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Jean-Jacques Rosseau - Emílio. Vol. 1-Publicações Europa-América (1990)
Jean-Jacques Rosseau - Emílio. Vol. 1-Publicações Europa-América (1990)
EUROPA-AMÉRICA JEAN-JACQUES
EMÍLIO ROUSSEAU
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Grandes Obras
«Emílio não passa de um tratado sobre a bondade original do
��Í]WJ@
homem e destina-se a demonstrar como o vício e o erro - estra
nhos à sua constituição - se introduzem nele, vindos do exterior,
e o alteram insensivelmente.» Estas palavras de Jean-Jacques Rous
seau sobre Emílio, publicado pela primeira vez em 1762, não re- I -
ISBN 972-1-02937 ·8
5 601072 555235
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
EMÍLIO
Volumei
Publicações Europa-Amêrica
Título original: Émile ou de l'éducation
6
INTRODUÇÃO
8
PREFÁCIO
11
LIVRO I
Tudo está bem, ao sair das mãos do Autor das coisas; tudo de
genera entre as mãos do homem: força uma terra a nutrir os pro
dutos de outra,uma árvore a dar frutosde outra; mistura e confun
de os climas,os elementos,as estações; mutila o cão,o cavalo,o seu
próprio escravo; transtorna tudo, tudo desfigura, gosta da desfor
midade, dos monstros; não quer nada que seja como o fez a natu
reza,nem sequer o homem; precisa de o adestrar para si,como um
cavalo de manejo; precisa de modelá-lo à sua maneira,como se fos
se uma árvore do seu jardim.
· Se assim não fosse,tudo seria ainda mais mal, e a nossa espé
cie não quer ser meio apeneiçoada. No estado em que agora estão
as coisas,um homem que,desde o seu nascimento,tivesse sido en
tregue a si mesmo, entre os outros,seria o mais disforme de todos.
Os preconceitos, a autoridade,a necessidade, o exemplo, todas as
instituições soci ai s,nas quais nos encontramos submergidos, aba
fariam nele a natureza e não a substituiriam por nada. Nele pas
saria a viver,como uma arvorezinha que o acaso fez nascer no meio
de um caminho e que,em breve,os passantes fazem definhar,dan
do-lhe encontrões por todos os lados e dobrando-a em todos os sen
tidos.
É a ti que me dirij o , terna e previdente mãe1, que soubeste
L.B.523-2
mos afectados de várias maneiras pelos objectos que nos rodeiam.
Logo que adquirimos, por assim dizer, a consciência das nossas
sensações, começamos por nos sentir dispostos a procurar ou a evi
tar os objectos que as produzem, consoante aquelas nos são agra
dáveis ou desagradáveis; em seguida, consoante a conveniência ou
a inconveniência que encontramos entre nóse esses mesmos objec
tos; e, finalmente, fazemo--lo segundo as opiniões que temos sobre
a ideia de felicidade ou de perfeição que a razão nos fornece. Estas
disposições desenvolvem-se e consolidam-se, à medida que nos
vamos tornando mais sensíveis e mais esclarecidos; mas, coagidas
pelos nossos hábitos, elas alteram-se mais ou menos, através das
nossas opiniões. Antes desta alteração, correspondem ao que eu
designo, em nós, como a natureza.
E, pois, com essas disposições primitivas que deveríamos rela
cionar tudo; e isso seria possível, se as nossas três educações
fossem apenas diferentes: mas que fazer, quando são opostas?
Quando, em vez de educar um homem para si próprio, se preten
de educá-lo para os outros? Nesse caso, a harmonia é impossível.
Forçado a combater a natureza ou as instituições sociais, é neces
sário optar entre fazer um homem ou um cidadão: pois é impossí
vel fazer, simultaneamente, um e outro.
Todas as sociedades parciais, que sejam pequenas e bastante
unidas, provocam a antipatia da grande. Todos os patriotas são
agressivos para os estranhos: não passam de homens, nada são aos
seus olhos1• Este inconveniente é inevitável, mas é pequeno. O es
sencial é que convenha às pessoas com que se vive. Fora do seu
país, o Espartano era ambicioso, avarento, iníquo; mas o desinte
resse e a concórdia reinavam no interior das suas muralhas. Des
confiem desses cosmopolitas que vão procurar, nos seus livros, os
deveres que eles desdenham cumprir em relação aos seus seme
lhantes. Tais pensadores são capazes de amar os Tártaros, só pa
ra se sentirem dispensados de amar os seus vizinhos.
O homem natural é tudo, para si mesmo; é a unidade numéri
ca, o total absoluto que só tem deveres para consigo próprio ou pa
ra com o seu semelhante. O homem civil é apenas uma unidade
fraccionária que depende do denominador e cujo valor está na sua
relação com o número inteiro, que é o corpo social. As boas institui
ções sociais são as que mais bem sabem deteriorar o homem, reti
rar-lhe a sua existência absoluta para lhe dar uma relativa, e
transportar o eu para a unidade comum; de modo a que cada par
ticular deixe de se crer como um indivíduo, mas sim como uma par-
1 Por isso, as guerras dos republicanos são mais cruéis que as das
monarquias. Mas, embora a guerra dos reis seja moderada, é a sua paz que
18 é terrível: é preferível ser-se seu inimigo que ser-se seu vassalo.
te da unidade e só seja sensível no todo. Um cidadão de Roma não
era nem Caio nem Lúcio; era um Romano; até amava a pátria, ex
clusivamente como sua. Régulo pretendeu-se cartaginês, depois
de ter sido feito prisioneiro dos chefes cartagineses. Na sua quali
dade de prisioneiro, recusou-se a ocupar um assento no senado de
Roma; foi preciso que um cartaginês lhe ordenasse que o fizesse.
Indignava-se por quererem salvar-lhe a vida. Venceu e voltou
triunfante, para morrer supliciado. Isto não me parece ter grande
relação com os homens que conhecemos.
O lacedemónio Pedareta apresenta-se para ser admitido no
Conselho dos trezentos; é rejeitado: sai satisfeitíssimo por haver
em Esparta trezentos homens que valem mais do que ele. Suponho
que essa demonstração foi sincera; há razões para crer que o foi: eis
o cidadão.
Uma mulher de Esparta tem cinco filhos no exército e espera
por notícias da batalha. Chega um iliota; tremendo, ela pede-lhas:
«Üs vossos cinco filhos morreram!»"Vil escravo, foi isso que te per
guntei?>>«Übtivemos avitória!»A mãe corre para o templo e dá gra
ças aos deuses. Eis a cidadã.
Aquele que, na ordem civil, pretende conservar a primazia dos
sentimentos da natureza, não sabe o que quer. Constantemente
em contradição consigo mesmo, continuamente hesitando entre as
suas inclinações e os seus deveres, nunca chegará a ser nem ho- f
roem nem cidadão. Acabará por ser um desses homens da nossa
época, um francês, um inglês, um burguês; não será absolutamen
te nada.
Para sermos alguma coisa, para sermos nós próprios e sempre
distintos, precisamos de agir como falamos; precisamos de estar
sempre decididos sobre o partido que devemos tomar, tomá-lo com
decisão e segui-lo sempre. Estou à espera de que me mostrem es
se prodígio, para saber se ele é homem ou cidadão, ou como conse
gue ser, simultaneamente, uma e outra coisa.
Destes objectos necessariamente opostos derivam duas
formas de instituições contrárias: uma pública e comum, a outra
particular e doméstica.
Se quereis ter uma ideia da educação pública, lede a Repúbli
ca, de Platão. Não se trata de uma obra política- como pensam
aqueles que só julgam os livros pelos seus títulos: é ornais belo tra
tado de educação que jamais foi feito.
Quando queremos falar do país das quimeras, referimo-nos à
instituição de Platão: se Licurgo não se tivesse limitado a descre
ver a sua por escrito, ainda a consideraria mais quimérica. Platão
só pretendeu depurar o coração do homem; Licurgo desnaturou-o.
A instituição pública já não existe, nem pode existir, porque
onde deixou de haver pátria não podem haver cidadãos. Estas duas
palavras pátria e cidadão devem ser apagadas das línguas moder- 1 9
nas. Bem sei por que motivo, mas não o quero dizer: não tem na
da a ver com o assunto de que trato.
Não considero como instituições públicas esses risíveis estabe
lecimentos a que se dá o nome de colégios1• Também não conside
ro a educação da sociedade, porque esta educação, com tendência
para dois objectivos opostos, tanto falha num como no outro: serve
apenas para fazer homens dúbios que, tendo o ar de sempre
proporcionarem alguma coisa aos outros, tudo proporcionam a si
mesmos. Ora, estas demonstrações-que são comuns a toda a gen
te- não iludem ninguém. Tudo isso são trabalhos perdidos.
Destas contradições nasce a que experimentamos, incessante
mente, dentro de nós próprios. Arrastados pela natureza e pelos
homens, através de caminhos opostos, forçados a dividirmo-nos
entre esses vários impulsos, seguimos um que é complexo e que
não nos conduz nem a uma nem a outra finalidade. Assim, comba
tidos e hesitantes, durante toda a nossa existência, terminamo-la
sem nunca termos conseguido viver de acordo connosco mesmos e
sem termos sido úteis, nem para nós nem para os outros.
Resta-nos, por fim, a educação doméstica ou a da natureza;
mas, em que se tornará, para os outros, um homem exclusivamen
te educado para si próprio? Se fosse possível reunir, num único, o
duplo objectivo que se pretende, ao retirar as contradições do ho
mem também se retiraria um grande obstáculo para a sua felici
dade. Seria necessário, para o julgar, vê-lo completamente forma
do; seria necessário ter observado todas as suas inclinações, visto
os seus progressos, seguido o seu itinerário; teria sido preciso, em
resumo , conhecer o homem natural. Creio que se terão dado.alguns
passos nestas observações, depois de se ter lido este escrito.
Para formar este homem raro, que teremos de fazer? Muito,
certamente: e é impedir que nada se faça. Quando apenas se tra
ta de navegar contra o vento, bordeja-se; mas, quando o mar está
alteroso e queremos ficar parados, precisamos de lançar âncora.
Tem cuidado, jovem piloto, para que a tua corrente não se perca ou
para que a tua âncora não arraste pelo fundo, a fim de que o navio
não fique à deriva antes que te tenhas apercebido disso.
Na ordem social, onde todos têm os seus lugares marcados, ca
da qual deve ser educado para o seu. Se um particular abandona
o lugar para que foi formado, já não serve para mais nada. A edu-
ceu, e com tal cuidado que abandonava tudo para estar presente quando
a nutriz, isto é, a mãe, lhe mexia ou o lavava; quando lemos, em Suetónio,
que Augusto - dono do mundo que conquistara e sobre o qual imperava
- foi quem ensinou os seus netos a escrever, a nadar, os elementos das
ciências, e que os tinha constantemente à sua volta, não podemos deixar
de troçar dos homens daquele tempo, que se distraíam com semelhantes
ninharias; excessivamente limitados, sem dúvida, para se poderem dedi-
30 car aos grandes negócios dos grandes homens do nosso tempo!
tas outras -seria que não fosse um homem à venda. Há ofícios tão
nobres que um homem não pode desempenhar por dinheiro sem se
mostrar indigno de os desempenhar; por exemplo, o de guerreiro;
por exemplo, o de perceptor. Então quem educará o meu filho? Já
to disse: tu próprio. Não posso. Não podes?... Faz dele um amigo.
Não vejo outra soluçãp.
Um governante! O que alma sublime!... Na verdade, para fa
zer um homem, é necessário ser-se o próprio pai ou um homem que
seja mais que homem. E é essa a função que confiais despreocupa
damente a alguns mercenários.
Quanto mais se pensa nisso mais se vêem novas dificuldades.
Seria necessário que o governante tivesse sido educado para o seu
pupilo, que os criados tivessem sido educados para o seu amo, que
todos aqueles que dele se aproximam tivessem recebido as impres
sões que lhe devem comunicar; seria necessário, de educação em
educação, volver atrás, não se sabe até aonde. Como é possível que
uma criança seja bem educada por alguém que não tenha recebi
do uma boa educação?
Esse raro mortal será impossível de encontrar? Ignoro-o. Nes
ta época de aviltamento, quem sabe até que ponto a virtude ainda
consegue atingir uma al;na humana? Mas suponhamos que esse
prodígio foi encontrado. E considerando o que deverá fazer que ve
remos o que ele deve ser. O que creio ver de antemão é que um pai
que sentisse todo o valor de um bom governante tomaria o parti
do de não o contratar; pois teria mais trabalho para o adquirir que
para se tornar governante, ele próprio. Quererá ele, então, fazer
um amigo? Que eduque o próprio filho, pará. o ter; ei-lo dispensa
do de o procurar alhures, e a natureza já fez metade do trabalho.
Alguém de quem só conheço a categoriamandoú-me pedir que
lhe educasse o filho. Honrou-me muito, certamente; mas, longe de
se queixar da minha recusa, deverá apreciar a minha discrição. Se
eu tivesse aceitado a sua proposta, e me tivesse enganado com o
meu método, teria sido uma educação falhada; se a tivesse levado
a bom cabo, teria sido pior; o filho teria renegado o seu título, te
ria deixado de querer ser príncipe.
Estou demasiadamente compenetrado da importância dos de
veres de um perceptor, e sinto-me absolutamente incapaz de, al
guma vez, vir a aceitar um tal cargo, seja quem for que mo propu
ser; e, para mim, até a vantagem da amizade apenas seria mais um
motivo de recusa. Creio que, depois de lerem este livro, poucas pes
soas se sentirão tentadas a fazer-me essa proposta; e peço àque
las que o pudessem estar que não se dêem a esse inútil trabalho.
Em tempos, fiz uma experiência desse ofício, que foi suficiente pa-
ra me deixar com a certeza de que não sou indicado para ele, e o
meu estado dispensar-me-ia de o exercer, mesmo que os meus ta
lentos me tornassem capaz. Cri dever esta explicação pública a to- 3 1
dos aqueles que parecem não me conceder suficiente estima para
me crerem sincero e bem determinado nas minhas resoluções.
Incapacitado de desempenhar a tarefa mais útil, ousarei, pelo
menos, tentar a mais fácil: a exemplo de tantos outros, não porei
mãos à obra, mas à pena; e, em vez de fazer o que é preciso, esfor
çar-me-€i por dizê-lo.
Sei que, nos empreendimentos semelhantes a este, o autor,
sempre à vontade em sistemas que se dispensa de pôr em prática,
facilmente cita muitos e belos preceitos impossíveis de seguir e
que, por falta de pormenores e de exemplos, o que ele diz - mes
mo se praticável - não é seguido quando ele nem sequer mostra
a sua aplicação.
Por isso, tomei o partido de me atribuir um pupilo imaginário,
de me supor a idade, a saúde, os conhecimentos e todos os talen
tos convenientes para trabalhar na sua educação, para a conduzir
desde o momento em que ele nasce até ao que, chegado a homem,
ele passe a ser o seu próprio guia. Este método parece-me útil pa
ra impedir um autor que não confia em si mesmo de se perder em
visões; porque, como se afasta da prática comum, só lhe resta fa
zer a experiência da sua no seu pupilo, e, em breve, sentirá - ou
o leitor senti-lo-á por ele - se segue, ou não, o progresso da infân
cia e o caminho natural para o coração humano.
Eis o que procurei fazer, em todas as dificuldades que se me
apresentaram. Para não engrossar inutilmente o livro, contentei
-me em explicar os princípios cuja verdade todos deviam sentir.
Mas, quanto às regras que poderiam necessitar de provas, apli
quei as todas ao meu Emílio, ou a outros exemplos, e mostrei
-
L. B. S23 - 3
Quando o habitante de uma região temperada percorre, suces
sivamente, os caminhos que o levam a um e a outro extremo, a sua
vantagem continua a ser evidente; pois, apesar de ficar tão modi
ficado como aquele qtie vai de um extremo ao outro, o afastamen
to da sua constituição natural é apenas metade daquele. Um fran
cês pode viver na Guiné e na Lapónia; mas um negro não viverá da
mesma maneira em Tornea, nem um samoiedo no Benin. Também
parece que a organização do cérebro é menos perfeita nos dois ex
tremos. Nem os negros nem os lapões vêem as coisas da mesma
maneira que os europeus. Por conseguinte, se eu quiser que o meu
pupilo possa ser habitante da Terra, tomá-lo-ei numa zona tem
perada; em França, por exemplo, de preferência a qualquer outra
parte do mundo.
No Norte, os homens trabalham muito, num solo ingrato, en
quanto no sul trabalham pouco, num solo fértil: daí, origina-se
uma nova diferença que torna os primeiros laboriosos e os segun
dos contemplativos. A sociedade apresenta-nos, simultaneamen
te, a imagem dessas diferenças entre os pobres e os ricos: aqueles
habitam no solo ingrato enquanto estes vivem no solo fértil.
O pobre não precisa de receber educação; a da sua condição é
forçada, não poderia ter outra; pelo contrário, a educação que o ri
co recebe da sua condição é a que menos convém, tanto a ele como
à sociedade. Aliás, a educação natural deve preparar um homem
para todas as condições humanas: ora, é menos razoável educar
um pobre para ser rico que um rico para ser pobre; porque, em
proporção ao número das duas condições, há mais arruinados que
novos-ricos. Escolhamos, pois, um rico; pelo menos, teremos a cer
teza de ter feito mais um homem, ao passo que um pobre pode tor
nar-se homem por si mesmo.
Pela mesma razão, não vejo inconveniente nenhum em que
Emílio seja de bom nascimento. Sempre será uma vítima arranca
da ao preconceito.
Emílio é órfão. Não interessa que tenha pai e mãe. Encarrega
do de os substituir nos seus deveres, adquiro todos os sel!s direitos.
Deve honrar os pais; mas só a mim deverá obedecer. E a minha
principal, ou antés, a minha única condição.
Aesta, ainda devo acrescentar, o quenão é uma, quenuncanos
separarão um do outro sem o nosso consentimento. Esta cláusula
é essencial, e desejaria até que o pupilo e o governante se conside
rassem tão inseparáveis que o destino dos seus dias constituísse,
sempre, para eles, um assunto de interesse comum. Logo que en
carassem a sua futura separação, logo que previssem o momento
em que se tornariam estranhos um para o outro, já o seriam: cada
um estabeleceria o seu sistema à parte, e os dois, pensando no mo
mento em que deixariam de estar juntos, só contrafeitos se man-
34 teriam nesse estado; o discípulo só consideraria o mestre como o
atributo e o flagelo da infância, enquanto o mestre veria o discípu
lo como um pesado fardo de que ansiaria por desembaraçar-se;
ambos ansiariam pelo momento de se verem livres um do outro; e
como, entre eles, nunca haveria um verdadeiro afecto, um deveria
usar de pouca vigilância e o outro de pouca docilidade.
Mas, quando se consideram como devendo passar os dias jun
tos, interessa-lhes fazerem-se amar um pelo outro; e, por isso
mesmo, tornam-se amigos. O pupilo não se envergonha de seguir,
durante a infância, o amigo que terá quando for adulto; o gover
nante interessa-se pelos cuidados cujo fruto irá recolher, e todo o
mérito que atribui ao seu pupilo é um capital que investe em pro
veito dos seus velhos dias.
Este tratado concluído de antemão supõe um parto feliz, uma
criança bem formada, vigorosa e sã. Um pai não pode escolher e
não deverá ter preferências na família que Deus lhe dá: todos os
seus filhos são, igualmente, seus filhos; deve, a todos eles, os mes
J_TIOS cuidados e a mesma ternura. Quer s�am estropiados ou não,
quer sejam débeis ou robustos, cada um deles constitui um depó
sito de que ele tem de prestar contas à mão que lho entregou, e o
casamento é um contrato feito com a natureza, da mesma manei
ra que entre os cônjuges.
Mas, seja quem for que se imponha um dever que a natureza
não lhe impôs, deve previamente assegurar-se dos meios de o cum
prir; de outro modo, ele próprio se torna responsável pelo que não
conseguiu fazer. Aquele que se encarrega de um pupilo débil e
doentio transforma as suas funções de governante nas de en
fermeiro; perde, para cuidar de uma vida inútil, o tempo que des
tinava a aumentar-lhe o valor; expõe-se a que, um dia, uma mãe
chorosa o venha censurar pela morte de um filho que ele durante
muito tempo lhe conservou.
Nunca me encarregaria de uma criança doentia e cacoquima,
mesmo que ela estivesse destinada a viver oitenta anos. Não que
ro um pupilo constantemente inútil para si mesmo e para os ou
tros, cujo único interesse é conservar-se e cujo corpo perturba a
educação da alma. Que outra coisa faria eu - ao prodigar-lhe em
vão os meus cuidados - que não fosse o duplicar a perda sofrida
pela sociedade, retirando-lhe dois homens por causa de um? Que
outro, na minha falta, se encarregue desse enfermo, consinto, e até
aprovo a sua caridade; mas o meu talento não é esse: não sou ca
paz Çe ensinar a viver quem só pensa em impedir-se de morrer.
E preciso que o corpo tenha vigor, para obedecer à alma: um
bom servidor deve ser robusto. Sei que a intemperância excita as
paixões; mas, com a continuação, também extenua o corpo; as ma
cerações e osjejuns produzem, muitas vezes, o mesmo efeito atra
vés de uma causa oposta. Quanto mais fraco é o corpo, mais ele co
manda; quanto mais forte ele é, mais obedece. Todas as paixões 3 s
sensuais estão alojadas em corpos efeminados; e exacerbam-se
tanto mais quanto são poucas as possibilidades de as satisfazer.
Um corpo débil enfraquece a alma. Daí o poder da medicina, ar
te mais perniciosa para os homens que todos os males que preten
de curar. Por mim, não sei de que doença nos curam os médicos,
mas sei que nos transmitem algumas bem funestas: a cobardia, a
tibieza, a credulidade, o terror da morte: se curam o corpo, matam
a coragem. Que nos interessa que mantenham vivos os cadáveres?
Aquilo de que precisamos são homens, e não os vemos sair das
mãos deles.
Entre nós, a medicina está na moda; deve estar. É a distracção
das pessoas ociosas, que não têm mais nada a fazer e que, não
sabendo como utilizar o seu tempo, o passam a conservar-se. Se ti
vessem tido a infelicidade de nascer imortais, seriam os mais mi
seráveis dos seres humanos: uma vida que nunca receariam per
der não teria interesse nenhum, para elas. Para agradar a essas
pessoas, são precisos médicos que as amem e que todos os dias lhes
proporcionem o único prazer de que elas são susceptíveis: o de não
estarem mortas.
Não tenho intenção nenhuma de aqui fazer uma dissertação
sobre a vaidade da medicina. A minha intenção é apenas de a con
siderar pelo lado moral. No entanto, não me posso impedir de.ob
servar que os homens fazem, sobre a sua utilização, os mesmos so
fismas que sobre a busca da verdade. Supõem sempre que tratan
do um doente o curam e que procurando uma verdade a encontram.
Não vêem que é necessário contrabalançar o benefício de uma cu
ra que o médico opera com a morte de cem doentes que ele matou,
e a utilidade de uma verdade descoberta com o mal que fazem os
erros que lhe passam ao lado. A ciência que instrui e a medicina
que cura são muito boas, certamente; mas a ciência que engana �
a medicina que mata são más. Aprendam, pois, a distingui-las. E
este o problema da questão. Se soubéssemos ignorar a verdade,
nunca seríamos enganados pela mentira; se soubéssemos não que
rer curar contra a natureza, nunca morreríamos pelas mãos de um
m édico: estas duas abstinências seriam sensatas; é evidente que
só teríamos a ganhar, se nos submetêssemos a elas. Não pretendo
dizer que a medicina não seja útil a alguns homens, mas digo que
ela é funesta para o género humano.
Dir-me-ão - como incessantemente o fazem - que os erros
é o médico que os comete, mas que a medicina, por si mesma, é in
falível. Muito bem! Mas que ela actue sem médico; pois que, se vie
rem juntos, haverá cem vezes mais razões para recear os erros do
artista que para esperar o socorro da arte.
Essa arte enganadora, mais feita parao·s males doespíritoque
para os do corpo, não é mais útil para os primeiros que para os se-
3 6 gundos: a cura das nossas doenças é menos importante que o ter-
ror que nos infunde; de antemão, mais nos faz sentir a morte que
o seu afastamento; usa a vida, em vez de a prolongar; e, mesmo que
a prolongasse, issofar-se-ia ainda em detrimento da espécie, pois
que nos arranca à sociedade pelos cuidados que, nos impõe, e aos
nossos deveres pelos temores que nos infunde. E o conhecimento
dos perigos que no-los faz recear: aquele que se supusesse invul
nerável não teria medo de nada. Ao insistir em armar Aquiles con
tra o perigo, o poeta retira-lhe o mérito da coragem; no seu lugar,
qualquer outro teria sido um Aquiles, pelo mesmo preço.
Quereis encontrar homens com uma verdadeira coragem?
Procurai-<>s nos lugares onde não há médicos, onde se ignoram as
consequências das doenças e onde não se pensa na morte. Com na
turalidade, o homem sabe sofrer constantemente e morrerempaz.
São os médicos, com as suas prescrições, os filósofos com os seus
preceitos, os sacerdotes com as suas exortações que lhe aviltam o
coração e lhe desensinam a morrer.
Que me dêem um pupilo que não tenha necessidade de todas
essas pessoas, caso contrário recusO-<>. Não quero que outros ve
nham estragar o meu trabalho; quero ou educá-lo sozinho ou não
me ocupar da sua educação. O sage Locke, que passou uma parte
da sua vida a estudar a medicina, recomenda, muito especialmen
te, que nunca se administrem drogas às crianças, nem como pre
caução nem como alívio para ligeiras incomodidades. Irei mesmo
mais longe, e declaro que, nunca chamando médicos para mim,
nunca os chamarei para o meu Emílio, a n ão serque a suavida cor
ra perigo evidente; pois que, nesse caso, não lhe poderá fazer ou
tro mal que matá-lo.
Sei muito bem que o médico nunca deixará de tirar vantagem
dessa confiança: se a criança morre, será porque o chamaram tar
de demais; se escapa, foi ele que o salvou. Seja: que o médico triun
fe; mas, sobretudo, que só seja feito apelo a ele em último caso.
Já que não se sabe curar, que a criança saiba estar doente: es
ta arte compensa a outra e, frequentemente, dá resultados muito
melhores; é a arte da natureza. Quando o animal está doente so
fre em silêncio e conserva-se quieto: ora, não se vêem mais ani
mais enfraquecidos que homens nesse mesmo estado. Quantas
pessoas a impaciência, o receio, a preocupação e, sobretudo, os re
médios, m ataram, pessoas essas cuja doença as teria poupado e a
quem teria bastado o tempo para as curar, sem mais problemas!?
Dir-me-eis que os animais, vivendo de umamaneira mais em con
formidade com a natureza, devem estar sujeitos a menos doenças
que nós. Pois bem! Essa maneira de viver é precisamente a que
quero dar ao meu pupilo; por conseguinte, ele deverá retirar dela
o mesmo proveito.
A única parte da medicina que tem alguma utilidade é a higie-
ne; mas a higiene é menos uma ciência que uma virtude. A tempe- 3 7
rança e o trabalho são os dois verdadeiros médicos do homem: o
trabalho aguça-lhe o apetite e a temperança impede-o de abusar
dele.
Para saber qual o regime mais útil para a vida e a saúde, bas
ta saber o regime que observam os povos mais saudáveis, mais ro
bustos e que vivem mais tempo. Como, pelas observações gerais,
não se depreende que a utilização da medicina dê aos homens uma
saúde mais resistente ou uma vida mais longa, exactamente por
essa arte não ser útil, é nociva, pois desperdiça o tempo, os homens
e as coisas, em pura perda. Não só o tempo que se passa a conser
var u vida fica perdido por ter sido utilizado, como se deve deduzir
daquela; mas, quan do esse tempo é utilizado para nos atormentar,
é pior que nulo, é negativo; e, para calcular com justiça, devemos
deduzi-lo daquele que nos resta para viver. Um homem que viva
dez anos sem médicos vive mais para si mesmo e para os outros que
aquele que vive trinta anos vítima deles. Tendo feito ambas as ex
periências, creio-me, mais do que ninguém, com o direito de, daí,
retirar a conclusão.
Aqui ficaram as minhas razões para só aceitar um pupilo ro
busto e são, e os meus princípios para o manter nesse estado. Não
me deterei a provar a utilidade dos trabalhos manuais e dos exer
cícios do corpo, parafortalecer o temperamento e a saúde; é um as
sunto em que todos estão de acordo: os exemplos das vidas mais
longas vêm-nos, quase todos, dos homens que mais exercícios fi
zeram, que mais cansaços e trabalhos suportaram 1• Também não
me deterei a dar os prolongados pormenores sobre os cuidados que
dedicarei a este assunto; vereis que eles são tão indispensáveis à
minha prática que basta adquirir-lhes o espírito para dispensar
outras explicações.
Com a vida, começam as necessidades. Ao recém-nascido, é
-lhe necessária uma ama. Se a mãe consente em cumprir o seu de
ver, muito bem: dão-se-lhe as explicações por escrito; porque es
ta vantagem tem o seu inconveniente que é o de manter o gover
nante um pouco afastado do pupilo. Mas é de crer que o interesse
da criança e a estima por aquele a quem quer confiar um depósi
to tão querido, tornarão a mãe atenta aos conselhos do mestre; e
1 Eis um exemplo tirado das notícias inglesas, ao qual não posso dei
xar de me referir, tantas as reflexões que ele leva a fazer, relacionadas com
o meu assunto.
<<Um particular, chamado Patrice Oneil, nascido em 1647, acaba de se
casar, em 1760, pela sétima vez. Serviu nos dragões durante o décimo sé
timo ano do reinado de Carlos II, e nos diferentes regimentos, até 1740,
quando obteve o seu despedimento. Fez todas as campanhas do rei Gui-
38 lherme e do duque de Marlborough. Este homem nunca bebeu outra coi-
tudo o que ela quiser fazer, tem-se a certeza de que o fará melhor
que outra. Se precisarmos de uma ama desconhecida, comecemos
por escolhê-la bem.
Uma das misérias das pessoas ricas é serem enganadas em tu
do. Se têm má opinião dos homens, de que nos admiraríamos? São
as riquezas que os corrompem; e, através de um justo equilíbrio,
elas são as primeiras a sentir o inconveniente da única coisa que
conhecem. Tudo é mal feito, nessas casas, excepto o que elas pró
prias fazem; e é raro que façam alguma coisa em casa. Quando se
trata de procurar uma ama, pedem ao médico parteiro que a
escolha. Quais são as consequências disso? Que a melhor é sempre
aquela que melhor lhe pagou. Por conseguinte, não irei consultar
um parteiro para escolher a ama de Emílio; terei o cuidado de a es
colher pessoalmente. Talvez, sobre esse assunto, eu não raciocine
tão bem como o faria um cirurgião, mas certamente que serei mais
honesto e o meu zelo enganar-me-á menos que a cobiça dele.
Esta escolha não é um mistério muito complicado; as regras
são conhecidas; mas não sei se não seria conveniente prestar um
pouco mais de atenção à idade do leite assim como à sua qualida
de. O leite novo é completamente seroso, quase deve ser aperitivo
para purgar o resto do mecónio adensado que se encontra nos
intestinos da criança que acaba de nascer. Pouco a pouco, o leite
adquire consistência e fornece uma alimentação mais sólida à
criança que se tornou mais forte para a digerir. Não é por acaso,
certamente, que, nas fêmeas de todas as espécies, a natureza re
força a consistência do leite consoante a idade do lactente.
Por conseguinte, seria preciso uma ama acabada de parir, para
uma criança acabada de nascer. Isso apresenta uma certa dificul
dade, bem sei; mas, desde que se sai da ordem natural das coisas,
tudo tem as suas dificuldades para ficar bem feito. O único expe
diente cómodo é fazer mal; também é aquele que se escolhe.
Seria preciso encontrar uma ama tão sã de espírito como de
corpo: a intem périe das paixões pode - como a dos humores - al
terar-lhe o leite; além disso, preocuparmo-nos unicamente com o
físico é tratar apenas de metade do assunto. O leite pode ser bom
e a ama má; um bom carácter é tão essencial como um bom tem-
L. B.S23 - 4
não é o sentido das palavras que eles compreendem mas o tom em
que !=Jlas são ditas.
A linguagem da voz, junta-se a do gesto, não menos enérgica.
Esse_gesto não está nas fracas mãos das crianças, mas nos seus ros
tos. E surpreendente ver como essas fisionomias mal formadas já
têm expressão; os seus traços mudam, de um instante para o ou
tro, com uma inconcebível rapidez: neles vemos o sorriso, o dese
jo e o terror, que aparecem e desaparecem,à velocidade do raio: de
cada vez, julgais ver um rosto diferente. E certo que têm os mús
culos do rosto mais móveis que nós. Em coqtrapartida, os seus
olhos, mortiços, quase não expressam nada. E assim que deve ser
o género dos seus sinais, numa idade em que têm apenas necessi
dades corporais; a expressão das sensações está nas caretas, a ex
pressão dos sentimentos nos olhares.
Como o primeiro estado do homem é a miséria e a fraqueza, as
suas primeiras vozes são os queixumes e os choros. A criança sen
te as suas necessidades e, não as podendo satisfazer, implora o so
corro de outrem através dos gritos que solta: se tem fome ou sede,
chora; se tem calor de mais ou frio de mais, chora; se tem necessi
dade de movimento e a conservam em repouso, chora; se quer
dormir e a agitam, chora. Quanto menos a sua maneira de estar lhe
convém mais ela pede que lha mudem. Tem apenas uma lin
guagem, porque, por assim dizer, tem apenas uma espécie de
mal-estar: na imperfeição dos seus órgãos, não distingue as suas
diversas impressões; para ela, todos os males formam uma única
sensação de dor.
Desses choros, que se suporiam tão pouco dignos de atenção,
nasce a primeira relação do homem com tudo o que o rodeia: aqui
se forja o primeiro elo dessa longa cadeia de que é formada a ordem
social.
Quando a criança chora é porque se sente incomodada, porque
tem alguma necessidade que não é capaz de satisfazer: examina
mos, procuramos essa necessidade, encontramo-la, provemos a
ela. Quando não a encontramos ou quando não podemos prover a
ela, os choros continuam, sentimo-nos importunados: amimamos
a criança para a fazer calar, embalamo-la, cantamos-lhe para a
adormecer; se ela teima, impacientamo-nos, ameaçamo-la: por
vezes, há amas brutais que lhe batem. São estas as estranhas li
ções que ela recebe quando entra na vida.
Nunca me esquecerei de ter visto uma dessas incómodas cho
ronas ser batida pela ama. Calou-se imediatamente: supu-la in
timidada. Pensei para comigo mesmo: «Vai ser uma alma servil de
que só se obterá alguma coisa através da severidade.» Enganava
-me: a infeliz sufocava de cólera, perdera o fôlego; vi-a tornar-se
violeta. Um momento depois, vieram os gritos estridentes; todos os
50 sinais do ressentimento, da fúria, do desespero daquela idade, es-
tavam nos acentos daqueles gritos. Receei que morresse naquela
agitação. Se alguma vez tivesse duvidado de que o sentimento do
justo e do injusto era inato no coração do homem, esse único exem
pio ter-me-ia convencido. Tenho a certeza de que um pedaço de
carvão em brasa que tivesse caído em cima da mão daquela crian
ça a teria feito sofrer menos que aquela palmada assaz ligeira, mas
dada com a intenção manifesta de a ofender.
Esta disposição das crianças para a cólera, para o despeito, exi
ge excessivas cautelas. Boerhaave pensa que as doenças das crian
ças são, na sua maioria, do género das convulsões, porque - como
a cabeça é proporcionalmente maior e o sistema dos nervos mais
extenso que nos adultos -o género nervoso é mais susceptível de
irritação. Afastai delas, com o maior cuidado, os criados que as
enervam, as irritam, as impacientam: é que estes são, para elas,
cem vezes mais perigosos e mais funestos que as injúrias do ar e
das estações. Se as crianças só encontrarem a resistência das coi
sas e não a das vontades, não se tornarão nem rebeldes nem colé
ricas e conservar-se-ão de melhor saúde. É esta uma das razões
por que as crianças do povo, mais livres, mais independentes, são
geralmente menos enfermiças, menos frágeis, mais robustas que
aquelas que pretendemos educar melhor, contrariando-as inces
santemente; mas é preciso nunca esquecer que há uma grande di
ferença entre obedecer-lhes e não as contrariar.
Os primeiros choros das crianças são pedidos: se não se tiver
cuidado, em breve passam a ser ordens; começam por se fazer as
sistir, acabam por se fazer servir. Assim, da sua própria fraqueza
- de onde começa por lhes vir o sentimento da sua própria depen
dência- acaba por nascer a ideia do domínio e da autoridade; mas,
como esta ideia é menos excitada pelas suas necessidades que pe
los nossos serviços, é aqui que se começam a fazer sentir os efeitos
morais cuja causa imediata não está na natureza; e daí se pode já
depreender a razão por que, desde essa primeira idade, é impor
tante deslindar a intenção secreta que dita o gesto ou o grito.
Quando a criança estende a mão com esforço, sem dizer nada,
crê atingir o objecto, porque não avalia a distância a que ele está;
mas engana-se; porém, se se queixa e grita, estendendo a mão,
nesse caso já não se engana a respeito da distância, ordena ao ob
jecto que se aproxime, ou a vós, para que lho leveis. No primeiro ca-
so, levai-a até ao objecto, lentamente, a passos miúdos; no segun-
do, não lhe mostreis sequer qu_e a estais a ouvir: quanto mais ela
gritar menos a deveis escutar. E indispensável que, mui to cedo, ela
se habitue a não dar ordens , nem aos homens -pois que não é do-
na deles -nem às coisas, porque elas não a compreendem . Assim,
quando uma criança deseja alguma coisa que vê e que lhe quereis
dar, é preferível que a leveis até ao objecto do que levar o objecto 51
até ela: desta prática, ela retirará uma conclusão que é da sua ida
de, e não há outro modo de lha sugerir.
O abade de Saint-Pierre dizia que os homens eram crianças
grandes; reciprocamente, poderíamos dizer que as crianças são
homens pequenos. E stas proposições têm a sua verdade como sen
tenças; como princípios, precisam de esclarecimento. Mas quando
Hobbes chamava ao mau uma criança robusta, afirmava uma coi
sa absolutamente contraditória. Toda a maldade nasce da fraque
za; a criança só é má porque é fraca; tornai-a forte, ela será boa:
aquele que tudo pudesse nunca faria mal nenhum. De todos os atri
butos da Divindade Todo-Poderosa, a bondade é aquele sem o qual
menos a podemos conceber. Todos os povos que reconheceram dois
princípios sempre consideraram o mau como inferior ao bom; sem
isso, teriam feito uma suposição absurda. Vede, a seguir, a profis
são de fé do vigário saboiano.
Só a razão nos ensina a conhecer o bem e o mal. A consciência
que nos leva a amar um e a odiar o outro, embora independente da
razão, não se pode desenvolver sem ela. Antes de chegarmos à ida
de da razão, fazemos o bem e o mal sem o sabermos; e não há qual
quer moralidade nas nossas acções, embora por vezes a haja no
sentimento das acções de outrem, que se relacionam connosco.
Uma criança quer modificar tudo o que vê: destrói e parte tudo o
que consegue atingir; agarra num pássaro como se estivesse a
agarrar numa pedra e sufoca-{) sem saber o que faz.
Por que é que isto acontece? Para começar, a filosofia explicá
-lo-á por vícios naturais: o orgulho, o espírito de autoridade, o
amor-próprio, a maldade do homem; o sentimento da sua fraque
za - poderá ela acrescentar - torna a criança ávida de executar
actos de força e de provar a si mesma o seu próprio poder. Mas olhai
para aquele velhote enfermo e todo curvado, transportado, pelo
círculo da vida humana, à fraqueza da infância: não só se conser
va imóvel e pacífico como deseja que tudo assim esteja à sua vol
ta; a mínima modificação perturba-{) e inquieta-{), desejaria que
reinasse uma calma universal. Como seria possível que a mesma
impotência, junta às mesmas paixões, produzisse efeitos tão diver
sos nas duas idades se a causa primitiva não tivesse mudado? E
aonde poderemos ir procurar essa diversidade de causas se não for
no estado físico dos dois indivíduos? O princípio activo, comum aos
dois, desenvolve-se num e extingue-se no outro; um forma-se e o
outro destrói-se; um tende para a vida, o outro para a morte. A
actividade enfraquecida concentra-se no coração do velhote; no da
criança, ela é superabundante e estende-se para o exterior; ela
sente, por assim dizer, suficiente vida para animar tudo quanto a
rodeia. Quer faça ou desfaça, não importa; basta-lhe modificar o
estado das coisas, e toda a modificação é uma acção. Porque, se ela
52 parece ter mais tendência para destruir, isso não é por maldade,
mas porque a acção que forma é sempre lenta, enquanto a que des
trói - como é mais rápida - convém mais à sua vivacidade.
Ao mesmo tempo que o Autor da natureza dá às crianças esse
princípio activo, vela para que ele seja pouco nocivo, deixando
-lhes pouca força para a ele se entregarem. Mas, quando consi
deram as pessoas que as rodeiam como instrumentos que podem
fazer agir, utilizam-nas para seguirem a sua tendência e suprirem
a sua própria fraqueza. Eis como se tornam incómodas, tiranas,
imperiosas, más, indomáveis; progresso que não vem de um espí
rito natural de dominação mas que lhe é fornecido por este; porque
não é necessária uma longa experiência para sentir quão agradá
vel é agir por intermédio de outrem, e de só ter necessidade de abrir
a boça para fazer mover o universo.
Amedidaque crescemos, adquirimosforças, ficamos menos in
quietos, menos violentos, fechamo-nos mais em nós mesmos. A al
ma e o corpo põem-se, por assim dizer, em uníssono, e a nature
za não nos pede mais que o movimento necessário para a nossa
conservação. Mas o desejo de mandar não se extingue com a neces
sidade que lhe deu origem; a dominação desperta e lisongeia o
amor-próprio, e o hábito fortalec�: assim a fantasia sucede à ne
cessidade, assim criam as primeiras raízes os preconceitos da opi
nião pública.
Desde que conhecemos o princípio, vemos nitidamente o pon
to onde nos afastámos do caminho da natureza; vejamos o que é ne
cessário fazer para continuarmos a segui-lo.
Longe de terem forças supérfluas, as crianças nem sequer têm
que sejam suficientes para tudo quanto lhes pede a natureza; por
conseguinte, devemos deixar-lhes a utilização de todas aquelas
que ela lhes dá e de que não seriam capazes de abusar. Primeira
máxima.
É preciso auxiliá-las e suprir ao que lhes falta, quer seja em
inteligência, em força, em tudo quanto for da necessidade física.
Segqnda máxima.
E preciso, nos auxílios que lhes prestamos, limitarmo-nos uni
camente ao realmente útil, sem nada conceder à fantasia nem ao
desejo sem razão; porque a fantasia não as atormentará se não lhe
deTil)OS origem, dado que não é da natureza. Terceira máxima.
E preciso estudar-lhes atentamente a linguagem e os sinais,
a fim deque-numaidade em que não sabem dissimular -se pos
sam distinguir, nos seus desejos, aqueles que vêm directamente da
natureza e os que vêm da opinião. Quarta máxima.
O espírito destas regras é atribuir às crianças mais verdadei
ra liberdade e menos domínio, deixá-las fazer mais por si mesmas
e exigir menos de outrem. Assim, acostumando-se logo de início a
limitar os seus desejos às suas forças, pouco sentirão a privação do
que não estará em seu poder fazer. 53
Eis, por conseguinte, uma nova e muito importante razão para
deixar os corpos e os membros das crianças completamentes livres,
tomando a precaução de as afastar do perigo das quedas e de reti
rar do alcance das suas mãos tudo quanto as possa magoar.
Infalivelmente, uma criança cujo corpo e braços estão livres
chorará menos que uma criança metida em vestes apertadas.
Aquele qu� apenas conhece as necessidades físicas só chora quan
do sofre, e isso é uma grande vantagem; porque, assim, poderá sa
ber-se quando tem necessidade de ajuda e não se deve tardar um
só momento a prestar-lha, se isso for possível. Mas, se não a podeis
aliviar, não façais nada, não a amimeis para a acalmar; as vossas
carícias não curarão a sua cólica; e, entretanto, a criança recordar
-se-á do que deve fazer para ser amimada; e, se ficar a saber o que
deve fazer para vos levar a ocupar-vos dela, ei-la que se torna vos
sa soberana: fica tudo perdido.
Menos contrariadas nos seus movimentos, as crianças chora
rão menos; menos importunadas com os seus choros, atormentar
-nos--emos menos para as fazermos calar; menos frequentemente
ameaçadas ou amimadas, serão menos receosas ou m�nos teimo
sas e conservar-se-ão melhor no seu estado natural. E menos por
deixar chorar as crianças que esforçando-nos por as acalmar que
lhes fazemos ter hérnias; e a minha prova é que as crianças mais
negligenciadas são muito menos atreitas a elas que as outras. Com
isto, estou muito longe de desejar que sejam negligenciadas; pelo
contrário, importa prevenir-lhes as necessidades e não esperar
que os seus gritos nos avisem delas. Mas também não quero que os
cuidados que lhes são dispensados sejam mal interpretados. Por
que motivo deixariam elas de chorar, depois de verem que os seus
choros são úteis para tantas coisas? Instruídas do preço por que é
pago o seu silêncio, não estão dispostas a mantê-lo. Por fim, atri
buem-lhe tanto valor que se torna impossível pagá-lo; e é então
que, éhorando sem p arar e sem sucesso, se esforçam, se esgotam
e apanham hérnias.
Os prolongados choros de uma criança que não está nem aper
tada nem doente e à qual nada falta não passam de choros de há
bito e de obstinação. Não são obra da natureza, mas da ama, que,
por não ser capaz de suportar essa importunidade, a multiplica,
sem pensar que, conseguindo que a criança hoje se cale, a incita a
chorar, ainda mais, amanhã.
O único m�io de curar ou prevenir esse hábito é não lhe pres
tar atenção. Ninguém gosta de fazer um trabalho inútil, nem se
quer as crianças. São obstinadas nas suas tentativas; mas, se a
vossa constância for maiqr que a sua obstinação, acabam por se
cansar e não recomeçam. E assim que lhes poupamos choros e que
as acostumamos a só chorar quando a dor as força a isso.
s4 De resto, quando choram por fantasia ou por obstinação, uma
maneira segura para as impedir de continuar e as distrair é mos
trar-lhes algum objecto agradável e que faça ruído, que as leva a
esquecer que queriam chorar. A maioria das amas são excelentes
nessa arte, que, bem aplicada, é muito útil; mas é de suma impor
tância que a criança não se aperceba da intenção que se tem de a
distrair, e que se distraia sem crer que alguém pensa nela: ora, nis
so, todas as amas falham.
Todas as crianças são desmamadas cedo de mais. O momento
em que o desmame deve ser efectuado é indicado pela erupção dos
dentes, e, geralmente, essa erupção é difícil e dolorosa. Nessa al
tura, por um instinto m aquinal, a criança leva frequentemente à
boca tudo o que apanha, para mascar. Pensa-se facilitar a opera
ção dando-lhe, para mascar, algum objecto duro, como o marfim ou
o dente de lobo. Penso que isso é um erro. Esses corpos duros, apli
cados nas gengivas, longe de as amolecerem, tomam-nas calosas,
endurecem-nas, preparam um rompimento mais difícil e mais do
loroso. Tomemos sempre o instinto como exemplo. Não vemos os
cachorrinhos exercerem os dentes que lhes nascem, nem nas pe
dras, nem no ferro, nem nos ossos, mas na madeira, no couro, em
trapos, em matérias moles, que cedem e onde o dente se imprime.
Já não se sabe ser simples em nada, nem sequer com as crian
ças. Guizos de prata, de ouro, de coral, de cristais facetados, cho
calhos de todos os preços e de todas as qualidades: quantas coisas
inúteis e perniciosas! Nada disso. Nada de chocalhos, nada de gui
zos; pequeninos ramos de árvore com os seus frutos e as suas fo
lhas, uma cabeça de papoila na qual se ouvem chocalhar as semen
tes, uma barra de alcaçuz que ela poderá mascar ou chupar, tudo
isso a divertirá tanto quanto essas m agníficas bacatelas, e não
apresentará o inconveniente de a habituar ao luxo logo que nasce.
Foi reconhecido que a papa não é um alimento muito são. O lei
te cozido e a farinha crua fazem muita saburra e convêm mal ao
nosso estômago. Na papa, a farinha fica menos cozida que no p ão,
e, além disso, não fermentou; um caldo, o creme de arroz, parecem
-me preferíveis. Se se quiser absolutamente fazer uma papa, con
vém que a farinha seja ligeira e previamente grelhada. Na minha
terra, com a farinha assim torrada, faz-se uma sopa muito agra
dável e muito sã. O caldo de carne e a sopa também sjio alimentos
medíocres, que se devem utilizar o menos possível. E preciso que
as crianças comecem por se habituar a mastigar; é o melhor modo
de facilitar a erupção dos dentes; e, quando começam a engolir, os
sucos salivares, misturados com os alimentos, facilitam-lhes a di
gestão.
Por isso, eu fá-las-ia m ascar frutos secos, côdeas de pão. Pa-
ra brincar, dar-lhes-ia tirinhas de pão seco ou do biscoito que se
parece com o pão de Piemonte e a que, nessa região, chamam gris
ses. Com a continuação deste pão na boca, acabariam por engolir 5 5
algum pedaço: por fim, os dentes romperiam e elas estariam des
mamadas quase antes de que se tivesse dado por isso. Geralmen
te,os camponeses têm um estômago bastante resistente e não des
mamam as crianças de outra maneira.
Desde que nascem,as crianças ouvem falar; fala-se-lhes, não
só antes de elas poderem compreender o que se lhes diz, mas antes
que elas possam imitar as vozes que ouvem. O seu órgão, ainda en
torpecido, pouco se presta às imitações de sons que se lhes dita, e
nem sequer se tem a certeza de que, no princípio da sua vida, es
ses sons lhes cheguem aos ouvidos, tão distintamente como aos
nossos. Não desaprovo que a ama distraia a criança com cantos e
inflexões de voz alegres e muito variadas; mas desaprovo que ela
a atordoe constantemente com uma quantidade de palavras
inúteis de que a criança só compreende o tom com que são ditas.
Gostaria que as primeiras articulações que lhe chegassem aos ou
vidos fossem raras, fáceis, nítidas, muitas vezes repetidas, e que
as palavras que exprimem só se referissem a objectos sensíveis que
pudessem começar por lhe ser mostrados. A infeliz facilidade que
temos para empregar palavras que não compreendemos começa
mais cedo do que se pensa. O aluno escuta, na aula, o palavreado
do professor, da mesma maneira que, no berço, escutava a tagare
lice da ama. Parece-me que seria muito útil ensiná-la a nada com
preender disso.
As reflexões surgem em catadupas quando nos queremos ocu
par da educação da linguagem e das primeiras frases das crianças.
Seja o que for que se faça, elas aprenderão sempre a falar da mes
ma maneira,e todas as especulações filosóficas são,neste caso,da
maior inutilidade.
Para começar, têm,por assim dizer,uma gramática da sua ida
de, cuja sintaxe tem regras mais gerais que a nossa; e, se lhe pres
tássemos deveras atenção, ficaríamos admirados por constatar a
exactidão com a qual elas seguem certasanalogias-muito imper
feitas, é possível, mas muito regulares -que só chocam pela sua
falta de harmonia ou porque o uso não as admite. Acabo de ouvir
uma criança muito admoestada pelo pai,por lhe ter dito:Monpere,
irai-je-t-y1? Ora, vê-se que essa criança seguia melhor a analogia
que os nossos gramáticos,porque,como lhe diziam Va-B-y, por que
motivo não poderia ela dizer Irai-je-t-y? Além disso, é de notar a
precaução que ela tomara para evitar o hiato de irai-je-y ou de y
irai-je. A pobre criança será a culpada por nós termos retirado da
frase, despropositadamente, esse �dvérbio determinante y, por
não sabermos o que fazer com ele? E uma pretensão insuportável
L.B.523-5
Não vos prepareis remorsos a vós mesmos, retirando-lhes os pou
cos instantes que a natureza lhes dá: logo que eles possam sentir
o prazer de existir, fazei que disfrutem da vida; procedei de modo
a que, no momento em que Deus os chamar, eles não morram sem
a terem provado.
Quantas vozes se irão elevar contra mim! De longe, já ouço os
clamores dessa falsa sageza que nos põe constantemente fora de
nós, que considera sempre o presente como não existindo e que,
perseguindo incessantemente um futuro que se afasta à medida
que se avança,pretendendo transportar-nospara aonde não esta
mos,, nos transporta para aonde nunca estaremos.
E -responder-me--és-o momento de corrigir as más incli
nações do homem; é na idade da infância, quando as mágoas são
menos sensíveis, que é preciso multiplicá-las, para as evitar na
idade da razão. Mas quem vos diz que todo esse plano está à vos
sa disposição e que todas essas belas instruções de que sobrecar
regais o frágil espírito de uma criança não lhe virão a ser, um dia,
mais perniciosas que úteis? Quem vos garante que lhes evitais al
guma coisa, com os desgostos que lhes prodigais? Por que lhes pro
vocais mais males do que a sua condição comporta, sem terdes a
certeza de que esses males presentes virão a ser descontados nos
do futuro? E como me provareis que essas más tendências de que
pretendeis curá-las não lhes vêm dos vossos cuidados mal com
preendidos, muito mais que da natureza? Infeliz previdência essa
que, agora, torna um homem miserável, na esperança- bem ou
mal fundada- de um dia o vir a tornar feliz! Se esses argumen
tadores vulgares confundem a indisciplina com a liberdade, e a
criança que tornamos feliz com a que amimamos, aprendamos a
distingui-los.
Para não corrermos atrás das quimeras, não nos esqueçamos
doque convém à nossa condição. A humanidade tem o seu lugar na
ordem das coisas; a infância tem o seu na ordem da vida humana:
é preciso que, no homem,se considere o homem, e que,na criança,
se considere a criança. Determinar o lugar de cada um e aí o fixar,
ordenar as paixões humanas segundo a constituição do homem, é
tudo quanto podemos fazer para o seu bem-estar. O resto depen
de de causas externas que não estão em nosso poder.
Não sabemos o que é a felicidadeou a infelicidade absoluta. Tu
do se apresenta misturado nesta vida; nela, não se experimenta
nenhum sentimento puro, não se permanecem dois momentos na
mesma situação. As afecções das nossas almas,assim como as mo
dificações dos nossos corpos, estão num fluxo contínuo. O bem e o
mal são comuns a toP,os nós,mas em proporções diferentes. O mais
feliz é aquele que menos penas sente; ornais miserável aquele que
menos sente os prazeres. Sempre mais sofrimentos que satisfa-
66 ções: eis a diferença que nos é comum a todos. A felicidade do ho-
mem, cá em baixo, não é, por conseguinte, mais do que um estado
negativo; deveremos medi-la pela menor quantidade de males de
que ele sofre.
Cada sentimento de mágoa é inseparável do desejo de se livrar
dela; cada ideia de prazer é inseparável do desejo de dele fruir; ca
da des�jo supõe privações que sentimos penor;as; é,pois,na despro
porção dos nossos desejos e das nossas faculdades que consiste a
nossa miséria. Um ser sensível cujas faculdades igualariam os de
sejos, seria um ser absolutamente feliz.
Então, em que consiste a sageza humana ou o caminho para a
verdadeira felicidade? Não é precisamente reduzindo os nossos
desejos; porque, se eles estivessem acima do nosso poder, uma
parte das nossas faculdades permaneceria ociosa e não disfruta
ríamos de todo o nosso ser. Também não é aumentando as nossas
faculdades, porque, se os nossos desejos aumentassem simulta
neamente, numa proporção maior, com isso só nos tornaríamos
mais miseráveis: mas é diminuindo o excesso dos desejos sobre as
(acuidades e colocando em perfeita igualdade o poder e a vontade.
E só nesse caso que - com todas as forças em acção- a alma se
conservará serena e que o homem se encontrará em equilíbrio.
Foi assim que a natureza -que tudo faz pelo melhor-come
çou por instituí-lo. De início,dá-lhe apenas os desejos necessários
para a sua conservação e as faculdades suficientes para os satis
fazer. Colocou todas as outras como de reserva,no fundo da sp.a al
ma,para que,se disso houver necessidade,se desenvolvam. E ape
nas neste estado primitivo que o equilíbrio do poder e do desejo se
estabelece e que o homem não se sente infeliz. Logo que as suas fa
culdades virtuais se põem em acção, a im�nação- a mais acti
va de todas- desperta e ultrapassa-as. E a imaginação que am
plia,para nós,a medida dos possíveis-quer em bem,quer em mal
-e que, por conseguinte, excita e alimenta os des�jos, com a es
perança de os satisfazer. Mas o objecto que, de início, parecia ao
nosso alcance, afasta-se a uma velocidade maior do que a nossa;
quando supomos atingi-lo, transforma-se e mostra-se, ao longe,
na nossa frente. Não vendo a distância já percorrida,nada conse
guimos; aquele que porfia em persegui-lo,engrandece,estende-se
continuamente. Assim, extenua-se sem chegar ao termo; e quan
to mais cremos estar a atingir a fruição mais a felicidade se afas
ta de nós.
Inversamente,quanto mais o homem se conserva perto da sua
condição natural, mais a diferença entre as suas faculdades e os
seus desejos é pequena e, por conseguinte, menos longe ele se en
contra de fruir da felicidade. Nunca o homem é menos miserável
que quando parece desprovido de tudo; porque a miséria não
consiste na privação das coisas, mas na necessidade que delas se
sente. 67
O mundo real tem os seus limites e o mundo imaginário é in
finito;não podendo alargar o primeiro,estreitemos o segundo; pois
que é unicamente da diferença que entre eles existe que nascem to
das as penas que nos tornam verdadeiramente infelizes. Se puser
des de lado a força, a saúde, a boa impressão que cada um tem de
si mesmo, todos os bens desta vida residem na opinião pública; se
puserdes de lado as dores do corpo e os remorsos da consciência,to
dos os nossos males são imaginários. <<Este princípio é comum», di
reis; concordo convosco; mas a aplicação prática dele não é comum;
e é unicamente da prática que se trata agora.
Quando se diz que o homem é fraco,que se pretende insinuar?
Essa palavra <<fraqueza>> indica uma sensação, uma sensação do
ser ao qual ela é aplicada. Aquele cuja força ultrapassa as suas ne
cessidades-nem que seja um insecto ou um verme-é um ser for
te; aquele cuja força é ultrapassada pelas suas necessidades, seja
ele um leão, um elefante; seja ele um conquistador, um herói; se
ja ele um deus; é um ser fraco. O anjo rebelde que desconheceu a
sua natureza era mais fraco que o feliz mortal que vive em paz con
soante a sua. O homem é muito forte quando se contenta em ser
aquilo queé;é muito fraco quando se quer elevar acima dahumani
dade. Por isso, não se convençam de que, desenvolvendo as vossas
·faculdades, aumentareis as vossas forças; pelo contrário, dimi
nuí-as quando o vosso orgulho se desenvolve mais que elas. Meça
mos o raio da nossa esfera e fiquemos no centro, como o insecto no
seu casulo; bastar-no�mos sempre a nós mesmos,e não teremos
motivos para nos queixarmos da nossa fraqueza, porque nunca a
sentiremos.
• Todos os animais têm exactamente as faculdades necessárias
para se conservarem. Só o homem tem faculdades supérfluas. Não
é estranho que esse supérfluo seja o instrumento da sua miséria?
Em todos os países, os braços de um homem valem mais que a sua
subsistência. Se ele fosse suficientemente sage para considerar es
se excesso como não valendo nada, teria sempre o necessário, por
que nunca teria nada em excesso. As grandes necessidades- di
zia Favorin-têm a sua origem nos grandes bens; e,muitas vezes,
o melhor sistema para nos proporcionarmos as cojsas que não te
mos é desembaraçarmo-nos das que possuímos. E à custa de nós
trabalharmos para aumentarmos a nossa felicidade que a
transformamos em miséria. Qualquer homem que apenas desejas
se viver viveria feliz; por conseguinte, viveria bom: porque... que
vantagem teria ele em ser mau? ,
Se fôssemos imortais, seríamos seres muito miseráveis. E tris
te morrer,sem dúvida; mas é agradável esperar quenãoviveremos
6 8 sempre e que uma vida melhor porá fim às penas desta. Se nos ofe-
recessem a imortalidade neste mundo, quem quereria1 aceitar es
se triste presente? Que recurso, que esperança, que consolação nos
restaria, contra os rigores do destino e contra as injustiças dos ho
mens? O ignorante, que nada prevê, pouco sente o valor da vida e
pouco receia perdê--la; o homem esclarecido vê bens de maior valor,
que prefere a esse. Só o meio saber e a falsa sageza é que, pro
longando as nossas vistas até à"morte, e não para além dela,
constituem, para nós, o pior dos males. Para o homem sage, a ne
cessidade de morrer é apenas uma razão para suportar as penas
da vida. Se não tivéssemos a certeza de a vir a perder, ela exigiria
muito para ser conservada.
Todos os nossos males morais dependem da opinião dos outros,
excepto um único, que é o crime; e este depende de nós: os nossos
males físicos destroem-se ou destroem-nos. O tempo ou a morte
são os nossos remédios; mas sofremos tanto mais quanto somos
capazes de sofrer; e atormentamo--nos muito mais para curar as
nossas doenças que para as suportar. Vive segundo a natureza, sê
paciente e afasta de ti os médicos; não evitarás a morte, mas só a
sentirás uma vez, enquanto eles todos os dias a levam à tua ima
ginação perturbada, e que a sua arte enganadora, em vez de pro
longar os teus dias, te retira a fruição deles. Sempre me pergunta
rei que verdadeiro bem essa arte fez aos homens. Alguns daqueles
que ela curou teriam morrido, isso é verdade; mas os milhões que
ela matou ainda estariam vivos. Homem sensato, não jogues nes
sa lotaria em que há excessivas probabilidades contra ti. Sofre,
morre ou cura-te; mas, sobretudo, vive até à tua derradeira hora.
Nas instituições humanas, tudo é loucura e contradição.
Inquietamo--nos mais com a nossa vida, à medida que ela vai per
dendo o seu valor. Os velhos inquietam--se mais com a sua perda
que os jovens; não querem perder os preparativos que fizeram pa
ra dela disfrutar; aos 60 anos, é muito cruel morrer, antes de ter
começado a viver. Crê--s e que o homem tem um vivo amor pela sua
conservação, e isso é verdade; mas não se vê que, tal como o sen
timos, esse amor seja, em grande parte, qbra dos homens. Natural
mente, para se conservar, o homem só se inquieta na proporção dos
meios que tem para o fazer; logoque essesmeios lhe escapam, tran
quiliza--se e morre sem se atormentar inutilmente. A primeira lei
da resignação vem-nos da natureza. Os selvagens, assim como os
animais, pouco se debatem contra a morte e suportam-na quase
sem queixumes. Destruída esta lei, forma-se outra que deriva da
razão; mas poucos sabem retirá-la dela, e essa resignação factícia
nunca é tão plena e total como a primeira.
1 Aquele rapazinho que ali vedes, dizia Temístocles aos seus amigos,
é o árbitro da Grécia; porque governa sua mãe, esta governa-me, eu go
verno os Atenienses e os Atenienses governam os Gregos. Oh!, quantos pe
quenos dirigentes se descobririam nos grandes impérios se, do príncipe,
se descesse, gradualmente, até à primeira mão que, secretamente, dá as
ordens. 71
e faz o que lhe apraz. É esta a minha máxima fundamental. Tra
ta-se apenas de a aplicar à infância,e todas as regras da educação
serão baseadas nela.
A sociedade fez o homem mais fraco,não só retirando-lhe o di
reito que ele tinha sobre as suas próprias forças, mas sobretudo
tornando-lhas insuficientes. Eis por que os seus desejos se multi
plicam com a sua fraqueza, e eis o que faz a da infância, compara
da à idade de adulto. Se o homem é um ser forte, e se a criança é
um ser fraco,não é porque a força absoluta do primeiro é maior que
a da segunda, mas porque aquele pode bastar-se naturalmente a
si mesmo e que esta não o pode. Por isso, o homem deve ter mais
vontades,e a criança mais fantasias;máxima pela qual entendo os
desejos que não são verdadeiras necessidades, e que não se podem
satisfazer sem o auxílio de outrem.
Expliquei a razão desse estado de fraqueza. A natureza provê
a ele pela dedicação dos pais e das mães: mas essa dedicação pode
ter o seu excesso, a sua imperfeição, os seus abusos. Progenitores
que vivem no estado civil para ele transportam o filho, antes que
ele tenha idade para isso. Dando-lhe mais necessidades que as que
ele já tem, não atenuam a sua fraqueza, aumentam-na. Ainda a
aumentam mais, exigindo dele o que a natureza não exigia,subme
tendo às suas vontades o pouco de forças que ele tem para servir
as suas, ambos transformando em escravidão a dependência recí
proca em que mantém a fraqueza do filho e em que os mantém a
sua dedicação a ele.
O homem sage sabe conservar-se no seu lugar; mas a criança,
que não sabe qual é o seu, não saberia manter-se nele. Tem mil
maneiras de sair dele; é aos que a governam que cabe conservá-la
nele, e essa tarefa não é fácil. Não deverá ser nem animal nem ho
mem: mas unicamente criança; é necessário que sinta a sua fra
queza e não que sofra por causa dela; é necessário que dependa e
não que obedeça; é necessário que peça e não que ordene. Só por
causa das suas necessidades está submetida aos outros, e porque
estes vêem melhor do que ela o que lhe pode ser útil e auxiliar ou
prejudicar a sua conservação. Ninguém tem o direito - nem se
quer o pai - de ordenar ao filho o que,para este, não tem nenhu
ma utilidade.
Antes de os preconceitos e de as instituições humanas virem
alterar as nossas tendências naturais, a felicidade das crianças,
assim como a dos homens, consiste na utilização da sua liberdade;
mas, nas primeiras, essa liberdade está limitada pela sua fra
queza. Todo aquele que faz o que quer sente-se feliz se se basta a
si próprio; é o caso do homem que vive no estado da natureza. To
do aquele que faz o que quer não é feliz quando as suas necessida
des ultrapassam as suas forças: é o caso da criança nesse estado.
72 Mesmo no estado da natureza, as crianças só gozam de uma liber-
dade imperfeita, semelhante àquela de que disfrutam os homens
no estado civil. Cada um de nós, como não pode viver sem os seus
semelhantes, volta a ser-desse ponto de vista -fraco e miserá
vel. Estávamos feitos para sermos homens; as leis e a sociedade
voltaram a mergulhar-nos na infância. Os ricos, os grandes, os
reis,todos eles são crianças,que,vendo que alguém se dedica a ali
viar a sua miséria, se enchem, por esse mesmo facto, de uma vai
dade pueril e se sentem todos orgulhosos pelos cuidados que não
lhes seriam dispensados se fossem homens feitos.
Estas considerações são importantes e servem para resolver
todas as contradições do sistema social. Há duas espécies de de
pendências: a das coisas, que é a da natureza; e a dos homens,que
é a da sociedade. A dependência das coisas, não tendo nenhuma
moralidade, não é nociva à liberdade e não dá origem a vícios; a de
pendência dos homens, como é desordenada1, origina-os todos, e
é através dela que o amo e o escravo se depravam mutuamente. Se
há algum sistema para remediar esse mal na sociedade, é subs
tituir a lei pelo homem e armar as suas vontades gerais com uma
força efectiva, superior à acção de toda e qualquer vontade par
ticular. Se as leis das nações pudessem ter- como as da nature
za-uma inflexibilidade que nnnca nenhumaforça humana fosse
capaz de v encer, a dependência dos homens voltaria a ser a das
coisas; na sociedade, reunir-se-iam todas as vantagens do estado
natural às do estado civil; juntar-se-ia à liberdade que mantém o
homem isento de vícios a moralidade que o eleva à virtude.
Conservai a criança unicamente na dependência das coisas, e
�ereis seguido a ordem da natureza, no progresso da sua educação.
As suas vontades indiscretas, nunca oponhais mais do que obstá
cuJos físicos ou punições que derivam das próprias acções e de que
ela se recordará quando houver ocasião para isso. Não concedei
nada aos seus desejos, só porque ela pede, mas porque ela tem ne
cessidade do que pede. Que ela não saiba o que é obediênéia -
quando actua- nem o que é dominação - quando se age por ela.
Que também sinta a sua liberdade nas suas acções e nas vossas.
Supri a força que lhe falta,com tanta precisão quanta a que lhe fal
ta para ser livre e não imperiosa; que, ao receber os vossos présti
mos como uma espécie de humilhação,ela aspire pelo momento em
que poderá passar sem eles e em que terá a honra de se servir a si
própria.
Para fortalecer o corpo e o fazer crescer, a natureza utiliza
meios que nunca devem ser contrariados. Não sedeve obrigar uma
1
Nos meus Príncipes du Droitpolitique (Princípios do direito polí
tico), é demonstrado que nenhuma vontade particular pode ser ordenada
no sistema social. 73
criança a ficar quando ela quer ir, nem a ir quando ela quer ficar.
Quando a vontade das crianças não está �stragada pela nossa cul
pa, elas não querem nada inutilmente. E preciso que pulem, que
corram, que gritem quando têm vontade de o fazer. Todos os seus
movimentos são necessidades da sua constituição, que procura for
talecer-se; mas deveremos desconfiar das coisas que elas desejam
sem as poderem fazer e que outros são obrigados a fazer por elas.
Nesse momento é preciso discernir cuidadosamente a verdadeira
necessidade � a necessidade natural-da necessidade de fanta
sia que começa a nascer, ou daquela que só lhe vem da superabun
dância de vida de que já falei.
Já expliquei o que se deverá fazer quando uma criança chora
para conseguir obter isto ou aquilo. Limitar-m�i a acrescentar
que, logo que é capaz de falar, se, para pedir o que deseja-e só pa
ra o obter mais depressa ou para vencer uma recusa -ela apoia
o seu pedido com choros, o objecto pedido deverá ser-lhe irrevoga
velmente recusado. Se a necessidade a levou a falar, deveis sabê
-lo e fazer imediatamente o que ela pede; mas ceder seja o que for
às suas lágrimas é excitá-la a vertê-las, é ensinar-lhe a duvidar
da vossa boa vontade e a acreditar que a importunidade tem mais
poder sobre vós que a benevolência. Se ela não vos crê bons, rapi
damente se tornará má; se vos crê fracos, em breve se mostrará tei
mosa; é importante conceder sempre, ao primeiro sinal,o que não
se pretende recusar. Não sejais pródigos em recusas,mas nunca as
revogueis.
Sobretudo, evitai ensinar à criança inúteis fórmulas de corte
sia que, quando é preciso, lhe servem de palavras mágicas para
submeter às suas vontades tudo quanto a rodeia é�obter rapida
mente tudo quanto quer. Na educação amaneirada dos ricos,
nunca se deixa de as ensinar a ser cortesmente imperiosas, pres
crevendo-lhes os termos de que se devem servir para que ninguém
se atreva a resistir-lhes; os filhos dessa gente não empregam nem
o tom nem a maneira suplicante; são tão arrogantes -até mais!
-quando pedem, quando ordenam, como estando convencidos de
serem obedecidos. Começamos por ver que se faz favor significa,na
boca dessas pessoas, apetece-me, e que rogo-lhe significa ordeno
-lhe. Admirável cortesia que, para elas, se limita a modificar o
sentido das palavras e a nunca serem capazes de falar sem ar de
dominação! Quanto a mim, que receio menos que Emílio seja gros
seiro que arrogante, prefiro, de longe, que ele diga, pedindo, faça
isso, a que diga, ordenando, rogo-lhe. Não é o termo que ele utili
za que me interessa mas sim a acepção que ele lhe empresta.
Há um excesso de rigor e um excesso de indulgência que se de
vem igualmente evitar. Se deixais sofrer as crianças, expondes a
sua saúde,as suas vidas,tornai-las miseráveis; se, com excessivos
7 4 cuidados, lhes poupais toda e qualquer espécie de mal--€star, pre-
parais-lhes grandes misérias; tornai-las frágeis, sensíveis; reti
rai-las do seu estado de homens no qual elas voltarão a entrar, um
dia, mesmo que o não queirais. Por não as quererdes expor a alguns
males da natureza, passareis a ser obreiros daqueles que ela não
lhes deu. Dir-me-eis que estou no caso desses maus pais aos quais
eu censurava sacrificar a felicidade dos filhos às considerações de
um tempo ainda afastado que até poderia nunca chegar.
Mas não: porque a liberdade que dou ao meu pupilo compen
sa-<> amplamente pelas leves incomodidades a que o deixo expos
to. Vejo uns miúdos que brincam na neve, violáceos, transidos de
frio e mal podendo mover os dedos. Se quiserem, poderão ir a ca
sa, aquecer-se, mas não o fazem; se fossem forçados a fazê-lo, sen
tiriam cem vezes mais os rigores da coacção que os que sentem do
frio. Por conseguinte, de que vos queixais? Farei o vosso filho in
feliz, se o expuser unicamente às incomodidades que ele estiver
disposto a suportar? No momento presente, contribuo para o seu
bem, deixandO-{) livre; contribuo para o seu futuro bem, armando
-<> contra males que ele deve suportar. Se ele pudesse escolher en
tre ser meu pupilo ou vosso, pensais que teria alguma hesitação?
Imaginais que, fora da sua constituição, haja alguma possível
felicidade para um ser? E não será retirar o homem da sua cons
tituição querer isentá-lo igualmente de todos os males da sua es
pécie? Sim, insisto nisso: para sentir os grandes bens, é preciso que
o homem conheça os pequenos males; assim é a sua natureza. Se
o físico estiver demasiadamente bem, o moral corrom·pe-se. O
homem que não conhecesse a dor não conheceria nem o enterneci
mento da humanidade nem a doçura da comiseração; o seu cora
ção não se enterneceria com nada, não seria sociável, seria um
monstro entre os seus semelhantes.
Sabeis qual ,é o sistema mais seguro para tornardes o vosso fi
lho miserável? E habituá-lo a ter tudo; .porque, como os seus dese
jos aumentam incessantemente com a facilidade que encontra na
satisfação, mais. cedo ou mais tarde, a impossibilidade obrigar
-vos-á -mesmo que o não queirais - a ter de lhe recusar alguma
coisa;e essa recusa, fora do habitual, dar-lhe-á mais tormento que
a própria privação do que ele deseja. Para começar, quererá a ben
gala que utilizais; pouco depois, quererá o vosso relógio; a seguir,
quererá o pássaro que vê voar; quererá a estrela que vê brilhar;
quer.erá tudo o que vir: como não sois Deus, como o satisfareis?
E uma disposição natural do homem, a de considerar como seu
tudoquanto estáem seu poder. Neste sentido, e atéum certo ponto,
o princípio de Hobbes está certo: multiplic ai, com os nossos dese
jos, os meios de os satisfazermos, e cada um se apoderará de tudo.
E, assim, a criança à qual basta desej ar para obter crê-se proprie
tária do universo; considera todos os homens como seus escravos;
e quando, por fim, se é obrigado a recusar-lhe alguma coisa, ela, 7 5
crendo que tudo é possível quando ordena, toma esE;a recusa por
um acto de rebelião; todas as razões que se lhe dão, numa idade in
capaz de raciocinar, não passam, na sua ideia, de pretextos; por to
da a parte vê má vontade: o sentimento de uma pretensa injusti
ça azedando o seu natural, começa a odiar toda a gente, e, sem nun
ca se sentir grata pela benevolência, indigna---se contra qualquer
oposição.
Como poderei eu conceber que uma criança, assim dominada
pela cólera e devorada pelas p�ixões mais irascíveis, venha algu
ma vez a ser feliz? Feliz, ela!? E uma déspota; é, simultaneamen
te, a mais vil das escravas e a mais miserável das criaturas. Vi
crianças educadas dessa maneira, que queriam que se virasse a ca
sa do avesso só com um encontrão, que lhes dessem o galo que viam
ao cimo de um campanário, que se detivesse o desfile de um regi
mento para poderem ouvir os tambores durante mais tempo, e que
lançavam gritos estridentes, sem quererem dar ouvidos a nin
guém, quando tardavam em obedecer-lhes; os seus desejos, exa
cerbados pela facilidade de obter, obstinavam-se em coisas im pos
síveis e só encontravam contradições, obstáculos, penas, dores.
Sempreresm ungonas, sempre revoltadas, sempre furiosas, passa
vam os dias a gritar, a queixar-se. Seriam essas crianças muito
afortunadas? A fraqueza e a dominação, quando reunidas, só en
gendram a loucura e a desgraça. De duas crianças amimadas, uma
dá pancadas em cima da mesa e a outra irrita---se; muitas panca
das e muitas irritações terão de aguentar antes de começarem a vi
ver satisfeitas.
Se essa ideias de dominação e de tirania as tornam miseráveis
desde a infância, que será depois de terem crescido e de as suas re
lações com os outros homens se terem começado a alargar e a mul
tiplicar? Acostumadas a tudo verem vergar, na sua presença, que
surpresa - quando entrarem na sociedade - ao verem que tudo
lhes resiste, e quando se virem esmagadas pelo peso desse univer
so que pensavam poder dirigir à sua vontade!
Os seus ares insolentes, a sua vaidade pueril só lhes proporcio
nam mortificações, desdéns, troças; bebem as afrontas como quem
bebe água; cruéis provações em breve lhes ensinam que não conhe
cem nem a sua condição nem as suas forças; não podendo tudo,
crêem nada poder. Tantos obstáculos inabituais as rechaçam, tan
tos desprezos as aviltam: tornam---s e cobardes, receosas, bajulado
ras, e descem tanto abaixo da sua própria condição quanto acima
dela se tinham elevado.
Regressemos à regra primitiva. A natureza fez as crianças pa
ra serem amadas e ajudadas; mas tê--las-ia feito para serem obe
decidas e receadas? Ter-lhes-ia dado um ar imponente, um olhar
severo, uma voz rude e ameaçadora, para se fazerem temer? Com-
76 preendo que o rugir de um leão aterrorize os animais e que estes
tremam quando vêm a sua terrível juba; mas, se alguma vez se viu
um espectáculo indecente, odioso, ridículo, é uma corporação de
magistrados, com o chefe à frente, em roupagens de cerimónia,
prosternados diante de uma criança de fraldas, arengand<r-a com
termos pomposos, e esta, como única resposta, lhes grita e se baba.
Considerando a infância pelo que realmente ela é, haverá no
mundo um ser mais frágil, mais miserável, mais à mercê de tudo
quanto a rodeia, que tenha mais necessidade de misericórdia, de
cuidados e de protecção que uma criança? Não dá a impressão de
que só tem um rosto tão doce e um ar tão comovedor para que tu
do quanto dela se aproxima se interesse pela sua fraqueza e se em
penhe em socorrê-la? Que haverá, então, de mais chocante, de
mais contrário à ordem que ver uma criança imperiosa e rebelde
comandar a tudo quanto a rodeia e tomar impunemente o tom de
chefe com aqueles que, se a abandonassem, a fariam morrer?
Por outro lado, quem não se apercebe de que a fraqueza da pri
meira idade acorrenta as crianças de tantas maneiras, que até é
bárbaro acrescentar a essa sujeição a dos nossos caprichos, que
lhes retira uma liberdadej á tão limitada, da qual tão pouco podem
abusar, � de que é pouco útil - tanto para elas como para nós
p rivá-las? Se, p o r um lado, não há coisa mais ridícula que uma
criança altiva, por outro, não há coisa mais digna de piedade que
uma criança medrosa. Já que, com a idade da razão, começa a ser
vidão civil, porquê preveni-la com a servidão privada? Suporte
mos que um momento da vida esteja isento desse jugo que a natu
reza não nos impôs e deixemos à infância o exercício da liberdade
natural, que, pelo menos durante algum tempo, a afasta dos vícios
que se contraem na escravidão. Que esses institutores severos, que
esses pais dominados pelos filhos, venham, com as suas objecções
frívolas, e que - antes de gabarem os seus métodos - aprendam,
de vez, os métodos da natureza.
Voltemos à prática. Já disse que o vosso filho não deverá obter
as coisas porque as pede, mas porque precisa delas1 , nem fazer na·
da por obediência mas unicamente por necessidade. Assim, as pa
lavras «Obedecer>> e «ordenar» serão proscritas do seu dicionário, e,
ainda com mais razão, «dever>> e «obrigação>>;mas as palavras «for-
O MESTRE
A CRIANÇA
A CRIANÇA
O MESTRE
A CRIANÇA
O MESTRE
A CRIANÇA
O MESTRE
Sereis espiado.
A CRIANÇA
Esconder-me-ei.
O MESTRE
Sereis interrogado.
A CRIANÇA
Mentirei.
O MESTRE
79
A CRIANÇA
O MESTRE
L. B. 523 - 6
ao resto, neste assunto não há meio termo; é preciso não exigir ab
solutamente nada dela, ou começar por vergá-la à mais absoluta
obediência. A pior educação é deixá-la duvidosa, entre as suas
vontades e as vossas, e manter uma incessante luta entre vós e ela,
para saber qual de vós será o mestre; parece-me que, neste caso,
seri� cem vezes preferível que o fosse a criança.
E muito estranho que, desde que se começaram a educar as
crianças, nunca ninguém tenha imaginado outros instrumentos,
para as guiar, que não fossem a emulação, a inveja, o ciúme, a vai
dade, a cobiça, o vil receio, todas as paixões mais perigosas, de fer
mentação mais rápida, e mais próprias para corromper a alma,
mesmo antes de o corpo estar formado. A cada instrução precoce
que se pretende meter-lhes na cabeça, planta-se-lhes um vício no
fundo do coração; educadores insensatos pensam conseguir mara
vilhas tornando-as más, para lhes ensinarem o que é a bondade;
e, depois, dizem-nos com gravidade: «Tal é o homem, sim, tal é o
homem que fizestes.»
Experimentaram-se todos os sistemas, excepto aquele que
pode dar resultados: a liberdade bem disciplinada. Ninguém se
deve encarregar da educação de uma criança se não a souber con
duzir aonde quer, unicamente pelas leis do possível e do impossí
vel. Como a esfera de um e do outro lhe é igualmente desconheci,
da, é possível alargá-la e apertá-la em sua volta, como se quer. E
possível acorrentar a criança, empurrá-la, retê-la, com o único elo
da necessidade, sem que ela se queixe: consegue-se torná-la
maleável e dócil, simplesmente pela força das coisas, sem que ne
nhum vício tenha a possibilidade de nela germinar; porque, quan
do não têm qualquer efeito, as paixões nunca se animam.
Não deis ao vosso pupilo nenhuma espécie de lição verbal; ele
só as deverá receber da experiência: não lhe inflinj ais nenhuma es
pécie de castigo, porque ele não sabe o que é estar em falta: não o
obrigueis nunca a pedir perdão, porque ele não poderia ofen
der-vos. Desprovido de toda a moralidade nas suas acções, nada
poderá fazer que seja moralmente mal e que mereça castigo ou re
primenda.
Já estou a ver o leitor, assustado, comparando essa criança às
nossas: engana-se. O constrangimento perpétuo em que man
tendes os vossos pupilos exacerba a sua vivacidade; quanto mais
coagidos se sentem perante vós, mais turbulentos se mostram nos
momentos em que-vos escapam; é necessário que, quando podem,
encontrem uma compensação para a severa coacção em que os con
servais. D ois educandos da cidade farão mais estragos na região
que toda a juventude de uma aldeia. Fechai, no mesmo quarto, o
filho de um senhor e o filho de um camponês; antes de este ter da
do um passo, já o outro atirou tudo ao chão e partiu muita coisa.
82 Que outro motivo pode haver para isso que não seja que o primei-
ro se apressa a abusar de um momento de liberdade, enquanto o
segundo - sempre seguro da sua liberdade - não se sente impa
ciente por utilizá-la? E, no entanto, os filhos dos camponeses, mui
tas vezes satisfeitos ou contrariados, ainda estão muito longe do
estado em que quero que estejam.
Consideremos, como máxima incontestável, que os primeiros
movimentos da natureza são sempre rectos: não há perversidade
natural no coração humano; nele não se encontra um único vício de
que se não possa dizer como e por onde penetrou. A única paixão
natural do homem é o amor por si próprio, ou o amor-próprio, consi
derado num sentido alargado. Esse amor-próprio, em si mesmo,
ou relativamente a nós, é conveniente e útil; e, como não está ne
cessáriamente relacionado com outrem, é naturalmente indife
rente; só se torna bom ou mau pela aplicação que dele se faz e pe
las relações que se lhe dão. Por conseguinte, enquanto o guia do
amor-próprio -que é a razão - não tiver aparecido, importa que
uma criança não faça nada só porque é vista ou ouvida; resumin
do, importa que não faça nada em função dos outros, mas unica
mente em função da natureza; e, nesse caso, só fará o que é bem.
Não quero com isto dizer que ela nunca faráestragos, que nun
ca se magoará, que não destruirá, talvez, um móvel de valor, se o
encontrar ao seu alcance. Poderá causar muito mal, sem fazer mal,
porque a má acção depende da intenção de prejudicar e ela nunca
terá essa intenção. Se a tivesse, nem que fosse uma única vez, tu
do ficaria perdido; seria má, quase sem remédio.
Determinada coisa é mal aos olhos da avareza, embora não o
seja aos olhos da razão. Deixando as crianças em plena liberdade
de exercer o seu estouvamento, convém afastar delas tudo quan
to as possa tornar dispendiosas e não deixar ao seu alcance nada
que seja frágil ou precioso. Que os seus aposentos estejam guarne
cidos com móveis grosseiros e sólidos; nada de espelhos, nada de
porcelanas, nada de objectos de luxo. Quanto ao meu Emílio, que
crio no campo, no seu quarto não terá nada que o distinga do de um
camponês. Para quê decorá-lo com muitos cuidados,já que ele de
verápermanecer nele tão pouco tempo? Mas engano-me; ele guar
necê-lo-á por si próprio, e em breve veremos com quê.
Que se, apesar das vossas precauções, a criança vem a fazer al
guma desordem, a quebrar algum objecto útil, não a castigueis pe
la vossa negligência, não lhe ralheis; que ela não ouça nem sequer
uma palavra de censura; não lhe deixeis sequer perceber que sen
tistes alguma mágoa; agi exactamente como se o móvel se tivesse
partido sozinho; enfim, considerai que fizestes muito se conseguir
des nada dizer.
Atreve-me-ei a expor, aqui, a maior, a mais importante, a re
gra mais útil para qualquer educação? Não se trata de ganhar tem
po, trata-se de o perder. Leitores vulgares, perdoai-me os meus 8 3
p aradoxos: é necessário fazê-los quando se raciocina; e, seja o que
for que disserdes, prefiro ser homem de p aradoxos que homem de
preconceitos. O intervalo mais perigoso da vida hull}anaé o que de
corre desde o nascimento até à idade dos 1 2 anos. E durante essa
época que germinam os erros e os vícios, sem que ainda se dispo
nha de nenhum sistema para os destruir; e, quando o sistema
chega, as raízes já são tão profundas que é tarde de mais para as
arrancar. Se as crianças saltassem, repentinamente, da teta para
a idade da razão, a educação que se lhes dá poderia convir-lhes;
mas, segundo o progresso natural, precisam de outra completa
mente oposta. Seria necessário que não fizessem nada da alma da
criança enquanto ela não tivesse adquirido todas as suas faculda
des; porque, enquanto está cega, é-lhe impossível avistar o estan
darte que lhe apresentais, e a seguir, na imensa planície das
ideias, um caminho que a razão só ainda muito levemente traçou,
para os melhores olhos. Por conseguinte, a primeira educação de
ve ser puramente negativa. Consiste, não em ensinar a virtude e
a verdade, mas em preservar o coração do vício e o espírito do er
ro. Se pudésseis nada fazer e nada deixar fazer; se pudésseis con
duzir o vosso pupilo, são e robusto, até à idade dos 1 2 anos, sem que
ele soubesse distinguir a sua mão direita da sua mão esquerda, os
olhos do seu entendimento abrir-se-iam p ara a razão, desde as
vossas primeiras lições; sem preconceitos, sem hábitos, nada teria,
em si, que pudesse contrariar o efeito dos vossos cuidados. Nas
vossas mãos, em breve se tornaria o mais sage dos homens; e,
começando por não fazer nada, teríeis conseguido um prodígio de
educação.
Fazei tudo ao contrário do que é hábito, e tudo quanto fareis se
rá quase sempre bem. Como não se pretende fazer uma criança de
uma criança, mas sim um doutor, os pais e os mestres começam
muito cedo a admoestar, a corrigir, a repreender, a lisonjear, a
ameaçar, a prometer, a instruir, a falar, a dar explicações. Fazei
melhor: sede razoáveis e não deis explicações ao vosso educando,
sobretudo para o levardes a aprovar o que lhe desagrada; porque
justificar sempre a razão das coisas desagradáveis é apenas torná
-la enfadonha e desacreditá-la muito cedo, num espírito que
ainda não se encontra em estado de a compreeender. Exercei o seu
corpo, os seus órgãos, os seus sentidos, as suas forças, mas conser
vai a sua alma ociosa durante tanto tempo quanto puderdes.
Receai todos os sentimentos anteriores à opinião que os aprecia.
Refreai, detende as impressões estrangeiras; e, para impedir que
o mal apareça, não vos apresseis a fazer bem; porque ele só é tal
quando esclarecido pela razão. Considerai todos os pormenores
como vantagens: é ganhar muito, o avançar p ara o termo sem na-
S 4 da perder; deixai amadurecer a infância nas crianças. Enfim, é-
-lhes necessáriaalguma lição? Evitai dar-lha hoje, se podeis adiá-
-la para amanhã, sem inconveniente.
Uma outra consideração que confirma a utilidade deste méto
do é a do carácter especial da criança, que é preciso conhecer bem
para saber que regime moral lhe convém . Cada espírito tem a sua
forma própria segundo a qual precisa de ser governado; e impor
ta, para o êxito dos cuidados que se lhe dedicam, que ele seja go
vernado por essa forma e não por outra. Homem prudente, espiai
longamente a natureza, observai bem o vosso pupilo antes de lhe
dizerdes a primeira palavra; começai por permitir que o germe do
seu carácter em plena liberdade se mostre, não o constrangeis em
nada, a fim de melhor o verdes na sua totalidade. Pensais que esse
tempo de liberdade ficará perdido para ele? Pelo contrário, será
empn�gado da melhor maneira; pois será desse modo que aprende·
reis a não perder um único momento de um tempo precioso: se, em
vez disso, começardes a agir antes de saberdes o que é necessário
fazer, agireis ao acaso; sujeito a enganar-vos, tereis de fazer mar·
cha atrás; ficareis mais afastados do alvo do que se tivésseis esta
do menos apressado de o atingir. Por conseguinte, não procedais
como o avarento que m uito perde por não querer perder nada. Du
rante a primeira idade, sacrificai um tempo que recuperareis com
juros numa idade mais avançada. O sage médico não prescreve ir·
reflectidamente receiÇas à primeira vista, mas começa por estudar
o temperamento do doente antes de lhe prescrever qualquer remé
dio; começa a tratá-lo tarde, mas cura-o, enquanto o médico exces
sivamente apressado o mata.
Mas, onde colocaremos essa criança, para a educar assim,
como um ser insensível, como um autómato? Mantê-la--€mos no
globo da Lua, numa ilha deserta? Afastá-la--€mos de todos os hu
manos? Não irá ela assistir, continuamente, na sociedade, ao es
pectáculo e ao exemplo das paixões de outrem? Nunca verá outras
crianças da sua idade? Não verá os pais, os vizinhos, a ama, a go·
vernanta, o lacaio, o seu próprio governante, que, no fim de contas,
não será um anjo?
Esta objecção é forte e sólida. Mas por acaso yos disse que a
educação natural era um empreendimento fácil? O homens! Será
culpa minha se tornastes difícil tudo quanto é bem? Sinto essas di
ficuldades, concordo que elas existem; talvez sejam intransponí
veis; mas podeis ter a certeza de que, aplicando-vos a preveni-las,
as prevenireis até um certo ponto. Mostro a finalidade que é pre
ciso atingir: não digo que seja possível chegar até lá, mas digo que
aquele que mais se aproximar dela será o que mais êxito terá ob·
tido.
Lembrai-vos de que aquele que se atreve a empreender a for
mação de um homem precisa de começar por se ter feito homem a
si mesmo; é preciso que encontre, em si mesmo, o exemplo que ten- 8 5
ciona propor. Enquanto a criança ainda está sem conhecimento,
tem-se tempo para preparar tudo quanto se aproxima dela, para
que os seus primeiros olhares só sejam feridos por objectos que
importa que ela veja. Tornai-vos respeitáveis para toda a gente,
começai por fazer-vos amar, a fim de que todos procurem agradar
-vos. Não podereis dominar a criança se não puderdes dominar tu
do quanto a rodeia; e essa autoridade nunca será suficiente, se não
for baseada na estima da virtude. Não se trata de despejar a bolsa
e de distribuir dinheiro às mãos-cheias; nunca vi que o dinheiro
conseguisse fazer amar alguém. Não se deve ser avarento e seve
ro, nem lastimar a miséria que se pode aliviar; mas, por mais que
abrirdes os vossos cofres, se não abrirdes também o vosso coração,
o dos outros permanecerá sempre fechado para vós. O que é pre
ciso dar é o vosso tempo, os vossos cuidados, os vossos afectos, uma
p arte de vós mesmos; pois que, não procedendo assim - seja o que
for que fizerdes -, todos sentirão, sempre, que o vosso dinheiro
não sois vós. Há testemunhos de interesse e de benvolência que fa
zem mais efeito e que são verdadeiramentemais úteis que todos os
dons: quantos infelizes, doentes, têm mais necessidade de conso
lações que de esmolas! Quantos oprimidos precisam mais de pro
tecção que de dinheiro! Reconciliai aqueles que se zangam, evitai
os processos; conduzi as crianças ao dever, os pais à indulgência;
favorecei casamentos felizes; impedi os vexames; empregai, prodi
gai o crédito dos pais do vosso pupilo em favor do fraco ao qual re
cusam justiça e que o poderoso oprime. Declarai-vos e mostrai-vos
o protector dos desgraçados. Sede justos, humanos, praticai o bem.
Não vos limiteis a dar esmola, praticai a caridade; as obras de mi
sericórdia aliviam mais males que o dinheiro; amai os outros, e eles
amar-vos-ão; servi-os, e eles servir-vos-ão; sede para eles como
um irmão, eles portar-se-ão como vossos filhos.
Esta é mais uma das razões por que eu quero criar Emílio no
campo, longe da canalhada dos lacaios - os piores homens depois
dos amos; longe dos vis costumes das cidades, que, recobertas de
verniz, se mostram sedutoras e contagiosas para as crianças; con
tanto que os vícios dos camponeses, sem polimento e na sua total
grosseirice, são mais próprios p ara desgostar que para seduzir,
quando não se tem interesse nenhum em imitá-los.
Na aldeia, um governante terá muito mais possibilidades de
escolher os objectos que quer mostrar à criança; a sua reputação,
os seus discursos, o seu exemplo terão uma autoridade que nunca
conseguiram adquirir na cidade; sendo útil para toda a gente, to
dos se empenharão em ser-lhe agradáveis, em ser estimados por
ele, em mostrar-se ao pupilo tal como, efectivamente, o mestre
quereria que fossem; e, embora não se corrijam do vício, abster-se
-ão do escândalo; é tudo de quanto precisamos para o nosso objec-
8 6 tivo.
Deixai de atirar para cima dos outros as vossas próprias cul
pas: o mal que as crianças vêem corrompe-as menos que aquele
que lhes ensinais. Sempre pregadores, sempre moralistas, sempre
pedantes, por uma ideia que lhes dais-porque a creis boa -dais
-lhes simultaneamente mais vinte que nada valem: cheios com o
que se passa nas vossas cabeças, não vedes o efeito que produzis
nas suas. Por entre esse prolongado fluxo de palavras com que in
cessantemente as excedeis, pensais que não haja nenhuma que
elas interpretem mal? Pensais que elas não comentam, à sua ma
neira, as vossas difusas explicações, e que nelas não encontram
com que formar um sistema ao seu alcance e que saberão opor-vos,
quando a ocasião se apresentar?
Escutai um rapazinho que acaba de receber instruções; deixai
-<> palrar, fazer perguntas, disparatar à sua vontade, e ficareis sur
JEAN-JACQUES
ROBERT
EMÍLIO
ROBERT
EMÍLIO
ROBERT
JEAN....J ACQUES
ROBERT
L.B.253 - 7
quando os pobres aceitaram que houvesse ricos, os ricos promete
ram alimentar todos aqueles que não tivessem de que viver, nem
através dos seus bens nem através do seu trabalho». «Então tam
bém prometeste isso?», perguntará ele. «Certamente; só sou dono
dos bens que passam pelas minhas mãos, nas condições que estão
ligadas à sua propriedade.>>
Depois de ter ouvido este discurso - e já se viu como é possí
vel colocar uma criança em estado de o compreender -, outro que
não fosse Emílio sentir-se-ia tentado a imitar-me e a comportar
-se como homem rico; nesse caso, eu trataria, pelo menos, de im
pedir que o fizesse com ostentação; preferiria que me roubasse o
meu direito e desse às escondidas. E uma fraude própria da sua
idade, e a única que eu lhe poderia perdoar. Bem sei que todas es
sas virtudes por imitação são virtudes de macaco, e que uma boa
acção só é moralmente boa quando é praticada como tal e não por
que outros a praticam. Mas, numa idade em que o coração ainda
não sente nada, devemos aceitar que as crianças imitem os adul
tos cujo hábito lhes queremos incutir, esperando que possam vir a
praticá-los por discernimento e por amor ao bem. O homem é
imitador, o próprio animal o é; o gosto pela imitação traduz uma
natureza bem ordenada; mas, na sociedade, degenera em vício. O
m acaco imita o homem, porque o receia, e não os animais que des
preza; considera bom tudo quanto faz um ser melhor que ele. Pe
lo contrário, entre nós, os nossos arlequins de todas as espécies
imitam o belo para o degradarem, para o tornarem ridículo; no sen
timento da sua b aixeza, procuram igualar-se ao que vale mais do
que eles; ou, quando se esforçam por imitar o que admiram, vê-se,
na escolha que fazem dos objectos, o falso gosto dos imitadores: têm
muito mais a intenção de se impor aos outros ou de conseguir que
o seu talento seja aplaudido que de se tornarem melhores ou mais
sages. Entre nós, o fundamento da imitação deri\ra do desejo de
continuamente nos transportarmos para além de nós mesmos. Se
eu tiver êxito no meu trabalho, Emílio não terá esse desejo. Por
conseguinte, devemos dispensar o bem aparente que ele poderia
produzir.
Aprofundai todas as regras da vossa educação e vereis que as
encontrareis todas trocadas, sobretudo no que diz respeito às vir
tudes e aos costumes. A única lição de moral que convém à infân
cia, e a m ais importante para todas as idades, é a de nunca fazer
mal a ninguém. O próprio preceito de fazer o bem, se a ele não for
subordinado, é perigoso, falso, contraditório. Quem é que não faz
o bem? Toda a gente o faz, tanto osmaus comoos outros; faz-seum
homem feliz à custa de cem que se tornam miseráveis; e daí vêm
todas as nossas calamidades. As virtudes mais sublimes são nega
tivas: também são as m ais difíceis, porque são sem ostentação, e
98 mesmo acima desse prazer - 'que tão doce é para o coração do
homem - de saber que alguém fica satisfeito graças a nós. Oh!
Quanto bem faz, necessariamente, aos seus semelhantes, aquele
que nunca lhes faz mal! Quanta magnanimidade de alma, quan
to vigor de carácter lhe são necessários para isso! Não é raciocinan
do sobre esta máxima, mas esforçando-nos por praticá-la, que
sentimos como é importante e difícil aplicá-la1 •
Eis algumas ligeiras ideias das precauções com as quais eu
gostaria que se dessem, às crianças, as instruções que, por vezes,
não se lhes pode recusar sem as expor a prejudicarem-se a si mes
mas e aos outros, e, sobretudo, a contraírem maus hábitos que di
ficilmente -se conseguiriam corrigir: mas tenhamos a certeza de
que esta necessidade raramente se fará sentir nas crianças educa
das como deve ser; porque é impossível que se tornem indóceis,
más, mentirosas, ávidas, se, nos seus corações, não tiverem sido
semeados os vícios que assim as tornam. Por isso, o que eu disse a
este respeito serve mais para as excepções que para as regras; mas
essas excepções tornam-se mais frequentes à medi da que as crian
ças vão tendo oportun,idades de sair da sua condição e de contrair
os vícios dos homens. Aquelas que são educadas entre a sociedade,
as instruções devem, necessariamente, ser dadas mais precoce
mente que às que são educadas num retiro. Esta educação solitá
ria seria, pois, de preferir, quanto mais não fosse para deixar, à in
fância, o tempo de amadurecer.
Existe outro género de excepções opostas, para as crianças cujo
natural agradável as eleva acima da idade que têm . Assim como há
homens que nunca saem da infância, há outros que, por assim di
zer, nem sequer passam por ela e que j á são quase homens quan
do nascem . Pena é que esta última excepção seja muito rara, mui
to difícil de determinar, e que, todas as mães, sabendo que há
crianças-prodígio, se convençam de que o filho é um desses casos.
Ainda vão mais longe: interpretam como indícios extraordinários
aqueles que marcam a ordem natural, tais como a vivacidade, os
saltos, a estouvanice, a graciosa ingenuidade, todos eles sinais ca-
1
O preceito de nunca fazer mal a ninguém obriga a interessar-se,
o menos possível, pela sociedade humana, porque, no estado social, o bem
de um implica necessariamente o mal de outro. Esta correlação está na es
sência da coisa, e nada a poderia mudar. Que se veja, neste princípio, o que
é preferível, se o homem social ou o solitário. Um autor ilustre diz que só ·
o mau está só; eu digo que só o bom está só. Embora esta afirmação sej a
menos sentenciosa, é mais verdadeira e mais bem racioçinada que a pre
cedente. Se o mau estivesse só, que mal poderia fazer? E no seio da socie
dade que ele prepara as suas maquinações para fazer mal aos outros. Se
alguém pretender aplicar este argumento ao caso do homem bom, respon-
do com o artigo ao qual esta nota pertence. 99
racterísticos da idade e que muito bem mostram que uma criança
é apenas uma criança. Será de admirar que aquela a quem fazem
falar muito e à qual permitem tudo dizer, que não respeita nada,
que nada constrinja, tenha, por acaso, um feliz encontro? Seria
m uito mais espantoso que nunca o tivesse,comoo seria que - com
m il mentiras - um astrólogo nunca predisesse nenhuma verdade.
«Mentirão tanto», dizia Henrique IV, «que acabarão por dizer al
guma verdade.>> Para aquele que queira dizer algumas palavras
acertadas, basta-lhe dizer muitas asneiras. Deus proteja as pes
soas n a moda, que, para serem admiradas, só têm esse mérito!
Os pensamentos mais brilhantes podem cair no cérebro das
crianças, ou antes, os ditos mais acertados nas suas bocas, como os
diamantes do m aior valor nas suas mãos, sem que, por isso, os dia
mantes ou os pensamentos lhes pertençam; para essa idade, não
há verdadeira propriedade, de género nenhum. As coisas que uma
criança diz, para ela não significam o mesmo que para nós; ela não
lhes atribui as mesmas ideias. E essas ideias - no caso de ela as
ter - não têm, na sua cabeça, nem continuidade nem ligação; na
da há de fixo nem de seguro no que pensam. Examinai o vosso pre
tenso prodígio. Em determinados momentos, encontrareis nele a
m arca de uma extrema actividade, uma clareza de espírito capaz
de atravessar asnuvens. Na maior parte das vezes, essemesmoes
pírito parece-vos relaxado, lento e como rodeado por um espesso
nevoeiro. Ora vos ultrapassa ora se Ulantém imóvel. Em dado mo
mento, sereis capaz de dizer: é um génio; e, um instante depois: é
um patet�. Mas enganar-vos-eis sempre; trata-se apenas de uma
criança. E uma aguiazinha que, durante um instante fende ós,
*
106 Planta cujas folhas se utilizam como purgativo. (N. da T.)
disposições, e, enquanto voltávamos para casa, ria-me comigo
mesmo da elevada sageza dos pais e dos mestres que pensam en
sinar a história às crianças.
E fácil pôr-lhes na boca as palavras <<reis», «impérios», <<guer
ras••, «conquistas••, <<revoluções», <<leis>>; mas, quando se tratar de
relacionar essas palavras com ideias claras, ver-se-á a grande di
ferença que existe entre a conversa dojardineiro Robert e todas es
sas explicações.
Prevejo que alguns leitores, descontentes com o Cala-te, Jean
-Jacques, quererão saber o que, finalmente, vejo, de tão belo, na
acção de Alexandre. Infortunad_os! Se precisam que eu vo-lo diga,
como poderão compreendê-lo? E que Alexandre acreditava na vir
tude; é que, por ela, ele teria posto a cabeça a prémio, a sua própria
vida; é que a sua grande alma estava feita para acreditar nela.
Como foi bela a sua profissão de fé, quando engoliu esse medica
mento! Não, nunca nenhum mortal foi tão sublime. Se existe al
gum Alexandre moderno, mostrem-mo nessas mesmas circuns
tâncias.
Se não há ciência de palavras, também não há estudo próprio
para as crianças. Se elas não tiverem verdadeiras ideias, não terão
v erd ade ira mem ória; porque não dou esse nome àquela que só re
tém as sensações. De que serve inscrever-lhes, n a cabeça, um ca
tálogo de sinais que, para elas, não representa nada? Ao aprende
rem as coisas, não aprenderão os sinais? Por que motivo obrigá-las
ao inútil trabalho de as aprenderem duas vezes? Entretanto, quão
perigosos são os preconceitos que se lhes começa por inspirar, le
vando-as a considerar cc;>mo ciência palavras que, para elas, não
fazem sentido nenhum! E com a primeira palavra que a criança se
forma, é com a primeira coisa que aprende pela palavra de outrem
- sem lhe ver a utilidade - que a sua possibilidade de ajuizar se
perde: brilhará durante muito tempo, aos olhos dos tolos, antes de
poder reparar uma tal perda1•
O CORVO E O RAPOSO
(Fábula)
1 Num caso destes, pode, sem perigo, exigir-se que uma criança diga
a verdade, porque, nesse momento, ela bem sabe que não a conseguirá
disfarçar e que, se se atrever a dizer uma mentira, será imediatamente
122 descoberta.
em minha casa, quando isso acontecer, tende o cuidado de não re
gressar.»
Por meu lado, recebi-a sem censuras e sem ironia, mas com um
ar grave; e, receando que suspeitasse de que tudo o que se passa
ra não fora mais do que uma brincadeira, não quis levá-la a sair
naquele mesmo dia. No dia seguinte, vi, com grande prazer, que,
acompanhada por mim, ela passava com um ar de triunfo diante
dessas mesmas pessoas que tinham troçado dela na véspera, por
a terem encontrado sozinha. Como podeis imaginar, nunca mais
voltou a ameaçar-me de sair sem mim.
Foi por este meio e outros do mesmo género que, durante o pou
co tempo que passei com ela, consegui levá-la a fazer tudo quan
to eu queria, sem nunca lhe ordenar nada, sem nunca lhe proibir
nada, sem sermões, sem exortações, sem a aborrecer com lições
inúteis. Por isso, quando eu falava, ela sentia-se contente; mas o
meu silêncio preocupava-a; compreendia que havia alguma coisa
que não estava bem, e a lição vinha-lhe sempre dessa própria coi
sa. Mas voltemos ao assunto.
Não só esses exercícios contínuos, assim entregues à direcção
da natureza, fortalecem o corpo e não embrutecem o espírito, como,
pelo contrário, formam, em nós, a única espécie de razão de que a
primeira idade é susceptível, e a mais necessária para todas as ida
des. Ensinam-nos a conhecer bem a utilização das nossas forças,
a relação dos nossos corpos com os corpos que nos rodeiam, a uti
lização dos instrumentos naturais que estão ao nosso alcance e que
convêm aos nossos órgãos. Haverá estupidez que se possa compa
rar à de uma criança educada sempre dentro de casa e sob os olha
res da mãe, que, ignorando o que é peso e resistência, quer arran
car uma grande árvore ou levantar um rochedo? A primeira vez
que saí de Genebra, quis seguir um cavalo a galope, lancei pedras
à montanha de Saleve, que ficava a duas léguas de mim; fantoche
de todas as crianças da aldeia, para eles, eu era um verdadeiro idio
ta. Aos 1 8 anos, na filosofia, aprende-se o que é uma alavanca: não
existe nenhum camponês de 12 anos que não saiba utilizar uma
alavanca melhor que o primeiro mecânico da academia. As lições
que os educandos aprendem entre eles, no recreio do colégio, são
-lhes cem vezes mais úteis que tudo quanto lhes foi ensinado nas
aulas.
Observai um gato que, pela primeira vez, entra num quarto;
percorre--<:>, observa, fareja, não fica um momento quieto, não se fia
em nada enquanto não examinou tudo, enquanto não conhece to-
dos os cantos da habitação. O mesmo faz uma criança que começa
a andar, entrando, por assim dizer, no espaço do mundo. A única
diferença está em que, ao sentido da vista -comum à criança e ao
gato - a primeira acrescenta, para observar, as mãos que a natu
reza lhe deu, e, o outro, o subtil olfacto com que ela o dotou. Esta 123
disposição, bem ou mal cultivada, é o que torna as crianças habi
l idosas ou desajeitadas, preguiçosas ou activas, estouvadas ou
prudentes.
Por conseguinte, como os primeiros movimentos do homem são
para se medir com tudo o que o rodeia, e experimentar, em cada
objecto que avista, todas as qualidades sensíveis que se podem re
lacionar com ela, a sua primeira lição é uma espécie de física ex
perimental relativa à sua própria conservação, da qual é desviada
por estudos especulativos, antes mesmo de ter reconhecido o seu
lugar neste mundo. Enquanto os seus órgãos delicados e flexíveis
se podem adaptar aos corpos sobre os quais devem agir, enquan
to os seus sentidos, ainda puros, estão isentos de ilusões, é tempo
de exercitar tanto uns como os outros nas funções que lhes são pró
prias; é o momento de aprenderem a conhecer as relações sensíveis
que as coisas têm connosco. Como tudo o que entra no enten dimen
to humano lhe chega pelos sentidos, a primeira razão do homem é
a sensitiva; é ela que servirá de base à razão intelectual: os nossos
primeiros mestres de filosofia são os nossos pés, as nossas mãos,
os nossos olhos. Substituir tudo isso por livros não é ensinar-nos
a raciocinar, é ensinar-nos a servir-nos da razão de outrem; é en
sinar-nos a muito crer e a nunca saber nada.
Para exercer uma arte, é necessário começar por adquirir os
instrumentos necessários para a praticar; e, para poder utilizar
utilmente esses instrumentos, é preciso fabricá-los bastante sóli
dos, para que resistam ao uso. Para aprender a pensar, é , pois, ne
cessário exercitar os nossos membros, os nossos sentidos, os nos
sos órgãos, que são os instrumentos da nossa inteligência; e, para
tirar o maior partido possível desses instrumentos, é necessário
que o corpo que os fornece seja robusto e são. Assim, a verdadeira
razão do homem não se forma independentemente do corpo: é a boa
constituição do corpo que facilita e torna seguras as operações do
espírito.
Mostrando em que deve ser utilizada a prolongada ociosidade
da infância, entro num pormenor que vos vai parecer ridículo. «Li
ções agradáveis», dir-m�is, «que, recaindo sobre a vossa própria
crítica, se limitam a ensinar o que ninguém precisa de aprender!
Para quê desperdiçar tempo com instruções que chegam sempre
por si próprias e não dão nem mágoas nem trabalhos? Qual a crian
ça de 12 anos que não sabe tudo quando quereis ensinar ao vosso
pupilo, e, além disso, o que os mestres lhe ensinaram?»
Meus senhores, enganai-vos: ensino ao meu pupilo uma arte
m uito morosa e muito difícil que, certamente, os vossos não têm;
é a de ser ignorante: porque a ciência de quem não se crê saber o
que sabe reduz-se a muito pouca coisa. Vós dais a ciência; é perfei
to! Eu, ocupo-me do instrumento próprio para a adquirir. Diz-se
124 que, um dia, depois de, com toda a pompa, os Venezianos terem
mostrado o tesouro de São Marco a um embaixador de Espanha,
este, como único elogio, e depois de ter espreitado por debaixo das
mesas, lhes disse: Qui non c'e la radice*. Tenho sempre vontade de
dizer o mesmo, quando vejo um perceptor fazer alarde da sabedo
ria do seu pupilo.
Todos os que reflectiram sobre a maneira de viver dos antigos
atribuem aos exercícios de ginástica esse vigor do corpo e da alma
que os distingue mais sensivelmente dos modernos. A maneira
como Montaigne insiste neste sentimento mostra que estavamui
to convencido disso; refere-se constantemente a isso, e de mil ma
neiras. Falando da educação que se deve dar a uma criança, para
lhe fortalecer a alma, diz ele que é preciso endurecer-lhe os mús
culos; habituando-a ao trabalho, habituamo-la à dor; é preciso
acostumá-la à rudeza dos exercícios para que se habitue ao amar
gor do entorse, da cólica e de todas as doenças. O sage Locke, o bom
Rollin, o sábio Fleury, o pedante Crouzas, tão diferentes entre si
-no que concerne o resto-, todos eles estão de acqrdo neste único
ponto, que é exercer muito os corpos das crianças. E o maisjudicio
so dos seus preceitos; mas é aquele que está a ser e sempre será
mais negligenciado. Já falei bastante da sua importância; e, como,
sobre esse assunto, não é possível dar razões melhores nem regras
mais sensatas que aquelas que se encontram nos livros de Locke,
contentar-me---ei em vo-las citar, após ter tomado a liberdade de
lhes acrescentar algumas observações.
Os membros de um corpo que cresce devem sentir-se bem à
larga nas suas vestes; nada lhes deve dificultar os movimentos
nem o crescimento; não devem usar vestes demasiado justas, nada
que se cole ao corpo; nada de ligaduras. As vestes francesas, incó
modas e malsãs para os homens, são perniciosas, sobretudo para
as crianças. Os humores, estagnantes, detidos nà sua circulação,
corrompem-se num repouso que a vida inactiva e sedentária au
menta, e são causa de escorbuto, doença cada dia mais comum en
tre nós, e quase ignorada pelos antigos, cuja maneira de vestir e de
viver os preservava dela. As vestes justas, longe de evitarem este
inconveniente, aumentam-no, e, para poupar às crianças algumas
ligaduras, apertam-lhes o corpo todo. O que de melhor há a fazer
é deixá-las em camisa tanto tempo quanto possível, e, mais tarde,
dar-lhes roupas bastante largas, e não ter a preocupação de lhes
marcar a cintura, o que só poderia servir para a deformar. Os seus
defeitos corporais e de espírito derivam quase todos da mesma cau
sa; pretende-se torná-las adultas antes de tempo.
Há cores alegres e cores tristes: as primeiras agradam mais às
crianças; tambémlhes ficam melhor; e não vejo por que razão estas
1 Eis, ainda, mais uma causa, bem explicada por um filósofo cujo li
vro cito frequentemente e cujas grandes vistas me instroem ainda com
mais frequência.
<<Quando, em circunstâncias especiais, não podemos fazer uma ideia
justa da distância, e apenas podemos avaliar a grandeza dos objectos pe
la grandeza de ângulo, ou antes, pela imagem que eles formam diante dos
nossos olhos, é inevitável que nos enganemos sobre a grandeza desses ob
jectos. Toda a gente sabe, por experiência, que, viajando de noite, se toma
um arbusto que está perto de nós por uma grande árvore que se encontra
afastada, ou bem que se toma uma grande árvore, afastada, por um arbus
to que está ao nosso lado; da mesma maneira, quando não se conhecem os
objectos pela sua forma, e que, desse modo, não se pode ter nenhuma ideia
de distância, ainda é mais inevitável que se cometam enganos. Assim,
uma mosca que passe rapidamente pela nossa frente, a algumas polega
das dos nossos olhos, poderá por nós ser considerada como um pássaro que
esteja muito longe; um cavalo que se encontre imóvel, no meio de um pra
do, e que tenha adoptado uma atitude semelhante, por exemplo, à de um
carneiro, parecer-nos-á um grande carneiro, enquanto não reconhecer
mos que é um cavalo; mas, logo que o tenhamos reconhecido, imediata
mente nos parecerá ter o tamanho de um cavalo, e imediatamente corri
gimos a nossa primeira impressão.
«Sempre que nos encontramos, de noite, em lugares desconhecidos,
onde não p ossamos calcular as distâncias e onde, devido à obscuridade,
possamos reconhecer as formas das coisas, a todo o momento corremos o
perigo de cair no erro a respeito d_as estimações que faremos sobre os ob
jectos que se nos apresentarem. E daí que vem o terror e a espécie de re-
ceio interior que a obscuridade da noite faz experimentar a quase todos os 1 35
pôr em jogo a minha imaginação, em breve deixo de poder domi
ná-la, e tudo quanto faço para me tranquilizar só serve para me
assustar mais. Se ouço um ruído, ouço ladrões; se não ouço nada,
vejo fantasmas; a vigilância que me é inspirada pelo cuidado de me
conservar só me dá motivos de receio. Tudo quanto me pode sere
nar está na minha razão; o instinto, mais forte, fala-me de outra
maneira, diferente da dela. De que serve pensar que não temos na
da a recear, quando não podemos fazer nada?
A causa do mal, depois de encontrada, indica o remédio. Em
todas as coisas, o hábito mata a imaginação; apenas os objectos
novos a despertam. Nos que todos os dias se vêem, já não é a ima
ginação que actua, é a memória; e eis a razão do axioma:Ab assue
tis non fit passio, pois só com o fogo da imaginação se acendem as
paixões. Por conseguinte, não arrazoeis com aquele que pretendeis
curar do terror das trevas; conduzi-o frequentemente por entre
elas e tende a certeza de que todos os argumentos da filosofia não
valerão esse hábito. Os que trabalham no alto dos telhados não
sentem vertigens, e não receia a escuridão aquele que está habi
tuado a nela viver.
Eis, pois, para os nossos jogos nocturnos, outra vantagem que
se acrescenta à primeira; mas, para que estes jogos dêem resulta
do, nunca é de mais recomendar a boa disposição. Não há nada
mais triste que as trevas; não encerreis o vosso filho numa mas
morra. Que ele ria, ao penetrar na obscuridade; que volte a rir, an
tes de sair dela; que, enquanto lá está, a ideia das distrações que
abandona, e das que vai encontar, o protejam contra imaginações
fantásticas que poderiam lá ir à sua procura.
Existe um momento da vida para além do qual se recua, avan-
atrevemos a aproximar dele, é certo que a única ideia com que ficaremos
desse objecto é a imagem que ele formava no olho, e, realmente, ter-:-se-á
visto uma figura gigantesca ou horrenda, pela grandeza e pela forma. O
preconceito dos espectros está, pois, baseado na natureza, e essas aparên
cias não dependem, como crêem os filósofos, unicamente da imaginação»
(Hist. nat., tomo IV, p. 22, in-1 2.)
Tratei de demonstrar, no texto, que, quanto à causa explicada nesta
passagem, se vê que o hábito de andar à noite nos deve ensinar a distin
guir as aparências que, aos nossos olhos e na obscuridade, a semelhança
das formas e a diversidade das distâncias fazem adquirir aos objectos; por·
que, quando o ar ainda está suficientemente iluminado para nos permi
tir avistar os contornos menos destes, e porque há mais ar interposto
numa maior distância, quando o objecto se encontra mais afastado de nós
deveremos sempre ver esses contornos meno_s marcados; o que, com o há
bito, será suficiente para nos evitar o engano que aqui explica M. de Buf
fon. Seja qual for a explicação que se prefira, o meu método continua a ser
eficaz, e é o que a experiência confirma perfeitamente. 1 37
do--m eda profunda escuridão quereinava naquele vast� lug�r, fu"
,
invadido por um tel!or que me e�çou os cab.elos; :r_:ec�ei, sai, pus
-me a fugir, aterronzado. No patw, , encontrei um caozmho chama
do Sultan, cujas caríciasme acalmaram. Envergonhado �om o �eu
susto voltei atrás tentando fazer que Sultan me seguisse, cmsa
que ele não quis. Franqueei bruscamente a porta e penetrei . na
igreja. Mal lá entraraquando o payor se voltou a apoderar ?e � mm,
mas de uma tal maneira que perdi a cabeça; e, embora o pulpito se
encontrasse à direita- coisa que eu sabia lindamente -, deso
rientei-me sem dar por isso e procurei-o durante muito tempo, do
lado esquerdo, tropeçando nos bancos;já não sabi� onde me encon
trava, e, não conseguindo encontrar nem ? púlp�to nem a porta,
senti-me invadido por uma perturbação mexpnmível. Por fim,
avistei a porta, consegui sair do templo, e afastei-me dele, como da
primeira vez, bem decidido a lá não voltar sozinho, a não ser du
rante o dia.
Dirijo--me para casa. Quase a entrar, distingo a voz de M. Lam
bercier, em grandes gargalhadas. Tomo--as como se me fossem
destinadas, de antemão, e, envergonhado por me ver exposto a
elas, hesito em abrir a porta. Entretanto, ouço que a Menina Lam
bercier-que se mostra preocupada por minhacausa- diz à cria
da que pegue na lanterna, e que M. Lambercier se dispõe a ir-me
buscar, escoltado pelo meu intrépido primo, ao qual, seguidamen
te, não deixariam de atribuir toda a honra da expedição. Naquele
mesmo instante, todos os meus terrores desaparecem e deixam
-me apenas o de que me surpreendam durante a minha fuga; cor
ro, voo para o templo; sem me desorientar, sem tactear, chego ao
púlpito; subo, pego na Bíblia, desço a correr; em três saltos, estou
fora do templo, cuja porta até me esqueço de fechar; entro na sa
la, ofegante, atiro a Bíblia para cima da mesa, assombrado, mas
palpitante de satisfação por ter evitado o auxílio que me estava
destinado.
Perguntar-me-ão se cito este caso como modelo para ser se
guido e como exemplo da alegria e da boa disposição que exijo nes
tas espécies de exercícios. Não; mas cito-o para provar que nada
é mais capaz de tranquilizar uma pessoa que esteja assustada com
as sombras da noite, que ouvir, num quarto ao lado, um grupo de
pessoas que riem e conversam tranquilamente. Quereria que, em
vez de vos distrairdes assim, sozinhos com o vosso pupilo, reunís
seis, à noit,�, mui tas crianças bem-dispostas; que estas não come
çassem por ser enviadas separadamente, mas em grupos, e que ne
nhuma fossP enviada absolutamente só, antes de se ter a certeza
de que não se sentirá excessivamente assustada.
Não consigo imaginar nada tão agradável e tão útil como esses
jogos, quandp organizados com um pouco de jeito. Numa grande
138 sala, eu preparia uma espécie de labirinto, com mesas, poltronas,
cadeiras, paraventos. Nas inextricáveis sinuosidades desse labi
rinto, poria, entre as oito ou dez caixas de surpresas, outra caixa
quase igual a elas, mas bem recheada de caramelos; designaria,
em termos claros mas resumidos, o lugar preciso em que se encon
tra a caixa que convém descobrir; daria a informação suficiente pa
ra a fazer distinguir por pessoas mais atentas e menos estouvadas
que as crianças1 ; depois, tendo tirado à sorte os pequenos concor
rentes, enviá-los-ia, a todos, um após o outro, até que a caixa dos
caramelos fosse encontrada: o que tornaria fácil ou difícil, consoan
te a habilidade deles.
Imaginai um pequenino Hércules vindo, com uma caixa na
mão, todo orgulhoso da sua aventura. A caixa é posta sobre a mesa
e é aberta com muito cerimonial. Já estou a ouvir as gargalhadas,
a pateada do alegre grupo, quando, em vez dos doces que esperava,
encontra muito bem acondicionado, em musgo ou em algodão, um
escaravelho, ou um caracol, um pedaço de carvão, ou uma bolota,
um nabo, ou qualquer outra coisa do mesmo género. em outras oca
siões, numa sala recentemente caiada, suspender-se-á, perto da
parede, algum brinquedo, algum movelzinho que é preciso ir
buscar, sem tocar na parede. Logo que aquele que o trouxer tiver
chegado, se não obedeceu à regra, ver--se-á a extremidade do seu
chapéu, as pontas dos sapatos, a aba do casaco, e a manga, todas
esbranquiçadas, o que trairá a sua falta. Eis o suficiente, talvez até
de mais, para fazer compreender o espírito destas espécies de jo
gos. Se é preciso explicar-vos tudo, não me leiais.
Durante a noite, quantas vantagens não terá, sobre os outros
homens, aquele que tiver sido educado desta maneira? Os seus
pés, acostumados a firmarem-se por entre as trevas, as suas mãos
exercitadas a aplicar-se facilmente a todos os corpos que as ro
deiam comportar--se-ão sem dificuldade, na mais densa escuri
dão. A sua imaginação, cheia dos jogos nocturnos da sua infância,
dificilmente se ocupará com objectos aterrorizadores. Se crê ouvir
gargalhadas, em vez de serem as dos duendes, serão as dos seus
antigos companheiros de jogos; se imagina uma assembleia, não
pensará no sabá, mas no quarto do seu governante. A noite, só lhe
recordando coisas agradáveis, nunca o assustará; em vez de a re
cear, gostará dela. Se se tratar de uma expedição militar, estará
sempre preparado para partir, tanto sozinho como com o seu regi
mento. Entrará no campo de Saul, percorrê-lo-á sem se desorien-
1 Passeio campestre, como vão ver. Nas cidades, Ofl passeios públi
cos são perniciosos para as crianças de ambos os sexos. E neles que se co
meçam a tornar fúteis e a quererem ser olhadas: é no Luxemburgo, nas Tu
lherias, sobretudo no Palais-Royal, que a bela mocidade de Paris adqui
reessear impertinente e enfatuado que a torna tão ridícula e a faz ser apu-
1 44 pada e detestada por toda a Europa.
ber perder tempo, a fim de o ganhar. Continuámos a dar os nossos
passeios; muitas vezes, levávamos três bolos, outras vezes quatro,
e, de vez em quando, havia um ou mesmo dois para os corredores.
Se é verdade que o prémio não era grande, os que o disputavam
também não eram ambiciosos: aquele que o ganhava era elogiado,
festejado; tudo se fazia com todas as regras; Para dar lugar às emo
ções e aumentar o interesse, eu marcava o percurso mais longo e
admitia vários concorrentes. Mal começavam a correr, todos os
transeuntes paravam para os observar; as aclamações, os gritos,
as palmas, tudo isso animava os concorrentes; por vezes, via o meu
homenzinho estremecer, levantar-se, berrar, porque um dos con
correntes estava a atingir ou a ultrapassar outro; para ele, eram
os jogos olímpicos.
Entretanto, havia concorrentes que, por vezes, faziam trapa
ça; retinham-se mutuamente, ou faziam-se cair uns aos outros, ou
empurravam pedras para o sítio onde os outros deviam passar. Is
so forneceu-me motivos para os separar e para os fazer partir de
vários pontos diferentes, igualmente afastados da meta; em breve
vereis a razão desta precaução; porque devo tratar deste importan
te caso com todos os pormenores.
Aborrecido por sempre ver mastigar, diante dos seus olhos, bo
los que ele tanto desejava comer, o senhor cavaleiro acabou por
pensar que saber correr bem poderia ser útil para alguma coisa, e,
vendo que também tinha duas pernas, começou a treinar-se em
segredo. Evitei assistir aos seus treinos; mas compreendi que o
meu estratagema dera resultado. Quando se supôs suficiente
menteforte -e li-lhe isso no pensamento, antes de ele próprio mo
dizer -, afectou importunar-me para obter o bolo que sobejava.
Recuso-lho, ele obstina-se, e, com um ar despeitado, acaba por me
dizer: «Pois bem! Ponde-{) em cima da pedra, marcai o trajecto, e
veremos.>> «Está bem!», digo-lhe a rir, «será que um cavaleiro sa
be correr? Ficareis com mais apetite e não tereis com que o satis
fazer.» Espicaçado pela minha ironia, ele esforça-se e consegue ga
nhar o prémio, com tanta mais facilidade quanto é verdade que eu
encurtara muito o trajecto e tivera o cuidado de afastar o melhor
corredor. Bem podeis imaginar que, depois de ter dado este pri
meiro passo, me foi bastante dificil mantê-lo interessado nesse
exercício. Pouco depois, tomou um tal gosto pela corrida, que, sem
exagero, tinha quase a certeza de vencer os meus pequenos gaia
tos, por mais longo que fosse o trajecto.
Esta vantagem deu origem a outra que eu não encarara. Ao
principio, quando só raramente ganhava o prémio, comia-{) qua
se sempre sozinho, tal como faziam os outros concorrentes; mas, à
medida que se ia habituando às vitórias, foi-se tornando genero-
so e frequentemente compartilhava com os vencidos. Esse facto 1 45
L.B. 523 - 10
forneceu-me uma observação moral, e através dela fiquei a saber
qual era o verdadeiro princípio da generosidade.
Continuando a marcar, com ele, os vários pontos de onde cada
um deveria partir para a corrida, marquei, sem que ele se aperce
besse, distâncias desiguais, de modo a que um, tendo a percorrer
mais caminho que outro para chegar à meta, tinha uma desvanta
gem visível; mas, embora eu lhe deixasse a escolha do próprio tra
jecto, ele não era capaz de tirar partido disso. Sem se preocupar
com a distância, preferia sempre o caminho mais belo; de modo
que, prevendo a sua escolha com facilidade, dependia quase exclu
sivamente de mim que ele perdesse ou ganhasse o bolo; e esta ar
timanha também era utilizada para outros fins. No entanto, como
a minha intenção era de que ele se apercebesse da diferença, fazia
tudo quanto me era possível para lha tornar sensível; mas, embo
ra indolente na calma, ele era tão vivo nos seus jogos, e desconfia
va tão pouco de mim, que tive muitas dificuldades para conseguir
que ele se apercebesse de que eu fazia trapaça. Por fim, lá o con
segui, apesar da sua irreflexão; e então ele censurou-me por isso.
Disse-lhe: «De que vos queixais? Tratando-se de um dom que fa
ço por minha livre vontàde, não serei dono das minhas condições?
Quem vos obriga a correr? Prometi-vos fazer os trajectos iguais?
Não tendes a escolha? Escolhei o mais curto, ninguém vos impede
de o fazer. Como é possível que não vejais que é a vós que favore
ço, e que a desigualdade de que vos queixais só a vós traz vanta
gens, se souberdes tirar proveito dela?>> Isto ficou bem explicado;
ele compreendeu-{), e, para escolher, teve de prestar atenção aos
percursos. Para começar, quis medi-los com os seus passos; mas a
medida dos passos de uma criança é lenta e não tem uniformida
de; além disso, eu arranjei maneira de multiplicar as corridas afa
zer no mesmo dia; e, então, o divertimento, tendo-se tornado uma
espécie de paixão, ele não queria perder -a medir os percursos
o tempo destinado a corrê-los. A vivacidade da infância dificil
mente se acomoda com essas lentidões; então, exerceu-se a avaliar
melhor, a melhor calcular uma distância, com um golpe de vista.
Nesse caso, tive poucas dificuldades para ampliar e alimentar es
se gosto. Por fim, alguns meses de tentativas e de erros corrigidos
formaram-lhe de tal modo o compasso visual, que, quando eu o le
vava a imaginar um bolo pousado em cima de qualquer objecto
afastado, o golpe de vista dele era quase tão seguro como a cadeia
de um agrimensor.
Como, de entre todos os sentidos, a vista é aquele de que me
nos podemos separar as apreciações do espfrito, é preciso muito
tempo para aprender a ver; é preciso ter, durante muito tempo,
comparado a vista com o tacto, para acostumar o primeiro desses
órgãos a fazer-nos uma relação fiel das figuras e das distâncias;
1 46 sem o tacto, sem o movimento progressivo, os olhos mais penetran-
tes do mundo não nos saberiam dar nenhuma ideia da distância.
O universo inteiro não deve ser mais que um ponto para uma os
tra; e não lhe pareceria ser mais do que isso, mesmo que uma al
ma humana informasse essa ostra. Só à força de andar, de tactear,
de calcular, de medir as dimensões, se aprende a avaliá-las; mas
também, se sempre se medisse, o sentido, confiando no instrumen
to, não adquiriria nenhuma justeza. Também não é preciso que a
criança passe, bruscamente, da medida à estimação; para come
çar, é preciso que, continuando a comparar por parteso que não se
ria capaz de calcular na sua globalidade, a factores precisos ela
substitua factores por apreciação, e que, em vez de sempre aplicar
a medida com a mão, ela se acostume a aplicá-la unicamente com
os olhos. Porém, gostaria de que as primeiras operações fossem ve
rificadas com medidas reais, a fim de a levar a corrigir os seus er
ros e de que, se no sentido permanece alguma falsa aparência, ela
a aprenda a corrigir por meio de uma estimação mais perfeita.
Existem medidas naturais que são mais ou menos idênticas, em to
dos os lugares: os passos de um homem, o comprimento dos seus
braços, a sua estatura. quando a criança avalia a altura de um pi
so, o seu governante pode servir-lhe de medida de comparação: ao
avaliar a altura de um campanário, que a meça por comparação
com a das casas; quando quer saber quantas léguas há num per
curso, que conte as horas de caminhada; e, sobretudo, nada disto
deverá ser feito em vez dela, é necessário que seja ela própria a fa
zê-lo.
Seria impossível ensinar a bem avaliar o comprimento e a
grandeza dos corpos, se também não se ensinasse a conhecer as
figuras destes e mesmo a desenhá-las; porque, I).O fundo, esse de
senho só pode ser feito segundo as leis das perspectivas; e não se
pode avaliar o comprimento pelas aparências se não se tiverem al
gumas ideias sobre essas leis. Grandes imitadoras, todas as crian-
ças tentam desenhar: desejaria que o meu pupilo cultivasse essa
arte, não precisamente pela arte em si, mas para que a sua vista
se torne justa e a sua mão flexível; e, geralmente, pouco importa
que ele saiba tal ou tal exercício, contanto que adquira a agudeza
do sentido e o bom hábito do corpo que se consegue através deste
exercício. Por conseguinte, evitaria dar-lhe um mestre de dese
nho, que só lhe proporia imitações para imitar, e apenas o faria de
senhar copiando outros desenhos: quero que, como único mestre,
ele tenha a natureza, e que os objectos sejam os seus únicos mode-
los. Quero que tenha, sob os olhos, o próprio original e não o papel
que o representa; que esboce uma casa vendo uma casa, que esbo-
ce uma árvore vendo uma árvore, que esboce um homem vendo um
homem, a fim de que se acostume a bem observar os corpos e as
suas aparências, e não a considerar como verdadeiras imitações
aquelas que são falsas e convencionais. Na ausência dos objectos, 1 47
impedi-lo-ei, mesmo, de desenhar de memória, até so momento
em que, através de frequentes observações, as suas figuras exactas
se imprimam bem na sua imaginação; recearei que, substituindo
a verdade das coisas por figuras estranhas e fantástic�s, ele per
ca o conhecimento das proporções e o gosto pelas belezas da natu
reza.
Bem sei que, deste modo, ele esborratará muitos papéis antes
de conseguir desenhar alguma coisa que se possa compreender,
que levará muito tempo a adquirir a elegância dos contornos e o le
ve traço dos desenhadores, que talvez nunea chegue a ter o discer
nimento dos efeitos pitorescos e o bom gosto do desenho; em com
pensação, adquirirá, certamente, um golpe de vista mais justo,
uma mão mais segura, o conhecimento das verdadeiras relações de
grandeza e de aspecto, que existem entre os animais, as plantas,
os corpos naturais, e uma experiência mais rápida dojogo da pers
pectiva. Eis precisamente o que pretendi fazer, e a minha intenção
não é tanto que ele saiba imitar os objectos como de que os conhe
ça; prefiro que ele me mostre uma planta de acanto e que desenhe
menos bem as folhagens de um capitel.
Quanto ao resto, neste exercício- assim como em todos os ou
tros - não pretendo que o meu pupilo seja o único a disfrutar des
sa distracção. Quero tornar-lha ainda mais agradável, comparti
lhando-a constantemente com ele. Não quero que ele tenha outro
rival que não seja eu: mas serei o seu rival sem tréguas e sem ris
cos; isso introduzirá um certo in teressse nas suas ocupações, sem
provocar a inveja entre nós. Pegarei no lápis, como ele; começarei
por utilizá-lo tão desajeitadamente como ele. Mesmo que eu fos
se um Apelle*, mostrar-me-ia um principiante. Começaria por de
senhar um homem como os lacaios os desenham nas paredes: um
traço para cada braço, um traço para cada perna, e dedos maiores
que os braços. Só muito depois, um de nós se aperceberá desta des
proporção; repararemos que uma das pernas tem espessura e que
essa espessura não é a mesma por toda a perna; que o comprimen
to do braço é determinado em relação ao corpo, etc. Nesse progres
so, manter-me-ei sempre a par dele, ou ultrapassá-lo-ei tão pou
coque sempre lhe será fácil alcançar-me e, muitas vezes, ultrapas
sar-me. Disporemos de cores, de pincéis; trataremos de imitar os
coloridos dos objectos e todo o seu aspecto. Iluminaremos, pintare
mos, esborrataremos; mas, em todos os nossos esborratamentos,
não deixaremos de espiar a natureza; nunca faremos nada que não
seja sob os olhos do mestre.
Tínhamos falta de ornamentos para o nosso quarto, ei-los en-
Eis o que ele deve ter imaginado e sentido, a primeira vez que
sobrepujou a sua natureza para comer essa horrenda refeição, a
primeira vez que teve fome de um animal vivo, que se quis alimen
tar de um animal que ainda pastava, e que disse comq degolar, es
quartejar, cozer o cordeiro que lhe lambia as mãos. E desses que
começaram com esses cruéis festins que temos motivos para nos
admirar, e não daqueles que os abandonam: embora os primeiros
pudessem justificar a sua barbárie com desculpas que não temos
para a nossa, e cuja falta nos torna cem vezes mais bárbaros que
eles.
1 72
LIVRO III
Apesar de, até à adolescência, todo o decorrer da vida ser uma
época de fraqueza, há um momento - durante esta primeira fase
- em que o progresso das forças ultrapassa o das necessidades e
em que o animal que cresce, ainda absolutamente fraco, se torna
forte para a sua idade. Como todas as suas necessidades não estão
desenvolvidas, as suas forças presentes são mais que suficientes
para provar às necessidades que tem. Como homem, seria muito
fraco; como criança, é muito forte.
De onde provém a fraqueza do homem? Da desigualdade que
há entre a sua força e os seus desejos. São as nossas paixões que
nos tornam fracos, porque, para as satisfazermos, ser-nos-iam
precisas mais forças que aquelas que a natureza nos deu. Por con
seguinte, diminui os desejos e será como se aumentásseis as vos
sas forças: aquele que pode mais do que deseja tem-nas a mais; é,
certamente, um ser m uito forte. Eis o terceiro estado da infância,
e aquele de que, a partir de agora, passo a falar. Para o exprimir,
continuo a chamar-lhe «infância», por falta de termo mais apro
priado; pois esta idade se aproxima da da adolescência, embora
ainda não seja a da puberdade.
Aos 12 ou 1 3 anos, as forças da criança desenvolvem-se a uma
cadência muito mais rápida que as suas necessidades. Amais vio
lenta, a mais terrível, ainda não se lhe manifestou; o próprio órgão
ainda está imperfeito e, para se aperfeiçoar, parece estar à espe
ra de que a sua vontade o force a isso. Pouco sensível às injúrias do
ar e das estações, afronta-as sem dificuldades, a sua seiva nascen
te serve-lhe de agasalho; o seu apetite serve-lhe de tempero; tudo
quanto pode alimentar é bom para a sua idade; quando tem sono,
estende-se no chão e dorme: por toda a parte, sente-se rodeada por
tudo quanto lhe é necessário; não se sente atormentada por nenhu
ma necessidade imaginária. A opinião dos outros não tem nenhu
ma influência nela; os seus desejos não vão mais longe que os seus
braços: não só se pode bastar a si mesma como ainda tem forças pa
ra além das que precisa; é a única época da sua vida em que se en
contrará nestas circunstâncias.
Pressinto a objecção. Ninguém dirá que a criança tem mais ne
cessidades que as que eu lhe imagino, mas dirão que ela não tem
as forças que eu lhe atribuo: esquecer-se-ão que falo do meu pu-
pilo e não dessas bonecas ambulantes que andam de um quarto pa-
ra o outro, que cultivam numa caixa e que transportam fardos de
papelão. Dir-me-ão que a força viril só se manifesta com a virili- 1 75
dade; que só os espíritos vitais, elaborados nas veias que convêm
e espalhados por todo o corpo, podem dar aos músculos a consis
tência, a actividade, o tom, a elasticidade de que resulta uma ver
dadeira força. Eis a filosofia do gabinete; mas eu, eu faço apelo à
experiência. Vejo, nos vossos campos, rapazes crescidos a ama
nhar a terra, a sachar, a segurar na charrua, a carregar uma pi
pa de vinho, a conduzir a carroça, tal como seus pais; tomá-los-ía
mos por homens se o tom das suas vozes não os traísse. Mesmo nas
nossas cidades,jovens operários, ferreiros, cuteleiros, ferradores,
são quase tão robustos como os patrões e não seriam menos habi
lidosos se tivessem sido exercitados a tempo. Se alguma diferen
ça existe-e concordo que, realmente, elaexiste-émuito menor,
repito, que a que há entre os desejos fogosos de um homem e os de
sejos limitados de uma criança. De resto, aqui não se trata apenas
das forças físicas mas sobretudo da força e da capacidade do espí
rito que as supre ou as dirige.
Este intervalo em que o indivíduo pode mais do que deseja, em
bora não seja a época da sua maiqr força absoluta, é, como já dis
se, o da sua maior força relativa. E a época mais preciosa da vida,
momento quesó vivemos uma vez; momento muito breve, brevede
mais - como a seguir se verá - porque importa saber utilizá-lo
bem.
E então, que fará a criança desse excedente de faculdades e de
forças que, presentemente, tem a mais e que, noutra altura, lhe fa
rão falta? Tratará de a dispensar em cuidados de que, em caso de
necessidade, possa vir a tirar partido; proj ect ará para o futuro, por
assim dizer, o excesso do seu ser actual; a criança robusta fará pro
visões para o homem fraco; mas os seus celeiros, não os estabele
cerá nem nos seus cofres -que lhe podem ser roubados -nem em
granjas que desconhece; para se apropriar verdadeiramente do
que adquiriu, é nos seus braços, na sua cabeça, é dentro de si mes
m a que o armazenará. Eis, pois, chegado o momento dos trabalhos,
das instruções, dos estudos, e notai que não sou eu quem, arbitra
riamente, faz esta escolha, que é a própria nature<.a que a indica.
Ainteligência humana tem os seus limites ; e nãosóum homem
não pode saber tudo como nem sequer pode saber completamente
o pouco que os outros homens sabem. Como a antítese de cada po
sição falsa é uma verdade, o número das verdades é inextinguível,
como o dos erros. Por conseguinte, há que escolher entre as coisas
que se devem ensinar e os momentos propícios para as aprender.
Dosconhecimen tos que se encontram ao nosso alcance, alguns são
falsos, outros são inúteis e ainda outros só servem para alimentar
o orgtilho daquele que os tem. Só o reduzido número daquelas que,
realmente, contribuem para o nossobem-estaré digno das buscas
1 7 6 de um homem sage, e, por conseguinte, das de uma criança que se
deseja tornar sage. Não se trata de saber o que é, mas unicamen
te o que é útil.
Deste reduzido número, ainda é preciso retirar as verdades
que, para serem compreendidas, exigem um entendimento já for
mado; as que supõem o conhecimento das relações do homem, e que
uma criança não pode adquirir; as que, embora verdadeiras em si
mesmas, levam uma alma inexperiente a criar ideias falsas sobre
outros assuntos.
Eis-nos reduzidos a um circulozinhomuito pequeno, compara
do com a existência das coisas; mas que imensa esfera que esse cír
culo ainda consegue formar, para a medida do espírito de uma
criança! Trevas do entendimento humano, que mão temerária se
atreveu a tocar no vosso véu? Quantos abismos vejo as nossas _inú
teis ciências abrirem em redor desse jovem desafortunado! O tu,
que o vais conduzir por essas perigosas sendas, e descerrar, diante
dos seus olhos, o cortinado sagrado da natureza, treme. Começa
por te assegurar da sua cabeça e da tua, teme que ela ande à roda,
a um de vós, e talvez mesmo a ambos. Teme a atracção especial da
mentira e os vapores embriagadores do orgulho. Recorda-te, re
corda-te constantemente de que a ignorância nunca fez mal, que
só o erro é funesto, e que ninguém se pode perder pelo que não sa
be mas sim pelo que julga saber.
Os seus progressos em Geometria poderiam servir-vos de ex
periência e de medida certa para o desenvolvimento da sua inte
ligência: mas, logo que ele pode discernir o que é útil e o que não
é, importa ter muitas cautelas e arte para o levar aos estudos es
peculativos. Quereis, por exemplo, que ele encontre uma média
proporcional entre duas linhas; começai porfazerque ele tenha ne
cessidade de encontrar um quadrado igual a um rectângulo dado:
se se tratasse de duas médias proporcionais, seria preciso começar
por conseguir que o problema da duplicação do cubo se tornasse in
teressante para ele, etc. Vede como, gradualmente, nos aproxima
mos das noções morais que distinguem o bem e o mal. Até agora,
só conhecíamos a lei da necessidade: agora, interessamo-nos pe
lo que é útil; em breve chegaremos ao que é conveniente e bom.,
As faculdades do homem são animadas pelomesmo instinto. A
actividade do corpo - que procura desenvolver-se - sucede a ac
tividade do espírito -que procura instruir-se. De início, as crian
Ças são apenas irrequietas; depois, passam a ser curiosas; e essa
curiosidade, quando bem dirigida, é o móbil da idade a que chegá
mos. Façamos sempre a distinção entre as tendências que vêm da
natureza e as que vêm da opinião alheia .. Há um anseio por saber
que só se baseia no desejo de se ser considerado sabedor; há outro
que tem origem numa curiosidade natural que o homem sente por
tudo quanto, de perto ou de longe, o possa interessar. O desejo ina-
to do bem-estar e a impossibilidade de satisfazer plenamente es- 177
L .B . 523 - 12
se desejo levam-no a procurar, incessantemente, novas maneiras
de o conseguir. Este é o primeiro princípio da curiosidade; princí
pio natural do coração humano, mas cujo desenvolvimento só se
efectua em proporção das nossas paixões e dos nossos conhecimen
tos. Imaginai um filósofo isolado numa ilha deserta, com instru
mentos e livros, convencido de que ali passará o resto da sua vida;
deixará de se interessar pelo sistema do mundo, pelas leis da atrac
ção, pelo cálculo diferencial: talvez, durante o resto da sua vida,
nunca mais volte a abrir um livro; mas nunca se absterá de percor
rer a sua ilha, até ao último recôndito, por maiorqueela pareça ser.
Portanto, afastemos também dos nossos primeiros estudos os
conhecimentos cujo gosto não é natural do homem, e limitemo-nos
aos que o instinto nos leva a procurar.
A ilha do género humano é a Terra; o objecto que mais atrai os
nossos olhos é o Sol. Logo que nos começamos a afastar de nós mes
mos, as nossas primeiras observações devem recair sobre uma ou
sobre o outro. Também a filosofia de quase todos os povos selva
gens se desenrola unicamente sobre imaginárias divisões da Ter
ra e sobre a divindade do Sol.
Que diferença! - talvez diga alguém. Há pouco, falávamos
unicamente do que nos toca, do que está directamente à nossa
volta; de repente, eis-nos a percorrer o globo terrestre e a saltar
para as extremidades do Universo! Esta diferença é o efeito do
progresso das nossas forças e da inclinação do nosso espírito. No
estado de fraqueza e de insuficiência, o cuidado que dedicamos à
nossa conservação concentra-nos dentro de nós mesm os ; no esta
do de poderio e de força, o desejo de expandir o nosso ser trans
porta-nos para além dele e lança-nos para o mais longe que nos é
possível; mas, como ainda desconhecemos o mundo intelectual, o
nosso pensamento não vai mais longe que os nossos olhos, e o nos
so entendimento só abarca o espaço que pode medir.
Transformemos as nossas sensações em ideias, mas não salte,
mos, bruscamente, dos objectos sensíveis para os intelectuais. E
através dos primeiros que devemos atingir os segundos. Nas pri
meiras operações do espírito, que os sentidos sejam sempre os seus
guias: nenhum outro livro além do mundo, nenhuma outra instru
ção que não sejam os factos. A criança que lê não pensa, apenas lê;
não se instrói, aprende palavras.
Fazei que o vosso pupilo estej a atento aos fenómenos da natu
reza, e, em breve, o tornareis curioso; mas, para alimentar a sua
curiosidade, nunca vos apresseis a satisfazê-la. Ponde as pergun
tas ao seu alcance, e deixai que ele encontre respostas para elas.
Que ele não saiba as coisas porque vós lhas dissestes mas porque
ele próprio as compreendeu; que ele não aprenda a ciência: que a
17 8 invente. Se alguma vez substituírdes, no seu espírito, a razão pe-
la autoridade, ele deixará de raciocinar; não será mais do que o fan
toche da opinião dos outros.
Quereis ensinar a Geografia a essa criança e ides buscar glo
bos, esferas e mapas: que trapalhada! Para que servem todas es
sas representações? Por que não começais por lhe expor o próprio
assunto, a fim de que, pelo menos, ela possa saber de que lhe falais?
Durante uma bela tarde, vai passear-se para um lugar agra
dável, onde o horizonte bem desanuviado permite assistir ao pôr
do Sol, e observem-se os objectos que tornam reconhecível o lugar
do seu ocaso. No dia seguinte, para se tomar um pouco de ar fres
co, volta-se ao mesmo lugar, antes de o Sol nascer. Muito antes de
aparecer, já este se anuncia com os raios de fogo que lança à sua
frente. O incêndio aumenta, o oriente parece estar em chamas;
vendo o seu brilho, crê-se que o astro vai aparecer, muito antes de
ele se mostrar; por fim, lá está ele. Um ponto brilhante é lançado
como uma flecha, e, imediatamente a seguir, todo o espaço fica
cheio com ele; o véu das trevas retira-se e cai. O homem reconhece
o lugar onde vive e acha-o mais belo. Durante a noite, a verdura
adquiriu um novo vigor; o dia n ascente que a ilumina, os primeiros
raios que a douram, mostram-na coberta por uma brilhante capa
de orvalho, que reflecte a luz e as cores. Os passarinhos reúnem
-se, e, em coro, saudam o pai da vida; nesse momento, nenhum de
les permanece calado; o seu pipilar, ainda fraco, é mais lento e mais
suave que durante o resto do dia, ressente-se da languidez de um
sereno despertar. O conjunto de todos esses objectos dá ao sentido
uma impressão de frescura que parece penetrar até à alma. Há aí
uma meia hora de encantamento ao qual nenhum homem resiste;
um espectáculo tão grandisoso, tão belo, tão delicioso, não deixa
ninguém indiferente.
Penetrado pelo entusiasmo que experimenta, o perceptor quer
comunicá-lo à criança; crê sensibilizá-la, tornan<;io-a atenta às
sensações que o sensibilizam a ele mesmo. Tolice! E no coração do
homem que se encontra a vida do espectáculo da natureza; para a
ver é preciso senti-la. A criança apercebe-se dos objectos mas não
se pode aperceber das relações que os ligam ep.tre si, não pode com
preender a doce harmonia do seu concerto. E necessária uma ex
periência que ela ainda não adquiriu, é preciso sentimentos que
ela ainda não experimentou, para poder sentir a impressão com
plexa que resulta simultaneamente de todas essas sensações. Se
não passou muito tempo a percorrer planícies áridas, se os meus
pés não forem escaldados pelas areias ardentes, se a reverberação
sufocante dos rochedos batidos pelo sol nunca a oprimiu, como po
derá ele apreciar o ar fresco de uma bela manhã? Como será pos
sível que o perfume das flores, o encanto da verdura, o húmido va-
por do orvalho, o pisar mole e suave sobre a erva, encantem os seus
sentidos? Como será possível que o canto dos passarinhos lhe cau- 1 79
se uma emoção voluptuosa, se as variantes do amor e do prazer
ainda lhe são desconhecidas? Com que emoções poderá ela ver nas
cer um dia tão belo, se a sua imaginação não lhe souber descrever
aquelas com que o pode ocupar? Enfim, como poderá ela sentir-se
sensibilizada com a beleza do espectáculo da natureza, se ignora
a mão que teve o cuidado de a ornamentar?
Não digais à criança coisas que ela não possa compreender.
Nada de descrições, nada de eloquências, nada de figuras, nada de
poesia. Não se trata nem de sentimento nem de gosto. Continuai
a ser claro, simples e frio; em breve virá o momento em que deve
reis utilizar outra linguagem.
Educada no espírito das nossas máximas, acostumada a reti
rar todos os seus instrumentos de si própria, a só recotter a outrem
depois de ter reconhecido a sua própria insuficiência, cada vez que
vê um objectp que não conhece examina-o demoradamente, sem
nada dizer. E pensativa; não é perguntadora. Contentai-vos em
apresentar-lhe os objectos apropriados; depois, quando virdes a
sua curiosidade suficientemente ocupada, fazei-lhe alguma per
gunta lacónica que a coloque na via da sua solução.
Depois de, na sua companhia, terdes contemplado bem o nas
cer do Sol, depois de lhe terdes chamado a atenção para as monta
nhas que ficam do mesmo lado e para os outros objectos vizinhos,
depois de a terdes deixado discorrer à vontade sobre esse .assunto,
permanecei silencioso durante alguns momentos, como um ho
mem que sonha; em seguida dizei-lhe: «Parece-me que, ontem à
tarde, o Sol se pôs ali, e que esta manhã se levantou acolá. Como
será isso possível?,, Não digais mais nada: se ela vos fizer pergun
tas, não lhe respondeis; falai de outra coisa. Deixai-a entregue a
si mesma, e ficai com a certeza de que ela pensará no que lhe dis
sestes.
Para que uma criança adquira o hábito de ser atenta, e para
que se sinta verdadeiramente interessada por alguma verdade
sensível, é necessário que esta lhe faça passar alguns dias de in
quietação, antes de a esclarecer. Se a não considerar deste modo,
há uma maneira de lha tornar ainda mais sensível, e essa manei
ra é torcer a pergunta. Se ela não sabe como o Sol passa do seu oca
so ao seu nascer, sabe, pelo menos, como passa desde que se ergue
até que se deita, e isso aprende-o unicamente com os seus olhos.
Esclarecei, pois, a primeira pergunta através da outra: ou o vosso
pupilo é completamente estúpido ou a analogia é clara de mais pa
ra lhe poder escapar. Eis a sua primeira lição de Cosmografia.
Como procedemos sempre lentamente, de ideia sensível para
ideia sensível, como nos familiarizamos durante muito tempo com
a mesma, antes de passarmos a outra, e, finalmente, como nunca
forçamos o nosso pupilo a estar atento, ainda há muito caminho a
1 8 0 percorrer, desde esta primeira lição até ao conhecimento do movi-
menta do Sol e do aspecto da Terra: mas, como todos os movimen
tos aparentes dos corpos celestes obedecem ao mesmo princípio, e
como a primeira observação leva a todas as outras, é preciso me
nos esforço - embora seja necessário mais tempo para passar de
uma revolução diurna ao cálculo dos eclipses - para bem com
preender o dia e a noite.
Como o Sol gira em volta da Terra, descreve um círculo; ora, ca
da círculo deve ter um centro; isso já nós sabemos. Esse centro não
é visível porque se encontra no seio da Terra; mas, sobre a super
fície desta, podem marcar-se dois pontos opostos que lhe corres
pondam. Uma recta que passa por esses dois pontos e que, de am
bos os lados, se prolongue pelo céu será o eixo do mundo e do mo
vimento diário do Sol. Uma piorra redonda que gire sobre a sua
ponta representará o céu girando em volta do seu eixo; as duas pon
tas da piorra serão os dois pólos: a criança ficará muito satisfeita
se conhecer um deles; mostro-lho, na extremidade da Ursa Menor.
Eis um divertimento para a noite; pouco a pouco, ela familiariza
-se com as estrelas, e, daí, nasce o primeiro gosto por conhecer os
planetas e por observar as constelações.
Vimos o erguer do Sol, pelo São João; no dia de Natal, ou nou
tro belo dia de Inverno, voltaremos a assistir ao seu nascer: porque
já se sabe que não somos preguiçosos e que, para nós, desafiar o frio
é um divertimento. Tenho o cuidado de fazer esta segunda obser
vação no mesmo lugar em que fizemos a primeira; e, servindo-me
de algumjeito para a preparar, um denós não deixará deexclamar:
«Oh! Oh! Que coisa tão engraçada! O Sol já não se ergue no mes
mo sítio! Aqui estão as nossas primeiras observações, e agora ele
levantou-se ali», etc ... Por conseguinte, há um oriente de Verão e
um oriente de Inverno, etc . Jovem perceptor, eis-vos no bom ca
. . >>
L.B.S23-13
pouca atenção e não as memorizam. As coisas! As coisas! Nunca me
cansarei de repetir que atribuímos um excesso de poder às pala
vras; com a nossa educação tagarela só conseguimos fazer tagare
las.
Suponhamos que, enquanto estou a ensinar ao meu pupilo o
movimento do Sol e a maneira de se orientar, bruscamente ele me
interrompe para me perguntar para que serve tudo aquilo. Quebe
lo discurso que lhe poderei fazer! De quantas coisas o poderei
instruir, nessa ocasião, respondendo à sua pergunta, sobretudo se
tivermos testemunhas para a nossa conversa1 ! Falar-lhe-ei da
utilidade das viagens, das vantagens do comércio, das produções
próprias de cada clima, dos usos e dos costumes dos diferentes po
vos; da utilização do calendário, do cálculo, do regresso das esta
ções para a agricultura, da arte da navegação, da maneira de se
conduzir por sobre o mar e de seguir exactamente o seu rumo, mes
mo que não se saiba onde se está. A política, a história natural, a
astronomia, a própria moral e o direito das pessoas entrarão na mi
nha explicação, de modo a dar ao meu pupilo uma ideia geral de to
das estas ciências e de uma grande vontade de as aprender. Após
ter dito tudo, terei dado a prova de um grande pedantismo, e a
criança não terá compreendido uma única das palavras que eu dis
se. Terá muita vontade de - como anteriormente - me pergun
tar de que serve uma pessoa saber orientar-se; mas não se atreve,
porque receia que eu me zangue. Sente-se mais sossegada fingin
do que compreende o que a obrigaram a escutar. Assim se fazem
as boas educações.
Mas o nosso Emílio, que foi educado de uma maneira mais
rústica e ao qual, com muitos es�rços, temos dado uma concepção
dura, não escutará nada disto. Logo à primeira palavra que não
compreender, fugirá, irábrincar para o quarto e deixar-me-á a fa
lar sozinho. Procuremos uma solução mais grosseira; o meu apa
relho científico não vale nada para ele.
Estávamos a observar a posição da floresta, ao norte de
Montmorency, quandoele me interrompeu com a sua perguntaim
portuna: Para que serve isso? «Tendes razão», respondi, «é preciso
que pensemos nisso com mais ponderação; e, se acharmos que es
te trabalho não serve para nada, não o voltaremos a fazer, pois não
nos faltam divertimentos úteis. Ocupemo-nos de outracoisae, du
rante o resto do dia, não voltaremos a falar de Geografia.»
JEAN..,JACQUES
Credes que me encontro em melhor situação que vós? E pen
sais que também não choraria se as lágrimas me pudessem servir
de desjejum? Não se trata de chorar, o que é preciso é orientarmo
-nos. Vejamos o vosso relógio; que horas são?
EMÍLIO
É meio-dia e ainda não comi nada.
JEAN..,JACQUES
Isso é verdade; é meio-dia e ainda não comi nada.
EMÍLIO
Oh! Como deveis sentir fome!
JEAN..,JACQUES
O pior é que o meu desjejum não virá procurar-me aqui. É
meio-dia: é justamente a mesma hora a que, ontem, de Montmo
rency, estávamos a observar a posição da floresta. Se pudéssemos,
da floresta, observar a posição de Montmorency!...
1 95
EMÍLIO
Sim; mas, ontem, víamos a floresta; ora, daqui, não vemos a ci
dade.
JEAN....JACQUES
Esse é que é o mal... Se pudéssemos prescindir da cidade para
determinarmos a sua posição!...
EMÍLIO
Ó meu bom amigo!
JEA.li<....JACQUES
Não dissemos que a floresta estava ...
EMÍLIO
Ao norte de Montmorency.
JEAN....JACQUES
Por conseguinte, Montmorency deve ficar...
EMÍLIO
Ao sul da floresta.
JEA.t'f-JACQUES
Temos alguma possibilidade de saber onde fica o Norte, ao
meio-dia?
EMÍLIO
Sim, temos: pela direcção das sombras.
JEAN....JACQUES
Mas como encontrar o Sul?
EMÍLIO
Como faremos?
JEAN....JACQUES
O Sul fica do lado oposto ao do Norte.
EMÍLIO
1 96 Isso é verdade; basta olharmos para a direcção oposta à que se-
gue a sombra. Oh! Ali é o Sul! Eis o Sul! Certamente que Montmo
rency fica para aquele lado.
JEAN-JACQUES
É possível que tenhais razão: sigamos por este caminho, atra
vés da floresta.
Tomai nota de que, mesmo que ele não diga esta última frase,
pensá-la-á; pouco importa, contanto que não seja eu a dizê-la.
Ora, tende a certeza de que ele nunca mais se esquecerá da lição
que aprendeu nesse dia; contanto que, se eu me tivesse limitado a
ensinar-lhe tudo isto dentro do quarto, ele n,em sequer se lembra
ria das minhas palavras no dia seguinte. E preciso falar, tanto
quanto possível, através de acções, e apenas dizer o que é impos
sível fazer.
O leitor não espera, certamente, que eu o despreze tanto que
lhe dê um exemplo para cada espécie de estudo: mas, seja do que
for que se trate, nunca será de mais exortar o governante a dar as
suas explicações consoante as capacidades de compreensão do pu
pilo; porque, repito-<>, o mal não está no que ele não compreende
mas no que ele crê compreender.
Recordo-me de que, ao querer dar o gosto pela Química a uma
criança, depois de lhe ter mostrado várias precipitações metálicas,
esta va a explicar-lhe como se fazia a tinta. Dizia-lhe que a sua cor
escura provinha de um ferro muito dividido, destacado do vitrío
lo e precipitado por um licor alcalino. No meio da minha douta ex
plicação, o pequenino traidor interrompeu-me bruscamente com
a minha pergunta, que eu lhe ensinara: fiquei muito embaraçado.
Depois de ter pensado um pouco, tomei o meu partido; mandei
buscar vinho à cave do dono da casa, e outro vinho a uma taberna;
peguei numa garrafinha onde deitei a dissolução de álcali fixo; de
pois, pondo na minha frente dois copos -cada um com um desses
diferentes vinhos1 - disse-lhe o seguinte:
Falsificam-se várias matérias, para que elas pareçam melho
res do que são. Essas falsificações enganam a vista e o paladar;
L.B.523-14
depende das ocasiões que se lhe oferecem para ela o mostrar. Nin
guém irá imaginar que no espaço de três ou quatro anos durante
os quais nos ocupámos dela, tenhamos podido inculcar na criança
-por mais dotada que ela seja -uma ideia sobre todas as artes
e sobre todas as ciências naturais, e que seja suficiente para que,
um dia, ela as venha a conhecer; mas, deste modo, fazendo passar
diante dela todos os objetos que importa que conheça, colocamo-la
na situação de poder desenvolver o seu gosto, o seu talento, de dar
os primeiros passos para o objecto que atrai o seu carácter, e de nos
indicar o éaminho que teremos de lhe preparar para secundar a na
tureza.
Outra das vantagens desse encadeamento de conhecimentos
limitados, mas justos, é de lhos mostrar através dos seus relacio
namentos, de os colocar todos nos lugares que lhes pertencem, na
sua estima, e de prevenir, nela, os preconceitos que a maioria dos
homens tem pelos talentos que cultiva e contra aqueles que negli
genciou. Aquele que vê bem a ordem do todo também vê o lugar on
de deve ser colocada cada parte; aquele que vê bem uma parte, e
que a conhece a fundo, pode ser um homem sabedor: o outro é um
homem judicioso; e não vos esqueceis de que o que pretendemos en
sinar não é exactamente a ciência mas o discernimento.
Seja como for, o meu método é independente dos meus exem
plos; baseia-se na medida das faculdades do homem, no decorrer
das suas várias idades, e na escolha das ocupações que mais con
vêm para as suas faculdades. Creio que facilmente encontrareis
outro método com o qual vos parecerá que se obtêm melhores re
sultados; mas, se ele for menos apropriado para a espécie, para a
idade, para o sexo da criança, duvido de que tenha o mesmo êxito.
Ao começar este segundo período, aproveitámos a superabun
dância das nossas forças, comparativamente com as nossas neces
sidades, a fim de nos transportarmos para além de nós mesmos;
elevámo-nos nos céus; medimos a Terra; recolhemos as leis da na
tureza; em resumo, percorremos a ilha inteira; agora, regressamos
a nós; insensivelmente, aproximamo-nos da nossa habitação. Po
der-nos-em os considerar com muita sorte se, ao voltarmos, ela
ainda não estiver na posse do inimigo que nos ameaça, e que dese
ja apoderar-se dela!
Que nos resta fazer, depois de termos observado tudo quanto
nos rodeia? Adaptar, para a nossa utilização, tudo aquilo de que
nos pudermos apropriar, e tirar partido da nossa curiosidade pa
ra beneficiar o nosso bem-estar. Até agora, tínhamos feito provi
são de instrumentos de toda a espécies, sem sabermos exactamen
te de quais deles iríamos ter necessidade. Talvez, inúteis para nós,
alguns dos que possuímos possam ser úteis para outros; e talvez,
por nossa vez, tenhamos precisão dos deles. Assim, todos nós fica-
21 o riamos satisfeitos com essas trocas: mas, para as fazermos, preci-
samos de conhecer as necessidades mútuas, é preciso que cada um
saiba o que os outros possuem para seu uso próprio e o que lhe po
dem oferecer em troca. Imaginem9s dez homens, cada um deles
com dez espécies de necessidades. E preciso que, para o seu neces
sário, cada um deles se dedique a dez espécies de trabalhos; mas,
considerando a diferença de carácter e de talento, cada um deles
terá menos êxito nalgum desses trabalhos. Cada um deles, saben
do fazer diversos trabalhos, falhará num ou noutro dos dez que
executa e ficará mal servido. Com esses dez homens formemos
uma sociedade; que cada um deles se dedique, por si e pelos outros
nove, ao género de trabalho que mais lhe convém; cada um deles
tirará proveito dos talentos dos outros, como se os tivesse todos; ca
da um deles aperfeiçoará o seu, com um permanente exercício; e,
os dez reunidos, chegarão ao ponto de ficarem bem providos e de
ainda terem que sobre para outros. Eis o princípio aparente de to
das as instituições. Não está nas minhas intenções examinar aqui
as suas consequências: já o fiz, noutro escrito.
Baseando-nos neste princípio, podemos afirmar que um ho
mem que se quisesse considerar como um ser isolado, não depen
dendo de ninguém e bastando-se a si próprio, só poderia ser mise
rável. Ser-lhe-ia mesmo impossível subsistir; pois, encontrando a
terra inteira coberta com o teu ou com o meu, e sendo proprietário
apenas do seu corpo, de onde retiraria ele o necessário para viver?
Saindo do estado natural, nós forçamos os nossos semelhantes a
fazer o mesmo; ninguém pode permanecer nele contra a vontade
dos outros; e seria verdadeiramente sair dele, pretender nele ficar,
sem possibilidades de nele viver; porqu e a principal lei da nature
za é o cuidado pela própria conservação.
Assim, a pouco e pouco, vão-se formando, no espírito da crian
ça, as ideias sobre as relações sociais, muito antes de ela poder ser
verdadeiramente membro activo da sociedade. Emílio compreen
de que, para ter instrumentos que possa utilizar, também precisa
de ter alguns para uso dos outros, em troca dos quais possa obter
as coisas que lhe são necessárias e que estão em poder destes. Fa
cilmente o levo a sentir a necessidade dessas trocas e a colocar-se
em situação de tirar proveito delas.
Monsenhor, preciso de viver, dizia um infeliz autor satírico ao
ministro que lhe censurava a infâmia dessa profissão.Não vejo que
necessidade tem disso, respondeu-lhe friamente o homem de posi-
ção. Esta resposta, excelente para um ministro, teria sido bárba-
ra e hipócrita em qualquer outra boca. Todos os homens precisam
de viver. Esse argumento, ao qual cada um dá mais ou menos im
portância, consoante a humanidade que tem, parece-me sem ré
plica para aquele que o diz, referindo-se a si próprio. Já que, de to-
das as aversões que a natureza nos dá, a mais forte é a de morrer,
segue-se que tudo é permitido, a todos aqueles que não disponham 211
de meios para viver. Os princípios pelos quais o homem virtuoso
aprende a desprezar a sua vida e a imolá-la ao seu dever estão
muito longe desta simplicidade primitiva. Felizes os povos entre os
quais se pode ser bom, sem esforço, e justo, sem virtude! Se, nes
te mundo, há algum estado miserável onde ninguém possa viver
sem fazer mal e onde os cidadãos sejam ladrões por necessidade,
não é o malfeitor que deve ser enforcado, mas aquele que o obriga
a sê-lo.
Logo que Emílio souber o que é vida, o meu primeiro cuidado
será ensiná-lo a conservá-la. Até agora, não fiz distinção entre as
condições, as classes, as fortunas; e também não as farei daqui em
diante, porque o homem é o mesmo, em todas as condições; porque
o rico não tem um estômago maior que o pobre e não digere melhor
que ele; porque o amo não tem os braços mais compridos nem mais
fortes que os do s�u escravo; porque um grande não é maior que um
homem do povo; e, enfim, porque como as necessidades naturais
são as mesmas por toda a parte, os meios de a elas prover deverão
ser iguais por toda a parte. Adaptai a educação do homem para o
homem, e não para aquilo que não é ele. Não vedes que, trabalhan
do para o formar exclusivamente para uma condição, o tornais inú
til para qualquer outra, e que, se a fortuna o quiser, só tereis tra
bal h a do para o tornardes infeliz? O que haverá de mais ridículo
que um grande senhor que passa a ser mendigo e que, na miséria,
conserva os preconceitos do seu nascimento? O que haverá de mais
vil que um rico empobrecido, que, recordando-se do desprezo que
se deve à pobreza, se crê o derradeiro dos homens? O primeiro tem,
como único recurso, a profissão de mendigo público, enquanto o se
gundo, o de lacaio rastejante, com esta bela frase:Preciso de viver.
Vejo que vos fiais na actual ordem da sociedade, sem pensar
des que essa ordem está sujeita a revoluções inevitáveis, e que vos
é impossível prever ou evitar aquela que pode concernir os vossos
filhos. O grande torna-se pequeno, o rico torna-se pobre, o monar
ca passa a ser vassalo: os golpes da sorte são assim tão raros que
possais ter a certeza de lhes escapar? Aproximamo-nos do estado
de crise e do século das revoluções1• Quem vos poderá dizer o que
sereis, nessa altura?Tudo quanto os homens fizerem pode ser des
truído pelos próprios homens: os únicos caracteres indeléveis são
aqueles que a natureza imprime, e a natureza não faz nem prín
cipes, nem ricos nem grandes senhores. O que irá fazer-quando
ja, ele pagou a sua dívida, mas não a vossa. Deveis mais aos outros
do que se tivésseis nascido sem bens, pois nascestes favorecido.
Não é justo que o que um homem fez pela sociedade possa servir
para isentar outro da dívida que tem para com ela; pois cada um
se deve completamentee só poderá pagar por si,e nenhum pai pode
transmitir ao filho o direito de ser inútil para os seus semelhantes;
mas, segundo o que dizeis, é o que ele faz, transmitindo-lhe as suas
riquezas, que são a prova e o preço do trabalho. Aquele que, na ocio
sidade, come o que não ganhou com o seu próprio trabalho, rouba
o que come; e um rendeiro que o Estado pague para não fazer na
da, não difere -para mim- de um salteador que vive à custa dos
que passam. Fora da sociedade, o homem isolado, não devendo na
da a ninguém, tem o direito de viver como lhe apraz; mas, na so
ciedade, onde necessariamente vive à custa dos outros, deve-lhes,
em trabalho, o preço da sua conservação; esta regra não admite ex- 213
cepção. Por conseguinte, trabalhar é um dever indispensável ao
homem social. Rico ou pobre, poderoso ou fraco, cada cidadão ocio
so é um ratoneiro.
Ora, de entre todas as ocupações que podem fornecer a sua sub
sistência ao homem, aquela que mais o aproxima do estado natu
ral é o trabalho manual; de todas as condições, a mais independen
te da fortuna e dos homens é a de artífice. O artífice só depende do
seu trabalho; é um homem livre, tão livre quanto o agricultor é es
cravo; porque este depende do seu campo, cuja colheita depende de
outrem. O inimigo, o príncipe, um vizinho poderoso, um processo,
podem tirar-lhe esse campo; através desse campo, pode ser vexa
do de mil maneiras diferentes; mas, seja onde forque se pretender
vexá-lo, o artífice rapidamente faz a sua bagagem; pega nos seus
braços e vai-se embora. Porém, a agricultura é o principal ofício do
homem: é o mais honesto, o mais inútil, e, por conseguinte, o mais
nobre que ele possa exercer. Não digo a Emílio: «Aprendei a agri
cultura», porque ele a conhece. Está familiarizado com todos os
trabalhos do campo; foi por eles que começou a sua aprendizagem;
é a eles que se dedica constantemente. Por conseguinte, digo-lhe:
«Cultiva a herança dos teus pais. Mas, se perderes essa herança,
ou se não a receberes, que farás? Aprende um ofício.»
Um ofício para o meu filho! O meu filho artesão! Senhor, pen
sais verdadeiramente nisso? Penso melhor que vós, minha senho
ra, que quereis reduzi-lo a nunca ser mais que um lorde, um mar
quês, um príncipe, e- talvez, um dia- um menos que ninguém:
quero dar-lhe uma categoria que ele nunca possa perder, uma ca
tegoria que o honre em todos os momentos; quero elevá-lo à con
dição de homem; e, seja o que for que possais dizer, terá menos
iguais nessa categoria que em todas as que herdar de vós;
A letra mata, o espírito vivifica. Trata-se menos de aprender
um oficio para saber um ofício, que para vencer os preconceitos que
o desprezam. Nunca sereis reduzido a trabalhar para viver. Pois
então, é pena, é pena para vós! Mas não tem importância; não tra
balheis por necessidade, trabalhai por glória. Abaixai-vos até à
condição de artesão, para ficardes acima da vossa. Para que a for
tuna e as coisas se submetam a vós, começai por tornar-vos inde
pendente delas. Para reinar pela opinião, começai por reinar sobre
ela.
Lembrai-vos de que não é um talento, o que vos peço: é um ofí
cio, um verdadeiro ofício, uma arte puramente mecânica, em que
as mãos trabalham mais que a cabeça e que não conduz à fortuna
masque permite v iversemela.Nascasasemquese está muito aci
ma do perigo de vir a ter falta de pão, vi alguns pais levarem a pre
vidência ao ponto de aliarem ao cuidado de instruírem os filhos ou
de os proverem com conhecimentos que, em caso de necessidade,
2 1 4 lhes pudessem ser úteis para subsistir. Esses pais previdentes
crêem fazer muito; não fazem nada, porque os recursos com que
pensam prover os filhos dependem dessa mesma fortuna acima da
qual eles os querem colocar. De modo que, com todos esses belos ta
lentos, se aquele que os tem não se encontra em circunstâncias fa
voráveis para os utilizar, morrerá de miséria, como se não tivesse
nenhum.
Desde que se trate de embustes e de intrigas, mais vale utili
zá-los para se manter na abundância do que para recuperar, do
seio da miséria, com que reconquistar a sua primeira condição. Se
cultivais artes cujo sucesso depende da reputação do artista; se vos
tornais próprio para trabalhos que só se conseguem pelos favores,
de que vos servirá tudo isso quando, justamente enojado do mun
do, desdenhardes os meios sem os quais nada se consegue? Estu
dastes a política e os interesses dos príncipes. Eis o que está mui
to bem; mas que fareis desses conhecimentos se não conseguirdes
chegar aos ministros, às cortesãs, aos chefes das repartições; se
não tiverdes a arte de lhes agradar, se todos não virem em vós o ve
lhaco que lhes convém? Sois arquitecto ou pintor: seja, mais deveis
dar a conhecer o vosso talento. Pensais que, sem mais ne111 menos,
podereis expor no salão? Oh! Isso não é assim tão fácil! E preciso
fazer parte da Academia; é mesmo necessário ter-se lá alguma
protecção, para conseguir obter um pequeno lugar obscuro nalgu
ma parede. Deixai a régua e o pincel; tomai um fiacre e correi de
porta em porta: é assim que se adquire a celebridade. Ora, deveis,
saber que todas essas ilustres portas têm porteiros que só com
preendem com gestos e cujos ouvidos estão nas suas mãos. Quereis
mostrar o que aprendestes e tornar-vos mestre de geografia, de
matemática, de línguas, de música ou de desenho? Mesmo para is
so é preciso encontrar alunos, por conseguinte, panegiristas. Sabei
que convém mais ser charlatão que hábil, e que, se apenas sabeis
o vosso ofício, não passareis de um ignorante.
Vede, pois, quão pouco sólidos são todos esses expedientes, e
quantos outros vos são necessários para tirar partido daqueles. E
depois, que será de vós, nesse relaxado aviltamento? Os revezes,
sem vos instruírem, aviltam-vos; mais do que nunca fantoche da
opinião pública, de que maneira vos elevareis acima dos preconcei
tos, árbitros do vosso destino? Como podereis desprezar a baixeza
e os vícios de que necessitareis para subsistir? Só dependíeis das
riquezas, e eis que agora dependeis dos ricos; não fizestes mais que
aumentar a vossa escravidão e sobrecarregá-la com a vossa misé
ria. Eis-vos pobre, sem serdes livre; é o que de pior pode acontecer
ao homem.
Mas, em vez de-para viver-recorrerdes a esses altos conhe
cimentos que são feitos para alimentar a alma e não o corpo, se,
quando necessário, recorrerdes às vossas mãos e ao uso que delas
sabeis fazer, todas as dificuldades desaparecem, todas as artima- 215
nhas se tornam inúteis; o expediente está sempre pronto, no mo
mento de se servir dele; a probidade, a honra, deixam de ser um
obstáculo para a vida; já não precisais de ser covarde e hipócrita
diante dos grandes, flexível e bajulador diante dos velhacos, vil
serviçal de toda a gente, pedinchão ou ladrão- o que é quase a
mesma coisa, quando não se possui nada; a opinião dos outros dei
xa de vos interessar; já não precisais de fazer a corte a ninguém,
já não precisais de adular nenhum tolo, de subornar nenhum por
teiro, de pagar a nenhuma cortesã, e, o que era pior, de bajular nin
guém . Que os grandes negócios sejam dirigidos por tratantes, pou
co vos importa; isso não vos impedirá, a vós, na vossa vida obscu
ra, de ser um homem honesto e de ter pão. Entrais na primeira lo
ja do oficio que aprendestes: «Mestre, preciso de trabalho». «Com
panheiro, ponde-vos aí, trabalhai. Antes que sejam horas de almo
çar, tereis ganho o vosso almoço; se fordes diligente e sóbrio, den
tro de oito dias tereis com que viver outros oito dias: tereis vivido
livre, são, leal, laborioso, justo. Não é perder o seu tempo, ganhá
-lo desta maneira.>>
Quero absolutamente que Emílio aprenda um ofício. Um ofício
que, pelo menos, seja honesto- direis vós? Que significa essa pa
lavra? Todos os ofícios que são úteis ao público não serão honestos?
Não quero que ele sej a bordador, nem dourador, nem enverniza
dor, como o gentil-homem de Locke; não quero que ele seja, nem
músico, nem comediante, nem fazedor de livros'. Exceptuando es
tas profissões e as que se lhe assemelham, que ele escolha a que
quiser; não pretendo constrangê-lo em nada. Prefiro que ele seja
sapateiro que poeta; prefiro que ele seja calceteiro de grandes ca
minhos a que faça flores de porcelana. Mas, dir-me-eis, os arquei
ros, os espiões, os carrascos são pessoas úteis. Só do governo depen
de que deixem de o ser. Mas passemos adiante; enganei-me: não
basta escolher um ofício útil: ainda é preciso que este não exija
das pessoas que o exercem-qualidades de alma que sejam odio
sas e incompatíveis com a humanidade. Assim, voltando ao prin
cípio, escolhamos um ofício honesto; mas lembremo-nos sempre de
que não há honestidade sem a utilidade.
Um célebre autor deste século2, cujos livros estão cheios de
grandes projectos e de vistas curtas, tinha feito o voto-como to
dos os sacerdotes da sua confissão-de não se casar; mas como, a
respeito do adultério, era mais escrupuloso que os outros, dizem
L.B.523 -15
pupilo nunca aprenderá a ajuizar. Se, por exemplo, quando este se
engana sobre a aparência do pau partido e, a fim de lhe mostrar
des o seu engano, vos apressardes a retirar o pau da água, talvez
o desenganeis; mas que lhe tereis ensinado? Nada que ele não
acabasse por aprender por si mesmo. Ora! Não é isso o que se de
ve fazer! Trata-se menos de lhe ensinar uma verdade que de lhe
mostrar como é preciso fazer para sempre descobrir a verdade. Pa
ra melhor o instruir, é preciso não o desenganar logo. Como exem
pio, consideremos Emílio e eu.
Para começar, à segunda das duas supostas perguntas,
qualquer criança educada de utp.a maneira vulgar não deixará de
responder afirmativamente. «E, com certeza>•, dirá ela, «Um pau
partido.»
Duvido muito deque Emílio me dê a mesmaresposta. Nãoven
do a necessidade de ser sábio nem a de o parecer, nunca se sente
com pressa de ajuizar; só ajuíza perante a evidência; está muito
longe de a encontrar, neste caso, ele que bem sabe que os nossos juí
zos baseados sobre as aparências estão sujeitos à ilusão, quanto
mais não seja no que se refere à perspectiva.
Aliás, como sabe, p or experiência, que as minhas mais frívolas
perguntas têm sempre alguma intenção de que, para começar, ele
nunca se apercebe, não adquiriu o hábito de lhes dar respostas es
touvadas; pelo contrário, desconfia delas, presta-lhes atenção,
examina-as muito cuidadosamente antes de lhes responder. Nun
ca me dá uma resposta que não o satisfaça; e é difícil de satisfazer.
enfim, nem ele nem eu pretendemos saber a verdade sobre todas
as coisas: apenas desejamos não nos enganar. Ficaríamos muito
mais confusos se lhe encontrássemos uma razão que não é a ver
dadeira do que não lhes encontrando razão nenhuma. Não sei é
uma frase qu� nos fica tão bem, a ambos, e que tão frequentemen
te repetimos, que já não nos custa nada a dizer, a nenhum de nós.
Mas, seja que essa resposta estouvada lhe escape dos lábios ou que
ele a evite com o nosso cómodo Não sei, a minha reacção é sempre
a mesma: Vejamos, examinemos.
Esse pau que está meio mergulhado na água encontra-se
fixo numa posição perpendicular.
Para sabermos se está partido - como parece - , quantas
coisas teremos de fazer antes de o tirarmos da água ou de lhe pôr
as mãos em cima!
FIM DO VOLUME I
Colecção�Livros de Bolso Europa-Amêrica..
A Flcçíio dos Heterónimos, Fernando Pes- 499 - O Cavaleiro de Moison-Rouge - II, Ale-
xandre Dumas
500 - Casa da Malta. Fernando Namora
soa
468 - Livro do Desc:r.sso.ssego, por Bernardo Soa
re; - I Parte, Fernando Pessoa 501 - Porgy e Bess, DuBose Heyward
469 - Livro do Desassossego, por Bernardo Soa 502 - «Ciepsidra» e Poemas Dispersos, Camilo
res - II Parte, Fernando Pessoa Pessanha
470 - Ficção e Tetitro - O Banqueiro Anar 503 - Contos, Crónicas, Cartas Escolhidas e
quista, Novelas Policiárias. O Marinheiro Textos de Temática Chinesa, Camilo Pes
e Outros, Fernando Pessoa. sanha
471 --A Procura da Verdade Oculto - Textos j)4 - Tonto Gente, Mariana, Maria Judite de
Carvalho
Fi!osó}icos efsotéricos, Fernan do PessOfl
:ii5 - A Cidade e os Cães, Mario Vargas Llosa
lianismo e Qumto lmpe-
472 - Portugal , iie!Jos 506 - O Mercador de Vene:r.o, Wí11iam Shakes-
Fernando Pe-;soa peare
ri�' .
samento Polittco - !JJ7 _ Um Homem, Orialla Fallaci
, l,
, tnas de Pe n . .
Eça de QueJros
471 - Pog . and Pessoa 508 - Prosas Bárbaras, Urbano Tavares Ro-
1910-1919, Fern co - I!, cento s..
de Pensam�
10 Politi
° essoa 509 -- Dias Lama
474 - Páginas i
1925- 1935, Ferna.�do
475 - Páginas
Sobre Literatur
. . co, Fer-
a e E<;téti 510 - � ��:auro, John Updike
.
Smtra, Eça de
511 - O Mistério da Estrada de
nando Pessoa .
es Hilton Queirós
476 _ Adeus,
477 - Ecce
Mr C
Homo.
. �:::; 1:
. �
Saroyan
512 __ Exodus. Leon Uris
.
ente Duras
478 - Rapazes e Rapariga�: William
,... 5 1 3 _ A Amante Inglesa, Margu
vrant _ I . JUlio 5 1 4 _ Prime Amor , Turgenev
Os Filhos do Capldio iro
479 - Júlio Verne
5 1 5 - O Castelo dos Cárpatos,
- li, Júlio
480 - ��lhos do Capitao Granl 5 1 6 - Don Comi/lo e o Seu Pequeno Mundo
Giovannino Guareshi
,
481 - '/;:'}�lhos do Capitão Grant - IH, JúJio 5 1 7 - O Segreflo de Wi/helm Storit� Júlio Verne
?
e Lados
Verne 5 1 8 - Ligações Perigosas, Choderlos
C
482 � o ovil, Franz Kafka 5 1 9 - A Ilha do Tesouro, Robert Loms Steven-
48 3 Pigmalião, Bernard Sh�w son
,
_
ichen�r
484 - Sayonara, James A. M 'Of>O - I,
520 - Don Camillo e o Seu Rebanho. Giovan
485 - Rocam bole - A Herança A-ftst:;?r� nlnQ.,Quareschi
.
Ponson du Tcrrail . ·521 - O Gariien Pari)-'. Katherine Mansfield
ça M:s:ter:osa - d ê:fimarada Don Cami/lo, Giovannino
486 - Rocambole - A Heran 522 -
ll Ponson du Terrail Guareschi
H
487 - ora Di Bai, Manue l Ferreira
523 - Emílio, Jean-Jacques Rousseau
dos V�letes de Co
488 - Rocambole - O Clube
pas _ III, Ponson du Terrru1