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Cidade interseccional: o direito à cidade nas perspectivas

de gênero e raça
10/10/2018 Fórum Nacional de Reforma Urbana
   Facebook

O Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) divulga mais artigo visando contribuir
com o debate em torno de uma nova agenda para as cidades, tendo em vista as
eleições, e também a necessidade de construção de uma nova plataforma articuladora
das forças democráticas e progressistas, frente aos retrocessos políticos e sociais que o
país vem atravessando, com o crescente avanço das ideias neoliberais. Neste artigo,
assinado por Alice Correia, Carolina Coelho e Livia Salles debatendo a questão de
gênero e raça no debate sobre direito à cidade.

Foto: Arquivo EBC

CIDADE INTERSECCIONAL: O DIREITO À CIDADE NAS PERSPECTIVAS DE GÊNERO E RAÇA


São visíveis e gritantes as desigualdades territoriais nas cidades brasileiras: o acesso à
infraestrutura urbana e serviços públicos - seja em quantidade ou qualidade - se
concentra, majoritariamente, nas regiões das cidades ocupadas pela parcela da
população de mais alta renda. A concentração de investimentos privilegia
determinados sujeitos, em detrimento de outros. As cidades não são espaços neutros,
palco de interações das quais estão desconectadas; ao contrário, a construção social
do espaço reflete as relações sociais ao mesmo tempo em que incide sobre elas. Dessa
forma, é evidente que a questão de classe é indissociável da experiência que cada um
de nós tem do espaço em que nossos corpos habitam e circulam.

Há, contudo, outras dimensões que precisam ser consideradas.para que possamos
construir cidades mais acessíveis, diversas, igualitárias, democráticas. Nossas
contradições estruturais e nossos conflitos cotidianos estão inscritos nas edificações,
nos vazios, nos caminhos e nos limites das cidades. Numa sociedade que, além de
desigual, é profundamente racista, machista e homofóbica, diferentes grupos sociais -
mulheres negras, mulheres brancas, homens negros, homens brancos, homossexuais
negros, homossexuais brancos, jovens negros e jovens brancos - tem diferentes
possibilidades de apropriação dos espaços públicos, dos aparatos públicos e das
cidades.
Para as mulheres uma rua escura ou um terreno abandonado podem ser fatores
limitadores de sua mobilidade, uma vez que há o constante medo de serem vítimas de
violência sexual, e uma cidade realmente inclusiva precisa ser pensada para que elas
tenham livre trânsito, a qualquer hora do dia ou da noite. Pessoas com deficiência
física que tem dificuldade de locomoção precisam de rampas nas calçadas para circular
de forma autônoma. Do ponto de vista geracional, a existência ou não de espaços de
lazer próximos à áreas residenciais podem alterar completamente a experiência que
crianças e jovens têm da rua - enquanto espaço possível para pertencimento e
apropriação.

As dimensões de gênero, raça, orientação sexual e geração atravessam a nossa


vivência do espaço urbano, proporcionam experimentações diversas e podem somar
camadas de opressão que se combinam e entrecruzam, agregando elementos para a
condição de segregação socioeconômica e espacial de alguns sujeitos. Para que sejam
superadas todas as opressões que historicamente são apresentadas a luta pelo direito
à cidade deve ser uma luta que contemple a diversidade de corpos, vivências e
necessidades. Dessa forma, construir um olhar interseccional sobre as cidades é um
desafio que precisa ser enfrentado e encarado como urgente na contínua construção
desses lugares.

É preciso romper com práticas de planejamento que consideram exclusivamente um


“sujeito médio” pois, ao fazê-lo, a concepção do espaço e das políticas que incidem
sobre ele se constroem a partir da experiência dos que detém o poder - homens,
brancos, ricos, heterossexuais - e reforçam seus privilégios. Olhar para a população
como um grande conjunto indissociável é descartar especificidades de grupos que não
necessariamente configuram minorias e cujas vozes seriam determinantes para a
construção de cidades mais inclusivas, mas que, hoje, são apagados nesses processos -
como é o caso das mulheres, que são mais que 50% da população brasileira.

PERIFERIA NEGRA E FEMININA


O desenvolvimento das cidades, conformada e pensada por homens, brancos, cis,
heterossexuais, de renda média/alta ao longo dos anos, é um dos grandes
responsáveis pela segregação espacial e exclusão social, que se traduz hoje na
marginalização, periferização e criminalização das populações de baixa renda dos
espaços urbanos do centro e áreas centrais, onde é possível encontrar o maior acesso
ao transporte público, à postos de saúde, à educação, ao lazer, enfim, aos aparatos e
aparelhos públicos em geral.
Esta formação das cidades brasileiras é consequência histórica da nossa formação
social, a partir de um colonialismo escravista, machista e patriarcalista, que transcende
e perpassa toda a nossa atualidade. A população de baixa renda, periférica, negra,
para quando consegue resistir e afirmar sua presença nestes espaços centrais,
normalmente o faz através do acesso a um mercado informal de moradia,
concentrando-se em favelas ou residindo em cortiços.

As periferias se tornaram, portanto, o espaço de sobrevivência da população negra,


pobre, LGBTI+, onde foi possível garantir a moradia e construção de uma contracultura
às cidades e, com o avançar da urbanização e industrialização, também como um
espaço do operariado brasileiro que, por seus baixos salários e baixas condições de
vida, também foram jogados à margem das cidades e dos grandes centros urbanos -
muitas vezes inclusive para regiões metropolitanas -, traduzindo-se no campo de
sobrevivência e resistência da população pobre.

De acordo com dados do IPEA (2011), 43% da população negra no Brasil se encontra
abaixo da linha da pobreza, e 19% destes, recebe menos de ¼ de salário-mínimo.
Ainda, o IPEA aponta que 66% das habitações irregulares e assentamentos subnormais
são chefiados pela população negra, sendo a sua maioria por mulheres negras, o que
escancara a um só tempo o racismo estrutural e institucional a que estamos
submetidos.

A periferia é, ainda, o espaço relegado às mulheres independentes, majoritariamente


negras, mães solteiras, com baixa escolaridade, que se viram obrigadas a entrar
antecipadamente no mundo do trabalho para subsistir e dar condições de subsistência
às suas filhas e filhos, assim como é também o espaço relegado à população LGBTI+
que, muitas vezes pela negação social e familiar, se vêem ceifadas de seus direitos à
educação, à saúde, à moradia digna, e seguem para uma forma de moradia irregular .

Em estudo realizado pelo IPEA em parceria com o Fundo de Desenvolvimento das


Nações Unidas para Mulheres, afirma-se que “(...)as mulheres negras são em número
maior as responsáveis por famílias do tipo ‘mulher com filhos’ quando comparadas às
mulheres brancas. Por outro lado, as brancas tendem a predominar na estrutura
“unipessoal feminina”, o que pode estar relacionado às melhores condições
econômicas da população branca em relação à negra.”
Se de um lado já visualizamos a exclusão social da população negra, ao pensarmos as
condições de subsistência da mulher negra, este grau se eleva à última instância.
O planejamento urbano que se pretende social, atento às diversidades, tem por meta
e obrigação, portanto, traçar novos olhares para a cidade, incluir os até então
excluídos, formular novas políticas e garantir que as periferias, as ocupações
irregulares e assentamento subnormais sejam devidamente incluídos em um projeto
de urbanização que garanta o direito à moradia adequada daqueles que ali estão, e de
instrumentalização das suas áreas, com asfalto, luz, esgotamento, saneamento, postos
de saúde, escolas (de ensino básico, fundamental e médio), creches, praças,
iluminação pública de qualidade, entre outros.

As periferias se apresentam, portanto, como uma faceta não tão oculta dos
significados e significações do que é em si a propriedade privada no Brasil, distante da
sua função social, agregando apenas aos interesses dos proprietários.

A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E A CIDADE


Ao pensarmos sobre o direito das mulheres à cidade, não é possível desconsiderar as
implicações diretas que a noção de divisão sexual do trabalho tem sobre a produção
do espaço urbano. Estabelecida a partir da hierarquização entre o trabalho produtivo,
historicamente atribuído aos homens, e o trabalho reprodutivo, que tradicionalmente
recai sobre as mulheres, a divisão sexual do trabalho destina a eles o espaço público,
enquanto as restringe ao espaço privado. O domínio da rua é essencialmente
masculino e corpos femininos fora do ambiente doméstico estão fora de lugar. Como
resultado, temos cidades que, desde sua origem, são pensadas para os homens e não
consideram as perspectivas e as necessidades das mulheres.

O não reconhecimento do espaço público como pertencente também às mulheres


resulta e inúmeras formas de violação às muitas de nós que desafiam cotidianamente
essa realidade e circulamos pela cidade. Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública observou que no ano de 2017, 29% das entrevistadas relatam ter
sofrido algum tipo de violência, em especial as mais jovens (faixa etária entre 16 e 24
anos), que são 45% desse número, e as mulheres negras, as quais são 31% desse
número. Quando perguntadas sobre o local dessas violências, 51% responderam terem
sofrido a mesma em algum espaço público.

Os dados oficiais sobre violência em espaços públicos no Brasil são insuficientes e


imprecisos, não só pela naturalização ou não reconhecimento de muitos
comportamentos como assédio, mas também pela subnotificação. Apenas em
setembro de 2018 foi sancionada a lei de tipifica o crime de importunação sexual -
que, até então, era considerada apenas uma contravenção penal passível de multa.
Isso não nos impede, contudo, de ter uma dimensão do tamanho do problema: novos
casos de violência, nas ruas, no metrô, nos ônibus, são veiculados na imprensa a cada
dia e funcionam como um constante lembrete de que o espaço público não nos
pertence.

A entrada das mulheres no mercado de trabalho, que aconteceu significativamente


mais cedo para as mulheres negras, pouco alterou essa realidade. O espaço público,
que se constituiu de forma a não acolhê-las, hoje é massivamente ocupado por
mulheres em suas múltiplos papéis e ocupações, mas segue sendo pouquíssimo
amistoso - além de inseguro - para a maioria delas. Não rompemos com a
naturalização errônea da crença no trabalho doméstico como jornada única na vida
das mulheres e tampouco reconhecemos a centralidade do trabalho reprodutivo para
a reprodução social da vida. Tudo isso tem reflexos diretos na provisão de serviços
públicos urbanos.

Somos hoje, no Brasil, 44,63% da população economicamente ativa (PNAD Contínua,


IBGE, 2018) mas ainda somamos quase o dobro de horas dedicadas a estas atividades
reprodutivas e de cuidado quando comparadas com os homens - 20,9 contra 10,8 .
Dessa forma, a precariedade de serviços como abastecimento de água, coleta de lixo
ou mesmo a inexistência de equipamentos de saúde pesam principalmente sobre as
vidas das mulheres . A existência ou não de creches e escolas próximas à casa ou ao
trabalho e seu horário de funcionamento pode ser um elemento fundamental para
assegurar o acesso da mulher ao mercado formal e garantir sua autonomia econômica;
pode, também, determinar sua possibilidade de participação política.
Esta média, claro, sofre variações se considerarmos a experiência de mulheres ricas,
pobres, jovens, idosas, brancas e negras e cria condições muito distintas de
apropriação, uso e mesmo de transformação da cidade. Portanto, a inexistência de
políticas habitacionais ou a reduzida cobertura de redes de esgoto e drenagem, por
exemplo, afetam, em especial das mulheres negras, pobres e periféricas - como foi o
caso durante o surto de Zika no ano 2015.

SERVIÇOS PÚBLICOS SENSÍVEIS À GÊNERO: O CASO DA MOBILIDADE URBANA


Um dos serviços fundamentais para a garantia do direito das mulheres à cidade, que
também permite sua circulação pelo espaço e acesso a outros serviços, é o transporte
público. Este também é o local em que um número considerável de mulheres já ouviu
e já relatou ter sofrido algum tipo de violência. Na pesquisa Chega de Fiufiu, realizada
pela ONG Think Olga, 64% das mulheres relataram ter sofrido algum assédio no
transporte público. Dados que complementam essa pesquisa aparecem em um
levantamento feito pela Agência Énois - Inteligência Jovem, em parceria com os
institutos Vladimir Herzog e Patrícia Galvão, mostram que o espaço público é visto,
pela maior parte das entrevistadas, como um local em que não há segurança ou
respeito: 94% delas já foram assediadas verbalmente e 77%, fisicamente, como a
“encoxada” no transporte público ou o beijo forçado e a passada de mão em casas
noturnas.

O fato de o transporte público não ser pensado na perspectiva das mulheres resulta
em maiores dificuldades de circulação delas, quando comparadas aos homens, e em
restrições no acesso à cidade como um todo. Do ponto de vista da mobilidade das
mulheres, é preciso que as políticas públicas sejam pensadas, implementadas e
avaliadas tendo alguma sensibilidade em relação à questão de gênero. Esse é o caso de
algumas iniciativas das cidades do Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte e Distrito
Federal, como o vagão rosa; e também a chamada Lei da Parada Segura, que já foi
implementada em São Paulo, Caruaru e Porto Alegre. É preciso mencionar, no entanto,
que há muitas controvérsias em relação à efetividade da política do vagão rosa que,
por não ter consequências de caráter estrutural, é duramente criticada por algumas
mulheres como instrumento de segregação, mais do que vista como solução.

Para além das políticas voltadas para uma solução imediata da questão da segurança
contra assédios às mulheres em transportes públicos, deve-se pensar propostas de
implementação de políticas públicas e campanhas que promovam formação de
consciência, disseminem informação e promovam transformação social, para a
construção de medidas efetivas pelo fim dos assédios e violências sexuais contra as
mulheres. Propagandas informativas, cartilhas, cartazes, livros didáticos para educação
básica, fundamental e média que perpassam a temática, curta-metragens
informativos, enfim, diversas medidas podem ser pensadas para formação de uma
nova consciência social que promova, efetivamente, o rompimento com o machismo.

Olhar para como os serviços e a infraestrutura urbana se complementam,


ultrapassando a tendência de pensá-los de forma compartimentalizada, também
fortalece a perspectiva de gênero no planejamento urbano. No que tange à
mobilidade, para além de pensar locais mais seguros para instalações dos pontos de
ônibus, assim como uma sistema de segurança mais eficaz nos pontos, nas estações de
metrô, nos tubos de ônibus (como por exemplo os de Curitiba), nos terminais de
interligação, etc, também é importante garantir a iluminação pública nos trajetos das
mulheres até estes locais ou a proximidade do acesso ao transporte dos locais de
moradia, por exemplo. Isso é especialmente verdade para as mulheres que vivem em
regiões periféricas e precisam enfrentar os desafios combinados colocados pela falta
de investimentos em seus locais de moradia e que, muitas vezes, estão sujeitas a
longas jornadas para acessarem serviços ou mesmo o mercado de trabalho.

CONCLUSÃO
Para que as cidades sejam acessadas mais democraticamente, é necessário que
deixemos de conceber, planejar e executar a infraestrutura e o serviços urbanos a
partir de um ponto de vista único ou, ainda, a partir de um discurso tecnicista que
prega uma suposta neutralidade ao olhar para a totalidade da população e, dessa
forma, nega a multiplicidade de experiências e necessidades de diferentes grupos no
cotidiano das cidades. Para que espaço urbano se transforme, é essencial ampliar
radicalmente as possibilidades de participação e incorporar outros sujeitos, diferentes
pontos de vista e vozes dissonantes no planejamento das cidades. São muitos os
desafios experimentados pelas mulheres nos espaços públicos e no acesso aos
serviços; não à toa, somos minoria em posições de poder e espaços de tomada de
decisão.

Por mais que sejamos a maioria da população e do eleitorado, num país de 5.570
municípios, somos apenas 641 prefeitas; no Congresso Brasileiro, de um total de 513
cadeiras, apenas 51 das cadeiras são preenchidas por nós, mulheres. Para além do
desejo e necessidade das mulheres de estarem nesses espaços, é urgente que se
efetive a participação social popular, incorporando rostos, corpos e experiências de
fato diversas. Radicalizar a participação social de modo que tenhamos uma cidade em
que mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTI+, portadoras/es de deficiências e todas
as pessoas tomem e somem verdadeiramente os espaços de ação política com suas
experiências, demandas, desejos, transformando os lugares em que circulam seguros e
diversos como somos.

Alice Correia é assessora jurídica de Terra de Direitos


Carolina Coelho é assistente de políticas e programas da Action Aid
Livia Salles é assessora de políticas e programas da Action Aid

https://terradedireitos.org.br/acervo/artigos/cidade-interseccional-o-direito-a-cidade-
nas-perspectivas-de-genero-e-raca/22936
Ações : Direito à Cidade

Eixos: Terra, território e justiça espacial

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Uma cidade democrática precisa de políticas públicas para as mulheres
O oito de março é uma data histórica e simbólica para as mulheres no mundo
inteiro, que demonstram neste dia, em sua diversidade, suas lutas coletivas. Em
2020 teremos eleições municipais no Brasil, nas quais assistiremos a
programas de governo (algumas vezes elaborados sem nenhum diálogo com a
sociedade) e propostas de agendas urbanas para as cidades brasileiras.
Gostaríamos de chamar atenção para a importância deste momento e das
contribuições que vêm sendo elaboradas dentro de um movimento nacional
chamado BrCidades, onde o Núcleo Porto Alegre, em sua maioria formado por
mulheres, vem discutindo e aprofundando análises sobre questões de gênero,
LGBTQ+, raça e classe nas cidades. Nossa proposta é compreender a
necessidade destes agentes e relacionar suas agendas com as políticas
urbanas.
Atualmente vivenciamos um período complexo que afeta o país e o mundo.
Parte considerável das mudanças que esta época nos impõe impacta
fortemente na vida nas cidades, mas realizada sem a participação da
sociedade.  Esse movimento de ruptura democrática, a partir da emergência de
forças conservadoras, indica um cenário de grandes retrocessos para a agenda
urbana do país, com aumento da segregação socioespacial, da violência
associada às discriminações de gênero, raça, classe e sexualidade.
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 Mulher-Maravilha? Sobrecarga gera sentimento de inferioridade
Essas discriminações produzem distintas vivências no habitar das cidades,
afetando a vida de quem tem ou não acesso aos empregos, espaços, políticas
e equipamentos públicos. As lutas por direitos lideradas por mulheres têm
incorporado os temas urbanos e de planejamento em suas demandas,
denunciando o fato de que historicamente as cidades têm sido pouco
amigáveis para as mulheres.
Com a conjuntura atual de restrição de acesso aos serviços e espaços públicos
e à infraestrutura urbana, necessitamos políticas públicas que garantam não
apenas a qualidade de vida, mas a própria existência social e física desses
grupos.
Já vemos o aumento da discriminação, violência e precarização dessas
populações, com o número crescente de feminicídios, que subiram 7,3% em
2019 – em relação ao mesmo período no ano anterior -, mortes por homofobia,
transfobia, o genocídio da população negra e indígena e os ataques aos povos
de terreiro no Brasil. São também estas populações as principais vulneráveis
no seu direito à terra, à moradia adequada, à mobilidade urbana com segurança
e ao acesso ao mercado de trabalho formal e justo.
Considerando que o Brasil já é um país urbanizado, com mais de 84% da sua
população vivendo nesta configuração e com o aumento do número de
pessoas vivendo nas grandes e médias cidades, é urgente repensarmos como
enfrentaremos essas questões. E mais: precisamos avançar na compreensão
de como o planejamento urbano pode impedir a segregação dessas
populações e de que forma podemos interseccionar estas lutas e garantir o
direito à cidade para todas e todos. 

Entendemos ser possível intervir nos rumos dessa história a partir da


construção de uma nova agenda urbana elaborada desde a perspectiva social
que contemple as vivências raciais/étnicas, sexuais e de gênero. Necessitamos
um olhar não só amigável com as mulheres, mas mais inclusivo às suas
demandas.
Para isso, é importante que neste ano a disputa eleitoral contemple a
diversidade nas cidades e escute as vozes plurais que vivem em nossas urbes
para compreender coletivamente como se materializa a desigualdade de
classe, raça e gênero no Brasil e na cidade de Porto Alegre.
Acreditamos que repensar o espaço urbano na interface de gênero, LGBTQ+,
raça e classe deve ser um exercício coletivo com participação de movimentos
sociais urbanos, dos movimentos de mulheres, da população negra e indígena,
dos moradores em situação de rua e dos coletivos LGBTQ+, imigrantes,
técnicos e acadêmicos.
A partir do projeto de extensão “Mulheres e Cidades”, e em discussões com a
comunidade, vemos que a problemática maior, reside no direito de ir e vir. A
mobilidade e a circulação estão no centro de muitos debates com os coletivos
de mulheres. Como circular com segurança nos espaços públicos? Como andar
sem sofrer assédio nos transportes públicos? Como denunciar o assédio e a
violência contra a mulher e os grupos mais vulneráveis? Como efetivar o direito
à moradia de maneira que ele seja real para as mulheres chefes de família?
Temos consciência que a vida humana, a vida destes sujeitos e o direito a
(re)existir está cada vez mais ameaçado. Tanto pela ameaça aos seus corpos,
quanto pela perda de direitos e o corte de recursos para as políticas sociais. As
violências em nível simbólico e moral também afetam fortemente estes grupos,
conduzindo à experiências distintas do usufruto do espaço da cidade. Estas
determinam, em grande medida, quem pode ou não acessar determinados
espaços.
Historicamente, a cidade é feita e refeita num movimento hegemônico do
patriarcado que rejeita, criminaliza e marginaliza as formas de ser e de se
manifestar relacionadas a gênero, raça/etnia e sexualidade. Precisamos buscar
uma forma mais sensível e humana de pensar nossas cidades. Uma forma que
considere, em seu conjunto, esses grupos que correspondem à maior parte da
população brasileira.
O usufruto do espaço urbano – com qualidade/dignidade – é restrita a um
número muito pequeno de pessoas. Essa situação gera um sentimento de não
pertencimento a determinados espaços, processos e dinâmicas da cidade. A
vivência das mulheres em situação de rua traz problemáticas fundamentais
para (re)pensar as relações no espaço urbano – o escasso acesso aos
recursos básicos de higiene e à maior exposição ao assédio e situações de
violência sexual.
Por outro lado, os grupos ancestrais possuem dificuldade para permanecer no
território. Suas lutas são pelo direito à moradia e reconhecimento de sua
existência na cidade, tais como moradores de quilombos e de aldeias
indígenas. Pensamos que seria fundamental desenharmos alternativas
autônomas, na construção de redes de apoio e solidariedade local, mas
também agir na direção de formulação de políticas públicas e na articulação
com as instituições brasileiras.
Consideramos que o debate sobre o espaço urbano deve dirigir esforços na
retomada da valorização do público, o qual se constrói como espaço de
pertencimento e inclusão à diversidade das experiências sociais que existem
nas cidades brasileiras. 
Seria importante neste 8 de março disputar a narrativa entre o público e o
privado. Entendemos que este conflito é elemento central no debate sobre as
cidades, o qual tem se manifestado num ataque generalizado a tudo o que é
público, prevalecendo a narrativa que privilegia as ações individuais e privadas
no espaço urbano.
Outro elemento também central no pensar sobre as nossas ações é a
necessidade de avançar no trabalho de articulação entre centro e periferia,
construindo redes de colaboração e proteção. Se queremos construir cidades
mais democráticas, precisamos desenvolver ações mais horizontais e
coordenadas, consolidando redes com as comunidades que vivem nas vilas e
favelas das cidades brasileiras.
Nesta direção, em grande medida, a violência contra as mulheres não aparece
como prioridade na pauta comunitária. As lutas se vinculam centralmente nas
necessidades mais básicas do dia a dia – moradia, alimentação, saneamento
etc. Por isso, consideramos importante falar sobre a interseccionalidade de
opressões e como ela se reflete nas vivências, acentuando as violências e
exclusões, sobre o habitar e viver nas cidades.
Este texto se propõe não só a contribuir para os debates neste dia tão
importante para as mulheres do mundo, como pretende ser o começo de um
longo caminho de reflexão para a construção de uma agenda urbana nacional
que seja, de fato, inclusiva e contemple estes agentes que muitas vezes vêm
sendo excluídos do planejamento e da forma de pensar as cidades no Brasil.
É necessário refletir sobre como incorporar as propostas e como pensar as
cidades a partir dos múltiplos olhares das mulheres, formas seguras de
ser/estar nos espaços públicos, mobilidade, moradia adequada, políticas
urbanas inclusivas para as mulheres, para as mulheres em situação de rua e
para mulheres com deficiência.
Necessitamos ainda avançar em políticas para as mulheres negras e indígenas
que vivem/ou não em quilombos e aldeias urbanas, assim como para as
LGBTQ+, além de combater toda e qualquer forma de violência de gênero.
Contudo, para que as mulheres tenham direito à vida urbana é preciso um
elemento fundamental: é necessário garantir que estejam vivas. Para que isto
aconteça, é imprescindível políticas públicas voltadas para elas. É por isso que
lutamos.
Vanessa Marx é professora de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) e membro do BR Cidades. 
Gabriela Luiz Scapini é doutoranda em Sociologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e membro do BR Cidades.

Por uma agenda de pesquisa sobre a cidade, as mulheres e as


interseccionalidades
Foto: Paula Santoro
Por Paula Santoro*

Apesar serem tantos os trabalhos e discussões sobre mulheres, a casa e a cidade, várias
agendas ainda não foram investigadas e merecem serem aprofundadas. Neste 8 de
março – Dia Internacional da Mulher – compartilhamos, inspiradas nas pesquisas
realizadas no LabCidade FAUUSP, alguns temas que acreditamos serem importantes
para desenvolvermos de forma mais consistente se quisermos caminhar adiante na
construção de cidades mais equânimes e justas.

Nossos trabalhos têm se apoiado em diversas pesquisas norte-americanas e europeias


que, desde os anos 1970, apontavam para a invisibilidade das mulheres na cidade e no
planejamento urbano. Estes, mostram as diferentes vivências das cidades, resultado
direto da construção social e cultural sobre cada papel de gênero, da divisão sexual do
trabalho e dos históricos processos de construção do urbano. Mas as cidades, as
mulheres, não são as mesmas, não vivem a mesma cidade, da mesma forma.

Ainda são poucas as abordagens que têm o Sul Global ou a América Latina como
perspectiva. Precisamos encontrar, ler, sistematizar a produção acadêmica (e não
acadêmica! dar vozes aos excluídos!) que venha de encontro com a realidade
latino-americana. E também, que dialogue criticamente com as chaves de investigação
utilizadas historicamente para a compreensão da América Latina – como as
desigualdades de classes sociais, pobreza, periferia, desenvolvimento e globalização –
através de método interseccional, que considere os marcadores sociais da diferença.
Afinal, ser mulher negra periférica é uma experiência de cidade completamente diversa
da minha, professora universitária, branca.
Susan Fainstein e Lisa J. Servon afirmam que as diferenças de gênero estiveram
invisíveis em grande parte da história do planejamento urbano, uma vez que muitos dos
trabalhos estiveram apoiados na tradição modernista que pedia uma abordagem
universalizante. Mesmo as urbanistas que estavam dedicadas à melhorar as cidades
para os mais pobres, como Jane Jacobs, não tinham uma abordagem que se
preocupasse explicitamente com gênero ou com outras desigualdades. Ainda assim,
é preciso realizar um resgate histórico desses trabalhos no Brasil, buscando entender de
que maneira a questão de gênero apareceu (ou não) nos trabalhos de urbanistas
mulheres que não tinham tal abordagem específica. A própria Jane Jacobs hoje é
considerada uma feminista não declarada, por alguns…

Alguns sempre perguntam: por que o planejamento das cidades deve ter uma abordagem
de gênero? Certamente porque o planejamento tem como missão servir ao interesse
público e estes interesses são múltiplos. Também o debate sobre a cidade deve dar voz
aos excluídos que historicamente não tiveram voz. O desafio também é metodológico.

Foto: Marina Harkot


Mas já existe uma produção de leituras e propostas para as cidades em curso, que
inclusive merecem ser atualizadas. Muitos trabalhos sobre o urbano, por exemplo,
apontam a ausência da abordagem de gênero no urbano através de um pensamento
binário – casa/cidade, público/privado, moradia/trabalho – que hoje é criticado por
reforçar os papeis binários. Estes são os trabalhos que indicam que as mulheres
estiveram historicamente relegadas ao mundo privado, da casa; ao passo que os homens
ocuparam o mundo público, do trabalho, da política e da comunidade. Estas são até hoje
formas de ler a cidade, diferenciando estes papeis e lugares. No entanto, na hora de
propor transformações para a cidade, é necessário fazer uma leitura crítica sobre estes
duplos. O raciocínio binário reforça oposições – como moradia e trabalho, trabalho
reprodutivo e trabalho produtivo, esfera pessoal e esfera política – em dualismos que
obscurecem as conexões intrínsecas existentes entre todas essas (e outras) categorias.
Propostas não devem reforçar o caráter privado do trabalho reprodutivo,
majoritariamente feito por mulheres, e o caráter público do trabalho produtivo. Assim,
ao reforçar a existência desses binômios, são dificultados debates que tratem o
planejamento urbano como uma arena de trabalho que articule seus vários temas de
forma transversal tais quais, por exemplo, habitação, transporte, trabalho, economia,
lazer e comunidade. Bem como, enevoam outras desigualdades, que de forma
interseccional, como ser periférico, diferenças de raça, entre outras.

Algumas autoras, como por exemplo Paula Soto Villagrán (chilena que é professora em


universidade pública do México), colocam que a construção destas dicotomias foi e
ainda é importante como parte das teorias que viriam a estruturar o patriarcado como
modo de analisar o espaço urbano. A luta contra o patriarcado é fundamental para as
lutas anti-capitalistas, mas segundo várias autoras, não deve-se criar uma hierarquia de
importância destas lutas. Para Soto, o reforço dos papéis femininos e masculinos nas
cidades se dá, por exemplo, nas representações de feminilidade associadas à formas
arquitetônicas – masculinas são sólidas, poderosas, lineares e vertical e femininas como
delicadas, abobadadas, e tudo que é curvo… –; a contínua invisibilidade das mulheres
na vida urbana… Seguem reforçando o binômio que estrutura uma ordem patriarcal que
reforça ou pode transformar as construções em torno dos papéis femininos nos
processos de produção e reprodução. Se aplica por exemplo na polêmica atual “vai de
rosa ou vai de azul?”.
O enfoque de gênero, nos anos 1970 no Brasil, pareceu aterrisar a partir da agenda de
estudos sobre o desenvolvimento. Foi um período de trabalhos que estudaram o
desenvolvimento, o crescimento, a pobreza, geralmente denunciando a precariedade da
existência dos trabalhadores nas cidades. Quando nos anos 1990 a ideia de
planejamento urbano com enfoque em gênero começa a ser movimentada no país, ela
parece se dar através da tradução da pobreza, para um olhar voltado à pobreza das
mulheres. As medidas recomendadas para as políticas do “desenvolvimento”
seriam, então, políticas voltadas para assegurar o aumento da produtividade das
mulheres, consideradas como políticas antipobreza. Elas precisavam estar integradas no
processo de desenvolvimento, eram tidas como um recurso “não aproveitado” (Women
in Development ou Gender and Development eram termos usados então). Mesmo com
este enfoque “produtivista” que merece muitas críticas, estes trabalhos trouxeram
propostas até hoje relevante para as mulheres, como a titularidade feminina da
propriedade; a revisão dos horários de funcionamento de serviços públicos para
compatibilizá-los aos horários das famílias em que todos trabalham; e aumentar a
produtividade, competitividade e valorização cultural dos trabalhos tradicionalmente
femininos. E esta também segue sendo uma agenda para planejadores, pois as
desigualdades continuam presentes, mas certamente merece ser atualizada: muitas vezes
esteve mais associada à produtividade da mulher dentro do espaço reprodutivo, que a
uma revolução nos modos de usar e viver a cidade.

As mulheres são precursoras nos movimentos sociais, muitas vezes nascidos face às
lutas por equipamentos, serviços, políticas. Pesquisas sobre as políticas públicas
urbanas para as mulheres precisam ser feitas e também merecem ser
atualizadas! As alterações na família brasileira mostram que menos da metade da
população brasileira não é mais a família “heteronormativa” – mulher, homem e filhos
–, tida como “tradicional”. E uma das famílias que mais cresce é a monoparental com
filhos e, dentro deste grupo mulheres com filhos. Esta nova demografia certamente irá
transferir a luta pela divisão do trabalho doméstico entre mulher e homem para uma luta
pela maior presença do Estado no suporte à estas mulheres, para que possam ter
autonomia. Ou ainda, políticas de auxílio à idosos, e às mulheres idosas, emergem como
necessárias. Assim, a investigação sobre políticas públicas que beneficiem
especialmente as mulheres, abarcando a diversidade de suas condições de vida, é
premente na construção de uma abordagem de gênero no planejamento urbano. Debate
sobre a reforma da previdência, sobre formas de reorganização do trabalho (a agenda de
trabalho ininterrupto, 24/7), são temas urgentes para as mulheres.

As alterações nas condições do trabalho e na evolução do grau de desigualdade da renda


do trabalho, nas últimas décadas, sinalizaram para uma maior entrada das mulheres,
jovens, não brancas, de escolaridade baixa, nos “trabalhos de salário de base” – aqueles
com remuneração até 1,5 salários, formais e informais. Qual significado desta alteração
na vida das mulheres e na vivência das cidades? Ainda está para ser compreendida.
Estes dados exigem perspectivas interseccionais para sua análise, não mais explicada
exclusivamente a partir da chave da classe social.

Ainda, há um crescente revisitar de teorias sobre os espaços públicos, o sentido do


público e os bens comuns a partir da perspectiva feminista, como por exemplo, teorias
ligadas ao direito à cidade (por exemplo, entoadas pela profa. Rossana Tavares (UFF-
RJ), e aos bens comuns, como a Silvia Federici, que trabalha a associação do feminismo
com a política dos “commons”. Se os comuns correspondem a uma ideia que ganha
relevância para a luta anticapitalista a partir das resistências à expansão das fronteiras
do capital sobre os territórios, como um projeto político coerente, as mulheres e suas
históricas e novas formas de cooperação social revisitam o termo e se apropriam desta
luta. São elas as que muito cooperaram entre si, historicamente, na sua própria
organização da vida cotidiana, articulada em uma rede de relações sociais. São elas que
organizam e fazem a cooperação, desde formas de cuidado compartilhadas, creches,
hortas comunitárias, compras coletivas, cozinhas coletivas, entre tantas.

Inclusive por isso, é recorrente, quando se fala em planejamento participativo, ouvir


críticas sobre a indisponibilidade da “comunidade” em participar – seja pelo formato,
seja pelos horários propostos para as audiências públicas e oficinas. Tal
indisponibilidade é ainda maior entre as mulheres que, mesmo com agendas marcadas à
noite ou aos finais de semana, fora do horário convencional de trabalho, ainda têm que
enfrentar dupla ou triplas jornadas nos cuidados consigo, com a família, da casa, do
trabalho. Ainda, há a questão da escala de planejamento que, no Brasil, embora o
enfoque seja o planejamento na escala municipal, ainda é preciso superar métodos de
participação centralizadores e tecnicistas, promovendo um planejamento “de baixo para
cima” e com verdadeira participação social. Para isso, inclusive, é preciso encarar
criticamente, sem muita romantização, o que é a própria ideia de “comunidade” e de
participação social.

Há muitas autoras que apontam que se o Estado não está atuando para enfrentar as
necessidades da população (uma realidade presente especialmente nas periferias das
cidades brasileiras) as redes sociais de ajuda mútua exercem um relevante papel,
bastante conhecido por mulheres que contam com vizinhas e familiares, por exemplo.
Posto isso, de que maneira planejar na escala da comunidade e com a comunidade?

Foto: Marina Harkot


A reivindicação da participação política é uma das lutas fundantes do movimento
de mulheres. Mais recentemente, após o período constituinte, houve a emergência de
uma multiplicidade de movimentos sociais, cobrando reconhecimento e participação
política, que tem forçado uma ampliação dos estudos de democracia, para além das
instituições que conformam as estruturas do poder político na sociedade. Ações
afirmativas e cotas têm sido um instrumento para romper, parcialmente, com as
barreiras à participação de mulheres. Entretanto, não basta ser mulher – a bandeira
defendida por essas mulheres que ocupam tais espaços precisa ser pelos direitos das
mulheres, uma bandeira feminista. E quais são as pautas femininas e feministas? Quais
pautas trabalharão para a prevenção (não apenas a remediação) da violência? Quais
darão maior autonomia na mobilidade das mulheres pela cidade?

Muito já se pensou sobre as pautas… Várias pesquisadores já se debruçaram sobre as


agendas dos movimentos de mulheres e de outros movimentos sociais, como vários
trabalhos sobre mulheres liderança dos movimentos de moradia, sobre o papel das
mulheres nos mutirões ou, ainda, as mulheres negras na luta por água e por condições
básicas de infraestrutura, que sinaliza as diferentes formas de opressão que são
vivenciadas na cidade. Quais são as pautas dessas mulheres e como essas pautas cruzam
com as questões de gênero?

Qual será uma abordagem interseccional para as políticas urbanas para além das cotas?
Nos Estados Unidos, as interseccionalidades (intersectionalities), constituem um campo
de estudos específico, com autoras como Kimberle Crenshaw, Angela Davis, entre
outras que explicam a necessidade de se estudar gênero e raça de duas maneiras:
cruzamento dessas variáveis e análise em separado. Segundo Kimberle Crenshaw,
“mulheres negras experimentam às vezes a discriminação de modo similar ao
experimentado pelas mulheres brancas; às vezes, elas “partilham experiências similares
às dos homens negros”; às vezes, “a experiência da dupla discriminação é vivida com
base no gênero e na raça” (1989).

Transpondo para o urbano é preciso, por exemplo, compreender os territórios populares


e as diversas formas de vulnerabilidade – agora lidas como opressão, subalternidade,
recuperando a literatura decolonial. É necessário, por exemplo, rever o conceito de
periferia. Mas o que significa fazer novas leituras a partir desta chave? Envolve por
exemplo aprofundar leituras homogeineizantes, por exemplo, sobre quem está sendo
removido. Envolve outros métodos, que contem com a experiência, por exemplo, de ser
negra periférica, entre outras experiências, abrindo espaço para que os sujeitos exerçam
seu lugar de fala, mas é também aproveitar das potencialidades metodológicas de
carregar determinada identidade e ocupar determinado espaço para, mais que descrever
trajetórias, experienciar o urbano.

Desta forma, certamente, estaremos revendo o conceito clássico de


segregação adotado pelos estudos urbanos brasileiros. A segregação residencial no
Brasil – a separação espacial de grupos sociais em espaços relativamente homogêneos e
distantes entre si – tem um aspecto racial, entretanto, as leituras sobre o fenômeno
normalmente associam o efeito às desigualdades de classe social, sem se aprofundar na
maneira como estas afetam e são afetadas pelas desigualdades raciais. Assim, a exemplo
da segregação, são necessárias novas leituras da cidade sobre questões que,
considerávamos, já ter investigado à exaustão.

Ainda que muitos temas mereçam aqui serem levantados – como as diferenças na
mobilidade urbana, a presença feminina no trabalho do cuidado, entre tantos – um deles
merece especial atenção, o da violência. A violência é uma preocupação constante no
cotidiano das mulheres, que pode imobilizá-la ou exigir estratégias muito específicas
para viver. A violência de gênero nos espaços públicos; a violência dentro de casa, por
parte dos próprios companheiros e familiares; a violência do mercado de trabalho, com
suas práticas e regras desiguais; a violência do Estado, quando da necessidade de se
recorrer à uma delegacia para realizar uma denúncia, por exemplo, entre as tantas outras
vivenciadas de maneira diferente pelos vários grupos de mulheres, aprofundadas pela
cor, orientação sexual, hábitos, local de moradia…

No campo do planejamento urbano, esta violência se dá de várias formas. A


transitoriedade permanente – ou seja, as constantes remoções forçadas daquelas famílias
que vivem em contextos de informalidade urbana – faz com que a troca de local de
moradia seja, forçosamente, constante. E, num contexto em que, entre as famílias
pobres, boa parte delas é de famílias monoparentais chefiadas por  mulheres (negras), as
vítimas da política urbana que ameaça, remove e ignora a existência consolidada,
mesmo que informal, de territórios populares são, especialmente, as mulheres. De que
maneira tal violência se manifesta no urbano com um viés de gênero?
E como fazer para dar esta guinada de pensamento urbano? É fundamental engajar-se
em novos métodos de planejamento, sejam eles denominados de insurgente, disruptivos,
abolicionistas… Vamos ter que nos reinventar!

* Professora FAU-USP e coordenadora do LabCidade

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