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D. ANTÓNIO COUTO

VEJO UM RAMO
DE AMENDOEIRA
e outras palavras em flor

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ÁTRIO
Três textos, três tempos de graça, três testemunhos, três andamentos compõem este
livro que agora vem à luz da lâmpada dos olhos e do coração. Como um passarinho
que, com o tempo, vem de manhãzinha poisar na beirada da janela e comer à minha
mão, não fosse o meu país o lugar onde os pássaros comem à mesa dos meninos.
Três textos iguais e diferentes. O primeiro, intitulado «O Evangelho, Jesus, Paulo,
Xavier e Eu», vê-se bem que é como um espelho onde quotidianamente me revejo e
me deixo atravessar por algumas pérolas bíblicas adquiridas também por figuras
incontornáveis do Cristianismo. O segundo, intitulado «Vejo um ramo de
amendoeira», é como uma profissão de fé, uma maneira de ver, de viver, um lema
gravado a fogo na alma de Jeremias e na minha. O terceiro, intitulado «Daqui, desta
planura: leitura do tempo em que vamos», constitui uma travessia pensada e prensada
deste tempo que Deus me deu. Salta à vista que o texto aparece articulado em treze
pontos. Não se trata de sorte nem de azar. Bem pelo contrário. É para lembrar o amor
patente nos treze atributos de Deus, que o judaísmo encontra e enumera em EX
34,6-7.
Todos os textos vão em prosa e poesia, como eu gosto de escrever, de dizer e de me
dizer.

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O EVANGELHO,JESUS, PAULO,XAVIER E EU

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1. O Evangelho é uma Notícia boa e feliz

vinda de Deus
O Evangelho (eu-aggélion) é uma Notícia boa e feliz, surpreendente,
desconcertante e transformante que, vinda de fora, invade e transforma a nossa vida.1
Mostram bem essa nova e boa realidade os versos do profeta e místico anónimo do
Exílio, que a crítica conhece por Deutero-Isaías:
52,7Como são belos sobre os montes os pés/ do Evangelista (mebasser),/ que nos põe à escuta (mashmîa‘)
da Paz (shalôm),/um Evangelista (mebasser TM/ euaggelizómenos LXX) do Bem, da Bondade e da Beleza
(tôb),/ que nos põe à escuta (mashmîa‘) da Salvação (yeshû‘ah),/ que diz a Sião:/ «Reina o teu Deus!»
(malak ’elohayik). (IS 52,7)
O profeta desenha e canta uma figura bela e feliz, a figura de um Evangelista, que
nos põe à escuta destas maravilhas. E os conteúdos de uma tal Notícia boa e feliz são,
como se vê, a Paz, o Bem e a Bondade e a Beleza2, a Salvação, que brotam do
Reinado efetivo de Deus.

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2. Essa Notícia boa e feliz

transforma a nossa vida e gera comunhão


A vocação de uma tal Notícia é encher a vida da cidade até ao cimo e transvazar,
transformando assim a cidade de evangelizada e felicitada em evangelizadora e
felicitadora. Gritam de Alegria as sentinelas, a Alegria apega-se às ruínas, e solta-se
uma nova Melodia cujo eco chegará aos confins da terra. Diz outra vez o anónimo
profeta do Exílio:
52,8A voz das tuas sentinelas,/ elas levantam a voz,/ juntas gritam de Alegria,/ porque olhos nos olhos elas
vêem,/ é YHWH que volta (shûb) a Sião./ 9Alegrai-vos,/ gritai de Alegria todas juntas,/ ruínas de
Jerusalém,/ porque Faz Graça (niham) YHWH ao seu povo,/ Ele Redime (ga’el) Jerusalém./ 10Descobre
YHWH o seu braço santo,/ aos olhos de todas as nações./ Verão todos os confins da terra/ a Salvação
(yeshû‘ah) do nosso Deus. (IS 52,8-10)
A Alegria verdadeira contagia e inebria, como uma nova e intensa melodia. É assim
que as ruínas se levantam. Mas por detrás desta energia está o Deus agraciador,
redentor, salvador. É ele o motor do nosso novo Dia sem acaso nem ocaso. Só com
amor e sem medida nem atraso.

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3. Fazer nascer filhos verdadeiros destas pedras
E insiste o profeta em mostrar a beleza em que Deusenvolve a cidade, levantando
as suas muralhas, assentando com carinho as suas pedras há muito derrubadas,
adornando-as com rímel ( pûk). Vê-se acontecer nestas pedras tristes omilagre da
transformação em filhos de Abraão (cf. MT 3,9). Obra das mãos criadoras e
carinhosas de Deus:
54,11Humilhada, sacudida pela tempestade, não reconfortada,/eis que Eu circundarei com argamassa negra
(pûk) as tuas pedras,/ assentar-te-ei sobre safiras,/ 12farei as tuas ameias de rubis,/ as tuas portas de
esmeraldas,/ e todas as tuas muralhas de pedras de prazer (‘abnê-hephets)!/ 13Todos os teus filhos serão
discípulos de YHWH,/ e grande será a Paz dos teus filhos.(IS 54,11-13)
Pedras amadas, embelezadas, sombreadas, circundadas de cor negra, como de rímel
( pûk) os olhos de Jezabel (2RS 9,30) ou da luxuriosa Sião (JR 4,30; EZ 23,40).3
Pedras acarinhadas e mimadas como filhos e filhas4, inundados de Paz.
Depois desta cena de inolvidável beleza, contemplemos agora a fantástica
passagem do arauto masculino (mebasser) para o feminino (mebasseret), designando
com esse nome a própria Cidade de Sião ou Jerusalém personificada e
Evangelizadora das suas cidades irmãs. Esta imagem tem sido vista por alguns
comentadores como grotesca (Bernhard Duhm).5 Mas é, na verdade, o que o texto
diz.6 Cidade Evangelizada, que se transforma naturalmente em Evangelizadora.
Estamos nas nascentes do termo «Evangelho».7 Deixemos jorrar outra vez a voz do
profeta:
40,9Sobe a uma alta montanha, Evangelista (mebasseret) Sião,/ levanta com força a tua voz, Evangelista
(mebasseret) Jerusalém;/ levanta-a, não temas,/ diz às cidades de Judá:/ «Eis o vosso Deus,/ 10eis o Senhor
YHWH!/ Com poder Ele Vem,/ no seu braço a soberania para Ele,/ eis o Seu salário com Ele,/ e a Sua
recompensa diante d’Ele./ 11Como um pastor o seu rebanho apascenta,/ com o Seu braço, reúne-o,/ no Seu
colo os cordeiros carrega,/ as ovelhas que amamentam conduz com carinho.»(IS 40,9-11)
Vê-se cada vez melhor, cada vez com maior clareza, que a Notícia é Deus que
Vem! Não, Deus não salva o Seu povo com programas feitos à distância nem com
conceções teológicas friamente administradas desde cima.8 É, de facto, a presença
Gratificante, Redentora, Salvadora e Embelezadora de Deus no meio de nós, como
pastor atento e carinhoso, que dedica a cada um a atenção toda, que é a verdadeira
causa da Alegria que invade a vida da cidade. Toda esta Bondade e Beleza, que
provém da Fonte da Bondade e da Beleza, deve ser comunicada a todas as cidades e
nações, a todos os irmãos e irmãs, a todos os corações.

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4. Jesus, o Evangelho em pessoa
«O Reino de Deus não é um conceito, uma doutrina, um programa sujeito a livre
elaboração, mas é, acima de tudo, uma Pessoa com um rosto e um nome: Jesus de
Nazaré, “imagem do Deus invisível”.» (CL 1,15) A definição, densa e rigorosa, pode
ver-se na Carta Apostólica Redemptoris Missio, n.º 18.9 Lembra a genial fórmula de
Orígenes, que se encontra no seu «Comentário sobre o Evangelho segundo Mateus»,
que apresenta Jesus como a autobasileía, a personificação do Reino Pessoal vindo ao
nosso encontro.10
É com a proclamação dessa Vinda que abre o Evangelho de Jesus, que é Jesus:
1,14Depois de João ter sido preso, Veio (êlthen) Jesus para a Galileia, proclamando (kêrýssôn) o Evangelho
de Deus (tò euaggélion toû Theoû), 15e dizendo (légôn): «Completou-se (peplêrôtai: perf. pass. de plêróô)
o tempo (ho kairós) e fez-se próximo (êggiken: perf. de eggízô) o Reino de Deus (basileía toû Theoû).
Convertei-vos (metanoeîte) e Acreditai ( pisteúete) no Evangelho.» (MC 1,14-15)
A Notícia transvaza agora de Jesus. Ele anuncia que se virou uma página no tempo,
com a proximidade agora permanente (perfeito grego) de Deus que Reina, e que, com
a Sua presença amante enche de graça o nosso tempo segmentado (chrónos),
tornando-o kairós, tempo grávido de alegria e de esperança, entenda-se, da enchente
da Palavra de Deus que, inundando a nossa vida, reclama a nossa resposta amante e
transforma a nossa vida. Kairós: tempo da enchente da Palavra de Deus a nós dita e
por nós acolhida e respondida. Esta proximidade excede todas as nossas esperas.
Trata-se, de facto, de uma proximidade que não se espera nem se sabe. «O ilimitado
não se alcança através da planifica-ção […]. As coisas supremas não são
planificáveis. Já estão prontas para receber.»11 Não se programa, portanto. Não há
um movimento nosso de aproximação a ele.É ele que se aproxima de nós. Precede-
nos. Surpreende-nos. Graça preveniente. Ciência do não-saber. O Dom verdadeiro
não se sabe. Não se produz do nosso lado.12 Como o Deus bíblico, que nos preside e
nos precede, vem ao nosso encontro, ultrapassando-nos (MC 6,48; cf. EX 33,20-23;
34,5-6; 1RS 19,11-13; JB 9,11) – deliciosa maneira de dizer –, e, portanto, também
provocando em nós novas atitudes: «Convertei-vos e Acreditai no Evangelho» (MC
1,15), e deixando em nossos lábios um cântico novo:
Tu, Senhor, Tu falas
E um caminho novo se abre a nossos pés,
Uma luz nova em nossos olhos arde,
Átrio de luminosidade,
Pão
De trigo e de liberdade,
Claridade que se ateia ao coração.
Lume novo, lareira acesa na cidade,
És Tu, Senhor, o clarão da tarde,
A notícia, a carícia, a ressurreição.

10
Passa outra vez, Senhor, dá-nos a mão,
Levanta-nos,
Não nos deixes ociosos nas praças,
Sentados à beira dos caminhos,
Sonolentos,
Desavindos,
A remendar bolsas ou redes.
Sacia-nos.
Envia-nos, Senhor,
E partiremos
O pão,
O perdão,
Até que em cada um de nós nasça um irmão.
Ou então esta litania de episódios recortados de outras tantas páginas dos
Evangelhos, suavemente entretecidos e mansamente recitados numa bela harîzah:
1.
Aproximou-se um homem habituado
ao uso inveterado do silêncio,
o seu olhar varrendo toda a fraude
das palavras.
Aproximou-se firme e impoluto.
Esquadrinhou as faces oxidadas
da mentira.
Olhou depois o chão como quem abre
um sepulcro
e lentamente desenhou
o puro rosto da verdade
sobre a areia.
2.
Levantou depois os olhos azulados.
À sua frente havia apenas céu.
Para onde tinham ido os impostores?
Quem é que tem medo da verdade?
Baixou de novo os olhos
e guardou
na areia seca do deserto
dois loiros grãos de trigo,
dois pedaços de azul,
duas lágrimas,
duas palavras,
interditas.
3.
Cresceram as cidades

11
(a música dos pássaros
ensonava os olhos das crianças).
Na folha fria da almotolia
ardia apenas uma lágrima
de alegria.
Partimos em demanda da alegria.
Grande era o mundo que nos davam.
Tanta cidade a conquistar.
Felizes era o que seríamos
no dia em que vergássemos
as altas aves da alegria.
Ser Feliz era uma cidade
a conquistar.
Vencemos a distância.
Conquistámos os pontos mais altos
do verão.
A posse de cidades sucedia-se.
Mas a cidade da alegria,
onde estava a cidade da alegria?
Ser feliz era um pássaro
que víamos passar todos os dias,
que víamos poisar sobre os telhados,
às vezes sobre a água pura
das nascentes.
Era um pássaro livre, silencioso,
fugidio.
Fugia das cidades conquistadas.
Dizíamos então:
eu dava a vida por aquele pássaro.
Envenenados pela sede
das mãos inacabadas,
rapidamente esvaziámos
as rubras turvas taças da alegria.
Ensonados também,
transidos de cansaço,
embebedados cegos
de tanto olhar a luz,
caímos exaustos no deserto,
o coração submisso
a estas mãos intransponíveis.
4.
Aproximou-se um homem habituado
ao uso inveterado de levar

12
as mãos ao rosto,
de colher as palavras uma a uma,
de as soltar como pássaros,
às vezes como pedras.
Sentou-se sobre a areia.
Pegou em dois loiros grãos de trigo,
dois pedaços de azul,
duas lágrimas,
duas palavras,
interditas.
5.
– Por toda a parte procurais o reino
de Deus – disse.
– Disse –
E desdobrando largamente as mãos,
como quem dá à luz o coração,
preparou uma mesa no deserto,
acomodou a multidão à roda
do silêncio.
Repartiu a palavra pelas mãos
rugosas e sedentas e abertas,
carregadas de terra e de verdade,
os olhos vergados sobre as mãos,
o coração rendido
à flor dos lábios.
6.
– Olhai –
Um camponês pegou numa semente.
Pequenina,
Pequenina.
Olhou-a em suas mãos deitada.
Acariciou-a.
Enterrou-a no campo mais verde.
No campo mais ao sol das suas terras.
Da semente nasceu uma planta.
A planta cresceu.
A planta deu flor.
A planta cresceu, floriu, vestiu-se de festa.
Em seus verdes, verdes ramos,
vinham abrigar-se os pássaros
do céu.
Era nos dias mais doirados
de setembro,

13
quando já a claridade se esvanece,
e os pássaros se escondem à lareira
de uma árvore carregada de alegria.
O nosso camponês foi de visita
à sua planta.
Tinha crescido.
Levantou os olhos,
ficou extasiado.
Era agora uma casa habitada,
com luzes em todas as janelas.
Baixou os olhos.
Debruçado sobre a vida,
extasiado com a vida,
reconciliado com a vida,
pegou nas suas mãos de outrora,
no seu coração de outrora.
Era uma semente,
pequenina,
pequenina.
Acariciou-a,
virou-a e revirou-a.
À outra luz do coração
amou-a de preferência ao oiro,
à luz do sol,
às espigas mais loiras da seara.
– É aqui que tudo principia – disse.
– Disse –
A primeira manhã autêntica do mundo
É como se tivesse nascido hoje.
7.
Regressou feliz a sua casa.
Entrou em sua casa,
sentou-se comovido à lareira.
Aproximou-se um homem habituado
ao uso inveterado da verdade.
Bateu à porta e disse:
– Hoje quero ficar em tua casa,
cear contigo a ceia da amizade.
Sabes,
nas minhas mãos ardentes e despidas
há um fruto de lume e de alegria
que não pode esperar
que nasça o dia.

14
8.
– O reino de Deus
não está aqui ou ali – disse.
– Disse –
Os mais belos lugares do mundo,
onde estão os mais belos lugares do mundo?
Onde mora a esperança?
Que língua fala a paz?
Que avião tomar para a justiça?
Que moeda vigora no amor?
Onde estão as fronteiras da alegria?
Que cores tem a bandeira da verdade?
Veja quem tem olhos para ver,
só quem tem o coração a arder,
pode ouvir e ver e compreender
que eu sou o país
onde tu podes ser feliz.
9.
Pegou depois numa criança,
num pedaço de pão
e numa taça.
Levantou os olhos e as mãos,
onde nitidamente pulsava um coração,
e ergueu um brinde ao céu.
Baixou depois os olhos e as mãos,
ungidos já para a dádiva suprema,
e ardentemente desejou
o vinho novo do reino a chegar.
10.
Requisitou por isso para isso o coração,
as mãos, a boca
de quantos o estavam a escutar
e antes de partir e de ficar
– Definitivamente Deus Connosco –
abriu ainda à multidão
novos caminhos
diurnos,
matutinos.
Já sei que não sabeis pedir o pão,
tereis de aprender com os meninos.
11.
Traz as tuas mãos pequenas e abertas,
onde caiba só o coração.

15
Sabes,
o coração é uma cidade,
ou, se preferes,
o coração é a última cidade.
Ou ainda,
no coração começa a liberdade.
Ou, se preferes,
no coração começa a tempestade.
12.
A multidão levou as mãos à boca,
ao coração.
Restaram doze cestos de palavras.

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5. Paulo, encontrado por Cristo,

comunicador de Cristo
São Paulo está em linha com o anónimo profeta do Exílio e com Jesus. Foi agarrado
por Jesus Cristo (FL 3,12).Eis a sua bela história:
Era uma vez uma estrada, uma carreira,
um curso, um percurso,
que só havia uma maneira de fazer: a correr.
Está-se mesmo a ver:
só se iria inscrever
quem não gostasse mesmo nada de perder.
Corria então nessa estrada
um famoso corredor,
a transbordar de zelo e de ardor,
indómito lutador.
Já se sabia,
saía
sempre vencedor.
Até que um dia
à hora do meio-dia,
do sol a pique e de Deus na via,
um novo corredor vindo de fora,
não se sabe de onde,
agarrava
e ultrapassava
nessa estrada
o corredor.
A estrada era para os lados de Damasco,
Paulo o corredor,
Jesus o novo vencedor.
Começa aqui outra história
de outro amor,
com Paulo a correr
por dentro e por fora
até morrer.
Fora de si,
dentro de si,
movimento transitivo
no mapa, nos mares, nas estradas, nas cidades,
movimento intransitivo,
ao jeito de Abraão,

17
rasgando avenidas no próprio coração.
Mas não quis mais correr sozinho.
Para mim correr é Cristo,
dizia,
e corria agarrado à sua mão.
Uma mão na mão de Cristo,
a outra apertando a de um irmão e outro irmão
e outro irmão,
uma verdadeira multidão
em comunhão.
É verdade,
quando Jesus irrompe na vida de alguém,
interrompe a normalidade de um percurso,
e rompe essa vida em duas partes desiguais:
uma que fica para trás,
outra que se abre agora à nossa frente,
reta como uma seta direta a uma meta,
a um alvo, um objetivo intenso e claro,
tão intenso e claro que na vida de cada um
só pode haver um!
Claramente, Paulo está depois deste encontro, vive dele, em plena e esfuziante
Alegria (JO 3,29; 15,11) – «Para mim viver é Cristo» (FL 1,21); «Ai de mim se não
anunciar o Evangelho!» (1COR 9,16) – e dá testemunho dos efeitos desse encontro:
«O Reino de Deus [...] é Justiça e Paz e Alegria no Espírito Santo.» (RM 14,17) Vida
nova.E o autor do Livro dos Atos dos Apóstolos fecha o livro deixando Paulo em
Roma «a anunciar o Reino de Deus e a ensinar as coisas acerca do Senhor Jesus
Cristo» (AT 28,31). Último versículo do Livro dos Atos dos Apóstolos. Última
imagem de Paulo. Imagem de corpo inteiro e a tempo inteiro, que retrata bem este
extraordinário Evangelizador, cuja metodologia se tornou obrigatório aprender.
5.1. Metodologia maternal e paternal,personalizada, a tempo inteiro
É sabido que Paulo serve o Evangelho com Coração Maternal e Paternal, portanto,
com tempo e total dedicação e persistência e paciência, como ele próprio testemunha,
escrevendo à comunidade cristã, por ele fundada, em Tessalónica. Paulo confessa que
manteve uma relação de afeto maternal e paternal para com todos os membros dessa
comunidade, que trata como filhos, acalentando-os, exortando-os e consolando-os um
a um:
2,7[...] Tornámo-nos crianças (nêpioi) no meio de vós, Como uma Mãe (trophós) que acalenta (thálpô) os
próprios filhos (tà heautês tékna). 8Tanto bem vos queríamos, que desejávamos dar-vos, não apenas o
Evangelho de Deus, mas também a nossa própria vida, pois tornastes-vos queridos (agapêtoí) para nós.
9Recordais-vos, de facto, irmãos, da nossa fadiga e do nosso esforço, trabalhando de noite e de dia, para
não sermos pesados a nenhum de vós. Foi assim que vos pregámos o Evangelho de Deus. 10Vós sois
testemunhas, e Deus tambémo é, de quão puro, justo e irrepreensível tem sido o nosso modo de proceder
para convosco, os que acreditais. 11Bem sabeis como exortámos ( parakaléô) a cada um de vós, como um
Pai aos seus próprios filhos. 12Exortando-vos ( parakaléô) e consolando ( paramythéomai) e dando

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testemunho (martýromai), para que caminheis de modo digno a Deus, que vos está a chamar (kaloûntos) ao
seu Reino e à sua glória. (1TS 2,7-12)
Quem, como Paulo, foi encontrado por Cristo e vive de Cristo a tempo inteiro, tem
também de dar testemunhode Cristo a tempo inteiro, com Coração Maternal e
Paternal. É assim que Paulo não pode deixar de dar vida, dando a vida, gerando
filhos13, como ele refere com ternura por duas vezes nas suas cartas:
4,14Não querendo envergonhar-vos (entrépôn: part. pres. de entrépô) escrevo estas coisas, mas como meus
filhos amados (tékna mou agapêtá) admoestando (nouthetôn: part. pres. de nouthetéô). 15Ainda que
tivésseis tido dez mil pedagogos( paidagôgoús) em Cristo, não tendes muitos pais ( patéras), pois em Cristo
Jesus, por meio do Evangelho, eu vos Gerei (egénnêsa: aor. de gennáô). (1COR 4,14-15)
10Rogo-te pelo meu filho ( perì toû emoû téknou), Onésimo, que Gerei (egénnêsa: aor. de gennáô) na
prisão. (FM 10)
De registar o vivo contraste, recurso habitual em Paulo, entre o não querer deixar
vermelhos de vergonha (entrépô) os Coríntios com as suas advertências fortes (leia-se
1COR 4,8-13), mas admoestar [nouthetéô (= noûs títhêmi = «pôr na mente» ou «pôr a
mente»; reclama o muito semítico «pôr o coração» {sîm leb})] os seus filhos amados
com carinho (1COR 4,14).14
Mas se gera filhos, também os dá à luz na dor, como se atreve a dizer na Carta aos
Gálatas:
4,19Meus filhos (tékna mou), que Dou à Luz Sofrendo (ôdínô), até que (méchris
hoû) seja formado (morphôthê: conj. aor. pass. de morphóô) Cristo em vós. (GL
4,19)
Fica projetado na tela, com toda a luz e com toda a força, que gerar os filhos e dá-
los à luz não são atos, mas atitudes a prosseguir até à (méchris hoû) configuração ou
conformação com Cristo (GL 4,19).15 Note-se, a propósito, o dizer alemão Zeugnis,
que significa «testemunho», significando o verbo zeugnen, em primeira instância,
«gerar». Deste sentido semântico pode retirar-se esta consideração essencial:
testemunhar é gerar, e não há testemunho verdadeiro sem geração.16 Esta é, de resto,
a atitude da esperança patente na celebração da Ceia do Senhor: «Anunciais a morte
do Senhor até que (áchris hoû) Ele venha.» (1COR 11,26) Gerar filhos e dá-los à luz é
fazê-los crescer até à estatura de Cristo, imprimir neles a alegria de Cristo, a vida
nova de Cristo, dar testemunho de Cristo.
E é velar sobre eles com paciência, persistência e total dedicação, com o zelo com
que um pai guarda com primorosa atenção a sua filha até ao dia do casamento17:
11,2Sou, na verdade, zeloso por vós, com o zelo de Deus, pois dei-vos em casamento (hermosámên: aor.
médio de harmózô) a um único esposo, como virgem pura ( parthénon hagnên), para vos apresentar (
parastêsai: inf. aor. de parístêmi) a Cristo (tô Christô). (2COR 11,2)
Por isso também, por causa do afeto e da dedicação maternal e paternal, Paulo não
tem vergonha de chorar a separação dos seus filhos, como ele próprio testemunha,
escrevendo às comunidades cristãs por ele fundadas18:
2,17Nós, porém, irmãos, desfilhados (aporphanisthéntes: aor. pass. de aporphanízô) de vós por um
momento, da vista, que não do coração, mais do que nunca estamos ansiosos e com muito desejo de ver o
vosso rosto. (1TS 2,17)
A linguagem é vivíssima e traduz o amor dileto e sem restrições deste Pai pelos

19
seus filhos amados. Mas deixa entrever também a relação de filial e terna
dependência destes filhos para com o Pai.
5.2. Uma rede de cooperadores
Sendo o trabalho da Evangelização tão personalizado, dedicado e intenso, é fácil
perceber que Paulo não o possa fazer sozinho, mas se saiba rodear de Muitos e Bons
Cooperadores (synergoí), a quem trata com elevada estima e entranhado afeto, como
documenta o chamado «Capítulo das Saudações» no final da Carta aos Romanos (RM
16,1-15), sabendo ainda animá-los e estimulá-los, alegrando-se com a alegria deles,
como sucede com Tito, neste fantástico retalho da chamada «Carta da Consolação»
(2COR 2,12-13; 7,5-16).
5.3. Hábitos novos
Mas importa ainda considerar a metáfora da vida nova em Cristo, com Cristo, como
Cristo, outro Cristo19, não de uma vez por todas, mas um afazer de todos os dias,
como denota o uso do aoristo em RM 13,14, GL 3,27 e CL 3,12.20 Este revestimento
interior expressa a radical novidade de vida de quem vive em Cristo. Vê-se bem que
vestir-sede misericórdia, bondade, humildade, mansidão, magnanimidade, amor, paz,
nada tem a ver com o exterior e lojas de modas, mas com a nossa nudez interior, que
só Cristo pode verdadeiramente resolver.
A metáfora do vestir-se de novas vestes para traduzir uma nova identidade parece
ser tipicamente cristã, provavelmente uma criação da Igreja primitiva, pois não são
conhecidos outros exemplos fora do Cristianismo.21 Vale a pena prestar atenção a
esta singular passagem da Carta aos Colossenses (CL 3,12-17):
3,12Revesti-vos (endýsasthe: imper. aor. de endýô), portanto, como eleitos de Deus (ekletoì toû Theôu),
santos e amados (êgapêménoi: part. perf. pass. de agapáô), de entranhas de misericórdia (splágchna
oiktirmoû), bondade, humildade, mansidão e magnanimidade, 13levantando-vos (anechómenoi: part. de
anéchomai) uns aos outros e Fazendo-vos Graça (charizómenoi: part. de charízomai) uns aos outros se
alguém tiver razões de queixa contra outro. Como o Senhor vos Fez Graça (echarísato: aor. de charízomai),
assim fazei também vós.
14Sobre tudo isto (epì pâsin dè toútois) o Amor (agápê), que é o vínculo (sýndesmos) da perfeição. 15E a
paz de Cristo (eirênê toû Christoû) reine nos vossos corações, à qual também fostes chamados (eklêthête:
aor. pass. de kaléô) em um só corpo; e sede agradecidos (eucháristoi gínesthe). (CL 3,12-15)
Como se vê, é de vestidos ou de hábitos que se trata.E têm nomes: misericórdia,
bondade, humildade, mansidão, magnanimidade. E, portanto, não são as roupas ou os
hábitos que usamos habitualmente. É uma bela metáfora para expressar a nossa nova
e bela vida cristã recebida no Batismo. Aí, deitamos fora os nossos hábitos velhos, a
nossa vida velha, e vestimos todos os dias (note-se o aoristo em CL 3,12) hábitos
novos, uma vida nova, claramente perpassada pela bondade e mansidão. Paulo refere
ainda, e bem, explorando a metáfora dos hábitos novos, vida nova, que«sobre tudo
isto está o Amor, que é o vínculo da perfeição». «Sobre tudo isto» ou «acima de tudo
isto», dado que a locução grega epì pâsin dè toútois permite as duas tradu-ções.22
«Acima de tudo isto» põe em relevo a superioridade e a suma importância do Amor
na vida pessoal e da comunidade cristã. «Sobre tudo isto» tem a vantagem de
continuar e acentuar a metáfora das vestes ou hábitos que já vem de trás. Neste
segundo sentido, o Amor aparece como a coroa do vestuário cristão, logo explicitado

20
no sýndesmos, que significa «ligação», «laço», «conjunção», mas também significa
«cinto», «cordão», «cíngulo»23. O Amor apareceria assim, não só como o vestido ou
hábito mais importante da vida cristã, mas também como o «cinto» ou «cíngulo» que,
colocado sobre as demais peças do ves-tuário ou hábitos, lhes dá consistência,
unidade e harmonia, que o mesmo é dizer, que dá consistência, unidade e harmonia à
maneira cristã de viver.

21
6. Francisco Xavier, testemunha de outra
alegria e de outra confiança
São Francisco Xavier, proclamado Padroeiro Universal das Missões (Pio X) e
apontado como «Apóstolo mundial dos tempos modernos» (João Paulo II), de quem
celebrámos ainda não há muito os quinhentos anos do seu nascimento (07.04.1506 –
07.04.2006), postou-se, na esteirade Paulo, no humilde e fiel seguimento de Cristo,
vivendo de Cristo (FL 1,21), impelido pelo AMOR de Cristo (2COR 5,14) e pelo Sim
de Cristo – que «não foi Sim e não, mas unicamente Sim» (2COR 1,19) –, testemunha
da Alegria nova de Cristo (LC 10,21; 1PD 1,8) e cooperador dessa Alegria (2COR
1,24). Viveu apenas 46 anos sobre esta terra (07.04.1506 – 03.12.1552), 46 anos
plenos de Cristo, de Amor e de Alegria. Partiu de Lisboa em 7 de abrilde 1541, dia
em que completava 35 anos, para uma viagemde 20 000 km, rumo a Goa, onde
desembarcou mais de um ano depois, em 6 de maio de 1542, após paragem de quase
meio ano (setembro de 1541 até fevereiro de 1542) na ilha de Moçambique para o
restabelecimento dos doentes, enquanto se esperava por ventos favoráveis à
navegação. Desde essa data até à sua morte, ocorrida na ilha de Sanchoão, às portas
da China, na madrugada do dia 3 de dezembro de 1552, vão 10 anos e quase 7 meses
de uma desmedida dedicação aos outros, sobretudo aos pobres e doentes,
testemunhando com a sua vida humilde e dedicada a Bondade, a Paz e a Alegria do
Evangelho. O Cristo «de la Sonrisa», que muitas vezes contemplou Xavier e que
muitas vezes Xavier contemplou, gravou-se no coração e nos lábios de Xavier, tomou
conta dele, conformou-se nele, transvazou dele. São, na verdade, muitas as
testemunhas que descrevem Xavier «com a boca sempre cheia de riso e da graça de
Deus»24, luminosa cumplicidade entre Xavier e aquele Cristo «de la Sonrisa».
«El Cristo de la Sonrisa», Castillo de Javier-Navarra.
O Cristo que contemplou Xavier e que Xavier contemplou.
É também de salientar a sua ilimitada confiança em Deus, como transparece de uma
sua carta, datada de 5 de novembro de 1549, escrita de Kagoshima, no Japão, e
dirigida aos seus companheiros de Goa:
Sei de uma pessoa a quem Deus concedeu muitas graças, que se ocupava muitas vezes, tanto nos perigos
como fora deles, em pôr toda a sua Esperança e Confiança n’Ele, e o proveito que daí lhe adveio levaria
muito tempo a descrever.
Aquele «Sei de uma pessoa» lembra Paulo (2COR 12,2). Pôr toda a sua confiança
em Deus é firmar-se em Deus, viver de Deus e desde Deus. A tanto nos desafia
também a nós, hoje, este missionário intenso e dedicado. E aquele Sorriso nos lábios
do Crucificado e de Xavier é outro impressionante desafio para nós. Sem esta
cumplicidade com Cristo, sem esta Confiança e Alegria, que Evangelho podemos nós
viver e testemunhar?
Obrigado, amigo Francisco. Celebrarei gozosamente a tua Festa, a que me associo
com particular alegria desde 3 de dezembro de 1980.

22
VEJO UM RAMO DE AMENDOEIRA

23
1. Com uma flor de amendoeira nos olhos
Na belíssima e finíssima, imensa cena da vocação de Jeremias, tecida em forma
dialogal – que é a maneira de ser da inteira Escritura, logo aí um desafio para nós –,
Deus confia a Jeremias uma missão difícil:
Eis que ponho as minhas palavras na tua boca. Vê! Eis que te constituo hoje,/ sobre
as nações e sobre os reinos,/ para arrancar e para destruir,/ para exterminar e para
demolir,/para construir e para plantar.» (JR 1,9-10)
Os verbos falam por si. Quatro verbos negativos, os primeiros. Apenas dois verbos
positivos, os últimos.À primeira vista, a missão de Jeremias apresenta-se ingrata,
espinhosa, arrasadora, quase catastrófica. Primeiro destruir, e muito; só depois
construir, um bocadinho.
É verdade que o grande profeta vai atravessar a época mais negra da história do seu
país. Assiste, em 609 a. C., à morte inesperada e trágica de Josias, rei justo e bom, em
quem estavam depositadas tantas esperanças (JR 22,15-16)! Assiste, entre 609 e 597
a. C., à ação prepotente e insolente do tirano Joaquim, que esbulha o povo de Judá (JR
22,13 e 17) e desrespeita a Palavra de Deus, queimando cinicamente na braseira em
que se aquecia o rolo ditado por Jeremias, escrito por Baruc e lido por Judi (JR 36,23).
Assiste ainda às duas entradas devastadoras do babilónico Nabucodonosor em
Jerusalém, em 597 a. C. e 587 a. C. A segunda, em 587 a. C., é para pôr fim à nação
de Judá, arrasar a sua capital, Jerusalém, incendiar o Templo, levar o rei Sedecias e
muitos nobres e artesãos para o Exílio na Babilónia. Era o fim de um país e o fim de
uma religião: ainda era credível e rentável o culto a um Deus que tinha aparentemente
abandonado o justo e os seus fiéis, e deixado destruir o seu próprio Templo, a sua
Casa? Era o fim de um mundo25 o que se avistava agora de Jerusalém! Para cúmulo,
aproveitando as debilidades de Judá, os Edomitas atacaram pelo sul, apoderando-se
de muitas terras de Judá, deixando o seu território reduzido a 20 000 pobres e a uma
faixa de terra de 50 km na sua extensão norte-sul: desde Betel até Bet-Sur, um pouco
a norte do Hebron, cidade que vai ficar fora do território de Judá durante quatro
séculos, até 163 a. C.
Nestas condições desgraçadas, não admira que, desde 609 a. C., Jeremias destile
também tristeza, dor, queixumes e amarguras, confessando-se claramente um homem
de coração dorido (JR 4,19; 8,18). O que admira, e é nisso que o devemos seguir, é
que ele não fique com os olhos e a alma toldados e atolados na lama e no lodo (JR
38), na miséria, na ruína e na morte, num mundo sem Deus, mas tenha aprendido a
ver o mundo, Deus e a religião de outramaneira. Sem álibis./ Quero dizer:/ já não vale
invocar razões como:/ «Ofereci sacrifícios,/ rezei no teu templo» (cf. IS 29,13)/ ou
«comemos e bebemos contigo,/ Tu ensinasteem nossas praças!» (LC 13,26) Nasce
outra justiça,/ um amor maior desponta. Sim, o justo pode morrer injustamente sem
que Deus o abandone!26 Jeremias descobre, no meio da dor da sua vida, aquilo que
Judá vai descobrir no Exílio, o verdadeiro rosto de Deus, irresistível e apaixonado

24
companheiro (JR 20,7 e 11-13), e confessa, vencido e comovido: «Sempre que
aparecem as tuas palavras,/ eu devoro-as./ A tua palavra é,/ para mim,/ exultação/ e a
alegria do meu coração.» (JR 15,16) E com mais afinco ainda: «Tu me seduziste,
Senhor,/ e eu deixei-me seduzir;/ Tu foste mais forte.» (JR 20,7) E continua: «A tua
Palavra ardia no meu coração como um fogo devorador,/ encerrado dentro dos meus
ossos.» (JR 20,9) Já Moisés tinha descoberto aquela chama viva, que ardia e não
queimava,/ mas chamava (EX 3,2-4). Elias encontrou essa Palavra nova na «voz de
um fino silêncio» (1RS 19,12), escrita fina de Deus,/ com ponta de diamante,/no
coração do homem (JR 17, 1; 31,33). E o autor da Carta aos Hebreus compara esse
«fino dizer» ou «escrever» a uma espada de dois gumes, que rasga o âmago do
homem e lhe deixa soltas as pregas do coração (HB 4,12).
Como se pode combater este incêndio,
apagar esta chama que chama,
calar a voz deste fino silêncio,
fugir deste bisturi que levamos cá dentro?
Jeremias tem outra vez razão:
é mais fácil enfrentar um furacão (JR 23,18-20).
Esse sabemos de onde vem e para onde vai!27
De facto, depois de lhe ter confiado aquela missão, aparentemente desgraçada,
assente naqueles primeiros quatro verbos negativos (só os dois últimos são positivos),
Deus ousa perguntar a Jeremias: «O que vês, Jeremias?» Ao que Jeremias responde:
«Vejo um ramo de amendoeira!» (JR 1,11) E Deus manifesta a Sua aprovação a este
modo de ver de Jeremias, dizendo: «Viste bem, Jeremias, viste bem!»(JR 1,12)
«Bem» diz-se em hebraico tôb. Mas tôb significa também «belo» e «bom». Jeremias
vê, portanto, «bem», «belo» e «bom»!
A amendoeira é uma das poucas árvores que floresce em pleno inverno. Ao
responder: «Vejo um ramo de amendoeira», Jeremias já ergueu os olhos da invernia e
da tempestade e do lodo e da lama e da catástrofe e da morte que tinha pela frente, e
já os fixou lá longe, ou aqui tão perto, na frágil-forte-vigilante flor da esperança que a
amendoeira representa. É de presumir que, se Jeremias tivesse respondido: «Vejo a
tempestade, a ruína, a morte, a crise», que era o que tinha mesmo diante dos olhos,
em vez de «Viste bem, Jeremias, viste bem!», Deus tê-lo-ia reprovado, dizendo:
«Viste mal, Jeremias, viste mal!»
Senhor, afina o meu olhar pela flor que Tu quiseres.
Faz-me ver sempre bem, belo e bom.
Faz-me ver com o olhar com que me vês,
e com que olhas a tua criação.
Contemplação.

25
2. Com uma vara de amendoeira na mão
Numa página sublime do Livro dos Números (NM 17,17-26), Deus ordena a Moisés
que recolha as varas de comando dos chefes das doze tribos de Israel, para, de entre
eles, escolher um que exerça o sacerdócio em Israel. Em cada vara foi escrito o nome
da respetiva tribo. Por ordem de Deus, o nome de Levi foi substituído pelo de Aarão.
As doze varas foram colocadas, ao entardecer, na presença de Deus, na Tenda do
Encontro. Na manhã seguinte, todos puderam contemplar que da vara de Aarão
tinham desabrochado folhas verdes, flores em botão, flores abertas e frutos maduros
(NM 17,23).28 Dos frutos é dito o nome: amêndoas! Vara de amendoeira em flor e
fruto, que, por ordem de Deus, ficará para sempre na sua presença, diante do
Propiciatório (cf. HB 9,4), entre Deus e o povo, para impedir que o pecado do povo
chegue a Deus, e para facilitar que o perdão de Deus chegue ao povo. Já ninguém
estranhará agora que o candelabro (menôrah) que, noite e dia,/ ardia/ na presença de
Deus, estivesse ornamentado com flores de amendoeira(EX 25, 31-35; 37,20-22). E
também já ninguém estranhará que a tradição judaica tardia refira que a vara do
Messias havia de ser de amendoeira.
Aí estão as coordenadas exatas do lugar do sacerdote e do bispo: entre Deus e o
povo. Mais concretamente: pertinho de Deus, mas de um Deus que faz carícias ao
Seu povo, um Deus que ama e que perdoa; pertinho do povo, o suficiente para lhe
entregar esta carícia de Deus.

26
3. Com Deus no coração
«Tu me seduziste, Senhor,/ e eu deixei-me seduzir;/Tu foste mais forte.» (JR 20,7)
«O Senhor é um guerreiro», diz o cântico de Moisés (EX 15,3). Jeremias também o é.
Tem de o ser. Que outro modo há de lidar com Deus,/ ou com o amor? Não é o amor
«terrível como um exército em ordem de batalha»? (CT 6,4) Que o digam também
Moisés, Paulo de Tarso, Agostinho de Tagaste, Francisco de Xavier. Todos travam
lutas intensas com Deus. Todos saem derrotados, mas não frustrados; antes
apaziguados e tranquilos. Eu também. Confesso que já perdi várias lutas com Deus.
Luto com Ele e tenho perdido sempre, e ainda bem. Já são muitos a zero. Ando nisto
desde os dez anos. O que se passou hoje, aqui, é mais uma vitória d’Ele.Assumo
publicamente a derrota. Mas compreendo cada vez melhor que a verdadeira vocação
do homem é lutar com Deus mil vezes por amor, e mil vezes sair derrotado por amor.
Faz, Senhor, que eu diga sempre Sim:
Contigo não me importo de perder até ao fim.
Bem se vê que é de amor que falo,
ou calo.
Importa ouvir sempre a voz do galo,
e não perder o rumor dos teus passos no jardim,
ou já dentro de mim,
suave Senhor de la Sonrisa,
fina brisa à flor dos lábios,
alento,
encanto.
Atento,
que pode a semente germinar antes do tempo,
e a espiga amadurar antes do campo!
O tempo que me dás é todo ceifa.
Quatro meses para Ti, que coisa são?
Apenas o tempo de erguer e poisar os olhos neste chão.
Assim nos fazes passar do inverno para o verão,
e nos deixas no tempo da missão.

27
4. Uma Igreja com rosto… missionário
Na homilia/ da Eucaristia/ que abria/ o seu ministério petrino, domingo, 24 de abril
de 2005, o Papa Bento XVIdizia-se e dizia à Igreja assim: «Nós existimos para
mostrar Deus aos homens.» Se é para mostrar, então é preciso um corpo (cf. HB
10,5),/ um rosto,/ mãos,/ pés,/ olhos,/ coração/. Comunicação. Em dois notáveis e
oportunos documentos, significativamente intitulados Comunicar o Evangelho num
mundo em mudança (CEMM), de 29 de junho de 2001, e O rosto missionário das
paróquias num mundo em mudança (RMP), de 30 de maio de 2004, a Conferência
Episcopal Italiana afirma que «a tarefa fundamental da Igreja hoje é comunicar o
Evangelho neste mundo em mudança» (CEMM, n.os 32 e 44; RMP, n.º 1), e que
«também hoje é possível, belo, bom e justo viver a existência humana de acordo com
o Evangelho» (RMP, n.º 1; cf. CEMM, n.º 57). E continua assim: «É necessário e
urgente descobrir o primeiro anúncio do Evangelho como dimensão fundamental, e
não apenas residual ou excedentária ou ulterior, da Igreja e da paróquia.A missão não
pode aparecer apenas como o último pontode qualquer programa pastoral mais ou
menos bem elaborado, mas tem de ser o horizonte permanente e o paradigma por
excelência de todo o programa pastoral.» (CEMM, n.º 32; RMP, n.º 6) A missão não
está apenas no final; está no princípio e desde o princípio (CEMM,n.º 3). A missão
não é um acrescento, um luxo, um adorno,/ cereja no cimo do bolo/ de uma
identidade cristã já considerada completa sem a missão. Tudo antes disso: «A missão
é a graça e a vocação própria da Igreja, de toda a Igreja, a sua identidade mais
profunda. A Igreja existe para evangelizar», diz bem e fundo, e de forma
contundente, o n.º 14 da Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, de Paulo VI, de 8
de dezembro de 1975. E a Conferência Episcopal Italiana, numa recente nota
pastoral, deixou escrito com eloquente beleza e precisão: «A Evangelização é o
fundamento de tudo e deve ter o primado sobre tudo; nada a pode substituir e
nenhuma outra tarefa se pode antepor-lhe.»29
Dá-nos, Senhor,
um coração sensível e fraterno,
capaz de escutar
e de recomeçar.
Mantém-nos reunidos, Senhor,
à volta do pão e da palavra.
Ajuda-nos a discernir
os rumos a seguir
nos caminhos sinuosos deste tempo,
por Ti semeado e por Ti redimido.
Ensina-nos a tornar a Tua Igreja toda missionária,
e a fazer de cada paróquia,
que é a Igreja a residir

28
no meio das casas dos Teus filhos e das Tuas filhas,
uma Casa grande, aberta e feliz,
átrio de fraternidade,
de onde se possa sempre ver o céu,
e o céu nos possa sempre ver a nós.
23 de setembro de 2007

29
DAQUI, DESTA PLANURA: LEITURADO TEMPO
EM QUE VAMOS

30
1. A Sabedoria do Amor e do Sentido
A teologia é Sabedoria. Sabedoria do Amor e não amor da sabedoria. A teologia é a
Sabedoria de um Amor «crucificado», e só faz boa teologia «aquele que sabe que
Outro morreu por ele», para usar a expressão forte do filósofo e teólogo dinamarquês
Soren Kierkegaard (1813-1865), e fazer memória dos mais firmes fundamentos
paulinos de um amor condescendente e oblativo que nos preside e nos precede: «O
Filho de Deus, que me amou e Se entregou a Si mesmo por mim» (GL 2,20); «o
Senhor Nosso Jesus Cristo, que morreu por nós» (1TS 5,9-10). Assim, porque
transporta consigo esta intensa e dorida história de Amor, o teólogo fala calando e
cala falando, rezando, amando, escutando, sempre em bicos de pés, no limiar do
silêncio, sempre à escuta daPalavra criadora de Deus, som que nunca se ouviu,
silêncio que nunca se calou (Paul Beauchamp, 1924-2001). A palavra está em estreita
relação com o silêncio. Tudo se passa como se houvesse duas palavras: a que faz
barulho e a outra. A audição de uma palavra é um trabalho do espírito durante o qual
nasce uma palavra interior que é obra do silêncio. Da palavra que faz barulho,
ouvimos apenas o barulho; da que não faz barulho, ouvimos apenas o sentido.
Premurosa teia de sentido por debaixo da rumorosa espuma das palavras. O Verbo de
Deus não anda na crista da onda de sons e de sílabas, sintaxe e fonética. O Verbo de
Deus não faz vibrar o ar. É sem som e sem sombra. Não sendo nem a letra nem o
som, Ele é o sentido dessa letra e desse som (Paul Beauchamp).E, de modo diferente
da letra e do som, o sentido, que se recebe depois de um longo, lento e paciente
trabalho de interpretação, ou de rajada, como uma iluminação, o sentido – dizia – não
faz barulho. O sentido nunca fez barulho, nunca faz barulho. É um rumo, um rasto,
um rosto, um «e-vento» que se alevanta (qûm) e faz surgir um lugar santo (maqôm),
alto, um modo santo, imperativo e assimétrico, plenitude a incidir na planitude
inabitada e inóspita da tábua rasa da mesa do escritório ou do conclave ou do deserto:
«Por mais planos que façais,/ eles serão frustrados.» (IS 8,10) «Eis que vou fazer um
coisa nova;/ ela já desponta:/ não vos apercebeis?/ Abrirei um caminho no deserto,/ e
rios em lugares ermos.»(IS 43,19) Deserto era o caminho entre Jerusalém e Gaza, por
onde descia o etíope ilustre (AT 8,26), lendo Isaías,e em quem já despontava uma
coisa nova: «Entendes o que lês?», pergunta-lhe Filipe (AT 8,30). Pergunta-lhe e
explica-lhe, e nasce o sentido e a água (AT 8,36-37).Aí está a água e o sentido. Não,
não são uma miragem. Mas é preciso sempre a geração nova de Isaac para
desentulhar os poços que Abraão cavou, e que o gigante filisteu encheu de entulho e
pedregulho (GN 26,18-22). Está lá a água. Está lá o céu. Está cá a água. Está cá o céu.
É preciso arredar o véu deste barulho para que nesta água pura se volte a espelhar
aquele céu que há tanto tempo te procura. «O ilimitado não se alcança através da
planificação […]. As coisas supremas não são planificáveis. Já estão prontas para
receber.» (Franz Rosenzweig) «Se se enchessem os mares de tinta,/ se se
transformassem em pena todos os fios de erva,/ se o mundo inteiro fosse um
pergaminho/e cada homem um escriba de profissão,/ para descrever o amor de Deus e

31
a sua sabedoria,/ não bastaria a tinta do oceano/ nem o podia conter o pergaminho,/
mesmo que se estendesse de céu a céu.» (Hino judaico do século XI)

32
2. A metáfora da Luz ou a modernidade
A metáfora da Luz – iluminismo – enche a modernidade. A luz da modernidade é a
razão que quer iluminar todas as coisas, querendo assim compreender, com o que há
de «prender» no compreender (Emmanuel Levinas, 1906-1995), toda a realidade.
Esta luz da razão produz identificação (redução do outro à esfera do «eu») e
emancipação. Diz Karl Marx (1818-1883), em A Questão Judaica: «A emancipação é
a recondução do mundo e de todas as coisas ao homem, para fazer do homem, não
mais o objeto, mas o sujeito da sua própria história, do seu próprio destino.» A
essênciada modernidade, como a tematizou Kant (1724-1804) na sua «Resposta à
pergunta: “O que é o iluminismo?”», está no «Ousa saber» (sapere aude, de
horaciana memória), que implica a coragem de sair do «estado de menoridade»,
cortando todas as ligações com o que é exterior ao «eu» (mito, tradição, religião), e
afirmando a razão humana como independente de qualquer vínculo exterior. É
também a lição do soció-logo polaco Zygmunt Bauman, que afirma em a
Modernidade líquida: «A situação atual nasce da radical obra de demolição de todos
os impedimentos e obstáculos de um modo ou de outro suspeitos de limitar a
liberdade individual de escolher e agir.» A essência da modernidade é, portanto, a
instituição da autonomia como única chave de leitura do humano, a que acresce a
afirmação de que qualquer forma de heteronomia é alienação. É assim que o homem
se faz senhor, e não pastor (o pastor é frágil) (Martin Heidegger), e, como senhor,
pode dizer: «Eu, eu, e mais ninguém» (SF 2,15), ou «Eu, eu, e fora de mim não há
ninguém» (IS 47,7 e 9), ou ainda «Eu fiz-me a mim mesmo» (EZ 29,3), e também
«Sou rico, enriqueci, e não preciso de nada» (AP 3,17), e mais recentemente «Eu
penso, logo existo» (Cogito, ergo sum) (Descartes). Como se vê, este homem que se
arvora em senhor absoluto, liquida de um só golpe a ideia de criação (Deus) e a ideia
de geração (mãe), pondo Deus de lado e esquecendo a sua mãe, e pensando que se
põe sozinho no ser pelo seu próprio pensamento, mais ou menos homossexual
(Adriana Cavarero). Este triunfo da autonomia sobre a heteronomia, da identidade
sobre a alteridade, com o normal corolário da desmedida «identificação», redução de
tudo ao «eu» e ao «mesmo», hipertrofia do «eu», produz a solidão, que sou «eu»
sozinho no meio de objetos, depois de reduzir também os outros a objetos (GN 2,18)
(Abraham Joshua Heschel, 1907-1972), e faz aparecer, pela primeira vez na história
da humanidade, o ateísmo, e torna-se fonte de totalitarismos e violências inauditas. É
o tempo da razão forte, do discurso lógico e ideológico, do logocentrismo, do sermão
inflamado, do compêndio único. Em A Gaia Ciência, aforismo 125, Nietzsche
descreve plasticamente esta realidade, quando faz sair para a praça da cidade, em
plena luz do dia, um homem louco, que leva na mão uma lanterna acesa, enquanto
grita pela cidade: «Deus morreu; nós matámo-lo!» Foi assim que nos tornámos os
senhores do mundo. Mas começa, entretanto, a cair a noite e a fazer frio. Não é o
assassinato de Deus que apoquenta Nietzsche. Apoquenta-o a orfandade em que, com
esse ato desmedido e de tresloucada audácia, caiu a humanidade.A frouxa luz da

33
lanterna que exibe e com que em plena luz do dia pretende iluminar o mundo
representa ironicamente a luz da razão, da nossa pequena razão, que quer sempre
dominar o mundo, retê-lo na pequena concha da sua mão fechada.

34
3. A metáfora da Noiteou a pós-modernidade
A metáfora da Noite traduz a pós-modernidade, tempo em que a razão forte da
modernidade se descobre como razão frágil e fragmentada, incerta e inquieta, ao
sabor do slogan rápido e afetado. A democracia cede terreno à mediocracia. O
sucesso não tem a ver com a razão e o discurso bem elaborado, mas com o dizer mais
afetado, mais alto e mais rápido dos fast thinkers, vendedores do fast food cultural no
ecrã da televisão, que se tornou o espelho de Narciso dos intelectua-listas (Pierre
Bourdieu, 1930-2002). A noite é um tempode naufrágio. Partindo de uma cena do De
Rerum Natura, de Lucrécio, escritor latino do século I a. C., que narra os sentimentos
de dor e de angústia, mas ao mesmo tempo de tranquilizante conforto, de um
observador que, na praia, com os pés em terra firme, assiste a um navio que se
afunda, lá longe, no mar, o filósofo alemão Hans Blumenberg (1920-1996) define a
modernidade como «naufrágio com espectador». Neste sentido, o homem moderno
ainda pensava que tinha um pedaço de terra firme debaixo dos pés: a sua razão.Ao
contrário, o homem pós-moderno perdeu já esse naco de terra e de razão e está dentro
do navio que se afunda, sendo ao mesmo tempo náufrago e espectador. A única coisa
que lhe resta é tentar construir, com os restos do navio desconstruído, um jangada que
lhe permita sobreviver por algum tempo. A pós-modernidade, como a noite, é um
tempo sem horizontes, em que cada um se fecha na concha da sua própria solidão, no
seu pequeno grupo de amigos, «individualmente juntos» (Zygmunt Bauman) no seu
mundo fechado, à volta de umas quantas latas de cerveja, de pequenos rituais
herméticos e esotéricos e correspondente vocabulário, à mistura com uns kicks
emocionais, para logo resvalar outra vez cada um para o seu naco insensato de
solidão, escuridão e indiferença.Os versos de Salvatore Quasimodo traduzem bem
esta noturna solidão: «Cada um está sozinho no coração da terra/ atravessado por um
raio de sol:/ e é logo noite.»A questão já nem sequer é a falta de sentido. A questão é
a ausência de perguntas pelo sentido. Estamos na «noite do mundo» (Weltnacht), diz
Martin Heidegger, no tempo do exílio. E diz uma velha história rabínica que «os
jovens perguntaram ao velho rabino quando começou o exílio de Israel. Ao que o
arguto rabino terá respondido que o exílio de Israel começou no dia em que Israel
deixou de sofrer pelo facto de estar no exílio.» Compreenda-se, portanto, que o exílio
verdadeiro não consiste simplesmente em estar longe de casa ou da pátria, mas
sobretudo em tornar-se indiferente e insensível, sem causas, sem sonhos e sem
esperas. E um homem sem sonhos e sem esperas, sem utopias, lembra-nos o
sociólogo de origem judaica Karl Mannheim (1893-1947), «não é mais do que uma
coisa». Os límpidos versos do poeta espanhol Antonio Machado (1875-1939) dizem a
mesma coisa de outra maneira: «En el corazón tenía/ la espina de una pasión;/ logré
arrancármela un dia:/ ya no siento el corazón.» [«No meu coração havia/ o espinho
de uma paixão;/ consegui arrancá-lo um dia:/ já não sinto o coração.»] A noite da
pós-modernidade deixa-nos na indiferença e na insensibilidade, sem amor nem dor
nem alegria, sem grandes sonhos, sem grandes causas, sem perguntas e sem esperas,

35
perdidos no meio de fragmentos, agarrados ao nosso bocado de tempo esfacelado,
sem passado nem futuro, nem presente, bocado de tempo atomizado, a que se chama
momento, em que toda a relação é «relação de bolso» (Catherine Jarvie), tábua solta e
à deriva, sem salvação, momento que apenas se pode prolongar o mais possível e
fruir enquanto é tempo (Gianni Vattimo), de acordo com o horaciano carpe diem,
documentado também em SB 2,6-9, IS 22,13 e 1COR 15,32.

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4. A metáfora da Aurora ou a Luz que vem de fora
Depois da luz e da noite, já se vislumbra no horizonte a metáfora da Aurora, luz que
vem de fora. O canto de um galo rasga a noite, e Pedro sai para fora. E chora(MT
26,74-75). O mais querigmático dos animais anuncia a Pedro que está a nascer o dia.
O dia mesmo. O dia sem noite e sem série (ZC 14,7; AP 21,23). É o que assinala o
galo presente nos sarcófagos dos primeiros cristãos, donde passa para os campanários
das Igrejas. O galo não se rege pelas horas do relógio, nem o seu canto pelas notas
musicais. São partituras de sentido que trauteia, música nova, que vem de fora, e não
entra pelo ouvido. Rombo na totalidade. Evento-Advento (Ereignis). O tudo, pelo
simples facto de ser tudo, tem necessariamente de ser limitado, limitado com limite,
mas sem limiar, porque o tudo, se é tudo, como é que pode ter ainda janelas para
outra coisa?! A aurora é luz que vem de fora, rebenta o limite com a graça de um
novo limiar. Claro convite a trans-gredir, de trans-gredior, dar um passo para além
de. Transformar o limite num novo limiar. De limite em limiar. De limiar em limiar.
Evento-Advento para um novo Êxodo. A nova ordem é sair para fora de si mesmo,
pois é de fora de ti que vem o sentido da vida. O rosto do Outro, nu, incontrolável e
inviolável, é a ordem nova e o sentido novo até agora insuspeitado (Emmanuel
Levinas). Deus deixa-se encontrar por aqueles que não o procuram,/manifesta-se
àqueles que não se dirigem a Ele (IS 65,1; cf. RM 10,20). Deus vem, portanto.
Evento-Advento, Êxodo, escuta, encontro, espanto. Encanto. «De outro modo que
ser» (Autrement qu’être), formula Emmanuel Levinas. Cogitor, ergo sum: com um
simples r, Karl Barth (1886-1968) subverte Descartes (1596-1650). Amor, ergo sum.
«Sou pensado, logo existo». «Sou amado, logo existo». Eu não sou incestuosa e
tautologicamente filho de mim mesmo, como sugeria o cogito cartesiano. Descartes
esqueceu a sua mãe. Um Amor me precede. Outras mãos abertas me acolhem. Outras
mãos se estendem para mim. Sair de mim. Do meu mundo, dos meus projetos, dos
meus domínios e afazeres, do meu «eu» patronal, do meu esforço para permanecer no
ser, o espinoziano conatus essendi. «Sair (yatsa’) é o verbo emblemático do Êxodo.
Exprime uma saída sem retorno, que reclama a saída do bebé do ventre materno.»
(Ubaldo Terrinoni) Saída para uma radical confiança no outro que me precede e me
acolhe. «A primeira experiência da pessoa é a experiência da 2.ª pessoa: o tu, e,
portanto, o nós, vem antes do eu.» (Emmanuel Mounier, 1905-1950) Pensar depois
do Evento-Advento e do Êxodo significa, na verdade, «ser pensado», «ser amado»,
«ser chamado», «ser dito». «Ser dito» por Deus, bela, funda e fecunda expressão de
Romano Guardini (1885-1968).

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5. Um percurso paradigmático
Recordamos aqui o caso sério de Martin Heidegger(1889-1976). Começou como
estudante de teologia. A teo-logia é, no seu dizer, a disciplina da escuta humilde do
silêncio de Deus. Decorridos dois anos, passou-se para a filosofia, que é a disciplina
da interrogação radical («Porque há o ser e não o nada?»), da compreensão e do
domínio da realidade. Fruto desta sua postura é o Ser e o Tempo (Sein und Zeit), obra
aparecida em 1927, que tem a sua tradução prática na sua adesão, em 1933, ao
nacional-socialismo, como ideologia de domínio da realidade pela violência.O mundo
esperou pela segunda parte desta obra, que nunca chegou a aparecer. Na verdade,
Heidegger, reconhecendo a tragédia do projeto nacional-socialista, que quanto mais
tentava subjugar e dominar o mundo, mais o via escorregar-lhe das mãos, reconheceu
também o fracasso da sua filosofia, ao verificar que, se era possível dizer o ser das
coisas (Dasein), já não era possível dizer o Ser (Sein) que está por detrás das coisas,
pois não é possível dizer o Ser com as palavras da nossa linguagem, sempre
demasiado frágeis e pequenas, capazes de dizer o fragmento, mas incapazes de dizer
o abismo que sustenta e em que navega o fragmento. Por outras palavras: como dizer
o «de outro modo que ser» (Autrement qu’être) com a linguagem do ser? Surge então,
nos anos 1936-1938, em que escreve Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis)
[Contributos para a Filosofia (do Evento)]– obra só postumamente publicada, em
1989 –, a chamada «reviravolta» (Kehre) heideggeriana, em que Heideggerse
apercebe que pensar não consiste no orgulhoso exercí-cio de interrogar, compreender,
«prender» e dominar o ser, mas na atitude humilde de escutar o Ser – passagem da
interrogação para a escuta –, sendo que «escutar é deixar-se dizer», e falar não é
dominar, mas simplesmente re-dizer o Dizer que escutámos. Imensa mudança de
perspetiva e atitude. Da luz da nossa pequena razão, que em nós mora,que tudo
pretende dominar para aprisionar, à luz da aurora, que vem de fora, para nos libertar.

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6. «Na tua luz veremos a luz»
É o dizer luminoso do SL 36,10, e veio fundamental do pensamento de Antonio
Rosmini (1707-1855), beatificado em 2007. E Paulo de Tarso pode ser o ícone do
homem novo nascido dessa torrente de luz que nos cega e nos acende os olhos (AT
9,1-18; 22,6-16; 26,12-23). Um vasto mar de amor me precede, me envolve, me
revolve e me devolve a mim. Eu dado a mim, pedra-base do pensamento do filósofo
francês Claude Bruaire (1937-1986). O homem bíblico tem de viver de mãos abertas
(kaph). Só assim se recebe das mãos de Deus para ele estendidas (IS 65,2), das palmas
das mãos de Deus em que está carinhosamente tatuado (IS 49,16).É de mãos abertas
que Deus governa o mundo (ECLO 18,3). O Talmude, que é a sabedoria hebraica
condensada em cinco milhões de palavras, refere exemplarmente que o punho cerrado
representa a sabedoria do imbecil, que pensa que detém o mundo nas malhas da sua
rede.E refere depois que, quando a mão inicia o movimento de se abrir, é como as
pétalas de uma flor que se abre à vida.E acrescenta: é assim que floresce a
inteligência. E, quando a mão se abre completamente, é a mão do sábio, que não
retém nada, mas conhece o valor do encontro e do dom.E, cruzando agora as duas
mãos abertas, ficamos com a imagem do «pássaro, livre, que voa». Processo inverso
ao da filosofia, desde Zenão a Platão, Descartes, Fichte e Nietzsche, que apresentam o
conhecimento como a capturaou compreensão que o sujeito faz do objeto. A verdade
(a-lêtheia) é assim o desvelamento ou desocultação, violação ou violentação a que o
sujeito submete o objeto, para dele se apoderar, representando-o e reproduzindo-o na
mente, «adequação entre a coisa e a mente» (adequatio rei et intellectus), como
referem Aristóteles e Tomás de Aquino. O último Heidegger, a que já aludimos,
considera que esta conceção de verdade é a matriz da violência do Ocidente, e diz as
coisas de outra maneira: não é o sujeito que captura e desoculta o objeto, mas é o
objeto que sai do seu esconderijo e se oferece ao homem como dom, como evento
(Ereignis). Por isso, a função do sujeito já não é capturar e dominar com o que há de
«prender» no compreender, mas acolher com espanto, alegria, encanto e
reconhecimento, novo conhecimento tenro e terno, emocionado, agradecido. «Pensar
é agradecer» (Denken ist Danken), refere Heidegger.A Bíblia e a teologia estão
claramente do lado do último Heidegger. Mas vão muito mais longe, transgredindo-o,
pois não se trata de objetos que se entregam ao homem, mas de um Tu, o Tu de Deus,
que, por amor, vem até ao homem e a ele se entrega por amor, debruçando-se sobre
ele e abaixando-se até ao ponto de lhe lavar os pés e a alma (Von Balthasar,
1905-1988), de cuidar dele, de o alimentar, de lhe afagar o rosto, de o ensinar a andar:
«Fui Eu que ensinei a andar Efraim,/ que os ergui nos meus braços,/ mas não
conheceram que era Eu que cuidava deles!/ Com vínculos humanos Eu os atraía./
Com laços de amor,/ Eu era para eles como os que erguem uma criancinha de
peitocontra a sua face,/ e me debruçava sobre ela para a alimentar.» (OS 11,3-4) Aí
está, na límpida torrente das águas bíblicas, a pedra preciosa escolhida e recolhida e
na palma da mão acariciada: a verdade (’emet) como confiança (’emunah), sendo

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’emet e ’emunah dois derivados de ’aman, forma verbal que significa segurar, firmar,
confiar, fiar-se. Sem sair deste veio etimológico, é o mundo da mãe (’omen) e do
bebé (’amûn), da confiança radical, da aleitação, da embalação, da lalação, da palavra
antes das palavras, como cantavam há séculos os hasidîm na Europa Central: «Vá eu
para onde for, Tu;/ Onde eu parar, Tu:/ somente Tu,/ ainda Tu,/ sempre Tu./ Céu,
Tu;/terra, Tu./ Para onde eu me voltar,/ para onde olhar,/ Tu, Tu, Tu.» A verdade, não
tanto como uma característica da inteligência, mas como uma dimensão da existência
assente na confiança. Neste sentido, não vale perguntar mais ao jeito de Pilatos: «O
que é a verdade?» (JO 18,38), mas: «Quem é a verdade?» A primeira pergunta
desfaz-se em respostas.À segunda, só alguém como Jesus pode responder assim: «Eu
sou a verdade.» (JO 14,6)

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7. Pensar a partir do nascimento
Neste sentido, a filósofa de origem judaica Edith Stein (1891-1942), batizada em
1922, que vestiu o hábito carmelita em 1933 com o nome de Teresa Benedita da
Cruz, morta em Auschwitz-Birkenau em 1942, canonizada em 1998, discípula de
Edmund Husserl (1859-1938), tal como Heidegger, condivide com Heidegger a ideia
de que a consciência da própria morte marca a radical finitude do ser humano, mas
distancia-se de Heidegger ao referir que, excetuando alguns casos particulares, esta
consciência não leva à angústia. E explicita o seu pensamento desta maneira
fulgurante:
Perante a inegável realidade de a minha existência ser fugaz, prorrogada, por assim
dizer, de momento em momento e sempre exposta à possibilidade do nada, está
outra realidade, igualmente irrefutável, que me diz que, não obstante esta
fugacidade, eu sou, e que, momento após momento, sou conservado no ser e que,
neste ser fugaz, colho algo de duradouro. Sei que sou conservado, e, por isso, estou
tranquilo e seguro: não que esta segurança me advenha por virtude própria; antes, é
a doce, feliz segurança da criança segura por um braço forte, segurança que,
objetivamente considerada, não é menos da ordem da razão. Ou seria “da ordem da
razão” a criança que vivesse com um medo permanente de que a sua mãe a deixasse
cair? (EDITH STEIN, Ser finito e ser eterno. Para uma elevação ao sentido do ser,
obra póstuma publicada em 1950)
Entre a angústia da morte e a maravilha do nascimento. A filosofia tem-se postado
sempre do lado da morte, tentando em vão iludir o homem dizendo que consegue
retirá-lo dessa tragédia. Estratégia implacavelmente denunciada por Franz
Rosenzweig (1886-1929), no incipit da sua Estrela da Redenção:
Da morte, do temor da morte recebe início e se eleva todo o conhecimento acerca
do Todo. Rejeitar o medo que aperta o que é terreno, arrancar à morte o seu
aguilhão venenoso, retirar ao Hades o seu cheiro pestilento, eis o que a filosofia se
pensa capaz de fazer. Tudo o que é mortal vive neste medo da morte; cada novo
nascimento acrescenta um novo motivo de medo, porque aumenta o número do que
deve morrer.
A Bíblia não tem medo da morte, e exalta até à maravilha o mundo do nascimento
(SL 139,13-14). Os autores da Bíblia bem sabem dos processos naturais da gestação
no seio materno, bem como da alimentação dos pássaros e do crescimento dos lírios.
Mas recusam usar uma única vez o termo «natureza» ( phýsis), para pôr a descoberto,
dentro dos processos naturais, o «mais» do amor pessoal e singular do Tu criador,
condescendente e providente de Deus. Bebendo nas águas límpidas e inexploradas
deste sentido novo e inédito do amor de Deus e do homem, que transcende as leis da
natureza e da história, a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), também de origem
judaica, sugeriu que se começasse a pensar a condição humana a partir da maravilha
do nascimento, e não a partir da angústia da morte, segundo a qual, desde Homero
(século VIII a. C.), os homens são ditos «os mortais». Hannah Arendt sugere que

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comecem a ser chamados «os natais». E, na sua esteira, eu apenas sugiro que não
sejamos tão banais, e que partamos à procura desse «mais»!

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8. A metáfora da tartaruga ou a transgressão
A tartaruga acaba de deixar o seu esconderijo para um passeio noturno. O sapo vê-a
sair de casa àquela hora, e adverte-a: «A esta hora não é muito aconselhável sair,
tartaruga.» Mas a tartaruga continua, e, arriscando um passo mais longo, vê-se virada
de patas para o ar, sobre a sua própria couraça. O sapo exclama: «Eu bem te avisei,
tartaruga; é uma imprudência sair a esta hora; morrerás aí!» «Bem sei», respondeu a
tartaruga com um olhar entre a malícia e a delícia, «bem sei, mas é a primeira vez que
estou a ver o céu estrelado!» A tartaruga ensina que não nos podemos contentar em
viver mais ou menos tranquilamente com a cabeça enterrada na areia do céu ou da
terra. Deduzir o céu da terra, ou o Último do penúltimo, é apenas areia. Areia é trocar
o Último pelo penúltimo. O penúltimo é o mundo dos meios sem fins, «excesso de
meios, míngua de fins», como bem refere o médico e filósofo da medicina Edmund
Pellegrino, o mundo da «razão instrumental», locução cunhada pelo filósofo e
sociólogo alemão Max Horkheimer (1895-1973), para mostrar o que acontece quando
o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer e saber é dominar e
controlar tudo e todos, tornando-se a ciência um instrumento de domínio, poder e
exploração. É o mundo das pessoas como objetos, que se movem no tempo como os
objetos se movem no espaço. Um passo em frente. É imperioso e urgente pensar.
Trans-gredir. «Pensar chama-se trans-gredir» (Denken heisst überschreiten), palavras
gravadas na pedra tumular de Ernst Bloch (1885-1977). Sair de casa como a
tartaruga, extasiar-se e desviar-se do caminho como Moisés (EX 3,3-4). É o céu que
vem interromper curso e percurso.O Último interrompe o penúltimo, mundo
desencantado (Max Weber, 1864-1920), outra vez visitado, amado, encantado. Pensar
é trans-gredir, pensar é ser pensado, amado. A luta e o amor. «Tu és bela, minha
amada,/ terrível como um exército em ordem de batalha.» (CT 6,4) Para além dos
meios. O amor (agápê) verdadeiro é agónico. Implica luta (agôn), porque implica
decisões a todo o momento. Amar não é estar apaixonado. Estar apai-xonado não
significa necessariamente amar. Estar apaixo-nado é um estado; amar é um ato.
Sofre-se um estado; decide-se um ato. É, por isso, que o Deus da Escritura manda
amar. Se amar fosse simplesmente apaixonar-se, talmandamento seria um absurdo,
pois ninguém pode exigir a alguém que se apaixone (Denis de Rougemont
[1906-1985], Franz Rosenzweig, Armido Rizzi). Amar é uma sucessão de atos em
cadeia: uma guerra, portanto. Não é por acaso que agápê (amor) e agôn (luta) têm a
mesma etimologia. Paradoxo do amor: o amor faz-te feliz, matando-te! Quanto mais
amas, lutas, e te matas a amar, mais te encontras: «Quem quiser salvar a sua vida,
perdê-la-á; ao contrário, quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á.» (LC
9,24) Aí está o verdadeiro ícone do amor, Cristo, que não se salvou a si mesmo para
me salvar a mim, morrendo por amor de mim, trans-gredindo assim a morte. Ícone do
amor. Ícone também da trans-gressão, do advento e do êxodo: sai de Deus, sai de si,
sai para Deus.

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9. A partir da esperança
Paulo diz aos cristãos de Éfeso que, antes de terem sido encontrados por Cristo,
viviam «sem esperança e sem Deus no mundo (elpída mê échontes kaì átheoi en tô
kósmô)»(EF 2,12). Este marcador Paulino atravessa a EncíclicaSpe salvi, de Bento
XVI, de 30 de novembro de 2007. Vejam-se os números 2, 3, 23, 27 e 44. Sem Deus
no mundo, não há esperança. Pode haver apenas pequenas deduções, como quem
deduz o Céu da terra ou o Último do penúltimo, mecanismo há muito denunciado
pelos «mestres da suspeita» (Feuerbach, Marx, Nietztsche e Freud), mas muito antes
deles pela própria Bíblia (EX 2,23-25).No mundo grego, esperança é elpís e tem o
significado de «previsão», «lícita expectativa», sempre assente nos nossos
calculismos e exercícios racionais, pequenas deduções, tanto quanto nos permite
saber o velho livro das leis da natureza.Ao contrário, a esperança bíblica e cristã, de
que fala Paulo (e Bento XVI), é sem medida, tem a ver com o nunca antes visto,
aponta para além das leis da natureza, está em luta aberta contra as evidências. Trata-
se de «esperar contra a esperança» ( par’ elpída ep’ elpídi = «contra a esperança na
esperança») (RM 4,18). É assim que Paulo define a atitude de Abraão. No mundo
hebraico, esperança é tiqwah, e deriva de qaw, que pode significar «fio», «fita
métrica», «cordel para medir». Percebe-se que tem a ver com o «fio» que se estica
para medir, até chegar à medida ainda sem medida e sem solução à vista – «esperança
vista não é esperança»(RM 8,24) –, mas que tem solução recebida de Deus. É como o
«fio», a «corda», o «arame», a «linha», a «pauta musical» estendida entre a dor e a
consolação esperada, entre a humanidade e Deus, fio tenso, não abaulado – veja-se
JOB 7,6: «Os meus dias correm mais depressa do que a lançadeira,/ e consomem-se
sem esperança», e RM 4,20: «Não ficou abaulado na incredulidade/ desconfiança
(apistía)» –, e seguro entre duas mãos, a de Deus e a nossa. Única maneira de se
poder atravessar, com segurança e confiança, o vau da vida e da morte. Paulo
transfere esta imagem do «fio» ou da «corda» para o mundo e para o homem, e
coloca-os nesta tensão esperante, através do recurso ao nome apokaradokía (RM 8,19;
FL 1,20), de apó + kára + dokéô [= fora de + cara (rosto) +esperar/olhar atentamente]
que só ele usa no NT, e que é desconhecido no grego antes do Cristianismo.
Apokaradokía traduz a atitude de quem se coloca em bicos de pés, alongando o
pescoço o mais que pode com ânsia extrema e intensa para tentar ver o que ainda não
se vê – assim se apanha o tique da esperança, dita tiqwah –, atitude muito próxima da
traduzida por apekdéchomai (RM 8,25), deapó-ek-déchomai [= fora de + desde +
receber], que implica uma forte conotação de receção, tensão para receber a salvação
de Deus, tensão para o dom, pois um dom, não o podemos produzir aqui, com as
nossas mãos; só o podemos receber desde fora, de outras mãos. A esperança bíblica e
cristã consiste na dupla atitude amante de estarmos sempre à espera de alguém, e de
sabermos bem que Alguém espera por nós. Espera não vazia, mas grávida de
realização e de confiança: «Espera que contém a presença, pergunta que contém a
resposta, esperança que contém o cumprimento.» (Karl Barth)

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10. A habitação e o hábito
Habitação habitada, habitação e hábito, êthos e éthos. É Deus quem constrói a casa,
a habitação (êthos) (SL 127,1); é d’Ele que recebemos o hábito, a ética (éthos), o
mandamento que interrompe e põe em crise (Carmine di Sante) a nossa espontânea
luta para permanecer no ser, abrindo-nos a porta da liberdade. «Porque é que,
perguntam os rabinos, a Escritura compara Israel a uma pomba?» A esta pergunta,
um dos mestres responde com esta parábola conhecida como «O mestre das asas»:
Quando Deus criou a pomba, ela voltou para junto do seu criador, e lamentou-se:
«Senhor do universo, há um gato que corre sempre atrás de mim e me quer matar, e
eu tenho de correr o dia inteiro com estas patas tão finas e curtas.» Então Deus teve
piedade da pobre pomba, e pôs-lhe duas asas. Mas, pouco depois, a pomba foi outra
vez, a chorar, ter com o seu criador: «Senhor do universo, o gato continua a correr
atrás de mim, e se já antes tinha tanta dificuldade em fugir dele com estas patas tão
pequenas e frágeis, agora, com estas asas tão pesadas em cima, ainda é pior.» Então
Deus sorriu e disse: «Mas eu não te pus essas asas, para que tu carregues com elas,
mas para que elas te carreguem a ti.» O mesmo vale para Israel, conclui o mestre.
Quando Israel se lamenta dos mandamentos, Deus responde: «Não vos dei os
mandamentos para que vós os transporteis como um peso, mas para que eles vos
transportem a vós.»
Aí está o mestre das casas e das asas, da habitação e do hábito ou mandamento ou
vestido ou maneira de viver em casa. A belíssima temática da habitação e do vestido
atravessa, de lés a lés, a inteira Escritura. O coração da Tôrah ou Pentateuco ocupa-se
de um Deus que quer vir habitar no meio de nós, na Tenda do Encontro (ohel mo’ed)
(EX 25,8), donde decorre toda a teologia da Habitação (mishkan) e do Santuário
(miqdash), até Cristo, que «estabeleceu a sua tenda (eskênôsen) no meio de nós (en
hêmîn)» (JO 1,14).É desde o Génesis que está presente o vestido de misericórdia (GN
3,21), assomando depois, em Isaías e Baruc, o vestido de festa e de salvação (IS 61,3
e 10; BR 5), o vestido nupcial oferecido e recebido ou recusado (MT 22,1-14),
passando pelo paulino revestimento de Cristo (RM 13,14; GL 3,27; CL 3,12-17), até ao
vestido definitivo da esposa (AP 21). E esta metáfora do vestuário requer outra vez o
«fio», o «cordão», o «cíngulo», o «cinto», que ajusta as roupas ou os hábitos, alinha e
alinda os passos, o coração, os rins, as entranhas. É o sýndesmos de Colossenses 3,14,
que se chama «amor» (agápê). Sem Deus no mundo, habitação desabitada, não há
esperança nem ética. É o kafkiano «Deus existe, mas não está aqui». Note-se, porém,
que a ética (éthos), o vestido, o hábito com que Deus nos veste por amor, porque vem
ao encontro da nossa pobreza, acaba por dissolver a hipertrofia do «eu», não nos
deixando mais sossegados em casa (êthos), e fazendo-nos partir, desabitar, sem
retorno, ao encontro do outro que está fora do nosso espaço familiar, o estrangeiro, o
pobre, o diferente. Este desafio «sobre-humano» apresenta-se como o maior dom que
a cultura hebraico-cristã pode dar a esta sociedade pós-moderna anestesiada,
asséptica, enjoada, enlatada e acomodada. Neste mundo em que impera o «eu», o

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outro, seja com letra pequena seja com maiúscula, está quase sempre a mais, e não
lhe é permitido ocupar senão três posições: uma coisa a possuir ou a deitar fora, um
meio a utilizar para eu atingir os meus fins ou um rival a eliminar. É aqui que
podemos ainda compreender os idosos que atiramos lá para longe como coisas já sem
nenhum valor; as crianças que não queremos que nasçam, porque são um empecilho
ao nosso conforto e bem-estar, alguém que vem desarranjar o nosso mundo, tempo,
horários, e até os nossos móveis e imóveis; os empregados que pomos na rua porque
já não são suficientemente rentáveis: não são mais meio para os nossos fins; enfim os
países ou as pessoas a quem fazemos guerra, porque estorvam a nossa vontade de
poder, a nossa ambição e expansão ilimitadas. O que se diz dos outros, pode dizer-se
de Deus, que podemos também ser tentados a utilizar em nosso proveito, a pôr de
lado ou a eliminar. É conhecida a subtileza da explicação rabínica dos midrashîm
acerca de GN 4,8, em que Caim diz para o seu irmão Abel: «Saiamos para o campo.»
E depois, estando no campo, Caim atirou-se sobre Abel e matou-o. Três rabinos
interrogam-se sobre o que, depois de saírem para o campo, terão dito um ao outro
Caim e Abel. Avança o primeiro: «Começaram os dois a discutir. Caim disse: “A
terraem que te encontras é minha.” E Abel retorquiu: “A pele do carneiro com que
andas vestido é minha.” E, naquele momento, Caim atirou-se sobre Abel e matou-o.»
Disse o segundo: «Os dois puseram-se a discutir. Caim disse: “Esta mulher é minha.”
E Abel retorquiu: “Não, é minha.” E, naquele momento, Caim lançou-se sobre Abel e
matou-o.» Chegou a vez do terceiro: «Os dois puseram-se a discutir. Caim disse:
“Este templo é meu.” E Abel retorquiu: “Não, é meu.” E, naquele momento, Caim
matou Abel.» Como se vê, é a vontade de posse, a transformação em «meu» daquilo
que não pode ser «meu», porque pode somente ser visto como um dom, que faz
nascer a violência. Negação do dom, caminho da posse e da violência. É assim que
ficamos sós, completamente sós, senhores absolutos do campo(GN 4,8) ou da planura
(GN 11,2),/ mas nada sabemos construir em altura. Veja-se a família, a política, a
escola, o tribunal, o hospital, também a igreja. Tudo tão plano e chato,/ com casas,
mas sem casa,/ com mesas, mas sem mesa,/ com fardas, mas sem vestido,/ sem
hábito,/ sem coração,/ nus por dentro. Há muito que todos os hábitos nos caíram aos
pés. De facto, perdemos o «amor», o cinto, o cíngulo, o cordão, o sýndesmos, que
dava segurança, sentido e beleza à nossa vida. Vendo bem, andamos por aí perdidos,
desconstruídos, à deriva, vivendo de «relações de bolso» (Catherine Jarvie) e de
«compromissos enlatados» (Anthony Giddens), com a advertência bem visível:
«consumir de preferência antes de…».A música que nos chega aos ouvidos são notas
servidas em pautas enlatadas, sons de mármore, ritmos de marchas militares ou
fúnebres. Só o Rosto ou o mandamento verdadeiro, vindo de fora e acolhido à porta
com amor, surpresa e maravilha, dom, e-vento, ad-vento, pode romper e fecundar este
areal espesso como o gesso. Falo do alento de Deus, beijo de Deus no pó que modela
em suas mãos (GN 2,7). Só ele pode transformar estas pedras em filhos e irmãos (MT
3,9).

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11. Para além das coisas
Ocos, vazios, nus por dentro, espantalhos ao vento (JR 10,5; BR 6,69), roupa velha e
palha, roucos ais, para assustar a canalha e os pardais. Pouco mais. Puros pagãos (
pagi), es-petados no chão, toscas placas, estéreis estacas ( pagi), inca-pazes de dar
flores e frutos, sem coração, sem casa, sem caminhos, sem espinhos. Mundo de coisas
e de laca. Tudo lata a retinir conforme o vento passa. É grandemente signi-ficativo
que o hebraico bíblico não conheça um equivalente do nosso termo «coisa». De facto,
a palavra dabar, que no hebraico posterior veio também a significar «coisa», no
hebraico bíblico aparece a significar: discurso, palavra, mensagem, relato, notícia,
conselho, pedido, promessa, decisão, sentença, tema, história, dito, expressão, afazer,
ocupação, ações, boas ações, acontecimentos, modo, ma-neira, razão, causa, mas
nunca «coisa» (Abraham Joshua Heschel). Vendo sempre na bíblica página em
contraluz a filigrana, a realidade não é uma coisa em si, mas uma coisa através de
Deus, com bênção, com intenção, com coração, limiar de espanto que me faz parar à
porta antes de entrar no espaço santo, Presença a contemplar, Presente a
desembrulhar e admirar com encanto. Vendo mais fundo, vê-se Deus daqui. Vê-se
Deus aqui. Habitação habitada.Estrada sinalizada. Adeus. Ad-Deus. À-Dieu. Outra
vez Emmanuel Levinas. É seguro. Com este olhar puro, e Deus aqui tão perto, é certo
que há de florir este deserto. Anseio por ver passar outra vez a procissão, os anjos, o
pálio, a lalação dos sinos, o sermão. O pallium, pálio – donde recebemos a lição dos
cuidados paliativos –, manto, abraço dissolvendo a solidão, apertando a pele,
agasalhando o coração, banho de palavras e de unção, odor a trigo, a amor, a pão.
Deixa-me, irmão, segurar a tua mão, enquanto nos aquece a chama da oração. Penso
que sabes, meu irmão, que um «banho de palavras» (Guibert Terlinden), lalação,
envolve o bebé e o ancião, receção e encomendação.«O abraço do pálio» (Vittorio
Ventafridda, 1927-2008), «o abraço do manto» (Gianluigi Peruggia), o agasalho, a
ternura, a compaixão, oh irrepetível primeira e última lição. Falo de nascer, de viver e
de morrer, a mesma embalação. Aí está o sonho. O sonho já nasceu. E porque o
sonho existe, persiste e subsiste, há de seguramente fazer ruir este inerte monte de
cascalho, e criar um atalho para um homem novo que nasça deste celestial manto de
orvalho (IS 26,19): «Se o deserto florisse,/ se a estéril parisse,/ se um rio de água
abrisse a aridez desta planície,/ decerto que este mundo mudaria,/ e uma imensa
hemorragia traria o teu coração à superfície.»

47
12. Desfiando a mais bela harîzah
Na língua hebraica, que é a língua do povo bíblico, «futuro» diz-se ’aharît, termo
que etimologicamente significa «costas» ou «o que está atrás» (’ahar), e «passado»
diz-se qedem, que significa também o «oriente», de onde nasce o sol por onde nos
orientamos. Quer isto dizer que, enquanto nós, ocidentais, vivemos voltados para o
futuro e viramos completamente as costas ao passado, o povo bíblico, de língua e
mentalidade hebraicas, vive voltado para o passado que é o oriente por onde
continuamente se orienta, caminhando, portanto, para o futuro, de costas. Vê-se bem
que, caminhando assim, vamos alongando o campo do passado até hoje e aqui. Neste
sentido bíblico genuíno, o futuro não é o que está à nossa frente, mas o que está atrás
de nós. Não o vemos, portanto. Temos, então, de caminhar comtodos os cuidados,
num caminho em que cada passo conta, cada gesto conta, cada decisão conta, cada
palavra conta, cada copo de água conta. E como é que se caminha para o futuro, isto
é, para trás, literalmente «às arrecuas», de forma segura? Só guiando-nos por esse fio
de sentido e de con-fiança que vem de Deus, atravessando e irmanando gerações e
corações, divina e humana harîzah, pulseira ou colar, que nos adorna o pulso ou o
pescoço, rosário que ternamente desliza em nossos dedos. Vê-se bem que é também o
caminho da confiança num Deus que nos segura pela mão (IS 41,13; 42,6; 45,1). São
módulos de amor cheios de nódulos, grânulos, miniaturas belas, leves, aromáticas,
esquemáticas, portáteis, facilmente transmissíveis, aptas para saborosamente nos
dizermos a qualquer narratário (a criação, os pais, a li-bertação, o deserto, a dádiva da
terra, os profetas, as primícias, o pão, a água, o perdão, Jesus de Nazaré…). Não, não
é o fio apodrecido, o passado putrefacto, empedrado, empecadado, todo virado a
oriente – mas que não vem do oriente –, de Adam (GN 3,24), de Caim (GN 4,16), da
inteira humanidade desmandada (GN 11,2), montão de lixo a tresandar que o Angelus
Novus de Paul Klee (1879-1940) parece olhar fixamente, estupefacto, o olhar
arregalado, a boca escancarada, enquanto vai sendo afastado de um Éden em ruínas,
as asas enfunadas, varrido pela desenfreada tempestade do progresso (Walter
Benjamin, 1892-1940). Também vai de costas o anjo, mas a viagem é para oriente, e
o que vê ficar para atrás, à sua frente, é lixo tóxico e fumo e gesso, não são pérolas ou
maravilhas deslumbrantes. Presumo que o rumo desgraçado que trilha vá do Éden a
Babel. Mas é aí e daí, do oriente já sem mais oriente, que é levantado Abraham, que
viaja do oriente para ocidente, Canaan, Egito, refazendo, recompondo, voltando a
semear de paz e pão, de bênção, a paisagem lunar deixada para trás. E é assim que
voltamos, pouco a pouco, à recitação maravilhada e orvalhada de luz (IS 26,19), à
bênção da eira (RT 3,1-11): é assim que reencontramos o caminho da vida verdadeira.

48
13. Chuva de paradigmas
Mundo novo atravessado pela espessura do sentido, pela doçura do criador e da
criatura. Mundo com bênção, música com pausa, habitação habitada pela
intencionalidade do criador. Mundo em que do outro lado do ter não está o ser (Erich
Fromm, 1900-1980), mas o «de outro modo que ser» (Emmanuel Levinas), o sentido
do amor gratuito, vertiginoso e desinteressado, da bondade e da benevolência, que
permanentemente põem em crise a minha acomodação e o meu bem-estar. «Bem-
estar»: bem se vê que acomoda «ser» e «ter». Como do outro lado do mal não está o
bem, mas o santo (Abraham Joshua Heschel), pois o mal acontece quando nos
estabelecemos por conta própria, desvinculando-nos da intencionalidade boa do
criador, apropriando-nos com as nossas mãos tendidas, e logo fechadas sobre o fruto
(GN 3,6), que afinal Deus depunha com bondade em nossas mãos tendidas e abertas
(GN 1,29). Bem se vê que passámos do fruto para o furto. Como à minha liberdade
identitária não se opõe a liberdade do outro, como se as nossas liberdades fossem
quintais murados e amuralhados, mas o seu entrelaçamento alteritário, o que leva à
derrocada do velho aforismo «a minha liberdade acaba onde começa a liberdade do
outro»e ao surgimento tenro e terno de uma nova, implicativa e interativa maneira de
viver, em que o aforismo, ainda inédito, soará agora: «A minha liberdade começa
onde começa a liberdade do outro.» Sempre neste novo e sentido patamar, também já
não é a história escrita pelo vencedor do dia seguinte e de turno que me julga, à boa
maneira hegeliana, mas sou eu, enquanto sujeito investido de liberdade e de
responsabilidade, isto é, sujeito visitado e interpelado, e que tem de responder e não
pode deixar de responder, sou eu que julgo a história (Emmanuel Levinas, Difficile
Liberté). Porque a história assim tecida não é um mero amontoado de cascalho que os
homens vão juntando enquanto simples executores dos caprichos dos deuses
(sociedades politeístas), ou apenas obra humana (sociedades secularizadas que
proclamam a «morte de Deus»), registo dos seus sucessos e insucessos, enorme
montão de estrume, i-mune, que não responde ao munus (Émile Benveniste,
1902-1976), ao dom sempre primeiro de Deus, e que faz nascer uma nova leitura da
história como obra da interpelação de Deus e da resposta humana, cheia da Palavra de
Deus, cheia da nossa palavra (Yosef Hayim Yerushalmi, 1932-2009). Tempo novo,
kairós, enchente da Palavra,/ vendaval manso que transvaza,/ e enche vaso a vaso,/
casa a casa,/ mão a mão,/ grão a grão,/ irmão a irmão. Da mesma forma, a minha
espontaneidade não se confunde com liberdade nem se lhe opõe a opressão. À
espontaneidade da «relação de bolso» e do «compromisso enlatado» opõe-se a
liberdade, que é o fruto maduro da articulação do mandamento e da obediência. O
mandamento e a obediência opõem-se à opressão e à espontaneidade de um «eu» em
autoexpansão, que dá livre curso aos seus instintos e ao seu arco desiderativo.Na
Bíblia, o mandamento de Deus, porque vem de fora da minha espontaneidade e a
interrompe, é o único que pode instaurar verdadeiramente a minha liberdade: não
como espontaneidade nem como fim, mas como decisão e responsabilidade. Na

49
verdade, fora do mandamento, a liberdade humana seria apenas espontaneidade, em
que o «eu», entre a multiplicidade de escolhas que se lhe oferecem, escolheria sempre
a que mais o satisfaz. Mas uma liberdade em que a escolha é escolha do valor mais
satisfatório, ou, na interpre-tação agostiniana, uma «delectatio victrix», «sedução
vito-riosa», mais do que afirmação da liberdade, seria dela uma «elegante supressão»
(Armido Rizzi). O mandamento cala em mim essa expansividade e instintividade
selvagem, e ensina-me a dar o primeiro lugar ao outro e a dele me receber. Assim, é o
outro, vindo de fora, que me entrega a mim, concedendo-me a dádiva da liberdade e a
possibilidade nova de eu me poder entregar livremente a ele. Soberana e assimétrica
desmesura de Jesus, que me lava os pés e a alma(JO 13,1-15; 15,3), onde eu, como
Pilatos, me vou limitando, com limite e sem limiar, a lavar vezes sem conta as
próprias mãos(MT 27,24). Ainda é preciso gravar outra vez, mas outra vez de novo,
no humano coração os ideais da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Sabendo
nós bem que é sempre possível lutar e conquistar terreno para a liberdade e a
igualdade. Mas sabendo nós ainda melhor, em sol maiore com sustenido, que a
fraternidade é o «mais» que pode e sabe verdadeiramente desbravar o terreno para
que possam crescer a liberdade e a igualdade. E aqui é imperioso pensar o ainda não
pensado: que a fraternidade não se conquista por compra ou luta; a fraternidade
simplesmente se recebe:irmão nasce-se! A fraternidade é o mais da liberdade e
daigualdade, dado que é o lugar onde, por paradoxal que pare-ça, os desiguais são
iguais e os não-livres são livres. O lugarque, de forma mais imediata, nos mostra a
fraternidade, é a família. E é verdade que, numa família, os filhos, não deixando de
ser diferentes na ordem do nascimento, da saúde, da inteligência, temperamento,
sucesso, são iguais.E são iguais, não obstante as suas acentuadas diferenças. São
iguais, não em função do que são ou do que têm ou do que fazem, mas em função
daquilo que lhes é dado e feito. Em função do amor que os precede, o amor dos seus
pais. É esse amor primeiro que os torna livres e iguais, logo irmãos. A fraternidade é
o lugar em que cada um vale, não por aquilo que é, por aquilo que tem ou por aquilo
que faz, mas por aquilo que lhe é feito, antes e independentemente daquilo que
deseja, pensa, projeta e realiza, e em que o seu ser é ser numa relação de amor
incondicionada, que não é posta por ele, mas em que ele é posto. Há verdades que já
lá estão antes das nossas espadas ou das nossas penas à boca do tinteiro! Impõe-se
ainda uma imensa alternativa: trocar o pensamento a partir da morte pelo pensamento
a partir do nascimento. E é evidente que um imenso pálio, manto, agasalho, abraço
deve apertar e dissolver a nossa solidão e aconchegar cada vez mais o nosso humano
e dorido coração.

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1 C. DI SANTE, Gesù. Come incontrarlo nei vangeli, Verucchio, Pazzini, 2004, p. 20.
2 As notas de Bem, Bondade e Beleza ressoam todas no termo hebraico tôb.
3 Pûk é também um pó mineral negro usado para realçar os olhos, como antimónio ou rímel. A terceira filha de Job recebe mesmo o nome de «Frasco de
rímel» (Qeren-happûk). Ver P.-E. BONNARD, Le Second Isaïe, son disciple et leurs éditeurs (Isaïe 40-66), Paris, Gabalda, 1972, p. 294; J. N.
OSWALT, The Book of Isaiah (Chapters 40-66), Grand Rapids – Cambridge, Eerdmans, 1998, p. 427; J. R. LUNDBOM, Jeremiah 1-20.A New
Translation with Introduction and Commentary, Nova Iorque – Londres – Toronto – Sidney – Auckland, Doubleday, 1999, pp. 368-369; J. L. SKA, La
strada e la casa. Itinerari biblici, Bolonha, EDB, 2001, p. 106.
4 O jogo de palavras que se pode estabelecer, quer em hebraico quer em aramaico, ajuda a juntar «pedras» e «filhos». «Pedras» diz-se em hebraico
‘abanîm, e «filhos» diz-se banîm. Em aramaico, temos ‘abnayya‘ e benayya‘. R. T. FRANCE, The Gospel of Matthew, Grand Rapids – Cambridge,
Eerdmans, 2007, p. 111.
5 B. DUHM, Das Buch Jesaja, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 4.ª ed., 1922, p. 290, fala de «ein groteskes Bild» [«um quadro grotesco»].
6 J. BLENKINSOPP, Isaiah 40-55. A New Translation with Introduction and Commentary, Nova Iorque – Londres – Toronto – Sidney – Auckland,
Doubleday, 2002, pp. 184-185.
7 D. J. McCARTHY, Vox bsr praeparat vocem “evangelium”, in Verbum Domini, 42, 1964,pp. 26-33; P.-E. BONNARD, Le Second Isaïe, son disciple
et leurs éditeurs (Isaïe 40-66), Paris, Gabalda, 1972, p. 91.
8 J. N. OSWALT, The Book of Isaiah (Chapters 40-66), p. 54.
9 De João Paulo II, de 7 de dezembro de 1990.
10 In Evangelium secundum matthaeum 17, 7; Verbum Domini, n.º 93. Ver também B. T. VIVIANO, Le Royaume de Dieu dans l’histoire, Paris, Cerf,
1992, pp. 67-68; A. RIZZI, Gesù e la salvezza. Tra fede, religioni e laicità, Roma, Città Nuova, 2001, p. 51.
11 Franz Rosenzweig, cit. por Z. BAUMAN, Amore liquido. Sulla fragilità dei legami affettivi, Roma – Bari, Laterza, 2011, p. 29.
12 P. BEAUCHAMP, Psaumes nuit et jour, Paris, Seuil, 1980 [nova impressão, 2001], p. 146; S. LABATE, La sapienza dell’amore. In dialogo con
Emmanuel Levinas, Assis, Cittadella, 2000, p. 244; A. CHIEREGATTI, Dono e perdono nell’esperienza biblica, in G. GASPARINI (ed.), Il dono. Tra
etica e scienze sociali, Roma – Fossano, Lavoro – Esperienze, 1999, p. 164.
13 A locução ganha mais força no caso de Onésimo (FM 10), pois um escravo carregava a vergonha de não poder referir a sua filiação, ou porque não o
sabia desde o princípio, ou porque tinha sido cancelada. Ver M. BARTH, H. BLANKE, The Letter to Philemon. A New Translation with Notes and
Commentary, Grand Rapids – Cambridge, Eerdmans, 2000, p. 141.
14 A. C. THISELTON, The First Epistle to the Corinthians. A Commentary on the Greek Text, Grand Rapids – Cambridge, Eerdmans, 2000, pp.
357-369.
15 Acerca deste nascer e formar-se de Cristo em nós, ver B. R. GAVENTA, The Maternity of Paul: An Exegetical Study of Galatians 4,19, in R. T.
FORTNA, B. R. GAVENTA (eds.), The Conversation Continues: Studies in Paul and John, Nashville, Abingdon, 1990, pp. 189-201.
16 R. FISICHELLA, A exigência da formação cristã para sermos mais fiéis e darmos testemunho do Evangelho, in Lumen, 72, 2011, p. 19.
17 Esta imagem impõe-se em 2COR 11,2, uma vez que Paulo usa noutros contextos a imagem «pai-filhos» para descrever a sua relação com a comunidade
de Corinto (1COR 4,14-15; 2COR 12,14). Ver M. J. HARRIS, The Second Epistle to the Corinthians.A Commentary on the Greek Text, Grand Rapids –
Cambridge, Eerdmans, 2005, pp. 734-738.
18 L. DE LORENZI, La vida spiritual de Pablo, in G. BARBAGLIO (ed.), Espiritualidad del Nuevo Testamento, Salamanca, Sígueme, 1994, pp. 92, 107.
19 S. LÉGASSE, L’Épître de Paul aux Galates, Paris, Cerf, 2000, pp. 277-278.
20 D. J. MOO, The Epistle to the Romans, Grand Rapids – Cambridge, Eerdmans, 1996, p. 826, nota 50.
21 J. L. SUMNEY, Colossians. A Commentary, Louisville – Londres, Westminster John Knox Press, 2008, pp. 199-200.
22 J. L. SUMNEY, Colossians, p. 218.
23 Idem, ibidem.
24 Monumenta Xaveriana, tomo 2, Madrid, 1912, pp. 291, 306.
25 A. RIDOUARD, Jérémie, l’épreuve de la foi, Paris, Cerf, 1983, p. 43.
26 P. BEAUCHAMP, Cinquante Portraits Bibliques. Dessins de Pierre Grassignoux, Paris, Seuil, 2000, p. 192.
27 A. RIDOUARD, Jérémie, l’épreuve de la foi, p. 43.
28 Ver o excelente comentário de J. MILGROM, Numbers. The Traditional Hebrew Text with the New JPS Translation / Commentary by Jacob Milgrom,
Filadélfia – Nova Iorque, The Jewish Publication Society, 1990, p. 144.
29 Questa è la Nostra Fede. Nota Pastorale sul primo annuncio del Vangelo, 15 de maio de 2005, 2.

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Índice
O Evangelho,Jesus, Paulo,Xavier e eu 6
1. O Evangelho é uma Notícia boa e feliz 7
vinda de Deus 7
2. Essa Notícia boa e feliz 8
transforma a nossa vida e gera comunhão 8
3. Fazer nascer filhos verdadeiros destas pedras 9
4. Jesus, o Evangelho em pessoa 10
5. Paulo, encontrado por Cristo, 17
comunicador de Cristo 17
6. Francisco Xavier, testemunha de outra alegria e de outra confiança 22
Vejo um ramo de amendoeira 23
1. Com uma flor de amendoeira nos olhos 24
2. Com uma vara de amendoeira na mão 26
3. Com Deus no coração 27
4. Uma Igreja com rosto… missionário 28
Daqui, desta planura: Leiturado tempo em que vamos 30
1. A Sabedoria do Amor e do Sentido 31
2. A metáfora da Luz ou a modernidade 33
3. A metáfora da Noiteou a pós-modernidade 35
4. A metáfora da Aurora ou a Luz que vem de fora 37
5. Um percurso paradigmático 38
6. «Na tua luz veremos a luz» 39
7. Pensar a partir do nascimento 41
8. A metáfora da tartaruga ou a transgressão 43
9. A partir da esperança 44
10. A habitação e o hábito 45
11. Para além das coisas 47
12. Desfiando a mais bela harîzah 48
13. Chuva de paradigmas 49

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