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6 índice
, 4 @ 7 2 21 D 25
infantil LIVROS poesia CRÔNICA E CONTO
A professora Neide Linaldo Guedes, Carlos Os poetas José Edmilson Sandra Raquew, José
Medeiros Santos Alberto Azevedo, João Rodrigues, Cláudio Caitano, Jesuíno André,
apresenta vida e Batista de Brito, Gil Limeira e Irani Medeiros Raquel Naveira, Leonardo
obra da escritora e Messias, Alberto Bresciani participam desta edição Paiva, Willy Nascimento e
ilustradora paulista e Ronaldo Cagiano com dez poemas Luiz Augusto Paiva são os
Lúcia Hiratsuka. comentam as novidades. inéditos. destaques desta edição.
O Correio das Artes é um suplemento mensal do jornal A UNIÃO e não pode ser vendido separadamente.
A União Superintendência de Imprensa e Editora Secretário Est. de Editor do Correio Arte da capa
Comunicação Diretor de Operações das Artes Lúcia Hiratsuka
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Institucional Gílson Renato William Costa
Industrial - João Pessoa - PB Luís Tôrres Ilustrações e artes
Editor Geral Supervisor Gráfico Domingos Sávio, Tônio e
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Redação: 3218-6509/9903-8071 Albiege Fernandes Azevedo
ISSN 1984-7335 Editora Adjunta
Diretor Administrativo Renata Ferreira Editoração
editor.correiodasartes@gmail.com Murillo Padilha Paulo Sérgio de Azevedo
http://www.auniao.pb.gov.br Câmara Neto
fotos: reprodução internet
6 autores
Lúcia
Hiratsuka
e a valorização
da cultura
japonesa
Lúcia Hiratsuka é neta de japoneses
que vieram para o Brasil nas
primeiras décadas de século XX
A
história da migração japonesa no Brasil come- no Brasil, os descendentes de japone-
ça com a primeira leva de japoneses que apor- ses preservaram heranças culturais
taram no porto de Santos, litoral paulista, em que se traduzem no cuidado com as
junho de 1908, no navio Kasato Maru. Este ano crianças, no apego ao trabalho como
completou 110 anos da vinda dos japoneses. valor supremo da sobrevivência e no
Nessa primeira leva, chegaram 781 japoneses respeito aos anciãos. Tudo isso se re-
que formavam 158 famílias. Aqui eles se acli- flete numa das características mar-
mataram e trouxeram, entre outras habilidades, cantes da colônia: o baixo índice de
o fácil manejo com a agricultura. Há destaque infrações às leis.
também para o lado artístico e literário. Tomie
Ohtake é um bom exemplo da contribuição Lúcia Hiratsuka é neta de ja-
nipônica nas artes plásticas e Nempuku Sato poneses que vieram para o Brasil
tornou-se o principal representante do haicai nas primeiras décadas de século
no Brasil. Atualmente, há inúmeros poetas bra- XX. Os avós chegaram em 1925,
sileiros que escrevem poemas seguindo essa no porto de Santos. Inicialmente
modalidade poética. a família foi morar no sítio Asa-
Os japoneses valorizam muito as heranças hi, interior de São Paulo. Asahi
culturais do seu povo, o cuidado com as crian- significa “sol da manhã”. Foi nes-
ças e o respeito aos mais velhos. Geraldo Has- se sítio que Lúcia nasceu. Entrou
se, no artigo “A saga japonesa no Brasil”, pu- na escola com sete anos, em casa
blicado na revista Globo Rural (junho de 2018), só falava japonês com os pais e
afirmou com muita propriedade: avós. Quando contava dez anos,
a família se mudou para Duarti-
Na migração intermitente para um ou outro lugar na, considerada a capital da seda.
Alguns anos mais tarde transfe-
riu-se para a cidade de São Paulo
onde cursou o ensino médio e
depois Belas Artes. c
A saga
ser enterrado numa cova rasa, a
ter o corpo tombado por qualquer
tocaia com o aval latifundiário,
como diz o poema. Afinal, desse
lado do Equador a morte é impos-
ta ao camponês e os corpos ficam
de um povo insepultos à beira de estrada.
Essa sina não é de agora. Vem
que não desde quando a chegada intem-
pestiva das primeiras caravelas,
se cansa de ser alerta o poeta. Até mesmo em pe-
épico
quenas províncias, como a Baía
de Acaîutibiró, que depois se tor-
naria Baía da Traição, após san-
grento conflito entre os portugue-
ses e os potiguaras, para findar
na Capitania da Parahyba. Tudo
Linaldo Guedes
linaldo.guedes@gmail.com narrado na obra de Políbio, com
ritmo, com fôlego, com lamento.
Como um interstício até a volta
da saga camponesa. Até o retorno
P
olíbio Alves é um autor premiado nacionalmente, traduzido dos encarapuçados que rondam e
em países como França e Cuba, numa trajetória ímpar que não metralham lavouras:
faz concessões a igrejinhas literárias. No mais das vezes, busca
manter sua própria coerência literária, sem abrir mão de suas Das capitanias
convicções. Sem abrir mão de seu talento, acrescentaria. Silen- Hereditárias
ciosamente, vem construindo uma trajetória poética com pon- à historiografia
tos altos, acima da média, a exemplo de Varadouro e Exercício da Reforma Agrária,
lúdico. Agora ele chega com o primeiro livro da Editora Arri- nosso solo permanece espólio
baçã, intitulado Acendedor de relâmpagos. do investidor estrangeiro.
É um livro épico, como épica tem sido a poesia de Políbio
Alves. A saga de Antônio Lavrador, do camponês, a saga de Os “Prenúncios”, na segunda
nossa gente, de nosso país, sempre a ser explorado pelo que parte da saga, anunciam os acon-
vem de fora. Uma narrativa de fôlego que traz de volta o Polí- tecimentos tristes que virão. É
bio de Varadouro, num texto lírico, mas também forte, explícito, “sob o relicário do sertão/ exter-
dolorido. Não poderia ser diferente em um livro que começa mínio e sagração”. Neste roteiro,
com uma epígrafe de Derek Walcott, poeta das Antilhas, Prê- sobram emboscadas, florescem a
mio Nobel de Literatura de 1992, autor de Omeros, um dos mais embolia agrária, a morte bruta,
belos poemas de todos os tempos. “Isso era história. Eu não dores que nem mesmo quando a
tinha poder para mudá-la. E, no entanto, ainda sentia que isso lavoura é farta se ameniza. Até
já havia acontecido antes”, diz a epígrafe. porque a partilha com o feitor
E é isso que o leitor entende. O narrado nas páginas de Acen- continua, a tessitura das oligar-
dedor de relâmpagos já havia acontecido antes e nem temos espe- quias é mantida e verdejam tam-
rança de que não acontecerá mais. Essa impressão é reforçada a bém os astutos, os tributos.
partir, também, da original seção de epígrafes da obra. Com tre- “Quíron”, a terceira parte da
chos de livros e obras de autores obra, busca trazer uma resposta,
como Castro Alves, Eduardo se não pela lógica, mas pela pa-
Fotos: edson matos
das origens
anos), explicaremos o que foi, de
fato, o Big Bang das origens do
universo da cultura humana.
S
teven Mithen, um arqueólogo inglês, escreveu um estava bastante propício para a
dos livros de arqueologia mais significativos dos úl- explosão cultural. Segundo Mi-
timos anos do século XX, intitulado A pré-história da then e outros cientistas cogniti-
mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciên- vos é exatamente no Paleolítico
cia (1996), que se tornou um clássico da literatura ar- Superior que eclodiu o Big Bang
queológica, ao lado da trilogia de Gordon Childe: O da cultura humana - uma ver-
que aconteceu na história (1960), Evolução social (1962) e dadeira explosão cultural. Data
Evolução cultural do homem (1966). em que apareceram maravilho-
Segundo o antropólogo Walter Neves, no prefácio à sas pinturas rupestres e objetos
edição brasileira (2002) de A pré-história da mente, Mi- de arte.
then, tem desde sempre, se caracterizado pela inova- Mas o que caracterizou o Big
ção ao abordar temas candentes do processo evolutivo Bang foi a fluidez cognitiva do
humano, ou da organização social das sociedades que Homo sapiens sapiens. Sem dúvi-
nos precederam, lançando mão, sempre que possível, da, ele estava apto para assumir
da teoria da cognição (Mithen, 2002: 10). vários processos cognitivos si-
O que se pretende, neste texto, é realizar uma leitu- multaneamente.
ra das ideias de Mithen sobre as origens da arte - tema Além disso, a conexão entre
os processos cognitivos possi-
bilitou uma “vida interior” rica
e cheia de significados - dando
assim margem para produzir
uma abundante documentação
gráfica, como salientou Mithen.
Altamira, Lascaux e Chauvet,
Fotos: reprodução internet
...
cognitivos antes isolados, ago- também parecem ter sido usa- ção avançada, nos deu “o testemu-
ra funcionavam juntos criando das para armazenar informações nho de seu próprio mistério”…
o novo processo cognitivo que sobre o mundo natural, ou pelo
podemos chamar de simbolis- menos para facilitar a lembrança
mo visual, ou simplesmente arte dessas informações ao agirem Um traço de cor apenas suge-
(Mithen, 2002: 262). como dispositivos mnemônicos. rido, o corpo de um animal gra-
De fato, essas pinturas foram vado na rocha… O homem co-
Arte e escritura: enigmas descritas como “enciclopédia tri- meça a realizar gestos inéditos,
Em um dos tópicos de A pré- bal” por John Pfeiffer (1982). Eu como que para dar testemunho
-história da mente, Mithen se re- mesmo sugeri que grande parte do seu próprio mistério.
fere “A arte como informação das imagens de animais dessa André Langaney: A infância da
armazenada”. Muitas vezes, diz arte serve para trazer de volta arte, 2002 I
Mithen “não há diferença entre à memória informações sobre o
uma peça de arte e um instru- mundo natural que se encontram Carlos Alberto Azevedo é
mento. A placa de osso gravada, armazenados na mente (Mithen, antropólogo e escritor. Sócio efetivo
da Garganta de Taï (França) é um 2002: 275). do Instituto Histórico e Geográfico
exemplo disso” (Mithen, 2002: Concordamos plenamente Paraibano (IHGP). Trabalha no
Instituto do Patrimônio Histórico
275). Afirma Mithen: com Mithen, pois a pré-histó- e Artístico do Estado da Paraíba
Assim como as peças de osso ria é, de certa forma, escritura. (Iphaep). Mora em João Pessoa (PB).
Sem cinema,
,
C
rítico literário relapso, só agora de Prócula, naquele gap em que
leio Relato de Prócula, romance nada sabemos da vida de Jesus,
do nosso W. J. Solha, publicado ele teria estado o tempo todo en-
em 2009 pela Editora A Girafa tre os romanos... e se romaniza-
e ganhador do prêmio João Fa- do, depois disso traindo a raça ju-
gundes de Menezes, da União dia com um discurso pró-Roma.
Brasileira de Escritores, setor A tese implícita é esta, mas,
Rio de Janeiro. para usufruir do romance, você
Antes tarde que nunca. Que não precisa acreditar nela. Nem
aventura extraordinária meter- deixar de acreditar, se for o
-se nessas páginas cheias de eru- caso. Sem dúvida, estamos até
dição, raciocínios engenhosos e certo ponto diante de um ensaio
belas imagens, e viver o drama ficcional, ou uma ficção ensaís-
foto: antônio david desse padre paraibano que tenta tica, o que dá no mesmo, mas
suicídio depois de haver desem- onde a grade conceitual está tão
penhado o papel de Pilatos, em amarrada às estruturas narrati-
encenação pública da peça Auto vas, actanciais e semióticas, que
de Deus em João Pessoa. fica difícil a distinção de gênero.
Nascido de um estupro, hoje Ainda bem.
herdeiro da fazenda Mundo Para o leitor paraibano, que
Novo, nos arredores de Pombal, porventura conheça a trajetória
interior da Paraíba, o padre é artística de Solha, um aspecto
rico, bonitão, mulherengo, ex- curioso no romance é a sua re-
tremamente culto e... cinéfilo. lação com a realidade em torno.
(Chego já aí). Muitos dos personagens são verí-
O que teria levado o padre à dicos (muitos dos “extras” são ci-
tentativa de suicídio? A narrativa tados pelos nomes, como William
vai e vem em torno da pergun- Costa, Roseli Garcia, Marcus Vi-
ta. Aparentemente, no instante lar) ou parcialmente transmuda-
da peça em que se depara com o dos para funcionarem dentro do
rosto em close do enredo – caso certamente do Pa-
filho de Nazaré, dre Martinho Lutero Libório.
teria lhe caído o Os cenários são conhecidos
W. J. Solha tem
intimidade com o
insight que vem (Pombal, João Pessoa) e muitos
cinema - é cinéfilo do relato da es- dos fatos narrados de fato acon-
e ator - e sua prosa posa do perso- teceram, como – um exemplo
e poesia trazem nagem que inter- chave – a produção do filme O
muitos elementos
da linguagem
preta – Prócula. salário da morte (1970), dirigido
cinematográfica Segundo o relato por Linduarte Noronha e copro- c
Hildeberto
Paraibana de Letras
de Zé Nunes
Francisco Gil Messias “personagem em processo”, é
Especial para o Correio das Artes evidente que o trabalho biográ-
fico de Nunes é apenas um co-
meço, aguardando posterior en-
riquecimento e uma finalização
A
verdadeira consagração de um autor se revela quando, futura que esperamos demore
ao lado das obras produzidas por ele, surgem aque- muito. Enquanto isso, com o
las produzidas sobre ele. É o que começa a acontecer, passar do tempo e com as novas
merecidamente, com nosso conterrâneo Hildeberto obras e vivências de Hildeberto,
Barbosa Filho, poeta e crítico literário, recentemente sua biografia irá se expandindo
contemplado com o ensaio biográfico O poeta entre a a cada dia, trazendo novos de-
serra e o mar, de José Nunes, pela Editora Ideia. Pode-se safios ao próprio José Nunes e
afirmar que com isso assistimos ao começo da poste- certamente a outros biógrafos
ridade do escritor de Aroeiras, a Comarca das Pedras que haverão de surgir no rasto
tantas vezes cantada em prosa e verso pelo filho ilus- do ensaio inaugural.
tre que nunca a esqueceu. Desbravar a vida de Hildeber-
Diz-se que cada biógrafo constrói, como uma escul- to é antes de tudo adentrar a geo-
tura, seu biografado particular. É certo. E tanto é as- grafia de Aroeiras, sua terra-mãe,
sim que nenhuma biografia é igual a outra, pois cada seu “condado mítico”, com sua
uma traz o olhar e o sentir pessoais de quem escreve, paisagem aparentemente áspera,
destacando alguns aspectos e atenuando outros da de pedra, cuja beleza guarda-se
vida do biografado e interpretando fatos e situações especialmente para aqueles que,
a partir de sua própria visão de mundo e das coisas. nativos, sabem descobri-la amo-
Por isso, é justo dizer-se que o ensaio de José Nunes rosamente na solidão fecunda
ora publicado nos revela o seu Hildeberto individual, de seus descampados e serras.
ou, para usar a saborosa linguagem do interior, o Hil- Parafraseando Drummond, que
deberto de Zé Nunes, como certamente seria dito, com dizia que era de ferro no poema
muita graça, no Cariri de Aroeiras. “Confidência do Itabirano”, Hil-
Estando Hildeberto ainda em plena pujança cria- deberto poderia perfeitamente
dora, sendo portanto o que poder-se-ia chamar de escrever versos como “Alguns c
Us
and them
Para Cairé Andrade ros. Como intelectual de seu bum The Wall, Roger Waters
tempo, fez de sua fala, tanto faz de “muros” um tema
H
umanista por excelência, pela literatura, quanto pelas recorrente. Muros em seus
José Saramago se preocu- entrevistas e conferências sentidos literais e, também,
pava com os problemas do que proferiu por esse mundo metafóricos. Muros como
Brasil, não só por comparti- afora, uma voz sobre as mais censura e como proteção,
lhar a mesma língua, admi- complexas questões huma- sem que a segunda elimine
rar nossa literatura e nossa nas. Pensar em Saramago é a primeira ou o contrário (a
música, ou porque a cultura pensar em humanidade num canção “Mother”, por exem-
e a História de seu país estão sentido amplo; é pensar, tam- plo, trata do muro, também
na base da formação do povo bém, em amor pela humani- como forma de proteção),
brasileiro, mas, especialmen- dade. fronteiras imaginárias, fron-
te, pelo afeto que o ligava a Por toda a sua obra, e mais teiras materiais, limites,
nós. E não só a nós brasilei- representativamente no ál- repressões, castrações etc.
Noutras palavras: cercea-
mento da liberdade em seus
mais diversos aspectos. Ao
Fotos: reprodução internet
c – Olá, José. Não sei se você Espalha-se um neofascismo pelo testar pacificamente sob a lei. Eu
sabe quem sou eu. mundo e as pessoas cegamente preferiria não viver sob as regras
– Sei sim. Você é o Roger Wa- aderem a essa ideologia, como se de alguém que acredita que a di-
ters, o músico que abraçou o Bra- não soubessem da existência de tadura militar é uma coisa boa.
sil. Acompanhei as notícias. Hitler e Mussolini, por exemplo. Viver sob a ameaça de ataques
– É justamente sobre o Brasil O que você me diz sobre isto? com armas.
que gostaria de falar com você – Vejo como a possibilidade de – Para mim, Roger, “ameaçar
porque você conhece bem o país, “um governo de cegos a querer com uma arma já é atacar.”
sua cultura, sua língua, seus mo- governar cegos, isto é, o nada a (silêncio)
vimentos sociais. pretender organizar nada.” – Que bom poder tocar suas
– Tenho ligações muito estrei- – Eu sempre espero reações mãos e olhar nos seus olhos. Al-
tas com o Brasil, que transcen- negativas aos meus protestos em guma esperança me resta. Ainda
dem os limites da diplomacia. alguns lugares onde faço shows. não estou cego.
Viajo para o Brasil sempre que Mas confesso que fiquei bastante – Assim estamos, pois, “diante
sou chamado e posso. Tenho chocado com a reação de parte da das adversidades, tanto as prova-
grandes amigos por lá. minha plateia brasileira duran- das quanto as previsíveis, é que
(silêncio) te a turnê que realizei por esses se conhecem os amigos.”
– José, eu lhe vi dali de onde dias.
estava sentado e não resisti. Vim – Repara: “provavelmente nin- OBS: As falas de José Sarama-
até você para saber uma opinião guém terá notado até hoje como go entre aspas são trechos ex-
sua, a partir de um romance que são absolutamente terríveis os traídos do romance Ensaio sobre
você escreveu. gritos dos cegos, parecem eles a cegueira. As de Roger Waters
– Pois sim. que estão a gritar sem saberem são trechos adaptados de seu
– Ensaio sobre a cegueira é um li- porquê, queremos dizer-lhes que discurso durante show realiza-
vro intrigante, pois trata de uma se calem e logo acabamos nós a do em São Paulo, no dia 9 de ou-
situação que, por mais absurda gritar também, só nos falta ser- tubro de 2018. I
que pareça, estamos vivendo. Es- mos cegos, mas o dia lá virá.”
taríamos mesmo cegos? – Não gritei. Mas durante mi-
– Sim, pois compreendo que nha fala, lembrei das ditaduras Analice Pereira é professora de
“a cegueira também é isto, viver latino-americanas. Falei também Língua Portuguesa e Literatura
num mundo onde se tenha acaba- da fama de os brasileiros terem Brasileira do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia
do a esperança”. muito amor no coração e que sou
da Paraíba (IFPB). Escreve sobre
– Não há esperança, porque um defensor dos Direitos Huma- literatura e, vez ou outra, aventura-se
vivemos uma profunda distopia. nos, incluindo o direito de pro- pela ficção. Mora em João Pessoa (PB).
Doce azedo
ambiente onde a provocação não
pode recair no morno, no mediano.
A reação há de falar à pele, aos ins-
tintos, antes até de chegar à razão.
amaro:
Pois bem. É sedutor o poder de
transmutação da poesia, essa al-
quimia, que transforma a palavra
fria em um prisma de imagens
possíveis para o leitor, para o ou-
E
screver sobre o trabalho de Theo G. Alves pode soar fácil. ciações, tão originais, que somente
Mas não é. Recearia parecer excessivo, a ponto de trazer a ao gênio são possíveis, da delicade-
desconfiança de buscar encobrir obra de qualidade duvido- za tal e tamanha, que logo passa à
sa. Não teria, por outro lado, como restringir-me à discrição, mais rascante brutalidade. Confir-
quando, em Theo, enxergo uma das mais talentosas e sólidas ma-se na criação de estado poético
vozes poéticas da contemporaneidade. E dispenso limitações em quem se depara com o poema
geográficas. Eis aí o embargo quase paralisante. de qualidade, com o poema no qual
A avaliação de um livro, certamente, passa pelo diálogo os sentidos, as coisas, os fatos re-
entre autor, leitor e texto. E, obviamente, evoca todas as cir- cebem nomeação a mais surpreen-
cunstâncias que, do passado ao momento (da criação, para dente, embora não se perca de cada
quem escreve; da apreensão, para quem lê), possam influen- qual a identidade e a consciência.
ciar o produto dessa equação. Quando se trata de poesia, to- São esses os Poetas (com letra
das as coordenadas são postas em realce, porque se está em maiúscula), senhores da lingua-
gem que, sem abandono da técnica,
do ritmo e da música, conseguem
Fotos: divulgação
Hóspedes
ma o leitor depara-se com uma
arquitetura formal sofisticada e
repleta de imagens e simbolo-
gias. Sua leitura galvaniza tanto
pela temática quanto pelo estilo
do degredo
que funde contenção e densi-
dade, abarcando uma realida-
de que carrega outros dramas
e conflitos íntimos e históricos.
É tão razoável representar uma espécie Um livro metafórico em todos os
de encarceramento por uma outra como sentidos, em que a autora trans-
representar qualquer coisa que realmente põe os domínios do realismo
existe por qualquer coisa que não existe. para instaurar um trânsito de
Daniel Defoe transcendência, onirismo e ma-
gia, ao tomar como pano de fun-
do a fuga de uma personagem
da situação de fome da Irlanda
no início do século 19. Note-se,
Ronaldo Cagiano
Especial para o Correio das Artes ainda, sua destreza em mesclar
realidade e ficção, história e me-
mória, que dão um tom de dra-
ma e denúncia, além do caráter
epopeico (e ao mesmo tempo
E
scritora mineira nascida em Guarani, formada em Le-
epifânico) ao relato.
tras pela UFRJ e radicada em Londres há mais de uma
Acreditando nas promessas
década, para onde foi estudar Shakespeare, Nara Vidal
de um novo eldorado no Brasil,
acaba de publicar Sorte (Editora Moinhos, 2018), uma
o “Hy-Brasil” (aqui representado
pequena obra prima, que emoldura, numa narrativa vi-
por uma ilha movediça e cheia
gorosa e envolvente, o drama do deslocamento e da hu-
de mistérios, que aparece a cada
milhação sofrido pelas mulheres, tão ancestral quanto
sete anos, como se fosse uma pa-
a própria história dos povos. Autora, dentre outros, de
naceia para os sofrimentos), va-
O curioso mundo de Amelie, O arco-íris em preto e branco,
mos encontrar Margareth a fugir
Viajar sem dinheiro & gafes internacionais e A loucura dos
de um destino crucial traçado
outros (Editora Reformatório), criou em Londres o Capi-
desde o ventre. Acossada pela
tolina Books, um projeto vitorioso e vitrine para a nossa
miséria do país, a doença do pai
literatura, que traduz e divulga autores brasileiros na
(um homem castrador, machista
Inglaterra e Europa.
e arrogante) vitimado pelo tifo,
Sorte estrutura-se em capítulos curtos, em cuja tra-
e por uma gravidez, sai da Irlan-
Foto: reprodução internet da em direção ao Rio de Janeiro.
Ao chegar, percebe que foi víti-
ma de mais uma cilada, quando
o estado brasileiro, para atrair
força de trabalho para suas ter-
Em Sorte, Nara Vidal ras numa economia incipiente,
aborda o drama do recebia levas de imigrantes, mas
deslocamento e da
humilhação sofrido estes são tratados como escravos,
pelas mulheres submetidos a outros degredos,
como a opção de serem enviados
os homens para as guerras tra-
vadas no Cone Sul, na época em
que o conflito cisplatino opunha
Brasil e Argentina. A sedução
do estrangeiro para quem fugia
de condições miseráveis em seu
país que vivia a fome da batata,
atrai a família Cunningham, mas
tudo se transformava em degre- c
Desapartando
Não há parte que não esteja
contigo, que possa o elo
desapartar de qualquer tempo,
abraço de vida e o regresso
Rugas
Não sorria esperando volta
se há na face uma ranhura,
a lembrança torta, medonha,
de tempo sem iluminura;
no caminho a recordação
ludibriando o coração.
Poema cercado
Não se cerque de ígneo poema
nem se feche na vida líquida,
deixe-a passear solta, livre,
caminho afora, distinguida,
Retranca
de proa e abato em Baudelaire o assente
Axioma que o tempo empunha: passado e o sentido presente,
não se desmuda uma retranca,
tênue fronteira espaço-tempo, penetro na força madura
campo verde, página branca, do poeta velho que alastra
fogo entre boêmia e loucura,
na trilha a brasa a vida encurta
e as mãos do sol o verde furta, centelha rasgante do dia,
poema que a noite alumia.
os olhos cantam... E galopa
o tropel da paixão que faz
José Edmilson Rodrigues nasceu em Campina Grande (PB). É
não saber se venho da popa poeta, ensaísta, memorialista, advogado, mestre em Literatura
e Interculturalidade (UEPB), membro da Academia de Letras
e se rumo à proa impulsivo: de Campina Grande (ALCG) e sócio efetivo do Instituto
Histórico de Campina Grande (IHCG). É autor de A solidão dos
vem à toa um vento lascivo. olhos e as vertigens do tempo (Poesia, Mondrongo, 2018).
Cláudio Limeira
Chega-se a um tempo
em que vamos
nos desamarrando da vida
como um velho navio:
– monstro ferido –
soltando as amarras do cais.
E no último momento
- moritura nave –
anuncia a partida
soltando um uivo
demorado e triste
apito rouco e lancinante
certeza de quem
nunca mais
vai encontrar o mar.
Cláudio Limeira é
professor, poeta e
contista. Editou o
(*) Orlando Tejo, Sônia van Dijck, Ronaldo Monte, Biu Correio das Artes de
Ramos, Lourdinha Luna, partiram quase em sequência. 1997 a 2002. É autor
dos livros Desafio,
Talvez estejam tramando um grande espetáculo para nos
Cãotidiano, Remanso e
receber lá nas quebradas do céu. Velejando - 35 anos de
Este poema é uma homenagem a todos eles que em vida poesia (inédito). Mora em
nos encantaram. João Pessoa (PB).
Irani Medeiros
Fértil ilustração: tônio
No sétimo dia
a terra é fértil
em séculos futuros
nascerá outro Ser
redimido das dores do mundo?
Pégasus
Ainda escreverei
os adágios da morte
no lombo de um Pégasus de fogo.
ainda serei um mapa
nas partituras das valas e velas.
ainda serei estátua
no vocábulo dos pássaros
nas brancas manhãs de silêncio.
Galope
Era um galope desesperado
a beira da engenharia do abismo.
Cavalo negro
ferindo desertas planícies
com seu áspero galope
nas ferraduras da intermitência.
Caminhos
Sentado nos vagos
trilhos da vida
busco os caminhos da alma
sonhei altos muros
para fugir do presságio
da última sombra noturna.
Janelas
Os pássaros sonham em mim
janelas coloridas
os pássaros sonham em mim
abstratos canaviais
os pássaros sonham em mim
silenciosos rios
cheias e vazantes
Irani Medeiros é poeta e escritos. Nasceu em Pombal
os pássaros sonham em mim e mora em João Pessoa (PB). Os poemas publicados
manhãs de canto livre. nesta página integram o livro de poesia inédito
Réquiem para pássaros. É autor, entre outros livros,
de Fabião das Queimadas – de vaqueiro a cantador,
Dois cegos cantadores e Todas as ilhas.
As passagens
benjaminianas: ,
leituras (final)
C
omentando O camponês de Paris, de Louis Ara- sua cidade – ele é parisiense –,
gon, Vanessa Madrona, no ensaio “A metrópo- vaga por suas ruas com um olhar
le moderna, o olhar surrealista: considerações de outrem, de forasteiro, atento
benjaminianas”, dirá que “no título do roman- à cidade, aos seus monumentos,
ce [...], temos que a palavra camponês remete edifícios, habitantes, ruas, jar-
conceitualmente a condições de sociabilidade dins, parques, não se sujeitando
estabelecidas no campo, portanto, uma per- ao embotamento da percepção
cepção não urbana, cujo ritmo é lento e cons- que acomete os nativos que ad-
tante. No entanto, este será um camponês dife- quirem um olhar que se habitua
rente, pois seu olhar ensimesmado terá diante ao que está diante dos olhos, e,
dos olhos a célere e mutante capital francesa: por isso, deixa de ver critica-
Paris”. Assim, o próprio título do romance mente”. Aragon buscaria a “luz
“nos dá [...] uma pista da operação surrealista: moderna do insólito” que reina
reunir imagens aparentemente díspares em “[...] extravagantemente nessas
uma nova constelação”. Haveria um compo- espécies de galerias cobertas que
nente autobiográfico em O camponês de Paris. são numerosas, em Paris, nos ar-
Cito outra vez Vanessa Madrona: “O camponês redores dos grandes boulevards e
de Paris é o próprio Aragon que, para observar que se chamam, de maneira des-
concertante, de passagens”. Os
surrealistas teriam mesmo essa
foto: reprodução internet
Walter Benjamin
(1892-1940) foi Rinaldo de Fernandes
inspirado tanto pelo é escritor, crítico de literatura
marxismo, como e professor da Universidade
misticismo Federal da Paraíba. Mora em
João Pessoa (PB).
Negrada
Sandra Raquew Azevedo
Especial para o Correio das Artes
E
sse texto estava guardado há quase vinte anos. cena, quando a notícia chegou, nem lembro
Na verdade ele reflete um pouco sobre um epi- como e quem trouxe: mataram Negrada. Seu
sódio que nunca conseguiu sair da cabeça, ou corpo estava na “pedra”. “Ele está no hospital,
ser verbalizado de alguma outra forma. Nos na pedra”. Não sabia o que era isso, não enten-
últimos meses, ao ver inúmeras imagens em dia. Décadas depois fui na “pedra” encontrar
diferentes meios, de pessoas fazendo perfor- alguém muito amada. Mas naquele dia, esse
mances gesticulando armas com as mãos, fui enunciado trouxe a sensação de que tudo ha-
purgando, aos poucos, uma cena que marcou via mudado na atmosfera. Fora o fato de que
na adolescência. Negrada estava na pedra, ninguém mais sabia
Era o ano de 1989, consigo lembrar clara- dizer nada. Dalí em diante tudo foi só silêncio.
mente pelo fato deste ter sido um bom ano Naquele caminho pelas ruas da cidade, só
de chuvas. No Sertão esse é um marcador me vinha a cabeça a imagem do jovem ne-
importante. Nesse dia havia um movimento gro, filho de Dona Inácia, que matriculado
lindo entre as nuvens levadas fortemente pelo em minha escola, era conhecido de muitos.
intenso vento, e por uma aquarela turva a se Era um garoto de olhos vivos, que estava
desenhar no céu. O ar cheirava a terra molha- muito disponível como “garoto de recados”,
da. E era notável o movimento diferente das fazia de um tudo que lhe pedissem. Acho
pessoas nas ruas, tocadas pela alegria ao per- que sua sobrevivência estava ligada a essa
ceber que as águas iriam dentro em pouco cair possibilidade. Ele ficava mais fora do que
dos céus sobre nossas cabeças. dentro da sala de aula. Quando não estava
Estava indo à casa do amigo Eripetson Lu- no Colégio Cepa, podia ser encontrado pe- c
ilustração: tônio
A chibatada
Jesuíno André
Especial para o Correio das Artes
P
obre sofre. E como. Depois que o Todo Poderoso instituiu o livre ar-
bítrio, a ordem do Universo foi alterada. Mas o dilema cristão pouco
vem ao caso. Meu amigo Marques fora criado numa pequena cida-
de próxima da capital. Os cabelos ficaram brancos, mas as lembran-
ças do passado ainda são fortes. Quando fala do pai, então, fica com
o rosto vermelho e os olhos marejados. Orgulho puro.
Seu pai João Grande fora criado na brutalidade disfarçada de
vida. Apesar de sobrenome distinto, nasceu num lar onde o pai mal
sabia ler e a mãe era submissão. Tempos difíceis. Leitura pouca,
emprego nenhum, ganha pão escasso, as dificuldades sobravam. O
consolo vinha do alto na esperança inacabada. Mas a batalha por
aqui forjou o homem fortaleza tal qual seu nome.
Não havia espaço para idiossincrasias. O homem era o suor e era
a palavra acima de tudo. Sendo assim suportou toda forma de in-
fortúnio que sempre sobrepunha às alegrias. As vias eram únicas,
portanto sem floreios. c
Penteadeira
mana. Destruirei sua paz interna,
devastarei, dividirei com ela a
maçã branca e vermelha do dese-
jo maduro até o fim, até calçar sa-
patos de ferro e sair dançando em
direção ao abismo, até o renasci-
Raquel Naveira mento, até nossos ossos virarem
Especial para o Correio das Artes um punhado de cal e neve.”
Sentada no banco de couro
da penteadeira, a filha observa o
espelho numinoso com o terror
R
estaurou a antiga penteadeira, com o espelho de cristal biso-
que inspira o autoconhecimento.
tado e a banqueta de couro, que ficava no quarto dela, a sua
Relembra o nostálgico poema de
mãe. Muitas vezes a filha a viu frente ao espelho, que lhe pa-
Cecília Meireles: “Eu não tinha
recia baço, coberto de pó. A mãe abria potes de cremes, pas-
este rosto de hoje, assim calmo,
sava unguentos, o rosto lambuzado de grumos. Que esperava
triste, magro, nem os olhos tão
encontrar naquelas geleias? Juventude eterna? Mucos verdes
vazios e o lábio amargo. Em que
escorriam em sua pele. Havia frascos de perfume, meio aber-
espelho ficou perdida a minha
tos, violentos, exalando odores fortes em estranha alquimia.
face?” Tantos anos se passaram...
Quando o sol batia na penteadeira, quase na hora do crepús-
Como elaborar um conflito que a
culo, o torpor morno aquecia as essências e a filha tinha von-
consome há séculos? Um dilema
tade de chorar. A mãe fenecia tristemente. Algo acontecera
de mulher? Bem que um duque
no passado dela que a tornara tão vulnerável. Não conseguia
grisalho tentou protegê-la, arran-
envelhecer com graça e se satisfazer com o florescimento da
car em vão de sua boca o pedaço
filha, ao contrário, corroía-se de ciúme e inveja.
da maçã que a sufoca. Ela lhe dis-
A princípio, quando pequena, a filha a considerava uma
se: “_Perdoe-me. Não posso me
rainha, a mulher mais bela do mundo, enquanto a mãe con-
libertar de minha raiz. Agora ve-
firmava seu encanto no espelho mágico da penteadeira. A
mos por esse espelho realidades
mãe ajeitava as mechas louras, passava lápis preto ao redor
invertidas, enigmas, mas um dia
dos olhos claros. Mirava-se de longe e de perto como se o
veremos tudo face a face.”
espelho fosse a superfície da água e ela uma espécie de Nar-
Restaurou a antiga penteadei-
ciso. Sim, Narciso, aquele rapaz da mitologia grega, objeto
ra. Dentro do espelho, um espíri-
da paixão de ninfas e mortais, mas insensível ao amor. Ao
to em forma de máscara, rodeado
abaixar-se numa fonte para saciar a sede, olhou seu refle-
por fumaça e fogo, continua fa-
xo. Ficou seduzido pela própria beleza. Indiferente ao mun-
lando a verdade. I
do, apaixonada por si mesma, a mãe
se inclinava sobre sua imagem com
Raquel Naveira nasceu em Campo Grande (MS), onde reside,
meneios do corpo, projetando para a no dia 23 de setembro de 1957. É escritora, comunicadora,
frente os seios alvos de flor. conferencista, militante cultural, pesquisadora e professora.
O espelho da penteadeira brilhava, Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, entre
quando a mãe perguntou: “_ Minha outras instituições culturais. Escreveu vários livros, entre eles:
Casa de tecla (poemas, Escrituras, 1999, finalistas do Prêmio
filha é mais bonita do que eu?” O espe- Jabuti de Poesia) e Caminhos de bicicleta (crônicas, Miró, 2010).
os sávio
o: do ming
ilustraçã
A caneta
Toda essa prosa, inaudível,
fluía numa tarde de outono ma-
gérrimo sob a regência de Mer-
cúrio. O sol, desejoso de deitar,
adormecer noutro lado da eclíp-
deprimida
tica, se recolhia naturalmente.
Poder-se-ia constatar milhares
de folhas de acácia amarelas,
deitadas ao chão, ressecadas,
prontas a decolar no primeiro
assobio do vento.
Diabo! Um campo de concen-
José Caitano de Oliveira
Especial para o Correio das Artes tração? Isso! Porque no tronco
da solidão, engessado, doutor
Gilberto respirava o infortúnio;
contendia consigo, tenazmente.
Seu escritório possuía a mesma
–I
mbecil! mobília, fazia trinta anos: Um
– O quê? Quem me ofende? canapé aveludado, duas poltro-
– Idiota! Pare de fingir. Nossa vida sempre foi uma nas, duas cadeiras, o birô e o
mala de vento. tapete vermelho que, em fase
Como...? Chega! terminal, destacava-se: empres-
Algo estranho mexia-se, involuntariamente... tava ao ambiente aquela apa-
Dentro de um ego infectado. De lá, desse esconde- rência formal dos livros. “Li-
rijo, que está em cima e também embaixo, escorria um vros, livros... droga!”. Em tais
pó escuro, que caía igual à chuva; porém, não molha- ocasiões, Gilberto bisbilhotava
va a terra nem enchiam os rios e lagos. Contudo, aque- a sua consciência; perfurava-
la poeira úmida inundava, transbordava, salpicava de -a; sobretudo quando se achava
lama uma desesperada alma entrevada. Ela se ressen- multiplicado por ininterruptas
tia da má sorte. Deveras. crises de ansiedade. Que não
Nesse silencioso alojamento, hermético, Gilberto única causa, mas decorrente de
ditava, questionava de si mesmo, por meio de diálogo causa primeira: dinheiro.
mudo: protesto invisível. Um como quando a sombra “Maldita Cruz! Nenhum pin-
conversando com uma sósia. go de luz. Meu Deus!” c
Assolados
Leonardo Paiva ilustração: tônio
D
iminuía a velocidade da antiga caminhonete conforme se aproxima-
vam da construção de tijolos crus esquecida às margens da estrada. A
imensa garrafa enferrujada do refrigerante laranja boiava numa placa
na parede, anúncio de que aquele era o tal bar onde o motorista aguar-
daria o seu retorno.
Pararam ao lado da pequena varanda cujo telhado era sustentado
por três frágeis pilares de madeira. Nesses pilares, algumas mesas e
cadeiras de metal descansavam da sua labuta noturna. O sol transpu-
nha a cobertura através das telhas esburacadas, arremessando um raio
grosso e disforme nas costas nuas de um homem caído sob um orelhão
azul em frangalhos. Não precisa ter medo, disse o motorista, essa coisa
aí não faz mal a ninguém. É um traste famoso aqui da região, um da-
queles que, antes mesmo de abrir o olho, entorna um copo de cachaça
na barriga vazia.
O bêbado, de bruços, esmagava o chão de terra com o nariz. Se não
roncasse ronco que levantava poeira, diria que o homem não passava
de um corpo morto. Perto do seu ombro havia uma marmita de alumí-
nio toda mordiscada, restos de um almoço que, pelo visto, não estava
sendo digerido pelo seu estômago maltratado. O festival de ossos de
galinha roídos e de grãos de arroz espalhados em torno do corpo eram
a prova de que a comida fora tragada pelo cachorro gordo e sarnento
que dormia no vão entre suas pernas. c
Morro
da Mutuma
Willy Nascimento
Especial para o Correio das Artes
A
noite que descia pelos becos nhos que aguardavam curio-
do topo ao pé do Morro da sos. Nasceu com saúde! Filho
Mutuma trouxe consigo um da noite! Preto que nem a mãe!
choro alto e estridente. É me- Riram todos gostosamente,
nino! Um riso terno com ar de enquanto se apertavam den-
tristeza deformava a boca da tro do barraco, dando início
mãe, ainda ofegante do esfor- à comemoração; os mais ínti-
ço que empregara no parto. mos se enfileirando para en-
Segurando o filho nos braços, trar no quarto.
a mulher meditava, buscando A festa já se espalhava por
adivinhar o futuro do seu erê. quase toda a senzala, quando
Quantos açoites haveriam de um disparo seco ribombou,
fustigar aquele espírito? Sen- cessando o batuque. Uma mu-
tiu um desejo irracional de lher alta, de vestido pomposo
abraça-lo com o ventre, onde e coque no cabelo louro, sol-
estaria protegido da maldade tou o revolver no chão e saiu
dos homens... A parteira saiu correndo. Palavras confusas
para dar a notícia aos vizi- cortavam seu choro. Outro c
O canarinho
que falava
Luiz Augusto Paiva
Especial para o Correio das Artes
O
fato ocorreu comigo e com um Até que numa dessas manhãs Nunca contabilizei aquele
poeta. O versejador em questão, sabáticas descobrimo-nos prati- plantel, só me surpreendi com
por sinal, da melhor qualidade, cantes juramentados na criação o inusitado hábito do meu ami-
com igual paixão cultiva versos de canários e outorgados douto- go em batizar as avezinhas com
e os melodiosos trinar de seus res de borda e capelo em “cana- nomes de gente famosa. Estão
canarinhos. Tão conhecido esse rismo”. Temos, sem exagero al- lá o Pavaroti, o Sinatra, o Jair
bardo, quer por suas festejadas gum, autoridade na atividade, em Rodrigues, o Nélson Gonçal-
publicações, como pelo seu sin- decorrência do trato mimoso que ves. Há um, coitadinho, que foi
gular apreço por essas avezi- dispensamos a esses fascinantes atacado em sua gaiola por uma
nhas canoras, recomendou-me a bichinhos cantadores. Provavel- coruja e perdeu uma perninha,
prudência não revelar sua iden- mente, esteja aí, a razão de estrei- mas continua cantando com
tidade. Assim o farei, mantendo tarmos nossos laços de amizade. todas as virtudes de um solista
em segredo seu nome de pia. Com que paixão esse meu amigo de ópera. Meu amigo trata com
Aproximou-nos a afinidade se refere aos seus “belgas”, como mimo e cortesia esse animalzi-
em coisas das letras. Escrevinha- filhos fossem. Não poupa elogios nho. Desconfio ser o preferido;
dor de parcos recursos que sou, aos seus “rebentos” e os reconhe- é o Roberto Carlos. Há entre
contei com a obsequiosa deferên- ce até pelo canto, sabendo dis- eles uma fêmea, que por algu-
cia desse ilustre aedo em aceitar- tinguir se foi Agnaldo Rayol ou ma disfunção hormonal arrisca
-me no rol dos confrades que cos- Tim Maia quem disparou. Que o uns dó-ré-mis. Não é lá um can-
tumam molhar a palavra, vulgo gentil leitor saiba, “disparar” não tar de qualidade, mas a danada
beber e jogar conversa fora, nas é nenhuma atitude bélica, mas canta, o que é raro entre elas.
manhãs de sábado, quando nos sim o cantar intermitente, predi- Essa é a Wanderléa. Há um que
encontramos com outros cama- cado só encontrado em canários posto para cruzar com fêmea de
radas de copo e de prosa. de qualidade. excelente linhagem e muita for- c
Os novos
emparedados
H
ouve um tempo em que formávamos — Orlando Tejo, Os leitores mais bem informa-
Astier Basílio e eu — uma espécie de sodalício, ou de dos em questões armoriais, e que
trinca secreta, com frases e brincadeiras cujo verda- certamente leram o Romance d’A
deiro significado só nós compreendíamos. Por exem- Pedra do Reino, de Ariano, já devem
plo: cada um vivia dizendo que iria “lascar” os ou- ter percebido que nós lembráva-
tros dois. A “lascação”, no caso, resultaria da criação mos, com essa brincadeira, aque-
de uma obra literária genial, que alçasse o seu autor les “três possessos da Literatura”
à glória e colocasse os outros dois à sombra, ficando que eram Quaderna, Clemente e
ambos, por conseguinte, “lascados”, condenados ao Samuel, fundadores, em Taperoá,
eterno esquecimento. Lembro que Tejo só se dirigia da célebre Academia de Letras dos
à sua esposa, Josymar, chamando-a de “Prinspa”, Emparedados do Sertão da Paraíba.
sendo, por sua vez, tratado por esta de “Princeso”. E Com uma diferença, porém: entre
se eu acrescentar, a esta informação, que sou casado nós não existia o terrível elemento
com Sílvia (professora universitária, como eu) e com político para aprofundar as dissen-
ela tenho um casal de filhos, Heitor e Beatriz, o leitor sões de ordem literária. Isso por-
não terá qualquer dificuldade para compreender os que éramos, os três, “de esquerda”,
seguintes versos, que um dia recebi de Astier: se bem que o esquerdismo meu e
de Astier, se comparado ao de Tejo,
conduzia-nos às vezes mais para o
centro, quando não para uma po-
Senhora, rainha Prinspa, Metade de uma vida sição de centro-direita. É que Tejo
faça fuxico ao Princeso, eu vou passar pra compor era, de fato, de extrema-esquerda, e
que aquilo que vou contar um livro cujo objetivo costumava levar seu esquerdismo
pode deixá-lo surpreso: é só de ser o terror, exacerbado para as mais corriquei-
pras bandas de outro estado e na peia eu não aliso ras e prosaicas situações da vida.
tem cabra que tá lascado e assim eu desmoralizo Certa vez, tive a infelici-
e é capaz d’eu ser preso. pra sempre o pai de Heitor. dade de aceitar uma carona que
Tejo me ofereceu. Seu carro, muito
Por isso peço ao Princeso, A pobre da Beatriz velho e com os pneus inteiramente
que é doutor advogado, que fez o poeta Dante desgastados, já representava, por
que se acaso a justiça emburacar de cabeça si só, um risco de vida para quem
me deixar aprisionado, lá dos infernos pra diante, nele se atrevesse a viajar. Pior, ain-
da, com Tejo ao volante. Ora, Tejo
que ele puna por mim, em dois mil e tantos vai
só soltava o seu cachimbo em três
pois eu sou um cabra ruim se envergonhar de seu pai
situações: quando comia, quan-
e Carlos Newton um lascado. que foi lascado bastante.
do dormia e quando escovava os
dentes. Assim, ao dirigir, ele segu-
É um meio-Armorial, E Sílvia? Meu Deus, a pobre
rava a direção apenas com a mão
é da laia dos barbudos; invés de estar lecionando,
esquerda, enquanto a direita se di-
inventou de escrever vai passar o dia inteiro
vidia entre o cachimbo e a marcha.
um poema pra Canudos, ao lascado consolando,
Se, por acaso, o cachimbo se apa-
mas não está nos seus planos como um mordido de cobra
gava, ele não titubeava em soltar
que eu vou passar vinte anos que olha pra minha obra
a mão esquerda para, com esta em
pra derrubar seus estudos. e permanece chorando. cunha, cobrir o fornilho e proteger c