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EUROPA-AMÉRICA JEAN-JACQUES

EMÍLIO ROUSSEAU
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Grandes Obras
«Emílio não passa de um tratado sobre a bondade original do

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homem e destina-se a demonstrar como o vício e o erro - estra­
nhos à sua constituição - se introduzem nele, vindos do exterior,
e o alteram insensivelmente.» Estas palavras de Jean-Jacques Rous­
seau sobre Emílio, publicado pela primeira vez em 1762, não re- I -

flectem o escândalo por ele provocado através da exposição das


ideias religiosas do autor, nem tampouco a importância histórica l
que veio a adquirir no domínio da pedagogia. Tratado sobre a
educação, segundo princípios «naturais», e obra de revolta contra o
barbarismo da educação então dada às crianças, Emílio foi conde-·
nado à fogueira e Rousseau teve de abandonar a França para fugir à
prisão.
O propósito de Emílio é o de formar um homem livre; e o ver­
dadeiro amor pelas crianças e pela liberdade nele revelado tornam­ o
.....
-no um livro para todas as épocas e gerações de educadores.

ISBN 972-1-02937 ·8

5 601072 555235
JEAN-JACQUES ROUSSEAU

EMÍLIO
Volumei

Publicações Europa-Amêrica
Título original: Émile ou de l'éducation

Tradução de Pilar Delvaulx


Tradução portuguesa© de P. E. A., 1990
Capa: estúdios P. E. A.

Direitos reservados por


Publicações Europa-América, L.da

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gressores são passíveis de procedimento judicial

Editor: Francisco Lyon de Castro

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, L.DA


ApartadoS
2726 MEM MARTINS CODEX
PORTUGAL

Edição n.º 155523/5000


Execução técnica:
Gráfica Europam, L.da,
Mira-Sintra- Mem Martins

Depósito legal n.' Saa4s/89


NOTA BIOGRÁFICA

Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra em 1712. A mãe


faleceu dez dias após o parto, tendo a criança ficado entregue, até
aos 1O anos, aos cuidados do pai, relojoeiro de profissão, a quem fi­
cou a dever uma educação sem método e algo fantasiosa. Dos 1O aos
12 anos, é educado por um tio, pastor protestante, e aos 13 anos co­
meça a trabalhar como aprendiz de gravador. Aos 17 foge e inicia
uma vida de vagabundagem. Protegido por Madame de Warens,
inicia a sua educação li terária, lendo Montaigne, La Bruyere, Bos­
suet eVoltaire. Por influência da sua protectora, Rousseau conver­
te-se ao catolicismo.
Após uma curta estada em Lyon, como preceptor, e um último
e breve período na companhia de Madame de Warens, chega a Pa­
ris sem recursos. Ai tentará atingir a fortuna e a glória através da
música, da poesia, do teatro e da filosofia. Tentativa falhada, mas
que lhe permitira movimentar-se no meio burguês onde é aprecia­
do como músico. Torna-se amigo de Diderot e de outros filósofos.
Alguns meses depois, é nomeado secretário na Embaixada deVe­
neza, mas, depois de uma briga com o embaixador, regressa a
França em 1744. Inicia uma ligação com Thérese Levasseur, com
quem casará em 1768. Escreve diversos ensaios científicos, poéti­
cos e musicais. As suas primeiras obras poéticas revelam já uma
forte orientação no sentido da especulação moral e filosófica. Tor­
na-se conhecido com o Discurso sobre Ciências e Artes, que cons­
titui uma eloquente diatribe contra a civilização, acusando as ciên­
cias e as artes de se terem deixado domesticar pelo poder.
Em 1754 termina o Discurso sobre a Origem da Desigualdade,
onde defende que a propriedade é a fonte da desigualdade social.
Esta obra, embora incompreendida na época, teve uma influência
considerável no pensamento político moderno. Entretanto, con­
vertera-se ao calvinismo e readquirira o título de cidadão de Gé­
nebra.
Entre 1756 e 1762, Rousseau escreve as suas obras mais im­
portantes.ANovaHeloísa, romance sentimental de que a segun­
da parte constituía um tratado de filosofia moral, religiosa e social,
foi publicado com êxito em 1761. O seu grande tratado sobre a edu­
cação, Emílio, é publicado em Maio de 1762 e é nele que Rousseau
baseia pela primeira vez a arte da educação na concepção cientí- 5
fica da criança. Neste mesmo ano é ainda publicado o Contrato So­
cial, tratado político e fragmento de uma obra mais considerável
sobre as instituições políticas, em que Rousseau trabalhava desde
17 45. Qualquer destes livros causou grande revolução nas ideias
do século e gerou inimigos e perseguições a Rousseau. Foge para
a Suíça e, entre 1762 a 1770, levará a vida instável de um exilado,
vagueando pela Europa. Casou com Thérese Levasseur, mãe dos
seus filhos, que abandonara com grande escândalo. Eatretanto, foi
escrevendo Constituições para a Córsega e para a Polónia, as Car­
tas da Montanha, 1764, que provocaram grande controvérsia re­
ligiosa, e as Confissões, 1766-1770. Em 1766, encontrava-se em
Londres a convite de David Hume, mas, julgando-se traído e
perseguido pelo filósofo, regressa a Paris em 1768. Ai viveu ainda
oito anos, tristemente, numa humilde casa da rua Plâtriere, tra­
balhando como copista de música. Datam dessa altura os três
dolorosos diálogos intitulados Rousseaujuge de Jean-Jacques, do­
cumento psicológico de valor singular, e as Rêveries d'un prome­
neur solitaire, obra onde relembra os dias felizes da sua vida. Em
1778, o marquês de Girardin oferece-lhe acolhimento n a suaman­
são de Ermenonville. Rousseau morreu no dia 2 de Julho desse
ano, tendo sido sepultado na ilha de Peupliers. As suas cinzas en­
contram-se actualmente no Panthéon.

6
INTRODUÇÃO

Rousseau esforçou-se por não conferir ao Emílio o carácter de


um «tratado de educação» ou de um rnan ual de pedagogia. No en­
tanto, este livro foi dos que mais contribuiu para a promoção de
urna escola e de um Est�iido libertos da tutela da Igreja.
A educação de Emílio tem por objectivo a formação de um
homem livre, a qual passa necessariamente pelo respeito pela li­
berdade da criança. E essencial que o educador não confunda a li­
berdade da criança com a satisfação de todos os seus caprichos,
afirma Rousseau, pois isso transformará o jovem num escravo e
não num homem livre: «Não há que confun dir a licença com a liber­
dade, nem a criança a quem se faz ditoso com aquela que se ami­
ma.» Desde a primeira infância a criança deve dispor de total liber­
dade fisica e, à medida que cresce, deverá descobrir e conquistar
a l iberdade interior. Para auxiliar a criança nesse processo, o edu­
cador deve afastá-la dos perigos da sociedade e conservá-la na sua
bondade original. Assim, Emílio só terá por companheiro de infân­
cia um preceptor que nada lhe ensina e o faz encontrar tudo, des­
cobrir, inventar.
A criança não deverá ser tratada como um adulto, permitindo­
-se-lhe que sinta, pense e proceda como uma criança. Este é o
princípio da sua teoria da educação progressiva, que acompanha
o desenvolvimento das novas faculdades que surgem com o cresci­
mento. Até aos 12 anos, a educação sentimental deve preceder a da
inteligência, pois, segundo Rousseau, é mais importante a prática
de bons actos que a aquisição de gra:a des conhecimentos, seja atra­
vés de livros, seja através de lições. Rousseau considera que a edu­
cação negativa é, nessas idades, o método mais seguro para edu­
car a consciência. Dos 12 aos 16 anos, Ernílio rnanter-se-á alheio
à ciência e à retórica, dedicando-se à escolha dum ofício que seja
útil e honroso.
Para a educação do espírito é mais importante uma inteli­
gência esclarecida que uma grande acumulação de saber. Ainda
assim, Emílio deverá dispor de certos conhecimentos: das noções
sobre Geografia geral, que logo em criança são aprendidas, aos
conhecimentos elementares de História Natural, da prática de
actividades técnicas a algumas noções comerciais. Após esta
aprendizagem essencialmente prática, Emílio inicia o estudo das 7
ciências humanas pela História, seguida pela religião e pelos clás­
sicos da literatura.
No método proposto por Rousseau, estão presentes os princí­
pios fundamentais da educação moderna: o robustecimento dos
sentidos, o ensino prático, o trabalho manual, o estímulo da intui­
ção, o cuidado a ter para que a criança descubra as verdades atra­
vés do contacto directo com a vida.
Os sarcasmos que Rousseau lançava contra os grandes e os
ricos, por sabê-los de antemão hostis à liberdade dos homens e
consequentemente das crianças, trouxeram-lhe dissabores. Em
Junho de 1762, Emílio foi condenado à fogueira. Rousseau tentou
refugiar-se na sua cidade natal, para escapar à pena de prisão que
lhe fora decretada, mas também em Genebra o Emílio e o Contra­
to Social haviam sido condenados por serem «temerários, escanda­
losos, ímpioS>> e pretenderem «destruir a religião cristã e todos os
governos>>.
As condenações sofridas por Emílio proporcionaram-lhe uma
publicidade bem merecida e transformaram-no num dos grandes
sucessos do século.
Rousseau escreve no Livro I, relativamente ao lactente: «Pre­
paremos com antecedência o reinado da sua liberdade.>> Hoje, ser
editor ou leitor de Emílio é preparar o reinado da sua própria liber­
dade.

8
PREFÁCIO

Este apanhado de reflexões e de observações, sem ordem e qua­


se sem encadeamento, foi iniciado para comprazer uma boa mãe
que saiba pensar. Ao princípio, projectara apenas uma dissertação
de algumas páginas; o meu assunto arrastando-me sem eu dar por
isso, essa dissertação foi-se tornando, insensivelmente, uma espé­
cie de obra talvez excessivamente volumosa para o que contém,
mas pequena demais para a matéria de que trata. Durante mui­
to tempo, hesitei em publicá-la; e, não poucas vezes, fez-me sen­
tir, enquanto nela trabalhava, que não basta ter escrito algumas
brochuras para saber compor um livro. Após vãos esforços para a
aperfeiçoar, creio dever publicá-la tal como está, julgando que é
importante chamar a opinião uo público para este assunto; e que,
mesmo se as minhas ideias forem más, se, com elas, puder inspi­
rar ideias boas, noutras pessoas, não terá sido debalde o tempo que
lhes dediquei. Um homem que, do seu refúgio, lança as suas folhas
ao público, sem padrinhos, sem partido que as defenda, sem sequer
saber o que pensam ou dizem delas, não deve recear que - se es­
tá enganado- os seus erros sejam admitidos sem crítica.
Pouco falarei da importância de uma boa educação; também
não me deterei para provar que a que se costuma dar é má; mais
de mil o disseram antes de mim, e não me agrada encher um livro
com coisa que toda a gente sabe. Farei unicamente notar que, des­
de há uma infinidade de tempo, só se ouve criticar a prática esta­
belecida, sem que ninguém tenha a ideia de propor uma melhor. A
literatura e o saber do nosso século têm muito mais tendência pa­
ra destruir que para edificar. Censura-se num tom doutoral; pa­
ra propor, é preciso utilizar um tom diferente, que agrada menos
ao orgulho filosófico. Apesar de tantos escritos, que não têm- pe­
lo que se diz- outro objectivo que não seja o de utilidade pública,
a mais importante de todas as utilidades, que é a arte deformar ho­
mens, continua esquecida. O assunto de que trato é absolutamen­
te novo, depois do livro de Locke, e receio bem que este o continue
a ser, depois do meu.
Ninguém conhece a infância: quanto mais se seguem as falsas
ideias que dela se têm, mais longe se fica de as conhecer. Os mais
sages apegam-se ao que é importante que os homens saibam, sem
considerar o que as crianças têm a capacidade de aprender. Pro- 9
curam sempre o homem, na criança, sem pensarem no que ela é,
antes de se tornar homem. Foi a esse estudo que mais me dediquei,
a fim de que -mesmo que o meu método fosse quimérico ou erra­
qo - as minhas observações pudessem ser sempre aproveitáveis.
E possível que tenha visto bastante mal o que é necessário fazer;
mas creio ter estudado bem o assunto sobre o qual se deverá ope­
rar. Começai, pois, por observar melhor os vossos educandos; pois
é quase certo que não os conheceis; ora, se lerdes este livro com es­
sa ideia, não creio que ele não vos seja útil.
A respeito daquilo que passaremos a designar como a parte sis­
temática, que não é mais do que a progressão da n atureza, é isso
que mais desorientará o leitor; será também nesse ponto que me
atacareis, sem dúvida, e talvez até com razão. Não tereis tanto a
impressão de estardes a ler um tratado de educação quanto a de
lerdes os desvarios de um visionário, sobre a educação. Como re­
mediar isso? Não é sobre as ideias de outrém que escrevo; é sobre
as minhas. Não vejo as coisas como os outros homens; há já mui­
to tempo que mo censuram. Mas dependerá de mim oferecer-me
novos olhos e arrogar-me outras ideias?Não. Depende de mim não
insistir na minha maneira de ver, não me supor o único mais sa­
ge que toda a gente; depende de mim, não o mudar de sentimen­
to, m�s desconfiar do meu: eis tudo quanto posso fazer e que faço.
E, embora, por vezes, eu tome o tom afirmativo, não é para me im­
por ao leitor; é para lhe falar como penso. Por que lhe haveria de
propor, sob o aspecto de dúvida, aquilo de que, quanto a mim, não
duvido? Digo exactamente o que se passa no meu espírito.
Expondo livremente o meu sentimento, duvido tanto que ele
faça autoridade, que lhe acrescento sempre as minhas razões, a
fim de que as possam pesar e julgar-me: mas, embora não me quei­
ra obstinar a defender as minhas i deias, não deixo de me sentir
obrigado a expô-las; porque as máximas sobre as quais a minha
opinião é diferente da dos outros não são indiferentes. São daque­
las cuj a veracidade ou falsidade interessa conhecer, e que fazem a
felicidade ou a infelicidade do género humano. ,
«Proponde o que é possível fazer», não cessam de me repetir. E
como se me dissessem: <<Proponde fazer o que já se faz; ou, pelo me­
nos, proponde algum bem que se possa aliar com o mal existente.>>
Um tal proj,;cto, quando se trata de certas matérias, é muito mais
quimérico que os meus; porque, nessa aliança, o bem estraga-se e
o mal não se cura. Preferiria seguir, em tudo, a prática estabele­
cida, que seguir uma boa, só até meio caminho; haveria meno:s con­
tradição no homem; ele não pode tender simultaneamente para
duas extremidades opostas. Pais e mães, o que se pode fazer é o que
quiserdes fazer. Serei responsável pela vossa vontade?
1o Em todos os projectos, sejam eles quais forem, há duas coisas
a considerar: em primeiro lugar, a absoluta bondade do projecto;
em segundo, a facilidade da sua execução.
No que diz respeito à primeira condição, basta, para que o pro­
jecto seja admissível e praticável, que o que ele oferece de bom es­
teja na natureza da coisa; neste caso, por exemplo, que a educação
proposta seja conveniente para o homem e bem adaptada ao cora­
ção humano.
A segunda consideração depende de relações fornecidas em de­
terminadas situações; relações acidentais à coisa, que, por conse­
guinte, não são indispensáveis e podem variar de inúmeras manei­
ras. Assim, uma determinada educação pode ser praticável na
Suíça e não o ser em França; outra pode sê-lo entre os burgueses,
e, ainda outra, entre os grandes. A facilidade maior ou menor da
execução depende de mil circunstâncias que só é possível determi­
. nar atravé� de uma aplicação particular do método a este ou aque­
le país, a esta ou àquela classe. Ora, todas essas aplicações parti­
culares, não sendo essenciais para o meu assunto, não entram no
meu plano. Outros poderão ocupar-se delas, se querem, cada um
para a região ou para o Estado que tiver em vista. A mim, basta­
-me que, seja onde for que nasçam homens, se possa fazer deles o
que proponho; e que, depois de se ter feito deles o que eu proponho,
se tenha feito o que de melhor há, não só para eles próprios como
também para os outros. Se eu não cumprir este compromisso, cer­
tamente que procedo mal; mas, se o cumpro, também procederíeis
mal se exigísseis mais de mim; pois só isso prometo.

11
LIVRO I
Tudo está bem, ao sair das mãos do Autor das coisas; tudo de­
genera entre as mãos do homem: força uma terra a nutrir os pro­
dutos de outra,uma árvore a dar frutosde outra; mistura e confun­
de os climas,os elementos,as estações; mutila o cão,o cavalo,o seu
próprio escravo; transtorna tudo, tudo desfigura, gosta da desfor­
midade, dos monstros; não quer nada que seja como o fez a natu­
reza,nem sequer o homem; precisa de o adestrar para si,como um
cavalo de manejo; precisa de modelá-lo à sua maneira,como se fos­
se uma árvore do seu jardim.
· Se assim não fosse,tudo seria ainda mais mal, e a nossa espé­
cie não quer ser meio apeneiçoada. No estado em que agora estão
as coisas,um homem que,desde o seu nascimento,tivesse sido en­
tregue a si mesmo, entre os outros,seria o mais disforme de todos.
Os preconceitos, a autoridade,a necessidade, o exemplo, todas as
instituições soci ai s,nas quais nos encontramos submergidos, aba­
fariam nele a natureza e não a substituiriam por nada. Nele pas­
saria a viver,como uma arvorezinha que o acaso fez nascer no meio
de um caminho e que,em breve,os passantes fazem definhar,dan­
do-lhe encontrões por todos os lados e dobrando-a em todos os sen­
tidos.
É a ti que me dirij o , terna e previdente mãe1, que soubeste

1 A primeira educação é a mais importante e compete incontestavel­


mente às mulheres: se o Autor da natureza tivesse querido que ela com­
petisse aos homens, ter-lhes-ia dado o leite para alimentarem os filhos.
Por conseguinte, dirijam-se sempre, e de preferência, às mulheres, nos
vossos tratados de educação; porque, além de terem a possibilidade deve­
lar por ela de mais perto que os homens, e de exercerem sempre mais in­
fluência nos filhos, o sucesso também lhes interessa muito mais, pois a
maioria das viúvas se encontram quase à mercê dos filhos, e que, quando
assim é, eles fazem-lhes vivamente sentir -em mal ou em bem -a ma­
neira como elas os educaram. As leis, sempre tão interessadas pelos bens
e tão pouco pelas pessoas- porque têm como objecto a paz e não a virtu­
de-não dão suficiente autoridade às mães. Contudo, o seu estado é mais
angustioso que o dos pais, e os seus deveres mais penosos que os destes;
os seus cuidados são mais importantes para a boa ordem da família; ge­
ralmente, sentem-se mais apegadas aos filhos. Há ocasiões em que um fi­
lho que falta ao respeito ao pai pode, de um certo modo, ter uma descul-
pa pára o que fez; mas se, seja quando for, um filho for suficientemente
desnaturado para faltar com ele a sua mãe, àquela que o trouxe no seu
seio, que o alimentou com o seu leite, que, durante anos e anos, se esque- 1 5
afastar-te do caminho principal e proteger a arvorezinha, acabada
de nascer, do choque das opiniões humanas! Cultiva, raga a jovem
plantinha, antes que ela morra; um dia, os seus frutos farão as tuas
delícias. Apressa-te a construir uma cerca em volta da alma do teu
filho; outra que tu pode marcar-lhe o perímetro, mas só tu deves
colocar a barreira1•
Formam-se as plantas pela cultura, e os homens pela educa­
ção. Se o homem nascesse grande e forte, a sua estatura e a sua
força ser-lhe-iam inúteis enquanto não tivesse aprendido a ser­
vir-se delas; ser-lhe-iam prejudiciais, impedindo os outros de
pensar em assistir-lhe2; e, abandonado a si mesmo, morreria de
miséria antes de ter conhecido as suas necessidades. Há quem la­
mente o estado da infância; não vêem que a raça humana teria de­
saparecido, se o homem não começasse por ser criança.
Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos
de tudo, precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisa­
mos de razão. Tudo o que não temos quando nascemos e de que pre­
cisamos quando somos adultos é-nos dado pela educação.
Essa educação vem-nos da natureza, ou dos homens ou das
coisas. O desenvolvimento interior das nossas faculdades e dos
nossos órgãos é a educação da natureza; a utilização que nos ensi­
nam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e a
aquisição da nossa própria experiência sobre os objectos que nos
afectam é a educação das coisas.
Assim, cada um de nós é formado por três espécies de mestres.
O discípulo em que as suas várias lições se contrariam está mal
educado, e nunca se sentirá de acordo consigo mesmo; aquele em
que elas concordam em todos os pontos e tendem para os mesmos

�u dela própria para só se ocupar dele, deveria haver alguém que se


apressasse a suprimir esse miserável, como se faria a um monstro indig­
no de viver. Diz-se que as mães amimam os filhos. Nisso, certamente, fa­
zem mal, mas menos mal que aquelas que os depravam. A mãe quer que
o filho seja feliz, que o seja desde que nasce. Nisso, tem razão: quando ela
se engana nos meios é necessário esclarecê-la. A ambição, a avareza, a ti­
rania, a fingida previdência dos pais, a negligência dest:ls, a sua dura in­
sensibilidade, são cem vezes mais funestas para as crianças que a terna
cegueira das mães. De resto, ainda preciso de explicar qual a significação
que dou a essa palavra, <<mãe», e é o que, a seguir, passo a fazer.
1 Garantem-me que o Sr. Formey se convenceu de qu�, aqui, eu me
referia à minha mãe, e que o escreveu num dos seus livros. E troçar cruel­
mente do Sr. Formey ou de mim.
2 Aparentemente semelhante a eles, e privado da palavra assim co­
mo das ideias que ela exprime, não teria a possibilidade de lhes dar a co­
nhecer a necessidade que tivesse do seu auxílio, e nada, nele, lhes mani-
16 festaria essa necessidade.
uns, e o umco que atinge o seu objectivo e que vive consequente­

mente. Só esse está bem educado.


Ora, dessas três educações diferentes, a da natureza não de­
pende de nós; a das coisas só depende de nós numa certa propor­
ção. A dos homens é a única de que sejamos verdadeiramente os
mestres; e, mesmo assim, só o somos por suposição: pois, quem é
que pode esperar dirigir completamente os discursos e as acções de
todos os que rodeiam uma criança?
Visto que a educação é uma arte, é quase impossível que ela se­
ja bem sucedida, pois o concurso necessário para o seu sucesso não
depende de ninguém. Tudo quanto se pode fazer, à custa de cuida­
dos, é aproximar-se mais ou menos do alvo, mas é preciso ter sor-
te para o atingir. ,
Qual é esse alvo? E o mesmo da n atureza; isso acaba de ser de­
monstrado. Pois que o concurso das três educações é necessário pa­
ra a sua perfeição, é no sentido daquela que não podemos influen­
ciar que deveremos dirigir as outras duas. Mas talvez esta palavra
«natureza>> tenha um sentido excessivamente vago; é preciso que
aqui fique definido.
A natureza, pelo que nos dizem, não é mais que o h ábito1• Que
significa isso? Não haverá hábitos que só se contraem pela força,
e que nunca emudecem a n atureza? Citamos, como exemplo, o há­
bito das plantas, quando se lhes contraria a direcção vertical. A
planta, logo que deixada em liberdade, conserva a inclinação que
foi forçada a tomar; mas, nem por isso a seiva modifica a sua direc­
ção primitiva; e, se essa planta continuar a vegetar, o seu cresci­
mento volta a ser vertical. O mesmo acontece com as inclinações
dos homens. Enquanto permanecem no mesmo estado, podem con­
servar as que resultam do hábito e que são as menos naturais; mas,
logo que a situação se modifica, o hábito cessa e o natural regres­
sa. Não restam dúvidas de que a educação é apenas um hábito.
Ora, não há pessoas que se esquecem e perdem a sua educação e
outras que a conservam? A que se deve essa diferença? Se é preci­
so limitar a significação de «natureza» aos hábitos que são confor­
mes à natureza, poderemos evitar essa confusão.
Todos nós nascemos sensíveis, e, desde o nosso nascimento, so-

1 O Sr. Formey garante-nos que não é precisamente isso o que se diz.


No entanto, isso parece-me estar claramente dito neste verso a que pro­
punha responder:

A natureza, crê-me, não é mais que o hábito.

. Não desejando envaidecer os seus semelhantes, o Sr. Formey dá-nos


modestamente a medida dos seus miolos como sendo a do entendimento
humano. 17

L.B.523-2
mos afectados de várias maneiras pelos objectos que nos rodeiam.
Logo que adquirimos, por assim dizer, a consciência das nossas
sensações, começamos por nos sentir dispostos a procurar ou a evi­
tar os objectos que as produzem, consoante aquelas nos são agra­
dáveis ou desagradáveis; em seguida, consoante a conveniência ou
a inconveniência que encontramos entre nóse esses mesmos objec­
tos; e, finalmente, fazemo--lo segundo as opiniões que temos sobre
a ideia de felicidade ou de perfeição que a razão nos fornece. Estas
disposições desenvolvem-se e consolidam-se, à medida que nos
vamos tornando mais sensíveis e mais esclarecidos; mas, coagidas
pelos nossos hábitos, elas alteram-se mais ou menos, através das
nossas opiniões. Antes desta alteração, correspondem ao que eu
designo, em nós, como a natureza.
E, pois, com essas disposições primitivas que deveríamos rela­
cionar tudo; e isso seria possível, se as nossas três educações
fossem apenas diferentes: mas que fazer, quando são opostas?
Quando, em vez de educar um homem para si próprio, se preten­
de educá-lo para os outros? Nesse caso, a harmonia é impossível.
Forçado a combater a natureza ou as instituições sociais, é neces­
sário optar entre fazer um homem ou um cidadão: pois é impossí­
vel fazer, simultaneamente, um e outro.
Todas as sociedades parciais, que sejam pequenas e bastante
unidas, provocam a antipatia da grande. Todos os patriotas são
agressivos para os estranhos: não passam de homens, nada são aos
seus olhos1• Este inconveniente é inevitável, mas é pequeno. O es­
sencial é que convenha às pessoas com que se vive. Fora do seu
país, o Espartano era ambicioso, avarento, iníquo; mas o desinte­
resse e a concórdia reinavam no interior das suas muralhas. Des­
confiem desses cosmopolitas que vão procurar, nos seus livros, os
deveres que eles desdenham cumprir em relação aos seus seme­
lhantes. Tais pensadores são capazes de amar os Tártaros, só pa­
ra se sentirem dispensados de amar os seus vizinhos.
O homem natural é tudo, para si mesmo; é a unidade numéri­
ca, o total absoluto que só tem deveres para consigo próprio ou pa­
ra com o seu semelhante. O homem civil é apenas uma unidade
fraccionária que depende do denominador e cujo valor está na sua
relação com o número inteiro, que é o corpo social. As boas institui­
ções sociais são as que mais bem sabem deteriorar o homem, reti­
rar-lhe a sua existência absoluta para lhe dar uma relativa, e
transportar o eu para a unidade comum; de modo a que cada par­
ticular deixe de se crer como um indivíduo, mas sim como uma par-

1 Por isso, as guerras dos republicanos são mais cruéis que as das
monarquias. Mas, embora a guerra dos reis seja moderada, é a sua paz que
18 é terrível: é preferível ser-se seu inimigo que ser-se seu vassalo.
te da unidade e só seja sensível no todo. Um cidadão de Roma não
era nem Caio nem Lúcio; era um Romano; até amava a pátria, ex­
clusivamente como sua. Régulo pretendeu-se cartaginês, depois
de ter sido feito prisioneiro dos chefes cartagineses. Na sua quali­
dade de prisioneiro, recusou-se a ocupar um assento no senado de
Roma; foi preciso que um cartaginês lhe ordenasse que o fizesse.
Indignava-se por quererem salvar-lhe a vida. Venceu e voltou
triunfante, para morrer supliciado. Isto não me parece ter grande
relação com os homens que conhecemos.
O lacedemónio Pedareta apresenta-se para ser admitido no
Conselho dos trezentos; é rejeitado: sai satisfeitíssimo por haver
em Esparta trezentos homens que valem mais do que ele. Suponho
que essa demonstração foi sincera; há razões para crer que o foi: eis
o cidadão.
Uma mulher de Esparta tem cinco filhos no exército e espera
por notícias da batalha. Chega um iliota; tremendo, ela pede-lhas:
«Üs vossos cinco filhos morreram!»"Vil escravo, foi isso que te per­
guntei?>>«Übtivemos avitória!»A mãe corre para o templo e dá gra­
ças aos deuses. Eis a cidadã.
Aquele que, na ordem civil, pretende conservar a primazia dos
sentimentos da natureza, não sabe o que quer. Constantemente
em contradição consigo mesmo, continuamente hesitando entre as
suas inclinações e os seus deveres, nunca chegará a ser nem ho- f
roem nem cidadão. Acabará por ser um desses homens da nossa
época, um francês, um inglês, um burguês; não será absolutamen­
te nada.
Para sermos alguma coisa, para sermos nós próprios e sempre
distintos, precisamos de agir como falamos; precisamos de estar
sempre decididos sobre o partido que devemos tomar, tomá-lo com
decisão e segui-lo sempre. Estou à espera de que me mostrem es­
se prodígio, para saber se ele é homem ou cidadão, ou como conse­
gue ser, simultaneamente, uma e outra coisa.
Destes objectos necessariamente opostos derivam duas
formas de instituições contrárias: uma pública e comum, a outra
particular e doméstica.
Se quereis ter uma ideia da educação pública, lede a Repúbli­
ca, de Platão. Não se trata de uma obra política- como pensam
aqueles que só julgam os livros pelos seus títulos: é ornais belo tra­
tado de educação que jamais foi feito.
Quando queremos falar do país das quimeras, referimo-nos à
instituição de Platão: se Licurgo não se tivesse limitado a descre­
ver a sua por escrito, ainda a consideraria mais quimérica. Platão
só pretendeu depurar o coração do homem; Licurgo desnaturou-o.
A instituição pública já não existe, nem pode existir, porque
onde deixou de haver pátria não podem haver cidadãos. Estas duas
palavras pátria e cidadão devem ser apagadas das línguas moder- 1 9
nas. Bem sei por que motivo, mas não o quero dizer: não tem na­
da a ver com o assunto de que trato.
Não considero como instituições públicas esses risíveis estabe­
lecimentos a que se dá o nome de colégios1• Também não conside­
ro a educação da sociedade, porque esta educação, com tendência
para dois objectivos opostos, tanto falha num como no outro: serve
apenas para fazer homens dúbios que, tendo o ar de sempre
proporcionarem alguma coisa aos outros, tudo proporcionam a si
mesmos. Ora, estas demonstrações-que são comuns a toda a gen­
te- não iludem ninguém. Tudo isso são trabalhos perdidos.
Destas contradições nasce a que experimentamos, incessante­
mente, dentro de nós próprios. Arrastados pela natureza e pelos
homens, através de caminhos opostos, forçados a dividirmo-nos
entre esses vários impulsos, seguimos um que é complexo e que
não nos conduz nem a uma nem a outra finalidade. Assim, comba­
tidos e hesitantes, durante toda a nossa existência, terminamo-la
sem nunca termos conseguido viver de acordo connosco mesmos e
sem termos sido úteis, nem para nós nem para os outros.
Resta-nos, por fim, a educação doméstica ou a da natureza;
mas, em que se tornará, para os outros, um homem exclusivamen­
te educado para si próprio? Se fosse possível reunir, num único, o
duplo objectivo que se pretende, ao retirar as contradições do ho­
mem também se retiraria um grande obstáculo para a sua felici­
dade. Seria necessário, para o julgar, vê-lo completamente forma­
do; seria necessário ter observado todas as suas inclinações, visto
os seus progressos, seguido o seu itinerário; teria sido preciso, em
resumo , conhecer o homem natural. Creio que se terão dado.alguns
passos nestas observações, depois de se ter lido este escrito.
Para formar este homem raro, que teremos de fazer? Muito,
certamente: e é impedir que nada se faça. Quando apenas se tra­
ta de navegar contra o vento, bordeja-se; mas, quando o mar está
alteroso e queremos ficar parados, precisamos de lançar âncora.
Tem cuidado, jovem piloto, para que a tua corrente não se perca ou
para que a tua âncora não arraste pelo fundo, a fim de que o navio
não fique à deriva antes que te tenhas apercebido disso.
Na ordem social, onde todos têm os seus lugares marcados, ca­
da qual deve ser educado para o seu. Se um particular abandona
o lugar para que foi formado, já não serve para mais nada. A edu-

1 Há, em várias escolas, e, sobretudo, na Universidade de Paris,


professores que estimo, que estimo muito, e que creio muito capazes de
i nstruírem bem a juventude, se não se virem obrigados a seguir o costu­
me estabelecido. Convido um deles a publicar o projecto de reforma que es­
tabeleceu. Talvez vos sintais, finalmente, tentados a curar o mal, quando
2o virdes que ele tem remédio.
cação só poderá ser útil na medida em que a fortuna estiver de par
com a vocação dos pais; em qualquer outro caso só poderia ser pre­
judicial para o�aluno, quanto mais não fosse pelos preconceitos que
lhe tivesse inculcado. No Egipto, onde o filho era obrigado a abra­
çar a condição do pai, a-educação tinha, pelo menos, uma finalida­
de assegurada; mas entre nós, ondeunicamente as classes perma­
necem, e em que os homens mudam, constantemente, de uma pa­
ra outra, ninguém sabe, quando educa o seu filho para a sua, se não
está a trabalhar em seu prejuízo.
Na ordem natural, como todos os homens são iguais, a sua vo­
cação comum é o estado de homem; e seja quem for que, para ele,
estiver bem educado, não pode desempenhar mal os que com ele se
relacionam. Que destinem o meu pupilo para a espada, para a igre­
ja ou para a magistratura, pouco me importa. Acima da vocação
dos pais, a natureza apela-o para a vida humana. Viver é o ofício
que lhe quero ensinar. Saindo das minhas mãos, ele não será­
concordo-nem magistrado, nem soldado, nem padre; será, acima
de tudo, homem: tudo o que um homem deve ser, ele saberá sê-lo,
se necessário, tão bem como qualquer outro; e, mesmo que a fortu­
na o faça mudar de lugar, sentir-se---á sempre no seu. Occupavi te,
Fortuna, atque cepi; omnesque aditus tuos interclusi, ut ad me as-
·

pirare non posses.


O nosso verdadeiro estudo é o da condição humana. Aquele de
entre nós que melhor souber suportar os bens e os males desta vi­
da, é, na minha opinião, o mais bem educado; daí que a melhor edu­
cação consiste menos em preceitos que em exercícios. Começamos
a instruir-nos quando começamos a viver; a nossa educação come­
ça connosco; o nosso primeiro perceptor é a nossa ama. Assim, es­
sa palavra educação tinha, para os antigos, um sentido diferente
do que hoje lhe atribuímos: significava «alimentação». Educit obs­
tetrix, dix Varron; educat nutrix, instituit poedagogus, docet ma­
gister. Por isso, a educação, a instituição e a instrução significam
três coisas, que, no seu objectivo, são tão diferentes entre si como
a governanta, o perceptor e o mestre. Mas estas distinções são mal
compreendidas; e, para ser bem dirigida, a criança deve seguir um
único guia.
Devemos, pois, generalizar as nossas vistas e considerar, no
nosso pupilo, o homem abstracto, o homem exposto a todos os aci­
dentes da vida humana. Se os homens nascessem agarrados ao so-
lo de uma região, se a mesma estação durasse todo o ano, se cada
um conservasse a sua fortuna de modo a nunca a poder modificar,
a prática estabelecida seria boa, sob certos aspectos; a criança edu­
cada para a sua condição, nunca saindo dela, nunca seria exposta
aos inconvenientes de outra. Mas, considerando a mobilidade das
coisas humanas, considerando o espírito inquieto e movimentado
deste século, que transforma tudo em cada geração que passa, é 21
possível conceber um método mais insensato que o de educar uma
criança como se ela nunca viesse a ter de sair do quarto, como se
devesse sempre estar rodeada pelos seus? Se a infeliz dá um úni­
co passo pelo chão, se desce um único degrau, está �erdida. Não se
trata de lhe ensinar a suportar a infelicidade: mas de a exercer a
senti-la.
A grande preocupação é conservar o filho; isso não basta; é pre­
ciso ensinar-lhe a conservar-se, sendo homem, a suportar os gol­
pes do destino, a enfrentar a opulência e a miséria, a viver-se for
necessário - nos gelos da Islândia ou no escaldante rochedo de
Malta. Por mais precauções que tomardes, para que ele não mor­
ra, a verdade é que ele terá de morrer; e mesmo que a sua morte
não fosse o resultado dos vossos cuidados, estes ainda seriam mal
compreendidos. Trata-se menos de o impedir de morrer que de o
levar a viver. Viver não é respirar, é agir; é utilizarmos os nossos
órgãos, os nossos sentidos, as nossas faculdades, todas as partes de
nós mesmos, que nos dão o sentimento da nossa existência. O ho­
mem que mais viveu não é o que viveu mais anos, mas aquele que
mais sentiu a vida. Há quem seja enterrado aos 100 anos, mas que
já estava morto desde que nascera. Teria feito melhor se se metes­
se no túmulo durante a sua mocidade, se, pelo menos, tivesse vi­
vido até lá.
Toda a nossa sageza consiste em preconceitos servis; todos os
nossos costumes são apenas submissão, dificuldades e coacção. O
homem civil nasce, vive e morre na escravidão: ao nascer, é meti­
do em roupas que o apertam; quando morre pregam-no num cai­
xão; enquanto mantém o aspecto humano, é acorrentado pelas nos­
sas instituições.
Diz-se que há várias parteiras que, amoldando as cabeças dos
recém-nascidos, pretendem dar-lhes uma forma mais convenien­
te; e há quem aceite isso! As nossas cabeças teriam sido mal feitas
pelo Autor do nosso ser: é preciso remodelá-las-exteriormente
-pelas parteiras e-interiormente-pelos filósofos. Os Caribes
ftão, em parte, mais felizes do que nós.

«Mal a criança sai do seio de sua mãe, e mal começa a


gozar da liberdade de mexer e estender os seus membros,
arranjam-lhe novos impedimentos. Apertam-na com rou­
pas, deitam-nacom a cabeça fixada, as pernas esticadas, os
braços estendidos ao lado do corpo; é envolvida com panos
e ligaduras de todos os géneros, que não lhe permitem mu­
dar de posição. Ainda é uma sorte quando não a apertam ao
ponto de a impedirem de respirar e quando tomam a pre­
caução de a deitar virada de lado, a fim de que águas que de-
22 verá verter pela boca possam éscorrer por si próprias!. ..
Pois que ela não teria a liberdade de virar a cabeça para o
lado, a fim de lhes facilitar a saída.»

A criança que acaba de nascer precisa de estender e movimen­


tar os membros, para os tirar do entorpecimento em que, encolhi­
dos, como num novelo, permaneceram durante tanto tempo. Es­
tendem-lhos, isso é verdade, mas impedem-na de os mover; até a
cabeça fica fixada por almofadas especiais: dá a impressão de que
se tem medo de que ela tenha o ar de estar viva.
Assim, o impulso das partes internas de um corpo que tende
para crescer encontra um obstáculo invencível, para os movimen­
tos necessários a esse crescimento. A criança faz constantemente
esforços inúteis que lhe esgotam as forças ou atrasam o seu pro­
gresso. Dispunha de mais espaço, sentia-se mais confortável, me­
nos comprimida, no âmnio, que nos panos em que a envolveram;
não vejo o que ganhou em ter nascido.
A inacção, o aperto em que retêm os membros de uma criança,
só lhe podem prejudicar a circulação do sangue, dos humores, e im­
pedi-la de se fortalecer e de crescer, alteranC:o-lhe a sua constitui­
ção. Nos países onde não se tomam estas precauções extravagan­
tes, os homens são todos altos, fortes, bem proporcionados. Os paí­
ses onde envolvem as crianças com ligaduras são os que formigam
de corcundas, de cambaios, de raquíticos, de disformes, de pessoas
com defeitos físicos de todas as espécies. Receando que os corpos se
deformem com os movimentos livres, apressam-se a deformá-los,
comprimindo-os. Só para as impedir de se estropiarem, arriscam­
-se a torná-las paralíticas.
Será possível que uma coacção tão cruel não tenha influência
no seu carácter assim como no seu temperamento? A primeira sen­
sação que experimentam é de dor e de contrariedade: só encontram
obstáculos para todos os movimentos de que necessitam: mais in­
felizes que um criminoso agrilhoado, fazem vãos esforços, irritam­
-se, gritam. As suas primeiras vozes- pelo que dizeis- são cho­
ros? Compreendo-as muito bem: contrariai-las logo que nascem;
os primeiros dons que de vós recebem são grilhões; os primeiros
cuidados a que as submeteis são tormentos. Não ficando- de li­
vre- com mais do que a voz, como não se haveriam de servir de­
la para se lamentarem? Choram pelo mal que lhes fazeis: assim
apertados, gritaríeis muito mais do que elas.
De onde vem este costume despropositado? De um costume
desnaturado. Desde que as mães, desprezando o seu principal de­
ver, deixaram de querer amamentar os filhos, é preciso confiá-los
a mulheres mercenárias, que, desse modo, encontrando-se como
mães de crianças que não lhes pertenciam e em relação às quais a
natureza não lhes dizia nada, só procuravam poupar-se a traba­
lhos. Teria sido necessário vigiar constantemente uma criança em 2 3
liberdade; mas, quando ela está bem amarrada, podem deixá-la
num canto, sem se preocuparem com os seus choros. Contanto que
não haja provas da negligência da ama, contanto que o lactente não
parta nem um braço nem uma perna, que importa que ele morra
ou que permaneça enfermo para o resto dos seus dias? Conservam­
-se-lhe os membros à custa do corpo, e, seja o que for que aconte­
cer, a ama não é a culpada.
Essas amáveis mães que, desembaraçadas dos filhos, se en­
tregam alegremente aos divertimentos da cidade, saberão qual o
tratamento que a criança, assim apertada, recebe na aldeia? Ao
mínimo problema que haja, penduram-no a um prego, com um
montão de trapos; e, enquanto, sem se apressar, a ama trata das
suas coisas, a infeliz criança permanece assim, crucificada. Todas
as que foram encontradas nesta situação tinham o rosto violáceo;
o peito fortemente comprimido, já não deixando passar o sangue
para a cabeça; e supunha.:...se a criança muito satisfeita, porque não
tinha forças para gritar. Ignoro quantas horas uma criança pode
permanecer nessa posição sem perder a vida, mas duvido de que
sejam muitas. Eis, parece-me, uma das grandes vantagens de
amarrar a criança nas suas vestes.
Pretende-se que as crianças, se fossem deixadas com os movi­
mentos livres, poderiam adquirir más posições, capazes de preju­
dicar a boa conformação dos seus membros. Isso é um dos vãos ra­
ciocínios da nossa falsa sageza e que nunca nenhuma experiência
confirmou. Entre essa quantidade de crianças que, vivendo entre
povos mais sensatos que nós, são criadas com toda a liberdade de
movimentos, não se vê nem uma que se magoe ou se estropie; não
saberiam dar aos seus movimentos a força que os poderia tornar
perigosos; e, quando fazem algum movimento violento, a dor en­
carrega-se de as avisar, imediatamente, de que não o devem fazer.
Ainda não pensámos em amarrar também os filhotes dos cães
e os dos gatos; essa negligência ter-lhes-á trazido qualquer incon­
veniente? As crianças são mais pesadas; de acordo: mas, em pro­
porção, também são mais fracas. Mal se podendo mexer, como se
poderiam estropiar? Se as deitásseis de costas, morreriam nessa
posição, como a tartaruga, sem nunca se conseguirem virar.
Não satisfeitas com terem deixado de amamentar os filhos, as
mulheres deixam de os querer fazer; a consequência é natural.
Desde que o estado da mãe inspira alguns cuidados, rapidamente
se encontra meio de a libertar deles; pretende-se fazer uma obra
inútil, a fim de a recomeçar sempre, e considera-se como prejudi­
cial para a espécie a tendência que se tem para a multiplicar. Es­
te uso, acrescentado às outras causas de despovoamento, anuncia­
-nos o próximo futuro da Europa. As ciências, as artes, a filosofia
24 e os costumes que ela gera não tardarão a transformá-la num de-
serto. Ficará povoada por animais ferozes: não mudará muito de
género de habitantes.
Assisti, por vezes, às manobrazinhas das jovens mulheres que
fingem querer amamentar os filhos. Sabem perfeitamente conse­
guir que insistam com elas para que renunciem a essa fantasia:
com todo o jeito, fazem intervir os esposos, os médicos1, sobretudo
as mães. Um marido que se atravesse a consentir que a esposa
amamentasse o filho seria um homem perdido; seria considerado
como um assassino que se quer livrar da esposa. Maridos pruden­
tes, é preciso que imolem, à paz doméstica, o amor paterno. Feliz­
mente que, no campo, se encontram mulheres mais continentes
que as vossas! Ainda mais afortunados sereis, se o tempo que es­
tas poupam não se destinar a outros que não vós.
O dever das mulheres não apresenta dúvidas: mas ainda não
se chegou a saber se, no desprezo a que elas o abandonam, é indi­
ferente para os filhos serem alimentados com o seu leite ou com ou­
tro. Considero esta questão- que só os médicos podem julgar­
como estando resolvida consoante o desejo das mulheres; e, por
mim, também pensaria que mais vale que a criança mame o leite
de uma ama saudável que o de umamãe adoentada, se alguma coi­
sa houvesse a recear do mesmo sangue de que ele é formado.
Mas a questão deverá ser unicamente encarada do ponto de
vista físico? E a criança tem menos necessidade dos cuidados de
umamãe que da sua teta? Outras mulheres-até mesmo animais
- poder-lhe-ão dar o leite que ela recusa; mas a solicitude mater­
na é insubstituível. Aquela que amamenta o filho de outra, em vez
de amamentar o seu, é uma má mãe: como poderá ser uma boa
ama? Talvez o venha a ser, mas lentamente; será necessário que
o hábito modifique a natureza. E a criança mal cuidada terá tem­
po para morrer cem vezes, antes de a ama por ela sentir uma ter­
nura de mãe.
Desta mesma vantagem resulta um inconveniente que, só por
si, deveria retirar a todas as mulheres sensíveis a coragem de en­
tregar o seu filho a outra para que esta o amamente: é o ter de com­
partilhar o direito de m ãe, ou, antes, de o perder; de ver o filho
amar outra mulher, tanto ou mais do que a ela própria; sentir que
a ternura que ele conserva pela sua própria mãe é uma graça, en­
quanto a que sente pela sua mãe adoptiva é um dever: pois, onde

1 A aliança entre as mulheres e os médicQS sempre me pareceu :uma


das mais engraçadas singularidades de Paris. E através das mulheres que
os médicos adquirem a sua reputação, e é através dos médicos que as mu­
lheres conseguem fazer as suas vontades. Por aí, bem se pode calcular a
espécie de habilidade que um médico de Paris precisa de ter para se tor-
nar célebre. 25
encontrei os cuidados de uma mãe, não devo a dedicação de um fi­
lho?
A maneira como se remedeia este inconveniente é inspirar aos
filhos o desprezo pelas respectivas amas, tratando-as como verda­
deiras criadas. Quando o serviço termina, retira-se-lhes a crian­
ça ou despede-se a ama; recebendo-a sempre de mau modo, tira­
-se-lhe a vontade de vir visitar o seu «bebé». Ao cabo de alguns
anos, ele já deixou de a ver e nem sequer se lembra dela. A mãe, que
crê substituir-se-lhe e reparar a sua negligência com a crueldade,
engana-se. Em vez de transformar um lactente desnaturado num
filho sensível, exercita-o na ingratidão; finalmente, ensina-lhe a
desprezar aquela que lhe deu a vida, como aquela que o alimentou
com o seu próprio leite.
Como eu insistiria neste ponto, se não fosse tão desanimador
falar e voltar a falar, sempre em vão, de assuntos inúteis! Isto de­
pende de mais coisas que se pensa. Quereis que todos regressem
aos seus principais deveres? Começai pelas mães; ficareis sur­
preendidos com os resultados que produzireis. Tudo deriva, suces­
sivamente, dessa primeira depravação: toda a ordem moral fica al­
terada; o natural desaparece em todos os corações; o interior das
casas adquire um aspecto menos animado; o espectáculo enterne­
cedor de uma família que se começa a formar já não prende os ma­
ridos, já não impõe deferências aos estranhos; respeita-se menos
aqueles cujos filhos não se vêem; não há estabilidade nas famílias;
o hábito não reforça os laços do sangue; já não há pais, nem mães,
nem filhos, nem irmãos, nem irmãs; todos se conhecem muito su­
perficialmente; como se poderiam amar? Cada um pensa só em si.
Quando a casa não é mais do que uma triste solidão, é preciso ir
procurar a alegria noutros sítios.
Mas, se as mães se dignarem a amamentar os filhos, os costu­
mes reformar-se-ão por si próprios, os sentimentos da natureza
despertarão em todos os corações; o Estado repovoar-se-á: este
primeiro ponto- só por si- reunirá tudo. O gosto pela vida do­
méstica é o melhor contraveneno para os maus costumes. A bal­
búrdia das crianças, que se crê importuna, torna-se agradável;
torna o pai e a mãe mais necessários, mais caros um ao outro; con­
solida, entre eles, o elo conjugal. Quando a família é alegre e ani­
mada, os cuidados domésticos constituem a ocupação que a mulher
mais aprecia e a mais doce distracção do marido. Assim, só por se
corrigir esse abuso, rapidamente se operaria uma reforma geral,
rapidamente a natureza recuperaria os seus direitos. Quando as
mulheres voltarem a ser mães, os homens voltarão a ser pais e ma­
ridos.
Discursos supérfluos! O próprio aborrecimento dos prazeres
do mundo nunca conduz a esses. As mulheres deixaram de ser
2 6 mães; nunca mais o voltarão a ser; deixaram de querer sê-lo. Mes-
mo que o quisessem voltar a ser, dificilmente o conseguiriam; ho­
je, quando o costume contrário está estabelecido, cada uma delas
teria de combater a oposição de todas aquelas que a frequentam,
unidas contra um exemplo que umas não deram e que as outras
não querem seguir.
No entanto, ainda encontramos jovens mulheres, dotadas de
um fundo natural, e que, neste caso, se atrevem a desafiar o im pé­
rio da moda e os clamores do mesmo sexo, desempenhando, com
uma virtuosa intrepidez, esse dever tão doce que a natureza lhes
impõe. Possa o seu número aumentar através dos bens destinados
àquelas que a ele se entregam! Baseado nas consequências que dá
o mais simples raciocínio, e em observações que nunca vi desmen­
tidas, ouso prometer a essas dignas mães uma dedicação sólida e
constante por parte dos respectivos maridos, uma ternura verda­
deiramente filial por parte dos filhos, a estima e o respeito do pú­
blico, felizes partos sem acidentes e sem complicações, uma saúde
estável e vigorosa, e, enfim, o prazer de se verem um dia imitadas
pelas filhas e citadas, como exemplo, às dos outros.
Sem mãe, não há filhos. Entre eles, os deveres são recíprocos;
e, se forem mal cumpridos por uma das partes, serão negligen­
ciados pela outra. A criança deve amar a mãe, antes de saber que
isso é a sua obrigação. Se a voz do sangue não for fortalecida pelo
hábito e pelos cuidados, apaga-se durante os primeiros anos, e o
coração morre, por assim dizer, antes mesmo de ter nascido. Eis­
-nos, já a partir dos primeiros passos, afastados da natureza.
Sai-se dela por um caminho oposto, quando, em vez de negli­
genciar os cuidados de mãe, uma mulh er os presta em excesso;
quando ela faz do filho o seu ídolo, quando exagera e alimenta a fra­
queza dele, para o impedir de a sentir, e quando - esperando sub­
traí-lo às leis da natureza- dele afasta os golpes dolorosos, sem
pensar que, através de algumas incomodidades de que, momenta­
neamente, o preserva, está a acumular, ao longe, acidentes e pe­
rigos que acabarão por cair sobre a cabeça dattriança, e que é mui­
to bárbara a precaução de prolongar a fraqueza da infância sob os
cansaços dos homens feitos. Tétis, para tornar o filho invulnerável,
mergulhou-{)- diz o mito - nas águas do Styx. Esta alegoria é
bela e clara. As mães cruéis de que estou a falar procedem diferen­
temente: à custa de mergulharem os filhos na moleza, prepa­
ram-nos para o sofrimento; abrem-lhes os poros para os males de
todas as espécies, de que eles não deixarão de vir a ser presas,
quando adultos.
Observai a natureza e segui o caminho que ela vos indica. Ela
exerce continuamente as crianças; endurece-lhes o temperamen-
to, com provações de todas as espécies; muito cedo lhes ensina o
que é a mágoa e a dor. Os dentes que rompem dão-lhes febre; có­
licas agudas dão-lhes convulsões; prolongados ataques de tosse 2 7
sufocam-nas; os vermes atormentam-nas; a pletora corrompe­
-lhes o sangue; os diversos germes fermentam e causam-lhes
erupções perigosas. Quase toda a primeira idade é doença e perigo:
a metade das crianças que nascem morre antes de atingir oito anos
de idade. Passadas as provações, a criança adquiriu forças; e, logo
que pode usar a vida, os seus primeiros passos são mais seguros.
E esta a lei da natureza. Por que a contrariais? Não vedes que,
pensando corrigi-la, destruís a sua obra, impedis que se exerça o
efeito dos seus cuidados? Fazer, exteriormente, o que ela faz no in­
terior é, segundo pensais, redobrar o perigo; e, o contrário, é fazer
diversão, é extenuá-la. A experiência ainda nos ensina que mor­
rem muitas mais crianças tratadas delicadamente que as outras.
Desde o momento em que não se ultrapassem as medidas das suas
forças, é menos arriscado utilizá-lasque poupá-las. Exercitai-as,
por conseguinte, preparando-as para os ataques com que, um dia,
elas terão de se defrontar. Enrijecei-lhes os corpos fazendo-os su­
portar as intempéries das estações, dos climas, dos elementos, da
fome, da sede, do cansaço; mergulhai-as nas águas do Styx. Antes
de o hábito do corpo ter sido adquirido, dá-se-lhes o que se quer,
sem perigo; mas, uma vez que está na sua consistência, toda e qual­
quer alteração se torna perigosa para ela. Uma criança é capaz de
suportar mudanças que um homem não suportaria: as fibras da
primeira, moles e flexíveis, facilmente adquirem a prega que se
lhes dá; as do homem, mais rijas, só atr,avés da violência consegui­
rão modificar a prega que receberam. E, pois, possível tornar uma
criança robusta sem arriscar nem a sua vida nem a sua saúde; e,
mesmo que houvesse algum risco a correr, não se deveria hesitar.
Já que são riscos inseparáveis da vida humana, que coisa melhor
se poderá fazer do que antecipá-los, para a época em que são me­
nos desvantajosos?
A criança vai-se tornando mais e mais preciosa à medida que
os anos passam. Ao valor da sua pessoa, acrescenta-se o dos cui­
dados que lhe foram dispens�dos; à perda da sua vida, junta-se,
nele, o sentimento da morte. E, pois, no futuro que se deve pensar,
quando se vela pela sua conservação; é contra os males da juven­
tude que ela deve ser armada, antes que lá chegue: pois que, se o
preço da vida aumenta até à idade de a tornar útil, como seria lou­
cura poupar alguns males à infância, multiplicando-os na idade
da razão!? Serão essas as lições do mestre?
O destino do homem é sotyer em todas as épocas: O próprio
cuidado da sua conservação está ligado ao sofrimento. E grande fe­
licidade só ter conhecido, durante a sua infância, os sofrimentos fí­
sicos - sofrimentos muito menos cruéis, muito menos dolorosos
que os outros e que, muito mais raramente que eles, nos fazem re­
nunciar à vida! Ninguém se mata por causa das dores da gota; só
2 8 as da alma provocam o desespero. Lamentamos a vida da infância,
quando é anossa que deveríamos lamentar.- Os nossos maiores so­
frimentos vêm-nos de nós próprios.
Ao nascer, uma criança grita; a sua primeira infância passa-se
a chorar. De vez em quando, alguém a embala ou a acaricia, para
que se cale. Ou fazemos o que lhe agrada ou exigimos dela o que nos
agrada a nós; ou nos submetemos às suas fantasias, ou submete­
mo-la às nossas: não há meio-termo, é necessário que ela dê or­
dens ou que as receba. Assim, as suas primel.ras impressões são de
domínio e de servidão. Antes de saber falar, já comanda, antes de
poder agir, obedece; e, por vezes, é castigada antes mesmo de com­
r,reender as suas faltas, ou, por outra, antes de as poder cometer.
E desta maneira que, muito cedo, se vertem no seu coraçãozinho
as paixões que, em seguida, se atribuem à natureza, e que, depois
de tantos esforços para a tornarem má, ainda se queixam por ela
o ser.
Uma criança passa seis ou sete anos desta maneira, entre as
mãos das mulheres, vítima dos caprichos delas e do seu; e, depois
de a terem obrigado a aprender isto e aquilo, quero dizer, depois de
lhe terem enchido a memória, com palavras que ela não pode com­
preender ou com coisas que não lhe servem para nada; depois de
terem abafado o seu n atural com paixões a que deram origem, de­
põe--s e esse ser artificial nas mãos de um perceptor que acaba de
desenvolver os germes artificiais que já encontra formados, e lhe
ensina tudo, excepto a conhecer-se a si mesma, a tirar partido de
si própria, a saber viver e a tornar-se feliz. Por fim, quando adul­
ta, essa criança, escrava e tirana, cheia de ciência e desprovida de
sentidos, tão débil de corpo como de alma é lançada no mundo e
,

mostra a sua incapacidade, a sua vaidade e todos os seus vícios, le­


va a deplorar a miséria e a perversidade humanas. Enganam-se;
esse é o produto das nossas fantasias: o da natureza é feito de ou­
tra maneira.
, Então, se quereis que ela conserve a sua forma original, preser-
vai-lha desde que ela vem ao mundo. Logo que nasça, apoderai­
-vos dela, e não a deixeis até ela ser adulta: se assim não fizerdes,
nunca o conseguireis. Assim como a verdadeira nutriz é a mãe, o
verdadeiro perceptor é o pai. Que eles acordem, entre si, as respec­
tivas funções, tal como o sistema que empregarão; que, das mãos
da mãe, a criança passe para as do pai. Será mais bem educada por
um pai judicioso e pouco inteligente que pelo mais hábil mestre do
mundo; porque o zelo compensa mais o talento que o talento o zelo.
Mas os negócios, as funções, as obrigações . . Ai! Os deveres.
.

sem dúvida que o último é o do pai1 ! Não nos admiremos de que um

1 Quando lemos, em Plutarco, que Catão, o censor - que governou


Roma com tanta glória -educou pessoalmente o filho desde que este nas- 2 9
homem cuja esposa tenha recusado amamentar o fruto da sua
união, se recuse a educá-lo. Não existe quadro mais encantador
que o da família; mas um único traço que lhe falte desfigura todos
os outros. Se a mãe tem uma saúde fraca de mais para poder ama­
mentar o filho, o pai terá demasiados negócios a tratar para poder
ser perceptor. Os filhos, afastados, espalhados pelos internatos.,
pelos conventos, em colégios, levarão para outros lugares o amor
da casa paterna, ou, para melhor dizer, levarão consigo o hábito de
não estarem apegados a nada. Os irmãos e as irmãs mal se conhe­
cerão. Quando todos se reunirem para alguma cerimónia, poderão
mostrar-se muito cerimoniosos entre si; tratar-se-ãocomo se fos­
sem estranhos. Desde que deixa de haver intimidade entre os pais,
desde que a reunião da família não constitui a doçura da vida,
recorre-se aos maus costumes, para compensar essa carência.
Onde está o homem tão estúpido que não vej a o encadeamento de
tudo isto?
Um pai, ao engendrar e alimentar os filhos, executa apenas
uma terça parte da sua obrigação. Ele deve homens à sua espécie,
deve homens sociáveis à sociedade, e deve cidadãos ao Estado. Ca­
da homem que tem a possibilidade de pagar esta tripla dívida e não
o faz é culpado- e talvez ainda mais culpado quando só a paga em
parte. Aquele que não pode cumprir os seus deveres de pai não tem
o direito de o ser. Não há pobreza, nem trabalhos, nem respeito h u­
mano que o dispensem de alimentar os filhos e de os educar pes­
soalmente. Leitores, podeis crer no que vos digo. Predigo a todos os
que têm entranhas e negligenciam tão santos deveres que, duran­
te muito tempo, verterão sobre a sua falta amargas l ágrimas e
nunca serão consolados.
Mas que faz esse homem rico, esse pai de família tão atarefa­
do, e obrigado - pelo que diz - a deixar os filhos ao abandono?
Paga a outro homem para desempenhar os deveres que tem a seu
cargo. Alma venal! Crês dar outro pai ao teu filho, pagando com o
teu dinheiro? Não te enganes; não é sequer um mestre que lhe dás,
é um lacaio que, muito rapidamente, formará um segundo.
Fala-se muito sobre as qualidades de um bom governante. A
mais importante que eu exigiria dele -e essa, só por si, supõem ui-

ceu, e com tal cuidado que abandonava tudo para estar presente quando
a nutriz, isto é, a mãe, lhe mexia ou o lavava; quando lemos, em Suetónio,
que Augusto - dono do mundo que conquistara e sobre o qual imperava
- foi quem ensinou os seus netos a escrever, a nadar, os elementos das
ciências, e que os tinha constantemente à sua volta, não podemos deixar
de troçar dos homens daquele tempo, que se distraíam com semelhantes
ninharias; excessivamente limitados, sem dúvida, para se poderem dedi-
30 car aos grandes negócios dos grandes homens do nosso tempo!
tas outras -seria que não fosse um homem à venda. Há ofícios tão
nobres que um homem não pode desempenhar por dinheiro sem se
mostrar indigno de os desempenhar; por exemplo, o de guerreiro;
por exemplo, o de perceptor. Então quem educará o meu filho? Já
to disse: tu próprio. Não posso. Não podes?... Faz dele um amigo.
Não vejo outra soluçãp.
Um governante! O que alma sublime!... Na verdade, para fa­
zer um homem, é necessário ser-se o próprio pai ou um homem que
seja mais que homem. E é essa a função que confiais despreocupa­
damente a alguns mercenários.
Quanto mais se pensa nisso mais se vêem novas dificuldades.
Seria necessário que o governante tivesse sido educado para o seu
pupilo, que os criados tivessem sido educados para o seu amo, que
todos aqueles que dele se aproximam tivessem recebido as impres­
sões que lhe devem comunicar; seria necessário, de educação em
educação, volver atrás, não se sabe até aonde. Como é possível que
uma criança seja bem educada por alguém que não tenha recebi­
do uma boa educação?
Esse raro mortal será impossível de encontrar? Ignoro-o. Nes­
ta época de aviltamento, quem sabe até que ponto a virtude ainda
consegue atingir uma al;na humana? Mas suponhamos que esse
prodígio foi encontrado. E considerando o que deverá fazer que ve­
remos o que ele deve ser. O que creio ver de antemão é que um pai
que sentisse todo o valor de um bom governante tomaria o parti­
do de não o contratar; pois teria mais trabalho para o adquirir que
para se tornar governante, ele próprio. Quererá ele, então, fazer
um amigo? Que eduque o próprio filho, pará. o ter; ei-lo dispensa­
do de o procurar alhures, e a natureza já fez metade do trabalho.
Alguém de quem só conheço a categoriamandoú-me pedir que
lhe educasse o filho. Honrou-me muito, certamente; mas, longe de
se queixar da minha recusa, deverá apreciar a minha discrição. Se
eu tivesse aceitado a sua proposta, e me tivesse enganado com o
meu método, teria sido uma educação falhada; se a tivesse levado
a bom cabo, teria sido pior; o filho teria renegado o seu título, te­
ria deixado de querer ser príncipe.
Estou demasiadamente compenetrado da importância dos de­
veres de um perceptor, e sinto-me absolutamente incapaz de, al­
guma vez, vir a aceitar um tal cargo, seja quem for que mo propu­
ser; e, para mim, até a vantagem da amizade apenas seria mais um
motivo de recusa. Creio que, depois de lerem este livro, poucas pes­
soas se sentirão tentadas a fazer-me essa proposta; e peço àque­
las que o pudessem estar que não se dêem a esse inútil trabalho.
Em tempos, fiz uma experiência desse ofício, que foi suficiente pa-
ra me deixar com a certeza de que não sou indicado para ele, e o
meu estado dispensar-me-ia de o exercer, mesmo que os meus ta­
lentos me tornassem capaz. Cri dever esta explicação pública a to- 3 1
dos aqueles que parecem não me conceder suficiente estima para
me crerem sincero e bem determinado nas minhas resoluções.
Incapacitado de desempenhar a tarefa mais útil, ousarei, pelo
menos, tentar a mais fácil: a exemplo de tantos outros, não porei
mãos à obra, mas à pena; e, em vez de fazer o que é preciso, esfor­
çar-me-€i por dizê-lo.
Sei que, nos empreendimentos semelhantes a este, o autor,
sempre à vontade em sistemas que se dispensa de pôr em prática,
facilmente cita muitos e belos preceitos impossíveis de seguir e
que, por falta de pormenores e de exemplos, o que ele diz - mes­
mo se praticável - não é seguido quando ele nem sequer mostra
a sua aplicação.
Por isso, tomei o partido de me atribuir um pupilo imaginário,
de me supor a idade, a saúde, os conhecimentos e todos os talen­
tos convenientes para trabalhar na sua educação, para a conduzir
desde o momento em que ele nasce até ao que, chegado a homem,
ele passe a ser o seu próprio guia. Este método parece-me útil pa­
ra impedir um autor que não confia em si mesmo de se perder em
visões; porque, como se afasta da prática comum, só lhe resta fa­
zer a experiência da sua no seu pupilo, e, em breve, sentirá - ou
o leitor senti-lo-á por ele - se segue, ou não, o progresso da infân­
cia e o caminho natural para o coração humano.
Eis o que procurei fazer, em todas as dificuldades que se me
apresentaram. Para não engrossar inutilmente o livro, contentei­
-me em explicar os princípios cuja verdade todos deviam sentir.
Mas, quanto às regras que poderiam necessitar de provas, apli­
quei as todas ao meu Emílio, ou a outros exemplos, e mostrei ­
-

com pormenores muito minuciosos -como o que eu estabelecia po­


dia ser praticado; é este, pelo menos, o plano que me propus seguir.
Ao leitor compete julgar se o consegui ou não.
Foi por esta razão que comecei por falar pouco de Emílio, pois
as minhas primeiras máximas de educação, embora contrárias às
que estão estabelecidas, são de uma evidência que todos os homens
razoáveis dificilmente podem negar. Mas, à medida que avanço, o
meu pupilo - educado de uma maneira bem diferente dos vossos
- deixa de ser uma criança vulgar. A partir daí, aparece m ais fre­
quentemente em cena, e nos últimos tempos já não o perco de vis­
ta nem por um momento, até que, diga ele o que disser, não tenha
a mais ínfima precisão de mim.
Não me refiro, aqui, às qualidades de um bom governante; su­
ponho-as, e suponho-me a mim próprio dotado de todas elas. Ao
lerdes esta obra, vereis quanta liberalidade me atribuo à mim mes­
mo.
Limitar-me-€i a notar que, contrariamente à opinião vulgar,
o perceptor de uma criança deve ser jovem, e mesmo tão jovem
3 2 quanto o pode ser um homem sage. Gostaria que ele próprio fosse
uma criança, e que, se possível, se pudesse tornar no companhei­
ro do seu pupilo e conquistar a confiança deste compartilhando as
suas distracções. Não há suficientes coisas em comum, entre a in­
fância e a idade madura, para que se possa formar uma amizade
muito sólida, a essa distância. Por vezes, as crianças lisongeiam os
velhos; mas nunca gostam deles.
, Preferir-se-ia que o governantejá tivesse feitouma educação.
E um exagero; o mesmo homem só pode fazer uma: se, para obter
êxito, lhe fossem precisas duas, com que direito teria empreendi­
do a primeira?
Com mais experiência, saber-se-ia fazer melhor, mas já isso
não lhe seria possível. Seja quem for que tenha desempenhado es­
sas funções uma vez-bastante bem para lhes sentir todas as di­
ficuldades-não volta a querer desempenhá-las; e, se a desempe­
nhou mal da primeira vez, isso é um mau precedente para a segun­
da.
Mas há uma grande diferença, concordo, entre seguir um ra­
paz durante quatroanosou guiá-lo durante vinte e cinco. Vós dais
um governante ao vosso filho quejá está completamente formado;
e eu, eu quero que ele já tenha um, mesmo antes de nascer. O vos­
so homem pode mudar de pupilo, de lustro em lustro; o meu só po­
derá encarregar-se de um. Vós distinguis o preceptor do governan •

te: outra loucura! Distinguis o discípulo do aluno? Há apenas uma


ciência para ensinar às crianças: é a dos deveres do homem. Esta
ciência é una; e, apesar do que Xenofonte disse sobre a educação
dos Persas, não se divide. De resto, designo como governante e não
como perceptor o mestre dessa ciência, porque para ele trata-se
menos de instruir que de dirigir. Não deve dar preceitos: deve le­
var o seu pupilo a encontrá-los.
Embora seja necessário escolher tão cuidadosamente o gover­
nante, a este também lhe é permitido escolher o pupilo, sobretudo
quando se trata de um modelo a propor. Esta escolha não pode re­
cair nem sobre o génio nem sobre o carácter da criança, que só se
conhece no fim do trabalho, e que adopto antes de ele ter nascido.
Se pudesse escolher, só aceitaria um espírito comum, tal como ima­
gino o meu pupilo. Só os homens vulgares precisam de ser edu­
cados; a sua educação é a única coisa que deve servir de exemplo
à dos seus semelhantes. Os outros educam-se, mesmo sem darem
por isso.
As regiões não são indiferentes à cultura dos homens; estes só
nos climas temperados são tudo quanto podem ser. Nos climas ex­
tremos, a desvantagem é visível. Um homem não é plan tado, como
uma árvore, numa determinada região, a fim de lá ficar para sem­
pre; e aquele que parte de um dos extremos para chegar ao outro
é obrigado a percorrer o dobro do caminho que levaria outro que
partisse do termo médio entre os dois. 33

L. B. S23 - 3
Quando o habitante de uma região temperada percorre, suces­
sivamente, os caminhos que o levam a um e a outro extremo, a sua
vantagem continua a ser evidente; pois, apesar de ficar tão modi­
ficado como aquele qtie vai de um extremo ao outro, o afastamen­
to da sua constituição natural é apenas metade daquele. Um fran­
cês pode viver na Guiné e na Lapónia; mas um negro não viverá da
mesma maneira em Tornea, nem um samoiedo no Benin. Também
parece que a organização do cérebro é menos perfeita nos dois ex­
tremos. Nem os negros nem os lapões vêem as coisas da mesma
maneira que os europeus. Por conseguinte, se eu quiser que o meu
pupilo possa ser habitante da Terra, tomá-lo-ei numa zona tem­
perada; em França, por exemplo, de preferência a qualquer outra
parte do mundo.
No Norte, os homens trabalham muito, num solo ingrato, en­
quanto no sul trabalham pouco, num solo fértil: daí, origina-se
uma nova diferença que torna os primeiros laboriosos e os segun­
dos contemplativos. A sociedade apresenta-nos, simultaneamen­
te, a imagem dessas diferenças entre os pobres e os ricos: aqueles
habitam no solo ingrato enquanto estes vivem no solo fértil.
O pobre não precisa de receber educação; a da sua condição é
forçada, não poderia ter outra; pelo contrário, a educação que o ri­
co recebe da sua condição é a que menos convém, tanto a ele como
à sociedade. Aliás, a educação natural deve preparar um homem
para todas as condições humanas: ora, é menos razoável educar
um pobre para ser rico que um rico para ser pobre; porque, em
proporção ao número das duas condições, há mais arruinados que
novos-ricos. Escolhamos, pois, um rico; pelo menos, teremos a cer­
teza de ter feito mais um homem, ao passo que um pobre pode tor­
nar-se homem por si mesmo.
Pela mesma razão, não vejo inconveniente nenhum em que
Emílio seja de bom nascimento. Sempre será uma vítima arranca­
da ao preconceito.
Emílio é órfão. Não interessa que tenha pai e mãe. Encarrega­
do de os substituir nos seus deveres, adquiro todos os sel!s direitos.
Deve honrar os pais; mas só a mim deverá obedecer. E a minha
principal, ou antés, a minha única condição.
Aesta, ainda devo acrescentar, o quenão é uma, quenuncanos
separarão um do outro sem o nosso consentimento. Esta cláusula
é essencial, e desejaria até que o pupilo e o governante se conside­
rassem tão inseparáveis que o destino dos seus dias constituísse,
sempre, para eles, um assunto de interesse comum. Logo que en­
carassem a sua futura separação, logo que previssem o momento
em que se tornariam estranhos um para o outro, já o seriam: cada
um estabeleceria o seu sistema à parte, e os dois, pensando no mo­
mento em que deixariam de estar juntos, só contrafeitos se man-
34 teriam nesse estado; o discípulo só consideraria o mestre como o
atributo e o flagelo da infância, enquanto o mestre veria o discípu­
lo como um pesado fardo de que ansiaria por desembaraçar-se;
ambos ansiariam pelo momento de se verem livres um do outro; e
como, entre eles, nunca haveria um verdadeiro afecto, um deveria
usar de pouca vigilância e o outro de pouca docilidade.
Mas, quando se consideram como devendo passar os dias jun­
tos, interessa-lhes fazerem-se amar um pelo outro; e, por isso
mesmo, tornam-se amigos. O pupilo não se envergonha de seguir,
durante a infância, o amigo que terá quando for adulto; o gover­
nante interessa-se pelos cuidados cujo fruto irá recolher, e todo o
mérito que atribui ao seu pupilo é um capital que investe em pro­
veito dos seus velhos dias.
Este tratado concluído de antemão supõe um parto feliz, uma
criança bem formada, vigorosa e sã. Um pai não pode escolher e
não deverá ter preferências na família que Deus lhe dá: todos os
seus filhos são, igualmente, seus filhos; deve, a todos eles, os mes­
J_TIOS cuidados e a mesma ternura. Quer s�am estropiados ou não,
quer sejam débeis ou robustos, cada um deles constitui um depó­
sito de que ele tem de prestar contas à mão que lho entregou, e o
casamento é um contrato feito com a natureza, da mesma manei­
ra que entre os cônjuges.
Mas, seja quem for que se imponha um dever que a natureza
não lhe impôs, deve previamente assegurar-se dos meios de o cum­
prir; de outro modo, ele próprio se torna responsável pelo que não
conseguiu fazer. Aquele que se encarrega de um pupilo débil e
doentio transforma as suas funções de governante nas de en­
fermeiro; perde, para cuidar de uma vida inútil, o tempo que des­
tinava a aumentar-lhe o valor; expõe-se a que, um dia, uma mãe
chorosa o venha censurar pela morte de um filho que ele durante
muito tempo lhe conservou.
Nunca me encarregaria de uma criança doentia e cacoquima,
mesmo que ela estivesse destinada a viver oitenta anos. Não que­
ro um pupilo constantemente inútil para si mesmo e para os ou­
tros, cujo único interesse é conservar-se e cujo corpo perturba a
educação da alma. Que outra coisa faria eu - ao prodigar-lhe em
vão os meus cuidados - que não fosse o duplicar a perda sofrida
pela sociedade, retirando-lhe dois homens por causa de um? Que
outro, na minha falta, se encarregue desse enfermo, consinto, e até
aprovo a sua caridade; mas o meu talento não é esse: não sou ca­
paz Çe ensinar a viver quem só pensa em impedir-se de morrer.
E preciso que o corpo tenha vigor, para obedecer à alma: um
bom servidor deve ser robusto. Sei que a intemperância excita as
paixões; mas, com a continuação, também extenua o corpo; as ma­
cerações e osjejuns produzem, muitas vezes, o mesmo efeito atra­
vés de uma causa oposta. Quanto mais fraco é o corpo, mais ele co­
manda; quanto mais forte ele é, mais obedece. Todas as paixões 3 s
sensuais estão alojadas em corpos efeminados; e exacerbam-se
tanto mais quanto são poucas as possibilidades de as satisfazer.
Um corpo débil enfraquece a alma. Daí o poder da medicina, ar­
te mais perniciosa para os homens que todos os males que preten­
de curar. Por mim, não sei de que doença nos curam os médicos,
mas sei que nos transmitem algumas bem funestas: a cobardia, a
tibieza, a credulidade, o terror da morte: se curam o corpo, matam
a coragem. Que nos interessa que mantenham vivos os cadáveres?
Aquilo de que precisamos são homens, e não os vemos sair das
mãos deles.
Entre nós, a medicina está na moda; deve estar. É a distracção
das pessoas ociosas, que não têm mais nada a fazer e que, não
sabendo como utilizar o seu tempo, o passam a conservar-se. Se ti­
vessem tido a infelicidade de nascer imortais, seriam os mais mi­
seráveis dos seres humanos: uma vida que nunca receariam per­
der não teria interesse nenhum, para elas. Para agradar a essas
pessoas, são precisos médicos que as amem e que todos os dias lhes
proporcionem o único prazer de que elas são susceptíveis: o de não
estarem mortas.
Não tenho intenção nenhuma de aqui fazer uma dissertação
sobre a vaidade da medicina. A minha intenção é apenas de a con­
siderar pelo lado moral. No entanto, não me posso impedir de.ob­
servar que os homens fazem, sobre a sua utilização, os mesmos so­
fismas que sobre a busca da verdade. Supõem sempre que tratan­
do um doente o curam e que procurando uma verdade a encontram.
Não vêem que é necessário contrabalançar o benefício de uma cu­
ra que o médico opera com a morte de cem doentes que ele matou,
e a utilidade de uma verdade descoberta com o mal que fazem os
erros que lhe passam ao lado. A ciência que instrui e a medicina
que cura são muito boas, certamente; mas a ciência que engana �
a medicina que mata são más. Aprendam, pois, a distingui-las. E
este o problema da questão. Se soubéssemos ignorar a verdade,
nunca seríamos enganados pela mentira; se soubéssemos não que­
rer curar contra a natureza, nunca morreríamos pelas mãos de um
m édico: estas duas abstinências seriam sensatas; é evidente que
só teríamos a ganhar, se nos submetêssemos a elas. Não pretendo
dizer que a medicina não seja útil a alguns homens, mas digo que
ela é funesta para o género humano.
Dir-me-ão - como incessantemente o fazem - que os erros
é o médico que os comete, mas que a medicina, por si mesma, é in­
falível. Muito bem! Mas que ela actue sem médico; pois que, se vie­
rem juntos, haverá cem vezes mais razões para recear os erros do
artista que para esperar o socorro da arte.
Essa arte enganadora, mais feita parao·s males doespíritoque
para os do corpo, não é mais útil para os primeiros que para os se-
3 6 gundos: a cura das nossas doenças é menos importante que o ter-
ror que nos infunde; de antemão, mais nos faz sentir a morte que
o seu afastamento; usa a vida, em vez de a prolongar; e, mesmo que
a prolongasse, issofar-se-ia ainda em detrimento da espécie, pois
que nos arranca à sociedade pelos cuidados que, nos impõe, e aos
nossos deveres pelos temores que nos infunde. E o conhecimento
dos perigos que no-los faz recear: aquele que se supusesse invul­
nerável não teria medo de nada. Ao insistir em armar Aquiles con­
tra o perigo, o poeta retira-lhe o mérito da coragem; no seu lugar,
qualquer outro teria sido um Aquiles, pelo mesmo preço.
Quereis encontrar homens com uma verdadeira coragem?
Procurai-<>s nos lugares onde não há médicos, onde se ignoram as
consequências das doenças e onde não se pensa na morte. Com na­
turalidade, o homem sabe sofrer constantemente e morrerempaz.
São os médicos, com as suas prescrições, os filósofos com os seus
preceitos, os sacerdotes com as suas exortações que lhe aviltam o
coração e lhe desensinam a morrer.
Que me dêem um pupilo que não tenha necessidade de todas
essas pessoas, caso contrário recusO-<>. Não quero que outros ve­
nham estragar o meu trabalho; quero ou educá-lo sozinho ou não
me ocupar da sua educação. O sage Locke, que passou uma parte
da sua vida a estudar a medicina, recomenda, muito especialmen­
te, que nunca se administrem drogas às crianças, nem como pre­
caução nem como alívio para ligeiras incomodidades. Irei mesmo
mais longe, e declaro que, nunca chamando médicos para mim,
nunca os chamarei para o meu Emílio, a n ão serque a suavida cor­
ra perigo evidente; pois que, nesse caso, não lhe poderá fazer ou­
tro mal que matá-lo.
Sei muito bem que o médico nunca deixará de tirar vantagem
dessa confiança: se a criança morre, será porque o chamaram tar­
de demais; se escapa, foi ele que o salvou. Seja: que o médico triun­
fe; mas, sobretudo, que só seja feito apelo a ele em último caso.
Já que não se sabe curar, que a criança saiba estar doente: es­
ta arte compensa a outra e, frequentemente, dá resultados muito
melhores; é a arte da natureza. Quando o animal está doente so­
fre em silêncio e conserva-se quieto: ora, não se vêem mais ani­
mais enfraquecidos que homens nesse mesmo estado. Quantas
pessoas a impaciência, o receio, a preocupação e, sobretudo, os re­
médios, m ataram, pessoas essas cuja doença as teria poupado e a
quem teria bastado o tempo para as curar, sem mais problemas!?
Dir-me-eis que os animais, vivendo de umamaneira mais em con­
formidade com a natureza, devem estar sujeitos a menos doenças
que nós. Pois bem! Essa maneira de viver é precisamente a que
quero dar ao meu pupilo; por conseguinte, ele deverá retirar dela
o mesmo proveito.
A única parte da medicina que tem alguma utilidade é a higie-
ne; mas a higiene é menos uma ciência que uma virtude. A tempe- 3 7
rança e o trabalho são os dois verdadeiros médicos do homem: o
trabalho aguça-lhe o apetite e a temperança impede-o de abusar
dele.
Para saber qual o regime mais útil para a vida e a saúde, bas­
ta saber o regime que observam os povos mais saudáveis, mais ro­
bustos e que vivem mais tempo. Como, pelas observações gerais,
não se depreende que a utilização da medicina dê aos homens uma
saúde mais resistente ou uma vida mais longa, exactamente por
essa arte não ser útil, é nociva, pois desperdiça o tempo, os homens
e as coisas, em pura perda. Não só o tempo que se passa a conser­
var u vida fica perdido por ter sido utilizado, como se deve deduzir
daquela; mas, quan do esse tempo é utilizado para nos atormentar,
é pior que nulo, é negativo; e, para calcular com justiça, devemos
deduzi-lo daquele que nos resta para viver. Um homem que viva
dez anos sem médicos vive mais para si mesmo e para os outros que
aquele que vive trinta anos vítima deles. Tendo feito ambas as ex­
periências, creio-me, mais do que ninguém, com o direito de, daí,
retirar a conclusão.
Aqui ficaram as minhas razões para só aceitar um pupilo ro­
busto e são, e os meus princípios para o manter nesse estado. Não
me deterei a provar a utilidade dos trabalhos manuais e dos exer­
cícios do corpo, parafortalecer o temperamento e a saúde; é um as­
sunto em que todos estão de acordo: os exemplos das vidas mais
longas vêm-nos, quase todos, dos homens que mais exercícios fi­
zeram, que mais cansaços e trabalhos suportaram 1• Também não
me deterei a dar os prolongados pormenores sobre os cuidados que
dedicarei a este assunto; vereis que eles são tão indispensáveis à
minha prática que basta adquirir-lhes o espírito para dispensar
outras explicações.
Com a vida, começam as necessidades. Ao recém-nascido, é­
-lhe necessária uma ama. Se a mãe consente em cumprir o seu de­
ver, muito bem: dão-se-lhe as explicações por escrito; porque es­
ta vantagem tem o seu inconveniente que é o de manter o gover­
nante um pouco afastado do pupilo. Mas é de crer que o interesse
da criança e a estima por aquele a quem quer confiar um depósi­
to tão querido, tornarão a mãe atenta aos conselhos do mestre; e

1 Eis um exemplo tirado das notícias inglesas, ao qual não posso dei­
xar de me referir, tantas as reflexões que ele leva a fazer, relacionadas com
o meu assunto.
<<Um particular, chamado Patrice Oneil, nascido em 1647, acaba de se
casar, em 1760, pela sétima vez. Serviu nos dragões durante o décimo sé­
timo ano do reinado de Carlos II, e nos diferentes regimentos, até 1740,
quando obteve o seu despedimento. Fez todas as campanhas do rei Gui-
38 lherme e do duque de Marlborough. Este homem nunca bebeu outra coi-
tudo o que ela quiser fazer, tem-se a certeza de que o fará melhor
que outra. Se precisarmos de uma ama desconhecida, comecemos
por escolhê-la bem.
Uma das misérias das pessoas ricas é serem enganadas em tu­
do. Se têm má opinião dos homens, de que nos admiraríamos? São
as riquezas que os corrompem; e, através de um justo equilíbrio,
elas são as primeiras a sentir o inconveniente da única coisa que
conhecem. Tudo é mal feito, nessas casas, excepto o que elas pró­
prias fazem; e é raro que façam alguma coisa em casa. Quando se
trata de procurar uma ama, pedem ao médico parteiro que a
escolha. Quais são as consequências disso? Que a melhor é sempre
aquela que melhor lhe pagou. Por conseguinte, não irei consultar
um parteiro para escolher a ama de Emílio; terei o cuidado de a es­
colher pessoalmente. Talvez, sobre esse assunto, eu não raciocine
tão bem como o faria um cirurgião, mas certamente que serei mais
honesto e o meu zelo enganar-me-á menos que a cobiça dele.
Esta escolha não é um mistério muito complicado; as regras
são conhecidas; mas não sei se não seria conveniente prestar um
pouco mais de atenção à idade do leite assim como à sua qualida­
de. O leite novo é completamente seroso, quase deve ser aperitivo
para purgar o resto do mecónio adensado que se encontra nos
intestinos da criança que acaba de nascer. Pouco a pouco, o leite
adquire consistência e fornece uma alimentação mais sólida à
criança que se tornou mais forte para a digerir. Não é por acaso,
certamente, que, nas fêmeas de todas as espécies, a natureza re­
força a consistência do leite consoante a idade do lactente.
Por conseguinte, seria preciso uma ama acabada de parir, para
uma criança acabada de nascer. Isso apresenta uma certa dificul­
dade, bem sei; mas, desde que se sai da ordem natural das coisas,
tudo tem as suas dificuldades para ficar bem feito. O único expe­
diente cómodo é fazer mal; também é aquele que se escolhe.
Seria preciso encontrar uma ama tão sã de espírito como de
corpo: a intem périe das paixões pode - como a dos humores - al­
terar-lhe o leite; além disso, preocuparmo-nos unicamente com o
físico é tratar apenas de metade do assunto. O leite pode ser bom
e a ama má; um bom carácter é tão essencial como um bom tem-

sa além da cerveja vulgar; alimentou-se sempre de vegetais e, quanto à


carne, só a comeu nalgumas refeições especiais, com a família. O seu há­
bito foi sempre levantar-se e deitar-se com o sol, a menos que os seus de­
veres o impedissem de o fazer. Actualmente, encontra-se no seu centési­
mo décimo terceiro ano de vida, ouvindo bem, gozando de boa saúde e an­
dando sem bengala. Apesar da sua avançada idade, não permanece nem
um momento ocioso; e todos os domingos vai à missa da sua paróquia,
acompanhado pelos filhos, netos e bisnetos.» 39
'peramento. Se escolhermos uma mulher viciosa, não digo que o
lactente contraia os seus vícios, mas digo que sofrerá por causa
deles. Não lhe deve ela, além do seu leite, dedicar cuidados que exi­
gem zelo; paciência, doçura, higiene? Se ela for gulosa, intempe­
rante, em breve estragará o seu leite; se for negligente ou irritável,
que acontecerá, quando entregue a ela, a um pobre infeliz que não
sepode defender nem queixar? Nunca, sejano que for, os maus ser­
virão para nada de bom.
A escolha da ama é tanto mais importante quanto o lactente
não deverá ter outra governanta além dela, como não deverá ter
outro perceptorque não seja o seu governante. Este costume é o dos
antigos, menos complicados e mais sensatos que nós. Depois de te­
rem nutrido crianças do seu sexo, as amas nunca mais as deixa­
vam. Eis por que motivo, nas antigas peças de teatro, a maioria das
confidentes são amas. É impossível que uma criança que passa su­
cessivamente por tantas mãos diferentes venha a ser bem educa­
da. A cada mudança, faz secretas comparações que tendem sempre
a diminuir a sua estima pelos que a governam e, consequentemen­
te, a autoridade destes sobre ela. Se alguma vez chegar a pensar
que há adultos que não têm mais raciocínio que cri anças, toda a au­
toridade da idade será perdida e a educação falhada. Uma crian­
ça não deve conhecer outros superiores além do pai e da mãe, ou,
na falta destes, a ama e o governante; e, mesmo assim, um destes
dois está a mais; mas esta comparticipação é inevitável; e tudo
quanto se pode fazer para lhe remediar é que as pessoas dos dois
sexos, que a governam, estejam tão de acordo a seu respeito, que
apet:as sejam consideradas como uma, por ela.
E necessário que a ama viva um pouco mais comodamente, que
coma alimentos um pouco mais substanciais, mas não que mude
completamente a maneira de viver; porque uma mudança rápida
e total, mesmo de mal para melhor, é sempre perigosa para a saú­
de; e, pois o seu regime habitual a deixou ou tornou sã e bem cons­
tituída, para quê modificá-lo?
As camponesas comem menos carne e mais legumes que as
mulheres da cidade; e este regime vegetal parece mais favorável
que contrário, tanto para elas como para os seus filhos. Quando
têm lactentes burgueses, dão-se-lhes cozidos, convencidos de que
a sopa e o caldo de carne lhes fazem um quilo melhor e fornecem
mais leite. Não estou nada de acordo com isso; e tenho a experiên­
ci a de que as crianças assim alimentadas estão mais sujeitas à cóli­
ca e aos vermes que as outras.
Isso nada tem de surpreendente, pois a substância animal em
putrefacção formiga de vermes; o mesmo não acontece com a subs-
40 tância vegetal. O leite, embora elaborado no corpo do animal, é
uma substância vegetaP ; como demonstra a sua análise, facilmen­
te se torna ácido; e, longe de dar qualquer vestígio de alcali volá­
til -como o fazem as substâncias animais-, dá, como as plantas,
um sal neutro essencial.
O leite das femeas herbívoras é mais doce e salutar que o das
carnívoras . Formado por uma substância homogénea à sua, con­
serva melhor a sua natureza e fica menos sujeito à putrefacção. No
que respeita à quantidade, todos sabemos que os farináceos fazem
mais sangue que a carne; por conseguinte, também devem fazer
mais leite. Não posso acreditar que uma criança que não seja des­
mamada cedo de mais ou que só o sej a para p assar aos alimentos
vegetais e cuja ama só se tenha àlimen tado com vegetais, possa al­
gumJ.i vez ficar sujeita aos vermes.
E possível que os alimentos vegetais dêem um leite mais fácil
de azedar; mas estou muito longe de considerar o leite azedo como
um alimento nocivo: populações inteiras, que não se alimentam
com outro, dão-se muito bem com ele, e todo esse conjunto de
absorventes parece--m e ser uma verdadeira charlatanice. Há
temperamentos aos quais o leite não não convém , e, nesse caso, ne­
nhum absorvente lhes permitirá suportá-lo; os outros suportam­
-no sem absorventes. Há quem receie o leite talhado ou coalhado:
isso é uma loucura, pois sabe-se perfeitamente que o leite acaba
sempre por coalhar no estômago. E desse modo que se torna um ali­
mento suficientemente sólido para alimentar as crianças e os filho­
tes dos animais: se não se coalhasse, limitar-se--ia a passar, não
os alimentaria2• Podeis cortar o leite de mil maneiras diferentes e
utilizar mil absorventes, po rque quem bebe leite dige re queijo; es­
ta regra não tem excepção. O estômago está tão tão bem feito pa­
ra coalhar o leite que até é com o estômago de vitela que se faz a
coalheira.
Portanto, penso que, em vez de modificar a alimentação ha­
bitual da ama, basta dar-lha em mais abundância e melhor es­
colhida na sua espécie. Não é pela natureza dos alimentos que o
[regime] magro al tera a constituição [do corpo], é unicamenteo seu
tempero que os torna nocivos. Reformai as regras da vossa cozi­
nha, não façais nem molhos espessos nem fritos; que nem a man-

1 As mulheres comem pão, legumes, lacticínios: as fêmeas dos cães


e dos gatos também assim comem; as próprias lobas pastam. Eis os sucos
vegetais para o seu leite. Falta examinar o das espécies que se alimentam
exclusivamente de carne, se é que as há: coisa de que duvido.
2 Embora os sucos que nos alimentam sejam licorosos, devem seres­
premidos de alimentos sólidos. Um homem que trabalha rapidamente en­
fraqueceria se só vivesse de caldos. Aguentar-se-ia muito melhorcomlei-
te, porque este se coalha. 41
teiga, nem o sal, nem os lacticínios passem pelo lume; que os vos­
sos legumes, simplesmente cozidos em água, só sejam temperados,
quando ainda quentes, à mesa: o [regime] magro, longe de alterar
a ama, fornecer-lhe-á leite em abundância e da melhor qualida­
de. Seria possível que, sendo o regime vegetal reconhecido como o
melhor para a criança, o regime animal fosse omelhor para a ama?
Há 11ma certa contradição nisso1 •
E sobretudo durante os primeiros anos da vida que o ar actua
sobre a constituição das crianças. Numa pele delicada e mole, ele
penetra através de todos os poros, afecta poderosamente esses cor­
pos novos, deixando-lhes impressões indeléveis. Por isso, não sou
da opinião de que se deve tirar uma camponesa da sua aldeia pa­
ra a fechar na cidade, num quarto, a fim de que a criança seja ali­
mentada na sua própria casa; prefiro que ela vá respirar os bons
ares do campo a ter de ficar a respirar o mau ar da cidade. Adop­
tará a condição da sua nova mãe, viverá na sua casa rústica e o seu
governante acompanhá-la-á. O leitor deverá recordar-se de que
este governante não é um homem assalariado; é o amigo do pai.
Mas, quando não se encontra esse amigo, quando essa transferên­
cia não é fácil, quando nada do que aconselhais é possível, que fa­
zer em vez disso?, perguntar-me-ão . . . J á vos disse: o que fazeis;
não é preciso conselho para isso.
Os homens não foram feitos para viverem amontoados em for­
migueiros, mas para se espalharem pela terra que devem cultivar.
Quanto mais se juntam mais se corrompem. As enfermidades do
corpo, assim como os vícios da alma, são o infalível efeito desse
ajuntamento excessivamente numeroso. De todos os animais, o
homem é aquele que menos pode viver em rebanhos. Se fossem
reunidos como carneiros, todos os homens morreriam rapidamen­
te. O hálito do homem é mortal para os seus semelhantes: isto não
é menos verdade no sentido próprio que no figurado.
As cidades são as cavernas da espécie humana. Ao cabo de
algumas gerações, as raças desaparecem ou degeneram ; é preciso
renová-las, e é sempre o campo que proporciona essa renovação.
Enviai, pois, os vossos filhos renovar-se, por assim dizer, eles pró­
prios, e recuperar, no campo, o vigor que se perde no ar insalubre
dos lugares excessivamente povoados. As mulheres grávidas que
vivem no campo apressam-se a ir parir na cidade: deveriam fazer
o contrário, sobretudo as que desejam amamentar os filhos. Te­
riam menos motivos, do que pensam, para se lamentarem; e, num

1 Os que quiserem discutir mais aprofundadamente as vantagens e


os inconvenientes do regime pitagórico poderão consultar os tratados que
os Drs. Cocchi e Bianchi, seus adversários, escreveram sobre este impor-
42 tante assunto.
meio mais natural para a espécie, os prazeres relacionados com os
deveres da natureza em breve lhes retirariam o gosto por aqueles
que com ela não se relacionam.
Em primeiro lugar porque, após o parto, a criança é lavada em
água morna em que, geralmente se mistura vinho. Esta adição do
vinho parece-me pouco necessária. Como a natureza não produz
nada fermentado, não é de crer que a utilização de um licor arti­
ficial influa nas vidas das suas criaturas.
Pelo mesmo motivo, essa precaução de amornar a água tam­
bém não é indispensável; e, efectivamente, um grande número de
povos lava os recém-nascidos nos rios ou no mar, sem mais compli­
cações. Mas os nossos, amolecidos antes de nascerem, pela moleza
dos pais e das mães, quando vêm ao mundo já trazem um tempe­
ramento estragado, que não deve ser imediatamente exposto a to­
das as provações que o devem restabelecer. Só por etapas poderão
recuperar o seu vigor primitivo. Cpmeçai, pois, por seguir o costu­
me, e afastai-vos dele, só a pouco e pouco. Lavai as crianças com
frequência; a sujidade delas bem demonstra essa necessidade.
Quando nos limitamos a enxugá-los, rasgamos-lhes a pele; mas,
à medida queelas seforem fortalecendo, diminuamos, grau a grau,
a temperatura da água, até que, por fim, as possamos lavar - du­
rante o Verão e o lnverno - com água fria e mesmo gelada. Como,
para não os expormos, importa que essa diminuição se faça lenta,
sucessiva e insensivelmente, poderemos utilizar um termómetro,
para a medir com exactidão.
Uma vez estabelecido, este uso do banho não deverá ser inter­
rompido, e deve ser mantido durante toda a vida. ConsiderQ--{) não
apenas do ponto de vista da higiene e da saúde actual mas também
como uma precaução salutar para aumentar a flexibilidade da tex­
tura das fibras e fazê-las ceder, sem esforço e sem perigo, às várias
temperaturas de calor e de frio. Para isso, desejaria que, à medi­
da que fossem crescendo, as crianças se habituassem, pouco a pou­
co, a banhar-se - de vez em quando - em águas quentes a todos
os graus suportáveis e - frequentemente - em águas frias, a to­
das as temperaturas possíveis. Assim, depois de se terem habitua­
do a suportar as diversas temperaturas da água - que sendo num
fluido mais denso, nos atinge em mais pontos e nos afecta mais ­
tornar-se-iam quase insensíveis às do ar.
No momento em que a criança, saindo dos seus sobrescritos,
respira, não suporteis que a envolvam noutros que a apertem
mais. Nada de almofadas para lhe manter a cabeça segura, nada
de ligaduras, nada de roupas apertadas; panos flutuantes e am­
plos, que deixem todos os seus movimentos em liberdade e não
sejam suficientemente pesados p ara lhe impedir os movientos
nem suficientemente quentes para a impedir de sentir a impres- 43
são do ar1 • Colocai-a num grande berço2 bem almofadado, onde ela
se possa mexer à vontade e sem perigo. Quando começar a estar
mais forte, deixai-a gatinhar pelo quarto; deixai-a desenvolver,
estender os seus membrozinhos; vê-los-eis reforçarem-se, de dia
p ara dia. Comparai-a com uma criança bem apertada, da mesma
idade; ficareis admirados com a diferença dos respectivos progres­
sos3.
Devemos preparar-nos para grandes oposições por parte das
amas, às quais a criança bem amarrada dá menos trabalho que
aquela que precisa de ser constantemente vigiada. Aliás, a sua su­
jidade torna-se m ais sensível nas roupagens soltas; será necessá­
rio lavá-la com mais frequência. Enfim, o hábito é um argumen­
to que, em certos países, nunca se contrariará com a aprovação do
povo de todos os Estados.
Não discutais com as amas; ordenai, vede fazer, e não poupeis
nada para facilitar, na prática, os cuidados que tereis prescrito.

1 Nas cidades, abafaram-se as crianças, mantendo-as fechadas e


vestidas. Os que as cuidam ainda não sabem que o ar frio, longe de lhes
ser prejudicial, as fortalece, e que o ar quente as enfraquece, lhes causa
febre e as mata.
2 Digo um berço para empregar uma palavra conhecida, à falta de
outra; porque, de resto, estou persuadido de que nunca é necessário em­
balar as crianças e que, muitas vezes, esse costume lhes é pernicioso.
3 Os antigos Peruanos deixavam os braços livres às crianças, numa
vestimenta bastante larga; quando as retiravam dela, deixavam-nas em
liberdade, num buraco feito no chão e guarnecido de panos, dentro do qual
desciam até meio corpo; deste modo, as crianças ficavam com os braços
livres e podiam mexer a cabeça e flectir o corpo à vontade, sem caírem e
sem se ferirem. Logo que_conseguiam dar o primeiro passo, o seio era-lhes
oferecido de um pouco mais longe, como uma isca para as obrigar a andar.
Os negrinhos encontram-se, muitas vezes, numa situação muito
cansativa para mamar: abraçam-se a uma das ancas da mãe, com os
joelhos e os pés, e apertam· na tão bem que se podem ali manter sem a
ajuda dos braços maternos. Agarram-se à mama com as mãos e sugam-na
constantemente, sem se incomodarem nem caírem, apesar dos vários
movimentos da mãe, que, entretanto, executas as suas tarefas
costumadas. Essas crianças começam a andar com dois meses, ou antes,
a gatinhar. Com a continuação, este exercício dá-lhes a facilidade para
correrem - nessa posição - quase tão depressa como se andassem por
seu pé.» (Hist. nat., tomo IV in-12, p. 192.)
A estes exemplos. o Sr. Buffon poderia ter acrescentado o da
Inglaterra, onde a extravagante e bárbara prática das roupas apertadas
está a desaparecer, a pouco e pouco. Vede também La Loubiere, Voyage de
Siam;o Sr. Le Beau, Voyage du Canada, etc. Encheria vinte páginas com
citações, se tivesse a necessidade de confirmar o que digo com alguns
44 factos.
Por que não os compartilharíeis? Nas alimentações vulgares, em
que só o físico importa, contanto que a criança se conserve em vi­
da e não enfraqueça, o resto pouco importa; mas, neste caso, em
que a educação começa com a vida, a criança j á é discípula, logo que
nasce -nãodo governante mas da natureza. O governante limita­
-se a estudar sob as directivas desse mestre principal e a impedir
que os seus cuidados sejam contrariados. Vigia o lactente, obser­
va-o, segue-o, espia vigilantemente o primeiro vislumbre do seu
fraco entendimento, como os muçulmanos que, quando se aproxi­
ma o quarto crescente, espiam o momento do nascer da Lua.
Nascemos capazes de aprender, mas não sabendo nada, nada
conhecendo. A alma, agrilhoada em órgãos imperfeitos e semifor­
mados, nem sequer tem o sentimento da sua própria existência. Os
movimentos, os gritos da criança que acaba de nascer, são efeitos
puramente mecânicos, desprovidos de conhecimento e de vontade.
Suponhamos que, ao nascer, uma criança tivesse a estatura e
a força de um homem, que saísse, por assim dizer, completamen­
te armada do seio da mãe, como Palas do cérebro de Júpiter; esse
homem--criança seria um perfeito imbecil, um autómato, uma es­
tátua imóvel e quase insensível: não veria nada, não compreende­
ria nada, não conheceria ninguém, não saberia virar os olhos pa­
ra o que precisaria de ver; não só não veria nenhum oiljecto para
além de si mesmo como não conduziria nenhum até ao órgão dos
sentidos que lho fizesse ver; não teria a noção das cores, nem os
sons estariam nos seus ouvidos, os corpos em que tocasse não sen­
tiria sobre o seu, nem sequer-saberia que possui um; o contacto das
suas mãos estaria no seu cérebro; todas as suas sensações se reu­
niriam num únicoponto; existiria apenasno comum sensorium;te­
ria unicamente uma ideia, a do eu, com a qual relacionaria todas
as suas sensações; e essa ideia, ou antes, esse sentimento, seria a
única coisa que teria a mais que uma criança vulgar.
Esse homem, formado subitamente, também não seria capaz
de se pôr de pé; levaria muito tempo a aprender a manter-se em
equilíbrio, nessa posição; talvez até nem o tentasse, e veríeis esse
grande corpo, forte e robusto, ficar parado como uma pedra, ou ras­
tejar e arrastar-se como um jovem cachorro.
Sentiria o mal-estar das necessidades sem as conhecer e sem
imaginar nenhuma maneira de lhes prover. Não haveria nenhu­
ma comunicação imediata entre os músculos do seu estômago e os
dos seus braços e pernas, que, mesmo rodeado de alimentos, o le­
vasse a dar um passo para deles se aproximar, ou a estender a mão
para os agarrar; e, como o seu corpo já teria adquirido a estatura
normal, como os seusmembrosjá estariam completamente desen­
volvidos e como, consequentemente, não teria nem as inquietações
nem os movimentos contínuos das crianças, seria capaz de morrer
de tome antes de se ter movido para procurar a sua subsistência. 4 5
Por menos que se tenha reflectido sobre a ordem e o progresso dos
nossos conhecimentos, não se pode negar que esse tenha sido, mais
ou menos, o estado primitivo da ignorância e da estupidez natural
do homem, antes de aprender alguma coisa com a experiência ou
com os seus semelhantes.
Conhecemos, pois, ou podemos conhecer, o primeiro ponto de
que cada um de nós parte para atingir o grau do entendimento co­
mum; mas quem cor.hece a outra extremidade? Cada um avança
mais ou menos, consoante o seu génio, o seu interesse, as suas ne­
cessidades, os seus talentos, o seu zelo e as ocasiões que tem de a
eles se entregar. Que eu saiba, ainda não houve nenhum filósofo
suficientemente ousado para declarar: «Eis a meta que o homem
pode atingir e que lhe é impossível ultrapassar.>> Ignoramos o que
a nossa natureza nos permite ser; nenhum de nós mediu a distân­
cia que pode haver entre um homem e outro homem. Qual a alma
vulgar que nunca acalentou esta ideia e que, de vez em quando, não
se diga a si mesma, cheia de orgulho: «Quantos já ultrapassei!
Quantos poderei ainda igualar! Porquê o meu semelhante iria
mais longe do que eu?>>
Volto a dizer que a educação do homem começa desde que ele
nasce; antes de falar, antes de compreender, já se instrui. A expe­
riência precede as lições; no momento em que conhece a sua ama,
já aprendeu muito. Ficaríamos surpreendidos com os conheci­
mentos do homem mais grosseiro, se tivéssemos seguido o seu pro­
gresso desde o momento em que nasceu até ao que chegou. Se se
dividisse a ciência humana em duas artes, uma delas comum a to­
dos os homens e a outra especial para os sábios, esta seria muito
pequena em relação à outra. Mas nunca pensamos nas aquisições
gerais porque elas seefectuam sem darmos porisso e mesmo antes
da idade da razão; porque, de resto, o saber só se faz notar pelas
suas diferenças e - como nas equações algébricas - as quantida­
des comuns contam como zero.
Os próprios animais aprendem muito. Têm sentidos, é neces­
sário que aprendam a utilizá-los; têm necessidades, é necessário
que aprendam a prover-lhes; precisam de aprender a comer, a an­
dar, a voar. Os quadrúpedes que se põem de pé logo que nascem,
nem por isso sabem andar; observa-se, quando dão os primeiros
passos, que estes não passam de tentativas hesitantes. Os ca­
nários que conseguem fugir das gaiolas não sabem voar, porque
nunca voaram. Tudo é instrução, para os seres animados e sensí­
veis. Se as plantas tivessem um movimento progressivo, seria ne­
cessário que tivessem sentidos e que adquirissem conhecimentos;
de outro modo, as espécies rapidamente morreriam.
As primeiras sensações das crianças são puramente afectivas;
só se apercebem do prazer e da dor. Não podendo nem andar nem
46 compreender, precisam de muito tempo para formar, pouco a
pvuco, as sensações representativas que lhes mostram os objectos,
independentemente de si mesmas; mas, enquanto esses objectos
não se espalham, não se afastam, por assim dizer, dos seus olhos,
e não adquirem, para elas, dimensões e aspectos, o regresso das
sensações afectivas começa a submetê-las ao domínio do hábito;
vemo-la� que viram, incessantemente, os olhos para a luz, e, se es­
ta lhes vem de lado, tomarem insensivelmente essa direcção; de
modo que se deve ter o cuidado de as colocar de frente para a luz,
a fim de evitar que se tornem estrábicas ou que se acostumem a
olhar de lado. Também é preciso que, muito cedo, se habituem à es­
curidão. A ama e o sono, a intervalos muito exactos, tornam-se­
-lhes necessários ao cabo desses mesmos intervalos; e, em breve,
o desejo deixa devir da necessidade e começa a vir do hábito, ou an­
tes, o hábito acrescenta uma nova necessidade à da natureza: eis
o que se deve evitar.
O único hábito que se deve permitir que a criança adquira é o
de não contrair nenhum; que não seja transportada mais num bra­
ço que no outro; que não a habituem a apresentar mais uma mão
que a outra, ou a servir-se dela com mais frequência, a querer
comer, dormir, agir às mesmas horas, a não poder ficar sozinha,
nem de noite nem de dia. Preparai antecipadamente o reino da sua
liberdade e a utilização das suas forças, deixando ao seu corpo o há­
bito natural, pondo-a em estado de ser sempre dona de sí mesma
e de, em tudo, fazer a sua vontade, logo que tenha alguma.
Quando a criança começa a distinguir os objectos, importa es­
colher aqueles que se lhe mostram. Naturalmente, todos os novos
objectos interessam o homem. Sente-se tão fraco que receia tudo
o que não conhece: o hábito de ver novos objectos sem ser afecta­
do por eles destrói esse receio. As crianças criadas em casas lim­
pas, onde não são picadas pelas aranhas, têm medo delas, e, em
muitos casos, conservam esse medo, mesmo depois de crescidas.
Nunca vi camponeses -homens, mulheres ou crianças - terem
medo das aranhas.
Por que motivo a educação de uma criança não haveria de
começar antes de ela saber falar e compreender, pois unicamente
a escolha dos objectos que se lhe apresentam é p assível de a tornar
tímida ou corajosa? Quero que a habituem a ver objectos novos,
animais feios, repugnantes, estranhos; mas tudo isso, a pouco e
pouco, de longe, até que se habitue a eles e que, vendo-os serem
manipulados por outras pessoas, acabe por manipulá-los tam­
bém. Se, durante a sua infância, viu, sem se assustar, sapos, ser­
pentes, lagostins de rio, quando for crescida verá, sem horror,
qualquer animal que lhe apareça. Deixa de haver objectos horrí­
veis para aquele que todos os dias os vê.
Todas as crianças têm medo das m áscaras. Começo por
mostrar, a Emílio, uma máscara de um rosto agradável; seguida- 4 7
mente, e diante dele, alguém aplica essa máscara à própria cara:
ponho-me a rir, toda a gente ri, e a criança ri como todos. Pouco a
pouco, habituo-a a máscaras menos agradáveis e, finalmente, a
máscaras horrendas. Se regulei bem essa graduação, longe de se
assustar com a última máscara, ele rirá, ao vê-la, como riu da pri­
meira. Depois disto, deixo de recear que alguém o possa vir a as­
sustar com máscaras.
Quando, durante a despedida de Andrómaca e Heitor, o pe­
quenino Astianax, assustado com o penacho que flutua sobre a ca­
beça do pai, não o reconhece e se lança, chorando, para o seio da
ama, arrancando.à mãe um sorriso misturado com lágrimas, que
se deverá fazer para lhe tirar esse susto? Precisamente o que faz
Heitor: pousar o capacete no chão e acariciar o filho. Num mo­
mento mais calmo, não se ficaria por aí: aproximar--se-iam do ca­
pacete, brincariam com as plumas, pô-las-iam nas mãos da crian­
ça para que ela lhes mexesse; por fim, a ama pegaria no capacete
e pô--1o-ia na sua própria cabeça, a rir- no caso de a mão de uma
mulher se atrevesse a tocar nas armas de Heitor.
Quando quero habituar Emílio ao ruído de uma arma de fogo,
começo .por queimar um fulminante numa pistola. Essa chama
brusca e passageira, essa espécie de faísca diverte-o; repito ames­
ma coisa com mais pólvora; pouco a pouco, acrescento à pistola
uma pequena carga sem bucha; depois, uma maior; finalmente, ele
habitua-se aos tiros de espingarda, aos morteiros, aos canhões, às
mais terríveis detonações.
Notei que as crianças raramente têm medo do trovão, a não ser
quando os estampidos são tremendos e ferem realmente o órgão do
ouvido; se não, esse medo só lhes vem quando sabem que o trovão
fere ou, que, por vezes, mata. Quando a razão começa a assustá­
-las, fazei que o hábito as tranquilize. Com uma graduação lenta
e estudada, consegue tornar-se o homem e a criança intrépidos pa­
ra tudo.
No início da vida, em que a memória e a imaginação ainda es­
tão inactivas, a criança só presta atenção ao que realmente lhe
afecta os sentidos; como as sensações que experimenta são os pri­
meiros elementos dos seus conhecimentos, proporcionar-lhas se­
gundo uma ordem conveniente é preparar-lhe a memória para,
um dia, as fornecer, pela mesma ordem, ao seu entendimento; mas,
como só está atenta às suas sensações, de início bastará mostrar­
-lhe muito distintamente a ligação dessas mesmas sensações com
os objectos que as causam . A criança quer mexer em tudo, quer ma­
nipular tudo: não vos oponhais a essa ipquietação que lhe sugere
uma aprendizagem muito necessária. E assim que aprende a sen­
tir o calor, o frio, a dureza, a moleza, o peso, a leveza dos corpos, a
48 apreciar a respectiva grandeza, aspecto, e todas as suas qualida-
, vuamao, apalpando1, escutando, sobretudo compa­
_ . ---

rando a vista com o tacto, avaliando com o olhar a sensação que os


seus dedos teriam se tocassem nas coisas.
Só pelo movimento compreendemos que existem coisas que
não são nós; e é unicamente nelo nosso próprio movimento que ad­
quirimos a ideia do espaço. E por não ter esta ideia que a criança
estendeindiferentemente amão para apanharo objecto quelhe to­
ca ou aquele que se encontra a cem passos dela. Esse esforço que
ela faz parece--vos um sinal de dominação, uma ordem que ela dá
ao objecto para que ele se aproxime, ou a vós, para que lho leveis;
e não é nada disso, mas apenas que os mesmos objectos que ela
começava por ver no seu cérebro, e, em seguida, nos seus olhos, vê­
-os agora nas extremidades dos seus bràços e só sabe imaginar o
espaço que consegue atingir. Tende, pois, o cuidado de a passear
com frequência, de a levar de um sítio para outro, de lhe fazer sen­
tir a mudança de lugar, a fim de lhe ensinardes a calcular as dis­
tâncias. Quando ela começar a conhecê-las, será preciso mudar de
método e só a transportar como vos agrada a vós e não como lhe
agrada a ela; porque, logo que deixe de ser enganado pelos senti­
dos, o seu esforço muda de causa: esta mudança é notável e exige
uma explicação.
O incómodo das necessidades expressa-se por sinais quando é
necessária a ajuda de outrem para lhes prover: daí os gritos das
crianças. Choram muito; assim deve ser. Como todas as suas
sensações são afectivas, quando são agradáveis gozam-nas em si­
lêncio; quando são penosas, dizem-no na sua linguagem e pedem
alívio. Ora, enquanto estão acordadas, quase não podem permane­
cer num estado de indiferença: e, não estando a dormir, têm de se
sentir afectadas.
Todas as nossas línguas são obras da arte. Durante muito tem­
po, procurou saber-se se existiria uma linguagem natural e comum
a todos os homens; realmente, existe uma: é a que as crianças
utilizam antes de saberem falar. Essa linguagem não é articulada,
mas é acentuada, sonora, inteligível. A utilização das nossas
levou-nos a negligenciá-la ao ponto de a esquecermos completa­
mente. E studemos as crianças e, em breve, voltaremos a aprendê­
-la, com elas. As amas são as nossas professoras dessa língua.
Compreendem tudo quanto os seus lactentes dizem; respondem­
-lhes, têm, com eles, diálogos perfeitamente seguidos; e, .embora
pronunciem algumas palavras, estas são perfeitamente inúteis;

1 De todos os sentidos, o olfacto é o que se desenvolve mais tarde nas


crianças: até aos dois ou três anos, não parecem sensíveis, nem aos bons
nem aos maus cheiros; a esse respeito, têm a mesma indiferença, ou an-
tes, a mesma insensibilidade que notamos em vários animais. 49

L. B.S23 - 4
não é o sentido das palavras que eles compreendem mas o tom em
que !=Jlas são ditas.
A linguagem da voz, junta-se a do gesto, não menos enérgica.
Esse_gesto não está nas fracas mãos das crianças, mas nos seus ros­
tos. E surpreendente ver como essas fisionomias mal formadas já
têm expressão; os seus traços mudam, de um instante para o ou­
tro, com uma inconcebível rapidez: neles vemos o sorriso, o dese­
jo e o terror, que aparecem e desaparecem,à velocidade do raio: de
cada vez, julgais ver um rosto diferente. E certo que têm os mús­
culos do rosto mais móveis que nós. Em coqtrapartida, os seus
olhos, mortiços, quase não expressam nada. E assim que deve ser
o género dos seus sinais, numa idade em que têm apenas necessi­
dades corporais; a expressão das sensações está nas caretas, a ex­
pressão dos sentimentos nos olhares.
Como o primeiro estado do homem é a miséria e a fraqueza, as
suas primeiras vozes são os queixumes e os choros. A criança sen­
te as suas necessidades e, não as podendo satisfazer, implora o so­
corro de outrem através dos gritos que solta: se tem fome ou sede,
chora; se tem calor de mais ou frio de mais, chora; se tem necessi­
dade de movimento e a conservam em repouso, chora; se quer
dormir e a agitam, chora. Quanto menos a sua maneira de estar lhe
convém mais ela pede que lha mudem. Tem apenas uma lin­
guagem, porque, por assim dizer, tem apenas uma espécie de
mal-estar: na imperfeição dos seus órgãos, não distingue as suas
diversas impressões; para ela, todos os males formam uma única
sensação de dor.
Desses choros, que se suporiam tão pouco dignos de atenção,
nasce a primeira relação do homem com tudo o que o rodeia: aqui
se forja o primeiro elo dessa longa cadeia de que é formada a ordem
social.
Quando a criança chora é porque se sente incomodada, porque
tem alguma necessidade que não é capaz de satisfazer: examina­
mos, procuramos essa necessidade, encontramo-la, provemos a
ela. Quando não a encontramos ou quando não podemos prover a
ela, os choros continuam, sentimo-nos importunados: amimamos
a criança para a fazer calar, embalamo-la, cantamos-lhe para a
adormecer; se ela teima, impacientamo-nos, ameaçamo-la: por
vezes, há amas brutais que lhe batem. São estas as estranhas li­
ções que ela recebe quando entra na vida.
Nunca me esquecerei de ter visto uma dessas incómodas cho­
ronas ser batida pela ama. Calou-se imediatamente: supu-la in­
timidada. Pensei para comigo mesmo: «Vai ser uma alma servil de
que só se obterá alguma coisa através da severidade.» Enganava­
-me: a infeliz sufocava de cólera, perdera o fôlego; vi-a tornar-se
violeta. Um momento depois, vieram os gritos estridentes; todos os
50 sinais do ressentimento, da fúria, do desespero daquela idade, es-
tavam nos acentos daqueles gritos. Receei que morresse naquela
agitação. Se alguma vez tivesse duvidado de que o sentimento do
justo e do injusto era inato no coração do homem, esse único exem­
pio ter-me-ia convencido. Tenho a certeza de que um pedaço de
carvão em brasa que tivesse caído em cima da mão daquela crian­
ça a teria feito sofrer menos que aquela palmada assaz ligeira, mas
dada com a intenção manifesta de a ofender.
Esta disposição das crianças para a cólera, para o despeito, exi­
ge excessivas cautelas. Boerhaave pensa que as doenças das crian­
ças são, na sua maioria, do género das convulsões, porque - como
a cabeça é proporcionalmente maior e o sistema dos nervos mais
extenso que nos adultos -o género nervoso é mais susceptível de
irritação. Afastai delas, com o maior cuidado, os criados que as
enervam, as irritam, as impacientam: é que estes são, para elas,
cem vezes mais perigosos e mais funestos que as injúrias do ar e
das estações. Se as crianças só encontrarem a resistência das coi­
sas e não a das vontades, não se tornarão nem rebeldes nem colé­
ricas e conservar-se-ão de melhor saúde. É esta uma das razões
por que as crianças do povo, mais livres, mais independentes, são
geralmente menos enfermiças, menos frágeis, mais robustas que
aquelas que pretendemos educar melhor, contrariando-as inces­
santemente; mas é preciso nunca esquecer que há uma grande di­
ferença entre obedecer-lhes e não as contrariar.
Os primeiros choros das crianças são pedidos: se não se tiver
cuidado, em breve passam a ser ordens; começam por se fazer as­
sistir, acabam por se fazer servir. Assim, da sua própria fraqueza
- de onde começa por lhes vir o sentimento da sua própria depen­
dência- acaba por nascer a ideia do domínio e da autoridade; mas,
como esta ideia é menos excitada pelas suas necessidades que pe­
los nossos serviços, é aqui que se começam a fazer sentir os efeitos
morais cuja causa imediata não está na natureza; e daí se pode já
depreender a razão por que, desde essa primeira idade, é impor­
tante deslindar a intenção secreta que dita o gesto ou o grito.
Quando a criança estende a mão com esforço, sem dizer nada,
crê atingir o objecto, porque não avalia a distância a que ele está;
mas engana-se; porém, se se queixa e grita, estendendo a mão,
nesse caso já não se engana a respeito da distância, ordena ao ob­
jecto que se aproxime, ou a vós, para que lho leveis. No primeiro ca-
so, levai-a até ao objecto, lentamente, a passos miúdos; no segun-
do, não lhe mostreis sequer qu_e a estais a ouvir: quanto mais ela
gritar menos a deveis escutar. E indispensável que, mui to cedo, ela
se habitue a não dar ordens , nem aos homens -pois que não é do-
na deles -nem às coisas, porque elas não a compreendem . Assim,
quando uma criança deseja alguma coisa que vê e que lhe quereis
dar, é preferível que a leveis até ao objecto do que levar o objecto 51
até ela: desta prática, ela retirará uma conclusão que é da sua ida­
de, e não há outro modo de lha sugerir.
O abade de Saint-Pierre dizia que os homens eram crianças
grandes; reciprocamente, poderíamos dizer que as crianças são
homens pequenos. E stas proposições têm a sua verdade como sen­
tenças; como princípios, precisam de esclarecimento. Mas quando
Hobbes chamava ao mau uma criança robusta, afirmava uma coi­
sa absolutamente contraditória. Toda a maldade nasce da fraque­
za; a criança só é má porque é fraca; tornai-a forte, ela será boa:
aquele que tudo pudesse nunca faria mal nenhum. De todos os atri­
butos da Divindade Todo-Poderosa, a bondade é aquele sem o qual
menos a podemos conceber. Todos os povos que reconheceram dois
princípios sempre consideraram o mau como inferior ao bom; sem
isso, teriam feito uma suposição absurda. Vede, a seguir, a profis­
são de fé do vigário saboiano.
Só a razão nos ensina a conhecer o bem e o mal. A consciência
que nos leva a amar um e a odiar o outro, embora independente da
razão, não se pode desenvolver sem ela. Antes de chegarmos à ida­
de da razão, fazemos o bem e o mal sem o sabermos; e não há qual­
quer moralidade nas nossas acções, embora por vezes a haja no
sentimento das acções de outrem, que se relacionam connosco.
Uma criança quer modificar tudo o que vê: destrói e parte tudo o
que consegue atingir; agarra num pássaro como se estivesse a
agarrar numa pedra e sufoca-{) sem saber o que faz.
Por que é que isto acontece? Para começar, a filosofia explicá­
-lo-á por vícios naturais: o orgulho, o espírito de autoridade, o
amor-próprio, a maldade do homem; o sentimento da sua fraque­
za - poderá ela acrescentar - torna a criança ávida de executar
actos de força e de provar a si mesma o seu próprio poder. Mas olhai
para aquele velhote enfermo e todo curvado, transportado, pelo
círculo da vida humana, à fraqueza da infância: não só se conser­
va imóvel e pacífico como deseja que tudo assim esteja à sua vol­
ta; a mínima modificação perturba-{) e inquieta-{), desejaria que
reinasse uma calma universal. Como seria possível que a mesma
impotência, junta às mesmas paixões, produzisse efeitos tão diver­
sos nas duas idades se a causa primitiva não tivesse mudado? E
aonde poderemos ir procurar essa diversidade de causas se não for
no estado físico dos dois indivíduos? O princípio activo, comum aos
dois, desenvolve-se num e extingue-se no outro; um forma-se e o
outro destrói-se; um tende para a vida, o outro para a morte. A
actividade enfraquecida concentra-se no coração do velhote; no da
criança, ela é superabundante e estende-se para o exterior; ela
sente, por assim dizer, suficiente vida para animar tudo quanto a
rodeia. Quer faça ou desfaça, não importa; basta-lhe modificar o
estado das coisas, e toda a modificação é uma acção. Porque, se ela
52 parece ter mais tendência para destruir, isso não é por maldade,
mas porque a acção que forma é sempre lenta, enquanto a que des­
trói - como é mais rápida - convém mais à sua vivacidade.
Ao mesmo tempo que o Autor da natureza dá às crianças esse
princípio activo, vela para que ele seja pouco nocivo, deixando­
-lhes pouca força para a ele se entregarem. Mas, quando consi­
deram as pessoas que as rodeiam como instrumentos que podem
fazer agir, utilizam-nas para seguirem a sua tendência e suprirem
a sua própria fraqueza. Eis como se tornam incómodas, tiranas,
imperiosas, más, indomáveis; progresso que não vem de um espí­
rito natural de dominação mas que lhe é fornecido por este; porque
não é necessária uma longa experiência para sentir quão agradá­
vel é agir por intermédio de outrem, e de só ter necessidade de abrir
a boça para fazer mover o universo.
Amedidaque crescemos, adquirimosforças, ficamos menos in­
quietos, menos violentos, fechamo-nos mais em nós mesmos. A al­
ma e o corpo põem-se, por assim dizer, em uníssono, e a nature­
za não nos pede mais que o movimento necessário para a nossa
conservação. Mas o desejo de mandar não se extingue com a neces­
sidade que lhe deu origem; a dominação desperta e lisongeia o
amor-próprio, e o hábito fortalec�: assim a fantasia sucede à ne­
cessidade, assim criam as primeiras raízes os preconceitos da opi­
nião pública.
Desde que conhecemos o princípio, vemos nitidamente o pon­
to onde nos afastámos do caminho da natureza; vejamos o que é ne­
cessário fazer para continuarmos a segui-lo.
Longe de terem forças supérfluas, as crianças nem sequer têm
que sejam suficientes para tudo quanto lhes pede a natureza; por
conseguinte, devemos deixar-lhes a utilização de todas aquelas
que ela lhes dá e de que não seriam capazes de abusar. Primeira
máxima.
É preciso auxiliá-las e suprir ao que lhes falta, quer seja em
inteligência, em força, em tudo quanto for da necessidade física.
Segqnda máxima.
E preciso, nos auxílios que lhes prestamos, limitarmo-nos uni­
camente ao realmente útil, sem nada conceder à fantasia nem ao
desejo sem razão; porque a fantasia não as atormentará se não lhe
deTil)OS origem, dado que não é da natureza. Terceira máxima.
E preciso estudar-lhes atentamente a linguagem e os sinais,
a fim deque-numaidade em que não sabem dissimular -se pos­
sam distinguir, nos seus desejos, aqueles que vêm directamente da
natureza e os que vêm da opinião. Quarta máxima.
O espírito destas regras é atribuir às crianças mais verdadei­
ra liberdade e menos domínio, deixá-las fazer mais por si mesmas
e exigir menos de outrem. Assim, acostumando-se logo de início a
limitar os seus desejos às suas forças, pouco sentirão a privação do
que não estará em seu poder fazer. 53
Eis, por conseguinte, uma nova e muito importante razão para
deixar os corpos e os membros das crianças completamentes livres,
tomando a precaução de as afastar do perigo das quedas e de reti­
rar do alcance das suas mãos tudo quanto as possa magoar.
Infalivelmente, uma criança cujo corpo e braços estão livres
chorará menos que uma criança metida em vestes apertadas.
Aquele qu� apenas conhece as necessidades físicas só chora quan­
do sofre, e isso é uma grande vantagem; porque, assim, poderá sa­
ber-se quando tem necessidade de ajuda e não se deve tardar um
só momento a prestar-lha, se isso for possível. Mas, se não a podeis
aliviar, não façais nada, não a amimeis para a acalmar; as vossas
carícias não curarão a sua cólica; e, entretanto, a criança recordar­
-se-á do que deve fazer para ser amimada; e, se ficar a saber o que
deve fazer para vos levar a ocupar-vos dela, ei-la que se torna vos­
sa soberana: fica tudo perdido.
Menos contrariadas nos seus movimentos, as crianças chora­
rão menos; menos importunadas com os seus choros, atormentar­
-nos--emos menos para as fazermos calar; menos frequentemente
ameaçadas ou amimadas, serão menos receosas ou m�nos teimo­
sas e conservar-se-ão melhor no seu estado natural. E menos por
deixar chorar as crianças que esforçando-nos por as acalmar que
lhes fazemos ter hérnias; e a minha prova é que as crianças mais
negligenciadas são muito menos atreitas a elas que as outras. Com
isto, estou muito longe de desejar que sejam negligenciadas; pelo
contrário, importa prevenir-lhes as necessidades e não esperar
que os seus gritos nos avisem delas. Mas também não quero que os
cuidados que lhes são dispensados sejam mal interpretados. Por
que motivo deixariam elas de chorar, depois de verem que os seus
choros são úteis para tantas coisas? Instruídas do preço por que é
pago o seu silêncio, não estão dispostas a mantê-lo. Por fim, atri­
buem-lhe tanto valor que se torna impossível pagá-lo; e é então
que, éhorando sem p arar e sem sucesso, se esforçam, se esgotam
e apanham hérnias.
Os prolongados choros de uma criança que não está nem aper­
tada nem doente e à qual nada falta não passam de choros de há­
bito e de obstinação. Não são obra da natureza, mas da ama, que,
por não ser capaz de suportar essa importunidade, a multiplica,
sem pensar que, conseguindo que a criança hoje se cale, a incita a
chorar, ainda mais, amanhã.
O único m�io de curar ou prevenir esse hábito é não lhe pres­
tar atenção. Ninguém gosta de fazer um trabalho inútil, nem se­
quer as crianças. São obstinadas nas suas tentativas; mas, se a
vossa constância for maiqr que a sua obstinação, acabam por se
cansar e não recomeçam. E assim que lhes poupamos choros e que
as acostumamos a só chorar quando a dor as força a isso.
s4 De resto, quando choram por fantasia ou por obstinação, uma
maneira segura para as impedir de continuar e as distrair é mos­
trar-lhes algum objecto agradável e que faça ruído, que as leva a
esquecer que queriam chorar. A maioria das amas são excelentes
nessa arte, que, bem aplicada, é muito útil; mas é de suma impor­
tância que a criança não se aperceba da intenção que se tem de a
distrair, e que se distraia sem crer que alguém pensa nela: ora, nis­
so, todas as amas falham.
Todas as crianças são desmamadas cedo de mais. O momento
em que o desmame deve ser efectuado é indicado pela erupção dos
dentes, e, geralmente, essa erupção é difícil e dolorosa. Nessa al­
tura, por um instinto m aquinal, a criança leva frequentemente à
boca tudo o que apanha, para mascar. Pensa-se facilitar a opera­
ção dando-lhe, para mascar, algum objecto duro, como o marfim ou
o dente de lobo. Penso que isso é um erro. Esses corpos duros, apli­
cados nas gengivas, longe de as amolecerem, tomam-nas calosas,
endurecem-nas, preparam um rompimento mais difícil e mais do­
loroso. Tomemos sempre o instinto como exemplo. Não vemos os
cachorrinhos exercerem os dentes que lhes nascem, nem nas pe­
dras, nem no ferro, nem nos ossos, mas na madeira, no couro, em
trapos, em matérias moles, que cedem e onde o dente se imprime.
Já não se sabe ser simples em nada, nem sequer com as crian­
ças. Guizos de prata, de ouro, de coral, de cristais facetados, cho­
calhos de todos os preços e de todas as qualidades: quantas coisas
inúteis e perniciosas! Nada disso. Nada de chocalhos, nada de gui­
zos; pequeninos ramos de árvore com os seus frutos e as suas fo­
lhas, uma cabeça de papoila na qual se ouvem chocalhar as semen­
tes, uma barra de alcaçuz que ela poderá mascar ou chupar, tudo
isso a divertirá tanto quanto essas m agníficas bacatelas, e não
apresentará o inconveniente de a habituar ao luxo logo que nasce.
Foi reconhecido que a papa não é um alimento muito são. O lei­
te cozido e a farinha crua fazem muita saburra e convêm mal ao
nosso estômago. Na papa, a farinha fica menos cozida que no p ão,
e, além disso, não fermentou; um caldo, o creme de arroz, parecem­
-me preferíveis. Se se quiser absolutamente fazer uma papa, con­
vém que a farinha seja ligeira e previamente grelhada. Na minha
terra, com a farinha assim torrada, faz-se uma sopa muito agra­
dável e muito sã. O caldo de carne e a sopa também sjio alimentos
medíocres, que se devem utilizar o menos possível. E preciso que
as crianças comecem por se habituar a mastigar; é o melhor modo
de facilitar a erupção dos dentes; e, quando começam a engolir, os
sucos salivares, misturados com os alimentos, facilitam-lhes a di­
gestão.
Por isso, eu fá-las-ia m ascar frutos secos, côdeas de pão. Pa-
ra brincar, dar-lhes-ia tirinhas de pão seco ou do biscoito que se
parece com o pão de Piemonte e a que, nessa região, chamam gris­
ses. Com a continuação deste pão na boca, acabariam por engolir 5 5
algum pedaço: por fim, os dentes romperiam e elas estariam des­
mamadas quase antes de que se tivesse dado por isso. Geralmen­
te,os camponeses têm um estômago bastante resistente e não des­
mamam as crianças de outra maneira.
Desde que nascem,as crianças ouvem falar; fala-se-lhes, não
só antes de elas poderem compreender o que se lhes diz, mas antes
que elas possam imitar as vozes que ouvem. O seu órgão, ainda en­
torpecido, pouco se presta às imitações de sons que se lhes dita, e
nem sequer se tem a certeza de que, no princípio da sua vida, es­
ses sons lhes cheguem aos ouvidos, tão distintamente como aos
nossos. Não desaprovo que a ama distraia a criança com cantos e
inflexões de voz alegres e muito variadas; mas desaprovo que ela
a atordoe constantemente com uma quantidade de palavras
inúteis de que a criança só compreende o tom com que são ditas.
Gostaria que as primeiras articulações que lhe chegassem aos ou­
vidos fossem raras, fáceis, nítidas, muitas vezes repetidas, e que
as palavras que exprimem só se referissem a objectos sensíveis que
pudessem começar por lhe ser mostrados. A infeliz facilidade que
temos para empregar palavras que não compreendemos começa
mais cedo do que se pensa. O aluno escuta, na aula, o palavreado
do professor, da mesma maneira que, no berço, escutava a tagare­
lice da ama. Parece-me que seria muito útil ensiná-la a nada com­
preender disso.
As reflexões surgem em catadupas quando nos queremos ocu­
par da educação da linguagem e das primeiras frases das crianças.
Seja o que for que se faça, elas aprenderão sempre a falar da mes­
ma maneira,e todas as especulações filosóficas são,neste caso,da
maior inutilidade.
Para começar, têm,por assim dizer,uma gramática da sua ida­
de, cuja sintaxe tem regras mais gerais que a nossa; e, se lhe pres­
tássemos deveras atenção, ficaríamos admirados por constatar a
exactidão com a qual elas seguem certasanalogias-muito imper­
feitas, é possível, mas muito regulares -que só chocam pela sua
falta de harmonia ou porque o uso não as admite. Acabo de ouvir
uma criança muito admoestada pelo pai,por lhe ter dito:Monpere,
irai-je-t-y1? Ora, vê-se que essa criança seguia melhor a analogia
que os nossos gramáticos,porque,como lhe diziam Va-B-y, por que
motivo não poderia ela dizer Irai-je-t-y? Além disso, é de notar a
precaução que ela tomara para evitar o hiato de irai-je-y ou de y
irai-je. A pobre criança será a culpada por nós termos retirado da
frase, despropositadamente, esse �dvérbio determinante y, por
não sabermos o que fazer com ele? E uma pretensão insuportável

1 Impossível traduzir a frase, não tendo a sua construção nada em


56 comum com a da nossa língua para dizer: «Irei ter contigo?»
e um cuidado dos mais supérfluos dedicar-se a corrigir,nas crian­
ças, todos estes pequeninos erros contra o uso, que, com o tempo,
elas acabam sempre por corrigir por si próprias. Falai sempre cor­
rectamente diante delas,fazei os possíveis para que elas não apre­
ciem a companhia de outras pessoas tanto como a vossa,e ficai com
a certeza de que, insensivelmente, a linguagem delas se moldará
pela vossa, sem que preciseis de lhes fazer observações.
Mas há um abuso de outro género absolutamente diferente e
que não é mais difícil prevenir: tem-se muita pressa de as pôr a fa­
lar, como se se receasse que elas não aprendessem a falar por si
próprias. Esse zelo despropositado produz um efeito directamen­
te oposto ao que se pretende. E as crianças acabam por falar mais
tarde e mais confusamente: a extrema atenção que se presta a tu­
do quanto dizem dispensa-as de bem articularem as palavras; e,
como mal se dignam abrir a boca, algumas delas conservam, du­
rante toda a sua vida, um defeito de pronúncia e uma maneira de
falar confusa, que as torna quase incompreensíveis.
Vivi muito entre os camponeses, e nunca ouvi nenhum deles
pronunciar o r guturalmente -nem homens, nem mulheres, nem
raparigas nem rapazes. A que se deverá isso? Os órgãos dos cam­
poneses serão construídos de um modo diferente do dos nossos?
Não; mas é que eles se exercem de outra maneira. Em frente da
minha janela, há um outeiro onde se reúnem, para brincar, as
crianças da terra. Embora se encontrem bastante afastadas de
mim,ouço perfeitamente tudo quanto dizem e, muitas vezes,reti­
ro daí interessantes anotações para este escrito. Todos os dias os
meus ouvidos me enganam sobre a idade delas; ouço vozes de
crianças de 1 O anos: olho,e vejo as estaturas e os rostos de crianças
de 3 e 4. Não limito esta experiência à minha pessoa; os citadinos
que me vêm visitar e que eu consulto a esse respeito cometem to­
dos o mesmo erro.
A razão para que isto aconteça é que, até aos 5 ou 6 anos, as
crianças das cidades,educadas no quarto e sob a protecção de uma
governanta, só precisam de balbuciar para se fazerem compreen­
der: logo que se põem a mexer os lábios, há um ouvido que se inte­
ressa em escutá-las; ditam-se-lhes palavras que elas repetem
mal e,graças à atenção que se lhes presta, e como estão sempre ro­
deadas pelas mesmas pessoas,adivinha-se o que elas querem di­
zer, antes que o digam.
No campo,as coisassão completamente diferentes.Uma cam­
ponesa não está constantemente à volta do filho; este vê-se força­
do a aprender a dizer,muito nitidamente e em voz muito alta,o que
precisa que ouçam. Nos campos, as crianças dispersas, afastadas
do pai, da mãe e das outras, exercem-se a fazer-se ouvir de longe
e a medir a força da sua voz pela distância que as separa daqueles
por quem querem ser ouvidas. Eis como se aprende verdadeira- 5 7
mente a pronunciar, e não a balbuciar, algumas vogais ao ouvido
de uma governanta atenta. Por outro lado, quando se interroga o
filho de um camponês, a timidez poderá impedi-lo de responder;
mas, quando diz alguma coisa, di-lo nitidamente; contanto que,
para a criança da cidade, é necessário que a criada lhe sirva de in­
térprete; sem isso, não se perceberia nada do que ela murmura por
entre os dentes1•
À medida que forem crescendo, os rapazes deveriam corrigir­
-se desse defeito, nos colégios, e as raparigas nos conventos; efec­
tivamente, tanto estas como aqueles falam, geralmente, com mais
clareza que os que sempre foram educados na casa paterna. Mas
o que os impede de adquirir uma pronúncia tão nítida como a dos
camponeses é a necessidade de aprender, de cor, uma quantidade
de coisas e de recitar em voz alta o que aprenderam; porque, estu­
dando, habituam-se a taramelar, a pronunciar negligentemente
e mal; quando recitam, ainda fazem pior; experimentam dificulda­
des para encontrar as palavras, arrastam e alongam as sílabas;
não é possível que, quando a memória vacila, a língua também não
hesite. Assim se contraem ou se conservam os vícios de pronúncia.
Vereis, a seguir, que o meu Emílio não terá esses vícios, ou, pelo
menos, que não os terá contraído pelas mesmas causas.
Concordo que os populares e os camponeses caem noutro ex­
cesso, que falam quase sempre mais alto que o necessário, que­
por pronunciarem com uma apurada exactidão-têm as ar-ticula­
ções fortes e ásperas, que têm um excesso de sotaque, que escolhem
mal os seus termos, etc.
Mas, em primeiro lugar, esse extremo parece-me muito menos
defeituoso que o outro: partindo do princípio de que a primeira re­
gra do discurso é fazer-se ouvir, o maior erro que se pode cometer
é falar sem ser ouvido. Pretender não dar inflexões à voz é preten­
der retirar às frases a sua graça e a sua energia. A inflexão da voz
é a alma do discurso, dá-lhe o sentimento e a veracidade. A infle­
xão da voz engana menos que a palavra; talvez seja por isso que as
pessoas bem educadas tanto a receiam. Foi do hábito de tudo dizer
no mesmo toll! que veio o de troçar das pessoas sem que elas des­
sem por isso. A inflexão banida sucedem maneiras de pronunciar
ridículas, afectadas e submetidas à moda, tais como as observa-

1 Isto também tem excepções; e, em muitos casos, as crianças que


menos se ouvem tornam:-se as mais ruidosas, logo que começam a elevar
a voz . Mas, se fosse preciso entrar em todas estas minúcias, nunca mais
acabaria; os leitores sensatos devem compreender que o excesso e a penú­
ria, derivados do mesmo abuso, são igualmente corrigidos através do meu
método. Considero estas duas máximas como inseparáveis: sempre o su­
ficiente e nunca em excesso. Desde que a primeira seja bem estabelecida,
58 a outra segue-se-lhe necessariamente.
mos, sobretudo nos jovens da corte. Essa afectação da palavra e da
atitude é o que, geralmente, torna o francês repugnante e desagra­
dável para as outras nações. Em vez de pôr inflexões na sua
maneira de falar, põe-lhe ar. Não é esse o sistema m ais apropria­
do para atrair simpatias.
Todos estes pequeninos defeitos de linguagem que tanto se re­
ceia que as crianças contraiam não têm importância nenhuma;
previnem-se ou corrigem--se com a maior das facilidades; mas
aquele que se lhes faz contrair ao tornar o seu modo de falar aba­
fado, confuso, tímido, criticando incessantemente a sua inflexão,
analisando todas as suas palavras, nunca se corrige. Um homem
que só tenha aprendido a falar nas vielas far--se--á ouvir mal à ca­
beça de um batalhão e não se conseguirá impor ao povo durante
uma rebelião. Começai por ensinar os rapazes a falarem aos ho­
mens, que eles se encarregarão de aprender a falar às mulheres,
quando for necessário.
Criados no campo, em toda a rusticidade campestre, os vossos
filhos adquirirão uma voz mais sonora; não contrairão o confuso
gaguejamento das criánças da cidade; também não contrairão as
expressões nem o sotaque da aldeia, ou, pelo menos, perdê--lo--ão
facilmente, quando o mestre, vivendo com eles desde que nascem,
prevenir ou apagar - pela correcção da sua linguagem - a im­
pressão da linguagem dos camponeses. Emílio falará um francês
tão puro como eu, mas fá-lo--á mais nitidamente e articulá-lo--á
muito melhor que eu.
A criança que quer falar só deve ouvir palavras que pode com­
preender, dizer as que consegue articular. Os esforços que, para is­
so, faz levam-na a repetir a mesma sílaba, como para se exercer a
pronunciá-la mais distintamente. Quando começa a balbuciar,
não vos atormenteis de mais para adivinhar o que ela diz. Preten­
der ser sempre escutado também é uma espécie de domínio, e a
criança não deve exercer nenhum. Contentai-vos em prover aten­
tamente ao necessário; é a ela que compete fazer-vos compreender
o que não compreendeis. Ainda muito menos se deve insistir para
que ela fale: acabará por falar, por si mesma, à medida que for sen­
tindo essa utilidade.
Reparamos, é verdade, que aquelas que começam a falar mui-
to tarde nunca chegam a falar tão distintamente como as outras;
mas não é por terem começado a falar tarde que o órgão fica atro­
fiado, é, pelo contrário, porque nasceram com um órgão atrofiado
que começam a falar tarde; pois, se assim não fosse, por que mo­
tivo falariam mais tarde que as outras? Têm menos oportunidades
de falar? São menos incitadas a fazê--lo? Pelo contrário, a preo­
cupação que esse atraso dá -logo que é notado -faz que nos ator­
mentemos muito mais com elas, fazendo--as balbuciar, que com
aquelas que começaram a articular mais cedo; e esse empenho mal 5 9
interpretado pode contribuir muito para tornar confusa a sua ma­
neira de falar, contanto que, com menos precipitação, elas teriam
tido tempo para se aperfeiçoarem.
As crianças com as quais se insiste para que falem não têm
tempo nem para aprender o que se lhes manda dizer: contanto que,
quando as deixamos à vontade, começam por se exercitar com as
sílabas mais fáceis de pronunciar; e acrescentando-lhes, pouco a
pouco, alguma significação que se compreende através dos seus
gestos, dão-vos as suas palavras antes de receberem as vossas:
disto resulta que só recebem as vossas palavras depois de as terem
compreendido. Como não têm pressa de as utilizar, começam por
bem observar o sentido que lhes dais, e, depois de o compreende­
rem, adoptam-no.
O maior prejuízo causado pela precipitação com a qual se obri­
gam as crianças a falar antes de terem idade para isso não é que
as primeiras frases que se lhes dizem e que as primeiras palavras
que elas pronunciam não tenham nenhum significado para elas,
mas que adquiram um sentido diferente do que lhes damos, sem
que nos apercebamos disso; de modo que, parecendo responder­
-nos com toda a exactidão, falam-nos sem nos compreenderem e
sem que as compreendamos. Geralmente, é devido a equívocos
desses que se deve a surpresa em que nos lançam os seus propósi­
tos, aos quais emprestamos ideias que eles não traduzem. Essa fal­
ta de atenção da vossa parte,em relação ao verdadeiro sentido que
-para as crianças ---'- as palavras têm, parece-me ser a causa dos
seus primeiros erros; e esses erros, mesmo depois de serem endi­
reitados, influenciam o desenvolvimento do seu espírito, durante
o resto das suas vidas. Com a continuação, terei mais de uma opor­
tunidade para explicar este facto com exemplos.
, Limitai, pois, tanto quanto possível, o vocabulário da criança.
E um grande inconveniente que ele possua mais palavras que
ideias e que saiba dizer mais coisas do que as que pode pensar.
Creio que uma das razões pelas quais os camponeses têm, geral­
mente, o espírito mais justo que as pessoas da cidade é que o seu
dicionário é menos extenso. Têm poucas ideias, mas comparam­
-nas muito bem.
Os primeiros desenvolvimentos da infância efectuam-se qua­
se todos ao mesmo tempo. A criança apr�nde a falar, a comer e a
andar, mais ou menos na mesma época. E essa, realmente, a pri­
meira época da sua vida. Antes dela, não é mais do que era quan­
do se encontrava no seio da mãe; não tem qualquer sentimento,
qualquer ideia; e,quanto a sensações,poucas tem; nem sequer sen­
te a sua própria existência:

Viuit, et est uitae nescius ipse suae.


60
LIVRO II
Aqui começa a segunda idade da vida e aquela em que propria­
mente termina a infância; porque as palavras infans e puer não são
sinónimas. A primeira está incluída na outra e significa que não
pode falar; daí vem que encontremos a expressão puerum infantem
em Valere Maxime. Mas continuo a empregar essa palavra, con­
soante o uso da nossa linguagem, até à idade para a qual ela tem
outras palavras.
Quando as crianças começam a falar, choram menos. Este pro­
gresso é natural: uma linguagem é substituída pela outra. Logo,
se, com palavras, podem dier que sofrem, por que o haveriam de
dizer com gritos, a não ser quando a dor é demasiado lancinante
para que a palavra a possa expressar? Nesse caso, se continuam a
chorar, a culpa é das pessoas que as rodeiam. Desde que Emílio te­
nha dito, uma só vez: Tenho dores, será preciso que estas sejam
muito vivas para o forçarem a chorar.
Se a criança for frágil, sensível, se naturalmente se puser-a
chorar sem motivo, rapidamente lhe tiro esse hábito. Enquanto
chorar, não me aproximo dela; corro para ela logo que se cale. Mui­
to depressa, a sua maneira de me charn_ar será calando-se, ou,
quanto muito, lançando um único grito. E pelo efeito sensível dos
seus sinais que as crianças avali am os seus sentidos, não têm ou­
tra maneira de compreender; por mais que uma criança se magoe,
é muito raro que chore quando está sozinha, a não ser que tenha
esperanças de ser ouvida.
Se cai, se faz um «galo» na cabeça, se tem uma hemorragia na­
sal, se corta os dedos, em vez de acorrer para ela, com um ar preo­
cupado, manter-me-ei impassível, pelo menos durante um certo
tempo; o mal está feito, que ela o suporte é uma necessidade; o meu
desvelo só serviria para a assustar ainda mais e aumentar a sua
sensibilidade. No fundo, é o receio que atormenta, mais do que a
pancada, quando nos magoamos; porque, muito certamente, ela
encarará o seumalda maneira como verá que eu o considero:se me
vir acorrer, aflito, consolando-a, lastimando-a, considerar-se-á
perdida; se vir que eu conservo a minha serenidade, em breye re­
cuperará a sua e suporá o mal curado, logo que não o sinta. E nes­
sa idade que se recebem as primeiras lições de coragem, e que,so­
frendo sem susto ligeiras dores, se aprende, gradualmente, a su­
portar as grandes.
Longe de tomar providências para que Emílio não se fira, fica­
ria muito aborrecido se ele nunca se ferisse e crescesse sem conhe- 6 3
cer a dor. Sofrer é a primeira coisa que ele deve aprender, e aquela
que ele terá a maior necessidade de saber. Parece que as crianças
só são pequenas e frágeis para poderem aprender estas importan­
tes lições sem correrem perigo. Se a criança tropeça e cai, não par­
tirá uma perna; se apanha uma paulada, não partirá o braço; se
agarra num ferro cortante, não o apertará, não se cortará profun­
damente. Que eu saiba, nunca se viu que uma criança deixada em
liberdade se matasse, se estropiasse ou se ferisse consideravel­
mente, a não ser que a tivessem exposto, inconsideradamente, em
lugares elevados, ou sozinha em volta de um lúme, ou que se te­
nham deixado instrumentos perigosos ao seu alcance. Que pensar
dessaquantidade de máquinas que sepõemem volta deuma crian­
ça para a proteger contra a dor, até que, mesmo depois de cresci­
da, ela fique dependente delas, sem coragem e sem experiência, e
que se creia morta quando leva a primeira injecção, ou perca os
sentidos quando vê a primeira gota do seu sangue?
A nossa mania doutrinária e pedantesca é sempre a de ensinar
às crianças o que elas aprenderiam muito melhor por si próprias,
e de nos esquecermos de lhes ensinar o que só connosco poderiam
aprender. Haverá coisa mais tola que o trabalho que se tem para
as ensinar a andar, como se já se tivesse visto alguém que, por cau­
sa da negligência da ama, não soubesse andar quando é adulto?
Em contrapartida, quantas pessoas vemos que andam mal duran­
te toda a sua vida porque lhes ensinaram mal a andar!?
Emílio não andará nem com chumaços, nem em berços com ro­
das, nem em cadeiras com rodas, nem com andadeiras; ou, pelo me­
nos, logo que comece a saber colocar um pé adiante do outro, será
unicamente amparado nos lugares pavimentados, e só muito rapi­
damente terá de passar por eles1• Em vez de o deixar estagnar no
ar viciado de um quarto, todos os dias será levado para o meio de
um prado. Ali, que corra, que se rebole, que caia cem vezes por dia,
é preferível: assim, mais cedo aprenderá a levantar-se. O bem­
-estar da liberdade compensa muitos ferimentos. O meu pupilo
sofrerá frequentes contusões; em compensação, estará sempre
bem-disposto. Os vossos, embora as sofram menos, estão sempre
contrariados, sempre acorrentados, sempre tristes. Duvido que ti­
rem algum proveito disso.
Há outro progresso que toma o queixume menos necessário
para as crianças: é o das suas forças. Podendo mais por si próprias,
têm uma necessidade menos frequente de recorrer a outrem. Com

1 Não há nada mais ridículo e mais vacilante que a maneira de an­


dar das pessoas que utilizaram as andadeiras em demasia quando eram
crianças: é mais uma dessas observàções triviais, por serem justas, e que
64 são justas em mais de um sentido.
essa força� desenvolve-se o conhecimento que as põe em estado de
a dirigir. E nesta segunda fase que, propriamente, começa a vida
de indivíduo; é nesse momento que ela toma consciência de si
mesma. A memória espraia o sentimento da identidade a todos os
momentos da sua existência; torna-se verdadeiramente una, a
mespla,e,por conseguinte,jácapazde contentamento ou de triste­
za. E, pois, importante que, nesta fase, comece a ser considerada
como um ser moral.
Embora se tenha determinado, a mais ou menos longo prazo,
o limite de duração da vida humana e, em cada idade, as probabi­
lidades que se têm de atingir esse limite, nada é mais incerto que
a duração da vida de cada homem,individualmente; muito poucos
atingem esse limite. Os maiores riscos da vida estão no seu início;
quanto menos se viveu,menostempose pode esperar viver. Deen­
tre as crianças que nascem, a metade -quanto muito-atinge a
idade da adolescência; e é provável que o vosso pupilo não atinja
a idade de adulto.
Que deveremos então pensar dessa educação bárbara que sa­
crifica o presente a um futuro incerto,que acorrenta a criança com
grilhões de toda as espécies e que começa por a tornar infeliz,a fim
de lhe preparar, de longe, não sei que pretensa felicidade da qual
se pode crer que ela nunca virá a disfrutar? Mesmo que eu supu­
sesse essa educação razoável no seu objectivo, como poderia ver,
' sem indignação, as pobres infortunadas submetidas a um jogo in­
suportável e condenadas a contínuos trabalhos, como galés, sem
ter a certeza de que tantos cuidados lhes virão alguma vez a ser
úteis!? A idade das alegrias passa-se no meio dos choros, dos cas­
tigos, das ameaças, da escravidão. Atormenta-se a infeliz, para
seu próprio bem; e não vêm a morte que chamam e que irá colhê­
-la no meio desse triste sistema. Quem sabe quantas crianças mor­
rem, vitimadas pela extravagante sageza de um pai ou de um mes­
tre? Felizes por escaparem à sua crueldade,o único benefício que
retiram dos males que lhes fizeram sofrer é morrerem sem levar
saudades da vida, de que apenas conheceram os tormentos.
Homens, sede humanos, é esse o vosso primeiro dever; sede-o
para todas as condições, para todas as idades, para tudo quanto
não é alheio ao homem. Que sageza haverá para vós sem a huma­
nidade? Amai a infância; favorecei os seus jogos, os seus prazeres,
o seu amável instinto. Qual de vós nunca sentiu saudades dessa
idade em que o riso está sempre nos lábios e a alma sempre em paz?
Por que motivo quereis retirar a esses pequenos inocentes o gozo
de uma época tão curta que lhes escapa, e de um bem tão precio-
so de que eles não saberiam abusar? Por que razão quereis encher
de amargura e de dores os primeiros anos, tão breves, que não vol­
tarão para eles, do mesmo modo que não podem voltar para vós?
Pais, sabeis em que momento a morte atingirá os vossos filhos? 65

L.B.523-5
Não vos prepareis remorsos a vós mesmos, retirando-lhes os pou­
cos instantes que a natureza lhes dá: logo que eles possam sentir
o prazer de existir, fazei que disfrutem da vida; procedei de modo
a que, no momento em que Deus os chamar, eles não morram sem
a terem provado.
Quantas vozes se irão elevar contra mim! De longe, já ouço os
clamores dessa falsa sageza que nos põe constantemente fora de
nós, que considera sempre o presente como não existindo e que,
perseguindo incessantemente um futuro que se afasta à medida
que se avança,pretendendo transportar-nospara aonde não esta­
mos,, nos transporta para aonde nunca estaremos.
E -responder-me--és-o momento de corrigir as más incli­
nações do homem; é na idade da infância, quando as mágoas são
menos sensíveis, que é preciso multiplicá-las, para as evitar na
idade da razão. Mas quem vos diz que todo esse plano está à vos­
sa disposição e que todas essas belas instruções de que sobrecar­
regais o frágil espírito de uma criança não lhe virão a ser, um dia,
mais perniciosas que úteis? Quem vos garante que lhes evitais al­
guma coisa, com os desgostos que lhes prodigais? Por que lhes pro­
vocais mais males do que a sua condição comporta, sem terdes a
certeza de que esses males presentes virão a ser descontados nos
do futuro? E como me provareis que essas más tendências de que
pretendeis curá-las não lhes vêm dos vossos cuidados mal com­
preendidos, muito mais que da natureza? Infeliz previdência essa
que, agora, torna um homem miserável, na esperança- bem ou
mal fundada- de um dia o vir a tornar feliz! Se esses argumen­
tadores vulgares confundem a indisciplina com a liberdade, e a
criança que tornamos feliz com a que amimamos, aprendamos a
distingui-los.
Para não corrermos atrás das quimeras, não nos esqueçamos
doque convém à nossa condição. A humanidade tem o seu lugar na
ordem das coisas; a infância tem o seu na ordem da vida humana:
é preciso que, no homem,se considere o homem, e que,na criança,
se considere a criança. Determinar o lugar de cada um e aí o fixar,
ordenar as paixões humanas segundo a constituição do homem, é
tudo quanto podemos fazer para o seu bem-estar. O resto depen­
de de causas externas que não estão em nosso poder.
Não sabemos o que é a felicidadeou a infelicidade absoluta. Tu­
do se apresenta misturado nesta vida; nela, não se experimenta
nenhum sentimento puro, não se permanecem dois momentos na
mesma situação. As afecções das nossas almas,assim como as mo­
dificações dos nossos corpos, estão num fluxo contínuo. O bem e o
mal são comuns a toP,os nós,mas em proporções diferentes. O mais
feliz é aquele que menos penas sente; ornais miserável aquele que
menos sente os prazeres. Sempre mais sofrimentos que satisfa-
66 ções: eis a diferença que nos é comum a todos. A felicidade do ho-
mem, cá em baixo, não é, por conseguinte, mais do que um estado
negativo; deveremos medi-la pela menor quantidade de males de
que ele sofre.
Cada sentimento de mágoa é inseparável do desejo de se livrar
dela; cada ideia de prazer é inseparável do desejo de dele fruir; ca­
da des�jo supõe privações que sentimos penor;as; é,pois,na despro­
porção dos nossos desejos e das nossas faculdades que consiste a
nossa miséria. Um ser sensível cujas faculdades igualariam os de­
sejos, seria um ser absolutamente feliz.
Então, em que consiste a sageza humana ou o caminho para a
verdadeira felicidade? Não é precisamente reduzindo os nossos
desejos; porque, se eles estivessem acima do nosso poder, uma
parte das nossas faculdades permaneceria ociosa e não disfruta­
ríamos de todo o nosso ser. Também não é aumentando as nossas
faculdades, porque, se os nossos desejos aumentassem simulta­
neamente, numa proporção maior, com isso só nos tornaríamos
mais miseráveis: mas é diminuindo o excesso dos desejos sobre as
(acuidades e colocando em perfeita igualdade o poder e a vontade.
E só nesse caso que - com todas as forças em acção- a alma se
conservará serena e que o homem se encontrará em equilíbrio.
Foi assim que a natureza -que tudo faz pelo melhor-come­
çou por instituí-lo. De início,dá-lhe apenas os desejos necessários
para a sua conservação e as faculdades suficientes para os satis­
fazer. Colocou todas as outras como de reserva,no fundo da sp.a al­
ma,para que,se disso houver necessidade,se desenvolvam. E ape­
nas neste estado primitivo que o equilíbrio do poder e do desejo se
estabelece e que o homem não se sente infeliz. Logo que as suas fa­
culdades virtuais se põem em acção, a im�nação- a mais acti­
va de todas- desperta e ultrapassa-as. E a imaginação que am­
plia,para nós,a medida dos possíveis-quer em bem,quer em mal
-e que, por conseguinte, excita e alimenta os des�jos, com a es­
perança de os satisfazer. Mas o objecto que, de início, parecia ao
nosso alcance, afasta-se a uma velocidade maior do que a nossa;
quando supomos atingi-lo, transforma-se e mostra-se, ao longe,
na nossa frente. Não vendo a distância já percorrida,nada conse­
guimos; aquele que porfia em persegui-lo,engrandece,estende-se
continuamente. Assim, extenua-se sem chegar ao termo; e quan­
to mais cremos estar a atingir a fruição mais a felicidade se afas­
ta de nós.
Inversamente,quanto mais o homem se conserva perto da sua
condição natural, mais a diferença entre as suas faculdades e os
seus desejos é pequena e, por conseguinte, menos longe ele se en­
contra de fruir da felicidade. Nunca o homem é menos miserável
que quando parece desprovido de tudo; porque a miséria não
consiste na privação das coisas, mas na necessidade que delas se
sente. 67
O mundo real tem os seus limites e o mundo imaginário é in­
finito;não podendo alargar o primeiro,estreitemos o segundo; pois
que é unicamente da diferença que entre eles existe que nascem to­
das as penas que nos tornam verdadeiramente infelizes. Se puser­
des de lado a força, a saúde, a boa impressão que cada um tem de
si mesmo, todos os bens desta vida residem na opinião pública; se
puserdes de lado as dores do corpo e os remorsos da consciência,to­
dos os nossos males são imaginários. <<Este princípio é comum», di­
reis; concordo convosco; mas a aplicação prática dele não é comum;
e é unicamente da prática que se trata agora.
Quando se diz que o homem é fraco,que se pretende insinuar?
Essa palavra <<fraqueza>> indica uma sensação, uma sensação do
ser ao qual ela é aplicada. Aquele cuja força ultrapassa as suas ne­
cessidades-nem que seja um insecto ou um verme-é um ser for­
te; aquele cuja força é ultrapassada pelas suas necessidades, seja
ele um leão, um elefante; seja ele um conquistador, um herói; se­
ja ele um deus; é um ser fraco. O anjo rebelde que desconheceu a
sua natureza era mais fraco que o feliz mortal que vive em paz con­
soante a sua. O homem é muito forte quando se contenta em ser
aquilo queé;é muito fraco quando se quer elevar acima dahumani­
dade. Por isso, não se convençam de que, desenvolvendo as vossas
·faculdades, aumentareis as vossas forças; pelo contrário, dimi­
nuí-as quando o vosso orgulho se desenvolve mais que elas. Meça­
mos o raio da nossa esfera e fiquemos no centro, como o insecto no
seu casulo; bastar-no�mos sempre a nós mesmos,e não teremos
motivos para nos queixarmos da nossa fraqueza, porque nunca a
sentiremos.
• Todos os animais têm exactamente as faculdades necessárias
para se conservarem. Só o homem tem faculdades supérfluas. Não
é estranho que esse supérfluo seja o instrumento da sua miséria?
Em todos os países, os braços de um homem valem mais que a sua
subsistência. Se ele fosse suficientemente sage para considerar es­
se excesso como não valendo nada, teria sempre o necessário, por­
que nunca teria nada em excesso. As grandes necessidades- di­
zia Favorin-têm a sua origem nos grandes bens; e,muitas vezes,
o melhor sistema para nos proporcionarmos as cojsas que não te­
mos é desembaraçarmo-nos das que possuímos. E à custa de nós
trabalharmos para aumentarmos a nossa felicidade que a
transformamos em miséria. Qualquer homem que apenas desejas­
se viver viveria feliz; por conseguinte, viveria bom: porque... que
vantagem teria ele em ser mau? ,
Se fôssemos imortais, seríamos seres muito miseráveis. E tris­
te morrer,sem dúvida; mas é agradável esperar quenãoviveremos
6 8 sempre e que uma vida melhor porá fim às penas desta. Se nos ofe-
recessem a imortalidade neste mundo, quem quereria1 aceitar es­
se triste presente? Que recurso, que esperança, que consolação nos
restaria, contra os rigores do destino e contra as injustiças dos ho­
mens? O ignorante, que nada prevê, pouco sente o valor da vida e
pouco receia perdê--la; o homem esclarecido vê bens de maior valor,
que prefere a esse. Só o meio saber e a falsa sageza é que, pro­
longando as nossas vistas até à"morte, e não para além dela,
constituem, para nós, o pior dos males. Para o homem sage, a ne­
cessidade de morrer é apenas uma razão para suportar as penas
da vida. Se não tivéssemos a certeza de a vir a perder, ela exigiria
muito para ser conservada.
Todos os nossos males morais dependem da opinião dos outros,
excepto um único, que é o crime; e este depende de nós: os nossos
males físicos destroem-se ou destroem-nos. O tempo ou a morte
são os nossos remédios; mas sofremos tanto mais quanto somos
capazes de sofrer; e atormentamo--nos muito mais para curar as
nossas doenças que para as suportar. Vive segundo a natureza, sê
paciente e afasta de ti os médicos; não evitarás a morte, mas só a
sentirás uma vez, enquanto eles todos os dias a levam à tua ima­
ginação perturbada, e que a sua arte enganadora, em vez de pro­
longar os teus dias, te retira a fruição deles. Sempre me pergunta­
rei que verdadeiro bem essa arte fez aos homens. Alguns daqueles
que ela curou teriam morrido, isso é verdade; mas os milhões que
ela matou ainda estariam vivos. Homem sensato, não jogues nes­
sa lotaria em que há excessivas probabilidades contra ti. Sofre,
morre ou cura-te; mas, sobretudo, vive até à tua derradeira hora.
Nas instituições humanas, tudo é loucura e contradição.
Inquietamo--nos mais com a nossa vida, à medida que ela vai per­
dendo o seu valor. Os velhos inquietam--se mais com a sua perda
que os jovens; não querem perder os preparativos que fizeram pa­
ra dela disfrutar; aos 60 anos, é muito cruel morrer, antes de ter
começado a viver. Crê--s e que o homem tem um vivo amor pela sua
conservação, e isso é verdade; mas não se vê que, tal como o sen­
timos, esse amor seja, em grande parte, qbra dos homens. Natural­
mente, para se conservar, o homem só se inquieta na proporção dos
meios que tem para o fazer; logoque essesmeios lhe escapam, tran­
quiliza--se e morre sem se atormentar inutilmente. A primeira lei
da resignação vem-nos da natureza. Os selvagens, assim como os
animais, pouco se debatem contra a morte e suportam-na quase
sem queixumes. Destruída esta lei, forma-se outra que deriva da
razão; mas poucos sabem retirá-la dela, e essa resignação factícia
nunca é tão plena e total como a primeira.

1 Concebe--se que, aqui, estou a falar dos homens que reflectem, e


não de todos os homens. 69
A previdência! A previdência que nos transporta incessante­
mente para além de nós mesmos e muitas vezes nos coloca onde
não chegaremos, eis a verdadeira origem de todas as nossas misé­
rias. Que mania tem um ser tão passageiro como o homem de olhar
sempre para longe, para um futuro que raramente chega, e de ne­
gligenciar o presente, de que está seguro! Mania essa tanto mais
funesta que aumenta incessantemente com a idade, e que leva os
velhos- sempre desconfiados, previdentes, avaros -a preferi­
rem recusar-se hoje o necessário que terem de sentir falta do
supérf1uo daqui a cem anos. Assim, agarramo-nos a tudo, apega­
mo-nos a tudo; as épocas, os lugares, os homens, as coisas, tudo
quanto existe, tudo quanto virá a existir, interessa a cada um de
nós; o nosso indivíduo não é mais do que a ínfima parte de nós mes­
mos. Cada um se espalha, por assim dizer, pela terra inteira, e se
torna sensível sobre toda essa grande superfície. Será de admirar
que os nossos males se multipliquem em todos os pontos em que
nos podem magoar? Quantos príncipes se desolam pela perda de
um país que nunca viram! A quantos mercadores basta atingir,
nas lndias, para que gritem em Paris!
Será a natureza que arrebata os homens para tão longe de si
mesmos? Será ela que quer que cada um tome conhecimento do seu
destino através dos outros, e que, por vezes, seja o último a ter co­
nhecimento dele, de tal modo que um determinado homem morra
feliz ou miserável, sem nunca o ter sabido? Vejo um homem fres­
co, alegre, vigoroso, saudável; a sua presença inspira a alegria; os
seus olhos anunciam o contentamento, o bem-estar; transporta,
consigo, a imagem da felicidade. Chega uma carta pelo correio; o
homem feliz olha-a, vem endereçada a ele, abre-a, lê-a. De um
momento para o outro, o seu aspecto modifica-se: empalidece, cai
sem sentidos. Voltando a si, chora, agita-se, geme, arranca os pró­
prios cabelos, solta gritos, parece presa de horríveis convulsões.
Insensato! Que mal te veio fazer esse papel? Que membro te reti­
rou ele? Que crime te levou a cometer? Enfim, que foi que ele veio
mudar em ti próprio, para te pôr no estado em que te vejo?
Que a carta se tivesse perdido, que uma mão caridosa a tivesse
lançado no lume, e o destino desse mortal, simultaneamente feliz
e infeliz, teria sido, pelo que me parece, um problema bastante es­
tranho. Dir-me-eis que a sua infelicidade era real. Muito bem,
mas ele não a sentia. Onde estava ela? A sua felicidade era imagi­
nária. Quero dizer que a saúde, a alegria, o bem-estar, a satisfa­
ção do espírito, não são mais do que visões. Nós deixamos de exis­
tir onde estamos, só existimos aonde não estamos. Valerá a pena
ter um tão grande medo da morte, se o estado em que vivemos per­
manece?
Ó homem! Sustém a tua existência dentro de ti, e, assim, dei-
7o xarás de ser miserável. Permanece no lugar que a natureza te atri-
buiu, na correnteza dos seres, e nada poderá fazer-te sair dele; não
te insurjas contra a dura lei da necessidade, e não esgotes -
pretendendo resistir-lhe-forças que o céu não te deu para esten­
deres ou prolongares a tua existência, mas apenas para a conser­
vares como lhe agrada a ele, e tanto quanto lhe compraz. A tua
liberdade, o teu poder, só se estendem tão longe quanto as tuas for­
ças naturais, e não para além delas; tudo o resto não é mais do que
escravidão, ilusão, prestígio. A própria dominação é servil, quan­
do infl�enciada pela opinião dos outros; porque tu dependes dos
preconceitos daqueles que governas pelos preconceitos. Para os
conduzires como te agrada a ti, precisas de os conduzir como lhes
agrada a eles. Basta-lhes mudar a sua maneira de pensar para
que te vejas forçado a mudar o teu modo de agir. Aqueles que de ti
se aproximam só precisam de saber governar as opiniões do povo
que crês governar, ou as dos favoritos que te governam, ou as da
tua família, ou as que te são próprias: esses vizires, esses corte­
sãos, esses sacerdotes, esses soldados, esses lacaios, essas mulhe­
res tagarelas e até algumas crianças- mesmo que tenhas o génio
de um Temístocles1 -dirigir-te-ão como se tu próprio fosses uma
criança, por entre as tuas legiões. Por mais que faças, nunca a tua
verdadeira autoridade irá mais longe que as tuas reais faculdades.
Quando se começa a ter de ver pelos olhos dos outros, é necessário
querer através das suas vontades. «Os meus povos são meus vas­
salos••, dizes tu orgulhosamente. Seja! Mas tu que�s? O vassalo dos
teus ministros. E, por sua vez, os teus ministros que são? Os vas­
salos dos seus subalternos e das suas amantes, os lacaios dos seus
lacaios. Tomai tu do, usurpai tudo, e d epo is vertei o dinheiro às
mãos-cheias; apontai baterias de canhão; elevai forcas e rodas; fa­
zei leis, decretos; multiplicai os espiões, os soldados, os carrascos,
as prisões, as correntes; pobres homenzinhos: para que vos serve
tudo isso? Não será assim que sereis mais bem servidos, nem me­
nos roubados, nem menos enganados, nem mais absolutos. Mesmo
que não deixeis de dizer «queremos», fareis sempre o que os outros
quiserem.
O único que faz a sua vontade é aquele que, para a fazer, não
precisa de colocar os braços de outro nas extremidades dos seus:
daí se segue que o maior de todos os bens não é a autoridade mas
a liberdade. O homem verdadeiramente livre só quer o que pode,

1 Aquele rapazinho que ali vedes, dizia Temístocles aos seus amigos,
é o árbitro da Grécia; porque governa sua mãe, esta governa-me, eu go­
verno os Atenienses e os Atenienses governam os Gregos. Oh!, quantos pe­
quenos dirigentes se descobririam nos grandes impérios se, do príncipe,
se descesse, gradualmente, até à primeira mão que, secretamente, dá as
ordens. 71
e faz o que lhe apraz. É esta a minha máxima fundamental. Tra­
ta-se apenas de a aplicar à infância,e todas as regras da educação
serão baseadas nela.
A sociedade fez o homem mais fraco,não só retirando-lhe o di­
reito que ele tinha sobre as suas próprias forças, mas sobretudo
tornando-lhas insuficientes. Eis por que os seus desejos se multi­
plicam com a sua fraqueza, e eis o que faz a da infância, compara­
da à idade de adulto. Se o homem é um ser forte, e se a criança é
um ser fraco,não é porque a força absoluta do primeiro é maior que
a da segunda, mas porque aquele pode bastar-se naturalmente a
si mesmo e que esta não o pode. Por isso, o homem deve ter mais
vontades,e a criança mais fantasias;máxima pela qual entendo os
desejos que não são verdadeiras necessidades, e que não se podem
satisfazer sem o auxílio de outrem.
Expliquei a razão desse estado de fraqueza. A natureza provê
a ele pela dedicação dos pais e das mães: mas essa dedicação pode
ter o seu excesso, a sua imperfeição, os seus abusos. Progenitores
que vivem no estado civil para ele transportam o filho, antes que
ele tenha idade para isso. Dando-lhe mais necessidades que as que
ele já tem, não atenuam a sua fraqueza, aumentam-na. Ainda a
aumentam mais, exigindo dele o que a natureza não exigia,subme­
tendo às suas vontades o pouco de forças que ele tem para servir
as suas, ambos transformando em escravidão a dependência recí­
proca em que mantém a fraqueza do filho e em que os mantém a
sua dedicação a ele.
O homem sage sabe conservar-se no seu lugar; mas a criança,
que não sabe qual é o seu, não saberia manter-se nele. Tem mil
maneiras de sair dele; é aos que a governam que cabe conservá-la
nele, e essa tarefa não é fácil. Não deverá ser nem animal nem ho­
mem: mas unicamente criança; é necessário que sinta a sua fra­
queza e não que sofra por causa dela; é necessário que dependa e
não que obedeça; é necessário que peça e não que ordene. Só por
causa das suas necessidades está submetida aos outros, e porque
estes vêem melhor do que ela o que lhe pode ser útil e auxiliar ou
prejudicar a sua conservação. Ninguém tem o direito - nem se­
quer o pai - de ordenar ao filho o que,para este, não tem nenhu­
ma utilidade.
Antes de os preconceitos e de as instituições humanas virem
alterar as nossas tendências naturais, a felicidade das crianças,
assim como a dos homens, consiste na utilização da sua liberdade;
mas, nas primeiras, essa liberdade está limitada pela sua fra­
queza. Todo aquele que faz o que quer sente-se feliz se se basta a
si próprio; é o caso do homem que vive no estado da natureza. To­
do aquele que faz o que quer não é feliz quando as suas necessida­
des ultrapassam as suas forças: é o caso da criança nesse estado.
72 Mesmo no estado da natureza, as crianças só gozam de uma liber-
dade imperfeita, semelhante àquela de que disfrutam os homens
no estado civil. Cada um de nós, como não pode viver sem os seus
semelhantes, volta a ser-desse ponto de vista -fraco e miserá­
vel. Estávamos feitos para sermos homens; as leis e a sociedade
voltaram a mergulhar-nos na infância. Os ricos, os grandes, os
reis,todos eles são crianças,que,vendo que alguém se dedica a ali­
viar a sua miséria, se enchem, por esse mesmo facto, de uma vai­
dade pueril e se sentem todos orgulhosos pelos cuidados que não
lhes seriam dispensados se fossem homens feitos.
Estas considerações são importantes e servem para resolver
todas as contradições do sistema social. Há duas espécies de de­
pendências: a das coisas, que é a da natureza; e a dos homens,que
é a da sociedade. A dependência das coisas, não tendo nenhuma
moralidade, não é nociva à liberdade e não dá origem a vícios; a de­
pendência dos homens, como é desordenada1, origina-os todos, e
é através dela que o amo e o escravo se depravam mutuamente. Se
há algum sistema para remediar esse mal na sociedade, é subs­
tituir a lei pelo homem e armar as suas vontades gerais com uma
força efectiva, superior à acção de toda e qualquer vontade par­
ticular. Se as leis das nações pudessem ter- como as da nature­
za-uma inflexibilidade que nnnca nenhumaforça humana fosse
capaz de v encer, a dependência dos homens voltaria a ser a das
coisas; na sociedade, reunir-se-iam todas as vantagens do estado
natural às do estado civil; juntar-se-ia à liberdade que mantém o
homem isento de vícios a moralidade que o eleva à virtude.
Conservai a criança unicamente na dependência das coisas, e
�ereis seguido a ordem da natureza, no progresso da sua educação.
As suas vontades indiscretas, nunca oponhais mais do que obstá­
cuJos físicos ou punições que derivam das próprias acções e de que
ela se recordará quando houver ocasião para isso. Não concedei
nada aos seus desejos, só porque ela pede, mas porque ela tem ne­
cessidade do que pede. Que ela não saiba o que é obediênéia -
quando actua- nem o que é dominação - quando se age por ela.
Que também sinta a sua liberdade nas suas acções e nas vossas.
Supri a força que lhe falta,com tanta precisão quanta a que lhe fal­
ta para ser livre e não imperiosa; que, ao receber os vossos présti­
mos como uma espécie de humilhação,ela aspire pelo momento em
que poderá passar sem eles e em que terá a honra de se servir a si
própria.
Para fortalecer o corpo e o fazer crescer, a natureza utiliza
meios que nunca devem ser contrariados. Não sedeve obrigar uma

1
Nos meus Príncipes du Droitpolitique (Princípios do direito polí­
tico), é demonstrado que nenhuma vontade particular pode ser ordenada
no sistema social. 73
criança a ficar quando ela quer ir, nem a ir quando ela quer ficar.
Quando a vontade das crianças não está �stragada pela nossa cul­
pa, elas não querem nada inutilmente. E preciso que pulem, que
corram, que gritem quando têm vontade de o fazer. Todos os seus
movimentos são necessidades da sua constituição, que procura for­
talecer-se; mas deveremos desconfiar das coisas que elas desejam
sem as poderem fazer e que outros são obrigados a fazer por elas.
Nesse momento é preciso discernir cuidadosamente a verdadeira
necessidade � a necessidade natural-da necessidade de fanta­
sia que começa a nascer, ou daquela que só lhe vem da superabun­
dância de vida de que já falei.
Já expliquei o que se deverá fazer quando uma criança chora
para conseguir obter isto ou aquilo. Limitar-m�i a acrescentar
que, logo que é capaz de falar, se, para pedir o que deseja-e só pa­
ra o obter mais depressa ou para vencer uma recusa -ela apoia
o seu pedido com choros, o objecto pedido deverá ser-lhe irrevoga­
velmente recusado. Se a necessidade a levou a falar, deveis sabê­
-lo e fazer imediatamente o que ela pede; mas ceder seja o que for
às suas lágrimas é excitá-la a vertê-las, é ensinar-lhe a duvidar
da vossa boa vontade e a acreditar que a importunidade tem mais
poder sobre vós que a benevolência. Se ela não vos crê bons, rapi­
damente se tornará má; se vos crê fracos, em breve se mostrará tei­
mosa; é importante conceder sempre, ao primeiro sinal,o que não
se pretende recusar. Não sejais pródigos em recusas,mas nunca as
revogueis.
Sobretudo, evitai ensinar à criança inúteis fórmulas de corte­
sia que, quando é preciso, lhe servem de palavras mágicas para
submeter às suas vontades tudo quanto a rodeia é�obter rapida­
mente tudo quanto quer. Na educação amaneirada dos ricos,
nunca se deixa de as ensinar a ser cortesmente imperiosas, pres­
crevendo-lhes os termos de que se devem servir para que ninguém
se atreva a resistir-lhes; os filhos dessa gente não empregam nem
o tom nem a maneira suplicante; são tão arrogantes -até mais!
-quando pedem, quando ordenam, como estando convencidos de
serem obedecidos. Começamos por ver que se faz favor significa,na
boca dessas pessoas, apetece-me, e que rogo-lhe significa ordeno­
-lhe. Admirável cortesia que, para elas, se limita a modificar o
sentido das palavras e a nunca serem capazes de falar sem ar de
dominação! Quanto a mim, que receio menos que Emílio seja gros­
seiro que arrogante, prefiro, de longe, que ele diga, pedindo, faça
isso, a que diga, ordenando, rogo-lhe. Não é o termo que ele utili­
za que me interessa mas sim a acepção que ele lhe empresta.
Há um excesso de rigor e um excesso de indulgência que se de­
vem igualmente evitar. Se deixais sofrer as crianças, expondes a
sua saúde,as suas vidas,tornai-las miseráveis; se, com excessivos
7 4 cuidados, lhes poupais toda e qualquer espécie de mal--€star, pre-
parais-lhes grandes misérias; tornai-las frágeis, sensíveis; reti­
rai-las do seu estado de homens no qual elas voltarão a entrar, um
dia, mesmo que o não queirais. Por não as quererdes expor a alguns
males da natureza, passareis a ser obreiros daqueles que ela não
lhes deu. Dir-me-eis que estou no caso desses maus pais aos quais
eu censurava sacrificar a felicidade dos filhos às considerações de
um tempo ainda afastado que até poderia nunca chegar.
Mas não: porque a liberdade que dou ao meu pupilo compen­
sa-<> amplamente pelas leves incomodidades a que o deixo expos­
to. Vejo uns miúdos que brincam na neve, violáceos, transidos de
frio e mal podendo mover os dedos. Se quiserem, poderão ir a ca­
sa, aquecer-se, mas não o fazem; se fossem forçados a fazê-lo, sen­
tiriam cem vezes mais os rigores da coacção que os que sentem do
frio. Por conseguinte, de que vos queixais? Farei o vosso filho in­
feliz, se o expuser unicamente às incomodidades que ele estiver
disposto a suportar? No momento presente, contribuo para o seu
bem, deixandO-{) livre; contribuo para o seu futuro bem, armando­
-<> contra males que ele deve suportar. Se ele pudesse escolher en­
tre ser meu pupilo ou vosso, pensais que teria alguma hesitação?
Imaginais que, fora da sua constituição, haja alguma possível
felicidade para um ser? E não será retirar o homem da sua cons­
tituição querer isentá-lo igualmente de todos os males da sua es­
pécie? Sim, insisto nisso: para sentir os grandes bens, é preciso que
o homem conheça os pequenos males; assim é a sua natureza. Se
o físico estiver demasiadamente bem, o moral corrom·pe-se. O
homem que não conhecesse a dor não conheceria nem o enterneci­
mento da humanidade nem a doçura da comiseração; o seu cora­
ção não se enterneceria com nada, não seria sociável, seria um
monstro entre os seus semelhantes.
Sabeis qual ,é o sistema mais seguro para tornardes o vosso fi­
lho miserável? E habituá-lo a ter tudo; .porque, como os seus dese­
jos aumentam incessantemente com a facilidade que encontra na
satisfação, mais. cedo ou mais tarde, a impossibilidade obrigar­
-vos-á -mesmo que o não queirais - a ter de lhe recusar alguma
coisa;e essa recusa, fora do habitual, dar-lhe-á mais tormento que
a própria privação do que ele deseja. Para começar, quererá a ben­
gala que utilizais; pouco depois, quererá o vosso relógio; a seguir,
quererá o pássaro que vê voar; quererá a estrela que vê brilhar;
quer.erá tudo o que vir: como não sois Deus, como o satisfareis?
E uma disposição natural do homem, a de considerar como seu
tudoquanto estáem seu poder. Neste sentido, e atéum certo ponto,
o princípio de Hobbes está certo: multiplic ai, com os nossos dese­
jos, os meios de os satisfazermos, e cada um se apoderará de tudo.
E, assim, a criança à qual basta desej ar para obter crê-se proprie­
tária do universo; considera todos os homens como seus escravos;
e quando, por fim, se é obrigado a recusar-lhe alguma coisa, ela, 7 5
crendo que tudo é possível quando ordena, toma esE;a recusa por
um acto de rebelião; todas as razões que se lhe dão, numa idade in­
capaz de raciocinar, não passam, na sua ideia, de pretextos; por to­
da a parte vê má vontade: o sentimento de uma pretensa injusti­
ça azedando o seu natural, começa a odiar toda a gente, e, sem nun­
ca se sentir grata pela benevolência, indigna---se contra qualquer
oposição.
Como poderei eu conceber que uma criança, assim dominada
pela cólera e devorada pelas p�ixões mais irascíveis, venha algu­
ma vez a ser feliz? Feliz, ela!? E uma déspota; é, simultaneamen­
te, a mais vil das escravas e a mais miserável das criaturas. Vi
crianças educadas dessa maneira, que queriam que se virasse a ca­
sa do avesso só com um encontrão, que lhes dessem o galo que viam
ao cimo de um campanário, que se detivesse o desfile de um regi­
mento para poderem ouvir os tambores durante mais tempo, e que
lançavam gritos estridentes, sem quererem dar ouvidos a nin­
guém, quando tardavam em obedecer-lhes; os seus desejos, exa­
cerbados pela facilidade de obter, obstinavam-se em coisas im pos­
síveis e só encontravam contradições, obstáculos, penas, dores.
Sempreresm ungonas, sempre revoltadas, sempre furiosas, passa­
vam os dias a gritar, a queixar-se. Seriam essas crianças muito
afortunadas? A fraqueza e a dominação, quando reunidas, só en­
gendram a loucura e a desgraça. De duas crianças amimadas, uma
dá pancadas em cima da mesa e a outra irrita---se; muitas panca­
das e muitas irritações terão de aguentar antes de começarem a vi­
ver satisfeitas.
Se essa ideias de dominação e de tirania as tornam miseráveis
desde a infância, que será depois de terem crescido e de as suas re­
lações com os outros homens se terem começado a alargar e a mul­
tiplicar? Acostumadas a tudo verem vergar, na sua presença, que
surpresa - quando entrarem na sociedade - ao verem que tudo
lhes resiste, e quando se virem esmagadas pelo peso desse univer­
so que pensavam poder dirigir à sua vontade!
Os seus ares insolentes, a sua vaidade pueril só lhes proporcio­
nam mortificações, desdéns, troças; bebem as afrontas como quem
bebe água; cruéis provações em breve lhes ensinam que não conhe­
cem nem a sua condição nem as suas forças; não podendo tudo,
crêem nada poder. Tantos obstáculos inabituais as rechaçam, tan­
tos desprezos as aviltam: tornam---s e cobardes, receosas, bajulado­
ras, e descem tanto abaixo da sua própria condição quanto acima
dela se tinham elevado.
Regressemos à regra primitiva. A natureza fez as crianças pa­
ra serem amadas e ajudadas; mas tê--las-ia feito para serem obe­
decidas e receadas? Ter-lhes-ia dado um ar imponente, um olhar
severo, uma voz rude e ameaçadora, para se fazerem temer? Com-
76 preendo que o rugir de um leão aterrorize os animais e que estes
tremam quando vêm a sua terrível juba; mas, se alguma vez se viu
um espectáculo indecente, odioso, ridículo, é uma corporação de
magistrados, com o chefe à frente, em roupagens de cerimónia,
prosternados diante de uma criança de fraldas, arengand<r-a com
termos pomposos, e esta, como única resposta, lhes grita e se baba.
Considerando a infância pelo que realmente ela é, haverá no
mundo um ser mais frágil, mais miserável, mais à mercê de tudo
quanto a rodeia, que tenha mais necessidade de misericórdia, de
cuidados e de protecção que uma criança? Não dá a impressão de
que só tem um rosto tão doce e um ar tão comovedor para que tu­
do quanto dela se aproxima se interesse pela sua fraqueza e se em­
penhe em socorrê-la? Que haverá, então, de mais chocante, de
mais contrário à ordem que ver uma criança imperiosa e rebelde
comandar a tudo quanto a rodeia e tomar impunemente o tom de
chefe com aqueles que, se a abandonassem, a fariam morrer?
Por outro lado, quem não se apercebe de que a fraqueza da pri­
meira idade acorrenta as crianças de tantas maneiras, que até é
bárbaro acrescentar a essa sujeição a dos nossos caprichos, que
lhes retira uma liberdadej á tão limitada, da qual tão pouco podem
abusar, � de que é pouco útil - tanto para elas como para nós ­
p rivá-las? Se, p o r um lado, não há coisa mais ridícula que uma
criança altiva, por outro, não há coisa mais digna de piedade que
uma criança medrosa. Já que, com a idade da razão, começa a ser­
vidão civil, porquê preveni-la com a servidão privada? Suporte­
mos que um momento da vida esteja isento desse jugo que a natu­
reza não nos impôs e deixemos à infância o exercício da liberdade
natural, que, pelo menos durante algum tempo, a afasta dos vícios
que se contraem na escravidão. Que esses institutores severos, que
esses pais dominados pelos filhos, venham, com as suas objecções
frívolas, e que - antes de gabarem os seus métodos - aprendam,
de vez, os métodos da natureza.
Voltemos à prática. Já disse que o vosso filho não deverá obter
as coisas porque as pede, mas porque precisa delas1 , nem fazer na·
da por obediência mas unicamente por necessidade. Assim, as pa­
lavras «Obedecer>> e «ordenar» serão proscritas do seu dicionário, e,
ainda com mais razão, «dever>> e «obrigação>>;mas as palavras «for-

1 Devemos compreender que, assim como a mágoa é, muitas vezes,


uma necessidade, o prazer é, por vezes, uma carência. Por conseguinte, há
apenas um único desej o das criançag que nunca deverá ser satisfeito; o de
se lhes obedecer. Daí que, em tudo o que pedem, é sobretudo ao motivo que
as leva a pedir que se deve prestar atenção. Concedei-lhes, na medida do
possível, tudo quanto lhes possa proporcionar um verdadeiro prazer;
recusai-lhes sempre o que só pedem por fantasia ou para fazerem acto de
autoridade. 77
ça», «necessidade», «incapacidade» e «coacção>> devem nele ocupar
um lugar muito importante. Antes da idade da razão, é impossível
que ela tenha qualquer ideia sobre os seres morais ou sobre as re­
lações sociais; por conseguinte, é necessário evitar, tanto quanto
possível, utilizar palavras que expressem isso, para evitar que a
criança comece por lhes atribuir ideias falsas que, depois, não se
poderão destruir. A primeira ideia falsa que entra na cabeça da
criança é, para ela, o germe do erro e do vício; é sobretudo a esse
primeiro passo que se deve prestar muita atenção. Fazei que, en­
quanto só se deixa impressionar pelas coisas sensíveis, todas as
suas ideias se resumam às sensações; fazei que, em sua volta, ela
só se aperceba do mundo físico: se assim não fizerdes, podereis fi­
car com a certeza de que ela não vos escutará, ou que formará ­
sobre o mundo moral, de que lhe falais - noções fantásticas que
nunca mais podereis apagar da sua mente.
Argumentar com as crianças era a principal máxima de Locke;
e, hoje em dia, é a que está mais na voga; no entanto, o seu êxito
não me parece de molde a dar-lhe crédito; e, cá por mim, não co­
nheço nada mais pateta que essas crianças com as quais tanto se
arrazoou. De todas as faculdades do homem, a razão -que, por as­
sim dizer, não é mais do que um com posto de todas as outras - é
a que mais dificilmente e mais tarde se desenvolve; e é dela que se
pretendem servir para desenvolver as primeiras! A obra-prima de
uma boa educação é fazer um hom�m razoável: e há quem preten­
da educar uma criança pela razão! E começar pelo fim, é querer uti­
lizar a obra como instrumento. Se as crianças tivessem razão, não
precisariam de ser educadas; mas, falando-se-lhes, desde a sua
mais tenra idade, numa linguagem que elas não compreendem,
habituamo-las a contentarem-se com palavras vãs, a controlar
tudo quanto se lhes diz, a crerem-se tão sages como os seus mes­
tres, a tornarem-se contrariadoras e rebeldes; e tudo quanto se
pensa obter delas, por motivos razoáveis, nunca mais se consegue
obter, a não ser pelos da cobiça, ou do receio, ou da vaidade, que nos
veremos sempre obrigados a acrescentar.
Eis a fórmula a que se podem reduzir, mais ou menos, todas as
lições de moral que se dão e que se podem dar às crianças:

O MESTRE

Não se deve fazer isso.

A CRIANÇA

E por que é que isto não se deve fazer?


78
O MESTRE

Porque é proceder mal.

A CRIANÇA

Proceder mal! Que é proceder mal?

O MESTRE

O que vos proibem de fazer.

A CRIANÇA

Que mal há em fazer o que me proibem?

O MESTRE

Punir-vos-ão por terdes desobedecido.

A CRIANÇA

Arranjarei maneira de que ninguém o saiba.

O MESTRE

Sereis espiado.

A CRIANÇA

Esconder-me-ei.

O MESTRE

Sereis interrogado.

A CRIANÇA

Mentirei.

O MESTRE

Não se deve mentir.

79
A CRIANÇA

Por que é que não se deve mentir?

O MESTRE

Porque isso é mal, etc.

Eis o inevitável círculo vicioso. Se saís dele, a criança deixa de


vos compreender. Não serão estas instruções muito úteis? Gosta­
ria muito de saber o que se poderia pôr em lugar deste diálogo. O
próprio Locke certamente se teriavisto muito embaraçado. Conhe­
cer o bem e o mal, sentir a razão dos deveres do homem, não é as­
sunto que uma criança possa abarcar.
A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem
homens. Se queremos perturbar essa ordem, produziremos frutos
precoces, sem maturidade nem sabor e que não tardarão a apodre­
cer; teremos jovens doutores e velhas crianças. A infância tem
maneiras de ver, de pensar, de sentir que lhe são próprias; nada há
de mais insensato que querer substituí-las pelas nossas; e agra­
dar-me-ia tanto exigir que uma criança de 1 O anos tivesse uma es­
tatura de metro e meio como exigir que tivesse opinião formada.
Efectivamente, de que lhe serviria a razão nessa idade? Ela é o
freio da força, e a criança não tem necessidade desse freio.
Ao tentardes persuadir os vossos pupilos do dever da obediên­
cia, acrescentais a essa pretensa persuasão a força e as ameaças,
ou, o que ainda é pior, a bajulação e as promessas. Assim, atraídos
pelo interesse ou coagidos pela força, eles fingem-se convencidos
pela razão. Vêem perfeitamente que a obediência lhes traz vanta­
gens e que a rebelião só lhes pode ser nociva, logo que vos aperce­
bais de uma ou de outra. Mas como, deles, não exigis nada que não
lhes seja desagradável, e como é sempre penoso fazer as vontades
de outrem, escondem-se p ara fazer as deles, persuadidos de que
procedem bem desde o momento em que a sua desobediência é
ignorada, mas dispostos a concordar que estão a proceder mal, se
são descobertos, receando um mal ainda maior. Como a razão do
dever não é da idade deles, não há nenhum homem no mundo que
tenha conseguido torná-la verdadeiramente sensível para eles;
mas o receio do castigo, a esperança do perdão, a importunidade,
o apuro em que se vêem para responder arranca-lhes todas as con­
fissões que lhes são exigidas; e crê-se tê-los convencido, quando
não se fez mais que aborrecê-los ou intimidá-los.
Que advém daí? Em primeiro lugar, quando lhes impondes um
8o dever que eles não sentem, irritai-los contra a vossa tirania e im-
pedi-los de vos amarem ; ensinai-los a tornarem-se dissimulados,
hipócritas, mentirosos, para extorquirem recompensas ou escapa­
rem aos castigos; por fim, habituando-os a sempre encobrir os mo­
tivos secretos com motivos aparentes, sois vós próprios que lhes
forneceis o meio de vos enganarem incessantemente, de vos reti­
rarem o conhecimento do seu verdadeiro carácter e de vos engana­
rem com vãs palavras, tanto a vós como aos outros, quando a
ocasião se proporciona. As leis- direis vós-embora obrigatórias
para a consciência, também são coercivas para com os homens fei­
tos. Concordo com isso. Mas que mais são esses homens além de
crianças estragadas pela educação? Eis precisamente o que se
deve evitar. Utilizai a força com as crianças e a razão com os
homens; é essa a ordem natural. O sage não precisa de leis.
Tratai o vosso pupilo de acordo com a sua idade. Começai por
pô-lo no seu lugar, e mantendo-o lá, de tal maneira que ele nem
sequer tente sair dele. Então, antes de saber o que € a sageza, ele
praticará a mais importante lição dela. Nunca lhe ordeneis nada,
seja o que for, absolutamente nada. Não o deixeis sequer imaginar
que pretendeis ter alguma autoridade sobre ele. Que ele se limite
a saber que é fraco e que vós sois fortes; que, pela sua condição e
pela vossa, está necessariamente dependente de vós; que ele o sai­
ba, que aprenda isso, que o sinta; que, muito cedo, sinta sobre a sua
cabeça altiva o pesadojugo que a natureza impõe ao homem, o pe­
sado jugo da necessidade, sob o qual é preciso que todo o ser com­
pleto se curve; que ele veja essa necessidade nas coisas, nunca no
capricho1 dos homens. Que o freio que o retém seja a força e não a
autoridade. Aquilo de que ele se deve abster não lho proibais;
impedi-o de o fazer, sem explicações, sem argumentar; o que lhe
concedeis, concedei-lho logo que ele diga a primeira palavra, sem
solicitações, sem pedidos, sobretudo sem condições. Concedei com
prazer, recusai com relutância; mas que todas as vossas recusas
sejam irrevogáveis; que nenhuma importunidade vos abale; que o
não pronunciado seja uma parede de bronze que a criança desis­
tirá de querer deitar abaixo, depois de, por cinco ou seis vezes, a ter
tentado demolir.
É desse modo que a tornareis paciente, equilibrada, resignada,
serena, mesmo quando não tiver obtido o que desejava; porque es­
tá na natureza do homem suportar pacientemente a necessidade
das coisas, mas não a má vontade de outrem. Esta expressão: já
não há, é uma resposta contra a qual nunca nenhuma criança se
rebelou, a não ser que a considerasse como uma mentira. Quanto

1 Deve ter-se a certeza de que a criança considerará como capricho


toda a vontade contrária à sua e cuja razão não sentirá. Ora, uma crian-
ça não sente a razão de nada em tudo quanto contraria as suas fantasias . 8 1

L. B. 523 - 6
ao resto, neste assunto não há meio termo; é preciso não exigir ab­
solutamente nada dela, ou começar por vergá-la à mais absoluta
obediência. A pior educação é deixá-la duvidosa, entre as suas
vontades e as vossas, e manter uma incessante luta entre vós e ela,
para saber qual de vós será o mestre; parece-me que, neste caso,
seri� cem vezes preferível que o fosse a criança.
E muito estranho que, desde que se começaram a educar as
crianças, nunca ninguém tenha imaginado outros instrumentos,
para as guiar, que não fossem a emulação, a inveja, o ciúme, a vai­
dade, a cobiça, o vil receio, todas as paixões mais perigosas, de fer­
mentação mais rápida, e mais próprias para corromper a alma,
mesmo antes de o corpo estar formado. A cada instrução precoce
que se pretende meter-lhes na cabeça, planta-se-lhes um vício no
fundo do coração; educadores insensatos pensam conseguir mara­
vilhas tornando-as más, para lhes ensinarem o que é a bondade;
e, depois, dizem-nos com gravidade: «Tal é o homem, sim, tal é o
homem que fizestes.»
Experimentaram-se todos os sistemas, excepto aquele que
pode dar resultados: a liberdade bem disciplinada. Ninguém se
deve encarregar da educação de uma criança se não a souber con­
duzir aonde quer, unicamente pelas leis do possível e do impossí­
vel. Como a esfera de um e do outro lhe é igualmente desconheci,­
da, é possível alargá-la e apertá-la em sua volta, como se quer. E
possível acorrentar a criança, empurrá-la, retê-la, com o único elo
da necessidade, sem que ela se queixe: consegue-se torná-la
maleável e dócil, simplesmente pela força das coisas, sem que ne­
nhum vício tenha a possibilidade de nela germinar; porque, quan­
do não têm qualquer efeito, as paixões nunca se animam.
Não deis ao vosso pupilo nenhuma espécie de lição verbal; ele
só as deverá receber da experiência: não lhe inflinj ais nenhuma es­
pécie de castigo, porque ele não sabe o que é estar em falta: não o
obrigueis nunca a pedir perdão, porque ele não poderia ofen­
der-vos. Desprovido de toda a moralidade nas suas acções, nada
poderá fazer que seja moralmente mal e que mereça castigo ou re­
primenda.
Já estou a ver o leitor, assustado, comparando essa criança às
nossas: engana-se. O constrangimento perpétuo em que man­
tendes os vossos pupilos exacerba a sua vivacidade; quanto mais
coagidos se sentem perante vós, mais turbulentos se mostram nos
momentos em que-vos escapam; é necessário que, quando podem,
encontrem uma compensação para a severa coacção em que os con­
servais. D ois educandos da cidade farão mais estragos na região
que toda a juventude de uma aldeia. Fechai, no mesmo quarto, o
filho de um senhor e o filho de um camponês; antes de este ter da­
do um passo, já o outro atirou tudo ao chão e partiu muita coisa.
82 Que outro motivo pode haver para isso que não seja que o primei-
ro se apressa a abusar de um momento de liberdade, enquanto o
segundo - sempre seguro da sua liberdade - não se sente impa­
ciente por utilizá-la? E, no entanto, os filhos dos camponeses, mui­
tas vezes satisfeitos ou contrariados, ainda estão muito longe do
estado em que quero que estejam.
Consideremos, como máxima incontestável, que os primeiros
movimentos da natureza são sempre rectos: não há perversidade
natural no coração humano; nele não se encontra um único vício de
que se não possa dizer como e por onde penetrou. A única paixão
natural do homem é o amor por si próprio, ou o amor-próprio, consi­
derado num sentido alargado. Esse amor-próprio, em si mesmo,
ou relativamente a nós, é conveniente e útil; e, como não está ne­
cessáriamente relacionado com outrem, é naturalmente indife­
rente; só se torna bom ou mau pela aplicação que dele se faz e pe­
las relações que se lhe dão. Por conseguinte, enquanto o guia do
amor-próprio -que é a razão - não tiver aparecido, importa que
uma criança não faça nada só porque é vista ou ouvida; resumin­
do, importa que não faça nada em função dos outros, mas unica­
mente em função da natureza; e, nesse caso, só fará o que é bem.
Não quero com isto dizer que ela nunca faráestragos, que nun­
ca se magoará, que não destruirá, talvez, um móvel de valor, se o
encontrar ao seu alcance. Poderá causar muito mal, sem fazer mal,
porque a má acção depende da intenção de prejudicar e ela nunca
terá essa intenção. Se a tivesse, nem que fosse uma única vez, tu­
do ficaria perdido; seria má, quase sem remédio.
Determinada coisa é mal aos olhos da avareza, embora não o
seja aos olhos da razão. Deixando as crianças em plena liberdade
de exercer o seu estouvamento, convém afastar delas tudo quan­
to as possa tornar dispendiosas e não deixar ao seu alcance nada
que seja frágil ou precioso. Que os seus aposentos estejam guarne­
cidos com móveis grosseiros e sólidos; nada de espelhos, nada de
porcelanas, nada de objectos de luxo. Quanto ao meu Emílio, que
crio no campo, no seu quarto não terá nada que o distinga do de um
camponês. Para quê decorá-lo com muitos cuidados,já que ele de­
verápermanecer nele tão pouco tempo? Mas engano-me; ele guar­
necê-lo-á por si próprio, e em breve veremos com quê.
Que se, apesar das vossas precauções, a criança vem a fazer al­
guma desordem, a quebrar algum objecto útil, não a castigueis pe­
la vossa negligência, não lhe ralheis; que ela não ouça nem sequer
uma palavra de censura; não lhe deixeis sequer perceber que sen­
tistes alguma mágoa; agi exactamente como se o móvel se tivesse
partido sozinho; enfim, considerai que fizestes muito se conseguir­
des nada dizer.
Atreve-me-ei a expor, aqui, a maior, a mais importante, a re­
gra mais útil para qualquer educação? Não se trata de ganhar tem­
po, trata-se de o perder. Leitores vulgares, perdoai-me os meus 8 3
p aradoxos: é necessário fazê-los quando se raciocina; e, seja o que
for que disserdes, prefiro ser homem de p aradoxos que homem de
preconceitos. O intervalo mais perigoso da vida hull}anaé o que de­
corre desde o nascimento até à idade dos 1 2 anos. E durante essa
época que germinam os erros e os vícios, sem que ainda se dispo­
nha de nenhum sistema para os destruir; e, quando o sistema
chega, as raízes já são tão profundas que é tarde de mais para as
arrancar. Se as crianças saltassem, repentinamente, da teta para
a idade da razão, a educação que se lhes dá poderia convir-lhes;
mas, segundo o progresso natural, precisam de outra completa­
mente oposta. Seria necessário que não fizessem nada da alma da
criança enquanto ela não tivesse adquirido todas as suas faculda­
des; porque, enquanto está cega, é-lhe impossível avistar o estan­
darte que lhe apresentais, e a seguir, na imensa planície das
ideias, um caminho que a razão só ainda muito levemente traçou,
para os melhores olhos. Por conseguinte, a primeira educação de­
ve ser puramente negativa. Consiste, não em ensinar a virtude e
a verdade, mas em preservar o coração do vício e o espírito do er­
ro. Se pudésseis nada fazer e nada deixar fazer; se pudésseis con­
duzir o vosso pupilo, são e robusto, até à idade dos 1 2 anos, sem que
ele soubesse distinguir a sua mão direita da sua mão esquerda, os
olhos do seu entendimento abrir-se-iam p ara a razão, desde as
vossas primeiras lições; sem preconceitos, sem hábitos, nada teria,
em si, que pudesse contrariar o efeito dos vossos cuidados. Nas
vossas mãos, em breve se tornaria o mais sage dos homens; e,
começando por não fazer nada, teríeis conseguido um prodígio de
educação.
Fazei tudo ao contrário do que é hábito, e tudo quanto fareis se­
rá quase sempre bem. Como não se pretende fazer uma criança de
uma criança, mas sim um doutor, os pais e os mestres começam
muito cedo a admoestar, a corrigir, a repreender, a lisonjear, a
ameaçar, a prometer, a instruir, a falar, a dar explicações. Fazei
melhor: sede razoáveis e não deis explicações ao vosso educando,
sobretudo para o levardes a aprovar o que lhe desagrada; porque
justificar sempre a razão das coisas desagradáveis é apenas torná­
-la enfadonha e desacreditá-la muito cedo, num espírito que
ainda não se encontra em estado de a compreeender. Exercei o seu
corpo, os seus órgãos, os seus sentidos, as suas forças, mas conser­
vai a sua alma ociosa durante tanto tempo quanto puderdes.
Receai todos os sentimentos anteriores à opinião que os aprecia.
Refreai, detende as impressões estrangeiras; e, para impedir que
o mal apareça, não vos apresseis a fazer bem; porque ele só é tal
quando esclarecido pela razão. Considerai todos os pormenores
como vantagens: é ganhar muito, o avançar p ara o termo sem na-
S 4 da perder; deixai amadurecer a infância nas crianças. Enfim, é-
-lhes necessáriaalguma lição? Evitai dar-lha hoje, se podeis adiá-
-la para amanhã, sem inconveniente.
Uma outra consideração que confirma a utilidade deste méto­
do é a do carácter especial da criança, que é preciso conhecer bem
para saber que regime moral lhe convém . Cada espírito tem a sua
forma própria segundo a qual precisa de ser governado; e impor­
ta, para o êxito dos cuidados que se lhe dedicam, que ele seja go­
vernado por essa forma e não por outra. Homem prudente, espiai
longamente a natureza, observai bem o vosso pupilo antes de lhe
dizerdes a primeira palavra; começai por permitir que o germe do
seu carácter em plena liberdade se mostre, não o constrangeis em
nada, a fim de melhor o verdes na sua totalidade. Pensais que esse
tempo de liberdade ficará perdido para ele? Pelo contrário, será
empn�gado da melhor maneira; pois será desse modo que aprende·
reis a não perder um único momento de um tempo precioso: se, em
vez disso, começardes a agir antes de saberdes o que é necessário
fazer, agireis ao acaso; sujeito a enganar-vos, tereis de fazer mar·
cha atrás; ficareis mais afastados do alvo do que se tivésseis esta­
do menos apressado de o atingir. Por conseguinte, não procedais
como o avarento que m uito perde por não querer perder nada. Du­
rante a primeira idade, sacrificai um tempo que recuperareis com
juros numa idade mais avançada. O sage médico não prescreve ir·
reflectidamente receiÇas à primeira vista, mas começa por estudar
o temperamento do doente antes de lhe prescrever qualquer remé­
dio; começa a tratá-lo tarde, mas cura-o, enquanto o médico exces­
sivamente apressado o mata.
Mas, onde colocaremos essa criança, para a educar assim,
como um ser insensível, como um autómato? Mantê-la--€mos no
globo da Lua, numa ilha deserta? Afastá-la--€mos de todos os hu­
manos? Não irá ela assistir, continuamente, na sociedade, ao es­
pectáculo e ao exemplo das paixões de outrem? Nunca verá outras
crianças da sua idade? Não verá os pais, os vizinhos, a ama, a go·
vernanta, o lacaio, o seu próprio governante, que, no fim de contas,
não será um anjo?
Esta objecção é forte e sólida. Mas por acaso yos disse que a
educação natural era um empreendimento fácil? O homens! Será
culpa minha se tornastes difícil tudo quanto é bem? Sinto essas di­
ficuldades, concordo que elas existem; talvez sejam intransponí­
veis; mas podeis ter a certeza de que, aplicando-vos a preveni-las,
as prevenireis até um certo ponto. Mostro a finalidade que é pre­
ciso atingir: não digo que seja possível chegar até lá, mas digo que
aquele que mais se aproximar dela será o que mais êxito terá ob·
tido.
Lembrai-vos de que aquele que se atreve a empreender a for­
mação de um homem precisa de começar por se ter feito homem a
si mesmo; é preciso que encontre, em si mesmo, o exemplo que ten- 8 5
ciona propor. Enquanto a criança ainda está sem conhecimento,
tem-se tempo para preparar tudo quanto se aproxima dela, para
que os seus primeiros olhares só sejam feridos por objectos que
importa que ela veja. Tornai-vos respeitáveis para toda a gente,
começai por fazer-vos amar, a fim de que todos procurem agradar­
-vos. Não podereis dominar a criança se não puderdes dominar tu­
do quanto a rodeia; e essa autoridade nunca será suficiente, se não
for baseada na estima da virtude. Não se trata de despejar a bolsa
e de distribuir dinheiro às mãos-cheias; nunca vi que o dinheiro
conseguisse fazer amar alguém. Não se deve ser avarento e seve­
ro, nem lastimar a miséria que se pode aliviar; mas, por mais que
abrirdes os vossos cofres, se não abrirdes também o vosso coração,
o dos outros permanecerá sempre fechado para vós. O que é pre­
ciso dar é o vosso tempo, os vossos cuidados, os vossos afectos, uma
p arte de vós mesmos; pois que, não procedendo assim - seja o que
for que fizerdes -, todos sentirão, sempre, que o vosso dinheiro
não sois vós. Há testemunhos de interesse e de benvolência que fa­
zem mais efeito e que são verdadeiramentemais úteis que todos os
dons: quantos infelizes, doentes, têm mais necessidade de conso­
lações que de esmolas! Quantos oprimidos precisam mais de pro­
tecção que de dinheiro! Reconciliai aqueles que se zangam, evitai
os processos; conduzi as crianças ao dever, os pais à indulgência;
favorecei casamentos felizes; impedi os vexames; empregai, prodi­
gai o crédito dos pais do vosso pupilo em favor do fraco ao qual re­
cusam justiça e que o poderoso oprime. Declarai-vos e mostrai-vos
o protector dos desgraçados. Sede justos, humanos, praticai o bem.
Não vos limiteis a dar esmola, praticai a caridade; as obras de mi­
sericórdia aliviam mais males que o dinheiro; amai os outros, e eles
amar-vos-ão; servi-os, e eles servir-vos-ão; sede para eles como
um irmão, eles portar-se-ão como vossos filhos.
Esta é mais uma das razões por que eu quero criar Emílio no
campo, longe da canalhada dos lacaios - os piores homens depois
dos amos; longe dos vis costumes das cidades, que, recobertas de
verniz, se mostram sedutoras e contagiosas para as crianças; con­
tanto que os vícios dos camponeses, sem polimento e na sua total
grosseirice, são mais próprios p ara desgostar que para seduzir,
quando não se tem interesse nenhum em imitá-los.
Na aldeia, um governante terá muito mais possibilidades de
escolher os objectos que quer mostrar à criança; a sua reputação,
os seus discursos, o seu exemplo terão uma autoridade que nunca
conseguiram adquirir na cidade; sendo útil para toda a gente, to­
dos se empenharão em ser-lhe agradáveis, em ser estimados por
ele, em mostrar-se ao pupilo tal como, efectivamente, o mestre
quereria que fossem; e, embora não se corrijam do vício, abster-se­
-ão do escândalo; é tudo de quanto precisamos para o nosso objec-
8 6 tivo.
Deixai de atirar para cima dos outros as vossas próprias cul­
pas: o mal que as crianças vêem corrompe-as menos que aquele
que lhes ensinais. Sempre pregadores, sempre moralistas, sempre
pedantes, por uma ideia que lhes dais-porque a creis boa -dais­
-lhes simultaneamente mais vinte que nada valem: cheios com o
que se passa nas vossas cabeças, não vedes o efeito que produzis
nas suas. Por entre esse prolongado fluxo de palavras com que in­
cessantemente as excedeis, pensais que não haja nenhuma que
elas interpretem mal? Pensais que elas não comentam, à sua ma­
neira, as vossas difusas explicações, e que nelas não encontram
com que formar um sistema ao seu alcance e que saberão opor-vos,
quando a ocasião se apresentar?
Escutai um rapazinho que acaba de receber instruções; deixai­
-<> palrar, fazer perguntas, disparatar à sua vontade, e ficareis sur­

preendidos com o estranho aspecto que, no seu espírito, adquiri­


ram as vossas instruções: confunde tudo, troca tudo, impacienta­
-vos e, por vezes, desola-vos com objecções imprevistas; reduz-vos
ou ao silêncio ou a impor-lhe que se cale; e que poderá ele pensar
desse silêncio, por parte de um homem que tanto gosta de falar? Se
alguma vez obtiver essa vantagem, e se aperceber dela, adeus
educação; tudo acabou, e, a partir desse momento, deixará de pro­
curar instruir-se e procurará rebater os vossos argumentos.
Mestres zelosos, sede simples, discretos, comedidos: não vos
apresseis nunca a agir, a não ser para impedir os outros de o fazer;
repetirei sempre a mesma coisa: se possível, desisti de uma boa
instrução, por receio de dar uma que sej a má. Neste mundo, onde
a natureza fez o primeiro paraíso para o homem, receai desempe­
nhar o papel do tentador, pretendendo dar, à inocência, o conheci­
mento do bem e do mal; não podendo impedir que a criança se ins­
trua fora de casa, com exemplos, limitai toda a vossa vigilância a
imprimir esses exemplos no seu espírito, sob o aspecto que mais lhe
convém.
As paixões impetuosas produzem um grande efeito sobre a
criança que a elas assiste, porque apresentam sinais muito sen­
síveis que a chocam e a forçam a prestar-lhes atenção. A cólera,
sobretudo, evidencia-se em acessos tão barulhentos, que é im pos­
sível não dar por ela quando se está na sua presença. Nem vale a
pena perguntar se esse momento é uma boa ocasião para o peda­
gogo dar início a um belo discurso. Não! Nada de belos discursos,
absolutamente nada, nem uma única palavra! Deixai vir a vós a
criança: surpreendida com o espectáculo, não deixará de vos inter­
rogar. A resposta é simples; retira-se dos própriós objectos que
chocam os seus sentidos. Acriança vê um rosto encolerizado, olhos
fulgurantes, um gesto ameaçador, ouve gritos; tudo isto são indí­
cios de que o corpo não está normal. Dizei-lhe simplesmente, sem
mistério: «Este pobre homem está doente, tem um acesso de febre.>> 8 7
Daí, aproveitareis a ocasião para lhe dar - mas e m poucas pala­
vras - uma ideia das doenças e dos seus efeitos; porque isso tam­
bém é da natureza, e é um dos elos da necessidade aos quais ela se
deve sentir submetida.
Será possível que, com esta ideia - que não é falsa -, ela não
contraia, muito cedo, uma certa repugnância em entregar-se aos
excessos das paixões, que considerará como doenças? E credes que
tal noção, dada a propósito, não produzirá um efeito tão salutar
quanto o mais aborrecido sermão de moral? Mas vede, no futuro,
as consequências dessa noção: eis-vos autorizados - se alguma
vez a isso vos virdes obrigados - a tratar uma criança rebelde co­
mo se ela estivesse doente; a fechá-la no quarto, ou a metê-la na
cama, se preciso, a pô-la a dieta, a assustá-la com os seus vícios
nascentes, sem que alguma vez ela possa considerar como um cas­
tigo a severidade que talvez sereis forçados a empregar, para a cu­
rar disso. E, se vos acontecer, a vós-mesmos, num momento de vi­
vacidade, saírdes do sangue-frio e da moderação de que deveis dar
provas, não procureis disfarçar-lhe o vosso erro; mas dizei-lhe
francamente, numa terna censura: «Meu amigo, magoaste-me.»
Quanto ao resto, importa que todas as ingenuidades que, nu­
ma criança, podem produzir a simplicidade das ideias com que é
criada, nunca sejam assunto de comentários na sua presença, nem
citadas de maneira que ela se possa aperceber delas. Uma garga­
lhada indiscreta pode estragar o trabalho de seis meses e provocar
danos irreparáveis, para toda a vida. Nunca insistirei demasiado
quando repito que, para dominar a criança, é preciso sabermos do­
minar-nos a nós mesmos. Imagino o meu pequeno Emílio, assistin­
do a uma rixa entre duas vizinhas, dirigindo-se à mais furiosa e
dizendo-lhe, num tom de comiseração: Minha amiga, estais doen­
te, sinto-me muito preocupado com isso. Certamente, essa frase
não deixará de produzir efeito sobre os espectadores, e até mesmo
sobre as actrizes. Sem rir, sem lhe ralhar, sem o louvar, levo-o ­
a bem ou a mal- antes que ele se possa aperceber desse efeito, ou,
pelo menos, antes que pense nele, apresso-me a distraí-lo com ou­
tros objectos que o levam rapidamente a esquecer o que se passou.
A minha intenção não é entrar em todos os pormenores, mas
unicamente expor as m áximas gerais e dar exemplos para ocasiões
difíceis. Considero impossível que, no seio da sociedade, se possa
criar uma criança, até à idade dos 12 anos, sem lhe dar nenhuma
ideia das relações de homem para homem e da moralidade das ac­
ções humanas. Basta que nos dediquemos a proporcionar-lhe, o
mais tarde possível, essas noções necessárias, e que, quando elas
se tornarem inevitáveis, lhe sejam administradas p ara a utilida­
de presente, unicamente p ara que ela não se imagine com o poder
de tudo dominar e para que não faça mal aos outros, sem escrúpu-
'1 8
los e sem dar por isso. Há caracteres doces e sossegados, que, na
sua primeira inocência, podem ser levados até longe, sem perigo;
mas também há naturais violentos cuja ferocidade se desenvolve
muito cedo e de que nos devemos apressar a fazer homens, para
não sermos obrigados a acorrentá-los.
Os nossos primeiros deveres são para connosco próprios; os
nossos sentimentos primitivos concentram-se em nós mesmos; to­
dos os nossos movimentos naturais se dedicam, em primeiro lugar,
à nossa conservação e ao nosso bem-estar. Assim, o primeiro sen­
timento da justiça não nos vem da que devemos praticar mas da­
quela que nos é devida; e é mais um dos contrasensos das educa­
ções vulgares, que, começando por falar, às crianças, dos seus de­
veres e nunca dos seus direitos, se comece por lhes dizer o contrá­
rio do que é necessário, coisa que não são capazes de compreender
e que não as pode interessar.
Por conseguinte, se eu tivesse de educar uma dessas crianças
que acabo de descrever, diria para comigo mesmo: «Uma criança
não embirra com as pessoas1 mas com os objectos; e, com a expe­
riência, rapidamente aprende a respeitar os que são mais velhos
e mais fortes que ela; mas os objectos nã�e podem defender. A pri­
meira ideia que se lhe deve dar não é tanto a da liberdade quan­
to a da propriedade; e, para que a criança possa ter essa ideia, é ne­
cessário que tenha alguma coisa que lhe pertença. Falar-lhe das
suas vestes, dos seus móveis, dos seus brinquedos é não lhe dizer
nada; pois, embora possa dispor dessas coisas, não sabe nem como
nem porquê as tem. Dizer-lhe que as tem porque lhas deram, não
adianta; porque, para dar, é preciso p o s suir: eis, por conseguinte,
uma propriedade anterior à sua; e é o princípio da propriedade que
se lhe pretende explicar; sem contar que o dom é uma convenção
e que a criança ainda não é capaz de compreender o que é uma con­
venção2• Peço-vos, leitores, que noteis como -neste exemplo e em

1 Nunca se deve pennitir que uma criança se comporte como se fos­


se uma pessoa adulta, em relação aos seus inferiores, nem sequer em re­
lação aos seus iguais. Se se atrever a bater verdadeiramente em alguém
-nem que seja no seu lacaio ou no seu carrasco -fazei que lhe retribuam
sempre as pancadas, cem juros, e de maneira a retirar-lhe o desejo de re­
começar. Vi governantas imprudentes animarem a rebeldia de umacrian­
ça, excitá-la a bater, deixando-se bater, elas próprias, e rirem dessas fra­
cas pancadas, sem pensar que elas correspondiam a outros tantos assas­
sinatos na intenção da criança furiosa, e que aquele que quer bater quan ­
do é criança quererá matar quando adulto.
2 Eis o motivo por que a maioria das crianças querem recuperar o
que deram e choram quando alguém se recusa a devolver-lhes o que de­
las recebeu. Isso já não lhes acontece depois de terem compreendido bem
o que é um donativo; nesse caso, passam a pensar bem, antes de dar. 89
cem mil outros - se metem na cabeça das crianças palavras cujo
sentido não está ao alcance da sua compreensão, e, no entanto, se
crê tê-las instruído muito bem.
Trata-se, pois, de voltar atrás, até à origem da propriedade;
pois que é aí que a primeira ideia deverá ter origem. A criança, se
vive no campo, terá adquirido alguma noção dos trabalhos cam pes­
tres; para isso, basta-lhe ter olhos, tempo livre; ora, terá ambas as
coisas. É próprio de todas as épocas da vida - e sobretudo da da
infância - querer criar, imitar, produzir, dar sinais de poderio e
de actividade. Bastar-lhe-á ver lavrar duas vezes a terra de um
jardim, semear, ver despontar e crescer os legumes, para ter von­
tade de, por sua vez, fazer j ardinagem .
Pelos princípios que passo a estabelecer, não me oponho ao seu
desejo; pelo contrário, favoreço--o, compartilho do seu prazer, tra­
balho com ela, não parâ o seu prazer mas para o meu; pelo menos,
é isso o que ela pensa; passo a ser o seu ajudante jardineiro; en­
quanto ela não tem os braços fortes, sou eu quem cava a terra; ela
toma possessão da terra, semeando algumas favas; e, certamente,
essa possessão é mais sagrada e mais respeitável que a que tomou
Nunes Balboa quando se apoderou da América meri dional, em
nome do rei de Espanha, ficando o seu estandarte nas costas dos
mares do sul.
Todos os dias regamos os grãos, e vemo-los despontar com
transportes de alegria. Aumento essa alegria, dizendo-lhe: «Isto
pertence-vos»; e, então, explicando-lhe o que significa essa pala­
vra <<pertencer>>, levo-a a sentir qu e dedicou àquilo o seu tempo, o
seu trabalho, os seus cuidados, enfim, a sua pessoa; que, nessa ter­
ra, há alguma coisa que é propriedade sua, que poderá reclamar
contra quem quer que seja, da mesma maneira que pode retirar o
seu braço da mão de um homem que a queira reter contra a sua
vontade.
Um belo dia, ela chega, toda animada, com o regador na mão.
Mas que espectáculo! Ai, que dor! Todas as favas foram arranca­
das, a terra foi toda cavada, o próprio terreno está irreconhecível.
Ai! Que aconteceu ao meu trabalho, à minha obra, ao doce fruto dos
meus desvelos e dos meus suores? Quem me roubou o meu bem?
Quem me tirou as favas? Esse jovem coração revolta-se; o primei­
ro sentimento da injustiça verte nele a sua triste amargura; dos
' seus olhos, escorrem rios de lágrimas; desolada, a criança enche os
ares de gemidos e de gritos. Compartilhamos da sua mágoa, da sua
indignação; procuramos, informamo-nos, fazemos buscas. Por
fim, descobre-se que aquilo foi obra do jardineiro: mandamo-lo
vir.
Mas eis-nos muito longe do que pretendíamos. O j ardineiro,
9 0 depois de ter ouvido o motivo das nossas queixas, começa a
queixar-se ainda mais alto que nós. Quê!? Fostes vós, senhores,
que assim estragastes o meu trabalho?Naquele terreno, eu semea­
ra melões de Malta, cujas sementes me tinham sido dadas como
uma preciosidade e com os quais esperava poder regalar-vos
quando estivessem maduros; mas eis que, para plantardes as vos­
sas miseráveis favas, destruístes os meus meloeiros que já tinham
despontado e que nunca mais poderei substituir. Causastes-me
um dano irreparável e privastes-vos, a vós mesmos, do prazer de
comer deliciosos melões.

JEAN-JACQUES

Desculpai-nos, meu pobre Robert . Havíeis consagrado àquela


terra o vosso trabalho, os vossos cuidados. Reconheço que procede­
mos mal, ao inutilizarmos o vosso trabalho; mas mandaremos vir
outras sementes de Malta, para vo-las dar, e não voltaremos a ca­
var na terra sem nos informarmos se alguém já lá semeou alguma
coisa, antes de nós.

ROBERT

Oh! Pois bem, meus senhores, podereis então repousar, pois


que não há mais nenhum pedaço de terra livre. Eu trabalho a que
o meu pai preparou; cada um faz o mesmo, por seu lado, e todas as
terras que vedes estão ocupadas há muito tempo.

EMÍLIO

Senhor Robert, então acontece muitas vezes que se perca a se­


mente de melão?

ROBERT

Perdoe-me, meu jovem senhor; pois não é frequente que nos


apareçam jovens senhores tão estouvados como vós. Ninguém to­
ca no jardim do seu vizinho; cada um respeita o trabalho dos ou­
tros, a fim de que o seu seja respeitado.

EMÍLIO

Mas eu não tenho jardim.

ROBERT

E que tenho eu com isso? Se estragardes o meu, deixarei de vos 9 1


permitir que passeeis por ele; porque, compreendei-me, não que­
ro que o meu trabalho se perca.

JEAN....J ACQUES

Não seria possível propor uma combinação ao nosso bom Ro­


bert? Que ele nos conceda, ao meu amiguinho e a mim, um canto
do seu jardim, para que o cultivemos, e dar-lhe-€mos metade do
que ele produzir.

ROBERT

Concedo-vo-lo sem condições. Mas lembrai-vos de que irei ca­


var as vossas favas se tocardes nos meus melões.

Neste ensaio da maneira de inculcar às crianças as noções pri­


mitivas, vê-se como a ideia de propriedade remonta naturalmen­
te ao direito do primeiro ocupante, pelo trabalho. Isto é claro, ní­
tido, simples, e sempre ao alcance da criança. Daí até ao direito de
propriedade e aos intercâmbios, não há mais de um passo, após o
qual é preciso que, bruscamente, nos detenhamos.
Também se vê que uma explicação que aqui encerro em duas
páginas de escrita, talvez seja caso para levar um ano a praticar;
porque, na sequência das ideias morais, não podemos avançar com
excessiva lentidão, nem apoiarmo-nos demasiado, a cada passo.
Jovens mestres, pensai, peço-vos, neste exemplo, e lembrai-vos
de que, em todas as coisas, as vossas lições devem consistir mais
em acções que em discursos; porque as crianças facilmente se es­
quecem do que disseram e do que lhes foi dito, mas não do que fi­
zeram nem do que lhes foi feito.
Como já disse, as instruções deste género deverão ser dadas;
mais cedo ou mais tarde, consoante o natural -pacífico ou turbu­
lento- do pupilo acelerar ou retardar essa necessidade; a sua uti­
lização é de uma evidência que salta aos olhos; mas, para não omi­
tir nada que seja importante nas coisas difíceis, daremos mais um
exemplo.
O vosso pupilo turbulento estraga tudo aquilo a que deita a
mão: não vos zangueis; ponde fora do seu alcance tudo quanto ele
possa estragar. Parte os móveis de que se serve; não vos apresseis
a fornecer-lhe outros: deixai-o sentir o prejuízo da privação. Par­
te os vidros dajanela do quarto; deixai o vento soprar sobre ele, noi­
te e dia, sem vos preocupardes com as constipações; porque é pre­
ferível que ele se constipe a que endoideça. Nunca vos lamenteis
das incomodidades que ele vos causar, mas arranjai-vos para que
92
ele seja o primeiro a senti-las. Finalmente, mandai repor os vi­
dros, sem lhe dizer nada. Volta a parti-los? Nesse caso mudai de
método; dizei-lhe secamente, mas sem cólera: «As janelas são mi­
nhas; foram ali colocadas pelos meus cuidados; quero protegê­
-las.» A seguir, fechai-o, às escuras, num local semjanela. Reagin­
do a este procedimento, tão novo para ele, pôr-se-á a gritar, a ber­
rar; ninguém lhe dará ouvidos. Pouco depois, cansa-se e muda de
tom; lamenta-se, geme: aparece-lhe um criado, e o rebelde pe­
de-lhe que o liberte. Sem procurar exp Iicar a sua recusa, o criado
'
responde-lhe: Também tenho vidros a proteger, e vai-se embora.
Por fim, depois de a criança lá ter estado durante várias horas ­
o tempo suficiente para nunca mais se esquecer do que lhe acon­
teceu -, alguém lhe irá sugerir que vos proponha um acordo, atra­
vés do qual vós lhe devolveríeis a liberdade e ela se compromete­
ria a deixar de partir vidros. Não se fará rogada e pedirá que a ides
ver: ireis; far;vos-á a sua proposta e aceitá-la-eis sem hesitar, di­
zendo-lhe: «E uma boa ideia; ambos ganharemos com isso. Que pe­
na que não a tivésseis tido mais cedo!» Após isto, e sem lhe pedir
nem garantias nem a confirmação da sua promessa, abraçá-la-eis
com efusão e conduzi-la-eis ao seu quarto, considerando o acordo
estabelecido como sagrado e inviolável, do mesmo modo que se ti­
vesse havido juramento. Depois de ter visto esta maneira de pro­
ceder, com que ideia pensais que a criança ficará acerca da valida­
de dos compromissos e da sua utilidade? Seria uma prova de que
me engano muito, se existisse, neste mundo, uma única criança­
ainda não completamente estragada - que, depois de ter passa­
do por esta experiência, ainda fosse capaz de se atrever a partir,
p ro p osi ta damente, o vidro de alguma janela. Segui o encadeamen­
to de tudo isto. Ao escavar o buraco para semear as suas favas, o
pequeno malandrete nem sequer pensara que estava a preparar
um cárcere onde a sua ciência não tardaria a fazer que ele fosse fe­
chado1.

1 De resto, se esse dever de cumpreir os seus compromissos não ti­


vesse ficado gravado no espírito da criança pelo peso da sua utilidade, em
breve o sentimento interior-começando a despontar-lho imporia como
uma lei da consciência, como um princípio inato que, para se desenvolver,
só espera pelos conhecimentos aos quais se aplica. Esse primeiro traço não
é marcado pela mão dos homens, mas gravado nos nossos corações pelo au­
tor de toda ajustiça. Se retirardes a lei primitiva das convenções e a obri­
gação que ela impõe, tudo passa a ser ilusório e vão na sociedade huma­
na. Quem, só pelo seu proveito, cumpre o que prometeu não se sente mais
obrigado do que se nada tivesse prometido; ou, pelo menos, terá a possi­
bilidade de faltar ao seu compromisso, como os jogadores que só tardam
em utilizar o trunfo porque esperam pelo momento em que dele possam ti­
rar mais vantagens. Este princípio é da maior importância e merece ser
profundamente estudado; porque é aqui que o homem começa a colocar-
-se em contradição consigo mesmo. 93
Eis-nos no mundo moral, eis a porta aberta ao vício. Com as
convenções e os deveres, nascem o ludíbrio e a mentira. Desde o
momento em que se pode fazer o que não se deve, pretende escon­
der-se o que não se devia ter feito. Desde que um interesse leva a
prometer, um interesse maior pode fazer violar a promessa; já não
se trata de a violar impunemente: o expediente é natural; disfar­
ça-se e mente-se. Não tendo podido prevenir o vício, eis-nos já na
situação de o punir. Eis as misérias da vida humana, que começam
com os seus erros.
Já disse o suficiente para que compreendeis que, às crianças,
o castigo nunca se deve inflingir como castigo, mas que lhes deve
sempre chegar como se fosse uma consequência natural da sua má
acção. Assim, nunca devereis declamar contra a mentira, nem cas­
tigá-las precisamente por terem mentido; mas fazei que todos os
maus efeitos da mentira -como, por exemplo, não serem acredi­
tadas mesmo quando dizem a verdade, serem acusadas de malda­
des que não fizeram, embora neguem tê-las feito -se acuroulam
sobre as suas cabeças, desde que tenham mentido. Mas explique­
mos o que, para as crianças, significa mentir.
Há duas espécies de mentiras: a mentira de facto, que diz res­
peito ao passado, e a de direito, que se refere ao futuro. A primei­
ra refere-se àquela que se diz quando se nega ter feito o que se fez,
ou quando se afirma ter feito o que se não fez, e, em geral, quan­
do se fala conscientemente, contra a verdade das coisas. A outra
acontece quando se promete o que se não tem a intenção de cum­
prir, e, geralmente, quando se evidencia uma intenção contrária
àquela que se tem. Por vezes, estes dois géneros de mentira podem
reunir-se na mesma1; mas, aqui, considero-as pelas diferenças
que existem entre elas.
Aquele que sente a necessidade que tem do auxílio dos outros
e que é sempre atendido com benevolência, não tem necessidade
nenhuma de enganar as pessoas que o ajudam; pelo contrário, tem
um interesse sensível em que elas vejam as coisas como elas são,
porque receia que se enganem em seu prejuízo. Por conseguinte,
é evidente que, nas crianças, a mentira de facto não é natural; mas
é a lei da obediência que origina, nelas, a necessidade de mentir,
porque, como a obediência é penosa, dispensam-se dela, secreta­
mente e o mais que podem, porque o interesse presente em evitar
o castigo ou a censura é mais forte que o interesse afastado de ex­
por a verdade. Na educação natural e livre, por que motivo vos
mentiria o vosso filho? Que teria ele a esconder de vós? Não está

1 Como quando, acusado de ter cometido uma má acção, ocul pado se


defende, afirmando ser uma pessoa honesta. Nesse caso, mente de facto
94 e de direito.
habituado a que o censureis, a que o castigueis, nunca lhe exigis
nada. Por que motivo não vos contaria tudo quanto fez, tão na tu­
ralmentecomoo conta aoseu pequeno companheiro?Nessa confis­
são, nunca poderá ver mais perigo do vosso lado que do lado do ami­
guinho.
A mentira de direito ainda é menos natural, pois as promessas
de fazer ou de se abster são actos convencionais, que saem do âm­
bito da natureza e derrogam a liberdade. Ainda há mais: todas as
promessas que as crianças fazem são nulas, por si mesmas, dado
que as suas vistas limitadas não se conseguem estender para além
do presente e que, quando se comprometem, não sabem o que fa­
zem. A criança mal pode mentir quando toma algum compromis­
so; porque, como só pensa na maneira de sair de uma situação que,
no momento presente, é desconfortável para ela, qualquer meio
que não tenha um efeito presente é-lhe indiferente: ao prometer
para um momento futuro, não promete nada, e a sua imaginação
- ainda não completamente desperta - não é capaz de imaginar
o seu ser em dois momentos diferentes. Se, para evitar o chicote ou
obter um saco de caramelos, tivesse de prometer que amanhã se
atiraria pela janela, prometê-lo-ia imediatamente. Eis por que
motivo as leis não tomam em consideração as promessas das crian­
ças; e, quando os pais e os mestres mais severos exigem que elas
as cumpram, exigem unicamente o que a criança deveria fazer,
mesmo que não tivesse feito promessa nenhuma.
Não sabendo o que faz quando promete alguma coisa, a crian­
ça não pode mentir quando aceita um compromisso. Já o mesmo
não acontece quando falta à sua promessa, o que ainda é uma es­
pécie de mentira retroactiva: porque se lembra perfeitamente de
ter feito essa promessa; mas o que não compreende é que seja im­
portante cumpri-la. Sem a possibilidade de ler no futuro, não pode
prever as consequências das coisas; e, ao faltar aos seus compro­
missos, não comete nenhuma falta contra a razão da sua idade.
Daí se segue que as mentiras das crianças são todas obra dos
mestres, e pretender ensinar-lhes a dizer a verdade não é mais do
que ensiná-las a mentir. No empenhamento que põem em ensiná­
-las, em governá-las, em instruí-las, nunca encontram instru­
mentos suficientes para o conseguir. Pretendendo adquirir novos
poderes sobre os seus espíritos - através de máximas sem funda­
mento e de preceitos sem razão - preferem que elas saibam as
suas lições e mintam, a que fiquem ignorantes e sinceras.
Por nossa parte, que apenas damos aos nossos pupilos lições de
prática, e que preferimos qu,;, ,;,les sejam bons a que :sejam sábios,
não exigimos deles a verdade, receando que eles a mascarem, e não
lhes pedimos que prometam nada que se possam sentir tentados
a não cumprir. Se, na minha ausência, for praticada alguma m á
acção cujo autor eu não souber quem é, nunca dela acusarei Emílio, 9 s
nem lhe perguntarei: «Fostes vós?1» Porque, se assim procedesse,
que outra coisa faria se não ensiná-lo a negar? Se o seu natural di­
fícil me forçar a contrair, com ele, algum acordo, tomarei tão bem
as minhas disposições que a proposta virá sempre dele, nunca de
mim; é preciso que, depois de ter prometido alguma coisa, ele te­
nha sempre um interesse presente e sensível em cumprir o que
prometeu; e que, se alguma vez não o cumprir, que essa mentira
faça recair, sobre ele, males que ele veja que têm a sua origem na
própria ordem das coisas, e não na vingança do seu governante.
Mas, longe de sentir a necessidade de recorrer a expedientes tão
cruéis, tenho quase a certeza de que Emílio só muito tarde saberá
o que é a mentira e que, quando o souber, ficar?- muito admirado,
não podendo compreender para que ela serve. E bastante eviden­
te que, quanto mais eu tornar o seu bem-estar independente-se­
ja das vontades, seja das opiniões dos outros - mais afasto dele o
interesse por ela.
Quando não se está apressado de instruir, não se tem pressa
de exigir, e dispõe-se do tempo que for preciso para só exigir coi­
sas que venham a propósito. E então a criança forma-se, sem se es­
tragar. Mas, quando um perceptor estouvado, não sabendo como
a educar, a obriga constanemente a prometer isto e aquilo, sem
distinção, sem critério, sem medida, a criança, aborrecida, sobre­
carregada com todas essas promessas, negligenciando-as como
fórmulas vãs, diverte-se afazê-las e a violá-las. Se quereis que ela
seja fiel no cumprimento da sua palavra, sede discretos quando lha
exigis.
O pormenor em que acabo de entrar, sobre a mentira, pode, sob
muitos aspectos, aplicar-se a todos os outros deveres que os
adultos prescrevem às crianças, apresentando-lhos não só como
odiosos mas como impraticáveis. Pregando-lhes a virtude, ensi­
nam-nas a amar todos os vícios: dão-lhos, proibindo-as de os ter.
Pretendendo torná-las piedosas, levam-nas à igreja, onde se
aborrecem; obrigando-as incessantemente a murmurar orações,
levam-nas a aspirar à felicidade de deixar de orar a Deus. Queren­
do inspirar-lhes a caridade, obrigam-nas a dar esmolas, como se
eles próprios desdenhassem dá-las. Ora! Não é a criança que de­
ve dar, mas o perceptor: seja qual for a dedicação que tenha pelo
pupilo, deverá disputar-lhe essa honra; deve levá-lo a compreen-

1 Não há nada mais indiscreto que uma pergunta dessas, sobretudo


quando a criança é culpada: neste caso, se ela crê que sabeis o que fez, pen­
sará que lhe preparais uma armadilha, e essa opinião não pode deixar de
a indisporcontra vós. Se crê que não o sabeis, dirá para si mesma: «Porque
motivos iria confessar a minha falta?» E eis a primeira tentação da men-
96 tira, efeito da vossa imprudente pergunta.
der que, na sua idade, ainda não é digno de dar. A esmola é uma .
acção de adulto que conhece o valor do que dá e a necessidade que
o seu semelhante tem de receber. A criança, não conhecendo nada
disto, não pode ter qualquer mérito quando dá; dá sem caridade,
sem intenção de praticar o bem; sente-se quase envergonhada,
quando, baseada no seu exemplo e no vosso, deixa de dar esmolas.
Notai que sempre que se insiste para que a criança dê coisas
cujo valor ignora, peças de metal que tem na bolsa e que só lhe ser­
vem para isso. Uma criança daria mais facilmente cem luzes que
um bolo. Mas incitai esse prodígio distribuidor a dar as coisas de
que gosta, brinquedos, caramelos, o seu lanche, e muito depressa
veremos se o tornastes verdadeiramente liberal.
Ainda há os que arranjam um expediente para isso, que é
devolver - quase imediatamente - à criança, o que ela deu, de
modo que ela se acostuma a dar tudo quanto sabe que lhe será de­
volvido. Nas crianças, nunca observei se não essas duas espécies
de generosidade: dar o que não lhes serve para nada ou dar o que
têm a certeza que lhes irá ser devolvido. Procedei -aconselha Loc­
ke -de maneira a que elas se convençam, pela experiência, de que
o mais liberal é sempre o melhor equilibrado. Esse sistema só serve
para tornar uma criança aparentemente liberal e efectivamente
avarenta. E ainda acrescenta que, desse modo, as crianças contrai­
rão o hábito da liberalidade. Sim, de uma liberalidade usurária
que dá um ovo para receber uma vaca. Mas, quando se tratar de
dar definitivamente, adeus ao hábito! Quando deixarem de _rece­
ber a devolução do que deram, rapidamente deixarão de dar. E pre­
ciso preocupar-se mais com o hábito da alma: que com o das mãos.
Todas as outras virtudes que se ensinam às crianças parecem-se
com esta. E é a pregar-lhes estas sólidas virtudes que se lhes mer­
gulha a infância na tristeza! Que sábia educação!
Mestres, deixai-vos de pantomimas, sede virtuosos e bons, que
os vossos exemplos fiquem gravados na memória dos vossos pupi­
los, enquanto não conseguirem penetrar nos seus corações. Em vez
de me apressar a exigir que o meu pupilo pratique actos de carida­
de, prefiro praticá-los na sua presença, e, mesmo, retirar-lhe os
meios de, nisso, me imitar, como se fosse uma honra imprópria pa­
ra a sua idade; porque importa que ele não se acostume a conside­
rar os deveres dos homens unicamente como deveres de crianças.
E se, vendo--me ajudar os pobres, ele me interrogar sobre o que fa­
ço e for tempo para lhe responder1, dir-lhe-ei: «Meu amigo, é que,

1 É preciso conceber que só lhe dou explicações quando isso me pa­


rece conveniente e não sempre que ele mas pede; de outro modo, seria sub­
meter-me às suas vontades e colocar-me na mais perigosa dependência
em que um governante se pode encontrar em relação ao seu pupilo. 97

L.B.253 - 7
quando os pobres aceitaram que houvesse ricos, os ricos promete­
ram alimentar todos aqueles que não tivessem de que viver, nem
através dos seus bens nem através do seu trabalho». «Então tam­
bém prometeste isso?», perguntará ele. «Certamente; só sou dono
dos bens que passam pelas minhas mãos, nas condições que estão
ligadas à sua propriedade.>>
Depois de ter ouvido este discurso - e já se viu como é possí­
vel colocar uma criança em estado de o compreender -, outro que
não fosse Emílio sentir-se-ia tentado a imitar-me e a comportar­
-se como homem rico; nesse caso, eu trataria, pelo menos, de im­
pedir que o fizesse com ostentação; preferiria que me roubasse o
meu direito e desse às escondidas. E uma fraude própria da sua
idade, e a única que eu lhe poderia perdoar. Bem sei que todas es­
sas virtudes por imitação são virtudes de macaco, e que uma boa
acção só é moralmente boa quando é praticada como tal e não por­
que outros a praticam. Mas, numa idade em que o coração ainda
não sente nada, devemos aceitar que as crianças imitem os adul­
tos cujo hábito lhes queremos incutir, esperando que possam vir a
praticá-los por discernimento e por amor ao bem. O homem é
imitador, o próprio animal o é; o gosto pela imitação traduz uma
natureza bem ordenada; mas, na sociedade, degenera em vício. O
m acaco imita o homem, porque o receia, e não os animais que des­
preza; considera bom tudo quanto faz um ser melhor que ele. Pe­
lo contrário, entre nós, os nossos arlequins de todas as espécies
imitam o belo para o degradarem, para o tornarem ridículo; no sen­
timento da sua b aixeza, procuram igualar-se ao que vale mais do
que eles; ou, quando se esforçam por imitar o que admiram, vê-se,
na escolha que fazem dos objectos, o falso gosto dos imitadores: têm
muito mais a intenção de se impor aos outros ou de conseguir que
o seu talento seja aplaudido que de se tornarem melhores ou mais
sages. Entre nós, o fundamento da imitação deri\ra do desejo de
continuamente nos transportarmos para além de nós mesmos. Se
eu tiver êxito no meu trabalho, Emílio não terá esse desejo. Por
conseguinte, devemos dispensar o bem aparente que ele poderia
produzir.
Aprofundai todas as regras da vossa educação e vereis que as
encontrareis todas trocadas, sobretudo no que diz respeito às vir­
tudes e aos costumes. A única lição de moral que convém à infân­
cia, e a m ais importante para todas as idades, é a de nunca fazer
mal a ninguém. O próprio preceito de fazer o bem, se a ele não for
subordinado, é perigoso, falso, contraditório. Quem é que não faz
o bem? Toda a gente o faz, tanto osmaus comoos outros; faz-seum
homem feliz à custa de cem que se tornam miseráveis; e daí vêm
todas as nossas calamidades. As virtudes mais sublimes são nega­
tivas: também são as m ais difíceis, porque são sem ostentação, e
98 mesmo acima desse prazer - 'que tão doce é para o coração do
homem - de saber que alguém fica satisfeito graças a nós. Oh!
Quanto bem faz, necessariamente, aos seus semelhantes, aquele
que nunca lhes faz mal! Quanta magnanimidade de alma, quan­
to vigor de carácter lhe são necessários para isso! Não é raciocinan­
do sobre esta máxima, mas esforçando-nos por praticá-la, que
sentimos como é importante e difícil aplicá-la1 •
Eis algumas ligeiras ideias das precauções com as quais eu
gostaria que se dessem, às crianças, as instruções que, por vezes,
não se lhes pode recusar sem as expor a prejudicarem-se a si mes­
mas e aos outros, e, sobretudo, a contraírem maus hábitos que di­
ficilmente -se conseguiriam corrigir: mas tenhamos a certeza de
que esta necessidade raramente se fará sentir nas crianças educa­
das como deve ser; porque é impossível que se tornem indóceis,
más, mentirosas, ávidas, se, nos seus corações, não tiverem sido
semeados os vícios que assim as tornam. Por isso, o que eu disse a
este respeito serve mais para as excepções que para as regras; mas
essas excepções tornam-se mais frequentes à medi da que as crian­
ças vão tendo oportun,idades de sair da sua condição e de contrair
os vícios dos homens. Aquelas que são educadas entre a sociedade,
as instruções devem, necessariamente, ser dadas mais precoce­
mente que às que são educadas num retiro. Esta educação solitá­
ria seria, pois, de preferir, quanto mais não fosse para deixar, à in­
fância, o tempo de amadurecer.
Existe outro género de excepções opostas, para as crianças cujo
natural agradável as eleva acima da idade que têm . Assim como há
homens que nunca saem da infância, há outros que, por assim di­
zer, nem sequer passam por ela e que j á são quase homens quan­
do nascem . Pena é que esta última excepção seja muito rara, mui­
to difícil de determinar, e que, todas as mães, sabendo que há
crianças-prodígio, se convençam de que o filho é um desses casos.
Ainda vão mais longe: interpretam como indícios extraordinários
aqueles que marcam a ordem natural, tais como a vivacidade, os
saltos, a estouvanice, a graciosa ingenuidade, todos eles sinais ca-

1
O preceito de nunca fazer mal a ninguém obriga a interessar-se,
o menos possível, pela sociedade humana, porque, no estado social, o bem
de um implica necessariamente o mal de outro. Esta correlação está na es­
sência da coisa, e nada a poderia mudar. Que se veja, neste princípio, o que
é preferível, se o homem social ou o solitário. Um autor ilustre diz que só ·
o mau está só; eu digo que só o bom está só. Embora esta afirmação sej a
menos sentenciosa, é mais verdadeira e mais bem racioçinada que a pre­
cedente. Se o mau estivesse só, que mal poderia fazer? E no seio da socie­
dade que ele prepara as suas maquinações para fazer mal aos outros. Se
alguém pretender aplicar este argumento ao caso do homem bom, respon-
do com o artigo ao qual esta nota pertence. 99
racterísticos da idade e que muito bem mostram que uma criança
é apenas uma criança. Será de admirar que aquela a quem fazem
falar muito e à qual permitem tudo dizer, que não respeita nada,
que nada constrinja, tenha, por acaso, um feliz encontro? Seria
m uito mais espantoso que nunca o tivesse,comoo seria que - com
m il mentiras - um astrólogo nunca predisesse nenhuma verdade.
«Mentirão tanto», dizia Henrique IV, «que acabarão por dizer al­
guma verdade.>> Para aquele que queira dizer algumas palavras
acertadas, basta-lhe dizer muitas asneiras. Deus proteja as pes­
soas n a moda, que, para serem admiradas, só têm esse mérito!
Os pensamentos mais brilhantes podem cair no cérebro das
crianças, ou antes, os ditos mais acertados nas suas bocas, como os
diamantes do m aior valor nas suas mãos, sem que, por isso, os dia­
mantes ou os pensamentos lhes pertençam; para essa idade, não
há verdadeira propriedade, de género nenhum. As coisas que uma
criança diz, para ela não significam o mesmo que para nós; ela não
lhes atribui as mesmas ideias. E essas ideias - no caso de ela as
ter - não têm, na sua cabeça, nem continuidade nem ligação; na­
da há de fixo nem de seguro no que pensam. Examinai o vosso pre­
tenso prodígio. Em determinados momentos, encontrareis nele a
m arca de uma extrema actividade, uma clareza de espírito capaz
de atravessar asnuvens. Na maior parte das vezes, essemesmoes­
pírito parece-vos relaxado, lento e como rodeado por um espesso
nevoeiro. Ora vos ultrapassa ora se Ulantém imóvel. Em dado mo­
mento, sereis capaz de dizer: é um génio; e, um instante depois: é
um patet�. Mas enganar-vos-eis sempre; trata-se apenas de uma
criança. E uma aguiazinha que, durante um instante fende ós,

ares, e que, instantes depois, recai no seu ninho.


Tratai-a, pois, consoante a sua idade, apesar das aparências,
e receai esgotar-lhe as forças pretendendo exercê-las em excesso.
Se esse jovem cérebro se irrita, se vedes que se põe a fervilhar,
começai por deixá-lo fermentar em liberdade; mas nunca o exci­
teis, para evitar que tudo se expanda; e quando os primeiros espí­
ritos se tiverem evaporado, retende, comprimi os outros, até que,
com o andar dos anos, tudo se transforme em calor vivificador e em
verdadeira força. Se assim n ão fizerdes, perdereis o vosso tempo e
os vossos cuidados, destruireis a vossa própria obra; e, após vos ter­
des levianamente embriagado com todos esses vapores inflamá­
veis, apenas vos restará um resíduo sem vigor.
Das crianças estouvadas, vêm os homens vulgares: não conhe­
ço observação mais geral e mais acertada que esta. Nada é mais
difícil que distinguir, na infância, a verdadeira estupidez dessa
aparente e enganadora estupidez que é o prenúncio das almas for­
tes. Começa por parecer estranho que os dois extremos apresen­
tem sinais tão semelhantes: mas assim deve ser; porque, numa
1 oo idade em que o homem ainda não tem verdadeiras ideias, toda a
diferença que existe entre aquele que tem génio e aquele que o não
tem é que este último só admite ideias falsas e que o primeiro­
só encontrando essas - não admite nenhuma: parece, pois, estú­
pido que um não seja capaz de nada e que nada convenha ao outro.
O único indicio que os pode distinguir depende do acaso, que pode
proporcionar ao último alguma ideia ao seu alcance, enquanto o
primeiro continua a ser o mesmo em tudo. Durante a sua infância,
o jovem C atão era considerado, pela família, como um imbecil. Ta­
citurno e obstinado, era tudo quanto pensavam dele. Foi apenas na
antecâmara de Cila que seu tio aprendeu a conhecê-lo. Se não
tivesse entrado nessa antecâmara, talvez continuasse a ser consi­
derado como um estúpido até à idade da razão. Se César não tives­
se vivido, talvez se continuasse a considerar como visionário esse
mesmo C atão que compreendeu o seu carácter funesto e previu, de
tão longe, os seus funestos projectos. Como se sujeitam a enganos
os que tão precipitadamente ajuízam das crianças! Muitas vezes,
ainda são mais crianças que elas. Numa idade bastante avançada,
vi um homem - que me honrava com a sua amizade - ser consi­
derado, pela família e pelos amigos, como um espírito tacanho: es­
sa excelente cabeça amadurecia silenciosamente. Bruscamente,
revelou-se filósofo, e não tenho dúvidas de que a posteridade lhe
venha a atribuir um lugar honroso e distinto, entre os melhores
pensadores e os mais profundos metafísicos do seu século.
Respeitai a infância e não vos apresseis a julgá-la, nem em
bem nem em mal. Deixai que as excepções se manifestem, se pro­
vem, se confirmem, muito antes de, para elas, adoptardes métodos
especiais. Deixai a natureza agi r durante muito tem po, antes de
vos encarregardes de agir em seu lugar, a fim de não contrariar­
des as. suas operações. Conheceis - afirmais - o valor do tempo,
e não o quereis desperdiçar. Não compreendeis que perdeis muito
mais tempo quando o utilizais mal que quando não o utilizais, e
que uma criança mal instruída está mais afastada da sageza que
uma que não tenha recebido instrução nenhuma? Alarmais-vos
por vê-la consumir os seus primeiros anos a não fazer nada. Mas
que ideiaé essa? Serfeliz não será nada? Saltar, brincar, correr du­
rante todo o dia será não fazer nada? Durante toda a sua vida, a
criança nãovoltará a estar tão ocupada. Na suaRépublique - que
se considera tão severa -, Platão educa as crianças com festejos,
jogos, canções, passatempos; dir-se-ia que a única coisa que lhe
cumpre fazer é ensinar-lhes bem a divertir-se; e Séneca, referin­
do-se à antigajuventude romana: «Estava», diz ele, «Sempre de pé:
não se lhe ensinava nada que devesse aprender sentada.» E vale­
riaessajuventudemenos depois deatingir a idadeviril?Porconse­
guinte, não vos preocupeis tanto com essa pretensa ociosidade.
Que diríeis de um homem que, para tirar partido de toda a sua vi-
da, nunca quisesse dormir? Diríeis: «Este homem é insensato; não 1 o 1
disfruta do tempo, afasta-o de si; para fugir do sono, corre para
morte.» Pensai, então, que se trata da mesma coisa e que a infân­
cia é o sono da razão.
A aparente facilidade em aprender é causa da perda das crian­
ças. Ninguém se apercebe de que essa mesma facilidade é a prova
de que não compreendem nada. O seu cérebro, liso e polido, reflec­
te, como um espelho, os objectos que lhe são apresentados; mas na­
da permanece, nada nele penetra. A criança retém as palavras, as
ideias reflectem-se; os que a escutam compreendem-nas, só ela
não as compreende.
Umbora a memória e o raciocínio sejam duas faculdades essen­
cialmente diferentes, a verdade é que uma não se pode desenvol­
ver sem a outra. Antes de atingir a idade da razão, a criança não
recebe ideias, mas imagens; e, entre as primeiras e as segundas,
há a seguinte diferença: as imagens não passam de pinturas abso­
lutas dos objectos sensíveis, enquanto as ideias são noções dos ob­
jectos, determinadas pelas relações. Uma imagem pode estar só no
espírito que a representa; mas uma ideia supõe que haja outras.
Quando se imagina, mais não se faz do que ver; quando se conce­
be, compara-se. As nossas sensações são puramente passivas, en­
quanto todas as nossas percepções ou ideias provêm de um prin­
cípio activo que ajuíza. Isto será demonstrado a seguir.
Como já disse, as crianças-como não são capazes de ajuizar
-não têm verdadeira memória. Retêm sons, rostos, sensações, ra­
ramente retêm ideias e, ainda mais raramente, as relações que en­
tre estas existem. Objectando-me que aprendem certas noções de
geometria, crê-se provar que o que afirmo não é verdade; ora, mui­
to pelo contrário, isso só prova que o que afirmo está certo: que, lon­
ge de serem capazes de raciocinar por si mesmas, nem sequer sa­
bem reter os raciocínios de outrem; segui, pois, os métodos desses
pequenos geómetras e imediatamente vereis que eles só retiveram
a impre(>são exacta da figura geométrica e os termos da demons­
tração. A mínima objecção que lhes apareça, ficam desorientados;
virai a figura ao contrário, sentem-se perdidos. Todo o seu saber
consiste na sensação, nada atingiu o entendimento. Mesmo a sua
memória não é mais perfeita que as suas outras faculdades, pois
que lhes é quase sempre necessário voltar a aprender, depois de
adultos, as coisas cujas palavras aprenderam durante a infância.
No entanto, estou muito longe de pensar que as crianças não
tenham nenhuma espécie de raciocínio!. Pelo contrário, vejo que

1 Enquanto escrevia, cem vezes fiz a reflexão de que, numa longa


obra, é impossível dar sempre o mesmo sentido às mesmas palavras. Não
existe linguagem suficientemente rica para fornecer tantos termos, ex-
1 o2 pressões e frases, quantas as modificações que as nossas ideias podem ter.
raciocinam muito bem, a respeito de tudo quanto conhecem e que
se relaciona com o seu interesse presente e sensíveL Mas é sobre
os seus conhecimentos que se comete o erro, atribuindo-se-lhes os
que elas não têm e pretendendo que raciocinem sobre o que seriam
incapazes de compreender. Também é um erro pretender torná­
-las atentas a considerações que, de nenhuma forma, lhes dizem
respeito, como a do seu interesse futuro, da sua felicidade depois
de adultos, da estima de que serão merecedoras depois de cresci­
das; discursos esses que, feitos a seres desprovidos de toda e
qualquer espécie de previsão, não significam absolutamente nada
para eles. Ora, todos os estudos que esses infortunados se vêem
obrigados a fazer relacionam-se com esses assuntos, completa­
mente alheios aos seus espíritos. Daí, já se pode imaginar a aten­
ção que eles são capazes de lhes prestar.
Os pedagogos que nos expõem, com todos os pormenores, a ins­
trução que dão aos seus discípulos, são pagos para utilizar uma lin­
guagem diferente: no entanto, através do seu próprio comporta­
mento, podemos ver que pensam exactamente como eu. Porque,
afinal, que lhes ensinam eles? Palavras, mais palavras e sempre
palavras. De entre as várias ciências que se gabam de lhes ensinar,
evitam escolher aquelas que lhes seriam v erdadeiramente úteis,
porque se trataria de ciências das coisas, e não conseguiriam en­
siná-las; mas aquelas que parecem saber, porque lhes conhecem
os termos: a heráldica, a geografia, a cronologia, as línguas, etc.;
tudo isso são assuntos tão pouco relacionados com o homem, e, so­
bretudo, com a criança, que se pode considerar como uma maravi­
lha se algum deles lhe puder vir a ser útil, nem que sej a uma úni­
ca vez, durante as suas vidas.
Surpreender-vos-€is por ver que incluo o estudo das línguas
no número das inutilidades da educação: mas tereis de vos lembrar
de que, aqui, só falo sobre os estudos da primeira idade; e, seja o que
for que possam dizer, não creio que, até à idade dos 12 ou 15 anos,

O método para definir todos os termos, e substituir, incessantemente, o


definido pela definição, é belo mas impraticável; porque como evitar o cír­
culo vicioso? As definições poderiam ser boas, se não se utilizassem pala­
vras para as fazer. Apesar disso, estou persuadido de que é possível ser­
-se claro, mesmo com a pobreza da nossa língua, não dando sempre as
mesmas acepções às mesmas palavras, mas fazendo de modo-tantas ve­
zes quantas as que se emprega cada palavra- que a acepção que se lhe
dá seja suficientemente determinada pelas ideias que com ela se relacio­
nam, e que cada período em que essa palavra se encontra lhe sirva, por as­
sim dizer, de definição. Ora afirmo que as crianças são incapazes de racio­
cínio, ora as ponho a raciocinar com bastante acuidade. Procedendo assim,
não creio contradizer-me nas minhas ideias, mas também não posso ne-
gar que me contradigo frequentemente nas expressões que emprego. 103
tenha havido alguma criança-exceptoos prodígios-que apren­
desse verdadeiramente duas línguas.
Concordo que, se o estudo das línguas fosse apenas o das pala­
vras, isto é, o das figuras ou dos sons que as exprimem, esse estu­
do poderia convir às crianças: mas as línguas, mudando as pala­
vras, também modificam as ideias que elas representam. As cabe­
ças formam-se nas línguas, os pensamentos adquirem o tom dos
idiomas. Só a razão lhes é comum; mas, em cada língua, a razão
tem a sua forma particular; diferença que bem poderia ser, em par­
te, a causa ou o efeito dos caracteres nacionais; e o que parece con­
firmar esta hipótese é que, em todas as nações do mundo, a língua
segue as vicissitudes dos costumes, e conserva-se ou altera-se co­
mo eles.
Destas várias formas, o hábito dá uma à criança, e é a única que
ela conserva até à idade da razão. Para ter duas, seria necessário
que ela soubesse comparar ideias; e como as compararia ela, quan­
do mal se encontra em estado de as conceber? Cada coisa pode ter,
para ela, mil significados diferentes; mas cada ideia só pode ter
uma forma: por isso, só pode aprender a falar numa língua. Dir­
-me-ão que, contudo, ela aprende várias: negQ-Q. Vi alguns des­
ses pequenos prodígios que supunham falar cinco ou seis línguas.
Ouvi-os, sucessivamente, falar alemão, em termos latinos, em ter­
mos franceses, em termos italianos; na verdade, utilizavam cinco
ou seis dicionários, mas só falavam alemão. Numa palavra, dai às
crianças todos os sinónimos que quiserdes: mudareis as palavras,
mas ,não a língua; elas nunca saberão falar mais de uma.
E para esconder essa sua inaptidão que as exercem, de prefe­
rência, nas línguas mortas, para as quais não há apreciação que
não se possa refutar. Como o uso dessas línguas já se perdeu há
muito tempo, contentam-se em imitaro queencontram escritonos
livros; e, a isso, chamam falar. Seé esse o grego ou o latim dos mes­
tres, imaginai como será o das crianças! Mal aprenderam, de cor,
os rudimentos dessas línguas - de que não compreendem absolu­
tamente nada-, começam a ensinar-lhes a pôr um discurso fran­
cês em palavras latinas; depois, quandojá estão mais adiantadas,
a coser em prosa algumas frases de Cícero, e, em verso, alguns cen­
tões de Virgílio. E, então, supõem falar latim: quem os irá contra­
dizer?
Seja em que estudo for, se. não houver uma ideia das coisas
representadas, os sinais representantes não significam nada.
Porém, limita-se sempre a criança a esses sinais, sem nunca
conseguir levá-la a compreender nenhuma das coisas que eles
representam. Pensando em ensinar..:...Ihe a descrição da terra,
ensinam-se-lhe nomes de cidades, de países, de rios, que ela não
pode conceber que existam para além do papel em que lhos mos-
1 04 tram. Recordo-me de ter visto, algures, uma geografia que come-
çava assim: que é o mundo? É um globo de cartão. É precisamen­
te esta a geografia das crianças. Tenho a certeza de que, após dois
anos de esfera e de cosmografia, não há uma única criança de 1 0
anos que, baseando-se nas regras que lhe ensinaram, saiba ir de
Paris a Saint-Denis*. Tenho a certeza de que não existe nenhuma
que, baseando-se no plano de jardim de seu pai, se encontre na
possibilidade de lhe seguir os contornos sem se perder. E são esses
doutores que sabem exactamente onde se encontram Pequim, Is­
paão, o México, e todos os países do mundo.
O que pretendo dizer é que convém ocupar as crinaçs com estu­
dos que exijam unicamente os olhos: isso seria possível se houvesse
algum estudo para o qual só fosse preciso a vista; mas não conhe­
ço nenhum desse género.
Devido a um erro ainda mais ridículo, obrigam-nas a estudar
história; imaginam que a história está ao seu alcance, porque não
passa de um compilado de feitos. Mas que se entende por essa pa­
lavra «feitos»? Será que imaginam que os relatos que determinam
os feitos históricos são tão fáceis de compreender que as ideias que
representam se formam, sem dificuldade, no espírito das crianças?
Será que se crê que o verdadeiro conhecimento dos eventos se pos­
sa separar do das suas cau sas e do dos seus efeitos, e que a histo­
ricidade está tão pouco ligada à moral que seja possível saber as
primeiras sem conhecer os segundos? Se, nas acções dos homens,
só vedes os movimentos exteriores e puramente físicos, que apren­
deis na história? Absolutamente nada; e esse estudo, desprovido
de qualquer interesse, não vos proporciona mais prazer que
instrução. Se quereis apreciar essas acções através dos seus rela­
cionamentos morais, tentai explicar esses relacionamentos aos
vossos educandos, e, então, vereis se a história é própria para a ida­
de deles.
Leitores, lembrai-vos sempre de que aquele que vos fala não
é nem um Sábio nem um filósofo, mas um homem simples, amigo
da verdade, sem partido, sem sistema; um solitário que, vivendo
pouco com os homens, tem menos ocasiões para se imbuir dos seus
preconceitos e mais tempo para reflectir no que observa, quando
com eles tem contactos. Os meus raciocínios estão menos baseados
em princípios que em factos; e creio que a melhor maneira de vos
colocar na possibilidade de os julgar é citar-vos, com frequência,
alguns exemplos das observações que mos sugeriram.
Fui passar alguns dias ao campo, a casa de uma boa mãe de fa­
mília que se dedicava muito aos filhos e à educação destes. Uma
manhã, quando as s isti a às lições do mais velho, o seu governante

* Saint-Denis é uma povoação, ao norte de Paris, que faz parte da


aglomeração parisiense. (N. da T.) 105
-que lhe ensinara muito sobre a história antiga-, ao voltar a
referir-se à de Alexandre, caiu no famoso episódio com o médico
Philippe, que foi analisado e que, certamente, o merecia. O gover­
nante, homem de mérito, fez várias reflexões sobre a intrepidez de
Alexandre, que não me agradaram mas qu� evitei discutir, para
não o desacreditar no espírito do pupilo. A mesa, e segundo o
costume francês, não deixaram de fazer palrar o rapazinho. A vi­
vacidade natural da sua idade, e a certeza de acabar por ser aplau­
dido, levaram-no a contar uma quantidade de tolices, apesar de,
por entre elas, dizer, de vez em quando, algumas coisas certas que
levavam a esquecer o resto. Por fim, chegou ao episódio com o mé­
dico Philippe: contou-o com muita clareza e muita graça. Após o
costumado tributo de elogios que a mãe exigia e que o filho espe­
rava, a conversa concentrou-se no que ele acabara de contar. A
maioria dos convivas censurava a temeridade de Alexandre;
alguns, como o governante, admiravam a sua firmeza, a sua cora­
gem: o que me levou a compreender que nenhuma das pessoas pre­
sentes via em que consistia a verdadeira beleza daquele episódio.
«Para mim», declarei, «parece-me que se há a mínima coragem, a
mínima firmeza, na acção de Alexandre, ela não passa de uma ex­
travagância.» Então, todos se puseram de acordo para dizer que se
tratava de uma extravagância. Preparava-me para continuar e
me lançar, quando uma mulher que estava ao meu lado, e que ain­
da não pronunciara uma palavra, se inclinou para o meu ouvido e
me disse, em voz baixa: «Cala-te, Jean-Jacques, eles não te com­
preenderão.» Olhei para ela, senti-me impressionado e calei-me.
Depois do almoço, suspeitando, por vários indícios, de que o
meu jovem doutor não compreendera absolutamente nada da his­
tória que tão bem contara, tomei-o pela mão, levei-o a dar uma
volta pelo parque e, tendo-o interrogado à minha vontade, perce­
bi que ele admirava, mais do que ninguém, a tão elogiada coragem
de Alexandre: mas sabeis onde ele via essa coragem? Unicamen­
te no facto de Alexandre ter bebido de um trago, e sem hesitar, sem
mostrar a mínima repugnância, uma bebida com mau gosto. A
pobre criança, que, havia menos de quinze dias, fora obrigada a to­
mar um medicamento que lhe custara muito a engolir, ainda tinha
aquele mau gosto na boca. No seu espírito, a morte, o envenena­
mento, não passavam de sensações desagradáveis, e, para ela, só
existia um v0neno: o sene*. Porém, é preciso confessar que a firme­
za do herói impressionara muito o seu jovem coração, e que resol­
vera ser um «Alexandre», na próxima vez que tivesse de tomar um
medicamento. Sem entrar em explicações que, evidentemente,
ultrapassavam a sua compreensão, elogiei-o por essas louváveis

*
106 Planta cujas folhas se utilizam como purgativo. (N. da T.)
disposições, e, enquanto voltávamos para casa, ria-me comigo
mesmo da elevada sageza dos pais e dos mestres que pensam en­
sinar a história às crianças.
E fácil pôr-lhes na boca as palavras <<reis», «impérios», <<guer­
ras••, «conquistas••, <<revoluções», <<leis>>; mas, quando se tratar de
relacionar essas palavras com ideias claras, ver-se-á a grande di­
ferença que existe entre a conversa dojardineiro Robert e todas es­
sas explicações.
Prevejo que alguns leitores, descontentes com o Cala-te, Jean­
-Jacques, quererão saber o que, finalmente, vejo, de tão belo, na
acção de Alexandre. Infortunad_os! Se precisam que eu vo-lo diga,
como poderão compreendê-lo? E que Alexandre acreditava na vir­
tude; é que, por ela, ele teria posto a cabeça a prémio, a sua própria
vida; é que a sua grande alma estava feita para acreditar nela.
Como foi bela a sua profissão de fé, quando engoliu esse medica­
mento! Não, nunca nenhum mortal foi tão sublime. Se existe al­
gum Alexandre moderno, mostrem-mo nessas mesmas circuns­
tâncias.
Se não há ciência de palavras, também não há estudo próprio
para as crianças. Se elas não tiverem verdadeiras ideias, não terão
v erd ade ira mem ória; porque não dou esse nome àquela que só re­
tém as sensações. De que serve inscrever-lhes, n a cabeça, um ca­
tálogo de sinais que, para elas, não representa nada? Ao aprende­
rem as coisas, não aprenderão os sinais? Por que motivo obrigá-las
ao inútil trabalho de as aprenderem duas vezes? Entretanto, quão
perigosos são os preconceitos que se lhes começa por inspirar, le­
vando-as a considerar cc;>mo ciência palavras que, para elas, não
fazem sentido nenhum! E com a primeira palavra que a criança se
forma, é com a primeira coisa que aprende pela palavra de outrem
- sem lhe ver a utilidade - que a sua possibilidade de ajuizar se
perde: brilhará durante muito tempo, aos olhos dos tolos, antes de
poder reparar uma tal perda1•

1 A maioria dos sábios são-no à maneira das crianças. A vasta erudi­


ção resulta menos de uma abundância de ideias que de uma abundância
de imagens. As datas, os nomes próprios, os lugares, todos os objectos iso­
lados ou desprovidos de ideias retêm-se unicamente através da memória
dos sinais, e raramente se recorda alguma destas coisas sem, ao mesmo
tempo, ver o recto, ou o verso, da página em que ela foi lida, ou o aspecto
sob o qual foi vista pela primeira vez. Foi esta, mais ou menos, a ciência
que esteve na moda durante os últimos séculos. A do nosso século é dife­
rente: já não se estuda, já não se observa; sonha-se, e são-nos oferecidos,
gravemente, como filosofia, os sonhos de algumas noites mal passadas.
Dir-me-ão que eu também sonho; não o nego: mas- coisa que os outros
não fazem- apresento os meus sonhos como sonhos, deixando ao leitor
a possiblidade de ver se eles contêm alguma coisa que possa ser útil pa-
ra os que estão despertos. 107
Não, se a natureza dá ao cérebro de uma criança essa agilida­
de que o torna próprio para receber todas as espécies de impres­
sões, não é para que nele se gravem nomes de reis, datas, termos
de heráldica, de esfera, de geografia, e de todas essas palavras sem
sentido nenhum para a sua idade-e sem utilidade nenhuma para
seja que idade for - com que sobrecarregam a sua triste e estéril
infância; mas é paraque todas as ideiasqueele pode conceber e que
lhe são úteis, todas as que dizem respeito à sua felicidade e a de­
vem esclarecer, um dia, sobre os seus deveres, lá fiquem inscritas
muito cedo, em caracteres indeléveis e lhe sirvam para se condu­
zir, durante a sua vida, de uma maneira que convenha ao ser ser
e às suas faculdades.
Sem estudar nos livros, a espécie de memória que uma crian­
ça possa ter nem por isso fica ociosa; tudo quanto vê, tudo quanto
ouve, a atinge e fica retido na sua memória; no seu cérebro, ela
mantém um registo das acções, dos discursos dos homens; e tudo
quanto a rodeia forma o livro com que - sem dar por isso -ela en­
riquece continuamente a sua memória, enquanto espera que o seu
raciocínio possa tirar proveito disso tudo. E na escolha desses ob­
jectos, é no cuidado com que se lhe apresentam incessantemente
aqueles que ela pode conhecer e com que se lhe escondem os que ela
deve ignorar, que consiste a verdadeira arte de, nela, cultivar es­
sa primeira faculdade; e é por esse sistema que se lhe deve formar
um arquivo de con-hecimentos qt"�e, durante a sua juventude, ser­
virá par� a sua educação e para o seu comportamento, em todas as
idades. E verdade que este método não forma prodigiozinhos e não
faz brilhar as governantas e os perceptores; mas forma homens
judiciosos, robustos, sãos de corpo e de entendimento, que, sem se
terem feito admirar enquanto jovens, se fazem honrar quando
adultos.
Emílio nunca aprenderá nada de cor, nem sequer fábulas, nem
sequer as de La Fontaine, por mais inocentes e encantadoras que
sejam; porque as palavras das fábulas não são fábulas, assim co­
mo as palavras da História não sãó a História. A que ponto é pos­
sível que as pessoas tenham cegado, para considerarem as fábulas
como a moral das crianças, sem pensarem que o apólogo, divertin­
do-as, as engana; que, seduzidas pela mentira, elas deixam esca­
p ar a verdade, e que o que se faz para se lhes tornar a instrução
agradável impede-as de retirarem proveito dela? As fábulas po­
dem instruir os homens; mas, às crianças, é preciso dizer a verda­
de nua: desde o momento em que a encobrem com um véu, elas já
não se dão ao trabalho de o levantar.
Ensinam-se as fábulas de La Fontaine a todas as crianças,
mas não há sequer uma delas que as compreenda. Mas, se as
compreendessem, ainda seria pior; porque, nessas fábulas, a mo­
I os ralidade está de tal maneira encoberta e é tão desproporcionada
para a idade infantil, que mais depressa as conduziria ao vício que
à virtude. Dir-me-eis que só apresento paradoxos. Pois sim; mas
vejamos se são verdades.
Digo que uma crinaça não compreende as fábulas que lhe en­
sinam, porque por mais esforços que se façam para se lhas torna­
rem simples, a instrução que delas se pretende retirar obriga a
apresentar à criança ideias que ela não pode compreender, e por­
que o próprio torneado da poesia, tornando-as mais fáceis de me­
morizar, torna-as mais difíceis de conceber, de maneira que se
consegue a distracção em detrimento da clareza. Sem precisar de
citar essa quantidade de fábulas que não contêm nada de inteligí­
vel, nem de útil, para as crianças, e que estas são abusivamente
obrigadas a aprender com as outras - porque se encontram rela­
cionadas -, limitemo-nos às que o autor parece ter escrito espe­
cialmente para elas.
Entre todas as fábulas de La Fontaine, conheço apenas cinco
ou seis onde brilha sobremaneira a ingenuidade infantil; de entre
estas cinco ou seis, escolho, como exemplo, a primeira delas todas1,
porque é aquela cuja moralidade se adapta mais a todas as idades,
aquela que as crianças melhor compreendem, a que elas aprendem
com mais prazer, e, enfim, aquela que, por todas essas razões, o au­
tor preferiu colocar no princípio do seu livro. Supondo-lhe real­
mente a intenção dequeelafosse compreendida pelas crianças, de
que lhes agradasse e de que as intruísse, esta fábula é, certamen­
te, a sua obra-prima: por conseguinte, permiti que eu a siga e a
examine, em poucas palavras.

O CORVO E O RAPOSO
(Fábula)

Mestre corvo, numa árvore empoleirado.


Mestre! Que significado tem essa palavra? Que significa ela,
diante de um nome próprio? Que sentido tem, nesta circunstância?
' Que é um corvo?
Que é numa árvore empoleirado? Não se diz numa árvore em­
poleirado, diz-se empoleirado numa árvore. Por conseguinte, é ne­
cessário falar das inversões da poesia; é preciso explicar o que é a
prosa e o que é o verso.

Tinha um queijo enfiado no bico.


Que queijo? Era um queijo da Suíça, de Brie, ou da Holanda?

1 Trata-se da segunda e não da primeira, como muitojustamente fez


notar M. Formey. 109
Se a criança nunca viu corvos, que adianta falar-lhe deles? Se já
os viu, como poderá conceber que transportem um queijo no bico?
Formemos sempre imagens segundo a natureza.

Mestre raposo, pelo cheiro aliciado.


Mais um mestre! Mas, para este, o título é ad_equado, pois tra­
ta-se de um especialista nos golpes do seu ofício. E preciso explicar
o que é um raposo, e estabelecer a distinção entre o seu verdadei­
ro natural e o carácter convencional que adquire, nas fábulas.
Aliciado. Esta prlavra não é habitual. Será preciso explicá-la;
deverá dizer-se que só é usada nos versos. A criança quererá sa­
ber por que motivo a maneira de falar em verso é diferente da que
se usa na prosa. Que lhe respondereis?
Aliciado pelo cheiro de um queijo! Esse queijo, seguro por um
corvo empoleirado numa árvore, devia ter um cheiro muitp forte,
para ser detectado pelo raposo numa mata ou no seu covil! E assim
que exercereis o vosso educando, para esse espírito de crítica judi­
ciosa, que só se deixa convencer com boas razões e que sabe disi­
tinguir a verdade da mentira, nas narrações de outrem?

Dirigiu-lhe mais ou menos esta linguagem:


Esta linguagem! Então os raposos falam? Falam a mesma lín­
gua que os corvos? Sensato perceptor, toma cuidado; pesa bem a
tua resposta antes de a dares; tem mais importância do que pen­
sas.

Olá! Bom dia, senhor corvo!


Senhor! Título que a criança vê ridicularizado, mesmo antes de
saber que se trata de um título honroso. Aqueles que dizem senhor
do corvo terão muitas dificuldades para conseguir explicar esse do.

Como sois bonito! Que belo me pareceis!


Redundância inútil. A criança, vendo repetir a mesma coisa
com outros termos, aprende a falar sem concisão. Se me dizeis que
essa redundância é uma arte do autor, que ela faz parte das inten­
ções do raposo, que, com palavras, pretende parecer multiplicar os
elogios, essa explicação servirá para mim, mas não para o meu pu­
pilo.

Para dizer a verdade, se a vossa voz


Para dizer a verdade! Então há quem, por vezes, a não diga?
Que pensará a criança se lhe disserdes que o raposo diz para dizer
a verdade porque não a costuma dizer?

Correspondesse à vossa p lumagem


1 1o Correspondesse! Que significa essa palavra? Ensinai a criança
a comparar qualidades tão diferentes quanto a voz e a plumagem;
vereis como ela vos compreenderá.

Seríeis o fénix dos anfitriões destes bosques.


O fénix! Que é um fénix? Eis-nos bruscamente atirados para
a mentirosa antiguidade, quase na mitologia.
Os anfitriões destes bosques! Que discurso figurado! O baju­
lador enobrece a sua linguagem e dá-lhe mais dignidade, para a
tornar mais sedutora. Uma criança será capaz de compreender
esta finura? Saberá, poderá saber o que é um estilo nobre e um
estilo vil?

_ouvindo estas palavras, () corvo não cabe em si de contente.


E indispensável já ter experimentado paixões muito vivas pa­
ra compreender esta expressão proverbial.

E, para mostrar a sua bela voz,


Não vos olvideis de que, para compreender este verso e toda a
fábula, a criança precisa de saber o que é a bela voz do corvo.

Abre o enorme bico, deixa cair a presa.


Este verso é admirável, só a harmonia dá a imagem. Vejo um
grande e horrendo bico aberto; ouço o queijo cair, através dos ra­
mos da árvore: mas estas espécies de belezas não são compreendi­
das pelas crianças.

O raposo apanha-a e diz: Meu caro senhor,


Eis, agora, a bondade transformada em estupidez. Não restam
dúvidas de que não se perde tempo para educar as crianças.

Ficai sabendo que os aduladores


Máxima geral; já não conseguimos que ela compreenda isto.

Vivem à custa dos que lhes dão ouvidos.


Nunca uma criança de 1 O anos compreendeu este verso.

Esta lição bem vale um queijo, certamente.


Isto compreende-se, e a ideia é muito boa. No entanto, ainda
haverá poucas crianças que sejam capazes de comparar uma lição
com um queijo, e que não prefiram o queijo à lição. Por conseguin­
te, é necessário que compreendam que esta frase não passa de uma
ironia. Quanta finura, para crianças!

O corvo, envergonhado e confuso,


Outro pleonasmo; mas este é imperdoável.
111
Jurou -mas um pouco atrasado -que não voltariam
a enganá-lo.
Jurou! Qual é o mestre idiota que se atreve a explicar à crian­
ça o que é um juramento?

Acabo de citar muitos pormenores; porém, muitomenos doque


seriam precisos para analisar todas as ideias desta fábula e redu­
zi-las às ideias simples e elementares de que cada uma delas se
compõe. Mas quem é que pensa ter necessidade desta análise pa­
ra se fazer compreender pela juventude? Nenhum de nós é sufi­
cientemente filósofo para saber pôr-se no lugar de uma criança.
Agora, passemos à sua moralidade.
Pergunto se é a crianças de 1 O anos que se deve explicar que há
homens que adulam ementem para disso tirarem proveito. Poder­
-se-ia, quanto muito, dizer-lhes que há mofadores que, nas costas
dos rapazinhos, os ridicularizam e troçam da sua tola vaidade; mas
o queijo estraga tudo; ensina-se-lhe menos a não o deixar cair da
boca que a fazê-lo cair da boca de outros. Aqui está o meu segun­
do paradoxo, que não é o menos importante.
Observai as crianças quando estas aprendem as suas fábulas,
e vereis que, quando se encontram em estado de fazer a aplicação
da sua moralidade, a aplicam de uma maneira que, quase sempre,
é oposta à da intenção do autor, e que, em vez de se absterem do de­
feito de que se pretende curá-las ou preservá-las, têm tendência
para gostar do vício com o qual se tira partido dos defeitos dos ou­
tros. Na fábula precedente, as crianças pouco se interessam pelo
corvo, mas todas simpatizam com o raposo; na fábula seguinte,
pensais dar-lhes a cigarra como exemplo; mas nada disso: será a
formiga que escolherão. Ninguém gosta de se humilhar: preferirão
sempre o bom papel; é a escolha do amor-próprio, uma escolha
muito natural. Mas, que terrível lição, para a infância! O mais
odioso de todos os monstros seriam uma criança avarenta e dura,
que saberia o que se lhe pede e que o recusa. A formiga ainda faz
mais, ensinando-a a escarnecer, nas suas recusas.
Em todas as fábulas em que o leão é uma das personagens,
como, geralmente, ele é sempre o mais importante, a criança nun­
ca deixa de se querer parecer com ele; e, como ficou bem instruída
pelo seu modelo, sempre que fica encarregada de alguma reparti­
ção, tem o cuidado de se apoderar de tudo. Mas, quando o leão é
vencido pelo mosquito, o caso já muda de figura: aí, a criançajá não
é o leão, é o mosquito. Aprende a matar, um dia, com ferroadas,
aqueles que não se atreveria a atacar de pé firme.
Na fábula do lobo magro e do cão gordo, em vez da lição de
moderação que se lhe pretende dar, ela recebe uma de desregra-
112 mento. Nunca me esquecerei do quanto que chorou uma menina
pequena que se sentia desolada com esta fábula que lhe tinham
contado, pregando-lhe a docilidade. Foi difícil conhecer a causa
dos seus choros; finalmente, soube-se: a pobre criança aborrecia­
-se porque se sentia amarrada, como se tivesse uma coleira ao pes­
coço; chorava por não ser lobo.
Assim, para a criança, a moralidade da primeira fábula citada
é uma lição da mais vil adulação; a da segunda, uma lição de de­
sumanidade; a da terceira, uma lição de injustiça; a da quarta,
uma lição de sátira; a da quinta, uma lição de independência. Es­
ta última lição, por ser supérflua para o meu pupilo, não é mais
conveniente para os vossos. Quando lhes ensinais preceitos que se
contradizem, que resultado esperais dos vossos trabalhos? Mas
talvez toda essa moralidade que me serve de objecção contra as
fábulas forneça suficientes motivos para as conservar. Na socieda­
de, é necessária uma moralidade de palavras e uma de acções, e
essas duas moralidades não têm nada de semelhante entre si. A
primeira está no catecismo, onde a deixam; a segunda está nas fá­
bulas de La Fontaine, para as crianças, e nos seus contos, para as
mães. O mesmo autor supriu a tudo.
Convenhamos, senhor De LaFontaine! Quanto a mim, prome­
to ler-vos com gosto, apreciar-vos, instruir-me com as vossas fá­
bulas: pois espero não me enganar sobre as intenções delas; mas,
para o meu pupilo, permiti que eu não o autorize a estudar nem
uma, até que me tenhais provado que é conveniente que ele apren­
da coisas de que não compreenderánem a quarta parte, e que, com
as que poderá compreender, nunca se sentirá tentado a seguir o
exemplo do aldrabão, em vez de se corrigir com o do enganado.
Deste modo, retirando todos os deveres das crianças, retiro os
instrumentos da sua maior miséria, que são os livros. A leitura é
o flagelo da infância, e quase a única ocupação que se lhes sabe dar.
Emílio só saberá o que é um livro quando tiver 12 anos. «Mas>>,
dir-me-eis, «Será necessário que ele saiba ler.» Sim, de acordo, é
preciso que ele saiba ler quando a leitura lhe for de alguma utili�
dade; até lá, só pode servir para o aborrecer.
Se, por obediência, nada se deve exigir das crianças, segue-se
que elas não podem aprender nada cuja vantagem actual e presen­
te - seja de prazer, seja de utilidade - não sintam; se assim não
fosse, por que motivo haveriam de querer aprender a ler? A arte de
falar aos ausentes e de os compreender, a arte de lhes comunicar,
à distância, sem intermediário, os nossos sentimentos, as nossas
vontades, os nossos desejos, é uma arte cuja utilidade se pode tor­
nar sensível em todas as idades. Por que prodígio essa arte tão útil
e agradável se teria tornado um tormento para a infância? Porque
esta se vê obrigada a aplicar-se a ela, contra sua vontade, e porque
lhe dão utilidades que a criança não compreende. Uma criança não
se sente intensamente interessada em aperfeiçoar o instrumento 1 13
L.B.S23-8
de que se servem para a atormentar; mas fazei que esse instru­
mento sirva os seus prazeres, e ela rapidamente se dedicará a ele,
mesmo sem o vosso esforço.
Todos se dão a muito trabalho para procurar os melhores mé­
todos de ensinar a ler; inventam-se secretárias, mapas; transfor­
ma-se o quarto de uma criança numa oficina gráfica. Locke quer
que ela aprenda a ler com dados. Não vos parece uma boa inven­
ção? Que pena! Um meio mais seguro que tudo isso, e que sempre
é esquecido, consiste no desejo de aprender. Dai esse desejo à
criança e deixai as vossas secretárias e os vossos dados, porque, se
ela quiser aprender, todos os métodos serão bons.
O interesse presente, eis o grande móbil, o único que conduz
com segurança e até longe. Por vezes, Emílio recebe, de seu pai, de
sua mãe, dos seus familiares, dos seus amigos, bilhetes de convi­
te para um almoço, para um passeio, para uma festa aquática, pa­
ra assistir a alguma festividade pública. Esses b_ilhetes contêm
poucas palavras, são claros, nítidos, bem escritos. E preciso encon­
trar alguém que esteja disposto a ler-lhos; esse alguém, ou nem
sempre se encontrfl quando é necessário, ou retribui à criança o
pouco de complacência que esta teve para com ele, na véspera. Des­
te modo, a oportunidade, o momento, passa. Finalmente, alguém
lhe lê o bilhete, mas já é demasiado tarde. Ai! Se ele soubesse ler!
Recebe outros: são tão breves! E tratam de um assunto que inte­
ressa tanto! Querer-se-ia experimentar decifrá-los; ora se encon­
tra auxílio, ora se recebem recusas. Fazem-se esforços e, por fim,
decifra-se a metade de um desses bilhetes: trata-se de ir, amanhã,
comer cremechantilly... não se sabe aonde nem com quem ... Quan­
tos esforços se fazem para conseguir decifrar o resto! Não creio que
Emílio venha a precisar de uma secretária. Poderei agora falar da
escrita? Não; tenho vergonha de perder tempo com estas tolices
num tratado de educação.
Ainda acrescentarei o seguinte, que constitui uma máxima im­
portante: é que, geralmente, obtém-se -com toda a certeza e mui­
to rapidamente- o que não se está com pressa de obter. Tenho
quase a certeza de que Emílio saberá ler e escrever perfeitamen­
te antes de chegar aos 10 anos, precisamente porque pouco me
preocupa que ele só venha a saber fazê-lo quando tiver 15; mas
preferiria que ele nunca soubesse ler a ter de pagar essa ciência
pelo preço de tudo quanto a pode tomar útil: de que lhe servirá a
leitura, se o afastarem dela para sempre? ld imprimis cavereopor­
tebit, ne studia, qui amare nondum potest, oderit, et amaritudinem
semel perceptam etiam ultra rudes annos reformidet.
Quanto mais insisto no meu método inactivo, mais sinto que as
objecções se reforçam: <<Se o vosso educando não aprende nada con­
vosco, aprenderá com os outros. Se, nele, não prevenirdes o erro
114 com a verdade, dar-lhe-eis a possibilidade de aprender mentiras;
os preconceitos que receais dar-lhe, recebê-los-á de tudo quanto
o rodeia, penetrarão nele, através de todos os seus sentidos; ou cor­
romperão a sua razão-mesmo antes deestaseter formado-, ou
o seu espírito, entorpecido por uma prolongada inacção, se absor­
verá na matéria. A falta de prática de pensar, durante a infância,
retira dela essa faculdade para o resto da vida.»
No meu entender, parece-me que facilmente póderia respon­
der a tudo isso; mas, para quê estar constantemente a dar respos­
tas? Se o meu método, só por si, responde às objecções, é bom; se
não lhes responde, não vale nada. Prossigo.
Se, no plano que comecei a traçar, seguis regras directamen­
te opostas às que estão estabelecidas; se, em vez de transportardes
para longe o espírito do vosso educando; se, em vez de o desorien­
tardes, levando-o incessantemente, para outros lugares, para ou­
tros climas, para outros séculos, para as extremidades da Terra, e
até às dos céus, vos aplicais a mantê-lo sempre em si mesmo e
atento ao que directamente lhe diz respeito, nesse caso, encontrá­
-lo-eis capaz de percepção, de memória e mesmo de raciocínio; é
a ordem da natureza. A medida que o ser sensitivo se torna acti­
vo, adquire um discernimento proporcional às suas forças; e é uni­
camente com a força que excede aquela de que necessita para se
conservar que nele se desenvolve a faculdade especulativa,
própria para utilizar esse excesso de força noutras aplicações.
Quereis, pois, cultivar a inteligência do vosso educando? Cultivai
as forças que ele terá de governar. Exercei continuamente o seu
corpo; tornai-o robusto e são, para que ele seja sage e razoável; que
trabalhe, que aj a, que corra, que grite, que esteja constantemen­
te em movimento; que comece por �er homem, através do vigor, e
em breve o será através da razão. E verdade que, com este méto­
do, o embruteceríeis se continuásseis sempre a dirigi-lo, a dizer­
-lhe: v a� vem, fica, faz isto, não faças aquilo. Se a vossa cabeça con­
tinuar a dirigir os seus braços, a dele tornar-se-lhe-á inútil. Mas
recordai-vos das nossas convenções: se não sois mais que um pe­
dant_e, não vos vale a pena ler o que escrevo.
E um erro muito lamentável imaginar que o exercício do corpo
pode prejudicar as operações do espírito; como se essas duas acções
não devessem andar de concerto, e que uma delas não devesse sem­
pre dirigir a outra!
Há duas espécies de homens cujos corpos estão continuamen-
te em exercício e que, certamente, tão-pouco uns como os outros se
preocupam em cultivar a alma: a saber, os camponeses e os selva­
gens. Os primeiros são incultos, grosseiros, descorteses; os outros,
conhecidos pela acuidade dos seus sentidos, também o são pela
subtilidade do seu espírito; geralmente, não há nada mais grossei­
ro que um camponês� nada mais fino que um selvagem. A que se
deve esta diferença? E que o primeiro-fazendo sempre o que lhe 115
ordenam,ou o que viu seu pai fazer,ou o que fez durante toda a sua
vida,desde a infância- só funciona por rotina; e,na sua vida qua­
se autómata,constantemente ocupado com os mesmos trabalhos,
o hábito e a obediência servem-lhe de razão.
Para o selvagem, já o caso é diferente: não estando apegado a
nenhum lugar, não tendo trabalho obrigatório, não obedecendo a
ninguém, sem outra lei que não seja a sua vontade, é forçado a ra­
ciocinar em cada acto da sua vida; não faz um movimento, não dá
um passo, sem, previamente, ter considerado as consequências do
que se prepara para fazer. Deste modo, quanto mais o seu corpo se
exerce, mais o seu espírito se esclarece; a sua força e a sua razão
crescem simultaneamente e espraiam-se uma pela outra.
Sábio perceptor, vejamos qual dos nossos educandos se asse­
melha ao selvagem, e qual deles se assemelha ao camponês. Em tu­
do submetido a uma autoridade constantemente ensinadora, o
vosso só faz o que lhe é ordenado; não se atreve a comer quando tem
fome, nem a rir quando se sente alegre, nem a chorar quando es­
tá triste, nem a apresenta r uma mão pela outra, nem a mover um
pé sem ser como lho prescreveram; pouco falta para que, até para
respirar,precise de seguir as vossas regras. Em que quereis que ele
pense, quando pensais em tudo por ele? Certo da vossa providên­
cia,para que precisa ele de a ter? Vendo que vos encarregais da sua
conservação,do seu bem-estar, sente--se livre dessa preocupação;
o seu discernimento repousa no vosso; tudo quanto não lhe proibis,
fá-lo sem reflectir, sabendo perfeitamente que não corre nenhum
risco. Que necessidade tem ele de aprender a prever a chuva? Sa­
be que observais o céu por ele. Que necessidade tem de programar
o seu passeio? Sabe que não o deixareis faltar à hora do almoço. En­
quanto não o proibis de comer, vai comendo; quando lho proibis,
deixa de comer; já nem acata as imposições do seu estômago, mas
as vossas. Por mais que lhes amoleçais o corpo, na inacção, não
tornareis o seu entendimento mais flexível. Pelo contrário, só pri­
vareis o seu espírito de razão,levando--o a aplicar a pouca que tem
em coisas que não valem nada. Nunca se apercebendo de para que
ela serve, acaba por se convencer de que não tem utilidade ne­
nhuma. O pior que lhe pode acontecer, se raciocinar mal, é ser re­
preendido, e é-o com tanta frequência que já nem pensa nisso; um
perigotão comum deixa de o assustar. Contudo,achais queele tem
espírito; e tem-no, para tagarelar com as mulheres, no tom a que
já me referi; mas, se se encontrar na situação de ter de fazer um es­
forço, de, num momento difícil, ter de tomar uma decisão, vê--lo­
--eis cem vezes mais estúpido e mais embrutecido que o filho do
maior labrego.
Para o meu educando, ou antes, para o da natureza, muito ce­
do habituado a bastar--se a si próprio, tanto quanto lhe é possível,
116 não adquire o hábito de, incessantemente, recorrer aos outros, e
ainda menos ao de lhes mostrar o seu grande saber. Em contrapar­
tida, ajuíza, prevê, raciocina em tudo quanto se relaciona directa­
mente com ele. Não palra, age; não sabe nada do que se faz neste
mundo; mas sabe perfeitamente fazer o quelhe convém. Como está
constantemente em movimento, é forçado a observar muitas
coisas, a conhecer muitos efeitos; muito cedo adquire uma grande
experiência: tira as suas lições da natureza e não dos homens; ins­
trói-se com tanta mais facilidade quanto é certo que não vê, por
parte de ninguém, a intenção de o instruir. Assim, o seu corpo e o
seu espírito exercitam-se ao mesmo tempo. Agindo sempre de
acordo com o seu pensamento e não segundo o de outrem, reúne
continuamente duas operações; quanto mais forte e robusto se tor­
na, mais sensato e�udiciosofica. E o sistema para, um dia,vir a ter
o qur, se supõe ser incompatível, e que quase todos os homens reu­
niram: a força do corpo e da alma, a razão de um sage e o vigor de
um atleta.
Jovem perceptor, prego-vos uma arte difícil,que é a de gover­
nar sem preceitos e de tudo fazer, não fazendo nada. Esta arte,con­
cordo, não é própria da vossa idade; não se presta para fazer relu­
zir, acima de tudo, os vossos talentos, nem para vos fazer valer,
junto dos pais: mas é a única que valha a pena atingir. Nunca con­
seguireis fazer sages se não começardes por fazer traquinas; era
esta a educaçãoque os Espartanos recebiam: em vez de serem cola­
dos aos livros, começavam por aprender a roubar o seu almoço. E
alguém poderá dizer que,devido a isso, eram grosseiros,depois de
adultos? Quem não conhece a força e a graça das suas palavras?
Sempre f eitos para vencer, esmagavam os inimigos em todas as es­
pécies de guerras, e os tagarelas Atenienses receavam tanto as
suas palavras quanto os seus golpes.
Nas educações mais cuidadas, o mestre comanda e crê gover­
nar: na verdade, é a criança quem comanda. Serve-se do que de­
la exigis para de vós obter o que lhe agrada; e sabe sempre conse­
guir que lhe pagueis uma hora de assiduidade com oito horas de
complacência. E necessário pactuar com ela, constantemente. Es­
ses tratados,que propondes à vossa maneira e que ela executa à
sua, redundam sempre em proveito das suas fantasias, sobretudo
se tendes a insensatez de lhe impor como condição, para seu pro­
veito, o que ela tem a certeza de obter, cumpra ou não a condição
que lhe foi imposta. Geralmente,a criança lê muito melhor no espí­
ritodomestreque o mestre no coração da criança.E assim deve ser:
porque toda a sagacidade que a criança entregue a si mesma teria
utilizado para a conservação da sua pessoa, utiliza-a para salva­
guardar a sua liberdade natural, dos grilhões do seu tirano:
contanto que este, não tendo nenhum interesse urgente em com­
preender o educando, por vezes considera que é mais fácil deixá-
-lo entregue à sua preguiça ou à sua vaidade. 117
Tomai um outro caminho com o vosso educando; que ele creia
sempre ser ele a mandar e que sempre sejais vós a fazê-lo. Não há
submissão mais perfeita que aquela que conserva o aspecto da li­
berdade; desse modo, até a vontade se submete. A pobre criança
que nada sabe, que nada pode, que nada conhece, não se encontra
à vossa mercê? Não dispondes, em relação a ela, de tudo quanto a
rodeia? Não sereis senhor de a afectar como vos agrada? Os seus
trabalhos, os seus jogos, os seus prazeres, as suas mágoas, não es­
tará tudo isso nas vossas mãos, sem que ela o saiba? Certamente,
ela só deverá fazer o que quer; mas só deverá querer o que quereis
que faça; não deverá dar um passo que não tenha sido previsto por
vós; p.ão deverá abrir a boca, sem que saibais o que vai dizer.
E então que se poderá entregar aos exercícios do corpo, pró­
prios da sua idade, sem embrutecer o seu espírito; é então que, em
vez de aguçar a sua astúcia para enganar uma dominação incómo­
da, a vereis ocupada unicamente a retirar, de tudo quanto a rodeia,
o mais vantajoso partido para o seu bem-estar actual; é então que
vos sentireis surpreendido com a subtilidade das suas invenções
para se apropriar de todos os objectos que pode alcançar, e para dis­
frutarverdadeiramente das coisas, sem precisar da opinião dos ou­
tros.
Deixando-a, assim, dona das suas vontades, não fomentareis
os seus caprichos. Fazendo sempre apenas o que lhe convém, em
breve só fará o que deve fazer; e, embora o seu corpo esteja sempre
em movimento, enquanto se tratar do seu interesse presente e sen­
sível, vereis toda a razão de que ela é capaz desenvolver-se mui­
to melhor e de uma maneira muito mais apropriada à sua idade
que com os estudos de pura especulação.
Assim, não vos vendo interessado em contrariá-la, não des­
confiando de vós, não tendo nada a esconder-vos, não vos engana­
rá, não vos mentirá; mostrar-se--á tal qual é, sem receio; podereis
estudá-la à vossa vontade e dispor em volta dela as lições que que­
reis dar-lhe, sem que ela se aperceba de que lhe dais alguma.
Também não espiará os vossos costumes com uma curiosa in­
veja, e não sentirá um secreto prazer em vos apanhar em falta.
Este inconveniente que prevenimos é muito importante. Um dos
primeiros cuidados das crianças é, como já disse, descobrir os pon­
tos fracos daqueles que as governam. Essa inclinação conduz à
maldade, mas não tem origem nela: deriva da necessidade de afas­
tar uma autoridade que as importuna. Sobrecarregadas com o jogo
que lhes é imposto, procuram livrar-se dele; e os defeitos que en­
contram nos mestres fornecem-lhe bons meios para o conseguir.
Porém, toma-se o hábito de observar a!3 pessoas pelos seus defei­
tos e de sentir prazer em detectá-los. E evidente que esta é mais
uma fonte de vícios que permanece seca, no coração de Emílio; não
118 tendo interesse nenhum em encontrar-me defeitos, não procura-
rá vê-los em mim, e sentir-se-á pouco tentado a procurá-los nou­
tras pessoas.
Todas estas práticas parecem difíceis, porque não se pensa ne­
las; mas, no fundo, não o devem ser. Tem-se o direito de vos supor
as luzes necessárias para exercerdes o ofício que escolhestes; é de
presumir que conheceis o andamento natural do coração humano,
, que sabeis estudar o homem e o indivíduo; que sabeis, de antemão,
o que fará vergar a vontade do vosso educando, quando fizerdes
passar diante dos seus olhos todos os objectos que interessam a sua
idade. Ora, possuir os instrumentos e saber utilizá-los correcta­
mente não é ser mestre da operação?
Objectareis com os caprichos da criança; mas não tendes razão.
O capricho das crianças nunca é obra da natureza, mas de uma má
disciplina: é porque obedeceram ou comandaram; e já cem vezes
vos disse que nem uma nem a outra coisa deverá acontecer. Por
conseguinte, a respeito de caprichos, o vosso pupilo terá apenas os
que lhe tiverdes dado: é justo que suporteis o peso das vossas fal­
tas. <<Mas», direis, «como remediar essa situação?» Isso ainda é pos­
sível com um comportamento mais apropriado e muita paciência.
Aconteceu-me que, durante algumas semanas, estive encar­
regado de uma criança que fora acostumada não só a fazer todas
as vontades como a obrigar toda a gente a fazer-lhas; por conse­
guinte, tratava-se de uma criança cheia de fantasia. Logo no pri­
meiro dia -para pôr à prova a minha complacência -quis levan­
tar-se quando era meia-noite. Quando eu estava profundamente
adormecido, desceu do leito, enfiou o roupão e foi-me acordar. Le­
vantei-me e acendi a candeia; era tudo quanto ela pretendia; ao ca-
bo de quinze minutos, perdida de sono, voltou para o leito, satisfei-
ta com o seu teste. Dois dias depois, obteve o mesmo êxito, sem o
mínimo indício de impaciência da minha parte. Quando, antes de
voltar a deitar-se, me veio beijar, eu disse-lhe, muito calma­
mente: <<Meu amiguinho, tudo isso está muito bem, mas não reco­
meceis.» Esta frase excitou a sua curiosidade, e, no dia seguinte,
querendo ter uma ideia do modo como eu me atreveria a desobede­
cer-lhe, não deixou de se levantar à mesma hora e de me ir acordar.
Perguntei-lhe o que queria. Disse-me que não conseguia dormir.
«Não faz mal!>>, respondi, deixando-me estar quieto. Pediu-me
que acendesse a candeia. «Para fazer o quê?>>, e continuei sem me
mexer. Aquele tom lacónico começou a perturbá-la. Foi, às apal­
padelas, buscar o fuzil que fingiu bater, e eu não podia impedir-me
de rir, ouvindo as pancadas que se estava a dar nos dedos. Por fim,
absolutamente convencida de que não conseguiria fazer lume,
trouxe-me o isqueiro ao leito; disse-lhe que não precisava dele e
virei-me para o outro lado. Então, começou a correr pelo quarto,
como uma louca, gritando, cantando, fazendo muito barulho,
chocando de encontro à mesa e às cadeiras, com pancadas que pro- 1 19
curava moderar,mas que a levavam a soltar gritos lancinantes,es­
perando atrair as minhas atenções. Nada disso me demoveu; e vi
que,esperando ouvir belas exortações ou um acesso de cólera, não
se preparara para aquele sangue-frio.
Entretanto, como decidira fazer-me perder a paciência com a
sua insistência, continuou aquela barulheira, com tanto sucesso
que, por fim, irritei-me; e, pressentindo que, se me entregasse a
uma fúria despropositada, acabaria por estragar tudo, tomei o
meu partido de outro modo. Sem dizer nada, levantei-me e pro­
curei o fuzil, que não encontrei; pedi-lho; ela deu-mo, satisfeitís­
sima: por, finalmente, me ter vencido. Bati o fuzil, acendia a
candeia, peguei na mão do rapazinho, e, calmamente, levei--o pa­
ra um gabinete perto do meu quarto,cujas janelas estavam bem fe­
chadas e onde não havia nada que se pudesse partir: deixei--o lá,
às escuras; depois, saindo e fechando a porta à chave, voltei a dei­
tar-me sem lhe ter dito uma única palavra. �laro que, de começo,
houve barulho, como eu esperava. Mas, por fim, esse barulho
abrandou; prestei o ouvido,ouvi--o falar sozinho,tranquilizei-me.
No dia seguinte, pela manhã, entro no gabinete; encontro o meu
pequenino rebelde deitado numa cadeira de repouso e profunda­
mente mergulhado num sono de que-depois de tantas canseiras
- devia ter grande necessidade.
O caso não acabou aqui. A mãe veio a saber que o filho passa­
ra duas terças partes da noite fora do leito. Ficou imediatamente
tudo perdido, era uma criança que podia ter morrido! Aperceben­
do-se de que a ocasião era boa para se vingar, o maroto fingiu-se
doente, sem prever que nada ganharia com isso. O médico foi cha­
mado. lnfelizmen te para a mãe, esse médico era um bom folgazão,
que, para se divertir com os receios desta, se aplicou a agravá-los.
No entanto, disse-me, ao ouvido: «Deixai-me proceder, prometo­
-vos que, por algum tempo, a criança ficará curada da fantasia de
estar doente.» Efectivamente, a dieta e o quarto foram prescritos,
e a criança foi recomendada ao boticário. Eu sentia pena por ver
aquela pobre mãe ser assim enganada por todos quantos a rodea­
vam excepto eu; e ela começou a odiar-me, precisamente porque
eu não a enganava.
Após algumas censuras bastante severas,disse-me que o filho
era frágil,que era o único herdeiro da família, que era necessário
conservá-lo, fosse por que preço fosse e que não queria que o con­
trariassem. Nisso, eu estava absolutamente de acordo com ela;
mas,por «contrariar»,ela pretendia dizer «não lhe obedecer em tu­
do . Vi que era necessário adoptar, para a mãe, o mesmo tom que
,

tomara para o filho. <<Minha senhora», disse-lhe friamente, <<não


sei como se educa um herdeiro, e, o que ainda é mais,não quero sa­
bê-lo; a esse respeito, podeis arranjar-vos.» Precisavam de mim
l20 ainda por algum tempo: o pai apaziguou tudo; a mãe escreveu ao
perceptorpara que este se apressasse a regressar; e a criança, ven­
do que não ganhava nada em perturbar-me o sono nem em fingir­
-se doente, acabou por tomar o partido de dormir e de se portar
bem.
Não se pode imaginar a quantos caprichos deste género aque­
le pequeno tirano sujeitara o seu infeliz governante; porque a edu­
cação era-lhe dada sob os olhos da mãe, que não suportava que o
herdeiro fosse desobedecido em nada. Fosse a que hora fosse que
ela quisesse sair, era preciso estar-se pronto para o levar, ou an­
tes, para o seguir, e ele tinha sempre o cuidado de, para isso, esco­
lher o momento em que via o governante mais ocupado. Pretendeu
exercer, sobre mim, a mesma dominação, e vingar-se, durante o
dia, do repouso que se via forçado a permitir-me durante a noite.
Prestei-me, de bons modos, a tudo, e comecei por bem confirmar,
aos seus olhos, o prazer que sentia em lhe comprazer; depois dis­
to, quando se tratou de curá-lo da sua fantasia, procedi diferente­
mente.
Foi necessário começar por colocá-lo em falta, e isso não foi
difícil. Sabendo que as crianças nunca pensam para além do pre­
sente, adquiri sobre esta a fácil vantagem da previdência; tive o
cuidado de lhe proporcionar, em casa, uma distração que sabia que
era muito apreciada por ela; e, no momento em que a vi mais
ocupada com essa distracção, fui-lhe propor darmos um passeio;
mandou-me embora; insisti, mas não me prestou ouvidos; tive de
me render, e ela registou, preciosamente, em si mesma, esse indí­
cio de sujeição.
No dia seguinte, foi a minha vez. Aborrecia-se - eu encarre­
gara-me de tudo fazer para que assim fosse; eu, pelo contrário, p a­
recia estar profundamente ocupado. Não era preciso tanto para a
determinar. Não deixou de vir arrancar-me ao meu trabalho para
que a levasse a passear, o mais depressa possível. Recusei; obsti­
nou-se. «Não», disse eu; <<fazendo a vossa vontade, ensinastes-me
a fazer a minha; não quero sair.» «Pois bem», respondeu ela viva­
mente, « sairei sozinha.» «Como queirais.>> E voltei a entregar-me
ao meu trabalho.
Ela veste-se, um pouco inquieta por ver que eu não me oponho
a isso e que não a imito. Preparada para sair, vem despedir-se de
mim; despeço-me dela; procura alarmar-me, com a relação dos sí-
tios aonde tenciona ir; ao ouvi-la, ter--se-ia crido que vai ao fim do
mundo. Sem me comover, desejo-lhe boa viagem. O seu embara-
ço redobra. No entanto, esforça-se por nada deixar transparecer,
e, já prestes a sair, ordena ao lacaio que a siga. Este, já prevenido,
responde que não tem tempo para isso, e que ocupado a fazer coisas
que lhe ordenei, deve obedecer-me a mim e não a ela. Nesse
momento, a criança sente-se desorientada. Como conceber que a
deixem sair sozinha, a ela, que se crê mais importante que todos 121
os outros e pensa que o céu e a terra estão interessados na sua con­
servação? Contudo, começa a sentir a sua fraqueza; compreende
que se vai encontrar sozinha no meio de pessoas que não a conhe­
cem; de antemão, vê os riscos a que se vai expor; só a obstinação
ainda a sustenta; desce a escada lentamente e muito preocupada.
Por fim, sai à rua, consolando-se um pouco do mal que lhe pode­
rá acontecer, com a esperança de que me tornarão responsável por
ele.
Era aí que eu a esperava. Já tinha preparado tudo;. e, como se
tratava de uma cena pública, munira-me do consentimento do pai.
Mal dá alguns passos, ouve - vindos da esquerda e da direita ­
vários propósitos a seu respeito. «Vizinho, olhai para o bonito se­
nhor! Aonde irá ele, assim sozinho? Vai perder-se; vou convidá-lo
a entrar em nossa casa. Vizinha, não caia nessa! Não vedes que é
um pequeno dissoluto que foi expulso da casa do pai porque não
queria fazer nada? Não devemos receber os disso!utos em casa; dei­
xai--{) ir aonde ele quiser. Pois bem! Que Deus o guie! Teria pena
se lhe acontecesse alguma desgraça.>> Um pouco mais longe, encon­
tra uns diabretes, mais ou menos da sua idade, que a arreliam e
troçam dela. Quanto mais se afasta de casa, mais problemas en­
contra. Sozinha e sem protecção, vê-se considerada como o fanto­
che de toda a gente e, com muita surpresa, apercebe-se de que as
suas vestes, apesar dos paramentos de ouro, não lhe servem para
se fazer respeitar.
Entretanto, um dos meus amigos, que ela não conhecia, e que
eu encarregara de velar por ela, seguia-a, passo a passo, sem se fa­
zer notar, e, chegado o momento, acostou-a. Este papel, que se as­
semelhava ao de Sbrigani, em Pourceaugnac, exigia um homem de
espírito, e foi perfeitamente desempenhado. Sem tornar a criança
tímida e sem lhe imprimir um exagerado susto, fez-lhe tão bem
sentir a imprudência daquela aventura que, ao cabo de meia hora,
trouxe-ma, dócil, confusa e não se atrevendo a levantar os olhos.
Para ainda dar mais relevo ao desastre da sua expedição, pre­
cisamente no momento em que reentrava em casa, seu pai encon­
trou--{) na escada, quando descia para sair. Foi preciso que ela lhe
explicasse de onde vinha e por que motivo eu não a acompanhava1 •
A pobre criança bem desejaria poder enfiar-se pelo chão abaixo.
Sem se divertir a dar-lhe uma prolongada reprimenda, o pai disse­
-lhe-mais secamente do que eu teria esperado: «Quando quiser­
des sair sozinho, podeis fazê-lo; mas, como não quero um bandido

1 Num caso destes, pode, sem perigo, exigir-se que uma criança diga
a verdade, porque, nesse momento, ela bem sabe que não a conseguirá
disfarçar e que, se se atrever a dizer uma mentira, será imediatamente
122 descoberta.
em minha casa, quando isso acontecer, tende o cuidado de não re­
gressar.»
Por meu lado, recebi-a sem censuras e sem ironia, mas com um
ar grave; e, receando que suspeitasse de que tudo o que se passa­
ra não fora mais do que uma brincadeira, não quis levá-la a sair
naquele mesmo dia. No dia seguinte, vi, com grande prazer, que,
acompanhada por mim, ela passava com um ar de triunfo diante
dessas mesmas pessoas que tinham troçado dela na véspera, por
a terem encontrado sozinha. Como podeis imaginar, nunca mais
voltou a ameaçar-me de sair sem mim.
Foi por este meio e outros do mesmo género que, durante o pou­
co tempo que passei com ela, consegui levá-la a fazer tudo quan­
to eu queria, sem nunca lhe ordenar nada, sem nunca lhe proibir
nada, sem sermões, sem exortações, sem a aborrecer com lições
inúteis. Por isso, quando eu falava, ela sentia-se contente; mas o
meu silêncio preocupava-a; compreendia que havia alguma coisa
que não estava bem, e a lição vinha-lhe sempre dessa própria coi­
sa. Mas voltemos ao assunto.
Não só esses exercícios contínuos, assim entregues à direcção
da natureza, fortalecem o corpo e não embrutecem o espírito, como,
pelo contrário, formam, em nós, a única espécie de razão de que a
primeira idade é susceptível, e a mais necessária para todas as ida­
des. Ensinam-nos a conhecer bem a utilização das nossas forças,
a relação dos nossos corpos com os corpos que nos rodeiam, a uti­
lização dos instrumentos naturais que estão ao nosso alcance e que
convêm aos nossos órgãos. Haverá estupidez que se possa compa­
rar à de uma criança educada sempre dentro de casa e sob os olha­
res da mãe, que, ignorando o que é peso e resistência, quer arran­
car uma grande árvore ou levantar um rochedo? A primeira vez
que saí de Genebra, quis seguir um cavalo a galope, lancei pedras
à montanha de Saleve, que ficava a duas léguas de mim; fantoche
de todas as crianças da aldeia, para eles, eu era um verdadeiro idio­
ta. Aos 1 8 anos, na filosofia, aprende-se o que é uma alavanca: não
existe nenhum camponês de 12 anos que não saiba utilizar uma
alavanca melhor que o primeiro mecânico da academia. As lições
que os educandos aprendem entre eles, no recreio do colégio, são­
-lhes cem vezes mais úteis que tudo quanto lhes foi ensinado nas
aulas.
Observai um gato que, pela primeira vez, entra num quarto;
percorre--<:>, observa, fareja, não fica um momento quieto, não se fia
em nada enquanto não examinou tudo, enquanto não conhece to-
dos os cantos da habitação. O mesmo faz uma criança que começa
a andar, entrando, por assim dizer, no espaço do mundo. A única
diferença está em que, ao sentido da vista -comum à criança e ao
gato - a primeira acrescenta, para observar, as mãos que a natu­
reza lhe deu, e, o outro, o subtil olfacto com que ela o dotou. Esta 123
disposição, bem ou mal cultivada, é o que torna as crianças habi­
l idosas ou desajeitadas, preguiçosas ou activas, estouvadas ou
prudentes.
Por conseguinte, como os primeiros movimentos do homem são
para se medir com tudo o que o rodeia, e experimentar, em cada
objecto que avista, todas as qualidades sensíveis que se podem re­
lacionar com ela, a sua primeira lição é uma espécie de física ex­
perimental relativa à sua própria conservação, da qual é desviada
por estudos especulativos, antes mesmo de ter reconhecido o seu
lugar neste mundo. Enquanto os seus órgãos delicados e flexíveis
se podem adaptar aos corpos sobre os quais devem agir, enquan­
to os seus sentidos, ainda puros, estão isentos de ilusões, é tempo
de exercitar tanto uns como os outros nas funções que lhes são pró­
prias; é o momento de aprenderem a conhecer as relações sensíveis
que as coisas têm connosco. Como tudo o que entra no enten dimen­
to humano lhe chega pelos sentidos, a primeira razão do homem é
a sensitiva; é ela que servirá de base à razão intelectual: os nossos
primeiros mestres de filosofia são os nossos pés, as nossas mãos,
os nossos olhos. Substituir tudo isso por livros não é ensinar-nos
a raciocinar, é ensinar-nos a servir-nos da razão de outrem; é en­
sinar-nos a muito crer e a nunca saber nada.
Para exercer uma arte, é necessário começar por adquirir os
instrumentos necessários para a praticar; e, para poder utilizar
utilmente esses instrumentos, é preciso fabricá-los bastante sóli­
dos, para que resistam ao uso. Para aprender a pensar, é , pois, ne­
cessário exercitar os nossos membros, os nossos sentidos, os nos­
sos órgãos, que são os instrumentos da nossa inteligência; e, para
tirar o maior partido possível desses instrumentos, é necessário
que o corpo que os fornece seja robusto e são. Assim, a verdadeira
razão do homem não se forma independentemente do corpo: é a boa
constituição do corpo que facilita e torna seguras as operações do
espírito.
Mostrando em que deve ser utilizada a prolongada ociosidade
da infância, entro num pormenor que vos vai parecer ridículo. «Li­
ções agradáveis», dir-m�is, «que, recaindo sobre a vossa própria
crítica, se limitam a ensinar o que ninguém precisa de aprender!
Para quê desperdiçar tempo com instruções que chegam sempre
por si próprias e não dão nem mágoas nem trabalhos? Qual a crian­
ça de 12 anos que não sabe tudo quando quereis ensinar ao vosso
pupilo, e, além disso, o que os mestres lhe ensinaram?»
Meus senhores, enganai-vos: ensino ao meu pupilo uma arte
m uito morosa e muito difícil que, certamente, os vossos não têm;
é a de ser ignorante: porque a ciência de quem não se crê saber o
que sabe reduz-se a muito pouca coisa. Vós dais a ciência; é perfei­
to! Eu, ocupo-me do instrumento próprio para a adquirir. Diz-se
124 que, um dia, depois de, com toda a pompa, os Venezianos terem
mostrado o tesouro de São Marco a um embaixador de Espanha,
este, como único elogio, e depois de ter espreitado por debaixo das
mesas, lhes disse: Qui non c'e la radice*. Tenho sempre vontade de
dizer o mesmo, quando vejo um perceptor fazer alarde da sabedo­
ria do seu pupilo.
Todos os que reflectiram sobre a maneira de viver dos antigos
atribuem aos exercícios de ginástica esse vigor do corpo e da alma
que os distingue mais sensivelmente dos modernos. A maneira
como Montaigne insiste neste sentimento mostra que estavamui­
to convencido disso; refere-se constantemente a isso, e de mil ma­
neiras. Falando da educação que se deve dar a uma criança, para
lhe fortalecer a alma, diz ele que é preciso endurecer-lhe os mús­
culos; habituando-a ao trabalho, habituamo-la à dor; é preciso
acostumá-la à rudeza dos exercícios para que se habitue ao amar­
gor do entorse, da cólica e de todas as doenças. O sage Locke, o bom
Rollin, o sábio Fleury, o pedante Crouzas, tão diferentes entre si
-no que concerne o resto-, todos eles estão de acqrdo neste único
ponto, que é exercer muito os corpos das crianças. E o maisjudicio­
so dos seus preceitos; mas é aquele que está a ser e sempre será
mais negligenciado. Já falei bastante da sua importância; e, como,
sobre esse assunto, não é possível dar razões melhores nem regras
mais sensatas que aquelas que se encontram nos livros de Locke,
contentar-me---ei em vo-las citar, após ter tomado a liberdade de
lhes acrescentar algumas observações.
Os membros de um corpo que cresce devem sentir-se bem à
larga nas suas vestes; nada lhes deve dificultar os movimentos
nem o crescimento; não devem usar vestes demasiado justas, nada
que se cole ao corpo; nada de ligaduras. As vestes francesas, incó­
modas e malsãs para os homens, são perniciosas, sobretudo para
as crianças. Os humores, estagnantes, detidos nà sua circulação,
corrompem-se num repouso que a vida inactiva e sedentária au­
menta, e são causa de escorbuto, doença cada dia mais comum en­
tre nós, e quase ignorada pelos antigos, cuja maneira de vestir e de
viver os preservava dela. As vestes justas, longe de evitarem este
inconveniente, aumentam-no, e, para poupar às crianças algumas
ligaduras, apertam-lhes o corpo todo. O que de melhor há a fazer
é deixá-las em camisa tanto tempo quanto possível, e, mais tarde,
dar-lhes roupas bastante largas, e não ter a preocupação de lhes
marcar a cintura, o que só poderia servir para a deformar. Os seus
defeitos corporais e de espírito derivam quase todos da mesma cau­
sa; pretende-se torná-las adultas antes de tempo.
Há cores alegres e cores tristes: as primeiras agradam mais às
crianças; tambémlhes ficam melhor; e não vejo por que razão estas

* «Não encontrei a raiz.» (N. da T.) 125


não seriam consultadas sobre este assunto, cujas conveniências
são tão naturais; mas, desde o momento em que elas preferem um
tecido porque ele é rico, os seus corações já estão entregues ao lu­
xo, a todas as fantasias da opinião; e esse gosto certamente não
lhes vem de si próprias. É quase impossível dizer quanto a escolha
das vestes e os motivos dessa escolha têm influência na educação.
Não só há mães cegas que prometem aos filhos novos trajes, como
recompensa, como também se vêem governantes insensatos amea­
çarem os educandos com vestes mais grosseiras e mais simples,
como se isso fosse uma punição. «Se não estudais melhor, se não
conservais as vossas vestes com mais cuidado, sereis vestido como
aquele camponês!>> É como se lhe dissésseis: «Sabei que o homem
só vale pelos hábitos que traja, que o vosso valor consiste naque­
les que usais!>> Será de admirar que a juventude tire partido de tão
sábias lições, que só dê valor aos trajes, e que só considere o méri­
to consoante o aspecto exterior?
Se eu tivesse de corrigir as ideias de uma criança assim estra­
gada, cuidaria para que os seus trajes mais ricos fossem os mais in­
cómodos, para que ela se sentisse sempre incomodada quando os
trajasse, sempre oprimida, sempre constrangida de mil maneiras;
afastaria dela a liberdade e a alegria, perante a sua magnificência;
se ela quisesse tomar parte nos jogos de outras crianças mais sim­
plesmente vestidas, tudo cessaria, tudo desapareceria, instanta­
neamente. Enfim, aborrecê-la-ia, enchê-la-ia tanto com o seu
fausto, torná-la-ia tão escrava dos seus trajes dourados, que eles
passariam a ser o flagelo da sua vida, e que ela olharia, com me­
nos terror, para a mais escura masmorra que para os paramentos
das suas roupagens. Enquanto a criança não está sujeita aos nos­
sos preconceitos, sentir-se à vontade e livre é sempre o seu maior
desejo; as vestes mais simples, mais cómodas, aquelas que menos
a constrangem, são sempre as que ela prefere.
Há um hábito do corpo que convém aos exercícios, e outro mais
conveniente para a inacção. Esta, deixando aos humores uma
circulação constante e uniforme, deve garantir o corpo contra as
alterações do ar; a outra, fazend<>---0 passar, incessantemente, da
agitação ao repouso e do calor ao frio, deve acostumá-lo às mesmas
alterações. Daí se segue que as pessoas caseiras e sedentárias
devem andar muito agasalhadas em todas as estações, a fim de
conservarem o seu corpo numa temperatura uniforme - mais ou
menos a mesma em todas as estações e a todas as horas do dia. Pe­
lo contrário, aquelas que vão e vêm, ao vento, ao sol, à chuva, que
agem muito e passam a maior parte do seu tempo sub dio devem
estar sempre ligeiramente vestidas, a fim de se habituarem a to­
das as vicissitudes do ar e a todas as temperaturas, sem por isso
1 2 6 serem incomodadas. Aconselharia, tanto a umas como às outras,
que não mudassem de vestes consoante as estações, e essa será a
prática constante do meu Emílio; com isso não entendo que, noVe­
rão, ele vista os seus trajes de Inverno, como as pessoas sedentá­
rias, mas que, no Inverno, ele use os seus trajes de Verão, como as
pessoas laboriosas. Este último costume foi o do cavaleiro Newton
durante toda a sua vida, e ele viveu oitenta anos.
Em todas as estações, a cabeça raramente ou nunca deverá ser
coberta. Os antigos Egípcios andavam sempre de cabeça descober­
ta; os persas cobriam-na com grandes tiaras, e ainda a cobrem com
grandes turbantes; e, segundo Chardin, essa necessidade é-lhes
imposta pelo clima do país. Noutro lugar, notei a distinção que fez
Heródoto, num campo de batalha, entre os crânios dos Persas e os
dos Egípcios. Como importa que os ossos da cabeça se tornem mais
duros, mais compactos, menos frágeis e menos porosos, para me­
lhor armar o cérebro, não só contra os ferimentos mas contra ás
constipações, as fluxões, e todas as impressões do ar, acostumai os
vossos filhos a viver, durante o Verão e durante o Inverno, de dia
e de noite, sempre com a cabeça descoberta. Que se, para a higie­
ne e para manter os seus cabelos ordenados, quereis que usem uma
touca durante a noite, que seja uma touca fina, com abertura, e se­
melhante à rede com que os Bascos envolvem os seus cabelos. Bem
sei que a maioria das mães, mais impressionada com a observação
de Chardin que com as minhas razões, suporá encontrar, por toda
a parte, o clima da Pérsia; mas eu não escolhi o meu pupilo euro­
peu para dele fazer um asiático.
Geralmente, as crianças v.ndam cobertas com uma excessiva
quantidade de roupas, sobretudo durante a primeira idade. Seria
mais conveniente torná-las resistentes ao frio que ao calor; o gran­
de frio nunca as incomoda, quando a ele são expostas desde mui­
to jovens; mas o tecido da sua pele, ainda demasiado tenro e solto,
deixando uma excessiva passagem à transpiração, expõe-nas ­
quando o calor é demasiado - a um esgotamento inevitável. Daí
que se notequemorrem mais crianças durante o mês deAgosto que
em qualquer outro mês do ano. Aliás, parece constante - se se
compararem os povos do Norte com os do Sul -que as crianças se
tornam mais robustas quando se habituam a suportar o excesso de
frio do que quando se habituam ao excesso de calor. Mas, à medi­
da que ela for crescendo e que as suas fibras se fortalecerem, acos­
tumai-a, pouco a pouco, a submeter-se aos raios do Sol; e, gradual­
mente, acostumá-la-eis, sem perigo, aos ardores da zona tórrida.
Por entre os preceitos viris e sensatos que no5 dá, Locke cai em
contradições que ninguém esperaria de um racionador tão exacto.
Esse mesmo homem que quer que as crianças se banhem, duran-
te o Verão, na água gelada, mas não quer que - quando estão a
transpirar - tomem bebidas frescas, nem que se deitem no chão, 12 7
em lugares húmidos1 • Mas, como quer que os sapatos das crianças
apanhem água por todos os tempos, será que apanharão menos
água quando a criança tiver calor? E não se lhes poderá fazer do
corpo, em relação aos pés, as mesmas induções que ele faz dos pés,
em relação às mãos, e do corpo em relação ao rosto? «Se preten­
deis», dir-lhe-ei eu, «que o homem seja todo rosto, por que me cen­
surais por eu querer que ele seja todo pés?»
Para impedir as crianças de beber, quando têm sede, ele acon­
selha a habituá-las a comer um bocado de pão, em vez de beberem.
Parece-me bastante estranho que, quando a criança tem sede, se
tenha de lhe dar de comer; preferiria dar-lhe de beber quando ela
tivesse fome. Nunca me conseguirão convencer de que os nossos
primeiros apetites sejam tão desregrados que não os possamos sa­
tisfazer sem nos arriscarmos a morrer: Se assim fosse, o género hu­
mano ter-se-ia destruído cem vezes antes de se ter sabido o que é
preciso fazer para o conservar.
Todas as vezes que Emílio tiver sede, quero que lhe dêm de be­
ber; quero que lhe dêm água pura e sem nenhuma preparação, que
nem sequer a amornem, mesmo que ele esteja a transpirar ou no
pino do Inverno. O único cuidado que exijo é distinguir a qualida­
de das águas. Se é água de rio, dai-lha imediatamente, tal como ela
sai do rio; se é água de nascente, é preciso começar a expô-la ao ar,
durante algum tempo, antes de lha dar a beber. Durante as esta­
ções quentes, os rios estão quentes. O mesmo não acontece às nas­
centes, que não receberam o contacto do ar; é preciso esperar que
atinjam a temperatura da atmosfera. Durante o Inverno, pelo
contrário, a água das nascentes é, desse ponto de vista, menos pe­
rigosa que a água do rio. Mas não é natural nem frequente que, no
Inverno, alguém se ponha a transpirar, sobretudo ao ar livre;
porque o ar frio, batendo incessantemente na pele, repele para o
interior do corpo o suor e impede que os poros se abram o suficien­
te para lhe darem uma passagem livre. Ora, eu não pretendo que,
du.rante o Inverno, Emílio se exercite ao lado de uma boa lareira,
mas lá fora, em pleno campo, no meio dos gelos. Enquanto ele
apenas se entregar ao exercício de fazer e de lançar bolas de neve,
deixemo-lobeber sempre que tiver sede; que continue a exercitar­
-se, depois de ter bebido, e não receemos nenhum acidente. Quan-

1 Como se as crianças camponesas escolhessem terra bem seca pa­


ra nela se sentarem e deitarem, e como se já alguma vez se tivesse ouvi­
do dizer que a humidade da terra tivesse feito mal a alguma delas. A es­
te repeito, se dermos ouvidos às opiniões dos médicos, acabaremos por fi­
car convencidos de que os selvagens estão todos tolhidos, com reumatis-
128 mo.
do, através de qualquer outro exercício, ele se puser a transpirar
e tiver sede, que beba água fria, mesmo nessa época. Arranjai
simplesmente maneira de o levardes, a passos miúdos e lentos, ao
longe, para receber a sua água. Com o frio que se supõe, ele já es­
tará bastante refrescado quando chegar à sua água, e não correrá
risco nenhum bebendo-a. Sobretudo, tomai estas precauções sem
que a criança se aperceba delas. Preferiria que ela estivesse cem
vezes doente que incessantemente preocupada com a sua própria
saúde.
As crianças precisam de muitas horas de sono, porque fazem
mui to exercício. Um serve de correctivo para o outro; assim, vê-se
que têm necessidade dos dois. O tempo para o repouso é a noite e
está marcado pela natureza. Sempre se observou que o sono é mais
sossegado e mais calmo quando o sol está abaixo do horizonte, e
que o ar-quando aquecido pelos seus raios -não mantém os nos­
sos sentidos numa calma tão grande. Assim, o hábito mais salutar
é certamente o de levantar-se e deitar-se com o sol. Daí se segue
que, nos nossos climas, o homem e todos os animais têm, geralmen­
te, mais necessidade de dormir durante o Inverno que durante o
Verão. Mas a vida civil não é suficientemente simples, suficiente­
mente natural, suficientemente isenta de revoluções e de aciden­
tes para que se possa acostumar o homem a essa uniformidade, ao
ponto de lha tornar necessária. Certamente, é preciso sujeitar-se
às regras; mas a primeira é poder infringi-las sem risco, quando
a necessidade o exige. Por conseguinte, não amoleceis indiscreta­
mente o vosso educando na continuidade de um sono sereno que
nunca seja interrompido. Começai por entregá-lo, sem vos preo­
cupardes, à lei da natureza; mas não vos esqueceis de que, entre
nós, ele deve estar acima dessa lei; que deverá poder deitar-se tar­
de, levantar-se cedo, ser despertado bruscamente, passar noites
sem se deitar, sem que isso o incomode. Começando bastante ce­
do, lenta e gradualmente, a habituá-lo a tudo isso, o temperamen­
to forma-se para as coisas que, se a elas não tiver sido habituado,
- ·

o destruirão quando crescido.


Para começar, importa acostumar-se a estar deitado num leito
desconfortável; é este o meio de nunca achar que há leitos descon­
fortáveis. Geralmente, a vida dura, desde que se torne um hábito,
multiplica as sensações agradáveis; a vida de moleza prepara uma
infinidade de desagradáveis. As pessoas que foram educadas com
um excesso de delicadeza só conseguem adormecer num colchão de
penas; as que foram habituadas a dormir sobre tábuas conseguem
dormir em toda a parte: não há leito duro para quem adormece lo­
go que se deita.
Um leito macio, onde as pessoas se enterram nas plumas ou no
edredão, funde e estraga o corpo, por assim dizer. Os rins, exces- 129
L.B.S23 - 9
sivamente envoltos, aquecem. Daí, muitas vezes resultam a pedra
ou outras incomodidade, e, infalivelmente, uma compleição delica­
da que as alimenta a todas.
O melhor leito é aquele que proporciona um sono melhor. Eis
aquele que nós nos preparamos, Emílio e eu, durante o dia. Não
precisamos de que nos tragam escravos da Pérsia para fazerem os
nossos leitos; lavrando a terra, revolvemos os nossos colchões.
Sei, por experiência, que quando uma criança é saudável, a po­
demos fazer dormir ou velar quase à nossa vontade. Quando a
criança está deitada, que, com a sua tagarelice aborrece a criada,
esta diz-lhe : «Dormi!>>;é como se, estando a criança doente, lhe dis­
sesse: «Tende saúde!». A verdadeira maneira de a fazer dormir é
aborrecê-la. Falai tanto que ela se veja obrigada a calar-se, e, em
breve, adormecerá: os sermões são sempre úteis para alguma
coisa; mais vale pregar-lhe um sermão que embalá-la; mas, se
empregais esse narcótico para a noite, evitai utilizá-lo durante o
dia.
Por vezes, despertarei Emílio, menos por recear que ele se ha­
bitue a dormir durante demasiado tempo que para o acostumar a
tudo, mesmo a ser despertado bruscamente. Além disso, seria
preciso que eu tivesse bem pouco talento para o meu ofício, se não
soubesse forçá-lo a despertar por si mesmo, e a levantar-se, por
assim dizer, à minha vontade, sem precisar de que eu lhe diga uma
única palavra.
Se ele não dorme o suficiente, deixo-lhe entrever, para o dia se­
guinte, uma manhã enfadonha, e ele próprio considerará como
proveito todo o tempo que puder entregar ao sono; se dorme de
mais, mostro-lhe, quando desperta, uma distração ao seu gosto. Se
quero que ele desperte a uma determinada hora, digo-lhe: «Ama­
nhã, às seis horas, partimos para a pesca, vamos passear para tal
sítio; quereis vir?» Ele consente, pede-me que o desperte: prometo­
-lho, ou não lho prometo, consoante a necessidade; se despertar
tarde de mais, vê que já parti. Será mau sinal se, muito depressa,
ele não áprender a despertar sozinho.
De resto, se acontecer- o que é raro - que uma criança indo­
lente mostre uma forte inclinação para se entregar à preguiça, não
se lhe deve permitir que se entregue a essa tendência - na qual
se entorpeceria completa]llente -, mas administrar-lhe um esti­
mulanteque a desperte. E evidente que não se trata de a fazer agir
pela força, mas de a levar a interessar-se por alguma actividade
que lhe desperte o agrado; e essa actividade, escolhida com discer­
nimento e na ordem da natureza, conduz-nos simultaneamente a
dois fins.
Não concebo nada que, com um pouco de jeito, não possa ins­
pirar às crianças o prazer, ou mesmo o entusiasmo, sem vaidade,
130 sem emulação, sem inveja. A vivacidade delas, o seu espírito imi-
tador chegam para isso; sobretudo a sua alegria natural, instru­
mento de grande valor e de que nunca nenhum perceptor se aper­
cebeu. Em todos os jogos em que elas estão persuadidas de que se
trata apenas de jogos, aguentariam sem verter rios de lágrimas.
Os prolongadosjejuns, as pancadas, os ferimentos, a queimadura,
as canseiras de todas as espécies são os divertimentos dos jovens
selvagens; isso é a prova de que a própria dor tem o seu tempero
que lhe pode retirar o amargor; mas nem todos os mestres sabem
temperar esse guisado, nem talvez todos os discípulos o saibam sa­
borear sem fazer caretas. Eis-me novamente-senão presto aten­
ção - a falar das excepções.
Porém, o que não tem excepções é a submissão do homem à dor,
aos males da sua espécie, aos acidentes, aos perigos da vida, enfim,
à morte; quanto mais se familiarizar com todas essas ideias, mais
se curará da importuna sensibilidade que, ao mal, acrescenta a im­
paciência de ter de o suportar; quanto mais ele for habituado aos
sofrimentos que o podem atingir, mais se lhe retirará- como diria
Montaigne - a importância da estranheza, e também mais in­
vulnerável e resistente se tornará a sua alma; o seu corpo será a
couraça que remendará todos os ferimentos que o possam vir a
atingir. A própria proximidade da morte, não sendo a morte, mal
a sentirá como tal; não, morrerá, por assim dizer, estará vivo ou
morto, simplesmente. E dele que o mesmo Montaigne teria podi­
do dizer -como disse de um rei de Marrocos - que nenhum ho­
mem viveu até tão longe na morte. A constância e a firmeza são,
assim como as outras virtudes, aprendizagens da infância; mas
não é ensinando os seus nomes às crianças que se lhas ensinam, é
dando-lhas a provar sem que elas saibam o que é.
Mas, a propósito de morrer, como nos comportaremos com o
nosso pupilo no que se refere ao perigo da varíola? Far-lha-emos
inocular ainda em pequenino, ou esperaremos que ele a contraia
naturalmente? A primeira hipótese, mais em conformidade com a
nossa prática, garante do perigo da idade em que a vida é mais pre­
ciosa, arriscando aquela em que ela o é menos, se é que se pode dar
o nome de risco à inoculação bem administrada.
Mas a segunda está mais de acordo com os nossos princípiqs ge­
rais, que são deixar a natureza agir em tudo, nos cuidados que ela
gosta de dispensar sozinha e que abandona logo que o homem se
quer intrometer neles. O homem da natureza está sempre prepa­
rado: deixemos que esse mestre o inocule, pois que, melhor que nós,
saberá escolher o momento propício para o fazer.
Daí, não concluais que censuro a inoculação; porque o raciocí-
nio que me leva a dela isentar o meu pupilo não serviria para os
vossos. A educação que lhes dais prepara-os para não escaparem
à varíola, no momento em que ela os atacar; se a deixardes vir, ao
acaso, é provável que ela os mate. Vejo que, nos vários países, 131
quanto mais ela é necessária, mais se lhe resiste; e o motivo que
leva a isso facilmente se compreende. Dificilmente me atreverei a
tomar uma decisão sobre este assunto, para o meu Emílio. Será
inoculado, ou não o será, consoante a idade, os lugares, as circuns­
tâncias: isso é quase indiferente para ele. Se lhe inocularem a
variola, teremos a vantagem de prever e conhecer a sua doença de
antemão; já é alguma coisa; mas, se ele a apanhar naturalmente,
tê-l<>-t!mos preservado do médico, o que ainda é mais.
Uma educação exclusiva, que tenda unicamente para dis­
tinguir do povo aqueles que a receberam, prefere sempre as instru­
ções mais caras às mais comuns, que, por isso mesmo, são as mais
úteis. Assim, todos os jovens, quando educados com esmero, apren­
dem a montar a cavalo, porque isso é muito caro; mas quase ne­
nhum deles aprende a nadar, porque isso não custa nada e porque
um artífice pode saber nadar tão bem como qualquer outra pessoa.
Porém, sem ter estudado na academia, um viajante monta num
cavalo, equilibra-se em cima dele e utiliza-o para fazer o que pre­
cisa; mas, na água, quem não sabe nadar afoga-se, e não se nada
sem se ter aprendido a fazê-lo. Enfim, não se é obrigado a montar
a cavalo para salvar a vida enquanto não podemos ter a certeza de
evitar um perigo ao qual estamos tantas vezes expostos. Emílio
sentir-se-á, quando na água, como em terra firme. Que pena que
não possa viver em todos os elementos! Se fosse possível ensinar
a voar, faria dele uma águia; faria dele uma salamandra, se nos
fosse possível suportar o fogo.
Receia-se que uma criança se afogue enquanto aprende a
nadar; que se afogue aprendendo ou por não ter aprendido, será
sempre culpa vossa . Só a vaidade nos torna temerários; não se é
vaidoso quando ninguém nos observa: Emílio nunca o seria, mes­
mo que todo o Universo estivesse a olhar para ele. Como o exercí­
cio não depende do risco, num dos canais do parque de seu pai ele
apr�nderia a atravessar o Helesponto; mas é necessário que nos
habituemos ao próprio risco para aprendermos a não nos deixar­
mos perturbar por ele; trata-se de uma fase essencial da aprendi­
zagem de que eu ainda há pouco falava. De resto, atento a medir
o perigo pelas suas forças e a compartilhá-lo sempre com ele, não
precisarei de recear nenhuma imprudência, se regular os cuidados
que dedicar à sua conservação pelos que devo à minha.
Uma criança não é tão grande como um homem; não tem nem
a sua força, nem a sua razão: mas vê e ouve, mais ou menos tão bem
como ele; tem o paladar tão sensível como ele, embora menos de­
licado, e também distingue os cheiros tão bem como ele, embora
nisso não ponha a mesma sensualidade. Em nós, as primeiras
faculdades que se formam e se aperfeiçoam são os sentidos. Por
1 32 conseguinte, são as que deveriamos cultivar em primeiro lugar;
mas são as únicas que se deixam no esquecimento ou que mais se
negligenciam.
Exercer os sentidos não consiste apenas em utilizá-los, mas
em aprender a ajuizarbem através deles: é, por assim dizer, apren­
der a sentir; porque só sabemos tocar, ver ou ouvir consoante a ma­
neira como no-lo ensinaram a fazer.
Há um exercício puramente natural e mecânico que serve pa­
ra tornar o corpo robusto, sem atribuir nenhuma inportância ao
discernimento; nadar, correr, saltar, fazer rodopiar um pião, lan­
çar pedras; tudo isso é muito bem; mas será que só temos braços
e pernas? Não teremos, também, olhos e orelhas? E estes órgãos
serão supérfluos para a utilização dos primeiros? Por conseguin­
te, não exerçais apenas as forças, exercei todos os sentidos que as
dirigem; de cada um deles, retirai todo o partido possível, e, em se­
guida, verificai a impressão de um, através do outro. Medi, contai,
pesai, comparai. Não utilizeis a força sem previamente terdes ava­
liado a resistência; procedei sempre de maneira a que a avaliação
do efeito preceda a utilização dos meios. Interessai a criança em
nunca fazer esforços insuficientes ou supérfluos. Se, deste modo,
a acostumardes a prever o efeito de todos os seus movimentos, e a
corrigir os seus erros pela experiência, não vos parece evidente
que, quanto mais agir, mais judiciosa se tornará?
Trata-se de fazer mover uma massa; se ela pegar numa ala­
vanca excessivamente comprida, terá de fazer manobras de mais;
se utilizar uma que seja curta de mais, não terá forças que che­
guem; a experiência poderá ensiná-la a escolher precisamente a
alavanca que lhe convém·. Por conseguinte, esta sageza é normal
para a sua idade. Trata-se, por exemplo, de transportar um fardo;
se ela decidir que pode aguentar com o peso dele, tal como está, sem
correr o risco de não o poder levantar, não vos parece que deverá
previamente avaliar-lhe o peso com a vista? Se sabe comparar
massas da mesma matéria e de diferentes tamanhos, que escolha
entre massas do mesmo tamanho e de matérias diferentes; será
necessário que se aplique a comparar os seus pesos específicos. Vi
um jovem, muito bem educado, que só depois de uma demonstra­
ção acreditou que uma cesta cheia de grandes cavacos de madei­
ra de castanheiro é menos pesada que quando cheia de água.
Não sabemos dominar, do mesmo modo, todos os nossos senti­
dos. Há um - o tacto - cuja acção nunca se suspende durante a
vigília; foi espalhado por toda a superfície do nosso corpo, como um
guarda p�rmanente, para nos avisar de tudo quanto lhe possa fa-
zer mal. E também esse sentido que - sem que nos esforcemos,
mas através desse exercício contínuo - mais depressa se nos tor-
na conhecido, e que, por conseguinte, menos precisão tem de rece-
ber uma cultura especial. Porém, constatamos que os cegos têm o
tacto mais seguro e mais apurado que nós, porque, como não são 133
guiados pela vista, são forçados a aprender a retirar, unicamente
do primeiro sentido, as informações que o outro nos fornece. Então,
por que será que não nos ensinam a andar com eles, na obscuri­
dade, a conhecer os corpos que não podemos atingir, a ajuizar dos
objectos que nos rodeiam, a fazer, em resumo, de noite e sem luz,
tudo o que eles fazem de dia e sem olhos? Enquanto o Sol brilha,
temos uma vantagem sobre eles; nas trevas, eles passam a ser os
nossos guias. Vivemos cegos durante metade da nossa vida; com a
diferença que os verdadeiros cegos sabem sempre orientar-se, e
que nós não nos atrevemos a dar um passo na escuridão da noite.
«Temos a iluminação!», dir-m�is. Ora bolas! Sempre as máqui­
nas! Quem vos garante que elas vos seguirão por toda a parte se
disso tiverdes necessidade? Quanto a mim, prefiro que Emílio te­
nha os olhos na extremidade dos seus dedos que na loja de um ven­
dedor de candeias.
Se vos encontrardes fechado dentro de um edifício, absoluta­
mente às escuras, batei palmas; pela ressonância do local, sabereis
se o espaço é grande ou pequeno e se vos encontrais no seu centro
ou num dos seus lados. A meio-pé de uma parede, o ar - menos
ambiente e mais reflectido -imprime-vos uma sensação diferen­
tenorosto. Permanecei onde estais e virai-vos sucessivamente pa­
ra todos os lados; se houver alguma porta aberta, uma ligeira cor­
rente de ar vo-la indicará. Se estais dentro de um barco, sabereis,
pela maneira como o ar vos baterá no rosto, não só em que senti­
do navegais mas se a corrente do rio vos arrasta lentamente ou de­
pressa. Estas observações e mais outras mil semelhantes só de noi­
te se podem fazer bem; por mais atenção que lhes qu i séssemos
prestar durante o dia, seríamos ajudados ou distraídos pela vista,
e escapar-nos-iam. E, contudo, aqui ainda não há, nem mãos nem
cajado. Quantos conhecimentos oculares se podem adquirir atra­
vés do tacto sem tocar em nada!
Muitos jogos nocturnos. Este conselho é mais importante do
que parece� A noite assusta naturalmente os homens, e, por vezes,
os animais1• A razão, os conhecimentos, o espírito, a coragem, li­
vram poucas pessoas desse tributo. Conheci homens de razão, es­
píritos fortes, filósofos, militares intrépidos durante o dia, que, à
noite, tremiam como mulheres, ao ouvirem o ruído da queda de
uma folha de árvore. Atribui-se este efeito às histórias que as
amas contam; mas isso é um engano: há uma causa natural. Que
causa é essa? A mesma que torna os surdos desconfiados e o povo
supersticioso: a ignorância das coisas que nos rodeiam e do que se

1 Esse pânico torna-se muito evidente durante os grandes eclipses


1 34 do Sol.
passa em nossa volta1 • Acostumado a ver, ao longe, os objectos e a
prever antecipadamente as suas impressões, como seria possível
que, deixando de ver tudo quanto me rodeia, eu não imagine mil se­
res, mil manobras que podem fazer-me mal e que me não é possí­
vel evitar? Por mais que saiba que estou em segurança no local em
que me encontro, nunca me sinto tão convencido como se o visse à
luz do dia: por conseguinte, tenho constantemente um motivo de
receio que, durante o dia, não tinha. Sei, isso é verdade, que um cor­
po estranho não tem a possibilidade de agir sobre o meu sem se
anunciar por algum ruído; por isso, mantenho permanentemente
os meus ouvidos em estado de alerta! Ao mais ínfimo ruído cuja
causa eu não saiba determinar, o interesse pela minha conserva­
ção começa por me fazer supor tudo quanto me deve pôr mais de
atalaia, e, por conseguinte, tudo o que é mais próprio para me as­
sustar.
Mesmo que não ouça nada, nem por isso me sentirei trapquilo;
porque, enfim, sem ruído também me pode surpreender. E preci­
so que eu imagine as coisas tais como elas estavam antes, tais como
ainda devem estar, que veja o que deixei de ver. Assim, forçado a

1 Eis, ainda, mais uma causa, bem explicada por um filósofo cujo li­
vro cito frequentemente e cujas grandes vistas me instroem ainda com
mais frequência.
<<Quando, em circunstâncias especiais, não podemos fazer uma ideia
justa da distância, e apenas podemos avaliar a grandeza dos objectos pe­
la grandeza de ângulo, ou antes, pela imagem que eles formam diante dos
nossos olhos, é inevitável que nos enganemos sobre a grandeza desses ob­
jectos. Toda a gente sabe, por experiência, que, viajando de noite, se toma
um arbusto que está perto de nós por uma grande árvore que se encontra
afastada, ou bem que se toma uma grande árvore, afastada, por um arbus­
to que está ao nosso lado; da mesma maneira, quando não se conhecem os
objectos pela sua forma, e que, desse modo, não se pode ter nenhuma ideia
de distância, ainda é mais inevitável que se cometam enganos. Assim,
uma mosca que passe rapidamente pela nossa frente, a algumas polega­
das dos nossos olhos, poderá por nós ser considerada como um pássaro que
esteja muito longe; um cavalo que se encontre imóvel, no meio de um pra­
do, e que tenha adoptado uma atitude semelhante, por exemplo, à de um
carneiro, parecer-nos-á um grande carneiro, enquanto não reconhecer­
mos que é um cavalo; mas, logo que o tenhamos reconhecido, imediata­
mente nos parecerá ter o tamanho de um cavalo, e imediatamente corri­
gimos a nossa primeira impressão.
«Sempre que nos encontramos, de noite, em lugares desconhecidos,
onde não p ossamos calcular as distâncias e onde, devido à obscuridade,
possamos reconhecer as formas das coisas, a todo o momento corremos o
perigo de cair no erro a respeito d_as estimações que faremos sobre os ob­
jectos que se nos apresentarem. E daí que vem o terror e a espécie de re-
ceio interior que a obscuridade da noite faz experimentar a quase todos os 1 35
pôr em jogo a minha imaginação, em breve deixo de poder domi­
ná-la, e tudo quanto faço para me tranquilizar só serve para me
assustar mais. Se ouço um ruído, ouço ladrões; se não ouço nada,
vejo fantasmas; a vigilância que me é inspirada pelo cuidado de me
conservar só me dá motivos de receio. Tudo quanto me pode sere­
nar está na minha razão; o instinto, mais forte, fala-me de outra
maneira, diferente da dela. De que serve pensar que não temos na­
da a recear, quando não podemos fazer nada?
A causa do mal, depois de encontrada, indica o remédio. Em
todas as coisas, o hábito mata a imaginação; apenas os objectos
novos a despertam. Nos que todos os dias se vêem, já não é a ima­
ginação que actua, é a memória; e eis a razão do axioma:Ab assue­
tis non fit passio, pois só com o fogo da imaginação se acendem as
paixões. Por conseguinte, não arrazoeis com aquele que pretendeis
curar do terror das trevas; conduzi-o frequentemente por entre
elas e tende a certeza de que todos os argumentos da filosofia não
valerão esse hábito. Os que trabalham no alto dos telhados não
sentem vertigens, e não receia a escuridão aquele que está habi­
tuado a nela viver.
Eis, pois, para os nossos jogos nocturnos, outra vantagem que
se acrescenta à primeira; mas, para que estes jogos dêem resulta­
do, nunca é de mais recomendar a boa disposição. Não há nada
mais triste que as trevas; não encerreis o vosso filho numa mas­
morra. Que ele ria, ao penetrar na obscuridade; que volte a rir, an­
tes de sair dela; que, enquanto lá está, a ideia das distrações que
abandona, e das que vai encontar, o protejam contra imaginações
fantásticas que poderiam lá ir à sua procura.
Existe um momento da vida para além do qual se recua, avan-

homens; é nisso que se baseiam os aparecimentos de espectros e de figu­


ras gigantescas e assustadoras que tantas pessoas dizem ter visto. Geral­
mente, responde-se-lhes que essas figuras estavam na sua própria ima­
ginação; no entanto, bem poderiam estar nos seus olhos, e é muito possí­
vel que, efectivamente, essas pessoas tenham visto o que dizem ter visto;
porque, necessariamente, todas as vezes que só se puder fazer uma ideia
de um objecto pelo ângulo que ele forma no olho, deverá acontecer que es­
se objecto desconhecido aumente de volume à medida que nos vamos a pro­
ximando dele; e que, se começou por aparecer ao espectador que não po­
de reconhecer o que vê nem julgar a que distância o vê; que, digo eu, se co­
meçou por parecer ter a altura de alguns pés, quando estava a vinte ou
trinta passos de distância, deverá parecer ter uma altura de várias toesas
quando só estiver a uma distância de poucos pés; o que, efectivamente, o
deve surpreender e assustar, até que, por fim, venha a tocar no objecto ou
a reconhecê-lo; porque, no próprio instante em que reconhecer o objecto,
este-que lhe tinha parecido gigantesco -tornar-se-á bruscamente pe­
queno, e só aparentará a sua grandeza real; mas, se fugimos ou não nos
136
çando. Sinto que ultrapassei esse momento. Recomeço, por assim
dizer, outra carreira. O vazio da idade madura, que se faz sentirem
mim, leva-me a recordar os doces tempos da primeira idade. En­
velhecendo, volto a ser criança e recordo-me mais facilmente do
que fiz quando tinha 1 O anos do que quando tinha 30. Leitores, per­
doai-me por, às vezes, retirar os exemplos que vos cito, da minha
própria experiência; porque, para bem fazer este livro, preciso de
o fazer com prazer.
Encontrava-me no campo, hospedado em casa de um ministro
do culto, que se chamava M. Lambercier. Como companheiro,
tinha um primo, mais rico que eu e que era tratado como herdeiro,
enquanto, afastado de meu pai, eu não passava de um pobre órfão.
O meu primo Bernard era muito poltrão, sobretudo durante a
noite. Trocei tanto do seu pavor que, aborrecido com as minhas ga­
barolices, M. Lambercier quis pôr a minha coragem à prova. Ao fim
de uma tarde de Outono, quando já estava bastante escuro, entre­
gou-me a chave do templo e disse-me que fosse buscar, ao púlpi­
to, a Bíblia que lá tinha ficado. Para me impelir a lá ir, acrescen­
tou algumas palavras que me colocaram na impossibilidade de re­
cuar.
Saí de casa sem luz; se a tivesse tido, talvez tudo ainda fosse
pior. Era preciso passar pelo cemitério; atravessei-o com galhar­
dia; porque, desde o momento em que me visse ao ar livre, nunca
tivera medo da escuridão da noite.
Ao abrir a porta do templo, ouvi, vinda da abóbada, uma cer­
ta ressonância que me pareceu serem vozes e que <.omeçou por aba­
l ar a minha firmeza romana. Logo que a porta ficou aberta, quis
entrar; mas, mal tinha dado alguns passos, detive-me. Apercebeu-

atrevemos a aproximar dele, é certo que a única ideia com que ficaremos
desse objecto é a imagem que ele formava no olho, e, realmente, ter-:-se-á
visto uma figura gigantesca ou horrenda, pela grandeza e pela forma. O
preconceito dos espectros está, pois, baseado na natureza, e essas aparên­
cias não dependem, como crêem os filósofos, unicamente da imaginação»
(Hist. nat., tomo IV, p. 22, in-1 2.)
Tratei de demonstrar, no texto, que, quanto à causa explicada nesta
passagem, se vê que o hábito de andar à noite nos deve ensinar a distin­
guir as aparências que, aos nossos olhos e na obscuridade, a semelhança
das formas e a diversidade das distâncias fazem adquirir aos objectos; por·
que, quando o ar ainda está suficientemente iluminado para nos permi­
tir avistar os contornos menos destes, e porque há mais ar interposto
numa maior distância, quando o objecto se encontra mais afastado de nós
deveremos sempre ver esses contornos meno_s marcados; o que, com o há­
bito, será suficiente para nos evitar o engano que aqui explica M. de Buf­
fon. Seja qual for a explicação que se prefira, o meu método continua a ser
eficaz, e é o que a experiência confirma perfeitamente. 1 37
do--m eda profunda escuridão quereinava naquele vast� lug�r, fu"
,
invadido por um tel!or que me e�çou os cab.elos; :r_:ec�ei, sai, pus­
-me a fugir, aterronzado. No patw, , encontrei um caozmho chama­
do Sultan, cujas caríciasme acalmaram. Envergonhado �om o �eu
susto voltei atrás tentando fazer que Sultan me seguisse, cmsa
que ele não quis. Franqueei bruscamente a porta e penetrei . na
igreja. Mal lá entraraquando o payor se voltou a apoderar ?e � mm,
mas de uma tal maneira que perdi a cabeça; e, embora o pulpito se
encontrasse à direita- coisa que eu sabia lindamente -, deso­
rientei-me sem dar por isso e procurei-o durante muito tempo, do
lado esquerdo, tropeçando nos bancos;já não sabi� onde me encon­
trava, e, não conseguindo encontrar nem ? púlp�to nem a porta,
senti-me invadido por uma perturbação mexpnmível. Por fim,
avistei a porta, consegui sair do templo, e afastei-me dele, como da
primeira vez, bem decidido a lá não voltar sozinho, a não ser du­
rante o dia.
Dirijo--me para casa. Quase a entrar, distingo a voz de M. Lam­
bercier, em grandes gargalhadas. Tomo--as como se me fossem
destinadas, de antemão, e, envergonhado por me ver exposto a
elas, hesito em abrir a porta. Entretanto, ouço que a Menina Lam­
bercier-que se mostra preocupada por minhacausa- diz à cria­
da que pegue na lanterna, e que M. Lambercier se dispõe a ir-me
buscar, escoltado pelo meu intrépido primo, ao qual, seguidamen­
te, não deixariam de atribuir toda a honra da expedição. Naquele
mesmo instante, todos os meus terrores desaparecem e deixam­
-me apenas o de que me surpreendam durante a minha fuga; cor­
ro, voo para o templo; sem me desorientar, sem tactear, chego ao
púlpito; subo, pego na Bíblia, desço a correr; em três saltos, estou
fora do templo, cuja porta até me esqueço de fechar; entro na sa­
la, ofegante, atiro a Bíblia para cima da mesa, assombrado, mas
palpitante de satisfação por ter evitado o auxílio que me estava
destinado.
Perguntar-me-ão se cito este caso como modelo para ser se­
guido e como exemplo da alegria e da boa disposição que exijo nes­
tas espécies de exercícios. Não; mas cito-o para provar que nada
é mais capaz de tranquilizar uma pessoa que esteja assustada com
as sombras da noite, que ouvir, num quarto ao lado, um grupo de
pessoas que riem e conversam tranquilamente. Quereria que, em
vez de vos distrairdes assim, sozinhos com o vosso pupilo, reunís­
seis, à noit,�, mui tas crianças bem-dispostas; que estas não come­
çassem por ser enviadas separadamente, mas em grupos, e que ne­
nhuma fossP enviada absolutamente só, antes de se ter a certeza
de que não se sentirá excessivamente assustada.
Não consigo imaginar nada tão agradável e tão útil como esses
jogos, quandp organizados com um pouco de jeito. Numa grande
138 sala, eu preparia uma espécie de labirinto, com mesas, poltronas,
cadeiras, paraventos. Nas inextricáveis sinuosidades desse labi­
rinto, poria, entre as oito ou dez caixas de surpresas, outra caixa
quase igual a elas, mas bem recheada de caramelos; designaria,
em termos claros mas resumidos, o lugar preciso em que se encon­
tra a caixa que convém descobrir; daria a informação suficiente pa­
ra a fazer distinguir por pessoas mais atentas e menos estouvadas
que as crianças1 ; depois, tendo tirado à sorte os pequenos concor­
rentes, enviá-los-ia, a todos, um após o outro, até que a caixa dos
caramelos fosse encontrada: o que tornaria fácil ou difícil, consoan­
te a habilidade deles.
Imaginai um pequenino Hércules vindo, com uma caixa na
mão, todo orgulhoso da sua aventura. A caixa é posta sobre a mesa
e é aberta com muito cerimonial. Já estou a ouvir as gargalhadas,
a pateada do alegre grupo, quando, em vez dos doces que esperava,
encontra muito bem acondicionado, em musgo ou em algodão, um
escaravelho, ou um caracol, um pedaço de carvão, ou uma bolota,
um nabo, ou qualquer outra coisa do mesmo género. em outras oca­
siões, numa sala recentemente caiada, suspender-se-á, perto da
parede, algum brinquedo, algum movelzinho que é preciso ir
buscar, sem tocar na parede. Logo que aquele que o trouxer tiver
chegado, se não obedeceu à regra, ver--se-á a extremidade do seu
chapéu, as pontas dos sapatos, a aba do casaco, e a manga, todas
esbranquiçadas, o que trairá a sua falta. Eis o suficiente, talvez até
de mais, para fazer compreender o espírito destas espécies de jo­
gos. Se é preciso explicar-vos tudo, não me leiais.
Durante a noite, quantas vantagens não terá, sobre os outros
homens, aquele que tiver sido educado desta maneira? Os seus
pés, acostumados a firmarem-se por entre as trevas, as suas mãos
exercitadas a aplicar-se facilmente a todos os corpos que as ro­
deiam comportar--se-ão sem dificuldade, na mais densa escuri­
dão. A sua imaginação, cheia dos jogos nocturnos da sua infância,
dificilmente se ocupará com objectos aterrorizadores. Se crê ouvir
gargalhadas, em vez de serem as dos duendes, serão as dos seus
antigos companheiros de jogos; se imagina uma assembleia, não
pensará no sabá, mas no quarto do seu governante. A noite, só lhe
recordando coisas agradáveis, nunca o assustará; em vez de a re­
cear, gostará dela. Se se tratar de uma expedição militar, estará
sempre preparado para partir, tanto sozinho como com o seu regi­
mento. Entrará no campo de Saul, percorrê-lo-á sem se desorien-

1 Para as exercitar na atenção, dizei-lhes unicamente coisas que


elas tenham um interesse sensível e presente em bem compreender; so­
bretudo, nada de frases longas, nunca uma palavra supérflua; mas, tam­
bém, não ponhais, nos vossos discursos, nem obscuridade nem equívoco. 13 9
tar, irá até à tenda do rei sem despertar ninguém, e regressará sem
ter sido notado. Se for necessário roubar os cavalos de Résus, di­
rigi-vos a ele, sem receio,. Por entre as pessoas educadas de uma
maneira diferente, dificilmente encontrareis um Ulisses.
Já vi pessoas que, com surpresas, pretendiam acostumar os fi­
lhos a não terem receio de nada durante a noite. Esse método é
muitomau; produz um efeito exactamente oposto àquele que se de­
seja, e só podem retirar a ideia de um perigo presente de que não
se pode saber nem o grau nem a espécie, como também não podem
diminuir o receio das surpresas que, por várias vezes, se experi­
mentaram. Porém, como vos certificareis de que o vosso pupilo es­
tará sempre livre de semelhantes acidentes? Eis a melhor manei­
ra- ao que me parece - para o prevenir, a esse respeito. «Nessas
circunstâncias, - direi eu a Emílio - estareis no caso de legítima .
defesa; porque o agressor não vos deixa ajuizar se vos quer fazer
mal ou assustar-vos, e, como adquiriu as suas vantagens, a própria
fuga não será um refúgio para vós. Empunhai, pois, ousadamente,
aquele que vos surpreende de noite - homem ou naimal, pouco
importa; apertai-o, agarrai-o com todas as vossas forças; se ele
estrebuchar, batei-lhe, não lhe poupeis as pancadas; e, seja o que
for que ele disser ou fizer, não o largueis antes de saberdes
exactamente de que se trata. O esclarecimento talvez vos leve a
saber que não tínheis muito a recear, e esta maneira de tratar os
espertalhões deve, naturalmente, tirar-lhes a vontade de
recomeçar.
Embora, dos nossos sentidos, o tacto seja aquele de que mais
continuamente nos servimos, as suas estimações nem por isso dei­
xam - conio já disse - de ser imperfeitas e grosseiras, mais que
as de qualquer outro sentido, porque, na sua aplicação, nunca dei­
xamos de utilizar o sentido da vista, e, pDrque como o olho atinge
o objecto mais depressa que a mão, o espírito julga quase sempre
sem esta. Em contrapartida, as estimações do tacto são as mais se­
guras, precisamente porque são as mais limitadas; pois que, esten­
dendo-se unicamente até onde as mãos podem alcançar, corrigem
as estimações precipitadas dos outros sentidos, que, de longe, se
lançam sobre os objectos que mal vêem; mas, tudo o que o tacto sen­
te, sente-o bem.Acrescentai que, quando queremos, sejuntarmos
a força dos músculos à acção dos nervos, reunimos - através de
uma sensação simultânea - à avaliação da temperatura, das
grandezas e dos aspectos, a avaliação do peso e da solidez. Assim,
o tacto, sendo de entre todos os sentidos aquele que melhor nos ins­
trói sobre a impressão que os corpos alheios podem fazer sobre o
nosso, é aquelequemais frequentemente utilizamose quemais ra­
pidamente nos dá as informações necessárias para a nossa conser­
vação.
1 40 Como o tacto exercitado supre a vista, porque não haveria de
também suprir o ouvido, até um determinado ponto, pois que -
nos corpos sonoros-os sons provocam estremecimentos sensíveis
ao tacto? Pousando uma mão sobre o corpo de um violoncelo, pode
- sem o auxílio dos olhos ou dos ouvidos - distinguir-se, unica­
mente pelo modo como a madeira vibra e freme, se o som que emi­
teé grave ou agudo, se é emitido pela prima ou pelo bordão. Se exer­
citarmos os nossos sentidos nestas diferenças, estou convencido de
que, com o tempo, nos poderemos tornar sensíveis, ao ponto de es­
cutar uma música inteira através dos dedos. Ora, supondó isto pos­
sível, é claro que facilmente se poderia falar aos surdos através da
música; porque os tons e os tempos, não sendo menos susceptíveis
de combinações regulares que as articulações e as vozes, também
podem ser captados como elementos do discurso.
Há exercícios que enfraquecem o sentido do tacto e o tornam
mais obtuso; outros, pelo contrário, aguçam-no, tornam-no mais
apurado e mais fino. Os primeiros, reunindo muito movimento e
muita força à contínua impressão dos corpos duros, tornam a pe­
le áspera, calosa, e retiram-lhe a sensação natural; os segundos
são os que variam essa mesma sensação através de um tactear li­
geiro e frequente, de tal modo que o espírito, atento a impressões
incessantemente repetidas, adquire a facilidade de avaliar todas
as suas modificações. Esta diferença é sensível na utilização dos
instrumentos de música: o toque duro e carregado do violoncelo, do
contrabaixo, do próprio violino, torna os dedos mais flexíveis, mas
endurece as suas extremidades. As teclas leves e lisas do cravo tor­
na-os simultaneamente mais flexíveis e sensíveis. Portanto, o cra­
vo é preferível para esses exercícios.
Importa que a pele endureça com as impressões do ar e possa
desafiar as suas alterações; porque é ela que defende tudo o resto.
Mas, apesar disso, não desejo que a mão, excessivamente aplica­
da aos mesmos trabalhos servis, venha a endurecer, nem que a sua
pele, tornada quase córnea, perca essa sensação maravilhosa que
dá a conhecer quais os corpos sobre os quais ela passa, e que, por
vezes, na obscuridade, consoante a espécie de contacto que tem,
nos faz estremecer de várias maneiras.
Por que motivo será necessário que o meu pupilo traga, cons­
tantemente, debaixo dos pés, uma pele de boi? Que mal lhe pode­
ria advir se ,a sua própria pele lhe servisse de sola, em caso de ne­
cessidade? E evidente que, nessa zona do corpo, a delicadeza da pe­
le nunca poderá ser útil para nada, e que, com bastante frequên­
cia, até pode incomodar muito. No pino do Inverno, despertados
durante a noite pelo inimigo que entrara na cidade, os habitantes
de Genebra mais depressa encontram as suas espingardas que os
seus sapatos. Se nenhum deles soubesse andar descalço, quem sa­
be se Genebra não teria sido tomada?
Tenhamos sempre o homem armado contra os acidentes im- 1 41
previstos. Que, durante todo o ano, logo pela manhã, Emílio corra
descalço pelo quarto, pelas escadas, pelo jardim; longe de o re­
preender, imitá-lo-ei; mas terei o cuidado de evitar os vidros. Em
breve falarei dos trabalhos e dos jogos manuais. Quanto ao resto,
que ele aprenda a dar todos os passos que favorecem as evoluções
do corpo, a tomar - em todas as atitudes - uma posição cómoda
e sólida; que saiba saltar por cima de um muro; que encontre sem­
pre o seu equilíbrio; que todos os seus movimentos, que todos os
seus gestos sejam ordenados segundo as leis da ponderação, muito
tempo antes de a estática lhes pretender explicar. Pela maneira
como o seu pé se pousa no chão e o seu corpo traz a perna, ele de­
verá sentir se está bem ou mal. Uma atitude desempenada sempre
tem graciosidade, e as posturas mais firmes também são as mais
elegantes. Se eu fosse professor de dança, não faria todas as ma­
caquices de MarceP, boas para o país em que as faz; mas, em vez
de ocupar eternamente o meu pupilo com passos de dança, levá-lo­
-€i ao sopé de uma escarpa; ali, mostrar-lhe-€i que atitude tomar,
como se deve trazer o corpo e a cabeça, que movimentos fazer, de
que maneira se deve pousar, ora o pé, ora a mão, para seguir facil­
mente os caminhos abruptos, selvagens e irregulares, e lançar-se
de extremidade para extremidade, tanto a subir como a descer.
Prefiro fazer dele o émulo de um cabrito montês que dançarino de
ópera.
Da mesma maneira que o tacto concentra as suas operações eni
redor do homem, assim a vista estende as suas, para além dele; é
isso o que as torna enganadoras: de um golpe de vista, um homem
abarca a metade do seu horizonte. Por entre essa multidão d e sen­
sações simultâneas e os ajuizamentos que elas provocam, como
não se enganar em nenhum? Assim, de todos os nossos sentidos, a
vista é o que mais erros comete, precisamente porque é o que se
alarga mais, e porque, precedendo de longe todos os outros, as suas
operações são demasiado rápidas e demasiado amplas para que
eles as possam corrigir. Ainda mais, mesmo as ilusões da perspec­
tiva são-nos necessárias, para conseguir conhecer a extensão e
comparar as suas partes. Sem as falsas aparências, nada veríamos
ao longe; sem as gradações de grandeza e de luz, não poderíamos

1 Célebre professor de dança, de Paris, que, conhecendo bem a sua


clientela, se mostrava extravagante por manha, atribuindo à sua arte
uma importância que todos fingiam achar ridícula, mas devido à qual lhe
tinham muito respeito. Numa arte diferente e não menos frívola, ainda
hoje em dia vemos um artista comediante dar-se ares de importante e de
louco, e não obter menos sucesso. Esse método é sempre garantido, em
França. O verdadeiro talento, mais simples e menos charlatão, não faz for-
1 42 tuna, neste país onde a modéstia é a virtude dos tolos.
avaliar nenhuma distância, ou antes, não haveria distâncias pa­
ra nós. Se, de duas árvores iguais, aquela que está a cem passos de
nós nos parecesse do mesmo tamanho e tão nítida como a que es­
tá a dez, supô-las-íamos uma ao lado da outra. Se nos apercebês­
semos de todas as dimensões dos objectos, sob a sua verdadeira
medida, não veríamos espaço nenhum, e tudo nos pareceria estar
ao pé de nós.
Para avaliar a grandeza dos objectos e a distância a que se en­
contram de nós, o sentido da vista tem apenas uma medida, a sa­
ber, a abertura de ângulo que eles formam no nosso olho; e como
essa abertura é um efeito simples de uma causa composta, a supo­
sição que em nós origina deixa cada causa particular indetermina­
da, ou torna-se necessariamente errada. Pois, como distinguir, à
vista desarmada, se o ângulo sob o qual vejo um objecto mais pe­
queno que outro tem determinada abertura porque o primeiro ob­
jecto é, efectivamente, mais pequeno, ou porque ele se encontra
mais afastado?
Por conseguinte, neste caso, é necessário seguir um método
oposto ao precedente; em vez de simplificar a sensação, deve-se
duplicá-la, verificá-la sempre através de outra, submeter o órgão
visual ao órgão táctil, e reprimir, por assim dizer, a impetuosida­
de do primeiro sentido pelo andamento pesado e compassado do
outro. Como poucas vezes nos submetemos a esta prática, as nos­
sas medidas por estimação são muito erradas. No golpe de vista,
não temos nenhuma precisão para avaliar as alturas, os compri­
mentos, as profundidades, as distâncias; e a prova de que isso não
é tanto por culpa do sentido mas sim do modo como ele é utilizado,
é que os engenheiros, os agrimensores, os arquitectos, os pedrei­
ros, os pintores, têm, geralmente, o golpe de vista muito mais se­
guro que o nosso, e avaliam as medidas do comprimento com mais
justeza; porque, neste assunto, como os seus ofícios lhes dão a ex­
periênciaque nós negligenciamos adquirir, corrigem o equívoco do
ângulo com as aparências que o acompanham, e que, aos seus
olhos, determinam, com mais exactidão, a relação das duas causas
desse ângulo.
Tudo o que imprime movimento ao corpo, sem o coagir, é sem-
pre fácil de obter das crianças. Há mil maneiras de as levarmos a
desejar tomar medidas, a conhecer, a avaliar as distâncias. Eis, ali
adiante, uma cerejeira muito alta: como faremos para colher cere­
jas? A escada da granja será suficientemente comprida para que
as possamos atingir? Eis um ribeiro bastante largo: como o pode­
remos atravessar? Aquela tábua do pátio terá dimensões que lhe
permitam pousar simultaneamente nas duas margens? Quere­
mos, das nossas janelas, poder pescar nos fossos do castelo: quan-
tas braças deverá medir a nossa linha? Gostaria de instalar um ba­
louço entre estas duas árvores: uma corda com duas toesas serásu- 1 43
ficiente? Dizem-me que, na outra casa, o nosso quarto terá vinte
e cinco pés quadrados: achais que nos convém? Será maior que es­
te? Estamos com muita fome; eis duas aldeias: a qual das duas che­
garemos mais depressa, para almoçar? Etc...
Tratava-se de treinar, para correr, uma criança indolente e
preguiçosa, que não estava interessada por este exercício nem por
nenhum outro, embora a tivessem destinado à condição militar;
persuadira-se - não sei como - de que um homem da sua cate­
goria não devia fazer nada, nem nada saber, e que a sua nobreza
lhe serviria de braços, de pernas, assim como de todas as espécies
de méritos. Para, de tal gentil-homem, fazer um Aquiles de pé le­
ve, a própria arte de Chinon não teria sido suficiente. A dificulda­
de era tanto maior quanto era verdade que eu não lhe queria pres­
crever nada; dos meus direitos, banira as exortações, as ameaças,
a emulação, o desejo de brilhar; como lhe dar o de correr sem lhe
dizer nada? Pôr-me eu próprio a correr seria um sistema pouco ga­
rantido e sujeito a inconveniente. Aliás, ainda se tratava de reti­
rar, desse exercício, algum objecto de instrução para ele, a fim de
acostumar as operações da máquina e as do discernimento a anda­
rem sempre de concerto. Eis como procedi: eu, isto é, aquele que fa-
la, neste exemplo.
·

Por vezes, quando, da parte da tarde, ia passear com ele, me­


tia na bolsa dois bolos de uma espécie que ele apreciava muito; du­
rante o passeio, cada um de nós comia o seu 1, e regressávamos mui­
to satisfeitos.Um dia, ele apercebeu-se de que eu levara três bolos;
teria podido comer seis, sem dificuldades; come rapidamente o seu,
para me pedir o terceiro. «Não», digo-lhe, «também eu seria c ap az
de o comer, ou poderíamos dividi-lo ao meio; mas prefiro que ele
seja disputado, numa corrida, por aqueles dois rapazitos que ali es­
tão.» Chamei os garotos, mostrei-lhes o bolo e propus-lhes a cor­
rida. Eles nem hesitaram. O bolo foi colocado em cima de uma
grande pedra que serviu de meta; marcou-se o percurso: fomos
sentar-nos; logo que o sinal foi dado, os rapazitos puseram-se a
correr; o vitorioso apanhou o bolo e comeu--o, sem dó nem piedade,
diante dos espectadores e do vencido.
Este divertimento valia mais que o bolo; mas começou por não
pegar e não produziu nenhum efeito. Não me irritei nem me impa­
cientei: a instrução das crianças é um ofício em que é necessário sa-

1 Passeio campestre, como vão ver. Nas cidades, Ofl passeios públi­
cos são perniciosos para as crianças de ambos os sexos. E neles que se co­
meçam a tornar fúteis e a quererem ser olhadas: é no Luxemburgo, nas Tu­
lherias, sobretudo no Palais-Royal, que a bela mocidade de Paris adqui­
reessear impertinente e enfatuado que a torna tão ridícula e a faz ser apu-
1 44 pada e detestada por toda a Europa.
ber perder tempo, a fim de o ganhar. Continuámos a dar os nossos
passeios; muitas vezes, levávamos três bolos, outras vezes quatro,
e, de vez em quando, havia um ou mesmo dois para os corredores.
Se é verdade que o prémio não era grande, os que o disputavam
também não eram ambiciosos: aquele que o ganhava era elogiado,
festejado; tudo se fazia com todas as regras; Para dar lugar às emo­
ções e aumentar o interesse, eu marcava o percurso mais longo e
admitia vários concorrentes. Mal começavam a correr, todos os
transeuntes paravam para os observar; as aclamações, os gritos,
as palmas, tudo isso animava os concorrentes; por vezes, via o meu
homenzinho estremecer, levantar-se, berrar, porque um dos con­
correntes estava a atingir ou a ultrapassar outro; para ele, eram
os jogos olímpicos.
Entretanto, havia concorrentes que, por vezes, faziam trapa­
ça; retinham-se mutuamente, ou faziam-se cair uns aos outros, ou
empurravam pedras para o sítio onde os outros deviam passar. Is­
so forneceu-me motivos para os separar e para os fazer partir de
vários pontos diferentes, igualmente afastados da meta; em breve
vereis a razão desta precaução; porque devo tratar deste importan­
te caso com todos os pormenores.
Aborrecido por sempre ver mastigar, diante dos seus olhos, bo­
los que ele tanto desejava comer, o senhor cavaleiro acabou por
pensar que saber correr bem poderia ser útil para alguma coisa, e,
vendo que também tinha duas pernas, começou a treinar-se em
segredo. Evitei assistir aos seus treinos; mas compreendi que o
meu estratagema dera resultado. Quando se supôs suficiente­
menteforte -e li-lhe isso no pensamento, antes de ele próprio mo
dizer -, afectou importunar-me para obter o bolo que sobejava.
Recuso-lho, ele obstina-se, e, com um ar despeitado, acaba por me
dizer: «Pois bem! Ponde-{) em cima da pedra, marcai o trajecto, e
veremos.>> «Está bem!», digo-lhe a rir, «será que um cavaleiro sa­
be correr? Ficareis com mais apetite e não tereis com que o satis­
fazer.» Espicaçado pela minha ironia, ele esforça-se e consegue ga­
nhar o prémio, com tanta mais facilidade quanto é verdade que eu
encurtara muito o trajecto e tivera o cuidado de afastar o melhor
corredor. Bem podeis imaginar que, depois de ter dado este pri­
meiro passo, me foi bastante dificil mantê-lo interessado nesse
exercício. Pouco depois, tomou um tal gosto pela corrida, que, sem
exagero, tinha quase a certeza de vencer os meus pequenos gaia­
tos, por mais longo que fosse o trajecto.
Esta vantagem deu origem a outra que eu não encarara. Ao
principio, quando só raramente ganhava o prémio, comia-{) qua­
se sempre sozinho, tal como faziam os outros concorrentes; mas, à
medida que se ia habituando às vitórias, foi-se tornando genero-
so e frequentemente compartilhava com os vencidos. Esse facto 1 45
L.B. 523 - 10
forneceu-me uma observação moral, e através dela fiquei a saber
qual era o verdadeiro princípio da generosidade.
Continuando a marcar, com ele, os vários pontos de onde cada
um deveria partir para a corrida, marquei, sem que ele se aperce­
besse, distâncias desiguais, de modo a que um, tendo a percorrer
mais caminho que outro para chegar à meta, tinha uma desvanta­
gem visível; mas, embora eu lhe deixasse a escolha do próprio tra­
jecto, ele não era capaz de tirar partido disso. Sem se preocupar
com a distância, preferia sempre o caminho mais belo; de modo
que, prevendo a sua escolha com facilidade, dependia quase exclu­
sivamente de mim que ele perdesse ou ganhasse o bolo; e esta ar­
timanha também era utilizada para outros fins. No entanto, como
a minha intenção era de que ele se apercebesse da diferença, fazia
tudo quanto me era possível para lha tornar sensível; mas, embo­
ra indolente na calma, ele era tão vivo nos seus jogos, e desconfia­
va tão pouco de mim, que tive muitas dificuldades para conseguir
que ele se apercebesse de que eu fazia trapaça. Por fim, lá o con­
segui, apesar da sua irreflexão; e então ele censurou-me por isso.
Disse-lhe: «De que vos queixais? Tratando-se de um dom que fa­
ço por minha livre vontàde, não serei dono das minhas condições?
Quem vos obriga a correr? Prometi-vos fazer os trajectos iguais?
Não tendes a escolha? Escolhei o mais curto, ninguém vos impede
de o fazer. Como é possível que não vejais que é a vós que favore­
ço, e que a desigualdade de que vos queixais só a vós traz vanta­
gens, se souberdes tirar proveito dela?>> Isto ficou bem explicado;
ele compreendeu-{), e, para escolher, teve de prestar atenção aos
percursos. Para começar, quis medi-los com os seus passos; mas a
medida dos passos de uma criança é lenta e não tem uniformida­
de; além disso, eu arranjei maneira de multiplicar as corridas afa­
zer no mesmo dia; e, então, o divertimento, tendo-se tornado uma
espécie de paixão, ele não queria perder -a medir os percursos­
o tempo destinado a corrê-los. A vivacidade da infância dificil­
mente se acomoda com essas lentidões; então, exerceu-se a avaliar
melhor, a melhor calcular uma distância, com um golpe de vista.
Nesse caso, tive poucas dificuldades para ampliar e alimentar es­
se gosto. Por fim, alguns meses de tentativas e de erros corrigidos
formaram-lhe de tal modo o compasso visual, que, quando eu o le­
vava a imaginar um bolo pousado em cima de qualquer objecto
afastado, o golpe de vista dele era quase tão seguro como a cadeia
de um agrimensor.
Como, de entre todos os sentidos, a vista é aquele de que me­
nos podemos separar as apreciações do espfrito, é preciso muito
tempo para aprender a ver; é preciso ter, durante muito tempo,
comparado a vista com o tacto, para acostumar o primeiro desses
órgãos a fazer-nos uma relação fiel das figuras e das distâncias;
1 46 sem o tacto, sem o movimento progressivo, os olhos mais penetran-
tes do mundo não nos saberiam dar nenhuma ideia da distância.
O universo inteiro não deve ser mais que um ponto para uma os­
tra; e não lhe pareceria ser mais do que isso, mesmo que uma al­
ma humana informasse essa ostra. Só à força de andar, de tactear,
de calcular, de medir as dimensões, se aprende a avaliá-las; mas
também, se sempre se medisse, o sentido, confiando no instrumen­
to, não adquiriria nenhuma justeza. Também não é preciso que a
criança passe, bruscamente, da medida à estimação; para come­
çar, é preciso que, continuando a comparar por parteso que não se­
ria capaz de calcular na sua globalidade, a factores precisos ela
substitua factores por apreciação, e que, em vez de sempre aplicar
a medida com a mão, ela se acostume a aplicá-la unicamente com
os olhos. Porém, gostaria de que as primeiras operações fossem ve­
rificadas com medidas reais, a fim de a levar a corrigir os seus er­
ros e de que, se no sentido permanece alguma falsa aparência, ela
a aprenda a corrigir por meio de uma estimação mais perfeita.
Existem medidas naturais que são mais ou menos idênticas, em to­
dos os lugares: os passos de um homem, o comprimento dos seus
braços, a sua estatura. quando a criança avalia a altura de um pi­
so, o seu governante pode servir-lhe de medida de comparação: ao
avaliar a altura de um campanário, que a meça por comparação
com a das casas; quando quer saber quantas léguas há num per­
curso, que conte as horas de caminhada; e, sobretudo, nada disto
deverá ser feito em vez dela, é necessário que seja ela própria a fa­
zê-lo.
Seria impossível ensinar a bem avaliar o comprimento e a
grandeza dos corpos, se também não se ensinasse a conhecer as
figuras destes e mesmo a desenhá-las; porque, I).O fundo, esse de­
senho só pode ser feito segundo as leis das perspectivas; e não se
pode avaliar o comprimento pelas aparências se não se tiverem al­
gumas ideias sobre essas leis. Grandes imitadoras, todas as crian-
ças tentam desenhar: desejaria que o meu pupilo cultivasse essa
arte, não precisamente pela arte em si, mas para que a sua vista
se torne justa e a sua mão flexível; e, geralmente, pouco importa
que ele saiba tal ou tal exercício, contanto que adquira a agudeza
do sentido e o bom hábito do corpo que se consegue através deste
exercício. Por conseguinte, evitaria dar-lhe um mestre de dese­
nho, que só lhe proporia imitações para imitar, e apenas o faria de­
senhar copiando outros desenhos: quero que, como único mestre,
ele tenha a natureza, e que os objectos sejam os seus únicos mode-
los. Quero que tenha, sob os olhos, o próprio original e não o papel
que o representa; que esboce uma casa vendo uma casa, que esbo-
ce uma árvore vendo uma árvore, que esboce um homem vendo um
homem, a fim de que se acostume a bem observar os corpos e as
suas aparências, e não a considerar como verdadeiras imitações
aquelas que são falsas e convencionais. Na ausência dos objectos, 1 47
impedi-lo-ei, mesmo, de desenhar de memória, até so momento
em que, através de frequentes observações, as suas figuras exactas
se imprimam bem na sua imaginação; recearei que, substituindo
a verdade das coisas por figuras estranhas e fantástic�s, ele per­
ca o conhecimento das proporções e o gosto pelas belezas da natu­
reza.
Bem sei que, deste modo, ele esborratará muitos papéis antes
de conseguir desenhar alguma coisa que se possa compreender,
que levará muito tempo a adquirir a elegância dos contornos e o le­
ve traço dos desenhadores, que talvez nunea chegue a ter o discer­
nimento dos efeitos pitorescos e o bom gosto do desenho; em com­
pensação, adquirirá, certamente, um golpe de vista mais justo,
uma mão mais segura, o conhecimento das verdadeiras relações de
grandeza e de aspecto, que existem entre os animais, as plantas,
os corpos naturais, e uma experiência mais rápida dojogo da pers­
pectiva. Eis precisamente o que pretendi fazer, e a minha intenção
não é tanto que ele saiba imitar os objectos como de que os conhe­
ça; prefiro que ele me mostre uma planta de acanto e que desenhe
menos bem as folhagens de um capitel.
Quanto ao resto, neste exercício- assim como em todos os ou­
tros - não pretendo que o meu pupilo seja o único a disfrutar des­
sa distracção. Quero tornar-lha ainda mais agradável, comparti­
lhando-a constantemente com ele. Não quero que ele tenha outro
rival que não seja eu: mas serei o seu rival sem tréguas e sem ris­
cos; isso introduzirá um certo in teressse nas suas ocupações, sem
provocar a inveja entre nós. Pegarei no lápis, como ele; começarei
por utilizá-lo tão desajeitadamente como ele. Mesmo que eu fos­
se um Apelle*, mostrar-me-ia um principiante. Começaria por de­
senhar um homem como os lacaios os desenham nas paredes: um
traço para cada braço, um traço para cada perna, e dedos maiores
que os braços. Só muito depois, um de nós se aperceberá desta des­
proporção; repararemos que uma das pernas tem espessura e que
essa espessura não é a mesma por toda a perna; que o comprimen­
to do braço é determinado em relação ao corpo, etc. Nesse progres­
so, manter-me-ei sempre a par dele, ou ultrapassá-lo-ei tão pou­
coque sempre lhe será fácil alcançar-me e, muitas vezes, ultrapas­
sar-me. Disporemos de cores, de pincéis; trataremos de imitar os
coloridos dos objectos e todo o seu aspecto. Iluminaremos, pintare­
mos, esborrataremos; mas, em todos os nossos esborratamentos,
não deixaremos de espiar a natureza; nunca faremos nada que não
seja sob os olhos do mestre.
Tínhamos falta de ornamentos para o nosso quarto, ei-los en-

* Pintor grego que fez os retratos de Alexandre Magno (entre o sé·


1 48 culo IV e o século III a. C.). (N. da T.) .
contrados. Mando emoldurar os nossos desenhos; mando-<>s cobrir
com belos vidros, a fim de que não se lhes toque mais e, de que, ven­
do-<>s permanentemente no estado em que os deixámos, cada um
de nós tenha interesse em não negligenciar os seus. Disponho-<>S
por ordem, em volta do quarto, cada desenho repetido vinte, trin­
ta vezes, e, em cada exemplar, mostrando o progresso do autor,
desde o momento em que a casa não é mais que um quadrado qua­
se informe até ao momento em que a sua fachada, o seu perfil, as
suas proporções, as suas sombras, se encontram na mais exacta
verdade. Estas gradações não podem deixar de nos proporcionar,
constantemente, quadros que, para nós, são interessantes, que,
para outros, são curiosos, e que, cada vez mais, excitam a nossa
emulação.Nos primeiros, nos mais grosseiros desses desenhos, po­
nho molduras muito brilhantes, muito douradas, que os realçam;
mas, quando a imitação se torna mais exacta e o desenho começa
a ser verdadeiramente bom, dou-lhe apenas uma moldura preta,
muito simples; não precisa de outro ornamento a não ser ele pró­
prio, e seria pena que a moldura compartilhasse da atenção que o
objecto merece. Assim, cadaum de nós aspirará àhonra damoldu­
ra lisa; e quando um de nós pretende desdenhar um desenho do ou­
tro, condena-o à moldura dourada. Talvez um dia essas molduras
douradas passem a ser proverbiais para nós, e admiremos quan­
tos homens se prestam justiça a si mesmos fazendo-se emoldurar
dessa maneira.
Já disse que a Geometria não estava ao alcance das crianças;
m as que a culpa é nossa. Não compreendemos que o método delas
não é o mesmo que o nosso e que aquilo que, para nós, é a arte de
raciocinar, para elas não é mais do que a arte de ver. Em vez de lhes
ensinarmos o nosso método, faríamos bem se aprendêssemos o de­
las; porque a nossa maneira de ensinar a Geometria é tanto um as­
sunto de imaginação como de raciocínio. Quando o teorema é enun­
ciado, é preciso imaginar-lhe a demonstração, isto é, descobrir de
que teorema, já conhecido, este será o corolário, e, de todos os co­
rolários que se podem tirar desse mesmo teorema, escolher preci­
samente aquele que convém .
Desta maneira, o raciocinador mais exacto, se não é inventivo
tem falta de ideias. D aí, que acontece? Que, em vez de nos fazer en­
contrar as demonstrações, no-las dita; que, em vez de nos ensinar
a raciocinar, o mestre raciocina por nós e só exercita a nossa me­
mória.
Desenhai figuras exactas, combinai-as entre si, colocai-as
umas sobre as outras, examinai as relações que há entre elas; en­
contrareis toda a Geometria elementar, indo de observação em ob­
servação, sem precisardes nem de definições, nem de problemas,
nem de nenhuma outra forma demonstrativa a não ser a simples
superposição. Cá por mim, não pretendo ensinar a Geometria a 1 49
Emílio: será ele quem ma explicará; procurarei as relações, ele en­
contrá-las-á; porque as procurarei de modo a que ele as encontre.
Por exemplo, em vez de me servir de um com passo para traçar um
círculo, traçá-lo-ei com uma ponta na extremidade de um fio que
roda sobre um eixo. Depois disto, quando quiser comparar os raios
entre si, Emílio troçará de mim e far-me-á compreender que o
mesmo fio esticado não pode ter traçado distâncias desiguais.
Se eu pretender medir um ângulo de sessenta graus, descrevo,
no vértice desse ângulo, não um arco, mas um círculo inteiro; por­
que, com as crianças, nunca se deve deixar subentender nada. Des­
cubro que a porção do círculo que fica compreendida entre os dois
lados do ângulo corresponde à sexta parte do círculo. Após esta
constatação, descrevo, do mesmo vértice, outro círculo maior, e
descubro que esse segundo arco continua a ser a sexta parte do seu
círculo. Traço um terceiro círculo concêntrico, sobre o qual consta-.
to a mesma coisa; e continuo a constatá-la em outros círculos, até
que Emílio, chocado com a minha estupidez, me avise de que cada
arco, grande ou pequeno, compreendido no mesmo ângulo, será
sempre equivalente à sexta parte do seu círculo, etc. Eis-nos pre­
parados para a utilização do transferidor.
Para provar que cada ângulo raso é igual a dois ângulos rectos,
descreve-se um círculo; eu, pelo contrário, arranjo-me de manei­
ra a que Emílio comece por notar isso no círculo, e, depois, digo-lhe:
«Se retirássemos o círculo e as linhas rectas, os ângulos mudariam
de grandeza, etc.»
Negligencia-se a equivalência das figuras, imaginamo-la, e
dedicamo-nos à sua demonstração; o que mais nos interessará se­
rá traçar linhas bem rectas, bem exactas, bem idênticas; formar
um quadrado bem perfeito, traçar um círculo perfeitamente re­
dondo. Para verificar ajusteza da figura obtida, examiná-la-emos
através de todas as suas propriedades sensíveis; e isso proprocio­
nar-nos-á a oportunidade de, dia após dia, descobrirmos novas
propriedades. Dobraremos, pelo diâmetro, os dois semicírculos;
pela diagonal, as duas metades do quadrado; compararemos as
nossas duas figuras, para ver qual delas tem os bordos que mais
exactamente coincidem, e, por conseguinte, a mais bem feita; dis­
cutiremos para saber se essa desigualdade de divisão deverá sem­
pre efectuar-se nos paralelogramas, nos trapézios, etc. Por vezes,
experimentaremos prever o êxito da experiência, antes de a fazer­
mos; procuraremos encontrar justificações, etc.
Para o meu pupilo, a Geometria não é mais que a arte de bem
se servir da régua e do compasso; não a deverá confundir com o De­
senho, em que não utilizará nenhum destes instrumentos. A régua
e o compasso ficarão fechados à chave, e raramente serão utiliza­
dos, a fim de que ele não se habitue a gatafunhar; mas, por vezes,
1 50 poderemos levar as nossas construções geométricas, quando va-
mos dar um passeio,e conversar sobre o que fizemos ou sobre o que
contamos fazer.
Nunca me esquecerei de ter conhecido,em Torino,um jovem ao
qual - durante a sua infância - se ensinara as relações entre os
contornos e as superfícies,dando-lhe,todos os dias,a escolher,em
todas as figuras geométricas,favos* isoperímetros. O pequeno gu­
loso esgotara a arte de Arquimedes para descobrir em qual deles
havia mais que comer.
Quando uma criança joga o badminton, exercita a vista e os
braços,para a pontaria; quando lança um pião, aumenta a sua for­
ça servindo-se dela,mas sem nada aprender. Já, por vezes, per­
guntei por que motivo não se proporcionam às crianças os mesmos
jogos de destreza que os homensjogam: ojogo da pela,o jogo dama­
lha, o bilhar, o arco, o balão, os instrumentos de música. Foi-me
respondido que alguns desses jogos estavam acima das possibili­
dades das crianças e que os membros e os órgãos destas não esta­
vam suficientemente formados para os outros. Considero más es­
sas razões: uma criança não tem a estatura de um homem,e nem
por isso deixa de trajar como ele. Não pretendo que jogue com um
taco, num bilhar de noventa centímetros de altura; não pretendo
que ela se meta nas nossas casa de jogo nem que se ponha na sua
mão uma raqueta de jogador de pela; mas quejogue numa sala cu­
jas janelas estejam protegidas; que comece por se servir de bolas
moles; que as suas primeiras raquetas sejam de madeira, depois
de pergaminho, e, finalmente, de tripa, à medida dos seus pro­
gressos. Preferis que elajogue o badminton, porque é umjogo que
cansa menos e não é perigoso. Com essas duas razões, cometeis um
erro. O badminton é um jogo para mulheres; mas não há nenhu­
ma delas que não fuja de uma bola em movimento. As suas bran­
cas peles não se devem endurecer com as pancadas, e não são
contusões que os seus rostos esperam. Mas nós, que fomos feitos
para sermos vigorosos,cremos que nos podemos fortalecer sem di­
ficuldades?E de que defesa seremos capazes,se nunca formos ata­
cados? Jogam-se sempre desajeitadamente os jogos onde se pode
ser desajeitado sem correr riscos; uma bola de badminton que caia
não magoa ninguém; mas nada desenvolve tanto os braços como
ter de os levantar para proteger a cabeça, nada aperfeiçoa tanto o
golpe de vista como ter de preservar os olhos. Lançar-se da extre­
midade de uma sala para a outra, avaliar o salto de uma bola que
ainda vai no ar,reenviá-la com uma pancada forte e segura; tais
jogos convêm menosaohomem,mas são muito úteis parao formar.

* Nooriginal,gaufres, que tanto pode significar«favos de mel» (ant.)


como biscoitos ligeiros que se cozem entre dois moldes de ferro que lhes im-
primem um desenho em relevo. (N. da T.) 1 51
Dizem que as fibras de uma criança são excessivamente moles!
Têm menos elasticidade, mas são mais flexíveis; o seu braço é fra­
co, mas, enfim, é um braço; deve ser utilizado -respeitando as
proporções- para fazer o que se faz com outro instrumento seme­
lhante. As crianças não têm habilidade manual; é por esse motivo
que pretendo que as ensinem a adquiri-la: um homem tão pouco
exercitado como elas não teria uma maior; só podemos conhecer a
utilização dos nossos órgãos depois de os termos utilizado. Só uma
longa experiência nos ensina a tirar partido de nós mesmos, e es­
sa experiência é o verdadeiro estudo ao qual nunca nos aplicamos
cedo de mais.
Tudo o que se faz é fazível. Ora, não há nada mais vulgar que
encontrar crianças habilidosas e desempenadas, que têm, nos
membros, a mesma agilidade que um homem poderia ter. Em qua­
se todas as feiras, vemo-las a fazer equilíbrios, a caminhar sobre
as mãos, a saltar, a dançar na corda bamba. Durante quantos anos,
grupos de crianças não atraíram-com as suas danças-espec­
tadores à Comédia Italiana!? Quem é que nunca ouviu falar- na
Alemanha e na Itália- do grupo de pantomima do célebre Ni­
colini? Já alguém notou, nessas crianças, movimentos menos de­
senvolvidos, atitudes menos graciosas, um ouvido menos apurado,
uma dança menos ligeira que nos dançarinos completamente
formados? Que se comece por ter os dedos gordos, curtos, pouco mó­
veis, as mãos gorduchas e pouco capazes de empunhar algum ob­
jecto; isso impede que haja várias crianças que saibam escrever ou
desenhar, numa idade em que outras ainda nem sequer sabem se­
gurar no lápis ou na pena? Toda Paris ainda se recorda da peque­
nina inglesa que, com 1 O anos, executava prodígios no cravo1• Em
casa de um magistrado, vi o filho deste, rapazinho de 8 anos, que
-no momento da sobremesa-era colocado em cima da mesa, co­
mo uma estátua por entre as travessas, e que tocava um violino
quase tão grande como ele, surpreendendo, com a sua execução, os
próprios artistas. .
Parece-me que todos estes exemplos, e cem mil outros, provam
que a inaptidão que, para os nossos exercícios, se atribui às crian­
ças, é imaginária, e que, se de facto há casos em que estas não con­
seguem sobrepujá-la, é porque nunca foram exercitadas para is­
so.
Dir-me-eis que, neste assunto, e em relação ao corpo, caio no
defeito da cultura precoce que critico nas crianças, em relação ao
espírito. A diferença é muito grande; pois, enquanto um destes
progressos é apenas aparente , o outro é real. Demonstrei que o es-

1 Depois dela, um rapazinho de 7 anos fez prodígios ainda mais es-


152 pantosos.
pírito que elas pareciam ter, não o têm, contanto que tudo quanto
parecem fazer fazem-no, de facto. De resto, deverá sempre pensar­
-se que tudo isto não é, ou não deve ser, mais que jogo, direcção fá­
cil e voluntária dos movimentos que a natureza lhes pede, arte de
variar as suas distracções para as tornarem agradáveis, sem que
nunca a mínima coacção as transforme em trabalhos; porque, en­
fim, com que coisa se poderão divertir que não me seja possível uti­
lizá-la como objecto de instrução para elas? E, mesmo se isso não
me fosse possível, desde o momento em que elas se distraiam sem
inconveniente, e que o tempo passe, os seus progressos em todas
as coisas pouca importância têm, presentemente; ao passo que,
quando, necessariamente, tivermos de lhes ensinar isto ou aquilo,
seja de que modo for que actuarmos, é sempre impossível consegui­
-lo sem coacção, sem zangas e sem contrariedades.
Tudo quanto eu disse sobre os dois sentidos cuja utilização é
mais corrente, e mais importante, pode servir de exemplo para a
maneira como utilizar os outros. A vista e o tacto aplicam-se tan­
to aos corpos em repouso como àqueles que se movem; mas como
só a agitação do ar pode atingir o sentido do ouvido, só um corpo em
movimento faz ruído ou emita som; e, se tudo estivesse em repou­
so, nunca ouviríamos nada. Por conseguinte, durante a noite­
quando movendo-nos, nós próprios, como nos agrada, só temos a
recear os corpos que se movem-importa-nos ter o ouvido alerta,
e poder julgar, pela sensação que nos atinge, se o corpo que a cau­
sa é grande ou pequeno, se está afastado ou perto de nós, se o seu
movimento é violento ou fraco. O ar agitado está sujeito a repercus­
sões que o reflectem, que, pr o du zindo ecos, repetem a sensação e
fazem ouvir o corpo ruidoso ou sonoro num lugar diferente daque­
le em que, realmente, se encontra. Se, numa planície ou num va­
le, encostarmos o ouvido ao solo, ouviremos as vozes de homens e
os passos de cavalos, que, se estivéssemos de pé, o nosso ouvido não
conseguiria ouvir.
Assim como comparámos a vista ao tacto, também convém
comparará-la ao ouvido, e saber qual das duas impressões, emiti­
das simultaneamente pelo mesmo corpo, atingirá mais cedo o res­
pectivo órgão. Quando vemos o fogo de um canhão, ainda temos
tempo para nos pormos ao abrigo da bala; mas, quando lhe ouvi­
mos o estrondo, já não temos tempo para nos protegermos, a bala
já chegou. Podemos calcular a que distância se deu um trovão, me­
dindo o intervalo de tempo que decorre entre a faísca e o estrondo.
Fazei de modo a que a criança conheça todas estas experiências;
que faça todas as quA Astão ao SAU alcancA A quA dAscubra as outras
por indução; mas prefiro, cem vezes mais, que ela as ignore a que
as aprenda, ensinadas por vós.
Temos um órgão que responde ao do ouvido, a saber, o da fala;
não temos nenhum que responda ao da vista, e não transmitimos 15 3
as cores comoos sons.É mais um meio para cultivar o primeiro sen­
tido, exercendo órgão activo e órgão passivo, um através do outro.
O homem tem três espécies de voz, a saber, a voz que fala ou
articulada, a voz cantante ou melodiosa, e a voz patética ou acen­
tuada, que serve de linguagem para as paixões e que anima o can­
to e a palavra. Do mesmo modo que o homem, a criança tem estas
três espécies de voz, mas não as sabe aliar da mesma maneira;
como nós, tem o riso, os gritos, os lamentos, a exclamação, os ge­
midos, mas não sabe misturar as inflexões às duas outras vozes.
Uma música perfeita é a que melhor reúne essas três vozes. As
crianças são incapazes de produzir essa música, e o seu canto nun­
ca tem alma. Da mesma maneira, na voz falada, a sua linguagem
não tem inflexão; gritam, mas não acentuam os seus gritos; e, co­
mo no que dizem não há inflexão, as suas vozes pouca energia têm.
O nosso pupilo terá o falar mais uniforme, ainda mais simples, por­
que as suas paixões- como não estarão despertas- não mistu­
rarão a sua linguagem à dele. Não lhe deis, pois, para recitar, pa­
peis de tragédia e de comédia, nem pretendais ensinar-lhe, como
se diz, a declamar. Disporá de demasiados sentidos para saber dar
um tom a coisas que não pode compreender, e expressão a senti­
mentos que nunca experimentará.
Ensinai-o a falar uniformemente, claramente, a articular bem
as palavras, a pronunciar exactamente e sem afectação, a conhe­
cer e a respeitar o acento gramatical e a prosódia, a emitir sempre
suficiente voz para ser ouvida, e a nunca emitir mais que a neces­
sária: defeito vulgar das crianças educadas em colégios; em todas
as coisas, nada de supérfluo.
Do mesmo modo, no canto, tornai a sua voz justa, igual, flexí­
vel, sonora; o seu ouvido sensível à medida e à harmonia, mas nada
mais. A música imitativa e teatral não é própria para a sua idade;
nem sequer me agradaria que cantasse palavras; e, se as quises­
se cantar, trataria de compor canções especiais para ele cantar,
que fossem interessantes para a sua idade e tão simples quanto as
suas ideias.
Podereis supor que, sentindo-me tão pouco apressado a ensi­
nar-lhe a ler a escrita, também o estarei para lhe ensinar a ler a
música. Afastemos do seu cérebro tudo o que exige um excesso de
atenção, e não nos apressemos a fixar o seu espírito em sinais con­
vencionais. Isto, confesso, parece oferecer as suas dificuldades;
porque se, de início, o conhecimento das notas musicais não pare­
ce ser mais necessário para saber cantar que o das letras para sa­
ber falar, existe, contudo, uma diferença, e é que, quando falamos,
traduzimos as de outrem. Ora, para as repetir, é preciso lê-las.
Mas, para começar, antes de as saber ler, é possível ouvi-las,
e um cantar é mais nitidamente captado pelo ouvido que pela vis-
1 54 ta. Além disso, para bem conhecer a música, não basta emiti-la, é
preciso compô-la, e uma coisa deve ser aprendidacom a outra, por­
que se assim não for nunca se aprende a fundo. Começai por exer­
citar o vosso musicozinho na composição de frases muito regula­
res, bem cadenciadas; em seguida, a ligá-las entre si, através de
umamodulação muito simples, e, finalmente, a marcar as suas di­
versas relações com uma pontuação correcta; o que se consegue
com a escolha correcta das cadências e das pausas. Sobretudo,
nunca lhe pretendais ensinar cantos exóticos, nem patéticos, nem
de expressão. Uma melodia sempre cantante e simples, sempre
emitida pelas cordas essenciais do tom, e sempre indicando de tal
modo a mínima que ele a sinta e a acompanhe sem dificuldade; por­
que, para que a voz e o ouvido se formem, só se deve cantar ao som
do cravo.
Para melhor marcar os sons, é preciso articulá-los quando os
pronunciamos; daí o costume de solfejar com certas sílabas. Para
distinguir as notas, é preciso dar nomes, tanto a essas notas como
aos diversos neumas que se formam com elas; daí, os nomes dos in­
tervalos e também os das letras do alfabeto, com que se marcam as
escalas e as respectivas notas. C e A designam sons fixos, invariá­
veis, constantemente emitidos pelas mesmas teclas. Ut e la são ou­
tra coisa. Ut é constantemente a tónica de um modo menor. O la é
constantemente a tónicade um modo menor, ou a sexta nota deum
modo maior. Assim, as letras marcam os termos imutáveis das
relações do nosso sistema musical, e as sílabas marcam os termos
homólogos das relações semelhantes, em diversos tons. As letras
indicam as notas da escala, e as sílabas os graus de modo. Os mú­
sicos franceses misturaram estranhamente estas distinções;
misturaram o sentido das sílabas com o sentido das letras; e, do­
brando inutilmente os sinais das notas, não deixaram nenhum pa­
ra expressar os timbres dos tons; de modo que, para eles, ut e C são
sempre a mesma coisa; o que não é, nem deve ser, porque então, de
que serviria C? Também a sua maneira de solfejar se tornou exces­
sivamente complicada, sem que isso tenha alguma utilidade, sem
que isso traga nenhuma ideia clara ao espírito, pois, com esse mé­
todo, essas duas sílabas ut e mi, por exemplo, podem igualmente
significar uma terça maior, menor, supérflua ou diminuída. Por
que estranha fatalidade o país do mundo onde se escrevem os mais
belos livros. sobre a música é precisamente aquele onde ela é mais
difícil de aprender?
Sigamos, com o nosso pupilo, uma prática mais simples e mais
clara; que, para ele, só haja dois modos, cujas relações sejam sem­
pre as mesmas, e sempre indicadas pelas mesmas sílabas. Se se
der o caso de ele cantar ou tocar algum instrumento, que seja ca­
paz de estabelecer o seu modo em cada um dos doze tons que lhe
podem servir de base, e que-seja que a modulação esteja em D,
em C, em G, etc. -o último seja sempre o la ou o ut, consoante o 155
modo. Assim, compreender-vos-á sempre; as relações essenciais
do modo, para cantar e tocar afinadamente, estarão sempre pre­
sentes no seu espírito, a sua execução será mais nítida e o seu pro­
gresso mais rápido. Não há nada mais bizarro que aquilo a que os
Franceses dão o nome de «solfejar ao natural>•; é afastar as ideias
da coisa, para as substituir por outras que só servem para deso­
rientar. Nada é mais natural que solfejar por transposição, quan­
do o modo é transposto: mas basta de música: ensinai-a como vos
agradar, éontanto que ela nunca constitua mais que uma distra­
ção.
Eis-nos bastante avisados sobre o estado dos corpos estranhos
ao nosso, sobre o respectivo peso, o respectivo aspecto, as respec­
tivas cores, solidez, grandeza, distância, temperatura, imobilida­
de, ou sobre o seu movimento. Sabemos de quais nos convém apro­
ximar, de que maneira devemos agir para vencermos a sua resis­
tência, ou para lhes opormos uma que nos preserve de sermos
atingidos, mas isso não chega; o nosso próprio corpo esgota-se in­
cessantemente, precisa de ser constantemente renovado. Embora
tenhamos a faculdade de transformar outros na nossa própria
substância, a escolha não é indiferente: nem tudo serve de alimen­
to, para o homem; e, de entre as substâncias que o podem ser, há­
as que são mais ou menos convenientes, consoante a constituição
da sua espécie, consoante o clima em que habita, consoante o seu
temperamentoparticular e consoant e a maneira deviver que o seu
estado lhe prescreve.
Morreríamos de fome, ou envenenados, se tivéssemos de espe­
rar-para escolhermos os alimentos que nos convém - que a
experiência nos ensinasse a conhecê-los e a escolhê-los; mas a Su­
prema Bondade, que fez do prazer dos seres sensíveis o instrumen­
to da sua conservação, avisa-nos, através do que agrada ao nosso
paladar, do que convém ao nosso estômago. Naturalmente, para o
homem não há médico que mereça mais confiança que o seu pró­
prio apetite; e, considerand(}--{} no seu estado primitivo, não tenho
dúvidas de que, nessa época, os alimentos que ele achava mais
agradáveis eram também os mais sãos.
Ainda mais. O Autor das coisas não provê unicamente às ne­
cessidades que nos faz sentir mas também àquelas que nos damos
a nós próprios; e é para nos pôr sempre o desejo ao lado da neces­
sidade que ele faz que os nossos gostos se modifiquem e se alterem,
consoante a nossa maneira de viver. Quanto mais nos afastamos
do estado natural, mais os nossos gostos naturais vamos perden­
do;ou antes,ohábitofornece-nosumasegunda natureza comque
nós substituímos tão bem a primeira que já nenhum de nós se lem­
bra dela.
Daí se segue que os gostos mais naturais também devem ser os
156 mais simples; porque são esses que se transformam maisfacilmen-
te; pelo contrário, quando se aperfeiçoam, irritando-se através das
nossas fantasias, adquirem uma forma que nunca mais muda. O
homem que ainda não tem nenhum país, facilmente se habituará
aos costumes de qualquer país; mas o homem de um país não se
adptará aos costumes de outro.
Isto parece-me ser verdade, em todos os sentidos, mas muito
mais, quando se aplica ao paladar propriamente dito. O nosso pri­
meiro alimento é o leite; só gradualmente nos vamos habituando
aos sabores acentuados; de início, repugnam-nos. Frutos, legu­
mes, ervas, e, por fim, algumas carnes grelhadas, sem temperos
nem sal, com puseram os festins dos primeiros homens1• A primei­
ra vez que um selvagem bebe vinho, faz uma careta e cospe-o; e,
mesmo entre nós, seja quem for que tenha vivido até aos 20 anos
sem provar licores fermentados,jánão se consegue habituar a eles;
todos nós seríamos abstémios se não nos tivesssem dado vinho a
provar quando éramos pequeninos. Enfim, quanto mais simples
forem os nossos gostos, mais universais eles serão; as repugnân­
cias mais vulgares dizem respeito a pratos complicados. Já algu­
ma vez se viu alguém sentir repugnância pela água ou pelo pão?
Aí se vê a marca da natureza, e também a nossa regra. Conserve­
mos, à criança-e durante o máximo de tempo possível-o seu
gosto primitivo; que a sua alimentação seja vulgar e simples, que
o seu paladar só se familiarize com sabores pouco acentuados e não
forme um gosto exclusivo.
Aqui, não procuro saber se essa maneira de viver é mais sã ou
não, pois não é assim que a encaro. Basta-me saber, para a prefe­
rir, que é a que está mais em conformidade com a natureza, e que
é aquela que mais facilmente se pode vergar a qualquer outra.
Aqueles que dizem que é preciso habituar as crianças aos alimen­
tos que terão de comer quando forem crescidas não raciocinam
bem, ao que me parece. Por que é que a sua alimentação deve come­
çar a ser a mesma que a dos adultos, quando a sua maneira de vi­
ver continua a ser tão diferente? Um homem cansado do trabalho,
das preocupações, dos desgostos, tem necessidade de alimentos su­
culentos que lhe levem novas forças ao cérebro; uma criança que
acaba de brincar e cujo corpo está em pleno crescimento precisa de
uma alimentação abundante que lhe faça muito quilo. Aliás, o ho­
mem adulto já tem a sua situação, o seu emprego, o seu domicílio:
mas quem é que pode ter a certeza do que o destino reserva à
criança? Em todas as coisas, não lhe demos uma forma de tal mo­
do determinada, para que não lhe custe muito mudar se disso ti-

1 Vede aArcadie, de Pausânias; vede também o trecho de Plutarco,


que a seguir é transcrito.
·
15 7
ver necessidade. Não a façamos de tal maneira que possa morrer
de fome noutros países, se não puder levar consigo, para toda a par­
te, um cozinheiro francês, ou de tal maneira que alguma vez pos­
sa vir a dizer que só em França se sabe comer. Eis, entre parênte­
ses, um elogio agradável! Cá por mim, diria, pelo contrário, que só
os Franceses não sabem comer, pois precisam de uma arte tão es­
pecial para que os alimentos se tornem comestíveis para eles.
De entre as nossas diversas sensações, o paladar proporciona
as que, geralmente, mais nos afectam. E, assim, sentimo-nos mais
interessados em bem considerar substâncias que devem fazer par­
te da nossa, que aquelas que apenas a rodeiam. Há mil coisas que
são indiferentes ao tacto, ao ouvido, à vista; mas não há quase na­
da que seja indiferente ao paladar.
Além disso, a actividade desse sentido é completamente física
e material; é o único que em nada se relaciona com a imaginação;
pelo menos, é aquele para cujas sensações ela menos contribui;
contanto que a imitação e a imaginação misturem frequentemen­
te um pouco de moral com a impressão de todos os outros. Assim,
geralmente, os corações ternos e voluptuosos, os caracteres apai­
xonados e verdadeiramente sensíveis, fáceis de comover pelos ou­
tros sentidos, são bastante tíbios em relação a este. Justamente
por esse motivo, que parece colocar o paladar abaixo deles e tornar
mais desprezível a tendência que a ele nos entrega, eu concluiria,
pelo contrário, que o sistema mais conveniente para governar as
crianças é dirigi-las pela boca. O móbil da glutonia é, sobretudo,
preferível ao da vaidade, pois o primeiro é um apetite da nature­
za, relacionado com o sentido do paladar, enquanto a segunda é
uma obra da opinião dos outros, sujeita ao capricho dos homens e
a todas as espécies de abusos. A glutonia é a paixão da infância; es­
ta paixão não resiste a nenhuma outra; à primeira razão de concor­
rência que se lhe oponha, desaparece. Ora! Crede-me, a criança
muito cedo deixará de pensar no que come; e, logo que tiver o cora­
ção bastante ocupado, o seu paladar deixará de lhe interessar.
Quando for crescida, a sua glutonia cederá o lugar a mil sentimen­
tos impetuosos que apenas lhe servirão para aumentar a vaidade;
pois só esta última paixão tira proveito das outras, e, finalmente,
absorve-as todas. Por vezes, examinei essas pessoas que
atribuíam muita importância às boas comidas, que, logo que des­
pertavam, pensavam no que comeriam durante o dia, e que descre­
viam uma refeição com uma exactidão maior que a de Políbio,
quando descreve �m combate; cheguei à conclusão de que todos es­
ses pretensos homens não passavam de crianças de 40 anos, sem
vigor e sem consistência,fruges consumere nati. A glutonia é o ví­
cio dos corações que não têm estofo. A alma do glutão está toda no
seu palato; é um ser essencialmente feito para comer; na sua estú-
158 pida incapacidade, só quando está à mesa se considera no seu lu-
gar, só sabe apreciar as comidas; não hesitemos em deixá-lo entre­
gue a essa ocupação; mais lhe vale essa que outra, tanto para nós
como para ele.
Recear que a glutonia crie raízes numa criança capaz de algu­
ma coisa é uma precaução de espírito tacanho. Durante a infância,
pensa-se apenas no que se come; durante a adolescência, deixa-se
de pensar nisso; tudo nos sabe bem, e temos outros assuntos com
que nos preocupar. No entanto, não me agradaria que se fizesse
uma utilização indiscreta de uma força tão insignificante, nem que
se consolidasse, com uma boa refeição, a honra de fazer uma bela
acção. Mas-como toda a infância consiste, ou deve consistir, ape­
nas em jogos e divertimentos folgazões-não vejo por que motivo
alguns exercícios puramente corporais não teriam um valor moral
e sensível. Se um rapazinho malhorquino vir, no alto de uma ár­
vore, um cesto de merenda e o conseguir deitar abaixo com uma
funda, não será justo que tire proveito disso e que, comendo um
bom desjejum, recupere as forças que dispendeu para o conse­
guir? Que um jovem espartano, arriscando-se a cem chicotadas,
se intrometa habilmente numa c�nha; que, aí, roube um raposi­
nho vivo, que, transportando-o sob os seus trajes, fique todo arra­
nhado, mordido, todo em sangue, e que, para não passar pela ver­
gonha de ser apanhado em flagrante, a criança se deixe devorar as
entranhas sem pestanejar, sem emitir um único grito, não será
justo que, por fim, tire proveito da sua presa e que a coma, depois
de, por ela, ter sido comida? Nunca uma boa refeição deveria ser
uma recompensa; mas, por vezes, por que não haveria de ser o efei­
to dos trabalhos que se tiveram para a conseguir? Emílio não con­
sidera o bolo que eu coloquei em cima da pedra como o prémio por
ter corrido bem; apenas sabe que o único meio para conseguir ter
esse bolo é lá chegar antes de qualquer outro.
Isto não contraria as máximas que ainda há pouco eu citava,
sobre a simplicidade das refeições, pois, para aguçar o apetite das
crianças, não se trata de excitar a sua sensualidade, mas unica­
mente de a satisfazer: e isso conseguir-se-á com as coisas mais
vulgares do mundo, se ninguém se dedicar a refinar-lhes o pala­
dar. O seu contínuo apetite- que a necessidade de crescer exci­
ta - é um tempero seguro que substitui muitos outros. Fruta,
produtos lácteos, uma ou outra peça de forno, um pouco mais de­
licada que o pão vulgar, sobretudo a arte de dispender sobriamen­
te tudo isso: eis com que levar exércitos de crianças até ao fim do
mundo, sem lhes dar o gosto pelos sabores acentuados nem correr
o risco de lhes estragar o paladar.

1 Há muitos séculos que os Malhorquinos perderam esse costume


que data do tempo em que os seus fundibulários eram célebres. 159
Uma das provas de que o gosto da carne não é natural no ht)­
mem é a indiferença que as crianças sentem por esse alimento, ��
a preferência que todas elas dão aos alimentos vegetais, tais como
os produtos lácteos, a pastelaria, os frutos. Importa, acima de tu­
do, não desnaturar esse paladar primitivo e não tornar as crianças
carnívoras; se não for pela sua saúde, será pelo seu carácter; pois,
seja como for que expliqueis a experiência, o que é verdade é que,
geralmente, os grandes comedores de carne são cruéis e ferozes,
mais que os outros homens; esta observação adapta-se a todos os
lugares e a todas as épocas. A barbárie inglesa é bem conhecida1;
os Gáurios, pelo contrário, são os homens mais gentis que exis­
tem2. Todos os selvagens são cruéis ; e os seus costumes não os im­
pelem a sê-lo: essa crueldade é-lhes fornecida pelos alimentos.
Vão àguerra como sefossem à caçae tratam os homens como sefos­
sem ursos. Na Inglaterra, nem os carniceiros nem os cirurgiões são
aceites como testemunhas3• Os grandes celerados afoitam-se pa­
ra o crime, bebendo sangue. Homero apresenta-nos os Cíclopes
como comedores de carne, homens horrendos, e os Latófagos como
um povo tão amável, que bastava conhecê-lo para todos se esque­
cerem do próprio país e quererem ficar a viver com eles.
«Perguntas-me», dizia Plutarco, «por que motivo Pitágoras se
abstinha de comer carne de animais; mas eu, por minha vez, per­
gunto-te que coragem de homem teve o primeiro que aproximou da
sua boca unia carne magoada, que com os seus dentes quebrou os
ossos de um animal a expirar, que mandou servir, na sua frente,
corpos mortos, cadáveres, e meteu no seu estômago seres que, mo­
mentos antes, baliam, mugiam, caminhavam e viam? Como foi
possível que a sua mão tenhaen terra do um ferro no coração de um
ser sensível? Como foi possível que os seus olhos tivessem supor­
tado um assassinato? Como lhe foi possível ver sangrar, esfolar,
desmembrar um pobre animal sem defesa? Como lhe foi possível
suportar o aspecto das carnes palpitantes? Como foi possível que
o seu cheiro não lhe provocasse náuseas? Como foi possível que não
se tivesse sentido desgostado, repugnado, invadido de horror,

1 Sei que os Ingleses gabam muito a sua humanidade e a bondade


natural do seu povo, a que dão o nome de good natural people; mas, por
mais que o digam e repitam, ninguém tem essa opinião sobre eles.
2 Os Banianos, que se abstêm de carne, ainda mais severamente que
os Gáurios, são quase tão amáveis como estes; mas, como têm uma moral
menos pura e o !)eu culto é menos razoável, não tão honestos como eles.
3 Um dos tradutores ingleses deste livro notou, nesta parte, o meu
engano, e ambos o corrigimos. Os carniceiros e os cirurgiões são aceiteS<:o­
mo testemunhas; mas, nos julgamentos dos crimes, os primeiros não são
160 admitidos como jurados, ou pares, e os cirurgiões são-no.
quando começou a manipular a sujidade dessas feridas, a limpar
o sangue negro e seco que as cobria?

As peles rastejavam pelo solo, depois de esfoladas,


As carnes, ao lume, mugiam, lado a lado espetadas,
O homem não conseguiu comê-las sem estremecer
E, no seu seio, ouviu-as gemer.

Eis o que ele deve ter imaginado e sentido, a primeira vez que
sobrepujou a sua natureza para comer essa horrenda refeição, a
primeira vez que teve fome de um animal vivo, que se quis alimen­
tar de um animal que ainda pastava, e que disse comq degolar, es­
quartejar, cozer o cordeiro que lhe lambia as mãos. E desses que
começaram com esses cruéis festins que temos motivos para nos
admirar, e não daqueles que os abandonam: embora os primeiros
pudessem justificar a sua barbárie com desculpas que não temos
para a nossa, e cuja falta nos torna cem vezes mais bárbaros que
eles.

«Mortais, bem-amados pelos deuses», dir-nos-iam es­


ses primeiros homens, «comprai as épocas, vede como sois
felizes e como nós éramos miseráveis! A Terra, recentemen­
te formada, e o ar, carregado de vapores, ainda não obede­
ciam à ordem das estações; o curso incerto dos rios degra­
dava as suas margens em toda a parte; as três quartas par­
tes da superfície do mundo estavam inundadas por poças,
lagos e profundos pântanos; a outra quarta parte estava
coberta por bosques e florestas estéreis. A Terra não pro­
duzia frutos comestíveis; não tínhamos instrumentos de la­
voura; ignorávamos a arte de os utilizar, e o tempo da
colheita nunca vinha para quem não tivesse semeado. As­
sim, a fome nunca nos abandonava. Durante o Inverno, o
musgo e a casca das árvores eram os nossos alimentos vul­
gares. Algumas raízes verdes, de grama, e de fetos, eram
um regalo para nós; e quando os homens conseguiam encon­
trar bolotas, nozes ou outras sementes de árvores, dança­
vam de alegria, em redor de um carvalho ou de uma faia, ao
som de alguma canção rústica, chamando à Terra a sua nu­
triz e a sua mãe; o restante da vida humana era unicamen­
te dor, tristeza e miséria.
»Por fim, quando a terra despojada e nua não nos ofere-
ceu mais nada, vendo-nos obrigados a ultrajar a n atureza
para nos conservarmos, comemos os companheiros da nos-
sa miséria, para não morrermos com eles. Mas vós, homens
cruéis, quem vos obriga a verter sangue? Vede a afluência 161
L.B.S23-11
de bens que vos rodeia! Quantos frutos vos produz a terra!
Quantas riquezas vos dão os campos e as vinhas! Quantos
animais vos oferecem o seu leite para vos alimentar e a sua
pele para vos vestir! Por que lhes pedis mais? E que raiva
é essa que vos leva a cometer tantos assassínios, embora sa­
ciados de bens e abarrotando de víveres? Por que mentis
contra a vossa mãe, acusand(}-a de não vos poder alimen­
tar? Por que pecais contra Ceres, inventora das santas leis,
e contra o gracioso Baco, consolador dos homens? Como se
os dons que eles nos prodigam não fossem suficientes para
a conservação do género humano! Como tendes a coragem
, de, sobre as vossas mesas, misturar as ossadas com os do­
ces frutos, e de, com o leite, beber o sangue dos animais que
V(}-lo dão? As panteras e os leões, que considerais como ani­
mais ferozes, obedecem ao seu instinto pela força e matam
os outros animais para sobreviverem. Mas vós, cem vezes
mais ferozes que eles, combateis o instinto sem necessida­
de, para vos entregardes às vossas cruéis delícias. Os ani­
mais que comeis não são aqueles que devoram os outros; vós
não os comeis, esses animais carnívoros, apenas os imitais;
só tendes fome dos animais inocentes e doces que não fazem
mal a ninguém, que se dedicam a vós, que vos servem, e que
devor,ais em paga dos seus serviços .
Ȇ assassino desnaturado! S e te obstinas a declarar que
a natureza te fez para devorares os teus semelhantes - se­
res de carne e osso, sensíveis e vivendo como tu -, bem po­
des abafar o horror que ela te inspira por essas horríveis re­
feições; mata tu próprio os animais, com as tuas próprias
mãos, sem instrumentos de ferro, sem cutelos; dilacera-os
com as tuas próprias unhas, como fazem os leões e os ursos;
morde esse boi e despedaça-o; enterra as tuas garras na sua
pele; come esse cordeiro ainda vivo, devora as suas carnes
ainda quentes, bebe a sua alma com o seu sangue. E streme­
ces! Não te atreves a sentir palpitar, sob os teus dentes,
uma carne com vida! Homem desprezível! Começas por
matar o animal, e só depois o comes, como para o fazeres
morrer duas vezes. Isso não te basta: a carne morta ainda
te repugna, as tuas entranhas não a conseguem suportar;
é preciso que a transformes pelo fogo, que a cozas, que a as­
ses, que a temperes com drogas que a disfarçam: precisas de
salsicheiros, de cozinheiros, de assadores, de pessoas que te
tirem o horror do crime e que para ti vistam os corpos mor­
tos, a fim de que o sentido do paladar, enganado por esses
disfarces, não rejeite o que lhe é estranho, e saboreie com
prazer cadáveres cujo aspecto a própria vista teria dificul-
1 62 dade em suportar.»
Emboraeste trecho� ão digarespeito aomeu assunto, não con­
segui resistir à tentação de o transcrever, e creio que poucos leito­
res me quererão mal por isso.
De resto, seja qual for o regime com que alimentais os vossos
filhos, desde o momento em que só os acostumeis a refeições sim­
ples e vulgares, deixai-os comer, correr e brincar, tanto quanto
eles quiserem; se assim fizerdes, podeis ter a certeza de que nun­
ca comerão de mais, e, consequentemente, de que nunca terão in­
digestões; mas se, constantemente os fizerdes passar fome, quan­
do eles encontrarem maneira de escapar à vossa vigilância, des­
quitar-se--ão com todas as suas forças e comerão até ficarem em­
panturrados, quase a rebentar. O nosso apetite só é desmedido
porque queremos submetê-lo a regras que não são da natureza;
constantemente a regulamentar, a prescrever, a acrescentar, are­
tirar, nada fazemos sem balança namão;mas essabalançaé regu­
lada pelas nossas fantasias e não pelo nosso estômago. Lá volto eu
aos meus exemplos: nas casas dos camponeses, a arca do pão e a
reserva da fruta estão sempre abertas: as crianças, assim como os
adultos, nunca têm indigestões.
No entanto, se s e viesse a dar o caso d e uma criança comer em
demasia - o que não me parece passível, se seguirdes o meu mé­
todo -, servos-ia tão fácil distraí-la, utilizando divertimentos
que ela aprecia, que até conseguiríeis esgotá-la de inanição, sem
que ela desse por isso. Como é possível que todos os perceptores ig­
norem estes sistemas, que são tão seguros e tão fáceis? Também
Heródoto nos relata que os Lídios, quando se viram apertados por
uma extrema penúria, tiveram a boa ideia de inventar os jogos e
outros divertimentos que os levavam a esquecer a fome, e, assim,
puderam passar dias inteiros sem pensar em comer1• Os vossos sá­
bios perceptores talvez tenham lido e relido, cem vezes, esta pas­
sagem, sem nunca se terem apercebido de que a poderiam aplicar
às crianças. Talvez algum deles me diga que uma criança não
abandona voluntariamente o seu almoço para ir estudar uma li­
ção. Mestre, tendes razão: mas eu não me referia a esse diverti­
mento.
O sentido do olfacto está para o do paladar assim como o da vis-

1 Os antigos historiadores estão cheios de ideias que poderiamos


utilizar, mesmo se os factos que as apresentam fossem falsos. Mas nós não
sabemos tirar nenhum bom proveito da História; a crítica da erudição ab­
sorve tudo; como se tivesse muita importância que determinado facto fos­
se verdadeiro, se dele pudéssemos retirar uma lição útil! Os homens
sensatos devem considerar a História como uma trama de fábulas cuja
moralidade é muito apropriada para o coração humano. 1 63
ta está para o do tacto; previne-o, avisa-{) da maneira como as
substâncias o podem afectar, e prepara-{) para as procurar ou re­
pelir, consoante as impressões que, previamente, recebe delas.
Ouvi dizer que o olfacto dos selvagens era afectado de um modo di­
ferente do nosso, e que eles avaliavam, diferentemente de nós, os
bons e os maus cheiros. Cá pelo meu lado, acho isso muito possível.
Por si mesmos, os cheiros são sensações fracas; perturbam mais a
imaginação que os sentidos, e não afectam tanto pelo que dão co­
mo pelo que deixam esperar. Feita esta suposição, os paladares de
uns, que, pela sua maneira de viver, se tornaram tão diferentes dos
paladares dos outros, devem levá-los a considerar diversamente
os sabores e, por conseguinte, os cheiros que os anunciam. O chei­
ro de um cavalo morto deve proporCionar tanto prazer a um tárta­
ro quanto o que experimenta um dos nossos caçadores ao cheirar
uma perdiz quase podre*.
As nossas sensações inúteis, como, por exemplo, a de nos sen­
tirmos envoltos pelo cheiro das flores de umjardim, não serão sen­
tidas pelos homens que andam depressa de mais, por não aprecia­
rem os passeios, e pelos que não trabalham o suficiente para con­
siderarem o repouso como uma voluptuosidade. Pessoas constan­
temente esfomeadas não poderão sentir um grande prazer com
aromas que não lhes anunciam nada para comer.
O olfacto é o sentido da imaginação; dando um tom mais forte
aos nervos, deve agitar muito o cérebro; é por esse motivo que
reanima o temperamento durante uns instantes, e o esgota, com
a continuação. No amor, tem efeitos bastante conhecidos; o suave
perfume de um toucador não é uma armadilha tão fraca como se
imagina; e não sei se devemos felicitar ou lastimar o homem sage
e pouco sensível que nunca sentiu o coração bater com mais força
quando cheirou o perfume das flores que a amada trazia ao peito.
Por conseguinte, o olfacto não deve ser muito activo durante a
primeira idade, em que a imaginação - que tão poucas paixões
animaram - ainda não é susceptível de emoção, e em que ainda
não se tem experiência suficiente para, com um sentido, prever o
que o outro nos promete. Assim, esta consequência foi perfeita­
mente confirmada pela observação; e é verdade que este sentido
aindase encontra num estado mais obtusoe quase embrutecido na
maioria das crianças. Não que, nelas, a sensação não seja tão fina
e talvez até mais fina que nos adultos, mas porque - não a rela­
cionando com nenhuma ideia - não é facilmente que se sentem
afectadas por um sentimento de prazer ou de mágoa, e porque, com

* Ainda hoje, o hábito de mortificar a carne das peças de caça leva


muitas pessoas a deixá-la quase apodrecer, considerando que, assim tra-
1 64 tada, fica muito mais tenra e gostosa, depois de cozinhada. (N. da T.)
isso, não se sentem nem agradadas nem incomodadas como nós.
Creio que, sem sair do mesmo sistema, e sem necessidade de recor­
rer à anatomia comparada dos dois sexos, facilmente se encontra­
ria o motivo por que, geralmente, os cheiros afectam muito mais as
mulheres que os homens.
Dizem que, desde crianças, os selvagens do Canadá exercitam
tão bem o seu olfacto, e acabam por tomá-lo tão subtil que, apesar
de possuírem cães, nem sequer os utilizam para a caça, e se servem
de cães, a si mesmos. Efectivamente, creio que se ensinássemos as
nossas crianças a farejarem o seu almoço, como os cães farejam a
caça, talvez conseguíssemos aperfeiçoar-lhes o olfacto a esse pon­
to; mas, no fundo, não vejo qual a utilidade que isso teria para elas,
a não ser a de lhes dar a conhecer as suas correlações com as do pa­
ladar. A natureza teve o cuidado de nos forçar a aprender essas re­
lações. Tornou a acção deste último sentido quase inseparável da
do outro, colocando os seus respectivos órgãos um ao lado do outro
e instalando na boca uma comunicação imediata entre os dois, de
tal modo que não provamos nada que não tenhamos previamente
cheirado. Tudo quanto desejo é que não se alterem essas correla­
ções naturais para enganar uma criança, por exemplo, disfarçan­
do o mau gosto de um medicamento com um aroma agradável;
porque, nesse caso, a discordância dos dois sentidos é deamsiado
grande para que ela se possa deixar iludir; como o sentido mais ac­
tivo absorve o efeito do outro, toma o medicamento com a mesma
repugnância; essa repugnância abrangerá todas as sensações que,
simultaneamente, se imprimirem nela; perante a mais fraca, a sua
imaginação também lhe recordará a outra; para ela, um perfume
muito suavejá só significará um cheiro desagradável; e é desse mo­
do que as nossas precauções insensatas aumentam a soma das
sensações desagradáveis, em detrimento das agradáveis.
Nos livros que se seguem, resta-me falar da cultura de uma es­
pécie de sexto sentido, a que se dá o nome de «senso comum», não
por ser comum a todos os homens mas porque é o resultado de uma
utilização bem equilibrada dos outros sentidos, e que nos instrói
sobre a natureza das coisas através de todas as suas aparências.
Este sexto sentido não tem, por conseguinte, nenhum órgão espe­
cial: reside apenas no cérebro, e as su�s sensações, puramente in­
ternas, são as percepções ou ideias. E pelo número destas ideias
que se avalia a extensão dos nossos conhecimentos: é a sua nitidez,
a sua clareza, que fazem a justeza de espírito; é à arte de as com­
parar entre si que se dá o nome de «razão humana». Assim, aqui­
lo a que eu chamava «razão sensitiva» ou «pueril>>, consiste em for­
mar ideias simples com o concurso de várias sensações; e aquilo a
que chamo «razão intelectual>>, ou <<humana>> consiste em formar
ideias complexas com a ajuda de várias ideias simples.
Portanto, supondo que o meu método seja o da natureza, e que 165
eu não me tenha enganado no modo de o aplicar, transportámos o
nosso pupilo - através do país das sensações -até aos confin s da
razão pueril: o primeiro passo que iremos dar para além dela de­
verá ser um passo de adulto. Mas, antes de dar início a esta nova
caminhada, detenhamo-nos durante um momento e lancemos um
olhar para aquela que acabamos de percorrer. Cada idade, cada es­
tado de vida tem a sua própria perfeição, a sua espécie de maturi­
dade que lhe é própria. Ouvimos frequentemente falar de «homem
feito>>; mas consideremos uma criança feita: esse espectáculo será
mais inabitual para nós, mas talvez não seja menos agradável.
A existência dos seres completados é tão pobre e tão limitada
que, quando só nos apercebemos do que existe, nunca nos sentimos
impressionados. São as quimeras que adornam os objectos reais;
e, se a imaginação não acrescentar um certo encanto ao que vemos,
o prazer estéril que com isso temos limita-se ao órgão e deixa sem­
pre o coração frio. A terra, ornamentada com os tesouros do Outo­
no, expõe uma riqueza que a vista admira: mas essa admiração não
é enternecedora; vem mais da reflexão que do sentimento. Na Pri­
mavera, os campos quase nus ainda não estão recobertos com na­
da, as matas não nos oferecem nenhuma sombra, a verdura mal co­
meça a brotar e o coração sente-se enternecido com o seu aspecto.
Vendo a natureza renascer deste modo, sentimo-nos, nós próprios,
reanimados; a imagem do prazer rodeia-nos; essas companheiras
da volúpia, essas doces lágrimas sempre prestes ajuntar-se a to­
dos os sentimentos deliciosos, já se encontram à beira dos nossos
olhos; mas o aspecto das vindimas, por mais animado, vivo, agra­
dável que seja, vemo-lo sempre com,os olhos secos.
A que se deverá esta diferença? E que, ao espectáculo da Pri­
mavera, a imaginação acrescenta o das estações que se lhe deve­
rão seguir; a esses tenros rebentos que os olhos avistam, ela acres­
centa as flores, os frutos, as sombras, por vezes os mistérios que po­
dem encobrir. Reúne, num ponto, épocas que se devem suceder, e
vê menos os objectos como estes serão que como os deseja, porque
dela depende escolhê-los. No Outono, pelo contrário,já não preci­
samos de ver o que existe. Se queremos chegar à Primavera, o In­
verno detém-nos, e a imaginação, gelada, expira sobre a neve e so­
bre os gelos.
Tal é a razão por que nos sentimos mais encantados quando
contemplamosumabela infância quequando observamos a perfei­
ção daidademadura.Quandqéque e xpe rime ntamosumverdadei­
ro prazer a ver um homem? E quando a memória das suas acções
nos leva a recuar na sua vida, e, por assim dizer, o rejuvenesce aos
nossos olhos. Se formos reduzidos a considerá-lo tal como é, ou a
C66 supô-lo tal como virá a ser quando for velho, a ideia da natureza
decadente apaga todo o nosso prazer. Ninguém sente prazer em
ver um homem avançar, a passos largos, para o seu túmulo; e a
imagem da morte torna tudo feio.
Mas quando imagino uma criança de 1 O a 12 anos, sã, vigoro­
sa, bem formada para a sua idade, ela não faz nascer em mim
nenhuma ideia que não seja agradável, tanto pelo presente como
pelo futuro: vejo-a cheia de vida, alegre, animada, sem preocupa­
ções, toda entregue ao seu ser actual e disfrutando de uma supe­
rabundância de vida que parece querer estender-se para fora de­
la. Prevejo-a noutra idade, exercendo os sentidos, o espírito, as for­
ças que, de dia para dia, se estão a desenvolver nela e de que, a to­
dos os momentos, ela dá novos indícios; contemplo-a como crian­
ça que é, e ela agrada-me; imagino-a quando homem e ela ainda
me agrada mais; o seu sangue ardente parece aquecer o meu; creio
viver da sua vida, e a sua vivacidade rejuvenesce-me.
Logo que soa a hora, que transformação! Bruscamente, o seu
olhar perde o brilho, a sua alegria desparece; adeus alegria, adeus
brincadeiras. Um homem severo e zangado pega-lhe pela mão e
diz-lhe, com gravidade: Vamos, senhor, e leva-<>. No quarto em
que entram, entrevejo livros. Livros!, que tristes móveis, para a
sua idade! A pobre criança deixa-se arrastar, lança um olhar de
saudade sobre tudo quanto a rodeia, cala-se, e lá vai, com os olhos
inchados de lágrimas que não se atreve a deixar correr e o coração
chei<;> de suspiros que não se atreve a exalar.
O tu que não tens a recear nada de semelhante, tu, para quem
nenhum dos momentos da vida é um momento de contrariedade e
de aborrecimento, tu que vês vir o dia sem inquietação, a noite sem
impaciência e que só contas as horas pelos prazeres que tens, vem,
meu feliz, meu amável pupilo, consolar-nos - com a tua presen­
ça - da partida daquele infortunado; vem ... Ele aproxima-se, e,
nesse instante, ex_perimento um movimento de alegria de que o ve­
jo compartilhar. E do seu amigo, do seu camarada, do seu compa­
nheiro de jogos, de quem ele se aproxima; quando me vê, tem a cer­
teza de que não ficará muito tempo sem se divertir; nunca depen­
demos um do outro, mas estamos sempre de acordo e com ninguém
nos sentimos tão bem como quando estamos juntos.
O seu rosto, a sua atitude, a sua compostura, tudo anuncia a
confiança em si e a satisfação; a saúde brilha no seu rosto; os seus
passos firmes dão-lhe um ar vigoroso; a sua tez, ainda delicada
mas sem ser pálida, não tem nada de uma moleza efeminada; o ar
e o sol já nela despositaram a marc.a honrosa do seu sexo; os seus
músculos, ainda arredondados, começam a marcar alguns traços
de uma fisionomia nascente; os seus olhos, que o fogo do sentimen­
to ainda não anima, têm, pelo menos, toda a sua serenidade nati- 167
va1, porque prolongados desgostos ainda não os escureceram, cho­
ros infindáveis ainda não percorreram as suas faces. Vede, nos
seus movimentos, ágeis mas seguros, a vivacidade da sua idade, a
firmeza da independência, a experiência dos exercícios multiplica­
dos. Tem o ar franco e livre, mas não insolente nem fútil: o seu ros­
to, que nunca ficou colado aos livros, não lhe descai para o estôma­
go; não é necessário dizer-lhe: Erguei a cabeça; nem a vergonha
nem o receio jamais o levaram a abaixá-la.
Demos-lhe lugar entre a assembleia: meus senhores, exami­
nai-o, interrogai-o à vossa vontade; não receeis nem as suas
importunidades, nem a sua tagarelice, nem as suas perguntas
indiscretas. Não receeis que ele se agarre a algum de vós, que ele
pretenda que vos ocupeis unicamente dele e que vos seja difícil ver­
-vos livre da sua pessoa.
Mas também não devereis esperar dele frases agradáveis, nem
que ele vos diga o que lhe terei ditado; preparai-vos para ouvir da
sua boca unicamente a verdade inocente e simpies, sem ornamen­
tos, sem disfarces, sem vaidade. Dir-:-vos-á o mal que fez ou o mal
que pensa, tão à vontade como se se tratasse do bem, sem se preo­
cupar, de modo nenhum, com o efeito que sobre vós fará tudo quan­
to vos disser: falará com toda a simplicidade da sua primeira ins­
tituição.
Gostamos de pensar bem das crianças, e sempre nos sentimos
desiludidos quando ouvimos esse fluxo de tolices que quase sem­
pre vem desiludir as esperanças que gostaríamos de alimentar
com alguma frase feliz que, por acaso, lhes saísse da boca. Se é ver­
dade que o m e u p up ilo raramente dá essas esperanças, não o é me­
nos que nunca dará essa desilusão; porque nunca pronuncia uma
palavra inútil, e não se cansa numa tagarelice que sabe que nin­
guém escuta. As suas ideias são limitadas, mas claras; embora na­
da saiba de cor, sabe muito por experiência; embora leia menos
bem que outra criança nos nossos livros, lê melhor que elas nos da
natureza; o seu espírito não está na sua linguagem, mas na sua ca­
beça; tem menos memória que discernimento; só sabe falar uma
linguagem, mas compreende o que diz; e, embora não fale tão bem
como os outros, faz melhor que eles.
Não sabe o que é a rotina, o hábito, os costumes; o que ele on­
tem fez não tem influência sobre o que faz hoje2: nunca segue uma

1 Natia. Emprego esta palavra numa acepção italiana, porque não


encontro um sinónimo francês para ela. Se faço mal, pouco importa, con­
tanto que me compreendam.
2 A atracção pelo hábito vem da preguiça natural do homem, e essa
preguiça aumenta à medida que ele se vai entregando a ela: faz-se com
r 68 mais facilidade o que já alguma vez se fez: o caminho estando aberto, tor-
fórmula, não cede à autoridade nem ao exemplo, só age ou fala
como lhe convém. Por isso, não espereis que vos diga frases ensi­
nadas nem que vos mostre maneiras estudadas, porque só vereis
a expressão fiel das suas ideias e o comportamento que tem origem
nas suas tendências.
Encontrar-lhe-eis um pequenino número de noções morais
que dizem respeito à sua condição actual, nenhuma que diga res­
peito à situação relativa aos homens: pois, de que lhe serviriam
elas se uma criança ainda não é um membro activo da sociedade?
Falai-lhe de liberdade, de propriedade, e até de convenção; ele po­
derá ter esses conhecimentos, saberá por que é que o que lhe per­
tence é dele, e por que é que o que não lhe pertence n ão é dele: além
disso, não sabe mais nada. Falai-lhe de dever, de obediência, não
saberá o que quereis dizer; ordenai-lhe alguma coisa, não vos
compreenderá; mas dizei-'-lhe: «Se me fizésseis tal prazer, retri­
buir-vo-lo-ia logo que a ocasião se apresentasse.» Imediatamen­
te fará o que desejais, pois não pretende mais que alargar o seu do­
mínio e adquirir sobre vós alguns direitos que sabe serem inviolá­
veis. Talvez até goste de ocupar um lugar, de que contem com ele;
mas, se for esse o seu motivo, ei-lo já afastado da natureza, e vós
não fechastes previamente todas as portas da vaidade.
Por seu lado, se tiver necessidade de alguma ajuda, pedi-la-á
indiferentemente à primeira pes»oa que encontrar; tanto a pediria
ao rei como ao seu lacaio: ainda não faz nenhuma distinção entre
os homens. Vereis, pela maneira como pede, que sente que não se
lhe deve nada; sabe que o que pede é um favor. Também sabe que
a humanidade incita a concedê-lo. As suas expressões são simples
e lacónicas. A sua voz, o seu olhar, a sua atitude são os de uma pes­
soa tão acostumada à complacência quanto à recusa. Não é nem a
rastejante e servil submissão de um escravo, nem o imperioso tom
de um amo; é uma modesta confiança no seu semelhante, é a no­
bre e enternecedora doçura de um ser livre, mas sensível e fraco,
que implora a assistência de um ser livre, mas forte e bemfazejo.
Se lhe concederdes o que vos pede, não vos agradecerá, mas senti­
rá que contraiu uma dívida. Se lho recusardes, não se lamentará,
não insistirá, sabe que seria inútil. Não dirá, para consigo mesmo:
«Recusaram-me>>; mas sim: «Não era possível>>; e, como já expli-

na-se mais fácil de percorrer. Também podemos observar que a força do


hábito é muito grande nos velhos e nas pessoas indolentes, muito peque­
na nas crianças e nas pessoas activas. Esse regimento só é bom para as al­
mas fracas, e ainda as enfraquece mais, de dia para dia. O único hábito que
seja bom para as crianças é o de se sujeitarem sem dificuldade à necessi­
dade das coisas, e o único hábito que seja útil para os homens é o de se su-
jeitarem facilmente à razão. Qualquer outro hábito é um vício. 169
quei, ninguém se revolta contra a necessidade bem reconhecida.
Deixai-{) sozinho, em liberdade, vede-{) agir sem lhe dizerdes
nada; considerai o que ele fizer e como o fizer. Como não tem ne­
cessidade de se provar a si mesmo que é livre, nunca faz nada es­
touvadamente, nem para se p_rovar a si mesmo que tem poder: pois
sabe ser o seu próprio amo. E vivo, ágil, desembaraçado; os seus
movimentos têm toda a vivacidade própria da sua idade, mas não
vereis um que não tenha uma finalidade. Seja o que for que preten­
derfazer, nunca empreenderá nada que es.teja acima das suas for­
ças, porque já as experimentou e as conhece; os seus meios serão
sempre apropriados aos seus intentos e raramente agirá sem ter
a certeza do êxito. Terá um golpe de vista observador e judicioso;
não irá tolamente interrogar os outros sobre tudo quanto vê; mas
examinará ele próprio as coisas e esforçar-se-á por descobrir o que
quer saber, antes de fazer a pergunta. Se se encontra metido em
atrapalhações imprevistas, sentir-se-á menos perturbado que
qualquer outro; se correr algum risco, também se sentirá menos
assustado. Como a sua imaginação ainda está inactiva e nada foi
feito para a nimar, só vê aquilo que é, só avalia os perigos pelo que
valem, e conserva sempre o seu sangue-frio. A necessidade pesa­
-lhe suficientes vezes sobre as costas, para que se possa rebelar
contra ela; desde que nasceu que está submetido ao seujugo, ei-lo
bem acostumado a ele; está sempre preparado para tudo.
Quer esteja ocupado ou a divertir-se, ambas as coisas se va­
lem, para ele; os seus jogos são as suas ocupações, não sente qual
é a diferença. A tudo quanto faz dedica um interesse que leva a sor­
rir, mostra uma liberdade que agrada, evidenciando simultanea­
mente a pureza do seu espírito e a esfera dos seus conhecimentos.
Não é verdade que o espectáculo desta idade é encantador e doce,
quando vedes um acriança bonita, de olhar esperto e alegre, ar con­
tente e sereno, fisionomia franca e sorridente, fazer, como se
estivesse a brincar, as coisas mais sérias, ou profundamente ocu­
pada com os mais frívolos divertimentos?
Agora, quereis julgá-la por comparação? Misturai-a com ou­
tras crianças, e deixai-a à vontade. Em breve, vereis qual delas es­
tá mais verdadeiramente formada, qual delas se aproxima mais da
perfeição da sua idade. De entre as crianças da cidade, nenhuma
é mais hábil nem mais forte que ela. De entre os jovens campone­
ses, a todos iguala em força e ultrapassa em habilidade. Em tudo
quanto se encontra ao alcance da infância, ela avalia, raciocina,
prevê melhor que todas as outras. Trata-se de agir, de correr, de
saltar, de abanar corpos, de carregar pesos, de avaliar distâncias,
de inventar jogos, de ganhar prémios? Dir-se-ia que a natureza
está às suas ordens, tão f�cilmenteela conseguefazervergar todas
as coisas à sua vontade. E feita para dirigir, para governar os seus
1 70 iguais; o talento, a experiência, servem-lhe de direito e de autori-
dade. Dai-lhe as vestes e o nome que vos agradar, pouco importa,
ela será a primeira em tudo, por toda a parte se tornará a chefe das
outras; sentirão sempre a sua superioridade sobre elas; sem pre­
tender comandar, ela será a chefe; sem pensarem que estão a obe­
decer, as outras obedecerão.
Atingiu a maturidade da infância, viveu a vida de uma crian­
ça, não conseguiu a sua perfeição à custa da sua felicidade; pelo
contrário, uma concorreu para a outra. Enquanto foi adquirindo
toda a razão própria da sua idade, sentiu-se feliz e livre, tanto
quanto a sua constituição lho permitia. Se, nela, a foice fatal vier
ceifar a flor das nossas esperanças, não teremos de chorar simul­
taneamente a sua vida e a sua m orte, não amarguraremos a nos­
sa dor com a lembrança daquelas que lhe teremos causado; dir­
-nos�mos: «Pelo menos, disfrutou da sua infância; não lhe fize­
mos perder nada do que a natureza lhe dera.»
O grande inconveniente desta primeira educação é que ela se­
ja sensível apenas para os homens clarividentes, e que, numa
criança educada com tantos cuidados, olhos vulgares não vejam
mais do que um gaiato insubordinado. Um perceptor pensa mais
no seu interesse que no do seu pupilo; esforça-se por provar que
não perde tempo e que merece ganhar o dinheiro que lhe pagam;
dá-lhe uma instrução que facilmente se pode exibir, quando se
quer; pouco importa se o que a criança aprende é, ou não é, útil: o
que interessa é que essa instrução se veja facilmente. Sem discer­
nimento e sem escolha, vai acumulando uma quantidade de ins­
truções na memória da criança. Se alguém a quiser examinar, bas­
ta que ela exiba a sua mercadoria; depois de a exibir, todos ficam
satisfeitos; em seguida, ela volta a embrulhar tudo e afasta-se. O
meu pupilo não é tão rico, não tem nada a desembrulhar, não tem
nada a mostrar, a não ser a sua própria pessoa. Ora, uma criança,
do mesmo modo que um homem, não pode ser avaliada num mo­
mento. Onde estão os observadores que saibam captar, à primei­
ra vista, os traços que a caracterizam? Há--<>s, mas são raros; e, en­
tre cem mil pais, não se encontrará nem um que faça parte desse
número.
As perguntas muito repetidas aborrecem e irritam toda a gen­
te, quanto mais as crianças. Ao cabo de alguns minutos, a sua aten­
ção esgota-se, deixam de ouvir o que um obstinado interrogador
lhes pergunta e só respondem ao acaso. Esta maneira de as exami­
nar é inútil e pretenciosa; muitas vezes, uma palavra que elas di­
gam e que se lhes apanha no ar descreve melhor o seu sentido e o
seu espírito que grandes discursos que elas fizessem, mas ó preci­
SO ter c,uidado para que essa palavra não seja nem ditada nem for­

tuita. E preciso ser-se dotado de muito discernimento para poder


avaliar o de uma criança.
Ouvi contar, ao falecido Milorde Hyde, que um dos seus ami- 1 71
gos, regressado de Itália após três anos de ausência, quis exami­
nar os progressos de seu filho que, nessa época, tinha 9 ou 1 O anos.
Uma tarde, vai passear, com o filho e com o respectivo governan­
te, para uma planície onde alguns estudantes se divertiam a lan­
çar papagaios de papel. Ao passar, o pai diz ao filho: Onde se encon­
tra o papagaio cuja sombra está aqui? Sem hesitar, sem sequer le­
vantar a cabeça, a criança responde: Por cima da estrada princi­
pal. E, efectivamente, acrescenta MilordHyde, a estrada principal
encontrava-se entre o sol e nós. Ouvindo esta resposta, o pai bei­
ja o filho e, dando o exame por acabado, afasta-se sem dizer nada.
No dia seguinte, enviou ao governante um documento que lhe ga­
rantia uma pensão vitalícia, além do seu salário.
Que homem, esse pai1 E que instrução recebera o filho! A per­
gunta era própria para aquela idade e a resposta foi muito simples;
mas vede quanta clareza de discernimento infantil ela traduz! Foi
assim que o aluno de Aristóteles dominou esse cavalo que nenhum
escudeiro conseguira dominar.

1 72
LIVRO III
Apesar de, até à adolescência, todo o decorrer da vida ser uma
época de fraqueza, há um momento - durante esta primeira fase
- em que o progresso das forças ultrapassa o das necessidades e
em que o animal que cresce, ainda absolutamente fraco, se torna
forte para a sua idade. Como todas as suas necessidades não estão
desenvolvidas, as suas forças presentes são mais que suficientes
para provar às necessidades que tem. Como homem, seria muito
fraco; como criança, é muito forte.
De onde provém a fraqueza do homem? Da desigualdade que
há entre a sua força e os seus desejos. São as nossas paixões que
nos tornam fracos, porque, para as satisfazermos, ser-nos-iam
precisas mais forças que aquelas que a natureza nos deu. Por con­
seguinte, diminui os desejos e será como se aumentásseis as vos­
sas forças: aquele que pode mais do que deseja tem-nas a mais; é,
certamente, um ser m uito forte. Eis o terceiro estado da infância,
e aquele de que, a partir de agora, passo a falar. Para o exprimir,
continuo a chamar-lhe «infância», por falta de termo mais apro­
priado; pois esta idade se aproxima da da adolescência, embora
ainda não seja a da puberdade.
Aos 12 ou 1 3 anos, as forças da criança desenvolvem-se a uma
cadência muito mais rápida que as suas necessidades. Amais vio­
lenta, a mais terrível, ainda não se lhe manifestou; o próprio órgão
ainda está imperfeito e, para se aperfeiçoar, parece estar à espe­
ra de que a sua vontade o force a isso. Pouco sensível às injúrias do
ar e das estações, afronta-as sem dificuldades, a sua seiva nascen­
te serve-lhe de agasalho; o seu apetite serve-lhe de tempero; tudo
quanto pode alimentar é bom para a sua idade; quando tem sono,
estende-se no chão e dorme: por toda a parte, sente-se rodeada por
tudo quanto lhe é necessário; não se sente atormentada por nenhu­
ma necessidade imaginária. A opinião dos outros não tem nenhu­
ma influência nela; os seus desejos não vão mais longe que os seus
braços: não só se pode bastar a si mesma como ainda tem forças pa­
ra além das que precisa; é a única época da sua vida em que se en­
contrará nestas circunstâncias.
Pressinto a objecção. Ninguém dirá que a criança tem mais ne­
cessidades que as que eu lhe imagino, mas dirão que ela não tem
as forças que eu lhe atribuo: esquecer-se-ão que falo do meu pu-
pilo e não dessas bonecas ambulantes que andam de um quarto pa-
ra o outro, que cultivam numa caixa e que transportam fardos de
papelão. Dir-me-ão que a força viril só se manifesta com a virili- 1 75
dade; que só os espíritos vitais, elaborados nas veias que convêm
e espalhados por todo o corpo, podem dar aos músculos a consis­
tência, a actividade, o tom, a elasticidade de que resulta uma ver­
dadeira força. Eis a filosofia do gabinete; mas eu, eu faço apelo à
experiência. Vejo, nos vossos campos, rapazes crescidos a ama­
nhar a terra, a sachar, a segurar na charrua, a carregar uma pi­
pa de vinho, a conduzir a carroça, tal como seus pais; tomá-los-ía­
mos por homens se o tom das suas vozes não os traísse. Mesmo nas
nossas cidades,jovens operários, ferreiros, cuteleiros, ferradores,
são quase tão robustos como os patrões e não seriam menos habi­
lidosos se tivessem sido exercitados a tempo. Se alguma diferen­
ça existe-e concordo que, realmente, elaexiste-émuito menor,
repito, que a que há entre os desejos fogosos de um homem e os de­
sejos limitados de uma criança. De resto, aqui não se trata apenas
das forças físicas mas sobretudo da força e da capacidade do espí­
rito que as supre ou as dirige.
Este intervalo em que o indivíduo pode mais do que deseja, em­
bora não seja a época da sua maiqr força absoluta, é, como já dis­
se, o da sua maior força relativa. E a época mais preciosa da vida,
momento quesó vivemos uma vez; momento muito breve, brevede
mais - como a seguir se verá - porque importa saber utilizá-lo
bem.
E então, que fará a criança desse excedente de faculdades e de
forças que, presentemente, tem a mais e que, noutra altura, lhe fa­
rão falta? Tratará de a dispensar em cuidados de que, em caso de
necessidade, possa vir a tirar partido; proj ect ará para o futuro, por
assim dizer, o excesso do seu ser actual; a criança robusta fará pro­
visões para o homem fraco; mas os seus celeiros, não os estabele­
cerá nem nos seus cofres -que lhe podem ser roubados -nem em
granjas que desconhece; para se apropriar verdadeiramente do
que adquiriu, é nos seus braços, na sua cabeça, é dentro de si mes­
m a que o armazenará. Eis, pois, chegado o momento dos trabalhos,
das instruções, dos estudos, e notai que não sou eu quem, arbitra­
riamente, faz esta escolha, que é a própria nature<.a que a indica.
Ainteligência humana tem os seus limites ; e nãosóum homem
não pode saber tudo como nem sequer pode saber completamente
o pouco que os outros homens sabem. Como a antítese de cada po­
sição falsa é uma verdade, o número das verdades é inextinguível,
como o dos erros. Por conseguinte, há que escolher entre as coisas
que se devem ensinar e os momentos propícios para as aprender.
Dosconhecimen tos que se encontram ao nosso alcance, alguns são
falsos, outros são inúteis e ainda outros só servem para alimentar
o orgtilho daquele que os tem. Só o reduzido número daquelas que,
realmente, contribuem para o nossobem-estaré digno das buscas
1 7 6 de um homem sage, e, por conseguinte, das de uma criança que se
deseja tornar sage. Não se trata de saber o que é, mas unicamen­
te o que é útil.
Deste reduzido número, ainda é preciso retirar as verdades
que, para serem compreendidas, exigem um entendimento já for­
mado; as que supõem o conhecimento das relações do homem, e que
uma criança não pode adquirir; as que, embora verdadeiras em si­
mesmas, levam uma alma inexperiente a criar ideias falsas sobre
outros assuntos.
Eis-nos reduzidos a um circulozinhomuito pequeno, compara­
do com a existência das coisas; mas que imensa esfera que esse cír­
culo ainda consegue formar, para a medida do espírito de uma
criança! Trevas do entendimento humano, que mão temerária se
atreveu a tocar no vosso véu? Quantos abismos vejo as nossas _inú­
teis ciências abrirem em redor desse jovem desafortunado! O tu,
que o vais conduzir por essas perigosas sendas, e descerrar, diante
dos seus olhos, o cortinado sagrado da natureza, treme. Começa
por te assegurar da sua cabeça e da tua, teme que ela ande à roda,
a um de vós, e talvez mesmo a ambos. Teme a atracção especial da
mentira e os vapores embriagadores do orgulho. Recorda-te, re­
corda-te constantemente de que a ignorância nunca fez mal, que
só o erro é funesto, e que ninguém se pode perder pelo que não sa­
be mas sim pelo que julga saber.
Os seus progressos em Geometria poderiam servir-vos de ex­
periência e de medida certa para o desenvolvimento da sua inte­
ligência: mas, logo que ele pode discernir o que é útil e o que não
é, importa ter muitas cautelas e arte para o levar aos estudos es­
peculativos. Quereis, por exemplo, que ele encontre uma média
proporcional entre duas linhas; começai porfazerque ele tenha ne­
cessidade de encontrar um quadrado igual a um rectângulo dado:
se se tratasse de duas médias proporcionais, seria preciso começar
por conseguir que o problema da duplicação do cubo se tornasse in­
teressante para ele, etc. Vede como, gradualmente, nos aproxima­
mos das noções morais que distinguem o bem e o mal. Até agora,
só conhecíamos a lei da necessidade: agora, interessamo-nos pe­
lo que é útil; em breve chegaremos ao que é conveniente e bom.,
As faculdades do homem são animadas pelomesmo instinto. A
actividade do corpo - que procura desenvolver-se - sucede a ac­
tividade do espírito -que procura instruir-se. De início, as crian­
Ças são apenas irrequietas; depois, passam a ser curiosas; e essa
curiosidade, quando bem dirigida, é o móbil da idade a que chegá­
mos. Façamos sempre a distinção entre as tendências que vêm da
natureza e as que vêm da opinião alheia .. Há um anseio por saber
que só se baseia no desejo de se ser considerado sabedor; há outro
que tem origem numa curiosidade natural que o homem sente por
tudo quanto, de perto ou de longe, o possa interessar. O desejo ina-
to do bem-estar e a impossibilidade de satisfazer plenamente es- 177
L .B . 523 - 12
se desejo levam-no a procurar, incessantemente, novas maneiras
de o conseguir. Este é o primeiro princípio da curiosidade; princí­
pio natural do coração humano, mas cujo desenvolvimento só se
efectua em proporção das nossas paixões e dos nossos conhecimen­
tos. Imaginai um filósofo isolado numa ilha deserta, com instru­
mentos e livros, convencido de que ali passará o resto da sua vida;
deixará de se interessar pelo sistema do mundo, pelas leis da atrac­
ção, pelo cálculo diferencial: talvez, durante o resto da sua vida,
nunca mais volte a abrir um livro; mas nunca se absterá de percor­
rer a sua ilha, até ao último recôndito, por maiorqueela pareça ser.
Portanto, afastemos também dos nossos primeiros estudos os
conhecimentos cujo gosto não é natural do homem, e limitemo-nos
aos que o instinto nos leva a procurar.
A ilha do género humano é a Terra; o objecto que mais atrai os
nossos olhos é o Sol. Logo que nos começamos a afastar de nós mes­
mos, as nossas primeiras observações devem recair sobre uma ou
sobre o outro. Também a filosofia de quase todos os povos selva­
gens se desenrola unicamente sobre imaginárias divisões da Ter­
ra e sobre a divindade do Sol.
Que diferença! - talvez diga alguém. Há pouco, falávamos
unicamente do que nos toca, do que está directamente à nossa
volta; de repente, eis-nos a percorrer o globo terrestre e a saltar
para as extremidades do Universo! Esta diferença é o efeito do
progresso das nossas forças e da inclinação do nosso espírito. No
estado de fraqueza e de insuficiência, o cuidado que dedicamos à
nossa conservação concentra-nos dentro de nós mesm os ; no esta­
do de poderio e de força, o desejo de expandir o nosso ser trans­
porta-nos para além dele e lança-nos para o mais longe que nos é
possível; mas, como ainda desconhecemos o mundo intelectual, o
nosso pensamento não vai mais longe que os nossos olhos, e o nos­
so entendimento só abarca o espaço que pode medir.
Transformemos as nossas sensações em ideias, mas não salte,­
mos, bruscamente, dos objectos sensíveis para os intelectuais. E
através dos primeiros que devemos atingir os segundos. Nas pri­
meiras operações do espírito, que os sentidos sejam sempre os seus
guias: nenhum outro livro além do mundo, nenhuma outra instru­
ção que não sejam os factos. A criança que lê não pensa, apenas lê;
não se instrói, aprende palavras.
Fazei que o vosso pupilo estej a atento aos fenómenos da natu­
reza, e, em breve, o tornareis curioso; mas, para alimentar a sua
curiosidade, nunca vos apresseis a satisfazê-la. Ponde as pergun ­
tas ao seu alcance, e deixai que ele encontre respostas para elas.
Que ele não saiba as coisas porque vós lhas dissestes mas porque
ele próprio as compreendeu; que ele não aprenda a ciência: que a
17 8 invente. Se alguma vez substituírdes, no seu espírito, a razão pe-
la autoridade, ele deixará de raciocinar; não será mais do que o fan­
toche da opinião dos outros.
Quereis ensinar a Geografia a essa criança e ides buscar glo­
bos, esferas e mapas: que trapalhada! Para que servem todas es­
sas representações? Por que não começais por lhe expor o próprio
assunto, a fim de que, pelo menos, ela possa saber de que lhe falais?
Durante uma bela tarde, vai passear-se para um lugar agra­
dável, onde o horizonte bem desanuviado permite assistir ao pôr
do Sol, e observem-se os objectos que tornam reconhecível o lugar
do seu ocaso. No dia seguinte, para se tomar um pouco de ar fres­
co, volta-se ao mesmo lugar, antes de o Sol nascer. Muito antes de
aparecer, já este se anuncia com os raios de fogo que lança à sua
frente. O incêndio aumenta, o oriente parece estar em chamas;
vendo o seu brilho, crê-se que o astro vai aparecer, muito antes de
ele se mostrar; por fim, lá está ele. Um ponto brilhante é lançado
como uma flecha, e, imediatamente a seguir, todo o espaço fica
cheio com ele; o véu das trevas retira-se e cai. O homem reconhece
o lugar onde vive e acha-o mais belo. Durante a noite, a verdura
adquiriu um novo vigor; o dia n ascente que a ilumina, os primeiros
raios que a douram, mostram-na coberta por uma brilhante capa
de orvalho, que reflecte a luz e as cores. Os passarinhos reúnem­
-se, e, em coro, saudam o pai da vida; nesse momento, nenhum de­
les permanece calado; o seu pipilar, ainda fraco, é mais lento e mais
suave que durante o resto do dia, ressente-se da languidez de um
sereno despertar. O conjunto de todos esses objectos dá ao sentido
uma impressão de frescura que parece penetrar até à alma. Há aí
uma meia hora de encantamento ao qual nenhum homem resiste;
um espectáculo tão grandisoso, tão belo, tão delicioso, não deixa
ninguém indiferente.
Penetrado pelo entusiasmo que experimenta, o perceptor quer
comunicá-lo à criança; crê sensibilizá-la, tornan<;io-a atenta às
sensações que o sensibilizam a ele mesmo. Tolice! E no coração do
homem que se encontra a vida do espectáculo da natureza; para a
ver é preciso senti-la. A criança apercebe-se dos objectos mas não
se pode aperceber das relações que os ligam ep.tre si, não pode com­
preender a doce harmonia do seu concerto. E necessária uma ex­
periência que ela ainda não adquiriu, é preciso sentimentos que
ela ainda não experimentou, para poder sentir a impressão com­
plexa que resulta simultaneamente de todas essas sensações. Se
não passou muito tempo a percorrer planícies áridas, se os meus
pés não forem escaldados pelas areias ardentes, se a reverberação
sufocante dos rochedos batidos pelo sol nunca a oprimiu, como po­
derá ele apreciar o ar fresco de uma bela manhã? Como será pos­
sível que o perfume das flores, o encanto da verdura, o húmido va-
por do orvalho, o pisar mole e suave sobre a erva, encantem os seus
sentidos? Como será possível que o canto dos passarinhos lhe cau- 1 79
se uma emoção voluptuosa, se as variantes do amor e do prazer
ainda lhe são desconhecidas? Com que emoções poderá ela ver nas­
cer um dia tão belo, se a sua imaginação não lhe souber descrever
aquelas com que o pode ocupar? Enfim, como poderá ela sentir-se
sensibilizada com a beleza do espectáculo da natureza, se ignora
a mão que teve o cuidado de a ornamentar?
Não digais à criança coisas que ela não possa compreender.
Nada de descrições, nada de eloquências, nada de figuras, nada de
poesia. Não se trata nem de sentimento nem de gosto. Continuai
a ser claro, simples e frio; em breve virá o momento em que deve­
reis utilizar outra linguagem.
Educada no espírito das nossas máximas, acostumada a reti­
rar todos os seus instrumentos de si própria, a só recotter a outrem
depois de ter reconhecido a sua própria insuficiência, cada vez que
vê um objectp que não conhece examina-o demoradamente, sem
nada dizer. E pensativa; não é perguntadora. Contentai-vos em
apresentar-lhe os objectos apropriados; depois, quando virdes a
sua curiosidade suficientemente ocupada, fazei-lhe alguma per­
gunta lacónica que a coloque na via da sua solução.
Depois de, na sua companhia, terdes contemplado bem o nas­
cer do Sol, depois de lhe terdes chamado a atenção para as monta­
nhas que ficam do mesmo lado e para os outros objectos vizinhos,
depois de a terdes deixado discorrer à vontade sobre esse .assunto,
permanecei silencioso durante alguns momentos, como um ho­
mem que sonha; em seguida dizei-lhe: «Parece-me que, ontem à
tarde, o Sol se pôs ali, e que esta manhã se levantou acolá. Como
será isso possível?,, Não digais mais nada: se ela vos fizer pergun­
tas, não lhe respondeis; falai de outra coisa. Deixai-a entregue a
si mesma, e ficai com a certeza de que ela pensará no que lhe dis­
sestes.
Para que uma criança adquira o hábito de ser atenta, e para
que se sinta verdadeiramente interessada por alguma verdade
sensível, é necessário que esta lhe faça passar alguns dias de in­
quietação, antes de a esclarecer. Se a não considerar deste modo,
há uma maneira de lha tornar ainda mais sensível, e essa manei­
ra é torcer a pergunta. Se ela não sabe como o Sol passa do seu oca­
so ao seu nascer, sabe, pelo menos, como passa desde que se ergue
até que se deita, e isso aprende-o unicamente com os seus olhos.
Esclarecei, pois, a primeira pergunta através da outra: ou o vosso
pupilo é completamente estúpido ou a analogia é clara de mais pa­
ra lhe poder escapar. Eis a sua primeira lição de Cosmografia.
Como procedemos sempre lentamente, de ideia sensível para
ideia sensível, como nos familiarizamos durante muito tempo com
a mesma, antes de passarmos a outra, e, finalmente, como nunca
forçamos o nosso pupilo a estar atento, ainda há muito caminho a
1 8 0 percorrer, desde esta primeira lição até ao conhecimento do movi-
menta do Sol e do aspecto da Terra: mas, como todos os movimen­
tos aparentes dos corpos celestes obedecem ao mesmo princípio, e
como a primeira observação leva a todas as outras, é preciso me­
nos esforço - embora seja necessário mais tempo para passar de
uma revolução diurna ao cálculo dos eclipses - para bem com­
preender o dia e a noite.
Como o Sol gira em volta da Terra, descreve um círculo; ora, ca­
da círculo deve ter um centro; isso já nós sabemos. Esse centro não
é visível porque se encontra no seio da Terra; mas, sobre a super­
fície desta, podem marcar-se dois pontos opostos que lhe corres­
pondam. Uma recta que passa por esses dois pontos e que, de am­
bos os lados, se prolongue pelo céu será o eixo do mundo e do mo­
vimento diário do Sol. Uma piorra redonda que gire sobre a sua
ponta representará o céu girando em volta do seu eixo; as duas pon­
tas da piorra serão os dois pólos: a criança ficará muito satisfeita
se conhecer um deles; mostro-lho, na extremidade da Ursa Menor.
Eis um divertimento para a noite; pouco a pouco, ela familiariza­
-se com as estrelas, e, daí, nasce o primeiro gosto por conhecer os
planetas e por observar as constelações.
Vimos o erguer do Sol, pelo São João; no dia de Natal, ou nou­
tro belo dia de Inverno, voltaremos a assistir ao seu nascer: porque
já se sabe que não somos preguiçosos e que, para nós, desafiar o frio
é um divertimento. Tenho o cuidado de fazer esta segunda obser­
vação no mesmo lugar em que fizemos a primeira; e, servindo-me
de algumjeito para a preparar, um denós não deixará deexclamar:
«Oh! Oh! Que coisa tão engraçada! O Sol já não se ergue no mes­
mo sítio! Aqui estão as nossas primeiras observações, e agora ele
levantou-se ali», etc ... Por conseguinte, há um oriente de Verão e
um oriente de Inverno, etc . Jovem perceptor, eis-vos no bom ca­
. . >>

minho. Estes exemplos deverão ser-vos suficientes paraensinar­


desmuito claramente a esfera, considerando o mundo como o mun­
do e o Sol como o Sol.
Em geral, nunca substituais a coisa pelo sinal, a não ser quan­
do vos é impossível mostrá-la; porque o sinal absorve a atenção da
criança e leva-a a esquecer a coisa representada.
A esfera armilar parece-me ser uma máquina mal feita e mal
proporcionada. Essa confusão de círculos e as bizarras figuras que
nela estão traçadas emprestam-lhe um ar de engrimanço que as­
susta o espírito das crianças. A Terra é pequena de mais, os círcu­
los são excessivamente grandes, em número exagerado; alguns,
como oscoluros, são perfeitamente inúteis; cada círculo é mais lar­
go que a Terra; a espessura do cartão dá-lhes um aspecto de soli­
dez que os fez confundirem-se com massas circulares que real­
mente existam; e, quando dizeis à criança que esses círculos são
imaginários, ela não sabe o que vê, não compreende mais nada.
Nunca nos sabemos colocar no lugar das crianças; não penetra- 1 81
mos nas ideias delas e emprestamos-lhes as nossat�; e, seguindo
sempre os nossos próprios raciocínios, com encadeamentos de ver­
dades só conseguimos amontoar extravagâncias e ideias falsas nas
suas cabeças.
Hesita-se sobre a escolha da análise ou da síntese, para estu­
dar as ciências. Por vezes, é possível resolver e compor, nos mes­
mos estudos, e conduzir a criança pelo método ensinante, quando
ela imagina estar apenas a analisar. Então, utilizando simulta­
neamente um e outro método, estes servir-se-iam mutuamente,
como provas. Partindo, ao mesmo tempo, de dois pontos opostos,
sem a intenção de percorrer o mesmo caminho, a criança ficaria
muito surpreendida se se encontrasse, e essa surpresa só lhe po­
deria ser muito agradável. Eu gostaria, por exemplo, de começar
a ensinar a Geografia por estes dois termos e de poderjuntar ao es­
tudo as revoluções do globo a medida das suas partes, começando
pelo lugar em que se mora. Enquanto a criança estuda a esfera, e,
dessa maneira, se transporta para os céus, trazei-a para a divisão
da Terra e começai por lhe mostrar a sua própria morada.
Os seus dois primeiros pontos de Geografia serão sobre a cida­
de onde mora e a casa de campo de seu pai; em seguida, os pontos
intermédios; depois, os rios das r,edondezas, e, por fim, o aspecto do
Sol e a maneira de se orientar. E este o ponto de reunião. Que ela
desenhe, sozinha, o mapa de tudo isto; mapa muito simples, que co­
meça por ser formado por dois únicos objectos, a que, a pouco e pou­
co, ela irá acrescentando os outros, à medida que for conhecendo
ou avaliando a sua distância e a sua posição. Por isto, já podeis
fazer uma ideia da vantagem que previamente lhe proporcioná­
mos, pondo-lhe um compasso nos olhos.
Mas, apesar disto, não há dúvidas de que ainda é preciso guiá­
-la um pouco; mas muito pouco, sem que ela dê por isso. Se se en­
ganar, não lhe digais nada, não corrigeis os seus enganos, esperai,
sem dizer nada, até que ela se encontre em estado de se aperceber
deles e de os corrigir; ou, quando muito, num momento favorável,
fazei alguma operação que a leve a dar por eles. Se ela nunca se en­
ganasse, não aprenderia tão bem. De resto, o que se pretende não
é que ela conheça exactamente a topografia do país, mas que sai­
ba como a utilizar; pouco importa que tenha os mapas na cabeça,
contanto que compreenda bem o que eles representam e que faça
uma ideia nítida da arte que serve para os elaborar. Já podeis ver
a diferença que há entre o saber dos vossos pupilos e a ignorância
do meu! Os vossos conhecem os mapas, enquanto o meu os faz. São
mais ornamentos para o seu quarto.
Lembrai-vos sempre de que o espírito da minha instituição
não consiste em ensinar muitas coisas à criança, mas em nunca
deixar penetrar, no seu cérebro, ideias que não sejam justas e cla-
1 82 ras. Pouco me importa que ela fique sem saber nada, contanto que
não se engane; e se apenas introduzo verdades na sua cabeça é pa­
ra a-garantir contra erros que, de outro modo, ela aprenderia, em
vez delas. A razão, o discernimento, vêm lentamente, enquanto os
preconceitos acorrem em grandes quantidades; é deles que a deve­
mos preservar. Mas, se considerardes a própria ciência, penetra­
reis num mar sem fundo, sem margens, todo semeado de escolhos;
nunca podereis sair dele. Quando vejo que um homem apaixona­
do pelos conhecimentos se deixa seduzir pelo seu encanto e corre
de um para outro sem ser capaz de se deter, creio ver uma crian­
ça na praia, apanhando conchas e começando por carregá-las; mas
que, depois, tentada por outras que ainda vê, as deita fora, as vol­
ta a apanhar, até que, sobrecarregado com a sua quantidade e j á
não sabendo quais escolher, acaba por deitá-las todas fora e re­
gressa a casa, de mãos vazias.
Durante a primeira idade, o tempo passou lentamente: só pro­
curávamos perdê-lo, receando utilizá-lo mal. Agora, é o contrário;
e nem temos que nos chegue para fazermos tudo quanto seria útil.
Pensai que as paixões se estão a aproximar e que, logo que come­
çarem a bater à porta, o vosso pupilo só lhes prestará atenção a
elas. A idade serena de inteligência é tão breve, passa tão rapida­
mente, tem tantas outras utilizações necessirias, que é uma lou­
cura pretender que chegue para tornar uma criança sábia. Não se
trata de lhe ensinar as ciências mas de lhe inspirar o gosto para as
amar e métodos para as aprender, quando esse gosto estiver mais
bem desenvolvido. Este é, sem sombra de dúvida, um dos princí­
pios fundamentais de qualquer boa educação.
Eis também chegado o momento de, pouco a pouco, a acostu­
mar a prestar uma atenção; é preciso ter muito cuidado para que
ela não oprima a criança nem a leve a mergulhar no aborrecimen­
to. Por conseguinte, estai sempre de sobreaviso; e, seja o que for
que acontecer, abandonai tudo antes que ela se aborreça; porque
o que mais importa não é que ela aprenda mas que ela nunca fa­
ça nada contra a sua vontade.
Se ela vos faz perguntas, respondei-lhe tanto quanto é preci­
so para alimentar a sua curiosidade, mas não para a satisfazer: so­
bretudo quando virdes que, em vez de perguntar para se instruir,
ela se mostra desorientada e começa a bombear-vos com pergun­
tas tolas, detende-vos imediatamente, porque podeis ter a certe­
za de que, nesse momento, ela não se sente interessada pela coisl}.
mas pretende unicamente sujeitar-vos às suas interrogações. E
preciso prestar menos atenção às palavras que ela pronuncia que
aos motivos que a levam a falar. Este aviso, até agora menos ne­
cessário, torna-se da maior importância logo que a criança come­
ça a raciocinar.
Há um encadeamento de verdades gerais que relaciona todas
as ciências entre si, através de princípios comuns que se desenvol- 1 83
vem sucessivamente: esse encadeamento é o método dos filósofos.
Não é dele que aqui se trata. Há outro, completamente diferente,
pelo qual cada objecto particular atrai outro e evidencia sempre
aquele que se lhe segue. Essa ordem, que, com uma permanente
curiosidade, alimenta a atenção que exigem de nós, é a que segue
a maioria dos homens, e, sobretudo, a que convém para as crian­
ças. Quando nos orientámos para traçar os nossos mapas, foi-nos
preciso traçar as meridianas. Dois pontos de intersecção entre as
sombras iguais da manhã e da tarde dão uma meridiana excelente
para um astrónomo de 1 3 anos. Mas essas meridianas esbatem-se,
e é preciso dispor de tempo para as traçar; obrigam a trabalhar
constantemente no mesmo ponto; tantos cuidados, tantos incómo­
dos acabariam por aborrecê-la. Nós previmos isso; e tomámos as
nossas precauções antecipadamente.
Eis-me, mais uma vez, mergulhado nos meus prolongados e
minuciosos pormenores. Leitores, bem ouço as vossas críticas; mas
desafio-as: não tenho a intenção de sacrificar à vossa impaciência
a parte mais útil deste livro. Tomai o vosso partido a respeito das
minhas demoras; pelo meu lado, eu já tomei o meu a respeito dos
vossos queixumes.
Havia já muito tempo que nos tínhamos apercebido - o meu
pupilo e eu - de que o âmbar, o vidro, a cera e diversos corpos fric­
cionados, atraíam as palhas, e que outros não as atraíam. Por aca­
so, encontrámos um que tem uma virtude ainda mais singular: é
a de atrair -a qualquer distância, e sem ser friccionado- a lima­
lha de ferro e outros pedacinhos deste mesmo metal. Durante
quanto tempo essa qualidade nos distraiu, sem que nela víssemos
nada de extrordinário! Por fim, descobrimos que ela se comunica­
va ao próprio ferro, que, num certo sentido, ficava magnetizado.
Um dia, vamos à feira1; vemos um ilusionista que, com um peda­
ço de pão, atrai um pato de cera que flutua numa bacia c<;>m água.
Embora muito surpreendidos, abstemo-nos de dizer: <<E um fei­
ticeiro!», porque não sabemos o que um feiticeiro é. Constante­
mente surpreendidos por efeitos cujas causas ignoramos, não
formamos juízos precipitados sobre nada e deixamo-nos ficar sos-

1 Não pude impedir-me de rir quando li uma fina crítica de M. For­


mey a respeito deste pequenino conto: <<Esse ilusionista», diz ele, <<que se
sente irritado com uma criança e que prega um grave sermão ao seu pre­
ceptor, é um indivíduo que faz parte do mundo dos Emílios.» O espirituo­
so M. Formey nem sequer pensou que esta pequenina cena fora combina­
da de antemão e que o ilusionista estava informado do papel que teria de
desempenhar; porque, efectivamente, isso eu não contei. Mas, em contra­
partida, quantas vezes já declarei que não escrevia para as pessoas a
1 84 quem era preciso ex plicar tudo!?
segadamente na nossa ignorância, até que encontremos uma opor­
tunidade de sair dela.
Durante o caminho de regresso a casa, tanto falamos do pato
e da feira que acabamos por decidir fazer a mesma coisa: pegamos
numa boa agulha bem magnetizada e envolvemo-la com cera
branca, que, da melhor maneira que nos é possível, moldamos com
a forma de pato, de modo a que a agulha atravesse o corpo e que a
cabeça forme o bico. Pousamos o pato sobre a água, aproximamos­
-lhe do bico a argola de uma chave, e vemos, com uma alegria fá­
cil de compreender, que o nosso pato segue a chave, precisamen­
te como o da feira seguia o pedaço de pão. Observar em que posi­
ção o pato se detém em cima da água quando o deixamos repousar
é uma coisa que poderemos fazer na próxima vez. Por agora, com­
pletamente absorvidos com o nosso objecto, não queremos saber de
mais nada.
Naquela mesma tarde, voltamos à feira, levando pão prepara­
do nas nossas bolsas; e, logo que o ilusionista acaba de fazer a sua
habilidade, o meu pequeno doutor, que estava todo impaciente, de­
clara-lhe que aquilo não é difícil, e que ele próprio será capaz de
o fazer. O homem pega-lhe na palavra: nesse momento, o meu pu­
pilo retira da bolsa o pão onde está escondido o pedaço de ferro; ao
aproximar--se da mesa, sente o coração a bater com fortes pan­
cadas; estende um pedaço de pão, quase a tremer; o pato vem e se­
gu�; a criança ri e estremece de alegria. Ao ouvir as palmas e as
aclamações da assembleia, sente vertigens, está fora de si. O ilu­
sionista, surpreendido, vai beijá-la, felicita-a e pede--lhe que, no
dia seguinte, o venha mais uma vez honra r com a sua presença,
acrescentando que terá o cuidado de reunir ainda mais público pa­
r a aplaudir a sua habilidade. O meu pequeno naturalista, que não
cabe em si de orgulhoso, ainda quer tatamudear alguma coisa; mas
eu fecho-lhe imediatamente a boca e levo-<> comigo, carregado de
elogios.
Até ao dia seguinte, a criança não pára de contar os minutos,
com uma ridícula inquietação. Convida todas as pessoas que en­
contra; desejaria que todo o género humano fosse testemunha da
sua glória; dificilmente espera pela hora, anseia por ela; voa para
o encontro; a sala já está cheia quando entra; o seu coração rego­
zija--se. Mas, em primeiro lugar, é preciso assistir a outros jogos
que precedem a sua demonstração; o ilusionista ultrapassa--se e
faz coisas surpreendentes. A criança não vê nada disso; agita--se,
transpira, mal respir!l; passa o tempo com a mão - tremente de
impaciência - metida dentro da bolsa, manipulando o seu peda­
ço de pão. Por fim, chega a sua vez; o mestre anuncia-a ao públi­
co, com pompa. Ela aproxima--se, um pouco envergonhada, retira
o seu pedaço de pão... Nova vicissitude das coisas humanas! O pa-
to, tão dócil na véspera, hoje mostra--se selvagem: em vez de apre- 18 5
sentaro bico, viraa cauda e foge; põe tanto cuidado em evitar o pão
e a mão que lho oferece, quanto o que ontem punha em segui-los.
Após mil tentativas inúteis e sempre apupadas, a criança queixa­
-se, declara que a enganaram, que o pato não é o mesmo, e desa­
fia o ilusionista a atraí-lo.
Sem responder, o homem pega num pedaço de pão e estende-{)
na direcção do pato; imediatamente este se põe a segurar o pão e
vem à mão que o retira. A criança pega no mesmo pedaço de pão;
mas, longe de obter melhores resultados, vê o pato a troçar dele e
fazer piruetas em volta do tanque: por fim, afasta-se, confusa, não
querendo expor-se aos apupos.
Então, o ilusionista pega no pedaço de pão que a criança leva­
ra e utiliza-o com tanto sucesso como o que obteve com o seu: dian­
te de toda a gente retira-lhe o ferro, o que leva os espectadores a
troçarem, ainda mais, de nós; depois, com esse pão assim esvazia­
do, consegue atrair o pato. Faz o mesmo com outro pedaço de pão,
que, diante de toda a gente, é cortado por uma terceira pessoa; e
torna a fazê--l o com uma luva e com a extremidade do seu dedo; por
fim, vai até ao meio da sala, e, no tom enfático próprio dessa gen­
te, declara que o seu pato não obedecerá menos à sua voz que ao seu
gesto, fala-lhe, e o pato obedece; diz-lhe que vá para a direita, e o
pato vai para a direita, que regresse, e o pato regressa, que vire, e
o pato vira: o movimento é tão rápido quanto a ordem. Os aplau­
sos, redobrados, são como afrontas, para nós. Saímos sem ninguém
dar por isso, e voltamos para o nosso quarto, sem termos ido con­
tar os nossos êxitos a toda a gente, como projectáramos fazer.
No dia seguinte, logo pela m an hã batem à nossa porta; abro:
,

é o ilusionista. Queixa-se humildemente do nosso comportamen­


to. Que nos fizera ele paraque tivéssemos pretendido desacreditar
os seus passes e retirar-lhe o seu ganha-pão? O que há de tão
maravilhoso na arte de atrair um pato de cera, para que se quei­
ra adquirir essa honra à custa da subsistência de um homem ho­
nesto? «Realmente, meus senhores, se eu tivesse qualquer outro
talento que me desse com que viver, não me glorificaria com este.
Deveis crer que um homem que passou a sua vida a treinar-se nes­
ta fraca indústria sabe, a seu respeito, muitomais que vós, que vos
ocupais dela durante uns momentos. Se não comecei por vos mos­
trar os meus golpes de mestre, foi porque não é conveniente que nos
apressemos a mostrar levianamente tudo quanto sabemos; tenho
sempre o cuidado de conservar os meus melhores passes para um
momento propício, e, depois deste, ainda tenho outros para deter
osjov<>ns indiscretos. De resto, meus senhores, venho ensinar-vos,
de boa vontade, este segredo que tanto vos embaraçou, pedindo­
-vos que não abuseis dele para me prejudicar e que sejais mais
comedidos, na próxima vez.
186 Então, mostra-nos o seu truque, e nós vemos - com a maior
das surpresas - que ele consiste apenas num íman muito forte e
bem armado, que uma criança escondida debaixo da mesa fazia
mover sem que ninguém se apercebesse disso.
O homem volta a embrulhar o seu íman; e, depois de lhe termos
agradecido e apresentado os nossos pedidos de desculpa, queremos
dar-lhe um presente; ele recusa-{): <<Não, meus senhores, não me
sinto suficientemente satisfeito convosco para aceitar os vossos
dons; deixo-vos obrigados a mim, contravossa vontade; é a minha
única vingança. Ficai sabendo que em todas as condições há gene­
rosidade; faço pagar os meus passes, mas não as minhas lições.»
E, quando ia a sair, dirige-me, pessoalmente e em voz alta,
uma reprimenda. «De boa vontade desculpo essa criança>>, diz ele,
«ela só pecou por ignorância. Mas a vós, meu senhor, que devíeis
conhecer a sua falta, por que lha deixastes cometer? Pois que viveis
juntos, como mais idoso deveis-lhe os vossos cuidados, os vossos
conselhos; a vossa experiência é a autoridade que a deve guiar.
Quando, depois de adulta, ela se censurar pelos erros que cometeu
durante ajuventude, certamente vos criticará por aqueles que não
prevenistes1•
Vai--se embora e deixa-nos bastante confusos. Censuro-me
pela minha atitude de moleza; prometo à criança que, para a pró­
xima vez, a sacrificarei ao seu interesse e que a avisarei dos seus
erros antes de que ela os cometa; porque se está a aproximar o
tempo em que as nossas relações se vão modificar e em que a se­
veridade do mestre deve suceder à complacência do companheiro;
essa modificação deve ser operada gradualmente; é preciso prever
tudo, e prever tudo com muita antecedência.
No dia seguinte, voltamos à feira, para tornar a assistir ao pas­
se cujo segredo aprendemos. Com o mais profundo respeito, apro­
ximamo-nos do nosso ilusionista Sócrates; mal nos atrevemos a le­
vantar os olhos para o homem; ele cumula-nos de amabilidades e
instala-nos com uma distinção que ainda nos humilha mais. Faz
os seus passes, como de costume; mas diverte--se e faz durar mui­
to tempo o do pato, olhando frequentemente para nós, com um ar
de orgulho. Sabemos tudo, mas não dizemos nada. Se o meu pupi-

1 Será que terei considerado algum dos meus leitores suficiente­


mente estúpido para não sentir, nesta reprimenda, um discurso que foi di­
tado, desde o princípio até ao fim, pelo próprio governante, a fim de ser­
vir os seus intentos? Será que me supuseram suficientemente estúpido
para pôr, voluntariamente, esta linguagem na boca de um ilusionista? Eu
supunha ter dado provas de, pelo menos, ter o talento bastante medíocre
de pôr as pessoas a falar no espírito da sua condição. Vede ainda o fim do
parágrafo que se segue. Nele não fica dito tudo quanto baste, para outro
que não seja M. Formey? 1 87
lo se atrevesse, nem que fosse a abrir a boca, seria uma criança que
devia ser esmagada.
Todos os pormenores deste exemplo têm mais importância do
que parecem. Quantas lições numa única lição! Quantas conse­
quências mortificadoras atrai o primeiro movimento de vaidade!
Jovem perceptor, espiai atentamente esse primeiro movimento:
se, desse modo, souberdes retirar dele a humHhação e o desrespei­
to\ tende a certeza de que, durante muito tempo, não aparecerá
um segundo. «Que complicações!», direis. Concordo, mas com tudo
isto se constrói uma bússola que nos servirá de meridiana.
Tendo ficado a saber que o íman actua através de outros
corpos, não descansámos enquanto não fabricámos um aprelho
semelhante ao que víramos: uma mesa sem gavetas, uma bacia
bastante baixa - com alguns centímetros de água, e adaptada à
essa mesa -, um pato feito com um pouco mais de jeito, etc. Fre­
quentemente atentos em volta da bacia, acabamos por reparar que
o pato - quando em descanso- fica sempre virado para, mais ou
menos, a mesma direcção: verificamos que esta é a do sul-norte.
Não precisamos de mais nada: a nossa bússola está descoberta, ou
é como se estivesse; e1 s-nos na Física.
Há vários climas, na Terra, e, a esses diversos climas, corres•
pondem diversas temperaturas. As estações variam mais sensi­
velmente à medida que nos aproximamos dos pólos; todos os cor­
pos se contraem com o frio e se dilatam com o calor; este efeito é
mais evidente nos licores e mais sensível nos licores espirituosos.
Daí, o termómetro. Sentimos o ventoquenosbatenorosto; porcon­
seguinte, o ar é um corpo, um fluido; sentimo--lo, embora não o pos­
samos ver. Virai um copo dentro de água: a água não o encherá, a
não ser que deixeis uma saída para o ar que ele contém; por con­
seguinte, o ar é capaz de resistência. Empurrai o copo mais para
o fundo: vereis que a água ocupara uma parte do espaço do ar, sem
no entanto conseguir encher completamente esse espaço; o ar é,
pois, capaz de ser comprimido até um determinado ponto. Uma bo­
la cheia de ar comprimido salta m ais que quando cheia de qualquer
outra matéria; por conseguinte, o ar é um corpo elástico. Quando
estendido na banheira, levantai horizontalmente um braço para
fora da água: senti-lo--eis carregado com um peso terrível; por con­
seguinte, o ar é um corpo pesado. Pondo o ar em equilíbrio com ou­
tros fluidos, é possível medir o seu peso: daí, o barómetro, o sifão,

1 Esta humilhação, essa falta de respeito, fui eu que as mereci e não


o ilusionista. Como M. Formey se queria apoderar do meu livro para o
mandar editar, sem mais trabalhos que retirar-lhe o meu nome e impri­
mir-lhe o seu, deveria pelo menos dar-se ao trabalho, não digo de o com-
188 por, mas de o ler.
a máquina pneumática. Todas as leis da estática e da hidrostáti­
ca se encontram através de descobertas assim tão simples. Não
pretendo que, para tudo isto, se penetre num gabinete de física ex­
perimental: toda essa combinação de aparelhos e de instrumentos
me desagrada. O ar científico mata a ciência. Ou todos esses apa­
relhos assustam uma criança, ou os seus aspectos atraem e com­
partilham a atenção que ela deveria prestar aos seus efeitos.
Quero que sejamos nós próprios a fazer os nossos aparelhos; e
não quero começar por fazer o instrumento antes da experiência;
mas desejo que, depois de ter entrevisto a experiência, invente­
mos, como por acaso e a pouco e pouco, o instrumento que a deve­
rá confirmar. Prefiro que os nossos instrumentos não sejam tão
perfeitos nem tão exactos como deveriam de ser, mas que fiquemos
com ideias mais nítidas sobre o que eles devem ser e das operações
que, deles, deverão resultar. Para a minha primeira lição de está­
tica, em vez de procurar balanças, coloco um pau atravessado por
cima das costas de uma cdeira, meço o comprimento das suas duas

partes que se encontram em equilíbrio, acrescento pesos, de um e
de outro lado, ora iguais, ora desiguais; e, tirand()-{)s ou pond()-{)s,
tanto quanto necessário, acabo enfim por descobrir que o equilíbrio
resulta de uma proporção recíproca entre a quantidade dos pesos
e o comprimento dos braços da balança. Eis o meu fisicozinho a ser
capaz de aferir balanças antes mesmo de as ter visto.
Não há dúvidas de que se adquirem noções muito mais claras
e m uito mais justas com as coisas que se aprendem por este siste­
ma que com aquelas que se aprendem por intermédio de outras
pessoas; e, além de que não se acostuma a razão a submeter-se ser­
vilmente à autoridade, tornamo-nos mais engenhosos quando
procuramos encontrar as relações, ligar as ideias, inventar instru­
mentos, do que quando, adoptando todas essas noções - tal como
nos são dadas - deixamos o nosso espírito afundar-se na apatia,
como o corpo de um homem que, sempre vestido, calçado, servido
pelos seus criados e transportado pelos seus cavalos, acaba por
perder as forças e a utilização dos seus membros. Boileau gabava­
-se de ter encontrado muitas dificuldades para ensinar Racine a
fazer versos. Apesar de tantos métodos admiráveis para abreviar
o estudo das ciências, aquilo que nós muito precisamos é de que al­
guém nos ensine um para as aprendermos com esforço.
A vantagem mais sensível dessas lentas e laboriosas buscas é
a de, por entre os estudos especulativos, manter o corpo em activi­
dade, os membros com a sua agilidade, e formar constantemente
as mãos para o trabalho e para todos os usos que são indispensá­
veis ao homem. A quantidade dos instrumentos inventados para
nos guiarem nas nossas experiências e para suprirem ajusteza dos
sentidos leva-nos a negligenciar o exercício. O grafómetro dispen-
sa de calcular o valor dos ângulos: o olho que media as distâncias 1 89
com precisão passa a confiar na corrente que os mede por ele; a
balança romana poupa-me ter de avaliar, à mão, o peso que conhe­
ço através dela. Quanto mais engenhosos forem os nossos instru­
mentos, mais os nossos órgãos se tornarão grosseiros ou desajeita­
dos: com o hábito de nos rodearmos de aparelhos, deixaremos de os
encontrar dentro de nós próprios.
Mas quando, para fabricar esses aparelhos, utilizamos a habi­
lidade que os substituía, quando, para os fazer, utilizamos a saga­
cidade de que precisávamos para os dispensarmos, ganhamos sem
nada perdermos, acrescentamos a arte à natureza e tornamo-nos
mais engenhosos sem nos tornarmos menos hábeis. Em vez de
colar uma criança aos livros, se eu a ocupar numa oficina, as suas
mãos passam a trabalhar em proveito do seu espírito: torna-se fi­
lósofa e crê não ser mais do que um operário. Enfim, este exercí­
cio tem outras aplicações de que falarei a seguir; e ver-se-á como,
partindo dosjogos da filosofia, nos podemos elevar às verdadeiras
funções do homem.
Já disse que os conhecimentos puramente especulativos não
convinham às crianças, nem sequer àquelas que se aproximam da
adolescência; mas, sem as fazer penetrar muito na física sistemá­
tica, procedei de modo a que todas as suas experiências se relacio­
nem umas com as outras, por uma espécie de dedução, a fim de que,
com o auxílio desse encadeamento, elas as possam colocar por or­
dem, nos seus espíritos, e lembrar-se delas, em caso de necessida­
de; porque é muito difícil que factos, e mesmo raciocínios isolados,
pennaneçam durante muito tempo namemória, senão existeuma
interligação que lá as conserve.
Na procura das leis da natureza, começai sempre pelos fenó­
menos mais vulgares e mais sensíveis, e acostumai o vosso pupi­
lo a não tomar esses fenómenos por razões, mas por factos. Pego
numa pedra e finjo que a pouso no ar; abro a mão: a pedra cai. Olho
para Emílio, que segue atentamente os meus movimentos, e per­
gunto-lhe: «Por que foi que aquela pedra caiu?»
Qual a criança que ficará sem saber responder a esta pergun­
ta?Nenhuma, nem sequer Emílio, a nãoserqueeu tenha tido o má­
ximo dos cuidados a prepará-lo para não saber responder. Toda§l
dirão que a pedra cai porque é pesada. E o que é que é pesado? E
o que cai. Por conseguinte, a pedra cai porque cai? Aqui, o meu filo­
sofozinho fica interdito. Eis a sua primeira lição de física sistemá­
tica, e, quer ela lhe seja ou não proveitosa, sempre será uma lição
de bom senso.
À medida que a inteligência da criança se vai d�s�nvolv<mdo,
outras considerações importantes obrigam-nos a efectuar uma es­
colha mais apurada das suas ocupações. Logo que ela se começa a
conhecer a si mesma- o bastante para compreender em que con-
1 90 siste o seu bem-estar-, logo que ela pode estabelecer correlações
assaz complexas para ajuizar do que lhe convém e do que lhe não
convém, é porque se encontra em estado de sentir a diferença en­
tre o trabalho e a distração, e de só considerar esta como a recrea­
ção daquele. Nesse momento, os seus estudos poderão comportar
matérias de verdadeira utilidade e impeli-la a dedicar-lhes uma
aplicação mais constante que a que dedicava a simpies distrações.
A lei da necessidade, sempre renascente, muito cedo ensina o ho­
mem a fazer o que lhe desagrada para prevenir um mal que ain­
da lhe desagradaria mais. E para isso que serve a providência; e,
dessa providência bem ou mal regulada, vem toda a sageza ou to­
da a miséria humana.
Todos os homens querem ser felizes; mas, para conseguir
sê-lo, seria necessário começar por saber o que é a felicidade. A feli­
cidade do homém natural étão simples como a sua vida; consiste
em não sofrer: é constituída pela saúde, pela liberdade e pelo ne­
cessário. A felicidade do homem moral é outra coisa; mas não é des­
sa que pretendo tratar neste livro. Nunca será de mais repetir que
só os objectos puramente físicos podem interessar as crianças, es­
pecialmente aquelas cuja vaidade não foi despertada e que ainda
não estão corrompidas pelo veneno da opinião dos outros.
Quando, antes de sentirem as suas necessidades, elas as pre­
vêem, é sinal de que a sua inteligência já está bastante avançada
e de que começam a conhecer o valor do tempo. Nesse momento,
importa acostumá-las a empregá-lo em objectos úteis, mas de
uma utilidade que corresponda às idades e que esteja ao alcance
dos seus conhecimentos. Tudo quanto depende da ordem moral e
dos costumes da sociedade não lhes deve ser imediatemente ensi­
:qado, porque ainda não se encontram em estado de compreender.
E uma tolice exigir que elas ;;e apliquem em coisas que, muito va­
gamente, se lhes diz serem para o seu bem - sem que elas saibam
que bem é esse -e garantir-lhes que, quando forem crescidas, re­
tirarão proveito delas - sem que elas actualmente sintam qual­
quer interesse por esse pretenso proveito que seriam incapaes de
compreender.
Que a criança nunca tenha de fazer nada por obrigação: não há
nada que seja bem para ela, a não ser as coisas que ela sente que
o são. Empurrando-a sempre para coisas que ela ainda não conhe-
ce, supondes dar mostras de providência, mas mostrais ter falta
dela. Para a armar com alguns vãos instrumentos que talvez ela
nunca venha a utilizar, retirais-lhe o instrumento mais universal
do homem, que é o bom senso; acostumai-la a deixar-se constan­
temente conduzir, a nunca ser mais do que uma máquina entre. as
mãos dos outros. Quereis que seja dócil enquanto pequena: é dese-
jar que ela seja crédula e inocente quando crescida. Dizeis-lhe
constantemente: «Tudo quanto vos peço é para o vosso bem; mas
ainda não o podeis compreender. Que me importa que façais, ou 1 91
não, o que exijo? É unicamente para vós que estais a trabalhar.»
Com todos estes belos discursos que agora lhe fazeis para que ela
se porte bem, estais a preparar o êxito dos que um dia lhe fará um
visionário, um ponto, um charlatão, um hipócrita ou um louco de
qualquer espécie, que a queira enganar ou levar a adoptar a sua
loucura.
Importa que um homem saiba muitas coisas cuja utilidade
uma criança seria incapaz de compreender; mas será preciso e se­
rá possível que uma criança aprenda tudo quanto é útil para a sua
idade, e vereis que todo o seu tempo ficará mais que ocupado. Por
que motivo quereis que-prejudicando os que presentemente lhe
convêm -ela se entregue a estudos próprios de uma idade que não
tendes a certeza que ela venha a atingir? «Mas••, direis, <<terá ela
tempo de aprender o que deve saber, quando chegar o momento de
utilizaresses conhecimentos?» Ignoro-o : mas o que eu sei é queme
é impossível ensiná-lo mais cedo; porque os nossos verdadeiros
mestres são a experiência e o sentimento, e o homem só sente per­
feitamente o que convém ao homem, através das experiências que
viveu. Uma criança sabe que foi feita para se tornar adulta, todas
as ideias que pode formar do estado de adulto são oportunidades
de se instruir, para ela; mas, sobre as ideias desse estado, que não
estão ao seu alcance, deve conservar-se numa ignorância absolu­
ta. Todo o meu livro não é mais que uma prova constante deste
princípio de educação.
Logo que tivermos conseguido dar ao nosso pupilo uma ideia do
que significa a palavra útil, ficamos com mais uma rédea para o go­
vernar; porque esta palavra impressiona-o muito, dado que, na
sua idade, só lhe atribui um sentido relativo, e porque, nela, vê ni­
tidamente a relação com o seu bem-estar actual. Os vossos filhos
não se sentem impressionados com esta palavra porque não tives­
tes cuidado de lhes dares dela uma ideia que estivesse ao seu al­
cance, e porque como há sempre outras pessoas que se encarregam
de prover ao que lhes é útil - poupando-os à necessidade de pen­
sar nisso eles próprios - não sabem o que é <<Utilidade».
Para que serve isso? Eis, daqui para o futuro, a frase sagrada,
a frase determinante entre o meu pupilo e eu, em todas as acções
da nossa vida: eis a pergunta que, da minha parte, se segue infa­
livelmente a todas as suas perguntas e que serve de travão para es­
sa quantidade de interrogações tolas e fastidiosas com que as
crianças cansam - sem tréguas e sem fruto - todos aqueles que
a seu lado se encontram, mais para exercerem sobre essas pessoas
uma espécie de domínio que para retirarem algum proveito das
respostas recebidas. Aquela à qual - na sua mais importante li­
ção - se ensina a só querer saber o que é útil, interroga como Só-
1 92 crates; não faz uma pergunta sem se explicar a si mesmo a razão
por que a faz, que sabe que lhe irão perguntar antes de lhe respon­
derem.
Vede que poderoso instrumento deponho entre as vossas mãos
para agirdes sobre o vosso pupilo. Não conhecendo as razões de
nada, ei-lo quase reduzido ao silêncio, quando vos apetecer; e vós,
pelo contrário, quantas vantagens os vossos conhecimentos e a
vossa experiência vos não dão, para lhe mostrardes a utilidade de
tudo quanto lhe propondes!? Porque, não vos deixeis iludir, fazer­
-lhe esta pergunta é ensiná-lo a vo-la fazer, por sua vez; e deveis
esperar que - a respeito de tudo quanto lhe propuserdes na res­
posta -, como vós, ele não deixe de dizer: Para que serve isso ?
Aqui está, talvez, a armadilha mais difícil de evitar, para um
governante. Se, após a pergunta da criança, procurando apenas fu­
gir à resposta, lhe derdes uma única razão que ela não esteja em
estado de compreender, vendo que raciocinais com as vossas ideias
e não com as suas, ela convencer-se-á de que o que lhe dizeis é bom
para a vossa idade mas não para a sua; deixará de confiar em vós,
e fica tudo perdido. Mas onde está o mestre que esteja disposto a
mostrar que não sabe o que responder e a confessar os seus erros
ao seu pupilo? A lei a que todos eles obedecem é nunca reconhecer
os seus próprios defeitos; pois eu terei uma lei que me levará a re­
conhecer até os defeitos que não tenho, quando não conseguir pôr
as minhas razões ao seu alcance: àssim, a minha atitude, sempre
franca no seu espírito, nunca lhe será suspeita, e, supondo-me fal­
tas, conseguirei mais crédito que aqueles que escondem as suas.
Em primeiro lugar, pensai bem que raramente vos compete a
vós propor-lhe o que ele deve aprender; é a ele que compete desejá­
-lo, procurá-lo, encontrá-lo; a vós compete colocar essa curiosida­
de ao seu alcance, fazer nascer habilmente esse desejo e fornecer­
-lhe os meios para o satisfazer. Daí se segue que as vossas pergun­
tas devem ser pouco frequentes, mas bem escolhidas; e que, como
ele terá muito mais perguntas a fazer-vos que vós a ele, estareis
sempre mais a coberto, e encontrar-vos-eis mais frequentemente
nas condições de lhe dizerdes: Para que serve saber o que me per­
guntais ?
Além disso- como o que importa não é que ele aprenda isto ou
aquilo, mas que compreenda bem o que aprende e que saiba utili­
zar o que aprendeu -, sempre que, sobre o que lhe dizeis, não ti­
verdes nenhum esclarecimento útil a dar-lhe, não lhe deis ne­
nhum. Dizei-lhe, sem vos sentirdes confuso: «Não tenho uma res­
posta boa para vos dar; enganei-me, esqueçamo-nos disso.» Se a
vossa instrução era, efectivamente, deslocada, não faz mal ne­
nhum abandoná-la completamente; se o não era, com um pouco de
esforço, em breve encontrareis uma ocasião própria para lhe fazer
sentir a sua utilidade.
Não gosto das explicações em discurso; osjovens prestam-lhes 1 9 3

L.B.S23-13
pouca atenção e não as memorizam. As coisas! As coisas! Nunca me
cansarei de repetir que atribuímos um excesso de poder às pala­
vras; com a nossa educação tagarela só conseguimos fazer tagare­
las.
Suponhamos que, enquanto estou a ensinar ao meu pupilo o
movimento do Sol e a maneira de se orientar, bruscamente ele me
interrompe para me perguntar para que serve tudo aquilo. Quebe­
lo discurso que lhe poderei fazer! De quantas coisas o poderei
instruir, nessa ocasião, respondendo à sua pergunta, sobretudo se
tivermos testemunhas para a nossa conversa1 ! Falar-lhe-ei da
utilidade das viagens, das vantagens do comércio, das produções
próprias de cada clima, dos usos e dos costumes dos diferentes po­
vos; da utilização do calendário, do cálculo, do regresso das esta­
ções para a agricultura, da arte da navegação, da maneira de se
conduzir por sobre o mar e de seguir exactamente o seu rumo, mes­
mo que não se saiba onde se está. A política, a história natural, a
astronomia, a própria moral e o direito das pessoas entrarão na mi­
nha explicação, de modo a dar ao meu pupilo uma ideia geral de to­
das estas ciências e de uma grande vontade de as aprender. Após
ter dito tudo, terei dado a prova de um grande pedantismo, e a
criança não terá compreendido uma única das palavras que eu dis­
se. Terá muita vontade de - como anteriormente - me pergun­
tar de que serve uma pessoa saber orientar-se; mas não se atreve,
porque receia que eu me zangue. Sente-se mais sossegada fingin­
do que compreende o que a obrigaram a escutar. Assim se fazem
as boas educações.
Mas o nosso Emílio, que foi educado de uma maneira mais
rústica e ao qual, com muitos es�rços, temos dado uma concepção
dura, não escutará nada disto. Logo à primeira palavra que não
compreender, fugirá, irábrincar para o quarto e deixar-me-á a fa­
lar sozinho. Procuremos uma solução mais grosseira; o meu apa­
relho científico não vale nada para ele.
Estávamos a observar a posição da floresta, ao norte de
Montmorency, quandoele me interrompeu com a sua perguntaim­
portuna: Para que serve isso? «Tendes razão», respondi, «é preciso
que pensemos nisso com mais ponderação; e, se acharmos que es­
te trabalho não serve para nada, não o voltaremos a fazer, pois não
nos faltam divertimentos úteis. Ocupemo-nos de outracoisae, du­
rante o resto do dia, não voltaremos a falar de Geografia.»

1 Muitas vezes observei que, nas doutas instruções que se dão às


crianças, preocupamo-nos menos em ser escutados por elas que em ser­
mos ouvidos pelos adultos que se encontram presentes. Tenho a absolu­
ta certeza de que o que acabo de dizer é exacto, porque o observei comigo
1 94 mesmo.
Na manhã do dia seguinte, antes do desjejum, proponho-lhe
um passeio; ele não quer outra coisa; para correr, as crianças es­
tão sempre prontas, e esta tem boas pernas. Subimos até à flores­
ta, percorremos os Champeaux, perdemo-nos, já não sabemos o
caminho. O tempo vai passando, o calor começa a apertar, temos
fome; apressamo-nos, caminhamos ao acaso, de um lado para o ou­
tro, mas só vemos bosques, pedreiras, planícies, e nenhuma indi­
cação que nos permita saber onde estamos. Bastante encalorados,
bastante extenuados e cheios de fome, com as voltas que damos
ainda nos perdemos mais. Finalmente, sentamo-nos, para des­
cansar, para deliberar. Emílio, que eu suponho educado como
outra criança qualquer, não delibera nada, chora; não sabe que es­
tamos às portas de Montmorency, e que uma simples sebe no-las
esconde; mas, para ele, essa sebe é uma floresta, e um homem da
sua estatura afunda-se nos arbustos.
Após alguns momentos de silêncio, digo-lhe, com um ar in­
quieto; «Meu caro Emílio, como faremos para sair daqui?••

EMÍLIO, encharcado de transpiração


e chorando baba e ranho.
Não sei. Estou cansado; tenho fome; tenho sede; já não aguen­
to mais.

JEAN..,JACQUES
Credes que me encontro em melhor situação que vós? E pen­
sais que também não choraria se as lágrimas me pudessem servir
de desjejum? Não se trata de chorar, o que é preciso é orientarmo­
-nos. Vejamos o vosso relógio; que horas são?

EMÍLIO
É meio-dia e ainda não comi nada.

JEAN..,JACQUES
Isso é verdade; é meio-dia e ainda não comi nada.

EMÍLIO
Oh! Como deveis sentir fome!

JEAN..,JACQUES
O pior é que o meu desjejum não virá procurar-me aqui. É
meio-dia: é justamente a mesma hora a que, ontem, de Montmo­
rency, estávamos a observar a posição da floresta. Se pudéssemos,
da floresta, observar a posição de Montmorency!...

1 95
EMÍLIO
Sim; mas, ontem, víamos a floresta; ora, daqui, não vemos a ci­
dade.

JEAN....JACQUES
Esse é que é o mal... Se pudéssemos prescindir da cidade para
determinarmos a sua posição!...

EMÍLIO
Ó meu bom amigo!

JEA.li<....JACQUES
Não dissemos que a floresta estava ...

EMÍLIO
Ao norte de Montmorency.

JEAN....JACQUES
Por conseguinte, Montmorency deve ficar...

EMÍLIO
Ao sul da floresta.

JEA.t'f-JACQUES
Temos alguma possibilidade de saber onde fica o Norte, ao
meio-dia?

EMÍLIO
Sim, temos: pela direcção das sombras.

JEAN....JACQUES
Mas como encontrar o Sul?

EMÍLIO
Como faremos?

JEAN....JACQUES
O Sul fica do lado oposto ao do Norte.

EMÍLIO
1 96 Isso é verdade; basta olharmos para a direcção oposta à que se-
gue a sombra. Oh! Ali é o Sul! Eis o Sul! Certamente que Montmo­
rency fica para aquele lado.

JEAN-JACQUES
É possível que tenhais razão: sigamos por este caminho, atra­
vés da floresta.

EMÍLIO, batendo palmas e lançando um grito de alegria.


Ah! Estou a ver Montmorency! Ali está, mesmo na nossa fren­
te, toda à vista. Vamos tomar o desjejum, vamos almoçar, corra­
mos depressa: a astronomia sempre serve para alguma coisa.

Tomai nota de que, mesmo que ele não diga esta última frase,
pensá-la-á; pouco importa, contanto que não seja eu a dizê-la.
Ora, tende a certeza de que ele nunca mais se esquecerá da lição
que aprendeu nesse dia; contanto que, se eu me tivesse limitado a
ensinar-lhe tudo isto dentro do quarto, ele n,em sequer se lembra­
ria das minhas palavras no dia seguinte. E preciso falar, tanto
quanto possível, através de acções, e apenas dizer o que é impos­
sível fazer.
O leitor não espera, certamente, que eu o despreze tanto que
lhe dê um exemplo para cada espécie de estudo: mas, seja do que
for que se trate, nunca será de mais exortar o governante a dar as
suas explicações consoante as capacidades de compreensão do pu­
pilo; porque, repito-<>, o mal não está no que ele não compreende
mas no que ele crê compreender.
Recordo-me de que, ao querer dar o gosto pela Química a uma
criança, depois de lhe ter mostrado várias precipitações metálicas,
esta va a explicar-lhe como se fazia a tinta. Dizia-lhe que a sua cor
escura provinha de um ferro muito dividido, destacado do vitrío­
lo e precipitado por um licor alcalino. No meio da minha douta ex­
plicação, o pequenino traidor interrompeu-me bruscamente com
a minha pergunta, que eu lhe ensinara: fiquei muito embaraçado.
Depois de ter pensado um pouco, tomei o meu partido; mandei
buscar vinho à cave do dono da casa, e outro vinho a uma taberna;
peguei numa garrafinha onde deitei a dissolução de álcali fixo; de­
pois, pondo na minha frente dois copos -cada um com um desses
diferentes vinhos1 - disse-lhe o seguinte:
Falsificam-se várias matérias, para que elas pareçam melho­
res do que são. Essas falsificações enganam a vista e o paladar;

1 A cada explicação que se quer dar à criança, uma pequena demons­


tração que a preceda é muito útil, para conseguir que ela preste atenção. 1 9 7
mas são nocivas e fazem que a coisa falsificada fique a ser pior ­
apesar qa sua bela aparência - do que era antes.
Falsificam-se sobretudo as bebidas, e sobretudo os vinhos, não
só porque, neles, a falsificação é mais difícil de detectar como tam­
bém porque, com essas matérias, o falsificador tira maior provei­
to.
A falsificação dos vinhos verdes ou ácidos efectua-se com litar­
gírio, que é uma preparação de chumbo. O chumbo, ligado aos áci­
dos, dá um sal muito suave, que corrige a verdura do vinho, mas
que é um veneno para aqueles que o bebem . Por conseguinte, im­
porta que, antes de se beber vinho suspeito, se saiba se ele contém
litargírio ou não. Ora, eis como raciocino para descobrir isso:
O licor do vinho não contém unicamente espírito inflamável,
como vistes pela aguardente que dele se faz; também contém áci­
do, como podeis constatar pelo vinagre e pelo sarro que dele tam­
bém se extrai.
O ácido tem afinidades com as substâncias metálicas e liga-se
com elas por dissolução, para formar um sal composto, tal como,
por exemplo, a ferrugem - que não passa de um ferro dissolvido
pelo ácido contido na água ou no ar -ou o verdete -que não pas­
sa de um cobre dissolvido pelo vinagre.
Mas esse mesmo ácido ainda tem mais afinidades com as subs­
tâncias alcalinas que com as substâncias metálicas, de modo que,
por intervenção das primeiras nos sais compostos de que acabei de
falar, o ácido é obrigado a abandonar o metal a que se uniu para se
agarrar ao álcali.
Então a substância metálica, livre do ácido que a mantinha
dissolvida, precipita-se e torna o licor opaco.
Por conseguinte, se um destes dois vinhos está litargiriado, o
seu ácido contém o litargírio em dissolução. Se, por cima dele, eu
verter um pouco de licor alcalino, este forçará o ácido a abandonar
a presa e a unir-se a ele; o chumbo, deixando de estar dissolvido,
voltará a aparecer, turvará o licor e acabará por se precipitar no
fundo do copo.
Se, no vinho, não houver chumbo1 nem nenhum outro metal,

1 Os vinhos que se vendem a granel nas tabernas de Paris, embora


não estejam todos litargiriados, raramente se encontram isentos de ehum­
bo, porque os balcões desses comerciantes estão guarnecidos com esse me­
tal, e o vinho que se entorna da medida, ao passar e ao,permanecer em ci­
ma desse chumbo, sempre dissolve uma parte dele. E estranho que um
abuso tão manifesto e tão perigoso seja admitido pela Polícia. Mas tam­
bém é verdade que as pessoas ricas, como não bebem desses vinhos, pou-
1 98 cos riscos correm de serem envenenadas por eles.
o álcali ligar-se-á simplesmente1 com o ácido, tudo ficará dissol­
vido e não se dará nenhuma precipitação.
A seguir, verti o meu licor alcalino, sucessivamente nos dois co­
pos: o que continha o vinho da casa permaneceu claro e transpa­
rente; o outro ficou turvo durante uns instantes, e, ao cabo de uma
hora, vimos nitidamente o chumbo precipitado no fundo do copo.
«Eis>>, expliquei, «O vinho natural e puro que se pode beber, e
eis o vinho falsificado, que envenena. Isto descobre-se através dos
conhecimentos cuja utilidade me perguntastes; aquele que sabe
como se faz a tinta também sabe distinguir os vinhos falsificados.>>
Sentia-me muito satisfeito com o exempio que acabava de dar,
e, no entanto, apercebi-me de que a criança não se sentia impres­
sionada. precisei de um bom momento para me aperceber de que
fizera apenas uma tolice: pois, sem falar da impossibilidade de, aos
1 2 anos, uma criança poder seguir a minha explicação, ela não
compreendia a utilidade dessa experiência, porque, tendo prova­
do os dois vinhos e achando que ambos eram bons, não relaciona­
va com nenhuma ideia a palavra «falsificação>> que eu supunha ter­
-lhe explicado tão bem. As outras palavras, tais como nocivo, ve­
neno, nem sequer tinham nenhum sentido para ela; a esse respei­
to, encontrava-se na mesma situação do historiador do médico
Philippe: é o que acontece a todas as crianças.
As consequências das causas para os efeitos, cuja relação não
vemos, os bens e os males de que não fazemos ideia nenhuma, as
necessidades que nunca experimentámos, são nulos, para nós; não
é possível que nos interessemos por essas coisas, se não fizermos
nada que tenha relação com elas. Aos 1 5 anos, consideramos a fe­
licidade de um homem sage, como, aos 30, a glória do paraíso. Se
não compreendermos bem essas duas coisas, pouco faremos para
as conseguir; e, mesmo que as concebêssemos, pouca coisa faría­
mos se as não desejás,semos, se não as considerássemos como con­
venientes para nós. E fácil convencer uma criança de que aquilo
que que lhe pretendemos ensinar é útil: maf:! convencê-la não ser­
ve de nada, se não a soubermos persuadir. E em vão que a serena
razão nos leva a aprovar ou a censurar; só a paixão nos pode fazer
agir; e como é possível que alguém se apaixone por interesses que
ainda não tem?
Nunca mostreis à criança seja o que for que ela não possa ver.
Enquanto a humanidade lhe é quase desconhecida, como não a po­
deis elevar ao estado de adulta, abaixai, para ela, o homem, até ao
estado de criança. Tendo em vista o que lhe poderá vir a ser útil

1 O ácido vegetal é muito suave. Se se tratasse de um ácido mineral


e estivesse menos espalhado, a união não se efectuaria sem efervescência. 1 9 9
noutra idade, falai-lhe unicamente dos objectos que ela já consi­
dera como úteis.
Além disso, nunca a compareis com outras crianças, não lhe
arranjeis rivais nem concorrentes, nem mesmo para as corridas,
logo que ela comece a raciocinar; acho preferível que ela não apren­
da nada a que só aprenda por inveja ou por vaidade. A única coi­
sa que farei é tomar nota-todos os anos - dos progressos que ela
fez; compará-los-ei aos que fará no ano seguinte; dir-lhe-ei:
«Crescestes tantas linhas; eis o fosso que saltastes, o fardo que
transportastes; eis a distância a que lançastes uma pedra, o per­
cursoque correstessem perderfolgo, etc.; vejamosoquefareis ago­
ra.» Deste modo, excito-a sem a tornar invejosa de ninguém. Ela
quererá ultrapassar-se, deverá querê-lo; não vejo mal nenhum
em que queira ser rival de si mesma.
Odeio os livros; só ensinam a falar do que não se sabe. Diz-se
que foi em colunas que Hermes gravou os elementos das ciências,
para que as suas descobertas ficassem ao abrigo de um dilúvio. Se
os tivesse imprimido na cabeça dos homens, ter-se-iam conserva­
do nelas, por tradição. Os monumentos onde mais seguramente se
gravam os conhecimentos humanos são os cérebros bem prepara­
dos. Será que não há uma maneira de compilar tantas lições espa­
lhadas por tantos livros, de as reunir sob uma ciência comum que
seja fácil de consultar, interessante de seguir e que possa servirde
estimulante, mesmo nessa idade? Se se pode inventar uma situa­
ção em que todas as necessidade naturais do homem se evidenciam
de um modo sensível ao espírito da criança, e em que os meios de
prover a essas mesmas necessidades se desenvolvem sucessiva­
mente com a mesma facilidade, será através da pintura viva e in­
génua dessa situação que deverá ser dado o primeiro exercício à
sua imaginação.
Ardente filósofo, já vejo iluminar-se a vossa! Não vos esforceis;
essa situação foi encontrada, e atéjá foi descrita -sem pretender
diminuir o vosso talento - muito melhor do que vós mesmos o
teríeis feito, pelo menos com mais verdade e simplicidade. Já que
temos uma absoluta necessidade de livros, existe um que, na mi­
nha opinião, é o mais precioso tratado de educação natural. Será
esse o primeiro livro que lerá o meu Emílio; durante muito tempo,
será o único livro a compor a sua biblioteca, onde nunca deixará de
ocupar um lugar de honra. Constituirá o texto ao qual todas as nos­
sas conversas sobre as ciências naturais só servirão de comentá­
rios. Servirá de teste, durante os nossos progressos, para avaliar
o estado do nosso discer nime nto; e, e n qua nto o nosso gosto não es­
tiver estragado, a sua leitura agradar-nos-á sempre. Como se
chama, então, esse livro maravilhoso? Será Ariosto? Será Plínio?
Será Buffon? Não; é Robinson Crusoé.
zoo Robinson Crusoé na sua ilha, só, desprovido da assistência dos
seus semelhantes e dos instrumentos de todas as artes, mas nem
por isso deixando de prover à sua subsistência, à sua conservação,
e conseguindo até proporcionar-se uma espécie de bem-estar, eis
um objecto interessante para todas as idades e que temos mil ma­
neiras de tornar agradável para as crianças. Eis como nós realiza­
mos a ilha deserta que começou por me servir de comparação. Con­
cordo que esse estado não é o do homem social; provavelmente, não
deverá ser o de Emílio: mas é baseando-se nesse mesmo estado
que ele deverá apreciar todos os outros. A maneira mais segura de
se elevar acima dos preconceitos e de ordenar os seus juízos sobre
as verdadeiras relações das coisas é pôr-se no lugar de um homem
isolado e avaliar tudo como esse homem deveria avaliar, consoan­
te a sua própria utilidade.
Esse romance, depois de limpo de todas as suas trapalhadas, come­
çando com o naufrágio de Robinson ao pé da sua ilha e acabando
com a chegada do navio que o vai buscar, passará a ser simultanea­
mente a distracção e a instrução de Emílio, durante a idade de que
aqui tratamos. Quero que elese sinta completamente entusiasma­
do com essa história, que se ocupe constantemente do seu castelo,
das suas cabras, das suas plantações; que aprenda, pormenoriza­
damente- não nos livros mas nas coisas-, tudo o que é necessá­
rio saber para enfrentar uma situação semelhante; que imagine
ser o próprio Robinson; que se veja vestido de peles de animais, com
um grande gorro na cabeça, um grande sabre, com todos os apetre­
chos do personagem, incluindo o pára-sol, de que não terá neces­
sidade. Quero que ele pense nas medidas que deveria tomar, se is­
to ou aquilo lhe viesse a faltar, que observe o comportamento do
seu herói, que veja se ele não se esqueceu de nada, se não podia ter
feito melhor as coisas; que anote cuidadosamente as suas faltas e
que tire partido delas para não as cometer, se se vier a encontrar
na mesma situação; pois não duvideis de que ele tenha vontade de
viver uma vida semelhante; é o verdadeiro castelo nas nuvens des­
.sa idade feliz, em que a única felicidade por que se anseia é ter o
necessário e a liberdade.
Que bela fonte de rendimentos, essa loucura, para um homem
hábil, que só lhe deu origem para dela tirar proveito! A criança, de­
sejosa de arranjar um fornecimento para a sua ilha, sentirá mais
ânsia por aprender que o mestre por ensinar. Quererá conhecer tu­
do o que é útil, e não se interessará por mais nada; deixareis de ter
necessidade de a guiar, para terdes de a refrear. Entretanto,
apressemo-nos a instalá-la nessa ilha, enquanto ela a considera
como o centro da sua felicidade; porque já não vem longe o dia em
que, mesmo se ainda lá desejar viver, ela deixará de querer viver
sozinha, e em que Vendredi-que actualmente pouco lhe interes­
sa- não lhe bastará como companhia.
A práctica das artes naturais-para as quais um único homem 2 o 1
po<1e ser suficiente- conduz à busca das artes de indústria, que
precisam do concurso de várias mãos. As primeiras podem ser
exerci das por pessoas isoladas, por selvagens; mas as outras só po­
dem ter origem nas sociedades, e tornam-nas necessárias. En­
quanto só conhece a necessidade física, cada homem basta-se a si
mesmo; a introdução do supérfluo torna indispensável a divisão e
a distribuição do trabalho; porque, embora um homem que traba­
lhe sozinho só ganhe a subsistência de um homem, cem homens
que trabalhem em concerto ganharão com que fazer subsistir du­
zentos. Portanto, logo que uma parte dos homens descansa, é ne­
cessário que o concurso dos braços daqueles que trabalham supra
a ociosidade daqueles que não fazem nada.
Devereis ter o maior cuidado para afastar do espírito do vosso
pupilo todas as noções das relações sociais que não estejam ao seu
alcance: mas, quando a sequência das circunstâncias vos forçar a
mostrar-lhe a mútua dependência dos homens, em vez de lha
apresentardes pelo seu lado moral, começai por dirigir toda a sua
atenção para a indústria e para as artes mecânicas, que as tornam
úteis, umas às outras. Levand()--{}, de oficina em oficina, nunca su­
porteis que el� veja fazer algum trabalho sem pôr mãos à obra e
ajudar, nem o deixeis sem saber perfeitamente a razão de tudo
quanto lá se faz, ou, pelo menos, de tudo quanto observou. Para is­
so, trabalhai vós mesmos, dai-lhe o exemplo, em toda a parte; pa­
ra o tornar mestre, mostrai-vos aprendiz em tudo, e calculai que
uma hora de trabalho lhe ensinará mais coisas que as que ele po­
deria decorar durante um dia de explicações.
Existe uma estima pública, ligada às várias artes e ofícios, e
que está na razão indirecta da sua verdadeira utilidade. Essa es­
tima mede-se directamente pela inutilidade desses ofícios, e as­
sim deve ser. As artes mais úteis são as que ganham menos, por­
que o número de artífices é proporcional à necessidade dos ho­
mens, e porque o trabalho necessário a toda a gente se mantém,
forçosamente, a um preço que o pobre pode pagar. Inversamente,
esses importantes a que não se dá o nome de artífices mas de ar­
tistas, trabalham unicamente para os ociosos e para os ricos, e pe­
dem um preço arbitrário pelas suas bugigangas; e, como o mérito
desses vãos trabalhos só está na opinião, o seu próprio preço faz
parte desse mérito, e são estimados pelo preço que custam. A im­
portância que o rico lhes atribui não tem nada a ver com a sua uti­
lidade, ma:> com o facto de que o pobre não os pode pagar.Nolo ha­
bere bona nisi quibus populus inviderit.
O que será dos vossos pupilos, se os deixardes adoptar esse pre­
conceito idiota, se o favorecerdes vós próprios, se eles vos virem,
por el(emplo, entrar com mais respeito na loja de umjoalheiro que
na de um serralheiro? Que juízo poderão fazer sobre o verdadeiro
2 02 mérito das artes e o verdadeiro valor das coisas, quando virem, por
toda a parte, o preço da fantasia em contradição com o preço da ver­
dadeira utilidade, e que quanto mais dinheiro a coisa custa, menos
ela vale? Desde o primeiro momento em que deixardes entrar es­
sas ideias nas suas cabeças, desisti de continuar a educá-los; ape­
sar de tudo quanto fizerdes, serão educados como toda a gente; des­
perdiçastes catorze anos de trabalhos.
Emílio, quando pensar em apetrechar a sua ilha, terá om:ras
maneiras de ver. Robinson teria dado muito mais importância à lo­
ja de um cutileiro que à de um fabricante de ornatos de Saide. O
primeiro ter-lhe-ia parecido um homem muito respeitável, e o se­
gundo um pequeno charlatão.

«O meu filho foi feito para viver no mundo; não viverá


com sages, mas com loucos; por conseguinte, precisa de co­
nhecer as loucuras das pessoas, porque só através delas as
pode conduzir. O verdadeiro conhecimento das coisas pode
ser bom, mas o dos homens e dos seus juízos ainda vale mais;
porque, na sociedade humana, o mais importante instru­
mento do homem é o homem, e o mais sage é aquele que
melhor se sabe servir desse instrumento. Para que serve
dar às crianças a ideia de uma ordem imaginária absoluta­
mente contrária à que ela irá encontrar estabelecida e pe­
la qual se deverá regular? Começai por lhe dar lições para
ela ser sage, e, em seguida, dar-lhe-eis outras, para que ela
possa compreender em que é que os outros são loucos.»

São estas as máximas enganosas em que se baseia a falsa pru­


dência dos pais, para tornarem os filhos escravos dos preconceitos
com que os enchem e gatos-sapatos da multidão insensata de que
pensam fazer o instrumento das suas paixões. Para conseguir co­
nhecer o homem, quantas coisas é preciso conhecer antes dele! O
homem é o último estudo do sage, e vós pretendeis que seja o pri­
meiro de uma criança! Antes de a instruirdes sobre os nossos sen­
timentos, ensinai-a a apreciá-los. Será conhecer uma loucura con­
siderá-la como a razão! Para se ser sage é preciso ser capaz de dis­
cernir aquilo que não o é. Como poderá o vosso filho conhecer os ho­
mens, s� não sabe nem julgar os seus juízos nem descobrir os seus
erros? E um mal, saber o que eles pensam, quando se ignora se o
que pensam está certo ou errado. Começai, pois, por lhe ensinar o
que são as coisas em si mesmas, e depois lhe ensinareis o que elas
são aos nossos olhos; só assim ele saberá comparar a opinião do
mundo com a verdade, e elevar-se acima do comum; pois ninguém
se apercebe dos preconceitos, quando os adopta, nem pode dirigir
o povo, quando se lhe assemelha. Mas, se começardes por instruí-
-lo sobre a opinião pública, antes de o ensinardes a ajuizar dela,
podereis ficar com a certeza de que-seja o que for que fizerdes- 2 o 3
ela passará a ser a sua, e que nunca mais lha podereis tirar. Con·
cluindo, digo que para tornarmos um jovem judicíoso é preciso que
formemos muito bem os seus juízos, em vez de lhe ditarmos os nos­
sos.
Bem vedes que, até este momento, não falei dos homens ao meu
pupilo: ele teria tido um excesso de bom senso que o impediria de
compreender; as relações que ele tem com a sua espécie ainda não
lhe são suficientemente sensíveis para lhe permitirem ajuizar dos
outros por si próprio. No que diz respeito a seres humanos, só seco­
nhece a si próprio, e, mesmo assim, ainda está muito longe de se
conhecer; mas poucos juízos faz sobre a sua pessoa, e, quando os
faz, todos eles são certos. Ignora qual é o lugar dos outros, mas co­
nhece o seu e conserva-se nele. Em vez das leis sociais que ele não
pode compreender, acorrentámo-lo com as correntes da necessi­
dade. Ainda quase não é mais que um ser físico: continuemos a tra­
tá-lo com tal.
É consoante a relação sensível que eles tenham com a sua uti­
lidade, com a sua segurança, com a sua conservação, com o seu
bem-estar, que ele deve avaliar todos os corpos da natureza e to­
dos os trabalhos dos homens. Assim, aos seus olhos, o ferro deve­
rá valer muito mais que o ouro, e o vidro mais que o diamante; do
mesmo modo, honrará muito mais um sapateiro, um pedreiro, que
um Lempereur, que um Le Blanc, e que todos os joalheiros da Eu­
ropa; para ele, um pasteleiro é, sobretudo, um homem importan­
te, e trocaria toda a academia das ciências pelo mais insignifican­
te confeiteiro da rua dos Lombards. Na sua opinião, os ourives, os
gravadores, os douradores, os bordadores, não passam de madra­
ços que se entretêm com jogos perfeitamente inúteis; nem sequer
faz grande caso da relojoaria. A criança feliz desfruta do tempo sem
ser sua escrava: tira partido dele, sem lhe conhecer o valor. A se­
renidade das paixões que, para ela, torna a sucessão dos dias sem­
pre igual, serve-lhe de instrumento para o medir, quando neces­
sário1. Supondo-lhe um relógio ou fazendo-<> chorar, eu atribuía­
-me um Emílio vulgar, para me tornar útil e me fazer compreen­
der; porque, para dizer a verdade, uma criança tão diferente das
outras não serviria de exemplo para nada.
Há uma ordem que, sem ser menos natural, ainda é mais ju­
diciosa, e pela qual se consideram as artes consoante as relações
de necessidade que as ligam, começando pelas mais independen­
tes e deixando para o fim as que dependem de um maior número

1 Para nós, o tempo perde a sua medida, quando as nossas paixões


o pretendem regular a seu gosto. O relógio do homem sage é a igualdade
de humor e a paz da alma; encontra--o sempre na hora que lhe convém e
204 conhece-a sempre.
de outras. Essa ordem, que fornece importantes considerações so­
bre a da sociedade em geral, é semelhante à precedente, e está sub­
metida à mesma inversão, na estima dos homens; de modo que a
utilização das matérias-primas se efectua nos ofícios desonrosos,
quase sem proveito, e, quanto mais mudam de mãos, mais a mão­
-de4>bra aumenta de preço e se torna honrosa. Ignoro se é verda­
de que a indústria seja maior e mereça mais recompensa nas ar­
tes minuciosas que dão a última forma a essas matérias que no pri­
meiro trabalho que as converte para a utilização dos homens: mas
digo que, em cada coisa, a arte cujo uso é mais geral e mais indis­
pensável é, incontestavelmente, a que merece mais estima, e que
aquela à qual são precisas menos artes ainda merece mais que as
mais subordinadas, porque é a mais livre e a que se encontra mais
próxima da independência. Eis as verdadeiras regras para a apre­
ciação das artes e da indústria; tudo o mais que se possa dizer é ar­
bitrário e depende da opinião pública.
A principal e a mais respeitável de todas as artes é a agricul­
tura: poria a forja em segundo lugar, a carpintaria em terceiro, e
assim por diante. A criança que não tiver sido seduzida pelos pre­
conceitos vulgares ajuizará precisamente deste modo. A este res­
peito, quantas reflexões imp ' ortantes o nosso Emílio terá a possi­
bilidade de fazer com o que aprendeu no seuRobinson!? O que pen­
sará ele quando vir que- para se aperfeiçoarem- as artes pre­
cisam de se subdividir, multiplicando até ao infinito os instrumen­
tos de umas e de outras? Dirá para consigo mesmo: «Todas essas
pessoas são tolamente engenhosas: dir-se-ia que receiam que os
seus braços e os seus dedos não lhes sirvam para nada, de tal ma­
neira inventam instrumentos que evitam a sua utilização. Para
exercerem uma única arte, ficam dependentes de mil outras; cada
obreiro precisa de uma cidade. Para o meu camarada e para mim,
pomos o nosso génio na nossa habilidade; fabricamos instrumen­
tos que podemos transportar connosco, para toda a parte. Todas
essas pessoas que, em Paris, se mostram tão orgulhosas dos seus
talentos, nada saberiam fazer na nossa ilha e não seriam mais que
nossas aprendizas.»
Leitor, não vos detendes neste momento, para aqui ver o exer­
cício do corpo e a habilidade de mãos do nosso pupilo; mas consi­
derai o sentido, o espírito inventivo, a providência; considerai o cé­
rebro que lhe iremos formar. Sobre tudo quanto ele vir, sobre tu-
do quanto fizer, quererá conhecer tudo, quererá saber a razão de
tudo; de instrumento em instrumento, quererá sempre conhecer o
primeiro; não aceitará nada por suposição; recusar-se-ia a apren-
der o que exigisse um conhecimento anterior que ele não tivesse:
se vir fazer uma mola, quererá saber como se retirou o aço da mi-
na; se vê o encaixe das peças de uma arca, quererá saber como foi
cortada a árvore; se é ele próprio quem trabalha, cada vez que um 2 os
novo instrumento lhe passar pelas mãos não deixará de pensar:
«Se não tivesse este instrumento, como faria para fabricar um se­
melhante ou para prescindir dele?»
Todavia, um erro difícil de evitar nas ocupações pelas quais o
mestre se apaixona é o de supor que a criança experimenta o mes­
mo interesse por elas: estai atento- quando a distracção do tra­
balho vos absorve- para que ela não se aborreça sem se atrever
a vo-lo mostrar. A c-riança deve entregar-se completamente ao
que está a fazer; mas vós deveis estar atento à criança,observá-la,
espiá-la incessantemente e sem que ela se aperceba disso, pres­
sentir todos os seus sentimentos e prevenir aqueles que ela não de­
ve experimentar; finalmente, deveis ocupá-la de maneira a que
não só ela se sinta útil para a coisa,mas que se compraza nela,por
ter compreendido para que serve o que está a fazer.
A sociedade das artes consiste em trocas de indústria: a do co­
mércio em troca de coisas, a dos bancos em troca de papéis e de di­
nheiro: todas estas ideias se relacionam entre si e as suas noções
elementares já foram adquiridas; lançámos as fundações de tudo
isso logo na primeira idade,com a ajuda do jardineiro Robert. Ago­
ra, resta-nos generalizar estas mesmas ideias e estendê-las a
mais exemplos,paralhe explicar o jogo do tráficoemsimesmo,que
se torna sensível pelas produções particulares de cada país, pelos
pormenores de artes e de ciências que dizem respeito à navegação,
e,finalmente, pela maior ou menor dificuldade para o transporte,
consoante o afastamento dos lugares,consoante a situação das ter­
ras, dos mares, dos rios, etc.
Nenhuma sociedade pode existir sem fazer trocas, nenhuma
troca se pode efectuar sem uma medida comum,e nenhuma medi­
da comum se pode �onceber sem igualdade. Assim, a lei principal
de todas as sociedades terá de ser uma igualdade ou um padrão
convencional, seja para os homens, seja para as coisas.
A igualdade convencional entre os homens, embora diferente
da igualdade natural, torna necessário o direito positivo, isto é, o
governo e as leis. Os conhecimentos políticos de uma criança de­
vem ser raros e limitados; do governo,só deverá conhecer o que di­
ga respeito ao direito da propriedade, de que já tem uma certa
ideia.
A igualdade convencional entre as coisas levou o homem a in­
ventar a moeda; pois a moeda não é mais que um tenno de compa­
ração para o valor das coisas de· várias espécies; e, nesse sentido,
a moeda é o verdadeiro elo da sociedade; mas tudo pode servir de
moeda; antigamente, o gado subsitituía-a e,hoje em dia,ainda há
povos cuja moeda são conchas marinhas. Em Esparta,a moeda era
constituída por ferro,na Suécia por couro, e,no nosso país,por ou­
ro e por prata.
206 Os metais, como são mais fáceis de transportar, foram geral-
mente escolhidos como termos médios de todas as trocas; e foram
convertidos em moeda, para evitar medi-los ou pesá-los, em cada
operação de troca: porque a marca da moeda não passa de uma
atestação de que a peça assim marcada tem um determinado pe­
so; e só o príncipe tem o direito de cunhar moeda, dado que só ele
tem direito a exigir que o seu testemunho faça autoridade numa
nação.
Assim explicad�, a utilização desta invenção é compreendida
pelo mais estúpido. E difícil comparar imediatamente coisas de na­
turea diferentes, como, por exemplo, o pano e o trigo; mas, depois
de se ter encontrado uma medida comum, isto é, a moeda, é fácil,
para o fabricante e para o agricultor, relacionar o valor das coisas
que querem trocar com essa medida comum. Se uma determinada
quantidade de tecido vale uma determinada soma de dinheiro e
uma determinada quantidade de trigo vale a mesma soma de di­
nheiro: daí se deduz que o comerciante, ao receber o trigo em tro­
ca do seu pano, faz uma troca equitativa. Assim, é através da moe­
da que os bens de várias espécies se podem medir e comparar.
Não avanceis mais do que isto e não expliqueis os efeitos mo­
rais desta instituição. A propósito de todas as coisas, importa ex­
plicar às crianças como é que os sinais fazem esquecer as coisas, co­
mo foi que a moeda deu origem a todas as quimeras da opinião pú­
blica, como é que os países que têm uma riqueza em dinheiro de­
vem ser pobres em tudo, trataríeis essas crianças não só como fi­
lósofas mas como pessoas sages, e pretenderíeis que elas com­
preendessem o que poucos filósofos conseguiriam conceber bem.
Como é grande a variedade de objectos interessantes, para os
quais se pode dirigir a curiosidade de um pupilo, sem nunca aban­
donar as relações reais e materiais que estão ao seu alcance, nem
suportar que se levante no seu espírito uma única ideia que ele não
possa conceber! A arte do perceptor consiste em nunca insistir,
com as suas observações, em minúcias que não valem absoluta­
mente nada, mas em apresentar, constantemente, ao seu pupilo,
as grandes relações que ele um dia deverá conhecer, para poder fa­
zer qma ideia exacta do que é a boa ou má ordem da sociedade ci­
vil. E preciso temperar as conversas com que distrai a criança com
a intenção que se lhes dá. Determinado assunto, que nem sequer
poderia despertar a atenção de outra criança, irá atormentar
Emílio durante seis meses.
Vamos almoçar a uma casa opulenta; deparamos com os pre­
paros de um festim, muita gente, muitos lacaios, muitos pratos,
um serviço elegante e fino. Todo esse aparelho de prazer e de fes-
ta tem qualquer coisa de embriagador que sobe à cabeça, quando
a ela não estamos acostumados. Pressinto o efeito de tudo isso so­
bre o meu jovem pupilo. Àmedidaque a refeição seprolonga, à me­
dida que os pratos se vão sucedendo, enquanto em volta da mesa 2 0 7
se trocam mil propósitos ruidosos, aproximo a minha boca do seu
ouvido e digo-lhe: «Por quantas mãos calculais que tenha passa­
do tudo quanto vedes em cima desta mesa, antes de ser lá posto?»
Que turbilhão de ideias fui despertar no seu cérebro, com estas
poucas palavras! Bruscamente, eis que todos os vapores do delírio
se desvanecem. Emílio sonha, reflecte, calcula, preocupa-se. En­
quanto os filósofos, alegrados pelo vinho-, talvez até pelas suas
vizinhas -palram e se portam como crianças, ei-lo, a ele, a filo­
sofar, sozinho, no seu canto; interroga-me; recuso-me a respon­
der, reenvio-o para outro momento; ele impacienta-se, esquece­
-se de comer e de beber, anseia pelo momento em que se poderá le­
vantar da mesa para falar comigo à sua vontade. Que objecto, pa­
ra a sua curiosidade! Que texto, para a sua instrução! Com um juí­
zo são, que ainda não pôde corromper, que pensará ele do luxo,
quando descobrir que todas as regiões do mundo contribuíram pa­
ra ele, que, talvez vinte milhões de mãos tenham trabalhado demo­
radamente nele, que talvez tenha custado a vida a milhares de ho­
mens, e tudo isso para lhe apresentar, com pompa, ao almoço, o que
ele irá depor, à noite, na sua cadeira sem fundo?
Espiai cuidadosamente as secretas conclusões que ele tirar de
todas essas observações. Se não o guardastes tão bem como supo­
nho, poderá sentir-se tentado a virar as suas reflexões num outro
sentido e a considerar-se como uma personagem importante para
a sociedade, vendo todos os cuidados que o seu almoço mereceu. Se
pressentirdes este raciocínio, facilmente o podereis evitar, ou, pe­
lo menos, retirar-lhe essa impressão. Não sabendo ainda apro­
priar-se das coisas que não lhe oferecem um gozo material, só pe­
las relações sensíveis ele poderã ajuizar das que lhe convêm, ou
desconvêm. A comparação entre um almoço simples e rústico­
preparado para o exercício, temperado pela fome, pela liberdade,
pela alegria -e aquele festim, tão magnífico e tão compassado,
bastará para lhe fazer sentir que todo o aparelho daquela refeição,
como não lhe proporciónou nenhum verdadeiro provento e deixou
o seu estômago tão satisfeito como quando sai da mesa do campo­
nês, não tem, como este último, nenhuma coisa que ele possa ver­
dadeiramente considerar como sua.
Imaginemos o que, num caso destes, o governante lhe poderá
dizer. Lembrai-vos bem destas duas refeições, e decidi, para con­
vosco mesmos, qual delas vos proporcionou maior prazer; em qual
delas notastes mais alegria? Em qual delas vistes comer com mais
apetite, beber com mais alegria, rir com mais sinceridade? Qual
delas durou mais temp o sem se tornar aborrecida e sem precisar
de ser renovada por outros pratos? Entretanto, vede a diferença:
esse pão cinzento, que achais tão saboroso, vem do trigo recolhido
por esse camponês; o seu vinho-escuro e grosseiro mas desalte-
2 os r ante e são -é produto da sua vinha; a toalha foi feita com o seu
cânhamo, fiado durante o Inverno,pela sua mulher, pelas suas fi­
lhas,pela sua criada; nenhuma outra mão,além das da família,fez
os adornos da mesa; o moinho mais próximo e a feira vizinha são
os limites do seu universo. De que desfrutastes realmente,em tu­
do quanto forneceu a mais, a terra afastada e a mão dos homens
na outra mesa? O que encontrastes lá, que tivesse sido feito para
vós? Se tivésseis sido o dono da casa- podereis acrescentar-tu­
do isso vos teria parecido ainda mais estranho: porque a preocupa­
ção que teríeis em mostrar o vosso desfrutamento aos outros aca­
baria por vo-lo retirar: teríeis tido os trabalhos, e eles o prazer.
Esse discurso pode ser muito belo; mas como ultrapassa a com­
preensão de Emílio- a quem não se ditam as reflexões- não tem
valor nenhum,para ele. Por conseguinte,falai-lhe de uma manei­
ra mais simples. Após estas duas experiências, dizei-lhe, um dia,
pela manhã: onde iremos almoçar hoje? Em frente daquela mon­
tanha de prata que cobre as três quartas partes da mesa, e desses
canteiros de flores de papel que, à sobremesa,nos são servidas em
cima de espelhos, entre essas mulheres vestidas com anquinhas
quenos tratamcomo fantoches e querem que digamos o quenão co­
nhecemos; ou bem naquela aldeia, a duas léguas daqui, em casa
daquelas boas pessoas que nos recebem com tanta alegria e nos dão
umas natas tão boas? A escolha de Emílio não apresenta dúvidas;
porque ele não é nem um tagarela nem vão; não suporta os cons­
trangimentos, e os mexericos, por mais finos que sejam, não lhe
agradam: mas está sempre disposto a percorrer os campos,e apre­
cia m uito os bons frutos, os bons legumes,as boas natas, e as boas
pessoas1•
Entretanto, a reflexão vem por si só. Vejo que essa quantida­
de de homens que trabalham para preparar essas grandes refei­
ções efectuam um trabalho inútil, ou nem sequer pensam nos nos­
sos prazeres.
Os meus exemplos, embora talvez convenham a um sujeito,po­
derão ser maus para mil outros. Mas, se a sua intenção for com­
preendida,é possível variá-los, em caso de necessidade; a escolha

1 O gosto pelo campo, que suponho no meu pupilo, é um resultado na­


tural da educação que recebeu. De resto, como não tem nenhum desses
modos enfatuados e arrebicados que tanto agradam às mulheres, é por
elas menos apreciado que outras crianças; por conseguinte, quando ao la­
do delas, ele não se sente muito a seu gosto, e pouco prazer experimenta
com a sua sociedade cujo encanto ainda não está em idade de sentir. Nun­
ca o ensinei a beijar-lhes a mão, a dizer-lhes frivolidades, e também não
o ensinei a dedicar-lhes, mais que aos homens, as atenções que lhes são
devidas; respeitei, como uma lei inviolável, a decisão de nada exigir dele
cuja razão não estivesse ao seu alcance; e não há nenhuma razão que jus-
tifi que que uma criança trate um sexo de uma maneira diferente do outro. 2 o 9

L.B.523-14
depende das ocasiões que se lhe oferecem para ela o mostrar. Nin­
guém irá imaginar que no espaço de três ou quatro anos durante
os quais nos ocupámos dela, tenhamos podido inculcar na criança
-por mais dotada que ela seja -uma ideia sobre todas as artes
e sobre todas as ciências naturais, e que seja suficiente para que,
um dia, ela as venha a conhecer; mas, deste modo, fazendo passar
diante dela todos os objetos que importa que conheça, colocamo-la
na situação de poder desenvolver o seu gosto, o seu talento, de dar
os primeiros passos para o objecto que atrai o seu carácter, e de nos
indicar o éaminho que teremos de lhe preparar para secundar a na­
tureza.
Outra das vantagens desse encadeamento de conhecimentos
limitados, mas justos, é de lhos mostrar através dos seus relacio­
namentos, de os colocar todos nos lugares que lhes pertencem, na
sua estima, e de prevenir, nela, os preconceitos que a maioria dos
homens tem pelos talentos que cultiva e contra aqueles que negli­
genciou. Aquele que vê bem a ordem do todo também vê o lugar on­
de deve ser colocada cada parte; aquele que vê bem uma parte, e
que a conhece a fundo, pode ser um homem sabedor: o outro é um
homem judicioso; e não vos esqueceis de que o que pretendemos en­
sinar não é exactamente a ciência mas o discernimento.
Seja como for, o meu método é independente dos meus exem­
plos; baseia-se na medida das faculdades do homem, no decorrer
das suas várias idades, e na escolha das ocupações que mais con­
vêm para as suas faculdades. Creio que facilmente encontrareis
outro método com o qual vos parecerá que se obtêm melhores re­
sultados; mas, se ele for menos apropriado para a espécie, para a
idade, para o sexo da criança, duvido de que tenha o mesmo êxito.
Ao começar este segundo período, aproveitámos a superabun­
dância das nossas forças, comparativamente com as nossas neces­
sidades, a fim de nos transportarmos para além de nós mesmos;
elevámo-nos nos céus; medimos a Terra; recolhemos as leis da na­
tureza; em resumo, percorremos a ilha inteira; agora, regressamos
a nós; insensivelmente, aproximamo-nos da nossa habitação. Po­
der-nos-em os considerar com muita sorte se, ao voltarmos, ela
ainda não estiver na posse do inimigo que nos ameaça, e que dese­
ja apoderar-se dela!
Que nos resta fazer, depois de termos observado tudo quanto
nos rodeia? Adaptar, para a nossa utilização, tudo aquilo de que
nos pudermos apropriar, e tirar partido da nossa curiosidade pa­
ra beneficiar o nosso bem-estar. Até agora, tínhamos feito provi­
são de instrumentos de toda a espécies, sem sabermos exactamen­
te de quais deles iríamos ter necessidade. Talvez, inúteis para nós,
alguns dos que possuímos possam ser úteis para outros; e talvez,
por nossa vez, tenhamos precisão dos deles. Assim, todos nós fica-
21 o riamos satisfeitos com essas trocas: mas, para as fazermos, preci-
samos de conhecer as necessidades mútuas, é preciso que cada um
saiba o que os outros possuem para seu uso próprio e o que lhe po­
dem oferecer em troca. Imaginem9s dez homens, cada um deles
com dez espécies de necessidades. E preciso que, para o seu neces­
sário, cada um deles se dedique a dez espécies de trabalhos; mas,
considerando a diferença de carácter e de talento, cada um deles
terá menos êxito nalgum desses trabalhos. Cada um deles, saben­
do fazer diversos trabalhos, falhará num ou noutro dos dez que
executa e ficará mal servido. Com esses dez homens formemos
uma sociedade; que cada um deles se dedique, por si e pelos outros
nove, ao género de trabalho que mais lhe convém; cada um deles
tirará proveito dos talentos dos outros, como se os tivesse todos; ca­
da um deles aperfeiçoará o seu, com um permanente exercício; e,
os dez reunidos, chegarão ao ponto de ficarem bem providos e de
ainda terem que sobre para outros. Eis o princípio aparente de to­
das as instituições. Não está nas minhas intenções examinar aqui
as suas consequências: já o fiz, noutro escrito.
Baseando-nos neste princípio, podemos afirmar que um ho­
mem que se quisesse considerar como um ser isolado, não depen­
dendo de ninguém e bastando-se a si próprio, só poderia ser mise­
rável. Ser-lhe-ia mesmo impossível subsistir; pois, encontrando a
terra inteira coberta com o teu ou com o meu, e sendo proprietário
apenas do seu corpo, de onde retiraria ele o necessário para viver?
Saindo do estado natural, nós forçamos os nossos semelhantes a
fazer o mesmo; ninguém pode permanecer nele contra a vontade
dos outros; e seria verdadeiramente sair dele, pretender nele ficar,
sem possibilidades de nele viver; porqu e a principal lei da nature­
za é o cuidado pela própria conservação.
Assim, a pouco e pouco, vão-se formando, no espírito da crian­
ça, as ideias sobre as relações sociais, muito antes de ela poder ser
verdadeiramente membro activo da sociedade. Emílio compreen­
de que, para ter instrumentos que possa utilizar, também precisa
de ter alguns para uso dos outros, em troca dos quais possa obter
as coisas que lhe são necessárias e que estão em poder destes. Fa­
cilmente o levo a sentir a necessidade dessas trocas e a colocar-se
em situação de tirar proveito delas.
Monsenhor, preciso de viver, dizia um infeliz autor satírico ao
ministro que lhe censurava a infâmia dessa profissão.Não vejo que
necessidade tem disso, respondeu-lhe friamente o homem de posi-
ção. Esta resposta, excelente para um ministro, teria sido bárba-
ra e hipócrita em qualquer outra boca. Todos os homens precisam
de viver. Esse argumento, ao qual cada um dá mais ou menos im­
portância, consoante a humanidade que tem, parece-me sem ré­
plica para aquele que o diz, referindo-se a si próprio. Já que, de to-
das as aversões que a natureza nos dá, a mais forte é a de morrer,
segue-se que tudo é permitido, a todos aqueles que não disponham 211
de meios para viver. Os princípios pelos quais o homem virtuoso
aprende a desprezar a sua vida e a imolá-la ao seu dever estão
muito longe desta simplicidade primitiva. Felizes os povos entre os
quais se pode ser bom, sem esforço, e justo, sem virtude! Se, nes­
te mundo, há algum estado miserável onde ninguém possa viver
sem fazer mal e onde os cidadãos sejam ladrões por necessidade,
não é o malfeitor que deve ser enforcado, mas aquele que o obriga
a sê-lo.
Logo que Emílio souber o que é vida, o meu primeiro cuidado
será ensiná-lo a conservá-la. Até agora, não fiz distinção entre as
condições, as classes, as fortunas; e também não as farei daqui em
diante, porque o homem é o mesmo, em todas as condições; porque
o rico não tem um estômago maior que o pobre e não digere melhor
que ele; porque o amo não tem os braços mais compridos nem mais
fortes que os do s�u escravo; porque um grande não é maior que um
homem do povo; e, enfim, porque como as necessidades naturais
são as mesmas por toda a parte, os meios de a elas prover deverão
ser iguais por toda a parte. Adaptai a educação do homem para o
homem, e não para aquilo que não é ele. Não vedes que, trabalhan­
do para o formar exclusivamente para uma condição, o tornais inú­
til para qualquer outra, e que, se a fortuna o quiser, só tereis tra­
bal h a do para o tornardes infeliz? O que haverá de mais ridículo
que um grande senhor que passa a ser mendigo e que, na miséria,
conserva os preconceitos do seu nascimento? O que haverá de mais
vil que um rico empobrecido, que, recordando-se do desprezo que
se deve à pobreza, se crê o derradeiro dos homens? O primeiro tem,
como único recurso, a profissão de mendigo público, enquanto o se­
gundo, o de lacaio rastejante, com esta bela frase:Preciso de viver.
Vejo que vos fiais na actual ordem da sociedade, sem pensar­
des que essa ordem está sujeita a revoluções inevitáveis, e que vos
é impossível prever ou evitar aquela que pode concernir os vossos
filhos. O grande torna-se pequeno, o rico torna-se pobre, o monar­
ca passa a ser vassalo: os golpes da sorte são assim tão raros que
possais ter a certeza de lhes escapar? Aproximamo-nos do estado
de crise e do século das revoluções1• Quem vos poderá dizer o que
sereis, nessa altura?Tudo quanto os homens fizerem pode ser des­
truído pelos próprios homens: os únicos caracteres indeléveis são
aqueles que a natureza imprime, e a natureza não faz nem prín­
cipes, nem ricos nem grandes senhores. O que irá fazer-quando

I Considero como impossível que as grandes monarquias da Europa


ainda durem muito tempo; todas elasjá brilharam, e todos os Estados que
brilham estão no seu declínio. Para minha opinião, tenho motivos mais
particulares que esta máxima; mas não vem a propósito dizê--los, e, de
212 qualquer maneira, todos os vêm.
se encontrar na miséria- esse sátrapa que educastes unicamen­
te para a grandeza? O que fará, quando estiver na pobreza, esse pu­
blicano que só sabe viver do ouro? O que fará, desprovido de tudo,
esse faustuoso imbecil que não se sabe. servir de si mesmo e só se
mete naquilo que lhe é alheio? Feliz daquele que, nesse momento,
souber abandonar a condição que o deixa e permanecer homem,
apesar do destino que lhe cabe! Que se elogie, tanto quanto se
quiser, esse rei vencido que se quer enterrar sob as ruínas do seu
trono; cá por mim, desprezo-o; vejo que só existe através da sua
coroa, e que não é nada, se não for rei: mas aquele que a perde e não
se sente com isso está acima dela. Da condição de rei- que um
covarde, um malvado ou um louco pode desempenhar como qual­
quer outro -eleva-se ao estado de homem, que tão poucos homens
sabem assumir. Então, triunfa da fortuna, desafia-a; não deve na­
da a ninguém; e, quando só a ele tem para se mostrar, não é um ser
nulo; é alb>uma coisa. Sim, prefiro cem vezes ver o rei de Siracusa
como mestre-escola em Corinto, e o rei da Macedónia porteiro em
Roma, que um desgraçado tarquínio, que não sabe o que quer ser
se não reinar, que o herdeiro do possuidor de três reinos- à mer­
cê de quem quer que seja que se atreva insultar a sua miséria­
errando de corte em corte, e por toda a parte deparando com afron­
tas, por não saber fazer mais nada além de um ofício que já não es­
tá em seu poder.
O homem e o cidadão, seja ele qual for, não tem outro bem a ofe­
recer à sociedade, além de si mesmo; todos os seus outros bens se
encontram nela sem que ele tenha feito alguma coisa para isso; e
quando um homem é rico, ou não desfruta da sua riqueza ou o pú­
blico desfruta dela também. No primeiro caso, rouba aos outros
aquilo de que se priva, e, no segundo, não lhes dá nada.Assim, não
desconta nada para a dívida social, enquanto só pagar com os seus
bens. «Mas, quando o ganhou, o meu pai serviu a sociedade .. Se­
. >>

ja, ele pagou a sua dívida, mas não a vossa. Deveis mais aos outros
do que se tivésseis nascido sem bens, pois nascestes favorecido.
Não é justo que o que um homem fez pela sociedade possa servir
para isentar outro da dívida que tem para com ela; pois cada um
se deve completamentee só poderá pagar por si,e nenhum pai pode
transmitir ao filho o direito de ser inútil para os seus semelhantes;
mas, segundo o que dizeis, é o que ele faz, transmitindo-lhe as suas
riquezas, que são a prova e o preço do trabalho. Aquele que, na ocio­
sidade, come o que não ganhou com o seu próprio trabalho, rouba
o que come; e um rendeiro que o Estado pague para não fazer na­
da, não difere -para mim- de um salteador que vive à custa dos
que passam. Fora da sociedade, o homem isolado, não devendo na­
da a ninguém, tem o direito de viver como lhe apraz; mas, na so­
ciedade, onde necessariamente vive à custa dos outros, deve-lhes,
em trabalho, o preço da sua conservação; esta regra não admite ex- 213
cepção. Por conseguinte, trabalhar é um dever indispensável ao
homem social. Rico ou pobre, poderoso ou fraco, cada cidadão ocio­
so é um ratoneiro.
Ora, de entre todas as ocupações que podem fornecer a sua sub­
sistência ao homem, aquela que mais o aproxima do estado natu­
ral é o trabalho manual; de todas as condições, a mais independen­
te da fortuna e dos homens é a de artífice. O artífice só depende do
seu trabalho; é um homem livre, tão livre quanto o agricultor é es­
cravo; porque este depende do seu campo, cuja colheita depende de
outrem. O inimigo, o príncipe, um vizinho poderoso, um processo,
podem tirar-lhe esse campo; através desse campo, pode ser vexa­
do de mil maneiras diferentes; mas, seja onde forque se pretender
vexá-lo, o artífice rapidamente faz a sua bagagem; pega nos seus
braços e vai-se embora. Porém, a agricultura é o principal ofício do
homem: é o mais honesto, o mais inútil, e, por conseguinte, o mais
nobre que ele possa exercer. Não digo a Emílio: «Aprendei a agri­
cultura», porque ele a conhece. Está familiarizado com todos os
trabalhos do campo; foi por eles que começou a sua aprendizagem;
é a eles que se dedica constantemente. Por conseguinte, digo-lhe:
«Cultiva a herança dos teus pais. Mas, se perderes essa herança,
ou se não a receberes, que farás? Aprende um ofício.»
Um ofício para o meu filho! O meu filho artesão! Senhor, pen­
sais verdadeiramente nisso? Penso melhor que vós, minha senho­
ra, que quereis reduzi-lo a nunca ser mais que um lorde, um mar­
quês, um príncipe, e- talvez, um dia- um menos que ninguém:
quero dar-lhe uma categoria que ele nunca possa perder, uma ca­
tegoria que o honre em todos os momentos; quero elevá-lo à con­
dição de homem; e, seja o que for que possais dizer, terá menos
iguais nessa categoria que em todas as que herdar de vós;
A letra mata, o espírito vivifica. Trata-se menos de aprender
um oficio para saber um ofício, que para vencer os preconceitos que
o desprezam. Nunca sereis reduzido a trabalhar para viver. Pois
então, é pena, é pena para vós! Mas não tem importância; não tra­
balheis por necessidade, trabalhai por glória. Abaixai-vos até à
condição de artesão, para ficardes acima da vossa. Para que a for­
tuna e as coisas se submetam a vós, começai por tornar-vos inde­
pendente delas. Para reinar pela opinião, começai por reinar sobre
ela.
Lembrai-vos de que não é um talento, o que vos peço: é um ofí­
cio, um verdadeiro ofício, uma arte puramente mecânica, em que
as mãos trabalham mais que a cabeça e que não conduz à fortuna
masque permite v iversemela.Nascasasemquese está muito aci­
ma do perigo de vir a ter falta de pão, vi alguns pais levarem a pre­
vidência ao ponto de aliarem ao cuidado de instruírem os filhos ou
de os proverem com conhecimentos que, em caso de necessidade,
2 1 4 lhes pudessem ser úteis para subsistir. Esses pais previdentes
crêem fazer muito; não fazem nada, porque os recursos com que
pensam prover os filhos dependem dessa mesma fortuna acima da
qual eles os querem colocar. De modo que, com todos esses belos ta­
lentos, se aquele que os tem não se encontra em circunstâncias fa­
voráveis para os utilizar, morrerá de miséria, como se não tivesse
nenhum.
Desde que se trate de embustes e de intrigas, mais vale utili­
zá-los para se manter na abundância do que para recuperar, do
seio da miséria, com que reconquistar a sua primeira condição. Se
cultivais artes cujo sucesso depende da reputação do artista; se vos
tornais próprio para trabalhos que só se conseguem pelos favores,
de que vos servirá tudo isso quando, justamente enojado do mun­
do, desdenhardes os meios sem os quais nada se consegue? Estu­
dastes a política e os interesses dos príncipes. Eis o que está mui­
to bem; mas que fareis desses conhecimentos se não conseguirdes
chegar aos ministros, às cortesãs, aos chefes das repartições; se
não tiverdes a arte de lhes agradar, se todos não virem em vós o ve­
lhaco que lhes convém? Sois arquitecto ou pintor: seja, mais deveis
dar a conhecer o vosso talento. Pensais que, sem mais ne111 menos,
podereis expor no salão? Oh! Isso não é assim tão fácil! E preciso
fazer parte da Academia; é mesmo necessário ter-se lá alguma
protecção, para conseguir obter um pequeno lugar obscuro nalgu­
ma parede. Deixai a régua e o pincel; tomai um fiacre e correi de
porta em porta: é assim que se adquire a celebridade. Ora, deveis,
saber que todas essas ilustres portas têm porteiros que só com­
preendem com gestos e cujos ouvidos estão nas suas mãos. Quereis
mostrar o que aprendestes e tornar-vos mestre de geografia, de
matemática, de línguas, de música ou de desenho? Mesmo para is­
so é preciso encontrar alunos, por conseguinte, panegiristas. Sabei
que convém mais ser charlatão que hábil, e que, se apenas sabeis
o vosso ofício, não passareis de um ignorante.
Vede, pois, quão pouco sólidos são todos esses expedientes, e
quantos outros vos são necessários para tirar partido daqueles. E
depois, que será de vós, nesse relaxado aviltamento? Os revezes,
sem vos instruírem, aviltam-vos; mais do que nunca fantoche da
opinião pública, de que maneira vos elevareis acima dos preconcei­
tos, árbitros do vosso destino? Como podereis desprezar a baixeza
e os vícios de que necessitareis para subsistir? Só dependíeis das
riquezas, e eis que agora dependeis dos ricos; não fizestes mais que
aumentar a vossa escravidão e sobrecarregá-la com a vossa misé­
ria. Eis-vos pobre, sem serdes livre; é o que de pior pode acontecer
ao homem.
Mas, em vez de-para viver-recorrerdes a esses altos conhe­
cimentos que são feitos para alimentar a alma e não o corpo, se,
quando necessário, recorrerdes às vossas mãos e ao uso que delas
sabeis fazer, todas as dificuldades desaparecem, todas as artima- 215
nhas se tornam inúteis; o expediente está sempre pronto, no mo­
mento de se servir dele; a probidade, a honra, deixam de ser um
obstáculo para a vida; já não precisais de ser covarde e hipócrita
diante dos grandes, flexível e bajulador diante dos velhacos, vil
serviçal de toda a gente, pedinchão ou ladrão- o que é quase a
mesma coisa, quando não se possui nada; a opinião dos outros dei­
xa de vos interessar; já não precisais de fazer a corte a ninguém,
já não precisais de adular nenhum tolo, de subornar nenhum por­
teiro, de pagar a nenhuma cortesã, e, o que era pior, de bajular nin­
guém . Que os grandes negócios sejam dirigidos por tratantes, pou­
co vos importa; isso não vos impedirá, a vós, na vossa vida obscu­
ra, de ser um homem honesto e de ter pão. Entrais na primeira lo­
ja do oficio que aprendestes: «Mestre, preciso de trabalho». «Com­
panheiro, ponde-vos aí, trabalhai. Antes que sejam horas de almo­
çar, tereis ganho o vosso almoço; se fordes diligente e sóbrio, den­
tro de oito dias tereis com que viver outros oito dias: tereis vivido
livre, são, leal, laborioso, justo. Não é perder o seu tempo, ganhá­
-lo desta maneira.>>
Quero absolutamente que Emílio aprenda um ofício. Um ofício
que, pelo menos, seja honesto- direis vós? Que significa essa pa­
lavra? Todos os ofícios que são úteis ao público não serão honestos?
Não quero que ele sej a bordador, nem dourador, nem enverniza­
dor, como o gentil-homem de Locke; não quero que ele seja, nem
músico, nem comediante, nem fazedor de livros'. Exceptuando es­
tas profissões e as que se lhe assemelham, que ele escolha a que
quiser; não pretendo constrangê-lo em nada. Prefiro que ele seja
sapateiro que poeta; prefiro que ele seja calceteiro de grandes ca­
minhos a que faça flores de porcelana. Mas, dir-me-eis, os arquei­
ros, os espiões, os carrascos são pessoas úteis. Só do governo depen­
de que deixem de o ser. Mas passemos adiante; enganei-me: não
basta escolher um ofício útil: ainda é preciso que este não exija­
das pessoas que o exercem-qualidades de alma que sejam odio­
sas e incompatíveis com a humanidade. Assim, voltando ao prin­
cípio, escolhamos um ofício honesto; mas lembremo-nos sempre de
que não há honestidade sem a utilidade.
Um célebre autor deste século2, cujos livros estão cheios de
grandes projectos e de vistas curtas, tinha feito o voto-como to­
dos os sacerdotes da sua confissão-de não se casar; mas como, a
respeito do adultério, era mais escrupuloso que os outros, dizem

1 «Mas vós soi-lo», dir-me-ão. Para minha infelicidade, sou-o, con­


fesso; e os meus erros, que penso ter expiado bastante, não constituem, pa­
ra outrem, motivos para cometer os mesmos. Não escrevo para desculpar
os meus erros mas para impedir o meu leitor de os imitar.
2
216 O abade de Saint-Pierre.
que tomou o partido de escolher criadas bonitas, com as quais re­
parava, da melhor m aneira que lhe era possível, o ultraje que fi­
zer às da sua espécie, ao tomar esse compromisso temerário. Con­
siderava como um dever do cidadão dar outros cidadãos à pátria,
e com o tributo que a esta pagava desse modo, povoava a classe dos
artesãos. Logo que as crianças atingiam a idade propícia, manda­
va ensinar, a todas elas, um ofício que elas podiam escolher, ex­
cluindo apenas as profissões ociosas, fúteis ou sujeitas à moda, tais
como, por exemplo, a de peruqueiro, que nunca é indispensável e
que se pode tornar inútil, de um dia para o outro, se a natureza não
se recusar a dar-nos cabelos.
É este o espírito que nos deve guiar na escolha do ofício de
Emílio, ou antes, não é a nós que compete fazer essa escolha, mas
a ele; porque, como as máximas de que está penetrado, conservam,
nele, o desprezo natural pelas coisas inúteis, nunca ele quererá
dispendero seu tempo com trabalhos de nenhum valor e o único va­
lor que reconhece às coisas é o da sua verdadeira utilidade; preci­
sará de aprender um ofício que tivesse podido ser útil a Robinson,
na sua ilha. Mostrando a uma criança as produções da natureza e
da arte, exacerbando a sua curiosidade, seguindo-a até onde esta
a conduz, tem-se a vantagem de poder estudar os seus gostos, as
suas inclinações, as suas tendências, e de ver brilhar a primeira
faísca do seu génio, se ela tiver algum que esteja bem determina­
do. Mas um erro mui to vulgar e de que vos deveis precaver é o de
atribuir à excitação do talento 0 efeito da ocasião, e de tomar por
uma inclinação marcada- para esta ou para aquela arte -o es­
pírito imitador, comum ao homem e ao macaco, que, maquinal­
mente, leva um e outro a quererem fazer tudo quanto vêem estar
a ser feito, sem sequer saberem qual a sua utilidade. O mundo es­
tá cheio de artesãos, e sobretudo de artistas, que não têm o talen­
to natural da arte que exercem e para a qual alguém os empurrou
desde a sua mais tenra idade, talvez determinado por outras con­
veniências, ou enganado por um aparente zelo que, do mesmo mo­
do, os poderia ter impelido para outra arte, se eles a tivessem vis­
to praticar. Há os que quando ouvem tambores se supõem gene­
rais; os que vêem construir e se imaginam arquitectos. Cada um se
sente tentado pelo ofício que vê exercer, quando o crê estimado.
Conheci um lacaio que, vendo o amo pintar e desenhar, decidiu
s>er pintor e desenhador. Logo que tomou esta resolução, pegou no
lápis, que só largou para pegar no pincel, que nunca mais abando­
nou. Sem ter recebido lições nem ter aprendido regras, pôs-se a de­
senhar tudo quanto lhe apetecia. Passou três anos completos a fa­
zer gatafunhos, só os abandonando para fazer o seu serviço, e sem
nunca se sentir desanimado com os poucos progressos que medío­
cres disposições lhe permitiam fazer. Vi-o durante seis meses de
um Verão abrasador, num pequeno vestíbulo exposto ao sul-on- 217
de todos os que por lá passavam se sentiam sufocar-, sentado, ou
antes, pregado durante todo o dia à sua cadeira, diante de um glo­
bo a desenhar esse globo, a voltar a desenhá-lo, a começar e a re­
começar, constantemente, com uma invencível obstinação até ter
conseguido desenhar o arredondado bastante bem para se sentir
satisfeito com o seu trabalho. Por fim, auxiliado pelo seu amo e diri­
gido por um artista, chegou ao ponto de poder despir a libré e vi­
ver do seu pincel. Até um determinado ponto, a perseverança
supre o talento: ele atingiu esse termo e nunca irá mais longe. A
constância e a emulação desse corajoso rapaz são louváveis. Será
sempre estimado pela sua assiduidade, pela sua fidelidade, pelo
seu com portamento; mas nunca pintará mais do que ombreiras de
portas. Quem é que não se teria deixado enganar pelo seu zelo e não
o teria tomado por um verdadeiro talento? Há uma grande diferen­
ça entre gostar de um trabalho e ter jeito para o fazer. São neces­
sárias observações mais finas do que se pensa, para se poder ficar
com a certeza do verdadeiro génio e do verdadeiro gosto de uma
criança que mostra muito mais os seus desejos que as suas dispo­
sições, e que sempre temos tendência para julgar pelos primeiros,
por não sabermos estudar as segundas. Gostaria que um homem
judicioso nos escrevesse um tratado sobre a arte de observar as
crianças. Seria muito importante, o conhecimento dessa arte: os
pais.e os mestres ainda não lhe conhecem os elementos.
Mas talvez eu esteja a atribuir uma importância exagerada à
escolha de um ofício. Já que apenas se trata de um trabalho ma­
nual, essa escolha não apresenta dificuldades para E mílio; e a sua
aprendizagem já está mais ou menos feita, com os exercícios que,
até agora, tem praticado. Que quereis que ele faça? E stá prepara­
do para tudo: já sabe manejar a pá e a enxada; sabe servir-se do
torno, do martelo, da plaina, da lima; já está familiarizado com os
instrumentos de todos os ofícios. Trata-se apenas de adquirir uma
boa prática de algum desses instrumentos, uma prática bastante
rápida e bastante fácil, para igualar, em diligência, os bons obrei­
ros que os utilizam; e, neste ponto, ele tem uma grande vantagem
sobre os outros, que é ter o corpo ágil, os membros flexíveis, para
poder tomar, sem dificuldade, todos os géneros de posições e pro­
longar sem esforço todas as espécies de movimentos. Além disso,
tem os órgãos em bom estado e bem treinados; já conhece toda a
mecânica das artes. Para poder trabalhar como mestre, só lhe fal­
ta o hábito, e o hábito só com o tempo se adquire. A qual dos ofícios
de que ainda não fizemos a escolha dedicará ele o tempo bastante
para se tornar especializado? Já' só disso é questão.
Dai ao homem um ofício que convenha ao seu sexo, e ao rapaz
um ofício que convenha à sua idade: nenhuma das profissões se­
dentárias e caseiras, que efeminam e amole,cem o corpo, lhes agra-
2 1 8 da ou lhes convém. Nunca um rapaz aspirou a ser alfaiate; é pre-
ciso arte, para conduzir a esse ofício de mulheres o sexo para o qual
ele não foi feito1• A agulha e a espada não deveriam ser manejadas
pelas mesmas mãos. Se eu fosse rei, determinaria que a costura e
os ofícios de agulha fossem exercidos apenas pelas mulheres e pe­
los aleijados, reduzidos a trabalharem como elas. Supondo que os
eunucos sejam necessários, acho que os orientais são loucos, por os
fazerem propositadamente. Por que não se contentam com os que
a natureza fez , com essa quantidade de homens covardes cujo co­
ração mutilou? Encontrariam eunucos de sobejo. Todo o homem
fraco, delicado, receoso, fica condenado, por ela, à vida sedentária;
é feito para viver com as mulheres ou como elas. Que exerça algum
dos ofícios que lhe são próprios, isso é muito natural; e, se, real­
mente, é preciso ter verdadeiros eunucos, que se reduzam a esse
estado os homens que desonram o seu sexo exercendo ofícios que
não lhes convêm. A sua escolha traduz o erro da natureza: seja co­
mo for que corrigirdes esse erro, só tereis procedido bem.
Proíbo ao meu pupilo os ofícios nocivos para a saúde, mas não
os que são penosos, ou perigosos. Estes desenvolvem sim ultanea­
mente a força e a coragem; são próprios unicamente para os ho­
mens; as mulheres não os pretendem: como será possível que eles
não se envergonhem de preferir os que elas exercem?

Luctantur paucae, comedunt coliphia paucae.


Vos lanam trahitis, calathisque peracta refertis
Vellera ...

Na Itália, não se vê nenhuma mulher nas lojas; e não se pode


imaginar nada mais triste que o aspecto das ruas desse país, pa­
ra aqueles que estão acostumados às da França e da Inglaterra.
Quando vi os comerciantes de modas estarem a vender, às senho­
ras, as fitas, os laços, os pompons, a rede e os galões de veludo,
achei que esses delicados ornamentos estavam a ser mui to ridicu­
larizados, nas grossas mãos desses homens, feitas para trabalhar
na forja e bater na bigorna. Disse, cá para comigo: «Neste país, as
mulheres deveriam, como represálias, abrir lojas de alfagemes e
de armas de fogo. Ora! Que cada um faça e venda as armas do res­
pectivo sexo. Para as conhecer, é preciso saber utilizá-las.»
Jovem, imprime aos teus trabalhos a mão do homem. Apren­
de a m anejar, com braços vigorosos, o machado e a serra, a esqua­
driar uma viga, a subir a um forro de telhado, a colocar um viga­
mento, a fixá-lo; depois, pede à tua irmã que te vá aj udar no teu
trabalho, assim como ela te pediu que fizesses o seu ponto de cruz.

1 Entre os antigos, não havia alfaiates: as vestes dos homens eram


feitas em casa, pelas mulheres. 219
Sinto que estou a exagerar, para os meus abtradáveis contem­
porâneos; mas, por vezes, deixo-me arrastar para a força das con­
sequências. Se houver algum homem que tenha vergonha de tra­
balhar com um m achado, em público, e de ser visto cingido com um
avental de couro, nada mais posso ver nele que não seja um escra­
vo.da opinião pública, prestes a corar por proceder bem, logo que
ouvir o troçar das pessoas honestas. Porém cedamos aos preconcei­
tos dos pais tudo quanto não possa ser prejudicial para a manei­
ra de ajuizar dos filhos. Não é indispensável exercer todas as pro­
fissões úteis p ara as honrar a todas; basta não considerar nenhu­
ma abaixo de si próprio. Quando se tem a possibilidade de escolher
e que nada nos leva a decidir, por que não consultar o prazer, a in­
clinação, a conveniência entre as profissões da mesma categoria?
O s trabalhos dos metais são úteis, a até os mais úteis de todos; con­
tudo, a menos que uma razão especial me leve a isso, não farei do
vosso filho um ferrador, nem um serralheiro nem um ferreiro; não
gostaria nada de lhe ver, na sua forja, o aspecto de um ciclope. Pe­
la mesm� razão, não farei dele um pedreiro, e ainda menos um sa­
pateiro. E preciso que todos os ofícios se façam: mas aquele que po­
de escolher deve tomar em consideração a limpeza, porque, nesse
ponto, não é a opinião pública que decide, mas sim os nossos sen­
tidos. Enfim, não gostaria dessas profissões estúpidas em que o s
trabalhadores - sem destreza e quase como autómatos - exerci­
tam as mãos sempre no mesmo trabalho; os tecelões, os fazedores
de meias, os serradores de pedras : para que serve utilizar, nesses
ofícios, homens de inteligência? Uma máquina faz trabalhar a
outra.
Tudo bem considerado, o ofício que eu .mais gostaria que
agradasse ao meu pupilo é o de marceneiro. E limpo, é útil, pode
exercer-se em casa; mantém o corpo suficientemente ágil; do m ar­
ceneiro, exige arte e inteligência, e na form a dos trabalhos que a
utilidade determina, a elegância e o gosto não ficam excluídos.
Se, por acaso, o génio do vosso pupilo estivesse decididamen­
te virado para as ciências especulativas, não acharia mal que lhe
désseis um ofício de conformidade com as suas inclinações; que
aprendesse, po exemplo, a fazer instrumentos de matemática, ócu­
los, telescópios, etc.
Quando Emílio aprender o seu ofício, também o quero apren­
der com ele; porque estou convencido de que só conseguirá apren­
der bem o que aprendermos juntos. Por conseguinte, começaremos
a aprendizagem ao me smo tempo, e não pretenderemos ser trata­
dos como senhores, mas como verdadeiros aprendizes; efectiva­
mente, por que não haveríamos de o ser? O czar Pedro era carpin­
teiro nos estaleiros e tambor nos seus próprios exércitos; pensais
210 que esse príncipe fosse menos que nós, pelo nascimento ou pelo mé-
rito? Certamente que compreendeis que não é a Emílio que digo is­
to; é a vós, sej a quem for que sejais.
Infelizmente, não poderemos passar todo o nosso tempo no
banco da carpintaria. Não somos aprendizes obreiros, mas apren­
dizes homens; e a aprendizagem deste último ofício é mais peno­
sa e mais demorada que a outra. E ntão, como faremos? Contrata­
remos um mestre de plaina, durante uma hora por dia, como quem
contrata um mestre de dança? Não. Porque, desse modo, não seria­
mos aprendizes mas sim discípulos; e a nossa ambição não é tan­
to a de aprender a mercenaria como a de nos elevarmos à condição
de marceneiro. Por conseguinte, sou da opinião de que vamos, pe­
lo menos uma ou duas vezes por semana, passar o dia inteiro na lo­
ja do mestre, que nos levantemos à hora dele, que nos ponhamos
ao trabalho antes dele, que comamos à sua mesa, que trabalhemos
sob as suas ordens, e que depois de termos tido a honra de jantar
com a sua família, voltemos, se quisermos, a deitar-nos nos nos­
sos leitos duros. Eis como se aprendem vários oficias ao mesmo
tempo, e como se habituam as mãos ao trabalho, sem negligenciar
a outra aprendizagem.
Sejamos simples fazendo bem as coisas. Não reproduzamos a
vaidade, para depois a combater. Orgulhar-se por ter combatido
e vencido os preconceitos é submeter-se a ela. Diz-se que, segun­
do um antigo costume da casa otomana, o Grande Senhor é obri­
gado a trabalhar com as suas próprias mãos; e todos sabemos que
os trabalhos de uma casa real só podem ser obras-prim as. Por con­
seguinte, ele distribui magnificamente essas obras-primas pelos
grandes d a Porta; e o trabalho é pago consoante a qualidade do
obreiro. O único mal que vejo nisso não é esse pretenso vexame;
porque, pelo contrário, ele é um bem. Forçando os grandes a com­
partilhar com ele os espólios do povo, o príincipe fica menos obri­
gado a pilhar directamente o povo. Trata-se de um alívio necessá­
rio ao despotismo, e sem o qual esse horrível governo não poderia
subsistir.
O verdadeiro mal de um costume desses é a ideia que ele dá a
esse pobFe homem sobre o seu mérito. Tal como o rei Midas, ele vê
transformar-se em ouro tudo aquilo em que toca, mas não se aper­
cebe das orelhas que isso faz crescer. Para que as do nosso Emílio
se conservem pequenas, preservemos as suas m ãos desse rico ta­
lento; que o que ele fizer não retire o seu valor do obreiro mas d a
obra. Nunca suportemos que s e avalie o seu sem o comparar com
o dos bons mestres. Quero que o seu trabalho s ej a estimado pelo
próprio trabalho e não por ter sido feito por ele. Dizei, do que é bem
feito: Eis uma coisa bem feita; mas não acrescenteis: Quem foi que
fez isto ? Se ele próprio disser, com um ar orgulhoso, e satisfeito de
si mesmo: Fui eu quem o fez, acrescentia friamente: Vós ou qual- 221
quer outro, pouco importa; o que interessa é que se trata de um tra­
balho bem feito.
Boa m ãe, preserva-te sobretudo das mentiras que te estão a
preparar. Se o teu filho sabe m uitas coisas, desconfia de tudo quan­
to ele sabe; se ele tem a desgraça de ser educado em Paris e de ser
rico, está perdido. enquanto lá houver hábeis artistas, terá todos
os seus talentos; mas, afastado deles, deixará de os ter. Em Paris,
o rico sabe tudo; só o pobre é ignorante. Essa capital está cheia de
amadores e, sobretudo, de amadoras que fazem os seus trabalhos
do mesmo tnodo que M. Guillaume, para inventar as suas cores.
Nisto, conheço apenas três excepções honrosas entre os homens, e
até pode haver mais; mas não conheço nenhuma entre as mulhe­
res, e duvido de que as haja em geral, adquire-se um nome nas ar­
tes, como na toga; é possível ser--se artista e juiz dos artistas, do
mesmo modo que se pode ser doutor em Direito e magistrado.
Assim, se se viesse a estabelecer que é belo conhecer um ofício,
os vossos filhos sabê-lo-iam muito depressa, sem o terem apren­
dido; ficariam mestres, como os conselheiros de Zurique. Nada de
ceremoniais destes para Emílio; nada de aparências, só a rea­
lidade. Que não se diga que ele sabe, mas que ele aprenda em si­
lêncio. Que faça sempre a sua obra-prima e que nunca passe a
mestre; que não se mostre obreiro pelo seu título, mas pelo seu tra­
balho.
Se, até aqui, consegui ser compreendido, poder-se--á ima­
ginar como - com o hábito do exercício do corpo e do trabalho das
mãos -, insensivelmente, eu consigo transmitir ao meu aluno o
gosto pela reflexão e pela meditação, para nele compensar a pre­
guiça que resultaria da sua irydiferença pelos juízos dos homens e
da calma das suas paixões. E preciso que ele trabalhe como um
camponês e que pense como um filósofo, para não ser tão indolen­
te como um selvagem . O grande segredo da educação está em fa­
zer que os exercícios do corpo e os do espírito sirvam sempre de re­
creação uns aos outros.
Mas evitemos antecipar sobre as instruções que exigem um es­
pírito mais maduro. Emílio não será artífice durante mui to tempo,
sem sentir, por si próprio, a desigualdade das condições, em que,
de início, não reparara. Pelas máximas que lhe cito e que estão ao
alcance da sua compreensão, quererá examinar-me a mim. Rece­
bendo tudo unicamente de mim, vendo--se tão próximo da condição
dos pobres, quererá saber por que me encontro tão longe dela. Tal­
vez, inesperadamente, me faça perguntas melindrosas: «Sois rico,
disseste-mo, e vejo-o. Um rico também deve o seu tributo de tra­
balho à sociedade, pois é homem. Mas vós, que fazeis por ela?» Que
resposta lhe daria um belo governante? Ignoro-o. Talvez fosse su­
ficientemente tolo para falar à criança dos cuidados que lhe pres-
222 ta. Quanto a mim, �ofici.na ajuda-me a encontrar uma resposta:
«Eis, caro Emílio, uma excelente pergunta; pelo que se refere a
mim, prometo dar-lhe uma resposta, depois de vós lhe terdes
dado, pelo que a vós se refere, uma que vos satisfaça. Entretanto,
esforçar-me-ei por vos dar - a vós e aos pobres - tudo quanto te­
nho a mais, e de fazer um banco por semana, a fim de não ser com­
pletamente inútil para tudo.»
Eis-nos regressados a nós mesmos. Eis a nossa criança pres­
tes a deixar de o ser, reentrando no seu indivíduo. Ei-la, sentindo
mais do que nunca a necessidade que o amarra às coisas. Depois
de ter começado por cultivar o seu corpo e os seus sentidos, culti­
vámos o seu espírito e o seu discernimento. Por fim, reunimos a uti­
lização dos seus membros à das suas faculdades; formámos um ser
que age e que pensa; para completarmos o homem, só nos falta fa­
zer um ser amante e sensível, isto é, aperfeiçoar-lhe a razão com
o sentimento. Mas, antes de entrarmos nesta nova ordem de coi­
sas, lancemos um olhar para aquela de onde saímos e vejamos, o
mais exactamente que nos for possível, até onde chegámos .
Ao princípio, o nosso pupilo tinha apenas sensações: agora tem
ideias; limitava-se a sentir: agora ajuíza. Porque, da comparação
de várias sens ações sucessivas ou simultâneas, e do juízo que de­
las se faz, nasce uma espécie de sensação mista ou complexa, a que
chamo «ideia».
É a maneira de formar as ideias que dá um carácter ao espíri­
to humano. O espírito que precisa de verdadeiras conexões para
formar as suas ideias é um espírito sólido; aquele que se contenta
com as conexões aparentes'é um espírito superficial; aquele que vê
as conexões tais como elas são é um espírito justo; aquele que as
aprecia mal é um espírito falso; aquele que forja conexões imagi­
nárias, sem realidade nem aparência, é um louco; aquele que não
compara é um imbecil. A aptidão mais ou menos grandepara com­
parar ideias e encontrar conexões é o que dá aos homens mais ou
menos espírito, etc.
As ideias simples não passam de sensações comparadas. Há
juízos nas simples sensações, assim como nas sensações comple­
xas, que eu designo como ideias simples. Na sensação, o juízo é pu­
ramente passivo, afirma que se sente o que se sente. Na percepção
ou ideia, o juízo é activo; aproxima, com para, determina as cone­
xões que o sentido não determina. Eis toda a diferença; mas ela é
grande. A natureza nunca nos engana; somos sempre nós que nos
enganamos.
Vejo que servem um queijo gelado a uma criança de 8 anos; ela
leva a colher à boca, sem saber o que é, e, arrepiada com o frio, ex­
clama: Ai! Isto queima! Experimenta uma sensação muito viva;
mais viva, só conhece a que lhe dá o calor da lareira, e crê ser essa
a que experimenta. No entanto, engana-se; o arrepio do frio fere­
a, mas não a queima; e essas duas sensações não se assemelham,
pois aqueles que sentiram uma e outra não as confundem. Por 223
t'or conseguiu te, não é a sensação que a engana mas o juízo que ela
faz dessa sensação.
O mesmo acontece àquele que, pela primeira vez, vê um es­
pelho ou uma máquina de óptica, ou que penetra numa cave pro­
funda, no pino do Inverno ou do Verão, ou que mergulha na água
morna uma mão muito quente ou muito fria, ou que faz rolar en­
tre os dedos cruzados uma pequenina bola, etc. Se se contentar em
dizer o que vê, o que sente, como, nesse caso, o seu juízo é pura­
mente passivo, não é possível que se engane; mas quando ele jul­
ga a coisa pela aparência, é activo, compara, estabelece - por
indução -conexões que não vê; nesse caso, engana-se ou pode en­
ganar-se. Para corrigir, ou prevenir o engano, precisa de experiên­
c ia.
Durante a noite, mostrai ao vosso pupilo algumas nuvens que
passem entre a Lua e ele: convencer-se-á de que é a Lua que pas­
sa no sentido contrário e que as nuvens estão paradas. Crê-lo--á
por uma indução precipitada, porque, geralmente, vê que os pe­
quenos obj ectos se deslocam de preferência aos grandes, e porque
as nuvens lhe parecem maiores que a Lua, cujo afastamento ele
não pode avaliar. E quando, viajando num barco que navega um
pouco afastado de terra, ele olha para a costa, cai no engano inver­
so, e crê ver a costa correr, porque, como não se sente em movimen­
to, considera o barco, o mar ou o rio, e todo o seu horizonte, como
um todo imóvel de que a costa que ele vê correr só lhe parece ser
uma parte.
A primeira vez que uma criança vê um pau meio mergulhado
na ábrua, vê um pau partido: a sensação é verídica; e não deixaria
de o ser, mesmo que não souhéssemos o motivo dessa aparência.
Por conseguinte, se lhe perguntardes o que vê, ela responde: Um
pau parti do, e diz verdade, porque é realmente exacto que ela tem
a sensação de um pau partido. Mas quando, enganada pelo seu juí­
zo, ela vai mais longe, e, depois de ter afirmado que vê um pau par­
tido, torna a dizer que o que vê é, efectivamente, um pau partido,
mente. E porquê? Porque, nessemomento, torna-se activa e já não
julga por inspecção, mas por indução, afirmando o que não sente,
isto é, que o juízo que recebe através de um sentido foi confirma­
do por outro.
Já que todos os nossos enganos provêm dos nossos juízos, é
evidente que se nunca tivéssemos necessidade de ajuizar, não
teríamos necessidade nenhuma de aprender; nunca nos encontra­
ríamos na situação de nos enganarmos; sentir-nos-íamos mais fe­
lizes com a nossa ignorância que o que somos com a nossa sabedo­
ria. Quem é que nega que os sábios sabem mil coisas verdadeiras
que os ignorantes nunca virão a saber? Mas, lá por isso, estarão os
sábios mais próximos da verdade? Pelo contrário, afastam-se de-
2 24 la, à medida que vão avançando; porque, com a vaidade de ajuizar
ainda faz mais progressos que as luzes, cada verdade que
aprendem chega-lhes com cem juízos errados. É absolutamente
evidente que as companhias eruditas da E uropa não são mais que
escolas públicas de mentiras; e, com toda a certeza, há mais en­
ganos na Academia das Ciências que em todo um povo de Algon­
quianos.
Como quanto mais sabem, mais os homens se enganam, a úni­
ca maneira de evitar o erro é a ignorância. Não ajuizai e nunca vos
enganareis. É esta a lição da natureza assim como a da razão. Além
das relações imediatas e em muito pequeno número e muito sen­
síveis, que as coisas têm connosco, naturalmente só temos uma
profunda indiferença por tudo o resto. Um selvagem não se desvia­
ria do seu caminho para ir ver funcionar a mais bela máquina e to­
dos os prodígios da electricidade. Que me interessa a mim ? É a fra­
se mais familiar ao ignorante e a que mais convém ao sábio.
Mas, infelizmente, esta frase já não nos convém. Tudo nos in­
teressa, desde que estamos dependentes de tudo; e a nossa curio­
sidade alarga-se naturalmente com as nossas necessidades. Eis
porque atribuo uma grande quantidade delas ao filósofo, e nenhu­
ma ao selvagem. Este não tem necessidade de ninguém; o outro
precisa de toda a gente, e sobretudo de admiradores.
Dir-me-ão que trato de coisas que não são da natureza; não me
parece.Ela escolhe os seus instrumentos, e regula-<>s, não pela opi­
nião pública, mas pela necessidade. Ora, as necessidades mudam,
consoante a situação dos homens. Há uma grande diferença entre
o homem natural que vive no estado da natureza, e o homem na­
tural que vive no estado da sociedade. Emílio não é um selvagem
que se deva relegar nos desertos, mas um selvagem feito para vi­
ver nas cidades. E preciso que, nelas, seja capaz de encontrar o que
lhe é necessário, de tirar partido dos seus habitantes, e viver, se
não como estes, pelo menos com eles.
Pois que- por entre todas as novas conexões de que irá depen­
der - se verá obrigado a ajuizar, ensinemo-lo a ajuizar bem.
A melhor maneira de aprender a bem ajuizar é a que mais ten­
de para simplificar as nossas experiências, e até para as evitar,
sem nos deixar cair no engano. Daí se segue que, depois de duran­
te muito tempo se terem verificado as relações dos sentidos entre
si, ainda é preciso aprender a verificar as relações de cada senti­
do consigo mesmo, sem ter necessidade de recorrer a nenhum
outro; então, cada sensação passará a ser, para nós, uma ideia; e
essa ideia estará sempre de conformidade com a verdade. E este o
género de conhecimento com que pretendi ocupar esta terceira ida­
de da vida humana.
Esta maneira de proceder exige uma paciência e uma cir­
cunspecção de que poucos perceptores são capazes e sem a qual o 2 2 5

L.B.523 -15
pupilo nunca aprenderá a ajuizar. Se, por exemplo, quando este se
engana sobre a aparência do pau partido e, a fim de lhe mostrar­
des o seu engano, vos apressardes a retirar o pau da água, talvez
o desenganeis; mas que lhe tereis ensinado? Nada que ele não
acabasse por aprender por si mesmo. Ora! Não é isso o que se de­
ve fazer! Trata-se menos de lhe ensinar uma verdade que de lhe
mostrar como é preciso fazer para sempre descobrir a verdade. Pa­
ra melhor o instruir, é preciso não o desenganar logo. Como exem­
pio, consideremos Emílio e eu.
Para começar, à segunda das duas supostas perguntas,
qualquer criança educada de utp.a maneira vulgar não deixará de
responder afirmativamente. «E, com certeza>•, dirá ela, «Um pau
partido.»
Duvido muito deque Emílio me dê a mesmaresposta. Nãoven­
do a necessidade de ser sábio nem a de o parecer, nunca se sente
com pressa de ajuizar; só ajuíza perante a evidência; está muito
longe de a encontrar, neste caso, ele que bem sabe que os nossos juí­
zos baseados sobre as aparências estão sujeitos à ilusão, quanto
mais não seja no que se refere à perspectiva.
Aliás, como sabe, p or experiência, que as minhas mais frívolas
perguntas têm sempre alguma intenção de que, para começar, ele
nunca se apercebe, não adquiriu o hábito de lhes dar respostas es­
touvadas; pelo contrário, desconfia delas, presta-lhes atenção,
examina-as muito cuidadosamente antes de lhes responder. Nun­
ca me dá uma resposta que não o satisfaça; e é difícil de satisfazer.
enfim, nem ele nem eu pretendemos saber a verdade sobre todas
as coisas: apenas desejamos não nos enganar. Ficaríamos muito
mais confusos se lhe encontrássemos uma razão que não é a ver­
dadeira do que não lhes encontrando razão nenhuma. Não sei é
uma frase qu� nos fica tão bem, a ambos, e que tão frequentemen­
te repetimos, que já não nos custa nada a dizer, a nenhum de nós.
Mas, seja que essa resposta estouvada lhe escape dos lábios ou que
ele a evite com o nosso cómodo Não sei, a minha reacção é sempre
a mesma: Vejamos, examinemos.
Esse pau que está meio mergulhado na água encontra-se
fixo numa posição perpendicular.
Para sabermos se está partido - como parece - , quantas
coisas teremos de fazer antes de o tirarmos da água ou de lhe pôr
as mãos em cima!

1 .º - Para começar, damos a volta ao pau e vemos que a sua


linha de rup tura também roda, como nós. Por conseguinte, é ape­
nas a nossa vista que a muda de lugar e os olhares nunca deslocam
OS COrf?OS.
2.- - Olhamos bem a prumo, por cima da extremidade do pau
2 26 que emerge da água; então vemos que o pau não está vergado, que
a extremidade que se encontra perto dos nossos olhos nos esconde
exactamente a outra extremidade1 • A nossa vista teria endireitado
o pau?
3.º- Agitamos a superfície da água; vemos o pau dobrar-se em
várias partes, mover-se em ziguezague e seguir as ondulações da
água. Omovimento que imprimimos a essa águ, será suficiente pa­
ra quebrar, amolecer e derreter o pau dessa maneira?
4.º - Fazemos escoar a água e vemos o pau que se endireita,
à medida que o nível da água baixa. Não será isso mais do que é
preciso para esclarecer o facto e descobrir a refracção? Por conse­
guiu te, não é verdade que a vista nos engane, pois ela nos basta pa­
ra corrigirmos os enganos que lhe atribuímos.

Suponhamos que a criança é tão estúpida que não compreen­


de o resultado destas experiências; é então que deveis fazer apelo
ao tacto, para auxiliar a vista. Em vez de retirardes o pau da água,
deixai-o como está, e levai a criança a passar-lhe a mão por cima
- de uma extremidade à outra; ela não sentirá nenhum ângulo;
por conseguinte, o pau não está partido.
Dir-me-eis que, reste caso, não só há juízos como também ra­
ciocínios completos. E verdade; mas não vedes que, logo que o espí­
rito atinge as ideias, todos os juízos são raciocínios? A consciência
de toda e qualquer sensação é uma proposição, um juízo. Por isso,
desde o momento em que se compara uma sensação com outra,
efectua-se um raciocínio. A arte de ajuizar e a arte de raciocinar
são uma única e a mesma coisa.
Emílio ou aprende a di óptrica com este pau ou nunca a apren­
derá. Não dissecará insectos; não contará as manchas do sol; não
saberá o que são um microscópio e um telescópio. Os vossos dou­
tos pupilos troçarão da sua ignorância; e terão razão: porque, an­
tes de se servir desses instrumentos, quero que ele os invente, e
bem sabeis que isso levará bastante tempo.
Eis o espírito de todo o meu método, que fica descrito nesta par­
te do meu livro. Se a criança fizer rolar uma bolinha entre os seus
dedos cruzados, e supuser sentir duas bolinhas, não lhe permiti­
rei que olhe para o que tem na m ão, enquanto não se tiver conven­
cido de que só tem uma.
E stes esclarecimentos bastarão, calculo, para marcar nitida­
mente o progresso que, até agora, fez o espírito do meu pupilo, e o
caminho que percorreu para seguir esse progresso. Mas talvez vos

1 Depois disto, consegui o contrário com uma experiência mais exac­


ta.A refracção actua circularmente, e a extremidade do pau que está mer­
gulhada na água parece mais grossa que a outra; mas isto em nada mo-
difica a força do raciocínio, nem a exactidão do seu resultado. 227
sintais ofuscados com a quantidade de coisas que lhe mostrei, . Re­
ceais que eu sobrecarregue o seu espírito cQ� �ssa quantidade �e
_
conhecimentos. Dá-se exactamente o contrar1o: ensm()-{) mmto
mais a ignorá-los que a retê-los. Mostro--lhe o caminho da ciência,
realmente fácil mas longo, excessivamente comprido, que leva
muito tempo a percorrer. Lev()-{) a dar os primeiros passos para
que ele lhe reconheça a entrada, mas n ão lhe permito que se afas­
te muito.
Forçado a aprender por si mesmo, ele utiliza a sua razão e não
a de ou trem ; pois, para não dar importância à opinião. dos outros,
não se deve dar nenhuma à sua autoridade; e a maioria dos nossos
erros devemo--los menos a nós próprios que aos outros. Deste
exercício contínuo deverá resultar um vigor de espírito semelhan­
te ao que o trabalho e a canseira dão ao corpo. Uma outra vanta­
gem é a de que só se avança em proporção das forças que se tem.
O espírito, assim como o corpo, só carrega com o que pode supor­
tar. Quando o entendimento se apropria das coisas antes de as de­
por na memória, tudo quanto daí retira pertence-lhe; contanto
que, sobrecarregando a memória sem que ele se aperceba disso, ex­
pomo--nos a nunca dela retirar nada que lhe pertença.
Emílio tem poucos conhecimentos, mas aqueles que tem per­
tencem-lhe verdadeiramente; não tem meios conhecimentos. No
pequeno número de coisas que sabe e que sabebem, a mais impor­
tante é que há muitas outras que ignora e que, um dia, pode vir a
saber muito mais coisas que os outros homens, e uma infinidade
de outras que nunca nenhum homem saberá. Tem um espírito
universal, não pelas luzes, mas pela faculdade de as adquirir; um
espírito aberto, inteligente, disposto a tudo, e, como diz Mon­
taigne, se não instruido, pelo menos instrutível. Basta-me que ele
saiba encontrar o para que serve de tudo quanto faz, e o porquê de
tudo o que crê. Porque, volto a repetir, o meu objectivo não é trans­
mitir-lhe a ciência, mas ensiná-lo a adquiri-la- se disso houver
necessidade -, levá-lo a estimá-la exactamente como ela mere­
ce, e fazê-lo amar a verdade, acima de tudo. Com este método,
avança-se pouco, mas nunca se dá um passo inútil, e nunca nos ve­
mos forçados a recuar.
Emílio só tem conhecimentos naturais e puramente flsicos.
Nem sequer sabe o nome da História, nem o que é a metafísica e
a moral. Conhece as relações essenciais entre o homem e as coisas,
mas nenhuma das relações morais, entre o homem e o homem . Mal
sabe generalizar as ideias ou fazer abstracções. Vê as qualidades
comuns a certos corpos, sem raciocinar sobre essas qualidades em
si mesmas. Conhece a extensão abstracta graças às figuras geo­
métricas; conhece a quantidade abstracta através do sinais de ál-
22s gebra. Essas figuras e esses sinais são os suportes das abstracções
sobre as quais repousam os seus sentidos. Não procura conhecer
as coisas pela sua natureza, mas unicamente pelas relações que
lhe interessam; só avalia o que lhe é desconhecido, quando isso tem
alguma relação com ele; mas essa estimação é exacta e definitiva.
Nem a fantasia, nem a convenção, têm algum a coisa a ver com ela.
Liga mais importância ao que lhe é mais útil; e, como nunca se
afasta desta maneira de apreciar, não se preocupa com a opinião
alheia.
Emílio é laborioso, temperante, paciente, firme, corajoso. A
sua imaginação, de modo nenhum exacerbada, nunca lhe exagera
os perigos; a poucas doenças é sensível e sabe sofrer com constân­
cia, porque não aprendeu a lutar contra o destino. A respeito da
morte, ainda não sabe bem o que ela é; mas, acostumado a supor­
tar, sem resistência, a lei da necessidade, quando tiver de morrer
morrerá sem gemer e sem se debater; é tudo quanto a natureza
permite nesse momento que por todos é receado. Viver livre e pou­
co se agarrar às coisas humanas é o melhor sistema para aprender
a morrer.
Em resumo, Emílio recebe da virtude tudo quanto lhe diz res­
peito. Para também ter as virtudes sociais, precisa unicamente de
conhecer as relações que as exigem; faltam-lhe unicamente as lu­
zes que o seu espírito está preparado para receber.
Considera-se sem se comparar aos outros e acha agradável
que os outros não pensem nele. Não exige nada de ninguém e crê
não dever nada a ninguém. Encontra-se sozinho, na sociedade hu­
mana: conta apenas consigo próprio. Também é verdade que, mais
que qualquer outro, ele tem o direito de contarconsigo próprio, por­
que é tudo quanto se pode' ser, na sua idade. Não comete erros ou
comete apenas aqueles que nos são inevitáveis; Não tem vícios, ou
tem apenas aqueles a que nenhum homem se pode eximir. Tem o
corpo são, os membros ágeis, o espíritojusto e sem preconceitos, o
coração livre e sem paixões. O amor-próprio - o mais importan­
te e o mais natural de todos - ainda pouco exacerbado está. Sem
ter perturbado o repouso de ninguém, viveu satisfeito, feliz e livre,
tanto quanto lho permitiu a natureza. Pensais que uma criança
que, neste estado, chega ao seu décimo quinto ano, tenha perdido
os precedentes?

FIM DO VOLUME I
Colecção�Livros de Bolso Europa-Amêrica..

1 - Esteiros, Soeiro Pereira Gomes 41 - Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma


2 - O Músico Cego, Vladimiro Korolenko Mulher, Stefan Zweig
3 - Frei Lufs de Sousa, Almeida Garrett 42 - Morte Dum CaiXeiro- Viajante,
4 - A Oeste nada deNovo, Arthur Miller
Erich Maria Remarque 43 - A Rua do Gato Que Pesca,
5 - A Míss4o, Ferreira de Castro Yolanda Fõldes
6 - Mar Morto, Jorge Amado 44 - Os Fidalgos da Cosa Mourisca,
7 - A Um Deus Desconhecido, Júlio Dinis
John Steinbeck 45 - A Ponte, Manfred Gregor
8 - O Valente Soldado Chveik, 46.- A Noite Roxa,
Jaroslav Hasek Urbano Tavares Rodrigues
9 - A Cidade do Sossego e O Capote, 47 - Melodia Interrompida, Boris Pasternak
Nicolau Gogol 48 - Nana. Emilio Zola
10 - O Monte dos Ventos Uivantes, 49 - Utopia, Thomas More
Emily Bronte 50 - Engrenagem. Soeiro Pereira Gomes
I I - Gaibéus, Alves Redol 51 - A Religiosa, Diderot
12 - Cartas do Meu Moinho, S2 - Noites Brancas, Fédor Dostoievski
Alphonse Daudet 53 - O <<Bar:iJo>> e Outros Contos,
13 - O Médico e o Monstro, R. Stevenson Branquinho de Fonseca
14 - O Homem e o Rio, William Faulkner 54 - Z, Vassilis Vassilikos
1 5 - Sementes de Violência, Evan Hunter 55 - Os Autos das Barcas, Gil Vicente
16 - O Retrato de Ricardina, 56 - Os Sequestrados de A /tona,
Camilo Castelo Branco Jean-Paul Sartre
17 - Serões da Provinda, Júlio Dinis 57 - Iracema, José de Alencar
18 - As DesencantadQS, Pierre Loti 58 - A Morgadinha dos Canaviais,
1 9 - Domingo à tarde, Fernando Namora Júlio Dinis
20 - Germinal, Emilio Zola 59 - Tartarin nos A lpes. Alphonse Daudet
21 - Manhã Submersa. Vergílio Ferreira 60 - O Bafio de Leça, Arnaldo Gama
22 - Bef-Ami, Ouy de Maupassant 61 - Elogio da Loucura. Erasmo
23 - Morreram pela Pátria, Mikail Cholokov 62 - O Chapéus de Três Bicos,
24 - O Prlncipe, Nicolau Maquiavel Pedro Antonio de Alarcón
25 - As Mãos Sujas, Jean-Paul Sartre 63 - Cândido, Voltaire
26 -- Viagens na Minha Terra, 64 - A Mulher de Trinta Anos,
Almeida Garrett Honoré de Balzac
27 - O Eleito, Thomas Mann 65 - Os Cavalos também Se Abatem,
28 - O Grande Meaulnes, Alain-Fournier Horace McCoy
29 - O Pregador, Erskine Caldwell 66 - O Lobo do Mar, Jack London
30 - Polikuchka, Leão Tolstoi 67 -- A Cosa de Bernardo A lba,
31 - Gente de Hemsô, August Strindberg Federico García Lorca
32 - Filha de L obão, Tomás da Fonseca 68 - O Satlricon, Petrónlo
33 - Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, 69 - A Filha do Regicida,
Alexandre Soljenitsin Camilo Castelo Branco
34 - A Ciociara, Alberto Moravia 70 - Guerra e Paz (vol. I), Leão Tolstoi
3.5 - Os Homens e os Outros, Elio Vittotini 71 - Guerra e Paz (vol. II), Leão Tolstoi
36 - O Fogo e as Cinzas� Manuel da Fonseca 72 - O Denunciante, Liam O'FlabertY
37 - A lbergue Nocturno, Máximo Gorki 73 - A Mlte, Máximo Gorki
38 - Revolta na �<Bounty», Sir John �rrow 74 - Uma Vida, Guy de Maupassant
39 - Recordações da Casa dos Mortos, 75 - Helena. Machado de Assis
Fédor Dostoievski 76 - Escola de Mulheres e Dom João, Moliere
40 - O A utómato, Alberto Moravia 77 - Anátema, CamiiÔ Castelo Branco
78 - O Sol de Cobre, André Kedros 132 - Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia
- -
79 - Pescador de lsfiindia, Pierre Loti Mârquez ·
80 - A Cela da Morte, Caryl Chessman 133 .= A Náusea, Jean-Paul Sartre
81 - Memórias Dum Sargento de Mi/feias, 134·- A Ponte do Rio Kwai, Pierre Boule
Manuel António de Almeida 135 - As «Jóias» Indiscretas, Diderot
82 - Um Herói do Nosso Tempo, Lermontov 136 - Os Deuses Tl!m Sede, Anatole France
83 - Spartacus, Howard Fast 1 37 - O Processo, Franz Kafka
84 - A Arte de Amar, Ovídio 138 - Este É o Bom Governo de Portugal,
85 - O Sonho, Emílio Zola Tomás Pinto Brandão _
86 - Contbs, Hans Christian Andersen 139 - Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse,
87 - As Viagens de Gulfiver, Jonathan Swift Vicente Blasco Ibáõez
88 - O Deserto do Amor, François Mauriac 140 - Discurso sobre a Origem e Fundamentos
89 - O Apelo da Selva, Jack London da Desigualdade entre os Homens,
90 - Cartas Portuguesas, Jean-Jacques Rousseau
Soror Mariana Alcoforado 141 - Vinho e Pão, lgnazio Silone
91 - Dueto ao Sol, Niven Busch 142 - O Bisturi, Horace McCoy
92 - Pauto e Virgfnia, 143 - As A venturas de Huck/eberry Finn,
Bernardin de Saint-Pierre Mark Twain
93 - As Pupilas do Senhor Reitor, Júlio Dinis 144 - A Filha do Arcediago,
94 - Tarass Bulbo, Nicolau Gogol Camilo Castelo Branco
95 - O Contrato Social, 145 - As Leprosas, Henry de Montherlant
Jean-Jacques Rousseau 146 - História de Uma Revolução,
% - O Pão da Mentira, Horace McCoy Fernão Lopes
97 - Lolita, Vladimir Nabokov 147 - Chamado do Mar, James Amado
98 - Noivas de Ninguém, 148 - O Arco de Sant'Ana, Almeida Garrett
Henry de Montherlant 149 - Discurso do MétOdo, Descartes
99 - Quo Vadis?, Henryk Sienkiewicz I 50 - A Montanha Morta da Vida,
1 00 - Constantino, Guardador de Vacas e de Michel Bernanos
Sonhos, Alves Redol 1 5 1 - Fanny Hil - Memórias Duma Prostituta.
101 - A Lei, Roger Vailland John Cleland
102 - O Exorcista, William Peter Blatty 152 - A Pérola, John Steinbeck
103 - Os Conquistadores, André Malraux 153 - O Anticristo, Friedrich Nietzsche
I 04 - Tristão e Isolda 154 - Uma Faml/ia Inglesa, Júlio Dinis
105 - Kama Sutra, Vatsyayana 155 - Amor Numa Rua Escura, Irwin Shaw
106 - Sonetos, Camões 156 - A Besta Humana, Emílio Zola
107 - A Princesa de C/eves, 157 - O Obelisco Negro,
Madame de La Fayette Erich Maria Remarque
108 - Robinson Crusoé, Daniel Defoe 158 - Tratado da Pofftica, Aristóteles
1 09 - Sátiras Sociais, Gil Vicente 159 - A Cabana. Vicente Blasco Ibáiiez
1 10 - O Drama de João Barois, 160 - A mérica, Franz Kafka
Roger Martin du Gard 161 - Mu/herezinhas, Louisa May Alcott
1 1 1 - O Nó de Vfboras, François Mauriac 162 - Alice no País das Maravilhas,
1 12 -- A Estepe, Tchekhov Lewis CarroU
1 1 3 - O Gavião Louco, Jean Carriere 163 - A Dama das Camélias,
1 1 4 - A Metamorfose, Franz Kafka Alexandre Dumas-Filho
1 1 5 - Orgulho e Preconceito, Jane Austen 164 - A Face da Justiça, Caryl Ches;man
1 1 6 - Piedade para as Mulheres, 165 - Romeu e Julieta, Shakespeare
Henry de Montherlant 166 - Esplendores e Misérias das Cortesãs - I,
J 17 - O Guarani, José de Alencar Balzac
1 1 8 - A República, Platão 167 - E:Jp/endores e Misérias das Cortesãs - H .
1 1 9 - O Barbeiro de Sevilha, Beaumarchais Balzac
120 - Grandes Esperanças, Charles Dickens 168 - O Banquete, Platão
121 - O Amor d, , Soldado, Jorge Amado 169 - Tempo para Amar e Tempa para Morrer,
122 - Menina e Moça, Bernardim Ribeiro Erich Maria Remarque
123 - A Letra Escarlate, Nathaniel Hawthorne 170 - A Família Beflamy, John Hawkesworth
124 - A Grande Muralha da China, 1 7 1 - A Família Bel/amy - 11. Segredos de
Franz Kafka Família, John Hawkesworth
125 - Uma Noite em Lisboa, 172 - A Famffia Bellamy - UI. Os Novos
Erich Maria Remarque Tempos, Mollie Hardwick
126 - A Pequena Fadette, George Sand 173 - A Faml/ia Bellamy - IV. A Guerra para
127 - O Macaco Louco, A. S. Gyõrgyi Acabar com as Gulm"QS, MoUie Hardwick
128 - As Bodas de f'Jgaro, Beaumarchais 174 - A Famlfia Beflamy - V. A Dança Conti­
129 - O Jardim Perfumado, Xeque Nefzaui nua, Michael Hardwick ,
130 - O Demónio do Bem, 175 - A Famllia Beffamy - VI. Fins e PrincE­
Henry de Montherlant pios, Michael Hardwick
1 3 1 - Dez Dias Que Abafaram o Mundo, 176 - A Ilha dos Pinguins, Anatole France
John Reed 177 ....:... A Escrava Isaura, Bernardo Guimarães
178 - Morte em Veneza, Thomas Mann 226 - Doze Casamentos Felizes,

179 - Assim Falou Zaratustra, Camilo Castelo Branco


Friedrich Nietzsche 227 - Os Lus/adas, Luís de Camões
180 - Pensamentos, Pascal 228 - Os Canhões de Navarone,
1 8 1 - Alice do Outro Lado do Espelho, Alistair MacLean
Lewis Carroll 229 - Os Maias, Eça de Queirós
182 - O Dia Cinzento e Outros Contos, 230 - Histórias Extraordinárias - I,
Mário Dionísio Edgar Allan Poe
183 - O Moinho à Beira do Rio - l , 23 1 - Novelas do Minho - I,
George Eliot Camilo Castelo Branco
184 - O Moinho à Beira do Rio - 11 , 232 - Lendas e Narrativas - II,
George Eliot Alexandre Herculano
185 - Bela de Dia, Joseph Kessel 233 - A Ilha Misteriosa - I. Os Nát4ragos do
1 86 - Alcorão - Parte I Ar, Júlio Verne
187 - Alcorão - Parte 11 234 - As Minas de Sa/omiJo (de Rider Haggard),
188 - A Vida Amorosa de Mo// Flanders, Eça de Queirós
Daniel Defoe 235 - Eurico, o Presbltero,
189 - Lord Jim, Joseph Conrad Alexandre Herculano
190 - De Angola à Contracosta - I, 236 - O Último Dia Dum Condenado,
Hermenegildo Capeio e Roberto Ivens Vítor Hugo
191 - De Angola à Contracosta - II, 237 - O Livro de Cesário Verde
Hermenegildo Capelo e Roberto Jvens 238 - O Pais das Uvas, Fialho de Almeida
192 - O Canto e as Armas, Manuel Alegre 239 - A Honra Perdida de Katharina Blum,
193 - O Castelo, Kafka Heinrich Bõll
194 - As A venturas de Tom Sawyefl, 240 - Coração, Cabeça e Estômago,
Mark Twain Camilo Castelo Branco
195 - Os Infortúnios da Virtude, 241 -. Folhas Caldas, Almeida Garrett
Marquês de Sade 242 - A Ilha Misteriosa - II. O Abandonado,
196 - Madame Bovary, Gustave Flaubert Júlio Verne
197 - O Inferno, Dante Alighieri 243 - O Crime do Padre Amaro,
198 - A venturas de Pinóquio, Collodi Eça de Queirós
199 - West Side Story («Amor sem Barreiras), 244 - Os Meus Amores, Trindade Coelho
Irving Shulman 245 - Contra Mar e Vento, Teixeira de Sousa
200 - Praça da Canção, Manuel Alegre 246 - Mães e Filhas - I, Evan Hunter
201 - A Ingénua Libertina, Colette 247 - A Velhice do Padre Eterno,
202 - A na Karenína - I, Leão Tolstoi Guerra Junqueiro
203 - Ana Karenina - II, Leão Tolstoi 248 - A Rellquia, Eça de Queirós
204 - 20 000 Léguas Submarinas, Júlio Verne 249 - A Brasileira de Prazins.
205 - Os Carros do Inferno, Sven Hassel Camilo Castelo Branco
206 - A Vagabunda, Colette 250 - Mães e Filhas - II, Evan Hunter
207 - Dois Anos de Féri(JS, Júlio Verne 251 - O Primo Basilio, Eça de Queirós
208 - O Zero e o Infinito, Arthur Koestler 252 - Amor de Perdição,
209 - Moby Dick - A Baleia Branca - I, Camilo Castelo Branco
Herman Melville 253 - Só, António Nobre
210 - Moby Dick - A Baleia Branca - II, 254 - A Ilha Misteriosa - III. O Segredo da
Herman Melville Ilha, Júlio Verne
21 1 - Dona Bárbara, Rómulo Gallegos 255 - Diálogos III, Platão
212 - O Macaco Nu, Desmond Morris 256 - A Correspondência de Fradique Mendes,
213 - Catecismo Positivista, Augusto Cornte Eça de Queirós
214 - Avieiros, Alves Redol 257 -A Harpa do Crente,
215 - Viagem ao Centro da Terra, Júlio Verne Alexandre Herculano
216 - Como Eu Atravessei a África - I, 258 - Eusébio Macário,
Serpa Pinto Camilo Castelo Branco
217 - Como Eu Atravessei a África - II, 259 - Até à Eternidade - I, James Jones
Serpa Pinto 260 - Odisseia, Homero
218 - A Queda Dum Anjo, 261 - O Conde de Abrunhos, Eça de Queirós
Camilo Castelo Branco 262 - A Corja, Camilo Castelo Branco
219 - A Cidade e as Serras, Eça de Queirós 263 - Até à Eternidade - II, James Jones
220 - O Natal do Sr. Scrooge e Os Sinos de 264 - O Boba, Alexandre Herculano
Ano Novo, Charles Dickens 265 - Campa de Flores - I, João de Deus
221 - Lendas e Narrativas, 266 - No velas do Minho - II,
Alexandre Herculano Camilo Castelo Branco
222 - O Mandarim, Eça de Queirós 267 - O Regimento da Morte, Sven Hasse1
223 - Cinco Semanas em Balão, Júlio Verne 268 - O Raio Verde, Júlio Verne
224 - Contos. Eça de Queirós 269 - Os Pescadores, RaUl Brandão
225 - A Ilustre Casa de Ramires, 270 - A Cartuxa de Pàrma - I, Stendhal
Eça de Queirós
271 - Contos Populares Portugueses, 3 1 7 - Os Upanishades
Antologia 3 1 8 - Portugal Contemporâneo - II,
272 - Dicionário de Milagres, Eça de Queirós Oliveira MartinS
273 - A Cartuxa de Parma - 11, Stendhal 319 - Miguel Strogoff (1 . ' parte), Júlio Veme
274 - O O/timo Voo da Arca de Noé, 320 - Decâmeron - II, Giovani Bocaccio
Chas Carner 321 - Os Sãos e os Loucos, - I, James Jones
275 - História Trágico-Mar/timo - I, 322 - Miguel Strogoff (2.' parte), Júlio Verne
Bernardo Gomes de Brito 323 - História de Portugal - II,
276 - A Tulipa Negra, Alexandre Dumas Oliveira Martins
277 '- A Felicidade niJo Se Compra, 324 - A Tragédia da Rua das Flores,
Hans Hellmut Kirst Eça de Queirós
278 - História Trágico�Marftima - Il, 325 - Os Sãos e os Loucos - II, James Jones
Bernardo Gomes Brito 326 - Mistérios de Lisboa - I,
279 - Histórias Extraordinárias - II, Camilo Castelo Branco
Edgar Allan Poe 327 - Os Ana/ectos, Confúcio
280 - Robur, o Conquistador, Júlio Verne 328 - Sonetos, Bocage ·
lSI - Alves & C. •, Eça de Queirós 329 - Mistérios dtr Lisboa - II ,
282 - Deus Dorme em Masúria, Camilo Castelo Branco
Hans Hellmut Kirst 330 - Da Guerra, Carl von Clausewitz
283 - Campo de Flores - II, João de Deus 331 - Vidas Secas, Graciliano Ramos
284 - Sonetos, Florbela Espanca 332 - Mistérios de Lisboa - !li,
285 - Uma Vez não Basta, Jacqueline Susann Camilo Castelo Branco
286 - Amor de Sa/vaçilo, 333 - História da Origem e Estabelecimento da
Camilo Castelo Branco Inquisição em Portugal - I,
287 - ln i/lo Tempore, Trindade Coelho Alexandre Herculano
288 - Os Possessos - I, Dostoievski 334 - Destroços de Guerra - I, James Jones
289 - Os Possessos - II, Dostoievski 335 - História da Origem e Estabelecimento da
290 - Os Possessos - III, Dostoievski Inquisição em Portugal - II,
291 - A Capital, Eça de Queirós Alexandre Herculano
292 - A Mulher Fatal, Camilo Castelo Branco 336 -São Bernardo, Graciliano Ramos
293 - O Senhor do Mundo, Júlio Verne 337 - Destroços de Guerra - II, James Jones
294 - As Viagens de Marco Pólo 338 - Uma Cidade Flutuante, Júlio Verne
295 - O Conde de Monte�Cristo - I, 339 -- História da Origem e Estabelecimento da
Alexandre Dumas Inquisiçi/o em Portugal - lll,
296 - A Freira no Subterrâneo, Alexandre Herculano
Camilo Castelo Branco 340 - Ilhéu de Contenda, Teixeira de Sousa
297 - O Conde de Monte-Cristo - 11, 341 - Os Simples, Guerra Junqueiro
Alexandre Dumas 342 - Livro Negro de Padre Dinis - I.
298 - Um Conto de Duas Cidades, Camilo Castelo Branco
Charles Dickens 343 - Morte aos Franceses,
299 - Sonetos Completos, Antero de Quental C. S. Forester
300 - O Monge de Cister - !, 344 -- Livro Negro de Padre Dinis - II,
Alexandre Herculano Camilo Castelo Branco
301 - Ensaio sobre o Principio da População, 345 - Memórias do Cárcere - ! ,
Thomas R. Malthus Graciliano Ramos
302 - Oliver Twist, Charles Dickens 346 � Contos Irónicos, Heinrich Bõll
303 - O Livro (A Blblia} 347 - Contos, Fialho de Almeida
304 - Sensibilidade e Bom Senso, Jane Austen 348 - Peregrinação - I ,
305 - Noites de Lamego, Fernão Mendes Pinto
Camilo Castelo Branco 349 - Peregrinação - li,
306 - A lllada, Homero Fernão Mendes Pinto
307 - A Volta ao Mundo em 80 Dias, 350 - Memórias do Cárcere - II,
Júlio Verne Graciliano Ramos
308 - O Monge de Cister - II, 351 - Barranco de Cegos, Alves Redol
Alexandre Herculano 352 - O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de
309 - Decâmeron - I, Giovanni Boct:accio La Mancha - I, Cervantes
310 - A Eneida, Virgílio 353 - O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de
3 1 1 - Verdes Anos, Colette La Mancha - II, Cervantes
312 - Hamlet. Shakespeare 354 - Capitdes da Areia, Jorge Amado
3 1 3 -· Portugal Contemporiineo - 1 , 355 - Os Miseráveis - I, Vítor Hugo
Oliveira Martins 356 - Os Miseráveis - 11, Vítor Hugo
3 1 4 - O Amante de Lady Chatter/ey, 357 - O Canto do Carrasco - I,
D. H. Lawrence Norman MaHer
3 1 5 - História de Portugal - I, 358 - Memórias do Cárcere - I,
OJiveira Martins Camilo Castelo Branco
3 1 6 - O Conde de Monte-Cristo - III, 359 - O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de
Alexandre Dumas La Mancha - III, Cervantes -
360 - Memórias do Cárcere - ll, 408 - O Rouxinol e a Rosa, Oscar Wilde
Camilo Castelo Branco 409 - Fábulas, Esopo
36! - Os Miseráveis - !II, Vítor Hugo 410 - Rainha Africana, C. S. Forester
362 - Adeus, Califórnia, Atistair MacLean 41 1 - Angústia, Graciliano Ramos
363 - Os Miseráveis - IV, Vítor Hugo 412 - A Doença Infantil do Comunismo, Lenine
364 - Os Miseráveis - V, Vítor Hugo 413 - Os Cavalheiros do 16 de .lulho, Ken Fol-
365 - Psicologia das Multidões, lett e R�né Louis Maurice
Gustave Le Bon 414 - Infância, Graciliano Ramos
366 - O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de 4 1 5 - O Rapto de Um Presidente, Alistair Mac-
La Mancha - IV, Cervantes Lean ,
367 - A Arte da Guerra, Sun Tzu 416 - Nossa Senhora de Paris - I, Vítor Hugo
368 - Viagens e Aventuras do Capitão Hatte­ 417 - Naquele Alegre Mês de Maio - I, James
ras - I, JúHo Verne Jones
369 - O Canto do Carrasco - !I, 4!8 - Nossa Senhora de Paris - II, Vítor Hugo
Norman Mailer 4 1 9 - Naquele Afegre Mês de Maio - ll, James
370 - Exflio Perturbado, Jones
Urbano Tavares Ro(aigues 420 - Obra Poética, Mário de Sá-Carneiro
37! - A Mantilha de Beatf'iz. Pinheiro Chagas 421 - Em Busca do Tempo Perdido - II, À
372 - Viagens e A venturas do Capitão Hatte­ Sombra das .!avens em Flor, Marcel
ras - II, Júlio Veme Proust
373 - Amar e Matar, Jean Genet 422 - A Ca'I{ISSão de Lúcio, Mârio de Sá-Carneiro
374 - Elói ou Romance Numa Cabeça, 423 - Da Terra à Lua, Júlio Verne
João Gaspar Simões 424 - Ivanhoe, Sir Walter Scott
375 - Contos ou Histórias dos Templos Idos, 425 - À Volta da Lua, Júlio Verne
Charles Perrault 426 - Céu em Fogo, Mário de Sá-Carneiro
376 - Filhos e Amantes - [, D. H. Lawrence 427 - As Pombos S4o Vermelhas,
377 - Últimas Páginas, Eça de Queirós Urbano Tavares Rodrigues
378 - Ventos de Guerra - I, Herman Wouk 428 - Em Busca do Tempo Perdido - Ill, O
379 - Cão Velho entre Flores, Baptista-Bastos Lado de Guermantes - I , Marcel �roust
380 - Rei Lear, Shakespeare 429 - Otelo, Shakespeare
381 - Filhos e Amantes - II, D. H. Lawrence 430 - O &iticeiro de 0., L. Frank Baum
382 - Ventos de Guerra - II, Herman Wouk 4 3 1 - História tlr{ Literatura Portuguesa - I -
383 - As Mil e Uma Noites - I Idade Médià,, Teófilo Braga
384 - As Mil e Uma Noites - II 432 - Santa Ctaus, Joan D. Vinge
385 - O Canhão, C. S. Forester 433 - Os Goonies, James Kahn
386 - Técnica do Golpe de Estado, 434 - Em Busca do Tempo Perdido - IV, O
Curzio Malaparte Lado de Guermantes - II, Marcel Prousr
387 - História da Civilização Ibérica, 435 - Mensagem, Fernando Pessoa
Oliveira Martins 436 - Poesia - I, Fernando Pessoa
388 - As Mil e Uma Noites - III 437 - Poesia - ll, Fernando Pessoa
389 - Apólogos, Adivinhações e Epigramas, 438 - Poesia - lll, Fernando Pessoa
Bocage 439 - Poemas de Alberto Caeiro, ,Fernando Pessoa
390 - Caetés, Oraciliano Ramos 440 - Odes de Ricardo Reis, Fernando Pessoa
391 - Contos, José Régio 441 - Poesia de Álvaro de Campos, Fernando
392 - As Mil e Uma Noites - !V Pessoa
393 - Cancioneiro Alegre de Poetas Portugueses 442 - História da Literatura Portuguesa - I I ­
e Brasileiros - I, Camilo Castelo Branco Renascença, Teófilo de Braga
394 - Blow Vp e Outras Histórias, 443 - Ye71tl, Isaac Bashevis Singer
Julio Cortázar 444 - Em Busca do Tempo Perdido - V, Soda­
395 - Fábulas, Curvo Semedo ma e Gomorra, Marcet Proust
396 - As Mil e Uma Noites - V 445 - História da Literatura Portuguesa - lll -
397 - Cancioneiro Alegre de Poetas Portugueses SeiscentiStas, Teófilo Braga
e Brasileiros - II, Camilo Castelo Branco 446 - O Corcunda ou o Pequeno Parisiense,
398 - Os Três Mosqueteiros - I, Paul Féval
Alexandre Dumas 447 -, Morte na Fórmula Um, Alistair MacLean
399 - Um Perigoso Entardecer, James Jones 448 --:- O Cavaleiro de Lagardere, Paul Féval
400 - As Mil e Uma Noites - VI 449 - Em Busca do Tempo Perdido - V I , Mar-
401 - Os Três Mosqueteiros - 1!, cel Proust
Alexandre Dumas 450 - CJtantagem Mortlfera, Alistair MacLean
402 - Kaputt, Curzio Malaparte 451 - História da Literatura Portuguesa - IV -
403 - Diálogos IV - Sofista - Política - Fí- Os Árcades. Teófilo Braga
/ebo - Timeu - Crítias, Platão 452 - Os Velhos- Marinheiros ou o Capitão de
404 - Pátria, Guerra Junqueiro Longo Curso, Jorge Amado
405 - Rio da Morte, Alistair MacLean 453 - Chora Terra Bem Amada, Alan Paton
406 - Em Busca·do Tempo Perdido - I, 454 - Em Busca do Tempo Perdido - VU, A
Do Lado de Swann, Marcel Proust Fugitiva, Marcel Proust
407 - Os Três Mosqueteiros - l!l, 455 - Caravanas - I, James A. �ichener
Alexandre Dumas
456 - História da Literatura Portuguesa - V, O 489 - A Cidadela, A. J. Cronin
Romantismo, Teófilo Braga 490 - O Zoo Humano, Desmond Morris
457 - Caravanas - II, James A. Michener 491 - Carta de Pêro Vaz de Caminha a EI-Rei
458 - Sennões, Padre António Vieira D. Manuel Sobre o Achamento do Brasil,
459 - Horizonte Perdido, James Hilton Estudo introdutório e notas de Maria Pau­
460 - História da Literatura Portuguesa - VI, la Caetano e Neves Águas
k Modernas Ideias na Literatura Portu­ 492 - Coração Solitário Caçador - Carson
guesa, Teófilo Braga McCullers
461 - Não Matem a Cotovia, Harper Lee 493 - Uma Campanha Alegre - I, Eça de
Quei­
462 - História da Literatura Portuguesa - VII, ros
As Modernas Ideias na Literatura Portu­ 494 - Uma Campanha Alegre - II ' Eça de
guesa, Teófilo Braga Queirós
463 - Notícia da Cidade Silvestre. Lídia Jorge 495 - Tudo Tem um Pre:;o - Hans Hellmut
464 - Em Busca do Tempo Perdido - VIII, O Kirst
Tempo Redescoberta. Marcel Proust 496 - Viamorolência - Urbano Tavares Rodri­
465 - Motim em Julho, Erskine Caldwell gues
466 - Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Aut(>­ 497 - � Revoltados do Caine, Herman Wouk
·bíográficas, Fernando Pessoa 498 - O Cavaleiro de Maison-Rouge - I, Ale­
467 - Textos de Intervenção Social e Cultural - xandre Dumas

A Flcçíio dos Heterónimos, Fernando Pes- 499 - O Cavaleiro de Moison-Rouge - II, Ale-
xandre Dumas
500 - Casa da Malta. Fernando Namora
soa
468 - Livro do Desc:r.sso.ssego, por Bernardo Soa­
re; - I Parte, Fernando Pessoa 501 - Porgy e Bess, DuBose Heyward
469 - Livro do Desassossego, por Bernardo Soa­ 502 - «Ciepsidra» e Poemas Dispersos, Camilo
res - II Parte, Fernando Pessoa Pessanha
470 - Ficção e Tetitro - O Banqueiro Anar­ 503 - Contos, Crónicas, Cartas Escolhidas e
quista, Novelas Policiárias. O Marinheiro Textos de Temática Chinesa, Camilo Pes­
e Outros, Fernando Pessoa. sanha
471 --A Procura da Verdade Oculto - Textos j)4 - Tonto Gente, Mariana, Maria Judite de
Carvalho
Fi!osó}icos efsotéricos, Fernan do PessOfl
:ii5 - A Cidade e os Cães, Mario Vargas Llosa
lianismo e Qumto lmpe-
472 - Portugal , iie!Jos 506 - O Mercador de Vene:r.o, Wí11iam Shakes-
Fernando Pe-;soa peare
ri�' .
samento Polittco - !JJ7 _ Um Homem, Orialla Fallaci
, l,
, tnas de Pe n . .
Eça de QueJros
471 - Pog . and Pessoa 508 - Prosas Bárbaras, Urbano Tavares Ro-
1910-1919, Fern co - I!, cento s..
de Pensam�
10 Politi
° essoa 509 -- Dias Lama
474 - Páginas i
1925- 1935, Ferna.�do
475 - Páginas
Sobre Literatur
. . co, Fer-
a e E<;téti 510 - � ��:auro, John Updike
.
Smtra, Eça de
511 - O Mistério da Estrada de
nando Pessoa .
es Hilton Queirós
476 _ Adeus,
477 - Ecce
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Homo.
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Saroyan
512 __ Exodus. Leon Uris
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ente Duras
478 - Rapazes e Rapariga�: William
,... 5 1 3 _ A Amante Inglesa, Margu
vrant _ I . JUlio 5 1 4 _ Prime Amor , Turgenev
Os Filhos do Capldio iro
479 - Júlio Verne
5 1 5 - O Castelo dos Cárpatos,
- li, Júlio
480 - ��lhos do Capitao Granl 5 1 6 - Don Comi/lo e o Seu Pequeno Mundo
Giovannino Guareshi
,

481 - '/;:'}�lhos do Capitão Grant - IH, JúJio 5 1 7 - O Segreflo de Wi/helm Storit� Júlio Verne
?
e Lados
Verne 5 1 8 - Ligações Perigosas, Choderlos
C
482 � o ovil, Franz Kafka 5 1 9 - A Ilha do Tesouro, Robert Loms Steven-
48 3 Pigmalião, Bernard Sh�w son
,
_
ichen�r
484 - Sayonara, James A. M 'Of>O - I,
520 - Don Camillo e o Seu Rebanho. Giovan­
485 - Rocam bole - A Herança A-ftst:;?r� nlnQ.,Quareschi
.
Ponson du Tcrrail . ·521 - O Gariien Pari)-'. Katherine Mansfield
ça M:s:ter:osa - d ê:fimarada Don Cami/lo, Giovannino
486 - Rocambole - A Heran 522 -
ll Ponson du Terrail Guareschi
H
487 - ora Di Bai, Manue l Ferreira
523 - Emílio, Jean-Jacques Rousseau
dos V�letes de Co­
488 - Rocambole - O Clube
pas _ III, Ponson du Terrru1

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