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Os peixes são utilizados pelo ser humano de várias formas, como experimentação
animal, ornamentação e produção de alimentos. Neste último cenário, existe uma tendência
de aumento da produção de proteína alimentar proveniente de carne de peixe no Brasil
(Ostrensky et al., 2008). Simultaneamente, existe um amadurecimento da percepção dos
pesquisadores e da sociedade em geral no que tange à senciência dos peixes (Branson, 2008).
Tais fatos motivaram a realização do II Encontro LABEA: bem-estar de peixes, nos dias 11 e 12
de junho do corrente ano. O objetivo do evento foi promover uma interação entre
pesquisadores nacionais e internacionais da área de bem-estar de peixes, assim como a
divulgação de seus estudos aos profissionais que trabalham com esses animais em nosso país.
Os temas concentraram-se nas questões de bem-estar relativas a várias situações de
utilização de peixes pelo ser humano. As discussões foram ricas e contaram com um complexo
suporte científico, uma vez que há um grande número de publicações sobre bem-estar de
peixes em periódicos especializados, principalmente a partir do ano 2000. Este texto visa
apresentar as principais conquistas no conhecimento a respeito de bem-estar de peixes, com
enfoque na situação dos peixes utilizados para produção de alimentos. Tais conquistas
permitem evidenciar os principais pontos críticos de bem-estar na piscicultura e discutir
algumas possibilidades de melhoria.
Peixes sofrem?
De acordo com Webster (2005), existem três questões centrais para a avaliação de
bem-estar: (1) O animal vive em um ambiente consistente com aquele no qual a espécie
evoluiu e, portanto, ao qual ele está adaptado? (2) O animal consegue atingir crescimento e
funcionamento normal, boa saúde e se manter bem adaptado durante a vida adulta? (3) O
animal experimenta uma sensação de satisfação mental ou, pelo menos, está livre de
sofrimento mental? Assim, pode-se perceber que o grau de bem-estar de um animal não
depende apenas de sua saúde física, mas envolve também aspectos comportamentais e
psicológicos. Ainda, é importante ressaltar que o bem-estar de um animal refere-se a algo
intrínseco a ele (Broom e Molento, 2004).
1
Médica Veterinária, MSc, PhD, Professora de Bem-estar Animal, coordenadora do Laboratório de Bem-
estar Animal, LABEA, Setor de Ciências Agrárias, Universidade Federal do Paraná,
carlamolento@yahoo.com.
2
Aluno de graduação em Zootecnia, bolsista Fundação Araucária de Iniciação Científica, Laboratório de
Bem-estar Animal, LABEA, Setor de Ciências Agrárias, Universidade Federal do Paraná.
giorgidalpont@gmail.com.
estar de peixes tenha sido relativamente tardio em relação ao estudo do bem-estar de outros
animais utilizados para produção de alimentos. Filogeneticamente mais afastados que bovinos
e ovinos ou mesmo aves, os peixes compartilham um menor número de características com o
ser humano. Desde o fato da impossibilidade de contato visual direto, até a vida em um
ambiente muito diferente daquele da espécie humana, que levou ao desenvolvimento de
diferentes estratégias comportamentais e de comunicação, tal diferença tão ampla dificulta a
empatia. Por exemplo, a repulsa pelo sofrimento de um peixe morrendo por asfixia ao ar não é
tão óbvia quanto aquela intuitiva ao se presenciar um mamífero morrendo por afogamento
em água. Entretanto, existem paralelos do ponto de vista do indivíduo que passa por tal
experiência, seja ele uma tilápia ou um Golden Retriever.
Será que o conhecimento sobre a senciência de peixes está restrito aos laboratórios?
As evidências sugerem que a percepção pública acerca do sofrimento de peixes começa a
despontar. Na Europa, as preocupações sobre questões de bem-estar na piscicultura mantidas
pelos consumidores de truta são similares àquelas sobre questões de bem-estar de suínos e
aves: densidades de lotação e métodos de abate (Read, 2008). Na verdade, essas categorias de
pontos críticos são consideradas prioritárias para estudos de bem-estar também pelos
organismos regulamentadores europeus. No Brasil, após a reflexão induzida pela pergunta
"Você acha que os peixes sentem dor?", mais de 80% de dois diferentes grupos de
entrevistados responderam sim e que alguns métodos de abate causam sofrimento;
entretanto, 91% de ambos os grupos desconhecem o significado de abate humanitário de
peixes (Pedrazzani et al., 2008).
A B C
D
Desafios dos
Adaptações não
utilizadas nos sistemas de
sistemas produção para os
produtivos quais os peixes não
estão adaptados e
Adaptações utilizadas evidência de
no sistema produtivo anormalidades
e evidência de funcionais e
comportamento e comportamentais
funcionamento
E Fatores que diminuem o risco de exposição dos animais a desafios para os quais não
estão adaptados.
Robb (2008) apresenta uma revisão interessante sobre os pontos críticos de bem-estar
de peixes relacionados aos procedimentos de abate. Em geral, existe um período de
preparação durante os dias que antecedem ao abate: é nesse momento que surgem as
primeiras preocupações relacionadas ao bem-estar de peixes durante o abate. A sequência de
intervenções geralmente é composta de remoção de qualquer tratamento medicamentoso,
jejum alimentar, manejo pré-abate e abate propriamente dito. A impossibilidade de
tratamento médico, que é proibido por questões de segurança alimentar humana, gera uma
restrição potencial de bem-estar. Em termos de remoção da alimentação, existem várias
realidades, desde alguns dias até um mês. O jejum alimentar favorece o esvaziamento do trato
gastrointestinal, importante por questões de qualidade da carne. Entretanto, existe pouco
embasamento científico de que o jejum pré-abate atinja outros objetivos propostos de
redução do teor de gordura da carne ou melhoria de sua textura. Por outro lado, nas situações
em que os peixes são transportados vivos, um jejum de até três dias parece benéfico ao bem-
estar dos peixes durante o transporte, pois reduz a carga de amônia proveniente de excreção.
Uma vez que haja o esvaziamento do trato digestivo pelo jejum, os peixes estão
prontos para a despesca. A partir de então, os peixes podem passar por uma série de
diferentes procedimentos (Figura 2). As etapas com fundo cinza não são relevantes para o
bem-estar dos peixes, assumindo-se que os processos de insensibilização e sangria tenham
sido efetivos. Algumas etapas, aquelas circundadas por linha pontilhada (Figura 2), são tão
severas que merecem a consideração de estratégias de exclusão dos sistemas de abate. Seria
interessante a expansão de tal representação (Figura 2), que aqui apresenta apenas dois
sistemas europeus e três sistemas comuns no estado do Paraná.
Referências
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