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Rudolf Steiner

Antropologia meditativa
Contribuição à prática pedagógica

Quatro conferências proferidas em Stuttgart (Alemanha), de


15 a 22 de setembro de 1920

Tradução:
Rudolf Lanz

1
15 de setembro de 1920

O processo pedagógico vivo

Meus queridos amigos, eu tinha a intenção de oferecer-lhes, durante estes


dias que posso passar aqui, uma espécie de complementação a vários assuntos
expostos nos cursos pedagógicos introdutórios do ano passado 1; só que os dias
disponíveis são tão poucos, e, conforme acabo de ouvir, os compromissos para
os próximos dias são tantos, que mal posso falar de qualquer programação ou
dizer se haverá uma complementação às poucas palavras introdutórias que vou
pronunciar hoje.
Oque hoje pretendo dizer, nesta introdução, são alguns acréscimos ao que
foi exposto no ano passado, a respeito do próprio professor e educador como
tal. O que vou dizer sobre a essência do professor terá um caráter aforístico, de
modo que só paulatinamente se configurará melhor para os Senhores, à medida
que for trabalhado por seu próprio pensar e sentir. Cumpre chamarmos a
atenção dos professores — e, ao fazer esse chamado, fazemo-lo baseados na
Ciência Espiritual de orientação antroposófica, a partir da qual pretendemos
criar a pedagogia necessária à nossa época — para a necessidade de o
professor ter um sentimento, uma sensibilidade em relação ao que constitui a
essência do ‘esotérico’. No tempo atual, na época da democracia, na época das
comunicações de massa, é difícil ter um sentimento real e verdadeiro do que se
quer expressar com o termo ‘esoterismo’, pois hoje em dia se acredita que o
que é verdadeiro é verdadeiro e o que é correto é correto; e tendo o verdadeiro
e o correto encontrado alguma formulação, então isso deveria ser exposto
publicamente, da forma como se pensou tê-lo corretamente formulado. Ora, na
vida real não é assim que acontece; aí as coisas se comportam de forma bem
diferente. Na vida real, acontece que só se pode desenvolver certas atuações
quando se cuida, dentro da alma, dos impulsos para elas como se de um
relicário sagrado. E especialmente o professor teria necessidade de cuidar de
muitas coisas como se fossem um relicário sagrado, considerando-las como algo
a ser cultivado apenas nas ocasiões e reuniões que acontecem no corpo
docente. De antemão, uma frase como essa não parece ser muito
compreensível; mas ela se tornará clara para os Senhores. Eu teria de dizer
muitas coisas para torná-la compreensível; contudo, ela começará a sê-lo
quando eu disser o que vem a seguir.
Essa frase que acabo de mencionar possui, hoje, um significado abrangente
para a civilização do mundo. Ao pensarmos hoje na educação da juventude,
devemos ter sempre em mente o fato de estarmos plasmando os sentimentos, as
representações mentais e os impulsos volitivos da próxima geração; devemos
estar cônscios de que nos cabe, a partir da época presente, preparar a próxima
geração para determinadas tarefas que devem ser realizadas no futuro da
humanidade.
Ora, ao fazermos tal afirmacão surge logo a pergunta: de onde vem a
situação calamitosa em que a humanidade se encontra atualmente? A
1 Cursos realizados por ocasião da fundação da Escola Waldorf Livre de Stuttgart, em 1919.
Divididos em três ciclos ministrados paralelamente (manhã, tarde e noite) durante catorze
dias, foram publicados em três volumes subseqüentes (293, 294 e 295) da Edição Completa
(Gesamtausgabe). Ed. brasileira sob o título coletivo A arte da educação, 3 vols. [vol. I: O
estudo geral do homem, uma base para a pedagogia, trad. Rudolf Lanz e Jacira Cardoso (2.
ed. São Paulo: Antroposófica, 1995); vol. II: Metodologia e didática, trad. Rudolf Lanz (São
Paulo: Antroposófica, 1992); vol. III: Discussões pedagógicas, trad. Rudolf Lanz (em preparo)].
(N.E.)

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humanidade chegou a essa situação calamitosa porque se fez totalmente
dependente da maneira específica como o homem ocidental costuma formar
representações mentais e sensações.2
Pode-se dizer que se hoje alguém na Europa Central falar, por exemplo, de
Fichte, Herder ou mesmo Göethe3 estará, no fundo, muito mais distante de um
verdadeiro impulso espiritual inerente a esses pensadores do que daquilo que
se pensa e sente em Londres, Paris, Nova Iorque ou Chicago — e isso
principalmente ao se tratar de um indivíduo de certa projeção na vida pública,
seja como jornalista, autor de livros populares ou coisa semelhante (mesmo se
este estiver pensando e atuando em Berlim ou Viena). Acontece que os impulsos
ligados à cosmovisão dos povos ocidentais têm inundado toda a nossa
civilização, e toda a nossa vida pública está impregnada por eles. E devemos
acrescentar que isso ocorre em escala toda especial na arte da educação — pois
desde o último terço do século XIX os povos da Europa Central se deixaram
influenciar, em todos esses assuntos, pelos povos ocidentais. As pessoas que dis-
cutem, dentre outras coisas, questões educacionais, parece até natural
raciocinar de acordo com a mentalidade que nos chega de lá.
Se os Senhores procurarem a origem de tudo o que, em matéria de
pedagogia, se julga sensato na Europa Central, irão encontrá-la, por exemplo,
nas idéias de Herbert Spencer 4 ou de gente similar. Não se costuma investigar
os numerosos caminhos pelos quais as idéias como as de Spencer ou
semelhantes têm penetrado nas mentes que determinam, na Europa Central, os
parâmetros das questões espirituais. Mas esses caminhos existem — estão aí. E
se considerarmos o espírito de uma doutrina pedagógica tal como se manifesta,
por exemplo, em Fichte — nem quero entrar nos detalhes —, veremos que não
só esse espírito é algo totalmente diferente do que hoje se costuma considerar
pedagogia sensata, como ainda constataremos a incapacidade dos homens
modernos para dar, ao seu pensar e sentir, uma orientação tal que as idéias de
Herder ou Fichte possam realmente ser compreendidas a ponto de ganharem
continuidade. Então fazemos no âmbito da pedagogia, da arte pedagógica, a
experiência segundo a qual se tornou princípio básico o contrário do que
deveria prevalecer. Quero chamar sua atenção, a esse respeito, para uma
observação feita por Spencer.
Spencer acha que o ensino baseado na observação deveria ser ministrado
de forma a passar diretamente às investigações e pesquisas do cientista.5 O que
deveria, então, ser feito na escola? Deveríamos ensinar as crianças de maneira
tal que, ao tornarem-se adultas e terem a oportunidade de continuar o que
houvessem recebido na escola a respeito dos minerais, vegetais, animais, etc., e
pudessem vir a ser autênticos cientistas ou filósofos. É verdade que muitas
vezes isso é contestado, mas na prática costuma-se assumir a atitude que acabo
de descrever. Assim se age por serem os livros didáticos redigidos com esse
intuito, não havendo pessoa alguma que cogite de modificar ou abolir esses
livros. A verdade é que, por exemplo, os livros didáticos sobre botânica foram
redigidos para futuros botânicos, mas não para indivíduos comuns; da mesma

2 Steiner, que dirige essas palavras a um público alemão, habitante da Europa Central, entende
por ‘homens ocidentais’ ou ‘povos ocidentais’ os habitantes da França, da Inglaterra, dos
Estados Unidos, etc. (N.T.)
3 Johann Gotlieb Fichte (1762—1814), filósofo alemão defensor do idealismo ético; Johann
Gottfried von Herder (1744—1803), poeta e filósofo cultural alemão; Johann Wolfgang von
Göethe (1749—1832), poeta, escritor e pesquisador da natureza, considerado o maior
expoente da literatura alemã. (N.E.)
4 Filósofo inglês (1820—1903) fundador da ‘filosofia evolutiva ou sintética’. (N.E.)
5 V. Herbert Spencer, Die Erziehung in intellektueller, moralischer und physischer Hinsicht
(Leipzig, 1910). (Cf. N.E. orig.)

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maneira, os livros didáticos sobre zoologia são escritos para futuros zoólogos, e
não para seres humanos em geral.
O fato curioso é que se deveria almejar exatamente o oposto ao que
Spencer considera como sendo princípio pedagógico. Não podemos imaginar, no
ensino das quatro primeiras séries, erro maior do que educar os alunos de
acordo com um método de ensino em que uma matéria — por exemplo, relativa
a plantas e animais — possa ser continuada de maneira a, mais tarde, fazer do
aluno um botânico ou um zoólogo. Ao contrário, atinge-se algo bem mais
correto do que o princípio de Spencer ao ministrar, sobre plantas e animais, um
ensino que evite de as crianças se transformarem em botânicos ou zoólogos.
Pois ninguém deveria tornar-se botânico ou zoólogo pelo que aprende no
primeiro grau, e sim por sua inclinação particular, que se manifestaria no
decorrer da vida por meio da seleção no âmbito de uma arte pedagógica
correta. Por sua inclinação particular! Isto significa que um indivíduo será
botânico se possuir inclinação para tal; e se acaso possuir inclinação para ser
zoologo, então poderá sê-lo. Essa escolha deverá também levar em conta o
carma predeterminado, a lei do destino. Isso deve ocorrer ao constatarmos:
neste reside um futuro botânico, naquele um futuro zoólogo. Nunca o ensino de
primeiro grau deve constituir uma espécie de preparo para uma área científica
particular.
Mas vejam só o que ocorreu ultimamente: infelizmente, foram nossos
cientistas que fizeram a pedagogia. Pessoas acostumadas a um raciocínio
científico fizeram a pedagogia, contribuindo de maneira relevante para sua
elaboração. Isso significa que prevaleceu a opinião de que o professor de escola
tem alguma coisa a ver com o cientista; chegou-se a postular que a formação do
professor fosse científica, quando ambos, na realidade — o professor e o
cientista —, devem ser coisas totalmente diversas. Se o professor se tornar um
cientista, se procurar pensar cientificamente num sentido mais restrito — ele
poderá fazê-lo como indivíduo, mas não como professor —, ocorrerá
freqüentemente o seguinte: ele será na classe, perante seus alunos ou entre
seus colegas, uma espécie de figura esquisita, dessas sobre as quais se fazem
piadas. O Baccalaureus de Göethe6, no nível superior, não é tão raro quanto em
geral se pensa.
E no fundo, ao perguntarmos a nós mesmos se devemos estar do lado dos
alunos que fazem piadas sobre o professor ou do lado deste último, diante da
situação da pedagogia atual temos vontade de apoiar os alunos. Pois o resultado
de tudo isso é visto em nossas universidades. O que são elas? Institutos de
ensino para jovens mais maduros ou institutos de pesquisa? Querem ser os dois
ao mesmo tempo e, por isso, tornaram-se as caricaturas que são hoje. Costuma-
se até frisar como sendo uma das qualidades mais positivas de nossas
universidades o fato de elas serem, simultaneamente, institutos de pesquisa e
de ensino. Mas é isso o que justamente introduz, nessas instituições de ensino
superior, a desordem que se apodera da pedagogia quando esta é realizada por
cientistas. Essa desordem passa em seguida ao ensino médio e, finalmente, às
escolas primárias. Nunca é demais ponderar que a arte pedagógica deve partir
da vida, e não de um pensamento científico abstrato.
Ora, o peculiar nesse caso é o fato de a cultura ocidental ter gerado uma
pedagogia orientada pela ciência, ou até pelas Ciências Naturais, ao passo que

6 Bacharel, personagem do Fausto. Como estudante pré-universitário, ele ambiciona a erudição


acadêmica (“Quero ficar muito erudito, / perceber tudo o que há na terra, / e tudo o que no
céu se encerra, / natura e ciência, ao infinito”) e é zombado, sem se dar conta, por
Mefistófeles. (Cit. em trad. Jenny Klabin Segall. Cf. Göethe, Fausto, 1. parte [3. ed. Belo
Horizonte: Villa Rica, 1991]). (N.E.)

4
tudo o que havia em Herder e Fichte, em Jean Paul 7, em Schiller8 e outras per-
sonalidades análogas constituía uma pedagogia buscada diretamente na vida,
mas hoje relegada ao esquecimento.
Pois bem: a missão histórica dos povos da Europa Central é cultivar, de
certa maneira, essa pedagogia como uma questão esotérica; pois muitas coisas
terão de constituir um patrimônio comum a toda a humanidade, para que uma
melhora social possa acontecer no futuro. Mas os impulsos que nascerão da
cultura espiritual concretamente peculiar à Europa Central, em relação à arte
pedagógica, não poderão ser compreendidos pelos povos ocidentais; ao
contrário, irão deixá-los descontentes. Isso só poderá ser-lhes dito quando eles
resolverem pisar o solo esotérico da Ciência Espiritual. Em relação a tudo o que
nestes últimos quarenta anos foi considerado com tanto orgulho pela Alemanha,
em relação a tudo a que se atribuiu grande prosperidade na Alemanha, a
Alemanha está perdida. Tudo isso está passando para o domínio dos povos
ocidentais. A esse respeito nada há a fazer — só nos resta a esperança de
podermos possibilitar uma suficiente compreensão da trimembração do organis-
mo social9 para que os povos ocidentais se aproximem dessa compreensão.
No entanto, quanto à contribuição que possa ser dada justamente à arte
pedagógica, a Europa Central tem algo a oferecer ao mundo, algo que nenhum
outro — seja um oriental, seja um ocidental — pode oferecer-lhe. Devemos estar
cientes de que nada podemos esperar de qualquer atuação daquela mentalidade
que, partindo do Ocidente, tem-se revelado quase imprescindível em certas
áreas da civilizacão moderna. Para a arte pedagógica cujo cultivo propomos,
nada devemos esperar daquele lado.
Existe uma publicação de Herbert Spencer, sobre educação, extremamente
interessante. Spencer reúne aí uma série de teses, de ‘princípios’ — como ele as
denomina — sobre a educação intelectual do homem. 10 Um desses princípios é
defendido por ele com ênfase toda especial: no ensino, nunca se deve partir do
abstrato, mas sempre do concreto, elaborando o assunto a partir de cada caso.
Pois bem: ele escreve seu livro sobre educação. Antes de abordar qualquer
coisa de concreto, deparamo-nos com uma selva das piores abstrações —
realmente, uma ruidosa futilidade abstrata —, e esse homem nem percebe que
está expondo princípios considerados por ele imprescindíveis.., e aplicando exa-
tamente o oposto desses princípios. Eis um exemplo de como um grande filósofo
atual, considerado um líder, está em contradição total com o que nos vem
oferecer.
No ano passado, os Senhores já viram que nossa pedagogia não deve
apoiar-se em princípios educativos abstratos, em afirmações gerais como “Não
se deve apresentar à criança coisa alguma de fora, mas desenvolver sua indivi-
dualidade”, etc.... Os Senhores sabem que nossa arte pedagógica deve ser
erigida sobre uma autêntica sintonização de nossos sentimentos com a natureza
infantil; que ela deve basear-se, em sentido mais amplo, no conhecimento do ser
humano em desenvolvimento. Nós reunimos muitos elementos sobre a essência
do homem em evolução por ocasião do primeiro curso e, mais tarde, durante as
conferências para professores. Quando, como mestres, conseguimos penetrar
7 Pseudônimo do escritor alemão Johann Paul Friedrich Richter (1763—1825). (N.E.)
8 Johann Friedrich Schiller (1759—1805), escritor, poeta e dramaturgo. (N.E.)
9 Concepção sociológica de Steiner pela qual se reconhecem três áreas interagentes no
organismo social: a cultural-espiritual, a jurídico-administrativa e a econômica. V.tb.
RudolfSteiner, O futuro social, trad. Heinz Wilda (São Paulo: Antroposófica, 1986); Economia
viva, mesmo trad. (São Paulo: Antroposófica, 1995); Rudolf Lanz, Nem capitalismo nem
socialismo (São Paulo: Antroposófica, 1990). (N.E.)
10 0 Spencer se reporta aos ‘princípios’ do pedagogo suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746—
1827). (Cf. N.E. orig.)

5
nessa essência do homem em desenvolvimento, é a partir de tal conhecimento
que surge a melhor maneira de procedermos. A esse respeito, nós, mestres,
devemos transformar-nos em artistas. Assim como é impossível o artista re-
correr a um livro sobre estética a fim de pintar ou esculpir conforme princípios
de estética, o professor jamais deveria ensinar recorrendo a um daqueles
receituários pedagógicos. O professor necessita de uma verdadeira
compreensão do que o homem realmente é e do que vem a ser enquanto se
desenvolve no decorrer da infância. Então é necessário principalmente termos
consciência do seguinte:
Digamos que estejamos ensinando, na primeira série, crianças de seis ou
sete anos. Se ao cabo de um ano, durante o qual nos dedicamos a essa primeira
classe, não dissermos “Quem foi que aprendeu mais? Fui eu, o professor!”,
nosso ensino não terá estado à altura e terá sido ruim. Se afirmarmos que no
início do ano escolar concebemos maravilhosos princípios pedagógicos, que
seguimos os grandes mestres da pedagogia e que fizemos tudo para realizar es-
ses princípios pedagógicos — e se de fato houvermos realizado esse intento —,
certamente teremos ministrado um péssimo ensino. Em compensação, nosso
ensino será o melhor possível se a cada manhã entrarmos na classe trêmulos e
hesitantes, e se no fim do ano dissermos a nós mesmos: “Foi você quem mais
aprendeu durante todo esse tempo.” Pois essa confissão “Foi você quem mais
aprendeu” depende do que realmente tivermos feito, e isto depende de termos
tido constantemente o seguinte sentimento: “Você cresce à medida que leva as
crianças crescer, percebendo, no mais nobre sentido da palavra, que você
mesmo não sabe muito, mas que em você cresce uma certa força ao trabalhar
com as crianças.” Teremos então, às vezes, a sensação de que, embora não se
possa fazer muito com este ou aquele tipo de criança, pelo menos fizemos um
esforço. De outras crianças teremos aprendido isto ou aquilo devido ao seu dom
particular. Em outras palavras: saímos da luta diferentes do que éramos ao
entrar; e aprendemos o que não sabíamos um ano antes, quando começamos a
dar aulas. No fim do ano escolar, podemos dizer-nos: “Sim, só agora você sabe o
que deveria ter feito!” Trata-se de um sentimento bem real. Nisto reside um
certo segredo. Se no início do ano escolar os Senhores possuíssem todas as
capacidades que agora possuem, seu ensino teria sido ruim. Os Senhores
ministraram um bom ensino por terem aprendido à custa de um esforço!
Pensem nisso — preciso apresentar-lhes este paradoxo —: os Senhores
educaram bem por não saberem o que só aprenderam no fim do ano; e porque
teria sido prejudicial se, no início do ano, já soubessem o que aprenderam no
fim.
Para muita gente é importante saber essas coisas; porém é mais importante
que o saibam os professores; pois trata-se de um caso especial de uma verdade
e de um conhecimento universais: o saber como tal — pouco importa a que se
refira — não pode ter qualquer valor prático quando pode ser captado mediante
princípios abstratos ou representado interiormente por meio de idéias. Valor
prático só tem aquilo que conduz a esse conhecimento, aquilo que está a
caminho desse conhecimento; pois o saber que conquistamos da mesma
maneira como o saber que adquirimos após ter ensinado durante um ano, esse
saber só tem seu valor depois da morte da pessoa. Só depois da morte esse
saber atinge uma realidade que novamente lhe permite continuar a formar o ser
humano, voltar a formar o próprio ser humano individual. Durante a vida o que
tem valor não é o saber pronto, mas o trabalho que conduz a ele; e esse
trabalho tem um valor especial quando se trata da arte pedagógica. Aí se dá o
mesmo que nas artes. Não acredito que exista um verdadeiro artista que não
diga, ao terminar uma obra: “Só agora você seria capaz de fazê-la.” Não

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acredito que alguém seja um verdadeiro artista se estiver satisfeito com qual-
quer obra que tenha executado. Certamente ele pode ter uma piedade egoísta
pelo que fez, mas no fundo não pode estar satisfeito com isso. Quando
terminada, um obra de arte perde, também para quem a fez, grande parte do
interesse. Essa perda de interesse provém do tipo peculiar de saber que
adquirimos por produzirmos algo; por outro lado, o elemento vivo, a fonte de
vida, reside no fato de algo ainda não se haver transformado em saber.
É isso o que ocorre com toda a nossa constituição humana. Nossa cabeça
está tão pronta quanto se pode dizer que algo esteja, pois é plasmada a partir
das forças de nossa vida anterior: a cabeça é demasiado madura. 11 Todas as
cabeças humanas são demasiado maduras — inclusive as imaturas. Mas todo o
resto da nossa constituição é de natureza tal que fornece o germe para a
formação de nossa cabeça na próxima vida terrena. Essa constituição restante
brota e viceja — é algo inacabado. É algo que até nossa morte não revela sua
verdadeira forma, ou seja, a forma das forças que nela atuam. E o fato de no
restante de nossa constituição se encontrar justamente a vida em seu fluir é
algo demonstrado em sua estrutura: a ossificação nessa constituição restante é
reduzida a um mínimo, enquanto na cabeça chega ao máximo.
Este tipo peculiar da mais íntima modéstia, este sentimento do próprio vir-
a-ser, é algo que deve sustentar o professor; pois de tal sentimento emana mais
do que quaisquer princípios abstratos. Se na sala de aula procedermos com a
consciência de que é bom fazer tudo imperfeitamete, pois é assim que tudo
possui vida, então estaremos ensinando bem. Mas se, ao contrário, na sala de
aula estivermos embevecidos com nossa própria perfeição pedagógica a ponto
de lamber os dedos de satisfação, então certamente estaremos ensinando mal.
Imaginem que os Senhores tenham ministrado o ensino na primeira série,
depois na segunda, na terceira, etc., passando por todas as aflições, desilusões
e até mesmo sucessos. No fim de cada ano dialogam consigo próprios, numa
atitude mental como a que descrevi, e ei-los voltando, digamos, da oitava para a
primeira série. Alguns dirão: “Bem, agora vou começar com algo que já aprendi;
vou acertar em tudo, serei um ótimo professor.” Porém isso não acontecerá. Sua
experiência será bem diferente. No fim do segundo, do terceiro e de cada ano
escolar posterior, os Senhores reconhecerão o seguinte, desde que tenham
trabalhado dentro do espírito correto: “Aprendi sobre crianças de sete, oito ou
nove anos o que só se pode aprender trabalhando com elas; sei, no final de cada
ano escolar, como deveria ter agido.” Mas ao chegarem ao quarto ou quinto
ano, novamente não saberão como proceder. É que a essa altura irão corrigir o
que terá sido sua convicção ao cabo de um ano de aulas dadas. Desta maneira,
quando terminarem a oitava série e fizerem todas as correções, e quando
tiverem a sorte de recomeçar com uma primeira série.., estarão na mesma si-
tuação. Todavia, seu ensino será dado dentro de um espírito diferente.
Se os Senhores realizarem seu magistério com um ceticismo interior,
autêntico e nobre, e não com o ceticismo fútil do qual falei, esse ceticismo lhes
proporcionará uma força nova e imponderável, que os capacitará a alcançar
resultados mais amplos com as crianças confiadas a seus cuidados. Sem dúvida,
isso é o correto; mas o efeito na vida será apenas diferente; não melhor, mas
diferente. Eu diria que a qualidade do que os Senhores realizam com as crian-
ças não será muito melhor do que da primeira vez — será apenas outra. Os
Senhores conseguirão algo diferente na qualidade, mas não algo a mais na
quantidade. Essa diferença na qualidade é, no fundo, suficiente. Pois tudo o que
assimilamos, da forma indicada, por meio do nobre ceticismo e da humildade

11 V. Rudolf Steiner, A arte da educação (cit. — v. n. p. 11), vol. 1: O estudo geral do homem,
urna base para a pedagogia. (N.E.)

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interior necessárias, terá como resultado o fato de fazermos dos seres humanos
individualidades com ‘I’ maiúsculo. Não podemos ter duas vezes a mesma classe
e entregar ao mundo duas vezes cópias do mesmo molde pedagógico! Podemos
entregar ao mundo formações diferenciadas pelo individualismo do ser humano.
Produzimos na vida a diversidade, mas esta não resulta de princípios abstratos,
e sim de uma compreensão mais profunda da vida, tal como acabamos de expor.
Como vêem, o importante no professor é, antes de tudo, a posição que ele
assume perante sua profissão sagrada. Isso é significativo, pois o que mais
importa no ensino e na educação são os elementos imponderáveis, O professor
que entra na sala de aula com esta mentalidade consegue algo que outro não
consegue. Como na vida cotidiana, nem sempre o fisicamente grande é o fator
determinante — muitas vezes é o pequeno; assim, o fator decisivo nem sempre
é o que conseguimos com belas palavras, e sim aquela sensação, aquele
sentimento que formamos em nós antes de entrar na sala de aula. Uma coisa
em particular é de grande importância: devemos, antes de entrar em classe,
livrarnos de nossa personalidade individual, limitada, como se fosse a pele de
uma cobra. Já que somos ‘apenas um ser humano’ — como se diz com certa
vaidade —, pode acontecer-nos muita coisa entre o fim das aulas do dia anterior
e o começo do dia seguinte. Talvez tenhamos recebido uma reclamação de um
credor, ou brigado com o cônjuge — como acontece muitas vezes na vida. São
fatos que nos deixam indispostos, e tais indisposições vêm a ser o pano de fundo
para o nosso estado de ânimo. Mas pode haver também estados alegres de
alma. Talvez o pai de um aluno que goste de você lhe tenha enviado, depois de
uma caçada, uma lebre — ou, sendo você uma professora, um buquê de flores.
Tais estados de alma ocorrem, naturalmente, na vida. Como professores, no
entanto, devemos educar-nos para deixá-los de lado, falando apenas sobre o
conteúdo que devemos transmitir. Ao tratar de um assunto, devemos ser
capazes de fazê-lo de forma trágica, desde que isto lhe seja pertinente, para
depois passar, em nossa exposição, a uma forma humorística, enquanto nos
entregamos completamente ao assunto. Devemos ser capazes de perceber o
reflexo na classe, em resposta a uma exposição trágica — a sentimentalidade ou
o humor. Quando tivermos essa capacidade, perceberemos que o trágico, o
sentimental ou o humorístico significam algo extraordinário para a alma das
crianças. Se impregnarmos o ensino com uma alternância entre humor,
sentimentalidade e tragédia, se passarmos de uma disposição anímica para
outra e vice-versa, se tivermos a capacidade de passar de um clima de peso
para uma certa leveza — mas sem forçar, simplesmente acompanhando o
conteúdo —, produziremos para a vida anímica algo que corresponde, no
organismo corpóreo, à inspiração e à expiração.
Na aula, não devemos apenas ensinar intelectualmente, mas levar em conta
os ambientes anímicos. Pois o que são o trágico, a sentimentalidade, o ambiente
anímico carregado? São como uma inspiração no organismo, quando este então
se enche de ar. O trágico significa o seguinte: procuramos contrair nosso corpo
físico cada vez mais intensamente, até perceber, ao efetuar essa contração, que
nosso corpo astral está sendo cada vez mais expulso do corpo físico. Um
ambiente humorístico significa que paralisamos o corpo físico e expandimos o
astral, abrangendo nossa redondeza de modo a constatar — enquanto não ape-
nas percebemos, por exemplo, um rubor, mas nos integramos nele — que
estamos estendendo nosso corpo astral sobre o rubor e penetrando nele. Rir
nada mais é senão expulsar de nossa fisionomia o corpo astral do nosso rosto. O
riso é um expirar astral. Mas se quisermos aplicar essas coisas, teremos de
possuir um certo sentimento de dinâmica. Nem sempre é conveniente cairmos,
sem transição, de uma situação carregada e grave para o humorístico; mas

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sempre encontraremos, no ensino, os meios para impedir que a alma infantil se
prenda ao trágico e grave e fazer, ao contrário, com que ela possa respirar
enquanto passa de um estado anímico a outro.
Com estas considerações procurei, à guisa de introdução, indicar-lhes algo
que o professor deve alcançar conscientemente; trata-se de matizes de
disposições anímicas, e estas são tão importantes como as regras da pedagogia
especializada.

16 de setembro de 1920

As três forças básicas da educação

Naturalmente não poderemos educar ou lecionar se, ao fazê-lo, de certo


modo não formos capazes de captar em espírito o ser humano global — pois na
época do desenvolvimento da criança esse ser humano global é ainda muito
mais importante do que mais tarde. Como sabemos, esse ser humano global
inclui o eu, o corpo astral, o corpo etérico e o corpo físico. Esses quatro
membros da natureza humana não se acham desenvolvidos de maneira
uniforme; eles se desenvolvem das mais diversas maneiras, e devemos dis-
tinguir claramente entre o desenvolvimento dos corpos físico e etérico e o do
corpo astral e do eu. As manifestações exteriores desse desenvolvimento
diferenciado aparecem —como os Senhores já sabem, das exposições feitas por
mim aqui e ali — na troca dos dentes e naquela transformação que, na época da
maturidade sexual, efetua-se no homem sob forma de mudança de voz e na
mulher também de maneira perceptível, embora diferente. A essência do
fenômeno é igual à mudança de voz no homem, mas no organismo feminino se
verifica de um modo mais amplo, estendendo-se sobre todo o organismo em vez
de limitar-se a um órgão, como se observa no organismo masculino.
Os Senhores sabem que entre a troca dos dentes e a mudança de voz, ou
maturidade sexual, situa-se aquele período que, de modo genérico, corresponde
ao ensino das quatro primeiras séries; mas também os anos posteriores à
mudança de voz, ou o que lhe corresponde no organismo feminino, devem ser
criteriosamente levados em conta no ensino e na educação em geral.
Recordemos o que a troca dos dentes significa. Ela é a manifestação
externa do fato de no período anterior, do nascimento até a troca dos dentes, os
corpos físico e etérico do organismo infantil serem fortemente influenciados
pelo sistema neuro-sensorial, isto é, de cima para baixo. Até aproximadamente o
sétimo ano de vida, os corpos físico e etérico recebem as influências mais
atuantes da cabeça. Nela estão concentradas as forças que exercem a maior
influência nesses anos em que cabe à imitação papel tão importante; e o
trabalho plasmador no resto do organismo — no tronco e nos membros —
resulta de irradiações que partem da cabeça em direção aos corpos físico e
etéríco desse resto do organismo, ou seja, do tronco e dos membros. O que
irradia da cabeça da criança para os corpos físico e etérico, até as pontas do
dedos das mãos e dos pés, é uma atividade da alma, embora emane do corpo
físico; trata-se da mesma atividade que mais tarde atua na alma como intelecto
ou memória — só que após a troca dos dentes a criança começa a pensar de
forma que suas lembranças se tornem mais conscientes. Toda a transformação
que ocorre na vida anímica da criança evidencia que a partir dos sete anos
atuam nela, como forças da alma, determinadas forças anímicas que antes disso
são ativas no organismo, atuam no organismo. Todo o período até a troca dos

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dentes, durante o qual a criança cresce, é resultado das mesmas forças que
depois dos sete anos aparecem como forças do intelecto.
Temos aí uma colaboração bem real entre a alma e o corpo, ao passo que
aos sete anos de idade a alma se emancipa do corpo e não atua mais nele, mas
por si mesma. Com o sétimo ano, as forças que nascem no corpo como forças
anímicas começam a atuar, fazendo-o até a encarnação seguinte. Então são
rechaçadas as forças que do corpo irradiam para cima e, de outro lado, são
retidas as forças que irradiam da cabeça para baixo. Desse modo temos, na épo-
ca da troca dos dentes, a mais forte luta entre as forças que buscam seu
caminho de cima para baixo e as que irradiam de baixo para cima. A troca dos
dentes é a manifestação física dessa luta entre os dois tipos de forças — as
forças que mais tarde aparecem na criança como forças do intelecto, da razão,
e aquelas que devem ser usadas de preferência no desenhar, no pintar e no
escrever. Todas as forças que então irrompem, nós as empregamos ao
desenvolvermos a escrita a partir do desenhar; pois essas forças querem trans-
formar-se em atividades de modelagem, desenho e outras. Trata-se das forças
que deixam de atuar quando se trocam os dentes — as forças modeladoras que
antes plasmaram o corpo da criança e que mais tarde, quando os dentes são
trocados, aproveitamos para conduzir a criança à pintura, ao desenho, etc.
Trata-se, principalmente, daquelas forças que o mundo espiritual depositou na
criança; foi graças a elas que a alma infantil viveu no mundo espiritual antes da
concepção. Elas atuam primeiro como forças corpóreas, plasmando a cabeça, e
mais tarde, a partir dos sete anos, como forças anímicas.
De forma que, para o período a partir dos sete anos, nós simplesmente
tiramos de dentro da criança, para nossa atuação pedagógica, aquilo que a ela
exercitava inconscientemente como imitação quando essas forças intervinham
inconscientemente em seu corpo. Se mais tarde a criança vier a ser um escultor,
um desenhista ou um arquiteto — mas um arquiteto autêntico, que trabalhe a
partir das formas —, isso acontecerá pelo fato de esse ser humano possuir a
disposição para reter em seu organismo, e principalmente na cabeça, parte das
forças que irradiam para o organismo; então essas forças da infância
continuarão a irradiar. Se elas não forem detidas — se ao trocarem-se os dentes
tudo passar para o campo anímico —, teremos crianças sem disposição para o
desenho, para a escultura ou para a arquitetura; elas nunca poderão ser
escultores.
Eis o segredo: essas forças se relacionam com o que perfizemos entre a
morte e o novo nascimento. Aquilo de que se necessita, na atuação pedagógica,
como sentimento de veneração, e que pode ter um caráter religioso, pode ser
obtido mediante a seguinte conscientização: no fundo, as forças que colhemos
da criança ao redor dos seis anos, para empregá-las no aprendizado do desenho
e da escrita, é o mundo espiritual quem as envia; portanto, o mundo espiritual
as envia para baixo e a criança é o transmissor, de modo que nós trabalhamos
efetivamente com as forças enviadas pelo mundo espiritual. Quando essa
veneração perante o divino-espiritual permeia o ensino, este realiza milagres.
Se os Senhores tiverem o sentimento de estarem em relação com as forças
emanadas dos mundos espirituais na época anterior ao nascimento, se tiverem
esse sentimento que produz uma profunda veneração, verão que pela presença
desse sentimento serão capazes de atuar mais do que por meio de qualquer
excogitação intelectual a respeito do que fazer. Os sentimentos do professor são
os recursos pedagógicos mais importantes; e essa veneração é algo que exerce
sobre a criança uma imensa influência plasmadora.
O que ocorre com a criança na época da troca dos dentes significa,
portanto, uma transformação de forças espirituais, através da criança, para

10
dentro do mundo físico.
Outro processo realiza-se nos anos da puberdade; mas este vai-se
preparando paulatinamente, por todo o cicio que decorre dos sete aos catorze
ou quinze anos. Nessa época vem surgindo, nas regiões anímicas ainda não
iluminadas pela consciência — pois a consciência ainda está-se formando, sendo
que recebemos constantemente, e de forma inconsciente, irradiações
provenientes do mundo exterior —, algo que agora se torna lentamente
consciente depois de ter irradiado já do mundo exterior e permeado a criança
com seus raios a partir de seu nascimento, contribuindo para a estruturação do
corpo infantil e introduzindo-se na criança, nas forças plasmadoras.
Trata-se novamente de outras forças. Enquanto as forças plasmadoras
penetram na cabeça vindo de dentro, essas outras forças vêm agora do exterior
e descem para dentro do organismo. Essas forças que atuam do mundo exterior
sobre o corpo, através da cabeça — elas impregnam as forças plasmadoras e
contribuem na estruturação do corpo infantil a partir dos sete anos —, não
posso designá-las senão dizendo que se trata de forças idênticas às que atuam
na fala e na música. Essas forças são recebidas do mundo.
As forças de natureza musical são recebidas do mundo exterior, do mundo
extra-humano, da observação da natureza, da observação dos processos que se
realizam na natureza e, principalmente, da observação de suas regularidades e
irregularidades. Tudo o que ocorre na natureza é perpassado por uma música
misteriosa: a projeção terrestre da música das esferas. Em cada planta, em
cada animal está incorporado um tom da música das esferas. Isto também
ocorre em relação ao corpo humano, porém não vive mais na fala humana, ou
seja, não vive mais nas manifestações da alma, e sim nas formas do corpo, etc.
Tudo isso a criança acolhe inconscientemente; daí advém o fato de as
crianças serem, em tão alto grau, dotadas para a música. Elas assimilam tudo
isso no organismo. Tudo o que vivenciam como formas dinâmicas, como carac-
terísticas lineares, como elementos plásticos, origina-se de dentro, do âmbito da
cabeça; em contrapartida, tudo o que é recebido por elas como estrutura
sonora, como conteúdo lingüístico, advém de fora. E a isso que advém de fora
se contrapõe, por sua vez — agora, porém, um pouco mais tarde, ao redor dos
catorze anos —, o elemento espiritual de caráter lingüístico-musical, que pouco
a pouco começa a desenvolver-se de dentro. Estas correntes se encontram no-
vamente — no organismo inteiro, no caso da mulher, e principalmente na região
da laringe, no caso do homem, provocando a mudança de voz. Todo o processo
resulta, pois, de uma luta de um elemento volitivo oriundo de dentro contra um
outro elemento volitivo, oriundo de fora; e é nessa luta que se exprime a
mudança de voz e tudo o que se manifesta na puberdade. Trata-se de uma luta
de forças lingüístico-musicais interiores contra forças lingüístico-musicais
exteriores.
De um modo geral, até os sete anos o ser humano é permeado mais por
forças plásticas e menos por forças musicais, ou seja, as forças musicais e
lingüísticas permeiam o organismo em escala menor. A partir dos sete anos,
porém, é o elemento musical-lingüístico que se torna particularmente ativo no
corpo etérico. A isso vem opor-se o eu e o corpo astral: um elemento volitivo
advindo de fora luta contra um elemento volitivo que vem de dentro, e isso se
manifesta no acontecimento da puberdade. Aliás, manifesta-se também
exteriormente, no fato de existir entre o masculino e o feminino uma diferença
explícita na tonalidade da voz. Os campos vocais do homem e da mulher
coincidem apenas em parte; a voz feminina atinge altura maior e a do homem
desce até o nível do baixo. Isso corresponde exatamente à estrutura do resto do
corpo, que se forma a partir da luta entre as referidas forças.

11
Essas coisas demonstram que na vida anímica lidamos com algo que
também participa da estruturação do organismo, mas para finalidades bem
determinadas. Todas as elucubrações abstratas que se encontram nos livros de
Psicologia e nas explanações psicológicas emanadas da ciência moderna, toda
essa conversa do paralelismo psícofísico12, nada fazem senão documentar a
ignorância de nossos filósofos, que nada sabem sobre a verdadeira relação
entre o anímico e o corpóreo. Ora, o anímico não se relaciona com o corpóreo
de acordo com as teorias absurdas inventadas pelos paralelistas psicofísicos; na
verdade, trata-se de uma atuação bem concreta do anímico no corpo e nova-
mente uma reação, sobre a qual logo passaremos a falar. Até os sete anos, o
elemento plástico-arquitetônico atua junto com o lingüístico-musical: porém isso
se modifica no sétimo ano, de modo que a relação entre o lingüístico-musical,
de um lado, e o plástico-arquitetônico, de outro, torna-se diferente. Mas durante
todo o tempo até a puberdade prossegue tal interação entre o plástico-
arquitetônico, que atua a partir da cabeça, onde tem sua sede, e o lingüístico-
musical, que vem de fora para atravessar a cabeça e de lá espalhar-se para
dentro do organismo.
Disso se vê que também a fala humana, principalmente o elemento musical,
contribui para a formação do homem; de início eles plasmam o homem, e em
seguida detêm-se, concentrando-se perto da laringe; deixam então de passar
pelo portal como antes. Antes disso, é a linguagem que transforma nossos
órgãos até o sistema ósseo. Quem olhar para o esqueleto humano observando a
diferença entre o homem e a mulher — fazendo-o com o olhar psicofísico
autêntico, e não com o olhar psicofísico bitolado de nossos filósofos atuais —
verá nesse esqueleto um trabalho musical corporificado, que se desenrola na
interacão entre o organismo humano e o mundo exterior. O esqueleto humano
deveria ser compreendido como se tocássemos uma sonata e conservássemos
sua forma por meio de algum processo espiritual de cristalização — e assim
encontraríamos as formas principais, as formas dispositívas no esqueleto
humano! Isso comprovaria também a diferença entre o homem e o animal. A
situação do animal é a seguinte: o que é assimilado do elemento lingüístico-
musical — muito pouco do lingüístico, mas muito do musical — o atravessa
porque, de certa forma, ele não possui o isolamento do homem, que conduz à
mutação. Também no esqueleto animal temos uma impressão musical; mas
nesse caso a correlação musical só existiria se juntássemos vários esqueletos
animais, por exemplo, num museu. O animal revela sempre uma unilateralidade
em sua estrutura.
Tais coisas precisam, portanto, ser levadas em conta; elas nos mostram os
sentimentos que deveríamos desenvolver. Um cultivo maior de nossa relação
com o pré-natal nos conduz a uma intensificação do sentimento de veneração;
nosso entusiasmo pelo ensino se vê intensificado devido ao nosso
aprofundamento nas outras forças do homem. O ensino lingüístico-musical é
permeado, de certa forma, por um elemento dionisíaco, ao passo que um
elemento apolíneo está presente no ensino do desenho e da pintura. O ensino da
música e das línguas é ministrado por nós com entusiasmo, e o outro com
veneração.
As forças plásticas opõem-se com maior vigor, e por isso são detidas já no
sétimo ano de idade. As outras reagem mais fracamente, e por isso são contidas
apenas aos catorze anos. Não se trata de força ou fraqueza física, mas da
pressão exercida em sentido contrário. Como as forças plasmadoras, por serem

12 Alusão a Gottlieb Friedrich Lipps (1865—1931) e seu livro Grundriss der Psychophysik
(Leipzig, 1899), onde ele define sua nova ciência como “investigação da relação entre as
vivências subjetivas da consciência e os acontecimentos objetivos da natureza. (CL N.E. orig.)

12
maiores, iriam dominar o organismo humano, a contrapressão é mais forte. Por
isso elas precisam ser detidas mais cedo, ao passo que as outras forças são
deixadas por mais tempo no organismo pela direção universal. O homem é
permeado pelas forças musicais durante um período maior do que pelas forças
plasmadoras.
Se os Senhores deixarem amadurecer essas idéias e por elas se
entusiasmarem, poderão constatar o seguinte: apelando ao que existe de
lingüístico e musical na idade dos primeiros anos escolares — quando ainda se
trava aquela luta, podendo-se ainda atuar sobre o corpo, e não apenas sobre a
alma — prepara-se aquilo que atuará para além da morte, que será levado pelo
homem para além da morte. É sobre isso que atuamos, essencialmente, por
meio de tudo o que ensinamos à criança durante o tempo dos primeiros anos
escolares, em matéria de música e de línguas. Isso nos dá um certo entusiasmo,
pois sabemos que estamos preparando o futuro. Ao trabalharmos, porém, com
as forças plasmadoras, relacionamo-nos com algo situado antes do nascimento,
antes da concepção — e isso nos proporciona um sentimento de veneração. Com
o elemento lingüístico-musical nós atuamos sobre o futuro. Nisso empregamos
nossas próprias forças, sabendo que estamos fecundando o germe lingüístico-
musical com algo que no futuro atuará por meio da fala e da música, depois de
termos abandonado o envoltório físico. A música é física por ser um reflexo das
esferas celestes no elemento do ar. O ar é, de certa maneira, o meio que torna
físicos os sons, e o ar dentro da laringe, por sua vez, torna física a linguagem;
ao passo que o elemento não-físico no ar da linguagem, no ar da música, é
aquilo que irá desenvolver sua verdadeira atuação só depois da morte. Isso nos
proporciona um certo entusiasmo por nosso ensino, por sabermos que com isso
estamos atuando para dentro do futuro.
Creio que no futuro a Pedagogia consistirá em não se falar mais no ensino
da maneira como ocorre hoje, e sim por meio de idéias e representações
mentais que poderão transformar-se em sentimentos. Pois nada é mais
importante do que nós, professores, estarmos em condições de desenvolver a
veneração e o entusiasmo necessários para praticarmos o ensino com
veneração e entusiasmo. Veneração e entusiasmo — eis as forças básicas
ocultas que devem espiritualizar a alma do professor.
Quero apenas acrescentar — para que os Senhores compreendam ainda
melhor o assunto — que o elemento musical vive principalmente no corpo
astral. Depois da morte, o homem ainda conserva seu corpo astral durante certo
tempo. Enquanto ele o conserva até despojá-lo — os Senhores conhecem isso de
meu livro Teosofia13 — ainda existe no homem, depois da morte, uma lembrança
da música terrena; mas trata-se apenas de uma espécie de reminiscência. Daí o
fato de tudo o que o homem assimilou de musical em sua vida continuar, depois
da morte, atuando como uma lembrança musical até o momento em que ele se
desprende do corpo astral. Então a música terrena se transforma, na existência
post-mortem, em música das esferas, conservando-se como tal até pouco tempo
antes de um novo nascimento. Os Senhores compreenderão o assunto mais
facilmente sabendo que toda a música que o homem assimila na Terra tem um
papel relevante na formação de seu organismo anímico depois da morte. Este
recebe sua configuração durante esse período do kamaloka. Esse é o lado bom
da fase do kamaloka, e sabendo dessas coisas podemos amenizar para as
pessoas o que os católicos chamam de purgatório — o que não ocorre quando
lhes poupamos essa visão; aliás, elas devem tê-la, sob pena de permanecerem
imperfeitas caso não tenham uma visão do que fizeram de imperfeito. Porém

13 Ed. brasileira em trad. Daniel Brilhante de Brita (5. ed. São Paulo: Antroposófica, 1996).
(N.E.)

13
nós introduziremos uma chance de o homem ser melhor estruturado em sua
próxima vida se naquele período após a morte, onde ainda possui seu corpo
astral, ele puder ter muitas lembranças do âmbito da música. Isto pode ser
objeto de um estudo, mesmo num nível ainda relativamente baixo de ocultismo.
Basta os Senhores acordarem durante a noite depois de terem ouvido um con-
certo, e perceberão que voltaram a vivenciar todo o concerto antes de acordar.
Agora o aproveitarão até melhor, se lhes acontecer de acordar assim, durante a
noite, depois do concerto: a vivência será bem fiel. Aí o elemento musical se
grava no corpo astral, permanecendo e vibrando nele durante uns trinta anos
depois da morte. O elemento musical continua a vibrar por muito mais tempo do
que o lingüístico; o lingiïístico como tal se perde relativamente cedo depois da
morte, restando dele apenas o extrato espiritual. O musical se conserva
enquanto é conservado o corpo astral.
Oelemento lingüístico pode ser-nos de grande benefício após a morte,
principalmente se o tivermos recebido com freqüência da forma como muitas
vezes descrevo a arte da recitação. Naturalmente tenho todo o motivo para
ressaltar que esta minha caracterização da arte da recitação não poderá ser
compreendida corretamente se não levarmos em conta o destino peculiar do
corpo astral depois da morte. O assunto deve ser abordado mais ou menos da
maneira como costumo fazer nas conferências sobre eurritmia. 14 Nesse caso, é
como se fosse preciso falar na linguagem dos botocudosi. 15 De fato, é isso
mesmo: vistos do ângulo situado além do limiar, os homens parecem realmente
botocudos, e só do outro lado do limiar são verdadeiros homens. E nós só nos
livramos do enfoque como botocudos quando nos aprimoramos para dentro do
âmbito espiritual; por isso a raiva, cada vez mais visível, dos botocudos contra
nossas aspirações.
Quero ainda chamar sua atenção — pois especialmente na arte pedagógica
isto é levado altamente em consideração, e podemos elaborá-lo
pedagogicamente — para uma característica peculiar dessa luta que mencionei
inicialmente, de modo que pudemos ver sua manifestação na troca dos dentes, e
na luta posterior, cujo equivalente é a mudança de voz, sendo peculiar a essa
luta o fato de ter uma característica especial: tudo o que parte da cabeça para
baixo na época que precede o sétimo ano de idade tem o aspecto de uma
agressão contra o que, de dentro, vem ao seu encontro. E tudo o que atua de
dentro em direção à cabeça, subindo e opondo-se à corrente que desce dela, é
como uma defesa. Um tem o aspecto de ataque; o outro, que atua de dentro,
apresenta-se como uma defesa.
E novamente semelhante é o que acontece no elemento musical. O que
atua de dentro para fora tem o aspecto de uma agressão, e o que atua de cima,
da cabeça para baixo através do organismo, parece uma defesa. Se não tivésse -
mos a música, forças terríveis viriam à tona no homem. Estou convencido de
que tradições oriundas dos velhos mistérios estiveram atuando até os séculos
XVI e XVII, e de que certas pessoas ainda estavam escrevendo e falando sob
essa influência repercutida dos mistérios, embora em parte desconhecessem
seu sentido. Mas em muitos fenômenos relativamente recentes temos meras

14 Publicadas na Rudolf Steiner Gesamtausgabe (Edição Completa de Rudolf Steiner [Dornach:


Rudolf Steiner Verlag]) sob os títulos Eurythmie. Die Offenbarung der sprechende Seele, GA
277; Die Entstehung and Entwickelung der Eurythrnie, GA 277a; Eurythmie als sichtbarer
Gesang. Ton-Eurythmie-Kurs, GA 278; Eurythmie als sichtbare Sprache. Laut-Eurythmíe-Kurs,
GA 279. (N.E.)
15 Analogia com membros das tribos indígenas brasileiras que utilizavam o botoque (adereço
em forma de rodela encaixado principalmente no beiço inferior) e que até o século XVI
habitaram terras da atual Bahia. A alusão, comum na época, referiase a ‘pessoas incultas’ em
geral. (N.E.)

14
reminiscências de antigos conhecimentos dos mistérios. Por esse motivo,
sempre me causaram uma profunda impressão estas palavras de Shakespeare:
“O homem que não tem música dentro de si [...] serve para a traição, o
assassinato e a perfídia! [...] Não confiem nele!” 16
Nas antigas escolas de mistérios, os alunos eram avisados do seguinte: o
que atua no homem agredindo de dentro para fora, precisando constantemente
ser rechaçado e detido pela natureza humana, constitui a traição, o assassinato
e a perfídia; e é na música que temos a força contra-posta a isso. A música é a
defesa contra as forças luciféricas “da traição, do assassinato e da perfídia” que
afloram do cerne do ser humano. Todos nós a temos em nós a traição, o
assassinato e a perfídia, e não é à toa que o mundo contém o elemento
língüístico-musical, isso sem falar da alegria que nos proporciona. O mundo
possui esse elemento para fazer o homem ser homem. Temos de lembrar que,
em outros tempos, os antigos mestres dos mistérios costumavam dizer as coisas
de maneira mais concreta. Em vez de “traição, assassinato e perfídia” — em
Shakespeare as origens já eram confusas — eles teriam falado em “serpente,
lobo e raposa. A serpente, o lobo e a raposa são rechaçados da natureza
humana mais íntima pelo elemento musical. Os mestres dos antigos mistérios
sempre teriam usado formas animais para designar as forças que sobem das
profundezas humanas e ainda precisam ser humanizadas. E o fato é que nós
teremos o verdadeiro entusiasmo quando virmos a serpente traiçoeira subir da
criança, e quando lutarmos contra ela mediante o ensino lingüístico-musical; o
mesmo acontece com o lobo assassino e com a raposa pérfida — ou com o gato.
Isso é o que nos pode impregnar com o verdadeiro, o sereno entusiasmo, e não
com aquele flamejante, luciférico, o único que se conhece hoje em dia. Enfim:
temos de discernir entre ataque e defesa.
O homem possui em si dois níveis de defesa. Primeiro existe a defesa
dentro dele próprio: ela se manifesta na troca dos dentes, aos sete anos; depois
vem o que ele assimilou do elemento lingüístico-musical, onde rechaça o que,
dentro dele, anseia por vir à tona. Porém esses dois campos de batalha se
encontram efetivamente dentro do homem: o lingüístico-musical principalmente
na periferia, em direcão ao mundo exterior, e o plástico-arquitetônico no centro,
em direção ao mundo interior.
Existe, contudo, um terceiro campo de batalha, situado no limite entre o
corpo etérico e o mundo exterior. O corpo etérico é sempre maior do que o
corpo físico, projetando-se a partir dele em todas as direcões. Temos aí mais um
campo de batalha; a luta realiza-se aí mais sob a influência da consciência, as
passo que as duas outras se passam na inconsciência. A terceira realiza-se mais
na consciência. Ela se desenrola ao vir à tona o resultado do que se passa entre
o homem e o elemento plástico-arquitetônico, de um lado, e entre o homem e o
lingüístico-musical, de outro, no momento em que este último, depois de
penetrar no corpo etérico, alcança o corpo astral, sendo assim desviado para a
periferia. Isto faz nascer tudo o que perpassa os dedos quando se desenha ou
pinta, fazendo da pintura uma arte que abrange mais o mundo exterior. O
desenhista e o pintor partem, em seu trabalho, de algo disponível em seu
interior; já o músico tem de trabalhar baseado numa atitude de entrega de si
mesmo ao mundo. Aquilo que se realiza na pintura e no desenho — e nós
educamos a criança para isso, fazendo com que ela desenhe formas e linhas — é
uma luta travada na periferia, essencialmente entre duas forças atuantes: uma
de fora para dentro e outra de dentro para fora. A que vai de dentro para fora
procura constantemente despedaçar o homem, continuando o trabalho de dar-
lhe forma, porém de maneira sutil. Essa força quer transformar-nos — preciso
16 Trecho de O mercador de Veneza. (N.E.)

15
dizê-lo de maneira mais radical: na realidade isso não é tão drástico, mas na
medida em que eu exagerar os Senhores me entenderão melhor —, essa força
de dentro para fora quer inchar nossos olhos, fazer crescer um papo, engrossar
o nariz e as orelhas; tudo tende a intumescer para fora. Porém existe a outra
força; nós a sugamos do mundo exterior, e ela impede esse entumescímento. E
quando fazemos um traço ou desenhamos algo, trata-se de um esforço de
desviar para fora aquilo que, vindo de dentro, procura deformar-nos.
É um complicado movimento reflexo o que executamos ao pintar, desenhar
ou realizar qualquer trabalho gráfico. Quando desenhamos ou estamos diante
de uma tela, temos realmente um raiar da consciência, a sensação de não dei-
xarmos penetrar em nós algo que se acha lá fora; as formas e traços são como
muros ou separações de arame farpado. Os desenhos são como arames farpados
com os quais interceptamos, impedimos de agir o que anseia por destruir-nos
de dentro. Por isso, o ensino do desenho atua melhor quando partimos do
homem. No ensino da eurritmia, ao estudarmos os movimentos que a mão quer
fazer, ao pedirmos às crianças que mantenham as formas, os movimentos que
elas querem fazer, com tudo isso detemos a linha que quer ter um efeito
destruidor — e ela deixará de ter esse efeito destruidor. Se principiarmos por
fazer desenhar as formas eurrítmicas e, em seguida, descrevermos a partir
delas o desenho e a escrita, conseguiremos algo que no fundo a natureza
humana deseja e que se relaciona com seu vir-aser. E, com referência à
eurritmia, deveríamos também saber que nosso corpo etérico tem
constantemente a tendência a praticá-la; ela é algo que o corpo etérico pratica
como que espontaneamente. Na eurritmia, nós nada fazemos senao discernir os
movimentos que o corpo etérico quer realizar; ele realmente faz esses
movimentos, só sendo impedido de realizá-los quando os fazemos executar pelo
corpo físico. Quando nós os fazemos executar pelo corpo físico, esses mo-
vimentos são retidos no corpo etérico, retroagindo de modo salutar sobre nós.
É isso, de certa forma, que no homem já se exterioriza tanto de maneira
higiênico-terapêutica quanto didático-pedagógica. Tais coisas só serão
compreendidas quando soubermos que algo ansioso por manifestar-se na
organização etérica deve ser bloqueado na periferia, por meio dos movimentos
do corpo físico. Com a eurritmia, bloqueia-se um elemento volitivo; com o
desenho e com a pintura, um elemento intelectual. Na realidade, porém, trata-
se de ambos os pólos de uma mesma coisa.
Se impregnarmos esse processo com o sentimento e incorporarmos essa
sensibilidade profunda aos nossos dons pedagógicos, teremos o terceiro
sentimento de que necessitamos: o sentimento — que sempre nos deveria
permear, em particular no ensino das quatro primeiras séries — de que o
homem, ao ingressar no mundo, fica exposto a uma situação da qual devemos
protegê-lo por meio do ensino. Caso contrário, ele se extravasaria no mundo de
maneira excessiva. O homem sempre tem a tendência a tornar-se animicamente
raquítico, a tornar seus membros raquíticos, a transformar-se num gnomo. Ao
ensiná-lo e educá-lo, nós o plasmamos. A melhor maneira de sentir esse efeito
plasma-dor consiste em observar a criança fazer um desenho; mas aí devemos
intervir corrigindo o desenho, de forma que o resultado não seja nem o que a
criança quer nem o que nos queremos, e sim uma combinação de ambos. O
melhor resultado será alcançado se eu conseguir aplanar o que a criança deixa
passar por seus dedos, desde que ao mesmo tempo eu possa acompanhar isso
com meus sentimentos, compartilhando de suas vivências com meu sentir. Se eu
fizer disso um sentimento que me permeie, a criança terá uma proteção contra
uma ligação excessiva com o mundo exterior.
Devemos fazer com que a criança se integre lentamente, e não com

16
demasiada rapidez, no mundo exterior. Devemos manter constantemente uma
mão protetora sobre a criança, e esse é o terceiro sentimento.
Veneração, entusiasmo e sentimento protetor — eis as três atitudes que
constituem a panacéia, o remédio universal na alma do educador e do professor.
Se quiséssemos expressar artisticamente algo como uma síntese da in-
corporação da arte e da pedagogia, deveríamos elaborar o seguinte:

— Veneração pelo que precede a existência da criança.


— Indicação entusiástica do que se sucede à criança.
— Gesto protetor em relação ao que a criança vivencia.17

É nessa moldagem da natureza docente que também estaria caracterizada


da melhor maneira a manifestação externa do professor.
É nessas coisas que se vê o quanto é insatisfatório expressarmos por meio
da linguagem convencional algo a ser dito a partir das intimidades dos
mistérios do Cosmo. Ao utilizarmos a fala exterior para tais assuntos, sentimos
a necessidade de uma complementação. Nesta altura, a expressão lingüística
abstrata anseia por transformar-se em algo artístico. Por isso eu quis encerrar
desta maneira.
Eis o que devemos aprender: devemos aprender a produzir em nós algo
dessa atitude anímica do futuro, segundo a qual a posse da mera ciência dará
ao homem a sensação de que ele é um aleijão anímico-espiritual. Quem for ape-
nas cientista não sentirá o impulso de transformar o científico em algo artístico,
mesmo se apenas pela formação dos pensamentos. É só no elemento artístico
que compreendemos o mundo. Mas sempre se pode dizer que “aquele a quem a
natureza desvenda seu mistério sente um anseio nostálgico pela arte”.18
Cada qual deveria imbuir-se do seguinte sentimento:
“Enquanto mero cientista, você é um lunático! Só quando transformar seu
organismo físico-anímico-espiritual, quando seu saber assumir forma artística, é
que você será um homem.” No fundo, a evolução futura conduzirá — e para isto
o pedagogo deve contribuir — da ciência à compreensão artística do mundo, do
aleijão de nascença ao ser humano pleno.

21 de setembro de 1920

Antropologia espiritual e pedagogia

Na vida, é importante que as relações entre o indivíduo e seu meio


ambiente sejam corretamente reguladas. Nós podemos comer e digerir de
maneira adequada os produtos fornecidos pelo mundo exterior; mas não nos
alimentaríamos bem se ingeríssemos como alimento produtos que já tivessem,
até certo ponto, sido digeridos. Isso demonstra que certas coisas têm de ser
assimiladas do exterior sob determinada forma, tornando-se importantes para a
vida pelo fato de continuarem a ser processadas pelo próprio homem.

17 Steiner acompanhou cada uma dessas sentenças com um gesto. Numa anotação de Caroline
von Heydebrand consta: “Veneração (mãos postas em oração) [na anotação estenográfica: as
duas mãos para cima, inclinando-se uma para a outra com as pontas dos dedos]; entusiasmo
(mão apontando); sentimento protetor (braço direito como no B eurrítmico)”. (N.E. orig.)
18 Frase de Göethe em Spruche in Prosa, a qual, na íntegra, é a seguinte: “Aquele a quem a
natureza começa a desvendar seu segredo manifesto experimenta um anseio irresistível por
sua intérprete mais digna: a arte.” (Apud Rudolf Steiner, Arte e estética segundo Göethe, trad.
Marcelo da Veiga Greuel [São Paulo: Antroposófica, 1994]). (N.E.)

17
O mesmo acontece em áreas mais elevadas, como por exemplo na
pedagogia, na arte da educação. O que importa na arte de educar é aquilo que
aprendemos e aquilo que o educador, enquanto lida com o ensino, deve inventar
a partir do que aprendeu. Quando aprendemos a pedagogia como uma ciência
composta de várias teses e vários princípios bem formulados, isso, para a arte
de educar, significa o mesmo que escolher para alimentar-se alimentos já pré-
digeridos por outras pessoas. Mas quando, por outro lado, assimilamos a
antropologia, o conhecimento da essência do ser humano pelo aprendizado,
chegando assim a compreender o homem, então acolhemos o que corresponde
aos alimentos oferecidos pela natureza. Na prática do ensino, a própria arte
pedagógica desponta desse conhecimento do homem para cada caso individual.
A cada instante ela tem de ser inventada pelo professor. Isso é o que eu gostaria
de colocar no início de nossas considerações de hoje.
No ensino e na educação, entretecem-se de forma curiosa duas coisas: de
um lado, pela audição, aquilo que eu gostaria de chamar de elemento musical,
de elemento sonoro do mundo; de outro, o elemento imagético do mundo, que
se manifesta através da visão. Obviamente, outras qualidades sensoriais se
misturam ao que é transmitido ao homem pela audição e pela visão; também
podem ter importância para o ensino, porém uma importância secundária, e não
tão grande como a da visão e a da audição.
Ora, trata-se realmente de compreendermos esses processos até à
corporalidade. A ciência exterior distingue, nos homens, entre os chamados
nervos sensórios — que iriam dos sentidos até o cérebro ou até um órgão
central, transmitindo percepções e representações — e os chamados nervos
motores — que se dirigiriam do órgão central aos órgãos motores, colocando-os
em movimento. Como os Senhores sabem, temos de contestar essa distinção, do
ponto de vista da ciência iniciática. Não existe, absolutamente, distinção
alguma entre os chamados nervos sensoriais e os nervos motores. Ambos são
um e o mesmo ser, e no fundo os nervos motores de nada servem caso não se
perceba o órgão motor e o próprio movimento no instante em que devemos
mover-nos; eles nada têm a ver com a impulsão da vontade como tal. Portanto,
poderemos dizer que temos nervos dirigidos da periferia para o centro e nervos
que correm do centro para os terminais dos órgãos de movimento. No fundo,
porém, trata-se de feixes nervosos homogêneos, e o essencial é que esses feixes
nervosos homogêneos são interrompidos: a corrente anímica inervadora que se
dirige, por exemplo, de um nervo sensório ao centro é interrompida no centro,
tendo de saltar — o que não altera a natureza da corrente anímica inervadora
—, como uma faísca ou corrente elétrica num transformador ao ser
interrompida a transmissão, para o chamado nervo motor, o qual porém, em
nenhum sentido vem a ser diferente, sendo exatamente igual ao nervo sensório.
Ele apenas é apropriado para perceber o processo do movimento e o próprio
órgão motor. Porém existe algo que nos permite olhar de forma particularmente
íntima para todo esse processo orgânico, onde correntes anímicas e processos
corporais se interpenetram.
Suponhamos, como ponto de partida, que estamos entregues à percepção
de uma imagem. Estamos, pois, entregues à percepção de algo que nos é
transmitido principalmente pelo órgão da visão: um desenho, qualquer forma
existente ao nosso redor — enfim, algo que se torna nossa propriedade anímica
devido ao fato de possuirmos olhos. Aí é preciso diferenciar três atividades
internas bem distintas: — Primeiro, o perceber enquanto tal; esse perceber se
realiza no órgão da visão. Em seguida temos de distinguir dele o compreender;
e aqui convém estarmos conscientes de que todo compreender nos é facultado
pelo sistema rítmico do homem, e não pelo sistema neurosensorial. O sistema

18
neuro-sensorial só nos proporciona o perceber, ao passo que só
compreendemos, por exemplo, qualquer processo imagético pelo fato de o
processo rítmico, que é regulado pelo coração e pelo pulmão, prosseguir
através do líquor cerebrospinal em direção ao cérebro. Essas vibrações que
acontecem no cérebro, tendo seu estímulo no sistema rítmico do homem, na
verdade possibilitam corporeamente o compreender: nós somos capazes de
compreender devido ao fato de respirarmos.
Os Senhores vêem como muitas vezes, hoje, essas coisas são consideradas
erradamente pela Fisiologia! Acredita-se que a compreensão tenha algo a ver
com o sistema nervoso, quando em realidade consiste no fato de o sistema
rítmico acolher e transformar aquilo que percebemos e representamos
mentalmente. Estando o sistema rítmico relacionado ao compreender, este
estabelece uma relação íntima com o sentir do homem. Quem cultivar uma
íntima observação de si mesmo perceberá as relações entre o compreender e o
sentir propriamente dito. No fundo, precisamos sentir a verdade de algo
compreendido se acaso quisermos professá-lo. Então o resultado do
conhecimento compreensivo e o elemento anímico do sentir se reúnem dentro
de nós justamente por meio do sistema rítmico.
No entanto, existe uma terceira atividade: assimilar o assunto de forma que
a memória possa conservá-lo. Temos, portanto, de distinguir em cada um desses
processos a percepção, a compreensão e um processamento interior tal, do
conteúdo compreendido, que a memória possa conservá-lo. E este terceiro
elemento está ligado ao sistema metabólico. Os processos metabólicos íntimos e
muito sutis que se realizam no organismo, aos quais devemos dedicar nossa
atenção e que devem ser conhecidos por nós enquanto educadores relacionam-
se com a memória, com a capacidade de lembrar.
Convém observar quão diferentes, na capacidade de lembrar, são as
crianças pálidas daquelas que têm a cor da pele sadia e vermelhinha; ou quão
diferentes são, no aspecto recordativo, as diferentes raças humanas. Essas
coisas baseiam-se nas diferenciações e processos mais sutis do nosso
metabolismo. Se, como educadores, formos capazes de ajudar uma criança
pálida proporcionando-lhe um sono sadio, de modo que intimamente ela fique
mais sensível aos processos mais sutis do metabolismo, com isso estaremos
prestando uma ajuda à sua memória. Mas também poderemos ajudar sua
memória estabelecendo a correta pulsação entre seu mero escutar e seu
trabalhar por si mesma.
Suponha-se que estejamos fazendo a criança escutar demais; ela chegará a
perceber, e em último caso até a compreender,já que respira constantemente,
mantendo o liquor em movimento; porém sua vontade não estará sendo sufi-
cientemente solicitada. Ora, como os Senhores sabem, a vontade está ligada ao
metabolismo. Se deixarmos a criança acostumar-se demasiadamente a olhar e
escutar, sem fazê-la trabalhar por si mesma e ativando-lhe insuficientemente a
vontade, não a estaremos educando nem ensinando bem, pois a elaboração
interna relaciona-se com o metabolismo e a vontade. É necessário, portanto,
achar a pulsação correta entre o olhar ou escutar e o trabalhar por si. Não é
bem guardado na memória o que, no homem, não foi elaborado de forma a fazer
a vontade atuar sobre o metabolismo, incentivando assim a capacidade de
relembrar no decorrer do tempo. Essas são sutilezas, na fisiologia, que
gradualmente terão de ser bem compreendidas com a Ciência Espiritual.
Enquanto tudo isso se refere à vivência imagética relacionada com a visão,
a situação é diferente ao se tratar de fenômenos sonoros, mais ou menos
musicais; refiro-me não só ao elemento musical na própria música — que é
apenas um exemplo particularmente ilustrativo e concludente —, mas a tudo o

19
que se relaciona com o audível, vivendo mais na fala, e assim por diante. É a
tudo isso que me refiro quando falo sobre fenômenos sonoros. Nestes, o
processo — por mais paradoxal que isso pareça — é oposto ao que acabo de
descrever. A organização sensória do ouvido se relaciona intímamente com
todos os nervos que a fisiologia moderna chama de motores, mas que na
realidade são idênticos aos nervos sensórios. Tudo o que vivenciamos como
sonoro é percebido pelos feixes de nervos inerentes à organização dos nossos
membros. Tudo o que é musical precisa primeiro penetrar profundamente em
nosso organismo — e para isso os nervos do ouvido já são organizados —,
atingindo o âmbito onde normalmente só a vontade atua nos nervos, para então
ser percebido corretamente. Os territórios do organismo que facultam a
memória, no caso das vivências imagéticas, são os que facultam a percepção
quando se trata do musical, do audível. Se procurarmos no organismo aquelas
partes que facultam a memória para as percepções visuais, encontraremos
nelas os nervos que permitem a própria percepção no caso das percepções
auditivas. Foi por isso que Schopenhauer19 e outros relacionaram tão
intimamente a música com a vontade. É no âmbito onde as representações
visuais são lembradas — ou seja, nas áreas da vontade — que as representações
auditivas são percebidas. A compreensão realiza-se também, no caso das
representações auditivas, por meio do sistema rítmico.
É significativo o fato de ocorrerem, na constituição humana, interligações
tão curiosas. Nossas representações visuais se reúnem às auditivas,
entretecendo-se numa vida anímica interior comum, pelo fato de serem ambas
compreendidas por intermédio do sistema rítmico. Tudo o que percebemos é
compreendido por meio do sistema rítmico. As representações visuais são
percebidas por meio do organismo segregado da cabeça, e as representações
auditivas mediante todo o organismo dos membros. As representações visuais
formam uma corrente para dentro do organismo; as representações auditivas
formam uma corrente do organismo para a frente.
Os Senhores precisam ligar tudo isso ao que eu disse na primeira aula — o
que é bem viável quando se sente o processo. Pelo fato de os dois mundos se
encontrarem no sistema rítmico, surge, em nossa vida anímica, algo que
encerra conjuntamente vivências acústicas e visuais. E o musical, o audível, é
relembrado na mesma área onde o visível tem seus órgãos neuro-sensoriais.
Esses são ao mesmo tempo os órgãos — a fisiologia exterior chama-os, de
acordo com as aparências, de órgãos neuro-sensoriais — que na realidade são
relacionados com o metabolismo, facultando o metabolismo mais sutil da região
cefálica e dando origem às recordações musicais. É nas mesmas áreas onde se
realiza a percepção das representações visuais que surge a recordação musical,
ou mesmo de tudo o que é audível. É nas mesmas áreas onde percebemos o
visível que relembramos o audível, e é nas mesmas áreas onde relembramos o
visível que percebemos o audível. E ambos se entrecruzam como uma
lemniscata no sistema rítmico, onde se interpenetram e se superpõem.
Quem algum dia analisou esse relembrar musical, essa memória musical
19 Arthur Schopenhauer (1788—1860), filósofo cuja obra completa (Arthur Schopenhauers
sämtliche Werke in zwölf Bänden [Stuttgart-Berlim, J. G. Cotta, 18941) recebeu introdução de
Rudolf Steiner intitulada ‘O mundo como vontade e representação mental’ (Die Welt als Wille
and Vorstellung — terceiro tomo, livros 3 e 4). No cap. ‘A idéia platônica’ consta, entre outras
coisas: “A música é, na verdade, uma objetivação e reprodução tão imediata de toda a vontade
como o é o próprio mundo, como o são as idéias, cuja manifestação mais variada produz o
mundo das coisas individuais. A música, portanto, de modo algum é, como as outras artes, a
reprodução das idéias, e sim reprodução da própria vontade, cuja objetividade também são as
idéias: é por isso mesmo que o efeito da música é muito mais poderoso e penetrante do que o
das outras artes — pois essas falam apenas de sombras, mas ela fala da essência.” (Cf. N.E.
orig.)

20
considerada tão óbvia pelos homens mas que é tão maravilhosa e enigmática,
descobre o quão diferente ela é da memória visual. A memória musical tem seu
fundamento em determinada organização sutil do metabolismo na cabeça; por
seu caráter geral ela tem afinidade com a vontade e, por isso, com o
metabolismo. Contudo, está localizada numa área corporal diferente da área
recordativa das representações visuais, que também são relacionadas com a
vontade.
Ponderando todos esses aspectos, os Senhores também poderão fazer atuar
em sua alma toda a complexidade do processo da fala. Neste processo,
encontramos algo que atua de dentro e no qual se realiza o ato de compreender,
devido à estreita afinidade do sistema rítmico com o órgão da fala. Porém a
compreensão realiza-se de forma curiosa, e para que os Senhores possam
inteirar-se plenamente do assunto, quero lembrar-lhes a ‘Teoria das Cores’ de
Göethe.20 Além de chamar de quente o lado vermelho-amarelo do mundo das
cores e de frio o lado azul-violeta, Göethe aproxima a percepção das cores da
percepção dos sons; ele vê, de certa forma, no lado vermelho-amarelo do
espectro um ‘soar’ diferente do que ocorre no lado azul-violeta, e estabelece
uma relação entre isso e as modalidades maior e menor, que já constituem
aspectos bastante íntimos das vivências sonoras. Essas idéias encontram-se nos
trechos não-editados de suas obras científicas, os quais foram depois publicados
na edição de Weimar e acrescentados por mim no último volume da edição de
Kürschner.21 E já podemos constatar o seguinte: ao transferirmos para o interior
do homem o que, na teoria das cores de Göethe, se caracteriza mais pelo modo
de descrever, algo especial se revela. No interior do homem, o que primeiro
reside na fala é o soar. Sim, na fala vive o soar, mas esse soar é, em certo
sentido, modificado. Eu diria que o soar é permeado por algo que o ‘abafa’ no
falar. E não se trata apenas de uma analogia, mas de um fato relacionado com
processos reais quando dizemos que o som propriamente dito recebe uma
‘coloração’ quando se fala. O mesmo que ocorre com a cor exterior quando a
percebemos em sua ‘tonalidade’ — não percebemos nela qualquer som, mas
ouvimos ressoar algo em cada cor —, ocorre também interiormente: não
enxergamos cor alguma ao dizer ‘i’ ou ‘u, como tampouco ouvimos sons ao ver a
cor amarela ou azul. Mas a mesma vivência que temos ao perceber a ‘tona-
lidade’ de uma cor, nós a temos quando vivenciamos o som que reverbera da
fala. Aí o mundo visual e o mundo dos sons se interpenetram. A cor que
enxergamos lá fora no espaço possui um caráter visual bem manifesto e um
caráter sonoro íntimo, que penetra em nós tal como descrevi numa das últimas
aulas. O que chega de dentro, como fala, à superfície do homem traz
manifestamente um caráter sonoro, mas na emissão dos fonemas possui um
íntimo caráter cromático que aflora cada vez mais, do modo como descrevi, em
pessoas até os sete anos de idade.
Como se vê, o elemento cromático permanece manifesto principalmente no
mundo exterior, e o elemento sonoro principalmente no mundo interior do
homem; sob essa superfície no mundo exterior ondeia a música cósmica, e sob a

20 Publicada originalmerite nos vols. III a V dos ‘Escritos científicos de Göethe’ [ Göethes
Naturwissenschaftliche Schriften], editados e comentados por R. Steiner na ‘Literatura Nacional
Alemã’ [Deutsche National-Literatur, 1883—1887] de Kürschner. Reed. em 5 vols. na Edição
Completa [Gesamtausgabel de Rudolf Steiner, GA-Nr. 1 a—e (Dornach: Rudolf Steiner Verlag,
1975). (N.E. orig.)
[V. tb. Günter Kollert, O cosmo das cores (São Paulo: Religião & Cultura, 1992) e J. W. Göethe,
Doutrina das cores. Apresentação, seleção e trad. Marco Gianotti (São Paulo: Nova
Alexandria, 1993).]
21 0p. cit., vol. V, 2ª parte, pp. 102 ss. (Göethe sobre Johann Leonhard Hoffmann). (N.E. orig.)

21
superfície do que soa no interior do homem ondeia e movimenta-se um
elemento astral misteriosamente colorido.
E se os Senhores compreenderem a autêntica linguagem, esse maravilhoso
organismo destacável do homem, sentirão simultaneamente, ao ressoar a fala a
partir do ser humano, todas as vibrações do corpo astral encerradas nas
ondulações coloridas que se transmitem diretamente à linguagem.
Normalmente elas também atuam no homem; mas nesse caso entram numa
movimentação especial, concentram-se na região da laringe, recebendo
impulsos do Sol e da Lua, e isso produz como que um jogo no corpo astral,
manifesto exteriormente nos movimentos da laringe. E agora temos a seguinte
possibilidade, ao menos como imagem visual: escutamos uma língua qualquer,
olhamos para o corpo astral, que logo transmite suas vibrações ao corpo
etérico, e isso faz todo o processo parecer ainda mais íntimo; desenhamos então
o processo todo, e só teremos movimentos fundamentados no organismo
humano — obtendo assim aquela eurritmia 22 que é sempre executada pelos cor-
pos astral e etérico juntos quando o homem fala. Não pode haver qualquer
arbitrariedade — simplesmente é trazido para a visibilidade o que normalmente
ocorre de maneira sempre invisível.
Por que fazemos isso hoje em dia? Nós o fazemos porque nos cabe fazer
conscientemente as coisas que antes fizemos inconscientemente; pois toda
evolução do homem consiste numa descida, para o sensorial, daquilo que antes
existia apenas espiritualmente, no supra-sensível. Os gregos, por exemplo,
ainda pensavam com a alma; seu pensar ainda era inteiramente anímico. Os
homens modernos, mormente desde meados do século XV, pensam com o
cérebro. O materialismo é efetivamente uma teoria totalmente correta para o
homem moderno. Pois o que os gregos ainda vivenciavam na alma passou a
deixar, pouco a pouco, uma impressão no cérebro, transmitindo-se aí de geração
em geração, sendo que os homens modernos já pensam com as impressões
deixadas no cérebro, isto é, mediante processos materiais. Isso tinha de
acontecer assim. Só que devemos novamente subir e acrescentar a essa
evolução uma elevação do homem aos resultados que vêm do mundo supra-
sensível. Por isso, à gravação do antigo elemento anímico no corpo devemos
opor o pólo oposto, ou seja, o livre captar da realidade espiritual supra-sensível
por meio da Ciência Espiritual. Mas para que a humanidade possa continuar a
evoluir, essa descida do supra-sensível ao sensorial deve ser realizada
conscientemente. Devemos colocar conscientemente o corpo do homem, esse
corpo sensorial, numa mobilidade visível tal como a que até agora só ocorria no
plano invisível, inconsciente para nós. Nós damos conscientemente
continuidade ao caminho dos deuses por termos assumido o trabalho iniciado
por eles: a gravação do pensar no cérebro, levando a eurritmia do supra-
sensorial para o sensorial. Caso não o fizéssemos, a humanidade cairia pau-
latinamente num sonho anímico; ela adormeceria. Então todo tipo de coisa
fluiria dos mundos espirituais para o eu e o corpo astral do homem, mas isso se
daria sempre durante o estado de sono, nunca podendo haver, ao despertar, a
transferência para o organismo físico.
Quando se pratica a eurritmia, tanto os eurritmístas quando os
espectadores são beneficiados na vida; ambos recebem disso algo essencial.
Nos próprios eurritmistas o organismo físico é transformado, pelos movimentos
da eurritmia, num órgão receptivo apropriado para o mundo espiritual, porque
os movimentos querem descer do mundo espiritual. De certa forma, os
eurritmistas se tornam órgãos receptores de processos do mundo espiritual ao
prepararem seu corpo para isso. Nos espectadores, o que existe de movimentos
22 Arte antroposófica do movimento (v. bibliografia na p. 35). (N.E.)

22
relativos ao seu corpo astral e ao seu eu são intensificados pelos movimentos da
eurritmia. Se após uma apresentação de eurritmia os Senhores pudessem
acordar repentinamente no meio da noite, constatariam estar possuindo
interiormente muito mais do que após terem ouvido uma sonata num concerto
noturno e despertado durante o sono; no caso da eurritmia, o fenômeno é muito
mais intenso, pois fortalece a alma por fazê-la conviver vivamente com o supra-
sensível. Só que nesse caso deve reinar uma certa profilaxia — pois quando há
exagero a alma ‘erperneia’, durante a noite, no mundo espiritual, enquanto o
homem deve dormir, e esse espernear seria, no âmbito anímico, equivalente ao
nervosismo físico.
Essas coisas nos levam a perceber de maneira cada vez mais real esse
maravilhoso edifício da entidade humana. De um lado ela se nos apresenta
descendentemente no físico, onde tudo indica que nada existe no corpo que não
seja espiritualizado, e de outro lado vemos o anímico-espiritual almejando que
nada mais de natureza anímico-espiritual no homem deixe de elaborar a
vivência física. E é especialmente interessante deixarmos atuar em nós fatos
como os que mencionei hoje, considerando-os como estímulos. Se, por exemplo,
agora os Senhores formarem para si vívidas idéias meditativas sobre toda a vida
do elemento musical no homem nos âmbitos volitivos do plano visível, e depois
sobre a vivência recordativa no âmbito musical, sobre a vida das recordações
musicais nas áreas da representação mental no plano audível — se reunirem
todas essas coisas e formarem disso idéias meditativas —, então poderão ter
certeza de que serão estimulados para uma profunda capacidade inventiva, da
qual necessitam como educadores perante a criança.
Todas as considerações de uma pedagogia baseada na Ciência Espiritual,
como as que tecemos aqui, visam a um conhecimento mais íntimo do homem.
Contudo, pensando meditativamente sobre elas os Senhores farão com que con-
tinuem a atuar em seu íntimo.
Vejam, ao comerem um pão com manteiga os Senhores estão executando
um ato consciente; contudo não poderão influenciar o que vem em seguida,
quando o pão passa pelo complicado processo de digestão, apesar de esse
processo não deixar de acontecer e sua vida em geral depender muito dele. Ora,
ao estudarem a antropologia como temos feito, primeiro os Senhores a
vivenciam conscientemente; ao meditarem em seguida sobre ela, ocorre em seu
íntimo um processo digestivo anímico-espiritual, e é isso o que os tornará
pedagogos e educadores. Assim como o metabolismo os torna seres humanos
vivos, essa digestão de uma verdadeira antropologia pela meditação os
transformará em educadores. Sua postura diante da criança será outra, desde
que os Senhores assimilem o que decorre de uma verdadeira antropologia
antroposófica. O que é feito de nós, o que atua em nós e faz de nós educadores,
realiza-se pela assimilação de tal antropologia por meio da meditação. E
considerações como a de hoje, quando repetidamente despertadas em nós,
porão em movimento toda a nossa vida anímica, mesmo se a ela dedicarmos
apenas cinco minutos por dia. Seremos indivíduos tão fecundos em
pensamentos e sentimentos que tudo isso passará a jorrar de nós. Meditem
ànoite sobre antropologia, e pela manhã ficará óbvio: com relação ao Joãozinho
convém proceder assim ou assado — ou: aquela menina precisa disto ou
daquilo. Em suma, os Senhores saberão o que aplicar em cada caso especial.
Na vida humana, é importante estabelecer uma colaboração entre o
interior e o exterior. Nem é preciso muito tempo para isso. Se os Senhores
tiverem recebido a força suficiente, em três segundos de trabalho interior
criarão um manancial de linguagem, aplicável à educação, suficiente para um
dia inteiro. O tempo deixará de ter relevância quando se tratar de dar vida ao

23
supra-sensorial. O espírito possui outras leis. Da mesma maneira como os
Senhores têm, ao despertar, um pensamento cujo conteúdo se estende por
semanas mas atravessou sua cabeça numa fração de tempo que mal pôde ser
especificado, o que lhes emana do espírito pode então, inversamente,
prolongar-se. Assim como no sonho tudo se concentra, o que emana do espírito
vai-se prolongando. Assim, por meio de tal familiarização meditativa com a
antropologia antroposófica os Senhores poderão conseguir, aos 40 ou 45 anos,
ser capazes de percorrer em cinco minutos toda a transformação interior do
homem necessária ao seu ensino, e que na vida exterior os tornará totalmente
diferentes do que terão sido antes.
É de tais coisas que falam os livros escritos por pessoas experientes nesse
âmbito. É preciso compreender isso, mas é preciso compreender também que o
que é vivenciado por algumas individualidades em escala bem especial,
podendo lançar sua luz sobre toda a vida, no caso do educador deve desenrolar-
se em escala restrita. Ele deve assimilar a antropologia, compreender a
antropologia por meio da meditação, lembrar-se da antropologia: então a
recordação se transformará em vida interior pulsante. Não se trata apenas de
uma recordação comum, mas de um recordar-se que gera novos impulsos
interiores. Então a lembrança vem jorrando da vida espiritual, e ao nosso
trabalho externo se transmite algo como terceira etapa: à compreensão medita-
tiva se segue o relembrar criador, inventivo, que é ao mesmo tempo um acolher
do mundo espiritual.
Portanto, temos primeiramente uma assimilação ou percepção da
antropologia, depois uma compreensão — uma compreensão meditativa dessa
antropologia ao nos recolhermos cada vez mais interiormente para onde essa
antropologia é recebida por todo o nosso sistema rítmico — e, finalmente, o
relembrar da antropologia a partir do espiritual. Isso significa criar
pedagogicamente a partir do espírito, transformar-se em arte pedagógica. Isso
deve tornar-se convicção, isso deve tornar-se disposição animica.
Assim, os Senhores devem contemplari ser humano de modo a sentirem,
também aí, continuamente essas três etapas em si mesmos. E quanto mais
chegarem a dizer a si próprios: “Aqui está meu corpo exterior, aqui está minha
pele, que encerra em mim aquele que assimila a antropologia, aquele que
compreende meditativamente a antropologia, aquele que é fecundado por Deus
ao recordar a antropologia” — quanto mais trouxerem em si esse sentimento,
tanto mais serão educadores, e educadores docentes.

22 de setembro de 1920

O equilíbrio físico-espiritual na educação

Se observarmos o homem em sua constituição e depois aplicarmos esse


conhecimento ao ser humano em formação, à criança, concluiremos que é dos
mundos espirituais que advém, sobre uma espécie de asas astrais, a entidade
individual23 do homem. Ao observarmos a criança em seus primeiros anos de
vida — como ela se desenvolve, como gradualmente leva, de seu mais profundo
âmago, a fisionomia para a superfície do corpo, como ganha cada vez mais
poder sobre seu organismo —, o que vemos então é, em essência, a
incorporação do eu. Observando essa incorporação do eu, poderemos

23 No original, Ichheit — em tradução literal, ‘egoidade’. (N.E.)

24
caracterizar de várias maneiras o que efetivamente acontece — e os Senhores
já conhecem duas maneiras principais de caracterizar isso.
Nos últimos tempos tenho falado freqüentemente sobre como, com troca
dos dentes, aquilo que atua de modo organizador no corpo físico se emancipa e,
no fundo, forma a inteligência. É assim que se pode descrever o processo de
certo ângulo. Pode-se também fazê-lo como em outras ocasiões, quando foi
acrescentado o material para a compreensão do homem a partir de um outro
ponto de vista, tendo-se então dito o seguinte: é com a troca dos dentes que
nasce o corpo etérico; o corpo físico do homem vem à luz com o nascimento, e o
corpo etérico ao redor dos sete anos. Assim, o que de um lado pode ser
denominado nascimento do corpo etérico é idêntico ao que, de outro lado, pode
ser designado como a emancipação da inteligência em relação ao corpo físico.
Trata-se apenas de uma descrição bilateral do mesmo fato. No fundo, este só é
compreendido corretamente quando reunimos numa síntese as duas
concepções. Na Ciência Espiritual, não é possível fazer uma caracterização a
não ser abordando a coisa de diversos lados e depois considerando globalmente
as diversas acepções resultantes. Exatamente como num único tom não pode
ser dada uma melodia, tampouco os Senhores podem abranger com uma única
caracterização o conteúdo da Ciência Espiritual; é preciso definir a
característica de diversos lados. Isso é o que, em tempos passados, pessoas que
realmente sabiam algo a esse respeito chamavam de ‘ouvir tudo junto’, ouvir as
diversas explicações reunidas.
Ora, o que acontece a seguir? O eu, que já vem descendo com o
nascimento, de certa forma aflui para aquilo que efetivamente se libera — seja
este denominado corpo etérico ou inteligência —, estruturando-o
paulatinamente, de modo que nessa época ocorre uma interpenetração entre o
eu eterno e aquilo que então se forma — a inteligência que se está liberando, o
corpo etéríco nascente.
Observando o período seguinte, dos sete aos catorze anos — portanto, até a
puberdade —, novamente poderemos dizer, de um lado, que um elemento
volitivo, um elemento musical é, de certa forma, acolhido. O processo sera
melhor descrito desse primeiro lado se dissermos ‘acolhido’, pois trata-se do
elemento musical localizado realmente no mundo exterior. Na verdade, tudo o
que é acolhido de musical, de sonoro, vibra através do corpo astral. Assim este
éemancipado da relação que anteriormente possuía com toda a natureza
humana. Por isso podemos, de outro lado, dizer a respeito da criança: com a
puberdade sucede o nascimento do corpo astral.
Mas novamente é o eu que agora, como elemento eterno, se une ao que aí
se emancipa; e assim do nascimento à puberdade, isto é, até o fim das quatro
primeiras séries e ainda mais tarde, temos um constante fortalecimento do eu
em toda a constituição humana. Dos sete anos em diante, o eu ainda se firma
somente no corpo etérico; antes, porém, quando o homem é um imitador, o eu
se firma no corpo físico justamente graças a essa atividade imitativa; e mais
tarde, ainda depois da puberdade, o eu se firma no corpo astral. Portanto, trata-
se de uma constante permeação da natureza humana pelo eu, o que ocorre
concretamente da maneira como eu disse.
Todo esse mundo de fatos tem uma imensa importância para o educador. É
que no fundo todo ensino e toda educação deveriam, de certa maneira, ocorrer
de maneira tão artística — conforme indiquei no artigo sobre o elemento
artístico na educação, no último número do ‘Futuro Social’ 24 — que tivesse

24 Steiner refere-se ao artigo ‘O estabelecimento de metas pedagógicas na Escola Waldorf de


Stuttgart’, publicado primeiramente no periódico Soziale Zukunft (Futuro Social), Ano 1, cads.
5—7 (Zurique, fev. 1920). Atualmente incluído em Aufsätze über die Dreigliederung des

25
sempre em mente esse processo da integração do eu no restante da natureza
humana, como acabo de expor; o processo da integração do eu na natureza
humana deveria sempre ser dirigido por meio de uma educação artística. O que
significa isso?
Significa, por exemplo, que de certa forma o eu não deve penetrar
profundamente demais nos corpos físico, etérico e astral, mas tampouco deve
ser mantido excessivamente fora deles. Quando penetra muito profundamente
na natureza humana, ligando-se muito intensamente a ela, o homem se torna
um ser excessivamente material; então pensa apenas com o cérebro, sendo
totalmente dependente de sua natureza — numa palavra, torna-se por demais
corpo; o eu é absorvido de forma muito intensa pela natureza humana. É isso o
que devemos evitar. Devemos procurar evitar, pela educação, tudo o que faça o
eu ser absorvido muito fortemente pela natureza humana, tornando-se de-
masiadamente dependente. Os Senhores compreenderão toda a gravidade
dessa situação se eu disser que a natureza de muitos criminosos, de muitos
homens brutais consiste no fato de se haver deixado o eu ser excessivamente
absorvido nos anos de crescimento. O que o antropólogo constata em tais
homens como sendo os sinais degenerativos — conhecidos dos Senhores —
encontráveis no criminoso, freqüentemente se caracteriza — isso só fica bem
definido nesses anos posteriores — como uma absorção excessiva do eu por
parte da natureza humana restante. E conquanto a pessoa tenha nascido [com
um lóbulo occipital muito pequeno] 25, isso faz ainda mais necessário atentar
para que o eu não submerja demais na constituição restante. Mediante um
tratamento artístico adequado na educação, podemos impedir que num
indivíduo com sinais degenerativos o eu penetre excessivamente na
constituição; então estamos protegendo-o de tornar-se um criminoso.
De outro lado, contudo, podemos também cair no erro oposto. Aí existe
uma dificuldade. Assim como no caso de uma balança pode-se colocar no prato
um peso demasiadamente pequeno ou grande — no primeiro caso o outro prato
não sobe, e no segundo sobe demais, devendo-se primeiro contrabalançar o
peso —, também em relação aos fatos da vida nos encontramos diante de uma
tal realidade. O âmbito da realidade nunca pode ser concebido em conceitos
rígidos; sempre que se quer corrigir um erro pode-se cair em outro. Por isso,
diante da criança é preciso levar em conta as intimidades da vida, nunca
buscando intensamente demais isso ou aquilo de modo unilateral; devemos, isso
sim, ter um sentimento de que no âmbito da educação se deve encontrar um
equilíbrio por meio da arte. Quando não se cuida para que o eu se ligue
corretamente à natureza humana, pode ser que ele fique exageradamente de
fora; e a conseqüência é que o homem se torna um sonhador ou um fanático, ou
se torna absolutamente inútil para a vida na proporção em que sempre tem
idéias fantásticas.
Esse é, pois, o outro erro: deixar o eu aprofundar-se muito pouco na
natureza humana. E mesmo as pessoas que possuem na infância uma disposição
para a exaltação, para o falso romantismo, para a Teosofia no sentido errado,
podem ser protegidas disso para o resto da vida pelo educador quando se tem o
cuidado de não deixar que o eu permaneça fora demais do restante da
constituição, mas se interpenetre com ela corretamente. Se encontrarmos em
crianças o conhecido sinal dos teósofos, uma pequena elevação que parte da
sozialen Organismus und zur Zeitlage 1915—1921, GA 24 (2. ed. Dornach: Rudolf Steiner
Verlag, 1982). (Cf. N.E. orig.)
25 Insercão do editor original (Dornach, 1994) de acordo com o sentido e em conformidade com
a afirmação do Autor em outro contexto: “Uma pessoa é um criminoso pelo fato de os lóbulos
occipitais não cobrirem certas partes do cérebro...” (em Die geistigen Hintergründe des
Ersten Weltkrieges, GA-Nr. 174b, p. 132). (N.E.)

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testa e avança um pouco para trás — o conhecido sinal trazido ao mundo por
todos os que possuem disposição para a Teosofia —, será conveniente tratar de
evitar a tendência à exaltação e ao falso romantismo, mediante uma compres-
são mais forte do eu para dentro da natureza humana.
Como, no entanto, agir deste ou daquele modo?
Podemos fazer algo nessa direção familiarizando-nos com os meios pelos
quais podemos dominar esse tipo de fenômeno. Trata-se do seguinte:
Tudo o que constitua geometria e aritmética, tudo o que exija da pessoa
elaborar idéias numéricas e espaciais, contribui para que o eu se coloque
dentro do organismo, desde que a criança o assimile e elabore do ponto de vista
do ensino e da educação. Do mesmo modo, tudo o que no âmbito lingüístico
tende ao musical — ou seja, o elemento rítmico-recitativo e assim por diante —
contribui para que o eu se insira de modo correto no organismo. A música,
especialmente quando empregada de modo a desenvolvermos, numa criança
tendente à exaltação, a memória sonora — ou seja, principalmente a recordação
musical —, atuará de modo extraordinariamente benéfico sobre tal criança.
São esses os meios com os quais devemos trabalhar com uma criança na
qual notamos que o eu não quer penetrar bem no organismo e poderia ficar
levemente exaltado. E no momento em que percebemos que a criança se torna
excessivamente material, que o eu se torna muito dependente de seu corpo,
basta lhe pedirmos, na geometria, para desenhar um pouco mais as figuras
normalmente concebidas com o pensamento. Ao fazê-la desenhar as formas geo-
métricas, produzimos um contrapeso para a absorção exagerada do eu. Como
os Senhores vêem, pode-se educar de maneira inteiramente correta utilizando
corretamente as matérias curriculares.
Quando, numa criança que por disposição ou outras circunstâncias deveria
receber preferencialmente uma educação musical, se nota que ela depende
excessivamente de seu organismo, mesclando um elemento pesado ao seu can-
to, devemos tentar conduzi-la à escuta momentânea e menos intensamente à
memória sonora. Devemos, portanto, procurar exercer sempre uma ação
reguladora: de um lado, mediante as providências que caracterizei, ajudar a
criança a absorver o eu; de outro, porém, também proteger o eu de ser
exageradamente absorvido enquanto não mantivemos o equilíbrio correto entre
os extremos.
No ensino do idioma, é especialmente benéfico tentarmos atuar de maneira
reguladora. Tudo o que é musical na língua contribui para fazer absorver o eu.
Se numa criança eu constatar que isso ocorre em grau excessivo, procurarei
fazer com ela algo que corresponda mais ao sentido, ao conteúdo da língua.
Então me ocuparei com ela convocando-a para coisas mais relacionadas com o
sentido. Se, ao contrário, eu constatar que a criança fica demasiado exaltada,
procurarei motivá-la assimilar mais o rítmico, o recitativo, o cadenciado na
língua. É isso o que devemos alcançar artisticamente como educadores,
podendo então forçá-lo até certo grau.
Ora, existem matérias por cujo intermédio se pode evitar de modo bem
especial a excessiva absorção do eu pelo resto da constituição. Trata-se
principalmente da Geografia, da História e de tudo o que se relacione com o
elemento pictórico, com o figurativo. Isso se torna notoriamente possível
quando, por exemplo, se desenvolve narrativamente O elemento histórico — e
este é o aspecto importante disso — de modo que a criança tenha intensa
participação emocional na narrativa, provocando-se nela veneração ou também
ódio por personalidades históricas, caso determinada personalidade seja
merecedora de ódio. Com isso se contribui de modo especial, no ensino de
História, para que a criança não se torne excessivamente material. E se ao

27
observarmos o desenvolvimento da criança tivermos a impressão de que o
equilíbrio se deslocou um pouco para a exaltação devido a um excesso no
ensino de História dessa maneira, ou seja, se notarmos a criança um pouco
exaltada, deveremos tentar algo diferente.
E agora tudo isso deverá ser coadunado com o currículo. Deve-se começar
na idade adequada, e por isso convém observar a criança através dos anos.
Quando se vê que uma criança fica muito exaltada com narrativas da História, é
preciso permear oportunamente a narrativa com idéias, com grandes
correlações. Portanto, o tratamento individual destes ou daqueles eventos ou
personalidades históricas protege a criança contra uma excessiva absorção do
eu pela corporalidade; permeando a História com idéias que abranjam épocas
inteiras, promovemos a penetração do eu.
Por outro lado, por um excesso de desenho e atividade pictórica o eu pode
facilmente desprender-se do organismo, o que também torna o aluno exaltado.
O antídoto imediato é procurar, junto à criança que se torna exaltada ao dese -
nhar, pintar ou até escrever, que ela conceba um sentido para sua obra: se a
faço desenhar uma roseta, peço-lhe que pense em alguma coisa; no caso de
letras, levo-a a admirar suas formas, a conscientizar-se delas e assim por diante.
Enquanto simplesmente desenhando e escrevendo a criança se exorbita, pela
observação do que desenhou e escreveu ela volta a si.
Tais coisas nos mostram como, educando e ensinando realmente a partir de
um enfoque artístico, podemos utilizar corretamente essas particularidades do
ensino. E muito necessário sabermos realmente lidar com essas coisas. Tomem,
por exemplo, o ensino da geografia: em geral, ele contribui para que o eu não
seja excessivamente absorvido pelo organismo — de modo que podemos muito
bem utilizá-lo no caso de uma criança que ameace tornar-se demasiadamente
material, fazendo-a dedicar-se mais intensamente a assuntos geográficos; por
outro lado, ao valorizar a compreensão das diferenças de altitude ou introduzir
no ensino da geografia assuntos ligados ao pensamento mais geométrico,
podemos também, no caso da criança inclinada a exaltar-se pelo ensino de
geografia, fazer o eu penetrar no organismo de maneira apropriada.
O valor de tudo isso só pode ser devidamente apreciado quando se
consegue compreender essa maravilhosa estrutura do organismo humano e sua
consonância com todo o Universo. Basta os Senhores pensarem que, conforme
já observamos, a evolução da criança do nascimento à puberdade é uma
interpenetração da força cósmico-plástica com a força cósmico-musical. Essa
interpenetração acontece, naturalmente, nas mais diversas variações. E se os
Senhores observarem a constituição humana — creio que já mencionei este
importante aspecto em outro contexto, mas quero repeti-lo aqui devido à sua
grande utilidade —, por um lado encontrarão o corpo físico e o corpo etéríco;
ambos não se separam na época entre o nascimento e a morte: em certo
sentido, eles se pertencem mutuamente durante todo esse tempo. Em
contrapartida, os corpos fisico e etérico separam-se do corpo astral — em
primeira instância, portanto, o corpo etérico — ao adormecer, e ao despertar
eles voltam a reunir-se. Portanto, os corpos etérico e astral são menos
estreitamente interligados do que, por exemplo, os corpos físico e etéríco; do
mesmo modo, o eu e o corpo astral têm uma ligação estreita, pois não se
separam enquanto o homem dorme.
Ora, o que é o homem com seu corpo físico na Terra? É um ser que vive
numa íntima interação com o ar que o envolve. Uma certa quantidade de ar está
ora dentro, ora fora de nosso corpo físico; nós inspiramos, nós expiramos. Este
inspirar e expirar aponta uma sutil diferença entre os estados de vigília e de
sono do homem. Existe uma sutil diferença, e para os grandes acontecimentos

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muitas vezes as diferenças sutis são mais relevantes do que as outras. O que se
desenrola nesse sentido, no estado de vigília, pela interação entre o corpo astral
e o corpo etérico, também se desenrola no homem adormecido. O que se
desenrola entre o elemento musical e o elemento plástico na época do
desenvolvimento humano é simultaneamente uma contínua vibração integrada
do corpo astral à medida que o eu vibra junto, e também do corpo etérico à
medida que o corpo físico vibra junto.26 No fundo, o homem também inspira seu
eu e seu corpo astral pela manhã e os expira à noite, quando adormece. Essa é
uma espécie de grande processo respiratório, que podemos contrapor ao
processo respiratório comum. De fato, a cada adormecer nós saímos de nossos
corpos físico e etérico e entramos numa relação mais íntima com o ar ao nosso
redor, pois estamos diretamente dentro do ar com nosso corpo astral e nosso
eu. Enquanto acordados, nós dirigimos a respiração de dentro, e enquanto
adormecidos nós a dirigimos de fora, a partir da alma. De um lado, pela
circunstância de o ar ou um certo volume dele estar ora fora, ora dentro do
organismo humano, e, de outro lado, pelo fato de toda a constituicão humana —
desde o corpo físico até o eu — participar do processo respiratório, os Senhores
vêem que no tocante à essência do homem deve haver uma perspicaz
observância do que realmente existe de interação entre a constituição humana
e o ar.
Ora, todos os Senhores aprenderam um pouco de Física, e se lembrarão do
grande esforço que comumente os professores, quando são de algum modo
conscienciosos, fazem para explicar às crianças e aos adolescentes que o ar,
consistindo em oxigênio e nitrogênio, não é uma combinação química
propriamente dita, e sim uma espécie de mistura. Portanto, ao observarmos o ar
constatamos que ele contém oxigênio e nitrogênio num tipo de conjunção que
não forma uma combinação química, e sim uma ligação mais frouxa. Como isso
se relaciona com o homem? Relaciona-se com o homem por ser uma imagem
cósmica do fato de os corpos astral e etérico no homem estarem numa ligação
mais frouxa. Se o oxigênio e o nitrogênio do ar formassem uma combinação
química, unindo-se quimicamente, os corpos etérico e astral também estariam
tão intimamente ligados que não poderiam separar-se, de modo que nunca
conseguiríamos adormecer. A relação interior entre nossos corpos etérico e
astral espelha-se na constituição exterior do ar; e, vice-versa, a constituição
exterior do ar representada pela mistura de oxigênio e nitrogênio espelha-se
interiormente na relação entre os corpos etérico e astral na constituição
humana.
Assim sendo, o homem é organizado no sentido do Cosmo, sendo
interiormente um microcosmo; só que certas coisas que exteriormente são mais
ordenadas para o lado físico se encontram, nele, mais ordenadas para o lado
anímico: fora lidamos mais com uma regularidade física entre oxigênio e
nitrogênio, e dentro com uma regularidade anímica entre os corpos etérico e
astral. E quando o homem é visto em sua maneira de respirar, no modo como,
nas maravilhosas vibrações que caracterizamos como vibrações de luz (po-
demos observá-las enquanto pesquisadores espirituais), temos uma
interpenetração de vibracões astrais e etéricas, então podemos observar isso
vendo, de um lado, como isso ocorre no organismo humano, e, de outro, como
ocorre num nível mais profundo, no processo físico da expiração e da
inspiração. Ao fazer esse tipo de observação, vemos realmente como o homem,
enquanto ser anímico-espiritual, continuamente se desprende de seu ambiente

26 Pelo sentido, aqui também poderia constar: “... no qual o eu vibra junto, [...] no qual o corpo
físico vibra junto. A dúvida se deve a um possível engano estenográfico entre os termos
alemães indem (a medida que) e in dem (no qual). (Cf. N.E. orig.)

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físico — mais ou menos como no caso de uma mistura, quando as partes pe-
sadas se decantam, se desprendem da mistura, e as mais leves permanecem em
cima. Tais processos ocorrem de forma ainda mais variada no próprio ser
humano. Contudo, devemos tê-los entre aquilo que de certo modo captamos,
apreendemos, percebemos, para então compreender o percebido e, numa
interiorização meditativa, transformá-lo em pedagogia artística, justamente
como caracterizei ontem.
Para isso, contudo, devemos levar em conta algo mais. Afinal, quem
carrega o nosso eu, durante a descida do mundo espiritual através do
nascimento, para dentro do mundo físico? É a cabeça que o carrega aí para
dentro. A cabeça é, por assim dizer, a carruagem sobre a qual o eu faz sua en-
trada no mundo físico. E uma vez tendo penetrado, ele também transforma toda
a sua condição de vida na passagem do mundo espiritual para o mundo físico.
Por mais paradoxal que a princípio possa parecer a quem olha as coisa exte-
riormente, no mundo espiritual, antes de nos dispormos a nascer aqui, estamos
efetivamente num movimento contínuo, e lá o movimento é nosso autêntico
elemento. Se quiséssemos continuar esse movimento, nunca poderíamos
penetrar no mundo físico. Então somos protegidos de continuá-lo na medida em
que nossa organização cefálica se adapta ao resto do organismo, tornando-se,
de certa forma, a carruagem sobre a qual ingressamos no mundo fisico, porém
ficando parada depois de ter ingressado e repousando confortavelmente sobre o
resto do organismo. E embora o organismo avance, a cabeça não participa
disso. Assim como uma pessoa que é conduzida por uma carruagem ou por um
trem fica, ela própria, em repouso, assim também o eu, que na época pré-natal
está em movimento, entra em repouso uma vez tendo penetrado no mundo
físico, não mais fazendo os movimentos que fazia antes. Isto indica algo muito
importante.
Quando o embriologista estuda o desenvolvimento do embrião humano no
corpo materno, nota como desde o início a cabeça é grande e configurada em
comparação com os outros elementos, não-articulados e não-configurados, que
só se desenvolvem mais tarde. Porém ele observa isso como se tudo tivesse um
valor igual. Todo o modo de observação da Embriologia é realmente bastante
absurdo, tanto que dificilmente alguém pode entender-se com um fisiologista
moderno, pois ele pensa num âmbito totalmente diverso. O importante é que
pela fecundação só se exerce, no homem, um efeito sobre a natureza dos
membros, sobre o ‘âmbito extracefálico’; pois a cabeça do ser humano é, em
essência, configurada não pelo pai, mas pelo Cosmo. Realmente, a cabeça
humana não é concebida pelo pai, mas pelo Cosmo. A disposição para a futura
cabeça humana já existe no óvulo não-fecundado, e a atuacão sobre a cabeça,
que no óvulo não-fecundado ainda é realmente cósmica, vem a ocorrer pelo fato
de a fecundação agir inicialmente sobre o resto do organismo e só à medida que
o organismo se desenvolve os efeitos do restante do organismo retroagirem
sobre a cabeça. De modo que — mesmo se estudarmos o desenvolvimento do
embrião pela embriologia exterior —, se estudarmos as coisas corretamente,
poderemos constatar como a cabeça é preparada, a partir do corpo materno,
não ainda sob a influência das forças da fecundação, porém indiretamente; é
como se numa oficina fosse preparado uma carruagem destinada a receber uma
pessoa: elas vão ao encontro uma da outra — e é assim que a cabeça é
preparada para receber o eu do nascituro. E ainda muito tempo após o
nascimento — em verdade, durante todo o período de seu desenvolvimento — o
homem traz em si o vestígio desse confronto da constituição humana com a
constituição cósmica.
Quando um dia o espírito de uma pedagogia como a que realmente

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cultivamos aqui tiver, diria eu, permeado os hábitos anímicos dos educadores,
ficará bem claro o seguinte: os que estão à frente de uma classe ficarão
incrivelmente fascinados pelo que ocorre com cada criança pelo fato de, dos
sete aos catorze anos, ainda estarem rigorosamente diferenciados — em
verdade, apenas para uma observação íntima — algo do retrair-se na cabeça,
algo do desprender-se de uma natureza supra-humana e algo do inundar da
cabeça com o que ascende e invade a partir do resto do organismo. De uma
certa maneira, os Senhores devem pensar tudo isso em conjunto com o que foi
dito nas duas primeiras aulas, pois um e outro devem ser contrabalançados em
certo sentido.
Contudo, deve ser sempre interessante observar, na criança, a diferença
entre a escultura da cabeça e a estruturação do resto do organismo. Só que se
deve olhar para ambas de maneira diferente. Querendo observar as trans-
formações que ocorrem na cabeça, devemos sentir-nos como artistas plásticos;
se desejarmos considerar as que ocorrem no resto do organismo, devemos
sentir-nos como músicos-eurritmistas. É que, em relação ao resto do organismo,
de nada vale observar, por exemplo, como os dedos crescem ou algo
semelhante, e sim atentar ao modo como se modificam os tipos de movimentos
realizados pela criança. Isto, na verdade, retroage sobre a formação do
organismo — mas não pelas configurações formais, e sim por sua dinâmica. Se
uma criança tem pernas e braços exageradamente longos, estes são mais
pesados do que em circunstâncias normais. Não é a forma que atua
diretamente, mas o peso com que atuam, e o peso se mescla à forma musical
dos movimentos. E se quisermos julgar corretamente uma pessoa cujos braços e
pernas cresceram a ponto de ela não saber utilizá-las direito, deveremos adotar
um julgamento musical vivo, sentindo como as pernas muito crescidas da
criança sempre se enroscam, e como o movimento se torna anormal; ou como
continuamente os braços não sabem realmente o que fazer, pelo fato de o peso
atuar excessivamente neles.
Imaginem só como, aplicando tais coisas, podemos vir a conhecer
intimamente o ser humano a partir da Ciência Espiritual! Então deixamos de
considerar certas coisas do ponto de vista emocional do qual talvez as tenhamos
visto anteriormente. Na presença de mãos e braços pequenos, iremos: aí existe
pouco impulso interior para dar logo uma bofetada em alguém. Ao contrário,
quando alguém possui mãos e braços excessivamente longos e muito pesados,
deve-se justamente considerar o impulso interior de logo esbofetear o outro
como um crédito na conta cármica, e não considerar isso de um ponto de vista
emocional exterior.
Isso é algo que nos aproxima muito mais do ser humano, principalmente do
ser humano em desenvolvimento, se levarmos em conta tais aspectos — pois aí
existe um mistério, que é bastante curioso. Se observarem a forma humana
dessa maneira, os Senhores poderão dizer a si mesmos: “Eu desvendo para mim
a evolução de uma pessoa, toda a construção do plano anímico, a partir dessa
organização corpórea; eu desvendo para mim o significado de uma certa forma
de cabeça, de um certo peso dos braços e pernas e assim por diante, de um
certo jeito de andar; ou se a pessoa em questão é mais inclinada a andar nas
pontas dos pés, ou mais sobre os calcanhares” — como era o caso de Fichte,
cuja figura inteira era uma imagem disso. Tudo isso nos revela uma imensidade
de coisas que nos fazem sentir o seguinte: é nisso que se conhece melhor a
pessoa. Não se trata, naturalmente, de intimidades especiais, e sim de algo que
trazemos ao nosso encontro na relação social humana, que apenas é mais
íntima na aula, na relação entre o educador e a criança.
Então, ao defrontar-nos com uma pessoa, teremos o seguinte sentimento:

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“Uma coisa você conhece nela quando a vê de frente — aí está musicalmente
impresso o que se pode ver; uma outra coisa você conhece quando consegue vê-
la corretamente por trás.” Nós também deveríamos cunhar nossas máximas de
vida a partir da essência da vida. Se, por exemplo, um estudante com corretas
máximas de vida tivesse assistido a uma palestra de Fiehte, teria ouvido Fichte
de frente para assimilar o que este dizia; mas para conhecer o caráter de Fichte
ele precisaria tê-lo olhado por trás, a fim de conhecer toda a postura. A
formação posterior da cabeça, a estrutura das costas, da corcova, a maneira de
movimentar as mãos, toda a postura da cabeça, tudo isso era, em Fichte, o que
levava incondicionalmente a ver, ao se observar seu aspecto pessoal, como esse
homem realmente se inseria no mundo.
Isso pode revelar algo surpreendente quando se conhece a criança dessa
maneira — quando o professor é uma pessoa inclinada mais a buscar a
compreensão cármica, e menos a orientação daquele professor que sempre se
zangava terrivelmente com uma criança emocional, mandando sempre que
ficasse quieta, calma, dizendo repetidamente “Quieta, quieta, quieta”, e que
finalmente, tendo-a repreendido demais, agarrou o tinteiro e atirou-o em sua
cabeça, dizendo: “Vou te mostrar como se fica calmo!” Caracterizei isso de um
modo um pouco radical, mas mesmo algo menos radical já deve ser considerado
incorreto por qualquer professor ou educador.
Se nos livrarmos disso e dirigirmos nossa antropologia antroposófica mais
no sentido que caracterizei, para a formação da criança, de maneira que o
organismo nos revele algo de sua disposição anímica, então estaremos
ocupando-nos com a criança de uma maneira diferente da trivial. E,
surpreendentemente, com essa nova postura desenvolveremos em nós o amor
por ela, o que nos levará a compreendê-la com um amor cada vez maior. E
justamente com isso adquirimos uma grande força adjutória para ensinar e edu-
car a criança amorosamente. São esses os caminhos para especialmente
adquirirmos, como educadores, os sentimentos e sensações corretos, como
tentei descrever agora. Ora, seria um método totalmente errôneo se, por
exemplo, aiguém que quisesse tornar-se um compositor pegasse um manual
teórico de música e acreditasse que com isso aprenderia a compor; ou se
alguém pegasse uma obra sobre estética e assimilasse o que nela constasse
sobre pintura e assim por diante, supondo que isso lhe permitiria tornar-se um
pintor. Não é desse modo que alguém se torna um pintor, e sim aprendendo a
lidar com as cores e familiarizando-se com o seu manuseio. E alguém pode
tornar-se um escultor aprendendo a compreender o organismo em suas formas.
Aliás, também é extremamente interessante captar o organismo em suas formas
na escultura, por exemplo. Como escultores, ao modelar uma cabeça os
Senhores têm uma sensação diferente do que ao modelar o resto do organismo.
No caso da cabeça, têm sempre a sensação de que ela atua de dentro para fora
em sua direção, fazendo-os recuar diante dela; algo os pressiona de dentro dela.
De outro lado, ao modelar o resto do organismo os Senhores têm a sensaçao de
estarem pressionando para dentro à medida que essa outra parte do organismo
recua à sua frente. Portanto, são sensações exatamente opostas as que se têm
ao modelar uma cabeça e o resto do organismo. Isso nos mostra como sempre é
preciso conhecer a maneira de lidar com as coisas.
Assim acontece também na educação. Se os Senhores quisessem aprender
num manual de pedagogia tudo o que desejam fazer na escola, isso seria o
mesmo que desejarem tornar-se pintores mediante a leitura de um manual de
estética. Isso em nada resulta. No entanto, se praticarem uma antropologia
antroposófica conforme as direções indicadas, conforme costumamos observar
aqui, seu talento pedagógico emergirá; pois para isso têm predisposição muito

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mais pessoas do que se pensa. Então os Senhores adquirirão certas coisas que
justamente quem deseja ser um bom professor deve possuir.
Em nenhum campo se diz hoje mais bobagem sem conteúdo — embora
tantas pessoas se interessem extraordinariamente por ele — do que na
pedagogia. Quando hoje em dia se fala sobre assuntos pedagógicos, isso é
considerado ruim porque se transmite à próxima geração. No entanto, assim
como acontece em tantos outros âmbitos, aqui é especialmente o caso de passar
ao largo de discursos leigos mediante uma compreensão mais profunda da
entidade humana. Até mesmo professores já adotaram o chavão: o ensino deve
ser uma alegria para a criança. Não levamos a mal quando isso é dito por
leigos, pois sua intenção é boa; mas cabe protestar rigorosamente quando
professores e educadores profissionais repetem esse chavão! Ora, reflitam so-
bre a prática e perguntem-se: como devemos atuar como professores em
relação a certas coisas difíceis de superar, para que haja pura e luminosa
alegria para as crianças? Ou pensem em certas disposições das crianças e
perguntem-se: como deveríamos proceder para que a criança que fica na escola
de manhã até à tarde deva sempre apenas alegrar-se, sempre apenas alegrar-
se? Isso é simplesmente impossível. É um dos palavrórios emitidos por pessoas
que estão fora da realidade, assim como em todas as áreas existem, hoje em
dia, palavrórios oriundos de pessoas alheias a elas. O fato é simplesmente que
certas coisas não produzem na criança alegria alguma, mas apesar disso devem
de ser feitas. Se o educador só quisesse provocar grande alegria nas crianças,
nunca poderia, por exemplo, desenvolver nelas o sentimento do dever, que só
pode ser desenvolvido pela superação de um obstáculo. Não haveria qualquer
vantagem nisso. Não se trata, portanto, de só produzir alegria, mas de algo
totalmente diverso: trata-se de realmente conquistarmos o amor das crianças
por meio de nossa arte pedagógica, de modo que sob nossa orientação elas
também façam o que não lhes causa alegria, mas até mesmo desconforto e uma
leve dor. Por isso, os Senhores hão de convir que se o verdadeiro amor for
proporcionado, se conseguirmos oferecer à criança o verdadeiro amor, então se
desenvolverá nela algo diferente da alegria, ou seja, a afeição pelo professor, e
a criança terá uma outra sensação, que é a seguinte: algumas coisas são
difíceis, mas com esse professor ou essa professora eu farei até o que for difícil.
Essas coisas podem mostrar-nos como poderemos superar algumas
dificuldades no ensino se soubermos estabelecer um relacionamento apropriado
entre professor e alunos. Trata-se justamente de uma maneira de ver as coisas
diferente do que normalmente se diz sobre ensino e educação do ponto de vista
leigo.
Meus queridos amigos, desta vez não contecerá de voltarmos a fazer uma
observação conjunta. Intermináveis reuniões nos aguardam. Nós só nos
encontraremos ainda para uma reunião do colegiado.

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