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6 editorial

Sob o sol da manhã


A paulista Lúcia Hiratsu- que são os livros infantis, se-
ka é mais que uma escritora e Lúcia Hiratsuka pinta não universos lúdicos, ima-
ilustradora de livros infantis. ginários, plenos de poesia,
Neta de imigrantes japone-
e conta histórias como frutos da inteligente e sensí-
ses que vieram para o Brasil uma criança que vel costura de imagens e pa-
no início do século vinte, ela lavras sobre papel.
faz parte, a um só tempo, da jamais saiu da roda; Lúcia Hiratsuka é uma
história do Japão e do nosso ilustradora e escritora das
país, assim como da história
nunca abriu mão mais premiadas do Brasil.
da literatura infantil japone- do universo mágico Fiquemos em dois exemplos:
sa e brasileira. Histórias tecidas em seda (Cor-
A arte de Lúcia Hiratsu- da infância, embora tez, 2007) recebeu o Prêmio
ka parece, toda ela, seguir “Melhor Livro”, na catego-
os conceitos elementares da
a vida, ao mesmo ria de Reconto, em 2008, e
tradicional técnica de pin- tempo trágica e bela, Orie (Pequena Zahar, 2014),
tura sumiê: simplicidade, “Melhor Livro” na categoria
naturalidade, simbolização. seja reverenciada Criança, ambos pela FNLIJ.
Até mesmo as ilustrações Levamos em conta essas
em cores da artista, em ou-
sutilmente em tudo credenciais, ao decidirmos
tras técnicas, talvez, trazem que faz. homenagear Lúcia Hiratsu-
essa leveza e essa busca ka, nesta edição. Agradece-
pela essência daquilo que mos à autora pela valiosa
se narra ou se retrata. contribuição que vem dan-
Lúcia Hiratsuka pinta e tudo que faz, como convém do à literatura infantil, e à
conta histórias como uma às obras de arte destinadas professora Neide Medeiros
criança que jamais saiu da ao público infantil. Santos pelo texto primoroso
roda; nunca abriu mão do Na verdade, os livros de sobre essa importante au-
universo mágico da infân- Lúcia Hiratsuka são os ehons tora, gentilmente cedido a
cia, embora a vida, ao mes- de sua pátria ancestral, pala- este suplemento.
mo tempo trágica e bela, seja vra que fascina por remeter a
reverenciada sutilmente em um mundo de fantasia - e o O Editor

6 índice

, 4 @ 7 2 21 D 25
infantil LIVROS poesia CRÔNICA E CONTO
A professora Neide Linaldo Guedes, Carlos Os poetas José Edmilson Sandra Raquew, José
Medeiros Santos Alberto Azevedo, João Rodrigues, Cláudio Caitano, Jesuíno André,
apresenta vida e Batista de Brito, Gil Limeira e Irani Medeiros Raquel Naveira, Leonardo
obra da escritora e Messias, Alberto Bresciani participam desta edição Paiva, Willy Nascimento e
ilustradora paulista e Ronaldo Cagiano com dez poemas Luiz Augusto Paiva são os
Lúcia Hiratsuka. comentam as novidades. inéditos. destaques desta edição.

O Correio das Artes é um suplemento mensal do jornal A UNIÃO e não pode ser vendido separadamente.

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editor.correiodasartes@gmail.com Murillo Padilha Paulo Sérgio de Azevedo
http://www.auniao.pb.gov.br Câmara Neto
fotos: reprodução internet

6 autores

Lúcia
Hiratsuka
e a valorização
da cultura
japonesa
Lúcia Hiratsuka é neta de japoneses
que vieram para o Brasil nas
primeiras décadas de século XX

Neide Medeiros Santos


Especial para o Correio das Artes

A
história da migração japonesa no Brasil come- no Brasil, os descendentes de japone-
ça com a primeira leva de japoneses que apor- ses preservaram heranças culturais
taram no porto de Santos, litoral paulista, em que se traduzem no cuidado com as
junho de 1908, no navio Kasato Maru. Este ano crianças, no apego ao trabalho como
completou 110 anos da vinda dos japoneses. valor supremo da sobrevivência e no
Nessa primeira leva, chegaram 781 japoneses respeito aos anciãos. Tudo isso se re-
que formavam 158 famílias. Aqui eles se acli- flete numa das características mar-
mataram e trouxeram, entre outras habilidades, cantes da colônia: o baixo índice de
o fácil manejo com a agricultura. Há destaque infrações às leis.
também para o lado artístico e literário. Tomie
Ohtake é um bom exemplo da contribuição Lúcia Hiratsuka é neta de ja-
nipônica nas artes plásticas e Nempuku Sato poneses que vieram para o Brasil
tornou-se o principal representante do haicai nas primeiras décadas de século
no Brasil. Atualmente, há inúmeros poetas bra- XX. Os avós chegaram em 1925,
sileiros que escrevem poemas seguindo essa no porto de Santos. Inicialmente
modalidade poética. a família foi morar no sítio Asa-
Os japoneses valorizam muito as heranças hi, interior de São Paulo. Asahi
culturais do seu povo, o cuidado com as crian- significa “sol da manhã”. Foi nes-
ças e o respeito aos mais velhos. Geraldo Has- se sítio que Lúcia nasceu. Entrou
se, no artigo “A saga japonesa no Brasil”, pu- na escola com sete anos, em casa
blicado na revista Globo Rural (junho de 2018), só falava japonês com os pais e
afirmou com muita propriedade: avós. Quando contava dez anos,
a família se mudou para Duarti-
Na migração intermitente para um ou outro lugar na, considerada a capital da seda.
Alguns anos mais tarde transfe-
riu-se para a cidade de São Paulo
onde cursou o ensino médio e
depois Belas Artes. c

Desenho simples, natural e


simbólico: três referências que
Hiratsuka herdou do sumiê

4 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


c Em 1988, diplomada em Ar- -se Otsú e passou a morar defi-
tes, viajou para o Japão. Durante nitivamente na casa de Yosaku,
um ano fez curso de aperfeiçoa- estavam muito felizes vivendo
mento em ilustração de livros juntos e resolveram se casar. A
infantis na Universidade de mulher era exímia na arte de te-
Fukuoka. Atualmente, além de cer e começou a produzir tecidos
escritora e ilustradora, é profes- maravilhosos que Yosaku vendia
sora de Artes. nas feiras. O ato de tecer passa a
No site da escritora, encon- ser motivo condutor do conto. Ao
tram-se informações sobre como lado da gratidão surge ambição e
aprendeu a ler. O avô foi seu curiosidade e o conto termina de
primeiro professor. Os livros forma melancólica.
que havia na casa eram, em sua O segundo, “Hachikazuki”, é
maioria, escritos em japonês, ha- a história de uma forte ligação
via também os “ehons” (livros entre mãe e filha. No leito de
japoneses ilustrados). Sobre os morte, a mãe chama a filha e põe
“ehons”, a escritora publicou no um hachi (que é uma espécie de
portal NippoBrasil o texto “Ehon vaso) na sua cabeça como se fos-
- a arte de narrar com imagens” e Histórias tecidas em seda (Cortez, se um chapéu. Esse vaso parece
explica, com detalhes, o que eles 2007) recebeu o Prêmio “Melhor um incômodo, mas é uma espé-
representam: Livro”, na categoria de Reconto, pela cie de arma protetora. Durante
FNLIJ, em 2008
muito tempo ela terá que convi-
Dentro de um ehon, a ilustração ver com o hachi sobre sua cabe-
não é uma imagem isolada, ela dialo- ça. Esse conto segue um ritual de
ga com as palavras (lembrando sem- tidade. Histórias tecidas em seda iniciação, muito caminhos serão
pre que preciso ter um bom roteiro, foi lançado no Rio de Janeiro, no percorridos até a moça atingir a
um bom texto) e dialoga com as ou- Salão de Livros Infantis em 2008 maioridade, livrar-se do hachi e
tras imagens que se seguem. A fluên- e nesse mesmo ano em João Pes- encontrar a felicidade.
cia da narrativa, o ritmo, ou seja, a soa, na Feira Japonesa que acon- O último, “Tanabata”, é con-
montagem do todo se torna essencial. teceu no Espaço Cultural. siderado uma lenda e tem sua
O título do livro Histórias teci- origem na China. É a história
E prossegue mais adiante: “... das em seda condiz com a própria de uma “tennin”, um ser divino,
podemos afirmar que um ehon é tessitura verbal dos contos e com celestial, que mora acima das nu-
uma expressão artística que tem a leveza e transparência das ilus- vens e que se apaixona por um
como suporte o objeto livro”. Foi, trações. Os contos, na pena ver- ser humano (um rapaz). Este con-
portanto, olhando com o avô es- sátil da autora e na companhia to liga-se a festa que acontece to-
ses livros ilustrados que a autora de seu pincel mágico, adquirem dos os anos no dia 7 de julho, no
criou o gosto pela ilustração. independência e vida própria. É Japão – a festa de Tanabata. Nes-
Além desse avô, professor das composto de três contos: “O pás- sa data, as ruas e praças ficam
primeiras letras e, indiretamen- saro do poente”, “Hachikazuki” e enfeitadas com ramos de bambu
te, responsável por sua inclina- “Tanabata”. Na última página do para comemorar o Festival das
ção para as artes, a avó merece livro, o leitor encontra informa- Estrelas. É o dia do encontro de
um destaque especial. Era uma ções sobre as histórias e um pe- uma tennin com o seu amado.
excelente contadora de histórias queno glossário com explicações Os três contos apresentam
reais e ficcionais. Certa vez, a a respeito das palavras em japo- uma linguagem poética e musi-
neta perguntou à avó se ela gos- nês que aparecem nos contos. cal. As ilustrações são leves como
taria de retornar ao Japão, e ou- O primeiro, “O pássaro do a seda, ricas em transparências
viu essa resposta: “Acho que não poente”, apresenta uma história e de grande beleza cromática.
vou reconhecer mais o lugar que que se passa no inverno. Nesse Existe um diálogo perfeito entre
eu nasci, fica na minha memória, período, impera a neve no Japão. o texto verbal e o pictórico, acres-
continua do jeitinho que eu nas- Yosaku, o protagonista, é um jo- cido de referências à música e à
ci. Será um eterno furusato.” Fu- vem camponês que certa manhã poesia. Linguagem poética, pin-
rusato é a terra natal em japonês. de inverno encontra uma cego- tura e música trilham o mesmo
Feitas essas considerações ini- nha ferida na asa por uma flecha, caminho. A beleza desses contos
ciais, nosso olhar se volta para recolhe a ave e trata carinhosa- pode ser associada à “Sonata ao
dois livros de Lúcia Hiratsuka mente do ferimento. Os olhos luar”, de Beethoven. Um quadro
que ganharam inúmeros prê- da cegonha demonstravam pro- de Nakajima, o pintor do vento,
mios no Brasil. Histórias tecidas funda gratidão. Depois de recu- completaria o cenário.
em seda (Cortez, 2007) recebeu o perada, alçou voo e desapareceu Após a leitura do livro surge a
Prêmio “Melhor Livro”, na ca- atrás das montanhas. Certo dia pergunta; o que é mais bonito –
tegoria de Reconto, pela FNLIJ, ele ouviu uma batida na porta, o texto verbal ou as ilustrações?
em 2008, e Orie (Pequena Zahar, foi atender, era uma moça de qui- A resposta é difícil. É realmente
2014), “Melhor Livro” na catego- mono branco que pedia abrigo uma tessitura perfeita entre a lin-
ria Criança por essa mesma en- por uma noite. A moça chamava- guagem verbal e a pictórica. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 5


c Seguindo o mesmo percur- a olhar livros ilustrados. Hoje
so de valorização de memórias ela tenta recriar lugares mágicos
ligadas às suas raízes étnicas, através das palavras, dos dese-
Lúcia Hiratsuka escreveu e ilus- nhos, da técnica do sumiê, e es-
trou Orie (Pequena Zahar, 2014), creve livros cheios de sutilezas e
utilizando papel craft, o carvão de elementos simbólicos.
e pastel seco. Este livro teve o O universo de livros infantis
mesmo destino de Memórias te- de Lúcia Hiratsuka é bem vasto,
cidas em seda, recebeu o Prêmio todos os anos a autora publica
de Melhor Livro para Crianças cerca de dois ou três livros, re-
da FNLIJ, em 2014, e constou do Orie (Pequena Zahar, 2014), também correndo sempre à temática que
catálogo da Feira de Bolonha no recebeu o Prêmio “Melhor Livro”, na conduz à terra de seus antepas-
mesmo ano. Recebeu, ainda, o categoria Criança, pela FNLIJ sados. A memória, a biografia e
Prêmio Monteiro Lobato da Re- autobiografia podem gerar bo-
vista Crescer, em 2015, e foi con- nitos textos, o essencial é saber
siderado o Melhor Livro Infantil captar com poeticidade as mar-
do Ano pela mesma revista. quer, mas que deixou profundas cas do passado.
O título do livro é uma home- marcas na menina que via na- Em 2018, a escritora publicou
nagem à avó da escritora, Orie, quele rio um lugar de sonho e Chão de peixes, um livro de poe-
grande contadora de histórias devaneio. O rio japonês não é o sia (haicais), com belas ilustra-
japonesas e se reporta aos acon- mesmo de Cecília Meireles, mas ções em sumiê. Neste livro, a
tecimentos vivenciados por essa guarda afinidades poéticas. autora retoma, mais uma vez,
avó querida que povoou a infân- Sobre Orie, a escritora es- uma de suas temáticas recorren-
cia da menina Lúcia com lendas creveu um bonito texto que tes – a memória.
e contos. Nesse livro, não faltam fala, de forma muito carinho- A avó é sempre a fonte de ins-
fatos ligados à cultura japonesa e sa, daquela avó que povoou a piração para seus textos narrati-
à vida de sua família. imaginação da neta com belas vos ou poéticos. E vem esta reve-
A história se passa no Japão historias japonesas. O registro lação - quando era bem pequena,
no tempo em que os barqueiros dessas palavras se encontra na a avó rabiscou um peixinho no
camponeses navegavam pelos última página do livro Orie: chão da terra do quintal, Lúcia
rios para vender suas merca- gostou tanto do desenho que
dorias nas feiras das cidades. A Orie foi uma avó muito querida. nunca mais parou de desenhar.
viagem de barco era marcada por Ela gostava de contar suas lembran- Já foram muitos livros escritos
surpresas, imprevistos e alegria, ças de quando criança, as viagens de e ilustrados que receberam prê-
principalmente para a menini- barco com os pais, as pequenas ale- mios importantes no Brasil e no
nha (Orie) que estava descobrin- grias e também as tristezas. Que en- exterior.
do o mundo. O barco tem a força canto saber que meus bisavós foram Os poemas de Chão de peixes
simbólica de um ninho aconche- barqueiros! Eu adorava ouvir essa estão ligados intrinsecamente
gante. Veja-se esta passagem: história. Orie saiu do Japão e chegou ao quintal da casa do sítio Asa-
“O barco parecia um ninho. Pai, ao Brasil perto dos vinte anos. Mas o hi, interior de São Paulo, lugar
mãe, Orie que nem passarinho”. seu furusato (terra natal) continua- de nascimento de Lúcia e onde
“O tempo passa e passa...” va na sua memória do jeitinho que passou parte de sua infância.
A menina cresce, seus passos havia deixado. Orie dizia que isso Tudo remete a esse passado
crescem também. Orie se torna lhe dava forças para enfrentar qual- que deixou muitas saudades e
uma mocinha e uma nova vida quer dificuldade. boas lembranças.
a espera. A memória afetiva de Há muita coisa guardada nos
Orie remete a um lugar repleto Os livros de Lúcia Hiratsuka livros dessa escritora/ilustradora
de carinho e de aconchego. O rio trazem a marca da simplicida- para ser desvendada. A história
tão frio, tão bom, tão sombrio, de e se caracterizam por grande dos japoneses que vieram para
para lembrar versos de Cecília beleza literária e pictórica, mui- o Brasil está sendo contada em
Meireles, ficou para longe, ficou tos desses livros são ilustrados conta-gotas. É preciso conhecer
no país do sol nascente. Um rio, com a técnica do sumiê. Sobre a um pouco mais da literatura de
sempre um rio, acompanha a pintura em sumiê, ela afirmou: quem sabe reunir com mestria
vida dos habitantes, tanto nas “A prática do sumiê e do haicai artística a linguagem verbal e a
pequenas como nas grandes ci- me levaram a buscar o simples pictórica.I
dades. Por mais insignificantes e o essencial.”.
que sejam os rios têm suas his- Com a avó, que viveu 104 anos,
tórias e seus encantos. Está pre- a escritora aprendeu, entre mui- Neide Medeiros Santos é professora
sente na lírica dos poetas e de tas outras coisas, que “furusato” é e crítica literária, tem livros e artigos
escritores de várias nações. onde a gente nasce. Mas, também, publicados na área de leitura e de
Em que parte do Japão estaria literatura infantil, é colunista do
é o lugar aonde vamos em pensa- jornal Contraponto e leitora votante
localizado o rio que os pais de mento, quando estamos tristes da Fundação Nacional do Livro
Orie navegavam? Não impor- ou felizes. Com o avô, aprendeu Infantil e Juvenil. Mora em João
ta. Era um rio como outro qual- Pessoa (PB).

6 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 livros se o poeta quisesse dar a nós, lei-
tores, a resposta para tudo que se
desenrolará nas páginas do livro.
E aí, das vísceras da lavoura, sur-
ge Antônio Lavrador, fadado a

A saga
ser enterrado numa cova rasa, a
ter o corpo tombado por qualquer
tocaia com o aval latifundiário,
como diz o poema. Afinal, desse
lado do Equador a morte é impos-
ta ao camponês e os corpos ficam
de um povo insepultos à beira de estrada.
Essa sina não é de agora. Vem
que não desde quando a chegada intem-
pestiva das primeiras caravelas,
se cansa de ser alerta o poeta. Até mesmo em pe-

épico
quenas províncias, como a Baía
de Acaîutibiró, que depois se tor-
naria Baía da Traição, após san-
grento conflito entre os portugue-
ses e os potiguaras, para findar
na Capitania da Parahyba. Tudo
Linaldo Guedes
linaldo.guedes@gmail.com narrado na obra de Políbio, com
ritmo, com fôlego, com lamento.
Como um interstício até a volta
da saga camponesa. Até o retorno

P
olíbio Alves é um autor premiado nacionalmente, traduzido dos encarapuçados que rondam e
em países como França e Cuba, numa trajetória ímpar que não metralham lavouras:
faz concessões a igrejinhas literárias. No mais das vezes, busca
manter sua própria coerência literária, sem abrir mão de suas Das capitanias
convicções. Sem abrir mão de seu talento, acrescentaria. Silen- Hereditárias
ciosamente, vem construindo uma trajetória poética com pon- à historiografia
tos altos, acima da média, a exemplo de Varadouro e Exercício da Reforma Agrária,
lúdico. Agora ele chega com o primeiro livro da Editora Arri- nosso solo permanece espólio
baçã, intitulado Acendedor de relâmpagos. do investidor estrangeiro.
É um livro épico, como épica tem sido a poesia de Políbio
Alves. A saga de Antônio Lavrador, do camponês, a saga de Os “Prenúncios”, na segunda
nossa gente, de nosso país, sempre a ser explorado pelo que parte da saga, anunciam os acon-
vem de fora. Uma narrativa de fôlego que traz de volta o Polí- tecimentos tristes que virão. É
bio de Varadouro, num texto lírico, mas também forte, explícito, “sob o relicário do sertão/ exter-
dolorido. Não poderia ser diferente em um livro que começa mínio e sagração”. Neste roteiro,
com uma epígrafe de Derek Walcott, poeta das Antilhas, Prê- sobram emboscadas, florescem a
mio Nobel de Literatura de 1992, autor de Omeros, um dos mais embolia agrária, a morte bruta,
belos poemas de todos os tempos. “Isso era história. Eu não dores que nem mesmo quando a
tinha poder para mudá-la. E, no entanto, ainda sentia que isso lavoura é farta se ameniza. Até
já havia acontecido antes”, diz a epígrafe. porque a partilha com o feitor
E é isso que o leitor entende. O narrado nas páginas de Acen- continua, a tessitura das oligar-
dedor de relâmpagos já havia acontecido antes e nem temos espe- quias é mantida e verdejam tam-
rança de que não acontecerá mais. Essa impressão é reforçada a bém os astutos, os tributos.
partir, também, da original seção de epígrafes da obra. Com tre- “Quíron”, a terceira parte da
chos de livros e obras de autores obra, busca trazer uma resposta,
como Castro Alves, Eduardo se não pela lógica, mas pela pa-
Fotos: edson matos

Galeano, Darcy Ribeiro, James lavra, pela poética. Neste senti-


Joyce, José Saramago, Eugênio do, o poema “Amanhecência” é
Políbio Alves Montale, Júlio Cortázar, Federi- síntese da força, da importância,
é o primeiro co García Lorca, Karl Marx, Ar- da grandeza épica de Antônio
autor
thur Rimbaud, Oswald de An- Lavrador. Para Políbio Alves, “o
lançado pela
Arribaçã drade, Jorge Amado e Raduan poeta resgata o pré (texto)/ da im-
Nassar, entre outros. Revolucio- pactante idiossincrasia/ sobre o
nários da linguagem e da forma inusitado da poesia”. Que a poe-
de pensar o mundo, a socieda- sia de Políbio nos salve e acenda
de, o homem, sobretudo. os relâmpagos da indiferença
Acendedor de relâmpagos co- humana à sagas como a narrada
meça com um “Oráculo”, como nesta necessária obra. I

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 7


6 livros

Arqueologia central de A pré-história da mente.


Partindo da explosão criativa
no Paleolítico Superior - Idade da
Pedra Lascada (35.000 a 12.000

das origens
anos), explicaremos o que foi, de
fato, o Big Bang das origens do
universo da cultura humana.

da arte Big Bang da


cultura humana:
as origens da
arte
Sabemos que um dos momen-
Carlos Alberto Azevedo
Especial para o Correio das Artes tos decisivos da pré-história foi a
transição do Paleolítico Médio ao
Superior. Nesse cenário apareceu
o Homo sapiens sapiens. Há uns
Para Carlos Filho, Ingo e Andreas 40.000 anos aproximadamente.
Assim, então, todo cenário

S
teven Mithen, um arqueólogo inglês, escreveu um estava bastante propício para a
dos livros de arqueologia mais significativos dos úl- explosão cultural. Segundo Mi-
timos anos do século XX, intitulado A pré-história da then e outros cientistas cogniti-
mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciên- vos é exatamente no Paleolítico
cia (1996), que se tornou um clássico da literatura ar- Superior que eclodiu o Big Bang
queológica, ao lado da trilogia de Gordon Childe: O da cultura humana - uma ver-
que aconteceu na história (1960), Evolução social (1962) e dadeira explosão cultural. Data
Evolução cultural do homem (1966). em que apareceram maravilho-
Segundo o antropólogo Walter Neves, no prefácio à sas pinturas rupestres e objetos
edição brasileira (2002) de A pré-história da mente, Mi- de arte.
then, tem desde sempre, se caracterizado pela inova- Mas o que caracterizou o Big
ção ao abordar temas candentes do processo evolutivo Bang foi a fluidez cognitiva do
humano, ou da organização social das sociedades que Homo sapiens sapiens. Sem dúvi-
nos precederam, lançando mão, sempre que possível, da, ele estava apto para assumir
da teoria da cognição (Mithen, 2002: 10). vários processos cognitivos si-
O que se pretende, neste texto, é realizar uma leitu- multaneamente.
ra das ideias de Mithen sobre as origens da arte - tema Além disso, a conexão entre
os processos cognitivos possi-
bilitou uma “vida interior” rica
e cheia de significados - dando
assim margem para produzir
uma abundante documentação
gráfica, como salientou Mithen.
Altamira, Lascaux e Chauvet,
Fotos: reprodução internet

“onde em 1994 se descobriram


imaculadamente preservadas, as
mais antigas e belas pinturas ru-
pestres do mundo”. Estas caver-
nas são “arquivos” vivos da arte
rupestre do Paleolítico Superior.
Steven Mithen enumera os
processos cognitivos que foram
responsáveis para a produção da
arte no Paleolítico Superior:
Os três processos comunica- c

8 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


Nota-se claramente a presença
forte da escritura vitalista do
Paleolítico Superior em Altami-
ra e, porque não, também em
Chauvet, ver o filme A caverna
dos sonhos esquecidos (Cave of
forgotten dreams, 2010), do ci-
neasta alemão Werner Herzog.
Assim como também a escri-
tura geométrica do Neolítico na
Pedra Lavrada de Ingá, na Pa-
raíba. Toda a escritura da pré-
-história tem um sentido simbó-
lico (Childe, 1966 e Mithen, 2002).
Até hoje não foi possível revelar
todos os significados profundos
da arte rupestre (ver Paulo Seda:
A questão das interpretações em arte
c tivos cruciais para a produção rupestre, 1997).
da arte - a concepção mental de Baseado nas ideias de Steven
uma imagem, a comunicação in- Mithen, desenvolvemos o mapa-
tencional e a atribuição de signi- -escritura (ver Azevedo: A es-
ficado - estavam todos presentes critura Neolítica da Pedra do Ingá,
na mente humana arcaica. Foram 2008). Para nós, o mapa-escritura
encontrados, respectivamente, (painel rupestre) demarca o terri-
no domínio da inteligência téc- tório X - ele tem, a nosso ver, um
nica, social e naturalista. Mas a sentido simbólico (código) e está
criação e o uso de símbolos vi- sempre cercado de poder mágico
suais impõe que eles funcionem (escritura sagrada?).
“juntos harmonicamente”. Isso O monumento lítico de Ingá
exigiu “ligações entre domínios”. é um mapa-escritura (Azevedo,
E o resultado disso seria a explo- 2008) no qual, provavelmente, es-
são cultural (Mithen, 2002: 262). tão implícitos o território (mun-
Acima, representação do), os mitos (feitos heroicos) e
Mithen esclareceu bem a de um bisão na Caverna parte do universo/firmamento
questão: de Altamira, Espanha, (sóis, estrelas, constelações e co-
na qual se encontra um metas). Trata-se da representação
Observamos realmente uma dos conjuntos pictóricos
explosão cultural começando há mais importantes da Pré- do mundo, ou seja, a visão do
40.000 anos na Europa, com a História. Abaixo, Steven mundo dos povos neolíticos que
produção dos primeiros traba- Mithen, arqueólogo inglês se estabeleceram na área. Tradu-
lhos artísticos, e eu sugeriria que ziram e demarcaram o mundo
isso pode ser explicado por no- deles em linguagem geométrica
vas conexões entre os domínios (Azevedo, 2008).
das inteligências técnicas, social De fato, o Homo estheticus da
e naturalista. Os três processos gravadas, as pinturas rupestres pré-história, graças a uma cogni-

...
cognitivos antes isolados, ago- também parecem ter sido usa- ção avançada, nos deu “o testemu-
ra funcionavam juntos criando das para armazenar informações nho de seu próprio mistério”…
o novo processo cognitivo que sobre o mundo natural, ou pelo
podemos chamar de simbolis- menos para facilitar a lembrança
mo visual, ou simplesmente arte dessas informações ao agirem Um traço de cor apenas suge-
(Mithen, 2002: 262). como dispositivos mnemônicos. rido, o corpo de um animal gra-
De fato, essas pinturas foram vado na rocha… O homem co-
Arte e escritura: enigmas descritas como “enciclopédia tri- meça a realizar gestos inéditos,
Em um dos tópicos de A pré- bal” por John Pfeiffer (1982). Eu como que para dar testemunho
-história da mente, Mithen se re- mesmo sugeri que grande parte do seu próprio mistério.
fere “A arte como informação das imagens de animais dessa André Langaney: A infância da
armazenada”. Muitas vezes, diz arte serve para trazer de volta arte, 2002 I
Mithen “não há diferença entre à memória informações sobre o
uma peça de arte e um instru- mundo natural que se encontram Carlos Alberto Azevedo é
mento. A placa de osso gravada, armazenados na mente (Mithen, antropólogo e escritor. Sócio efetivo
da Garganta de Taï (França) é um 2002: 275). do Instituto Histórico e Geográfico
exemplo disso” (Mithen, 2002: Concordamos plenamente Paraibano (IHGP). Trabalha no
Instituto do Patrimônio Histórico
275). Afirma Mithen: com Mithen, pois a pré-histó- e Artístico do Estado da Paraíba
Assim como as peças de osso ria é, de certa forma, escritura. (Iphaep). Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 9


6 imagens amadas
João Batista de Brito
brito.joaobatista@gmail.com

Sem cinema,
,

você não lê W. J. Solha

C
rítico literário relapso, só agora de Prócula, naquele gap em que
leio Relato de Prócula, romance nada sabemos da vida de Jesus,
do nosso W. J. Solha, publicado ele teria estado o tempo todo en-
em 2009 pela Editora A Girafa tre os romanos... e se romaniza-
e ganhador do prêmio João Fa- do, depois disso traindo a raça ju-
gundes de Menezes, da União dia com um discurso pró-Roma.
Brasileira de Escritores, setor A tese implícita é esta, mas,
Rio de Janeiro. para usufruir do romance, você
Antes tarde que nunca. Que não precisa acreditar nela. Nem
aventura extraordinária meter- deixar de acreditar, se for o
-se nessas páginas cheias de eru- caso. Sem dúvida, estamos até
dição, raciocínios engenhosos e certo ponto diante de um ensaio
belas imagens, e viver o drama ficcional, ou uma ficção ensaís-
foto: antônio david desse padre paraibano que tenta tica, o que dá no mesmo, mas
suicídio depois de haver desem- onde a grade conceitual está tão
penhado o papel de Pilatos, em amarrada às estruturas narrati-
encenação pública da peça Auto vas, actanciais e semióticas, que
de Deus em João Pessoa. fica difícil a distinção de gênero.
Nascido de um estupro, hoje Ainda bem.
herdeiro da fazenda Mundo Para o leitor paraibano, que
Novo, nos arredores de Pombal, porventura conheça a trajetória
interior da Paraíba, o padre é artística de Solha, um aspecto
rico, bonitão, mulherengo, ex- curioso no romance é a sua re-
tremamente culto e... cinéfilo. lação com a realidade em torno.
(Chego já aí). Muitos dos personagens são verí-
O que teria levado o padre à dicos (muitos dos “extras” são ci-
tentativa de suicídio? A narrativa tados pelos nomes, como William
vai e vem em torno da pergun- Costa, Roseli Garcia, Marcus Vi-
ta. Aparentemente, no instante lar) ou parcialmente transmuda-
da peça em que se depara com o dos para funcionarem dentro do
rosto em close do enredo – caso certamente do Pa-
filho de Nazaré, dre Martinho Lutero Libório.
teria lhe caído o Os cenários são conhecidos
W. J. Solha tem
intimidade com o
insight que vem (Pombal, João Pessoa) e muitos
cinema - é cinéfilo do relato da es- dos fatos narrados de fato acon-
e ator - e sua prosa posa do perso- teceram, como – um exemplo
e poesia trazem nagem que inter- chave – a produção do filme O
muitos elementos
da linguagem
preta – Prócula. salário da morte (1970), dirigido
cinematográfica Segundo o relato por Linduarte Noronha e copro- c

10 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 imagens amadas

c duzido pelo próprio Solha, no uma vez como no cinema, no


livro chamado de Rubens Ben- reino da paralepse.
tacur. Aliás, se Bentacur é iden- Bem, se fosse citar exemplos
tificável a Solha, cabe dizer que da qualidade cinematográfica de
praticamente todos os persona- Relato de Prócula acho que teria
gens do livro têm uma faceta do que transcrever suas 204 pági-
seu autor, este, uma espécie de nas. Mais prático e mais lógico é
Zelig às avessas. remeter o leitor deste comentário
Mas, atenção, não percamos ao livro, com os votos certeiros
tempo com o elemento biográfi- de feliz leitura.
co, pois Relato de Prócula não foi Dessa leitura fará parte a
escrito apenas para o leitor pa- apreciação da capa do livro.
raibano. O livro foi escrito para Condizente com a visualidade
o mundo e tem a dimensão do prevalecente lá dentro, nela vê-
mundo. No futuro, que uma Crí- -se, supostamente, o rosto do
tica Genética corra atrás de sua Padre Martinho no papel de
“produção” e dela arranque reve- Pôncio Pilatos, naquele momen-
lações surpreendentes – este não to terrível em que, assombrado,
é o meu propósito aqui. descobre a verdade sobre o Na-
A mim, chamou-me atenção Solha lançou o zareno. A rigor, quem conhece a
o lado cinematográfico do livro. romance Relato de trajetória do autor do livro, sabe
Prócula em 2009,
Para começar com o mais óbvio, pela Editora A Girafa
que, na verdade, se trata de um
a diegese: depois da tentativa detalhe do magnífico painel sha-
de suicídio, depressão e dias no kespeariano que Solha, o pintor,
hospital, onde é que vamos en- doou à UFPB, e que lá se encon-
contrar o nosso protagonista, o tra em permanente exposição. O
Padre Martinho? Por acaso per- detalhe, se não me engano, é do
dido no meio da aridez da caa- rosto, igualmente assombrado,
tinga, lamentando a insanidade de Coriolanus.
do gesto cometido? Que nada! não é isso que pesa tanto: pesa Mas antes de fechar este co-
Para surpresa do leitor, vamos a estrutura mesma do romance, mentário: referi-me acima a So-
encontrá-lo em pleno programa que faz a leitura toda funcionar lha como um Zelig às avessas. De
de Jô Soares, sendo entrevistado, como o acompanhamento de fato, os seus personagens quase
e a propósito de quê? Sim, de ci- uma projeção. todos roubam seus traços e, por
nema. Feito um Ivan Cineminha, Em que pese o lado conceitual, exemplo, são, exatamente como
o padre dá um show de cinefilia ensaístico, do relato, as cenas são ele, extremamente cultos. Com
que deixa todo mundo boquia- construídas com ênfase no vi- relativa frequência, suas falas
berto. Dele já sabíamos possuir sual, e se combinam como mon- sofisticadas derivam para longas
uma verdadeira cinemateca em tagem fílmica, esta quase sempre enumerações eruditas, um item
casa, mas o show televisivo... feita a partir de um corte brusco citado atrás do outro, como uma
Só não tem tanta surpresa com (no livro, o espaço em branco en- lista engendrada por um especia-
a cena o leitor que percebeu a tre parágrafos ou textos inteiros) lista. Embora essas longas listas
qualidade cinemática do livro em que, como é comum ocorrer num de itens alheios ao contexto da
sua inteireza, qualidade cinemá- filme, separa momentos bem di- diegese funcionem geralmente
tica que não é só diegética, mas versos na narrativa e/ou no cená- como dado argumentativo para
estrutural. Como nos diz um dos rio. Isto, claro, sem quebrar o flu- uma ideia que o personagem, ou
personagens, ao mesmo tempo xo narrativo que, sem ser linear, o narrador, defende, tais excessos
verídico e ficcional, Dr. Atêncio: é, contudo, coeso. de erudição podem se tornar in-
“Nós falamos de filmes... e fico Outro elemento cinemático cômodos para o leitor apressado,
pensando no quanto já temos do está na focalização. Como no ou, se for o caso, podem mesmo
cinema entre nós, nessa maravi- cinema, os pontos de vista nar- soar inverossímeis.
lha que é a mente”. rativos são múltiplos e, como no Mas quem se importa? Isto é
Tantas são as referências do cinema, se misturam. Os pontos Solha no seu melhor estilo e – por
diálogo, ou dos relatos, ao mun- de vista limitados (os dos perso- isso mesmo – brilhante. A vonta-
do do cinema que quase não se nagens) convivem com o ponto de é de aplaudir. I
vira uma página sem se deparar de vista onisciente (em princípio,
com uma delas – muitas servin- o de Rubens Bentacur) e, mais
do para a construção dos perso- que isso, se confundem, ao nível João Batista de Brito é escritor e
nagens, destacando característi- de suscitar uma indistinção. Em crítico de cinema e literatura. Mora
cas, reações ou motivações. Mas outras palavras, estamos, mais em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 11


autores

Foto: antônio David


6

Hildeberto Barbosa Filho (esq.)


e José Nunes apresentam seus
novos livros na Academia

Hildeberto
Paraibana de Letras

de Zé Nunes
Francisco Gil Messias “personagem em processo”, é
Especial para o Correio das Artes evidente que o trabalho biográ-
fico de Nunes é apenas um co-
meço, aguardando posterior en-
riquecimento e uma finalização

A
verdadeira consagração de um autor se revela quando, futura que esperamos demore
ao lado das obras produzidas por ele, surgem aque- muito. Enquanto isso, com o
las produzidas sobre ele. É o que começa a acontecer, passar do tempo e com as novas
merecidamente, com nosso conterrâneo Hildeberto obras e vivências de Hildeberto,
Barbosa Filho, poeta e crítico literário, recentemente sua biografia irá se expandindo
contemplado com o ensaio biográfico O poeta entre a a cada dia, trazendo novos de-
serra e o mar, de José Nunes, pela Editora Ideia. Pode-se safios ao próprio José Nunes e
afirmar que com isso assistimos ao começo da poste- certamente a outros biógrafos
ridade do escritor de Aroeiras, a Comarca das Pedras que haverão de surgir no rasto
tantas vezes cantada em prosa e verso pelo filho ilus- do ensaio inaugural.
tre que nunca a esqueceu. Desbravar a vida de Hildeber-
Diz-se que cada biógrafo constrói, como uma escul- to é antes de tudo adentrar a geo-
tura, seu biografado particular. É certo. E tanto é as- grafia de Aroeiras, sua terra-mãe,
sim que nenhuma biografia é igual a outra, pois cada seu “condado mítico”, com sua
uma traz o olhar e o sentir pessoais de quem escreve, paisagem aparentemente áspera,
destacando alguns aspectos e atenuando outros da de pedra, cuja beleza guarda-se
vida do biografado e interpretando fatos e situações especialmente para aqueles que,
a partir de sua própria visão de mundo e das coisas. nativos, sabem descobri-la amo-
Por isso, é justo dizer-se que o ensaio de José Nunes rosamente na solidão fecunda
ora publicado nos revela o seu Hildeberto individual, de seus descampados e serras.
ou, para usar a saborosa linguagem do interior, o Hil- Parafraseando Drummond, que
deberto de Zé Nunes, como certamente seria dito, com dizia que era de ferro no poema
muita graça, no Cariri de Aroeiras. “Confidência do Itabirano”, Hil-
Estando Hildeberto ainda em plena pujança cria- deberto poderia perfeitamente
dora, sendo portanto o que poder-se-ia chamar de escrever versos como “Alguns c

12 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


c anos vivi em Aroeiras. / Prin- seguiu inicialmente para Cam- riódicas, salutares e inspiradoras
cipalmente nasci em Aroeiras./ pina Grande, com suas frias noi- homenagens a Baco, nos bares
Por isso sou triste, orgulhoso; tes acariciadoras, onde fez o gi- de sua eleição e com os amigos
de pedra./ Noventa por cento de násio e o clássico, e depois para escolhidos a dedo. Foi sempre e
pedra nas calçadas./Oitenta por João Pessoa, com seus tépidos continua sendo essencialmente
cento de pedra nas almas./ E esse ventos marinhos, onde se gra- um professor, homem de sala de
alheamento do que na vida é po- duou, casou-se e fincou as raízes aula, um acadêmico a quem nun-
rosidade e comunicação.”. Sim, existenciais e profissionais da ca seduziram as efêmeras e esté-
porque Hildeberto tem muito maturidade. reis sinecuras da Academia nem
do poeta mineiro, não só em sua A propósito, a já longa rela- cargos burocráticos de qualquer
poética, mas principalmente na ção de Hildeberto com a Capital espécie. É homem de sua casa,
personalidade reservada (e até das Acácias constitui hoje um de sua vasta e protegida livra-
arredia) e na maneira de ser e es- aspecto importante de sua expe- ria, deliberadamente distanciado
tar no mundo. Nosso paraibano, riência. E a cidade não somente das intrigas das rodas sociais,
quem o conhece mais de perto o acolheu como transformou-o acadêmicas e políticas, que sabe
bem o sabe, é homem de grandes em personagem inescapável de eleger com cultivada sabedoria
silêncios, de ensimesmamentos sua paisagem cultural, tal como os seus poucos convivas, apenas
perscrutadores, de uma justifica- foram, à sua época, um Virginius com os critérios da amizade leal
da altivez orgulhosa das origens da Gama e Melo, um Juarez da e da comunhão de sentimentos.
proclamadas e de uma tristeza Gama Batista, um Luiz Augusto Fadado a ser apenas um fazen-
(ou melancolia) que tem muito a Crispim, e como são nos nossos deiro do ar, como Drummond,
ver com a pedregosa comarca, o dias um José Otávio de Arruda terminou vendendo sua parte na
cariri e a caatinga de sua infân- Melo e um Gonzaga Rodrigues, propriedade herdada dos pais na
cia, mas também, como já escre- por exemplo. Pergunto com meus Aroeiras mítica, mas lá tratou de
vi antes, com um natural senti- botões: algum vereador já teve a construir para si um refúgio ru-
do trágico da vida e do mundo, feliz iniciativa de conceder-lhe ral em sítio amorosamente esco-
para usarmos a expressão tão um título de cidadão pessoense? lhido. E foi bom que fosse assim,
cara a Unamuno. Em suma, po- Se ainda não, fica aqui a suges- porque desse modo ele tem moti-
demos dizer que o que Itabira tão, pois que já é mais que tempo vo constante para retornar à sua
foi para Drummond, Aroeiras, desse merecido batismo oficial, Comarca e realimentar-se das
em certa medida, é para Hilde- que honrará tanto a cidade quan- inspirações telúricas que tanto
berto, também ele um “gauche” to o homenageado. enriquecem sua obra.
abençoado por um anjo torto Hoje o mais prolífico autor da Em Aroeiras, ele pode ser cha-
quando nasceu, e aí está todo história de nossas letras, com mado de Hildeberto de Dona
um possível viés interpretati- dezenas de livros publicados, Claudete, sua mãe, ou de Hil-
vo de sua pessoa e de sua obra Hildeberto é a grande e incontor- deberto de seu Hildeberto, seu
(principalmente a poética), a ser nável presença na vida cultural pai. Entretanto, para nós, seus
explorado pelos estudiosos. paraibana. É o contumaz pre- leitores litorâneos, por enquanto
Essa presença decisiva da pai- faciador de livros, o apresenta- ele fica sendo Hildeberto de Zé
sagem da infância em Hildeber- dor de novas obras, seja ao vivo Nunes, seu inspirado biógrafo e
to, ele próprio a confessa quando ou por escrito, o crítico pontual admirador, ao qual nos juntamos
afirma (e seu sensível biógrafo das produções literárias paraiba- todos no justo culto de uma ad-
registra): “Carrego um cariri na nas, o participante informal dos miração que só faz crescer, cada
memória, cultivo um patrimônio eventos culturais de toda espé- vez mais. I
de sol, de pedra e poeira, trilhan- cie, o acatado membro de bancas
do as escarpas sombrias de uma acadêmicas, enfim, aquela espé-
terra árida e adusta que me ha- cie de oráculo de nossa cultura
bita os córregos do sonho e me aldeã e uma referência para além
alimenta a fantasia e a saudade.”. dos muros da província. E é, an-
E poderia ser diferente? Duvido. tes de tudo, um grande e voraz
Salvo se o poeta e crítico fosse leitor, colecionador fetichista de
infiel ao universo do menino que livros, hoje dono cioso de uma
gostaria de chamar-se José e que respeitada biblioteca de dezoito
foi dono do cavalo “Soberano”, mil volumes. Francisco Gil Messias, paraibano de
seu inesquecível e insuspeitado Sempre ao lado de Vera, a João Pessoa, onde reside, é bacharel
professor dos caminhos de seu companheira de toda a vida, em Ciências Jurídicas e Sociais pela
chão natal, ao lado de Dona Zul- um traço marcante de sua indi- Universidade Federal da Paraíba
(UFPB) e mestre em Direito do
mira, a exigente mestra da pri- vidualidade é a fidelidade a si Estado, pela Universidade Federal
meira escola. mesmo, ao Hildeberto da juven- de Santa Catarina (UFSC). É membro
Para sempre marcado com o tude e de sempre, um Hildeber- da Academia Paraibana de Filosofia e
cenário e as lembranças dos pri- to reservado, discreto, avesso às do Instituto de Estudos Kelsenianos.
Publicou os livros Olhares – poemas
meiros anos, o poeta cumpriu o frívolidades mundanas, homem bissextos e A medida do possível (e
inevitável destino dos meninos fiel aos seus valores, simples e outros poemas da Aldeia). Contato:
interioranos de certa condição: sóbrio, sem prejuízo de suas pe- gmessias@reitoria.ufpb.br.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 13


6 clarisser
Analice Pereira
marianalice@hotmail.com

Us
and them
Para Cairé Andrade ros. Como intelectual de seu bum The Wall, Roger Waters
tempo, fez de sua fala, tanto faz de “muros” um tema

H
umanista por excelência, pela literatura, quanto pelas recorrente. Muros em seus
José Saramago se preocu- entrevistas e conferências sentidos literais e, também,
pava com os problemas do que proferiu por esse mundo metafóricos. Muros como
Brasil, não só por comparti- afora, uma voz sobre as mais censura e como proteção,
lhar a mesma língua, admi- complexas questões huma- sem que a segunda elimine
rar nossa literatura e nossa nas. Pensar em Saramago é a primeira ou o contrário (a
música, ou porque a cultura pensar em humanidade num canção “Mother”, por exem-
e a História de seu país estão sentido amplo; é pensar, tam- plo, trata do muro, também
na base da formação do povo bém, em amor pela humani- como forma de proteção),
brasileiro, mas, especialmen- dade. fronteiras imaginárias, fron-
te, pelo afeto que o ligava a Por toda a sua obra, e mais teiras materiais, limites,
nós. E não só a nós brasilei- representativamente no ál- repressões, castrações etc.
Noutras palavras: cercea-
mento da liberdade em seus
mais diversos aspectos. Ao
Fotos: reprodução internet

tratar do tema da liberdade


(e de sua ausência) acessa os
assuntos mais caros ao ser
humano: amor, solidão, per-
da, injustiça, guerra, fascis-
mo. Portanto, numa outra via
e por outro material artísti-
co, diferente de Saramago,
porém num mesmo sentido,
Waters também faz de sua
obra expressão das comple-
xidades humanas. c

José Saramago (esq.) e


Roger Waters: “Duas
mentes e dois corações
voltados para os mesmos
problemas humanos”

14 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 clarisser
c Duas mentes e dois cora- inclusive, da frustração de de repulsa, de respeito e de in-
ções voltados para os mesmos Saramago quanto à recepção tolerância, de gratidão e de má
problemas humanos, e extra- do livro na América Latina e, educação.
polando o círculo social e cul- sobretudo, no Brasil, quando Saramago foi uma criança
tural que os compõe, ou seja, do seu lançamento. O escritor muito pobre, que aprendeu a
voltados para os problemas da esperava uma maior aceitação ler tardiamente. Essa criança
humanidade num sentido mais dos leitores latinos pela prová- se transformou no escritor em
planetário. Dois realizadores de vel identificação com o tema. E, língua portuguesa a receber o
arte em sua função mais genuí- antes mesmo de lançar Ensaio Prêmio Nobel de Literatura, em
na: a função de mostrar as bele- sobre a lucidez, Saramago, jun- 1998. Em As pequenas memórias,
zas humanas, mas, também, os tamente com Sebastião Salga- epigrafou o seguinte: “Deixa-te
seus erros, ou seja, a função de do e Chico Buarque, assinaram levar pela criança que foste”,
protestar. Dois defensores dos Terra, livro sobre trabalhadores referência a’O livro dos conselhos
Direitos Humanos. E, nesse rurais, que reúne mais de cem que, curiosamente, não existe,
ponto específico, Saramago vai fotografias de Sebastião Salga- conforme se soube depois, em
mais à frente, como propositor do, prefácio de José Saramago e um de seus diários, intitulado
da “Carta Universal dos Deve- um CD com quatro canções de Cadernos de Lanzarote IV. Waters
res e Obrigações dos Seres Hu- Chico Buarque. Os três doaram foi uma criança que sonhou,
manos”, documento inspirado os direitos autorais sobre a edi- como toda criança, que teve so-
no discurso em Estocolmo por ção brasileira para o Movimen- nho específico que se repetia:
ocasião do Prêmio Nobel de to dos Trabalhadores Rurais sonhava com um mundo sem
Literatura. Nessa carta, Sara- Sem Terra (MST). muros. De certo que foi isto que
mago apresenta como primeiro Também humanista por exce- o inspirou e o motivou a com-
artigo, a declaração de que to- lência, Roger Waters defende os por The wall, uma de suas obras
das as pessoas têm “o dever de Direitos Humanos quando pro- mais conhecidas e de inegável
cumprir e exigir o cumprimen- testa contra o neofascismo nos qualidade musical e poética.
to dos direitos”. shows que realiza pelo mun- No campo da ficção, mas
Ambos são fontes de ins- do afora. Seu protesto parte de pelo seu caráter verossímil,
piração para refletirmos mais suas próprias canções e se es- imagino possível uma conver-
ampla e profundamente sobre tende para cenas de palco e pro- sa entre Saramago e Waters.
qual é o nosso papel como se- jeções de imagens icônicas e de Porém, no campo da realidade
res humanos num tempo e frases de efeito. Isso porque boa factual, dada a distância em
num espaço dominados por parte de sua obra é dedicada à que viviam, não só geográfica,
ideologias tão adversas. Não só crítica ao fascismo que vitimou mas pela vida de cada um, seus
pelo que canta (um) e escreve seu pai quando Waters ainda propósitos e suas produções
(o outro), mas, também, pelo tinha cinco meses de idade. Em artísticas, por exemplo, talvez
que expressam em suas falas sua última turnê pelo Brasil, Us um soubesse da existência do
e ações, pelo idealismo que os and Them, Waters desagradou outro, talvez se admirassem re-
define. Assim é possível obser- parte do seu público em várias ciprocamente, talvez tivessem
var uma aproximação entre os cidades brasileiras, entre outu- se conhecido pessoalmente (?).
dois: no campo do ativismo em bro e novembro deste ano, por Saramago já não se encontra
defesa dos Direitos Humanos; projetar no telão frases e ex- entre nós. Então, um tanto ino-
na relação que estabeleceram pressões diretamente relaciona- centemente, e inspirada nas
com os problemas do Brasil, das ao contexto brasileiro atual, crianças que ambos dizem ter
cada um a sua maneira. ligando, por exemplo, o tema sido, dou a vez à imaginação
Ensaio sobre a lucidez (2004), do neofascismo, bastante pre- de um maravilhoso encontro
por exemplo, é um romance de sentificado em sua obra, como dos dois numa sala de embar-
José Saramago que questiona a tema que também condiz com que em algum aeroporto, ou
democracia no mundo contem- o Brasil de nossos dias. Numa no hall de algum museu, ou
porâneo. A possível vinculação plateia supostamente dividida durante alguma palestra de
do seu enredo e suas reflexões meio-a-meio, acenderam-se os Noam Chomsky, no ano de
com a situação política do Bra- sentimentos mais adversos de 2018, num breve papo em lín-
sil é inspiradora. Lembro-me, amor e de ódio, de admiração e gua portuguesa.
c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 15


6 clarisser
ilustração: domingos sávio

c – Olá, José. Não sei se você Espalha-se um neofascismo pelo testar pacificamente sob a lei. Eu
sabe quem sou eu. mundo e as pessoas cegamente preferiria não viver sob as regras
– Sei sim. Você é o Roger Wa- aderem a essa ideologia, como se de alguém que acredita que a di-
ters, o músico que abraçou o Bra- não soubessem da existência de tadura militar é uma coisa boa.
sil. Acompanhei as notícias. Hitler e Mussolini, por exemplo. Viver sob a ameaça de ataques
– É justamente sobre o Brasil O que você me diz sobre isto? com armas.
que gostaria de falar com você – Vejo como a possibilidade de – Para mim, Roger, “ameaçar
porque você conhece bem o país, “um governo de cegos a querer com uma arma já é atacar.”
sua cultura, sua língua, seus mo- governar cegos, isto é, o nada a (silêncio)
vimentos sociais. pretender organizar nada.” – Que bom poder tocar suas
– Tenho ligações muito estrei- – Eu sempre espero reações mãos e olhar nos seus olhos. Al-
tas com o Brasil, que transcen- negativas aos meus protestos em guma esperança me resta. Ainda
dem os limites da diplomacia. alguns lugares onde faço shows. não estou cego.
Viajo para o Brasil sempre que Mas confesso que fiquei bastante – Assim estamos, pois, “diante
sou chamado e posso. Tenho chocado com a reação de parte da das adversidades, tanto as prova-
grandes amigos por lá. minha plateia brasileira duran- das quanto as previsíveis, é que
(silêncio) te a turnê que realizei por esses se conhecem os amigos.”
– José, eu lhe vi dali de onde dias.
estava sentado e não resisti. Vim – Repara: “provavelmente nin- OBS: As falas de José Sarama-
até você para saber uma opinião guém terá notado até hoje como go entre aspas são trechos ex-
sua, a partir de um romance que são absolutamente terríveis os traídos do romance Ensaio sobre
você escreveu. gritos dos cegos, parecem eles a cegueira. As de Roger Waters
– Pois sim. que estão a gritar sem saberem são trechos adaptados de seu
– Ensaio sobre a cegueira é um li- porquê, queremos dizer-lhes que discurso durante show realiza-
vro intrigante, pois trata de uma se calem e logo acabamos nós a do em São Paulo, no dia 9 de ou-
situação que, por mais absurda gritar também, só nos falta ser- tubro de 2018. I
que pareça, estamos vivendo. Es- mos cegos, mas o dia lá virá.”
taríamos mesmo cegos? – Não gritei. Mas durante mi-
– Sim, pois compreendo que nha fala, lembrei das ditaduras Analice Pereira é professora de
“a cegueira também é isto, viver latino-americanas. Falei também Língua Portuguesa e Literatura
num mundo onde se tenha acaba- da fama de os brasileiros terem Brasileira do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia
do a esperança”. muito amor no coração e que sou
da Paraíba (IFPB). Escreve sobre
– Não há esperança, porque um defensor dos Direitos Huma- literatura e, vez ou outra, aventura-se
vivemos uma profunda distopia. nos, incluindo o direito de pro- pela ficção. Mora em João Pessoa (PB).

16 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 livros

Doce azedo
ambiente onde a provocação não
pode recair no morno, no mediano.
A reação há de falar à pele, aos ins-
tintos, antes até de chegar à razão.

amaro:
Pois bem. É sedutor o poder de
transmutação da poesia, essa al-
quimia, que transforma a palavra
fria em um prisma de imagens
possíveis para o leitor, para o ou-

gosto em poesia vinte. Essa faísca, que anima ima-


gens e produz as mais fundas rea-
ções em quem as recebe. Um bom
poema se evola do papel e pode
convolar-se em experiência defini-
tiva e inesquecível – por apresen-
Alberto Bresciani tar um universo inédito ou por re-
Especial para o Correio das Artes criar capítulos de vida, encenando
e justificando erros, acertos, queda
e voo do leitor.
O maravilhamento vem do ine-
ditismo das construções, das asso-

E
screver sobre o trabalho de Theo G. Alves pode soar fácil. ciações, tão originais, que somente
Mas não é. Recearia parecer excessivo, a ponto de trazer a ao gênio são possíveis, da delicade-
desconfiança de buscar encobrir obra de qualidade duvido- za tal e tamanha, que logo passa à
sa. Não teria, por outro lado, como restringir-me à discrição, mais rascante brutalidade. Confir-
quando, em Theo, enxergo uma das mais talentosas e sólidas ma-se na criação de estado poético
vozes poéticas da contemporaneidade. E dispenso limitações em quem se depara com o poema
geográficas. Eis aí o embargo quase paralisante. de qualidade, com o poema no qual
A avaliação de um livro, certamente, passa pelo diálogo os sentidos, as coisas, os fatos re-
entre autor, leitor e texto. E, obviamente, evoca todas as cir- cebem nomeação a mais surpreen-
cunstâncias que, do passado ao momento (da criação, para dente, embora não se perca de cada
quem escreve; da apreensão, para quem lê), possam influen- qual a identidade e a consciência.
ciar o produto dessa equação. Quando se trata de poesia, to- São esses os Poetas (com letra
das as coordenadas são postas em realce, porque se está em maiúscula), senhores da lingua-
gem que, sem abandono da técnica,
do ritmo e da música, conseguem
Fotos: divulgação

explodir revoluções em versos –


desde sempre (sente-se, percebe-se,
sabe-se) prontos dentro deles. Vas-
ta, rica é a saga humana que esses
sopradores de divindade revelam.
Liberdade exorbitante gera in-
Theo G. Alves segurança (trago de Bauman esta
reúne 49 poemas advertência). O campo aberto da
em seu novo livro, poesia contemporânea é um desa-
doce azedo amaro fio para o poeta. Impõe-lhe a difi-
(Editora Moinhos, culdade de não tombar nos mode-
Belo Horizonte, 2018)
los mais fáceis, em armadilhas de
comodismo e decalque. A despeito
de a poesia contemporânea aban-
donar escolas, vetores, moldes e
amarras, parece que a iconoclastia,
o emprego de imagens planas, ex-
traídas das nebulosas de informa-
ções que preenchem nosso tempo,
a síntese, o emprestar e o mesclar
do fantástico à realidade são pontos
presentes na melhor produção poé-
tica do pós-modernismo.
A poesia de Theo G. Alves reúne
o que há de mais valioso em tudo o c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 17


c quanto disse. O poeta, nascido em relata ao que se põe como pecado, a hera crescerá como o esquecimen-
1980, em Natal, mas criado em Cur- revela-se no íntimo do homem nu. to salvífico, um dia pode chegar ao
rais Novos, sempre no Rio Grande Yossel toma a palavra como salva- fim e o tempo escorrerá, mas não a
do Norte, professor de literatura, ção. Ovelhas e tigres – lã e dentes – dor que planta no sangue. A insônia
publicou A casa miúda, contos, Loa de convivem no universo de contras- vem imersa em delicadezas e arma-
pedra, Pequeno manual prático de coi- tes que tão bem Theo apreende e da de tenazes.
sas inúteis e A máquina de avessar os imprime (“antes de haver / a poesia Theo recorre ao extremo das
dias, poemas, além de integrar as co- / só / silêncio / e / barulho”). imagens para sugerir o que ape-
letâneas Tamborete e Triacanto. Apre- Não se foge do que, na vida, é nas o leitor poderá afirmar. A
senta-nos, agora, doce azedo amaro. amaro: “sobre a terra / tantas vezes emoção salta dos poemas e, afir-
Ainda escava, neste livro, com pisada / sobre o doce / ainda vivo / mo, cumprirá o que da arte se
determinação e sabedoria, o recôn- das goiabas maduras / em casa / de espera. Estamos diante de poesia
dito. Fala de si, mas descobre e deci- minha avó / sobre o amargo / sem- repleta de inscritos silêncios, mas
fra o mundo com o que há de mais pre sufocante / das rosas em meu que, enganosos, reverberam em
telúrico e com o que há de mais peito”. Rosas e goiabas são, a um só alta vociferação. É assim que as
mágico. Não por acaso, creio, abre a tempo, natureza morta e viva, capa- mais marcantes memórias e expe-
primeira parte do livro, amaro, evo- zes de animar o granito pela poesia. riências abraçarão o leitor.
cando Dom Quixote: explora a dico- Poetas e leitores se traduzem na Em doce, terceira e última parte
tomia que nos enuncia – homens de poesia: “o verbo feito carne / é o cor- da obra, a recorrente imagem da
barro, plenos de falibilidade ou he- po do poeta – / o calvário deste cris- avó faz a anunciação. O lirismo,
róis de mármore, protótipos ideais. to é / seu poema”. O poema passa aqui, não se afoga no corriqueiro,
São pungentes as personagens da amargura ao que é azedo, lirica- no açucarado das abusadas pala-
de Theo. Refletem e oferecem mente Azedo: “o coração / de espuma vras poéticas. Não. Jean Genet e
aprendizado. O Messias parte para tácita e / de bruta pedra fraturada // André Gide se reúnem a Quixote:
o deserto, onde toda intimidade na alma / deste espantalho / senão / “o que há de mais / belo em teu de-
vem à tona. Deus feito homem bus- singelas esperanças / de amor”. senho / dulcineia / são os olhos do
ca, ali, a compreensão e a purga No entanto, o que se ameaça quixote – / a insensatez / do amor /
de seus medos, mas, enquanto ho- acre está pontuado de esperança. O e da esperança”.
mem, continuará fugindo, só e des- poeta tem, como se comprovará, o O belíssimo poema “Canta-
pido. Sim, os cortes estão nos desti- poder de multiplicar sabores e dirá da”, entre os últimos do livro,
nos de todos. Sidarta hesita entre os de amigos de outros tempos que re- reúne as feições que tanto en-
extremos do desejo e do perfume tornam. Nesses poemas, a música, cantam e impressionam na es-
das flores e sabe que a culpa, cor- quem sabe, preencherá o mundo e crita de Theo G. Alves:

Cantada parker adjetivo): sinestesias que tran-


tocada bem alto sitam entre a língua (órgão) e a
– à maneira de ferreira gullar. enquanto se anda pela rua linguagem (instrumento bélico
para tatiana num domingo de de comunicação).
manhã. Sobra o receio de não apre-
você é mais bonita sentar este livro ímpar com a
que uma noite de junho você é mais bonita merecida competência. Melho-
em currais novos. que o sofrimento delicado res vozes extrairão seu amplo
de billie holiday valor. Talvez seja menos de-
mais bonita cantando in my solitude. safiador dizer de poucos cac-
que todas as noites de junho, tos, perdidos na desolação do
aliás. você é infinitamente mais bonita deserto, do que concentrar a
infinitamente mais bonita atenção na multiplicidade de
você é mais bonita que este poema formas, espécies e sons da flo-
que os faróis dos carros e resta tropical. Nesta mesma
à noitinha que as lembranças dos avós diversidade pulsante, que en-
vistos do alto, que já morreram. contro em doce azedo amaro, ao
seguindo em procissão. menos uma pedra está no meu
Com perícia, Theo G. Alves dá cor- caminho e sua mensagem é,
mais bonita até po, em cada poema, à abstração das como de sua essência, maciça e
que os devaneios de dom quixote palavras, revelando seu espectro efe- irrecusável: Theo é Poeta (com
adoecido de amor e loucura. tivamente ilimitado para cada um de letra maiúscula)! I
nós. Reitero: oferece ao leitor, imerso
Alberto Bresciani nasceu no Rio de
você é mais bonita em sensações extremas, na jornada en- Janeiro (RJ), em 4 de julho de 1961, é
que as goiabas maduras tre o amargo e o doce, retorno ou cami- poeta e ministro do Tribunal Superior
e seus perfumes nho para seus próprios erros, acertos, do Trabalho (TST). Como poeta
exigente e autocrítico, lançou os
paradisíacos. quedas e voo. livros Incompleto movimento e Sem
Os limites do cabível para um prefá- passagem para Barcelona. Bresciani
mais bonita é um poeta hermético e cuidadoso,
cio não permitem a análise ideal da arte capaz de dar beleza e profundidade
que a tristeza dos palhaços e da obra deste poeta que, agora, descre- aos seus versos de maneira que se
e ve partes da experiência humana com tornem uma convidativa armadilha
que uma improvisação de charlie gosto (sentido e substantivo; metáfora e aos seus leitores, que devem dedicar-
se aos versos como o poeta o faz.

18 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 livros

Hóspedes
ma o leitor depara-se com uma
arquitetura formal sofisticada e
repleta de imagens e simbolo-
gias. Sua leitura galvaniza tanto
pela temática quanto pelo estilo

do degredo
que funde contenção e densi-
dade, abarcando uma realida-
de que carrega outros dramas
e conflitos íntimos e históricos.
É tão razoável representar uma espécie Um livro metafórico em todos os
de encarceramento por uma outra como sentidos, em que a autora trans-
representar qualquer coisa que realmente põe os domínios do realismo
existe por qualquer coisa que não existe. para instaurar um trânsito de
Daniel Defoe transcendência, onirismo e ma-
gia, ao tomar como pano de fun-
do a fuga de uma personagem
da situação de fome da Irlanda
no início do século 19. Note-se,
Ronaldo Cagiano
Especial para o Correio das Artes ainda, sua destreza em mesclar
realidade e ficção, história e me-
mória, que dão um tom de dra-
ma e denúncia, além do caráter
epopeico (e ao mesmo tempo

E
scritora mineira nascida em Guarani, formada em Le-
epifânico) ao relato.
tras pela UFRJ e radicada em Londres há mais de uma
Acreditando nas promessas
década, para onde foi estudar Shakespeare, Nara Vidal
de um novo eldorado no Brasil,
acaba de publicar Sorte (Editora Moinhos, 2018), uma
o “Hy-Brasil” (aqui representado
pequena obra prima, que emoldura, numa narrativa vi-
por uma ilha movediça e cheia
gorosa e envolvente, o drama do deslocamento e da hu-
de mistérios, que aparece a cada
milhação sofrido pelas mulheres, tão ancestral quanto
sete anos, como se fosse uma pa-
a própria história dos povos. Autora, dentre outros, de
naceia para os sofrimentos), va-
O curioso mundo de Amelie, O arco-íris em preto e branco,
mos encontrar Margareth a fugir
Viajar sem dinheiro & gafes internacionais e A loucura dos
de um destino crucial traçado
outros (Editora Reformatório), criou em Londres o Capi-
desde o ventre. Acossada pela
tolina Books, um projeto vitorioso e vitrine para a nossa
miséria do país, a doença do pai
literatura, que traduz e divulga autores brasileiros na
(um homem castrador, machista
Inglaterra e Europa.
e arrogante) vitimado pelo tifo,
Sorte estrutura-se em capítulos curtos, em cuja tra-
e por uma gravidez, sai da Irlan-
Foto: reprodução internet da em direção ao Rio de Janeiro.
Ao chegar, percebe que foi víti-
ma de mais uma cilada, quando
o estado brasileiro, para atrair
força de trabalho para suas ter-
Em Sorte, Nara Vidal ras numa economia incipiente,
aborda o drama do recebia levas de imigrantes, mas
deslocamento e da
humilhação sofrido estes são tratados como escravos,
pelas mulheres submetidos a outros degredos,
como a opção de serem enviados
os homens para as guerras tra-
vadas no Cone Sul, na época em
que o conflito cisplatino opunha
Brasil e Argentina. A sedução
do estrangeiro para quem fugia
de condições miseráveis em seu
país que vivia a fome da batata,
atrai a família Cunningham, mas
tudo se transformava em degre- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 19


c do e sevícia, diante da ilusão circunstâncias pessoais e histó-
abortada ao chegar à nova terra. ricas, obrigados a viverem seus
Eis uma obra que não minimi- confrontos com o mundo, mas na
za o olhar crítico, mas em clave tentativa de escapar deles, numa
de sutileza poética, sobre a má espécie de Pessach às avessas,
sorte dos que precisam fazer fogem de um cativeiro para cair
uma travessia para fugir ao de- em outra armadilha; vítimas das
serto em que vivem, mas acabam circunstâncias, tornam-se hóspe-
por serem lançados numa outra des compulsórios de um eterno
aridez, além da territorial e geo- degredo, pois substituem uma
gráfica, pois o pior apartheid será experiência existencial devasta-
o sofrimento psicológico e a per- dora e excludente por outra tão
da da identidade. Sorte mapeia aviltante e apartadora, colhidos
esse passivo íntimo que atinge pelo alçapão das instabilidades
tanta gente desde os primórdios políticas e econômicas.
da civilização: deslocamento, Uma narrativa sóbria, elegan-
perdas, solidão, desilusão, guer- te, sem derramamentos, pontua-
ras, fome, doenças, um corolário da por uma história de crueza,
de enfrentamento da opressão mas povoada de sensibilidade e
tanto política quanto religiosa e reflexão, em que tempos cronoló-
moral, onde quer que vivam. gicos e psicológicos são coeren-
Nesse percurso trágico reside temente trabalhados pela autora
um grande simbolismo: a fuga de em simbiótica relação, traçando
Margareth e sua família, vivendo um contundente perfil da vio-
uma outra insularidade, além da lência que se manifesta em todas
pobreza na Irlanda, a material, as geografias e sentidos, confe-
financeira e a afetiva. Pois aí é rindo à novela a expressão de
movida ainda pelo castigo, por libelo.  Sorte, em sua impactante
estar grávida, tendo que aban- e não edulcorada verdade, vem
donar filho tão logo chega ao traçar um roteiro ficcional sobre
Brasil, um desiderato comum a a gênese do nosso processo civi-
tantas mulheres estigmatizadas lizatório, ao tocar em questões
e proscritas pela igreja naque- ligadas à vida, à morte, ao sofri-
les tempos bárbaros de pseudo- mento dos excluídos e à vileza
moralismo e controle rígido dos que afetaram, marcaram e divi-
costumes, quando as freiras são diram uma família pela dester-
agentes que consumam a tortura ritorialidade e pela itinerância.
maior, que é a venda dos bebês. A história culmina num simbó-
A autora trabalha habilidosa- lico e dramático epílogo às mar-
mente a mitologia em torno não gens do mí(s)tico e velho Pomba,
só desses refugiados de um tem- essas águas que atravessam a
po tão distante - mas tão análo- zona da mata de Minas e, que
gos aos sírios de hoje, que sofrem como diria um poema de João
e morrem nas águas do mundo e Cabral, “esse rio/ está na memó-
não sabem o que vão encontrar ria/ como um cão vivo/ dentro
do outro lado - porque são expul- de uma sala.” Na memória fi-
sos de suas terras pelas contin- cam seus personagens e sua luta
gências que os humilham, ame- e errância para fugir à dor e ao
Uma narrativa drontam e apequenam, quando esquecimento, como essa Maria-
os aguardam países e realidades va, escrava que tem seu papel na
sóbria, elegante, movediças e a imprevisibilidade história, como repositório desse
da sorte, apostando na loteria do imaginário e dessa esperança
sem derramamentos, “allea jacta est” da sobrevivên- que nunca se realiza, mas que
cia. Essa travessia do Atlântico, carrega uma dimensão humana
pontuada por uma que durante 36 dias colocará em transcendental. I
risco a vida de Margareth e suas
história de crueza, irmãs Martha e Mary, e tam-
bém seus irmãos, num périplo
angustiante e imprevisível, é o
mas povoada de pano de fundo para um delicado
questionamento sobre o desti-
sensibilidade e no de pessoas e nações que, em
Ronaldo Cagiano é escritor mineiro de
Cataguases, autor de Eles não moram
suas experiências traumáticas, mais aqui (Prêmio Jabuti 2016, de
reflexão. vivem sempre empurrados pelas contos), mora em Portugal.

20 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


P O E S I A

José Edmilson Rodrigues


4 poemas em homenagem ao poeta Alberto da Cunha Melo

Desapartando
Não há parte que não esteja
contigo, que possa o elo
desapartar de qualquer tempo,
abraço de vida e o regresso

da alegria depois do choro:


visão de luz que já penhoro

e após a lágrima, o sorriso


que trilha um céu de paixão,
compreendendo se preciso

entender e amar no silêncio,


teia de vida a que me rendo.

Rugas
Não sorria esperando volta
se há na face uma ranhura,
a lembrança torta, medonha,
de tempo sem iluminura;

Dorian Gray traça e fantasia:


ser jovem sempre dia a dia

e autor de vidas, personagens


e enredos tortos de paixões,
reflexos do espelho, miragens: ilustração: domingos sávio

no caminho a recordação
ludibriando o coração.
Poema cercado
Não se cerque de ígneo poema
nem se feche na vida líquida,
deixe-a passear solta, livre,
caminho afora, distinguida,
Retranca
 
de proa e abato em Baudelaire o assente
Axioma que o tempo empunha: passado e o sentido presente,
não se desmuda uma retranca,
tênue fronteira espaço-tempo, penetro na força madura
campo verde, página branca, do poeta velho que alastra
  fogo entre boêmia e loucura,
na trilha a brasa a vida encurta
e as mãos do sol o verde furta, centelha rasgante do dia,
  poema que a noite alumia.
os olhos cantam... E galopa
o tropel da paixão que faz
José Edmilson Rodrigues nasceu em Campina Grande (PB). É
não saber se venho da popa poeta, ensaísta, memorialista, advogado, mestre em Literatura
  e Interculturalidade (UEPB), membro da Academia de Letras
e se rumo à proa impulsivo: de Campina Grande (ALCG) e sócio efetivo do Instituto
Histórico de Campina Grande (IHCG). É autor de A solidão dos
vem à toa um vento lascivo. olhos e as vertigens do tempo (Poesia, Mondrongo, 2018).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 21


P O E S I A

Cláudio Limeira

Antes da partida (*)


Chega-se a um tempo
em que vamos ficando mais sós.
Os da geração
vão escasseando
como peixes
em rios poluídos.

O luto já não choca tanto:


a morte vai se chegando
macia, despudorada, amiga
sorrateira, libertina, libidinosa
disfarçada em mil caras
já nem se esconde
mas mostra o rosto ostensivo
no enterro dos amigos.

Chega-se a um tempo
em que vamos
nos desamarrando da vida
como um velho navio:
– monstro ferido –
soltando as amarras do cais.

E no último momento
- moritura nave –
anuncia a partida
soltando um uivo
demorado e triste
apito rouco e lancinante
certeza de quem
nunca mais
vai encontrar o mar.

ilustração: domingos sávio

Cláudio Limeira é
professor, poeta e
contista. Editou o
(*) Orlando Tejo, Sônia van Dijck, Ronaldo Monte, Biu Correio das Artes de
Ramos, Lourdinha Luna, partiram quase em sequência. 1997 a 2002. É autor
dos livros Desafio,
Talvez estejam tramando um grande espetáculo para nos
Cãotidiano, Remanso e
receber lá nas quebradas do céu. Velejando - 35 anos de
Este poema é uma homenagem a todos eles que em vida poesia (inédito). Mora em
nos encantaram. João Pessoa (PB).

22 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


P O E S I A

Irani Medeiros
Fértil ilustração: tônio

No sétimo dia
a terra é fértil
em séculos futuros
nascerá outro Ser
redimido das dores do mundo?

Pégasus
Ainda escreverei
os adágios da morte
no lombo de um Pégasus de fogo.
ainda serei um mapa
nas partituras das valas e velas.
ainda serei estátua
no vocábulo dos pássaros
nas brancas manhãs de silêncio.

Galope
Era um galope desesperado
a beira da engenharia do abismo.
Cavalo negro
ferindo desertas planícies
com seu áspero galope
nas ferraduras da intermitência.

Caminhos
Sentado nos vagos
trilhos da vida
busco os caminhos da alma
sonhei altos muros
para fugir do presságio
da última sombra noturna.

Janelas
Os pássaros sonham em mim
janelas coloridas
os pássaros sonham em mim
abstratos canaviais
os pássaros sonham em mim
silenciosos rios
cheias e vazantes
Irani Medeiros é poeta e escritos. Nasceu em Pombal
os pássaros sonham em mim e mora em João Pessoa (PB). Os poemas publicados
manhãs de canto livre. nesta página integram o livro de poesia inédito
Réquiem para pássaros. É autor, entre outros livros,
de Fabião das Queimadas – de vaqueiro a cantador,
Dois cegos cantadores e Todas as ilhas.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 23


6 ponto de vista crítico
Rinaldo de Fernandes
rinaldofernandes@uol.com.br

As passagens
benjaminianas: ,

leituras (final)

C
omentando O camponês de Paris, de Louis Ara- sua cidade – ele é parisiense –,
gon, Vanessa Madrona, no ensaio “A metrópo- vaga por suas ruas com um olhar
le moderna, o olhar surrealista: considerações de outrem, de forasteiro, atento
benjaminianas”, dirá que “no título do roman- à cidade, aos seus monumentos,
ce [...], temos que a palavra camponês remete edifícios, habitantes, ruas, jar-
conceitualmente a condições de sociabilidade dins, parques, não se sujeitando
estabelecidas no campo, portanto, uma per- ao embotamento da percepção
cepção não urbana, cujo ritmo é lento e cons- que acomete os nativos que ad-
tante. No entanto, este será um camponês dife- quirem um olhar que se habitua
rente, pois seu olhar ensimesmado terá diante ao que está diante dos olhos, e,
dos olhos a célere e mutante capital francesa: por isso, deixa de ver critica-
Paris”. Assim, o próprio título do romance mente”. Aragon buscaria a “luz
“nos dá [...] uma pista da operação surrealista: moderna do insólito” que reina
reunir imagens aparentemente díspares em “[...] extravagantemente nessas
uma nova constelação”. Haveria um compo- espécies de galerias cobertas que
nente autobiográfico em O camponês de Paris. são numerosas, em Paris, nos ar-
Cito outra vez Vanessa Madrona: “O camponês redores dos grandes boulevards e
de Paris é o próprio Aragon que, para observar que se chamam, de maneira des-
concertante, de passagens”. Os
surrealistas teriam mesmo essa
foto: reprodução internet

intenção, a de “recolocar no pen-


samento as imagens” (cf. Vanes-
sa Madrona). Melhor dizendo, a
de reunir imagens de “maneira
inaudita”, “a fim de desalojar as
imagens do mundo exterior do
lugar que elas tinham tomado
o hábito de ocupar” (cf. Cassou,
apud Vanessa Madrona). I

Walter Benjamin
(1892-1940) foi Rinaldo de Fernandes
inspirado tanto pelo é escritor, crítico de literatura
marxismo, como e professor da Universidade
misticismo Federal da Paraíba. Mora em
João Pessoa (PB).

24 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 crônica ilustração: domingos sávio

Negrada
Sandra Raquew Azevedo
Especial para o Correio das Artes

E
sse texto estava guardado há quase vinte anos. cena, quando a notícia chegou, nem lembro
Na verdade ele reflete um pouco sobre um epi- como e quem trouxe: mataram Negrada. Seu
sódio que nunca conseguiu sair da cabeça, ou corpo estava na “pedra”. “Ele está no hospital,
ser verbalizado de alguma outra forma. Nos na pedra”. Não sabia o que era isso, não enten-
últimos meses, ao ver inúmeras imagens em dia. Décadas depois fui na “pedra” encontrar
diferentes meios, de pessoas fazendo perfor- alguém muito amada. Mas naquele dia, esse
mances gesticulando armas com as mãos, fui enunciado trouxe a sensação de que tudo ha-
purgando, aos poucos, uma cena que marcou via mudado na atmosfera. Fora o fato de que
na adolescência. Negrada estava na pedra, ninguém mais sabia
Era o ano de 1989, consigo lembrar clara- dizer nada. Dalí em diante tudo foi só silêncio.
mente pelo fato deste ter sido um bom ano Naquele caminho pelas ruas da cidade, só
de chuvas. No Sertão esse é um marcador me vinha a cabeça a imagem do jovem ne-
importante. Nesse dia havia um movimento gro, filho de Dona Inácia, que matriculado
lindo entre as nuvens levadas fortemente pelo em minha escola, era conhecido de muitos.
intenso vento, e por uma aquarela turva a se Era um garoto de olhos vivos, que estava
desenhar no céu. O ar cheirava a terra molha- muito disponível como “garoto de recados”,
da. E era notável o movimento diferente das fazia de um tudo que lhe pedissem. Acho
pessoas nas ruas, tocadas pela alegria ao per- que sua sobrevivência estava ligada a essa
ceber que as águas iriam dentro em pouco cair possibilidade. Ele ficava mais fora do que
dos céus sobre nossas cabeças. dentro da sala de aula. Quando não estava
Estava indo à casa do amigo Eripetson Lu- no Colégio Cepa, podia ser encontrado pe- c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 25


daquela comunidade, de sua
acolhida ao jovem.
De certo modo aquela foi uma
morte silenciada. Ficou em mim
como uma porta entreaberta ao
longo desses quase vinte anos.
Sinto um pouco daquela venta-
nia quando notícias de homicí-
dios de jovens negros são comer-
cializadas nas mídias com um
apelo perverso que há na mone-
tarização das audiências.
Quando mataram a Mariel-
le Franco e o Anderson lembrei
da arma, que empunhada por
alguém, havia tirado a vida da-
quele jovem negro. Mas pensei
que a visibilidade sobre esse fato
haveria de elucidar a questão. O
que não aconteceu até então.
Naquela época eu era muito
jovem, entre 14 e 15 anos ape-
nas. Hoje decidi libertar essa
memória incômoda, diante de
um mal estar presente, causado,
pelas imagens armamentistas
e fálicas. Por vezes penso que
uma arma pode ser a expressão
de um falo frustrado, ora confu-
so consigo mesmo, ou narcisis-
ticamente incapaz de viver fora
do mundo criado pela preva-
lência de seus desejos. Imagino
que esta seja uma questão mais
além, complexa. Talvez seja uma
c las ruas da cidade. Era gaiato e sobreviver nas ruas cravaram expressão do fim daquilo que
sorridente. esses significados em mim. A utopicamente acreditamos ser
Fiquei me perguntando: por chuva ficou em suspenso, restou como “imagem e semelhança de
que mataram Negrada? Quem aquela ventania e as nuvens es- Deus”. Não por acaso o discurso
matou? Essas respostas nunca curas no céu. sobre Deus emerge fortemente
vieram. Aquele dia para mim Algum tempo depois soube caracterizado por uma mitolo-
trouxe uma percepção de som- que Negrada havia sido velado gia antiga que evoca a guerra,
bra profunda que paira em de- num bordel, onde residia uma o poder bélico, a destruição do
terminados eventos. É claro que irmã sua. Quando a informação Outro e o fundamento de um
esse é um entendimento do pre- circulou por correspondência tipo de “Ordem”.
sente. No passado, diante daque- trocada entre amigos, pareceu A morte de Negrada no in-
le acontecimento, parecia que a pitoresca, pelo relato da amiga verno de 1989 foi um rito de
preparação para chover se torna- que morava em Caicó, ao ami- passagem, me tirou um pouco
ra em presságio de dor. Eu não go que residia em Patos. Mas no da ingenuidade que ainda tra-
chorei por ele, mas todas as ve- íntimo achei muito humano, das zia da infância. Ali fui paula-
zes que o céu apresentava algum moças, acolherem o jovem de es- tinamente saindo do “roman-
indício daquele dia de inverno, tatura mediana, corpo um pou- tismo” da vida comunitária
e trazia a memória daquele dia, co robusto e de muita energia. e entrando no entendimento
seja na luz, nas nuvens, ou odor, Eu gostaria muito de ter ido ao do mundo social. Um espanto,
e nos ventos, minhas lágrimas cabaré na ocasião. Fiquei imagi- nada de natural, além da emi-
caiam a conta-gotas. Como se a nando à época, a solidariedade nência de chuva, ali existia.I
sua morte fosse um acontecimen-
to inacabado. Talvez pelo fato de
que nada tenha sido esclarecido.
Nos vestígios desse dia ficou Sandra Raquew Azevêdo é jornalista, escritora e professora de Jornalismo da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). É autora dos livros Comunicação, mídia
a impressão de uma injustiça. e imaginário: diálogos contemporâneos (2017), Assessoria de Comunicação na
Para mim a condição dele de Paraíba (2016), Mulheres em Pauta: gênero e violência na agenda midiática (2011),
jovem negro, pobre e que parte Cartografias: escritos sobre mídia cultura e sociedade (2008) e Gênero, rádio e
de sua vida estava na batalha de educomunicação: caminhos entrelaçados (2005). Mora em João Pessoa (PB).

26 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 crônica

ilustração: tônio

A chibatada
Jesuíno André
Especial para o Correio das Artes

P
obre sofre. E como. Depois que o Todo Poderoso instituiu o livre ar-
bítrio, a ordem do Universo foi alterada. Mas o dilema cristão pouco
vem ao caso. Meu amigo Marques fora criado numa pequena cida-
de próxima da capital. Os cabelos ficaram brancos, mas as lembran-
ças do passado ainda são fortes. Quando fala do pai, então, fica com
o rosto vermelho e os olhos marejados. Orgulho puro.
Seu pai João Grande fora criado na brutalidade disfarçada de
vida. Apesar de sobrenome distinto, nasceu num lar onde o pai mal
sabia ler e a mãe era submissão. Tempos difíceis. Leitura pouca,
emprego nenhum, ganha pão escasso, as dificuldades sobravam. O
consolo vinha do alto na esperança inacabada. Mas a batalha por
aqui forjou o homem fortaleza tal qual seu nome.
Não havia espaço para idiossincrasias. O homem era o suor e era
a palavra acima de tudo. Sendo assim suportou toda forma de in-
fortúnio que sempre sobrepunha às alegrias. As vias eram únicas,
portanto sem floreios. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 27


c Marques cresceu sob essa Zé, sem mesuras, quebrou o tanta força e violência, num
herança, mas obteve oportu- silêncio com a voz embriagada som alto e seco, que arquejou
nidade para ir mais além e se e ordenou: as costas do pobre miserável,
gaba disso. Poucos sobrevivem – Bota uma cana ai pra mim! deixando-a uma lapiada de
a uma sentença tão cruel do João Grande percebeu o es- sangue de cima a baixo. Mar-
destino. As lembranças sau- tado e calmo respondeu: ques chegou na hora testemu-
dosas invadem-lhe a mente. – Aqui não tem cachaça não! nhando a cena. Viu quando foi
Escuto atento as suas histórias E está na hora de você ir embo- desferido o golpe, fazendo na
quase sempre repetidas. Mas ra daqui. hora o farrapo humano mijar e
isso lhe faz bem. – Ir embora?! Eu quero to- defecar nas calças.
João Grande tinha filhos mar uma. Bote uma ai pra No mesmo instante a cacha-
pequenos que precisavam de mim! – quase gritou. ça evaporou, tomou destino,
casa, comida e escola, a essên- – Eu já lhe disse que não tem fazendo aquela carcaça dar um
cia de qualquer futuro. Deste- bebida pra vender! pinote e correr veloz sem espe-
mido nunca baixou a guarda João percebeu o abuso a sua rar o segundo golpe. Nem os
para as adversidades. O seu frente e começou a ficar com dedos inchados pelos bichos-
tamanho, o seu olhar incisivo o rosto vermelho. Era galego -de-pé impediram sua corrida.
e os seus pensamentos deter- branco, alto e bastante forte. Também viu quando o pai
minantes eram como dois im- Seguia todas as obrigações e com o chicote na mão saiu da
ponentes símbolos: escudo e deveres que cabiam em um barraca para perseguir o pobre
espada. E assim venceu algu- homem decente. Tinha bem coitado.
mas batalhas. conservada a moral e o respei- – Venha cá seu filho do cão
Morava numa pequena cida- to pelos valores e convenções que você vai ver quem é o fi-
de pobre, com poucas chances impostas pela sociedade. Era lho-da-puta!
de vida. Ainda assim era vida. exemplar. Marques conseguiu segurar o
Para matar a fome de todos Também era precavido na pai e acalmar sua ira. Foi a única
construiu uma pequena biros- proteção para qualquer esse vez que viu o sujeito por lá.
ca em área afastada. Ali vendia tipo de eventualidade. Até en- Aquele era o lugar onde os
miudezas como biscoitos, bola- tão nunca usara a chibata de fracos não têm vez. I
chas, cigarros, bebidas. Nada um metro e meio que confec-
excepcional. Mas não faltava o cionou entrelaçando fios flexí-
pão nosso de cada dia. veis de arames, cordas e cabo
A tarde caia tranqüila quan- de aço. Estava escondida por
do Zé do Rio, mais melado do trás do balcão ao alcance da
que corda de caranguejo, re- mão.
solveu aportar sentando num O bafo da cachaça exalado
banco de madeira da barraca. da boca de Zé do Rio chegou
O silêncio era total. Nenhuma ao nariz de João Grande, junto
vivalma. No cenário apenas aos ouvidos com o pedido in-
ele e João. Zé era um quase conseqüente e imoral:
mendigo, desses sem história, – Bote uma cachaça pra mim
sem começo, nem meio, muito aí seu filho da puta!!! – disse
menos fim. Parecia ter saído de sob o efeito do álcool e não
alguma página de literatura ou atentou ao risco que corria.
de um personagem bizarro dos Aquilo foi o cúmulo da im-
quadros de Bosch. propriedade, da ofensa sem
Vestido de roupas sujas, chi- perdão, do pecado mortal.
nela de dedo velha, cabeleira e – O que seu miserável?!
barbas desgrenhadas, notada- Atingido no âmago da mo-
mente não era um freqüenta- ral familiar e como um raio po-
dor do recinto. Do outro lado deroso, João segurou no cabo
Jesuino André de Oliveira nasceu
do balcão João Grande, sentado, da chibata, e ainda no balcão, no interior da Bahia e mora em
observava atentamente. O pobre levantou o corpanzil de cem João Pessoa (PB) desde os anos 80.
coitado se aproximou do balcão. quilos, estirou o braço e des- É redator-publicitário, produtor
cultural e editor do podcast MeuSons.
Estava visivelmente bêbado, feriu uma violenta vergastada Não tem livro publicado, Publica
sujo e fedido. Carregava na mão nas costas do infame. suas crônicas nas redes sociais.
direita um caranguejo em esta- – Aaaaaiiiiiiiiii!!!! – o golpe Contato: (83) 99963-6752 / E-mail:
jesuinoo@gmail.com / Instagram:
do pior. Não sabia onde estava. pegou-o de surpresa. @jesuinoaoliveira || Twitter: @
A cachaça tirou-lhe o juízo. A cipoada foi desferida com jesuinoandre.

28 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 crônica lho respondeu com a voz da filha:
“_ Ela é mil vezes mais linda.” A
mãe se enfureceu: “_ Minha fi-
lha tornou-se uma ameaça. Pre-
ciso devorar seu coração, ter um
ilustração: tônio comportamento semelhante ao
dela, competir. O pai sempre foi
um fraco, ambivalente, um sumi-
do no mundo. Não adiantará ela
tentar fugir, penetrar florestas.
Tenho poder sobre ela, reaparece-
rei em sua vida em todas as fases,
em todas as circunstâncias, em
todas as noites de lua, quebrando
caixões de vidro, imobilizando-
-a com cintos apertados de fitas,
cravando pentes pontiagudos e
venenosos em sua cabeça. Ela
é da mesma matéria que eu, do
mesmo sangue, da mesma árvo-
re, da mesma vaidade, da mesma
atração, da mesma fraqueza hu-

Penteadeira
mana. Destruirei sua paz interna,
devastarei, dividirei com ela a
maçã branca e vermelha do dese-
jo maduro até o fim, até calçar sa-
patos de ferro e sair dançando em
direção ao abismo, até o renasci-
Raquel Naveira mento, até nossos ossos virarem
Especial para o Correio das Artes um punhado de cal e neve.”
Sentada no banco de couro
da penteadeira, a filha observa o
espelho numinoso com o terror

R
estaurou a antiga penteadeira, com o espelho de cristal biso-
que inspira o autoconhecimento.
tado e a banqueta de couro, que ficava no quarto dela, a sua
Relembra o nostálgico poema de
mãe. Muitas vezes a filha a viu frente ao espelho, que lhe pa-
Cecília Meireles: “Eu não tinha
recia baço, coberto de pó. A mãe abria potes de cremes, pas-
este rosto de hoje, assim calmo,
sava unguentos, o rosto lambuzado de grumos. Que esperava
triste, magro, nem os olhos tão
encontrar naquelas geleias? Juventude eterna? Mucos verdes
vazios e o lábio amargo. Em que
escorriam em sua pele. Havia frascos de perfume, meio aber-
espelho ficou perdida a minha
tos, violentos, exalando odores fortes em estranha alquimia.
face?” Tantos anos se passaram...
Quando o sol batia na penteadeira, quase na hora do crepús-
Como elaborar um conflito que a
culo, o torpor morno aquecia as essências e a filha tinha von-
consome há séculos? Um dilema
tade de chorar. A mãe fenecia tristemente. Algo acontecera
de mulher? Bem que um duque
no passado dela que a tornara tão vulnerável. Não conseguia
grisalho tentou protegê-la, arran-
envelhecer com graça e se satisfazer com o florescimento da
car em vão de sua boca o pedaço
filha, ao contrário, corroía-se de ciúme e inveja.
da maçã que a sufoca. Ela lhe dis-
A princípio, quando pequena, a filha a considerava uma
se: “_Perdoe-me. Não posso me
rainha, a mulher mais bela do mundo, enquanto a mãe con-
libertar de minha raiz. Agora ve-
firmava seu encanto no espelho mágico da penteadeira. A
mos por esse espelho realidades
mãe ajeitava as mechas louras, passava lápis preto ao redor
invertidas, enigmas, mas um dia
dos olhos claros. Mirava-se de longe e de perto como se o
veremos tudo face a face.”
espelho fosse a superfície da água e ela uma espécie de Nar-
Restaurou a antiga penteadei-
ciso. Sim, Narciso, aquele rapaz da mitologia grega, objeto
ra. Dentro do espelho, um espíri-
da paixão de ninfas e mortais, mas insensível ao amor. Ao
to em forma de máscara, rodeado
abaixar-se numa fonte para saciar a sede, olhou seu refle-
por fumaça e fogo, continua fa-
xo. Ficou seduzido pela própria beleza. Indiferente ao mun-
lando a verdade. I
do, apaixonada por si mesma, a mãe
se inclinava sobre sua imagem com
Raquel Naveira nasceu em Campo Grande (MS), onde reside,
meneios do corpo, projetando para a no dia 23 de setembro de 1957. É escritora, comunicadora,
frente os seios alvos de flor. conferencista, militante cultural, pesquisadora e professora.
O espelho da penteadeira brilhava, Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, entre
quando a mãe perguntou: “_ Minha outras instituições culturais. Escreveu vários livros, entre eles:
Casa de tecla (poemas, Escrituras, 1999, finalistas do Prêmio
filha é mais bonita do que eu?” O espe- Jabuti de Poesia) e Caminhos de bicicleta (crônicas, Miró, 2010).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 29


6 conto

os sávio
o: do ming
ilustraçã

A caneta
Toda essa prosa, inaudível,
fluía numa tarde de outono ma-
gérrimo sob a regência de Mer-
cúrio. O sol, desejoso de deitar,
adormecer noutro lado da eclíp-

deprimida
tica, se recolhia naturalmente.
Poder-se-ia constatar milhares
de folhas de acácia amarelas,
deitadas ao chão, ressecadas,
prontas a decolar no primeiro
assobio do vento.
Diabo! Um campo de concen-
José Caitano de Oliveira
Especial para o Correio das Artes tração? Isso! Porque no tronco
da solidão, engessado, doutor
Gilberto respirava o infortúnio;
contendia consigo, tenazmente.
Seu escritório possuía a mesma

–I
mbecil! mobília, fazia trinta anos: Um
– O quê? Quem me ofende? canapé aveludado, duas poltro-
– Idiota! Pare de fingir. Nossa vida sempre foi uma nas, duas cadeiras, o birô e o
mala de vento. tapete vermelho que, em fase
Como...? Chega! terminal, destacava-se: empres-
Algo estranho mexia-se, involuntariamente... tava ao ambiente aquela apa-
Dentro de um ego infectado. De lá, desse esconde- rência formal dos livros. “Li-
rijo, que está em cima e também embaixo, escorria um vros, livros... droga!”. Em tais
pó escuro, que caía igual à chuva; porém, não molha- ocasiões, Gilberto bisbilhotava
va a terra nem enchiam os rios e lagos. Contudo, aque- a sua consciência; perfurava-
la poeira úmida inundava, transbordava, salpicava de -a; sobretudo quando se achava
lama uma desesperada alma entrevada. Ela se ressen- multiplicado por ininterruptas
tia da má sorte. Deveras. crises de ansiedade. Que não
Nesse silencioso alojamento, hermético, Gilberto única causa, mas decorrente de
ditava, questionava de si mesmo, por meio de diálogo causa primeira: dinheiro.
mudo: protesto invisível. Um como quando a sombra “Maldita Cruz! Nenhum pin-
conversando com uma sósia. go de luz. Meu Deus!” c

30 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


c Sorumbático, ele acompa- imbróglio, como a prematura sol, e, envolto nesse bronze da
nhava a “velocidade” das horas, morte do autor da causa, (José manhã, placidamente sentia a
“saboreando” o cheiro de papeis Belarmino). Porque os honorá- brandura do tempo. Abriu a por-
carcomidos por traças. E repetia: rios seriam pagos conforme o ta, fê-lo desvirginando a solidão
- Que sina! Ultimamente, esqui- contrato; isto é, depois da morte do ambiente. Ali, imobilizado,
vava-se ao olhar para o diploma; do velho (quando fosse aberto se encontrava seu confidente: o
todavia, ao fazê-lo, o bacharel o inventário). Que é de o velho birô. Este conhecia cada palmo
pulava da moldura e atarraxava- morrer? Setenta, setenta e cinco, de lamento, de desespero que
-se em seu rosto amargurado. oitenta anos... perambulava em pensamento do
Aí, proseava com sua imagem Até que, finalmente, o consti- advogado.
refletida no espelho de banheiro; tuinte apiedara-se de Gilberto: Sentou-se, depois trouxe a
arrumando o cabelo, alisando o aparecera-lhe, em sonho, e pedi- lume o último entrevero do-
bigode, espremendo cravos, ar- ra, implorara que lhe fosse reza- méstico; via e revia aquele olhar
rancando fios da sobrancelha. da missa de reparação: houvera fulminante de Janaína. E tudo
Alguém se manifestava: - feito serviço de macumba para acontecera por motivo nem tão
Não desista, não desista! Tudo tirar a vida do pai. banal nem consistente, porém,
vai passar; vai acordar, vai acor- “Ora! ora! ora! Veja o que me recorrente: dívidas. Dívidas de
dar! Tenha fé! sucedeu: A macumba feita por necessidades: água, luz, alu-
Entregava-se à abstração. José Belarmino alojou-se em guel; também por causa daque-
Mas se a crise financeira au- meu escritório. Trabalhar para les filhinhos bastardos, que mo-
mentava, atingindo sua paisa- pobre...” ram no seio da vizinhança, que
gem interior, então, no buraco Contudo, imprescindível per- crescem rápidos e que estão na
caía: a depressão. sistir, acreditar na profissão, padaria, na farmácia, nos bares,
E dizia: “A depressão é o único aceitar sofrer de desdém, assim na consciência do credor, prin-
lugar da vida onde todos os ho- ela lhe tratava, desde sempre. cipalmente.
mens são iguais. Sim. A realida- Afinal, se a vida é junção de im- “Droga! A vida é um caos.
de tingida por idêntica cor.” previsíveis surpresas, guardadas Todo mês se me aparece ela ves-
– Até quando hei de conduzir num saco, neste, quiçá, no fundi- tida de vermelho. Pago contas;
essa cruz? nho, lá estivesse amojada a pe- reabro fiados; consolo meus cre-
Trabalhava muito; muitas e pita que lhe mudaria a feição de dores. Agora, nada mais corrosi-
distintas demandas judiciais, às atribulados dias, ou seja: aquela vo e angustiante do que engolir
quais, convertidas em dinheiro causa afortunada. queixas de Janaína. Ela pisa e re-
(o câmbio, se apresentava des- Lembrava-se de Romualdo, do pisa; reinicia o discurso, depois
favorável): parcos honorários; inventário de gente rica, que mu- silencia. Então, reinicia, quando
capenga. Seria o caso de conju- dara a vida financeira dele. De já não há mais vestígios algum
gar aquele adágio popular: Tra- empréstimo, tomava a sorte do de contender. Desestabiliza o
balhar para pobre, é como pedir colega de profissão. Sonhava... meu fragilizado humor. É igual a
esmola pra dois. Com razão. O sonho é saudá- disco, em qualquer rotação: roda
Como exemplo, um processo vel alimento dos esperançosos! de manhã e na hora de dormir.
de reconhecimento de paterni- Outro caso, se não pitoresco, De tanto rodar, acabo sonhan-
dade – contra ancião - a poucos de mesma linhagem lhe acon- do: “Gilberto, já pagou a conta
passos de alcançar a eternidade. tecera. Foi assim: Chegara cedi- da luz? O que é de seu dinheiro?
Sabe o que aconteceu? Bom; o nho ao escritório, hábito antigo. Gastou no bar de Isaías. Já avisei:
imprevisto causara-lhe “bom” Adorava admirar cintilações do a descarga do banheiro quebrou, c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 31


c faz oito dias. Pare de beber, de caído; ronceiro. Aí, entregou o
trabalhar para pobre. Você é bur- bolo de notas suadas, de vários
ro. Burro! burro! burro!” matizes, ao advogado; depois,
Desolado, mordido por in- se retiraram. O dinheiro estive-
tempestiva desilusão, ruminava ra encabulado, amarrado num
palavras da mulher que, se fos- cordão de elástico dentro do
sem contadas todas outras ditas, saco plástico.
até então, não se lhe doía tanto Gilberto apiedou-se da má
quanto àquelas últimas: “Burro! sorte do sócio de Zezinho. Sur-
burro! burro! Pare de trabalhar giu-lhe um dilúvio de imagens:
para pobre.” Como se lhe fosse O chicote torturando o animal,
facultado trabalhar para rico. seus músculos distendidos, intu-
De repetente, alguém bateu mescidos de dor; o sobrepeso da
à porta do escritório. Uma se- carroça ia subindo a ladeira, que
nhora de cinquenta e tantos se esticava, enormemente, e tor-
anos, magra, tez avermelhada; nava-se mais outra ladeira; não
salpicada de rugas na testa, nos propriamente ladeira: era monta-
braços e mãos. Conduzia uma nha. De olhos antolhados, proi-
bíblia em local de risco, ante a bidos de olhar noutra direção,
possibilidade das palavras do Bené desejava falar, mas somente
Senhor afogar-se no Mar Ver- podia fazê-lo para suas próprias
melho: um rio de suor escorria patas. Estas falavam o idioma da
da axila dela. Seu olhar, bem escravidão: “Estou estropiado.
no âmago do cristalino, carecia Tenha dó de mim, Zezinho, ho-
de brilho. Gilberto fê-la sentar. mem de Deus...”
No entanto, antes de pronun- “Que caminho amaldiçoado
ciar uma só palavra, falou pra si tu escolheste!” Ninguém lhe
mesmo: “Janaína tem razão. Sou ouvia a súplica. O impiedoso
advogado fracassado!” azorrague e Zezinho diziam:
– Dr. Gilberto: meu filho foi Anda Bené. Bicho preguiçoso:
preso. Brigou com a namorada; Lap; lap; lap. Anda, anda Bené:
coisa de gente apaixonada. Ciú- Lap; lap; lap...!
mes. Do que lhe restava da força,
– Sim. Então... seu sangue transformara-se em
– O senhor sabe: Homem de- já-las, sobretudo extrair o brilho suor; suor muito; descia alucina-
testa desaforos; sobretudo de delas, colocando dentro da sua do; escorria sobre paralelepípe-
mulher. Zezinho perdeu o juízo. alma, de que necessitava tanto dos quentes. Zezinho saciava-se,
Ela caiu sobre uma garrafa que- naquela hora. Entristecido, optou matava a sede!
brada. por fechar as pálpebras abrupta- O demiurgo ouvia o lamento
– Como se deu a prisão? mente, porque algo à sua frente solidário do advogado. Ouvia
– Aconteceu no bar. A polícia aparecera: duas estrelas esver- aquelas ondas propagando-se
fazia a ronda no bairro. deadas, de primor inexequível; pelos guetos do universo.
– O namoro é recente? estrelas enraizadas na terra: os Em casa, encontrou a mulher;
– Não. Namoro velho. Jamais olhos de Joana. estava ela enfurnada em um ca-
brigaram. Eles são primos. Cres- O advogado disse: - Vocês ramujo: a fêmea mais sisuda do
ceram compartilhando a infân- necessitam conversar. Havia mundo. Ainda assim, abriu a
cia. Nossa casa dividia parede à arrependimentos recíprocos. A carteira e tirou o dinheiro do
casa de meu irmão. humildade se alojara em am- aluguel. Separou outras cédulas;
– Primos? Então...! bos. Eles entregues à cicatriz do finalmente falou:
– Doutor, não se espante: O tempo! – Janaína: compre coisinhas
que estraga a carne é o sangue! Dias depois, aconteceu de a de emergência!
Duas dezenas de palavras se- cigarra do escritório tilintar. Um Ela transmutou-se.
laram o contrato. Ela pagou certa barulho agradável, esperado, – Já sei. Apareceu cliente endi-
quantia; assumiu o compromis- porque anunciava dona Concei- nheirado. Minhas orações, meu
so de pagar o combinado depois, ção e Zezinho. marido. Deus é fiel!
quando o filho fosse solto. – A gente vem pagar. Disse – Sim. Deus é Protetor dos
Isso aconteceu: Zezinho saiu Zezinho. burros! E
da prisão. Era noite. Ele navegou – E agradecer pelo trabalho.
o olhar em direção ao céu; no Não pude vir antes; meu sócio
painel celestial, podia contem- machucou a mão direita dele.
plar as três meninas do cosmo: – Sócio? José Caitano de Oliveira é advogado
Três Marias ostentando aquele – Ele puxa a carroça: Bené. e escritor. É autor de vários livros,
singular brilho, discreto e perfi- Animal disposto. É encrenquei- entre eles, Delirium Tremens,
lhado. Como seria magnânimo ro, todo burro o é; não se lhe Maçonaria e Esoterismo, O Pastor e
poder arrancar aquelas donzelas o Verbo, De liberdade não se morre e
pode dar comida durante o tra-
do tabuleiro de Deus; poder bei- Saga de 1930 e o Doido da Parahyba.
balho. Jamais, pois fica de rabo Mora em João Pessoa (PB).

32 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 conto

Assolados
Leonardo Paiva ilustração: tônio

Especial para o Correio das Artes

D
iminuía a velocidade da antiga caminhonete conforme se aproxima-
vam da construção de tijolos crus esquecida às margens da estrada. A
imensa garrafa enferrujada do refrigerante laranja boiava numa placa
na parede, anúncio de que aquele era o tal bar onde o motorista aguar-
daria o seu retorno.
Pararam ao lado da pequena varanda cujo telhado era sustentado
por três frágeis pilares de madeira. Nesses pilares, algumas mesas e
cadeiras de metal descansavam da sua labuta noturna. O sol transpu-
nha a cobertura através das telhas esburacadas, arremessando um raio
grosso e disforme nas costas nuas de um homem caído sob um orelhão
azul em frangalhos. Não precisa ter medo, disse o motorista, essa coisa
aí não faz mal a ninguém. É um traste famoso aqui da região, um da-
queles que, antes mesmo de abrir o olho, entorna um copo de cachaça
na barriga vazia.
O bêbado, de bruços, esmagava o chão de terra com o nariz. Se não
roncasse ronco que levantava poeira, diria que o homem não passava
de um corpo morto. Perto do seu ombro havia uma marmita de alumí-
nio toda mordiscada, restos de um almoço que, pelo visto, não estava
sendo digerido pelo seu estômago maltratado. O festival de ossos de
galinha roídos e de grãos de arroz espalhados em torno do corpo eram
a prova de que a comida fora tragada pelo cachorro gordo e sarnento
que dormia no vão entre suas pernas. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 33


c O motorista desceu, avançou
para a entrada, gritou por dona
Esperança. A porta de aço estava
aberta, num canto do cubículo
havia um freezer vermelho des-
cascando, no meio, uma banca-
dinha de madeira; atrás da ban-
cada, dois trapos floridos faziam
a divisória de um ambiente que
talvez pudesse ser “a cozinha”, a
toca onde dona Esperança se en-
furnava. Aquilo era uma verda-
deira espelunca, um, como é que
os colegas diziam na faculdade?,
um pé sujo, um pé sujo terrível,
ela pensou. Terrível! O que es-
tou fazendo aqui?, perguntou
a si mesma enquanto tentava
abaixar o vidro emperrado para
deixar o ar seco circular no inte-
rior do veículo.
Ouviu uma tosse aguda, lon-
ga e encatarrada crescendo por
detrás das flores estampadas.
Os trapos foram descerrados por
uma velha encardida. Admirou-
-se ao ver o motorista, e o cum-
primentou com entusiasmo. Fi-
caram frente a frente embaixo da
cobertura, ele apertou a mão da
velha, fez um carinho nas suas
costas, trocaram algumas pala-
vras inaudíveis. A mulher olhou
para a sua barriga, depois olhou homem a aguardava numa ca- com muito custo, encostar-se na
para o motorista. A contragos- minhonete. Estava encarregado parede. Moscas desnorteadas
to ela desceu da caminhonete e de levar o médico a serviço até a erravam sobre os restos de co-
ajeitou o jaleco amarrotado. An- casa de um paciente, uma vítima mida, de cachorro, de homem.
tes de bater a porta pesada, lem- de envenenamento. Viu que o seu rosto estava com-
brou-se da maleta. A velha lhe acenou com a ca- pletamente empoado, que seus
Maldita hora em que havia beça, ela lhe devolveu o aceno. O olhos estavam inchados, e que o
engolido as palavras do marido, motorista olhou para cima e con- cachorro ainda se mantinha na
maldita hora em que havia se tou uma piada indecente sobre mesma posição de sono profun-
deixado impregnar pelas suas mulheres. A velha riu, riu tan- do. O mascarado travava consigo
ideias. No futuro, ela pensou, no to que começou a tossir. Tossiu mesmo uma conversa engrolada,
futuro haveriam de ter uma con- muito, tossiu fundo, gorgolejou e babava. A velha pediu uma li-
versa acalorada, precisaria vomi- uma mina de catarro. Passado cença fingida e foi advertir o res-
tar todo esse sofrimento em seu o estrambólico acesso de tosse, mungão. Vai pra casa, tome um
colo para colocar, como dizem os a mulher perguntou se o moto- banho. Faz dois dias que você tá
que se utilizam desta expressão rista não a levaria até a casa do todo cagado e mijado. Não tem
desgastada, tudo em pratos lim- paciente por causa da ponte, pois vergonha não, seu porco? A ca-
pos. Pois ele não poderia ter tido se isso fosse, não haveria outro beça babona do bêbado tremia, ia
ideia mais disparatada: mudar- caminho que ele pudesse tomar de um lado para outro, vacilava
-se assim, subitamente, e forçá-la para deixá-la no seu destino? como que prestes a despencar.
a trabalhar no Brasil profundo. Fugindo dos raios que entravam Ouvindo o ralho encatarrado, o
Há cinco meses vinha atendendo pelos buracos da telha, abriu cachorro abriu os olhos, levan-
pacientes miseráveis nas imedia- uma cadeira, pediu uma lata de tou a cabeça, bateu as orelhas,
ções da cidade para onde fora cerveja e a velha prontamente o depois ensaiou coçá-las. Estava
carregada. Seu trabalho era de- atendeu. Sentou-se na cadeira tão roliço que mal as alcançava.
testável. Naquele dia, por exem- bamba, abriu a lata, respondeu Conseguiu apenas mordiscar e
plo, contava os batimentos débeis que não, o problema não era a lamber uma de suas patas san-
do coração de um velho fedoren- ponte caindo de podre, não era grentas. A velha deu de ombros
to quando a única enfermeira do essa a questão. De repente eles e permaneceu alerta. Com falso
posto rural, outra forasteira re- ouviram o som de algo se ar- desinteresse, ela seguia a dança
cém-contratada, avisou que um rastando. O bêbado procurava, das sombras, abrindo e dispondo c

34 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


c desordenadamente mesas e ca- incrustada na plantação de soja, da a refazer o mesmo trajeto por
deiras pela varanda. uma casa bem pequena, a única causa daquele filho da mãe.
A mulher pensou que talvez num raio de alguns quilômetros. Embora a menstruação esti-
pudesse comprar o motorista. Era esse o seu destino. vesse atrasada, não havia confir-
Perguntou se ele queria dinheiro A passos largos andou duran- mado com testes a sua gravidez.
para levá-la, e o homem se ofen- te uns cinco minutos e finalmen- Se não estivesse mesmo enoda-
deu. No trajeto havia informado te encontrou a ponte mutilada. da, isso seria uma mentira. E se
que o paciente era um menino A casa podia mesmo ser vista mentisse para o motorista, pode-
de cinco anos, filho de um tal dali. Respirava fundo enquan- ria sofrer a medonha consequên-
Antônio da Soja, disse que era to admirava as megaplantações cia: o nó se desmancharia. Ver
caso grave de envenenamento, de soja que cobriam os campos um outro nó se desmanchando,
um caso grave, ele disse, grave, além da ponte. O rio que corria a escorrendo perna abaixo como
de quase morte. Ela disse que seus pés não era nem um pouco um pedaço de fígado de boi, se-
o paciente precisava do atendi- extenso. Espumoso e terrulen- ria terrível. Terrível! Por isso,
mento com certa urgência, que to, ele se arrastava arruinado quando pensou em lhe contar a
nessas condições o ideal era bus- tal qual a passagem que, obsti- boa-nova, não disse nada, e des-
car ajuda no hospital da cidade. nadamente, ainda se mantinha ceu contrariada da caminhonete.
Mas aquelas eram as ordens, suspensa. Não havia jeito de Disse para si mesma, entre uma
disse o motorista, ordens de gen- alcançar a outra margem senão bufada e outra, que o dinheiro
te do alto. Se chamassem uma atravessando o esqueleto de ma- que vinha recebendo não valia
ambulância, ninguém viria; se deira. Viu-se obrigada a enfren- as horas dedicadas àqueles que
o levassem, negariam atendê-lo, tar a infeliz travessia. necessitavam de seus cuidados.
arrumariam uma desculpa qual- Pisou numa tábua solta e Não valia mesmo. Não valia.
quer, diriam que ele havia chega- logo deu um passo para frente, Estava prestes a sair da ponte
do morto, assim como já fizeram procurando testar outra que lhe quando o ronco serrado de um
com os outros. Seria melhor se parecia mais firme. Se as tábuas aviãozinho agrícola caiu sobre
ambos seguissem o que já estava cedessem ficaria, no mínimo, en- sua cabeça. Era um aviãozinho
prescrito. Instalou-se no banco talada até o quadril; uma madei- vermelho que mergulhava ren-
empoeirado, pensou que aquilo ra rachada, ou um enorme prego te ao chão para despejar a sua
não fazia o menor sentido. Você, oculto, poderia cortá-la, deixar- chuva branca na lavoura, lá onde
disse a mulher, você só pode es- -lhe um rasgo enorme numa de ela discerniu algo de humano se
tar brincando. suas coxas. Seria injusto, muito mexendo por entre as folhinhas
Se o motorista foi buscá-la no injusto, se ela morresse naquela verdes, uns pontos cobertos por
posto, não entendia por que ele tarde quente, naquele lugar inós- imensos chapéus enfiados em ca-
se negava a levá-la até a casa do pito, sobre aquele rio azedo, con- becinhas minúsculas.
paciente. Quando avisou que a vertida numa palatável iguaria As cenas vagas e desbotadas
deixaria no bar de dona Espe- para os carniceiros. elaboradas pela imaginação da
rança, o motorista repetiu que Na verdade, temia o acidente médica caíam nas águas do rio
aquelas eram as ordens: busque por outro motivo: ela desejava ter justapostas à chuva mortal que
o médico, mas não o deixe na um filho. Daquela vez orquestra- o aviãozinho despejava no ar, na
porta da casa. Sabia que aquilo ram tão bem a gravidez (o mari- terra.
era uma crueldade, mas o que é do preferia, em tom de brincadei- Pensou que tornar a atraves-
que ele podia fazer? Se fosse até ra, chamá-la nó), durante aquele sar a ponte velha não seria pior
a casa do Antônio, ele correria mês fizeram tão bem o nó, que do que aquilo.
um risco desnecessário. Risco?, seria uma desgraça, assim ela Apressou o passo, as pernas
ela perguntou. Risco, sim, um pensou, uma desgraça não poder formigaram, começava a sentir-
perigo enorme, ele respondeu. Se vê-lo tomar forma, crescer, ga- -se cansada. Na próxima segun-
havia jurado cumprir a arte mé- nhar um sexo, um nome, respi- da-feira, ela disse para si mesma,
dica com fidelidade, precisava rar, guinchar e explodir vitorio- eu não piso mais aqui. Se ele não
jogar de acordo com as regras do sas lágrimas gordas sobre suas quisesse, tomaria, sozinha, um
motorista. Ele disse que ficaria tetas cheias de leite. A cada passo outro rumo. Teria o seu bebê gor-
esperando por ali, no bar, como bem calculado vinha à cabeça o dinho num lugar civilizado, num
haviam combinado. E que ela possível acidente, e em certo mo- bem longe daquela terra bruta. I
não se preocupasse: com ele, pa- mento de maior perigo mandou
lavra dita era palavra cumprida. o dono da caminhonete para o
Desejou-lhe sorte, e que fizesse inferno. Devia ter dito a ele que
um bom trabalho. estava grávida, devia ter dito,
Sufocando a alça da maleta, ele poderia se sensibilizar, quem
entregou-se, então, ao seu itine- sabe, e a levaria por outro cami- Leonardo Paiva nasceu em Pedralva
rário. Segundo havia sido infor- nho até a casa do envenenado. O (MG) e atualmente vive em Campinas
(SP). Em 2016, publicou o livro
mada, andaria uns cinco minu- pior é que, se não conseguisse
de contos O mar não sofre coisa
tos até alcançar a maldita ponte. contatar alguém (na época os si- morta (Editora Moinhos). “Assolados”
Antes mesmo de atravessá-la, nais dos celulares eram péssimos é um conto integrante de Fogo caindo
veria, ao longe, uma casa quase para aqueles lados), seria obriga- na noite (no prelo).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 35


6 conto ilustração: Tônio

Morro
da Mutuma
Willy Nascimento
Especial para o Correio das Artes

A
noite que descia pelos becos nhos que aguardavam curio-
do topo ao pé do Morro da sos. Nasceu com saúde! Filho
Mutuma trouxe consigo um da noite! Preto que nem a mãe!
choro alto e estridente. É me- Riram todos gostosamente,
nino! Um riso terno com ar de enquanto se apertavam den-
tristeza deformava a boca da tro do barraco, dando início
mãe, ainda ofegante do esfor- à comemoração; os mais ínti-
ço que empregara no parto. mos se enfileirando para en-
Segurando o filho nos braços, trar no quarto.
a mulher meditava, buscando A festa já se espalhava por
adivinhar o futuro do seu erê. quase toda a senzala, quando
Quantos açoites haveriam de um disparo seco ribombou,
fustigar aquele espírito? Sen- cessando o batuque. Uma mu-
tiu um desejo irracional de lher alta, de vestido pomposo
abraça-lo com o ventre, onde e coque no cabelo louro, sol-
estaria protegido da maldade tou o revolver no chão e saiu
dos homens... A parteira saiu correndo. Palavras confusas
para dar a notícia aos vizi- cortavam seu choro. Outro c

36 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


c bastardinho, não! Alguns ain- de pé em torno de um quinto, olhos e belos como o sorriso
da tentaram contê-la, mas tre- ajoelhado no chão com bra- da filha do novo dono do casa-
miam ante a alvura daquela ços e pernas atados por cor- rão. Criaram um código secre-
pele. Desistindo da investida das. Fez esforço para ouvir o to, imitando o canto dos pás-
contra a criminosa, voltaram que falavam. Como os outros saros. Quando o sol se cobria
para o barraco. O projétil abri- fugiram? Fala, preto safado! na terra, o assobio solitário do
ra um buraco na parede de Mas o homem no centro do assum convidava sua amada a
madeira, a alguns centímetros círculo só conseguia soluçar. deixar o ninho e voar abaixo
da criança, que dormia quie- Fala agora ou vai morrer! Os do poente – as asas tingidas
tamente no colo da mãe. O alí- quatro inquiridores tinham de laranja...
vio preencheu o quarto num olhar cruel e sorriso sádico. Havia chegado, enfim, o dia
suspiro coletivo. O cão tem a Por onde fugiram? Sem obter de Cosme e Damião. Naquela
mira ruim! Com o filho nos resposta, um dos homens em- tarde, a jovem não respondeu
braços, a mulher se inclinou purrou o revolver na cabeça ao chamado do pássaro, que
continuou a insistir até o céu
com dificuldade, cerrou um do negro e atirou. Aterrori- estar já completamente negro.
dos olhos e espiou pela fresta zado, o menino se deitou no A janela que se abria no meio
ainda quente... chão, de onde só conseguia do quarto do canto, no primei-
Quanta saúde! O meni- ver botas sujas de sangue. Es- ro andar, ascendeu, devolven-
no se divertia correndo pelo perou que fossem todos em- do o ânimo do rapaz escon-
quintal, ignorando as ordens bora e voltou correndo para dido nos arbustos do quintal.
da dona da casa. A mãe pe- casa. Não conseguiu dormir Ela abriu a cortina afobada,
dia mil perdões. Desculpa, naquela noite. Abraçado à tentando alertá-lo da presen-
dona... Vou mandar ele ir na mãe, via, entre pestanejos, um ça do pai e de dois capitães no
entorno da casa. A noite que
venda pra senhora. Um fardo círculo de achou outra negra descia pelos becos trouxe con-
de lençóis pesava nas costas a estender os lençóis. Um frio sigo um grito alto e estridente.
da negra, mas era uma plu- congelou sua espinha. Buscou Não, pai! Ainda ofegante do
ma comparado ao olhar que a reconhecer algum traço de esforço que empregara no par-
dona lhe dirigia. Entre risos, familiaridade no casarão. Era to, a mãe segurava o filho nos
a criança deu a volta no ca- esse mesmo! Da varanda uma braços meditativa, buscan-
sarão e se chegou à mãe, que mulher dava ordens, mas não do adivinhar a trajetória do
lhe atribuiu a tarefa com um era a dona que ele conhecia. projétil. Levantou-se a muito
custo e se colocou alguns cen-
gesto de censura. Ele baixou o Eram outros os donos do ca-
tímetros à esquerda de onde
queixo tristemente, guardou sarão. Desorientado, fez men- estava. A festa já se espalha-
o papel no bolso e se danou ção de se ir quando seus olhos va por quase toda a favela,
pela estrada de terra. A ven- encontraram uma jovem a lhe quando um estampido irrom-
da ficava muito distante de observar da janela. Ela tinha peu no batuque. Uma mulher
onde moravam, mas o menino um corpo delgado, escondido branca, de coque pomposo no
conhecia atalhos que lhe en- num vestido muito elegante. cabelo, soltou o revolver no
curtavam o caminho e trans- Os seios eram redondos e os chão e saiu correndo. Dentro
formavam o trabalho numa quadris volumosos. O rosto do barraco mãe e filho esta-
vam caídos. Um impulso der-
aventura. Trazia gravadas na encantador trazia olhos pro-
radeiro fez a mulher levantar
memória todas as trilhas, ár- fundos e inquietantes. Ela o a criança, descolando-a do
vores e pedras que brotavam contemplava com curiosidade. peito, e espiar pelo buraco que
no Morro da Mutuma. Che- O lábio entreaberto deixava atravessara aquele pequenino
gou à venda, entregou o papel escapar um ar de admiração. corpo. Nada viu. Não viu o
ao dono, equilibrou as com- Estavam ambos entorpecidos trabalho desumano, os pesa-
pras em duas sacolas grandes pela presença um do outro. delos, as correntes, nem as bo-
e se embrenhou pelo mato no- Ele, com os olhos em lágri- tas, apenas seu erê brincando
vamente. mas, esboçou um meio sorri- nas nuvens e rindo um riso
que só os inocentes têm. I
Depois de caminhar por so. Ela baixou o olhar e num
alguns minutos, um gemido átimo tornou a encará-lo com
abafado penetrou sua alma. um sorriso encabulado. Aque-
Não devia se demorar... Con- le encontro seria o primeiro Willy Nascimento Silva estreou
tudo, os atalhos compensa- de muitos entre os dois, dan- como contista com “Uma noite de
riam o tempo de um possível do início a uma nova rotina quinta-feira”. “Morro da Mutuma”
é o seu segundo conto. O escritor
desvio. Começou a seguir o em suas vidas. Toda vez que
tem graduação em Letras pela
ruído, que se intensificava descia o morro, ele colhia Universidade Federal de Campina
cada vez mais. Eram gritos girassóis para presenteá-la. Grande (UFCG), e dedica as horas
reprimidos misturados a risa- Grandes girassóis que se es- vagas à leitura e à música. Sobre
a natureza do homem (e outros
das. Escondido numa moita, condiam na mata da Mutuma. poemas) é o seu primeiro livro. Mora
o menino viu quatro homens Girassóis amarelos como seus em Campina Grande (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 37


6 conto

O canarinho
que falava
Luiz Augusto Paiva
Especial para o Correio das Artes

Para o poeta HBF.

ilustração: cinara figueiredo

O
fato ocorreu comigo e com um Até que numa dessas manhãs Nunca contabilizei aquele
poeta. O versejador em questão, sabáticas descobrimo-nos prati- plantel, só me surpreendi com
por sinal, da melhor qualidade, cantes juramentados na criação o inusitado hábito do meu ami-
com igual paixão cultiva versos de canários e outorgados douto- go em batizar as avezinhas com
e os melodiosos trinar de seus res de borda e capelo em “cana- nomes de gente famosa. Estão
canarinhos. Tão conhecido esse rismo”. Temos, sem exagero al- lá o Pavaroti, o Sinatra, o Jair
bardo, quer por suas festejadas gum, autoridade na atividade, em Rodrigues, o Nélson Gonçal-
publicações, como pelo seu sin- decorrência do trato mimoso que ves. Há um, coitadinho, que foi
gular apreço por essas avezi- dispensamos a esses fascinantes atacado em sua gaiola por uma
nhas canoras, recomendou-me a bichinhos cantadores. Provavel- coruja e perdeu uma perninha,
prudência não revelar sua iden- mente, esteja aí, a razão de estrei- mas continua cantando com
tidade. Assim o farei, mantendo tarmos nossos laços de amizade. todas as virtudes de um solista
em segredo seu nome de pia. Com que paixão esse meu amigo de ópera. Meu amigo trata com
Aproximou-nos a afinidade se refere aos seus “belgas”, como mimo e cortesia esse animalzi-
em coisas das letras. Escrevinha- filhos fossem. Não poupa elogios nho. Desconfio ser o preferido;
dor de parcos recursos que sou, aos seus “rebentos” e os reconhe- é o Roberto Carlos. Há entre
contei com a obsequiosa deferên- ce até pelo canto, sabendo dis- eles uma fêmea, que por algu-
cia desse ilustre aedo em aceitar- tinguir se foi Agnaldo Rayol ou ma disfunção hormonal arrisca
-me no rol dos confrades que cos- Tim Maia quem disparou. Que o uns dó-ré-mis. Não é lá um can-
tumam molhar a palavra, vulgo gentil leitor saiba, “disparar” não tar de qualidade, mas a danada
beber e jogar conversa fora, nas é nenhuma atitude bélica, mas canta, o que é raro entre elas.
manhãs de sábado, quando nos sim o cantar intermitente, predi- Essa é a Wanderléa. Há um que
encontramos com outros cama- cado só encontrado em canários posto para cruzar com fêmea de
radas de copo e de prosa. de qualidade. excelente linhagem e muita for- c

38 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


c mosura, acabou por dar uma pisa faltarão adjetivos para a pecha minha senhora. Meu discurso é
na coitadinha e essa não resistiu que tentarão me impor: loroteiro, coloquial, não tenho tanto conhe-
vindo a óbito. Suspeita-se ter sido embusteiro, enganador, farsante, cimento da norma culta.
um ato passional de Lindomar impostor, trampolineiro, trapacei- Olhei para minha mulher e per-
(esse é o nome do biltre); ciúme, ro, aldravão, intrujão, mentireiro e guntei se não estávamos deliran-
talvez. Tivesse eu a virtude da pa- outros que ainda não constam do do. Não estávamos. Com muito
ciência, iria aqui listar a qualida- meu Aurélio. Mas este impulso de cuidado guardei o bichinho na-
de de cada um dos componentes relatar o fato é mais forte do que quela cela de arame e ainda ouvi
daquela alegre filarmônica. Teria qualquer resquício de prudência da patroa a seguinte ponderação.
muito a dizer do Orlando Silva, do que ainda possa habitar o coração – Esse bichinho deve valer mui-
Altemar Dutra, do Cauby Peixoto. desse humilde narrador. Foi assim: to dinheiro.
Há um deles, teima o poeta afir- Um indivíduo começou a se Entramos e ele ficou em sua
mar, ser um amarelinho que canta destacar em uma ninhada. Desen- gaiola, presa em um caibro da va-
em italiano; é o Gianni Morandi. volvia-se mais ligeiro do que os randa. Retomou seu canto com o
Já o meu plantel é mais discre- demais, ganhou penas antes dos costumeiro entusiasmo como que
to, uns quinze se tanto. Gosto de irmãos, duas semanas de nascido se nada estivesse acontecendo.
procriá-los para poder admirar o já beliscava um naco de jiló e mor- Nossas companheiras são dota-
esplendoroso e imponderável es- discava uma folha de couve. Nem das daquele pragmatismo muito
petáculo do surgimento de uma deu um mês e disparou a cantar. escasso nas têmperas masculinas.
vida. E quando esse acontecimen- Comprei uma gaiola de dimen- Algo me dizia que aquela que di-
to conta com nossa cumplicidade, sões mais generosas para confor- vidia lençóis comigo começara a
sentimo-nos mais próximos da na- to do meu “artista”. Mansinho, fazer planos diferentes dos meus.
tureza e de seus intrigantes misté- mansinho vinha à minha mão Ia ser difícil convencer aquele des-
rios. Sempre cuido disso com es- quando lhe oferecia uma lasca de potismo de saias do valor senti-
mero e atenção. Escolho um casal maçã. Com o tempo empoleirava mental do meu canarinho. Até que
para o namoro, promovo a aproxi- em meus dedos; então, eu estica- imbuído dos modernos preceitos
mação do meu Tristão e sua Isolda. va os braços e ele vinha com seu da igualdade de gêneros tratei de
Não demora que aquela química os andar gracioso até o meu ombro desfazer as intenções de minha ti-
aproxime e daí ao enlace é questão e ali cantava, cantava... Não nego, rana.
de pouco tempo. Disponibilizo al- quantas vezes esse jeito mimoso – Nem pense em fazer qualquer
godão para dar conforto ao ninho. do meu canarinho me emocionou. coisa com meu canário - mas ela
Logo o primeiro ovo, depois outro, Numa tarde de domingo, esta- pensara, não em qualquer coisa,
mais outro. Então é só esperar exa- va ele em meu ombro executando mas em muitas coisas.
tamente treze dias após a postura sua doce cantoria enquanto eu lia – Quanta custa um curió? Des-
que aquela coisinha mais feia do o meu suplemento literário e eis ses que você viu em Santa Catari-
mundo surja à luz. Nenhum bicho que meu bichinho interrompeu na. Não havia um que tinha sido
nasce mais feio do que um caná- seu concerto, balançou aquela ca- campeão em um torneio de canto
rio. Vejam só os pintinhos. Não são becinha dourada, olhou-me com e você viu comprarem o bichinho
aves também? Mas nascem gracio- aquela ternura que só os canari- por mais de cento e trinta mil
sos, alegres e já sabem se alimen- nhos sabem olhar e.... reais? Isso foi em 2005, eu me lem-
tar sozinhos. Já os canarinhos... – Tá gostando? – estaria eu de- bro. Imagina quanto estaria va-
mas, trinta dias depois estão inde- lirando? Peguei-o e o coloquei lendo hoje! E um canário que fala,
pendentes e podem ser separados empoleirado em meus dedos e ele então?
dos pais. Mais um ou dois meses continuou com sua voz de menino Poderia valer o dinheiro que
e começam a ensaiar as primeiras novo. valesse, não venderia de jeito al-
notas. Já presenteei o poeta com – Diz pra mim. Tá gostando ou gum. Foi então que recorri a um
alguns filhotes do meu criadouro. não tá? – eu “tava”, mas aquilo es- estratagema e para a trama ter su-
Soube que o Michel Theló está de taria mesmo acontecendo? Pedi a cesso, iria eu pedir socorro ao meu
fazer inveja. Eu o escolhi a dedo, presença da consorte. querido fazedor de versos. Esperei
pois nosso menestrel merece a pre- – Vem cá mulher. Veja só isso. pela ausência de minha soberana e
sença desse pequenino sertanejo – Isso o quê? liguei para o trovador.
para encher sua varanda de encan- – Esse canarinho está falando. – Poeta, tenho uma surpresa.
to. É, certamente, mais uma fonte – Falando? Canário não fala. Tem a ver com canários, mas só
de inspiração. Está louco? digo pessoalmente. Você vai se
Sempre, nos meses de inverno, – Mas esse está, veja só. Fala, ga- surpreender.
tiro uma ninhada ou duas. Há ou- roto. - então o canarinho deu o ar – Diga logo, homem.
tros amigos, que merecem essas de sua graça, ou se preferirem, de – Só pessoalmente.
minhas deferências. Um ou outro, sua fala. – Mas, precisa ser agora?
faz questão de receber esse regalo. – Eu falo sim, minha senhora. – Agora, não. A-go-ri-nha!
Mas, ninguém como nosso bele- O que quer que fale? – ela não se – Não pode adiantar alguma
trista estima esse pequenino dote conteve. coisa?
empenado. E daí é que surge esse – Não pode ser. Não é um tru- – Só pessoalmente, já disse.
curioso caso que ora relato. que? Falar já não é pra se acreditar, – Estou indo. Dá uns minutos.
Dirão uns ter eu enlouquecido. ainda mais falando assim como Vou trocar de roupa e já, já, estarei aí.
Aos que nutrem alguma rusga fosse gente estudada. – Mas, me faz o seguinte.
em relação à minha pessoa não – Agradeço o “gente estudada”, – O quê? c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 39


c – Sabe aquele canarinho ama- ficou morando em minha casa e era só me ver disparava a cantar.
relo com um “borradinho” na asa Fidel Castro foi passar uns dias na Como não sentir a perda de um
esquerda? casa do poeta. bichinho desses? O problema era
– Sei, o Reginaldo Rossi. A artimanha dera certo. Minha comunicar o fato ao Poeta. Tínha-
– Ele mesmo. Traz, mas deixa a mulher, ela mesma, constatou que mos prometido cuidar com esme-
gaiola com ele no carro. Quando o canarinho emudecera. Não per- ro das avizinhas e eu falhara em
você entrar eu explico. cebeu a troca, afinal, Reginaldo minhas incumbências. Não havia
– Espero que seja algo interes- Rossi e Fidel Castro eram mui- mais o que fazer, dei um beijo no
sante. Não me vá fazer perder tem- to parecidos. E a partir de então, cocuruto de Reginaldo e o colo-
po. sempre que me encontrava com quei num saquinho de super-
– Fica tranquilo. Você vai se sur- o cronista (o poeta era cronista mercado. Daí à lata de lixo, mas
preender. também) ele tinha sempre uma ressalvo que o fiz com o maior
O poeta veio. Não demorou história para contar de Fidel Cas- respeito, afinal Reginaldo Rossi
quinze minutos e lá estávamos nós tro. Contou-me ele que esperava o estava deixando esse mundo e
palestrando na varanda. anoitecer para prosear com o caná- eu nunca mais veria sua maneira
– Poeta, você não vai acreditar. rio falador. O poeta punha a gaio- singela de inaugurar a vida todas
Tá vendo aquele canarinho ali? O la sobre um tamborete próximo à as manhãs: cantando!
amarelinho com uma manchinha rede e ali ficavam proseando. E a Dizem por aí que nada está tão
preta na asa? esposa se intrigava de ouvir vozes ruim que não possa piorar, e pude
– Tô. no alpendre. então sentir no coração a veracida-
– Pois você não vai acreditar, ele – Tá conversando com quem? de dessa premissa. À noite o poeta
fala. – Com ninguém. Estou deco- me telefonou.
– Tá brincando... rando um discurso que vou fazer – Diz, aí poeta. O que manda?
– Pois então, veja. Fala com ele na Academia. Vem cá para ver. – e – Tenho uma coisa pra lhe dizer.
Amarelinho – eu já o batizara de ela ia pra ver, não o discurso, mas – Pois então, diga homem.
Amarelinho, ele não me decepcio- o provável interlocutor. – Fidel fugiu. Talvez eu não
nou. – Nossa! Parece que tinha gente tenha fechado a gaiola cor-
– O nome do senhor, é Poeta? – conversando com você. retamente quando fui tratar
o poeta nem conseguia falar. Fui Assim as primeiras horas da dele. Só sei que quando fui
em seu socorro. noite encontravam os dois cele- ver a gaiola estava aberta e
– Ele é um poeta. Poeta é quem brando aquela amizade. Disse-me nada de Fidel.
escreve poesias, mas o nome dele o poeta que abriam as mais diver- Aproveitei a ocasião para dizer
é outro – então, o canarinho retor- sas pautas e discorriam acerca de do ocorrido com Reginaldo Rossi.
nou. uma variedade considerável de Lamentamos a coincidência. Aves
– Bom dia fazedor de poesias. temas. O mistério era descobrir de cativeiro não estão aptas a so-
Quando puder faz uns versinhos como aquela criaturinha aprende- breviver quando soltas e Fidel não
pra mim. Vou apreciar – só então, ra tanta coisa a despeito de ser tão iria certamente gozar da liberdade
meu amigo despertou do torpor. jovem. A esse tempo devia ter uns por muito tempo.
– Não é que ele fala mesmo – en- três meses de vida. Só isso. Já di- Alguns dias depois nos encon-
quanto isso eu só confirmei. zia o bardo inglês: “Há mais coisas tramos, eu e o nosso vate. Fizemos
– Fala, e como fala! É sabido o entre o céu e a terra [...]”. E é assim. um pacto de que não revelaríamos
danado. Há mistérios que não somos capa- para ninguém o ocorrido. Se o fi-
Foi então que tive que explicar. zes de desvendar. zéssemos passaríamos no mínimo
Dada a semelhança entre meu Tempos depois aventei a possi- por loucos. Levaríamos ao túmulo
borradinho falador e o do poeta, o bilidade de desfazermos a troca. (ou dependendo de escolhas futu-
Reginaldo Rossi, pedi para que fi- Afinal, a criatura lá em casa foi se ras, ao crematório) aquele nosso
zéssemos a troca, eu ficava com o esquecendo daquela “caderneta de segredo. Ninguém ficaria saben-
dele e ele ficava com o meu. Aí era poupança” trancafiada na gaiola. do que Reginaldo Rossi passara
só eu dizer que o meu canarinho Não falava mais. Ela tentou puxar uns dias em minha casa cantando
parara de falar. Assim, a patroa conversa. só para mim e nem saberiam que
desistiria do seu ardil de passar – Oiiiiiiiiiiiiiiii. Fala com a titia – Fidel Castro estivera uns dias na
meu canário nos cobres. Cobrei E Reginaldo Rossi, nem aí pra ela. casa do poeta, conversando com
atitudes do poeta. Cantava, isso sim. Cantava muito ele à noitinha e algumas vezes até
– Pode fazer essa gentileza para o danadinho, mas falar... dava uma canja cantando como só
mim? Só por uns dias. Mas não Até que um dia acordei com Fidel Castro sabia cantar. I
revela esse segredo, e se for falar aquela impressão, que algo de
com o canarinho, faz no particular. muito ruim acontecera ou estava
– Já deu nome para ele? para acontecer. Fui direto pro-
Luiz Augusto Paiva é escritor,
– Amarelinho. curar o Reginaldo Rossi. Qual
bacharel em matemática, colaborador
– Isso lá é nome de canário? Pos- o quê!? Lá estava ele mortinho de A União. É membro da União
so batizar o bichinho? da silva na gaiola. Peguei-o e os Brasileira de Escritores – Seção
– Já escolheu um nome? olhinhos negros pareciam me Paraíba (UBE-PB). Tem dois livros
– Fidel Castro dizer adeus. Há os que não irão publicados: A saudade e outras
manias do coração (contos, Editora
– Mas Fidel Castro não cantava. crer, mas que vontade de chorar
AllPrint – SP) e O chapéu do meu avô
– Mas falava... eu tive! Gostava de ver Reginal- (crônicas, Mídia Editora – PB). Natural
Foi assim, que pelo menos pro- do Rossi cantando. Tinha um de Campos do Jordão (SP). Reside em
visoriamente, Reginaldo Rossi jeitão despojado, diferente. Mas João Pessoa (PB).

40 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO


6 novo almanaque armorial
Carlos Newton Júnior
cnewtonjr@gmail.com

Os novos
emparedados

H
ouve um tempo em que formávamos — Orlando Tejo, Os leitores mais bem informa-
Astier Basílio e eu — uma espécie de sodalício, ou de dos em questões armoriais, e que
trinca secreta, com frases e brincadeiras cujo verda- certamente leram o Romance d’A
deiro significado só nós compreendíamos. Por exem- Pedra do Reino, de Ariano, já devem
plo: cada um vivia dizendo que iria “lascar” os ou- ter percebido que nós lembráva-
tros dois. A “lascação”, no caso, resultaria da criação mos, com essa brincadeira, aque-
de uma obra literária genial, que alçasse o seu autor les “três possessos da Literatura”
à glória e colocasse os outros dois à sombra, ficando que eram Quaderna, Clemente e
ambos, por conseguinte, “lascados”, condenados ao Samuel, fundadores, em Taperoá,
eterno esquecimento. Lembro que Tejo só se dirigia da célebre Academia de Letras dos
à sua esposa, Josymar, chamando-a de “Prinspa”, Emparedados do Sertão da Paraíba.
sendo, por sua vez, tratado por esta de “Princeso”. E Com uma diferença, porém: entre
se eu acrescentar, a esta informação, que sou casado nós não existia o terrível elemento
com Sílvia (professora universitária, como eu) e com político para aprofundar as dissen-
ela tenho um casal de filhos, Heitor e Beatriz, o leitor sões de ordem literária. Isso por-
não terá qualquer dificuldade para compreender os que éramos, os três, “de esquerda”,
seguintes versos, que um dia recebi de Astier: se bem que o esquerdismo meu e
de Astier, se comparado ao de Tejo,
conduzia-nos às vezes mais para o
centro, quando não para uma po-
Senhora, rainha Prinspa, Metade de uma vida sição de centro-direita. É que Tejo
faça fuxico ao Princeso, eu vou passar pra compor era, de fato, de extrema-esquerda, e
que aquilo que vou contar um livro cujo objetivo costumava levar seu esquerdismo
pode deixá-lo surpreso: é só de ser o terror, exacerbado para as mais corriquei-
pras bandas de outro estado e na peia eu não aliso ras e prosaicas situações da vida.
tem cabra que tá lascado e assim eu desmoralizo Certa vez, tive a infelici-
e é capaz d’eu ser preso. pra sempre o pai de Heitor. dade de aceitar uma carona que
Tejo me ofereceu. Seu carro, muito
Por isso peço ao Princeso, A pobre da Beatriz velho e com os pneus inteiramente
que é doutor advogado, que fez o poeta Dante desgastados, já representava, por
que se acaso a justiça emburacar de cabeça si só, um risco de vida para quem
me deixar aprisionado, lá dos infernos pra diante, nele se atrevesse a viajar. Pior, ain-
da, com Tejo ao volante. Ora, Tejo
que ele puna por mim, em dois mil e tantos vai
só soltava o seu cachimbo em três
pois eu sou um cabra ruim se envergonhar de seu pai
situações: quando comia, quan-
e Carlos Newton um lascado. que foi lascado bastante.
do dormia e quando escovava os
dentes. Assim, ao dirigir, ele segu-
É um meio-Armorial, E Sílvia? Meu Deus, a pobre
rava a direção apenas com a mão
é da laia dos barbudos; invés de estar lecionando,
esquerda, enquanto a direita se di-
inventou de escrever vai passar o dia inteiro
vidia entre o cachimbo e a marcha.
um poema pra Canudos, ao lascado consolando,
Se, por acaso, o cachimbo se apa-
mas não está nos seus planos como um mordido de cobra
gava, ele não titubeava em soltar
que eu vou passar vinte anos que olha pra minha obra
a mão esquerda para, com esta em
pra derrubar seus estudos. e permanece chorando. cunha, cobrir o fornilho e proteger c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, novembro de 2018 | 41


6 novo almanaque armorial
ilustração exclusiva de manuel dantas suassuna para a coluna novo almanaque armorial

c do vento o fogo do isqueiro, que


então segurava com a mão direita,
ao mesmo tempo em que o carro,
sempre em movimento, claro, des-
locava-se também lateralmente, de
uma faixa da pista para a outra, ao
som dos berros, das buzinas e das
freadas bruscas que vinham dos
carros mais próximos. Finalmen-
te, enquanto motorista, Tejo tinha
uma peculiaridade que só descobri
naquele dia, tão logo lhe dei a pri-
meira indicação para chegar a meu
destino, pedindo-lhe que virasse à
direita:
— À direita eu não posso virar!
— Pode sim, não é contramão!
— argumentei, sem compreen-
der o verdadeiro sentido da sua re-
cusa, enquanto ele seguia em frente
para fazer a conversão na esquina
seguinte, entrando à esquerda.
Explicou Tejo:
— Por absoluta fidelidade à es-
querda, eu, quando dirijo, jamais
viro à direita!
Voltamos, assim, após mais
duas conversões à esquerda, para
a rua onde deveríamos ter entrado.
— De virada para a direita, basta
a desse caboclo misterioso que nos
governa lá do Planalto! — concluiu,
agora seguindo em frente e fazen-
do referência expressa ao Presiden-
te da República, que era, na época,
Fernando Henrique Cardoso.
E foi assim, sempre fazendo con-
versões à esquerda, e por um traje-
to insólito, que ora me aproximava, cochicho era seguido por uns risi- que, dali em diante, eu que me cui-
ora me afastava do meu destino, nhos abafados. Ali havia alguma dasse, pois os dois iriam unir for-
que terminei chegando, são e sal- molecagem, eu não tinha a menor ças para me lascar primeiro.
vo, aonde queria ir, muito embora dúvida! Ao término da sessão, E foi naquele mesmo dia
bem mais tarde do que imaginara quando eu já estava ungido e con- que Tejo me revelou a novidade:
ao aceitar a carona. sagrado com o honroso título de por motivo de saúde, havia parado
Algum tempo depois, chegou o “Doutor” (que, como sabem todos de fumar. Surpreso com a notícia,
dia da defesa de minha tese de dou- os acadêmicos, é indispensável pedi-lhe, então, pela aprovação da
torado na Universidade Federal de para se escrever uma obra verda- tese, e antes de ser lascado, que ele
Pernambuco. Tejo e Astier se fize- deiramente genial), dirigi-me aos me desse de presente, como prê-
ram presentes, para me prestigiar. dois ao mesmo tempo e perguntei mio de consolação, o seu último ca-
Astier veio de Campina Grande, o que tanto eles cochichavam du- chimbo — este mesmo que guardo
onde então residia, e ficou hospe- rante a minha apresentação. ainda hoje comigo, como se fosse
dado, como de costume, na casa de Foi então que Tejo, falando sério, uma relíquia digna dos melhores
Tejo, que nesse tempo morava no revelou o segredo. Durante a ses- museus do mundo. I
Recife, no bairro da Iputinga. Che- são, olhando para o calhamaço da
garam à universidade, portanto, tese, ali na mesa, e percebendo que Carlos Newton Júnior é poeta,
juntos, e juntos se sentaram, mais eu estava me saindo muito bem, ensaísta e professor da Universidade
ou menos no meio do auditório. ambos ficaram com medo, de fato, Federal de Pernambuco. É autor de
Pois bem: várias vezes, durante de serem “lascados” por mim. Ter- vários livros, entre os quais, Vida de
a defesa, percebi que um cochicha- minaram, assim, fazendo um “pac- Quaderna e Simão (romance) e Canudos
- Poema dos Quinhentos (poesia)
va ao ouvido do outro, e que cada to de não-agressão”. De maneira Mora em Recife (PE).

42 | João Pessoa, novembro de 2018 Correio das Artes – A UNIÃO

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