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Cidade Interseccional
Cidade Interseccional
de gênero e raça
10/10/2018 Fórum Nacional de Reforma Urbana
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O Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) divulga mais artigo visando contribuir
com o debate em torno de uma nova agenda para as cidades, tendo em vista as
eleições, e também a necessidade de construção de uma nova plataforma articuladora
das forças democráticas e progressistas, frente aos retrocessos políticos e sociais que o
país vem atravessando, com o crescente avanço das ideias neoliberais. Neste artigo,
assinado por Alice Correia, Carolina Coelho e Livia Salles debatendo a questão de
gênero e raça no debate sobre direito à cidade.
Há, contudo, outras dimensões que precisam ser consideradas.para que possamos
construir cidades mais acessíveis, diversas, igualitárias, democráticas. Nossas
contradições estruturais e nossos conflitos cotidianos estão inscritos nas edificações,
nos vazios, nos caminhos e nos limites das cidades. Numa sociedade que, além de
desigual, é profundamente racista, machista e homofóbica, diferentes grupos sociais -
mulheres negras, mulheres brancas, homens negros, homens brancos, homossexuais
negros, homossexuais brancos, jovens negros e jovens brancos - tem diferentes
possibilidades de apropriação dos espaços públicos, dos aparatos públicos e das
cidades.
Para as mulheres uma rua escura ou um terreno abandonado podem ser fatores
limitadores de sua mobilidade, uma vez que há o constante medo de serem vítimas de
violência sexual, e uma cidade realmente inclusiva precisa ser pensada para que elas
tenham livre trânsito, a qualquer hora do dia ou da noite. Pessoas com deficiência
física que tem dificuldade de locomoção precisam de rampas nas calçadas para circular
de forma autônoma. Do ponto de vista geracional, a existência ou não de espaços de
lazer próximos à áreas residenciais podem alterar completamente a experiência que
crianças e jovens têm da rua - enquanto espaço possível para pertencimento e
apropriação.
De acordo com dados do IPEA (2011), 43% da população negra no Brasil se encontra
abaixo da linha da pobreza, e 19% destes, recebe menos de ¼ de salário-mínimo.
Ainda, o IPEA aponta que 66% das habitações irregulares e assentamentos subnormais
são chefiados pela população negra, sendo a sua maioria por mulheres negras, o que
escancara a um só tempo o racismo estrutural e institucional a que estamos
submetidos.
As periferias se apresentam, portanto, como uma faceta não tão oculta dos
significados e significações do que é em si a propriedade privada no Brasil, distante da
sua função social, agregando apenas aos interesses dos proprietários.
O fato de o transporte público não ser pensado na perspectiva das mulheres resulta
em maiores dificuldades de circulação delas, quando comparadas aos homens, e em
restrições no acesso à cidade como um todo. Do ponto de vista da mobilidade das
mulheres, é preciso que as políticas públicas sejam pensadas, implementadas e
avaliadas tendo alguma sensibilidade em relação à questão de gênero. Esse é o caso de
algumas iniciativas das cidades do Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte e Distrito
Federal, como o vagão rosa; e também a chamada Lei da Parada Segura, que já foi
implementada em São Paulo, Caruaru e Porto Alegre. É preciso mencionar, no entanto,
que há muitas controvérsias em relação à efetividade da política do vagão rosa que,
por não ter consequências de caráter estrutural, é duramente criticada por algumas
mulheres como instrumento de segregação, mais do que vista como solução.
Para além das políticas voltadas para uma solução imediata da questão da segurança
contra assédios às mulheres em transportes públicos, deve-se pensar propostas de
implementação de políticas públicas e campanhas que promovam formação de
consciência, disseminem informação e promovam transformação social, para a
construção de medidas efetivas pelo fim dos assédios e violências sexuais contra as
mulheres. Propagandas informativas, cartilhas, cartazes, livros didáticos para educação
básica, fundamental e média que perpassam a temática, curta-metragens
informativos, enfim, diversas medidas podem ser pensadas para formação de uma
nova consciência social que promova, efetivamente, o rompimento com o machismo.
CONCLUSÃO
Para que as cidades sejam acessadas mais democraticamente, é necessário que
deixemos de conceber, planejar e executar a infraestrutura e o serviços urbanos a
partir de um ponto de vista único ou, ainda, a partir de um discurso tecnicista que
prega uma suposta neutralidade ao olhar para a totalidade da população e, dessa
forma, nega a multiplicidade de experiências e necessidades de diferentes grupos no
cotidiano das cidades. Para que espaço urbano se transforme, é essencial ampliar
radicalmente as possibilidades de participação e incorporar outros sujeitos, diferentes
pontos de vista e vozes dissonantes no planejamento das cidades. São muitos os
desafios experimentados pelas mulheres nos espaços públicos e no acesso aos
serviços; não à toa, somos minoria em posições de poder e espaços de tomada de
decisão.
Por mais que sejamos a maioria da população e do eleitorado, num país de 5.570
municípios, somos apenas 641 prefeitas; no Congresso Brasileiro, de um total de 513
cadeiras, apenas 51 das cadeiras são preenchidas por nós, mulheres. Para além do
desejo e necessidade das mulheres de estarem nesses espaços, é urgente que se
efetive a participação social popular, incorporando rostos, corpos e experiências de
fato diversas. Radicalizar a participação social de modo que tenhamos uma cidade em
que mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTI+, portadoras/es de deficiências e todas
as pessoas tomem e somem verdadeiramente os espaços de ação política com suas
experiências, demandas, desejos, transformando os lugares em que circulam seguros e
diversos como somos.
https://terradedireitos.org.br/acervo/artigos/cidade-interseccional-o-direito-a-cidade-
nas-perspectivas-de-genero-e-raca/22936
Ações : Direito à Cidade
Apesar serem tantos os trabalhos e discussões sobre mulheres, a casa e a cidade, várias
agendas ainda não foram investigadas e merecem serem aprofundadas. Neste 8 de
março – Dia Internacional da Mulher – compartilhamos, inspiradas nas pesquisas
realizadas no LabCidade FAUUSP, alguns temas que acreditamos serem importantes
para desenvolvermos de forma mais consistente se quisermos caminhar adiante na
construção de cidades mais equânimes e justas.
Ainda são poucas as abordagens que têm o Sul Global ou a América Latina como
perspectiva. Precisamos encontrar, ler, sistematizar a produção acadêmica (e não
acadêmica! dar vozes aos excluídos!) que venha de encontro com a realidade
latino-americana. E também, que dialogue criticamente com as chaves de investigação
utilizadas historicamente para a compreensão da América Latina – como as
desigualdades de classes sociais, pobreza, periferia, desenvolvimento e globalização –
através de método interseccional, que considere os marcadores sociais da diferença.
Afinal, ser mulher negra periférica é uma experiência de cidade completamente diversa
da minha, professora universitária, branca.
Susan Fainstein e Lisa J. Servon afirmam que as diferenças de gênero estiveram
invisíveis em grande parte da história do planejamento urbano, uma vez que muitos dos
trabalhos estiveram apoiados na tradição modernista que pedia uma abordagem
universalizante. Mesmo as urbanistas que estavam dedicadas à melhorar as cidades
para os mais pobres, como Jane Jacobs, não tinham uma abordagem que se
preocupasse explicitamente com gênero ou com outras desigualdades. Ainda assim,
é preciso realizar um resgate histórico desses trabalhos no Brasil, buscando entender de
que maneira a questão de gênero apareceu (ou não) nos trabalhos de urbanistas
mulheres que não tinham tal abordagem específica. A própria Jane Jacobs hoje é
considerada uma feminista não declarada, por alguns…
Alguns sempre perguntam: por que o planejamento das cidades deve ter uma abordagem
de gênero? Certamente porque o planejamento tem como missão servir ao interesse
público e estes interesses são múltiplos. Também o debate sobre a cidade deve dar voz
aos excluídos que historicamente não tiveram voz. O desafio também é metodológico.
As mulheres são precursoras nos movimentos sociais, muitas vezes nascidos face às
lutas por equipamentos, serviços, políticas. Pesquisas sobre as políticas públicas
urbanas para as mulheres precisam ser feitas e também merecem ser
atualizadas! As alterações na família brasileira mostram que menos da metade da
população brasileira não é mais a família “heteronormativa” – mulher, homem e filhos
–, tida como “tradicional”. E uma das famílias que mais cresce é a monoparental com
filhos e, dentro deste grupo mulheres com filhos. Esta nova demografia certamente irá
transferir a luta pela divisão do trabalho doméstico entre mulher e homem para uma luta
pela maior presença do Estado no suporte à estas mulheres, para que possam ter
autonomia. Ou ainda, políticas de auxílio à idosos, e às mulheres idosas, emergem como
necessárias. Assim, a investigação sobre políticas públicas que beneficiem
especialmente as mulheres, abarcando a diversidade de suas condições de vida, é
premente na construção de uma abordagem de gênero no planejamento urbano. Debate
sobre a reforma da previdência, sobre formas de reorganização do trabalho (a agenda de
trabalho ininterrupto, 24/7), são temas urgentes para as mulheres.
Há muitas autoras que apontam que se o Estado não está atuando para enfrentar as
necessidades da população (uma realidade presente especialmente nas periferias das
cidades brasileiras) as redes sociais de ajuda mútua exercem um relevante papel,
bastante conhecido por mulheres que contam com vizinhas e familiares, por exemplo.
Posto isso, de que maneira planejar na escala da comunidade e com a comunidade?
Qual será uma abordagem interseccional para as políticas urbanas para além das cotas?
Nos Estados Unidos, as interseccionalidades (intersectionalities), constituem um campo
de estudos específico, com autoras como Kimberle Crenshaw, Angela Davis, entre
outras que explicam a necessidade de se estudar gênero e raça de duas maneiras:
cruzamento dessas variáveis e análise em separado. Segundo Kimberle Crenshaw,
“mulheres negras experimentam às vezes a discriminação de modo similar ao
experimentado pelas mulheres brancas; às vezes, elas “partilham experiências similares
às dos homens negros”; às vezes, “a experiência da dupla discriminação é vivida com
base no gênero e na raça” (1989).
Ainda que muitos temas mereçam aqui serem levantados – como as diferenças na
mobilidade urbana, a presença feminina no trabalho do cuidado, entre tantos – um deles
merece especial atenção, o da violência. A violência é uma preocupação constante no
cotidiano das mulheres, que pode imobilizá-la ou exigir estratégias muito específicas
para viver. A violência de gênero nos espaços públicos; a violência dentro de casa, por
parte dos próprios companheiros e familiares; a violência do mercado de trabalho, com
suas práticas e regras desiguais; a violência do Estado, quando da necessidade de se
recorrer à uma delegacia para realizar uma denúncia, por exemplo, entre as tantas outras
vivenciadas de maneira diferente pelos vários grupos de mulheres, aprofundadas pela
cor, orientação sexual, hábitos, local de moradia…