, Mattersey Hall, 2005, pp. 12-13.
(3) Cf. 5:17 – a virtude [o poder] do Senhor estava com ele para curar.
(4) Cf. Lucas 9:1-2, 10:1-9.
(5) Para mais desenvolvimento do tema destes dons sobrenaturais, ver: Petts,
D., Body Builders – Gifts to make God’s people grow. Mattersey, Mattersey, Hall,
2002.
(6) Para uma discussão mais pormenorizada do «cessacionismo», ver Gruden,
W., Are miraculous gifts for today? Leicester, IVP, 1996
(7) Isto não significa que os Cristãos não devam ir ao médico! Num outro
capítulo, consideraremos o que o Novo Testamento tem a dizer sobre os médicos e
os remédios.
CAPÍTULO DOIS

Cura no Velho Testamento

No último capítulo, vimos que em Êxodo 15:26, Deus se revelou como um Deus
que cura. É agora o momento de analisar de modo mais pormenorizado a cura no
Velho Testamento. Neste capítulo, iremos considerar:

• Diferentes usos da palavra «cura»


• Promessas de cura no Velho Testamento.
• Exemplos de cura no Velho Testamento.
• Exemplos de pessoas que não foram curadas.
• Dificuldades com o conceito de Deus a enviar doenças
• A promessa do Messias

Diferentes usos da palavra «cura»

Grande parte do Velho Testamento foi escrito em Hebraico e nessa língua a


palavra mais vulgar para «cura» é rapha. São diversas e diferentes as formas com
esta palavra é usada e, como o alvo principal deste livro é mostrar o que a Bíblia
ensina sobre a cura dos nossos corpos, será importante compreendermos as
passagens que falam de cura corporal e as que não falam. Isto é especialmente
relevante quando analisamos passagens que se referem à cura num sentido
espiritual. A Bíblia costuma falar de pecado em termos de «doença» espiritual (1) e,
por analogia, do perdão do pecado como uma espécie de «cura». Tais passagens não
devem ser assumidas como referindo-se à cura do corpo. Iremos considerar agora
algumas dessas passagens.

Cura no sentido espiritual

As passagens que usam a palavra «cura» em referência ao perdão dos pecados


e à restauração de Deus que resulta desse perdão em geral têm a ver com situações
em que o povo de Deus, Israel, enquanto nação, se afastou de Deus. De facto, os
profetas do Velho Testamento usam frequentemente a palavra «cura» nesse
sentido.
Jeremias profetizou numa ocasião em que Israel se afastou de Deus. Tinham
pervertido os seus caminhos e esquecido o Senhor seu Deus (Jeremias 3:21) mas
Deus ansiava que eles voltassem par si. No versículo 22, Ele diz:
Voltai, ó filhos rebeldes; eu curarei as vossas rebeliões (2).
Uma passagem similar encontra-se em Jeremias 30, onde Deus lhes diz que a
sua ferida é incurável (v. 12) porque os seus pecados são muitos (v. 15). Apesar
disso, Ele promete:
Porque te restaurarei a saúde e te sararei as chagas (v. 17)
A cura a que estas passagens se referem é claramente a cura das feridas do
pecado. Jeremias está a usar doença e cura como metáforas para pecado e perdão e
torna-se óbvio que tais passagens não devem ser interpretadas como se estivessem
a referir-se à cura corporal (3). Em suma, se estivermos fisicamente doentes, não
podemos reivindicar restaurar-te-ei a saúde e te sararei as chagas como promessa
para cura divina!
É também claro que Isaías usa o mesmo tipo de metáfora. Em Isaías 1:4-6,
Israel é descrito como uma nação pecadora que se esqueceu do Senhor e Lhe virou
as costas. Por outras palavras, a nação está espiritualmente (não fisicamente)
doente.

Toda a cabeça está enferma e todo o coração fraco. Desde a planta do pé até
à cabeça não há nele coisa sã, senão feridas e inchaços e chagas podres não
espremidas nem ligadas nem nenhuma delas amolecida com óleo.

Israel não estava a sugerir que todo o povo de Deus tinha os corpos cobertos
de chagas! Estava a falar do estado espiritual da nação! E esta é a melhor forma de
compreender a «cura» a que Isaías 53:5 se refere quando lemos:

Mas ele foi ferido pelas nossas transgressões e moído pelas nossas
iniquidades; o castigo que nos trouxe a paz estava sobre ele e pelas suas
pisaduras fomos sarados.

Embora esta última frase seja frequentemente usada hoje em dia como
promessa de cura divina, é sem dúvida melhor compreendê-la como uma promessa do
perdão dos pecados que se tornaria possível através da morte expiatória de Jesus.
Esta interpretação não só é consistente com a primeira parte do versículo como
também é confirmada em 1 Pedro 2:24, em que o contexto mostra claramente que
Pedro compreendia desse modo o versículo (4).

Por fim, a passagem em 2 Crónicas 7:13-14 é digna de nota. Aqui, Deus diz:

Se eu cerrar os céus e não houver chuva, ou se ordenar aos gafanhotos que


consumam a terra, ou se enviar a peste entre o meu povo e se o meu povo que
se chama pelo meu nome se humilhar e orar e buscar a minha face e se
converter, eu ouvirei dos céus e perdoarei os seus pecados e sararei a sua
terra.

Esta passagem também se refere à «cura» da nação e assim há um sentido em


que a palavra «curar» está a ser usada aqui metaforicamente. Contudo, a referência
a uma peste entre o povo também sugere estar subjacente a cura física. Assim,
«cura» está a ser usado aqui em dois sentidos. Primeiro e principalmente, se o povo
de Deus satisfizer as condições, Ele «curará a terra». Ou seja, a Sua mão de
julgamento será sustida e a nação será restaurada às bênçãos de que gozava
anteriormente. Em segundo lugar, incluído nisso, está a promessa de cura física de
qualquer peste que Deus possa ter enviado por causa dos seus pecados, mas isso
leva-nos naturalmente a passagens em que «cura» é usada para se referir à cura do
corpo.

Cura no sentido físico

Passagens do Velho Testamento que se referem à cura do corpo podem ser


convenientemente colocadas em duas categorias diferentes:

• As que contêm promessas gerais de cura


• As que contêm exemplos de pessoas serem curadas.

Abordaremos cada uma delas à vez nas secções que se seguem, mas o resumo
da página seguinte pode ser útil.

Promessas de cura Exemplos de cura


Êxodo 15:26 Abimeleque (Génesis 20:17)
Deuteronómio 28:1-14, 21-22, 58-63 Israel (Salmo 197:20)
Salmo 91:1-16 Miriam (Números 12:123)
Salmo 103:1-3 Naamã (2 Reis 5)
Ezequiel (2 Reis 20:1-8)
Job (Job 42)
Promessas de cura no Velho Testamento

Nesta secção, iremos considerar passagens que contêm promessas de curas se


o povo de Deus Lhe obedecer ou ameaças de doença, se for desobediente. São elas:

• Êxodo 15:26
• Deuteronómio 28:1-14, 21-22, 58-63
• Salmo 91:1-16

e possivelmente

• Salmo 103:1-3

que, como veremos, pode ser uma referência para a cura de doença física, mas que
pode ser igualmente um uso metafórico da cura.

Êxodo 15:26

Aqui, Deus diz:

Se ouvires atento a voz do Senhor teu Deus e obrares o que é recto diante
dos Seus olhos e inclinares os teus ouvidos aos Seus mandamentos, nenhuma das
enfermidades porei sobre ti, que pus sobre o Egipto; porque eu sou o Senhor que te
sara.

Esta é uma promessa que Deus fez ao Seu povo pouco depois de o ter
arrancado à escravidão da terra do Egipto. Há três coisas importantes:

1. Há uma condição ligada à promessa de cura. Deus promete curar o Seu povo
se este fizer o que for recto aos Seus olhos.
2. A promessa de Deus é feita especificamente ao Seu próprio povo. Ele não
promete curar os seus inimigos. De facto, este versículo mostra que Ele por
vezes lhes traz doenças (5).
3. A afirmação Eu sou o Senhor que te cura inclui o nome do pacto pelo qual
Deus se revelou a Moisés. Em Êxodo 3:13-14, quando Moisés perguntou a
Deus o Seu nome, o Senhor respondeu que o seu nome é EU SOU O QUE
SOU. Este nome tão especial, YAHWEH, que indica que Deus é o que
sempre foi e sempre será – é eternamente o mesmo – está aqui associado à
afirmação de que Ele cura o Seu povo. Ou seja, é no mínimo uma forte
indicação de que Deus está sempre disposto a curá-los se eles observarem
os Seus mandamentos.

Deuteronómio 28:1-14, 21-22, 58-63

Deuteronómio 28 é um capítulo cheio de bênçãos prometidas por Deus ao povo


de Israel se eles Lhe obedecessem e de maldições com que seriam ameaçados se
Lhe desobedecessem. De facto, não há promessas específicas de cura neste
capítulo. Contudo, embora os primeiros 14 versículos não falem de cura, mencionam
muitas bênçãos maravilhosas que seriam derramadas sobre Israel e parece razoável
assumir que estar de boa saúde faz parte dessas bênçãos. Isto parece muito
provável à luz das afirmações na segunda parte do capítulo de que doenças terríveis
viriam em resultado de desobediência (vv. 21-22, 58-63). Uma vez mais, vale a pena
notar que há condições ligadas às promessas de Deus de que estas promessas (e
ameaças) são feitas especificamente a Israel por YAHWEH (v. 2) de quem se diz
enviar tanto a doença como a cura (ou manter a boa saúde). A mensagem é,
portanto, essencialmente a mesma que Êxodo 15:26.

Salmo 41:1-4

Eis de novo as grandes bênçãos prometidas ao justo, especificamente à pessoa


que atende ao pobre (v. 1). O Senhor:

• Liberta-o no tempo de prova


• Protege-o e conserva a sua vida
• Abençoa-o na terra
• Sustenta-o no seu leito de enfermidade
• Restaura-o no seu leito de doença.

Uma vez mais, do Senhor se diz que cura em resposta à confissão do pecado (v.
4). Neste caso, não há sugestão de um milagre instantâneo de cura pois do Senhor
se diz que o sustentará no leito da enfermidade antes de lhe renovar a cama na
doença (v. 3).
Salmo 91:1-16

Este salmo maravilhoso está cheio de promessas da protecção e bênção de


Deus. Estas promessas são feitas à pessoa que habita no esconderijo do Altíssimo
(v. 1). Parece que para fazer do Altíssimo a tua habitação (v. 9), é preciso:

• confiar no Senhor (v. 2)


• amá-Lo (v. 14)
• reconhecer o Seu nome (v. 14)
• clamar a Ele (v. 15)

Os que o fizerem serão resgatados de todos os tipos de perigos, incluindo


pestilência (v. 3, cf. v. 6) e peste (v. 6). A peste aqui referida é tão mortal que
milhares morrem dela (v. 7), mas a promessa de Deus é tu não serás atingido (v. 7).
O salmista vê claramente a peste como um meio de castigo dos ímpios (v. 8). Em
comum com as outras passagens que considerámos, Deus é visto aqui a punir os
ímpios e, entre outras coisas, doença, mas protegendo o justo.

Salmo 103:1-3

Já salientámos a importância de distinguir entre casos em que a «cura» é


usada metaforicamente em referência à restauração espiritual, quer da nação quer
de um indivíduo e os casos em que é claramente usada para significar libertação de
doença física. Também vimos que em alguns versículos (6), a palavra «cura» pode ser
usada em ambos os sentidos. Na realidade, em algumas passagens não é muito claro
a que tipo de cura se refere. Salmo 103:3 é um bom exemplo:

Bendize, ó minha alma, o Senhor e tudo o que há em mim bendiga o Seu santo
nome. Bendize, ó minha alma, o Senhor e não te esqueças de nenhum dos Seus
benefícios. É Ele que perdoa todas as tuas iniquidades e sara todas as tuas
enfermidades.
(Salmo 103:1-3)

Alguns interpretam esta passagem como significando que Deus está tão
disposto a curar todas as nossas doenças, como a perdoar todos os nossos pecados
e pode ser que seja essa a intenção da passagem. Contudo, antes de saltarmos para
esta conclusão, precisamos de considerar os seguintes aspectos:
1. Estritamente falando, os primeiros cinco versículos deste salmo são mais o
testemunho de David do modo como o Senhor lidou com ele do que uma
promessa feita a todos, Contudo, pode ser insensato assumir que são uma
expressão da disponibilidades de Deus abençoar todo o Seu povo dessa
forma,
2. Nestes versículos, David está a falar à sua alma (vv. 1, 2) e as bênçãos a
que se refere podem, portanto, destinar-se a serem compreendidas mais
como bênçãos espirituais do que físicas. Contudo, isso é sem dúvida atribuir
demasiado ao significado da palavra «alma». Provavelmente, é melhor
compreender que David está apenas a falar consigo próprio e a relembrar-
se para não se esquecer das muitas bênçãos que Deus lhe concedeu. Isso
está certamente incluído na cura física (cf. Salmo 41).
3. Mais importante ainda, um outro factor a ser considerado é o uso do
paralelismo na poesia hebraica. Não é como a poesia portuguesa em que não
se usa o ritmo nem há uma métrica consistente. Antes, expressa-se numa
sequência de pensamentos paralelos que veiculam a mesma verdade de uma
forma ligeiramente diferente. Um bom exemplo é o Salmo 1:1, que nos diz
que bem-aventurado o varão que não:
• anda segundo o conselho dos ímpios nem
• se detém no caminho dos pecadores, nem
• se assenta na roda dos escarnecedores.
Estas três linhas usam diferentes palavras para dizerem essencialmente a
mesma coisa. Este instrumento poético é tanto agradável ao ouvido como
serve para acrescentar ênfase à verdade a ser veiculada. É importante ter
em mente este facto ao interpretar os salmos em geral e o Salmo 103:1-3
em particular. Portanto, é possível que não devamos compreender a
afirmação de que o Senhor cura todas as tuas enfermidades como uma
referência à cura corporal, mas antes como uma forma metafórica de dizer
o que o salmista já afirmou, nomeadamente que Ele perdoa todos os teus
pecados.

Portanto, seria insensato insistir que o Salmo 103:3 é uma promessa de cura
divina. Contudo, seria igualmente errado afirmar que não é. As palavras usadas
expressam sem dúvida a verdade, revelada noutros pontos do Velho Testamento,
que Deus cura doenças do Seu povo. Mas precisamos de abordar agora alguns
exemplos de cura no Velho Testamento.
Exemplos de cura no Velho Testamento

Exemplos de cura no Velho Testamento incluem Abimeleque, Israel durante o


Êxodo, Miriam, Naamã, Ezequias e Job. Vamos considerar cada um destes casos.

Abimeleque

Em Génesis 12:10-20, lemos como, quando Abraão e Sara desceram ao Egipto


para aí viver, ele lhe pediu que dissesse ser sua meia-irmã e não sua mulher. E isso
porque ele receava que os Egípcios o matassem porque Sara era uma mulher muito
bonita. Como resultado, Sara acabou no palácio de Faraó, mas o Senhor infligiu uma
grave doença a Faraó e à sua casa por causa da mulher de Abraão (v. 17). Esta é a
primeira referência à doença na Bíblia e é interessante que diga ter sido Deus a
provocar a doença. Mais ainda, não nos é dito que estas pessoas foram curadas.
Contudo, num incidente semelhante em Génesis 20, Abimeleque, rei de Gerar,
leva Sara para sua casa e o Senhor aparece-lhe num sonho, dizendo: Eis que morto
és por causa da mulher que tomaste, porque ela está casada. (v. 3) Abimeleque
protesta a sua inocência, clamando que tudo fizera com uma consciência pura (vv. 4-
5) e o Senhor diz-lhe que devolva Sara a Abraão que orará por ele e ele viverá. Se
Abimeleque não a devolver, então ele e toda a sua casa morrerão (v. 7). Abimeleque
obedece ao Senhor e Abraão ora por ele, pela sua esposa e pelas suas escravas para
que possam voltar a ter filhos, pois o Senhor tinha fechado a madre na casa de
Abimeleque por causa de Sara, mulher de Abraão (vv. 17-18).
Este é o primeiro caso registado do Senhor a curar alguém e, embora haja
certos aspectos desta história difíceis de compreender, as lições em relação à cura
são muito claras:

1. A doença é vista como um castigo pelas infracções (mesmo que neste caso
Abimeleque estivesse inconsciente de estar a proceder mal)
2. Foi o Senhor que infligiu a doença.
3. O Senhor curou a doença em resposta à oração quando a iniquidade foi
estancada

Israel durante o Êxodo

As leis de higiene que Deus deu a Moisés em Deuteronómio 23:12-13 e


Números 19 e a segregação do leproso ordenada em Levítico 12 são uma clara
indicação da preocupação de Deus pela saúde e bem-estar do Seu povo. De facto,
estas leis estavam muito à frente de tudo quanto era conhecido pelos que
praticavam naqueles dias a arte da medicina. Isto indica que, à parte a capacidade
de Deus curar sobrenaturalmente, Ele pretende que o Seu povo recorra a todas as
precauções naturais para evitar a difusão da doença.
Contudo, são feitas por vezes afirmações exageradas sobre a saúde de Israel
durante o êxodo. Em geral, baseiam-se na tradução da Versão Autorizada do Salmo
105:37 que diz: Entre as suas tribos não houve uma única pessoa fraca. Contudo,
este versículo fica mais bem traduzido deste modo: Nenhum deles tropeçou (RV) ou
De entre as suas tribos nenhum deles fraquejou (NIV). Na realidade, é claro pelo
relato de Pentateuco que o povo de Deus esteve por vezes doente. Não teriam sido
necessárias as normas relativas à lepra se em Israel não tivesse havido leprosos!
Longe de informados de que o povo de Deus nunca adoeceu, é-nos dito
claramente que quando desobedeceram a Deus, Ele lhes enviou doenças (Salmo
106:15, 29). Apesar de tudo, o Salmo 107: 19-20 diz-nos que quando clamaram ao
Senhor na sua dor, Ele enviou a Sua palavra e os curou. Exemplos disto encontramos
em Números 21:4-8, em que o povo rebelde é punido com serpentes ardentes e
depois curado quando Moisés intercede por ele, e o caso de Miriam que veremos de
seguida.

Miriam

O relato de Números 12 é muito claro. Miriam e Aarão, irmãos de Moisés,


murmuraram contra ele. Como resultado, a ira do Senhor acendeu-se contra eles
(v.9) e Miriam foi atingida pela lepra (v. 10). Aarão reconheceu que ambos haviam
pecado loucamente (v. 12) e pediu misericórdia a Moisés. Assim, Moisés clamou ao
Senhor: Ó Deus, por favor, cura-a! (v. 13). A passagem não declara explicitamente
que Miriam tenha sido curada, mas é o que está implícito pelo facto de ela ter sido
reintegrada no acampamento após um período de quarentena durante sete dias (vv.
14-.16). A história de Miriam revela assim a mesma compreensão que temos visto
até agora no Velho Testamento. A doença era um castigo pelo pecado. Era Deus que
a infligia e Deus quem a curava depois de arrependimento e oração.

Naamã

Em 2 Reis 5, Naamã, o comandante do exército do rei de Aram, sofria de lepra


(v. 1). Uma jovem menina de Israel, que fora levada cativa e era agora escrava da
esposa de Naamã, falou-lhe do profeta Eliseu e do seu poder de operar milagres (v.
3). Então, Naamã partiu com autorização do rei, com uma carta para o rei de Israel
exigindo a cura da lepra de Naamã (v. 6). Como a lepra era incurável, o rei de Israel
assumiu que o rei de Ara estava a tentar arranjar pretexto para o guerrear. Sou eu
porventura Deus? disse ele. Posso matar e dar a vida? Mas quando Eliseu soube do
assunto, enviou uma mensagem ao rei, dizendo: Manda o homem vir ter comigo (v. 8).
Quando Naamã chegou à porta de Eliseu, o profeta nem sequer veio saudá-lo.
Limitou-se a enviar um mensageiro a dizer Vai e lava-te sete vezes no Jordão e...
ficarás purificado (v. 10). Naamã ficou irritado com esta resposta e argumentou que
os rios de Damasco eram melhores que a água do rio Jordão, mas os seus servos
convenceram-no a fazer como o profeta dissera. Quando Naamã obedeceu, foi
curado da sua lepra (v. 14). Indo ter com Eliseu, disse: Agora sei que em toda a
terra não há Deus senão em Israel (v. 15) e ofereceu um presente a Eliseu que
recusou com firmeza. Depois de Naamã ter partido, Geazi, servo de Eliseu, foi
atrás de Naamã e disse-lhe que Eliseu havia mudado de ideias quanto a receber a
oferta. A sua intenção era, naturalmente, ficar com ela, mas Eliseu teve revelação
sobre este engano e disse-lhe que a lepra de Naamã cairia sobre ele e os seus
descendentes para sempre (v. 27). Quanto a Naamã, passou a adorar Deus (vv. 17-
19).
Embora este relato seja bastante diferente dos que analisámos até agora (7),
certos aspectos são muito semelhantes. A passagem reconhece que:

1. É apenas o Senhor que cura (vv. 7-8, 15).


2. A cura é um acto da graça da parte de Deus. Naamã era um gentio e Deus
curou-o, apesar de haver muitos leprosos em Israel na altura (Lucas 4:27).
3. O Senhor usa o Seu servo escolhido para efectuar a cura (vv. 3. 8, 10-14).
4. Por vezes, Deus pune o pecado com a doença (vv. 19-27).

Contudo, a par disso, há lições mais importantes a aprender:

5. Não pode haver compromisso em relação à obediência às instruções de


Deus (vv. 10-14).
6. Os servos de Deus não devem tirar proveito financeiro do facto de
poderem ser canais do Seu poder sarador (vv. 15-16. Cf. a instrução de
Jesus dada aos Seus discípulos: De graça recebestes, de graça dai [Mateus
10:8]).
7. A importância do ministério profético em ligação com a cura (vv. 3, 8, 16)
(8).
Ezequias

A cura do rei Ezequias é registada em 2 Reis 20:1-11 (9). Nesta passagem,


Ezequias sofre de uma chaga que o deixa *à morte. Através do profeta Isaías, Deus
diz-lhe que ponha a sua casa em ordem mas, choroso, Ezequias ora ao Senhor,
dizendo:

Ah, Senhor! Sê servido de Te lembrar que andei diante de Ti em verdade e


com o coração perfeito e fiz o que era recto aos Teus olhos. (v. 3).

Então, o Senhor ordena a Isaías que lhe diga:

Ouvi a tua oração e vi as tuas lágrimas; eis que eu te sararei... E acrescentarei


aos teus dias quinze anos (v. 5).

Mas Ezequias, querendo ter a certeza de que esta era mesmo uma palavra do
Senhor, pede um sinal a Isaías de que iria ser curado (v. 8). Isaías pede ao Senhor
que faça com que a sombra do sol recue dez graus no relógio e assim acontece
(Isaías 38:8). Então, Isaías ordena que lhe preparem uma pasta de figos que,
aplicada sobre a chaga, curará Ezequias (v. 7).
Pondo de lado o milagre espantoso do recuo da sombra do sol – algo que é
claramente impossível do ponto de vista humano – esta história é de grande
interesse por várias razões.

1. É digno de nota que a doença de Ezequias não foi provocada por pecado.
2. Parece que a oração sincera pode mudar o coração de Deus.
3. A cura está ligada à revelação profética.
4. Embora Deus diga Eu te curarei, o meio que Ele usa para o fazer parece ser
médico (uma pasta de figos).

Job

O livro de Job exerce um fascínio universal porque lida com um problema


universal – o problema do sofrimento. O espaço impede-nos um exame
pormenorizado deste livro maravilhoso, mas um resumo será suficiente para
compreendermos o seu ensino principal em relação à doença.
O livro começa por deixar claro que Job era sincero e recto, temendo a Deus e
abominando o mal (Job 1:1, 8). Satanás aparece na presença de Deus e sugere que
Job é temente a Deus apenas por causa das bênçãos que Deus lhe outorgou (1:9-10).
Mas, diz Satanás, Estende a tua mão e toca-lhe em tudo quanto tem e verás se não
blasfema de ti na tua face! (1:11), ao que Deus responde: Eis que tudo quanto tem
está na tua mão, somente contra ele não estendas a tua mão. (1:12). Como resultado,
Job sofre tragédias terríveis, incluindo a perda de bens e família (1:13-19), mas em
tudo isso Job não comete o pecado de acusar Deus de alguma falta (1:22).
No capítulo seguinte, Deus aponta a Satanás que, apesar de tudo quanto
aconteceu a Job, este manteve a sua integridade (2:3). A isto, Satanás replica que
se Job for atingido na sua própria carne, sem dúvida que amaldiçoará Deus (2:4).
Assim, com a permissão de Deus, Satanás ataca Job com chagas dolorosas desde a
sola dos pés ao alto da cabeça (2:3), mas em tudo isso Job não peca em tudo quanto
pronuncia (2:10). Contudo, chega a um ponto em que deseja nunca ter nascido (3:1).
O livro continua e descrever o terrível sofrimento que Job suportou e o
conselho que os seus quatro amigos lhe dão. Isto representa todo o pensamento que
essa época tinha a dizer sobre as causas do sofrimento. A visão maioritária era
simples. O sofrimento é causado pelo pecado pessoal. Mas, claro, os amigos de Job –
e na realidade, o próprio Job – não faziam ideia da conversa ocorrida entre Satanás
e Deus. Isso deixa claro que o sofrimento de Job não fora resultado de julgamento
divino, sendo antes evidência da confiança de Deus nele!
A mensagem principal do livro é que:

1. não há uma razão simples para o sofrimento humano;


2. o sofrimento não resulta necessariamente do pecado pessoal;
3. a compreensão das acções de Deus ultrapassa a capacidade humana;
4. em tudo, Deus é soberano;
5. no meio do sofrimento, devemos assumir uma perspectiva a longo prazo.

O livro encerra com a maravilhosa afirmação de que o Senhor abençoou o


último estado de Job mais do que o primeiro (42:12). Job torna-se duas vezes mais
próspero que antes e aparentemente é curado (embora não o seja declarado). Que o
próprio Job foi capaz de assumir uma perspectiva a longo prazo e teve fé que seria
curado na ressurreição, é evidente pela sua afirmação em Job 19:25-26 –Sei que o
meu Redentor vive e que por fim se levantará sobre a terra. E depois de consumida
a minha pele, ainda na minha carne verei Deus.

Exemplos de pessoas que não foram curadas

Ao estudar um tema como a cura, é natural que procuremos exemplos de


pessoas que foram curadas. Contudo, para uma perspectiva equilibrada do que a
Bíblia ensina, é igualmente importante considerarmos os casos dos que não foram
curados. Já mencionámos o servo de Eliseu, Geazi, que foi atacado pela lepra por
causa do seu pecado (2 Reis 5), mas o Velho Testamento fala-nos de vários outros.
O rei Asa, por exemplo, embora um bom rei na maioria do seu reinado, para o
fim da vida dependeu em demasia da ajuda política do rei de Aram. Quando o
profeta Hanani o repreendeu porque não confiava suficientemente no Senhor (2
Crónicas 16:7-9), Asa ficou muito irado e lançou Hanani na prisão. Também oprimiu
brutalmente alguns do povo (v. 10). Depois, sabemos que Asa foi afligido com uma
doença nos pés. Embora a sua doença fosse grave, nem na sua enfermidade
procurou ajuda do Senhor, mas apenas dos médicos (v. 12). Não nos é dito que esta
doença tenha sido o resultado directo da forma como tratara Hanani, mas é
certamente possível que seja isso o que o cronista nos quer transmitir. Seja como
for, não nos é dito que Asa tenha sido curado e o versículo seguinte menciona a sua
morte. Parece, portanto, provável que ele morreu com a doença. A afirmação no
versículo 12 de que procurou ajuda dos médicos não significa que esteja errado que
o povo de Deus procure ajuda médica (10). A falta de Asa não foi ter procurado
ajuda dos médicos, mas ter procurado apenas a sua ajuda e não ter buscado o
Senhor. Presumivelmente, ele sabia que para obter ajuda do Senhor, precisaria de
se arrepender e pedir perdão e isso ele não estava disposto a fazer.
Um exemplo semelhante é o Rei Uzias de quem se diz que, enquanto procurou
o Senhor, Deus fê-lo prosperar (2 Crónicas 26:5). Infelizmente, porém, depois de
se tornar poderoso, o seu orgulho levou-o à queda (v. 16). No templo, procurou
queimar incenso no altar, algo que apenas os sacerdotes tinham autorização de
fazer. Como resultado, o Senhor afligiu-o com lepra (vv. 19-20) e ele permaneceu
leproso até ao dia em que morreu (v. 21).
Contudo, não devemos assumir que todos os que adoeceram ficaram doentes
por causa do seu pecado. Já mencionámos Job. Também sabemos que o grande
profeta Daniel ficou doente durante vários dias (Daniel 8:27) e, embora à
semelhança de Job, seja claro que tenha recuperado da sua doença, isso não altera
o facto de os servos de Deus por vezes serem atacados pela doença, mas não há
sugestão de isso ter sido o resultado do desagrado divino. 2 Reis 13:14, por
exemplo, declara que Eliseu sofria da doença da qual morreu. Após o seu funeral,
ocorreu um milagre espantoso. Um morto foi lançado no túmulo de Eliseu e quando o
corpo tocou nos ossos do profeta, o homem veio à vida (v. 20). Este relato pode ser
entendido como significando que a doença de Eliseu não foi de modo algum
resultado do desagrado de Deus a seu respeito. Isaac (Génesis 27:1) e Jacob
(Génesis 48:1) estavam também doentes quando morreram, embora não seja claro
que a sua doença fosse a causa da sua morte. Em nenhum caso é sugerido que a
doença tenha sido resultado de pecado pessoal., Em ambos os casos, parece
provável ter estado ligado com os resultados da velhice.

Dificuldades com o conceito de o Senhor enviar a doença

Neste capítulo, já indicámos várias ocasiões em que está registado que o


próprio Senhor enviou doença contra pessoas e que por vezes essa doença era muito
grave. Nesta fase, parece adequado fazer um comentário, em especial à luz do
facto de Deus ser um Deus de amor e que, no Novo Testamento, Jesus curou todos
quantos vieram a Ele. Francamente, não há uma resposta fácil a esta questão, mas
as seguintes observações podem ajudar.

1. Como já salientámos, nem toda a doença é resultado de castigo divino.


2. Contudo, em todos os casos em que se diz que Deus enviou a doença é
sempre por causa de pecado. Assim, há um elemento de justiça nesta acção.
A Bíblia revela que Deus é um Deus justo que, por ser santo, abomina o
pecado. Assim, não nos devemos surpreender por ler que Deus castiga o
pecado.
3. O Velho Testamento não é a revelação completa da natureza de Deus. A
Sua palavra final à raça humana esteve na pessoa de Jesus (Hebreus 1:1).
Logo, é no Novo Testamento que devemos procurar a resposta final.
4. Aqui, é claro que se Deus abomina o pecado, também ama o pecador. Foi por
isso que enviou Jesus a morrer pelos nossos pecados. Na cruz, Jesus levou
sobre si o castigo que os nossos pecados mereciam. Assim, Deus mostrou a
Sua santidade punindo o pecado, mas também o Seu amor por nós,
descarregando esse castigo na pessoa de Jesus.
5. Hoje, Deus não castiga os Cristãos pelos seus pecados. Os seus pecados
foram, punidos no Calvário. Contudo, pode permitir que a doença se cruze
com o nosso caminho a fim de nos disciplinar como um pai disciplina os seus
filhos (Hebreus 12:5-11).
6. Passagens difíceis como a que fala de Geazi e sua descendência (2 Reis
5:27) podem ser compreendidas de forma menos dura à luz de passagens
como Jeremias 18:7-8, em que Deus diz; Se a tal nação contra a qual falar
se converter da sua maldade, também eu me arrependerei do mal que
pensava fazer-lhe. (a história de Jonas e Nínive é um bom exemplo deste
princípio em acção). Claro, não sabemos se Geazi se arrependeu ou não.
Tudo o que podemos dizer é que, se o fez, o pronunciamento profético de
Eliseu terá ficado sem efeito.
7. No caso de Job, foi Satanás, não Deus, quem infligiu o desastre, embora o
tenha feito com autorização de Deus. Uma forma possível de resolver o
problema é dizer que é Satanás e não Deus que envia a doença. Contudo,
podemos também sentir-nos incapazes de recorrer a esta solução simples à
luz de outras passagens que afirmam claramente que o Senhor enviou a
doença.
8. Talvez a melhor solução seja reconhecer o facto de os escritores do Velho
Testamento verem Deus como totalmente soberano. Nada do que acontece
pode ocorrer sem Ele (cf. Isaías 45:7). Ele ou faz ou permite. E como é
omnipotente, pode parar as coisas e se ele permite quando pode intervir,
efectivamente foi Ele o autor. Pode ser esta a razão de os escritores do
Velho Testamento falarem em termos de Deus fazer coisas que nós, com a
perspectiva da revelação mais completa do Novo Testamento, podemos
achar difícil de aceitar.

A Promessa do Messias

Na última secção, dissemos que o Velho Testamento não é a revelação final da


natureza de Deus ou dos Seus propósitos para o Seu povo. Vemo-la no Novo
Testamento. Mas mesmo o Velho Testamento aponta para a vinda futura de Cristo e
dá alguma indicação da diferença que a Sua vinda produziria. Isaías em particular
recebeu uma revelação maravilhosa relativa a estas coisas e previu o dia em que

• os olhos dos cegos seriam abertos


• os ouvidos dos surdos seriam limpos
• os coxos saltariam como um veado
• a língua muda gritaria de alegria (Isaías 35:5-6).

Como sabemos, todos estes milagres ocorreram no ministério do Senhor Jesus


e serviram para confirmar que Ele era quem afirmava ser, o Messias prometido de
Deus.
Uma passagem semelhante encontra-se em Isaías 61:1-2, que declara:

O espírito do Senhor Jeová está sobre mim porque o Senhor me ungiu para
pregar boas novas aos mansos, enviou-me a restaurar os contritos de coração,
a proclamar liberdade aos cativos e a abertura de prisão aos presos, a
apregoar o ano aceitável do Senhor...
Em Lucas 4:18 e seg., Jesus lê esta passagem (11) na sinagoga de Nazaré e,
para espanto de todos, declara:

Hoje, esta escritura se cumpriu nos vossos ouvidos!

Ao fazer esta afirmação espantosa, Jesus estava a declarar sem sombra de


dúvida que era o Messias há tanto tempo aguardado. E o seu ministério miraculoso
provou-o. Ele curou os doentes, limpou os leprosos, deu vista aos cegos e
ressuscitou os mortos. Era Aquele de quem todos os profetas falaram, para quem
toda a profecia apontava. Mas a libertação que ia trazer não era apenas a cura dos
nossos corpos físicos. Era a redenção das nossas almas, o perdão dos nossos
pecados, a dádiva da vida eterna. Não estamos a viver no Velho Testamento.
Vivemos nesse período da história que Jesus descreveu como o ano aceitável do
Senhor. Mas para aprender mais sobre ele, temos de passar ao Novo Testamento.

NOTAS
(1) E.g., quando Jesus disse que os que estão bem não precisam de médico, mas
sim o que estão doentes (Mateus 9:12; Marcos 2:17; Lucas 5:31).
(2) Aqui, a palavra «cura» significa claramente o mesmo que «cura». É a mesma
palavra hebraica rapha. Cf. Oseias14:4 – eu sararei a sua perversão.
(3) Cf. Oseias 5:13;6:1, 11; 11:13.
(4) Lidarei em pormenor com este assunto na Segunda Parte quando chegarmos
a esta passagem tão mal compreendida.
(5) Este é um conceito muito difícil que discutiremos mais tarde. Contudo, vale
a pena notar que no mesmo versículo em que Deus se revela como um Deus que cura,
também mostra que há ocasiões em que envia a doença! Cf. Deuteronómio 32:39, em
que Deus diz eu firo e eu saro.
(6) E.g. 2 Crónicas 7:14. Cf. Isaías 58:8.
(7) Por exemplo, não há qualquer sugestão de que a doença de Naamã tenha
sido o resultado de pecado pessoal, nem se declara que lhe foi infligida pelo Senhor.
(8) É digno de nota que a cura de Abimeleque e de Miriam foi produzida
através do ministério de profetas – Abraão e Moisés.
(9) Uma passagem quase idêntica encontra-se em Isaías 38.
(10) Mais tarde, iremos analisar com algum pormenor o que o Novo Testamento
tem a dizer sobre o uso de meios médicos.
(11) A versão que Lucas cita é a Septuaginta (a tradução grega do Velho
Testamento hebraico). Nesta, a frase proclamar a abertura de prisão aos presos
das trevas surge traduzida como proclamar a recuperação da vista dos cegos.
CAPÍTULO TRÊS

Lições sobre cura em Mateus

Ao vermos agora o que o Novo Testamento ensina sobre a cura, iremos


considerar primeiro o ministério de Jesus revelado nos quatro evangelhos.
Analisaremos alguns exemplos representativos de cada. No evangelho de Mateus,
escolhi as curas registadas em Mateus 8:1-17 porque:

• Depois da afirmação geral sobre as curas de Jesus em Mateus 4, este é o


primeiro registo de curas específicas que encontramos em Mateus.
• A passagem parece ser bastante representativa das curas de Jesus
registadas em Mateus.
• As curas específicas registadas podem ensinar-nos muito sobre o
ministério sarador de Jesus.
• A passagem conclui com a citação controversa de Isaías 53 a que
voltaremos quando discutirmos a cura em relação à expiação na Segunda
Parte deste livro.

Esta passagem regista a cura de um homem com lepra (vv. 1-4), a cura do servo
do centurião (vv. 5-13) e a cura de muitos incluindo a sogra de Pedro (vv. 14.127).
Abordaremos à vez cada uma destas.

O Homem com Lepra (vv. 1-4)

Depois do ensino de Jesus apresentado nos capítulos 5-7, normalmente


referido como o Sermão do Monte, grandes multidões seguiam-No quando descia da
montanha (8:1). Então, Mateus conta-nos que:

Veio um leproso e O adorou, dizendo: «Senhor, se quiseres, podes tornar-me


limpo». E Jesus, estendendo a mão tocou-o dizendo: «Quero; sê limpo». E logo
ficou purificado da lepra (vv. 2-3).

Para apreciar o significado total deste episódio, é importante compreendermos


certas coisas sobre a lepra. Era uma doença altamente contagiosa naquele tempo
sem cura médica. Por consequência, os leprosos eram os proscritos da sociedade,
sendo obrigados a viver à parte, com receio que os outros pudessem contrair a
doença (Levítico 13:46).
A primeira coisa a reparar aqui é que o leproso não duvidou da capacidade de
Jesus curar, mas não tinha a certeza se Jesus o iria curar. A sua fé de que Jesus
podia curá-lo provavelmente baseava-se no que já havia ouvido do ministério
miraculoso de Jesus descrito sucintamente por Mateus em 4:23-24. Por vezes diz-
se que, para sermos curados, precisamos de crer não apenas que Deus pode curar-
nos mas que também quer. Mas em lado nenhum a Bíblia afirma tal coisa e a cura do
leproso parece contradizer tal ensino.
Em segundo lugar, a resposta de Jesus ao leproso é digna de nota. Quero,
disse Ele. De facto, a sua vontade para curar é evidente ao longo desta passagem,
como veremos quando formas examinar as outras curas registadas em Mateus 8. Na
realidade, é evidente ao longo dos evangelhos. Contudo, é especialmente notável
aqui, na medida em que o leproso é a única pessoa mencionada no Novo Testamento
que pede ao Senhor que o cure se for essa a sua vontade. O facto de Jesus
responder da forma como o faz, afirmando que é Sua vontade curar, deve
seguramente sugerir que, quando orarmos pelos doentes, devemos sempre assumir
que é vontade de Deus curar porque, como já dissemos, na pessoa e ministério de
Jesus, temos a revelação final da natureza e do propósito de Deus (1).
Depois, é importante reparar na compaixão de Jesus. Ele toca no leproso! Isto
era contrário à lei levítica, mas para Jesus, amor é o cumprimento da lei. É difícil
imaginar o impacte emocional que o Seu toque terá produzido no leproso. Não
sabemos há quanto tempo estava doente, mas desde que adoecera, poucos ou
nenhuns o terão tocado. Agora, Jesus toca-o. Isto pode simplesmente indicar que o
Seu poder era em geral veiculado por um toque – cf. a cura da sogra de Pedro no v.
15 – mas parece também demonstrar o amor (2) e a compaixão de Jesus pelos
marginalizados da sociedade.
Mas, claro, uma coisa é ter compaixão dos doentes e estar disposto a curá-los,
outra bem diferente é ter o poder de o fazer. Como veremos na secção seguinte,
Jesus foi um homem sob autoridade e o Seu poder de curar estava directamente
relacionado com essa autoridade. Ele agia em obediência a Seu Pai. Numa ocasião,
quando a sua autoridade para curar foi desafiado, replicou:

Na verdade vos digo que o Filho por si mesmo não pode fazer coisa alguma se o
não vir fazer ao Pai (João 5:19)

Este era o segredo da Sua autoridade e o poder da Sua palavra. Ele viveu em
submissão a Seu Pai e conhecia a vontade do Pai. Por isso, agora pode dizer ao
leproso: Sê limpo! E ele é limpo – imediatamente! Uma palavra (3) do Mestre basta.
Quando Ele ordena, assim se faz. De facto, como veremos ao longo deste capítulo,
Mateus está a enfatizar o poder da palavra de Jesus (cf. vv. 8, 16).
Finalmente, Jesus ordena ao homem:

Olha, não o digas a alguém, mas vai, mostra-te ao sacerdote e apresenta a


oferta que Moisés determinou, para lhes servir de testemunho (v. 4).

Olha, não o digas a alguém presumivelmente significa «Não fales disto a


ninguém antes de veres o sacerdote». Não pode significar que nunca deveria contar
a ninguém, à luz das palavras para lhes servir de testemunho, no final do versículo.
A instrução para ir ter com o sacerdote estava em linha com a ordem relativa
os leprosos de Levítico 14:2-32. Era o sacerdote quem certificava a cura. Assim,
para lhes servir de testemunho provavelmente significa «como prova de que foste
curado e podes, portanto, ser restaurado à comunidade e não viver separada dela».
Jesus não estava apenas preocupado com a condição física do homem, mas também
com as suas necessidades sociais e espirituais. A sua cura significa plena
reintegração na sociedade e admissão à sinagoga de que fora banido como impuro.

A Fé do Centurião (vv. 5-13)

Na passagem seguinte, Mateus regista a cura do criado de um centurião. Diz


ele:

5
E entrando Jesus em Cafarnaum, chegou junto dele um centurião rogando-lhe
6
e dizendo: «Senhor, o meu criado jaz em casa paralítico e violentamente
atormentado». 7 E Jesus lhe disse: «Eu irei e lhe darei saúde». 8 E o centurião,
respondendo, disse: «Senhor, não sou digno que entres debaixo do meu
telhado, mas diz somente uma palavra e o meu criado sarará. 9 Pois também eu
sou homem sob autoridade e tenho soldados às minhas ordens e digo a este:
“Vai” e ele vai, e a outro “Vem” e ele vem, e ao meu criado “Faz isto” e ele o
faz».

Ao ouvir isto, Jesus ficou admirado com a fé do homem (v. 10) e disse-lhe: Vai!
E como creste te seja feito. E naquela mesma hora o seu criado sarou (v. 13).
Der certa forma, esta passagem ensina-nos lições semelhantes às aprendidas
com a cura do leproso. Notemos de novo:

• A disponibilidade de Jesus em curar (v. 7)


• O poder da Sua palavra (vv. 8, 13)
• O imediatismo da cura (v. 13)
Contudo, há algumas características acrescidas nesta história que são de
grande importância. Elas incluem:

• A disponibilidade de Jesus curar um gentio


• O segredo da autoridade de Jesus
• O papel da fé

A disponibilidade de Jesus curar um gentio (vv. 7-8)

Durante a sua vida terrena, o ministério de cura de Jesus ficou confinado


quase exclusivamente a Israel. Isso é evidente a partir do registo das Suas curas
nos Evangelhos e da sua afirmação em Mateus 15:24. Não fui enviado senão às
ovelhas perdidas da casa de Israel. Contudo, quando os gentios se aproximavam
d’Ele em fé, Ele acedia ao seu pedido. Quando uma cananeia se aproximou d’Ele a
pedir ajuda para a filha que sofria terrivelmente (Mateus 15:21-28), Jesus ficou
espantado com a sua fé e, como o criado do centurião, curou-lhe a filha à distância.
No caso do centurião, Jesus de facto declara que nunca encontrara alguém em
Israel com uma fé tão grande (Mateus 8:10), E diz mais:

Mas eu vos digo que muitos virão do oriente e do ocidente e assentar-se-ão à


mesa com Abraão e Isaac e Jacob, no reino dos céus e os filhos do reino serão
lançados nas trevas exteriores... (Mateus 8:11-12).

Isto ilustra de forma maravilhosa a verdade que será mais tarde afirmada
claramente pelo apóstolo Paulo nas suas epístolas aos Gálatas e aos Romanos, de que
não é a nossa nacionalidade ou a nossa linhagem física que agrada a Deus e faz de
nós um dos Seus filhos, mas a nossa fé. Portanto, a cura do criado do centurião
aponta para o fim do Evangelho em que Jesus, tendo morrido pelos pecados do
mundo, comissiona os Seus seguidores a irem e a fazerem discípulos de todas as
nações (Mateus 28:19-20).

O segredo da autoridade de Jesus (vv. 8-9)

Jesus admirou-se com a fé do centurião aparentemente porque ele acreditava


que Jesus podia não só curar, mas curar à distância (v. 8)! Também parecia
compreender que uma palavra de Jesus era suficiente. A sua razão para dizer isso
era simples. Ele reconhecia que Jesus era um homem sob autoridade divina. Como
centurião romano, tinha cem homens sob o seu comando. Mas a sua autoridade
sobre esses homens provinha do facto de ele próprio estar sob autoridade (v. 9). Se
ele se rebelasse contra a autoridade do general à frente da sua legião, seria
despojado do seu posto e perderia a sua autoridade sobre os seus homens. Ele
compreendia que para se ter autoridade é preciso primeiro estar sob autoridade.
O facto de Mateus citar aqui o centurião em pormenor mostra a sua intenção
de levar-nos a compreender que o centurião tinha avaliado correctamente a razão
da autoridade de Jesus que podia fazer as coisas maravilhosas que fazia porque Ele
vivia toda a sua vida sob a autoridade de Seu Pai. Satanás tentara-O para que Ele se
sujeitasse à sua autoridade (Mateus 4:9), prometendo-Lhe todos os reinos deste
mundo, mas Jesus resistiu à tentação e sujeitou-se à vontade de Deus, morrendo
numa cruz. É por isso que quando finalmente cumpriu o propósito do Pai, ressuscitou
dos mortos e pôde dizer em Mateus 28:18:
Todo o poder me foi dado no céu e na terra! A lição é clara. Se queremos ter
autoridade, temos de estar sob a autoridade de Deus. Não podemos assumi-la. Tem
de nos ser dada por Deus. E Ele só a dá aos que Lhe estiverem submissos.

O papel da fé (v. 10, 13)

O papel da fé na cura é um assunto extremamente importante e discuti-la-


emos em mais pormenor na Segunda Parte deste livro. Por agora, será útil
estabelecer uma simples comparação entre a cura do leproso e a do criado do
centurião. Nesta conexão, são dignas de nota duas coisas:

1. Na história da cura do leproso, reparámos que a fé do homem se limitava a


crer que Jesus podia curá-lo. Ele não tinha a certeza de que seria. O
centurião, contudo, creu claramente que o seu criado seria curado (v. 13).
2. No caso do leproso, foi o próprio doente que estava a exercer a fé. Na
história do criado do centurião, a fé foi exercida pelo centurião, não pelo
criado doente.

Isto parece sugerir que, embora a fé seja claramente um elemento importante


na cura, seria insensato sermos dogmáticos quanto à quantidade de fé necessária
para a cura ou quem precisa de a exercer. Como veremos dentro em pouco, é
interessante que na cura da sogra de Pedro, a fé nem sequer é mencionada!
Jesus cura muitos vv. 14-17)

Na secção final da passagem que estamos a considerar, Mateus regista a cura


da sogra de Pedro, seguida pelo resumo de como, mais tarde nesse dia, Jesus curou
todos os que estavam doentes. Isso, diz ele, para cumprir a profecia de Isaías 53:4.

Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e levou as nossas doenças.

Como já referimos, não se menciona a fé na cura da sogra de Pedro. Mateus


limita-se a dizer-nos:

E Jesus, entrando em casa de Pedro, viu a sogra deste jazendo com febre. E
tocou-lhe na mão e a febre a deixou; e levantou-se e serviu-os.

No relato de Lucas, lemos que a febre era muita e que Jesus se curvou sobre
ela. Também diz que Jesus repreendeu a febre (Lucas 4:39). A versão de Mateus,
porém, é um pouco mais intensa. Jesus entra, vê a mulher, toca-lhe na mão e ela fica
boa. Ao expressar-se deste modo, Mateus está a enfatizar de novo a autoridade
total de Jesus. O Seu toque, como a Sua palavra, é suficiente. A cura é imediata e
completa. Ela levanta-se e começa a servi-los.
À tarde, ficamos a saber, trouxeram-Lhe muitos endemoninhados e Ele com a
Sua palavra expulsou deles os espíritos e curou todos os que estavam doentes (v.
16). Embora, como veremos mais tarde, haja por vezes uma ligação entre demónios e
doença (4), não há necessidade de assumir que toda a doença seja provocada por
demónios. Mateus 4:24 distingue entre a possessão de demónios e outras aflições e
aqui em 8:16, a forma natural de ler o versículo é compreender que estavam a
ocorrer duas actividades distintas – os demónios estavam a ser expulsos e os
doentes curados.
Aqui, há duas coisas significativas. Primeiro, os demónios eram expulsos com
uma palavra. Basta uma só palavra do Homem com autoridade. Sai! E os demónios
fogem. De novo, Mateus está a enfatizar o poder da palavra de Jesus. Em segundo
lugar, salienta que Jesus curou todos os que estavam doentes. Este é um tema
comum em Mateus (cf. 4:23-24; 9:35). Indubitavelmente, fornece mais evidências
da sua disponibilidade em curar. Assim, em dois curtos versículos, Mateus repete o
tema que já referimos – o poder de Cristo em curar os doentes e a Sua
disponibilidade em o fazer.
Mas no versículo 17, Mateus acrescenta uma outra razão. Jesus cura os
doentes a fim de cumprir o que fora profetizado no Velho Testamento. Jesus é
retratado ao longo de Mateus como o cumprimento de todas as esperanças e ideais
de Israel e Mateus cita com frequência o Velho Testamento para mostrar que
Jesus é Aquele por quem esperavam há tanto tempo.
Mais tarde, iremos considerar com mais pormenor o significado desta citação
quando discutirmos se Jesus carregou as nossas doenças na cruz. Por agora, basta
salientar que Mateus não cita Isaías 53 no contexto da morte expiatória de Jesus,
mas do Seu ministério de cura na Galileia.

Conclusão

Nesta curta passagem do evangelho de Mateus, aprendemos muitas lições


sobre a cura. Como Jesus esteve sempre sujeito à autoridade de Seu Pai e como
veio demonstrar o amor e a compaixão de Deus, mostra não só a Sua vontade e a
Sua capacidade de, com uma simples palavra de comando, curar todos os que vierem
a Ele, seja Judeu ou Gentio, como, quando necessário, possibilitar a sua
reintegração na sociedade. Agindo assim, demonstrou que era verdadeiramente o
Cristo. Mais importante, revelou o coração amoroso de Deus pela humanidade
sofredora.

NOTAS
(1) Mais tarde, discutiremos com mais pormenor este assunto. Por agora, basta
notar que nem sempre é vontade de Deus curar imediata ou sobrenaturalmente. A
cura pode ocorrer gradualmente através de processos naturais, com, que Deus
dotou os nossos corpos. Por vezes, Deus te um propósito em demorar a cura, mas
em última análise é sempre Sua vontade curar – os corpos ressurrectos que
receberemos quando Jesus voltar de novo não conhecerão a doença (1 Coríntios
15:35-54).
(2) Marcos declara especificamente que Jesus se encheu de compaixão pelo
homem (Marcos 1:41).
(3) No texto grego original aqui, Sê limpo é apenas uma palavra.
(4) E. g. Lucas 13:11, 16.
CAPÍTULO QUATRO

Lições sobre cura em Marcos

No seu evangelho, Marcos revela-nos como grandes multidões seguiam Jesus.


Isso em grande medida devia-se aos milagres que Ele realizava. Depois de expulsar
um espírito mau de um homem na sinagoga (Marcos 1:321-26), lemos que

E logo correu a sua fama por toda a província da Galileia... e trouxeram-lhe


todos os que se achavam enfermos e os endemoninhados. E toda a cidade se
ajuntou à porta. E curou muitos que se achavam enfermos de diversas
enfermidades (Marcos 1:28-34).

Na verdade, Marcos fala-nos repetidamente das grandes multidões que


seguiam Jesus (1) e de novo em 5:21, lemos que uma grande multidão se juntou à sua
volta. Mas, claro, as multidões são compostas por indivíduos e, na passagem que se
segue, Marcos fala-nos de duas pessoas que, embora indivíduos muito diferentes,
tinham necessidades marcadamente semelhantes.

Jairo e a mulher doente

O bem conhecido relato em Marcos 5:21-43 conta como Jairo, um dos


responsáveis da Sinagoga, se aproximou de Jesus porque sua filha de 12 anos se
encontrava muito doente. Enquanto Jesus o acompanhava, uma mulher com um
problema hemorrágico há 12 anos tocou-lhe nas vestes e Jesus, percebendo que de
si saíra poder, perguntou quem lhe tocara. Quando a mulher se acusou, Jesus disse-
lhe: Filha, a tua fé te curou. Vai em paz e sê curada deste teu mal (v. 34).
Entretanto, a filha de Jairo morrera e alguns vieram informá-lo do sucedido.
Mas Jesus disse-lhe: Não temas; crê somente (v. 36). Chegando à casa de Jairo,
Jesus expulsou as carpideiras e, juntamente com Pedro, Tiago e João, entrou em
casa com os pais da menina. Pegando—lhe na mão, disse-lhe; Menina, a ti te digo,
levanta-te! De imediato, ela levantou-se e andou pela sala.
Claro que o evangelho de Marcos relata muitos outros milagres de cura
realizados por Jesus, incluindo alguns dos que analisámos no evangelho de Mateus,
no último capítulo (2), mas escolhemos esta passagem como amostra do que Marcos
nos ensina sobre a cura. Jairo e a mulher são apenas exemplos. As suas
necessidades podem ser assumidas como representativas das necessidades de
muitos nas multidões que seguiam Jesus e na realidade das necessidades de muitos
hoje. Iremos considerar:
• Semelhanças e diferenças entre eles
• Como foram supridas as suas necessidades
• Lições sobre a cura
• Que mais nos ensina esta passagem além da cura

Semelhanças e diferenças entre eles

As semelhanças entre Jairo e a mulher são óbvias. Ambos enfrentam


problemas insolúveis. A filha de Jairo estava morta (v. 35)! A mulher não tinha
solução médica (v. 26). De facto, Marcos diz-nos que
´
Havia padecido muito com muitos médicos e dispendido tudo quanto tinha, nada
lhe aproveitando isto, antes indo a pior (v. 26).

Não devemos entender esta passagem como crítica da profissão médica (3).
Marcos menciona-a apenas para salientar a gravidade do seu problema – não havia
resposta humana!
As diferenças entre eles são também muito claras. Numa perspectiva social,
Jairo usufruía de privilégios maravilhosos que eram negados à mulher. Primeiro, ele
era homem e ela mulher. Se isto parece óbvio, temos de recordar que, no século 21,
em que muitos países têm agora leis que protegem os direitos das mulheres, é difícil
para a maioria apreciar como eram desfavorecidos os direitos das mulheres do 1º
século. Não é necessário discorrer mais sobre o assunto. Basta dizer que em Israel
na altura do Novo Testamento, era uma clara vantagem ser-se homem! É
interessante notar que, mesmo nos relatos do Novo Testamento, Jairo é indicado
pelo nome, mas não a mulher!
A segunda grande diferença entre eles relaciona-se com a vida religiosa da
comunidade que se centrava na sinagoga. Marcos diz-nos que Jairo era um dos
principais da sinagoga, uma posição que impunha um respeito considerável. A mulher,
contudo, teria sido excluída da sinagoga porque, de acordo com a lei levítica, a
condição de que estava a sofrer tornava-se cerimonialmente impura (4). É difícil
imaginar como se deve ter sentido humilhada nessas circunstâncias, em especial à
luz do facto de a sua situação durar há doze anos.
Depois, naturalmente, havia diferenças na sua saúde física e no seu estatuto
financeiro. A mulher estava incuravelmente doente e fora reduzida à pobreza ao
gastar tudo quanto tinha com os médicos, que se revelaram incapazes de a ajudar.
Jairo, por outro lado, embora tivesse uma filha doente, parece ter gozado de boa
saúde e como principal da sinagoga não devia ser um homem pobre.
Por fim, há uma outra diferença marcante entre ambos nesta passagem. Tem a
ver com a forma como Jesus os tratou. Torna-se claro que a fé de Jairo foi testada
(v. 36), enquanto a da mulher foi instantaneamente recompensada (v. 29).,
Falaremos mais sobre isto na secção seguinte, mas é adequado salientar aqui uma
lição muito importante: Deus lida com todos nós de forma individual. Ele raramente
lida com dois casos exactamente da mesma maneira. Ele ama e cuida de cada
indivíduo e sabe o que é melhor para cada. O princípio aplica-se não apenas à cura
mas a toda a nossa vida. Mas agora, devemos considerar em mais pormenor como
foram supridas as suas necessidades.

Como foram supridas as suas necessidades

Tanto Jairo como a mulher enfrentavam situações impossíveis. Se Deus não os


ajudasse, mais ninguém os ajudaria. Contudo, as suas necessidades foram supridas
pelo poder miraculoso de Jesus. Isto aconteceu porque cada um deles veio a Jesus,
humilhando-se perante Ele e confiando n’Ele.

Ambos vieram a Jesus

Tanto Jairo como a mulher vieram a Jesus à procura de cura. Jairo em favor
da filha e a mulher de si própria. Ambos juntaram-se à multidão que rodeava Jesus
(vv. 21-22, 27), embora cada um O abordasse de forma diferente. Jairo rogava-lhe
muito (v. 23).A mulher nem sequer falou. Ela simplesmente tocou no seu vestido (v.
27). Há formas muito diferentes de vir a Jesus, mas o importante é vir. Quer
roguemos muito em oração, quer simplesmente O procuremos em fé, o que conta não
é a forma como vimos, mas a pessoa a quem vamos. Jesus é o único caminho para
Deus (João 14:6) e o único mediador entre Deus e nós (1 Timóteo 2:5). É apenas
n’Ele que todas as nossas necessidades ficam supridas.

Ambos humilharam-se perante Jesus

É interessante que Marcos nos conta que tanto Jairo como a mulher caíram a
seus pés (vv. 22, 33). Esta podia ser naturalmente apenas uma expressão da
urgência das suas necessidades, mas parece mais provável que Marcos quisesse
levar-nos a compreender quem Jesus de facto é. Ele começa o seu evangelho com as
palavras:
Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. Então, Jesus é digno de
adoração e se Jairo e a mulher não compreendiam isso plenamente quando caíram a
Seus pés, Marcos com toda a certeza compreendia e queria que os seus leitores
ficassem também a sabê-lo!
Hoje, parece que muitos correm para Jesus quando o poder sarador de Deus
está em acção, e em geral Ele cura-os graciosamente. Mas se é para Jesus nos
satisfazer ao nível da nossa necessidade mais profunda, temos de reconhecer quem
Ele é e humilhar-nos perante Ele. Como veremos dentro em pouco, há mais do que
cura nesta passagem. Há algo ainda mais importante.

Ambos exerceram fé em Jesus

Já mencionámos que Deus lida connosco enquanto indivíduos. Vimos que a fé da


mulher foi imediatamente recompensada enquanto a de Jairo foi testada. Chegou o
momento de analisar este facto com mais pormenor.
É claro que Jairo deve ter tido fé para ir a Jesus. O pedido que fez a Jesus no
versículo 23 deixa implícito este facto. Rogo-te que venhas e lhe imponhas as mãos
para que sare e viva. As palavras e viva sugerem que Jairo sabia como era crítica a
situação da filha. Sabia que se Jesus não a curasse, ela morreria. Mas ele cria que
se Jesus lhe impusesse as mãos, ela seria curada.
Para o final da história, depois de a menina ter morrido, Jesus diz a Jairo: Não
temas, crê somente (v. 36). Aqui, o grego diz literalmente Continua a crer. Isso
mostra que Jesus sabia que Jairo tivera fé desde o princípio. Ia também precisar
dela até ao fim! Assim, a fé de Jairo foi de facto testada, mas ele aprendeu a
importante lição de que nunca é demasiado tarde com Jesus e que a sua fé ia ser
recompensada não só no facto de a filha lhe ir ser devolvida viva e de saúde, mas
também pelo privilégio de testemunhar o maior milagre que Jesus até então ainda
não tinha realizado. A história de Jairo ensina-nos sem dúvida a necessidade de
perseverar na fé, mesmo quando as circunstâncias parecem totalmente adversas.
Como Paulo nos diz em Romanos 1:17, a vida da fé é do princípio ao fim.
A fé da mulher é evidente no versículo 28, em que lemos que ela pensava se
tão somente lhe tocar na roupa, serei curada. Embora a sua fé não fosse testada
como foi a de Jairo, havia provavelmente necessidade de um elemento de
perseverança no seu caso. Já mencionámos o embaraço que ela deve ter sentido
porque a sua aflição tornava-a cerimonialmente «impura». Parece provável que,
como resultado, lhe faltava autoconfiança e isso é sugerido na afirmação de se ter
aproximado por trás, no meio da multidão (v. 27). Parece que ela não queria ser
vista,
Encontramos mais evidência no facto de ela não ter reconhecido de imediato o
facto de Lhe ter tocado. Jesus teve de continuar a olhar à sua volta (v. 32) para ver
quem o fizera, antes de ela finalmente admitir. E quando o faz, estava a tremer com
receio (v. 33).
Contudo, apesar de todos os seus receios compreensíveis, ela sabia que se Lhe
pudesse tocar, seria curada. Assim, venceu os seus medos, perseverou na fé e
internou-se pela multidão para estabelecer contacto com Jesus. Não admira que
Jesus dissesse no versículo 34, Filha, a tua fé te curou. Vai em paz e sê liberta
deste teu mal. Como Jairo, ela aprendeu que nunca é demasiado tarde com Jesus,
mesmo ao fim de 12 anos! Mas, como já sugerimos, há aqui mais do que cura, para o
que viramos agora a nossa atenção.

Mais do que cura

Quando Jesus disse: A tua fé te curou, a palavra grega utilizada para cura é
s z . Discuti-la-emos em pormenor na Segunda Parte, mas o seu significado básico é
salvar. Por consequência, pode significar salvar, curar ou resgatar, dependendo do
contexto em que é usada. Aqui, é claro que, no contexto da cura da mulher, cura é a
tradução mais natural, Contudo, há fortes indicações no mesmo versículo que
Marcos pretende levar-nos a compreender mais do que a cura. A sugestão pode bem
ser que a mulher não fora apenas curada, mas também salva (5).
Por alguma razão Jesus trata-a por Filha. Este é um termo íntimo. Significa
que ela faz parte da família de Deus. A sua condição excluiu-a durante 12 anos da
vida religiosa da comunidade, mas agora ela está incluída, aceite na família de Deus.
Depois, Jesus diz-lhe que vá em paz. Na língua em que Jesus falou, a palavra
teria sido shalom. O seu significado básico no Velho Testamento é perfeição,
plenitude, bem-estar. Pode referir-se à prosperidade material ou saúde física, mas
ser usado também em relação a bem-estar espiritual.
O equivalente no grego do Novo Testamento é eir n . Esta palavra não só
veicula o significado veterotestamentário de shalom, como, ainda mais importante, é
usada para se referir à paz que temos com Deus quando colocamos a nossa
confiança em Cristo como Salvador (Romanos 5:1).
Assim, quando Jesus diz à mulher que vá em paz, pode muito bem-estar a falar
de mais do que da plenitude física e do bem-estar que ela recebeu com a cura. Foi
certamente por essa razão que ela apareceu, mas ao vir a Jesus, ela bem pode ter
recebido algo mais – paz com Deus através da fé em nosso Senhor Jesus Cristo.
Finalmente, Jesus diz-lhe: Sê liberta do teu mal. De novo, o contexto deixa
claro que ela está livre do sofrimento físico. Mas mais do que isso, ela está livre da
necessidade dos médicos que tanto lhe custaram. Ela está livre da exclusão da
sinagoga. Está livre do embaraço que a sua condição sem dúvida lhe produzia. Está
livre da insegurança de tudo quanto a impedia. E se o que discutimos no último
parágrafo estiver correcto, o ministério de Jesus à mulher vai ainda mais longe,
ultrapassando o físico e as suas implicações financeiras, indo além do sociológico e
do psicológico. Atinge as profundezas mais íntimas do seu ser. Ela encontrou a
liberdade espiritual que apenas a salvação pela fé em Cristo pode trazer!

Conclusão

Esta maravilhosa passagem do evangelho de Marcos ensina-nos lições muito


importantes.

• Jesus pode resolver problemas insolúveis


• Ele preocupa-se tanto com os privilegiados como com os desprezados.
• Ele lida diferentemente connosco conforme as nossas dificuldades
próprias, como indivíduos diferentes que somos.
• Se queremos que Jesus satisfaça nossa necessidade, precisamos de
o ir a Ele
o humilhar-nos perante Ele
o colocar n’Ele a nossa confiança
• Por vezes, a fé é recompensada de imediato, Outras vezes, é testada.
• Com Jesus nunca é demasiado tarde.
• Jesus quer fazer mais do que satisfazer as nossas necessidades físicas e
sociais. Ele quer que sejamos livres no sentido mais cabal do termo, que
encontremos paz com Deus através da confiança depositada n’Ele,
tornando-nos assim parte da Sua família. Em suma, Ele quer fazer mais do
que curar-nos. Ele quer salvar-nos. Foi por isso que morreu na cruz.

NOTAS
(1) Cf. 2:2; 2:13; 3:7; 3:9; 3:32; 4:1
(2) Ver Marcos 1:29-32, 40-44.
(3) Discutiremos este assunto com mais pormenor na Segunda Parte quando
considerarmos o que a Bíblia tem a dizer sobre o uso de remédios e a profissão
médica.
(4) Levítico 15:23-30.
(5) Claro que não podemos ter a certeza plena, mas como veremos mais à
frente, os escritores do Novo Testamento usaram com frequência exemplos de cura
para ilustrar a mensagem de salvação. Isso não quer dizer que a cura seja parte da
salvação – embora em última análise o seja claramente - antes quer dizer que, no
mínimo, Marcos está a ensinar os princípios da salvação através da cura da mulher.
CAPÍTULO CINCO

Lições sobre cura em Lucas

No final do capítulo sobre o Velho Testamento, vimos que o profeta Isaías


predisse que quando o Messias viesse, o Espírito do Senhor estaria sobre ele a fim
de poder anunciar as boas novas aos pobres, proclamar liberdade aos cativos e
proclamar o ano do favor do Senhor (Isaías 61:1-2). Também vimos que em
Lucas4:18-19, Jesus afirmou que esta profecia se tinha cumprido naquele momento.
Isto é importante para a compreensão do evangelho de Lucas, porque ilustra a
ênfase de Lucas que Jesus realizou os Seus milagres pelo poder do Espírito Santo.
Lucas 3:21-22 diz-nos que logo depois de Jesus ser baptizado por João no rio
Jordão, o Espírito Santo desceu sobre Ele. Como resultado, regressou do Jordão
cheio do Espírito Santo (Lucas 4:1) e em 4:14, regressa à Galileia no poder do
Espírito (1). Isto pode estar também reflectido em Lucas 5:17, que nos diz que o
poder do Senhor estava presente para ele curar os doentes (cf. 6:17-19).
Neste capítulo, iremos considerar três curas registadas por Lucas, duas das
quais não se encontram em mais nenhum evangelho.

• O paralítico (5:17-26)
• A mulher com a coluna curvada (13:10-17)
• Os dez leprosos (17:11-19)

O paralítico (5:17-26)

Nesta passagem, Lucas conta a história da cura de um paralítico. Ele começa


por dizer que o poder do Senhor estava presente para ele curar os doentes (v. 17).
Esta afirmação levanta importantes questões:

1. O poder de Deus não estava sempre sobre Jesus para curar os doentes?
2. Se estava, então porque é que Lucas se preocupa em o mencionar?

E estas questões provocam uma terceira:

3. Jesus realizou os seus milagres em virtude do facto de ser Deus ou


praticou-os (mesmo sendo Deus) como homem através do poder do Espírito
Santo?
A resposta a esta última pergunta deve ser certamente que Jesus realizou os
Seus milagres como homem, pelo poder do Espírito Santo. Como é que Ele podia
dizer aos Seus discípulos que quem tivesse fé nele poderia fazer obras semelhantes
e até maiores (João 14:12)? Isso só seria possível por causa do Espírito Santo que
Jesus iria enviar.
Se esta resposta à pergunta 3 estiver correcta, então a resposta à pergunta 1
deve ser que Jesus apenas realizou os seus milagres quando guiado pelo Espírito
Santo a agir assim (2). Portanto, a resposta à pergunta 2 é que Lucas menciona que o
poder do Senhor estava presente para curar para enfatizar que nesse momento o
Espírito Santo estava a revestir Jesus com o poder para curar e a levá-Lo a agir
assim.
Se este entendimento estiver correcto, então terá implicações claras para nós
quando ministramos hoje aos doentes. Se Jesus lhes ministrou ao ser guiado e
revestido de poder pelo Espírito Santo, então muito mais precisamos nós da
orientação e do poder do Espírito. Na verdade, podemos perguntar se deveríamos
tentar ministrar aos doentes sem a Sua orientação.
Mas agora devemos prestar atenção ao relato da cura. Eis como Lucas a
descreve:

18 E eis que uns homens transportaram numa cama um homem que estava
paralítico e procuravam fazê-lo entrar e pô-lo diante dele.
19 E não achando por onde o pudessem levar, por causa da, multidão, subiram
ao telhado e por entre as telhas o baixaram com a cama, até ao meio, diante de
Jesus.
20 E vendo ele a fé deles, disse-lhe: Homem, os teus pecados te são
perdoados.
21 E os escribas e os fariseus começaram a arrazoar dizendo: «Quem é este
que diz blasfémias? Quem pode perdoar pecados senão só Deus?»
22 Jesus, porém, conhecendo os seus pensamentos, respondeu e disse-lhes:
«Que arrazoais em vossos corações?
23 Qual é mais fácil? Dizer: “Os teus pecados te são perdoados”; ou dizer:
“Levanta-te e anda?”
24 Ora, para que saibais que o Filho do homem tem poder sobre a terra para
perdoar pecados (disse ao paralítico), a ti te digo: Levanta-te, toma a tua cama
e vai para tua casa.»
25 E levantando-se logo diante deles e tomando a cama em que estava deitado,
foi para sua casa, glorificando a Deus.

Citei na íntegra o relato de Lucas pois é difícil abreviá-lo sem deixar de fora
algo de importante. Os pontos seguintes são dignos de nota:

• Parece que neste caso não é o doente, mas os amigos que tomam a iniciativa
(v. 18). Na verdade, parece ter sido à fé deles (v. 20) que Jesus responde
(3). A este respeito, é semelhante à cura do criado do centurião em Mateus
8. Isto ensina-nos que nem sempre é a fé do doente que é base para a cura.
• O facto de Jesus dizer Os teus pecados te são perdoados, antes de
realizar a cura (v. 20) pode indicar que a doença do homem surgira em
resultado de pecado pessoal – ou até que o homem cria que fosse essa a
razão! É também possível que ao demonstrar a sua autoridade para perdoar
pecados, Jesus esteja a procurar salientar a Sua autoridade messiânica
junto dos fariseus críticos. Contudo, parece muito provável que esteja a
mostrar à audiência que o perdão de pecados é mais importante que a cura
da doença.
• A história demonstra a autoridade de Jesus como Filho do Homem (v. 24),
um título messiânico. Também implica a Sua deidade (4). Os Fariseus tinham
razão ao dizer que apenas Deus tem o direito de perdoar pecados.
Simplesmente não percebiam que Jesus era Deus.

A mulher com a coluna curvada (13:10-17)

O milagre registado nesta passagem apenas se encontra no evangelho de


Lucas. Como veremos na Segunda Parte, a Bíblia indica que algumas doenças são o
resultado de pecado pessoal, como pode ter sido o caso do homem que considerámos
na última secção. Noutras ocasiões, embora nem sempre, podem ser provocadas pela
actividade de Satanás, como a passagem seguinte claramente mostra:

10 E ensinava no sábado, numa das sinagogas


11 E eis que estava ali uma mulher que tinha um espírito de enfermidade, havia
já dezoito anos; e andava curvada e não podia de modo algum endireitar-se.
12 E vendo-a Jesus, chamou-a a si e disse-lhe: «Mulher, estás livre da tua
enfermidade».
13 E pôs as mãos sobre ela e logo se endireitou e glorificava a Deus.
14 E tomando a palavra, o príncipe da sinagoga, indignado porque Jesus curava
mo sábado, disse à multidão: «Seis dias há em que é mister trabalhar; nestes,
pois, vinde para serdes curados e não no dia de sábado».
15. Respondeu-lhe, porém, o Senhor: «Hipócritas, no sábado não desprende da
manjedoura cada um de vós o seu boi ou jumento e não o leva a beber?
16 E não convinha soltar desta prisão no dia de sábado esta filha de Abraão, a
qual há dezoito anos Satanás tinha presa?»

Como a última passagem que considerámos, esta descreve um confronto entre


Jesus e as autoridades religiosas daqueles dias. De novo a passagem é usada para
demonstrar a autoridade de Jesus, agora para curar no sábado. Também mostra a
rejeição dessa autoridade pelos líderes judeus a quem Lucas endereça a parábola da
figueira nos versículos 6-9 como um aviso. Isto mostra que o principal propósito da
passagem pode não ter sido ensinar sobre a cura como tal, mas salientar de novo o
falhanço das autoridades judaicas em reconhecer quem Jesus era e mostrar a justa
indignação de Jesus face a regulamentos humanos que apenas escravizavam o povo
de Deus. Contudo, há diversos aspectos da história que nos esclarecem em relação à
cura:

Eis um exemplo, semelhante ao caso da cura da sogra de Pedro, em que é


Jesus, não o doente que toma a iniciativa (v. 12).
Não há referências à fé por parte da mulher. Jesus cura-a assim que a vê (v.
12). Esta é outra indicação da disponibilidade de Jesus em curar.
Não há sugestão de a doença ser provocada pelo pecado. Era causada por «um
espírito» (v. 11), agindo como um agente de Satanás (v. 16). Isto não e possessão
demoníaca. Jesus não expulsa, não se dirige ao espírito, mas fala à mulher, dizendo-
lhe que está livre e impõe-lhe as mãos. De imediato é curada.
Contudo, mais importante que a causa da doença é a clara implicação de que
como membro do povo de Deus, a mulher tinha o direito de ser curada (v. 16).
A passagem mostra com toda a clareza que a compaixão é mais importante que
o legalismo. Compare-se Lucas 14:1-.6, em que Jesus cura no sábado um homem que
sofre de hidropisia e deixa sem argumentos os Fariseus e os doutores da lei!

Os dez leprosos (17:11-19)

Esta história também apenas se encontra no evangelho de Lucas. Diz-nos que


quando Jesus se dirigia a Jerusalém, viajando ao longo da fronteira entre a Samaria
e a Galileia, dez leprosos vão ao Seu encontro. Permanecem à distância, como se
exigia aos leprosos e clamam em alta voz: Jesus, Mestre, tem piedade de nós! Então
Lucas conta-nos:

14 E Ele, vendo-os, disse-lhes: «Ide e mostrai-vos aos sacerdotes». E


aconteceu que, indo eles, ficaram limpos.
15. E um deles, vendo que estava são, voltou glorificando a Deus em alta voz.
16 E caiu aos seus pés, com o rosto em terra, dando-lhe graças; e este era
samaritano
17 E respondendo Jesus, disse: «Não foram dez os limpos? E onde estão os
nove?
18 Não houve quem voltasse para dar glória a Deus senão este estrangeiro?»
19 E disse-lhe: «Levanta-te e vai; a tua fé te salvou.

Esta parece ser outra passagem em que Lucas salienta o fracasso dos Judeus
dos dias de Jesus em reconhecê-Lo por aquilo que Ele era. Os nove leprosos judeus
que foram curados e que no entanto não regressaram para agradecer podem ser
considerados símbolo da ingratidão de Israel como um todo, apesar das muitas
bênçãos que Jesus lhes trouxe. Uma lição óbvia desta história é a importância da
gratidão.
Ainda mais evidente, porém, é a importância da fé. É o que se vê no pedido
inicial de misericórdia por parte dos leprosos. Implica no mínimo que criam que
Jesus podia ajudá-los. Mais ainda, a instrução de Jesus, que é dada antes de serem
curados, de que devem ir e apresentar-se ao sacerdote (cf. Mateus 8:4, em que ao
leproso é dito que vá depois de Jesus o ter curado) certamente implica a exigência
de que deviam agir em fé. É apenas na medida em que vão que são purificados (v.
14). Finalmente, a importância da fé é salientada nas últimas palavras de Jesus ao
Samaritano agradecido: Levanta-te e vai; a tua fé te salvou.
A afirmação de Jesus aqui (5) é idêntica à que Ele disse ao falar com a mulher
cuja hemorragia foi curada quando ela Lhe tocou na capa (Marcos 5:34). Ali,
sugerimos que Marcos pode ter pretendido que compreendêssemos que a mulher
recebeu mais do que cura para o corpo. No mínimo, argumentámos, Marcos estava a
usar um milagre de cura como ilustração da salvação e parece provável que é
também essa a intenção de Lucas na história do leproso agradecido. Contudo, na
Segunda Parte, iremos discutir com mais pormenor em que sentido a cura pode ser
entendida como uma parte da salvação.

Conclusão

Assim, das passagens que examinámos no evangelho de Lucas, podemos


aprender as seguintes lições sobre cura:

• Jesus realizou as suas curas pelo poder do Espírito e guiado pelo Espírito,
de onde provinha a Sua autoridade.
• O perdão dos pecados é mais importante que a cura do corpo.
• Algumas doenças podem ser provocadas por pecado pessoal. Outras podem
ser infligidas por Satanás.
• A fé desempenha um papel importante na cura. É por vezes a fé do doente,
mas pode ser a de amigos. Por vezes, essa fé é testada. Em alguns casos, a
fé nem sequer é mencionada.
• Os milagres de cura podem ser poderosas ilustrações do poder salvador de
Deus. Isto pode indicar que em certo sentido a cura faz parte da salvação.
Mas isso é algo que iremos discutir com mais pormenor na Segunda Parte.

NOTAS
(1) Nos escritos de Lucas, estas três expressões são claramente
intercambiáveis. Para mais discussão deste aspecto, ver Petts, D., The Holy Spirit –
an Introduction, Mattersey, Mattersey Hall, 1998, pp. 65, 125.
(2) Cf. João 5:19 em que Jesus diz que nada faz por si mesmo. Apenas faz o
que o Pai (presumivelmente através do Espírito) Lhe diz para fazer.
(3) Claro que a fé deles podia significar a fé dos cinco – o homem mais os
quatro amigos. Contudo, a forma mais natural de compreender isto é ver a fé
referida como a dos amigos, cuja fé era tão forte que venceu todos os obstáculos –
a multidão, o telhado, etc.
(4) Os Seus milagres não demonstravam a Sua deidade. Ele realizou-os como
homem através do poder do Espírito. Mas a sua reivindicação de ter autoridade
para perdoar os pecados era uma afirmação implícita de deidade que os Fariseus
foram rápidos a reconhecer.
(5) O grego diz: he pistis sou sesoken se, que significa:
A tua fé te curou
Ou literalmente
A tua fé te salvou.
Cf. as seguintes passagens em que se usa a mesma expressão:
Bartimeu - Mateus 10:52, Lucas 18:42
A mulher com a hemorragia – Mateus 9:22, Marcos 5:34; Lucas 8:48
O leproso - Lucas 17:19
Lucas 7:50 – referindo-se ao perdão dos pecados.
CAPÍTULO SEIS

Lições sobre cura em João

Nenhum dos evangelistas nos conta todos os milagres de cura que Jesus
realizou. Cada escritor, guiado pelo Espírito Santo, seleccionou vários exemplos a
fim de enfatizar algum aspecto da verdade sobre Jesus que sentia ser importante.
Ao analisarmos agora o evangelho de João, é interessante notar que João optou por
registar apenas três dos milagres de cura de Jesus (1), embora deixe muito claro
que Jesus fez muitos mais (2). O seu propósito ao descrevê-los, juntamente com os
outros milagres de que nos fala é para podermos

crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e para que crendo tenhamos vida
através do seu nome (João 20:31).

Assim, o alvo de João em contar estas histórias não é tanto falar-nos como
podemos ser curados, mas capacitar-nos a sermos salvos, crendo no Senhor Jesus
Cristo (cf. João 3:16) (3). Neste capítulo, iremos considerar duas das curas
registadas por João.

• O paralítico no tanque de Betesda (João 5:1-15)


• O cego de nascença (João 9:1-25)

e, embora haja muito a aprender sobre a cura em ambos estes relatos, o importante
para João é que eles devem levar-nos à salvação através da fé em Jesus. Isso é de
longe mais importante que a cura dos nossos corpos (4).

O paralítico no tanque de Betesda (João 5:1-15)

O tanque de Betesda (que significa Casa de Misericórdia) situava-se em


Jerusalém e um grande número de deficientes utilizava-o à espera de ser curado
por um anjo que surgia ocasionalmente e agitava as águas. João conta-nos que ali se
encontrava um que era inválido há já trinta e oito anos. Quando Jesus o viu, disse-
lhe: Queres ser curado?, ao que o homem respondeu que não tinha ninguém que o
ajudasse a entrar no tanque quando a água era agitada. Então, Jesus disse-lhe:
Levanta-te! Toma a tua cama e anda. O homem ficou imediatamente curado, pegou
na sua enxerga e caminhou! Tudo isso sucedeu num sábado.
Jesus misturou-se com a multidão, mas os Judeus repreenderam o homem que
fora curado por carregar a sua cama no dia de sábado. O homem respondeu que o
fizera às ordens do homem que o curara. Então perguntaram-lhe quem era esse
homem, mas o ex-paralítico não sabia. Mais tarde, Jesus encontrou-o e disse-lhe:
Eis que já estás são, não peques mais para que te não aconteça alguma coisa pior. (v.
14). Então o homem afastou-se e disse aos Judeus que fora Jesus quem o curara.
A primeira coisa significativa neste milagre é que, embora João nos diga que
um grande número de doentes se reunia no tanque (v. 3), Jesus curou apenas um
deles nesta ocasião. Esta é uma diferença marcante em relação a alguns dos outros
relatos, em particular em Mateus (5), que nos diz que Jesus curou todos. Claro que
esta não é uma contradição face aos relatos de Mateus, na medida em que este não
regista este milagre particular. Simplesmente ficamos a saber que embora
houvesse ocasiões em que Jesus curou todos (como Mateus nos diz), houve outros
momentos em que não o fez (como João deixa claro aqui).
Em segundo lugar, notemos que foi Jesus quem tomou a iniciativa nesta
ocasião. O homem não clamou a Jesus – na verdade, nem sequer sabia quem Jesus
era (v. 13). E se ele não sabia quem Jesus era, mal podia exercer fé em Jesus! De
facto, nada faz para a sua cura. Ele nada pode fazer! Está indefeso e sem
esperança. Nem sequer tem alguém que o leve a Jesus. É apenas Jesus o
responsável pelo milagre. O único papel que o homem desempenha, se assim o
podemos dizer, é querer ficar curado (v. 6).
Em muitos aspectos, portanto, este milagre é um maravilhoso quadro da
salvação de que, acima de tudo, João nos quer falar no seu evangelho. A humanidade
como um todo sofre de uma situação incurável, a doença do pecado. Estamos
indefesos e impotentes sem Jesus. Mas, graças a Deus, Ele tomou a iniciativa.
Morreu pelos nossos pecados e a nossa situação pode ser curada ser se quisermos
ser curados. Claro que, ao contrário do homem da história, agora sabemos quem
Jesus é. Podemos invocá-Lo em fé. E é através da fé n’Ele que recebemos vida
eterna!
Em terceiro lugar, é significativo que a doença deste homem parece ter sido
provocada pelo seu pecado. Não sabemos que pecado era, mas o facto de Jesus
dizer no versículo 14 «não peques mais para que te não aconteça alguma coisa pior»
implica claramente que a causa da doença era o pecado. Como veremos na secção
seguinte e de novo mais tarde na Segunda Parte, isso não significa que toda a
doença seja resultado de pecado pessoal mas aqui, apesar das diversas tentativas
para sugerir outra coisa (6), a forma mais natural de interpretar a passagem é
compreender que a doença do homem foi provocada pelo seu pecado.
Uma outra faceta interessante desta história é a semelhança com o relato da
cura do homem que foi baixado pelo tecto diante de Jesus (Lucas 5:17-26). Em
ambos os casos:
• a ordem com que ambos os homens foram curados é praticamente a mesma:
Levanta-te! Toma a tua cama e anda!
• a doença parece estar ligada a pecado pessoal
• há oposição por parte dos Judeus
• há uma clara indicação da deidade de Jesus.

Em relação ao último ponto, na passagem de Lucas é a afirmação de Jesus ter


autoridade para perdoar pecados que os Seus adversários justamente vêem como
afirmação de deidade. Aqui em João 5, contudo, é a Sua insistência de estar a
fazer a obra do Pai em curar no sábado que é vista como tornando-O igual a Deus
(vv. 17-18).

O cego de nascença (João 9:1-.25)

Na última secção, analisámos um caso em que havia uma clara ligação entre
doença e pecado pessoal. Agora, consideramos um caso em que não há essa ligação.
Vendo um homem cego de nascença, os discípulos de Jesus perguntam-Lhe: Rabi,
quem pecou; este homem ou os seus pais para que nascesse cego? (v. 2). Esta
pergunta reflecte a convicção pessoal da época de que toda a doença era provocada
pelo pecado. A resposta de Jesus é altamente significativa; Nem este homem nem
os seus pais pecaram, disse Ele (v. 3).
Ao dizer isto, Jesus estava claramente a rejeitar a noção de que toda a
doença é provocada pelo pecado. Contudo, isso não nega a possibilidade de alguns
casos de doença poderem sê-lo, como o relato que acabámos de analisar em João 5
deixa claro. Na verdade é digno de nota que Jesus não diz Claro que não! Nenhuma
doença é provocada pelo pecado. Contudo esta teria sido uma oportunidade perfeita
para o dizer se fosse esse o caso. Nem Jesus salienta a estupidez da pergunta dos
discípulos – como pode a cegueira do homem ter sido causada pelo seu próprio
pecado se ele nasceu cego? Dificilmente poderia ter cometido pecado antes de
nascer (7).
Antes, Jesus opta por revelar um propósito totalmente diferente para a
situação deste homem: Isto aconteceu para que a obra de Deus se manifestasse na
sua vida (v. 3). Aqui, parece estar a sugerir que Deus permitiu que o homem
nascesse cego para que Jesus realizasse um milagre curando-o, trazendo glória a
Deus. Mas isto levanta um problema imediato. Podemos perguntar como é que um
Deus de amor permite que uma pessoa nasça cega só para que Jesus pudesse
mostrar quão poderoso Deus é, realizando um milagre para O glorificar? Contudo,
encontramos a solução para este problema se recordarmos a intenção de João ao
escrever o seu Evangelho. Ele escreveu-o para que

possais crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e para que, crendo, tenhais
vida em Seu nome (João 20:23).

Por muito difícil que possa parecer, a aflição física nesta vida é relativamente
insignificante comparada com a bênção da vida eterna no céu. Corremos com
frequência o risco de encarar as coisas apenas numa perspectiva do curto prazo, em
vez de as ver como Deus as vê, do ponto de vista da eternidade. É possível que este
homem nunca tivesse encontrado fé em Cristo se não tivesse sido o poderoso
milagre que Jesus operou nele. E quantos mais encontrariam a salvação vindo em fé
a Jesus por causa deste milagre?
Claro que não sabemos a resposta a estas perguntas, mas pelo menos apontam
para uma possível explicação da razão de Deus por vezes permitir o que a nós
parece sofrimento desnecessário. Como veremos depois em mais pormenor, os
problemas relacionados com a cura costumam ser resolvidos quando encarados numa
perspectiva de longo prazo. A Bíblia chega mesmo a sugerir ocasionalmente que o
sofrimento nesta vida tem a sua compensação na vindoura (8)
Os dois versículos seguintes também parecem sublinhar o propósito do milagre
(e portanto da cegueira sem a qual o milagre não poderia ter ocorrido). Jesus diz:

Convém que eu faça as obras daquele que me enviou enquanto é dia; a noite vem
quando ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo
(João 9:4-5).

Sem entrar numa discussão mais pormenorizada destes versículos, basta dizer
aqui que eles são a primeira indicação entre muitos outros no capítulo (9) que João
incluiu esta história a fim de podermos aprender uma lição espiritual.
Espiritualmente, somos todos cegos de nascença e Jesus é a luz que Deus enviou a
um mundo que está em trevas, a fim de podermos ver. A lição mais importante que o
leitor pode aprender com o capítulo é, portanto, não o que Jesus pode fazer –
embora certamente também ensine isso – mas quem Ele é!
Esta é quase com toda a certeza a intenção dos versículos que se seguem.
Jesus cospe no chão, faz lodo com a saliva e coloca-o nos olhos do homem. Depois,
diz-lhe que se vá lavar no tanque de Siloé. O homem assim faz e regressa a ver (vv.
6-7). A ideia de que Jesus usou a saliva porque se considerava ter propriedades
curativas deve ser rejeitada não só porque tal perspectiva está claramente errada,
como também a cura através de meios naturais dificilmente teria sido um sinal de
quem Jesus era! E a sugestão de o lodo ter sido usado para estimular a fé no cego
deve ser rejeitada por falta de provas.
Muito mais provável e em completa harmonia com o uso joanino de milagres
como sinais para mostrar quem Jesus era é a perspectiva de que estes versículos
são uma alusão a Génesis 2:7, em que Deus fez o homem do pó da terra.
Compreendido deste modo, João está a ensinar que Jesus realizou um milagre
criativo e está a reivindicar aqui, como noutros pontos do evangelho de João, que
não é outro senão o próprio Deus, algo para o qual os Judeus dos seus dias estavam
completamente cegos (cf. vv. 13-41)
Assim, o principal propósito deste milagre é sem dúvida ensinar lições
espirituais sobre a cegueira da humanidade e sobre Jesus que é a luz que pode
libertar-nos das trevas do mundo em que vivemos. Mas isso significa que a passagem
nada nos ensina sobre cura? De modo nenhum. Há pelo menos sete lições que
podemos aprender sobre cura com esta passagem.

1. Se Jesus pôde curar um homem cego de nascença, com Deus nada é


impossível. Nesta ligação, precisamos de recordar o que Jesus disse mais
tarde em João 14:12 - Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê
em mim também fará as obras que eu faço e as fará maiores do que estas.
2. Nunca devemos assumir que a doença de uma pessoa é provocada pelo seu
pecado pessoal. Poderá ser o caso, mas não necessariamente.
3. Por vezes, Deus pode permitir a doença a fim de levar as pessoas a Ele
através da cura dessa doença.
4. Embora o homem deva ter exercido uma medida de fé ao obedecer a Jesus
quando Ele lhe disse que se fosse lavar no tanque de Siloé, nesta passagem
não há menção explícita à fé. Foi Jesus quem tomou a iniciativa e se alguém
está a exercer é Jesus!
5. Jesus diz que está a fazer a obra daquele que O enviou (v. 4). Isto está em
sintonia com João 5:19, em que Ele diz que só pode fazer o que vê o Pai
fazer. Se queremos ministrar aos doentes, precisamos de aprender a ouvir
o que Deus quer em cada situação.
6. Nesta ligação, seria um erro copiar exactamente o que Jesus fez. Isso não
significa que Deus nunca nos irá dizer que façamos o mesmo – o que Ele fez
uma vez poderá voltar a fazer! Mas é altamente improvável que nos diga
que coloquemos lodo nos olhos de alguém! O importante não é copiar a
metodologia de Jesus, mas seguir o Seu exemplo de ouvir o que Deus está a
dizer.
7. Finalmente, temos sempre de recordar que a salvação é mais importante
que a cura. No final do capítulo, Jesus gasta tempo a certificar-se que o
homem que já foi curado da sua cegueira chegue a um plena compreensão
de quem Jesus é. Como resultado, o homem professa fé em Jesus e chega a
adorá-Lo (v. 38).

Conclusão

Estes dois milagres mostram-nos que as histórias de cura podem ser usadas
como ilustrações poderosas de algo ainda mais importante – a necessidade humana
de salvação. Contudo, também ensinam lições importantes sobre a doença e a cura.
Reparemos que Deus não cura todos em todas as ocasiões. É também claro que,
embora algumas doenças possam ser provocadas por pecado pessoal, nem sempre é
assim. Mais ainda, é evidente que nem sempre é responsabilidade da pessoa doente
aproximar-se de Jesus à procura de cura. Em ambos os casos, foi Jesus quem tomou
a iniciativa. E isso porque Ele sabia em cada caso exactamente o que Deus queria
que Ele fizesse. Se Jesus no Seu ministério de cura não agiu independentemente
então também nós não o devemos fazer.

NOTAS
(1) João 4:46-54; 5:1-15; 9:1-25
(2) João 20:30
(3) É por isso que João se refere sempre aos milagres de Jesus como sinais.
Apontam para quem Ele é.
(4) Para mais informação sobre este assunto importante, ver Capítulo 20.
(5) E.g. Mateus 4:23-24; 8:16; 9:35.
(6) Para uma excelente discussão das diversas perspectivas e uma conclusão
em total harmonia com a minha, ver Carson, D. A., The Gospel according to John,
Leicester, IVP, 1991, pp. 245-6.
(7) Contudo, é possível que a pergunta dos discípulos implicasse a crença,
defendida por alguns Judeus, de que era possível pecar ainda no ventre da mãe. Ver
Carson, op. cit., p. 362.
(8) Ver, por exemplo, Hebreus 11:35. Cf. cap. 17.
(9) Cf. vv. 35-41.
CAPÍTULO SETE

Lições sobre cura dadas pelos primeiros discípulos

Nos quatro últimos capítulos, examinámos o ministério de cura de Jesus


retratado em cada um dos quatro evangelhos, mas Jesus não curou apenas os
doentes, comissionou os Seus discípulos a fazerem o mesmo. Assim, neste capítulo,
viraremos a nossa atenção para o ministério de cura dos discípulos, conforme vem
descrito nos Evangelhos. No capítulo seguinte, veremos como esse ministério
prosseguiu em Actos dos Apóstolos.
Os evangelhos registam três ocasiões em que Jesus comissionou os discípulos
a curarem os doentes. Incluem:

• A chamada dos Doze (Mateus 10:1-8; Marcos 6:7-12; Lucas 9:1-6)


• O envio dos setenta (Lucas 10:1-24)
• A Grande Comissão (Marcos 16:15-seg.)

Iremos considerar cada uma delas à vez antes de abordarmos os Actos dos
Apóstolos.

A chamada dos Doze

Mateus, Marcos e Lucas registam todos como Jesus deu aos doze apóstolos
autoridade para curarem os doentes (Mateus 10:1-8; Marcos 6:7-12 e Lucas 9:1-6).
O relato de Mateus é o mais pormenorizado, pelo que nos concentraremos nele,
fazendo referência a Marcos e a Lucas apenas quando adequado.
Em Mateus 10:1, lemos que Jesus,

chamando os seus doze discípulos, deu-lhes poder sobre os espíritos imundos


para os expulsarem e para curarem toda a enfermidade e todo o mal.

Os versículos 2-4 dão-nos depois uma lista dos nomes dos doze. Os versículos
seguintes (5-42) repetem as instruções que Jesus lhes deu nessa ocasião. Contudo,
os versículos 7-8 são particularmente dignos de nota em relação à cura. Aqui, Jesus
diz:

E indo, pregai, dizendo: «É chegado o reino dos céus.» Curai os enfermos,


ressuscitai os mortos, expulsai os demónios; de graça recebestes, de graça
dai.

O relato de Marcos e Lucas pouco acrescentam, à excepção de Marcos que diz:

E saindo eles, pregavam que se arrependessem. E expulsavam muitos demónios


e ungiam muitos enfermos com óleo e os curavam. (Marcos 6:12-13).

E Lucas diz:

E saindo eles, percorreram todas as aldeias, anunciando o evangelho e fazendo


curas por toda a parte (Lucas 9:6).

Ao considerarmos as três passagens juntas, os pontos seguintes são dignos de


nota:

• Parece não haver limite à autoridade que Jesus lhes deu nesta ocasião.
Mateus 10:1 diz que Jesus lhes deu autoridade para curarem toda a
enfermidade e todo o mal, o que incluía a cura dos leprosos e até mesmo a
ressurreição dos mortos (v. 8). A sua autoridade é tal que não lhes é dito
que orem pelos doentes, mas que os curem.
• Esta autoridade foi dada num momento específico a um grupo específico de
pessoas cujos nomes Mateus menciona (Mateus 10:2-4). Portanto, não
devemos assumir automaticamente que a mesma autoridade nos é dada, a
menos que isso esteja claramente declarado no Novo Testamento (1).
Contudo, a passagem de Lucas 10, em que Jesus envia outros 72 com uma
comissão similar sugere que esta autoridade não estava destinada a limitar-
se apenas aos doze apóstolos.
• Como mais tarde Jesus disse aos Seus discípulos que esperassem pelo
poder do Espírito Santo antes de saírem para irem pregar o evangelho
(Actos 1:4-8), é possível que a autoridade dada nesta ocasião tivesse em
mente apenas a duração do ministério terreno de Jesus. Assim que Jesus
regressou aos céus, os discípulos em Actos realizaram milagres conforme
eram dirigidos pelo Espírito Santo.
• Os doze foram enviados às ovelhas perdidas de Israel (Mateus 10:6).De
facto, Jesus diz-lhes especificamente que, nessa ocasião, não vão aos
Gentios nem aos Samaritanos (v. 5) De novo, isto sugere que a situação aqui
descrita era única. A comissão, como já vimos, é dada num tempo específico
a um grupo específico de pessoas e com um propósito específico -
proclamar o reino de Deus (v. 7) às ovelhas perdidas de Israel, Contudo,
isto não significa necessariamente que nada podemos aprender com esta
passagem. É interessante notar que Paulo, na sua missão aos Gentios
obedece à instrução de Jesus em Mateus 10:14 de sacudir o pó dos pés,
como testemunho contra qualquer que rejeita a mensagem do evangelho (cf.
Actos 13:51).
• Nesta ocasião, Jesus não parece ensinar qualquer metodologia de cura. Por
exemplo, não há instruções para impor as mãos sobre os doentes. Contudo,
Marcos diz-nos que eles ungiram os doentes com óleo (6:13),
presumivelmente seguindo as instruções de Jesus. Mais tarde, este iria
tornar-se um meio regular de cura para o povo de Deus, como veremos
quando considerarmos Tiago 5:14-seg.
• Há uma clara ligação tanto em Mateus como em Lucas entre a cura e o reino
de Deus (2). Lucas diz que Jesus enviou-os a pregar o reino de Deus e a
curar os enfermos (Lucas 9:2, cf. 10:8) e Mateus declara que Jesus disse:
E indo, pregai, dizendo: «É chegado o reino dos céus.» Curai os enfermos,
ressuscitai os mortos (Mateus 10:7-8)

O envio dos setenta

Como já mencionámos, Lucas não só regista o envio dos doze apóstolos como
também nos fala de uma ocasião posterior em que Jesus designou ainda outros
setenta e dois (3) e mandou-os adiante da sua face, de dois em dois a todas as
cidades e lugares aonde ele havia de ir. (Lucas 10:1). Então, depois de lhes dar
instruções muito semelhantes às que já havia dado anteriormente aos doze (vv. 2-
8), diz-lhes que curem os doentes (v. 9). O significado do número (70 ou 72) tem
sido muito discutido, mas não precisamos de nos deter nessa discussão (4). O que é
significativo, porém, é o facto de isto alargar claramente a comissão de cura para lá
dos doze apóstolos. Outros pontos de interesse são, uma vez mais, a ligação entre a
cura e o Reino de Deus (v. 9) e o facto de os discípulos serem enviados dois a dois
(v. 1).
Contudo, ainda mais importante seja a passagem nos versículos 17-20, em que
Lucas nos diz:

E voltaram os setenta com alegria, dizendo: «Senhor, pelo teu nome até os
demónios se nos sujeitam». E disse-lhes: «Eu via Satanás como raio cair do
céu. Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões e toda a força do
inimigo e nada vos fará dano algum. Mas não vos alegreis porque se vos
sujeitam os espíritos; alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes escritos
nos céus».

Já salientámos que a salvação é mais importante que ser-se curado! Mas esta
passagem indica com clareza que a salvação é mais importante que o poder para
curar! Também nos mostra que a autoridade que Jesus deu aos 70 não era menor
que a dada anteriormente aos apóstolos – era autoridade sobre todo o poder do
inimigo. Parece que, em vez de o poder apostólico estar limitado a alguns. Jesus
pretendia que ele fosse alargado a muitos! Mas isso leva-nos muito naturalmente à
passagem de Marcos 16.

A Grande Comissão (Marcos 16:15-seg.)

A passagem que considerámos até agora neste capítulo descreve ocasiões em


que Jesus enviou os Seus discípulos a curar, durante o tempo do Seu ministério
terreno, antes de morrer e ressuscitar. Agora, em Marcos 16:14-20, viramos a
nossa atenção para uma passagem em que Jesus dá aos Seus discípulos uma
comissão semelhante depois das sua morte e ressurreição, na realidade
imediatamente antes da Sua ascensão ao céu (v. 19). Marcos regista como Jesus
lhes disse:

Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda a criatura. Quem crer e for
baptizado será salvo; mas quem não crer será condenado. E estes sinais
seguirão os que crerem. Em meu nome expulsarão os demónios, falarão novas
línguas, pegarão nas serpentes e se beberem alguma coisa mortífera não lhes
fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos e os curarão.

Embora a autenticidade desta passagem seja posta em causa na base de não se


encontrar nos manuscritos mais antigos, é apesar der tudo merecedora da nossa
atenção por diversas razões:

• Há muito que é considerada como fazendo parte do cânon das Sagradas


Escrituras.
• A passagem está em total harmonia com as mais antigas afirmações de
Jesus aos Seus discípulos encontradas nos exemplos que já considerámos.
• À excepção de uma, todas as promessas de Jesus feitas aqui cumpriram-se
em Actos dos Apóstolos, de que Marcos 16:20 bem pode ser considerado
um resumo.
A isto devemos acrescentar a evidência de que a experiência moderna
testifica da realidade literal destas coisas (5)
Agora, analisando a passagem em si, reparamos que, embora a ordem de ir por
todo o mundo e pregar o evangelho tenha sido dada inicialmente aos Onze (6) (v. 14),
a promessa de sinais miraculosos não foi dada apenas a eles mas a todos os que
crerem (v. 17). Não foram apenas os apóstolos a serem enviados a espalhar as boas
novas, mas todos os que vierem à fé em resultado do seu ministério deveriam
também fazer o mesmo e os mesmos sinais acompanhariam a sua pregação (7).
Claro que os sinais que Jesus promete acompanharem a pregação da mensagem
do evangelho não são a mensagem em si. A mensagem que deve ser pregada a todo o
mundo (v. 15) é que Jesus morreu pelos nossos pecados e que podemos ser salvos se
crermos n’Ele (v. 16). Os sinais são dados para confirmarem a verdade dessa
mensagem (v. 20).
Também é importante notar que a cura não é o único sinal mencionado nestes
versículos. Deus tem muitas formas de confirmar a Sua palavra. Jesus não está a
dizer que todos os crentes manifestarão todos estes sinais. Alguns serão usados de
uma forma, outros de outra (cf. o ensino de Paulo em 1 Coríntios 12:8-10). Portanto,
compreendida correctamente, esta passagem não implica que todos pegarão em
serpentes! Jesus está apenas a dizer que estes são o tipo de sinais que
acompanharão os Seus servos quando forem e pregarem as boas novas!
Por fim, é importante notar que, nesta passagem, a responsabilidade por ter fé
para curar não é colocada sobre o doente mas sobre quem lhe impõe as mãos. Jesus
diz Estes sinais seguirão os que crerem... porão as mãos sobre os doentes e os
curarão (vv. 17-18). Se queremos ministrar aos doentes, em especial no contexto do
evangelismo, não devemos colocar neles todo o peso de crer. É nossa a
responsabilidade de ter fé para a sua cura.

Conclusão

As passagens que examinámos relacionadas com o ministério de cura dos


discípulos de Jesus indicam que:

• Os discípulos receberam autoridade para realizar exactamente o mesmo


tipo de milagres que Jesus realizou.
• Isto está intimamente relacionado com a proclamação do reino de Deus.
• Esta autoridade foi inicialmente dada aos doze apóstolos, depois a um
grupo maior de 70 discípulos e, por fim, após a ressurreição de Jesus, a
todos os que crerem, na medida em que pregarem o evangelho a todo o
mundo. Isso não significa, porém, que todos os crentes serão usados na
cura.
• Os milagres de cura em si mesmos não são a mensagem. São dados para
confirmar a mensagem, que são as boas novas de que Jesus morreu pelos
nossos pecados e que quem crer será salvo. Ser salvo é mais importante que
ser-se curado e mesmo de ter o poder para curar.
• A responsabilidade de crer na cura está no que impõe as mãos no doente,
não necessariamente no doente, que ainda pode ser incrédulo.

Estes princípios vêem-se claramente em acção em Actos, que será agora alvo
da nossa atenção.

NOTAS
(1) Marcos 16:15 e seg. pode ser assumido como significando que a autoridade
para curar é dada a todos os crentes. Mais à frente, iremos discutir isso com mais
pormenor.
(2) Mateus usa consistentemente reino dos céus enquanto tanto Marcos como
Lucas usam reino de Deus. Os dois termos são sinónimos.
(3) Alguns manuscritos dizem 70, enquanto outros referem 72.
(4) Morris sugere três possibilidades: (1) o número é simbólico das nações do
mundo (de acordo com a crença judaica) (2) Corresponde ao número de anciãos
nomeados por Moisés (Números 121:16-seg.), (3) Relaciona-se com os 70 membros
do Sinédrio, Morris, Leon, Luke (TNTC), Londres, IVP, 1974, p. 181
(5) Ver, por exemplo, Burton, W. F. P., Signs Following, Londres, AOG, 1949, em
que o autor relaciona o modo como todos estes sinais acompanhavam o ministério da
Missão Evangelística do Congo.
(6) Como Judas traiu Jesus, suicidando-se de seguida, o número dos apóstolos
originais nesta altura estava reduzido a 11.
(7) Cf. a versão de Mateus da Grande Comissão em que os apóstolos deviam
fazer discípulos de todas as nações, ensinando-os a observar tudo quanto o Senhor
ensinara aos apóstolos (Mateus 28:19-20). Já salientámos que Mateus regista como
Jesus ensinara os apóstolos a curar os doentes!
CAPÍTULO OITO

Lições sobre cura em Actos

São muitas as referências à cura no livro de Actos (1). Algumas são gerais,
outras específicas. As referências gerais incluem a oração dos discípulos pedindo a
Deus que estenda a Sua mão para curar (4:30), a declaração de que em certa
ocasião todos os doentes foram curados quando a sombra de Pedro passou por eles
(5:14-16), uma descrição do ministério evangelístico de Filipe em Samaria (8:5-8) e
a menção de milagres extraordinários de cura em resultado de as pessoas tocarem
nos lenços que haviam estado em contacto com Paulo (19:11-12).
Os milagres específicos de cura descritos em Actos incluem:

• A cura do coxo à entrada do Templo (3:7-9).


• A cura de Eneias e a ressurreição de Dorcas (9:33-42).
• A cura do coxo de Listra (14:8-10).
• A ressurreição de Eutico (20:9-12).
• A mordedura ineficaz da serpente em Paulo, a cura de Públio e dos doentee
da ilha de Malta (28:1-10).

Iremos considerar com algum pormenor o primeiro e o último, mas primeiro, os


seguintes pontos gerais são importantes:

1. Não foram apenas os apóstolos que realizaram milagres (e.g. 6:8; 8:6-8).
2. Muitas das curas registadas ocorreram num contexto evangelístico (ou
tiveram como resultado muitas conversões ao Senhor).
3. Algumas curas foram extraordinárias (e.g. 5:14-16; 19:11-12).
4. As curas não foram os únicos sinais que levaram à conversão de muitos
(e.g., o milagre de línguas no Dia de Pentecostes).

Estes quatro pontos estão todos em harmonia com o que aprendemos no último
capítulo em relação ao ministério dos primeiros discípulos. Consideraremos agora
duas passagens com mais pormenor:

• A cura do coxo à entrada do templo.


• A cura dos doentes na ilha de Malta.

A cura do coxo à entrada do templo


Este milagre espantoso vem registado em Actos 3-8, onde lemos:

1 E Pedro e João subiam juntos ao templo, à hora da oração, a nona.


2 E era trazido um varão que desde o ventre de sua mãe era coxo, o qual todos
os dias punham à porta do templo, chamada Formosa, para pedir esmola aos
que entravam.
3 O qual, vendo Pedro e João, que iam entrando no templo, pediu que lhe
dessem uma esmola.
4 E Pedro, com João, fitando os olhos nele, disse: «Olha para nós».
5 E olhou para eles, esperando receber deles alguma coisa.
6 E disse Pedro: «Não temos prata nem ouro, mas o que tenho, isso te dou. Em
nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda».
7 E tomando-o pela mão direita, o levantou e logo os seus pés e artelhos se
firmaram.
8 E saltando ele, pôs-se em pé e andou e entrou com eles no templo, andando e
saltando e louvando a Deus.

Talvez a primeira coisa a observar sobre este milagre seja a condição do


homem antes de ser curado. Fisicamente, o seu estado era desesperado. Era coxo
desde nascença (v. 2) e tinha mais de 40 anos de idade (Actos 4:22). Nunca
caminhara na vida! E a sua condição psicológica não era de facto melhor. Não há
indicação de que teve fé para ser curado. Não estava à espera de receber nada
mais a não ser dinheiro (v. 3). Era colocado todos os dias à porta do templo para
esmolar (v. 2).
Em completo contraste, vemos a confiança de Pedro e João. Embora não
tivessem dinheiro para oferecer ao homem, tinham algo infinitamente melhor! Pedro
disse: O que tenho, isso te dou. Isto é altamente significativo. Implica que de certa
forma Pedro sabia que tinha o dom da cura do homem e que possuía a autoridade
para lha dar.
Mas como podia Pedro saber tal coisa? A resposta deve ser certamente que o
sabia por revelação do Espírito Santo. Como já vimos, o próprio Jesus era um
homem sob autoridade e fazia apenas o que via o Pai fazer. Em João 20:21-22,
dissera aos discípulos: «Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós». E
havendo dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo». (2)
Isto significa sem dúvida que os discípulos deviam não só continuar o
ministério de Jesus depois da Sua partida, como deveriam continuá-lo da mesma
maneira, por revelação do céu. Assim que Jesus partiu, receberam do Espírito
Santo que desceu no Pentecostes. É por isso que Pedro podia dizer: O que tenho,
isso te dou. Sabia por revelação do Espírito (3) que o tempo para a cura deste
homem havia chegado (4).
Intimamente relacionado com este facto está o uso que Pedro faz do nome de
Jesus Cristo, o Nazareno (v. 6). Nos tempos bíblicos, como ainda hoje costuma ser,
fazer algo em nome de alguém tinha a ver com a sua autoridade. E só podemos ter a
autoridade de uma pessoa se ela nos comissionou para tal ou pelo menos nos deu
autorização para proceder desse modo!
O nome de Jesus não é uma fórmula mágica com o qual podemos obter tudo
quanto quisermos, acrescentando-lhe as palavras no nome de Jesus. Tal atitude
aproxima-se muito da infracção do mandamento Não invocarás o nome do Senhor
teu Deus em vão (Êxodo 20:7). Agir ou falar no nome de Jesus significa fazê-lo com
a Sua autoridade e era exactamente o que Pedro estava a fazer aqui em Actos 3.
De facto, Pedro está tão seguro da sua autoridade que assume o risco
(humanamente falando) de pegar o homem pela mão e de o ajudar a levantar-se (v.
7). É preciso estarmos muito seguros que Deus nos falou para pegarmos na mão de
alguém que nunca andou na vida, ajudá-la a levantar-se e dizer-lhe que caminhe! Mas
Pedro tinha recebido de Deus! É por isso que ele tinha fé que o milagre iria
acontecer. Mais tarde, no versículo 16, à multidão que se juntara Pedro explica
como ocorrera o milagre – pela fé no nome (autoridade) de Jesus.
Como já vimos, a fé aqui referida não era a do homem, mas de Pedro. Apesar
de tudo, Pedro apressa-se a desviar as atenções de si e dar toda a glória a Jesus.
Não foi pelo poder ou santidade de Pedro que o homem voltara a andar (v. 12). Os
milagres não acontecem por meio de nós porque somos especialmente santos. São
charismata, dons que vêm da graça de Deus e que o Espírito Santo nos dá conforme
Ele determina (1 Coríntios 12:11).
Finalmente, o efeito deste milagre sobre as pessoas que o viram foi dramático.
Ficaram cheias de pasmo e assombro com o que acontecera (v. 10). Em Marcos 16,
Jesus prometera que sinais miraculosos seguiriam os crentes a fim de confirmarem
a palavra do evangelho. E é o que vemos a acontecer em Actos. Mas ao contrário de
muitas situações dos dias de hoje, em Actos o milagre em geral ocorria antes da
pregação da palavra, não depois dela (cf. Actos 2 em que Pedro prega à multidão
depois de a sua atenção ter sido atraída pelo milagre de falar novas línguas. Então,
agora em Actos 3, Pedro usa o milagre como uma maravilhosa oportunidade para
pregar o evangelho (vv. 13-16) e como resultado o número de crentes cresceu para
cerca de 5000 (Actos 4:4).
Podemos então resumir assim a principal lição que este milagre nos ensina

• Nenhuma situação é demasiado difícil para Deus. O impossível torna-se


possível pelo poder do Espírito Santo.
• Nem sempre é a pessoa necessitada que tem de exercitar a fé. Podemos
mover-nos em fé quando procuramos ministrar às pessoas, mas para o fazer
precisamos de estar sujeitos à autoridade de Deus e guiados pelo Seu
Espírito.
• Nesta ligação, é importante aprendermos a ouvir o que Deus está a dizer.
Só podemos ordenar a cura no nome de Jesus quando tivermos a certeza de
que Deus nos falou e estivermos sob a Sua autoridade (5).
• Deus opera milagres através de nós a fim de confirmar a mensagem do
evangelho. É neste contexto que podemos esperar que milagres aconteçam.
Se não estivermos a pregar a palavra, então não há nada para Ele
confirmar!

Agora, prestemos atenção ao ministério de Paulo ao curar os doentes na ilha


de Malta.

A cura dos doentes na ilha de Malta

Encontramos os pormenores destas curas em Actos 28:1-10. Os eventos


descritos ocorreram depois de o barco em que Paulo viajava como preso a caminho
de Roma, ter naufragado. Graças à misericórdia de Deus todos conseguiram chegar
à praia em segurança, Paulo vai buscar lenha para a fogueira, mas é mordido na mão
por uma serpente venenosa (v. 3). Mas Paulo sacode-a para o fogo e não sofre
qualquer efeito (v. 5).
O milagre, que é claramente comparável à promessa de Jesus em Marcos
16:18, causa grande espanto entre os ilhéus que concluem que Paulo deve ser um
deus. Embora aqui nada se diga, devemos assumir que Paulo terá corrigido
rapidamente este erro, como fez em Actos 14, quando ele e Barnabé foram tomados
por deuses depois da cura do coxo em Listra (Actos 14:8-18).
Depois, é-nos dito que Públio, o responsável pela ilha recebeu-os em sua casa,
onde permaneceram durante três dias. O pai estava acamado, doente com febre e
disenteria (v. 8). A descrição da ordem dos eventos que se seguem é digna de nota.

(1) Paulo entrou para vê-lo.


(2) orou
(3) impôs-lhe as mãos
(4) curou-o
(5) como resultado, os outros doentes da ilha vieram e foram curados.
A cura é notavelmente diferente do milagre realizado por Pedro com o coxo à
porta do templo. A frase havendo orado (v. 8), é significativa aqui. Em Actos 3, não
lemos que Pedro orou pelo doente. Em vez disso, ordenou a sua cura – no nome de
Jesus... anda! De modo similar, Paulo em Actos 14:8-10 ordena a cura do coxo de
lustra – Levanta-te sobre os teus pés. Mas aqui em Actos 28, ora antes de impor as
mãos no homem que está doente. Isso não significa que ele tenha orado por ele, pois
é-nos dito que depois da oração, lhe impôs as mãos e o curou.
A sugestão pode bem ser que, ao orar, Paulo estivesse a pedir orientação nesta
questão, Se esta interpretação estiver correcta, há uma lição importante a
aprender com a acção de Paulo aqui. Se não tivermos uma revelação clara relativa à
cura de um doente (como fez Pedro em Actos 3 e Paulo em Actos 14) (6) é
importante orar por orientação antes de procurar ministrar a cura.
Como resultado desta cura, os restantes doentes da ilha apareceram e foram
curados (v. 9). Os ilhéus de Malta testemunharam assim alguns milagres espantosos
pelas mãos de Paulo – a sua libertação da mordedura da serpente, a cura do pai de
Públio e a cura dos outros doentes. Contudo, apesar disto, de modo surpreendente
não há referência directa à conversão dos ilhéus, embora se possa argumentar que
ao virem à procura de cura estariam a mostrar alguma fé (7)
Mas há mais uma questão a considerar antes de deixarmos Actos 28. É digno
de nota que Lucas, autor de Actos, estava presente com Paulo nessa altura. Isto é
evidente a partir de diversos usos de nós e nos nesta passagem (e.g. vv. 1, 2, 7, 10).
Ora, sabemos que Lucas era médico (Colossenses 4:14) e tem sido sugerido que o
versículo 9 implica que Lucas utilizou as suas capacidades médicas para curar os
doentes de Malta (8). Esta perspectiva baseia-se na expressão distinguiram-nos (v.
10). Seguramente, argumenta-se, Lucas deve ter feito algumas curas para ter sido
distinguido com Paulo.
Na Segunda Parte, consideraremos com mais pormenor o papel dos médicos e
da medicina, mas por agora, devemos ter presentes os seguintes pontos:

1. Em Actos 28, não há indicação de Lucas ter usado em Malta as suas


capacidades médicas.
2. Não é de modo nenhum impossível que Lucas, bem como Paulo fosse
carismaticamente dotado no domínio da cura.
3. O respeito prestado tanto a Lucas como a Paulo não implica que ambos
tenham sido usados na cura dos doentes (cf. Actos 14:8-12, em que tanto
Paulo como Barnabé são honrados por causa de uma cura realizada por
Paulo).
4. A forma mais natural de interpretar a passagem é compreender que os
doentes da ilha vieram a Paulo para que este lhes impusesse as mãos (v. 9)
em resultado da cura do pai de Públio (v. 8).

Contudo, o facto de Lucas provavelmente não usar os seus conhecimentos


médicos em Actos 28 não significa que o recurso aos médicos não seja importante,
como veremos mais tarde.

Conclusão

O nosso exame da cura em Actos mostrou-nos que os discípulos de Jesus


realizaram milagres muito semelhantes aos que Jesus levou a cabo e, à luz de
Marcos 16:16-18 e João 14:12, há toda a razão para crer que como crentes podemos
esperar hoje milagres semelhantes. Nenhuma situação é demasiado difícil para
Deus. O impossível torna-se possível através do poder do Espírito Santo.
Mais ainda, não são apenas os apóstolos que realizam milagres. Os sinais são
prometidos aos que crerem. Nem sempre é da pessoa doente que se espera o
exercício da fé. Podemos mover-nos em fé quando procuramos ministrar às pessoas,
mas para o fazer precisamos de estar sujeitos à autoridade de Deus e sermos
guiados pelo Seu Espírito. É importante aprendermos a ouvir o que Deus está a
dizer. Só devemos ordenar a cura no nome de Jesus quando tivermos a certeza de
termos ouvido Deus falar e soubermos que estamos a agir sob a Sua autoridade. Se
não tivermos a certeza a este respeito, devemos orar antes de procurar ministrar
aos doentes.
Por fim, muitas das curas registadas resultaram na conversão de muitos ao
Senhor. Deus opera milagres através de nós a fim de confirmar a mensagem do
evangelho. É no contexto do evangelismo que podemos esperar a ocorrência de
curas e de outros tipos de milagres.

NOTAS
(1) E.g. 3:7-9; 4:30; 5:14-16; 6:8; 8:6-8; 9:33-42; 14:8-10; 19:11-12; 20:9-12;
28:1-10.
(2) Para mais informação sobre o significado de João 20:22, ver Petts, D., The
Holy Spirit – an Introduction., Mattersey, Mattersey Hall, 1998, pp .44-48.
(3) Esta é quase com toda a certeza uma manifestação dos dons de cura a que 1
Coríntios 12:10 se refere e sobre o qual falaremos mais tarde com maior pormenor.
(4) O momento certo é altamente significativo em relação aos milagres de cura.
Como o homem era colocado todos os dias à porta do templo, é muito provável que
Jesus terá passado por ele. Sendo assim, havia um propósito na demora da cura
deste homem, como veremos.
(5) É importante distinguir entre orar pelos doentes e ordenar a sua cura.
Podemos e devemos orar sempre pelos doentes, mas só podemos ordenar a cura
quando Deus nos fala directamente nesse sentido.
(6) N.B. Paulo fixando nele os olhos e vendo que tinha fé para ser curado
(Actos 14:9).
(7) Este ponto não deve ser, contudo, levado demasiado longe. Uma coisa é ter
fé para ser curado. Outra bem diferente é arrepender-se dos pecados e confiar na
morte expiatória de Cristo a fim de ser-se salvo.
(8) Ver Harnack, A., Luke the Physician, Londres, Williams and Norgate, 1907,
p. 148
CAPÍTULO NOVE

Lições sobre cura nas epístolas - Tiago

À excepção das referências à cura como um dom espiritual (1 Coríntios 12:10,


30) e que iremos considerar mais tarde na Segunda Parte, há relativamente poucas
referências específicas à cura sobrenatural nas epístolas. A principal passagem
encontra-se em Tiago 5, que dá instruções aos cristãos que estejam doentes. Por
causa da sua relevância imediata para os Cristãos de hoje, adoptaremos uma
abordagem diferente e lidaremos com ela em mais pormenor do que as passagens
que considerámos até agora
A passagem de Tiago 5:14-15 fornece a mais clara instrução do Novo
Testamento para os cristãos que estejam doentes:

Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da igreja e orem sobre
ele, ungindo-o com azeite em nome do Senhor. E a oração da fé salvará o
doente e o Senhor o levantará; e se houver cometido pecados, ser-lhe-ão
perdoados.

Estes versículos oferecem claramente uma elevada expectativa de cura, neste


capítulo. Iremos considerar:

• o contexto geral em que se enquadram os versículos


• a intenção precisa dos versículos
• as razões de a cura poder não ser um resultado imediato

O contexto geral em que se enquadram os versículos

Como veremos quando considerarmos Tiago 5:14-15 com mais pormenor, é


muito claro a intenção de Tiago de compreendermos que se um cristão que esteja
doente chamar os anciãos da igreja (1) e se os anciãos orarem em fé, o cristão
doente será curado. Contudo, para compreender o significado total destes
versículos, é importante considerar primeiro algum do ensino anterior de Tiago.
Começamos por analisar uma passagem em que, talvez surpreendentemente, Tiago
fala da incerteza da própria vida.

A Incerteza da Vida – Tiago 4:13-15


O sentido geral destes versículos é extremamente claro. Por causa da
brevidade da vida, não podemos ter a certeza do amanhã. Portanto, em todos os
nosso planos, devemos reconhecer que o seu cumprimento está inteiramente
dependente da vontade do Senhor. O versículo 15 indica que mesmo a questão de
saber se amanhã estaremos vivos está dependente da vontade do Senhor. A nossa
vida não passa de um vapor que aparece por um pouco e depois se desvanece. Este
aspecto do ensino de Tiago não deve ser ignorado quando procurarmos compreender
a afirmação em 5:15 de que a oração da fé salvará o doente. Tudo está sujeito à
vontade do Senhor.

Os Últimos Dias – Tiago 5:1-9

Nos seis primeiros versículos do capítulo 5, Tiago condena as pessoas que


fazem mau uso das riquezas. Diz que afligiram os seus empregados (vv. 4-5) e
mataram os justos (v. 6) e, como resultado, sobreveio-lhes a miséria (v. 1). Isto,
conjuntamente com a referência aos últimos dias (v. 3), sugere que tem em mente o
dia do juízo. Esta ideia parece ser confirmada pela menção da vinda do Senhor (vv.
7, 8) e do juiz que está às portas (v. 9). Assim, quando consideramos a passagem
sobre cura, temos de recordar que o pensamento da vinda do Senhor está muito
presente.

Paciência no sofrimento – Tiago 5:7-12

Na última secção, Tiago utilizou a vinda do Senhor como uma ameaça para os
ímpios. Mas nesta secção, utiliza-a para encorajar os Cristãos - Tiago chama-lhes
irmãos (v. 7). Diz-lhes para serem pacientes (vv. 7, 8, 10) até à vinda do Senhor (vv.
7, 8). Isto parece ser por estarem a sofrer (v. 10). Mas de que tipo de sofrimento
está Tiago a falar? Talvez esteja a referir-se ao sofrimento infligido pelos ricos
opressores mencionados nos versículos 1.6. O uso da palavra pois (que aqui significa
portanto) no versículo 7 certamente sugere isso.
Contudo, é interessante que Tiago menciona Job como um exemplo de
sofrimento e paciência (vv. 10-11). Tendo em mente o vasto leque de desastres –
incluindo a doença – pelos quais Job passou, parece provável que Tiago estivesse a
pensar em qualquer forma de sofrimento que pudesse surgir no caminho dos
cristãos. Devemos ter isso sempre em mente quando consideramos todo o
significado da passagem sobre cura, a que voltaremos em breve. Antes de o fazer,
contudo, precisamos de considerar o que Tiago quer dizer com aflições quando diz
no versículo 13 Está alguém entre vós aflito?

O significado de Está alguém entre vós aflito? (v. 13)

A palavra grega que Tiago utiliza aqui é o verbo kakopathein que significa
literalmente sofrer alguma coisa má. Esta é também a palavra (2) que ele usa no v.
10 quando fala da paciência face ao sofrimento. O uso aqui da mesma palavra parece
ligar a passagem sobre paciência no sofrimento à passagem contendo a promessa de
cura. Isto confirma o que dissemos na última secção, nomeadamente que a doença
deve ser entendida como incluída no uso que Tiago faz do sofrimento (kakopathia)
em vez de a individualizar (3)
Se esta interpretação estiver correcta, então a promessa de cura para os
doentes no versículo 15 deve ser equilibrado com o ensino sobre a paciência até à
vinda do Senhor, nos versículos 7-12. O versículo 12 estimula quem estiver a sofrer
a orar e quem estiver alegre a cantar louvores. O versículo 14 estimula quem estiver
doente a chamar os anciãos da igreja para orarem por si, ungindo-o com azeite no
nome do Senhor.
Mas se tivermos razão ao dizer que a doença está incluída na compreensão que
Tiago tem do sofrimento, precisamos de explicar a razão de Tiago apresentar
diferentes instruções a quem estiver doente (i.e., chamar os anciãos para orarem,
em vez de ser a pessoa a orar por si). A explicação é que Tiago está provavelmente
a referir-se a alguém que esteja gravemente doente, como se torna claro ao
analisarmos a intenção precisa dos versículos em causa.

A intenção precisa dos versículos

A este respeito, sugiro que quatro factores indicam que Tiago tem aqui em
mente alguém que está gravemente doente. São eles:

1. O doente deve chamar os anciãos em vez de ir até eles. Isto poderá indicar
que a pessoa está tão doente que é incapaz de se mover.
2. Os anciãos devem orar sobre a pessoa. Esta é a única vez no Novo
Testamento em que o verbo orar é seguido pela preposição sobre.
Provavelmente sugere que os anciãos estão inclinados sobre a pessoa
enquanto oram, o que poderá indicar que ela esteja deitada.
3. Além disso, a afirmação de que o Senhor o levantará implica claramente que
o doente está deitado (4).
4. Finalmente, o facto de precisar que os anciãos venham e orem aponta para
a possibilidade de o doente estar demasiado enfermo para orar por si.

Assim, concluo que o doente que Tiago tem em mente está gravemente
enfermo e que a exortação para chamar os anciãos para o ungirem e a oração não
devem ser encaradas como aplicação para minorar o sofrimento. Assim, embora a
doença esteja incluída na compreensão que Tiago tem do sofrimento, algumas
doenças são tão graves que levam as pessoas a sentirem-se incapazes de orar por si
mesmas ou, pelo menos, de orarem em fé (5) e que por essa razão devemos chamar
os anciãos. Na realidade, é importante notar que ao doente dos versículos 14-15 não
é exigido que exerça fé – apenas que chame os anciãos da igreja. É responsabilidade
dos anciãos fazerem a oração da fé e ungirem o doente com azeite no nome do
Senhor.
Mas qual o significado do azeite? Muitos comentadores reconhecem que,
embora o azeite seja usado com frequência por razões médicas, o contexto de
Tiago 5 exige que o óleo seja compreendido como tendo um significado religioso (6).
Na verdade, mesmo que Tiago soubesse que o azeite tinha algum valor médico,
dificilmente iria crer que constituía uma panaceia para todas as doenças! Além
disso, Tiago diz-nos que é a oração e não o azeite que curará o doente.
Portanto, é provavelmente melhor concentrar-nos na palavra ungir e não no
termo azeite. Tanto no Velho como no Novo Testamento, a unção está associada
intimamente à acção do Espírito na cura (Isaías 61:1-2; Lucas 4:18-seg.) e, logo, é
razoável compreender a unção com azeite em Tiago 5 como sendo simbólico da
presença e do poder do Espírito Santo. Como tal, pode despertar a fé do doente.
Mas a unção com azeite e a oração da fé não são as únicas coisas que Tiago
menciona nesta passagem, Ele fala da confissão de pecados (vv. 15-16). O
importante a notar aqui é a palavra se – Se houver cometido pecados, ser-lhe-ão
perdoados. Já vimos, tanto no Velho como no Novo Testamento, que a doença pode
por vezes ser o resultado de pecado pessoal. Também já vimos que com muita
frequência não é. A afirmação de Tiago aqui está em completa harmonia com este
ensino. A doença pode ter sido provocada pelo pecado. Se for assim, o pecado deve
ser confessado e depois feita oração pela cura. Mas se o doente não tiver
conhecimento de qualquer pecado que possa estar a impedir a sua cura, a confissão
será claramente inadequada.

As razões de a cura poder não ser um resultado imediato


A promessa do versículo 15 é que o doente será curado. E se não resultar uma
cura imediata? Um exame cuidadoso da passagem sugere as seguintes
possibilidades:

1. A doença foi provocada pelo pecado que precisa de ser confessado.


2. Os anciãos não oraram em fé
3. É necessário que a oração seja mais firme e persistente
4. A cura ocorrerá quando o Senhor regressar.

Já discutimos o ponto (1) na secção anterior. Em relação ao ponto (2), a ideia


de que os anciãos não orarem em fé parece perfeitamente razoável, em especial à
luz da insistência do que Tiago diz mais atrás de que a oração deve ser em fé e que
quem duvida nada receberá do Senhor (Tiago 1:5-8).
Uma outra possibilidade é que (3) a cura, embora não imediatamente manifesta
será gradual ou retardada. Tiago prossegue e fala do poder da oração nos versículos
16-18 e usa Elias como exemplo. O que é significativo em Elias é que ele orou
insistente (v. 17) e persistentemente (cf. 1 Reis 18:41-45, em que ora sete vezes
até a sua oração ser respondida). Então, a referência a Elias aqui destina-se com
quase toda a certeza a sugerir que por vezes a oração persistente é necessária
para que o doente seja curado. Se formos suficientemente insistentes, seremos
persistentes.
Por fim, em relação ao ponto (4), já indiquei que a afirmação de que a oração
da fé curará o doente (5:15) deve ser equilibrada com a declaração de Tiago de que
só vivemos se o Senhor quiser (4:15). Como Cristãos, a nossa vida está nas mãos do
Senhor e se Ele assim optar, pode levar-nos para junto de si em qualquer momento.
Na Segunda Parte, veremos como a cura final ocorre quando Jesus voltar segunda
vez e os nossos corpos mortais forem revestidos da imortalidade (1 Coríntios
15:50-54). Já salientámos que no entendimento de Tiago a vinda do Senhor estava
muito próxima. Portanto, é pelo menos possível que quando ele diz O Senhor
levantará o doente (v. 15), tenha também em mente o facto da ressurreição final.
Esta perspectiva é apoiada pelo facto de o verbo usado por Tiago nesta ligação ser
egeirein, que também é utilizado em ligação com a ressurreição.
Claro que a principal intenção de Tiago era sem dúvida indicar que se devia
esperar um milagre imediato de cura. Contudo, é possível que possamos discernir na
sua afirmação uma intenção secundária que, baseada na anterior analogia com Job
(Tiago 5:8-11) sugere que se a cura imediata não for a vontade do Senhor, então o
doente deve ser paciente até à vinda do Senhor, em cuja altura será sem dúvida
«levantado» (7).
Na verdade, como Moo já afirmou:
...os dias em que as promessas de Deus se cumprirão já começaram, mas ainda
se espera um clímax desse período. É na tensão escatológica do «já... ainda
não» que a ética de Tiago deve ser compreendida (8).

Se este entendimento estiver correcto, então a oração da fé não é uma oração


que insista numa cura imediata, mas uma oração que consagre o doente a Deus,
sabendo que a Sua vontade é o melhor (9) e que se pode confiar que Ele «levantará»
o doente seja por um milagre imediato de cura seja em última análise na vinda do
Senhor.
Em suma, embora a passagem indique que o doente pode esperar ser curado,
não há garantia de que a cura será imediata. A promessa aparentemente clara de um
milagre de cura deve ser contrabalançada pelo ensino anterior de Tiago de que a
oração deve ser feita sem haver dúvida (1:6-8), que ninguém deve contar com o
amanhã, mas reconhecer que a extensão da vida depende da vontade do Senhor
(4:13-17) e que os Cristãos, à semelhança de Job, devem ser pacientes no
sofrimento (5:10-11), pois a vinda do Senhor está breve (5:8). Então, a cura está
garantida!

Conclusão

Em Tiago 5:13-18, os Cristãos que estejam gravemente doentes são


estimulados a chamar os anciãos da igreja para orarem sobre eles em fé, ungindo-os
com azeite no nome do Senhor. Daqui resultará a sua cura.
Contudo, tudo está sujeito à vontade do Senhor (Tiago 4:13-15) e orar em fé
no nome do Senhor exige que os líderes precisam de ouvir Deus sobre esta questão.
Os cristãos que tenham consciência de pecado na sua vida devem confessá-lo,
pois ele pode ser a causa da doença. O perdão é prometido (v. 15, cf. 1 João 1:9) e a
cura é expectável.
Por vezes, um milagre de cura ocorre de imediato. Noutras, poderá ser gradual
ou retardado. Nestes casos, a oração precisa não só de ser insistente mas
persistente.
Por fim, à luz da vinda eminente do Senhor, quando os nossos corpos forem
transformados num instante, num abrir e fechar de olhos, quando a trombeta soar e
os mortos ressuscitarem, incorruptíveis, fazemos bem em recordar que a cura final
ocorrerá quando Jesus voltar outra vez. Mas este aspecto será abordado com mais
pormenor na Segunda Parte.
NOTAS
(1) Os líderes da igreja recebem hoje vários títulos. Aqui. Tiago limita-se a
referir-se a eles como anciãos. Para uma explicação mais pormenorizada do papel
dos anciãos na igreja do Novo Testamento, ver: Petts, D., Body Builders – Gifts to
make God’s people grow, Mattersey, Mattersey Hall, 2002, pp. 71-88.
(2) No v. 10, usa o nome kakopathia, enquanto no v. 13 é o verbo kakopathein.
Ambas as formas fazem parte do mesmo grupo vocabular grego.
(3) Cf. Job 2:7 e seguintes.
(4) Para a discussão de que nesta passagem está presente um certo grau de
doença, ver Motyer, A., The Message of James, Leicester, IVP, 1985, pp. 193-194.
(5) Para a ênfase que Tiago faz da importância de orar em fé, cf. Tiago 1:5-8.
A minha sugestão que o paciente poderá estar tão doente que seja incapaz de orar
em fé baseia-se nos efeitos psicologicamente debilitantes produzidos por certos
problemas de ordem física.
(6) Cf. Adamson, J., The Epistle of James, Grand Rapids, Eerdmans, 1976, p.
197.
Mitton., C.L., The Epistle of James. Londres, Marshalls, 1966, p., 199.
Moo D.J., James, Leicester, IVP, 1985, p. 178.
Ver também Shogren., G.S., Will God Heal Us – A Re-examination of James
5:14-16a, Evangelical Quarterly 61, (2,. ’89), pp. 99-108.
(7) Uma passagem em Job é fortemente significativa nesta ligação. Em Job
19:25-27, diz ele:
Porque sei que o meu Redentor vive e que por fim se levantará sobre a terra. E
depois de consumida a minha pele, ainda em minha carne verei Deus. Vê-Lo-ei por
mim mesmo e os meus olhos e não outros O verão e por isso os meus rins se
consomem dentro de mim.
(8) Moo, op. cit., p. 44.
(9) Inid., p. 186
SEGUNDA PARTE

UMA TEOLOGIA BÍBLICA DA CURA

CAPÍTULO DEZ

De onde vem a doença?

Ao reunirmos alguns dos pontos que aprendemos na Primeira Parte, parece


adequado começar por perguntar de onde vêm as doenças. Só depois de
respondermos a essa questão é que podemos considerar as causas possíveis da
doença. Assim, neste capítulo, iremos examinar:

• A doença resulta do pecado de Adão


• A doença provocada por pecado pessoal
• A doença infligida por Satanás
• A doença pode vir de Deus?

A doença resulta do pecado de Adão

Para descobrir de onde vêm as doenças, precisamos para já de regressar aos


três primeiros capítulos de Génesis. Ali, lemos que Deus criou o mundo e que em
cada fase da criação, viu que era bom. Adão e Eva viviam em perfeita harmonia e
comunhão com Deus até àquele dia trágico em que, tentados por Satanás,
desobedeceram ao mandamento de Deus. Como resultado, Deus lançou uma maldição
sobre aquilo que Ele originalmente havia criado e parece que todo o sofrimento no
mundo, incluindo a doença e a morte provieram desse facto. Por vezes, este
acontecimento é designado por Queda. Não só o homem caiu do seu estado original
sem pecado, como toda a criação, sobre a qual Deus lhe dera domínio, caiu com ele.
O apóstolo Paulo confirma isto em Romanos 8:19-21, quando, ao falar dos
nossos sofrimentos presentes, declara que a criação esteve sujeita à frustração...
pela vontade de quem a sujeitou. Voltaremos mais tarde a esta passagem quando
considerarmos com maior pormenor o problema do sofrimento no mundo, mas por
agora, basta saber que Paulo vê todo o sofrimento no mundo como resultado em
última análise da Queda.
Em harmonia com este ensino, George Jeffreys, que foi usado poderosamente
na cura divina, defende que a criação está a sofrer por causa do pecado de Adão (1)
e chega à conclusão de que

o pecado, a doença, a morte, a mortalidade, a maldição sobre a terra e a


servidão da corrupção de que a criação animal sofre vieram ao mundo em
resultado da desobediência do primeiro Adão (2)

Consideremos o seguinte esquema:

Antes da Depois das Depois da Cruz Após a vinda de


Queda Queda antes antes da vinda de Jesus
da Cruz Jesus
Sem pecado Pecado Pecado perdoado Sem pecado
Sem morte Morte Morte Sem morte
Criação perfeita Criação caída Criação caída Criação libertada
Sem doenças Doença e cura Doença e cura Sem doenças

Este esquema, que adaptei de um outro elaborado por Jeffreys (3) mostra
claramente o estado das coisas antes da Queda, a condição do mundo em resultado
da Queda, a diferença produzida pela morte expiatória de Jesus e o estado glorioso
na era vindoura em resultado da vinda de Jesus. São de notar três coisas:

1. Em relação à morte, a morte entrou no mundo quando Adão pecou e,


embora Jesus morresse para que pudéssemos ter vida eterna, ainda
morremos fisicamente. Só quando Jesus voltar outra vez é que deixará de
haver morte.
2. Em relação à criação, apesar de Jesus já ter morrido pelos nossos
pecados, ainda vivemos numa criação caída. Só quando Jesus voltar de novo
é que a criação será liberta da sua «servidão da corrupção» (Romanos 8:21)
3. Em relação à doença, como ainda vivermos numa criação caída, ainda
adoecemos. Só por ocasião da segunda vinda de Jesus é que a doença será
finalmente abolida. Todas as bênçãos que serão nossas quando Ele voltar de
novo só se tornaram possíveis porque Ele nos reconciliou com Deus através
do Seu sacrifício expiatório na cruz. Mas ainda não vivemos nessa idade
futura. Contudo, algumas das bênçãos da era vindoura tornar-se-ão nossas
agora através da obra do Espírito Santo (4).

Parece-me, portanto, que uma compreensão correcta da relação entre doença


e pecado é a seguinte:
A doença no mundo é o resultado do pecado de Adão. A morte de Cristo na
cruz resolveu o pecado de Adão. Portanto, a morte de Cristo lidou com as causas da
doença... Concomitantemente, os Cristãos podem esperar hoje a cura. Mas o
resultado final da vitória de Cristo no Calvário só se consumará quando Ele voltar
segunda vez. Portanto, alguns cristãos podem não ser curados antes da vinda de
Cristo. As curas experimentadas hoje devem ser encaradas como resultado da
acção do Espírito que nos dá um sabor da era vindoura (5). Esta é uma forma de
compreender que a cura está na expiação, algo que iremos discutir mais tarde com
mais pormenor.

A doença provocada por pecado pessoal

Então, do que já vimos, em certo sentido toda a doença surge em resultado do


pecado – o pecado de Adão. Mas ela é por vezes provocada pelo nosso pecado
pessoal? Já vimos a resposta a esta pergunta quando analisámos diversas passagens
da Bíblia na Primeira Parte, mas agora será útil sintetizá-las.

Velho Testamento

A perspectiva de que a doença pessoal é provocada pelo pecado pessoal baseia-


se em grande medida na assunção de que Deus por vezes pune os pecadores,
infligindo-lhes alguma doença. No Velho Testamento, Israel recebe a promessa da
cura se obedecer aos mandamentos de Deus (Êxodo 15:26) e a ameaça de sofrer
doenças se desobedecer (Deuteronómio 28:58-60). Há registos de casos em que
certos indivíduos foram atingidos com lepra por causa do seu pecado (e.g. Miriam
em Números 12:10; Geazi em 2 Reis 5:25-27; Uzias em 2 Crónicas 26:16-21).
Contudo, o livro de Job rejeita claramente a visão segundo a qual o pecado pessoal é
necessariamente a causa de doença pessoal. Em suma, a doença pode ser provocada
por pecado pessoal, mas nem sempre a sua causa é o pecado.

Novo Testamento

O Novo Testamento também ensina a mesma coisa. Embora haja casos em que
a doença é atribuída ao pecado pessoal, há também passagens que deixam muito
claro que a ligação não é de modo nenhum inevitável. O perdão dado por Jesus ao
paralítico (Lucas 5:17-seg.) antes de lhe restaurar a saúde pode sugerir uma ligação
entre a sua doença e o seu pecado, como também a exortação ao homem no tanque
de Betesda, Não peques mais para que não te sobrevenha coisa pior (João 5:14).
Mais explicitamente, em Actos, Herodes é atingido com vermes e morre por
causa do seu orgulho (12:21-23) e Elimas é atingido com a cegueira por resistir ao
evangelho (13:11). Aos Coríntios é dito que alguns deles estão doentes em resultado
do seu comportamento na Ceia do Senhor (1 Coríntios 11:30) e Tiago 5:15 sugere
que a doença pode estar ligada ao pecado.
Outras passagens do Novo Testamento, porém, revelam que nem sempre há
uma ligação entre a doença e o pecado pessoal. A passagem de João 9:1-seg.
relativa à cura do cego de nascença indica que, embora a doença fosse vulgarmente
entendida como um resultado de pecado pessoal ou parental (v. 2), Jesus negou esta
assunção no versículo seguinte. Mais ainda, a passagem de Tiago 5:14-seg. que
sugere que a doença pode estar ligada ao pecado também fornece clara evidência
de não ter de ser assim, porque o perdão é prometido ao doente se tiver cometido
pecado (v. 15).
Assim, à semelhança do Velho, o Novo Testamento mostra que a doença é, pelo
menos às vezes, provocada por pecado pessoal. Há também uma clara evidência de
que o pecado pessoal nem sempre é a causa de doença. Com mais frequência, resulta
do facto de estarmos a viver num universo caído. Mas o Novo Testamento também
revela uma outra causa possível - a doença por vezes resulta da actividade de
Satanás.

A doença infligida por Satanás

Em Actos 10:38, Pedro refere-se a Jesus como curando todos os oprimidos do


diabo e, embora não se deva tomar esta expressão como significando que todas as
doenças são de origem satânica, certamente implica que algumas são. Isto é
confirmado por passagens como Mateus 12:22; Marcos 9:17 e Marcos 9:25, em que
a surdez, a gaguez e a cegueira são atribuídas à acção de maus espíritos. A
passagem de Lucas 13, em que Jesus cura a mulher com a coluna curvada, também
indica que a sua situação fora resultado da actividade satânica (v. 11).
Este último caso é digno de nota, na medida em que a situação é atribuída
tanto a um espírito de enfermidade (v. 11) como a Satanás (v. 16). Presumivelmente,
o espírito é encarado como um agente de Satanás. Não há sugestão de o problema
da mulher ter sido causado pelo seu pecado; antes, como filha de Abraão, ela tinha
o direito de ser libertada da sua aflição de longa duração sem um moimento mais de
atraso – sem mesmo esperar pelo cumprimento do Sábado (v. 16). A doença é
encarada como uma prisão de Satanás de que Jesus veio libertar as pessoas (cf.
Actos 10:38).
Nem há qualquer sugestão de a mulher ser endemoninhada. Uma distinção clara
é estabelecida em Mateus 4:24entre demonização e doença. É digno de nota que,
nesta situação, Jesus não «exorciza» o demónio. Limita-se a impor as mãos na
mulher e a dizer-lhe que está livre da sua enfermidade (v. 12).
Nesta ligação, note-se também o contexto judaico. A cura ocorre na sinagoga,
no dia de sábado e a mulher é designada por filha de Abraão. Portanto, não é
preciso que se aplique necessariamente aos Cristãos. É questionável se a doença nos
cristãos hoje pode ser causada por maus espíritos (6). Contudo, sabemos que o
nosso inimigo anda à nossa volta como um leão furioso procurando devorar-nos (1
Pedro 5:8) e ele tem muitas formas diferentes de nos atacar. Apesar de tudo, é-
nos dito para lhe resistirmos e permanecermos firmes na fé (v. 9).
O contexto em que Pedro escreveu estas palavras era o de uma igreja que
estava a sofrer perseguição e assim, devemos talvez hesitar em aplicar estes
versículos à questão da doença. Contudo, os princípios da resistência a Satanás
permanecem válidos em qualquer situação. Resistimos-lhe, permanecendo firmes na
fé. E seremos muito mais capazes de o fazer se compreendermos que Satanás já é
um inimigo derrotado.
O Novo Testamento ensina-nos muito claramente que a morte de Jesus no
Calvário foi uma vitória poderosa sobre Satanás (7). Hebreus 2:14 diz-nos que, pela
Sua morte, Jesus destruiu aquele que detinha o poder da morte, ou seja, o diabo. O
uso aqui da palavra destruir não significa que Satanás já não exista, mas antes que o
seu poder sobre a morte lhe foi arrancado. Jesus tem as chaves da morte
(Apocalipse 1:18). Despojou Satanás do seu poder sobre ela.
Apocalipse 12:9-11 também nos fala desta vitória. Os acusados por Satanás
são descritos como tendo-o conquistado pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do
seu testemunho. O nosso inimigo é rápido a recordar-nos o nosso pecado e a trazer
acusação contra nós, mas este versículo recorda-nos que os nossos pecados estão
perdoados porque Jesus morreu por nós e que podemos vencer Satanás testificando
deste facto.
Finalmente, Colossenses 2:15 traça um quadro maravilhoso da vitória triunfal
de Jesus sobre o inimigo:

E tendo desarmado os poderes e as autoridades, expo-los publicamente,


triunfando sobre eles pela cruz.

Para apreciar plenamente o que Paulo quer dizer com isto, precisamos de
compreender quem são os poderes e as autoridades e o significado do seu uso da
palavra triunfo. Em Efésios 6:10-12, é claro que quando Paulo usa a frase poderes e
autoridades desta forma, está a referir-se às forças satânicas que lutam contra
nós, os cristãos. Mas o que quer ele dizer ao afirmar que Cristo triunfou sobre eles
pela cruz?
Ao usar a palavra triunfo, Paulo estava deliberadamente a recordar aos seus
leitores o quadro de uma grande vitória militar. No mundo romano, um triunfo era
uma espécie de moderna decoração militar em que alguém é recompensado quer por
bravura quer por algum grande feito no campo de batalha. Para ajudar a
compreender melhor este facto, imaginemos que César, o imperador romano, soube
que num canto distante do Império uma das tribos se tivesse rebelado contra a sua
autoridade. Então, convoca o seu general mais graduado e dá-lhe instruções para
levar uma legião de soldados a fim de suprimir a rebelião. Concomitantemente, o
general vai e vence a tribo rebelde, fazendo muitos prisioneiros e levando-os de
volta a Roma,
Porém, antes de chegar a Roma, envia um arauto para informar o imperador da
vitória. Ao ouvir a notícia, o imperador decide recompensar o general, com um
triunfo. Proclama um feriado público para que todos os cidadãos de Roma possam
receber o general que regressa. Depois, no dia aprazado, o povo ocupa as ruas da
cidade à espera do regresso do general. Quando ele chega na sua carruagem à
frente da legião, o povo aclama-o e aplaude-o, numa quase adoração do general por
causa da sua grande vitória.
Mas atrás do general e da sua legião vêm os cativos. Foram-lhes arrancadas as
armas e trazem as mãos amarradas e os pés com grilhões. Estão totalmente
subjugados e são obrigados a caminhar com a cabeça baixa, sob um «jugo» simbólico
criado para este propósito (8). Na verdade, foram expostos publicamente. Este é o
quadro que Paulo recorda quando nos diz que pela cruz Jesus desarmou os poderes e
as autoridades e triunfou sobre eles, expondo-os publicamente. Como cidadãos do
céu, não temos nada a recear de um tal inimigo. Antes, espantamo-nos e admiramo-
nos com a vitória poderosa do nosso general que venceu por nós adoramo-lo.
Entendido deste modo, Colossenses 2:15 é uma revelação maravilhosa da vitória que
Cristo obteve na cruz sobre Satanás e todas as suas forças.
Admissivelmente, nenhuma das três passagens que analisámos nesta ligação
está directamente relacionada com a cura dos nossos corpos. Analisando cada
passagem no seu contexto, em lado nenhum a libertação da doença faz parte da
discussão. Apesar de tudo, não há razão para supor que os escritores em questão
compreendessem que a vitória de Cristo sobre Satanás estivesse limitada a áreas
específicas que estivessem a abordar. Se, como parece provável, a sua compreensão
era que a vitória de Cristo foi total. Então estes versículos podem muito bem
indicar uma compreensão mais vasta dessa vitória. Em suma, se alguma doença é
provocada por Satanás e se Jesus triunfou sobre ele na cruz, então Jesus triunfou
também sobre a doença. Satanás e as suas forças não devem ser temidas, mas
enfrentar a nossa resistência na base da vitória que Cristo já ganhou para nós.
Mas como vimos na Primeira Parte, nem todas as doenças vêm de Satanás. Por
vezes, a Bíblia parece indicar que podem vir do próprio Deus. Na próxima e última
secção deste capítulo, iremos responder como tal é possível.

A doença pode vir de Deus?

Como vimos no primeiro capítulo deste livro, a Bíblia revela que Deus é um
Deus que cura. Vemos isso tanto no Velho como no Novo Testamento e em particular
no ministério de Jesus que era e é a revelação final de como Deus é. À luz deste
facto, é-nos difícil compreender como é que se pode dizer que por vezes Deus é a
causa da doença. Como vimos no Capítulo Dois, há vários exemplos no Velho
Testamento, incluindo Miriam, Geazi e Uzias e, como já vimos neste capítulo, há
mesmo alguns casos no Novo Testamento. Os pontos seguintes, alguns dos quais
elaborados com mais pormenor no Capítulo Dois, podem de algum modo fornecer
uma explicação em relação a esta difícil questão:

• Quando Deus envia doença é em geral como castigo pelo pecado. O


propósito desta acção pode ser levar os pecadores ao arrependimento.
• Deus suspende a punição quando as pessoas se arrependem.
• Não devemos assumir que todas as doenças resultam de pecado pessoal.
• Deus não castiga os Cristãos pelos seus pecados. Jesus já sofreu no
Calvário o castigo pelos nossos pecados.
• Contudo, Ele pode permitir que a doença surja no nosso caminho, a fim de
nos disciplinar como um pai disciplina os filhos.
• Infringir as leis naturais que Deus criou para reger o universo podem ser
também uma causa de doença. Um bom exemplo é a relação entre o tabaco
e o cancro. Se as pessoas fumam, o mais provável é contraírem cancro e,
tristemente, é o que tem acontecido! Isto mostra que podemos adoecer por
causa das nossas acções ou por causa das acções dos outros.
• Deus é soberano. Nada acontece se Ele não o permitir. E se Ele permite
quando poderia ter evitado, no pensamento hebraico, efectivamente Ele fê-
lo.
• O Velho Testamento é uma revelação progressiva da natureza de Deus. A
Sua palavra final à raça humana foi na pessoa de Jesus. Portanto, devemos
procurar compreender mesmo as passagens que dizem que Ele envia doença,
à luz do amor de Deus.
Finalmente, em adição aos pontos atrás indicados, temos de recordar que por
vezes adoecemos por estarmos a viver num universo decaído. Claro quer foram Adão
e Eva que, pela sua desobediência a Deus foram responsáveis pela queda da
humanidade, mas foi Deus quem amaldiçoou a terra (Génesis 3:17-19) e ao fazê-lo
subjugou toda a criação à frustração (Romanos 8:20).
Desta forma, portanto, podemos dizer que em certo sentido Deus é
responsável por toda a doença e sofrimento no mundo por causa da maldição que
lançou sobre toda a criação. Contudo, apenas o fez porque o homem Lhe
desobedeceu. Mais ainda, a Bíblia diz-nos claramente que Deus é amor (1 João 4:9,
16). Isto sugere que tudo quanto Deus faz é motivado pelo amor e isso significa que,
por mais que nos custe a crer, mesmo a maldição que Deus lançou sobre a criação
foi motivada pelo Seu amor.
Deus odeia o pecado não apenas porque é santo, mas também porque é amor.
Como nos ama, odeia o pecado porque sabe que ele destruirá tanto a sociedade como
os indivíduos. Assim que Adão e Eva pecaram, foi por misericórdia que Deus não
permitiu que vivessem para sempre. Para a humanidade, viver eternamente como
pecadores teria sido uma catástrofe! Viver eternamente não seria possível nem
desejável se houvesse pecado na eternidade. Assim, a maldição que Deus lançou
sobre a terra, que incluía tanto a doença como a morte para a humanidade,
destinava-se a atrair a atenção do homem para a sua necessidade de comunhão
renovada com o seu Criador através do perdão e purificação do seu pecado. O
propósito final de Deus em tudo quanto faz é a redenção!

NOTAS
(1) Jeffreys, G., Healing Rays, Loindres, Elim,. 1932, p. 16.
Jeffreys refere-se a Adão como «o primeiro Adão, porque em 1 Coríntios 15,
Paulo designa Cristo como o «último Adão».
(2) Ibid., p. 37.
(3) Ibid., p. 33.
(4) Foi por isso que dei a este livro o título Um Sabor do Céu. Voltaremos a
falar do assunto.
(5) Para mais explicações do ensino de Paulo de que o Espírito Santo nos é dado
agora como um sabor das boas coisas vindouras, ver Capítulo 18.
(6) Tenho plena consciência das perspectivas largamente divergentes
defendidas entre cristãos sobre o tema dos Cristãos e dos demónios. A minha
perspectiva pessoal é que quem está em Cristo não pode exigir exorcismo. Contudo,
o caso em discussão não é de exorcismo e parece obscuro que uma doença num
cristão possa ser provocada pela actividade demoníaca ou não. O que é claro é que
em Cristo temos vitória sobre todo o poder do inimigo. Para mais discussão da
relação entre doença e Satanás, ver Thomas, J. C., The Devil, Disease and
Deliverance, Sheffield, SAP, 1998.
(7) Gustav Aulen chama a atenção para a perspectiva «dramática» da expiação
que vê a morte de Cristo como um drama cósmico em que Deus em Cristo batalha
com os poderes do mal e obtém a vitória sobre eles. Defende que esta era «a ideia
dominante da Expiação durante o primeiro milénio da história cristã», Aulen, G.,
Christus Victor, Londres, SPCK, 1931, pp. 22-23.
(8) A palavra portuguesa subjugar vem de duas palavras latinas sub e jugum. O
jugum era o jugo colocado sobre o gado. Sub significa debaixo de. As pessoas
levadas cativas por Roma eram obrigadas a caminhar sub jugum ou «debaixo do
jugo». Era construído um «jugo» simbólico para este fim, com o recurso a três
lanças colocadas com a forma da letra grega pi – Π. Os cativos eram obrigados a
passar por baixo, o que significava que deviam ser tratados pior do que o gado. Ser-
se «subjugado» deste modo era a maior humilhação conhecida pelos inimigos de
Roma.
CAPÍTULO ONZE

Jesus morreu pelas nossas doenças?

No último capítulo, ao considerarmos diversos casos de doença, reparámos que,


devido à morte de Cristo na cruz, que constituiu tanto uma expiação pelo pecado
como uma vitória sobre Satanás, é possível compreender que a cura da doença é um
resultado da Sua obra redentora na cruz. Mas isso não quer dizer que Ele morreu
pelas nossas doenças no mesmo sentido que morreu pelos nossos pecados, como
alguns ensinam. Já discuti essa doutrina noutro lado (1), pelo que neste capítulo
limitar-me-ei a dar uma breve explicação da doutrina e depois resumirei as minhas
descobertas em relação a dois «textos-base» vulgarmente usados em seu apoio.

Explicação da Doutrina

A doutrina de que Jesus morreu pelas nossas doenças bem como pelos nossos
pecados provavelmente teve origem no Movimento de Santidade na América por
volta dos finais do século dezanove (2). Foi adoptada pelos primeiros Pentecostais e
faz parte da base da fé de muitas das principais denominações pentecostais dos
nossos dias (3). Também faz parte dos ensinos do Movimento da Fé (4). Na sua
forma mais simples, a doutrina pode definir-se assim:

A perspectiva de que os Cristãos podem reivindicar a cura da doença na base


de que Cristo não só levou sobre si os nossos pecados, como também as nossas
doenças (5).

À primeira vista, este ensino parece muito atraente. Tudo o que temos a fazer
é reivindicar a nossa cura pela fé e seremos curados! Mas a um exame mais atento,
torna-se claro que há grandes dificuldades com ela, tendo sido sugeridas diversas
modificações (6). Mais tarde, iremos considerar mais pormenorizadamente este
aspecto, mas neste capítulo limitar-nos-emos a examinar os dois principais «textos-
base» utilizados em apoio desta doutrina, Mateus 8:17 e 1 Pedro 2:24.

O argumento de Mateus 8:17

De forma simples, o argumento é o seguinte:


1. Mateus 8:16 regista que Jesus curou todos os doentes.
2. Mateus 8:17 diz-nos que Ele o fez em cumprimento de Isaías 53:4.
3. Mas o NT mostra-nos que Isaías 53 é uma profecia da crucifixão.
4. Portanto, Jesus levou na cruz não só os nossos pecados mas também as
nossas doenças.

Contudo, embora os pontos 1-3 do argumento anterior estejam correctos, a


conclusão (ponto 4) não é válida. A dificuldade é que nesta passagem Mateus não
usa a citação de Isaías para se referir à cruz. Diz que ela se cumpriu no ministério
de cura de Jesus muito antes de Ele morrer na cruz. Em lado nenhum dos capítulos
26-27 em que Mateus fala da morte de Jesus na cruz o evangelista sugere que
Jesus morreu pelas nossas doenças. Aqui, no Capítulo 8, está a descrever eventos
que ocorreram durante o ministério de cura de Jesus na Galileia, cerca de três anos
antes da Sua morte. Mas para uma melhor explicação, precisamos de analisar com
mais pormenor o contexto de Mateus 8:17.

Mateus 8:17 – o seu contexto imediato

Mateus 8:16-17 diz-nos que Jesus expulsou demónios e curou todos os doentes
a fim de cumprir a profecia de Isaías 53:4, Ele tomou sobre si as nossas
enfermidades e levou as nossas doenças. No início do capítulo, Mateus deu-nos
alguns exemplos específicos do ministério de cura de Jesus – o leproso (vv. 1-4), o
criado do centurião (vv. 5-13), a sogra de Pedro (vv. 14-15). O versículo 16 pode ser
considerado um resumo destas curas e de outras semelhantes que ele realizou
nessa tarde. Depois, no versículo 17, diz-nos que Jesus fez tudo isso para cumprir a
profecia de Isaías 53:4, que ele cita. Mas porque o faz?
A forma mais natural de interpretar o uso que faz deste versículo é
compreender que a citação é uma confirmação de que Jesus estava a cumprir o Seu
papel de curar os doentes de acordo com a profecia sobre o ministério do Messias.
Mas isto levanta questões muito importantes como a razão de Mateus escrever o
seu evangelho e o porquê e como usa as citações do Velho Testamento (7) como a do
versículo 17.

Qual a razão de Mateus escrever o seu Evangelho?

Certas características distintivas em Mateus indicam que o seu alvo principal


ao escrever o seu evangelho estava ligado às necessidades do povo judeu dos seus
dias (8). Isto é evidente no seguinte:

• O retrato que Mateus faz de Jesus como o cumprimento das esperanças do


VT.
• As suas aplicações do VT à vida e ministério de Jesus.
• A sua atitude para com a lei do VT e a tradição do ensino rabínico judaico.
• Os seus relatos dos confrontos entre Jesus e os representantes oficiais da
nação e religião judaicas.
• A sua compreensão da igreja cristã em relação ao judaísmo.
• O uso de citações do VT (de que Mateus 8:17 é uma).

Ora, o facto de Mateus escrever em grande medida para o povo judeu dos seus
dias é altamente relevante para uma compreensão correcta de Mateus 8:17, pois
este é um exemplo entre muitos do modo como Mateus cita o Velho Testamento
para provar que Jesus é o Messias há tanto tempo aguardado, sendo o cumprimento
das profecias veterotestamentárias. Para melhor compreender este facto,
precisamos de considerar agora o seu uso do que tem sido chamadas citações
formulares.

O uso de Mateus de citações formulares do VT

Há dez citações (9) em que Mateus inclui a «fórmula»

isto foi dito para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta

ou

então cumpriu-se o que foi dito pelo profeta

Mateus usa-as porque está a procurar apresentar Jesus como o cumprimento


de todas as esperanças e ideais de Israel e ao agir assim mostrar aos Judeus dos
seus dias que Jesus é o Messias. Assim, como os Judeus esperavam que o Messias
fosse aquele que iria curar os doentes, Mateus usa Isaías 53:4 como prova de que o
ministério de cura de Jesus mostrava que era aquele que há tanto tempo ansiavam.
E, como já vimos, como Mateus não aplica esta escritura à morte de Jesus na
cruz mas à sua cura dos doentes na Galileia, de facto não há bases para dizer que
ele está a ensinar-nos que Jesus morreu pelas nossas doenças bem como pelos
nossos pecados a menos, claro, que compreendêssemos que ele estivesse a apontar
para a cruz na base de estar a escrever depois da cruz. Contudo, a ser assim, então
porque é que ele não explica este ensino de modo mais claro e não o menciona
quando está a narrar a história da crucifixão nos Capítulos 26-27? Mais ainda, como
LFW Woodford salientou (10), é digno de nota que sempre que Mateus usa uma
citação «formular»

recorre às escrituras citadas para relacionar o seu cumprimento com os


eventos reais então registados, como (e.g.) o nascimento virginal... Nesta
passagem (8:17), Mateus não estava a referir-se à paixão da vinda do Senhor
quando indicou esta citação, mas a referir-se aos eventos actuais que está
então a descrever.

Este facto sugere fortemente que Mateus não aponta de modo nenhum para o
futuro, para a cruz, e a forma óbvia de ler Mateus 8:17 é compreender que ele está
a dizer que Isaías 53:4 se cumpriu no ministério de cura de Jesus, não na cruz. Mas
isso leva-nos a um outro «texto-base» frequentemente usado para apoiar a doutrina
de que Jesus levou as nossas doenças na cruz – 1 Pedro 2:24.

O argumento de 1 Pedro 2:24

A última parte de 1 Pedro 2:24 declara pelas Suas pisaduras fostes sarados.
Nesta secção, iremos considerar a razão de ser importante compreender esta
passagem correctamente. Como já mencionei no Capítulo 2, defendo que, neste
versículo, a palavra sarados é usada metaforicamente e não deve ser tomada à letra
aplicada à cura de doenças. Uma simples análise do contexto mostra-nos a validade
desta ideia.
A primeira epístola de Pedro foi escrita numa altura em que a igreja estava a
sofrer perseguição e o seu tema principal poderia ser resumido a: sofrimento agora,
glória futura, Vemos isto em diversas passagens como 1:6-7, 11; 4:12-13, 19; 5:10.
Em ponto nenhum da epístola Pedro discute a doença ou a cura divina. 1 Pedro 2:24
faz parte de uma passagem que encoraja os cristãos a serem submissos aos que se
encontram em autoridade (2:13-3:6). Esta passagem cai naturalmente em três
secções que lidam à vez com:

1. submissão aos governantes (2:13-17)


2. submissão aos patrões (2:18-25)
3. submissão aos maridos (3:1-6)
Abordaremos rapidamente o primeiro ponto pois serve de introdução ao
segundo, que abordaremos com mais pormenor. Não precisamos de considerar o 3º
ponto.

Submissão aos governantes (2:13-17)

Pedro diz que como cristãos devemos sujeitar-nos aos que se encontram em
lugares de autoridade para que pelo nosso bom comportamento possamos calar os
que nos acusam (vv. 13-17). Somos livres, mas não devemos usar a nossa liberdade
como desculpa para agir mal porque apesar da nossa liberdade, somos servos de
Deus (v. 16). Assim, sujeitamo-nos aos que estão em autoridade porque estamos
sujeitos a Deus. É por amor ao Senhor que nos devemos sujeitar à autoridade, seja
qual for a forma que esta possa assumir (v. 13).

Submissão aos patrões (2:18-25)

Da secção anterior, vimos que a sujeição à autoridade humana é uma expressão


da nossa sujeição à autoridade divina. Isto deveria capacitar-nos a aceitar com
mansidão as decisões dos que têm autoridade sobre nós. Na altura em que Pedro
escreveu, isto era de relevância especial para os escravos (11) e Pedro fala-lhes
especificamente nos versículos 18-25 dizendo-lhes que se sujeitem aos seus
senhores, mesmo que estes sejam duros. É muito provável que sejam sujeitos a um
tratamento pesado e sofram injustamente (vv. 19-20). Se isso suceder, devem
recordar-se que foram chamados pelo exemplo pessoal de Cristo para suportar (vv.
20-21) (12). Jesus é o exemplo supremo de uma pessoa inocente que sofreu
injustamente!
Nestes versículos, não há sugestão de que os Cristãos não precisam de sofrer
porque Cristo já sofreu por eles. O contrário é indicado. Os Cristãos que sofreram
por fazer o bem devem suportar com paciência, sabendo que esta é a vontade de
Deus para eles, porque o próprio Cristo estabeleceu um exemplo para ser seguido
(vv. 20-21) (13).
Os versículos 22-25 (cf. Isaías 53) estabelecem os sofrimentos de Cristo
como exemplo supremo do inocente a sofrer injustamente. Demonstram o princípio
já declarado no v. 21 de que os sofrimentos de Cristo são um exemplo para os
cristãos seguirem. As afirmações de que
• Cristo estava inocente (v. 22)
• Ele se recusou a retaliar ou a queixar-se (v. 23)
• Ele entregou-se a Deus (v. 23)

são todas claramente enunciadas como um exemplo e um estímulo para o escravo


cristão que sofre castigos injustos. Mais ainda, esta interpretação destes
versículos está em completa harmonia com o ensino relativo ao sofrimento em toda
a epístola (14)
Mas a inocência de Cristo, a Sua não retaliação e o seu comprometimento com
Deus não são os únicos estímulos para os Cristãos que sofrem castigos injustos. Ele
é encorajado ainda mais pelos resultados do sofrimento de Cristo. A morte de
Jesus não foi em vão! Ganhou-nos a salvação!
O sentimento de falta de propósito experimentado pelos que sofrem males
infligidos injustamente é suavizado para os cristãos pelo entendimento de que os
sofrimentos de Cristo não foram de modo nenhum sem sentido. Os versículos 24-25
recordam-nos isso. Os sofrimentos de Cristo eram redentores. O escravo inocente
injustamente espancado pelo seu senhor é alertado para o facto de Cristo ter sido
também injustamente punido, mas não sem propósito, porque Cristo levou os nossos
pecados para que pudéssemos morrer para o pecado e viver para a rectidão (v. 24)
e, como resultado, a ovelha perdida regressou ao pastor (v. 25). Talvez o escravo
pudesse compreender que o seu sofrimento também não é sem propósito – mesmo
que não compreendessem que propósito era esse. Apesar de tudo, embora não haja
aqui sugestão de que o sofrimento dos escravos pudesse ser redentor no sentido
em que o sofrimento de Cristo é redentor, a sugestão pode muito bem ser que,
seguindo o exemplo de Cristo em suportar mansamente o sofrimento injusto, os
escravos poderiam pela sua atitude semelhante a Cristo, ganhar outros para Cristo
(cf. a instrução às esposas em 3:1).
Mas isso leva-nos agora à expressão pelas suas pisaduras fostes sarados, que
estamos a tentar compreender. Para o fazer correctamente, precisamos de ter
presente o contexto. Pedro está a apresentar a escravos, que eram por vezes
injustamente tratados, o exemplo de Cristo cujo sofrimento fornece o padrão para
todos quantos sofrem injustamente. E a relevância da frase pelas Suas pisaduras
fostes sarados numa passagem dirigida a escravos que eram por vezes injustamente
flagelados é óbvia.
A palavra traduzida por pisaduras é m l ps que significa um arranhão, uma
cicatriz ou um vergão deixado por um chicote e descreve uma condição física com a
qual os escravos estavam muito familiarizados. Aos escravos que eram injustamente
espancados, Pedro salienta que Cristo também foi espancado e por causa das
feridas que lhe foram infligidas, eles foram «curados». O facto de Pedro dizer
fostes sarados em vez de somos sardos (Isaías 53:5) salienta o facto de que são
particularmente os escravos que estão em causa aqui, porque é para eles que o uso
da palavra m l ps (feridas) é especialmente significativa.
Mas em que sentido é que os escravos foram «curados»? Obviamente, Pedro
pretende que eles compreendam aqui o perdão dos seus pecados. Está a falar da
«cura» das feridas do pecado. Isto é claro a partir dos factos seguintes:

• Imediatamente antes disto, Pedro disse que Cristo levou os nossos pecados
para que pudéssemos morrer para o pecado e viver para a justiça.
• No versículo 25, usa a conjunção porque, identificando assim a sua «cura»
no versículo 24 com o que ocorreu quando, como ovelhas desgarradas,
regressaram ao pastor (v. 25). O facto de esta conjunção não se encontrar
em Isaías 53:6 pode indicar que Pedro está especialmente a salientar esta
ligação e sugere sem dúvida que a «cura» a que se refere é espiritual (15).
Fostes sarados é indubitavelmente uma referência à conversão dos
escravos.

Mais ainda, procurar compreender a «cura» como física parece ser totalmente
inadequado. Não há referência à cura da doença em lado nenhum da epístola, muito
menos no contexto imediato. A «cura» aqui referida significa claramente uma
plenitude espiritual que resulta de Cristo ter levado os nossos pecados na cruz e o
nosso retorno, como ovelhas, que se haviam desgarrado, ao pastor e guardião das
nossas almas. De facto, a passagem é um encorajamento aos Cristãos para
suportarem o sofrimento, não um meio de escapar a ele.

Conclusão

Neste capítulo, mostrámos que Mateus usa Isaías 53:4 e aplica-a à cura, mas
NÃO à cruz. Pedro cita Isaías 53:5 e aplica-a à cruz mas NÃO à cura física. Isso
significa que nenhum versículo apoia o ensino de que Jesus morreu pelas doenças a
par dos pecados. Contudo, como já sugeri, há um sentido em que a cura pode ser
compreendida como fazendo parte da expiação (16), mas isso não significa que Jesus
morreu pelas nossas doenças como morreu pelos nossos pecados.
De facto, quando levada a um extremo, esta doutrina pode ser muito perigosa.
Por exemplo, se compreendermos, como fazem alguns, que pelas suas pisaduras
fostes sarados (1 Pedro 2:24) significa que a morte de Jesus foi a nossa cura e que,
portanto, não podemos de facto estar doentes porque Jesus já nos curou pela Sua
morte, somos levados a negar que estamos doentes e reivindicar que já estamos
«curados», quando de facto podemos estar gravemente doentes e a necessitar de
tratamento médico. Há mesmo casos de pessoas que morreram prematuramente por
causa desta atitude (17).
É por isso que é extremamente importante compreendermos que pelas suas
pisaduras fostes sarados é, como já demonstrei, uma referência à conversão dos
escravos quando, porque Jesus morreu pelos seus pecados, foram curados das
feridas espirituais que o pecado inflige e retornaram ao Pastor das suas almas.

NOTAS
(1) Petts, David, Healing and the Atonement, Tese de doutoramento,
Nottingham University, 1993.
(2) Ver Dayton, D. W., Theological Roots of Pentecostalism, Grand Rapids,
Zondervan, 1987, pp. 115-141.
(3) Incluem as Assembleias de Deus (Reino Unido, França, EUA) e a Igreja de
Deus (Cleveland, EUA).
(4) Ver, por exemplo, Copeland, G., God’«s Will For You, Fort Worth, KCP,
1972, pp. 126-seg.
Para uma crítica do Movimento da Fé, ver McConnell, D.R., The Proimise of
Health and Wealth, Londres, Hodder and Stoughton, 1990.
(5) Esta é uma definição que adoptei na minha Thesis.
(6) Ver Thesis, pp. 44-54 para alguns exemplos de modificações oferecidos por
outros e pp. 327-370 para a minha modificação pessoal.
(7) Para uma discussão pormenorizada ver Thesis, pp. 102-140.
(8) France, R. T., Matthew, Tyndale NT Commentary, Leicester, IVP, 1985, p.
17. Ver também o artigo de France em Themelios, Vol. 14, Nº 2, 1989, p. 42.
(9) 1:22-23; 2:15; 2:17-18; 2:23; 4:14-16; 8:17; 12:17-21; 21:4-5; 27:9-10 (cf.
também 2:5-6)
(10) Woodford, L.F.W., Divine Healing and the Atonement – a Restatement,
Londres, Victoria Institute, 1956, p. 58
(11) Os que são referidos são oiketai (servos domésticos), muitos dos quais
podiam ser letrados e ocupar posições de responsabilidade na casa. Contudo, eram
pertença dos seus despotes (senhores) e o seu trabalho não era remunerado.
Embora muitos senhores fossem relativamente humanos, o espancamento era vulgar
e constituía o castigo normal das falhas vulgares do escravo.
(12) hupogrammon - «exemplo» - literalmente refere-se ao modelo de escrita
manuscrita a ser copiado por um estudante e depois figurativamente como modelo
de conduta para imitação. Os escravos que sofriam injustamente são assim
encorajados a seguirem passo a passo o exemplo de Cristo esquematizado nos
versículos que se seguem.
(13) Cf. 1 Pedro 4:12-19, em que o mesmo ensino é repetido em relação aos
Cristãos em geral, não apenas para os escravos. O cristão que sofre é visto como
participando nos sofrimentos de Cristo (4:13) e está a sofrer de acordo com a
vontade de Deus (4:19).
(14) Cf. 3:8-18; 4:12-19
(15) Perdão dos pecados também parece ser o sentido claro da «cura» a que
Isaías 53:5 se refere, em que o Servo é trespassado pelas transgressões e
esmagados pelas iniquidades.
(16) Ver pp. 115-120. Ver também Capítulo 18, em que desenvolvi mais este
ponto.
(17) Ver pp. 188-191.
CAPÍTULO DOZE

A Cura e o Evangelho de Salvação

Intimamente relacionado com a doutrina de que Jesus morreu pelas doenças e


pelos nossos pecados, que discutimos no capítulo anterior, está a ideia de que faz
parte da nossa salvação e, portanto, parte do evangelho. Assim, neste capítulo
iremos procurar responder a duas perguntas:

• A cura faz parte da salvação?


• A cura faz parte do evangelho?

A cura faz parte da salvação?

A ideia de que a cura faz parte da salvação provém em parte do facto de a


palavra grega sōzō (que no NT é em geral traduzida por salvar) é por vezes usada
com o significado de cura (1). John Nelson Parr, por exemplo, comenta:

Se Pedro incluiu a cura em «ser-se salvo» (Actos 4:9) (sesostai, também nota a
mesma palavra duas vezes no versículo 12), não estamos justificados ao
ensinar que a cura física está incluída na salvação ganha por nós pelo Príncipe
da Vida? (2).

Contudo, o facto de a mesma palavra ser usada duas vezes numa passagem não
significa necessariamente que esteja a ser usada com o mesmo significado em
ambas as ocasiões (3). Isto tornar-se-á mais claro à medida que sucintamente
considerarmos o significado e uso da palavra sōzō.

O significado de sōzō

Muito antes de os documentos do Novo Testamento terem sido escritos, sōzō


era usado uma grande diversidade de sentidos (4), um pouco à semelhança do uso da
palavra salvar no português contemporâneo. Podemos falar de salvar tempo, salvar
um golo em futebol, salvar alguém de se afogar ou ser-se salvo dos pecados,
No Grego falado na altura do Novo Testamento, sōzō era usado em todos estes
sentidos – com a excepção óbvia do futebol! O seu significado básico é criar
segurança ou livrar de uma ameaça directa ou ficar são e salvo de uma situação
difícil. Assim, não nos surpreende descobrir que os escritores do Novo Testamento
usaram salvar numa série de contextos diferentes, tal como hoje em dia usamos
salvar de muitas formas diferentes. Aplicam-na principalmente em três contextos
muito distintos e diferentes:

• Salvação do pecado
• Libertação da doença
• Resgate do perigo

Iremos considerar cada um à vez.

Salvação do pecado

Como já salientámos, sōzō é a palavra usada com regularidade em ligação com a


nossa salvação. Antes de Jesus nascer, o anjo disse a José que ele devia dar-Lhe o
nome de Jesus (Salvador) porque iria salvar o Seu povo dos seus pecados (Mateus
1:21) e o próprio Jesus diz-nos que veio buscar e salvar o que se havia perdido
(Lucas 19:10). Na verdade, não veio ao mundo para o condenar mas parque o mundo
através d’Ele pudesse ser salvo (João 3:17). E Paulo diz-nos que Jesus Cristo veio ao
mundo para salvar os pecadores (1 Timóteo 1:15).
Encontramos a palavra sōzō em cada um destes casos e em muitos outros do
Novo Testamento. Usada deste modo, refere-se a sermos resgatados do pecado e
das suas consequências, porque Jesus morreu no nosso lugar. Ao receber o castigo
pelos nossos pecados, salvou-nos da ira de Deus (Romanos 5:9). É apenas por causa
da graça de Deus que podemos ser salvos (Efésios 2:5, 8) e o dom da salvação é
recebido pela fé (Actos 16:31). Este é claramente o sentido mais importante em que
podemos ser «salvos». É mais importante do que ser-se salvo do afogamento ou de
uma doença, porque afecta o nosso destino eterno.

Libertação da doença

Mas sōzō é também usado como referência à libertação da doença. No relato


da cura da mulher com uma hemorragia (Mateus 9:21-22; Marcos 5:28; Lucas
8:48), na história da ressurreição da filha de Jairo (Marcos 5:23; Lucas 8:50), na
cura do cego Bartimeu (Marcos 10:62; Lucas 18:52) ou no relato por Lucas da
libertação do endemoninhado por uma legião (Lucas 8:36) e na sua história da cura
dos dez leprosos (Lucas 17:19), sōzō é usado com o significado de «curar». Um uso
similar encontra-se em Actos 4:9 e 14:9 bem como em Tiago 5:15. Torna-se
assim claro que sōzō é usado no Novo Testamento referindo-se não só à salvação do
pecado mas também à libertação da doença. Mas isso significa que a cura faz parte
da nossa salvação? Antes de responder a esta questão, será útil analisar o terceiro
sentido em que sōzō é usado.

Resgate do perigo

Exemplos de sōzō usado em relação a grave perigo para a vida física incluem os
relatos de Mateus do acalmar da tempestade em que os discípulos rogaram a
Jesus que os salvasse (Mateus 8:25) e de Pedro a andar sobre as águas quando
faz um pedido similar (Mateus 14:30). No relato em que Jesus sofre o escárnio na
cruz (Mateus 27:40-42; Marcos 15:30-31; Lucas 23:39), é desafiado a salvar-se. É
também usado para denotar a salvação da tripulação e dos passageiros no relato do
naufrágio de Paulo em Actos 27:20, 31, 34 e Hebreus 11:7 refere-se a Noé a
preparar a arca para salvar a sua casa!
Mas que tem tudo isto a ver com a relação entre cura e salvação? Mencionei
todos estes exemplos a fim de salientar um ponto. Se queremos discutir que a cura
faz parte da salvação na base de que sōzō é usado para significar tanto salvar como
curar, então, para sermos logicamente consistentes, temos de defender que
também a libertação do perigo físico faz parte da salvação! É evidente que tal
posição é claramente inaceitável à luz do que o Novo Testamento ensina em relação
aos Cristãos que sofrem perseguições (e.g. 1 Pedro, Romanos 8:35-39; 2 Coríntios
11:23-33).
Como defenderei mais tarde, a cura pode ser entendida como parte da nossa
salvação em sentido supremo (5), mas o facto de a mesma palavra ser usada tanto
para salvar como para curar de modo nenhum o prova. Uma boa ilustração do ponto
que estou a salientar pode ser o uso do sinal SOS quando um navio está com
dificuldades. SOS, claro, corresponde às iniciais de SAVE OUR SOULS [SALVEM
AS NOSSAS ALMAS] mas isso não significa que, ao enviar este sinal, a tripulação e
passageiros estivessem todos a pedir a salvação dos seus pecados! Querem
simplesmente ser resgatados do naufrágio!
Em suma, então, embora o uso de sōzō faça uma ligação linguística entre
libertação da doença e libertação do pecado, isso não significa que a ligação seja
teológica! Argumentar que deve haver uma tal ligação é revelar um grave
incompreensão da natureza da língua! Os escritores do Novo Testamento
simplesmente usaram sōzō sempre que queriam significar «dar segurança» ou
«libertar». Há muitas formas diferentes de conseguir segurança sem estarem
necessariamente relacionadas umas com as outras.
Apesar de tudo, como vimos no caso da cura do cego em João 8, parece
provável que os escritores por vezes aproveitavam-se de casos de libertação física
para ilustrar os princípios de libertação espiritual – como os que estão
espiritualmente «cegos» podem através da fé em Jesus, «ver» (cf. a cura do cego
Bartimeu). Mas dizer isto não é confundir a ilustração com a verdade que ilustra. A
cura pode ilustrar a salvação sem ser parte dela.
Agora, regressando a Actos 4, se aplicarmos estes princípios ao uso que Pedro
faz de sōzō em Actos 4:9-12, compreenderemos que ele está a ilustrar como, à
semelhança de o coxo que foi salvo (i.e. da sua deficiência) pela fé no nome de
Jesus, assim também podemos todos ser salvos (i.e. do nosso pecado), porque não há
outro nome debaixo do céu dado aos homens pelo qual devamos ser salvos! Na
verdade, a salvação não se encontra em mais ninguém! Mas isso não significa que a
cura seja parte da nossa salvação (6)

A cura faz parte do Evangelho?

Dizer que a cura faz parte do evangelho é o mesmo que afirmar que faz parte
da salvação. Como veremos, a cura pode ser compreendida como uma parte do
evangelho (boas novas) sem implicar que precisa de ser necessariamente imediata.
Iremos considerar este aspecto em dois níveis:

• Cura como parte da mensagem do evangelho


• Cura como um acompanhamento da pregação do evangelho

Cura como parte da mensagem do evangelho

Ao examinarmos o uso da palavra evangelho nos escritos de Mateus, Lucas e


Paulo – é interessante que João não a usa – descobrimos que em Mateus e Lucas, a
cura pode ser compreendida como fazendo parte do evangelho porque o evangelho é
uma mensagem sobre a autoridade régia de Cristo e, como tal, inclui actos de cura
(cf. Mateus 4:23; 9:35; 11:5; Lucas 4:16-seg.; 7:22; 9:1-6).
Mais ainda, o evangelho compreende uma diversidade de vários elementos. Por
exemplo, F. F. Bruce (7) sugere que no Novo Testamento as boas novas sobre Jesus
incluem os seguintes pontos:

1. as profecias foram cumpridas e a nova idade inaugurada pela vinda de


Cristo;
2. nasceu numa família de David;
3. morreu segundo as Escrituras para libertar o Seu povo desta idade má;
4. foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras;
5. está exaltado à dextra de Deus como Filho de Deus, Senhor dos vivos e dos
mortos;
6. derramou o Seu Espírito sobre a igreja para que o Seu povo possa dar um
testemunho poderoso da Sua ressurreição e exaltação (acrescentei este
ponto – ver nota de rodapé)
7. voltará segunda vez para julgar o mundo e consumar a sua obra salvadora.

Se aceitarmos o meu acrescento ao resumo de Bruce dos elementos básicos da


mensagem do evangelho, a relação entre cura e o evangelho pode ser agora
resumida. A cura está directamente relacionada com os elementos 1, 5, 6 e, em
última análise, o 7º do evangelho.
Durante o ministério terreno de Jesus fazia parte das boas novas que uma
nova idade fora inaugurada com a Sua vinda. Desde a Sua morte e ressurreição, os
sinais e maravilhas (que incluem milagres de cura) estão garantidos pelo Espírito
como prova da exaltação de Cristo. E a cura fará parte da consumação da Sua obra
salvadora na idade vindoura.
Assim, em certo sentido, a cura é uma parte da mensagem do evangelho. Mas
isso não significa que possa ser reivindicada imediatamente agora. Nem sugere que
os primeiros cristãos pregassem a cura. Praticavam-na! Portanto, a cura
compreende-se melhor como algo que acompanha a pregação do evangelho e
demonstra a verdade da sua mensagem.

Cura como um acompanhamento da pregação do Evangelho

Em Romanos 15:16-20, Paulo refere-se ao seu ministério aos Gentios ao serviço


do evangelho (v. 16) através do qual Cristo ganhou a obediência dos Gentios pela
palavra e por obras (v. 18). Isto tem sido cumprido (v. 19) pelo poder dos sinais e
maravilhas, pelo poder do Espírito Santo. Ele reivindica ter cumprido o evangelho de
Cristo num contexto de sinais e maravilhas levados a cabo pelo poder do Espírito.
Há aqui uma clara ligação entre sinais e maravilhas realizadas pelo Espírito – e
estas incluíam indubitavelmente a cura – e a proclamação do evangelho (8). Isso não
significa que os sinais e maravilhas e milagres de cura realizados por Paulo fossem
parte do que ele pregou como evangelho (9), mas eram um acompanhamento
importante da proclamação do evangelho por Paulo. Eram uma demonstração da
autoridade de Cristo e essa autoridade é parte das boas novas. Nesse sentido, para
Paulo, como para Mateus e Lucas, a cura e outros sinais maravilhosos são um
aspecto importante da pregação do evangelho.
Em conclusão, então, a cura pode ser compreendida como parte tanto da
salvação como do evangelho, Mas precisamos de ser cautelosos na compreensão do
que queremos dizer quando afirmamos isto. O cerne do evangelho é que Cristo
morreu pelos nossos pecados. A cura dos nossos corpos pode ocorrer como um sinal
que confirma a verdade dessa mensagem, mas a cura é apenas garantida em última
análise como parte da nossa salvação, quando Jesus voltar segunda vez.

NOTAS
(1) sōzō é usada no sentido de ser-se curado ou «ficar são» em Mateus 9:21-
22; Marcos 5:23, 28, 34; 10:52; Lucas 8:36, 48, 50; 17:19; 18:42; João 11:12; Actos
4:9; 14:9; Tiago 5:15.
(2) Parr, J. N., «Divine Healing», Springfield, GPH, 1955, p. 26.
(3) Ver Carson, D. A., «Exegetical Fallacies»¸Grand Rapids, Baker, 1984, p. 62.
Cf. a crítica por Barr do Dicionário Teológico de Kittel.
Barr, J., «The Semantics of Biblical Language», Oxford, OUP, 1961, pp. 206-
262.
(4) Para pormenores do uso de s z no Grego clássico, ver Thesis, p. 207
(5) Ver Capítulo 18. Ver também o esquema da p. 111.
(6) Ao dizer isto, não estou a sugerir que não faz sentido que a cura possa ser
compreendida como parte da salvação. Simplesmente quero dizer que não podemos
reivindicá-la agora da mesma maneira que podemos esperar o perdão imediato dos
nossos pecados. Contudo, Paulo diz-nos que a redenção do corpo é algo de que ainda
estamos à espera (Romanos 8:23). Em certo sentido a nossa salvação só estará
completa quando Jesus regressar, sendo então que todas as promessas de Deus em
termos de cura serão cumpridas. Em sentido lato, portanto, a cura é
indubitavelmente parte da nossa salvação.
(7) Bruce, F. F., Gospel artigo no «New Dictionary of Theology», Leicester,
IVP, 1988, pp. 278-279. N.B. Bruce não inclui o ponto 6. Acrescentei-o porque a
definição do evangelho parece incompleta sem ele.
(8) Em justificação da minha rejeição da perspectiva largamente defendida de
que «cumprir o evangelho» significa que Paulo o pregou em todas as províncias entre
Jerusalém e o Ilírico, ver Thesis, p. 220.
(9) Paulo resume em 1 Coríntios 15:1-4 a mensagem do evangelho que pregou,
dizendo:
Também vos notifico o evangelho que já vos tenho anunciado... que Cristo
morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras e que foi sepultado e que
ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras.
Os milagres que ele realizou foram um acompanhamento dessa mensagem e
serviram para confirmar a sua verdade.
CAPÍTULO TREZE

Cura e Fé

Ao ler o Novo Testamento não podemos deixar de notar uma ligação muito
óbvia entre a cura e a fé. Como vimos na Primeira Parte, há várias ocasiões em que
Jesus diz; A tua fé te salvou e na sua cidade natal sucedeu que não pôde fazer
qualquer milagre por causa da incredulidade que ali encontrou (Marcos 6:5-6).
À primeira vista, pode parecer que todos podem ser curados, bastando para
isso terem fé suficiente e se uma pessoa não for curada deve ser por lhe faltar fé.
Contudo, ao examinarmos o Novo Testamento com mais cuidado, descobrimos que
de modo nenhum as coisas são assim tão simples. Embora em algumas passagens a
cura pareça estar dependente da fé da pessoa doente, noutras a fé é executada
por um amigo ou familiar do doente. Na realidade, em alguns casos a fé nem sequer
é mencionada!
Neste capítulo, iremos considerar essas passagens em que a fé é mencionada
em ligação com a cura e procuraremos aprender que lições podemos obter dos
exemplos que nos são dados no Novo Testamento. Lidaremos com o tema da
seguinte forma:

• Casos em que o doente tem fé para ser curado


• Casos em que mais alguém tem fé para a cura
• Lições gerais sobre a fé.

Casos em que o doente tem fé para ser curado

Há vários exemplos no Novo Testamento em que é a fé do doente que resulta


na sua cura. Indicamos os seguintes:

• A mulher com uma hemorragia interna


• O leproso agradecido
• Os dois cegos
• Bartimeu
• O coxo de Listra
Iremos considerar cada um destes sucintamente, tendo presente que já
analisámos os dois primeiros com algum pormenor (1)
A história da mulher com uma hemorragia interna encontra-se em Mateus
9:18-22, Marcos 5:24-34; Lucas 8:43-48. Em cada evangelho o relato é muito
semelhante (embora o de Mateus seja de algum modo mais curto) e todos registam
Jesus a dizer à mulher: A tua fé te curou (Mateus 9:22; Marcos 5:34; Lucas 8:48).
De facto, nos três evangelhos esta afirmação constitui o clímax da história e é,
portanto, altamente significativa.
Não pode haver dúvida de que não foi a fé de mais ninguém que a curou, nem
mesmo a fé de Jesus, pois a princípio não sabia quem lhe tocara. Contudo, é
importante notar que, embora Jesus diga que a fé dela a curou, a cura é também
atribuída ao poder de Jesus (Marcos 5:30; Lucas 8:46). Talvez pudéssemos dizer
que o poder de Jesus foi a causa directa da cura da mulher e a fé dela a causa
indirecta. Isto poderia significar que a fé traz o poder de Deus em operação ou,
talvez mais provável, que quando o poder de Deus está em acção, é a fé que se
apropria dele. De uma forma ou de outra, este é claramente um caso em que a fé do
doente resultou na sua cura.
Jesus usa exactamente as mesmas palavras (2) na história do leproso
agradecido, apenas registada em Lucas 17:11-19. No versículo 19, Ele diz: A tua fé
te salvou. Assim, é dito ao leproso agradecido que a sua fé o curou, mas que dizer
dos outros nove que não regressaram para agradecer? Há alguma prova de que eles
tinham fé? Quando discutimos anteriormente este caso, sugeri que devem ter tido
alguma fé para pedirem ajuda a Jesus. Além disso, antes de serem curados, Jesus
disse-lhes que se fossem apresentar ao sacerdote como sinal de terem ficado
curados. Mas é apenas na medida em que vão que são curados (v. 14). Isto indica
sem dúvida mais do que uma pequena fé por parte deles. Contudo, uma vez mais
vemos que a fé é a causa indirecta da cura. É a palavra de autoridade de Jesus a
causa directa.
Em Mateus 9:27-30, lemos acerca de dois cegos que seguiram Jesus a clamar:
Tem misericórdia de nós, Filho de David (v. 27). Depois, Jesus entra em casa e os
dois homens vão atrás d’Ele. Jesus pergunta: Crêem que sou capaz de vos curar? E
eles respondem: Sim, Senhor (v. 28). Jesus toca-lhes nos olhos e diz: Segundo a
vossa fé assim se vos faça (v. 29) e imediatamente a visão deles é restaurada (v.
30).
Este é um exemplo muito claro da fé do doente que resulta na sua cura. Isto é
expresso no seu pedido inicial de ajuda e no seu reconhecimento de quem Jesus é
(v. 27) (3), na sua determinação de seguirem Jesus até dentro de casa e na sua
confissão de que Jesus é capaz de os curar (v. 28). Não surpreende então que
Jesus se refira à sua fé, ao dizer: Segundo a vossa fé assim se vos faça. Aqui,
vemos um milagre realizado pela autoridade da palavra de Jesus e pelo poder do
Seu toque em resposta à fé dos doentes.
A história do cego Bartimeu (Marcos 10:46-52; Lucas 18:35-42) ensina-nos
lições similares. Ele também clama a Jesus e chama-Lhe Filho de David (Marcos
10:47) e quando a multidão o repreende, grita ainda com mais força. Então, Jesus
pára, chama Bartimeu e pergunta-lhe: Que queres que te faça?, ao que Bartimeu
responde: Rabi, quero ver (v. 51). Vai, diz Jesus, a tua fé te curou (v. 52) (4) e
Bartimeu acompanha Jesus ao longo da estrada.
Uma vez mais, vemos o reconhecimento de quem Jesus é, a determinação em
chegar até Ele e a fé nas Sua capacidade de realizar o milagre. Bartimeu é muito
específico a este respeito. Ele não pede apenas ajuda. Pede vista! Uma vez mais, é o
poder de Jesus que torna possível a cura, mas é a fé de Bartimeu que se apropria
desse poder.
A cura do coxo de Listra (Actos 14:8-10) é o exemplo final de caso em que é a
fé do doente que resulta na sua cura. Este homem era coxo de nascença e nunca
caminhara na vida (v. 8). Enquanto ouvia Paulo a pregar, Paulo viu que ele tinha fé
para ser curado (v. 9) e chamou-o. Levanta-te sobre os teus pés.
Perante isso, o homem dá um salto e começa a andar (v. 10). Este milagre
espantou tanto a multidão que todos pensaram que Paulo e Barnabé eram deuses.
A evidência da fé do homem é revelada na afirmação de que Paulo viu que ele
tinha fé para ser curado e no facto de ter posto essa fé em acção quando Paulo lhe
disse que se levantasse. Não há dúvida de que o homem recebeu fé enquanto
escutava Paulo a pregar as boas novas (cf. vv. 7 e 9), pois a fé vem por ouvir a
mensagem sobre Cristo (Romanos 10:17).
Isto conclui a nosso exame de passagens em que a cura é atribuída à fé da
pessoa doente. Já vimos que, embora em alguns casos as palavras A tua fé te curou
sejam usadas, a causa directa da cura é sempre o poder e a autoridade dadas ao
servo de Deus. É a fé do doente que se apropria do poder sarador. Como tal, sugeri
que a fé é a causa indirecta. Ao dizer isto, não desejo minimizar a importância da
fé, mas antes a sugerir que a fé em si mesma pode não ser suficiente se o poder de
Deus não estiver em acção. Veremos o mesmo princípio em aplicação ao
considerarmos na secção seguinte o caso em que a cura resulta da fé de alguém e
não do doente.

Casos em que mais alguém tem fé para a cura

Talvez seja surpreendente descobrir que o Novo Testamento de facto parece


registar mais casos de curas que resultam da fé dos outros do que aquelas que
provêm da fé dos próprios doentes. Isto é evidente nas seguintes passagens:
• A cura do criado do centurião
• A cura do paralítico
• A mulher cananeia e sua filha
• O pai de um rapaz endemoninhado
• O coxo na porta Formosa do Templo
• A versão de Marcos da Grande Comissão
• A oração dos anciãos

Já considerámos com algum pormenor o caso da cura do criado do centurião


5
( ). Notámos que Jesus se admira com a fé do centurião que acreditava que Jesus
não só podia curar mas também curar à distância (Mateus 8:8)! Basta dizer uma
palavra e o meu criado ficará curado! Isso é de facto fé! Ele reconhece que Jesus é
um homem sob autoridade divina. Compreende que para ter autoridade a pessoa
deve estar primeiro sob autoridade. Vimos que Jesus podia fazer as coisas
miraculosas que realizava porque vivia a plenitude da Sua vida sob a autoridade de
Seu Pai.
Esta história é importante ao considerarmos a ligação entre fé e cura, não
apenas porque é a fé do centurião, mas a fé do seu criado doente, que resulta na
cura, mas também porque sublinha o que vimos na última secção. Foi a palavra de
autoridade de Jesus a causa directa da cura. Foi a autoridade de Jesus que deu fé
ao centurião e foi a fé deste que motivou Jesus a dizer a palavra de autoridade que
causou a cura.
A cura do paralítico (Mateus 9:1-8; Marcos 2:12-12; Lucas 5:17-26) é
também uma cura que já considerámos com algum pormenor (6). Salientámos que
este foi outro caso em que não foi o doente, mas os amigos que tomaram a iniciativa
e exerceram fé em seu favor (Lucas 5:18, 20). Vimos também que, antes de curar o
homem, Jesus se refere a si próprio, usando o título messiânico de Filho do Homem
(v. 24), o que sublinha de novo a importância da autoridade de Jesus como a causa
directa da cura. E a afirmação de Lucas no versículo 17 do mesmo capítulo de que o
poder do Senhor estava presente para curar os doentes indica certamente que
posso ter razão ao sugerir que a fé em si não é suficiente para produzir um milagre
se o poder sarador de Deus não estiver em acção. A cura miraculosa na Bíblia não é
cura de fé, mas cura divina!
Isso leva-nos ao caso da mulher cananeia e sua filha (Mateus 15:21-28).
Como a cura do servo do centurião, a pessoa que faz o pedido é Gentia e a pessoa
doente não está presente quando Jesus realiza a cura. Para além do facto de ser a
mulher que tem fé para a cura da filha, é também digno de nota que, como em
diversas outras passagens que consideramos. Jesus é tratado pelo título messiânico
de Filho de David. Além disso, a mulher insiste com o seu pedido apesar da recusa
inicial de Jesus em lhe responder (v. 23). Esta persistência impressiona tanto Jesus
que acaba por dizer: Mulher, grande é a tua fé! O teu pedido te é concedido e a
filha é curada instantaneamente (v. 28). É Deus quem cura, mas Ele cura em
resposta à fé persistente.
O relato do modo como o pai de um rapaz endemoninhado veio a Jesus é
registado em Mateus 17:14-21 e Marcos 9:14-29. Juntando os dois relatos, parece
que o rapaz tinha um espírito mau que o levava a apresentar sintomas de epilepsia e
que também o deixava surdo e mudo. O pai do rapaz viera ter com os discípulos de
Jesus, mas eles foram, incapazes de expulsar o espírito. Quando os discípulos
perguntaram a Jesus a razão dessa incapacidade, Jesus respondeu:

Por causa da vossa pouca fé, porque, em verdade vos digo que se tiverdes fé
como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá – e há-
de passar e nada vos será impossível. (Mateus 17:20)

No relato de Marcos, contudo, Jesus diz: Este tipo de demónios só sai pela
oração (Marcos 9:29). Claro que não há contradição porque tanto Mateus como
Marcos incluem pormenores que o outro não apresenta. Talvez a sugestão seja que é
apenas através da oração que recebemos a fé necessária para um tal milagre. Esta
compreensão estaria em completa harmonia com o que já dissemos sobre a
necessidade de se estar sob autoridade. A oração não consiste apenas em falarmos
com Deus. A sua finalidade é ser uma conversa bidireccional! Foi por passar tempo
com Seu Pai que Jesus sabia o que Ele queria que fizesse. E quando temos a certeza
de saber o que Deus quer que façamos, então temos fé!
Mas Marcos também inclui mais do que a conversa entre o pai do rapaz e
Jesus, o que Mateus faz. Em Marcos, o pai diz: Se tu podes fazer alguma coisa, tem
compaixão de nós e ajuda-nos. Jesus respondeu: Se tu podes crer, tudo é possível
ao que crê. E logo o pai do rapaz disse: Creio, Senhor, ajuda a minha incredulidade
(Marcos 9:22-24). Então Jesus expulsou o espírito mau (vv. 25-27).
Então, em tudo isto, que podemos aprender sobre a relação entre fé e cura?
Em Mateus, parece que, se os discípulos tivessem tido fé suficiente – mesmo fé do
tamanho de um grão de mostarda – poderiam ter expulsado o demónio. Em Marcos,
aprendemos que, embora Jesus procure ver se o pai do rapaz tinha fé, realiza o
milagre apesar da sua fé limitada. Talvez o importante não seja quem tem a fé, mas
que haja alguém com ela. Neste caso, era Jesus que, através da Sua comunhão com
o Pai em oração, sabia o que Deus queria que Ele fizesse. Esse conhecimento deu-
Lhe a fé para fazer o que mais ninguém fora capaz.
Já discutimos com algum pormenor a cura do coxo da porta Formosa do
templo (7). Tanto quanto nos interessa, a relação entre fé e cura, Pedro declara em
Actos 3:16 que o homem foi curado pela fé no nome de Jesus. Já vimos que o nome
de Jesus não é uma fórmula mágica pela qual obtemos tudo quanto queremos. Pelo
contrário, refere-se à autoridade de Jesus, pelo que fazer algo em Seu nome
significa fazê-lo com autoridade. Só podemos fazer algo no Seu nome quando
sabemos que temos a Sua autoridade para agir. Pedro foi capaz de curar o coxo pela
fé no nome de Jesus porque ele já sabia que tinha autoridade para tanto – O que
tenho, isso te dou (v. 6). É pequena a sugestão de que o coxo tivesse alguma fé.
Antes de Pedro lhe falar, não estava à espera de cura. Apenas pediu esmola. Claro,
provavelmente necessitou de alguma fé para começar a andar, mas é-nos dito que
foi Pedro quem o ergueu e que os seus pés e artelhos se fortaleceram (v. 7) antes
de começar a caminhar. A partir daqui torna-se claro que a maioria, se não toda a
fé, foi exercitada por Pedro. Nem sempre é adequado dizer aos doentes que para
serem curados têm de ter fé. Por vezes, somos nós quem tem de a ter por eles.
Isto é confirmado na versão de Marcos da Grande Comissão (Marcos 16:15-
seg.), em que Jesus diz: Estes sinais seguirão os que crerem... porão as mãos sobre
os doentes e os curarão. Aqui, é evidente que são os que pregam o evangelho que
devem crer e impor as mãos sobre os doentes. De modo semelhante, em Tiago 5, é a
oração dos anciãos que é a oração oferecida em fé. Não há menção de o doente
precisar de exercitar fé.
Então, do que já vimos até agora torna-se claro que embora a fé esteja
intimamente relacionada com a cura no Novo Testamento, nem sempre é a fé do
doente que faz ocorrer a cura. Nos exemplos que analisámos, é em geral daquele
que traz o pedido que se espera que tenha fé. Pode ser o doente ou os que trazem o
doente. Isso significa que se uma pessoa doente não for curada, não é
necessariamente o resultado da sua falta de fé. Precisamos de ter muita cautela
para não culpar os doentes por falta de fé quando não são curados. Pode ser que a
falha esteja em nós. Na verdade, a manifestação do poder de Deus pode ser
limitada pela incredulidade de toda a comunidade. Mesmo Jesus, quando se dirigiu à
sua cidade natal, não pôde realizar qualquer milagre ali (Marcos 6:5) por causa da
sua falta de fé (Mateus 13:58).
Finalmente, antes de analisarmos alguns princípios gerais que o Novo
Testamento ensina em relação à fé, precisamos de recordar mais uma lição
importante que aprendemos as passagens que acabámos de examinar. Vimos que é
Deus quem cura, não a fé. Embora a fé seja a causa indirecta da cura, é o poder de
Deus a causa directa. Quando o poder sarador de Deus está presente, é a fé que se
apropria dele.
Lições gerais sobre a fé

Ao concluirmos este capítulo sobre a relação entre fé e cura, é importante


considerarmos sucintamente alguns princípios gerais básicos que o Novo
Testamento ensina sobre a fé. Isso porque não é apenas a cura que exige a nossa
fé, uma vez que toda a nossa vida como cristãos é uma vida de fé (8). De facto, sem
fé é impossível agradar a Deus (Hebreus 11:6). Para ilustrar estes princípios,
analisaremos mais duas passagens do NT que nos ajudarão a compreender este
assunto vital.
Começaremos por considerar o relato de Jesus a acalmar a tempestade,
conforme nos conta Marcos 4:25-41. Aqui, vemos que, quando Jesus e os Seus
discípulos estavam a atravessar o lago num barco, se levantou uma tempestade
terrível. As ondas chocavam contra o barco que por pouco não era tragado. Os
discípulos que conheciam bem o lago perceberam o perigo que enfrentavam. A
menos que Jesus fizesse alguma coisa, era grande a possibilidade de todos se
afogarem. Mas Jesus estava a dormir! Acordando-O, disseram-Lhe: Mestre, não Te
importas que nos afoguemos? (v. 38). Então Jesus levantou-se, repreendeu o vento
e as ondas e disse: Aquieta-te! Sossega! E de imediato foi a calma completa. Então,
Jesus disse aos discípulos: Porque tendes medo? Ainda não tendes fé? (v. 40).
Esta história bem conhecida é um exemplo maravilhoso do modo como Jesus
operou um milagre apesar da falta de fé dos discípulos. Mostra-nos que a relação
entre fé e o poder divino de operação de milagres não é tão linear como alguns
sugerem. Está incorrecto dizer que se tivermos fé suficiente receberemos um
milagre e que se não obtivermos um milagre, então não temos fé suficiente. Aqui, os
discípulos não tinham fé, mas Jesus mesmo assim operou um milagre!
Mas porque é que Ele agiu assim? Ele sabia claramente o impacte que
produziria neles, levando-os a perguntar: Quem é este que até o vento e as ondas
lhe obedecem? (v. 41). Foi mais uma revelação para eles em relação à Sua identidade
e isso foi importante por causa do propósito que Ele tinha para as suas vidas. Ele já
os havia escolhido como apóstolos (Marcos 3:14) e não iria permitir que as suas
vidas acabassem ali. Muitos anos depois, quando esse propósito fora cumprido,
muitos desses discípulos morreram pela sua fé em Jesus! Nessa altura, não houve
milagre de libertação! Apenas o seu galardão eterno no céu! Deus opera milagres em
nosso favor por causa do Seu propósito soberano nas nossas vidas, apesar da
fraqueza da nossa fé.
Mais ainda, Jesus amava os Seus discípulos (João 13:1). Como devem ter-se
sentido gratos por Ele não ter dito: Desculpem, amigos. Se tivessem tido mais fé,
eu poderia ter operado um milagre em vosso favor. Mas assim, por muito que eu vos
ame, o barco vai afundar-se e por causa da vossa incredulidade, irão afogar-se!”
Não! O amor de Deus por nós é maior que a nossa falta de fé! Os nossos olhos
devem estar colocados n’Ele, não na nossa fé! A ligação entre fé e milagres não é
tão simples como alguns sugerem.
Por fim, podemos aprender lições mais importantes sobre a fé a partir de
Hebreus 10 e 11. Estes capítulos mostram-nos que:

• Viver pela fé significa imensos problemas


• Por vezes escapamos pela fé, noutras ocasiões suportamos pela fé
• A fé vem por ouvir Deus falar

Viver pela fé significa imensos problemas

O facto de podermos esperar imensos problemas na vida da fé é deixado claro


em Hebreus 10:32-38, onde lemos:

32 Lembrai-vos, porém, dos dias passados em que, depois de serdes


iluminados, suportastes grande combate de aflições. 33 Em parte fostes
feitos espectáculo com vitupérios e tribulações... 34 Porque com gozo
permitistes a espoliação dos vossos bens, sabendo que em vós mesmos tendes
nos céus uma possessão melhor e permanente. 35 Não rejeiteis, pois, a vossa
confiança que tem grande e avultado galardão. 36 Porque necessitais de
paciência, para que, depois de haverdes feito a vontade de Deus, possais
alcançar a promessa. 37 Porque ainda um poucochinho de tempo e o que há-de
vir virá e não tardará. 38 Mas o justo viverá da fé. (itálico meu)

Há pessoas que têm dificuldade com passagens como esta porque sentem que
se tiverem fé suficiente todos os nossos problemas serão resolvidos, mas essa é
uma visão unilateral da fé. É verdade que por vezes a fé é o meio de escape dos
nossos problemas mas é também o meio de os suportar. Habacuque, o homem a quem
Deus disse pela primeira vez «o justo viverá pela fé» (Habacuque 2:4) certamente
aprendeu esta lição. Descobriu a verdade de que mesmo quando tudo parece contra
nós, é possível pela fé regozijar-nos no Senhor, porque no final da sua profecia, diz
ele:

Porquanto, ainda que a figueira não floresça,


nem haja fruto na vide,
o produto da oliveira minta
e os campos não produzam mantimentos,
as ovelhas da malhada sejam arrebatadas
e nos currais não haja vacas,
todavia eu me alegrarei no Senhor;
exultarei no Deus da minha salvação (Habacuque 32:17-18)

Que fé espantosa! A fé nem sempre nos livra dos nossos problemas. Por vezes,
liberta-nos neles! Em todas estas coisas, somos mais do que vencedores por aquele
que nos amou (Romanos 8:37). Esta foi a grande lição aprendida por alguns dos
heróis da fé em Hebreus 11. Sim, houve aqueles que pela fé

venceram reinos, praticaram a justiça, alcançaram promessas, fecharam as


bocas dos leões, apagaram a força do fogo, escaparam do fio da espada, da
fraqueza tiraram forças, na batalha se esforçaram, puseram em fuga os
exércitos dos estranhos, receberam pela ressurreição os seus mortos (vv. 33-
35)

mas houve também aqueles que

foram torturados, não aceitando o seu Livramento. experimentaram escárnios


e açoites e até cadeias e prisões. Foram apedrejados, serrados, mortos ao fio
da espada... (35-37).

O versículo 39 diz-nos que todos estes foram louvados pela sua fé. Não apenas
os que escaparam à espada (v. 34), mas os que foram mortos por ela (v. 37). Foram
todos heróis da fé. Mas isso levanta uma questão importante. Quando enfrentamos
um problema, como saber o que fazer? Devemos procurar escapar-lhe ou enfrentá-
lo e suportá-lo?

Por vezes, escapamos pela fé, outras suportamos pela fé

A resposta a esta questão é que com mais frequência, não temos de saber! A
escolha é feita por nós. As nossas vidas estão nas mãos de Deus e Ele sabe o que é
melhor. Sabemos que em todas as coisas Ele está sempre a trabalhar para o nosso
bem, porque O amamos (Romanos 8:28) e, mais importante ainda, porque Ele nos
ama (vv. 35-39). A nossa fé está no próprio Deus, não no que Ele fará por nós!
Podemos confiar n’Ele por causa do que Ele é, sabendo que nada nos pode separar do
Seu amor. Se realmente confiamos n’Ele, não precisamos de saber o que Ele vai
fazer!
Quando a minha mulher conduz o carro e eu estou no banco do passageiro, não
preciso de questionar as suas acções – Porque estás a acelerar agora? Porque estás
a usar outra mudança? Porque estás a travar? Porque não travas? Como ela é uma
condutora cuidadosa e conscienciosa, posso confiar que me levará ao nosso destino.
E Deus não prometeu levar-nos em segurança ao nosso destino? Com muita
frequência, não precisamos de saber o que fazer no meio dos nossos problemas.
Basta saber que Ele nos fará passar a salvo.
Mas se temos necessidade de saber, Deus é muito capaz de nos dizer. Há
ocasiões em que os nosso problemas são tais que, quer os suportemos, quer
escapemos deles, precisamos de uma palavra do Senhor para nos dar a fé de que
necessitamos. Como Paulo nos diz em Romanos 10:17:

a fé vem por ouvir a mensagem e a mensagem é ouvida pela palavra de Deus


(itálico meu)

A fé vem por ouvir Deus falar

O contexto do versículo que acabámos de citar de Romanos 10 é a necessidade


de as pessoas ouvirem o evangelho antes de poderem crer e serem salvas. A fé para
a salvação vem por ouvirem a palavra, a mensagem do evangelho. Contudo, um
princípio mais geral está a ser ensinado aqui. Cremos em muitas coisas porque as
ouvimos. É o mesmo com as coisas de Deus. A Bíblia é a palavra de Deus. Revela-nos
como Ele é. Diz-nos que Ele é omnipotente, nada é demasiado difícil para Ele. Ao
ouvirmos a verdade sobre Deus, conforme está revelado na Sua palavra, a fé é
criada no nosso coração.
Mas a Bíblia não é a única forma que Deus usa para nos falar. Por exemplo, Ele
fala-nos por revelação do Espírito Santo através dos dons espirituais, como a
profecia (9) e de muitas outras formas. Deus pode dar-nos a conhecer a Sua
vontade em qualquer situação. Na verdade, há momentos na nossa experiência, em
que precisamos de uma «palavra» clara deste tipo se queremos ter fé para a
situação em que nos encontramos. Isto é especialmente verdade quando
enfrentamos casos de doença ou incapacidade de particular dificuldade.
Ao crescermos na vida da fé, de fé em fé, pode haver momentos em que a
necessidade que enfrentamos seja demasiado grande para o nosso presente nível de
fé. É então que só podemos verdadeiramente crer se soubermos que ouvimos a voz
de Deus. Parece ter sido o que aconteceu com Noé. Hebreus 11:7 diz-nos que pela
fé Noé construiu uma arca. Mas Génesis 65, que relata a história, não faz
referência directa à fé de Noé. Contudo, diz-nos que Noé caminhava com Deus (v.
9) e que Deus falou a Noé (v. 13) dizendo-lhe para construir uma arca. E Noé fez
tudo tal qual Deus lhe ordenara (v. 22). Começou com uma relação. Isto levou à
revelação. E à obediência de Noé a essa revelação de Deus, o Novo Testamento
chama fé.
Em conclusão, então, precisamos de compreender que os princípios que o Novo
Testamento ensina em relação à fé em geral são também aplicáveis ao tema da cura.
Já vimos que a vida da fé não significa que sejamos imunes aos problemas – e isso
inclui a doença. Por vezes, precisamos da fé para suportar um problema em vez da
fé para escapar a ele. Precisamos que a nossa vida seja vivida sob a autoridade de
Deus e de ouvir o que Ele tem a dizer em cada situação que enfrentamos. A fé não é
crer que Deus irá fazer alguma coisa. É confiar n’Ele. Precisamos de tirar os olhos
da nossa fé e fixá-los n’Ele. Mesmo quando achamos difícil crer, o Seu amor por nós
é maior do que a nossa falta de fé. Deus tem um propósito para a nossa vida e Ele
fá-lo-á cumprir. Precisamos de confiar que Ele o fará.

NOTAS
(1) Ver Capítulo 4 e Capítulo 5.
(2) Embora a tradução da Nova Versão Internacional varie ligeiramente, a
frase grega é exactamente a mesma – he pistis sou sesoken se.
(3) Ao chamar Filho de David a Jesus, estavam a usar um título messiânico.
(4) De novo, o Grego é he pistis sou sesoken se.
(5) Ver Capítulo 3.
(6) Ver Capítulo 5.
(7) Ver Capítulo 8.
(8) Para mais ensino sobre este assunto, ver Petts, D., Body Builders - Gifts to
make God’s people grow, Mattersey, Mattersey Hall, 2002, pp, 1286-206.
(9) Para mais ensino sobre todo o tema dos dons espirituais, incluindo a
profecia e a fé, ver: Petts, D.,Body Builders – Gifts to make God’s people grow,
Mattersey, Mattersey Hall, 2002.
CAPÍTULO CATORZE

Cura como dom espiritual

Nos últimos capítulos, tentei sugerir que ter fé para a cura não é tanto uma
questão de reivindicar uma promessa ou de crer que Jesus morreu tanto pelas
nossas doenças como pelos nossos pecados, como aprender a ouvir o que Deus está a
dizer em cada situação. A fé vem por ouvir Deus. Curar no nome de Jesus significa
agir com a Sua autoridade, porque sabemos que O ouvimos sobre a questão ou,
dizendo de outro modo, quando ministramos aos doentes, precisamos de ser guiados
pelo Espírito Santo.
O papel do Espírito Santo na operação de cura é, portanto, claramente de
grande importância. Assim, neste capítulo, iremos considerar o significado do facto
de Paulo se referir à cura como um dom espiritual (1 Coríntios 12:10), isto é, um dom
dado pelo Espírito Santo. Iremos examinar a natureza e propósito dos dons
espirituais (1) em geral e procurar mostrar que o que aprendemos se aplica à cura
em particular. Também iremos considerar como os dons espirituais podem ser
recebidos e aplicar isso também à cura. Assim, iremos analisar:

• A natureza dos dons espirituais


• O propósito dos dons espirituais
• Receber os dons espirituais

A natureza dos dons espirituais

Nesta secção, iremos abordar três palavras que Paulo usa para descrever
estes dons, pois isso irá ajudar-nos a compreender de modo mais claro qual a sua
natureza exacta. Ele diz que eles são:

• Dons
• Espirituais
• Manifestações

São dons

Em 1 Coríntios 12:4, lemos que há diferentes tipos de dons, mas o mesmo


Espírito. A palavra grega usada aqui é charismata (2) que vem do termo charis, que
significa «graça». A ênfase é que são dons que Deus nos deu por causa da Sua
graça. Embora os dons aqui referidos sejam descritos como espirituais (v. 1), a
palavra charisma é também usada para se referir a dons naturais. Em 1 Coríntios
7:7, por exemplo, Paulo chama charisma ao celibato e em Romanos 12:6-8 os
charismata que ele indica parecem ser uma mistura de dons espirituais, como a
profecia e dons naturais, como a contribuição para as necessidades dos outros (3).
Um outro uso interessante da palavra charismata encontra-se em Romanos
6:23, em que a palavra se refere ao dom de Deus que é a vida eterna em Cristo
Jesus nosso Senhor. Sabemos que pelo nosso mérito humano pessoal não podemos
ganhar este dom. Mas recebemo-lo graciosamente pela fé. É um charisma. Provém
da graça de Deus. E tal como não podemos ganhar a nossa salvação, temos de
reconhecer também que não podemos ganhar os dons espirituais. Eles não nos são
dados por causa da nossa rectidão ou santidade. São-nos dados por causa da graça
de Deus.
Os Coríntios são um claro exemplo deste princípio. Não lhes faltavam os dons
espirituais (1 Coríntios 1:7) mas não porque fossem particularmente santos. Paulo
chama-os carnais (3:3) por causa das suas invejas e dissensões, repreende-os por
tolerarem imoralidades (5:1-12) e acusa-os de se embebedarem na Ceia do Senhor
(11:21). O seu exemplo ilustra com muita clareza que os dons espirituais não são
dados por causa do mérito humano mas por causa da maravilhosa graça de Deus.
Ora, daqui, podemos aprender duas lições muito importantes.

1. Não devemos assumir que pelo facto de uma pessoa ser usada no exercício
dos dons espirituais seja mais santa que outros cristãos. Infelizmente, o
oposto é por vezes verdade.
2. Não devemos deixar de procurar os dons espirituais por termos consciência
das nossas falhas pessoais. Claro que devemos procurar levar vidas santas,
mas nunca seremos suficientemente santos para merecer os dons de Deus.
Se Ele foi suficientemente gracioso para nos salvar dos pecados e para nos
baptizar com o Seu Espírito, então certamente não reterá qualquer dom
que nos abençoe ou nos faça uma bênção. Todos os Seus dons provêm da
Sua graça.

Como é que isto se aplica à cura?

O que se aplica aos dons espirituais em geral aplica-se aos dons de cura em
particular. Assim, os que são usados na cura não são necessariamente melhores
cristãos que os que não são. Se queremos que Deus nos use na cura, não devemos
deixar de Lhe pedir, só porque nos sentimos indignos. A cura, como todos os outros
dons desta lista, vem da graça de Deus. Tal como a nossa salvação, não podemos
consegui-lo pelo mérito humano. Contudo, devemos recordar que o Espírito Santo dá
estes dons conforme Ele determina.
Mais ainda, em 1 Coríntios 12:10, a palavra charismata, usada no versículo 4 em
relação aos dons em geral é especificamente repetida em ligação com a cura. E
encontra-se no plural. Não é o dom de cura, mas dons de cura. Quase com toda a
certeza, isso significa que cada cura individual é um dom. Assim, por exemplo, em
Actos 3, Pedro teve um dom de cura para o coxo da porta Formosa do templo. Isto
indica fortemente que as pessoas com estes dons não podem curar à sua vontade,
mas apenas conforme o Espírito Santo determina em cada caso individual. Não se
trata de orar pelo doente mas de curar em nome de Jesus.

São espirituais

Mas os dons indicados em 1 Coríntios 1 não são apenas dons. São dons
espirituais (v. 1). Aqui, Paulo descreve-os como pneumatika. Esta palavra vem do
grego pneuma que significa espírito. São diversas as cambiantes do seu significado,
mas o contexto indica claramente que os dons de que Paulo fala vêm do próprio
Espírito Santo (4). É isso que os distingue dos charismata naturais mencionados
noutros lados. Estes charismata particulares não são naturais. São também
pneumatika. São espirituais.
É também forte a sugestão de serem sobrenaturais. Falar em línguas, por
exemplo, não pode presumivelmente referir-se à capacidade linguística natural. É
antes, como Actos 2 deixa perfeitamente claro, a capacidade de falar uma língua
nunca antes aprendida, através da inspiração sobrenatural do Espírito Santo. Este
ponto é também apoiado por Hebreus 2:4, em que lemos que o próprio Deus
testificou da validade da mensagem do evangelho por sinais, maravilhas e diversos
milagres e dons do Espírito Santo distribuídos segundo a Sua vontade. A menção
dos dons do Espírito a par dos fenómenos sobrenaturais, como sinais e maravilhas e
milagres, indica claramente que os próprios dons são sobrenaturais. Daqui, podemos
aprender mais duas importantes lições:

1. Se os dons são sobrenaturais, não há limite ao que Deus pode realizar


através deles. Através dos dons do Espírito, a igreja de Jesus Cristo tem à
sua disposição o poder de operação de milagres do Deus vivo e verdadeiro!
2. Igualmente maravilhoso, como os dons são sobrenaturais, não há limite
quanto às pessoas a quem Deus os possa dar. Podem ser exercidos por
fracos e fortes, ricos e pobres, capazes e menos capazes, jovens e velhos.
Não são recebidos segundo a nossa capacidade natural. São revestimentos
sobrenaturais vindos do Espírito

Como é que isto se aplica à cura?

A cura, como todos os outros dons da lista, vem do Espírito. E é o Espírito que
determina a quem dará os dons. Mas nenhuma doença é demasiado difícil para Deus
curar. Sejam quais forem as circunstâncias naturais, este é um dom sobrenatural. E
Deus pode usar quem Ele escolher na cura. Pedro é descrito como um homem inculto
e vulgar (Actos 4:13). No entanto, guiado pelo Espírito, realizou milagres poderosos.
Smith Wigglesworth, o canalizador de Bradford, era um homem relativamente
inculto, mas Deus usou-o de forma poderosa na cura – chegando mesmo a
ressuscitar mortos.

São manifestações

Finalmente, em 1 Coríntios 12:7, os dons são chamados manifestações. A


palavra grega phanerosis, usada aqui, significa literalmente «uma manifestação
clara, uma evidência exterior de um princípio patente». Tal como a luz que brilha a
partir de uma lâmpada é uma evidência exterior da electricidade em funcionamento
no seu interior, assim os dons espirituais são uma manifestação exterior do Espírito
Santo em acção dentro de nós. Somos como a lâmpada. O Espírito Santo é como a
electricidade. Os dons são a «luz» que brilha a partir de nós em resultado da sua
actividade. Podemos falar uma língua que nunca aprendemos por causa do Espírito
omnisciente que vive dentro de nós. Os milagres são possíveis porque o
Omnipotente enche o nosso ser. Uma vez mais, podemos aprender aqui duas lições:

1. Os dons espirituais não caem dos céus aos trambolhões! Vêm de Deus que
vive dentro de nós. Estão dentro do nosso alcance!
2. Mas se estamos à espera que eles se manifestem, precisamos de nos
manter cheios do Espírito. Para a luz brilhar, é preciso que a electricidade
seja mantida a fluir.
Como é que isto se aplica à cura?

Se formos cheios do Espírito (5), todos os dons estarão potencialmente dentro


de nós, porque o Dador está dentro de nós, mas é o Espírito que decide quem usar.
Isso significa que em certo sentido o poder sarador de Deus já está dentro de nós.
Contudo, o Espírito Santo escolhe quem vai usar. Precisamos de nos manter cheios
com o Espírito e sermos guiados por Ele para ouvir o que está a dizer.

O propósito dos dons espirituais

Em 1 Coríntios, a ênfase de Paulo é que o principal propósito dos dons


espirituais é a edificação da igreja. Diz ele que a manifestação do Espírito é dada
para o bem comum (1 Coríntios 12:7), Na verdade, o valor de um dom é determinado
pela medida em que edifica a igreja, porque O que profetiza é maior do que o que
fala línguas, a menos que interprete para que a igreja possa ser edificada (1
Coríntios 14:5).
Mas isso não significa que a edificação seja o único propósito destes dons. O
ensino de Paulo deve ser compreendido dentro do contexto dos problemas da igreja
de Corinto. É claro que na igreja estavam a usar em excesso dons como falar em
línguas, que se destinam em primeiro lugar à edificação pessoal, em privado, como
meio de orar com o nosso espírito (1 Coríntios 14:4, 14-seg.) Ao fazerem isso,
estavam a usar um dom genuíno com um propósito errado. É por isso que Paulo
salienta a importância de usar os dons para o bem dos outros.
Assim, embora no contexto da igreja local Paulo diga que o propósito principal
destes dons seja edificar a igreja, é importante reparar também que os dons
espirituais são de grande importância no evangelismo. Quando Jesus ordenou aos
Seus discípulos que fossem por todo o mundo e pregassem o evangelho a toda a
criatura, prometeu-lhes que sinais miraculosos acompanhariam a pregação da
palavra (Marcos 16:17-18). Marcos 16:20 diz-nos que isso de facto ocorreu e o Livro
de Actos continua a história com um catálogo de milagres que confirmaram a
mensagem dos primeiros discípulos. O próprio Deus testificou com sinais,
maravilhas e vários milagres e dons do Espírito Santo distribuídos segundo a Sua
vontade (Hebreus 2:4).
Paulo podia falar do que Cristo realizara através de si levando os Gentios a
obedecerem a Deus, pelo que ele dissera e fizera pelo poder de sinais e milagres
através do poder do Espírito (6), acrescentando: Assim, desde Jerusalém até ao
Ilírico, proclamou todo o evangelho de Cristo, sugerindo desse modo que o
evangelho não é «pregado todo» se não for atestado por sinais vindos do céu (7).
Como é que isto se aplica à cura?

Precisamos de orar e de crer, como os discípulos de Actos 4:29-31, que Deus


estenda a Sua mão para curar e que sinais e maravilhas se façam no nome de Jesus
para que os servos de Deus possam falar a Sua palavra com ousadia! Os dons
espirituais tornam o evangelismo eficaz.
Temos de compreender que «igreja» é mais do que quando estamos a realizar
um culto. Alguns dons, como a profecia, são usados em grande medida quando os
crentes estiverem reunidos na igreja, mas é provável que outros dons, como a cura,
se destinem a ser usados com sinais de confirmação do evangelho junto dos
incrédulos. É maior a probabilidade da ocorrência de milagres de cura no contexto
do evangelismo.

Receber os dons espirituais

Então, estes dons espirituais são de grande importância tanto para o


evangelismo como para a edificação da igreja. Portanto, é essencial que
compreendamos como podem ser recebidos, mas devemos ser cautelosos para não
dizer mais do que aquilo que a Bíblia diz. Já dissemos que precisamos de deixar o
Espírito agir, pois é Ele que distribui os dons, conforme a Sua vontade (1 Coríntios
12:11)

Uma atitude correcta

Ao procurar os dons espirituais é obviamente importante que tenhamos uma


atitude correcta em relação a eles. Temos de compreender o que estamos a pedir.
Temos de recordar que são dons que surgem em resultado da graça de Deus. Não
podemos ganhar o direito de possuí-los. Devemos também recordar que são dons
espirituais que provêm do Espírito Santo. Portanto, temos de nos manter cheios do
Espírito. Estando cheios, o Espírito irá manifestar-se através de nós de uma forma
que Lhe agrada.
Devemos ter presente o propósito com que os dons são concedidos. Devemos
examinar os nossos motivos, interrogando-nos sobre a razão exacta de desejarmos
recebê-los. Se recordarmos que os dons são manifestações espirituais do Espírito
Santo dentro de nós, dados com o propósito de confirmar a mensagem do evangelho
ou para a edificação dos outros cristãos, podemos esperar que Ele nos dê o que
sabe ser melhor. Porém, embora os dons sejam distribuídos conforme a
determinação do Espírito Santo, não deixamos de ter responsabilidades no assunto.
Os dons na são um extra opcional pelo qual possamos orar se por acaso estivermos
interessados! É-nos dito que devemos desejá-los com zelo! (8)

Acções correctas

E, claro, se realmente desejamos algo com zelo, faremos tudo o que pudermos
para o conseguir! Assim, o que podemos fazer para receber os dons espirituais?
Primeiro, Paulo diz-nos que devemos orar. Os que falam línguas são instruídos a orar
pelo dom de interpretação (9) e embora seja apenas um dom específico que está a
ser referido aqui, parece que se a oração é encorajada como meio de obtenção de
um dom, deve ser também adequado orar pelos outros.
Segundo, devemos exercitar a fé. As línguas e a cura por exemplo, são
prometidos aos que crerem (Marcos 16:17, 18) e os que profetizam devem fazê-lo
proporcionalmente à sua fé (Romanos 12:6). Devemos não só pedir os dons em
oração, mas também crer que Deus no-los dará, recordando que a fé sem obras é vã
e que se de facto cremos, iremos agir. Contudo, como vimos no último capítulo, a fé
vem por ouvirmos Deus. Se de facto queremos que Ele nos use no evangelismo ou na
edificação da igreja, devemos desejar os dons, pedir os dons, crer nos dons e
avançar em fé para os usarmos conforme Deus nos guia e nos capacita.

Como é que isto se aplica à cura?

Devemos desejar com zelo que Deus nos use na cura. Devemos orar para que
Ele o faça. Devemos manter-nos cheios do Espírito e esperar que Ele nos guie nos
use. Ao fazê-lo, devemos agir em fé, mesmo que Ele opte por não nos usar
poderosamente na cura (porque esse dom sobrenatural é dado apenas a alguns), não
há razão para não podermos ser usados orando pelos doentes. Devemos ser,
contudo, cautelosos, para não ordenar a sua cura (como Pedro fez em Actos 3, por
exemplo), a menos que tenhamos a certeza de que ouvimos o Senhor nesse sentido.
Mas falaremos mais disto na Terceira Parte.
NOTAS
(1) Para mais ensino pormenorizado, ver Petts, D., Body Builders – Gifts to
make God’s People Grow, Mattersey, Mattersey Hall, 2002, 290pp.
(2) Esta é a forma do plural. O singular é charisma.
(3) Daqui, torna-se evidente que nem todos os charismata são sobrenaturais.
Contudo, parece que os indicados em 1 Coríntios 12:8-10 o são. O contexto sugere-o
e o facto de Paulo também se referir a estes dons particulares como pneumatika (v.
1) pode indicar igualmente isso.
(4) Os dons chamam-se pneumatika porque vêm do próprio Pneuma (Espírito).
Ver também vv. 7-11 que demonstram que os dons vêm do Espírito Santo.
(5) Para mais informação sobre o significado de ser-se cheio com o Espírito,
ver: Petts, D., The Holy Spirit – an Introduction, Mattersey, Mattersey Hall, 1998.
(6) Romanos 15:18-19.
(7) Para uma defesa desta interpretação (apesar dos comentários), consultar
Thesis, p. 220.
(8) 1 Coríntios 12:31; 14:1, 12.
(9) 1 Coríntios 14: 13.
CAPÍTULO QUINZE

Cristãos doentes no Novo Testamento

No Capítulo Treze, vimos que, embora haja uma íntima ligação entre fé e cura
no Novo Testamento, não podemos concluir automaticamente que se um Cristão não
for curado isso se deve à existência de pecado na sua vida ou à falta de fé
suficiente. As coisas não são assim tão simples. Além disso, esse tipo de ensino
pode levar a extremos perigosos como a recusa em consultar o médico quando se
está gravemente doente. Por exemplo, qualquer doutrina que ensine que Deus nos
garantiu a cura como Cristãos, bastando para isso reivindicá-la pela fé implica que é
desnecessário (e talvez até errado) os Cristãs recorreram à assistência médica
quando doentes (1).
Contudo, esta não é uma posição adoptada pelos escritores do Novo
Testamento que, apesar das muitas curas miraculosas registadas, também fazem
referência a Cristãos doentes e que não receberam imediata cura sobrenatural.
Entre eles, contam-se:

• Paulo
• Trófimo
• Epafrodito
• Timóteo

Iremos considerar cada um à vez, antes de analisarmos o caso de alguns dos


Coríntios, que estavam doentes por causa do seu pecado.

A Fraqueza e o Espinho na Carne de Paulo

Em Gálatas 4:13, Paulo diz: E vós sabeis que primeiro vos anunciei o Evangelho,
estando em fraqueza da carne. A expressão grega traduzida por fraqueza é
semelhante, embora não a mesma, que a frase um espinho na carne que ele usa em 2
Coríntios 12:7. Embora à primeira vista seja tentador assumir que estas duas
expressões se referem à mesma coisa, certamente não podemos ter a certeza, pelo
que lidaremos com cada uma delas em separado,

A doença de Paulo (Gálatas 4:13)

Muitos comentadores concordam que a «fraqueza» de Paulo era uma doença,


embora haja pouca concordância quanto à sua natureza (2). Outros, contudo,
compreendem que a fraqueza de Paulo resultou da perseguição descrita em Actos
14:19-seg (3). Mas mesmo que as perseguições de Paulo sejam encaradas como a
causa da sua fraqueza, isso não elimina a possibilidade de a fraqueza ser uma
doença. Uma perseguição intensa como a que Paulo enfrentou podia certamente
levar à doença. Esta possibilidade é reconhecida por Longenecker, que sugeriu:

Talvez essa doença fosse o resultado de uma ou mais aflições mencionadas em


2 Coríntios 11:23-25, aprisionamentos frequentes, graves flagelações (4).

Mas fosse qual fosse a causa da fraqueza de Paulo, os seus efeitos eram
inegavelmente físicos, como o uso da palavra carne neste contexto claramente
indica (5). Qualquer das interpretações encaixa-se no contexto e seria insensato
ser-se dogmático quanto à natureza precisa dessa fraqueza ou doença. Em suma,
não podemos ter a certeza de ser uma doença ou uma fraqueza (ou vice-versa).
Mas isso é importante? É para os que ensinam que Jesus morreu tanto pelas
nossas doenças como pelos nossos pecados e reivindicam pela fé «promessas» como
Mateus 8:17 e 1 Pedro 2:24 (6). Digo isto porque a palavra grega astheneia
(fraqueza ou doença) é usada tanto em Mateus 8:17 como em Gálatas 4:13, pelo que
defender que em Gálatas astheneia se refere a uma fraqueza e não a uma doença
não consegue resolver a dificuldade porque em Mateus 8:17, diz-se que Cristo levou
as nossas astheneias! Assim, se este versículo pode ser usado como os defensores
da doutrina dizem que deve ser usado (7), então podemos perguntar porque razão
Paulo não reivindicou a libertação da sua astheneia. Só podemos assumir que ele
ignorava a doutrina!

O espinho na carne de Paulo (2 Coríntios 12:7)

Este versículo surge no contexto da defesa paulina do seu apostolado contra


as afirmações daqueles a quem ele chama falsos apóstolos (11:13). Refere-se aos
seus abundantes trabalhos e frequentes perseguições (11:23-33) como prova. Nos
versículos de abertura do Capítulo 12, Paulo fala com relutância (v. 5) das visões e
revelações (v. 1) que recebeu e informa os seus leitores de que é por causa delas
que lhe foi dado um espinho na carne, um mensageiro de Satanás, para evitar que se
exaltasse (v. 7). Mas como entender este espinho? Era ou não uma doença?

O Espinho de Paulo – Não é uma Doença

A perspectiva de que o espinho de Paulo não era uma doença baseia-se em


quatro factos:
1. A frase mensageiro de Satanás poderia referie-se a uma pessoa, uma vez
que, como Martin salientou (8), parece que Paulo não usa a palavra grega
aggelos (mensageiro) a não ser para se referir a uma pessoa.
2. O espinho pode ser entendido como pessoal, com base no facto de os
Capítulos 10-13 descreverem a luta de Paulo contra os seus adversários.
3. O uso da palavra grega kolaphizein (tormento) pode ser assumido como
estando a referir-se a ser espancado na cabeça
4. Na Septuaginta, a palavra grega skolops (espinho) está associada a
adversários de Israel (Números 33:55; Ezequiel 23:24).

O Espinho de Paulo – Possivelmente uma doença

Contudo, apesar desta evidência, a perspectiva de o espinho de Paulo ser uma


doença não deve ser rejeitada de todo pelas seguintes razões:

1. Satanás está associado à doença na tradição bíblica (Job 2:5; Lucas 13:16)
e não parece desadequado que uma doença seja descrita como um
mensageiro de Satanás.
2. Nem todas as dificuldades que Paulo enfrenta nos capítulos 10-13 têm de
ter sido infligidas através de uma pessoa (9) e, portanto, o espinho não tem
de ser entendido como referido a uma pessoa.
3. Na verdade, é questionável se Paulo teria pedido ao Senhor que o desviasse
dele (12:8) se o espinho se referisse a uma oposição humana (10).

Mas tudo isto é extremamente inconclusivo e como Martin comenta, «O


significado exacto do espinho permanece esquivo. Ninguém jamais deu uma
interpretação que seja aceite por todos» (11).
Contudo, esta incerteza não significa que esta passagem nada nos pode
ensinar. Talvez essa nossa incerteza sobre o espinho seja providencial, pois deixa
aberto um campo maior de aplicação às nossas necessidades pessoais (12). O espinho
de Paulo representa claramente sofrimento de alguma forma e, seja qual for a sua
natureza precisa, há lições a aprender que podem ser de grande valor para os
cristãos em circunstâncias muito diferentes da de Paulo e estarem a passar por
alguma forma de sofrimento para o qual as lições do espinho de Paulo podem
parecer inteiramente adequadas. Assim, mesmo que o espinho de Paulo não seja uma
doença – e na minha perspectiva provavelmente não era – o princípio ensinado na
passagem pode certamente ser aplicado em casos em que a doença de um cristão
não foi curada em resposta à oração persistente e de fé.
Mas tal posição é impensável para os que defendem que a cura das doenças
pode ser sempre reivindicada imediatamente porque está incluída na expiação. Aqui,
como sucede na passagem de Gálatas 4:13, é fundamental para os que defendem
essa perspectiva que se demonstre que Paulo não esteve doente. Contudo, mais uma
vez (13), o problema está no uso que Paulo faz de astheneia, porque se Cristo de
facto levou as nossas astheneias (Mateus 8:17) como pode Paulo dizer que se gloria
nelas (2 Coríntios 12:9)?

Trófimo, Epafrodito e Timóteo

A evidência da doença de Trófimo, Epafrodito e Timóteo prova-se com


facilidade.

• 2 Timóteo 4:20 diz-nos que Paulo deixou Trófimo em Mileto


• Filipenses 2:27 revela que Epafrodito estivera extremamente doente,
quase à morte, mas que o Senhor tivera misericórdia dele.
• 1 Timóteo 5:23 refere-se às frequentes enfermidades de Timóteo e
recomenda-lhe a ingestão de um pouco de vinho como remédio.

Epafrodito

A passagem de Filipenses 2:25-30 mostra-nos, acima de tudo, que Epafrodito


era um servo do Senhor altamente respeitado. Não há qualquer sugestão de haver
pecado na sua vida de falta de fé! Paulo descreve-o como meu irmão, cooperador,
companheiro nos combates, que é também vosso mensageiro (v. 25). Diz aos
Filipenses que o recebam no Senhor com grande gozo e honra (v. 29). E isso porque
ele arriscara a vida em favor da obra de Cristo e quase morrera (v. 30).
Contudo, a passagem deixa absolutamente claro que este extraordinário servo
do Senhor ficou muito doente – quase a ponto de morrer (Filipenses 2:27). Claro
que Epafrodito foi curado, mas as palavras Mas Deus teve misericórdia dele (v. 27
são muito significativas. Longe de sugerirem que Epafrodito reivindicou a sua cura,
estas palavras indicam claramente que a origem da sua cura foi a graciosa
misericórdia de Deus.
Nada mais se diz sobre a causa da cura. Não há sugestão de Paulo, cujo poder
de operação de milagres é bem conhecida tanto do livro de Actos como em
passagens como Romanos 15:18-20, ter ordenado a recuperação do seu amigo. Não
há referência à fé, à oração, à imposição de mãos ou à unção com azeite. Antes,
Paulo encara a recuperação de Epafrodito como uma intervenção directa da
misericórdia de Deus.
Mais ainda, é significativo que Epafrodito não foi curado de imediato. Contudo,
se ficar curado fosse tão simples como reivindicar a cura pela fé, então por que
razão Paulo não ordenou de imediato a sua cura ou porque é que o próprio
Epafrodito não se levantou em fé logo que ficou doente? Claro que não há uma
resposta fácil a tais perguntas, mas o que é claro neste caso de Epafrodito é que
bons cristãos podem ficar gravemente doentes e não serem sempre curados de
imediato.

Trófimo

2 Timóteo 4:20 limita-se a declarar que Paulo deixou Trófimo doente em


Mileto. Mas se a cura está prontamente disponível e pode ser reivindicada pela fé a
«promessa» de que Cristo já levou as nossas doenças, então porque é que Trófimo
não a reivindicou? Sem dúvida que se Paulo cresse em tal doutrina, Trófimo, como
um dos seus companheiros teria sabido também da sua existência. Contudo, parece
que não, porque Paulo deixou-o doente em Mileto.
Alguns têm sugerido que talvez o próprio Trófimo fosse culpado da sua doença
ou simplesmente lhe faltasse fé para ser curado (14). Mas esta é uma assunção sem
qualquer base! Como Donald Gee salientou:

Os que querem, de uma forma ou de outra, encaixar neste versículo sobre a


doença de Trófimo a sua própria doutrina de cura divina são tentados a
afirmar que lhe DEVE ter faltado fé. Mas essa é a pior forma possível de
interpretar as Escrituras. Não há nada em lado algum, na afirmação ou no seu
contexto que sugira que houvesse em Trófimo algo de espiritual ou moralmente
errado (15).

E a explicação alternativa de que Trófimo pode ter sido curado mais tarde
(com o corolário de nem todas as curas serem instantâneas) (16) não é de facto
melhor. Primeiro, não há afirmação de Trófimo ter sido curado mais tarde e, em
segundo lugar, a defesa de que nem todas as curas são de facto instantâneas
também nada explica. Se a doença já foi realmente levada por Cristo e a cura pode
ser, em consequência, reivindicada imediatamente pela fé (17), não há necessidade
de qualquer cura retardada!
Assim a afirmação sucinta de que Paulo deixou Trófimo doente em Mileto
implica que nem Trófimo nem Paulo exigiram a sua cura. Na verdade, segundo Paulo,
a cura, como outros dons espirituais, é conforme a determinação do próprio Espírito
(1 Coríntios 12:8-11).
Timóteo

A incapacidade de Paulo usar os seus dons de cura sempre que o desejasse


torna-se patente na sua recomendação de que Timóteo inferisse um pouco de vinho
por causa do seu estômago e das suas frequentes enfermidades (1 Timóteo 5:23).
Tal como Trófimo, se a doença fosse por culpa de Timóteo, poderíamos ter
esperado que Paulo o afirmasse e o encorajasse a rectificar o problema. Em vez
disso, oferece-lhe uma solução médica. Se Paulo acreditasse que a cura podia ser
sempre reivindicada pela fé, então porque não encorajou Timóteo a agir em
conformidade? Mas é perfeitamente claro que Paulo nem acreditava nem ensinava
tal doutrina!
Portanto, ao considerar os casos de Paulo, Trófimo, Epafrodito e Timóteo,
mostrámos que.

• Servos de Deus altamente respeitados podem adoecer, por vezes com


gravidade.
• A doença nem sempre é provocada por falta de fé ou por causa de pecado.
• A cura nem sempre é imediata
• Embora creiamos firmemente no poder de Deus e na Sua disponibilidade
para curar, nem sempre é possível reivindicar a cura (18).

Mas agora, tendo analisado os quatro cristãos que adoeceram, embora não por
causa de pecado ou incredulidade, podemos finalmente virar a nossa atenção para
um grupo de cristãos que estiveram doentes por causa do seu pecado – os Coríntios
referidos em 1 Coríntios 11:30.

Os Coríntios

A situação em Corinto era extremamente grave. Havia divisões na igreja,


toleravam imoralidade e havia desordem na sua adoração. O seu comportamento na
Ceia do Senhor era apenas um exemplo desta situação. Na primitiva igreja, a Ceia
do Senhor era mais do que um moderno Culto de Ceia. Era uma refeição que os
Cristãos partilhavam juntos, mas em Corinto, havia abuso e alguns começavam a
comer sem esperar pelos outros. Alguns chegavam mesmo a embriagar-se enquanto
outros ficavam com fome (1 Coríntios 11:21). Foi por causa deste comportamento
que Paulo escreveu:

27 Portanto, qualquer que comer este pão ou beber o cálice do Senhor


indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor.
28 Examine-se, pois, o homem a si mesmo e assim coma deste pão e beba deste
cálice.
29 Porque o que come e bebe indignamente come e bebe para sua própria
condenação, não discernindo o corpo do Senhor.
30 Por causa disto, há entre vós muitos fracos e doentes e muitos que
dormem.

Os versículos 29 e 30 indicam que muitos dos Coríntios estavam doentes


porque não discerniam o corpo do Senhor. Mas a que se refere aqui o corpo do
Senhor? T. L. Osborn, evangelista da cura e zeloso defensor da doutrina de que
Jesus morreu tanto pelas nossas doenças como pelos nossos pecados, defende que,
tal como o sangue de Cristo foi derramado para o perdão do pecado, assim o Seu
corpo foi moído para a cura da doença. Então, Osborn crê que a falha dos Coríntios
em discernirem ou reconhecerem o corpo (v. 29) e a doença daí resultante (v. 30)
provinham de uma falta de compreensão de que o corpo de Cristo foi desfeito para
a cura das doenças.

Quando Jesus disse: «Este pão que é partido por vós representa o meu corpo»,
Ele esperava que compreendêssemos que foi no Seu corpo que as chagas cruéis
pelas quais fomos sarados, foram colocadas. Discernir correctamente o Seu
corpo (itálico meu) traz libertação das nossas doenças ao discernirmos que o
Seu sangue derramado removerá os nossos pecados (19).

Contudo, é improvável que Paulo pretendesse que a frase não discernindo o


corpo do Senhor devesse ser compreendida desse modo.
Primeiro, a perspectiva de Osborn estabelece uma enorme distinção entre o
corpo e o sangue de Cristo na Ceia do Senhor, entre comer e beber. A doença, diz
ele, deve-se à falha do ensino que tem sido praticado sobre o sangue de Cristo. O
sangue de Cristo foi derramado para o perdão do pecado, o Seu corpo foi desfeito
para a cura da doença. E é porque não compreendemos isto que adoecemos. Com
isto, Osborn infere que se os Coríntios tivessem compreendido que o corpo de
Cristo foi desfeito pelas suas doenças (como o Seu sangue foi derramado pelos seus
pecados), não teriam adoecido.
Mas a condenação a que Paulo se refere (que no versículo 30 resulta no facto
de alguns adoecerem e até morrerem) é a consequência de comerem e beberem. O
que come ou bebe indignamente (v. 27) é culpado. É por isso que devemos examinar-
nos a nós próprios antes de comermos e bebermos (v. 28) e quem não discerne
correctamente o corpo (v. 29) come e bebe para sua condenação. Assim, para Paulo,
os Coríntios estavam doentes por causa da maneira como bebiam e comiam. Isto
invalida claramente a perspectiva de Osborn de que é a falha em discernir
correctamente o corpo do Senhor (distinto do Seu sangue) que resulta em doença.
Em segundo lugar, a posição de Osborn assume que Paulo está a falar do pão da
comunhão representando o corpo partido de Cristo quando ele se refere ao corpo
no versículo 29. Contudo, não é de modo nenhum claro que seja esta a interpretação
correcta. Embora o pão da Ceia do Senhor simbolize o corpo de Cristo desfeito na
cruz, sabemos que Paulo também compreende que a igreja é o corpo de Cristo.
Assim, Gordon Fee comenta:

A Ceia do Senhor não é apenas uma refeição; é a refeição, em que numa mesa
vulgar com um pão e um cálice vulgares proclamam que através da morte de
Cristo eram um corpo, o corpo de Cristo... Aqui, devem «discernir/reconhecer
como distinto» o corpo de Cristo, do qual são todas parte e em quem são todos
dons uns dos outros. Não discernir o corpo desta forma, abusando dos que
pertencem a um estatuto social inferior é incorrer na condenação de Deus (20)

Com quase toda a certeza, Fee está certo nisto. Pelo seu comportamento
indecoroso (descrito nos vv. 17-22), os Coríntios não estavam a discernir o
significado da morte de Cristo, simbolizada nos emblemas da Ceia do Senhor. O pão
da comunhão é no mínimo um lembrete de que o corpo de Cristo foi despedaçado na
cruz e a mensagem da cruz fora a resposta de Paulo às divisões na igreja coríntia no
capítulo de abertura da epístola (1:10-24).
Assim, comportar-se na Ceia do Senhor de uma forma que criava e perpetuava
divisão era não reconhecer o corpo. Se Cristo morrera pela igreja, então o
comportamento dos Coríntios revelava uma grave falta de compreensão relativa
tanto à cruz como à igreja. Ao mesmo tempo, não estavam a discernir o propósito do
corpo despedaçado de Cristo na cruz e a santidade da igreja, o corpo pelo qual Ele
morrera. Entendido deste modo, reconhecer o corpo não tem nada a ver com
compreender que o corpo de Cristo foi despedaçado pelas nossas doenças.
Isto leva-nos à terceira e de longe mais grave dificuldade da perspectiva de
Osborn, que sugere que os Coríntios estavam doentes porque não compreendiam
uma doutrina (que a cura física está incluída na expiação). O contexto deixa
perfeitamente claro que foi o comportamento dos Coríntios, não a sua compreensão
que estava em falta. A doença mencionada no versículo 30 é um resultado da
condenação (v. 29) por um Cristão comer e beber, não reconhecendo o corpo. Esta
condenação vê-se no versículo 32 como uma disciplina da parte do Senhor. A forma
de o evitar (vv. 33-34) é esperarem uns pelos outros e, se alguém estiver com fome,
comer em casa. E isto com o propósito expresso de não vos reunirdes para
condenação.
Estes dois últimos versículos que estão assim claramente ligados ao versículo
29 levam-nos ao tema com o qual a passagem foi introduzida nos versículos 17-22. O
versículo 21 descreve o comportamento indigno dos Coríntios na Ceia do Senhor. É
neste contexto que comer e beber indignamente (v. 27) devem ser seguramente
compreendidos e, de modo semelhante, quem come e bebe para sua própria
condenação, não discernindo o corpo (v. 29).
Em suma, a condenação por não reconhecer o corpo do Senhor era a doença.
Esta condenação podia ser evitada (v. 34), modificando o comportamento indigno na
Ceia do Senhor descrito no versículo 21. Portanto, é a esse comportamento que a
frase não discernindo o corpo deve estar claramente relacionada e a sugestão de
Osborn de que os Coríntios estavam doentes porque não compreendiam que a cura
estava na expiação é totalmente não convincente.
Por fim, é questionável que a interpretação de Osborn, que pressupõe a
doutrina de que Jesus morreu pelas nossas doenças seja apoiada pela evidência
geral do Novo Testamento. É evidente que a doutrina de que Jesus morreu tanto
pelas doenças como pelo pecado não é de modo nenhum explícita em 1 Coríntios
11:29-30. Na verdade, se compreendi correctamente a passagem, nem sequer está
implícita. E, mesmo que aceitemos poder estar implícita nesta passagem, iria
certamente exigir mais evidência e estar explícita noutros pontos. Deve
demonstrar-se pelo menos que a doutrina era compreendida e crida por alguns
cristãos no tempo em que Paulo escreveu aos Coríntios,
Contudo, para convencimento total, deve mostrar-se que a doutrina era
conhecida e crida por Paulo. Claro que os defensores da doutrina crêem que
versículos como Mateus 8:17, 1 Pedro 2:24 apoiam a doutrina, mas já demonstrei
que estes versículos quando sujeitos a uma exegese correcta, não apontam nesse
sentido. Se estiver correcto a este respeito, então não há provas de que tal
doutrina sequer existia ou estava prestes a emergir quando Paulo escreveu 1
Coríntios 11:29 e qualquer interpretação que veja a doutrina implícita neste
versículo deve ser claramente rejeitada.
Mas como é que tudo isto se aplica a nós hoje? Se compreendemos
correctamente que Paulo estava a dizer aos Coríntios que muitos deles estavam
doentes por não manterem um relacionamento correcto com os outros membros do
corpo de Cristo, então sem dívida há aqui um aviso para nós. Claro que não estou a
sugerir que todas as doenças resultam daqui. Nem estou a dizer que um mau
relacionamento provoca sempre doença. Mas se esta era a causa de doença de
muitos dos Coríntios, deve certamente ser possível que seja uma razão para muitas
das doenças hoje.
Por fim, ao dizer isto, não devemos esquecer as lições que aprendemos na
primeira parte deste capítulo. Só porque alguns cristãos adoeçam por causa do seu
pecado, isso não significa que suceda o mesmo a todos. Como já vimos, pessoas
justas como Paulo, Trófimo, Epafrodito e Timóteo por vezes adoeciam e pessoas
justas ainda hoje adoecem.

NOTAS
(1) Ver Thesis, pp. 14-18, 21, 24. Ver capítulos 2, 3 e 7.
(2) Foram sugeridos paludismo, epilepsia e deficiência visual. Ver Nota 10 da p.
271 de Thesis.
(3) E.g. Ridderbos, H. N., The Epistle of Paul to the Churches of Galatia, Grand
Rapids, Eerdmans, 1976, pp. 166-167.
(4) Longenecker, R. N., «Galatians», Dallas, Word, 1990, pp. 190-191
(5) O contexto não permite que carne seja entendida aqui no seu sentido ético.
(6) Ver, por exemplo os meus comentários em relação a Carrie Judd
Montgomery e A. B. Simpson nas pp. 18-24 de Thesis, esp. p. 19. Ver também pp.
34-37.
(7) E.g. Osborn, T. L., Healing the Sick, Tulsa, TLO Evangelistic Association,
1961, p. 48. Cf. Montgomery, C. J., The Prayer of Faith, Londres, Victory, 1930, pp.
41 e 47. Ver a minha discussão de Mateus 8:17 e as razões para rejeitar esta
afirmação, no Capítulo 4 de Thesis, esp. pp. 116-seg.
(8) Martin, R. P., 2 Coríntios, Waco Word, 1986, pp. 413-414.
(9) Ver, por exemplo, 2 Coríntios 11-23 (esp. v. 27)
(10) Martin, op. cit., p. 415.
(11) Ver Nota 29 de Thesis (pp. 273-274).
(12) Hughes, op. cit., p. 442.Ver também Barnett, The Message of 2
Corinthians, Leicester, IVP, 1988, p. 177
(13) Cf. os meus comentários na p. 254 de Thesis.
(14) Simpson e Jeter sugeriram isto. Ver: Simpson, A, B., The Gopel of Healing,
Londres, Morgan & Scott, 1995, pp. 63-64. Jeter, H., By His stripes, Sporingfield,
GPH, 1977, pp. 105-106.
(15) Gee, D., Trophimus I left Sick, Londres, Elim, 1952, p. 12.
(16) De novo, é o que Simpson e Jeter sugerem. Ver nota anterior
(17) Ver, por exemplo, a minha citação de Copeland, nas pp. 1-2 de Thesis,
(18) Como já sugeri, precisamos, como Jesus, de saber o que o Pai está a fazer.
É apenas quando estamos sujeitos à Sua autoridade e ouvimos a Sua voz que
podemos falar com a Sua autoridade e em Seu nome reivindicar ou ordenar a cura.
(19) Osborn, op. cit., p. 155
(20) Fee, G. D., The First Epistle to the Corinthians, Grand Rapids, Eerdmans,
1987, p. 564.
CAPÍTULO DEZASSEIS

Cura Médica

Apesar dos exemplos que considerámos no último capítulo dos respeitados


servos de Deus que adoeceram, há promessas indubitavelmente positivas de cura no
Novo Testamento, mas se não forem equilibradas e compreendidas à luz do ensino
geral da Bíblia, há sempre o perigo de abraçar extremos não bíblicos.
Um desses extremos é a crença de que recorrer ao uso da medicina indica uma
falta de fé. Um exemplo extraordinário desta posição é A. B. Simpson, um dos
primeiros expoentes da doutrina de que Jesus morreu tanto pelas nossas doenças
como pelos pecados. Na sua grande obra sobre o tema, The Gospel of Healing [O
Evangelho da Cura], publicada pela primeira vez em 1885, concluía que, se a cura
está na expiação de Cristo, então o uso de «meios» médicos deve ser rejeitado em
favor da cura divina:

Se essa é a forma de Deus curar, então outros métodos devem ser as formas
do homem e haverá algum risco em repudiar deliberadamente os primeiros em
favor dos últimos... para o filho de Deus obediente e confiante há a forma mais
excelente que a Sua Palavra receitou claramente (1).

E de novo:

Tendo ficado plenamente convencido pela Palavra de Deus, pela Vontade de


Deus e pela tua aceitação pessoal com Deus, ENTREGA-LHE AGORA O TEU
CORPO E REIVINDICA A SUA PROMESSA DE CURA no nome de Jesus, pela
simples fé... A partir desse momento, a dúvida deve ser encarada como
absolutamente fora de questão e até o simples pensamento de recorrer a
velhos “meios” é inadmissível. Claro que tal pessoa de imediato abandonará
todos os remédios e tratamento médico (itálico meu) (2).

Contudo, embora os primeiros proponentes da doutrina encorajassem a


rejeição do uso de remédios, em anos recentes os seus defensores têm sido mais
cuidadosos. Possivelmente por causa das implicações legais (em particular nos
Estados Unidos) e não por causa de uma mudança de convicções. Como Bruce Barron
acertadamente comentou, embora os principais proponentes da doutrina nunca
defendam o abandono dos cuidados médicos, os que ouvem que a cura está
disponível a todos os que a reivindicarem pela fé podem facilmente inferir isso (3).
Na verdade, qualquer que possa ser a posição declarada dos mestres da doutrina,
tem havido casos trágicos entre os seus seguidores por causa da rejeição dos
cuidados médicos.
Talvez o exemplo mais conhecido disto seja o caso do diabético de onze anos
Wesley Parker, cujos pais, crendo que Jesus morreu pelas doenças de Wesley,
deitaram fora a insulina, Recusando consultar um médico, observaram Wesley a
morrer em agonia. Mesmo então, na sua tentativa de exercer fé, planearam um
«culto de ressurreição» em vez de um funeral. Após o culto, foram detidos,
declarados culpados de abuso infantil e presos (4).
A par da rejeição dos cuidados médicos está a negação dos sintomas que pode
ser um procedimento igualmente arriscado. McConnell salienta que em doenças como
o cancro, cuja detecção precoce é directamente proporcional às taxas de cura, a
negação de sintomas pode ter consequências trágicas. Regista como médicos de
Tulsa lhe descreveram a frustração de tentarem graves doenças que podiam ter
sido prevenidas se tivessem sido diagnosticadas mais cedo. Um especialista
oncológico comentou que numa base semanal encontrou crentes que negavam os
sintomas de cancro (5).
McConnell também regista como uma mulher lhe descreveu os resultados de
seguir o ensino de negação da realidade de uma dor de garganta. Embora a sua dor
de garganta persistisse e piorasse, a ponto de ficar gravemente doente, persistiu
em não procurar os cuidados médicos. Quando por fim consultou o médico, a sua dor
de garganta transformara-se numa febre reumática em estado avançado. A sua
saúde e clareza mental foram permanentemente afectadas (6).
Estes exemplos chocantes deveriam alertar-nos para os extremos a que alguns
chegaram – sem dívida com sinceridade – por causa da sua compreensão das
promessas de Deus em curar. Mas a Bíblia adopta uma posição negativa em relação
ao uso da medicina. É nesta questão que devemos centrar agora a nossa atenção.
Iremos considerar:

• Passagens que possivelmente revelam uma atitude negativa.


• Passagens que revelam uma atitude positiva.

Passagens que possivelmente revelam uma atitude negativa.

No que diz respeito ao Velho Testamento, já considerámos o caso do rei Asa


que não procurou ajuda do Senhor, mas apenas dos médicos (2 Crónicas 16:12) (7).
Sugerimos que este versículo não devia ser considerado como significando que está
errado o povo de Deus procurar ajuda médica, mas antes que a falta de Asa foi ter
procurado ajuda apenas dos médicos e não a ajuda do Senhor. Isto, como veremos,
está certamente em harmonia com o que parece ser a atitude do Novo Testamento.
No Novo Testamento, Marcos 5:25-26 é talvez a referência mais negativa
em relação à profissão médica. Lucas limita-se a afirmar que, embora a mulher
tivesse gasto tudo quanto tinha nos médicos, nenhum deles conseguira curá-la
(Lucas 8:43). Marcos, contudo, enfatiza que ela sofrera às mãos dos médicos e em
vez de melhorar, na verdade piorara!
Mas a intenção de Marcos era criticar a profissão médica? Essa é sem dúvida
uma forma de compreender a sua afirmação mas não é de modo nenhum a única.
Uma segunda possibilidade é compreender que Marcos está a criticar os médicos
particulares que trataram a mulher mas sem condenar a profissão médica como um
todo. Em terceiro lugar, e na minha perspectiva preferencialmente, podemos
compreender que a intenção de Marcos era salientar a gravidade do problema da
mulher e assim enfatizar a grandeza do milagre que Jesus realizou. Afirmar que os
médicos falharam por completo num caso particular não é necessariamente
condenar a profissão médica como um todo. Em apoio desta perspectiva, Schweitzer
comenta:

É afirmado explicitamente que se esgotara a capacidade humana. Esta é uma


característica regular em histórias de milagres que em geral indicam a
gravidade da doença... e não diz nada sobre a atitude do Cristão face aos
médicos (8).

Mais ainda, a inclusão por Marcos da afirmação de Jesus de que os sãos não
precisam de médico mas os que estão doentes (Marcos 2:17) sugere fortemente que
a sua atitude para com a profissão médica em geral não era de modo nenhum hostil,
porque embora o dito seja usado para ilustrar uma verdade espiritual e defender o
facto de Jesus comer com os pecadores e publicanos (v. 16), o paralelo teria sido
ofensivo se desaprovasse a profissão médica (9)
Mas a profissão médica é condenada noutras partes do Novo Testamento?
Segundo John Nelson Parr (10), o uso de pharmakeia (traduzido por feitiçaria em
Gálatas 5:20 e Apocalipse 9:21; 18:23; 21:15) certamente indica uma tal condenação.
Parr argumenta que pharmakeia significa de facto «A aplicação ou uso de um
remédio, de um purgante, de um encantamento ou de um veneno» (11). Rejeita a
possibilidade de no Novo Testamento a palavra pode apresentar conotação de
feitiçaria porque acreditava que primariamente significa o uso de drogas e
distingue-se claramente do oculto porque o Novo Testamento usa outras palavras
para se referir à feitiçaria.
Assim, nas passagens referidas não é a feitiçaria (uma vez que para Parr
pharmakeia no Novo Testamento não significa feitiçaria) que é condenada, mas a
prática da medicina! Esta conclusão revela claramente uma grave falha de
compreensão da natureza da língua (12) e não dá espaço à variação do uso de uma
palavra segundo o contexto. Um erro similar actual pode ser assumir que a palavra
«droga» se refere sempre a narcóticos e nunca a um remédio, com base na assunção
falaciosa de que o escritor usaria a palavra «remédio» caso se referisse a um
remédio!
Além disso, é digno de nota que, apesar das contundentes implicações da
compreensão de Parr do significado de pharmakeia nas passagens referidas acima,
ele mais tarde altera a sua posição com o comentário seguinte:

É talvez necessário deixar claro que não condenamos os médicos porque não
vemos que o Salvador os condena e embora nunca recomendasse nem
aconselhasse ninguém a consultá-los, também não proibiu ninguém de o fazer,
nem criticou alguém por o ter feito. Temos de evitar entrar em extremos
fanáticos e não bíblicos (13).

Este comentário, parece-me, invalida de forma clara o seu anterior argumento


e leva naturalmente a uma consideração das passagens no Novo Testamento que
apresentam uma atitude positiva para com a medicina ou a profissão médica.

Passagens que revelam uma atitude positiva.

Já chamei a atenção para a afirmação de Jesus de que os sãos não precisam de


médico mas os que estão doentes (Mateus 9:12; Marcos 2:17; Lucas 5:31) e defendi
que tal afirmação de modo nenhum sugere hostilidade para com a profissão médica.
Na verdade, pode ser entendida razoavelmente como indicação de aprovação. No
mínimo, é um reconhecimento de uma necessidade.
A referência, encontrada apenas em Lucas, ao provérbio Médico, cura-te a ti
próprio (Lucas 4;23) é e usada por Harnack como prova do interesse especial de
Lucas pela profissão médica (14). É digno de nota que o uso do provérbio não indica
hostilidade para a capacidade do médico. Na verdade, acompanhando a compreensão
de que o próprio Lucas era médico (Colossenses 4:14), o uso da expressão indica
com quase toda a certeza aprovação.
Ainda mais interessante, contudo, é a dupla sugestão de Harnack de que Lucas
pode ter sido o médico de Paulo e que os seus conhecimentos médicos
complementaram os dons carismáticos de Paulo em curar os doentes de Malta e que
Lucas o acompanhou como seu médico pessoal. Na verdade, isto fazia parte do
propósito da sua presença com Paulo em Roma (Colossenses 4:14) (15). Apesar der
tudo, mesmo que esta sugestão seja de rejeitar por falta de provas conclusivas, o
simples uso da frase o amado médico claramente revela-se pelo menos como sendo
uma atitude positiva para com as suas capacidades médicas.
Mais ainda, a frase deve certamente indicar a possibilidade distinta de Lucas
ainda estar a praticar medicina, pois porque razão é referido como médico e não
como irmão? Mesmo que, como sugere Martin, Paulo comentasse a capacidade
médica de Lucas por ser tão invulgar (16), a visão de o Novo Testamento condenar a
prática da medicina deve ser rejeitada.
Por fim, é digno de nota que, pelo menos em três ocasiões, o Novo Testamento
de facto defende o uso de meios médicos. Um exemplo muito claro, a que já me
referi, é a recomendação de Paulo a Timóteo para beber vinho por causa dos seus
problemas de estômago (17). Um outro exemplo é a instrução dada à igreja de
Laodiceia para comprar colírio para os olhos para poderem ver (18) e embora o uso
aqui seja claramente metafórico, parece muito improvável que tal metáfora fosse
utilizada se o uso de meios médicos fosse desaprovado.
Contudo, um outro exemplo é o uso de óleo e vinho na parábola do Bom
Samaritano (Lucas 10:29-37). No v. 33, o Samaritano apieda-se do ferido e no v. 34
trata-lhe as feridas, ungindo-as com azeite e vinho. Depois, leva-o para uma
estalagem, onde toma conta dele. Pelo contexto, é claro que a intenção do azeite e
do vinho era medicinal e Harnack cita Hipócrates para mostrar que «os médicos da
Antiguidade usavam azeite e vinho não apenas internamente, mas também como
aplicação externa» (19). E Jesus ordena aos seus seguidores para irem e fazerem o
mesmo (v. 37). Uma tal exortação teria sido sem dúvida inadequada se a Sua
intenção fosse que os Seus seguidores não deveriam usar meios médicos na cura dos
doentes.

A hodierna atitude correcta

Do que já vimos, não há uma evidência clara quer no Velho quer no Novo
Testamento de uma atitude negativa para com o uso da medicina. De facto, há
indicações de uma atitude positiva. Isto sugere que, como Cristãos, hoje também
devemos ser positivos a este respeito e gratos a Deus pelos avanços da ciência
médica que têm sido feitos desde os tempos bíblicos.
Mas dado que o uso de remédios e da profissão médica é adequado para um
Cristão, a questão surge quanto a saber quando devemos recorrer a ela, tendo em
mente que Deus prometeu curar-nos. A este respeito, é importante perceber que
não se trata de uma questão de Deus ou a medicina. Pode e provavelmente deve ser
uma questão de ambos. Como Cristãos, devemos procurar o Senhor em tudo, pelo
que, ao contrário de Asa, não devemos consultar os médicos e esquecer o Senhor.
Por outro lado, temos de recordar que Deus trabalha tanto através do natural como
do sobrenatural. Parece estultícia pedir a Deus um milagre quando há uma solução
natural simples.
Uma boa ilustração deste princípio é a provisão miraculosa de Deus ao
alimentar os Israelitas quando viajavam pelo deserto. Êxodo 16 revela como Deus
providenciou o «maná« como alimento para o Seu povo. Houve sempre o suficiente
para cada dia e no dia anterior ao sábado havia suficiente para dois dias! E esta
provisão durou ao longo dos quarenta anos que estiveram no deserto.

...até que entraram em terra habitada; comeram maná que chegarem a aos
termos da terra de Canaã (v. 35) (20).

Isto é confirmado em Josué 5:12:

E cessou o maná no dia seguinte, depois que comeram do trigo da terra do ano
antecedente; e os filhos de Israel não tiveram mais maná; porém, no mesmo ano
comeram das novidades da terra de Canaã.

A lição é muito clara: Deus tem muitas formas naturais de satisfazer as


necessidades do Seu povo. É no momento em que as nossas necessidades
ultrapassam os nossos recursos naturais que podemos esperar que Deus intervenha
sobrenaturalmente. Deus não opera milagres quando não há necessidade deles.
Ora, se aplicarmos este princípio à cura, estaremos prontos a responder à
pergunta se os cristãos doentes devem recorrer aos meios médicos para a sua
saúde e, caso afirmativo, em que fase – antes ou depois da oração? A resposta é
clara. Como devemos orar sem cessar (1 Tessalonicenses 5:17), devemos orar assim
que ficarmos doentes e continuar a orar até ficarmos melhor.
Mas isso não significa que não devamos consultar um médico ou tomar
remédios. Na verdade, em muitos casos, parece que é através dos meios médicos
que o Senhor opta por nos curar. Porém, onde as capacidades humanas são
insuficientes, como cristãos temos a garantia de que mesmo quando algo é
impossível ao homem, todas as coisas são possíveis a Deus. É talvez nesta fase que a
passagem de Tiago 5:14-seg. se torna mais relevante.
NOTAS
(1) Simpson, A. N., The Gospel of Healing, Londres, Morgan and Scott, 1915, p.
68
(2) Ibid., pp. 88-89
(3) Barron, B., The Health and Wealth Gospel, Downer’s Grove, IVP, 1988, p.
129.
(4) Toda a história da trágica morte de Wesley é contada pelo pai em: Parker,
L., We let our son die, Eugene Oregon, Harvest House, 1980.
(5) McConnell, D. R., A Different Gospel – a Historical and Biblical Approach to
the Modern Faith Movement. Peabody, Hendrickson, 1988, pp. 165 e 169.
(6) Ibid., p. 169.
(7) Ver Capítulo 2.
(8) Schweitzer, E., The Good News according to Mark, ET D. H. Madvig,
Londres, SPCK, 1971, p. 117. Cf. Ibid p. 20. Cf. Alexander, J. A., The Gospel
according to Mark, Londres, Banner of Truth, 1960, p. 127, Anderson, H., The
Gospel of Mark, Grand Rapids, Eerdmans, 1976, p. 152.
(9) Um argumento semelhante pode ser aplicado às atitudes de Mateus e Lucas
em relação à profissão médica (para não mencionar a de Jesus) – cf. Mateus 9:12;
Lucas 5:31.
(10) Parr, op. cit., pp. 46-50, mas cf. pp., 61-62.
(11) ibid, pp. 44-60.
(12) Cf. a minha anterior crítica feita a Parr em relação à sua compreensão de
s z . Ver Cap. 12
(13) Parr, op., cirt., p. 61.
(14) Harnack, A., Luke the Physician, Londres, Williams and Norgate, 1907, p.
17.
(15) Para a minha rejeição desta perspectiva, ver Thesis, pp. 266-seg.
(16) Martin R. P., Colossians and Philemon, Londres, Oliphants, 1974, p. 135.
(17) 1 Timóteo 5:23. Ver a minha discussão na p. 261 de Thesis.
(18) Apocalipse 3:18.
(19) Harnack, op. ct., p. 190. Hobart, op. ct., pp. 28-seg.
(20) Canaã, naturalmente, era a Terra Prometida, uma terra que manava leite e
mel. Havia abundante provisão natural. Já não precisavam de alimento sobrenatural.
CAPÍTULO DEZASSETE

Cura e sofrimento

Um dos aspectos mais difíceis com que temos de lidar ao considerar o poder
sarador de Deus é o mistério do sofrimento. Isto inclui os problemas óbvios que se
levantam quando, apesar de muita oração, pessoas justas adoecerem e por vezes
com grande dor. Mas vai muito mais além. Por exemplo, mesmo quando assumimos a
ideia de que é vontade de Deus curar todas as nossas doenças, porque permite Ele
que alguns Cristãos passem por outras formas de sofrimento, como a perseguição?
Neste capítulo, iremos tentar abordar algumas destas questões e embora
possamos não encontrar uma resposta totalmente satisfatória, podemos pelo menos
examinar algumas passagens bíblicas relevantes que nos indicarão a direcção certa.
Começaremos por perguntar se o sofrimento faz parte do propósito de Deus para o
Seu povo e depois iremos considerar se a doença deve ser incluída na nossa
compreensão de sofrimento. Também iremos examinar as implicações do facto de
estarmos a viver num universo caído. E concluiremos, mostrando como o próprio
Deus entrou no nosso sofrimento.

O sofrimento faz parte do propósito de Deus para o Seu povo?

Antes de começarmos a abordar este tema difícil, devemos recordar primeiro


que Deus nos amou tanto que enviou o Seu Filho para morrer por nós. Mais ainda,
não havia sofrimento no jardim do Éden e também não existirá no Céu (Apocalipse
21:3-5). Assim, o sofrimento não é o propósito final de Deus para o Seu povo. Dito
isso, torna-se claro pela Bíblia que Deus por vezes permite que o Seu povo sofra
nesta vida, a fim de alcançar algum benefício espiritual que, caso contrário, não
teria sido possível. Alguns dos benefícios espirituais a que estou a referir-me são
experimentados nesta vida, enquanto outros sê-lo-ão na vida vindoura, alguns são
benefícios para nós, enquanto outros beneficiarão outras pessoas (1). Iremos
considerar alguns exemplos de cada uma destas situações:

• Benefícios nesta vida – para nós próprios


• Benefícios nesta vida – para os outros
• Benefícios na vida vindoura – para nós próprios
• Benefícios na vida vindoura – para os outros
Benefícios nesta vida – para nós próprios

Um exemplo óbvio de sofrimento físico com uma visão para o benefício


espiritual é o espinho de Paulo na carne (2 Coríntios 12:1-10). Já discutimos isso
(2) e concluímos que ninguém pode ter a certeza do que era esse espinho, mas
mesmo que não fosse uma doença, era certamente alguma forma de sofrimento
físico. Por três vezes, Paulo pediu ao Senhor que o removesse (v. 8), mas o Senhor
disse-lhe: A minha graça te basta/ (v. 9).
Paulo diz-nos que o propósito do «espinho» era evitar que se gloriasse na
abundância das revelações sobrenaturais que ele recebera (v. 7). Escolhe antes
gloriar-se nas suas fraquezas para que o poder de Cristo repouse nele (v. 9). Este
era sem, dúvida um benefício espiritual pessoal para Paulo que resultou de uma
aflição física que ele diz ter-lhe sido dada (v. 7) (presumivelmente pelo Senhor,
embora o descreva como um mensageiro de Satanás) (3). Mas o benefício não foi
apenas para Paulo! O propósito do poder de Deus a repousar nele foi certamente
para o benefício de outros (4).
Um outro exemplo do princípio de que o sofrimento físico pode cruzar-se no
nosso caminho a fim de alcançarmos algum benefício espiritual na nossa vida é a
passagem de Hebreus 12:4-11. Aqui, lemos que na nossa luta contra o pecado (v.
4) não devemos desprezar a disciplina do Senhor (v. 5), porque o Senhor corrige
aqueles a quem ama e açoita qualquer que recebe como filho (v. 6).
Ao agir assim, ficamos a saber, Deus está a proceder como um pai amoroso a
fim de nos disciplinar como Seus filhos (v. 7) e fá-lo para o nosso bem para
podermos partilhar a Sua santidade (v. 10). Claro, nenhuma disciplina parece
agradável no momento, sendo sentida como dolorosa, Mais tarde, contudo, produz
uma colheita de justiça e paz para os que foram sujeitos a ela (v. 11).
É importante compreendermos por esta passagem que Deus não está a
castigar-nos pelos nossos pecados. Jesus levou-os todos sobre Si no Calvário. O
propósito desta disciplina é podermos beneficiar com ela, tornando-nos mais como
Jesus. A palavra que a Nova Versão Internacional traduz como correcção no
versículo 6 ficaria mais bem traduzida por açoite. O quadro aqui apresenta Deus a
disciplinar-nos como Seus filhos, dando-nos um açoite! O propósito, como dissemos,
não é de facto punição mas disciplina. E é digno de nota que esta palavra é também
usada noutras passagens do Novo Testamento para se referir a doença (5). É
certamente a minha experiência pessoal que, nas raras ocasiões em que estive
doente, isso me trouxe para mais perto do Senhor.
Job, claro, é outro exemplo de alguém que recebeu benefício espiritual
através do sofrimento físico. Como já vimos, a sua terrível doença foi permitida,
mais do que enviada, pelo Senhor. Tiago diz-nos que consideramos abençoados os
que perseveraram e depois relembra-nos a perseverança de Job e do que o Senhor
acabou por realizar (Tiago 5:11). Isto reflecte sem dúvida Job 41:12 em que lemos
que o Senhor abençoou a parte final da vida de Job mais do que a primeira. E
embora os versículos seguintes descrevam a abundância das bênçãos materiais
derramadas no final sobre Job, não pode haver dúvida de que a sua experiência o
levou a uma relação muito mais profunda com o Senhor (Job 41:1-2). Teve também
um efeito significativo sobre a sua relação com os outros (vv. 7-10).
Isto levanta uma questão hipoteticamente interessante; Jesus teria curado
Job? À primeira vista, isso pode parecer impossível de responder, mas se
compreendemos correctamente em que base Jesus realizou os Seus milagres de
cura – apenas fez o que viu o Pai fazer – então a resposta é clara! Jesus teria
curado Job no exacto momento em que Job foi de facto curado no relato do Velho
Testamento! Se Deus considerou adequado permitir o sofrimento de Job a fim de o
levar a um propósito mais elevado, então certamente Jesus teria feito o mesmo.

Benefícios nesta vida – para os outros

Como já vimos na última secção, o sofrimento físico pode ser fonte de bênção
espiritual não só para nós mas também para os outros. Um exemplo claro encontra-
se em 2 Coríntios 1:3-11. A partir desta passagem torna-se claro que Paulo
sofreu de muitas dificuldades por amor do evangelho. Enfrentou perigos mortais (v.
10) e esteve sob grande pressão a ponto de chegar a desesperar da vida (v. 8). Mas
o Senhor livrou-o e estava a contar com o facto de que Ele continuaria a livrá-lo em
resposta às orações dos Coríntios (vv. 10-11).
Mas porque razão o Senhor permitiu que Paulo passasse por esta terrível
experiência? A passagem sugere três razões:

1. Que o próprio Paulo pôde ter experimentado o consolo de Deus (vv. 3-4).
2. Que em contrapartida, pôde ter sido capaz de consolar outros (v. 4).
3. Que os sofrimentos de Cristo puderam fluir na sua vida (v. 5).

Em relação ao ponto (1) torna-se claro que alguma forma de sofrimento é


necessária se quisermos experimentar o consolo de Deus tal como, se quisermos
experimentar o Seu poder sarador nos nossos corpos, precisamos primeiro de estar
doentes! Assim, o propósito do sofrimento era que ele pudesse experimentar o
consolo de Deus, mas qual o propósito do consolo?
Segundo o ponto (2) consistia em que fosse capaz de consolar os outros.
Parece que por vezes Deus permite que passemos por experiências dolorosas e
desagradáveis para podermos aprender a depender da Sua ajuda e força e desse
modo sermos capazes de ajudar e consolar outros quando enfrentarem problemas
similares.
Desta forma, diz Paulo, os sofrimentos de Cristo flúem na nossa vida (3). Com
isto, parece querer dizer que, como Cristo sofreu, como servo de Cristo, ele
também deve esperar sofrer – na verdade, ele quer conhecer Cristo e a comunhão
de partilhar os Seus sofrimentos (Filipenses 3:10). O servo não está acima do seu
senhor e é por isso que Paulo e os Coríntios, como todos os seguidores de Cristo (6),
podem esperar sofrer também. Mas o sofrimento não é a única coisa que
recebemos! O consolo também! Os Coríntios deviam partilhar os seus sofrimentos,
mas deviam também partilhar o seu consolo (v. 7). Em suma, Deus por vezes permite
que soframos para que assim possamos na verdade ter empatia com os outros que
estão a sofrer e mostrar-lhes o consolo que existe em Cristo.
Um outro exemplo de como o sofrimento dos Cristãos levou à bênção de outros
encontra-se no relato do apedrejamento de Estêvão e na perseguição que se
seguiu. Em Actos 7, lemos como Estêvão, o primeiro mártir cristão foi apedrejado
até à morte e como os que o apedrejaram colocaram as suas vestes aos pés de um
jovem chamado Saulo (v. 58). Actos 8:1 sublinha o facto de Saulo (a versão hebraica
de Paulo) estar presente e ter dado a sua aprovação à morte de Estêvão.
Mais tarde, quando Paulo se converteu na estrada de Damasco, o Senhor Jesus
apareceu-lhe e disse-lhe: Saulo, Saulo, porque me persegues? É duro para ti
recalcitrar contra os aguilhões (Actos 26:14). A palavra usada para aguilhões vem
de um verbo que significa espetar. O aguilhão era usada quando se arava com bois,
que por vezes escoiceiam contra ele. A sugestão é provavelmente que Paulo, ao
perseguir a igreja, estava a escoicear contra o aguilhão da sua consciência, Parece
muito provável, portanto, que a conversão de Paulo foi em parte o resultado de se
considerar culpado do apedrejamento de Estêvão. Se esta compreensão estiver
correcta, então o sofrimento de Estêvão foi uma das causas da conversão de Paulo.
Mais ainda, logo depois da morte de Estêvão, uma grande perseguição se
levantou contra a igreja de Jerusalém (Actos 8:1). Como resultado, os Cristãos
foram espalhados por toda a Judeia e Samaria. Foram por todos os lados, pregando
a palavra por onde quer que iam (v. 4). Ora, em Actos 11:19-321, lemos que alguns
deles foram até Antioquia anunciar as boas novas de Jesus tanto a Gentios como a
Judeus. Como resultado, um grande número de pessoas creu e converteu-se ao
Senhor (v. 21). E foi assim que começou a igreja em Antioquia, a primeira grande
igreja missionária. Deus usou a perseguição dos Cristãos para provocar a difusão do
evangelho, o que levou à conversão de milhares. Se Deus permite o sofrimento é
sempre com um propósito superior – neste caso, o propósito superior de todos,
ganhar pessoas para Cristo.
Benefícios na vida vindoura – para nós próprios

Mas o Novo Testamento também indica que o sofrimento nesta vida pode
resultar em recompensa na vida vindoura. Hebreus 11:35, por exemplo, ao falar dos
feitos de muitos dos heróis da fé do Velho Testamento, diz que outros foram
torturados e recusaram serem libertos para poderem, ganhar uma melhor
ressurreição. O escritor não clarifica o que quer dizer com isto, mas há aqui
claramente uma forte sugestão de que o sofrimento nesta vida pode produzir um
galardão na próxima. Esta linha de pensamento está em completa harmonia com o
ensino de 1 Pedro e Romanos 8, a que prestaremos agora atenção.
Como mencionei atrás (7), um dos temas principais de 1 Pedro é sofrimento
presente, glória futura. Consideremos as passagens seguintes:

Em que vós grandemente vos alegrais, ainda que agora importa, sendo
necessário, que estejais por um pouco contristados com várias tentações, para
que a prova da vossa fé, muito mais preciosa que o ouro que perece e é provado
pelo fogo, se ache em louvor e honra e glória na revelação de Jesus Cristo
(1:6-7). Cf. os sofrimentos de Cristo e a glória que se seguiu (v. 11).

Porque é coisa agradável que alguém, por causa da consciência para com Deus,
sofra agravos, padecendo injustamente. Porque se sofreis, fazendo o bem e o
sofreis, isso é agradável a Deus. (2:19-31).

Se padecerdes por amor da justiça sois bem-aventurados (v. 14).


Melhor é que padeçais fazendo o bem do que fazendo mal. (v. 17).

Amados, não estranheis a ardente prova que vem sobre vós para vos tentar,
como se coisa estranha vos acontecesse. Mas alegrai-vos no facto de serdes
participantes das aflições de Cristo para que também na revelação da Sua
glória vos regozijeis e alegreis (4:12-13).

Portanto também os que padecem segundo a vontade de Deus encomendem-Lhe


as suas almas, como ao fiel Criador, fazendo o bem. (4:19)

...sabendo que as mesmas aflições se cumprem entre os vossos irmãos no


mundo. E o Deus de toda a graça que em Cristo Jesus vos chamou à Sua eterna
glória, depois de haverdes padecido um pouco, Ele mesmo vos aperfeiçoará,
confirmará, fortificará e fortalecerá. (5:9-10)

Estas passagens mostram claramente que

• Os cristãos devem esperar sofrer nesta vida.


• Qualquer sofrimento agora é relativamente breve comparado com a nossa
vida futura no céu.
• O sofrimento por Cristo equivale a partilhar os Seus sofrimentos
• Ao sofrimento nesta vida segue-se a glória na vindoura.

Longe de sugerir que Jesus sofreu para que não pudéssemos sofrer, Pedro
está de facto a dizer que como Cristo sofreu, devemos esperar sofrer também.
Cristo deixou-nos um exemplo a seguir (2:21).
E descobrimos que exactamente os mesmos princípios são ensinados em
Romanos 8.Nos versículos 17-18, Paulo diz-nos que partilhamos os Seus
sofrimentos a fim de podermos partilhar a Sua glória e que os nossos sofrimentos
presentes não se comparam com a glória que será manifesta em nós. Mas
voltaremos mais tarde a esta passagem. Por agora, basta concluir esta secção
salientando que foi o próprio Jesus que nos disse: Alegrai-vos quando vos
perseguirem porque, disse Ele, grande é o vosso galardão no céu (Mateus 5:11-12).
Sem dúvida que é por isso que Pedro e João se alegraram porque foram
considerados dignos de sofrerem pelo Seu nome (Actos 5:41).

Benefícios na vida vindoura – para os outros

Por fim e ainda mais sucintamente, vemos que o nosso sofrimento nesta vida
pode produzir benefícios em favor dos outros na vida vindoura. Já considerámos o
caso do cego de nascença de João 9:1-12 e citámos que João registou o milagre da
sua cura com a intenção de capacitar o leitor a crer que Jesus é o Cristo, o Filho de
Deus e que, crendo possais ter vida no Seu nome (João 20:30-31) (8).
Possivelmente, nunca podemos saber quantos milhões foram ganhos para Cristo
através da leitura do evangelho de João mas, se apenas uma pessoa encontrou a
vida eterna por causa da cura do cego de nascença, o seu sofrimento durante alguns
anos na terra foram certamente insignificantes em comparação com o seu galardão
eterno no céu. E a mesma linha de raciocínio pode ser aplicada ao apedrejamento de
Estêvão e à conversão de Paulo e às muitas igrejas que foram fundadas em
resultado do seu ministério ao longo do mundo conhecido de então.
Concluindo esta secção, estabelecemos que o Novo Testamento ensina
claramente que os cristãos devem esperar sofrer nesta vida e que, apesar da dor
física que possa estar envolvida, há benefícios espirituais daí resultantes porque,
sempre que Deus permite que soframos, tem um propósito espiritual superior que
acabará por ser para o nosso bem. Na verdade, se partilharmos os sofrimentos de
Cristo, também partilharemos a Sua glória. Mas o sofrimento de que temos estado a
falar inclui o sofrimento que suportamos quando estamos doentes ou limita-se ao
sofrimento experimentado em tempos de perseguição?

O sofrimento no Novo Testamento inclui a doença?

À luz do que já descobrimos na última secção, é claro que os que crêem que a
cura da doença pode ser sempre reivindicada pela fé devem também defender a
necessidade de distinguir cuidadosamente a doença de outras formas de
sofrimento. E isso porque, se o ensino estiver correcto, os cristãos não têm de
ficar doentes, enquanto outras formas de sofrimento, como a perseguição são de
esperar, como acabámos de ver (9).
Nesta secção, irei considerar se o Novo Testamento faz esta distinção e
neste aspecto, será conveniente considerar sucintamente a forma como a palavra
sofrer é paschein e, de acordo com P. H. Davids:

...o vocabulário de sofrimento limita-se à perseguição exterior por pessoas ou


demónios ou ao juízo escatológico de Deus; nos documentos do Novo
Testamento, não inclui doença humana (itálico meu) (10).

Davids argumenta justamente que os Cristãos são estimulados a suportar a


perseguição mas nunca a doença. Tiago 5 indica que os Cristãos que sofrem devem
orar (por força, resistência e pela vinda de Cristo), enquanto os que estão doentes
devem chamar os anciãos cuja oração da fé promoverá a cura. Davids reconhece que
mesmo os cristãos do Novo Testamento não viam sucesso a 100% quando oravam
pelos doentes, mas apesar de tudo defende que a enfermidade deve ser enfrentada
com a oração e a expectativa de cura, enquanto a perseguição deve ser enfrentada
com a resistência.
Davids defende que uma mudança ocorreu no pensamento da Igreja ao longo
dos séculos por causa da redução do nível de perseguição por um lado e pela
diminuição dos dons de cura por outro. Assim, o sofrimento pela fé acabou por se
identificar com a doença e a doença foi vista como sendo a vontade de Deus, uma
vez que não havia cura.
Contudo, embora muito do que Davids diz esteja correcto, está errado ao
dizer que, nos documentos do Novo Testamento, paschein não inclui doença. A
natureza da língua é tal que raramente o vocabulário se pode definir com tanta
exactidão como a análise de David exige e Michaelis mostrou que paschein era
usado para se referir de um modo geral a uma experiência de algo que tem de ser
sofrido (11). Esse sofrimento incluía punição corporal e capital, infortúnio, golpes do
destino, o desfavor de homens ou deuses e doença.
Na verdade, paschein é utilizado no contexto de cada aspecto da vida humana.
O facto de ser usado no Novo Testamento largamente para se referir aos
sofrimentos de Cristo e à perseguição dos Cristãos não significa que por vezes não
possa ser usado em relação à doença, como se vê claramente em Mateus 17:15, onde
o pai do rapaz que estava a sofrer de crises diz a Jesus que o seu filho está em
grande sofrimento (paschein) (12).
Mais ainda, classificar sofrimento com exclusão de doença e inclusão de
perseguição pode permitir-nos dizer convenientemente que pode ser vontade de
Deus que os Cristãos sofram perseguição, embora não seja Sua vontade que eles
estejam doentes. Mas se este argumento for seguido até à sua conclusão lógica,
então a doença provocada por demónios ou por mordeduras de serpentes teria
também de ser considerada parte da vontade de Deus para os Cristãos, pois
paschein é usado em ambas as situações (13). Mas só se chega a esta conclusão
absurda com uma classificação muito rígida do uso de paschein.
Na verdade, todo o argumento de Davids levanta a questão Quando é que uma
doença não é doença? Por outras palavras, devemos dizer que os resultados da
perseguição não contam como doença mas sim os resultados de um grave acidente
de viação? E se a vida de uma pessoa estiver em perigo em resultado desse acidente
(ou perseguição), devemos continuar a insistir que a pessoa não está doente? O
facto é que, embora paschein possa não ser usada com frequência no Novo
Testamento em relação a doença, a palavra astheneia (fraqueza ou doença) refere-
se a ambas e, como já defendi (14), se Jesus de facto levou sobre Si na cruz as
nossas astheneias, então não havia necessidade de qualquer cristão estar doente ou
sofrer de astheneia resultante de perseguição!
Mais ainda, parece-me que o argumento de Davids ignora pelo menos duas
passagens importantes. Primeiro, em Tiago 5:10-11, os sofrimentos de Job, que
incluíram grave doença, são designados pelo uso de kakopathia (que faz parte do
grupo vocabular de paschein) (15). Assim, uma palavra intimamente relacionada com
paschein é usada para se referir a doença.
Em segundo lugar, a distinção entre doença e outras formas de sofrimento
exclui a doença do âmbito dos nossos sofrimentos presentes (Romanos 8:18), em
que de novo se usa paschein. Mas o leque do pensamento de Paulo nesta passagem é
tão vasto, abarcando toda a criação e alargando a extensão desta idade presente
desde a Queda à Segunda Vinda, que nenhuma forma de sofrimento pode ser
excluída do seu pensamento.
Finalmente, a posição de Davids dá pouco peso ao espinho de Paulo na carne e à
enfermidade a que ele se referiu em Gálatas 4:13-15 que mesmo Davids reconhece
ter sido provavelmente uma doença (16). Em conclusão, então, a língua grega usa a
palavra paschein com uma aplicação muito semelhante à da palavra sofrer em
português. Uma pessoa pode sofrer sem estar doente, mas a doença é, sem dúvida
alguma, uma forma de sofrimento. E se o Novo Testamento nos mostra que por
vezes Deus tem um propósito ao permitir o sofrimento, pode ser que por vezes
tenha um propósito ao permitir o sofrimento na forma de doença.
Parece-me, portanto, que, embora devamos esperar que Deus cure as nossas
doenças porque é sem dúvida a ênfase do Novo Testamento, não devemos pôr de
lado a possibilidade de, por vezes, Deus poder permitir a doença, muito à
semelhança da perseguição que Ele permite, a fim de cumprir os objectivos
espirituais a que já referimos.

Sofremos porque estamos a viver num universo caído

Passemos agora a uma outra passagem que lança luz sobre o problema do
sofrimento – Romanos 8:17-39. Já referimos sucintamente a ela, mas temos agora
de examinar a passagem com mais pormenor. Paulo começa por nos recordar que,
como cristãos, estamos identificados com Cristo e, em resultado disso, há certas
coisas que devemos partilhar com Ele. Partilhamos a Sua herança! Partilhamos a Sua
glória! Também partilhamos os Seus sofrimentos (v. 17). Mas estas nada são em
comparação com a glória que um dia será revelada em nós (v. 18).
Estes sofrimentos que experimentamos são de facto partilhados por toda a
criação que na Queda ficou sujeita à frustração (v. 20) e está consequentemente na
servidão da corrupção (v. 21) e geme como se estivesse com dores de parto (v. 22).
Juntamente com a criação, gememos interiormente (v. 23) esperando ansiosos pela
redenção do corpo. Para o final do capítulo, numa passagem em que Paulo realça a
nossa vitória sobre toda a oposição através do amor de Cristo, alguns destes
sofrimentos são listados rapidamente (vv. 35-36).
Assim, sofremos agora porque vivemos num mundo sofredor. É por isso que os
Cristãos adoecem, tal como todos os outros! Vivemos no mesmo universo caído. Mas
neste sofrimento temos um lembrete maravilhoso de um futuro glorioso! Os nossos
sofrimentos presentes são contrastados com a glória futura. Partilhamos os
sofrimentos de Cristo para podermos partilhar a Sua glória (v. 17). Os nossos
sofrimentos presentes nada são comparados com a glória que se revelará em nós (v.
18).
Na verdade, a própria criação anseia por esta revelação dos filhos de Deus (v.
19) e, como uma mãe expectante, anseia pela sua libertação (v. 22). E nós também,
como cristãos, estamos ansiosamente à espera da nossa adopção como filhos, a
redenção do corpo (v. 23) (17). Paulo descreve isto no versículo 21 como a liberdade
da glória dos filhos de Deus. Assim, embora a passagem tenha a ver com o tema do
sofrimento não é de modo nenhum dominada por ele. Se o Cristão sofre agora - e
certamente sofre, porque vivemos num universo sofredor - há, igualmente certo, um
futuro glorioso.
Mas como reconciliamos tudo isto com as promessas de cura da parte de Deus?
A resposta encontra-se no facto de ainda estarmos à espera da redenção dos
nossos corpos (v. 23) e de, como veremos no capítulo seguinte, todas as promessas
de cura por parte de Deus serem cumpridas quando Jesus voltar de novo.
Entretanto, temos as primícias do Espírito. No capítulo seguinte, discutiremos este
aspecto com mais pormenor e veremos que ao receber o Espírito Santo, provámos
os poderes da era vindoura. É pelo Espírito que recebemos agora dons de cura que
são em si mesmos um antegosto maravilhoso de algo ainda melhor – um tempo em
que não haverá mais sofrimento, dor ou doença. Mas agora, adoecemos porque
vivemos num mundo caído.

O próprio Deus entrou no nosso sofrimento

Mas tudo isto será justo? Como pode um Deus de amor permitir que os Seus
filhos sofram? Já abordámos naturalmente de algum modo este aspecto ao
responder a esta questão, mas o texto seguinte (18), O Longo Silêncio, é revelador.

No final dos tempos, biliões de pessoas encontravam-se espalhados por uma


grande planície perante o trono de Deus. Muitos encolhiam-se por causa da luz
brilhante. Mas alguns grupos à frente falavam acaloradamente – não com vergonha
acanhada, mas com ar beligerante.
Como é que Deus nos pode julgar? Que sabe Ele do sofrimento? Exclamou uma
jovem morena. Rasgou uma manga revelando um número tatuado de um campo nazi
de concentração. Nós sofremos o terror... fomos espancados... torturados... mortos!
Num outro grupo, um rapaz negro destapou o colarinho. E isto? Perguntou,
mostrando uma queimadura horrível provocada por uma corda. Linchado... pelo único
crime de ser negro!
Num outro grupo, uma adolescente grávida com olhos inchados. Porque tenho
eu de sofrer? Murmurou. A culpa não foi minha!
Ao longo da planície havia centenas destes grupos. Cada um tinha uma queixa
contra Deus pelo mal e sofrimento que Ele permitira no seu mundo. Deus tinha
muita sorte por viver no céu onde é tudo doçura e luz, onde não havia choro nem
medo, nem fome nem ódio. Que sabia Deus de tudo quanto o homem fora obrigado a
suportar neste mundo? É que Deus vivia no seu casulo no céu, diziam.
Então todos estes grupos enviaram o seu líder, um judeu, um negro, uma
pessoa de Hiroxima, um artrítico horrivelmente deformado, uma criança vítima de
Thalidomida. No centro da planície, conferenciaram uns com os outros. Por fim,
estavam prontos a apresentar o seu caso. Estava muito bem elaborado.
Antes de Deus poder ser considerado apto a julgar, deveria passar por aquilo
que eles passaram. A sua decisão foi que Deus devia ser sentenciado a viver no
mundo – como homem!
Que Ele nasça judeu. Que a legitimidade do seu nascimento seja posta em
causa. Que receba um trabalho tão difícil que até a família irá pensar que está
doido quando tentar levá-lo a cabo. Que seja traído pelos seus amigos mais íntimos.
Que enfrente falsas acusações, seja julgado por um júri preconceituoso e
condenado por um juiz cobarde. Que seja torturado.
Por fim, que saiba o que é estar terrivelmente sozinho. Depois, que morra para
não haver dúvidas de que morreu. Que haja um grande número de testemunhas do
facto.
À medida que cada líder anunciava a sua parte da sentença, fortes murmúrios
de aprovação subiam da multidão reunida.
E quando o último acabou de pronunciar a sentença, fez-se um longo silêncio.
Ninguém murmurou palavra porque de repente todos perceberam que Deus já havia
cumprido a sua sentença.

NOTAS
(1) Claro que se trata de uma super-simplificação. As bênçãos espirituais nesta
vida podem muito bem ter também impacte na vida vindoura e os que nos beneficiam
podem muito bem beneficiar outros! Na verdade, serão beneficiados.
(2) Ver Capítulo 15.
(3) Cf. os meus comentários a respeito de Job, no Capítulo 2.
(4) Paulo já ensinava aos Coríntios que o propósito das manifestações
poderosas que Deus nos dá nos dons espirituais é que elas sejam para o benefício
dos outros (1 Coríntios 12-14).
(5) Ver Marcos 3:10; 5:29, 34; Lucas 7:21, em que a palavra grega mastis é
traduzida por doença, sofrimento, enfermidade. Claro que a disciplina a que o autor
de Hebreus se refere pode não ser doença, mas o uso da mesma palavra aqui indica
certamente que podia ser.
(6) Pedro diz uma coisa semelhante aos escravos cristãos que sofriam
injustamente (1 Pedro 2:18-21). Cf. Capítulo 11.
(7) Ver capítulo 11.
(8) Ver capítulo 6.
(9) Por exemplo, defende-se por vezes que o espinho de Paulo na carne podia
não ter sido uma doença (na base de que Deus prometeu curar o Seu povo das suas
doenças), mas era provavelmente alguma forma de perseguição que estava a sofrer.
Esta perspectiva coloca claramente a doença numa categoria diferente do
sofrimento.
(10) Davids, P. H., The First Epistle of Peter, Grand Rapids, Eerdmans, 1990, p.
37.
(11) Michaelis, W., artigo paschein im Kittel, G. (ed.) Theologfical Dictionary of
the New Testament, pp. 904-905.
(12) Davids exclui este versículo na base de que a doença é atribuída a um
demónio. Mas isso não é de modo nenhum garantido à luz da visão largamente
defendida de que muitas doenças eram provocadas por demónios. Isto torna-se
claro com o facto de o epiléptico, de quem o demónio foi expulso no caso em
questão, precisar de ajuda, como sugere o uso de therapeuo (cura) no versículo
seguinte.
(13) Mateus 17:15 e Actos 28:5.
(14) Ver. Cap. 15.
(15) Cf. Cap. 9
(16) Davids, op. cit., p. 39, nota de rodapé 59.
(17) A redenção do corpo aqui referida é a transformação que irá ocorrer na
Segunda Vinda de Cristo, quando o mortal for revestido da imortalidade, o
corruptível pela incorrupção (1 Coríntios 15:50-seg.)
(18) Extraído directamente de Stott, J. R. W., The Cross of Christ, Leicester,
IVP, 1986, pp. 336-337. Todo o capítulo de Stott sobre Sofrimento e Glória
merece a pena ser lido, Ibid., pp. 311-337.
Pode consultar a versão portuguesa em
http://gbuproclama.blogspot.com/2007/10/o-longo-silncio.html (N. do T.)
CAPÍTULO DEZOITO

Um sabor a céu

Já sugeri que a melhor forma de compreender o tema da cura é vê-lo como


Paulo o fez, como obra do Espírito Santo. Diz-nos ele em 1 Coríntios 12:10-11 que os
dons de cura, como todos os outros dons que ele menciona, são dados conforme a
determinação do Espírito Santo. Segue-se, portanto, se quisermos compreender
correctamente a cura, que devemos entender a obra do Espírito e devemos
entendê-la em particular em relação com a idade vindoura, porque só então, como já
vimos, é que a doença e o sofrimento deixarão de existir. Assim, neste capítulo,
iremos considerar:

• A cura derradeira – a redenção do corpo.


• A obra do Espírito como um antegosto dessa cura final.

A cura derradeira – a redenção do corpo.

Como espero mostrar na segunda parte deste capítulo, podemos esperar agora
a cura das doenças porque as bênçãos da idade vindoura estão em certa medida
disponíveis aos Cristãos agora através da obra do Espírito. Contudo, a nossa cura
final ocorrerá na Segunda Vinda de Cristo que será acompanhada pela nossa vitória
final sobre a morte, quando recebermos um corpo mortal e imperecível. Os nossos
corpos serão transformados (1 Coríntios 15:51) e as nossas doenças serão todas
curadas.

A necessidade de os corpos dos vivos serem transformados

Em 1 Tessalonicenses 4:13-18, que é outra passagem que nos fala da vinda do


Senhor e da ressurreição dos mortos, Paulo refere-se não só aos que dormem (i.e.,
morreram, v. 15), como também aos que ainda estão vivos, que ficarão até à vinda do
Senhor (v. 14). Todos os que são Cristãos, estejam vivos ou mortos, encontrar-se-ão
com o Senhor nos ares e estarão com Ele para sempre (v. 17).
Ora, em 1 Coríntios 15, embora seja claro que Paulo esteja principalmente
preocupado com a ressurreição dos mortos, os que ainda estiverem vivos quando o
Senhor regressar não ficarão de modo nenhum de fora. Isso é claro a partir do
facto de, mesmo ainda vivos, os nossos corpos serem tanto perecíveis como mortais.
Assim, Paulo diz no versículo 51 que nem todos dormiremos, mas todos seremos
transformados. Não são apenas os mortos que irão precisar de novos corpos quando
Jesus voltar de novo, mas também os que estiverem vivos porque temos corpos
corruptíveis e o que é corruptível não herdará o incorruptível (v. 50). Assim, tanto
os vivos como os mortos precisam de ser transformados a fim de participarem no
reino futuro de Deus, tanto os vivos como os mortos serão de algum modo
«transformados» quando o Senhor voltar.
Assim, ao referir-se não só à corrupção que ocorre nos nossos corpos após a
morte, mas também à natureza perecível do nosso corpo presente, Paulo coloca a
cura das doenças no âmbito da transformação física que ocorrerá na vinda do
Senhor. Mais ainda, parece óbvio que se um corpo tem de se tornar imperecível, por
definição deixará de estar sujeito à doença. E se esteve doente antes, ao tornar-se
incorruptível, cessará imediatamente de estar doente. Em suma, a implicação
evidente do ensino de Paulo é que a transformação que ocorrerá na vinda de Cristo
envolverá na sua totalidade, pela sua natureza, a cura das doenças.

A Segunda Vinda de Cristo contraria a Queda

Mas há pelo menos mais um factor que indica que a cura da doença está
implícita nesta passagem. Tem a ver com as referências a Adão nos versículos 21-22
e 45-49. Os versículos 21-22 são uma referência clara à Queda. Paulo defende que
como a morte veio por um homem (Adão), também através de um homem (Cristo)
veio a ressurreição dos mortos, porque como em Adão todos morreram, assim em
Cristo todos serão vivificados. A compreensão de Paulo da ressurreição dos que
estão «em Cristo» (que mais tarde, nos vv. 50-57 deixa claro ocorrerá na vinda de
Cristo) está assim intimamente ligada à sua compreensão da Queda. A morte veio
através de Adão por causa da Queda. A Vida vem através de Cristo cuja
ressurreição Paulo vê como as primícias da ressurreição dos que estão em Cristo.
Assim, a ressurreição é o antídoto final para todo o sofrimento provocado pela
Queda. E como a doença resultou da Queda, a Segunda Vinda pôr-lhe-á um fim.
Assim, resumamos o que dissemos até agora:

1. Romanos 8:18-seg mostra que a Queda foi a origem de todo o sofrimento


do universo. Isso iniciou a doença.
2. Jesus veio para ter sucesso onde Adão falhou. Ele morreu para receber o
castigo pelos nossos pecados, para podermos ter vida eterna. Na Segunda
Vinda tudo aquilo pelo qual Jesus morreu cumprir-se-á por fim. A própria
morte será engolida na vitória (v. 54). A doença deixará de existir.
3. Na vinda de Cristo, os corpos tanto dos mortos como dos vivos serão
transformados (vv. 51-seg) Isto significa cura para qualquer cristão que
possa ainda estar fisicamente doente.

Finalmente, antes de vermos como é que o Espírito Santo nos dá um antegosto


maravilhoso desse glorioso tempo futuro, vejamos como é que este ensino pode ser
de ajuda para os que ainda não foram curados.

Como é que isto ajuda os que não estão curados?

O conhecimento de que, se não estou curado agora, sê-lo-ei quando Jesus


voltar é fonte de grande força e consolo. Os cristãos doentes devem ser
estimulados a continuar a crer na cura, a continuar a esperar um sabor dos poderes
da idade vindoura. Devem ficar seguros de que Deus os ama tanto quanto os que Ele
escolheu curar, que Ele continua no controlo e que tem um propósito em todo o
sofrimento pelo qual nos permite passar.
Em todas estas coisas, somos mais do que vencedores por aquele que nos amou
o suficiente para morrer por nós. Embora a pessoa exterior esteja a perecer (e isto
é verdade mesmo para os saudáveis!), o homem interior é renovado dia a dia. Paulo
diz-nos que ainda estamos à espera da redenção dos nossos corpos (Romanos 8:23).
Se, juntamente com a restante criação, gememos ainda um pouco, devemos recordar
que o dia virá em que os filhos de Deus serão revelados, quando a criação será
liberta da sua servidão da corrupção e seremos revestidos com a imortalidade
incorruptível!

A obra do Espírito como um antegosto dessa cura final

Paulo usa três palavras muito significativas em relação à obra do Espírito


Santo relativamente à idade vindoura. Uma delas é primícias que mencionámos de
passagem no último capítulo. Uma outra é a palavra selo e a terceira, embora apenas
um único vocábulo em grego, é traduzida na Nova Versão Internacional como
depósito que garante a nossa herança. Utilizarei a palavra penhor para me referir a
isto. Paulo usa as três palavras para descrever como o dom do Espírito Santo é para
nós cristãos um antegosto da idade vindoura.

O Espírito como primícias


No último capítulo, com base em Romanos 8, salientei que como cristãos
sofremos como todos os outros, apenas porque vivemos num universo caído. Toda a
criação está a gemer (v. 22), como se estivesse com dores de parto (1), à espera que
os filhos de Deus sejam revelados (v. 19). E nós próprios estamos ansiosamente à
espera deste dia a que Paulo chama a nossa adopção como filhos, a redenção dos
nossos corpos (v. 23). Entretanto, estamos também a gemer, mas para nós há uma
diferença - temos as primícias do Espírito!
Isto significa que a nossa experiência do Espírito Santo agora é exactamente
aquilo que nos ajuda no nosso sofrimento. Note-se o que Paulo diz nesta passagem o
que o Espírito Santo fará por nós. É o Espírito que:

• dá testemunho de que somos filhos de Deus (v. 16)


• nos ajuda nas nossas fraquezas ou doenças (2) (v. 26)
• intercede por nós segundo a vontade de Deus (vv. 26-27).

Todas estas coisas fazem parte da nossa experiência com o Espírito e é isto
que Paulo descreve ao usar a palavra primícias. Mas para compreender melhor a
ideia, precisamos de examinar com mais pormenor todo o significado deste termo.
A ideia básica subjacente à palavra primícias é o pensamento de que há algo
mais que se segue. A palavra grega é aparche intimamente associada com a ligação
entre a nossa experiência presente do Espírito e a nossa vida futura no reino de
Deus. O conceito vem do Velho Testamento, em que lemos que as primícias da
colheita deviam ser oferecidas a Deus (Êxodo 23:16, 19; 34:22, 26; Levítico 23:9-
seg.).
É interessante notar que Paulo usa o termo primícias para se referir não só ao
Espírito, mas também a Cristo (1 Coríntios 15:20-23). Paulo ensina-nos que como
Cristo ressuscitou dos mortos, também um dia ressuscitaremos. Tal como os
primeiros frutos da colheita eram oferecidos a Deus em agradecimento por toda a
colheita que se ia seguir, assim Cristo ressuscitou dos mortos como as primícias de
uma ressurreição maior, quando os mortos em Cristo ressuscitarem. A imagem é
particularmente adequada porque o dia em que o produto das primícias era
apresentado ao Senhor era o dia após o Sábado a seguir à Páscoa – o mesmo dia em
que Jesus ressuscitou dos mortos!
Mas qual a relação disto com a ideia do Espírito como primícias? Levítico 23 é-
nos muito útil aqui, pois uma leitura cuidadosa do capítulo sugere que havia de facto
duas ocasiões em que as primícias eram oferecidas ao Senhor. Na primeira, como já
vimos, o produto era apresentado perante o Senhor no dia seguinte ao primeiro
Sábado depois da Páscoa (Levítico 23:11). Na segunda, o produto era oferecido sete
semanas mais tarde, quando dois pães eram colocados na presença do Senhor
(Levítico 23:15-17). Isto ocorria no que se tornou conhecido como a Festa das
Semanas e, mais tarde, como Dia de Pentecostes. É claro que Paulo está a referir-
se a esta segunda oferta das primícias quando se refere em Romanos 8:23 ao
Espírito como primícias.
Em ambos os casos, portanto, a ideia básica subjacente a primícias é a mesma.
As primícias faziam porte da colheita, mas eram também uma garantia e um penhor
de que se lhe seguia mais! Assim, a ressurreição de Jesus fazia parte da nossa
ressurreição e ao mesmo tempo garante-a! E o dom do Espírito é tanto parte da
nossa herança em Cristo (cf. Efésios 1:13-14) como ao mesmo tempo aponta para o
futuro, para o dia em que a herança será nossa em toda a sua plenitude.
Assim, tal como em 1 Coríntios 15:20-seg., a ressurreição de Cristo é a
garantia de que todos os que estão em Cristo ressuscitarão, também aqui em
Romanos 8:23 o Espírito é dado aos Cristãos como a garantia da redenção final do
corpo na Segunda Vinda de Cristo. E o que é verdade do Espírito deve ser pelo
menos indirectamente verdade dos dons do Espírito derramado sobre nós. Se o
próprio Espírito é para o Cristão as primícias da redenção física, então os dons de
cura concedidos pelo Espírito Santo (1 Coríntios 12:9) devem se seguramente
evidência do Espírito da redenção final do corpo.
Em suma, embora no meio do sofrimento presente ainda estejamos à espera da
redenção final do corpo (Romanos 8:23), temos como Cristãos, como penhor dessa
redenção, o Espírito como primícias. Aplicado à cura física, isto sugere que, embora
a libertação final deva esperar pela vinda do Senhor, o Espírito é entretanto dado
como garantia de que essa libertação acabará por vir e como prova ele dá «dons de
cura» (1 Coríntios 12:9) a quem Ele quer!
Contudo, antes de avançar mais é digno de nota que aqui está uma outra forma
de compreender que a cura está na expiação. A cura pode ser encarada como vinda
do Espírito e o dom do Espírito surgindo em resultado da expiação. Que a expiação
é a base sobre a qual o Espírito é dado é bem visível em Gálatas 3:13-14. No seu
contexto, Gálatas 3:14 salienta a extensão das bênçãos de Deus aos Gentios, mas o
versículo indica claramente que a recepção do Espírito é uma parte do propósito de
Deus tornado real pela obra redentora de Cristo na cruz. Mas isso não quer dizer
que Jesus morreu pelas nossas doenças no mesmo sentido que morreu pelos nossos
pecados!

O Espírito como penhor

Em 2 Coríntios 1:22; 5:5 e Efésios 1:14, Paulo refere-se ao Espírito Santo


como penhor. A palavra grega que usa (originalmente uma palavra hebraica) é
arrabon. Apresenta uma variedade de significados e nenhuma palavra portuguesa é
de facto adequada como tradução e por isso será útil explorar um pouco o seu leque
de significado antes de o aplicarmos a estes versículos.
Um uso interessante desta palavra encontra-se na Septuaginta (a versão grega
do Velho Testamento usada na época de Jesus e da primitiva Igreja) em Génesis
38:15-18. Não temos de nos preocupar aqui com os pormenores do que é uma
história bastante complicada, mas Judá vê uma mulher que toma por prostituta (3) e
promete-lhe uma cabra do seu rebanho como forma de pagamento por ter dormido
com ela. Como de momento não tem a cabra consigo, a mulher pede-lhe um penhor
(arrabon) como garantia de que ele lhe enviará a cabra e Judá dá-lhe o seu selo e o
seu lenço.
Esta ilustração ajuda-nos a compreender o significado geral da palavra
arrabon. Pode ser definida como o depósito que paga parte de uma dívida e dá-lhe
um valor legal. O selo que Judá entregou a Tamar como penhor (arrabon) era apenas
uma pequena parte do que ele lhe deu, mas garantia que ela iria receber a oferta
maior, o cabrito prometido. O penhor era, portanto, também um sinal de uma dádiva
maior a saldar e a prova de que fora feita uma promessa.
Tendo isto em mente, não surpreende que arrabon possa também significar um
anel de noivado. Um anel de noivado é a prova visível de que foi feita uma promessa,
mas também indica que é de esperar no futuro algo muito melhor. E é muito neste
sentido que Paulo usa arrabon em relação ao dom do Espírito Santo dado por Deus
aos cristãos. Se compreendemos que a igreja é a noiva de Cristo (Efésios 5:22-33),
podemos pensar no Espírito Santo como o anel de noivado da igreja, o dom de Cristo
à Sua noiva apontando para o futuro para o dia em que ela se Lhe unirá «nas bodas
do Cordeiro» (Apocalipse 19:7-9).
Então, como é que tudo isto afecta a nossa compreensão dos três versículos
em que arrabon é usado no Novo Testamento? Apoia sem dúvida a ideia de que a
nossa experiência presente do Espírito Santo é a forma de Deus nos garantir a
nossa herança futura. É o que vem claramente indicado em 2 Coríntios 1:22, em que
o Espírito Santo é descrito como um penhor nos nossos corações. Isto inclui
cumprimento final de todas as promessas de Deus (v. 20) e a certeza de que um dia
receberemos um corpo de ressurreição (2 Coríntios 5:1-5, cf. Romanos 8:11) e
entraremos de posse da nossa herança como Cristãos. Paulo diz:

Tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa, o
qual é o penhor da nossa herança para redenção da possessão de Deus para
louvor da Sua glória. (Efésios 1:13-14).
Mas isso leva-nos ao próximo tema intimamente relacionado, o Espírito como
um selo.

O Espírito como um selo

Intimamente relacionado com a ideia do Espírito como um penhor está o uso


que Paulo faz da palavra selo. A Bíblia descreve diversas formas em que os selos
eram usados e já falei disto noutros lados (4), mas aqui há um uso particular de um
selo que é relevante para a nossa discussão da cura. Um selo pode ser usado para
manter secreto o conteúdo de uma carta. Por vezes, os sobrescritos são selados
com lacre para que a pessoa que recebe a carta saiba que mais ninguém a leu, depois
de sair das mãos de quem a remeteu. Por Isaías 29:11, sabemos que, mesmo nos
tempos bíblicos, os selos eram usados de forma similar.

Toda a visão vos é como as palavras de um livro selado que se dá ao que sabe
ler, dizendo: «Ora, lê isto» e ele dirá: «Não posso, porque está selado».

Então, uma das finalidades de um selo é manter alguma coisa secreta – mas não
para sempre! Quando alguém sela uma carta não é sua intenção que a carta nunca
seja aberta. Há sempre um momento certo para o selo ser quebrado. É então que o
segredo é revelado. Ora, como já vimos, Romanos 8:19 diz-nos que toda a criação
está à espera que os filhos de Deus sejam revelados enquanto nós próprios estamos
ansiosamente à espera da nossa adopção como filhos, a redenção dos nossos corpos
(v. 23). E Efésios 4:30 diz que estamos selados com o Espírito Santo para o dia da
redenção.
Isto, juntamente com Efésios 1:13-14, que também fala de sermos selados até
à nossa redenção, liga a nossa experiência presente do Espírito Santo com aquele
dia futuro em que o próprio Senhor descerá do céu e os mortos em Cristo
ressuscitarão e quando nós, os que estivermos vivos e ficarmos até à vinda do
Senhor seremos arrebatados para com eles nos encontrarmos com o Senhor nos
ares (1 Tessalonicenses 4:16-17).
O dia da redenção é o dia em que Jesus voltará. Paulo chama-lhe a redenção
dos nossos corpos (Romanos 8:23) porque é nesse dia que os nossos corpos mortais
se tornarão imortais (1 Coríntios 15:50-seg.) Até agora, o mundo ainda não
compreendeu quem são os Cristãos! Tem sido algo secreto. Mas nesse dia, quando
todo o universo for libertado da servidão da corrupção e levado para a gloriosa
liberdade dos filhos de Deus (Romanos 8:21), então os filhos de Deus serão
revelados a toda a criação. Mas até esse dia e para esse dia, fomos selados com o
Espírito Santo.

A garantia do cumprimento de todas as promessas de Deus

Finalmente, precisamos de examinar o uso que Paulo faz tanto de penhor como
de selo em 2 Coríntios 1:22, Aqui, torna-se claro que o dom do Espírito Santo é
agora a nossa garantia do cumprimento de todas as promessas de Deus no futuro.
Em relação ao contexto imediato é digno de nota, primeiro, que, depois das
saudações habituais (vv. 1-2), a epístola abre com uma declaração sobre o
sofrimento cristão e o seu propósito (vv. 3-11). O espaço impede-nos uma exegese
pormenorizada desta secção, mas é indubitavelmente significativo que, como em
Romanos 8:23, a referência de Paulo ao Espírito como as primícias da redenção
vindoura do corpo se insere no contexto do sofrimento cristão, pelo que também
aqui em 2 Coríntios 1;22 o uso que ele faz de penhor e de selo em referência ao
Espírito encontra-se num contexto similar.
Em segundo lugar, é significativo que a obra do Espírito está aqui intimamente
relacionada com a compreensão de Paulo que Cristo é o cumprimento de todas as
promessas de Deus (v. 20). Os versículos 18-22 encontram-se no cerne da secção
(1:12-2:4) em que Paulo está a explicar as razões da mudança dos seus planos de
viagem. A sua insistência (v. 17) de que ele, como mensageiro de Deus, não é de
coração duplo e não se comporta inconsistentemente (que não diz «Sim» e «Não» ao
mesmo tempo) leva-o no versículo 18 a salientar a fidelidade e a consistência do
próprio Deus. A mensagem que ele lhes pregou não foi autocontraditória, pelo que a
mensagem não foi outra senão «o Filho de Deus, Jesus Cristo» (v. 19) e ele não foi
«Sim» e «Não» mas a resposta afirmativa a todas as promessas de Deus (v. 20).
Todas as promessas de Deus encontram o seu cumprimento n’Ele e no «Ámen»
falado pelos cristãos na adoração pública é a afirmação disto pela igreja. E o tema
da fidelidade de Deus continua nos vv. 21-22:

Mas o que nos confirma convosco em Cristo e o que nos ungiu é Deus. O qual
também nos selou e deu o penhor do Espírito nos nossos corações.

Em relação à palavra ungiu, Martin comenta:

O verbo... conjura associações do VT dos servos de Deus (juízes, reis,


profetas) que eram separados e comissionados para o seu cargo, derramando
azeite nas suas cabeças. Se esse é o pano de fundo aqui, a unção refere-se à
concessão de dons carismáticos destinados a equipar homens e mulheres para
a obra de Deus pela vinda do Espírito (cf. Isaías 61:1-3, citado em Lucas 4:18,
19; Actos 4:27; 10:38) (5).

Encarados desta forma, os versículos 21 e 22 podem ser parafraseados assim:

Ora, é Deus quem garante a nossa salvação e fá-lo dando-nos o Seu Espírito
que nos unge para o serviço (com os dons carismáticos subsequentes ) e cuja
presença na nossa vida não só nos marca como pertencentes e guardados por
Deus (porque o Espírito é o selo do domínio de Deus em nós), mas também é um
depósito e um antegosto da nossa salvação final.

Assim, numa passagem que abre com o tema do sofrimento cristão (vv. 3-11) e
em que ele confessa que desesperou da própria vida (v. 8), mas confia em Deus que
ressuscita os mortos (v. 10), Paulo encoraja os seus leitores, garantindo-lhes a
fidelidade de Deus (v. 18) às Suas promessas (6) que foram cumpridas em Cristo (v.
20) mas cuja garantia final de cumprimento no que diz respeito à salvação pessoal
deles é o dom do Espírito, cuja presença nas suas vidas é um penhor garantindo o
que está para vir.
A aplicação desta passagem ao tema da cura física é extremamente próxima
do da passagem de Romanos 8 que considerámos mais atrás. Ambas as passagens
reconhecem a realidade do sofrimento cristão e, na minha perspectiva, são
suficientemente latas na sua intenção a ponto de incluir a doença como parte desse
sofrimento. Ambas as passagens relacionam de algum modo o sofrimento cristão
com os sofrimentos de Cristo (Romanos 8:17; 2 Coríntios 1:5) e ambas apontam para
o futuro para a Segunda Vinda como solução derradeira.
Por fim, ambas as passagens encaram a obra do Espírito na vida do Cristão
tanto como um antegosto como uma garantia da vida vindoura. E embora as primícias
sejam o Espírito e não a cura, é o Espírito que garante os dons de cura.

Conclusão

Neste capítulo, mostrámos que Paulo usa as palavras primícias, penhor e selo
no contexto da tensão que reconhece que, ao recebermos o dom do Espírito, como
Cristão já provámos um pouco do poder e da glória da era vindoura e, no entanto,
ainda não recebemos a nossa herança integral. Por isso, temos de esperar o
regresso do Senhor, que trará -consigo a nossa adopção de filhos, a redenção dos
nossos corpos, a glória que será revelada, a manifestação dos filhos de Deus.
Nesse Dia, pelo qual a criação inteira anseia, os mortos serão ressuscitados
incorruptíveis e os que estiverem vivos serão transformados num momento, num
abrir e fechar de olhos ante o som da última trombeta, mas até esse Dia, para o
qual fomos selados, conservados e marcados pelo Espírito, temos o Espírito como a
primeira prestação e uma garantia do que está para vir.
No que diz respeito à cura, então, a cura final ocorre quando Jesus voltar de
novo. Então, todas as promessas de Deus serão finalmente cumpridas, mas
entretanto, temos o Espírito Santo. E o Espírito dá-nos um antegosto maravilhoso
do nosso futuro glorioso através dos dons de cura, que Ele distribui conforme Ele
mesmo determina. A cura é, de facto, apenas um sabor do Céu!

NOTAS
(1) Esta é uma analogia interessante. O parto, embora doloroso, é produtivo.
Produz filhos! Paulo vê a criação como uma parturiente à espera que o filho nasça. O
sofrimento vale bem a pena!
(2) A palavra que Paulo usa aqui é astheneia, que pode ser traduzida por
fraqueza ou doença.
(3) É digno de nota que a Bíblia mão recomenda, naturalmente, a prostituição,
mas reconhece a sua existência. O Velho Testamento é, de facto, muito franco a
respeito dos pecados do povo de Deus.
(4) Petts, D., The Holy Spirit – an Introduction, Mattersey, Mattersey Hall,
1998, pp. 116-119.
(5) Martin, op. cit., p. 28.
(6) Para uma discussão pormenorizada do uso da palavra promessa no Novo
Testamento e dos problemas associados à «reivindicação» das promessas, ver
Apêndice.
TERCEIRA PARTE
A CURA NA PRÁTICA

CAPÍTULO DEZANOVE

A cura no evangelismo e no ministério pastoral

A maior parte deste livro tem-se preocupado com a doutrina da cura. Isto é de
importância vital porque o que cremos sobre a cura determina o que faremos na
prática – como oramos pelos doentes, quer no evangelismo, quer no ministério
pastoral. Também irá afectar a nossa atitude para com os que não forem curados.
Neste capítulo, portanto, serão considerados os seguintes tópicos:

• defesa de uma visão biblicamente equilibrada sobre a cura


• cura dos doentes na obra do evangelismo
• oração pelos doentes no ministério pastoral
• saber lidar com sensibilidade com quem não for curado

Defesa de uma visão biblicamente equilibrada sobre a cura

Quase tudo quanto dissemos até agora neste livro tem tido com finalidade
traçar uma visão biblicamente equilibrada sobre este tema vital. Nesta fase,
portanto, um rápido resumo parece ser tudo quanto é necessário. Se aquilo que
discutimos até agora estiver correcto, então os princípios esquematizados nos três
parágrafos seguintes podem fornecer uma base doutrinal adequada para ministrar
aos doentes, seja no evangelismo, seja no ministério pastoral.
Deus revelou-se como um Deus que cura tanto no Velho como no Novo
Testamento. Jesus nunca recusou ninguém que Lhe tenha pedido cura e comissionou
a Sua igreja a curar os doentes. As curas devem acompanhar a proclamação do
evangelho com sinais a confirmar a palavra e os cristãos devem esperar a cura
através da unção com azeite e oração dos anciãos. A cura por meios naturais
através da capacidade da profissão médica deve ser também vista como um
benefício fornecido por Deus. Assim, a nossa abordagem à cura deve ser positiva e
não negativa.
Mas temos de evitar ensinos que apresentam a cura de forma tão positiva que
os que não são curados se sentem condenados ou levados a rejeitar a ajuda da
profissão médica. Isto é particularmente relevante quando a cura é apresentada
como paralela ao perdão dos pecados. A cura é uma obra do Espírito Santo e o
importante não é trabalhar com uma fórmula mas ouvir o que Deus está a dizer.
Os que não são curados de imediato devem ser tratados com sensibilidade.
Não devemos levá-los a sentir que devem ter pecado ou que lhes falta fé. Por vezes,
adoecemos porque vivemos num mundo caído. Contudo, a cura que não ocorre de
imediato deve ser esperada com perseverança. A oração deve ser persistente.
Contudo, a própria epístola que nos diz que a oração oferecida em fé curará o
doente também indica que não podemos ter a certeza de que estaremos vivos
amanhã! O importante é saber que os nossos pecados estão perdoados, A cura final
ocorrerá quando o Senhor regressar.

Cura dos doentes na obra do evangelismo

Há várias passagens importantes no Novo Testamento em que a cura está


intimamente relacionada com o evangelismo. Elas incluem Marcos 16:15-seg.;
Romanos 15:17-19 e diversas passagens em Actos – nomeadamente Actos 8, em que
o ministério de Filipe, o evangelista, é descrito. Como já examinámos estas
passagens com algum pormenor, não precisamos de voltar agora a elas. Contudo, o
resumo seguinte dos princípios que aprendemos com essas passagens pode ser útil.

1. Há relativamente pouca ênfase da necessidade de fé por parte da pessoa


doente que, no contexto do evangelismo, é em geral um incrédulo. É quem
realiza a cura que deve apresentar fé.
2. A cura é realizada no Nome de Jesus. Esta não é uma fórmula, mas significa
fazer coisas com a autoridade de Jesus. Não teremos autoridade sobre a
doença se não agirmos sob a Sua autoridade.
3. É por isso que é importante sermos guiados pelo Espírito Santo quando
ministramos aos doentes. Precisamos de ouvir o que Deus está a dizer em
cada situação.
4. No contexto do evangelismo, os discípulos não oraram pelos doentes –
curaram-nos na autoridade dada por Jesus, embora fossem rápidos a
salientar que é Deus quem cura.
5. A cura parece ser o principal, mas não o único sinal dado para confirmar a
mensagem do evangelho (Marcos 16:17-seg,).

Tendo presentes esses princípios, antes de discutirmos a cura na prática,


iremos agora considerar a cura em relação

• à fundação de igrejas e campanhas evangelísticas


• ao evangelismo na igreja local
• ao evangelismo pessoal

A cura na fundação de igrejas e nas campanhas evangelísticas

Durante a última década da sua vida, tive o privilégio de conhecer W. F. P.


Burton. Provinha de uma igreja dos Irmãos mas tornou-se pentecostal quando foi
baptizado no Espírito Santo nos primeiros anos do reavivamento pentecostal no
início do século vinte. Quando Deus o chamou para ser missionário em África,
Burton, juntamente com o seu colega James Salter, dirigiu-se ao Congo e tornou-se
responsável pela fundação da Missão Evangelística do Congo (hoje conhecida como
Missões da África Central) (1).
Em resultado do seu ministério, directa ou indirectamente, mais de 5000
igrejas foram fundadas, algumas das quais se contam hoje entre as maiores do país.
Recordo-me muito bem de Burton a pregar e a contar-nos as histórias maravilhosas
do que Deus fizera – em geral falava durante cerca de duas horas e quando
terminava, ficávamos com pena que tivesse chegado ao fim. Certa ocasião, contou-
nos como, durante as suas viagens por África, conheceu um missionário da Igreja
dos Irmãos. Ao falarem da obra que Deus os mandara realizar no Congo, o
missionário dos Irmãos mencionou que o Senhor o usara para fundar onze igrejas,
ao que Burton respondeu, Louvado seja o Senhor! Contudo, ficou um pouco
embaraçado quando o missionário dos Irmãos lhe perguntou: E quantas igrejas
fundou, irmão Burton? A resposta deste foi que andava à volta das mil e cem.
Não havia diferenças essenciais entre o evangelho pregado pelos Irmãos e o
pregado por Burton, à excepção do facto de a mensagem de Burton ser comprovada
por milagres e curas e outros sinais (2). A história da sua obra pioneira no Congo é
semelhante à dos Actos dos Apóstolos. O seu ministério prova, como sucede com
muitos outros, que Deus ainda usa milagres de cura como um acompanhamento
importante da pregação do evangelho e da fundação de igrejas.
Contudo, é interessante que Burton não realizava campanhas evangelísticas de
massas. Antes, ia de aldeia em aldeia a pregar o evangelho e a curar os doentes.
Isso não quer dizer naturalmente que as campanhas evangelísticas não têm valor.
Reinhard Bonnke é um extraordinário exemplo moderno de um homem cujo poderoso
ministério de cura tem atraído milhões ao som do evangelho nas suas campanhas em
massa ao longo de África.
E, talvez menos conhecido seja Aimé Cizeron, um pastor pentecostal francês
que em 1966 foi até à ilha da Reunião, no Oceano Índico. Alugou um salão e anunciou
cultos evangelísticos e de cura. Dentro de um mês, 5000 pessoas assistiram a estes
cultos e hoje há igrejas em todas essas ilhas, em resultado do seu ministério (3).
Na verdade, o mais importante em relação às «decisões» por Cristo
verificadas nestas campanhas evangelísticas é que os convertidos sejam
acrescentados à igreja local. Neste aspecto, um exemplo da minha experiência
pessoal pode ser útil. Quando estava a pastorear uma igreja particular, decidi
convidar um evangelista com um ministério de cura a realizar uma campanha na
nossa cidade. Preparámos os membros da igreja com antecedência, instruindo-os em
termos de aconselhamento, acompanhamento, procedimentos, etc. Alugámos o
Auditório Municipal e publicitámos por todo o lado. A literatura enfatizava
fortemente milagres de cura que já haviam ocorrido no ministério evangelístico.
Durante a campanha houve alguns milagres extraordinários de cura e mais de
600 pessoas decidiram-se para Cristo. Pensei que estávamos num reavivamento! Mas
quando visitámos as pessoas que haviam levantado a mão para aceitar a salvação,
descobrimos que muitas delas o fizeram porque queriam ser curadas! Cheguei à
relutante conclusão de que, embora o evangelista tivesse apresentado claramente o
evangelho, a mente das pessoas estava colocada na cura, pois era isso que a
publicidade enfatizava. Embora quisessem, compreensivelmente, ser curados, não
tinham qualquer intenção de seguir o Senhor. Ao fim de um ano de persistente
acompanhamento, apenas doze pessoas foram acrescentadas à nossa igreja. Doze
em seiscentas! Claro que foi um desânimo para todos nós.

Evangelismo na igreja local

A experiência que acabei de descrever levou-me à conclusão de que é


provavelmente mais bíblico deixar os milagres publicitarem-nos do que sermos nós a
publicitá-los. No Novo Testamento, os milagres eram a publicidade! Decidi que na
próxima vez que tivéssemos oportunidade, não publicitaríamos milagres, mas antes
iríamos orar para que o Senhor nos desse um milagre extraordinário de cura antes
da campanha começar e seria isso a atrair as pessoas ao som do evangelho.
Assim, começámos a orar meses antes da campanha, que se realizaria em
Junho. Então, no domingo a seguir à Páscoa, aconteceu! Foi no culto da noite e eu
estava a pregar sobre Tomé, que se encontrava ausente quando o Senhor apareceu
pela primeira vez aos Seus discípulos no domingo de Páscoa, mas a quem o Senhor
apareceu uma semana mais tarde. Lembro-me de ter dito algo de que o mesmo
Jesus que esteve tangível e visivelmente presente a Tomé estava, embora intangível
e invisível, presente connosco hoje.
Depois da pregação, enquanto cantávamos um hino de encerramento, uma
senhora de meia-idade dirigiu-se – devia dizer arrastou-se – até à frente. Foi uma
surpresa total para mim, pois ela nunca frequentara a nossa igreja e eu não
convidara ninguém a vir à frente para orarmos, como por vezes fazemos. Nem eu
mencionara a cura. Por isso dirigi-me a ela e perguntei-lhe: Em que posso ajudá-la?
Ela respondeu: Se Jesus está presente como diz que está, então pode curar-me
agora, não é?
De imediato percebi que este era o milagre pelo qual andávamos a orar. Claro
que pode!, respondi. Sê curada no nome de Jesus! E ela CORREU para cima e para
baixo da coxia, instantânea e completamente curada. Como resultado desse milagre,
a notícia espalhou-se pelo testemunho da mulher. Durante a campanha que se seguiu
cerca de vinte pessoas decidiram-se para Cristo e doze delas tornaram-se
assistentes regulares.
Ficámos todos estimulados com isto e sentimos que a nossa abordagem fora
mais satisfatória e provavelmente mais bíblica que aquela que havíamos adoptado na
campanha anterior. As curas ao nível da igreja local atraem sem dúvida pessoas ao
som do evangelho.

Cura no evangelismo pessoal

Mas o Senhor pode também usar a cura no nosso evangelismo pessoal. Isso não
quer dizer, claro, que o fará sempre (cf. Filipe e o etíope, em Actos). Um outro
exemplo da minha experiência pessoal pode ilustrar esta ideia.
Certa noite de Verão, num sábado, no meu primeiro pastorado, dirigi-me à
igreja por volta das 21 horas para arranjar uma janela que não abria. Como ainda
havia claridade suficiente, a princípio não acendi as luzes. Contudo, ao fim de alguns
minutos, percebi que precisava de mais luz e liguei o interruptor. Descobri que no
plano de Deus fora o momento certo porque daí a um minuto alguém batia à porta
(4).
Abri-a e à minha frente estava um homem, na casa dos 30 anos, com cerca de 1
metro e oitenta de altura, com lágrimas nos olhos. Reconheci-o porque, embora não
viesse à igreja, a sua avó era uma assistente regular até morrer uns seis meses
antes. Conhecera Billy no funeral e recordava-me do seu nome, Entra, Billy, disse-
lhe. Que se passa? Então, contou-me a sua história.
Fora trabalhar como de costume na sexta-feira de manhã e ficara mais tarde
do que o habitual, fazendo horas extraordinárias. Quando chegou a casa, já de
noite, chamou pela esposa, mas não houve resposta. Como não sabia onde ela se
encontrava, procurou-a pela casa. Descobriu-a no quarto, deitada na cama,
inconsciente, com um frasco vazio de comprimidos a seu lado.
Levou-a de urgência para o hospital, mas os médicos não tinham qualquer
esperança que recuperasse a consciência. No sábado não houve melhoras. Entrara
em coma. Na altura, Billy começou a desesperar. Andava de um lado para o outro em
casa quando de repente reparou numa foto da avó em cima do piano. Ah! Se ela
estivesse viva, poderia orar. Então Billy tentou orar, mas não sabia o que dizer. Por
isso, saltou para a sua moto e dirigiu-se para a nossa igreja. Ao aproximar-se,
pensou que não haveria ninguém lá dentro e preparava-se para se ir embora quando
de repente as luzes se acenderam!
Disse-lhe: Billy, vou dizer-te porque não conseguiste orar. A Bíblia diz que os
ouvidos de Deus não estão surdos para que não possa ouvir, mas os nossos pecados
criaram uma barreira entre nós e Deus. Perguntei-lhe se já tinha aceitado Jesus
como seu Salvador para perdão dos seus pecados e a resposta foi negativa. Quando
lhe perguntei se gostaria de o fazer agora, disse que sim e juntos fizemos a oração
do pecador e Billy foi maravilhosamente salvo.
Então, orámos juntos pela esposa e, ao fazê-lo, dei comigo a dizer: No nome de
Jesus, repreendo o coma e ordeno-lhe que ela recupere a consciência! Passava das
nove e meia da noite. Então, disse a Billy que a esposa ia ficar bem e ele regressou a
casa - mas assim que ele saiu, dei comigo a duvidar: Que lhe vou dizer se a esposa
morrer?
Quando Billy chegou a casa, pensou que não seria capaz de dormir, pelo que se
sentou numa cadeira. Mais tarde, testemunhou que nesse momento viu uma luz
brilhante e experimentou uma sensação de calor a fluir-lhe pelo corpo da ponta dos
cabelos à sola dos pés. A única coisa de que se lembra é que eram 9 da manhã de
domingo. Correu para o hospital para ver como estava a esposa e disseram-lhe que
saíra do coma. Por favor, pediu, pode dizer-me a que horas exactas isso aconteceu?
A enfermeira consultou o processo e respondeu: Foi exactamente às nove e meia da
noite passada. Billy pôde levá-la para casa nessa tarde. Ela também se converteu e
ambos se tornaram membros da nossa igreja.
Esta experiência, a par de outras como a que descrevi na última secção,
ensinou-me como é importante sermos guiados pelo Espírito Santo quando oramos
pelos doentes. Este será o tema principal da nossa secção seguinte. Há certas
questões práticas que temos de considerar, mas estas são relativamente pouco
importantes comparadas com a grande necessidade de ouvir o que Deus tem a dizer
pelo Seu Espírito.

Cura na prática
Como estamos a discutir a cura no contexto do evangelismo, talvez seja
necessário salientar que este não precisa de acontecer num «Culto Evangelístico»
ou numa «Campanha de Cura Divina». Pode dar-se na loja da esquina. A maioria do
evangelismo no Novo Testamento ocorreu no exterior onde os incrédulos estão!
Porque é que com tanta frequência limitamos a nossa expectativa de cura dos
doentes ao que pode acontecer num culto?
Claro que se vamos ter a fé para ver a cura nas ruas é muito importante que
sejamos guiados pelo Espírito. É demasiado fácil confundir a compaixão natural que
sentimos quando vemos alguém que, por exemplo, tem uma grave deficiência, com a
orientação do Espírito para ordenar cura no nome de Jesus! Não imaginamos
profetizar no nome de Jesus sem um verdadeiro sentido de direcção por parte do
Espírito Santo. Então, porque pensar que podemos falar cura no Seu nome sem o
mesmo sentido evidente de orientação divina?
Este paralelo entre cura e profecia é de facto bastante importante. Paulo diz-
nos que a profecia deve ser julgada cuidadosamente (1 Coríntios 14:29) e que
devemos testar tudo e reter o que é bom (1 Tessalonicenses 5:21). E isso porque,
embora os dons de Deus sejam perfeitos, são comunicados através de canais
humanos imperfeitos. Com muita frequência, precisamos da ajuda de outros
cristãos para nos ajudarem a compreender o que o Espírito Santo está a dizer. É
interessante que a maioria das curas realizadas pelos discípulos no Novo
Testamento ocorreu quando eles andavam aos pares (cf. Lucas 10:1) e na minha
perspectiva esta é uma política sensata a seguir hoje. Se não tivermos a certeza do
que o Senhor estiver a dizer, é bom termos outros cristãos para consultar sobre o
assunto.
Intimamente relacionado com isto está a questão da autoridade. Por vezes,
ouvimos pessoas a dizerem: Tomo autoridade sobre esta doença no nome de Jesus!
Isto pode parecer muito impressionante, mas nem é bíblico nem lógico. Não é
bíblico porque na Bíblia a autoridade não é tomada mas dada! Mesmo a autoridade
de Jesus foi-Lhe dada (Mateus 28:19). Não é lógico porque ou temos autoridade ou
não temos. Se a temos, não precisamos de a tomar e se não a temos, não temos o
direito de a tomar! Ela tem de nos ser dada. E só podemos saber que nos foi dada
quando ouvimos Deus sobre a questão (cf. Jesus em João 5:19).
É por isso que é de importância vital manter-nos cheios do Espírito dia a dia
5
( ). Assim que tivermos recebido o dom do Espírito, a Bíblia deixa claro que a
responsabilidade de o manter é nossa. Os Efésios que, depois de crerem, foram
selados com o Espírito Santo (Efésios 1:13), receberam a ordem de manter a
experiência, enchendo-se constantemente com Ele (5:18). De modo semelhante,
Paulo diz a Timóteo:
Lembro-te que despertes o dom de Deus que existe em ti pela imposição das
minhas mãos, porque Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza e
de amor e de autodisciplina (2 Timóteo 1:6-7)

Por estes versículos, torna-se claro que embora Timóteo tivesse originalmente
recebido o Espírito pela imposição das mãos de Paulo, este não esperava que ele
continuasse a necessitar que lhe ministrassem de contínuo a este respeito. Uma vez
recebido o fogo do Espírito, Timóteo era responsável por mantê-lo a arder.
Assim, é importante sermos cheios com o Espírito e guiados por Ele quando
ministramos aos doentes mas de que forma exacta o fazemos? Marcos 16 deixa
claro que a cura é em geral recebida através da imposição da mãos e esta é a forma
usual de ministrar a cura. Como o contexto de Marcos 16 é evangelístico, este
método é provavelmente mais bem usado quando orarmos pelos incrédulos. (Como
veremos na secção seguinte, os crentes que estiverem doentes devem ser ungidos
com óleo, de acordo com Tiago 5).
Mas importa saber em que parte do corpo do doente se devem impor as mãos?
Em certas circunstâncias, é adequado impô-las na parte afectada. Jesus colocou os
dedos nos ouvidos do surdo (Marcos 7:31-37), mas precisamos de ser
extremamente cautelosos aqui. É fundamental sermos sensíveis ao que é
culturalmente aceitável – e isso pode variar imenso de cultura para cultura! O que é
aceitável num lugar pode causar enorme embaraço num outro! Não há «regras» a
este respeito, mas genericamente falando, aconselharia que se colocassem as mãos
nas costas dos ombros da pessoa ou possivelmente na cabeça. E não há de certeza
necessidade de as abanar ou de as empurrar, como já vi ser feito!
Porém, uma outra questão é: Há problema em ajudar uma pessoa a avançar em
fé? É muito provável que tenha sido o que Pedro estava a fazer em Actos 3:7
quando segurou o coxo pela mão e o ajudou a levantar-se. Contudo, como já vimos, é
muito claro que Pedro estava seguro da autoridade que tinha em curar este homem
e precisamos de ter a certeza de termos ouvido o Senhor ou podemos provocar
graves embaraços, desânimo ou mesmo lesão à pessoa doente. A cura é um dom do
Espírito e todos os dons espirituais devem ser praticados em amor. Isto é muito
evidente quando ministramos aos doentes e qualquer estímulo que lhes possamos
dar para avançarem em fé deve ser com cuidado e consideração.
Neste aspecto, recordo-me de uma mulher de Gloucester por quem orei há
alguns anos. Padecia de osteoartrite e caminhava com grande dificuldade e muito
devagar. Depois da oração, sentimos que o Senhor a tocara e estimulámo-la a dar
alguns passos pela fé. Francamente, parecia não haver quaisquer melhoras, mas
dissemos-lhe que esperasse melhorar um pouco a cada dia.
Um mês depois, o meu amigo que me ajudara a ministrar-lhe, passava pela coxia
do Cardiff City Temple quando uma senhora lhe tocou no braço. Não se lembra de
mim? Perguntou ela. Sou a mulher por quem você e o seu amigo oraram em
Gloucester no mês passado. O meu amigo confessou não a ter reconhecido porque
ela parecia muito mais nova, mas agora via de quem se tratava. Olhe, disse ela, é
uma bênção. O Senhor curou-me completamente, Agora, já consigo lavar a roupa e
passar a ferro e ando sem dores, E pôs-se logo a demonstrar, levantando-se e
andando decidida pela coxia. Por vezes, tudo quanto as pessoas precisam é de um
pouco de encorajamento para avançarem em fé, mas como já indiquei, esta não é
uma metodologia a seguir. Não há regras a este respeito. Temos de ser guiados pelo
Espírito Santo.
O Novo Testamento também fornece diversos exemplos de outros métodos de
cura (e.g., o uso de saliva por Jesus), mas provavelmente não devem ser usadas no
contexto da nossa sociedade actual! Contudo, Ele curou por uma simples ordem sem
a imposição de mãos, como fizeram por vezes os apóstolos. Mais uma vez, o
importante não é seguir uma metodologia mas ser-se guiado pelo Espírito Santo.

Oração pelos doentes no ministério pastoral

O Novo Testamento fornece instruções claras para os Cristãos que estão


doentes. É-lhes ordenado que chamem os anciãos da igreja (i.e., os líderes da igreja)
para os ungirem com azeite no nome do Senhor e a oração oferecida em fé salvará o
doente (Tiago 5:14-seg.). Já abordámos esta passagem no Capítulo Nove, pelo que
aqui indicaremos sucintamente as questões práticas envolvidas.
Muito do que dissemos em relação à cura no evangelismo será também
relevante aqui, em especial em relação:

• À necessidade de fé por parte de quem ora (neste caso, os anciãos), não da


pessoa doente.
• À importância de compreender o significado correcto de fazer algo no
nome do Senhor.

A par disto, precisamos de notar em Tiago 5 a referência específica à oração.


Se a oração tem de ser oferecida em fé, deve basear-se no conhecimento da
vontade do Senhor (cf. Tiago 4:15) e é importante que o grupo de anciãos tenha uma
orientação definida nesta questão.
De um ponto de vista prático, levantam-se diversas questões (as razões que
apresentei no Capítulo Nove). Podemos resumi-las sucintamente em dez pontos.

1. Os cristãos com problemas menores devem ser ensinados a orarem por si


mesmos (Tiago 5:13).
2. A unção com azeite destinava-se aos que estavam gravemente doentes.
3. Portanto, deverá ocorrer em casa da pessoa doente.
4. Deve ser praticada pelos anciãos como um todo e não apenas por um deles.
Para poderem orar em fé, devem primeiro procurar saber a vontade do
Senhor sobre a questão.
5. Para evitar toda a aparência de mal, um homem sozinho não deve visitar
uma senhora sozinha para orar por ela (ou vice-versa).
6. O tipo de azeite usado não é importante (embora a palavra grega que Tiago
usa (elaion) signifique azeite) (6). É a oração e não o azeite que cura.
7. A quantidade de azeite usado não é importante.
8. Em Tiago 5, não há referência à imposição de mãos, mas também não é
proibido.
9. A questão importante é: posso orar em fé por esta pessoa? (cf. ponto 4).
10. Neste caso é apropriada a confissão dos pecados? Esta questão deve ser
abordada com extrema sensibilidade.

Saber lidar com sensibilidade com quem não for curado

O problema com a doutrinas da cura que afirma dogmaticamente que a cura


está disponível a todos é que o facto de deixarem pouco ou nenhum espaço aos que
não são curados. Por consequência, os cristãos que não encontram a cura através
destas doutrinas podem enfrentar dúvidas quanto à realidade da sua fé e do perdão
dos seus pecados. Na verdade, não é nada invulgar encontrar um sentimento de
culpa por não se ter sido curado.
A par destes problemas psicológicos, que claramente criam dificuldades aos
que procuram ajudar pastoralmente esses cristãos, surgem também dificuldades
práticas muito graves quando tais doutrinas levam à rejeição de meios médicos,
como vimos no Capítulo Dezasseis. Nesta secção final deste capítulo, mostrarei
rapidamente a razão de tais ensinos não deixarem espaço para quem não é curado e
ilustrarei por meio de um exemplo as dificuldades pastorais e práticas que têm
causado, Irei usar como exemplo a versão extrema da doutrina de que a cura está
na expiação tal como foi originalmente expressa.
Esta doutrina não deixa espaço para quem não é curado precisamente porque é
tão positiva e dogmática não apenas sobre a vontade de Deus em curar o doente
mas também sobre o que se pensa que Jesus já realizou na cruz. Um cristão não
tem necessidade de continuar doente porque Cristo levou as suas doenças
vicariamente na cruz. A compreensão por parte de A. B. Simpson de 1 Pedro 2:24 é
uma ilustração suficiente desta posição.

Aquela cruel pisadura Sua – pois a palavra é singular – resumiu em si todas as


dores e maleitas de um mundo sofredor e já não há necessidade de sofrermos
o que Ele já sofreu suficientemente (itálico meu). Assim, a nossa cura torna-se
um grande direito redentor que simplesmente reivindicamos como nossa
herança adquirida através do sangue da Sua cruz (7).

A afirmação mais recente de Gloria Copeland tem o mesmo efeito

Um cristão pode continuar doente... mas não precisa de estar (8).

Este tipo de abordagem não deixa de modo nenhum espaço para os que
estiverem doentes. Se crerem na doutrina que lhes foi ensinada, percebem que
estão doentes, mas desnecessariamente e compreendem que os outros também os
vêem assim! A dificuldade de viver com a doença é assim complementada com a
frustração de não compreensão porque se está doente quando não tem de estar e,
segundo a doutrina, não precisa de estar. São nestas dificuldades psicológicas que
concentraremos agora a nossa atenção.
Os problemas psicológicos e, consequentemente, pastorais, que surgem nesta
sequência pertencem a três áreas principais. A primeira é a dúvida sobre a fé
pessoal. De acordo com a doutrina, a cura está disponível aos cristãos e deve ser
apropriada pela fé. Se a cura não surge, o cristão doente é levado a concluir que a
sua fé é de algum modo deficiente. Por consequência, enfrenta não apenas o
problema da sua doença física, mas também a uma batalha espiritual por causa da
sua hipotética falta de fé. Por seu turno, isto pode levá-lo a interrogar-se se os
seus pecados foram perdoados e, a par disto, a uma sensação muito real de culpa.
Este sentimento de que a fé pessoal é deficiente é sem dúvida uma questão
extremamente grave, porque se a minha fé é deficiente em relação à cura (que
segundo a doutrina de a cura estar na expiação, pode muito bem ser verdade se não
for curado), então como é que eu sei que a minha fé para a salvação, o perdão dos
meus pecados não é também deficiente? E este não é um ponto meramente
académico. Após mais de 40 anos de ministério nas Assembleias de Deus e depois
de inúmeras conversas com pastores das Assembleias de Deus durante esse
período, descobri que esta questão é sem dúvida a principal área de preocupação
pastoral em relação à doutrina.
Nem tão pouco esta preocupação é recente. Há mais de meio século, o pioneiro
pentecostal Donald Gee escrevia:

Afirmar que a cura para os nossos corpos se baseia numa autoridade idêntica
da cura das nossas almas na obra expiatória de Cristo nosso Salvador pode
envolver graves problemas de fé e confiança pessoais... em que a Cura Divina,
embora «reivindicada» não foi recebida (9).

e:

Parte da infeliz maneira como a fé na Cura Divina por vezes tem sido
sinceramente promulgada... é esta contínua sugestão de que o falhanço em se
ser curado se radica em alguma profunda falha espiritual daquele que está
doente. Esta atitude tem acrescentado sofrimento mental ao sofrimento
físico e em casos extremos transformou a crença na Cura Divina num flagelo e
não num privilégio e num peso e não num alívio (10).

O «sofrimento mental» a que Gee se refere aqui provém em parte, como já


sugeri, de um sentimento de fracasso de que a pessoa não teve fé suficiente para
ser curada e em parte de uma dúvida muito real se os seus pecados foram de facto
perdoados. Mas é mais intensificada por um sentimento de culpa sentido pelo
padecente. Talvez dois exemplos da minha experiência pastoral pessoal sejam uma
ilustração suficiente.
Uma amiga que andava a sofrer pesadelos em resultado de abusos sexuais
sofridos na infância pediu orações nessa noite para ser «curada». Quando os
pesadelos regressaram, ela confessou-me que se sentia culpada a este respeito
Achava que havia alguma falha espiritual da sua parte, caso contrário os pesadelos
não teriam regressado. Os que lhe ministraram colocaram num patamar muito
elevado as suas expectativas de cura, na presunção de que desse modo estariam a
aumentar-lhe a fé, mas quando a cura desejada não ocorreu, a sua fé de facto
enfraqueceu o que resultou num profundo sentimento de culpa.
Um sentimento semelhante de culpa foi desenvolvido durante alguns anos por
uma mulher que sofria de espondilite. Ela revelou-me depois de eu ter pregado
sobre o tema de «Os Sofrimentos deste Tempo Presente», baseado em Romanos
8:18. Ensinei que era vontade de Deus que ela fosse curada caso se sentisse culpada
de raramente se sentir livre das dores. Agora, sentia-se capaz de suportar mais
alegremente a sua dor pois sentia-se livre da culpa que a condenara por não ter sido
curada.
Assim a doutrina de que a cura está na expiação, a sua forma extrema pode
levar os que não são curados a ficarem muito preocupados com a possível
deficiência da sua fé. Por seu lado, isto pode produzir tanto um sentimento de culpa
como dúvida em relação ao perdão dos pecados. O resultado final de tudo isto
poderá ser uma rejeição de toda a fé tanto por parte da pessoa não curada como
dos que, como os familiares, estiveram intimamente relacionados com o paciente
(11).
Mais ainda, segundo McConnell, tem havido insistentes relatos negativos em
relação ao tratamento de doentes terminais por parte de alguns que defendem tais
doutrinas:

Por causa da crença de que escutar uma «confissão negativa» pode infectar a
fé, não poucos do Movimento da Fé estão dispostos a não acompanhar e muito
menos ouvir os que nas suas igrejas estão gravemente doentes. Basicamente,
as igrejas da Fé têm pouco ou nenhum conceito de cuidados pastorais
prestados a um crente doente crónico ou terminal. Esse crente é evitado,
isolado e ostracizado como se fosse um descrente – que por definição é
precisamente o que ele é ou então não estaria para já doente... Talvez o facto
mais desumano revelado sobre o Movimento da Fé seja este: quando os sues
membros morrem, morrem sozinhos (12).

É claro que esta crítica não é levantada contra os que defendem a doutrina de
que a cura está na expiação, mas especificamente contra o Movimento da Fé.
Apesar de tudo, o perigo é claro. Uma doutrina que de forma tão dogmática afirma
a disponibilidade da cura acabará inevitavelmente por causar problemas aos que não
forem curados e pode, na verdade, se McConnell estiver certo é o que por vezes
fazem, afectar a atitude dos outros em relação a si.
Resumindo então, as doutrinas extremas da cura levam a uma diversidade de
problemas práticos e pastorais. Os que continuam doentes em geral experimentam
dúvidas sobre a sua fé e sobre o perdão dos seus pecados. Isto vem
frequentemente acompanhado por um sentimento de culpa e em alguns casos pode
levar à rejeição do cristianismo. A negação de sintomas e a rejeição da ajuda
médica têm resultado numa saúde muito afectada e, em alguns casos, mesmo morte.
A doutrina tem sido também a causa de tratamento duro dos que se encontram
terminalmente doentes.
Então, como devemos abordar os que permanecem doentes? Em resposta a
esta pergunta, a primeira coisa a dizer é que muitos dos problemas que acabámos de
esquematizar não surgirão se ensinarmos uma doutrina equilibrada de cura, como a
que sugeri ao longo deste livro. Esse ensino inclui o ensino bíblico do sofrimento
sugerido no Capítulo Dezassete e, se adequado, a admissão honesta de que, se a
falta de fé for o problema, o mais provável é que esta é tanto deles como nossa!
O facto de no Novo Testamento verificarmos que por vezes servos de Deus
altamente respeitados adoeceram pode ser também alguma fonte de encorajamento
para os que não forem curados. Ainda mais importante, contudo, é a afirmação de
Paulo em Romanos 8:37-39:

Mas em todas estas coisas somos mais do que vencedores por aquele que nos
amou. Porque estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os
principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a
profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus,
que está em Cristo Jesus nosso Senhor!

Nada em toda a criação pode separar-nos do amor de Deus! Em todas as coisas


está a trabalhar para o bem dos que O amam (v. 28). Mesmo que adoeçamos por
estarmos a viver numa criação caída, Deus continua a amar-nos. E se Ele tem um
propósito para nós entrarmos na comunhão dos seus sofrimentos (Filipenses 3:10),
precisamos de perceber que Ele também sabe o que é sofrer porque já entrou no
nosso sofrimento.
Os que não são curados precisam de ser estimulados com estas coisas e
continuar a confiar no Senhor. Confiar não significa tentar reunir fé suficiente para
se ser curado. Significa entregar-nos nas mãos de um Deus que nos amou o
suficiente para sofrer e morrer por nós no conhecimento de que Ele sabe o que é
melhor. Se não formos curados agora, sabemos que o Espírito Santo em pessoa, que
é as primícias da idade vindoura, é a garantia de que seremos então. Porque a
trombeta soará e os mortos ressuscitarão incorruptíveis e todos seremos
transformados! Essa é a cura final.
Entretanto, enquanto estamos à espera desse dia glorioso, aqueles que de
entre nós se encontrarem capazes e de boa saúde devem mostrar amor e compaixão
ao cuidar dos que não se encontram nesse estado. E não devemos deixar de orar
pela sua cura, porque Deus é um Deus que sara e quem sabe se Ele não nos
concederá agora mesmo um maravilhoso antegosto da idade vindoura pelo poder do
Seu Espírito?

NOTAS
(1) A história integral encontra-se em: Womersley, D. e Garrard, D. (ed.), Into
Africa, Nottingham, New Life Publishing, 2005.
(2) Burton regista como todos os sinais mencionados em Marcos 16:17-seg.
foram usados para levar muitos a Cristo. Ver Burton, W. F. P., Signs Following,.
Londres, AOG, 1949.
(3) Ver Le Perru, P., e Lebel, A. (eds.), Aimé Cizeron, pionnier de l’Océan
Indien, Deerfield, Vida, 1992.
(4) Mais tarde, ele testemunhou que não pararia se não tivesse visto luz quando
se aproximava da igreja.
(5) Para mais sobre o que significa ser-se cheio com o Espírito, ver Petts, D.,
The Holy Spirit – an Introduction, Mattersey, Mattersey Hall, 1998, Caps. 6-7.
(6) Uma vez, usei óleo de máquina (por norma utilizado nas bicicletas) porque
na altura era o que havia. É o chamado Três em Um! De certeza que o fabricante
não fazia ideia de que um dia seria usado com essa finalidade nem do significado do
nome! Mas a oração apresentada em fé fez com que o doente ficasse bom!
(7) Simpson, op. cit., p. 32.
(8) Copeland, G., God’s Will for You, Fort Worth, KCP, 1972, p. 126.
(9) Gee, D., Trophimus I left sick, Londres, Elim, 1952, pp. 21-22.
(10) Ibid., p. 12.
(11) Para um exemplo, ver Barron, B., The Health and Wealth Gospel, Downers
Grove IL, IVP, p. 130.
(12) McConnell, D. R.,A Differenbt Gospel - A Historical and Biblical Analysis
of the Modern Faith Movement, Peabody, Hendricksos, 1988, p. 166.
CAPÍTULO VINTE

A mais importante de todas as curas

Ao longo deste livro, falámos principalmente da cura física – a cura de


doenças. Por maravilhoso que isso possa ser, há um problema básico. Todos
acabamos por morrer! O nosso corpo mortal será sepultado ou cremado. Mas não é
de modo nenhum o nosso fim! Somos mais do que um corpo. Somos espírito. Temos
uma alma imortal. A Bíblia ensina com clareza que viveremos para sempre, gozando a
presença eterna de Deus ou eternamente separados d’Ele por causa do nosso
pecado. É por isso que a cura da alma é de Longe a cura mais importante de todas.
Falámos antes do modo como a Bíblia por vezes utiliza a palavra curar num
sentido metafórico para se referir ao perdão dos nossos pecados. Quando Jesus foi
acusado de se misturar com pecadores, respondeu que os são não precisam de
médico mas os que estão doentes. Ao dizer isto, estava a mostrar que o pecado, em
certo sentido, é una doença que Ele veio curar. Misturou-se com pecadores para que
eles pudessem conhecer o Seu perdão – serem curados das feridas do seu pecado.
É o que Pedro queria dizer ao afirmar: Pelas suas feridas fostes curados,
porque éreis como ovelhas desgarradas, mas agora tendes voltado ao Pastor... das
vossas almas (1 Pedro 2:24-25). Ao dizer isto, Pedro estava a citar o profeta Isaías
que, naturalmente, profetizava acerca de Jesus. Na mesma passagem (Isaías 53),
lemos que todos nos desviávamos como ovelhas. Assim, esta doença espiritual a que
chamamos pecados é algo de que todos sofremos e por cada um de nós é
responsável – ao contrário de muitas doenças físicas que «apanhamos» sem qualquer
culpa nossa. Estejamos gravemente doentes ou de perfeita saúde, todos
necessitamos de ser «curados» desta doença espiritual. Todos precisamos do
perdão dos nossos pecados.
Ora, assim que compreendermos que há uma cura mais importante que a cura
dos nossos corpos, é fácil ver como alguns dos milagres que Jesus realizou nos
corpos físicos foram também ilustrações maravilhosas dessa cura mais importante,
a cura da alma. Ao restaurar a vista ao cego, estava não só a mostrar o Seu poder e
compaixão ao realizar um milagre espantoso, como a mostrar-nos que sem Ele as
nossas vidas estavam em trevas e só quando vamos a Ele podemos ver a luz.
Ao tocar no leproso e ao curá-lo apenas com uma palavra, estava não só a
revelar a sua disponibilidade em chegar até aos que estavam marginalizados na
sociedade e a restaurá-los à relação com a comunidade, como a ilustrar o facto de
todos nós, por causa do nosso pecado, estarmos longe da comunhão com Deus, mas
que pelo seu toque purificador, podemos ser restaurados e sarados espiritualmente.
De modo semelhante, a cura do surdo e mudo e do coxo mostra como ao ir a Jesus,
podemos «ouvir» a voz de Deus, «falar» com Ele em oração e «andar» nos Seus
caminhos. Esta é a maior de todas as curtas e a Bíblia chama-lhe salvação.

Porque precisamos de salvação

A Bíblia deixa muito claro que precisamos de salvação porque todos pecámos e
porque as consequências do pecado são muito graves. Diz-nos como Deus tornou a
salvação de uma forma tão maravilhosa, enviando o Seu Filho Jesus para morrer na
cruz pelos nossos pecados. Tudo o que Ele exige de nós é que nos arrependamos e
creiamos nas boas novas!

Todos pecámos

A Bíblia é muito clara a este respeito. Diz-nos que não há ninguém que não
peque (1 Reis 8:46) e que todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus
(Romanos 3:23). De facto, todo o mundo é prisioneiro do pecado (Gálatas 3:22) e se
dissermos que não temos pecados, enganamo-nos a nós mesmos (1 João 1:8). De
facto, se formos honestos, não precisamos que a Bíblia nos diga que somos
pecadores. Qual de nós viveu de forma consistente segundo os padrões que nós
próprios estabelecemos, quanto mais os que Deus fixou? E os Seus padrões são
muito mais elevados que os nossos.

As consequências do pecado

Precisamos de salvação porque as consequências do pecado são muito graves. O


pecado é como o cancro. Destrói a qualidade de vida aqui e agora e, se não for
tratado, tem consequências terminais. Apesar de pecadores, Deus ama-nos. Mas é
precisamente porque Ele nos ama que odeia o pecado. Odeia-o por causa do que o
pecado nos faz e à sociedade como um todo. Se tivermos algum ente querido a
morrer de cancro, odiamos o cancro porque amamos a pessoa que está a ser
destruída por ele. Não admira que Deus odeie o pecado. Ele ama-nos muito!
É por isso que a Bíblia tem coisas muito fortes a dizer em relação ao pecado.
Diz que o pecador

• está doente (Mateus 9:12; Marcos 2:17)


• tem uma consciência contaminada (Tito 1:15)
• tem uma mente cega (2 Coríntios 4:4)
• ama as trevas (João 3:19)
• não compreende as coisas espirituais (1 Coríntios 2:14)
• é um néscio (Romanos 1:22)
• tem uma alma perdida (Mateus 16:26; 18:11)
• está morto nos pecados (Colossenses 2:13)
• é digno de morte (Romanos 1:32)
• vai a caminho da destruição (Mateus 7:18-19)

Sim, o pecado é coisa séria. É o que destrói as nossas vidas e a sociedade em


que vivemos. É por isso que não pode haver pecado no Céu! Se Deus permitisse
pecadores no Céu, deixava de haver Céu! Assim, as consequências do pecado são
enormes! Ultrapassam esta vida e influenciam a próxima. A Bíblia diz que Deus
estabeleceu um dia em que julgará o mundo com justiça (Actos 17:31). Diz-nos que
estamos destinados a morrer uma vez, vindo depois disso o juízo (Hebreus 9:27).
Se não for resolvido, o nosso pecado irá separar-nos de Deus para sempre. Foi o
próprio Jesus que descreveu esta separação eterna de Deus como trevas
exteriores (Mateus 8:12) e castigo eterno (Mateus 25:46). Os efeitos desta doença
espiritual a que chamamos pecados são tão devastadores que apenas o próprio Deus
poderia encontrar uma solução.

Os meios de salvação

Foi por isso que Deus enviou Jesus para morrer na cruz e levar sobre si o
castigo que os nossos pecados mereciam. É apenas ao aceitar o perdão que Ele nos
oferece gratuitamente em Cristo que podemos escapar ao juízo de Deus porque
quem rejeitar o Filho (Jesus) não verá a vida, porque a ira de Deus permanece
sobre ele (João 3:36).

O remédio de Deus – a morte de Seu Filho

Paulo diz-nos que Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos
ímpios. Mas Deus prova o seu amor para connosco, em que Cristo morreu por nós,
sendo nós ainda pecadores (Romanos 5:6, 8). De facto, esta foi a razão pela qual Ele
veio ao mundo – para salvar os pecadores (1 Timóteo 1:15). E Pedro diz o mesmo por
outras palavras:
Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos para levar-nos a
Deus (1 Pedro 3:18).

A nossa responsabilidade – arrependimento e fé

Assim, Jesus veio salvar-nos a todos do pecado. Mas se queremos ser


«curados» da mais terrível de todas as doenças não basta saber que Ele pode. Como
o leproso, precisamos de ir a Ele e dizer: Jesus... tem misericórdia de mim. Como a
mulher com a hemorragia interna, temos de avançar e tocar-Lhe. É então que
conheceremos a verdade das Suas palavras. A tua fé te salvou. Mas, exactamente,
como é que Lhe tocamos? Como recebemos esta «cura», esta salvação? A Bíblia diz-
nos que tudo o que temos de fazer é arrepender e crer nas boas novas do
evangelho.

O arrependimento é importante porque significa reconhecer a gravidade do


nosso pecado. Se sabemos que alguma coisa está a matar-nos, é loucura não nos
afastarmos. Precisamos primeiro de compreender a gravidade da doença e o que ela
nos está a fazer e então fugir dela. O arrependimento é exactamente isso. Jesus
disse: Se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis (Lucas 13:3). Foi
pró isso que Ele disse aos Seus discípulos que o arrependimento deveria ser
pregado a todas as nações (Lucas 24:47 e a razão de Paulo dizer que Deus ordena a
todos os homens e em todo o lugar que se arrependam. (Actos 17:30).
E crer também é importante. É por isso que é importante sermos salvos de
outro modo. Nunca nos podemos curar a nós próprios da nossa doença do pecado.
Nenhuma quantidade de boas obras, de tentativas, de virar de página poderá jamais
ser a resposta. Apenas Deus tem o remédio. Jesus levou sobre Si de uma vez e por
todos o castigo dos nossos pecados. Tudo o que temos a fazer é crer nisso! Jesus
disse-nos que

Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho Unigénito para que todo
aquele que n’Ele crer não se perca mas tenha a vida eterna (João 3:16).

Pedro declara que todos os que nele crêem receberão o perdão dos pecados
pelo seu nome (Actos 10:43) e Paulo disse aos Romanos que não se envergonhava do
evangelho de Cristo, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que
crê (Romanos 1:16).

Tens a certeza de que quando morreres vais para o céu? Essa segurança é mais
valiosa que qualquer cura física que possas receber. A salvação, o perdão dos teus
pecados e a certeza de um lar no Céu é de longe a cura mais importante de todas.
Se gostarias de a receber agora, eis uma oração que te ajudará. Se a fizeres com
sinceridade, serás salvo.

Senhor Jesus, venho agora a Ti. Admito que sou um pecador e que
preciso do teu perdão. Creio que quando morreste na cruz, levaste
sobre Ti todo o castigo que os meus pecados mereciam. Afasto-me
agora mesmo dos meus pecados. A partir deste dia, viverei para Ti.
Entra na minha vida e sê meu Salvador. Obrigado por morreres por mim.
Obrigado por me salvares. Obrigado pelo dom da vida eterna. Obrigado,
Senhor Jesus.
AMEN.
APÊNDICE

Problemas com a reivindicação de promessas

A maioria das referências à palavra «promessa» (Grego, epaggelia) no Novo


Testamento encontram-se em Lucas/Actos, nos escritos de Paulo e em Hebreus. Em
Lucas/Actos, no que diz respeito às citações de passagens do Velho Testamento
parece haver à primeira vista uma pluralidade de «promessas». Quando Lucas usa
epaggelia, em geral cita, ou pelo menos parece ter em mente uma afirmação
atribuída a Deus no Velho Testamento. Em Actos 7, a promessa referida nos vv. 5 e
17 é claramente Génesis 15:13-14 que é citada nos vv. 6-7. De modo semelhante, em
Actos 13:23, 32-33, diz-se que Deus prometeu aos «pais» que Cristo ressurgiria
dos mortos e nos vv. 33-35, Salmo 2:7; Isaías 55:3 e Salmo 16:10 são citadas como
prova disso.
As referências do Espírito Santo como a promessa do Pai (Lucas 24:49; Actos
1:4) são acompanhadas sem citação imediata do Velho Testamento, mas que Joel
2:28-seg. está na sua mente é deixado claro em Actos 2:17-seg. Há assim em
Lucas/Actos várias citações do Velho Testamento que podem ser muito bem
compreendidas como tendo sido encaradas como «promessas».
Contudo, uma análise mais atenta do uso que Lucas faz de epaggelia sugere que
tal perspectiva é uma simplificação em excesso. Na verdade, pode ser significativo
que Lucas nunca se refere especificamente a uma citação do Velho Testamento
como uma promessa e nunca usa epaggelia no plural. E isso talvez porque ele
compreende que há de facto apenas uma promessa ou, para utilizar a terminologia
paulina, que todas as promessas de Deus encontram o seu cumprimento em Cristo (2
Coríntios 1:20). Há uma forte sugestão em Actos 13:32-33 que para Lucas a
promessa é o evangelho:

Nós vos anunciamos que a promessa que foi feita aos pais. Deus a cumpriu a
nós, Seus filhos, ressuscitando Jesus.

À excepção de Actos 23:21, em que os Judeus na sua tentativa de matar Paulo


esperam a promessa do comandante, epaggelia é utilizado em Lucas/Actos para se
referir:

(1) à promessa de Deus a Abraão e à sua semente (Actos 7:5-7, 17)


(2) a Cristo e à Sua ressurreição (Actos 13:23, 32-33; 26:6)
(3) ao dom do Espírito (Lucas 24:49; Actos 1:4; 2:33, 39).
Esta análise indica que para Lucas epaggelia é essencialmente um termo
messiânico. A promessa feita aos pais (Actos 26:6-7) foi uma promessa que as doze
tribos, servindo a Deus dia e noite, esperavam que viesse. Foi uma promessa que
encontrou o seu cumprimento na ressurreição de Jesus (Actos 13:32-33; 26:8). E a
ressurreição de Jesus foi a chave para o cumprimento da promessa de Deus em
relação ao Espírito (Actos 1:3-5).
Assim, para Lucas, epaggelia aponta principalmente para a ressurreição de
Cristo e para o dom resultante do Espírito à Igreja. Como Schniewind e Friedrich
salientam, epaggelia é:

um termo específico para a palavra de revelação divina na história da salvação.


É uma palavra que expressa não apenas a promessa mas também o cumprimento
do que é prometido (1)

Em suma, se Lucas compreende certos versículos do Velho Testamento como


sendo as promessas Deus em lado nenhum indica que sejam para serem apropriadas
pelos Cristãos à sua vontade e «reivindicadas» para si mesmos. Antes, são a
declaração da intenção divina de que Deus realizará o Seu propósito na história,
através da vinda do Messias, pela sua morte e ressurreição e através da
consequente dádiva do Espírito. Para Lucas esta é a promessas. É também o seu
evangelho.
Uma compreensão semelhante é rapidamente discernível nos escritos de Paulo.
Embora diversas passagens do Velho Testamento sejam claramente compreendidas
como «promessas», o uso de epaggelia centra-se no mesmo tema que em
Lucas/Actos, a promessa a Abraão e à sua semente (2), o próprio Cristo (3) e a
dádiva do Espírito (4). As promessas são messiânicas pois é o próprio Cristo que é o
cumprimento dessas promessas (Romanos 15:8; 2 Coríntios 1:20).
Assim, o contexto das promessas, o benefício prometido, seja herança
(Romanos 4:13; Gálatas 3:18, 29), seja vida (Gálatas 3:21; Romanos 4:17), seja
justificação (Gálatas 3:21), seja o Espírito (Gálatas 3:14; Efésios 1:13), seja filiação
(Gálatas 4:22-seg e Romanos 9:8), é sempre salvação messiânica. Daí ser possível
falar tanto de promessas no plural como também de promessa. As promessas foram
cumpridas em Cristo (Romanos 15:8). Ele é o Sim da promessa de Deus, o
cumprimento da salvação em pessoa. Pelo facto de ter vindo à terra, Deus é dono
das suas promessas pois elas foram todas cumpridas n’Ele (2 Coríntios 1:20) (5).
Assim, tanto nos escritos de Paulo como nos de Lucas, a promessa é
virtualmente indistinguível do evangelho. As promessas não são alguma coisa a ser
«reivindicada» pelos cristãos porque em Cristo elas já foram cumpridas. Contudo,
há um sentido em que ainda se espera o seu cumprimento final porque se Cristo é
Ele mesmo o cumprimento de todas as promessas de Deus, esse cumprimento está
cumprido para o Cristão na dádiva do Espírito, que é o penhor e o selo de uma
herança que ainda se situa no futuro (2 Coríntios 1:20-22; Efésios 1:13-14). Cristo é
o cumprimento de todas as promessas de Deus e o Espírito é o penhor de Deus para
o cristão de que o seu cumprimento final está garantido na idade vindoura. A tensão
já/ainda não do reino de Deus é assim claramente manifesta em relação às
promessas de Deus e isso na minha perspectiva deve incluir as «promessas» de
cura.
Até agora, sublinhei a ênfase tanto em Lucas como em Paulo de que a promessa
é fundamentalmente um termo para a palavra de revelação divina na história da
salvação. Isso não significa negar que os ditos específicos do Velho Testamento
atribuídos a Deus sejam eles mesmos por vezes referidos como promessas (6). Deve
antes enfatizar que tais ditos mesmo quando referidos como promessas são
essencialmente messiânicas na sua intenção. Não são o tipo de «promessas» que um
Cristão «reivindica» para si, pois elas já foram cumpridas em Cristo e o dom do
Espírito é a garantia do cristão de que elas acabarão por ser finalmente cumpridas
na vinda de Cristo. Mas uma ênfase semelhante pode ser detectada em Hebreus, em
que o uso de promessa também surge com muita força?
Em Hebreus, as promessas foram recebidas por Abraão (6:13-seg., Isaac e
Jacob (11:9), Sara (11:11), os Juízes, Reis e Profetas (11:32-33) e o povo judeu (4:1-
seg.) Promessas específicas incluíam a terra de Canaã (11:9), o repouso (4:1), uma
posteridade (6:14; 11:11-12) e uma herança eterna (9:15). Mas todas as promessas
de Deus convergem na salvação messiânica que ainda se situa no futuro. Abraão
viveu na terra que lhe fora prometida quando ainda ali vivia como forasteiro, à
espera do cumprimento final da cidade de Deus que ele viu contida na promessa que
lhe fora dada (11:8-seg). Os pais morreram na fé, sem terem recebido as
promessas, mas vendo-as de longe procuravam uma pátria celeste (11:13-16).
Assim, há em Hebreus uma forte ênfase escatológica em relação às promessas
de Deus, havendo ainda um sentido em que o cumprimento já está realizado em
Cristo. O novo concerto estabelecido em «melhores promessas» (8:6) é trazido ao
seu cumprimento com a morte de Cristo (9:15). Este concerto dá aos que são
chamados a herança eterna prometida (9:15) que o crente paciente receberá e a
vinda do Senhor que em breve ir ocorrer (10:35-37), Entretanto, como alguém que
recebeu o Espírito, ele já provou os poderes da idade vindoura (6:4-5).
Portanto, a ênfase em Hebreus não é de modo nenhum dissemelhante da que
encontramos em Lucas e em Paulo. Os versículos do Velho Testamento são citados e
referidos como promessas, mas são essencialmente messiânicos. já cumpridos em
Cristo e, sendo cumpridas integralmente com a Segunda Vinda, os Cristãos
encontram-se numa tensão entre o que já é e o que ainda não é, mas nesse interim
têm o Espírito.
E as poucas referências às «promessas» entre outros escritores
neotestamentários, embora oferecendo um quadro muito menos completo, tendem
largamente a confirmar o que já foi dito. Em Tiago, promessa aponta para a coroa
da vida (1:12) e para o reino (2:5) que Deus prometeu aos que O amam. Em 2 Pedro
está fortemente ligado à vinda do Senhor (3:4, 9, 13) e em 1 João 2:25 é usada para
se referir à vida eterna. Não temos espaço para uma exegese pormenorizada de
qualquer destes versículos, mas eles parecem sem dúvida harmonizar-se com a
compreensão que discernimos em Lucas/Actos, Paulo e Hebreus. As promessas de
Deus centram-se na salvação que é oferecida ao homem em Cristo. Estas promessas
já se cumpriram em primeiro lugar com a vinda de Cristo mas encontrarão o seu
cumprimento final na Segunda Vinda. No entretanto, Deus providenciou a dádiva
escatológica do Espírito tanto como garantia como um antegosto da idade vindoura.
Assim, neste breve estudo da palavra promessa indica claramente que o Novo
Testamento não oferece garantia para a prática de os cristãos pegarem nos
versículos bíblicos e os «reivindicarem» como «promessas». Com isto, é claro, não
estamos a sugerir que as promessas de Deus nada significam para o cristão hoje.
Mas de um modo muito claro, os versículos bíblicos não devem ser retirados
indiscriminadamente do seu contexto e reivindicados como «promessas» como se o
versículo em causa fossem as palavras directas de Deus para o leitor. (Isto é
obviamente o que acontece quando um cristão fisicamente doente «reclama» para si
1 Pedro 2:24 e insiste que não está de facto doente, na base de já ter sido curado
pelas pisaduras de Jesus!). Pelo contrário, o entendimento de que todas as
promessas de Deus encontram o seu cumprimento em Cristo enriquece a
compreensão do Cristão a respeito da salvação de que essas promessas falam. As
promessas, como a salvação, estão tanto cumpridas, como por cumprir. Em Cristo, o
cristão já recebeu o cumprimento de todas as promessas de Deus, embora o
resultado final de muitas dessas promessas se situe ainda no futuro. Para esse
cumprimento, o Cristão aguarda a idade vindoura. Entretanto, tem o dom prometido
do Espírito que não é apenas um antegosto da idade vindoura, mas também a sua
garantia.
Mas há uma outra dificuldade com a noção de que Deus pretende que
reivindiquemos as Suas promessas. Radica na própria natureza de quem Deus é e
centra-se na questão de saber se é adequado falar de «reivindicar» uma promessa
feita por Deus. Isto, claro, não significa afirmar que a frase «reivindicar uma
promessa» nunca tem significado. Na verdade, não é difícil encarar circunstâncias
em que tal frase pode muito bem ser usada com sentido. É antes desafiar a
adequação de tal terminologia em referência às promessas de Deus.
Concomitantemente, apresenta quatro razões principais porque acredito ser
inadequado que um cristão fale em reivindicar as promessas de Deus.
Primeiro, a ideia de que devemos reivindicar as promessas de Deus não é
bíblica. Isso quer dizer não só que o entendimento de que os versículos bíblicos
compreendidos indiscriminadamente como promessas não é bíblico como a noção de
que as promessas contidas na Bíblia devem ser «reivindicadas» não é igualmente
bíblica. Das setenta referências no Novo Testamento a epaggelia e seus cognatos
nem uma é usada em conjunção com o verbo «reivindicar» ou «reclamar».
Lucas usa lambano (receber) em ligação com epaggelia e em cada ocasião
refere-se ao dom do Espírito, Cristo recebeu do Pai a promessa do Espírito (Actos
2:33) e à multidão no dia de Pentecostes é dito que se arrependam e sejam
baptizados e receberão o dom do Espírito, porque a promessa é para vós... (Actos
2:38-39). A promessa do Espírito era algo que os discípulos foram instruídos a
esperar (permeno, Actos 1:4) e que, a partir do Pentecostes devia ser recebida
(lambano, Actos 2:38) pelos que se arrependessem e cressem.
Paulo também usa lambano em ligação com a promessa do Espírito (Gálatas
3:14). Aqui, a promessa é recebida «pela fé» (cf. v. 2) e é vista como resultado da
obra redentora de Cristo na cruz (vv. 13-14). É talvez aqui, se é que surge algures
no Novo Testamento, que mais nos aproximamos da ideia de uma promessa a ser
reivindicada, pois pode argumentar-se que há pouquíssima diferença entre receber
uma promessa pela fé e reclamá-la. Mas mesmo que isto seja permitido, é digno de
nota que Paulo de facto não usa a terminologia de reivindicar – pode aproximar-se
muito da ideia de receber pelas obras, uma noção que está preocupado em denunciar
- e que é o Espírito, não a cura, a que se está a referir.
Paulo também usa echo (ter) em relação a epaggelia. Em 2 Coríntios 7:1, diz-se
que os Cristãos têm, certas promessas e como resultado são estimulados a serem
santos. As promessas aqui referidas são citadas no capítulo anterior (vv. 16-18).

Neles habitarei e entre eles andarei e eu serei o seu Deus e eles serão o meu
povo (v. 16, cf. Levítico 26:12).

E eu serei para vós Pai e vós sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor
Todo-poderoso (v. 18, cf. 2 Samuel 7:14).

Aqui, não há claramente nenhum sentido em que estas promessas se destinem


a ser «reivindicadas». Para Paulo, estas promessas, como todas as de Deus,
cumpriram-se em Cristo (2 Coríntios 1:20) e é porque ele compreende que os
Cristãos as «têm» agora que pode exortar os seus leitores a serem santos. Por
causa de Cristo, Deus vive convosco, diz ele, sois o Seu povo, Ele é vosso Pai e vós
Seus filhos e filhas, pelo que vivei concordantemente, sede santos. Assim, as
promessas aqui referidas não devem ser reivindicadas porque já as «temos», já são
nossas. Não há nada mais que possa ser feito para as fazer cumprir, pois estão
cumpridas em Cristo. Pelo contrário, aceitando que é assim, os Cristãos devem viver
como aquilo que são, o povo escolhido de Deus.
O autor de Hebreus usa um leque mais vasto de verbos em ligação com
epaggelia. Usa lambano (9:15; 11:13) e echo (7:6( mas também komizo (10:36;11:39)
e anadechomai (11:17) que parecem ser ambas intercambiáveis com lambano (cf.
11:13 e 39). Em nenhuma destas passagens há qualquer sugestão de que as
promessas devam ser «reivindicadas». Na verdade, em 10:36 a necessidade de
perseverança (hupomone) é salientada a fim de se receber a promessa.
E perseverança não está seguramente longe de paciência (makrothumia) que
está relacionada tanto aos restantes verbos usados em Hebreus em relação a
epaggelia. As promessas são consideradas como tendo sido «obtidas» (epitugkano)
com paciência (6:15, cf. 11:33) e pela paciência serão «herdadas» (kleronomeo)
(6:12, cf. 6:17; 11:9). Assim, longe de apoiar a noção de que as promessas devem ser
activamente reivindicadas, o autor de Hebreus insiste que devem ser esperadas
com firmeza e paciência.
Portanto, este breve resumo do uso de verbos utilizados no Novo Testamento
em ligação com epaggelia de modo nenhum indica que os escritores
neotestamentários compreendiam que as promessas se destinavam a ser
reclamadas. Pelo contrário, como já salientámos, as promessas de Deus eram vistas
essencialmente como messiânicas, tanto cumpridas já em Cristo como não tendo
ainda atingido o seu cumprimento final que apenas ocorrerá na vinda do Senhor,
cujo cumprimento final os cristãos esperam paciente e perseverantemente, sabendo
que o dom presente do Espírito é o penhor de Deus de que tudo será cumprido na
idade vindoura.
Assim, a minha primeira razão para rejeitar a noção de que as promessas de
Deus devem ser reclamadas é o facto de o conceito não ser bíblico. A segunda
relaciona-se com a fidelidade de Deus. O autor aos Hebreus salienta em particular
que as promessas de Deus são de confiança. Os cristãos devem manter-se
inabaláveis presos à esperança que professam, porque fiel é o que prometeu (10:34,
cf. 11:11). A esperança do Cristão é firme e segura (6:199, uma âncora para a alma
porque o propósito de Deus é sem arrependimento (6:17).
Outros versículos do Novo Testamento também salientam a fidelidade de Deus
e a fiabilidade das Suas promessas e à luz disto parece-me muito impróprio que um
cristão seja encorajado a «reivindicar» o que Deus prometeu. A resposta adequada
a uma promessa de alguém que seja de confiança total é sem dúvida uma
confiança simples e implícita de que ele cumprirá o que disse, não uma
insistência nos direitos da pessoa na base de que ele o disse! Tal insistência não
leva em conta a paciência a que já nos referimos.
Em terceiro lugar, se a minha análise até agora estiver correcta, as promessas
de Deus são não apenas fiáveis, mas também soteriológicas. Isso quer dizer que,
tanto quando são fundamentalmente messiânicas, tendo o seu cumprimento em
Cristo, encontram também o seu cumprimento na salvação que Cristo nos concedeu.
Essa salvação levou o cristão através da expiação até à correcta relação com Deus,
pelo qual ele compreende que Deus é seu Pai.
Ora, é precisamente aqui que encontro dificuldade na ideia de «reclamar» as
promessas de Deus. Se me pode ser permitida uma ilustração pessoal, mantive ao
longo da minha vida uma relação muito calorosa e íntima com o meu pai terreno
enquanto ele foi vivo. Dele nada conheci a não ser amor, mesmo que nos meus dias
de infância, esse amor fosse por vezes temperado com a disciplina. Sinto-me
privilegiado por ter sido seu filho e por causa do tipo de pai que ele foi, não só o
amava como confiava nele e o respeitava. Era tanta a minha relação com ele que eu
sabia que, se ele me tivesse prometido algo que estivesse ao seu alcance cumprir,
iria sem dúvida cumprir a sua palavra. Reivindicar tal promessa – dizendo: «Pai,
insisto que me dês o que me prometeste. Dá-me agora mesmo. Exijo como meu
direito. Tu prometeste» - teria sido duvidar do seu amor, impugnar a sua
integridade e pôr em causa a sua fidelidade. Mas como eu confiava nele e o
respeitava, não me passava pela cabeça falar-lhe assim! Concordantemente, parece-
me que o Cristão que sente a necessidade de «reclamar» as promessas de Deus
ainda não compreendeu plenamente quanto o seu Pai o ama.
E finalmente, se a noção de que as promessas de Deus precisam de ser
reclamadas deve ser rejeitada na base de serem soteriológicas, porque se a
promessa encontra o seu cumprimento em Cristo e na salvação que Ele trouxe, elas
encontram o seu cumprimento numa salvação escatológica. Por outras palavras, as
promessas de Deus devem ser entendidas à luz da tensão entre o já e o ainda não, a
que já me referi.
Concluo, assim, que a prática, dominante entre os que ensinam que Jesus
morreu pelas nossas doenças tal como morreu pelos nossos pecados, de
«reivindicar» versículos bíblicos como «promessas» de Deus não encontra bases no
Novo Testamento. A alternativa bíblica a reivindicar promessas é ser-se guiado pelo
Espírito!

NOTAS
(1) Schniewind, J. e Friderich, G., artigo επαγγελια in TDNT, ed. G. Kittel, ET
G. W. Bromiley, Grand Rapids, Eerdmans, 1977, Vol. 2, p. 582.
(2) Romanos 4:13, 14, 16, 20, 21; 9:4, 8-9; Gálatas 3:14-29; Efésios 2:12.
(3) Romanos 15;8; 2 Coríntios 1:20.
(4) 2 Coríntios 1:20-22; Gálatas 3:14; Efésios 1:13.
(5) Parágrafo extraído, com pequenas simplificações, de Schniewind, J. e
Friedrich, G., op. cit, pp. 583-584
(6) Romanos 15:8 e 2 Coríntios 6:16-7:1 são claros exemplos do que acabámos
de dizer.
Bibliografia recomendada

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