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SAINDO DAS SOMBRAS DOS PINHEIRAIS: A MULHER NA LINHA DE

FRENTE DA GUERRA DO CONTESTADO

Aristides Leo Pardo1

RESUMO: No ano em que se completa o centenário da Guerra do


Contestado, conflito, que mudou o mapa brasileiro e que ainda tem
muito a nos contar sobre os eventos nele ocorridos, apresento este
debate sobre o papel das mulheres nessa batalha sertaneja, já que ela e
outros agentes sociais, como os negros, os caboclos, as crianças, entre
outros, só estão agora entrando em cena como protagonistas da
história. Através de análise bibliográfica e do Filme “Guerra dos 1
Pelados” vamos refletir questões de gênero e descobrir personagens
interessantes que somente agora começam a sair das “sombras dos
pinheirais”, outrora abundante em nossa região, território um dia
disputado entre os estados do Paraná, Santa Catarina e entre Brasil e
Argentina e que fizeram realmente parte ativa de nossa história em um
plano central e não como meras coadjuvantes como se mostrou até o
momento.

PALAVRAS-CHAVE: Guerra do Contestado. Mulheres. Gênero

INTRODUÇÃO

1
Jornalista (MTE 26009-07 /RJ) formado pela UNIFLU, Campus FAFIC, Campos dos Goytacazes, RJ, em
2007, Pós-Graduando em História pela UNESPAR, Campus FAFIUV e Acadêmico do 3º ano do Curso de
História na mesma instituição.
Através destas páginas se pretende resgatar o papel das
mulheres nos conflitos armados ocorridos no Sul do Paraná e Norte de
Santa Catarina entre 1912 e 1916 que entraram para a história como
“Guerra do Contestado”, que completam este ano, o centenário de seu
início.

Não esmiuçaremos aqui o conflito em si, pois esse assunto já foi


explorado por diversos autores e outros irão se aprofundar ainda mais
sobre o tema a partir de novas perspectivas e fontes que estão
surgindo, e por isso, o nosso objetivo será analisar a participação
feminina no embate, já que as mulheres entre outros grupos excluídos,
como as crianças, negros e sertanejos estiveram por muito tempo,
“escondidos” da história, pois deles quase não se falava nos
documentos oficiais, base de pesquisa da corrente historiográfica 2
denominada de positivismo.

Esse fato dos excluídos não constarem de maneira efetiva nos


documentos oficiais, como relatórios de governo, documentação do
exército, arquivos eclesiásticos, entre outros, foi chamado pela
historiadora norte americana, Joan Scott como “o problema da
invisibilidade”, já que esses agentes sociais eram parte efetiva dos
acontecimentos, mas raramente citados, quando se fazia algum
registro do ocorrido.

Somente a partir da década de 1970, que a história dos


excluídos começou a emergir e revelar sua importância para a
reconstrução dos sujeitos históricos e neste momento, também, o
cinema passou a ser visto como um possível documento para a
investigação histórica, tendo como consequência de um processo de
reformulação do conceito da História, iniciado com o desenvolvimento
da Escola dos Analles, na França, quando o filme, seja ele qual for,
passou a ser entendido como testemunha da mentalidade da sociedade
que o produziu.

Com base em produções bibliográficas, produzidas por


historiadores, antropólogos, jornalistas, entre algumas áreas que se
dedicaram ao assunto, incluindo aí, obras romanceadas, que nos
conferem uma visão de como era a vida entre os sertanejos e o
conturbado período temporal abrangente em nosso estudo, somado à
análise do filme “Guerra dos Pelados”, do cineasta Sylvio Back, será
focado o papel das mulheres neste evento histórico, fazendo com que
estas deixem de ficar em segundo plano e ganhem igualdade em
importância em relação aos homens.

Nada mais que justo, pois em todos os momentos as mulheres 3


não arredaram pé e estiveram lado a lado de seus companheiros, pais e
filhos, na defesa de seu quinhão de terra, que estava sendo tomado,
impedindo que prosseguissem seguir suas pacatas vidas na defesa de
seu direito de sobreviver.

QUESTÕES DE GÊNERO: AS MULHERES NA HISTÓRIA

Não existe um momento sequer na história em que a mulher


não estivessem presente e aos poucos, seus papeis vão sendo
revelados pelos historiadores, pois não se trata de tarefa simples, haja
vista que as documentações oficiais, escritas pelas elites e para as
elites, raramente mencionavam a figura feminina, assim como também,
escravos, camponeses, crianças, que quando citados esses agentes
sociais, na quase totalidade dos casos era para ter sua imagem ligada à
infidelidade, prostituição, roubos, entre outras acusações.
Sobre o assunto, Franco Junior (1981, p. 38) nos conta da
época das Cruzadas, durante a Idade Média, que:

As Cruzadas que buscavam a Terra Santa recebem


tradicionalmente números (de Primeira a Oitava),
no caso das expedições oficiais, ou nomes (Cruzada
Popular, Cruzada das Crianças), para indicar a
composição social diversa de outras.

E ainda relada um caso de infidelidade durante a Segunda


Cruzada (1147-1149), que motivou um desentendimento entre dois
nobres:

Luis VII e Raimundo de Poitiers, príncipe de 4


Antioquia, por cauda de Eleonor da Aquitânia,
esposa do Primeiro e sobrinha do segundo, que
mesmo acompanhando o marido à cruzada não
chegava a merecer a indulgência por fidelidade
conjugal... FRANCO JUNIOR (1981, p. 48)

Franco Júnior (1981, p. 09) informa ainda que o número de


indivíduos participantes das Cruzadas é bem difícil de ser calculado,
pois além dos cavaleiros e nobres, não combatentes acompanhavam as
expedições, como mercadores, artesãos, mulheres e crianças.

Outra forma de inserção feminina na história é quando se


refere a uma figura específica de maior destaque, no Brasil temos
exemplos desse caso, como a enfermeira Ana Néri, voluntária na
Guerra do Paraguai (1864- 1870.) e de Anita Garibaldi, fiel
companheira do revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi, quando
ambos tiveram destacada atuação na Revolução Farroupilha (1835-
1845) e depois foram para a Itália, onde Giuseppe também participou
da unificação daquela nação, mas quanto às histórias de vida de outras
mulheres desses eventos? Pouco se sabe, assim como no nosso caso do
Contestado, aos poucos vão se descobrindo novas personagens que
ficam longe de terem papéis secundários.

Weinhardt (2000, p. 96-97) diz que a mulher é um personagem


quase ausente das narrativas de conflitos armados, já que este
universo é tradicionalmente considerado, na nossa cultura, um mundo
dos homens, e os relatos bélicos se dando principalmente através dos
escritos oficiais chegam a ser uma espécie de desprezo, senão aversão,
pelo “sexo frágil”. E segue dizendo:

Quer dizer, mulher, fora dos padrões eruditos da


cultura, com fé religiosa, e pobre, só podia ser 5
traidora e merecer reprovação. Imagine-se o
espanto do tenente e de seus companheiros, todos
mais ou menos signatários desses conceitos,
quando uma mulher, “de revolver em punho”,
mostrou-se disposta a enfrentar a metralhadora
(...). Apresentar uma mulher como indivíduo, ainda
por cima capaz de liderança, nem pensar, mesmo
que esteja do lado do suposto mal. Assim, Maria
Rosa, figura que outros autores vêem como tão
significativa, fica restrita a uma reduzida nota de pé
de página, sem mencionar seu comando espiritual e
terreno. (WEINHARDT, 2000, P. 91-98)

A exceção fica por conta apenas do conflito ocorrido no sertão


baiano, entre 1896 e 1897, conhecido como “Guerra de Canudos”, pois
em diversos relatos é mostrado que a participação das mulheres do
arraial liderado por Antônio Conselheiro foi efetiva, mas têm que ser
levado em conta que vários correspondentes dos principais jornais do
país estavam presentes in loco, com destaque para Euclides da Cunha,
que escrevia para O Estado de São Paulo e seus relatos originaram a
obra prima “Os sertões”.

Os relatos de Cunha (1984) direto do campo de batalha citam


a presença feminina entre os sertanejos e também entre os soldados
federalistas, muitos oriundos dos grandes centros, e outros
arregimentados em diversos estados nordestinos, que em vários casos,
levaram sua família para uma possível melhora de vida quando as
tropas regressassem para a então Capital Federal após a empreitada
em Canudos, fato que não aconteceu e acarretou no início da
favelização no Brasil.

Somente a partir dos anos de 1970 é que a história das 6


mulheres começou a ganhar força, impulsionado pelos movimentos
feministas que chamaram a atenção da sociedade, para seus anseios e
questões, contribuindo para que cada vez mais se conquiste a
igualdade entre os sexos. Nesta direção, surgem os estudos de gênero,
a história de homens e mulheres enquanto agentes sociais, incluindo ai,
suas diferenças, por isso, a figura feminina acaba se sobressaindo nos
estudos de gênero, pois conforme fala Scott (1995, p. 38) acerca do
“Problema da Invisibilidade” sofrido ao longo da história, pelas
mulheres e outros grupos sociais

No entanto, os historiadores que buscam no


passado testemunhos sobre as mulheres tem
tropeçado uma e outra vez com o fenômeno da
invisibilidade da mulher. As investigações recentes
têm mostrado não que as mulheres fossem inativas
ou estivessem ausentes dos acontecimentos
históricos, mas que foram sistematicamente
omitidas dos registros oficiais. (SCOTT, 1995, p.38).

Nicholson (2000, p 13-15) argumenta que é comum se


confundir o estudo de gênero com o feminismo e diz que o feminismo
está mais direcionado em chamar a atenção para as diferenças sexuais
das pessoas, enquanto o estudo de gênero busca entender essas
diferenças e aplicar um olhar mais atento para a importância das
mulheres na sociedade, sendo assim, os homens acreditavam que as
diferenças entre os corpos femininos e masculinos ditavam a
capacidade de comandar toda e qualquer manifestação ou organização,
deixando as mulheres, consideradas sensíveis e frágeis, à sua
subordinação.
7
A GUERRA NO CONTESTADO

A “Guerra do Contestado” foi um movimento que eclodiu no Sul


do Paraná e Norte de Santa Catarina e não teve um fator único que
motivasse o confronto, e sim múltiplos motivos que fizeram deflagrar o
conflito, que entrou para a história e modificou o mapa do Brasil.

A região denominada de “Contestado” foi alvo de acirradas


disputas entre paranaenses e catarinenses, e ainda entre Brasil e
Argentina, tendo este problema sido resolvido com a intervenção do
presidente dos Estados Unidos Stephen Grover Cleveland, que na
função de mediador desse impasse envolvendo os dois países, decidiu
em favor brasileiro na questão.

A República ainda engatinhava, quando foi entregue ao


empresário norte americano Percyval Farquhar a responsabilidade de
terminar a obra da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, que
aproximaria o Sul do Brasil com os principais centros do país, como Rio
de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Pelo acordo, Farquhar tinha o
direito a explorar 15 quilômetros de terras de cada lado da ferrovia, o
que motivou esta a ter um traçado maior e com curvas desnecessárias
para que assim, aumentasse a área a ser explorada.

O problema é que toda a área em que passavam os trilhos já


eram habitadas, seja por tribos indígenas, ou por sertanejos que viviam
daquelas terras há muitas gerações e sobre o assunto, Tonon (2002, p.
51) destaca que:

O Governo Federal não mostrou qualquer


preocupação com os sertanejos que habitavam o 8
território e que detinham a posse da terra desde
longa data. A área do traçado ferroviário, a ser
escolhida e demarcada, não levaria em conta
sesmarias ou posses.

Sobre a origem dos caboclos que já habitavam a região antes da


construção da ferrovia Tonon (2002, p. 84) conta que são resultantes
de uma mescla de grupos humanos com diferentes origens,
principalmente de descendentes dos tropeiros que se instalaram ao
longo dos caminhos das tropas, durante um período de quase dois
séculos e de refugiados Farroupilhas que, durante e após a “Guerra dos
Farrapos”, que durou dez anos, estabeleceram-se em território
catarinense.

Thomé (1992, p. 21) nos conta que o “Homem do Contestado”


era capaz de exercer múltiplas atividades: criador, lavrador, caçador,
peão, agregado, mateiro, serrador e lenhador. Sendo seu mundo era
sua família, seu universo a terra.
Após a conclusão das obras da Estrada de Ferro, os
trabalhadores da mesma, foram dispensados, sem receberem os
salários devidos e outras indenizações e foram ficando na região,
somando-se aos sertanejos que sem nenhuma piedade foram sendo
expulsos das terras em que viviam, transformaram a região em um
barril de pólvoras prestes a explodir. Tonon (2002, p. 51) nos fala que
os homens que trabalharam na construção da ferrovia, originários do
centro do país, foram abandonados à própria sorte, logo após a
conclusão da obra. Alcançaram o número de cerca de oito mil pessoas,
engrossando as fileiras dos excluídos e agravando uma tensão social
existente na região.

Com esses trabalhadores, vieram hábitos até então não


encontrados no local, como o consumo excessivo de bebidas, jogatinas 9
e prostituição. Tornando-se muito comum, os atritos com os
sertanejos, estes de hábitos mais recatados e comedidos, acarretando
nas regiões próximas onde passava a ferrovia, um considerável
aumento da criminalidade, resultante do confronto de culturas
distintas.

Na história da “Guerra do Contestado” ficaram as figuras de


três monges, que fundiram-se em apenas uma só no imaginário
popular, segundo Souza (1978, p. 49), a peregrinação de monges pelos
sertões do Contestado não se constituía em novidade, já que outros
também passaram pela região, praticando curandeirismo, rezas e
alentando o povo sertanejo, mantendo um ar misterioso que, quando
menos se esperava, apareciam nas vilas, povoados e sítios mais
remotos.

Neste “Caldeirão” efervescente, deflagrou o conflito que


modificou o mapa do Brasil e que findaria com a vida de milhares de
sertanejos, que há gerações habitavam o sertão paranaense e
catarinense e que foram vítimas da ganância dos homens na
desenfreada busca de enriquecer a qualquer preço.

A FIGURA FEMININA NO CAMPO DE BATALHA

A história oficial está recheada de “heróis”, sobretudo homens e


militares, geralmente alinhados ao governo vigente, enquanto que
quando as mulheres são citadas, são sempre postas como divindades,
subalternas, ou como estorvos nos combates, além de aparecerem
também como prostitutas, ou apenas como um mero “detalhe” de
figuração no contexto da história.

A presença feminina nos conflitos do Contestado é inegável e


10
em todas as obras aqui analisadas foi verificada a presença de
mulheres, crianças, idosos, entre outros segmentos sociais de maneira
ativa, já que a região onde fora palco dos acontecimentos, abrigava
várias famílias há bastante tempo. Podemos destacar as figuras de
Maria Rosa, Etelvina, Teodora, Chica Pelega, Rosa Paes, entre tantas
que não se fizeram de rogadas para defender sua família e seu quinhão
de terra que estava sendo tirado à força para entregar para grupos
estrangeiros, no caso aqui específico, ao conglomerado liderado pelo
norte americano Percyval Farquar.

Em todos os momentos relatados sobre os conflitos, é possível


verificar a presença feminina, junto com idosos e crianças eram os que
mais sofriam, pois durante os ataques das tropas governamentais,
também não eram poupados, e quando não mortos, eram feitos
prisioneiros, como notamos em Tokarski (2002, p. 23) ao discorrer
sobre uma ocupação militar ocorrida em 1915, em Itaiópolis, quando
os sertanejos sob o comando de Antônio Tavares de Souza Júnior se
retiraram em debandada do local e 383 revoltosos, sobretudo, velhos,
crianças e mulheres, se renderam às tropas oficiais. E segue relatando
que:

Em 01/04/1915, na Guerra do Contestado, nas


cercanias do Rio Timbó, no município de Timbó
Grande, a líder dos revoltosos, Maria Rosa de Souza,
Filha de Elias Rodrigues Vaz, morreu em combate às
tropas comandadas pelo capitão Tertuliano de
Albuquerque Potiguara. Outros 58 revoltosos
também morreram no confronto. (TOKARSKI, 2002,
p. 81)

11
E Tokarski (2002, p. 84) ainda relata outro fato acontecido na
mesma semana do evento acima citado, quando depois de acirrado
confronto, as tropas do capitão Tertuliano de Albuquerque Potiguara
concluíram a tomada do reduto de Santa Maria, em Timbó Grande, que
resultou na morte de mais de 600 revoltosos, incluindo mulheres e
crianças. Esse relato aparece também em Thomé (1992, p. 99)
acrescido da informação exata do local, que seria o arraial de Santa
Maria e contabiliza além das citadas mortes, o número de seis mil casas
incendiadas.

Quando se fala em mulheres no campo de batalhas do


Contestado, surge de imediato, na memória coletiva, a figura de Maria
Rosa, que liderou o reduto de Caraguatá e das “virgens” que serviam
diretamente ao monge José Maria, destacando-se entre elas, Durvalina,
Sebastiana, Etelvina e Teodora, que mesmo após a morte do monge, na
batalha do Irani, continuaram a ter papel importante de líderes
espirituais que alentavam os sertanejos e tinham “visões” do próprio
monge, que orientava como os caboclos deveriam reagir perante as
forças legalistas até a chegada do dia em que São João Maria
regressasse com o exército encantado de São Sebastião, para a batalha
final.

Sobre suas visões, Teodora disse durante entrevista a Queiroz


(1981, p. 113): “Eu não via nada (...) eram os velhos que se juntavam e
diziam as ordens”.

O termo “virgem” empregado entre os sertanejos do


Contestado, não tem necessariamente a conotação sexual, em voga nos
dias atuais e sim, significavam puras espiritualmente, pois no auge dos
conflitos, a existência de “virgens” com filhos e casadas era decorrente,
conforme diz Queiroz (1981, p. 233) acerca do reduto de Pedras 12
Brancas, “onde caíra a virgem Sebastiana Rocha; substituíra-a a Rosa
do Thomazinho, também conhecida por Maria, a qual embora
proclamada “virgem”, era casada e possuía filhos”.

No campo da batalha propriamente dita, além das “virgens”,


que desenvolviam importante papel perante os sertanejos e suas
famílias, surgem as figuras de Chica Pelega e Maria Rosa, que se
destacaram também como líderes e combatentes, tendo Maria Rosa,
transitado entre o papel de combatente e de “virgem”, chegando esta a
liderar um reduto, o de Caraguatá.

Francisca Roberta, a Chica Pelega era muito respeitada entre os


caboclos, por sua bravura e por seu conhecimento e manuseio com
ervas medicinais, o que levou a ter um papel de destaque nos cuidados
com doentes.

Durante ataque das tropas do governo ao reduto do Taquaruçú,


em 1914, Chica luta bravamente, mas morre quando a igreja, tomada
pelo fogo, desaba em cima do galpão onde se encontravam mais de 300
pessoas, pondo fim em sua história de bravura e destemor, que a levou
a ser protagonista de duas obras romanceadas sobre o conflito do
Contestado pelas mãos de Pradi (2000) e Vasconcellos (2008).

Descrita por Queiroz (1981, p. 151) como uma adolescente na


casa dos quinze anos, loura de cabelos crespos, pálida, alegre e de
extrema vivacidade, que não sabia ler ou escrever, mas falava com
desembaraço, Maria Rosa andava amiúde com um vestido branco
enfeitado com fitas azuis e verdes e era ela quem andava na frente das
procissões, ostentando uma grande bandeira branca com a cruz verde
ao centro.

Desde o início de sua vida pública exercia uma liderança nata, 13


tomando as mais importantes decisões do reduto. Caminhava com seu
povo, rezava com eles, definia chefias e coordenações, além de ter a
função de juíza entre os sertanejos, nomeando líderes religiosos e
militares e até sentenciando à morte conforme o crime ocorrido. Ela
percorria cada canto do reduto a cavalo, com uma das mãos conduzia
as rédeas e com a outra levava o estandarte. Sobre a “virgem” Maria
Rosa, Queiroz (1981, p. 152) escreveu que:

Em geral, o povo dos redutos considerava Maria


Rosa uma “santa” e julgava que ela “tudo sabia”.
Cumpria o povo, religiosamente, as ordens que dela
emanavam. Era como a representante da vontade
do monge, de quem conhecia os secretos desejos.
Designava os chefes ostensivos, destituía-os dos
comandos, sentenciava.

Assim como Teodora, entre outras “iluminadas”, Maria Rosa,


entrava em transe e em meio às orações, tinha visões e dizia estar
ouvindo o monge José Maria, e a partir daí, era ela quem definia as
ordens recebidas pelo espírito do monge para organizar o
comportamento do reduto. Com o passar do tempo, além de líder
espiritual, se transformou também em líder militar, comandando a
retirada estratégica, após a primeira batalha de Taquaruçú, em 1913,
para o novo reduto em Caraguatá.

Assim como a posterior confissão de Teodora acerca de suas


supostas visões, em Queiroz (1981, p. 151) a autenticidade das visões
de Maria Rosa é colocada em dúvida, tendo o testemunho de um
caboclo, de nome Francisco Castro, que esteve do princípio ao fim,
transitando nos redutos e que afirma que a moça somente repassava as
decisões dos outros chefes, passando-as como mensagens do monge.
14
Maria Rosa foi morta em combate, no dia 1º de abril de 1915,
juntamente com mais de 100 de seus companheiros, quando foram
alvejados pela tropa comandada pelo capitão Potyguara, quando este
se encaminhava ao reduto de Santa Maria.

As “Virgens” exerceram efetiva liderança nos redutos


sertanejos, contudo, com sucessivas derrotas em conflitos e a não
chegada do milênio igualitário, prometido pelo monge, houve a
necessidade de mudança de planejamento E o viés religioso foi
perdendo espaço para os líderes de armas, agravado com a
aproximação de Maria Rosa com o Capitão Matos Costa, com quem
negociava um projeto de paz, que fez com que sua liderança fosse
definitivamente findada.

Na obra de Pradi (2000, p. 69-77) podemos observar


claramente o momento em que foi feita a troca da liderança do
movimento, saindo do comando os líderes ligados à religiosidade e
ascendendo os sertanejos “de briga”, preparando o povo para os
embates finais do conflito. Thomé (1999, p. 193) também nos mostra
esta troca, em Bom Sossego, nos fins do ano de 1914, quando Maria
Rosa perdeu seu comando supremo, sendo substituída por Francisco
Alonso de Souza, o “Chiquinho” Alonso.

Mesmo com o enfraquecimento do poder religioso, o papel


feminino continuou marcante até o final do conflito, em 1916,
mostrando a bravura da mulher sertaneja determinada a lutar para
contra o poderio do governo para permanecer em seu chão, junto com
sua família.

15
A GUERRA DOS PELADOS

Assim como nos romances de Pradi (2000) e Vasconcellos


(2008), o filme de Syivio Back (1970) pode nos dar maiores detalhes
de como era a ambientação na região conflituosa, e apesar de ficcional,
ajuda a construir e resgatar partes do evento histórico.

O roteiro de Back foi elaborado a partir de outro romance


histórico, Geração do Deserto, publicado pela primeira vez em 1964 e
escrito por Guido Wilmar Sassi, apresentando como tema central a
Guerra do Contestado em uma mescla de fatos reais misturados com
personagens fictícios que revive momentos deste episódio da história
do Brasil.

É válido lembrar nestas páginas, que tanto o livro de Sassi


quanto o filme de Sylvio Back foram produzidos e lançados durante o
período em que o Brasil vivia um conturbado período político com os
militares instalando uma repressiva ditadura no país, por isso, as obras
especificadas neste capítulo, surgem como uma alegoria política no
momento em que foram produzidos, retratando a luta dos sertanejos,
contra as forças do governo federal, isto acontecendo nos anos mais
difíceis do regime então instaurado.

A luta dos sertanejos contra as tropas legalistas, desencadeadas


por uma série de fatores, sobretudo políticos, podem muito bem serem
transportadas para a realidade do momento, o povo, insatisfeito com a
ascensão militar ao poder e suas ações autoritárias tentou de várias
formas resistir, utilizando protestos, guerrilhas urbanas e rurais, além
de expressões culturais, como o teatro, a literatura, a música e o
cinema.
16
O filme se inicia ao som de uma voz radiofônica noticiando que
a empresa Brazil Railway Company comunica que é expressamente
proibido ocupar os terrenos num raio de 15 km de cada lado das
margens do Rio do Peixe, pertencentes à Estrada de Ferro São Paulo –
Rio Grande, por concessão do governo federal e em seguida mostra
jagunços da referida empresa despejando os caboclos do lugar e nos
mostra uma árvore onde foram pendurados corpos de posseiros que
resistiram, como forma de intimidação, ali é notada a presença de
cadáveres femininos também.

A trama é ambientada no reduto do Taquaruçu, em um período


onde embates entre as tropas oficiais, os Peludos contra os caboclos, os
Pelados já haviam ocorrido, incluído aí, o combate no Irani, citado
algumas vezes no filme, onde houve muitas mortes, de ambos os lados,
inclusive do líder dos jagunços, o monge José Maria e do Coronel João
Gualberto.
Logo a seguir, nos é apresentado o personagem Nenê,
interpretado por Stênio Garcia, que após breve aparição, sai de cena ao
enfrentar o tão temido “Dragão de Ferro”, portando uma rústica
espada de madeira e um tosco escudo. Esta passagem pode simbolizar
a modernidade, representada pela locomotiva avançando sertão
adentro e em conseqüência, “passando por cima” de tudo que encontra
pela frente, em nome do progresso e do desenvolvimento.

O envio de um oficial que tenta fazer um acordo com os


sertanejos, leva o mesmo ao interior de um reduto, onde conversa com
os líderes locais e ainda assiste uma celebração religiosa, presenciando
o transe da virgem Ana, vivida por Dorothée-Marie Bouvier, uma
provável representação da virgem Maria Rosa, ou outra delas,
mostrada na trama, vivenciando uma vida normal, com seus amores, 17
paixões e anseios, mas sem deixar de lado sua vocação religiosa e de
liderança perante seus companheiros.

Durante as precisões, podemos perceber que são as mulheres


que conduzem as orações e seguem na frente do cortejo,
acompanhando “Pai Veio”, ancião do grupo, que carrega a imagem de
São Sebastião e transita entre as lideranças espirituais e de guerra, que
começa a se emancipar após a abdicação de Ana de seu posto, já que a
moça se relaciona com um dos seus e “perde a santidade”. Este é o
marco do filme que a coesão dos pelados, justificada pela fé religiosa
começa a perder força e quando começa as estratégias para as lutas
que definirão os rumos do embate até seu final.

Essa transição, no filme, se dá no momento em que o fato de


Ana ter perdido seus poderes visionários do monge vem a público,
durante um ritual religioso, e neste momento os Pelados são atacados
de surpresa pelos Peludos. A partir daí, a coesão do grupo de posseiros
começa a declinar e muitos se rendem, em sua maioria, idosos e
mulheres com crianças, que acabam mortos covardemente pelos
Peludos, diminuindo e muito o contingente dos que continuam na luta
de resistência.

Mesmo perdendo espaço, algumas das lideranças religiosas


seguiram no combate, alguns se transformando em líderes de luta,
como o caso de Ana no longa-metragem e Maria Rosa na história real,
entre muitos outros que ficam até o final dos embates, em 1916.

O filme não termina com um “gran finale’ costumeiro das


produções cinematográficas, mas mostra os sobreviventes pelo lado
dos pelados em retirada após a derrocada no conflito, mas o final mais
marcante é mostrado nos minutos iniciais, quando Nenê,
representando os derrotados é “atropelado” pela modernidade dos que 18
possuem os meios da produção e tecnológicos, na figura do trem em
disparada ao progresso, ou ao futuro, profetizando o fim que os
sertanejos teriam, sendo expulsos das terras onde viviam.

CONCLUSÃO

Como pode ser percebido nessas linhas, as mulheres tiveram


um fundamental papel em todo o percurso da Guerra do Contestado,
quando atuaram de maneira efetiva na luta pelos direitos dos
sertanejos de ocuparem seu pedacinho de terra no local onde
nasceram e se desenvolveram e que por gerações suas famílias
cultivaram a terra e dela tiravam seu sustento, sem se incomodar com
questões de limites ou de propriedade.

O papel das mulheres menos conhecidas também foi


fundamental no desenlace dos conflitos, já que é preciso relembrar que
os nomes delas, não constando nos documentos oficiais, acabaram
“sumindo” dos relatos sobre o evento e agora, pelas mãos dos
historiadores em busca de vestígios sobre os acontecimentos na região
do Contestado é que elas podem ressurgir e deixar seus nomes
registrados na história, pois enquanto os homens lutavam em várias
frentes de combate, eram elas quem cuidavam das crianças, dos idosos
e dos doentes, além de prover a obtenção e preparação dos alimentos,
entre outras funções de suma importância para o povo caboclo.

Essas guerreiras superaram seu tempo e sempre marcaram


presença em todos os momentos do conflito, tendo ao final dos
confrontos, sido tão humilhadas e maltratadas quanto seus maridos,
filhos e companheiros de luta.
19
“Nós estávamos aqui e vieram nos atacar. O que havíamos de
fazer?” Foi uma das indagações de Rosa Paes de Farias, filha do líder
Chico Ventura, uma das últimas sobreviventes do Contestado, que
viveu até seus 98 anos e era uma das responsáveis pela confecção das
bandeiras de guerra e os uniformes dos “Pares de França”, afirmando
que jamais se arrependeu do engajamento na luta dos sertanejos e
respondeu a questão acima levantada por ela mesma, com uma única
palavra: Resistir.

FONTE:

BACK, Sylvio. A Guerra dos Pelados. Curitiba: Paraná Filmes. 1970

BIBLIOGRAFIA
CUNHA, Euclides Da. Os Sertões. São Paulo: Três.1984

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