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ESTUDOS EM HISTÓRIA
CULTURAL E IMAGEM

ANDRÉ (ORG.)
2011
4

Todos os direitos reservados


Creative Commons
2011

ANDRÉ (org.) Pós-View! Estudos


em História Cultural e Imagem.
União da Vitória: Programa de Pós
Graduação Gratuita em História-
FAFIUV, 2011

História; Cinema; Fotografia;


Imagem; Música; Quadrinhos
ÍNDICE:

7. Introdução: A quase irrealidade


de um „retrato real‟ - ANDRÉ
9. Fotografia: a Novidade em meio
ao desastre - Itamara Cris Marchi 5
14. Nelson Carneiro: construção de
uma imagem e de uma ideologia
sobre a lei do divórcio n revista
VEJA- Sidnei Muran
24. Engenheiros do Hawaii, canções
e afins - Bruna Letícia Colita
30. “Que país é este?”: versos
simples e crítica atual nas canções
de Renato Russo - Jaquelline Maria
Cardoso
37. “O Bêbado e o equilibrista”: uma
forma de manifestação - Sandra
Mari Burginski
41. “Aleluia, Gretchen”: imigrantes
alemães no Estado Novo numa
abordagem cinematográfica -
Zuleide Maria Matulle
54. Cinema e História:
possibilidades de análises através
do filme “O Poço e o Pêndulo” -
Vera Maria Benzak
61. O Grande Ditador, de Charles
Chaplin - Itacir Rodrigues
67. „A Troca‟: O Filme através de
uma visão crítica - Sheila Regina
Bernardin
72. As representações de Thor nos
quadrinhos, Tv e Cinema - Marlon
Ângelo Maltauro

Especialmente convidados:
83. História e Literatura: Cultura
interiorana brasileira em “Urupês” de
Monteiro Lobato - Dulceli de
Lourdes Tonet Estacheski
89. Ponderações sobre o Quadrinho
como documento histórico – um
debate teórico-metodológico -
Jefferson Lima
98. Fonte Audiovisuais: o Cinema
NA História - Maytê Regina Vieira
6
INTRODUÇÃO: E por quê? Como dissemos, mesmo
sendo um assunto já discutido, vale
A QUASE IRREALIDADE DE talvez dar-lhe um resumo para os
iniciantes. Sem a pretensão de me
UM ‘RETRATO REAL’1 propor um especialista, mas a
constatação de alguns elementos
ANDRÉ2 básicos sobre o problema pode ser
7
interessante como um
compartilhamento de conhecimentos.
Ele pintou os olhos do dragão, e
eles saíram voando da parede... Comecemos pelo mito do retrato fiel:
seja uma foto ou uma pintura, eles
Zhang Chengyao são absolutamente construídos, e
sua fidelidade se atém, somente, ao
que o artista propõe. Tomemos
O tema em si é batido, e com uma como exemplo a foto preto-e-branco,
crítica consolidada e apropriada. ou um retrato do século 18, em que
Todavia, é com quase uma os representados se mostram de
ingenuidade que os especialistas bocas fechadas para não mostrarem
em humanidades tratam a questão suas banguelas; luz, cor, ambiente,
do retrato – pintado ou fotográfico – tudo é planejado. Como dizer que
como uma fonte de estudo. isso é natural, entendendo o natural
Desconhecendo seus variados e o espontâneo como o mais fiel?
aspectos, ou clamando por teóricos
Ainda assim, poderíamos supor que
já batidos, eles não sabem usar o
um retrato feito por “acidente” seria
retrato como um documento original;
realístico. Uma filmagem de celular
e quando o fazem, é com um
de um crime, no caso, seria “o real?”.
amadorismo gritante e
A questão é: com que propósito ele
surpreendente.
foi feito? Qual a perspectiva de
Disse Confúcio: “mostro um ângulo, quem o fez? Isso modula o olhar do
e se o estudante não percebe os retratista, que pode - a partir de uma
outros, deixo ele para lá”. Isso visão particular – determinar o
significa que um bom crítico caráter de um retrato. Alguém pode
consegue perceber, de modo retratar uma agressão feita por um
simples, os ângulos diversos que policial tanto para denunciá-la como
envolvem a análise de um retrato. A pode concordar com ela e se
maioria, porém, projeta sobre o ausentar. Alguém pode ainda fazê-lo
retrato a esperança de ser “fiel” à pelo simples desejo de projetar-se
realidade propriamente dita, o que é pessoalmente, sem medir qualquer
um entendimento ingênuo sobre a tipo de conseqüência.
questão.
Isso se dá, por exemplo, quando se
fotografam feridos de guerra, com o
objetivo de “denunciar” a violência
1
da mesma. Que profissional
Esse texto de introdução está no livro humanista se vê diante de um ferido
Ensaios de oito partes, 2011.
2 e retrata sua agonia sem nada fazer?
ANDRÉ (André Bueno), Prof. Dr. da
FAFIUV e organizador dessa coletânea. A idéia do registro é válida, bem
como a sua divulgação; mas é ser relatos de tortura como
humanitário testemunhar a morte despachos inúteis que enchiam
sem interferir para que os “outros gavetas e estantes. A incerteza
intervenham” e “acabem com aquilo”? gerará tanto a desconfiança quanto
o descaso, e daqui a algum tempo
Novamente nos remetemos ao fato eles simplesmente “não terão
8 de que o retrato exclui não só o existido” porque não foram vistos.
autor como todo o resto que não lhe Por outro lado, se for preservada a
interessa. Tanto o contexto pode ser memória de sua existência – ainda
manipulado – e mesmo ignorado – que se desconheça por completo
como o autor se exime de seu conteúdo – ele será a “prova
responsabilidade pelo que faz. irrefutável” de que se pretendia
Somente o retrato autoral – no qual “esconder algo” – ou seja, a teoria
o retratista faz questão de da conspiração se provará pela
identificar-se e projetar-se ausência da prova! Assim, as
intelectualmente sobre a imagem – imagens precisam ser lidas de modo
delineia o propósito do retrato mas absolutamente crítico, envolvendo
acaba, assim, com sua requisitos não menos importantes e
“naturalidade”, já que o desejo do específicos que os dos materiais
autor, desde o início, é impressionar textuais. Como diz uma antiga
e causar algum tipo de efeito. parábola budista: nesse momento,
uma árvore caiu no meio da floresta.
Se você não ouviu ou viu, não pode
afirmar que ela caiu; e pelos
mesmos motivos, pode-se mesmo
afirmar que ela não caiu?
........

Três modos de se publicar uma mesma Com isso, abro aqui a nossa
foto... coletânea Pós-View! Espero que os
Soma-se a essas questões os ensaios aqui presentes sobre
recursos modernos de manipulação fotografia, música, cinema,
de imagens, e veremos que os quadrinhos e literatura contribuam
retratos são tão passíveis de para o debate riquíssimo que se
adulteração como um texto. A abre com essas novas fontes. Essa
questão é que se mantém a crença é a primeira produção, de muitas
de que o suposto “registro visual” é que virão feita pelo Programa de
menos manipulável que o escrito – Pós Graduação Gratuito em História
quando somente as dificuldades da FAFIUV.
técnicas e o contexto é que limitam Esperamos que vocês apreciem!
(ou não) a adulteração do
documento. Milhares de arquivos de
governos anteriores, por exemplo,
foram queimados. Quem relatou sua
destruição supõe, mas não sabe ao Prof. André
Primavera de 2011
certo, o que continham. Poderiam
FOTOGRAFIA – NOVIDADE ideologias oficiais. (MAUAD,
1996, p. 5)
EM MEIO AO DESASTRE
A fotografia nasce no século XIX, da
Itamara Cris Marchi junção dos interesses de Niépce e
Daguerre. Segundo Mauad (1996)
estes dois tinham interesses 9
Todas as notícias divulgadas comuns, mas objetivos diferentes.
atualmente só ganham credibilidade, Niépce buscava um modo de fixar a
para a maioria das pessoas, se imagem em um suporte concreto,
estiverem ligadas a uma imagem enquanto Daguerre procurava
que prove o acontecido. A indústria entender como controlar a ilusão
fotográfica cresceu de tal maneira que a imagem proporciona em
que é difícil acreditar que alguém questão de entretenimento.
ainda não tenha se deparado com Durante o século XX a fotografia
uma fotografia. Pois bem, até pouco passou a ser artigo de identificação
tempo atrás, era esse o caso de pessoal (RG, passaporte, entre
muitos pais das quase cem mil outros). A vida privada também
“crianças não acompanhadas” começou a valer-se desta técnica
exiladas nos países da região dos para registrar o nascimento, a
Grandes Lagos, após o massacre diversão, a união, enfim uma
de Ruanda em 1994. Vamos maneira de caracterização de um
analisar neste trabalho uma imagem modo de vida, de seu status social
deste acontecimento recente na perceptíveis por diversos objetos e
história, abordando a surpresa de cenas.
muitos, diante de uma pequena
imagem e uma invenção do século Para Kossoy (2005) podemos
XIX, novidade em meio ao desastre. compreender o significado de uma
De acordo com Mauad (1996), a fotografia ao ultrapassar “sua
fotografia desperta em nós barreira iconográfica”, no momento
diferentes sentimentos. As fotos que se reaviva as histórias
tornaram-se objetos de consumo, intrincadas na imagem. “Através da
propaganda, tornando-se a fotografia aprendemos, recordamos,
linguagem visual dos fatos. e sempre criamos novas realidades”.
Podemos nos deparar com uma
Desde a sua descoberta até os mesma imagem, mas cada um pode
dias de hoje a fotografia vem interpretar de uma maneira, de
acompanhando o mundo acordo com a sua percepção do
contemporâneo, registrando mundo, de acordo com o seu
sua história numa linguagem conhecimento. Muitos podem
de imagens. Uma história considerar um material estático, mas
múltipla, constituída por precisamos destacar que, a junção
grandes e pequenos eventos, da imagem fotográfica com as
por personalidades mundiais e imagens mentais desenvolvem um
por gente anônima, por lugares campo de criação de realidades e
distantes e exóticos e pela ficções, que nos permitem, segundo
intimidade doméstica, pelas Kossoy (2005) dialogar com o
sensibilidades coletivas e pelas passado, nos tornando
interlocutores de memórias se estigmas que vieram compor
silenciadas pelo momento, mas nossa realidade por séculos, para
registradas pelo tempo. Kossoy (2005) essa “realidade” criou
“ficções documentais”.
O diálogo entre as imagens
técnicas – que nos envolvem, Precisamos ter claro o que é o real
10 nas suas diferentes formas – e que a fotografia registra. Pois
as imagens mentais é sempre que vamos registrar um
ininterrupto e acompanha cada determinado momento, considerado
um de nós ao longo de nossas importante, as pessoas se arrumam,
vidas, mesmo que não procuram seu “melhor ângulo”,
tenhamos consciência disso. pensando assim podemos
Formamos, assim, um baralho considerar que o registro feito pela
de iconografia infinita onde o fotografia é aparente, ou seja, capta
real se confunde com a ficção; a aparência, elaborando a função de
são essas as cartas do jogo representação. “A relação
que nutrem nosso imaginário e verdade/mentira na imagem
reavivam nossas memórias. fotográfica é sempre ambígua e
(KOSSOY, 2005, p. 38) complexa. A fotografia é uma forma
de registro, não um aparelho
De acordo com Kossoy (2005) andar detector de verdades ou mentiras”.
pelo campo da fotografia é pisar em (KOSSOY, 2005, p. 40)
terreno duvidoso, seja a imagem
analisada analógica ou digital, seja Podemos compreender que a
ela fruto da realidade material ou fotografia se tornou o registro dos
virtual. “A iconografia é um fatos, sim, mas registro dos fatos
excelente instrumento para que compreendem a realidade
inventariar, mostrar, evidenciar, externa do acontecido. Ou seja, a
denunciar, mas dependendo de seu construção imagética de um dado
uso político-ideológico funciona acontecimento nos mostra uma
também como ferramenta de versão iconográfica do que
propaganda”. (KOSSOY, 2005, p. 39) realmente sucedera,
Uma imagem fotográfica serve tanto compreendendo assim uma
como denúncia como propaganda. “segunda realidade”. (KOSSOY,
Segundo o autor durante o século 2005, p. 40)
XIX a fotografia foi utilizada
principalmente para catalogar e O registro de experiências
compor imagens para coleções individuais, de fatos corriqueiros,
iconográficas dos seres vivos documentos científicos, históricos e
encontrados em terras dadas por artísticos, foi moldando um campo
“exóticas”, (estamos falando no de pesquisa muito vasto para
contexto dos preceitos positivistas, diversos pesquisadores. Este campo
darwinistas e colonialistas). que nos chama atenção neste
momento é o do registro histórico
Muitas construções imagéticas através de uma dada imagem.
foram formuladas por décadas para Imagem esta que esta a seguir e
representar culturas diferenciadas, será descrita e brevemente
distinguindo as inferiores e as analisada, de acordo com os
superiores. Desta forma elaboraram-
estudos dos autores já
referenciados.
No mês de julho de 1994 os
rebeldes tutsis tomam o poder em
Ruanda, diante disso em torno de
um milhão de hutus fogem. O 11
contexto histórico a que estamos
nos referindo neste momento
compreende a misteriosa queda do
avião que conduzia os presidentes
Juvenal Habyarimana, de Ruanda, e
Cyprien Ntaryamira, de Burundi, em
6 de abril de 1994. Segundo Alves Fonte: Robin, 1999
(2005) estas autoridades
retornavam do encontro em Dar es No desespero da fuga
Salaam (Tanzânia) onde tratavam aproximadamente 30.000 crianças
da transição do governo de Ruanda. acabam se perdendo de seus pais.
Os fatos decorrentes após a queda Passaram a ser chamadas de
do avião foram considerados pela “crianças não acompanhadas”, por
imprensa internacional e pelas não se ter certeza de que haviam
Nações Unidas, assim como pelos ficado órfãs. No fim de 1994 cerca
envolvidos diretos no conflito, como de 2 milhões de ruandeses, destes
o retorno à guerra civil que se aproximadamente 100.000 eram
iniciara no dia 1° de outubro de 1990. crianças, estavam exilados nos
Não bastasse a guerra civil, atrelado países da região dos Grandes
a ele iniciou uma onda de genocídio Lagos.
que forçou a fuga de algo em torno O fotógrafo que registrou esta cena
de 250 mil ruandeses para a é Reza, e segundo Robin (1999)
Tanzânia e aproximadamente 2 para ele “Desta vez a fotografia
milhões para os campos de servia efetivamente para alguma
refugiados do Zaire. O alto número coisa”. Em 1995 Reza dirigi-se aos
de refugiados se deve também campos de refugiados de Goma, e é
pelas disputas entre a FPR – Frente informado do caso das “crianças
Patriótica Ruandesa – e a FAR – não acompanhadas” de Ruanda,
Forças Armadas Ruandesas. que estão sob a observação da
Seguindo para Goma e Bukaru, ONU e da Cruz Vermelha
leste do Zaire os refugiados se Internacional. Estes dois órgãos a
instalam em cinco campos. Dos cerca de um ano aplicavam um
mais ou menos um milhão de hutus, projeto de exposição dos retratos
50.000 morre vítimas de epidemias, destas crianças refugiadas, a fim de
segundo Robin (1999). serem divulgadas para que as
famílias as encontrassem. Contudo
o projeto estava parado por falta de
recursos. Reza toma a frente deste
projeto e organiza-o. Ele inicia o
trabalho de fotografar, com o auxílio
de alguns ruandeses aos quais
ensina o ofício, e expor em cinco A maior dificuldade era a
campos de refugiados o retrato ausência da cultura da imagem
destas crianças. A ONU fazia por parte de populações onde
entrevistas com as crianças com prevalece a tradição oral [...].
questionários que continham, dentre Alguns adultos nunca tinham
outras questões – nome, idade, visto fotografias na sua vida.
12 quantidade de irmãos e irmãs, Lembro-me de uma mulher que
profissão do pai. Cada um das desatou a soluçar ao ver o
crianças era identificada por um retrato do filho, julgando que
número, registrado à fotografia lhe tinham cortado a cabeça!
também para auxiliar posteriormente Formamos guias que ajudavam
no possível reencontro com os pais. os pais a interpretarem as
O passo seguinte foi anunciar esta fotografias. No final, das
exposição. 27.000 crianças recenseadas
nos campos, 14.600
Robin (1999) expõe as percepções encontraram os pais, 2.600 das
de Reza diante do resultado quais através de fotografia.
Alguns pais faziam dezenas de (ROBIN, 1999, p.96)
quilômetros a pé para vir ver a Esta técnica – phototracing –, ou
exposição... E, tal como estas seja, foto rastreamento, já havia sido
duas mulheres grávidas, utilizada antes de 1995, segundo
ficavam horas a observar os Robin (1999), na Segunda Guerra
retratos. Voltavam uma, duas Mundial, na Biafra e na Tailândia.
vezes, ou percorriam as cinco Mas em Ruanda foi a primeira vez
exposições. Era inútil dizer- utilizada em larga escala em prol do
lhes que as fotografias eram as reagrupamento familiar.
mesmas. Alguns pais só
encontravam os filhos na As fotografias neste contexto vieram
quinta exposição”. (ROBIN, solucionar grande parte do problema
1999, p. 96) com a linguagem escrita, pois as
fotos utilizam-se de uma linguagem
Como podemos observar diante do simbólica onde não há um sistema
relato deste fotógrafo, a fotografia, universal necessário de se estudar
neste momento, comportou uma para compreendê-la. Se
utilidade efetiva. O esforço dele para entendermos a fotografia como um
compor a exposição não pode ser produto cultural podemos considerar
comparado ao esforço que esses que neste contexto ela foi inserida
pais faziam para procurar seus filhos, por uma cultura a outra como forma
somando a isso, também o fato de de auxílio. Segundo Mauad (1996)
que como podemos constatar na considerando a fotografia um
fixação do olhar destas duas mães produto cultural, de uma produção
que se concentram na busca da sígnica, a mensagem veiculada por
imagem da face de seu filho diante ela esta ligada aos fatores técnicos
de tantos mil olhos. Assim como no de produção cultural, a imagem
testemunho de Phillippe Duamelle, pode atuar em dois momentos:
responsável pela UNICEF da época, primeiramente para conduzir novos
arrolado por Robin (1999) comportamentos e representações
da classe que detém o
conhecimento de tal técnica; em que esta seja uma forma de controle
seguida como forma de controle social, visto que o objetivo era
social, “através da educação do orientar os pais na esperança de
olhar” (MAUAD, 1996, p. 11). encontrar o/s filho/s. Não é também
uma propaganda, pois nada estava
A linguagem inserida na imagem a venda. É sim a inserção de um
deve estar arraigada com hábito de uma cultura, mas de uma
13
competência de produção e leitura, maneira onde nada foi impositivo no
para Mauad (1996), esta mensagem momento, não podemos nos
precisa estar disposta em duas certificar dos usos destinados a tal
classes: a expressão e o conteúdo. técnica posteriormente, e que não é
Sobre a expressão podemos o objetivo aqui.
compreender as opções técnicas e
estéticas (enquadramento, Grande parte das fotografias que
iluminação, definição, contraste, cor). fazemos do nosso dia a dia, de
Já o conteúdo é indicado pelo grupo viagens, de festas, são memórias
de pessoas, objetos, locais e nossas, dizem respeito a uma vida
vivências que estão compondo a em particular, e nem imaginamos
cena. Expressão e conteúdo fazem que um dia, talvez, podem se tornar
parte de um mesmo conjunto dando de interesse público. Assim como a
sentido à fotografia, há a fotografia das duas mães em
possibilidade de separá-los para concentração na busca pelos seus
efetuar uma análise, mas a filhos, foi um registro do momento e
compreensão total da mensagem se tornou uma fonte de estudos.
referente a imagem só de dá com Estudos estes que nos permitem
ambos. como vimos neste trabalho, e que
podem ser aprofundados muito mais,
Podemos acrescentar às conclusões abordar a história de um país, um
de Mauad (1996) a partir da análise conflito social, a inserção de uma
da fotografia, que a mensagem nova técnica e os efeitos que pode
contida em uma imagem varia de causar em um determinado lugar,
acordo com o objeto fotografado, entre tantas outras possibilidades de
com o contexto em que foi feita, em pesquisa. Sendo assim o trabalho
que circunstâncias, a proposta e o do pesquisador ao analisar uma
objetivo do fotógrafo. Diante da fonte fotográfica é investir-lhe um
imagem que temos a cima sentido diferente e a mais,
percebemos que a técnica formulando questões a cerca desta
inovadora inserida em Ruanda na imagem que permitam compreender
década de 90 tinha fins objetivos e além daquilo que está sendo
práticos, visto que, o significado representado.
atrelado a ela era identificar para
auxiliar no reagrupamento familiar. BIBLIOGRAFIA
O “anuncio” nas portas de entrada
ALVES, Ana Cristina Araújo. “Além do
das exposições com as fotos das ocidente, além do estado e muito além
“crianças desacompanhadas” era da moral: por uma política eticamente
simples: “Procura pela imagem”. responsável em relação à diferença - o
caso Ruandês”. Contexto int., Rio de
Neste caso que identificamos na Janeiro, v. 27, n.
fotografia não podemos considerar 2, dez. 2005 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=s
ci_arttext&pid=S0102-
NELSON CARNEIRO:
85292005000200002&lng=pt&nrm=iso>. CONSTRUÇÃO DE UMA
acessos em 23 jun. 2011. doi:
10.1590/S0102-85292005000200002. IMAGEM E DE IDEOLOGIA
MAUAD. Ana Maria. “Através da Imagem: SOBRE A LEI DO DIVÓRCIO
14 fotografia e história interfaces”. Tempo, FEITA PELA REVISTA VEJA
Rio de Janeiro, vol. 1, n °. 2, 1996, p. 73-
98. Sidnei Muran
KOSSOY, Boris. “O relógio de Hiroshima:
reflexões sobre os diálogos e silêncios
das imagens”. Revista Brasileira de INTRODUÇÃO
História. São Paulo, v. 25, nº 49, p. 35-42
– 2005 Num momento providencial da ação
ROBIN, Marie-Monique. “100 fotos do política brasileira, a revista Veja
século – Grandes Momentos Históricos”. abre espaço para celebrar o divórcio:
Evergreen, 1999. uma conquista das mulheres,
segundo a própria. Mas que no
fundo pode soar como conquista
para o ramo econômico da
advocacia. A revista age como um
sujeito social e oculta o partido
político Veja. Segundo Silva (2009),
partindo de um pressuposto de que
faz um jornalismo sério, objetivo e
confiável “se dá o direito de
apresentar a realidade da forma que
lhe convém (SILVA, 2009, p. 24)”.
Nisso oculta os discursos
contraditórios e o real objetivo
defendido. Criando a ideia de que a
revista é a grande defensora do
Brasil, se sustentando no
pressuposto da proposta de Lei do
Divórcio para impor sua opinião,
correlacionada, à formação de um
mito: senador Nélson Carneiro
(MDB-RJ) que é o sustentáculo de
sua ideologia.
Há uma relação neoliberal de
“abertura ampla e irrestrita ao capital
externo (SILVA, 2009, p. 23)” que
segue uma tradição do grupo que
comanda a Editora Abril, da qual a
Veja é o fio condutor, carro-chefe,
nas revistas. Trata-se de pessoas
que se articulam num campo muito
próximo ao PSDB, inclusive têm
membros executivos em comum. „NÉLSON, NÉLSON, NÉLSON‟ – A
Não agem no campo parlamentar, CONSTITUIÇÃO DA IMAGEM DE
mas sim intelectual e formulador. UM SOBERANO PERSONAGEM
Surgem da origem formal da DO CONGRESSO
burguesia. Por tratar de interesses
específicos entram em conflitos com A revista Veja expõe uma grande
outros conglomerados midiáticos fotografia na página 76, numa 15
similares, mas mantendo sempre postura serena e confiante, de
um ideal em comum, como as Nélson Carneiro. O título da matéria
Organizações Globo e o grupo é bem especulativo e soa como o
Folha. Mas no fundo, a revista „coro da vitória‟. Isso é bem ilustrado
acaba por trilhar a realidade que na revista, segundo a reportagem
tanto lhe convém, quanto ao seu aproximadamente 1.600 pessoas
grupo. cantavam “Nélson, Nélson, Nélson!
(VEJA, 1977, p. 76)”. É tão indutivo
A proposta da Veja é abrir e fechar que compara a situação ao grito
espaços, baseando-se em projetos emocional de uma torcida de futebol,
e programas traçados por sua num estádio lotado. O texto afirma,
redação que evidenciam ou ocultam ainda, que funcionários se
fatos políticos e, através deles (e confraternizaram e, além dos
para eles). “[...] abrem-se ou deputados e senadores, todos
fecham-se espaços para os queriam abraçar o grande
diferentes interesses industriais, batalhador da causa: senador
comerciais, bancários e financeiros Nélson Carneiro que há trinta anos
(SILVA, 2009, p. 24)”. lutava por essa aprovação.
A edição 459, de 22 de junho de Nesse contexto há um fato
1977, aborda a aprovação em obscurecido. É que, no fundo, está
primeira votação da Lei que permite sendo narrada uma vitória parcial,
o divórcio, colocando a interpretação como se fosse veredito final. Pois a
de que é um anseio da sociedade. votação ainda iria para um segundo
Usa como fio condutor o senador turno, mas a reportagem traz a
Nélson Carneiro e o coloca como o informação como fato concretizado,
soberano defensor e libertador das prevendo antecipadamente a
mulheres. Depois da aprovação da aprovação mesmo ainda sem ter
Lei, elas poderão tornar-se sido realizada, “certos de que o
independentes de seus maridos e resultado do segundo turno [...]
constituir novos arranjos, ou ratificará sem susto o veredito do
permanecer sozinhas. As imagens, primeiro escrutínio (VEJA, 1977, p.
da revista Veja, apontam essa 76)”. Imaginariamente, podemos
interpretação de que a mulher entender que há uma força oculta
anseia por liberdade. O ofício do afirmando isso, ou então prova a
historiador é analisar esse cenário postura conotativa de partido político
todo. Veja, cantando vitória antes da
eleição. Importante compreender o
cenário de que, depois da
reportagem da revista Veja tão
incisiva no jogo emocional, ficaria
difícil o Congresso se negar a A fotografia, de acordo com a
aprovar a dita Lei. entrevista concedida pelo fotógrafo
Boris Kossoy mistura realidade e
Diante disso, a revista impõe, ao ficção. “Por mais „documental‟ que
leitor, sua decisão suprema, diante seja a fotografia, existe um dado de
da questão. Até porque, depois de ficção em sua construção
16 aprovada em segundo turno, o (LACERDA, 2010, in
então projeto de Lei iria para a http://www.itaucultural.org.br/impres
sanção presidencial, podendo ser sao.cfm?materia=584)”. Sendo
outorgado ou vetado. Até por sinal, assim, de acordo com a entrevista
a revista coloca em cheque sua de Kossoy, a fotografia nada mais é
própria manchete, alegando que que um recorte fantasioso e
talvez não haja quórum suficiente montado que faz uma representação
para a votação de segundo turno. visual, compondo a imagem
Inclusive se já fosse Lei teria fotográfica de uma breve fração de
número. Isso só ocorre cerca de certa ação ocorrida. Contudo, o
seis meses mais tarde. Talvez isso fotógrafo afirma ser ainda a
até soe como ameaça aos fotografia, apesar de ficcional, a
deputados que pensarem se melhor representação figurativa
abstiver da votação, podendo ser existente.
citados pela revista como desertores.
As fotografias são elementos
A foto da página 77 ironiza a luta da históricos. Mas é necessário
Igreja Católica em relação ao desvendar o que uma imagem
divórcio, já na legenda da foto fotográfica “tem de aparente e oculto,
“Procissão em Porto Alegre: parte o que ela revela e silencia
de uma ofensiva – afinal fracassada (KOSSOY, 2005, p. 42)”. Esse é o
– que se estenderia a outras capitais ofício do historiador, entender o
(VEJA, 1977, p. 77)”. Há uma contexto que engloba a foto, seu
conotação pejorativa que afirma o cenário oculto e sua mensagem que
fracasso nas ações da Igreja que, se deseja passar ao leitor. A
pela própria foto, demonstra fotografia cumpre seu papel de
participação de muito mais que as representação da realidade
1.600 pessoas ligadas à campanha (KOSSOY, 2005, p. 40). Enquanto
divorcista que entoaram o „Nélson, documento ela é um instrumento
Nélson, Nélson‟ no Congresso que permite fixar na memória
Nacional, como se fosse um estádio determinadas cenas, mas também
de futebol lotado, sem contar que permite ao historiador observar o
nem um ginásio se lota com menos que ela esconde: a emoção e a
de 2.000 pessoas. Observado que ideologia que há por traz de todo o
esta questão, de futebol e torcida, contexto que forma a cena expressa
contempla o cenário emocional do na fotografia. Existem enigmas e
povo brasileiro. Até na própria segredos implícitos numa
página a revista se contradiz, pois composição fotográfica (KOSSOY,
aponta cerca de 10 pessoas, 2005, p. 41).
supostamente, assinando o ato pró-
divórcio e uma multidão protestando. A imprensa, como um todo, é
conservadora e parcial (SILVA, 2009,
p. 17). A revista Veja tem um fundo
de ação política expressa em suas detêm aspecto partidário e são
páginas. É necessário entender o partes do processo histórico. Uma
contexto da revista Veja e sua ação revista é eficiente para “organizar e
política. Trata-se de um difundir determinados tipos de
conglomerado com interesses cultura (VEJA, 1977, p. 19)”. A
políticos e econômicos ligados a cultura é coletiva e parte do
este grupo e que atende aos processo histórico, podendo ser
17
interesses e anseios dessas entendida como sinônimo de
pequenas frações burguesas, ideologia. Isso liga o contexto da
impondo sua ideologia. “[...] se revista Veja com o cenário político e
constituía ao mesmo tempo um econômico, sendo notoriamente um
partido não oficial de determinadas espaço de disputa e conflitos dentro
frações dominantes brasileiras, da sociedade que atua. Inclusive
impulsionou uma impressionante com conglomerados como o Grupo
máquina midiática na campanha Folha e as Organizações Globo.
político-eleitoral [...] (SILVA, 2009, p.
17)”. Assim, esconde e evidencia os Nessa brincadeira social
fatos e atos, de acordo com o inconveniente de evidenciar o que
interesse de sua linha editorial e os lhe convém e dar ênfase ao assunto
momentos providenciais. que julga conveniente, a revista Veja
implanta na sociedade brasileira
A revista Veja não esclarece aos desse período, uma ideia de que o
seus leitores, em linha editorial, mas divórcio é uma conquista brasileira.
Silva a conceitua como liberal. “A Uma possibilidade de independência
expressão de seu „liberalismo‟ feminina, diante da sociedade.
(responsabilidade social, quarto Fazendo de Nélson o personagem
poder, opinião pública) é por ela principal que tem sobre si
colocada como a própria natureza e assimilado a ideologia da revista.
razão de ser da imprensa (SILVA,
NÉLSON, A MULHER E O
2009, p. 23)”. Segundo a autora, há
DIVÓRCIO
um trabalho que busca esconder do
imaginário popular a verdadeira A tira de charge (VEJA, 1977, p. 82-
imagem da revista Veja que é “ser 83) aponta, claramente, a ideologia
portadora dos interesses do capital imposta pela revista. Retratando a
monopolista internacional e dos mulher e o padre. No entendimento
grupos brasileiros a eles da linha editorial, conduzida pela
subordinados (SILVA, 2009, p. 23)”. revista Veja, o padre estaria
Sobre a revista Veja, é incisiva a perdendo espaço para o advogado.
afirmação de que a linha editorial é Não era mais necessário para a
um instrumento de divulgação, mulher recorrer ao religioso e tentar
defesa e exposição de ações de uma reconciliação ou pedir
sujeitos concretos, diante de conselhos, mas sim buscar o
cenários sociais. “A ação da revista advogado e se divorciar.
é múltipla: formula um programa, Solucionando o seu problema de
organiza e gerencia, agindo vez e sustentando o trabalho
pedagogicamente em torno dele econômico da advocacia. Nesse
(VEJA, 1977, p. 19)”. Essas ações mesmo contexto, a reportagem
aponta para um judiciário
sobrecarregado e burocrático. seu casamento. Contudo, agora,
Deixando claro que a ação judicial com a Lei do divórcio (apenas
poderia demorar a ser concluída. aprovada em primeiro turno e, assim,
Supostamente, apontando um longo não promulgada ainda pelo
trabalho (talvez lucrativo) ao presidente da República) não
advogado. precisaria mais da orientação
18 conjugal da Igreja, mas sim da
A foto da página 81, marcada pelo atuação advocatícia. Isso contradiz
título „E A FAMÍLIA, COMO FICA?‟ totalmente a leitura do juiz que
(VEJA, 1977, p. 81) aponta para um atesta ser ele o conselheiro,
juiz entulhado de processos. Quase apontado uma ideia que a
escondido pela pilha de processos, reportagem não esclarece.
no retrato. É bem sugestivo Permitindo apenas, deduzir, que o
observar o imaginativo que a foto judiciário orientava e aconselhava
produz: vai demorar a que a Justiça casais, sendo isso árduo. O
resolva o caso. O juiz ainda judiciário prefere realizar as
demonstra que a justiça prefere dissoluções. Contudo, ainda é
realizar um processo de divórcio, prudente em afirmar que isso não se
correlacionando o mesmo aplica a todo o clero brasileiro
pensamento que tem a linha (VEJA, 1977, p. 82). Mas deixa as
editorial da revista Veja, que tentar informações desencontradas e
fazer uma reconciliação. “„Se eu confusas, levando o leitor (que não
pudesse‟, afirma, „pegava cada faz reflexões mais complexas e nem
padre antidivorcista e botava uma lê as suposições das entrelinhas) a
semana apenas numa Vara de ser induzido pela linha editorial da
Família para ver se eles não revista.
mudavam de opinião (VEJA, 1977, p.
81)”. Isso constrói uma imagem, A revista tenta colocar sua opinião
tendenciosamente, depreciativa na boca de um padre, mas a ideia
sobre a Igreja colocada pelo juiz fica inclusa. “A situação atual é tão
apenas como participante da aflitiva que até aceito o divórcio
celebração do casamento, mas sem (VEJA, 1977, p. 81)”. É a tentativa
o papel de orientar seus cristãos, de afirmar a ideologia de sua linha
visando soluções familiares. Trata- editorial, contudo não fica explícito
se apenas de uma opinião, não há de que o padre era divorcista. O fato
apontamento científico nem de ele afirmar que „aceita‟ não pode
estatístico disso, apenas uma única ser interpretado como ele „é
observação pessoal que pode favorável‟. Pelo menos é a ideia
incorrer em informação tendenciosa concluída mais a frente, no mesmo
ou parcial, mas serve para atestar a texto, “a crise no casamento tem
ideologia. origem em problemas demasiado
sérios para serem resolvidos como o
Essa formação ideológica, desquite e o divórcio (VEJA, 1977, p.
constituída na fala do juiz 82)”. Além do erro de língua
entrevistado pela revista, até portuguesa – que deveria dizer
contradiz a charge das páginas „demasiadamente‟ ou invés de
seguintes. A tira aponta que a „demasiado‟ deixando a frase
mulher outrora havia procurado o confusa, não podendo ser entendido
padre para aconselhamento sobre esse fato como proposital ou não –
a questão aponta que a Igreja anterior a data da emenda (Lei 6515,
Católica é nitidamente contrária. 1977, sp.).” Não seria assim tão
Talvez um ou outro representante comum pedir o divórcio e Belo
possa emitir opinião diferente, mas Horizonte, por exemplo, não possuía
induzir ou tentar interpretar um nem Vara e nem juízes
„aceito‟ como sinônimo de „sou especializados em família (VEJA,
favorável‟ mostra a indução de uma 1977, p. 83).
19
ideologia, com sustentação pífia.
Apesar da independência da mulher,
A imagem da mulher é trabalhada o interesse da maioria delas nem
como gênero em ascensão, sempre é casar-se novamente.
principalmente no que tange ao Diferente da Cena do Filme „Jeca
mercado de trabalho. O divórcio, na contra o Capeta‟ que cita
articulação da ideologia da revista, exatamente esse momento em que
permitiria independência da mulher ainda não havia Lei concretizada,
“[...] muitas mulheres procuram o apenas estava em fase de
desquite porque, depois de muito aprovação, e induz a crítica social
tempo, resolvem estudar ou de que o indivíduo poderia deixar de
trabalhar e „descobrem o mundo‟ – uma mulher para se unir a outra. Em
tornando-se incapazes de conviver sua maioria as mulheres preferem
nas bases antigas com o viver sozinhas:
companheiro (VEJA, 1977, p. 83)”.
Pensando no pressuposto de que Morar na casa dos filhos
essa mídia trabalha em sintonia com parece ser mais comum para
grupos monopolistas internacionais um pai idoso, viúvo ou
e correlacionados brasileiros, o texto separado, que não voltou a se
fortalece a função do advogado e casar, dada a maior
seu escritório e estremece o papel dependência de cuidados
de um padre e da Igreja Católica. físicos por parte dos homens.
Mulheres idosas, viúvas ou
O divórcio soa como grito de separadas, com possibilidades
independência dado às mulheres, financeiras, optam por morar
possibilidade de rompem um sozinhas, desfrutando da
relacionamento em que apenas autonomia que nunca puderam
servem aos seus maridos. Pelos vivenciar na companhia de
menos, essa é a ideia construída maridos e filhos. Enfim, não se
pela revista Veja. Colocando o trata apenas de fatalidades
senador Nélson Carneiro com ícone rondando a vida das mulheres,
da luta por estabelecer a Lei do mas também da conquista de
divórcio. Apesar de toda a festa novas oportunidades
apresentada na reportagem, a (SCHWARCZ, 1988, p. 435).
imagem que a revista deixa fora de
foco, com menos evidência, é que Mazzaropi também aponta para a
são necessários alguns requisitos ação dos advogados. A revista Veja
para se beneficiar da lei. “Art. 2° – A induz a essa conotação ligada à
separação, [...] poderá ser de fato, questão econômica. “Já na manhã
devidamente comprovada em Juízo, de quinta-feira [...] começaram a
e pelo prazo de cinco anos, se for pingar pelos escritórios de
advocacia do país os primeiros
candidatos ao divórcio (VEJA, 1977, rompendo com a dependência
p. 83).” Ao que indica, a revista Veja perante aos seus parceiros. Isso
dá sua cartada em apontar que o tornou as relações mais flexíveis. “A
ramo de advocacia teria acréscimo transformação e flexibilização das
de clientes, devido à nova Lei. Induz relações de casal deu-se pela busca
ao contexto de que, da igualdade entre homens e
20 pedagogicamente, há a formulação mulheres. Parece que a escolha de
de uma ideia que remete às casar por amor; de divorciar-se e de
mulheres, com casamentos em crise, diferenciar-se possibilitam maior
em procurar um advogado e tentar bem-estar no indivíduo e/ou no
sua liberdade. Descartando o casal (FREITAS, 2002, p. 14)”.
conselho e orientação no campo
religioso. Contudo, nesta onde de
modernização é necessário à
A MULHER E A HISTÓRIA, EM mulher tomar uma postura sóbria e
MEIO AOS CONFLITOS DO evitar posicionamentos radicais.
DIVÓRCIO Deve disputar o mercador de
trabalho ombro a ombro com os
Desde a década de 1960, homens, mas sem cometer idiotices
principalmente, com a onda do e tentar se firmar partindo de uma
movimento feminista, (SOIHET, ação feminista (SUPLICY, 1995, p.
1997, p. 276) a mulher passou a 162). Ainda, cabe ao homem
buscar sua independência com mais também ser mais flexível, auxiliar a
veemência. Procurou espaço e mulher e até chorar quando julgar
desencadeou estudos específicos, necessário, quebrando o status de
enfocados na mulher, passaram a machão, constituído na sociedade
pautar as universidades patriarcal.
estadunidenses, francesas, entres
outras. No Brasil, e restante da Suplicy afirma que o conceito de
Europa, isso passa a ocorre depois família é algo que as mulheres
de 1970. colocam em xeque. Há um
interesse maior dos homens que
A partir desse período a mulher das mulheres de constituir família.
começa a ganhar voz perante a “São eles que desejam que as
sociedade patriarcal. “Até a década mulheres fiquem em casa, tenham
de 1970, muito se discutiu acerca da muitos filhos e não venham a
passividade da mulher, frente à sua competir com eles no mercado de
opressão, ou da sua reação apenas trabalho (SUPLICY, 1995, p. 189).”
como resposta às restrições de uma A autora entende que os homens
sociedade patriarcal (SOIHET, 1997, sentem-se ameaçados pela
p. 278).” Relatos de maus tratos, concorrência feminina. Bem como,
abusos, espancamentos e Schwarcz descreve que os homens
abandono perfazem o cenário de mais idosos encostam-se às famílias
vida da figura feminina. Surge a por necessitarem de cuidados. Por
mulher rebelde, que trama formas sua vez, as mulheres viúvas ou
de burlar proibições e atingir seus divorciadas tendem a viverem
objetivos. sozinha. A autora explica que os
As mulheres, numa onda crescente, homens têm mais facilidades e
foram buscando seus espaços e buscam um segundo casamento
quando se tornam viúvos os renda aos advogados, mas esses
divorciados, as mulheres procuram jogos entre ficção e realidade
novo marido com uma incidência deixam o leitor confuso quanto a sua
brutalmente menor. linha editorial, permitindo que a
revista Veja abra e feche espaços
A revista Veja coloca uma imagem conforme julgar conveniente.
confusa sobre como se pode ler a 21
figura da mulher divorciada. Nas Partindo desses pressupostos é
fotografias da página 83, há dois possível entender que a revista Veja
cenários. Primeiro a mulher e seu está inserida na campanha do
marido com a legenda “Vara da divórcio, com um agente político.
Família, São Paulo: em quatro Nélson nada mais é que o
anos...” e na segunda fotografia (ao personagem que idealiza o que a
lado direito da primeira) somente a revista Veja pensa e traceja em sua
mulher com a legenda “... mais de linha editorial. O senador é o
23.000 desquites (VEJA, 1977, p. personagem central que
83)”. É bem complexa a contextualiza a ideologia da
especulação que pode haver nessas publicação. Assim, que está falando
duas fotografias e suas relações. sobre divórcio é o Nélson, os
entrevistados. A revista se isenta de
Como atesta Kossoy, a foto pode emitir a opinião da linha editorial.
ser uma mistura de ficção e Reveste sua ideologia nos
realidade (LACERDA, 2010). Ele personagens, tirando o foco de si e
ainda afirma que oficio do transferindo para os personagens de
historiador é exatamente este: seu enredo que carregam a
entender o contexto histórico e as mensagem, exatamente da forma
relações existentes na elaboração que a linha editorial estipula.
da foto, como o olhar do fotógrafo e
todo o contexto, certos enigmas e CONCLUSÃO
segredos estão implícitos na
composição fotográfica (KOSSOY, É bem complexo entender a linha
2005, p. 41). editorial da revista Veja. Essa
reportagem, analisada, sugere que a
Supostamente, a revista tenta dizer revista não apresenta uma opinião
que a mulher sem o homem é explicita do que é melhor para a
solitária. A segunda foto da página sociedade. No fundo, a linha
83 leva a essa especulação. Sugere editorial fecha com a corrente
que com o marido, primeira foto, a divorcista, mas o leitor é ludibriado a
vida está normal. Sem ele a mulher achar que a revista não se posiciona.
se põe a chorar, talvez pela sua Quem emite opinião, luta há 30 anos
ausência. É uma espécie de mea e busca deputados e senadores
culpa que deixa o público para apoiarem o projeto é o senador
desnorteado e sem uma Nélson Carneiro. Há uma ação
interpretação clara. Afinal, a revista política, pedagogicamente articulada,
Veja apoia o divórcio? É contra? que transfere a opinião concebida
Isso é bom para a sociedade? pela revista Veja ao seu
Claramente, a revista é o fio personagem central.
condutor de um grupo de interesses
e mostra no divórcio uma fonte de
Claramente a revista Veja trata o trabalha dentro do contexto de
assunto como uma independência grupos minoritários dominantes.
para a mulher. Melhor que o Articula sua ideologia com esses
conselho do padre é procurar um grupos e produz um imaginativo
advogado e se divorciar. Isso é uma popular de que o divórcio representa
visão que fortifica economicamente a solução para os problemas
22 os escritórios de advocacia. A linha conjugais.
editorial afirma isso por meio da
charge. Confunde a mentalidade Uma composição fotográfica permite
comum, a partir do momento que contextualizar e induzir o imaginário
explica a falta de estrutura da justiça. do leitor para a linha de indução
Isso sugere que o divórcio será um projetada pela linha editorial da
processo longo e demorado. Vai revista. O uso das imagens é um
despender custos. A própria recurso que produz uma afirmação,
reportagem já sugere que o setor passa uma ideologia. Analisando
começou a ser alimentado, assim criticamente o que uma imagem
que a Lei foi votada em primeiro quer dizer é fundamental para
turno. Mostra assim a ação entender o que a sustenta e seu
econômica inserida no contexto. contexto histórico.

A constituição de um mito, Nélson Inteligentemente, a revista Veja


Carneiro, no fundo é o elemento que camufla sua opinião
puxa o feixe ideológico projetado estrategicamente em seu
pela revista. O senador é colocado personagem: Nélson Carneiro. Ele é
como um soberano, libertador das o responsável, a revista apenas
mulheres, contudo é bem sugestivo narra o fato. Isso é o aparente.
imaginar que a revista Veja apenas Contudo, a ideia central é entender
utiliza-se do fluminense para que a conjuntura aponta que,
imprimir sua mensagem e impor sua ideologicamente, a linha editorial
ideologia. Uma luta de 30 anos com sustenta uma opinião favorável ao
final consagrado para Carneiro (e divórcio, conflitante com a Igreja e
Veja). apoia a independência feminina. As
imagens estão articuladas de forma
No pressuposto do ser historiador que permitem todo esse jogo de
(ofício) é necessário analisar o ideias que relacionados com o texto,
contexto que cerca a reportagem e permitem ao historiador
constituí esses elos para compreender as entrelinhas e
compreender o que a reportagem, observar o real papel ideológico
ou melhor, qual a ideia que a formatado e inserido pela revista
reportagem tende a defender. Veja para a sociedade.
Obviamente cabe ao historiador
contextualizar o objeto e todo o
enredo que o cerca.
A Lei do divórcio pode até não ter
sido anseio popular. Os grupos
divorcistas eram uma minoria no
cenário nacional, mas levaram à
frente a proposta. A revista Veja
REFERENCIAL ANEXOS

FREITAS, C. M. P. B. S. Relação de Imagens da Reportagem


casal e os Novos Arranjos.
Florianópolis: 2002. Disponível em:
http://74.125.155.132/scholar?q=cache
:Qo3I4kt4pdYJ:scholar.google.com/+C
ARLA+MARIA+PRA+BALDI+DA+SILV
23
EIRA+DE+FREITAS&hl=pt-BR Consulta
realizada em 08-07-2011.
KOSSOY, B. O relógio de Hiroshima:
reflexões sobre os diálogos e silêncios
das imagens IN: Revista Brasileira de
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35-42. reportagem
LACERDA, M. Os mistérios da
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(Direção). Jéca contra o Capeta.
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Consulta realizada em 05-07-2011.
SCHWARCZ, L. M. Arranjos Familiares
no Brasil: uma visão demográfica in:
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Contrastes da intimidade
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Letras, 1988. P. 411-438. Assinatura de
SILVA, C. L. VEJA: o indispensável Juiz divorcistas
partido neoliberal (1989-2002). Cascavel: sobrecarregado
Edunioeste, 2009.
SOIHET, R. História das Mulheres in:
Domínios da História: Ensaios de
Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro:
Elsevier, 1997. 8ª. Ed. P. 275-296.
SUPLICY, M. Condição da Mulher –
Amor, Paixão, Sexualidade (artigos). São
Paulo: Brasiliense, 1985. 5ª. Ed.

Quadro da mulher com companheiro e


sozinha
ENGENHEIROS DO HAWAII, O motivo desta escolha é o fato da
identificação com a banda, as
CANÇÕES E AFINS discussões que o líder e compositor
Humberto Gessinger traz através de
Bruna Letícia Colita suas letras podem ser interpretadas
como atuais, mesmo sendo uma
24 banda com início na década de 80
Escolha do Tema não ocasiona nessa interpretação
anacronismo, pois parece que os
A escolha do tema desse texto se problemas que ele cita estão
dá devido as opções que nos foram
sempre renovados de alguma forma,
apresentadas, e dentre elas a que
as revoltas e os motivos para tal
mais me identifico é a música. também.
Portanto, o prazer de se trabalhar
com aquilo que gostamos nos dá O rock brasileiro dos anos 80
certamente mais ânimo e mostrou sua “cara” para o
persistência. mundo. Um tempo e uma
manifestação cultural recente,
A música é mais que um elo cultural, merecedora da atenção
muitas vezes ela é um estado de
historiográfica, necessária aos
espírito que está presente em
que desejam compreender a
momentos felizes ou nem tão felizes história contemporânea e suas
de nossas vidas, escutamos música perspectivas
pela melodia, pelo bem estar que
ela nos causa, refletimos suas (GAMA, 2011 in:
letras, dançamos, nos divertimos, http://www.webartigos.com
lembramos de pessoas, momentos /articles/60704/1/Historia-e-
bons e ruins, ou seja, a música faz Musica-um-Brasil-dos-anos-
uma ligação direta e imediata com 80/pagina1.html).
nossas emoções e desejos.
Portanto, letras inteligentes e uma
Deste modo, mesmo não melodia agradável fazem com que
sendo músico ou musicólogo os Engenheiros do Hawaii
com formação apropriada e mantenham seu fiel público
específica, o historiador pode refletindo suas letras e fazendo com
compreender aspectos gerais que esse estilo musical de tanto
da linguagem musical e criar sucesso nas décadas de 80 e 90
seus próprios critérios, balizas permaneça, "[... por amor às causas
3
e limites na manipulação da perdidas]” .
documentação (MORAES,
2000, p. 210). Breve contexto do Brasil na
década de 80
Dentro da categoria musical
encontramos diversos ritmos, O perfil social do Brasil na década
melodias, épocas, bandas e afins, de 80 tem como característica a
porém, nesse trabalho os holofotes insatisfação do jovem em relação à
se direcionam para a banda gaúcha sociedade que estava inserido,
de Rock Nacional conhecida podemos notar isso através de
mundialmente como “Engenheiros
do Hawaii”. 3
Dom Quixote. Letra: Gessinger, 2003.
exemplos que retratam grande parte idéias, e as canções deste momento
desse grupo que manifestava esse retratam o clima de revolta e
sentimento em suas letras de ansiedade por mudanças no quadro
música e também em suas atitudes nacional (GAMA, 2011 in:
perante à realidade e ao poder http://www.webartigos.com/articles/6
público. 0704/1/Historia-e-Musica-um-Brasil-
dos-anos-80/pagina1.html).
25
Podemos perceber esse
comportamento rebelde analisando Engenheiros do Hawaii – breve
diversas bandas e letras do rock histórico da banda
nacional da época, como por
exemplo o Legião Urbana, em que Uma das principais características
Renato Russo trazia em suas da banda já está sugerida no próprio
composições críticas diretas ao nome, que é a criatividade,
poder público, com títulos muitas irreverência. Em meados de 1985
vezes em forma de questionamento nascia a banda “Engenheiros do
como: “Que país é esse?” (1978). Hawaii”, a princípio foi apenas uma
Também nesse mesmo momento a formação entre quatro colegas da
banda Blitz traz algumas faculdade de Arquitetura para
insatisfações em suas letras e um reivindicar a paralisação de aulas do
jeito irreverente em suas melodias, curso, mas o sucesso entre os
Cazuza também fez parte dessa acadêmicos foi maior que o
época em que as músicas esperado, então esses colegas
buscavam um despertar para a resolveram levar a diante a banda
juventude através de suas letras que fazendo com que surgisse ai uma
traziam seu pensamento que era das bandas de maior sucesso da
compartilhado por diversos jovens e geração da década de 80-90.
criticado pela elite social. (FERREIRA, 2010 in:
http://www.artigonal.com/advertising
Na política o quadro nacional -artigos/engenheiros-do-hawaii-toda-
era de mudanças, através de a-historia-da-banda-1902418.html)
protestos e reivindicações os jovens
pediam em 1984 eleições diretas, tal Já no início de 1986 lançam então
movimento ficou conhecido como seu primeiro álbum, chamado
Diretas Já! Assim como nessa “Longe Demais das Capitais”, a
década foi criado o Partido dos formação da banda nesse momento
Trabalhadores, e também em 1988 era : Humberto Gessinger no Violão
uma reformulação da nossa e no Vocal, Carlos Maltz na guitarra,
Constituição, que resulta em nossa Carlos Stein guitarrista e Marcelo
atual constituição. Pitz no baixo, esse primeiro álbum
ficou marcado por duas letras, que
Portanto, essa década é marcada trazem a crítica e a reflexão em
por grandes mudanças no quadro suas raízes, ambas compostas por
nacional, tanto na política como no Humberto Gessinger, falam sobre a
modo de fazer e entender a política, cidade, a juventude e as imposições
a insatisfação fazia parte do do poder público que influenciam
pensamento jovem da época e mais totalmente o dia a dia e as escolhas
do que isso, estavam sendo da juventude. Toda a forma de
apresentadas e difundidas essas poder - Longe demais das capitais.
O segundo LP saiu em 1988 de canções que faziam parte do
chamado “A Revolta dos Dandis” e disco assim como frases de canções
as composições de Gessinger que famosas da banda e também
mais retratam o momento da banda imagens que traduziam ideais da
se direciona para a juventude e se banda como o símbolo da paz, o
chama: “Ouça o que eu digo: não papa tomando chimarrão, fotos dos
26 ouça ninguém”. Assim como “Filmes integrantes, bandeira do Grêmio
de Guerra, canções de Amor”, Futebol Clube – que é uma das
composições do mesmo álbum. paixões do líder Humberto
Nesse momento a banda passa a Gessinger (p.42-49).
ter como integrante Augusto Licks e
Humberto Gessinger passa tocar No período entre 1988-1991 a
contrabaixo. O Estilo da banda banda sofre algumas mudanças em
nessa época é influenciado por Pink seus integrantes, e o único fundador
Floyd, ou seja, buscam um gênero que continua é Humberto Gessinger
mais progressivo e isso de certo e passam a compor o trio Luciano
modo retrata o questionamento que Granja - guitarra e Adal Fonseca –
a juventude mantinha com o bateria. Gessinger Trio é o nome
existencialismo, pois juntamente sugestivo dessa mudança, porém,
com Pink Floyd a banda utilizava os fãs consideram apenas mais uma
citações de Sartre, pensamentos alteração do corpo dos Engenheiros,
filosóficos, demonstrando a rebeldia pois para eles a essência das letras
ao mesmo tempo em que é a mesma.
demonstravam o preparo para Em 1996 Gessinger Trio lança o Cd
contestarem a sociedade e as “Simples de Coração” que ao
imposições (FERREIRA, 2010 in: mesmo tempo tem em seu nome
http://www.artigonal.com/advertising um duplo sentido (Simples de
-artigos/engenheiros-do-hawaii-toda- coração – simples decoração)
a-historia-da-banda-1902418.html). apresenta músicas com
Com o sucesso aumentando e o características mais expressivas era
número de fãs também, o que o público gostaria de ouvir e
Engenheiros do Hawaii lançam seu ainda Gessinger procurava com a
terceiro LP intitulado: “Ouça o que mudança dos integrantes alcançar
eu digo, não ouça ninguém” - 1988. outros públicos, misturar tribos é
O título do LP se dá devido ao uma das preferências de Humberto
sucesso da música do álbum (2010, p. 90-94).
anterior, e apresenta em seu corpo Sempre desconfiei dos atalhos.
letras que refletem a personalidade Não gosto de seguir
da banda e em seu encarte uma literalmente cartilhas. As
homenagem as engrenagens indústrias que crescem na
utilizadas por engenheiros em suas periferia da produção artística
construções, segundo Gessinger têm os mesmos vícios de
(2010), foi sugestivo utilizar esse qualquer indústria. Vivem
instrumento das obras preenchidos criando seus presets. Camisas
com desenhos que retratassem pretas e guitarras pontudas
alguma ou várias mensagens que para o heavy metal. Meninas
eles estavam dispostos a transmitir, tocando baixo para os
como por exemplo, frases e trechos
alternativos. Guitarras EUA, o que também sugere o título
semiacústicas e terninhos para do próximo álbum: “Dançando no
os retrôs. Bonés dos Campo Minado - 2003”.
yahnakees e Adidas pros
rappers. Se vacilar, até o tipo No intervalo entre 2003 - 2007 são
de droga, ou a não-utilização gravados acústicos que trazem
de drogas, já vem no cardápio regravações de grandes sucessos, 27
do estilo. Quando eu acabar de com algumas pequenas mudanças.
escrever essa frase, os Em 2007 saiu o último álbum dos
modelos podem ter mudado, Engenheiros: “Novos Horizontes”,
mas a existência de um com participações especiais de
modelo certamente persistirá. Clara Gessinger, filha de Humberto
Não sermos literais as vezes e Carlos Maltz, co-fundador dos
faz nossa beleza Engenheiros. Depois disso,
(GESSINGER, 2010, p. 93). Humberto decide dar um tempo com
a banda e parte para o Projeto que
Em 1997 o álbum Minuano é atualmente leva a diante chamado
lançado assim como páginas na Pouca Vogal.
internet que divulgavam a banda e
seu trabalho, segundo Gessinger a Engenheiros do Hawaii não está
pressão aumenta nesse momento e acabado, está em um momento de
isso é traduzido nas letras das descanso, a legião de fãs
músicas que começam a aparecer permanece dia após dia esperando
nessa ocasião, a cobrança por uma resposta.
perfeição que talvez nem exista faz A análise de Crônica
parte dessa fase em Engenheiros do 4
Hawaii. Crônica

O álbum de 1999 chama-se “Thau Já não passa nenhum carro por aqui
Radar” que traz melhoras na parte já não passa nenhum filme na TV
técnica de som, o cd é todo você enrola outro cigarro por aí
analógico, e as músicas estão e não dá bola pro que vai acontecer
despreendidas de conceitos e Mais um pouco e mais um século
justificam o nome do álbum - adeus termina
ideais de perfeição. Uma espécie de mais um louco pede troco na
libertação da cobrança e do stress esquina
que até então estava 'marcando' a tudo isso já faz parte da rotina
banda (2010, p. 110). e a rotina já faz parte de você
Em 2000 e 2001 são gravadas duas você que tem idéias tão modernas
versões do mesmo álbum: “10.000 é o mesmo homem que vivia nas
destinos em 2000 e 10.001 destinos cavernas
em 2001 – ao vivo”. Todo mundo já tomou a coca-cola
Em 2002 foi o lançamento de a coca-cola já tomou conta da china
“Surfando Karmas e DNA”, trouxe todo cara luta por uma menina
em suas músicas um pouco das e a palestina luta pra sobreviver
reflexões acerca do caos que o
mundo passava após ataques nos 4
Composição: Gessinger, 1986.
a cidade, cada vez mais violenta Logo, a canção segue e a letra
(tipo Chicago nos anos quarenta) sugere reflexões sobre o futuro
e você, cada vez mais violento próximo, pois na segunda estrofe
no seu apartamento ninguém fala Gessinger alerta a vinda de um novo
com você século e deixa no ar a expectativa
de uma reação dessa juventude que
28 Você que tem idéias tão modernas se encontra numa solidão pessoal e
é o mesmo homem que vivia nas insatisfeita no coletivo, insatisfeita
cavernas. nas idéias e nos resultados mas que
pouco faz para mudar esse quadro,
Na primeira estrofe podemos fazer pois, [...] a rotina já faz parte de
uma interpretação devido a solidão você.
que as pessoas enfrentavam, O refrão é algo mais direto, uma
principalmente em relação à crítica absoluta ao comodismo já
juventude da época que estava de que a insatisfação é algo que o
certa forma sofrendo uma crise de homem, de um modo geral, carrega
identidade; em sua personalidade. Desde os
A pós-modernidade se auto- primórdios estamos dia após dia
afirmou demonstrando uma buscando melhorar, crescer, nos
vontade de superação do adaptar, e na canção fica nas
moderno, principalmente após entrelinhas a pergunta: Como
as consecutivas guerras do estamos buscando melhorar? Ou
século XX. Ganha expressão somos ainda os homens das
própria se posicionando contra cavernas escondidos atrás de idéias
os valores modernos, o que o medo do desconhecido nos
cientificismo e racionalismo impede de colocarmos em prática?
exacerbados, os quais se A terceira estrofe apresenta
mostraram imprescindíveis ao problemas e soluções em termos de
aprimoramento tecnológico dos difusão e compartilhamento de
mecanismos de autodestruição, idéias, pois ao mesmo tempo em
ineficazes para evitar a guerra que as pessoas conseguem quebrar
e miséria global. É importante as barreiras das distâncias (todo o
assinalar que em meio à mundo já tomou a coca-cola), não
repressão do regime militar as conseguem resolver conflitos
décadas de 1970 e 80 antigos (e a Palestina luta pra
fervilharam com os sobreviver), e isso repercute em
movimentos sociais, liderados uma interpretação da sociedade
por estudantes, trabalhadores, como um todo assim como de
músicos entre outros artistas e nossas vidas particulares, nossas
membros da sociedade que, da barreiras íntimas, nosso isolamento
maneira que encontravam, que de certa forma é uma
manifestavam-se contra a conseqüência de uma vida urbana
ditadura (GAMA, 2011 in: tão perigosa e violenta (e a violência
http://www.webartigos.com já faz parte de você).
/articles/60704/1/Historia-e-
Musica-um-Brasil-dos-anos- Em suma, essa canção faz parte do
80/pagina1.html). primeiro álbum dos Engenheiros do
Hawaii. A letra escrita por Gessinger uma espiadinha (GESSINGER,
traz críticas à sociedade que se diz 2010, p. 34).
cada dia mais moderna, o discurso
gira em torno das atitudes que O título da canção sugere uma
acreditamos serem comuns e nem interpretação pessoal de cada
percebemos em nosso dia-a-dia que ouvinte já que o intuito de uma
nossas ações são de certa forma crônica é lançar uma idéia subjetiva 29
'pré-históricas', ele utiliza o exemplo que através de seus exemplos, de
da coca-cola para que possamos sua ironia ou de suas entrelinhas
pensar que a propaganda e o possa trazer diversas
marketing conseguem alcançar interpretações. Portanto, além da
extremos que os homens não canção apresentar de certa forma o
conseguem imaginar tamanha momento que o autor estava
difusão, e ao mesmo tempo em que vivendo, seus paradigmas contra a
essa acessibilidade está tão rotina que os jovens se confortam, a
desenvolvida existem guerras e letra pode ser interpretada em
discussões antigas. São estrofes outros momentos, outras épocas,
carregadas de duplos sentidos, como a atual, por exemplo.
frases reflexivas passadas e atuais, Portanto, a canção é rica em
críticas ao sentimento de solidão reflexões e pode ser trabalhada e
que muitas vezes encontramos na interpretada em sala de aula, por
cidade cheia de pessoas e quanto nós professores, para
mais gente, mais violência e solidão. exemplificarmos para nossos alunos
Essa dubiedade é uma que são nossa juventude, que de
característica forte da banda nos algum modo permanecemos
anos oitenta, letras reflexivas e que conformados, e que a mudança
trazem através de seus exemplos deve começar dentro e a partir de
questões e problemas que podemos nós tanto para conflitos mundiais
interpretar em diversos campos quanto para problemas pessoais.
ainda da nossa atual vida urbana. A Os Engenheiros do Hawaii
questão da música Crônica em si atualmente se encontram numa
tem uma interpretação que segundo pausa em suas carreiras, mas as
Gessinger é simples e crua, mesmo letras e as reflexões que nos
nesse momento em que a novidade trouxeram permanecem e
estava em alto no mundo pop. permanecerão para que possamos
através da música pensarmos em
nossas atitudes e em nossa
O mundo pop é muito sociedade de um modo geral. Fica a
novidadeiro. A onda é vir , a expectativa para um retorno em um
cada ano, com outra onda. futuro próximo.
Como se novidade fosse um
valor em si. Sempre achei Resolvi parar por tempo
empobrecedor pensar assim. indeterminado. Ok, também
Prefiro artistas que abrem odeio a expressão “tempo
poucas portas e se jogam na indeterminado”. Mas ela pode
sala escura a artistas que ser uma definição interessante
abrem todas as portas para dar da vida. Talvez, quando tu
estiveres lendo, eu já tenha “QUE PAÍS É ESTE”: VERSOS
voltado, talvez não volte nunca
mais. Não é nada tão SIMPLES E CRÍTICA ATUAL
dramático, é a vida. [... pode NAS CANÇÕES DE RENATO
ser pra sempre, pode não ser
mais, pode ter certeza, e voltar
RUSSO
30 atrás, pode correr risco,
arriscado sempre é, só não
Jaquelline Maria Cardoso
pode o medo, te paralisar]
(GESSINGER, 2010, p. 154).
A música é uma das formas de
REFERÊNCIAS comunicação que está presente
FERREIRA, F. Engenheiros Do Hawaii entre os seres humanos em todos
– Toda A História Da Banda. Disponível os níveis de seu desenvolvimento,
em: http://www.artigonal.com/advertising- em que ela é capaz de transmitir as
artigos/engenheiros-do-hawaii-toda-a- identidades afetivas, atitudes e
historia-da-banda-1902418.html. padrões de comportamento de
GAMA, A. Música e História: um Brasil diversos grupos sociais. Além disso,
dos anos 80. Disponível a canção é uma expressão artística
em: http://www.webartigos.com/articles/6 que contém um forte poder de
0704/1/Historia-e-Musica-um-Brasil-dos comunicação principalmente quando
anos-80/pagina1.html#ixzz1Rd9rNMen.
se espalha pelo universo urbano,
alcançando ampla dimensão da
GESSINGER, H. Pra ser sincero. 123 realidade social, e assim a canção e
variações sobre um mesmo tema. Caxias a música popular poderiam ser
do Sul: Belas Letras, 2010. encaradas como uma rica fonte para
GESSINGER, H. Mapas do Acaso. 45 compreender certas realidades da
variações sobre um mesmo tema. Caxias cultura popular e desvendar a
do Sul: Belas Letras, 2011. história de setores da sociedade
MORAES, J. História e música: canção pouco lembrados pela historiografia.
popular e conhecimento histórico. São Neste trabalho iremos enfocar mais
Paulo: UNESP, 2000. para a banda Legião Urbana,
analisando nas entrelinhas da
música “Que país é este”, que deu
título para um LP do Legião Urbana
e sua repercussão para o país. Eles
representam a primeira geração de
jovens artistas que vieram de
Brasília e conseguiram sucesso em
todo o país funcionando como porta-
voz da cultura brasiliense.
Os problemas citados nessa canção
que foi feita em 1978-1987 parece
estar mais presente do que nunca
nos dias de hoje, já que envolvem
fatores como: Política, Futuro,
Cultura entre outros.
A música exalta o espírito humano e
permite a expressão de nossos
A música, bem como os pensamentos e sentimentos.
produtos culturais como um
todo, não estão ligados, A música ocupa um lugar
organicamente, a esta ou privilegiado na história
aquela classe ou grupo social. sociocultural, lugar de 31
O que ocorre é uma medições, fusões, encontro de
apropriação, cujo processo etnias, classes e regiões que
contem em si as posições formam a nação. Além disso, a
sociológicas e as contradições música tem sido ao menos em
políticas e econômicas que boa parte do século XX, a
perpassam uma sociedade tradutora dos nossos dilemas
(NAPOLITANO, 2002, p. 21). nacionais e veiculo de nossas
utopias sociais. Para completar,
A música é classificada por seu ela conseguiu, ao menos nos
estilo musical o qual agrada um últimos quarenta anos, atingir
determinado tipo de grupo o qual se um grau de reconhecimento
identifica com tal estilo. Um estilo cultural que encontra poucos
musical é um processo lento e paralelos no mundo ocidental.
gradual, relacionado com a evolução Portanto, arrisco dizer que o
social e com as mudanças de Brasil, sem dúvida uma das
mentalidade que definem cada grandes usinas sonoras do
época, cada geração. planeta, é um lugar privilegiado
não apenas para ouvir música,
mas também para pensar a
Nos últimos anos tem sido música (NAPOLITANO, 2002,
bastante comum a utilização p. 5).
da canção, seja como fonte
para a pesquisa histórica, seja Na década de sessenta, o Brasil
como recurso didático para o reunia os movimentos musicais da
ensino de humanidades em Bossa-Nova, do Tropicalismo, das
geral. Entre os brasileiros ela canções de protesto vinculadas ao
ocupa um lugar muito especial Centro Popular de Cultura, bem
na produção cultural. Em seus como o Teatro de Arena, o Oficina,
diversos matizes, ela tem sido o Cinema Novo, dentre outros.
termômetro, caleidoscópio e Nesse tempo, a juventude de classe
espelho não só das mudanças média urbana foi influenciada, em
sociais, mas, sobretudo das maior ou em menor grau pelos
nossas sociabilidades e movimentos da década de 1960 e
sensibilidades coletivas mais 1970.
profundas. Por isso mesmo, o Após o Ato Institucional nº5,
uso da canção como promulgado em fins de 1968 que
documento e recurso didático aprofundou o caráter repressivo do
deve dar conta de um conjunto regime militar, houve um corte das
de problemas nada simples de experiências musicais ocorridas no
resolver (NAPOLITANO, 2002, Brasil ao longo dos anos 60. Neste
p. 53). momento surge a expressão MPB
(Música popular brasileira) formam o grande mosaico chamado
conhecida até hoje e que sintetizava “cultura brasileira”.
a busca de uma nova canção que
expressasse o Brasil como projeto Ponto de encontro de etnias,
de nação. Em 1983 o cenário religiões, ideologias, classes
musical brasileiro e as energias da sociais, experiências diversas,
32 indústria fonográfica irão se voltar ora complementares, ora
para o rock brasileiro, porém “o rock conflitantes, a música no Brasil
brasileiro dos anos 80, por exemplo, foi mais do que um veiculo
não chegou a negar a tradição neutro de idéias. Ela forneceu
poético-musical da MPB, como os meios, as linguagens, os
poderia parecer à primeira vista” circuitos pelos quais os vários
(NAPOLITANO, 2002, p. 50). No brasis se comunicaram. Nem
Brasil a década de 1980 foi uma sempre esta comunicação foi
síntese cultural na qual o país sentiu simétrica e igual entre os
pela interrupção do regime militar, diversos agentes sociais e
da perspectiva cultural vista pelos históricos envolvidos, na
movimentos culturais da década de medida em que a musica
1960. também incorporou os dramas
e conflitos da nossa formação
As relações entre música histórica mais profunda e do
popular e história, assim como nosso acelerado processo de
a história popular no ocidente, modernização capitalista. Por
devem ser pensadas dentro da estes elementos, a música,
esfera musical como um todo, popular ou erudita, constituiu
sem as velhas dicotomias um grande conjunto de
“erudito” versus “popular” documentos históricos para se
(NAPOLITANO, 2002, p. 09). conhecer não apenas a historia
da musica brasileira, mas a
Aquilo que chamamos de música própria historia do Brasil, em
popular, em seu sentido amplo e o seus diversos aspectos
que chamamos de “canção” é um (NAPOLITANO, 2002, p. 76).
produto do século XX. Portanto, em
linhas gerais o que se chama de Assim, a identidade cultural que
musica popular emergiu do sistema passou por uma revisão
ocidental tal como foi consagrado paradigmática desde meados do
pela burguesia no inicio do século século XX, manifestou-se na da
XIX, e a dicotomia “popular” e década de 1980 e, desse modo,
“erudito” nasceu mais em função consolidou o rock brasileiro.
das próprias tensões sociais e lutas
culturais da sociedade burguesa do Tal mudança da música
que por um desenvolvimento popular vem depois da II
“natural” do gosto coletivo, em torno Guerra Mundial, com o advento
de formas musicais fixas do rock´n roll e da cultura pop,
(NAPOLITANO 2002). A música no como um todo. A experiência
Brasil foi um ponto de fusão musical é o espaço de um
importante para os diversos valores exercício de “liberdade” criativa
culturais, estéticos e ideológicos que e de comportamento, ao
mesmo tempo em que se
busca a “autenticidade” das produção de suas primeiras canções.
formas culturais e musicais, Em 1987 a banda lançou o terceiro
categorias importantes para disco denominado Que País é Este
entender a rebelião de setores 1978-1987, da qual o presente
jovens (NAPOLITANO, 2002, p. trabalho terá maior enfoque. Tal
9). opção de repertório deu-se muito
em função do conturbado momento
33
Em meio a tudo isso surge Renato em que o disco foi gravado. O carro-
Manfredini Júnior, mais conhecido chefe de “Que País é Este” 1978-
como Renato Russo no cenário da 1987 um punk rock, foi à canção-
música nacional em 1985, ano do título composta por Renato Russo
lançamento do primeiro álbum da em 1978 quando ainda estava no
Legião Urbana, banda na qual era Aborto Elétrico em Brasília. As
vocalista e letrista. Renato Russo é vendas do disco com seus versos
até hoje considerado o principal simples, ritmo rápido e ar de
compositor do rock nacional dos indignação fizeram sucesso.
anos 1980. Sua trajetória como
cantor e compositor começa no ano Mesmo depois da dissolução da
de 1978, na banda Aborto Elétrico, banda Aborto Elétrico essa canção
em Brasília, em que ele mesmo diz: continuou sendo apresentada por
“Imagina ter um conjunto chamado Renato Russo, desta vez nos shows
Aborto Elétrico, numa época em que da Legião Urbana em diversas
você não podia nem ter conjunto” cidades do país. “É importante
(RUSSO, 1986 apud ASSAD, 2000, ressaltar que „Que país é este‟ foi
p.19). Saiu da banda em 1982, quis uma das primeiras canções
mudar o estilo de música produzido importantes da chamada „linha
até então, rompendo com o punk politizada‟ do rock brasileiro”
rock, se apresentou em Brasília em (SANTA FÉ JR, 2005, p. 11).
1982 como “Trovador Solitário” em
que tinha a influência do folk rock e A música a ser analisada neste
assim ficava definida a banda trabalho de pesquisa é: “Que país e
Legião Urbana como um grupo de este”
pop-rock. Como compositor, criou Nas favelas, no Senado
várias canções em que questiona o Sujeira pra todo lado
Brasil e os brasileiros. Segundo Ninguém respeita a constituição
Renato: “A Legião chamou muita Mas todos acreditam no futuro
atenção, porque surgiu no período da nação
da abertura, da redemocratização. Que país é este
Mas basicamente, o que No Amazonas, no Araguaia, na
escrevemos são canções de amor” Baixada Fluminense
(RUSSO, 1995 apud ASSAD, 2000, No Mato grosso, nas Gerais e no
p.19). Nordeste tudo em paz
Para compreender melhor muitas de Na morte eu descanso, mas o
sangue anda solto
suas composições, no entanto, é
preciso voltar à capital do Brasil, Manchando os papéis,
uma vez que sua vivência nessa documentos fiéis
cidade faz parte das condições de Ao descanso do patrão
Que país é este
Terceiro Mundo se for senado. Porém, em uma
Piada no exterior análise que leve em conta a
Mas o Brasil vai ficar rico construção e a estrutura de
Vamos faturar um milhão Brasília, é relevante afirmar
Quando vendermos todas as que, no momento em que essa
almas canção foi composta (1978), o
34 Dos nossos índios num leilão. termo „favela‟ era utilizado para
Que país é este designar determinadas regiões
periféricas instaladas ao redor
A relação dessa canção com do Plano Piloto de Brasília, que
Brasília é bastante intensa, assim corresponderia ao centro da
como acontece com a maioria das capital (MATOS, 2010, p. 16).
canções do terceiro disco da banda,
“Que país é este 1978-1987”. Isso Outro ponto é que na época em que
ocorre porque a maioria das faixas a canção foi composta a
provém da época em que o constituição em vigor era a de 1967,
compositor morava e produzia em aprovada durante o regime militar.
Brasília. Em algumas declarações, Temos aqui uma colocação
Renato Russo procurou deixar clara supostamente contraditória: a
essa ligação: “[...] A música que está constituição, mesmo de natureza
tocando nas rádios, que está em autoritária, é como um documento a
primeiro lugar, fala de Planaltina, ser respeitado, mas que não se
Taguatinga, fala de tudo. „Que país respeita. Porém, a colocação, da
é este‟ tem o prisma de Brasília” forma que foi feita, não leva em
(MARCELO, 2009, p.370). conta que esta constituição contém
muitos artigos que estão mais
Assim temos em “Que país é este” a voltados para a manutenção do
mistura do violão com rock e música poder do regime militar do que
brasileira, apesar de sua atitude qualquer outra coisa.
jovem, rebelde e urbana ocultar, até
certo ponto, essa presença. Outra parte diz: No Amazonas, no
Analisaremos as estrofes e seus Araguaia, na Baixada Fluminense
significados. Mato Grosso, nas Gerais e no
Nordeste tudo em paz Na morte eu
Na primeira estrofe temos uma descanso, mas o sangue anda solto
afirmação problemática: “nas favelas Manchando os papéis, documentos
no Senado, sujeira pra todo lado, fiéis Ao descanso do patrão, Que
ninguém respeita a Constituição”. país é este. Essa segunda estrofe
Tendo como ponto de partida remete a fatos históricos envolvendo
uma colocação atemporal „Nas repressão como à guerrilha do
favelas, no senado, sujeira pra Araguaia e a Baixada Fluminense,
todo lado‟, Renato Russo parte sobretudo em relação ao tráfico de
de Brasília para compor um drogas, que também está
cenário nacional em que a falta relacionado com a região do
de ética, a corrupção e a Amazonas. Portanto, em relação ao
violência imperam. Se por um discurso de que Brasília seria
lado, a afirmação é atemporal, responsável pela integração
por outro, o cenário é bem nacional e pelo desenvolvimento
definido: nas favelas, no das regiões mais diversas é
derrubado, nessas referências coisa boa. (RUSSO, 1995 apud
geográficas e históricas. A ênfase ASSAD, 2000, p.210).
vocal de Renato Russo também
deve ser levada em conta, já que na E ainda:
parte “tudo em paz” Renato faz uma (...) eu não consigo parar de
espécie de deboche, que é ao pensar e ficar preocupado com
mesmo tempo ironia e sarcasmo no
35
tudo o que acontece (...). Fico
meio de toda a violência envolta. achando que a pessoas são
Outra estrofe: Terceiro mundo se for cegas, não querem ver o que
Piada no exterior Mas o Brasil vai está acontecendo (...). Eu vejo
ficar rico Vamos faturar um milhão algumas pessoas dizerem que
Quando vendermos todas as almas o horário eleitoral é algo
Dos nossos índios em um leilão. humorístico, mas que graça
Que país é este tem aquilo? Não é humorístico,
é patético na maioria das
Segundo Ianni (1983, p. 82): vezes. Agora, vai ver que meu
caráter é diferente do perfil do
Há produções culturais que se povo brasileiro. Fica todo
apresentam exóticas, mundo dizendo que somos um
deslocadas; ao passo que povo alegre e feliz, e aparece o
outras parecem enraizadas, Nick Cave e diz que não viu
inseridas na configuração nada disso. Ele está certo. (...)
social em que se apresentam. (RUSSO, 1995 apud ASSAD,
"Que país é este” traz uma 2000, p.80).
imagem negativa, desiludida e
sarcástica do Brasil, que se Vimos com a análise de “Que país é
sustentou discursivamente na este”, de que forma tanto a letra
década de 1980. E Brasília, como a música compõem esse
apesar de todo o seu discurso ambiente de esperança perdida, de
de modernidade, ancorada em miséria, de revolta, por meio de
uma arquitetura exótica, foi suas colocações irônicas e
mais uma continuidade do que sarcásticas. E que o Brasil das
uma ruptura com o passado canções de Renato Russo é
brasileiro (Ianni, 1983, p. 82). representado como uma esperança,
ao contrário do que Renato passava
Sobre o nome da música analisada ao público nas entrevistas e nos
até então, Renato chega a shows.
desabafar:
[...] aliás, o grande compositor
Aquela pergunta não é uma de canções é aquele que
pergunta, é uma exclamação! consegue passar para o
Porque quem me diz que país ouvinte uma perfeita
é este são as pessoas que articulação entre os
vivem aqui. A gente tem um parâmetros verbais e musicais
material fabuloso a ser de sua obra, fazendo fluir a
trabalhado aqui no Brasil a palavra cantada, como se
gente percebe certas coisas: tivessem nascido juntos
tem muita gente trabalhando, (NAPOLITANO, 2002, p. 55).
tem muita gente fazendo muita
Tão atual nos dias de hoje ao fazer Com a morte de Renato russo, por
referências ao cenário político complicações decorrentes da Aids,
institucional brasileiro quanto em na madrugada de 11 de outubro de
1978 ou 1987, “Que País é Este” e 1996, a década de 80, a década que
seus versos de rimas simples viu nascer e de certa forma conteve
embora seja uma das referências do o Rock se encerrou novamente.
36 disco, acabou não sendo a mais Com sua morte, o rock perde não
marcante. Renato Russo explica por apenas sua mais potente voz, mas
que essa música não havia sido também o seu mais potente cérebro.
gravada antes: “Porque sempre
Referências Bibliográficas
havia a esperança de que algo
realmente iria mudar no país, DAPIEVE, Arhur. BRock: O Rock
tornando-se a música então brasileiro dos anos 80. Rio de janeiro: ed.
totalmente obsoleta” (RUSSO, 1994 34, 1993.
apud ASSAD, 2000, p.52). Até hoje IANNI, Octavio. Revolução e cultura.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
ela continua atual de alguma forma,
1983.
infelizmente. MARCELO, Carlos. Renato Russo: o
Com esta analise da música “Que filho da revolução. Rio de Janeiro: Agir,
2009.
País é este” pudemos analisar de
MONTANARI, Valdir. História da
que forma tanto a letra como a Música: Da idade da pedra à idade do
música compõem esse ambiente de Rock. 1ª ed. Campinas, Papirus, 1985.
esperança perdida, de miséria, de MORAES, José Geraldo Vinci de.
revolta. Esta música define o espaço História e Música: Canção popular e
político e a identidade dos sujeitos conhecimento histórico. Revista
nos anos 80 tratando-se de um Brasileira de história- UNESP. São Paulo,
discurso urbano. Considero as v. 20, nº 39, 2002, p.203-221.
MATOS, Heloiza. Memórias de Brasília:
canções como as melhores fontes
primeiros habitantes, narrativas da mídia
para nos revelar o posicionamento e laços comunicativos. São Paulo:
político e artístico de Renato Russo, Plêiade, 2010.
pois, foi na seleção dos temas e das NAPOLITANO, Marcos. História e
palavras, e na construção do Música: História Cultural da música
discurso verbal e musical que ele popular.
mais teve liberdade de expressão. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
Como compositor e músico, Renato RUSSO, Renato. Renato Russo de A a
Z: as idéias do líder da Legião Urbana.
Russo construiu um discurso crítico
Coordenação editorial: Simone Assad-
em várias canções e que repercutiu Campo Grande: Letra Livre, 2000.
nos brasileiros. Esse SANTA FÉ JÚNIOR, Clóvis. Rock
comprometimento no fazer artístico “politizado” brasileiro: Uma expressão
é um dos elementos que mostram o juvenil crítica e distópica nos anos 80.
seu diferencial em relação a outros Revista do Instituto de Filosofia e
artistas de sua geração e que, de Ciências Humanas - UNICAMP, 2005, p.
certa forma, explica também a 175-212.
longevidade musical da Legião
Urbana até a atualidade. Renato
Russo através de suas letras
expressou a sua esperança em um
futuro mais agradável.
MÚSICA “O BÊBADO E A distinção nas experiências
individuais ou coletivas. Isso ocorre
EQUILIBRISTA”: UMA FORMA segundo José Geraldo Vinci de
DE MANIFESTAÇÃO Moraes:
Porque a música, a forma
Sandra Mari Burginski artística que trabalha com os 37
sons e ritmos nos seus
diversos modos e gêneros,
A música pode ser entendida por geralmente permite re a l i z a r
várias formas está presente na vida as mais variadas atividades
de todos e desempenha diversos sem exigir atenção centrada do
papeis na vida dos seres humanos, receptor, apresentando- se no
ou seja, ela faz parte da cultura dos nosso cotidiano de modo
países, identifica e molda pessoas e permanente, às vezes de
pensamentos, revoluciona, marca maneira quase imperceptível.
fatos históricos, motiva, dá apoio, (MORAES, 2000, p. 204)
enfim, participa da vida de toda a
humanidade Este trabalho terá como objetivo
analisar a música “O bêbado e o
Olhando por um lado mais histórico equilibrista” interpretada por Elis
é possível perceber que os Regina e composta por Adir Blanc
trabalhos que tratam sobre música juntamente com João Bosco, que se
popular como fonte ou objeto têm tornou um hino na Ditadura Militar.
crescido rapidamente na área de
história. Além disso, a música tem É possível destacar segundo
sido ao menos em boa parte do Napolitano (2002), que a música
século XX, a tradutora dos nossos popular, principalmente na sua
dilemas nacionais e veículo de manifestação particular que é a
nossas utopias sociais. canção registrada em fonograma,
não se define unicamente pelos
De acordo com Napolitano (2002), a seus atributos estruturais melódico-
música popular é fruto de um harmônicos pensados como
cruzamento da música ligeira com propriedades internas definidoras de
as músicas tradicionais, das danças formas e gêneros.
de salão com as danças folclóricas.
Até aí nenhuma novidade, não fosse A exatidão, a forma exclusiva da
o momento histórico que propiciou música popular é a canção, tal como
este encontro, marcado pela consagrada pela indústria do disco.
expansão da industrialização da Embora haja confusão entre “forma”
cultura e pelo surgimento das e “gênero” musical, este último
sociedades de massa. conceito é um tanto vago, do ponto
de vista musicológico, sendo muito
Em nosso dia a dia nos deparamos comum a confusão entre estilo,
com sons e ruídos que muitas vezes movimentos culturais e formas
nem tomamos consciência disso, ou musicais propriamente ditas, como
seja, eles estão presentes como atestam, por exemplo, as polêmicas
uma verdadeira trilha sonora de sobre a definição de samba, bossa
nossas vidas, manifestando-se sem nova e tropicália.
A música popular não deve ser são perseguidos pela ditadura nessa
compreendida apenas como época.
texto, fato muito comum em
alguns trabalhos Assim através da musica de Adir
historiográficos que se Blanc João Bosco podemos
arriscam por essa área. As observar que a letra traz um
38 análises devem ultrapassar os discurso de esperança, ou seja, O
limites restritos exclusivamente “Bêbado” seria a classe artística,
à poética inscrita na canção, representada pelo, Carlitos,
no caso específico a poesia personagem de Charles Chaplin,
popular, pois, ainda que de com toda sua aura de liberdade e
maneira válida, estaria se utopia. Isso porque Chaplin foi um
realizando uma interpretação artista cujo trabalho tendia as
de texto, mas não da canção pessoas menos favorecidas, e no
propriamente dita. (MORAES, final dos seus filmes havia sempre
2000, p. 215) uma estrada e uma esperança, onde
Carlitos andava em direção ao
É através desta forma musical é que infinito. Já a equilibrista representa
podemos destacar a música O aquele fio de expectativa que estava
bêbado e o equilibrista, onde foi surgindo, ou seja, a democracia.
gravada por Elis Regina no ano de
1979, que retrata um período Podemos destacar que Aldir Blanc
acentuado da história do Brasil e foi muito feliz em representar algo
tornou-se um hino à anistia no final tão delicado e improvável quanto
da ditadura militar iniciada no golpe nossa abertura política, na figura de
militar de 1964. Caracterizado, uma equilibrista. Pois desta forma,
sobretudo pela opressão e pela tanto a classe artística e a
censura. Uma das principais formas esperança de democracia tinham
de protestos da sociedade era que se equilibrar em suas “cordas-
através da arte e, bambas” para poderem atingir seus
conseqüentemente, da música. objetivos. Onde Aldir Blanc é
considerado um poeta-repórter, pois
O período em que o Brasil viveu sob seus textos geralmente são fatos de
democracia e liberdade e que uma época, e o discorrer desta
justificava as letras da Bossa Nova música são imagens deste período
foi muito curto entre duas ditaduras. de incertezas.
Com o golpe de 1964, a música
tornou-se apenas “pretexto para o A música a ser analisada neste
protesto”. Para dizer não ao regime trabalho de pesquisa é: O Bêbado e
militar. a Equilibrista, composta por João
Bosco e Aldir Blanc, interpretada por
E ainda mais precisamente entre os Elis Regina, lançada no ano de
1965 e 1968, pode-se perceber que 1979.
o movimento musical é intensificado
com a chamada Era dos Festivais.
As canções de protesto adquirem Caía a tarde feito um viaduto
importância, ocupando o papel de E um bêbado trajando luto
contestadoras da sociedade. Muitos Me lembrou Carlitos...
A lua vivendo naquele período, como na
Tal qual a dona do bordel primeira estrofe da musica: Caía a
Pedia a cada estrela fria tarde feito um viaduto/ E um bêbado
Um brilho de aluguel trajando luto/Me lembrou Carlitos.
Ou seja, Carlitos era de um dos
E nuvens! principais personagens que Charlin
Lá no mata-borrão do céu Chaplin praticava. Era um andarilho
39
Chupavam manchas torturadas usando chapéu, bigode e um paletó
Que sufoco! muito estreito que, embora pobre,
Louco! age como um cavalheiro.
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil A partir daí pode-se entender que há
Prá noite do Brasil. uma contradição entre “bêbado” e
Meu Brasil!... “luto”: a alegria do vagabundo que
tenta driblar a situação e o estado
Que sonha com a volta deprimido da sociedade brasileira.
Do irmão do Henfil. Aldir Blanc queria mostrar através
Com tanta gente que partiu do traje de luto de Carlitos situação
Num rabo de foguete que a classe artística brasileira
Chora! encontrava-se no período, pela falta
A nossa Pátria de liberdade de criação.
Mãe gentil A outra estrofe bastante
Choram Marias interessante a ser analisada é: E
E Clarisses nuvens!/Lá no mata-borrão do
No solo do Brasil... céu/Chupavam manchas
torturadas/Que sufoco! Louco!/O
Mas sei que uma dor bêbado com chapéu-coco/Fazia
Assim pungente irreverências mil/ Prá noite do
Não há de ser inutilmente Brasil./Meu Brasil!...
A esperança...
Embora com os olhos para o alto, há
Dança na corda bamba “as nuvens e o céu”. Através destas
De sombrinha imagens podemos entender ao
E em cada passo universo da religiosidade. Pois no
Dessa linha final da década de 1970, quando o
Pode se machucar... país debatia sobre a anistia geral e
absoluta, a igreja católica demorou
Azar! de assumir uma posição no cenário
A esperança equilibrista político, mas acabou pendendo para
Sabe que o show a democratização do país, mas com
De todo artista algumas restrições. Já a imagem de
Tem que continuar... “mata-borrão do céu” demonstra o
poder político e balsâmico da igreja.
E ainda dentro do texto, o protesto
No decorrer da música podemos contra as torturas que ocorriam na
perceber vários versos onde nos calada da noite fica evidente. Para
mostram a insatisfação do autor saudar essa noite do Brasil, só se
com a situação que o país estava justificava se fosse à alegria etílica
de um bêbado. Somente num que incomodava os militares, tinha
estado de delírio poderia se acatar sua existência ameaçada.
aquela realidade.
Mesmo com toda a opressão que
Em outra parte nos remete: Que estavam vivendo havia uma
sonha com a volta/ Do irmão do esperança que tudo acabasse e eles
40 Henfil/Com tanta gente que partiu pudessem continuar com o show,
Num rabo de foguete/ A nossa colocando as suas idéias, opiniões
Pátria/Mãe gentil/Choram Marias/E nas letras de suas musicas.
Clarisses/ No solo do Brasil...
Assim podemos entender que
Neste trecho da musica pode-se durante a ditadura, os músicos
perceber que Aldir Blanc fala dos encontram nas canções de protesto
exilados, como foi o caso do o meio para defender seus direitos e
sociólogo e ativista dos direitos denunciar as mazelas de uma
humanos Herbert José de Souza, população que vive confinada por
irmão de Henfil e também relembra leis que a impedem de defender
as mortes do jornalista Vladimir seus ideais. Isso faz com que a
Herzog e do metalúrgico Manuel Fiel produção musical seja muito intensa,
Filho ao citar os nomes de suas
esposas, Maria e Clarisse, Pode-se destacar que o fato de os
respectivamente. compositores, por sua produção mu-
sical, buscarem um novo meio de
E para finalizar a musica Aldir Blanc demonstrar os seus sentimentos e
e João Bosco no penúltimo e no revolta em relação ao momento pelo
ultimo estrofe da musica trazem: qual passa o Brasil, trazendo seus
Mas sei que uma dor/Assim protestos não apenas em letras,
pungente/Não há de ser mas também na busca de
inutilmente/A esperança.../Dança na autenticidade, resgatando nossas
corda bamba/De sombrinha/E em raízes, presentes nas melodias que
cada passo/Dessa linha/Pode se apresentam, faz com que a censura
machucar.../Azar!/A esperança endureça ainda mais. Aqueles que
equilibrista/Sabe que o show/De criam letras mais ousadas e
todo artista/Tem que continuar... provocativas ao governo tornam-se
símbolos de subversão para os
Ou seja, Aldir Blanc e João Bosco censores. Esse trabalho dos
queriam mostrar que a expressão censores influencia ainda mais o
artística, única arma disponível para modo de os músicos comporem
defender a democratização, seria suas letras e melodias.
usada exaustivamente pelos artistas
que não se conformavam com a E assim podemos perceber com a
opressão. O comportamento da música “O bêbado e o equilibrista”,
sociedade vivia na corda bamba, que ela tenta de uma forma buscar a
sempre por um triz de ser pego fora liberdade de expressão da
da linha estipulada pelos militares. população em geral, mas
Mas… Azar! O show tem de principalmente da classe artística,
continuar. A equilibrista era a tornando-se neste período um
esperança de democracia, um símbolo da luta pela Anistia e um
projeto de abertura política gradual, hino pela liberdade de expressão. O
que a cada "eleição", a cada evento bêbado representando os artistas,
poetas, músicos e „loucos‟ em geral, “ALELUIA, GRETCHEN”:
que embriagados de liberdade
ousavam levantar suas vozes contra IMIGRANTES ALEMÃES NO
a ditadura e a equilibrista era a ESTADO NOVO NUMA
esperança da democracia.
ABORDAGEM
E para finalizar e possível destacar CINEMATOGRÁFICA 41
que a música é uma das formas de
comunicação que está presente Zuleide Maria Matulle
entre os seres humanos em todos
os estados de seu desenvolvimento,
em que ela é capaz de transmitir as
identidades carinhosas, costumes e No “Programa de Pós-Graduação
padrões de comportamento de latu sensu do Curso de História da
diferentes grupos sociais. Faculdade Estadual de Filosofia,
Ciências e Letras de União da
Vitória”, iniciado em 2011, no
módulo de “Tópicos em História
Bibliografia
Cultural”, do qual fazemos parte,
ANDRADE, Mário. Ensaio sobre a uma das primeiras discussões
música brasileira. São Paulo, Livraria realizadas foi a de que os
Martins Editora, 1962. historiadores têm o olhar viciado,
Napolitano, Marcos. História & música pois ao longo do tempo se
– história cultural da música popular / cristalizou a ideia de que só é
Marcos Napolitano. – Belo Horizonte: possível escrever história a partir de
Autêntica, 2002. documentos oficiais, sendo que
Revista Brasileira de História. História e lugar de historiador era em arquivos.
música: canção popular e Com o intuito de estimular o
conhecimento histórico. São Paulo, v.
desapego dessa concepção, ainda
20, nº 39, p. 203-221. 2000
muito arraigado entre os
http://musicasdahistoria.blogspot.com/20 historiadores, o módulo de “Tópicos
10/03/fascinante-o-bebado-e-equilibrista- em História Cultural” teve como foco
de.html estimular a diversificação das fontes
http://andybstuff.blogspot.com/2008/01/o- utilizadas na pesquisa histórica.
bbado-e-equilibrista.html Discutiu-se: “História em
Quadrinhos” sobre diversos
aspectos, “História através de
imagens” explorando a relação entre
história e fotografia, “História e
Música” enfatizando a possibilidade
da contextualização histórica, das
músicas como movimento artístico e
também como mensagens
intelectuais. Por fim o “Cinema”,
tratando-o como uma área do
conhecimento em si.
No referido módulo ficou evidente ouvidas aqui nestes tristes trópicos
que são várias as possibilidades de são estrangeiras, a televisão
pesquisa ao historiador. Entretanto, brasileira apresenta mil filmes
neste pequeno texto decidimos estrangeiros por ano, os filmes mais
explorar o cinema, esse vistos no Brasil são estrangeiros”,
“extraordinário e sedutor atrativo”, em detrimento daquilo que é
42 segundo o discurso encontrado no produção nacional. Não se trata de
Jornal Gazeta de Notícias de janeiro xenofobia, estamos apenas
de 1898, quando da estréia do valorizando o que é nacional, mais
aparelho de projeção no Brasil. especificamente as produções que
Enfatiza o jornal que, “[...] quem por discutem os nossos problemas.
ele é uma vez surpreendido, procura
irresistivelmente emergir sempre o É por isso que decidimos explorar o
seu espírito observador na deliciosa filme brasileiro “Aleluia, Gretchen”,
admiração desse assombroso pois Sílvio Back presenteia o público
espetáculo!” (MOURA, 1987, p. 17). com uma fascinante produção que
se estende aos dias de hoje,
Muitos anos se passaram desde a contando a saga de uma família de
estréia do atrativo no Brasil e o imigrantes alemães, que, fugindo do
cinema continua sendo um nazismo, vem fixar residência numa
espetáculo, que vem conquistando cidade do Sul do Brasil por volta de
cada vez mais espaço na reflexão 1937. O cineasta traz como universo
histórica. O cinema pode ser visto físico um hotel, comprado pela
como registro visual, formador de família Kranz, que logo se
opinião, como entretenimento, fonte transforma num ponto de encontro
autônoma e narrativa literária. de simpatizantes do nazismo.
Nesse arrolamento de teorias sobre
“História do Cinema” encontramos É importante pronunciar que não
cineastas como Pasolini e o seu está no nosso propósito fazer, agora,
realismo expressado na feição dos a análise crítica que o filme
atores, M. Cooper e o seu comporta, merece e ordena.
entretenimento puramente ficcional, Limitaremo-nos a alguns
a exemplo de King Kong produzido comentários buscando uma
em 1933, Eisenstein entendendo aproximação entre o cinema,
que o cinema projeta uma ideia história e os imigrantes alemães no
formadora bem como o brasileiro Estado Novo analisando: o que a
Sílvio Back, cineasta do político que imagem reflete? É a expressão da
procura despertar uma reação. realidade ou é manipulada? O que o
filme quer mostrar? Qual o objetivo
O cinema brasileiro é muitas vezes do autor do filme? É ganhar dinheiro
deixado de lado, talvez por uma ou chocar as pessoas? Como o
adesão imposta pelas suntuosas filme representa o aparato social da
produções que vem do estrangeiro, época?
pois o cinema também é indústria.
Por outro lado, Silva (1978, p. 7) Nesse exercício de decodificação do
desabafa criticando que o Brasil é filme buscamos suporte teórico em
um país invadido culturalmente. Nova (19--), quando destaca que na
Nossos livros mais lidos são primeira etapa da leitura de uma
estrangeiros, “[...] as músicas mais película o pesquisador deve se
concentrar na crítica externa do massas, que subiam e desciam “[...]
filme, ou seja, recolher informações escadas, abrindo cômodos,
sobre o período de produção e de pesquisando possíveis paredes
lançamento do filme, levantamento falsas, com possível rádio
da equipe técnica de produção, as transmissor escondido, (as
fontes financiadoras, verificar a denunciações não morrerem
biografia do produtor do filme, que nunca)” (BACK, 1978, p. 15).
43
tipo de filme já produziu e quais as
características mais gerais dessas Como se pode observar, não é à toa
produções. que o filme “Aleluia, Gretchen” tem
como universo físico um hotel, ou
Inicialmente, julgamos pertinente melhor, o “Flórida Hotel”, nome que
mencionar que Sílvio Back nasceu observamos em letras góticas, logo
em Santa Catarina, na cidade de no início do filme. Isso representa
Blumenau em 1937, ano em que a um dado importante, porque
família Kranz chega ao Brasil. O corrobora a ideia de que todo
cineasta é filho de imigrantes que registro visual é construído, e como
vieram para o Brasil em 1935. Foi tal, leva as marcas de quem o
nossa intenção nessas observações produz. É o próprio cineasta que
alertar para a influência da origem expressa essa perspectiva, quando
de Sílvio Back na produção do filme. escreve que “[...] dessa vivência
inconsciente extraí o verismo dos
Filho de imigrantes alemães, Sílvio ambientes, objetos e clima
Back deixou transpirar as cotidianos de Aleluia, Gretchen”
recordações, memórias e elementos (BACK, 1987, p. 17). Portanto, são
culturais que fazem parte de seu elementos inseridos no filme de
universo, que o mobiliza forma consciente, inspirado nas
afetivamente. Vê-se isso no livro- suas memórias e origem cultural.
argumento “Aleluia, Gretchen” no
qual encontramos o roteiro e os Em “Aleluia, Gretchen” Sílvio Back
diálogos do longa-metragem, pois o trabalha com ficção e história. Faz o
cineasta relatou as lembranças e gênero drama, com 110 minutos de
informações familiares que têm do duração. Ganhou os Kikitos de
período abordado. Back comenta Melhor Fotografia e Melhor Ator
que, quando criança, durante a Coadjuvante, e foi indicado como
guerra, foi para uma escola pública, Melhor Filme, no Festival de
não sabia falar português e por isso Gramado realizado em 1977.
foi classificado com problemas Também foi selecionado para os
mentais e viu os carros movidos a festivais de Brasília, Chicago (EUA),
gasogênio pela falta de combustível Mannheim e Berlim (Alemanha). Os
durante a Guerra. personagens do filme são: “Lotte
Kranz, a mãe e cabeça da família;
Mais que isso, Sílvio Back e sua Ross, o marido de Lott; Gudrun,
família, proprietária de um hotel, tal Heike e Josef, os filhos; Minka,
qual a família Kranz, foram visitados empregada; Wilhelm, filho da
por agentes do DOPS, polícia empregada; Oskar, imigrante;
política que assumiu importante Werner, filho do imigrante; Inge, filha
papel junto à dinâmica instituída do imigrante, Dr. Aurélio, hóspede;
pelo processo de domesticação das
Eurico Carneiro, marido de Gudrun; seja, 15 anos depois de “Aleluia
Repo, empregado; Pastor Gretchen”. O filme traz imagens e
Tannenbuer, amigo da família e sons originais de Carmen Miranda e
Rose Marie, Bruckner, Mertz e do Brasil na II Guerra Mundial, o
Kaput, oficiais da SS. No elenco do filme adentra o desconhecido
filme integram atores como Carlos mundo da guerra psicológica que
44 Vereza, Lílian Lemmertz, Kate conturbou a presença da Força
Hansen, Míriam Pires, Selma Egrei, Expedicionária Brasileira (FEB) na
Sérgio Hingst, José Maria Santos e Itália. Através das musicalmente
Lorival Gipiela. alegres e debochadas transmissões
de uma rádio secreta, tema-tabu
Sílvio Back tem um currículo entre os pracinhas, o filme acaba
extenso, dentre suas produções também desvendando as
podemos destacar: O Contestado - tragicômicas relações entre os
Restos mortais (2010), Lost Zweig
Estados Unidos e o Brasil durante o
(2002), Cruz e Sousa - o poeta do conflito.
desterro (1998), Zweig: A morte em
cena (média-metragem) (1995), Diante disso, podemos dizer que
Yndio do Brasil (1995), A babel da Sílvio Back bate quase sempre na
luz (curta-metragem) (1992), Rádio mesma tecla. Nesta ordem de ideias
Auriverde (1990), Guerra do Brasil é pertinente verificar, se é que é
(1987), O auto-retrato de Bakun possível, qual o objetivo de Sílvio
(média-metragem) (1984), A escala Back quando produziu “Aleluia,
do homem (curta-metragem) (1982), Gretchen”? Foi com o intuito de
Jânio 20 anos depois (1981), ganhar dinheiro, ou chocar as
Revolução de 30 (1980), Sete pessoas? Com a finalidade de
quedas (curta-metragem) (1980), buscar possíveis respostas nos
República Guarani (média- utilizamos de Ramos (1987, p. 418),
metragem) (1979), Mulheres quando apresenta um quadro com
guerreiras (média-metragem) as maiores rendas de filmes
(1977), O semeador (curta- brasileiros de 1970 a 1984, tendo
metragem) (1974), Curitiba: uma como fonte o Cinejornal da
experiência em planejamento Embrafilme, n. 6 de 1986.
urbano (documentário) (1974), A
guerra dos pelados (1970), Festival
(curta-metragem) (1966), Curitiba,
amanhã (curta-metragem) (1965),
Os imigrantes (curta-metragem)
(1965), As moradas (média-
metragem) (1964).
O foco mais corrente das produções
de Sílvio Back é o político e o
ataque ao patriotismo brasileiro,
discutindo conflitos cujas
conseqüências jamais se
esgotaram. Um bom exemplo disso
é o filme denominado “Rádio
Auriverde” lançado em 1991, ou
Maiores Rendas de Filmes 17. Eu Te Amo Abr. 81 3.479.266
Brasileiros 18. Jeca Contra o Fev. 76 3.408.814
Capeta
Filme Lança Público até 19. O Trapalhão Jun. 75 3.374.657
mento dez. 84 na Ilha do
1. Dona Flor e Nov. 10.735.305 Tesouro
Seus Dois 76 20. Juca, O Fev. 75 3.360.279 45
Maridos Macumbeiro
2. A Dama do Abr. 78 6.508.182 21. Jecão, Um Jun. 77 3.296.384
Lotação Fofoqueiro no
3. O Trapalhão Ago. 77 5.768.757 Céu
nas Minas do Rei 22. Xica da Silva Set. 76 3.183.493
Salomão
23. O Menino da Mar. 3.130.214
4. Lúcio Flávio, Nov.77 5.394.153 Porteira 77
o Passageiro da
24. Robin Hood, Jun. 74 2.977.968
Agonia
O Trapalhão da
5. Os Dez. 81 5.207.969 Floresta
Saltimbancos
25. Set. 72 2.974.476
Trapalhões
Independência
6. Os Dez. 78 5.082.064 ou Morte
Trapalhões na
Guerra dos Fonte: RAMOS, José Mário Ortiz. O
Planetas Cinema Brasileiro Contemporâneo
7. O Cinderelo Jun. 79 5.021.990 (1970-1987). In: RAMOS, José Mário
Trapalhão Ortiz (org.). História do Cinema
8. Os Dez. 82 5.017.573 Brasileiro. São Paulo: Art Editora,
Trapalhões na 1987.
Serra Pelada Verifica-se, com o quadro
9. Os Jun. 82 4.619.657 apresentado, quais eram os longas-
Vagabundos
metragens brasileiros que as
Trapalhões
pessoas estavam assistindo antes,
10. Os Dez. 76 4.561.923
durante e depois do filme “Aleluia,
Trapalhões no
Planeta dos
Gretchen”, exibido “timidamente”
Macacos nos cinemas. Nota-se que o filme
11. Coisas Jul. 82 4.525.401 “Dona Flor e Seus Dois Maridos”
Eróticas (1976) realizado a partir da química
12. Simbad, O Jun. 76 4.400.757 entre o romance de Jorge Amado e
Marujo a interpretação de Sônia Braga foi a
Trapalhão maior renda do cinema brasileiro até
13. O Rei e os Jan. 80 4.239.520 1984. O filme de Bruno Barreto
Trapalhões ultrapassou a marca dos dez
14. Os Três Jun. 80 4.213.651 milhões de espectadores, só
Mosquiteiros superada pelo recordista estrangeiro
Trapalhões “Tubarão” também lançado em 1976
15. O Incrível Jan. 81 4.209365 que passou a marca de treze
Monstro milhões de espectadores até o ano
Trapalhão de 1984.
16. O Cangaceiro Jun. 83 3.722.870
Trapalhão
Por outro lado, é inegável o impacto Diegues em 1976, que combina a
dos filmes dos Trapalhões, quarteto comédia e o erotismo. Totalizou em
formado por Renato Aragão, Dedé 1984 mais de três milhões de
Santana, Mussum e Zacarias, pois espectadores. Segundo análise de
lidera o quadro de projeções Ramos (1987, p. 420) aparece um
cinematográficas brasileira. De 1975 cinema “[...] preocupado com o
46 a 1984 exibiram 14 filmes das 25 espetáculo, empenhado em ter um
maiores bilheterias. Direcionado as grande público nas mãos, utilizando
crianças com temáticas retiradas do para isto recursos da comédia e do
imaginário cinematográfico, das erotismo”.
histórias infantis, ou de conteúdos
nacionais, os Trapalhões são Por isso, é possível dizer que Silvio
expoentes de um cinema com Back não fez o filme “Aleluia,
feições claramente industriais. Gretchen” para ganhar dinheiro, pois
Nessa linha cômica, vale destacar foge totalmente ao padrão do
também os filmes produzidos por mercado cinematográfico do
Amácio Mazzaropi, que apesar de momento. “Aleluia, Gretchen” não é
repetir a figura do jeca em todos os um filme cômico, ele vem bater na
filmes, levou cerca de dez milhões tecla do político com agressividade,
de espectadores para o cinema. tendo como ingredientes os
impasses de uma família de
É importante ressaltar que imigrantes alemães no sul Brasil
encontramos filmes da década de combinado com ingredientes
70, que são adaptações literárias, políticos do nazismo, os quais serão
como por exemplo, “Lucíola” de tratados na sequência.
1975, “O Guarani” de 1979,
“Iracema, a Virgem dos Lábios de Ramos (1987, p. 418) também
Mel” de 1978, “Um Homem Célebre” informa as maiores rendas de filmes
de 1976 a partir de Machado de estrangeiros de 1970 a 1984.
Assis e “O Cortiço” de 1979, são Quando o filme “Aleluia, Gretchen”
todos filmes que trazem na sua foi lançado em 1976, os filmes
estrangeiros como: “As Novas
estrutura os “[...] germes do
oportunismo e da voracidade Aventuras do Fusca” (lançamento
comercial, cristalizando o que agosto de 75), “Tubarão”
podemos chamar de „cultura de (lançamento dezembro de 76), “007.
O Espião que me amava”
ocasião‟, um namoro simultâneo
com mercado e Estado”, segundo (lançamento outubro de 77), “Orca,
leitura de Ramos (1987, p. 423), ou A Baleia Assassina” (lançamento
seja, obtêm muita repercussão junto dezembro de 77), “Os Embalos de
ao público, mas fogem aos debates Sábado a Noite” (lançamento julho
e polêmicas. de 78) e “King-Kong” (lançamento
junho de 77), filme puramente
A partir dessas considerações é ficcional que nasce para o
possível perceber que para o entretenimento a partir de roteiro já
mercado cinematográfico da década existente, isto é, o da “Bela e a
de 70, a ordem era a comédia e o Fera”, estavam sendo vistos pelos
erotismo. É o caso dos Trapalhões brasileiros.
em relação à comédia e do filme
“Xica da Silva” com direção de Cacá
Cabe aqui um questionamento que recomenda a análise do conteúdo
é pertinente: o filme é bom pela do filme, isto é, efetuar a crítica
quantidade de pessoas que o interna do documento. De acordo
assistem ou pelo que ele quer com a autora deve-se “[...] buscar,
passar ao público? Compete no seu, conteúdo, tudo aquilo que
explicar, que apresentando um se coloca de forma explicita, seja
quadro com as maiores rendas de nos diálogos, na indumentária, nos
47
filmes, não estamos defendendo gestos, no enredo e no seu sentido
que um filme é bom pela quantidade mais geral”. A proposta é extrair do
de pessoas que o assistem, documento, o filme “Aleluia,
estamos mostrando o que as Gretchen” o que foi dito de forma
pessoas estavam assistindo nos direta.
cinemas no período em que “Aleluia,
Gretchen” estava sendo produzido e Antes de discorrer sobre a análise
exibido. Afirmar que determinado do filme julgamos pertinente
filme é bom, ou não, é entrar numa ressaltar que os imigrantes não
discussão no mínimo desejavam abandonar sua terra
desconfortável, pois o filme que é natal, muitos nem gostavam do
considerado por alguns como bom, Brasil. Sílvio Back apresentou isso
pode não ser para outras pessoas, no filme, pois o personagem Josef,
acreditamos que depende muito do um jovem de 19 anos, filho do casal
perfil de quem vê, e porque vê. Lotte e Ross Kranz, além de pensar
muito na guerra diz: “não gosto do
Voltando a discussão, consideramos Brasil e ninguém vai me forçar...”.
até aqui que Sílvio Back não fez o Lott, que incorpora a personagem
filme “Aleluia, Gretchen” para de uma mulher que não queria
ganhar cifras astronômicas. Então, o deixar a Alemanha, em uma de suas
que o cineasta queria mostrar? A falas diz que “Pare com isso. Quem
linguagem cinematográfica manda „inventou‟ esse „safári‟ não fui eu”,
uma mensagem ao público e para remetendo-se a vinda para o Brasil.
decodificá-la, no caso da nossa A família Kranz, protagonista do
proposta, é necessário munir-se da filme, veio para o Brasil fugindo do
leitura historiográfica. É o que nazismo devido as ideias liberais de
faremos a partir de agora. Ross.
Pautando-se em Rene Gertz (1991)
e Giralda Seyferth (1997), que Por essas e por outras perspectivas
escrevem sobre os alemães no os imigrantes alemães e seus
Estado Novo, e nos elementos descendentes partilharam da não-
apresentados no filme, temos como integração, como se dizia no Estado
objetivo levantar algumas hipóteses Novo. Ligado a isso encontramos o
sobre o que o cineasta queria termo “germanismo”, que é a
mostrar ao púbico e verificar a tradução da palavra Deutschtum,
compatibilidade entre aquilo que usada para diferentes designações,
Sílvio Back apresentou no filme e a isto é, empregada para designar
historiografia consultada. simplesmente o conjunto da
população e descendentes de
Uma vez realizada a crítica externa alemães; como uma ideologia e uma
do documento Nova (19--, S.p) prática de defesa da germanidade
das populações de origem alemã e Gertz (1991, p. 40) destaca que o
também pode ser vista significando germanismo radical, que entra em
as duas coisas ao mesmo tempo. conflito com o Estado Novo, floresce
Um exemplo disso é apontado por na década de 30 pela influência do
Gertz (1991, p. 32) quando destaca nazismo. A ascensão da Alemanha
a obra em comemoração ao no “[...] contexto internacional
48 centenário da imigração alemã, produziu naturalmente um efeito de
publicada em 1924, “Hundert Jahre reavivamento do movimento
Deutschtum in Rio Grande do Sul”, germanista”. Cabe ressaltar que o
ou seja, Cem anos de germanismo florescimento nazista não provocou
no Rio Grande do Sul. O título “[...] aceitação em toda a população de
pode ser lido ao mesmo tempo origem alemã. Ser germanista não
como „100 anos de presença física quer dizer que o individuo é também
de populações de origem alemã‟ e nazista, conforme projeção na
„100 anos de luta pela preservação década de 30 e durante a Segunda
de sua germanidade”. Guerra Mundial.
Precisa ficar claro, ao leitor, que a Diante dessa abordagem devemos
imigração alemã para o Brasil não esclarecer quem eram os nazistas
foi homogênea, ou seja, nem todos no Brasil? Gertz (1991, p. 53) divide-
os imigrantes alemães eram os em duas categorias. De um lado
colonos. Emigraram para o sul do os nazistas classificados como
Brasil colonos luteranos, colonos germanistas radicais, que são “[...]
católicos, comerciantes, industriais, aqueles que vêem no nazismo a
proletários e de diferentes regiões culminância e as últimas
da Alemanha. Além disso, diferentes conseqüências do pensamento e da
ideias e interesses materiais política germanista”. Nessa
permeavam a vida de cada individuo. categoria se enquadram pastores
5
luteranos do Sínodo Riograndense ,
Um colono, que vive em uma professores, jornalistas, intelectuais,
comunidade interiorana de ou seja, pessoas ligadas a
imigrantes alemães, vai viver da instituições eclesiásticas,
maneira como sabe viver, ou seja, educacionais e culturais. Note-se
cotidianamente dentro dos costumes que nessa categoria, não se inclui
alemães. No entanto, isso não dá a os colonos.
ele o adjetivo de germanista radical.
Os germanistas radicais são, na
maioria das vezes, aqueles que
vivem nas áreas urbanas das 5
regiões de colonização alemã e são No Rio Grande do Sul, área do estudo
comerciantes e industriais. Claro realizado por René Gertz existem dois
sínodos: o Riograndense que veio da
que essa regra não se aplica a Alemanha com os imigrantes e que é
todas as regiões, o que estamos favorável ao germanismo, e o sínodo de
fazendo é uma leitura geral do Missouri, proveniente da igreja luterana
processo, cada região deve ser dos Estados Unidos, que, para disputar o
estudada de acordo com suas terreno com o sínodo Riograndense,
particularidades. apresentou diferenças abstratas e
palpáveis, não compactuando e
manifesta-se politicamente contra o
germanismo.
Em relação à segunda categoria de personagem interpretada por Mirian
nazistas, Gertz (1991, p. 53-54) Pires, Lott, acrescenta “Não use
identifica-os como “[...] pessoas que Josef para se justificar. Mandarei ele
podem ser consideradas marginais para a Alemanha, custe o que
dentro da população de origem custar. Ao menos um membro dos
alemã, pelo seu tempo de Kranz será útil à causa. Parecemos
permanência e pela sua militância um bando de desertores”.
49
anterior no movimento germanista”.
Esses sujeitos não pertencem a elite Em outro diálogo do filme, entre
e nem são colonos, são geralmente Inge, de 19 anos, filha de um
profissionais do comércio e da imigrante que incorpora o longa-
indústria. Aqui, o questionamento metragem, e Josef vê-se a simpatia
mais adequado é como esse de Josef a causa de Hitler, pois Inge
processo foi interpretado por cada pergunta: “Josef confesse, é
verdade que você só pensa em
sujeito, como cada sujeito utilizou-se
desse processo, e por que. voltar pra Juventude?”. Josef
responde “Sou um guerreiro. Não
Questões sobre a disparidade entre um faxineiro (ri). Um bárba-ro!
germanismo e nazismo que compõe Tenho sangue nas veias”. Sílvio
a historiografia podem ser Back deixa nítida a ideologia de
observadas no filme que ora Josef em relação à juventude de
analisamos. Lotte Kranz, mãe e a Hitler.
cabeça da família, mostra num
diálogo ser adepta da ideia de O nazismo pode ser observado no
superioridade racial alemã. Relata filme através da personagem
sua visão sobre Oskar, um imigrante Gretchen que é filha de Haike e de
alemão que fixou-se no Brasil já a Hans, um oficial da SS. Gretchen é
algum tempo, falando que trata-se a portadora da raça pura. Uma filha
de um bom homem, mas distante de Hitler, por assim dizer. As
dos costumes alemães. Lotte fala condições em que Haike engravidou
que “quanto mais espalharmos a são pontuadas no filme, por meio da
cultura germânica menos ficaremos fala de Hike, em off. Durante um
assim... Não poderei admitir isso na sono perturbado ela fala como
família”. O diálogo é realizado com aconteceu: “nem sei mais porque
Ross, o marido, que pergunta: “é por fui... Ele me disse que seria uma
isso que você ensina alemão para o das primeiras mães... era um
Repo?”, o empregado do hotel. A palacete antigo... flores nos
mãe, responde: “é uma questão de janelões,.. fiquei tonta... Hans disse
lógica. É na prática que devemos que ali estava nascendo uma nova
mostrar a nossa superioridade”. Alemanha... Os SS sorriam para
nós... havia uma festa... algumas
Já Ross, o pai da família, é um meninas estavam de camisolas
personagem que não compactua transparentes... bebiam, dançava,...
com a ideia de Lott e Josef, pois em também comecei a beber, Hans
determinado diálogo Ross diz “pobre falava sem parar, ri tanto que já não
Josef. Pensei que vindo para o entendia mais as coisas... perdi as
Brasil eu livraria ele daquele forças... No meio dessa alucinação
fanatismo. É uma criança”. A eu via mami (Lott), nítida, assistindo,
era um olhar estranho, mas feliz. liberdade, porque nasceu num
Depois, dias depois,... ele dizia que mundo novo, distante do fanatismo
as outras faziam igual... contanto nazista. No filme não fica claro a
que fosse oficial da SS... Toda mãe causa da morte da criança, porém a
puro sangue era sagrada, que eu situação deixa entender que a culpa
estava gerando um filho para o foi de Lott, mas não saberíamos,
50 Führer”. Para Lott a criança gerada agora, explicar isso.
era o símbolo do nazismo, da raça
pura, da superioridade da raça Conclui-se que tanto na
ariana. historiografia como no filme está
claro que nem todo alemão é
Em oposição ao nazismo vê-se nazista. Nesses diálogos
novamente o personagem de Ross, percebemos que Lott é partidária da
que é um professor, intelectual e causa germanista bem como do
liberal que não compactuava com as nazismo. O jovem Josef também
ideias de Hitler. Ross é um compactua com a causa hitlerista e
personagem, que apesar das ideias, Ross, um intelectual não compactua
não tem fibra, achou mais fácil fugir da causa nazista, ou seja, mãe e
da Alemanha do que enfrentar as filho pensam e agem de maneira
conseqüências de suas ideias diferente do pai. Vê-se que Sílvio
liberais. Além disso, Ross é Back discutiu a não-homogeneidade
dominado pela mulher, Lott, a de ideias entre os imigrantes
alegoria do nazismo. Isso pode ser alemães, tendo como painel, a
observado numa cena, talvez a mais família Kranz.
bela do filme, que ocorre num
cemitério diante do túmulo de Aprofundando a análise Nova (19--,
Gretchen na forma de monólogo, do S.p) recomenda a exame do que, no
qual segue algumas falas: “fiquei filme, está presente de maneira “[...]
com medo. Talvez porque minhas implícita, isto é, todo o conteúdo
ideias não fossem suficientemente existente nas suas entrelinhas, tudo
fortes. Mas eu tenho convicção, aquilo que os produtores queriam
pensei nos outros... Não me que chegasse ao espectador, mas
conformo, não posso. E como eu iria não o fizeram, por algum motivo
ficar quieto vendo as pessoas particular, direta e claramente”. A
desaparecendo do meu convívio? proposta é extrair do documento, o
Como é que eu podia agüentar os filme “Aleluia, Gretchen” o que foi
questionários, acareações com dito de forma indireta.
alunos? Uns meninos, garotos, que Explorando a morte de Gretchen,
vinham de uniforme me acusar... Eu ouvimos de Ross no final de seu
não podia ter abandonado minha monólogo diante do seu túmulo, o
trincheira, no entanto abandonei. Fui seguinte: “Você precisa viver
fraco, fui não, eu sou um fraco. Gretchen. Por todos nós. Volte,
Desde quando aceitar esses fique comigo, com as minhas
campos, perseguições é amar a últimas esperanças. Eu cuido de
nossa adorada Alemanha?... você, não deixo a Lott pegar em
Para Ross a pequena Gretchen, que você”. Então, Sílvio Back estaria
nasceu de uma mulher alemã e de nos dizendo que a liberdade,
um oficial da SS, era o símbolo da sufocada por uma ideologia, não
necessariamente a nazista, morreu? tendia ao caldeamento de todos os
Discorremos isso, por causa de um “alienígenas” em nome da unidade
questionamento que precisa ser nacional.
considerado nesse estudo: em que
contexto o cineasta Sílvio Back Os ataques a imigrantes e
produziu “Aleluia, Gretchen”? Como descendentes de alemães,
já mencionamos o filme foi principalmente no período da 51
produzido em 1976, num momento Segunda Guerra, são discutidos por
político de ditadura no Brasil, no Sílvio Back no filme. Numa cena que
Chile, na Bolívia, na Argentina e na acontece entre os anos de 1942 e
1945, o Flórida Hotel é atacado por
Venezuela, o que é algo bastante
interessante, pois no filme Sílvio brasileiros empunhando armas e
Back discute as condições que insultando os ocupantes acusando-
deixam movimentos se estruturem os de “quinta-coluna” e de nazistas.
ou ganharem adeptos. Deixando Todos, no hotel, ficam apavorados.
transparecer, a nosso ver, uma Os brasileiros gritavam para todos
relação do passado com o presente os integrantes da família Kranz,
em questão. como se todos fossem nazistas. No
filme os personagens Ross, Inge e
Nos filmes de Sílvio Back elementos Oskar não são nazistas assim como
políticos fizeram parte de muitos imigrantes e descendentes
praticamente todas as produções de alemães não foram simpatizantes
desse cineasta. Por outro lado, é do nazismo. De acordo com
importante ressaltar que na década Seyferth (1997, p. 95) a campanha
de 70, principalmente a partir de foi idealizada como “guerra” para
1974, foi um período em que “[...] desarraigamento de idéias
muitos municípios retomaram sua “alienígenas”, com a finalidade de
história e começaram a destacar impor o “espírito nacional” aos
suas origens imigrantistas” (GERTZ, patrícios que constituíam “quistos
1991, p. 79). étnicos”. Seus idealizadores
criticavam, sobretudo, a política de
Festejos de datas importantes que colonização com imigrantes mantida
marcam a imigração de alemães durante a Primeira República, “[...]
para o Brasil, festas típicas, a argumentando que a elite não
introdução do pluribilingüismo nas corrigiu os “erros” cometidos no
escolas autorizados pela Secretaria Império, permitindo que estrangeiros
da Educação, permitindo e formassem núcleos isolados, quase
incentivando a língua estrangeira de imunes ao processo assimilador
acordo com a origem étnica da característico da formação social
população, são elementos que brasileira”.
podem ser percebidos a partir da
década de 70. É importante salientar que
acusações de não-integração contra
Sobre o Estado Novo, verificamos imigrantes alemães e descendentes
que de 1937 a 1945 uma parcela são repetidas desde o início da
expressiva da população brasileira imigração alemã para o Brasil, em
passou por intervenções na vida 1824, ou seja, esses colonizadores
habitual causadas por uma se mantiveram à margem da nação
“empreitada de nacionalização” que
brasileira pela “[...] ausência da defronte ao Florida Hotel sobre
miscigenação, pela conservação da Eurico e também sobre os oficiais
língua, dos costumes e do legado da SS. Eurico é desprezado por
cultural em geral, do que resultaria Lott, pois sua fala diz “aquele, não
uma verdadeira anticidadania quero nem pensar. Um reles
brasileira”, mesmo para os caixeiro-viajante sem ter onde cair
52 descendentes de imigrantes que são morto enfeitiçou a Gudrun. Hoje,
brasileiros de fato e de direito toma ares de mandão. E Ross, outro
(GERTZ, 1991, p. 13). imprestável... Ross ainda fica do
lado dele”. É o discurso de Repo
No Estado Novo a tríade lusa-afro- nessa cena que é interessante, pois
indígena balizou fortemente a ele fala a Lott que “seu Eurico é
política de nacionalização. Daí traiçoeiro. Comprou todo mundo.
porque Getulio Vargas tornou o Estamos sozinhos. Sempre
carnaval e a capoeira insígnias desconfiei: pra mim, seu Eurico tem
nacionais. Em “Aleluia, Gretchen” é sangue judeu”.
possível visualizar o representante
da nação a partir do personagem Outro personagem que representa o
Repo, um jovem negro que é nacionalismo é Eurico. Esse
empregado do hotel. Em uma personagem é um brasileiro que
determinada cena, enquanto Lott certo dia hospedou-se no hotel e
discursava na ceia de Natal, Repo, entra para a família Kranz se
vestia-se de Papai Noel, meio casando com Gudrun, a filha do
embriagado. Depois de se vestir casal. Com o passar do tempo o
Repo se olha fixamente em um hotel hospeda oficiais da SS em
espelho, que é a câmera, pega uma suposta viagem para a Argentina, e
embalagem de talco e começa jogar vão ficando. Eurico, numa cena de
sobre seu corpo, com objetivo de clima tenso no bar do hotel, mostra
ficar branco. seu descontentamento com a
presença dos oficiais questionando
Nessa cena, Sílvio Back poderia a permanecia deles no hotel. Depois
estar mostrando a fragilidade do da discussão a câmera corta para o
nacionalismo, pois o que é insígnia quarto do casal, Eurico e Gudrun.
nacional, pautada na harmonia das Em silêncio os oficiais da SS entram
raças, a mestiçagem tornando-se o no quarto e pegam a força Eurico da
grande elemento constitutivo da cama. Gudrun assiste a cena com ar
identidade nacional, ou seja, o de cumplicidade. No sótão do hotel,
mulato visto biologicamente como o Eurico sem nenhuma defesa é
negro em processo de morto pelos oficiais da SS, na cena
branqueamento e portador da misturam-se risadas, bebidas,
brasilidade passa a ser exaltado, é deboche, prazer e crueldade.
mostrado por Sílvio Back como um Contudo, o brasileiro no filme de
elemento que pode ser facilmente Sílvio Back, representado pelo
manipulado por uma ideologia forte, personagem Eurico, morre. A cena
como é o caso do nazismo de Lott acaba com a morte de Eurico num
no filme. grito de dor de um brasileiro fraco.
Essa perspectiva se completa A cena final de “Aleluia, Gretchen” é
quando Repo e Lott conversam a comemoração do aniversário de
Lott que ocorre num piquenique, em neonazismo”, segundo Carneiro
1976. Nessa cena aparecem todos (2004, p. 134). Os neonazistas, de
os personagens alemães e Repo. forma geral, apresentam-se como
Todos se cumprimentam e advogados da hegemonia branca,
começam a dançar uma mistura de abominam judeus, homossexuais,
música alemã com samba, de uma negros, mendigos, prostitutas,
banda trazida por Repo. Pode-se asiáticos e nordestinos, no caso do
53
perceber nessa cena que Lott dança Brasil, mas essa já é outra história.
alegremente o samba, que é
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
insígnia nacional, entretanto, nota-
se algo muito interessante, os Como já mencionamos, não estava
personagens nazistas, a exemplo de no nosso propósito fazer a análise
Lott, não envelheceram. O rosto de crítica que o filme comporta, até
Lott continua com as mesmas porque, a realidade dos fatos se
características. Já em Ross, o apresenta sempre imensamente
personagem de ideias liberais, vê-se maior que a nossa habilidade de
nitidamente a passagem do tempo observação. Realizamos pequenos
em seu rosto, como se estivesse comentários que demonstram o
cansado. O que estaria nos dizendo compromisso social de Sílvio Back,
Sílvio Back? A resposta não é fácil, produzindo um filme sobre um
mas podemos cogitar a idéia de capítulo da nossa História que não
uma significativa autonomia dos pode ser esquecido, um filme, que
processos ideológicos, ou seja, apesar de trazer suas marcas
talvez Sílvio Back quisesse mostrar culturais, gerou debate e polêmica.
que a ideologia nazista continua Mostrou que movimentação em prol
firme, mas camuflada, pois nessa do nazismo ocorreu no Brasil, mas
cena da comemoração do deixando visível que nem todo
aniversário de Lott, chama atenção imigrante alemão foi nazista. É
o diálogo entre Ross e Inge, que diz: relevante destacar que Sílvio Back
“que bela hitlerlândia, não é Inge?”. fez isso não incidindo no aspecto
Ela responde: “Professor, uma coisa folclórico da imigração alemã.
é certa: passaram tantos anos, mas
ainda é fecundo o ventre de onde Verificamos que em tempos de
saiu essa gente imunda”, “pornochanchadas” Sílvio Back
terminando assim o filme. colocou diante dos espectadores um
filme que discute os acontecimentos
O filme “Aleluia Gretchen” foi sociais e políticos do Brasil,
produzido em 1976, mas sua tomando figuras execráveis como
atualidade é indiscutível, basta personagens de seu filme
lançamos o olhar para o denunciando a fragilidade do
neonazismo, que como fenômeno elemento nacional, personagem de
social demonstra que a antiga Repo, diante de uma ideologia
intolerância “[...] tem o poder de fortemente articulada. Há quem diga
ressurgir das cinzas, com novos que o “bandido” deve morrer nas
nomes e múltiplas facetas. Em histórias dos livros, dos filmes, ou
parte, estamos falando de uma ainda, que deve imperar os finais
mesma história que recomeça – a clássicos como, por exemplo, a “o
história da Besta – travestida de príncipe e a princesa foram felizes
para sempre” Por quê? Na vida real CINEMA E HISTÓRIA:
acontece isso? Em “Aleluia,
Gretchen” os “bandidos” são os POSSIBILIDADES DE
“vitoriosos” e dançam no final do ANÁLISES ATRAVÉS DO
filme ao som de samba, mostrando
que “ainda é fecundo o ventre de
FILME “O POÇO E O
54 onde saiu essa gente...” PÊNDULO”
FONTE Vera Maria Benzak
“Aleluia, Gretchen” (1976) produzido
por Sílvio Back
Até o surgimento da corrente
REFERÊNCIAS
historiográfica da Nova História, os
BACK, Sílvio. Aleluia, Gretchen. Porto historiadores centravam-se somente
Alegre: Editora Movimento, 1978. na análise de documentos escritos,
CARNEIRO, Maria Tucci. O Renascer da os considerados documentos oficiais
Besta. In: PINSKY. Jaime; PINSKI, Carla para o estudo da História. Por isso,
Bassanezi. (orgs) Faces do fanatismo.
São Paulo: Contexto, 2004.
um ponto central para iniciar as
GERTZ, René. O perigo alemão. Porto discussões deste texto refere-se a
Alegre: Editora da Universidade UFRGS, este movimento de renovação da
1991. historiografia, que teve como uma
MOURA, Roberto. A Bela Época de suas maiores características a
(Primórdios-1912) Cinema Carioca identificação de novos objetos e
(1912-1930). In: RAMOS, Fernão. (org.). novos métodos. Com esses novos
História do Cinema Brasileiro. São elementos metodológicos no campo
Paulo: Art Editora, 1987.
NOVA, Cristiane. O cinema e o
do historiador, este pôde aprofundar
conhecimento da história. In: Clio suas pesquisas em relação aos
História - Textos e Documentos. [S.l.], acontecimentos do passado, bem
[19--]. como trazer novas visões e
Disponível em: interpretações de determinados
http:www.eadmodle.academia.edu/Cristi fatos do passado. Nesse sentido:
aneNova/Papers/253104/0_cinema_Eo_
Conhecimento_Da_Historia Acesso em: (...) Surgiram categorias de
24/02/2011. documentos as quais o
RAMOS, José Mário Ortiz. O Cinema historiador dos tempos
Brasileiro Contemporâneo (1970-1987). modernos deve conceder
In: RAMOS, Fernão. (org.). História do
especial atenção. A imprensa –
Cinema Brasileiro. São Paulo: Art
Editora, 1987.
jornais, revistas e periódicos –
SEYFERTH, Giralda. A assimilação dos tem apenas três séculos de
imigrantes como questão nacional. In: existência e não há mais de
Mana 3 (1), 95, p. 95-131, 1997. cem anos que se transformou
Disponível em: no prodigioso meio de
http:www.scielo.br/pdf/mana/v3n1/2457.p informação que hoje
df Acesso em: 17/11/2009. conhecemos. Mal chegara ao
SILVA, Deonísio da. Sílvio Back em seu pleno desenvolvimento, e
muito boa companhia. In: Aleluia,
Gretchen. Porto Alegre: Editora
já encontrava a concorrência
Movimento, 1978. de novas fontes de informação
e documentação – o rádio, o
disco, o cinema, a televisão – realizaram as cenas. Seguindo essa
que introduzem na linha de pensamento, pode-se
historiografia uma forma apontar que para as pessoas
suplementar de tradição oral e instruídas, aquilo que não é escrito,
uma forma completamente ou seja, a imagem não tem
nova de tradição visual. identidade, nesse aspecto os
(GLENISSON, 1986, p. 148) historiadores não possuíam uma
55
forma de fazer referência a tal
Dentre as novas fontes que são natureza de documento. Desse
incorporadas pelos pesquisadores modo:
no estudo da História estão o
cinema, a música, a fotografia e Sem pai nem mãe, órfã,
também os quadrinhos. Nesta prostituindo-se em meio ao
perspectiva, para as discussões povo, a imagem não poderia
deste texto será enfatizada a ser uma companheira dessas
questão do cinema, mais grandes personagens que
especificamente pretende-se constituem a sociedade do
analisar mais profundamente o historiador: artigos de lei,
contexto e o conteúdo do filme “O tratados de comércio,
Poço e o Pêndulo”. Este é, portanto, declarações ministeriais,
um filme de ficção histórica, mas ordens operacionais, discursos.
mesmo tendo um enredo ficcional, Além do mais, como confiar
seu contexto está se referindo a um nos jornais cinematográficos,
fato histórico de relevante quando todo mundo sabe que
importância que se trata da esta imagem, essa pseudo-
Inquisição. Um dos mais destacados representação da realidade,
teóricos na temática referente a são escolhidas, transformáveis,
utilização Fo filme pelos já que são reunidas por uma
historiadores é Marca Ferro, e em montagem não-controlável, por
seu artigo no livro História: novos um truque, uma trucagem. (...)
objetos, este afirma que por um lado (FERRO, 1992, p. 83)
o filme parece suscitar ao nível da
imagem, o factual, por outro, De acordo com Ferro, o filme acaba
apresenta-se em todos os sentidos não sendo visto como documento
do termo como uma manipulação. histórico devido a que este não
representa a realidade em si, ou
Mas inicialmente o filme não era seja, neste o historiador encontrará
considerado um documento porque apenas uma visão sobre o objeto do
nele não se reconhecia um autor, ou passado que pode conter verdades
seja, não se reconhecia a autoria ou inverdades parciais. Nesse
daquele que filmava. Considerava- sentido, um filme não poderia conter
se autor do filme aquele que uma verdade plena e absoluta de
escreveu o roteiro, dessa forma, as determinado fato histórico, ainda
imagens filmadas eram assinadas que aborde fatos reais, não deixará
por quem as produziu e de acordo de ser uma ficção ou representação
com Ferro (1992) somente a da História. Sobre esta questão,
sociedade nazista e a soviética Cristiane Nova aponta que o que
indicavam os nomes dos que deve ser buscado em um filme não
é a verdade contida nele, mas a ter um valor documental, devido a
verossimilhança com o fenômeno que se via nele o instrumento
histórico que retrata. registrador de tudo o que os olhos
não podem reter, e sendo este
Monica Kornis também recusa o produzido por uma máquina, como a
princípio de que a imagem é reflexo fotografia, não era entendido como
56 do real, uma vez que o filme deve objeto cultural. Assim, a imagem
ser visto como uma construção, que que era produzida através do filme,
altera a realidade através de uma era segundo o autor neutra, isenta
articulação entre a imagem, a de opinião, dessa forma, este não
palavra, o som e o movimento. A possuía uma função no mundo do
autora cita ainda Eisenstein, o qual saber. Entretanto, hoje sabemos
aponta que o filme seria criado a que uma produção fílmica sendo ela
partir de sua montagem, e não histórica ou não, possuí a
poderia então ser visto como uma capacidade de formar opiniões
reprodução fiel da realidade. Neste sobre o assunto que trata e
caso, um documentário se aproxima principalmente fazer com que as
mais dessa concepção já que neste pessoas possam refletir a partir das
estão contidas entrevistas com problemáticas que estão sendo
pessoas que vivenciaram certo retratadas pelo filme. Assim sendo:
momento histórico, bem como
geralmente os fatos históricos são (...) O filme tem essa
narrados buscando relatar, capacidade de desestruturar
descrever ou analisar um aquilo que diversas gerações
acontecimento. Já os filmes de de homens de Estado e
ficção histórica possuem um enredo pensadores conseguiram
ficcional, mas que ao mesmo tempo ordenar num belo equilíbrio.
possui um valor histórico. Ele destrói a imagem do duplo
que cada instituição, cada
Monica Kornis cita ainda a indivíduo conseguiu construir
contribuição de Pierre Sorlin, e para diante da sociedade. A câmera
este teórico o filme possui um texto revela seu funcionamento real,
visual que merece assim como o diz mais sobre cada um do que
texto escrito, uma análise interna e seria desejável de se mostrar.
como artefato cultural, possui sua (...) (Ferro, 1992, p. 86)
própria história e um contexto social
que o cerca. Ainda segundo Sorlin, Assim, não se deve buscar na
é necessário analisar a mentalidade imagem fílmica somente seu caráter
de um determinado momento ilustrativo, mas segundo Ferro, o
histórico. Deve-se enfatizar também cinema inquieta e fascina, no qual
que Sorlin se baseia da semiótica os poderes públicos e o privado
para análise do filme, já Ferro percebem também que ele pode ter
defende uma análise contextual e a um efeito corrosivo, que mesmo
busca do não visível para o estudo controlado, um filme testemunha.
desse objeto do passado. Portanto, o filme deve ser associado
com o mundo que o produz, ele não
Ferro (1992) salienta que por algum vale somente por aquilo que
tempo o filme não poderia ser nem testemunha, mas também pela
uma obra de arte tampouco poderia
abordagem sócio-histórica que manter algumas semelhanças
autoriza. importantes, constituem-se
como dois meios, radicalmente,
Em seu texto Mônica Kornis aponta diferentes para a
ainda que nenhum gênero fílmico é representação do passado. No
objetivo, sendo assim, a realidade caso das semelhanças, elas
apresentada é fruto de um controle consistem, no entendimento do
57
prévio. Nestes termos, o valor do autor, no fato de que as duas
filme para o historiador reside na modalidades discursivas
sua capacidade de retratar uma referem-se a acontecimentos,
cultura e dirigir-se a uma grande momentos e movimentos reais
audiência na condição de meio de do passado e, ao mesmo
controle social e principalmente tempo, compartilham do irreal
transmissor da ideologia, traduzindo e do ficcional, pois ambos são
ainda valores culturais e sociais de compostos por conjuntos de
certa sociedade através das convenções que
mensagens contidas neste. desenvolvemos para falar de
Cristiane Nova ainda sugere em seu onde nós, seres humanos,
texto que o filme pode ser utilizado viemos. (Nicolazzi, 2011, in
de duas maneiras pelo historiador, http://www.ichs.ufop.br/rhh/inde
primeiro como testemunho da época x.php/revista/article/view/222).
em que foi produzido, e também Fernando Nicolazzi tem por base em
como representação do passado. seu texto as idéias de Rosenstone,
Assim, toda produção e o conceito cogitado por este é que
cinematográfica deve ser nossa reação básica é pensar que
considerada documento, já que a um filme na verdade é um livro
maneira pela qual o filme representa transposto para a tela, entretanto,
a sociedade não se apresenta não podemos esquecer que as
muitas vezes de forma coerente, por produções fílmicas são uma
isso o historiador ao trabalhar com reconstrução, ou seja, uma obra que
tal documento deve manter cautela. constrói um passado em sons e
Contudo, deve-se ressaltar ainda imagens. Nesse sentido,
que as possibilidades de análise de entendendo o filme como História é
um filme são extremamente amplas, provável oferecer uma definição
através deste pode-se perceber o ampla do que pode ser considerado
vestuário, gestos, vocabulário e até o gênero histórico. Para o autor,
os costumes da época em que este portanto, os filmes permitem
está retratando. Ao propor o uso das visualizar, contestar e também
produções cinematográficas como revisar a História.
documento histórico, procura-se
acima de tudo buscar elementos da Além disso, segundo Nicolazzi, para
realidade de determinado período Rosenstone, os filmes históricos
através da ficção. Assim: mesmo quando sabemos que são
representações fantasiosas ou
Eis aqui, também, um desafio ideológicas, afetam a maneira como
para os historiadores, uma vez vemos o passado. Uma vez a
que a história, nos livros, e a película cinematográfica por suas
história, no cinema, apesar de
características estéticas e Maria, esta que foi acusada de
dramáticas, é dotada de um efeito bruxaria.
de realidade muito intenso,
geralmente mais forte do que o Mesmo sendo um filme de ficção, “O
efeito provocado por um texto Poço e o Pêndulo” revela muitas
escrito. Entretanto, a análise dos práticas adotadas pela Igreja do
58 filmes deve ser feito de forma período para punir pessoas
criteriosa, já que se trata de outra consideradas hereges. Trata
mídia, com outros recursos principalmente da ideologia
narrativos. dominante da Instituição eclesiástica
que realmente não aceitava ser
Desse modo, todo filme é um objeto contestada e caso isso acontecesse
de análise para o historiador, já que pessoas deveriam ser punidas e
nenhum gênero fílmico é objetivo, e torturadas em nome desta Igreja.
a realidade apresentada é fruto de Entretanto, não se pode levar este
uma seleção e além do mais de um filme como sendo totalmente
controle prévio. Entretanto, voltando verídico historicamente, nesse
a citar Ferro (1976), este ainda sentido, uma cena que deve citada,
salienta que o filme é abordado não diz respeito a quando o Inquisidor
como um produto, uma imagem- Torquemada corta a língua de Maria,
objeto cujas significações não são esta é uma cena que não
somente cinematográficas, ou seja, aconteceria durante a atuação da
ele vale por aquilo que testemunha inquisição, pois como o próprio filme
e representa. Por isso a acaba demonstrando, como seria
necessidade de analisar no filme tomada a confissão de um herege
tanto a narrativa quanto o cenário, que tivesse sua língua arrancada, já
as relações do filme com o que não que a finalidade fundamental das
é filme (autor, produção, público, torturas era obter a confissão dos
etc.). Só assim segundo Ferro, se acusados.
pode chegar à compreensão não
apenas da obra, mas também da Em relação à utilização do filme “O
realidade que ela representa. Poço e o Pêndulo” didaticamente, o
professor deve ter alguns cuidados
Como já foi citado anteriormente, o já que a abordagem histórica não é
filme a ser analisado é “O Poço e o a tônica, já que este se trata de um
Pêndulo”, este foi lançado em 1991 filme de terror, podendo até desviar
nos Estados Unidos e seu diretor é a análise histórica se utilizado
Stuart Gordon. Trata-se de um filme somente pelo viés ilustrativo, por
de terror, mas que traz em seu isso a necessidade da ampliação da
enredo um fato histórico pouco análise de tal imagem. Em todo
representado em produções caso, outra questão que o professor
cinematográficas, que diz respeito deve ficar atento, diz respeito a que
da Inquisição. A história se passa na este filme não passe a visão da
Espanha no ano de 1492 durante a Idade Média como um período da
atuação dos Tribunais do Santo História obscuro, de trevas, sombras
Ofício, no qual um casal de padeiros e atrasos da humanidade, devido
acaba sendo preso pelo Inquisidor até a este retratar o período
Torquemada que se apaixona por medieval parcialmente.
No texto “O filme em sala de aula: piedade. A cerimônia,
como usar.” As autoras trazem a obviamente pública, era
discussão, a questão de que o filme denominada sermão geral ou
não consegue abordar todos os auto-de-fé e a palavra auto,
aspectos necessários para se tipicamente medieval, já
entender o processo histórico como permite identificar o conteúdo
um todo. Nesse sentido, uma da época (...). (LOPEZ, 1993, p.
59
possibilidade da utilização deste em 39)
sala de aula é que o professor deve
trabalhar inicialmente com o A Igreja ao criar um tribunal desta
conteúdo que o filme retrata para magnitude desejava acima de tudo
posterior projeção. Com isso, os demonstrar para a sociedade o
alunos terão conhecimento da poder que ela possuía, e isso se
realidade que será apresentada daria principalmente através dos
através da película, tendo uma base conhecidos autos-de-fé, que são
teórica para as análises sobre o retratados durante o filme o Poço e
mesmo. A função do professor ao o Pêndulo. Mas, não se deve deixar
trazer essa tipologia de mídia para a de citar um dos personagens que
sala de aula reside principalmente mais se destacou nesta produção
na orientação da discussão e da fílmica que foi Torquemada, este
crítica do filme, é dessa forma que que realmente foi um temível
os educandos vão estabelecendo Inquisidor da Espanha.
relação entre o que está sendo visto De acordo com Luiz Roberto Lopes
e a informação que possuem. (1993) este pode ser definido como
Seguindo a análise do conteúdo do um fanático que via como objetivo
filme que esta sendo exposto, deve- final da sua vida o extermínio dos
se enfatizar que vários fatos são marranos. Tornou-se um verdadeiro
retratados com verossimilhança. Um ditador da Espanha e distinguiu-se
deles é a punição de uma pessoa pela crueldade, perfídia e espírito de
acusada de heresia após a sua vingança. Entretanto, ele nunca se
morte, no exemplo do filme D. viu dessa maneira, julgava-se
Afonso de Molina. Outro ponto que imbuído da sagrada missão de
deve ser apontado é a organização erradicar a heresia. Ainda segundo
do Santo Ofício, na qual as pessoas o autor, durante o período em que
eram apenas julgadas pela Igreja, Torquemada foi inquisidor houve
mas quando se tratava da punição, 100.000 processos por heresia e
a Instituição Eclesiástica entregava 2.000 execuções.
o herege às autoridades civis para Em todo caso, deve-se destacar que
que estes o executassem, assim, o este texto não possui como objetivo
castigo era manejado como se a apenas mencionar que fatos são
Inquisição nada tivesse a ver com reais ou não, pois a exatidão dos
ele. Com isso: detalhes, nunca vai ser encontrada
A Igreja fez da punição da num filme histórico uma vez que
heresia um ritual destinado a este está sempre envolto de ficção,
exibir a majestade do seu até para causar um maior impacto e
poder, ou a magnitude de sua também chamar mais a atenção do
público alvo. Entretanto, se o filme
for utilizado em sala de aula o novamente para Cristo. Isso se deve
professor terá a necessidade de também em função dos seus
apontar estes detalhes para que a discursos e sermões durante o auto-
produção cinematográfica utilizada de-fé, pois a partir desses
não passe aos educandos uma mecanismos, a Instituição
mensagem distorcida de eclesiástica procurava manipular as
60 determinado fato histórico, já que pessoas para que agissem
estes não possuem uma base conforme ela queria, já que nem
histórica consistente e por vezes todos aceitavam as regras impostas
não tenham o conhecimento pela Igreja, sendo que é nesse
aprofundado do assunto que está momento que surgem as
sendo representado através do filme. contestações e consequentemente
as heresias.
Nesse sentido, procura-se analisar
através do filme histórico, os Portanto, pode-se apontar que
artifícios usados por este para narrar durante as discussões apresentadas
a História. Em relação ao material neste texto, procurou-se considerar
aqui analisado, podemos enfocar a as possibilidades de análises de um
reação da sociedade frente à filme, bem como, ressaltando que
questão da bruxaria, heresia da qual este possui grande importância
a protagonista foi acusada. A tanto como documento para a
sociedade da época acreditava na História, quanto da utilização deste
existência real da bruxa e acima de pelo viés pedagógico, já que o
tudo nos malefícios que esta poderia cinema é uma mídia fortemente
praticar a partir de seus atos. Assim, presente em uma sociedade onde a
a sociedade acabava crendo nesta cultura audiovisual esta sendo muito
heresia principalmente pela utilizada. Em função disso, os
influencia que a Igreja exercia sobre historiadores não devem ignorar os
esta. A bruxa constituía uma filmes históricos sendo ficção ou não,
ameaça tanto para a população já que estes estão muito presentes
quanto para a Igreja Católica, no na contemporaneidade. Esse
qual a fantasia popular não tinha contato com tais obras de caráter
limites no seu poder de imaginação, histórico contribui não apenas no
o que contribuiu para que a caça as gosto estético de grande parte da
bruxas obtivesse a aceitação que população, mas também auxilia
teve. Entretanto, esta não habitou tanto na formação de opinião quanto
somente o imaginário popular, mas nos conhecimentos e interpretações
teve existência concreta e foi da História.
realmente perseguida pela
inquisição. Por fim, deve-se frizar que
independente da natureza de fontes
Através do filme mencionado, e de documentos utilizados pelo
podemos enfatizar os mecanismos historiador, este deve acima de tudo
ideológicos da Igreja expressos no buscar novas formas de
contexto deste, no qual a inquisição compreender o passado trazendo
se julgava purificadora, a partir dos além de tudo novas interpretações
hereges que torturava e matava, e para a História, pois como ressalta
ainda os inquisidores se diziam lutar Ferro (1976) segundo a natureza de
contra o demônio para salvar a alma sua missão, segundo a época, o
historiador escolheu tal conjunto de CINEMA: O GRANDE
fontes, adotou tal método, mudou
como um combatente muda de arma DITADOR DE CHARLES
e de tática quando as que usava até CHAPLIN
aquele momento perderam sua
eficácia. Itacir Rodrigues 61
REFÊRÊNCIAS:
FERRO, Marc. O filme uma contra O fetiche dos historiadores pelas
análise da sociedade. In: História
Novos objetos. Jacques Le Goff e Pierre
fontes, já foi amplamente discutido,
Nora. Rio de Janeiro. F. Alves, 1976. porém, muitos ainda imaginam
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio como fonte, apenas velhos arquivos
de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ou papéis escondidos numa gaveta,
FREIRE, Larissa Almeida. CARIBE, Ana esperando sua análise, já disse uma
Luiza. O filme em sala de aula: como vez um teórico.
usar.
http://www.oolhodahistoria.ufba.br/artigos Quando abordamos novas fontes,
/utilizarfilmeemsala.pdf não tão novas assim, quando
GLENISSON, Jean. Introdução aos falamos de cinema, podemos
estudos históricos. São Paulo: Difel, novamente cometer equívocos, caso
1986. tomarmos a imagem por ela mesma,
LOPEZ, Luiz Roberto. História da
Inquisição. Porto Alegre: Mercado
sem questionamentos acreditando
Aberto, 1993 inocentemente que são fontes de
KORNIS, Mônica Almeida. História e verdades, existem métodos
cinema: um debate metodológico. específicos para essa fonte, contudo
http://www.cliohistoria.110mb.com/textos/ o questionamento de produção,
historiaecinema.pdf. motivo, quando, onde, entre outras
NICOLAZZI, Fernando. Algumas perguntas, continuam pertinentes.
reflexões sobre história e cinema. Para Cristiane Nova:
http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revi
sta/article/view/222 Qualquer reflexão sobre a
NOVA, Cristiane. O cinema e o relação cinema-história toma
conhecimento da História.
como verdadeira a premissa de
http://www.cliohistoria@uol.com.br
que todo filme é um documento,
desde que corresponde a um
vestígio de um acontecimento
que teve existência no passado,
seja ele imediato ou remoto.
(NOVA, 2011, p.01)
Mas, lembra que:
No entanto, isso não seria
suficiente para que uma
película se tornasse um
documento válido para a
investigação historiográfica. Na
verdade, o conceito
historiográfico de documento
se relaciona fundamentalmente transforma em documentos”,
com dois pontos: a concepção seria uma primeira maneira de
de História do pesquisador e o compreender e de ver por que
valor intrínseco do documento. o filme não figura entre elas.
(NOVA, 2011, p.01) (FERRO, 1975, p.01)
62 Em certa medida existiu um receio Marc Ferro é quem mais debate
na abordagem do cinema como com propriedade a relação entre
fonte, talvez devido ao fascínio que cinema e história, contribuindo de
esse exerce, tanto para o cientista, forma significativa para o método de
quanto para o leigo. análise, quando, por exemplo,
apresenta discussões sobre a
A questão central que se realidade e construções
coloca para o historiador que cinematográficas, quando discutia-
quer trabalhar com a imagem se de que forma e qual o valor
cinematográfica diz respeito desse nova fonte.
exatamente a este ponto: o
que a imagem reflete? ela é a Já nos anos 70 Marc Ferro iria
expressão da realidade ou é referir-se a essa polêmica para
uma representação? qual o reforçar sua argumentação de
grau possível de manipulação que tanto o cinema
da imagem? Por ora, essas documentário como o de ficção
perguntas já nos são úteis para devem ser objeto de uma
indicar a particularidade e a análise cultural e social,
complexidade desse objeto, refutando a idéia de que o
que hoje começam a ser primeiro gênero seria mais
reconhecidos. (KORNIS, 1992, objetivo e retrataria fielmente a
p.237) realidade. (KORNIS, 1992,
p.240)
Kornis (1992) salienta também
acerca do mau uso do cinema, Emergem teorias que visam
remetido a um segundo plano em enquadrar o cinema, objetivando
muitos trabalhos “De maneira geral, para categorização e estudo, são
os documentos visuais são principais categorias e expoentes
utilizados de forma marginal e são: Teoria Formativa (Serguei
secundária pelos estudos históricos” Mikhailovitch Eisenstein, Marc
(KORNIS, 1992, p. 237), sendo, Ferro), tem como característica
portanto um mero complemento, já apresentar uma ideologia ou
Marc Ferro (1975), acredita que: construir uma usando a película
para tal, Teoria Realista (André
Não existe no caso nem Basin, Pier Paolo Pasolini), buscar
incapacidade nem atraso, usar o cinema para compreender o
porém uma recusa real, Teoria Existencialista (Christian
inconsciente que procede Mertz), almeja através do cinema
causas complexas. Examinar criar uma forma com que o ser
quais “monumentos do humano compreenda a sua
passado” o historiador existência, Teoria Dogma 95 (Lars
transformou em documentos, e von Trier), apresenta o filme como
depois, em nossos dias, “quais um registro, Teoria Pós-Moderna (S.
documentos a história
Zier), aponta o para a falta de recorre a um empréstimo com um
atitude no cinema na Pós- empresário judeu chamado Shylock,
modernidade. o qual estimula um prazo de três
meses para o pagamento, após
A Teoria Formativa do cinema pode esse prazo Antonio deve dar parte
muito bem ser observada nos de sua própria pele a Shylock.
regimes totalitários europeus que (SHAKESPEARE, W. O Mercador
63
compuseram a aliança do Eixo, Itália de Veneza. São Paulo: Martin Claret,
e Alemanha nas décadas de 30 e 40 2006).
do século XX, pois, souberam
articuladamente usufruir da arte, Contudo, a propaganda nazista
seja ela, pintura, fotografia, precisava ir além com uma
arquitetura, teatro, música e cinema expressão mais acessível, o cinema
entre outras formas de expressão, tinha e têm essa característica de
para afirmar sua posição, bem como, repercussão e acessibilidade, logo
reforçar seu aparato de construção inúmeros foram os filmes de longa e
de uma ideologia. curta duração que tiveram com norte
a aversão aos principais inimigos do
Sendo a arte capaz de transmitir Reich, são eles comunistas e
sentimentos de forma rápida e principalmente judeus.
acessível foi investida de
nacionalismo, patriotismo e Entre os principais filmes podemos
heroísmo, contra o inimigo comum destacar O Triunfo da Vontade
representado por judeus, (1934), Olympia (1936) e O Eterno
comunistas, ciganos, homossexuais, judeu e O jovem hitlerista, ambos de
entre outras minorias, para as quais 1940. Em contra partida, é
a intolerância e descriminação surpreendente observar que do lado
seriam constantemente aplicadas. dos países ameaçados com o
avanço nazista na Europa, pouco ou
O estado Nazista almejou uma quase nada produziram em protesto
aproximação com arte grega antiga as políticas de Hitler e seus aliados,
que para eles parecia ser um Marc Ferro destaca que a França,
exemplo de perfeição, de beleza e principalmente ficou calada
principalmente de força e virilidade, cinematograficamente.
as construções traziam lembranças
das às famosas colunas gregas em De fato, se fizermos o
sua grandiosidade e a utilização do inventário dos filmes
mármore. antigermânicos ou antinazistas
projetados em Paris em 1939,
Nas artes cênicas a peça inglesa de o resultado chega logo. Com
William Shakespeare (1564-1616), exceção de Eduardo VII,
O Mercador de Veneza, foi Double crime La ligue Maginot,
intensivamente apresentada, o O mistério do colégio, filmes
motivo é claro, pois, conta a história que lançam uma dúvida
de um jovem apaixonado Bassanio anônima sobre as segundas
que para cortejar sua amada precisa intenções dos alemães, não há
de certa quantia de ducados, solicita um único filme que seja
um empréstimo a seu amigo Antonio, explicitamente antinazista,
este mesmo sendo rico, não possui, salvo Confissões de um espião
nazista, que é precisamente estrangeiro e sobretudo com
um filme americano. (FERRO, Tempestades d‟ alma, de
1992, p.31) Frank Borzarem verdadeiro
apelo aos alemães para
Marcos Napolitano nos apresenta derrubar Hitler, filme que foi a
um pensamento que justifica parte origem de um incidente
64 dessa ausência francesa. diplomático. (FERRO, 1992,
A França, pioneira do cinema p.34)
não conseguiu consolidar o O Grande Ditador que têm como
sistema de grandes estúdios, e gênero a comédia, foi lançado em
o cinema francês era produzido 15 de outubro de 1940, caracteriza-
por pequenas companhias e se por ser uma sátira direta aos
produtores independentes, ditadores Adolf Hitler, que recebe o
contribuindo para a tradição nome de Adenóide Hynkel e Benito
francesa de “cinema de autor”, Mussolini, chamado de Benzini
filmes com estilo mais pessoal Napaloni, as referências a
e subjetivo, sem se prender às Alemanha e Itália também são
exigências dos produtores e diretas são chamadas de Tomânia e
dos grandes gêneros de Bactéria respectivamente.
comerciais (como nos EUA).
(NAPOLITANO, 2004, p.71) Qualquer que seja o foco de estudo
desse filme, inegavelmente teremos
Os Estados Unidos, neutros no que abordar o autor Charles Chaplin,
conflito até a fatídica data de 7 de que além de dirigir e produzir atua
setembro de 1941, quando do executando os dois principais papeis
ataque japonês a Base Pearl Harbor, da obra o de Hynkel e do barbeiro
episódio que é retratado no filme judeu, cabe lembrar que é o primeiro
Tora! Tora! Tora! de produção filme em que Chaplin apresenta o
americana e japonesa de 1970, cinema falado em sua obra.
produziram um número significativo “Durante longo tempo o direito
de filmes, antinazistas em 1940, é o considera que o autor do filme é
caso de The Great Dictador, O aquele que escreveu o roteiro. Não
Grande Ditador, filme produzido por se reconhecia o direito de autor
Charles Chaplin. daquele que filmava.” (FERRO,
Enquanto entre setembro de 1975, p.02), Chaplin, logo não se
1939 e junho de 1940 – em enquadra nesse perfil, por executar
plena guerra, portanto – a diversas funções em sua obra.
França continuava a não Charles Chaplin é tido como um dos
produzir filmes antinazistas, gênios do cinema, grande parte de
nos Estados Unidos essa sua obra foi produzida na primeira
tendência não deixou de metade do século XX, têm o
crescer. Ela tomou impulso personagem Carlitos como sendo
decisivo no início da Segunda seu principal expoente. “Chaplin
Guerra Mundial (Confissões de levou ao extremo as possibilidades
um espião nazista data de abril narrativas do cinema mudo, graças
de 1939), com obras como ao enorme talento da sua expressão
Quatro filhos, Fuga, O Grande facial e corporal, além da habilidade
ditador, Correspondente
única em narrar situações que com soldado, em meio às confusas
mesclavam humor e crítica social” trincheiras e novas armas,
(NAPOLITANO, 2004, p.70). executando um esforço de guerra,
mesmo quando na retaguarda ela já
Além do filme “O Grande Ditador”, era tida como perdida, para Chaplin
destaca-se com outros filmes que a confusão da guerra é um prato
receberam elogios da crítica perfeito para as tradicionais
65
especializada e são tidos como trapalhadas de seus personagens.
clássicos, podemos nominar os
seguintes, “Tempos Modernos” Com o avanço inimigo o barbeiro
(1936), “O Garoto” (1921), “O Circo” judeu toma junto com oficial um
(1921), “Luzes da Cidade" (1931), avião em uma fuga desesperada,
ao todo atua em 72 filmes, dirige 69 acabam por sofrerem uma queda,
e é roteirista em 67, cabe lembrar onde o barbeiro judeu sai de cena,
que na maioria das vezes executa em meio a frases românticas do
as três funções. piloto que é socorrido e recebe a
(http://www.cineplayers.com/perfil.ph noticia do fim da guerra.
p?id=1247)
A sequência do enredo da história é
Em “Tempos Modernos”, Chaplin, já uma referência direta a Alemanha
engrossava criticas fortes a sob o comando de Hitler com seus
sociedade, porém, em o “Grande inflamados discursos e sua política
Ditador”, vai muito além, para João de megalomania e implacável
Luís de Almeida Machado. perseguição aos judeus, já isolados
em guetos, bem como, apresenta os
Em “O Grande Ditador”, principais auxiliares do regime como,
Chaplin antecipou o fenômeno Goebbles, Göring, este último é
Hitler na Alemanha, através de apresentado como bobo da corte,
uma contundente sátira ao pois comete várias grafes, quando
nazi-fascismo e um tenta desesperadamente agradar o
surpreendente clamor pela paz. Führer.
Não compreendido pelos
americanos acabou tendo que O barbeiro judeu retorna a sua
se retirar do país e se barbaria depois de longos anos de
estabeleceu na Suíça. Uma tratamento de reabilitação, pois
grande perda pois, na Europa, perde a memória no acidente, em
tolhido dos meios e dos meio a todo o contexto do gueto,
recursos necessários para seu inicialmente não entende o que está
trabalho e um tanto quanto acontecendo, recebe respeito
descrente na indústria e no quando da invasão do gueto por
mundo, sua produção declinou soldados de Hynkel, após ser
e rareou. (MACHADO, 2001, in reconhecido pelo oficial que
http://www.planetaeducacao.co compartilhou fuga na guerra.
m.br/portal/artigo=56)
Contudo logo, nada mais segura o
ódio da Tômania, pelos judeus,
então restam poucas opções aos
O cenário inicial do filme é a judeus, uma delas é a fuga para a
Primeira Guerra Mundial (1914- Olterlich, país vizinho que é gera
1918), onde o barbeiro judeu atua
uma disputa pela primazia da O filme é um longa-metragem de
invasão por parte dos concorrentes 124 minutos, com direção e roteiro
Benzino Napoloni e Hynkel, as de Charles Chaplin, teve indicação
cenas dessa disputa buscam traçar ao Oscar de para Melhor Ator,
de forma cômica as atitudes, ações Melhor Música, Melhor Filme,
e posturas de ditadores que buscam Melhor Ator Coadjuvante e Melhor
66 apresentar-se de forma superior ao Roteiro Original e pela Associação
outro, nos mínimos detalhes. dos Críticos de Nova York em 1940,
Chaplin recebeu o Prêmio de Melhor
Hynkel consegue manipular Ator. (CHAPLIN, 1966).
Napoloni e invade a Olterlich,
estendendo sua política anti-semita O filme é um convite para diversos
além fronteiras, é interessante que estudos, sejam voltados ao cinema,
essa disputa entre os dois ditadores à obra do genial Charles Chaplin a
pode ser vista com uma das únicas Segunda Guerra Mundial, entre
diferenças, entre o que acontecerá outros aspectos.
num futuro próximo e o fictício do
Referências
cinema.
CHAPLIN. Charles. História da minha
Com toda a agitação da guerra, o vida. Rio de Janeiro: José Olympio
barbeiro judeu estereótipo de um Editora, 1966.
povo, na fuga de um campo de FERRO, Marc. In NORA, Pierre (org.).
concentração devido a História: novos objetivos. Rio de
circunstancias hilárias invente de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
papel com Hynkel, podemos ____________. Cinema e História. Rio
observar mais um crítica reforçada de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
KORNIS, Mônica Almeida. Estudos
por Chaplin, ao longo da obra, que
Históricos. Rio de Janeiro: vol. 5, n. 10,
gira entorno da origem e fisionomia 1992, p.237.- 250.
de Führer, que não possui traços NAPOLITANO, Marcos. Como usar o
arianos. cinema em sala de aula. São Paulo:
Contexto, 2004.
Kynkel é preso por engano e o NOVA,Cristiane. O cinema e o
barbeiro tomado de surpresa conhecimento da História. in:
deparasse com a cerimônia onde o http://www.cliohistoria.110mb.com/videot
precisa realizar um discurso, neste eca/textos/cinema_conhecimento.pdf
momento através de um discurso MACHADO, João Luís de Almeida.
recusa o poder, prega a paz a Cinema e História. 2001 in
tolerância, o respeito entre os http://www.planetaeducacao.com.br/port
al/artigo=56.
diferentes povos, lembrando que
todos são e deveram agir como
humanos, apresenta valores que
estão esquecidos pela sociedade de
Tomânia, mas, perfeitamente pode
ser estendidos ao mundo, parece
também prever o futuro, caso isso
seja possível, quando de forma
perspicaz diz que dias melhores
estão por vir, quando essa fase
violenta passar.
‘A TROCA’: O FILME ATRAVÉS Peter Burke (2005) a História
Cultural entra em cena
DE UMA VISÃO CRÍTICA principalmente a partir de 1970.
Neste momento há uma expansão
Sheila Regina Bernardin no campo de pesquisa da história,
abrangendo agora questões ligadas
à cultura popular, cultura letrada e
67
O presente texto tem como até mesmo as representações são
finalidade trabalhar com um dos incluídas. Sendo assim é possível
vários campos que a história nos afirmar que o campo da história
possibilita, a História Cultural. cultural é algo complexo, pois
Dentro deste campo buscaremos trabalha com as particularidades.
analisar o cinema e para isto
utilizaremos como fonte o filme “A Burke afirma também que a História
Troca”. Foi lançado em 2008 nos Cultural surgiu na mesma época em
Estados Unidos e dirigido por Clint que a chamada crise da história
Eastwood. Baseado em uma história apareceu. Essa crise que pode ser
real conta a história de uma mãe compreendida de várias formas e
solteira em busca de seu filho até pode ser analisada como uma
desaparecido. O filme foi escolhido dificuldade pela qual a história
porque acontece entre as décadas passou e se aprimorou, acabou por
de 1920 e 1930 e o que mais nos dar mais campo ao estudo da
chama a atenção é que a época em história. Pois através dela houve a
que o filme passa é um momento da possibilidade de novas buscas, a
história em que as mulheres estão interdisciplinaridade, onde surgiu a
vencendo barreiras e conquistando proposta de utilizar materiais das
espaços na sociedade, porém são ciências antes consideradas
alvos constantes de críticas em concorrentes.
função da mudança de seus Através destas pequenas
comportamentos. considerações sobre a História
Utilizaremos o filme como um Cultural percebemos que foi a partir
instrumento para analisar a dela que a utilização de diversos
divulgação de ideias e de materiais como fontes históricas
comportamentos e também como foram introduzidos no campo de
incentivador de questionamentos ou pesquisa. Levando em consideração
de alienação no período no qual se estes fatores, buscaremos pautar
passa. algumas questões sobre cinema e
sua utilização na história. É
Antes de trabalhar com o filme em si extremamente importante abordar o
podemos discutir algumas questões cuidado em que o historiador
tanto no que se refere a História precisa tomar quando utiliza fontes
Cultural que, como mencionada desta natureza, pois ao explorar a
antes, é o campo da história que fonte precisa ser cauteloso e não
nos possibilita trabalhar com tomar tudo o que está vendo como
diversas fontes e diferentes verdades. É fundamental realizar
perspectivas, bem como discutir um questionamentos, analisar as
pouco sobre cinema. Segundo proporções do tempo e também
buscar nas entrelinhas as ausências, passaremos a fazer a partir de
ou seja, há a necessidade de agora.
sermos críticos. Isto não cabe
apenas para o historiador O filme A Troca é classificado como
pesquisador, mas para o professor drama, baseado em uma história
de história. É preciso deixar real conhecida como Wineville
68 transparecer que ao mesmo tempo Chicken Coop Murders (Os
em que um filme pode mostrar fatos assassinatos do galinheiro de
que realmente aconteceram na Wineville). Se passa na década de
época em que se passa, ele pode 1920, contando a história de uma
ser alienante ao público, pois muitas mãe solteira, que sai para trabalhar
vezes em meio a trama busca-se e deixa seu filho de 9 anos em casa
medidas que não aconteceram para e ao voltar não o encontra. Na
cativar as pessoas. esperança de reencontrá-lo vai à
polícia buscar ajuda. Como
De acordo com Nova (1996 in: protagonista do filme temos
http://www.cliohistoria.110mb.com/vi Angelina Jolie, que vive Christine
deoteca/textos/cinema_conheciment Collins, a mãe do menino
o.pdf) um filme nunca trará toda a desaparecido. No elenco estão
verdade de um fato histórico, por também John Malkovich
isso ao analisarmos devemos interpretando o reverendo Gustav
buscar a verossimilhança entre filme Briegleb e Michael Kelly
e o fato em si. Complementa ainda interpretando o detetive Laster
que a análise do filme está Ybarra. Segundo informações, o
diretamente ligada com o olhar de filme foi financiado pela Imagine
quem o analisa, pois dentro de um Entertainment e a Malpaso
filme são inúmeras as possibilidades Productions através da Universal
de leitura. Existem filmes que nos Studios. Sobre o valor da produção
indicam os gestos, vestuários, não encontramos informações.
costumes da época e há filmes que
nos retratam a mentalidade da O filme foi indicado em 2009 como
época, deixam transparecer o melhor diretor na BAFTA e no
pensamento da sociedade retratada Festival de Cannes em 2008 foi
e que muitas vezes acontece de indicado como Palma de Ouro.
maneira involuntário, sem mesmo Destas indicações nenhuma lhe
ser percebida por quem o produz. rendeu uma premiação. Porém, isto
Kornis (1992) em seu artigo História não interfere em momento alguma a
e cinema: Um debate metodológico, qualidade da produção e
também trabalha com a perspectiva principalmente no assunto abordado.
de buscar nos filmes o não visível. Durante a trama acompanhamos a
Faz isto baseado em Ferro o qual luta de Christine Collins, mãe de
entende que a imagem Walter Collins, menino desaparecido.
cinematográfica vai além da A luta é constante, ligações para a
ilustração. Durante a análise do polícia de Los Angeles em busca de
filme fica claro que além destas notícias são realizadas com
questões expostas acima, outras freqüência. É possível perceber que
questões serão discutidas para ao mesmo em que a angústia da
melhor compreensão. E é o que mãe crescia, a esperança não a
deixava desistir. Até que o sociedade de uma maneira diferente
responsável da polícia pelo caso da que estavam acostumados.
chega ao seu trabalho com a notícia
esperada a meses, seu filho foi A resistência por parte dos homens
encontrado. levou tempos para ser deixada de
lado. O discurso era sempre voltado
Antes de seguir com os para a mesma questão: se as 69
acontecimentos do filme há a mulheres saíssem de casa para
necessidade de ressaltar que buscar um trabalho assalariado
Christine Collins era supervisora em acabariam prejudicando tanto os
uma empresa de linhas telefônicas. seus lares, quanto deixariam de dar
Esta questão nos chama atenção, atenção total aos seus filhos, o que
pois neste momento as mulheres influenciaria na vida conjugal
estavam em busca de um espaço também, principalmente porque
dentro da sociedade e em função começaria a existir uma
disto recebiam diversas críticas, concorrência entre os cônjuges.
principalmente masculinas, pois (SOIHET, 2004)
havia o receio de que as mulheres
conquistassem os seus lugares na Retomando a história, Christine vai
sociedade. Durante o filme aparece junto com a polícia até a estação de
uma cena em que o chefe de trem esperar seu filho que chegaria
Christine a elogia afirmando que em pouco minutos. Estava presente
deveria ter contratado a mais tempo também a imprensa que esperava
uma mulher para tomar conta da eufórica para registrar o encontro de
supervisão. Esta afirmação pode mãe e filho. A polícia satisfeita
passar despercebida aos olhos de sentia que reforçaria mais uma vez
muitas pessoas, porém dentro de a sua integridade servindo a
uma análise histórica ele é muito população.
importante, pois é a percepção da Este clima de satisfação por parte
mudança de pensamento. da polícia é tomado pelo nervosismo
Segundo Lagrave (1991) o século quando o menino desce do trem e
XX é marcado pela emancipação sua suposta mãe não o reconhece,
feminina, que ocorre principalmente rejeitando o. Antes que a imprensa
através da educação e do trabalho. tomasse conhecimento do que
Pois, se até o momento a ordem estava acontecendo o policial faz
estabelecida na sociedade pautava- um discurso rude e faz com que ela
se na figura feminina cuidando do não comente nada perante a
lar, dos filhos e do marido, zelando imprensa no momento.
pelo bem estar familiar e o homem, A partir daqui uma luta maior ainda
encarregado de manter a família no é travada por Christine Collins, fazer
que se refere a questão econômica, com que a polícia admita que havia
isso muda. Através desta errado. Que o menino trazido não
emancipação, caberia aos homens a era seu filho e principalmente, que
partir de então, reconhecer a as buscas pelo verdadeiro Walter
mudança e aceitar que as mulheres não parassem. O que os chama a
passariam a fazer parte da atenção neste momento é a
coragem de uma mãe solteira que
passa a mover montanhas, quebrar deste grupo. É como se o hospital
barreiras na sociedade em busca da servisse de lição para as mulheres
verdade. Além de tudo é importante que tentaram usufruir de seus
salientar que aos poucos a direitos ocupando uma posição
sociedade passa a ser mobilizada visível dentro da sociedade. As
pela luta da mãe, iniciando com o ações da polícia em relação as
70 reverendo da Igreja Presbiteriana atitudes da mãe são pautadas na
que a incentivava a lutar. concepção de que para haver a
incorporação do mundo e das ideias
O apoio por parte do reverendo nos femininas era necessário a
faz refletir um pouco sobre o papel aceitação por parte dos homens, o
da igreja, principalmente o da Igreja que acabou causando muitas
Católica, pois neste momento o rupturas e desestabilidades, pois a
discurso desta instituição era mentalidade masculina deveria ser
voltado para a formação familiar, repensada. (PEDRO; SOIHET, 2007)
denominada política familialista. O
discurso desta política buscava A luta feminina que conseguimos
fazer com que as mulheres compreender nas entrelinhas do
percebessem, principalmente as filme ganha repercussão na
casadas, que o trabalho feminino sociedade quando o reverendo vai
pelo qual elas lutavam era um mal até o hospital com os seus fieis e
para a sociedade, pois através dela fazem com Christine seja liberada.
ocorria a queda da natalidade, a Esta repercussão só tende a
mortalidade infantil, a desunião do aumentar de acordo com o decorrer
casamento e a qualidades da dos fatos. Isto acontece
educação dos filhos e principalmente quando um menino
principalmente a mudança dos que vivia ilegal em uma fazenda é
costumes da sociedade. Esta capturado pela polícia e resolve
política familialista, segundo contar sobre os seqüestros e
Lagrave (1991), também buscava assassinatos que era obrigado a
fazer com que a própria mulher se realizar junto com seu tio. Os
excluísse do mundo do trabalho, assassinatos aconteciam dentro do
através da valorização do lar, galinheiro e as vítimas sempre eram
promovendo a mãe educadora, garotos na idade em que Walter
mostrando que a dona de casa desapareceu.
também poderia ser racional e
controlar suas contas pautadas É possível perceber a preocupação
numa economia doméstica. da polícia na medida em que os
fatos sobre os assassinatos no
Outro ponto no filme que nos faz galinheiro vão se tornando cada vez
refletir é quando a polícia vendo-se mais evidentes. Isto mostra a
acuada com a posição de Christine, fragilidade da polícia e acredito,
a enviam para o hospital psiquiátrico mais do que isto, a desmoralização
de Los Angeles. Nas imagens perante a sociedade a partir de uma
encontramos apenas mulheres, mulher, alguém que em momento
porém, mais do que isto, foram algum contou com o apoio da figura
mulheres que por diferentes motivos paterna. Um fato que até pouco
denunciaram a polícia aos jornais tempo seria impensável, pois as
colocando a prova a integridade mulheres até pouco tempo atrás
caminhavam às sombras dos pensamento, encabeçada pelo
maridos. Mesmo assim conseguiu feminismo, foi apresentada pela
provar que não estava com publicidade americana para a
problemas psicológicos, ou estava sociedade como a cultura da
rejeitando a criança que a polícia modernidade. Ou seja, a infiltração
afirmava ser seu filho por causa da das mulheres na sociedade tanto
depressão. nos ambientes de trabalho, como
71
cidadãs, seria algo inevitável, pois
O filme baseado em uma história era resultado de um processo
real termina deixando o espectador desencadeado há décadas. Porém,
na mesma situação que a mesmo com esta publicidade
personagem de Angelina Jolie e a americana, compreender e aceitar a
verdadeira Christine Collins ficou, nova forma de hierarquia entre os
sem resposta, sem uma solução sexos gerava resistência de
para o caso. Um dos meninos algumas partes na sociedade.
seqüestrados junto com Walter
afirmou que os dois conseguiram Como citamos no início do nosso
fugir, mas que o serial do galinheiro texto, são vários os fatores que
percebeu e começou atirar, e Walter podem ser observados dentro de
acabou ficando para trás. O serial uma análise fílmica, como por
do galinheiro afirmou que não havia exemplo, a ideologia que pautamos
matado Walter, porém foi acima, os gestos e o vestuário.
condenado a pena de morte pelos Desta maneira podemos abrir um
outros meninos que havia pouco mais a análise e discutir
assassinado, estima-se que foram sobre estes últimos. É possível
20. compreender no filme que o
vestuário feminino convém muito
O caso de Walter nunca foi bem com a época. As roupas
solucionado, principalmente para a precisaram ser adaptadas para esta
sua mãe que nunca abandonou as nova fase, temos então vestidos
buscas ele na esperança de mais curtos, feitos a partir de tecidos
encontrá-lo. O que mudou através mais finos que não marcam tanto a
do desaparecimento do menino não silhueta feminina, e lhes davam
foi apenas a vida da mãe, mas a flexibilidade ao movimentarem-se.
posição feminina na sociedade. Juntando a maneira de se vestir aos
É importante salientar que, por mais cabelos curtos ou tosquiados,
que o filme se passe na década de chamados de “À La homme” foram
1920, nas suas entrelinhas entendidos por Perrot (2007) como
percebemos a luta feminina que um sinal de modernidade.
ainda é um assunto contemporâneo. Encaminhando este texto para o fim
A ideologia, pensamento da é necessário deixar claro que este
sociedade na época também sofre filme pode abrir uma discussão
uma mudança e como vimos, ele ainda maior do que a apresentada
acaba sendo transmitido tanto por até o momento. Devemos ressaltar
quem produz o filme, quanto por mais uma vez que o filme A Troca,
quem o interpreta de maneira baseado em uma história real é um
inconsciente. Nancy Cott (1991) filme de época que ao mesmo
afirma que esta mudança de
tempo trabalha com um viés AS REPRESENTAÇÕES DE
contemporâneo, pois aborda a luta
feminina pelos seus diretos, onde THOR NOS QUADRINHOS, TV
percebemos que com o passar do E CINEMA
filme algumas partes da sociedade
72
ainda resistem a situação, mas em Marlon Ângelo Maltauro
contrapartida outras acabam
aderindo a causa, mudam a
ideologia da época sem mesmo ter Introdução
consciência disto.
A indústria cultural esta sempre
Referências: resgatando elementos antigos,
A TROCA. Produção de Clint Eastwood. reinterpretando-os e dando uma
Universal Pictures, 2008. 141 minutos. nova roupagem a vários mitos do
Legendado Português. passado. Na atualidade muitos dos
BURKE, P. “ O Que é História heróis do mundo antigo e medieval
Cultural?”/tradução: Sérgio Góes de têm surgido na mídia e feito enorme
Paula.- Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed.,2005
sucesso perante o público. Dentre
COTT, Nancy. A Mulher Moderna: O as muitas histórias, talvez a mais
estilo americano dos anos vinte. In: famosa seja a de Thor, o deus do
História das Mulheres: O século XX. trovão da mitologia germânica.
Edição Afrontamentos, vol. 5, 1991, p.
95-113. O presente estudo pretende verificar
http://www.changelingmovie.net/ a trajetória de Thor, partindo das
acessado em 27/06/2011 representações feitas pelos vikings,
KORNIS, Monica Almeida. História e analisando quais transformações ele
cinema: Um debate metodológico. IN: passou para ser inserido nas HQs e
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, posteriormente sendo apresentado
n. 10, 1992, p.237-250
na televisão e cinema.
LAGRAVE, Rose-Marie. Uma
emancipação sob tutela. Educação e Thor na mitologia viking
trabalho das mulheres no século XX. In:
História das Mulheres: O século XX. As primeiras menções sobre o deus
Edição Afrontamentos, vol. 5, 1991, p.94- do trovão surgem com os antigos
113. germanos em decorrência aos
NOVA, Cristiane. O cinema e o conflitos entre estes e os romanos,
conhecimento da História. 1996
no entanto os detalhes mais ricos
Disponível IN:
http://www.cliohistoria.110mb.com/videot sobre a deidade surgem com
eca/textos/cinema_conhecimento.pdf mitologia viking, sendo Sagas e
6
PEDRO, Joana Maria, SOIHET, Rachel. Eddas nossa maior fonte de análise
A Emergência da Pesquisa da História
das Mulheres e das Relações de Gênero.
6
In: Revista Brasileira de História. V.27.nº Sagas: “História” em Old Iceland. Nome
54, 2007, p. 281-300. dado às narrativas orais islandesas e
PERROT, Michelle. O Corpo. In: Minha escandinavas. Conf. (GRAHAM-
História das Mulheres. São Paulo: CAMPBELL, 1997 , p.103). Eddas, nome
Contexto, 2007, p.41-79 genérico dado a dois manuscritos sobre
SOIHET, Rachel. Pisando no Sexo Frágil. os antigos deuses e heróis germanos. A
In: Nossa História, Rio de Janeiro: chamada Edda Menor ou Edda em Prosa
Biblioteca Nacional, n. 3, p. 15-19, jan. é um manual de técnicas de poesia
2004. escáldica composto pelo poeta Snorri
para descobrir as características e correspondendo à segunda função e
7
personalidade de Thor . a última estaria ligado ao deus
10
Frey responsável pela fertilidade,
Thor se apresenta com uma das desta tríade dependeria toda a
figuras mais importantes do panteão sociedade (DUMÉZIL, 2003, p. 16)
escandinavo, na tripartição social
8
elaborada por Dumézil , o autor As características físicas de Thor 73
9
descreve que enquanto Odhinn apresentadas na Edda Menor o
corresponderia à soberania, Thor relatam com barba vermelha, sendo
significaria à força e a guerra, o mais forte de todos os deuses,
descreve que seu poder e força são
seus principais atributos com os
Sturlusson. Edda Maior ou Edda Poética quais ele domina todos os seres
é um manuscrito de autor desconhecido vivos (STURLUSON, p.59).
procedente de um conjunto de antigos
manuscritos reunidos que compõe o O deus tinha como arma principal
11
Codex Régius descoberto em 1943. Conf. um martelo chamado Mjollnir que
(LERATE, 2000, p. 09;11) 12
7
lhe foi dado de presente por Loki .
Para não cairmos no erro de apenas O martelo quando consagrado
parafrasearmos as fontes, nossa
poderia restaurar a vida de animais
proposta será somente descrever as
principais características de Thor, e era consagrado também em
13
conseqüentemente descrevemos alguns funerais daí a menção ao deus nas
14
de seus feitos, o leitor interessado em Eddas como Vingthor . Thor
saber mais sobre as histórias do deus também possuía um cinturão que
podem encontrar material mais quando afivelado duplicava sua
aprofundado sobre o assunto nas
referencias bibliográficas. Não
10
descreveremos também sobre as Deus da raça dos Vanes. Seria a
características do culto ao deus, tema entidade responsável pela fertilidade,
esse já amplamente analisado relacionada com o deus Nerthus
principalmente por Dumézil em Los identificado por Tácito no capítulo IX da
Dioses de los Germanos e por Davidson Germânia. Conf. (DUMÉZIL, 2001. p, 28).
11
em Deuses e Mitos do Norte da Europa. Mjollnir: fragmentador de ossos. Conf.
Na verdade existe atualmente uma (LIMA, 1993, p. 169).
12
grande gama de autores que se propõe a Deus da raça dos Ases é uma
estudar o assunto. entidade extremamente controversa, cujo
8
Ver (DUMÉZIL, G. El Destino Del alguns momentos ajuda e em outros
Guerrero. Buenos Aires: Editora Siglo prejudica os deuses. Eliade o define com
XXI, 3ª Ed, 2003 trapaceiro, extravagante, às vezes
9
Odhinn: o chefe supremo da mitologia bissexual ou transexual, é brincalhão e
germânica, também denominado Wodan, muitas vezes mal. Conf. (ELIADE, 2009,
Woden, Wotan. Em Old Norse: fúria, p. 155).
13
alemão moderno: Wotan, que originou a Davidson acredita que o martelo era
palavra Wut,: cólera, raiva. Conf utilizado pela sociedade viking para
(LANGER, J. O mito do dragão na benção e proteção, sendo consagrado
Escandinávia (primeira parte período em casamentos, nascimento e em
pré – viking). Brathair 3 (1), 2003 a: 42; funerais. Conf. (DAVIDSON, 2004, p. 67).
64. Disponível em: Essa suposição deve-se sem duvida
http://www.brathair.yb.net.). Segundo também a grande quantidade de
Dumézil, Odhinn seria o deus Mercúrio martelos usados como pingente.
14
descrito por Tácito no capitulo IX da Vingthor: Thor o consagrador. Conf.
Germânia. Conf. (DUMÉZIL, 2001, p. 50) (LERATE, 2000, p. 136)
força, e um par de luvas de ferro das adversários e o relâmpago provinha
quais o martelo jamais se soltaria dos olhos do deus em estado de
(STURLUSON, p. 75). fúria (DAVIDSON, 2004, p.72).
Essas características fazem de Thor Outro aspecto interessante sobre a
o protetor dos deuses e dos homens, deidade é seu apetite gigantesco, as
15
74 é ele o defensor de Asgard contra Eddas narram sua impressionante
16
os trolls , devido a esse caráter capacidade de comer e beber. Seu
protetor muitas vezes seu nome apetite fabuloso combina com sua
17
aparece como Asathor . O deus do grande vitalidade e força física
trovão tem um temperamento forte e (DAVIDSON, 2004, p.62).
indomável, quando os deuses se
sentem em perigo e o invocam ele Embora Thor enfrente e destrua
surge em um estado de fúria inúmeros gigantes seu maior inimigo
inigualável, nada o detém e não é a serpente de Midgard, dentre os
reconhece nenhuma promessa feita combates mais memoráveis estão a
em sua ausência pelas outras sua pescaria como o gigante Hymir,
divindades (DUMÉZIL, 2003, p.108). na qual o deus fisga a serpente,
mas monstro consegue escapar
O deus percorre os mundos em (STURLUSON, p, 117). Por fim Thor
19
busca de adversários para eliminar, ira enfrentá-la no Ragnarok onde
seu principal meio de transporte é as forças do caos lutaram contra os
uma biga puxada por bodes, de deuses, neste último confronto a
18
onde deriva o nome Okuthor . Os deidade vai matar o monstro, porém
vikings acreditavam que o som do a serpente o envenenara com sua
trovão vinha do barulho feito pelas peçonha e após nove passos ele
rodas da biga transportando a cairá morto. Tanto as forças do caos
deidade, os raios seriam originários quanto os deuses irão sucumbir
do choque do martelo contra os neste episódio.
O cronista Adam de Bremem relata
15
Asgard: reduto dos deuses. Na em sua obra um templo pagão em
mitologia nórdica existem nove mundos, Uppsala, no qual havia uma enorme
porém a geografia mitológica não é estátua de Thor (BREMEM, cap. IV),
suficientemente clara para precisar quais pesquisadores acreditam que
seriam estes mundos, os que mais se deveria haver mais estátuas do deus,
destacam são Asgard, Midgard (terra do porém foram destruídas com a
meio) onde vivem os homens e os
mundos dos gigantes com Utgard
introdução do cristianismo restando
(espaço exterior), Muspelheim (mundo pouquíssimas imagens da divindade.
do fogo), Jotunheim (mundo dos ogros) e
Davidson comenta que no início da
Nifheim (mundo das trevas) para onde
são destinada parte dos mortos. Conf. introdução do cristianismo Thor era
(Lerate, 2000, p, 23;34). o principal adversário de cristo e que
16
Termo genérico para vários o deus do trovão chegara a desafiar
personagens míticos, também era a Jesus para um combate corpo a
forma mais usual para designar os corpo (DAVIDSON, 2004, p.61). A
gigantes. Conf. (LIMA, 1993, p.75) saga de Erik evidencia bem essa
17
Asathor: Thor dos Ases. Conf.
(BERNARDEZ, 1998, p.22).
18 19
Okuthor: Thor o condutor do carro. Ragnarok: destino dos deuses. Conf.
Conf. (BERNARDEZ, 1998, p.34). (BERNARDEZ, 1998, p.38).
resistência ao cristianismo: “Nosso mostrar que a mitologia escandinava
Barba Ruiva não foi melhor do que era tão importantes quanto à greco-
esse seu Cristo? Esta foi à romana aproximando assim a
recompensa pelo poema que cultura viking da clássica, ou chamar
compus em homenagem ao meu a atenção do público para o panteão
deus Thor; ele nunca me falhou.” nórdico, outra hipótese que não
(ERIK‟SAGA, p. 60). pode ser descartada é a de que
75
esses artistas não tivessem
Thor certamente deveria ser a embasamento suficiente para
entidade mais adorada pelos vikings, retratar as divindades com
pois além de seu caráter protetor e elementos próprios de sua cultura.
guerreiro ele estava ligado à
fertilidade já que trazia as chuvas, Durante esse mesmo período
como também poderia acalmar os começaram a surgir imagens da
mares, em resumo era ele que cultura vikings totalmente
controlava os fenômenos estereotipadas, nas quais os
metrológicos tão necessários para a nórdicos são aparecem portando
vida rural como era a da sociedade elmos com chifres, asas e toda a
viking ((DUMÉZIL, 2003, p.116). espécie de adornos, sendo
representados como bárbaros
Representações românticas de 20
incivilizados . Esse terceiro tipo de
Thor
A partir do século XVII artistas 20
A inspiração em representar os vikings
produzem uma grande quantidade de capacetes com adornos laterais vem
de imagens sobre a mitologia viking, das descobertas arqueológicas do século
o retorno as representações XIX, que encontraram estes tipos de
mitológicas deve-se a maior elmos e imagens de guerreiros portando-
tolerância religiosa cristã, as idéias os, e embora as descobertas tenham
renascentistas e iluministas, como sido creditadas tanto aos celtas quanto
também as novas descobertas ao período pré-viking a imagem do
guerreiro com chifres foi popularizada.
arqueológicas. Outro fator que
Destacamos como principais
impulsionou os artistas a produzirem descobertas:
tais obras foram os anseios Imagens do deus celta Cernunnos que
nacionalistas, fazendo com que as significa “o chifrudo” geralmente
antigas paisagens e personagens representado com duas enormes
medievais fossem resgatados com o galhadas de cervos em sua cabeça; O
objetivo de se construir identidades caldeirão celta de Gundestrup, de 100 a.
modernas (LANGER, 2009, p. 133). C. onde em um dos relevos aparece um
homem portando um elmo com chifres;
Concomitantemente com obras que Uma placa de bronze do século VI d. C.
buscavam resgatar elementos da encontrada na Suécia pré-viking, onde
cultura nórdica com certa mostra dois guerreiros em um baile ritual,
um deles porta um capacete com cornos;
veracidade no que diz respeito aos Outro capacete de bronze com chifres
trajes, temos no mesmo período laterais foi encontrado em Londres,
pintores representando Thor com datado do século I d.C. Um elmo de
trajes oriundos do panteão greco- bronze encontrado na Dinamarca da
romano. Acreditamos que estes Idade do Bronze, no qual apresenta dois
artistas deveriam ter por objetivo enormes cornos com detalhes
simbólicos . Com exceção deste ultimo
caracterização foi feita em sua Shell, editora Ebal e TV
grande maioria por artistas de Bandeirantes, no entanto nos
nacionalidade diversa dos versões americanas Thor tem uma
escandinavos e sem um linguagem shakespeariana, o que se
conhecimento empírico mais perde nas traduções para o
profundo a cerca da cultura viking português.
76 (LANGER, 2009, p. 134). A
propagação deste novo estereótipo No projeto de Stan Lee, Thor passa
é sem duvida devido à ópera “O de deus nórdico para um super-
anel dos Nibelungos”, escrito pelo herói ao mesmo estilo de Superman
alemão Richad Wagner em 1872, criado em 1938 por Jerry Siegil
esta obra representa os deuses com (FEIJÓ, 1984, p.91), pois os dois
elmos com asas, cornos, pássaros e mantêm uma identidade secreta na
dragões, e roupas greco-romanas
21 qual dificilmente se levantaria
suspeita de que pudessem ser
Thor, o herói dos quadrinhos super-heróis, enquanto Superman
se passa por um repórter
A partir da década de 1920, com o atrapalhado, o deus do trovão é um
surgimento de Flash Gordon, as médico franzino e manco, de
HQs iniciaram a difusão em massa personalidade pacata e frágil. Outra
de super-heróis que obtiveram semelhança é que os dois vêm de
enorme sucesso perante o público outro mundo e defendem a terra de
(FEIJÓ, 1984, p. 88). Dez anos ameaças alienígenas.
depois Martin Goodman funda a
Marvel Comics, em 1941 entra para A primeira edição de “O Poderoso
a empresa Stan Lee criando uma Thor” descreve que ele era como o
série de novos super-heróis, dentre médico americano chamado Donald
eles surge Thor. Blake, que vai passar as férias na
Noruega, lá é ameaçado por
Inspirado em elementos da mitologia alienígenas e se refugia em uma
nórdica, Stan Lee juntamente com caverna não explorada, dentro dela
Larry Lieber e Jack Kirby escrevem acaba encontrando um cajado e ao
a primeira história de Thor, batê-lo em uma rocha ele se
aparecendo em 1962 na revista transforma em um martelo e o
“Journey into Mistery” nº 83, indo médico no deus do trovão. Para
para as bancas americanas em mais explicar com Thor havia se
do mesmo ano. A revista só é transformado em um simples mortal
publicada no Brasil em 1967 através e como ele foi para na terra, o
de uma parceria entre os postos roteirista descreve que o deus havia
sido castigado por Odhinn e banido
de Asgard (RIBEIRO, sd, in
capacete todos os outros achados foram
considerados para fins ritualísticos
http://www.guiadosquadrinhos.com/
utilizados possivelmente para fins personbio.aspx?cod_per=14). À
religiosos principalmente devido à medida que as edições vão sendo
fragilidade destes capacetes. (LANGER, produzidas aparecem outros seres
2009 p. 135;136) que o deus tem que enfrentar para
21
Para maiores informações ver salvar o mundo.
(CAZNOK, Y & NETO, A. Ouvir Wagner:
egos nietzschianos. São Paulo: Musa,
2000.)
Embora embasado nas Eddas e foram mudadas outras
Sagas, Stan Lee muda permaneceram, como as luvas de
completamente as características da ferro e o cinturão de força.
deidade. Na HQ o martelo confere a
Thor a capacidade de voar, seus Obviamente que o roteirista não
trajes são notadamente tinha a preocupação em seguir a
influenciados pelos estereótipos mitologia nórdica e sim transformar 77
wagnerianos, pois as roupas dos Thor em um super-herói
personagens não lembram em nada enquadrando o personagem a uma
as da cultura viking, é uma mescla Era atual e o adaptando para um
entre trajes greco-romanos e público infanto-juvenil.
modernos, o panteão nórdico usa Em 1963, Stan Lee cria um grupo de
elmos com os mais variados heróis intitulados “Os Vingadores”,
ornamentos nas laterais, o capacete composto por Homem de Ferro,
22
do deus do trovão possui assas , Hulk, Homem Formiga, Vespa e
ele é loiro e não ruivo como propõe Thor. No primeiro episódio dessa
as fontes, também não possui barba, nova série a trama envolve Loki que
que é uma das características mais atrai Hulk para destruir Thor, mas o
marcantes da deidade, já que pedido de ajuda também é escutado
muitas Sagas e as Eddas referem- pelos outros heróis que resolvem
se a ele como barba-vermelha. então criar uma força conjunta,
Outros aspectos que divergem das nascendo dessa união “Os
fontes são que, enquanto na Vingadores”. Hulk acaba sendo
mitologia o deus é transportado por substituído pelo Capitão América
sua biga puxada bodes, nos (OS VINGADORES, sd, in
quadrinhos ele percorre os mundos http://www.guiadosquadrinhos.com/
voando agarrado em seu martelo. personbio.aspx?cod_per=62&nome
Diferente da mitologia, nas HQs o =Vingadores). Com o passar da
principal inimigo de Thor é seu série os protagonistas vão se
meio-irmão Loki, apresentado como alternando, aparecendo muitas
um deus trapaceiro e mal que vezes histórias próprias com cada
deseja tomar o trono de Odhinn e personagem.
acabar com o deus do trovão, em Walter Simonson, roteirista e
quase todas as histórias do desenhista entra para a revista do
quadrinho há esse aspecto “Poderoso Thor” em 1983, para
maniqueísta, enquanto que na muitos é com a entrada de
religião viking não havia esta Simonson que surgem as melhores
contraposição entre o bem e o mal. histórias de Thor. Dentre as
Enquanto algumas características mudanças ocorridas no personagem
podemos destacar o surgimento da
barba, as assas no elmo ficam
22
Dentre os meios de comunicação a maiores e o herói fica extremamente
Ópera de Richard Wagner, o quadrinho mais musculoso. A principal
de Hagar o Horrível, personagem criado novidade dessas histórias é que
por Dik Brown em 1965, e a HQ de Thor Odhinn transfere o herói para Sigurd
contribuíram enormemente para a
Jalson tirando do enredo o médico
divulgação do falso estereótipo viking
que perdura até os dias atuais. Donald Blake. Thor é transformado
em sapo por Loki e consegue enredo não segue o roteiro de Stan
entender a língua dos animais, é a Lee, já que o cenário se passa
primeira vez em que aparece a biga quase todo em Asgard, as
e os bodes do deus, estes o ajudam indumentárias também são
a voltar a sua forma normal. diferentes em alguns aspectos. Esta
Simonson para de escrever em série de doze volumes faz referencia
78 1987 (MITOGRAFIAS, 2011, in a obra de Wagner, “O Anel dos
24
http://www.mitografias.com.br/2011/ Nibelungos ”, já que entre os
25
04/29/um-pouco-sobre-o-deus-do- personagens aparece a Valquíria
26
trovao/). Brunhild . O roteiro é de Akira
Yoshida e os desenhos ficaram a
No ano de 2004 é lançada a “Saga 27
cargo do brasileiro Greg Tocchine .
de Ragnarok”, embora escrita por
Michael Avon Oeming e desenhada
pelo italiano Andrea Di Vito se 24
A obra de Richard Wagner é baseada
mantêm fiel ao universo proposto tanto nas versões continentais européias,
por Stan Lee. A revista foi lançada das quase existem três versões
nas edições de Thor entre os anônimas, sendo a mais importante
números 80 a 85, no Brasil os escrita por volta de 1200 d. C. e
episódios apareceram nos descoberta em 1755, conhecida como
quadrinhos de “Os Novos Nibelunglied (A Canção dos Nibelungos),
quanto pelas versões nórdicas sendo as
Vingadores”, nas edições 22 a 26. O
principais a Volsunga Saga, escrita na
enredo da história se resume ao Islândia e a versão contida na Edda
ataque de Loki e outros inimigos a Poética, ambas anônimas do século XIII.
Asgard. Loki vai atrás da forja Wagner utilizou os nomes dos
mágica em que o martelo de Thor foi personagens da Canção dos Nibelungos,
fabricado, o encontra e faz inúmeros mas o restante da peça é baseada nas
martelos iguais desencadeando versões nórdicas.
25
23
assim o Ragnarok , por fim o Valquíria: Valr:mortos, kyrja: escolha
em Old Iceland. Conf. (BOYER, 1981, p.
martelo do herói se quebra e ele
142). Langer em seu livro verifica as
vem a terra pedir ajuda para os variações do mito das Valquírias
vingadores que conseguem acabar descrevendo-as ao longo da história,
com as forças do mal. para mais informações sobre as
valquírias ver (LANGER, J. Deuses,
Ainda em 2004 é criada a série Monstros, Heróis- ensaios de
“Thor Son of Asgard” que mostra a mitologia e religião viking. Brasília:
juventude do deus do trovão, seu Unb, 2009, p. 59;77.)
26
Brunhild, nome encontrado na Canção
dos Nibelungos, nas versões nórdicas o
23
Em ambas as Eddas o Ragnarok ira homólogo é Brynhid: bryn: armadura,
acontecer após três anos de inverno hildr: batalha. Conf. (LANGER, 2009,
consecutivo, ocorreram inúmeras p.70). Para mais informações sobre a
catástrofes na natureza e o lobo Fenris personagem ver:( MALTAURO, M. Â. A
ira se soltar de suas correntes, a Representação da Mulher Viking na
serpente de Midgard surgira dos mares, Volsunga Saga. Revista Brathair 5(1)
ambos os monstros são filhos de Loki, 2005. Disponível em:
este se juntara as forças dos caos e se http://brathair.com/revista/numeros/05.01
confrontarão com os deuses, dentreo .2005/mulher_viking.pdf
27
desse cenário escatológico só restaram Para uma análise mais aprofundada
duas pessoa que iniciaram um novo sobre a série “Thor Son of Asgard” ver:
mundo. (LANGER, J. As representações do
Na minissérie intitulada “Loki”, da a respeito dos estereótipos, estes
editora Marvel Comics, lançada no são os mesmo propostos por Lee.
Brasil pela Panini em 2005 com
duas edições, a trama toda ocorre A Panini aproveitando o lançamento
em Asgard, sendo o roteiro muito do filme Thor em 2011 publicou a
mais inspirado na mitologia nórdica série em quatro volumes de “Os
do que nos quadrinhos de Stan Lee. Maiores Clássicos do Poderoso 79
A minissérie mostra como Loki se Thor”, desenvolvida por Walter
apossa de Asgard, aprisiona os Simonson, cujo objetivo é
deuses sendo que no fim Thor é apresentar as melhores histórias do
libertado e repõe a ordem. Com o herói produzidas pelo roteirista.
roteiro de Robert Rodi e a arte de Ainda aproveitando a divulgação do
Esad Ribic a obra impressiona pela filme a Panini também publicou
qualidade dos desenhos, embora “Thor: O Renascer dos Deuses”,
Thor apareça super musculoso e os produzido por J. M. Straczynski, que
trajes dos personagens sejam também foi o roteirista do filme, com
baseados na obra de Lee, a desenhos de Olivier Coipel. Nesta
personalidade do herói se série Thor aparece sem barba e
assemelha muito ao do deus da com uma roupa metálica diferente
mitologia, principalmente quando ele dos quadrinhos de Lee, esta HQ é
entra em estado de fúria. notadamente inspirada no filme.
A série “Thor: a Era do Trovão” da Desde a primeira publicação em
Marvel, publicada no Brasil pela 1962, Thor vem sendo publicado,
Panini em 2009, com roteiro de Matt suas características foram se
Fraction e desenhos de Patrick modificando conforme o passar dos
Zircher, Khari Evans e Clay Mann, tempos, tanto no que se refere ao
também é uma adaptação da vestuário quanto na personalidade
mitologia nórdica, totalmente do personagem, estas adaptações
ambientada em Asgard, mostrando vem sem dúvida acompanhando as
os nove mundos da mitologia. As tendências do público que consome
histórias narram às lutas de Thor estas revistas, sem estas mutações
defendendo Asgard, enfrentando e com a invasão dos mangas no
Loki e os gigantes. A Panini inseriu mercado atual possivelmente as
na série uma nova história cujo histórias do herói não teriam se
roteiro é de Roberto Kirkman e arte mantido vivas até hoje.
de Michael Avon Oeming, que,
embora faça uma boa simulação do Thor na TV e cinema
grafismo, tem o enredo deslocado A primeira aparição de Thor na TV
do restante da série. No que tangem ocorre quatro anos após seu
surgimento nos quadrinhos. Em
deus Thor nas HQs. Resenha de 1966 é produzida uma série de treze
YOSHIDA, Akira et alli. Thor: filho de desenhos animados realizada pela
Asgard. São Paulo: Panini Comics, Grantray-Lawrence Animation
2005. Edição encadernada, volume 1- (RIBEIRO, sd in http://www.guiados
12. Disponível em:
http://www.brathair.com/revista/numeros/
quadrinhos.com/personbio.
06.01.2006/thor.pdf aspx?cod_per=14) . As estórias do
desenho animado eram
basicamente uma reprodução das e a falta de barba, pois no que se
HQs. refere às vestimentas, no longa-
metragem o herói usa uma calça de
Durante sua trajetória nos desenhos couro e uma armadura ao estilo
animados, o herói ainda apareceu romano, porém com pelos nos
num episodio do desenho do ombros. Já no que diz respeito a
80 Homem-Aranha chamado sua personalidade, esta não tem
“Vengeance of Loki” em 1981, já na nenhuma semelhança com o
década de 1990 a Marvel Animation personagem da HQ, pois não tem
produziu vários desenhos sob o nenhuma ponderação nem fala com
nome geral de “Marvel Action Hour” erudição, na verdade sua
(RIBEIRO, sd in http://www. personalidade se assemelha ao
guiadosquadrinhos .com/personbio. deus da mitologia, no filme como no
aspx?cod_per=14). mito ele é fanfarrão, bebe e come
Em 2009 a Marvel Animation junto em grandes quantidades e tem um
com a Lionsgate, produziram um temperamento explosivo.
curta-metragem onde Thor se No filme “Erik, o Viking” de 1889,
confronta com Hulk, a luta ocorre Thor juntamente com os outros
após Loki enviar Hulk para Asgard deuses aparecem como crianças. O
na tentativa de tentar dominar o filme trata das aventuras de Erik na
reino. tentativa de parar o Ragnarok e
Em 1988 é lançado o filme “O embora seja em grande parte
retorno do incrível Hulk” onde Thor baseado na mitologia nórdica, seu
(Eric Kraemer) aparece como enredo corresponde a uma sátira.
coadjuvante. Embora a atuação de Em 2009 é lançado o filme “Thor: O
Thor seja inspirada nos quadrinhos Martelo dos Deuses”, nele Thor
existem algumas divergências com (Zachery Bryan) é um viking que
relação ao personagem da HQ. No junto com seus companheiros viaja
filme o Dr. Blake (Steve Levitt) vai a para uma misteriosa ilha onde seus
Noruega para uma expedição, entra habitantes são transformados pelo
em uma caverna, porém encontra o lobo Fenris em lobisomens cujo
tumulo de um guerreiro viking, ao objetivo é proteger o martelo que
abri-lo encontra o esqueleto de Thor havia sido roubado dos deuses. Na
juntamente com o martelo e ao ilha Thor começa a ter visões sobre
empunha surge o herói que explica o deus do trovão e onde estaria o
a Blake ser um guerreiro castigado martelo, fazendo com que ele
por Odhin devido sua arrogância. encontre-o e se lembre que na
Desta forma o Dr. Blake e Thor não verdade ele era a divindade e por
são a mesma pessoa, sendo o fim mate Fenris. O filme é
medico obrigado a invocá-lo sempre unicamente baseado na mitologia
que surge alguma ameaça, pois o nórdica e embora traga alguns
herói só poderá voltar para Asgard anacronismos tal como o corte de
após ter feito uma série de boas cabelo ao estilo moicano do
ações. Comparando o filme com a protagonista e mulheres guerreiras,
HQ percebemos que as únicas podemos dizer que a respeito dos
semelhanças entre Thor são o elmo outros estereótipos o restante da
com asas, o cabelo cumprido e loiro obra esta bem correta.
Ainda em 2009 o canal History outra arma, assim mata Loki e evita
Channel apresentou um o apocalipse. No que se refere à
documentário intitulado “Thor: O personalidade de Thor, o mesmo
Confronto dos Deuses”, onde não possui nenhuma habilidade
mostrou as principais narrativas marcial, embora tenha o
sobre a deidade. Embora o temperamento explosivo, esta
documentário tenha sido mistura faz com herói tenha uma
81
assessorado por uma equipe de imbecilidade única, já sobre sua
pesquisadores, o deus apresentado aparência, o mesmo é loiro de
foi visivelmente inspirado na pintura cabelo curto e sem barba, a respeito
28
de Marten Eskil Winge , trazendo das vestimentas, estas são
assim uma serie de falsos totalmente anacrônicas.
estereótipos, dentre eles estão às
vestes no estilo Greco-romanas a O filme “Thor” da Marvel estreou em
falta da barba e o cabelo loiro, tendo 2011 nos cinemas apresentando
assim pouca semelhança com o uma estória praticamente toda
deus da cultura viking. inspirada nas HQs. A estória se
desenrola quando Thor (Chris
Com o anúncio do longa-metragem Hemsworth) esta prestes a ser o
de Thor da Marvel nos cinemas, é novo rei de Asgadr, porém sua
apresentado no primeiro semestre coroação não é efetivada devido à
de 2011 no canal Syfy o filme invasão de trolls que tentam roubar
“Almighty Thor”. Baseado Mjolnir, para se vingar o herói
vagamente na mitologia nórdica e quebra o acordo de paz e inicia uma
com uma leve inspiração nas HQs, guerra contra os gigantes e por ter
este possivelmente é a pior película desobedecido às ordens de Odhinn
sobre a divindade. Nesta obra Loki (Anthony Hopkins) o deus do trovão
(Richard Greco) aparece como um é banido para Terra enquanto seu
demônio que tenta obter o martelo meio irmão Loki conspira
da invencibilidade para assim iniciar objetivando assumir o reino de
o Ragnarok. Desta forma o demônio Asgard, mas acaba sendo impedido
vai a Asgard mata Odhinn (Kevin por Thor. Embora a estória do filme
Nash) e destrói o reino. No filme as seja uma adaptação dos quadrinhos
deidades não são deuses, mas as vestimentas são totalmente
alienígenas e antes de Loki destruir remodeladas dando um aspecto
Asgard, Thor (Deal Cody) foge com futurista aos personagens, a
a ajuda de uma Valquíria para a respeito da aparência e da
Terra, porém é perseguido demônio personalidade do deus do trovão,
que obtêm o martelo e envia Thor também ocorrem algumas
para o inferno onde o herói forja alterações com relação aos
quadrinhos, pois a divindade
28
Artista sueco do século XIX pintou a aparece com barba, não possui seu
obra intitulada “Thor na batalha contra cinturão de força e é extremamente
os gigantes”. A pintura de Marten arrogante.
Eskil Winge talvez seja uma das mais
difundida em livros didáticos e Considerações Finais
paradidáticos sobre o deus.
O deus do trovão desde seu
surgimento sempre teve grande
notoriedade na mitologia e religião, de seu martelo. As tramas ocorridas
a partir da análise feita pudemos em algumas de suas estórias
observar que alguns atributos da mostram o herói com problemas
divindade foram se alterando com o típico do cotidiano juvenil, tal como
passar do tempo. Com o ser castigado pelos pais ou
romantismo, Thor volta a ser referente a conflitos amorosos.
82 lembrando com grande evidência Certamente que para Thor sobrevier
pelos artistas do período e embora nos dias atuais seria necessário
parte destes se esforçassem em algumas adaptações com relação ao
tentar reproduzir com certa mito original, porém não deveriam
fidelidade a divindade, o que se ser feitas deturpações e adaptações
perpetuou foram os novos extremadas. “A arte deve ter
estereótipos e características. Nos liberdade criativa, estética e
dias atuais as aventuras de Thor estrutural, mas não pode nunca
voltam a ganhar vida em HQs, TV e desrespeitar os códigos sociais no
cinema, muito mais como herói do momento em que busca a
que deus. Se na antiguidade tardia e adaptação literária, mitológica ou
período medieval Thor era venerado plástica” (LANGER, 2006, p. 53, in
por seu caráter protetor e como http://www.brathair.com/revista/num
modelo de guerreiro, ao se eros/06.01.2006/thor.pdf).
transformar em super-herói
Agradecimentos Ao Prof. Dr. André
contemporâneo a indústria cultural o
imbuiu de novos valores o tornado da Silva Bueno (FAFIUV) pelas
em um modelo para crianças e sugestões, ao Prof. Dr. Johnni
jovens repassando assim valores e Langer (UFMA) pelas correções e
estéticas próprias da cultura envio de material bibliográfico.
dominante, desta forma a Fontes Primárias.
identificação do inimigo se torna BREMEN, A. de. Orkenyinga Saga. In:
tudo aquilo que não esta de acordo Gesta Hammaburgensis ecclesiae
com a ordem dos sistemas pontificum. Alemanha, séc. XII d.C.
estabelecidos. Disponível em:
http://www.northvegr.org/lore/orkney
Thor ao longo de sua trajetória foi EDDA POÉTICA, Anônimo. Islândia, séc
reformulado ganhou novas XIII d.C. Madrid: Alianza Editorial, 2000.
roupagens sendo reinventado com o SAGA DE ERIK. São Paulo: Paulicéia,
1992.
passar do tempo para se adaptar a
STURLUSON, S. Edda em Prosa.
um novo público e período. O velho Islândia, séc. XIII d.C. Rio de Janeiro:
mito de Thor passa a ser editado Numen, 1993.
com formas modernas distanciando Bibliografia
assim de suas origens, como BERNARDEZ, E. Textos Mitológicos
pudemos observar nos séculos XX e de Las Eddas. Madrid: Miraguano
XXI ele perde suas características, Ediciiones, 2ª Ed. 1998.
já não possui mais barba e cabelos BOYER, R. Yggdrasill: La religión des
vermelhos é loiro, muitas vezes sem anciens scandinaves. Paris: Payot, 1981.
CAZNOK, Y & NETO, A. Ouvir Wagner:
barba e até com o cabelo ao estilo
egos nietzschianos. São Paulo: Musa,
moicano, tem o corpo cada vez mais 2000.
anabolizado, ao invés de ser DAVIDSON, H. R. E. Deuses e Mitos do
conduzido por uma biga puxada por Norte da Europa. São Paulo: Madras,
bodes ele voa graças aos poderes 2004.
DUMÉZIL, G. Los Dioses de los
Germanos. Buenos Aires: Editora Siglo
HISTÓRIA E LITERATURA:
XXI, 3ª Ed, 2001. CULTURA INTERIORANA
____ El Destino del Guerrero. Buenos
Aires: Editora Siglo XXI, 3ª Ed, 2003. BRASILEIRA EM ‘URUPÊS’ DE
ELIADE, M. & COULIANO, I. Religião MONTEIRO LOBATO
dos germanos; Religião dos Indo- 83
Europeus. In: Dicionário das religiões.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Dulceli de L. T. Estacheski29
FEIJÓ. M. C. O que é herói. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
GRAHAM-CAMPBELL, J.Os viquingues: Em seu interessante artigo „História
origens da cultura escandinava. e Literatura: Fronteiras móveis e
Madrid: Edições Del Padro, 1997, vol. 1. desafios disciplinares‟, Antonio
LANGER, J. Deuses, Monstros, Heróis-
ensaios de mitologia e religião viking.
Celso Ferreira (1996, p. 24) declara
Brasília: Unb, 2009. que: “É a partir dos anos setenta
____As representações do deus Thor que se destaca, entre os
nas HQs. Resenha de YOSHIDA, Akira historiadores, o debate sobre a
et alli. Thor: filho de Asgard. São narrativa histórica e suas conexões
Paulo: Panini Comics, 2005. Edição com os gêneros literários...”,
encadernada, volume 1-12. Disponível colocando em discussão esta
em: relação que, para ele, vai além de
http://www.brathair.com/revista/numeros/
06.01.2006/thor.pdf
“semelhanças quanto ao fato de
____ O mito do dragão na contarem estórias, ficcionais no
Escandinávia (primeira parte período primeiro, e verídicas no segundo
pré – viking). Brathair 3 (1), 2003 a: 42; caso”.
64. Disponível em:
http://www.brathair.yb.net Em seu texto, a veracidade do que
LIMA, M.M.Textos da Mitologia conta a história é repensada
Nórdica: Edda em Prosa. Rio de partindo do pressuposto de que o
Janeiro: Numen, 1993. historiador trabalha com fontes
LERATE, L. Presentacíon. IN: Edda lacunares, unindo-as com uma
Mayor. Madrid: Alianza Editorial, 2000. narrativa que nada mais é do que
MALTAURO, M. Â. A Representação da
sua própria interpretação ou criação.
Mulher Viking na Volsunga Saga. Revista
Brathair 5(1) 2005. Disponível em: Citando Hayden White e seu artigo
http://brathair.com/revista/numeros/05.01 „O texto histórico como artefato
.2005/mulher_viking.pdf literário‟, o autor confirma suas
MITOGRAFIAS, Um pouco sobre o conclusões: “... tem havido uma
deus do trovão. Disponível em: relutância em considerar as
http://www.mitografias.com.br/2011/04/2 narrativas históricas como o que
9/um-pouco-sobre-o-deus-do-trovao elas mais manifestamente são:
OS VINGADORES, Disponível em:
ficções verbais, cujos conteúdos são
http://www.guiadosquadrinhos.com/perso
nbio.aspx?cod_per=62&nome=Vingador
tão inventados como descobertos, e
es cujas formas têm mais em comum
RIBEIRO, A. L. Thor.disponível em: com suas contrapartidas na
http://www.guiadosquadrinhos.com/perso
nbio.aspx?cod_per=14
29
Aluna do curso de Mestrado do
Programa de Pós Graduação em História
da Universidade Federal do Paraná.
literatura do que na ciência” vezes preenchendo lacunas
(FERREIRA, 1996, p. 30). deixadas por outras fontes.
É importante ressaltar que tais A suposta disputa entre arte –
questões apontadas por White literatura – e ciência – história – é
remetem à teorias narrativistas, deixada de lado assegurando a
84 trata-se de uma reflexão sobre possibilidade de trocas, ou seja, a
gêneros narrativos, não sendo a literatura pode contribuir para o
nosso ver o debate mais profícuo conhecimento histórico, bem como a
para se pensar uma relação entre a história pode enriquecer a
história, entendida aqui como o construção literária e as duas
acontecido e não como o narrado, e oferecem ao pesquisador material
a literatura. Essa ambiguidade da para análise colaborando para a
história que é tanto o texto quanto o construção do conhecimento e para
acontecimento promove, por vezes, o entendimento da sociedade; a
confusões entre ficção e história. história em sua busca da verdade e
a literatura em sua contextualização,
Em „A História Hoje: Dúvidas, por ser produto de um tempo ou por
Desafios, Propostas‟, Roger Chartier ser representação de um período
(1994, p. 99) aborda “a histórico.
conscientização dos historiadores
de que seu discurso, qualquer que Sendo o texto histórico uma
seja sua forma, é sempre uma interpretação do acontecimento e
narrativa”, o que, segundo ele não não a verdade absoluta sobre ele, a
quer dizer que os historiadores análise de outras fontes – como
estejam fazendo literatura, mas que obras literárias do período - é,
escrevem de forma literária. muitas, vezes esclarecedora. Para
Pesavento (2000, p. 26), “A ficção
Ressaltamos que nossa intenção não seria, pois, o avesso do real,
não se constitui de uma negação de mas uma outra forma de captá-lo,
verdades históricas, reconhecemos em que os limites da criação e
sim a existência de elementos na fantasia são mais amplos que
historiografia produzidos pela aqueles permitidos ao historiador”.
interpretação do historiador, mas
concordamos com Chartier (1994, p. A relação entre Literatura e História
113) que afirma que “Abandonar tende, portanto, a proporcionar um
essa intenção de verdade, talvez enriquecimento de ambas. Quando
desmesurada, mas certamente a literatura se utiliza da história a
fundadora, seria deixar o campo obra torna-se mais profunda e
livre a todas as falsificações, a todas significativa e o mesmo ocorre
as falsidades que, por traírem o quando a história percebe na
conhecimento, ferem a memória.” literatura uma interessante fonte
para pesquisa.
A relação da história com a literatura,
a nosso ver, se reveste de sentido Para pensar o tema aqui proposto, a
quando esta é entendida como uma cultura interiorana brasileira,
ficção envolta por aspectos da entendemos que a obra de Monteiro
realidade e como tal, fornece Lobato é significativa, antes de
elementos eficazes para adentrarmos na discussão cabe
compreensão de um período, muitas uma reflexão sobre o autor.
Na história da literatura Monteiro sobrevivência do mito para além do
Lobato integra um período próprio Lobato e sua época”
denominado Pré-Modernismo, cujos (PASSIANI, 2009, p. 136-137).
temas denunciavam a realidade
brasileira e enfatizavam os tipos Bignoto (2007) segue a mesma linha
humanos marginalizados. Euclides de discussão declarando que Lobato
da Cunha, com o célebre „Os à frente da Editora Brasileira que 85
Sertões‟ e Lima Barreto, com „Triste entrava para a história como
Fim de Policarpo Quaresma‟, „Clara revolucionária foi fundamental para
dos Anjos‟ e „Recordações do a expansão do mercado editorial
Escrivão Isaías Caminha‟ o brasileiro lançando uma rede
acompanham (NICOLA, 2000). nacional de distribuição de livros,
publicando novos autores, pagando
Edgard Cavalheiro na pequena direitos autorais e apresentando
biografia de Lobato que abre uma uma renovação gráfica.
das edições de „Urupês‟ afirma que
para Osvald de Andrade este livro Considerando, porém a natureza
de Lobato constitui o „marco zero‟ do deste artigo, que visa contemplar a
movimento modernista. Pré- proposta de uma discussão sobre a
modernista ou modernista, qual a relação entre história e literatura a
relevância deste autor? partir de uma obra específica,
deixamos aqui o editor Lobato para
Passiani (2009) discorre sobre a refletir o autor através de sua obra
relevância da figura de Lobato como „Urupês‟, que surge como artigo
escritor e editor brasileiro no período publicado no jornal „O estado de
de 1914 a 1926. Relevância que faz São Paulo‟ e em 1918 se transforma
com que muitos o apontem como o em livro de contos, apontado por
„pai‟ das futuras editoras brasileiras. Cavalheiro (1957) como um marco
O autor foca sua discussão na sem precedentes na literatura
atuação de Lobato na Revista do brasileira, por surgir em um período
Brasil, comprada por ele em 1918, e considerado por ele de estagnação
no objetivo da revista de despertar literária.
uma consciência nacional. Aborda o
sucesso de Lobato com a revista, No artigo „Urupês‟ Lobato apresenta
seu sistema de distribuição de livros, a figura do Jéca Tatu, “bonito no
seu investimento em marketing: “Ser romance e feio na realidade”, uma
editado por Lobato significava, a um crítica à literatura que idealizava os
só tempo, a garantia do cuidado tipos nacionais e de certa forma,
editorial e a chancela de aprovação lançou-se a um estereótipo oposto,
de um intelectual (escritor-editor) se por um lado o indianismo
reconhecido, consagrado e apresentava Perís e Cecís como
respeitado”. (PASSIANI, 2009, p. heróis europeizados e a mestiçagem
128). entre o branco e o indígena era
geradora de uma nação forte,
E destaca o processo de construção Lobato apresentou o Jeca, caboclo,
da figura de Lobato afirmando que “pondo suas mazelas de fora, com
“O tratamento dedicado a Lobato uma impiedade cruel”, tomando as
por terceiros foi, afinal, o que palavras de Cavalheiro (1957, p. 20)
garantiu o fortalecimento e a que argumenta também que a
polêmica causada pela obra e pelo um casamento puro e honrado para
„retrato do Jeca‟ fez com que Lobato a menina.
se interessasse cada vez mais pelo
homem rural e seus problemas, o A honra ou virtude feminina que
que nos faz pensar a literatura como para Algranti (1993), Priore (2003)
um instrumento de denúncia de ou Caufield (2000) eram termos
86 desigualdades sociais e misérias equivalentes para expressar o
humanas. comportamento das mulheres em
relação a sua conduta sexual desde
Os contos reunidos em „Urupês‟ o período colonial até a primeira
apresentam o cotidiano do caboclo, metade do século XX, ao ser
a lida na roça, seus costumes, as perdida afetava toda a família ao
posturas masculina e feminina nas opor-se à autoridade paterna ou à
regiões do interior, suas crenças e autoridade de outros homens, tios,
suas tradições. Uma pequena avôs, irmãos, que por ela eram
seleção de trechos de seus contos responsáveis e também ao
possibilitam o pensar a cultura da estigmatizar as outras mulheres. A
população interiorana do Brasil. irmã de uma „desonrada‟, por
exemplo, não era mais vista com
Vejamos, por exemplo, o modelo de bons olhos.
conduta feminina e masculina
apresentada nos contos. Em „a Lobato manifesta este entendimento
colcha de retalhos‟, Pingo, a menina no conto „Mata pau‟ onde o
ingênua que vive na roça tinha seu “honradíssimo Eslebão” ao querer
destino traçado, o pai sem ambições se casar é alertado pelo pai que “A
e decadente é o típico caboclo na mãe da Rosa é falada. Laranjeira
visão de Lobato, a sogra, a esposa azeda não dá laranja lima”
e a filha o acompanham sem outras (LOBATO, 1957, p. 207). No conto,
perspectivas entendendo que o rapaz não dá ouvidos ao conselho
“mulher na roça vai à vila três vezes e acaba assassinado pelo amante
– uma a batizar, outra a casar, da esposa. A adúltera também tem
terceira a enterrar” (LOBATO, 1957, um final trágico, enganada, louca e
p. 125). pobre.
Este modelo feminino apresentado O casamento sonhado pela avó de
por Lobato é verificado na discussão Pingo para a menina, no conto „A
de Algranti em sua obra „Honradas e colcha de retalhos‟ tinha uma
Devotas‟ (1993) que destaca o ideal importância fundamental, ele é
de mulher honrada como aquela apontado pelas autoras já
recatada, virtuosa, que oculta o mencionadas, Algranti (1993),
corpo e os maus instintos, mulher Caufield (2000) e Priore (2003)
sem identidade. como forma de manutenção da
honra feminina, que passa da
A conduta de Pingo ao fugir com um guarda paterna para a marital, como
rapaz e ir para a vila “não para casar, forma de restabelecer a honra
nem para enterrar. Foi ser „moça‟...” perdida e tinha também a
(LOBATO, 1957, p. 129) faz importância econômica,
desmoronar a família e matar de principalmente para as famílias
desgosto a avó que sonhava com menos favorecidas financeiramente.
O filho homem era importante por Este conto ainda permite a análise
ajudar nos afazeres da roça, a de outras práticas das populações
mulher podia ser um peso. O trágico interioranas do Brasil, estudadas,
conto „Bucólica‟ apresenta uma mãe por exemplo, por Franco (1983) que
que deixa morrer de sede a filha por afirma que o modo de viver das
ser deficiente tornando-se um populações rurais brasileiras
problema para a família e por não colocadas à margem das relações
87
apresentar expectativas. econômicas criou o que a autora
define como „código do sertão‟ que
Já o conto „Comprador de fazendas‟ para ser entendido torna necessária
é mais cômico e nas expressões uma reflexão sobre as relações
como “na roça o ruge e o casamento comunitárias destas pessoas.
saem do mesmo oratório” (p. 238),
aludindo a ação da moça ao As relações de vizinhança se
acender uma vela ao santo pautavam em princípios de
casamenteiro e utilizar pétalas de cooperação e parentesco e uma
rosa do vaso do oratório para pintar noção de moralidade comum. O
o rosto e ficar bonita na visita do auxílio mútuo como apresentado no
possível pretendente ou então o conto, Maneta ajuda Nunes a
final do conto que destaca a perda construir o monjolo, não isenta estas
do único bom negócio da vida do relações de vizinhança de atos de
fazendeiro: “o duplo descarte – a violência, pois para Franco (1983)
filha e da Espiga” (p. 250), casar a as pessoas ocupam um mesmo
filha e vender a fazenda. espaço e desta forma, assim como
podem partilhar trabalho, lazer,
Mas, se a conduta feminina era alimentos, podem confrontar-se por
regrada pelo controle de sua estes mesmos anseios quando
sexualidade, a masculina seguia por ocorre uma sobreposição de
outros rumos. Algranti (1993) afirma interesses.
que o cidadão virtuoso jamais seria
um homem casto e sim um homem Lobato apresenta no conto a raiva
forte. E isto era assumido pelas de Nunes em relação aos Porungas
populações interioranas com um por estes terem matado sua paca,
conjunto de ações, ditas „próprias de este sentimento de discórdia se
homem‟, como bem apresenta o estende e conduz à vingança com
conto „A vingança da Peroba‟. Nunes derrubando a peroba que
estava nos limites das duas
Nunes, personagem da trama, fazendas.
ensina o único „filho homem‟, ainda
menino a beber afirmando que A obra ainda permitiria uma
“Homem que não bebe, não pita, discussão sobre a religiosidade do
não tem faca de ponta, não é povo rural, as tradições do batizado,
homem” (LOBATO, 1957, p. 136) e do casamento, do enterro... As
o menino assumia esta postura crenças como no conto „Mata pau‟
batendo nas irmãs, maltratando a onde o choro da criança
mãe, “além de muitas outras coisas abandonada é interpretado como
próprias de homem.” (p. 127). “alma penada de criança pagã”
(LOBATO, 1957, p. 207) ou ainda no
conto „Bocatorta‟ onde o filho
disforme da escrava era visto como CHARTIER, Roger. A História Hoje:
“bicho ruim inteirado” (LOBATO, dúvidas, desafios, propostas. Revista
1957, 216). Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol.7, n. 13, 1994, p. 99.
„Urupês‟ proporciona ainda a FERREIRA, Antonio Celso. História e
possibilidade de discussões sobre o Literatura: Fronteiras móveis e desafios
88 racismo no meio rural a partir de disciplinares. Pós-História. N 4. Assis,
São Paulo, 1996.
expressões como “o ladrão foi o FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho.
negro”, do conto „Bocatorta‟, Homens Livres na Ordem
“deslombou-a numa sova de Escravocrata. 3ª Edição. São Paulo:
consertar negro ladrão” do conto „A Kairós Livraria Editora Ltda., 1983.
vingança da peroba‟ ou ainda era NICOLA, José de. Literatura Brasileira:
uma “excelente negra” do conto Das origens aos nossos dias. 4ª Edição.
„Bucólica‟, que sugere ser excelente São Paulo: Scipione, 1989.
apesar de ser negra ou então ser OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Arte
Literária Brasileira. São Paulo: Editora
uma excelente empregada, por ser Moderna, 2000.
isso que caberia a uma negra. PASSIANI, Enio. A construção da
Evidentemente que a análise aqui hegemonia: Monteiro Lobato, mercado
editorial e campo literário no Brasil.
apresentada é superficial, mas o Miscelânea. Revista de Pós-Graduação
intuito do texto era apresentar uma em Letras. UNESP. Campus de Assis,
série de possibilidades de vol.6 , jul/nov. 2009. p. 125-138.
discussões sobre a cultura PESAVENTO, Sandra Jatahy. Literatura,
interiorana brasileira a partir de uma História e Identidade Nacional. Vidya,
obra literária em um diálogo com a Ficção, História, Poéticos. Vidya –
historiografia, e demonstrar que há Centro Universitário Franciscano. Santa
possibilidades na relação entre Maria, V19, N33. Janeiro/junho de 2000.
PRIORE, Mary Del. Mulheres no Brasil
história e literatura, como já Colonial. 2ª Edição. São Paulo:
mencionado, tanto a literatura pode Contexto, 2003.
enriquecer-se utilizando a pesquisa
histórica para compor seus cenários,
como a história pode ver na
literatura representações de
determinados períodos.
REFERÊNCIAS
ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e
Devotas: Mulheres da Colônia:
Condição Feminina nos Conventos e
Recolhimentos do Sudeste do Brasil,
1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympio;
Brasília: Edunb, 1993.
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da
honra: Moralidade, Modernidade e
Nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
Campinas: Editora da UNICAMP, 2000.
CAVALHEIRO, Edgard. Vida e Obra de
Monteiro Lobato. In: LOBATO, Monteiro.
Urupês. São Paulo: Editora Urupês,
1957.
PONDERAÇÕES SOBRE O função das fontes é compreendida.
Para fechar nosso debate, sobre a
QUADRINHO COMO função do documento, temos em
DOCUMENTO HISTÓRICO – Paul Veyne, e sua contribuição com
a ideia de trama histórica, e como as
UM DEBATE TEÓRICO- mesma permite compreender a
METODOLÓGICO função de escolha pelo historiador.
89

Jefferson Lima30 Quanto a relação entre texto e


imagem, traçaremos um paralelo
entre as considerações de Ulpiano
Menezes, para com o trato das
INTRODUÇÃO fontes visuais, e Roger Chartier, ao
No presente trabalho, buscaremos pensar sobre a relação do leitor e do
traçar uma discussão teórico- texto. Para complementar as
metodológica sobre as analises de ambos. Pois dada a
possibilidades de utilização das especificidade dos quadrinhos,
Histórias em quadrinhos (Hqs) como trazer essas duas formas de análise,
documentos históricos. Para tanto ainda que especificas, jogam um
abordaremos, primeiramente, o que pouco de luz sobre as divagações
se entende por documento histórico, das fontes texto-visuais.
e como o mesmo acaba por ter sua Na parte especifica sobre a
utilização atrelada a apropriação do metodologia de pesquisa junto aos
historiador. Consecutivamente quadrinhos, onde os historiadores
apresentaremos as relações entre se deparam com a necessidade
imagem/texto, e como esse especificas do método de analise, já
documento pode ser historicizado. que percepção de seu conteúdo
O debate, sobre documento está além a mera análise textual ou
histórico, será pautado a partir das visual. Ao dialogar com autores
ponderações possíveis dentro do como Will Eisner, Scott Mccloud
texto de Leandro Karnal e Flavia (quadrinistas), Umberto Eco
Galli Tatsch, além do artigo de Elias (ciências humanas), Enrique Lipszyc
31 (comunicação), traremos alguns
Thomé Saliba , sendo
complementados pela ideia de aprofundamentos teórico-
apropriação proposta por Durval metodológicos sobre o trabalho dos
Muniz de Albuquerque Jr. Ambos as quadrinhos como fonte
concepções se complementam, historiográfica.
permitindo a compreensão da forma Assim sendo, é papel do historiador
de trabalho do historiador, e como a apresentar novos suportes para as
pesquisas históricas, e o papel
30
Acadêmico do PPGH/UDESC 2011 – deste artigo e criar uma
Artigo final da disciplina de Teoria e aproximação entre os trabalhos
Metodologia da História, ministrado pela historiográficos texto/visuais e as
Profa. Dra. Janice Gonçalves ponderações quadrinisticas.
31
Ambos os textos presentes in: PINSKY,
Carla Bassanezi, LUCA, Tânia de (orgs.).
O historiador e suas fontes. São Paulo:
Contexto, 2009
História e documento – debates Complementando, o texto de Elias
teóricos sobre as fontes Thomé Saliba, intitulado Pequena
históricas e a apropriação do história do documento: aventuras
historiador modernas e desventuras pós-
modernas nos traz a discussão
No momento em que pensamos sobre as inovações modernas, e as
90 sobre o trabalho do historiador, e críticas realizadas aos autores do
sua relação junto as fontes, nos “positivismo”. A proposta, dos
deparamos com diversas Annales, era a de “uma História-
inquietações quanto aos novos problema, que se resumia no uso de
conjuntos de documentos– tais hipóteses explicitadas pelo
como blogs, quadrinhos, cartas historiador, […] propunham ainda
pessoais, diários, sites, entre outros uma “abertura” do historiador às
– onde, no momento de análise de práticas das outras ciências sociais
seu conteúdo, o pesquisador, da e, […] uma alteração da ênfase
história, se pergunta sobre qual temática” (SALIBA; in PINSKY;
conjunto de métodos o permitiriam LUCA, 2009:316).
analisar estes conjuntos de
informações. Um dos expoentes dos Annales,
Lucien Febvre - segundo a
Um bom exemplo dessas interpretação de Saliba - apresenta
ponderações sobre os documentos o documento como parte ativa,
é o livro O historiador e suas fontes, participante, que constitui o próprio
organizado por Carla Bassanezi processo de conhecimento do
Pinsky e Tania Regina de Luca, que passado, não sendo apenas um
procura mostrar, através de um resquício do passado, mas uma
conjunto de artigos de diversos produção do mesmo. Já Bloch
autores, como trabalhar com delimita o documento não apenas
diferentes fontes históricas. O como produção do passado, mas
debate, mostrado na publicação, é como produto de relações de força,
extremamente fecundo, pois ao se assimétricas entre os grupos que o
debruçar sobre novas fontes, acaba determinam.
por traçar novos debates sobre os
documentos históricos. Outros analistas (como Certeau,
Duby e Le Goff) ampliam a noção de
Em um dos artigos do livro, escrito fonte histórica, onde o próprio foco
por Leandro Karnal e Flavia Galli de crítica do documento (entre
Tatsch, pode-se entender que: primários e secundários):
Documento histórico é Tornou-se inócua, pois
qualquer fonte sobre o dependendo do ponto de vista
passado conservado por do observador, o que valeria
acidente ou deliberadamente, mais: sua procedência, seu
analisado a partir do presente conteúdo ou o grau de relação
e estabelecendo diálogos entre com o tema investigado?
a subjetividade atual e a (SALIBA; in PINSKY; LUCA,
subjetividade pretérita. 2009:318)
(KARNAL; TATSCH; in
PINSKY; LUCA, 2009:24). Um ponto a ser lembrado, e o da
apropriação dos historiador sobre as
fontes, e como ele da à determinado Já para Paul Veyne, notamos como
documento sua função histórica. os fatos não existem isoladamente,
Deve-se entender que não existe podendo ser pensados como um
fato histórico ou documento que conjunto de inter-relações, onde o
tenha seu uso eterno, mas sim um trabalho historiográfico, e a verdade
diálogo entre a visão do historiador histórica, não são relativos, nem
e as fontes escolhidas. Como inacessíveis.
91
exemplificado por Durval Muniz :
Para o autor o conceito de trama,
A História possui objetos e refere-se justamente a esse tecido
sujeitos porque os fabrica, da História, a essa costura de
inventa-os, assim como o rio causas materiais, aqui incluindo
inventa o seu curso e suas também os documentos históricos,
margens ao passar. Mas estes tendo seus laços objetivos e sua
objetos e sujeitos também importância relativa. Para Veyne, a
inventam a história, da mesma palavra “trama” tem a vantagem de
forma que as margens lembrar que o objeto de estudo do
constituem parte inseparável historiador é tão humano quanto um
do rio, que o inventa drama ou um romance, ou nas
(ALBUQUERQUE Jr, 2007:29). próprias palavras do autor:
Pode-se notar que a função dos O historiador procura fazer
documentos esta atrelada as compreender as tramas. Como
necessidades do historiador. Sendo se trata de tramas humanas, e
assim toda fonte é uma construção não, por exemplo, tramas
permanente, tendo em si geológicas, os resultados
possibilidades de leituras das mais serão humanos(VEYNE,
diversas. Assim sendo onde o 1995:52)
documento deve ser visto como
base histórica e não mais como Isoladamente, a utilização da trama
monumento. não é nem interessante, nem o
deixa de ser. Tudo depende das
O documento é tratado por Durval relações explicativas dadas pelos
como uma espécie de convocação historiador. Entendemos que
estratégica do passado, visando incrementar o texto com detalhes
demandas do nosso tempo. Dessa intermináveis sobre os documentos
forma, à História não implica apenas não leva, necessariamente, a um
lembrar, mas também produzir bom trabalho da trama. Não se deve
esquecimentos, demonstrando a confundir rigor científico com um
relação de ambiguidade destinada excesso de minúcias supérfluas,
ao historiador. O interessante é caso comumente apresentado no
pensar como foi possível a caso dos quadrinhos.
emergência de determinado
documento em detrimento de outro, Ao compreender a função do
dada não apenas a escolha do documento, sua funcionalidade para
historiador, mas os diversos fatores a historiografia, sua relação para
que o trouxeram até o momento de com o trabalho do historiador, e
escolha, ou não, pelo pesquisador. como o mesmo pode ser trabalhado
junto a trama da escrita da história,
podemos seguir para a discussão materiais que sustentam o
sobre o que serão denominados texto. No entanto, elas também
32
como documentos texto-visuais . contribuem plenamente para
modelar as antecipações do
Documentos texto-visuais –
leitor face ao texto e para atrair
ponderações sobre novas fontes
novos públicos ou usos
92 historiográficas
inéditos. (CHARTIER. 2002:71)
Pensar as relações entre a fonte Vemos como a relação do texto não
visual e o texto, trazem para o esta ligado apenas ao formato onde
debate dos quadrinhos uma base será publicado, mas este mesmo
interessante para a análise mais formato (aparato) será importante
amiúde. Entender como ambos para a relação junto ao público que
podem ser analisados será destinado. Além disso é clara a
separadamente alicerça o caminho compreensão de que os textos
para as ponderações sobre as sempre foram escritos por alguém,
especificidades do Hq. ainda que nem todos os textos
Um dos autores mais importantes possuem autores . Compreender
sobre as produções textuais, Roger que a ligação do texto, não apenas
Chartier apresenta – em seu texto O como um conjunto de letras, mas
mundo como representação – as como a produção de um indivíduo,
relações que mantemos com a acaba propiciando ao historiador a
escrita, especialmente as práticas possibilidade de análise do texto
ligadas entre escritor/leitor/agentes para alem da sua narrativa.
envolvidos com a Como o próprio Chartier explana,
produção/distribuição destes textos. sobre a relação entre o escritor, e o
Neste sentido, toda história contada trabalho final (livro,revista, etc.):
tem um enfoque, ou seja, é contada
a partir de uma determinada Os autores não escrevem
perspectiva. livros: não, eles escrevem
textos que outros transformam
Ao demonstrar como a relação entre em objetos impressos. A
o suporte e o leitor se entrelaçam, distância, que é justamente o
Chartier dialoga com a função da a espaço no qual se constrói o
leitura, não necessariamente com o sentido – ou os sentidos-. Foi
texto em especifico, trazendo aqui esquecida com demasiada
uma luz, onde não desvinculamos o frequência. (CHARTIER,
espaço de publicação do texto e o 2002:71)
leitor, já que:
Em tal perspectiva, o “efeito
produzido” não depende Ora, entender que os documentos,
absolutamente das formas sejam eles textuais ou visuais, ou
texto-visuais, tem a relação de
32
Para uma melhor compreensão sobre distribuição, edição, entre outras,
o termo texto-visuais recomendo a leitura que os transformam e modificam,
do Artigo As expressões gráficas de transformam as possibilidades de
humor na história: uma metodologia entendimento sobre seu sentido
de leitura para as fontes texto-visuais original, atrelado ao autor, mas de
de Michele Bete Petry.
maneira alguma modificam as segundo Ulpiano, mais
possibilidades de análise visuais dos especificamente na passagem do
mesmos, um texto/imagem se documento visível para o visual:
mantém visível para a análise do
leitor, mesmo que não mantenha a Foi necessário reconhecer e,
ideia original do autor, atrelando a si de certa maneira, integrar três
novas perspectivas, ligadas ao modalidades de tratamento: o 93
mercado, editoras, etc., mas documento visual como
nenhuma dessas ponderações será registro produzido pelo
trabalhada aqui, dado o observador; o documento
distanciamento da proposta inicial visual como registro ou parte
deste artigo. do observável, na sociedade
observada; e, finalmente, a
Vale salientar que o texto escrito interação entre observador e
tem uma presença visual assim observado. (MENESES, 2003,
como a imagem. A página impressa p. 17)
é visualizada como quadro tanto
quanto a imagem. Assim sendo, o Ainda que dentro do trabalho
ato de ler as Hqs, como um historiográfico apareçam sinais,
documento , ganhou um caráter muitas vezes sintomáticos, da
diversificado e as contribuições da utilização da imagem como mera
semiótica auxiliam a perceber a ilustração do trabalho,
existência simultânea de uma desperdiçando, assim, seu potencial.
diversidade de linguagens. Tendo exceções, que o próprio
Ulpiano apresenta como
Quanto à relação junto as fontes merecedoras de atenção, ligadas ao
visuais, não apenas como um trabalho da história da fotografia.
conjunto imagético fixo, passando
assim a visualidades como objetos Ulpiano, ao falar sobre a História
detentores de historicidade e Visual, não propõem uma
plataformas de interesse cognitivo. “compartimentação da História” mas
Ulpiano Menezes - em seu texto: sim um campo operacional para a
Fontes visuais, cultura visual, mesma, apresentando a
história visual: balanço provisório, possibilidade de paralelismo, por
propostas cautelares – aponta as exemplo, com a História Material.
aplicações dos estudos sobre fontes Assim sendo, o projeto de trabalho
visuais dentro da História como deve realizar uma dialética entre
simplistas, e demonstrando como documento e problemática,
ciências acabam adotando as pensando claramente, as imagens
pesquisas visuais, muitas vezes, são apenas um conjunto de
com mais propriedade. atributos físicos-quimicos, que
demandam a atribuição social dada
Um dos pontos principais do texto é a elas para sua utilização. Tomando
sua preocupação com o potencial assim a imagem como ponto de
cognitivo da imagem visual, ainda partida para sua interpretação.
que a função predominante, da
imagem visual, seja a de incutir Pode-se encontrar em seu trabalho
sensibilidade a formas, ideias e macroestratégias para a utilização
valores. Pensar o documento visual, da Imagem, são eles: a) o Visual, e
os sistemas de comunicação visual; das histórias. Um bom exemplo de
b) o visível, que diz respeito ao como esse pensamento sobre o
poder e sistemas de controle c) a método de criação é abordado se
visão, sistemas e técnicas de encontra no texto de Enrique
observação, e a função do Lipszyc, onde o autor se debruça
observador. sobre a relação do argumento
94 presente nas Histórias em
Entendendo que as relações entre quadrinhos:
os documentos textuais e
imagéticos não estão tão distantes, Ao escrever um argumento, o
pensando que ambos dependem do desenhista (se é ele quem o
leitor para sua interpretação. Aqui faz) acumula préviamente o
podemos abrir uma reflexão sobre a material que irá utilizar: um
diferenciação dos documentos texto- conjunto de fatos,
visuais em relação a análise dos acontecimentos etc.
textos e imagens. Compreender os observados por ele mesmo ou
documentos texto-visuais vai imaginados. Ou senão usando
depender da análise tanto do texto experiências de outras
quanto da imagem, como exemplo pessoas (jornalismo, notas,
podemos pensar num outdoor. A descrições, novelas, filmes,
interpretação, e compreensão do etc.) (LIPSZYC, in MOYA,
anúncio, muitas vezes, é possível 1977:237)
apenas observando a imagem, ou o
texto em separados, mas só se Outro autor que trabalha com a
compreende o trabalho como um análise dos quadrinhos, mais
tondo quando unimos tanto texto, especificamente sua ligação com a
quanto imagem, sem cultura de massa, é Umberto Eco.
Em seu Apocalípticos e Integrados
desvincularmos nenhum dos dois.
Após essa breve introdução de Umberto Eco traça um conjunto
podemos seguir para as de discussões, tais como: O Mito do
ponderações metodológicas das Superman, Peanuts, Música, Kitsch,
histórias em quadrinhos. entre outros. O ponto mais
interessante, da perspectiva deste
METODOLOGIA DE ANÁLISE DOS trabalho, é a análise intitulada
QUADRINHOS Leitura de “Steve Canyon”, onde o
autor apresenta questões sobre a
A formulação de métodos, para a Análise da mensagem, a linguagem,
compreensão dos quadrinhos, é e as questões presentes na “estória
apresentada na bibliografia em quadrinhos” intitulada Steve
brasileira desde a década de 1970. Canyon, de Milton Cannif, onde, a
Temos como exemplo o livro convite de Eco.
Shazam, de Álvaro de Moya, que
reúne um conjunto de pensadores Sigamo-lo, pois, individuando o
sobre a montagem das Hqs, “modo” pelo qual prepara sua
pensando conceitos como: mensagem, e decodifiquemos
Argumento, onomatopéias, a mensagem segundo tudo
psicologia dos quadrinhos, entre quanto ela possa comunicar,
outros, que se debruçam sobre a não nos esquecendo de
constituição presente na produção enfocar a estrutura da própria
mensagem, examinando-lhe, vista que a relação com a pesquisa
por fim, os signos e as histórica demanda perspectivas bem
relações entre signos em mais complexos – são eles: Will
referencia a um dado código a Eisner e Scott Maccloud.
que o autor se atém,
presumindo-o do conhecimento Para Eisner: “A configuração geral
de seus leitores. (ECO, da revista de quadrinhos apresenta 95
2001:131) uma sobreposição de palavras e
imagem, e assim, é preciso que o
leitor exerça as suas habilidades
interpretativas visuais e verbais”
(EISNER 1995:8), onde pode-se
notar uma relação entre o
entendimento dos símbolos gráficos,
sejam textuais ou gráficos, pelo
leitor. Temos aqui, como o próprio
Will cita, o pensamento sobre a Arte
Seqüencial, quais características,
em relação a imagem e texto,
devem ser pensadas em relação ao
tema, onde, nas palavras do autor:
“Na Arte seqüencial, as duas
Exemplo (A) Na seqüencia que trata da funções estão irrevogavelmente
recuperação da cegueira do Espírito, a
visão é de fato a dos olhos do
entrelaçadas. A arte seqüencial é o
protagonista. O requadro dos quadrinhos ato de urdir um tecido” (EISNER,
mostra isso e, espera-se, permite que o 1995:122). No momento que
leitor compartilhe a experiência. Da refletimos sobre os mecanismos que
história Fluid X (Fluido X) do Espírito, formam os quadrinhos, alguns
publicada pela primeira vez em 14 de pontos devem ser lembrados, e que
setembro de 1947. (EISNER, 1995, p. 59) são abordados no livro Arte

Mas tanto Eco como Moya trataram Seqüencial, tais como: Imagens,
de maneira sucinta a análise aos tempo, enquadramento da fala,
quadrinhos, sendo necessário um enquadramento ao tempo, o quadro,
conjunto de informações mais o quadro como meio de controle, a
específico para decifrar os contextos linguagem do requadro, o requadro
pertencentes ao pensamento como recurso narrativo, o requadro
proposto nos quadrinhos. Não como recurso estrutural, o traçado
devemos renegar o conteúdo do requadro, função emocional do
trabalhado por esses autores, e todo requadro, a página como
corpo auxiliar nas suas publicações, metaquadrinho, composição do
mas sim complementar suas quadrinho, função da perspectiva,
ferramentas de análise. realismo e perspectiva, anatomia
expressiva, o corpo, postura, o rosto,
Para tanto serão acrescidos dois aplicação da “escrita”, palavras/arte,
quadrinistas que analisaram, de aplicação de palavras, história e
maneira extremamente competente, imagem, desenvolvimento da
as relações presentes, de maneira história.
mais amiúde, das Hqs – tendo em
A terminação, Arte Seqüencial, Histórias em quadrinhos s. pl.,
cunhada por Eisner, acaba 1. Imagens pictóricas e outras
abarcando um conjunto diverso de justapostas em seqüência
informações sobre a constituição e deliberada destinadas a
montagem dos quadrinhos, mas, transmitir informações e/ou
ainda sim, detém um déficit na produzir uma resposta no
96 própria conceituação do termo, e em espectador. (McCLOUD,
seu conjunto de atributos. O que 2005:9)
deve ser observado, para além dos
mecanismos de criação Ou seja, os quadrinhos são mais do
que Arte Seqüencial. Os desenhos
apresentados acima, são o conjunto
de pontos que ainda faltam para a animados, e filmes, podem ser
análise mais amiúde do tema. De enquadrados, também como Arte
maneira alguma estou retirando de Seqüencial. Para McCloud alguns
Eisner a importância de seu trabalho, pontos interessantes para o
pois o conjunto principal de entendimento dos quadrinhos são:
mecanismos para à análise do tema O vocabulário dos quadrinhos (ícone,
estão presentes no seu trabalho, realismo e cartum, identidade
mas, para aumentar o numero de estendida, plano das figuras), entre
conceitos para a análise dos quadros (momento - pra - momento,
quadrinhos, é vital a apresentação ação – pra – ação, tema – pra –
dos pontos de vista presentes nas tema, aspecto – pra – aspecto, non–
obras de Scott McCloud. sequitur), molduras de tempo,
Linhas e traços, entre outros.
Um de seus apontamentos mais
importantes é o da função do
espaço entre os quadros, que
demonstra a função do leitor, a de
decodificar as imagens e conteúdos
dos quadrinhos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No momento em que trazemos para
a academia o debate sobre os
documentos texto-visuais, e como
os mesmos precisam de um
conjunto de metodologias
(McCLOUD, 2005, p.66)
especificas de pesquisa,
McCloud nos mostra, em seu procuramos, ainda que de maneira
Desvendando os Quadrinhos, que sucinta, apresentar um conjunto de
existem outros focos a serem debates teórico-metodológicos
analisados. O primeiro deles é a sobre essas novas fontes.
própria conceituação sobre o que Debatendo com diferentes autores,
são historias em quadrinhos, procuramos demonstrar como as
complementando o termo Arte especificidades desta nova fonte
Seqüencial, cunhado por Eisner, pode ter, sim, suas analises
Scott apresenta: iniciadas através das propostas
dadas aos documentos textuais e
visuais, não esquecendo porém de esquecendo que o foco principal
acrescentar suas peculiaridades a deste artigo foi a relação junto ao
esse trabalho. documento texto-visual e quais
mecanismos devem ser pensados
Neste contexto, demos entender os para sua análise.
quadrinhos como um documento
texto-visual possível de REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO 97
interpretação tendo em vista a
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de.
capacidade de decodificar sua História: a arte de inventar o passado.
simbologia, transformando-o em Ensaios de teoria da história. Bauru,
uma fonte histórica a caráter. Vemos Edusc, 2007.
um constante jogo entre autor e CHARTIER, R. À beira da falésia: a
leitor, sem esquecer também da história entre certezas e inquietude.
relação presente entre editora, autor Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2002.
e leitor. Devemos compreender, ECO, U. Apocalípticos e Integrados.
São Paulo: Perspectiva, 2001.
porém, que o ponto principal do
EISNER, Will. Arte Seqüencial. São
trabalho com os quadrinhos é a Paulo: Martins Fontes, 2007.
maneira que o leitor acaba fazendo KARNAL, Leandro; TATSCH, Flavia
da leitura do quadrinho. Ou seja, Galli. A memória evanescente. In:
sem o aparato presente nos PINSKY, Carla Bassanezi, LUCA, Tânia
discursos sobre a análise dos de (orgs.). O historiador e suas fontes.
quadrinhos, se torna inviável a São Paulo: Contexto, 2009.
utilização desta forma de expressão LIPSZYC, Enrique. História em
quadrinhos e seu argumento. In: MOYA,
como fonte histórica, o
Álvaro de (org.) Shazam! São Paulo:
conhecimento destas ferramentas Perspectiva, 1977.
metodológicas permitem ao MACCLOUD, Scott. Desvendando os
historiador traçar uma infinidade de Quadrinhos. São Paulo: Mbooks, 2004
paralelos entre o quadrinho como MENESES, Ulpiano T. B. de. Fontes
documento e sua utilização como visuais, cultura visual, história visual:
fonte. balanço provisório, propostas cautelares.
SALIBA, Elias Thomé. Pequena história
A contribuição do documento do documento: aventuras modernas e
quadrinhos, e como devem ser desventuras pós-modernas. In: PINSKY,
analisados, abre novos paradigmas Carla Bassanezi, LUCA, Tânia de (orgs.).
para a história, principalmente a O historiador e suas fontes. São Paulo:
Contexto, 2009.
história do tempo presente, pois se
VEYNE, Paul. Como se escreve a
pensarmos nos grandes veículos história; Foucault revoluciona a
midiáticos, do Séc. XX, história. 3 ed. Brasília: Ed. da UnB,
encontraremos nos quadrinhos fonte 1995
fecunda para a compreensão deste
momento histórico. O que nos
permite compreender os mais
diversos fatos históricos, atrelados a
publicação das Hqs. Para concluir,
as Hqs vão além do conjunto
imagem/texto, acabam trazendo em
seu cerne a relação
autor/produtor/leitor, não
FONTES AUDIOVISUAIS: O que consideravam fonte para a
história. Em 1949 é publicado –
CINEMA NA HISTÓRIA33 36
postumamente – Apologia da
História ou O ofício do historiador,
Maytê Regina Vieira34 nele o autor Marc Bloch diz o que
entende por história e documento
98 histórico,
A FONTE HISTÓRICA
Como primeira característica,
Historiadores necessitam de fontes [do conhecimento histórico] o
para pesquisar suas hipóteses, além conhecimento de todos os
de embasar e construir sua narrativa. fatos humanos no passado, da
A historiografia tem modificado no maior parte deles no presente,
decorrer dos séculos o que entende deve ser, segundo a feliz
por fonte histórica, ou seja, o que é expressão de François Simiand,
considerado plausível para o um conhecimento através de
trabalho do historiador. No século vestígios. Quer se trate das
XIX quando a história se afirma ossadas emparedadas nas
como disciplina acadêmica as fontes muralhas da Síria, de uma
consideradas confiáveis se palavra cuja forma ou emprego
restringiam aos documentos escritos, revele um costume, de um
visto que, de acordo com Janotti relato escrito pela testemunha
(2005. p. 11), permitiam a de uma cena antiga ou recente,
reconstituição da história em suas o que entendemos
relações de causa e efeito. efetivamente por documentos
senão um "vestígio" quer dizer,
A partir da década de 1930, com a a marca, perceptível aos
35
chamada Escola dos Annales , que
sentidos, deixada por um
pregava a interdisciplinaridade
fenômeno em si mesmo
contestando os estudos históricos impossível de captar? (BLOCH,
que privilegiavam somente o político, 2002. p. 73)
os historiadores passaram a rever o
Segundo Foucault (2000. p. 7-8) o
33
Tomando de empréstimo a expressão
documento não poderia mais ser
de Marcos Napolitano (2005. p. 240) em visto pela história como “matéria
artigo de sua autoria in: PINSKY, C. B. inerte através da qual ela tenta
(org.). Fontes históricas. São Paulo: reconstituir o que os homens
Contexto, 2005. fizeram ou disseram, o que é
34
Mestranda do PPGH – Programa de passado e o que deixa apenas
Pós Graduação em História da UDESC – rastros” a história deveria entender o
Universidade Estadual de Santa Catarina. documento como algo construído
Bolsista CAPES.
35
Referência a Revista Annales
pelos homens que o deixaram
d‟histoire économique et sociale fundada apontando “formas de permanências,
por Lucien Febvre e Marc Bloch para
contestar a história como era feita
36
naquele período e divulgar suas idéias e Marc Bloch foi fuzilado durante a
trabalhos com colaboradores de outras invasão nazista à França em 1944, o
disciplinas. Eles acreditavam que a manuscrito foi enviado para seu
ligação com outras áreas das Ciências companheiro de trabalho Jacques Le
Humanas enriqueceria a História. Goff que o publicou em 1949.
quer espontâneas, quer para expor idéias e modos de
organizadas.” Ou seja, o documento pensar compartilhados por
não poderia mais ser visto como determinados grupos ou culturas.
algo objetivo, retrato inquestionável
da verdade. Entretanto, de acordo com Meneses
(2003), as disciplinas afins da
“[...] o historiador tomou História lidam com as imagens de 99
consciência de que o forma muito mais completa;
documento é um monumento,
dotado de seu próprio sentido, [...] estamos ainda longe do
a que não pode recorrer sem patamar já atingido na
precaução. Cumpre então Sociologia e na Antropologia: o
restituí-lo ao contexto, objetivo prioritário que os
apreender o propósito autores propõem (como, aliás,
consciente ou inconsciente no tradicional comentário de
mediante o qual for produzido texto à francesa) é iluminar as
diante de outros textos e imagens com informação
localizar seus modos de histórica externa a elas, e não
transmissão, seu destino, suas produzir conhecimento
histórico novo a partir dessas
sucessivas interpretações,
graças à lingüística, à mesmas fontes visuais. [...]
psicologia, à sociologia...” Com estas novas concepções, o
(DUMOULIN, 1993. p. 244) cinema foi incorporado no conjunto
Em 1974, Jacques Le Goff e Pierre de documentos utilizados pelo
Nora – historiadores que já faziam historiador por ser constituído por
parte do quadro da revista dos imagens em movimento, assim os
Annales – lançam uma obra, em três filmes sejam eles “mudos, sonoros e
volumes, intitulada História: Novos coloridos, plantas de salas de
problemas; Novas abordagens; exibição de filmes, letreiros,
Novos objetos. O volume dedicado legendas, técnicas de filmagem,
aos novos objetos relacionou uma filmes de propaganda política, [...].”
série de vestígios – nas palavras de (JANOTTI, 2005. p. 15).
Bloch – que poderiam ser usadas Corroborando isto Cardoso e
como fontes de análise das mais Vainfas (1997. p. 378) dizem que
variadas naturezas, entre eles as qualquer vestígio deixado pelo
imagens, que “são representações homem, se reverte em trabalho para
de ideais, sonhos, medos e crenças o historiador decifrar e buscar
de uma época.” (SILVA; SILVA, compreender os “discursos que
2006. p. 199). exprimem ou contêm a história [...]”.

Para Chartier (1993), a imagem, que Na opinião de Napolitano (2005), os


era considerada material de análise filmes quando retratam um momento
somente para a história da arte ou ou um ambiente histórico em seus
especialistas nela é, há alguns anos, cenários, figurinos, ornamentos
fonte para o historiador passam a impressão de realidade.
independente de seu campo, pois Como se fossem uma
ela, tanto pode ser usada para representação fiel do passado. Para
doutrinar, para convencer quanto analisarmos um filme temos que
“entender o porquê das adaptações, fontes pertinentes.” (MENESES,
omissões, falsificações que são 2003. p. 28)
apresentadas [...].” (NAPOLITANO,
2005. p. 237). Um exemplo claro: As pesquisas pioneiras envolvendo
através dos estudos históricos o cinema foram feitas pelo
temos conhecimento que na Idade historiador Marc Ferro que publicou
100 Média, as cidades não eram tão um dos artigos que constituem a
organizadas, tão limpas, as pessoas obra História: novos objetos (1974).
não eram tão asseadas ou tão Intitulado “O filme: uma contra-
37
“civilizadas” quanto suas análise da sociedade? “ o artigo
representações nos filmes. O que discute a importância da película
faz com que os produtores os fílmica como fonte e as formas como
apresentem desta forma? pode ser tratada e analisada pelos
historiadores.
Em escala menor e também
reproduzindo o que ocorre em Contudo a história ainda tem um
escala internacional, o cinema, longo caminho a percorrer até
seja documental, seja de ficção, conseguir desenvolver os estudos
é um segundo domínio que com as imagens em todas as suas
vem crescendo na atenção dos possibilidades. Prova disto são os
historiadores, embora com estudos mais atuais que contestam
material mais disperso (o vídeo a metodologia de Ferro, conforme
ainda está num patamar Napolitano (2005) atualmente ele é
imediatamente anterior). Mas a criticado por sua visão que privilegia
reflexão sobre as relações o filme histórico, o chamado
entre o cinema e a História documentário, como fonte de
tem-se multiplicado análise argumentando que sofre
sensivelmente em seminários, menos manipulação em sua
mostras, cursos, coletâneas, produção, porém para
monografias. (MENESES, pesquisadores como Pierre Sorlin
2003. p. 20-22) (sociologia) e Eduardo Morettin
(história), isto pouco importa. O que
Como podemos perceber os importa é o discurso do filme e a
estudos referentes ao cinema estão análise de sua narrativa.
avançando como uma legítima fonte
CINEMA: DE DIVERTIMENTO À
histórica, embora na opinião de
FONTE HISTÓRICA
Meneses (2003, p. 28) os trabalhos
existentes sejam um tanto Quando foi apresentado pelos
superficiais e incompletos, irmãos Lumière no final do século
precisando aprofundar ainda mais 38
XIX o filme era considerado
as perspectivas de análise histórica.
A imagem deve ser tratada como 37
Originalmente escrito em 1971
instrumento e a sociedade como (FERRO, 2010. p. 47).
objeto das pesquisas que devem 38
O século XIX foi impulsionado pela
partir sempre da “formulação de chamada Segunda Revolução Industrial
problemas históricos, para serem que envolveu uma série de
encaminhados e resolvidos por desenvolvimentos dentro da indústria
intermédio de fontes visuais, química, elétrica, de petróleo e de aço,
associadas a quaisquer outras alem da introdução de navios de aço
movidos a vapor, o desenvolvimento do
divertimento de feira, produto de documento estético, portanto, à
quermese, atrativo somente para os primeira vista, subjetivo. Sua
iletrados, miseráveis, populacho natureza técnica, sua
inculto. Ele era desprezado pelos capacidade de registrar e, hoje
intelectuais e pela elite que se em dia, de criar realidades
proclamava culta, até 1960 os filmes objetivas, encenadas num
eram desprezados também pela outro tempo e espaço,
101
academia, “hoje, o filme tem direito remetem, por outro lado, a
de cidadania, tantos nos arquivos, certo fetiche da objetividade e
quanto nas pesquisas.” (FERRO, realismo, [...] A força das
2010. p. 9). imagens, mesmo quando
puramente ficcionais, tem a
O cinema é agente da História, haja capacidade de criar uma
vista as possibilidades de realidade em si mesma, ainda
compreensão da sociedade que que limitada ao mundo da
produz e recepciona os filmes, no ficção, da fábula encenada e
entendimento das mudanças sociais. filmada. (NAPOLITANO, 2005
Cada época entende de forma p. 237)
diferente o mesmo filme e o que
produz significado para uns, não Por este prisma o cinema é, por
representa nada para outros. A excelência, uma fonte histórica de
leitura histórica do filme e a leitura importância inquestionável na
cinematográfica da História história contemporânea por sua
permitem atingir pontos nem sempre capacidade de atingir a todos, de
claros nas análises históricas. moldar mentalidades, sentimentos e
emoções além de alcançar, com
Na esteira do trabalho de Ferro, grande facilidade, parcelas variadas
surgiram inúmeros outros que de todas as camadas sociais e
discutem as relações entre a história culturais.
e o cinema visto que, o filme,
imagem em movimento, tem o poder São muitas as possibilidades de
de transportar o público para outra interpretação de um filme, como
realidade, por passar a impressão qualquer documento histórico, o
de as imagens terem sido cinema é influenciado pelo seu
capturadas do acontecimento, do tempo, pelo meio onde está inserido,
real. evidenciando a marca de seus
produtores - estes também
Seu caráter ficcional e sua impregnados dos conceitos,
linguagem explicitamente acontecimentos e modo de ver a
artística, por um lado, lhe vida de sua época. Segundo Nova
conferem uma identidade de (1996), a maior parte do conteúdo
de um filme, especialmente os
comerciais, é ditada pelos gostos do
avião, a produção em massa de bens de
público que, por sua vez é
consumo, o enlatamento de comidas,
refrigeração mecânica e outras técnicas influenciado pelo filme, numa
de preservação e a invenção do telefone relação de troca constante. Sendo
eletromagnético, o que permitiu o assim, podemos entender um
desenvolvimento das técnicas cientificas determinado momento através do
da fotografia ao cinema.
que é passado nas narrativas dos acontecimentos. As estratégias
filmes. Complementar a isto é a às quais o Cinema e a História
idéia de Roberto Abdala Junior recorrem, entretanto, exigem
(2006) que diz, que reconheçamos a
especificidade de cada um
História e Cinema apresentam desses discursos. Os
102 o desenrolar de acontecimentos, ao serem
acontecimentos, procurando trabalhados pelo historiador, ao
atribuir coerência e serem objeto da abordagem
inteligibilidade aos processos histórica tornam-se fatos
históricos e/ou aos contextos históricos que, como
no qual eles têm sua origem ou argumenta Paul Veyne, não
estão imbricados; ancoram existem isoladamente, pois os
seus discursos numa acontecimentos têm ligações
“realidade” que se dispõem a objetivas na história (1982, p.
(re) construir. Ao realizarem 30). No caso do cinema, os
essa (re)construção, recorrem acontecimentos (e tampouco
a estratégias discursivas que as imagens) podem ser
pretendem instaurar uma considerados isoladamente.
inteligibilidade às relações Quanto às “ligações objetivas”,
socioculturais, políticas, se não podemos defini-las
econômicas, enfim, às relações propriamente assim, por serem
históricas de toda ordem que obra de ficção, certamente
entram na composição dos devemos reconhecer que
seus discursos e constroem “o também existem nos discursos
mundo como representação”. fílmicos, apesar de resultarem
Noutras palavras, no Cinema e de um processo complexo de
na História existe a criação. Textos fílmicos ou
necessidade de que o históricos, para construírem o
resultado dos seus discursos contexto no qual se desenrola
instaure relações de coerência a “trama”, são obrigados a
entre os acontecimentos e o esclarecer os processos do
contexto sociocultural e qual nascem ou estão inscritos
histórico no qual eles se os acontecimentos. Os
desenrolam, conferindo-lhes contextos construídos por meio
inteligibilidade e desses discursos, nos quais a
verossimilhança – talvez trama do filme ou da história se
menos nos seus discursos e desenrola, compõem uma
mais nas leituras que “rede de acontecimentos, em
pretendem que se faça deles. relação aos quais [aquele
Os discursos de História e acontecimento] vai ganhar um
Cinema, nessa medida, sentido: é a função da narrativa”
estruturam a narrativa (Furet, s/e, p. 82), tanto em
articulando o contexto às história, quanto em cinema. No
relações de interesses e cinema e na história todos os
disputas entre os diversos acontecimentos são passíveis
sujeitos e/ou agentes sociais – de serem abordados nas suas
“escolhidos” – envolvidos nas narrativas, mas seus
tramas que deram origem aos
significados vão depender da história de um vampiro, tornando-o
trama que é foco do seu um ser malévolo e conquistador.
discurso. (ABDALA JUNIOR,
2006). A mudança das características
centrais do personagem - nobreza,
Tendo claro o que se entende por astúcia, sedução - tornaram-se
documento histórico, as mudanças quase um regra geral entre os 103
que permitiram que o filme se escritores posteriores, e Bram
tornasse uma fonte histórica e sua Stoker apenas deu continuidade a
importância como tal, nos propomos esta tendência, incorporando outros
39
a fazer uma rápida análise de detalhes ao mito. No entanto, a
alguns pontos dos filmes que primeira representação fílmica dos
usaremos como fonte de nossa vampiros, feita em Nosferatu (1922)
pesquisa acadêmica. de Friederich Murnau, continuava
fiel a representação antiga do
AS MUITAS FACETAS DO
vampiro: um ser feio, assustador e
VAMPIRO NO CINEMA
estranho, lentamente há uma
A imagem do vampiro, no imaginário mudança até Drácula de Bram
e na literatura européia do século Stoker (1992), de Francis F.
XIX, era de uma criatura repugnante, Coppola que traz uma conexão com
pestilenta, pútrida e fétida. Ele com um personagem histórico para
certeza não seria convidado para justificar a maldade do personagem
entrar numa casa, como rezam e, na outra extremidade os vampiros
muitas lendas acerca dos hábitos belos e sedutores presentes na obra
dos vampiros, e seria mais parecido de Anne Rice, adaptados para o
com a imagem que temos, hoje, de cinema sob o título homônimo de
um zumbi, do que propriamente com Entrevista com o Vampiro (1994)
o charmoso Drácula dos filmes mais produzido por Neil Jordan.
recentes. Procuramos identificar os elementos
Esta imagem do vampiro sedutor, culturais e cinematográficos que
com dentes grandes e poderes levaram a uma mudança tão radical
incríveis, foi criada ao longo dos da figura do vampiro no cinema e
séculos XVIII e XIX, através da compreender os mecanismos
literatura vampírica que virou moda imaginários que levam a esta
na Europa. Como o vampiro tornou- reconstrução de sua imagem, seja
se o personagem principal destas pelas requisições de consumo da
histórias, fazia se necessário torná- indústria cinematográfica, seja pela
lo mais atraente ao leitor. Foi John alteração de seus signos literários
Polidori, em 1819, que escreveu o dentro de uma visão pós-moderna e
primeiro livro completo sobre a crítica dos antigos mitos.

39
Ainda em estágio inicial de pesquisa,
esta análise certamente está incompleta
privilegiando maiores detalhes de
Drácula de Bram Stoker, produzido por
Francis F. Coppola, por estar num
estágio um pouco mais avançado de
trabalho.
figura de Drácula – o que se
perde no filme de Murnau).
Luz-escuridão é um par
antitético que irá caracterizar a
civilização do capital,
principalmente – e literalmente
104 – a partir da II Revolução
Industrial. Mas é importante
salientar que Drácula, ou
Nosferatu, não pertence a um
Conde Orlock, o Vampiro de Nosferatu passado distante, mas sim ao
(1922)
presente estranhado do mundo
Nosferatu, de Murnau, foi produzido burguês. A aparição do
em 1922, no período entre guerras, vampiro na narrativa fantástica
em que a sociedade européia do século XIX, em sua forma
estava se recuperando deste trauma. acabada, tal como apropriada
Segundo Buican (1993, p. 131-133), pela ficção especulativa da era
o filme superou o horror da do imperialismo (com Bram
experiência apavorante da guerra Stoker), parece sugerir que
recente. O personagem, Conde Drácula, ou Nosferatu, é uma
Orlock (Drácula), é uma força criatura da periferia estranhada
sobrenatural contra a qual nenhuma da civilização do capital (o que
barreira ou obstáculo pode. Ele explica o requinte aristocrático
vence a ciência do professor Bulwer do personagem, presente tanto
(Van Helsing),e é inútil tentar na obra de Stoker, quanto no
bloquear seu caminho. Chegando a filme de Murnau). (ALVES,
Winsburg, ele dissemina a peste na 2004).
cidade, e somente a luz do sol é
capaz de destruí-lo - ainda assim
por um descuido, pois ao tentar
atacar Helen (Mina), o vampiro
perde a noção do tempo e é
surpreendido pelo amanhecer. A
dicotomia da luz contra a escuridão,
do bem contra o mal, é evidente.
Em Nosferatu, é, portanto,
O Drácula de Bram Stoker (1992)
muito claro o par antitético luz-
escuridão, onde o primeiro Drácula, dirigido e produzido por
significa civilização e Francis F. Copolla, em 1992 foi
progresso, e o segundo, considerada a versão mais fiel ao
tradição e barbárie (no romance escrito por Bram Stoker em
romance de Stoker está 1897. Isto se deve a narrativa
presente uma série de cinematográfica que manteve os
referências às novas invenções elementos do livro. A história é
da era tecnológica, em contada através dos diários dos
contraste com o horror de uma personagens, em relação à narrativa
era das trevas personificado na do livro, Copolla fez algumas
modificações mantendo o combate Em suas aparições no filme de
entre o bem e o mal. O filme Coppola o conde Drácula tem
começa com a danação de Drácula, sempre sua sombra projetada e esta
que ao retornar da guerra encontra parece ter vida própria se
sua noiva morta. Como ela havia movimentando em direção aos
cometido suicídio por achar que ele objetos e pessoas, esta é uma clara
havia perecido em combate, sua referência ao jogo de luz e sombra
105
alma está condenada a não ter utilizado pelo estilo chamado
40
descanso, segundo a tradição expressionismo alemão em
católica ortodoxa. Drácula se revolta Nosferatu de Murnau.
e enfia a espada na cruz,
amaldiçoando Deus e se
autocondenando às trevas. Para
Buican (1993, p. 142) alterando a
lenda original, Copolla mostra Vlad,
o Empalador (personagem histórico
mencionado por Stoker) como um
homem perseguido pelo destino.
Esta seria uma das muitas À esquerda, a À direita, a sombra
características da pós- modernidade sombra do do vampiro
que se vê no cinema, de acordo vampiro entrando entrando na sala
com Zizek (2009, p. 7-16) é uma no quarto de em Drácula de
humanização do monstro, a procura Ellen (mina) em Bram Stoker
de justificativas para a crueldade na Nosferatu (1922) (1992)
complexidade humana.
Uma outra referência é feita aos
Uma obra cinematográfica é
filmes de western hollywoodianos,
considerada pós-moderna por
estes tinham como fundo moral a
quebrar os valores e as convenções
dominação do oeste dos Estados
da modernidade. São inúmeros os
Unidos, território dos índios nativos.
conceitos utilizados para explicar a
Há aqui uma sutileza de Coppola,
modernidade e a pós-modernidade,
pois os homens civilizados da
sem mencionar a divergência entre
Inglaterra vitoriana, vivendo no
os autores, que não caberiam
período da Revolução Industrial
discutir neste momento. Utilizamos o
estão tentando dominar e extirpar o
conceito de Jullier e Marie (2009, p.
monstro da superstição da Europa
218), para eles o cinema pós-
Oriental e selvagem representado
moderno sabe que tudo já foi dito e
pelo conde Drácula.
que é preciso retomar as velhas
regras e renovar o que pode ser
renovado através das menções e
modificações dos antigos. Além
disto, eles apontam que os filmes 40
Expressionismo: surgido na Alemanha
pós-modernos podem conter uma pós 1ª Guerra, influenciou os filmes de
mescla de gêneros cinematográficos. terror com seu estilo que buscava passar
Estes aspectos são visíveis no filme mal-estar e angústia através do uso de
de Coppola, vamos apontar alguns. sombras exageradas e iluminação de
alto contraste.
Existe uma série de outros pontos
que poderíamos apontar no filme,
como por exemplo, a mescla de
gêneros cinematográficos como
41
romantismo épico ,
42 43 44
expressionismo , terror , western .
106 O filme é considerado tipicamente
Um dos personagens vestido de Caubói, pós-moderno por todos estes
com cavalo e espingarda em Drácula aspectos apresentados.
(1992)

Há também uma homenagem ao


centenário do cinema. O
cinematografo foi exibido em
Londres em 1896 e a cena
demonstra como eram as imagens
do cinema antigo e o som do rolo de
filme. Além disto, Drácula e Mina
têm como pano de fundo a exibição Os vampiros em Entrevista com Vampiro
do “Trem deixando a estação” filme (1994)
feito pelos irmãos Lumière.
No outro extremo das mudanças da
imagem do vampiro no cinema
temos Entrevista com o vampiro,
dirigido por Neil Jordan em 1994,
que lança uma nova luz sobre o
vampiro tradicional, transformando-o
novamente: ele pode desenvolver
uma estranha paixão por sua vítima.

Drácula e Mina na exibição do 41


cinematógrafo em Londres no filme Direção de arte e figurinos luxuosos,
Drácula (1992) inspirados em obras literárias, mesclam
personagens ficcionais com figuras e
Ainda encontramos outra fatos históricos.
42
homenagem, esta feita ao Surgido na Alemanha pós 1ª Guerra,
lançamento do livro de Bram Stoker, influenciou os filmes de terror com seu
Drácula que foi a inspiração deste e estilo que buscava passar mal-estar e
angústia através do uso de sombras
de muitos outros filmes no cinema.
exageradas e iluminação de alto
contraste.
43
Filmes que trazem à tona os medos e
pesadelos, sendo até metade do século
XX, influenciados pelo expressionismo
alemão e pelo romance gótico.
44
Mostram a civilização do ambiente
selvagem e seus habitantes,
basicamente, como os Estados Unidos
1897- Data do lançamento do livro de
conquistaram o Oeste de seu território.
Bram Stoker
Referências retiradas de Jullier e Marie
(2009).
Louis, o personagem principal, se todo o mundo. (BUICAN, 1993. p.
inspira em outros vampiros e 153).
procura o conhecimento de si e do
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
mundo para se beneficiar, ele é um
vampiro que busca entender que ser Estas breves análises, ainda muito
é, trazendo questionamentos superficiais, demonstram o poder de
existenciais: de onde surgiu, quem
107
adaptação ao mundo e ao momento
foi o primeiro, qual sua função no de que o vampiro é capaz no
mundo, a busca de um sentido para cinema, conectando o mito com a
sua vida; as perguntas típicas do visão esperada pelo público e pela
homem: de onde vim, para onde vou? sociedade onde está inserido. Desta
Ele é atormentado por sua forma compreendemos, novamente,
consciência moral, tendo como pano o papel do cinema como um
de fundo os séculos por que passa, documento, capaz de manifestar os
acompanhando a transformação das valores e visões de uma sociedade.
sociedades e dos costumes até a Vovelle (1987) já identificava a
contemporaneidade, período em possibilidade do cinema ser
que os vampiros são esquecidos, empregado neste sentido,
não causam medo e são relacionando-o como uma forma de
considerados seres míticos e apresentação do imaginário social à
personagens de fábulas. ser decodificado. O cinema traz
Para resgatar sua identidade e mensagens conectadas com os
mostrar sua existência, ele decide sentidos de uma cultura, que se
dar uma entrevista a um jornalista apresentam formalizados num dado
contando sua história, fato este que contexto ou época.
dá nome ao filme. LeCorff (2005) Como possuem a capacidade de
compreende a exposição da figura interagir com as diversas camadas
vampírica como uma metáfora da sociais, o produto cinematográfico
necessidade de exposição do articula - ou precisa articular – um
indivíduo na contemporaneidade, meio de interação que atenda os
meio de auto-afirmação na objetivos de consumo, empregando
sociedade. expedientes de diálogo cultural com
Mantendo, em alguns casos, a sua o público. Compreender estes
aura negra sobrenatural, os modos de perpassar os diversos
vampiros parecem se banalizar, extratos da cultura, entendendo ao
desaparecer na escuridão comum que se destina a produção
dos mortais. Ao invés de um castelo cinematográfica e, por conseguinte,
místico na Transilvânia, se fundem os valores culturais que esta
nas ruas burguesas das grandes apresenta e representa.
cidades, onde muitas vezes são
ignorados. Esta vulgarização dos
vampiros certamente tem relação Fontes:
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109
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