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NOGUEIRA, Oracy Preconceito de Marca e Preconceito de Origem
NOGUEIRA, Oracy Preconceito de Marca e Preconceito de Origem
racial de origem
Sugestão de um quadro de referência para a interpretação
do material sobre relações raciais no Brasil
Oracy Nogueira
por Donald Pierson, e publicado, pela primeira vez, sob forma completa,
em 1942 (cf. Pierson, 1942), ainda que anteriormente já aparecessem al-
guns estudos, de diferentes autores, sobre determinados aspectos do tema
geral de “relações raciais”, em publicações periódicas e especialmente na
Revista do Arquivo Municipal e em Sociologia, ambas de São Paulo.
Tanto devido à repercussão do trabalho de Pierson como ao maior con-
tato dos estudiosos nacionais com a literatura científica estrangeira e, em
especial, com a norte-americana, passou o tema a ser objeto de estudos mais
freqüentes, conforme o testemunham as páginas das revistas eruditas e, em
particular, as dos periódicos mencionados.
Em 1950, publicou Felte Bezerra seu livro Etnias sergipanas (cf. Noguei-
ra, 1950, pp. 323-331), em que estuda o povoamento e a composição atual
da população do estado de Sergipe e considera válidas, “em sua quase tota-
lidade”, em relação a essa unidade política, as observações feitas por Pier-
son, com referência às atitudes entre elementos brancos e não-brancos e, de
um modo geral, com referência à “situação racial” da Bahia, em seus múlti-
plos aspectos.
Além de seus conhecidos trabalhos que se enquadram na corrente dos
estudos “afro-brasileiros”, Roger Bastide tem dado uma valiosa contribui-
ção ao conhecimento da “situação racial” brasileira e, em particular, ao da
situação de São Paulo, sob o ponto de vista sociológico (cf. Bastide, 1951a;
1951b; 1953).
Sob os auspícios da Unesco, várias investigações foram realizadas, recen-
temente, em diferentes pontos do país, por estudiosos nacionais e estran-
geiros, sendo que, em alguns casos, o estudo de “relações raciais” se entrosou
com “estudos de comunidades” ou outros levantamentos sociológicos já em
andamento: Charles Wagley (1951) estudou a “situação racial” de uma co-
munidade rural da Amazônia (cf. também Wagley, 1953), enquanto discí-
pulos seus se incumbiram de analisar o mesmo aspecto da vida social com
relação a comunidades rurais situadas no “sertão” (cf. Zimmerman, 1951),
na região montanhosa do Brasil central (cf. Harris, 1951) e no Recôncavo
baiano (cf. Hutchinson, 1951); Thales de Azevedo (1953) tratou da mobi-
lidade vertical (a ascensão social) de elementos de cor, na cidade do Salva-
dor; René Ribeiro (1953, pp. 210-259) estudou a “situação racial” do Nor-
deste; Costa Pinto (1953) procedeu a estudo análogo, com relação ao Distrito
Federal; e, em São Paulo, Roger Bastide e Florestan Fernandes (1953) rea-
lizaram uma pesquisa, com referência à capital do estado, onde Virgínia
Bicudo (1953-1954) e Aniela Ginsberg (1954) também procederam ao es-
A projeção dos conceitos de branco e de negro, de uma situação à outra, 8.Um dos últimos li-
leva a qüiproquós cuja consideração será útil ao estudo comparativo de “rela- vros de Sinclair Lewis,
Kingsblood Royal, apre-
ções raciais”. Assim, indivíduos ligeiramente negróides ou completamente
senta o drama de um
brancos e que, como brancos, sempre viveram, no Brasil, indo aos Estados cidadão bem-sucedi-
Unidos, podem ter a surpresa de serem considerados e tratados como negros. do, no mundo dos ne-
O próprio autor do presente trabalho conheceu, em Chicago, um intelec- gócios (banqueiro) e
tual brasileiro, mestiço claro, cuja identificação como branco nunca fora na “sociedade”, e que,
através de um antigo
posta em dúvida, no Brasil, e que passava, então, por profunda crise emocio-
documento deixado
nal, por ter sofrido discriminação no hotel a que fora recomendado. De ou- por um ancestral, des-
tro lado, negros norte-americanos, em viagem pelo Brasil, em função da au- cobriu ser descenden-
sência ou da intensidade dos traços negróides, podem ser vistos e tratados te de negro.
como brancos, mulatos claros, mulatos escuros ou pretos, daí havendo de
resultar depoimentos extremamente contraditórios, ao relatarem suas expe-
riências, de volta a seu país. Em Chicago, numa instituição freqüentada por
estudantes universitários, cujo regimento proibia a discriminação racial, es-
tudantes brasileiros de ambos os sexos se irritavam com a atitude de uma
jovem americana, loira, que constantemente se apresentava ao lado de um
homem preto, com quem dançava e a quem permitia outras demonstrações
de intimidade. Alguns dos estudantes que assim se irritavam apresentavam
traços negróides bem visíveis. Ficaram todos surpresos ao serem informados
de que aquela loira, nos Estados Unidos, era “negra”. Um dos estudantes
brasileiros (branco, de cerca de quarenta anos de idade, estudante pós-gra-
duado, com dois diplomas universitários obtidos no Brasil, com cerca de dez
anos de exercício de profissão liberal), ao saber da identidade racial da referi-
da moça, e ao ser informado de que, nos Estados Unidos, devido à definição
de “negro”, há indivíduos completamente brancos que como “negros” são
considerados, brincou: “Pois eu vou me casar com uma negra loira como esta
e vou escrever para a minha família, dizendo que me casei com uma negra!
Minha família vai pensar que enlouqueci! Quando chegar ao Brasil e desem-
barcar com minha mulher, ninguém vai acreditar que ela é negra”.
Um negro norte-americano ficará desapontado ao ver que um brasileiro,
de quem esperaria lealdade “racial” por considerá-lo de seu grupo, em fun-
ção do conceito de negro corrente nos Estados Unidos, se identifica com o
grupo branco e manifesta preconceito em relação a elementos de cor.
3. Quanto à carga afetiva: onde o preconceito é de marca, ele tende a ser
mais intelectivo e estético; onde é de origem, tende a ser mais emocional e
mais integral, no que toca à atribuição de inferioridade ou de traços indese-
jáveis aos membros do grupo discriminado.
com uma pessoa de cor clara revela, em geral, insatisfação com os traços ne-
gróides e preferência pelo tipo europeu, desejando que a este pertençam os
seus descendentes.
Ao mesmo tempo que é miscigenacionista, no que toca aos traços físicos,
a ideologia brasileira de relações inter-raciais ou interétnicas é assimilacio-
nista, no que se refere aos traços culturais. Em geral, espera-se que o indiví-
duo de outra origem, que não a luso-brasileira, abandone, progressivamen-
te, sua herança cultural, em proveito da “cultura nacional” – língua, religião,
costumes. As expectativas assimilacionista e miscigenacionista manifestam-
se, ambas, tanto em relação aos elementos de procedência africana e indíge-
na como em relação aos imigrantes estrangeiros e sua descendência.
Não obstante acobertar uma forma velada de preconceito, a ideologia
brasileira de relações inter-raciais, como parte do ethos nacional, envolve
uma valorização ostensiva do igualitarismo racial, constituindo um ponto
de referência para a condenação pública de manifestações ostensivas e in-
tencionais de preconceito, bem como para o protesto de elementos de cor
contra as preterições de que se sentem vítimas. Além disso, dado o orgulho
nacional pela situação de convivência pacífica, sem conflito, entre os ele-
mentos de diferente procedência étnica que integram a população, as mani-
festações ostensivas e intencionais de preconceito assumem o caráter de
atentado contra um valor social que conta com o consenso de quase toda a
sociedade brasileira, sendo por isso evitadas.
Nos Estados Unidos, a expectativa da maioria, em relação às minorias
sujeitas a discriminação, é de que se mantenham endogâmicas e nucleadas,
constituindo cada qual um mundo social à parte, de modo a se imiscuírem
o mínimo possível com aquela, cuja “pureza” racial e característicos se con-
sidera necessário preservar.
6. Quanto à distinção entre diferentes minorias: onde o preconceito é de
marca, o dogma da cultura prevalece sobre o da raça; onde o preconceito
é de origem, dá-se o oposto. Conseqüentemente, onde o preconceito é de
marca, as minorias menos endogâmicas e menos etnocêntricas são favore-
cidas; onde o preconceito é de origem, ao contrário, há maior tolerância
para com as minorias mais endogâmicas e mais etnocêntricas.
Assim, no Brasil, freqüentemente, se ouve alegar, como agravante, em
relação aos japoneses, sírios e outros grupos de imigrantes, que os mes-
mos “não se casam com brasileiros” e procuram preservar seu próprio
patrimônio cultural – língua, religião, costumes. Em São Paulo, um des-
cendente de sírios observou, gracejando: “O problema do italiano, no Bra-
Então, diz-se, de um jato, tudo aquilo que se vinha evitando dizer, “tudo 19. Embora as áreas em
aquilo que se vinha segurando”. que os elementos de cor,
no Brasil, mais freqüen-
No campo das relações inter-raciais, como já foi visto, a regra é o branco
temente esbarram com
evitar a susceptibilização do homem de cor. A própria palavra “negro”, ge- manifestações ostensivas
ralmente, se reserva para os momentos de conflito, preferindo-se, nas fases de preconceito sejam as
de acomodação, expressões como “pardo”, “mulato” e “preto”, quando não mesmas de maior con-
eufemismos como “moreno”, “caboclo” (em relação a indivíduos negróides) centração de imigração
européia, não se pode
etc. Mesmo quando ocorrem situações em que a presença do indivíduo de
considerar a intensifica-
cor seria considerada indesejável ou incômoda, o mais comum é se lhe “dar ção do mesmo como um
a entender” o problema que está pendendo ou que ele “está causando”, sem simples efeito de trans-
se chegar “ao extremo” de lhe chamar franca e abertamente a atenção. plantação cultural. Em
Uma das conseqüências diretas da orientação aqui assinalada é o caráter certos casos, pelo menos,
intermitente que tende a assumir a consciência de raça, no brasileiro de cor. como no do italiano, em
São Paulo, parece que o
Outra conseqüência, não menos importante, é que o processo de acomoda-
imigrante não tinha, no
ção é facilitado pelo “desarmamento afetivo” do negro. início, uma atitude pre-
O traço do ethos norte-americano que se opõe diretamente ao do ethos concebida e rígida em
brasileiro, aqui descrito, é a franqueza sem subterfúgios. Também este tra- relação aos elementos de
ço, tal como o da sociedade brasileira, tanto se manifesta nas relações inter- cor. Os casamentos de
imigrantes ou descen-
raciais como nas situações de relações interindividuais, em geral.
dentes de imigrantes ita-
No campo das relações inter-raciais, o referido traço contribui para a lianos com pessoas de cor
continuidade obsessiva da consciência de raça do negro norte-americano, não parecem mais raros
bem como para o estado quase permanente de conflito que caracteriza a que os de brasileiros
situação racial dos Estados Unidos. brancos de origem por-
tuguesa. Ademais, o pró-
Em conclusão, deve ser lembrado que além de cada proposição que inte-
prio apreço do brasileiro
gra o quadro de referência aqui apresentado constituir uma hipótese que
pela cor branca há de ter
poderá servir de ponto de partida para uma multiplicidade de pesquisas, a lisonjeado o imigrante
serem realizadas tanto no Brasil como em outros países, outros problemas dessa cor que, com a in-
de igual relevância poderão ser formulados tendo-se em vista o mesmo es- teriorização dos demais
quema. Será importante, por exemplo, verificar, sistematicamente, qual a valores da cultura luso-
brasileira, terá, também,
influência quer da industrialização, quer da urbanização, em cada um dos
interiorizado o próprio
dois tipos de situações raciais descritos. No que se refere particularmente ao preconceito. De qual-
Brasil, está, igualmente, a demandar pesquisa a questão da relação entre a quer modo, será uma hi-
imigração estrangeira e a freqüência e intensidade das manifestações de pre- pótese a se examinar.Um
conceito19 . homem de cor, sargento
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Resumo
Abstract
Mark and origin: a framework for the analysis of racial prejudice in Brazil
The objective of this text is to construct an interpretative framework capable of being
applied as a set of hypotheses to studies of race relations in Brazil. It presents twelve
propositions that help determine the differentiating features of two types of preju-
dice and dynamics of racial situations in Brazilian society and US society. This aim in
mind, it denominates the form in which these features are presented in Brazil as
“mark prejudice”, and the way in which they are constituted in the United States as
“origin prejudice”.
Keywords: Racial prejudice; Brazil; United States; Mark; Origin; Race relations.