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O SUJ EITO NA CO NTE MP O RA NE I DA DE

CAPÍTULOGO tempo vai para o espaço 95 Introdução


Passagem ao ato e aCtUlg-OUt 96
Encenação e somatização 99
Transtaçã o 101
I ç ã o coartada 103
V. 4 ó r d i o s da transformação 105

CAPITULO a z i o no existir 113


Is Intensida f e t a ç ã o , sentimento 113
H. A despossess s 117
s Desencantamen f a d i g a e cot são de si 121 A contem poraneidade se revela como uma fonte permanente
d e s i de surpresa para o sujeito, que não consegue se regular nem
CAPITULO8 Pensamento e mem negativo 125 seantecipar aos acontecimentos, que como turbilhões jorram
1. Derrocada do pensame 126 de maneira disseminada ao seu redor. Onde quase tudo se
ti Retórica instrumental e s nsão da poiesis 133
revela de maneira imprevisível e intempestiva, o efeito mais
CAPITULO 9 Do sofrimento 137 evidente disso, no sujeito, é a vertigem e a ameaça do abis-
1. Pontuações metodoldfcas 137 mo. Como o improvável acaba quase sempre por acontecer,
H. Solipsismo e afterid e 138 subvertendo-nos, isso nos faz vacilar em nossas certezas.
Assim, as mais diversas escalas e dimensões da experiência
CAPITULO 10 Mu n d negacionismo na vi n u a 145
são permanentemente perpassadas pela surpresa e pelo Lu-
Bibliografia cit 151 . provável. Nos registros da economia, da política, das ciên-
cias, das artes e da cotidianidade, o sujeito se choca com o
imprevisível, que o desorienta. Assim, podemos dizer que,
tanto no registro coletivo como no individual, nas escalas
local e global, a subjetividade foi virada de ponta-cabeça.
Secompararmos, de maneira superficial e impressionista,
o campo social da contemporaneidade com o que ocorria
poucas décadas atrás, a transformação em pauta é certa-
mente radical. Os signos que nos orientavam no mundo e
nos direcionavam na existência, assim como seus códigos de
interpretação, foram deslocados de suas posições e lugares
O SU JEI T O N A C O N T EM PO R AN EI D AD E I NTRO DUÇÃO

simbólicos. Muitos deles desapareceram. Outros, em contra- constituição da experiência subjetiva, a expensas da catego-
partida, perderam a força e a valência de que eram investidos, ria de tempo. Com isso, não apenas é atingido o registro do
sendo realocados em outros conjuntos, que passaram então a desejo, como também a expectativa de um futuro possível,
ser dominados por outros signos, considerados agora corno que incide na possibilidade de remanejar
hierarquicamente superiores. Com isso, outifes códigos foram • a s doc presente.
estritas o o r dTudoe nseapassa
d a como
s se a subjetividade
forjados, sem que seus enunciados sejam sempre patentes. acreditasse que estivesse vivendo num eterno presente, no
E4tretanto, numa leitura sutil das entrelinhas desse pro- qual a repetição do mesmo fosse tão poderosa que não
cesso social e histórico, as coisas não ocorreram exatamente anunciasse mais qualquer possibilidade de ruptura e de
desta forma. Deslocando-nos da superfície patente e literal descontinuidade.
do sistema de signos e dos códigos para a dinâmica de for- Ao lado disso, essa espacialização da experiência psíquica
ças que os impulsionam, agora no registro latente, podemos seria o correlato da dominância no psiquismo da sensação
encontrar já a marca de algumas fendas e desordenações de dor a expensas do sofrimento, considerando que este
quadro anterior, tomado até então corno referência. Nessa pressuporia sempre a temporalização daquela experiência.
leitura, as indicações de ruptura e a emergência das descon- De fato, se a dor evidencia uma posição solipsista do sujeito
tinuidades aparecem corno rastros, podendo então assumir eo seu fechamento em face do outro, o sofrimento seria algo
corpo e forma, rompendo, enfim, a paisagem plácida do de ordem alteritária, que pressuporia o apelo e a demanda
horizonte irapressionista inicial. endereçada ao outro. Portanto, o sofrimento corno marca
A intenção deste ensaio é indicar e empreender uma inter- das tormentas do sujeito implicaria uma transformação do
pretação dessa transformação em curso, no registro estrito do registro da dor, que seria sempre permeada pela simbolização
sujeito. Para tanto, propõe uma leitura deste pela delimitação e temporalização desta. Na opacidade da dor, enfim, seria
das formas de mal-estar que o acomete e o acossa em sua aespacialização na experiência do sujeito que dominaria as
existência. Pretendo, assim, destacar que, da modernidade coordenadas deste.
à atualidade, algo de fundamental aconteceu nas categorias Porém, se o sujeito atado na dolorida posição solipsista
constitutivas daquele, redirecionando então as linhas de não pode fazer qualquer apelo ao outro, é o desalento que se
força do seu mal-estar. É no quadro estrito desse contraste, impõe como pathos, destinando-o então à paralisia. Em con-
entre modernidade e contempomneidade, que se inscreve a trapartida, o desamparo, como correlato que é da experiência
espinha dorsal deste livro. do sofrimento, possibilitaria ao sujeito um movimento dese-
Pretendo sublinhar, assim, como a categoria de espaço jante, que seria a condição primordial para a simbolização
assume uma prevalência e dominância cada vez maior na ea tempgralidade.
O SUJEITO N A CO NTE MP O RA NE I DA DE

Enfim, éessa transformação, essa virada de ponta-cabeça


nas coordenadas constituintes do sujeito, num contraste tenso
entre modernidade e contemporaneidade, que pretendo tratar
ao longo deste ensaio, percorrendo as dinâmicas espaço/
tempo, dor/sofrimento e desamparo/desalento.

CAPÍTULO1 I
o
s o n h
o
a o
1.Sonho e percepça
p e s
a d
Este e pretende c
ensaio vidência a configuração
l o
predominante e progres e espacial assumida pela
experiência do sujeito na co oraneidade. Porém, vou me
centrar, no começo deste perc , na leitura da experiência do
sonho, na sua diferença em rel ãexperiência da percepção.
Portanto, é a lógica imanent econtraste, e da oposição
entre estes dois registros psi que veremos agora.
A indagação primeira alie se i h
1 õ e conferido
destaque a q u iao so Jéo, num s a i o que se propõe a
a
analisar r a z rcadarnen
a configuração ã o espacial, evidenciada
- dp e e s l sa e e sutividade, na ualidade. Por que
d
ca
n
riê
xp
enfatizar a leitura do s s
indicar
t de maneira su ir aria, para condensar e antecipar as
p h o s dimensões
diferentes ? h o meu argumento fundamental, que
P o r
desenvolverei ao longo do livro.
d i v e r s a
CAPITULO3 Subjetividades contemporâneas

Coordenadas da atualidade

Tudo o que foi dito anteriormente converge para uma leitura


acurada das subjetividades na contemporaneidade. Para isso,
no entanto, é preciso delineá-las nas suas especificidades
e marcar ao mesmo tempo as suas diferenças em face das
formas pelas quais as subjetividades se configuraram na
modernidade. As relações entre as categorias do espaço e do
tempo, na estruturação da experiência do sujeito, nos forne-
cerão a direção interpretativa que nos propomos a realizar
aqui. A esPacialização da experiência toma efetivamente a
dianteira desse processo de transformação em pauta, pelo
qual a temporalidade progressivamente se apaga e no limite
quase se suprime.
Dessa perspectiva, não é um acaso que Fukuyama tenha
elaborado seu discurso sobre o fim da história com base
justamente neste contexto histórico, numa leitura sobre a

R
O SU JEI T O N A C O N T E M P O R A N E SU BJET I VI D AD ES C O N T E M P O R A N E A S
.
I D AD E

funcionalidade da sociedade contemporânea e em defesa teóricas numa leitura retrospectiva, Debord enunciou o
dos pressupostos do neoliberalismal O equilíbrio e o dese- conceito de sociedade do espetáculo, na qual os registros do
quilíbrio de mercado se inscrevem no primeiro plano dessa olhar, da visibilidade, da cena e da exibição se destacavam
leitura, numa interpretação em que a sociedade se reduz, no na configuração das novas modalidades de sociabilidade.
limite, à condição de mercado de bens e serviços. Ao lado 3Os laços sociais se restringiriam então ao campo da ima-
disso, não é também um acaso que outros teóricos, como gem, de maneira que a cena social se reduziria à retórica do
•Lasch, enunciem criticamente a constituição da cultura do narcisismo. Seria a produção e a exaltação desenfreada das
narcisismo na atualidade, imagens de si mesmo, para o deleite do outro, num campo
2 problemática
a n e s t e da imagem se inscreve no primeiro plano na sempre imantado pela sedução, o que passaria a dar as cartas
c o n t e dos
preocupação x tagentes
o sociais. do jogo na estética performática do espetáculo.
h Para
i s Fukuyama
t ó r ei Lasch,
c o que está em questão, de forma Essa transformação fundamental pressupõe uma mudança
o ,
explícita e implícita, é a mudança crucial nas relações dos nas formas de mal-estar presentes na contemporaneidade.
p
sujeitos ecom olespaço e o tempo, pela qual o primeiro tende A leitura do mal-estar é o leme que nos indica uma direção
a englobar o segundo. Assim, enunciar criticamente a emer- segura para as transformações que estão aqui em pauta.
q
gência dou fim daahistória e formular a perda de potência da Ao lado disso, nos permite contrastar o mal-estar que se
l
temporalização na existência social, com a consequente im- evidenciava na modernidade e aquele que ocorre na contem-
possibilidade na realização de rupturas e na inflexão de des- poraneidade. Isso porque o mal-estar é o signo privilegiado e
continuidades na experiência social, implica necessariamente acaixa de ressonância daquilo que se configura nas relações
o silenciamento da temporalidade e a expansão conferida à do sujeito consigo mesmo e com o outro, revelando, assim, as
espacialidade. Ao mesmo tempo, a suposta hegemonia do coordenadas cruciais que seriam constitutivas da experiência
narcisismo nos destina às miragens do eterno presente, na subjetiva. Vale dizer, é preciso delinear diferencialmente a
sua repetição do mesmo, n o condição do sujeito, na modernidade e na atualidade, pela
-a experiência também se espacializa, condenada que fica à leitura de suas respectivas modalidades de mal-estar, Enfim,
a q u i e de qualquer horizonte de futuro.
inexistência as formas de estruturação do sujeito se evidenciam melhor
a Numg o momento
r a . histórico anterior a essas formulações pela captação de suas formas de padecimento.
C
teóricas,o mas m que as delineavam já como possibilidades O que é que estou denominando aqui de mal-estar?
i s s o ,
e n f i m
F. Fukuyama, O fim da história c o último homem.
,C. Lasch, The culture of 'G. Debord, La société dl< spectacle.
.
O SU JEI T O N A C O N T EM PO R AN EI D AD E SU BJET I VI D AD ES C O N T E M P O R Á N E A S

11Mal-estar
quismo, ao deslocar o homem do registro da natureza para o
da cultura. Não obstante suas múltiplas diferenças, seria essa
O mal-estar é um conceito eminentemente psicanalítico, que oposição fundamental que direcionada as interpretações em
foi enunciado por Freud em O mal-estar na civilização,' em pauta, de maneira que a pulsão, como ser de natureza, seria
1930. Como indiquei em outros livros,' o que está em jogo irredutível à ordem da cultura. Daí o mal-estar decorrente
no discurso freudiano, neste ensaio, não é o mal-estar do desse conflito insuperável.
sujeito no sentido lato do termo, ao se inscrever em qualquer O que essas interpretações não consideraram devidamente
ordem social e em diferentes contextos históricos, mas o foi não apenas a novidade da palavra civilização na tradição
mal-estar na modernidade no sentido estrito. Foi a condição do Ocidente, como também do seu conceito. A emergência
eo estatuto específicos do sujeito na modernidade que Freud histórica desta palavra, assim como sua inscrição em nosso
procurou destacar, delineando o campo do mal-estar como vocabulário e sua circulação social corrente, evidenciam a
o seu correlato. Isso porque o sujeito foi esboçado como produção de processos sociais e políticos que lhe são fun-
necessariamente histórico, não obstante a sua condição dantes e correlatos.
puisiona/ de base. Seriam os destinos psíquicos das pulsões, Relativainente recente na tradição ocidental, e inexistente
6
delineados na relação destas com os outros e com os dispo- na Antiguidade e no mundo medieval, a palavra. "civiliza-
sitivos sociais, que constituiriam tanto o sujeito quanto o ção" constituiu-se apenas no século XVIII, na França e na
mal-estar correlato.
Inglaterra. Essa constatação foi a resultante da pesquisa ini-
Sobre isso, é preciso destacar algumas questões prelimina- cial realizada por Lucien Febvre
res, para localizar devidamente a problemática do mal-estar. 7 e m
comentário 1
arguto
9 3empreendido
0 por Benveniste
No discurso freudiano, a interpretação a-histórica e sem e eleitura
8
Na m realizada
1 9 5 por4 . este, ficava em aberto a indagação
referência rigorosa a qualquer contexto social, na leitura da rseaepalavra
t o tinha
m asidodinventada
a duas vezes nessas diferen-
palavra civilização, foi a resultante tanto de uma leitura ntes tradições,
u m
independentemente e na mesma época, ou se
evolucionista inicial quanto de uma leitura estruturalista f o r n tradição francesa que a introduzira no vocabulário
posterior desse discurso. Dessas perspectivas, o imperativo da Europa moderna.
civilizatório produziria inevitavelmente o mal-estar no psi- As investigações realizadas posteriormente conseguiram
trilhar a pré-história desta palavra, desde o Renascimento,
'S. Freud, Malaise dans la civilisation.
'J. Bilman, O mal-estar na atualidade. Idem, Argainos do mal-estar e da resis- Febvre, Citalisation. Le mot et l'idée.
tência. • 'E. Benveniste, C o n t r i b u t i o n à l'histoire du mot" (1954). In, E.
6 Benveniste, Pt2blemes de linguistique génárate, torno 1, p. 336-345.
5

O SU JEI T O N A C O N T EM PO R ÂN EI D AD E SU BJET I VI D AD ES C O N T EM PO R ÂN EAS

e enfatizar como se disseminou pela Europa desde O sécu- te sedimentados. Estaria bastante distante, assim, do uso
lo XVII. Foi esta a contribuição dada tanto por Norbert aternporal dessa palavra e conceito. Vale dizer, o discurso
Elias freudiano estava sempre referido ao discurso do iluminismo
9
sociais diferentes. Foi apenas então que se constituíram os francês, assim como ao do romantismo alemão, ao manejar
q u de linguagem" iniciais para o seu uso, assim como
jogos esta problemática da civilização.
a seus
os n correlatos jogos de verdade." No século XVIII, os Portanto, a categoria de civilização se identificava•de-
t o
discursos antropológico, político e ético, fundados todos cididamente com a de modernidade, declinando-se então
nop Iluminismo, fixaram outras regras de linguagem e de
de maneira orgânica com essa. O conceito de mal-estar na
o
verdade para o seu uso." Em decorrência disso, a catego- civilização implicava sempre o enunciado da existência do
rria de civilização passou a ser oposta à de barbárie, sendo
mal-estar na modernidade. Seria essa, assim, a condição
S
ambas, assim, fartamente incorporadas pela retórica e pelo concreta de possibilidade para a produção do dito mal-estar,
t
imaginário social no século XIX.
a tal como foi finalmente formulado pelo discurso freudiano..
Foi certamente desse solo antropológico, no qual foram Contudo, ao articular e declinar a palavra "mal-estar"
r
opostas as categorias de civilização e de barbárie, que se com a palavra "civilização", acoplando agora intimamente
o
constituiu o paradigma evolucionista na antropologia. Ao uma na outra e forjando com isso um sintagma, o discurso
b
lado disso, no registro estritamente político, foi ainda do freudiano provocava então uma evidente dissonância na
i
. concepção de civilização, implodindo radicalmente o sentido
n
cropeu no século XIX. original dessa. É a originalidade teórica disso que deve ser
s
a Assim, quando Freud se valeu da palavra civilização então destacada. Revela-se, assim, no discurso freudiano,
k
m para
i " cunhar o conceito de mal-estar na civilização, estava uma crítica da modernidade e de seus pressupostos, pelo
pefetivamente inscrito neste solo arqueológico. Em decorrên-
, mal-estar subjetivo que essa seria capaz de engendrar. Com
ocia disso, incorporou esses jogos de linguagem e de verdade
e efeito, as perturbações do espírito seriam disso resultantes,
dque foram aí produzidos, e quê foram apenas recentemen-
m em decorrência das interdições eróticas que a modernidade
e
t constituiu para os indivíduos, a fim dese fundar enquanto tal.
s
'N. e Elias •Seria justamente esta crítica da modernidade que estaria
s, LStarobinski,
ma "Le mot civilisarion'. In: J. Starobinski, Le reméde dons l e então no fundamento do discurso freudiano e no enunciado
ca i m v ai ? .
Wingenstein, "Investigarmos philosophiquespin: L. Wirtgenstein, Tractatus
l p
logico-philosophicus
i s a sun); de'inuestigations philosophig,ues, • do conceito de mal-estar. O que implica afirmar que este
o
to i oFoucault,
n "Les Technologies de soi-nième". In: M. Foucault, Dits a Écrits,
vol. IV.
pe s
d
discurso éa contraface do mal-estar presente na modernidade
"M.
m
s Duchet, Anthropologie et histoire au siècle des lumières. e a denúncia de sua dimensão grotesca, sendo então a mo-
o
oe t
OSUJEITO NA CONTEMPORANEIDADE SUBJETIVIDADES (ONTEMPOR ÁNEAS

dernidade sua condição histórica de possibilidade. Portanto, homens e mulheres," com nítida desvantagem para estas,
a psicanálise, corno saber constituído no fim do século XIX, certamente em decorrência dos valores do patriarcado, que
foi urna tentativa de resposta e de solução para o mal-estar as submetiam aos homens."
existente na modernidade. A racionalidade científica e tecnológica do Ocidente, que
Assim, em "A moral sexual 'civilizada' e a doença nervosa s
dos tempos modernos", e
dade
14 e n que
indicava s aoique
o estava em questão nesta problemática era -.
efeitos decisivos rio registro ético. O estilo presente no dis-
p moral
a u b presente
l i c a na dmodernidade, que seria a condição de ,e
curso freudianb é sempre o da crítica, nunca o do elogio,
o
possibilidade das perturbações nervosas. Isso porque a dita • n
seguramente,ã não obstante os compromissos sempre renova-
e
moral m
incidiria efetivamente sobre a existência erótica das cdos
o deste discurso teórico com a tradição da racionalidade
1 9 0
individualidades, 8
impondo, assim, restrições e imperativos o
e
ocidental." É preciso ficar sempre atento a isso para que
,tão insuportáveis que seriam capazes de perturbar, de ma- não rn percamos de vista o horizonte ético e político que está
F indelével,
neira r e o funcionamento do espírito. tem pauta na crítica do discurso freudiano da modernidade.
a
u Inaugurando,
d então, sua crítica sistemática da modernida- rc Por isso mesmo, em "Considerações atuais sobre a guerra
de, o discurso freudiano retomou os pressupostos enunciados a
e
ea morre", ensaio escrito em 1915, no calor sangrento da
nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,'s segun- rv t
Primeira Guerra Mundial, Freud revela sua perplexidade
do os quais a sexualidade humana seria originariamente a
diante dos efeitos devastadores produzidos pela civilização
p
m
perverso-polimorfa, tendo que ser recalcada em nome do ocidental!' Isso porque os representanteS maiores desta —
r
e
imperativo da reprodução da espécie." Além disso, a bis- isto é, a Alemanha, a França e a Inglaterra --H que deveriam
e
n
sexualidade originária da condição humana seria também justamente se regular pela razão científica, utilizavam-na,
ts
recalcada, em função do estabelecimento da ordem familiar." em contrapartida, para finalidades destrutivas e, no limite,
e
Esta, de fato, assumiu uma versão não apenas nuclear, mas anticivilizatórias.
n
a
sobretudo monogâmica, que teria afetado psiquicamente •22As então denominadas sociedades primitivas mostra-
lt
vam-se, assim, ser bem mais civilizadas que as do Ocidente,
e
h
n
e
S. Freud, "Lu morait sexuelle icivilisée) cria maiadic nerveuse des temps mo-
dernts" (1908). In: S. hen& La vie sexuelle, ia
15
"S, Freud, Trois essais sur Ia théorie dela sexualité. ens aio. 21 fb
a
"S. Freud, "La morale sexuelle cciviliséei et ia maladie nerveuse des temps uno- "i S. d Fréud, "ConsIdérations actuelles sur Ia gucrce et sur Ia more', In: S. ['reli&
dernes". In: S. Freud, La uie sexuelle, 5a
a u
e a l s de psychanalyse.
"%idem. illbidern,
.m n
t .
F.
.
d
u
O SUJ EITO NA CO NTE MP O RA NE I DA DE SUBJ ETIVIDADES CO NTEMPO RANEAS

não obstante serem por estas consideradas não evoluídas e ziram as individualidades insofismavelmente ao narcisismo,
até mesmo próximas da barbárie. à violência, à crueldade e à destruição!'
23 I s ético
respeito s o pelap ovida
r eq pela
u emorte, no qual a alteridade, O desamparo, no entanto, foi articulado precisamente
r e valor
como v eéticol afundamental,
v a m estaria sempre no centro de aqui à nostalgia da figura do pai,
u práticas
suas m sociais, mesmo na experiência-limite da morte 29 q u simbólico
registros e, c e real,
o m o presença aterrorizante pela
se fazia
eda guerra!' A alteridade, como valor fundante do discurso a u s êimplacável
severidade n c i do a superei'.
, Seria isso, então, o que
ético, enfim, teria sido silenciada e entrado em franco eclipse n o as subjetividades
conduziria s na modernidade às diferentes
na modernidade ocidental. perturbações do espírito, articuladas sempre pelo narcisismo,
O célebre ensaio sobre o mal-estar na civilizaçao, pela violência, pela crueldade e pela destruição."
25 e sdos
na aurora c ranos
i t o1930, foi o desaguadouro crítico a que
conduziram esses comentários anteriores. O discurso freudia-
no sistematizou aqui os impasses do projeto da modernidade, Transformações
indicando como o narcisismo solapava por dentro a máxima
ética do Iluminismo, centrada na felicidade, no culto do eu Não existem mais dúvidas sobre as mudanças nas formas de
e no prazer, mal-estar na contemporaneidade, em contraste patente ao que
pressuposto
26 ético do cristianismo, tornando-se este então nos descrevia de maneira cortante o discurso freudiano. O
S eri a
insustentável, na medida em que, segundo a lógica daquele, quadro hoje é outro, francamente diferente. Todos estão de
o impossível "amar o próximo como a si mesmo", con-
seria acordo quanto a isso. Existe, com efeito, uma transformação
n a renunciado
forme c por Cristo. nas formas de mal-estar, que é reconhecida pelos discursos
i sPorém,
i s a tese fundamental sobre o mal-estar na moderni- psiquiátrico e psicanalítico. No entanto, as divergências exis-
m ose,condensou, agora, em torno da experiência psíquica
dade tem, mas não concernern ao reconhecimento das mudanças
a desamparo»
do i À presença trágica da sua experiência na em pauta, e sim à sua interpretação, pelas implicações que
n d
subjetividade moderna e os destinos terroríficos construídos disso decorrem.
a ,
por essa subjetividade para lidar com o desamparo condu- A psicanálise certamente foi surpreendida pelas transfor-
q
mações em curso, não sabendo ainda como se confrontar com
u
o que existe aqui de inédito. Com isso, seu discurso derrapa
2 1
e
21
1 b

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"Ibidem.
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O SU JEI T O N A C O N T EM PO R AN EI D AD E SU BJET I VI D AD ES C ON t EEM POR AN EAS

nas múltiplas tentativas de pontuar as transformações com as antigas modalidades de sofrimentos centrados no conflito
consequências inevitáveis que isso provoca na escuta clínica. psíquico, nos quais se opunham os imperativos das pulsões
A psiquiatria, em contrapartida, se vangloria de tudo eos das interdições morais, o mal-estar se evidencia agora
isso, acreditando orientar-se agora por discursos científico 'corno dor, inscrevendo-se nos registros do >corpo, da ação e
sque poderiam explicitar melhor as novas modalidades de das intensidades. Foi em decorrência dessa viragem, no ser
mal-estar. Baseando-se rias neurociéncias, a psiquiatria da subjetividade, que a nova partilha no campo dos saberes
supõe dominar os melhores e rigorosos instrumentos cien- sobre o psíquico se fundou.
tíficos para regular com mais eficácia o dito mal-estar. Em Em consequência disso, o'horizonte dos poderes foi en-
decorrência disso, a psiquiatria se coloca agora num outro tão redistribuído em torno das valências outorgadas pelo
limiar discursivo, pois poderia tornar-se finalmente livre da campo dos saberes? A psicanálise perdeu assim parcela
referência à psicanálise, que marcou sua história durante dé- significativa do poder social que usufruía até então na nossa
cadas. Enfim, fundada nas nearociências, a psiquiatria seria tradição cultural, como discurso teórico de referência que
então biológica, inscrevendo-se no campo da racionalidade era no campo dos saberes sobre o psíquico. A psiquiatria,
e da institucionalidade médicas.
em contrapartida, passou a ocupar uma outra posição no
Não se pode perder de vista, no entanto, que as novas
espaço social, deslocando-se decisivamente de seu lugar de
formas de mal-estar foram a condição histórica que possi- subalternidade em relação à psicanálise. Enfim, o campo em
bilitou a Oposição entre psicanálise e psiquiatria biológica.
questão foi virado de ponta-cabeça, de maneira imprevisível
Com efeito, se desde o início dos anos 1950 este confronto foi
poucas décadas atrás.
iniciado com a descoberta farmacológica da clorpromazina,
Sem querer desmerecer i
foi apenas pela mediação das novas formas de mal-estar que
outros, o s ée psr ef co i rs ço o s
seprocessou uma outra partilha no campo dos saberes sobre
- t discussão,
esta e ó r que i ca problemática
o em pauta não se restringe
o psíquico, opondo definitivamente os discursos psicanalítico
e psiquiátrico. raoesmero
c onh e c e r da
registro , clínica. Ao contrário, o que se processa
-
choje donesse eo
m registro é o ponto de chegada de um longo pro-
Assim, se as novas modalidades de mal-estar começa- ucessou m na s subjetividade, que é preciso reconhecer
de mudança da
vam já a indicar sua diferença nos anos 1970 e 1980, foi e u e sSeria essa a condição concreta de possibilidade
qdevidamente.
nos anos 1990 que todos os seus signos se exibiram com
t dã o e
pompa. Como uma verdadeira prima donna da sociedade para não se debruçar sobre a clínica de maneira ingênua.
p r e l i
contemporânea, as novas formas de mal-estar se apresenta- m i n a
ram com todo o barulho a que tinham direito. No lugar das r3M.1
aF e t
O SUJ EITO NA CO NTE MP O RA NE I DA DE SUBJ ETIVIDADES CO NTE MP O RÁ NE A S

Tal transformação histórica se funda em operadores p vamente em três registros psíquicos, quais sejam: o do corpo,
líricos,
o sociais e simbólicos que subverteram o campo dos o da ação e o da intensidade. Foi pela mediação desses que
_ e dos valores de forma radical. De tudo isso resulta
saberes o mal-estar foi classificado e hierarquizado. Evidentemente,
urna outra problemática ética que se impõe na leitura do tais registros podem aparecer de forma cbmbinada numa
mal-estar. É por esse viés que o mal-estar se transformo mesma individualidade. Ou, então, enunciam-se de maneira
numa indagação ética para a leitura das subjetividades con-
u independente na descrição do mal-estar. A combinação é a
temporâneas. Estamos aqui diante de uma caixa-preta que forma mais comum de apresentação. Porém, na descrição,
deve ser cuidadosamente aberta para que se possam decifrar um dos registros pode assumir maior pregnância que os de-
as surpresas que revela sobre a atualidade. mais, que ficam então numa posição subalterna. De qualquer
maneira, é na prevalência dos registros do corpo, da ação e
da intensidade que o mal-estar se faz patente na atualidade,
IV Cartografia do percurso sendo estes que orientam suas descrições, nas quais se par- •
ticularizam as muitas narrativas clínicas.
Desta perspectiva, minha intenção aqui é partir daquilo que Em contrapartida, outros registros antropológicos tendem
épatente e ostensivo, que se manifesta no registro eminente- a ser francamente negativizados na descrição do mal-estar
mente clínico — isto é, as queixas e as maneiras pelas quais na contemporaneidade, enquanto assumiam uma posição
o mal-estar é descrito nos discursos psicanalítico e psiqui- destacada na expressão do mal-estar num passado recente.
átrico —, para me indagar, em seguida, sobre os registros Com efeito, o pensamento e a linguagem tendem a desapa-
antropológicos nos quais o mal-estar se inscreve. É necessá- recer como eixos ordenadores do mal-estar na atualidade,
ria, no entanto, Uma leitura crítica desses registros a fim de enquanto assumiam anteriormente uma posição nobre na
avaliar as escolhas realizadas. Vale dizer, é preciso descobrir descrição do mal-estar.
as razões pelas qual são tais os registros onde se inscreve o Qual a razão da perda de privilégio desses registros em
mal-estar, e não outros, na medida em que' isso não é óbvio. face dos demais, que ganham então a dianteira na configu-
Isso implica a sinalização das mudanças apresentadas pelas ração das subjetividades contemporâneas? É o que pretendo
subjetividades contemporâneas em face do passado recente. responder nos capítulos que se seguem.
Ao lado disso, é preciso sustentar algumas interpretações que
nos permitam caminhar nesta leitura, é claro.
Para começar a desenovelar esses enunciados, .pode-se
formular que o mal-estar contemporâneo se inscreve DOSiti-
CAPÍTULO4 Corpo e excesso

O corpo é o registro antropológico mais eminente no qual


se enuncia na atualidade o mal-estar, Todo mundo hoje se
queixa de que o corpo não funciona a contento. Algo não está
bem com o corpo, que se transforma na caixa de ressonância
privilegiada do mal-estar.
Imagina-se sempre que algo deve ser feito para que a
performance corpórea possa melhorar, pois essase encontra
sempre aquém do desejado. Sentimo-nos sempre faltosos,
deixando de fazer tudo o que deveríamos, considerando as
múltiplas possibilidades oferecidas para o cuidado do corpo.
Enfim, estamos sempre culpados, ainda que levemente, e
numa franca posição de dívida em relação a isso.
As queixas corporais se inscrevem numa discursividade ao
mesmo tempo naturalista e naturista, que constitui a nossa
atmosfera cultural. Vale dizer, não é possível separar de
maneira artificial as queixas que ternos em relação ao nosso
corpo das diversas estratégias publicitárias que nos envolvem,
O SUJ EITO N A CO NTE MP O RA NE I DA DE CORPO E EXCESSO

que, sob a forma do naturismo e de naturalismo, nos enviam seriam produzidas defesas para garantir a ordem vital: a
permanentemente às práticas exóticas e à medicina. Pode-se manutenção da homeostase vital seria imprescindível desta
dizer que estas, nas suas diferenças, constituem as duas faces perspectiva regulató ria do organismo. Trata-se, portanto,
de uma mesma moeda.
de uma concepção hollstica das relações entre o organismo,
Qual a razão desse prestígio conferido ao corpo? Pode-se o psiquismo e o meio ambiente, de maneira que o estresse
afirmar que o corpo, para nós, cidadãos do mundo contem- é o efeito de uma poderosa descarga neurovegetativa no
porâneo, é nosso único bem. Todos os outros desapareceram, organismo. As glândulas suprarrenais produziriam hormô-
ou foram relativizados no seu valor. Numa inversão marcante nios adrenérgicos para colocar o organismo numa posição
em relação à Antiguidade, pode-se dizer que o corpo se trans- de alerta. Esse conceito evidencia uma leitura sistêmica do
formou no nosso bem supremo. Nem Deus, nem tampouco indivíduo, que por meio do psiquismo inscreve o organismo
a alma ocupam mais este lugar de destaque na cosmologia no meio ambiente)
íntima do sujeito na contemporaneidade — apenas o corpo. Não foi por acaso que Lévi-Strauss se referiu à reação do es-
Portanto, se o bem supremo se aloja no corpo, a saúde se tresse para interpretar os possíveis efeitos mortais da feitiçaria,
transformou no nosso ideal supremo. quando os presumidos alvos dessa acreditam nos imperativos
Estamos, assim, num estado de estresse permanente. Este maléficos de seus enunciados, isto é, quando se inscrevem
é o fundo sempre presente nas narrativas sobre o mal-estar efetivamente nos pressupostos simbólicos que caucionam
epermanentemente reiterado nos discursos sobre o tema. Os estes.
diversos discursos médicos falam disso sem parar, como um 2
pelos terrores promovidos numa subjetividade que acredita
estribilho que se repete ao infinito. Em última instância, o A simperativos mágicos dos enunciados da leiticaria.
nos
estresse é designado como o maior mal-estar permanente na rxamanística
3 eA c u consistiria
r a então, neste contexto, em contrapor
contemporaneidade, que pode se manifestar de múltiplas e a poder
o ç simbólico do xamã ao poder mágico do feiticeiro,
infinitas maneiras. É o maior mal-estar, já que está no fun- õ e suspender os efeitos mortais da reação neurovegetativa.
para
damento de todos os demais, pois, passando pela elevação 1s
da pressão arterial, da dispneia e da aceleração do ritmo n e
cardíaco, tudo é passível de lhe ser atribuído. u Alexander,
'F. r T. Frendi, Studies itt psychossomatic medicine. P. IA in EutrIllgo,
Historia de Ia medicina moderna y contemporánea, J. Souliterland, Evolution
O conceito de estresse formulado por Seyle pretendia ofo psychosomatic
v concepts. E. Weiss, O. English, Psychosomatic-Medicine.

•circunscrever os perigos para a ordem vital, na qual estes e Lévi-Strauss,


'C. g "L'efficaeité symbolique". In. C. Lévi-Strauss, Anthropologie
structurate. p. 2 1 3
seriam sempre reconhecidos no registro da totalidade psi- -eidem.
% t
2a3 4t. Sobre isso, ver também: C. Lévi-Strauss, "Lo sorcier et sa magie". [ri: C.
%idem.
cossomática pela mediação do medo. Em decorrência disso, Lévi-Strauss, Antbropologie structurale, p. 191-212.
i v
O s t u u r o NA CO NTE MP O RA NE I DA DE
CORPO E EXCESSO

O estresse está no centro do mal-estar atual, produzindo


possibilita de agir. A taquicardia se conjuga com a dispneia e
diferentes sintomas psicossomáticos. Já mencionei urna série o aumento da pressão arterial, seguida também de sudorese
desses sintomas, mas cabe ressaltar ainda que a psicossomá- excessiva, Neste contexto, o fantasma da morte se impõe
tica como especialidade — ao mesmo tempo médica, psiqui- como uma certeza iminente. Daí o pânico que toma corpo
átrica e psicanalítica — se expandiu muito desde os anos literalmente no sujeito.
1980; apesar de os seus primordios se superporem aos da A síndrome do pânico é desencadeada frequentemente em
psicanálise, tendo em Groddeck e Ferenczi seus fundadores. situações sociais nas quais o sujeito supõe que será avalia-
5
Porém; foi apenas no contexto atual de transformação do do. O &heir do outro ocupa então toda a cena psíquica do
campo do mal-estar que a psicossomática corno disciplina sujeito, como um intruso que o invade e perfura com suas
se consolidou na nossa tradição. • exigências, diante das quais ele se sente impotente e sem os
No entanto, isso não é tudo. Além dos sintomas destaca- instrumentos capazes de responder àquelas demandas. A es-
dos, é preciso evocar alguns outros. Antes de mais nada, a pacialização domina inteiramente a experiência subjetiva em
síndrome de fadiga crônico, mediante a qual os indivíduos se pauta, produzindo então um curto-circuito nos processos de
relerem à presença de um cansaço absoluto que se manifesta temporalização da dita experiência e conduzindo o sujeito
pela ausência de impulso vital e pela imobilidade corporal. ao colapso psíquico e à certeza da morte súbita.
A medicina clínica atribui isso a certas viroses e à falta de
Ainda no fim do século XIX, Freud descreveu a síndrome
algumas vitaminas na dieta. A psiquiatria, em contrapartida, do pânico sob o nome de neurose de angústia. Esta seria
atribui isso a processos de natureza depressiva, supondo uma uma modalidade de neurose atual, causada pela disfunção
disfunção na economia bioquímica dos neuro-hormônios. libidinal, na qual o psiquismo não conseguiria inscrever a
Porém, o estresse estaria sempre lá, como base subjacente des- excitabilidade sexual numa série simbólica capaz de poder
sas leituras, provocando então tais efeitos psicossomáticos. interpretar o incremento da excitação.' Tudo se passaria aqui
Em seguida, é preciso evocar o pânico, que se transformou numa direção oposta às neuroses de transferência, nas quais
hoje numa modalidade destacada de mal-estar. Na síndrome tal insCrição ocorreria e o registro da representação fundaria
do pânico, as pessoas se queixam de uma angústia iminente os seus sintomas? Nessa impossibilidade, a excitabilidade
de morte que as paralisa, pois são incapazes de reação. Os •se decarregaria imediatamente sobre o corpo e provocaria
indivíduos são enredados num ataque de angústia que os im- então a neurose de angústia.

'G. Groddeck, Le livre du ça. G. Groddeck, La maladie, Part et le sym bole. S. S. Freud, "Psychothérapie dc l'hystérie". In: S. Freud, J. Breuer, Études sur
Ferenczi, Psychanalyst 2. S. Ferenczi, Psychanalyse 3. J. Bi rman, Enfermidade e l'hystérie•
loucura. Sobre a medicina das inter-relações.
O SUJ EITO N A CO NTE MP O RA NE I DA DE CORPO E EXCESSO

Freud enunciou que esta, como as demais neuroses atuais, ca consequente» Seria isso, enfim, que estaria em pauta na
não seria passível de ser psicanalisada porque, à diferença das síndrome do pânico.
neuroses de transferência, não constituía liames simbólicos Isso nos indica que a pregnância assumida hoje pelo re-
capazes de tornar possível a interpretação. O discurso freu- gistro do corpo revela a presença de uma falha crucial no
diano indicava, enfim, a fragilidade das formações simbólicas mecanismo de angústia-sinal no psiquismo e a fragilidade
em causa, as únicas que poderiam articular o registro da simbólica na antecipação do perigo. Isso porque seriam tais
pulsionalidade com o da simbolização. mecanismos que constituiriam a angústia-sinal e que prote-
Portanto, de forma diferente da fobia, na qual o psiquismo geriam o psiquismo do imprevisível. Ou seja, se os sintomas
se protegeria da disseminação da angústia pela construção de acima referidos dominam a experiência contemporânea do
signos de evitamento — quais sejam, os õbjetos fobicos —, na mal-estar, algo de fundamental se produziu na subjetividade,
neurose de angústia o psiquismo não constituiria tal proteção? que a tornou incapaz de antecipar o perigo e regular assim
Assim, na neurose de angústia não existiria a possibilidade suas relações com o mundo.
de se constituir um objeto contrafobico. Depreende-se disso Dito de uma outra maneira, parece que tal ruptura indica
que um excesso de excitação se instala então no psiquismo, que os feitiços do mundo ficaram tão insinuantes e ganharam
ao qual este fica submetido. tanta maledicência em decorrência da perda de eficácia dos
Em decorrência disso, o trauma se estabelece de maneira mecanismos de proteção simbólica culturalmente instituí-
inequívoca e inevitável. O trauma seria então a contrapartida dos. Consequentemente, a figura do xamã perde autoridade
do excesso, que paralisa o psiquismo na sua mobilidade. Isso diante da do feiticeiro, na medida em que suas interpretações
porque o eu não consegue se precaver dos perigos materiali- perdem prestígio diante do mal.
zados por acontecimentos imprevisíveis, pela sua antecipação Quem é essa autoridade que perde prestígio diante do
sob a forma de angástia-sinal.la Portanto, os acontecimentos mal na contemporaneidade, afinal de contas? Pode-se en-
não pressentidos se impõem com violência, provocando a trever aqui que a psicanálise está em crise hoje, perdendo
angústia do real e não mais a angústia do desejo, isso é, o terreno para a magia das drogas psicofarmacológicas, que
excesso de excitação que se impõe e a experiência traumáti- pretendem agir sobre o mal-estar no próprio corpo, em es-
tado nascente, regulando diretamente os humores deste. O
código simbólico construído pela psicanálise não consegue
9 mais fazer obstáculo à disseminação do mal, como aconte-
symptomatique
5 sous le nom de 'névrose d'angoisse'", In: S. Freud, Névrose,
psychose
. perv ers ion. S. Fremi, "Obsessions et phobies". In: S. Freud, op. cit.;
F Freud. Inhibition, sympléme a ansoisse. "Ibidem.
CORPOE EXCESSO
O SUJ EITO NA CO NTE MP O RA NE I DA DE

ceu historicamente do fim do século XIX aos anos 1990. Os vidade que está sempre em causa, no caldeirão da bruxa das
humores mostram-se assim rebeldes e incontroláveis pelos novas alquimias propostas pela farmacopeia na atualidade.
símbolos e pelo discurso, mantendo-se então barulhentos em As caminhadaSdiárias visam às mesmas coisas. Evitam-se,
face desses. Uma transformação crucial na economia política assim, o estresse eos efeitos maléficos sobre o sistema cardio-
dos signos produziu-se no Ocidente, incidindo de maneira vascular. Além disso, as gorduras são queimadas e os perigos
frontal sobre o discurso psicanalítico que se inscrevia nessa mortais do colesterol, exorcizados. Consequentemente, as
economia política. academias de ginástica se transformam num dos templos
Em decorrência disso, os discursos naturista e naturalista seculares mais prestigiados na atualidade, aonde os usuários
se alastram no campo do imaginário social, impondo sua vão comungaecomo fiéis em nome da longevidade e da beleza.
hegemonia numa outra economia dos signos. Nesse contexto, Em cada quarteirão das grandes cidades se acumulam e se
os tratamentos corporais assumem um lugar cada vez mais alastram diversas academias de ginástica, que transformaram
importante. Das massagens ao spa, passando pelos exercícios, a cartografia das cidades.
ginásticas e danças orientais, tais tratamentos dispararam Não se pode separar tais práticas do amplo processo de
na preferência dos usuários, sem esquecer, é claro, os su- medicalização do Ocidente, iniciado no século XIX. Uma
plementos vitamínicos e os sais minerais que têm virtudes separação dessa ordem implicaria um equívoco interpretativo
antioxidantes e rejuvenescedoras. desse imaginário corporal. O que se empreende na atualidade
O risco, como sensação polivalente nas suas figurações, éjá uma frente bastante avançada do processo de medicai"-
está sempre presente no imaginário contemporâneo. Com zação iniciado há duzentos anos.
isso, o envelhecimento se transforma numa enfermidade, e Assim, iniciado com a polícia médicall e a higiene social,"
a morte deve ser sempre exorcizada. Nesse contexto, a me- na Alemanha, na França e na Inglaterra, a medicalização
dicina ortomolecular ganha notoriedade científica, por suas do -
promessas relacionadas com a longevidade. As fórmulas que e s anteriorrhente conferido à salvação, no espaço social
lugar
inventa são personalizadas, baseadas nas idiossincrasias e nas pa
pós-moderno, permeado que aquele era pelo imperativo da
singularidades de cada um. Daí o fascínio e a eficácia imagi- ço
religião." Constituiu-se então a clínica e a medicina social'',
nária que promovem nos usuários. A reposição hormonal se s
frente e verso que são da mesma folha, isto é, do mesmo
o
banaliza, por razões terapêuticas e preventivas, tanto para
c iRosen, Da política médica à medicina social.
os homens quanto para as mulheres. É o ideal da juventude
a3 l
1
edo parecer jovem que se impõe como imperativo de saúde, "Ibidem.
M.
p
associado ao ideal estético da beleza. No entanto, é a longe- F
a
o
u
O SUJ EITO N A CO NTE MP O RA NE I DA DE CORPO E EXCESSO

processo de medicalização do espaço social. As categorias O imaginário corporal presente na atualidade se inscreve
de normal, anormal e patológico passaram a dominar os nesse projeto maior do biopoder, sendo o seu desdobramen-
discursos médicos e as políticas públicas," que visavam to na contemporaneidade. Assim, a genética médica e as
normalizar as populações. pesquisas sobre o genoma inscrevem-se 'neste imaginário,
Porque, se a qualidade de vida da população passou a fazendo crer que a longevidade e principalmente a imor-
ser considerada o signo maior de riqueza das nações," isso talidade poderiam ser conseguidas mediante as clonagens
implicaria não apenas uma população bem-educada mas, terapêutica e reprodutiva. Mesmo que a segunda ainda seja
antes de tudo, saudável. A modernização ocidental se fundou repudiada pela comunidade científica internacional e que se
nesse projeto de medicalização do social, de forma que os aposte cientificamente agora apenas na primeira, isso não
discursos médicos —permeados sempre pelas categorias do quer dizer (pie não se busque no futuro a imortalidade pela
normal, do anormal e do patológico — foram os modelos via da clonagem reprodutiva, desde que a tecnologia para
arqueológicos para a constituição dos diferentes discursos isso se torne finalmente possível. Não são razões de ordem
das ciências humanas." ética o que conduz a comunidade científica ao repúdio atual
A blopolítica se estruturou precisamente nesse contex- da clonagem reprodutiva, mas apenas simples impasses de
to histórico," tendo como seu correlato a constituição da ordem estritamente científica.
bio-história." O que estava em questão era a conjugação ri- Ao lado disso, o discurso psiquiátrico se vangloria de
gorosa dos registros do corpo disciplinar e do corpo-espécie, poder manejar drogas que poderiam regular o mal-estar
matérias-primas por excelência do poder disciplinar corpóreo, estando assim na vanguarda da pesquisa médica.
2blopoder, Isso porque os medicamentos oferecidos pela psiquiatria
'22e d de o para a programação eugênica da população
contrapartida biológica e pela psicofarmacologia seriam capazes de incidir
m a n e com boas possibilidades de reprodução biológica
saudável no metabolismo dos neuro-hormônios, não ficando então a
e social»
i r a regulação do mal-estar restrito à imprecisão das psicotera-
q pias. O discurso deve ser assim colocado de lado, na relação
u médico-paciente e psiquiatra-paciente, em prol da eficácia
'
e bioquímica dos medicamentos psicotrópicos. Portanto, o
6
"M. Feucault, La uolonté de savoir. Histoire de la sexualité, Vol. 1.
1o Foucault, Nals4ance de la clinique. xamã na atualidade assume decididamente a feição de um
ba d
39.
11v
i mago que manipula a alquimia psicofarmacológica, com
7de s
1N/L Foucault,
u1. Surueiller et punir. a qual pretende se opor e combater as novas modalidades
2
M 1
et r a
F
M•
2m3
.o negras de feitiçaria.
Fm
1 1 e
O SUJEITO NA CO NTEMPO RANEI O ADE

Assim, o naturalismo, o orientalismo e as novas formas de


terapias exóticas, que estão francamente na moda, convivem
muito bem com a medicalizacão em pauta, não existindo,
pois, nenhuma oposição fundamental entre esta e aquelas.
Isso porque todos têm no mal-estar do corpo o ponto de
apoio para as suas diferentes estratégias de cuidados.

CAPÍTULO 5 A ç ã o e c o m p u l s o

I. Hiperatividade, violência, criminalidade


1
É preciso destacar agora que o mal-estar incide também
no registro da ação. ReencOntramos aqui alguns dos ingre-
dientes presentes no registro do corpo. Entretanto, suas
especificidades devem ser sublinhadas, não obstante suas
complementaridades evidentes.
Antes de mais nada, é preciso reconhecer que as indivi-
dualidades contemporâneas ultrapassam um certo limiar,
vigente anteriormente, no registro estrito da ação. Algumas
novidades se fazem aqui presentes, caracterizando um certo
estilo de ser do sujeito na contemporaneidade,' em oposição
ao momento histórico que o precedeu na longa duração.
Sea condição de ser ao mesmo tempo pausada e reflexiva

'J. Bkman, Por uma estilística da existéncia. J. Birman, Estilo e modernidade


em psicanálise.
O SU JEI T O N A C O N T EM PO R AN EI D AD E
AÇ ÃO E C O M PU L SÃO

delineava o estilo de ser na modernidade, não obstante as que uma dada afetação foi colocada para o psiquismo. Diante
descontinuidades eas rupturas intempestivas que o marcaram dessa impossibilidade, a descarga de excitabilidade se impõe
e caracterizaram, a aceleração do sujeito é o que se destaca sob a forma de manifestações emocionais incontroláveis.
na contemporaneidade, O ser interiorizado no registro do Com isso, a irritabilidade é uma constante na forma de ser
pensamento se transforma no ser exteriorizado e performa-
das individualidades atuais, marca insofismável do seu ser.
tico, que quer agir, antes de mais nada.
Um dos maiores problemas sociopolíticos da atualidade
Assim, a hiperatividade se impõe. Age-se frequentemente
éa ;
sem que se pense naquilo a que se visa com a ação, de forma
v i o nas subjetividades, que se mostram cada vez mais
presente
que os indivíduos nem sempre sabem dizer o que os leva a
lviolentas
ên se as compararmos com as de décadas atrás. Com
agir. O sujeito da ação tem a marca da indeterminação. No
c i a a violência senti causa aparente e a violência gratuita
efeito,
cogito da atualidade, o que se enuncia ostensivamente é:
se. banalizaram no nosso mundo de forma inquietante, e já se
agir, logo existir. O agir é o imperativo categórico na con-
temporaneidade. E
transformaram em lugar-comum:
2 Retornando o que já enunciei acima, pode-se dizer que as s
5 M
não sejae gratuita
s m oe qike tenha boas motivações para existir,
individualidades seriam marcadas pelo excesso, que as impele ot queuse destaca
q e aqui éaa disparidade entre o motivo e a vio-
inequivocamente para a ação. Isso porque esta seria a melhor va i desencadeada,
lência o l ê n como c i seaesta fosse a única possibilidade
s
que se impõe no horizonte do sujeito diante de um impasse e
forma para se ver livre daquele e poder então eliminá-loi
e
Caso não façam isso, as individualidades seriam possuídas de um obstáculo. Tudo se passa como se ele tivesse perdido
i
pelo excesso, que as inundaria pela angústia} a crença na possibilidade de resolver e superar os obstáculos
m
É desse fundo difuso e indeterminado que se pode de- que se colocam para si pelo discurso e pela retórica, isto é,
p
preender algumas das modalidades específicas de ação nas pela negociação com os outros.
õ
subjetividades contemporâneas. A explosividade, antes de Uma das consequências da violência é o incremento da
e
tudo. Tudo se passa como se essas não conseguissem mais delinquência. Ao lado disso, a criminalidade se intensifica
c
conter o excesso no seu território interior, para em seguida emo todos os quadrantes do planeta, sem exceção. Assume,
simbolizá-lo e transformá-lo naquilo que Freud denominou • assim, a cada dia novas modalidades de ser e de se apresen-
m
ação específica,' isto é, numa ação adequada ao contexto em tar,
o evidenciando feições frequentemente imprevisíveis. As
diversas
u publicações sociológicas e criminológicas, em escala
'E. Kant, Critique de ta raison pratique. internacional,
m dão testemunho disso e procuram interpretar o
'S. Frend, fnhíbition symplôme angoisse.
'S. Freud, "Esquisses d'une psychologie scientifique". In. S. Freud, La naissance a
de Ia psychanalyse.
iJ. Baudri liar& La société de consornmation.
'jt.4
1

O SUJEITO NA CO NTE MP O RA NE I DA DE AÇÃO E CO MPULSÃO

que se passa a partir de diferentes perspectivas. A publicação É necessário destacar algumas das modalidades de com-
da obra de Rusche e Kirchheimer, sobre punição e estrutura pulsão que se banalizaram na contemporaneidade e que estão
socia1, disseminadas no espaço social. Algumas são mais comuns em
6
poder e da punição/ procuraram reavaliar tudo isso de uma adolescentes, em jovens ou em adultos. Outras, em contraparti-
a s s
perspectiva crítica e histórica. da, atravessam as diferentes idades ese alastram por toda parte.
i mNo entanto, uma marca se destaca na criminalidade atual, Antes de mais nada, a compulsão presente no uso de
cde forma inconfundível, e interessa diretamente à problemá- drogas. As toxicomanias constituem hoje uma das formas
otica da subjetividade. Estou me referindo à crueldade, que dominantes do mal-estar, inscrevendo-se em diferentes faixas
mcolore cada vez mais os crimes na contemporaneidade. O etárias e classes sociais. Impõem-se como um dos flagelos
orefinamento assumido pela crueldade deve ser devidamente da atualidade, e se transformaram num dos alvos privile-
asublinhado, pois ultrapassa os limiares anteriormente es- giados das políticas de saúde pública. Isso porque, como os
dtabelecidos no gesto de matar. Atingimos novos níveis, até adolescentes e adultos jovens são os grandes consumidores
eentão impensáveis. A possibilidade de tirar a vida de outro de drogas, o fenômeno provoca efeitos perigosos na per for-
Fse dissemina, tornando-se natural assim o assassinato e o mance escolar, além dos efeitos danosos sobre a saúde física e
ogenocídio, em que a crueldade delineia frequentemente a cena asaúde mental. Trata-se hoje de um fenômeno de massa, em
udo crime com pinceladas grotescas e and-humanas. larga escala, disseminado em amplos setores da população.
c É preciso, no entanto, não confundir o consumidor de
a drogas, seja esse consumo regular ou irregular, com os toxi-
cômanos. Encontramos aqui dois segmentos heterogêneos da
u Compulsões e cultura das drocias
l t população que não podem ser superpostos, nem do ponto
de vista psicanalítico, nem do psiquiátrico, nem do médico.
,Veremos agora a compulsão em suas diversas modalidades de
A toxicomania implica uma dependência física e psíquica à
sser na contemporaneidade. A compulsão é urna modalidade
droga, caracterizada pela impossibilidade do sujeito de poder
ode agir caracterizada pela repetição, já que o alvo da ação
viver sem ela. Seria isso que conduziria o sujeito à compulsão
bnao é jamais alcançado. Daí a sua repetição incansável, sem
propriamente dita, como traço característico do funcionamento
rvariações e modulações, que assume o caráter de imperativo,
psíquico dos ditos toxicômanos. Nos demais consumidores de
eisto é, impõe-se ao psiquismo sem que o eu possa deliberar
droga não existiria, rigorosamente falando, a dependência física.
asobre o impulso que inevitavelmente se impõe.
Com isso, a compulsão não se encontra presente.'
g
e "J. Birman, Mal-estar na atualidade. G. Sissa, Le pdaisir et le moi: philosophie
'G. Rusche, O. Kirchheimer, Punição e estrutura social.
n'M. Foucault, Survellier et punir. de ia drogue.

e
O SUJ EITO NA CO NTE MP O RA NE I DA DE
AÇÃO E CO MPULSÃO

Estabelecida esta diferença, é preciso não ser ingênuo na bagista, na qual o cigarro foi considerado maléfico à saúde e
leitura dessas compulsões. As toxicomanias não se restrin-
seria politicamente incorreto, as pessoas pararam de fumar
gem ao uso das drogas ilegais, produzidas e comercializadas
epassaram a se drogar com outras coisas, como as drogas
pelo narcotráfico, mas incluem também as drogas legais e pesadas e o álcool. De fato, se os adolescentes hoje fumam
ditas medicinais, legitimadas cientificamente pela medicina menos do que as gerações anteriores, em contrapartida eles
clínica e pela psiquiatria. Refiro-me aos psicotrópicos, que bebem e se drogam muito mais com o álcool e as drogas pe-
são receitados fartamente pelos clínicos de diferentes espe- sadas. Enfim, é sempre a cultura das drogas que se dissemina,
cialidades e pelos psiquiatras a fim de regular bioquimica- mesmo que os usuários alimentem a hipocrisia de estarem
mente o mal-estar dos indivíduos, além, é claro, dos diversos promovendo a saúde como o seu bem supremo.
analgésicos de potência variável. Com efeito, dos ansiolíticos É preciso sublinhar também que os médicos clínicos são
aos antidepressivos, passando pelos diversos estimulantes, a aqueles que prescrevem mais psicotrópicos hoje, muito mais
farmacopeia médica oferece um vasto e diversificado cardápio do que os psiquiatras. Isso porque não apenas as pessoas pro-
de possibilidades para a prescrição dos clínicos e psiquiatras. curam muito os clínicos quando são acometidas por algum
Por que estas últimas são também drogas?, poderia alguém mal-estar, no registro corporal, de forma que estes recebem
me interpelar. Alguns desses medicamentos são drogas por- grande parte das demandas de cuidados, como também por-
que podem engendrar dependência física e psíquica. que, com a prática médica assumindo cada vez mais uma
Além disso, deve-se reconhecer que vivemos numa cultura
versão técnica, o clínico não acolhe mais psiquicamente os
das drogas, da qual não se pode excluir também o fumo e as
pacientes, mas tenta suavizar o desamparo destes. Assim,
bebidas alcoólicas. Enfim, vivemos intoxicados mesmo que diante do esvaziamento da relação médico-paciente, os clíni-
não saibamos disso, pois esses diferentes fármacos e estimu-
cos medicam os pacientes com os mais diversos psicotrópicos
lantes se inscrevem no estilo contemporâneo de existência. e antidepressivos. As dores e os sofrimentos dos pacientes
Alguns comentários suplementares devem ser feitos aqui. são assim medicalizados ostensivamente. Não obstante a
Antes de mais nada, a substituição de uma droga pela outra, medicalização, os clínicos não dominam corretamente o
realizada pelos usuários. Assim, as bebidas alcoólicas substi-
uso daqueles medicamentos, de forma que os pacientes são
tuem as drogas medicamentosas, às vezes, e reciprocamente, medicalizados no seu sofrimento e dor, por um lado, e mal
como se o sujeito acreditasse que desta maneira estaria se medicados, pelo outro.
protegendo mais de uma ou de outra em seus efeitos nefastos. Alguns autores destacam que mesmo na psiquiatria clínica
Ou então troca-se uma droga ilegal pelos medicamentos, a experiência se repete. Isso porque não existiria ainda uma
acreditando estar promovendo a saúde. Com a onda antita- psicofarmacologia clínica, isto é, uma utilização ponderada e
O SU JEI T O N A C O N T EM PO R AN EI D AD E AÇÃO E COMPULSÃO

cientificamente bem fundada no uso dos psicofármacos, mas do Ocidente, nos anos 1970. Foi nesse tempo e contexto que
apenas á utilização destes a partir de conhecimentos gené- ocorreu uma ruptura significativa e uma descontinuidade
ricos da psicolarmacologia experimental que os psiquiatras histórica. Por que afirmo isso? Entre as décadas de 1930 e
clínicos possuem.' Enfim, a psiquiatrizacão do sofrimento 1960, o uso da droga estava intimamente articulado a urna
pelos psicofármacos alimenta a cultura das drogas sem que gramática específica e a uma ritual/Jade bem caracterizada.
a eficácia daqueles seja devidamente conhecida pelos psiquia- Com efeito, o sujeito buscava na experiência com a droga
tras, no registro.estritamente clínico. a possibilidade de descobrir e de inventar outros mundos
Não se pode deixar de destacar que a constituição de uma possíveis. A busca da invenção, guiada pelo desejo e pelo
cultura das drogas nas últimas décadas no Ocidente, no que projeto de provocar rupturas no mundo social instituído,
se refere ás drogas pesadas, trouxe como consequência uma estava sempre em pauta. Um trabalho de interiorização e
sofisticada indústria de produção e de refino das suas maté- de reflexão sobre estas experiências era o seu correlato, não
rias-primas, que as coloca posteriormente ern circulação no existindo, pois, um sem o outro. Enfim, a proposição de
mercado internacional. Portanto, o narcotráfico, nesta larga romper com o mundo existente para novos mundos possíveis
escala, supõe tal infraestrutura industrial que apenas se tornou fazia parte deste projeto existencial." Daí por que se inscrevia
possível pela utilização dos saberes e dos dispositivos labora- fartamente tal uso na comunidade artística, aliás, desde a
toriais proporcionados pelo discurso da ciência. Vale dizer, a primeira metade do século XIX,
produção de drogas pesadas supõe a existência ea produção de Foi isso que mudou a partir dos anos 1970, quando o uso
dispositivos técnicos construídos pelos laboratórios de pesquisa da droga passou a ser cultivado por si mesmo, sem se inscre-
para que possam ser transpostos para lugares inóspitos, como a ver em qualquer projeto existencial que lhe transcendesse.
floresta amazônica, os Andes e algumas regiões longínquas da Buscava-se, assim, o prazer pelo próprio prazer, num festim
Ásia. Portanto, sem estas aparelhagens científicas seria quase hedonista que valia por si mesmo, Com efeito, a experiência
impossível produzir a droga na escala industrial em que é hoje com a droga se transformou numa evasão do sujeito, para
produzida, de forma que o cartel de drogas - fugir, então, de um mundo intolerável e não para construir
e o n
supõem a r c o t r á
necessariamente os finstrumentos
i c o e dispositivos forjados novos mundos possíveis a partir da experiência com as drogas.
pelas novas tecnologias médico-biológicas» Portanto, a sensorialidade hedonista, buscada por si mesma,
Além disso, é importante destacar ainda que a cultura das seria uma maneira de o sujeito fugir de uma realidade que
drogas propriamente dita se constituiu apenas, na tradição seria instiPortável e que ao mesmo tempo ele se senda impo-

'G. Swain, "Chimie, cErveau, esprit et société. Paradoxes epistémologiques des


psychotropes cri médicine mentale". In: Le Débat, n' 47. "J. Bi rman, "Dionísio desencantado". In: J. Birma ft, op. cit, A, Huxley,A.Ç porias
Birman, "Que drogú!!!", In: J. Biraia a, M a l da percepção, o céu e o inferno,
-
estar n a
O SUJEITO NA CO NTE MP O RA NE I DA DE AÇ ÃO E C OM PU L SÃO

tente para transformar. Enfim, a experiência com a droga se certamente, mas a comida como fetiche'
fazia agora fora de um projeto existencial de transformação do 2 e nessa
sente s t á experiência
s e m compulsiva,
p r e Entre a magia e o gozo,
mundo, sem qualquer gramática e ritualização simbólica, pela p r ea comida
portanto, - é um objeto certeiro de sedução, mas
qual o sujeito se evade do mundo instituído pela impotência e pela qual a magia pode se transformar mim feitiço e num
impossibilidade de fazer algo que o modifique efetivamente. canibalismo mortífero, que deve ser prontamente repelido.
A cultura da droga seria assim uma resposta ao mal-estar Por que objeto de sedução? Nunca se comeu tanto e tão
na atualidade, pela qual o sujeito, despossuído da possibilidade bem como hoje no Ocidente, tal a oferta, a quantidade e a
de acreditar que possa fazer algo, busca pelo hedonismo e variedade de bens comestíveis. Tudo isso contrasta com uma
pela sensorialidade prazerosa produzir algum gozo diante longa história anterior, mareada pela carência e pela carestia,
de tanta dor. Foi isso que constituiu uma cultura da droga como ainda hoje ocorre em amplas regiões do planeta. O
propriamente dita na contemporaneidade. Foi nesse contexto trágico cenário africano contrasta com a pujança e o brilho
histórico que a compulsão pelas drogas se disseminou como comestível existente na Europa e nos Estados Unidos, Porém,
modalidade de ação, não se restringindo mais ao campo do nestes também as regiões de consumo alimentar de luxo
consumo das drogas. contrastam com a penúria de outras regiões, de maneira que
o cenário de luxuria comestível convive lado a lado com o
que existe de padrão africano numa mesma cidade.
Festins comestíveis e outras orgias Nesse contexto, a voracidade atinge níveis espetaculares,
engendrando urna cultura desenfreada do preenchimento e
Seo consumo de drogas não é o único registro da compulsão do mau gosto. Os festins comestíveis se transformaram numa
no mundo contemporâneo, é preciso enunciar agora os ou- das marcas da contemporaneidade, não obstante a presença
tros campos nos quais essa também se realiza. A comida e do estilo culinário fast food, que é disseminado em segmentos
o consumo se transformaram também em objetos e alvos das classes médias e das classes populares. É nesse quadro
privilegiados da compulsividade do sujeito. de referência que se inscrevem as compulsões alimentares.
Assim, a comida se destaca nas compulsões atuais, impon- As bulimias são um dos monumentos sintomáticos disso.
do-se ao mesmo tempo corno fascinante e mortífera; já que Come-se de maneira excessiva e mesmo obscena, predomi-
éatraente e repelida num mesmo movimento pelas pessoas. nando aqui a dimensão do preenchimento corporal, advindo
A relação do sujeito com a comida é ambígua e ambivalente, deste o prazer alimentar. O gosto polivalente, sempre presente
pois esta é objeto de desejo e de repulsa, de maneira que a na comida e na boa culinária, se apaga, destacando-se apenas
voracidade e o vomitar se declinam quase que num mesmo
gesto. Os efeitos e destinos dessa polaridade são opostos, "S. Freud, "Le ferichisme". In: S. Frtud, Lá vie sexuelle.
O SU JEI T O N A C O N T EM PO R AN EI D AD E AÇ ÃO E C O M PU L SÃO

a devoração para preencher o vazio dos interstícios do corpo. possam manter a bela magreza. Cultiva-se, assim, uma forma
O vazio corporal seria assim a condição de possibilidade para 'de sensorialidade sem corporeidade, pela qual as sensações se
a canibalização dos bens comestíveis, numa orgia que busca desenraízam radicalmente do registro do corpo, constituindo
preencher todos os espaços e fendas corporais. uma das originalidades antropológicas da contemporaneida-
É claro que o preenchimento do vazio se realiza também de. Isso porque na tradição ocidental os registros da sensação
com outras compulsões, como com as drogas e o consumo. e do corpo se declinaram sempre num mesmo plano e eixo,
Porém, no que concerne às bulimias, a obesidade se transfor- inseparáveis que eram no mesmo comprimento de onda.
mou hoje num problema maior de saúde pública nos países O paroxismo disso é a anorexia, na qual o indivíduo recu-
desenvolvidos. A União Europeia e os Estados Unidos se sa o alimento, que se transforma então de objeta fascinante
preocupam com isso, e nos últimos anos formularam novas em nojento, por ser capaz de destruir a beleza e envenenar o
políticas de saúde coletiva, de propaganda e de entretenimen- corpo. Assim, a magia comestível se transforma em um feitiço
to a fim de superar a catástrofe que já se faz presente em seus ea comida em veneno, contra as ordens da vida e da saúde.
espaços sociais. Sea catástrofe já se instalou, neste registro de No entanto, tudo isso convive com os regimes e as dietas,
nosso estilo de existência, isso revela que a impossibilidade nos quais as individualidades ingerem apenas os nutrientes
da experiência do vazio se colocou de maneira trágica, pois, essenciais para não digerir calorias excessivas, que perturbem
como se sabe, a obesidade é uma encruzilhada perigosa para a saúde e a beleza. A ingestão alimentar passa pela crivo
a emergência de diversas enfermidades, muitas delas fatais. estrito das racionalidades médica e científica, de maneira
No entanto, como a magreza é um dos nossos códigos de que no limite nos alimentamos de fórmulas bioquímicas que
beleza, já que quem é gordo não tem qualquer sensualidade aprendemos na Internet, nas páginas científicas dos jornais e
e na sua feiura não tem qualquer poder de sedução, a vora- nas notícias divulgadas pela televisão, sem esquecer, é claro,
cidade tem que ser controlada, custe o que custar. Foi nesse as prescrições dos médicos e dos nutricionistas.°
contexto que o gordo foi transformado não apenas num Não se pode esquecer do consumo, que também se trans-
doente, mas também num monstro. A obesidade é um dos formou numa verdadeira compulsão. Com efeito, os mais di-
signos da monstruosidade na atualidade, condensando em si versos objetas da indumentária, passando pelo perfume e pela
as representações da deformidade, da feiura e do antierotismo. maquiagem, são objetos de compulsões propriamente ditas.
Assim, para evitar o estigma da obesidade é preciso evitar Ao lado disso, os livros e os CDs são consumidos compulsiva-
a comida. Surgem, então, modalidades grotescas de relação mente, comprados pela notoriedade dos autores, compositores
com esta. Existem pessoas que se sentem seduzidas pelos
festins comestíveis e que comem vorazmente a boa comida, 13
5.
1 Decobert, La faim et le torpe. O. Pirlot, Les passions da corps— ta Psythe datis
mas que a vomitam imediatamente, antes de digerir, para que •les
. addictions et les tnaladies auto-ia-Imunes: possessions et contlits dialterité•
.
V n ,
O SU JEI T O N A C O N T EM PO R AN EI D AD E

emúsicos." Tudo isso é amealhado, mesmo que as pessoas


não tenham tempo para lê-los e escutá-los. As pessoas olham
com gula e saliva nos lábios para as ricas vitrines das lojas,
sempre prontas que estão, para o ato canibalístico de consumir.
No entanto, se não é sempre possível usar todas as vesti-
mentas que são adquiridas, nem tampouco ler e escutar todos
os livros e CDs comprados, pela falta de tempo numa cultura
marcadamente acelerada, possuir tudo isso é fundamental, CAPÍTULO 6 tempo vai para o espaço
inscrevendo-se isso também na nova economia política dos
signos. Nesta, com efeito, a posse de bens é um signo de
poder, na medida em que define o status do indivíduo. É
preciso, portanto, possuir os bens para ostentá-los, para ser
reconhecido, enfim, em seu poder social.
Vou fazer agora urna pequenO parada na/leitura dos registros
Assim, qualquer mercadoria é passível de inscrever-se no
onde o mal-estar na atualidade se um rializa, antes de reto-
circuito do consumo, sendo, pois, a condição de possibilidade
para o engendramento da compulsão. O gozo seria então di- mar o percurso com a descrição gistro das intensidades.
recionado pelo fetichismo das mercadorias, numa fetichização Isso porque pretendo colocar em e ideada que a dominância
ampla, geral e irrestrita do universo do consumo. Isso porque da categoria do espaço sobre a d ternp,o está no fundamento
o ter, para preencher o vazio corporal e psíquico, é um signo das diferentes modalidades e expres4o do mal-estar. É
que confere segurança para o indivíduo, pois o faz acreditar essamesma dominância que stará igualàʻente em pauta na
• leitura do registro das int
nsidades. O qu\significa dizer
s É neste contexto que o sbopping centerse transformou num que a relação entre estas duas dimensões constituintes da
eoutro templo da sociedade pós-moderna, onde as peregrinações experiência do sujeito, c m a predominância :gora do espa-
r dos consumidores fiéis ocorrem todos os dias. Nesse espaço ço sobre o tempo, é a ncruzilhada fundamentl por onde
dantissagrado, saturado de mercadorias, nos quais os objetos são se realiza e se opera ionaliza a constituição das ormas de
esofisticadamente revestidos pelos designers, requintadamente
subjetivação hoje.
t empacotados e exibidos em vitrines luxuosas, a compulsão do
eter se evidencia, revelando assim a face mortífera da sedução.
n
t Baudriltard, La soelétá de consommetion.
o
O SUJEITO N A CO NTE MP O RA NE iDA DE

Portanto, tanto com Minkowski quanto Wallon e


an, na geometrização da experiência psí -a na esquizo-
frc ecom o estádio do espelho, seria se
re a espacializa-
ção pr ei ra do psiquismo o que estaria m pauta, de forma
que, conʻa fragilização da temporali de, seria aquela que
presidiria 6. egularia a experiência mal-estar, Delineia-se
já, assim, u 'ladro que se des b ará futuramente nas
formas contemp ancas do mal CAPITULO7 O vazio no existir
-
Estaríamos aquikN m conte etempo bastante avançado
ʻ

da modernidade, que ia pela dissolução da catego-


ria do tempo ante a do e , que começa então a dominar
o território do psiquismo. viragem teórica do discurso
freudiano nos anos 1920 1.Intensidade, afetação, sentimento
compulsão à repetição e o
novo estatuto atribuído ,1
éi
•'• rico, já indicava isso. No
eiv r a u nos 1930, a inflexão é É preciso considerar agora o terceiro registro do mal-estar
n t mais decisiva, c joçando o qu ro em que se configu-
ainda contemporâneo: o das intensidades. A articulação entre os
a diferentes registros é realizada sempre pelo excesso. Pode-se
rara o mal-estar na cs temporaneida Estaríamos, enfim,
n t
no registro da mod . riamente dita. compreender facilmente, no registro das intensidades, a inci-
o a, d e
d dência imediata do excesso, que se apresenta como afetação
n
a ov a n ç a d ese expressa como sentimento-
ca o Assim, a equação é relativamente simples, pois é possível
n t reconhecer como o excesso transborda no psiquismo como
e x humor e pathos antes de se deslocar para os registros do
t o corpo e da ação. Dito de outra maneira, o excesso é imedia-
h tamente afetação e sentimento, antes de mais nada. Somos,
• assim, afetados inicialmente pelo excesso que nos torna e
J que se expressa como sentimento num segundo momento, de
' maneira que passamos então a sentir a afetação, O excesso
i seria, então, o regulador das a fetações e dos sentimentos,
c
o
O SU JEI T O N A C O N T EM PO R AN EI D AD E O V A Z I O N O EXI ST I R

delineando a valência das suas intensidades. O colorido destas Algumas das resultantes disso nós já destacamos ao longo
estaria na dependência daquelas, de forma a modulá-las na deste ensaio. Antes de mais nada, a presença da angústia do
sua expressividade. real e do seu corolário, isto é, o efeito traumático. Isso porque
Da exaltação à depressão, todas as matizações das inten- oeu não tem o poder de antecipação dos' acontecimentos
sidades são aqui possíveis de se plasmar como sentimento. A para poder circunscrever devidamente o impacto das inten-
despeito de tais matizações, no entanto, c excesso é sempre sidades.' Por isso mesmo, o limiar de irrupção do excesso
irrupção de algo que escapole ao controle e à regulação diminui de maneira significativa e decresce assim ainda mais
da vontade, e que se impõe no psiquismo como um corpo a possibilidade de regulação das intensidades. A resultante
estranho. Seria isso, pois, a marca do excesso, que se carac- disso é que a subjetividade fica diante de algo que a ultra-
teriza por ser incontrolável. Isso porque o que o caracteriza passa e que não pode dar conta. Diante disso, a posição do
especificamente é o afastamento e a ruptura com a regula- sujeito é de impotência, defrontado que está com algo muito
ridade esta belecida na experiência subjetiva, indo além das maior do que ele. Enfim, uma das consequências-limite deste
fronteiras estabelecidas nas intensidades das sensações e das processo é a paralisia psíquica.
afetações. Enfim, não se pode perder de vista que estamos Para tentar circunscrever a experiência traumática, o psi-
situados aqui nas bordas da experiência do sensível, que quismo lança mão da compulsão à repetição, como Freud
são transformadas nas suas regularidades, e que os excessos adescreveu, para isolar e procurar controlar desesperada-
afetam as suas fronteiras; até então bem-estabelecidas. mente a irrupção inesperada? A repetição pretende realizar
É fundamental considerar aqui, no entanto, a questão ativamente a recriação do trauma, para que o psiquismo
do limiar* que define as fronteiras das regularidades das possa antecipar-se agora ao que não pôde fazer quando este
afetaçõ es, no que concerne às dimensões da irrupção e do e produziu.' Com esse deslocamento, da posição passiva
incontrolável na experiência do excesso, para que se possa •para a ativa, o sujeito busca transformar a sua relação com o
compreender devidamente o que está em causa nas subjetivi- acontecimento inesperado, tentando transmutar o inesperado
dades contemporâneas. Pode-se afirmar, assim, que os limia- eo imprevisível em esperado e previsível, submetido que seria
res de irrupção e de falta de controle da vontade diminuíram ao controle do eu e da vontade.
sensivelmente nas individualidades, que ficaram então cada Deslocamo-nos decididamente, assim, do registro das inten-
vez mais assujeitadas e à deriva das imposições do excesso. sidades para o da ação, como se viu com as diferentes modali-
COiT1 isso, o psiquismo não mais o regula como deveria,
'S. Freud, Inhibitiom, symptôme et angoisse.
que se presentifica necessariamente então no psiquismo de 'S. Freud, "Au-derà du principe de plaisir". In: S, Erni& Essais de psychatialyse,
maneira incoercível. Ilbidem,
•-St1 ,1
1 P
-
O SU JEI T O N A C O N T EM PO R AN EI D AD E • O V A Z I O N O EXI ST I R

dades de compulsão. Tais compulsões são, contudo, fadadas ao A totalidade desse processo incide nas formas de subjeti-
fracasso. Porque sãoações coartadas, não conseguem remodelar vação, que seria assim virada de ponta-cabeça, subvertendo
o contexto intensivo que as colocou em funcionamento. Vale inteiramente a economia psíquica. Deve-se indicar tudo isso
dizer, o disparador do processo não seria atingido e capturado agora, nos seus diferentes e diversos níveis, isto é, nas suas
pelo sujeito, que continua assim assujeitado àquele. múltiplas complexidades.
Ao lado disso, é preciso considerar ainda o contexto atual Antes de mais nada, nessa cena catastrófica, a autoestima
em que a compulsão à repetição opera, que não é o mesmo sedissolve. A desqualificação e a desvalorização do sujeito
de décadas atrás, quando Freud enunciou•tal mecanismo em relação a si mesmo se incrementa de maneira vertiginosa,
psíquico. A compulsão à repetição não é efetiva pela amplia- acompanhando as afetações com as sensações de abismo e
ção assumida hoje pelo campo do traumático. Ou seja, o de vertigem que passam a possuir inteiramente o sujeito. O
trabalho psíquico da compulsão à repetição não pode operar sentiMento de segurança psíquica, isto é, de que o eu pode
com efetividade e eficácia em tantas frentes ao mesmo tem- dar conta das relações entre o corpo e o mundo, se esvazia
po, limitando, então, as possibilidades de simbolização do de maneira flagrante. O eu e o psiquismo perdem efetiva-
psiquismo. Constitui-se, dessa maneira, um círculo vicioso, mente a sua potência. É a potencialidade de ser que é assim
pois a limitação das possibilidades psíquicas de simbolização atingida no seu âmago, mas que se manifesta inicialmente
provoca, em contrapartida, uma diminuição efetiva na pos- pela impossibilidade de fazer e de agir. No entanto, é a cer-
sibilidade de antecipação dos acontecimentos. Enfim, novos teza de ser na sua totalidade que é atingida na sua potência,
acontecimentos traumáticos se perfilam no horizonte do esvaziando, então, o sujeito.
sujeito, que fica cada vez mais restrito nas suas possibilidades
de antecipação e regulação dos acontecimentos.
Ao lado disso, depreende-se como o pânico se inscreve di- A despossessão de si
retamente nesse contexto, na medida em que a subjetividade
fica impotente em face dos acontecimentos irruptivos. Assim, Desta perspectiva, à terror de se perder apodera-se do eu,
a subjetividade é tomada pelo sentimento de horror. O que que se agarra a si mamo COMOpode, para não se desprender
se impõe aqui é o fantasma da iminência da morte, já que, definitivamente. O fantasma da perda de si se coloca em
incapacitado de agir, o eu entra em estado de suspensão, pois cena com toda a eloquência possível. A des possessão de si se
como instância psíquica não pode mais regular as relações anuncia assim como urna problemática crucial no mal-estar
entre o corpo e o mundo. O estresse inscreve-se nesse mesmo contemporâneo. Da corporificação, passando pelas desregu-
contexto, caracterizado pelo colapso do psiquismo. lações da ação e atingindo a'suspensão doeu, aclespossessão
O SUJ EITO NA CO NTE MP O RA NE I DA DE O V A ZI O NO EXI STI R

de si se apresenta sob diferentes figuras e se evidencia por seria do distúrbio bipolar, antigamente denominado psicose
diversos signos. Entretanto, a variabilidade destes e daquelas maníaco-depressiva. De qualquer maneira, a despossessão
não deve silenciar e nos fazer esquecer da invariância que de Si atingiria na depressão o seu nível mais patente e osten-
atravessa a despossessão. sivo, sendo a experiência-limite em que aquela se processa
No que concerne especifieamente ao registro das intensi- na atualidade.
dades, a despossessão de si se apresenta inicialmente como Pode-se afirmar que as depressões se transformaram
distimia. O discurso psiquiátrico se refere à distimia como num dos males maiores da atualidade, na medida cru que
variações súbitas do humor, nas quais o sujeito oscila rapi- evidenciam as tormentas da despossessão de si no seu limite
damente entre os polos da exaltação e da apatia, sem que se máximo. Fala-se de depressão hoje como nunca se falou an-
possa determinar especificamente as razões e os motivos de tes, ao lado das toxicomanias e do pânico. A Organização
suas oscilações. A exaltação está frequentemente associada Mundial da Saúde coloca a depressão, nas suas várias formas
à irrita bilidade e a explosões repentinas de raiva pelo indiví- e manifestações, como a segunda enfermidade médica mais
duo, que procura sempre racionalizar suas reações por algum frequente na atualidade. A previsão é de que, num futuro
motivo contextuai e situacional. Porém, suas reações ultra- próximo, aumentem mais ainda suas taxas epidemiológicas,
passam em muito a motivação aludida, pela desproporção de incidência e de prevalência. Esse é, enfim, o quadro refe-
existente entre aquilo que presumivelmente desencadeia a ação rencial de base, para que se aquilate devidamente a extensão
e a [cação propriamente dita. Em contrapar tida, indica um do processo que está aqui em causa.
esvaziamento radical na possibilidade de resposta do sujeito. Porém, se as depressões de hoje têm algumas das marcas
De qualquer maneira, a distimia tem se incrementado apresentadas no passado, outras são evidentemente novas,
bastante, como signo de perturbação das intensidades na caracterizadas por signos nunca mencionados antes. Tais
.contemporaneidade. Indica, além disso, uma evidente moda- signos eram inscritos em outras formações psicopatológicas.
•lidade de despossessão subjetiva, pois o sujeito não consegue Ou, então, não tinham qualquer valor diagnóstico e patog-
dar conta de suas variações de humor, que oscilam numa nomônico, sendo considerados parte da normalidade. Isso
gama múltipla de matizações. indica que se expandiu bastante o campo da existência do
Contudo, não resta dúvida de que a depressão é a moda- que se nomeia depressão hoje, em relação ao passado, sendo
lidade mais importante em que a despossessão de si se apre- este processo a resultante da psiquiatrização do social e da
senta na atualidade. As distimias, como formas de alteração correlata utilização massiva dos psicofármacos, legitimados
de humor, são frequentemente articuladas no discurso psiqui- pelas neurociências. As bordas do processo de normalização
átrico, seja à mania, seja à depressão, signo insbfismável que psiquiátrica romperam as fronteiras anteriormente traçadas
O SUJ EITO NA CO NTE MP O RA NE I DA DE O V A ZI O NO EXISTIR

no espaço social, produzindo rupturas fundamentais, A absolutamente o sentido, não tendo


expansão do campo clínico das depressões é uma das resul- )zãop para
o i sexistir.
, mÉ aapotência
i s de ser que se esvaiu, secando
tantes disso. q u definitivamente
quase a l q u ea ganar pela vida. Enfim, éa impotência
A culpa era um dos sintomas maiores que se destacavam r a apatia
e a que-se impõem como resultantes disso.
no quadro clínico da melancolia. Assim, sob a forma de ui-
toacusações bastante pesadas sobre si mesmo, o melancólico
se flagelava de maneira ostensiva e violenta, num processo Desencantamento, fadiga e corrosão de si
marcado pela evidente crueldade. Por isso mesmo, o discurso
psicopatológico dava a isso o devido destaque, no que foi Parece-me que, em decorrência disso, as pessoas foram em
seguido de maneira mais sutil e refinada pelas leituras me- busca das drogas de maneira indiscriminada, procurando
tapsicologicas advindas do discurso psicanalítico. Pode-se algo que pudesse provocar preenchimento e excitação, diante
dizer que a culpa foi indiretamente destacada no discurso da experiência radical e limite da despossessão de si. Seria
psicopatológico de Kraepelin,' que descreveu inicialmente a necessário, assim, que novas sensações prazerosas fossem
melancolia no quadro da psicose maníaco-depressiva, e que produzidas, que pudessem dar um alento e um colorido
existencial a uma forma de ser que se tornou francamente
foi retomada posteriormente por Abrahams e por Freud,
descolorida e, na melhor das hipóteses, cinzenta. Foi nesse
com bastante engenhosidade interpretativa.
6
contexto que a cultura das drogas encontrou a sua condi-
Entretanto, no que concerne à depressão hoje, não é a
ção concreta de possibilidades, para oferecer alento a essas
culpa que se encontra inscrita na cena principal das narra- formas desérticas de existência.
tivas psicopatológica e psicanalítica, mas o vazio! É esse o
É claro que o que as drogas oferecem é apenas urna ex-
signo por excelência da depressão na contemporaneidade.
periência ilusória, provisória e fugidia, de curta duração,
As pessoas se queixam cada vez mais que estão vazias, que pois o vazio se repõe e é relançado no campo do psiquismo.
não têm nada dentro de si, isto é, que perderam uma certa Porém, diante do vazio cravado na ordem da existência, o
vitalidade e o envolvimento com as coisas e as pessoas. Com sujeito insiste na cultura das drogas, quando não se inscreve
efeito, para tais pessoas, sua existência e o mundo perderam no circuito da psiquiatrização, que se expande neste canteiro
de obras, promissor e mortífero, da experiência do vazio na
4
E Abrafiam, "Préliminaires à rinvestigation et au traltement psychanalytique
sK.
contemponneidade. É enraizado nesse vazio que a cultura
de
. la folie maniaco-depressive et des états voislus" (1.912). In: K, Abrallam, Rêve das drogas se desenvolve, tanto as legitimadas pela medicina
a
K mythe•
'S. epela psiquiatria, quanto as ilegais e ilegítimas, disseminadas
r Freud, "Deull et melancolie". In: S. Freud, Métapsychologie.
'J.
a B. Ponta lis (org.), Nouvelte Revue de Psychanulyse. Figures duvide. pelo narcotráfico.
e
p
O SU JEI T O N A C O N T EM PO R AN EI D AD E
O V A Z I O N O EXI ST I R

Foi por esse viés que se constituiu a figura típica da cultura despossessão de si deixam de ser assim tão enigmáticos, como
de drogas na contemporaneidade, qual seja, a de Dionísio poderiam parecer para um olhar ingênuo sobre a atualidade.
desencantado.' Este é o personagem mítico atual, que vive na Nesse contexto, o sujeito também começa a se esgotar de
eloquência do vazio, como contrapartida crucial ao mundo maneira trágica, se esvaindo de seu desejo de ser, de viver e
desencantado' da contemporaneidade. Nesse, com efeito, de agir. Sua potência se perde, obviamente, assim como suas
os deuses não mais nos protegem e nos inscrevemos num certezas. Se o caráter, como invariante que é da subjetivida-
mundo permeado totalmente pelos discursos da ciência e do de, se dilui e mesmo desaparece, o sujeito não possui mais
cOnsumo de mercadorias. qualquer projeto de existência. Deve apenas se adaptar às
Tudo isso nos dá algumas pistas importantes para po- oscilações e variações do mercado de trabalho, procurando
dermos interpretar devidamente os signos evidenciados pela apenas sua sobrevivência. Com isso, acaba por ser tragado
eloquência gritante e desesperada desse vazio. Ele pode ser pela fadiga de si mesmo, tal como Ehrenberg procurou inter-
articulado diretamente com o violento processo do desma- pretar a disseminação da depressão na contemporaneidade."
peamento do mercado de trabalho, produzido pela mundia- Seria esta fadiga de si mesmo uma outra figura crucial para se
lização, que produz nas subjetividades aquilo que Sennett falar do vazio e da despossessão de si na contemporaneiclade.
denominou corrosão do caráter, signo presente de maneira Pode-se depreender facilmente disso tudo corno a des-
eloquente na sociedade pós-moderna,, 0 brigados a urna possessão de si é o processo fundamental na produção do
sentimento de vazio, que, como vazio do e no existir, é a
fiexibilização ao extremo da forma de ser de si próprios,
para -se adaptarem às fiurnações do mercado de trabalho, marca paradigmática que se encontra presente nas depressões
contemporâneas.
os indivíduos perdem sua espinha dorsal, isto é, o caráter,
Evidentemente, o vazio é uma figura de retórica que re-
que como invariante deveria fornecer-lhes uma potência de
ser e de agir na existência, de forma a se direcionarem no mete à categoria do espaço. Poder-se-ia mesmo dizer que o
vazio é o espaço em negativo, pois não contém mais qualquer
mundo» É nesse turbilhão e vertigem, provocados pela luta
figura no seu interior. Porém, como potência em negativo da
desesperada pela vida, que as pessoas perdem seu fio de pru-
espacialidade, o vazio é ainda o espaço contraído e conden-
mo, esvaziando-se ese despotencializando. Enfim, o vazio e a
sado num ponto evanescente, que provoca vertigens e lança
o sujeito inapelavelmente nas bordas da sensação de abismo.
Birman, "Dionísio desencantado". In: J. Birman, Mal-estar na atualidade.
9
et
M religions•
. Sennert, A corrosão do caráter. "A. Ehrenberg, La fatigue d'être mi.

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