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cigarros na cama

Ricardo Domeneck

cigarros na cama
(e outras banalidades da separação)

modo de usar & co.


2011 © Ricardo Domeneck

foto de capa
Heinz Peter Knes

projeto gráfico
Marília Garcia

revisão
Wilson Reis

impressão e acabamento
Singular Editora e Gráfica Ltda

Lastly, I makest this vouge, that mine eyes


desire thou aboufe all things.
catarina de aragão,
última carta a Henrique viii

onde comprar
Que este amor não me cegue nem me siga.
Livraria Berinjela
Av. Rio Branco, 185 / loja 10 | subsolo hilda hilst
Centro | Rio de Janeiro RJ
tel. 55-21-2215-3528
1.

Sua pressa me legou um maço


de cigarros, com o qual agora
economizo, por vinte e quatro
horas, o preço do próximo.

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2. 3.

É compreensível e até agradeço, Comecei a fumar porque você fuma


pois um adeus longo e eu certamente não queria viver
demais, que porventura dure mais que você. Agora já sem
mais que um segundo, acaba o seu hálito, suas bitucas e cinzas
arrastando-se pela vida toda, na mesma cama, começo o dia
melhor seria não chegar com um cigarro, exatamente
sequer à segunda vogal, e ainda pelo mesmo motivo.
mas que você
desaparecesse
com aquela consoante
linguodental, sim, aquele d,
já que minha língua
de agora em diante
há-de tocar somente
meus próprios dentes.

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4. 5.

Uma amiga impertinente Não sei, querida vaca


me pede, já que eu agora companheira de pasto
estou passando pelo vale e capim pisoteado
da sombra onde a morte por machos, estes bois
vai bege pela passarela, com limiar de atenção
com ombreiras e calças retardada e deficitária,
de cintura alta, que eu qual a imagem mais apta,
diga o que é a tristeza, que analogia eu teceria
que eu a poetize para uso para esta tristeza
comunitário, que eu, ora, banalíssima, talvez
entretenha, a única seja
feito um mico-leão bege, a confissão do fato
a ela e a meus outros cinco de por dias não mais
leitores com malabarismos poder masturbar-me
de vocabulário qualquer. com a imaginação,
mas tão-somente
com a memória
do que já não pode
nem há-de repetir-se.

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6. 7.

Fumo na banheira Fumo contra o vento,


mas, com o cinzeiro como se o mundo
esquecido no quarto, oferecesse ajuda
bato as cinzas na água para socar toda
mesmo, pensando a nicotina possível
que é simples mais rápido
e é apropriado, nos meus pulmões
como se eu estivesse a caminho da falência
me banhando nas águas com este meu sangue
do Ganges acelerado.
e os restos queimados
de mortos passassem,
descendo a correnteza
deste rio que confesso
mal saber onde
desemboca.

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8. 9.

Fumar e fumar de manhã Esperei por você no café


até a véspera do vômito português para nossa última
e só então sentir-se conversa, queria estar lendo
completamente desperto. e fumando
quando você chegasse,
com tranquilidade fingida
e estudada. Seu atraso
custou-me quatro cigarros
consecutivos, o que, segundo
as estatísticas,
significa 44 minutos menos
de expectativa
de vida. Unidos aos seus quinze
minutos de atraso, digamos
uma hora a menos no mundo.
Perda nenhuma. O vento
me descabelava
e eu lutava bravamente
contra mais esta desordem.
Você
chegou, obviamente,
no intervalo
entre o quarto e o quinto.

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10. 11.

Eu escrevo nesta língua Nunca entendi os que respondem


conhecida como a Última Flor à hipócrita pergunta habitual
da Irrelevância, do como-se-vai e como-se-está
esta que você jamais dignou-se positivamente, mas adicionando
a aprender a inútil e redundante expressão
para ler aquele desperdício “na medida do possível”,
de poemas dedicados a vossa senhoria, perguntando-me sempre
o que por fim talvez venha provar-se se são amantes do pleonasmo
azar seu, quando não puder defender-se ou da tautologia.
do meu desejo de insultos, que cedo ou tarde
me sobrevirá como uma grande devastação.

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12. 13.

Fumando na chuva, Contra todos fui vingativo, contra meus pais,


curvado e ainda mais corcunda, meus irmãos, contra outros ex
preferindo proteger o cigarro, e, no entanto, até o presente momento
não a nuca. não desejei sua morte uma única vez,
me contentei com a imaginação
do meu próprio velório, com você
contudo na sala, inconsolável.

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14. 15.

Confesso momentos de fraqueza Você mora na Berlim Ocidental,


em que tive outras fantasias, eu na Oriental, mas o Muro
como aquela em que me via caiu já há duas décadas. O que antes
como um Neo-Terminator era o motivo único
voltando ao passado, a meados para minhas visitas a seu hemisfério
da década de 1980, para a degola torna-se agora
da mãe deste meu substituto um novo Muro
em sua cama, com um pequeno imaginário,
e desdobrável canivete suíço, de um lado o seu território,
sussurrando em seu ouvido: do outro o meu habitat,
“não através do fruto e, como sempre, acabo
do teu ventre” do lado onde mais uma vez tudo
é oferto e gratuito mas indesejado,
onde o que a população quer
é fugir para o outro lado,
onde a sua população preza
a liberdade individual das carreiras
solo e acumula
para si o que poderia, talvez,
quiçá num mundo apaixonado,
ser compartilhado,
comum.

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16. 17.

Os pés fabulosos sobre os quais você Passo a fumar à francesa


se equilibra, sob os quais meus pulmões segundo a sua descrição
inflam, desinflam e nomenclatura: com o cigarro
sob o peso de sua massa imaginada na mão direita
e o ingerir da fumaça. levo-o ao canto esquerdo da boca,
O monóxido de carbono deixo os dedos levemente abertos
há-de provar-se com o cigarro nos lábios
mais honesto, entre o indicador e o dedo médio,
numa relação mais clara fazendo côncavas as bochechas
de desejo por meu corpo. com a inspiração do fumo,
mas talvez eu esteja apenas
imitando-o agora à distância.

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18. e logo quando estão começando
a tornar-se ligeiramente
interessantes, levemente
De agora em diante, apenas
estimulantes para o seu cérebro
contemporâneos exatos
cheio de cicatrizes, tais moçoilos
ou sobreviventes, nunca
chegam com as frases feitas
mais estes rapazes mal saídos
de um famoso discurso,
do cueiro e da província,
aquele que é tradicionalmente
que nem capazes são
intitulado “Vamos Ser Amigos”
de se expressar em orações
na literatura secular
subordinadas. Com sorte,
dos breakups.
quando você os encontra,
Amigos? Criatura,
já conseguem conversar
o que você
em sentenças completas,
poderia me dizer que eu
em geral longas apenas
já não saiba, que eu já não tenha
se os salva a conjunção e.
pensado em sentenças e proposições
Você
muitíssimo mais elaboradas?
os ensina a comunicar-se
Tudo isso pensa o poeta
à mesa dos jantares
com um cigarro na mão esquerda
com mais de um interlocutor,
e a foto de um moço na direita,
paralelos e simultâneos,
chorando como uma solteirona
sem que eles percam o fio
recalcada, uma criança mimada
de suas meadas e miados;
que houvesse ouvido o advérbio
apresenta-os a Margo Channing
“não” pela primeira vez.
e Eve Harrington; explica
a diferença
entre o pound inglês
e o Pound americano
ou os momentos em que os dentes
devem ser cobertos pelos lábios

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19. 20.

Saiba que ainda não Na rua, empertigo-me todo,


escutei, uma vez sequer, alinho omoplatas e ombros,
a canção “Bizarre Love os cabelos bem penteados,
Triangle”. as roupas novas e limpas,
pois, de cada janela
de bonde ou ônibus,
talvez seus olhos.

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21. 22.

Não se preocupe. Quando nos encontrarmos Pobre Bolena,


os três por azar que por fim também pagou
numa esquina ou clube ou buraco preço tão alto
qualquer nesta cidade das crateras, não pelos apetites
entrarei nem em módulo Bette Davis de Eros, o insaciável.
nem no módulo Barba Azul,
hei-de me comportar como um cavalheiro,
que também sei ser, moço, feito um cavaleiro
versado
no Roman de la Rose,
mas não duvide que por dentro
estarei como a verdadeira encarnação
contemporânea de Catarina de Aragão,
ainda que saiba não estar escrito
que viverei para ver rolar a cabeça
desta nova Ana Bolena.

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23. 24.

Moço, você Hoje, na cafeteria próxima


não percebe ao ponto de ônibus
que só eu onde você dispensou meus serviços,
possuo o Mapa na companhia leal de meus Gauloises
que o conduz e de uma xícara gigante de café,
ao Pays de Tendre? sentindo-me já ridículo suficiente
por ter acordado com a vontade urgente
de ler Sylvia Plath, um clown!, sim, um clown
parou diante de minha mesa
para fazer gracejos. Minha vida agora
é um filme ruim.

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25. 26.

Estes cães, estes pardais, estas crianças loiras Como cantou certo bardo canadense,
competindo com meus cigarros de sexo obviamente feminino,
por oxigênio. Quando enfim foi como um soco no focinho
hão-de extinguir-se a rapidez com que fui substituído.
estas malditas abelhas?

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27. 28.

Acordo de novo Os amigos sugerem passatempos


com a briga do casal vizinho. e festas, acquaintance com anatomias
Num misto inéditas, corpos novos. Como? Quem
de generosidade e ironia se compara aos seus côncavos
talvez cruel, começo e convexos?
a tocar em alto volume Por ora, moço,
a ária da Carmen de Bizet. você ainda defeca
Preferiria esmurrar a parede, ouro.
gritando para o prédio
todo, como eles, “tolos,
não apressem
o inevitável.”

Berlim, de maio a julho de 2011

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sobre o autor

Ricardo Domeneck nasceu em Bebedouro, em 1977.


Ainda não morreu. Viveu em São Paulo, onde não con-
cluiu o curso de filosofia da usp. Foi membro do Grupo
de Pesquisa Obara, trabalhando com as técnicas do co-
reógrafo mineiro Klauss Vianna, grupo que mais tarde
prepararia um espetáculo baseado em seus poemas.
Publicou as coletâneas Carta aos anfíbios (2005), a ca-
dela sem Logos (2007), Sons: Arranjo: Garganta (2009)
e as plaquetas When they spoke I / confused cortex / for
context (2006) e Corpos e palanques (2009). É coeditor
das revistas Modo de Usar & Co. e Hilda. Trabalha com
vídeo e a fronteira textual entre o vocal e o escrito. Vive
desde 2002 em Berlim, Alemanha.

bibliografia
Poesia
Carta aos anfíbios. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005.
When they spoke I / confused cortex / for context. Londres:
Kute Bash Books & Pablo Internacional Magazine, 2006.
a cadela sem Logos. SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2007.
Corpos e palanques. São Paulo: Dulcineia Catadora, 2009.
Sons: Arranjo: Garganta. SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2009.
Cigarros na cama. Rio de Janeiro: Berinjela/Modo de Usar
& Co., 2011.
Editoria Antologias
Modo de Usar & Co. 1. Rio de Janeiro: Berinjela, 2007. Argentina
Modo de Usar & Co. 2. Rio de Janeiro: Berinjela, 2009. Cuatro Poetas Recientes de Brasil. Tradução de Cristian De
Modo de Usar & Co. 3. Rio de Janeiro: Berinjela, 2011. Nápoli. Buenos Aires: Black & Vermelho, 2006.

Videografia Alemanha
Garganta com texto, 3:20 min, dv pal, Berlim, 2006. Überland und Leuchtende Städte – 12 Dichterinnen und Di-
Epic Glottis, 4:16 min, dv pal, Berlim, 2006. chter aus Lateinamerika. Tradução de Odile Kennel. Berlim:
4’33” of Eugen’s Presence, 4:33 min, dv pal, Berlim, 2006. SuKulTur, 2006.
In Tension of Context, 10:28 min, dv pal, Berlim, 2007. Versschmuggel / Contrabando de versos. Tradução de Sabine
Pequeno estudo sobre os ciúmes, 0:25 min, dv pal, Berlim, Scho. Heidelberg: Wunderhorn / Lisboa: Sextante / SP: Edi-
2007. tora 34, 2009.
Portraits/Retratos, 16:38 min, loop, dv pal, Berlim, 2007.
Potlatch, 4:59 min, dv pal, Berlim, 2007. Eslovênia
Hap, 1:13, dv pal, Berlim, 2008. Dnevi poezije in vina. Tradução de Barbara Juršic. Ljubljana:
Date of manufacture (com Uli Buder e Julian Greif), 1:00, dv Študentska založba, 2009.
pal, Berlim, 2009.
The Gräfenberg Spot of Language Art, 0:37 min, Berlim, 2010. Espanha
Eustachian Tube in Staccato (com Joseph Ashworth), 4:53 Transferència Poética: 4 Poetes Berlinesos. Tradução de Joan-
min, dv pal, Berlim, 2010. -Marc Joval. Barcelona: Projectes Poètics Sense Títol, 2007.
The poor poet (after Carl Spitzweg), 3:03 min, dv pal, Berlim, “Ocho poetas brasileños”. Tradução de Aníbal Cristobo, in
2010. Quimera: Revista de literatura, n. 284-285. Madri, 2007.
Entrañas de las Soledades, 5:00 min, dv pal, Berlim, 2011.
Estados Unidos
Crítica Poetry Annual – Brazil Issue. Tradução de Charles A. Perro-
“Ideologia da percepção”, in Inimigo Rumor no 18. SP/RJ: ne. Miami: Tigertail, 2008.
CosacNaify/7Letras, 2006.
“Tropical Punk or Banana Dada”, in Tropical Punk, ed. Bru- Portugal
no Verner e Eliete Mejorado. Londres: Whitechapel Gallery, A poesia andando: Treze poetas no Brasil. Org. Marília Gar-
julho de 2007. cia e Valeska de Aguirre. Lisboa: Cotovia, 2008.
De figurinos possíveis em um cenário em construção. RJ: Be-
rinjela/ Modo de Usar & Co., 2007.
cigarros na cama
foi impresso sobre
pólen bold 90 g/m2(miolo)
e cartão supremo 250 g/m2 (capa)
na singular gráfica e editora ltda
no dia 13 de setembro de 2011
para a modo de usar & co.

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