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Classe e raça no pensamento de Clóvis Moura

Marcio Farias
Resumo

Raça e classe na obra de Clóvis Moura.

O objetivo deste trabalho é refletir sobre a apropriação que o cientista social


Clóvis Moura faz da teoria social marxista para desenvolver sua teoria em torno
da relação entre raça e classe no Brasil. Para tanto, o texto será divido em três
partes. Na primeira, apresenta-se um panorama da vida e obra desse
intelectual. No segundo momento, apresentaremos algumas questões em torno
da teoria social marxista e a questão do método na obra de Moura. Por último,
faremos um pequeno esboço do sistema interpretativo de Brasil empreendido
por Clóvis Moura, trazendo a lume elementos que estão contidos em duas
obras: Sociologia do Negro Brasileiro (1988);e Dialética Radical do Brasil Negro
(1994);

Palavras chaves: Pensamento social- Relações Raciais- Luta de classes

Parte I

Clóvis Steiger de Assis Moura se situa dentre mais os importantes


intelectuais que no século XX se propuseram a interpretar o Brasil, enfatizando
a dimensão das relações raciais como elemento estruturante da formação do
país. 1 Nascido em 1925, na cidade de Amarante,Piauí, Moura foi pertencente a
uma família de classe média, o que explica seu acesso ao ensino formal e
depois ao ensino superior, situação experimentada por uma pequena parcela
da população brasileira daquele período, sobretudo se tratando do contexto da
região nordeste do país. Filho de mãe branca, Elvira Moura, e pai negro,

1
Apesar de sua obra não figurar entre as mais destacadas análises que estudam o pensamento social
brasileiro, Clóvis Moura é bastante prestigiado pelos pesquisadores que estudam a questão das relações
raciais no Brasil. Dada a amplitude de seus estudos, pesquisadores das mais diversas áreas das ciências
humanas tem nos escritos de Moura subsídios para estudos sobre o tema das relações raciais no Brasil.
Clóvis Moura também é autor de destaque entre as referências teóricas do movimento negro que travam
suas lutas e ateiam as bandeiras nos setores de esquerda (grupos como Kilombagem do ABC, Força Ativa
da Cidade Tiradentes, Círculo Palmarino, Unegro, Uneafro , entre outros).
Francisco de Assis Moura, teve como bisavô pelo lado materno um barão do
império prussiano, Ferdinando vön Steiger, e pelo lado paterno a avó Carlota,
escrava de seu avô, que era senhor de engenho na zona da mata
pernambucana (Mesquita, 2003).

Moura mudou-se com a família para Natal, capital do Rio Grande do Norte,
onde residiu de 1935 a 1941. Parte dos seus estudos ocorreu no Colégio Santo
Antônio, administrado por padres Maristas 2. É desse período seu envolvimento
com política e literatura, duas paixões as quais ele se dedicou durante toda a
vida. Muito jovem fundou, à revelia dos padres Maristas, o Grêmio Cívico-
Literário 12 de Outubro, onde eram realizadas reuniões semanais para
discussão de literatura e política. O grêmio possuía também um jornal de nome
O Potiguar, dirigido por Clóvis Moura, no qual publicou seu primeiro artigo não
literário, que versava sobre a Inconfidência Mineira. Ele e seu irmão se
mudaram para Salvador em 1942, quando tinha 17 anos (Mesquita, 2003).

Na Bahia, Clóvis Moura entrou para a Faculdade de Direito, em 1944, curso


que não concluiu. Naquele mesmo ano ingressou na carreira jornalística,
trabalhando no jornal O Momento, diário do Partido Comunista do Brasil. Foi
seu primeiro contato com o PCB, e contribuiu para aprofundar-se na teoria
marxista e nas discussões envolvendo o movimento comunista internacional.
Em 1945 tornou-se militante partidário, aos 20 anos (Mesquita, 2003).

Por conta desse revés político, Moura se transferiu para São Paulo em 1949,
onde integraria a Frente Cultural do PCB, organismo que reunia Caio Prado
Júnior, Villanova Artigas, Artur Neves, dentre outros intelectuais. Além de
militar no PCB, Moura atuaria profissionalmente como jornalista, trabalhando
para Samuel Wainer e posteriormente para Assis Chateaubriand nos Diários
Associados. Concomitante a sua atividade profissional, pesquisava história, em
particular sobre a rebeldia negra no tempo da escravidão, tendo como objetivo
demonstrar o importante e ativo papel do negro na formação da nação, não só
do ponto de vista cultural, muito abordado naquele momento, mas — e
principalmente — social, se desdobrando para os planos políticos e econômico.

2
Em recente texto, escrito para o encarte especial da Revista Principio: Clóvis Moura: pensador das
raízes da opressão e do protesto negro no Brasil, a historiadora Soraya Moura, filha de Clóvis Moura,
relata que seu pai sempre comentava seu afastamento de doutrinas religiosas muito por conta da
experiência “traumática” quando estudante de colégio confessional.
Em 1959 publicou seu primeiro e marcante livro, Rebeliões da Senzala, uma
interpretação marxista da escravidão no país pelo viés da resistência escrava
(Mesquita, 2003).

O que sempre preocupou Moura e dirigiu suas indagações foram os dilemas


da constituição da nação, evidenciando a marginalização da população negra,
tendo como um dos muitos resultados um racismo “tipicamente à brasileira”,
que se expressa de forma contunde em relação ao fenótipo do que na origem
racial. A obra de Moura sobre os africanos escravizados e seus descendentes
parte de uma interpretação oposta à de Gilberto Freyre e outros escritores que
entendiam a escravidão como sendo um sistema basicamente convergente,
composto por escravos, em geral, ajustados à sua condição servil e senhores
despóticos, ainda que protetores. Moura buscou valorizar a resistência dos
negros e seu importante papel na transformação ou destruição de sua condição
de escravo, portanto, seu caráter dinâmico na história do país (Mesquita,
2003).

Após sua saída do PCB, Clóvis Moura nunca mais integrará as fileiras de
nenhum partido, mantendo apenas um bom diálogo com a fração que participa
do “racha” do partidão e que em 1962 funda o PC do B. Da década de 1960 até
a década de 1980, Moura se dedica aos estudos, participação em congressos,
elaboração de artigos para revista cientificas, jornais e revistas, além da
publicação de algumas obras de importância singular para os estudos sobre
relações raciais no Brasil e para o pensamento social brasileiro.

Do período supracitada, o primeiro trabalho de destaque é o livro Introdução


ao Pensamento de Euclides da Cunha, lançado em 1964. O tema deste
trabalho já aparece, de maneira tímida e pouco desenvolvida em artigos de
Moura na década de 1950, como também é tratado de forma mais efetiva no
seu livro de estreia, Rebeliões na Senzala, quando no capítulo 9 discute a
inserção do negro no sertão brasileiro.

Neste livro, não temos uma análise especificamente do trabalho que


consagrou Euclides da Cunha: Os Sertões. Temos aqui uma discussão que
abrangeu o conjunto da obra do autor carioca, levando em conta inclusive
manuscritos de estudos não publicados. A análise de Clóvis Moura tem como
objetivo apresentar um Euclides da Cunha menos progressista, tal como alguns
setores de esquerda o reinvidicavam naquele período. Ao contrário, a análise
mouriana apresenta-o como um autor vinculado ao pensamento conservador
brasileiro, cuja matriz está alicerçada no pensamento racista europeu do século
XIX.

Segundo Moura, a principal influência teórica de Euclides da Cunha é o


célebre pensador inglês Herbert Spencer, filósofo consagrado como mentor do
darwinismo social. Entendendo a raiz conservadora de Euclides da Cunha,
Moura explica a análise feita por ele sobre os sertanejos que empreenderam a
mais importante e impactante revolta popular do primeiro período da Primeira
Republica, a Revolta de Canudos. O destaque do livro Introdução ao
Pensamento de Euclides da Cunha está na contribuição de Clóvis Moura para
compreensão do pensamento conservador brasileiro e como esses intelectuais
que interpretaram Brasil, enraizados no pensamento racista do século XIX, não
puderem entender de outra maneira se não como negativa as influências
africanas e de seus descendentes para formação do Estado Nação brasileiro.

Uma segunda obra relevante para compreensão do pensamento mouriana


sobre as relações de classe e raça no Brasil também foi publicada em 1976.
Trata se de um estudo sobre cultural popular e racismo chamado: O
preconceito de cor na literatura de cordel. Neste ensaio exploratório, o escritor
piauiense analisou 25 folhetos de cordel, estabelecendo categorias de análises
descritivas e sistematizando questões de conteúdo desses materiais. Levando-
se em conta que o Cordel sempre gozou de grande prestígio por ser uma
expressão cultural muito significativa entre as classes oprimidas e exploradas
do nordeste brasileiro, Moura se propôs a demonstrar que o preconceito de cor,
ideologia forjada pela elite branca brasileira, penetrou no imaginário das
classes populares que reproduziam os estereótipos que colocavam o negro
como inferior. O resultado foi que, em torno de 60% dos folhetos refletiam
direta ou indiretamente o preconceito contra o negro.

Analisando este trabalho diante do conjunto da obra de Clóvis Moura,


percebe-se que há uma guinada no sentido de aperfeiçoamento qualitativo da
maneira de pesquisar. Essa inflexão permite a Moura, a partir de vários
instrumentos e materiais, ter acesso à conteúdos mais específicos para
entender e refletir de como a ideologia do racismo se faz presente também na
classe trabalhadora, de maneira a tentar entender e refletir a modernidade
brasileira sobre a antinomia do racismo.

O próximo livro que discutiremos, Sociologia de la práxis (1976), foi lançado


no México e depois traduzido para o português no ano de 1978 com o título:
Sociologia Posta em Questão. Obra de característica epistemológica, nela
Clóvis Moura sustenta a impossibilidade de se fazer uma sociologia critica
voltada às demandas da classe trabalhadora em meios universitários daquele
período, demonstrando quais eram as raízes que sustentavam o pensamento
hegemônico na academia. Segundo o autor, todo cientista social comprometido
com a transformação do sistema social do capital, por conta dos entraves
acadêmicos, deveria ser um pensador autônomo vinculado apenas às
demandas dos movimentos sociais e dos setores ligados às causas populares.
Nas palavras do próprio autor:

Conforme tentaremos demonstrar nas páginas que se


seguem, a sociologia acadêmica- respeitável, tranquila e
institucionalizada- passou a ser um enclave que se situa entre os
elementos do conhecimento social e sua prática dinâmico/radical
(...) Transformou-se em uma ideologia que faz parte do
mecanismos reguladores e controladores da sociedade
burguesa (MOURA, p. 9, 1978).

Segundo Nogueira (2007) este texto marca um ponto de inflexão na obra do


autor, agora sustentando com rigor cientifico as já precisas afirmações que
havia delineado em trabalhos anteriores.Essa inflexão Nogueira chamou de
práxis negra, pois segundo ele, Clóvis Moura foi o primeiro autor a colocar o
negro como sujeito da história na formação do Brasil, atentando aos elementos
constitutivos de uma rebelião durante o Brasil colônia e seus desdobramentos
no Brasil Moderno.

Para os objetivos deste texto, gostaria de ressaltar uma consideração feita


por Moura nesta obra. É nesse momento que Moura aponta o livro Miséria da
Filosofia (1847) de Marx como texto do fundador do marxismo científico e base
teórica de seus estudos.Discutiremos na própria sessão quais são os
elementos metodológicos que estão colocados na obra supracitada diante do
conjunto da teoria social marxista.
Retomando o panorama da obra de Moura, ainda do período da década de
1960-1970, Sacco e Vanzetti- o protesto brasileiro (1978) e Diário da guerrilha
do Araguaia (1979) são textos que destoam, em alguma medida, da linha de
estudos que Clóvis Moura desenvolvia. Por outro lado, Moura foi um escritor
comprometido com as lutas contra injustiças, opressões e negligências
perpetradas pelo sistema do capital, apontando a centralidade da díade raça e
classe para compreensão do conjunto da luta anticapitalista no Brasil. Isso não
impediu, e não parece ter sido a proposta dele, atomizar a luta do negro em
relação às demais demandas do classe trabalhadora, ao contrário, sua
elaboração teórica vai de encontro em tentar aproximar essa experiência
especifica com o conjunto de lutas dos oprimidos e explorados.

O primeiro texto discute a repercussão do assassinato dos operários Sacco


e Vanzetti, caso ocorrido em Massachusetts, EUA,na década de 1920, crime
político contra militantes anarquistas, corrente de pensamento que
impulsionava lutas contra o capital no mundo inteiro, inclusive no Brasil, sendo
que várias lutas dos operários nas primeiras décadas do século XX foram
travadas sobre a bandeiras do anarco sindicalismo. O segundo livro, aborda
tema contemporâneo da época: as lutas contra a ditadura no campo,
relembrando uma das mais emblemáticas lutas armadas orquestrada por
grupos guerrilheiros.

Em fins da década de 1970 e inicio da década de 1980, Moura se aproxima


de setores do Movimento Negro, sobretudo o Movimento Negro Unificado
3
(MNU) que o reconhecia como um dos grandes mentores intelectuais,
sobretudo seu livro Rebeliões na Senzala. Este processo de diálogo entre o
intelectual e os ativistas do movimento negro se estreita na década de 1980 e
1990, quando da publicação dos notáveis livros: Sociologia do Negro Brasileiro
(1988) e Dialética Radical do Brasil Negro (1994).

Precedendo este momento de difusão de sua obra no seio do movimento


negro brasileiro, o primeiro livro pela qual o autor se dedica a pensar a
participação do negro não só na colônia, mas também na modernidade é a

4
O Movimento negro unificado (MNU) surge em meados do ano de 1978 como uma frente ampla que
unificou vários setores da luta antirracista. A mola propulsora dessa organização foi o assassinato do
trabalhador negro Robson Silveira da Luz, no mês de maio daquele ano, por policiais no bairro de
Guaianases, bairro localizado no extremo leste da capital paulista.
obra: Negro, de bom escravo a mau cidadão?(1977). Aqui há uma elaborada
discussão sobre a presença negra na América Latina com ênfase na
Revolução Haitiana. Explicitamente influenciado por C.R.M. James autor da
obra clássica de análise da revolução haitiana Os Jacobinos Negros (1944),
Clóvis Moura apresenta uma discussão inovadora sobre o processo de
independência da colônia francesa de maioria negra, que foi a única revolta
bem sucedida de escravizados no mundo inteiro. Para Moura, ainda que pese
a importância de uma elite negra letrada consciente dos desígnios de um
processo de independência e formação de uma sociedade moderna, a massa
dos escravizados foi muito importante na tomada de poder e vitória dos
colonizados. A mediação que possibilitou, segundo Moura, aos escravizados
tomarem consciência do processo histórico e exercerem um papel decisivo na
revolução foi a religiosidade. Foi o Vodu praticado pelos escravizados que
restitui a condição psicossocial desses sujeitos e forjou uma possibilidade aos
escravizados de negarem a condição imposta pelo julgo colonial e efetivarem
um processo de ruptura radical.

Na década de 1980, Moura intensifica a sua produção teórica em torno da


temática do negro, publicando um conjunto de livros que subsidiarão esses
setores. A Sociologia do Negro Brasileiro quilombos e a rebelião negra (1981);
Brasil: as raízes do protesto negro (1983); A impressa negra (1984);
Quilombos: resistência ao escravismo (1987); Sociologia do negro brasileiro
(1988); História do negro no Brasil (1989); As Injustiças de Clio: o negro na
historiografia brasileira (1990); e Dialética radical do Brasil negro (1994);

Desse grupo de obras, alguns são ensaios e introduções à temática das


relações raciais, cujo intuito de lançamento foi dialogar com um público maior,
não especialista. Com fins temáticos, levando em conta o objetivo da primeira
parte deste trabalho, farei a exposição de alguns livros em que pese a
importância do caráter inovador do ponto de vista conceitual em relação ao
conjunto da obra do autor. Assim sendo, destacarei as obras: As raízes do
protesto negro (1983); História do Negro no Brasil; As obras (1988); e Dialética
Radical do Brasil Negro (1994); discutirei na segunda parte do texto.

O livro As raízes do protesto negro (1983) é uma coletânea de artigos


escritos durante três décadas. Segundo o autor: “Com o presente trabalho
encerramos o primeiro ciclo dos nossos estudos sobre o escravo negro no
Brasil, a importância do escravismo colonial e os desdobramentos relevantes
que esse modo de produção exerceu na formação dos hábitos, da família e da
situação social, econômica e ideológica do brasileiro e do negro em particular”
(MOURA, p. 9, 1983).

Ainda no encalço de argumentar a importância e relevância dessa obra, o


autor prossegue: “O ciclo começa com Rebeliões na Senzala (1959) e termina
com o presente volume. A partir daqui iremos questionar a problemática do
negro inserida no painel do processo revolucionário brasileiro em curso”
(MOURA, p. 9, 1983).

Vou me valer de mais uma citação direta (ainda que entenda como exaustivo
para o leitor esse recurso) pois entendo que estes trechos explicam não só a
importância desse volume da obra mouriana, mas, sobretudo porque sintetiza
ideias centrais do conjunto do pensamento deste autor. Nessa introdução,
Moura ainda afirma:

Este primeiro ciclo procurou demonstrar a situação do negro


atualmente, as origens históricas deste posicionamento social na
nossa estrutura, a ideologia racista subjacente do brasileiro e,
através desta constatação, injetar consciência crítica e
revolucionária na comunidade negra e nas camadas e
segmentos realmente democráticos no país (MOURA, p. 9,
1983).
Como vimos, o conjunto das obras que antecedem esta publicação são:
Rebeliões na Senzala (1959); O preconceito de cor na literatura de Cordel
(1974); Negro de bom escravo a mau cidadão?(1977); Os Quilombos e a
rebelião negra (1981); Além dos diversos artigos e textos publicados nas mais
variadas fontes.

Diante dessas informações, é possível inferir que, primeiro, trata-se de


enfatizar a centralizada da temática racial para Moura como elemento chave da
contradição capital VS trabalho no Brasil. Na conjuntura da década de 1980, ou
seja, redemocratização pós Estado de exceção vivido pelos brasileiros por
duas décadas existiam vários setores que lutavam para a abertura política,
fator que era entendido por Moura como apaziguador das dimensões mais
pauperizadas desse processo. Por isso, em segundo plano, quando se volta
para as classes populares, sobretudo a população negra, propõe que esse
segmento é possivelmente a parcela potencialmente mais revolucionária
naquele processo em curso, pois está diante de duas contradições mais
elementares da modernidade brasileira: classe e raça. Por último, conforme
podemos observar na última afirmação, existe uma lógica interna na obra de
Clóvis Moura, composta por ciclos, cuja maturidade se dá na década de 1980,
culminando no clássico Sociologia do Negro Brasileiro (1988).

Ainda discutindo a obra de 1983, agora atento aos conteúdos existentes


nesse livro, alguns artigos nos ajudam a entender lacunas que as obras de
mais fôlego não se atém, muito por conto dos objetivos que cada uma delas
pretende alcançar. Sendo assim, os artigos Dilemas da Negritude e
Lusotropicalismo são exemplares para compreendermos posicionamentos
ideo-politicos presentes na obra de Clóvis Moura.

Dilemas da Negritude é um artigo que surge a partir da participação de


Clóvis Moura na reunião realizada em Dakar no ano de 1974 cujo tema era:
“Negritude e América Latina”. Do ponto de vista da forma, a estrutura do texto
tem três partes. Na primeira, Clóvis Moura apresenta a configuração do
encontro, apontando as principais discussões empreendidas pelos
participantes. Segundo Moura, há um forte apelo academicista para o encontro,
justamente pela distância dos autores em relação à experiência da negritude,
pois as exposições destes expoentes em relação ao tema é de distância
objetal, ou seja, são cientistas sociais que analisam negritude como conceito
analítico apenas e não conseguem apreender, pelos seus métodos científicos,
as dimensões políticas da categoria.

Na segunda parte do texto, Moura historiciza a categoria, apontando para o


surgimento da temática em relação ás contradições perpetradas em
sociedades nacionais racializadas. O movimento negritude, portanto, passar a
existir como fruto de um acúmulo histórico no que diz respeito às condições de
vida dos africanos e dos afro descendentes. A desestabilização cultural,
psíquica e social surgiu como estepe a qualquer tipo de contestação política
por parte do colonizado. O interessante é que o movimento negritude é
construído e sistematizado por um grupo de indivíduos negros que estavam na
França ou nas colônias francesas e conseguiram acessar alguns espaços
sociais bem como bens materiais, constituindo assim uma pequena burguesia
negra. O fato de terem se tornado membros de uma classe intermediária não
os colocaram distantes da sua situação anterior, permaneciam negros e vitimas
das mais diversas discriminações em decorrência de sua cor (Domingues,
2005).

A forma de expressão da revolta foi a literatura, em prosa e versos,


negros entoavam seu orgulho, a afirmação positiva de ser negro, recuperando
o orgulho de sua condição, resgatando a memória e reivindicando as matrizes
africanas do mundo, ressignificando termos pejorativos, visando assim devolver
ao negro em forma de poesia aquilo que lhe fora retirado pelo grilhões do
racismo e do capitalismo (Bernd, 1984).

Na famosa introdução à Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache


(1948), organizada por Leopold Sedar Senghor, livro de poemas que marca a
conceituação e divulgação do movimento negritude, o filósofo francês Jean
Paul Sartre comenta sobre esse movimento político literário:

Numa palavra, dirijo-me aqui aos brancos e gostaria de


explicar-lhes o que os negros já sabem: porque é
necessariamente através de uma experiência poética que o
negro, na sua situação presente, deve primeiro tomar
consciência de si mesmo e, inversamente, porque a poesia
negra de língua francesa é, em nossos dias, a única grande
poesia revolucionária (SARTRE,1965, p. 92).
Para Sartre (1965) a situação do negro no seio da classe trabalhadora
ganha uma dimensão especifica, sobretudo pelo contexto histórico que o
coloca e o condiciona como ser humano inferior, havendo, portanto a
necessidade posta, dada as condições objetivas, de uma consciência racial por
parte do negro, pois o movimento literário negritude é a emergência de algo
que pulsa e que foi solapado na subjetividade e através da poesia se
materializa novamente. O referido autor prossegue:

Na realidade, a Negritude aparece como o tempo fraco de


uma progressão dialética: a afirmação teórica e prática da
supremacia do branco constitui a tese; a posição da Negritude
como valor antitético é o momento da negatividade. Mas este
momento negativo não possui autossuficiência e os negros que
o usam o sabem muito bem. Sabem que visa preparar a síntese
ou a realização do humano numa sociedade sem raças. Assim a
Negritude é para se destruir, é passagem e não término, meio e
não fim último. (SARTRE,1968, p. 122)
Moura discorda relativamente da afirmação positiva do Movimento
Negritude, pois segundo ele, o movimento negritude tem contradições internas
mais intricadas, favorecendo setores muitas vezes mais abastados da
população negra, distante das contradições vividas pela massa dos
trabalhadores negros. Segundo Moura:

Historicamente isto correspondia ao grau de conscientização


que essas elites intelectuais negras tinham da sua problemática,
ainda que embrionariamente, sem um horizonte projetivo
definido. Esses intelectuais transformaram-se, assim, de um lado
conscientes da opressão que sofriam como negros letrados,
mas, ao mesmo tempo, não incorporavam o seu protesto
estético ao protesto social e político passivo e muitas vezes
ativos de milhões negros africanos os quais, sob as condições
do colonialismo, sobreviviam explorados na África Negra.
(MOURA, 1983, p. 102).
Para Moura, a negritude no Brasil também incorporou essas contradições
das vertentes internacionais. As contradições das relações raciais no Brasil
possibilitaram a emergência de uma luta negra no Brasil na década de 1930,
com a Frente Negra Brasileira. Nesse momento, não existe um ligação direta
com as correntes europeias, mas do ponto de vista da organização e das
reinvidicações políticas, o embate contra a opressão racista é muito
semelhante.

Segundo Clóvis Moura, apesar das coincidências existentes na luta


antirracista no Brasil e no Mundo antes da década de 1940, é somente em
1944 com o surgimento do Teatro experimental do Negro que essas lutas
ganham contornos verossimilhantes:

(...) surge, em 1944, o Teatro Experimental do Negro, liderado


por Abdias do Nascimento.Era de fato, um conjunto que
apresentava a negritude de forma consciente, desejando,
através da ideologia, organizar os negros no Brasil. O
movimento editou ainda o jornal Quilombo no qual o pensamento
e a proposta do TEM se expressavam. Mas, o que esse grupo
apresentava à grande comunidade negra marginalizada nas
favelas, nas fazendas de cacau e de algodão, nas usinas de
açúcar, nos alagados e nos pardieiros das grandes cidades?
Nada.(MOURA, p. 103, 1983).
Para Moura, e compreenderemos melhor essa questão quando discutirmos
as categorias centrais no conjunto da obra - empreitada relegada para a
terceira parte deste artigo - dada as contradições capital e trabalho, tendo
como mediador o racismo, o elemento negro pauperizado criou e criará
elementos simbólicos para resignificar sua existência na sociedade de classes,
portanto, caberia aos setores organizados da população negra se aproximar
dessas manifestações culturais e artísticas fornecendo subsídios para o salto
qualitativo do ponto de vista da consciência política a uma consciência
revolucionária, ao invés de utilizar recursos “pequeno burguês” para inserir o
negro na sociedade de classes.

Abdias do Nascimento, foi um autor importante na luta antirracista no Brasil


e no mundo.Sua proposta política está sintetizada na ideia de Quilombação. A
origem dessa plataforma é de fato o Teatro Experimental do Negro.

Outro artigo que compõe o livro As raízes do protesto negro é


Lusotropicalismo e Ciência. Nos dizeres de Moura: ““(...) lusotropicalismo do
sociólogo Gilberto Freyre, parceiro teórico de Marcelo Caetano, último chefe do
salazarismo governamental em Portugal, baseia-se na suposição de que os
portugueses (como raça), têm predileção pelos povos “de cor” (MOURA,p. 93,
1983).

Afirma ainda:

Esta teoria criada para justificar o colonialismo de Portugal e


apresentar como idílica a escravidão que existiu no Brasil que,
para Gilberto Freyre, foi muito mais benigna, paternal, protetora,
compreensiva e humanitária do que o trabalho livre a substituiu
(MOURA,p. 93, 1983).
Não adentrarei nos pormenores da discussão ideo-politica do
lusotropicalismo. Como já mencionado anteriormente, ao longo do
desenvolvimento de sua teoria, Moura sempre se colocou como antítese do
pensamento de Gilberto Freyre. Neste texto, Moura reúne elementos mais
efetivos para expor as dimensões políticas ligadas ao pensamento conservador
que estão imbricadas na teoria freyriana, bastante aceita pelos círculos
intelectuais brasileiros, mesmo entre os pensadores progressistas. A tese do
encontro harmônico entre colonizadores e colonizados, sintetizada na cozinha
da casa grande é uma elaborada teoria liberal cujo intuito é mascarar as
dimensões contraditórias da realidade nacional (Paixão, 2014).

O lusotropicalismo foi muito importante na elaboração da justificativa


ideológica da colonização portuguesa no continente Africano. É importante
destacar que, ao contrário do que ocorreu na América Latina que foi colonizada
logo quando da chegada dos europeus, na África, esse processo só foi
possível no final do século XIX. A conferência de Berlim ,ocorrida no ano de
1885 , é um marco para compreender a penetração, divisão e ocupação do
continente africano pelas potências europeias. Não foi possível, antes desse
período, à Europa adentrar ao continente pois não haviam desenvolvido força
bélica suficiente para invadir o território africano. 4

O discurso das potências europeias para a invasão africana tinha um apelo


humanistas. Nesse sentido, a interpretação sobre a colonização portuguesa
nos trópicos feita por Freyre foi um importante instrumento teórico para a
ditadura salazarista. Uma vez que a aventura portuguesa nas Américas foi bem
sucedida, possibilitando um processo de miscigenação que não gerou trauma
para o surgimento do Estado Nação Brasileiro, essa mesma capacidade
associativa do colono português deveria ser empregada em solo africano.
Freyre, a convite e financio do governo ditador de Portugal visitou os países
africanos de língua oficial portuguesas (Palop’s), que estavam sob à égide do
colonialismo português, e escreveu alguns livros sobre o tema: Um brasileiro
em terras portuguesas (1953); A integração Portuguesa nos trópicos (1958);

Parte II
Sobre a gênese da Teoria social marxista existe uma série de divergências
teóricas. Algumas obras do período que compreende 1843 – período que
compreende o lançamento da Crítica a filosofia de Hegel e “A ideologia Alemã”
1846- só foram tornadas acessíveis ao grande público a partir da segunda e
terceira décadas do século XX. No ensaio “Considerações sobre o marxismo
ocidental”, Perry Anderson propõe uma sistematização das gerações pós-
marxista, abordando questões de temática e conteúdo de cada grupo. Naquilo
que Anderson chamou de “geração revolucionária” que era composta por
Lênin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Stalin e outros, nenhum deles teve contato
com obras centrais na compreensão do legado teórico marxista como, por

4
Diante da necessidade de expansão do capital monopolista, vários recursos naturais fundamentais
para essa nova fase do capitalismo existiam em abundância no continente africano. Acordados com a
elite africana daquele período, conseguiram enfim adentrar ao continente. Esse processo de dominação
conheceu rapidamente a resistência africana que impediu o franco avanço das nações europeias
imperialista.
exemplo, Os manuscritos econômicos e filosófico e A ideologia Alemã , ambos
lançados na década de 1930.

Conforme Anderson, a emergência do marxismo ocidental se dá nos


contextos dos pós-guerras. Esse período de produção teórica marxista se
afirma enquanto momento afastamento dos teóricos dessa geração dos
espaços institucionais de organização da classe trabalhadora. O marxismo
ocidental se organiza majoritariamente na academia, discutindo premissas que
estão situadas, sobretudo, no campo da filosofia tais como estética, ética,
ontologia, epistemologia, etc. Essa inclinação acadêmica e o afastamento
desses pensadores marxistas das questões mais emergentes da luta dos
trabalhadores desse período, tem de ser compreendida a partir do marco do
que foi a URSS pós década de 1930 e o marxismo oficial. Diante da era
stalinista, o marxismo enquanto teoria social passa por um processo de
degeneração positivista, subtraindo aquilo que foi o marco mais subversivo da
teoria social, a dimensão dialética de compreensão da realidade. Estudos e
leituras que não conjugavam com a égide do partido oficial russo eram
compreendidos como desvio idealista burguês e passível de perseguição. Nos
marcos político, é desse período em diante que surgem as cartilhas de análises
da sociedade que eram enviadas pelo comitê central na Rússia para todos os
Pc’s no mundo como guia de orientação para interpretação da realidade. No
caso do Brasil a história não foi diferente, tanto que a leitura oficial do PCB até
a década de 1960 era de Brasil feudal, cabendo a militância revolucionária
forjar desenvolvimento do capitalismo em aliança com a burguesia nacional,
para numa segunda etapa a luta se orientar pela perspectiva socialista.
Portanto, o marxismo ocidental tinha como “tarefa” refundar o marxismo crítico
para poder formular teses e analises original diante do fosso estéril do
marxismo oficial.

Nesse ínterim, entre as décadas de 1940 e 1980 floresceu um conjunto de


estudos que elevou a teoria social marxista em bases conceituais e que
permitiram a renovação do legado de Marx e Engels. Ao observamos esse
período de maneira a tentar elencar características gerais desse momento de
inflexão da teoria social perceberemos que os autores e ou escolas do
pensamento durante o século XX fizeram alguns caminhos distintos. Alguns
autores propuseram o retorno à obra de Marx e Engels para verificar aquilo que
foi efetivamente escrito por Marx em detrimento daquilo que foi distorcido.
Outros propuseram dialogo do marxismo com outras correntes do pensamento
social, outras aéreas do conhecimento, a fim de preencher possíveis lacunas
existentes na teoria. Outros acabaram por se situar na crítica ao capitalismo
por outros métodos e ferramentas analíticas, uma vez que, segundo alguns
autores, havia alterações históricas e sociais suficientes durante o século XX
para refutar o marxismo enquanto possibilidade de apreensão dos fenômenos
sociais.

Nesse momento, acompanharemos o debate empreendido pelo filósofo


húngaro Gyorgy Lukács (1885-1971). Lukács apresentou a tese da ontologia
do ser social em Marx. Segundo Lukács, as obras que compreendem o período
de 1843 a 1846 são textos que apresentam o período de maturação da teoria
social. Essa análise difere qualitativamente do seu contemporâneo Louis
Althusser que relega o surgimento do aparato cientifico marxista a partir da
obra Ideologia Alemã, quando há, em sua concepção, um corte epistemológico
entre a produção de caráter idealista que precede a obra efetivamente cientifica
de Marx.

Diante do legado interpretativo de Lukács, a compreensão em torno do


edifício teórico marxiano é de que seu surgimento se dá no ano 1843, quando
da publicação do livro “Crítica a filosofia do direito de Hegel”. Deste momento
em diante, a teoria social marxiana se constituirá entre continuidades e
rupturas até o desabrochar da obra de maturidade: “O Capital” lançado o
primeiro volume no ano de 1866. Não cabe nesse trabalho a reconstituição da
teoria social marxista. Falaremos apenas da obra Miséria da Filosofia (1847)
para compreendermos uma questão de método em Clóvis Moura. No livro
“Sociologia de la Práxis” Moura faz menção à esta obra de Marx como marco
conceitual para pensar analises pela perspectiva marxiana.

Conforme Lukács, Marx foi um autor que se propôs a pensar uma ontologia
e não uma ciência lógica, os textos que antecedem a publicação da Miséria da
Filosofia são de extrema relevância para a elaboração da teoria social
moderna. Desconsiderá-las não é apenas negligenciar um período de
amadurecimento das teses marxianas, mas também deixar de lado categorias
de extrema relevância para compreensão do ser social inserido no contexto do
capital, bem como as mediações que esse novo modo de produção colocam
diante dos indivíduos. Miséria da Filosofia é uma obra que teve um impacto
muito relevante no conjunto da obra marxiana, pois a categoria totalidade está
presente pela primeira vez de forma a concatenar o ser social ao modo de
produção do capital. Porém, ainda é uma obra com diversas fraturas quando
comparamos as categorias econômicas desenvolvidas aqui e no Capital. Em
resumo, Miséria da Filosofia, pode ser entendida com uma síntese do período
de estudos de Marx que se inicia em 1843 até 1846. Em outros termos, todo
fenômeno social é determinado em última instancia pelo modo de produção,
ainda que exista uma independência entre os mais variados complexos sociais.

Dado ao que foi exposto- e é necessário um aprofundamento nessa


questão- ainda que possamos considerar muito hábil a apropriação que Moura
fez da teoria social marxiana e marxista, evitando se filiar ao pensamento oficial
de seu período, marcado pela análise histórica mecânica e pelo economicismo,
Moura, por sua vez, está circunscrito no debate do marxismo e teoria do
conhecimento, efetivamente um dos momentos mais marcantes do marxismo
da segunda metade do século XX. Quando o autor afirma que o “marxismo
cientifico” surge no Miséria da Filosofia, há uma aceitação tácita de que o
primeiro Marx é um filosofo idealista, furtando se de categorias de analise
existente na obra de Marx para crítica da modernidade do capital, como por
exemplo a teoria da alienação, presente já nos Manuscritos Econômicos e
Filosóficos de 1844.

Parte III

Nessa sessão apresentaremos os elementos centrais dos dois livros de


maturidade de Clóvis Moura: Sociologia do Negro Brasileiro (1988) e Dialética
Radical do Brasil Negro (1994). Escritos por um autor sexagenário, são as
obras que marcam um momento de inflexão no conjunto da obra do autor,
escrevendo- o no celeiro dos intelectuais que interpretaram o Brasil- ainda que
Clóvis Moura ainda esteja amargando um silêncio constrangedor por parte dos
centros de estudos acadêmicos que não mencionam sequer a sua existência,
muita vezes pelo desconhecimento dessa produção – para transformá-lo.
O livro Sociologia do Negro Brasileiro foi lançado no ano do centenário da
abolição. Difere em forma das obras anteriores de Clóvis Moura. Ainda que
Moura tenha sido um autor que tenha discutido ao longo da sua vida as
condições das populações mais pauperizadas na sociedade brasileira, seus
escritos até esse momento, tem um caráter hermético, não acessível ao grande
público. Nessa obra, ao contrário,trata-se explicitamente de um texto para
diálogo com o conjunto da população, como maneira de divulgar o acúmulo
teórico que se produziu ao longo de quase quatro décadas de estudos e
pesquisas. Estamos diante de um escritor maduro, que alicerçou um
pensamento singular e se propõe a dialogar com os setores que entende como
estratégicos para a revolução socialista no Brasil. Na primeira parte, o autor
apresenta o legado teórico em torno dos estudos sobre relações raciais no
Brasil. Apresenta como ao longo do século XX foram produzidos estudos sobre
os mais variados aspectos das relações raciais no Brasil no que tange a
história da escravidão, os elementos constitutivos da cultura afro brasileira, o
pós-abolição e as relações raciais no Brasil moderno, de maneira a não
apresentar o caráter dinâmico e da inserção do negro na sociedade brasileira
tanto no período da escravidão, bem como na sociedade de classes durante o
século XX. Segundo Moura:

No Brasil a maioria dos estudiosos do problema do negro ou


caem para o etnográfico, folclórico, ou escrevem como se
estivessem falando de um cadáver. Na primeira posição,
conforme veremos no decorrer deste livro, o contato entre
culturas, o choque entre as mesmas, as reminiscências
religiosas, de cozinha, linguísticas e outras ocupam o centro do
universo desses cientistas. Na segunda, vemos o indiferentismo
pela situação social do negro, destacando-se, pelo contrário, a
imparcialidade cientifica do pesquisador em face dos problemas
raciais e sociais da comunidade negra. O absenteísmo cientifico
transforma-se em indiferença pelos valores humanos em conflito.
E como isto o negro é transformado em simples objeto de
laboratório (MOURA, 1988, p. 11)

Essa posição critica de Moura em relação aos estudos sobre relações raciais
no Brasil já está colocada em sua trajetória intelectual, conforme já
mencionamos, nas obras “Sociologia de la práxis” e “Raízes do Protesto Negro”
em que ele refuta os estudos produzidos na academia justamente pelo seu
caráter técnico e descomprometido com as mudanças radicais necessárias
para o efetivo benefício do conjunto da população oprimida e explorada. Nesse
sentido, Moura afirma:
Sabemos que não serão apenas estudos, livros e pesquisas
sem uma práxis política que irão produzir essa modificação
desalienadora no pensamento do brasileiro preconceituoso e
racista. Mas, de qualquer forma, esses trabalhos ajudarão a que
se forme uma prática social capaz de romper a segregação
invisível mas operante em que vive a população negra no Brasil
(MOURA, 1988, p. 13).

Na segunda parte do livro, Moura apresenta alguns elementos de sua


interpretação da formação brasileira quando levado em conta a participação
ativa da população negra. O quilombo de Palmares é apresentado enquanto
primeira experiência política, das mais sofisticadas empreendida pelo africano
escravizado, a expressão mais acabada da capacidade dinamizadora do
africano escravizado de se colocar enquanto força opositora ao regime colonial,
estabelecendo explicitamente uma condição de contradição estrutural entre
senhores e escravos, primeira expressão da luta de classes no Brasil.
Em linhas gerais, para Moura a história da população negra no Brasil, é a
história do segmento da sociedade que sustentou com sua energia, suor,
lágrimas e sangue a consolidação do país que se conhece hoje como Brasil.
Foi trazido como trabalhador forçado, tornado escravo aqui, sendo que sempre
lutou contra essa condição, desde os primeiros momentos ainda em seu
continente, na travessia, bem como no decorrer da sua experiência no outro
lado do Atlântico.
Com o incremento do trabalho escravo no país há praticamente a extinção
do trabalho livre. “O trabalho manual passa, por isto, a ser considerado infame,
somente praticável por escravos” (MOURA, 1988, p. 48) .
Esse trabalho será executado, quase que exclusivamente, pelo escravo
negro, conforme relata Moura (1988): “O escravo negro foi, em algumas
regiões, a mão de obra exclusiva desde os primórdios da colônia. Durante todo
esse período, a história do trabalho, é, sobretudo a história do escravo” (1988,
p. 14).
A escravidão surge em decorrência de dois fenômenos distintos, mas que se
entrelaçam. Primeiro, devido à continuação e desenvolvimento interno da
sociedade colonial nos moldes em que se vinha realizando a sua evolução
desde as primeiras décadas do século XVI, quando da chegada dos
colonizadores portugueses ao país. Segundo, como consequência dos
interesses das nações colonizadoras em fase de expansão comercial e
mercantil, ou seja, desdobramento das grandes navegações e do primeiro
estágio do capitalismo, o mercantilismo (Moura, 1988).
A escravidão no Brasil e em outras partes do mundo a partir do século XVI
será uma das molas propulsoras para o capitalismo e o desenvolvimento
industrial da Europa. Devido a este aparato econômico envolvido no tráfico de
pessoas, as grandes metrópoles europeias intermediavam esse negócio, até o
momento em que ele virou exclusividade da Inglaterra que obteve o monopólio
da venda de humanos (Moura, 1988).
No Brasil, a primeira medida para por fim ao tráfico de africanos, ocorre nas
primeiras décadas do século XIX, tendo sua implementação efetiva somente
em 1850. A crise do escravismo golpeou fortemente as entranhas do regime
econômico baseado no trabalho compulsório instalado praticamente desde a
chegada dos colonizadores portugueses, pois com o fim do abastecimento de
escravos, os senhores não teriam mais como garantir por muitos anos a
escravidão (Moura, 1986) .
Começa, portanto, desde as primeiras décadas do século XVI a escravidão
do negro no Brasil, instituição essa que perdurará por quase quatro séculos.
Findada a escravidão e inserido o trabalho assalariado essa situação se
perpetua. Alguns mecanismos, tanto políticos como sociais, que barram a
inclusão dos ex-escravos no novo sistema de produção aparecem nesse
entorno, conforme Moura:
Em vista disto a imagem do negro tinha de ser descartada da sua
dimensão humana. De um lado havia a necessidade de mecanismos
poderosos de repressão para que ele permanecesse naqueles espaços
sociais permitidos e, de outro, a sua dinâmica de rebeldia que a isso se
opunha. Daí a necessidade de ser ele colocado como irracional, as
suas atitudes de rebeldia como patologia social e mesmo
biológica.(MOURA,1988, p. 23).
Outra questão importante é que quando da abolição, pensava-se que o
negro comporia as novas classes sociais dessa sociedade em construção, ou
seja, seria parte integrante da classe operária assalariada. “Neste processo
complexo e ao mesmo tempo contraditório da passagem da escravidão para o
trabalho livre, o negro é logrado socialmente e apresentado, sistematicamente,
como sendo incapaz de trabalhar como assalariado” (MOURA, 1988, p.65) .
Para Moura (1988) o período exposto acima constitui-se no auge da
ideologia de branqueamento da população brasileira, sendo o estado conivente
com a exclusão do negro ao incentivar a vinda do trabalhador estrangeiro, e a
elite branca como arauto desse processo discriminador que segregou toda a
população de ex-escravos:

Essa elite de poder que se auto-identifica como branca escolheu, como tipo
ideal, representativo da superioridade étnica na nossa sociedade, o branco
europeu e, em contrapartida, como tipo negativo, inferior, étnica e
culturalmente, o negro. Em cima dessa dicotomia étnica estabeleceu-se,
como já dissemos, uma escala de valores, sendo o indivíduo ou grupo mais
reconhecido e aceito socialmente na medida em que se aproxima do tipo
branco, e desvalorizado e socialmente repelido à medida quase aproxima do
negro (MOURA, 1988, p. 62).

Segundo Moura, o negro no Brasil sempre se organizou em grupos ou se


envolveu em grupos já existentes no intuito de preserva-se, manter sua cultura,
tentar encontrar momentos de lazer entre os pequenos períodos de descansos
da labuta, preservar sua cultura e padrões africanos e resistir ao regime de
opressão durante a escravidão. No pós-abolição, diante da sociedade
competitiva e a marginalização ao qual a população negra foi exposta
deliberadamente, coube ao negro novamente se organizar em espaços e
grupos . “Podemos dizer, por isto (...) que o negro brasileiro, tanto durante a
escravidão como posteriormente, organizou-se de diversas formas, no sentido
de se auto-preservar tanto na situação de escravo, como de elemento marginal
após o 13 de maio” (Moura, 1988,p.112).

Esses grupos variam nos seus mais diversos objetivos, sendo que Moura
propõe que estas organizações, independente do motivo pelo qual se
aglutinavam,podem ser compreendidos por grupos diferenciados e grupos
específicos.

Os grupos diferenciados são “unidades organizacionais que, por um motivo


ou uma constelação de motivos ou racionalizações. é diferenciado por outros
que, no plano da interação, compõe a sociedade.” (Moura, 1988, p. 116) Os
grupos diferenciados são os que “(...) do ponto de vista interno do grupo, os
padrões de comportamento que são criados a partir do momento em que seus
membros se sentem considerados e avaliados através da sua marca pela
sociedade.” (Moura, 1988, p. 116)

Ou seja, a relação de distinção entre esses grupos tem a ver com o fato de
que o grupo diferenciado é identificado, enquanto o grupo específico se
identifica. Essa qualidade que adquire o segundo grupo numa sociedade
dividida em classes sociais possibilita a criação de interioridade, identidade e a
partir disso a emergência de valores, ele adquire consciência e percebe que a
sociedade o diferencia, de uma maneira geral ,de forma depreciativa, e
confrontando a isso,”(...) passa a encarara a sua nova marca como valor
positivo, revaloriza aquilo que para a sociedade o inferioriza e sente-se um
grupo específico”.(Moura,1988,p.117)

Para Moura (1988) na sociedade brasileira, que preconiza o branqueamento


da população, “o negro somente poderá sobreviver social e culturalmente sem
se marginalizar totalmente, agrupando-se (...)” (p.120). Define assim o papel
dos grupos específicos:

Este é o papel contraditório, mas funcionamento relevante,


das associações e grupos negros específicos que foram
organizados ou continuam a existir no Brasil: elaborarem, a partir
dos padrões culturais africanos e afro brasileiros, uma cultura de
resistência à sua situação social (MOURA, 1988, p.120).

Em linhas gerias, Sociologia do Negro Brasileiro é um livro que tem como


função ser um instrumento de qualificação de uma militância negra e
anticapitalista inserida no contexto das luta pela redemocratização do país. No
entanto, o revés político da década de 1990, quando da desertificação
neoliberal, colocou novos desafios analíticos no horizonte dos militantes sociais
ligados a causa da classe trabalhadora.

É nesse contexto da década de 1990 que Clóvis Moura escreve sua obra
mais importante: Dialética radical do Brasil negro. A forma de apresentação
dessa obra volta a ter o caráter hermético de outros momentos da sua trajetória
intelectual. Esse livro apresenta se como uma espécie de tentativa de
reencontrar as frestas para a abertura da janela histórica para a revolução
brasileira. Ainda que nessa obra ele atualize categorias de analises que já
haviam surgido na década de 1980, há nesse momento indiscutivelmente um
estudos minucioso da formação do Brasil, elevando as categorias que outrora
subsidiarão suas pesquisa à um grau teórico rico e sofisticado.

Em linhas gerais, a interpretação de Clóvis Moura sobre a formação de


Brasil tem os seguintes eixos conceituais: No Brasil colônia, ainda que esteja
colocado o papel de empreendimento comercial de extração de recursos
naturais, na fase do capitalismo comercial que possibilitou a acumulação
primitiva do capital na Europa, existe um eixo dinâmico interno nessa
sociedade constituída por escravizados e senhores. Como a revolta do
escravizado colocado na condição de objeto é constante, entende-se essa
ação permanente como "quilombagem", que dinamiza o período do escravismo
pleno. Por sua vez, as mudanças externas e internas por conta das alterações
na configuração do capital internacional consolidam uma nova perspectiva em
relação ao processo de exploração da mão de obra, ou seja, há uma pressão
para transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado. A burguesia
nacional enfrentou essa pressão de maneira distinta, transitou de um regime
político colonial para um regime monárquico, mantendo a escravidão. Por outro
lado, setores ligados ideologicamente ao capital inglês liberal, assumem a
postura abolicionista com fins de modernizar o estado brasileiro que era
estrangulado pela instituição escravidão. Ainda que a ação do escravizado em
relação a superação de sua condição de cativo permaneça ativa- vale pensar
nas revoltas baianas na primeira metade do século XIX, os motins, fugas e
demais ações nos centros urbanos do Rio de Janeiro e São Paulo, sobretudo
nas fugas em massa das fazendas de café – o abolicionismo no Brasil do ponto
de vista legal foi constituído majoritariamente por brancos da classe média que
queriam acabar com a instituição escravidão, mas não tinham, em geral,
nenhum projeto efetivo para a população negra pós liberdade. Esse último
período Clóvis Moura chamou de escravismo tardio.

Na transição para o trabalho livre assalariado, a sociedade brasileira se


torna mais complexa, sobretudo no que tange ao racismo, que inventando pela
elite branca brasileira, penetrou como ideário no seio da classe trabalhadora.
Portanto, diante de uma sociedade classista e racista, cabe ao negro o papel
potencialmente revolucionário de explicitar uma das mais efetivas contradições
da modernidade brasileira: o mito da democracia racial.

Conclusão

A obra de Clóvis Moura ainda é uma incógnita. Não temos estudos


significativos sobre o legado teórico mouriano. Muito citado nas rodas de
discussões e debates do movimento negro, pouco se avançou em estudar
sistematicamente as categorias de análises que ele fez uso para elaborar sua
interpretação de Brasil. É preciso também investigar qual marxismo Clóvis
Moura está efetivamente filiado. Muitos de seus argumentos talvez
permaneçam consistes, ao que pese que algumas de suas avaliações possam
ter perdido o valor analítico. Essas são apenas algumas indagações sobre a
obra de Clóvis Moura. Portanto, Moura é um autor a ser estudado, ainda que
sua relevância se comprove, não sem discussão, pois foi um intelectual
exigente e rigoroso. Essa é a conclusão possível nesse pequeno esboço:
Clóvis Moura um autor a ser conhecido.

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