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MON IQUE BOR IE • MARTI NE DE ROUGEMONT • JA C Q U ES SCHERER

ESTÉTICA TEATRAL
TEXTOS DE PLATÃO A BR ECHT

Trad ução de
HELENA BARBAS

SER V I<; O DE ED UCAÇ',';'O

FU N DAÇÃO CA LOUSTE GULBENK IAN I LI SBO A


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T rad ução do or iginal francê s intitu lado :

Esth étique Th éâtrale


Te xtos de Platon à Brc ch t

© 1982 C.D.U. et SE DES


Paris

NOTA À ED IÇÃ O PORTU G UESA

Esta antolog ia f oi o rg anizada essencialmen te em fu nção dos


interess es d os a lunos e leitores fran ce ses . Este a sp ecto é mais evi-
d ente no caso d e alguns textos (principalmente do século XI'!!) que
s áo reproduzidos com grafia e sintax e d e época. Dado que e m p o r-
tu guês n ão f aria sen tido esse tip o d e anacronismo . e va lo riza ndo a
leg ibilidade , a red acção fo i actua liza da tentando não ofe nder d e -
masiado o es tilo. Pro curou -se tamb ém, sem p re que necessário . / 10

caso d os texto s d e o r ig em in gl esa e alemã . faze r a co mpara ção CO /l1

o original ou re cor re r a o utras tradu çõ es já existe ntes em portug u ês


- que aparecem ref eridas após as indica ções bibliogr áficas do or i-
gi naI franc ês.
No que respeita às n otas. adoptaram -s e as seguintes siglas :
NA .. quando perten c e a o autor do exc e rt o : N. F.. quando é introdu -
zi da pelos antologiado rc s franceses , e N .T. . para as nota s da tradu -
ção p ortuguesa.
Rese rvados lodo s os dire itos de acordo co m a lei

Edição da
FUNDAÇÃO CALOU STE GULBE N K IAN
A v. de Berna - L is boa
1996

Depósito Legal n.o 92 :\h 1l9S


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NOTA PRÉVIA

E sta obra não é um tratado. Apre senta -se ante s s ob a forma


mai s mode sta d e uma colect ân ea. O s texto s, recolhido s e m todas as
civ ilizaç õ e s e e m todas as é poc as que no s legaram propostas úte is
so bre as que stõ es do teatro , foram reuni do s aquando d e um curso
qu e de correu po r vá rios an o s no In stituto de Es tudos Teatrais da an-
tig a S orbonne , e depois, m ai s tarde , na Uni vers idad e de Paris-Hl .
Par eceu-no s que a form a ção h ist órica, técnica e pr áti ca dos no ssos
a lunos deveri a se r com ple tada c o m uma reflexão so b re os grandes
p robl emas do teatro, tal como foram v iv idos e exp o st o s por criado -
re s, filósofo s o u escritore s. Por outro lad o, não e xi sti a , e m francês,
uma recolha de es crito s fund amentais qu e permiti sse es te tipo de re-
flexão, e sentimo s necessid ad e de preench er essa lacuna .
Na verd ad e , o s no ssos textos levantam mais pr oblemas do qu e
oferecem soluções. Se, para quem qu er qu e se int eresse pelo teat ro ,
cons t itue m um a es pécie de manual do estuda nte, a Sebe nta do Pro -
fesso r, c o mo se di zia anti g am ente , que d á re spo st a s às quest ões
co locadas , ainda es tá por escrever. Caso qui sesse ser com pleto, at in-
g iria dimensõe s g igan tescas, e pro vavelmente nunca o teríamos es -
c rito . Pensamo s que é mai s fecundo dei xar o leitor re sponder por s i
pr óprio aos de safios que lhe apresentam , d ado a sua riqu eza e densi-
d ad e, os texto s qu e reunimo s.
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Também não é fácil definir com rigor o próprio domínio a qu e I - PLAT ÃO : A R EPÚBLICA (e ntre 389 e 370 a.c.)
os te xtos co nt inuamente fazem alusão . Pode mesmo , inclusiv e , se r
contes tada a id éia de uma es tética teatral. As s uas antigas pret en- N est e lon go diálogo, qu e a tra diçã o divide em d ez livros , Pla-
sõe s normativas estão hoj e largamente desacreditadas, e até a sua tã o (429-34 7 a .Ci) apresenta o seu m estre, Sócrates , e 11m grupo d e
própria unidade pode se r posta em ca usa . A no ssa é poc a já não a te nienses a tentar definir a noção d e j ustiç a . Para aí chega rem , é-
ac re d ita m ai s numa form a única de bel e za tal como proclamada , -lh es necess ário recorrer ao paradigma d e uma cidáde ideal, onde a
co m conte údos ad e mais d iferentes, pel os impe rial ismos c u ltura is justiç a poderia desenvolver as suas características e efe itos . A fo rma
so frive lme nte ing énuos. M as tamb ém nã o ac re d ita qu e sej a po ssível d id áctica do d iá logo p erm ite 11m encadea men to rigoroso e su bt il
recu sar um se ntido a um co nj unto, e m qu e c ad a um dos elemento s dos argumentos.
parece arbitrário mas c uja co mpos ição , não o bstan te , adq uire ne ce s- A s p assagen s que citamos apresentam A di m anto, o irmã o se -
sa riame nte um a estrutura estética. Co nta nto que nã o seja sepa ra da, cundog énito de PIarã o , co mo interlo cutor d e Sócra tes . Esta beleceu-
nem da s di versas té cni cas , nem da hi st ória, n em da moral, ne m -s e que a C idade preci sará de guardi ã e s. quer di zer, de uma eli te
mesmo da metafísica, a es tética pode o fe re ce r-se corno o lugar co- g ue rreira e administrativa. Qual deve ser a forma çã o d esses gu ar-
mum em q ue é possível si tua r as declara ções válidas so bre a essên- diôes? A s artes imitativas ter ão aí lu gar ? E primei ro q ue tudo , qual
c ia do fenómen o teatral. É pel o menos assi m que a e nte ndemos. é a natureza dessas artes ?
A nossa aprese ntação dos textos segue e m ge ra l a ordem c ro -
nol ógica da sua difu são pública. Reduzim o s as inform aç ões hi st óri-
cas e as not as ao mínim o indi spen sá vel. A nossa esco lha foi feita I . N arra tiva e teatro
e m fun ção do a lca nce dos probl emas gera is que cada a uto r co loca, - O ra d iz-me: sa bes o começ o d a Il iada , qu ando o po eta d iz
ma s também da influên ci a exe rcida pel as ideias ve icu ladas so b re o que Crises impl orou a A gam émnon que lhe libertasse a filha, m as
desenvolvimento do teat ro . No caso de a lg u n s text os que não tiv e- es te lhe foi ho stil, e aqu ele, uma ve z que não alcanç ou o seu fim,
ram uma reedição moderna, optamos por não actual izar a grafia e a fe z uma inv oca ção à div indade contra os A q ue us?
pontuaçã o para co nse rva r o se u sabor anti g o . Trat a -se apenas de ex - - Se i, s im .
ce rtos, mas qu isemos qu e fosse m, tanto qu anto possí vel , de tama- - S ab es , portanto, qu e até es te pont o d a e po peia
nh o substanc ial, por m oti vos igualm ente pedag ógi cos e pr áti cos ; na E di ri giu súp licas a todos os A q uc us,
a ltura, tam bém tivemos e m cons ideração a dificuld ade de e ncon tra r
especialmen te a os do is A tri das, co m a nda ntes d os p o vos ,'
a lgumas das o bras nas livrari as. Demo s a cada passagem um títul o
é o própri o poe ta que fa la e não tent a vo lta r o nosso pensamento
que procura sig n ifi ca r o se u esse ncia l. C a d a text o é acom panha do
p ara outro lad o, como se fosse outra pes soa que di sse sse , e não e le.
por uma referência preci sa , e indicações que permitem recoloc á -Io
rapidamente no seu conte xto; em tal c irc un stâ nc ia, m encionamos
uma edição mod erna de fác il cons ulta . , N .T .: I/iodo , I. 15-16
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E depois disto, fala como se Crises fosse ele mesmo e tenta o mais porém, Agamérnnon, enfurecido, ordenou-lhe que se retirasse ime-
possível fazer-nos supor que não é Homero que fala, mas o sacer- diatamente e não voltasse, sob pena de nada lhe valerem o ceptro e
dote, que é um ancião. E quase todo o resto da narrativa está feito as bandas do deus. Antes de libertar a filha, havia de envelhecer em
deste modo, sobre os acontecimentos em Ílion, em Ítaca e as prova- Argos junto dele. E mandou-lhe que se retirasse, e não o excitasse,
ções em toda a Odisseia. a fim de que pudesse regressar a casa a salvo. O ancião, ao ouvir es-
- Absolutamente, declarou. tas palavras, teve receio e partiu em silêncio, e, afastando-se do
- Portanto, há narrativa, quer quando refere os discursos de acampamento, dirigiu muitas preces a Apolo, invocando os atribu-
ambas as partes, quer quando se trata do intervalo entre eles? tos do deus, recordando e pedindo retribuição, se jamais, ou cons-
- Como não seria assim? truindo templos, ou sacrificando vítimas, lhe tinha feito oferendas
- Mas, quando ele profere um discurso como se fosse outra do seu agrado. Como retribuição, pedia que os Aqueus pagassem as
pessoa, acaso não diremos que ele assemelha o mais possível o seu suas lágrimas com os dardos do deus»". É assim, ó companheiro,
estilo ao da pessoa cuja fala anunciou? que se faz uma narrativa simples sem imitação - concluí eu.
- Diremos, pois não! - Compreendo.
- Ora, tomar-se semelhante a alguém na voz e na aparência é - Compreende, portanto - prossegui - que há, por sua vez, o
imitar aquele com quem queremos parecer-nos? contrário disto, que é quando se tiram as palavras do poeta no meio
- Sem dúvida. das falas, e fica só o diálogo.
- Num caso assim, parece-me, este e os outros poetas fazem a - E compreendo, também, que é o que sucede nas tragédias.
sua narrativa por meio da imitação. - Percebeste muito bem, e creio que já se tomou bem evidente
- Absolutamente. para ti o que antes não pude demonstrar-te; que em poesia e em
- Se, porém, o poeta não se ocultasse em ocasião alguma, toda prosa há uma espécie que é toda de imitação, como tu dizes que é a
a sua poesia e narrativa seria criada sem a imitação. Mas, não vás tu tragédia e a comédia; outra, de narração pelo próprio poeta - é nos
dizer outra vez que não entendes, vou explicar-te como é que isso ditirambos que pode encontrar-se de referência; e outra ainda cons-
aconteceria. Se Homero, depois de ter dito que Crises veio trazer o truída por ambas, que se usa na composição da epopeia e de muitos
resgate da filha, na qualidade de suplicante dos Aqueus, sobretudo outros géneros, se estás a compreender-me.
dos reis, em seguida falasse, não como se se tivesse transformado
em Crises, mas ainda como Homero, sabes que não se tratava de 2. Sociologia da imitação
imitação, mas de simples narração. Seria mais ou menos assim (ex-
primo-me sem metro porque não sou poeta): «O sacerdote chegou e - Adivinho já - disse ele - que queres examinar se havemos de
fez votos por que os deuses lhe concedessem conquistar Tróia e sal- receber na cidade a tragédia e a comédia, ou não.
var-se, mas que lhe libertassem a filha mediante resgate, por temor aos
deuses. A estas palavras os outros respeitaram-no, e concordaram; N. T.: Todo este trecho parafraseia os versos 14-42 do Canto I da lIíada.
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- Talvez - decl ar e i - , tal vez até ainda mai s d o qu e isso. A inda - Por co nsegui n te, se conse rvar mos o pri meiro argumento, de
não se i ao ce rto ; ma s p or onde a razão , como uma brisa, nos levar, é q ue os nossos g ua rdi õcs , isentos de lod o s os o utros ofícios, devem
por aí qu e devem os ir. se r os artífi ce s mu it o esc ru pu los os d a libe rd ade d o Est ado , e d e
- Dizes bem . nada mai s se devem oc upar qu e não di ga respeit o a isso, não hão -d e
- Conside ra, poi s , ó A d imanto, o segu inte: se os gua rd iões de- faze r ou imitar qu al quer ou tra co isa. Se imitarem , qu e imitem o qu e
ve m se r imitadores ou não . Ou resulta d o que di s ~émos ante rio r- lh e s co nvé m de sd e a in fância - coragem , se nsatez, pure za , lib e r-
mente qu e ca da um só exerce bem uma profis são , e não mu ita s, d ad e , e todas as qu ali d ad e s dessa es péc ie . M as a ba ixeza, não de-
mas, se tentasse exercer mu itas, falharia e m a lc anç ar qu alque r repu - ve m prat icá-I a nem se r c a pazes de a im ita r, nem nenhum dos o utros
tação? víc ios, a fim de q ue , pa rtindo da im itação , passem ao gozo da reali -
- Como deixari a de se r assi m? dade. Ou não te ap ercebeste de qu e as imi taç õe s, se se persevera r
- E não é válido o mesm o raciocínio para a imitaçã o , de q ue a nelas desde a in fân c ia , se tr an sformam e m h á b ito e natureza para o
mesm a pessoa não é capaz de imita r muitas coisas tão bem com o corpo , a voz e a int el igên c ia?
um a só? - Transform am e muito.
- C laro que não. - Logo, não orde nare mo s a um daquel e s d e qu em queremo s
- Logo, dific ilme nte exercerá ao mesmo tempo um a das profis- ocupa r-nos e qu e é preci so que se tornem homens supe rio re s que .
sões de impo rtâ nc ia e imi ta rá muit as co isas e se rá im itador, um a se ndo homen s. im ite m um a mulher, nova o u ve lha, a injuriar o ma rid o ,
vez q ue nem se q uer as mesm as pessoas imitam bem ao me s m o o u a criticar os deu ses , o u a gabar-se , po r se supo r fe liz, o u domi nada
tem po duas artes miméti cas que parecem pró x im as um a da outra , a pel a de sgraça , pel o desg o st o e pel os ge m idos ; muito men os qu ando
comédia e a tragédi a. Ou não chamaste há pou co im itações a am bas? es tá doent e, o u apaixonada, ou co m as do res d a m atern idad e .
- Ch am ei , sim. E di zes a verdad e : as mesmas pessoa s não são - A bsoluta mente .
ca pazes d isso. - Ne m qu e imitem e scravas e esc ravos. p ro ced endo com o tai s.
- T ão-pou co se p od e ser ao mesmo tempo rap sod o e ac tor. - Nem isso.
- É verdade . - Nem homen s perve rsos e cobardes, m e parece , qu e fa zem o
- Ne m seq ue r os act ores são os mesmos nas coméd ias e nas co ntrá r io do qu e há po uco d isse mos, qu e fala m mal e troç am un s
tragéd ias. Ora, tud o isso são imitações, o u não ? dos o utros e d izem coisas ve rgonhosas . tanto qu an do es tão e m bria -
- São imi tações. g ados co mo só b rios . e tod a a es péc ie de erros qu e ta is pes s oa s
- Parece -me, Ad im anto, que a natureza hum an a es tá fragmen - comete m, em pa lavras e e m acções contr a s i m esm os e co ntra os
tada em parte s ainda mais pequenas, de modo que é incap az de im i- outros; entend o ai nda qu e não devem habitua r-se a assem e lhar-se
tar bem muitas coisas ou de executa r bem aquelas mesmas de qu e ao s loucos em palavras nem em actos . Poi s d ev em conhecer-se o s
as imi tações são cópia. loucos e os mau s, homens ou mulheres , m a s não fazer nem imitar
- A bso lutamente - respondeu. nada que seja del es.
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- É assim mesmo. - É natural - respondeu ele.


- Pois bem - prossegui. - Deverão eles imitar os ferreiros ou - Portanto, servir-se-á de uma forma de exposição no género
quaisquer outros artífices, os remadores das trirremes ou os seus ca- da que nós abordámos há pouco a propósito das epopeias de Ho-
pitães, ou qualquer outra coisa referente a estas profissões? mero, e o seu estilo participará de ambos os processos, a imitação e
- E como poderia ser isso se nem sequer lhes é lícito aplica- as outras formas de narração; mas, num discurso extenso, pouco lu-
a
rem-se 'qualquer destes ofícios? gar haverá para a imitação. Não está certo o que eu digo?
- E o relinchar dos cavalos, o mugir dos touros, o murmúrio - Está, e muito, pelo que respeita à necessidade desse tipo de
dos rios, o bramir do mar, os trovões, e todos os ruídos dessa espé- orador.
cie - acaso deverão imitá-los? - Logo - prossegui eu -, o orador que não for dessa espécie,
- Mas é que lhes foi proibido estarem loucos ou imitar a lou- quanto maior for a sua mediocridade mais imitará tudo e não consi-
cura. derará coisa alguma indigna de si, a ponto de tentar imitar tudo com
- Ora pois, se eu percebo o que dizes, há uma maneira de falar grande aplicação e perante numeroso auditório, mesmo até o que di-
e de narrar pela qual se exprime o verdadeiro homem de bem, zíamos há momentos: trovões, o ruído do vento, da saraiva, dos ei-
quando é oportunidade de o fazer; e outra maneira distinta desta, à xos e roldanas, trombetas, flautas e siringes, e os sons de todos os
qual está ligado e na qual se exprime o homem nado e criado ao in- instrumentos, e ainda o ruído dos cães, das ovelhas e das aves. Todo
vés daquele. o discurso deste homem será feito por meio de imitação, com vozes
- Quais são essas maneiras? e gestos, e conterá pouca narração.
- O homem que julgo moderado, quando, na sua narrativa, - Também isso é forçoso que seja assim - replicou.
chegar à ocasião de contar um dito ou um feito de uma pessoa de ~ São estas as duas espécies de narração que eu dizia.
bem, quererá exprimir-se como se fosse o próprio, e não se envergo- - São, efectivamente.
nhará dessa imitação, sobretudo ao reproduzir actos de firmeza e - Por conseguinte, destas duas, uma experimenta pequenas
bom senso do homem de bem; querê-lo-á em menos coisas e em alterações, e, desde que se dê à narração a harmonia e o ritmo con-
menor grau, quando essa pessoa tiver tergiversado, devido à doença, venientes, é fácil ao orador manter essa correcção e harmonia única
ou à paixão, ou mesmo à embriaguez ou qualquer outro acidente. - pOIS pequenas são as mudanças - e também o ritmo igualmente
Quando, porém, se tratar de algum exemplo indigno dele, não que- aproximado.
rerá copiá-lo afanosamente quem lhe é inferior, a não ser ao de leve, - E exactamente assim.
quando ele tiver praticado algum acto honesto; e, mesmo assim, - E agora quanto à outra espécie? Não precisa do oposto, de
sentir-se-á envergonhado, ao mesmo tempo por não ter prática de todas as harmonias, de todos os ritmos, se quer exprimir-se conve-
imitar seres dessa espécie e por se aborrecer de se modelar e de se nientemente, devido ao facto de comportar todas as formas e varia-
formar sobre um tipo de gente que lhe é inferior, desprezando-o no ções?
seu espírito, a não ser como entretenimento. - Forçosamente que sim.
IR
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- Mas tod os os poet as e aque les que q uerem contar alg uma menos aprazível , tendo e m conta a sua utilidad e , a fim de qu e e le imite
coisa não vão dar a um a o u outra dessas formas de ex pressão, o u a para nós a fala do homem de bem e se ex prima segundo aquel es mo-
um a m istura das du as?
delos qu e de início regul ámo s, qu ando tentávamos ed ucar os militares.
- É forço so - disse.
- Era ass im m esmo que faríamo s, se es tivesse no nosso poder.
- Então que havem o s de fazer? Havemo s de receb er na ci da de
tod as estas formas ou um a e outra das formas puras o u a mi stu ra? ( P la to n, Cl'/IITCS Co mple te s, T omo V I. La R épu bliq uc, trad . de Ém ilc C hambry, livres I·III :
I : 392d -3 94<:. pp. 102 -1 0 4 ; 2: 39 4d -39 Xb. 1'1" 104 -11 0 . co\. G uill a um e Rudé , Paris, 19 3 2,
- Se prevale ce r a minh a opinião, receberem o s a for ma se m
co m au torização das « Be lles Lcure s».
m istura qu e imit a o hom em de bem. Na ve rsão po rtuguesa for am re prod uz idos ex ce rto s da tradução de M aria Helena da Roc ha
- Mas na ve rdade, ó Ad ima nto , ta m bé m a forma m ista tem o Pe reira: P la tão , A República , Li shoa . Fun dação Ca louste Gu lbcnk ian . 1990 (6' . ed .): Liv ro
111 , I : 39 2d- 394c , 1'1" 116- 1 I X: 2 : 39 4d ·3 98 b, 1'1" 119 - 126 . Nu que re sp eita às notas , fora m
se u encanto, e é muito mai s apraz ível pa ra as c ria nças e preceptores
mantidas ape nas as 'l ue di ziam re sp eito à compreensão im ed iat a d o te xto .)
e para a multidão em geral a inversa da que tu prefer es.
- De facto, é a mais ap razível.
- No entanto, talvez me digas qu e ela não se adapta ao no sso 2 - ARISTÓTELES : PO ÉTICA (cerca de 330 a .c. )
go ve rno, porquanto não exi ste entre nós homem dupl o nem múlti -
plo , um a vez que cada um executa uma só tarefa. A ristóteles, na scid o em Estagira, na M a ce d ánia , em 384 antes
- Efec tivame nte, não se ada pta. da n ossa era, foi a lu no d e Pl atão , e d ep o is, ap ó s a lg umas via gen s,
- Não é por esse moti vo que só num a c id ade assi m e ncontra re - p recep to r de A lexandre «o Grande ». Entre 334 e 323 manteve uma
mos um sa pate iro qu e é sa pa teiro , e não p ilot o , al ém da arte de ta- escola em A te nas, di ta p eripa tética , o Liceu . Morreu em 322 a .c.
lhar ca lça do, e um lavrado r, lavrador e não j u iz, al ém da agricu ltura . A sua obra é im ensa . A borda a filosofi a em ge ral , as ciê ncias
e um gue rreiro , gue rre iro, e não co me rc ia nte, a lé m da arte mil itar , e [isicas c natura is . a lóg ica , a g ra má tic a. a m o ral . a p ol ítica, a retó-
assi m por di ant e? ri ca c a poét ica. O se u breve tratado intitulado Poéti ca é . se m d ú-
- De fac to - respondeu ele. vid a, uma recolha de notas , sem orna menta ções lit erárias , tomada s
- Se chegasse à nossa c idade um homem ap ar entem ent e capa z. na ocasião de um cu rso , p el o próprio A ristó te les o u p or um d os
devid o à sua a rte , de tomar todas as fo rma s e imitar toda s as CO iS;lS, se us a lunos. Trata sob re tud o da tragéd ia , repetidamente comp a -
a nsioso por se ex ibir j unta me nte com os se us poem as, pro ste rn á- ra d a á epopc ia : os desenvolv imentos a nuncia dos so bre a coméd ia
vamo -nos di ant e del e , co mo se de um ser sag rado, mara vilhoso, en - n ão fora m encontrados.
cantador, mas dir-Ihe- íam os que na no ssa cidade não há hom ens Embor a tradu zida p ara o árabe. a Po étic a j r» p ou co co nhecida
dessa es péc ie , nem sequer é lícit o qu e e x istam , e mand á-lo -Iamos durante a Idade M éd ia . A primeira traduçã o latina fo i imp ressa em
e m bora para outra cidade, de pois de lhe termos derramad o mirra finais do século XII. M as a partir do Renascimento a sua influência
sobre a ca beça e de o termos coroado de grinaldas. Mas, para nós, tornou-se decisiva e d omin a a reflexão sobre o teatro no Ocidente .
ficar íam os com um poeta e um narrad or de histórias mai s a ustero e Por tal reproduzim o s aqui excertos mais longos .
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l. A imitaçã o I suas imagen s o u sã o melhore s do que nó s, ou piores, o u sem e lhan-


tes. O s pintore s não fazem de o utro modo: Pai ignoto embelezava os
A epo peia , a poesia trágica , e também a comédia , o ditirambo ,
seu s modelo s, Pauson exa ge ra va o s seus defeitos, Di on ísio repre-
e mesmo, no qu e respeita ao essen ci al , a poesia au lética c a c itarís-
sentava-os tal qual eles são.
tica são tod as, no seu conj unto , imitações. Mas diferem umas d as
(... De igual modo), as pe rso n ag e ns de Homero são superiores
outras de três maneiras: ou imitam por meios diferente s, ou imitam
(à média), as de Cleofonte são-lhe semelhant es , as de Hé gemon de
de modos d iverso s e vari ávei s.
Tasso , q ue foi o primeiro autor de paródias, ou as de N ic ócare s, qu e
De fact o , da mesm a maneira que a lg uns , sej a pel a s ua arte , seja
escreve u um a Poltroniada, são piores ( ...).
pelo hábito , c riam im agen s imitando mu ito s obj ect o s através d as
A mesma d ifer ença se pa ra a tragédi a da coméd ia. A primeira
cores e das fo rmas, assim outro s, nas a rtes de qu e falei , imitam a tra-
vés da voz . Todas es tas artes real izam a im itação por inte rméd io do pret ende imita r homens superiores aos de hoj e, a segu nda homen s

ritmo, do d iscurso e da harm oni a, seja se paradame nte, sej a e m con- infe riore s (... ).
junto. Por e xe m p lo , o tocad or da flau ta , o u da cít ar a e o utro s an ál o- Por su a vez, Sófocles pod e se r con sider ado como um imitador
gos pela sua e ficácia, co mo o da sirín g ica , imitam serv ind o -se ap e- do mesmo tipo que Homero, j á que ambo s imitam homens respeitá-
nas da harmonia e do ritm o. A da nça im ita igualmente pelo ritmo , vei s, bem como um imitado r do mesmo tipo que Aristó fanes, poi s
ma s não pel a harmon ia; atrav és de r itmos figurati vo s, os bailarinos q ue am bos imita m hom en s e m acção , fazendo qu alquer coisa ...
imitam, de fac to , os ca racteres , os afec tos e as acções. Duas c a usas, e duas ca usas naturai s, pa rec e m es ta r n a origem
Qu ant o à arte qu e apenas se serve do di scurso , sej a e m p ro sa, de tod a a po e si a . Primeiro , a im itaç ão faz pa rte da nature z a dos ho-
seja em ve rso, qu er sejam de diver sa s es péc ies mi sturad o s, ou tod os men s desde a sua infânci a. É preci samente nisto qu e re side a dife-
do mesm o gé nero, essa ainda não recebeu nome a té agora 2 ( ••• ) . re nça e ntre o h omem e os o utros animai s : ele é o mai or d o s imita-
Há art es que utili zam tod os os m e ios de que fa lei , ou sejam, o dor es, e a imitação é o mei o pelo qual adq uire os se us primeiros
ritmo, o ca n to , o metro , como o fa zem a poesi a d itirâmbica , o co nhe cim e n tos. Em segundo lu gar, para todos os homens, a imita-
norno, a tragédi a e a com édi a; diferem na medid a e m que algum as ção é uma fon te d e prazer.
usam tod o s e sse s mei os ao mesm o tempo . e as o u tras se pa rad a- É ist o que demonstra o que acon tece nas obras de a rte: se os
mente (...). espec tác ulos e m si são re pu gn ante s , as s uas ima gen s pe rfe itamente
Qu and o se imita imitam -se homen s e m acção . Estes. ne cessar ia- exactas dão , contudo, prazer à no ssa v is ta ; tal ac ontece com as for-
mente. ou são respeitáveis, o u são m ed íoc res. De fac to, o s ca rac te- ma s do s anim ai s mai s repugn ante s, ou d o s ca dáve res.
res redu zem-se quase tod os a es tas duas ca tegorias: é pela maldad e Ex iste um a o utra ra zão: não é apenas para os fil ó so fo s qu e o
e pela virtud e qu e se d iferen ci am tod os os ca rac teres. Assi m , as aprender é um g ra nde pr aze r, tal é igu almente verdade iro para os
outros homen s, e m bora a sua participação no saber sej a reduzida.
I .
o te rm o g reg o . muitas vele s retom ado hoj e . é mi mc sc. (N .F.) O ra, e le s gost am de ver as im agens porque , o lhando -as, têm oportu-
?
- A ris t óte le s l.un cn ta a ausê ncia do nom e literat ura . (N.F .) nid ad e de aprender e de raci oc inar sobre ca da um d o s e le m e ntos,
22 23

por exempl o. de identifi car um indi v íduo. Se acontece que o o bje ct o e le também tem . ev iden te me nte, a sua efic áci a c o m p le ta. Por outro
não foi visto anteriormente , o prazer não na scerá da imitação m as lado , se a tra gédi a imita uma acção e se e la é praticada por homens
da execu ção, da co r, o u de um a outra cau sa dest e gé ne ro . que agem, é ne ce ssário que e stes homens sejam particularizado s
pel o se u carácter e pelo seu pensamento: tai s são com e fe ito os fac -
ro re s aos quai s no s referimo s quando fal amos das acções; o pensa-
2 . A tra gédia
m ento e o caracter são as du as c ausas das acçõe s , e el es faze m tudo
A ep op e ia tem e m co m um co m a tragédia o se r uma imitação te r êx ito, ou soçobrar. Enfim , a última im itação da acção é a fábula.
de homen s respei táv ei s , fei ta por int ermédio da ve rs ific ação, m as C ha mo fábula ao conj u nto d as acções. C hamo c a rácte r, ou psicol o-
difere na medid a e m q ue usa se m pre o mesm o m etro , e porqu e é g ia , àq u ilo qu e no s faz e mi tir um julgam ent o so b re as personagen s .
uma narrati va. Diferem , a lé m di sso , na ex tens ão : a tragédia es fo rça- C ha mo pensamento , o u papel, a tudo o qu e e las di zem para prova r
-se na ma ioria das ve zes e m cabe r de ntro de um a úni c a revolução ou p ara e xprim ir uma o pi n ião.
do Sol, ou em não a ultrap assar muito , enq uanto a epope ia não tem É portanto nece ssári o q ue toda a tra gé di a c o m porte se is partes ;
limite de tempo; isso é, poi s, uma out ra diferença. Todavia, na o ri- e é a pe n as em função delas qu e a tragéd ia ex iste . Sã o : a fá bula , a
ge m , a práti ca dos trág icos era a me sm a qu e a dos poet as épicos. psi cologia, o text o , os papé is , a encenação e o canto. Duas dessas
( ...) pa rte s são os m ei o s de imita r, um a outra é o modo de im itar e , po r
A tragédi a é a im ita ção de um a acção seria e co mp le ta; tem fim , as três o utras são o s objectos da im itaç ã o: nad a m a is pod e r ia
uma g ra ndeza eq ui librada ; a sua lin gu agem é ag rad ável e os e le- ex is tir. Prat icam ente todos os a uto re s usa ram es sas part es , porque
mentos diferem entre si nas diversa s part es; o s acontec ime ntos são e nco ntra-se igualmente por tod o o lad o a e nce na ç ão , a psicol ogi a. a
aí representados por pe rsonagen s e não co nta do s numa narrati va : fábul a, o texto , a músi ca e as personagens.
e nfim, e la susc ita a pi edade e o te rro r e, a trav é s del es , efec tua um a
verdadeira purgação I desse s dois tip os de se ntimento s. Chamo «lin-
g uage m ag rad ável» àquel a que tem ritmo , melodi a e canto ; a dife-
rença e ntre es tes elemento s seg undo as partes consi ste em qu e t ão
depressa o verso é e mpreg ue a sós , quanto se lhe j unta o canto . rc a c ção d o s a ud itore s Ü m ús ic a . (J pa sso é a ss im tradu z id o po r 1\1. Som vi llc no se u E v,va i s u r
la P o étiq u« d ' A risl u /c ( Pa ris , V ri n , 19 75 ), p .77 : Esta 111l111(' ; ,. (/ c/c ser alcl'tu clo ,lüo viva c I' rn -
D ad o q ue a im ita ção é feita por homens e m ac ção, um a part e fi o u /a nnlg umas p es soas , ex is te C 111 nos, c' niu» dif er e scnâ o /"/1"(/ mais 011 pa ra IH C' H OS : tal
da tra gédi a co nsistirá necessariam ente na e ncenação. dep ois seg ue m- a cont ece ('O / H a p ieda de . (J te rro r (' () entus ia smo . D e furto , fiei individuo» qu e selo pa rti cul a r.
li/elite scnsivci s li est a espécie d e 1I 10\ 'ilJl l' J1(o : silo l lt/ lIC !t',Ç {III(' \ 'enl O .\' to rna rem -se ca lmos
-se o c anto e o texto ; é exac tamc nte co m estes el ementos qu e é fei ta pelo efei to da s melodias sa g ra da s . a ssim q ue começam li 0 11\ ' ; 1" os cantos aprop riados [1(/ ,.a
acalm ar as paixô cs violen tas ; f iram ('O Il JO se Ji \' CS.H '11l cncont nulo a í remédio C ka tharsis . O s
a imit a ção . C hamo text o ao co nteú do dos ve rsos ; qu ant o ao ca nto ,
homens com di sp o sição para lJ piedade . " terror c. CI II gera l. para o s a fcctos vi vos, dc vern
necessariamente ex periment a r () m esm o ef ei to ; os o utros tombem, se g undo o gra u em q U l'
cada 11111 deles seja su sccpti vc l a estes d iv er sos afcctos: l ' todos devem experi m en ta r lima es -
p é c ie d i' a livio a com p anhado por um sen tim ento de pra ze r. É a ssim quc o s ca ntos destinad o s
I N .F .: O termo greg o , qu e de u or ige m a in úmeros co rn e nrár ios . é katliorsis . Ap a rec e
a produzir es te efeito propo rcio nam aos homens lima a lcgr!« inocen te (' pu ra .
n um a outra o hra de A rist ótc lc», ;\ l'ot ttico. nurna pa ssagem, no livro V III . c ru q ue se ev oca ti N.T.: A pa lav ra po rtug ue sa é catursc.
24 25

3 . Afábu la ( ... )

A parte mais importante da tragédia é a reun ião d a s acções; A tra gédi a é , port ant o , im ita ção de uma ac ção com ple ta, inteira
com efeito, ,I tragédia é um a im itação, não de homens, m as da ac- e tendo uma ce rta ex te nsão; porque uma co isa pod e se r intei ra e não
ção, da vida, da felicidade e da in felicidade; ora a felicidad e e a in- te r praticamente exte nsão.
feli cid ad e residem na acç ão , o o bjecti.vo é agir, não é se r, e os ho- Que quer di ze r «inteiro» ? É o que tem princípio , m eio e fim.
men s sã o o que são por cau sa do seu caracter, mas são fel izes ou O que é o princípio? É aqu ilo que , por si mesm o , não se segue ne-
não por ca usa das suas acções. Ass im, as personagen s não agem a cessariam e nte a outra co isa, e a segu ir ao qu al outra co isa ex iste ou
fim de imitar uma determinada psi c ologia: é através das suas acções se desenvol ve . In ve rsam ente , o que é o fim ? É aq uilo qu e, pela su a
qu e adquirem um certo ca rácter. As acções e a fá bula são, ass im, o natureza própria, se suce de a qualquer coisa, seja po r necessidade,
obj ectiv o da tragédia; e o objec tivo é sempre essenci al. seja a maior pa rte das vezes, e a seg u ir ao qu al não há mais nada.
O que é o meio? Aquilo que suced e a qualquer cois a e que é se -
( ...)
Mai s ainda, se as tirad as psicológicas forem colocadas umas a guido de qualque r coisa.
seguir às outras, por mais bem feit as que sejam pelo text o e pelo pensa- É então preci so qu e as fábulas bem compostas não comecem
nem acabem por acaso , mas utilizem as idei as ac ima referidas.
mento, não se realizará de modo alg um o trabalho da tragédi a; es te será
Há mais aind a : um bel o animal e no gera l todo o ob jec to belo
muito melhor conseguido numa obra e m que estas qualidades sejam in-
são compostos de part es; não de ve existir entre essas parte s ap enas
feriores, mas onde se encontrem a fá bula e a trama das acções. A lém
um a orga n ização defi nida ; é preci so também um a ex te nsão que não
disso, os mais potentes motores da acç ão da tragédia so bre as alm as são
seja a rbi trá ria; a bel e za cons iste tanto na ex te nsão quanto na o rga ni-
as partes da fábula, a saber, as peripécias e os reconheciment os.
zação; é por isso qu e um ani ma l belo não pod e ria se r nem e x tre ma-
Um o utro índice é qu e os principiantes em poesi a a lcançam a
mente pequeno, porque um o lhar limitad o a um tempo ins ta n tâ neo é
exactidão do texto e da psicolog ia , a ntes de sabe re m com b ina r as
co nfus o, nem ex tre ma me nte grand e, po rque a visão de conj un to não
acções: é igu almente o caso de qu ase todos os poet as anti go s.
pod e na scer e o objecto não aparece ao olhar dos espec tadores, nem
A fábula é, então, o prin cípi o e , de alguma man ei ra , a alm a da
co mo uno , nem como intei ro; tal se ria um ani ma l com o co m pri-
tragédi a. A psicologia ocup a ape nas o segundo lugar. .. Imit ação de
ment o de v ários qu il órnetros ! Ass im , os co rpos e os an ima is devem
uma acção, a tragédia é esse ncia lmente, por esse mot ivo , imi tação
ter uma ce rta g ra ndeza ada pta da ao n osso o lhar; pa s sa-se exacra-
de hom en s qu e agem. mente () mesmo com as fábul as, c uj a dimen são deve se r adaptada às
( ...) nossa s facu ld ades .
E en cenação, decerto sedutora, não é de modo a lg um uma obra
C..)
de arte c não pertence nunca à poética. De facto, a força d a tr ag édia Qual é o limite co nfo rme à própria nature za ela ucçã o? A fábula
é indep endente da represent ação dos actores. Além di sso , a arte do deve sempre ter a mai or ex te nsão possível, com pa tíve l com a sua
cenóg rafo é mais importante par a a disposição do esp ect ácul o que a inteligibilidaele; a sua bel eza crescerá com a sua a m p litude . Em re-
dos poet as. gra geral, uma ex te nsão em que os aconteciment o s, sucede ndo-se
26 27

seg undo a veros im ilha nç a o u a necessid ad e, fa zem pa ssar da feli ci- c ima. N ão é ve ro símil que tai s acontec imentos ocorram por acaso.
dade à in feli c idade ou inv ersamente, é um limite de grandeza sufi- O que é ne cessár io é que as fábulas de st e tipo sej am de uma beleza
ciente. A unidade da fábul a não nasce, co m o al guns o pensam, do su per io r.
facto de se re ferir a um indivíduo: as acç ões de um homem podem Por entre as fábulas, al gumas são s im p les e outras com plexas;
se r numerosa s, e mesmo infinitas, se m constituir uma unidade ... a s a cções qu e e las imitam pertencem evidentemente às mesmas
É por isso que, segundo m e parece, tod os os poetas qu e escreveram c at e gorias. Ch am o de simple s a acção coerente e un a tal como a
uma H era cleida ou um a Teseida ou outras o bras semelhantes se en- d efini , e ond e o desenlace interv ém sem pe ripécia nem reconhe-
gana ram: pensam qu e, dado que Hércul es é um só , segue-se qu e a ci mento. Ch am o de com plexa a acção c ujo desen lace resulta de um
fábula também é só um a! rec onhecimento o u de uma peripéci a, ou dest e s doi s proced im entos.
( ... ) Es tes devem nascer d a pr ópri a constitu iç ão da fábul a, de mod o
Nas o utras art es im itati vas , a imi tação de um o bjecto un o é a resultar de factos ante riores segundo a necessidad e o u a veros im i-
uma. Acontece ex ac tame nte o mesmo co m a fábul a, qu e é imi tação lh an ça ; há um a grande diferença entre a si mp les s ucessão e a causa-
de uma acção. Esta deve ser una e int eira; as suas partes devem se r lidade.
reunidas de tal maneira qu e , se forem deslocadas ou su prim idas a l- A peripé ci a é o inv erter das acç õ e s e m sentido c o n tr á r io
gum as, o co nj unto seja tran sformado e tra nstornado ; porque o qu e ( ..., e isso ... ) segundo a vero si m ilh ança ou a ne cessid ad e. Ass im , em
se pod e juntar, ou não junta r, se m conseq uê nc ia vis íve l, não é ver- Édipo [Rei ], o mensage iro pensa qu e va i d ar prazer a Édi po e li -
dad eiramente um a part e do co nj unto co nsidera do . bert á-lo d o se u temor pel a sua m ãe fazendo- o sabe r quem e le é; é o
contrár io qu e acontece. Em Linceu , o herói é co nd uz ido à morte e
D ána o segue -o para o m at ar ; mas o c urso d os acontec im entos fa z
4 . Estruturas dafábula
com que sej a este último quem m orre e o o utro sej a salvo .
Por entre as fábulas e as acçõe s simp les, as e p isó d icas são as O reconhec im ento, como o se u nome o ind ic a, é uma passagem
menos bo as. Chamo fábul a e pisódic a àq ue la em qu e a sucessão dos d a ig no rância ao co n he c imento, e por consequência para a afeição
episódios não é nem vero sím il, nem necessária. o u o ód io entre aq ue les que se o rie ntam e m d irecção à felicidade ou
( ... ) à infe lic idade . O mai s b el o reconhec ime nto é o que n asce da peripé-
A im itação não se circunscreve ape nas a uma acç ão comp leta. cia: é o caso e m Éd ipo [R ei] .
E la de ve também provocar o terror e a pied ad e . O ra estes se ntirne n- H á a inda o utros re c onhecimentos qu e podem produ zir-se diante
tos na scem sobretudo diant e dos fact os qu e se encade iam contra ria- de o bjectos inanim ados e ncontrados por acaso , ou d ia nte do fa ct o
m ente à nossa expec ta tiva. O mar avilhoso assim criado é superior de qu e a lg uém fez, o u não fez, qu alquer coisa.
aos autom at ismos do acaso . O c úm ulo d o mara vilh o so saído d o M as o reconhecimento q ue melhor convé m à fábula e à ac ção
acaso produz-se quando es te parece revel ar uma int en ç ão. Tal com o é , com o já di sse , o que sc aco m pa nha de um a peripéci a; e la susci-
a estátua de Mítis em Argo s que matou o homem resp onsável pel a tará piedade ou terror pelas ac çõe s de qu e a tragédia é im it ação, e
morte do próprio M ítis : aq ue le olha va a es tá tua , e e la ca iu-lhe em qu e provocarão, seg undo os casos, infelic id ad e e feli cidad e.
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Quando o reconhecimento se refere a pessoas, umas vezes só cai na desgraç a , n ão por causa da su a maior ou menor maldad e , mas
um reconhece o outro, quando a id entidade do sujeito é clara, m as por caus a de um determinado e rro ; é também preciso qu e estej a em
logo de seguida as duas personagens devem reconhecer-se uma à muita glória e prosperidade, como Édipo, Ti estes e os homens ilu s-
outra. Assim Ifi g énia é reconhecida por Orestes g raças ao envio da tres pertencendo a famílias assi m .
carta, ma s para que Ifig énia reconheça Orestes é pre ci so outra coisa. Portanto, é necessário qu e uma fábul a sej a simples e m vez de
A peripécia e o reconhecimento são, portanto, duas partes da dupla, como o dizem alguns, qu e a inversão tenha lugar, não da in -
fábula. O p atético é um a terceira. Expliquei as duas primeiras. feli cidade para a felicidade, mas , ao contrário , da felicid ade para a
O patético é uma acção de morte ou de sofrimento, com o as agoni as infeli cidade, e que a sua ca usa sej a, n ão a maldade , m as um erro
que aparecem e m cena, as g randes d ore s, o s ferimentos, etc. g rave atribuível a urna personagem co mo ac im a di sse , o u bem me-
lh or do que pior.
5. O terror e a piedade A evoluçã o o fe rec e um indício: no princípio, os poetas utiliza-
vam uma fábula qualquer; agor a, as tragédi as m ais belas cen tram -se
A tragédia mais bel a não deve ter uma composi ção simples, so bre um pequeno número de famílias: Alcméon, Édipo, Orestes,
mas complexa; ela é a imitação de acções assustadoras e lamentá- M eleagro, Tiest es , Télefo e outros que tais , a quem coube sofrerem ,
veis , poi s qu e aí re side o as pecto particular deste tip o de imitaç ão . o u ca us arem, infelicidades terr ívei s.
Daí resulta: ( ...)
1) Qu e ela não deve, ev idente mente, mostrar homens bons le- O terror e a piedade pod em nascer d o es pec t ácu lo , o u então da
vados da fe lic idade à infeli cid ade: tal não se ria assu st ad o r nem la- pr ópri a organ ização do s fact os , o que é pre ferível e m ostra um m e-
mentável, ape nas re voltante. lhor po eta. C om e fe ito , é preci so que a fábula seja com posta de tal
2) Qu e e la também não deve m ostrar homen s m au s passando maneira que , m esmo sem ver, o auditor das acções trema e tenha pie-
da infelicid ad e à felicid ade : seria a so luç ão menos trág ica de todas; dade; é o que experimentaria aq ue le que o uvisse a fábul a de Édipo.
não tem nad a do que é nec essário: n em humanidade , nem piedade , M as obter este re sultado com o espectáculo exige menos arte (lite-
nem terror. rária) e exige m e io s teatrai s.
3) Qu e e la não deve igualme n te m o strar o homem a bso luta- Aq ue les que pelo es pectác u lo provo cam. não o terro r, mas ap e -
mente mau pre cipitado da felicidade na infe lic idade : esta c o m bina- nas o se ntimento do monstruoso, não sa be m nada de tragédia; esta
ção satis fa ria a humanidade, mas não a pi ed ade nem o terror; se a não deve ofere cer um prazer q ualq ue r, m as ape nas o qu e lh e é pró-
piedade se assoc ia ao hom em que não m e rece a s ua infelicidade , e o pri o . Dado que o poet a, através da imitaç ão, deve propor cionar um
terror ao homem se me lhante a nó s , es te aconteciment o não se ria pra zer fund ado no terror e na piedade, é ev ide nte qu e é so b re as ac-
nem digno de piedade nem aterrorizado r. ções que deve trabalhar.
Não rest a mais do que o interm édio . Podemos de fini-lo assim: Tomemos e ntã o , de entre os acontecimentos que so brevê m ,
um homem qu e não brilh a nem pela s ua v irtude, nem pela justiça, aq ue les qu e p are cem poder se r ate rrad o res o u suscitar piedade.
30 31

Nece ssariamente, põem em confronto person agens amiga s ou O caso melhor é o último : e m Cresfo nt e , M é rope es tá à bei ra
inimigas , ou nem um a coisa nem outra. Se um ini m igo at aca um de m at ar o seu filho; ela não o m ata, ma s reconh ece-o ; em Ifigénia ,
inimigo , em act o ou em pensamento, não dá lugar a piedade al - há a m esma situ ação entre a irmã e o irm ão; em H elle, o filho está
guma, a não ser no patéti co. Acon tece o mesmo e ntre indifer entes. quase a e n treg ar a mãe quando a reconhec e .
Mas qu ando os acontecimentos patéticos surgem e n tre amigos, eis o É por isso que , como j á di sse , as tragédias se centra m so bre um
que é preci so buscar; as sim , um irmão m ata o se u irmão , ou es tá à pequeno número de família s.. Pro curaram aprese ntar nas suas fábu -
beira de o matar, ou fa z qualquer co isa do gé ne ro; igualmente de la s s ituações deste tip o , mas encontraram -nas por acaso , e não por
um filh o para co m seu pai, uma m ãe para com o seu filho ou um fi- arte. E ram forçadas a restringir-se às fam ílias em que tinham ocor-
lho pa ra com a sua mãe. rido ta is acontecime ntos pat ético s.
Não se pod em mod ifica r as fábulas tradi ci on ai s : é preci so qu e
Clitemnestra seja assassina da por O reste s, Erifila por A lcméon. Ma s (A risto te , Po étique , trad . de J acq ues Scherer. I: ca p. 1,2,3 e 4; 2 : ca p .5 e 6 . 1450a; 3: capo 6 .
1450a-b, e cap.7 e 8; 4: ca p.9 . 14 5 1b, e cap . IO e l i ; 5: capo 13 e 14 .
o poet a deve invent ar, e se rv ir-se estet icam ente dos dados da tradi ção . Veja-se també m Aristote, Po étique , lrad . d e J . Hard y, Pa ris , « Les Be lles Le ttres », 1932. c
O qu e e ntendo por esteti camente, vou dizê-l o mais cl aramente. A risto te , La Po étique, trad . de R o selyne D upon t-Roc e Jean La llot, P a ris , Se uil, 19 80 .)
Edição e m po rtug uês usad a em apo io à tradução: Aristóteles, Poética , trad ., pr ef. , int rod .. co -
A acção pod e de senvolver-se , como no s antigos , e ntre per sona-
me ntá rio e a pêndices de Eudoro d e So usa . Li sb oa. Imprensa Na ci o n al-C asa da Moed a. 1990
ge ns que se vêem e se co nhecem ; ass im Eurípides m o strou Med ei a (2'.ed .). (N.T.)
a matar o s se us filhos. Também é possível comete r um crime, mas
cometê- lo ign orando o horror e não reconhecendo se não dep oi s a
relação afe ctiva; tal co mo o Édipo de Sófocl es. A q ui isso produz-se 3 - BHARATA : TRATADO DO TEATRO (Cerca d a ép oca de Jesu s
fora de cena, mas também pode faze r part e da própri a tragédia, como C r isto)
no caso do Alcméon de Astídamas o u o Telégono e m Ulisses Ferido.
H á ainda um a terce ira possibil id ad e : es tar à bei ra de , por ign o- Esta obra é o m a is an tigo tratado qu e se con hece sobre o tea-
rân ci a , comete r um ac to irre pa ráve l, e c he gar ao recon he c imento tro da Índia e sobre o se u vínculo com a religião hindu . Só fo i es -
antes de agir. Além destes casos, não podem existir o utros : necessa- crito , em sâ nscrito, num a data bastante recente, mas segura mente
riamente, ag e- se ou nã o se age , e sabe-se ou n ão se sa be . foi tra nsmitido antes , d ura ntes lon gos séculos , a tra vé s da tradiçã o
O caso pior é aquel e em qu e a personagem sa be , prepara-se ora l. As estima tivas dos esp ecia lis tas para fixa r a sua origem variam
par a ag ir, e não age . Este caso é revolta nte; não é trági co porq ue co ns ideravelmente : do sécu lo IV a .C . ao séc ulo 1'1/ da nossa era .
não é patét ico. Por isso nenhum poet a o faz ass im; pel o men os é Id êntica in cert e za en vo lve o se u a uto r, Bli a rata , Seria inútil
ra ro , Co mo Hém on di a nte de Cre o nte e m A migona . Em se gundo procurar por detrás d esse nom e , que sugere rela çõ es simbólica s com
lugar, age-se. É prefer ível que a personagem aj a se m sa ber e nã o al gu m as divindades, uma ind ividua lidad e so bre a q ua l pudéssemos
reconheça sen ão depoi s de ter agido; evita- se o rev oltante, e o re - ter um conhecimento histórico. Bh arata não é mais que o sábio mítico
conhe c ime nto surpreende . a quem os deuses ord enaram que criasse o teatro .
32 33

o título do tratado em sânscrito é Natya-Shastra. Natya si gn i- assim ao jugo do de sejo, quando eles conheceram o ciúme , a có lera,
fi ca dan ça . e por consequêlJcia rep res entação . m ími ca a c ompa- qu ando a sua feli cidade se mi sturou de tri ste za, nesse tempo os deu-
nhada de música e de palavras cantad as; a palavra ree nvia, assim . ses , com o grande Indra à sua ca beça, aproximaram-se de Brama e
para essa f orma sincr ética de espect áculo que era . sem dúvida . o falaram-lhe as sim:
teatro indiano desde a époc a mais antiga. Shastra significa tratado. Nós queremo s um objecto de representação, que deve se r tanto
conj unto de doutrinas. regras ou narrativas míticas. audível quanto vi sí vel. Como os quatro liv ro s sag rados não podem
Em cerca de uma trintena de cap ítulos, a obra dá indicaçõ es ser o uv idos por aq ue les que nasceram intocá veis, rogamo s-te que
técnicas. p or vezes extremame nte p recisas . sobre a o rg a n iz ação cries um outro livro s ag rado qu e perten ç a igualmente a tod as as
teatral. a d ramaturgia e a repres entação. Nó s só rep rodu zimos o castas.
primeiro cap ítulo qu e propõe. sob f orma de um a narrativa f abu- Assim sej a, resp ondeu e le, e tendo despedido os de uses , m edita
losa. a versão p oética e religiosa da o rigem do teat ro. e cha ma à sua memória os quatro livros sagrados .
Depois pen sa : vo u fazer um quinto livro sa grado sobre o teatro,
A criação do teatro servindo-me dos livros históricos. Ele mostrará o caminho e m di-
recção à virtude, à riqueza, à gló ria , conterá bon s conselhos morais ,
Inclinando-me diante de Brama e Xiva, de screverei as regras
g uiará os homens d o futuro em todas as s uas acções, se rá e nri que-
do teatro tal qual foram promulgadas por Brama.
c ido pel o ens ina mento de tod os os tratados , c passará e m rev ista to-
No tempo antigo , os sábios de grande alma qu e tinham domi-
da s as artes e tod os os ofíc ios.
nado os seus sentidos aprox imaram-se d o piedoso Bh arata, mestre
Com a sua recordação dos qu atro livro s sagrados, Brama fez
da arte dram áti ca, durant e um intervalo nos seus trabalhos. Ele tinha
e ntão o se u tratad o sob re o teatro . Deles reti ra o text o , a mú s ica, a
acabado de terminar a recitação das s uas orações, e es tav a rodead o
encena çã o e os senti m entos .
dos seu s filh o s. Os sá b ios de grande alma que tinh am dominado os
Depois de o sa n to e omnisciente Bram a ter assim c riado o seu
seus sent id o s disseram-lhe respeitos amente: Oh Bramane, como
tratado do teatro , e le disse a lndra: Os livros hi stóricos foram com-
nasceu o trat ado do teat ro, semelha nte aos livros sa gr ados, que tu
po stos por mim. T u va is trans formá-los em peças de teatro , e faz ê-
co mpuses te? A quem se d irige ele , quai s são as suas parte s , o ta rua-
nho , e co mo deve ser apli cado ? Rogamo s-te que no s d igas tudo isto -las representar pel o s deu ses. T ran smite es te tratado do teatro àq ue-
les de entre os deu ses qu e são destros , in stru íd os, hábei s no falar e
detalhadam ente .
Ou vindo es tas palavras dos sá b ios, Bharata respondeu-lhe s as - es tão habituado s a trabalhar duram ente.
sim so bre a qu estão do trat ado do teatro : A es tas pal avras de Brama, lndra in cl ina-se diante del e , j unta
Purificai-vos, ficai atentos e escu ta i as ori gen s do tratado do as mãos e responde : Oh melhor e mais s an to , os deu ses não sã o ca-
teatro composto por Brama. Oh brâmanes, no tempo antigo, no pazes nem de receber e defender o teu trat ad o do teatro, nem de o
tempo em qu e a idade de ouro foi substituída pela idade de prata, em compreender e uti lizar. Eles são co m p le ta mente ineptos par a o tea-
que os homen s se de ram aos prazere s dos sentidos , subme te ndo-se tro. Mas os sábio s qu e conhecem os mi st é rio s dos livros sagrados, e
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que cumpriram os seus vot os, são capazes de defender este tratado A estas palavras, Brama disse : Um tempo muito favorável para
do te atro e de o pôr em pr áti ca . a repre sentação de um a peça c hegou: o Festiva l de In dra ac abou de
A estas palavras de Indra, Brama di sse-me: Homem se m pe- com eçar; se rve -te do tratado so bre o teatro para essa ocas ião. Fu i
cado, é s tu , co m os teu s cem filho s, quem deverá se rv ir-se deste tra- portanto a té esse Fest ival e m honra da vitória de Indra no co m bate
tado do teatro . e m que foram mortos os inimigos dos deuses . Nesse Festival, em
Para obedecer a esta ordem, estudei o tratado do teat ro d e
qu e os deuses cheios de a legria estavam reun id os e m g ra nde nú -
Brama, e ped i ao s meus filhos qu e também o estudassem e que o
m ero, p ronunc iei primeiro a santa b ên ção relativa às pal avra s de to-
pu ses sem em pr áti ca. Para benefício do s homens , d istribuí pelos
das as part es do di scu rso , depoi s imagine i uma im itaç ã o da ce na em
meus filhos os pap éis que m ais lh es convinham.
que os de uses tinham vencido os seus inimi gos. A representação figu-
Oh brâm anes , preparei-me as sim para dar uma representação
rava alt ercaçõe s, tum ultos , membros co rtados e corpos tra spassados.
na qu al entravam diferentes estilos dram áti cos , o poéti co , o g ran -
B rama e os outros g rande s deuses ficaram satis fe itos com a re-
dioso e o patét ico .
presentaç ão , e deram-nos to da a es péc ie de prendas e m testemunho
A seguir, fui de novo ter com Br ama e , depo is de me ter in-
da aleg ria qu e enchia o seu es pírito . (... ) O s outros deu ses presentes
cl inado, informei-o so bre o meu trabalho. Brama di sse-me para
nessa asse rn bleia, diferentes pel o n ascimento e pel o m érito , deram
também fazer entrar na m inh a repre sentação o e stilo g rac ioso, e pe-
aos m eu s filh os di scursos adap tados aos se us di fe rente s papéi s, qu er
de-me par a lhe di zer quai s eram os obj ectos qu e pe rmitiriam a in -
se trat asse de estados e motivos, de se ntime ntos , de for ma física , de
trodução desse es tilo .
Respondi ao mestre: Dá-me os objectos necessários para pôr m ovimentos harmon iosos e robu st e z do s membros, ou de ornamen -
esse estilo gracioso em pr ática. No tempo da d ança de X iva, co m - tos magn ífic os.
preendi qu e o seu es tilo g racioso é ap ropriado ao se ntime nto eró- M as qu ando co meço u a representação qu e m o strava a derrota e
tico. Exige belos ves tidos, doces figuras de danç a, sentime ntos , es- a m orte dos inimi gos dos deuse s , esses in imi gos , que , a pesar de não
tados em otivos , e a sua alma é a acção . Este esti lo não pode se r terem s ido convidados, tinh am vindo ao teatro, inc ita dos por espíri-
co nven ie nte me nte posto em prática por homens , se não com a ajuda tos m alé volos, di sseram : Nó s nã o querer ve r essa co isa dramática,
de mulheres. Então Brama crio u a part ir do se u esp írito as ni nfas não qu e rer representação contin ua r. E os m au s es pír itos . se rvi ndo-
háb ei s para em belezar o te atro , e confiou-m as para a representaç ão . -se do se u pod e r mági co , parali sa ram a pal avra, o m o v im ento , a me-
Seguindo a su gestão de Brama, um mú sic o e se us di scípulos m ória do s actores.
foram c hama dos para toc ar instru mentos de mú sica, e mú sicos ce- Vendo es te in s ult o, Indra pô s- se a m edit a r para de scobrir a
lest es co ntratados par a cantar canções. Assi m , depo is de ter abra - ca us a da par agem da represent aç ão . Ape rce be u-se de qu e , ce rca do s
ça do a a rte d ram áti ca proveni ente do s livros sagra dos. com os m eu s de m a us espíri tos po r todos os lad os, o di rec tor e os seus associa-
filho s e os meus mú sicos apro ximei-me de Brama e d isse-lh e, jun- do s, os acto res, tinham sido tornado s ins en sívei s e in ert es.
tando as mãos, que a arte dramáti ca estava agora pronta, e pergun- Então , com os o lhos b ri lha ntes de cóle ra. ( .. .) e le bateu nos
tei-lhe o qu e or denava. m au s es p íritos que se e ncontravam no teat ro. Qu ando e les partiram ,
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os deuses, alegres, di sseram: Oh Bh arata, tu ten s aí uma arma divin a Bram a res pondeu : Cessai a vossa cólera, aba ndo nai a vossa
pela qual tod os aq ue les qu e queiram destruir um a peça são venci dos. tr isteza. Preparei es te tratado do teat ro q ue determ inará o bom e o
Mas em seguida, quando a peça ficou pronta e o Fes tival de In- m au destin o dos deuses, e o vosso, e q ue terá em conta os ac tos e as
dra voltou de novo, os mau s espíritos, c iumentos, recom eçaram a ideias dos deuses , e vossas.
aterro rizar os ac to res . Neste teatro , não há rep resentação exclus iva dos deu se s, o u
(...) Aproximei -me de Brama e di sse -lh e : Oh mais sa nto e me- vossa. O teat ro é a re presentação do mundo int eiro. Fala-se aí de de-
ve r, de jogos, de dinhei ro , da paz, do riso, de co mbate, de amor e de
lhor dos deu ses, os maus espíritos es tão decididos a imp edir es ta re-
m ort e. Ele ens ina o dever àque les qu e o ignoram, o amor àq ue les
pre sent ação dr am áti c a; ensina-me tam bém os meio s de a prot ege r.
q ue a ele as pira m. E le pu ne os m au s, aumenta o dom ínio dos qu e
Então Bram a di sse ao seu arquitecto par a co nstruir cuida dosa-
são d isciplinad os, dá coragem aos co bardes, ene rgia aos herói s, in -
mente um teatro do melhor tipo. Brama v isi ta-o e di z aos o utros
teli gência aos fracos de es pír ito, e sa be doria aos sá bios. (...) O tea-
deu ses: Vós devei s cooperar na protecção das diversas partes deste
tro qu e eu inventei é um a imit ação das acções e das co ndutas dos
teatro, e do s obj ectos necessários à rep resentação dram áti ca. O deu s
homen s. É rico e m emoções variadas, e descreve difer entes situa-
da lua prot egerá o ed ifíc io principal , os g ua rd iões dos mundos os
ções. As acções do s homen s qu e e le rel at a são boas, m ás o u in-
edifícios adjacent es. (...) O grande Indra, e le mesmo, estabe lecer-se-á
di ferentes. E le dá coragem, divertimento , feli cidade e co nselhos a
do lad o da ce na . (...) Na secção do al to foi co loc ado Brama, na
todos. (...)
seg unda Xiva, na terceira Vixnu, na qu arta Kartikeia e na quinta o u-
Não há m á xim a de sabe do ria, c iê nci a, arte, ofíci o, pro ced i-
tro s deu ses pod erosos. (...) O próprio Brama oc upa o mei o da ce na.
ment o, acção, qu e nã o se enco ntre no teatro.
É por es ta razão qu e esse local é o rna do com flores no iníc io das re- É por isso qu e imaginei um teat ro e m qu e se reún em todas as
pre sentaçõ es. (...) pro víncias do sabe r, as artes e as acçõe s mai s variadas . Assim, oh
Durant e es te tempo, os deuses em corpo di sseram a Bram a: Tu mau s es píritos, vós não devereis ter cólera alg uma co ntra os deuses,
devi as aca lmar os m au s es píritos po r mei o da co nci liação. Primei ro porque a imitação do mundo é um a regra do teatro .
é preciso aplica r esse métod o, dep oi s da r prendas, dep o is, se não
serv irem de nad a, criar a dissensão entre os inimi gos, e por fim , se (Bharata-Na tya -S hastra , cnp . I. trad. de Ja cqu es Sehercr, da trad. inglesa de Manornohan
Ghosh, Th e Noryasastra, A treotisc of an cient lndian Dramaturgy and histrionics, as cribcd to
preciso, recorre r a ex pedie ntes pu nitivos. Bharata Muni, Ca lcut á, 1967 (2 .') . Veja-se também René Dau rna l, Bharata, Pari s, Ga llimard,
O uvindo estas palavra s dos de uses , Brama chama os m au s es- 1970 .)

píritos e diz-lh es: Porque quereis im ped ir a representação tea tral?


(...) Eles responderam : O conhec ime nto da ar te dram ática que tu in-
trodu ziste pela primei ra vez segundo o desejo dos de uses co locou- 4 - HORÁCIO: ARTE POÉTICA (entre 23 e 13 a.c.)
-nos sob um a luz de sfavorável, e fize ste-o no interesse dos de uses .
Não o deverias ter fe ito, tu que és o pa i do mun do intei ro , tanto de Horácio (65-8 a.c.) é o único a utor latino de quem conservá-
nós quanto dos deuses. mos uma obra completa sob re a arte literária (sobretudo dramática) :
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A Carta ao s Pis ões , dita Art e Poética. que é o último p oema da co - de fazer o que em breve se rá preciso remediar. Mil incomodidades
lect ânea das Epístolas. A abundância de fórmula s convincentes e a assaltam o velho, sej a que amealha, priva-se mi seravelmente dos
p erman ên cia da cultura latina através dos séculos contribuíram bens adquiridos e receia us á-los, sej a que se mostra, na execução de
para a grande reputação de ste texto. todas as coisas, tímido e frio , contemporizador, a m igo das longas
H orácio preconiza uma acção simp les e homog énea , e multi- es pe ranças, sem acti vid ade , áv ido de futuro , teimo so , rabujento, pa-
plica as regras de estrutura e de f orma. Um dos seus critéri os prin - negiri sta do tempo pa ssad o , de quando era criança, ce nsor pronto a
cipais é a conveniênc ia. qu er di zer. a adequação per feita entre a repreender os mai s novos. O s anos , em vindo, tr az em mil vanta-
imitação e o seu modelo de uma natureza co nhecida e imut ável . gens, e levam mil ao ret irar-se . Não ireis pois dar a um jovem o pa-
pel de um velho, e a um a criança o de um homem feito: cada um
deverá sempre aferrar-se aos traços que acompanham a sua idade e
Tem át ica da s idades 1
lhe s ão inerentes.
Para vós, escutai o qu e recl amo e que comigo recl ama o pú-
(Horácio, Epitre aux Pison s, vv . 153 -178. apud, Épitres , trad . d e Françoi s Villeneuve,
blico, se desejais que os aclamadores esperem pelo levantar do pano Pari s, Les Belles Lcttres, 1941 , pp. 2 10 -2 12 .)
colados aos seus assentos , até qu e o músico diga: « Vós, aplaudi ». Edições usadas em a po io à tradução portuguesa: Joaquim J o sé d a C o sta e Sá. Arte
Poéti ca 011 Epístola de Q. Horá cio Flacco aos Pisôes. vertida " ornada no idioma vulgar
É-vos necessário notar os costumes de cada idade e dar aos CO /1/ ilustraçôcs e N ota s para Uso e In strução da Mocidade Po rt u gu esa, n a Officina de

carac te re s, mudando com os a nos , o s traços que lh e s convêm . Sim ão Thaddeo Ferrei ra , Li sb oa , 1794 ; c Horácio, Arte Poético , in trod .. trad . e co me ntário
de R. M . Ro sad o Fernand es. Lisho a. Inqu é rito , 19 84 (I 'l , 1'1'. 80 -H I. (N .T . )
A cri ança que já sabe repetir as palavras e imprime no so lo um pé
seguro, pro cura os seu s iguais par a com eles brincar; a sua có lera
rompe e acalma-se se m motivo; muda de uma hora para a outra.
O jovem ainda imberbe, en fi m livre do seu preceptor, di verte-se com
os cavalos , os cãe s, e os rel vad os do Campo de Marte en sol arado; é 5 - TERTULIANO: SOBR E OS ESPECTÁCULOS (séc .II, d.e.)
como a ce ra para receber a impre ssão do vício, rebelde a qu em o re-
preende, tem pouca pre ssa em pr ovidenciar o útil, pr ódigo co m o Tertulian o, ca rtagtn es c o mo Santo A g ostinho. viveu entre
d inh eiro, altivo, cheio de de sejo e pronto a abandon ar o qu e am .iu, ce rca de 155 e 225 d .e. Um dos fundadores da te ologia cristã . via
Os gos tos tran sformam-se: a idade e o es pí rito do homem feit o bus- em torno de si as prát icas pag ãs ainda vivazes e estabele ce u. ener-
ca m a influência , as rela çõ es, são esc ravos das honras c gu ard am-se g icamente, os princíp ios de uma oposiçã o rad ical entre o cristão e
o mundo. O vigor quase lírico da sua crítica e a multiplicidade dos
p ontos de vista abarcados fizeram com qu e o seu tratado De Spec-
I Pode-se co mparar este te xtoà ,I n l' Poético de I3uileau no volume da colecção lO/! X
(n.º 324 -5) qu e as reúne. e inte gra na tradu ção de Horácio por Yv e s I lu ch e r os verso s de taculis apresentasse logo imediatamente quase todos os argumentos
Bo ilcau qu e o demarcam. (NE.) que foram sendo sucessivam ente usados pelos teólogos cristãos (e
No qu e respeita à relação com a Ar t" Poético de Boilcau, existe uma tr adu ção portu-
guesa d a mes ma. em verso. feita pel o conde da Ericcira, que adiante se referir á - cal' . 2 1). CI1/ particular. em Fran ça. os Jansenistas e Bossuet ) para condenar
(N .T.)
a actividade teatral.
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J. Origem diab ôlica do teatro d o s gregos; mas ainda porque Baco era o se u in stituido r. Além
disso , estas duas di vindades exec rá ve is não presidem menos às ac-
Passemos ao teatro, cuja origem e os títulos são os mesmos qu e
ções do teatro qu e ao próprio teatro; seja qu e se tenha e m conside-
os do circo, como j á o dernonstr ámos quando falámos do s j ogos e m
ração a infâmia dos gestos, ou outros movimentos di ssolutos dos
geral. Assim, o aparelho do teatro não difere quase nad a do d o
co rp os. É o que se nota particularmente nos actores da comédia.
circo. Vai-se a um e a outro destes dois e spectác ulos depoi s de sa ir
Ne ste ofício miserável , e les vangloriam-se em imolar de qualquer
do templo; onde foi prodi gali zad o incenso em abundân ci a, e regado
maneira a sua languidez a Vénus e a Baco; un s deles por liberti-
o altar com o sang ue de vári as vítim as. Anda-se por entre o barulho
nagens horrívei s, o s outros com representações lascivas e brutais.
dos pífaros e das trombetas; enqu anto duas infames personagens, os
No que respeita ao s verso s, a mú sica, as flautas , as viol as, tudo é
directores dos cortejos fún ebre s e dos sac rifí cios, qu ero dizer o d e-
mostra de Apolos , das Musas, da s Minervas, dos Mer cúrios. Discí-
s ig nado r e o arúspice , conduze m todo o cortejo. Mas vej amos o
pulo de Jesus Cristo, detestareis os objectos cujos autores vos de-
qu e o teatro tem de particular, e o que o distingue do circo: vejamos
vem parecer tão detest áv ei s. Acrescentemos uma palavra no que
primeiro como o local é infame.
respeita às acções teatrai s, e à qualidade dos seus instituidores, cujo
O teatro é propriamente o templo de Vénus. É assim que , com
nome apenas deve por vó s ser tido em abominação. Sab emos que o
o pretexto de honrar a deusa, esse local execrável foi canoni zado no
nome destes homens m ortos não são nada, não mai s do qu e os seus
mundo. Antigamente , se se eleva va um qualquer nov o teatro, que
sim ulac ros . Mas não ignor amos que aqueles qu e tive ram por tarefa
nã o fosse consagrado por um a dedi ca ção so le ne, os censo res fazi am
contrafaze r a divindade so b nomes de empréstimo, e sob no vo s s i-
co m que fosse derrubado para evi tar a co rr upç ão dos cos tumes, que
mulacros, não são mais do qu e esp íritos malignos, qu er dizer, de-
previam dever sucede r-se infali velmente às acç ões lasciv as que a í se
mónios. D aqui aparece m anifestamente que as acções teatrais de
representavam. Reparai j á aqui co mo os pagãos se conde na m a si
qu e falamo s são consagrad as à honra daquel es qu e , por assim dizer,
mesmos com os seus própri os e m ba rgo s, e como decidem a no sso
se cobriram com o nome dos se us inventores: e por cons eq uê ncia
favor pela sua preocupação em co nservar a civilidade .
qu e este s exercícios são idólatras: dado que o s se us auto res se fa-
O teatro não é apenas consagrado à deu sa do amo r, mas tam-
zem passar por Deuse s. Estou en ganado; deveri a ter dito primeiro
bém ao deu s do v in ho. Porque esta s duas te stemunhas da lib erti n a-
que estes e xercícios têm um a ori gem bem mai s antiga. São os de-
ge m e da em briag ue z es tão tão estre itamente unidas qu e par ecem ter
mónios que , prev end o desde o início que o prazer dos es pectácu los
co ns pirado juntas contra a virtude : deste modo, o pal ácio de V ênus
seria um do s m eios mai s e ficazes para introduzir a idol atria, inspira-
é tamb ém o paço de Baco. Co m efeit o , ha via anti gament e alg uns jo-
ram eles próprios aos h omens a arte das repre sentações teatrai s.
gos do teatro que eram propriamente chamados de liberiais 1: não
Com efeito, o que d everi a ag ir para sua glória, não pod eria senão
apen as porque eram consagrados a Baco, como o são os di onisíacos
vir da sua inspiração: e para ensinar esta funesta c iênc ia ao mundo,
não deviam utilizar outro s homens, senão aqueles e m cuja apoteose
De Liber, clcu x dos v inha tci ros. (N.F .) viessem a encontrar uma honra e uma vantagem pa rticulares.
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2. Seduzir para o pecado ordena-nos qu e reverenc iemos e cons erve mos o S anto Espírito em
nós, pel a nos sa tranquilidade, n o ssa doçura, no s sa moderação,
Então, se temos escrúpulos e m sujar a nossa boca com essas
nossa p aciência; porque pela su a nature za é um es p ír ito terno e
viandas profanas, não deveríamos, c o m mais forte razão, a fas tar de
do ce : pelo co ntrário, Ele proíbe-no s de o inquietarmo s c o m os nos-
todos os espe ct áculo s co ns ag rados aos deu se s , o u aos m ortos, os
sos fu rores, c om as no ssa s ex c itações, co m as no ssas c ó le ras, com
outros ó rgãos dos no ssos sentidos que, sem dúvida , no s d evç~ ser
as no s sas tris tezas. Ora , co m o p ô r tudo ist o d e aco rdo co m os
mai s precioso s - quero d izer, os o lhos e os ou vid os? Porque o que " to.?
espect áculos qu e com ove m , qu e ag itam tão fur ios amente o es ptn
entra por esse s dois órgão s não se dissolve no estômago, m as dige-
Porque por todo o lado onde há pra zer, há paixão, se m a qual o pra-
re-se na própria a lma. O ra, está fora de dúvida que a pureza da nossa
ze r seri a in sípido : por tod o o lado e m que há pai xão , há e m ulaç ão,
alma é muito m ais agradável a Deu s qu e a limpeza do no sso co rpo.
se m a qu al a pai xão se ria desagrad á vel. Ora a emul aç ão leva ao fu -
Embora até aq ui tenha m ostrado qu e a idolatria reina e m todas
ror, à exc ita ção , à có le ra, à tri st e za , e cem o utras pai xões se me lhan-
as es péc ies de j ogo s (o qu e deve ri a ser sufic ie nte para nos fazer
tes , qu e são incompa tíveis com os d everes da nossa re lig ião. Qu ero
od iá-l o s ), tentemos, no entan to, a po ia r co m no vo s argumentos o
mesmo que um a pessoa ass ista a o s espect áculos com a gravidade e
tema e m quest ão; quanto mais não sej a para responder a al guns que
a modé stia que habitualmente in spiram um a dignidade honrosa ou
se ap ro veitam do qu e não parece se r um a lei po sitiva que nos proíba
. uma id ad e avançada, o u um a boa natureza; é no e n ta nto mu ito difí-
de ass istir aos es pec tácu los : como se e sses es pec t áculos não fossem
c il qu e a a lma não sinta e ntã o um a qualquer ag itaç ão, um a qu alquer
proibidos a partir do momento e m que nos sã o inte rd itos tod os os
pai xão secre ta. Não se assi st e a esses di vertimento s sem qu alquer
apeti tes do século. Com efe ito, d a m esma manei ra qu e há um a co -
afec to, e n ão se ex peri me nta esse afec to se m se se nti r o s se us efei-
biça das rique zas, da s honras, d a boa mesa, das voluptu osidades
tos, que de novo excita m a paixã o . Por outro lado, se não há qual-
carnais, também há um a cobiça cios prazeres. Ora, por entre as ou-
quer afec to , não há praze r, e então tomam o-nos c u lpad os de uma
tras espéc ies de praze r, pod emos conta r os es pec tác u los. Os ape tites
trist e inutilidade por es ta rm os al i. o nde nad a há a aproveita r I. Ora,
de que ac abámos de falar, tom ados no seu conj unto , e nce rram em si
uma acção vã e inútil não co nvém em nad a, parece -me, aos Cris-
os prazeres; da m esma m anei ra , os prazeres e ntend idos num se ntido
tãos . M a is a inda. um homem co nde na -se a si próprio ao co locar-se
geral, este nde m -se aos es pectác ulos. Dem ais a ma is, di ssemos j é,
por entre aquel es aos qu ai s não qu er ser se me lhante , e de qu e m. por
quando falám os dos loc ais em qu e se exibem esse s espect áculos,
co nseq uê nc ia, se declara inimigo. Pa ra nó s, não é su ficiente qu e não
que esses locais não nos co ntamina m por si, m as pel as coisas qu e a í
façamos o m al , é preci so a inda que não tenhamos nenhum co mérc io
se passam: porque se ndo essas acções infam es pel a s ua natureza , fa-
co m os que o fa zem.
zem j orrar a sua infâmi a so bre os espe ctado res . Jul gai e n tão a inda,
meu s Irmãos , se se rá permitido tomar parte num dive rtime nto em
que as marcas da idol at ria estão e m todo o lado. I Fazem os referência à tra d u ção de P ic rr e de l.abrioll c: Tcrtu llicn, D« Sprctacu lis,

M as como a lguns es píritos só se renderiam com pena a estas Paris, C .D.U. , 193 3: « Ning uém acede ao pr aze r se m um a emoção, ni ng uém experiment a urna
emoção se m se arri scar e le próprio às q uedas . É e ste mesm o pe rigo q ue es pica çu a emoção.
verd ad e s , tent emos co nve ncê -los co m outros a rg ume n tos . Deus Se a emoção se d esvanece , o prazer dcsapa rccc .» (p. lO). (N .F .)
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imita a sua voz, a sua idade, o seu sex o ? que finge estar apaixonado,
3. Ma caquear o Criador
ou estar en coleri zado'! qu e chora lágrimas fal sa s, e emite fal sos sus-
Dado qu e a justiça humana co nde na então ess es de sventura- piros? Enfim , se esse divino me stre se exp lica assim na le i: mald ito
do s I , apesar do prazer que proporcionam ao s se us juízes; uma ve z seja aquele que se ve ste como uma mulher, que julgamento pensai s
que ela os excl ui de toda a dign idade, e muitas vez es os confina a vós que El e emitiria sobre um mimo que não apenas retoma os ves-
locais horríveis.e de sertos: quão m ai s rigorosa não será contra e les a tid os, ma s ainda a vo z, os ges tos e a languide z da s mulheres?
justi ça di vin a? Pens ais qu e Deu s possa ap rovar es se coche iro do
c irco, que perturba tantas almas, que exc ita tantos movimentos fu- tTroit és de Tcrtullicn sur lOrn em ent des F emmes, lcs Spcctuctes , le Ba t êm e ct la Pa ticn rc,
trad . de M. Ca uberc, 51 ., Pa ris. Rolin fils. 173 3. I: p p. l RI -I R7: 2: pp. 196· 200 ; 3: pp . 22 1-224.)
riosos, que atormenta tant os espectadore s? A creditais que é muit o
agradável ao cé u qu e, quando co roado de flore s como um sacerdote
dos pagão s, o u c obe rto de uma ve stimenta tão col orida com o a
de um me stre da impudicícia, ele a pareça lou vado sobre um carro?
Não se diri a que o Diabo quer te r os se us Elias arrebatados para o 6 - SANT O AGOSTINHO - CONF ISS ÕES (séc. IV )
céu como Deu s o teve? Acreditais igualmente que Deu s pode acar i-
nhar o actor, qu e tã o cuidad osam ente rapa a barba desfigurando, po r Sa nto Agostinho (354 -430 d .Ci), arcebisp o de Hip ona e UJII

essa infidelidade, a face qu e lhe foi dada? A inda , e não conte n te por dos princip ai s Padres da Igreja , escreveu as suas Confissões COII/

tomar assim a s ua face semelhante à de Saturno , de Baco e de Ísi s, UI71 obj ect ivo duplo, humilhar-se e edificar-se .
ele recebe na sua face tantas bofet adas que parece qu erer in sultar o No terceiro !i\TO , que conta a su a j u ventude em Ca rtago , d es-
pre ceit o dad o por Nosso Senhor. C omo? É qu e o D iabo o ins tru iu creve a sua poixão p or unta m ulhe r. dep ois a su a paixã o p elo tea -
para aprese nta r a face es querd a , quando lh e batem na outra . D a tro; o se u esforç o de int rospecção le va -o a um a análise psi col ógi ca
mesm a maneira, porque nin guém pod e ac re scentar um côvado à sua do pra zer exp erim entado pelos espectado res da tragédia .
altura, este rival de Deus ensina aos actores da tragédi a a el ev arem-
-se sobre os se us coturnos: quererá e le desment ir Je su s C risto ? Pen-
o prazer do trágico
sa is ainda qu e o uso da s máscar as seja a provado por Deu s ? Per-
gume-vos. Se el e proíbe toda a espéc ie de simulacros, quanto mais Tinha também, ao mesm o tempo, uma pai xa o vi ol enta pelos
não proibirá que se desfigure a s ua im agem? Não , não: o a uto r da espectáculo s do Te atro , que estavam c he io s das imagens das minhas
ve rdade não poderia aprova r nada de fa lso . Ele co nside ra como um a mi sérias, e das c ha mas amorosas que alimentavam o fogo qu e m e
es péc ie de ad ulté rio tudo o qu e é reformado na sua obra. Se El e devor ava. M as qual é o moti vo qu e faz co m que os homen s aí acor-
conden a tod as as es pécies de hip ocrisi a, perdoaria a um act or, qu e ram com tanto ar dor, e que qu eiram ex pe ri mentar a triste za olhando
coi sas fun estas e trágicas que, ap esar de tudo , não qu ereriam sofrer?
Porqu e os es pectadores qu erem se ntir a dor, c essa dor é o seu pra zer.
I Toda a esp écie de ac tores . (N .F.)
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46

Qual o motivo sen ão um a loucura miserável , pois so m o s tanto impudic o s, e m bo ra tudo fos se fin gido nessas representações e ne s-
mai s comovidos por es sas ave nturas po éticas quanto m enos curados ses e sp ectáculos. E quando esses am a ntes eram obrigad os a se parar-
daquelas pa ixões, ape sar de apelidarem de mi séria O mal que so- -se, eu afligia-me co m e les com o se estivesse tomado de compaix ão ;
frem na sua pessoa, e misericórdia a co mpa ixão que têm das infeli- e apesar de tudo, não tinha m enos prazer num que no outro.
cidades d os outros. Mas que com pa ixão se pode ter para com as (.. .) E e u, pelo contrário, s e n t ia- me entã o tão m iserável que
coi sas fingidas e representadas num Teatro, um a vez que aí não se gostav a de ser tomado por qualquer dor, e buscava os se us suje itos,
excita o auditor para socorrer os fracos e os oprimidos, mas é este não havendo nenhuma das acções do s actores que m e agradas se
convidado apenas a afligi r-se co m o se u infortúnio? Que e le fica tanto , e que m e encantasse ainda mais , do que quando me arran-
tanto mai s satisfeito com os actores quanto mai s e les o comoveram cavam lágrimas dos olho s, pel a representaçã o de quai squer infelici -
com pena e aflição; e que, se estes suj eitos trági c os, com as suas in- dades a lheias e fabulosas qu e representavam no Teatro . E não é de
felicidad e s verdadeiras ou supostas , são repre sentados co m tão surp ree nde r, pois, se ndo então uma ovelha infeliz que m e tinha tres-
pouca graça e indústria que não o afligem, sa i desgostado e irrit ado m alhado abandonando o vosso rebanho, porque não podia suporta r
com o s act ores. Qu e se , pelo co ntrá rio , for toc ado co m a dor, fica o vo sso com po rta mento, m e e ncontrava co mo se coberto de sa rna?
atento e chora, experimentando, ao mesmo tempo , o prazer e as lá- Ei s donde procedia este amor que tinha pelas dores, o qual, no
grimas. M as dado qu e todos os homen s naturalmente desej am ale- ent anto, n ão e ra tal qu e eu desej asse qu e fo ssem mais profundas no
grar-se, como podem go st ar dessas lágrimas e dessas do re s? Não meu coração e na minha alma . Porque se eu não tive sse gos tado de
será que, a inda que o homem não sinta prazer pela miséria, no en- sofrer as coi sas que me agradava ver: mas es tava descansado qu e a
tanto ele sinta prazer a se r tocado pela mi sericórdia ? e que, dado narrativa e a representação que se fa ziam di ante de mim me arra-
que não pode e xperimentar esse movimento da a lma se m expe ri- nhavam um pou c o a pele, por as s im dizer, embora e m seguid a ,
mentar a dor, aconteça qu e, por uma consequên cia neces sária, ele co m o aco ntece aos qu e se coç am c o m as unhas, essa satisfaç ão pas-
acarinhe e go ste des sas dores? sageira me c ausasse um inchaço cheio de inflamação de onde saía
Então, es sas lágr imas pro cedem da fonte do am or natural qu e sa ng ue c o rrom pido e lama. Tal era então a minh a vida , mas pode-se
temos un s pelos outros. Mas para onde vão as ág uas dessa fonte, cham ar- lhe v id a? Meu Deus!
para onde co rrem ? Elas vã o fundir-se numa torrente de pe z em eb u-
lição de o nde sa em os ardo res vio le ntos dessa s negras e suj as vo-
luptuo sidad es: E é nessa s acçõcs v ic ios as que esse a m o r se con -
verte, e se mud a pelo seu próprio movimento , à m edid a que se
(Ut ilizamos a uudução de Arnau ld d ' An d illy, um dos mestres pe ns adores ele Po rt-R oyal : Lcs
afas ta e se distanci a da pureza ce leste d o verdadeiro am or. ( ...) Co nfrssio ns de Saint Augustiu , rrad. de Amauld dA nd illy. Paris, Ve uve Camusat e Pierre Le
Guarda-te , minha alma, da impure za de uma c o m p a ixão lou ca . Pe tit. 164 9 (2' .) Li vro l ll. ca l' . 2. pp . 7:' -76. Veja-se tam bém Sai nt A ug ust in, Confcssions,
Porque exi ste outra, sá bia e razo áv el , da qual não de ixo ag o ra de trad . de L. de M nnd ad o n, Par is , Éd ilions Picr re lI o ray. 1947.)
Ediç ão portugue sa usa da em ap o io il traduç ão : Santo Ago sti nho. Confi ssões. trad . de J. O li-
estar tocado. Mas então tomava parte na alegri a desse s amantes do veira San tos c A. Ambrósio de Pina, 1'011 0 . Liv raria Apo sto lado da Im pren sa. 1982 ( 11' .).
Teatro, qu ando pelos se us artifíc ios concretiz ava m o s se us de sej os 1'1'. ó&-70.) (NT.)
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7 - ZEAMI : O ESPELHO DA FLOR e o utras obras (séc . XIV) No entanto, é nec e ss ário respeitar as suas regras e ev itar a e x-
travagância, mesmo na demanda da raridade e da novid ade. Apó s
Zeami ( / 363-1444) é a personalidade mais marcante da história todos os exercícios, no momento de a pre se nta r um N ô, é preciso
do Nó jap onês . No seguimento do seu pai. Kanami .foi o verdadeiro e scolhe r de acordo co m a situ ação. De e n tre todas as flore s, só é
criador do género , pa ra o qual so ube co nseguir a protecçã o do nov o ve rdadeiramen te rara aquela qu e eclode no se u quadro temporal.
regim e aristocrático do Japão. o do X ogun , e qu e ele tornou ilu stre Do me smo modo, se aprendestes bem as numerosas técnicas da s ar-
como actor. autor (esc reveu cerca de du zentos Nó . dos quais a m e- tes, es colhe re is ad apt ando-vos à época e ao públi co; será com o um a
tade se representa ainda hoje) e como teórico. Durante lon go tempo tlor na sua estação.
secretas , e tran smitidas , segundo o uso , por via oral, ap enas aos As flores de hoje são sem elh antes às do an o passad o . As sim, o
seus herdeiros . as suas ideias só f oram reveladas muito mai s tarde. N ô, mesmo tendo já s ido visto antes , ou inscrevendo-se num rep ert ó-
O seu Esp elh o da Flor só é publicado em 1665 , e uma vintena d e rio importante, retomar á, apó s a passagem do tempo, igu alm ente raro.
out ros pequenos tratados só fo ram descobertos 1/0 séc ulo vinte. Os
seus princípios estéti cos, por vezes inspirados pelo budismo Zen e 2. A teoria dos sete décimos
expressos so b a form a de alusões poéticas , estã o longe de ser ade-
Quando mo vem os o nosso espírito at é aos dez décimos . é p re-
quad os apenas aos problemas do prin cip al actor do Nó: e na rea-
ciso moverm os o noss o corpo aos sete décimos . Há, portanto, mai s
lidade, envolvem uma reflexão aprofu ndada sob re o conj unto do fe -
sentimento int erior que movimento corpo ra l. Depois de ter prati-
n ômeno teatral.
cado intensamente o s exercíc ios , de m aneira fiel ao mestre, é pre-
ciso ter um pouco de contensão nos ge stos, por exem plo, no modo
1. A «fl or» do teatro de estender as mãos, o u de mov imentar o s pé s; o j og o exte rior não
deve ultrapassar o jog o interior. Não se ap lica ap enas ao s ges tos d a
Olhando as plantas em flor, perguntamo-nos: porque se sim bo-
dança . Se o ac to r con tro la os se us m o vimentos corporais mais do
liz a por um a flor tod as as coisas do mundo? É pela sua e xistê ncia
qu e os do s se us sentimentos, a sua int erpretação será int eressante ,
efémera qu e se gosta delas, elas só flo rescem durante um a estação,
porque a su a e m oção dará en canto à su a expressão, fund ada num a
são raras, ba se só lida de movimentos corporais contidos.
De igu al modo , o Nô fala ao c o ração e s usc ita o intere s se . Quando os movimentos do COl p O sôo f ortes , andai docem ente.
A flor, o inter esse e a raridade, eis a maravilha do Nô . Qu ando caminha is co m força , que os m ovim entos do vosso co rpo
Florir e murchar sã o inevitávei s; é ° que torna as Ilore s maravi - sejam doces. Ta l resulta das ex plicações precedentes so bre a maior
lho sas . O e nca nto do N ô, a sua flor, e ncontra-se na virtude da mu - força dos m oviment os interiores. Se a interpret ação par ece brutal
dan ça . O Nô nunca é estático, transforma-se se m cessar. como a aos es pectadore s, é porque o corpo e o s pés se movimentam parale-
flor, c é esta mudança que o torn a tão raro . lamente. Se , ag ita ndo o corpo , se atenuar o jogo de pés, parecerei s
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impetuosos mas não brutais. Se, ao bater os pés com força, mo- representar, uma grande força moral e física. Para todos os outros ti-
derais os movimentos do vosso corpo, a vossa interpretação, mesmo pos é preciso primeiro aprender a colocar-se na condição física da
que os vossos pés façam barulho, também não será brutal. A vista e personagem; a mímica só vem depois.
o ouvido funcionam de modo diferente, e estes dois sentidos com- A dança tem por raiz a música. A dança que não se harmoniza
pensam-se. (...) com a música não é comovente. O segredo reside no momento em
Primeiro fazer ouvir, depois fazer ver. A mímica assenta num que a dança começa, imediatamente a seguir ao primeiro som vocal.
sentido. Ora o jogo corporal muitas vezes termina ao mesmo tempo Passa-se o mesmo com o final da dança, que se termina e dissimula
que a palavra, e por vezes mesmo antes. Pelo contrário, a mímica deve na música.
ser posterior à palavra. É preciso satisfazer primeiro os ouvidos dos
espectadores, e depois os seus olhos. No momento exacto em que os
3. Como atingir o prodígio
espectadores, depois de terem ouvido, começam a ver, a interpretação
será impecável. Por exemplo, para a acção de «chorar», se o actor faz O prodígio é supremo na representação teatral, como nas ou-
ouvir a palavra «chorar» um pouco antes de cobrir a sua cara com a tras artes.
manga, a interpretação termina-se com um gesto. Se o actor faz o Vê-se particularmente no Nô. O prodígio salta aos olhos e
gesto de enxugar as lágrimas com a manga, antes de pronunciar a agrada a todos os espectadores, no entanto, os actores capazes de
palavra «chorar», a interpretação termina-se com uma explicação oral, lhe aceder são, na realidade, muito raros. É porque não se reco-
e a impressão é que os jogos de fisionomia não foram ainda completa- nhece o verdadeiro sentido desse prodígio; então não há meio de
dos pelas palavras explicativas. Por este motivo, a mímica deve vir em entrar nesse reino do prodígio.
último lugar, e a interpretação deve terminar-se com a mímica. Onde se pode encontrar a fronteira entre o prodígio e a bana-
O aetor deve captar a natureza física da sua personagem antes lidade? Olhando as diferentes categorias sociais, pode-se dizer que
de imitar os seus gestos. É preciso adaptar o aspecto aos diversos ti- a maneira de ser dos aristocratas, nobre e prestigiosa, mostra que
pos físicos do Nô. Para interpretar um velho, é necessário que (I essa classe possui o prodígio. Constata-se, então, que o verdadeiro
vosso corpo esteja curvado, que as pernas tremam, que os gestos sentido do prodígio é a beleza e a doçura. Quando o actor está bem
com as mãos sejam fracos. É preciso primeiro encarnar a persona- descontraído e calmo, temos o prodígio do corpo. Conformando-se
gem fisicamente. A dança, os gestos e o canto vêm depois, em rela- com a maneira de falar dos aristocratas e dos cortesãos na sua vida
ção com a condição física. Quando se interpreta um papel feminino, quotidiana, os actores devem tentar pronunciar com distinção, como
é preciso manter-se direito, movimentar-se com delicadeza, ter uma eles, a cada instante: é o prodígio da linguagem. Para a música, as
grande elegância nos gestos das mãos, sentir-se moralmente fraco e melodias devem ser executadas com à-vontade e delicadeza: o pro-
fazer movimentos delicados e frágeis. É neste quadro que se devem dígio da música. Para o da dança, só após estudos aprofundados
inscrever os gestos, a dança e o canto. Para os papéis muito movi- podem os bailarinos dar aos espectadores a satisfação visual, mar-
mentados, como os dos fantasmas, é desejável que se tenha, antes de cando os movimentos com belas poses. No que respeita à pantomima,
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se o actor tem uma bela atitude nos três tipos de papéis, no de 4. A existência e o nada
velho, de mulher e de homem activo, atinge-se o prodígio. Para os
papéis em que intervêm o movimento e a cólera, como no caso dos Diz-se: «A existência é o nada, e o nada cria a existência». Tam-
fantasmas, mesmo se se faz uma interpretação forte, é preciso nunca bém nas artes se encontram estas duas noções, de existência e de nada.
esquecer de manter uma bela atitude, é preciso pensar «o Espírito Depois de ter passado pelos três graus, o principiante, o médio
nos dez décimos, o corpo nos sete décimoss- te «Movimentos do e o superior, o actor atinge o nível em que, numa qualquer peça, não
corpo fortes, caminhai docemente»; se a pose é bela, será o prodígio tem mais dificuldades, a ponto de poder realizar tudo o que é exi-
gido à sua interpretação, se ele domina a sua técnica com virtuo-
do demónio.
É preciso preparar-se interiormente pelo pensamento antes de sismo. Este nível corresponde ao «A existência é o nada». Uma vez
atingido este nível supremo, o actor pode representar sem dificul-
interpretar o papel e, qualquer que seja a pantomima, nunca esque-
dade, pode obter uma grande satisfação, mas ainda lhe falta apren-
cer o prodígio. Imaginai, por exemplo, nobres, gente do povo, ho-
der que «O nada cria a existência». De acordo com este ponto de
mens ou mulheres, monges, padres, camponeses, provincianos, pe-
vista, ainda há inquietude na interpretação, porque o domínio não
dintes, párias: eles são como um ramo de flores variadas. São
vai além da consciência técnica. É preciso que, em todas as peças, a
diversos, mas são no entanto semelhantes, na medida em que cada
interpretação tenha um êxito supremo, sem nenhuma imperfeição, a
flor agrada pela sua beleza particular, embora cada uma delas tenha
fim de que o espectador fique apaixonado. Assim que é atingido o
um encanto diferente. No Nô, é a bela atitude que equivale à flor.
grau em que «o nada cria a existência», não há mais lado positivo
Para a possuir, é preciso ter coração. O que é o coração? É a com-
nem negativo, nem bom nem mau: fica-se além da crítica.
preensão da teoria da flor. É preciso também, naturalmente, apren-
Se a interpretação for assim, já não há mais, naturalmente, nem
der os movimentos e os gestos com os hábitos refinados, para se
boa nem má representação, e já não é preciso ter cuidado com o que
conseguir representar com beleza. Mas o essencial é encontrar a
escapa à consciência técnica.
chave que permite representar na beleza, mesmo que a mímica seja
diferente segundo os variados tipos de papéis. É assim que se atinge
o prodígio. Muitas vezes, temos tendência para nos preocuparmos 5. A escada dos /lO\'C degraus
apenas em imitar os gestos do papel, e acreditamos ter atingido o
I - Explicação dos nove degraus
grau superior. Mas não é verdade, porque se nos esquecemos de
manter uma bela atitude, não atingimos o prodígio; e neste caso, é I. Os três degraus superiores
difícil chegar ao nível supremo, e é impossível tomar-se um mestre. a) O estilo da flor ideal.
Por este motivo, os verdadeiros mestres são raros. É preciso, então, «No país de Shinra, vê-se o sol à mcia-noite.»
ter em conta essencialmente a importância do prodígio. O ideal está para além das palavras, e mesmo do pensamento.
Pode-se explicar que o sol apareça à meia-noite? O prodígio da inter-
pretação que os virtuosos atingem no Nô está para além da linguagem.
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A este nível supremo, acima de todos os outros graus, pod e- se como- Como se pod e ex primi r esta bel eza da nature za , por exem plo , a
ver as pessoas se m ter vontad e di sso , e a interpret a ção fala d irecta- dos montes e das nu ven s, o es pectác ulo gra nd ioso d as m ontanhas
ment e ao coração dos espec tadores. É o es tilo supre mo da flor ideal. verdes q ue se desenrol a pe rante os no ssos olhos? É o que se s itua a
es te n ível do conhec imento . A partir del e , é m elhor d ecidi r, sej a
b) O estilo da flor de encanto profundo. avançar e m direc ção ao alto, sej a d escer para os gra us inferiores.
. '«Todas as montanhas sã o nevadas, mas porque é qu e um único
cimo não es tá coberto?» c) O es tilo da bele za prin cipiante.
Um dos no ssos antepassado s di zia: «A neve fica se m pre no «A ve rdade ira via não é se melha nte às vias vu lgares .»
topo do monte Fuji, poque ele é muito alto ». Um c h inês c riticou É preci so começar pelas vi as vulgares para atin gir a ve rdadeira
esta fra se e corrigiu «alto» por «pro fundo» . Se esse alto n ível é atin- V Ia . No princípio de um a aprendi zagem muit o banal , pode -se j á
gido, alcança-se igualme nte a profundidad e nas artes. H á um limite co nseg ui r m o st ra r bele za na int erpret ação . É po r es te motivo q ue se
para a altitude, mas não para a profundidade. Pod e-se e n tão s im boli- deve começa r os nove degraus por este. O es tilo é a porta de e ntrada
zar o es tilo da flor do encanto profundo por uma paisagem represen - no Nô .
tando um alt o c ume não branco, cercado de mil montanhas brancas.
3 . Os trê s deg rau s infe rio res
c) O es tilo da flor rara.
a) O esti lo da força e da e legânc ia .
«Neve numa taça de prata.»
«A s som b ras do martel o de o uro movem -se e a es pada sum p-
A pureza do bran co, numa ta ç a de prata co nte ndo a neve e a
tuosa reflect e um a luz fria.»
sua branca luminosidade, é o es tilo d a flo r rara.
O s m o vimentos da so m b ra do m art el o de o uro s im bo lizam a
fo rça, e o refle xo da es pa da su m p tuosa é como um jogo frio. Tal ex-
2. O s três degrau s interméd io s.
pli ca bem este es tilo de for ça e de e legânc ia.
a) O estilo da flor verdadeira.
«A bruma es tende a sua doce lu z e tod as as m ontanhas re flec-
b) O est ilo forte e bru ta l.
tem o ve rmelho do c re púsc u lo.»
«T rês d ias depois do se u nascimento , o tigre já é capaz de de-
Ao longe , desde cedo, as m ontanhas ves te m -se de bran co re-
vorar um b o i.»
flectindo a lu z do sol no céu azul. É o es tilo da flor ve rdade ira. Si-
Eis uma mar ca de força . M a s também, devo ra r um bo i é brutal.
tu a-Se imedi atamente acim a d aqu el e d o conhec ime n to, e desde
logo , ao se u n ível , o actor co meça a e ntra r no domín io da flor.
c) O est ilo de chumbo.
b) O es tilo do co nhec ime nto . «O esq u ilo tem c inco gé n ios .»
«A bel eza da s montanhas e d as nu vens, dos mares e da lu a, ex- Con fúc io disse : «O es q u ilo tem c inco aptidões : s ub ir às árvo-
prime tud o o qu e há na natu reza.» res, me rgulh a r na ág ua, cavar te rreno s, sa lta r e correr, m as es ta s
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cinco capacidades estão no limite da consciência de um pobre ani- variadas do N ô, cujas belezas são de grande za, ou de elegância.
mal ». A este ní vel , a interpretação é de sprovida de e legância e o es- É pois neste momento preciso que é nece ssário se ntir-se capaz de
tilo é como chumbo, sem deli cade za . sub ir ainda mais alto. ou e ntão de de scer. A compreensão do verda-
deiro sentido da flor permite pa ssar ao estilo da flor verdadeira. Mas
11. Como estudar os nove degraus se não for compreendido , é preciso descer ao s g ra us inferiores .
Primeiro, os interm édios, dep ois os supe rio res e por fim o s in - Acerca de ste s não há muita coisa a dizer. porque não exigem
feri ores. Qu er dizer que vale mai s começa r a aprendizagem a partir uma técnica difícil. M as cas o se desça a e ste ní vel inferior. depois de
de duas peça s fundamentai s, pelo estilo da beleza prin cipiante . Se se terem estudado o s n íveis intermédios e o s su pe riores, se rá outra
este estilo for bem aprendido, é j á possível ter uma beleza de inter- coisa, graças ao grande conhec ime nto da flor e à estabilidade da in-
pretaçã o. Atinge-se , em seguida , o estilo do conhecimento graças à terpretação. Neste caso . um domínio superi or permite aos actores
continuação progressiva pelo mesmo caminho de Nô. Ne ste es tilo , é representarem com muito à-vontade nos degraus inferiores, e pro-
preci so aprofundar numerosas peças, sem afastar nenhum a. e conti- porciona-lhes elegânci a e doçura.
nuar sem pre o seu caminho. Passa- se assim ao estilo da flor verda- Contudo, desde a é poca antiga que houve actores que tinham
deira. O caminho. a partir de du as peças fundamentais, conduz-nos atingido o nível superi or mas nunca desciam ao nível inferior.
até ao s três tipos de papéis, de homem , mulher c de velho. Como diz o provérbi o : «O s elefantes não brinc am no s ca m inho s dos
Se se aprendeu bem cada um dos es ti los dos gra us interm édio s, coe lhos». O meu pai foi o único a dominar todo s os es tilos supe rio-
ao ponto de se poder apresentar a bel eza com uma real es ta b ilidade re s, méd ios e infe riores, co meç ando pel o g ra u inte rmé d io . No en -
de interpretação. atinge-se o mom ento de julgar se se compreendeu tanto. há muitos ac to res , m esmo por entre os c hefes da s companhias
bem o verdadeiro se ntido da flor. Im ediatamente acima do s tr ê s de Nô que , tendo ap enas terminado o nível d o conhec ime nto, de sce-
es tilos precedentes, com a facilidade de interpretação e graças ao ram para os três estilos inferiores em vez de s ubir ao s supe riores :
domínio do s três estilos médio s, situa-se o e stilo da flor rara. Ac im a ac a bar am a sua ca rre ira sem tornar o se u nome co nhec ido do pú-
ainda está o estilo da tlor de encanto profundo. Aí pod e- se exprim ir bl ico. E além di sso, hoj e há actores que começam a aprender o N ô
o prodígio da interpretação, para além de todos o s de grau s, e t' \I11 - pelos três estilos inferi ore s. Não é o ve rd ade iro c am inho da aprendi -
bém fa zer ver na su a int erpret ação uma bele za qu e nã o pertence zagem . Portanto. temo s um bom número de actores qu e não pode -
nem à existência nem ao nada. De seguid a , atinge-se o fim do cam i- mos classifi car e m nenhum destes nov e es tilos.
nho , o estilo da flor ideal , no qu al o jogo interior e o jogo e xte rio r
se un em , à medida que a ilusão dada pelo actor se tran s forma em
realidade. A este nível. é impossív el explicar com palavras a pro- (Zc am i. I: Fu shi-ka den, liv ro 7 . pa rágrafo I. 2: c 3: Kak vo. 4 : Yug uku Shudo K l'1II1'1I Sho , pa -

fundid ade desta interpretação. r:íg ra fo 3. 5: Kvui -Shidai , Tr ad . orig inal de Shuatsu Mit sunak a e Ja cq ues Schercr, segundo
Ka ro n Nougakuron de Se u ichi Hi samatsu, vol.ó S da co\. Iwanam i Kot en Bunguku Taikci,
De qualquer modo, tod os es tes estilo s se baseiam no do conhe- Tóq u io . edições Iwanam i. Ver tamb ém Zcami, La tradition secrête du 11'; . Irad . de Renê Sicf-
cimento . É o terreno sobre o qu al crescem todas as flore s mais fcrt , Paris. Gallimard , 19 60 .)
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8- JOD ELLE: L' EUGENE( I S52 ) Sem de sd ém pelo mai s baixo popular,
E para tal menos qu e menor não pode ver
Éti enn e J odell e (! 532- 1573) pe rtence u d esde os se us inícios A velha honra do es crito r de st ro se r,
ao movimen to poético da Pl êiad e . Nesse gr upo interessou-se mais Quando bruscament e tra ça as C o méd ias
particularmente pelo teatro, com a tragédia Cleópatra Cativa e a D o que aquela recebida pelas Tragédias;
comédia Eugêne, representadas p or volta de 1552. Vendo também qu e es te gé ne ro: de escrita
O prólogo des ta comédia marca um es tado de equilíbrio, que Do s olho s fran ceses há muito se reti rou ,
dura mu ito pou co , entre uma inspiração fra ncesa e pop ular e lima Sem que alg ué m tivesse ainda provad o
arte erudita e conhecedora. O que de tão bom antes era e ncontra do,
Qu is por bem desprender a sua pena
Pa ra vos d ar a sua comédia E ugê ne :
Para uma comédia moderna
E de u- lhe es te nom e, porque d a qu al
Ba sto, ba stante o Poeta pode ver Eu g êne é a personagem principal.
O tema humilde , o c ômico dever, A invenção lon ge do ve lho M enandro I

Os meios ve rs os , das ge ntes o vexar, Na d a de estrange iro vos fa z o uv ir


Os modos retomados, nem a todo s ag radar: O es tilo é no sso , e cada per sonagem
Para que un s de so brolho carregado També m se di z se r da nossa linguagem:
Não busquem sen ão algo de avi sado . E, mi sturando com os nosso s fa rs a ntes
Un s também mais amigos de furo res O sa n to riso de nossas irmãs mais sa ntas 2
Pre zam e m Polidoro os es te rto res , M orali za-se um co nse lho, um esc rito,
Hércules no fog o, Ifigén ia no alta r, Um Tempo, um Tod o, uma Carn e , um Espírito
E T róia a sa que, mais que o de sempenhar E as bal búrdias qu e mu ito s galho fe iros
Mai s do qu e agor a vos vai ser apresenta do. Tornam muit as vezes a honra do se u teatro,
Aq ue les são bon s, e a mem ória pa ss ada Mas retraçando a via dos a n tigos
Do furor tão bem representado Vencedores ainda do porto d o olvido
Nunca o se rá : mas se não for louvada Es te aqu i dá aos fran ceses a coragem
Das ve lhas mãos a escrita tão brava , De cada vez mais e ma is a lisare m .
Qu e es te Poeta num poem a g rava,
Sc desej asse, rep resent ar não p oderi a
I Pr inc ipal represen tante , na Gréc ia , da «comé d ia nova » no séc. IV a .C ., im itado pelos
Aquilo qu e a tais ge ntes conte nta ria . c ômicos latinos. (N .F .)
Po r m ai s qu e tent e a toelos ag ra dar 2 As m usas. (N .F. )
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Embora, muitas vezes, ne sta comédia 9 - GRÉVIN: TH ÉÂTRE (1561 )


Cada figura tenha na voz mais ousadia
Ou tom mai s g rave do qu e seria permitido, Ja cques Grévin (/538 -15 70 J, médico e p o eta , acabaria por
Se o latim passo a passo fosse segu ido. morrer em Turim , exilado por causa do se u calvinis mo. Deixava al-
Julgar não deve nem co m severidade gumas p eças, onde a influência dos antigos é já mais marcada qu e
Que se tenha a lei do cómico quebrado em Jodell e.
A língua, ainda fracalhota por si mesma Uma «nota pr évia » à sua comédia La Tr ésoriere , representada
Nã o pode suporta r uma fr aqueza extrema ; em 1559, situa Gr évin na mesma linha de tradição dos poetas ita -
E depois es tes, c uj a audácia se verá, lian os da coméd ia human ista . A p eça foi publica da em 15 61 no seu
São pouco mais do qu e uma rude populaça: Th éâtre , precedida de um Brie f Discours pour l'intelligence de ce
De resto, tal qual os ve m os entre nó s. th éâtre qu e é uma verdadeira arte poética .
M as dizei-rne, qu e recolheríei s vós,
Que versos, risos , honras e pal avras , 1. Os perigos da coméd ia
Se aq ui não se vêem senão alp ercatas?
Não , de nós não há necessidade
Al ém di sso, pensai qu e os cô mi cos antig o s
Para pre encher e st e estrado ,
Mai s alto ainda fizeram falar os deuses.
Es perar as fa rsas estim adas
Quanto ao teatro, e m bo ra não sej a
Que fo ram sempre m orali zad as:
Em se m icí rculo com o era com passado ,
Porque não é no ssa int en ção
E que não tenha do tipo sido ordenado
De misturar a religião
Que se fazia, é preciso qu e o suportem: No tema das coisa s fingidas.
Quer o req uinte desse velho ornamento Nem nunca as letras benditas
Agor a se dedique ao s Príncipes some nte ; Foram dadas por Deus, pa ra dep oi s
Me smo o som qu e os ne tos separa Delas se faz erem representações,
Como c re io, a vós bárbaro soara E todas essas farsas j oco sas
Se tivéssemos tido a c ur iosidade Parecem-m e injuriosas
D e remodela r de tod o a Anti guidad e. Para serem postas diante
Do s olhos do hom em mais sa piente .
Então o qu e quei ra agradar
(Jo de lle , Eug én«, 1952. Prolo g ue . Veja-se também Etie nne Jodelle: Q , tII 'I'CS co mpletes ; Enc a T ã o- somente ao popular,
Ba lrnas (cd .), Paris. Gallimard , 1965- 68.)
Esse escolherá o s e rros
62 63

Dos mais ignorantes truãos: Que, apesar de Minerva


Introduzirá a Natureza, A reter assim como serva,
O Género-Humano, a Agricultura, Ou na escala a ligar
Um Tudo, um Nada, e um Alguém, Como um pequeno escolar.
O Mal-falar, a Voz-comum, Não, não é da sua natura
E tais coisas que a ignorância Que ela parta à aventura
Dantes misturou pela França. Direito a quem a quer ter.
Que podemos então inventar É preciso primeiro conhecer
A fim de todos contentar? Devagar o seu pensamento:
O quê? O divertimento inútil Porque ela não quer ser forçada,
Pelo qual às vezes Martin-VilIe I
Nem mais vezes tratada,
Se fez escutar em seus tempos? Como muitas a vimos dantes
O quê? Pedis desses romanos Sob o jugo de uma pena madrasta.
Não espereis pois neste Teatro
Representados tão sem graça,
Nem farsa, nem moralidade:
Que idiota é a populaça
Mas apenas a Antiguidade,
De quem só estes são prezados?
Que uma farsa com mais ousadia
Vós sois bem mais avisados,
Se representa na Comédia:
Como creio: a vossa presença
Pois jamais poderia pensar
Merece ter a complacência
Que alguém se quisesse irar
De um discurso mais limado.
Contra mim, se para melhor fazer
Assim temos nós estimado
Queremos aos doutos comprazer.
Que a Poesia delicada
Quer uma matéria escolhida,
Digna de ser posta nos escritos 2. Os coros
Dos que têm melhores espíritos Nesta Tragédia descobrir-se-á, por estranha aventura que, sem
E não ser assim aviltada ser defendido por qualquer autor antigo, fiz o grupo interlocutor I
Ou em mil partes retalhada dos guardas composto pelos antigos bandos de César, e não por
Por aqueles que não a saudaram quaisquer cantores, ou outros, como era costume: mas para quem
Ainda do primeiro passo: e pensam

J Conhecido farsante. (NF.) É do coro que se trata. (N.F.)


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tiver compreendido os meu s motivos, tal não lhe será de di gestão 10 - JEAN DE LA TAILLE: DE L'ART DE LA TRAGÉDIE (1572)
tão difícil, coma o foi para alguns.
Nisto tive em conta que não falava aos Gregos nem aos Roma- Os irmãos Jean e Ja cques de La Taill e f oram ambos poetas e
no s, mas aos Franceses, os quais não sentem grande agrado por es- dramaturgos, ligados à Pl êiade. Jean de La Taille (15 33-16/0) , o
ses cantores mal exercitados, tal como pude observar muitas ve ze s mais co nhecido dos doi s, es tabeleceu um pre cedente ao publicar,
no s outros locais em que os pus eram em cena. Além dis so , dado ser junto com a sua tragédia Saül le Furieux ( 1572), um pequeno tra-
um facto que a Tragédia não é outra coi sa mais que uma representa- tado De L' Art de la Tragédie, fortemente influen ciado pela leitura
ção da verdade, ou daquilo que tem a sua aparência, parece-me que , de A ristóteles e dos se us recentes come ntado res italian os.
apesar disso , nos locais em que as agitações (tal foram descritas )
aconteceram às República s, o povo simples não tinha grande ocasião
de cantar: o que, por consequ ênc ia, implica que também não devem 1. Os temas das tragédias
ser postos a cantar quando representados, mais do que no caso da A Tragédia é portanto uma espécie e um género de Poesia não
verdade: de outro modo, e co m justiça, seríamos repreendidos, vulgar, mas tão elegante , belo e excelente quanto possível. O seu
como um mau pintor a quem tives se sido encomendado um retrato, verdadeiro tema só trat a d as ruínas lastimáveis do s grandes senho-
e que tivesse corrigido al gun s traços , que não seriam rec onhecidos, res, das inconstâncias da Fortuna, de exílios, guerras, pe stes, fomes,
na fac e de quem lhe tive sse s ido apres e ntado . Se me alegam que cative iro s, execráveis crue ldades dos tiranos; e e m resumo, de lágri-
isto foi observado durante toda a Anti guidade pelos Gr egos e os La- mas e misérias extremas, e não de coisas que acontecem todos os
tinos, eu respondo que no s é permitido ou sar qualquer coisa, princi-
di a s naturalmente e por m otivos comuns, como al guém qu e morra a
palmente onde nem a ocasi ão , nem a g raça do po ema, são ofendi-
s ua própria morte , outro que sej a morto pelo se u inimigo , ou outro
da s. Sei bem qu e me ret orquirão que os anti gos o fize ram para
que fosse condenado a morrer pelas leis e pel o s se us de smereci-
alegrar o povo, po ssivelment e zan gado com as crueldades represen-
mentos: porque tudo isto não comoveria facilmente, e com dificul-
tadas: ao que replicarei qu e nações diversas requerem div ersos mo-
dade me arrancaria uma lágrima dos olhos, qu er- se que a verdadeira e
dos de fazer, e que entre os France ses há outros meios de o faz er,
única intenção de uma tragédia sej a a de comover e ex c itar maravi-
sem interromper o di scurso de uma história. Di sto te deix arei n jul -
lho samente os afect o s d e cada um. Porque é necessário qu e o tema
ga me nto, avisando-te de que não qui s (à maneira daqu el e s que .
sej a tão di gno de piedade e pun gente por si que , se ndo mesmo con-
tendo o trabalho de se inflamar, desistem logo a seg uir) procurar
tado em resumo e se m o rn ame ntos , engendre em nó s qualquer pai-
uma quantidade de sonantes nom es próprios para es pantar as c rian-
xão , como quem vos con tasse sobre um a qu em infelizmente fi-
cin has; antes me contentei , seg uindo os Trágicos gregos, co m a mi-
zeram comer os própri os filhos, de maneira qu e o pai (sem o saber)
nha língua, sem nada pedir de empréstimo a uma estrange ira para
se rviu de sepulcro às s uas crianças; e de um outro que, não sendo
exprimir a minha concepçã o.
capaz de encontrar um carra sco que pusesse fim aos se us dias e aos
(Le Th éâtre de Jacques Grévin d e C lermont ell B eauvaisis, 1561. I: La Trésoricre. «A vant- se us males, foi obrigado a fazer essa triste tarefa pel as suas próprias
l eu ». 2: Bri ef Discours pour I' intclligcnce d e ce th e âtrc. Veja-se tamb ém Jacqu es Grévi n :
Th éãtre complet, Luci en Pi nvert (ed.), Paris. Gamicr, 1922 .)
m ãos.
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Qu e o tema também não sej a sob re Senhore s ex tre m a mente O ra, é o pont o pr inci pa l de uma Tragédia sa be r organi zá-Ia
maus qu e, pelos seus crim es horrívei s, merecessem punição; nem
bem, bem construir, e deduzi-la de maneira a qu e ela mude, trans-
também, pe lo me smo moti vo , sob re aqueles qu e são completamente
form e , m an ipule e vire o esp íri to do s a ud itores, daqui , d acolá, e
bons, ge nte de bem e de vida sa nta, como um Sócrates e m bo ra erra-
faça com qu e e les vejam agora uma alegria tomad a s ubita mente em
damente enve ne na do.
Ei s porque tod os os ass untos não se ndo ass im, se rão se m pre tri stez a, e agora ao contrá rio, a exem p lo das coisas human as.
frios e indi gn os do nome de Tra géd ia , como o d o sac r ifício de Que ela seja bem e ntre laçada, mi sturad a, e ntrecorta da, ret o-
Abraão, e m que es te fing e sac r ificar Isaac, pelo qual Deus te sta mada, e sobretudo, no fim, ch egu e a qu alquer resolução e finalidade
Abraão , e não traz qualquer infeli cidade final ; e de um outro e m do que aí se tinha empreendido trat ar. Q ue não ex ista nada de oc ioso,
que Gol ias, o ini migo de Israel e de nossa rel igi ão , é m orto por Da- de inútil, nem nad a qu e seja despropos itad o. E ca so se trat e de um
vid qu e o od iava, co isa que, e m bora nos cau se alg uma com pa ixão, tem a q ue pertence às let ras di vinas, que não tenha um a quantidad e
se rá mai s um alív io e um co nte ntamento qu e nos oferecerá ' . de disc ursos de teol og ia , co mo coisas qu e desviam do verda deiro
assunto; e qu e se r ia m mais con veniente s a um a prédica. E por est a
2 . As regras do teatro cau sa, guarde-se de faze r aí fal ar as pe ssoas a qu e se ch am am fingi-
das, e qu e nunca ex istiram, como a M o rte, a Verdad e, a Avareza, o
É preciso se mpre representar a h istóri a ou a intriga num mesm o
dia, num mesmo tempo e num mesmo lugar; gua rdar-se também de Mundo e o utras assi m; po rque se ria prec iso qu e existisse m pessoas
pratica r coisas sobre a cena q ue não pudessem se r fe itas cómoda e assi m de fac to im itadas qu e nisso tive ssem praze r.
honestamente, ou seja, não fazer aí executar os assassín ios e outra s Eis quant o ao tem a; mas qu anto à arte qu e é necessá ria para a
mortes, nem por fingimento o u de o utra man eira, po rque cada um disp osição e para a pôr po r escrito, é d ividi-Ia e m c inco ac tos e fa-
verá se mpre bem que é, e qu e não se trata mais do qu e fa ntasia, tal zer de man e ira a qu e, es ta ndo a ce na vazia de ac tores , um ac to es -
eo mo o fez um que tinha muito pou ca rev erência, e não o be decendo tej a acabado e o se ntido de mod o nenhum perfeit o . É preci so que
à arte , fez por fing iment o c ruc ificar e m plen o teatro esse g ra nde haja um coro, q ue r dizer, um a assem b leia de homens ou de mulhe-
Sa lvador de nós todos.
res qu e, no fim do act o, discorram sobre o que foi dito antes ; e so-
Quanto àquel es que dizem que é preciso qu e uma Tragédia sej a
bretudo observar esta maneira de cala r e sup rir o que fac ilme nte
sempre a legre no co meço e triste no fim , e qu e uma C omédia (q ue lhe
se m ser d ito se poderia e nte nder ter si do fe ito nos ba st ido re s; e não
é semelhante qu anto à arte e dispo sição, mas não no tem a) seja ao
co ntrário, dou -lhes por aviso q ue tal nem sempre ass im acontece, pe la co meçar a deduzir a sua tragéd ia pel o começo da h istó ria ou do

d iversidade dos temas e constr ução de cada um de stes do is poem as. tem a; a ntes pel o me io ou o fim (o qu e é um dos prin c ipai s segredos
da arte de qu e vos falo), à moda dos melh ores poetas anti gos e des sas

I Crítica aos en saio s so bre rrag éd ias cristãs de T héodore de Rez e (A b r ..III<I11/ sa crifia nt ,
gra ndes obras heróicas, a fim de não ou vir friam ent e , mas com esta
1550) e de Dcsmasur cs (Trag éd irs sucrées, 15( 6 ). ( N .F. ) ex pectativa e o prazer de co nhecer o começo e depois o fim .
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Ma s seria demasiado longo detalhar par miúdo este assunto que o objectivo da coméd ia
esse gra nde Ari stóteles, nas suas Poéti cas , e depoi s dele Horácio (...) Todas as suas pe ças I não são nem verdadeiras tra gédias,
(m as nã o com tanta subtileza) continuou tão amplamente e melhor nem verd adeiras co méd ias; mi sturando os rei s co m os bobos, e não
que eu , que não me dirij o senão a vó s e não às di fíc eis e graves o re - porque o tema assim o exija, mas empurrando os bobos pela ca-
lhas dos mais sábios. be ça e pelos ombros para des empenharem um papel em assuntos
Apenas vos avi sarei que muitas das Tragédias e Comédias , maj estosos, sem dec ênda' nem di scrição, de modo a que nem a ad-
Farsas e Moralidades (o nde muitas vez es não há se ntido nem razão , miração , nem a com ise raç ão, nem o correcto di vertimento sej am
mas pala vra s ridículas co m algum divertimento) e outros jo go s qu e obtidos pela sua tragédia híbrida. Sei qu e Ap ulei o 2 fez algo assim,
não sã o feitos segundo a verdade ira arte e o m olde do s an tigos, m as isso é um a co isa contad a co m espaço e tempo, e não represen-
como de um S ófocle s , Eurípides c S éneca, não podem ser se nã o tad a num moment o; e se i que os antigos têm um ou d ois exe mplos
coisa s ignorantes, mal fe itas, ind ign as de se faze r caso delas, c que de tragicomédias, co mo O Anfi trião de Pl aut o . Mas, se as observar-
não deveri am servir de pas satempo se não aos servos e miudeza po - mos bem, descobriremos que e les nunca, ou c om muita delicadeza,
pular, e não às pessoas g raves. mi sturam gaitas-de-foles com funerais. Tal aconteceu porque, não
tendo de facto boa com éd ia , na parte cómica da nossa tragédia te-
(La T aille, Saiil le Fnricux , 1572, De L' Arl de la Trag édie. Veja-se tam bém Jea n de La Ta ille , m os ape nas obscenidades indignas de ou vid os cas tos, ou qualquer
Saiil le Furi eux; La Famine , 0 11 Lcs Gab eonit es , Elliull Fo rsyth (ed .), Paris. Didier. (968).
ex ib ição extrem a d e e stupide z, apropri ad a d e facto para s usc itar
um a garg alhada, e nada mai s: enquanto tod o o decorrer de um a co -
médi a deveria estar che io de del eit e, da mesma maneira na tragédia
deveria ser sempre mantida um a admiração bem susc itada .
11 - SIDNEY: DEFESA DA POESIA (1595) Mas os no ssos actore s pensam que não existe dele ite sem o
ri so, o que está muito errado, porque embora o riso po ssa nascer do
Sir Philip Sidn ey (/554-1586), ca valeiro , dipl omata, militar e deleite , no entanto não vem do deleite, co mo se o del eit e fosse a
caus a d o riso ; mas um a da s coisas pode bem sus citar a outra. Ma s
poeta inglês, compôs UI1/ elogio da literatura por volta de 1581 , em
não , e ntre si, antes têm como se fosse uma es pécie de co ntrariedade :
resposta a uma campa nha dos puri tanos contra todas as artes gra -
porque apenas nos deleitamos em co isas qu e têm conveni ênci a para
tuita s e particularmente contra o teatro. Esta def esa da poesia regu -
nó s, o u para a natureza e m ge ral; o ri so vem qu ase se m pre da s
lar, inspira da pelas doutrinas hum an ista s , só fo i publicada depois
dos começos de Sha kespeare , e depois da morte do seu próprio autor.
Ap ós uma ap ologi a das regras , e uma ab ordagem do g énero
misto da tragicomédia, Sidney detalha , no ex cert o que escolhem os, I Trata-se dos drama turgo s ant erior es a Shakespcare c ao s grandes isabcl inos. (NF.)

o qu e deve ser (] pureza do cómico . 2 Romancista lati no . (N F .)


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coi sa s mai s desproposit ada s para nó s e para a natureza . O deleite (idade, zombar de estr ange iros, porque não falam ingl ês tão bem
co ntém uma al egria, tanto permanente como presente . O riso tem como nós ? O qu e é qu e aprende mos com isso ?
ape nas urnas cócegas de escá rn io . Por exemplo, fic am o s arrebata-
(Sid ney , A I1 Apologv fo r Poctry; 1595. trad. de Martinc de Ro uge mo nt. Veja-se também Sir
dos de deleite por ver uma bel a mulher, e portanto es tamos longe Philip Sidncy , A I1 Apologvfor Poct ry or Til,' Dcf cnsc of Poesie, George Shc phe rd (ed .), Lon-
de se r levados ao riso. Rimo-nos d as criaturas deformadas, perante d res. Ne lso n, 1965.)
Ed ição utili zad a em apo io p ara a tradu ç ão : Si r Philip S id ncy, AI1 AI' 0 lo Ry.fi )r P octrv;
as qu ais se g ur am e nte não sentimos del eite. Temos deleite na s boas- Geoffrey She phero (cd .). Man ch cster Univc rsity Prcss , 1983. pr. 135-6 . (N. T .)
opo rtunidades, rimo-nos dos azare s; d eleitamo-nos ao o u vir a feli-
cid ade do s nossos amigos, do no sso país, e seríamo s merecedores
de riso se deles nos ríssem os. Contra riame nte, riremos às vezes ao
descobrir um assunto bastant e errad o e rimo-nos às garga lhadas 12 - SHAKESPEARE: H ENRY \1 ( 1598) e H AMLET (16 00)
contra o preconceito, se na boca d algum desses homens que , dado
Willianz Shakespea re (1564-1616) não d eix ou textos teóricos
o respeito que nos merecem , deveriam deixar-nos pro fundamente
so bre o teatro. Vária s passagens da sua obra marcam a parte do
arrepe nd id os, e no entanto não podemos senão rir; e ass im fica-
so nho no espect áculo , d os artesãos representando um a com éd ia em
mos mais desgostosos do que d el eitados com o ri so . No entanto
Sonho de Uma Noite de Ver ão, às propostas do M ago Pr óspero em
não nego que podem bem and ar juntos : pois perante um retrato de A Tempestade, mas es tão de mas iado integrados na acçâo para per-
Alex andre , bem feito , del eitamo-nos sem no s rirmo s, e d iante de m itir citações. Limitamo-n os a ci ta r o «coro » de Henrique V, q ue
vinte palhaçadas lou ca s rimo-nos se m deleite ; enq ua nto Hércules, intervém p or seis vezes para co menta r a acçâo e () espcct áculo, e os
pin tad o co m a s ua e norme barba e aspecto furi oso, ve stido co m célebres conselhos de Ha mlct aos actores .
ro upas de mulher, fiando a coma nd o de Ônfale , s usc ita tanto o
riso qu anto o del eit e. Porqu e a representação de um pod er tão es- 1. A ilu são teatral
tranhamente apai xonado causa del eite : e o esc árni o d a acç ão pro-
O CORO
voc a o riso .
Mas falo com es ta intenção: qu e todo o obj ecti vo da parte c ó- Oh ! Uma Mu sa de fogo. qu c ascendesse
m ica não se funde em tais assunto s escarninhos qu e a pe nas provo - Ao mai s lumino so cé u da invenção ,
Um reino por palco, pr ínc ipes a repre sentar
ca rn o riso, mas qu e se misture com eles esse ensinamento de le itoso
E rei s a o bse rvar a ce na arrebatadora!
que é o obj ectivo da poesia. E o grande erro mesm o neste ponto do
Então dev eria o gue rre iro Henrique , co mo e le próprio
riso, e claramente proibido por A ristó te les, é qu e e les pro vocam o
Assumir o po rte de Mart e; e a se us pés.
riso com coisas pecaminosas, que são mais execrávei s do que ridí-
Atrelados como galgo s, a fome, a espada e o fogo
culas; ou com a miséria, que é mais para suscitar a piedade que o
Rastejando a pedir em prego . Mas perdoai. ge ntis auditores
escárnio. Para quê fazer os populares escancarar a boca perante um
Ao espírito ra so e pou co exaltado que ousou
pedinte miserável , ou um pobre bufão; ou, contra a lei da ho spita-
Neste indigno c adafalso apresentar
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Tão grandioso tema. Pode esta arena conter Com coroas traiçoeiras; e três homens corruptos,
Os vastos campos da França? Podemos nós amontoar Um, Richard, Conde de Cambridge, e o segundo
Dentro deste cercado todos os capacetes Henry, Lord Scroop de Marsham, e o terceiro
Que até o ar assustaram em Azincourt? Sir Thomas Grey, cavaleiro de Northumberland,
Oh, perdoai! Dado que uma figura errada pode, Que, pelo ouro de França - Oh crime de facto!. .. -,
Em pouco espaço, testemunhar por um milhão, Confirmam conspiração com a França temerosa:
Deixai que nós, cifras desta enorme conta, E pelas suas mãos esta virtude dos reis deve morrer. ..
Trabalhemos a força da vossa imaginação. Se o Inferno e a traição cumprirem as suas promessas,
Suponde que, entre esta cintura de muralhas, Assim que tomar navio para França - e em Southampton.
Estão agora confinadas duas poderosas monarquias Alongai a vossa paciência, e resumiremos
Cujas frentes alevantadas e contíguas Para enganar a distância, e fazer avançar a peça.
O perigoso e estreito oceano separa e divide. A soma foi paga, os traidores estão de acordo,
Completai as nossas imperfeições com os vossos pensamentos: O rei parte de Londres, e agora a cena,
Em mil partes dividi um homem Senhores, é transportada para Southampton;
E criai uma potência imaginária; Aí está agora o teatro, aí vos deveis sentar
Pensai, quando falamos de cavalos, que os vedes E daí a França vos levaremos em segurança
Imprimindo os seus altivos cascos na terra acolhedora; E traremos de volta, seduzindo os mares estreitos
Pois os vossos pensamentos devem agora ornar os nossos reis, A dar-vos uma calma travessia; porque, se pudermos,
Levá-los ali e acolá, saltando sobre os tempos, Não ofenderemos um único estômago com nossa peça.
Mudando as acções de muitos anos Mas, só quando o rei partir, e não antes,
Numa hora de ampulheta; para tal serviço Para Southampton transferiremos a nossa cena.
Admiti-me como Coro desta história; (11. pr. vv. 16-42)
O qual, à laia de prólogo, pede à vossa caridosa paciência ( ... )

Que oiça com mansidão e julgue com bondade a nossa peça. Então, como uma asa imaginária a nossa cena veloz voa
(I. pro vv. 1-34) Num movimento com tanta celeridade
( ...) Quanto a do pensamento. Suponde que vistes
Oh Inglaterra! Modelo da tua grandeza interior, O bem equipado rei no cais de Hampton
Como um pequeno corpo de grande coração, A embarcar a sua realeza; e a sua frota corajosa
O que não poderias fazer que a honra te não fizesse, Com flâmulas de seda a abanar o jovem Febo.
Se todos os teus filhos fossem bons e verdadeiros! Jogai com a vossa fantasia; e nela vede
Mas vê o teu erro! A França descobriu em ti Os marujos trepando pelas cordagens de cânhamo.
Um ninho de peitos vazios, que ela enche Ouvi o apito agudo que as ordens deve dar
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Aos sons confusos; observai as velas enfiadas Um pequeno esboço de Harry na noite;
Suportadas pelo vento invisível e adonante E assim, a nossa cena até à batalha deve voar;
A levantar os enormes cascos pelo mar sulcado Onde - oh! por piedade - se muito degradarmos,
Enfrentando as vagas soberbas. Oh, pensai Com quatro ou cinco lâminas vis e rombas
Que estais na margem e observais Desastradamente cruzadas numa zaragata ridícula,
Uma cidade dançando nessas ondas inconstantes; O nome de Azincourt. Porém, sentai-vos e vede,
Pois assim parece esta frota majestosa, Cuidai das coisas verdadeiras pela sua zombaria.
Tomando o caminho devido para Harfleur. Segui-a, segui-a, (IV. pr. vv 43-53)
Atracai as vossas mentes à popa desta armada ( ... )
E abandonai a vossa Inglaterra como uma calma meia-noite Concedei que, aos que não leram a história,
Guardada por avôs, bebés e mulheres velhas, Lhes possa servir de ponto; e aos que leram,
Que já perderam, ou ainda não alcançaram vigor e poder; Peço humildemente que aceitem a desculpa
Porque nenhum daqueles cujo queixo se enriquece Do tempo, de números, e do curso devido das coisas
Com a sombra de um pêlo quis deixar de seguir Que não podem, na sua própria e enorme vida,
Aquela elite de cavaleiros de escol para França! Ser aqui representadas. Agora levamos o rei
Trabalhai, trabalhai os vossos pensamentos, e vede aí um cerco, Em direcção a Calais. Considerai-o lá. Visto aí
Observai a ordem da sua artilharia Fazei-o navegar sobre os vossos pensamentos alados
Com as bocas fatais escancaradas face à sitiada Harfleur Através do mar. Olhai as costas inglesas
Suponde que o Embaixador de França regressa, Pálidas na maré, com homens, esposas e rapazes,
Diz a Harry que o rei lhe deve oferecer Cujos gritos e aclamações se sobrepõem à voz grave do oceano
Catarina, a sua filha, e com ela, por dote, A qual, como um poderoso arauto, precede o rei,
Uns pequenos e pouco rentáveis ducados. Parece preparar o seu caminho. Deixai-o desembarcar
A proposta não agrada; e o artilheiro ligeiro E solenemente vede-o encaminhar-se para Londres.
Com o pavio toca agora o canhão diabólico É tão veloz o passo do pensamento que agora mesmo
(Alarme, e as balas partem). Podeis já imaginá-lo em Blackheath,
E tudo se desmorona diante deles. Sede ainda bondosos, Aonde os seus nobres desejam que transporte
E acrescentai a nossa representação com a vossa mente. O seu elmo amolgado, e a espada dobrada,
(...) (III. pr. vv. 1-35) Adiante de si através da cidade. Ele proíbe-o
Uma generosidade universal como o Sol, Estando livre de vaidade e vanglorioso orgulho;
O seu olho liberal deve dar a cada um, Despoja-se de todos os troféus, sinais e ostentação
Derretendo o medo gelado, vós todos, pequenos e grandes, e cede-os a Deus. Mas vejam agora,
Olhai, como pode a indignidade definir, Nas rápidas forja e fábrica do pensamento
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Como Londres despeja os seus habitantes! Na vossa amável mente deixai que tenha aceitação.
O Presidente da Câmara e seus iguais, com as melhores vestes (V ii. vv. 1-10)
Semelhantes aos senadores da Roma antiga
Com o povo enxameando em seus calcanhares, 2. C onselhos aos actorcs
Avançam e recebem o seu César conquistador;
Entram Hamlet e três actores
( ...)
Colocai-o agora em Londres...
•• 0 HAMLET
Por enquanto as lamentações dos Franceses
Peço-vos, dizei o discurso como o pronunciei diante de vós, li-
Convidam o rei de Inglaterra a ficar em casa;
geira e naturalmente; mas se o declamardes, como o faz a maioria
O Imperador vem aí, em nome da França,
dos nossos actores, preferiria ter o pregoeiro público a dizer os
Para promover a paz entre eles; e omiti
meus versos. Nem serrem demasiado o ar com as vossas mãos, as-
Todas as ocorrências, por mais fortuitas,
sim, mas usai de tudo delicadamente; porque mesmo no meio da
Até que Harry regresse de novo a França.
torrente, da tempestade e, como poderei dizer, do furacão da paixão,
Aí o deveremos levar; e eu próprio representei
devereis adquirir e gerar uma temperança que lhe possa dar suavi-
O intervalo, recordando-vos o seu passado.
dade. Oh, ofende-me até à alma ouvir um sujeito ruidoso de peruca
Então tolerai o resumo; e vossos olhos lançai
na cabeça destroçar uma paixão em farrapos, em verdadeiros andra-
seguindo vossos pensamentos, de novo direito a França.
jos, rasgar os ouvidos dos espectadores na plateia os quais, na maio-
(V pro vv. 1-28; e vv. 35-45)
ria, são incapazes de mais do que pantomimas inexplicáveis e baru-
( ...)
lho. Mandaria chicotear um sujeito desses por exagerar as viragos, e
Até aqui, com pena rude e pouco hábil
super-herodizar Herodes! Por favor, evitem isso.
O nosso autor esforçado prosseguiu a história
Num pequeno espaço encerrando homens poderosos, PRIMEIRO ACTOR

Mutilando por arranques o decorrer integral da sua glória. Garanto-o a Sua Alteza.
Breve tempo, mas na brevidade com maior grandeza viveu
HAMLET
Esta estrela de Inglaterra. A Fortuna forjou a sua espada
Com a qual conseguiu o melhor jardim do mundo, Também não sejais demasiado insípidos, mas deixai que o
E dele deixou seu filho como senhor imperial. vosso discernimento seja o vosso guia. Adaptai a acção à palavra, e
Henry o sexto, em fraldas infantis coroado rei a palavra à acção; com esta observância especial, de não exceder a
de França e Inglaterra, a este rei sucedeu; modéstia da natureza; porque qualquer coisa assim excessiva afasta-
Cujo estado tantos governavam -se do objectivo do representar, cuja finalidade, tanto no início
Que perderam a França e fizeram Inglaterra sangrar; quanto agora, era e é apresentar uma espécie de espelho perante a
Os quais muitas vezes o nosso palco mostrou; e por eles natureza; mostrar da virtude a sua verdadeira face; ao desprezo a
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sua própria imagem, e à própria idade e corpo do tempo , a sua 13 - LOPE DE VEGA : A ARTE NOVA DE COMPOR PEÇAS
form a e peso. Agora, algo de exagerado ou atrasado, embora faça NESTE TEMPO (1609)
rir os inexperientes, não pode senão causar pena aos judiciosos; e a
censura de um destes deve, se o permitis, sobrepor-se a um teatro Felix Lope de Vega Carpio (1562-1 635) co meça a escrever
cheio dos outros. Oh, há actores que vi representar - que ouvi outros para o teatro aos de z ano s de idade, di z ele , e escreveu mais de mil
louvar, e consideravelmente - os quais, para não dizer coisa s profa- pe ças, talvez mais de dua s mil, no decurso de uma vida av enturosa.
nas, nem tendo o sotaque de cristãos, nem a po stura de cri stãos, pa- e mesmo no mosteiro onde passou os seu s últimos vinte an os .
gãos ou sequer homens, andavam tão empertigados e rugiam tanto, Ao contrário de Shakespeare, teve o cuidado de formular os
que pensei que alguns artesãos da Natureza tinham feito homens, e seu s princípios dramatúrgicos, num poema iránico e orgulhoso.
não os tinham feito bem, pelo modo abominável como imitavam a
humanidade.
A Arte de Compor contra As Regra s da Arte
PRIMEIRO ACTOR
Arte nova de compor comédias neste tempo
Espero que tenhamos mai s ou menos corrigido isso em nós, Dirigido à Academia de Madrid
Senhor.
Mandam-me, engenhos nobres , flor de Espanha
H AMLET (q ue, ne st a junta e academ ia insign e s,
Oh, corri gi-o totalmente. E deixai que os que fazem de palhaço em breve tempo e xcedereis não só
entre vós não falem mais do que lhes é determinado; porque alguns as de Itália que, invejando a Grécia,
se riem eles próprios, para conseguir qu e uma quantidade de espec- ilu strou Cícero com o me smo nome
tad ores árido s riam também, apesar de nesse momento alguma junto ao Avemo lago, se não a de Atenas,
questão es sencial da peça pod er estar a se r considerada. Isso é onde no se u platónico Liceu
infame, e mo stra um a ambição deplorável por parte do bobo que o se v iu tã o alta junta de filósofos)
faz . Ide e preparai-vos. que uma arte de comédias lhes escreva,
(saem os aclares) que no estilo do vulgo se receba.
(IlI . ii, 1-44)
Fácil parece es te assunto, e fá cil
fora para qualquer um de vó s,
(W illiam Shakcs pearc , a ·u..rcs Co mpletes , Trad . de Fra nçois-Victor Hugo. Pagn erre , 1863; que menos delas es creve u, e mais sabe
I: tom o XII, pp . 65 -66, 80,10 1-10 2,1 31-132.171 -172 ,190-191 ; 2 : tomo I, pp . 243 -45 .)
Edição utilizada de apoio à tradução portuguesa: Will iam Shakespeare, Comp lete W orks (Th e da arte de escrevê-las, e de tudo:
Alex ander Text) , London & G lasgow, Collin s, 1971 (1 6." ed), pp . 551-587. Henry '.I, Actos: porque o que me causa dor neste papel
I, vv , 1-34; 11 , v v . 16-42; m, vv . 1-35; IV, v v 43 -53; V . VV . 1-28 e VV . 35-45; V . ii, VV . \ -10 .
H aml et, Acto Ill , ii, vv . (-44 . (N .T.) é tê-las esc r ito sem a arte.
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Não porque ignorasse os preceitos, os que o aplauso vulgar pretenderam ;


Graças a Deus qu e já, aprend iz de gramático, porque, co mo o vulgo as pa ga , é justo
pa sseava os livros que tratavam disto falar -lh e como néscio para lh e dar prazer.
antes de ter visto o so l dez vezes ( ...)
decorrer de Aqu ário até aos Peixes. Se ped is arte, sup lico-vos, en genhos,
qu e leiais ao doctíssimo utinen se
Mas porque, enfim, des cobri que as coméd ias Robortell o I, e vereis , so bre A ristóteles
es tavam em Espanha naquele tempo (e se m cons iderar o qu e escreve de co mé d ia,
não como os seu s primeiros inventores qu anto por mui tos livro s tem difundido),
pensavam que no mundo se tinham escrito, qu e tudo isto de ag ora es tá confuso.
m as como as trataram muitos bárbaros
qu e e ns ina ram ao vulgo as suas rudezas; Se pedi s parecer so bre as qu e ago ra
e ass im se introduziram de tal modo, estão no poder, e que é fo rçoso
qu e quem com arte agora as es creve qu e o vul go com suas le is e st abeleça
m orre sem fama nem ga lardão, pois pod e , a vi l quimera deste m onstruoso có mico,
entre os qu e carecem da sua luz , d irei o qu e tenho, e pe rdoai , poi s deve
m ais do qu e a razão e força, o cos tume . obedecer a qu em em m im m andar pod e,
qu e , dourando o erro do v ulgo, quero
É verdade que escrevi algumas vezes di zer-vos de que mod o as qu e reria,
seg uindo a arte que pou cos conhecem; po is para seguir a arte não há re médio ,
m as logo que a sair por outra parte nem a estes dois extr emos dando um mei o.
vej o os monstros de ap arências cheios,
ao nde acodem o vulgo e as mulheres Elej a- se o ass unto, e não se olh e
qu e es te triste exe rcíc io cano niza m, (perdoem os preceit os) se é de rei s,
àqu ele hábito bárbaro regresso; ainda qu e por isto ente ndo qu e o pru dent e
e quando tenho que escrever uma comédia, Fil ipe , rei de Espanha e se nho r nos so,
fech o os preceit os a sei s chaves; ao ve r um rei daq ue les se e nfadaria :
reti ro Terêncio e Plauto do meu esc ritór io, o u fosse po r ver qu e à arte contradizia,
para qu e não me dêem deixas (porque pod e
dar gritos a verd ade em livros mudos),
I Robortel lo, / 11 Librum Aristot cl is d e Arte Po cti ca Exp licationcs , 1548: um dos gran-
e esc revo pela arte qu e inventar am des come ntado res ita lianos de Aristóteles. (N.F.)
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ou porque a autoridade real não devesse quando mi sturámos a frase trágica


andar fingida entre a humilde plebe. com a humildade da bai xeza cómica.
Que se passe no mínimo de tempo possível ,
Isto é regressar à comédia antiga a não ser qu ando o poeta esc reva uma hist ória
onde vemos que Plauto colocou deuses, em que tenham qu e pa ssar- se alguns anos,
que estes poderá pôr no s intervalos
como rio seu Anfitrião mostra a Júpiter.
entre os actos, ou se for forço so
Sabe Deu s quanto me custa aprová-lo,
a alguma figura fazer uma viagem,
porque Plutarco , falando de Menandro,
coi sa que tanto ofende a qu em e nte nde;
não diz bem da comédia antiga.
mas não vá vê -Ia s qu em se ofende.
Mas dado que da arte estamos tão afastados
e em Espanha lhe fazemos mil agravos,
Oh! Quantos de ste s tempos se benzem
desta vez cerrem os douto s os lábios. por ver que hão-de passar-se anos em coisa
que deveria terminar num dia artificial
o trágico e o cómico mi sturados, já que não lhe quiseram dar o matemático!
e Terêncio com Séneca, ainda que sej am Porque, considerando que a cólera
como outro Minotauro de Pasífae. de um espanhol se ntado não se modera
farão grave uma parte, a outra ridícula; se em duas horas nã o lhe representam
que esta variedade deleita muito. tudo do Gén e si s ao Juízo Final,
Bom exemplo no s dá a Natureza eu acho que se lhe tem que dar prazer
que de tal variedade retira a bel eza. com o que se con segu e, é o mai s justo.

Aconselha-se que apen as es te assunto


tenha uma acção, observando qu e a fábula
de modo nenhum seja episódi ca;
quero dizer, com inserções de o utras co isas
que do primeiro obj ectivo se desviem ;
nem que dela se pos sa cortar um membro (Lo pe de Vega, A rte /lIU" 'O de hacer comedias en este ticmp o (1609) trad. de Dam as-Hinard
que não derrube todo o contexto. e m Chcfs-d' Dcu vre du Th éâtre Espagnol: Théâ tre de L op e de Vega, Charlie u et Huillery,
IRói , tomo I, «Nova Art e Dram ática », 1'1" LXV-LXX.)
Não se aconselha que decorra num período
Edição utilizada para a tradução portu guesa: Lope de Vega, «Arte Nuevo de Hacer Comedias
de sol, embora seja conselho de Aristóteles, e n Este Tiempo» in Apêndices à las «Rimas » (ló09) apud. Obras Poéticas, José Manuel Ble-
porque já lhe perdemos o respeito c ua (ed. ), Barcelona, Plan eta, 19 831'1'. 256-26 8, vv. 1-48 e vv. 141-2 10. (N .T.)
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14 - OGIER: PREFÁCIO AO LEITOR (1628) homens, qualquer que sej a o céu so b o qual na sçam, deve convergir
para um mesmo julgamento no qu e to ca às coi sas necessárias ao
A Fran ça pré-clá ssica teve dramaturgo s próximos dos Ingleses
bem so be r ano, e esforça-se , tanto quanto pode , para os unir na
e dos Espanhóis seus co nte mporâ ne os, ma s p ou cos teóricos do tea-
busca da verdade, porque el a não saberia senão ser uma; mas para
tro. As peças de Hardy, e depois d e Théophile de Viau, de Racan, de
os objectos simplesmente agradáveis e indiferentes, tal como este
Schelandre, e de out ros ain da , dã o lugar a 11m único ensaio impor-
de que falamos, ela dei xa que as nossas opiniões tomem o caminho
tante qu e prenuncia, com dois séculos de avan ço , algumas teses do
qu e lhes aprouver, e não estende a sua jurisdição sobre es ta matéria.
Racine et Shakespeare de St endhal. O Prefácio ao Leitor de Fran çois
Esta verdade est abelec ida abre uma via do ce e amável para re-
Ogier (1600 -1670), mais co nhecido com o predicador. foi publicado
so lver as disputas qu e nascem diariamente entre aqueles que atacam
como introdução à tragic om édia d e Jean de Schelandre , Tyr et Sidon ,
e os qu e defendem as obras dos poetas antigos : porque, como eu
em 1628.
não poderia deixar de censurar doi s ou três fazedore s de ca nções
que tr atam Píndaro de tolo e extravagante, Homero de sonhador,
1. O gosto da s nações etc., e aquele s que os imitaram ne stes últimos tempos, também ach o
Encerro-me aqu i ap enas no s limites da poe sia, e di go que o ar- insó lito que no-lo s proponham corno modelos perfeitos, dos quais
dor demasiado violento de querer imitar os antigo s fez com que os não nos sej a permitido afa star-nos nem um pouco. A isto é preci so
nossos primeiros poemas não tive ssem alcançado a gl ória nem a ex- dizer qu e os Gregos trabalharam p ara a G réc ia, e tiveram êxi to, de
celência dos antigos. Eles não tiv er am em consi deração que o gosto acordo com o julgamento da s gentes honestas do seu tempo, e qu e
das naçõ es é diferente, tanto relat ivamente ao s obj ec tos do es pírito nós os im itare mos bem melhor se dermos qu alquer coisa ao gé nio
quanto aos do corpo, e que, da mesma maneira qu e os Mouros, e do no sso país e ao gos to da no ssa língua, em vez de nos obrigarmos
sem ir tão lon ge, os Espanhóis, se figuram e se aprazem com uma a seg uir, passo a pa sso, tanto a sua intenção, qu anto a sua el ocuç ão,
espécie de bel eza completamente diferente daquela qu e apreciamos com o o fizeram alguns do s nossos. É ne ste cas o que é preciso que o
em Fran ça , e que desejam nas suas amantes urna outra proporção de j ulg ame nto fun cione co mo , ali á s, e m todos os casos, e scolhendo
membros e outros traços de face diferentes do s qu e nós procuramos, do s anti gos o qu e se pod e adapta r ao nosso tempo e ao humor da
até mesmo se encontram homens que formam a ideia da sua beleza nossa nação, sem todavia ce nsura r as obras sobre as quais tantos sé-
com os traços exa ctos com que nós comporíamos a fealdade; do cu los passaram com a aprovaç ão públi ca. Eram olhadas , no seu
me sm o modo, não se deve du vid ar que os esp íritos dos povos te- tempo, so b uma outra persp ectiva diferente da que ne ste momento
nham inclinações bem diferentes un s dos outros, e se ntime ntos usamos , e descobriam aí a lg umas graç as qu e nos es tão ocultas e
igualmente dissemelhantes quanto à beleza das coi sas espirituai s, para a descoberta das qu ais seria necessário ter respirado o ar da
tal como o é a poesia , o que se faz não obstant e sem o interesse Ática à na scen ça , e ter sido alimentado com esses ex celentes ho-
da fil osofia: porque e la e nte nde bem qu e o es pír ito de tod os os mens da G récia anti ga.
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2 . Sobre a tragicom édia coisa : pois, o qu e é o C icl ope de Eurípides se não uma tragicoméd ia
che ia de zom ba rias e de vinho, de Sátiros e de Sil enos dum lad o , do
Também os próprios anti gos, reconhecendo o defeito do seu
sa ng ue e da raiva de Polifem o com o olho vazado do out ro?
teatro, e qu e a pouca vari edade qu e aí se prati cava tomava os es pec-
A co isa é e ntão a ntiga, embora o nome seja novo; resta -n o s so -
tad ores melancóli cos, foram obrigados a introduzir as sá tiras so b a
mente trat á-Ia como é devid o, fazer fal ar cada personagem segundo
forma de interlúdio as quais, por uma licenciosidade desenfreada de
o assunto e a conven iê nc ia, e sabe r descer oportunam ente d o co-
maldizer e ofe nde r as per sonagen s mai s qualificadas, cap tavam a
turno da tragédi a (po rq ue aqui é permitido usar es tes te rm os) à chi-
ate nção do s homen s, qu e se divertem normalmente a ou vir falar mal
nela da comé d ia, co mo o fez o no sso auto r.
do s out ros.
Ninguém ignora quanto o es t ilo qu e se e m prega e m tão di -
Esta econo m ia e di sposição de qu e se se rv ira m faz com que
ferentes matéri as deve se r diferente: um alto , e levado , supe rio r; o
não tenhamos dificuldade em desculpar a invenção da s tra gi comé-
o utro medíocre e meno s grave. É por isso que Plínio o Mo ço tinha,
dias, que foi introduzida pelos Italiano s. Veja-se qu e é muito m ai s
de modo bem d ivertido, chamado a duas d as s uas casas de campo
razoável misturar as coi sas graves com as menos sé rias numa mesma
Tragédia e Comédia, porque uma estava s itu ada na montanha, e a
sucess ão de discurso, e faz ê-Ias encontrare m -se num mesmo tema de
outra em baixo, à beira do mar.
fábula ou de história, do que juntar, fora da obra, as sátiras co m as
tragédias, qu e não têm nenhuma liga ção de conjunto e qu e confun- (Tyr et Sido n , tragicomédie divis ée en deux j ournées, 16 28. P r éf acc ali Lectcur par F .O P .;
vej a-se também An ci en Th e âtrc Fran çois , t. VII I. Jannet, 1856. )
dem e perturbam a v ista e a memória dos auditores: pois di zer qu e é
pou co conveniente faz er aparecer numa mesma peça as mesmas per-
sonage ns, trat ando tanto de assunt os sé rios, import ant es e trá gi co s, e
ime diatame nte a seguir, de co isas com uns, vãs e cóm icas, é ign o ra r a
co ndição da vida do s homen s, de qu em o s dias e as horas são muitas 15 - MAIRET: PREFÁ CIO DE SILVANIRA (1631 )
vezes entreco rta dos de risos e de lágrimas, de contentamento e de
aflição, seg undo são agitados pel a boa ou m á Fortuna. A lg um dos Jean de Mairet ( 1604-1686) teve um a ca rreira de aut or dramá -
deu ses qui s noutros tempos misturar a alegria com a triste za para fa- tico , breve mas br ilh ante , qu e decorre u entre 1625 e 1640 , na época
ze r um a única co mpos ição; não co nseguiu fazê- Ia, mas ligou a cauda em que as dicussões sobre as regras estão mais acesas.
de uma à outra. É por isso que vulgarmente se suce de m tão de pert o , Opôs-se a Co rneillc quando da qu erela do C id. A sua tragico-
e a própri a natureza mostrou-nos qu e não se d iferen ciam nad a uma média pastoral Silva n ira, cuj o tema foi buscar ao célebre romance de
da outra, poi s qu e os pintores obse rva m qu e os mesm os movimentos H o nor é d' Urfé, L' As tr ée, é precedida de um pref ácio ambicioso que
dos mú sculos e do s nervos que formam os risos nas faces são os já fo i comparado, tan to pela sua ousadia qu anto pela sua influ ên -
mesm os que servem para nos faze r cho ra r e pôr nessa tri ste po stu ra cia, ao Prefáci o a Cromwell de Victor Hu go . O se u títul o comp le to é
em qu e testemunhamos uma dor profunda. E depois, no fundo , aque- Prefácio em forma d e discurso po éti co . N el e se afirma , pela pri-
les qu e querem qu e não se altere e não se mude nada nas invenções meira vez , a necessidade de respeitar as três unidades , de acç ão , de
dos antigos, d iscutem aq ui apenas so bre a palavra, e não sobre a tempo e de lugar, caso se qu eira agradar ao no vo público da época.
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1. Os géneros do teatro o começo da tragédia é sempre alegre, e o fim sempre triste; tudo ao
inverso da comédia, cujo começo é voluntariamente bastante triste,
o poema dramático divide-se normalmente em tragédia e co-
na medida em que é ambíguo, mas o seu fim é infalivelmente belo
média. A tragédia não é outra coisa senão a representação de uma
e alegre: uma causa um desgostar da vida por causa dos infortúnios
aventura heróica na miséria. (... ) A sua etimologia é tirada da pala-
de que está cheia; e a outra persuade-nos a amá-la pelas razões con-
vra grega «tragos» e «aédia», em que uma significa bode, e a outra
canto, porque o bode era o prémio que antigamente se dava àqueles trárias. (... )
A tragédia e a comédia diferem entre si não apenas na natureza
que cantavam a tragédia. (...) A comédia é a representação de uma
fortuna privada sem nenhum perigo de vida. Vem da palavra «co- do seu tema, mas ainda na forma e na disposição das suas partes.

mos», que quer dizer burgos ou aldeias, porque a juventude da Mas na medida em que quero ser sucinto, e que a minha pastoral

Ática tinha por costume representá-la no campo. Da definição da está mais disposta para o córnico, embora seja do género tragicó-
tragédia e da comédia pode-se facilmente retirar a da tragicomédia, mico, bastará que faça a divisão das partes da comédia, sem me de-
que não é mais do que uma composição feita de uma e de outra. De bruçar sobre as da tragédia que estão já amplamente deduzidas no
maneira que a tragédia é como o espelho da fragilidade das coisas filósofo e comentador de Séneca I.
humanas, visto que esses mesmos reis e esses mesmos príncipes As partes principais da comédia são quatro: prólogo, prótese,
que aí se vêem no princípio tão gloriosos e triunfantes, servem, no epítase e catástrofe. O prólogo é uma espécie de prefácio no qual é
fim, de provas lastimáveis das insolências da fortuna, A comédia, permitido, além do argumento do assunto, dizer qualquer coisa a fa-
ao contrário, é uma certa representação que nos figura a vida de vor do poeta, da própria fábula, ou do autor.
pessoas de condição medíocre, e que mostra aos pais e aos filhos de Prótese é o primeiro acto da fábula, no qual uma parte do argu-
família a maneira de bem viver reciprocamente entre si, e o começo mento é explicada, e a outra não se diz, a fim de reter a atenção dos
normalmente não deve ser alegre como, pelo contrário, o fim nunca auditores.
deve ser triste. O tema da tragédia deve ser um assunto conhecido, e A epítase é a parte mais turbulenta da fábula, em que se vê
por consequência fundado na história, embora por vezes se possa aparecer todas as dificuldades e as intrigas que se desenlaçam no
misturar aí qualquer coisa de fabuloso. O da comédia deve ser CC1m- fim, e que propriamente se pode chamar o nó da peça.
posto de uma matéria toda inventada, mas porém verosími1. A tra- A catástrofe é aquela que muda todas as coisas em alegria, e
gédia descreve em estilo elevado as acções e as paixões das pessoas que presta o esclarecimento de todos os acidentes que aconteceram
elevadas, enquanto a comédia não fala senão dos medíocres em es- em cena. Esta divisão foi feita seguindo a ordem das comédias de
tilo simples e medíocre. A tragédia no seu começo é gloriosa, e Terêncio, que o Tasso e Guarini observaram pontualmente. Resta
mostra a magnificência dos grandes; no seu fim é lastimável, como agora saber quais são as condições essenciais da comédia.
aquele que mostra reis e príncipes reduzidos ao desespero. A comé-
dia na sua entrada é irresoluta, turbulenta no meio, porque é aí que
I o filósofo é Aristóteles. O comentado r de Séneca é sem dúvida um erudito do princí-
se dão todos os enganos e intrigas, e alegre no fim. De maneira que pio do século XVII. (N.F.)
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Parece-me ter já dito que o tema da comédia deve ser inven- último acto, que não devem nunca ficar aquém, nem ir além do
tado, ao contrário do da tragédia, que deve ter um fundamento ver- número de cinco, possam chegar ao seu fim nesse espaço de tempo.
dadeiro e conhecido, como a Antígona e a Medeia, embora seja per- Esta regra, que se pode considerar uma das leis fundamentais
mitido misturar aí o fabuloso, tal como a fuga dessa desesperada do teatro, foi sempre religiosamente respeitada entre os Gregos e os
após o incêndio do palácio de Creonte, e o regresso de Teseu depois Latinos. E surpreende-me que os nossos escritores dramáticos, que
da sua viagem aos Infernos. hoje são uma multidão tão grande, uns não tenham ainda tomado
De resto, o tema da comédia deve ser uma pura invenção, e não providências para a guardar, e que os outros não tenham discrição
uma fábula; porque a fábula é uma invenção de coisas que não exis- suficiente para ao menos se impedirem de a criticar, se não são sufi-
tem e não podem existir, como as Metamorfoses de Ovídio. cientemente razoáveis para a seguir na continuação dos primeiros
homens da antiguidade, que no geral não se submeteram sem mo-
tivo. Pela minha parte guardo esse respeito aos Antigos, de não me
1. As três unidades
opor nunca nem à sua opinião nem aos seus usos, se a tal não sou
A segunda condição é a unidade de acção, quer dizer que deve obrigado por um motivo claro e pertinente. É de crer, por todo o
haver uma acção mestra e principal com a qual todas as outras se re- tipo de aparências, que estabeleceram esta regra a favor da imagina-
lacionam, como as linhas da circunferência relativamente ao centro. ção do espectador, que experimenta incomparavelmente mais prazer
É verdade que se lhe pode juntar qualquer coisa na forma do episó- (e a experiência demonstra-o) na representação de um assunto dis-
posto desta maneira, do que de um outro que assim não o esteja;
dio da tragédia, a fim de remediar à nudez da peça, porém apenas
tanto mais que, sem qualquer dificuldade ou distracção, ele vê aqui
desde que isso não prejudique de alguma maneira a unidade da ac-
as coisas como se elas acontecessem verdadeiramente diante dele, e
ção principal, à qual deverá ser subordinada; e neste caso o tema da
no caso em que o comprimento do tempo, que por vezes é de alguns
comédia não é simples, mas composto, como se pode ver na maio-
dez ou doze anos, a necessidade exige que a imaginação seja des-
ria das de Terêncio.
viada do prazer deste espectáculo que considerava como sendo pre-
A terceira e mais rigorosa é a ordem do tempo, que os primeiros
sente, ela trabalhará para compreender como é que o mesmo actor
trágicos reduziam ao curso de um dia e os outros, como Sófocles na
que antes falava em Roma na última cena do primeiro acto, na pri-
sua Antígona, e Terêncio no seu Heautontimorúmeno I de Menandro,
meira do segundo se encontra na cidade de Atenas, ou se quiserem
a estenderam até ao dia seguinte; porque é sempre a mesma regra,
no grande Cairo; é impossível que a imaginação não arrefeça, e que
tanto para as comédias como para as tragédias. Parece então que é uma mudança de cena tão brusca não a surpreenda, e não a aborreça
necessário que a peça esteja dentro das regras, no mínimo das vinte extremamente, se for preciso que corra sempre atrás do seu tema de
e quatro horas, de modo a que todas as acções do primeiro até ao província em província, e que quase num momento com ele passe os
montes e atravesse os mares. "Bom sim", dirá alguém acreditando
I Heautontimorúmeno, em grego no original francês, refere-se a uma comédia de
Menandro (reescrita por Terêncio), O Verdugo de si próprio, representada em Ahril de 163
apresentar um bom argumento, o que fará então a imaginação? e
a.c., no Festival de Cibele. (N.T.) que prazer poderá ela sentir na leitura elas histórias e dos romances
92
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em que a cronologia é tão diferente? Ou porque é que ela não pode tempo tão curto. É a razão do Hotel de Bourgogne, que avançam al-
seguir o seu tema por todo o lado, uma vez que não pode ser travada guns dos nossos poetas que a ele não se querem sujeitar, tanto mais
nem pelas montanhas nem pelos mares? que, dizem eles, que em cem temas de teatro não se encontra um
A isto respondo que a história e a comédia, no que respeita à possível com esta circunstância, e que se perderia mais tempo à sua
imaginação, não são a mesma coisa: a diferença está neste ponto, é procura do que a tratá-lo e pô-lo em verso. Mas que importa o tempo
'que a história trata-se de uma simples narração de coisas que acon- e a dificuldade desde que o encontro se possa fazer? Trata-se aqui
teceram no passado, feita mais propriamente para o manter da me- do melhor, e não do mais ou menos: em vez de dez e doze poemas
mória, e não para contentamento da imaginação; enquanto a comé- desregrados que nós faríamos, contentemo-nos em conduzir um só à
dia é uma representação activa e patética de coisas como se elas perfeição, e recordemo-nos que o Tasso, o Guarini, o Guidobaldi
estivessem a acontecer realmente naquele momento, e cujo fim adquiriram mais glória para si próprios, embora cada um deles não
principal é o prazer da imaginação. É por tal que na ordem da histó- tenha trazido à luz mais do que uma pastoral, do que qualquer que
ria exegemática a minha imaginação não considerará estranhas as entre nós tenha composto mais de duzentos poemas.
longas viagens, dado que suponho que tenham sido feitas durante os
(Mairet, La Silvanirc 011 la Morte vive, 1631. Prefácio. Veja-se também Théátre du xvtt » :
tempos; mas no caso da dramática é seguro que, por mais força que "ihlc,lolllo 1, éd. J. Seherer, Paris, Gallimard, 1975.)
tenha, nunca será bem imaginado que um actor tenha passado de
um pólo ao outro num quarto de hora; e que mesmo que o pudesse
fazer, supondo o mesmo comprimento de tempo que supõe para a
história (o que, apesar de tudo, não se permite na comédia, pelo
16 ~ HEDELlN D'AUBIGNAC: A PRÁTICA DO TEATRO (1657)
motivo que já referi) é impossível que uma tal suposição não lhe
retire muito do seu prazer, que consiste principalmente na verosirni- François Hédelin, Abade dAubignac (1604-1676), prepara a
lhança. Ora uma vez que estamos de acordo que a intenção do có- sua Prática do Teatro por instigação do Cardeal de Richelieu e da
mico é contentar a imaginação do espectador, representando-lhe as Academia, muito antes de a publicar. Bom letrado, era sobretudo bom
coisas como elas são, ou como deveriam ser, e que para esse efeito conhecedor do teatro do seu tempo, e queria escrever para os seus
ele socorre-se da voz, dos gestos. das roupas, dos engenhos e deco- contemporâneos '. É por isso, (' mais ainda a partir da observação
rações de teatro, parece-me que os Antigos tiveram uma razão justa
para restringir os seus temas ao rigor desta regra, como a mais ade-
I Eis C0l110 () Abade d ' Aubignuc define a sua própria intenção: «Ju foi muito tratada
quada à verosimilhança das coisas, e que melhor se adequa à nossa ao longo dos tempos a excelência do poclna dranuitico. a sua origem. o xcu progresso, a sua
definição. as sua-, espécies, a unidade de acção, a medida do tempo, a beleza dos aconteci-
imaginação, que verdadeiramente pode bem seguir o seu tema por mentos, os sentimentos. os costumes, a linguagclll, C' mil outras matérias semelhantes, e ape-
todo o sítio mas que, por outro lado, não tem prazer em fazê-lo. nas no geral o que eu chamo de Teoria do Teatro. Mu-, para as ohscrvaçõcs que era preciso
fazer sobre estas primeiras máximas. COlHO a habilidade em preparar os incidentes, L' de reu-
É preciso então confessar que esta regra é de muito bom gosto, e nir os tempos e os lugares, a continuidade da acção. a ligação das cenas, os intervalos dos
muito difícil de seguir no conjunto, por causa da esterilidade dos acros. c cem outras particularidades. não nos resta nenhuma Memória da Antiguidade. e os
Modernos falaram tão pouco disso, que se pode dizer que não escreveram praticamente nada.
belos efeitos que raramente se podem encontrar num espaço de Eis o 4"e chamo de Prática do Teatro.
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da autor idade , que ele formulará um sis te ma de conj unto qua se m a is nobres de uma h istó ria . Es fo rça r-se -á por colocar tod as as per-
completo (apesar de algumas recuperações clássicas) da dramatur- so nage ns no estado m ai s agradável qu e possam ex pe rime nta r; ut i-
gia clássica fran cesa. lizará as mais ilus tres fig uras da ret óri ca , e as m ai s for tes pai xõ es
da moral ; nada esconderá de tud o o qu e se d eve sa be r, e qu e pode
ag rada r; e nada mo st rará de tud o o qu e se deve ign orar, e qu e pode
1. A adaptação ao público
c hocar. Enfim, ele procurar á usar todos os mei os para co nquistar a es-
Oi ço falar dos es pectadores po r ca usa do poet a e apenas e m re- tim a do espec tador, o que nesse moment o ocupa todo o se u espírito.
lação a ele, para lhe d ar a conhecer como os deve ter no pe nsa- M as qu ando considera n a sua tr agédia a h istória ve rdadeira, o u
mento, quand o trabalh a par a o teatro . q ue supõe se r ve rdadeira, tem ape nas c uidado e m respeitar a verosi-
Tom o aqui por co m paração um qu adro , que reso lvi usa r com milh an ça das coisas, e de com por todas as acções, tod os os d iscur-
freq u ênc ia neste tratad o , e que digo poder se r consi derado de duas sos e todos os aconteci mentos como se tive ssem verdade iramen te
m an eiras. A primeira é como um a pintu ra , quer di ze r, e nq uan to oco rri d o . Estabele ce o aco rdo entre os pen samento s e as perso-
obra da mão do pintor onde não existem senão co res, e não co is as; nagens, os tempos e os lu gar es, os seguimento s com os princípios.
so m bras e não corpos; di as artific ia is, falsas elevações, afasta men- En fim , liga-se de tal m od o à natureza das coisas, q ue não quer con-
tos e m per spectiva, encurtament os ilusór io s, e simples aparê ncias tradi zer, nem o es ta do, ne m a orde m , nem os efe itos , nem as conve-
de tudo o qu e não é. A seg unda, e nq uan to contém uma coi sa p in- niênc ias ; numa p al av ra , n ão tem outro gu ia se não a verosim ilhança ,
tada, seja verda de ira o u supostamente tal , d a qu al os loca is estão e rej eita tudo o q ue n ã o possua as suas carac terísticas. Faz tud o
certos, as qua lida des naturais, as acções são indu bitávei s, e tod as as como se os es pectadores não e xistisse m , que r d izer, todas as perso -
circunstâncias es tão de acordo co m a ordem e a razão. nagens devem agir e fa lar como se fossem verdade irame nte Rei, e
Passa-se o me sm o com o po ema d ramát ico . Pode-se ao p ri - não a pe nas co mo se ndo Be lIerose ou Mondory I, co mo se es tives -
mei ro olhar ter aí e m conside ração o es pectác ulo, a si m ple s re pre- se m no paláci o de Horáci o e m Roma, e não no H ot el de Bourgogne
se ntação, onde a art e não dá se não as im agens das coisas que não e m Par is; e co mo se ningu ém os visse nem o uvi sse se não aque les
ex istem. (...) q ue estão no teat ro agindo e como qu e no local represent ad o . E por
es ta regra eles dizem mu itas vezes qu e es tão a sós, q ue ningu ém os vê,
Ou então obse rva-se nestes poemas a hi st ória verdadeira . o u
nem os ouve , e qu e nã o devem temer se r int e rrom pidos nos se us e n-
qu e se supõe ver da dei ra, e da qua l tod as as aventu ras aconteceram
co n tro s, perturbad os nas suas so lidões, descobertos nas suas acções,
verdadeiramente co m ordem , tem po e lugar, e seg undo as in trigas
e impedi dos nos se us objec tivos; ai nda que tud o isso se faça e d iga
q ue nos apa rece m. (...)
na presença de du as m il pessoas. porque aq u i seg ue -se a nature za da
O poeta, considerando na sua Tragédia o e sp ect ác ulo o u a re-
acção como verdadei ra , e m que os espect ad o re s el a re pres en tação
presentaçã o (00')' faz tudo o que a sua arte e o seu espírit o lhe po de m
fornecer para torná-la adm irável aos espec tadores: porqu e e le n ão
1 Bellerose, Mondo ry e Floridor , q ue figuram no texto 3 . sã o os grandes acto res trági-
trab alh a se não para lh es agra dar. Conserva rá todos os inc id ente s cos da co m panhia do Hotel de Bourgogn e . (NF. )
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não estão lá. O que parece permitir que se faça a observação de que Numa palavra, os espect adore s não sã o de modo nenhum tidos
tudo o que parece afectado a favor do espectador, é vicioso. em consideração pel o poeta quando o lha a tragédia a partir d a ver-
Sei bem que o poeta só trabalha so bre a acção como verda- dade da acção, mas apenas na representação , e se de acordo com
deira, apenas na medida em que ela pode se r representada; donde se es ta má xima observássemos a maioria dos poem as do no sso tempo,
poderia concluir que existe uma qualquer mistura destas duas consi - tomaríamos conhecimento qu e pe cam contra a verosimilhança nas
derações, mas eis como deverá desembaraçá-Ias. Ele e xam ina tud o co isas que es t im amos como m ai s .e xc el entes; porque os autores,
o qu e quer e deve fazer co nhece r ao s es pec tado res pel o s ouvidos e tendo qu e rid o ex pô -Ias aos es pec ta d ores, não proc uraram d ar-lh es
pelos olhos , e se resolve fazer-lho s recitar, ou fazer-lho s ve r; porque co r para dar a idei a de qu e tinham sido fe itas. Assim, na ve rdade da
tem qu e os ter em co nta, ao considerar a acç ão como representada. história um homem faz um a narrativa necessári a, iss o é bom , por-
mas não deve fazer essas narrativas, nem es tes es pec tác ulos apenas qu e o esp ect ad or não o pod e ignora r; mas es te homem não podia sa -
porque os es pe ctadores devem tomar conheci men to d el e s. Então ber o qu e conta . Não é ent ão verosím il que tenha feit o essa narra-
co mo? É prec iso qu e ele procure na ac ção cons ide rada como ve rda - tiva. U m am ante a pa rece no teat ro so b uma v io le n ta paix ão , é a
deira, um m ot ivo e um a razã o aparen te, que se chama cor, para fa- favor dos espectadores; mas ele n ão pod e fazer ess e lamento nes se
zer com qu e es tas narrativas e estes espectáculos sej am verosimil - lugar representado pelo teatro . A razão qu er que ele estej a num ou -
mente conseg uidos dessa manei ra . E arri sco-me a dizer qu e a maior tro lugar com p letamente di fe rente e bem afasta do . É preci so e ntão
arte do teatro co nsiste em encon trar tod as essas co res. É preci so qu e procurar uma cor qu e o obrig ue a lam ent ar-se no lu ga r da ce na. de
uma pe rs onagem venha fa lar do teat ro porqu e é prec iso qu e o es - outro modo é ir contra a veros irni lhança; ig ualmente se po de di zer
pectador conheça as suas intenções e as suas pai xõe s. É preciso fa-
de mil o utras aventuras qu e a parecem nos nos so s teatro s. e m que to-
ze r um a narração das coisas pa ssadas, porqu e o espectado r, igno -
dos os di as se metem imagens do que nunca fo i. do que não pode
rando-as, n ão co mpree nde ria nad a do resto. É preci so faze r ve r um
se r, do qu e . ve rosirnilme nte, não de ve se r.
es pec tác ulo porque ele tocará os assiste ntes co m dor o u ad m iração.
É trabalhar a acção enquanto repre sentada, e isto é dever do poeta;
é me smo a s ua primeira inte nção. Ma s e le deve esco ndê- la so b 2 . A vcrosimilhau ça
q ualq uer cor qu e dep en da da acção como ve rda de ira . De tul ma-
Eis aq u i o funda me nto de todas as peças de teat ro , todos fa lam
nei ra qu e a per son agem qu e de ve fal ar virá ao pal co . porqu e pro -
del a, e pouco s a co m pree nde m; eis o caracter ge ral ao qu al é pre-
cura alguém , ou par a des empenh ar uma q ualque r tar efa. A nar ração
c iso rec onhecer tud o o qu e aí se pa ssa; numa palavra. a verosimi-
das co isas passadas se rá feit a. po rque serve para tomar co nse lho re-
Ihan ça é. se é preci so d izê- lo assi m , a essênc ia do poem a dramáti co .
lativam ente às prese ntes, ou para obte r um a aj uda necessária . Faz -se
se m a qu al não se pode fazer nad a, nem dizer nada de razoá vel em
ve r Um es pec t áculo, porque de ve e xc itar alguém à vinga nça . e tal é
trabalhar a acçã o enquanto verd ade ira sem ter e m ment e os es pe cta- ce na.
dores . porque veros imilme nte tudo isto poderia ac o ntecer ass im se É uma m á xima ge ral qu e o verdade iro não é o assunto do tea -
as co isas fossem tom adas por s i mesmas. (...) tro , porque há muitas co isas ve rídicas qu e não devem a í ser v istas. e
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muitas que não podem ser aí representadas : é porque Sinésio I di sse, só a í são recebidas enquanto tiverem verosimilhança; de modo que ,
e com razão, que a po esia c as outras artes que são fundadas apenas para as fazer aí entrar, é preciso retirar ou mudar todas as c ircuns-
na imitação, não se guem a verdade, mas a opinião e o sentimento tânci as que não po ssuam esta característica, e imprimi-la a tudo o
vulgares do s homens. que se queira aí representar.
É verdade que Nero mandou es trang u lar a mãe, e abrir-lhe o Não me estenderei aqui sobre a verosimilhança ordinária e ex-
ventre para ver em que sítio tinha sido transportado nove meses an- traordinária, que todos os mestres trataram amplamente, e ninguém
tes de na scer; mas esta barbaridade, e m bo ra agradável àquele que a ignora que as coisa s naturalmente impossíveis se tornam possíveis e
executou, seria não apenas horrível à q ue les que a vissem, mas veros ímeis através da potênci a divina ou da magia; e qu e a verosi-
mesmo ina creditável, porque era algo que nunca deveria ter ac onte - milhança do teatro não obriga a representar so m e nte as co isas que
cido; e entre todas as hi stórias das quai s o poeta queira retirar o se u acontecem segundo o curso da vida comum dos homens; mas que
assunto , não há uma, o u pelo menos não creio que haja, em que ela e nvo lva em si o maravilhoso, que torna os ac o ntec ime ntos tanto
todas as circunstânc ias sejam adequadas para o teatro, embora ver-
mai s nobres quant o são imprevi sto s, embora ainda verosím eis . O que
dadeiras, e que possam aí entrar, sem ser alterada a ordem dos acon-
notei porém nesta matéria, é que poucas pessoas compreenderam
tecimentos, o tempo, os lugares, as pessoas, e muitas outras parti-
até o nde vai esta verosimilhança: porque toda a ge nte acreditou que
cularidades.
ela deveria ser re sp eitada na acçã o principal de um poema, e no s
O possível também não será assim o seu assunto, porque há
incidentes qu e se e nc o ntra m se ns íve is ao s m ai s g ro sseiros; m as não
muitas coisas que se podem fazer, o u por encontro de cau sas natu-
foram mai s adiante . Ora, é pr e ci so saber qu e as mínima s ac ç ões
rais, ou pelas aventuras da moral , qu e, porém, se riam ridícul as e
representadas no teatro têm qu e se r verosímei s , ou então são total-
pouco crívei s se fo ssem representadas. É possível que um homem
mente defeituosas, e não dev em es tar aí de todo. Não há nenhuma
morra subitamente, e isso acontece muitas vezes ; mas seria troçado
ac çã o humana tão sim p les qu e não seja acompanhada das várias cir-
por toda a gente aquel e que, para terminar uma peça de teatro. fi-
cunst âncias qu e a co m põe m , co mo são o tempo, o lugar, a pessoa, a
zesse morrer um rival de apoplexia, como de uma doença natural e
dignidade, as int en çõ es, os m eios e a razão de agir. E dad o que o
comum, ou então ser-lhe-iam necessárias muitas preparações e nge-
teatro deve ser a s ua imagem perfeita. é preci so que a represente
nhosas. É po ssível qu e um homem morra com um raio, ma s se ria
toda inte ira, e qu e a ve ro s im ilha nç a aí seja o bserva da em todas as
uma m á inven ção para o poeta de sfa zer-se as sim de um amante qu e
s uas part es.
tivesse usado para fa zer a intriga de um a comédia.
Então não há senão o verosimil que possa razoavelmente fun-
dar, s ustentar e terminar um po ema dramático : isto não qu er di zer 3 . A repre sentação do lugar
que as coi sas verdadeiras e possívei s sejam banidas do teatro; ma s
Mas dado qu e a corrupção e a ignorân cia do último século
trouxeram a desordem ao teatro, a ponto de a í fazerem aparecer per-
I Teór ico do início do século. (N F .)
sonagens em div e rsa s partes do mundo, e qu e para passar de França
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à Dinamarca não é preciso mais do que três toques de rabeca, ou o de um mesmo actor para fazer duas personagens, ele é mascarado de
correr de uma cortina; não seria despropositado dar aqui a razão de tal maneira que é tornado completamente irrcconhecível; muda de
ser desta prática dos Antigos, e tal para fazer honra a alguns moder- roupa, de cabeleira e de cara, e caso se pudesse ainda mudar a sua
nos que sabiamente os imitaram. voz, tal Iar-se-ia; esperando que se encontre não sei o quê contra a ve-
Para o compreender, é preciso recorrer ao nosso princípio ordi- rosimilhança, que um mesmo homem seja tanto a imagem de um, e
nário. Que o teatro não é mais do que uma representação, que não é logo de seguida a imagem de outro; e aqueles que não têm o espírito
preciso imaginar-se que aí exista tudo o que aí vemos, mas sim as assim tão penetrante confundem habitualmente a inteligência do as-
próprias coisas cujas imagens aí vemos. Floridor é então menos sunto, porque a voz faz reconhecer o actor, algumas vezes chegamos
Floridor que aquele Horácio cuja personagem ele representa, as a imaginar que é a primeira personagem mascarada por ordem e ne-
suas roupas representam as desse romano, ele fala como ele, faz as cessidade de qualquer aventura, e não pela falta de actores; de ma-
suas acções, experimenta todos os sentimentos; mas como este he- neira que atribuíram essa mudança ao homem representado e não
rói, agindo e falando assim da maneira como Floridor o representa, àquele que o representa. Ora, não é menos contrário à verosimilhança
estava nalgum lugar, é preciso, sem dúvida, que o lugar em que apa- que um mesmo espaço e um mesmo dia, que não recebem qualquer
rece Floridor represente aquele em que então estava Horácio, de ou- mudança, representem ao mesmo tempo dois lugares diferentes, por
tro modo a representação ficaria imperfeita quanto a essa circuns- exemplo a França e a Dinamarca, a Galeria do Palais e as Tuileries.
tância. Não acontece assim com o poema épico, pois consistindo E seguramente para o fazer com alguma espécie de aparência seria
apenas em narrativas, das quais retirou o seu nome, e não de acções, preciso pelo menos ter um desses teatros que se movem todos por in-
o poeta não fica obrigado a marcar os seus lugares, e não o faz, a teiro, visto que por esta forma o local mudaria totalmente da mesma
não ser que tal seja necessário para a inteligência do que ele recita; maneira que as pessoas agindo, e ainda seria necessário que o assunto
mas o dramático, consistindo apenas em acções e de modo nenhum fornecesse uma razão verosímil para esta mudança, e, como tal não
em narrativas, e o local sendo uma dependência necessária e natu- pode acontecer senão pela potência dos deuses que mudam como lhes
ralmente junta à acção, é absolutamente necessário que o local em apetece o estado e a face da natureza, duvido que se possa fazer uma
que aparece um actor seja a imagem daquele em que então agia a peça razoável com recurso a dez ou doze milagres.
personagem que ele representa. Que se mantenha. então, como constante, que o local onde o
Esta verdade bem entendida faz-nos saber que o local não pode primeiro actor que faz a abertura do teatro é suposto estar, deve ser
mudar na continuação do poema, dado que não muda na continua- o mesmo até ao fim da peça, e que este lugar, não podendo sofrer
ção da representação, pois uma só imagem ficando no mesmo es- nenhuma mudança na sua natureza, não pode admitir nenhuma na
tado não pode representar duas coisas diferentes; um mesmo his- sua representação; e, por conscquência, que todos os outros aclares
trião ou actor não pode representar, ao mesmo tempo, dois homens não possam razoavelmente parecer estar noutro lado.
diferentes, nem sem qualquer mudança fazer Augusto e Marco An- Mas é preciso não esquecer que este lugar que deve ser sempre
tónio um a seguir ao outro; e quando a necessidade obriga a servir-se um, e nunca mudar, entende-se ser a área, solo ou palco do teatro,
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que os anti gos ch amavam de proscénio ou frent e da ce na, qu er d i- 4 . O tempo teatral


zer, aquele espaço em qu e os ac to res vêm aparece r, andam e discor-
E ntão, para di scorrer c o m inteli gênci a , é p re c iso co ns iderar
rem; porque como isso representa o terreno ou local fech ad o so bre
que o poema dramáti c o tem duas espéc ies de du ração, tendo cada
o qual as personagens representadas estavam e andavam , e qu e a
uma o se u tempo próp rio e ad equado.
terra nã o se gira como um torniquete; desde qu e se es colheu um ter-
A primeira é a ve rdade ira duração d a repre sentação; porque
reno para começar qualquer acç ão pela representaç ão , é pr e ci s o
e m bo ra o poema, co mo j á di ssemos várias ve zes, n ão seja em si , a
supô -lo im óvel para todo o rest o do poema, co m o de facto assim é .
tom á-lo preci samente , m ai s do qu e uma imagem , e partindo de qu e
O m esmo não acontece co m o fundo e as partes lat erais do teatro;
e le não esteja a cons ide ra r normalmente mai s d o qu e um ser repre-
porque como eles nã o figuram se não as coisas qu e na verdade cer-
se n ta tivo, devemo s, no e n ta nto , record armo-no s que há real idade
ca m as per sonagens agentes, c qu e podem receber alguma mud ança,
m e smo nas coisa s repre sentadas. Realmente os ac to res são vistos e
podem também mudar durante a representação; e é nisso qu e con -
o u v id o s , os verso s são realmente pronunciado s , e se nte-se real-
sis te m as mudanças de ce na, e dessas decorações c uja variedade
m ente o prazer e a dor assi stindo a essas repre sentações, gasta-se aí
se m pre alegra o povo, e mesm o os hábeis, quando são bem feitas.
um tempo verdadeiro qu e mantém o espírito dos a ud itores atentos
A ssim nós vimos sobre um te atro uma fachada de um templo or-
no decurso de algun s m omentos, quer dizer, de sd e qu e o teatro se
nada co m uma bela arquitectura, e depois quando se abriu, desco-
a bre , até que se fe ch a . O ra es te tempo é o qu e e u cha m o a Duração
bri a- se , seg uindo a ordem de persp ectiva da s c olunas, um alt ar e
Ve rd adeira da Represent ação .
tod o o resto dos ornamentos mar avilhosamente represent ados; de tal
Desta duração a m edi d a não pode ser out ra se não o tempo ne -
m an eira qu e o local nunca muda va, e no e n ta nto a prese ntava uma
cessá rio para consum ir a paci ên cia razoá vel do s espectado res ; por-
bel a decoração . Ma s não se deve imag inar que o ca pric ho do poet a
que se ndo este poem a fe ito para dar prazer, é pr e c iso qu e não dure
seja mestre absoluto destas belezas, se ele não encontra as co res no
tanto qu e por fim a bo rreça e c a nse o esp írito: também é pre ci so qu e
se u ass unto : como por exemplo, podia fin gir-se um pal ác io à be ira- nã o sej a tão curto qu e os espectadores sa ia m com a se nsação de não
-m ar abando nado a pobres ge ntes do cam po; um príncipe chegan do te rem sido sufic iente mente di vertidos. N ão é qu e sej a preci so tomar
a essa costa por naufrágio, que o fizesse o rn a me ntar com ricas t.ipe - esta m edida a parti r de a lg uns espíritos inq u ie tos qu e se fart am con-
ça r ius, lustres, braços dourados , quadros e o utro s m óvei s prec ioso s ; tinuamente de todas as coisas , e qu e só bu sc am a mudan ça; nem
depoi s seria incendiado por qu alquer aventura, faze ndo -o cai r no d aq ue les ainda qu e . não sei por qu e estupidez natural nun ca se abor-
a brasame nto, o ma r apareceria po r detrás, so bre o qual se pod eria rece m , estão semp re sa tis fe ito s co m o estado p re sente em que se
ai nda representar um co m bate de navi o s. De tal maneira q ue , co m e ncontram; mas é pr ec iso j ulga r estas coisa s pel o se ntimento comum
c inco mudanças de teatro, a unidad e do lugar seria ainda enge nho- d o s homens, e como d isse , por uma paciên cia ra zoável. No que a
sa me nte mantida. ex per iê nc ia deve se r a m ai s fiel mestra, porque é e la qu e nos ensina
qu e as comédias não podem durar mais de três horas se m nos cansar,
nem muito menos se m n os parecerem demasiado c ur tas . (... )
104 105

A outra duração do poema dramático é a da acção representada chamam-se espectadores ou observadores e não auditores ; e n fim o
e nqua nto co ns id e rada co mo verdadeira, e que contém todo e sse local qu e se rve para as suas repre sentações, chama-se teatro , e não
tempo qu e se ria necessário para fazer as co isas expostas ao conheci- auditór io , qu er d izer, um local onde se olha o que se fa z, e não onde
mento dos espec tadores , de sde qu e o primeiro aetor começa por se esc uta o que se diz. Também é verdade qu e os discurso s que aí se
aparecer, até que o últim o cesse de agir. Ora esta duração é a princi- faz em devem ser como as acç õe s daqueles que aí aparecem ; porque
pal, não apenas porque está naturalmente ligada ao fundo e essênci a aí, fa lar, é agir, o que se diz no momento não sendo narrativas in-
do poema, m as também porqu e depende toda do es pí rito do po et a; é vent adas pelo poet a para dar mostras da sua eloquênc ia . E de facto ,
da sua invenção e explica- se pela boc a dos se us act o res, seg undo a a narração da m o rte de Hip ólito e m Séneca é a acção de um homem
sua indústri a e ncontra ou dá as aberturas: e foi e la qu e na no ssa assus ta d o por um monstro qu e e le v iu sair do mar, e d a fune sta
época tem s ido o objecto de tantas e diferentes opiniões. aventura des se príncipe. Nas lam entaçõe s de Emília do Senhor Cor-
Não pod emos dizer se estes trê s ex ce lentes trág icos, Ésqu ilo , ne ille , a acç ão é a de uma rap ari ga c uj o e sp írito , ag itado pel o desejo
Eurípides e Sófocles que Aristót el es refer e tão assiduamente , e qu e de vin gança e por um grande amor, se e xc ita em irre soluções e mo-
dão tão pou cas horas à duração ela acção teatral nos seus poemas, vime nto s tão di versos: e quando Ximena fala ao seu rei, é a acção
teriam e ncontrado a regra em qualquer autor ele arte poética ant e- de uma rapariga aflita que pede justiça; numa palavra, o s discursos
rior; ou se, pel o conheciment o que tinham ela natureza d este po em a, para o teatro nã o sã o mais que os ac e ssó rios da acção, embora toda
tinham por s i próprios reconh ecido qu e razoavelmente não se pod e- a trag éd ia na repre sentação não consista e m mai s do que di scurso s;
ria supo rtar muito mai s: mas é certo qu e o se u exem p lo foi negli- es tá aí todo o trabalho do poet a, aq uilo e m que principalmente usa
genciado pela maioria dos poetas qu e os seguiram de perto, co mo o as fo rças do se u es pírito; e se el e faz aparec er algumas acções no
sabemos por es se filósofo, que c ritic a vá rios do se u tempo porque se u teatro, é para ter a oportunidade de fa zer um qualquer di scurso
dão aos se us poemas uma duraç ão demasiado lon ga , o qu e pare ce agrad ável ; tud o o qu e ele inventa , é co m a fin alidade de o fa zer di-
tê-lo obrigado a escrever a regra, ou antes a renová-l a, so bre o mo- zer ; ele supõe muitas coi sa s a fim de que el as sirvam de matéria
delo daquel es antigos, di zendo, que «a tragédia dev e ser encerrad a para agra dáveis narrações; procura todos os meios para fazer falar o
num períod o de sol ». am o r, o ódio, a d or, a alegria e o resto das pai xões humanas; e até
mesm o , é seguro, qu e faz ap arecer muito pou ca s acções so bre o se u
teat ro ; elas são qu ase tod as s upostas, pelo men os as mai s im po rtan-
5 Acçâo e discurso
o

tes, fora do lu g ar da cena; e se re serva qu alquer cois a dela para


A co ns ide rar a tragédia na s ua natureza e com rigor. segundo o most rar, não é se não para aprove ita r a oportunidade de fa zer falar o s
géne ro de poesi a co nforme o qual e la é cons tituída, pode di ze r-se se us ac to re s. Enfim, caso se qu eira examinar bem est a espéc ie de
que está de tal modo ligada à acç ão qu e não parec e que o s di scursos poema, de scobre- se que as acções não es tão se não na im aginação
sej am uma das suas pertenças. Este poema chama-se drama , qu er do es pec tad o r, a quem o poeta , por habilidade, as faz co n ce be r
dizer, acção e não narrativa; os qu e o represent am chamam-se como visíveis, e no entanto não há mais nada de sensível se não o
actor cs, e não oradores; es tes, me smo qu e se en contrem present es, di scurso; tal justifica-se bastante claramente pela leitu ra de uma
106 107

única tra gédi a; porque aí não se vê fazer nenhuma acç ão , dando-no s Di go ent ão, e m p rim eiro lugar, qu e essa liberdade qu e e le nos
o di scurso apenas todo o conhecimento e divertimento da peça, d a deixe a embelezar as ac çõe s hi stóricas com inv enções verosímeis
m e sma maneira não iríamos ao teatro em tão grandes ajuntamentos, não implica nenhuma proibição de no s afastarmo s do ve ro símil
se a í e nco ntrássem os a pe nas actores mudos . quando ne cessário. É um privilé gio que nos dá, e não um a servidã o
que no s impõe : tal fica claro pel as suas próprias palavras. Se pode-
(A bade d ' Aubign ac, La Prati que d u Th éâtrc, 1657. I : livr o I, capo vi , « Des spec tate u rs e t
co mmenl le po ête do it les consid ércr »; 2: Liv ro 11. cap.ii, « De la Vraysemb lance »; 3: Livr o mos tr atar as co isas de ac o rd o com o ve rosím il o u segund o o nece s-
lI , ca po vi, « De l' Unit é de Lieu»; 4 : Livro Il . cap.vii , «De I' Este ndu ê de l' Act ion Th eatral c , sário , podemos abandonar o verosímil para se gu ir o nece ssário, e
o u du ternp s et de la d ur ée conve na blcs au Poême Dru rna tiquc »; 5: Livre IV, ca p.ii, «D es
Di seours en g én éral», Veja-se também Abade dAu bignac , La Pratique du Th éâtre, Pic rre esta alternativa deixa à nossa e scolha a possibilidade de nos se rvir-
M ar tino (ed.). Pari s, C ha rnpio n. 192 7 .)
mos daquele dos doi s que no s pareça mais a propó sito.
Es ta liberdad e do poeta encontra-se ainda em termos m ais for-
mai s no capítulo vinte e c inco, qu e conté m as de sculpas, ou melhor,
as just ificações que se podem usa r contra a cens ura: é preciso, di z e le,
17 - CORN EILLE: DISC URSOS (16 60 ) qu e ele siga um destes três modos de tratar as coisas , e qu e as repre-
sente ou tal como foram , ou como di zem qu e elas f oram , ou como de-
Dramaturgo , Pier re Corneille (/ 606 -1684 ) foi também teór ico , veriam ter sido: pelo qu al e le dá-lhe a escolha, ou da ve rdade histórica ,
e tal vez o maior teórico do teatro do séc ulo XVI! . A ten s ão dos se us o u da o pi nião co m um so bre a qu al a fábul a se fund a , ou da veros im i-
textos especulativos nasce da sua dupla relação co m uma prát ica lhan ça . Acrescenta a seguir: Se o repreendem por n âo ter escrito as
co ntínua de esc rita p ara a cena, e 1lI1l co nvívio, p or \'ezes irritado, co isas dentro da verdade, que resp onda que as escreveu como deve-
com os críticos eruditos. riam ter sido; se o acusam de nã o terfeito nem uma coisa nem outra ,
Os três Di scursos so bre o teatro trági co , de 1660, acompanha- que se defenda di zendo qu e torn a pública a opini ão comum, como
dos p elos E xam es das p eças que Co rneille publica va ao m esmo naquilo qu e contam dos deuses , em qu e a maior p arte nã o tem nada
tempo , co ns titue rn lima síntese excepc iona lmente ri ca . de verdadeiro. E um pouco m ai s ad iante : Por vezes não é o melhor
qu e elas se tenham passado da maneira qu e ele descrev e: no entanto,
passa ram-se efcc tivamentc dessa maneira , e por conseg uinte e le não
I . Verosimillianca e necessidade
está a cometer e rros. Esta última passagem mostra que em nada so -
o me sm o Ari st ót el e s auto r iza-nos a usá -Ia s da seguinte m a- m o s ob rig ados a afast a r-no s da ve rdade pa ra darmos um a melhor
neira, qu and o no s d iz qu e o poeta n ão é obrigado a tratar as co isas form a às acções da tra géd ia pel os ornam entos da ve ros im ilha n ça, e
como elas se pa ssaram , mas co mo po de riam 0 11 de veriam ter- se mostra-o tão mais fortemente que se mantém co ns ta nte . pe la segunda
p assado , de acordo CO II/ o verosimi l 0 11 o necessári o. E le repet e destas três passa gen s, qu e a opin ião co mum é s ufic ie nte para nos ju s-
muitas vezes estas últimas palavras, e nunca as explica . Tentarei tificar quando não temos a verdade do no sso lado, c que pod eríamos
colmatar essa lacuna o menos mal qu e me sej a possível , e espe ro fazer qualquer co isa melhor do que fazemos, se procurássemos as be-
que me per doem se fo r abusivo . lezas de ssa ve ros im ilha nça. Por aq ui corremos al gum risco de tcr um
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êxito menor, mas não pecamos se não contra o cuidado qu e de vemos em Pompeia , OU em O Mentiroso, dar-lhe -iam um pouco mais do
ter quanto à no ssa glória, e não contra as regras do teatro, que um dia para o comprimento da sua duração. A obediência que
Faço um segundo reparo so bre estes termos de vero similhança devemos às regras da unidade de dia e lugar dispensa-nos então do
e de necessidade, cuja ordem por ve ze s se encontra invertida neste verosímil , embora não no s permita o impossível; ma s nó s n ão caí-
filó sofo, qu e tão depres sa diz seg undo o necessário ou o verosimil, mos se m pre ne ssa nec e ssidade , e A S eguidora , Cina, Teodoro, e
e tão depressa segundo o verosimil ou o necessário: Donde tiro uma Nicom edc s , não tiveram qualquer necessidade de se afastar da ve ro -
conclusão, que há ocasiões em que é preciso preferir o verosímil ao similhança no que respeita ao tempo, como aqueles o utros po emas.
necessário, e outras em que é preciso preferir o necessário ao vero- Esta redu ção da tragédia ao romance é a pedra-de-toque para
s ímil. A razão é que, o qu e se e mp rega e m último lugar nas proposi- de senv en cilhar as acções necessárias da s verosím eis. No te atro esta-
çõ es a lterna tivas , é aí colocado co m o uma solução inferior, com a mo s em ba raç ados pelo local , pel o tempo, e pelas incomodid ades da
qu al nos teremos de co ntentar quando não conseguimos a lcanç ar a representação, que no s impedem de expor à vista muitas persona-
outra, e que devemos fazer um esforço para conseguir o primeiro gens ao me smo tempo , co m med o de qu e un s não fiquem se m acç ão
antes de nos reduzirmos ao segundo, ao qual não temos direito de ou perturbem a dos outros. O romance não tem nenhum deste s
recorrer senão na au sên cia do primeiro. constrangimentos : dá às acções qu e descreve tod o o vagar que ne -
Para esclarecer es ta preferência mútua do verosímil ao neces- ce ssit am para se completarem; coloc a aqueles qu e faz fal ar, ag ir ou
sário, e do nec es sário ao ve ros írn il, é pre ci so distin guir du as coisa s sonha r, numa sa la, numa flor esta , numa praça pública , seg und o sej a
na s acç ões que compõem a tragédia . A primeira co ns is te ne ssas ma is ap ro priado para a sua acção particular; tem para isso todo um
me smas ac ções, acompanhadas das circunstâncias inseparáveis do pal ácio , toda uma cid ade, todo um reino, toda a terra , onde faz ê-los
tempo e do espaço , e a outra na ligação que elas têm em co nj unto, passear ; e se faz acontecer ou narrar al guma coi sa e m pr esença de
que as faz na scer umas da s outras. Na primeira, o vero s ím il é prefe- trinta pessoas , pode descrever os di versos se ntimentos de um após o
rível ao necessário, e o necessário ao veros ímil na seg unda . outro. É porque ele nunca tem uma liberdade de se afast ar da vero-
É preciso colocar as acções onde sej a mais fácil e mai s COIl\'e- similhança, porque nunca tem um a razã o nem des culpa legítim a
niente que ac onteçam, e fazê-Ias ch eg ar com um vagar razo ável , para del a se afastar.
sem as apressar extraordinariamente, se a necessidade de as encer- Co m o o teatro não nos dá tantas facilidades para redu zir tudo
rar num espaço e num dia a isso não nos obriga. J á dem onstrei no ao vcros ímil , porque nada no s faz sa ber se não por intermédio da s
outro discurso I qu e , para con servar a unidade de es paço , muitas pe ssoas que ex põe à vista do auditor durante pou co tempo, que tam-
vezes fazem os falar numa praça pública as pessoas qu e , vero simil- bém no s di sp ensa del e mai s facilment e. Pode suste ntar-se que não
mente , se e ncontra riam num a sa la, e tenho a certeza qu e se alguém será tanto o di sp ensar-nos dela co m o o permitir-nos uma vcrosimi-
contasse num romance o que eu faço ac ontecer no Cid, em Polieucto, lhan ça mais va sta, m as dado qu e Aristót el es nos auto riza a tratar aí
as coi sas segundo a necessidade , prefiro di zer qu e tudo o que aí se
I Discurso so bre a Uti lidade c as Pa rte s do Poe m a d ra m ático . (N. F .)
passa de um o u tro m od o diferent e daqu ele qu e se passaria num
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roman ce afinal de contas nã o tem vcrosimilhan ça , e deve se r classi- ce nas dos doi s últim os, e ncontra re is talv ez a m esm a coisa, e que o
fic ado entre as acçõe s necessárias. roman ce coloc aria as suas personagens e m o utros locai s d ife re ntes
O Horácio pode fomecer alg uns exem plos: a unidade de lugar desta sa la, se tive ssem sa ído uma ve z, com o sae m no fina l de cada
é a í ex act a, pa ssa- se tudo numa sa la. Ma s ca so se fize sse um ro - ac to .
m ance com as me smas particularidades que eu aí e m preg ue i, de Es tes exemplos podem se r sufici e ntes pa ra ex p lic a r co m o se
ce na em cen a fariam qu e tudo se passa sse só ne ssa sa la? No fim do pode tratar um a acção segundo o necessário, quand o não a pod emos
primeiro acto, Curiácio e Cam ila, a sua amante , vã o j unta r-se ao tratar seg undo o verosímil , qu e devemos se m pre pre fe rir ao ne ces-
resto da família, que deve est ar numa outra parte da casa; e ntre os sá rio qu ando não co nsi dera mos apen as as acções e m s i.
do is ac tos , eles recebem a í a notíci a da e leição dos três Horácios; na O m esmo não acontece com a sua ligação , que as faz nascer
a be rt ura do seg undo, Curiác io a pa rec e ne ssa mesma sa la para os um as das o utras: a í o ne ce ss ário é preferível ao verosím il, não qu e
congratul ar. No romance , essa cong ratulaçã o teria s ido fe ita no es ta ligaç ão deva se m pre se r ve rosími l, mas porque e la é muito me-
mesm o local em que a notíci a teria sido recebida, e m presença de lhor quando é veros ím il e nec essária ao m esmo tempo. A razão é
toda a família, e não é de todo vero símil que eles os dois se afas tem fác il de conceber. Quando e la não é senão veros ímil se m ser neces-
par a essa alegria colectiva, mas é ne cessário para o teatro, e se não sá ria, o poema pode d isp en sá -Ia e não é aí de g rande importância,
fos se assim que os sentimento s dos três Horácios, de seu pai, da sua m as quando ela é veros ímil e necessária, toma-se um a parte essen-
irmã, de Curiácio, e de Sabina, se apresentas se m, teri a qu e faze r c ia l do poema, qu e não pode subs istir sem ela .
aparec er tod os em cena ao m esm o tempo. O romance, qu e não faz Encontrareis em Ci na e xe m plos dest es do is tipos de ligações;
c ha mo a s s im ao m o d o co mo uma ac ção é p ro d uzi d a por o utra .
ver nada, teria facilmente resol vido o probl ema, m as e m ce na foi
A sua cons pi ração co ntra A ug us to é causada nece ssariam ente pelo
preci so se pa rá-los para o rganiza r um pou co , e tomá-l os um após o
amor qu e se nte por Emília, porque qu er de sp o sá-l a, e e la só se lhe
outro, começando por es tes do is, qu e fui obrigado a fa zer regr essar
e ntregará ne ssa s co ndições . De st as duas acç ões, um a é ve rda de ira, a
àq ue la sa la se m ve ros im ilha nça. Passad o isto, o resto d o ac to é ba s-
o utra é ve ros frnil, a sua ligaçã o é necessári a . A bondad e de A ug usto
tante ve rosím il e não tem nad a qu e fôsse mos obrigado s a reali zar de
caus a os remorso s e a irreso lução de Cina: est es re m orsos e es ta irre-
outra m an eira no romance . No fim deste acto, Sabina e Cam ila, in-
so lução só são causados vc ros im ilmc nte por aquela bondad e, e não
di gn ad as com desagrado , retiram-se dessa sa la num transport e de
têm se não uma ligação ve ro sí m il com ela, porque C ina poderia ter-se
dor qu e ve ros im ilme nte va i fech ar as suas lágrimas nos se us qu ar-
mantido firm e e atin gi r o se u o bjectivo qu e é casar com Em ília. Ele
tos, o nde o romance as far ia ficar e aí receb er as not íci as do com-
co nsulta- a so bre a sua irreso lução: es ta con sulta só é ve ros ím il, ma s
bate . No e ntanto, pela necessid ade de as faze r ve r pel os espec tado-
é um e fe ito necessár io do se u a mor, porque se e le ro m pesse a con-
re s, Sabina de ixa o seu qu art o no início do terceiro acto e regr essa
j ura sem a sua confi ssão , nunc a teria atingido o o bjectivo que se pro-
para a lim e n ta r as suas inqui et aç õe s dolorosas nesta sa la, o nde pu sera, e, por conseguint e , e is uma ligação necess á ria e ntre duas ac-
Camila a vem encontrar. Feito ist o , o resto deste acro é ve rosímil , ções verosímeis, ou se vo s agraciar mais, uma produção necessária
como no o utro ; e se querei s exam ina r com este rigor as prim eiras de uma ac ção verosími! por uma outra igualmente verosím il.
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Antes de e ntrar na s de finições e di v isões do veros ím il e do ne - uma intri ga não c o loca os ac io res e m re pouso, dado qu e os e m ba-
ce ssário, far ei a inda um a reflex ão so bre as acções que co m põem a raça noutra. A minha m emória nã o m e fornece nenhuns ex em plos
tragédia e penso qu e pod em os fa zer a í entrar três tipo s , segu ndo a ntigos desta multipl icid ade de pe rigo s ligad os un s ao s o utros qu e
melhor acharm o s conveniente: um as seg ue m a hi stóri a , as outras não destruam a unidade de acçã o , mas notei a duplicidad e indepen-
acres ce ntam a hist ó ria , as tercei ras fa lsificam a históri a. As prim e i- dente de um defeit o em Horácio e Teodo ro , em que não é preciso
ras são verda dei ras, as seg undas por vezes ve rosím eis e por vezes que o prim eiro mate a sua irmã à saída d a su a vitóri a, nem q ue o
necessár ias, e as últ imas devem se m pre ser nec essá rias. o utro se ofe reça ao martírio de poi s de te r escapa do à prostitu ição, e
Qu and o são ve rdade iras, não va le a pe na estarmos pre ocupados es tou muito enganado se a mort e de Políxeno e a de Astíanax , na
co m a verosimilhança, e las não prec isam d a su a ajuda. Tudo o qu e Trô ada de S énec a , não come te m a m esm a irregularidad e.
se f ez manifestamente pô de-se faze r, di z A ristó te les, porqu e , se não Em seg undo lu g ar, est a pal avra unid ad e de acção nã o quer
se pudesse f azer, não se teria f eito. O que nós acrescenta mos à hi s- dizer qu e a tragédi a não deva fa ze r ve r senão um a ac ç ão no teatro.
tória, co mo não tem o apoio da sua autori dade, não tem esta pre rr o- A qu e o po et a esco lhe por se u te m a de ve ter um começo, um m ei o e
ga tiva . Nós temos uma tendência na tural, acres ce nta es te fi l ósofo, um fim, estas três parte s não ape nas são o utra s tantas ac çõe s qu e
para acre ditar qu e o qu e nunca se fez, não podia ainda ter si do cons tituem a prin c ip al , m as além d isso , cad a uma de las pode conter
feito e é po r isso qu e o qu e nós in ventam os prec isa da verosi mi- várias com a m esm a s ubordi nação . N ão deve ha ver senão uma ac-
lhança mais ex acta que sej a possível para o tornar credível. ção co m ple ta que d e ixe o espír ito do a ud ito r na ca lm a, mas el a só se
Pesando bem es tas dua s passagens , c re io não me af ast ar d o se u pode tom ar assim por int erméd io de ou tr as vá rias e imperfeitas , qu e
pensam ento quando o uso dizer, para de finir o verosími l, qu e é lima lhe se rve m de e nc a m inhame nto e mantêm es se auditor numa ag ra-
coisa man if estam ente p ossível na co nveni éncia e que não é nem dáve l ex pecta tiva. É o qu e é prec iso prat icar no fim de cada act o
manifestam ent e verdadeira nem ma nife st amente f alsa . para tomar a a cção contínu a. Não é preciso que se sa iba e specia l-
mente tudo o qu e faze m os ac to res du rante os interval os q ue os se -
param, nem a inda qu e e les ajam m esmo qu ando não aparecem e m
2. A unidade de acçâo
ce na, m as é ne ce ssári o qu e cada ac to d ei xe à espe ra de qu alque r
Defendo e ntão, e j á o disse, qu e a unidad e de acção cons iste, co isa qu e se de va fa ze r no segu inte .
na co mé d ia, na unidad e de intriga o u obst áculo ao s obj ectivo s dos
ac to res princ ip a is , e na unid ade de pe rig o na tragé d ia, seja qu e o
3 . A uni dade de lu gar
se u herói a e le suc um ba, seja qu e se sal ve. Não é que e u pretenda
qu e não se possa ad m itir vários peri gos numa, e várias intrigas o u Qu ant o à un id ad e de lugar, não e ncontro nenhum preceito nem
o bstác ulos na outra, desde que de um não se caia necessa ri amente e m A ris tó teles nem e m Ho ráci o . É () qu e leva a lguns a ac re d itar qu e
no ou tro ; po rque então a saída do primei ro peri go não to rna a acção a re gr a só foi esta be lec ida em conseq uê nc ia da unidad e de dia, e
com pleta, vis to qu e e la atra i um segu ndo, e o esclarec ime nto d e a persu adirem -se e m seg uida que se pod e este nde r a té o nde um
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homem pode ir e vir em vinte e quatro horas. Esta opinião é um fica fora da aparência que Focas delibere nos aposentos desta prin-
pouco desregrada, e se fizéssemos um actor ir de posta, os dois la- cesa a perda de seu irmão.
dos do teatro poderiam representar Paris e Ruão. Desejaria, para em Os nossos Antigos, que faziam falar os seus reis na praça pú-
nada incomodar o espectador, que o que fazemos representar diante blica, davam com bastante facilidade a unidade rigorosa de lugar às
dele em duas horas se pudesse de facto passar em duas horas, e que suas tragédias. Sófocles, entretanto, não a respeitou no seu Ajax,
o que lhe é apresentado num teatro que não muda nada, pudesse que sai do teatro a fim de encontrar um loca} afastado para se matar,
cingir-se a um quarto ou uma sala, segundo a escolha que tivesse e mata-se aí à vista do povo; o que faz julgar facilmente que aquele
sido feita; mas muitas vezes isto é tão desastrado, para não dizer em que ele se mata não é o mesmo que aquele donde o viram sair,
impossível, que por necessidade é preciso encontrar um qualquer dado que saiu dali para escolher um outro.
alargamento para o local, como para o tempo. Fi-lo ver com exacti- Não tomamos a mesma liberdade de retirar os reis e as prince-
dão em Horácio, em Policucto e em Pompeia; mas para isso é pre- sas dos seus aposentos, e como muitas vezes a diferença e a oposi-
ciso ou não introduzir mais do que uma mulher, como em Polieucto, ção dos interesses daqueles que estão alojados no mesmo palácio
ou que as duas que introduzimos sejam tão amigas e tenham inte- não admitem que eles façam as suas confidências e confessem os
resses tão comuns que possam estar sempre juntas, como em Horá- seus segredos na mesma sala, é-nos preciso procurar uma qualquer
cio, ou que lhes possa acontecer, como em Pompeia, que o impulso outra acomodação para a unidade de lugar se a quisermos conservar
da curiosidade natural faz sair dos seus aposentos Cleópatra no em todos os nossos poemas: de outro modo seria preciso pronun-
segundo acto e Camélia no quinto, para irem até à grande sala ciarmo-nos contra muitos dos que vemos ter um êxito brilhante.
do palácio do Rei ao encontro das notícias que esperam. Tal não Defendo, então, que é preciso procurar essa unidade exacta
acontece em Rogoduna: Cleópatra e ela têm interesses demasiado tanto quanto seja possível: mas como ela não se acomoda com todo
diversos para justificar que os seus mais secretos pensamentos ocor- o tipo de assuntos, concordaria de boa vontade que o que se fizesse
ram no mesmo espaço. Poderia dizer o que disse de Cina, onde no passar numa só cidade teria unidade de lugar. Não é que eu quisesse
geral tudo se passa em Roma, e em particular metade no gabinete que o teatro representasse essa cidade toda inteira, isso seria um
de Augusto, e metade na casa de Emília. Seguindo esta ordem, o pouco vasto de mais, mas apenas dois ou três lugares particulares
primeiro acto desta tragédia seria na antecâmara de Rogoduna, o se- encerrados no interior das suas muralhas. Assim a cena de Cina não
gundo na câmara de Cleópatra, o terceiro na de Rogoduna; mas se o sai de Roma, e tão depressa se passa nos aposentos de Augusto no
quarto pode começar no espaço desta princesa, não pode acabar-se seu palácio, quanto na casa de Emília. O Mentiroso tem as Tuileries
aí, e o que Cleópatra aí diz aos seus dois filhos, um após o outro, sc- e a Place Royale em Paris, e A Seguidora faz ver a prisão e a casa
ria aí mal colocado. O quinto precisa de uma sala de audiências de Melissa em Lião. O Cid multiplica mais ainda os lugares parti-
onde uma quantidade de povo possa estar presente, O mesmo caso culares sem abandonar Sevilha e, como a ligação de cenas I aí não é
encontra-se em Heraclio, O primeiro acto ficaria muito bem no
I T" .
gabinete de Focas, e o segundo no espaço de Leontina, mas se o ccruca de encadeamento das cenas no interior de um aeto, que visa impedir que a
cena fique alguma vez vazia: ou uma mesma personagem faz a ligação, ou utiliza-se uma li-
terceiro começa no espaço de Pulquéria, não pode acabar-se aí, e gação «de fuga». (N.F.)
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respeitada, o teatro desde o primeiro acto é a casa de Ximena, o de Focas, de Leontina, ou de Pulquéria em Hcraclio: mas uma sala
aposento da Infanta no palácio do rei, e a praça pública; o segundo para a qual comunicassem estes diversos aposentos, à qual atribuiria
acrescenta-lhe a câmara do rei, e sem dúvida que há alguns exces- dois privilégios: um, que se presumisse que cada um dos que aí fa-
sos nesta liberdade. Para de alguma maneira rectificar esta duplici- lassem, o fazia com o mesmo segredo que se estivesse no seu quarto,
dade de lugar quando ela é inevitável, gostaria que se fizessem duas o outro, que ao lugar que pertence por vezes à conveniência na ordem
coisas: uma, que nunca se mudasse no mesmo acto, mas apenas de comum quando aqueles que ocupam o teatro vão procurar os que
um para o outro, como se fazia nos três primeiros actos de Cina; a estão nos seus gabinetes para lhes falar, estes pudessem vir encon-
outra, que estes dois locais não tivessem necessidade de decorações trar-se com eles no teatro, sem chocar essa conveniência, a fim de
diversas, e que nenhum dos dois fosse alguma vez nomeado, mas conservar a unidade de lugar e a ligação entre as cenas. Deste modo
apenas o lugar geral em que os dois estão incluídos, como Paris, Rogoduna no primeiro acto vem encontrar-se com Laonice, que de-
Roma, Lião, Constantinopla, etc. Isto ajudaria a enganar o auditor, veria mandar chamar para falar consigo; e no quarto Cleópatra vem
que, não vendo nada que lhe marcasse a diversidade dos lugares, ter com Antíoco no mesmo lugar onde ele acaba de submeter Rogo-
não se aperceberia disso; a não ser que haja uma reflexão maliciosa e duna, embora, com exacta verosimilhança, este príncipe devesse ir
crítica, daquelas que poucos são capazes de fazer, a maioria fixa-se buscar a sua mãe ao seu gabinete, dado que ela odeia demasiado
calorosamente à acção que vê representar. O prazer que dela retiram esta princesa para lhe vir falar no seu aposento em que a primeira
é o motivo pelo qual não querem procurar os pequenos desajustes cena fixaria o resto deste acto, se não atribuíssemos este tempero de
para se aborrecerem, e só os reconhecem à força, quando são dema- que falei à rigorosa unidade de lugar.
siado visíveis, como em O Mentiroso e A Seguidora, onde as dife-
rentes decorações fazem reconhecer esta duplicidade de lugar, a (Comeille. QU\TeS, 1660. 1: Discours de la Tragédic: 2 c 3: Discours drs trois Unités.;
despeito de existirem.
Mas como as pessoas que têm interesses opostos não podem
verosimilmente explicar os seus segredos no mesmo local, e dado
que por vezes são introduzidos no mesmo acto com ligação de ce-
nas que implica necessariamente esta unidade, é preciso encontrar 18 - MOLIERE: A CRÍTICA À ESCOLA DE MULHERES (1663)
um meio que a torne compatível com essa contradição que aí pro-
voca a verosimilhança rigorosa, e ver como poderá subsistir o Moliére ( 1(j22 - J (j73) consagrou duas pequenas comédias ú po-
quarto acto de Rogoduna, e o terceiro de Heraclio ; onde já notei lémica e à reflexão sobre o teatro, A Crítica à Escola de Mulheres.
essa repugnância por parte de duas pessoas inimigas que falam e O Impromptu de Versalhes (J (j63). A segunda debruça-se sobre a
duma e do outro. Os jurisconsultos admitem ficções de Direito; e eu interpretação, a primeira sobre a dramaturgia e as conveniências,
gostaria, seguindo o seu exemplo, introduzir as ficções de teatro, A Escola de Mulheres (1662) tinha sido vivamente criticada
para estabelecer um laço teatral que não fosse nem o aposento de pela verdura e realismo. Ao defender-se, Moliêrc faz mais do que
Cleópatra, nem o de Rogoduna na peça que tem este título, nem o
responder a estas criticas .. desenvolve a teoria da comédia.
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o tom da co média UR ÂN IA

LíCIDAS
Nã o é isso qu e e u acho. Cá para mim , a tragédia, se m dú vida , é
qu alquer co isa de belo qu and o é bem exec utada; mas a comé dia tem
Não é nada meu costume criticar, e sou ba stante indulgente o s se us encantos, e acho qu e uma não se rá menos difícil de fazer
para com as obras dos outros. Mas, enfim , sem chocar a amizade qu e a outra.
que o Senhor Cavaleiro testemunha pel o autor, confessar-rne-ão qu e D OR ANTE
esta espécie de comédias não são propriam ente co méd ias, e que vai
Seguramente, se nho ra; e se, para a di ficuldade , p us ésseis um
uma grande di ferença de todas estas bagat elas à bel eza da s pe ças
m ais do lado da co mé d ia, tal vez não vos enga násseis. Porque enfim ,
sé rias. No entanto deu -lhe para ali a tod a a ge nte : não se corre se não
e u ac ho que é muit o mai s fác il e leva r-se seg uro do s grandes senti-
para elas, e vê -se uma so lidão aterrad ora nas grandes o bras, quando
mentos, desafiar em ve rso a Fort un a, ac usar os De st ino s, e inj uriar
as toli ces tomaram Pari s. Confesso -vos que por vezes o coração me
os Deu se s, do qu e entrar como deve se r no ridíc ulo do s hom en s, e
sangra, e isto é vergonho so para a França .
reproduzir agrad avelmente no teatro os de feitos de toda a gente.
Qu ando pintai s heróis, fazei s o que quiserdes. São retratos ao vosso
CLÍMEN E
gosto. o nde nã o se bu scam parecenças; e nâo tendes m ai s qu e segui r
É verdade que o gos to das pe ssoas está es tra n ha mente es tra- os traço s de um a im agin ação que voa por si , e qu e mu itas vezes
gado qu ant o a isso, e que os tempos se aca nalham fur iosamente . a band on a o ve rdade iro para aga rrar o m aravilhoso . M as quand o
pint ai s os hom en s, é pr eci so pi n ta r ao natural. Querem q ue es tes
ELISA retrat o s sej a m parecidos; e na d a fi zestes, se não faz ei s reconhece r
aí as pessoas do vosso tempo . Numa pal avra, na s peças sé rias , par a
Esse aí ai nda é bon ito , «se acan alh am »! Fo stes vós qu e o in-
não se ser cri ticado de todo , basta diz er co isas de bom se nso qu e
ventaste, se nhora?
e stejam bem esc ritas ; mas para as outras não se rá sufici ente, é pre-
CLÍMENE
ci so g rac ej ar; e é um a estranh a tarefa esta de fazer rir as pessoa s de
H e' .I bem .
ELIS A
CL ÍMENE
Tinha as minhas dú vid as.
Creio pert en cer aos núm ero da s pessoas de bem ; e no entanto
D OR AN T E não e nco ntre i um a pala vra q ue me fizesse rir e m tud o o qu e vi.

Pensais então, Senh or L ícidas, qu e todo o espírito e toda a be-


leza se e ncontram nos poemas sérios, e que as peças cómicas são
o M ARQUÊS
tolices que não mer ecem qu alquer lou vor ? Na ve rd ade, e u também não .
120 121

OORANTE 19 - ORYOEN: ENSA IO SO BRE A PO ESIA DRAMÁTICA ( 166 8)


No teu caso, Marquês, não me es pa nto: é qu e não encontraste
aí chocarrices . D ep ois da revo lução ing lesa , os teatro s re a bri ra m em 166 0
sob a R estaura ç ão , Os no vos autores estavam m arcad os p ela in -
Lí CIOAS
flu ên cia da dramaturgia francesa . No en ta nto, o maior dentre eles,
Na ver dade, se nhor, o qu e aí se e ncontra não va le mai s, e todos Jolin Dryden (1 631 -1 700 ), em bo ra f osse sensivel a essa influên cia ,
os se us gracej os são ba stante frios na minha opinião. não rej eita a heran ça shakespearia na. O seu E nsaio so bre a Po e sia
Dramát ica é uma conversa ent re quatro hom en s de letra s de boa
OORANTE com panhia , da ta da, simbolica mente, de 3 de Junho d e 1665 , d ia d e
A co rte não achou isso. uma vitoria naval d o s ingleses co ntra os h olan des es .

Lí CIOAS
D iá logo entre duas d ra maturgi as
Ah! Se nhor, a corte!
Eugenius ia cont inu ar o seu discurso qu and o L is ide iu s lhe
OORANTE d isse que era necess ário , a ntes qu e avançassem ma is, det erminar
um a medida ba se para a sua co ntrovérs ia; po is como se ria po ss ível
Terminai , se nhor Lícidas. Vejo bem q ue querei s di zer qu e a p la-
vir a dec id ir qu em escreve u as melho res peças, an tes de se sa ber o
tei a nada entende dessas co isas; c é o vosso refúgio norm al , Senhores
qu e deveria ser um a peça? Mas, uma vez esta be leci do o aco rdo so -
autores, qu and o do pou co sucesso das vossas obras ac usa r a injust iça
bre isto e ntre as duas p artes , ca da uma pod ia reco rrer a isso , tanto
dos tempos e as poucas luzes dos cortesãos . Sabei , se fazeis favo r,
pa ra pro var as suas p róprias va ntage ns, qu anto para descobrir as de-
se nhor Lícid as, que os cortesãos têm tão bons olhos co mo os outros:
fic iênc ias do ad vers ário .
qu e se pod e ser tão hábil com uma renda de Vene za e plumas, como
com uma peru ca curta e um plastrão liso ; qu e a grande prova de tod as Ainda não tinh a acabado de d izer isto , e já todos lhe pedi am o
as vossas co méd ias é o julgamento da corte; qu e é o se u gos to q ue c favo r de dar a defin ição de uma peça : e fizera m -no co m tanto mai s
pre ciso est uda r para encontrar a a rte de te r êx ito ; qu e não lui lugar insistênc ia porque nem Aristóteles, nem Ho ráci o , nem q ual q ue r o u-
algum onde as deci sões seja m tão j ustas; e se m ter em linh a de con ta tro qu e tivesse esc r ito so bre esse assunto, nunca o tinh am feit o .
tod as as pessoa s sá b ias qu e aí estão, as qua is, a partir do si m ples bo m Lisid ciu s, ap ós a lg umas rec us as mod e stas. confesso u por fim
se nso natural e do comé rcio com tod o o tipo de gente elegante, c riam qu e tinha uma rude no ção do ass un to: de fa ct o , era mais uma de s -
aí um estado de espírito qu e sem co m pa ração julga mais finam ente as c rição do que uma defini ção ; mas que servi a para o guia r no s se us
coi sas do que todo o saber enferru jado dos pedantes. pen samentos íntim o s . qu and o se preparava para faze r um julga-
mento sobre o qu e o s o utros tinham escrito: pen sava qu e uma peça
(Mo liêre, La Cr itique de I' Éco le de Femmes, 1663. cena 6 .) tinha que ser uma im a g em j us ta (' vivida d a nature za humana,
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representando as suas paixões e humores, e as mudanças de fortuna suas distâncias, como se fossem os Montagues e os Capuletos, e ra-
à qual está sujeita, para o deleite e instrução da humanidade. ramente estabelecem um relacionamento antes da última cena do
( ... ) quinto acto, quando devem todos encontrar-se em cena. Nenhum
Mas porque Crites I, no seu discurso a favor dos Antigos, me teatro no mundo tem algo de tão absurdo como a tragicomédia
coarctou, ao referir muitas das regras do palco que os Modernos inglesa; é um drama de nossa própria invenção, e a sua forma é sufi-
lhes pediram de empréstimo, irei apenas, com brevidade, perguntar- ciente para o proclamar inglês; aqui um rasgo de riso, ali outro de
-vos se estais ou não convencidos que, de entre todas as nações foi tristeza e paixão, um terceiro de honra, e um quarto um duelo: as-
a francesa a que melhor as respeitou. Eles são tão escrupulosos com sim, em duas horas e meia percorremos todos os ataques de loucura
a unidade de tempo, que ainda se discute entre os seus poetas do manicómio de Bedlham. Os franceses oferecem a mesma varie-
se o dia artificial de, mais ou menos, doze horas, não teria sido o re- dade no mesmo dia, mas não o fazem tão fora de estação, ou tão
ferido por Aristóteles, em vez do período natural de vinte e quatro mal à propos, como nós: os nossos poetas apresentam a peça e a
horas; c consequcntemcnte, se todas as peças não deveriam ser re- farsa juntas. (... ) O objectivo das tragédias ou peças sérias, diz Aris-
duzidas a esse compasso. Isto eu posso atestar, que em todos os tóteles, é gerar admiração, ou compaixão, ou preocupação; mas não
seus dramas escritos nos últimos vinte anos e mais, não encontrei são o riso e a compaixão coisas incompatíveis? e não será evidente
um que tenha expandido o seu tempo para trinta horas; na unidade que o poeta deve, por necessidade, destruir a primeira ao entremeá-Ia
de lugar são igualmente escrupulosos; pois muitos dos seus críticos com a última? Isto é, ele deve arruinar o único fim e objccto da sua
limitam-na a esse mesmo pedaço de chão onde é suposto a peça co- tragédia para introduzir de alguma maneira algo forçado, e que não
meçar; nenhum deles excede o compasso da mesma vila ou cidade. é do seu corpo. Não consideraríeis louco o médico que, tendo recei-
A unidade de acção em todas as peças é ainda mais evidente, tado uma purga, viesse a ordenar imediatamente a seguir que tornás-
pois não as sobrecarregam com intrigas secundárias, como o fazem seis um restringente?
os Ingleses; razão pela qual muitas cenas das nossas tragicomédias ( ... )
desenvolvem um padrão que não é da família da intriga principal; c Lisidcius concluiu (... ); e Ncandro, depois de uma breve pausa,
que vemos duas teias distintas numa peça, como aquelas em coisas respondeu-lhe assim:
mal escritas: e duas acções, ou seja, duas peças desenvolvidas e.n «Garantirei a Lisideius, sem grandes discussões, uma grande
conjunto, para confusão do público; o qual, antes de ter sido cntusias- parte do que cle argumentou contra nós, porque reconheço que os
mado por uma das partes, foi distraído pela outra: e por cste meio Franceses elaboram as suas intrigas mais regularmente, respeitam as
não desposa o interesse de nenhuma. Daqui igualmente decorre que leis da comédia e conveniência da cena (para falar geralmente), com
uma metade dos nossos actores é desconhecida da outra. Mantêm a mais exactidão que os Ingleses. Mais ainda, não nego que nos tenha
justamente apontado algumas irregularidades nossas que mencionou;
porém, apesar de tudo, sou da opinião que nem os nossos erros,
I Crites ralou pelos Antigos, Eugenius pelos Modernos; o debate confronta ainda
nem as suas virtudes, são suficientemente consideráveis para os
Lisideius, que rala aqui pelos Franceses. e Neandro que lhe respondera em nomc 00', Ingleses
(e, parecc, que também 00 próprio Dryden). (N.F.) colocar acima de nós.
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«Porq ue a imitação vív ida da natureza, estando na defini ção de q ua ndo coloc ados junto s, realçam-se um ao o utro . Um a grav id ade
peça, aqueles que melhor preencham essa lei devem se r con sidera- continuada mantém os esp íritos demasiado cons tra ngi dos. rebai xa -
dos supe riores ao s outros. É verda de, essas belezas da poesia fran - d os , precisamos de os re frescar de ve z e m qu ando , co mo quando
cesa são do tipo qu e e lev am a perfei ção daquilo em qu e se encon tra, descansamos durant e um a viag e m , para qu e po ss am os continuar
m as não são s uficie ntes para dá-l a ao que não a possui : são, d e com mai s facilidade . Um a ce na de ri so mi sturad a co m a tra gédia
fact o, as beleza s de uma es tátua, m as não do homem , porque não tem o mesmo efeito so b re nó s que a no ssa mú sica tem no intervalo
são anim adas pela alma da poesia, a qu al é imitação dos humores e e ntre os actos; e aí e nco ntra mos um al ívi o para nó s me sm o s das
paix ões; e isto o próprio Lisideius, o u qu alquer outro, por m ai s fa- melhores intrigas e lin guagem teatral , se o s di scurso s fo ram lon gos.
nát ico do se u partido , não pode se não reconhecer, se com parar seja Devo portanto e ncontrar argume ntos mai s fortes um a vez qu e esto u
os humores da s nossa s comédias, o u os ca rac te res da s nossas p eças co nve ncido de que a com pai xão c o riso no mesm o ass unto se de s-
sérias, co m as deles. tr o em um ao o utro; c e ntre tanto não pos s o se não co ncl u ir, para
( ...) honra da nossa nação , qu e nós inventámos, fi zemos cres ce r, e aper-
«Aceito que os Franceses tenham realizado o qu e fo i possível fe iç oá mos uma man eira de escrever para o palco m ais ag radável do
na base de trabalho que eram as peça s espanholas I; o qu e e ra agra- qu e alguma vez conhece ram os Antigos ou Modern os de qualquer
dável antes, eles tornaram normal ; m as não há mai s qu e um a boa nação , que é a tra gi comédia.
peça a se r esc rita a partir de todas essas intrigas; são de masiado pa- «E isto leva a qu e m e admire porque é qu e Li sid eiu s e muitos
reci das para pod erem agradar muit as vezes, para o qu e não prec isa - o utros devam lou va r a es te rilida de da s int ri gas fran cesas ac ima da
mos da ex periê nc ia d o nosso próprio pal co para o j ustificar. Q ua nto variedade e co p iosi dade das ing lesas. As suas intrigas são s im ples.
à sua nova man eira de mi sturar o riso com um a intriga séria, não a desen vol vem um padrão qu e é em purr ado p ar a a frente por todos os
co nde no co mo Lis ideius, em bora não possa ap rovar o se u modo de ac to res, cada ce na d a peç a co ntribuindo e ca m inha ndo na sua direc-
o fazer. Ele di z-nos qu e não nos pod emos re cobra r tão rapid amente ção : as no ssa s, al ém do padrão principal , têm intr igas secundárias
dep ois de uma ce na d e grande pai xão e preocupação , para passar a o u preo cupaçõe s lat erai s de pessoas e intri gas men os im po rta ntes,
outra de riso e humor, e gozá-la co m a lg um prazer: mas porque de - que sã o de sen vol vidas junto co m o movimento d a intriga principal ;
ve ria ele cons ide rar a a lma do homem m a is pesad a qu e os se us se .r- tal co mo dizem da órbita das es tre las fixas. e d a dos planet as, qu e
tid os? Não pas sam os o lhos de um o bjecto de sagradá vel a o utro e m bo ra tenham mov im entos próprios, redernoinham devido ao mo -
agradáve l num tempo muito mais c ur to do qu e o qu e é req ue rido vi mento do primunt m obile t no qu al es tão contidos . Esta si m ilitude
para isto? E o desa grado do prime iro não real ça a bele za do últi m o? ex pressa muit o da s ituação ing les a; poi s se na natu reza se podem
A velha regra da lógic a pod eria tê-l o co nve nc ido de qu e os co ntrários, encontrar moviment os contrá rios que estão de acordo, se UIll planeta

Drydc n afirmava no par ágra fo anterior q ue Molicre, o jovem Co rnei lle (Thornas ),
Qu inaul t c alg uns outros, dcpoi s da morte de Rich clicu tinham pas sado a segui r a m oda
inglesa (tra gic ónuca) c sobretudo esp anhola, (N .F .) I Refe rência ao s iste m a astronôm ico de Plo]CI11CU . (N.F .)
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pode ir para Este e Oeste ao mesmo tempo , uma das vias pela e no e nta n to, mudam o lugar; como numa da s suas peças mais re-
virtude do seu próprio movimento, a outra pela força do Primeiro centes, onde o acto começa na rua . Aí um ge ntil-ho m e m vai en-
Motor, não será difícil imaginar como a intriga se cundária, que é contrar um amigo; ele vê-o co m o seu criado, saindo da cas a de
apenas diferente e não contrária ao padrão principal, pode natural- seu p ai; falam juntos, e o prim eiro sai: o s eg u n d o, qu e é um
mente ser conduzida junto com ela. amante, tem um encontro marcado com a sua amada; ela aparece à
( ...) janela, e então temos que imaginar que a cena se passa debaixo da
«Pe lo se u respeito servil pelas unidades de tempo e lugar, e janela. Este gentil-homem é ch amado e sai , e deixa o seu c riado
integridade da s cenas, invocaram sobre si próprios essa escassez de com a sua amada; pre sentemente ouve-se o pai dela no interior; a
intriga e estreiteza de imaginação que pode ser ob servada em todas jovem tem medo qu e o criado sej a descobert o , e empurra- o por
as suas pe ças. Quantos belos acidentes podem acontecer natural- uma porta que é supos to se r a d o se u roupeiro . Depoi s di sto, o pai
mente em doi s ou três dias, os quais não têm qualquer probabili- entra para junto da filha , e agora a ce na é no int erior de um a cas a;
dade de acontecer no compas so de vinte e quatro horas? Também é porque ele vai de quarto em quarto à procura daquel e pobre Fili-
preciso dar tempo para o amadurece r da s intenções as quais, entre pin, (000 ) que é ouvido do interi or, gracejando e dizendo di sparates
os grandes e prudentes tais como muitas vezes são representados na acerca da sua trist e condição. E a peça continua desta maneira
tra gédia, não podem , com al guma semelhança da verdade, vir a ridícula, nunca fi cando o palco vazio durante todo o tempo: de
acontece r a tão breve aviso . Mais ainda, ao amarrarem-se a si pró- maneira que a rua , a janela, as duas casas, e o armário , são feitos
prios estritamente à unidade de lugar e ligação entre as cenas, são pas sear por ali enqu anto as pes soas ficam qui etas . Entã o ag ora,
muitas vezes forçados a omitir algumas belezas que não podem se r pergunto -vos, o qu e é mais fácil do que escrever uma pe ça fran-

mo stradas o nde o acto começou ; mas pod eriam, se a cena fosse in- cesa regular, ou m ai s difícil do que escrever uma ingl esa irr egular,

terrornpida, e o palco de simpedido para as pessoas entrarem em um como as de Fletcher e Shakespeare?

outro lugar; e portanto, os poetas franceses são muitas vezes força-


dos a coisas ab surdas; pois se o acto começa numa câmara, todas as
pessoas na peça devem ter algum motivo ou outro para e ntrar ali, OI /

então não dev em ser mo stradas ne sse acto , e às ve zes os se us carac-


teres são muito pouco adequados para aí aparecerem. Tal como, su-
ponhamos qu e fo sse a câmara do rei , no entanto , o mai s humilde
do s homens na tragédia deve entra r e tratar dos se us assuntos ali , ( Dry dcn , A I/ Essay oI"Dramat ic Paes.". 16<>l,- T rad . de Mart ine de R ougcmonr . Veja -se tam -
em vez de se r na ante câmara ou no jardim (o que seria mais apro- bém Joh n Drydcn, OfD ru mati r Po csv a nd O thcr Critica l Essavs. George \Val son (cd .), Lon-
dre s, J. M . Dcnt, 196 2.)
priado para e le), com med o ele que o palco tivesse qu e ser desimpe-
Edição urili zada em apoi o 11 tradução portugu e sa: John Drydcn . OI' Dramatic I' o csv (I//(/
dido, e as cenas interrompidas. Muitas vezes acabam por cair numa Other C riticu l Essavs, Ge or ge Watson (cd .), Lo nd re s. J. M. Dcnt & Son s Ltd .. 19 71 (2"). vol.
inconveniência ainda mai or; porque eles mantêm as cenas ligadas, 1,1'1'. 25; p. 44-46; 1'1'. 56 ; 1'1'. 58-5 9; pp . 64 -65 . (N .T.)
128 12 lJ

20 - RACI N E: BÉRÉNICE ( 1671) so bre e le pela sim plicidade da maio ria dos temas de Plauto: e é sem
dú vida es ta sim plicidade m aravilh osa qu e a ngario u a es te ú ltimo to -
Mais jovem qu e Corneille e Moli êrc , J ean Racine (1639- 1699) dos os louvores q ue os antigos lhe dispensar am . E qu ão m a is s im -
fo i a expressão p erfeita de um certo espírito da dramaturgia clás- pl es era a inda Men an dro, v isto qu e Terên c io é o brigado a usar duas
si ca fran cesa, para a qu al o seu g énio poético co ntribuiu , faz en do comédias deste poet a para fa zer uma das suas!
assentar a sua autoridade' sobre os a ut ore s trági cos da s geraçõ es E não é preci so ac re d itar qu e es ta regra não sej a fund ada se n ão
seg uintes . na fantasia daquel es q ue a fiz e ram : só o ve ro sí m il co move na tragé-
Pou co inclina do a m ultiplicar as decla ra ções teóricas , só p u- d ia , e qu e ve ro si m ilha nça exis te qu and o aco ntece num di a uma
blica breves pref á ci os o u de dicató ria s às suas tra gédi as. mult itud e de co isas qu e difi cilmente oc o rre riam e m vá ria s se manas?
A lg uns pensam qu e e sta si m plic idade é um a m ar ca de falta de in-
ve nção . Nem so nha m que , pelo co ntrário, toda a inve nção co nsiste
Os motores da trag édia
e m fazer qu alquer coisa d o nad a, e qu e todo esse g ra nde núm ero de
N ão se tr ata de um a necessid ad e que haja sa ng ue e m o rt o s incide ntes foi se m pre o refúgio dos poetas qu e não senti am no seu
numa tra gédi a : basta qu e a sua acção seja g rand iosa, q ue os actore s géni o nem abund ân cia nem for ças s ufic ie ntes para, durant e c inco
sej am heró icos , que as pa ixões sejam a í excit adas, e qu e tud o aí se act o s, ca ptar a a te nção dos se us es pec tado res através de um a acção
ressinta dessa tri st eza m ajestosa qu e consti tui to do o pra ze r da tra- si m p les, sustentada pel a vio lê nc ia da s pai xões , pe la beleza dos se n-
géd ia . Pen sei qu e podi a enco ntra r tod as essas partes no m eu as- tim entos e pel a e leg ância da ex press ão . Es to u muito lon ge de acre -
sunto ; mas o qu e m ais me agrado u, foi qu e o ach ava extre m amente d itar qu e todas e stas co isas se enco ntram na m inh a obra; m as tam -
sim ples . Há já muito tempo que qu e ria te ntar saber se pod eria faze r bém não posso ac red itar qu e o pú b lico ten h a m á vo ntade c o n tra
um a tragéd ia co m essa sim plicidade de acç ão q ue era tão do gosto m im po r lhe ter dado uma tragéd ia qu e fo i honrada co m tant as lá-
do s anti gos. Porque é um dos primei ro s preceitos qu e nos dei xa ram : grimas , e cuja tri gé sima representação tev e tanta gente a ass istir
«Q ue o qu e fizerdes », di z Horácio, «sej a sempre simp les e un o ». quanto a primeira.
Eles adm iraram o Aj ax de Sófocles , que não é o utra co isa se não
Aj ax qu e se m ata po r desgosto , por causa d o furor qu e o at ac ou (l{a ci nc . B' ;"" /Iicc .I(,7 1.l'rd <Íc ;o , l
após lhe terem recusad o as armas de Aq u iles. Eles ad m irara m Fi-
loctet es , cujo único ass unto é Ulisses qu e c hega para sur pree nder as
flechas de Hércules. Mesm o Édipo, e m bo ra todo c he io de rec onhe -
ci me ntos, é men os ca rregado de mat éria q ue a ma is si m p les tragé-
dia de nossos d ias. Vemos, enfim , qu e os partidár ios de Ter ên c io , 2 1 - BO ILEAU : ARTE POÉTiCA ( 1674 )
que o eleva m e com ra zão acima de todos os poeta s có m icos pel a
e legância da sua dicção e pela verosim ilhança do s se us costumes, Nicolas Boileau -Dcspr éaux ( 1636 -17 1 1), com o Horácio a quem
não dei xam de c o nfe ssa r q ue Plauto tem uma e no rme van ta ge m seg u iu mil ita s \'e: cs d e p erto , propõe . // 0 seu po em a did áctico. que
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trata de todas as formas literárias, o resumo das regras (' do espí- 2. Para lima comédia aristocrática
rito de uma literatura clássica codificada e estritamente dividida
A corte estudai, a cidade conhecei:
em géneros.
Uma e outra, em modelos, sempre férteis.
Foi assim que Moliere, os seus escritos ilustrando,
1. A emoção trágica Talvez da sua arte o maior prémio ia alcançando,
Se, menos amigo do povo, nas suas doutas pinturas
Não há serpente, nem monstro odioso,
Não fizessem tantas caretas as suas figuras
Que, imitado com arte, se não tome gracioso
Nem trocasse pelo bufão, o agradável e o fino
Com pincel delicado, o artífice agradável
E sem vergonha, a Terêncio aliasse Tabarino.
Do mais horrível faz um objecto amável.
Nesse saco ridículo em que Scapin se embrulhou,
Assim para nos encantar, a tragédia em choros
De Édipo ensanguentado faz falar as dores, Não reconheço mais do Misantropo o autor.
De Orestes parricida os alam1es vai exprimir O cómico, inimigo dos suspiros e choros,
E arranca-nos lágrimas, para nos divertir. Não admite nos seus versos as trágicas dores;
Vós, que um nobre ardor pelo Teatro sentis Mas o seu emprego não é ir a uma praça
E vindes em versos pomposos o prémio disputar, Com palavras sujas e baixas encantar a populaça.
Quereis sobre a Cena as obras exibir, É preciso que os aclares gracejem nobremente;
Às quais todo o Paris venha aplaudir, Que um nó bem formado se densenlace facilmente;
E que, tanto mais belas quanto mais vistas Que a acção, caminhando aonde a razão a guia,
Ao fim de vinte anos sejam ainda repostas? Não se perca nunca numa cena vazia;
Que em todos os discursos a paixão comovente Que o estilo humilde e doce se revele decoroso;
Busque o coração, o perturbe e aquente. Que os seus discursos sempre em piadas copiosos,
Se um belo movimento do agradável furor Estejam cheios de paixões finamente manejadas,
Não nos encher sempre de um doce terror, E as cenas sempre uma à outra ligadas.
Nem excitar na alma a piedade encantadora, Às custas do bom senso guardai-vos de gracejar:
Em vão exibireis uma cena sabedora: Nunca da natureza vos deveis afastar.
Os frios raciocínios só irão esfriar Contemplai com que ar um pai em Terêncio
O espectador sempre lento a aclamar A um filho apaixonado repreende a imprudência;
Que, dos esforços vãos da vossa retórica Com que ar este amante escuta as suas lições,
Justamente cansado, adormece ou vos critica. E acorre à sua amada esquecendo estas canções.
O segredo está primeiro em agradar e comover: Não é uma imagem ou um retrato idênticos,
Inventai situações que me possam prender. É um amante, um filho e um pai autênticos.
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Gosto no tea tro de um agradáve l autor I . As p aixõ es «sup erfici a is »


Q ue , sem se d ifam ar face ao es pec tador,
Agrada só pela ra zão , e qu e nun ca a c hoca ria. o prazer qu e se sente por ver as im ita çõe s qu e os pintores e os
Mas a um gracej ado r, de equív oca g rosser ia, poetas sa be m fazer do s o bjectos qu e poderiam excitar e m nós pai-
Que só tem obsce nida des para me di strair, xões c uja realidad e no s se ria um peso , é um p raze r puro. Não é se-
Feit o sa ltimba nco , se qu iser, vá divertir c undado pelos incon ve n ientes de qu e as emo ções sérias, ca usadas
A Pont -Neuf, co m as suas falsas pat aco adas, pel o próprio obj ecto, seriam acompanhad as .
E ao s lacaios representar as suas ma sca rad as. A lg uns exemplos es clarecerão melhor ainda qu e os raciocíni os
um a opinião qu e pos so temer nunca co nseg uir expo r com clare za
(Boileau , Art poétiquc; canto 111-1 : vv . 1-26; 2: vv. 39 1-428.) bast ante. O Ma ssacre dos Inocentes te rá de ixad o idei as bem funes-
Edi ção usada em apoio tradu ção portu guesa: Boilcau. Arte Po éti ca. Trad . do Co nde da Eri -
à
tas na imaginação d aqu el es qu e viram realmente os so ldados de sen-
cci ra (O. Franc isco Xavie r de Men ezes, 1673- 1743), Prc f. e notas de Jos é Pedro Machado,
Lisboa, Papelar ia Fernandes, s/d. (N .T.) fr e ados degolar a s c ria nças no seio das m ãe s e nsang ue ntad a s .
O quadro de Lebrun, o nde ve mos a imitação deste aco ntecim ento
trági co, comove-nos e e nte rne ce -nos, mas não d ei xa no no sso espí-
rit o qualquer ideia importun a: es te quadro excita a nossa co mp aixão
se m re alme nte no s afligi r. U ma mort e tal como a de Fedra: uma jo-
ve m prin cesa ex p ira ndo no meio de co nvulsões horrívei s, ac usa ndo -
22 - OU BOS: REFLEXÕES CRíTICAS SOB R E A PO ESIA E SOBRE -se a s i própria de cri mes atrozes pel os quais se pun iu co m o vene no ,
A PINTURA ( 1719) se ria um object o a fugir. Prec isar íam os de vários d ias antes qu e nos
pu dé ssemos di st rair das ideias negr as e fun e st as qu e um es pectác ulo
O Abade Du Bos ( J 6 70 -1742 ) teve 111/1([ ca rreira de hom em p o - se melhante não dei xa ria de imprimir na no ssa im aginação. A tra gé -
lít ico , dep ois hist oriador e letrado , N es ta última qu alidade , a s ua dia de Ra cin e , qu e no s a presenta a imitação de ste acontec imento ,
obra fu ndame nta l fo ram as Reflexões C rític as so bre a Poesia e so - comove-nos e toca-nos se m dei xar em nós a se men te de uma tri s-
bre a Pintura, muitas \'czes reeditadas d uran te o séc, XI"III , c q ue te za durável. G ozam os a nossa emoção sem fica r alarma dos pel o
forneceram em particular, a partir de /11/ /(/ re ferência à prát ica elo» medo de qu e e la dure demas iad o tempo. É, sem nos e ntristece r real -
A ntigos, a base das discuss ões que se ntultiplica vant so bre a decla - mente , qu e faz correr as lág rimas de no sso s o lhos : a a flição não
ma çã o c a pan tomima . es tá, po r assim di ze r, se não à superfíci e do no sso co ração , e se nti-
Na sua parte teórica , qu e aqu i nos interessa, as Refl exões d o mo s bem que o no sso c horo ac abará com a represent ação da ficção
A bade Du 8 0S dôo testemunho da crise em que se en contrav a en t ão e ngenhosa que o fa z correr.
a dramaturgia francesa, e de lima vontad e , por Fezes des aj eitada, Escutamos, então , com pra zer, os homens mai s infelizes quando
de ul trap assar as regras graças a U/1/ 0 abordagcm filosofica. no s e ntre têm com o s se us info rtún io s por m ei o do pincel de um
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pintor, ou dos versos de um poeta; mas, como o nota Diógenes


não é, por assim dizer, mais que uma imitação de uma imitação e
Laércio, não os escutaríamos senão com repugnância se exibissem
uma segunda cópia.
eles próprios as suas infelicidades diante de nós. (...) O pintor e o
Embora a acção que nos mostram numa narrativa, por assim
poeta só nos afligem enquanto quisermos, eles não nos fazem gostar
dizer, seja por si muito comovente, comover-nos-á menos do que
dos seus heróis e heroínas senão enquanto nos apetecer, quando
uma outra acção menos trágica, mas que se passasse diante dos nos-
pelo contrário não seríamos os senhores da medida dos nossos sen-
sos olhos e que fosse dramaticamente representada diante de nós.
timentos; não seríamos os senhores da sua vivacidade como da sua
A primeira cena entre Rodrigo e Ximena comove-nos mais do que a
duração, se tivéssemos sido atacados pelos próprios objectos que
narrativa da morte do pai de Ximena que ela faz ao rei, embora esta
estes hábeis artesãos imitaram.
narrativa seja feita por uma pessoa que tem um tão grande envolvi-
mento com a ocorrência. No entanto, a morte do conde é um acon-
2. Acção e narrativa tecimento mais terrível, e por consequência bem mais capaz de

Ainda que as próprias leis da tragédia, fundadas em boas razões, prender do que a conversa entre Ximena e Rodrigo, por mais inte-
não proibissem apresentar sobre o teatro acontecimentos idênticos ressante que possa ser.
àqueles de que falámos I, o poeta de bom senso evitaria sempre colo-
cá-los aí. Como estes acontecimentos não podem quase nunca ser aí 3. A poesia do estilo
representados, nem com verosimilhança, nem com decência, dege-
neram num espectáculo frio e pueril. Não é assim tão fácil impô-los Assim, a beleza de cada parte do poema, quero dizer a maneira
aos nossos olhos, quanto aos nossos ouvidos. Então, algumas fic- como cada cena é tratada, e a maneira como se explicam as perso-
ções têm mais êxito na narrativa do que no espectáculo. O aconteci- nagens, contribuem mais para o sucesso de uma obra que a justeza
mento, que poderia comover-nos, se nos fosse contado com uma es- do plano, e que a sua regularidade; quer dizer, a união e dependên-
colha engenhosa de circunstâncias, exibido numa narrativa em que a cia de todas as diferentes partes que compõem o poema. Uma tragé-
verosimilhança fosse conseguida, torna-se um jogo de marionetas dia, em que todas as cenas tomadas em particular fossem belas mas
quando se pretende representá-lo no teatro. Com efeito, as meta- mal ligadas entre si, deve ter mais êxito que uma tragédia cujas ce-
morfoses que se representam sobre a cena nas óperas de França e nas bem ligadas entre si sejam frias. Eis porque admiramos vários
Itália quase sempre fazem rir, embora o acontecimento em si seja poemas que são menos regulares, mas que são sustentados pela in-
trágico. Eis porque o poeta que faz uma tragédia se vê obrigado a venção e por um estilo cheio de poesia, que de momento a mo-
recorrer a uma narrativa para nos expor todos os acontecimentos, mento apresentam imagens que nos tornam atentos e nos comovem.
tais como aqueles de que aqui se trata. Ora, a narrativa de um actor O prazer sensível que nos causam as belezas renascendo a cada pe-
ríodo, impede-nos de nos apercebermos de uma parte dos defeitos
reais da peça, e um faz-nos desculpar os outros. É assim que um ho-
I Assassínios e metamorfoses. (N.F.)
mem amável, em presença, faz esquecer os seus defeitos e por vezes
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os se us víc ios durante os mom ento s em qu e so mos se duzidos pel o s 4. A pompa trági ca
se us e ncantos e pela sua conversa. Ele consegue mesmo por vezes
D ad o qu e a fina lidade da tragéd ia é ex citar o terror e a co m pa i-
faze r-no s esqu ecer a definição geral do se u ca rác ter.
xão , d ad o qu e o m aravilho so pertence à essência de ste poema, é
A poesia do estilo consiste em e m presta r sentimentos interes-
pr eci so dar tod a a dignidade po ssível às pe rsonagens qu e a repre-
sante s a tud o o que fa zemo s falar como e x pr im ir por figuras, e a
sentam . Eis porque hoje normalmente ve st em estas person agens
apre senta r so b imagens capazes de no s com ove r, o que não nós to-
com ro upas imagin ad as à vontad e de cada um , e c uj a pr imeira ideia
ca ria se fosse dit o simp les mente em es tilo prosaico .
é tomada a part ir das roupagen s de guerra dos ro ma nos an tigos ,
Estas primei ras ideias qu e nascem na alma assim qu e el a re-
ro upa nobre em si mesma, e qu e parece te r qu alquer part e na gló ria
ce be um a afeição viva, e qu e se chamam normalment e «se ntimen-
do po vo qu e a usava . As roupagen s da s ac trizes sã o o qu e a imagi-
tos » , co movem se m pre , mesmo qu e sejam exp ressas no s term o s
nação pode inventar de mais rico e majest oso . Pel o co ntrár io, usam -
mais s im ples . Falam a lin gu agem do coração. Emíl ia toma-se inte-
-se as ro upas ditas da cidade, quer di zer , aq ue las qu e normalmente
ressante , portant o, qu ando diz nos termos m ais simples:
são usad as para representar a co mé d ia.
Os franceses não se preocupam com as roupagens para dar aos
A mo ai nda mai s C ina do que od eio Augusto .
act o res da tragédi a a nobreza e a di gnidade qu e lhes co nvêm . Nós
qu e remos ainda q ue esses actores falem nu m tom de voz mai s ele-
Um se ntimento ce ssaria mesm o de se r assi m tão co movente se
va do, mai s g rave e m ai s fi rm e do qu e aquel e e m qu e se fal a nas
fosse ex presso e m term o s magnífi cos e co m fi guras ambiciosas .
conve rsas vulga res. Tod as as negli gên ci as q ue o cos tume autoriza
O ve lho Horácio não me inte ressaria tant o qu anto me interessa se, e m
n a pron únc ia d os e ncon tros fa mi lia res es tão -lhes proibidas . Es ta
lugar de dize r sim ples me nte o famoso Que ele morta l , ex prim isse
man e ira de recitar é m ai s pr ejudicial à ve rdade do qu e o se ria um a
es te sentime nto e m es tilo fig urado . A verosi m ilha nça morreria com
pronunciação m ai s próxima da da s conve rsas v u lg ares, mas alé m
a simplicidad e da expre ssão. Onde pe rcebo afectaçã o, não re co-
de te r mais dignidad e, é ainda mais vantaj osa para os espectadores
nheço mai s a linguagem do coração . Et Trag icus plerumque d olct
qu e. po r seu int e rm édio, ouvem melhor o s verso s. Os espectadores,
sc rmone p ede str i , di z H o ráci o '. M as os regressos que os inte rlo -
que na maio ria es tão ba stante afast ados do teat ro I , teri am mu ita di-
c uto res fazem às suas e moções, e às dos o utr os, as refl e xõ e s do
ficuldad e em o uvir bem os ve rsos trági cos cujo estilo é figu rado, se
poet a , as narrati vas, as descri ções, num a palavr a , tud o o que não é
fosse m recitados mai s rapid am en te e mai s ba ixo , sobre tudo q uando
se ntimento ex ige, tanto qu ant o a natu reza do poem a e a veros imi -
os es pec tadores visse m um a peça pe la prime ira vez. Um a part e dos
lhan ça lh o per m itam , se r-nos represent ad o sob imagen s qu e form a m
versos esc a par- lhes-ia , e o q ue tive s se m perd ido imped i-l o s -ia
q uad ros na nossa imagi nação.
mu it as vezes de se re m comovido s pel o que o uv issem . É pr ec iso

I «E por sua v ez lima perso nagem de tragédia fa la m u itas ve ze s na dor uma Iingu age m
que rasteja», H o rácio , Ar/c Poético, vv. 95. (N .F.) , T rata-se da cena . (N .F. )
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ainda que os gestos dos ac tores trági co s sej am mai s comedi dos e im itação o u cópias de Ximen a e de Fedra. Chegamos ao teatro pre-
mais nob res, qu e a sua forma de a ndar seja mais grave, e qu e a sua parad os para ve r o qu e aí ve mos, e a í temos ainda perpetuament e
atitud e seja mai s sé ria qu e os ges tos, forma de andar e ati tude da s ce ntenas de coi sa s so b os o lhos, as quais, de ins ta nte e m instante ,
per son agens de comédia. Enfim, ex ig imos ao s act ores de tr agédia nos recordam d o local em qu e est amos, e do q ue so mos . O es pecta-
que ap resentem um ar de grandeza e de di gnidade em tud o o q ue fa- dor co nserva aí, portanto , o se u bom se nso , ape sa r d a mai s viva
zem, co mo ex ig im os ao poet a qu e as co loque em tud o o que lhes emoção . É se m delirar qu e aí no s apa ixo namos. Pode acontecer, no
faz di ze r. máximo, que uma pessoa muito j ovem, de nature za muito se nsível,
seja de tal m odo tran sportad a por um pra zer ai nda nov o para el a,

5 . Não há ilusão / /0 teatro que a s ua e moção e a sua sur p resa a façam so lta r qualquer ex cla-
mação o u faz er alg uns gestos involuntári os, qu e m ost rarão qu e ela
Algum as pes soas de es píri to ac re d itaram que a ilu são e ra a pri- não está a dar um a ate nção real à atitude qu e co nvé m g ua rd ar numa
meir a ca usa do prazer qu e nos proporcionam os esp ect ácul os e os ass em b le ia pública. Mas cedo se aperceber á do seu d e svario mo-
quadros. Seguindo o seu sentimento , a representação do Cid não mentâneo ou, para falar mais correctarnente, da sua d istracção. Por-
nos dari a tanto prazer senão pela ilusão que nos cria. O s ve rsos do qu e não é verdade qu e tenha acreditado durante o seu ê xta se ter
grande Corne ille, o aparelho da ce na e a declam ação do s acto res visto Rodrigo e Ximen a. E la foi somente toc ad a qu a se tão viva-
imp õem -se-no s bastante para nos faze r acr editar que , e m ve z de as - mente do que teria sido se , realmente, tive sse vis to Rodrigo ao s pés
sis tirmos à representação do aco nteci mento, assistimos ao pró prio da sua a m ad a c ujo pai acabou de m atar. (...)
aco ntec imento, e qu e vemos realmente a acção e não ape nas um a Conta-se um gra nde número de históri as de ani ma is, de cria n-
imitação. Es ta idei a parece-me insu stentá vel. ças , e mesmo de homen s fe itos qu e se deixaram pertu rb ar por qu a-
Não pod eria ha ver ilusã o no es pírito de um hom em que tem o dros ao ponto de os tomar pelos objectos de qu e e les não são mai s
seu bom se ns o, a não ser qu e anteri ormente tivesse sido criada um a que um a imitaçã o. Tod as es ta s pe ssoas, dir-se-ia , caíram na ilu são
ilus ão para o s se us sentidos . O ra , é ve rda de qu e tud o o que nós que co ns idera is como impo ssível.
vemo s no teatro concorre para nos comover, mas nada aí c ria uma ( ...)
ilusão par a os nosso s sentidos, po rq ue tud o a í se mo stra como imi- Qu ero bem concordar com tod os es tes fac tos , que provam ap e-
tação . Nad a aí ap ar ece , por assi m d izer, se nã o como có pia . Não nas qu e os quad ro s podem bem por ve zes faz er-no s ca ir na ilusão ,
chega mos ao teatro com a ideia qu e ve re m os aí ve rdade ira mente mas não qu e a ilusão seja a fonte do prazer qu e nos p roporc ion am
Xi me na e Rodrigo. Não vamos de m odo algum com a preven ção as im ita ções poét icas ou p ito rescas . A prova é qu e o prazer conti-
como a daquele que se dei xou persu adir por um má gi co qu e lh e iria nua , quando não há mai s lugar para surpresas. Os qu adros agradam
fazer ve r um espectro, e entra na cave rn a em que o fanta sm a deve se m ajuda desta ilu são, qu e não é senão um acid ente cio prazer que
aparece r. Esta prevenção predisp õe muito para a ilusão, m as não a nos proporcionam , e mesm o um acidente ba stante ra ro . Os quadros
levam os par a o teatro. O cartaz não nos prometeu mai s do qu e uma ag radam, embora tenham os pres ente no espírito q ue não são mais
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de stin o d os po.: ma s», 1'1'. 27 5 -277; 4 . Secção 42 : «Da no ssa mane ira de reci tar a T ragé d ia e a
do que um a tel a sobre a qual foram co locadas cores co m arte . U ma Comédia ». 1'1'. 4 17-4 19; 5 . Se cção 4 3 : «Q ue o prazer qu e se ntimos no Teatro e m nada é pro -
tragédia co move aquele s qu e co nhece m m ai s di stintament e tod os os duvido pela ilusão ». 1'1'. 4 29 -4 34 .)

es tratagemas qu e o gé nio do poeta e o tal ento do act or põem em ac-


ção para os comover.
aprazer que os quadros e os po et as dramático s exce lentes no s
podem d ar, é mesmo m a ior quando ve m o s pela seg unda ve z, e
23 - LA MaTTE : DISC UR SO PEL A OCASIÃO DE ROM UL US
quando não há lugar para a ilusão. A primeira vez qu e as ve mos,
( 1722)
ficamos aturdidos com a s ua bel eza . a no sso esp íri to, dem asi ado
inquieto e dem asiado em movimento para se fi xar nal guma coisa
Antoine Hou dart de La M otte (1672 -1 73/ ), muitas vezes cha-
e m particul ar, não goza ve rda de irame nte nada. Pa ra qu erer percor-
m ado por enga no La Mo tte Houdart , foi cé lebre como poeta líri co
rer tudo e ver tudo, não ve mos nad a d ist int amente . N ão há nin gu ém
(Odes) , e obteve alguns êxitos no teatro , em p articul ar com a tragé-
que não tenha experime nt ado o qu e di go, se al guma vez lhe cai u
dia Inês de Castro (1723). Mas torna- se também nota do p or um a
nas mãos alg um livro qu e de sejava ler co m muita impaciência. An-
participação enérg ica na Qu erela dos Antigos e dos Modernos, na
te s de consegu ir ler as primeiras págin as c o m um a ate nção c o m-
qu al tomava pa rtido pelo s modernos, e pela sua def esa da poesia
pl eta, fo i-lh e preci so percorre r o se u livro de uma ponta à o utra . As -
em prosa (lírica ou trágica ).
si m, quando ve mos uma be la tra géd ia , o u e n tão um bel o qu ad ro Os se us Dis cursos sobre a tragédia . esc ritos «na ocasião » das
pela seg unda vez, o nosso es pírito é ma is capaz de se demorar nas suas pr óp rias pe ças. anun ciam a grande revisão dram at úrgica da
parte s de um o bjecto qu e descobriu e percorreu por inteiro. A idei a
segunda metad e do séc . X V IlI .
ge ra l da o bra tomou o se u asse nto, por ass im di ze r. na imaginação:
porque é preciso qu e um a ta l ideia aí fiq ue durante a lg um tempo an -
tes de tomar aí o seu lugar. Então o es píri to entreg a- se se m distrac- Sobre o Esp ect áculo
ção ao que o toca. Um c ur ios o de arquitectura não e xam ina uma co- Desejar ia , de re sto, q ue c o m todas es tas atenç õe s, se tivesse
lun a , e não se demo ra so bre a lg u ma pa rte de um pal ác io , se não a in da tendên c ia para dar à tr agédia uma be leza que pareça se r da
depois de ter dad o um a vista de olhos a toda a m a ssa do ed ifíc io. se- s ua essênc ia, e qu e todavi a e la não tem en tre nós ; que ro d izer essas
não depoi s de ter bem co loc ado na sua imag inação a ideia di st int a ac ções admi rá ve is que cxige m cen ári os e es pec tác u lo . A mai or
de sse pal áci o. p arte da s nossa s peças não são mai s qu e di ál ogos e narrativas; e o
que há de sur preenden te é que a pr ópria acção que impre ssion ou o
( Du Bo s , R éflcxions Critiq nes surla Poési« ct .VII,. /11 Pcinturr, P. J. Ma rie ttc, 1733. I". Pa rte .
a utor, e qu e o det erminou na escolha d o se u tem a , passa-se quase
I . Secção 3: «Que o mérito principa l do s poe ma s e dos quadros co nsi ste e m imit ar o s obj ec -
tos que teriam ex cita do em nós pa ixões reais. As pai xões que estas imi tações fazem nasce r sem pre atrás d o teatro. O s Ingleses têm um gosto co m pletam e nte
e m nós ~âo apenas superficiais», 1'1'. 2X-3D; 2. Sec ção 13 : «E xe m plo do s assuntos pró prio s diferente. Di zem que o levam até ao exce ss o, e até pode se r assim ,
para t ~r e xuo na pintura », pp. 101 - 102: 3. Sec ção 33: « Da Poes ia do Es tilo na qua l as pala -
vras sao encaradas corno ~ i gnos das nossas idcias. Que é a Pne sia do Estilo que dete rm ina o
po rque se m d úvida ex is te m acções que não se ria m boas para pôr
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deb aixo dos o lhos , sej a pela difi culdade da execução pa ra se toma- mão, ca usa tão g ra ndes revolu ções, é por si, um es pect ácu lo consi -
rem ve rdadeiras , sej a pelo horror dos as suntos representados. Pelo derável ; e a pre sença do povo torna-a ainda mais interessante .
primeiro defeito, as acções mai s sé rias tomam-se pueris e cóm icas; Em Atali a, todo o aparato da coro ação de Jo as, o diadema real,
pelo seg undo, são odiosas e não fa riam m ais do qu e acostumar os o gl ádi o de D avid , o Livro da Lei, o gra nde sa ce rdo te aos pés do j o-
corações à c rue lda de. Mas, supondo que uma vez esses defe ito s ev i- ve m pr íncipe , a surpresa e ale gri a do s Levitas ao reconhecê-lo , os j u-
tados, qu antas acções imp ort antes o espect ador go sta ria de ver, e ramentos recípro cos dos súbditos e do rei , enfiJ!l. Joas sob re o se u
qu e lhe sã o furtadas, co m o pretexto das regras , para sere m su bsti- tro no apresenta do de repente a A ta lia que reconhece a a ma, e encon-
tuíd as por narrat ivas insípidas em co m paraç ão com as próprias ac- tra ainda o lu gar do punhal; tod o s estes objec tos impress ionam de
ções: porque é preciso dizê-lo de ca m inho , es sas narrativas fic am modo be m diferente que os mai s belos versos; e é então que se pode
suje itas a ba stantes inco nvenientes. Sej a porqu e par a se subs ti tuíre m dizer que o espectador assiste a acontecime ntos e não s im p les mente
à presen ça dos o bje ctos são dem asiado empoladas e de masiado po é- a di scursos , como na maiori a d as peç as. Sobre es te a ss un to fari a
tica s, e então parece que o poeta se res e rvou essa part e de os te n ta - aind a uma recomendação, é de não co locar estes grandes qu adros se-
ção, e qu e el e toma o lugar daqu ilo que conta; sej a porque são de- não nos último s act os. Quando se vi u o teatro tão a n imado, não se
masiado circunstanciais e demasi ad o exactas relativamente à p aixão regressa senão com pen a ao simples diál ogo, e a cena pareceria tant o
daquele que as esc uta, e que nã o se inte ressa se não pel o qu e lh e di z mais deserta qu anto mais povoad a tive sse sido vista ante rio rmente .
respeito . Por vezes, par a se redu zir ao princ ipal , não se lhe s d á a ex-
ten são qu e exigiria a curios idade do es pec tado r. Co loca i as ac ções (Lcs (À'/"'I"e s de T h éâtre de M . de La M orte . (JI ' !, C p lusicurs discours SI/ r la tra g éd ie, Dupu is,
1730 . tomo I. « De ux iêrne D iscours à I'oc casio n de Rorn ulus», pp. 11X-1 25 .)
no lugar das narrati vas, só a presen ça d as person agen s vai faze r
mai s impressão qu e a narrativa ma is cuidad a o pod er ia faz er. Horá-
cio disse-o, e é uma máxima que se tomou trivial , que os es píritos
são mais viva mente impress ionados pela vis ta do qu e pel o s o uv i-
do s. Dir-se-i a pela nossa prática qu e temo s uma máxima cont rá ria, 24 - RI CCOB ONI: A ARTE DE R EPRESENTAR (1728)
dado qu e afas ta mos dos olhos as acções m ais impressionantes, par a
não lhes dei xar mai s do que os pre parat ivo s, e qu e nós nos fia mos. AClOr e crítico . Lo uis Riccobon i (1675-1753) foi em Itália o
por assi m di zer, lias or elhas qu ando se tr ata de d ar os gra n d e s defensor da tragédia regular ao lado de autores como Maffei, antes
golpes . (...)
de ser chamado (J restaurar em Franç a o Teatro Italian o . em 1716.
Não co nheço mai s do que do is grandes qu adros nas no ssa s tra - Dircctor da co mpunhia c titular do pap el de p rimei ro apaixonado
gé dias; um , no último acto de Rod oguna , e a o utra no s doi s últ imos so b o nom e de Lélio . só pode representar um rep ertório c ám ico .
ac tos de Ata lia . Em Rod oguna não é alg o de imp onente aquel a ce- Assim que se ret ira da cena em 1728 , começa a escrever numerosas
rimóni a nupci al qu e decorre à vis ta do p ovo qu e C leó p atra toma obras históri cos c críticas sobre o teatro .
como te stemunh a ? Aquela taça s us pe ita qu e faz na scer tantos e O poema De 11 ' Art e Rappresentativa, com um ritmo alegre e mes-
variados movim entos nas personag en s e qu e, pas san do de m ão e m clado de gracejos. é anterior aos seus outros tratados. e apresenta-nos,
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sem dúvida , o p rimeiro ensa io europeu sobre o teatro que parte do o amor um a doçura ini gu al ável, o ab orrecimento um a pen a se m
ponto de vista do actor. dor, a indiferença um não -sei -quê ine xprim ível ;
E o qu e te desgost a ou o qu e tu desej as, a a legria e a dor, se as
se ntes, passar ão a om bre ira d o teu olhar.
A sincer idade do act or
Pela segunda vez me provocas, e fa ze s -me repetir o que j á
Escuta-me, e revelar-te- ei uma doutrina que, embora não seja a di sse, quanto à atitude:
de Platão, é divina e conveniente para ti. Assim dei xo-to doravante como regra geral.
Na arte da Repre sent ação , a primei ra das reg ras é supo r qu e
(L uigi R iccobo ni, D cl l' A rte Rapprescntati 1'0 , Lo ndr es . 17 2 H, Sex to can to , pp .53 , 59-60.
es tás só no meio de mil pessoas; T rad , de Marti ne de Ro uge rnont c Maria-Teresa Bulciol u.)
E qu e o ac to r qu e fa la contigo é o único que te vê , e ape nas e le
deve captar os teu s ve rda dei ros pen sam entos.
Se qu alquer outro pobre diabo representa um Prín cipe, é como
Príncipe qu e o deves tratar, mesmo qu e fosse lenhador;
25 - VOLTAIRE: BRUTUS E O UT RAS OBR AS (1730)
E então di spõe-te a esc utá- lo como se ignorasses tudo, e a se -
gui-Ia no s se us pen samentos.
Cons ide rado no século X I '1I1 co mo {} maio r dramaturgo \ '1\ ' 0 ,
(. ..)
representado em Toda a E uropa, Voltaire (1694- 1778) ensaia-se em
E agora chegamos a esse velho co nto de cam po nesa (creio ou- todos os gé neros e oc upa uma p osição-chave nas discu ssões sobre o
vi r-te falar com entus ias mo) da tua incrível Esco la. teatro. As suas tom adas de partido variam relativamente às modas .
Sem os olhos a tua palavra es tá mort a ; se m os o lhos o teu si- e m uitas vezes contra ela s (um dos introdutores de Shakespeare em
lên cio é nul o; se m os olhos o cego vai de lado. Fran ça, multipl icará os ataques co ntra ele nos últimos anos da sua
Junta aind a a este dogm a este princípi o original de ter cem olh a- vida), mas des enh am enfim um sistema co eren te que qu er equilibrar
res que sejam bem desenhados segundo a natureza de cem paixões; as qualidades da dramaturgia e do gosto clássic os qu e é necessário
E qu ando tiverem sido testados co m ajuda do es pelh o e dele s pró- co nservar. com o vigo r dos teatros grego e ing lês. e um empe nha-
m ent o crescente do p oeta.
prios, verás talvez mais de mil (espectadores) ensina dos ao mesmo tempo .
Sem procurar o art esão. tu o encontra rás e m ti ao m ínimo de-
sejo, se con sult ares se m pre o teu coraç ão. I . Es pcctáculo e conve ni ênc ia
Sente o medo, e o teu o lha r desan imad o ex pri m i-lo-á; um a
Talvez os Fran ceses não supo rtassem qu e se fizesse representar
gra nde cóler a e teu olhar flam ejará.
so bre os seus teatros um coro com posto de artesão s e pleb eus roma-
A vergonh a dar-lhe-á horror, e a ironi a uma alegria corromp ida, nos; que o corpo ens a ng ue ntado de César aí fos se exposto ao s olhos
qu e desafio um pintor a rep roduzir. do povo , e que se exc itasse esse povo à vinganç a, do a lto da tribuna
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14 7

d as arenga s: é ao cos tume, que é o rei de ste mundo, qu e ca be mudar


qu e um a ro sa não podia ter cores v ivas porque co ntavam os se us es-
o gosto da s nações , e a transformar e m pr azer os obj ectos d a nos sa
pinhos às apa lpa de las. Ma s se os G regos e vós passais os limites da
- I
aversao . conveniênci a, e se os Ingleses so bretudo apresentara m espec t áculos
horrívei s querendo apres entar te rr ívei s, cá nós, os Franceses, tão es-
ES PECTÁCULOS HORRÍVEIS NOS GREGOS 2
crupul osos como vó s fostes temerários, n ós detemo-no s de mais
Os Gregos ousaram apresentar e sp ect áculos ~âo menos revol- com medo de no s e ntusiasmar; e por vezes não alcanç a mos o trá-
tant es para nós. Hipól ito , queb rado p el a sua queda, vem co ntar as g ico, co m med o de ultrap assar os se us limites.
suas fer idas e lan çar gritos dolorosos; Filoct etes cai nos se us acessos Esto u bem longe de propor qu e a ce na se tome um lu gar de car-
de sofrime nto; um sa ng ue negro esco rre da sua ferida. Édipo, cobe rto nificin a, como o é e m Sh akespeare e nos se us sucess ores , o s quais,
do sangue qu e go tej a ainda do resto d os se us olhos qu e acaba de ar- não possuindo o se u gé nio, só imit aram os seus defeit os; m as ouso
ran car, lam enta-se dos deu ses e dos home ns. Ou vem-se os gri tos de ac red itar qu e há situações qu e não parecem ai nda mais do qu e re pu g-
C litemnes tra q ue o se u próp rio filho degol a; e Electra grita no te a- nantes e horrívei s aos Franceses e que , bem diri gidas, re prese n tadas
tro: «Fere-a , não a poupes, ela não poupou o nosso pai ». Prometeu com arte, e sobretudo adoçadas pel o encanto dos belos versos, pode-
es tá ligado a um rochedo com pregos qu e lhe enterram no e stôm ago riam dar-nos uma es pécie de prazer so bre o qu al não temos dúvidas.
e nos bra ços. As Fúrias respond em à som bra ensang uc ntada de C li-
Não e x iste se rpe n te , nem mon st ro odio so,
temnestra com urr os se m qu alquer a rti c u lação . Mu itas tragédi as
Qu e , imitad o pe la a rte. não possa agradar ao s o lhos.
gregas, numa palavra, es tão che ias de ste terror levad o ao ex tre mo.
Boi lcau . Ar' p o"'.. 111 . 1-2 .
Sei bem qu e os trágicos gregos, a liás superiores ao s in gl eses,
erraram tom ando muitas vezes o horror pel o terror, e o repugnante e
o incrível pel o trágico e o maravilhoso . A arte estava na sua infânc ia CONVENIÊ NC IAS E UN IDAD ES

ao tempo de És q uilo , como em Londre s ao tempo de Shakespeare;


Ao menos, d igam-me porque é que, aos nossos herói s e às nos-
ma s, entre os grandes erro s dos poetas gregos, e mesmo dos vossos ), sas heroínas de teat ro, lhes é perrnitido suicidarem-se, e lh es é proi-
e nc ontra-se um patét ico verda dei ro e bel ezas sing ulares; e, se al - bid o mat ar os o utros . A ce na fica rá men os e nsa ng ue n ta da com a
gu ns fran ceses, qu e não co nhecem as tra gédias e os costumes es - mort e de A ta lida, qu e se a punha la por ca usa do se u amante , d o q ue
trange iros se não por tradu ções e po r o uv ir dizer, os co nde na m se m ficari a co m o assassí n io de César, e se o es pec tác ulo do filh o de C a-
quai squer restri ções, são, parece-m e , como os cegos qu e garantia m tão, qu e aparece m ort o aos olh os de se u pai, é o mom ent o para um
d iscurso adm iráve l de sse ve lho ro mano; se es ta passagem fo i a p lau-
I Trata-se de J úli o C ésar de Shakespcare, (N. F .) dida e m Inglaterra e e m Itáli a por aq ue les qu e são os mai ore s parti-
2 Os ca racter es itálicos tendo sido utilizados pa ra os títulos int rodu zidos pe los au tores
da antologia, os títul os o u subtítulos dos autores dos te xtos aparecem em maiúsc ulas mais pe-
dários da conveniên ci a france sa ; se as mulhe res mais deli cadas não
quenas. (N.F .) ficaram nada chocad as, porque é qu e não se habituariam os fra nc e-
3 Voltaire diri ge-se a Lord Bolingbroke. (N.F.) ses? A naturez a n ão é a mesma em tod os os hom en s?
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Todas estas leis, de não ensanguentar a cena, de não fazer falar POMPA E DIGNIDADE DO ESPECTÁCULO NA TRAGÉDIA
mais de três interlocutores, etc., são leis que, parece-me, poderiam ter
algumas excepções entre nós, como tiveram entre os Gregos. Não Quanto mais uma acção teatral é majestosa ou assustadora,
acontece com as regras da conveniência, sempre um pouco arbitrárias, tanto mais se tomaria insípida se muitas vezes repetida; quase como
o que se passa com as regras fundamentais do teatro, que são as três acontece com os pormenores das batalhas que, sendo por si mesmos
unid'aCles: surgiria fraqueza e esterilidade se se estendesse uma acção o que há de mais terrível, tomam-se frios e aborrecidos à força de
para além do espaço de tempo e do lugar convenientes. Perguntai a reaparecerem muitas vezes nas histórias. A única peça em que o se-
quem tenha inserido numa peça demasiados acontecimentos os mo- nhor Racine introduziu o espectáculo foi na sua obra-prima Atalia.
tivos desse erro: se está de boa fé, dir-vos-á que não tinha génio sufi- Vê-se aí uma criança sobre um trono, a sua ama c sacerdotes que a
ciente para preencher a sua peça com um único facto; e se ele usa dois rodeiam, uma rainha que ordena aos seus soldados que a massacrem,
dias e duas cidades para a sua acção, acreditai que é porque não teria a levitas armados que acorrem a defendê-la. Toda esta acção é paté-
habilidade de a encerrar no espaço de três horas e no recinto de um pa- tica; mas se o estilo também não o fosse, não seria mais que pueril.
lácio, como o exige a verosimilhança. Acontece o contrário com Quanto mais se quer ferir os olhos com cenários deslumbran-
aquele que ousaria apresentar um espectáculo horrível sobre o teatro: tes, tanto mais se tem a obrigação de dizer grandes coisas; de outro
não chocaria a verosimilhança; e essa ousadia, longe de sugerir qual- modo ser-se-ia um decorador, e não um poeta trágico.
quer fraqueza por parte do autor, exigiria, pelo contrário, um grande
génio para, pelos seus versos, dar uma grandeza verdadeira a uma ac-
2. O amor na tragédia
ção que, sem um estilo sublime, seria apenas atroz e repugnante.
Os actores representaram Édipo I contrariados, do qual nada
esperavam. O público foi inteiramente da vossa opinião: tudo o que
QUINTO ACTO DE RODOGUNA
estava à maneira de Sófocles foi aplaudido no geral; e o que sugeria
Eis o que uma vez ousou tentar o nosso grande Comeille, na um pouco a paixão do amor foi condenado por todos os críticos es-
sua Rodoguna. Apresenta uma mãe que, na presença da corte e ele clarecidos. Com efeito, minha senhora, que lugar impróprio para a
um embaixador, quer envenenar o seu filho e a sua nora depois ~',e galanteria é um parricídio e o incesto que afligem uma família, e o
ter morto o seu outro filho com as suas próprias mãos. Ela apr~­ contágio que assola um país! E que exemplo mais notável do ridí-
senta-lhes a taça envenenada; e perante a sua recusa e as suas sus- culo do nosso teatro e do poder do hábito que, dum lado, Comeille
peitas, bebe ela própria, e morre com o veneno que lhes destinava. que faz dizer a Teseu:
Golpes assim tão terríveis não devem ser prodigalizados, e não cabe
a qualquer um ousar assentá-los. Estas novidades exigem uma
grande circunspecção, e uma execução de mestre. Os próprios in-
gleses confessam que Shakespeare, por exemplo, foi o único entre I Este texto é dirigido em 1750 à duquesa do Maine. Voltaire refere-se ao seu próprio
l~'dipo. representado em 171 X, e que incluía urna intriga galante acrescentada à fábula antiga.
eles que soube evocar e fazer falar as sombras com êxito. (NF.)
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no ssa nação , pelas belezas sublime s que perten cem un icamente ao


Por ma is horrível a de vastação que aq ui inst ala a peste
A ausê nc ia aos vcr d;\{lciros amantes é aind a m ai s funesta ;
se u gé nio .
Um a coisa a meu ver ba stante estranha, é qu e os gra ndes poe-
e eu qu e, sessenta anos depois dele , venho fazer falar um a ve lha 10 - tas trágicos de Atenas tenham com tanta frequê ncia tratado assuntos
casta so bre um ve lho amo r, e tudo isso para comprazer ao gosto em que a naturez a e x ibe tud o o que el a tem de comovente , uma
mai s insípid o e m ais falso que jamais corrom pe u a literatura? Electra, um a lfig én ia, um a Mérope, um Al cm éon, e qu e os nos sos
Que um a Fedra, c uj o caráct er é o mais teatral qu e a lg uma ve z grandes modernos. ne gligenciando tai s temas, não tenham quase
se viu, e qu e pr at icamente é a única que a antig uida de re prese nto u trat ado senão o amo r, qu e muitas ve zes é mais ad equado à comédia
apa ixo nada ; qu e uma Fcdra, digo e u, ex iba os furores dessa pai xão qu e à tragédi a . Po r ve zes acr edita ram e nobrecer es te a mor co m a
funesta ; qu e um a Roxana, na ocio sidade do serralha , se abandone política; mas um amor que não é furio so é frio, e uma política qu e
ao am or e ao ci úme; qu e Ariadne se qu e ixe ao cé u e à terra de um a não é uma ambi ção desenfreada é ainda mais fri a. O s raci ocínio s
infidelidade c rue l; qu e Orosmane mate o que ele adora : tudo ist o é políticos são bo ns para Políbio , pa ra M aquiavel ; a ga lante ria e stá no
verdadeiramente trági co. O amo r furi o so, crim ino so, in fe liz, se - seu lug ar na coméd ia e nos contos ; mas nada de tudo isto é digno
guido de rem ors os, arranca nobres lágrimas . Não ex iste m ei o termo : do pat ético e da g ra nd iosi dade da tragédia .
é pre ciso qu e , ou o amor domine como tiran o, ou que não a pa reça ;
não é feit o para um seg undo lugar. M as qu e Ne ro se esconda atrás
3. A mistura dos g éneros
duma tapeçaria para ouvir os discursos ela su a am ante e do seu riv al ;
ma s qu e o velho M itrid ates se sirva ele um ar d il c óm ico pa ra sa be r o Se a coméd ia eleve ser a representação dos co stumes, e sta peça
seg redo de uma jove m amada pelo s se us doi s filhos; mas qu e M á- parece bast ante ser desse tip o . Vê -se aí um a mi stura de se riedade e
ximo, mesmo na peça C ina , tão ch eia de bel ezas viris e verdadeiras. ele gracejos, de c ómico e de co move nte. É as sim qu e a vida elos ho-
não de scub ra como um cobard e uma co ns p iração tão impo rtante men s es tá m ati zad a; muitas ve ze s m esmo um a úni ca aventura pro-
porque es tá imbecilmente apaixon ado po r um a mulher c uja pai xão
du z todos estes contra stes . Nada é m ai s com um qu e um a casa na
por Cina ele de veria conhecer, e qu e no s dão como moti vo :
qual um pai resmunga, uma filha a rre ba tad a pela sua pai xão c hora,
o filh o zo m ba do s dois. e alguns parentes tomam part e na ce na de
...... O amor to rn a tudo permitido:
man eiras diferente s . Troça- se muit as vezes num qu arto elo que e n-
Um verda de iro ama nte não tem um am igo;
ternece no qu arto vizinho, e a mesma pessoa algumas vezes riu c
ch orou pela m esma co isa no mesmo qu arto de hora.
mas qu e um ve lho Se rtório ame não sei qual Viriato , e qu e seja as-
Um a se nhora muit o respe itável , es ta ndo um di a à cabece ira de
sassina do por Perpcn a, apaixonado por aq ue la esp anh o la. tud o isto
um a da s suas filh as qu e estava em perig o ele vi da, ce rcaela ele toda a
é pequeno e pueri l, é preciso dizê -lo corajosamente : e es ta pequenez
sua fam ília , ex cl a m av a fundind o- se e m lágrim as: «Me u Deus , dei -
co locar-nos-ia prodigiosame ntc aba ixo do s Ate nie nses se o s nos sos
xai-a co m igo e leva i todos os meu s o utros filh os! » Um homem qu e
grande s mestres nã o tivessem red im ido esses defeit os. qu e são da
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tinha desposado uma o utra da s filhas aprox im a-se dela e, pux ando- 26 - DIDEROT: CO NVERSAS SOBR E O F IL HO NATUR AL E
-lhe pel a man ga: «Minha se nhora, d iz ele, os ge nros também co n- OUTRAS OBRAS ( 175 7)
tam ?» O sa ng ue- frio e o có mico com que pronunciou es ta palavras
fez um efeito tal sobre es ta se nhora aflita que el a começou a rir às D enis Diderot (1 713-1 784). dramaturgo contestado , represen -
garga lha das; todo s a seg uiram a rir; e a doent e , tendo sa bido do qu e tado a inda durante a sua vida p ela prov ín ci a e p el o es tra ngeiro,
se tratava , ainda riu mai s alto que os outros. co nsagra ao teatro clássico uma primeira crítica que se torno u no -
Não inferimos daqui qu e toda a comé d ia deva ter ce nas de bu- tada (q ue L essin g iria traduzir e co mentar na s ua Dram aturgi a de
fon ar ia e ce nas enternecedoras. Existem mu itas peças de qu alid ade Hamburgo ) no quadro de um rom ance ga la nte, As Jó ias Indi scretas,
o nde a pe nas reina a al egria; outras co m pleta me nte sé rias, outras em 1748 . Em 175 7 c 175 8 , acrescenta aos se us do is gra ndes dra-
mistu rada s, outras ond e o enternecime nto vai até às lágrimas. Não mas, O Filho Natural e O P ai de Família, as Conve rsas so bre o Filho
se deve ex cl uir nenhum gé ne ro, e se me perguntassem qu e gé nero é Natural e um tratado Sobre a Po esia Dramáti ca que fun daram para a
o melh or, res ponderia: «O qu e for melhor tratado». Fran ça uma nova dramaturgi a . A sua con cep çã o d o a cto r era entôo
( ...) próxima da de Luigi Ricc oboni (veja-se texto 24) : D orval, protago-
A comé dia, mais uma vez, pode então apaixonar-se , entus ias - ni sta das Conversas, é igualmente o autor, a person agem principal e
mar- se , enternece r, desde qu e dep oi s faça rir as pessoas de be m. Se o ac to r do seu próprio pap el em O Filho Natural , cujo envolvi mento
lhe fa ltasse o có mico, se nã o fosse senão lacrimejante, então se ria pessoal e sensi bilidade apenas p ermitiam a representação .
um gé nero mu ito dep ravado e muit o desagrad áv el. Tendo as S ilOS ideias f ilosóficas evoluído profundamente , D iderot
Confessa-se qu e é ra ro fazer passar os es pectadores inse ns ivel- dev 'cria no Parado xo so bre o Ac tor (sobre o q ual trabalha de 176 9
ment e do enternec imento ao riso; m as es ta passa gem , por mais difí- at é aos últimos anos da sua vida, mas qu e só foi publicado em 1830 )
cil qu e seja de captar num a co média, não é m en os natural aos ho- propor uma interpretação da criação do aet or, e de todos os aetos
men s. Já fizemos notar nout ro mom ent o qu e nada é m ais vulgar qu e de criação , em torno da qual a co ntrovérsia ai nda continua.
as ave nturas qu e afligem a alma, e cujas circ uns tâ nc ias in spi ram em
seg uida um a alegria passa geira. Infeli zment e é ass im qu e é fe ito :)
I . Tex to . gesto e se ns ibilidade
gé nero humano. Homero represe nta mesm o os deu ses rindo da des-
graça de Vulcano , no tempo em q ue e les decidem so bre o destino D OR VAL

do mundo . Heitor so rri do medo de se u filho As tíanax, enqua nto Há lugares qu e se ria prec iso qua se aba ndo nar ao ac tor. É e le
Andró maca semeia as lágrim as. q ue m de ve dispor da ce na esc rita , repetir ce rtas pal avras, retomar
ce rtas ideias, suprim ir algum as e acrescentar o utras . No s cantabile
(Vo ltaire , (J 'II\ TeS comp letes, l.ouis Mo land (ed .), Paris , Gamier, I x~n . I : Disco urs sur la
Tra g édic . A milord Botingbrol:e (17 30 ), tom o I. pp. 3 17- 320 ; 2: Epítre ú M udum e la du -
o mú sico deixa a um g ra nde cantor o livre exercíci o cio seu gosto e
ch es se du M aine (1 750), tomo IV, pp . X2-X3; 3: L 'Enf a nt prodi gue . Préfa re de l' édi teu r do seu talento: content a- se em marcar-lhe os int e rvalos principais
(1738), torno li , p. 44 3; e Nunine, 0 11 I" Préjll g é vaincu . Préfa ce (1750). tom o IV, p. !O.)
de um bel-canto . O poeta deveria fazer o me smo qu ando conhece
154 155

bem o seu ac to r, O qu e é qu e nos afecta no espec tác ulo de um ho- diri ge a ele? O a utor sai u do se u tema, o actor levado fora do seu
mem animado por um a grande paixã o ? S ão os se us d iscursos ? Às papel. Saem os do is d o teatro . Vej o- os na plat éia: e e nq ua nto dura a
vezes. Mas o qu e comove se mpre, são os g r itos, as pala vras in arti- ~irada, para mim a acção suspe nde u-se , e a ce na fica vazia. ,
c uladas, as vozes entrecortadas, a lguns monossílabos qu e se esca- H á, na co m pos ição de um a pe ça dramáti ca, um a unidade de
pam por interval o s, um não sei qu e murmúrio na garga nta , e n tre - di scurso que corresponde a uma unidade de e ntoação na declama-
dentes. A v io lê nc ia do se ntime n to e n treco rta ndo a respiraç ão e ção..São dois sis te mas qu e variam, não di go da co méd ia à tra gédia,
levan do a co moção ao es p írito, se para as sílab as da s pal avras , o ho - m as de uma coméd ia o u de um a tragédia a outra. Se fosse doutra
mem passa de um a idei a a outra; começa uma multitude de d iscu r- maneira, ha veria um de feito , ou no po ema, o u na re presentação. As
sos, e não ac aba nenhum; e, com excepção de alguns se nti mentos per sonagens não te r iam ligação e ntre s i, a conven iência a qu e se de-
qu e tran sm ite no primei ro ace sso, aos quai s regressa sem cessar, o ve m submete r, m e sm o nos co ntras tes. Sentir-se- iam , na declama-
resto não é mais do qu e uma seq u ênc ia de ruídos fraco s e con fusos, çã o , di ssonânci as que fe ririam. Reconhecer- se- á, no poema , um se r
de so ns ex pirantes, de acent os aba fados que o actor conhece melhor que não teria sido feito para a soc iedad e em qu e o int rodu ziram.
qu e o poeta. A voz, o tom, o ges to , a acção, eis o que perten ce ao Ê o actor que tem qu e se ntir esta unidad e de tom . Eis o traba-
ac tor; c é o que nos toca, sobretu do no e spec táculo da s grandes pai - lho de toda a sua vid a. Se es te tacto lhe falt a, a sua representação
xões. É o ac tor quem dá ao discu rso toda a energia qu e es te tem. se rá umas vezes fraca , outras ex age rad a, raram ent e equilibrad a, boa
Ê ele qu em leva aos ou vidos a força e a ve rd ade da entoação . nal gun s mom ent os , m á no co nj unto.
Se o fur or de se r ap laud ido toma posse de um actor, e le ex a-
Eu ge ra. O defeit o do se u ac to alarga-se à acção de um o utro. De ixa de
Por vezes pensei qu e os disc ursos dos a mantes apaixona dos ex istir un idade na decl amação do se u pap el. E tamb ém na decl a ma-
não eram co isas par a ler, mas para se re m ouvid as. Porque , d izia a ção da peça . Passo a ve r so bre a cena a pe nas urna assem b le ia tu-
mim própri o , não é a ex pressão am o-vos , que foi arran cada ao re- multuosa em que ca da um usa o tom que lhe a pe tece; fico a bo rre-
ca to de um a mulher au ster a, dos pr oj ect o s de uma levian a , da vi r- ci do ; levo as mão s às o re lhas e fuj o.
tud e de urna mulher se ns ível: é o trem o r na voz com o qu al é p ro - ( ...)
nun c iad o; as lágrimas, os olhares qu e o acompanham . Es ta ideia Aprec ia i a força de um grande conjunt o de espec tadores, a par-
es tá próxima da vossa. tir daquil o qu e vós próprios sa be is ace rca da acção dos homens un s
so bre os outros, e da com unicaç ão da s pa ixões nos d ist úrb ios pop u-
D ORVA L lares. Quarenta o u ci nq ue nta mil homen s não são contidos pela de -
É igual. Um ramo op osto a es tas ve rd adeiras voz es da pa ix ão, é cência. E se acontecesse qu e uma pessoa im port ant e da república
aq uilo qu e c h a m a m o s de tirada s . Nada é mais aplaudid o , e d e ve rtes se uma lágrima , qu e efe ito pensais qu e a sua do r iria produzir
maior mau gosto . Numa represent ação dramática, não se trat a tam- sobre o resto dos esp ect adores? Há alguma coi sa de m ais patética
bém do es pectador como se não existisse. Há alguma co isa qu e se qu e a dor de um homem ve ne rável?
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Aquel e qu e não se nte a ume n ta r a su a sensação pela grande tenha fe ito e leva r a voz, se parar as sílabas , afina r a e nto ação, e se n-
quantidade daqueles qu e a partilham, tem um qualquer defeito se- tir a ut ilidade da versifi cação? Horácio di z so bre o ve rso dramático:
creto; tem no se u carácter qualque r coisa de solitário que m e desa-
grada.
Vincc ntem strepitus , c t na tum rehu s agc ndis I
M as, se o concurso de um a grande qu antidad e de homen s po-
derá ac rescentar a emoção do es pectador, qu e influência não deveria
«É apropriad o pa ra a intriga, e faz-se ouv ir por c im a do ru ído.»
el a te r sobre os autores, so bre os ac tores? Que di fe rença, e ntre di -
Mas não se ria preciso qu e o e xage ro se es pa lhasse ao mesm o tempo,
vertir tal dia, depois de tal a tal hora, num pequeno lugar ob scuro,
e pela mesma ca usa, pel o caminho, o gesto e toda s as outra s partes
algum as ce nte nas de pessoas; ou fixar a atenç ão d e uma n ação in -
da acção? Daí nasceu um a arte qu e se cha ma declam ação.
teira nos seu s dias so lenes, ocup ar os se us edi fíc ios m a is sumptuo-
O que qu er qu e seja; qu e a poesia tenha fe ito nascer a de clama -
sos, e ver es ses edifíc ios ce rcados e cheios de um a multidão inume-
ção teat ral ; qu e a necessid ad e dessa decl am ação tenha int rodu zido ,
rá vel , c ujo divertimento o u ab orrecimento va i depender d o no ss o
tale nto? tenh a sustentado so bre a ce na a po es ia e a sua ê nfase; o u qu e este
sistema, form ad o a pou co e pouco , tenha durado pela conveni ência
Eu da s sua s partes, o ce rto é qu e tu do o qu e acção dram áti ca possui de
e no rme produz-se e de sa pa rece ao mesm o tempo . O ac tor deix a c
Dais bastant e imp ort ân ci a a c irc unstâncias pu ramente locais.
ret oma o e xa gero sobre a ce na .
Há um a es pécie de unidade q ue se busca se m se dar po r isso , e
DORVAL
à qual nos fixam os qu an do é en contrada. Es ta uni d ad e impõe roupa-
É a import ância qu e e las teriam sobre rrurn ; e c reio qu e os ge ns, um tom , um ge st o . uma conte nção, desde a cadeira co locada
meus se ntimentos es tão correc tos . no s te m p los a té aos palc o s erigi dos nas e nc ruz ilhadas . Veja um
c ha rla tão na esq uina da praça Dauphine; está enga la na do co m tod a
Eu a es pécie de co res; tem os dedos ca rregados de an é is; lon gas plumas
Mas dir- se- ia, ao ouvir-vos, qu e são as circuns tâ nc ias qu e susten- vermelh as flu tuam à vo lta d o seu chapéu . A p rese nta co ns igo um
taram , e talvez até tenham introduzido a poesia e a ên fase no teatro. macaco ou um urso; el ev a-se no s es tribos; grita com todas as força s;
gestic u la da ma ne ira mai s ultraj an te; e todas as co isas são ade qua-
DORVAL das ao lug ar , ao orador e ao se u aud itório .

Não ex ijo qu e esta conj ec tura sej a aceit e . Peço qu e a exam i-


nem. Não é suficienteme nte ver o s ímil qu e o grande número de es-
pectado res pel os quais e ra preci so fazer-se ser ouv ido, ap esar do
murm úr i o co nfuso que exci tam, mesm o nos momentos de atenç ão , I Arte Portira , vv . X2. IN .F . )
158 159

2. O género sério Estabelecido este género, não haverá nenhuma condição na so-

Depois de alguns discursos gerais sobre as acções da vida, e ciedade, nenhuma acção importante na vida, que não possa ser re-

sobre a imitação que se faz no teatro, ele disse-me: portada a qualquer parte do sistema dramático.
«Distingue-se em todo o objecto moral, um meio e dois extre- Quereis dar a este sistema toda a extensão possível; incluir aí a
mos. Parece então que toda a acção dramática sendo um objecto verdade e as quimeras; o mundo imaginário e o mundo real? Acres-
moral, deveria ter um género médio e dois géneros extremos. Temos centai-lhe o burlesco acima do género córnico, e o maravilhoso
estes; é a comédia e a tragédia: mas o homem não está sempre em acima do gênero trágico.
sofrimento ou na alegria. Há pois um ponto que separa a distância
entre o género cómico e o género trágico». Eu
Terêncio compôs uma peça 1 cujo tema é o seguinte. Um jovem Compreendo-vos: O burlesco... O género cómico... O género
casa-se. Mal se casou já os negócios o chamam de longe. Ausenta- sério... O género trágico... O género maravilhoso.
-se. Regressa. Parece-lhe descobrir na sua mulher provas evidentes
de infidelidade. Fica desesperado. Quer mandá-la para casa dos
DORVAL
pais. Imaginem o estado do pai, da mãe e da filha. No entanto há
um tal Dave, uma personagem agradável em si. Que faz o poeta? Em rigor, uma peça nunca se encerra num género. Não há obra
Afasta-o da cena durante os quatro primeiros acres, e chama-o ape- nenhuma, nos gêneros trágico ou cómico, onde não se encontrem
nas para alegrar um pouco o seu desenlace. momentos que não estariam deslocados no género sério; e haverá
Pergunto-me: a que género pertence esta peça? Ao género reciprocamente neste, momentos que trarão a marca de um e outro
cómico? Não há ali uma palavra que faça rir. Ao género trágico? gênero.
O terror, a comiseração, e as outras grandes paixões em nada são aí A vantagem do género sério é que, colocado entre os dois ou-
excitadas. No entanto, é interessante; e será, sem o ridículo que faça tros, tem recursos, quer porque se eleva, quer porque se abaixa. Tal
rir, sem perigo que faça tremer, em toda a composição dramática em não se passa com o género cómico e com o gênero trágico. Todos
que o tema seja importante, em que o poeta use o tom que emprega- os cambiantes do cómico estão compreendidos neste mesmo género
mos nos assuntos sérios, e onde a acção se avance pela perplexidade e no sério; e todos os do trágico, no sério e no trágico. O burlesco e
e pelo embaraço. Ora, parece-me que estas acções sendo as mais o maravilhoso estão igualmente fora da natureza; não se lhes pode
comuns da vida, o género que as terá por objecto deve ser o mais ir buscar nada, porque a estragariam. Os pintores e os poetas têm o
útil e o mais vasto. Chamarei a este género o género sério. direito de tudo ousar; mas este direito não se estende até à licença
de fundir espécies diferentes num mesmo indivíduo. Para um ho-
mem de gosto, há o mesmo absurdo em Castor elevado ao nível
dos deuses, como no gentil-homem burguês transformado em ma-
I Trata-se dc t t ccira. (NF.) marracho.
t60 t 6t

_Q_ gén ~ro có m ico e o gé nero trágico sã o os limites reai s da Vós vedes qu e es ta es péc ie de dr ama, em qu e os tra ços mais
co mposi ção dram ática. Mas, se é impossível ao gé nero c óm ico cha - agradávei s do gé nero c ómico e stão co locado s lad o a lad o co m os
mar em sua aj uda o gé nero burlesco se m se deg radarem ; ao género traços mai s comoventes do género sério, e qu ando se sa lta alt ern ati-
trágico , de entrar no gé nero maravilhoso, sem perder a sua verdade; vame nte de um gé nero a outro , não se fica sem defeito aos olhos de
segue- se qu e, co locados na s extre m ida des, es tes gé ne ros são os um crítico mais se vero.
mais tocantes e os mais di fíceis. M as qu erei s ficar conve nc ido do peri go qu e exis te em ultra-
É no gé ne ro sério qu e primei ro se deve exercitar todo o hom em passar a barreira qu e a natureza coloc ou entre os géne ros? Levai as
de letras qu e se nte ter talent o para o teatro. A um jovem a luno desti- co isas at é ao excesso; aprox im a i os doi s gé ne ro s tão a fas tados ,
co mo a tragédia e o burl esco; e ve re is alterna tiva me nte um grave se-
nado à pintura ensina-s e a desenh ar o nu. Qu ando es sa pane funda-
nad or representar ao s pés duma cortesã o pap el do devasso mais vil,
ment al da arte se lhe tomou fami liar, e le pode es co lhe r um tem a.
e os facci osos meditar a ruína de um a república I .
Que o vá buscar ou às co nd ições co muns, o u a um nível e levado ,
A far sa , a parada 2 e a paródi a nã o são gé neros, m as es péc ies de
que e le vi sta as suas figuras co m o lhe apeteça, mas qu e se sinta
cómico ou de burlesco , que têm um tema parti cular.
sempre o nu sob as roupagen s; qu e aqu ele qu e tenha feito um longo
J á centenas de vezes explicaram a poética do género cómico e
estudo do hom em no exercíc io do gé nero sério, ve nha a ca lçar, se-
do gé ne ro trági co. O gé ne ro sério tem a sua; e esta poéti ca se rá
gundo o se u gé nio, o coturno ou a sandália; qu e atire so bre os om-
tam bém m uito d ivulgada.
bro s da s ua per son agem um ma nto real o u uma li bré de pa lácio,
( ...)
mas qu e o hom em nunca desapareça sob as ves timentas .
Se es tais convenc ido, d iz- m e e le (...) qu e exista, entre a tragé-
Se o gé ne ro sério é o mai s fác il de todos, é , e m co ntra pa rtida , o
di a e a co méd ia, um gé ne ro inte rmed i ário , e is e ntão do is ramos do
men os suje ito às viciss itude s dos tempos e dos lugare s. Levai o nu gé ne ro dr amát ico qu e não foram ainda cultivados, e qu e apena s es-
para qualquer part e da terra, que vos ag radará na mesma; atra irá a peram os homen s. Fazei comédias no gén ero sé rio , faz ei tragédias
aten ção , se es tá bem desenhado. Se so is excelente no géne ro sé rio, dom é sti cas, e ficarei s seguros de qu e os aplausos e a imortalidade
agrada re is e m todos os tempos e a tod os os povos. As pequena s va- vos es tão rese rvados . Sobretudo, ev ita i os go lpes de teatro; procurai
riações qu e irá buscar a um gé nero co latera l se rão demasia do frac as os q uadros; aproxima i-vos da vi da rea l, e primeiro que tud o arra nja i
para o mascarar ; são as pon tas da ro upa que co bre m ape nas alguns um es paç o q ue permita o exercício da pant om ima em toda a sua ex -
locais, e qu e deixam a descoberto as grandes pa rtes. te nsão... Di ze m q ue não há m a is g randes paix ões trági cas que pos-
Vós vedes que a tragicomédi a não pode ser se não um gé ne ro sam co m over; qu e é impossíve l aprese ntar os sentim entos elevados
de má qu al idade porqu e se co nfundem aí dois gé ne ros di stan tes e
separados por uma barre ira natural. Não se passa aí por variaçõe s I Vej a-se a Ve nisc pres érvéc de O tway; o Ha m lct de Shakes pea re, e a maioria das pe-
ças do teat ro ing lês. (N .A .)
imperceptívei s; cai-se a ca da passo nos co ntras tes , a unidade desa-
2 A parad a é um a pequena farsa represen tada nos teatros priv ad o s do séc ulo X VIII fran -
parece. cês. pse udo po pula r e muit as vezes obsce na. (N.F .)
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de um a man eira nova e tocante . Pode se r as s im na tragédia, tal 3. Teoria das condições
como os Gregos, os Romanos, os Franceses, o s Italianos, os Ingl e-
Eu
se s, e todos os povos da terra a co m pusera m . M as a tragédia domés-
tica terá um a outra acção, um outro tom , e um sublime qu e lh e se - Mas, qu ais se rão os assuntos deste c ômico sé rio , qu e cons ide-
rai s como um novo ramo do género dramático? Não há , na natureza
rão própri os. Sinto-o , a esse sublime ; es tá ne sta s palavras de um
human a, mai s d o que uma dú zi a, no m á ximo , de caract eres ve rda -
pai , que d izia ao seu filh o qu e o a limenta va na sua velhice : «M e u fi-
deiramente có m ic o s e marcados a grandes traços.
lho, es tamos quites. Eu dei-te a vida, e tu devol veste-ma.». E ne stas
de um outro pai qu e dizia ao se u: «D ize i sempre a verdade. Não
D ORVAL
prometei s nad a a ningu ém que não qu ei rai s c um prir. Conj ur o-vos
po r es tes pés que e u aq uecia nas minhas mãos, qu ando es táveis no Também penso isso .

berço».
Eu

Eu As pequenas diferenças qu e se notam nos ca racte res dos ho-


men s, não pod em se r manipuladas com tanto êx ito co mo os ca rac te-
Mas essa tragéd ia interessar- nas-á?
re s marcados.

DORVAL
D ORVA L
Pergunto-vos. El a está mai s próxima de nó s. É o qu adro das in-
Também ac ho . M as sabeis o que d aí decorre? .. Que não são
feli cidades qu e nos ce rcam . Então ! Não c o nce be is o efeito que pro-
mai s, por assim dizer, os carac te res qu e é preci so co loc ar e m ce na,
du ziri a sobre vós um a ce na real , roupagens verdade iras, d iscu rsos
mas as cond ições . Até ag ora, na coméd ia. os caracteres foram o oh-
prop orcionad os às acções, acções sim p les, peri gos qu e é im poss íve l
jecto principal e a situaç ão tem sido ap enas acessória ; é preci so qu e
qu e não tenha is tem id o para os vossos famili ares, para os vossos ago ra a situação se torne o tem a prin cipal, e qu e os car acteres não
ami gos, para vós pr ó prios? Uma inversão da fortuna, o medo da ig- sejam mais do que os acessórios. É do ca rác te r qu e se retirava toda
nom ínia, as se q uelas da mis éria, uma pai xão qu e co nd uz o homem à a intri ga . Pro cu rava-se e m gera l as c irc uns tâ nc ias q ue o faziam real -
sua ruína , da sua ru ína ao desespero, do desespero a um a morte vio- çar, e enc adeava m -se es tas circunst ân ci as. É a cond ição, os se us de-
lent a, não serão acontecim entos raros; e vós ac red itais qu e não vos ve res, as suas va ntagens, os se us e m baraços, qu e devem se rv ir ele
afec tariam tant o qu ant o a morte fabul o sa de um tiran o, o u o sac rifí - ba se à o bra. Parece-me qu e esta fonte é ma is fecunda , mais vas ta e
cio de uma criança nos altares dos deu ses de At en as ou de Roma? mai s útil que a dos caracteres. Por meno s que o carác te r fosse mar-
cado, um espect ador podia dizer-se a si próprio, não sou e u. Mas
nã o pod e es conder a s i próprio qu e o es ta do representado d ian te ele
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si não possa se r o seu ; ele não pode deixar de conhecer os seus de- Eu
ve res. É ab solutamente necessário que a plique a s i próprio o qu e Então, quereríei s qu e se representasse o homem de let ras, o fi-
ouve. lóso fo, o comerci ant e , o juiz, o ad vogado, o político, o c ida dão, o
magi strado, o financeiro, o gra nde se nhor, o intende nte .
Eu
D ORVAL
Parece-me que j á trat ámos vários desses assunto s.
Acresc entai a isso tod as as relações: o pai de família , o es poso,
DORVAL a irmã, o s irmãos. O pai de família! Qu e tem a, num séc ulo como o
no sso , e m qu e me parece qu e nã o se faz a m ín im a id eia do qu e é um
Este ainda não foi tratad o, não vos engane is.
pa i de família!
Imaginai que todos os d ias se cria m co ndições novas. Imaginai
Eu que nada, talvez, no s seja m ai s desconhecido que as cond ições, e
Não temos nós financeiros nas no ssas peças? nada nos deverá interessar mai s. Nós temos ca d a um o nosso estado
na soc ied ade ; mas temos relações co m homen s de todos o s es tados.
D OR V AL
As co nd ições! Quanto s po rmenores im po rta ntes , acç ões públ i-
cas e domésti cas, verdades desconhecidas, situações novas a retirar
Sem dúvida qu e sim, m as o financeiro ainda não es tá construído . desses fundo s! E as cond ições n ão têm elas entre si os m esm os con-
trastes que os carac te res? e o poet a não as pod eria opor?
Eu Mas estes tem as nã o pertencem so me nte ao gé ne ro sé rio. Eles
Teríam os dificuldad e e m citar um a que não tenha um pai de fa- tornar-se-ão cóm ico s ou trág ico s, segundo o gé n io do homem qu e
se apro veit ar deles.
mília.
Tal é ainda a v icissitude do s ridícul os e dos VICI a S, qu e creio
qu e se poderia fazer um Misantropo nov o todos o s cinquent a anos.
DOR V AL
E não acontece o mesmo co m tantos out ros carac te res?
Con cord o, ma s o pai de família n ão es tá cons truído . Num a pa-
lavra, pergunt ar-vo s-ei se os deveres das cond ições . as suas va nta-
4 . A q ua rt a parede
ge ns , o s se us inconven ientes, o s seu s peri gos foram co loc ados e m
cena. Se é a base da int ri ga e da moral da no ssa peça. Dep ois, se Todavia, q ua nto mai s refli ct o sobre a arte dramát ica, m ais fico
estes deveres, estas vant agens, estes inconveniente s, es tes peri gos, de m au humor co ntra aquel e s que escreveram sobre e la . É um te -
não nos a presentam, tod o s os dias, o s homens em s ituações muit o cido de leis particulares a partir das quai s fizeram preceit os gerais.
e m baraço sas. Vi ram -se al guns incidentes produzir grandes e fe itos; e de imediato
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impuseram ao poeta a necessidade dos mesmos meios para obter os Se, em vez de se fechar entre as personagens, e deixar o espec-
mesmos efeitos; enquanto se os olhassem mais de perto, ter-se-iam tador tomar-se o que ele quiser, o poeta sair da acção e descer à pla-
apercebido de efeitos ainda maiores a produzir por meios completa- teia, constrangirá o seu plano. Imitará os pintores que, em vez de se
mente opostos. É assim que a arte se sobrecarregou de regras; e que
agarrarem à representação rigorosa da natureza, a perdem de vista
os autores, submetendo-se servilmente a elas, tiveram muito mais
para se preocuparem com as fontes da arte, e desejam, não mostrar-
trabalho para fazer coisas piores.
-ma como ela é e como eles a vêem, mas a dispô-Ia relativamente a
Caso se tivesse concebido que, embora uma obra dramática te-
meios técnicos e comuns.
nha sido feita para ser representada, fosse no entanto necessário que
Não são todos os pontos de um espaço diversamente ilumina-
o autor c o actor se esquecessem do espectador, e que todo o inte-
dos? Não se separam eles? Não fogem numa planície árida e de-
resse se centrasse nas personagens, não se leriam tantas vezes as
serta, como na paisagem mais variada? Se seguis a rotina do pintor,
poéticas: Se vós fazeis isto ou aquilo, afectareis assim ou de outra
acontecerá com o vosso drama o que acontece com o quadro dele.
maneira o vosso espectador. Ler-se-ia aí, pelo contrário, se vós fazeis
Ele terá alguns espaços belos, vós tereis alguns belos momentos.
isto ou aquilo, eis o que acontecerá entre as vossas personagens.
Mas não se trata disso; é preciso que o quadro seja belo em toda a
Os que escreveram sobre a arte dramática parecem-se com um
homem que, preocupando-se com os meios de encher de comoção sua superfície, e o vosso drama em toda a sua duração.

toda a família, em vez de pesar esses meios em relação à emoção da Quanto ao actor, o que lhe acontecerá se vos preocupais com o
família, os pesa relativamente àquilo que poderiam dizer os vizi- espectador? Pensais que ele não sentirá que o que colocaste neste
nhos. Eh! Deixai os vizinhos e atormentai as vossas personagens; e lugar e naquele que não foi imaginado para ele? Pensaste no espec-
ficai seguros que estas não experimentarão nenhum sofrimento que tador, ele dirigir-se-á a ele. Vós quisestes que vos aplaudissem, ele
os outros não partilhem. quererá que o aplaudam; e não sei mais o que acontecerá à ilusão.
Com outros modelos ter-se-iam prescrito outras leis, e talvez se Notei que o actor representava mal tudo aquilo que o poeta ti-
tivesse dito: Que o vosso desenlace seja conhecido, e que não acon- nha composto para o espectador; e que, se a plateia tivesse feito o
teça demasiado cedo, e que o espectador fique perpetuamente em seu papel, teria dito à personagem: «A quem quereis mal? Não a
suspenso na expectativa do golpe de luz que vai iluminar todas as mim. Será que me meti nos vossos negócios? Ide para casa»; e que
personagens sobre as suas acções e sobre o seu estado. se o autor tivesse feito o seu, teria saído dos bastidores, e teria res-
Se é importante reunir o interesse de um drama em direcção ao pondido à plateia: «Perdão, senhores, a culpa é minha; da próxima
seu fim, esse meio parece-me tão adequado como o meio contrário. vez farei melhor, e ele também».
A ignorância e a perplexidade excitam a curiosidade do espectador, Então, caso laçais uma composição, ou caso representeis, pen-
e sustentam-na; mas são as coisas conhecidas e sempre esperadas sai no espectador apenas como se este não existisse. Imaginai, na
que o perturbam e que o agitam. Este recurso é seguro para ter a ca- borda do teatro, uma enorme parede que vos separe da plateia; re-
tástrofe sempre presente. presentai como se a cortina não se levantasse.
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Mas o Avarento que perdeu a sua caixinha, diz no entanto ao fronte humilhada no pó, rasgam as suas vestes na dor, e batem no
espectador: «Senhores, o meu ladrão não estará entre vós?» I, peito; quando um pai toma entre os braços um filho recém-nascido,
Eh! Deixai esse autor. Um desvio de um homem de génio nada o eleva ao céu, e faz sobre ele a sua oração aos deuses; quando o
prova contra o senso comum, Dizei-rne apenas se é possível que vós primeiro gesto de um filho, que deixou os seus pais e os revê após
vos dirigísseis um instante ao espectador sem parar a acção; e se o uma longa ausência, é abraçar-lhes os joelhos e, prostrado por terra,
menor defeito dos pormenores em que o tiveste em consideração, esperar deles a bênção; quando as refeições são sacrifícios que co-
não será o dispersar a mesma quantidade de pequenas pausas relati- meçam e acabam com taças cheias de vinho, vertido sobre a terra;
vamente à duração total do vosso drama, e de o retardar. quando o povo fala aos seus chefes, e quando os chefes o ouvem e
Que um autor inteligente faça entrar na sua obra alguns traços lhe respondem; quando se vê um homem com a fronte cingida
que o espectador aplica a si próprio, aceito; que ele faça apelo aos diante de um altar, e uma sacerdotisa que estende as mãos sobre ele
ridículos em voga, aos vícios dominantes, a acontecimentos públicos; invocando o céu e executando as cerimónias expiatórias e lustrais;
que instrua e deleite, mas que seja sem pensar nisso, Se o seu objec- quando as pítias espumando da boca pela presença de um demónio
tivo se nota, ele não o atinge; ele deixa de dialogar, faz um sermão. que as atormenta, se assentam nos tripés, ficam com os olhos perdi-
dos, e fazem mugir com os seus gritos proféticos o fundo obscuro
dos antros; quando os deuses, sedentos do sangue humano, só se sa-
5, Teatro e poesia
ciam com a sua efusão; quando as bacantes, armadas de tirsos, se
Em geral, quanto mais um povo é civilizado, educado, menos perdem nas florestas e inspiram o terror ao profano que se atravessa
os seus costumes são poéticos;...t~do se enfraquece quando se adoça, no seu caminho; quando outras mulheres se despem sem pudor,
Quando é que a natureza oferece modelos à arte? É no momento em abrem os seus braços ao primeiro que se lhes apresenta, e se prosti-
que os filhos arrancam os cabelos em tomo do leito de um pai mori- tuem, etc,
bundo; quando uma mãe descobre o peito, e esconjura o seu filho Não digo que estes costumes são bons, mas que são poéticos,
pelos seios que o alimentaram; ou quando um amigo corta a ca- De que é que ~_ poeta precisa? De uma natureza rude ou culti-
beleira e a espalha sobre o cadáver do seu amigo; ou é ele que o vada, calma ou perturbada? Preferirá ele a beleza de um dia puro e
segura pela cabeça e o leva sobre uma pilha ardente, que recolhe sereno em vez do horror de uma noite obscura, em que o assobiar
as suas cinzas e as encerra numa urna a qual vai, em certos dias. re- entrecortado dos ventos se mistura por momentos com o murmúrio
gar com a suas lágrimas; quando as viúvas descabeladas rasgam as surdo e contínuo de um trovão distante, e onde vê o raio iluminar o
suas faces com as unhas se a morte lhes roubou um esposo; ou céu sobre a sua cabeça? Preferirá o espectáculo de um mar tranquilo
quando os chefes do povo, nas calamidades públicas, pousam a sua ao das vagas agitadas? O aspecto mudo e frio de um palácio, ao
passeio por entre ruínas? Um edifício construído, um espaço plan-
I Moliere, O Avarento, acto iv, cena v ii: «Tantas pessoas reunidas! (... ) Por favor, se tado pela mão dos homens, à densidade de uma floresta antiga, ou à
tendes notícias do meu ladrão. suplico-vos que 1110 digais. Não se ter.i ele escondido por entre
vós?» (N. F.) caverna ignorada num rochedo deserto? Lençóis de água, lagos,
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cascatas, à visão de uma ca tarata q ue se qu ebra ca indo através dos Mas que fine za de gosto não lhe se rá nece ssár ia, para se ntir até
roc hedos, e cujo ruído se faz ouvir ao lon ge pel o pastor qu e cond uz o nde os costumes públ icos e parti culare s podem ser e mbe lezados?
os seus reba nhos na mont anh a, e que o escuta com terror? Se ultrapassa a med id a, se rá falso e romanesco.
A poesia exi ge qu alquer coisa de e no rme, de bárbaro , de se l- Se os cos tumes qu e e le ima gina sã o de antigame nte, e qu e esse
vage m . tempo não esteja di st ante ; se um uso perten ce ao passado , mas que
É qu and o o furor da gue rra civ il o u do fanati sm o arma os ho- de le tenha re st ad o um a ex p ressão metafóri c a na lín gua; se essa
men s de punhais, e que o sa ngue corre e m go lfadas so bre a terra, ex pressão a presenta um carác ter de honestidad e; se marca uma pie-
qu e o lou ro de Apo lo se agi ta e reverdece . Quer ser regado por e le. d ad e ant iga, um a s im p licida de qu e se lamenta ; se aí se vêem os pai s
Murch a nos tempos de paz e ociosidade. A Idad e de Ouro te ria pro - m ai s resp eit ad os, as m ães mai s honradas, os re is populares; e le qu e
duzido uma ca nção tal vez , ou uma elegi a . A poesi a épic a e a poes ia o use. Longe de o repreende r por ter falta do à ve rda de, pen sar- se- á
dram ática exigem outros costumes . q ue esses velhos e bon s usos aparentemente se co nse rvara m ne ssa
Q uando se ve rá nascer poetas? Será após o tempo dos desastres fa m íl ia. Que ele se coíba de usar apenas o qu e não existe senão nos
~ de gra ndes infelicidades ; qu ando os povos extenuados co meçare m usos presentes de um pov o vizinho.
a respi rar. ~_Iltão as imaginações, a ba ladas por espectáculos terrívei s, Mas admirai a extra vagância dos povos civilizados. A delicadeza
p int ar ão co isas desconhec idas para aq ue les que não foram testemu- é aí por vezes levada ao po nto qu e proíbe ao s se us poetas o uso das
nh as. Não ex pe rimentámos nós , nalgum as c irc uns tâ ncias, um a es pé - própri as circunstân ci as qu e se enc ontra m no s costumes, e que têm
c ie de terror qu e no s e ra es tranho? Po rqu e é qu e e le não produziu sim plicidade, bel eza e verdade. Qu em ou sari a , e ntre n ós. iesp alhar pa-
nada? Acabou- se-nos o gé nio? lha e m ce na, e aí ex po r um a criança recém-n asc ida? Se o poeta aí co -
g__
?~_~io pe rte nce a tod os os tempos; m as os homen s que o tra - locasse um berço , algum tonto da plateia não se coibiria de imitar os
ze m em si mantêm -se e ntor pecidos, a não se r qu e aco ntec ime ntos gritos da criança; os camarotes e o anfite at ro de rir, e a peça de ca ir.
ex traordiná rios aqueçam a massa , e os faç a m aparecer. Então os O h po vo alegre e lige iro ! qu e limites dai s à arte! Qu e co ns trang i-
sen time ntos ac um ulam-se no peit o , e trab alham-no ; e aque les q ue mento impondes aos vossos artis tas! e de qu e p razeres vos pri va a
possuem um órgão , in stados a falar, ex ibe m- no e ali viam-no . vossa deli cade za! E m qu alqu er momento assobi aríeis de ver e m cena
Qu al se rá e ntão o recurso de um poet a num povo e m qu e os as úni cas coisas qu e vos agrada ria m, qu e vos co moveriam na pintura.
costumes são brandos, pequenos e amane irados; on de a imi tação ri- Infel iz do homem nascido com gé nio qu e tentará qu alquer es pcc t á-
gorosa das co nve rsas não fo rmaria ma is do qu e Ulll tec ido de ex- c u ia qu e es tá na nature za, mas qu e não está no s vossos precon ceit os!
pressões falsas, insen sat as e baixas; o nde não há mais nem fran -
qu eza, nem bonomia; on de um pai chama o filho de se nhor, e o nde 6 . A p sicolo gia do actor
um a mãe chama à filha menin a; onde as ce rirnó n ias públi ca s nad a
têm de aug usto ; os actos so lenes na da de verdadeiro ? Ele tent ar á O PRIMEIRO

embel e zá-los; escolherá as ci rcun st ân cias que mais ajud am a s ua Mas o ponto importante, sobre o qual o vo sso auto r e eu temos
art e ; negl igen ciará as outras, e ousara s upo r algumas. o pin iões completamente o postas, é as qualidades pr imeiras de um
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grande acto r. Eu e xigo qu e tenham g ra nde capacidade de julga- o que m e toma firm e na minha opinião, é a de sigualdade do s
mento; preci so qu e esse homem sej a um es pec tado r fr io e tranquilo; ac to res que representam com a alma. N ão pod ei s esp erar nenhuma
exij o, por consegu inte, penetração e nenhuma sens ib ilidade, a arte unidade da sua parte; a sua int erpretaçã o é alte rn a tiva mente fort e e
de tudo im itar ou , o qu e vem a dar no mesmo, uma ap tidão igu al fr aca, quente e fria , aborre c id a e sublime . Amanh ã fa lharão no
para todas as es péc ies de per sonagens e papéis. passo em que hoj e foram excele n te s; em contrapartida, se rão exce-
lentes naquele e m que tinham fa lh ado na véspera. Enqu anto que o
o SE GUNDO acto r que interprete a partir da refl exão, do es tudo da n atureza hu -
man a, da imitação constan te de qualque r mod elo id eal, a pa rti r da
Nenhuma se ns ibilida de !
imaginação, da memória, se rá um , o mesm o em todas as representa-
ções, sem p re igualmente pe rfeito: tud o foi m edido , com b inado,
O PRI M EI RO
ap rendido, orden ado dentro da s ua cabeça; na sua declamação não
Nenhuma . Ainda não e ncadee i bem as minhas razões , e pe rm i- há nem monot onia, nem di ssonância. O e ntus ias m o tem o se u pro -
tir-me-eis qu e vo-las exponha à medida qu e me surgirem, numa de- gre sso, os seus impulsos, as s ua s acalmias, o seu princípio, o seu
sorde m id êntica à da obra do vosso amigo . meio e o seu extremo. São os me smos ton s, as mesmas po sições, os
Se o ac tor fosse se nsível. de bo a fé se r-lhe -ia permitido repre- mesmo s moviment os; se há qu alquer difer ença de um a representa-
se nta r du as vezes de seguida o mesmo pap el co m o mesm o ca lo r e o ção para o utra , é normalmente para va ntage m d a últi ma. El e não
mesm o êxi to ? Muito entusia sma do na primeira re p resentação , es- ser á va riáve l: é um es pelho se m pre di sp o sto a mostrar o s o bjectos e
taria esgotado e frio qu e nem mármore na ter ceira. Enqu anto o imi- a mostrá-los com a me sma preci s ão , a mesma força e a mesma ver-
tador ate nto e di scípulo refl ect ido da natureza, a prime ira ve z qu e dade . Tal como o poeta , ele va i se m cessar abastecer-s e no fundo
se apresenta rá em cen a so b o nome de Au gusto, de Ci na, de O ros- inesgot á vel d a natureza , e nq ua nto veria rap idamente o fim da sua
mano, de Agamém non , de Maomé I, copis ta rigoroso de si próp rio própria riqueza .
ou dos seus es tudos, e ob servador contínuo das nossas se nsações , a Que interpret ação mais perfeita que a de Clairon I? No entanto
sua interpret ação, lon ge de se enfraq uecer, fortificar- se- á com novas seg ui-a, es tud ai-a e ficare is conve nc ido qu e fi sex ta representaçã o ela
reflexões qu e tenha recolhido; ex a ltar-se-á ou tempe rar- se-á, e vós sabe de co r tod o s os pormenore s d a sua interpre tação como tod as as
ficarei s cada vez ma is sa tisfei to. Se é e le me smo qu ando repre sent a, palavras do se u papel. Sem dú vida qu e conce be u par a si um modelo
co mo cessará de se r e le própri o? Se e le qu er dei xar de ser el e pró- ao qu al primeiro se tent ou co n form a r; se m dú vid a qu e concebe u
prio, como captará o pont o j usto no qu al é preci so qu e se co loq ue e esse m odelo como o mai s e levad o, o mai o r, o mais perfe ito qu e lhe
se fixe ? fo i possíve l; m as es te mod el o que e la re tiro u da hi st ó ria , o u qu e a

I Au gusto e Cina, no Ci na de Corncillc; Agamémnon na If ig én ia de Ra c inc; O rosmano 1 A m en ina C lairon interpre ta o s primei ros pap éi s trágicos na Com édie Fra nça ise ent re
na Zaira ; » Maom é no Ma on,,' de Voltairc. (N.F,) 174 3 e 1765 . e a meni na Dumesn il en tre 1737 e 1776, (N . F , )
174 175

sua imaginação criou como um grande fantasma, não é ela; se est e o PRll'vlEIRO
modelo fosse apenas da sua estatura. como a sua acção seria fraca e
Tendes ra zão . Não acont ece com a Dumesnil o m esmo que
pequena! Quando, à força de trabalho, ela se aproximou dessa ideia
co m a Clairon. Ela sobe ao palco sem saber o que dirá; a metade
o mais perto que podia, tudo está terminado: fixar-se aí é uma pura
do tempo ela não sabe o qu e diz, mas depois há um momento su -
questão de exercício e de memória. Se assistísseis aos seus ensaios ,
blime. E porque é que o actor deveria ser diferente do poeta, do
quantas vezes não lhe diríeis: «Chegastes lá!» ... quantas- vezes ela
pintor, do orador, do músico? Não é no furor do primeiro jacto que
não vos responderia: « Es ta is enganado!. .. »; É como Le Quesnoy I, a
os traços característicos se apresentam . é nos momentos tranq üilos
quem o seu amigo tomava o braço e exclamava: «Para i! o melhor é
inimigo do bem : ireis estragar tudo... » , Vós vedes o que eu fiz, re- e frio s , nos mom entos perfeitamente in esperados. Não se sabe

plicava o arti sta ofegante ao conhecedor maravilhado; mas vós não donde vêm esses traços; el es assemelham -se muito à in spiração.
vedes o qu e tenho dentro da minha cabeça, e que persigo. É quando, suspensos entre a natureza e o se u esboço, es tes gé nios
Não tenho dúvidas que a Clairon sin ta o tormento de Quesnoy deitam alternativamente uma olhada atenta so bre uma e o outro; as
nas suas primeiras tentativas; mas passada a luta, assim que ela se bel ezas da inspiração, os tra ços fortuito s que eles espalham nas
tenha elevado uma vez à altura do seu fantasma, controla-se, e re- suas obras, e cuja aparição súbita os espanta a si próprios, são de
pete-se sem emoção. Como por vezes no s acontece no sonho. a sua um e fe ito e têm um êxito muito melhor asse gurados do que aquilo
cabeça toca as nuvens, as suas mãos vão buscar os confins do hori- qu e lançaram de ímpeto. Cabe ao sangue-frio temperar o delírio do
zonte; ela é a alma de um grande manequim que a e nvolve; as suas e ntus ias m o .
tentativas fixaram-na nela . Displicentemente estendida sobre um c a- Não é o homem violento qu e está fora de s i que di sp õe de nó s;
napé, os braço s cruzados, os olhos fechados, imóvel , ela pode, se- é uma vantagem re servada ao homem que se controla. O s g randes
guindo o se u so nho na memória, ouvir-se , ver-se, julgar-se e julgar po etas dramáti c o s so bre tudo são espec ta dore s as síduos do que se
as impressões que excitará. Nesse momento é dupla: a pequena passa em volta deles no mundo físico e no mundo moral.
Clairon e a grande Agripina 2.
O S EGUNDO
O SEGUNDO
Que não é senão um.
A ouvir-vos, nada se pareceria tanto com um actor em cena ou
no s en ~aio s como as criança s que, à noite, imitam os espectros no s O PRIMEIR O
cemitérios, e levando por cima da s suas cabeças um grande lençol
Eles captam tudo que os toca; fazem rcg is ros. É dest es registos
branco na ponta de uma vara, fazendo sa ir debaixo de sse catafalco
formados em si m esmos. e ind ependentemente da sua vontade. que
uma voz lúgubre que assu sta os passantes.
tantos fenômenos raros passam nas suas o bras. Os homens encalo-
I
2
F .
ranç ois Duqu csnoy, e scult or helga do século XV II. (N.F.)
rados, violentos , sensíveis, est ão em cen a ; dão o espectáculo, mas
No Britonniru s de Racin e . (N. F .) não têm prazer com isso. É se g undo eles qu e o homem de génio fa z
176 177

a sua cópia. O s grandes poetas, os grandes actores, e tal ve z no ge ral Es tas ve rdades qu e fo ssem de mons tradas e os grandes actores
todos os gra ndes imit adores da n atureza, quaisquer qu e sejam, do- não conc ordariam; é o se u seg redo . O s ac tores med íocres ou noviços
tado s de uma bela imaginaç ão, d e um grand e j ulg amen to , de um foram fei tos para as rejeita r, e poder-se-ia diz er o mesmo de al gumas
tacto fino, de um gosto muito seguro, são os seres menos se nsíve is . outras que e le s podem se ntir, como se dis se do superstic ioso, qu e
Têm igua lme nte préstimo para demasiadas coisas; es tã o demasi ado ele crê ac redi tar; e qu e se m a fé p ara es te, e se m a se nsi bilida de para
oc upados a ' o lh a r, a reconhecer e imitar, para pod erem ser v iva- aq ue le, não há salvação.
mente afectados no interior de si próprios. Vejo- os sem cessar com
o bloco de desenhos so bre os joelhos e o lápi s na mão. 7. O ofício de actor
Nós sen t imo s, eles o bse rvam, es tuda m e p intam. Di -Io -ei ?
E porque não? A sen sibilidade n ão é de forma alguma a qualidade O PRIMEIRO

de um gra nde gé nio . Ele amará a justiça; mas exercerá essa v irtude Um grande ac to r não é nem um piano- forte , nem um a harpa,
sem co lhe r a sua do çura. Não é o se u coração, é a sua ca beça qu e nem um c ravo, nem um vio lino , nem um viol on celo ; n ão ex iste um
f az tudo . À mínima circun stân cia in esperada, o homem se ns íve l ac orde qu e lhe sej a própri o ; m as e le toma o acorde e o tom qu e
perd e-a; não se rá um grande rei nem um grande mini stro, nem um mais convêm à sua pa rte , e sabe ex ecutar tod as . Tenho em grande
grande cap itão , nem um gra nde advogado nem um gra nde médi co. co nta o tal ento de um grande act or: esse homem é ra ro , tão raro e
Enchei a sa la de espectácul os com esses ca rpidores, mas não me talve z m ai or qu e o poet a .
ponham um em cena. Vede as mulheres; el as ult rapas sam -n os se gu- Aquele que na sociedade se propõe a tal , e tem o infeli z talento
rame nte, e muito de long e, em se ns ibi lidade: qu e comparação e ntre de ag ra dar a tod os, não é nad a, n ão tem nada qu e lh e pertença, qu e
elas e nós nos mom ent os de pai xão! M as tanto q uant o lhes cedemos o di stinga, que e ntus iasme un s e qu e canse os outros . Ele fa la sem -
pre, e se m p re bem; é um adulador profissional, é um g rande corte-
quando elas ag em, tanto e las ficam a baixo de nós quando imitam.
são, é um grande ac tor.
A se ns ibi lidade nun ca existe se m falt a de organização. A lágrim a
que se escapa do hom em ve rdadeira mente hom em toca-n os m ai s
O S EG U N D O
que todos os choros de um a mulher. Na grande co média , n a come-
dia do mundo, aq uela a qu e reg re sso se mp re, todas as a lmas ca lo- Um g ra nde cortesão, aco stu mado desde q ue res pi ra ao papel de
rosas ocupam a cena; tod os os h omens de gé nio es tão na plate ia. um fant oche m ar avilhoso . toma toda a es péc ie de fo rmas , segundo a
Os pr imeiros c ha mam-se loucos; os segundos , qu e se e ntre tê m a co - vontade do fio qu e est á entre as m ão s do se u se nhor.
piar as su as lou curas, ch amam -se sá b ios . É o o lho d o sáb io qu e
capta o rid ícul o de tantas personagen s di ve rsas, qu e o pinta, e qu e O P RIl'vtEIRO

vos faz rir desses depl oráv eis originais de qu em fos tes a vítima , e de Um grande ac tor é out ro fantoch e maravilho so c ujo fio é se-
vós próprio. É ele qu em vos observav a, e que traçava a cópi a c ó- guro pel o poeta, e a qu em e le indi ca a cada ve rso q ua l a for ma ver -
mica do deplorável e do vosso sup líc io . dad e ira qu e deve tomar.
178 179

O SEGUNDO No mundo, sempre que não são bufões, descubro-os educados,


cáusticos e frios, pomposos, esbanjadores, interessados, mais toca-
Assim, um cortesão, um actor, que não podem tomar senão
dos pelos nossos ridículos que pelos nossos males; com um espírito
uma forma, por mais bela, por mais interessante que seja, não são
bastante sereno perante o espectáculo de um acontecimento aborre-
senão dois maus fantoches?
cido, ou com a narrativa de uma aventura patética; isolados, vaga-
bundos à ordem dos grandes; poucos costumes, nenhuns amigos ,
o PRIMEIRO
quase nenhuma dessas ligações santas e doces que nos associam às
O meu objectivo não é caluniar uma profissão que estimo; falo dores e aos prazeres de outro que partilha as nossas. Muitas vezes vi
da do actor, Ficaria desolado se as minhas observações, mal inter- rir um ac tor for a de cena, não tenho memória de ter visto alguma vez
pretadas, atraíssem a sombra do desprezo sobre homens de um ta - um a c horar. Esta sensibilidade que eles se arrogam e que lhe permi-
lento raro e de uma utilidade real, os fla geladore s do ridículo e do timos, que faz em dela e n tão ? Deixam-na no palco quando d e scem,
vício, o s pre gadores m ai s eloquentes da honestidade e das virtudes , para a retomar quando voltam a s ub ir?
à vara que o homem d e génio usa para ca stigar os maus e o s loucos. O que é que lhes calça a sandália ou o coturno? A deficiência
Mas o lh ai em volta de vós e vereis que as pessoas continuamente de educação, a miséria e a libertinagem . O teatro é um recurso,
alegres não têm nem grandes defeitos nem g ra nde s qualidades ; que nunca uma escolha . Nunca ninguém se torna actor pelo gosto da
normalmente os gracej adores de profissã o s ão homens frívol o s, sem virtude , pelo de sejo li~ ser útil a uma soc ie d ad e e de servir o seu
qualquer princípio sólido; e que aqueles que , semelhantes a algu- país ou a sua família , por nenhum dos m otivos honestos que pode-
mas personagens que c irc u lam na s no ssas sociedades, não têm ca- riam encaminhar um e spírito recto, um coração caloroso, uma alma
rácter, são exímios a representar todos. sensível para uma profissão tão bela.
Um actor não terá um pai , uma mãe , uma mulher, filhos, ir-
Eu próprio hesitava entre a Sorbonne e a C o rn éd ic . Ia no
mãos, irmãs, conhecimentos, amigos , uma amante ? Se ele fo sse do- Inverno , na estação mais rigorosa , recitar em alta voz papéis de
tado dessa requintada se ns ibilida de, qu e se considera como a quali- Moli êre e de Corneille nas alas so litárias do jardim do Luxemburgo.
dade primeira do seu estado, perseguido como nó s e atingido por Qual e ra o meu proj ecto ? Ser aplaudid o ? Talve z . Viver familiar-
uma infinidade de dores que se sucedem , e que tã o depressa desar.i- mente co m mulheres d e teatro que achava infinitamente am áveis e
mam as nossas almas, co m o as desfazem, quantos dias lhe restariam
que sabia serem fáceis? Seguramente. Não sei o que teria feito para
para no s dar o no sso divertimento? Muit o poucos. O gentil-homem agradar à Gaussin , quc então se e streava e que era a beleza personi-
da c âmara int erporia em vão a s ua autoridade, o actor estaria muitas
ficada ; à Dangeville, que tinha tantos atractivos em cena '.
ve ze s e m situação de lhe responder: « Mo nsc n ho r, hoje não se ria ca-
Di sseram que os ac to re s não tinham c a rac te r porque ao inte r-
paz de rir , ou tenho outra coisa para chorar al ém dos problemas d e
pretá-I as todos perdiam aquele que a natureza lhes havia dado, que
Agam émnon ». No entanto, não nos apercebemos de que as tristezas
da vida, tão frequentes para eles como para nós, e muito mais con-
I Es ta s du as ac tri ze s c o s ac tores qu e Diderot c ita segu id a m e nte ao lad o de M ol iêre
trárias ao livre exe rcíc io da s suas funçõe s, muitas ve zes os suspendem . pert ence ram lod os it Co mé d ic Fr an ça ise durante o sé c . X V II I. (N F .)
IRO 18l

e les se tornavam fa lsos, co mo o m é d ico , o c irurgião, o talha nte se co mo todas as o utras co m un idades, de indi vídu os vi ndos de todas
tomam du ro s. C re io que tomar am a caus a pelo efeito , e qu e e les só as famílias da sociedade e cond uz idos so bre a ce na como ao ser-
es tão habil itados a representar todo s porque não têm nenhum . viço, ao pal ácio, à igrej a, por escolh a ou par gosto e com o co nsen-
( ...) timento dos seus tut ores natu rai s .

o SEGUNDO
8 . Naturez a c génio
Mas antigamente Moli êre , Q u ina ult e Montrn énil , e hoj e Bri-
za rd e C a ill ot qu e é igualmente bem re cebido pel os g ra ndes como P. 15 I «Não tere i pre sente na minha recordaç ão m a is qu e as
pelos pequenos , a quem co nfiaríeis se m temo r o vosso segredo e a neves, os gelos, as tempest ad es do norte ; qu e as lavas in flam a das do
vossa bol sa, e com o qu al ac redita ríeis que a honra d a vossa mulher Vesú vio ou do Etna; co m estes materiais qu e qu ad ro com por? O da s
e a inocênc ia da vossa filh a estariam e m muito mais segu ra nça do montanhas que imped em a e ntra d a no jardim de Armid a... Então o
qu e co m um g rande senhor da co rte , o u um respeitável mini st ro dos gé ne ro das nos sas ide ias e dos nossos quadros n ão d epende de
nossos a ltares ... forma alguma da natureza do nosso espírito, o m esmo e m todos os
homens, mas da esp écie de objectos que o acaso gra va na sua me-
o PR I ME IRO mó ria e do interesse qu e têm e m combiná-lo s I.

o e log io não é exagerado : o q ue m e irrita é não o uv ir c itar um E isso depende des ta causa única! Mas e ntre de z m il homens

maior núme ro de actores que o tivessem m erec ido o u qu e o mereçam . q ue tenham ou vido o mu g ir do Ves úv io, qu e tenham sentido treme r
O que me irrita, é qu e entre es tes propriet ários por co ndição, de um a a terra so b os seus passos, e qu e se tenham sa lvo d iante da vaga de
qualidad e , a fo n te prec iosa e fec unda de tantas outras , um ac tor ho- lava arde nte qu e se escapava dos fl anc os e ntreabertos d a montanha;
mem ga lante, uma actriz mulher honesta sej am fen óm enos tão raros . e ntre dez mil qu e as im agen s risonhas da Primavera tenham to cado,
Daqu i co ncl uímos que é fal so que tenham o pri vil égi o espec ial, a pe nas um con seguirá fazer uma de scri ç ão sublime, porque o su-
e que a se ns ib ilidade que os dominaria no mundo co mo e m ce na, se blime , sej a na pintura, seja na poe s ia , sej a na e loq uê ncia, não na sce
dela fossem dotados, não é nem a ba se do se u carac te r nem a razão se m pre da ex ac ta descr ição dos fen ômenos, ma s da e moção que o
do se u êx ito; qu e e la não lhes pert e nce nem mai s nem m en o s 'lu,: a gé n io espectado r tenha ex perimenta do perant e e les , da a rte c o m que
um a o u o utra cond ição da soc ie dade , e qu e se se vê tão pou cos e le me com un ica rá o fré mi to da sua alm a, das com parações que me
gra ndes ac to res é qu e os pa is nã o dest inam os se us filh os ao teatro: forne cer, d a esco lha das s uas ex pressões, da ha rm on ia co m qu e
é porqu e não são preparad os po r um a ed ucação começ ad a na j uve n- toc ar á os meu s ouv id os , d as id eias e dos se ntime n tos que s a iba
tude; é porq ue uma companhi a de ac tores não é, como deveria se r
num pov o e m que se dess e, Ü fun ção de falar aos homens reun ido s
I Diderot cita aqu i UI11 par ágrafo de Do Homem de Hel vécio. q ue e m seg u ida irá re-
para se re m instruídos, div ertid o s , corr ig ido s, a importân ci a e as futar. (N .F.)
Ac resce nta-se q ue a co ntestação é feit a a partir da idcia de sublime . q ue apo nta para ()
honras, as recompensas qu e e la m erece, uma corporaç ão fo rm ad a, tratado Do Sublim e do Pscu do- Longin o, trad uz ido para fran cês po r Boi lca u. (N .T.)
l R2 l R3

acordar em m im . Tal vez haja um número de homen s bastante grande M a rechal de H ocqu incourt I, Molie rc e m qua se todas as suas co-
capa zes de pintar um o bjccto ao m odo natural ista, à maneira dos his- m édias , ma s tal ve z m ai s nas burl esca s qu e nas o utras; porqu e quem
to riad ores, mas com os poetas já é o utra co isa. Numa palavra, qu ere- d iz original , não di z se mpre belo, porque pode fa ltar-lhe muito. Não
ria bem saber como o int eresse, a ed ucação, o acaso dão entusias mo a há quase nenhumas bel e zas qu e não tenh am um m od elo ante rior. Se
um homem frio, verve a um espírito regrado, imaginação àque le qu e Shakespeare é um o r igi na l, sê -lo - á no s se us m omentos sub lim es?
não tem nenhuma. Quanto m ais so nho co m isso , m aior o parad o xo do De modo algum; é na m istura ex traord iná ria , incom pree nsível, in i-
auto r me co nfunde . Se es te artista não nasceu e m briagado , a melhor mi tável , das co isas do m elhor gos to e do pior m au gosto , mas so bre-
instrução não o ens inará nunca senão a imi tar de m odo mais o u me- tudo na extravagân c ia dest es as pectos . É porque o sublime e m si, se
nos enfa do nho a embriagu ez. Daqu i advê m tantos imitad ores se nsa- o usar dizê-lo, não é o rig inal; só se torna o rig ina l por um a esp écie de
ba rões de Pínd aro e de todos os o utros auto res origin ais. Porque é si ngularidade qu e o torna pessoal de um a utor: é preciso poder di -
qu e os verd adeiros imitadores nunca fizeram mais do qu e más có pias? zer-se: é o sublime de ful an o . A ssim, qu e e le m orresse! é o sublime
M as, senhor Helvéci o , vós qu e utilizais bastas vezes a pal avra de Corneille; não do rmirás mais é o sublime d e Shakespeare. Bem
origina l, poder-me-íeis di zer o qu e é? Se me dizeis qu e é a ed uc a- p osso lavar estas m ã os . vejo-as sempre com sa ngue ; es te verso é
ção o u o ac aso das circunst âncias qu e faz um original, co nsegu ire i m eu, mas o sublime é do a uto r inglês 2.
impedir-me de rir? Mas há já muito tempo qu e esto u a res ol ve r os vossos so fism as;
Segundo pen so, um original é um ser b izarro cujo m odo si ng u- teríei s vó s a bondade de vos e nt rete r a resol ver a lg uns dos meu s?
lar de ver, se ntir e de se exp rimir se assemelha ao se u ca rac te r, Se o Conhecestes a R ic co boni ' ; e h! e ra vossa a m iga. Foi muito bem
homem or igina l não tivesse nascido , so mos tentados a acredita r q ue e d ucad a e possu ía p o r si m ai s es pírito, fin eza e gosto qu e toda a
o qu e e le faz não teria nunca sido feito, de tal modo lhe pert encem com panhia itali an a e m conj unto . E la passava as noites e os d ias a
as s uas produ ções. estud ar os se us papéi s . O q ue vos digo aq ui, fo i e la qu em mo di sse.
Mas neste sentido, direi s vós, tod os os homens são originais; po r- E xercitava- se sozi n ha. tom ava lições e conse lho dos se us am ig os
qu e qu al é o hom em qu e pod e faze r exactamente o que um outro faz? e d o s melhore s ac ro res: m as nunca ultrapa s sou a m edi o cridade .
Tendes ra zão , mas ter- vos-íei s poupado e st a objecção se n;o Porquê isto , se faze is o favo r? É qu e lhe faltava a aptidão natural
m e tivésse is interro m pido, porque ia ac resce ntar qu e o se u car ácrer pa ra a declamação. D irei s qu e co meç o u mu ito tarde ? Nasceu no s
dever-se-ia demarcar fo rte me nte do dos o u tros homen s, de modo a bast id ores e pa sseou-se no palco de andad e iras . Que não era a n i-
qu e n ão lhe reco nhecêsse mos prat icament e nenhuma es péc ie d e m ada por um grande interesse? Ela co rava d iante do se u ama nte, e o
se me lha nça que lhe pudes se ter serv ido de modelo , sej a nos tempo s se u amante corava del a; e la proibia-lhe o es pcc t ácu lo, e le temi a
passad os, sej a entre o s seu s conte m po râne o s. Assim , Collé é um
ori gin al na sua versificação e n as sua s canções; Rabel ai s é um I Este texto é de Sai m-Evrcmond. (N.F.)
2 Esta citação e a anterior são ret iradas de Macbetli . (N.F .)
origin al no se u Pantagruel, Patelin na sua Farsa, Ari stófan es nas 3 Marie-Jeanne Riccoboni (17 14- 1792), nora dc Lui gi Riccobon i, rep rese nta sem êxito
suas N uvens, Charleval na sua Co nve rs a do pai Cann ay e co m o lia Co mé d ia-Italiana , mas foi um a mu lher de letras pre zad a. (N .F .)
184 185

ir lá. Que não trabalhava o suficiente? Era impossível trabalhar 27 - HUME: DISSERTAÇÃO SOBRE A TRAGÉDIA (1757)
mais. Que ignorava os princípios da sua arte por falta de reflexão?
Ninguém sabia mais, não a tinha aprofundado mais, não falava da Amigo dos filósofos franceses. admirado pela sua aproximação
arte melhor que ela. Que lhe faltavam as qualidades exteriores? Não empírica à psicologia, David Hume (171 I -1776) pareceu-nos
era bonita nem feia, e centenas de outras figuras tinham-se feito representar bem a evolução dos filósofos ingleses (Shaftesbury,
perdoar a sua feiura pelo talento; o som da sua voz era agradável; Hutcheson e Burke, por exemplo) em direcção a uma estética fun-
não o tivesse sido e com a naturalidade, a verdade, e o calor, com as damental, cuja literatura dramática fornece ainda os modelos pri-
entranhas, ter-nos-ia acostumado a ela. Mas é que não lhe faltava vilegiados.
alma nem sensibilidade. Partilhava sem dúvida com todos os acto- O pequeno Essay on Tragedy de Hume, publicado em Londres
res a influência das causas estranhas que desenvolvem ou abafam o em 1757, andou traduzido emfrancês desde 1758.
talento, com a diferença que, filha de um actor amado, tinha essa
vantagem de que os outros estão privados. Vamos, Helvécio, chega
dessas subtilezas que não satisfazem nem a um nem a outro. Tratai O sentimento do belo
de me explicar claramente este fenómeno. Estes felizes acasos aos
o que é que aqui retira, por assim dizer, o prazer do próprio
quais atribuís efeitos tão potentes, ela estava exposta a eles todos os
seio da dor? e que prazer? um prazer que conserva todos os traços e
dias. Sobretudo não esqueceis que o espectador que acolhia o pai
todos os sintomas da mais profunda aflição I.
com aplausos, não queria mais senão fazer o mesmo com a filha;
Respondo que esse efeito que parece tão extraordinário é de-
mas não havia meio, ela era demasiado má, e ela própria o dizia.
vido à própria Eloquência que pinta, com tanta verdade, esta cena
Então, nem todos os indivíduos são apropriados para tudo,
mesmo para serem bons actores, se a natureza a tal se opôs. de horror: o génio que sabe animar um quadro assim, a arte que
A Riccoboni não tinha recebido a graça da natureza: dizia-se reúne todos os traços comoventes, o julgamento que os coloca cada
em Paris, ter-se-ia dito também em Londres, em Madrid, por todo o um no seu lugar, o exercício, digo cu, de todos estes talentos subli-
lado em que fosse igualmente má. Vós que fazeis soar tão alto estas mes, junto com a força da expressão e cadência harmoniosa dos nú-
espécies de expressões verbais comuns a todas as nações, pretendeis meros oratórios, eis o que encanta os auditores, e os enche com os
que estas e tantas outras em que a recusa da natureza e o vício da sentimentos mais deliciosos: não apenas as paixões tristes são apa-
organização sejam empregues, estejam vazias de sentido? gadas e destruídas pelas paixões contrárias; tornam-se, elas pró-
prias, agradáveis, e concorrem para engrossar. por assim dizer, a
(Diderot, Oeuvrcs completes, Assézat et Tourncux (ed.), Garnier, 1875. 1: Entrctiens sur le
Fils Nat urel, Secon d Entretien, tomo VII, pp. 105-107; 122-124; 2: l bid., Troisié me
massa do prazer que a Eloquência faz nascer. A mesma energia dis-
Entretien, tomo VII, pp. 134-138; 145-146; 3: Ibid. pp. 149-151; 4: De la Poésic dramatique, pensada num assunto que não interessa nada, não agradaria nem
capo XI. «De l Tntérêt», tomo VII. pp. 343-346; 5: lbid.• capo XVIll, «Des Moeurs», tomo VI!.
pp. 370-373; 6: Paradoxe surle cornédien; tomo VII!, pp. 365-369; 7: tu«. tomo VIll, pp. metade, ou antes pareceria ridícula: a nossa alma, ficando na calma
396-400; 8: Réfutation suivie de lOuvrage d' Hclvétius intitulé r Homme (1773-74). tomo 11,
pp. 330-333. Veja-se também. para os sete primeiros textos. Diderot, Ocuvres csthétiques,
Paul Vernierc (ed.), Paris, Gamier, 1968.)
I Traia-se de uma passagem de Cícero. (N.F.)
186 187

da indiferença, não encontraria mais deleite na beleza de ssas ima- sentireis prazer, a não ser que seja por acidente, como aconteceria,
gens e dessas expressões qu e suste ntadas por qualquer paixão no s por e xemplo, a um homem mergulhado numa indolência letárgica
proporcionam um prazer tão requintado. O sentimento do belo dá assim que o fizessem sair desse estado.
uma nova direcção aos movimentos imp etuosos da tristeza, da pie- Para confirmar esta teoria bastará apresentar outros exemplos,
dade, e da cólera: apodera-se de toda a capacidade da alma, domina pelos quais se possa ver que as paixões subordinadas se transfor-
sobre todas as emoções, converte-as na sua própria natureza, ou mam na paixão dominante, ou lhe acrescentam novas forças, ime-
pelo menos d á-lhes um tom suficie nteme nte forte para transformar diatamente quando elas são de natureza diferente, e muitas vezes,
por complet o a sua natureza. A alma é ao mesmo tempo agitada quando elas são de natureza contrária.
pela paixão e transportada pela Eloquência, estas duas impressõe s A novidade atrai-nos, e toma-nos atentos: os movimentos que
confundem-se numa só , qu e é deliciosa. ela excita transformam-se se mpre numa paixão relativa ao objecto
O mesmo princípio o c o rre na Tragédia : ao que podemos que é novo, e tran smitem a esse objecto toda a sua actividade. Que
acrescentar que a tragédia é uma imitação; e que toda a imitação um acontecimento faça nascer a alegria ou a tristeza, o orgulho ou a
agrada por si. Isto contribui, sem dúvid a, para retirar às paixões vergonha, a benevolência ou o ressentimento : estas emoções serão
o que elas têm de triste, de maneira qu e sobre o todo não reste sempre tanto mai s vivas quanto esse acontecimento seja mais novo
mais do que um sentimento agradável de agradável deleite . Os ou mais raro ; c embora a novidade seja agradável em si própria, vê-
ass u nto s mai s tristes e os mai s terríve is agradam-nos na tela , e -se , portanto, qu e e la aumenta as nossas dores da me sma maneira
mesmo mais ainda do que os mais belos temas que nada têm de
qu e os no ssos pra zeres . (...)
interessante '. O movim ento que a pai xão imprime a uma alma
A acção que co ns titui o tema de uma tra gédia pode se r dema-
comunica-lhe um fogo , um a acti vidade, uma veemên cia extraordi-
siado sangrenta e demasiado atroz; pode inspirar-nos um horror tal
nárias; enfim, pela força da impressão dominante, tud o isto se tran s-
que não mais será possível transformá-la num sentimento agradá-
forma em prazer. Não é então simplesmente diminuindo e enfraque-
vel : e nq uanto a força da dicção e a vivacidade do colorido servem
cendo a tri steza que as ficções trágica s temperam as paixões; tal
apenas para aumentar o desagrado: vê-se bem um exemplo num dos
tem antes lugar pela infusão de um novo sentimento, se me per-
nossos dramas que tem por título A Madrasta Ambiciosa '; um velho
mitem este modo de falar. Pode-se enfraqu ecer por grau s uma do;'
venerando, num violento acesso de furor e desespero, parte a cabeça
real até a fazer ce ssar; porém, em nenhuma das s uas gradações vós
de e ncontro a uma coluna, sujando-a com o se u cérebro misturado
com o sangue . O teatro in gl ês oferece demasiadas de stas imagens
repu gnantes.
I O s pint ores ex prime m a tristez a c a dor. bem assi m CO lHO as out ras pai xões . m as
SC l11 as evidenciar tanto co rno os poet as: estes . pel o co ntrário. embora co piem lodo s os mo vi-
me ntos da alma . passam muito lige iram ente por cima da s se ns ações ugrad ávci s. () pint o r apc -
na s representa um instante, e se ele o pode encher de pai xão está segu ro de poder agradar ao
espectador; en quanto que, para vari ar as suas cenas. as intri gas. os sentimentos. o poeta não
tem outro recu rso se não empreg ar a tristeza. a angústia, o terror; uma aleg ria tot al produzind o
o repouso e a seg urança. a ac ção cessa c o interesse desvanece-se. (NA .) , Th c Ambitiou s S/e/ JlI/OI" ",. . tra géd ia de Nicholas Rowc , 1700. (NF.)
188 189

Não ex istem se ntime ntos, at é aos m ais comuns de pi edade , qu e 28 - RO USS E A U : CA RTA AO S R . f) ' ALEMB ERT SOB RE O S
não exijam se r temperados por qu alquer afec to agr ad ável par a dar ESP ECTÁC UL OS (175 8)
um a satisfaç ão co mpleta. As lamentações e os ge midos da virtude
oprim ida , o tr iunfo da tiran ia e do vício, formam um espe ctáculo A Carta a dAlernbert jof escrita p or Rousscau (17 12 -1778)
que desagrad a, e que tod os os grande s mestres da art e dramática pa ra responder ao artigo Genev e da Encyclop édie, no qu al d' Alem-
têm o cuidad o de evitar. Para que os e spect adores partam satisfe itos, bert , retomando um a ideia de voltaire, aspirava à criação na re-
é preciso ou que a v irtude se tran sforme num nob re de sespero , o u p ública de Gene bra de um teat ro , escola de costumes e civilidade
que o víc io seja punido. moder nos . O «C idadão de G enebra » p rot esta em nom e dos se us
Jul gand o os pintores seg undo esta reg ra, descob rir-se-á qu e a con cidadãos, e d edica-se a Uf/W crítica de conj unto do teatro es -
maioria deles tive ram pouco êx ito na escolha do s se us temas; traba- crito e representado , onde tran spõe para o plano pol ítico e socia l
lhand o para as igrejas e mosteiros. exerci tara m-se prin cipalmente a argume ntos semelhantes aos dos teólogos, mas p rocura também um
executar cenas horríveis, como são os martírios e as crucificações: nos 17 0 VO ca m inho para o esp ect áculo .
seus quadros só se vêem tormentos, feridas, execuçõe s, numa pal a-
vra , sofrimento s passivos, sem acção e se m movimento. Desviam
J. O (je ito de d istanciamento
eles o pincel de sta mit ologia espiritua l? É para pint ar as fábulas de
O vídio : a es tes temas, é verdade, não lhes falt a paixão e são bas- No fundo , qu ando um homem va i admirar bel as acções em fá-
tant e grac iosos; mas difi cilm ente são naturai s qu e bas te, o u ve ros í- bul as, e chorar so b re in feli cidad e s im agi ná rias, qu e m ai s se lh e
meis o bastan te para se ag uentarem na tel a. pod e ex ig ir? Não es tá contente cons igo pr óprio ? Não ap la ude com
Não é ape nas na poesia e na arte o rató ria que se descobrem es- tod a a sua alma? Não fica red im ido de tud o o qu e deve à v irtude
tes efeitos da invers ão do nosso princíp io; vêe m -se os se us tra ço s na pel a homenagem que acabou de lh e pr est ar? Qu e se d esej a que ele
vida ordinári a dos homens. Por todo o lad o em qu e a paixão subor- faça mais? Que a pratique e le próprio? N ão tem qu alquer papel a
dinada se vem a transform ar em paixão dominante , e la absorve o interpretar: el e não é actor.
sen timento qu e alimentava e fortificava. Demasiado ci úme ab afa 0 Qu anto ma is reflicto sobre isto, e mais de scubro q ue tudo o
amo r: dem asiad a difi culdade arrefece -nos: demasiada enfe rm idade que se põe e m re presentação no teatro não é ap ro ximad o d e nós,
e doen ça num a criança desagrad a ao s se us pa is, sobre tudo se têm mas afas tado . Q ua ndo vejo o COlide de Essex I , o reino de Isabel I
mai s am or-p róprio do que ternura . recu a dez séc ulos a meu s o lhos , e se fo sse re presentado um aconte-
ci me nto oco rri do o n te m e m Par is , far-rn e -iam su po r q ue e ra d o
tempo de M ol ierc . O teat ro tem as s uas regras, as suas m á ximas, a

«(RlIvres phil osop hiqucs de Mr D. Humc. Tome quatriémc . Dissertations sur les P"SSiO Il S ,
sur la Tra g édi r, sur I" Ré gl e du (; ';111. Trad . de J .-I! . Meri an, Am stcrd ão , J .II.S chne ide r,
1759, pp , 7X-79 .) I Em () Co nd e de Esses de Thornas C o ru e illc . lima trag édia de 16 7 X. (N .F.)
190 191

sua moral à part e, bem como a sua lin gu agem e os se us ves tuá rios. lhe s in spirar o go sto da oci osidade, para fazê-lo s procurar m eios de
D iz- se bem qu e nada daqu ilo no s co nvé m, e se ntir- no s-íamos tão su b sistê nc ia se m faze r nad a , par a tornar um povo in activo e co-
ridículo s ao ado ptar as vi rt ude s do s se us herói s q uanto a fal ar e m ba rd e , para impedi-lo de ve r os object os públicos e parti cul ar es de
verso e vestir uma roupa de romano. Eis então , ma is o u menos , para qu e se deve ocupar, para transformar a sabe do ria em rid ículo, para
que servem todos esses grandes sentimentos e todas essas máximas substituir a prática da virtude por um jargão teatral, para transformar
brilhantes qu e louvam com tanta ênfase; a relegá-Ias para sempre à toda a moral em m et afísica, a travestir o s c idadão s em bel os espíri-
ce na, e a m ostr ar-nos a vi rtude como um j ogo teatral , bom pa ra d i- to s, as mães de fam ília em amant es , e as filhas e m a paixonadas de
ve rtir o públ ico, mas qu e seria lou cura qu erer tran sp ortar se riame nte coméd ia. O efei to ge ra l será o mesmo so bre todos os homen s, m as
para a sociedade . A ssim, a impressão mai s va ntajosa das melhores os homens assim mudados se rão mai s o u m eno s co nve nie ntes para
tragédias é o reduzir a a lg umas afeições passageiras , estéreis e se m o se u p aí s. Tomando- se igu a is , os maus ga nharão, e os bon s perde-
efei to , tod os os deveres do homem, a faze r-nos a p la udi r a nossa rão ai nd a mais; todos co ntrai rão um carácte r de mol e za, um es pírito
corage m louvando a dos o utros, a no ssa humanidade lamentando os de ina cç ão qu e retirará a un s as grandes virtud es e impedirá os ou-
males que ter íamos podido c urar, a no ssa carid ade dizendo ao pobre : tros de meditar e m g randes crimes.
Deu s vo s acompa nhe . Destas no vas reflexões res ulta um a conseq uê nc ia directamente
contrária àq ue la qu e retirava das primei ra s , a sa ber, qu e qu ando o
p o vo é corromp id o , os es pectácu los são-lhe ad equ ad os , e m au s
2 . Teatro e sociedade
qu ando e le próprio é bom . Pareceria, e ntão , que estes doi s e feito s
A ssim , e m bo ra fos se ve rdade que os e spe ct ácul o s nã o são contrá rios deve riam destru ir-se mutuam ente e os esp ect áculos tor-
mau s e m si mesm os , deve ríam os sempre pro cura r se e les não se narem-se indiferentes p ara todos; ma s ex iste esta diferen ça qu e , o
tornariam tal relativamente ao povo a que m se destinam. Nalgun s e fe ito que reforça o bem e o mal, sendo retirado do espírito das pe-
lugares, serão úteis para atra ir os estrangeiros, para a um entar a c ir- ça s , está sujeito c o m o elas a mil modific ações que o reduzem a
c ulação das es péc ies, pa ra exc ita r os ar tis tas, para vari ar as modas, qu a se nada; enqu anto aquel e qu e muda o be m em m al e o mal em
para e ntre ter as pessoas de m asi ado ricas o u qu erend o sê -lo , para as bem , · res u lta ndo da própria existê nc ia do especi ácu lo , é um e fei to
tornar men os malfazej as , par a di strair os po vo s d as suas mi sérias, const ante, real , qu e regressa todos os di as e deve ganhar no fim.
par a fazer esq uec er o s se us c hefes ao vere m o s se us palhaço s, para Daqui seg ue- se que , par a j ulgar se é ade q ua d o ou não es ta be le -
manter e ape rfe içoar o gosto quando a hon e stidade se perdeu , para ce r um teatro numa c idade , é preci so primei ro saber se os costumes
cobrir co m um ve rniz de processos a fea ldade do víc io , para , numa a í s ão bon s ou m au s; qu est ão so bre a qual tal vez não m e caiba pro-
palavra, impedir que o s m aus costumes degenerem e m banditi sm o. nunci ar-me rel ativamente a nós. O qu e qu er que sej a, tudo o qu e
Noutros locais, não serviriam senão para destruir o am o r ao traba- po sso dizer sobre isso, é qu e é verdade qu e a c o m é d ia não nos fará
lho , para desen corajar a ind ústria, para ar ruina r os particulares, para ma is m al , se nada m ai s o pude r faze r.
192 193

3. O teat ro do Povo anos; prêmios públicos; reis do ar cabuz, do canhão, da na vegação.


Não será de mai s multiplicar es tabe lec ime ntos tão útei s I e tão agra -
o quê! e ntão não será preciso nenhum espectáculo numa repú - dávei s; rei s destes nun ca são de mais. Porque não fazermos, para
blica? Pelo co ntrário, são preciso s muitos. É nas repúblicas qu e eles
nos tornarmos bem di spo sto s e robustos, o que fazíam os para no s
nasceram, é no se u se io que se vêem brilhar com um ve rda de iro ar
exercitar na s arm as? A república tem menos necessidade de ope rá-
de festa . A qu e povos melhor co nvé m reunirem- se muitas vezes e
rios do qu e so ldados? E porque, segu indo o mod elo do s pr émios
formar entre si os doces laços do prazer e da alegri a, se nã o àqueles
militares, não fundaríamos outros prémios para a ginás tica, para a
que têm todas as razões para se amarem e mant erem unidos? Temos
luta, a corr ida, o di sco, para div erso s exe rcícios do corpo? Porque
já várias dessa s festas públicas; tenhamos mai s ainda, e ficarei cada
não animaríamos os no ssos barqueiros para co mpe tições sobre o
vez mai s e ncantado . Ma s não adaptemos es ses es pec tác u los ex - lago? Hav eria no mundo um es pec tác ulo mai s brilhante do qu e ve r,
clu sivos qu e tristem ente encerram um pequ eno número de pessoas sobre es ta vas ta e so be rba baci a, ce nte nas de barcos, e legante me nte
num antro ob scuro; que as mant êm tem erosas e imóveis no silêncio equipados, partirem ao mesm o tempo ao sinal dad o par a irem bus-
e na inacção; qu e não oferecem aos olhos mais que tabiques, pontas car uma bandeira arvorada ao fundo , depois se rvir de co rtejo ao
de ferro , soldados, imagens aflitivas da servidão e da de sigualdade. vencedor regressando em triunfo para receber o prêmio merecido.
Não, povos felizes, es tas não sã o as vossas festa s! É ao ar livre, é Toda s es tas es pé c ies de festa s só sã o di sp endiosas o qu e se quiser, e
debaixo do cé u qu e é preci so reun ir-vos e entregar-vos ao do ce se n- apenas o co nc urso já as torn a magníficas.
timento da vossa felicidade.
Que os vosso s prazeres não sejam efeminados nem mercen á- (Lean-Lacques Rou sseau Citoyen de Gen évc, ti M . dAlembert, A rnsterd ão, Marc Mi ch el Rc y,
t 758).
rios, que nada do que cheire a co nstrang imento e interesse os enve-
nene, que sej am livres e generos os co mo vós, que o sol ilumine os
I Não che ga q ue o po vo te nha pão e viva da sua cond ição . É pre c iso q ue viva agrada-
vossos es pectác ulos inocentes; vós próprios vos tran sformarei s num ve lmen te: a fim de que c um pra me lhor os se us deve re s, que se atormente menos pa ra del es
sa ir, e que a ordem púb lica esteja mel hor es ta be lec ida. O s bon s cos tumes na scem mai s do
es pectác ulo, o ma is digno que e le possa alumiar.
que se pen sa do facto de cada um se sentir bem no seu es tado. As manigâncias e o es pírito de
Mas qu ais se rão enfim os ass untos destes es pec tác ulos? O que intriga na scem da inquiet ação e do de scont entam en to : tud o co rre mal quando um aspira ao
emprego do outro. É preci so ama r o se u ofício pa ra o faz er bem . A estabi lidad e do Estad o só
se mostrará aí ? Nada, se qui se rem. Com a lib erdade , tudo o nde é boa c só lida q ua ndo, to dos se ntados no se u lugar, as for ça s parti cu lares se reúnem e co nco r-
reina a aflu ên cia, aí também reina o bem -estar. Plantai no meio de rem para o be m p úblico ; e m ve z de se desgast ar em um a contra a outra, corno acontece e rn
q ualquer Estado ma l co ns tituíd o. Posto isto , o q ue se dev e pen sar daque les qu e q uereriam re-
uma praça uma es taca coro ada de flores, reuni o povo e m torno dela tirar ao pov o as s uas fe st as. os prazere s c todas as es péc ies de div ertiment os. co mo o utras tan -
e tereis aí um a festa . Fazei me lho r a ind a: dai os es pec tado res em es- tas d istra cçõc s qu e o de sviam do se u trab alh o? Esta m áxim a é bárbara e fal sa . T ant o pior, se
o povo s ó tem tempo para ganhar o se u pão . é- lhe nec ess ário tempo ainda para o come r com
pec táculo, torn ai -os a eles pró prios ac tores, fazei co m qu e ca da um alegri a: de outro mod o e le não o ga nha rá por muito tempo . Este Deu s ju sto e be nevo lente qu e
se reveja e se ame nos outros, a fim de qu e todos fiqu em mais un i- quer que e le se oc u pe . qu er também que e le se descontrai a: a Natureza impõe -lh e igualment e
o exercício e o repou so , o pra zer e a dor. O desgosto d o traba lho oprime mai s os infe lizes qu e
do s. Não tenho necessidade ele os enviar para os jogo s dos g regos o pr6prio tra balh o . Q ue rei s então tomar um po vo ac tivo e labor ioso? Dai-lh e festas , oferecei -
-lhe d ivert iment os qu e lhe faça m ama r o seu estado e o impeça m de invej ar o utro mai s do ce .
anti gos: ex iste m outros mais modernos, trata-se dos qu e ainda exis- A lguns dias assim perdidos va lo rizarão mai s tod os os ou tro s. Presid i ao s se us pra zer es para
tem , e enco ntro-os precisament e entre nós. Tem os revistas tod os os os to m ar ho ne stos; é a verdad eira ma neira de a nim ar os se us tra bal hos. (NA .)
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29 - NOVERRE: CARTAS SOBRE A DANÇA ( 1760) pa ssar; e depoi s qu e importa? Não está ele seguro do êx ito se ela
fizer um g rande barulho? A s á rias de dança são se m pre aq ue las que
Bailarino e coreó grafo de origem suíça, Jean-G eorges Noverre menos lhe cu stam a compor; nesse aspecto segu e os ve lhos modelos;
(172 7-1 810) foi um dos principais criadores do «ballet de acçã o », os se us predecessores são o s se us guias; nã o faz qualquer esforço
construído sobre um libreto e comportando um elem ento de pauto - para esp alhar a variedade naquele tipo de partes, nem para lhes dar
mima, que se substitui à dança: na maioria decorativa e geométrica um carácter novo; este canto monótono do qual deveria desconfiar,
do clássico sé culo XVII . Uma carreira internaci onal e a sua obra qu e e nto rpece a dan ça e que adormece o espectador, é o qu e o seduz,
de teórico p ermitiram-lh e exercer uma influên cia du rá vel sobre os porque lhe dá men os trabalho a captar, e qu e a imitação se rv il das
coreóg rafos de toda a E urop a. Nas s ua s Cartas so b re a Dança, árias não exi ge um gos to, nem um talento, nem um génio supe riores.
reimpresso s e acrescentadas em vários momentos, comp le ta uma O pintor-d ecorador, à falta de não conhecer perfeitam ente o
ve rd a deira dramaturg ia da dança co m co ns ide rações profética s drama , cai muitas ve ze s no e rro ; não consulta nunca o a uto r, mas
sobre a org anizaç ão de um teatro total. segue as suas ideias as quai s , muitas vezes fa lsas , se opõem à vero-
similhança que se deve encontrar nas decorações, ao efeito de indi-
car o local da cena. Como pode ter sucesso , se ignora o lugar em
A coordenação das artes teatrais qu e e la se deve passar? Não é no entanto se nã o se g u ndo o co nhec i-
o po eta ima gina que a sua arte se e leva acima da do mú sico; mento e xac to da acção e do lugar que deveria agir; se m isso , de sa-
este acredi tari a estar a rebaixar-se se cons u ltasse o mestre de bail ado; parec e a verdade , desaparec em os cos tumes I, e o pitoresco .
C ada povo tem lei s , co stumes, uso s, modas e cerimóni as opos-
aquele não comunica nunca com o desenhador; o pintor-decorador
tas ; cada nação difere no s seus gostos , na sua arquirectura, na maneira
não fala se nã o ao s pintores subordinados , e e n fim, o maquini sta,
de c u ltivar as arte s; a de um pintor hábil é e ntão captar essa varie -
muitas ve zes desprezado pelo pintor, comanda so beranam en te as
dade ; o seu pincel deve ser fiel e se não pertence a todos os países,
manobras do teatro. Se o poeta se humanizasse um pouco, dari a o
deixa de ser verdadeiro e não está mais em posi ção de agradar.
tom, e as coisas mudari am de figura , mas ele só escuta a sua vcrve:
O desenhador das roupas não consu lta ninguém ; sac rifica mui -
desdenhando as outras arte s, não pode ter del as se não um a fraca
tas vezes o costume de um po vo antigo Ü m od a da é poca, ou ao
ideia; ign ora o efeito qu e cada uma delas pode produzir e m part i-
ca pric ho de uma bailarina ou de uma actri z de fama .
cular, e o que pode resultar da sua uni ão e da sua harmonia: o mú sico
O m estre de bailado não é informado de nada; encarregam-no
seg uindo o se u exemplo toma as palavras , percorre -as sem aten çã o .
de uma partitura. co m põe dança s so bre uma músi ca qu e lhe é apre -
entregando-se à fertilid ad e do seu gênio, compõe música qu e não
se ntad a , di stribui os passos part iculares, e as roupagens dão a seg u ir
significa nada porque não ouviu o se ntido daquilo qu e só leu co m os
um nome e um ca rac te r ã dan ç a.
olhos, ou porque sacrifica ao brilho da sua arte e ao grupo de harmo-
nia que o lisonjeia, a expressão verdadeira que deveria dar ao recit a-
I Não se tra ta apenas . IlO séc u lo XV III, das roupagen s dll S ac ro res , m as de tud o o que se
tivo . Faz ele uma ab ertura? Em nad a é relativa à acção que se vai c ha m .mi «c or loca l». (N .F.)
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o maquinista está encarregado d o cuidado de apresentar os senão um baixo ciúme e uma de sinteligência indigna dos g randes
quadros do pintor no ponto de pe rspectiva e nos diferentes dias que homen s, que possa degrada r as art es, aviltar os que as profes sam, e
lhe co nvém ; a sua primeira pre ocupaçã o é arrumar os bocad os da s opor-se à perfei ção de um a obra que e xi ge tantos det alhes e be le zas
deco rações com tanta ju steza qu e não formem mai s qu e um só, bem diferent es co m o a Ópera.
entendido e bem de acordo; o seu talento consiste em apresentá-los Encarei se m p re este es pectác ulo com o um grande quadro qu e
com rapidez, e a retirá-los com prontidão. Se não tem a arte de di s- deve oferece r o maravilhoso e o sub lime da pintura em todos os gé -
tribuir as lu zes ad equadamente, e nfraq uece a obra do pintor e in- neros; c uj a tela de ve se r es boç ada por um homem cé lebre, e depoi s

vert e o efe ito da decoração. Tal parte do quadro qu e de ve se r ilumi- pintada por pintores -h áb e is em gé ne ro s opos tos qu e , todo s anima-
dos pel a honra e pela nobre amb ição de agradar, devem terminar a
nada torna-se negra e ob scura; uma outra que exige se r privada de
obra- prim a com esse acordo e essa int eligênci a que anunc iam e ca-
luz apre se nta -se clara e brilhante. N ão é a grande quant id ad e de
rac teriz a m os ve rdade iros talento s. O homem cé lebre que fez a e s-
lampiõe s colocada ao aca so, ou arr a nj ados sime trica mente que ilu-
colha do tem a , que di sp ôs as su as p art e s, qu e as di stribu iu com
min a bem um teatro e que valoriza a ce na; o talento co ns iste e m sa-
tanto go sto quanto arte , e que e sb oçou a tela, e is o poeta; é d ele pri-
ber distribuir as lu zes por partes ou por massas desi guais, a fim de
meiram ente que depende o ê xito , dado que é ele quem compõe, qu e
forçar os locai s qu e ex igem um a g ra nde luminosidad e , de ge rir os
co loca, qu e de senha e qu e põe na proporção do se u gé n io mais o u
que exige m pouca, e negligen ci ar as part es qu e são menos s usce ptí-
menos bele z as, m ai s ou menos ac ções, e por co nse qu ênc ia, m ai s ou
veis . O pintor, sendo ob rigado a co locar mati zes e gradações nos
men os intere sse no seu quadro . O s p intores que sec undam a sua
quadros para que a perspectiva aí se e ncontre, aquel e que tem qu e
imaginação são o m estre de mú sica, o mestre de ba ilado, o pintor-
os iluminar deveri a, parece-m e , co ns ultá-lo, a fim de respe itar os -deco rador, o desenhador para o Costume das roupas e o m aqu i-
mesm os m ati ze s e as mesmas grad ações nas luze s. Nada se ria tão nista : todos os c inco devem igualmente concorre r para a perfeição e
mau como uma decoração pintada no mesmo tom de cor e nos mes- beleza da obra, seg u indo exact amente a id e ia prim itiva d o po et a ,
mos matize s; não existi ria aí nem di st ância nem perspectiva; do que por sua vez deve vigi ar cuidadosamente a totalidade. O olho do
mesmo modo , se as part es de pintura divididas para formar um todo mestre é um ponto necessár io, e le dev e e n trar e m tod os o s ponne-
es tão iluminad as com a mesma int ensid ade , não ex istirá mai s cnten- nores. Não os há pequenos nem minu ci o sos na Ópera; as cois as qu e
dimento, nem ma ssa , nem opo s içã o, e o quad ro deixar á de pr oduzir parecem se r d a m ai s fra ca conseq uê nc ia chocam, fe rem, e desagra-
efeito. dam quando não são apresentadas com exactidão e preci são. Este
( ...) es pec tác u lo não pod e , poi s, suportar a mediocridade , e se d uz tanto
Que os po et as desçam do sagrado Valezinho; qu e o x arti st as mai s quant o mai s perfeito es tive r na s s uas partes. C onve nh amos,
en carregados das diferentes parte s qu e compõem a Ópera ajam de Senhor, qu e um au tor que abando na a sua obra aos c uidados de cinco
acordo , e se ajudem mutu ament e , e então esse esp ectáculo terá o pessoas que nunca vê , qu e mal se conhecem, e que todas se evitam ,
mai or ê x ito ; os tal entos reunido s terão se m pre suces so. Não e xis te parece-s e bastante com aque le s pais qu e co nfia m a ed ucação do s
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seus filhos a mãos estrangeiras, e que por dissipação ou por esp írito maquinista remediar a má combinação que se opõe ao s seus e fe itos,
de grandeza acreditariam rebaixar-se se vigiassem o s seus progres- ao seu funcionamento e à sua actividade.
sos. Que resulta de um preconceito tão falso ? Tal c riança nascida
(Nove rre , Lett rrs s /lr la Da nse, s /lr lcs Ballcts ct sur tcs A rls . Ed i ções princip ais em 1760.
para agradar, torna-se enfadonha e aborrecida. Eis a imagem do 1767, 1783. lR03 , 1807 . Ediç ão de S . Petcr sburgo , 1803 . pp. 72 -7<). Veja-se tam bém No-
poeta na do pai, e o exe m plo do drama no da criança. vc rre , Lettrcs sur la Danse , Maurice B éjart (apr.), Ram say, 1978 .)

Dir-rne-eis talvez que faço do po eta um homem universal ?


Não, Senhor, ma s um po et a deve ter espírito e gosto . Sou da opinião
que um autor que diz qu e as g ra ndes partes de pintura, mú sica e
30 - MARMONTEL: POÉTICA FRANCESA E OUTRAS OBRAS
dança que não tocam a um cert o ponto um ignorante bem organi-
(1763)
zado , ou são más ou medíocres.
Sem ser músico , não poderá um po eta se ntir se tal traço de mú-
Jean-Fran çois Marm ontel ( 1723 -1799), dramaturgo , ensaísta e
sica transmite o se u pensamento , e se tal outro não enfraquece a
romancista, comp õe para a Encyclopédie de Diderot e dAlembert
expressão; se este em pres ta a sua força à pai xão e concede graça e
numerosos artigos relativos à lit eratura, e apresenta um tratado de
energi a ao se ntime nto ? Sem ser pintor-decorador, não pode ele
Poética francesa em f 763 . Estas duas obras f orneceram mais tarde
conceber se uma tal decoração qu e deve representar uma floresta d a
o essencia l dos seus Elementos de Literatura ( 1787) e das sua s con-
Áfri ca não toma a forma da de Fontainebleau ? Se uma outra qu e
tribuiçõ es para a Enciclopédia m et ódica (178 9).
deve ofe re ce r uma ensead a da Améri ca não se parece c om a de
E ste «filósofo » foi o último grande te órico da dramaturgia
Toulon? Se esta que deve m ostrar o palá cio de qualquer imperador do
clássica [rancesa , da qual a cabava de esta be lecer os princípios e
Japão , não se aproxima demasiado do de Versailles? E se a última
as regra s, ao mesmo tempo que se interrogava so bre as suas possibili-
que deve tra çar os jardins de Semiramis , não oferece o s de Marly'! dades de renovação por intermédio da tragédia p opular e do drama .
Sem se r bail arino nem mestre de bailado, ele pode igualmente aper-
ceber-se da confusão que aí reinará, da falta de expressão dos exe-
cutantes: pod e , digo-o , se ntir se a sua acção é transmitida com ca- I . O interesse da tra g édia popular
lor; se os quadros são sufi cientemente tocantes ; se a pantomima é A moral é um a para todos os e stados . O s deveres dos pequenos
verdadeira, e se o caracter da dança cor res po n d e ao caract er do e o dever dos grandes são como dois círculos co ncê ntr ic os que têm
povo e da nação qu e deve representar. Não pode ele ainda se ntir o s os doi s os m esmos raios .
defeitos qu e se en contram nas roupas por negl igência ou falta de Mas tanto quanto estou longe de preferir a tragédia popular à
gosto que, afastando- se do Cos tUII/C , de strói toda a ilu são? Tem ele tragédia heróica, também e stou lon ge de a e xcluir do teatro . A tra-
necessidade de ser maquinista para se aperc eber qu e tal máquina gédia é imitação de uma acção geral, e não de um facto particular.
não funciona com prontidão? Nada de mais simples do que ordenar Ela fa z-nos ver, não o que pode acontecer a um homem de tal nível,
a lentidão, o u admirar a preci são e a velocidade. De resto, cabe ao mas a um homem co m um determinado caract er. É então através dos
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modos das personagens, e não pelo seu nascimento ou pela sua for- É um preconceito pueril e falso, fazer depender a qualidade do
tuna, que o assunto será teatral. «Quanto mais a fábula se aproxima poema da qualidade das personagens. São os efeitos que distinguem
dos acontecimentos vulgares, tanto mais ela abre na alma uma en- as causas, e o selo do trágico é a impressão do terror e da piedade.
trada livre às máximas que encerra.» I A tragédia popular tem então Que a tragédia tivesse sido essencialmente uma lição de polí-
as suas vantagens, como a heróica tem as suas. Que comparação de tica, e a verdade que tinha que ensinar uma máxima do estado, é se-
Barnewel ' com Atalia do lado da pompa e da majestade do teatro! guro que ela tinha que tomar o exemplo na classe mais elevada:
mas também que comparação do lado do patético e da moralidade! confessarei mesmo que estas lições sendo as mais importantes, os
É injuriar o coração humano e desconhecer a Natureza acredi- seus assuntos são também os mais belos. Mas se nos limitamos a
tar que ela tenha necessidade de títulos para nos comover e enterne- dar grandes lições de costumes, não é isto suficiente de um exemplo
cer. Os nomes sagrados de amigo, pai, amante, esposo, filho, mãe, vulgar? A tragédia pressupõe então um génio menos elevado; mas
de homem, enfim: eis as qualidades patéticas: os seus direitos nunca exige um tanto mais natural quanto o modelo está mais perto de
prescreverão. Que importa qual é o nível, o nome, o nascimento do nós, e podemos julgar melhor a semelhança.
infeliz 3, que a sua complacência para com amigos indignos e a
sedução do exemplo, não tenham envolvido nas ratoeiras do jogo,
que tenha arruinado a sua fortuna e a sua honra, e que geme nas pri- 2. O drama e a arte
sões, devorado de remorsos e vergonha? Se me perguntais qual é ele, A invenção de um tema patético e moral, popular e decente,
eu respondo: ele foi um homem de bem, e para seu suplício, é esposo
nem trivial nem romanesco, e cuja singularidade conserve o ar do
e pai; a sua mulher, que ele ama e da qual é amado, enlanguesce, re-
natural mais simples e mais comum; a condução de uma acção que
duzida à extrema indigência, e não pode dar senão lágrimas aos seus
deve ser tanto mais viva quanto não será sustentada por qualquer
filhos que lhe pedem pão. Procurai na história dos heróis uma situa-
dos prestígios da ilusão teatral, e tanto mais habilidosamente enla-
ção mais tocante, mais moral, numa palavra, mais trágica; e no mo-
çada e desenlaçada, quanto os seus fios são mais conhecidos; uma
mento em que esse infeliz se envenena, aprende que o céu vinha em
imitação apresentada mesmo ao lado do seu modelo, e onde a me-
seu socorro; nesse momento doloroso e terrível, aonde ao horror de
nor inverosimilhança seria chocante para todos os olhos; costumes
morrer se junta a pena de poder ter vivido feliz; dizei-me o que falta a
burgueses ou populares a ser pintados sem grosseria, sem baixeza, e
este tema para ser digno da tragédia? O maravilhoso, dir-rne-cis. Eh,
portanto com o ar da verdade; uma linguagem simples e no tom da
não o vedes esse maravilhoso na passagem rápida da honra ao opró-
coisa e das personagens, mas correcta, mas fácil e pura, ingénua,
brio, da inocência ao crime, do doce repouso ao desespero. numa
engenhosa, sensível, enérgica sempre que o deva ser, nunca forçada,
palavra, no excesso de infelicidade causada por uma fraqueza.
nunca mais elevada que o assunto; caracteres a desenhar, a combi-
nar, a manter, onde a inocência, a virtude, a bondade são o que há
1 Citação do erudito italiano Gravina (1664-171 X). (N.F.)
, Ilcrói do Mercador de Londres de Lillo (1731). traduzido em francês em 174X e de mais fácil a pintar: porque a mistura da virtude e dos vícios, de
protótipo da tragédia burguesa para a França. (NF.)
3 () Jogador de Moorc (1753). imitado por várias vezes em França antes do Béverlei
uma disposição feliz e de uma má tendência, de um fundo de hones-
de Saurin (176X). (NF.) tidade que o contágio do exemplo modifica e começa a corromper,
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um choque de paix ões contrárias ou de inclinações oposta s, sâo di- dessedentais é amargo ; qu ero-o bem, desde qu e seja salutar, e que o
ficuldades bem diferentes: e is o que ultrapassa as forças do fazedor temor e a prudência sejam o segu imento da piedade. A dor que m e
de dramas mais comum. Mas o que as ultrapassa ainda mais, é a terá causado um espectá culo aflitivo deve se r alivi ada pel a reflexão :
art e de tomar o crime suportável num espect áculo popular; porque e es te alívio cons iste e m pode r dizer-me a mim me smo qu e o ho-
e le está ali em toda a sua baix eza e em toda a sua negritude. A cada mem é livre de evitar a infelicidad e cuj a pintura acabo de ver; que o
momento demora vê-lo arrastar-se com falta de trabalh o ; e 'de sde víci o , a pai xão , a imprudência, a fraquez a que a provocam , não é
que o colocaram em cena, não há outro meio decente de o fazer sair um mal necessário; e que eu próprio posso pre servar-me dele , ou
se não envi á-lo ao patíbulo. curar-me.
Estas dificuldades reunidas fizeram com que a multidão do s ( ...)
Dramaturgos tomasse o partido mai s cómodo de conseguir tod o o O m érit o do poe ta, o e ncanto do es pect áculo, nã o co ns iste m
se u patético a partir do s acidentes da vida comum; e a sua acção, re- ape nas e m nos oferecer quadros com os quai s no s comovemos , mas
duzida a pantomima, di sp en sa-os do cuidado de esc rever e do traba- com os qu ais temos pra zer em ser co movidos. O trivial pode bem ser
lho de pen sar. tocante: «N ão vou ao es pectácu lo , dizia um homem de bom senso e
A su a teoria rola so bre doi s erros: um, qu e tudo o que interessa gost o , para não ver nem ou vir aí se não o que vej o e oi ço po ndo-me
é bom par a o teat ro; o outro , qu e tudo o qu e se assemelha à nature za à m inha janel a». E xiste e ntã o, mesmo pa ra o pat éti co, um a esco lha,
é belo, e qu e a imitação mai s fiel é sem pre a m elhor. um a a tracção d a c urios id ade , um desej o de ve r a nature za, seja
Nada de mai s int eressante , confesso-o, d o que ve r num par- so b novos pontos de v is ta, seja revestida de fo rmas e co res novas.
d ieiro um a família honesta , abandonada, e reduzida à última das A s com b inações de int eresse s, de caract eres, de incidentes, pouco
extremidades da mis éria e do desespero. Estais seg uro s de rasgar os comuns e p ortanto ve rosímei s: dos m atizes d e cos tumes que não
coraç ões, de arrancar so luços a todo um auditório, e de o afogar e m ap resentam a soc iedade d iária , o u, no q ue se passa, sing ularidades
lágrimas , co m os gritos de todas estas crianças que ped em pão ao qu e não teríam os ap ercebido e qu e o olho do pintor captou ; um na-
se u pai infeliz, e co m as lágrimas de uma mãe qu e vê o se u rec ém- tural que não tem nada de ordinár io, seja na ex p ressão do vício, seja
-nascido , para qu em as font es da vida seca ra m, quase a expirar ao na da v irt ude; e nfi m, esta m ont agem de tr aço s d ispersos so bre a
se u colo. Mas qual é o povo feroz a quem um tal espectáculo cau- cena do mundo que, recolhidos e aproximados, formam um quadro
sa rá divertimento? Qu e pra zer nos pod e dar a imagem de uma infe- com parecen ças, mas do qual nad a de se me lhan te ex is te: tal é a imi-
licidade se m frut os , onde o homem é vítim a pa ssiv a, onde a s ua taç ão poét ica.
vo ntade não pod e nada? Aflig i-me, mas para me instruir, mas para Ne nhum a ac ção na v ida seria teatral se fo sse reprodu zida fiel-
me e ns inar a precaver-me d a infeli cidad e de qu e sou testemunha. ment e . Há se m pre vazios, comprime ntos , c irc uns tânc ias supérflua s.
Mo strai-me, con sint o-o, uma família desolada; mas cuja ruína e in- pormenores frios e sen saborões que seria pueril cont ar, e mai s pueril
fe licidade tenham sido cau sadas por um vício , o u por uma paixão pôr e m cena. A arte do co ntador es tá e m reduzir a ac ção ao que e la
fun esta, cujo ge rme es teja no meu coração . O licor co m qu e m e tem de o rigi na l ou de inte ressante . A arte do poeta dram ático é de
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estendê-la e embelezá-la, suprimir o que tem de comum, e de acres- No entanto, se fôssemos a acreditar nalguns especuladores mo-
centar o que a pode tomar mai s singular e mais picante, ou mais dernos, tud o , nas artes , deveria concorrer para o qu e eles chamam
viva e mais animada. É preciso por todo o lado o ar da verdade, a de efeito, qu er dizer, a ilusão e a emoção mai s forte s; e quanto mais
sua semelhança, mas nunca a sua cópia. Tanto no ca so da lingua- a ilusão fosse completa e o espectáculo patético, tanto mais nos
gem quanto da acção. seria agradável, qualquer que fosse o meio que tives se sido adaptado
O poeta que escreve como se fala, escreve mal. A sua dicção para nos enganar e nos comover.
deve ser natural, mas este natural que o gosto rectifica, onde não Esta opinião pode ser a de um povo se m delicadeza, que não
deixa nada de frio , de abandonado, de difuso, de sensaborão, de in- e xige senão se r comovido. Mas para um mundo esclarecido, culti -
sípido. A própria linguagem do povo tem a sua graça e a sua ele- vado, e dotado de órgãos sensíveis, o prazer da emoção depende
gância, com o tem a sua baixeza e grosseria: tem os seus momento s se m pre dos meios que são usados para a provocar: e se e le não
engenhosos e vivos, as suas expressões pitorescas, e por entre as fi- e xperime nto u no e spectáculo se não as angústias de um interes se
guras de que está cheia, existem algumas muito eloquentes. Ele terá penoso, sem nenhum des ses del eites do espírito e da alma que o
então também a sua pureza, quando a escolha seja feita com discer- desenvolvimento do coração humano , a eloquência das paixões , os
nimento. A operação do gosto na arte de imitar a linguagem as seme- encantos da poesia , misturam com a ilu são do teatro dos Racines e
lha-s e à da peneira que separa o grão puro da palha e do cascalho. do s Voltaires, fará pouco caso de um Drama que , com a imitação
Esta teoria é conhecida; mas no si stema do Drama, parece qu e e a expressão trivi al da dor e d a lamentação, com temas di gnos de
não a admitem de modo algum. A verdade exacta, a natureza el a piedade, com gritos, lágrimas, so luços , o tenha fisicamente como-
mesma é o que se pretende apresentar; e este sistema é muito vido.
cómodo: porque di spensa tanto o gosto na es colha, quanto o génio
(Marmonte l, 1: Poét iqu c françuisc; Lescl ap art , 1763 . tom o lI , pp. 146·1 50; 2 : É lé11lcflls de
na invenção, e o dom de dar às coisas uma criação nova. Copiar o litt ératu re ( 1787) . Did ot, 1856 , to mo I, art igo « Dra m a ». pp . 483-488.)
que se vê, dizer o que se ouve; e dar como natural a incorrecção, a
sensaboria, a insipidez da linguagem, como a ociosa futilidade dos
pequenos detalhes da pantomima que se mi sturam com a acç ão; é ,
neste género, aquilo a que se ch ama conhecer e pint ar a natureza. 31 - JOHNSON: PREFÁCIO A S HA K ESP EA R E (1765 )

O trivial, o baixo, o repugnante, tudo serve; porque tudo é verdade.


Assim , a Farsa lucrou com o favor dado ao Drama; com efeito, a Saniue l John son (1 709-1784), en saísta , romancista e autor de
mesma corrupção do go sto que fa z aprovar um , dev e fazer aplaudir lI//l importante di ci onário de lín gua in gl esa. foi lI//l do s críticos
a outra: porque se tudo o que faz tremer ou chorar é digno da cena, mais resp eitados do séc. XVIII , e impõe um certo classi cismo em 111-
tudo o que faça rir também será digno dela; e de degrau em degrau glaterra. fc ito de rigor e autoridade.
os prazeres do povo baixo tomar-se-ão os de toda a gente. Consagra numerosos anos a uma edição de Shakespearc, cujo
( ...) Pref ácio co nstitui 1//7/0 vigorosa defesa do g énio criado r contra os
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ataqu es dos neocl ássicos, bem CO/110 Voltaire, e fo i um a das fon tes Adm ite-se de boa vo nta de que esta pr ática é contrária às regras
principais do Ra cin e C Shakesp eare de Stendlial. da crític a , m as há sempre um a pe lo a be rto da c r ít ic a à natureza .
O obje ctivo da es c rita é instruir; o objectivo da poe sia é in struir de-
l . O g énero sha kespeariano le itando . N ão se pod e negar que o drama misto possa tr an smitir as
liçõe s da tr agédia ou da comédia , porque contêm os d oi s na alt er-
As peç as de Sh ak esp eare , no se ntido rigo ro so e c rí tico do s ter-
nânc ia d as cenas, e qu e e le to c a m ai s de perto qu e nenhum d os d oi s
m os , nã o são nem tragédia s nem comé dias, m as com posições de
os aspec tos da vi da, mo strando com o grandes m aquinaçõe s e inten-
um a e spécie particular ; expondo o estado real da natureza sublunar, çõe s mesquinhas podem estar de acordo ou contrariar-se , e o alto e
qu e com preende o bem e o m al , a alegria e a d or, m istu radas em
o bai xo cooperar em com o siste m a geral atravé s de um e ncadea-
propo rções de um a variedade infi ni ta e segundo com b inações inu-
m ento inelutável.
meráveis; e ex prim indo o curso d o mundo no qu al a perda de um é
O bj ec ta -se que por es ta mudança de tom as pai xões são in-
o ga nho de o utro; no q ua l, no m e smo mom ento o fe sti vo co rre para
te rro m pida s no se u pro gre sso , e q ue a acção pri nc ipal, não se ndo
o se u vinho c o homem de luto va i a ente rra r o se u amigo; no qu al d e v id amente desenvol vida p o r uma g ra d aç ã o de incidentes pre-
os pl anos m aldosos de um por veze s são frustrad o s pel a lou cura de parat órios , no fim tem falta d e s sa forte capacidade d e com o ver
outro; e on de muitas boas acções e mu itas má s acções se rea liza m que constitui a perfe iç ão d a poe si a d ramáti ca. E st e rac iocínio é de
ou são impedidas se m o bjectivo .
tal m odo es pecioso q ue é acei te m e smo po r aq ue les que , na sua ex-
Nest e caos de intençõ es e acidentes mi sturad o s , os poetas ant i- pe ri ênci a quotidi an a , sabem q ue está errado . As troc a s de cenas
gos, seguindo as regras qu e o costu me lhes presc revia , LIns escol heram mi sturadas raramente deixa m d e produz ir os m o v imento s de pai xão
os cri me s dos homens, os outro s as su as abs urd idades ; un s as vici s- que têm em v ista. A ficç ão não pode comover ao ponto de impedir a
situdes g raves da vida, outros os aco ntec imentos m a is lige iro s; un s atenção de facilmente se de sv ia r; e embora falte ad m itir qu e um a
as ang ús tias da dor, o utros as brinc adeiras da pro speridade. Assim agradável m el an colia é por vezes int errompida por uma a leg ria in-
nasceram os d oi s m od os de imi tação co n hecidos so b os nom es de de sej á vel , deve -se cons idera r ta mbém q ue a pró pri a melan colia po r
trag édia e de comédia, com posições qu e tende m para fin s dife rente s vezes é de sag radável , e q ue o q ue perturba um , pode ali v iar o o utro;
através de me ios contrário s, e que são co ns ide rados co mo tão pouco que aud itores diferent e s têm h ábitos di ferente s; e que, resum indo,
su sceptíveis de ser ali ad os qu e nã o me recordo de um úni co escrito r todo o praze r res ide na va r iedade .
entre os G regos e os Roman os que se tenha e nsaiado nos doi s.
Shake sp e are reun iu os pode re s de exc ita r o riso e as lág rimas
não apenas num só espír ito, m a s num a única com pos ição. Qu ase 2. Aficçâo

rodas as peças são part ilh adas e ntre per son agens sérias e risíve is e, A ne ce ss idade de res pe ita r as un idades de tempo e lugar vem
nas evoluções sucessivas da ac ção, provocam tã o depressa a serie - da nec essid ad e su posta de tom ar o dram a credível. Os críticos con-
dade e a dor, q ua nto a a leg ria e o riso.
s ide ra m qu e é im possíve l ac red ita r qu e um a acção de vários me ses
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ou a nos decorra em três hora s; ou que o espectador po ssa s upo r momento, pode tomar a ce na pelo palácio dos Ptolomeus também
estar sentado no teatro enquanto os embaixadores vão e vêm e ntre pode, meia hora depoi s, tomá-I a pelo promontório do Áccio. A ilusão,
soberanos afa stados, qu e as arm as se levantem e as cidades sej am se é admitida, não tem limites certos; se o espectador pode, por uma
cercadas, que um exilado erre ao longe e depois venha para c as a, o u ve z, se r persuadido de qu e os seus velhos ami go s são Alexandre e
até que aqueles que e les viram a fazer a corte à sua amante venham C ésar, que uma câmara iluminada pelas velas é a planície de Fars á-
a lamentar-se da perda prematura do se u filho. O espírito revolta-se lia ou a margem d e Granico , está num estado qu e o coloca fora do
contra uma mentira evidente, e a ficção perde a sua for ça quando se alcance da razão ou da verdade, e , das alturas da poe sia empírea,
afas ta da se melha nça com a realidade. pode desprezar as c irc unscrições da natureza terrestre. Não há razão
Da estreita limitação do tempo vem necessariamente a con trac - para que um espírito voga ndo ass im no ê x tas e con sult e o relógio,
ção do espaço. O espect ador qu e sabe que v iu o primei ro ac to em nem para qu e a hora nã o seja um sé culo nessa alu cinação do cére-
Alexandria, não pode supor que vê o seguinte em Roma , a uma dis- bro que pod e fazer da cena um campo.
tância que os próprios dragões de Medeia não poderiam tê-lo feito A verdade é qu e o s espectadores conservam sempre o seu bom
atraves sar em tão pouco tempo; sa be com certeza que não mudou de se nso, e sabem, desde o primeiro acto até ao último, que a cena não
lugar, e sabe que esse lugar não se pode mudar a si pr óprio; que o é mais que uma cena, e qu e os actores são apenas actores. Eles vão
que era uma casa não se pode tomar numa planície; que o que e ra ali para ouvir um certo número de versos recitados com os gestos
Tebas nunca poderá ser Per sépoli s. apro priados e uma m odulação elegante. E stes ver so s relacionam-se
Tal é o di scurso imponente pelo qu al o crítico triunfa d a mi sé- c o m uma certa ac ção, e uma ac ção deve passar-se e m qualquer
ria do poeta irregular e triunfa na maioria das vez es se m qualquer parte; mas as diferentes ac ções que compõem uma história podem
resistência nem réplica. Chegou então o tempo de lhe dizermos, pa ssar-se em lugares diferent es , muito di stantes un s dos outros, e
pel a autoridade de Shakespeare , que es ta posi ção que e le adapta onde está o ab surdo de permitir a esse local qu e primeiro represente
como um princípio indiscutível , no próprio momento e m qu e e le o Atenas e depoi s a Sicília, se sem pre soubemos nã o ser nem a Sicília
enunc ia, o se u própri o e ntendimento o declara fal so. É fal so q ue nem Atenas, mas um a cena moderna?
um a representação qualquer seja tomada pela realidade , que uma Por hipótese, com o o es paço é introdu zido , o tempo pode se r
fábul a dram áti ca qualquer, na sua materialização, tenha a lg uma vez prolongado; o tempo requerido pela fábula co rre na maior parte entre
sido c redíve l nem , por um único instante , acreditada. os actos; porque, para a parte da acç ão que é representada, a duração
A objecção vindo da impossibilidade de passar uma prim eira real e a duração poéti ca são as mesmas. Se , no primeiro acto, o s pre-
hor a em Alexandria e a seg unda e m Roma, supõe que, no iníci o da p arativos de g uerra contra Mitridates nos são m ostrados em Roma,
peça, o espectador se imagine realmente em Alexandri a , e creia a g ue rra em si pode, sem absurdidade, ser representada, na catás-
que, tendo ido ao teatro, fez a viagem até ao Egipto, e qu e está a trofe, como tendo lugar no Ponto; sabemos que nã o há nem guerra,
viver no tempo de António c Cleópatra. Seguramente aquel e que nem preparativos d e guerra; sabemos que não estamos nem em
im agin a isto pode imaginar mai s ainda. Aquele que , num dado Roma, nem no Ponto; qu e nem Mitridates, nem Luculo, se encontram
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di ante de nó s. O drama apresent a im itações sucess ivas de acç ões su- 32 - BEAUMARCHAI S: ENSA IO SOBRE O GÉNERO DRAMÁTICO
cess ivas; e porque é qu e a segu nda imitação não pod eri a representar SÉRIO (1767 )
um a acção que ocorreri a anos depois da primeira, se ela lhe est á
ligad a de tal modo qu e nad a , se não o tempo , pod e se r tido como Beaumarchais (1732 -1799 ) não se contenta com praticar todos
tendo int ervindo entre elas? O tempo é de todos os mod os de exis- os gé neros dramáticos do se u tempo , a parada , a ópera c ámica, a
tênci a o mais dócil à imaginação; um espaço de anos é tão fácil de ópera, c oméd ia e drama (co m única exclusão da tragédia ), ma s
co ncebe r como a pa ssa gem d a s horas. Na meditação contraímos também reflectiu sobre es tes diferentes géneros à lu z dessa pr ática .
fac ilmente o tempo da s acções reais, e por m a ioria de razão lhe O se u primeiro drama , Eugénie , represen tado co m êxito em
permitimo s que se contra ia qu ando ve mos ap enas a im itação dessa s 1767 , f oi acompa nhado p ela publica ção de um E nsaio Sobre o G é-
acções . nero Dramáti co Sério, cheio de verve e aut or idade.
Pe rguntar-se- á, como comove o drama se nã o é ac reditado. Ele
é ac red itado com toda a cren ç a qu e se dá a um drama. É ac reditado , A modernidade do dra ma
cada vez que comove, com o a imagem exacta de um o riginal real;
Já vi as pessoas za ngare m -se de boa fé por ver que o género
co mo representando perante o aud itor o que ele próprio se ntiria se
dramático sério en contrav a partidários. « U m gé ne ro eq u ívoco »,
dev esse fazer, ou sofrer, o que se finge fazer ou so fre r. A reflexão
diziam eles, «não se sa be o que é . O que é um a peça na qual não
qu e toca o coração não é qu e os m ales que ve mos são males reai s,
ex iste uma palavra qu e faça rir, onde cinco act os m ortais de pro sa
mas que são males aos qu a is pod eremos estar e xp o sto s. Se há al-
a rras tad a, se m sa l có m ico, se m m áximas , se m c aractere s, no s
g um e ngano, não é qu e acred ite m os nos act ores, m as qu e ac red ita-
mantêm s us pe nsos pelo fi o de um acontec im ento romane sco, qu e
mos se r nó s próprios infeli ze s durante um momento ; m as deplora-
na maioria d as vezes tem tão pouco de ve ros im ilhanç a quanto de
mos m ai s a po ssibilidad e do que acreditamos na presen ça da dor,
realidade? Não é abrir a porta à licenciosid ad e , e favorece r a pre-
como uma mãe chora so bre o se u filho quand o se record a qu e a
g uiç a, o aturar tai s obras? A facilidade da pro sa de svi ar á os nosso s
mo rte pod e levar-lho . O prazer da tra gédia vem da no ssa con sci ên-
jovens do trabalho peno so dos ve rs os, e e m breve o no sso teatro
c ia da ficção; se acreditássem o s no s ass ass ín ios e nas tr aições co mo
recairá na barbárie de onde os nosso s po etas tiveram tanto trabalho
ve rda dei ras, não nos agradar ia m mai s. para o tirar. Não é qu e alg umas das no ssa s peças não me tenham en -
ternecido não se i bem com o ; mas porque se ría horrível qu e um g é-
nero assim se afi rm asse; alé m de que não co nvém de m odo algum à
nossa nação. Cada um sa be o que pensaram os auto res célebres cuja
opinião faz autoridade. Proscreveram com um géne ro igualmente
reprovado por M elpómene e por Talia I. S erá preciso criar uma
(Johnson, The Plays ofWilliam Shak espeare , 1765, Prefácio, Irad. de M artine de Rougemont).
Veja-se também Dr. JOhl1 S0l1 011 Shake spcarc , W. K. Wimsatt (ed .), lI an nmonds. Penguin
Sh ak esp eare Books , 1969. (N.T.) I Respectivamente , Mu sas da tragédia e da comédia. (N.F.)
212 2 13

Musa nova para presidir a este coturno trivial , a este cómico empo- que o seria pretender que um gé nero de es pe ctáculo com o qual
lado? Tragicomédia, tragédia burguesa, comédia lacrimejante, não toda uma nação tenha sido vivamente afect ada, e que lhe agrade em
se sabe que nome dar a estas produções monstruosas! E que um mí- geral, não teria o grau de bondade necessário a essa nação? De que
sero autor não venha gabar-se do s sufrág ios momentâneos do pú- peso serão contra o gosto do público as Sátiras de al gun s autores
blico, ju sto salário do trabalho e tal ento dos actores!. .. O público!. .. sobre o drama sé rio , sobretudo quando os se us gracejos caluniam
O que é ainda o público? Assim que esse ser colectivo se dissolve, obras encantadoras neste género saídas da sua pena? Além de que é
que as partes se di spersam, que sobra para fundamento da opinião preciso ser con sequente , porque a arma ligeira e br incalhona do
geral se não a de cada indivíduo, em que os mai s esclarecidos têm sarc asmo nunca re sol veu qu estões; é ap enas apropriada a fazê-las
uma influ ência natural sobre o s outros que , mai s cedo ou mais tomar partido, e no máxim o permitida co n tra esses advers ár ios
tarde, os põem de acordo consigo? De onde se vê que é o julga- poltrões que, entrinc he irados por detrás d e pilhas de autoridades ,
mento do mais pequeno número, e não o da multidão, que é preci so recu sam ac eitar o desafio do s ra ciocinadore s em campo aberto.
ter em conta.» Convém ainda aos nossos bel os espíritos de soc iedade, que apenas
Basta: ousemos responder a esta torrente de objecções, qu e não afloram o qu e julgam, e sã o como tropas ligeiras de crianças per-
enfraqueci nem mascarei ao transcrevê-las. Comecemos por pôr o didas I da Literatura . Mas aqui , por uma inv ersão singular, os graves
nosso Jui z do nosso lado defendendo os seus direitos. O qu e quer autores gracejam , e as ge ntes do mund o di scutem. Oi ço c itar por
que digam os Censores, o público reunido não é menos o único Juiz tod o o lado pal avr as caras, e atirar, contra o género sé rio, co m Ari s-
da s Obras destinadas a diverti-lo; todos lhe estão igualmente sub- tót el es, o s anti go s, as po éti cas, a utilidade do teatro , as regras, e
metidos, e querer fazer parar os esforços do génio na criação de um s o bre tudo as regras, es se ete rn o lugar-comum do s crític os , esse
novo gé nero de espectáculo, ou na extensão daqueles que e le já espantalho de es pírito s vulgares. Em que género se viu as regras
conhece , é um at entado contra os se us direitos, um empreendimento produzirem obras-primas? Não acontece ao contrário, que são o s
contra os seus prazeres. Concordo que uma verdade difícil será me- grandes exemplos que em todos os tempo s serviram de base e de
lhor reencontrada, melhor captada, mais sabiamente julgad a, por fundamento a ess as regras , co m as quai s se entrava o gé nio inver-
um pequ eno número de pessoas esclarecidas do que pela mu ltid ão tendo a ordem da s coisas? Teriam os homens jamais avan çado na s
em rumor, po is sem isso essa verdade não deveria se r chamada de artes e na s c iênc ias se tivessem se rv ilme nte respeitado os limite s
difícil; ma s os objectos de gosto, de se ntimento, de puro efeito , numa eng anadores qu e os se us predece ssores lhes tinham prescrito? (...)
palavra , de espectáculo, não sendo nunca admitidos senão qu ando O gé nio curioso , impaciente, se mpre ap ertado no círculo do s conhe-
da se nsaç ão poderosa e súbita qu e produzem em todos os es pec ta- c ime ntos adquirido s, desconfia qu e há qualquer coi sa além do que
dores, devem eles ser julgados pel as mesmas regras ? Quando é me - se sa be ; agitad o pelo se nt imento que o pr e ssiona, ato rm e nta-se,
nos qu estão de di scutir e de aprofundar do que de sentir e de se ous a, cresce, e rompendo enfim a barreira do preconceito, lança-se
divertir ou de ser comovido, não será igualmente arriscado su stentar
que o jul gamento do público comovido é falso e mal colocado , do
I Franco -ati radores. (N. F.)
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além dos limites conhecidos. Por vezes perde-se , mas é só e le qu e o que me fazem a mim , sujeito pacífi co de um es tado monár-
leva até lon ge na noite do possível o verso farol que no s apressamos qui co do século de zoit o , as rev oluções de Atenas e de Roma? Que
a se guir. Dá um pas so de gigan te, e a arte alargou-se ... Paremos. verdadeiro interesse posso ter pela morte de um tiran o do Pelopo-
Nã o se trata aqui de disputar com fogo , mas de di scutir friam ent e. neso , pelo sacrifício de um a jovem prince sa e m Áu lid e? Em tudo
Reduza~os então a termos mai s s im p les uma qu estão qu e nunca foi isso nada há qu e tenha qu e ver comigo, nenhuma moralidad e quc me
bem co locad a . Para a levarmos perante o tribunal d a razão, eis co nvenha. Porque o que é a moralidade? É o resultad o frutuoso e a
como a enunciaria: apli ca ção pessoal da s reflexões que um acontecimento no s arranca.
O qu e é o interes se? É o se ntimento involuntári o pel o qual adapta-
Será permitido tentar interessar um povo pelo te at ro , e fazer
mos esse aconteciment o a nós próprios, o se ntimento que no s co loc a
correr as suas lágrimas sobre um ac o ntec imento tal qu e , supondo-o
no lugar daquel e qu e so fre, no m ei o da sua situação. Uma co m para-
verda deiro e passado deb aixo dos se us olhos entre cidadãos , nunca
ção tomada ao acaso na natureza acabará de tornar a minha ideia
deixaria de produzir ess e efe ito so bre ele? Porque tal é o objecto do co m pree nsíve l para toda a ge nte . Porque é que o relato do terramoto
gén ero honesto e sério. Se algué m é suficientemente bárbaro, sufi- qu e engoliu Lima e os seus habitantes a trê s mil légu as de mim me
cientemen te clássico, para ousa r s us te ntar a negativa, é preci so per- perturba, enquanto o do assassínio jurídico de Carlo s I, co me tido em
guntar-lhe se o que ele entende pela palavra drama ou peça de teatro Londres, apenas me provoca indignação? É qu e o vul cão aberto no
não é o quadro fiel das acções do s homens. É preciso ler-lhe os ro- Pe ru poderia ter fe ito a sua ex plo são em Pari s, e nterrar- me sob as
man ces de Richardson, que são verdadeiros dramas, da mesm a ma - suas ruínas , c talvez me ame ace ainda, enquanto nun ca poderei apre-
neira que o drama é a conclusão e o instante mais int ere ssante de e ndcr nada de ab solutam ente parecido com a infel icidade inaudita do
um qu alquer romance. É preciso e ns inar-lhe, se o ignora, qu e várias rei de Inglaterra. Este se ntime nto habita o coração de todos os ho-
cenas de O Filho Pródigo, Nanina toda inte ira , Melan ida , C énia, o men s, se rve de ba se a esse princípio certo da arte , qu e não há morali-
Pai de Família, a Escocesa , o Filósofo sem o Saber I , fize ram já co- dad e, nem interesse, no teatro , se m uma rel açã o secre ta entre o as-
nhece r quai s as belezas qu e o género sério é su sc eptível de aprese n- sunto dramáti co e nós próprios. Resta então co mo const ante que a
tragédia heróica nã o nos toca se não pelo aspecto e m que aproxima
tar, e acos tum aram a agradar-no s pela pintura comovente de uma in-
do gé nc ro sé rio , pintand o-n o s homens, não rei s, e que , os assuntos
felicidad e doméstica, tanto mais pod erosa so bre os no sso s corações
qu e p õe em ac ção, es ta ndo tão di stantes do s no s so s cos tumes, e
qu anto parece ameaçar-nos de m a is perto. Um efc ito que nã o se
se ndo as personagen s tão alhe ias ao nosso es tado c iv il, o int eresse é
pode nun ca esperar com o mesmo g rau e m todos os g ra ndes qua-
menos premente qu e o de um drama sé rio, e a moralidad e menos di-
dro s da tragédia heróica.
recta, mais árida , muitas vezes nula e perd ida para nós , a não ser qu e
( ...)
sirva para nos consolar da nossa mediocridade, mo strando-nos que
os grandes crimes e as gra ndes infelicidades são o quinhão normal
daqueles que se ocupam a gove rn ar o mundo.
I O F ilho Pródigo, Nanina e A Esco cesa, de Voltaire: Melanida de Niv cll e de La
Chauss ée: C énia de Madarnc de Graffi gny; O Pai de Família de Did erot ; O Filósofo sem o ( Bcau m arc h a is , Tli é átre complct; d ' lI ey ll i e t Marescot (ed .). Acad émi e de s Bihliophiles,
Saber de Se dai ne . (N.F.)
IS67 , t 0l110 I, pp, 23 -29 .)
216 217

33 - LESSING: A DRAMATURGIA D E HAMBURGO ( 1767 - 176 8) fle xibilidade e inteligênci a qu e, se te vezes em nov e , ganhavam mais
do que perdiam com isso. Este constrangimento lev ava-os a sim pli-
Gotthold Eph raim L essing (1 729-/ 781) foi , ao mesm o tempo , ficar a acção , a retirar-lhe cuidadosamente tudo o qu e foss e supér-
um dos mais imp ortantes autores de teatro do século XVIII alem ão. flu o, de tal modo que , reduzida ao s seus elementos mai s essenciais ,
e o seu teorizador mais influ ente. A Dramaturgia de Hamburgo e la não era mais que um ideal de ssa mesma ac ção; e a forma mais
apareceu em forma p eri ódica e constituía o comentário seguido de feliz que esse ideal podia rec eber era a que mai s facilmente podia
du as épocas teatrais nessa cidade . tanto do ponto de vista do repor- passar se m circunst ân cias acessórias tiradas do tempo e do lugar.
tório , quanto das representa ções. A obra dá um lugar imp ortante às Pelo contrário, os frances es, que não tinham qualquer gos to pela
primeiras teoria s de Diderot, e ao exemplo de outros aut ores ingle- ve rdadeira unidade de acção, e qu e tinham sid o es tra gados pelas in-
ses. Criticando a dramaturgia clássica fran cesa , f az apelo a novas tri ga s bárbaras das peças es panholas antes de co nhecere m a simpli-
dramaturgias nacionais . cidade grega, consideraram as unidades de tempo e lugar, não como
cons eq uência da unidade de acç ão, mas como condições indispen-
sá ve is, em si próprias, par a a representação de uma acção. Acredita-
1. A interpretação das regra s
ram dever acomodá-las às suas acções mais ricas e mais complexas,
Desenvencilhar-se com as regras é uma coisa, e re sp eitá-las com o mesmo rigor qu e se e las tivessem sido tornadas necessárias
realmente é outra. Na primeira, os fr anceses governam-se ; mas pel a presença do co ro , ao qual, todavia, tinham com ple ta m e nte
qu anto à seg unda, não há senão os antigos que parecem ter sa b ido renunciado. Mas encontrar am nisso gra ndes dificuldad es, por ve zes
executá-las. me smo impossibilidade s : e n tão imag ina ra m uma escapa tória para
A unidade de ac ção er a a primeira lei dramática dos antigos; a se subtra íre m à tirania dessas regras, das quai s não tinham corage m
unidade de tempo e a unidade de lugar n ão eram, por assi m di zer, de sac udir o jugo . Em ve z de um lu gar único , int roduziram um lu -
mais do qu e as consequências: eles nunca as teriam respeit ad o m ai s ga r indeterminado , que se p odia tomar tanto por es te como por
es tr itame nte que o tivesse ex igido a primeira, se o coro não tives se aq ue le . Bastava qu e esses lu gar es não fo s sem muito distante s un s
v indo co locar-se ali como um elo de ligação. Como a ac ção do s d os o utros, e qu e nenhum del es ex ig isse um a d eco ração parti cular,
se us poem as devia ter por testemunha uma multidão do povo , corn o de m an eira qu e a m esma decoraçã o pudesse se rv ir mais ou menos
es ta multidão se mantinha sem pre a me sma, como ela não podi a tão bem para un s qu anto par a os outros. A unidad e de dia foi substi-
afastar -se das suas habitaçõe s, nem ause ntar-se delas mai s do qu e se tu íd a pela unid ad e d e duraç ão ; e admitiram qu e se cons ide ra r ia
pode faze r vulga rmente por simples c ur ios idade, os poetas não po- como um único di a certo tempo, durante o qual não haveria questão
diam nunca fazer de outra maneira se não limitar o luga r a um es- nem de levantar nem de pôr do sol, onde nin gu ém se iria deitar ao
paço único e determinado, e o tempo a um único e mesmo di a. Eles menos não mais qu e uma vez, qualquer qu e fo sse a qu antidade e va-
submetiam- se, então, a esta imit ação bona fide I; mas co m tanta riedade dos acontecimento s qu e se pudessem pa ssar.
Ninguém teria achado mal que adaptassem es ta interpretação;
1 De boa fé . (N .F. ) porque com ela se podem ainda fazer peças excel entes, e o provérbio
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diz: «fura-se a tábua onde é mais fina». Mas é justo pelo menos que «Não basta, diz Hédelin, que na maior parte das vezes ele faça
deixe que o meu vizinho a fure no mesmo sítio. É preciso que eu contar imediatamente aos espectadores, por uma das suas persona-
não lhe mostre sempre o nó mais duro, a parte da tábua mais re- gens principais, tudo o que se passou anteriormente à acção; e uti-
belde, e que diga: «fura neste sítio aqui; é aqui que costumo furar.» liza mais vezes ainda para a narrativa um deus do qual devemos ad-
E no entanto, é isso o que exclamam todos os críticos franceses, mitir que sabe tudo, e através do qual nos informa não apenas sobre
particularmente quando abordam as obras dramáticas dos ingleses. o que aconteceu, mas o que irá acontecer, Sabemos assim desde o
Que barulho não fazem eles com aquela regularidade que, no en- infcio o desenlace e toda a catástrofe, e vemos vir de longe todos os
tanto, tanto aliviaram para si próprios!. .. acidentes. Mas é um defeito muito sensível, que é completamente
contrário à incerteza e expectativa que devem continuamente reinar
no teatro, e que destrói toda a satisfação da peça, que repousa quase
2. Liberdade do criador
unica e exclusivamente na novidade e na surpresa 1.
Diderot I não está completamente errado ao dar como nova e Não, o mais trágico dos poetas trágicos não tinha uma ideia
bem fundada a sua doutrina sobre a inutilidade e pobreza de todos tão mesquinha da sua arte; sabia que essa arte é susceptível de uma
esses mistérios e todas essas surpresas bruscas que se relacionam perfeição muito mais alta, e que a satisfação de uma curiosidade
com o espectador. As suas ideias são novas, com efeito, na sua pueril é o objectivo mínimo ao qual deve aspirar. Não temia dar
forma abstracta; mas elas são muito antigas nos próprios modelos conhecimento adiantado aos espectadores daquilo que só um deus
de onde foram retiradas. São novas, no sentido em que os seus ante- podia saber sobre a acção que se preparava; e prometia a si próprio
cessores tinham sempre defendido o contrário; mas entre esses ante- comovê-los a seu bel-prazer, não tanto com a ajuda dos factos, mas
cessores, não se pode contar nem com Aristóteles nem com Horácio: pela maneira como os apresentaria. Assim, os críticos não se deve-
estes não disseram absolutamente nada que pudesse autorizar nos riam mostrar chocados senão por uma única coisa: é que as infor-
seus intérpretes e sucessores esta predilecção pela teoria que adop- mações necessárias sobre o passado e sobre o futuro não nos fossem
taram; e quanto aos felizes efeitos dessa teoria, os últimos não comunicados por intermédio de um artifício mais delicado. Eurípides
puderam observá-las, nem na maioria das obras da antiguidade, serve-se, para isso, de um ser superior, o qual, por outro lado, não
nem nas melhores. toma qualquer parte na acção; e este ser superior dirige-se directa-
Por entre os antigos, Eurípides sobretudo estava tão seguro da mente aos espectadores, de modo que o género narrativo se mistura
sua prática, que mostrava quase sempre antes aos espectadores a com o género dramático. Eis tudo o que se pode reprovar em Eurí-
finalidade aonde os queria conduzir. Estou mesmo fortemente pides; mas o que acontece, então, à reprovação dos críticos? Para
disposto a começar, sob esse ponto de vista, a defesa dos seus que o útil, o necessário, seja bem-vindo, será preciso que no-lo dêem
prólogos, que tanto desagradam aos críticos modernos. a guardar por surpresa? Não haverá, sobretudo no futuro, coisas que

1 Veja-se () texto 26, 4, de Diderot , A quarta parede, p. 165. (NF.) I Pratique du Théâtre, liv. lI, capo r. (N.A.)
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só um deu s pod e sa ber? E se o inter esse repousa sobre factos de ste As palavras «fie lm e nte» e «em be lezar», qu ando se a plicam à
g éne ro, não valerá mais se r informado del es pel a intervenção de um imitação e à nature za cons iderada como o bjecto de imitação , dão
deu s do qu e não sabe r nada? Que se e nte nde , enfim, por mi stura de lu gar a diversos tipo s d e m al-entendido s . A lg u mas pe ssoas não
gé ne ros ? Qu e sej am se pa rados o mais e xac tamente poss ível nos tra- c rêe m que se p o s s a imit ar d emasiado fi elmente a natureza; d e
tad os dogmáticos, e ainda bem ; mas quando um hom em de gé n io, acordo com elas, mesmo o que desa grada na nature za, ag rada numa
com objectivos mais alt os, faz entra r vá rios géneros num a úni ca e . imitação fiel , graças à imitação. Outras defendem como quimérica a
mesm a obra; é preciso es q uecer o livro do gmático, e ver apen as se o ideia de e mbe lez a r a n atureza : uma nature za que pre te nde se r mai s
auto r realizou a sua ambição. Que importa que uma peça de E ur ípi- bela que a nature za j á não é m ai s, dizem eles, a natureza. Estes dois
des não seja nem toda narrativa nem toda drama? Ch amai-lh e um tip os de juízes proclamam-se adoradores da nature za ún ica , tal qual
se r híbrido; basta que es te híbrid o me ag rade e me instrua mai s que e la é : un s não vêem aí n ad a a evi tar, os outros nada a ac rescenta r.
as produções re gradas do s vossos outro s autores correctos, como O s primeiros de veriam ent ão, necessariamente, ap reci ar as peças
Racin e e outros. A mula não é burro nem cavalo: será por iss o me- m istas do género gó tico , e o s outros dificilmente aprec iar as obras-
no s útil como animal de carga? -primas dos antigos.
E no entanto não é nad a disso. O que se passa ? O qu e é que faz
3. O g ênero misto que o s primeiros, com toda a sua admiração pel a na tureza mai s vul-
gar, a mai s famili ar, se tenham no entanto pronunci ad o co ntra a
Se o nosso autor I tivesse falado como c rítico , ter- se-i a e n un- mi stura do patéti co com o burlesco? E o que é que faz qu e os o u-
c iado de modo com ple ta me nte diferente . O que ele de fende aq u i tro s, e m bora ac he m m onstruoso o que pret ende se r mais bel o qu e a
com tant o es pírito, tê-lo-ia seg ura me nte conde nado co mo obra ba s- natureza, tenham no e nta nto per corrido todo o teat ro grego se m se r
tarda de uma époc a bárbara ; ou, pelo menos, não teria visto aí se não m inimam ent e chocados nesse as pec to? Como ex p licar es ta co ntra-
os primeiros e ns aio s da arte ren ascendo no meio de povos pouco
di ção?
civ ilizados . E quanto à form a desse s dram as, tê -Ia-ia at ribuído ao É preciso recuar e retirar as nossas afirmaçõ es ante riores sobre
co nc urso de diversa s caus as ex terio res e m que o acaso teria desem- e stes dois gé neros. M as como retirá-las se m no s e m ba raç armos em
penhad o o papel principal , onde a ra zão e a reflexão não tivessem
novas d ificuldades? Há tanta j us teza na com pa ração qu e fize ram e n-
tid o se não uma pequena parte, e tal vez não tivessem tid o nenh uma.
tre essas grandes peças p olíticas, c ujo mérito d iscutimos, c a vid a
Nunca teri a o usado di zer que os primei ro s in ventores do gé nero
humana, o curso normal do mundo !
mis to (da do qu e a pa lavr a existe, porque é que não a usaria" ) «pro -
Arriscarei alg uns pensamentos que, se n ão vão ao fundo da s
pu ser am -se imitar fielment e a natureza, tanto qu ant o os gregos se
cois as, podem pelo m en o s susc itar outros m ai s fun damentados.
tinh am aplicado a embel ezá-Ia».
O principal é esta: é verd ade, e não é verd ad e, q ue a tragicomé-
dia de invenção gótica imite fielmente a nature za: e la imita-a numa
I Les sing acabo n de cita r um autor alem ão seu co ntem por âneo e anónimo. (N .F .) p arte, e deixa a outra m et ad e inteiramente de lad o ; im ita a natureza
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dos fen ômenos exteriores, sem ter na mínima conta as no ssas Im- im ediata, qu e nos parece impossível fazer abstr ac ção de um ou do
pressões , e as das nossas faculd ades intelectuais. outro. Então , nó s também não desejamos qu e a arte faça abstracção;
Na natureza, tudo está em tudo, tudo se entrecru za, tudo é al- e e le sabe retirar vant agen s da própria impossibilidade e m que se
ternativa e metamorfose ince ssante . Ma s, sob o ponto de vi sta desta en contra de separar esses e lementos díspares.
diversidade infinita, a natureza é um espectáculo conveniente ape- Mas basta sobre este ass unto : vê-se onde qu ero cheg ar.
nas para um espírito infinito. Para que espíritos finit os se pos sam
(Le ssi ng , La Dru m a tu rg ic de Hambourg , trad . de E. de Su ckau e L. Cro usl é, Did ie r, 186 9; I:
deleitar com ela, era pre ciso dar-lhe a faculdade de impor à natureza N? X LV I. 6 de O utu bro de 1767. pp. 223·225; 2: N:' X LV lJl , 13 de O utu bro de 1767,
limites qu e ela não tem , intro duz ir-lhe divi sões, e gove rn ar a sua pp . 234·236; 3: N ? LXX , I de Janei ro de 176 8. pp . 326· 328 .)

atençã o seg undo melhor nos apeteça.


Esta faculdade , exercemo-la em todos os momentos da vida;
sem e la, não existiria para nó s vida possível; seríamo s s ucess iva-
mente presa da impressão pre sente; sonharíamos sem cessar e sem
saber que sonhávamos. 34 - MERCLER: SOBRE O TEATRO (1773)
O próprio da arte é ajudar-nos a introduzir esta divi são no do-
Louis-Sébastien M a ci a (1740-1814), grande poligrafo, teve
mínio do belo, e a fixar a nossa atenção. A arte isol a, de facto , tudo
algun s êxitos co mo d ra ma tu rg o, sobretudo com drama s como
o qu e o no sso espírito isol a o u deseja poder isolar na naturez a, quer
O Carrinho do Vinagreiro (1775), que levava IIl1m se ntido p opulista
se trat e de um só objecto, ou de um conjunto de obj ect os div erso s;
as teorias d e Diderot , A sua longa vida p ermitiu-lhe d esenvolver e
mant ém so b o nosso olhar esse obj ecto ou es se co nj unto de objec-
prolongar a a udiên cia dos seus primeiros escritos sobre o teatro ,
tos, iluminando e concentrando o s objectos tanto qu anto o quer o
que tinham tons claramente pré-r evolucion ários.
sentime nto que ele s devem produzir.
Quando somos testemunhas de um aconteciment o importante e
co movente, e que um outro acontecimento sem int eresse se mete de 1. O ob jectivo da arte dra mátic a
perm ei o, procuramos escapa r o m ais possível às di strac ções de que
Esta art e (o qu e qu er qu e di g am ) está talv ez aind a na sua infân-
este último nos ameaça. Fazemos a sua abstracção. Se então encon- cia, porque apesa r de todos os es fo rços de alguns homens de g énio ,
tramos na arte o que desejam os se parar da natureza, não pod emos o edifício ini cialmente concebido de modo tímido não foi cons-
deix ar de ser repelidos. truído de acordo com o plano m ai s geral e mais só lid o : e nce rraram
Somente, há casos em qu e es te acontecimento importuno toma, a esfera da cena, só se deixam aí subir algumas personagens, e pre-
no seu progresso, todas as ca m bia ntes do intere sse, e o nde não c isamente aquelas qu e parece deveriam ter sido de sd enhadas: não
apenas ele vem na seq ü ência do outro, mas ainda ne ce ssariamente se aperceberam de toda a fecundidade, toda a e xte nsão desta arte
nasce do outro. Assim, acontece que a gravidade traz cons igo o riso, importante: teve-se um a admiração supersticiosa pela sua primeira
que a tri steza provoca a alegria e vice-versa; e tal de um a maneira forma. O escritor, men os audacioso que escravo, nunca viu mais do
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que o seu escritório em vez da sociedade. Mesmo nos nossos dias, a Não são os sufrágios passageiros ou concentrados numa cidade
assembl éia que normalmente compõe os auditores das nos sa s peças, que o poeta se deve apressar a re colher, ele é o canto r da virtude, o
não pod e ser consid erada senão como urna companhia particul ar g rande flagelador do vício, o homem do uni verso. Se el e lisonjeia
à qual os poetas tiveram o objectivo de agradar exclusivamente. As o s vícios reinantes de uma geração corrompida, se alimenta os erros
no ssas peça s assemelham -se ba stante às no ssa s salas, porque o fí- nacionais, se se curva sob o pre conceito qu e engana o s seu s con-
sico gov erna, mai s do que um género (e de que maneira), a moral. temporâneos, não merece mai s sair das linhas para comandar; que
A s noss as peças, para a maioria, estão vazias de sentido, tendo em fiqu e entre o rebanho , não é mai s qu e um homem inepto, feito para
conta um povo numeroso; e concebo tal ed ifíc io vasto e majestoso o precipitar numa marcha igualmente louca e perigosa.
onde seria impossív el para os actores representar urna da s no ssa s N ão se elevaram nunca a e stas especulaç õe s, porque nunca se
bo as trag édias sem rirem de si próprios . pen sou no núm ero, mas na escolha do s auditores , porque nos no s-
No ent anto, o meio mais activo e mai s pronto de armar inven- so s mi seráveis jo go s de bola decorados com o nome de teatro, o s
civelmente as forças da razão humana e de lançar de repent e sobre no ssos espectác ulo s nã o foram m ais do que lotaçõ es esgotadas ,
um povo uma grande massa de luze s, se ria, seguramente, o teatro; é porque os raci ocín io s de alguns literatos demasiado ac red itados li-
lá qu e , semelhant e ao som da trombeta penetrante que de ve um di a mitaram a arte e destruíram o se u impulso relativamente ao seu f a -
ac ordar os mortos, um a e loq uê nc ia s im p les e luminosa poderi a zer e ~I S regras sagradas do pret enso gosto de que fa lam sem cessar,
acordar num instante uma nação ado rmec id a: é aí que o pensamento o qual não é mais elo qu e uma pala vra inventa da por e les para enco -
majesto so de um só homem iria inflamar todas as almas com um a brir d e uma maneira capc io sa a pequenez c frieza d as suas ideias .
comoção eléctrica: é aí, enfi m, que a legisl ação reencontraria men os O nosso teatro (é prec iso dizê-l o) go ticamente c once bido num
obstáculos e operaria as maiores coisas sem esforço e sem viol ên - séc ulo meio bárbaro, filho do acaso e rebento p arasita, con servou as
cia . O governo, dizem, opor-se-ia a isso? Que a peça seja feita pri - m arcas da sua orige m burguesa. O no sso teatro nunca perten ceu ao
meiro, e bem feita, a hora da representação não tard ará , e o gove rno no sso solo, é uma bela árvo re da Gréci a, tran splantada e de generada
aceitará a lei. no s no ssos climas. Foi e nxerta do por mã os g rosse iras e mal jeitosa s:
Ma s pare ce que até aqui se desconhecia o ve rdade iro objectivo por isso ape nas deu fru to s eq uívocos e sem substância.
da Arte Dram átic a. O poeta. em vez de se m ostrar legislador. 1:0111
esse orgulho legítimo adequado ao se u estatuto, ob edeceu va ido sa -
2. O d rama e a cO/llédia
mente ao gosto frí volo e mesquinho dos ari stocrat as do se u s éc u lo:
depoi s incensou as lou curas agradávei s e peri go sa s de a lguns elo s Na co mé dia, o ca rac te r principal de cide a ac ção. Aqui é exac-
se us compatriotas; tão depressa como o es tatuá rio da fábula , fo i o tam ente o contrário, a ac ção brota do jo go dos caracteres . Um a per -
primeiro a dobrar o joelho diante do monarca qu e acabara de fig ur ar so nage m não é mai s o déspota a qu em se subo rd ina m ou sacrificam
e armar com o raio ; tant o atraindo pa ixões no ci vas com o pret ext o ele todas as outras; não é mais uma ex p éc ic ele ei xo em torno do qual
as pintar, esqu eceu que es palhava o cont ágio do exe mplo, ao me smo gira m o s acontecimentos e o s di scu rso s ela peça . Enfim, o drama
tempo que louvava a fide lidade do seu pincel. ~ ão é uma ac ção forçada, rápida, extrema: é um belo momento da
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vida humana, que revela o interior de uma famíli a o nde , sem negli- 3 . Novos temas dramáticos
genciar os g randes traços, se recolhem precio samente o s det alh es.
Te r falta de pão , de dinh e iro I , e star a lojado num só tão a be rto a
Não é mais uma personagem fact íc ia, a quem se atribue m rigorosa-
tod as os ventos; q ue destino glo rios o e nobre qu ando é o d a virtude !
mente tod os o s defeitos ou as virtudes da esp écie; é uma person a-
Her ói s famoso s no s combate s, e que havei s usurpado es te nome,
gem mai s verdadeira, mais razoável, menos gig ant esca e que, sem
cedei todos àquel e que luta contra o infortúnio, que por um trabalho
ser anunci ada, faz mais efe ito do qu e se o fosse . Urdir, encadear os
coraj oso doma as necessid ades renascentes qu e lhe impô s a natu -
facto s de acordo com a verd ade , seg uir na esco lha do s acontec imen-
reza. Humilh ai -vo s, mortais o rgulhosos de títulos vão s, humilhai -
tos o curso ex traordinár io das coisas, evi tar tud o o q ue c hei re a ro -
-vos diant e daquel e qu e na obscuri dade se basta a s i pr óprio , e qu e
manc e, m od el ar o desenrolar da peça de maneira a que o ex trac to
lon ge da bai xeza e da adulação ignora me sm o se pertence ao s g ran-
pare ça um a narrativa onde reina a m ais exacta verosim ilhança, cr iar
des, frio s e desn aturad o s. O maior d o s mortais é aq ue le que subj uga
o inter esse , e sustentá -lo se m fant a s ia s, não permitir ao s o lhos
o seu destino , que não mendi ga baixame nte a sua subsis tê nc ia, que
dei xarem de es tar húm idos sem amarfanhar o coração de um a ma-
nun ca abriu um a m ão aviltada pa ra dobrar a indiferença alta ne ira de
neira dem asiado viol enta, enfim , fazer na scer a int ervalos div er sos o
sorriso da a lma, e tom ar a alegria tã o delicada qu ant o a compaixão, um homem opulento . Desafiare i a delicadeza francesa, qu e me pa-
eis o qu e se propõe o drama. e o qu e nunca tentou a coméd ia . rec e falsa neste ponto . Não sacrificare i nunca a um go st o factíc io a
Nest a, repito-o , um ca rac te r ab soluto dom ina quase se mpre . abu nd ân ci a e a variedade dos temas, a força e a ve rdade das pintu-
Querend o torn á-lo enérgico, é produ z ido como forçad o , e e ntão faz ras. Não irei fech ar as font es mais a bundantes cio pat éti co , para li-
caretas : o mesmo defeito se encontra na tra gédi a . A perfei ção de sonjear o u eng ana r a geração presente. Pen sarei qu e o homem ele to-
uma peça se ria qu e não se pud e sse adiv inhar qu al é o ca rac te r prin- do s os sé c ulo s e s tá a li a esc utar- me . Dir-rnc-ei qu e o po e ta é o
cipal, e qu e fosse m de tal modo ligad os entre si que não se pu desse intérprete das in fel ic idades, o orador públ ico dos oprim idos; qu e o
separar um só sem destruir o conjunto. Nunca se deu atenção sufi- se u empreg o é levar os seus gem id o s at é aos ouvidos d o s soberbos
ciente aos ca raeteres mistos, entre os qu ais flutua tod a a raça hum ana. qu e , por mais en durecidos qu e es tej am , ou virão o trovão da ver-
Os hom en s, sejam bon s, sejam mau s, não est ão tot almente entre- dad e , se rão aturdi d os ou tocados por ele; porque mesmo o mau é
gues à bo nda de ou à mal ícia: têm moment os de rep ou so , como mo - o bri gado a co m bater para vencer a natureza e a piedade . E quem
ment os de acç ão , e os matizes d as v irtudes e dos víc ios são in finita- sabe se na s artes não existe um moment o de te rror e de verdade, qu e
ment e variados. Qu e novo desenvol vim ento pa ra os qu e co nhece m a am ol eceri a o cora ção de pedra e o fari a tom ar à sua sensibi lida de
mistura das cores , que sabem o qu e a lia na mesm a person agem a
bai xeza de a lma e a grandeza, a fe roc idade e a co m pa ixão ! Q uem
I Desp re zamos se m medida aqu e le q ue a n.u u rcza fez no sso ig ua l. A lgun s saco s
sabe por qu e molas secretas o ve lho age co mo um jove m , e o jovem
c hei o s de um me ta l b ra nco ou a marelo es tabe lecera m as di stâ ncias ate rradoras, qu e pa rec e m
como ve lho? Aqui o cobarde arm a- se de força, o so be rbo torna-se mai s se para r o homem d o ho mem do qu e es te , de unta certa maneira, não o es tá do s an imais.
Ei s se m co ntrad ize r o v íci o m ais horrível qu e ataca a no ssa ge raçã o . Aos olho s d aq ue le que
um baixo co rtesão, o hom em justo ce de ao ouro, e o tirano, por am- sab e re fl cct ir não h á tal ve z se não uma g ra nde infe licida d e so bre a te rra, é a tc rr fvcl d es pro-
bição, prat ica um acto de j ustiça. porção d as fortun as. (N.A.)
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primitiva? Eis a grande obra do poeta, concordo. A exemplo dos 3S - SCHILLER : OS SALTEADORES E OUTRAS OBRAS (1781 )
químicos, não nos desencorajemos, e procuremos uma transmuta-
ção mais importante e mais bela I. Friedrich Scliiller (1759-1805) marca o teatro alemão desde a
Desprezarei então esses frios críticos, que sa bem tudo fora da sua estrela com Os Salteadores (Die Ra über, 1781) , ohra original e
arte de sentir vivamente; e não tenho eu talento s ufic iente para levar poderosa qu e não era destinada à repre sentação mas que triunfa
aos olhos do rico o quadro de um hospital, onde muitas vezes este em ce na , em 1782. Este êxitofoi prolongado pelo de peças CO II/O
abandonou aí o seu benfeitor ou o seu pai ? Farei tremer o coração Wallenstein (/799), Maria Stuart (/SOO) ou Guilherme Tell (/804).
que a mais vulgar compaixão nunca conseguiu abalar. Oferecendo Na sua imp ortante obra estética, op era urna síntese entre as
a história de tanta dureza, a felicidade dos maus, ou, para melhor contribuiç ôes de Shakespcare, a filosofia de Kant e, mais tarde. o
dizer, a sua calma horrorosa, seria pelo menos interrompida durante pensamento mais con creto de Ganhe e a exp eriênc ia levada a cab o
algumas horas. Um hospital! direis? .. Sim, e se me aborrecerem com este no teatro de lVeimar.
transportarei a cena para Bicêtre. Re velarei o que se ignora, ou o
qu e se esquece. Pintarei um homem qu e por veze s não foi mais qu e
1. O teatro irrepresentável
imprudente, debatendo-se toda a vida nos braços da raiva e do de-
sespero. Farei ver com o se trata a espécie humana: é abrindo as ca - Há uma coi sa que pode saltar à vista de imediato quando se pega
banas ou esse inferno que chamam sala de for ça s que me orgulhe- ne sta peça de teatro I, é que ela nunca ter á direito de cidadania no
rei , talvez, da s cores de um pincel qu e consagrei a honrar ou a teatro . Ora, se para um drama es sa é a condição indispensável, o meu
vingar a humanidade. Ela emprestar-me- á então essa energia qu e às tem se g ur amente um grande defeito a acresc entar a todos os outros.
vezes cede aos seus adoradores. Vós ficareis aterrados, juízes orgu- Mas não sei se me deverei submeter, sem nada mais, a esta exi-
lho sos, ou deixareis de me ler 2.
gê nc ia . Sófocles e Menandro podem bem ter tido principalmente
(S éba sricn Mer c ic r. D'u Th éótre, o u No u vc l E s s a ; su r lA r: D ra n m tiq nc, Am ste rd ão , E . va u
em vi sta a representação sensível da s suas peças, porque pode-se
Harr cvcl t, 1773; I: 1'1'. iv-vi i; 2: pp . 106-10 7; 3: 1'1'. 134-136 .) supor que é es sa representação que, primeiro, conduziu à ideia do
drama . Mas, no seguimento, descobriu-se que o m étodo dramático
por si mesmo, sem ter que ver com a personificação teatral , tinha
I É uma bel a arte e st a de desenvolv er as afeiç ões sociai s . qu e distinguem () homem uma grande vantagem sobre todos os outros géneros de poe sia. seja
dos o utros seres . Dotad o de um a alm a sens ível. sabe -se lá até qu e pont o pod er ia ser co nd u-
zido pela atrac ção ina la d o se n tim e nto? O s le g ixlad o rc s muit a s ve ze s trat ar a m o homem comovente, seja instrutiva . Como de alguma maneira coloca sob os
C0 l110 Ul11 anima l fero z. sob re o q ual se devia exe rce r o ju go da s lei s. Es tes infeli zes pol íticos

ign or ara m que o levam por me ios flexíveis e doces. I~ o poet a . d isse alg uém . que dá vida mo -
nos sos olhos o mundo que ela no s pinta, e que no s repre senta as
rai aos co nhecimen tos mort os do raci ocín io . (N A.) paixões e os mais secretos movimentos do coração pelos próprios
2 Deu -se tan to às art e s de lu xo, c c o m pree ndo se gura m e n te so b e s te títul o , aq ue le s pe -
quen os versos, aque les madri ga is, as tolice s po ética s , q ue co nvê m tão pouco ao estad o actual
discursos das personagens, é necessariamente superior em poder de
da na ção: aperfeiçoou-se tant o cssc género fútil. que se tive ssem dedicado a met ade do esp í-
rit o e m preg ue e m vão nessas ba gatelas a idcias úte is. se ría mo s (1 pov o mai s sen sa to do uni -
ver so . o mai s escla recido so bre o s no ssos ve rdade iro s inter esses . (N .A .) I O s Saltead ores . (N .F.)
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efeito sobre a poesia de scritiva. da me sma maneira qu e a co ntem- minha obra obrigava-me a pôr em cena muitos caracteres qu e cho-
plação viva o é sobre o conh ecimento histórico. Quando o furor de- cam o sentim ento delicado da virtude e revoltam a susce ptib ilidade
senfreado estoira pela boca de Macduff nesta horrível explosão : dos nossos costumes. Desejaria, para honra da humanidade, não ter
«Ele não tem fílhos! » isso não será mais verdadeiro e mais como- produzido aqui senão caricaturas; mas sou forçado a co nfess ar que,
vent e do qu e o mostrarem-nos o velho Don Diego pegando no seu quanto mai s a minha experiência d as co isas de ste mundo se enri-
espelho de bol so . e olhando-se nele em pleno teatro: quece , tanto m ai s o meu álbum de caricaturas se empobrece. Não é
tudo: estes caracteres imorais d everiam brilhar po r certas partes,
Oh raiva! Oh desesp ero! ganhar muitas vezes do lado do espírito o que perdiam do lado do
coraçã o . Todo o e scritor dramáti co está autorizad o , constrangido
Com efeito, este grande privilégio do modo dramático em, por mesm o, a dar-se es ta lib erdade, se quer se r um copista fiel do mundo
assim dizer, surpreender a alma nas suas operações mai s misterio- real. Nenhum homem, como diz Garve, é co mpletame nte imperfeito;
sas , est á ab solutamente fora de questão no aut or fran cês. As suas mesmo o vicioso tem ainda muitas id eias qu e são ju stas, muitas boa s
personagens, se não são os historiógrafos e poetas épicos do seu tendências, nobres actividades. É apenas menos perfeito.
próprio e augusto eu , pelo menos raramente se apresentam como Encontram-se aqui ce lerados que suscit am o es panto, m alfeito-
outra coisa qu e os espectadore s, frios como gel o apesar do seu fu- res respeitávei s, mon stros majestosos, espíritos qu e o víc io horrível
ror. ou os professores pedantes da sua paixão. seduz, pela g ra nde za qu e a ele es tá a ss oc iada. pela for ça que el e
É então verdade que o gê nio próprio ao dram a, qu e Sh akespeare exige , pel os peri gos qu e o acompanham . En contram-se homen s qu e
parece ter tido em se u poder, com o Próspero tinha Ari el , que o ver - beijariam o diabo, porque este é o ser sem igual; que, sobre a sua
dadeiro esp írito, digo, do género dramático, cava mais profunda- via da mais alta perfeição, tornam-se os m ais imperfeitos dos mor-
mente a alm a. mergulha no coração os traço s mais acerados e ins- tais ; sobre o caminho. seg undo imaginam, da maior feli cidade , os
tru i mai s vivamente que o romance o u a epopeia, e que nem é mai s infelizes . Numa pal avra, int eressar-se- ão , mesmo pel os meu s
preci so a repre sentação sensíve l e real para nos tornar particular- lagos, admirarão o meu sa lteado r incendi ári o , quase o amarão. Nin -
ment e rec omend ável esse gênero de poesia. Posso, por co nse guin te, g uém o detestará, todos o pod em lam entar: ma s. por causa di sso
tratar dramaticamente um assunto, sem para isso querer escrever um mesmo, não ac onselho que arri squeis apresentar a minha tragédia
drama que se represente; noutros termos, escrevo um romance dra- sobre a ce na. O s conhecedores, qu e captam a liga ção do conjunto e
mático e nã o um drama teatral , e nest e caso. é sufi c iente que me adivinham a persp ecti va do po eta , formam se mpre o g rupo m ais pe-
subme ta às lei s gerai s da arte , e não tenho nec essidade de seguir as queno. O povo, pelo contrário (e so b esta palavra tenh o moti vo s para
lcis parti culares do go sto teatral. incluir não apen as, salvo o vosso resp eit o , aqu el es que c ha fu rdam
Agora , para trat ar da própria coi sa, devo confessar que não é no estrume, mas também e bem m ais aind a, muitos dos chapéus de
tanto a extensão mat erial da minha peça, quanto o seu conteúdo, que plumas, muitos dos fatos engalana d os e muitos colarinhos brancos),
lhe reti ra o dire ito de apare cer e de falar no teatro. A economia da o povo , quero di zer, deixar-se-ia se d uz ir pelo lad o belo, ch egando
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mesmo a admirar o fundo vil , ou a encontrar aí uma apo logia do ví- se us pés; se, enfim, porque é pre ciso recorrer a m a is qu alqu er coi sa
c io e a tornar responsá vel do pouco alcance da sua própria visão o para explicar este fen ómeno , se um crepúsc ulo cio conhec imento, se
pobre poeta, relativamente ao qual se está normalmente pronto a um movimento supe rfic ia l e fugiti vo do s se ntidos pod e fazer tanto:
tudo, desde que não seja a faz er-lhe ju stiça. porquê o corpo, qu e al ém d isso seg ue sem pre tã o fielm ente a alma
em todas as suas modifi caçõ es, estaria conde nado , no caso pre sente,
a ultrapassar violenta men te os limites ao ponto d e falsificar o tom
2. O actor sonâm bulo
do se ntimento'! Se a paixão não se permite extravagân cias, e não se
Ma s é possível também que o culpado não seja o poet a quando pode permitir se é ve rda deira, nem o deve fazer numa alma culti-
o final do drama falhou . Que se monte em cena, e se observ e como va da , e ntão, estou bem seguro, os órgãos também nã o se perderão
os j ogos de imaginação tomam corpo na pe ssoa do actor. Est e tem num qualquer excesso m on struoso. Por mai or que seja essa ausên -
du as tarefas difíceis, m as necessárias. É preciso, primeiro, que se c ia de percepção de qu e ape nas a ilusão toma o ac to r capaz , não lhe
es queça de si próprio, bem co mo da multidão qu e o esc uta, para vi- deveria ele ficar, da me sma maneira que ao sonâmbulo, sem que ele
ver no seu papel; depois, por outro lado, é preciso que ele pense que tenha consciência, um ce rto sentimento do presente , que o conduzi-
está em cena, que ele pen se na presença do espectador, qu e tenha ria sem dor, a ele também , ao longo do abismo cio exagero e da in -
em conta o gosto deste último , e que modere a natureza . Dez vezes conveniência, pela pont e estre ita do belo e do ve rd ad eiro? Não vejo
co ntra um a encontro o prime iro de ste s deveres sac rificado ao se - porque isto seria imposs ível. Mas noutro caso , pel o co ntrário, que
gundo, e portanto, se o gé nio do actor não é suficiente para os do is, s ituaç ão aborrecid a se o ac to r g uarda cuidadosame nte a consc iênc ia
mais valeria sempre que falt asse ao seg und o no interes se do pri - da situaç ão actual e destrói o sonho da art e pela ide ia do mundo real
me iro. Entre o se ntime nto e a ex pressão do sentiment o há a mesma qu e o cerca. Pior para e le se s abe que talve z um m ilhar de olhos ou
sucessão rápida e ce rta que entre o raio e o trovão; e se esto u verda- m ais es tão atentos a cada um dos seus gestos , qu e a mesma qu anti-
deiramente como vido, tenh o tão pouca necessidade de regul am entar d ad e de orelhas devora o mínimo som do s se us lábi os! Lembro-me
o meu corpo de ac ordo co m o tom da paixão, qu e me ser ia mai s di - de me ter en contrado lá um dia no momento e m qu e es te pen sa -
fícil. impossível me smo, reprimir os movimentos espont âneos do s mento infeliz: «O lham para mim l- ve io rouba r o terno Romeu ao
meu s membros. O actor está, até um ce rto ponto , no es tado de um se u êx tas e ... Foi ex ucta me nte a queda do sonâ m bulo ao qu al um
so nâ mbulo, e descubro entre eles um a analogia marcant e . Se es te avi so . um grito qu e o a pa nho u no meio de um telhado a pique, de
último , embora pareça não ter consciênci a nenhum a do qu e faz, repente dá vertige ns . O perigo esc ondido nã o ex is tia para ele , ma s a
pode, no seu passeio nocturno, quando todos os se us sentidos exte- visão súbita da altur a abrupta fê-lo cair, dand o um a queda mortal.
riores dormem de alguma m aneira o sono da morte, asseg urar cacla O actor, assustado , p ára, rígido e tolo; a graça natural da sua pose
um cios seus passos com a mais inconcebível pre cisão, co ntra um desapareceu: ao vê-lo curvar-se desajeitadam ente , dir-se-ia que lhe
peri go que exigiria del e , completamente acordado, a maio r presença iam tirar medidas para um fato ... A simpatia do s es pec tadores apa-
de es pírito; se o hábito pode tão maravilhosamente dar firmeza aos g o u-se numa gar galhad a.
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Em ge ral, os nossos actores estudaram, para cada gesto de pai- liberal. Cham o de pra zer liberal àq ue le qu e põe em jogo as força s
xão , uma atitude à parte, que sabe m adaptar com uma rapidez que es piritua is, a razão e a imagin ação , e qu e aco rda em nós um se nti-
por vezes c hega a antecipar o se ntime nto. Ao o rg ulho rarament e ment o pel a representação de um a idei a: à diferen ça do prazer físico
falta a meia volta da cabeça em direc ção ao ombro e o punho sobre ou se ns ua l, qu e co loca a nossa alma so b a dependên ci a das forças
a anca. A cólera reside no punho fec hado e no ran ger de dentes. Vi ceg as da nature za , e onde a se ns ação é imed iatament e acordada em
num ce rto te atro carac teriza r re gul armente o despre zo c o m um nós po r uma caus a física. O praze r se ns ual é o úni co qu e é ex cluído
golpe de pé. A tristeza das he roínas de teat ro esco nde -se por detrás do dom íni o d as bel as-artes; e o tal ento em exc ita r esse tip o de pra-
de um len cinho bem lavado. Qu ant o ao terror, que de tod as as pai- zer nun ca pod eri a e levar-se à d ignidade de um a arte, a não ser no
xões ainda é a qu e se arranja mais barato, ela esco lhe o primeiro al- cas o em qu e as impressões se ns ua is sã o ord en adas, refor çadas, ou
çap ão que lhe aparece para se desembaraçar, ela do se u fardo , e o moderad as, segundo um plano qu e sej a o produto da ar te, e onde
públi co de um mau cabotino . Os ac to res dos papéi s trág icos mais esse plano se re conhece pel a rep resentaç ão. M as , me smo neste
fort es, e são normalment e as vozes de barítono, os matadores da caso, ape nas isto pod e merece r o nome de arte, qu e é o o bjecto de
cena, têm por co stume grunhir os se us se ntime ntos com humor res- um pra zer liberal , quero diz er co m bom gosto na organi za ção, que
mungão; a sua ignorância da ve rdade ira pai xão , qu e torturam, que alegr a o no sso e nte nd ime nto , e não os e ncantos físico s e m si, os
desan cam de alto a baixo como um mal feitor, esconde m-na ruid osa- quais só ag radam à nossa se ns ib ilidade.
ment e sob o tumulto da sua voz e dos se us ges tos, enquanto, pelo A fonte geral de todo o prazer, e mesm o do prazer se ns ua l, é a
contrário, os actores doces e co move ntes arra stam a sua ternura e a conveniênc ia, a co nfor midade co m o o bjectivo. O prazer é se nsual
sua melancolia num gemido mon ót on o, que cansa os o uv idos até à qu and o essa co nve niênc ia se manifesta não pelo me io das faculda-
náusea. A declamação é sem pre o prim eiro escolho onde falh am a des representa tivas, mas apenas pel o meio de qu alquer lei fatal da
maioria dos nosso s actores, e a declamação form a os doi s terç os da natureza, qu e tem por co nseq uê nc ia física a se nsação do prazer. As-
ilusão da ce na. O caminho do ou vido é o mais praticável c o mai s sim, o movimento do sang ue e dos esp íritos anima is , quando é con-
curto para chegar ao coraçã o. A mú sica dom esti c ou o se lvage m form e à nature za, produ z nalguns ó rgãos, ou em tod o o o rganismo,
co nquistado r de Bagdad, e alguns Men gs e o Correggio teri am aí o prazer corporal co m tod as as suas varieda des e e m tod os os se us
esgotado e m vão todo o seu tal ento de pint ores. Da mesm a ma neira modos: nós sentimos essa co nve niê ncia por mei o da se nsação agra-
é-nos mais fácil fechar os nossos o lhos que alguém fere, do qu e en- dável ; mas não chegamos a nenhuma represent ação , nem clara, nem
cher de algod ão os nossos ouv idos malt ratados. mesm o co nfusa, dessa co nve niênc ia.
O pr aze r é liberal qu and o nos representamos a co nve niência, e
que a se nsação ag radável acom pa nha essa rep resentação. Assim, to-
3. Prazer liberal e artes comoventes
das as representações pel as qu ai s so mos informad os de qu e ex iste
Há tant os meios pelos quai s a art e pod e atin gir o se u o bjectivo, co nve niênc ia e harmoni a entre o fim e os meio s, são para nós fontes
quanto há em geral fontes de o nde decorre para o es pírito um prazer de prazer lib eral e, por conseq uê ncia, podem ser e mpregues para
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esse fim pel as belas-artes. Ora, todas as representações podem uma classificação rigorosa das artes liberais, isto pode pelo menos
entrar sob uma destas rubricas: o bem , o perfeito, o belo, o como- servir-nos para determinar com mais precisão o critério, e a prevenir
vente , o sublime. O bem ocupa sobretudo a nossa razão; o verda- a co nfus ão para qu e som os infalivelmente arrastados quando, esta-
deiro e o perfeito a nossa inteligência; o belo interessa tanto a int eli - bel ecendo uma legislação das coisas estéticas, se confundem dois
.
gência como a imaginação'' o comovente e o s" ublime c'\ r('1'zao- e a domínios absolutamente diferentes, o do comovente e o do belo. No
imaginação. É verdade que so mos ainda deleitados por nada mais género comovente, a epopeia e a tragédia mantêm-se, corno poesia,
que a atracçã o ou o en canto, que não é senão a força so lic itada a en- no primeiro nível. Na primeira, o comovente está associado ao su -
trar em jogo; ma s a arte não faz uso de ssa mola senão para acompa- blime; na seg unda, o sublim e ao comovente.
nhar as alegri as mais apuradas que nos dá a ideia da conveniência.
Considerado em s i mesmo , o encant o ou a atracção confundem-se
4 . Sobre o patético
com as sensações da vida , e a arte desdenha-o como tudo aquilo que
não é mais qu e prazer sensual. É impossível sa be r se o impéri o qu e um homem tem sobre os
Não se pod eria estabelecer uma classificação das belas-artes, seus afectos é o e feito de uma força moral , e nq ua nto não se adqui-
sobre a única diferen ça das fontes onde cada uma del as vai busc ar o riu a certeza de que não é um efeito de in sensibilidade. Não há
prazer qu e nos proporcion a : tendo em conta que numa me sma qualquer mérito em dominar se ntimentos qu e apenas afl oram lig eira
classe de belas-artes podem entrar variad os tipo s de prazer, e e passageiramente a su perfíc ie da alma; mas para re sistir a uma
mesmo muitas vezes todos em conjunto. Mas , a part ir do m omento tempestade que altera toda a natureza sensív el , e para conservar a í a
em que uma ce rta espécie de prazer é aí perseguida co mo objectivo lib erdade da sua a lm a, é preciso uma faculdade de re sistência infini -
principal, podemos fazer del e , se não o ca rácte r e spe cífico de uma tamente supe rio r a qualquer força da natureza. Então, só se chegará
c~as.se propriamente dita, pelo menos o princípio e a tendên cia que a representar a liberdade moral e xprimindo co m a maior vivacidade
distingue entre si as obras de arte. As sim , por ex emplo, pod er-se-ia a natureza sofredora; e o herói trági co deve ter justificado primeiro
tomar as artes qu e satisfazem so bretudo a int eligência e a imagina- a sua natureza de se r se ns íve l, antes de aspirar às no ssas homena-
çã o, por conseguinte, aquela s qu e têm por objecto principal o ve r- gens enquanto ser razoável, e fazer-nos crer na sua força de alma.
dadeiro, o perfeit o e o belo, e reuni -Ias so b o nome de bclas- artr » O patético é então a primeira co nd ição, a que mais rigorosa-
(artes do go sto, artes da inteligê nc ia); por outro lad o, aquelas que m ente se e xige ao autor trági co; e é-lhe permitido levar a pintura do
ocupam so bretudo a imaginação e a razão e que , por conseq uê nc ia, sofriment o o mais lon ge que se possa fa zer, se m prejuízo para o oh-
t~m por objecto principal o bom, o sublime c o comovente. pode- jectivo supre mo da s ua arte, qu er di zer, sem qu e a lib erdade moral
nam ser reunidas numa cl ass e particul ar sob a denominação de ar- seja oprimida. De al guma maneira, deve dar ao seu herói , ou ao seu
t es COI/1O\ 'c l1tes (a rtes do -sentimento, do coração). Sem dúvida, é le itor, a sua carga plena de sofrimento: se m o qual , perguntar-nos-
imposs ível separar absolutamente o tocante, do bel o; mas o belo -ernos se m pre se a re sistência oposta ao so fr im e nto é uma acç ão da
pode perfeitamente sobre viver sem o comovente. A ssim, e m bo ra alma, qualquer coisa de p ositivo, ou se não é antes uma co isa pura-
não estejamos autorizados a as sentar so bre es ta diferença de princípio mente negativa, um s im p les defeito.
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Este último caso apre senta-se na tragédia francesa de antiga- homem. Da me sma m aneira o h ábil estatu ário deixa de lado as rou -
mente, onde é extremamente raro, ou talvez sem exemplo, que no s pagens, e só no s mostra figuras nuas, embora sa~ba perfeit amente
façam ver com os no ssos olhos a natureza sofredora, e onde não que não era assim de modo nenhum na vida real. E que, para ele, as
vemo s, pelo contrário, a maiori a das vezes, mais que o próprio poeta
roupagens são qualquer coisa de acidental , e que o necessário não
que se empolga friamente e que declama, ou ent ão o actor que se
de ve nunca se r s acrifica do ao acidental ; é que, se a decência ou as
ergu e sobre andas. O tom glacial da declamação abafa aí absoluta-
necessid ades físicas têm as suas lei s, estas leis não são as d a arte.
mente a verdadeira natureza, e o s trágicos fran ceses, com o se u c ulto
O estatuário deve-nos mo strar o próprio homem, as roupagen s es-
supersticios o do de corum, colo cam-se completamente na impossibi-
condem-no de nós: ele rejeita-as e ntão , e está certo.
lidade de pintar a natureza humana na su a verdade. O de corum, em
Da mesma maneira que o es cultor grego rejeita as vestimentas,
qualquer lugar que esteja, mesmo que seja no se u verdadeiro lugar,
como uma carga inútil e embaraçosa , para dar mais lugar à natureza
falsifica sem pre a expressão da natureza, e no ent anto é essa expres -
humana , da m e sma maneira o poeta grego liberta as personagens
são que reclama imperiosamente a arte . É com dificuldade qu e , numa
humanas que põe em ce na do co nstrang imento igu almente inútil e
tragédia fran cesa, podemos persuadir-nos de que o herói sof re, por-
que ele dá explicações sobre o estado da sua alma como o faria o igualmente embraraçoso do decorum, e de todas essas leis glaciais da
homem mais calmo, e constantemente preocupado com a impressão conveniência qu e , no homem, o enchem de artificial, e escondem nele
que est á a causar no outro, nunca deixa a naturez a ex prim ir-se livre- a natureza. Vede Homero e os trágicos: a natureza so fredora fala ne-
mente. Os rei s, as prince sas e os herói s de um Corneille o u de um les com verdade , ing enuamente, e de maneira a penetrar-nos até ao
Voltaire nunca esquecem o seu estatuto, mesmo nos mai s vio lentos fundo do coraç ão; todas as paixões jogam aí livremente o seu jogo , e
ace ssos de paixão; e mais depressa se despojarão da sua humani- as regras da co nveniênc ia não comprimem aí nenhum sentimento.
dade que da sua dignidade. As semelham-se àqueles reis e impera-
dores dos no sso s velhos livro s de imagens, que vão para a ca ma
5 . A tragédia e a co média
com a coroa na cabeça .
Que diferen ça rel ativamente ao s Gregos, e aos moderno s que ~e Se a sá tira patética não fica bem senão às alm as sublimes, da
inspiraram no se u espírito em poesia! Nunca o poeta grego cora da me sma maneira a sátira zombe te ira só pode agr ad ar a uma alma
natureza; deixa 11 sensibilidade todos os seus direitos, e no e ntan to bela. Com efeito, aquela fica logo garantida da au sência de frivoli-
est á bem seguro de nunca ser subjugado por ela. Tem demasiada dade pela seriedade do se u própri o objecto ; mas esta, que não pode
profundidade e demasiada rectid ão no espírito para não distinguir o tratar se não d e assuntos moralmente indiferente s, cairi a infa li-
acidental , qu e é a preocupação principal do go sto falso , do ve rda- velment e na frivolidad e , e perderia tod a a dignidade po éti ca se a
deiramcnte nec essário; ora tudo o qu e não sej a a hum anidadc e m si , exec ução, nela, não realça sse a matéria. e se o suj eito , a pe ssoa do
é acidental no homem . O arti sta grego qu e tem qu e represe ntar um poeta, não se subs tituísse ao seu obj ecto . Ora, só a uma bela alma é
Laocoonte, um a Níobe, um Filoct etes, não se inqui eta nem com a dado imprimir o seu car ácter, a s ua imagem inteira, em cada uma
princesa, nem co m o rei , nem com o filh o do rei : ele co la-se ao da s su as manife stações , independentemente do o bj ec to d a sua
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actividade. Uma alma sublime só se pode dar a conhecer como tal pode arrancar-se a todo o estado de servidão, a tudo o que a limita e
pelas vitóri as isoladas sobre a rebelião dos se ntido s, nalguns mo- re stringe , m as apenas pel a força da su a von ta de . Est a, por cons e -
m entos de exaltação e por esforços sem duração; numa alma bela, g uinte, só é livre aos sacões e com es fo rço ; a o utra é -o com facili-
ao contrário , o ideal age à maneira da natureza, e partindo com con- dade e sempre .
tinuidade: também se pode manifestar nela mesma em estado de re- Produzir em nós esta liberdade de es p írito e mantê-la, é o bel o
pouso. O m ar profundo não parece nunca mais sublime. do que problema da comédia, da m esma maneira que o obje ctivo da tragé-
quando está agitado; a ve rdadeira beleza de um claro ribeiro est á no dia é o de rest abelece r em nós aquela lib erdad e de espí rito por vias
seu c urso pacífico. esté ticas, qu ando e la foi v io le nta me nte sus pe nsa pel a pa ixão. Po r
É uma questão que tem sido muit as vezes debatida, saber qu al conseq u ênc ia, é preci so , n a tragédi a, qu e o poeta, como se fizes se
dos dois g éneros, a tragédia ou a comédia, deve passar à frente d o uma e xpe riê nc ia, sus penda artificialment e a nossa lib erdade de es-
o utro. Se se entende s im plesmente perguntar por isso qual é dos p írito , dado qu e é ao rest abel ecê -la que a tra gédia m ostra a sua vir-
dois que trata do o bj ec to mais importante , não há so mbra de dú - tude poéti c a; na comédia, pelo contrário, é preci so e vit ar qu e as coi-
vida: a vant agem es tá do lado da tragédia. M as se se qui ser saber sas nunca cheg ue m até essa sus pe ns ão da lib erdade. Da í resulta qu e
qual dos doi s supõe mai s valor no sujeito, no a uto r, a questão neste o poeta trágico trat a sempre o se u tema do ponto de vista prático ,
caso decide- se de modo igualmente cl aro a fa vor da comédia. N a e nq ua nto o poeta cómico trata se m pre o se u te oricamente, mesmo
tragédia, a matéri a por s i só representa j á muito : na comé d ia, o o b- quando ao poeta trágico, com o Lessin g no se u N a than, lhe dá n a
jecto não representa nada, e o poeta tud o . Ora , com o nos julgam en- fan tasia tratar um a m atéria teóri ca, e ao o utro, uma m atéria práti ca.
tos de gosto não se deve ter em conta a matéria tratada, seg ue-se Pouco importa onde o poeta tenha ido bu scar o se u assunto: o que o
naturalmente que o valor estético destes doi s géne ros es tará na pro- torna trágico, o u c órnico, é o tribunal di ante do qual o faz co m pare-
porção inversa da importância própri a das suas matérias. O po et a cer. O poeta trági co deve de sconfiar do raciocínio c a lmo, e dirigir-
trágico é sustentado pelo se u objecto: na co méd ia, pelo contrário, é -se se m pre ao coração: o poeta cóm ico deve ev ita r a paix ão , e oc upar
o suj e ito, a pessoa do poet a, qu e deve manter o seu objecto à altura se m pre o espírito. Assim, um fa z explodir a su a arte ex c itanto cons-
esté tic a. O primeiro só tem que tomar o se u balanço, e isso não tantemente o patético , o o utro afast ando co ns ta nte mente o patético ;
ex ige um es forço assim tão g rande : o o utro tem qu e ficar igual a s i e, naturalm ente. a arte é tanto mai or de um lad o e d e o utro quanto o
próprio; é preciso qu e, à partida, e le esteja em casa, ali onde o po et a s uj e ito de uma é de um a nature za mai s abstrae m. e qu e a do o utro se
trági co só ch ega por meio de um im pulso . E eis preci samente o qu e inclina mai s para o patético. Se então a tragédia tem um ponto de
distingue um a alma bela de uma a lma sublime. Uma alma bela traz partida mai s importante, é preci so , por o utro lado, re conhecer que a
e m si, à part ida , todas as gra ndes ideias; elas decorrem sem cons- c o méd ia tende para um objecti vo mai s import ante; e qu e se e la pu-
trangimento e sem dificuldade da sua própri a natureza: natureza de sse atingi-lo, tornaria toda a tragédia supérfl ua e impossí vel. Est e
infinit a, pelo menos em pot ên cia, em qualquer ponto que for consi- o bj ectivo não é outra co isa se não o teimo supremo ao qual o homem
derada na su a carreira. Uma alma sublime pod e elevar-se a todas as deve aspirar sem ce ssar: é o de se libertar de toda a paixão , é o de ver
espécies de g randeza, m as co m a condição de faz er um esforço; se m pre e m vo lta de si , e em si, co m uma vis ão clara e um olh ar ca lmo,
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é de reconhecer em todo o lado mais o acidental que a fatalid ade, e rir desenvolvimento. Por outro lado, ambos tratam de assuntos pareci-
da tolice em vez de se irritar ou de se lamentar pela maldade. do s, e pod em se rv ir-se de todo o tipo de motivos. A sua g rande e
princip al difer ença consiste . então. e m qu e o poeta é p ico repre senta
(Schiller, a 'LI'TeS, trad . de A. R égnier, Hach ctt e , t 859; I: «Préface des Bri gand s » (project )
( 187 1), tom o li, pp. 178·179; 2: «Sur le théâtre all ern an d <I' à pr éscn t» ( 1782), tomo V lI , pp . os fact os como pc/feitam ente pa ssados , e o poeta dramático co mo
286.288; 3: «De la ca use du plaisir que no us trou von s au x objets tragiques - (1 79 2), tom o
pc/feitamente presentes.
VIII, pp. 6-8 ; 4 :. «Du Pathétique» (1793) , tomo VJII , pp. 120-122; 5: «De la Po ésie nar ve ct
seruimen talc » ( 1795- 1796) , tomo VIII, pp . 376 -378.} Caso se qui se sse deduzir, da própri a natureza do s homens, as
lei s qu e de vem g u iá- los aos doi s, seria necessário representá-lo s,
co ntinuame nte , um co mo rap sodo , o outro co mo mimo . Supondo-se
que tan to um co mo o outro são igualmente po etas, seria preci so ver
36 - GOETHE: TRATADO SOBRE A POESIA ÉPICA E A POESIA o rap sodo cercado de auditores calm a mente at entos, e o mimo , de
DRAMÁTICA (1797 ) es pec tador es ap a ixonadame nte impacientes . Então , não se r ia difícil
determinar o qu e melhor co nvé m a cad a tip o de po esi a, que tema
Iohann- Wolfgan g Gtethe ( /749-1832) descob riu o teatro atra- deve esc o lhe r, que motivo de ac ção dev e empregar de preferência;
vés das marioneta s que lhe ofereceram na sua infância. c começa
di go de prefe rên ci a , porque nem uma nem outra dev em apropriar-se
desde mu ito cedo a escrever peças ; o se u primeiro drama . G cctz
ex cl usivamente de al go .
von Berlichingen (1773) coloca -o à ca beç a do movimen to pré-ro-
O tema d a epopeia, como o da tra gédia, deve se r puramente
mântico do Stunn und Drang . E volui a seg uir em direcç âo a form as
humano, significativo e patético. As personagens qu e melhor lh e
mai s sóbrias. d e inspiração grega; a sua corres pondência CO /11
convêm são as que não ultrapassaram es se grau de cultura em qu e a
Schi/ler descreve algumas etapas des ta evolução, enquanto as suas
es pontaneidade de ac ção nad a deve se não a s i própri a, onde o ho-
conversas com o j ovem J.-P. Eckermann , nos últimos an os da sua
mem não age ainda moral, política ou m ecanicam ente , mas pessoal-
vida ,fazem o balanço fi nal. O co nhecimento do teat ro não é apenas
o de um poeta e de um pensador, mas também a do dire ctor qu e f oi mente. Sob esta relação, as tradi ções heróicas dos Gregos eram sin-
durante longos an os (/ 791-/817) do Teatro de Weimm : g ulanne nte favoráveis aos poetas.
A e popeia re presenta particul arm ent e a ucti vid ad e individu al e
limitada, o homem agindo se m pre fora ele si próprio. as batalhas, as
Os moti vos. os mundos e os meios
viagens, todos os empreendimentos que e x ige m uma ce rta ex te nsão
. TRATADOSOBR EA POESI A É PIC A E A PO ESIA DRAM ÁTICA ,
POR G o ETll E E S ClllLLER I
no espaço . A tragédia mo stra -nos o so frimento individu al e limitado,
qu er d izer, o homem e nce rrado e m s i mesmo; também a ac ção da
O po et a épi co e o poeta dramáti co estão, um e o outro. subme-
ve rdade ira tragédia não exige se não um pequeno es paço materi al.
tidos às mesm as leis gerais e, sob re tudo , às leis de unidade e à do
Qu anto aos mot ivos, e ncontro c inco es péc ies difer entes :

I É o título dado por Gce the a este ensaio, q ue env ia a Sc hillcr num a ca nil , e qu e rcca -
I) Os qu e faz em avançar a acç ão; pertencem esp ecialmente à
pitula algun s mese s da sua correspond ênc ia. (N .F .) poe sia dramáti ca.
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2) O s qu e afa stam a acç ão do seu fim ; pertencem particular- a acalmar os audi to res a fim d e os predisp or a escu tar durante um
mente à poesia épica. long o tempo , e com praze r. D ividirá o int ere sse e m partes iguai s,
3) O s qu e atrasam a acção , seja demo rando o se u avanço , sej a porque sabe que não está n o seu p ode r eq u ilibrar imed ia ta mente
alo ngando o se u cam inho; podem c devem ser utili zado s pel os dois um a e moção d emasi ad o viva. Irá tão depre ss a pa ra a frente , tão de-
gé neros de poesia. pre s s a para trás, e será vo lu nt a r ia men te segu ido p o r todo o lado ,
4) O s qu e reportam ao passado, e d ão a con hecer os acontec i- d ado que se diri ge ape nas à imaginação, e a im aginação c ria para si
mentos ant eri ores à époc a em qu e co meça a acç ão d o poema . própria as s uas imagens, e inquieta -se pou co , pel o m eno s a té certo
5) O s qu e antecipam o futuro e fazem adivinhar o qu e aconte-
ponto , com a nature za e carácte r das imagens que evoca.
ce rá depoi s da co nc re tização da acção do poema. E ste s doi s m oti vo s
Quereri a também que o rapsodo, como um ser sob re na tura l, fi-
devem se r usad os pelo poeta ép ico e pel o poeta dram áti co a fim de
casse in v isível par a o se u a ud itório; o m elhor seria que can tasse por
com p letar a sua obra.
detrás d e uma co rt ina, a fim de que , esq uecendo-se co m p le ta men te
O s mundos qu e um e outro devem e xpo r aos olhares são, se-
da su a pe ssoa, pude sse c r ia r- nos a ilu são de não o u v ir se não a voz
gundo pen so , de três es péc ies:
das Mu sas.
I ) O mundo fí sico . qu e c o n té m c e n ce r ra a s persona g en s
O mimo e nc o ntra-se numa s itu ação com p le ta men te oposta; co-
agindo ness e mundo. O poeta dram áti co é forçado a fix a r a s ua
loc ado diante do s especta dores com o uma individu alid ade det ermi -
aten ção sobre um único pont o, e nq ua nto o po et a é pico pod e m over-
nad a , qu er que no s inte re s semo s ex cl usiva me n te po r e le e pel o s
-se à sua vontade, e como se dirige se m pre à im aginação , representa
se us aco m panhantes, que sofra mos as d o re s do seu corpo o u d a sua
a nature za inteira com aj uda d as com pa rações, as quai s devem se r
alm a, que partilhemo s os se us e m baraços, que por e le, e n fim, nos
usadas de mod o muito só brio pel o poet a dram áti co .
es q ueça m os de nós próprio s. É ve rdade qu e e le também está forçado
2) O mundo moral: pertence aos doi s géneros de poesia e nunca
a ag ir grad ua lmente, mas pode a rriscar os efe itos m a is v io le ntos,
é representad o co m tanta felicidad e se não na sua in g enuid ad e fisio-
porque a pre sença rea l pode a pagar as impressões m ai s fortes por in-
lógi ca e patológica .
te rméd io d e o utras m u ito m a is fracas . O es pectador deve se r pre sa de
3) O mundo da fant asia, do s pressent im ento s. d os acasos e dos
um a agitação incessante; privado da libe rdade de refIectir, de ve se -
destinos. Este mundo tam bém perte nce às d uas p o esi as. e não é
g uir o m imo com pa ixão; a sua im aginação não tem mais nad a qu e
preci so acrescent ar qu e é neces sário ligá-l o ao mundo físico. o que
re presenta urn a gra nde difi culdade para os po et as m ode rno s, po rq ue fazer, nad a ma is se pode e sperar d el a ; é preci so e n tão que as própri as

nó s procuramos e m vão substitu ir os se res m a ra vilho so s qu e os a n ti- narrat ivas sejam po st as e m acção e colocadas so b os se us o lhos.

gos tinham sempre à sua disposi ção , divindade s, profet as, orác ulos. G ccthe .
No qu e respeit a à exec ução, representamo -n o s nest e as pec to o
rapsodo co mo um hom em sáb io e calmo, que abarca o pa ssado co m
(Correspondance entre Gtrthe <'I Schillcr, Irad . de Mm e la baronne de Carlowitz, Charpentie r,
um co nhec ime nto perfeit o e tranquilo . Ent ão , o seu começo tenderá 1863, c arta de Gre lhe a Schi ller , 23. 12. 1797 , to mo I, pp. 39 1-394 .)
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37 - HUMBOLDT: DO ESTADO ACTUAL DA CENA TRÁGICA deve ser insignificante, está artisticamente tecida de harmonia e be-
FRANCESA (1800) leza. Daqui resulta que acreditamos notar aí uma união mais estreita
entre todas as artes, e uma tendência, se não maior e mais profunda,
Wilhelm 1'On Humboldt (1767-1835), irmão do antropólogo a pelo menos muito decididamente estética. O homem, muito sim-
quem devemos os textos fundamentais sobre a natureza das culturas plesmente como homem, não se deleita tanto, sem contradição, com
da América do Sul, destacou-se como linguista e filólogo. A partir um tal espectáculo. Pelo contrário, o artista deleita-se aí tanto mais.
das lições do seu preceptor, J.J. Engel, a sua formação escolástica é Pelo menos o actor estrangeiro, que encontraria aqui, mais do que
enriquecida simultaneamente pelos domínios clássicos que na al- na nossa terra, traços visíveis do trabalho e do cuidado do artista,
seria constrangido a pensar e reflectir sobre a sua arte.
tura se tornam universitários, e pelas contribuições da filosofia. Li-
( ... )
beral e cosmopolita, está a vários títulos ligado ao movimento geral
Em suma, parece-me que a arte dramática dos franceses ofe-
designado pelo nome de Coppet.
rece uma representação menos elevada e menos ideal do caracter
Este texto acerca dos actores trágicos franceses, escrito em
do homem, do que a que nos esforçamos por atingir: mas evidente-
Paris em 1799, foi dirigido a Gcethe, que o publica na revista Die
mente traz mais em si o carácter da arte, tomado no sentido mais
Propylãen, sendo depois traduzido e publicado em francês um ano
favorável; é mais estético, e utiliza mais lucrativamente as vanta-
mais tarde. Interessa-nos enquanto texto de um teórico da lingua-
gens que lhe oferecem as outras artes com as quais se encontra em
gem. Num tom bem mais científico que o de Diderot, Humboldt, que
afinidade.
no entanto apenas quer falar como homem de bem, compara e co- Nós os estrangeiros temos o hábito de acusar a cena francesa, e
loca em planos iguais as criações do poeta e do actor: uma pri- seguramente com razão, de ter falta de naturalidade e de verdade.
meira encruzilhada da Iinguistica e da estética no que respeita ao Os franceses, pelo contrário, defendem que a sua cena está tão pró-
teatro. xima da natureza quanto é possível. Como explicar esta contradição?
Não se pode, arriscaria dizer, senão por esta consideração: que
A natureza, a arte e os signos cada nação tem uma ideia própria e particular da natureza, e que
ela nomeia assim o que se lhe tornou habitual e fácil. Os franceses
Estou longe de pensar que os melhores actores deste país te- associam a este termo de natureza quase exclusivamente a ide ia do
nham ou mais talento, ou mais elevação do que os nossos; pelo me- simples, do ligeiro e do regular. Ora, como por outro lado, não co-
nos que os nossos teriam, se a sua arte fosse mais encorajada entre nhecem a arte senão desta única perspectiva, da faceta do gosto que
nós: mas aqui a mímica está em ligação mais íntima com as outras não se autoriza nada de inconveniente nem de chocante, acontece
artes de imitação. Connosco, ela só fala à imaginação, à sensibili- que estas duas concepções se aliam e se confundem facilmente, e
dade: aqui, preocupa-se mais em satisfazer o olhar do espectador. que, como consequência, devem chamar natural a uma interpreta-
No teatro francês, vemos reunidos no actor, o pintor, o escultor e o ção onde o seu gosto não encontre nada de ousado a repreender.
bailarino de pantomima: mesmo a parte da sua interpretação que Não podemos esperar da parte deles esta pura oposição entre natu-
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reza e art e : ma s como são dotad o s de uma sensibilidade muito fácil mai s re strita do qu e qu alquer outra; e o natural, o u a falta de natu-
de irritar até à náu sea , por toda a realidade rude e agreste, muitas ral , da su a interpretação não de ve ser julgad o segu ndo uma compa-
vezes parecem ser mai s es té ticos do que de fa cto s ão . ração imediata com a nature za, mas por uma comparação mediara
Mas , se a con cepção da natureza for de al guma maneira difícil co m a maneira co m o o poeta tratou essa natureza . Não se trata de
de di stinguir da da arte. se rá so bre tudo na representação dramática, exa m in a r se Agamémnon o u se Clitemne stra puderam ex ecu tar tai s
qu e pod emos chamar arte da arte; qu e não é a repre sentação da na- ou tai s gestos ; ma s se tai s ou tais gesto s são c onvenientes para
ture za , m as antes a de um a outra representação, e rig ida e la me sma A gamémnon que fa z tai s di scurso s , manife sta tai s se n tim e ntos .
ante rio rmente, seg undo regras próprias, enfim, de um poema dra- Há doi s ponto s pel o s quais a arte se tr ai e se fa z reconhecer
mát ico . co m o arte: p elo seu alt o id eali smo, que se e leva muito ac ima da rea-
Que acontece propriam ent e à natureza, qu ando a transmutamos lidade, e porque ela, como em toda a obra hum an a , carrega a mar ca
e m produto da art e? É ela borad a no pensamento, e a í so fre duas do arbitrário e da conve nção . Ora quanto mais a obra do poeta tenha
mud an ça s: torna-se mai s se me lh ante à natureza do homem, dado de convencional , tanto m ai s este será visível n o acto r, se m acusar a
qu e é uma força hum ana qu e a ca pta na sua representação ; e recebe sua interpretação de falta de naturalidade: ex ig ir-se-á mesmo dele
da nossa imaginação os limites próprios, limitativos , uma determi- toda essa convencional idade, sem a qual é evidente que a harmonia
nação recíproca das suas di versas partes, dado que d o incomensurá- co nve n ie n te seria perturbada. Então os france se s , que por outros
vel tod o da natureza foi retirad o um fragmento para, por sua vez, m otivos acham a sua tragédi a natural, não podem se não achar natu -
se r afei çoado num todo constante por s i próprio. ral a interpretação dos se us acto re s. Não os devem ac har exage rados,
A natureza apresenta outra coisa co m p le ta me n te diferente da me smo quando a nó s o pare cem . Porque pertence a essa convenç ão
ar te : nela se manifesta se m pre um infin ito ; mas só um produto da tácita, e n tre o poeta e o espectador, que o herói trági co sej a um ho-
a rte nos poderá el evar at é ao ponto em qu e a no s sa im aginação m em diferente do homem vul gar, e que por isso os se us se ntimentos
po ssa reconhecer esse ca r ácter, porque este produto da art e só no s devam ser e xpresso s co m mai s força, para () que con tr ibu i aind a
pod e mostrar, numa das partes d a natureza, uma imagem dessa har- uma v iv ac id ade na ci on al m ai s exu be ra nte do qu e a no ssa.
moni a e dessa perfei ção qu e a natureza possui na re alidad e , m as Por comparaçã o com o po eta, o actor é, e ntão, m ai s da natureza ,
qu e , no se u todo imenso, fica in ace ssível à no ssa percepção. P. a rte m a is d a realidade , d ad o que nos torna se n síve l a o bra d o po eta :
nunca re conduz à arte , m as apen a s à nature za ; e, por e xemplo , e es ta nova relação forne ce , por s ua vez, no vo s pont o s a avaliar.
len do uma tragédia, não ve m ao es pírito pensar no s ac tores em vez Todo o prazer caus ado pel as arte s , s urge uni cament e a ex pe nsas da
de pensar nas personagen s que agem. imag inaç ão ; n ão é ap en as o produto d a ar te que no s e nc a nta; é a
Tod a a arte , se ndo esse ncia lm e n te imitação , o a rt is ta tem imagem que , e xaltados por el a , formamos para n ó s própri os, e qu e
sempre uma imagem primeira o u protótipo, que represen ta a si pró- lhe atribuímos mai s do que a retiramos dela.
prio à sua maneira. Ora, o protótipo do actor não é precisamente a ( ... )
natureza, mas um produto da a rte , feito antes dele e indep endente- Poder-se-ia di zer, com bastante justiça, que o actor alemão dá
mente dele: a tragédia do poet a . Exactamente por isto, a su a arte é con tin u id ad e m ai s a se u m odo ao simples trabalho d o poeta: a coisa
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em si, os sentimentos, a expressão, são o que mais o preocupam, Do que os franceses exigem mais aqui, e mais rigorosamente
por vezes mesmo, o que unicamente o preocupa. O francês mistura que nós, poder-se-ia concluir que são dotados de um sentido esté-
mais à obra poética o talento do músico e do pintor; por isso tam- tico mais requintado, se de um lado penetrassem melhor no interior
bém é menos forte na expressão do carácter, e causa uma impressão e como no santuário da arte, e se, por outro, se sentissem conve-
menos profunda. Mas neste ponto a falta é ainda do poeta, que visa nientemente feridos quando tudo o que é o brilho da arte não aparece
mais uma maneira do que uma natureza artificial.. mais da mesma maneira que a flor da juventude e do vigor, mas ao
Se quiséssemos construir o ideal de um perfeito actor, fica fora contrário, como uma maquilhagem aplicada arbitrariamente. E de
de dúvida que deveria reunir uma e outra destas vantagens. O actor certeza que aqui a linha de demarcação fica delicadamente traçada,
deve representar o homem em acção, e tal com toda a sua personali- quanto ao gosto bem raro, daqueles a quem repugna a arte demasiado
dade: e ainda que, tal como se passa na natureza, todos os movi- amaneirada, da mesma maneira que a natureza demasiado bruta.
mentos e as atitudes, mesmo do homem mais bem constituído, não Quanto a nós, alemães, podemos ser reprovados por dar pouca
fossem sempre nobres nem graciosas; é a tarefa do artista não se importância a esse brilho próprio da arte. É possível que a razão es-
carregar destes defeitos da natureza. Pretende-se que trabalhe, como teja no facto de a nossa sensibilidade não estar suficientemente de-
artista e com perfeição, tudo o que aí mete de seu, e que dê ao todo senvolvida, os nossos ouvidos não serem suficientemente musicais,
uma harmonia sem interrupções. a nossa visão não ser suficientemente a do pintor. Pensei muitas
Na realidade, podem e devem sobrar um grande número de vezes que o alemão, comparado com o francês, conhece menos a
coisas insignificantes; mas isto compensa-se; centramo-nos no re- necessidade dos signos; que é demasiado imediata e independente-
sultado e perdoa-se uma em favor da outra. Num produto da arte, mente deles que é seduzido pelas coisas.
pelo contrário, nada pode ser indiferente, nada pode esperar graça,
nem desculpa. Sobretudo no teatro, onde a série de acções, por ve- (Wilhelm von Humboldt , Uebcr dic gegenwãrtige Franzosischc tragischc Búhnc , «Considé-
rutions sur I'urt des actcurs tragiqucs trançais. par un Allernand», Le Spcctatcur du Nord,
zes espalhadas por toda a vida de um homem, se encontra encerrada torno XIII, 1" trimestre. 1800. pp. 381-396.)

num espaço de poucas horas, é preciso que tudo seja significativo,


proporcionado e bem compreendido. Se num único instante o actor
deixa transparecer o seu eu individual, recorda imediatamente ao
espectador que tudo o resto não é mais que arte. Esta significação
de cada coisa, mesmo das mínimas partes isoladas, esta estreita li- 3X - LEDOUX: A ARQUITECTURA CONSIDERADA EM RELAÇÃO
gação, esta juntura exacta de todas numa unidade limitada de modo COM A ARTE, OS COSTUMES E A LEGI5,LAÇÃO (IX04)
severo é, positivamente, o selo essencial e necessário de um produto
da arte; é o que lhe dá aquele acabamento brilhante, o qual apenas Classifica-se hoje por entre os «arquitectos visionários», junto
proporciona ao verdadeiro conhecedor o puro deleite do artista: com Boullée, Claude-Nicolas Ledoux (1736-1806), que construiu as
digo ao conhecedor, porque os outros não são sequer providos de «Barreiras» de Paris, as célebres Salinas dArc-ct-Scnans, e o teatro
um sentido para o notar. de Besançon.
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253

Tanto urbanista quanto arquitccto, Lcdoux propõe p elo texto e ( ...)


pela imagem. no seu úni co livro A Arquitectura considerada em re-
O s e spe ctadores arrebatado s s o b re uma frágil c o ns tru ç ão de
lação com a arte , os co stumes e a legi slação (publicado em edição
ab eto magnificamente suspensa, assustam a timidez que ameaçam ,
de autor), a edifica çâ o de lima cidade ideal, co nstr uída segundo
inquietam a previsão que enganam.
op ções tanto simbólicas quanto verdade iram ente funcionais ,
Se os intervalos estão muito decorados, prejudicam o espec-
O «R elance sobre o teatro de Besançon » começa p ela gra vura
tador, se não es tão o sufic ie n te , prejudicam o espect ácul o . Vede a
de um olho , na íris do qual se in scre ve a sala do teatro (um anfitea -
tro em andares progressi vos) visto da ce na . agitação e o movimento conv u ls ivo qu e reina e m todos os lugares.
Uma partc dos espectadore s e s tica-se sobre a ponta dos pé s para
compensar a insufi ciência da sua altura; uma outra parte, tendo
Arquitectura teatral e sensibilidade do público mai s m eia c abeça d e altura do que est es, es conde-lhe a cen a por
A forma dos teatros assemelha-se à dos lugares de stinados ao inteiro . Os que ocupam os lado s da sala , co loc ados nas primeiras
jogo da péla ' ; é um carreira a pique onde pai xõ es de todos os tipos filas , podem dificilmente aperceber o actor, à custa de uma con-
remexem o seu lodo, ond e o sopro do espectador exala a corrupção, e tractura vertebral; os segundos, terceiros, qu artos, es tim u lad o s pela
repercute sem cessar os ven enos qu e engole . A c up idez mantém um a acção teatral que se m cessar lh e s escapa, vacilam , perdem a com-
parte do público de pé durante duas hora s num redil , qu e se ch ama po stura , cansam os ombro s impaciente s, perturbam o s adereços na
plateia, não se i porqu ê. É aí, sim aí, ond e os no ssos se melhantes, onde sua preocupação de ga nhar e m a lt u ra o qu e a proporção do s assen -
a espécie menos favorecida da fortuna, fica de tal modo refreada, com- tos ou a inaptidão das linh as lh e s recu sa. Hav erá suplício m ais cru el
primida, que sua sangue; espalha e m tomo de s i um vapor homicida. que o d e est ar durante du as horas so b re as pontas d o s pés, se m o so-
O público arrumado por ass entos iguais, fica amontoad o em cómodos co rro d as a sas qu e alivia m o trabalho do men sageiro dos d eu se s?
arqueados 2, móveis cons ag rados à mediocrid ad e qu e habita sob os As sal as corr ig idas de ac ordo c om aquel a s que ac ab amos de
tectos, onde nunca chego u a dignidade de um arquitecto inspirado. descrever, apresentam uma forma elíptica em que uma parte se es-
Estas representações mesquinhas são orn adas d e guirl andas no treita para obter um a ab ertura truncada, por favor d a qual nos ap er-
prime iro and ar, gui rlandas no seg undo, e g u irla ndas no último para ce be mos d e uma avenida su b metid a a de coraçõ e s uniforme s. Qu e
divertir a vista com a vari edade, e se a abundância distrai as s uas vasto c a m po para o g én io d o de corador.
benfeitorias, não é senão para as subs tituir por canais extraídos das
( ...)
tumbas fun erárias, ou outros ornamentos de enchimento, aplicações
As sal as aumentadas n ão oferecem um plano claro. Seria difícil
discordant es do sentimento que deveriam inspirar.
que o co m passo, na franqueza d o s se us co nto rnos, a í en contrasse o
traço que teria qu erido tra çar; s ão tão desproporci onadas na rep arti -
. ' A lusão ao bC IOde os teatros lerem s id o instal ad os muita -, vez e s 1I0 S loca is do a.ui l.'.O
Jog o da pé la. (N.F.) •
ção de s igual dos lugares, que a s ua combinação bi z arra de strói tudo
2 Os camarotes. (N .F. )
A frase co ntinua CO Ill refe rê nc ia ao co stu me de os ca ma ro tes se re m decorados por cada o que a cerca. Os es pec ta d o res, por degraus, na vertical , uns sobre
um dos se us ass lllan les/pro p rie l ~ rios . (N.T.)
os outros, vêem bastante bem a cen a at é ao centro; os que lh es es tã o
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opostos, à medida que ela se estreita, não vêem nada: nas segundas, Crê-se ter arrisc ado muito se se antecipou qu alquer coisa sobre
terceiras e quartas filas, caixas de madeira, revestidas de malhas o dado que o costume san cionou, submetendo a extensão do proscé-
duplas I, escondem a maior parte dos espectadores, inquietam o nio . A que não se fica exp osto se se licitar so b re a última latitude?
pudor, os bons costumes, prejudicam a voz e o efeito geral. Oiço desde já a crítica desgastada renovar o ar dos seus pulmões,
( ...) clamar para nos provar que uma grande abertura atenua a proporção
As salas mai s modernas são decoradas por homens que já gas- do actor; teria razão se a forma fosse destrutiva, mas se ela reunir o
taram os trapos triturados para acumular os monstros qu e o delírio ponto de vista, se propagar o s sons, se pu ser o actor e m relação c om
do mau gosto inventou. (...) Outros multiplicaram as colunas e eleva- tudo o que o cerca; que mais se poderia desejar?
ram-nas acima da vertical, umas atrás da s outras ; estes meios onero- ( ...)
so s para a receita, faz em perder lugares se m proveito para o s o lh os. Os no ssos teatros, a este respeito , estão ainda na infância da
( ...) arte, e dei xam muito a desejar; na pureza d os costumes, na solidez,
Que entendeis por um proscénio? É a fresta da janela, espes - na salubridade , na comodidade e no efeito geral. E ste último artigo
sura intermediária habitada que separa a acç ão do exterior; é um é muito negligenciado, no e nta nto toda a gente sabe qu e uma das
corpo liso ; é um repouso em que o olhar se prepara para aumentar o grandes vantagens do esp ec tác ulo é ver por todo o lado, e ser bem
prazer da alma , opondo a variedade das situações de todo o tipo à vi sto: p ara atingir e ste fim que será preciso fazer? É preciso ir bu s-
sim plicidade do enqu adramento. Não vejo em lugar nenhum o que ca r à natureza e às su as provocações o s princípios que no s podem
acabais de enunciar; o que se chama de proscénio, a crer no us o, orientar; ela tem um passo regular que se alimenta das vicissitudes
não é outra coisa senão a linha contín ua da sala até ao palco. O o pe - do mundo e da união das suas partes. A s coisas que faz , são melho-
rário abaixa os assentos de algumas polegadas, o artista intercala re s que as da arte; e sta potência, sempre apoiada na razão , alcan ça
engenhosamente colunas díspares para sustentar o peso de uma ta ça soluções ao abrigo das falsas consequências que no s perdem; o que
engenhosa, conhec ida sob o nome de platibanda. (...) Em vão que- ela apresenta é tão simples , que não concebemos como o homem ,
rer-se-ia acender as lâmpadas apagadas que deveriam iluminar o chamado às ideias primeiras, pode esquecê-las para criar fantasmas
primeiro plano do qu adro, os talentos e xilados um de cada ve z p a re- que a refl exão deveria ter feito de saparecer. Si gamos o caminho que
cem ter ca ído na noite espe ssa do s preconceitos; não é tudo, a vo z ela nos indica, em favor das claridades ce le s te s de qu e ela se rodeia;
perde-se nos ângul os , e para melhor a con servar suspe nde -se m agi- separemos as misturas e retracemos aos o lhos as situações que os

camente com arames atributos fantástico s, quimeras horrorosas que despestanejem.


se atormentam, torcem o corpo para constrangerem uma cauda de A v isão de um espec tác u lo dado de g raça ao povo estimula a

peixe a ligar-se com a cabeça de uma mulher. minha imaginação e e ngra ndece os meus pensamentos; vou desen-
vo lve r-v os todos os tesouros do género humano: povo s da terra
acorrei à minha voz; obedecei à lei geral. Tudo é círculo na natu-
I
Os cama rotes fech ados com grades. par a os es pec tad o res qu e não de sej avam se r
vistos. (N. F .)
reza ; a pedra que cai n a água propaga círculos indefinidos; a força
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centrípe ta é continuame nte combatida por um m o vimento de rota - encontrado o que procurava , gasto u as su as forças, os se us recurso s;
çã o; o ar , o mar mo vem -se em círcul os permanentes; o íman tem os so lic itará ao acord ar novas pro voc açõ es, e va i e nc he r-se d e idei as
se us turbilhões, a terra os se us pól o s, o zodíaco a presen ta sucessiva- prime ira s gera lmente se ntidas .
mente ao so l os signos ce les tes , o s sa té lites de S aturno e de Júpiter Atrav e ssai a praça pública , que vedes? Um c harl atão qu e des-
giram e m torno del es, o s planetas, e n fim , perc orrem uma ó rb ita perta a c ur io sid ade dos passante s, e chama-os ao som dos pregões;
imensa . agita-se , g r ita , a sua voz esto ira nos ares. Assim a pólvora infla-
Fonte inesgotáve l dos grandes e feitos qu e inte ressam ao s nos- mada ex plo de, e n a sua força excêntrica afasta tudo o que se opõe à
sos olhos , nada pode ex ist ir sem o teu apa re lho pompo so ; é lá, si m, sua explosão . O s se us aco rde s barulhentos amassam a multi d ão qu e
ali onde o hom em reduz ido ao seu es tado primitivo reencontra a se enro la e m g ru po à volta del e . Cercam -no de raios igu ai s; o m ai s
iguald ad e qu e nun ca deveri a ter perdido. É so bre es te vasto teat ro , for te a prox ima-se de mais perto , o mais fr aco es tá m ai s afasta do .
bal an çado nas nu ven s, de círculos e m círc ulos, qu e e le se m istura Tod o s os lu g a res são bon s, tod o s tendem para um mesmo pon to.
ao segredo dos deuses. É aí que a mulher ex ibe o poder de atracção A poiad o ne st as bases inconte st áv eis, sobre es tas cenas que es -
e por ele faz amar o sistema; é o triunfo das sensaçõe s, é o encontro tão ao a lcan ce de tod a a gente , sobre estas ce nas que se renovam a
dos se xo s e das idad es, é um povo form ado por cem povos div er sos, cada inst ante , que m poderá du v id ar que a forma dos nos so s te atros
é o ponto de re união dos di rei tos re spectivos do s humanos. Vede -lo deva ser progressiva; da do q ue por e la se ob têm os ún icos efe itos
chegar em m ultidão, co locar-se n a e ntrada , co mprimi rem-se uns qu e nascem d o conc urso das m arav ilhas da natureza , sem acessórios
co nt ra os outros? As mulheres estão se ntadas na p rimeira fila; os est ra nhos? Quem poder á du vida r que n ão deva se r an fi teatral, d ad o
hom ens de pé , na seg unda, terceira , qu art a, so be m aos bancos e, es- qu e é o único pa rtid o qu e pod e destruir as inq uie tações que nascem
tendendo os braços, alcançam as sa liê ncias dos camarotes supe rio- da fa lta de solidez dos plan os m ag icamente suspensos?
res . Cada indivíduo cobre co m o seu co rpo as s uperfíc ies, esconde Que ac on tecerá se derem fav o r a es te preceito? O s p la nos cres-
os defeitos de construção; e les são de tal modo apagad o s qu e os cerão de and ar em anda r, até que tenham adquirido a form a do se m i-
acessór ios se tornam in út ei s, todos os es fo rços co n tribue m pa ra cír cul o , única fo rm a que dei xa a po ssibilidade de descobrir todas as
multiplicar a superfície , para obter o qu e lhe falta . Vê -se indist inta- ce nas do teatro . Cabe ao artis ta dispor o e nq uadramen to do qu ad ro,
me nte todos os tipos de ves time n tas mais ou men os e labo rad as: as de maneira a q ue não possa prejud icar nem a vis ta nem o efeito. En -
mulh er es e m belezam as pri meiras fi las com as graças inere ntes ao tão o siste m a m o ral, e ncontrando-se reuni do co m a força po lític a,
se u Sexo; os mais fortes prot egem os fracos; as c ria nças ag arra m- se restabel ecerá os graus naturais. Aque le qu e pagar mais, fi ca r á mais
aos corpos dos se us pais; o utras , se n tadas nos joe lhos d as mães, pert o , o que pagar men os ficará m ai s afastado ; mas todo s , pagando,
escalona m o efei to progress ivo. Todos os tons são varia dos, tudo é ter ão adqu irido o direi to de es tar cóm oda e segura mente se nta dos ;
piramidal. Como esta po m pa é subl ime! Aqui a a rte a bandona os ter ão ad qu irid o o di reito de ver num raio igu al , e de ser bem vi stos.
se us sentidos adormec idos e vai en tregar-se ao sono das abstrac- Pe rgunto-vo s, q ua l é o homem que não possa contar no número
ções . C ansado de ter encontrado o q ue não pro curava , de não ter das se nsaçõe s mais de liciosas, os bens inestim ávei s de st a re un ião?
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Qual é aquele que não será agitado pelos interesses poderosos que 39 - SCHLEGEL: C URSO DE LITERATUR A DRAMÁTICA (1808)
ocupam as delícias do dia e o perseguem até às suas recordações
nocturnas? Deixemos saborear a longos golos a ambrosia de uma August-Wilhelm Schlcgel (1767-1845) entra no debate sobre o
teoria fundada sobre a natureza. Escutai um momento os segredos teatro com as Comparações entre a «Fed ra» de Racine e a de Eurí-
de uma prática depurativa. Que vos ensinará ela? Ensinar-vos-á que pides , em 1807, que descreveu a Coppet, quando exercia asfunções
na execução é preciso acrescentar à ba se do círculo um terço ou um de preceptor do s filh os de Mme de Staêl. Em 1 R08, residindo com
quarto da sua largura, para evitar o desperdício inevitável das linhas esta em Viena , junto com seu irmão Friedrich , professor de filosofia
curvas que se re ba ixa m e se atenuam à vi sta. na Universidade. f ez um c urso de literatura dramática , publicado
Porque não se levantou antes o véu impostor que cobri a os na Alemanha em 1811 e em Fran ça em 1813-14 com grande impacto .
vícios dos no sso s teatros ? Porque d eram tanto favor às cúpul a s Com Sismondi , o utro m embro do grupo C oppet, f az o elogio
abastardadas de que se compunham? Por todo o lado se vêem rec- do s dramaturgos espanhóis c, como Mme de S taêl em Da Literatura
tângulos , formas redondas ou ovais; um as e outras privam os espec-
( 1800 ) , desenvol ve a oposiçã o entre as lit eraturas clá ssicas e ro-
tadores do s prazeres qu e o semicírculo assegura, quando a largura
mânticas.
do proscénio é igual ao seu desenvolvimento.
O quê! anfiteatros? O encanto que centraliza todos os deleite s,
o aparelho magnífico qu e ri à imaginação mai s fria , a aquece, não I . D efinição do teatro
terá gerado se não detractores centrífugos. O qu ê! camarotes anfitea-
Será preciso, antes de entrar no caminho que acabamos de tra-
trais , conhecidos em 1776 " círculos progressivos que aplaudim o s
çar, dar uma explic aç ão precisa so bre as id eias que asso ci amos às
nos antigos; esta igualdade que confunde as fila s, destina ao m ai s
pal avras dramático, teatral, trági co e cô mico. O que é o gé ne ro dra-
forte, o mai s fraco , aquela pompa soc ia l que a filosofia so lic ita,
m áti co? A respost a parece muito fácil: é aquele em que se introdu-
não produziram nenhuma mudança. N a verdade, es te esquecimento
dos princípios é bem condenável. Estou muito longe de pensar que zem diferentes personagens que conversam e n tre si, e onde o autor
não exista mais do que uma maneira de fazer um teatro; estou nunca fala em seu próprio nome. No entanto , aq u i não está se não a
mesmo convenc ido que pode ser variada até ao infinito. Porque o definição da forma ex te rio r do drama, a qual deve. sem dúvida, se r
exemplo não prescreveu nada? Sem dúvida acordará o estupor. N ão a do di álogo; mas se as personagens exprimem se ntime ntos e pensa -
o espereis: a vida do artista que preconi za o bem está semeado de ment os sem exercer influência umas sobre as outras, e se , no fim . se
desvios ob scuros; é o tributo que paga à parcialidade. encontram na me sma disposi ção de alma que ao princípio , a sua
co nve rsa, que pod e apesar de tudo se r muito di stinta. não exc ita
(C la udc- Nico las Lcd ou x, L'A rch itcctu re considc réc S O Il S /t' ra pport dr lart , dcs lII a'tII·S 1'1 de
seguramente nenhum interesse dramático. (...)
la législation, Chezlautcur, l X04. 1'1'. 219·224 .)
A actividade é o verdadeiro prazer da vid a, ou para melhor di-
zer, a própria vida. Os deleites puramente passivos podem, emba-
I Quando l.cdoux fe z o p roject o definitivo d o T eatro d e Bc san çon , inaugurad o e m
17R4. (N.F.) lando-nos molemente , mergulhar-nos numa e spécie de sono da alma
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que, sem dúvida, tem uma certa doçura. Mas quando não se experi- próprio nome, e descreve todas as circunstâncias que devem ser
menta qualquer emoção interior, o aborrecimento não está muito conhecidas.
longe. A maioria dos homens, devido à sua situação ou porque não O poeta dramático é obrigado a renunciar a este meio, mas usa
são capazes de fazer grandes esforços, vivem fechados no círculo um privilégio mais importante; faz aparecer uma pessoa real no
monótono das pequenas ocupações insignificantes. Os seus dias re- lugar de cada uma das suas supostas personagens; exige que, sob
petem-se seguindo as leis uniformes do hábito, têm dificilmente o todas as relações de idade, sexo e figura, ela corresponda, tanto
sentimento da existência; as paixões da sua juventude faziam correr quanto possível, às qualidades com que ele revestiu o ser que criou;
a sua vida como uma torrente rápida, pouco depois ela elanguesce que ela adopte, por assim dizer, o conjunto da sua maneira de ser;
sem movimento; oprimidos por um descontentamento secreto, bus- quer ainda que ela acompanhe cada uma elas suas palavras com a
cam escapar-se-lhe tentando diversos meios de distracção, que expressão da voz, o jogo da fisionomia e todos os movimentos que
todos concorrem para dar algum exercício às faculdades ociosas, fa- podem facilitar a compreensão dos seus discursos; há mais ainda, é
zendo-as lutar com ligeiras dificuldades. Nenhum destes diverti- preciso também que estes representantes reais de seres imaginários
mentos pode entrar em comparação com o espectáculo. Privados do apareçam com roupagens adequadas à condição, à época, ao país
prazer de exercer qualquer influência pelas nossas próprias acções, no qual se supõem estar, seja para acrescentar um traço de seme-
olhamos, pelo menos com interesse, as dos outros. O objecto mais lhança, seja porque existe nas roupas qualquer coisa de caracterís-
importante da actividade do homem é o próprio homem. Vemos tico; enfim, para reunir todas as relações possíveis, quer colocar as
sobre a cena personagens, amigas ou inimigas, medir as suas forças suas personagens num local que tenha uma espécie de semelhança
recíprocas; vemos aí seres inteligentes e sensíveis que agem uns com aquele que se supõe habitarem; numa palavra, ele introdu-los
sobre os outros pelas suas opiniões, os seus caracteres, as suas pai- em cena. Isto conduz-nos à ideia do teatro; porque é evidente que
xões e que decidem, diante de nós, as suas relações futuras. A arte todo o aparelho da cena é o complemento necessário da forma dra-
do poeta dramático consiste em afastar os acessórios estranhos à ac- mática, quer dizer, da representação de uma acção por meio das
ção, esses pormenores minuciosos, esses acidentes importunos que, palavras, e sem a ajuda da narrativa. Concordo que há obras dra-
na realidade, atrasam o caminho dos grandes acontecimentos. e a máticas que não foram destinadas ao teatro pelos seus autores, e
reunir, como num facho, tudo o que excita a atenção e a curiosi- que aí não produzirão muito efeito, embora sejam admiradas na
dade. Apresenta-nos, assim, o quadro embelezado da vida; a elite leitura. Mas duvido muito que um homem que nunca tivesse visto
dos momentos mais tocantes e mais decisivos do destino humano. um espectáculo, ou que nunca tivesse ouvido falar, pudesse receber
Não é tudo. Numa simples narrativa, por menos animada que dessas obras uma impressão tão viva como a que elas produzem
seja, vê-se muitas vezes aquele que conta pôr em cena as suas per- sobre nós. A nossa imaginação está desde há muito tempo acos-
sonagens, fazê-las falar elas próprias, e mudar então o tom da sua tumada, quando lemos as obras dramáticas, a fazer-nos ver a sua
voz e a expressão; no entanto, para preencher as lacunas que estes representação.
diálogos deixarão na história, o narrador retoma a palavra em seu
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2. Da poética à estética 1
Os antigos possuíam algumas obras técnicas sobre as Artes,
Não acontece o mesmo ' com a retórica de Aristóteles, é uma destinadas a explicar os seus procedimentos particulares; mas a teo-
obra indubitavelmente autêntica, completa e fácil de compreender. ria geral das belas-artes nunca foi cultivada como ciência na anti-
Como é que este filósofo considera aí a eloquência? .. Como uma guidade.
arte que deve alcançar a persuasão por um método análogo ao que
emprega a dialética para obter a convicção, quer dizer, por uma sé-
3, A unidade de acçâo
rie de consequências. Mas não será tratar a eloquência da mesma
maneira que se trataria a arquitectura, se se dissesse que é a arte de Exige-se a unidade de acção. O que é uma acção? A maioria
construir edifícios sólidos e confortáveis? Sem dúvida é bem isso dos críticos tem por hábito utilizar esta palavra como se ela se ex-
que se exige; e não é isso que a coloca no campo das belas-artes. plicasse por si. Para falar claramente, a acção, no sentido tanto mais
Exige-se que a essa condição indispensável, se junte aquela bela vasto qunto mais elevado, é o emprego das forças físicas do homem
ordenação e as proporções harmoniosas, que anunciam o destino de para a execução da sua vontade. A unidade de acção consiste na di-
um edifício pelo género de impressão que produzem. Se, então, ve- recção desses esforços a caminho de um objectivo único: e a acção
mos que Aristóteles não considerou a eloquência senão sob o aspecto completa compõe-se de tudo o que concorre para preencher esse
do seu objectivo exterior, e que não captou dela senão o lado do mesmo objectivo, no tempo compreendido entre a primeira resolu-
raciocínio, sem se ocupar da parte do sentimento e da imaginação, ção e a sua realização.
como poderemos admirar-nos que tenha aprofundado ainda menos Os assuntos de várias tragédias antigas, como o parricídio de
o mistério da poesia, desta arte que, pela sua natureza, está livre de Orestes, e a intenção, formulada por Édipo, de descobrir o autor do
qualquer outra obrigação além da de atingir a ideia do belo, e de a assassínio de Laio e de o punir, correspondem à ideia que acabamos
revelar pela linguagem? Sustentei que este era o único objectivo da de dar sobre o que é a acção; porém, esta ideia não se aplica a todas
poesia, e continuo persuadido disso. É verdade que Lessing pensou as tragédias, e pode ainda ser menos adequada às modernas, sobre-
de modo diferente; mas o seu espírito analítico devia conduzi-lo tudo se aí se procurar a acção nas personagens principais. Os acon-
pelo mesmo caminho que Aristóteles. A crítica de Lessing sai vito- tecimentos da sua própria vida, ou os que ocorrem por seu meio,
riosa quando demonstra as contradições no raciocínio que oferecem não têm, muitas vezes, mais relações com uma resolução voluntária
as obras que são combinadas apenas pela razão; mas é bem insufi-
do que o naufrágio de um navio tem com a vontade dos passageiros.
ciente quando se trata de elevar o pensamento ao nível do génio e
Mas, compenetrando-nos do espírito da tragédia antiga, é preciso
das suas mais sublimes criações.
compreender na acção a intenção firme de arcar com as suas conse-
quências com uma coragem inabalável, e a execução dessa intenção
1 A palavra estética foi inventada em 1750 pelo filósofo alemão Baumgarten; o seu
uso só se tomará corrente na gcração de Hegel. (NF.)
será o complemento necessário da acção. Assim, quando Antígona
2
Esta passagern segue-se a uma crítica filosófica da Poética de Aristótcle s, que se decide a prestar ela própria os últimos ritos a seu irmão, o seu
Schlcgel considerava como scndo um fragmento obscuro, falsificado, c talvez apócrifo. (N.F.)
desígnio, cuja realização não experimenta nem atraso nem dificul-
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dade, só m erece ser objecto de uma tragédia na medida em que e ssa E no entanto ninguém contestou a unidade de acção desta pe ça, por-
heroína pi edosa sofre a morte sem arrependimento nem fraqueza que todas estas intenções estão bem entrelaçadas e conduzem todas
por tê-la executado.
a uma catástrofe comum. Qual será então a acção principal de entre
Um exemplo de outro tipo, retirado do Júlio César de Shakes- as quatro acç ões? A energia do sentimento e da vontade parece a
peare, provar-nos-á que esse poeta fundou a sua tragédia sobre prin- mesma em todas as personagens; trata-se , para cada uma delas, de
cípios semelhantes. Bruto é o herói da peça; o que nos dá a ideia toda a felicidade da sua vida; Andrómaca no entanto ganha e m dig-
completa da sua grande intenção não é que ele tenha a ssassinado nidade moral, e é ela, com razão , que Racine escolheu para objecto
César (uma acção em si mesma muito equívoca e que poderia ter a principal da tragédia.
ambição ou a invej a por móbil), mas sim que se tenha mostrado o Vemos então aqui a ideia da acção tomar um novo sentido e
defensor desinteressado da liberdade de Roma, sac r ific a nd o em se - aliar-se ao da liberdade moral. Com efeito, é apenas em virtude da
guida, com indiferença , a sua própria vida. liberdade moral que o homem pode ser olhado c o m o o primeiro
Além disto, se não exi ste obst áculo, não existe nó dramático; motor das suas acç ões : porque, se não se sa i da e sfera da e xpe riên-
porque o nó resulta normalmente das intenções opostas das perso- cia, fica claro que a resolução, que é o princípio da acção, não pode
nagens. Se então limitarmos a ideia da acção ao projecto e ao facto , ser considerada unicamente como causa, porqu e ela própria é o
de scobrir-se- á quase se m pre duas ac ções, ou m esmo mais , numa efeito dos motivos que lhe deram origem .
trag édia. Qual ser á então a ac ção principal? C ada um considerará a É também ao aproximar-nos ele uma ideia mai s elevada e com-
sua co mo mai s importante, porque cada um é o se u próprio centro penetrando-nos do espírito da antiguidade , que encontramos a uni-
para si próprio. Quando Creonte quer manter a s ua autoridade real, dade e a conclusão da acção na tragédia grega; ela começ a por es-
punindo com a morte aqueles que ousaram prestar as últimas home- tabelecer a liberdade do homem, acaba por reconhecer o poder
nag ens a Polinices, a sua resolução é tão firme qu anto a de Antígona; irresistível do Destino. Este ponto de vista, pensamos poder afirmá-
é igualmente importante e , como se vê no fin al , igualmente pe- -lo , foi sempre estranho a Aristóteles. Nunca ele considerou a idei a
rigosa , dado que pro voca a sua ruína e a da s ua casa. N o entanto, do Destino como essencial à tragédia. Não se deve mesmo esperar
pode obj e ct ar-se qu e uma resolução negativa não deve ser c on- que dê lima e x p lic aç ão rigorosa e aprofundada do que se eleve en -
siderada se não com o o complemento de uma resolução positiva. tender por ac ção, considerando-a como resolução e como facto: diz
Todavia. o qu e acontecerá quando as personagens não tenham pura e algure s:
simplesmente intentos oposto s, mas projectos co m p le ta men te dife -
rentes? Na Andrômaca de Ra cine, por ex emplo. Orestes quer obri gar Uma tra gédia tcni a e xte nsão que lhe seja nece ssária. para que os inci-
dent es nas cendo uns dos outro s ne ce ssária o u verosim ilmc nte, pro voquem a
Hcrrnione a corresponder ao se u amor, Hermíone quer que Pirro se
mudança d a felicidade na infelicid ade, ou da infelicidad e para a feli cidade.
case com e la, ou vin gar -se dele, Pirro quer romper com Herrníone e
hipotecar a sua fé a Andrórnaca , Andrómaca quer salvar o se u filho
É pois evidente que, o que ele entende por acção, bem como
e manter-se fiel à memória ele Heitor. Quantas vontades di versas! todos os modernos, é simplesmente qualquer coisa que acontece.
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4. Uma unidade orgân ica e nq ua nto a pro curo em vão num grande número de tra gédias cujos
defeitos escaparam ao exame analítico dos A ristarcos modernos.
Os órgãos dos nossos sentidos recebem do s objectos exteriore s
um número indefinido de impressões diversas, produzidas indistin-
tamente pelas diferentes partes de sses objectos. O julgamento, pelo 5 . O s antigos e os românticos
meio do qual nós reunimos essas impressões para delas form ar um
todo, tira a sua fonte de uma esfera de ideias mais elevada que a das O génio est atu ário in spi rou o s poetas anti gos, o géni o pitoresco
sensações. Assim, por exe mplo, a unidade mecânica de um rel ógio a n ima os po et as romântico s . A escultu ra diri g e ex clusivamente a
re side no objectiv o co m um da s suas partes, que todas concorrem no ssa atenção para o g ru po qu e repre senta ; se para-o, tant o qu ant o
para medir o tempo. M as esse obj ecti vo não ex iste senão para a in- po ssível, de tud o o que o cerc a, e se ex ige alg uns acessórios, não
teligência, e é estranho aos nossos se n tidos. A unidade org âni ca de fa z mais do qu e indicá-los ligeiramente . A pintura, pel o con trá rio,
uma planta ou de um ani mal res ide na ideia da vida: ora, a vida é ela com praz-se nos pormenoress dos se us qu adros, dá um grande des-
mesma imaterial, embora revista formas visívei s para se m anifestar taque às figur as principais, mas reserva ainda cores br ilh ant e s e har-
a nós, e que nós não possamos ret er a noção fugitiva senão relacio- m oniosas para os tecidos, para os fund o s de paisagen s, para a s
nando-a co m os obj ect o s animados qu e nos fizeram concebê-la. nuven s e o céu ; g os ta sobretudo de se d escobrir na profundidad e
As partes isol ad as de uma obra de arte e , para regressarmos ao das lonjuras a perder ele v ista. Os matizes ele lu z, as ilu sões da pers-
no sso tem a, as de um a tragédia em particular, devem então se r reu - pecti va , são os se us mei o s e a sua ma gia. A ss im , a arte dramá tica
nidas pel o es pírito e não pelo s se ntidos . Elas co ncorr em para um d o s antigos, e parti cul arm et e a tragédi a , an iq u ilava, co mo pura -
objectivo com um, o de produzir uma impressão ge ral sobre a nossa mente acidentais , as formas do espaço e do tempo, enquanto a po e-
alma. A unidade refere- se então , aq ui, co m o no s exemplos qu e j á sia romântica , variando-as se m cessar, as faz se rv ir à o rna me ntação
cit ám os, a uma esfera superior, qu er di zer, à do se ntimento ou à das do s se us qu ad ro s móvei s. E se se quiser, se m empregar imagens, fa-
ideias. Uma ou outra represent a o mesmo ne ste caso; porque o zer ressaltar o mesmo contraste, dir-se- á que a poesia antig a é ideal
sentiment o, se pelo menos não é a proxim ado das sensações se ndo e que a poesia mod erna é reli giosa. A primeira submet e o e spaço e
con siderad o de um a maneira puramente pa ssiva , o sentime nto. digo, o tempo ao impéri o da no ssa alma, e a o utra cons ag ra essas noçõ es
é o nosso órgão moral para atin g ir o in finito , qu e revest e dep ois no m isteriosas qu e se relacionam co m a part e m ai s el ev ad a de nós pr ó -
no sso es pírito a form a das ideia s. pri o s, e são tal vez uma revel ação da d ivin d ad e.
Estarei, então , muito longe de rej eitar a lei de um a perfe ita uni -
dad e co mo supé rflua na tragédia, e ex ijo uma unidad e muito ma is
profund a, ma is íntim a, mais ligad a à e ssênci a da s coi sas d o que
aquel a co m que se co ntentam a mai oria dos crítico s. Encontro mui-
tas vezes essa unidade de uma maneira tão completa nas obra s de (A . W . Schlegel , Co u rs de litt érot u re dramatique ; tr ud , de Mrne Ne c ker de Saussurc ,
Gen êve -Pa ris, Pasch o ud , 1814; l: tom o I . pp. 35 -40; 2: tom o 11 , pp . 89-90; 3: torno 11 . pp. 95 -
Shakesp eare e de Ca lde rón, co mo nas de Ésquilo e de S ófocl e s , - 100 ; 4: to mo 11, pp . 105-106; 5: tom o 11, pp. 124-125.)
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40 - CONSTA NT : ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A TRAGÉDIA Os Franceses têm uma ne cessidade de unidade que os faz se-
DE WALLSTEIN E SOBRE O TEATRO ALEMÃO E OUTRAS guir um outro caminho. Retiram aos caracteres tudo o que não serve
OBRAS (1809) para fazer salientar a paixão que querem pintar: suprimem da vida
anterior do seu herói tudo o que não se encadeia necessariamente no
Aberto pelo seu génio suíço à influência al emã , quase tanto facto que escolheram.
como à fran cesa , Benjamin Cons ta nt (176 7-1830), à sem elhança do; . O que é que Ra cine no s ensin a sobre Fedra? O se u amor por
outros membros do grupo de Co p pet , contribuiu para uma comuni- Hipólito, mas de modo nenhum o seu carácter pessoal independen-
cação da s literaturas europeias entre si . temente desse amor. O qu e é que o mesmo poet a nos faz conhecer
Em 1809 p ropunha uma a d ap tação para a es tr utura trágica de Orestes? O se u amor por Hermíone. Os furores de sse príncipe
fran cesa (cinco actos, alexandrinos , as unidades) da trilog ia histó- não vêm senão das crue ldades da sua amante . Vemo-lo a cada ins-
rica de Schiller, Wallenstein. As R eflexões que então publicou.foram tante pronto a ac almar- se , nas poucas vezes qu e Henníone lhe dá
retomadas e desenvolvidas eml Sl Z e especialmente em 1829, quando alguma esperança. Est e assassino da sua mã e par ece mesmo ter
incluídas na Miscelânea de Política e Literatura, à qual se seguiram, esquecido completamente o crime que cometeu. Está todo ocupado
no mesm o ano, na Revue ele Pari s , as «Reflexões sobre a Tra gédia». pela sua paixão: el e fala, depois do seu parricídio, da sua inocência
que lhe pesa, e se, logo que matou Pirro, é perseguido pelas fúrias, é
porque Racine en controu. na tradição mitológica, uma oportunidade
1. Paixões e individualidades para uma cena soberba, ma s qu e nada tem a ver co m o seu assunto
Os Franceses, mesmo naquelas das suas tra gédias que são fun - tal como o tratou.
dadas na tradição ou na história, não pintam mais que um facto ou Isto não é de modo nenhum uma crítica. Andrómaca é uma das
uma paixão. O s Al emães, nas s uas, pintam uma vid a int eira e um peças das mais perfeitas qu e existem em qu alquer po vo , e Racine ,
ca ráeter inteiro. tendo adoptado o s iste ma fran cês, teve que afas ta r do espírito do es-
Qu ando digo que pint am uma vicia inteira, não qu ero dizer qu e pectador, tanto quanto podi a , a recordação do assass íni o d e Clitem-
nas suas pe ças abarquem tod a a v ida do s se us heróis . M as não omi - nestra. Esta recordação era inconciliável com um am or se m e lhante
tem nenhum acontecimento importante; e a reunião do que se pas sa ao de Orestes por Hermíon e . Um filho , cobert o co m o sa ng ue da
em ce na, co m o que o es pec tador vai sabendo por narrativas ou por sua mãe, e não so nhando se não com a sua am ant e , teria produzido

alu sões, forma um quadro co mple to, de uma exactidão esc rupulosa. um efeito re voltante . Rac ine se n t iu- o , e para evi tar m ais segura-

O mesmo acontece com o carácter. Os Alemães não retiram do mente este escolho, supôs que Orestes só tinh a iclo a T áurida para,

caracte r das suas personagens nada cio que constitui a sua individua- pela morte, se libertar da sua paixão infeliz.

lidade . Apresentam-na-las co m as suas fraquezas, as suas inconse- O isolamento em qu e o sistema franc ês apresenta o facto que
qu ências e aquela mobilidade ond ulatória que pertence à natureza forma o assunto, e a paixão que é o móbil de cada tragédia, tem
humana e forma os sere s reai s. vantagens incontestávei s.
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Ao de spojar o facto escolhido de todos os factos anteriores, di - com arte, ma s qu e não faz em dele um ser di stinto, um se r indivi -
rige-se mai s facilmente o interesse sobre um objecto único. O herói dual. Ele tem ambi ção e , dado a sua ambição, crueldade e hipocri -
fica mai s na mão do poeta que se libertou do pa ssado; mas há aí sia. Ricardo Ill reúne aos seus vícios, que são de necessidade no seu
talvez também uma cor um pouco menos real , porque a arte nunca papel, muitas coi sas que só lhe podem pertencer a ele. O seu des-
pode complementar inteiramente a verdade, e que o espectador, contentamento contra a natureza que, ao dar-lhe uma figura horrível
mesmo quando ignora a-Iiberdade que o autor tomou, é informado, e di sforme, parece tê-lo condenado a nunca inspirar amor, os seus
por não sei que instinto, de que não se trata de uma personagem his - esforç os para vencer um obstáculo qu e o irrita, a su a coq ueteria
tórica, mas de um herói factfcio, uma criatura de invenção qu e lhe com as mulheres, o se u espanto por ter sucesso junto del as, o des-
apresentam . pr ezo que concebe pelos se res assim tão fáceis de sed uzir, a ironia
Ao pintar apenas uma paixao , em vez d e abarcar tod o um com a qual manifesta es se desprezo, tudo o torna num ser particular.
carácter individual, obt êm-se efeitos mais const antemente trágicos Polifonte é um gé ne ro, Ricardo III é um indivíduo.

porque o s caracteres individuais, se m p re misto s, prejudicam a


unidade da impressão. Mas a verdade talvez ainda se perca aqui. 2 . O número de personagen s
Perguntamo-nos o que se riam os herói s que vemos se não estives-
Ao limitar o número de personagens I, tinha renun ciado, sem
sem dominados pela paixão que os agita, e descobre-se que na sua
compensação, a uma outra vantagem qu e tivera Schiller. As perso-
existência restaria pou ca realidade . Por outro lad o , há bem meno s
nagen s suba ltern as , que nada têm a ver com o assunto , fornec em
variedade nas paixõe s adequadas à tragédia do qu e nos caract eres
aos al emães um gé nero d e e fe itos qu e nã o conhec emos de modo
individuais, tal como os cria a natureza . Os caracteres são inumerá-
nenhum no nosso teatro. Na s no ssas tra gédias tudo se pas sa ime-
veis. As paixões teatrai s são em pequeno número.
diatamente entre o s heróis e o público. Os confidentes são sempre
Sem dúvida, o admirável génio de Racine que triunfa de todos c uid ado samente sacrificados. Estão lá para e scutar, às vezes para
os entraves, coloca diversidade nessa mesma uniformidade. O ciúme re sponder, e de tempos a tempos para contar a morte do herói o
de Fedra não é o de Hermíone; e o amor de Herm íone não é o de qual, nesse ca so , não pode informar-nos e le próprio; mas não há
Roxana. No entanto, a di versidade parece-me exi stir mais ainda na nada de moral em toda a sua ex istênc ia: toda a reflexão , todo o jul-
paixão do que no caracter do indivíduo. gamento, tod o o di ál o go e ntre eles é se ve ra m e n te proibido. Seria
Há bem pouca diferença entre o s caractere s de Amenaida e contrário à subo rd inação teatral que el e s s us c itassem o mínimo in -
Alzira '. O de Polifonte adequa-se a quase todos o s tiranos postos no teresse . Nas tra gédias al emãs. independentemente do s heróis e dos
no sso teatro, enquanto o de Ricardo III de Shake sp eare não se ade- se us confidente s que, co mo acabamos de ve r, não são mais qu e
qua senão a Ricardo II I. Poli fonte só tem traços gerais exprimidos m áquinas cuja necessidade nos faz perdoar a inverosimilhan ça, há ,

Heroínas de Tan crc do e Alzira de Volt aire ; Polifonte é o «tira no» na sua M érope . , Há quarent a C o ito actorcs no Wa!!sleill alemão; não há mai s que doz e na imitaçã o
(N .F.) fra ncesa. (N A .)
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num segundo plano, uma segunda espécie de actores, de alguma fraqueza, funesta para a França e para ele próprio, falo do desejo de
maneira eles mesmos espectadores da acção principal que só exerce imitar Luís XIV como se não fosse rebaixar-se em vez de se elevar,
sobre eles uma influência muito indirecta. A impressão que produz era, nos letrados que aspiravam aos seus favores, uma complacência
sobre esta classe de personagens a situação das personagens princi- interessada e simultaneamente vaidosa; porque, obedecendo ao
pais pareceu-me muitas vezes acrescentar à que recebem os espec- novo Luís XIV, eles pensavam-se iguais aos grandes homens que
tadores propriamente ditos; a sua opinião é, por assim dizer, anteci- tinham incensado o anterior. Deste modo, as regras do teatro, como
pada e dirigida por um público intermediário, mais próximo do que a etiqueta da corte, pareciam parte obrigatória do cortejo imperial.
se passa, e não menos imparcial que eles.
Além disso, houve sempre, desde o início dos nossos proble-
Tal deveria ser mais ou menos, se não me engano, o efeito dos
mas, nos homens mais revolucionários na política, uma tendência
coros nas tragédias gregas. Estes coros faziam um julgamento sobre
para proclamar a sua ligação e o seu respeito pelas doutrinas roti-
os sentimentos e acções dos reis e dos heróis cujos crimes e misé-
neiras da literatura do século XVII e as regras recomendadas pelo
rias contemplavam. Estabelecia-se, através desse julgamento, uma
preceptor em título do Parnaso francês. Dir-se-ia que, mostrando-se,
correspondência moral entre a cena e a plateia, e esta última devia
nas suas obras, escrupulosos e dóceis, eles queriam expiar a vivaci-
encontrar algum prazer a ver descritas e definidas, numa linguagem
dade e a energia das suas outras opiniões, e provar que as suas dou-
harmoniosa, as emoções que experimentava.
trinas populares não contaminavam a pureza do seu gosto. Acredita-
vam reabilitar-se assim aos olhos do que se chamava ainda a boa
3. Teatro e política companhia, súcia pretensiosa e afectada, que prefere o esqueci-
Mais previdente ou mais ousado, eu teria escapado à maioria dos mento dos deveres ao das formas. A revolução tinha dispersado a
erros que acabei de indicar na minha própria obra. Deveria ter pres- anterior; mas Napoleão esforçava-se por criar uma nova, tanto mais
sentido que uma revolução política implicaria uma revolução literá- susceptível às conveniências sociais e teatrais quanto experimentava
ria, e que uma nação que só tinha renunciado momentaneamente à um ardor de neófito, e o sentimento de que corria o risco de tro-
liberdade para se precipitar em todos os acasos das conquistas, não peçar muitas vezes no terreno desconhecido em que o seu chefe a
se contentaria mais com emoções fracas e incompletas que pode- colocava.
riam bastar a espectadores enervados pelos deleites de uma vida Como consequência, todos os escritores do Império eram clás-
aprazível e de uma civilização requintada. sicos.
O que me enganou foi a espécie de imobilidade com que o re- O próprio Chcnier ', o mais belo talento da sua época, como
gime imperial tinha atacado todas as almas, e que tinha gravado, por autor dramático, Chénier que, jovem e arrastado pelo seu republica-
assim dizer, em todas as faces. A literatura partilhava dessa imobili- nismo, mesmo antes da queda da monarquia, tinha calcado aos pés,
dade. Bonaparte gostava da disciplina em todo o lado, na adminis-
tração, no exército, nos escritores, e a submissão destes últimos não
era nem a mais pronta nem a mais ansiosa. O que no chefe era uma I Marie-Joscph Chénicr (1764-1811), dramaturgo e irmão do poeta. (N.F.)
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em Carlos IX, as barreiras que o teriam embaraçado, tomara-se, no


Como consequência, todos os seus meios exteriores, por mais
fim da sua curta carreira, o partidário mais zeloso de todos os entra-
multiplicados que pareçam, não são senão acessórios. Mas em
ves legados por Aristóteles e consagrados por Boileau.
França, onde nunca se perde de vista o público, onde não se fala,
Estas barreiras foram agora derrubadas. A poesia conquistou a
nem se escreve, nem age senão para os outros, os acessórios pode-
sua liberdade. As dimensões do nosso teatro cresceram, e as regras
riam bem vir a tomar-se no essencial. (...)
que antes eram leis rigorosas, de acordo com as quais a crítica julgava
De resto, estes inconvenientes inevitáveis, na literatura como
os autores, não são mais que tradições das quais os autores são juízes.
na política, não serão de longa duração: por todo o lado onde existe
A vitória foi então alcançada; talvez momentaneamente demais
a liberdade, não tarda que a razão volte a imperar. Os espíritos esta-
para o interesse da arte.
cionários bem podem clamar que as inovações corrompem o gosto
Foi em França que inventaram a máxima de que é melhor bater
do público: o gosto do público não se corrompe; aprova o que está
com força do que acertadamente. Daqui resulta que os nossos escri-
tores batem muitas vezes com tanta força que já não acertam em na verdade e na natureza; rejeita o que falsifica a verdade, o que se
mais nada. afasta da natureza exagerando-a. As massas têm um instinto admi-
Têm por objectivo exclusivo fazer efeito, e quando, com razão, rável. Este instinto traçou já às nossas exigências políticas os limi-
se libertam de algumas regras, cometem frequentemente o erro de tes necessários para conciliar a ordem com a liberdade; este instinto
se afastarem da verdade, da natureza e do gosto. trabalha e tem êxito ao colocar a religião na esfera que lhe pertence,
Como é muito mais fácil criar efeitos pelos encontros fortuitos, entre a incredulidade e o fanatismo; esse mesmo instinto exercerá a
a multiplicidade dos actores, a mudança de lugares, e mesmo os es- sua influência sobre a literatura, e reprimirá os escritores sem os es-
pectros, os prodígios e os cadafalsos, do que pelas situações, os sen- trangular.
timentos, os caracteres, será de recear que os nossos jovens autores, ( ... )
lançando-se por esse caminho com demasiada fogos idade, não nos Estas observações são o complemento da teoria que estabeleci,
venham a mostrar no nosso teatro mais que cadafalsos, combates, há vinte anos, no prefácio a Wallstein. Anunciava nesse prefácio a
festas, aparições e uma sucessão de decorações deslumbrantes. abolição das regras que então incomodavam os nossos poetas dra-
Existe no carácter dos alemães uma fidelidade, uma candura, máticos, e preparavam a queda da tragédia em França; porque acon-
um escrúpulo que retém sempre a imaginação adentro de certos tece com as artes o que acontece com as nações: quando as condenam
limites. Os seus escritores têm uma consciência literária que lhes dá a ficar estacionárias, a decadência é inevitável. A imobilidade em
quase tanto a necessidade da exactidão histórica, como da verosimi- todas as coisas é contra a natureza. Exprimia-me no entanto com
lhança moral, quanto dos aplausos do público. Têm no coração uma discrição e reserva, no texto que me permito recordar.
sensibilidade natural e profunda, que se compraz na pintura dos ( ... )
sentimentos verdadeiros; encontram aí um tal deleite que se preo- Apesar da sua delicadeza, as minhas observações deixaram tra-
cupam muito mais com o que sentem do que com o efeito que pro- ços. Posso afirmá-lo sem demasiada presunção, dado que são cita-
duzem.
das, mesmo hoje, para me contradizerem. Escritores, que me ultra-
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passavam pelo talento e pelo interesse que tinham por uma causa
4 . A dimensão soci a l
que eu tinha defendido, porque era boa, mas à qual não podia dedi-
car uma paixão tão viva, completaram os meus esboços e desenvol- Trê s coisas podem servir de base às co rnpos içoes trágic as , a
veram os meus resumos. Uma mulher I, a mais distinta de todas as pintura da s paixões, o de senvolvimento dos caracteres, e a acção da
mulh ere s, fazendo um uso maravilhoso do que sabia, e adivinhando sociedade , tal como é constituída em cada época, e tal como age
não menos maravilhosamente o que não sabia, levou até França, sobre o caracter .e so bre as pai xõe s.
Fedra, Andr ámaca, M érope , são tragédias em que a paixão
pela sua obra sobre a Alemanha, luzes desconhecidas e ine speradas.
reina soz inha. Não há qualquer individualidade na s personagens.
Dá-se a revolução teatral. Contestam -na porque ela e stá no seu
Não se sabe minimamente o qu e seria Fedra sem a sua paixão in-
prim eiro período, a anarquia: mas esta anarquia é uma tran sição
ce stuosa, Andrómaca e Mérope sem o seu amo r maternal , e o que
nece ssária entre o passado que se e svai e o futuro qu e chega. Ela dá
parece individual em Orestes co m põe -s e mai s de remini scências
aos inimigos de sta revolução uma vantagem aparente . Eles mos-
mitológicas do que de traços pertencendo a um caracter. Estas per-
tram -no s as tentativa s bizarras e monstruosa s qu e se faz em todos os
sonage ns , de alguma maneira , não são mais que a paix ão personifi-
dias, e perguntam-nos se valia a pena ter derrubado as regras para cada. Tirai a paixão e nada restaria.
serm os atirados para um tal caos . O que é que isso prova? O qu e se Em várias tragédias de Sh akespeare, e nas melhores, Ricardo
faz é muitas vezes mau . Tem que se r. A ge raç ão que um instinto Ill, Hamlet, é o carácter qu e domina. A paixão de stina-se apenas a
muito seguro agrupa sob o novo es ta nda rte, divide- se em duas mostrar como se agita sob o impéri o do caráct er, como pode modi-
porções desiguais. Uma compõe-se daquel es a quem as regras en- ficá-l o passa geiramente, com a cond ição de o ver rapidam ente rea -
travariam o g énio , porque o têm; é o pequeno número: este pequeno parecer. Acontece o me smo em muitas peças alemãs, em Wa//stein ,
número por vezes perd e-se na s ua liberdade. A outra porção com- Egm ont, Guilh erme Tell , o Tasso , embora, nesta última , a acção da
preende aqueles que se desculpam com as regras porque lhes falta o sociedade, a pressão dolorosa que ela exerce sobre as almas irritá-
gé nio : é necessariamente a maioria. Escrava o u liberta, não fará veis , se façam já sentir. Poder-se-ia também ver o génnen de uma
nada de bom. Mas dai a liberdade , e o gé nio am adurecerá. Já vejo a trag édia de caracter nalgumas das de Voltaire, e me smo numa é poca
sua aurora em Clara CaZl/I, em As Barricadas , em A lnsurre.ç ão , meno s próxima de nós, no Britanico , Adivinha-se o que seria Maomé,
em Os Estados de Blois -. A revolução literária es tá então decidida: independentemente do se u amor por Palmira, Orosmano quando os
concretiza-se . Mesmo aquel es que a combatem submetem-se-lhe . encantos de Zaíra tivessem deixado de o inflamar, e pode-se discer -
nir o jovem tirano em Nero . irritado pelos seus des ejos por J únia.
Eles ilude m as regras que defendem ; torturam -nas para lhe s escapar.
Quanto às tragédias qu e seriam fund adas na acç ão da soc ie-
dade em luta com o hom em , opondo obstáculos. não apenas às suas
paixões, ma s à s ua natureza, ou qu ebrando não ap ena s o se u car ác-
ter, as suas inclinações pessoais, mas os movimentos qu e são ine-
I Mad am e de S tac l co m D a Alrntanha, (N .F.)
rentes a todo o ser humano , não c o nheço nenhuma que preench a
2 Ob ras dram ática s recentes de Prosp cr M érim ée e de Lou is Vite t, (N .F.)
completame nte a ideia que delas concebo.
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27H

É evidente que e sta acção da sociedade é o que há de mai s


Sem dúvida, falando com propriedade, mesmo nas composições
importante na vida humana . É d ela que tudo parte ; é nela que tudo
dramát icas destinadas à pintura das paixões ou ao desenvolvimento
termina; é a es te preliminar, não consentido, desconhecido, que é
do s caracteres, a acção da soc iedade ocupa sempre urna grande parte.
pr eciso s ubm eter-se so b pena de se r-se quebrado. Est a acção da so -
O que é com efeito uma composição dramática ? É o quadro da
ci edade decide o modo com o a força moral do homem se agita e se
força moral do homem combatendo um obstáculo. Pode dar-se a
ex ibe. Como consequên cia, o que Diderot di z I, num se ntido muito
essa força moral diverso s nomes, segundo a causa que a põe em
re strito e unicamente aplicável à comédia, sobre as diversa s condi-
movimento. Assim , c ha ma m -lhe sucess iva m e n te a mo r, ambição ,
ções, deve dizer-se , co m muito mais verdade , sob re a acç ão da so-
vingança, patriotismo, religião , virtude; mas é sempre a força inte-
ci edade , tomada no se u c o nj un to; a paixão e o c a rác te r são aces-
rior lutando contra um obstáculo ext erior. Da mesma maneira no-
só rios : a acção da sociedade é o principal.
mear-se-á diversamente o obstá culo ao qual esta força moral tenta
Isto não é de modo algum uma simples mudança de redacç ão,
re sistir; esse obstáculo poderá ser designado pelo nome de despo-
uma dessas subtilezas de pal avras, com a ajuda d as quais se rejuve-
tismo, opressão religiosa, leis, instituições, preconceitos, costumes:
nescem as ideias feitas ; é um princípio que, no futuro, influenciará
pouco importa, no fundo é sempre a sociedade a pesar sobre o ho-
se m p re cada vez mais essencialmente os êxitos dramáticos.
mem e carregando-o de cadeia s.
Se escolheis um estad o da sociedade no qual a espécie humana
Todavia, os autores trági cos parecem-me até agora não ter con-
n ão possa absolutam ente nunca encontrar-se , uma acção da so-
siderado essa acção da soc iedade senão como um enquadramento ,
c ieda de que ela não po ssa, daí em diante, em caso a lg um, exercer
como um acessório, e ter-se voluntariamente desviado dele para se
so b re o indi víduo, o talent o que dedicais a pintar a força moral a
preocuparem apenas co m as paixões e os caracteres.
lutar contra esse estado o u essa ac ção da soc ie d ade se rvir-v os-á
( ...)
d e pouco. Belas pa ssagens obterão aplau sos parci ai s, uma poesia
Regressemos ao terceiro impulso trágico, que não foi se nã o
harmoniosa ou su b lime c a t iv a rá momentaneamente o s ouvidos
supe rfic ialmente experimentado, a acção da sociedade sobre as pai-
se d uz id o s; mas não terá nada de durável na s emoç ões , porque não
xõ es e os caracteres.
terei s colocado o homem e m nenhuma das situações e m qu e a ordem
A ssim que o homem , fra co , ce go, se m inteli gência para se
social o coloca, e qu e e le tenha a temer ou a d esej a r.
guiar, se m armas para se defender, é, contra sua vontade e se m o
Não é para di zer qu e sej a preciso limitar-se à pintura da so cie-
se u av al , atirado para e st e labirinto que se c h a m a mundo , este
dade contemporânea . O pr óprio da art e é transportar o homem para
mundo cerca-o de um co nj unto de circunstâncias, de lei s, de insti-
s ituações em qu e e le nã o es tá. Mas ainda é preci so que essa s situa-
tui ções, de relações públicas e privadas. Este conjunto impõe-lhe
ções se relacionem de qu alquer maneira com aquel as em que ele se
um jugo que ignora, que não aceitou, que pesa sobre ele como um
pe so preexistente, e contra () qual, quando aprende a conhecê-lo e
começa a sentir-lhe o fard o, não lhe é permitido combater senão I A reflexão de Co nstant parte de urna passagem de Did e rot em So b re a Poesia Dra -

m átu:a (ver o nosso 26, 3, p. 1( 3). (N .F.)


com uma desigualdade notável e grandes perigos.
280 2 Rl

pode encon trar. Corneill e, por exemplo, não pintava precisamente o da ordem social sobre todos, que e le o vê, com mais emoçã o , aca-
estado da sociedade no momento em que escrevia; mas o republica - brunhar com o seu peso a personagem pela qual é instado a interes-
nismo e os pro ble rnas de Roma não eram completamente estranhos sar-se.
ao estado socia l que tinha substituído a Liga, e que se tinha perpe- ( ...)
tuado sob a Fronda. Mas se a tragédia deve renunciar às unidades de tempo e lugar,
( ...) '.
dev e ligar-se tanto mais à cor local. A cor lo cal é o que caracteriza
Tom ando a acção da sociedade s obre o homem como a mola essencialmente o estado da soc iedade que as compos içõe s dramá-
principal , a tragédia deve renunciar às unidades de tempo e lugar. tica s têm por objectivo pintar. A cor local tem um encanto e um in-
A pintura da paixão é compatível com essas unidades. A paixão é teresse particulare s. Este encant o , antigamen te, não era se ntid o . O s
rápida, e ao colocá-Ia, desde a exposição, no se u ap ogeu , é possív el aut ores sus peitava m de ste interesse. Corneille não oferece mais do
precipitar os acontecimento s, de maneira a que a catástrofe se dê, que alguns tra ços ap enas em Horáci os , N icomedes e Ci na . Segura-
sem demasiada inverosimilhança, num espaço de vinte pés quadra- ment e que não há co r local no se u Édipo, em que Filoctete s compara
dos e numa duração de vinte e quatro horas. os males da ausên cia aos da peste. O que faz o mérito do Cid é a na-
O carácter já é menos conciliável com uma duração tão restrita tureza nas suas emoções pro funda s e nobres, é o filho sa crificando o
e uma aren a tão apertada. O grande mérito das obras dramáticas qu e seu amor pela honra de seu pai; não é de m od o algum a co r local.
repou sam na descrição dos caract eres, é a verdade, a exactidão , a As fanfarronadas do herói castelhano são um gé nero fal so, de pura
gradação. Mostrei acima que a individualidade do carác ter pode se r co nvenção, de exal taç ão art ifici al, cuj a crítica j á a parece ra antes no
estranha à ac ção propriamente dita, e mesmo por vezes ag ir em se n- D om Quixote , e cuj a paródia surg iu depois em Gaston e Bayard'.
tido contrário a essa acção. O gé nio de Racine tinha ad ivinhado a nece ssidade d a co r local.
( ...) Al gumas passagens de Fed ra, alg um as partes de Britan ico , cenas
Se as unidades de tempo e de lugar falsifi cam a tragédia fun- int eir as de Atalia, indicam-no. Mas havia Luís XIV e a s ua corte, e
dada sobre o desenvolvimento do s caracteres, el as são ainda m ais as alusões e as lisonjas. Toda a verdade d esaparecia sob esta ca-
destrutivas da tragédia fundada so b re a pressão da ordem s ocial , mada forç ada e fac tíc ia. Qu ant o a Volt aire, felizes em p rés tim os to-
oferecida no se u conjunto. É evidente qu e para qu e este conjunto se mad os de S ófo cl e s, no se u Édipo, al gum a s pal avras republicanas
exiba na totalidade são indispensáveis um tempo bastante lo ngo e e m Bruto e Ca tilina , e a representação bast ant e fiel do car ác te r de
lugares bastante variados. O autor tem me smo muitas vezes necessi - Cícero. de rest o ba stante fác il de pintar porque é um caract er pr ati -
dade de personagens sec undárias . O e sp ectador deve sa ber qual é o came nte moderno , dão a es tas trê s pe ças tonal idades de época e do
estado da soc iedade em si mesma independentemente do herói; por- país. Em todas as o utras, no mei o da s rique zas inconte st ávei s de um
que ela não pesa nada sobre esse herói só, mas sobre tudo o qu e o talent o imortal, só se encontra a França e o séc ulo dezoito. Quanto
cerca, tud o o que coexi ste com ele. É quando o auditório é pene-
trado por esta impressão, por assim dizer, abstracta, e do domínio I Tragédia pat rió tica e m uito sé ria de De Be llo y, 177 0 . (N .F .)
282 283

aos imitadores da escola vo1tairiana, não existe neles vestígios de estas diferenças naturais acrescentam-se as opiniões sistemáticas cuja
cor local. Os seus heróis , bem disciplinados, bem sentimentais, ou causa importa conhecer. O que anteriormente di sse sobre a poesia
bem maquiavélicos, ou bem filó sofos, matam-se, porque devem cl ássica e romântica aplica-se também às peças de teatro. As tragé-
fazê-lo , como Romanos ou como Gregos , mas pensam e falam dias extraídas da mitologia são de uma natureza muito diferente das
como Franceses muito bem educados. A cor local é, no entanto, a tragédias históricas. Sendo os as suntos retirados das fábulas tão
base de toda a verdade; sem ela, nada terá êxito no futuro . conhecidos, e o interesse que inspiram tão universal, bastava indicá-
-los para tocar de avanço a im aginação. O que há de eminentemente
(Benj ami n Constam, I: w at tsu-in, G enev c -Pari s, Pasch ou d, IR09. pp . xxxv i-xl; 2: M élanges
po ético nas tragédias gregas, a int ervenção do s deuses e a acção da
de Politiqu e e/ de Litt éra turc , IR29 . « De la Gu erre de Trent e An x. De la tra g édie de Wall stcin
par Schiller , et du th éâtre allcm and» ; 3: lbid. , e «Ré llexions sur la trag édie », Reme de Paris. fatalidade, torna o seu avanço muito mais fácil; a minúcia dos moti-
tomo VIII . 1829; 4 : Ibid. Veja-se também pa ra os três últimos te xtos . Benjamin Co ns tant, vo s, o desenvolvimento dos caracteres, a diversidade dos facto s, tor-
Oe uvrcs; A lfred Roulin (ed.), Pari s. Ga llim ard, 1957 .)
nam-se menos necessários quando o acontecimento é explicado por
uma potência sobrenatu ra l; o milagre abrevia tudo. Também a ac ção
da tragédia, no s Gregos, é de uma s im plicidade espantosa; a maioria
do s acontecimentos estão pr evistos e são mesmo anunciados desde
41 - MADAME DE STA EL : DA ALEMANHA ( 18 13) o início: é uma cerimónia religiosa a tragédia g rega. O espect áculo
er a dad o em honra dos deuses, e os hinos, interrompidos pelos diá -
Suíça, filha do banqueiro e ministro Necker. Madame de Staêl logos e narrativas, tão depre ssa pintavam os deu ses clementes como
(1766-1817) co nheceu primeiro o mundo literário e filosófico pari- os deuses terríveis, mas sempre o destino planava sobre a vida do
sie nse no salão da sua mãe , depois , v árias l'e.:es ex ilada de Fran ça , homem . Assim que e stes mesmo s assuntos foram transportados
viaj a p ela Europa e f az longas es tadas. ce rca da de um grupo d e para o teatro francês, os no ssos grandes poetas deram-lhes mais va-
amigos liberais vindos de v ários países, em Coppet, na Suíça . riedade; multiplicaram os incidentes, aproveitaram as surpres as, e
R omancista e en saista , foi alvo da ce nsura napole ánica: é as- cerraram o nó . Era de facto preciso substituir de alguma maneira o
sim que Da Alemanha. que deveria divulgar a Lit eratura e a [ile -so - int eresse naci on al e reli gioso que os Gregos tinham por essas peças
fia alemãs junto dos fran ce se s da Rcstauroçà,», publicado em 1810 e que nó s não expe rim e nt áva m os; todavia, não contentes com o ani -
em Paris, foi de struído, só send o reeditado em 1813 em Londres, e mar das peças gregas, cmpre stámos às personagens os nossos co stu-
em 1814 em França . mes e sentimentos, a política e a galanteria modernas, e é por isso
qu e um tão grande número de e strangeiros não ente nde a admiração
qu e as no ssas obras de arte nos inspiram . Com efeito, quando as ou-
Relatividade da s drama/urgias
vimos numa outra lín gua, quando são despojadas da beleza mágica
A diferença entre o teatro francês e o teatro alemão pode expli- do estilo, ficamos surpreendidos pela pou ca emoção que produzem
car-se pela diferença de c ar ác te r entre es tas duas na ções; mas a e pelas inconveniências que aí en contramos, porque o que não está
2X'i
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de acordo nem com os tempos, nem com os costumes nacionais das qu e acarreta uma ordem social mai s com p licada, as delicadezas de
personagens que se representam, não será também uma in conve- sentimento que inspira uma religião mais terna, enfim , a verdade
niência? e o ridículo não estará naquilo qu e não se no s assemelha? dos costumes qu e se deve respeitar nos qu adros mai s próximos de
As peças cujos temas são gregos não perdem nada co m a sevc- nós, exigem um a grande latitude na s composições dramáticas.
ridade das no ssas regras dramáticas; mas se queremos e xper im e ntar, ( ...)
como os Ingleses, o prazer de ter um teatro histórico , de se r interes- Os Franceses consideram a unidade de tempo e de lugar como
sados pelas no ssas recordações, comovidos pela no ssa rei igião , uma condição indispensável para a ilusão teatral ; os estrangeiros fa-

como seria pos sível conformarmo -nos rigorosamente, por um lado , zem consistir esta ilu são na pintura dos caracte res, na verdade da
linguagem e na exacta observação dos costumes do tempo e do pa ís
com as três unidades, e por outro, com o género de pompa de que se
qu e se quer pintar. É preciso entender-se relativamente à palavra ilu-
fez lei nas nossas tragédias?
sã o nas artes: dado que consentimos e m acreditar que actores se pa-
É uma qu estão tão debatida a das três unidades, qu e qu ase não
rado s de nós por al gumas tábuas são herói s gregos mortos h á três
ousamos volt ar a falar dela; mas destas trê s unidades apenas uma é
mil anos, é bem certo que aquilo a que chamamos ilusão não é ima-
importante, a de ac ção, e nunca se podem considerar as outras se-
ginar que o que vemos existe realmente; uma tragédia não nos pode
não como sendo-lhe subordinadas . Ora, se a verdade da acção perde
parec er ve rdade ira se nã o pela emoção qu e nos causa. Ora, se pela
pela necessidade pu eril de não mudar de lugar e de se limitar a vinte
natureza das circunst âncias representadas, a mudança de lu gar c o
e quatro horas, impor es sa necessidade é subme te r o bc énio dramá-
pr olongamento s upos to do tempo acrescentam essa em oção , a ilu-
tico a um constrangimento idênti co ao dos acr ósticos, constrangi-
sã o torna-se mais viva.
mento que sacrifica o fundo da arte à sua forma.
Voltaire é aquele dos nosso s grandes poetas trá gicos qu e mais r
(Madame de Staél, D e A llemagnc. Lo ndres , Murra y, IR13. Seg unda pan e. «La Liuér aturc e t les
A .1 S» , cap o XV , « De I' Art d ra ma tique ». Veja-se também Madarne de Sta él, De t'Atlema gn«.
vezes tratou assuntos mod ernos. Serviu-se, para comov er, d o c ris-
Si mo ne Balayé (cd .) . G am ic r-Flam ma rio n, 196B.)
tiani sm o e da cavalaria, e se estivermos de boa fé, concordar-se-á,
parece-me, qu e Alzira e Za íra e Tancredo fazem chorar mais lágri -
mas qu e todas as obras-primas g reg as e romanas do nosso teat ro .
Dubelloy, com um talento bem su ba lte rn o, conseguiu portanto che-
gar a acordar recordações france sa s sobre a cena fran cesa; e e m bo ra 42 _ MANZONI: C ARTA AO SR . C . SOBRE A UNIDADE D E
não soubesse escreve r, sentimos, co m as suas peças, um int eresse TEMPO E DE LUGAR NA TRAGÉDIA (1823)
seme lhante àquele que os Gregos deviam experime ntar quando v iam
representar d iante de si os facto s da sua história. Qu e partido não Alessandro Man zoni (1785 -1875 J é mais conhecido co mo poeta
pode tirar de sta di sp osição o g énio ? E no entanto quase não ex iste m (' sobrctlldo co mo roman cista do qu e como dramaturgo . No entanto ,
acontecimentos que datem ela nos sa era c uj a ac ção possa decorrer, as suas duas tragédias, O Conde de Cannagnola (l820 J e Adelchi
ou num me smo dia, ou num mesmo lu gar; a di versidade dos factos ( 1822 J, dramas históricos c líri cos , des empenharam 1/111 papel no
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romantism o europeu, susc itando come ntá rios elogiosos de Gtethe, mod o alg u m particul ar ao siste ma da tra gédia qu e ch am o de hi stó-
por exemp lo , e fo ram tradu zidos em Fran ça em 1823 . rica : é um a condição ge ral do poema dramáti co, igualmente adap-
É na altura desta tradução que Man zoni resp ondeu às críticas tad a pelo s iste ma das du as unid ades . Tanto num co mo no ou tro ,
de um jornalista conser vador parisiense, Cha uve t, co m a Carta ao apresenta-se à v ista um certo número de ac ontecimentos , indicam-
Sr. c., cuja primeira edição apareceu assim em fran cês. As ideias -se al guns outros, e faz- se ab stracção de tudo o que, se ndo estranho à
da M an zoni, como as de E rm ês Visco nti, outro romântico milan ês , acção, aí se encontra misturad o por c ircuns tânc ias fortuitas da con -
iriam enco ntra r-se no m esmo ano 1/ 0 Racine e Shakespeare de tempo raneidade . A es te resp eito, a d ifer en ça entre os d oi s siste mas
St endhal, que regressava de Itália. não é se não do mais ou menos. Naquele que c hamo de hi stórico , o
poeta fia -se plenament e na capacida de, na tendênc ia qu e tem natu -
ralmente o nosso es pí rito p ara a prox ima r os fact o s espalha dos no
1. O sistema histórico
es paço, de sde que pos sa aperce be r entre eles uma ra z ão que os una,
Queira ob servar antes de tudo , Senhor, q ue, no s iste ma que e a at ravessar rapidamente tempo s e lu gares de al guma m an eira va-
rejeita du as unidades, e qu e , para abrevi ar, c hamare i de agora em zi o s para e le , para chegar das causas aos efeitos. N o si stema da s
diante o siste ma hi stóri co , neste s istema, di go , o poeta não se impõe du as unidad es, o poeta tam bém faz igu ais ex igê ncias de concessões
de modo a lgum a obrigação de cri ar a se u bel -praze r lon go s interva- à im aginaç ão do es pec tador, dado que qu er qu e ela d ê a três hor as o
los de tempo e de lugar: ele incl ui-os na própria acção, tal como lhe c urso fictício de vinte e quatro. Apenas, ele supõe qu e el a não se
são d ados pel a realidad e . Porque, se um a acção hi st órica es tá tão pod e pre st ar a nada mai s, e que , qualquer relação qu e ex is ta e ntre os
e ntrecortada, tão fragmentada por tod a a parte , que não admite a doi s factos, lh e vai cus ta r um esforço desagr adável e peno so par a os
unidade dram ática, se os factos estão espa lhados por uma distância co ncebe r n o seguime nto um do o utro, se há de um a outro um inter-
demasiado grande, e demasiado fra camente lig ad o s entre si, o po eta va lo de doi s ou três di as e de m ai s de um a ce nte na de passos.
co nc lui qu e es ta acção não é apro priada para se tornar tema de um a
tragédia, e abandona- a.
2 . As regras levam ao rom anesco
Pe rm iti-me que vos d iga d epoi s que é bem d a essê nc ia do
dram a hi stóri co supor entre o s ac tos int e rval o s de tempo mai s ou Vimo s Corneille pedir autorizaç ão para faze r andar os aconte-
men os lon go s, mas não inte rva los preen chidos co m aconteci me ntos cimentos m ais depressa do qu e a verosi m ilha nça o perm itia, qu e r
nume ro sos e imp ortant es relati vamente à acção. Pel o contrário, é a dizer, m ai s depressa qu e na realidad e. Ora esses acontec ime ntos qu e
porção de tempo e de es paço que se podem transpor, elim inar ou a tra gédi a rep resenta, são o resultado de quê? da von ta de de al guns
reduzi r, co mo indi ferente à acção, e sem fe rir a ve rda de dram áti ca. homen s, mov ido s por ce rtas p aixões. Foi então preci so fa zer nascer
P od e-se também, ou deve- se mesm o muitas vezes rej eitar nos essa vo nta de mai s depressa exagera ndo as pai xõe s , des na tur ando-
entreactos algu ns factos rel at ivo s à acçã o, e dar conhec imento d isso -as. Para qu e um a per son agem, e m vinte e q uatro ho ras , cheg ue a
ao es pecta d or pel a na rr ati va d as person agens ; m a s tal não é de toma r uma resolução deci siva , é abso luta me nte nece ssá rio um o utro
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grau de paixão diferente daquel e co ntra o qual se debat eu durante es tra nhos; e ve mos person agen s gra ve s regular-se, nas suas determi-
um mês, Assim, a es ta grada ção tã o interessante pela qu al a alma nações, por m á ximas e op in iões que nunca p assaram pel a cabe ça de
atinge o extremo, por assim di zer, dos se us sentimentos , foi preciso ningu ém.
renunciar-lhe em parte; tod a a pintura destas pai xões que tomam Porque se, não q ue rendo ace lera r o s ac ontec ime ntos co n hec i-
um pouco de tempo para se m ""';"-~'<UÇIll , lUI pn::c ls u nc~ligen . dos, preferimos subs titu í-los por al guns de pura inven ção , so bre tudo
c i á-la. p,,--- ."<luzes de caráct er qu e n ão Se deixam perceber se não par a ating ir o desenlace , ficam os mai s ou men os co m os m esmos
pela sucessão das circunstânci as se m pre diversas e se m pre ligadas ,
inc onve nientes . Com efeito, desd e que nos propom os fazer agir, em
foi preci so suprim i-los ou confund i-los. Foi indispensável recorrer a
pou cas horas e num lu gar muito ape rtad o, causas qu e ope ram uma
paixões excessivas, a pai xões bast ante fortes para a tingi r brusca-
g ra nde resolução e com pleta, na situaç ão o u na alma das persona-
mente as deci sõe s mais viol enta s. O s poetas trág ic o s fora m, de
ge ns, é preci so com tod a a necess idade dar a essas cau sa s uma força
alguma maneira, reduzid os a não pintar mais qu e esse pequeno nú-
que não teriam tido as ca usas reai s; porque , se e las a tivessem tido,
me ro de paixões decisivas e dom inantes, que figur am nas cl assifica-
não teriam sido afastadas para inventar outras. São preci so s choques
ções ideais dos pedantes da moral. Todas as anomali as dessas pai-
rudes, paixões terrívei s, e determinações bem precipitadas, para que
xões, as suas variedades ínfim as, as suas combinações si ngulare s
a catástrofe de uma acção rebe nte em vinte e qu atro horas no má-
qu e, na realidade das coi sas human as , constituem os caracte res indi-
vidu ais, encontraram- se excluídas à força de um a ce na em qu e se ximo após o seu início . É imp ossível que as person agen s a que se
tratava de bater bruscam ente e con tra todos os ris cos com golpes prescreve tanto arrebat am ento e impetuosidade não se enc o ntre m
fortes . Este fund o natural da na ture za humana, sobre o qu al se dese - entre si envo lv id as e m rel ações ex ageradas e fac tícias.
nham , po r assim d izer, os indiv íd uos humanos, não hou ve nem o
(Alexandre Manzoni , L I' C o m te de Ca rma g no la , ct Adclghis. trad . de M.-C . Fa uric l, 80S'
tempo nem o lugar de os exibir; e o teatro encheu -se de personagens sange, 1823, I : pp . 378 · 3RO: 2: pp. 44 8-450.)
fict ícias qu e aí figuraram corno tipo s ab stractos de alg umas pai xões ,
mai s do qu e como seres apaixon ad os. Assim, tivemos a lego rias do
amo r ou da ambição , por exem plo, mais do qu e am antes o u am bi-
cio sos. Daí esse ex agero, esse tom co nvenc ional, essa uni form id ad e
dos ca rac teres trági cos, que co ns ti tue m propriamente o roma nesco . 4 3 - STEN D HA L: R AClN E E SH AKESPEAR E (1823)
Também acontece muitas vezes, q ua nd o se assiste às represen taçõ es
trágicas, e qu e co m paramos o q ue temos debaixo do s o lhos, o qu e Qua ndo Stendhal ( /783- /842) começa a escre ver Rac in e e
o uvi mos , Com o que conhece mos dos homens e do homem, ficar- Shakcspeare, estava alimentado por co nve rsas milan esa s e leituras
mos muito surpreendidos de ve r uma outra generosidade , um a outra ing lesas (a Edin bui g h Revi ew , Johnson so bre Shakespe are , etc.) ;
pied ad e, uma outra pol ítica, lima outra cólera diferentes das que estava , sobretudo , es candalizado com as manifestaçõ es hostis que
tem os ideia ou experiência. Ouvimos fazer, e fazer de uma maneira tinham acolhido um a companhia inglesa que f ora representar Sha-
séria, raciocínios que na vida real não deixaríamos de achar muito kesp eare a Paris em 1822.
290 291

Aprimeira v enCIO d e R ac irrc e Sh~" ,'vcurc é f vi tn {' 11I grande Está claro que, m esmo e m Paris, mesmo no teatro fran cês da
parte de dois artigos escritos nesse mom ento. A segunda, editada ru a de R íc h e l.e u, a imaginaç ão do espectador presta-se com facili-
em 1825, arran ca a partir da qu ere/a que se de senvolvia ent ão entre dade às su pos ições do po eta. Natura lmente, o espectador não d á ne-
românticos e clássicos franc eses. A posição de St endhal, «roma n- nhuma atenção aos intervalos de tempo de que o poeta tem ne cessi-
ticista » segundo o termo italiano . e não «româ ntico » como os ad- dade , da m e sma maneira que na e scultura n ão se lembrari a de
. miradores dos alemães. situa-o muito clarament e à /71G1x em do /71 0- cens ura r Dupat y ou Bo s io I porque às suas fi guras falta o movi -
vimento dos «grandes românti cos», Hugo , Lamartin e o u Vigny. m ento. E stá aq u i uma das e n fe rm idade s d a a r te . a espe c tado r,
quando não é um pedante , preocupa-se uni camente com os fact os e
os de sen volvimentos das paixões que lhe põem debaixo dos olhos.
1 - Os instant es de ilusão p erfeita
Acontece preci samente a me sma coisa na ca beça do parisien se que
O R üMÂNTICO aplaude Ifig énia em ÁuJide, e na do escocês que adm ira a história
do s se us a ntigos rei s, Ma cbeth e Duncan. A úni ca di ferença é que o
Tentai afa star por um momento o véu atirado por hábito sobre
pari siense , filho de boa casa, a pa nho u o háb ito de troçar d o outro.
ac ções qu e oc orrem tão depressa , qu e qu ase perdestes o poder de
as segu ir com o olhar e vê-Ias acontecer . Ent endamo-nos sobre es ta
a ACA DÉM tCO
palavra ilusão. Qu and o dizem que na imaginação do es pec tador se
afig ura que se passa o tempo neces sário pa ra o s acontecimentos Q ue r di zer que , se gundo vós , a ilusão te atral seria a mesm a

representados em ce na, nã o se entende qu e a ilu são do es pec tador para os do is?

ch egue ao ponto de acreditar que todo esse tempo d ec orreu real-


mente. O fact o é qu e o es pec tad o r, arrastado pela a cção, nãc é
a R O M ÂNTt CO

chocado com nad a; não pen sa minimamente no tempo decorrido. Ter ilusões, es tar na ilu são, signi fica enganar-se, segundo diz o
O vosso espectador pari siense vê às se te horas e m ponto Agamém- d icionári o da Ac adem ia . Uma ilu são , diz o S r. G u izot, é o efeito de
non ac ordar A rcas; é testemunha da chegada de Ifigéni a; vê -a se r lima co isa Oll de um a ideia que nos ludibria com uma a p arê nc ia e n-
conduz ida ao altar, onde a espera o jesuítico Calcas; saberia bem ganadora. Ilu são sign ifica poi s a acção de um homem que acredita
re sponder, se lhe perguntassem , que for am preci sa s várias horas na coisa que não é. como no s so nhos, por exem p lo . A ilu são teatral
para todos estes aconteciment o s. No e ntanto, se, durante a di sputa será a ac ção de um homem qu e acredita co mo sendo verdadeira-
de Aquil es com Agam émnon, o lha r pa ra o rel ógio. ele di z-lh e : oit o mente ex iste ntes as co isas qu e se pa ssam em cen a .
ho ra s e um qu arto . Qu al é o es pec tador que se es panta com isso? No ano pa ssad o (Agos to d e I X22), o so ld ad o que estava de
E no entanto a peç a qu e ele aplaudiu durou j á vá rias horas. se ntine la no interior d o teatro d e Baltimore , ve ndo ateio qu e , no
É que me smo o vosso es pec tado r pari siense es tá acostumado a q uint o ac to da Iragédi a co m esse nome , ia m at ar D esd émona.
ver o tempo passar, de um pas so diferente, sobre a cena c na sala.
Eis um facto qu e não me poderei s negar. I Esc ultores co ntempor âneo s. (N .F .)
292 293

.....,1 ....-.-.." «Nunca so dirá quo na tninh~ pre,;ença


um negro maldito a ACADÉMICO
terá morto uma mulher branca.» No mesmo momento o soldado da
Quem pensa em negar isso?
o tiro com a sua espingarda e parte um braço ao actor que fazia de
ateio. Não se passa um ano sem que os jornais relatem factos seme-
lhantes. Pois bem! este soldado tinha a ilusão, acreditava ser verda-
a ROMÂNTICO
deira a acção que se passava em cena. Mas um espectador vulgar, Concedeis-me, então, a ilusão imperfeita'l Tende cuidado.
no instante mais vivo do seu prazer, no momento em que aplaude Acreditais que de tempos a tempos, por exemplo, duas ou três vezes
com entusiasmo Talma-Mânlio I dizendo ao seu amigo: «conheces num acto, e de cada vez por um ou dois segundos, a ilusão seja
este texto?», pelo simples facto de estar a aplaudir, não tem a ilusão completa?
completa, porque aplaude Talma, e não o romano Mânlio; Mânlio
não faz nada digno de ser aplaudido, a sua acção é muito simples e a ACADÉMICO
totalmente em interesse próprio.
Isto não é muito claro. Para vos responder, teria necessidade de
voltar várias vezes ao teatro e ver-me a agir.
o ACADÉMICO
Perdoai-me, meu amigo; mas o que me dizeis aí é um lugar- a ROMÂNTICO
-comum.
Ah! Eis uma resposta encantadora e cheia de boa fé. Vê-se
bem que sois da Academia, e que não tendes mais necessidade dos
o ROMÂNTICO
sufrágios dos vossos colegas para aí chegar. Um homem que ainda
Perdoai-me, meu amigo; mas o que me dizeis aí é a derrota de tivesse que fazer a sua reputação de literato instruído teria muito
um homem a quem o longo hábito de se contentar com frases ele- cuidado em ser assim tão claro e raciocinar de uma maneira tão pre-
gantes tomou incapaz de raciocinar de uma maneira cerrada. cisa. Tende cuidado convosco; se continuais de boa fé, iremos ficar
É impossível que não concordeis que a ilusão que se vai buscar de acordo.
ao teatro não é uma ilusão perfeita. A ilusão perfeita era a do "01- Parece-me que estes momentos de ilusão perfeita são mais fre-
dado de sentinela ao teatro de Baltimore. É impossível que não con- quentes do que se crê em geral, e sobretudo que não se admite para
cordeis que os espectadores sabem bem que estão no teatro, e que dizer verdade nas discussões literárias. Mas estes momentos duram
assistem à representação de uma obra de arte e não a um facto ver- infinitamente pouco, por exemplo, um meio segundo, ou um quarto
dadeiro. de segundo. Esquece-se bem depressa Mânlio para só ver Talma;
são mais duradouros nas mulheres jovens, e é por isso que elas cho-
ram tantas lágrimas nas tragédias.
Mas procuremos em que momentos da tragédia o espectador
I Mânlio Capirolino de Lafosse d'Aubigny (1698) . O verso cxacto é: Conheces bem a
mão de Rutilo? (N.F.) pode esperar encontrar esses instantes deliciosos de ilusão perfeita.
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Esses instantes encantadores não se encontram nem no mo-


O classicismo, pelo contrário, apresenta-lhes a literatura que
mento em que o poeta ~e vê obrigado a colocar uma longa narrativa
dava o máximo prazer possível aos seus bisavós.
na boca de uma das suas personagens, unicamente para Inforrnzrr o
Sófocles c Eurípides foram eminentemente românticos; deram
espectador de um facto anterior, e cujo conhecimento lhe é necessá-
aos Gregos reunidos no teatro de Atenas as tragédias que, segundo
rio, nem no momento em que chegam três ou quatro versos admirá-
veis e notáveis enquanto versos. os hábitos morais desse povo, a sua religião, o~ seus preconceitos
sobre o que faz a dignidade do homem, deviam proporcionar-lhe o
Esses instantes deliciosos e tão raros de ilusão perfeita não po-
máximo prazer possível.
dem ser encontrados senão no calor de uma cena animada, quando
Imitar hoje Sófocles e Eurípides, e pretender que essas imita-
as réplicas dos actores aceleram; por exemplo, quando Hermíone
ções não farão bocejar o francês do século XIX, é classicismo.
diz a Orestes, que acabou de assassinar Pirro por ordens suas:
Não hesito em afirmar que Racine foi um romântico; ele deu
Quem te mandou? aos marqueses da corte de Luís XIV uma pintura das paixões, tem-
perada pela extrema dignidade que então estava na moda, e que fa-
Nunca se encontrarão esses momentos de ilusão perfeita nem zia com que um duque de 1670, mesmo nos desabafos mais temos
no instante em que um assassínio é cometido sobre a cena, nem do amor paternal, nunca deixasse de chamar ao seu filho Senhor.
quando os guardas vêm prender uma personagem para a levar para a É por isso que o Pílades de Andrómaca diz sempre a Orestes:
prisão. Todas estas coisas, não podemos acreditar serem verdadei- Senhor; e no entanto que amizade não é a de Orestes e Pílades!
ras, e nunca produzem ilusão. Estes fragmentos são feitos apenas Essa dignidade não está de modo algum nos Gregos, e é por
para alcançar as cenas durante as quais os espectadores encontram causa dessa dignidade, que hoje nos gela, que Racine foi romântico.
esses meios-segundos tão deliciosos; ora, digo que esses curtos mo- Shakespeare foi romântico porque apresentou aos Ingleses do
mentos de ilusão perfeita encontram-se mais assiduamente nas tra- ano de 1590, primeiro as catástrofres sangrentas trazidas pelas guer-
gédias de Shakespeare do que nas tragédias de Racine. ras civis, e para repousar destes tristes espectáculos, uma multidão
Todo o prazer que se experimenta com o espectáculo trágico de- de finas pinturas dos movimentos do coração, e dos matizes das pai-
pende da frequência desses pequenos momentos de ilusão, e do estado xões mais delicadas.
de cmoçâo em que, nos seus intervalos, deixam a alma do espectador,

3. Propostas para uma nova dramaturgia


2. () que é o romanticismn I

I) Nada de combates em cena, nada de execuções; estas coisas


O romanticismo é a arte de apresentar aos povos as obras lite- são épicas e não dramáticas. No século XIX o coração do espectador
rárias que, no estado actual dos seus hábitos e das suas crenças, são tem repugnância pelo horrível, e quando em Shakespeare se vê um
susceptíveis de lhes dar o máximo prazer possível.
carrasco avançar para queimar os olhos a criancinhas, em vez de
tremer, troçam dos cabos de vassoura pintados de vermelho na ponta,
I Título 00 capítulo de que se transcrevem os primeiros parágrafos. (N.F.)
que fazem o papel de barras de ferro incandescentes.
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Uma boa fé ing énua e um pouco tonta , uma devoção perfeita, uma
2) Quanto mais os pensamentos e os incidentes são românticos
f'sppcie de dificu\otl<'1c em ser comovido pelos pequenos incidentes
(\.- <I I ~ u taa o s ae acorao com as necessidades actuais), tanto m ai s é
e em com preendê - los, mas em contrapartida, uma grande co ns tâ n-
necessário re speitar a língua, que é uma coisa de convenç ão nas
cia na emoção e um grande medo do inferno, separam os Ingleses
frases não menos que na s palavras, e tentar escrever como Pascal,
de 1600 do s France se s de 1825. É no entanto a estes que é preciso
Voltaire e La Bruyere. As necessidades c as exigências do s senho res
agradar, a estes se res tão finos , tão superficiai s , tã o su sceptíveis,
doutrinários parecerão tão ridículas dentro de cinquenta anos quanto
sempre à espre ita, sem pre presa de uma emoção fu gitiva, sem pre in-
Voiture e Balzac o são neste momento. Vede o prefácio à Hi stória
dos Duques de Barganha I. capazes de um sentim e nto profundo . Não acreditam em nada senão
na moda, mas simulam todas as convicções, de modo nenhum por
3) O interesse apaixonado com o qu al seguimos as emoções de
uma personagem constitui a tragédia; a simples curiosidade que nos hipocrisia racional , co mo o cant da s classes altas inglesas, mas ape -

deixa toda a no ssa atenção para cem pormenores diversos, a comédia ; nas para bem c um pr ir o se u papel ao s olhos do v iz inho .
o interesse que no s inspira Julie D 'Etanges 2 é trágica. O Coriolano ( ...)
de Shakespeare, é comédia. Parece-me muito difícil a mi stura des- O parisiense só respeita a opin ião d a sua soci edade de todos
tes doi s interesss es. o s dias, só é devotado à sua mobília de acaju. P ara fazer dramas
4 ) A não se r que esteja em questão pintar as mudanças suc es si- românticos (adapta dos às nece ssidades da é poc a), é então pr eciso
vas que o tempo provoca no ca rácte r de um homem , talvez se ache afastar-se muito da maneira de Shakespeare , e por e xem plo não cair
que, para agradar em 1825, não é preciso que uma tragédia dure vá- na tirada junto de um povo que sabe capta r tudo nas meias palavras
rios ano s. De resto, cada poeta fará as e xpe riê ncias em seguime nto e às mil maravilhas, enquanto se ria neces sário explicar as cois as
das quais será po ssível que o espaç o de um an o se considere como o longamente e com muitas imagens fort es ao s In glese s de 1600.
termo médio conveniente. Se se prolongasse a tragédia muito além 6) Depois de ter ido roubar a art e a Shakespeare, é a Gregório
dis so , o herói do fim não seria mais o homem do início. Napoleão de Tours, a Froissart, a Tito-L ívio . à Bíblia, aos modernos hcl enos,
enfarpelado com o manto imperial em 1804, não era mais o jovem que devemos pedir assuntos para tra gédia. Que tema mai s belo e mai s
general de 1796 qu e es condia a sua g ló ria so b a sobreca saca cin- c om ovente que a morte de Je su s'! Porque não foram de scobertos o s
zenta, qu e se rá a sua roupa para a posteridade . manu scritos de Sófocles c de Homero a pe n as no ano 1600, depois
5) É a arte que é pre ci so roubar a Shakespeare, compreendendo da civilização do séc u lo de Leão X?
ao mesmo tempo qu e esse jo vem operário vestido de lã ganhou c in- A senhora Du H au sset , Saint-Simon , Gourvil\e , Oan geau , Bé-
quenta mil francos de renda agindo so bre os ingl eses do ano de zenval, os Congressos, o Fanar de C onstantinopla, a história dos
1600, no seio dos quai s ferm entavam já todos os horrores negros e Concl aves recolhidas por Greg ório Lcti I, dar-nos-ão cem temas de
sensaborões que viam na Bíblia, e dos quais fiz eram o puritanismo. comédia.

I De Barant c . llQ4. (N F . )
I Me mo rialislas e histo riad o re s de é pocas di ver sas . (N.F.)
2 A he roín a da NOI·(/ H elo ísa de Roussca u. (N .F.)
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7) Dizem-nos: O verso é o belo ideal da expressão; dado um ou sou fazer responder «Sen ho r, é meia-noite.» Es se homem de espí-
pensamento, o verso é a maneira «mais bela» de o reproduzir, a ma- rito teve a coragem de fazer dois versos:
neira segundo a qual fará mais efeito.
SIM, no caso da sátira, do epigrama, da comédia satírica, do A torre de São Marcos, próximo desta morada,

poema épico, da tragédia mitológica idêntica à Fedra, Ifigénia, etc. Quando passast e , deu a déci m a segunda badalada. I

NÃO, desde que se trate desta tragédia que obtém os seus efei-
tos da pintura exacta do s movimentos da alma e dos incidentes da Desenvolverei noutro local a teoria de que aqui deixo o enun-
vida dos modemos. O pensamento ou o sentimento devem antes de ciado s im ples: o verso é destinado a reunir num lar, à for ça de elip-
ses, de inversões, de alianças de palavras, etc, etc. (brilhantes pri vi -
tudo ser enunciados com clareza no género dramático, que ni sto se
légi os da poesia), as razões de se ntir uma beleza da natureza: ora,
opõe ao poema épico. Th e table is fuI! exclama Macbeth tremendo
ne ste género dramático são as cenas pre cedentes que dão todo o seu
de terror quando vê a som bra daquele Banco que acabou de mandar
e fe ito à palavra que ouvim o s pronunciar na cena presente . Por
assassinar há uma hora, tomar na mesa real o lugar que lhe estava
e xemplo: Conheces a mão de R útilo? 2. Lord Byron aprovava esta
reservado a si, o rei Macbeth. Que verso, que ritmo pode acrescen-
di stinção.
tar a bel eza de uma frase assim?
A personagem acaba por não ser mais do que um orador do
É o grito do coração, e o grito do coração não admite inv er -
qual des confio por m enos experiên cia da vid a que tenha, se pela
sões. É como se fize sse parte de um alexandrino que admiramos o
poe sia da expressão procura ac resce ntar à força do que diz.
Sejamos amigos , Cina: ou a fras e de Hermíone a Pirro: Qu em te
A primeira condição do drama é qu e a acção se pa sse numa
mandou? sala e m que um a das paredes foi retirad a pela varinha mágica d e
Notai que são precisas exactamente aquelas palavras, e nã o ou- Melp ómene, e substitu íd a pela plateia. As personagens não sabem
tras. Qu ando a medida do verso não admite a palavra precisa de que que existe um público. Qual é o confidente que, num momento de
se serviria um homem apaixonado, que fazem os nossos poetas da perigo, se lembraria de não responder claramente ao seu rei que lhe
Academia? Atraiçoam a paixão pelo verso alexandrino. Poucos ho- pergunta Que horas são? A part ir do momento em que há uma apa -
mens , sobretudo aos dezoito anos, conhecem suficientemente bem rente concessão ao público, dei xa de haver personagens dram áticas.
as paixões para exclamarem: Eis a palavra certa que negligen ciais. Vejo ape nas rap sodos recitando um poema é pico mai s ou menos belo.
A qu e utilizais é ap ena s um frio sinánimo; enquanto o mais idiota da
t Stcndhal, 1: Racinc <'I SII(/k<'SI)(' (/ /"(' , Bo ssan gc. Del aun ay, Mon g ic . IX23. ca l'. I; 2: l hid, cal'.
plateia sabe muito bem o que faz um belo verso. Sabe ainda melhor
111; 3: Raci ncct SI/lI !;..sp carc 11" 11. Dupo nt et Ro ret , I X25. ca rta V III. nora .)
(porque numa monarquia põe-se aí toda a vanglória pessoal) qual a
palavra que pertence à linguagem nobre e qual a que não pertence .
Aqui a delicadeza do teatro fran cês foi muito além da natureza:
que um rei chegando de noite a um a casa inimiga diga ao seu confi - I O Cid d.. A nda luzia (I X25). de Picrrc Lebrun, lib e ral e rornâutico mod erado. (NF .)
dente: Que horas são? Pois bem, o autor do Cid de Andaluzia não Vej a-se o primeiro cx rrac ro . nota I. p. 292). (N F .)
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44 - HUGO: PREFÁCIO DE CROM WELL (1827 ) suas meditações são êx tases e todos os seus so nhos vi sões. Ele ex -
tra vasa -se, canta co mo respira. A sua lira só tem trê s cordas, Deus,
Rom ântico realista nos se us iníc ios, Victor Hu go ( 1802-1885) a alma, a criação; mas este triplo mistério envolve tudo, esta tripla
tinha vinte e cinco anos quan do publicou o Prefácio de Crom we lI, ideia compreende tud o. A terra está ainda qu ase deserta. Há fam í-
cuja resson ância conso lida va a sua autoridade sobre a nova esco la lias e não povos; p ais, e não reis . Cada raça ex iste à vontade; nada
poética e, ao m esm o temp o, marca va a sua evo lução p ara um lib e- de propriedade, n ad a de lei, nada de confusões, nada de guerras .
ralism o men os literário. Tudo pertence a cada um e a todos. A socieda de é uma comunidade.
Não acred itan do na possibilidade de fa zer rep resentar uma Nad a aí embaraça o hom em. E le leva aquel a vid a pastoral e nómada
peça tão longa , Hu go pôs toda a sua ousadia em ap resentar no pel a qu al começam tod as as c iv iliz ações, e qu e é tão propícia à con-
Pref ácio ideias muito revolucionárias para o seu tempo , e toda uma templação so litária, aos devaneios cap richoso s. El e de ixa andar,
teoria da literatura. deixa-se andar. O seu pen samento, como a sua vida, asseme lh am-se a
uma nuvem que muda de forma e de caminho seg und o o vento que
a empurra. Eis o primeiro homem, eis o primei ro po eta. É jovem, é
1. As três idades da civilizaç ão
lírico. A oração é tod a a sua religião: a ode é tod a a sua poesia.
Partamos de um fact o: nem se m pre a mesma nature za da civili- Este poema, es ta ode do s tempos primitivo s, é o G énesis.
zação, ou para empregar um a fó rm ula mais correcta, e m bora mais Pouco a pouco. no e nta nto, essa adolescên ci a d o mundo esvai-
vasta, nem se m pre a me sm a soc iedade ocupou a terra. O géne ro hu - -se. Todas as esfe ras crescem; a família torna-se tribo , a tribo torna-
man o, no se u conjunto, cresceu, desenvolveu -se , am adurec eu como -se naç ão . C ada um de st e s g ru p os d e homens aca m p a e m vo lt a
um de nós. Foi criança, foi homem; assistimos ag ora à sua im po- de um centro com um, e eis o s reinos. O in stinto socia l suc ede ao
nente ve lhice. Antes da época a que a socieda de mod ern a c hamou instinto nómad a. O ca m po d á lu gar à c ida de, a tenda ao palácio, a
de antig a, existiu um a outra era, a qu e os antigos c ha mavam de f a- arca ao templo. Os chefes destes estados nascentes são aind a pasto-
bulosa , e que seria mai s exac to c ham ar de primiti va. Eis e ntão três res, mas pastores de povos; o se u bastão pastoral tem j á a forma do
gra ndes e s ucess ivas orde ns de coisas na civilização, desde c. sua ceptro . Tudo pára e se tix a. A reli gião toma um a forma; os ritos regu -
orige m até ao s no ssos dias. Ora, com o a po esia se sobre põe sempre à lam a oração; o dogm a vem e nq uad ra r o culto. Ass im o sace rdote e o
soc ieda de, vamos tentar destrin ça r, segundo a form a de st a, qu al po- rei partilham a paternidad e do po vo ; assim, à com unida de patriarcal
derá ter sido o carácte r da outra nessas três grandes idades do mundo: sucede-se a socieda de teoc ráti ca. Entreta nto , as naçõ es com eç am a
os tempos primitivos, os temp os antig os , e os tempos mod ernos. estar muito ap ertad as no g lobo. Incomodam -se e arra nh am -se ; daqui

No tempos primiti vos, qu ando o homem acord a num mundo os choques dos impérios, a g uerra . Elas tran sbordam umas sobre as
qu e acabo u de nascer, a poesi a acorda com ele. Na pre sen ça das outras; daí as mi grações do s povos, as viagens. A poesia reflecte estes
maravilhas que o deslumbram e que o embriagam, a sua primeira grandes acontecimentos; da s ideias passa às coi sas. C anta os séculos,
palavra é um hino. Ele está ainda tão perto de Deu s que todas as os povos, os impéri os. Torna-se épica, gera Homero.
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( ... ) fábulas, as mesmas catástrofes, os me smos heróis . Todos se abaste-


Mas é so bretudo na tragédia antiga que a e pope ia ressalta por cem no rio homérico. É sempre a lIíada e a Odisseia. Como Aqui-
todo o lado. Ela sobe à ce na grega sem, de alguma mane ira, nada le s arrastando Heitor, a tragédia grega anda à volta de Tróia.
perder das suas proporções gigantescas e desmesuradas. As su as Porém, a idade da epopeia chega ao fim. Da mesma maneira
personagens são ainda her óis, sem ide uses, deu ses; os seu s motivos que a sociedade que e la representa, essa po esia desgasta-se ao girar
os sonhos, oráculos, fatal idad es ; os se us quadros o recenseamento, so b re s i própria. Roma decalca a Grécia, Virgílio co p ia Homeror.e,
exéquias, combates. O que cantavam os rapsodos, declamam os ac - co m o que para terminar dignamente, a poesia épica expira neste úl-
tores, eis tudo . timo parto. Já e ra tempo. Uma outra era vai começar para o mundo
Há melhor. Qu ando toda a acç ão, todo o es pec t áculo do poema e para a poesia. Uma reli gião espiritualist a, suplantando o pa ga-
épico pa ssou para a cena, o que re sta, toma-o o coro. O coro co- nismo material e exterior, desliza para o coração da sociedade an-
menta a trag édia, en coraj a os herói s, faz descrições, chama e des- tiga, mata-a, e ne sse cad á ve r de uma civ ilização decrépita depõe o
pede o dia, alegra-se , lamenta-se, por vezes dá a decoração, explica g érmen da c ivilização moderna. Esta reli gi ão é com pleta, porque é
o se ntido moral do assunto, lisonjeia o povo que o escuta. Ora, o verdadeira; entre o seu dogma e o seu culto, sela profundamente a
que é o co ro, ess a bizarra pers onagem col ocada entre o espect áculo moral. E antes de tudo, como primeiras verdades, ela en sina ao
e o espectador senão o po eta co mpletando a sua epopeia? homem qu e ele tem duas v id as para vive r, uma passageira, a outra
O teatro do s antigos é, como o seu drama , grandioso, pontifi- imortal ; uma da terra, a outra do céu. Mostra-lhe que ele é duplo
caI, épico. Pode conter trinta mil espectadores, representa-se ao ar co m o o seu destino, que nele existe um animal e uma inteli gência,
livre, sob o so l; as representações duram todo o dia. Os ac tores en- uma alma e um corpo; numa palavr a, que ele é o ponto de inter-
grossam a voz, ma scaram as feições, elevam a estatura; tomam-se se cção, o anel com um entre duas cadeias de se res que abarcam a
gigantes, com o os se us papéis. A cena é imensa. Pode representar c riação , da série dos se re s materiais e da série dos seres incorpóreos,
ao mesm o tempo o interior e o ext eri or de um templo, de um palá- a primeira, partindo da pedra para c hega r ao homem, a se gund a ,
cio, de um campo, de um a cid ade. Desen rolam-se aí vas tos espect á- partindo do homem para chegar a Deus.
cui as. (...) Arquitectura e poesia, aí , tud o tem um ca rac ter m onu- ( ...)
mental. A anti guidad e não possui nada de mai s so lene , nada de Nessa época, e para não omitir nenhum traço do esboço a qu e
mai s majesto so . O se u culto e a sua históri a mi sturam-se co m o se u nos aventur árnos, far emos notar que, com o cristianismo e por el e,
teatro. O s seu s primeiros actores são os sace rd o tes; os se us j ogos se introduzia no espírito d os povos um sentimento novo, de sconhe-
cénicos sã o as cerim ônias religiosas, as festas nacionais. Uma úl- c id o dos antigos e singularmente de senvolvido nos modernos , um
tima ob servação qu e acaba de marcar o car ácter é p ico destes tem- se ntimento qu e é ma is que a g ravidade e meno s qu e a tri steza: a
po s, é qu e pelos assuntos que trata, não menos do que pelas formas melancoli a . E com e fei to, o coração do homem , at é então entor-
qu e adapta, a tragédia não faz mais do que repetir a epopeia. Todos pecido pelos cultos puramente hierárquicos e sace rdotais, poderia
os trági cos anti go s fra gmentam a na rrati va de Homero. As me smas deixar de acordar e sentir germinar e m s i uma qualquer faculdade
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inesperada, ao sopro de uma reli gião humana porque el a é div ina, de vasto. Sentirá que tud o na cri ação não é humanam ente bel o ; que o
uma reli gião que faz da oração do pobre a riqu eza do ric o, de uma feio existe aí ao lad o do belo, o di sforme perto do grac ios o, o gro-
religião de lib erdade, de igualdade, de caridade? Pod eri a e le não ver tesco no re verso do sublime , o mal com o bem , a so m bra com a luz.
todas as coi sas sob um novo as pecto , depois de o Evan gelho lhe ter Perguntar-se -á se a razão es tre ita e relativa do artis ta deve decidir
mostrado a alma através dos sentidos, a eternidade por detr ás da vida? sobre a razão infinita, absoluta, do criador; se cabe ao homem recti -
( ...) ficar Deus; se uma natureza mutilada não se rá tant o m ai s bela; se a
Ao mesmo tempo nascia o espírito de ex ame e de c urios ida de. arte tem o direito de desdobrar, por assim di zer, o homem, a vid a, a
Essas gra ndes catástrofes eram também g randes esp ecr áculo s, peri- cr iação; se cada co isa irá melhor quando lhe tiverem tirado o se u
pécias not ávei s. Era o nort e arre messando -se so bre o m ei o -dia, o mú sculo e o seu imp ulso; se , e nfi m, é meio para se r harmonioso o
universo romano mudando de fo rma, as últimas co nvulsões de todo ser incomplet o. É então que, o olhar fixado sobre ac o ntec imentos
um mundo a agonizar. Assim qu e esse mundo morreu. e is qu e enxa- simultaneam en te risíveis e formidáveis , e sob a influên cia desse es-
mes de oradores, de gram áticos, d e sofistas, vieram aba te r-se, como pírito de melancoli a cristã e de crítica filosófi ca que observámos há
moscas, sobre o seu imen so ca dáver. Vêem-se pulular, o uvem- se pouco, a poesia dará um grande passo, um passo deci sivo, um passo
zumbir nesse foco de putrefacçã o . É a ver quem examinará , comen- que, idêntico ao abal o de um terramoto, mudará toda a face do
tará, discutirá. Cada membro, cada músculo, cada fibra do g rande mundo intelectual. Pôr- se-á a fazer como a natureza, a mi sturar nas
co rpo jaze nte são observados por todo s os lados. Se gu ramente , deve suas criaçõe s se m port ant o as confu nd ir, a so mbra co m a luz, o gro-
ter sido uma alegria, para estes a na to m istas do pen samento , pod er, tesco co m o su blime, noutras palavras, o corpo com a alm a, a besta
de sde a sua primeira tentat iva, faze r ex pe riê nc ias ao natural : ter, co m o es pírito; porque o ponto de partida da rel ig ião é se m pre o
co mo primeiro as sunto, uma sociedade morta para dissecar. ponto de partida da poesia. Tudo depende de tud o.
Assim , vem os desp ont ar ao m esmo tempo, e como qu e de m ão Ei s assim um princípio estranho à anti guidade , um tipo no vo
dada, o gé nio da melancoli a e da m editação, o dem óni o da aná lise e introduzido na poesi a; e, como uma co nd içã o a mai s no se r modi-
da controvérs ia . Numa das extrem ida des de sta era de trans ição es tá fica o ser todo int eiro , e is uma forma no va q ue se de sen vol ve na
Long ino, na outra Sant o Agos ti n ho . É pr eci so coibir-se d e lan çar arte. Este tip o é o grotesco. Esta forma é a comédi a.
um olhar desdenhoso so bre es ta é poca e m qu e ge rm inava tu do o E aqui , que nos seja permitido insist ir; porque acaba m os de in-
que depois deu fruto , sobre esse tempo e m qu e os escrito res men o- d icar o traço c a rac te rís tico , a diferença fund am ental qu e separa,
res. se nos perdoam uma expressão tri vial, ma s fran ca , fizeram o es- quanto a nós, a arte mod erna da arte anti ga , a forma actual da forma
trum e para a colheita qu e se dev eria seguir. A Id ad e Médi a es tá morta, ou, para no s se rvirmos de pal avras m ai s vag as, mas mai s
enxertada no baixo-impéri o. acred itad as, a literatura romântica da literatura clássica .
( ... ) - Enfim! dirão aqui as pe ssoas que, já há algum tempo, estão a
o cristianismo encam inha a poesia para a verdade . Como ele, ver onde queremos chegar, apanhamo -vos! e is-vos apanhado em
a Musa moderna verá as coisas co m um olhar mai s el evad o e mais flagrante! Então, fazei s do/cio um tipo de imitação . do grotesco um
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elemento da arte! E as graças... e o bom gosto... Não sabeis que a conjunto isolado do assunto que trata; não à maneira do químico
arte deve rectificar a natureza? que é preciso eno brecê-la? que é que acende o seu fomo, sopra o se u fogo, aquec e o cadinho, analisa
preciso escolher? Alguma vez os antigos recorreram ao feio e ao e destrói, mas à maneira da abelha, que voa co m as su as asas de
grotesco? alguma ve z misturaram a comédia c o m a tragédia ? ouro, pousa sobre cada flor, e dela retira o se u mel, sem que o cálice
O exemplo dos antigos, senhores ! Aliás, Aristóteles... Aliás Boileau ... nada perca do seu brilho, a corola nenhum do seu perfume.
Aliás La Harpe... O poeta, insistamos neste ponto, não deve então tomar conse-
Na verdade! lho senão da natureza, da verdade , e da inspiração que é também
Estes argumentos são sólidos, sem dúvida, e sobre tudo de uma uma ve rdade e uma natureza. Quando tenh o diz Lope de Vega ,
novidade rara. Mas o nosso papel não é responder-lhes. Não co ns-
truímos aqui um sistema, porque Deus nos livre dos sistemas . Cons- Q ua ndo tenho qu e es c rev er uma co mé dia
tatamos um facto . Somos historiadores e não críticos. Que esse Fecho os pre ceit os a se is c haves. I

facto agrade ou não agrade, pouco importa! Exist e .


Para fechar os preceitos, com efeito, «se is chaves» não são de-
mai s. Que o poeta se coíba sobretudo de copiar o que qu er que seja,
2. Liberdade e natureza
nã o m ai s Shakespeare que Moliere, não mai s Schiller que Com e ille .
Digamo-lo com ou sadia. Chegou o tempo, e seria estranho qu e Se o ve rdade iro talento pude sse abdicar a esse ponto da sua verda-
nesta época a liberdade , como a luz , penetrasse em tudo exc epto deira natureza , e deixar as sim de lado a s ua o rig in alidade pessoal
naquilo que existe de mais nativamente livre no mundo, as coi sa s para se transformar noutrern, perderia tud o a desempenhar esse pa-
do pensamento. Usemos o martelo nas teorias, nas poéticas e no s pei de Sósia. É o deu s que se faz lacaio. É preciso ir beber às fontes
sistemas . Deitemos aba ixo es se velho estuque que esconde a fa- primitivas. É a mesma seiva, derramada no so lo , que produz todas
chada da arte! Não há regras, nem modelos; ou m elhor, não há ou- as á rvo re s da floresta, tão diversas no porte, nos frutos , na folha-
tras regras senão as leis gerais da natureza que planam sobre toda a gem. É a mesma natureza que fe cunda e alimenta os géni os mais di-
arte no geral, e as lei s es peciais que, para cada com posição , resul- fer entes. O verdadeiro poeta é uma árvore qu e pode ser açoitado por
tam da s cond ições da ex istência pr óprias a cada assunto. Umas são tod o s o s ventos e regado por todos os orvalhos, qu e leva as suas
eternas, interiores, e mantêm-se; as outras variávei s, exteriores, e só obras como frutos, como o fabulista levava as s ua fábulas 2. De qu e
servem uma vez. As primeiras são a es tru tura que suporta a ca sa ; as serve li gar-se a um mestre ? e nx e rta r-se num modelo '? É melhor
segundas os andaimes qu e servem para construir e que se refazem ainda se r silva ou cardo, alimentado pela mesma se iva que o cedro e
para cada edifício. Aquelas, enfim, são o esqueleto, estas as roupa- a p almeira, do qu e ser o fungo o u o líquene des sas g randes árvores.
gens do drama. De resto, aquelas regras não se e screve m nas po éti-
cas. (... ) O génio, qu e adivinha mai s do que aprende, extrai para
Veja-se o texto 13. Lopc de Vega, p. 77 . (N.F.)
cada obra, as primeiras da ordem geral das coisa s, as segundas do La Fontaine. (N."-.)
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A silva vive, o fungo vegeta. Por outro lado, por maiores que sejam,
Deve então reconhecer-se, sob pena de cair no absurdo, que o
o cedro e a palmeira, não é com o suco que se lhes retira que pode- domínio da arte e o da natureza são perfeitamente distintos. A natu-
mos tomar-nos grandes nós próprios. O parasita de um gigante será reza e a arte são duas coisas, que sem uma ou a outra não existi-
sempre no máximo um anão. O carvalho, tão colossal como é, não riam. A arte, para além da sua parte ideal, tem uma parte terrestre e
pode produzir nem alimentar mais que o visco. positiva. O que quer que faça, está enquadrada entre a gramática e a
( ... ) prosódia, entre Vau gelas e Richelet. Tem, para as suas criações mais
A natureza então! A natureza e a verdade. - E aqui, a fim de caprichosas, formas, meios de execução, todo um material a pôr em
mostrar que, longe de demolir a arte, as ideias novas só a querem movimento. Para o génio, são instrumentos; para a mediocridade,
reconstruir de modo mais sólido e mais alicerçado, tentemos indicar utensílios.
qual é o limite inultrapassável que, na nossa opinião, separa a reali- Outros, segundo nos parece, já o disseram: o drama é um espe-
dade segundo a arte da realidade segundo a natureza. É leviandade lho onde se reflecte a natureza. Mas se este espelho for um espelho
confundi-Ias como o fazem alguns partidários pouco avançados do vulgar, uma superfície plana e lisa, não devolverá dos objectos senão
romantismo. A verdade da arte nunca poderia ser, tal como vários o uma imagem baça e sem relevo, fiel mas descolorida; sabe-se que a
disserarn.ra realidade absoluta. A arte não pode dar a própria coisa. cor e a luz perdem com a reflexão simples. É preciso então que o
Suponhamos com efeito um desses promotores irretlectidos da na- drama seja um espelho de concentração que, longe de as enfraquecer,
tureza absoluta, da natureza vista fora da arte, perante a representa- recolha e condense os raios coloridores, que faça de um luar uma luz,
ção de uma peça romântica, o Cid, por exemplo. - O que é isto? de uma luz uma chama. Só então o drama é declarado como arte.
dirá à primeira palavra. O Cid fala em verso! Não é natural falar em
verso. - Então como quereis que ele fale? - Em prosa. - Seja. - Um 3. A cor local
instante depois: - O quê, retomará ele se for consequente, o Cid fala
O teatro é um ponto de óptica. Tudo o que existe no mundo, na
francês? - E depois? - A natureza quer que ele fale a sua língua, ele
história, na vida, no homem, tudo deve e pode retlectir-se aí, mas
só pode falar espanhol. - Não compreenderíamos nada; mas seja
sob a varinha mágica da arte. A arte folheia os séculos, folheia a na-
ainda. - Acreditais que é tudo? Não; antes da décima frase caste-
tureza, interroga as crônicas, ensaia-se a reproduzir a realidade dos
lhana, deverá levantar-se e perguntar se este Cid que fala é o verda-
factos, sobretudo a dos costumes e dos caracteres, bem menos dada
deiro Cid, em carne e osso? Com que direito é que este actor, que se
à dúvida e à contradição que os factos, restaura o que os analistas
chama Pedro ou Tiago, toma o nome de Cid? Isto é falso. - Não há
mutilaram, harmoniza o que eles despojaram, adivinha as suas
nenhuma razão para que de seguida não exija que substituam a ri-
omissões e corrige-as, preenche as suas lacunas com imagens que
balta pelo sol, com árvores reais, casas reais em vez desses bastido-
tenham a cor do tempo, agrupa o que deixaram esparso, restabelece
res mentirosos. Porque, uma vez neste caminho, a lógica agarra-nos
o jogo dos fios da providência sobre as marionetas humanas, reveste
pelo pescoço, não podemos mais parar.
o todo com uma forma simultaneamente poética e natural, e dá-lhe
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essa vida de verdade e de arrebatamento que en gendra a ilusão, esse O co m um é o defeito dos p o et as com vi sta curta e fraco fôlego.
pre stígio de realidade qu e apaixona o espectador, e primeiro o po eta, É ne ce ssário que so b esta óptic a da cena todas as fi guras sej am re-
porque o poeta está de boa fé. Assim, o objectivo da arte é quase conduzidas ao seu traço mai s evidente, mais individual, mais pre-
divino: ressuscitar, se faz história; criar, se faz poesia. ci so. Mesmo o vulgar e o trivial devem ter um acento. Nada deve
É uma coisa grande e bela ver-se desenrolar com essa largueza ser abandonado. Como Deus , o verdadeiro poeta está presente em
um drama em que a art e desenvolve poderosamente a natureza; um todo o lado ao mesmo tempo na sua obra. O génio assemelha-se à
drama em que a acção caminha até ao seu termo com um pas so se - prensa que imprime a efígie real tanto na s peças de cobre quanto
guro e fácil , sem se difund ir e sem estran gulamento ; um drama , en- nos esc udos de o uro .
fim , em qu e o poeta preen cha complet am ente o objectivo último da
arte, qu e é o de abrir ao es pectado r um duplo horizonte, iluminar ao 4 . U m teatro total
mesmo tempo o exterior e o interior dos homens; o e xterio r pelos
seus discurso s e as s uas acções; o int er ior pelos apartes e os m on ó- o que qu er que aconteça, e le I acredita dever informar anteci-
logos; numa palavra, em cruzar no me smo quadro o drama da v ida padamente um pequeno número de pessoas que um tal espectáculo
e o drama da consciência. pude sse tentar, qu e uma peça extraída de Crom well nunca ocupasse
Concebe-se que, para uma obra deste gé nc ro, se o poeta deve men o s do que a duração de uma representação. É difícil que um
escolher nas coisas (e de ve-o ), não é o belo , mas o carac terístico . teatro ro m ântico se afirme de o utra m aneira. Na verdade , se qu erem
Não qu e seja conveniente dar, como hoje se di z, a cor local, qu er o u tras coisas diferente s d e s sas tragédias nas quai s uma ou duas
dizer, acresc entar no fim a lguns toques berrantes aq ui e ali so bre personagens, tip os abs trac tos de uma ideia puramente m etafísica, se
um conjunto de resto perfeitamente fal so e convenci onal. Não é na pa sseiam solenemente sobre um fundo sem profundidad e, a custo
superfíc ie do drama qu e deve estar a co r local, mas no fundo , no ocupado com al gumas cabeç as de confidentes, pálidos decalques
coração da própria obra , donde se expande para o exterior, por si dos heróis, encarregados de preencher os va zios de uma acção sim -
própria, naturalmente, igu almente, e, por assim di zer, e m todos os ples , uniforme e monocórdica; se se aborrecem disto, nã o é demais
cantos do drama , como a se iva que so be da raiz at é ü última folh a uma noite inteira para descreve r um pouco largamente todo um ho -
da árvo re . O drama deve se r radicalment e impre gnad o dessa cor dos mem de elite , tod a uma é poca de crise ; um co m o seu ca racte r, o
ternpox - el a deve de alguma maneira es tar aí no ar, de modo a qu e se u gé n io que se asso cia ao seu c arac ter, as s uas crenç as qu e domi -
não no s ap ercebamos sen ão ü entrada e ü sa ída qu e mudámos de sé- nam a os dois , as suas paixõe s que vê m perturbar a s suas crenças, o
c ulo e de atmos fera. É preciso al gum es tudo, al gum trabalho para se u ca rac te r e o se u gén io, os se us gos tos qu e destingem so bre as
conseguir isso ; tanto melhor. É bom que as avenidas da arte estej am s uas paixões , os se us h áb it os que di sciplinam o s se us gosto s ,
obstruídas por essas silvas diante das qu ais tudo recua, excepto as refreiam as suas paixões, e esse cortejo inumerável de homens de
vontades fortes. É ademai s esse estudo, susten tad o por uma ardente
inspiração, qu e protegerá o drama de um víc io que o mata, o C01l1U1I1. I o a utor. (N.F.)
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todas as espécies que esses diversos agentes fazem red emoinhar em fa z de facto agora? Dividem-se os deleites do espectador em duas
tomo dele; a outra, com os seus costumes, as suas leis , os seus mo- partes bem distintas. Primeiro dão-lhe duas horas de prazer sério,
do s, o seu espírito, as suas luzes, as suas superstições, os seus acon- depois uma hora de prazer galhofeiro; com a hora de intervalos que
tecimentos , e o seu povo que todas estas causas primeiras afeiçoam não contamos no prazer, no total são quatro horas. O que faria o
um a um como cera mole. Concebe-se que um quadro assim seja gi- drama romântico? Trituraria e mi sturaria artisticamente aquelas
duas esp écies de prazer. A cada instante faria passar o auditório do
gantesco. Em vez de uma individualidade, como aquela com que o
sé rio ao riso, das excitações galhofeiras às emoções lancinantes , do
drama abstracto da velha escola se contenta, teremos vinte , qua-
grave ao do ce . do prazer à severidade. Porque, como já o afirmá-
renta, cinquenta, que sei eu? com todo o rel evo e toda a proporção.
mos, o drama, é o grotesco com o sublime, a alma sob o corpo, é
Haverá a multidão dentro do drama. Não será mesquinho medir-lhe
uma tragédia sob uma comédia. Não vedes que, repousando-vos
duas horas de duração para entre g a r o resto da representação à
assim de um a impressão com outra, estimulando alternadamente o
ópe ra-c ôm ica ou à fars a? de encurtar Shakespeare por ca usa de bu -
trágico após o cómico, o alegre após o terrível, associando- se mesmo
fões ? - E que não se pen se, se a acção for bem ordenada, que da
quando necess ário o s fascínio s da ópera, estas representações, não
multidão da s figuras qu e põe em jogo po ssa resultar fadiga para o oferecendo mais do que uma peça, não valeriam bem outras? A cena
espectador ou ofuscação no drama. Shakcspeare, abundante em pe- romântica faria uma iguaria picante , variada, saborosa, daquilo que
quenos pormenores , é ao mesmo tempo , e exactamcnte por causa no teatro clássico é um remédio dividid o e m duas pílulas.
dis so , imponente por um grande conjunto. É o carvalho que lança
uma sombra im en sa com milhares de folha s e xíguas e recortadas. (Victor Hugo. C rornwell, Dupont , 18 27, Préf ace .)
Esperemos qu e nã o se demore em França a habituarem-se a
consagrar tod a uma noite a uma única pe ça. Na Inglaterra e na Al e-
manha há dramas que duram seis horas. Os gregos, de que tanto nos
falam (...), os gregos chegavam até às vezes a fazerem- se representar 4 5 - VIGNY: CARTA A LORD *** (1 829)
do ze ou dezassei s peças por dia. Num povo amigo dos espect áculos ,
a atenção é mai s vivaz do que se crê . A s Bodas de Figaro . e sse nó Alfi"el! de Vign )' (179 7-1863 ), j á conhecido com o poeta e ro-
da grande trilogia de Be aumarchais , preenche toda a noit e , e a mancista , fe z a sua estre la /10 teatro tentando transpor para o fran-
qu em alguma vez aborreceu ou cansou ? Beaumarchais foi digno de cês a obra de Shakespeare . O se u Mouro de Veneza , unia adapta-
arri sc ar o primeiro pa sso em direc ção a esse obj ectivo da arte m o- ç'ão de Ot clo, ofereceu ao p úblico parisiense I/II/a das trê s grandes
derna, à qual é impossí vel fazer, co m duas horas , ge rm ina r esse batalhas do teatro rom ântico , depois de Henrique III e a SI/ a co rte
profundo. esse invencível interesse que re sulta de uma ac ção vasta , de DI/ma s . e antes do Hernani de Victor Hu go .
verdadeira e multiforme. Mas , dizem , e sse espect áculo. co m posto Vign» conheceu apenas um su cess o mitigado , o que o incitou a
por uma únic a peça, seria mon ótono e pareceria lon go. Errado! esc rever a sua Carta a Lord *** na noit e de 24 de Outubro de 1829
Pelo contrário, perderia a sua extensão e monotonia actuais. Que se sobre ° sistema dramático.
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Sobre uma cer ta cortes ia dramática Não é porém impossí vel qu e se achem ainda homens qu e falem
bem essa lín gua morta. No séc ulo quinze esc reviam-se di scurso s em
Sou justo : tudo estava e m boa harmonia no ex -s istema da tra-
latim qu e eram muito apreciado s.
gédia; mas também tud o es tava de acordo no si stema feudal e teo-
Quanto a mim, creio qu e n ão será difíc il provar que a potência
crático, e no entanto, já era . Para ex ecutar uma longa catástrofe que
qu e no s reteve durante tanto tempo neste mundo de conven ção, que
só tinha corpo porque estava inchada, e ra preciso s ubstituir os pa-
a Musa desta tragédia secundária foi a Cortesia. Apenas e la seria
péis dos caracteres, as a bs tracçõe s da s paixões personificadas por
cap az de banir ao mesmo tempo o s caracteres ve rd ade iros por gros-
homens : o ra , a nature za nunca produziu uma famíli a de homens,
seiros, a lingu agem s im p les por tri vial , a ideal idade d a filosofia e
uma ca sa inteira, no se ntido do s antigos (do m usy, onde pais e filh os,
das paixões por extravagância, a poesia por capric ho.
se nhores e se rvos, se tenham e nco ntrado igualmente se nsíveis, ag i-
A Co rtes ia, embora filha da corte, foi e será se m pre ni veladora ,
tados no mesmo gra u pel o me smo acontec ime nto, a tirando-se a ele
e la a paga e aplana tudo ; «nem muito alto , nem muit o baixo » é a sua
às cegas, tom ando a sé rio e de boa fé tod as as surpres as e ciladas
divi s a. Não ouve a natureza qu e grita por tod o o lado ao gé nio : Vem
mais grosseiras, e experimentando com isso uma satisfação sol ene,
p elas a ltura s , ou pela baixeza. - Come hi gh ar low!
uma dor so lene ou um furor solene; co nservando preciosamente o O homem ou é exaltado o u s im ples; de o utra maneira é falso.
se ntime nto úni co que os a n ima desde a primeira fase do aconte- O poeta sabe rá então no futu ro que , mostrar o homem tal co mo ele
c ime n to a té à s ua co nc re tização, se m permitir à s ua imaginação é, é j á com over. Na ve rdade , não tenho nenhuma necessi dade de to-
a fas tar-se de um pa s so , e oc up a ndo-se, e nfi m, co m um negóci o car desd e o iníci o o fi o sem pre pressentido de uma acçã o para me
único, o de co meçar um de senlace e retardá-lo sem portanto dei xar inte ressar por um car ácter tr açad o com verdad e ; j á me comoveram
de falar nel e . se m e apresentar am a imagem de uma ve rdade ira c riatura de Deu s.
Então , era pre ci so, nos vest íbulos qu e não cond uziam a lad o Am o- a porque e la exis te , e reconheço-a pel o se u andar, pel a sua lin -
algum, com personagen s que não iam a lado nenhum, falando de guagem, por tod o o seu aspect o, como um se r vivo atirad o para o
poucas coi sa s, com id ei as indecisas e palavras vaga s, um pouco mundo , tal como e u, pasto do destino; mas qu e esse ser seja , senão
ag itad as por sentimentos mitigados , por paixões pa cíficas, e ch e- rompo co m ele . Que não qu eira pa recer o qu e a musa d a Co rtes ia,
ga ndo assim a uma mort e g rac iosa ou a um sus piro falso. Oh, vã na sua lin guagem falsa me nte nobre , chamou de herói . Que não seja
fantasmagoria ! som bras de homen s numa som bra de natureza! rei - mai s qu e um homem, porque de o utro modo seria muit o men os; qu e
nos vaz ios l... Inania regn a) aja seg undo um coração mort al , e não segundo a repre sentação ima-
Também não se rá à força de gé nio e de tal ento que os primei- g inária d e uma personagem m al imaginad a; porque é e ntão que o
ros de cada época alcan ça ram lançar grandes c larões so bre essas po eta merec e verdadei ra me nte o nome de im ita do }" d e f an tasmas
som bras, fixar belas form as nesse caos ; as suas obras foram magn í- qu e lhe dá Platão expu lsando-o da sua repúbl ica.
ficas excep ções, e tomaram -nas por regras. O re st o caiu no trilho É no pormenor cio estilo, sobre tudo, qu e podereis julgar a ma-
comum desse falso caminho. neira da e scola cort ês com a qu al nos aborrecemos tão perfeitamente
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hoje. - Não creio que um estrangeiro po ssa facilmente vir a co m - cre io mesmo qu e o deve, arr ebatad o pela sua inspiração. É a ele que
pree nde r até qu e g ra u de falsidad e tinham chegado alguns versifi- se po de aplica r o segui nte:
cadorcs para a ce na, não quero di zer poetas. Para vos dar alg uns
O s ve rsos são fi lhos da lira :
ex e mplos entre cem mil , qu ando q ue ria m dizer es piões, di z iam
É preciso can tá- lo s e não lê -los.
como Ducis I :

Estes mort ais a q uem o Estado paga a vig ilância. Mas um d ram a não apresentará nunca ao povo mais qu e perso-
nagen s reu nidas para fa lar entre si dos se us negócios; devem e ntão
Se ntis que ape nas uma extrema cortesia para com a co rporação fal ar. Qu e para elas se use esse recita tivo si mples e fra nco de qu e
dos esp iões poderia ter dad o orige m a uma perífrase assim tão e le- M oliere é o m ai s belo modelo na nossa lín gua; assim qu e a pai xão e
gan te, e que tod os aq ue les desses m orta is q ue, por acaso, se e ncontra- a infelicidade vierem ani mar o se u coração, e levar os se us pensa-
vam então na sa la, ficavam seguramente reconhecido s. Estilo natural, mentos, que o ve rso se e leve um momento até esses movim ento s su-
ade mai s, pois não co ncebeis facilme nte que um rei, em vez de muito bli mes da paixão qu e parecem um canto , tan to arreba tam as nossas
simplesme nte fazer di zer ao ministro da polícia: «Enviai ce m es piões almas para for a de nó s própri os!
para a fronteira », d iga: «Senhor, enviareis cem mortais a quem o Es- Cada hom em, na sua co nve rsa habitual , não tem as suas fórm u-
tado paga a vigil ância't», Eis o que é nobre , cortês e harmonioso . las favo ritas, as suas pa lavras cos tu meiras, nascido s da sua ed uca-
Escritores, homen s de talento na ma ioria , e o que me caiu nas ção, dos se us gosto s, ap rend idas em famíl ia, ins piradas pel os se us
m ãos, foram também arrastados para es te defeito pel o desej o de amore s e aversõ es n aturai s, pelo se u te mperamento bilioso , san-
atingir o que se c hama harmoni a , se d uzi dos pelo exemplo de um guíneo ou nervo so , di tad as por um es pír ito apa ixo nado o u frio , cal-
grande mestre qu e só tra tou assuntos ant igo s em que a frase grega e cu lado r ou câ ndi do? Não terá co mparações predilectas e todo um
latina era de rigor. Q uerendo co nservar, fa ls ificaram; forçado s pel o vocabulár io diário pel o qu al um am igo o reco nheceria, se m o uvi r a
progresso qu e os obrigava involuntariamente a tratar assunto s mo- sua voz, apenas pel a construç ão de um a frase que lhe di ssessem?
de rn os, utili zar am a lingu agem imitad a do an tigo (e nem se q uer É prec iso então se mpre qu e ca da personage m se sirva das me sm as
exactame nte a antiga); daí saiu es te es tilo em qu e cada pal avr a é um pal avras. das mesmas imagens qu e tod as as o utras também em pre-
anacronismo, onde c hi neses , turcos, se lvagens da América falam ga m? Não , e la d e ve se r co ncisa o u d ifu s a , dcsco ntraída o u ca l-
em cad a verso do himeneu e seus astro s . c ulada, pródi ga o u avara de orna me ntos segundo o se u car áctc r, a
Esta harm oni a qu e se buscava é feit a , pen so, para o poe m a e sua idade , as suas tendê nc ias . Mo lierc nunca falh ou a d ar esses to-
não para o dra ma. O poe ta lírico pode sa lmodiar os se us versos, qu es firmes e fra ncos qu e ens ina a o bse rvaç ão ate nta dos hom en s, e
Shakespeare não lib e rta um provérbio, um a injúria, ao acaso. - Mas
nem um nem o o utro d cstes grand es hom en s le ria po dido enq ua dra r
a linguagem verd ade ira nos versos ép icos da nossa tragédia; o u, se
1 Adaptou Shakesp eare às regras cláss ica s. sendo O autor de ste O tcl o, ai nda re prcsen-
lado no tempo de Vigny , em 4ue Desd êmona se cha m a Hédelm ona. (N.F.) por in fel icid ad e ti ve ssem adap tado esse verso, te r-lhe s- ia sido
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necess ário mascarar a palavra simples so b a capa da perífrase ou a pássaro; nunca um pajem anunc iará com um único ve rso alex andrino
máscara da fala antiga. - É um círculo vicioso donde nenhuma po- a senho ra duquesa de Montm orency; e , se anuncia Montmoren cy ,
tência os poderia fazer sai r. - Temos um exemplo inegável. O autor seg ur amente se rá expulso . O poeta de Ester diz num caso destes:
de Ester, que é a fonte mais pura do estilo dramático-épico, teve
que escrever em 1672 um a tragédia cuja acç ão era de 1638; sentiu A Senh ora Condessa
de Fe dú ncia.
que os nomes modernos do Oriente não podiam e ntrar no seu ale-
xandrino harmoniosamente torneado à antiga ; qu e fez el e? Tomou
O me smo acontece na s locuções famili ares que e le não qu er in-
o seu partido com um se ntido admiravelmente justo e , não con-
terromper nem contornar, o que seria de sfigurá-Ia s, e diz:
cebendo a possibilidade de mudar o verso, no qu e e le chama de
poema dramático, muda totalmente o vocabulário dos seu s turcos e
Da do que não /l OS p ermitem que tomemos
atira-se para uma não sei qu e vaga antiguidade : Badgad tomou-se fô lego . e qu e /l OS imp ed em de nos estendermos .
Babil ônia , Istambul nã o o us o u mesmo se r Constantinopla e foi
Bizâncio, e o nome do schah Abbas, que então cercava Bagdad , Não duvidei s que , se um e sc rito r tão perfeito tiv esse sido for-
desapareceu diante do s de O smin e O sman. Tinha que se r. çado a meter na cena trá gi ca um tema com ple tam e nte moderno, te-
H á mais. Depoi s de vos ter dado há pouco um e xem plo dos er - ria usad o a palavra simples e teri a rompido a cadênc ia regul ar e
ros rid ículos a qu e os se us imitadores fo ram a rras tados, vo u defen - mon ót ona do ver so alex andr ino, pelo en cav al gamento de um ve rso
der aquele que os come teu. Penso qu e lhe er a imposs ível di zer um a so bre outro; teria desdenhado o hemi stíquio, e tal ve z m esmo (o que
palavra rude e verdadeira, com o estilo que tinha usado: ess a pala- não ou samos ) reintegrado o hiato , como Moliere quando di z: Eis
vra teria causado o efeito de um pal avrão na boca de uma menina primeiro o cervo dado aos cães; ou abreviado de um a s íla ba, como
qu e canta um rom ance plangente. Só a poderia ter dito se tivesse co- aqui : encontro-me num f orte af astado. na ca uda dos noss os cães . só
meçado a faz er ouv ir a expressão simples desd e o primeiro ver so . com Dré car.
Ma s, quando se ando u a di zer durante cinco act os rainha e m vez de Lamento muito , meu ami go , qu e a fantasia n ão lhe tenha dado
Vossa Maje stade, hímen no lugar de casamento, imolar por assassi- por vo lta de 1670, ter-me-ia poupado muitos ataque s obs c uro s, assi-
nar , e mil outras gentilezas semelhantes, como proferir uma palavra nados ou nã o assinados (a nón im os nos doi s casos ). Teria ev itado
como espi ão? É bem nece ssário dizer um mortal com ma is não se i trabalhos in críveis aos pobre s poet as qu e o segu iram .
o qu ê de lon go e doce a seg uir. Acredit ar íeis , por exemplo, vós um ing lês ! vós qu e sabeis qu e
O aut or de Atalia sentiu-o tão bem que, em Os Litigantes , rompia palavras se di zem na s tragédias de Shakesp eare, que a musa trágica
a de spropósito o verso a favor da palavra verdadeira , moderna , quase fran ce sa ou M elpóm en e tenha es pe rado noventa e o ito anos para se
sempre demasiado longa para o seu enquadramento e impossível de 11111 len ço de assoa r, e la qu e di zia cão e
decidir a dizer e m voz alta :
encolher. O nome antigo não era , como o moderno, pre cedido de ou- espo nj a muito francamente? E is os g ra us pelos quai s passou , com
tro nome ou de um a qualificação qu e se lhe agarra como as pen as ao um fal so pudor e um embaraço ba stante div ertidos .
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. Iso pu dOI'. - Deus. •sej a louvado! O poeta
Enfim, rim o-nos deste ta
No ano da hégira 1147, que corresponde ao ano de C risto de
poderá seguir a sua in spiração tão livremente como na pro sa, e. per-
1732, Melp ómene. quando do himeneu de uma virtuosa dama turca
corr er se m ob stáculo a escada inteira das suas ideias se m receio de
que não se chamava Zara, e que tinha um certo ar de família rel ati-
vamente a De sd érnona. teve nece ssidade do seu lenço de assoar e , se ntir os de graus faltarem-lhe sob os pés .
não ousando nunca retirá-lo da sua algibeira de balão, usou um bi - . L . [ ** * 5Ur /0 soir éc du 24 oClol> ,.,'
( A lfrcd de Vign y, Le More de Vcn ise, 1829. Let trc a OI( • .
lhete em se u lugar '. Em 1792, Melpómene teve ainda necessidade J829 Cf s u r /t il sys rémc clramari qlle. )
de sse mesmo len cinho para o himen eu de uma concidadã qu e se di-
zia ven ezi ana e prima de Desdémona, tendo ademais uma síla ba do
seu nome, a síla ba m o, porque se chamava Hedelmona, não porque
rime facilmente (não diria com esmoln a , e an émona, qu e se r ia
exacto e difícil ), mas com desabono , proporciona, mandona, etc. 46 - DUMAS : ANTÓNIO (1831)
De sta vez , porém, há já trinta e sete anos , Melpómene esteve à beira
de pegar nesse lenço; mas, seja porque, ao tempo do Directório e x- co d e \11'('tor HIIgo , Alexandre Dumas (/ 802-1 8 70)
C ontempOlIl Il:
. A
.

clusivo , fos se demasi ado ousado apa rece r co m um lenço , sej a por- F -r cstre ia literária co m os romântico s, a quem as segurou
J C- a s ua 18 ) 9
que , pelo contrário , tivesse sido necessári o mai s luxo , el a não se lima primeira vitória teatra! com Henrique IH e a sua co~e em _ .
deixou apanhar uma segunda vez, e pôs um toucado de di amantes C om António , f oi ainda o primeiro a ousar co ns tru tr em Fran ça
qu e quis conservar, m esm o na cama, com medo de se r vi st a em um grande drama rom â ntic o sem recorrer à hi stória. adoptando lima
roupão. Em 1820, a tragédia francesa, tendo renunciado fran camente prosa e personagcn s rcser vadas à co média 011 ao melo~rar~[(J. Con,~-
à sua alcunha de Melpómena, e traduzindo do alemão, teve ainda . nte (a
la si
cie SIlO O/ .:Igu w Iidadc Dumas valoriza -a no propn o quadro
L ·,

que lidar com um lenço para o testamento da rainha da Escócia; da p eça, montando a gra nde cena do seu a cto IV em torn~ ~e uma
palavra de honra, afoitou-se, e pegou no len ço , ele mesmos na sua rliscuss ào liter ária , totalmente int egrada na a cção da tra gedw .
mão, em plen a assembl éia, franziu o so bro lho e c hama-lhe corajo-
samente tecido e dádiva ; foi um grande passo ' .
Enfim, e m 1829 , g raças a Shakespeare, e la di sse o palavrão o drama no munclo moderno
para terror e de smaio dos fraco s, que nes se dia deram gritos lon go s
A VI SCONDESSA
e dolorosos, mas para s atisfação do público qu e, na grande maioria ,
tcm por co stume nomear um lenço: len ço . A palavra fcz a sua e n- Irei s faz er um prefác io?
trada; triunfo ridículo! Ser-nos-á nec essário se m pre um sé c ulo por
cada palavra ve rdade ira introduzida e m cena'? O B AR ÃO DE M ARS ANNE

Todos os romântico s fazem prefáci o s... O Co nstit uciona l tro-


I Trata-se da Zaira , de Vo ltair e. (N .F.)
ça va deles noutro dia por caus a di sso com uma graç a ..,
2 Em M ar ia Stuart, de Pierrc Le brun. uma adap taçã o de Sc hille r. (N ./-'.)
322 323

ADELA quer levar o dramático. Mas, que nós tentemos, nós, no meio da
Vedes, senhor, que para vos defender, fostes gastar um tempo nossa sociedade moderna, sob o nosso fraque acanhado e encur-
que teria sido suficiente para desenvolver todo um sistema. tado, mostrar a nu o coração do homem, e não o irão reconhecer. ..
A semelhança entre o herói e a plateia será demasiado grande, a
analogia demasiado íntima; o espectador que siga no actor o desen-
EUGÉNIO
volvimento da paixão quererá pará-Ia aÚ; onde ela teria parado
E vós também, senhora, tende cuidado com isso ... Vós exi- nele; se ela ultrapassa as suas próprias faculdades de sentir ou de
giste-lo, não sou mais responsável pelo aborrecimento .. . Eis os exprimir, não a compreenderá mais, e dirá: «É falso; eu não sinto
meus motivos: a comédia é a pintura dos costumes; o drama a das assim; quando a mulher que amo me engana, sofro sem dúvida...
paixões. A Revolução, passando sobre a nossa França, tornou os ho- sim ... durante algum tempo... mas não a apunhalo nem morro, e a
mens iguais, confundiu as classes, generalizou os costumes. Nada prova é que estou aqui. » Depois os gritos de exagero, de melo-
indica a profissão, nenhum círculo encerra tais costumes ou tais há- drama, cobrindo os aplausos daqueles poucos homens que, mais
bitos; tudo está fundido em conjunto, os matizes substituíram as felizmente ou mais infelizmente organizados que os outros, sentem
cores, e são necessárias as cores, e não matizes, ao pintor que quer que as paixões no século xv são as mesmas no século XIX, e que o
fazer um quadro. coração bate com um sangue tão quente sob um fraque de tecido
como sob uma cota de aço...
ADELA
ADELA
Está correcto.
Então, senhor, a aprovação desses poucos homens compensar-
o BARÃO DE MARSANNE -vos-ia amplamente pela frieza dos outros.

No entanto, senhor, O Constitucional... (Alexandre Dumas. Antoll)'. Auffray, 1831, acto IV , ce na vi.)

E UGÉNIO (SCIII ouvir)

Dizia então que a comédia de costumes se tornava dessa ma-


neira, se não imposs ível, pelo meno s muito difícil de executar. 47 - HEGEL: ESTÉTICA (IR32)
Resta o drama da paixão, e aqui apresenta-se outra dificuldade.
A história lega-nos factos, pertencem-nos por direito de herança, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) ensina filosofia
são incontestáveis, pertencem ao poeta: ele exuma os homens de lia Universidade de Berlim entre 1817 e 1831. O seu Curso de Esté-
antigamente, reveste-os com as suas roupas, agita-os com as suas tica (Vorlesungen über die Aesthetik) só foi publicado após a sua
paixões, que aumenta ou diminui de acordo com o ponto a que morte.
324 325

A centena de páginas que se referem ao teatro constituem a SOBRE O PRINCÍPIO DA POESIA DRAMÁTICA
abordagem filosófica mais sistemática que jamais se conheceu sobre
estes problemas. Os seus termos servem ainda de referência. A poesia dramática tem a sua origem na necessidade que temos
de ver as acções e as relações da vida humana representadas sob os
nossos olhos por personagens que exprimam essa acção através dos
1. Natureza do drama
'seus discursos. Mas a acção dramática não se limita à simples reali-
O drama, considerado em termos de conteúdo como de forma, zação de uma empresa que prossegue pacificamente o seu curso.
oferece a reunião mais completa de todas as partes da arte. Também Ela corre essencialmente sobre um conflito de circunstâncias, de
deve ser encarado como o grau mais elevado da poesia e da arte em paixões e de caracteres que desencadeiam as acções e reacções, e
geral. Com efeito, quando comparado com os materiais das outras necessita de um desenlace. Assim, o que temos sob os nossos olhos
artes, tais como a pedra, a madeira, a cor e o som, sendo apenas a é o espectáculo móvel e sucessivo de uma luta animada entre perso-
palavra digna de servir de expressão ao espírito, por seu turno, a nagens vivas, que perseguem objectivos opostos, no meio de situa-
poesia dramática, de entre os géneros particulares de poesia, é a que ções cheias de obstáculos e de perigos; são os esforços dessas per-
reúne o carácter da epopeia com o da poesia lírica. Expõe uma sonagens, a manifestação do seu carácter, a sua influência recíproca
r ,

acção completa como concretizando-se diante dos nossos olhos; e as suas determinações; é o resultado final desta luta que, ao tu-
simultaneamente, esta parece emanar das paixões e da vontade ín- multo das paixões e das acções humanas, faz suceder o repouso.
tima das personagens que a desenvolvem, Da mesma maneira, o seu Ora, o modo de concepção poética deste novo género deve,
resultado é decidido pela natureza essencial das intenções que per- como já o disse, oferecer a aliança e a conciliação I do princípio
seguem, pelo seu carácter e as colisões em que estão envolvidos. épico com o princípio lírico.
Além disso, esta combinação do princípio épico com o princí-
pio lírico, pela representação directa da pessoa humana agindo sob I - Uma primeira observação, sobre este assunto, será feita
os nossos olhos, não permite que o drama se limite a descrever, i1 relativamente ao tempo em que a poesia dramática aparece e do-
maneira épica, o lado exterior, o lado da cena, a natureza circup- mina os outros géneros. O drama é o produto de uma civilização já
dante, bem como a acção e os acontecimentos. Exige, para que a avançada. Supõe necessariamente como já passados os dias da
obra de arte ofereça uma aparência verdadeiramente viva, a sua per- epopeia primitiva. O pensamento lírico e a sua inspiração pessoal
feita representação cénica. Enfim, a própria acção, no seu conjunto, devem igualmente tê-lo precedido, se é verdade que, não podendo
pelo seu conteúdo e pela sua forma, é susceptível de dois modos de satisfazer-se com qualquer dos dois géneros separados, ele os reúne.
concepção absolutamente opostos, cujo princípio geral, servindo de Ora, para que esta combinação poética se opere, é preciso que a
base ao trágico e ao cômico, fornece os diferentes géneros de poe- consciência dos fins e dos móbeis da vontade humana, que a expe-
sia dramática.
( ... ) I S. Jankélévitch traduz por: «urna união mediatizada». (NF.)
327
326

riência das complicações ela vida e o conhecimento dos destinos aos ac ontecimentos ext eriores: el e põe em cena os sentimentos e as
humanos, tenh am sido perfeitamente acordados e de senvolvidos; o paixões íntim as da alma na sua realização exterior. Daí, por um
que só é po ssível em épocas médias ou tardias do de senvolvimento lado, o acontecimento não parece na sc er da s circunst ân cias ex te rio-
da vida de um povo. Além disso , as primeiras grandes fa çanhas ou res, mas da vo ntade interior e do carácte r da s personagens; e não
acontecimentos nacionais são de uma natureza mai s épica do qu e tem sentido dramático senão pela su a relação com objectivos e pai-
dramática. São, na maioria, expedições colectivas e lon g ínquas, como xõe s pessoais . Por outro lad o , no e ntanto, a personagem não fica fe-
a guerra de Tróia, ou as cruzadas, as migrações dos povo s, ou a chada em si mesma numa independência solitária. Pela natureza das
defesa do solo nacional contra as invasões estrangeiras, como as ci rc uns tâ nc ias no mei o das qu ai s o se u carácte r e a sua vontade se
guerras co ntra o s Persas. Não é senão mais tarde qu e aparecem es- manifestam, bem como pela do objec tivo indi vidual que per segue ,
tes heróis isol ad os e independentes, que concebem por si próprios encontra-se arrastada para uma luta com outras personagens; e, a
um objectivo de acç ão e real izam empreendimentos pessoais. partir di sso , a ac ção oferec e complicações e co nflito s que, por sua
vez, e contra a sua vontade e a sua previsão , conduzem a um desen-
II - No que respeita, em seg undo lugar, à própri a aliança do lac e no qual se manifesta a es sência própria e pro funda d as fin alida-
princípio épico com o princípio líri co, devemos concebê-la da se- de s, das pai xõe s e do s destinos humanos em ge ral. E ste e leme nto
guinte man eira : substancial é uma das faces do princípio ép ico; manifesta-se de uma
A epopeia j á apresenta um a acção a desenrol ar-se so b os nos- maneira activ a e viva na poesia dramática.
sos olhos; mas esta representa o esp írito nacional na sua subs tância b ) Por outro lad o, e m bora o homem moral e a sua natureza
e na sua totalidade, sob a forma de acontecimentos e acções de- íntim a sejam o ce ntro da representação dram át ica, e sta n ão pode
terminadas e objectivas, nas quais a vontade pessoal, o objectivo in- contentar-se co m as sim ples situações líri ca s, nem m e smo com a
div idual e a for ça das circunstâ ncias , bem como os ob stáculos exte- narrativa m ai s ou menos p at éti c a das acç õe s passadas , ou com a
riores , conservam um a importân cia igual. Na poesia lírica , pelo de scri çã o das alegrias, dos pensamentos e dos se nti m e ntos e m que o
contrário, é a pes soa que , na sua vontade independente , a parec e por homem se co nse rv a inacti vo. No drama, as situações só têm se ntido
si própria e exprime os sentimentos da sua alma. e valor pel o caracter das personagens que põ em e m relevo, e pelos
Ora, se o drama deve reunir em si estes doi s pontos de vista , só fins que persegu em . O s se nt ime ntos det erminad o s da alma humana
o pode fazer segundo duas condições: tomam e ntão. no drama. o carácter de motivações internas . de paixões
a) É preci so primeiro que , tal como a epopeia, ponha sob os qu e se des envolvem numa complicação de c irc unstânc ias ex te riores,
no sso s olhos um acontecimento, um facto , uma ac ção; mas este qu e assim se objecti vam e, por aí , rec ord am a forma é p ic a . Ma s es ta
acontecimento, que seg uia um curso fatal, deve aq u i de spojar-se acção exterior, em ve z de se con cretizar como um simples aconteci-
des se car ácter e xte rior. Como base e como princípio, deve aparecer ment o , e ncerra as inten çõe s e os es fo rços da vo ntade humana. A ac-
a pessoa moral em acção. Digo em acç ão , porque o drama não re- ção é essa mesma vontade per seguindo o se u obj cctivo, e as sim tendo
presenta o sentimento interior de uma maneira lírica em oposição apenas consci ência do resultado final. As conseq uê n ci as d os fa cto s
32 8 329

recaem sobre ela, ex ercem sobre el a a sua retaliação. Esta relação princípio senão no movimento total, combinad o de tal maneira que a
perpétua do s acontecimentos com o ca rácte r moral das personagens, colisão principal se mostre, ao mesmo tempo , conforme aos carac te-
que as explica, que constitui o seu conteúdo e a sua substân cia, é, res e aos objectivos das personagens e que de strua a sua oposição.
falando com propriedade, o princípio lírico da poesia dramática. Este de senlace deve ser, como a própria acç ão, sucessivamente
c) Deste modo, apenas a acção aparece co m o acção, como de- subj ec tivo e objectivo. É exterior ou objectivo na medida em que o
.. senvolvimento real das intenções e do pensamento da s personagens combate dos objectivos opostos encontra em s i mesmo um fim fatal.
que, na pro ssecução do s seus objecti vos, colocam a totalidade da sua Por outro lado, as personagens tendo mai s ou menos colocado a sua
existência, e por tal devem também responder por tudo o qu e acon- vontade e a sua existência no empreendimento c uj a realização pre-
tece em resultado da sua própria acção. O herói dramático tra z em tendem , o êx ito ou o insucesso , a realização completa ou incom-
si o fruto dos seu s pr óprios actos. pleta, a ruína necessária ou a conciliação pacífica das suas intenções
determinam o seu de stino na medida em que se identificaram com
as acções que foram for çadas a realizar.
2 . A lei da unidade
Não haverá então um verdadeiro desenlace senão quando o ob-
A única regra verdadeiramente inviolável é a da unidade de ac- jectivo e o interes se da acção à qual tudo se liga sejam idênticos ao
çâ o, Mas em que consiste esta unidade? Sobre isso pode levantar-se cará c ter das personagens e estejam absolutamente ligados a elas .
mais do que uma di sputa. Explicarei e ntão o seu se ntido de uma Agora, segundo a diversidade e oposição dos caracteres dr amá-
maneira mai s precisa. ticos se mantenham s im p le s ou se ramifiquem em acções diversa-
Toda a acção, em geral, deve ter j á um object ivo det erminado . mente episódicas e em personagens sec undá r ias , a unidade pode se r
Porque, desde qu e o homem age , entra, mais ou menos voluntar ia- mai s ou menos estreita, m ais O ll menos lassa.
mente, nas complicações da vida real e então o campo da sua activi- A comédia, por e xe m p lo, na complicação das suas intrigas, não
dade deve condensar-se e limitar-se. tem nec essidade de uma co nde ns aç ão assim tão forte como a tra-
É então aqui que é preciso buscar a unidade, é na realização de gédia , que, na m aior parte do tempo , decorre sobre um pequeno
um objectivo determinado e perseguido no meio de circunstâncias e número de motivo s e se distingue por uma simplicidade plena de
relações particulares . Mas, como agora vimos, as circunstâncias da grandeza. No entanto, também a tragédia romântica, sob esta rela-
ac ção dramática são de tal espécie qu e cada personagem encontra ção, é m ais variad a e de uma trama menos cerrada qu e a tra gédia
ob stáculos vindos da parte das outras personagens. Descobre no se u antiga . Mas ainda aqui a ligação dos espisódios e da s personagens
caminho um objectivo oposto ao se u, qu e busca igualmente reali zar- acessóri as deve ser fácil de reconhecer. E co m o de senlace da ac ção
-se. Esta op osi ção en gendra nece ssariamente conflitos variados e as propriament e dita, o conjunto também de ve ser fe chado c acabado.
suas complicações . Assim, por ex emplo, e m Romeu e .lul icta , a di visão das famílias
A acção dramática decorre então, essencialmente, so bre um e stá fora da pai xão dos dois amantes, do se u objectivo e do se u
conjunto de conflitos, e a verdadeira unidade não pode ter o seu de stino; ma s não deixa de ser menos a base geral da acç ão. Deste
330
331

modo, embora não seja o próprio assunto da peça, Shakespeare, ao


manifeste como tal, encontra a sua expressão adequada na linguagem
terminar, dá à reconciliação das famílias uma atenção menor e no
poética, a expressão mais ideal dos sentimentos e dos pensamentos.
entanto necessária. Da mesma forma, em Hamlet, o destino do reino
Mas, como o drama reúne em si o princípio da epopeia e o da
dinamarquês mantém-se apenas como um interesse subordinado, mas
poesia lírica, a dicção dramática deve também encerrar elementos
vê-se, pela aparição de Fortinbras, que não foi perdido de vista, e
líricos e elementos épicos. O lado lírico, em geral, no drama mo-
obtém uma conclusão satisfatória.
demo, encontra particularmente o seu lugar alí onde a personagem,
Agora, sem dúvida, o desenlace particular que termina as coli-
completamente preocupada consigo mesma, com os seus sentimen-
sões pode encerrar, por sua vez, a possibilidade de novos interesses
tos, com as suas resoluções e os seus actos, mostra nos seus discur-
e novos conflitos. No entanto, a colisão una de que se tratava, deve-
sos que conserva a consciência dessa concentração interior. No en-
ria encontrar o seu fim na obra completa em si. Deste género, por
tanto, ao mesmo tempo que exala assim os sentimentos que agitam
exemplo, são, em Sófocles, as três tragédias do ciclo tebano. A pri- o seu coração, se quiser manter-se dramática, não é preciso que pa-
meira conta a descoberta de Édipo como assassino de Laio; a se- reça unicamente preocupada consigo mesma, com as suas impres-
gunda, a morte pacífica no bosque das Euménides; a terceira o des- sões e recordações, e se entregue a divagações sem fim. Deve man-
tino de AntÍgona. E, no entanto, cada uma destas três tragédias ter-se constantemente em relação com a acção, seguir todos os seus
forma em si, independentemente das outras, um todo autónomo.
momentos. - Em oposição a este patético subjectivo ou sentimental,
existe uma patético objectivo que, por sua vez, recorda o elemento
3. A dicção dramática épico. Consiste numa linguagem menos pessoal que se dirige mais
aos espectadores, que exprime o lado substancial das relações, dos
o último ponto de que nos falta falar relaciona-se com os meios
motivos, e dos caracteres. Pode assim afectar por vezes o tom lírico;
exteriores cujo emprego é permitido pela poesia dramática, quando,
mas só se 'mantém dramático desde que não se afaste da marcha dos
ao desenvolver-se, ela se mantém no seu próprio domínio. Limitam-
acontecimentos e lhe fique estreitamente ligado. Ademais, como se-
-se, primeiro, ao modo especial de dicção que lhe pertence, depois,
gundo traço da poesia épica, as narrativas e as descrições de bata-
às distinções mais precisas do monólogo, do diálogo e da medida
lhas podem ainda entremear-se com o diálogo. Mas devem também
dos versos.
mostrar-se igualmente necessárias para o desenvolvimento da acção.
a) Com efeito, no drama, como já o disse várias vezes, não são Quanto à expressão dramática propriamente dita, é ela que me-
os factos em si mesmos que constituem o aspecto principal, mas a lhor dá a situação das personagens no combate dos seus interesses,
disposição do espírito interior da acção, tanto sob a relação das per-
o contlito dos seus caracteres e das suas paixões. Aqui, os dois ele-
sonagens e das suas paixões, dos seus sentimentos e das suas reso-
mentos podem aparecer na sua verdadeira harmonia. O que acres-
luções, dos seus conflitos e da sua reconciliação, quanto sob aquele
centa ainda ao efeito, é o movimento exterior dos acontecimentos
aspecto da natureza geral da acção, da colisão que lhe serve de base,
que é também expresso pelo discurso, dado que, na maior parte
e da catástrofe final. Este espírito interior, desde que a poesia o
das vezes, a saída e a chegada das personagens são previamente
332 33 3

anunciadas, da mesma maneira que a sua presença exterior é tam- ralidades, estas formas da convenção, e esta manifestação natural
bém indicada por outras personagens. d as part icularidades d e um carácte r qu e co nserva toda a sua rudeza ,
Uma diferença principal, so b todas e stas relações, encontra-se encontra-se o verdadeiro, simultaneamente ge ral e individual, nem
no modo de expressão c h amad o o natural, por oposição a uma formalista nem privado de originalidade, que nos satisfaz dupla-
linguagem teatral co nve nc iona l e declamatória. Diderot, Le s sing, m ente pela determinação do car ácter e pela natureza subs ta nc ia l
Goethe e Schiller, na sua juventude, viraram-se principalmente para e verdadeira dos se ntime ntos ou das paixõe s do coração humano.
o lado do natural e do real; Lessin g com um talento perfeitamente A verdade poética consiste, então, em afasta r a realidade im ediata
cultivado e um a grande perspicácia de observação ; Schiller e Gcethe d o característico e do individual , em e levá-los à generalidade e
com uma predilecção pela vitalidade im ediata, a rudeza e a força combinar em conj unto os doi s lados. Porque, no qu e respeita à di c-
sem ornamentos. Que os homens pudessem falar entre si com o fa- ção, nós também senti m o s que, sem abandonar o terreno d a reali -
lam as personagens da s tra gédias g reg as e, so bre tudo, nas peças d ade e dos seus verdadeiros traços, no s encontramos, não obstante ,
fran cesas (nes te último caso , a repreen são tinha a sua ve rdade) , é o numa outra es fera, num outro mundo ideal , o mundo da arte. Tal é a
que lhes parec ia oposto à natureza. Mas, por sua vez, o seu género linguagem da po e sia dramática grega, a do próprio Gcethe que ele
de natural podi a faci Imente, por um o utro lado, co m o supé rfl uo de adopta em seguida, a de Schiller e também , à sua maneira , a d e
tra ço s simplesmente reai s, cair na sec ura e no prosai co . Os ca rac te- Shakesp eare, embora es te deves se , aqui e ali , adequadamente ao es -
res, e ntão, não de senvolvem a substân cia d a su a alm a e da s suas ac- tado do teatro de e ntão, endereçar uma parte do di scurso à di scrição
ções, mas apenas o c onj unto dos tra ços confusos qu e rev elam ime- do actor e ao seu talento inventivo.
diatamente a sua indi vidualidade, se m ter uma cons ciência mai s alta
de si próprios e da s ua situação. Qu anto mais as personagens pare-
4 . A qu estã o do envolvimento
cem naturais sob este aspecto, tanto mai s são prosaicas. Tomai os
homen s se m educação tal qual se co m portam nos se us encontros e Um último ponto que pode se r c o ns iderad o diz respeito ao
na s Suas disputas, a ma ioria das vezes não sae m da situação indivi- poeta dram ático na sua relação com o público . A po esia épica , na
dual. São incapazes de exprimir o qu e constitui o fundo e a su b st ân- sua forma primitiva e verdadeira, quer que o poeta se apague diante
cia. E aqui , a grosse ria e a co rtesia a fec tadas são , no fundo e defini- da su a obra e não nos dê se não a co isa em s i. O cantor líri co, pelo
tivaIl1ente, equ ival entes. Se, com efe ito, a grosseria nasc e de uma co ntrá rio, ex pr ime o se u própri o s e nt ime n to, o se u pens amento
personalidade que se deixa atrair por co isas deslocadas, por defeito pessoal.
de cultura e ob ed ecendo aos primeiros movimentos da natureza , a Ora, como o drama representa a acção passando-se diante de
cortes ia, pelo contr ári o , não discorre se não so bre generalidades ba - nós , so b os nossos olhos, e qu e as personagen s falam e agem e m
nais e form as convencionais, rel ativas ao respeito, às considerações se u próprio nom e, poderia parecer que, ne sse domínio, o po eta,
devidas às pesso as, ao amor, à honra, etc ., se m que , por isso , qual- mais ainda que na epopeia, onde pelo menos aparece como narrador
quer co isa de ver da de iro e de só lido sej a express o . Entre estas gen e- dos acontecimentos, se de ve ap agar co m p le tam e nte. Esta maneira
334
335

de ver não é, no entanto, senão relativamente verdadeira. Porque,


culpa do desacordo não lhe deve ser imputada a ele, mas ao público.
como já o disse no início, o drama não deve o seu nascimento senão
Porque não tem outro dever senão seguir a verdade e o génio que o
às épocas em que, a nível do conteúdo e forma do pensamento, a
motivam. E, contanto que seja verdadeiro, a vitória, aqui como em
consciência individual já tinha atingido um alto grau de desenvol-
tudo onde se trata de verdade, em última instância, não lhe poderá
vimento. Então, a obra dramática não tem necessidade, como o
faltar.
poema épico, de parecer saída do pensamento popular, do qual não
Quanto a saber em que medida o poeta dramático se pode pôr
teria sido mais que o órgão privado de personalidade. Queremos, na
em cena face a face com o seu público, é o que não consegue ser
obra perfeita, reconhecer também a criação de um talento original
determinado de uma maneira precisa. Também, contentar-rne-ei
que tem consciência de si próprio e, por consequência também, a
recordar, em geral, que em várias épocas, a poesia dramática foi
arte e o virtuosismo de um poeta individual. É somente por aí que
igualmente utilizada para abrir caminho a ide ias novas, à política,
as produções dramáticas, em oposição às acções e acontecimentos
à moral, à poesia, à religião. Já Aristófanes, nas suas primeiras co-
reais, atingem o seu mais alto ponto de vitalidade e de acabamento
médias, empreende uma viva polémica contra a nova situação polí-
artísticos. Também nunca antes, sobre a questão dos poetas dramáti-
tica de Atenas e a guerra do Peloponeso. Voltaire, por sua vez, atra-
cos, se ergueram as mesmas disputas que sobre os autores das epo-
vés das suas obras dramáticas, procura propagar os princípios do
peias primitivas.
seu racionalismo. Mas antes de tudo Lessing, com o seu Nathan o
Mas sob outros aspectos, o público, desde que tenha conser-
Sábio, esforça-se por justificar a sua crença moral em oposição à es-
vado o verdadeiro sentido e o verdadeiro espírito da arte, não quer
treita ortodoxia religiosa. Recentemente, também Goethe nas suas
ver representados num drama, de alguma maneira, os caprichos e as
primeiras produções se elevou contra o prosaísmo das ideias alemãs
disposições acidentais, as tendências individuais e opiniões exclusi-
sobre a vida e sobre a arte; no que foi imitado muitas vezes por
vas cuja manifestação continua a ser mais ou menos permitida ao
Tieck. Se uma tal maneira de ver do poeta se revela como um ponto
poeta lírico. Ele tem o direito de exigir que, no curso e desenlace da
de vista elevado, que não se desliga da acção representada como in-
acção dramática, seja ela trágica ou córnica, o razoável e o verda-
tenção independente a ponto de que esta não surja mais do que
deiro apareçam sempre representados. Neste sentido, precedente-
como um meio, não são assim feitos nem violência nem prejuízo à
mente e primeiro que tudo, já impus ao poeta dramático essa condi-
arte. .se, pelo contrário, a liberdade poética da obra sofrer com isso,
ção capital: que saiba penetrar com um olhar profundo a própria
o poeta pode bem, por essa direcção da sua verdadeira tendência,
essência da natureza humana e o governo divino do mundo e, ao
mas independente da criação artística, produzir ainda uma grande
mesmo tempo, revelar, de uma maneira simultaneamente clara e
impressão sobre o público. Mas o interesse que excita é então de
verdadeira, a substância eterna que reside no fundo de todos os seus
um género grosseiro e tem pouca relação com aquele que pertence à
caracteres, paixões ou destinos. Com esta alta inteligência associada
arte. O caso pior é quando o poeta, cientemente e com intenção pre-
à faculdade viva de criação artística, o poeta pode, em certas cir-
meditada, quer lisonjear uma falsa tendência que domina no pú-
cunstâncias e sem contradição, colocar-se em oposição às ideias
blico, unicamente para lhe agradar, e peca assim duplamente contra
estreitas e ao mau gosto do seu tempo e da sua nação. Neste caso, a
a liberdade e contra a arte.
336 337

Para acrescentar, enfim , uma nota mai s precisa , entre os dife- indi vidualidade desaparecem, os heróis trági cos, qu er sejam os re-
rentes gé neros de poesia dramática, a tragédia não oferece a mesma pre sentant es vivos dessas esferas elevadas d a ex istê nc ia hum an a ,
latitude para o desenvolvimento da per sonalidade do poeta qu e a qu er sej am j á grandes e fort es por si mesm os na sua livre indep en -
comédia, na qual o acidental e o arbitrário da individualidade repre - dência , estão, de alguma maneira, co loc ados ao ní vel da s obras da
se ntam naturalmente um papel essencial. Assim, por exemplo, Ari s- escu ltura. Também, sob es te as pec to, as es tá tuas e as imagen s dos
tófanes, nas parábases, põe-se em relação de diversos modos com o deu se s, como se ndo ad emais de uma natureza mai s simples, ex pli-
público ateni ense do tempo. Ali , não esconde as suas opiniões polí- ca m muito melh or do qu e todas as nota s e co mentá rios os grandes
tica s, os acontecim entos e as situações do dia. Dá conselhos sábios ca rac te res trágicos dos Gregos.
ao s se us con cid adãos, descompõe os seu s ad versários e os seus ri - Assim , em ge ral, pod emos dizer qu e o ve rd ade iro tema da tra-
vais na arte, por vezes mesmo descobre publicam ente a sua própria gé d ia primitiva é o d ivino, não o divino tal qual constitui o obj ecto
pesso a e as parti cularidades da sua vida. do pen sam ent o reli gi oso e m si, mas tal co mo aparece no mundo e
na acç ão indi vidual , se m sac rificar o se u carácte r univer sal e ve r-se
5. O conflito trágico trans formado no seu co ntrário . Sob es ta forma , a substânc ia divina
da vo ntade e da acção é o e leme nto moral . Porque a moralidade ,
O verdade iro fundo da ac ção trági ca , quanto aos fins qu e per- quando a captamos na sua realidade viva e imediata e não sim ples -
seg ue m as personagen s trá gica s, compreende- se no círcul o da s po- mente do ponto de vista da refl exão pessoal c o m o verdade abs-
tências, em si legítimas e verdadeiras, qu e det erminam a vontade tract a, é o divino reali zado no mundo. É a subs tâ nc ia e terna, da qu al
humana. São os afec tos de família, o amor co nj ug al, a piedade filial , os lad os, simultane ame nte particulares e ge ra is, co ns titue m os gran-
a ternura paternal e mat ernal, o amor fratern al , etc .; igualmente, as de s m óbei s da actividad e ve rdade iramente humana. Na acção de-
pai xões e os interesses da vida civil, o patrioti smo de cidadãos, a se nvo lve m-se, reali zam a sua essênc ia.
autoridade do s chefes de Estado. Há mai s, é o próprio se ntime nto Ora , e m virt ude d o princípio da parti cularidade à qu al es tá
religioso, não toda via so b a forma de um mi sti ci sm o resignado o u submetido tud o o qu e se desenv olv e no mundo real, as pot ên cias
co rno obedi ên cia pa ssiva à vontade divina , m as pel o co n trário, morai s qu e co nstitue m o ca r ácter das person agens são, prim ei ro ,
co mo ze lo ardent e pelos interesses e rela ções co m a vida rea l. Eis o defe rentes q uanto à s ua essência e à sua m an ifest ação individu al.
qu e faz a bondade moral do s verdade iros caracteres trágicos. Eles A lé m d isso, se essas pot ên cias particul ares, como o ex ige a poesia
são ass im o que podem e devem ser seg undo a sua ideia. Não o fere- dramática, são cha madas a ag ir à luz do dia, a re al izar-se co mo fim
ce m um co nj unto co mpleto de qualidades desen vol vendo-se em d i- de te rm inado de um a paixão hu m ana qu e passa à acç ão, o seu
versos se ntidos de uma man eira épica. Em bo ra vivos e ind ividu ais acordo es tá destru ído, e nt ra m em luta um as con tra as o utras, a sua
em s i, representam uni camente a pot ên ci a de sse carác te r det e r- hostil id ade rebent a de di versa s mane iras. Enfim, a acção indi vidu al
min ad o qu e se identifico u co m qualquer lad o particular do fund o deve re present ar, em c irc uns tânc ias determinad as, um fim ou heró i
substanc ia l da vida. A es ta altu ra em que os simples acid entes da principal. Ora, nesta s co nd ições, precisam ente este, porque se isol a
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na sua detenninação exclusiva, s usc ita necessariamente contra si a 6. A comédia


paixão oposta e , por aí, geram-se conflitos implacáveis.
Originariamente, o trágico consiste em que, no círculo de uma Na tragédia, o princípio eterno e substancial das coisas aparece
coli são deste tipo, os partidos em oposição, tomados em si mesmos, vitorioso na sua harmoni a íntima, dado que , destruindo na s indi-
têm a justiça do seu lado. Ma s, por outro lado, não podendo realizar vidualidades que se combatem o se u lado fal so e ex cl us ivo, repre-
o que há de verdadeiro e de po siti vo no seu fim e no se u carácter senta, no se u acordo profundo, as ide ias verdadeiras qu e perseguiam
sen ão como negação e violação da outra potência igualmente justa, as personagens. Na Co média , pelo contrário, é a per sonalidade ou a
encontram-se, apesar da sua moral idade ou antes por c a us a dela, subjcctividade que , na sua segur ança infinita, conserva a preponde-
arra stados a cometer erros. rânc ia. Pois não há mai s do qu e esses dois momentos principais da
Já indiquei anterionnentc a razão deste conflito. Ora, em bora acç ão que podem. na divi são d a poesia dramát ica , op or-se um ao
form ando o fundo substancial e verdadeiro da exi stência re al, ele só outro como g éneros diferentes .
se justifica e legitima destruindo-se como contradição. Portanto, Na tragédia, as personagens consumam a sua ruína pelo meio
quanto mais legítimo é o fim e o carácter trágico, tanto m ais é ne- exclusivo da sua vontade e do seu carácter por outro lado sólido, ou
então devem resignar-se a admitir aquilo a que se op õem. Na comé-
cessári o o desenlace deste conflito. Através dele, com e fe ito, exer-
di a, que nos faz rir de per sonagens que falham no s seus próprios
ce- se a justiça eterna sobre os m oti vos individuais e as pai xões dos
es forços, aparece no entanto o triunfo da personalidad e a po iad a for-
homens. A substância moral e a s ua unidade restabel ecem-se pela
tem ent e so bre si própria.
de stru ição das ind ividualidades que perturbam o se u repou so . Por-
O terreno ge ra l qu e co nvé m à coméd ia é, por consequênc ia,
que, embora os caracteres se proponham um obj ectivo legítimo em
um mundo no qual o homem, com o pessoa livre, se tomou perfeita-
si, não podem, no entanto, reali z á-lo se não violando outros d ireitos
mente se nh or daquilo qu e , além do mais , forma o fund o essencial
que se excluem e contradizem .
do seu pensamento e d a sua ac tividade, um mundo e m qu e o s fin s
Deste modo, o princípi o verd ad eiramente subs tanc ia l que se
se de stroem porque têm falta de uma base sólida e verdadeira. Um
deve realizar, não é o combate dos interesse s particul ares, embora
povo democrático, por exe m p lo, co m o s se us burgue se s ego ís tas,
es te enco ntre a sua razão de ser na própria ide ia do mundo real e da
bisbilhoteiros, frí vol os, fanfarrões e va id osos nã o se pode re velar,
actividade humana; é a harm onia na qual as personagens, com os destrói -se na sua própria tont ice .
seu s fins det erminados, agem de ac ordo , se m violação nem oposição. No entanto, toda a acção não é logo cómica só porque é vã e
O que é destruído no desenlace trágico é apenas a individual idade falsa. Sob est e aspect o, o risivct é muitas vezes confundido com o
exclusiva , que não se pod e acomodar a essa harmonia. M as então verdadeiro cômico . Tod os os co ntraste s entre o conteúdo e a forma,
(e é isso que faz o trágico dos se us actos), não podendo renunciar a si o objectivo e os meios pod em ser risíveis. É um a co ntrad ição pela
própria e aos seus projectos, e la vê- se condenada a uma ruína total, qual a acção se destrói a si própria c o objectivo se aniquila ao reali-
ond e ao menos é forçada a resignar-se, como pode, ao cumprimento zar -se. Mas, para o c ômico, devemos exigir uma condição mais pro-
do se u destino. funda. Os vícios do homem , por exemplo, não têm nada de cômico.
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A sá tira, qu e traça , com cores enérgicas, o quadro do mundo real na sa lie ntes e desgastá-l os um com o outro. A personal id ad e individua l,
sua o posição à virtude, dá-nos uma prova manifesta. A tontice, a em ve z de agir co m um a maldade c órnica, com pe netra-se da se rie -
extrav agância, a inépci a tomadas por si , não podem de facto se r c ó- dade das relações só lidas e dos ca racteres firmes. E nq uanto adoça e
rnicas , e mbora às vezes faç am rir. Em gera l, não há nada de mai s ap la na a força trágica da vo ntade e da pro fund idade da s col isões, a
oposto que as co isas da s qu ais os hom en s cost umam rir. Os gracej os ponto d e pode r che gar a uma conc iliação d o s interesses e a um a
mai s se nsaborões e do p ior mau gos to têm esse pri vilégio. Muitas harmon ia dos fin s e das personagen s.
vezes se ri igua lme nte das coisas ma is importantes e da s verd ad es O teatro e o Drama m odernos têm part icularmente a sua OrI-
mai s profundas, quando um pequeno lad o insignificante aí se des- ge m ne ste modo de concepção. A profundidade, ne ste prin cípio, é
cobre qu e es teja e m contradição co m os nossos há bitos e as nossas es ta ide ia : que , apesar d as o posições e do s con fl itos, um a ex istê nc ia
idei as diári as. O riso n ão é, ent ão, mais do qu e um a manifestação da e m s i c heia de harm oni a se reali za pel a ac tividade humana. Já os
sa bedoria satisfe ita, um s inal que anunc ia q ue so mos tão sá bios qu e antigos tinham tragéd ias que o ferec iam um desen lace seme lha nte
compreende mos o co nt ras te e nos damos conta del e . Do mesmo dado qu e as per sonagens, e m vez de sere m sacr ificadas , conserva-
modo , existe um riso de troça, de desdém, de desespero, etc . Pelo vam aí a sua existê ncia e o s seus d ireitos. Assim, por exemplo, o
contrário, o que carac ter iza o cómico é a sa tisfação infinita, a seg u- A re ópago, na s Eu m énides de Ésq uilo , con cede às duas parte s, a
ran ça qu e experi me ntamos por nos se ntirmos e levados ac ima da pró- A polo e às virge ns vi ngadoras, um igua l dire ito a receber honras.
D a m esm a manei ra no Filoctetes, o de bate entre Fil o ct etes e Neopt ó-
pri a co ntradição e de não es tarmos num a si tuação c ruel e infeli z. É a
lemo acalm a-se co m a ap ari ção e co m o conselho de Hércul es, que
feli cidade e a satisfação da pessoa que, segura de si mesm a, supo rta
os le va aos dois par a o cerco de Tr óia. M as, aq ui, a conc iliação ve m
assisti r ao falh anço do s se us proje cto s e a da sua reali zação . A razão
do exte rior por orde m d os deuses, não tem a sua fonte interior na
estreit a e afectada é a menos capaz dis so, precisamente aí onde, na
determ in ação das próprias partes; ao passo que , no teatro moderno,
sua sa tisfação de si pró pria, se toma ma is risível pa ra os o utros.
são as person agen s qu e , pelo conc urso das s uas próprias ac ções, são
cond uzi das a es sa cessação do com bate e a esse acordo mútuo do s
7. O g énero interm édio se us fin s e dos seus caracteres. Sob es te asp ec to , a Ifig énia de Goethe
é um ve rdadei ro modelo poéti co des te gén e ro de es pectác ulo, mai s
Na poe sia dramát ica mod ern a, o trá gi co e o c órnico estão ainda
a ind a qu e o seu 7llSS0. Porque, nesta última peça, primeiro, a rec on-
mai s e ntretec idos , porqu e aqui, mesmo na tragédia , o prin cí pio d a
c iliação com A ntónio é um a q uestão se ntimenta l. R esulta de qu e se
per son alidade qu e, no có mico. se dese nvo lve sozi nho , se reve la na-
reconhece qu e Antó nio possui a razão po siti va qu e fa lta ao caracte r
turalment e co mo dominante e recalca o e le me nto substa ncia l q ue de Ta sso . Por o utro lad o , os d ireit os da vida ide a l, qu e tinham lan -
faz o fundo das potê nc ias mora is. çado Tass o em opos ição à realidade, à habilid ad e vu lgar e às co nve-
Ma s a co mbinação ma is pro funda do trágico c do c ómico, para niências, são con servadas. Mas es ta conci liação e st á antes sim ples-
form ar um novo todo, não con siste em co loc ar os dois element os ao m ente no es pírito do e spect ador; esta idei a só aparece sob a fo rm a
lad o um do outro ou em e ntrelaçá-los, mas si m em suprimir as arestas de ad mi ração pelo poet a e do int eresse qu e se liga ao se u dest ino .
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Em geral, os limites deste género interm édio são mais flutuantes os libretos e participava na sua encenação . Deixou alguns textos
do que os da tragédia e da comédia. Depois corre-se aqui o perigo, teóricos importantes, em particular A Obra de Arte do Futuro (1850)
seja de sair do tipo puramente dramático, seja de cair no prosaico. e Ópera e Drama (1851) . É nestes textos que propõe a noção de
Com efeito, como os conflitos, pela simples razão de que, atra- Gesamtkunstwcrk ou síntese das artes: o que define o drama, a arte
vés do seu próprio desacordo, devem acabar na paz, não oferecem total, é a união da música, da mímica, da arquitectura e da pintura
desde o início o espectáculo de um a violenta ho stilidade trágica, para a realização de um fim com um - oferecer ao homem a imagem
parece as sim que o poeta terá facilmente preparado a ocasião de do mundo (é a partir destas ideias de hase que será con cebido o
fazer desenrolar todo o interesse da s ua representação sobre o lado Festspielhaus d e Bayrcuth}. A obra de Wagner intervirá com o ponto
interior dos caracteres, e fazer do avanço das situações um simples privilegiado de referência em te óricos co mo Appia e , em menor
meio para esses retratos de caracteres. Ou então, pelo contrário, vira- gra u , em Craig . ou nas tentativas d e «tea tro total» e d e «tea tro abs-
-se para o lado e xterio r e dá às situações e aos co stumes do tempo tracto » como as da Bauhaus .
uma importância preponderante. E se acha ainda um e outro muito
difíceis, limita-se a excitar a aten ção pel o simples int eresse das
o Drama e a união das artes
complicações dos acontecimentos marcantes.
A este círculo pertence uma multidão de peças modernas que Assim, a ilusão das arte s plásticas tomou-se a verdade no drama:
têm menos pretensões à poe sia do que ao e fe ito teatral . e que, em o artista plástico estende a mão ao bailarino , e ao mimo , para se
vez de aspirar à emoção verdadeiramente poética e verdadeiramente tomar ele próprio, para ser ele mesmo b ailarino e mimo. - Tanto
humana, têm por único fim, tanto o divertimento, quanto o melhora- quanto esteja no seu poder, este deverá manifestar à vista do homem
mento moral do público, ma s sobre tud o porque fornecem ao actor a interior o que vê e o que sente. É a ele que pertencem, em toda a
ocasião variad a de mostrar, de uma maneira brilhante, o v irtuosi smo sua extensão e profundidade , a superfície da cena, onde m o stra a
do seu talento e a sua habilidade. sua forma e o se u movimento pelo meio da representação plástica,
seja isolada, seja em sociedade com os colaboradores da represen-
(Hegel, La Po étiquc; trad . de C h. B énar d, Librair ie Philosophique de Ladr an ge, 1855 , tom o se
gundo ; I: pp, 2-9 ; 2: rr. 17-20; 3: rr- 24 -28; 4 : pp. 41-44 : 5: pp, 70 -13; 6: pro76 -7X: 7: pp . 83-
tação. Mas, ali onde acaba o seu poder, a li onde a plenitude do seu
-85. Veja-se tam bém H e g e l.l:"stllétir///C. trad. de S . J ank él évit ch. Ch arnp s-Fl ammar ion , vo l. 4 .; querer e do seu se ntimento o obriga a fa zer manifestar-se o homem
Te xto usado e m a po io it tradu ção po rtu gue sa : He g el . E suinca -Pocsia , Ir ad . d e A lva :o
Ribe iro. Lisb oa , Guimar ãe s, 1980. pr. 277 -372 . (N.T.)
interior pela linguagem, a palavra e x prim irá conscientemente a sua
intenção : ele será poeta, e para ser poeta, músico. Bailarino, músico
e artista, ele não é mais que uma e a mesma co isa, e nada mais do
qu e um homem artista que representa , que se co m unica. de a cordo
48 - WAGNER : A OBRA DE ARTE DO F UTURO (1850 ) com a soma d e todas as suas faculdades , co m a mais alta fa culdade
da imaginação.
Richard Wa gn er (1813 -/ 883) , m úsico al emão, não se co nten- Nele, actor [agindo) se m intermediário, confundem-se as três
lava em escre ve r a m úsica das suas óp eras , mas co mp unha tamb ém artes irmãs, para uma acção c om um em que a faculdade suprema de
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cada uma atinge o seu mai s alto de sabrochar. Agind o em conjunto , com um, todas as três e lev arão a vo ntade do drama a act o direct o ,
cada uma delas obtém o poder de ser e de poder faz er precisamente poderoso. Porque ha verá um a coisa para todas elas, para os três
o que e las desejam se r e poder faz er segundo o se u carácter parti- gé ne ros de art es reunidas. uma coisa qu e e las deverão qu erer para
cular. Pelo fact o de qu e cada uma se pode ab sorver na outra, quando se tomarem livres no s se us poderes, e isto é preci samente o Dram a :
o se u poder particular acaba, conse rva-se pura, livre e independente, é importante para elas alcançar a intenção do drama. Se estão cons -
tal qual é . O bailarin o mi mo fica livre da sua incapacidade a partir cie n tes desta intenção, se não fazem mai s qu e conc e ntra r o se u qu e-
do momento em qu e pode cantar e fal ar ; g raç as ao mimo, as cri a- rer na execução desta int enção , receberão também a força de cor tar
ções da mú sica alcançam uma interpretação int eligível para todos, de todos os lados do seu próprio tronco os rebentos eg oístas da su a
da me sma man eira qu e pela palavra do p oeta e isto, na medid a natureza particular, para ev ita r qu e a árvor e cresça informe em todas
mesmo e m que la m úsica] e la própria pode pa ssar no gesto do pan - as direc çõe s, e a fim de qu e se eleve orgulhosamente até ao ci mo a
tomimo e na pal avra do poeta. Ma s o poeta não se torna verdadeira- sua coroa de troncos, ramo s e folhagem.
mente homem senão qu ando pas sa para a carne e sangue do actor; O homem isolado , são de corpo , de coraç ão e de espírito , nã o
se ele designa par a cada m an ifestação art ísti ca a inten ção qu e as pode experimentar uma necessidade mais elevada que aquela que é
une todas em conjunto e as dirige para um fim co m um, essa inten- com um a todos o s se us semelhantes; porque es ta nece ssidade , se for
ção de querer só se torna poder pelo facto de qu e essa vontade p o é- um a verdade ira nece s sidade, não pod e ser se não aq ue la qu e e le
tica desaparece /l O p oder da interp reta ção , só poderá satisfazer na co m u n id ade . O ra , a necessidade mai s ur-
Não haverá uma fac uldade ricamente de senvolvida de cada uma gen te e mai s forte do homem perfeito, artista, é a de se com unicar a
das artes qu e fique inutilizada na o bra de a rte universal do futuro, s i me smo na plenitude d a s ua nature za, à com uni d ade tod a inteira e
po rqu e é nela qu e alcançará o seu valor pleno. Assim, so bretudo a não conseg ue fazê-lo por um e nte ndime nto ge ra l necessário senão
art e mu sical, qu e se desenvolve de um a maneira tão particular e tã o no dram a. No drama , e le e nriq uece o se u caráct er p arti cular re pre-
variada na música instrumental, poderá de senvol ver-se da manei ra
se nta ndo um carácte r ind ividu al d iferen te de si m esmo, co mo um a
mais ri ca nesta obra de arte ; por sua vez , ela própria s ugerirá à
personalidade humana d e carácter ge ral. Dev e sa ir d e s i pr ópri o
dan ça pantom ím ica inven çõe s abso lutame nte nova s e dará ao fôleg o
para a barc ar um a personalidad e qu e lhe sej a es tranha e m todas as
da poes ia uma abundâ nc ia não menos inesp erada. (... )
suas característi ca s própri as, tão co m pletame nte quanto nec essári o
A ssim, com pletando -se mutuamente na sua ronda alt ernada, as
a fim de pod er repre sent á-l a ; nã o o co nseg u irá se nã o perscrutar
artes irmãs reuni das far-se-ão ver e valer, tanto [todas] em conj unto,
esse indivíduo nas suas rel ações e no se u contacto com os outros, e
tanto a pa r, quanto isoladam ente, seg undo a nece ssidade da ac ção
descortinar o se u com ple mento noutras individualidades; ass im, por
dramática que, so zinha. imporá a medid a e a le i. Ora a pantomima
co nseq uê nc ia, es tuda e observa o ca rác te r dessas outras ind ivid ua-
plásti ca esc utará os raci ocíni os se m pai xão do pensamento, ora a
lidades, e m s i, co m tanta minúcia e vivac iade qu e lhe sej a possível
vontade do pen samento decidido se difundirá na e xpre ssão imediata
dar-se conta dessa s rel açõe s , desse co ntac to e desse co m pleme nto,
do gesto; ora a mú sica te rá que ex primi r sozin ha o c urso do sen-
por sim pa tia, no se u próprio se r; o ac to r arti sta perfeito é por conse-
timento, o arre pio da e moção; ma s e m bre ve também, num e n lace
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guinte O indivíduo acrescido até ao carácter da espécie, segundo a O Coro e o herói


riqueza do seu carácter individual.
No fundo, o fenómeno estético é simples: se temos o dom de
O lugar onde este acontecimento maravilhoso se realiza é a
perceber sempre o jogo vivo das figuras e de viver sem cessar cer-
cena teatral; a obra de arte universal que ele engendra é o drama.
cados de toda uma coorte de espíritos ~ somos poetas; se experi-
Para desenvolver nesta obra de arte una e suprema o conteúdo da sua
mentamos a necessidade instintiva de nos metamorfosearmos e de
natureza particular até ao seu máximo, o artista isolado, da mesma
nos exprimirmos através de outros corpos e outras almas - somos
maneira que a arte isolada, deve suprimir em si toda a tendência
dramaturgos.
egoísta arbitrária que procura usurpar o espaço e comprometer o
Ora, este dom, esta faculdade de nos vermos assim cercados de
conjunto, a fim de tanto melhor poder concorrer para o fim superior
uma coorte de espíritos com os quais nos sentimos em comunhão
comum que, de outro modo, seria absolutamente irrealizável caso
profunda, a emoção dionisíaca é capaz de a comunicar a uma multi-
cada indivíduo não se moderasse de tempos a tempos.
dão inteira. Está aí o processo mesmo da formação do coração
Ora, esta intenção [que é] a do drama, é ao mesmo tempo a
trágico - e é este o fenómeno dramático original: assistirmos nós
única intenção verdadeiramente artística que pode ser realizada: o
próprios à nossa própria metamorfose e agir desde então como se
que lhe é estranho deve perder-se necessariamente no oceano do in-
tivéssemos efectivamente entrado num outro corpo, numa outra
certo, do ininteligível, do não-livre. E esta intenção não é atingida
pessoa. Assim se inaugura a evolução do drama. Passa-se aqui uma
por um só género de arte, mas unicamente por todas ras artes I em
coisa diferente do que acontece com o rapsodo, o qual não se
comum; é por isso que a obra de arte mais geral é, ao mesmo tempo,
confunde com as imagens que produz, mas que, à semelhança do
a única que é real, livre, quer dizer universalmente inteligível.
pintor, as olha à distância com um olhar prescrutador: porque aqui,
(R. Wagner. Oeuvres cn prose Ill, trad. de J. G. Prodhomme e Dr. Phil. F. Holl, Paris, Dela- a penetração numa natureza estranha supõe já que o indivíduo tenha
r
grave, 1907. L' CCllvre d' art de avenir, pp. 224·227.) renunciado a si mesmo. E de facto, um tal fenómeno impõe-se
como uma epidemia; toda uma multidão fica possuída. Aqui, de
resto, está o motivo pelo qual o ditirambo difere essencialmente de
todas as outras formas de canto coral. - As virgens que vão a cantar
49 - NIETZSCHE: A ORIGEM DA TRAGÉDIA (1871) solenemente o seu hino processional até ao templo de Apolo com
um ramo de louro na mão, mantêm-se o que são e guardam a sua
Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão, ocupa 11m identidade. Mas o coro ditirâmbico já é um coro ele seres mctarnor-
lugar importante /lO campo da estética teatral com A Origem da Ioseados, que esqueceram completamente o seu passado de cidadãos
Tragédia (1871 ). A célebre distinção que estabelece entre o apolinio e a sua posição social e que, pondo-se a viver fora ele qualquer es-
e o dionisíaco - dos quais, segundo ele, a tragédia grega representa trutura social, se tornaram nos servidores intemporais do seu deus.
a síntese - não deixará de alimentar a reflexão contemporânea so- Todas as outras formas elo lirismo coral nos Gregos não são mais
bre o teatro, C/1/ particular em Artaud e alguns dos seus herdeiros. elo que uma imensa amplificação do aedo apolíneo. No ditirambo
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defrontamo-no s com uma co munida de de actores inconscientes, qu e importante mesmo que a acção propriamente d ita. Não é ra mos mais
são mutuamente testemunhas da s suas própria s metamorfoses. capazes de estar de acordo em dar-lhe esta importân cia e esta origi-
A po ssessão é, por consequên cia, a condição prévia de toda a nalidade tradicionalmente atestad as, porque o co ro e ra com posto de
arte dramática; possuído, o exaltad o por Diónisos vê- se como sá tiro seres sub alte rn os e servos - e m esmo, no início, de sátiros com as-
- e co mo sá tiro, então, ele vê o deus. O que sign ific a qu e, metamor- pecto de bodes. E a situ aç ão d a orquestra, diante da cena, mantinha-
foseado, e le apercebe, exterior a si, uma nova visão que é a concre- -se para nós um enigma. A gora, em contrapartida, sa be mos que a
tização apolínea do seu estado. É co m es ta no va vi são que o drama ce na, aí incluindo a ac ção , foi , no fundo , sim plesmente pensada, na
acaba de se constituir. o rigem , co mo visão e que a única realidade é, just amente, o coro
Robustecidos por esta ce rteza, é- nos agora nece ss ári o com - qu e faz nascer fora de s i essa vi são e que fala del a com todos os re-
preender que a tragédia grega não é outra coisa se não o co ro di on i- c urso s s im bólicos da dan ça , da música e do ve rbo. N a sua visão, é
síaco a carregar-se incessantem ente de imagens num mundo apolíneo Di ónisos quem o coro a pe rcebe, o seu Senhor e m estre - e é por isso
constantemente renovado. As part es corais entrelaçadas na tragédia qu e se mantém sempre um coro de servos. Mas e le vê- o, esse deus,
são então, de uma certa maneira, a matriz de tudo o qu e se chama a sofrer e a tornar-se magnífico - e é por isso qu e e le próprio não
diálogo - quer dizer, a matri z do conjunto do mundo c énico, do age. E embora ele estej a enfim nessa posição de se rv id ão total rela-
drama propriamente dito. Por des cargas suce ssivas, es se fund o ori - tivamente ao deus, não é m enos a expressão mai s alta da natureza,
ginário da tragédia irradia a visão do dr ama, a qual é seguramente, quer dizer, a sua expressão dioni síaca - e é por isso qu e , como ela,
de parte a pa rte , uma mani festação de sonho - e , nesta medida, de so b a influência da insp iração profere oráculos e se nte nç as . Porque
natureza épi ca - , mas que , por outro lado, v isto que é obj ecti vação ele é o compassivo , é também o sá bio que anuncia essa ve rdade jor-
de um es ta do dionisíaco, representa não a libertaç ão ap olínea na rando do mais fundo d o mundo. Porque é assim qu e toma nasci-
aparên cia, mas , pelo contrári o, a deslocação do indivíduo e a s ua m ento essa figura, fantástica e tão chocante à primeira vista, do sá-
união com o ser originário. Por aq ui mesmo, o drama é a materiali - tiro sá b io e inspirado qu e é ao m esmo tempo , por opos ição ao deus,
zação apolíne a de tudo o qu e pod e se r co nhe c ido ou experiment ad o o « h um ano estúpido», - a imagem da natureza e d as suas pulsões
no estad o dioni síaco, - o qu e o se pa ra, como por um abi sm o inso n- mai s v igo ros as, ou melhor, o s ím bo lo da nature za e mensageiro da
dável , da epope ia. sua sa bedo ria e da sua arte - músico , poeta, bailarino e vide nte numa
Ma s é o coro da tra gédia grega, o sím bo lo da multidão tod a in- só pesso a.
teira presa da emoção dioni s íaca, qu e enc ontra na nossa man ei ra de Desta interpretação , com o da tradição , re sulta qu e Di ánisos. o
ver a sua explicação plena. Habituados como estávamos até aq ui herói propriament e dit o d a cena e o centro d a vi sã o, nã o está de iní-
à fun ção reservada ao coro so bre a cena moderna, em parti cular c io , no período mai s anti go da tragédia, verdadeiramente presente
na óp era, não podíamos ab solutamente compreender - da maneira e m cena, mas é simplesmente representado como presente. Por outras
que ap esar de tudo ressalta claramente da tradição - como o coro palavras, a tragédia na sua origem é apenas «coro » , e não «drama».
tr ágico dos Gregos podia se r mai s antigo , mais originári o , m ai s Todavia, mais tarde, es fo rça r-se-ão por mostrar re a lme nte o deus e
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apresentá-lo em cena, visível a todos os olhos, a própria figura da figur a épica, clara e firme; e não é m ais daí em diant e por int erm é-
visão com o cená rio que o exalt a. É entã o qu e começa o «d ram a» dio ap en as das fo rças qu e se ex prime Di ónisos , mas como heró i
no sentido restrito. Daí em diante , o coro ditirâmbi co terá po r tarefa épico, quase na língua de Homero.
estimular a disp osição dionisíaca do aud itór io até ao ponto em qu e.
(F . Nie tzsche, La naissance de la tra g édie , trad . de Mi ch el Haar , Phil ipp e La coue-Labart he e
aparecend o o herói trágico sobre a cena, não seja o homem enfarpe-
Jean -Luc Nancy, Par is. Galli ma rd, 1977. pp. 73 e se g uintes :)
lado ridiculamente com uma máscara d isforme que ele veja, m as a Edição portuguesa : F. Nie tzschc, A Orig em da T ragédia . trad, de Á1~aro R ibe iro , Li sboa.

figura de um a visão por assim dizer nascida do seu próprio êx tas e. G uim arães, 1988. (N.T.)

Pensemo s em Adme to, imaginem o-lo abismando-s e na rec o rdação


de Alce ste, a esposa desaparecid a, e con sumindo-se a evocar se m
fim os seus traços: de repente aproxi m am del e , dissimulad a so b um
vé u, a im agem de um a mulh er c om a m esma e st atu r a, c o m o 50 - ZOLA: O NATURALISMO NO TE ATRO (1881)
mesmo mod o de andar. Imaginem os então a sua pertu rba ção s úbi ta ,
a sua inqui etaçã o tem ero sa, a sua co m paração febril e a sua certe za Émile Z ola (1 840-190 7) escrito r fran cês , f oi o teórico do na-
instintiva - e ter em os o próprio ana logon do sentimento qu e arre- tu ralism o. P rin c ip alm ente co nhecido pela s ua o bra roman es ca ,
bata o espec tador em presa de Diónisos qu ando via avan çar so bre a preocupou-se no entanto , desde mu ito cedo , com a introduç ã o do
ce na o deu s ao so frimento do qual se tinha já assoc iado . Involunta- naturalism o no teat ro , e a pa rtir de 1865 toma posição contra Dumas
riamente, tran sferia sobre essa fig ura m ascarad a a imagem m ági ca Filho para afirmar que o teatro pode representar o real em toda a sua
do deu s que vibrava diante da sua a lma e di ssol via a realid ad e numa brutalidade . C hega m esm o a esc rever um a p eça , Madalena (1865),
espéc ie de irreal ida de espectral. Tal é o es tado do so nho apolíneo, que será levada à ce na em 1889 por A ntoine no Th éâtre Libre, mas
no qual velando -se o mund o do di a , um o utro mun do se oferece aos trabalha so bretudo na adaptação dos seus romance s p ara a cena
nossos olh os numa incessante tran sformação, mais claro, m ais di s- (po r exe mp lo, Th érese Raquin , em 1873 ). A p artir de 18 76 , na su a
tinto, mais arrebatad or e portanto m a is se melhante a um a so mbra .
Revista dramática do Bem Público e depois em Voltaire , emp reende
Daqui vem a opo sição estilística nítid a qu e o bse rvamos na tra géd ia :
lima verdadeira batalha p elo na turalismo no teatro . É adema is o
linguagem , cor, movim ento, dinami smo do d iscurso partilham -se.
título que dará ao primeiro de do is volumes nos quais reun irá , em
entre o lirism o do co ro e o sonho apo líneo da ce na, em esfe ras de
1881 , os se us arti gos . Se mpre em conflito co m o crítico Sarccy, sus -
ex pressão radicalmente di stint as . As aparições apo líneas e m qu e
te ntáculo do teatro reinante herdado do passado , Zola opõe-lhe a
Diónisos se objectiva não são mai s um mar eterno , lima trama mu-
necessida de de um teatro 110\'0 qu e seria «o verdadeiro drama da
tável , lima vida arde nte como o é a mú sica do coro. Não são m ai s
so ciedade mo derna », ca paz de ultrapassar o psi cologi smo pa ra
as forças qu e ape nas se pressentem e q ue ainda não se co ndensaram
em imagens, em qu e o servo inspirad o por Di ónisos ex pe rimenta a «descer à aná lise experimenta l e ao es tu do a na t ômico de cada se r»
pro ximidade dos deu s. O qu e agora lhe fal a , vi ndo da ce na , é a _ cada ser tomado na rea lidade do se u m eio e da sua psicologi a .
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o meio e a personagem atravanca a nossa literatura. Pelo contrário, o esforço toma-se muito
custoso quando se quer um herói real, sabiamente analisado, de pé e
Todas as fórmulas antigas, a fórmula clássica, a fórmula ro-
agindo. Eis sem dúvida a razão por que o naturalismo aterroriza os
mântica, baseiam-se no arranjo e amputação sistemáticos do verda-
autores habituados a pescar os grandes homens nas águas turvas da
deiro. Tomou-se por princípio que o verdadeiro é indigno; e tenta-se
história. Ser-lhes-ia necessário escavar a humanidade demasiado
retirar dele uma essência, uma poesia, sob pretexto de que é preciso
expurgar e engrandecer a natureza. Até agora, as diferentes escolas profundamente, aprender a vida, ir direito à grandeza real e pô-Ia a
literárias bateram-se apenas sobre a questão de saber com que más- trabalhar com mão poderosa. E que não se negue esta verdadeira
cara se devia vestir a verdade para que ela, em público, não tivesse poesia da humanidade; foi libertada no romance, pode sê-lo no tea-
o ar de uma desavergonhada. Os clássicos tinham adoptado o peplo. tro; só falta encontrar-lhe uma adaptação.
os românticos fizeram uma revolução para impor a cota de malha e ( ...)

o gibão. No fundo, estas mudanças de vestuário são pouco impor- Seguramente, não me posso pronunciar sobre a forma que to-
tantes, o carnaval da natureza continua. Mas, hoje, chegam os natu- mará o drama de amanhã; é ao génio que é preciso deixar o cargo de
ralistas e declaram que o verdadeiro não tem necessidade de roupa- falar. Mas permitir-me-ei, no entanto, indicar a via pela qual penso
gens; deve avançar na sua nudez. Aqui, repito-o, reside a querela. que o nosso teatro se encaminhará.
( ... ) Trata-se primeiro de abandonar o drama romântico. Seria de-
Tomai então o meio contemporâneo e tentai fazer os homens sastroso retomar os seus processos de exagero, a sua retórica, mesmo
viver aí: escrevereis belas obras. Sem dúvida, é preciso fazer um a sua teoria da acção, às custas da análise dos caracteres. Os mais
esforço, é preciso libertar da confusão da vida a fórmula simples do belos modelos do género não são mais, como foi dito, do que ópe-
naturalismo. Eis aqui a dificuldade, fazer coisas grandes com assun- ras de grande espectáculo. Creio portanto que se deve recuar até à
tos e personagens que os nossos olhos, acostumados aos espectá- tragédia, mas não, bom Deus!, para lhe retomar agora a sua retórica,
culos de cada dia, acabaram por achar pequenos. É mais cómodo, o seu sistema de confidentes, de declamação, de narrativas intermi-
eu sei, apresentar uma marioneta ao público, chamar à marioneta náveis; mas para regressar à simplicidade da acção e ao único es-
Carlos Magno e enchê-Ia a um tal ponto de tiradas, que o públ ico tudo psicológico e fisiológico das personagens. O quadro trágico as-
imagina estar a ver um colosso; isto é mais cómodo do que pegar sim entendido é excelente: um facto desenrolando-se na realidade e
num burguês da nossa época, um homem grotesco e mal arranjado e suscitando nas personagens as paixões e os sentimentos cuja análise
tirar dele uma poesia sublime. fazer dele, por exemplo, o Pai Goriot, exacta seria o único interesse da peça. E isto no meio contemporâ-
o pai que dá as suas entranhas às suas filhas, uma figura enorme de neo, com o povo que nos cerca.
verdade e amor, que nenhuma literatura pode oferecer igual. Se não retornamos ao cenário abstracto, é porque, sinceramente,
Nada é tão fácil como trabalhar com padrões, com fórmulas não podemos. Não há o mínimo embaraço da nossa parte. O cenário
conhecidas; e os heróis, no gosto clássico ou romântico, custam tão exacto impôs-se por si, pouco a pouco, como a roupa exacta. Não é
pouco esforço que se fabricam à dúzia. É um artigo corrente que uma questão de moda, é uma questão de evolução humana e social.
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Não podemos mais regressar aos dísticos de Shakespeare, da mesma personagens. Pode se r um quarto , um vestíbulo, uma floresta, uma
maneira que não podemos tomar a v ive r no século dezasseis. Is so encruzilhada; m e smo um dístico bastará. O drama reside unica-
está-nos proibido. Sem dúvida que obras-primas nasceram nessa mente no homem , neste homem convencional que foi despojado do
convenção do cenário, porque estavam nela como no seu solo na- seu corpo, que não é mais um produto do solo , que não se embebe
tural. Mas esse solo não é mais o nosso, e desconfio que um autor no ar natal. Assistimos apenas ao trabalho de uma máquina intelec-
dramático de hoje não criará nada de vivo se não plantar solida- tual, posta de parte, funcionando na abstracção.
mente a sua obra na no ssa terra do século dezanove. Não discutirei aqui se, em literatura, é mais nobre manter-se
Como é que um homem com a inteligência do senhor Sarcey nest a abstracção do espírito ou dar ao corpo o seu grande lu gar, por
não tem conta do movimento que transforma continuamente o tea- amor da verd ade. De momento , trata-se de constatar sim ples factos .
tro? Ele é muito letrado, muito erudito; conhece como nenhum ou- Pouco a pouco, produziu-se a evolução científica, e vimos a persona-
tro o nosso reportório antigo e moderno; tem todos os documentos gem ab stracta desaparecer para dar lugar ao homem real , com o seu
para seguir a evolução que se produziu e que continua. Está aqui um sangue e os seus músculos. A partir dest e momento, o papel dos
estudo de filosofia literária que o deveria tentar. Em vez de se fechar meios tomou-se cada vez mais importante. O movimento que se ope-
numa retórica estreita, em vez de não ver no teatro senão um género rou nos cenários parte disso, porque, em suma, os cenários não são
submetido a lei s, porque é que ele não escancara a sua janela e con- mai s do que o s meios onde nascem, vivem e morrem as per sonagens.
sidera o teatro como um produto humano, variando com as socieda-
des, alargando-se com as ciências, indo cada vez mai s em direcção (E. Zola, Le naturalisme GU th éâtre , Paris, Fasqu ell e. 1907 , pp . 18, 21-23 e 98-99.)

a essa verdade que é o nos so objectivo e o nosso torm ento?


Fico-me pela questão dos cenários. Vede como o cenário abs-
tracto do séc ulo dezassete corresponde à literatura dramática do
tempo. O meio não conta ainda. Parece que a personagem anda no 51 - STRINDBERG: PREFÁCIO A MENINA JÚLIA (18 88)
ar, liberta dos objectos exteriores. Não tem influência sobre eles, e
nunca é determinada por eles. Mantém-se sempre no estado de ti po , Au gust Strindb erg (1849 -19 12) , esc ritor su eco , fo i a u to r de
nunca é anal isada como indivíduo. Mas, o que é mai s característ ico, novela s e p eça s d e teatro. Depois de se ter interessado p el o na -
é que a personagem é então um s im p les mecanismo cerebral ; o turalism o , e ter mesm o considerado esc reve r peças naturalistas . de-
corpo não intervém, apenas a alma funciona, com as sua ideias, os finiu a sua óp tica própria: simplific ar os elem ento s materiais para
seus sentimentos, as paixões. Numa pal avra, o teatro da época usa o conce ntrar a at enção sobre o drama psíquico . De fa cto , a sua p sico -
homem psicológico, ignora o homem fisiológico. Daí, o meio não logia «científica>' (muito influenciada p ela s ideias de Cha rcot e os
tem qualquer papel a de sempenhar, o cenário toma-se inútil. Pouco progressos da p sicologia no fim do século XIX ) faz mais ou menos re-
importa o lugar em que a acção se passa, a partir do momento em bentar o molde naturalista. É esta definição de uma nova psicologia
que se recu sa aos diferentes cenários qualquer influência sobre as qu e dá o seu interesse ao célebre prefácio a Menina Júlia ( 1888).
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A personagem e a nova psicologia OU triste, ou permanentemente embriagada. Para o individualizar,


bastava fazê-lo sofrer de uma enfermidade: o pé aleijado, perna de
Já expliquei a triste sorte da Menina Júlia por todo um con-
pau ou nariz vermelho, ou então fazê-lo repetir incansavelmente
junto de circunstâncias: os instintos profundos da mãe, a educação
uma mesma expressão: «E is o que é perfeito! », «B ark is o quer!» e
deplorável que lhe deu o pai, as suas próprias tendências e a suges-
assim por diante. Este modo de simplificar os homens encontra-se
tão exercida pelo noivo sobre um cérebro fraco e degenerado, de-
já no grande Moliêre, Harpagão é unicamente avaro , um grande
pois, no imediato, pela atmosfera da festa de S. João, a ausência do
financeiro, um pai perfeito, um vereador excelente. De resto, o seu
pai, a indisposição mensal, o contacto com os animais, o poder eró-
«vício» é lucrativo para a sua filha e para o seu genro, que são os
tico das flores, a exaltação da dança, o mistério da noite e , final -
seus herdeiros e não o deveriam censurar, sofrendo apenas por espe-
mente, o acaso que empurra o par para um quarto escondido e a au-
rar um pouco para se poderem casar. Não creio então nos caracteres
dácia do homem sobreexcitado.
simples nem nos julgamentos sumários de um autor: este é estú-
Não me inspirei exclusivamente nem na fisiologia nem na psi -
pido, aquele brutal, um terceiro ciumento, um quarto avaro , e assim
cologia; não tive em conta a hereditariedade maternal ou a mens-
por diante. Os escritores naturalistas sabem quanto a alma humana é
truação da filha, ou a sua amoral idade; também não me contentei
complexa, e que «o vício » tem um reverso que estranhamente se as-
com pregar moral.
semelha à virtude.
Esta multiplicidade de motivações, ficarei lisonjeado por ver que
As minhas personagens são caracteres modernos, vivendo
outros já a relevaram antes de mim e que não sou o único a avançar
numa época de tran sição, mais agitada e mai s nervosa que a ante-
paradoxos, nome que se dá com boa vontade às descobertas.
rior. Pintei-os então hesitantes , divididos, esquartelados entre a tra-
No que respeita à «pintura de caracteres», já apresentei de pro-
dição e a revolta. Por outro lado, não me parece inverosímil que,
pósito as minhas personagens como tendo «fa lta de caracter». Eis
através dos jornais e das conversas, as ide ias modernas tenham pe-
porquê:
netrado até à classe dos criados.
A palavra carácter, com o curso dos tempos, adquiriu sentidos
A alma das minhas personagens (o seu carácter) é um conglo-
muito diversos. Na origem, indicava o traço dominante de um ser e
merado de civilizações passadas e actuais, de pedaços de livros e de
era confundido com o temperamento. Depois, no vocabulário co r-
jornais , de pedaços ele homens, de retalhos ele fatiotas de domingo
rente, tomou-se sinónimo de autómato e de signava um indivíduo in-
tornados farrapos, tal como a própria alma é uma colagem de peças
capaz de evoluir, petrificado na sua natureza primitiva ou num papel
de todos os tipos. E também mostrei como o s meus caracteres se
adoptado de uma vez por todas, enquanto aquele que sabia adaptar-
formaram , deixando o qu e é fraco roubar as palavras ao mais forte e
-se , ir ao sabor do vento e navegar destramente no rio da vida, era
repeti-las, deixando os espíritos roubar as « id e ias », as sugestões
considerado como tendo falta de carácter. Era denegrido porque e ra
como se diz , un s dos outros.
difícil de compreender e de catalogar. Este ideal de imobilidade
passa para a cena onde a mentalidade burguesa tinha sempre domi- (A. Strindbcr g , Th éâtre cruel et th éâtrc mystique , Irad. de Mar gu critc Dichl , Pari s , G allimard ,
nado. Um «caracter» era aí uma personagem completamente alegre, 1964 . pp . 100-101.)
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52 - MAETERLIN CK : O TESOURO DOS HUMILD ES (1 89 6) ta ça que co nté m a á g ua pura, qu e é a v id a vulgar, na qual o poeta
vai dei xar ca ir as go tas reveladoras do seu géni o ...
Maurice Maeterlinck {! 862-194 9 )foi um poeta e auto r dramá-
tico belga. A en cen aç ão da sua obra Pélias e Melisanda, m ontada ***
por Lu gn é-Poe em Paris em 1892 , marca um a data importante no
desen volvimento do teatro simbolis ta . À s reivindicações naturalistas Também, não é nos actos, mas na s palavras, qu e se e nc o n tra a
Ma eterlinck opõe um teatro poéti co , qu e quer dar ace sso a essas bel eza e a g rand ios id ade d as belas e grandes tragédias. É ap enas nas
realidades profundas e escondidas qu e estão para além da vida vulgar pal avras qu e ac o m pa nham e explicam os actos que e las se revel am ?
- um teatro em que reinem os valores do mistério e do so nho . Para N ã o ; é preciso que haj a outra co isa a lé m do diálogo e xterio rmente
esta dramaturgia do inexprimiv el e do alusivo , o próprio Ma eterlinck nece s sári o . Não h á m ai s qu e as p alavras qu e primeiro p are cem
deseja va uma encenação tão despojada qu anto possível. É significa - inútei s qu e conta m ve rdadeira mente numa obra. É nelas qu e se es-
tivo que a sua obra - em particular Péli as e Melisanda, e O Pássaro co nde a s ua a lm a . Ao lado do di álogo ind isp ensável , existe quase
Azul (escrito em 1909 ) - posteriorm ente se tenh am inscrito no repor- se m p re um o utro di ál o go que parece s upér fl uo . Ex aminai at enta-
tório de encenadores tão diferentes com o Meyerh old, Stanislavski e mente e vereis que é o único que a alma esc uta profundamente, por-
Copeau , cada vez qu e se quiseram qu esti onar sobre o teatro enquanto que é apenas ne sse loc al qu e lhe fal am. Rec onhecerei s também qu e
art e da sugestão . é a qu alidad e e a exte nsão desse diálogo inútil que det ermina a qu a-
lid ad e e o a lcance inefá vel da obra.
o TR ÁGI CO QUOT IDIANO 1 Acontece a todos o s homen s na vida quotidiana ter qu e resol-
O poeta acres centa à vida vulga r um não-sei-quê que é o se- ve r com palavras um s ituaç ão muito grave. Pensa i um pou co ni sso .
gredo do s po etas , e de rep ent e el a aparece na sua gr andeza prodi- Será semp re nestes momentos , será mesmo aq u ilo que normalmente
g iosa, na sua subm issão às potên cias desconhecidas; nas suas rel a- di zeis, ou qu e vos re spondem, que é o m ais importante? Ou será
ções que não acabam, e na sua miséria solene. que outras forças, outras palavras qu e não se ouvem mas são po stas
Um quími co dei xa cair algumas go tas mi st e rio sas num copo e m j ogo, determ inam o acontec imento? O que e u di go muitas ve ze s
qu e parece conter ap enas água clara: e im edi atamente um mundo de co n ta pou co, mas a minha presen ça , a atitude d a minha alma, o meu
c ristais se eleva até aos bord os c re vela-nos o qu e existi a em s us- futuro e o meu pa ssado , o qu e nasc erá de mim , o que morreu e m
pensão nesse co po , no qual os nosso s o lho s inc ompletos não tinham mim , um pensamento se c re to , os astros que me aprovam , o meu
visto nad a. A ssim, e m Filoctetcs, parec e qu e a pequena psi col ogia destino , mil e m il mi st érios qu e m e cercam e qu e vos ce rc am, e is o
elas três personagen s principais não fo rm a mai s que as paredes ela que vo s fala nesse instante tr ági co e ei s o que me responde. Sob
cada uma das minhas pal avras e so b c ada umas das vossas, há tudo
isto, e é so bre tudo isto que vemos , e é so bre tudo isto qu e ouvimos
I Ver nora 2. p. 146 . (N. F . ) ape sar de nó s. Se vós viestes, vós o «espo so ultrajado », o «am a nte
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enganado», a «m ulher abandonada», com a intenção de me matar, almas que entreviram a sua situação na vida verdadeira. Há mais de
não são as minhas súplicas mais eloquentes qu e poderão fazer pa- uma m aneira de conhecer um homem. Tomo, por exemplo, dois ou
rar o vosso braço. Ma s pode acontecer que encontreis então um a três seres que vejo quase todos o s dias. É prov ável que durante
dessa s forças inesperadas e que a minha alma, que sabe que elas muito tempo não os distinga senão pelos seu s gestos, o s seus hábitos
velam em volta de mim , vo s diga uma palavra secreta qu e vos de- exte rio re s ou interiores, a sua maneira de se ntir, de agir e de pensar.
sarme. Eis as es feras e m que as aventuras se decidem, ei s o diálogo Mas, em toda a amizade um pouco longa, c hega um momento mis-
cujo eco é preci so ouvir. E é esse eco que se ouve, - com efeito, de terioso em qu e no s apercebemos, por assim dizer, da situ ação exacta
modo extremamente enfraquecido e variável, é verdade, - e m algu- do nosso amigo em relação ao desconhecido que o cerca, e à atitude
mas das grandes obras de que a n te s fal ava. Mas n ão nos podería- do de stino relativamente a ele. É a partir de sse momento que ele no s
mos tentar aproximar mai s ainda destas esferas o nde tudo se passa pertence verd ade iramente. Vimo s de uma vez por todas de que ma-
«na re alidade »? neira os acontecimentos se co nd uzirã o a respeito del e. Sabemos que
Parece que o qu erem tentar. Há algum tempo, a propósito do es te poderá retirar-se p ara o s con fi ns da su a habitação e ficar o
drama de Ib sen ond e mais tragicamente se entende este diálogo «d e mais imóvel po ssível com receio de agitar alguma coisa no s gran-
segundo grau », a propósito de So lness o Construtor, tentava mai s des re servatórios do futuro, a sua prudência não lhe servirá de
desaj eitadamente ainda penetrar os seu s segred os . Portanto , são os nada, e o s acontecimento s inumerávei s qu e lh e estão destinados
tra ços análogos da mão do mesmo cego so bre a m e sma par ed e qu e descobri-lo-ão qu alquer q ue seja o lugar em que se escon da, e bate-
se dirigem também para os mesmos vislumbres. Em Solness, dizia rão s ucessiva me nte à s ua porta. E por outro lado , não ignoramos
eu , o que é qu e o poeta acrescen to u à vid a para qu e ela n os apareça que aq ue lo utro sairá inutilmente à procura de todas as aventuras.
tão es tranh a, tão profunda e inquietante sob a sua puerilidade exte- Regre ssará sempre de m ãos vazi as. Um a ciência in fa lí ve l parece
rior? Não é fácil descobri-lo, e o velho mestre g ua rd a mais de um ter nasc ido sem razão na nossa alma no di a em que os noss os olhos
seg redo . Parece me sm o qu e o qu e ele qu is dizer não foi mais qu e se abriram dest a maneira, e estamos seguros que tal acontecimento,
pou ca co isa ao olhar daquilo qu e lhe foi preci so di zer. El e deu a li- que to dav ia par ece estar ao alcance da mão de tal homem , nunca
berdad e a algumas pot ên cias da alma qu e nunca tinham s ido livre s e lhe poderá ocorrer.
talv ez tenha sido pos suído por e las . «Vedes, Hilda, excl am a Solness, A partir desse instante, uma parte especial da alma reina sobre
vedes? Há tanta feiti çari a em vó s como em mim , É esta feitiçaria a amizad e dos se res mai s inteligentes e mesmo m ai s obscuros. Há
qu e fa z agir as pot ências ex terio re s. E é preci so es ta r di spon ível. uma es péc ie de transposição da vida. E qu ando por acaso enc ontra-
Qu er se queira ou não, é preci so.» mo s um desses que conhecemos assim, em bora conversemos sobre
Há feitiçaria nel es como e m todos nó s. Hilda e Solness são , a ne ve que ca i, ou as mulheres que pa ssam , há e m cad a um de nós
pen so, os primeiros heróis qu e se sentem viver um in st ante na uma pequena co isa que se saúda, se examina, se interroga secreta-
atmosfera da alma, e essa vida essen cial qu e descobriram em si, para mente, se interessa pelas conjunturas e fal a de acontecimentos que
além da sua vida norm al , assombra-os. Hilda e Solnes s sã o duas não nos é possível com preende r...
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Creio que Hilda e Solness se encontram nesse estado e se per- nita mediocridade , não se rá justo que se ced a a es ses quinhentos
cebem desse modo. O s seus propósitos não se assemelham a nada 'bons espíritos o que se prodigaliza aos auditores do senhor Donnay,
do que ouvimos até aqui, porque o poeta tentou misturar numa o repouso de não ver sobre a cena o que não compreendem, o pra-
mesma expressão o diálogo interior e exterior. Reinam nesse drama zer activo de criar também um pou co à medida e de prever?
sonambúlico não sei que novas potências. Tudo o que aí se diz si- O que se seg ue é um índice de alguns obj ectos notoriamente
multaneamente esconde e descobre as fontes de uma vida desconhe- horríveis e incompreensíveis para esses quinhentos espíritos e que
cida. E se ficamos espantados por momentos, não se deve perder de atravancam a cena sem utilidade, na pr imeira fil a o cen ário e o s
vista que a nossa alma é, muitas vezes, aos nossos pobres olhos, actores.
uma potência muito louca, e que existem no homem regiões mais O cenário é híbrido, nem natural nem artifici al. Se fo sse seme-
fecundas , mais profundas e mais interessantes que as da razão ou da lhante à natureza, seria um duplicado supérfluo... Falar-se -á mai s
inteligência. adiante da natureza como cenário. Não é artificial no sentido em
que não dá ao artista a realização do exterior visto atrav és de si, o u
(M. Macterlinck, Trésor des humbles , Paris. Mercur e de Franc o. 1896. «Le tragiqu c quotid ien» .)
melhor, criado por si.
Ora, seria muito perigoso que o poeta impusesse a um público
de arti stas o cená rio tal qual el e próprio o pintasse. Numa obra
escrita, quem sabe ler vê aí o sentido expressament e escondido para
53 - JARRY: DA INUTILIDAD E DO T EATRO PARA O T EATRO ele, reconhece o rio et erno e invisível e cham a- lhe Anna Perenna .
(1896 )
A tela pintada realiza um aspecto desdobrável por muito pou cos es-
píritos, sendo mais árduo extrair a qualidade de uma qualidade, do
Alfred Jarry (1873-1907). poeta e dramaturgo fran cês que co- que a qualidade de uma quantidade. E é justo qu e cada espectador
meça a sua actividade literária co labora ndo no Mercure de France, veja a cena com o cenário que convém à s ua visão da cena. Diante
esteve ligado ao grupo simbolista . Ficou co nhecido sobretudo como de um grande público, diferentemente , não int ere ssa qu e ce nário
o autor de Ubu Rei (1896) e Ubu Agrilhoado (publicado em 1900 artístico é bom , dado qu e a multidão nã o compreende por s i. mas
mas apenas rep rese ntado em /93 7) e co mo invent or da «putafisica»
segue a autoridade.
ou ciência das soluções imaginárias. A importância que dá. por um Há duas es pécie s de cenários , interiores e debaixo do céu. Am-
lad o à bus ca do grotes co . por outro ao uso da má scara e da mario- bos têm a pretensão de representar salas ou campos naturais. Não
neta . fa z del e um precursor do teatro moderno.
regre ssaremos à quest ão , e ntend ida de uma vez por todas, da estupi -
de z do trompc-l'aril, M encionemos que o dito trompc-l'ceil provoca a
Cenário e j ogo abstracto ilusão naquele cuja vista é gro sseira, qu er dizer, não vê, e escanda liza
quem vê a natureza de uma man eira inteligente e eligente, apresen-
Se existem em todo o universo quinhentas pessoas que sejam
tando-lhe a caricatura feita por aquele qu e a não compreende. Zêuxis
um pouco Shakespcare e um pou co Leonardo relativamente à infi-
enganou os animais fer ozes, dizem, e Ticiano a um estalajade iro.
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o cenário feito por aquele que não sabe pintar aproxima-se E se o carac ter eterno da personagem es tá incluído na máscara,
mais do cenário abstracto, que não dá senão a substância; como há um meio simples, paralelo ao cale idoscóp io e sobretudo ao gi -
também o cenário que se sim plificou escolhendo os acidentes útei s. ro scópio, de pôr em foco os momentos acidentais, um a um ou em
Já experimentámos cenários heráldicos, quer dizer designando vários conj untos.
com uma cor unida e uniforme toda uma cena ou um acto, as per- O actor antiquado, mascarado de pinturas pouco proeminentes,
sonagens pa ssando hannónicas sobre' este ca m po de brasão. Isto é eleva a uma pot ência cada expressão pelas tintas e so bre tudo pelos
um pouco pueril, porque a dita cor estabeleceu-se soz inha (e mai s rel evo s, e depois, a cubos e a e xpoentes ind efinidos pel as LUZES .
exacta, porque é preciso ter em conta o daltonismo universal e todas O que vamos exp lic a r e ra impossível no teatro antigo , a luz
as idiossincrasias) so bre um fundo que não tinha cor. Tentamos vertical ou nunca suficientemente horizontal sublin ha ndo de sombra
arranj á-lo sim ples mente e de uma maneira simbolicamente exacta tod a a saliênc ia da másc ara e nunca o ba stante porque era difusa .
com uma tela não pintada ou o avesso de um cenário, cada um pe- Contrário às deduções da rudimentar e imperfeita lógica, nes-
netrando no local qu e qu er, ou melhor, se o autor so ube o qu e que- ses países so lares não há sombra nítida, e no Egipto, sob o trópico
ria, o verdadeiro cenário exosmótico sobre a cena. O dístico trazido de Câncer, não há quase penugem de sombra so bre as caras, sendo a
de acordo com as mudanças de lu gar evit a ao não-e spírito a recor- luz retl ectida verticalmente como pela fac e da lua e difundida tanto
dação peri ódica pela mudança de cená rios materiai s, qu e se perce- pela ar eia do ch ão quanto pel a areia em su spensão no ar.
bem sobretudo no momento da su a diferença. A ribalta ilumina o act or se g undo a hipotenu sa de um triân-
Nestas condições, toda a parte de cenário de qu e se tiver nec es- gulo r cct ângul o , em qu e o se u co rp o é um dos lados do ân gulo
sidade esp ecial, uma janela que se abre, uma porta que se empurra, recto. E sendo a ribalta uma sé rie de pontos luminosos, qu er di zer ,
é um acessório e pode ser trazido como uma mesa ou um castiçal. uma linha estendendo-se indefinidamente, em relação à estreiteza
O actor «mete na ca beça» a personagem, e deveria faz ê-lo em da ca ra do actor, à direita e à esquerda da inte rsecção do se u plano,
todo o corpo. Diver sas contracçõe s e extensões faci ais de músculos de ve se r co ns ide rada como um único ponto iluminante , si tuado a
são as expressões, j ogos fisionómicos, etc. Não se pensou que I)S uma di stância indefinida, como se estivesse atrás do público.
mú sculos continuam os mesmos debaixo da cara fin gida e pintada, Este es tá di stante pelo se g u im e nto de um m enor infinito, não
e que Mounet e Hamlet não têm gémeos zigomáticos, embora ana - suficientemente menor para que não se poss a considerar todos os
tomicamente se acredite que não ex is te senão um homem. Ou e n- raios reflectidos pelo actor (o u sej a, tod os o s olhares) como pa-
tã o consideram-se as diferenças negligen ciáveis. O actor de verá ral elos . E praticamente cada espectador vê a m áscara pe sso al de
substituir a sua cabeça, por meio de uma máscara que a encerre, a um m odo igual, com as diferenças de certo negligenciáveis, em
efígie da PERSONAGEM , a qual não terá, como à maneira antiga, co m pa ração com as idi o ssincrasias e ca pac idades de com pree nde r
carácter de cho ro ou de riso (o que não é um ca racte r) , mas o ca- di ferentemente , qu e é impossível at enuar - as quai s, al ém di sso,
rácter da personagem : o Avaro, o He sitante , o Ávido acumulando se neutrali zam numa multidão enquanto rebanho, quer dizer , mul-
os crimes... tidão.
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Com pequenos acenos de cabeça de cima para baix o e de baixo maneira, realiza o programa de Zola (que al ém dis so sustentou e
para cima e oscilações laterais, o actor desloca as sombras sobre por assim diz er «pa trocino u» os começos d o Thé âtre Librc ). Por
toda a superfície da sua máscara. E a experiência prova que sei s po- outro lado - e como Stan isla vski - foi muito marcado pelo trabalho
sições principais (e outras tantas para o perfil, que são menos níti- dos Meininger realizado lia Alemanha desde 1870 e dominado p elo
das) são o suficiente para todas as expressões. Não damos exemplos realismo hist órico , a preocupação com a unidade da imag em c ênica
porque variam segundo a essência primeira da máscara, e porque to- e da relação dinâmica a estabelece r entre o actor e o cenário, a reno-
dos os que já viram um teatro de fantoches puderam comprová-lo. vação da interpretação (em particular com a introdução da fam osa
Como são expressões simples, são universais. O erro grave da interpreta ç ão de co stas ).
pantomima actual é de chegar à linguagem mímica convencional, Antoine não d eixou uma obra teórica importante. O texto es-
cansativa e incompreensível. Um exemplo desta convenção: uma sencial para a exposição dos seus princípios continua a ser a Con-
elipse vertical à volta da cara com a mão e um be ijo sobre essa mão versa sobre a encenação.
para dizer a beleza sugerindo o amor. - Um ex emplo de ges to uni -
versal: a marioneta testemunha o se u espanto com um recuo vio-
As tarefas do en cenador naturalista
lento e um choque do crânio contr a os bastidores.
Atr avés de todos estes acidentes subsi ste a expressão subs tan- Quando , pela primeira vez, tive qu e en cenar uma obra, aperce -
cial, e em muitas cenas o mai s belo é a impassibilidade da m áscara bi-me claramente de que a tarefa se dividia em duas partes distint as:
única, manifestando-se nas palavra s hilariantes o u graves. Isto só é uma, toda material , qu er dizer a constituição do cen ário servindo de
comparável à mineral idade do esqueleto di ssimulado sob as carnes meio à ac ção, à di sposição e agrupamento das personagens; a outra,
animais, cujo valor tragicómico foi reconhecido em todo s os tempos. imaterial , qu er di zer a int erpretação e o movimento do diálogo . En-
tão, primeiro pareceu-me ser útil , indi spensável , criar com cuidado,
(A. Jarry, «De I'inutil it é du th éâtrc au th éâtrc», M ercu rc de Franco, Selembro de IR96 , Pa ris .) e sem qualquer preocupação com os acontecimentos qu e aí deve-
riam ocorrer, o cenário, o meio. - Porque é o meio que determina os
movimentos das personagen s, e não os movimentos da s persona-
gens que determinam o meio .
54 - ANTOINE: CONVERSA SOBRE A ENCENAÇÃO (1903 ) Esta simples frase tem o ar de nada di ze r de novo; no entanto,
é todo o segredo da impressão de novidade que no princípio deram
André Antoine (1858-1943), encc nado r fran c ês. fo i o fundador as experiên cias do Teatro Livre.
do Thé âtre Libre (em 1887). Introdu ziu em Fran ça o naturalism o 110
Como se tem o deplorável hábito de regulamentar os primeiros
teatro , enquanto paralelamente Stanisla vsk i o int rodu zia na Rússia, agrupament os do s artist as sobre o teatro vaz io , sobre a cena nua , an-
B el/asco nos Estados Unidos e qu e, na Alemanha, OUo Brahm tes da construção do cenário, somos incessantemente reconduzidos às
fundara sobre o modelo francês a Freie Bühne. Antoine. de alg uma quatro ou cinco «p lantações» clássicas, mai s o u menos orn amentadas
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segundo o go sto dos dir ectores o u o talento do s cenógrafos, ma s En sinaram-lhes (se m pre o estilo pomposo!) qu e é preciso ace n-
sempre identicamente as me sma s. tuar co rrectame nte, gritar de acordo com as regras, fazer todas as
Para que um cenário fosse original, engenhoso, característico, era ligações e n tre as palavras so b pena de parecer v ulg a r e familiar.
preciso estabelecê-lo primeiro, segundo uma coisa vista, paisagem ou Aprenderam a procurar efeitos de pormenor, sem interesse c sem
interior; era preciso estabelecê-lo , se fosse um interior, com as suas sig n ificado para o conjunto, a solicitar a qualquer preço a aprovação
quatro faces, as suas quatro paredes, sem se preocupar com a que deve do públi co por processos e truques de profissão. S ó têm ao seu
desap arec er mais tarde para deixar penetrar o olhar do espectador. serviço, para traduzir o ind ivíd uo que representam , doi s únicos ins-
Seria preci so em seg uida dispor as saídas naturai s o bserva ndo trumentos, a vo z e a cara ; o resto do corpo não participa na acç ão.
as verosimilhanças arquit ecturais, indicar exactamente, traçar fora Usam luvas, vêm sempre em trajo de gala e, não possuindo mais as
desse cenário as salas, os ves tíbulos para os quai s d ão essas saídas; farp el as maje stosa s ou e legantes de antigamente, trazem uma flor
mobilar no papel esses apartamentos destinados a não ser percebidos na botoeira e an éis.
senão em parte pelo entreabrir da s portas - numa palavra, e rgue r a Ri gorosamente formad o s nos movimentos rudimentares e pri-
casa completa e m volta do local da acção. miti vos do nosso teatro clás sico, deformados para sempre pelas cenas
E sentis quanto, após este primeiro trabalho se r efectuado , se de « furo r» ou de «sonhos» , ignoram a co m plicaç ão, a va riedade, os
tomará cómodo e interessante, depois de ter ex am ina d o e sta paisa- mati zes , a vida do di álogo moderno , a destreza d as fras e s, as suas
gem, ou este apartamento sob todos os seus aspectos, escolher o entoaçõ e s indirectas, os subentendidos, os seus si lênc ios eloquentes.
ponto exac to em que se deverá fazer a secção do que no s permitirá Eis o balanço de quase tod os os nossos principiantes, do s que
retirar a fam osa quarta parede, mantendo o ce ná rio co m o se u as- fizeram os estudo s completos, e vemos tod os os an os dezenas partir,
pecto mai s característico e mais ad equado à acçã o? e nc afuar-se na provín cia com es ta bagagem antiquada que os inco-
( ...) modar á e m toda a sua carreira.
Agora , começa a seg unda part e da tarefa . Podemos fazer entrar O melhor do nosso pe ssoal teatral (abro uma ex cep ção , bem
as personagens, a sua habitação es tá pronta, che ia de v ida e clari- entendido, para a Comédi e Fran çaise , c uj os artistas são uni camente
dade . Ma s aqui vamos reencontrar, sob a cor das tradiçõe s, todas as c com razão preparados para as interpretações cl ássica s) , é recru-
rotinas, tod as as resistência s, tod a a herança nefa sta de antigamente . tado junto do s actores qu e saíram d o po sto , qu e se fizeram a si me s-
Prepararam-nos estátuas e preci sávamo s de cri aturas humanas e mos em co ntacto do público, e no sé rio lab or das repetições minu-
agindo. Temos qu e fazer viver as personagen s a sua ex istê nc ia di á- cios as . Eles tartamudeiam tal ve z , como Dupuis, Réjane e Huguen et ,
ria, e chega m -nos hom ens e mulheres a quem e nsi na ram que no tea- não «d ize m », mas vivem os seu s papéi s, e são os intérpretes mara-
tro nunca se deve , como na vida , Ialar a andar. Não deixarão, como vilhoso s da lit eratura dramáti ca conte m porâ nea. Estes sa be m qu e:
acontecia há duzentos e cinq uenta an os atr ás, de se dirigir ao pú - O m ovimento é o meio de ex p res são ma is intenso de um actor;
blico, de sa ir da su a personagem para comentar ou sublinhar o que qu e toda a sua pe ssoa fís ica faz parte da per sonagem que represen-
o auto r col ocou na sua boca. tam, e qu e nal guns momentos da acç ão , as suas mãos , as s uas
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costas, os seus pé s podem ser mais e loq ue ntes qu e um a tirada; q ue precedeu largamente a teor ia, e foi devido a essa prática qu e , de sde
cada vez que o ac to r é ape rcebido so b a person agem a fáb ula dra- o in ício do séc ulo, e le exerce u enorme influênci a - inclu ind o sobre
m ática é interrompida; e que ao sublinhar um a palavra, dest ro em- aq ue les que, com o Meyerhold ou Tairov, se vão defi nir contra e le.)
-lhe o efe ito. Constantin Sta nislavski (1863-1938) , a ct o r e encenador ru sso,
Sabem ainda qu e cada cena de um a peça tem o seu movimento fo i o fundador do Teat ro Artístico de Mosco vo (e m 1898) e os seu s
próprio, subo rd ina do ao moviment o ge ra l da obra, e que um ar de p rincípios inscrevem-se na corrente naturalista. Se não teve co nhe-
conj unto não deve ser e ntravado por nada, nem pelo es pe ra r pel o ci mento do trabalho de A ntoine em Pa ri s , em contrapartid a apre-
pont o, nem por uma preocup ação co m os e fei tos pessoais. cia va muito o dos Meininger. A sua co ntri buição f unda me ntal den -
Enfim, vive m as suas person agen s so b os nossos olho s, ap re - tro do quadro do movimento naturalista foi u de redefinir a noção
de realism o co locando a tónica so bre o «realismo interior», e de se
sentam- nos doc ilm e nte todos os as pectos, sejam m ateriais, sejam
ligar ao problema da formação do actor. Como é que o ac to r p ode
m or ais. O estilo nobre , esse flagel o eterno de tod as as artes, qu e es-
produzir o verdadei ro , o vivido, numa sit uação de teatro qu e é por
teve sempre em luta com a verda de e a vida, desap areceu das suas
essênc ia artificial ? A resp osta de Stanislavski apoia-se num con-
preocup ações e o teatro de costumes , as comédias de ca rácte r, as
junto de técnicas interiores e exteriores , constitutivas de uma psico-
peças sociais do nosso tem po enco ntram neles os seus intérpret es
fís ica do actor que se costuma cham ar d e «o Sistema» de Stanis-
ind ispensáveis.
la vski. Os dois li vros f undame ntais de Sta nislavski, A Formação do
Este ensinamento ge lado do Conservató rio, apli cado indiferen-
Ac tor e A C onstitu iç ão da Personag em , deveria m ins crever-se
tem en te a gerações inte iras de jovens em vista de um único teat ro
numa vasta obra-súmula , n unca acabada, que teria tra çado o ca mi-
que não utilizar á um em dez, faz um n úm ero incalcul ável de ví ti- nho co mp leto da ed ucação do ac tor.
mas. A esco la falsifi ca e nivela os temperamentos, deixa correr ao A influên cia de Stanislavski f oi im en sa . N as esco las do actor
acaso, no mold e dos se us heróis clássicos, todos os joven s ta le ntos nos pa íses d e L es te , é o Sistema q ue se rve d e base. Nos E sta dos
de que o teatro moderno teria uma necessi da de tão prement e. U nidos, o Ac tor 's Studio retom ou os ele mentos p rincipais d a téc-
nica interio r, projecta ndo -Ihe um a p ersp ect iva p articular vinda da
(A . A nto ine, «Ca userie su r la m ise en scen e». R <'\'II<' d <' P aris . 1 de Ab ril de 190 3, Pa ris . r p.
603-4 c 609 - I I.) psicaná lise . G rotowski, na Pol ônia, partiu das questões essenciais
p ropostas por Stanislavski para procurar novas respostas... As p ro -
postas de Sta nislavski não deixaram, na Europa e nos Estados Uni-
dos , de habitar o trabalho do actor con temporâne o .

SS - STANISLAVS Kl: A FO RMAÇÃO DO ACTOR (1926 )


/ . Vive r o papel

(Co locam-se aqui os textos de Stanislavski apesar de a sua data «Porque o qu e pode acontecer de melhor a um actor, é ser com-
de pu blicação ter sido m ais tardia, porque em Stanislavski a prá tica plet amente ab so rvido pelo se u papel. Então, invo luntariamente , ele
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põe-se a viver a sua personagem, sem mesmo saber o que sente, sem de criação conscientes tiverdes na vossa interpretação, tanto mais
pensar no que faz, guiado pela sua intuição e pelo seu subconsciente, hipóteses tereis de encontrar a inspiração.
e tudo se passa de modo automático. Salvini dizia que um grande «Pouco importa que a vossa interpretação seja boa ou má»,
actor deve ser habitado por sentimentos. Que ele deve «sentir» a sua escrevia Stchepkine I ao seu aluno Choumski, «o importante é que
personagem e viver as suas emoções, não apenas uma ou duas vezes seja verdadeira.» Para que a vossa interpretação seja verdadeira,
enquanto ensaia o seu papel, mas de uma maneira mais ou menos deve ser acurada, lógica, coerente; deveis pensar, lutar, sentir e agir
intensa cada vez que representa, seja à primeira ou à milésima vez. em comunicação com a vossa personagem.
Infelizmente, é uma coisa que não depende dele. O nosso consciente «Assim que captardes todos estes processos internos, e os
não pode penetrar no domínio do subconsciente. Mesmo se aí che- adaptardes à vida espiritual e física da personagem que encarnais,
gasse, o subconsciente, tornando-se então consciente, desapareceria. então viveis o vosso papel. É o que mais conta no vosso trabalho de
«É uma aposta. Só o subconsciente nos pode proporcionar a criação. Assim que o actor vive a sua personagem, não apenas abre
inspiração de que temos necessidade para criar. Mas não é senão caminho à inspiração, mas chega assim a realizar um dos seus ob-
graças ao consciente, parece, que por princípio o suprime, que po- jectivos principais. Não se trata de exprimir unicamente a vida exte-
demos usar o inconsciente. rior da personagem. É preciso ainda adaptar-lhe as suas próprias
«Felizmente há uma saída. Basta empregar um meio indirecto. qualidades humanas, derramar-lhe toda a sua alma. O objectivo fun-
Há no espírito humano alguns elementos acessíveis que dependem damental da nossa arte é criar a vida profunda de um espírito hu-
da consciência e da vontade e que, por sua vez, são capazes de agir mano e exprimi-la sob uma forma artística.
sobre os processos psicológicos involuntários. «É por isso que começamos sempre pelo aspecto interior do
«Isto exige um trabalho de criação extremamente complicado, papel e procuramos criar a sua vida espiritual servindo-nos desse
que se efectua em parte sob o controlo do consciente, mas que, procedimento interno que consiste em viver o papel. E deveis vivê-
numa proporção mais vasta, é subconsciente e involuntário. -lo experimentando realmente os sentimentos que com ele se rela-
«Existe uma técnica especial que permite utilizar o subcons- cionam de cada vez que o recriais.
ciente no trabalho de criação. Trata-se de deixar à natureza o cuidado «Das raízes profundas do inconsciente sobem os sentimentos
de tudo o que é, no sentido mais vasto da palavra, subconsciente, e que nem sempre podemos analisar e que só se revelam quando o ac-
de nos limitarmos ao que está ao nosso alcance. Quando a intuição tor se encontra em plena posse da sua natureza consciente. É deste
e o subconsciente aparecem no nosso trabalho, devemos saber não modo que a expressão do inconsciente depende do consciente. Mas
os contrariar. se violais as leis da vida orgânica natural e se deixais de agir de
«Não se pode criar constantemente com ajuda do subcons- uma maneira equilibrada, então o subconsciente, que é extrema-
ciente ou da inspiração. Não existe um génio assim. É por isso que mente sensível, alarma-se e retira-se. Para evitar isso, estudai pri-
deveis aprender antes de mais a criar conscientemente e com muita meiro o vosso papel conscientemente e depois representai-o com
acuidade, porque é o melhor meio de abrir caminho ao desabrochar
do inconsciente e, por ele, da inspiração. Quantos mais momentos I Célebre actor russo do séc. XIX. (N.F.)
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fidelidade. Ne sta preparação interior do papel o realismo é e ssen- humana vivida, é capaz de reproduzir os matizes subtis e as profunde-
cial, porque arras ta o subconsciente e arrisca-se a despoletar a in spi- zas da vida. Só sob esta forma a arte do teatro é capaz de empolgar o s
ra ção. » es pectadores e, ao mesmo tempo, de os fazer com pree nde r e ex pe r i-
«Seg undo o qu e acabais de referir, creio co m pree nder que de- mentar profundamente o que se pas sa em cena, enriquecendo assim a
vemos assimilar um a técnica psicológica que c o ns iste em viver o sua vida interior e deixando-lhes impressões qu e o tempo não ap agará.
papel e isso deve-nos levar ao nosso objectivo principal, que é c riar «A lém di sso, e isto é de uma importânci a capital , as leis natu-
a vida de um espírito humano», diz Paul Choustov '. ra is sobre as quais rep ousa o nosso sistema , irnp edir-vos- ão , no [ u-
«É exac to, respondeu Tortsov. M as d e vo acrescentar que o turo , de vos p erderdc s . Se qu erei s tornar-vo s a ctor, dev eis e n tã o
nosso objectivo não é apenas criar a vida de um espírito humano, obrigatoriamente começar pelo estudo desta b ase .»
mas também 'exprimi-la sob uma forrna esté tica e artística'. O ac to r
tem a obrigação de viv er a sua personagem interiormente e depois
dar dessa experiência uma manifestação e xte rio r. Notai bem que, na 2. O «se » mági co
nossa escola, damos um a importância particular à influênci a do es-
«Im ag ina i que deveis representar uma ce n a de um conto de
pírito sobre o corpo. Afim d e exprimir todos os matizes de uma vida
T chekhov e m qu e um rendeiro, um pouc o inocente , ind o à pe sc a
em gra nde parte subco nsciente, é ab solutamente necessário p os suir
d esenrosca um p arafu so de um c a r r il p ara la strar a s ua linh a.
e dominar um aparelho físico e vocal de uma extrema sensibilidade
É julgado e conde nado seve rame nte. Est e incidente puramente fictício
e cuidadosame nte ed uc ado. Deveis se r ca pa zes de reproduzir in s-
irá toc ar profundamente al guns, m as para a m ai oria não se rá m ai s
tantânea e exactamente o s se ntime ntos mais delicad os e mais s ubtis .
do que uma «h istória d ivertida». Nunc a su speitarão do dr am a legal
É por iss o que exigimos de vós um trabalho muito mais inten so d o
e socia l qu e se esconde por detrás de sse r iso . Mas o actor que de ve
qu e o dos outros ac to res . Deveis exe rc itar ao mesmo tempo o vosso
representar um a das personagens desta cena n ão pode rir. Tem que
aparelho psíquico, que vos permitirá criar a vida interior da vossa
reencontrar o estado de esp írito do auto r e , o qu e é m ais importante
personagem e o vo sso aparelho físico, que exprim irá os se us se nti-
a in da, re vi ver o aconte cimen to qu e lh e in sp ir ou a s ua hi st ória.
mentos com pre c isão.
C o mo o far íeis ?
« A expressão e xteri or de um papel é e la própria gr andemente
«O Direct or es pe ro u. Ficámos todos s ile nc ios os e pen sati vo s.
influenciada pelo subc o ns c iente. De facto, nenhuma técnica arti-
«N o s momentos de dú vida, qu and o os vos sos pensamentos, o s vo s-
ficial pode rivalizar com as maravilhas que opera a natureza .
sos se ntime ntos e a vossa imaginação ficam mudos, lembrai- vo s d o
«Indiquei-vos hoj e, em g randes linhas, o que para nós é essenc ia l.
se. O próprio autor não procedeu de outra maneira. E dis se para si
Acreditamos firmemente e por experiência qu e só o no sso mét odo, fa-
ze ndo apelo a uma arte qu e se refere inteiramente a uma ex pe riênc ia pr óprio:
«Q ue aco nteceri a se um rendeiro in g ênuo . ind o à pe sca, pe-
I A f orma ção do ac tor apres en ta-se sob a form a de um di ál ogo entre o profe ssor gasse num parafuso d e um carril?» Fa zei a m e sma coisa , e ac res-
- Tortsov - e o seu aluno - C housro v . De facto ambos encarnam o próprio Stanislav ski, o
princip iante - que coloca va as questões - e o da matu ridade - que propunh a as respostas. (N .F.) centa i: «o qu e é que e u faria se tivesse que julgar este caso?»
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«Eu condenaria o criminoso», respondi , sem hesitar. «Se trabalhai s um pap el int eiro desta maneira terei s c riado com
«Por que motivo? Por ter querido lastrar a sua linha?» todas as peças uma nova vida.
«Por ter roubado um parafuso.» «Os sentimentos assim acordados exprimir- se -ão pel o s pró-
«C laro que não se deve roubar, co ncedeu-me Tort sov. Mas po- prios actos qu e teriam sido os dessa personagem imaginária cas o se
deis punir severamente um hom em por um crime de que el e está encontrasse nas c ircuns tâncias da peça.»
perfeitamente inconsciente?» «São co ns c ie ntes ou inconscientes? » perguntei .
«É preciso fazê-lo compreender qu e o seu gesto poderia ter «Pro cura i vós mesmos. Exam inai cuidadosamente cada porme-
causado um acidente terrível», repliquei. nor da operação, determinai a parte do consciente e a do incons-
«Por causa de um simples parafuso? Nunca irei s con seguir ciente e as s uas origens. Nunca cheg are is a conclusão nenhuma,
fazê-lo acreditar nisso! » diss e o Director. porque tudo isso releva do domíni o do subconsciente .
«Ele está a fingir. Na realidade, compreende perfeitamente o « Pa ra vos c o nv e nce r, perguntai a um actor, d epois d e uma
que fez », digo e u. grande representação, o que é que e le sentiu em cen a e o qu e é qu e
«Se aquel e que deve representar o papel do rendeiro tiver ta- fez. Não poderá responder-vos, porque não tinha consciência do que
lento, provar-vo s-á pela sua interpretação que não tem qu alquer vivia e é incapaz de se lembrar m esmo d as passagens mai s impor-
con sciência da sua culpabilidade », diz o Director. tant es. Tudo o que obterei s del e é que estava à vontade e m cena e
A di scu ssão continuou, e ele a presento u tod os os argum entos que se se nt ia perfeitamente em c o ntac to com o s o utros ac tores .
possíveis a fav or do acu sado . No fim consegu iu abal ar-me . Assim À parte isso , se rá incapa z de vos di ze r m ai s . Surpreendê-lo-ei s
que se apercebeu disso, diz-me: muito se lhe descreverdes a sua int erpretação.
«Pro vave lm ente vó s tivestes a mesm a reacção que o pr óprio D aqui podemos con cluir qu e o se é também um estimulante
juiz. Se tivés sei s que representar esse papel , sentimentos semelhan- para () su bconsciente cr iad or. Além di sso , ajuda-nos a submete rmo-
tes aproximar-vos-iam da vossa per sonagem. -no s a esse o utro prin cíp io fundam ental para a nossa arfe : acordar
«A fim de completar esta familiaridade entre o ac tor e a perso- o noss o subconsciente graças a lim a té cnica co nsciente .
nagem qu e el e en carn á, ac rescenta i algun s pormenores preci so s qu e «A té aqu i ex pliq ue i as fun ç õ es do se em rel ação a d oi s do s
concretizarão a acção. As circunstâncias trazidas pel o se provêm de princípios fund amentai s do nos so sistema. Está ainda mai s e stre ita-
fonte s próximas dos vossos próprios sentimentos e têm um a po - mente ligado a um terceiro. O no sso grande poeta Pu shk in fala dele
dero sa influência sobre a vida interior do actor. Desd e qu e tenhai s no se u artig o inacabado so b re o d rama.
estabelecido este contacto entre a vossa v ida e o vosso papel , ex pe- « Diz , entre outras coi sas :
rimentareis esse impulso interior, este c ho q ue . Acrescentai -lhe to - «A sinceridade das emoções, dos sentimentos que parecem verda -
das as espécies de reacções eventuai s apoiadas na voss a experiência deiro s nas circunstâncias propostas, é o qu e se pede ao dramaturgo. »
de vida , e verei s como vos é fácil acreditar sincerame nte na ex istên- «Ac re sce nta re i, pel a minha parte, que é exactamente o que se
cia do qu e sois chamados a fazer em cena . exige ao ac to r.
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« Re flecti bem nessa frase e m ais tarde dar-vos-oi um exemplo «N a prática, ei s aproximadamente o que dev ei s fazer: começai
marcante qu e vo s mostrará como o se nos ajuda a satisfazer esta primeiro por imaginar à voss a maneira as circunstâncias ' pro postas'
exig ênci a.» pela peça, a co ncepç ão d o e nce nad o r e a vossa própria concepção
Pu s-me a repetir em todos os ton s: «S ince rid ade da s emoções, artística. Toda e sta matéria-prima dará as grande s linhas da vida da
sentime ntos que parecem verdadeiros nas circunstâncias propostas... » personagem que dev ei s encarnar e das circunst âncias na s quais ela
«P ara i, dis se-me o Director. Transformais isso numa banali- vive. É necessário que acrediteis realmente na event ualidade. ~e uma
dade, sem ter descoberto a si gnificação essencial. Se não so is capaz vida as sim e que isso se tome para vós tão familiar que vos sintais
de cap tar um pensamento no seu co nj unto, se pa ra i-o em diversos muito próximos. Se conseguirdes isto, apercebe r-vos-eis de que as
elementos e estudai-os um a um .» 'em o ções sinceras ' ou que os ' se ntimentos que parecem verdadeiros '
«O que quer dizer e xact am ente a expressão : c irc uns tâ nci a s nasc em e spontaneamente em v ós.»
propo stas?» quis saber Paul.
« Isso qu er dizer: o assunto da peça, os factos, os acontec imen -
to s, a é poca, o tempo e lugar da ac ção , as condições de vida, a in - 3 . A memória afectiva
terpretação dos actores e do e ncenado r, a realização, os cenários, os «O imprevisto é muitas vezes um meio excelente para desenca-
figurino s, os acessórios, a ilumin ação, o som ... todas as circunst ân - dear o trabalho. Foi o que vos ajudou na primeira vez. Mas hoje o
cias qu e um actor tem que ter em co nta ao criar o seu papel. e fe ito está gasto, sabíei s antec ipad amen te o que se ia passar, tudo
«Se é o ponto de partida; as circ uns tância s propostas são o de sen- e ra já familiar, os voss os gestos estavam re gulados . Nestas condi -
volviment o. Um não pode exi st ir se m o outro, se eles qu erem conse r- ções, ter-vos-á parecido inútil c ons idera r de novo tod a a cena e dei-
var cada um o se u caracter estimulante. No entanto, as suas funções xar- vo s guiar pelas vossas e m oções, não é verdade ? Uma forma e x-
são al go diferentes: o se dá o impul so à imaginação latent e, enq uanto terior j á pronta é mu ito tentadora para o actor! N ã o é de surp ree nde r
as circunstâncias prop osta s constituem a própria ba se do se. Em co n- que vós , que estai s ap enas no princípio, o tiv é ssei s se ntido imedia-
junto ou separadamente, ajudam a provocar um ímpeto interi or,» tamente e que tenhais d ado prova, ao m esmo tempo , de uma exce-
« E qu e qu er dizer ex ac ta me nte a sinc e rid ade das ernoç ões? » lente memória dos fact o s . Mas no que re speita à vossa memória
pergunta Vania I com curiosidade. afecti va não de scobri del a nem um traço. »
«Como a pal avra indica. emoções humanas, v ivas . verdade iras . Pedimos-lhe qu e nos ex plic asse este novo termo.
se n time ntos que o próprio actor tenha j á e xpe rirn e n ta do.» « A melhor ex plicação que vo s po sso dar é contar-v os uma his-
« Então, continua Vania, o que é : se ntim e nto s que parecem ve r- tória. É assim que Ribot I definia e ssa fo 1111a de memória que foi el e
dadeiros ?» o primeiro a caracterizar.
« Isso designa, não os se ntime ntos em si, mas qualquer co isa « Do is homens tinham s ido surpreendidos pela maré e estavam
qu e lhe s es tá muito próxima, emoções reproduzidas indirect am ente ce rc ados sobre um rochedo. Depois de terem sido sa lvos, pergunta-
sob o impulso de verdadeiros sentim entos profundos. ram -lhes quais tinham si d o as suas impressões . O primeiro recor-

t Nu diálogo central entre Ch ou stov c Tort sov mis turam-se as interv en ções de outros
aluno s. (NF) I Psicólogo francês do sé culo XIX. (N. F.)
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dava-se muito exactamente de cada um dos seus gestos, os s ítio s por provocados pela memória afectiva. Pelo contrário, ligai-vos muito a
onde tinham passado, os rochedos que tinham escalado, et c. O outro eles, porque só el e s podem, numa certa medida, desencadear a ins-
não tinha nenhuma recordação do lugar; em troca, lembrava-se de piração.
todos os sentimentos experimentados: prazer, apreensão, medo , es- « Re c o rd a i-vos do nosso princípio fundam ental : é através dos
perança , dúvida, e enfim pânico. fenómenos conscientes qu e atingimos o subconsciente.
« Fo i o que se passou na primeira vez que representastes a cena « Existe um outro motivo para apreciar e stas 'emoções ensaia-
do louco. Ainda vos vejo, pregados ao solo, aterrado s , tentando das ' . O actor não constrói o se u papel com a primeira coisa que lhe
encontrar o bom caminho, com toda a vossa atenção fixada na porta. cai nas mãos. E scolhe c uidadosa m e nte por entre a s suas recorda-
E adaptados à situação, com que e xc ita me nto e com que convicção ções e selecciona de entre as sua s próprias experiências os elemen-
vos lan çastes a representar! tos mais sedutores. Tece a alma da sua personagem com sentimen-
«M as para conseguir o qu e fez o segundo homem na hi stória tos que lhe são mais queridos que os da sua vida vulgar. Existirá um
de Ribot, reviver todos os se ntim e nto s que experimentast e s no iní- terreno mais fértil para a inspiração? O artista escolhe o melhor de
cio e representar naturalmente sem ter que fazer um esforço volun- si mesmo para levar para cena. As formas podem variar segundo as
tário , teria sido necessário que possuísseis uma memória afectiva necessidades da peça, mas os sentimentos do arti sta continuarão vi-
excepcional » vos, insubstituíveis. »
( ...) «Q ue re is dizer, interveio Gricha, que em qualquer papel, desde
« M as os impulsos em si me smos nunca são desej ávei s?» per- Hamlet até Sucre, no Pássaro A zul, são sempre os mesmos velhos
guntei . se ntime ntos que vo ltam a se rv ir? »
« Be m pelo contrário, diz Tortsov. Mas estas e m oções forte s, «C o m o queríei s faz er de outra maneira? di sse Tortsov. Pensai s
directas e apaixonadas, não se m anifestam em cena da maneira qu e que o actor consegue im aginar todas as esp écie s de novas impres-
imaginais. Só duram alguns instantes. Sob esta forma são completa- sões , ou mesmo inventar um carácter diferente para cada um dos
mente desejáveis, porque acentuam a sinceridade dos nos so s se nti- se us papéis? Quantas almas deveria ter? Como poderia arrancar a
ment os. Esse s ímpetos espontân eo s de emoções têm uma força de sua para a substituir pela de outro? Onde a encontraria? Pode-se pe -
impulsão irresist ível. » dir de empréstimo um casaco , jóias, qualquer objecto, mas não se
E para nos acautelar, acrescentou : pode tomar de um outro os se us sentimentos . Pode- se co m p ree nde r
«Infel iz me nte não os pod emos c o ntro lar. São eles que nos co n- um papel , simpatizar com a personagem e co loc a rm o -nos nas mes-
du zem . Não temos então outra escolha senão dei xar agir a natureza mas condições que e la a fim de agir como e la o faria . É assim qu e
c desejar, se eles vierem , que não sej a em contradição com o papel. na scerão no actor os se ntime ntos que serão an álogos aos da perso-
É muito tentador, é claro, introdu zir na nossa representação sen- nagem, mas que só pertencerão ao actor.
timent os inesperados, inconsciente s. É aquilo com que todos so nha- «Nunca esqueçais qu e em cena continuais a ser 11m actor. Não
mos e é um dos aspectos mais sedutores da criação artística. Mas vos afasteis de vós pr óprios. A partir do momento em que perderdes
não é uma razão para minimizar o papel dos sentimentos ensaiados, ess e contacto com vós próprios. cessareis de viver realmente o
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vosso papel, e em vosso lugar aparecerá lima personagem falsa e encontrou na peça. Aquilo de que ele gosta é da beleza, o pitoresco
ridiculamente exagerada. Por mais numerosos que sejam os vossos que cerca o seu papel e os sentimentos que estes lhe fazem nascer.
papéis, nunca vos autorizeis uma excepção a esta regra. A infracção «Tal como o viajante, o actor pode chegar ao seu destino usando
acabaria por matar a vossa personagem privando-a da alma viva e meios muito diversos: há aquele que vive verdadeiramente o seu
real que a deve anirnar,» papel fisicamente; aquele que reproduz apenas o aspecto exterior;
Gricha não conseguia acreditar nesta obrigação de representar o que se camufla por detrás de truques engenhosos como se tentasse
sempre os seus próprios sentimentos. Mas o Director foi formal: vender a sua mercadoria; aquele que recita o seu papel como um
«Quando estais em cena, interpretai sempre a vossa própria tolo; aquele que o usa para se valorizar aos olhos dos seus admira-
personagem, os vossos próprios sentimentos. Descobrireis uma va- dores ... É o vosso sentido do verdadeiro, que, de acordo com a con-
riedade infinita de combinações nos diversos objectivos e nas cir- vicção que tendes nos vossos actos, vos impedirá de vos perder
cunstâncias propostas que elaborastes para o vosso papel, e que se numa direcção errada.
fundiram no cadinho da vossa memória afectiva. É a melhor e a «A pergunta que se apresenta agora é a seguinte: como traçar
única verdadeira fonte de criação interior.» esse caminho?
«Pareceria à primeira vista que seria suficiente utilizar as nossas
emoções verdadeiras; mas os sentimentos não formam um material
4. As acçáes fisicas
suficientemente sólido, é por isso que recorremos às acçôes físicas.
o Director continuou hoje a falar-nos do seu sistema. Para ilus- «Todavia, mais importante que a própria acção é a sua verdade
trar a sua exposição, estabeleceu uma comparação entre o actor e o e a sinceridade do actor. Porque onde se encontrem a verdade e a
viajante. convicção só podem nascer sentimentos verdadeiros. Podereis ve-
«Durante uma viagem bastante longa, começou ele, tereis rificá-lo vós mesmos; basta executar a mínima acção acreditando
notado que muitas vezes os vossos próprios sentimentos mudavam realmente, para que apareça logo um sentimento, de uma maneira
ao mesmo tempo que o aspecto da paisagem. Passa-se o mesmo em completamente natural.
cena. Experimentando as transformações do nosso estado físico «Por mais curtos que sejam, esses momentos de simples ver-
descobrimo-nos constantemente um novo estado de espírito e con- dade física adquirem uma grande importância, tanto nos passos
dições diferentes. Vemos de modo diferente os cenários e o que nos mais frouxos, quanto nos momentos mais dramáticos da peça. Não
cerca, mesmo o que é apenas imaginário. Tal como o viajante, co- é preciso ir muito longe para encontrar um exemplo. O que é que
nhecemos outras pessoas e partilhamos a sua vida. vos preocupava na segunda parte do vosso exercício? Correstes até à
«É a linha destas acções físicas que guia o actor de ponta a chaminé e retirastes do fogo um maço de notas. Tentastes reanimar
ponta na peça. O carreiro está tão bem traçado que ele não se pode o idiota, precipitastes-vos para salvar a criança que se afogava...
perder. No entanto, não é o carreiro que lhe interessa, são as con- Estes actos físicos simples são o quadro no interior do qual se cons-
dições interiores e os acontecimentos profundos dessa vida que truiu natural e logicamente a vida física da vossa personagem.
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«Vej a m o s um outro ex emplo : o que faz Lady Macbeth no «Se dizei s a um act or que o se u papel é profundamente trá g ico
ponto culminante da sua tragédia? Procura simplesmente fazer de- e cheio de psicologia, e le vai começar im ediatamente a lançar- se em
saparecer das suas mãos uma mancha de sangue .» todo o tipo de contors ões, a torturar o espírito e a forçar os se nti-
Gricha protestou. «Quereis- no s fa zer acreditar que um gra nde mentos. Mas dai-lhe um problema e strita me nte físico para re solver,
escritor como Shakespeare escre ve u Ma cbeth para que a sua he- em circ uns tâ nc ias int er essantes e se d uto ras, e el e res o lvê-lo - á sem
roína faça o gesto vulgar de lavar as m ão s?» se preocupar e sem co locar a si me smo questõe s inútei s.
«Q ue decepção, não é verdade! diz o Director com ironia. «A bordando assim a vida afectiva, ev itare is toda a v io lê ncia, e
Pensar que e le se esqueceu da tragédia! Como é que pôde ignorar o resultado virá naturalmente del e próprio. Há ainda uma outra ra-
toda a interpretação dramática do actor, o se u «patético» , a sua «ins- zão práti ca para proceder as sim . Para atingir as grandes dimensões
do trágico, o act or de ve forçar a s ua nature za criadora ao m áximo.
piração »! Como é que se pod e a ba nd onar esse tesouro m aravilhoso
Ora, co mo poderá aceder-lhe se a sua natureza não responde à sua
e contentar-se com pequ enos act o s físic os, pequenas verd ades !...
vontad e? Este estado de intensidad e dramáti ca só pode ser provo-
«Com preende re is mais tarde a s ua necessidade. Entendereis
cado com o fav or de um a inspiração e nem sempre podere is desen-
que, na vida real, as grandes em oçõe s m anifestam-se muitas vezes
cadeá-Ia facilmente. Se tentais fazê-lo por meios artificiais, arriscais
por um gesto muito vulgar, completamente simples e natural. Es-
perder-v os e ca ir no teatral , em ve z do ve rdade iro . É o método fácil !
panta- vos isto ? Com o que é qu e se preo cupa o am igo ou a mulher
«Para ev itar es te er ro , apo ia i-v os num objec to tan g ível , sólido ,
do doente que vai morrer? Não fazer barulho à vo lta del e , seg u ir
sobre um a acção fís ica. Quanto m ai s s im ples for, tanto m a is fácil
as receitas do médico , tirar-lh e a temperatura, d ar-lhe d e bebe r. vos se rá ca ptá- la , deixá-l a diri gir- vos para o vosso ve rd ade iro o bj ec -
E todas est as pequenas acç ões adq u ire m import ância em presença tivo, lon ge da tentação da interpret ação m ecânica.
da morte. «Abor dai o momento trágico elo papel com os nervos de scontraí-
«Devere is compreender o sig n ificado de que se re ve ste o mí- dos, se m c rispação nem violência e so bre tudo se m pressa . Avan çai
nimo gesto no interior da s «circ unstâ nc ias dadas », exprimindo um pro gressivamente , com lógica, conc re tiz ando correctamente e com
sentimento. É querendo verdadei ra m e nte, fisicamente limpar o sa n- convicção o vosso encadea me nto ele actos fís ico s. Assim qu e tiverdes
gue das suas mãos qu e Lad y Ma cbeth logrou exec uta r os se us p ro - aperfeiçoado este me io de chegar aos se ntimentos, dei xareis de recear
jectos ambiciosos. Não é por acaso se, ao longo de todo o se u mo- essas passagens trágicas. porque sabereis ab ordá-Ias com confiança.
nól ogo, es sa mancha lhe vem à memória , ligada no seu es p írito ao «A únic a diferença entre a minha m an eira de abordar o drama
assassínio de Duncan. Este simples gesto com porta um se ntido ex- ou a co méd ia depende uni camente da natureza da s ci rc uns tâ nc ias
tra ordinário. E xprime por si só todo o drama int erior, que ass im propostas que regulam os gestos da vo ss a per sonagem . Como con-
busca uma saída. se q uê nc ia. se vos ex igire m «o trág ico », não pen sei s e m cx pc rimc n-
«Porque é que esta relação entre os actos físicos elementares e tar os se ntime ntos , pensai no qu e ireis fa zer»
a vida afectiva é um elemento tão importante na nossa técnica ar-
(S . St an isl avski, La [ormation de luctcur, tr ad . d e El izu hcth Janvier, Pari s. O tiv icr Pc rrin ,
tística ? 1958. I: pp. 26 -28 : 2: pp . 56-59; ~ : pr· 1 5 ~ e ioo- 16 2; 4 : pr. 138- 14 1.)
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56 _ C RAIG : SOBRE A ARTE DO TEATRO (TEXTOS DE 1905 E inteligência, ce rtos se ntimentos; e o lug ar do contra-regra é precisa-
19(7) mente diante de tud o iss o , de man eira a ter uma v isão de co nj unto.
E tiv é ssemos nós enc o ntra do o ac to r perfeito que fo sse ao mesm o
Edward Gordon Craig (/872-/966) , ac tor e ence nador inglês. tempo o encenador sonhado, el e não pod eri a estar e m dois lugares
conta , por entre as suas encenaçõ es mais célebres, a de Hamlet , ap m e smo te.t."':po. Sem dúvida aconteceu-nos ver o chefe de uma
qu e monta em Masco \'0 no Teatro Artístico em 19/2. Recusando a pequena orques tra cond uzir e ter o ca rgo de primeiro violinista; mas
noção de uma arte que seria imitação da vida. opõe ao realismo a não o fazia de boa vo ntade e a ex ecução so fria co m isso . Também
sugestão e a busca da expressão pelo esquematizar do cenário . o não se vê qu e iss o se pratique nas gra ndes orq uestras .
estiliza r do gesto, o uso de algumas cores [un dam entais aliadas ao
j ogo de luzes - sendo est es eleme ntos utilizados co m toda a riqueza o AMADOR DE T EATRO
do s seus valores simhó licos. Craig so nha co m um espect áculo fun -
dado na dan ça e na m úsica , no jogo das linh as . luzes e cores, com Entã o, se vos com preendo bem, nin guém teria o direito de diri -
uma arte total onde tud o seria sim bolo (a infl uê ncia de Ruskin e de gi r a ce na se não o co n tra-regra - nem mesmo o au to r dramáti co ?
Wagn er vem alime ntar esse sonh o) . Se Cra ig de sconfi a do actor é
j ustame nte po rque, prision eiro das suas emoções , ele introdu z o o C ONTRA-REGRA
risco do caos, do acide nta l e ameaça a pu reza do teatro . Ima gin a A pe nas no caso e m que es te tenha es tuda do e conheça a prát ica
então um teatro, se não completame nte livre do actor, pelo menos d as div ersas profis sões do teatro, qu er dizer da interpret ação, exe cução
onde o actor teria conquistado as qualidades da marioneta : desna -
d o s cen ários e roupas, a ilum inação e a dança . De o utra maneira
turalizado , libertado da psicologia , n ão buscaria mai s encarnar ou
n ão . Os a utores dram áti co s qu e não tiver am o teatro por berço, no
vive r, ma s representar. exp rimir, simbo liza r. A «sup er-rnarioncta» é
ge ra l ign oram es tes diferente s ofícios. Goethe, que toda a sua vida
essencialmente isto: os poderes da marion eta dominados pela co ns-
teve um jovem e vivo amor pelo teatro , foi , e m muito s aspectos , um
ciência do actor. Ape nas ela pode satisfazer as exigência s de um
dos mai ores e nce nado re s. M as ligando-se ao teatro d e Weimar, om i-
teatro que recusa o realismo em nom e do sím bo lo , linguagem de
tiu aqu ilo qu e o gra nde mú si c o qu e lhe s uce de u so ube record a r.
beleza e linguagem dos gra ndes tema s da Vida c da Morte.
Goethe ad m itiu qu e havi a no teat ro uma auto rid ade supe rior à sua: a
do p roprietári o do teatro. Mas Wagner teve o c ui d ado de se apode -
/ _ SOBRE A ARTE DOTEATRO - Prime iro diálogo ( 1905) - O cncc- rar ela ca sa e reinou aí como senhor, com o um barão feudal no seu

nadar, artista do teat ro [uturo, caste lo- fo rte ...

O CONTRA-REGRA O A MA DOR DE T EATRO

O luga r do actor é no palc o onde, colocado de ce rta manei ra , A ver a maiori a dos a nais teatrais não me parece que se tenha
e ntrecertos cená rios e ce rtas pessoas, ex prime , com a ajud a da sua gra n de consi deração pelo art ista na cena?
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o CONTRA-REGRA então esperar nada de uma reforma intermitente, desigual; só uma


progressão sistemática será efectiva. É por isso que a reforma da
Seria fácil elaborar um requisitório contra o teatro e a sua igno-
Arte do Teatro só e apenas pode ser realizada por aqueles que estu-
rância da Arte. Mas não se bate num ser acabrunhado, senão na
daram e praticaram as diversas profissões do teatro.
esperança de que esse golpe o ponha de pé. E o nosso teatro do
Ocidente está bem em baixo. O Oriente possui ainda um teatro.
O AMADOR DE TEATRO
O nosso está no fim. Mas espero por um Renascimento.
Quer dizer, pelo vosso contra-regra ideal?

O AMADOR DE TEATRO
O CONTRA-REGRA
E quem é que o trará?
Precisamente. Recordais-vos de que no princípio da nossa con-
versa vos disse que o Renascimento do Teatro tinha como ponto de
O CONTRA-REGRA
partida o Renascimento do Contra-Regra. No dia em que este com-
A chegada de um homem reunindo na sua pessoa todas as qua- preender a verdadeira adaptação dos actores, dos cenários, das rou-
lidades que fazem um mestre do teatro e a renovação do teatro en- pas, da iluminação e da dança e souber, com a ajuda desses diversos
quanto instrumento. Assim que esta esteja concretizada, assim que meios, compor a interpretação, adquirirá a pouco e pouco o domí-
o teatro seja uma obra-prima de mecanismo, que tenha inventado a nio do movimento, da linha, da cor, dos sons e das palavras que de-
sua técnica particular, engendrará sem esforço a sua arte própria, les decorrem naturalmente. Nesse dia a Arte do Teatro voltará a
uma arte criadora. Isto será muito longo para expor aqui em porme- ocupar o seu lugar e será uma Arte independente e criadora e não
nor, como esta profissão, desenvolvendo-se pouco a pouco, se trans- mais uma profissão de interpretação.
formará numa Arte independente e criadora. Já por entre os artesãos
do teatro, uns trabalham na sua construção, outros modificam os ce- O AMADOR DE TEATRO

nários, outros ainda a interpretação dos actores. E estes esforços de- Vejo bem oncle quereis chegar, mas o que acontecerá à cena
vem valer qualquer coisa. Mas o que é preciso compreender antes privada do poeta?
de tudo é que o resultado obtido será diminuto, ou nulo, enquanto
se tentar reformar uma ou outra das profissões do teatro, sem tentar O CONTRA-REGRA
simultaneamente reformá-las todas no próprio teatro. Todo o renas-
E o que lhe faltaria, no dia em que já não escrevesse mais para
cimento da Arte do Teatro depende da medida em que isso seja
o teatro?
compreendido. A Arte do Teatro comporta tantas profissões diferen-
tes, que é bem necessário entender desde o início que é uma re-
O AMADOR DE TEATRO
forma total e não parcial que é necessária; cada profissão estando
em relação directa com cada uma das outras profissões, não se pode A peça.
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o CONT RA-REGRA F ico contente por ve r qu e , embora não faça m ai s do q ue rep eti r
aq ui o que enuncie i no prin cípio da nossa conversa, agora pareceis
Segura me nte, e é mu ito just o. Mas o nde vos e ng ana is é e m
mu ito menos surpreend ido .
ac redi tar que é im perioso que es ta qualque r coisa dev a se r fei ta de
palavras. Uma ideia não é qualquer coisa?
2- O A C T O R E A SU PER -M A R IONET A (1907 )

O AMA DOR DE T EATRO


Tudo leva a crer que a verdad e em breve amanhecer á. Suprim i
a árvore autêntica q ue have is posto so bre a ce na, su primi o tom na-
Não. tural , o gesto natural e acaba reis igualmente as uprim ir o ac to r. É o
qu e acontecerá um dia e gostaria de ver alguns Director es de teatro
O CONTRA-REGRA
e ncarar essa ideia a pa rtir deste mom ent o . S uprimi o ac tor e retira-
Assim para dar um a forma à ideia, ficaremos livres de ped ir de rei s a um rea lismo grosse iro os meios de flo rescer em ce na. Não
emprésti mo ou invent ar os materi ais qu e qui serm os, com a co nd i- existirá mais nenhuma personagem viva para confund ir no nosso es-
ção qu e não tenham melhor uso nout ros sítios? pírito a arte e a realidade; nenhuma personagem viva em q ue as fra-
quezas e as com oções da carne sej am visívei s.
O AMADOR DE TEATRO O ac tor desaparecerá e no se u lugar vere mos uma person agem
inan imada - que se pod erá cha mar, se qu ereis, a «S upcr-Marioneia» ,
Com certez a qu e sim .
- até qu e tenh a co nq uistado um nom e mais glorioso. Já se escreve u
muito so bre a mar ionet a e obras de gra nde q ua lida de . Ela insp irou
o CONTRA-REGRA mesm o di ver sas obras de ar te.
Seg ui então atentamente o que vos vou dizer e med itai nisso Nos nossos d ias, a m arion et a atravessa um a época de desgraça,
assim que chegardes a casa. Dado qu e me hav ei s ce d ido tud o o q ue - mu itas pessoas a consideram como um a es péc ie de fanto che de
pedia, e is de que elem entos o futuro artista do teatro compor á as um a ordem superior, derivad a da boneca. M as es tão erradas. A ma-
suas obras-primas: co m o movim ento , o ce nário, a \·oz. Não é sim- rionet a é a descendent e dos ant igos ído los de ped ra dos templos, é a
pies'! Por movimento ente ndo o gesto e a da nça, q ue são a prosa e a imagem degen erada de um Deu s. A miga de infância, sabe ain da es -
poesia do mov ime nto. co lher e se duz ir os se us discípulos. Um de vós q ue dese nhe um a
Por cenário ente ndo tud o o q ue se vê, tant o as ro upas, a ilum i- mar ion et a e fará de la um a fig ur inha es tática e grotesca. É que tom a
nação, q uanto os ce nários prop riamente di tos. po r um a placidez im becil e uma defor m idade ang ulosa o q ue é a
Pela \ '02 entendo as palavras ditas o u ca ntadas por oposição às gravi dade da m áscara e a im obilidade do corpo. Porque mes mo as
palav ras esc ritas; porq ue as palavras esc ritas para se rem lidas, e as nossas marionet as modernas são seres ex traord inários .. Os aplausos
escritas pa ra serem fa ladas são de du as ordens inte iramente d is- exp lode m como um trovão o u perdem-se iso lados e a m arion eta nã o
tint as. se comove nem um pou co ; os se us ges tos não se preci pitam nem se
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.,atrapa lham ; cubram-na de flores e de louvores, e a heroína conserva cair, a espuma do s se us dedos brancos c lig eiros escorreg ando para
uma fac e impassível. Há mais que um traço de génio na marioneta, os joelhos. Teria s ido para nós uma revelaçã o artística se não tivés-
mais do qu e o brilho de uma personalidade que se exibe: ela é para semos já encontrado um espírito análogo noutros exemplos da arte
mim o último vestígio da Arte nobre e bela de um a civilização pas- destes egípcios. Est a arte que eles chamam de «mostrar e esc o nde r»
sada. Ma s como a arte se aviltou entre mãos grosseiras, também as é uma força espiritual tão grande no país, que tem um lugar prepon-
marionetas não são mai s que histriõe s grotescos, vulgares. Limitam derante na religião . Sem dúvida que nos ensina a virtude e a graça
à sua medida os actores de Teatro. S e os pupazzi entram em cena, é da coragem , porque não se pode assistir a uma destas ce ri mó nias
para cair de c ostas; só bebem para estrebuchar, amam para fazer rir. sem sentir um repouso físico e moral. » Ist o data do an o 80 0 antes
Esqueceram os ensinamentos maternai s da Esfinge. O seu corpo rí- de Cri sto.
gido perdeu a graça hierática de antigamente; os se us olhos arrega- Quem sabe? talvez a marion eta se volte a tomar um dia o meio
lados pare cem não mai s nos olhar. O fantoche exibe o se u fio , e e m - fiel para exprimir o belo pen samento do artista? E aproxima-se o
pertiga-se na sua sabedoria de madeira. Não se recorda mais que a di a que no s trará de volta o pupazzi, criatura simbólica afe iç oada
sua Arte de ve, também ela, levar o m esmo selo de so brie dade que pelo génio do arti sta e na qual reencontraremos a «nobre conven-
encontramos nas obras de outros arti stas e que a art e mais perfeita é çã o » de que fala o historiador gr ego?
a que esconde o ofício e esquece o artesã o . Ent ão não ficar emos mai s à mercê dessas confissões de fraque za
Não foi Heródoto qu em , no a no 800 a.C ,; relatando a sua vi s ita qu e mo stram se m cessar os actores e que por sua vez acordam fraque-
ao teatro sag rado de Tebas, di sse qu e ficou ch eio d e admiração za s semelhantes no s espectador es. Com este fim , é preciso que no s
«com a sua nobre convenção»? apliquemos a re construir essas imagens e , não satisfe itos ap enas com
«Q uando entrava na Casa das Visões », escreve ele, «desco bri pupazzi, é necessário que cri em os uma «s upe r-marione ta».
mesmo ao fundo, sentada so bre um trono ou sobre um túmulo - pel o Esta não rivali zará com a vida, mas irá além dela; nã o figurará o
menos par ecia-me ou um ou outro - uma bela rainha bronzeada. corpo de came e osso , mas o co rpo em estado de êxtase e , ao passo
Estendido sobre o meu leito, observava os seus gestos simbólicos. que emanará del a um espírito vivo, revestir-se-á de uma beleza de
Punha tanta facilidade nos ritmos mud á vei s dos seu s gestos sucessi - mort e. Esta palavra morte vem naturalmente à caneta por aproximação
vos; tant a ca lm a na maneira de re velar os seus pen samentos secre- com a palavra de vid a de que se reclamam co ntinuame nte os realistas.
to s; tanta nobreza e beleza na expre s são co ntro lada da sua dor, que (...) Longc di sto o servir a A rte ; porque o objectivo da Arte não
nos parecia que nenhuma dor a pod eria mais ma goar; nenhuma vi o- é reflectir a v ida e o artista não a imita, e le cria; ma s é a v id a qu e
lência nos se us gestos; nenhuma alt eração nos seus traços qu e nos deve exibir o reflexo da Im aginação, a qual es co lhe u o a rtis ta para
fizesse crer que suc umbia à sua paixão; sem cessar parecia tom ar a fixar a sua bel e za I. E ne sta im agem, se a forma, pel a sua beleza e
dor entre as suas palmas, guardá-la aí delicadamente, contemplá-Ia
com calma. Os seus bra ços e as suas mãos por vezes elevavam-se ,
I «T odas as fonnas sã o perfeitas no es p írito do poet a: el e não as ret ira da natureza.
com o um j acto de água esbelto e morno que se quebrava e voltava a não as co mpõe a part ir del a: c las nascem da s ua imagina ção ». Willi am Blakc . (NA .)
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pela sua delicadeza, releva da vida, a cor é retirada desse mundo des- Daí veio a cerimónia.
conhecido da Imaginação que não é outro senão a morada da morte. Ela tomou parte nela; era a glorificação da Criação, a anti ga
Não é então com ligeireza, ou insolentemente, que falo da mario- ac ção de gra ça s, o hino exuberante da vida e aquele, mais grave, de
neta. Alguns zombaram dela, a própria palavra adquiriu um sentido uma existên cia por vir, para além do vé u da M orte. Diante da multi-
.d~sprezivo,mas há ainda pessoas para descobrir beleza nessas pe- dão bronzeada do s adoradores apareceram os símbolos de tudo o
quenas figurinhas por mai s abastardadas que se encontrem hoje. que existe neste mundo e no N irvana; os símbolos da bela árvore,
A maioria da s pessoas sorri quando lhes falo de marionetas ou dos monte s, as riquezas que e ncerr am; símbolos da nuvem , do
de pupazzi. Pensam imediatamente nos seus fio s, nos braços rígidos, vento, de todas as co isas aladas; símbolo da mais rá pid a de entre
nos gestos aos sacões; di zem-me: «são bonequinhos engraçados». elas: o pensamento, a recordação; símbolos do animal, do Buda, do
Mas record ai-vos que est es me smos pupazzi são os descendentes de homem - e eis ond e intervém a figurinha, o original dessa marioneta
uma nobre e grande família de ídolos, de ídolos verdadeiramente de qu e tanto zombaste . É que no s nossos dias não guardo u mais do
feitos «à imagem de um Deus» e que, há muitos séculos, ess as figu- que os seus ridículos, c opiados pelos vossos . Não teríei s rido se
rinhas tinham movimentos harmoniosos e não sacudidos, sem ne- tivésseis vi sto o seu modelo em glória, nos tempos em que repre-
cessidade de fios nem de arames, e não falavam com a voz nasalada sentava o símbolo do homem , na s festas da Criação, em que era a
do homem do s fantoches. Não! A marioneta antigamente fez me- imagem qu e nos arrebatava com as sombro. Insultar a sua memória
lhor figura que vós próprios. se ria zo m bar da no ssa pr ópria qu eda, zombar das cren ças c das ima-
Acreditais que o seu antepassado gesticulasse sobre um palco gens que quebrámos.
com metro e oitenta de largura representando um pequeno teatro
(E . G . C ra ig, De Lart da t" " úlrt' . Irad . de G encvi êve Se lig m an, Lu i. Paris. Lieut ier , 194 2, I :
velhote, de tal maneira que pouco faltava para qu e tocasse com a
pp. 121 -1 25; 2: pp. 66-68 e 7 1-72 .)
cabeça no alto do proscénio? Acreditais verd ade iramente que ti-
vesse vivido sempre numa pequena ca sa com janelas e portas de bo-
neca, com as port adas pintadas es cancarad as e onde nas flores do
seu pequeno jardim cresciam pétalas do tamanho da sua cabeç a?
Abandonai essa ideia. A Ásia viu o seu primeiro reino na s margen s 57 - MEYERHOLD : ES CRITOS SOBRE O T E ATRO (T EXT O S
do Ganges. Construíram-lhe uma habitação, um va sto palácio er- DE 1907, 1912 E 1922)
guendo os seus andares de colunas até ao céu, co m outras co lunatas
banhando na água; cercado de jardins com tenros arbustos irisados , vscvolod Meyerhold ( 18 74 -1942) , actor e cn cenador ntSSO , de-
com fres cas fontes; jardins repl etos de um silênc io imóvel. Apenas pois de ter trabalhado co m Stanisla vski no Teatro Artístico, tom ou -
na frescura secreta das salas do palácio, o espírito alerta dos seu s -se defensor da convenção no teatro. Recusando o naturalism o, pro-
seguidores estava em movimento. Preparavam uma festa digna dela , cura o caminho do «teatro teatral» . Para iss o com eça por utili zar o
qu e celebrava o génio qu e lhe deu o nascimento. rep ortorio simbolista , mas sobretudo desenvol ve uma reflexão sobre
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o espaço (o pap el do p roscénio ) e as técnic as de inte rpretação . A luta co ntra o s m ét odos naturali st as qu e os te at ro s de pe s-
Interessa- se particula rm ent e pel o tr abalho so bre a más cara e a qui sa e alg uns e ncenadores I tomaram por s ua co nta , nã o é aci de n-
marion eta , bem como pelos processos d e estilização d o grotesco . taI, m as de fac to ditada por uma evolução hi stórica. A bu sca de no-
Seg undo ele, p ara d esen volver as técnicas do a ct or , é precis o vas formas cén icas n ão é um ca pric ho da moda, a intro d ução de um
apoiar-se sobre as fo rmas do pa ssado : teatro de f eira , «com m ed ia novo mét odo de e ncenação (a da co nvenção) não é um a fantasia que
de llarte» , pantomima (que terão sempre um lugar imp ortante no seu se ofe rece ao prazer da multidã o áv ida de impressões se m pre m ai s
Estúdio-Escola ). D epois de 1917 envo lve-se a fu ndo no movimento vivas .
Outubro Teatral - o teatro ao serviço da revolução - con tinuando a o te atro de pe squ isa e os se us e nce n adores trab alh am no se n-
desenvo lver paraletamenre as suas pesquisas em a telie r. Pouco a tid o de criar um te atro da conven ç ão para imped ir que o teatro se
p ouco, das suas investigações emanam o co ns trutivismo cénico e a sub -ra m ifique e m te atros intirnistas, para ressusc ita r o te at ro ún ico.
biom ec ânica do actor, cuj a célebre ence nação do Cuco Magnífico se O te at ro da convenção lib erta o actor d o ce ná rio, dando-lhe um
apresenta como a realização exemp lar (e m 1922 ). A ce na e o actor. espaço e m trê s dimensõe s e pondo à s ua di sposição um a esta tuária
seg undo os p róprios princíp ios do ta ylorismo então em voga, tor~ pl ásti ca natural.
nam -se máquin a s eficazes , ins tr umen tos perfeitos ao serviço da G raças aos proce ssos da técn ic a convenci o nal, a c o m p licad a
tarefa política e socia l que , daí em dia nte, dev e ser a do teatro . m aqu inari a te atral d e smoron a-se e as s uas e ncenações são le vada s a
um tal gra u de si m p lici dade, qu e o ac tor pode ir repre sentar numa
1 - EXTR ACTO DE DI ÁRIO (1907) - O teatro e a conve nçúo praç a públ ica se m se c o loca r na d e pendênc ia do s cenár ios e dos
acessóri os espec ia lme nte ada ptados à ribalta teatral , livre de to d a s
O Teatro de A rte de Moscovo, de po is de não ter sa bido e ncar- as co ntingênc ias exte rio res.
nar mais do q ue o teat ro de Tcheko v, m antê ve- se de um a ve z por to- Na G récia, no tempo de S ófo cl e s e de Eurípi des , o fact o de os
das um «teatro int imi st a». Os teat ro s intimist a s e tod os aq ueles que a ct ore s c o ncorrere m para um prémi o dava-lhe s um a a c tividade
se ap oiaram no m ét od o dos Meiningcr, seja so bre o es tado de a /nu cria tiva in d ep ende nte. De po is , co m a co m p lic ação d a té cn ic a
do teatro de T ch ekho v, mostraram -se incapazes de aume nta r o xe u c énica, as forças c r iati vas d o a uto r de sapa receram. Esta com plic a-
repert ório e, ao m e smo temp o, de aument ar o públ ico. ção da téc ni c a teve e v idente me nte como re sult ad o , e ntre nós, o de -
Século após séc ulo, o teatro antigo fo i-se d iferen ci and o cada saparec imento d a in ic iat iva do ac to r. É por isso que T ch e kh o v tem
vez mai s e os teatros intimistas co ns titue m o ponto fin al m ai s fra g- razão para di zer: «é verdade q ue ex is te m pouco s tal entos excepc io-
mentado, a últim a ra m ificação . O no s so te at ro de sag reg ou -se e m nais nos nosso s dias, m as o nível m édi o d o ac tor é cl aramente e le-
tragédi a e comédia, e nquanto o tea tro a ntigo e ra ún ico . E parece -m e vado » ' . L ibe rta ndo o ac to r cios acessórios su pé rfl uos qu e esto rva m
que é prec isa mente es ta frag men tação do teatro ún ico e m te atros
I o Teatro-Estúdio de Moscovo , Stanislavski (a part ir de () Drama da Vida), Gordon
in tim istas q ue impede o ren ascimento de um teat ro para todo o po vo , Cr aig (I ng laterra), Re inhar dt (Berlim ) e eu (São Pe te rsburgo) . (NA )
o rena sci mento de um teat ro- acção e de um teat ro-festa . 2 A G aivota , (NA.)
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gratu itamente a ce na e simplificando a técn ica ao máximo, o teatro espec tador deve COJl/ p le ta r, de m odo criativo , o desenho das alusões
da conve nção pode , ao me smo tempo , tra ze r de no vo pa ra primei ro dadas e m cena .
plan o a ini ciativa criadora do actor, Orientando todo o se u trabalho N o te atro da c o nvenção, o es pectad o r «n ã o esq uece por um
em di recção ao renascimento da tragédia e da comédia (a prime ira m omento qu e tem di ante de s i um act or que representa e o actor
centra da no de stin o, a seg un da na sá tira), o te atro da convenção que tem di ante de si ao pé da cena um público e , do s d o is lad os, um
ev ita os «e stados de a lma» do teatro de T ch ekho v, c uja revel ação cenár io . É a mesma coisa q ue com um q uadro; o lhando-o, não no s
arr as ta o ac to r para em oções passivas, acostum ando-o as sim a pôr e squecemos por um se gundo que se trata de c ores, de uma tel a , pin -
menos int ensidad e na s ua criação. céis, e ao mesmo tempo ex perimenta mos um sen timento de vida
S upr im indo a ri balta , o teat ro da co nve nção ba ixa a ce na ao e leva da e clarificada. E é m e smo ass im mu itas vezes: q uanto m ai s
nível da pi a teia c, tom ando o ritmo co mo base da dicç ão e do m o- no s rel acion amos c o m um q uadro, m aior é o sentimento de vid a
vime nto d os act ores, dei xa e ntrever a possib ilidade de um pr ó ximo q ue del e se lib erta».'
ren ascimento da dança; al ém di sso, neste teat ro , a pal avr a poder- N o te at ro da co nvenção, a té cnica luta contra o proce sso de ilu -
-se-á fac ilmente tran sform ar num g rito harm oni oso ou num si lê nc io são. E st e teatro não tem ne ce ssid ade de ilu são, de ss e son ho ap ol í-
melodioso. ne o. F ix ando uma e st a tu ár ia pl á stica , o te atro da convenç ão im-
O encena dor do te at ro da co nvenção tem por únic a tare fa suge- prim e na m emória d o e s pecta dor agrupa mentos separa dos par a qu e
rir uma linha di rectriz aos ac to res e não d irig i-lo s , con trariame nte fi lt re m . inde pe ndentemen te das pa lav ras pronunc iada s , os acentos
aos M eininger. O seu único papel é o de estabele cer uma ponte e n- fa tais d a tr agédia.
tre a a lm a do au tor e a do ac tor. Enc arnando a arte do e ncena dor, o O teatro da co nve nção não procura a todo o c usto varia r as s uas
ac tor só e fre nte a frente com o públ ico faz sa ltar uma c hama autê n- en ce na ções, co mo se fa z sempre no teatro natural ist a e m qu e a d i-
tica da fric ç ão de dois princ ípios livres: a arte do ac tor e a im agin a- versidade dos lu gares de evolução das personagens cria um calei-
ção c riadora do es pec tado r. do sc ópio de po ses que mudam ra pida mente . El e as pi ra a domin ar
Da me sma maneira q ue o act o r é livre face ao e ncena dor, tam- habilmente as linhas, a construção dos g ru pos e o c o lorido das ro u-
bé m o encenador é livre face ao a utor. As indicaç ões do autor pa ra pa gen s e , po r m a is im óvel que sej a, su gere mil vezes mais o mov i-
uso d o e nce nador só se j us tificavam pa ra a técni ca da é poca e m qu e m ento q ue o teat ro natu rali st a . É q ue o m ovimento sobre a cena não
a peça fo i escri ta. S urpreende ndo o di ál ogo interior. o e ncenador re - é d ad o pel o movimen to no se ntido literal da palavra , m as pel a d is-
vela-o livre mente no ritmo da d icção e da pl ástica do act or e, no qu e po sição d as linh as c da s c ore s, bem co mo pelos se us casame ntos e
res pe ita ao a utor, não terá em conta se não as ind icações q ue não se pel a s s uas vi brações ligeiras e sábias.
rel aci on am co m as nece ssidad es técnicas.
E nfim , a técni c a co nve ncio na l s u põe, n o te at ro . d epo is d o I Lconide Andr éev (cxt rac to de uma ca rta qu e me esc reveu) . O le ito r e ncontrará aind a
uma vez, ma is adia nte nes te livro , o c xtracto citado , co m as c inco linh as que o prece dem .
a uto r, o en c enad or e o acto r, um quarto criado r : o esp ectador . É q ue o a rtigo « Max Reinhardt», co m a c itaç ão da cana de L. N . And réev : apare ce u m ~i s
cedo q ue o artigo «História e téc nica do teatro », c serv i u em pane de mate ria l para es te ul-
a teatro da co nve nção e la bora ence nações e m qu e a im aginação d o tim o . (N.A .)
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Se o teatro da co nvenção qu er destruir os cenários coloc ados mas tamb ém os mi stérios fizeram ape lo aos cabotinos. Encontrava-
no mesmo plano qu e o actor e os acessórios, se ele recusa a ribalta, -se o cabotino e m todo o lado em q ue ho uvesse uma representação,
se subordina a interpreta ção do ac tor ao ritmo da dicção e dos movi- q ualquer que e la fosse, e era dele qu e os organizado res de m istérios
men tos plástico s, se apela ao renascimento da dança e insta o es pec- es peravam a execução minuciosa de tod as as tarefas mais di fíceis dos
tad or a tom ar part e ac tiva na acção, es te teatro da co nve nção não seus espectáculos . A história do teatro fra ncês ensina-nos que o actor
co nd uzirá ao ren asciment o do teatro antigo? do mistério era inca paz de dese mpe nhar a sua tarefa sem a ajuda do
Com ce rteza qu e sim. jogral. No reinado de Filipe o Belo, por e ntre os assuntos religiosos, a
Pela sua arquitec tura, o teatro antigo é precisam ent e aq ue le e m farsa surgiu de rep ent e, inesperadamente, com as suas saídas obsce-
que se enco ntra tudo aquil o de que necessita o teatro con tem porâneo: nas a propósito de Renart. A quem se deve a interpretação dessa fa rsa
ausê ncia de ce nário, es paço a três d im en sões e o imperativo da es ta- se não ao cabo tino'l Os mistérios, co m o desenvolvimento pro gressivo
tuári a plástica. dos cortejos, abo rda m tem as cada vez mais novos que exigem aos in-
À arquitectura deste teatro se rá necessário, co m certeza, trazer- térpretes técnicas ca da vez mais novas. Assi m, vemos bem qu e a ca-
-lh e algumas da s rectificações que implicam as exigênc ias conte m- botinagem não era es tranha aos mistérios; o ca botino chego u mesm o
porâneas; mas o teatro anti go, co m a sua sim plicidade, co m a di sp o- a rep resent ar um pap el imp ortante no se u destino.
sição do público em ferr adura, co m a sua orques tra, é o úni co qu e Sentindo a s ua im potência, o mi stério começou a pouco e pouco
pode aco lhe r toda a variedade desejável de rep ort ório. a ass imilar um e leme nto popular encarnado pelos mim os, teve qu e
sair do púlpito da ig reja, atravessar o ad ro e o cemitério para chegar à
praça. Cada vez qu e o mistério se tentou a liar co m o teatro, apoiou-se
2 - O TEATRO DE FE IRA (1912). O actor e o cabotino
inevitavelm ent e no m imo, mas desde qu e o mistério se a liou à arte do
Um cabo tino I é um actor ambulante. Um cabotino pert en ce à actor, dissolv eu -se imediatamente nessa arte e deixou de ser mi stério.
fam ília dos mimos, dos histriões, dos jogra is. Um cabotino possu i E talvez co ntinue a ser ass im: se não há cabotino não há teat ro
um a maravilh osa técn ica de actor. Um cabotino é o representante e recip rocam ente, desd e qu e o teat ro recu sa as leis funda me nta is da
das tradi ções da aut ênti ca arte do act or. É aqu ele que permitiu ao teatralidade, se nte-se imediatament e capaz de dispensar o ca bo tino ,
teatro oc ide nta l ating ir o seu desabrocha r (co m os teatros es pa nho l ( ...)
e ital iano do séc ulo XV II) . Benois 2, interessa ndo-se pelo mi stério e É precisame nte nos tempos e m q ue se desenvolve a cabotina-
felicitando-se po r vê- lo rena scer so bre a ce na russa, fala desdenho - ge m que é preci so procurar o co meço do teat ro. Estaría mos errados
sa me nte da ca bo tinagem como se ndo um ce rto flagel o do teat ro , em acred itar, por exem plo, que é dos mi stérios q ue procede o teatro
no Hospital da Santa Trindade I. Não, nasce u na rua, da s pantomi -
I Em fran cês no orig ina l. (N. F .) mas represent adas qu ando das entra das so lenes dos reis.
2 Pintor , encc nado r e c rítico , contem po râne o de Meyerho ld. Q uer ia promover um
teat ro popu lar inspirando-se nas ideias de Puchkine . Me yerhold faz aqui alusã o a um artigo
de Ben oi s escrito a prop ósit o dos I r mãos Ka rama zo v e nce nados no Teat ro Art ísti co. (N. F .) I Lugar permanente das represent açõe s dos Ba sochien s em Pari s. (N .F .)
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Por outro lado, actualmente, a maioria dos encenadores vira-se O s que se preocupam e m re construir a cena antiga, colhendo o
para a pantomima e prefere-a ao drama literário. Não penso que se u saber na s teorias esquecidas da arte cê nica, no s velhos manus-
seja por acaso. Também não é uma simples questão de go sto. Os en- crito s e nas antigas iconografias teatrais, propõem-se levar o actor a
cenadores não se esforçam por cultivar est e género ap enas pelo en - acreditar na importância e no poder da sua técnica de representação.
canto original e autêntico que encerra a pantomima. É para recons- Da mesma maneira que o romanci sta estilizador, segundo os
truir o teatro antigo que o e nce nado r contemporâneo considera ser materiai s fornecidos pelos ve lhos cronista s, re ssuscita um passado
neces sário começar pela pantomima. É que , nestas pe ças mudas e em be lezado pela sua própri a imaginação , assim o act or, se gundo os
na su a encenação, revela-se , tanto para os actores co m o para os materi a is reunidos para se u uso por um erud ito que queira rec ons -
encenado res , todo o impacto dos elementos primordiais do teatro: o truir o teatro antigo, pode fazer renascer a técnica d os esquecidos
impacto da máscara, do ge sto , do movimento e da intriga, todos os co med iantes. Entusiasmado pela sim plicida de, pela nobreza refinada,
elementos qu e o actor contemporâneo ignora completamente. Por- pelo im enso sentido artísti co das ve lhas técnicas de actor, portanto
que el e perdeu de todo a ligação com as tradições que foram as do s eternamente novas , as de todos o s histriones, m imi, at cllani, sc urrae,
grandes mestres da arte do actor. Deixou de ouvir o que exprimiam jacu/atores, ministrelli I , o actor do futuro, se quiser continuar actor,
os velhos companheiros da sua co rporaç ão : o valor autónomo da pode, 0 11 ante s, deve conciliar o seu impul so e m oc io na l e a sua
técnica do actor. maestria, e ex prim i-los um e o utra no s qu adros tradi ci onais do teatro
No actor contemporâneo , o comedi ante transformou- se em antigo .
«decl am ador intelectual». «A pe ça será lida por actores mascarados
e maquilhados », ei s o que se poderia es c reve r hoje nos cartazes.
3 - O A CT O R E A BI OM EC ÂNI C A ( 1922)
O novo actor dispen sa a m áscara e a técnica do jogral. À máscara
subs titui-s e a maquilhagem , que vi sa reproduzir o mai s exactamente Antigamente o ac to r, na sua arte, co nfo rmava-se se m pre com
possível todos os traços de uma cara surpreendida na vida. Quanto à as norm as d a socieda de à qual a sua art e se e nc ontrava destinada.
técnica do jogral, o ac tor contemporâneo não tem a mínima necessi- No futuro, ele deverá mais a inda coordenar a su a interpretação com
dade dela porque em vez de «re presentar» , contenta-se com «v iver» as condições da produção, porque trabalhará e m condições em qu e
sim p lesme nte em cena. Não compreende es sa palavra mágica do o trabalho não terá mais o as pec to de uma maldi ção , mas de uma
teatro, o jogo da representação, porque um imitador nunca é capaz necessidade alegre e vital.
de se e levar até ao improviso, que se apoia sobre a infinita varie- É e vide nte que nestas co nd ições ideais de trabalho , a a rte terá
dade da combinação e da alternância do s processos técnicos des co- que ler uma no va base.
bertos pelo histrião.
O culto da cabotinagem qu e, estou certo, reaparecerá quando I Meycrhol d c ita aqu i di fere ntes tipo" de act ores antigo s : o s at clla ni sã o os actores
das atclanas (peças c ôm icas) . UOl g éner o na sci do em Atclla, na Cam pan ia: os S C lII Tl1C , são
renascer o teatro antigo, ajudará o actor contemporâneo a virar-se
bu fõ e s ; o s j a c u /a /or es . o s jog rai s ; qu ant o aos min istr.. ll i , é a p ala v ra d e qu e d er iv a
para as lei s fundam entais da teatral idade. men est réi s . (N.F. )
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Estamos habituados a que, para cada um, o tempo se divida I) A au sência de movimentos inúteis não produtivos.
claramente em repouso e trabalho; cada um procura consagrar-se o 2) Um ritmo.
menos possível ao trabalho e o máximo possível ao repouso. Mas se 3) A consciência exacta do seu centro de gravidade.
esta tendência é normal para a soc iedade capitalista, não é de modo 4) A ausência de hesitações.
algum conforme com o bom desenvolvimento da sociedade soc ia-
Os movimentos construídos so bre es tas bases não têm nada de
lista.
«da n çante ». O trabalho de um operário especializado lembra sem-
O problema es sencial é o da fadiga e é da sua re solução cor-
pre a verdadeira dança, situando-se as sim no limite da arte. O e s-
recta que depende a arte do futuro.
pectáculo de um homem que trabalha bem proporciona se m pre um
Na América de hoje, atarefam-se para encontrar o meio de in-
certo prazer.
cluir o repouso no processo de trabalho sem faz er dele um a unidade
Todas e stas observações se ap lic am perfeitamente ao trabalho
independente.
do actor do teatro do futuro, porque temos sempre que lidar, na arte ,
Todo o problema se resume no ajustamento dos m omentos de
com a organização de um certo material.
pausa. Na s condições ideais quanto à higiene, à fisiologia e ao con-
O construtivismo exigiu do artista que se tomasse também en-
forto , dez minutos de repou so podem fazer um homem recobrar
genheiro; é que a arte deve fund ar-se sobre bases c ie ntíficas e toda a
todas as suas forças .
criação de um art is ta deve se r co ns c ie nte . A art e do actor funda- se
O trabalho deve tomar-se fácil, ag radáve l e contínu o , e a arte
sobre a organização do se u m at erial e o acto r de ve sa be r utili zar
deve ser utilizada pela no va classe como qualquer coisa de essen-
correctamente os m ei os e xpres s ivos do se u co rp o .
cial e de necessário que, em vez de se r simplesmente uma distrac-
Nele se e fe c tua a s íntese do organi zador e do organizado, ou
ção, ajude o operário no proc esso do seu trabalho. É por isso qu e
noutros termos , do arti sta e do se u material. A fórmula do ac tor terá
será preciso mudar não apenas as formas da nossa arte , mas tam-
a expressão segu inte : N = A 1+ A2 . N é o ac tor, A I é o construtor que
bém o seu método.
concebe e dá orde ns com vistas à realização do projecto, A2 é o corpo
O actor que trabalha para a nova classe de ve rever todos o s câ -
do ac to r, o int érprete qu e reali za as instruções do co ns tru to r (A I ).
nones do velho te atro. O próprio estúdio do actor será o rga nizado
O actor deve treinar o seu material, quer dizer o seu corpo, d e
noutros moldes e o trabalho do actor na sociedade laboriosa se rá tal maneira que fique apto a realizar rapidamente as instruções rece -
considerado co m o uma produ ção necessária ü boa organização do bidas do exterior (d o ac tor ou do c nce nador).
trabalho de todos os c idadãos . Na m edid a em qu e a int erpretação do actor é e xecu ç ão de in s-
No entanto , 11 0 proce sso de trabalho, para além da reparti ção tru ções determinadas , exige-se dele uma e c o no m ia dos modos d e
correcta do s tempos livres, é preciso p rocurar movimentos tal co m o expressão qu e ga ra nta a precisão dos movimentos su sceptíveis de
sã o utilizados no s tempos de trabalho para obter um rendimento exe cutar as in struções 1I0S prazos mais curtos.
m áximo. Ora, estudando o trabalho de um operário experiente, no - O taylori srno apli ca-se ao trabalho do actor como a todo o tr a-
tamos no s seu s movimentos: balho em qu e se pretenda obter uma produção m áxima.
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Estes e lementos : I) o repou so que se insere no processo de O maior defeito do actor contemporâneo é a ignorância abso-
trabalho sob a forma de pau sas; 2) a arte que preenche uma função lut a das leis da biomecânica.
vital necessária e precisa em vez de se ater a uma fun ção de distrac- É inevitável qu e , segundo os s iste mas de representação que
ção, obrigam o actor à maior economia de tempo po ssível. Estando hoj e e xistem , a emoção invada se m pre o actor de tal maneira que
a arte incluída no emprego do tempo geral do trabalhador, é-lhe el e não possa, de modo algum , reagir com os seus movimentos,
afectada, com efeito, uma quantidade precisa de unidades de tempo nem com a sua voz , que não tenha qualquer controlo so bre SI .
que deve se r utilizada ao máximo. Isto sign ifica qu e não se dev e me smo e que nã o possa garanti r a eficácia da sua interpretação. Há
perder de maneira improdutiva uma hor a e meia ou du as com a ma- apenas algumas excepções : gra ndes actores captaram intuitivamente
quilhagem ou com o vestir-se . O act or do futuro trabalhará então o qu e de ve se r um método de interpretação correc to; adivinharam o
sem caracterização e ves tido eom um prosadejda I , fato concebido princípio de uma aproximaçã o ao papel, indo não do interior para o
de tal maneira que servirá ao aetor de fato ordinário, mas ao mesmo ex te rio r, mas pel o contrário, d o exterior para o interior, o que evi -
tempo, estará idealmente ada ptad o a todos os movim entos e projec- dentemente contribuiu para de senvolver neles um grande domínio
tos que tenha que realizar ao representar em cena. técnico. É o caso de DouzeC Sarah Bernhardt, Grasso I, Chaliapine,
A taylorização do teatro permitirá representar numa hora o que Coquelin e outros.
hoje nos leva quatro. Há toda uma sé rie de qu estões nas quais uma aproximação psi-
Para isso o aetor deve: I ) possuir naturalmente uma capaci- co lóg ica não poderia cond uzir a al guma so luçã o precisa. Construir o
dade de resp osta à excita ç ão dos reflex os c o hom em dotado dessa ed ifíc io teatral so bre uma base psicológica equivale a cons tru ir um a
capacidade pode aspirar a tal ou tal emprego que corresponda aos ca sa so b re areia: ine vitavelmente se de smoronará. Na realidade, to -
se us dados físicos ; 2) es tar em plena f orma física , quer dizer, qu e dos os estados psicol ógi cos são condicionados por certo s processos
deve ter uma visão ráp ida e justa, conhecer em todos os moment os fisiol ógicos. D escobrindo o es tado físico mai s adequado a esta ou
o centro de gravidade do se u corpo e não hesitar. àquela personagem, o actor chega a uma situação na qual nasce em
A criação do aetor resumindo-se à c riação de formas plásticas si aquela excitabilidade que constituí a essência da sua interpreta-
no espaço, implica que lhe sej a necessário estudar a mecânica do ção , que se comunica aos es pectado res e qu e os faz participar dessa
se u Corpo . Tal é- lhe necessári o porque toda a manife stação de um a int erpretação. É de toda uma sé r ie de situações ou de es tados físicos
força, em particular num organism o vivo , está submetida a urna lei qu e na scem esses pontos d e excita bilidade qu e só depois tomam a
mecânica ún ica (e a criação pelo aet or de forma s pl ásticas no es - cor d este ou daquele sentimento .
paço céni eo é , ev idente me nte , a manifestação de uma força do orga- C o m um tal sis te ma de na scimento do sen tim en to, O ac to r dis-
nismo humano). po rá sempre de lima base s ó lida : a premissa física.
De ve ler -se Duse (gra lha do or ig inal fra ncês) .

I Fal o -macaco azul. de que Mcyerhold fez o un iform e do s ucto rcs. Co nfo rm e () Cuco G . Grasso ( IX73- 1930). act or itali ano , de ori gem sici liana, qu e fcz al gumas digres-
M agn ífico . (N.F.) sões pe la Rú ss ia . (N .F .)
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A cultura física, a acrobacia, a dança, a rítmica, o boxe e a Para um teatro futurista


esgrima são sem dúvida matérias úteis, mas apenas quando se en-
Os Futuristas italianos, que ultimamente desencadearam nas
contram introduzidas como auxiliares no curso de biomecânica,
ruas de Parma um motim violento de dez mil pessoas, acalmado
matéria necessária e fundamental a cada actor.
apenas pela intervenção das tropas, regressam hoje à literatura
(V. Meycrhold, Écrits sur I" théâtrc I, trad. de B. Picon-Vallin, Lausana, La Cité, L'Age com este novo manifesto:
dHomrne, 1973; I: pp. 121-123; 2: pp. 184, 187-188; 3: Écrits sur le théatre n, Lausana, La
Cité, L'Age d'!Iomme, 1975, pp. 78-80.)
De entre todas as formas literárias, a que tem um alcance futu-
rista mais poderoso é, certamente, a obra teatral. Queremos também
que a arte dramática deixe de ser o que hoje é: um miserável pro-
duto industrial submetido ao mercado das distracções e dos prazeres
citadinos. Para isso, é preciso varrer todos os preconceitos imundos
58 - MARINETTI: MANIFESTO DOS AUTORES DRAMÁTICOS que esmagam os autores, os actores e o público.
FUTURISTAS (l911) I - É por isso que ensinamos aos autores o desprezo pelo pú-
blico, em particular pelo público das estreias, cuja psicologia a se-
Filippo Tommaso Marinctti (1876-1944), artista e teórico ita- guir sintetizamos: rivalidades de chapéus e trajas femininos, vai-
liano, foi o promotor e depois catalisador do movimento futurista, dade de um lugar caro transformando-se em orgulho intelectual,
cujo Manifesto de Fundação, voluntariamente provocador, foi publi- camarotes e plateia ocupados por homens maduros e ricos, cujo cé-
cado em 1909 sob o signo do desafio ao passado, da exaltação dos rebro é naturalmente desprezivo e a digestão muito laboriosa, o que
valores da revolta, da apologia da máquina e da sua energia: um é incompatível com qualquer esforço intelectual.
automóvel é mais belo que a Vitória de Samotrácia. Em 191 I, O público varia de disposição e de inteligência segundo os di-
O Manifesto dos Autores Dramáticos Futuristas proclama a vontade ferentes teatros de uma cidade e as quatro estações do ano. Está
de introduzir os princípios futuristas no teatro. Em 1913, com um submetido aos acontecimentos políticos e sociais, aos caprichos da
novo manifesto, Marinetti celebra o «Music-hall» como o espectáculo moda, às chuvadas primaveris, aos excessos de calor e de frio, ao
dofuturo: nele encontra, com (jeito, o sentido do dinamismo (simul- último artigo lido depois de almoço. Infelizmente, não tem outro
taneidade e velocidade), o sentido do grotesco e da caricatura, quer desejo que o de agradavelmente fazer a digestão no teatro. Fica,
dizer, a intuição das múltiplas analogias entre o humano e o medi- portanto, absolutamente incapacitado para aprovar, desaprovar, ou
nico. Em finais de 1914, um reportário teatralfuturista constitui-se corrigir uma obra de arte. O autor pode esforçar-se para tirar o seu
em torno do Manifesto sobre o teatro futurista sintético, com os «mi- público da sua mediocridade como se salva um náufrago retiran-
nidramas- de Marinctti, Corra e Settimelli. Trata-se de peças muito do-o da água. Mas que o autor se abstenha de se deixar agarrar pe-
curtas obedecendo a uma estética da condensação e do contraste, las mãos apavoradas do seu público, porque inevitavelmente se
construídas de acordo com a técnica da montagem. afundaria com ele num grande estrépito de aplausos.
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2 - En sinamos também o horror pel o suce sso im ediato que os grande s calafrios revoluci onários que agitam as multid ões, as no-
coroa as obras medíocre s e ban ai s. As peças que impressionam di - va s co rre n te s d e ide ias e as g ra nde s descobertas c ientíficas que
rectamentc, sem intermedi ários e sem explicações, todos os indiví- transformaram co mp letamente a nossa se ns ib ilidade e a no ssa men-
duos de um público, são obras mai s ou menos bem construídas, ma s talidade de homen s do séc ulo v inte .
absolutamente de sprovidas de no vidade e, por conse guinte , de gé- 7 - A arte dram átic a não deve faz er a fotogr afi a psicológica,
nio criador. mas uma síntese exaltante da vida nas suas linhas signific ativas e
3 - O s autores não se devem preocupar senão com a originali- típi cas.
dade inovadora. Todas as peças qu e partem de um lu gar-comum ou 8 - Não há art e dram áti ca se m po es ia, qu er di zer, se m embria-
que ped em de e mpréstimo a outras obras de arte a sua concepção, o gu e z e s e m síntese . A s fo rmas prosódicas regul a res d e vem ser
se u fio, ou uma parte do se u de senvolvimento, são ab solutamente excl uíd as. O escritor futur ista usará então o verso livre: instável or-
de sprezíveis. questração de imagen s e de so ns que, pa ssando do tom mais sim-
4 - Os leit-motiv do am or e o triângulo do adultério, tendo sido ples para exprimir, por e xe m p lo , com exactidão, a e ntrad a de um
ex cess ivame nte usados na literatura, devem ser reduzidos em cena criado ou o fechar de uma porta, se eleva gradualmente com o ritmo
ao valor se c undário de episódi os e acessórios, tal como se tomaram das paixões em estrofes c ad e n c iad a s altern ad am ente caóticas,
hoj e na vida, mediante o nosso grande esforço futurista. quando se trata , por exem p lo, de anunciar a vit ória de um povo ou a
S - A arte teatral, como tod a a art e, não tendo por objectivo mais morte g loriosa de um aviador.
que o arra nc a r a alma do público à realidade quotidiana e exaltá-la 9 - É preciso destruir a obses sã o da riqu eza Il O mundo literário,
numa atmosfera de slumbrante de e m briag uez intelectual, despreza- tendo a a videz do ga nho e m p u rrad o para o teatro inúmeros e s-
mos todas as peça s qu e queiram ape nas comover e levar às lágrimas píritos exclus ivamente dotados das qualidades do cro nis ta e do jor-
pelo es pectác ulo fatalmente ente rnece do r de uma m ãe que perdeu o nalista.
se u filh o, de uma jovem que não pod e casar com o se u apai xonado, 10 - Queremos submete r o s actores à auto ridade dos es critores ,
e outras tolices semelhantes. arr anca r o s actores ao domínio do público qu e fat almente os em-
6 - Despre zamos na art e, e no teatro em particular, todas as rf'- purra para a bu sca do efei to fácil e os afa sta de tod a a pesquisa da
construçôes históricas, sej am aq ue las c uj o interesse deriva dos he- inte rp re taç ão profunda.
róis ilustres, como Nero , César, Napoleão, Casanova ou Francesca Para isso é preci so a bo lir o hábito grotesco dos aplausos e dos
da Rimini , sej am as qu e se apoi em na sug estão e xe rcida pel a sump- as so bios, qu e pode se rv ir de bar ômetro à e loq u ênc ia parlamentar,
tuosid ade inútil das roupagen s e decorações do passado. mas não , segurame nte, ao valor de uma obra de a rte .
O drama moderno deve exprim ir o grande sonho futuri sta que 11 - Esperando ess a abolição, ensinamos aos autores e aos ac-
se liberta da nossa vida contemporânea exasperada pelas velocida- tores a voluptuosidade de se rem assobiados.
des terrestres, marítimas e aér eas e dominada pelo vapor e pela Tudo o que é assobiado não é necessariament e nem belo nem
electricid ad e . É preciso introduzir so bre a cena o reino d a Máquina, novo. Mas tudo o qu e é im ediatamente aplaudid o não ultrapassa as
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int el igências médias; é a part ir do med íocre, do banal , do revorni- Para co nsegu ir a palp itação, basta suprimi rem-se as árvores .
tad o ou do demasiado bem digerido. 1917
Tenh o a ale gria de saber, ao afirm ar-v os es tas conv icções futu - Renunciar à ideia d e cenário .
rist as, que o meu génio, vá rias vezes assob iado pelo s públ icos de Quanto mai s nu a es tive r a cena tanto ma is a ac ção poderá fazer
França e de Itália, nunca se rá ente rra do so b aplauso s incóm od os. aí na scer os sortilégios. Quant o mai s au stera e r ígida for, tanto mai s
F. T. M arinetti a imag inação aí tra ba lha livrem ente.
É sobre o co ns tra ng imento material que a liberdade de es pí rito
(G . Lista, Futurisme , antolog ia, Lausana, La C it é, L'A ge d 'Homrne , 197 3, pp. 247- 249.)
se apo ia.
Sobre essa cena á rida o acto r es tá encarr egad o de tud o realiza r,
tu do ret irar de si próprio .
O problema d o act or, da interpretaç ão , do m ovimento íntimo a
trab alhar, da interpretação pura, é assim colocad o em tod a a sua am-
59 - COPEAU: REGISTOS I (TEXTO S DE 1917 A 1930 )
plitude.
Um palco nu e verdadeiros actores.
Jacques Copeau (1879-1949), encenad or e actor fran cês, [un-
1917
dador (em 1913) do Teatro do Vieu x Colornbier, tra z uma ética do
actor e um ideal do trabalho colectivo. Mais tarde (em 1925), criará A ce na tal como a conce bi e c uj a reali zaç ão co meçámos a es-
Les Copiaux, uma co mpa nhia regida por p rin cípios de vida co m u- boçar, qu er di zer: desatravan cad a , tão nu a quanto possível , e spe-
nitá ria . Co loca dois eleme ntos no ce ntro da rea lização teatral: a rando qualquer coisa e pronta a receber a s ua forma da acç ão que aí
arquitectura da ce na e o actor vivo. (<< Por obra nova deixem-nos se desenrole, es sa ce na nunca é tão bel a como no se u es tado natural ,
um palco nu », proclama em 1913 - ao q ue a crescentará em 191 7 .- primitivo e vaz io, quando nad a aí se pa ssa e repousa, silenc ios a, fra-
camente ilumin ada pela meia-luz do dia. Foi ass im qu e a co nte m p le i
«um palco nu e ve rdade iros act ore s»}. A sua estética religo -se à de
c melhor a compreend i, uma vez acabada a temporad a: verd ade ira
App ia e de Craig , mas é sobretudo do «poeta do teatro>' - qu er di zer,
na sua superfíc ie plana , alterada j á pelo se u d ispositivo co ns tru ído,
daquele que seria o Sh akespeare ou o M ol iê re do nosso tempo - que
o qu al não é mai s qu e um a hip ótese prem atu ra d as necessid ad es d a
Copeau espera a verdade ira renovação d o teatro . A sua ob ra es-
re presentação , um aco modar-se às suas nece ssidades pressentidas.
crita e teórica apresenta -se sob a fo rma d e Cade rnos em qu e la nça
estranhas, e d as qu ai s o nosso es pí rito . m esm o qu e co nce ba o ma is
ma is ou menos em d esordem as S ilOS reflex õ es , aos qua is cha ma os
liv rement e po s s ível, nun c a es tá de sembara ç a d o . Q ua ndo re v i a
seu R egistos.
ce na, devol vid a a s i própria. em Julho p as s ad o , com pree nd i que
tudo o que tinha passado so bre ela durante a temporada, acessórios,
o actor e o palco nu roupagens, actores, lu ze s, a tinha apenas de sfi gurado.
É então da cena qu e é preciso partir.
Bataille queria a palpitação das folhas nas suas árvores de ca rtão . 1920
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Ubiquidade do drama. Quanto mai s espaço e tempo abarcar -


Disse muitas vezes que não me parecia que pudes se existir
seg undo a tendênc ia actual - tant o ma is crescerá a sua ambição
uma so lução d ecorativa para o problema c énic o , mas apenas uma
poética, tanto mais ela tenderá a di spersá-lo no esp aço e no tempo,
solução arquitectural, e uma solução arquitectural em função de
maior será a sua nec essidade de unidade c énic a, de modéstia cénica.
uma forma dramática que não podemos esperar senão do criador E so bre esta ce na todos os m eios devem estar ligados ao ho-
dramático completo, quer diz er do poeta, nascido sobre a cena e mem , co meçar pel o homem, ficar ao se u alc ance e à sua m edida.
para a cena, e cujo pensamento construirá para a sua expres são au- Incluindo a máquina. Ela não deve substituir-se ao homem, ma s
têntica o instrumento de que terá ne cessidade. Ora, não vejo , com prol ongá-lo, ajudá-lo, completá-lo.
algumas raras excepções, por mais sedutoras e prestigiosas que por 1930

vezes po ssam se r, senão fantasia s decorativas, ilustrando uma cena (J. Co pcau, Appels, Registres I, Paris, Ga lli mard, 1974 , pp.2 19-225.)

que não evolui e fica invariável no seu quadro, a caixa caleidoscó-


pica a que no s confinaram os Italianos. Pouco importa ape sar de
tudo que esse quadro varie de dim ensões, que sej a rect angul ar,
quadrado, oval, em forma de tri ângulo ou de coração; que o cená-
60 - O E XPR E SS IO N ISMO .
rio seja pintado em trompe l' ocil ou a direito; que as tiras de ar KORNFELD: O HOMEM ESPIRITUAL E O HOMEM
acre scentem um aspecto di vertid o a esta ou àq ue la en g enh oca PSICOLÓ GICO ( 19 18)
decorativa; pou co importa mesmo qu e os planos e os volumes este- GOLL: O ,')'UPERD RA MA (1919)
jam habilmente div ersifi cados e compost os: se uma vo ntade dra-
máti ca nova não abalar o próprio edifício do teatro; se, por exem - O EXPRESSIONISMO é um m ov im ento qu e apareceu na s artes
plo, uma nova relação não se es ta be lecer entre o e spectador e o na Alemanha entre /915-1910 . No plano teatral está representado por
actor, não se pod e dizer que o es pírito dramático estej a e m v ias de dramaturgos como Georg Kaiser. Ernst Toller, \Valt er Hasen cl eve r.
Ansi oso por «ex p rim ir» e nã o reproduzir, o ex press io nismo , na s
transformar o in strumento teatral e, no entanto , é s im p les mente
su as origens , afirma-se como nostalgia de um aprofundamento da
disso que temos necessidade: de um edifício novo, sej a que a sua
vida . N ã o d eixa d e ter rc laçô c:» com os princípios d e Craig e d e
arquitectura c o rn pós ita exprima as necessidade s co m pós itas do
App ia . Paul Kornfeld. te árico c autor dramát ico . prop õe um verda-
nosso eclecti sm o mod erno desde a antiguidade grega at é aos nos- deiro nntip rograma do naturalismo , dominado pela recu sa da psi-
sos dias, seja que um pensamento m ais resoluto c mai s original nos cologia. Querendo atin gir «o homem em estado puro», op ôe a alm a
leve de volta às no ssas próprias origens , não no s oferecendo mais aos caractere s , num vocabul ário com co notações cristãs. Y"an Gol!
que uma pl ataforma nua para aí produzir um espect áculo sem pres- tamb ém recusa o homem quotidiano . É para afirmar a nec essidade
tígio e cuj o úni co interesse, com o úni ca urgência, res idirão na pala- de uma tomada a ca rgo da experi ência trá gi ca . Nele . as palavras
vra pronunciada pelo acto r. dr ama c tra gédia não desi gn am m ais os g éncros , mas a essên cia do
teatro , e para além dele , da cultura e da vida,
1922
41 6 41 7

Efectivantentc, o drama expressio nis ta ret omou a tradiçã o trá- adequad o ao es pírito. O se u carácter e o se u ente nd imento sã o fiéi s
gica , mas em peças co nstruídas de fra gmento s , ep isód io s . Dra- servidores da sua essên cia e renunciam por isso a representar um
maturgia da hipérbole e da alegoria, da tensão entre os extremos , () jogo pr óprio. Aqui o homem é inteiramente espírito e alma, e é por
exp ress ionismo, para al ém dos se us excessos , n ão deixou de exercer isso qu e estas grande s figuras têm em si qualquer coisa de fren éti co.
uma grande influên cia so bre autore s tão diferentes co mo Strind berg Surg em da sel va da realidade terrestre , e xtáticas e animada s por
e B recht nos se us co meços. uma sa nta lou cura. Só e las são dotadas do s atributos a útênti cos do
homem. Parecem perder a medida humana, em todo o lad o são as
primeiras a reencontrá-Ia . Ao homem vul gar parecem sobren aturais
J - O HOM EM ESPIRITUAL E O HOM EM PSICOLÓGICO
e, no e ntanto, a penas e las repre sentam a verd ad eira nature za do
Dei xem os o ca rác te r para a vid a qu otidiana e no s grandes m o- homem . Porque libertad as do s humores do carác te r, das co ntingên-
mentos saibamos se r tod os alma. Porque a alma releva do cé u e o cias da indi vidu alidade, independentes do se u corpo e despojadas de
ca rác te r da terra. tudo o que não é a s ua pr ópria essên cia , es tas furiosas, estas alm as
A psicologia não diz mai s so bre a essê ncia humana qu e a an a- puras, percorrem o seu cam inho de um só impulso sem enc o ntrar
tomi a... um úni co ob stáculo, ign oram o não es sen cial, são elas os homens
Tal é o destino do hom em : o se u verdad e iro se r es tá pri sioneiro orig inai s, a pura criação d e Deu s. E es tes se res nu s que pr oferem
de um corpo inchad o de sa ng ue e de instinto s, de um conglom erado di scu rsos pod erosos com gestos grand iosos, que se rolam na terra
de qu alidades e ca pac ida des, de um ente nd imento ape nas bom para pr e sas da dor, qu e ex primem o in fortúnio e a felic idade unicamente
prover às necessidades quotidi anas, da mesma form a qu e o co rpo; e pelo ca nto e pel o grito , que se precipitam so bre a cena de punhal
é a infelicidade do hom em con sciente desta desarmonia não mais erguido , todos es tes desc arados que parecem tão estranhos ao homem
poder, inocent emente , dar-se por inteiro à terra, nem tal vez ao es pí- banal , são no entanto eles a banal idade porque são os primitivos. E o
rit o. Seria um sonho para um outro mund o o querer despoj ar-se d os espect ador que os acha estranhos, é ele o co rrom pido. Aqu ele qu e
seus atributos terre st re s e hum ano s, m a s é um so n ho para es te não reconhece o se u irmão e m cada uma destas personagen s es tá per-
mundo não autoriza r a sua manifesta ção se nã o em função do es piri- dido porque não reconhecerá nada do seu se r verdadeiro, é, no verda-
tual , quer dizer, de apresentar o humano e o terrestre como sim ples deiro sentido da palavra, inconsciente; ca iu da árvore da humani -
atributos : dissip ar então a desarmonia, fazer de la um simples ec o , dade como um fruto ap odrecido porque já não tem qu alquer laço a
c o mo na arte e m qu e as figuras domin ant e s não sã o ma is qu e a ligá-lo ao mundo , ao centro do mundo e a s ua ex istênc ia se rá para
ch am a e o ca nto do se u es paço interior e o nde o terrestre se m ex is- sem p re terrestre .
tênc ia autó no ma não é mai s qu e um a m ús ica e m un ísson o , uma To ma-se parti cularmente urgente par a a no ssa época em qu e o
sombra que se carrega. conhecimento da nossa natureza parece desenvol ver- se tant o que os
Só a arte, só estas grandes personage ns escapam a es tas con- homens se rodei am dessas personagens a fim de qu e lhe reco rdem as
trad içõe s, a es tas d iv isõe s. A pe nas e la s rece be ram o in vólucro suas origens e que dirijam a sua atenç ão para as verdades import ant es.
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Porque se levaram milénios para percorrer o caminho do espírito e O drama implicava uma enorme intensificação da realidade,
do conhecimento que um indivíduo percorre numa vida, elas tam- um mergulho profundo, obscuro, «pítico», na paixão sem limites,
bém tomam o caminho da consciência e da auto-análise tanto mais na dor devoradora e tudo banhado em cores surreais.
interessante em aparência quanto existem numerosos caracteres, ne- Mais tarde o drama não teve mais que o homem em vista: al-
nhum se assemelhando ao outro; também eles vão pelo caminho da tercações consigo mesmo, psicologia, problemática, razão. Não se
psicologia, dessa ciência que, como o seu nome indica, é a da alma, trata mais do que de uma realidade, de um domínio e todas as di-
e que apesar disso se degradou para se tomar a ciência do carácter e mensões ficam restringidas por esse facto. Tudo gira em tomo de um
das relações de causalidade entre funções e instintos humanos. Mas homem e não mais em tomo do homem. A vida colectiva tem difi-
a arte poderia demonstrar-lhes que os caracteres mais interessantes culdades em se exprimir aí: nenhuma cena de multidão atinge o vigor
são, finalmente, pouco interessantes, que o caos das suas vidas, o do coro antigo. Como esta lacuna é vasta vê-se nos dramas do século
desenrolar dos seus dias, estão vazios diante da plenitude de uma passado; não são mais do que interessantes. São argumentações elo-
alma pura e a arte poderia provar-lhes que o centro do homem não é quentes, ou simples imitações da vida. Não têm nada de criador.
aquilo que a maioria das pessoas crê. O novo dramaturgo sente que tem de entrar em combate e afron-
Tal poderia ser a missão, o sentido último de toda a arte, e uni- tar, enquanto homem, tudo o que, nele como à volta dele, é animal
camente isto: recordar à humanidade que ela é composta de homens ou coisa. É uma penetração no reino das sombras, as quais se agar-
e recordar ao homem que ele pertence a Deus e que tem uma alma, ram a tudo e se escondem por detrás de toda a realidade. Assim que
que nela está o seu centro, o seu único ser, e o resto não é mais que forem vencidas, talvez a libertação seja possível. O poeta deve rea-
o fardo que a força a rebaixar-se, o laço no qual deve estar encer- prender que existem outros mundos bem diferentes deste dos cinco
rada para residir na terra. Tal poderia ser o sentido último de toda a sentidos: o mundo surreal.
arte: mostrar ao homem como todo o real não é mais que aparência É com este mundo surreal que deve comunicar. Isto não é de
que se evola diante da existência humana autêntica. Sim, todo o real modo algum um regresso à mística nem ao romantismo, nem à pa-
não é mais que erro porquanto a verdade é a espiritualidade. lhaçada de musical, embora em tudo isso exista um elemento co-
mum: o supra-sensível.
Primeiro que tudo, será necessário quebrar a forma exterior, a
2 - O SUPERDRAMA
postura racional, convencional, moral, todas as formalidades da
Uma dura luta se desencadeou sobre a questão do novo drama: nossa existência. Mostrar-se-á o homem e as coisas tão nus quanto
o superdrama. possível e, para obter um melhor efeito, sempre através de uma
O primeiro drama foi o dos Gregos, em que os deuses se me- lente de aumentar.
diam com os homens. Que aventura formidável foi esta: a honra que Esqueceu-se completamente que a cena não é outra coisa senão
o deus então fazia ao homem! Duelo divino que os séculos futuros uma lente de aumentar. Os grandes dramaturgos souberam-no sem-
não mais verão. pre: o Grego calçava o coturno. Shakespeare dialogava com espíritos
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gigantes. Esqueceu-se por completo de que o primeiro símbolo do É por isso qu e o novo drama irá recorrer a todos os meios téc-
teatro era a máscara. Esta é rígida, única e impressionante. É inalte- nicos que hoj e substitue m a máscara, por e xe m plo o fonógrafo, que
rável , irrevocável, não se lhe pode escapar, é o Destino. mascara a voz, o anúncio luminoso ou o altifalante. Os intérpretes
Todo o homem usa a sua máscara, que os antigos chamavam de deverão usar máscaras de smedidas, em que o seu cara cter seja ime-
culpabilidade. As crianças têm medo dela e choram. Os homens, tão diatam ente reconhecido de um a maneira g rosse iramente exte rior:
satisfeitos cons igo próprios, tão razoávei s, deverão reaprender a uma orelha demasiado grande, olhos brancos, uma perna de pau .
chorar. A ce na está lá para isso. E não acontec e muitas vezes que A e st e s exageros fisi ognorn ónicos, qu e n ão consideramos co m o
uma grande obra de arte, um deus negro, um rei egípcio, nos apare- exageros, corresponderão os exageros int ernos da ac ção : as situa-

çam como uma máscara? ções poderão se r mostradas ao contrário e, a fim de as tomar mais
impress ionantes, poder-se -á mesmo subs tit uir uma ex pressão pelo
Há na máscara uma lei, qu e é a do próprio drama. É que o ir-
se u contrário . O efe ito se rá exactam ente o mesmo que quando se
real se toma um facto . Provam-nos por um brev e momento que a
fixa durante muito tempo um tabuleiro de xad rez, e se começam a
coisa mai s banal pode se r irreal e «divi na», e qu e aí pre ci samente
ver brancos os quadrado s pretos, e negros os quadrados brancos; as
re side a mai or verdade . A verd ade não es tá encerrada nos limites da
concepções encavalgam-se ali onde se toca nas fronteiras da verdade.
razão. É o poeta que a encontra e não o filósofo. É a vida, e não o
Queremos um Teatro. Querem os a verdade 'm ais surreal. Es ta-
«pe nsamento». E de seguida mostram-vo s que tod os os fenómenos,
mos à procura do supe rdram a.
tanto o ma is perturbador como o mai s pequen o pestanej o , são de
uma importância capital para tudo o qu e vive aqui e m baixo. (O Expressionism o 110 teatro europeu; D. Bah lct c J. Jacq uot (cd .) , Paris. C.N .R.S ., 19 71 ; I :
pp . 350-351 ; 2: pp , 359-360.)
A cena não se deve limitar a reproduzir a vida real e toma-se
surreal quando mostra a todos o que se es conde por detrás das coi-
sa s. O realismo puro fo i a grand e aberração de todas as literaturas.
A arte não exist e para a comodidade dos gordos burgu ese s, que
abanam a cabeça dizendo: «Sim, sim, é isso . Agora vamos ao bufet e 61 - TAIROV: PRINC ESA BR AMBILLA , C O N FE RÊNC IA DE
tomar um refresco! » A arte, na medida em qu e qu er edu car, mel ho- 3 1 DE M AIO DE 1920.
rar, ser efi caz de qualquer m aneira, deve suprimir o homem d e
todos os dias, assustá -lo como a máscara assusta a uma c riança e Alexander Yakovlevitch Tairov ( / 88 5 - 1950), cnce nador I'lI S S O,
Eu rípides os Ateni enses, qu e saíam do teatro a balbuciar. A arte deve fundou em 19/ 4 O Te atro de Câmara. Ansioso por rcteatralizar o
refaz er do hom em um a criança. O meio mai s sim p les para o conse - tea tro , lut a simultane amente co ntra a ten d ência naturalista (q ue r
gu ir é o «grotes co», na medida em qu e não incita ao riso. A mono- di zer, o Teatro Art íst ico de S tanislavski) e a tend ência simbo lis ta re-
toni a e a estupidez dos hom en s são tã o grandes que nã o se pod e presentada pelo Mcy erh old dos an os 1906-/ 908 e ainda Crai g, ten -
prevenir sen ão com e normidades. Então que o novo drama seja dência que, segundo ele, minimiza abusivamente a parte criativa do
enorme. a ct or. Para Tairov, co m efeito, a art e d o teatro repou sa antes de
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mais so bre o actor, que deve ser hábil em todas as di sciplinas da imp er iosa. As fo rm as es clerosadas da represent ação c énica, as for-
cena (pan tomima, acrobacia, etc.) . O conjunto dos mei os cénicos -
mas petrificad as do es pec tác ulo tinham j á dei xad o de nos sa tis fazer:
em particular a construção do espaço - deve ser posto ao serviço
es távamos apertados no quadro só do drama, ou só d a pantom ima;
da sua inte rpre tação. De entre as suas encenações principais há a
cultiva ndo a a rt e e a maestria do actor, tínham o s fa ta lmente qu e
citar a Fedra de Racine (1920), Princesa Bram billa de Hoffmann
chegar a c riar espectác ulos em que essa maestri a pudesse gr ita r em
(1920), G iroflé-Giroflá de Lecocq (1922) e A tragéd ia o ptimista de
voz alta e a té ao fim, onde pudesse flo re sce r co m a sua cor ve rda-
Vichnievski (1934).
deira e fra nca, e m qu e o ac tor pu desse criar um a pe rson agem aces-
síve l ao es pecta dor, não por um ún ico as pecto do se u génio - a sua
Encenação e tex to voz, a arte da sua e loc ução - m as por tudo o qu e cons titu i os se us
mate riais cénicos, onde ele pod eri a brilhar em tod as as facetas do
O s no sso s trabalh os ant eri ores co loc ara m m ar cos preci o so s:
se u registo.
ter íam o s podido reali zar a Princesa Brambilla se não tivéssemos
O qu e representa a Prin cesa Brambilla na forma e m qu e a vi-
tido fé na pantomima, se não a amássemos com todas as fibras da
ram no Teatro de C âmara? É uma nova es pécie de repre sentaç ão : é
nossa alma? Se não tivéssem os acreditado que só a pantomima pod e
um es pectác u lo ve rd ad eiramente s inté tico, onde se mi sturam as ar -
levar o teatro actual para longe d o gesto viciado qu e rei na va co mo
tes da palavra , d o ges to e do mim o , re sumindo , tod as as fa cet as
senhor até aos últimos tempos, qu e ap en as a pant omima pode e ns i-
multicol ores d a a rte co m ce m caras do ac tor. É a pr im ei ra tentativa
nar ao act or a ex primir plasti camente as suas se ns ações e os se us
feit a par a abrir persp ect ivas à art e cén ica e m ge ral, para da r todas as
sentimentos de tal man ei ra qu e sejam co mpree ns íve is se m a aj uda
vibrações de um a o bra cé nica e não m a is se limitar a um géne ro,
da palavr a human a? Tami ro o Ci tarista não prep arava já a Princesa
drama, ou coméd ia, opereta, pant omima , ba ilado ou ci rco. Mi sturar
Brambilla? Esforçá rno- nos por ro m pe r a co ntinuida de da coisa d ra-
intima mente todos os processos de um teat ro lib ert ad o , todo s em
mát ica, por v io la r a torrente contí nua das pal avras para qu e , de tem -
co nj unto, para captar a fa ntasia do es pectador e arras tá- lo no turbi-
pos a tempos, ce dessem lugar ao gesto qu e tem d ireito à mesm a
lhão da fa ntasmagoria teat ral - e is qu al era o o bjectivo da Princesa
hegem oni a no teatro que a palavra.
Brambilla.
Arleq uim -Rei, não an tec ipa a Princesa Brambilla? Pantomima
( ...)
e drama e ntre laç am-se aí num a mesma frase; o ac tor tinh a não ape-
O trab alho do teatro , e em pa rt icular o do encenador, re flec te-se
nas qu e sa be r falar so bre a cena, m as sa ber agi r, faze r-se e nte nde r
largam e nte na m an eira de trata r o m at erial liter ár io . Cre io q ue neste
se m pal avras; para além dos gestos es tereo tipados, claros pa ra tod a
dom ín io os bel os d ias virão, mas não começaram tão cedo, porque é
a ge nte, tinha qu e utili zar ges tos nascidos da liberdade e da alegria
muito difícil c hegar aí; os be los dias v irão qu ando o teat ro e le pró-
do co rpo human o, ges tos acrobá ticos .
pri o criar tod o s os se us es pec tác ulos, talvez qu and o não tiver mai s
Tod os os nossos trabalhos, infalivelment e, co nduz ira m a fazer
necessidade da aj uda de um aut or, mesmo ge n ia l como Hoffrnann ,
da cr iação de um novo tipo de representação cé nica um a ex igê ncia
qu and o ele próp rio invent ar tud o o qu e lh e pareça de va lo r. E nq uanto
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não cheg armos aí, enq uanto a maestria teatral não tiver adquirido a sua re verência, dando-nos e m bora razão do ponto de vista da arte
finez a desejável para atingi r um obje ctivo di fíc il, deveremos ut ilizar teatral , rejeitamos muitas coisas qu e em Hoffmann tinham valor do
um m ateri al literário para criar os nossos es pectác ulos. ponto de vista liter ário . Ape sar desta atitude, j ulgamos ter dado um a
Com o ut ilizar es te material? É a questão fundamental; tudo o representação perfe itamente fie l da obra hoffm anni an a. Pen sam os
resto depende da resposta que lhe dermo s. Deveremos tom ar um a qu e é justamente a representação do Teat ro de Câm ara, tal como os
obra literária e co nsid er ar que a noss a tarefa é ence ná- Ia; o u será de senhos de Jacques Callo t, situados noutro plano e saídos de um a
qu e são possíveis o utras alterna tivas? Procederemos de mod o d ife- o utra d iligên cia, qu e respe ita o es pír ito de fantasmagor ia, o es pí rito
ren te , é evide nte. Não ac reditamos nad a e m te r qu e interpret ar uma de reen carnação, o es pí rito de mi stura de real e irreal , de mate rial e
obra literári a. Estar íamos errados se ac re d itássemos qu e o teatro imaterial, espírito qu e faz a maestr ia de um aut or como Hoffmann.
tem por mi ssão e por papel servir a obra literári a e qu e a nossa fun- Achamos qu e o no sso espectáculo é um es pectác ulo hoffm anniano
çã o se reduz a rep resent á-Ia em cena . Pelo contrário, pen sam os qu e na sua essência e julgamos qu e es te capriccio do Teat ro de Câmara
toman do uma obra liter ári a somos co mple tamente livres de a tratar, é um capriccio pa ra a gló ria de Hoffmann , porque co nserva a sua
a ela, co mo aux iliar, como um materi al que nos permitirá criar o alm a, a da fantas magoria q ue construímos por m ei os especifica -
nos so próprio espectáculo, estamos completamente livres para del a m ente teatrais; ap ena s o u so de ssa fantasm agoria poderia fazer
ex trair tudo o que nos é necessário, e de com por, não uma adaptação parecer natu rais os sa ltos sobre o palco lon gínqu o e o sa lto e toda a
cé nica de Hoffm ann , m as uma obra cé nica nova, nossa, ind epen- a lgazarra qu e pu semos em cena ; o nosso es pectác u lo é par a se r
com preendi do ao nível da fa ntas magoria.
dente e face à qu al a Pr incesa Brambilla é um dos materiais qu e
( ...)
servira m pa ra a criar.
Foi-me necessário mai s do que um a vez repetir que concebemos
( ... )
a evo lução da arte teatral e do teatro essen cialmente de duas manei-
Na arte teatr al , levando à ce na um a co isa tão fantasmagórica
ras. Acreditamos qu e todas as obras de arte teatral , se são autênticas,
como a Prin cesa Brambi lla, o nosso obje cti vo foi resumir tu do às
inclinam-se finalm ente para um dos doi s pólos da acção teatral: o
possibilidades reai s, ao domínio real e ao materi al real do actor, de-
m istério, a arleq uinada . A arle quinada e o mi stéri o, eis as duas faces
po is de nos termos serv ido da fantas magoria cerebra l c filos ófica
da arte teatral para as q ua is deve tend er o verdadeiro teatro , porque
tão den sa em Hoffm ann .
e m am bas ele se reve la na s ua plen itude , as suas fo rças criadoras es-
Nós, os criadores de represe ntações teatrais, tem os qu e ir mais
tão aí ex pandidas até ao extremo, a sua maestria aparece com o má-
além de tod a essa filoso fia e est amos perfeitamente autor iza dos a
xim o de inten sidad e. Sã o domínios tota lme nte d iferent es. São du as
ac redi tar que tem os razão diant e do ún ico qu e tem o direito de nos
caras de um ser teatral ún ic o qu e deve saber, num só e mesm o ins-
julgar, o único de us q ue nos pode pedi r co ntas, o deu s do teat ro ; es-
tante , susci tar a alegr ia do riso e a alegria da transfiguração. A arle-
tam os co m a alma se rena por ter co rtado mu itas coisas que tinham
qu inada dá a alegria do riso, O mi stério a da tran sfiguração.
valor aos olhos de numerosos adm iradores de Hoffrn ann. Ho ffmann
é um a person alid ade cons ideráve l. Tem amadore s no mundo intei ro , (A . Tai ro v , Le th éâtrc lib éré , rra d . d e CI. Amiard -Chcvr c l, La usa na , La Cit é, L'A ge
também na Rússia, em Moscovo e, se m teme r no m ínimo vio lar a dHom me, 1974 . pp. 120-1 21 c 125 - 127 .)
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62 - WITKIEWICZ: INTRODUÇÃO À TEORIA DA FORMA A forma e o conteúdo da no ssa pintura e da nossa escultura, o con-
PURA (1920) teúdo do s seus objectos, quer sejam fantásticos ou próximos do real ,
não são mais que um pretexto para a criação, sem qualquer laço di -
Stanislas Ignacy Witkiewicz (1885-1939)foi pintor, romancista recto com ela, uma espécie de droga para o mecanismo estético le-
e aut or dramático polaco. A maioria da s suas peças (de entre as vando o artista a uma certa tensão criadora. Penso então que se
mais conhe cidas , A Galinha de Água, Eles e A Mã e), f oram escri- pode encarar uma arte teatral na qual o próprio devir - ind ependen-
tas entre 1922 e 1926. Para Witkiewicz toda a arte está ligada à temente das imagens intensificadas qu e dá da vida - pode levar o
metafísica , qu er di zer com o sentido da Unidade lia multiplicidade espectador a um estado de compreensão metafísica, de receptivi-
e o sentido da abstracçâo , Enquanto a pintura, a música e m esmo a dade ao s sentimentos metafísicos, quer o fundo da obra seja fantás-
escultura se tornaram artes abstracta s , o teatro mergulhou no utili- tico ou reali sta, ou ainda uma síntes e destes dois géneros. Mas isso
tário, lia pura reprodução da vida. Apesar da armadilha que consti- supõe, evidentemente, que toda a peça tome a sua fonte numa ne-
tui para o teatro a própria natureza dos seus materiais (os seres hu- cessidade sincera de suscitar cenicamente tais sentimentos com a
manos e o seu comportamento), pode ser uma arte pura. Para isso forma apropriada. E que o essencial da obra não resida unicamente
deve esquecer o mais possível o «sentido vital ", qu er di zer, a preo- no seu conteúdo real ou fant ástico, mas que, pela síntese de todos os
cupa ção do quotidiano e opor á lógica da vida , a lógica f ormal - elementos teatrais (sons, decorações, movimentos cénicos, o texto)
ou ant es , artística. Tal é , com ef eito, a definição que Witkiewicz dá possa edificar-se livremente, sem referência necessária ao mundo
das obras no vas: «obras traduzidas pela Forma pura, qu er di zer, real. É preciso poder, livre e totalmente, deformar a vida e o mundo
cujo conteúdo nã o é uma recriação do mundo perceptível, ou dos fantástico para criar urna unidade cujo sentido seria fornecido pela
sentimen tos quotidianos , mas uma unidade de natureza formal sua arquitectura interna e cénica e não pelas exigências da psicolo-
ligando as suas comp onentes num todo». gia ou da acção em função da vida, estas últimas exigências não
sendo válidas senão para as obras que se pretendem uma reprodu-
ção amplificada da realidade. Não quero dizer com isto que a obra
A f orma pura no teatro
teatral deva se r a todo o cu sto ab surda, ma s apenas qu e ela não seja
o teatro que é, como a poesia, uma arte compósita, co nté m mai s travada pelos modelos actuais, fund ados no se ntido vital ou
ainda mais el ementos não essenciais e é por isso que é muito mais nas regras do fantástico. Os actores não deveriam exi stir e nq uanto
difícil imaginar uma forma pura so bre a cena, independen te das tal , mas co m o e le me ntos de um conjunto, com o mesmo título que
acções humanas na sua essência. Creio, no entanto, que não é com- uma mancha de cor vermelha num determinado quadro.
pletamente impossível. Tal como existiu, nas art es plásticas, uma A peça consid erada pode tomar todas as liberdade s que queira
época em que a forma pura e o conteúdo metafísico da sensibilidade relativamente ao real. Basta que essa liberdade - e as absurdidades
religiosa formavam um todo único , existiu também uma época em aparent es que acarreta - seja ju stificada e co nduza à dimensão psí-
que o devir cénico e o mito realizaram uma unidade semelhante. qui ca em qu e é primordial introduzir o espectador. Neste momento
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não tenho a possibilidade de dar um ex empl o preci so de uma tal ce nário, o acompanhamento musical , se devem impor como neces-
pe ça. Quero apenas fazer not ar aqui a possibilidade de cri ar uma sários e provocar, pela sing ula ridade do se u encadeamento, um de-
pel a ultrapassagem do s preconceitos passados. v ir temporal livr e de toda a lógi ca, exce pto aquela da pr ópria forma
Admitamos, então, que alguém escreva uma peça assim . O pú- desse devir. A esta necessidade pode-se também acre scentar a po s-
blico deverá habituar-se a ela como se habituou ao s modelos de- sib ilidade de modificar o p siquismo das personagens fazendo ab s-
formados do s qu adros de Picasso. Pod emos imaginar um quadro . tracção da lógica dos se us comportamentos. Esta psicologia «fan -
unicamente fe ito de form as a bs trac tas que , a n ão se r qu e sejam tástica » deverá im por-se c o m a m esma ev idência que as barr igas
su scitadas por nós próprios a tod o o c us to, não impl icarão qualquer das pernas cúbicas das pinturas de Picasso .
referência às formas do mundo exte rior. Em co ntra partida, não se
pode imaginar um a obra idênti ca no teatro , porque o devir puro no (S . I. Wi tkiewicz) , lntr oduction à la th éor ie de la f orme pure , Ca hiers Re na ud -Ba rra ult, n".
73 , 3° trimest re, 1970, Pari s, G all irnard, pp. 23-26.)
tempo não é possível se nã o na esfera do s sons e das cores. Não se
podem conceber obras teatrai s se m intervenções e se m acções das
personagens - fossem el as as mais extravagantes ou as mais mons-
truosas - porque o teatro é uma arte co m pósi ta que não po ssui,
como a pintura ou a mús ica, el ementos o u materiai s autónomos. 63 - APPIA: A OBRA D E ARTE VIVA ( 192 1)
O teatro actu al dá a impressão de um a art e de se speradament e entu-
pida qu e não pod e de sabro char senão intro d uz indo o qu e e u c hamei A do lp he Appia (1 862 -1928) , hom em de teat ro suíço , deix ou -
de o fantástico da psicologia e do co mportamento . A psi cologia d as -n o s sobretudo projecto s d e encenaç ão sob a f orma de es bo ço s
personagen s e o se u com porta mento de vem se r um pretexto para (es boços cé lebres para as óperas de Wagn e'~ es boços para as obras
uma pura suce ssão de ac ontecimentos. O essencial é que a conti- líricas de Gluck ou para a s obras dramáticas de Shake speare, Ib sen
nuidade psicol ógica das per sonagen s e do se u comportame nto não e Goethe ] e escritos te óri cos . As suas tr ês obras fun damentais :
seja mais es te pe sadelo qu e pesa co m tod o o se u pe so sobre a arqui- A encenação do dram a w agneriano (! 895) , A músic a e a e ncenação
te ctura da s peça s. (1 899) , A obra de arte v iv a ( 192 1) são verdadeiros trat ados de es-
Já es ta mos mai s que fart os, na minha o p in iã o, desse rei nado tética teatral . Part indo de um a reflexão so bre a encenação wag ne-
m aldito dos caracteres, dessa pseudoverdad e psi cológica qu e pro- riana , elabo rou a sua própria teoria da arte viv a (o encontro com
voca náu seas a tod os. Em que é qu e no s pode interessar o qu e se Ja ques-Dalcroze , o se u trabalho sobre o mo vim en to , a rítm ica, de -
passa na rua Wspolna n.o 38 , apartam ento 10 o u em qualquer caste lo .sempcnharam um papel importa nte) . R ecu sando o realismo co m
en cantado ou num a qu alquer época lon g ínqu a'! Des ejamos, no tea- tanta vio lência qua nto C ra ig , encara o teatro C01110 um espaço que
tro , penetrar num mundo radicalmente d iferente e m que os aconte- se ofe rece aos nossos de sejos de vida integra l e à experiência parti-
cimentos, decorrendo da psicologi a das personagens - quer sejam lhada da beleza . À teoria wag neriana da síntese das artes subs titui
verosfrnei s ou erra dos - , os jogos de ilum inação, as mudanças de a ideia da fu são dos elementos , quer dizer, dos m eios de exp ressão
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cénica. Entre eles estabelece uma hierarquia: no centro encontra-se que se imobilizam no espaço e não conseguimos ver de todo como
o corpo vivo do actor, móvel e plástico, portador do texto e do mo- conciliar a vida própria a cada uma delas numa unidade harmoniosa!
vimento. Animado pela música, ele inscreve o tempo num espaço Ou então, haveria um meio de o fazer? O tempo e o espaço
posto ao serviço da sua mobilidade. possuiriam eles um termo conciliante, - um termo que lhes seja
comum? A forma no espaço pode ela tomar a sua parte nas durações
sucessivas do tempo? E estas durações encontrariam elas ocasião de
1 - OS ELEMENTOS
se expandir no espaço? Porque apenas a isto se reduz o problema, se
A arte dramática dirige-se, como as nossas artes respectivas, queremos reunir as artes do tempo e as artes do espaço num mesmo
aos nossos olhos, aos nossos ouvidos, ao nosso entendimento, em objecto.
resumo, à nossa presença integral. Porque é que todo o esforço de No espaço, a duração exprimir-se-á por uma sucessão de pa-
síntese fica reduzido e antecipadamente ao nada? Saberão os nossos lavras e de sons, quer dizer, por durações diversas que ditam a vas-
artistas informar-nos? tidão do movimento. O movimento, a mobilidade, eis o princípio di-
O poeta, de pena na mão, fixa o seu sonho sobre o papel. Fixa- rector e conciliador que regulará a união das nossas diversas formas
-lhe o ritmo, a sonoridade e as dimensões. Esta escrita, dá-a a ler, a de arte para as fazer convergir, simultaneamente, sobre um dado
declamar; e, de novo, ela fixa-se no aspecto do leitor, na boca do re- ponto, sobre a arte dramática; e, como ele se anuncia único e indis-
citador. - O pintor, de pincel na mão, fixa a sua visão tal como a
pensável, ordenará hierarquicamente essas formas de arte, subordi-
quer interpretar; e a tela ou a muralha determinam-lhe as dimen-
nando-as umas às outras, para os fins de uma harmonia que elas só
sões; as cores imobilizam-lhe as linhas, as vibrações, as luzes e as
por si teriam procurado em vão.
sombras. - O escultor pára, na sua visão interior, as formas e os
Eis-nos aqui no centro da questão, a saber: como aplicar o mo-
seus movimentos no ponto exacto que deseja; depois imobiliza-os
vimento ao que nós chamamos de belas-artes, que são, pela sua
no barro, na pedra ou no bronze. - O arquitecto fixa minuciosa-
natureza, imóveis? como aplicá-lo à palavra, e sobretudo à música
mente, pelos seus desenhos, as dimensões, a ordenação e as formas
cuja existência decorre exclusivamente no tempo e que são também
múltiplas da sua construção; depois realiza-as no seu material de
igualmente imóveis em relação ao espaço? Cada uma destas artes
construção. - O músico fixa nas páginas da sua partitura os sons c o
deve a sua perfeição, o seu acabamento, à sua própria imobilidade;
seu ritmo; possui mesmo, a um grau matemático, o poder de lhes
não perderão elas a sua razão de ser se nós as privarmos disso?
determinar a intensidade e, sobretudo, a duração; enquanto o poeta
Uma segunda questão impõe-se aqui; a sua resolução determi-
não o poderá fazer senão muito aproximadamente, dado que o leitor
pode ler depressa ou devagar, conforme lhe apetecer. nará as nossas pesquisas e orientará a nossa demonstração. O movi-

Eis então os artistas cuja actividade reunida deveria constituir o mento não é, em si, um elemento: o movimento, a mobilidade, é um
apogeu da arte dramática: um texto poético definitivamente fixado. estado, uma maneira de ser. Tratar-se-ia de examinar quais os ele-
Coloquemos tudo isto sobre a cena: teremos a poesia e a música mentos das nossas artes que seriam capazes de abandonar a imobili-
que se desenvolverão no tempo; a pintura, a escultura, a arquitectura dade que lhes é própria, que é do seu carácter.
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Talvez ganhemos noções úteis sobre este assunto se, deixando O corpo vivo é assim o criador dessa arte e detém o segredo das
um instante a forma de cada uma das nossas artes, - das artes que relações hierárquicas que unem os seus diversos factores, dado que
têm que se unir, como nos afirmaram " para criar a obra de arte su- está na sua cabeça. É do corpo, plástico, vivo, que devemos partir
prema, - considerarmos essa união como já realizada sobre a cena. para regressar a cada uma das nossas artes e determinar o seu lugar
Admitamos o caso. Isto leva-nos a definir primeiramente o que é na arte dramática.
. . uma cena.
A cena é um espaço vazio, mais ou menos iluminado e com
2- O ESPAÇO VIVO
dimensões arbitrárias. Uma das paredes que limitam este espaço
está parcialmente aberta para a sala destinada aos espectadores e Toda a alteração da gravidade, qualquer que seja o objectivo
forma , assim, um quadro rígido, além do qual a distribuição das que persiga, enfermará a expressão corporal. O primeiro princípio,
cadeiras está definitivamente fixada. Só, o espaço da cena espera talvez mesmo o único do qual todos os outros derivam em seguida
sempre uma nova organização e, por consequência, deve ser arran- automaticamente, se rá então, para a arte viva , que as formas que
jado para mudanças contínuas. Está mais ou menos iluminado; os não são as do corpo procuram colocar-se em oposição a estas últi-
objectos que aí se colocarão esperam uma luz que os tome visíveis. mas e nunca se unem a elas. Se todavia se apresentassem casos em
Este espaço não existe então, de alguma maneira, senão em estado que a flexibilidade de uma linha fosse desejável para atenuar mo-
latente, tanto para o espaço quanto para a luz, que a cena contém mentaneamente a expressão de um movimento ou de uma atitude, o
em potência e por definição. próprio facto desta afirmação excepcional faria dele um objecto de
Examinemos agora o movimento sobre a cena. Ele dá ao texto expressão. Mas, se isso se prolonga, a presença efectiva do corpo
e à música - as artes do tempo - exactamente a mesma ajuda que será sempre mais enfermada, até à sua completa supressão: o corpo
aos objectos imóveis do espaço: é o ponto de encontro, o único pos - estará presente, mas sem efeito corporal; os seus movimentos tor-
sível. Nele se opera sobre a cena a síntese anunciada. Falta saber nar-se-ão supérfluos e portanto ridículos, ou reduzir-se-ão a índices;
como. cairemos então na vida quotidiana e no teatro de costumes. Da
O corpo vivo e móvel do actor é o respresentante do movi - mesma maneira, na arquitcctura, vimos que a gravidade é a con-
mento no espaço. O seu papel é então capital. Sem texto (com ou dição sine quo non da expressão corporal. A gravidade, e não o peso!
sem música), a arte dramática deixa de existir; o actor é o portador A gravidade é um princípio; é por ela que a matéria se afirma; e os
do texto; sem movimento, as outras artes não podem tomar parte na mil graus dessa afirmação constituem a sua expressão. O volume só
acção. Com uma mão, o actor apropria-se do texto, com a outra por si, pode escapar-se nos ares como um balão; a sua consistência
segur a um facho, as artes do espaço, depoi s reúne, irresistivelmente, é ilusória; é uma porção de espaço momentaneamente encerrada,
as suas duas mãos e cria pelo movimento a obra de arte integral. nada mais. É a boneca de porcelana e, nisto, a bailarina à italiana
parece um balão cativo que se traz sempre de novo e a compasso, ao
1 Alu são a Wa gner. (N .F .) seu ponto de ligação. Para receber do corpo vivo a sua parte de vida,
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o espaço deve fazer oposição a esse corpo; unindo-se às nossas for- cada passo, mas que se elevasse imediatamente após isso para reto-
mas ele aumenta ainda mais a sua própria inércia. Por outro lado, é mar a sua superfície uniforme; então este solo mexer-se-ia; a sua
a oposição do corpo que anima as formas do espaço. O espaço vivo mobilidade seria viva? Olhemos a superfície restabelecida após os
é a vitória das formas corporais sobre as formas inanimadas. A reci- passos de um corpo vivo: ela espera, para ceder outra vez; nada
procidade é perfeita. opondo, está morta; não há mesmo nada de mais morto. E os pés
Este esforço torna-se-nos sensível de duas maneiras: seja por que a tocam, não encontrando resistência, o jogo dos músculos fica
oposição das linhas quando olhamos um corpo em contacto com as amortecido, no sentido próprio da palavra. Poder-se-ia mesmo
formas rígidas do espaço; ou então, assim que o nosso próprio corpo chegar a não sentir o caminhar voluntário do corpo, e acreditar no
experimenta as resistências que essas formas lhe opõem. A primeira pôr em jogo de um mecanismo que eleva alternativamente um pé e
não é mais que um resultado; a outra, uma experiência pessoal e, depois o outro e os força a avançar. O solo e o corpo tornar-se-iam
por aí, decisiva. - Tomemos um exemplo, e suponhamos um pilar assim mecânicos, o que é a negação suprema da vida e o começo do
vertical, quadrado, com os ângulos rectos claramente marcados. ridículo (veja-se Bergson). - E agora se esse solo negativo, que cede
Este pilar repousa, sem envasamento, sobre lajes horizontais. Dá a ou espera ceder, se transformasse em lajes rígidas que inversamente
impressão de estabilidade e de resistência. Um corpo aproxima-se. esperam o pé para lhe resistir, para o relançar de novo a cada passo
Do contraste entre o seu movimento e a imobilidade tranquila do pi- e prepará-lo para uma nova resistência; este solo, pela sua rigidez,
lar nasce já uma sensação de vida expressiva, que o corpo sem pilar arrasta todo o organismo na vontade de andar. É opondo-se à Vida
e o pilar sem o corpo que avança não teriam atingido. Além disso, que o solo, tal como o pilar, pode recebê-la do corpo.
as linhas sinuosas e arredondadas do corpo diferem essencialmente ( ... )
das superfícies planas e dos ângulos do pilar e este contraste é, por Não estamos mais sós diante de um bloco de barrro ou um
si mesmo, expressivo. Mas, o corpo chega a tocar o pilar; a oposi- lanço de muralha a decorar, como o pintor e o escultor: estamos pe-
ção ainda se acentua mais, enfim, o corpo apoia-se contra o pilar rante um corpo vivo; é com ele apenas que temos que nos relacionar
cuja imobilidade lhe oferece um ponto de apoio sólido: o pilar re- no espaço; é apenas a ele que damos ordens; é apenas por ele e só
siste: age? A oposição criou a vida da forma inanimada: o espaço através dele que nos podemos dirigir às formas inanimadas. Sem o
tornou-se vivo! - Suponhamos agora que o pilar não seja rígido se- consentimento do corpo, todas as nossas pesquisas seriam vãs e
não na aparência e que a sua matéria, ao mínimo contacto estranho, nado-mortas. Na hierarquia da arte viva, o lugar da nossa imagina-
possa moldar-se à forma do corpo que o toca. O corpo vivo incrus- ção criadora está entre o tempo e o corpo vivo e móvel; quer dizer,
tar-se-ia então na matéria mole do pilar, enterraria aí a sua vida; entre a música que compomos e o corpo que deve penetrá-la e en-
ao mesmo tempo mataria o pilar. (Divãs profundos como tumbas. carná-la. Estamos, então, neste sentido, antes do corpo; além dele, é
Baudelaire). Isto é demasiado evidente para ter que ser demonstrado ele que tem a palavra; tornamo-nos o seu intérprete apenas e não
de outra maneira. A mesma expressão poderia ser feita com o solo; podemos criar nada de nossa livre vontade. A nossa submissão con-
por exemplo, um solo elástico, que deixasse o pé enterrar-se nele a fiante e consciente à música, - expressão da nossa vida interior, -
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co nfe riu- nos o pod er de dominar imperiosamente o corpo vivo. Po r (e ntre 1926 e 27): Dan ça do es paço , Dança da s fo rm as, Dan ça do s
sua vez, o corpo, pela sua completa submissão ao nosso ap elo, con- círculo s, etc.
qui sta o direit o de ordenar o espaço qu e o cerca e o toca: dirccta-
mente, nós so mos incap azes disso .
Plástica e ab stra cç ão
Este fen ómeno hier árquico é do s m ai s interessante s; e , é por
não ter s ido co ns tatado e não se ter obedecido às s uas lei s, que a Apres entado com es p ír ito e p ertinên cia por H einrich von Klei st
no ssa arte cé nica e dramática tanto se ex tra viou . no Teatro de Marion et a s, a d iferença, se n ão a su pe r ioridade, d a
mecânica sem alma da boneca relativamente ao corpo humano é por
(A. Arr ia, L ' CCuvr c d' art vivam , Ge ne bra, Ala r, s.a., 1921 , I : pp. 17- 20; 2: 41 -44 ,)
de m ai s ev idente. A « infa l ível» capacidade de trabalho da máquina,
que não conhece a fadiga , a sua impassibilidade, o c arácte r inquie-
tante e impiedoso da sua form a de agir, de em p urr ar, de mart elar, de
se bal an çar, de bater; o carácter não orgân ico d a sua mecân ica tam-
64 - SCHLEMMER: O BAILADO MECÂNICO ( 192 7 ) bém, a sua «me tafísica» se qui serem, na medida e m que representa
um n ão-natural e o sobrenatural ao me sm o tempo - todas es tas pro-
Oscar Schlemmer ( 1888- 1943) , p intor, esculto r e ce nóg rafo pri edad e s, com paradas com o homem, são então as do se u refl exo
al em ão , oc upou-se do sector de teatro da escola da Bauh au s, fun- aut om atizado: a bone c a arti culada. Se r-me-i a ne ce s sár io cop iar
dada pelo arquitec to Grop ius em 1919. em Weimar. pa ra reconci- lite ralmente o ensaio de Heinrich von Kle ist para ex por co m clare za
liar a arte e a técni ca . o artista e o artesã o, In scrita na sua origem e sem desvios a sua espe c ific idade e a sua superioridade sobre a
na ide ologia maquinista , a acti vidade teatral de Sc hlem mc r desen- form a e o movimento humanos. No entanto, basta reportarmo-nos a
vo lve u-se. em seguida, na direcçâ o de um tea tro abstracto em qu e a simples fa ctos; por exemplo, que a boneca artic u la da, m esmo na sua
geometria regula as relações do co rpo com o es paço . No centro form a mais primitiva , é ca p az de exec uta r movimentos impossíveis
deste teatro está o corpo e a mat emática da dan ça . O actor é enca - ao corpo humano: tai s s ão as di storções dos m embros, qu e pod em
rado co mo um ser esp ácio-p l ástico qu e , pel o trabalho so bre as r.iu- ser de um có mic o grotesco ou de uma graça enfeit içadora; pen se -se
pagens construídas seg undo um jogo de forma s geométric as c de nos e fe ito s de surp res a devidos à desloca ção do centro de gravidade
co res , deve se r subme tido a um p rocesso de abstra cçâo. Os mov i- e ao facto - simp les m as c ap ita l - de qu e a boneca pux ad a por fios
m entos desse corpo abstracto, atirado para o espaço, são ditados não conhece a grav idade e pode mover-se se m dificuldades através
p elas próprias fo rmas. A acç ão mantém -se pura , se m uma fábula do es paç o. Ela pode exec uta r sa ltos qu e lhe se ria m invejados pel o
precisa . Co ntra o actor naturalist a , a marioneta co ntinua a se r a maio r gé nio da dança.
su a referên cia maior, Entre as realiza ções de Sch lem mcr, a ma is Que o re formador ing lês do teatro G ordon C ra ig tenha exigido
cé lebre continua a ser O Ballet Triádico (1922 ), mas pode-se também que o ac tor desapareça do teatro e que um ser in an imado - que terá,
citar O G ab inete das Figuras ( 1922-23) e toda a série de Dan ças se quere is, o nome de su pe r-mario ne ta - tome o se u lugar ; qu e o
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russo Brioussov tenha reivindicado a substituição dos homens em num Bailado Mecânico. Enquanto eu fazia variar as figuras huma-
cena por bonecas articuladas, munidas de um gramofone por dentro nas abstractas, eles trabalharam com formas rectangulares simples.
e a substituição do palco da cena por molas, tudo isto abre perspec- Enquanto neles o efeito de superfície apelava imediatamente à cena
tivas seguras, mas perspectivas infelizmente inexploradas. Que se em «caixa óptica», no que respeita ao meu Bailado Triádico, onde a
poderia subtrair ao encanto irresistível do Teatro de Marionetas, ao plasticidade em três dimensões era a ideia directriz da representa-
espectáculo de homens artificiais que opõem, de uma maneira tão ção, podia ocorrer num espaço cénico visível de todos os lados e foi
insistente à limitação das acções e dos movimentos do homem um aliás experimentado assim. O sucesso manifesto deste bailado e as
comportamento livre, quando mesmo ele não está sem determina- suas imitações mostram que existe a necessidade de juntar à dança
ção mecânica? Apenas, parece-me que a marioneta, à escala hu- livre, sem roupagens - exageradamente levada aos céus - este outro
mana e sobre-humana, está ainda inexplorada. Não a conhecemos aspecto que remonta a essa forma tão antiga de uso da máscara: a

senão sob a forma grotesca de feira e de carnaval, sem verdadeira- mascarada. É assim que se pode dizer, por outro lado, que o melhor

mente a encontrar como elemento cénico. O que se verificou, em dessa forma de expressão, como na arte em geral, se encontra pri-

ponto pequeno, ter um efeito surpreendente, deveria verificar-se meiro nos nossos antecessores, nos nossos antepassados, e que nós

sê-lo também em ponto grande. próprios, crianças da época presente, quer dizer técnica e maqui-
nista, não somos capazes senão de deitar um vinho novo em odres
Resta, no entanto, um meio termo entre a marioneta totalmente
velhos. Fazendo isto, sobrevêm duns tempos a outros espantosas
in-humana e a forma humana natural. É preciso incluir aqui tudo o
criações completamente novas, marcadas pela utilização de mate-
que foi concebido como máscaras e roupagens mais ou menos rígi-
riais antes desconhecidos e por uma abstracção extrema das formas.
das. Enquanto o actor, que antes de tudo é um «falador», é incomo-
É preciso dizer que para isto não devem ser as exigências da moda,
dado pela sua máscara para falar e cantar, da mesma maneira que é
tais como a mecânica e a máquina, que decidem sobre estas cria-
incomodado na expressão dramático-psicológica pela sua roupa
ções, mas a eternamente velha e sempre nova exigência da arte: a
rígida, foi na interpretação que, até agora, teve papel menor ligado
beleza. O jogo livre do imaginário forjará os valores que apenas
ao dramático, seja à palavra ou ao canto, seja na pantomima e '10
contam. É uma questão de segunda ordem saber se a sua concretiza-
bailado abstracto, que mais se fez. É aqui que é possível, fazendo do
ção se fará sob o signo da mecânica, da máquina, da abstracção ou
homem o portador de roupas construídas, realizar as configurações
de uma tendência política.
imaginárias sem constrangimentos, sobre variações sem limites.
Pode-se igualmente fazer dele o portador de figuras planas, que se (O. Schlemmer, Théâtrc et abstraction, trad. de Eric Michaud, Lausana, La Cité , L' Age
movimentam sobre cena como placas, fazendo relevo, ou então en- dHomrnc, 1978, pp. 66-67.)

volvendo-o por meios plásticos tridimensionais, fazer dele o porta-


dor de configurações plásticas. Realizei o princípio da figura plana
pintada em Gabinete das Figuras e os meus alunos Kurt Schrnidt,
Teltscher e Bogler transpuseram e diversificaram o mesmo princípio
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65 - PISCATOR: O TEATRO POLÍTlCO* (1929) quer dizer, ao s seus respon sáveis intelectuais, que foi devolvida a
tarefa de apresentar o humano so b um a forma de qualquer modo
E rwin Piscator (1893- 1966), f oi o encenado r al emão que in- quimicamente pura e de e leva r «e sta coi sa em si» até fazer dela o
troduziu as ideias de teatro p olítico e de uma f orma ép ica (que al- próprio fundam ento da arte dramática e do teatro em ge ral. A tese
cança rá todo o seu desenvolvimento com Brecht). A nsia ndo por um da «arte para o povo» foi tr ansformada, após uma volta pela «gran-
teatro militante e proletário , busca uma ligação estreita co m a ac - deza humana», no se u contrário: «a sober ania da arte ». Um longo
tual idade qu otidiana , abrindo o caminho a um teatro d ocument á- ca m inho qu e passa pelas eta pas do ind ividualismo burgu ês com a
rio . A s ua preocupação central é a de, tom ando apoio sobre a tec- ex ib ição do s so frime ntos m orai s pri vad os - mas quanto é iróni co o
nologia da cen a , elevar o teatro às dimensões da história . As suas fac to de estar justamente aí a concepção dram ática da Volskbühne ,
tentativas mais cé lebres neste sentido continuam a ser: Raspoutine chegando as sim ao impas se , sem saída para de sembocar no soc ial.
(192 7) , Hop lá, Estam os vivos ! (192 7) e as Aventuras do Bravo Sol- Est e conjunto de problemas, que se ligava es tre ita mente ao da
dado Schwe yk (1928). Quando do p rojecto de constru çã o, em 192 7, int erpret ação, deveri a ter sido abordado de um a mane ira completa-
de um n ovo teat ro (que nã o verá o dia) p ara a P iscator Bühne em mente nova, a partir de um a concepção modificada do teatro. Sobre
colaboração com Grop ius, o arquite cto da Bauhaus, Pi scator p reo- este assunto, é sempre preci so regressar às ori gens do movimento.
cupa-se com uma arqu itectura capaz de exp rimir a realidade das Po rq ue não se trata aq ui, de m odo algum , de um a tran sformação
relações sociais e dra mática s, e d efin e o p ap el da técnica no inte- arbitrá ria, m as de um a tr an sformação pro voc ad a , primei ro , pel as
rior dest a «dramaturgia so ciol ógi ca » que qu er promover. co nd ições objectivas. Es tas cond içõ es objectivas tinham um nom e:
g uerra e revolução. Eram e las qu e tran sformavam o homem, a sua
es tru tura m ental, a sua situ ação na socieda de. Acabavam a obra qu e
o cap ita lismo indu stri al tinha em preend ido c inq ue nta anos ant es.
AS G RAN DE S LINHAS DE UMA DRAM AT URGI A SOCIO LÓG ICA
A g uerra enterra defin iti vamente o individ ua lismo burguês sob
um dilúvio de aço e avalanc hes de fogo. O homem, o indivíduo in -
1. A função do homem
dependente o u aparentemente livre de tod os os laços sociais e, po r
A situação do hom em , a sua função no teatro revolucionário ,
egocentr ismo, andando às vo lta s e m tomo do se u próprio Eu, es te
eis o qu e é fund amental para o que cha mare i de «m eu no vo pont o de
homem repousa so b a laje de m ármore do Soldado D esconhecid o .
vista». O homem, as suas em oções, as suas rel ações (relações da vida
Dito de outra maneira, segundo a fórmul a de Remarque : «a ge ração
privada e da sociedade , ou relações com as forç as sobrenatu rais,
de 1914 morreu na g ue rra mesmo que tenha e scapado aos obuses ».
manifest ando-se estas, segundo o grau de evolução, sob a form a de
Os qu e reg ressaram não tinham m ais nad a em comum com esses
um Deus, do destino , do [atu m , etc.): conce itos caros aos autores e
co nceitos de hom em , de humanidade, de grandeza humana , em re-
às es col as dramáticas de tod os os tempos! Ma s é na Volksbühne I , sum o, co m tod os esse s obj ectos de luxo que sim bo lizavam, nos sa -
lõe s das casas burgu esas de ante s da g ue rra, a ete rn idade de um
I Teatro de Berlim que Pisca tor dirigiu e onde Brech t trab alhou co m ele. (N. F.) mundo confo rme à vo nta de de Deu s.
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Este tipo de homem, de camarada, agindo, pensando e sentindo pedestal um novo herói: «ela própria». N ão é m ais o indivíduo, com
colectivamente, que não está ainda na condição primeira do so c ia- o seu destino pe ssoal que constitui o elemento heróico da arte dra-
lismo (co mo erradamente acredita), mas o objectivo qu e el e deve mática de hoje , mas a própria é poca, o de stino das massa s.
atingir, as colunas militares que repass aram o Reno em 1918 já o O indivíduo perderá por isso as ca racte rísticas da sua perso-
anunciavam. Executaram ess a retirada sob o seu próprio comando, nalidade? od eia ele, am a, sofre menos que os herói s das gerações
com disciplina, se m ordens retumbantes e calcaram o so lo al emão anteriores? De modo nenhum, m as todos e st es sentimentos são
com a firme v ontade de es tabe lece r, de fuzil na mão se f o sse mostrados sob outro âng u lo. El e não v ive mais o se u de stino, só,
preciso, uma ordem no va , melhor e mai s justa. Derramadas nos d e sli gado do mund o . Está indissoluvelmente ligado aos g ra ndes
cadinhos da grande indústria, temperadas e soldadas na s forj a s da factores económicos e políticos da sua é poca , esta época e m qu e ,
guerra, as massa s lev antaram-se em 1918 e 1919, ameaçadora s e para cit ar Brecht, « to do o coolie, para g a nh ar o seu pão, se vê for-
reivindicativa s, diante da s portas do E stado; nã o eram mais uma ça do a fazer polític a mundial». Tudo o que d iz, tud o o qu e pen sa
multidão de sordenada , um amontoado de ge nte reunida ao acas o, está ligado ao d estino da sua época, qualquer que sej a a sua s ituação
mas formavam um novo ser vivo dotado de vida própri a; não e ra m pessoal.
mais um a soma de indivíduos, mas um «E u novo e pod eroso », de- Para nós , o homem tem sobre a cen a a import ância d e um a
terminado pel as lei s ainda não esc ritas de uma cl asse. função soc ia l. Não é a rel ação do homem consigo mesmo, nem a
No meio d e sta co moç ão g igantesc a d a qual nin gu ém tem a s ua relação com Deus qu e es tá no ce ntro d as no ssa s preo cupaçõe s,
possibilidade de se excluir, pode afirmar-se seriamente que a vi são mas as suas relações com a sociedade . Por todo o lado onde aparece,
do homem , das suas e moções, e das suas relações com o mundo é aparecem a su a class e ou o se u e strato so cial. Quando e ntra e m con-
um a visão eterna, absoluta, sobre a qual a época não tem qu alquer flito (moral, físi co ou afe cti vo), é com a socied ade . A anti guidade
influência? Ou ad m itir-s e-á, enfim, que a s lamentaçõe s do Tasso via essencialmente a posição do homem fac e ao destino; a Idade
embatem nas torres de betão e nas paredes de aço do nosso século, Média a sua po sição face a Deus; o racionalismo a sua posiç ão fa ce
sem mai s receber eco , que a neurastenia de Hamlet também não à natureza; o romantismo a sua posição face às paixões. M as uma
pode mai s su scitar a piedade de um a geração qu e descobriu o lan ça- époc a e m qu e as rel ações no int erior da colectividade , a revi são de
-granadas e o ve ncedor? Compreender-se- á , e n fim, qu e o « h e r ói todos os va lo re s humanos, a perturbação de tod as as rel açõe s so -
interessante» só é int er essante para a época que vê nele o repre sen- ciais es tã o na o rdem do dia, não pode ve r o homem de outro modo a
tante do seu destino, que os sofr imentos e as alegrias que, ontem não ser na sua posi ção fac e à so ci edade e ao s problemas so ci ais d o
ainda, par eciam sublimes, não podem, aos olh os hip erlú cido s do se u tempo; de o utro mod o se nã o como ser político.
mundo combatente de hoje, parecer se não ridículos e fút ei s? É possí vel qu e a import ância demasi ad o g ra nde dada ao fact o
Esta época qu e, talvez por ca us a d as contin gên cias soc iais e político - mas nós nã o somos resp on sáv ei s; é a de sarm onia da socie-
económ ica s, privou o indivíduo da sua «h uman ida de» sem lhe o fe- dade actual que faz de tod as as manifestações vitais manife staçõe s
recer a humanidade superior de um a nova sociedade, e levo u num política s - acabe, de uma ce rta man eira, numa deformação da imagem
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ideal do homem, mas esta imagem tem pelo menos a vantagem de época idealista no «sublime». Todos estes valores, na sua época,
corresponder à realidade. passaram por eternos, e a arte por aquilo que dava a esses valores
Com certeza que, nós, os marxistas revolucionários, não po- uma formulação geral. Mas aos olhos da nossa geração, esses valo-
demos pretender cumprir a nossa missão reproduzindo sem críticas res estão gastos, ultrapassados, mortos.
a realidade, concebendo apenas o teatro como o «espelho do seu Quais são então as linhas de força do destino da nossa época?
tempo». Não se trata de dominar a situação unicamente com ajuda Em que é que a nossa geração reconheceu o seu destino, destino ao
de meios teatrais, de eliminar a desarmonia velando-a, de dar do ho- qual ela se deve submeter se não quiser sucumbir, que deve superar
mem uma representação sublime numa época e numa sociedade que se quiser viver? Na economia e na política, e, na sua resultante, a
de facto o deformam. Em resumo, o teatro não tem por missão exer- forma da sociedade. Estes três factores são o nosso destino. E só re-
cer uma acção idealista. A missão do teatro revolucionário consiste conhecendo-os, seja para os aceitar seja para os combater, é que li-
em tomar a realidade como ponto de partida, em intensificar o desa- gamos a nossa vida ao «conteúdo histórico» do século xx.
cordo social para fazer dele um elemento de acusação e assim pre- Se então eu considero que a ideia fundamental de toda a acção
parar a revolução e a ordem nova. teatral reside na elevação das cenas privadas ao nível da história,
não se pode tratar senão de uma elevação no plano social, político e
2. A importância da técnica econômico. É graças a ela que ligamos o teatro à nossa vida.
De tudo o que precede, resulta evidentemente que nunca consi- Quem quer que exija outra coisa da arte da nossa época, pro-
derei a técnica como um fim em si. Todos os meios que empreguei cura, consciente ou inconscientemente, desviar e adormecer as
ou tive a intenção de empregar, não tinham por objectivo enriquecer nossas energias. Não devemos mais mostrar sobre a cena nenhum
a técnica mas elevar a interpretação cénica ao plano da história. impulso ideal e moral se a natureza destes móbeis não aparece tal
Esta elevação, indissoluvelmente ligada ao emprego da dialéc- qual é: social, política e económica. Quem não queira, ou não possa,
tica marxista no teatro, até agora nunca tinha sido efectuada pela reconhecê-lo, recusa a realidade. O teatro não pode absolutamente
criação teatral. As minhas pesquisas técnicas visaram colmatar uma atribuir outras motivações à vida social se quer ser verdadeiramente
carência no domínio da produção dramática. representativo da nossa geração.
Muitas vezes nos foi objectado que toda a verdadeira arte Não é por acaso que a cena começa a equipar-se tecnicamente
sublima o caso pessoal e eleva-o ao nível do «típico», ao nível da num século em que os progressos técnicos ultrapassam de cem cô-
História. Os nossos adversários esqueceram-se do facto de que «o vados todos os outros. E também não é por acaso que esta transfor-
típico» não representa nenhum valor eterno, e que toda a arte não mação técnica foi empreendida precisamente do lado em que se si-
eleva os acontecimentos, e mesmo assim no melhor dos casos, além tua a luta contra a ordem social. As revoluções sociais e intelectuais
do nível da história da sua própria época. O classicismo via o seu estiveram sempre estreitamente ligadas às transformações técnicas.
«plano eterno» na «grande personalidade», uma época estética vê-o É por isso que uma transformação da função do teatro não era con-
na «aspiração ao belo»; uma época moral no «valor ético», uma cebível sem uma modificação técnica do aparelho cénico. Aqui não
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fazemos mais, parece-me, que recuperar o tempo perdido. O palco 66 - ARTAUD: O TEATRO E O SEU DUPLO (1938)
giratório e a luz eléctrica postos de parte, a cena encontrava-se
ainda nos princípios do século xx no estado em que a tinha deixado Antonin Artaud (1896-1948), escritor, encenador e actor [ran-
Shakespeare: uma abertura quadrada, uma «caixa óptica» pela qual cês, participou no movimento surrealista antes de se separar dele no
o espectador podia lançar uma «olhadela proibida» sobre um momento da criação do Teatro Alfred Jarry, em 1926. Se nunca che-
mundo estranho. Esta técnica de comunicação indirecta, esta parede gou a realizar esse «teatro da crueldade» que propõe em O teatro e
de vidro erigida entre a cena e a sala, tinha marcado três séculos o seu duplo, não deixou menos de alimentar toda uma corrente do
de arte dramática. Era isto o teatro da ilusão (<<Als-ob-Dramatik»). teatro contemporâneo pela força dessa visão limite, nunca atingida,
O teatro viveu durante três séculos sobre uma ideia falsa, fazia que oferece. Esta visão é a de um teatro não apenas libertado da li-
como se não tivesse tido nenhum espectador no teatro. Mesmo as teratura e da psicologia, mas que reencontraria a eficácia original e
obras revolucionárias no seu tempo acomodaram-se a esta ideia. mágica (quer dizer criadora de realidade) de uma linguagem de sig-
Esperava-se que se acomodassem. E porquê? Porque o teatro, en- nos unificada, reconciliando, enfim, o COlpO e o espírito, o abstracto
quanto instituição, aparelho, edifício, não pertencia, até 1917, à e o concreto, o homem e o universo. O actor, portador de signos,
classe oprimida; porque esta classe não se encontrava em estado de está no centro: a sua respiração e o seu corpo estão na base desta
libertar o teatro, não apenas no plano ideológico, mas no plano ar- nova gramática. Eles animam os seus «hieróglifos». É fora do Oci-
quitectural. Os encenadores revolucionários russos atacaram imedia- dente - em direcçâo ao Oriente (ele viu em Paris uma representação
tamente esta tarefa com a maior energia. Fui condicionado a empre- do teatro de Bali em 1(31) ou ao México (faz uma viagem ao Mé-

gar os mesmos caminhos que eles; na nossa situação, estes não xico e ao país dos Tarahumaras em 1936) - que Artaud olha para
encontrar modelos, em direcção a essas culturas «sintéticas» e uni-
levavam sem dúvida a uma transformação radical do teatro, nem -
tárias onde as formas nunca são separadas das «forças». Porque
pelo menos até hoje - a uma modificação da arquitectura teatral,
para além do processo do teatro ocidental, é o processo de toda uma
mas acarretavam uma transformação radical do aparelho cénico,
cultura que Artaud faz, quer dizer, de uma certa prática da lingua-
transformação que correspondia quase a fazer rebentar com a velha
gem e, através dela, de uma visão do homem, do mundo e da vida.
forma da «caixa óptica».

1- O TEATRO E A CULTURA

O que a cultura nos fez perder, foi a nossa ideia ocidental da


arte e o proveito que dela retirávamos. Arte e cultura não podem es-
tar de acordo, contrariamente ao uso que universalmente se faz.
Extraído de Le Thcâtr« Politique, pp. 135-140. E. Piscator, Paris 1962. Por amável autoriza- A verdadeira cultura age pela sua exaltação, pela sua força, e o
ção da Editora Rowohlt- Verlag. ideal europeu da arte visa lançar o espírito numa atitude separada da
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força que assiste à sua exaltação. É uma ideia preguiçosa, inútil e M as o verdadeiro teatro , porque mexe e porque se se rve de ins-
que, a curto prazo, en gendra a morte. trumento s vi vo s, continua a agitar as so mbras onde não deixou de
No Méxi co , dado que se trata do México, não há arte e as coisas es tre buc har a vida. O actor que não faz duas ve zes o m e sm o ges to,
servem. E o mundo e ncontra-s e numa ex altação perpétua. mas que faz gestos, me xe- se e se gu ra me nte brutaliza as form as, mas
À nossa ideia inerte e desinteressada da arte, uma cultura au- por detrás de ssas formas e pela su a destruição, reúne o que so brevi-
têntica opõe uma idei a m ágica e violentamente egoísta, quer dizer veu às formas e produz a su a continuidade.
interessada. Porque os me xicanos captam os M anas , as força s qu e O teatro que não es tá dentro d e nad a, ma s se se rve de todas as
dormem em todas as formas e que não podem sa ir de uma contem- linguagens: gestos, so ns, palavras, fo go , gritos , e nco ntra-se e xacta-
plação das formas por si mesmas, mas que saem de uma identifica- mente no ponto em que o es p írito tem necessidade de uma lingu a-
ção m ágica com essas formas. E o s velhos Tótemes estão lá para ge m para produzir as suas manife st ações.

acelerar a comunicação. E a fix ação do teatro numa linguagem : pal avras esc ritas, mú -
s ica, luze s, ruídos, indica a breve prazo a sua perda, a esc olha de
Quando tudo no s inc ita a dormir, olhando com olhos fixos e
uma lin guagem provando o go sto que se tem pelas fa cilidades de ssa
conscientes, é duro acorda rmo -n os e olharmo s como num sonho,
linguagem; e o definhar da linguagem acompanha a s ua limitação.
com olhos qu e não sa bem mais par a qu e é que servem, e cuj o olhar
Para o teatro , como para a c u ltu ra , a qu estão co ntinua a se r a de no-
es tá vi rado para dentro .
mear e dirigir as som bras : e o teatro , qu e não se li xa na lin guagem e
É assim que se ge ra a ideia estranha de urna acção desinteres-
nas formas, destrói , por esse fact o , as fal sas sombras, mas pr epara o
sada, mas que é acção apesar de tudo, e mais violenta por caminhar
ca minho a um outro nascimento d e sombras em torno das quais se
ao lado da tentação do rep ou so.
ag rega o verdad eiro es pec tác ulo da v ida .
Toda a verdadeira e fígie tem a sua som bra que a duplica; e a
Quebrar a lin gu agem para toc ar a v ida é fazer ou refazer o tea-
arte cai a partir do momento em que o escultor que modela ac red ita
tro; e o importante é não ac red ita r qu e es te ac to de va co ntinua r
libertar uma espécie de som bra cuja existência dil acerará o seu sagrado, quer dizer reservado. Mas o importante é acreditar que não
repouso. é qualquer um que o pod e fazer, qu e é preci so um a preparação .
C omo toda a cultura magr c a que hierógli fo s ap ropri ad os es- Isto le va a rej e itar as limitaçõe s habituai s do homem e dos po-
coa m, o ve rda deiro teatro também tem as suas so m bras; e de tod as de res do homem, a tornar infinit a s as fronteiras do que se c hama
as lin guagens, e de todas as artes, é o único a ter ainda as sombras realidade.
que qu ebraram as suas limitações. E, de sde a ori gem , pode dizer-se É preciso acredit ar num se ntido da vida renovado pel o teatro,
que e las nã o suportavam limitações . onde o homem , impavidam ente, se torna o se nho r do que aind a não
A no ssa ideia petrificada do teatro ass oc ia-se à no ssa ideia pe- é e o faz na scer. E tudo o que não nasceu pod e a inda na scer, de sde
trificada de uma cultura se m sombras , onde, qualqu er qu e seja o qu e nã o nos contentemos em se r s im p les órgãos de gravação.
lado para qu e se vire o no sso espírito, não se e nco ntra mais que o D a mesm a maneira, qu ando p ronunci amos a palavra v ida, será
vazio, enqua nto o es paço es tá ch ei o. neces sário ouvir qu e não se trata d a vid a reconhecida pel o ex te rior
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do s factos, ma s dessa espécie de frá gil e irrequieta chama à qual é bem necessário que o representemos com o o resultado de uma
não chegam as formas . E se há ainda qu alquer coi sa de infernal e de Vontade una - e sem confl ito .
verdadeiramente maldito neste tempo, é o demorar-se arti sticamente É preciso acreditar que o drama essencial, aquele que e stava na
sobre as forma s, em vez de se ser como os s uplic iad os que são ba se de todos os Grandes Mi stérios, se casa com o segundo tempo
queimados, e que lançam sinais das suas fogueiras. de Cri ação, o da dificuldade e do Duplo, o da matéria e do es pessa-
mento da ide ia.
2 - O TEATRO E ALQUIMIA Parece bem que ali , onde reina a s im plic id ade e a ordem, não
possa haver nem teatro nem drama . E que o verdadeiro teatro nasce,
Talve z antes de ir mais longe nos peçam que definamos o que
como a poesi a, aliás , mas por outras vias , de um a anarq uia que se
entendemos por teatro típico e primitivo. E por aqui en trare mos
organiza, após as lut as filo sófi cas, qu e são o lado apa ixonante de s-
me smo no seio do problema.
tas unifi cações primiti vas.
Se de facto se coloca a que stão das origens e da razão de se r
Ora, estes co nfl itos que o Cosmos e m e bulição no s oferece de
(ou da nec essidade pr imordial) do teatro, encontra-se, de um lado e
uma maneira filosoficamente alterada e impura, a alquimia propõe-
metafisicamente, a materialização, ou antes, a exterioriz aç ão d e
-no-los em toda a sua int electual idade rig orosa, dado qu e e la no s
um a espécie de drama es sen cial qu e c o n te r ia , de um a maneira
perm ite reatingir o s u blime, mas com o d rama , dep ois de um tritu -
simultaneame nte múltipla e única , os pr incípios essenc ia is de todo
rar minucioso e e xace rbado de tod as as fo rm as insuficientemente
o drama, j á e les próprios ori entados e divididos , não o bast ante para
a finadas, insufi cientemente am adurecidas , dado qu e es tá no princí-
perderem o seu caráct er de princípios, mas o sufic iente para co nter,
de modo substancial e activo , quer dizer, cheio de descargas, pers- pio mesmo da Alquimi a não perm itir ao es p írito qu e tome o se u im -
pectivas infinitas de conflitos. Analisar filosoficamente um tal drama pulso senão depois de ter passado por tod as as can alizações, todos
é impossível e não é se não poeticamente, e arrancando o qu e podem o s en vasarnentos da matéri a existente , e ter refeito es te trabalho em
ter de comun icativo e de magnético no s princípios de tod as as art es, dupli cado no s limbo s incandescentes d o futu ro . Porque dir-se-ia
que se pod e, pelas formas, pelos sons, músicas e volumes, evo ca r, que , para merecer o ouro materi al, o esp írito terá tido primei ro que
passando atrav és de todas as sim ilitudes naturai s das im agens e das provar a si mesmo qu e e ra capaz do out ro, e qu e não tinha ga nho
semelhanças, não as direcções primordiais do espírito, qu e o nos so este, que ele não o teria atingido senão e m condescendendo nisso,
intelectualismo lógico e abu sivo reduziria a nad a mais qu e esque- em con siderando-o como um símbolo seg undo da queda que te ve
ma s inútei s, mas umas esp écies de estados de uma acuidad e tão in- qu e dar para reencontra r, de uma man eira sólid a e opa ca, a ex pres-
ten sa , de um deci sivo tão absoluto , qu e se ntimos, através dos tremo- são da própria luz, da raridade e da irredutibilidade.
res da música e da forma, as ameaç as subte rrâneas de um caos tão A operação teatral de fazer o ouro, pela imens idade dos co nfl itos
decisivo quanto peri goso. que provoca, pel o número prodi gioso de forças qu e atira um a con tra
E este drama e ssencial, sente-se perfeitamente, exi ste e é à a outra e que e la comove , por esse ap el o a uma es péc ie d e pre-
imagem de qualquer co isa mais subtil que a pr ópria Criação, qu e g ue ado essenci a l a ex travasar de co nseq u ênc ias e so brecarregado de
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espiritual idade, evoca finalmente, ao espírito, uma pureza abso luta e Com efeito, o que h á de curioso em todos estes gestos, nestas
abstract a, após a qual não há mais nada, que se poderia conceber atitudes angulosas e brutalmente cortadas, nas modificações sincopa-
como uma nota única, uma esp écie de nota limite, apanhada em voa da s guturais, na s frases mu sicais que mudam repentinamente , no s
e que seria como a parte orgânica de uma vibração indescritível. voas de é litro , es se roçagar de ramos, esses sons de caixas vazias, es-
ses rangeres de autómatos, essas danças de manequins animados, é:
que através do seu dédalo de gestos, de atitudes de gritos atirados no
3 - SOBRE O TEATRO DE BALI
ar, através das evoluções e das curvas que não deixam nenhuma por-
o primeiro espectáculo do teatro de Bali que tem muito de dança, ção do espaço cénico por utilizar, se liberta o sentido de uma nova
canto, e pantomima, música - e demasiado pouco de teatro psicológico linguagem física à ba se de signos e não mai s de palavras . Este s acto-
tal como o entendemos aqui na Europa, recai oca o teatro no seu plano res, com o s se us vestidos geométricos, parecem hieróglifos animados.
de criaç ão autónoma e pura, sob o ângulo da alucinação e do medo. ( ...)
É notável que a primeira das pequenas peças que co m põem Os temas proposto s partem , poder-se-ia dizer, da cena. São tai s
este espectáculo - e que no s faz assistir às admoes taçõe s de um pai
e estão num tal ponto de materialização objectiva, que não se po-
à sua filha que se insurge contra as tradições -, co m eça por uma
dem imaginar, por mais que se escave, fora desta perspectiva densa ,
entrada de fantasmas ou , se o quiserem , que as personagens, homen s
desse globo fechado e limitado do palco.
e mulheres que vão servir para o desenvolvimento de um assunto
Este especuiculo dá-nos um composto maravilhoso de imagen s
dramático mas familiar, aparecem-nos primeiro no se u e stado
cénicas puras, para a compreensão das quai s toda uma nova lin -
espectral d e personagens, ou seja, vistas so b o âng u lo da alu ci -
guagem parece ter sido inventada: os actores, com as suas roupas,
nação, que é o próprio a toda a personagem de teatro , antes de per -
compõem verdadeiros hieróglifos que vivem e se movem. E estes
mitir às situações deste tipo de sketch s imbó lico que evoluam . Aqui ,
hieróglifos em três dimensões, por sua vez, estão sobreomados com
aliás, as situações não são mai s d o que um pretexto. O drama não
um certo número de gestos, de signos mi sterioso s, qu e correspon-
evolui entre os sentimentos, ma s e n tre os estados de espírito, eles
dem a não se sabe qu e realidade fabulosa e obscura qu e nós, gentes
mesmos ossificados e reduzidos a gestos, - a esq ue m as. Em SUIT'.a,
do ocidente , definitivamente reprimimos. Há qualquer coisa que
os balineses realizam, com o mai s extremo rigor, a ideia do tea tro
puro, onde tud o , co nce pção como realização, não va le , não tem participa do es p írito de uma operação mágica nest a int ensa liberta-
existência, senão pelo seu lado de objectivação sobre a cena . De- ção de signos, primeiro retidos e depois subitamente lançados no ar.
mon stram vitoriosamente a preponderânci a ab soluta do encenador Uma efervescên cia ca óti ca, ch eia de referentes e por momen-
cujo poder de criação elimina as palavras. Os temas são vagos, ab s- tos e stranhamente ordenada, crepita nesta efervescênc ia de ritmos
tractos , extremamente gera is. Apen as lhe s dá vida o pulular compli - pintados, e m que o caldeirão I toca se m ce ssar e int ervém como um
cado de todos os artifícios cénicos que impõem ao no sso es pírito silên cio hem calculado.
como que a ideia de uma metafísica retirada de uma utiliza ção nova
do gesto e da voz . 1 In st rumento mu sic al , (N .T.)
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A esta ideia de teatro puro, que entre nós é puramente teórica e es crita, aqui, é traçado no ar c énico, entre os membros, o ar, e as
à qual nunca ninguém tentou dar a mínima realidade , o teatro de perspectivas de um certo número de gritos, de cores e movimentos.
Bali propõe-nos uma realização espantosa, no sentido em que su-
prime toda a po ssibilidade de recurso às palavras para a elucidação
4 - TEATRO ORIENTAL E TEATRO OCIDENTAL
dos temas mais ab stractos ; - e que inventa uma linguagem do s
gestos feitos para evoluir no espaço e que não podem ter sentido A revelação do teatro de Bali foi fornecer-nos 'do teatro uma
fora dele. ideia física e não verbal, em qu e o teatro é contido nos limites de
O espaço da cena é utilizado em todas as suas dimensões e, tudo o que se pode passar sobre uma cena, independentemente do
poderia dizer-se , sobre todos os planos possíveis. Porque ao lado de texto escrito, enquanto o teatro, tal qual o concebemos no Ocidente,
um sentido agudo d a beleza plástica, e sses gestos tiveram sempre est á ligado ao te xto , e encontra-se limitado por el e . Para nós , no tea-
por obje ctivo final a elucidação de um estado, ou de um problema, tro a Palavra é tudo, e não há possibilidades fora dela; o teatro é um
de espírito. ramo da literatura, uma es péc ie de variedade sonora da linguagem
Pelo menos é assim que nos aparecem. e, se admitimos uma diferença entre o texto falado em cena e o
( ...) te xto lido pel os olhos, se fechamos o teatro no s limites do qu e a pa-
É certo qu e este lado do teatro puro, e sta física do gesto abs o- re ce entre du as réplicas , não conseguiremos se pa rar o teatro da
luto, que é a ideia e m si e que obriga as co nce pçõ es do espírito a ideia do te xto realizado. Esta ideia da supre m ac ia da palavra no tea-
passar, para serem percebidas, pelos dédalos e e ntra nça dos fibros os tro e stá tão enraizada em nós, e o teatro aparece-nos tanto como o
da matéria, tudo isto nos dá como que lima id eia nova d o que simples reflexo material do texto, que tud o o que no teatro ultrapassa
pertence propriamente ao domínio das formas e da mat éria manife s- o texto , tudo o que não e stej a contido nos se us limites e estrita -
tada. Aqueles que conseguem dar um sentido místico à simples mente condicionado por ele , nos parece fazer parte do domínio da
forma de um ves tido, que, não contentes de pôr ao lado do homem encenação considerada com o qualquer coi sa de inferior relativa-
o se u Duplo, atribuem a cada homem vestido o seu duplo de ro upa- mente ao texto.
ge ns, - aqueles qu e atravessam essas ve stime ntas ilu sórias , essas Sendo dada esta suj e ição do teatro à palavra, podemos pergun-
vestimentas número doi s, com um sabre que lhes dá are s de g randes tar-nos se o teatro, por acaso, não po ssuiria a s ua linguagem pró-
borboletas picadas no ar, essas pessoas, muito mais do qu e nó s. têm pria, se seria absolutamente quiméri co considerá-lo como uma arte
o se ntido inato do sim bolismo absoluto e m ág ico da natureza e dão- independente e aut ónorna, com o me smo título que a mú sic a, a pin-
-no s uma lição da qual. ficamos demasiado certos, os no ssos técni- tura, a dança, etc.
cos de teatro estarão impotentes para tirar partido. Em todo o caso de scobre- se que, se es ta lin guagem existe, con-
( ...) funde-se necessariamente com a encenação considerada:
Este espaço de ar intelectual, e ste jogo psíquico, este sil êncio I - Por um lado, com o a materiali zaç ão vi su al e plástica da
amassado de pensamentos que ex iste entre os membros de uma fra se palavra.
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secre tas , faze r vir à luz, por ge st o s acti vos, essa parte de verdade
2 - Como a lin guagem de tudo o qu e se pode di zer e si gnificar
ente rrada so b as formas no s se us e ncontros co m o Devir.
so bre uma cena ind epen dent emente da palavra , de tudo o qu e en -
Fazer ist o , ligar o teat ro às poss ibilidades da ex pressão pel as
co ntra a sua ex pressão no es paço, o u qu e pod e se r atingido o u de sa-
formas e por tudo o qu e são gestos, ru ídos , cores, pl ástic a, e tc., é
gre ga do por e le.
fazê-lo regressar ao seu destino primitivo, é recolocá-lo no se u as-
E sta lin guagem da en cenaç ão considerada como linguagem
pect o religioso e metafísico , é reconciliá-lo com o un iverso.
te atral pura, trata- se de saber se é capaz de at ingir o m esmo o bjec to
M as a s p alavras, dir- se- á, têm faculdades m et a físi cas , não é
interi o r que a pal avra, se do ponto de vis ta do es p íri to e teatral -
pro ib ido co nceber a palavra c o mo o gesto no plano universal e é
mente pod e as pirar à mesm a eficác ia intelectua l qu e a lin gu agem
nesse pl ano, al ém disso, qu e ela adq u ire a sua e fic ác ia maior, como
artic u la d a . N outros term o s, podemos perguntar-no s se ela pode ,
uma força de di ssoc iação d as aparênci as m ate riai s, de todos os es ta-
não parti cularizar os pensam ento s , m as fazer pens ar , se pode levar
dos no s quai s se est abilizou e que teri a tendên c ia a re pousar-se o es -
o e sp írito a tomar atitudes p ro funda s e efi c a ze s d o se u pr ópri o
pírito . É fá c il resp onder qu e este m odo m etafísi co de c o ns idera r a
ponto de v is ta .
palavra não é aq ue le em que a e m p rega o te atro ocidental , que a
Numa p alavra , colocar a qu estão da efi c ácia intelectual da
emprega , não c o m o uma força act iva e que part e da de struiç ão das
ex pressão pel as formas objec tivas, da e ficácia int el e ctual de um a
aparê ncias p ara sub ir até ao espírito, m as pelo con trário, como um
lingu agem qu e não ut ilizar ia m ai s qu e as formas, o u o ru ído , ou o
grau ac ab ado do pen sam ento qu e se perde ao ex te rio rizar-se .
gesto, é colocar a qu estão da eficác ia int e lectu al da a rte .
A p alavra no teatro ociden ta l nunca se rve se não para ex prim ir
Se cheg ámos ao ponto de a tr ibuir à art e ape n as um va lo r de
os conflitos p sicológi co s partic u lare s ao homem e à s ituação na
aprovação e rep ou so , de fazê-la conte r-se numa ut ili zação puramente
ac tu a lidade quotidian a da vida. O s se us co nfli tos são cl ar am ente
for m a l d as fo rmas, na harm oni a d e al gumas rel ações exterio res, isto
j ustiçáveis pel a pal avra art ic ulada e , quer fiqu em no dom ínio psico-
e m nada co rrom pe o se u va lor ex press ivo pro fundo ; m as a e nfermi -
lógico, quer sai am dele pa ra re en trar no domínio soc ia l, o dram a
dade es piritua l do Oc idente , que é o lugar por excelê nc ia o nde se
manter-se-á sem pre de int eresse m oral pel o modo com o os con flitos
pod e confund ir a a rte co m o este tic ismo, é pen sar qu e pode ria exis-
atacarão e des agregarão os c a racte res . E tratar-se-á sem pre de um
tir um a pintura qu e não servisse para m ais nad a se não pintar, .un a
domín io e m que as resoluções ve rb a is da palavra c o nse rvarão a sua
dan ça q ue não fosse se não plásti ca , como se tivessem qu erid o corta r
melho r parte. Mas es tes co nfli tos m o ra is, pela sua própria natureza,
as formas da arte, co rtar os seus laços co m tod as as atitudes místi -
não têm de m odo a lgum necessidade da ce na para se resol verem .
cas qu e podem tomar co nfundindo-se co m o ab soluto .
Fa zer d om in ar e m ce na a lin gu a g em a rtic ula da, o u a ex p ressão
Com preende-se e ntão que o te at ro , na medida m esmo e m qu e
pel as palavra s sob re a ex pressão objec tiva dos gestos e c1e tudo o
se m ant ém e nce rrado na sua linguagem, em q ue fic a e m correlação
que atin ge o espíri to pel o meio do s sen tidos no espaço, é vi rar as
com e la , de ve romper co m a actu alidade, qu e o se u o bj e ctivo não é
co stas às necessidades físi c as da cena e insurgir-se contra as suas
resol ver os co nfl itos socia is o u ps icológ icos, se rv ir de campo de
possibil idade s.
batalh a às pai xões mo ra is , m as expr imi r obj ecti vamente verdades
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o domíni o do teat ro , tem qu e se d izer , não é psicológico, mas provoc am os ge stos falhados e os irri sóri o s lap sos da língu a . E ao
plásti co e físico. E nã o se trata de sa be r se a lin guagem física do lad o de uma c ria nça esq uecid a levan ta m um a garra qu e salta; ao
te atro é capaz de c he ga r às mesmas re soluções psicológica s que a lad o d e um e m briã o humano nadando em c ascatas s ubte rrâneas
linguagem da s pal avras, se pode exprim ir sentimentos e pa ix ões tão mostram, sob um a fo rtaleza temível , o avançar de um exérc it o ver-
bem quanto as palavras, mas se não ha verá no domínio do pensa- d ad eiro. Ao lad o da incerte za son had a o m ar char da certez a e, para
mento e da int el igênci a atitudes qu e as pal avras são. incapaze s de to - al ém de um a luz am are la de cave, o rai o ala ra njado de um enorme
m ar e que os gestos, e tudo o que participa da lin guagem no es p aço, so l de Outono a retirar-se. Não se trata de s upri mi r a pal avra no tea-
atingem com maior precisão que elas. tro , mas de lhe faz e r mudar o se u dest ino e , so bre tudo, de redu zir o
A ntes de dar um exem plo da s rel aç ões do mundo físico co m o s
se u lu gar, co ns iderá-la co mo outra co isa d iferente de um mei o para
es ta dos profundos do pensamento, permiti qu e no s citemos a nó s
conduzir os caracte res humanos par a os se us fins exte riores, da do
próprios:
qu e nunca se tr ata, no teatro , senão do m odo com o os se ntimentos e
«Todo o ve rdadei ro se ntime nto é, na re alidad e, intraduzí vel.
as paixões se opõem umas às outras e de homem a homem na vida.
E xp rimi-lo é tra í-lo. M as traduzi-lo é di ss imulá-lo. A expressão ve r-
O ra , mudar o de stino d a pal avra no te atro é se rvi r-se del a num
d ad eira esconde o qu e ela manifesta. Opõe o esp írito ao vazio real
se ntido con creto e es pacial e por tanto qu e e la se combine com tudo
da natureza criando, por reacção, um a es pécie de pleno no pensa-
o qu e o teatro conté m de espac ial e de s ign ificação no dom íni o con-
mento. Ou , se o prefe rirem , relativam ente à manifestação-ilusão da
creto ; é manipulá-la como um objecto sólido e que desm oron a as
natureza ela cria um vazio no pensamento . Todo o sentimento po -
coisas, primei ro no ar, depoi s num domín io infinitamen te mai s mi s-
deroso provoc a em nós a ide ia do vazio. E a lingu agem cl ara que
te rio so e mais secre to m as que ele próprio ad m ite a exten são , e es te
imped e ess e va zio, impede tamb ém a poesia de aparecer no pensa-
domínio sec re to m as ex te ns o , não se rá muito di fícil ide ntificá- lo
mento. É por isso qu e um a imagem, uma al egoria, uma figura que
com o da ana rq uia formal por um lad o , mas também da cr iação for-
m ascara o que e la quereria revelar, tem mais sig nificado para o
m al contínua por outro .
e spírito qu e as claridades trazidas pelas análise s da palavra.
É assim que es ta id entificação do objecto do teatro co m todas
É assim qu e a verda de ira beleza nunca nos toca directamen te ,
as possibil idade s da m ani festaçã o form al e ex te nsa, faz aparece r a
E qu e um sol-pô r é bel o por causa de tudo o qu e nos faz pe rder» I
ideia de um a ce rta poes ia no espaço qu e se confunde , el a mesm a,
O s pes ad elos d a pintu ra fl am enga m a rc am -nos pela jus ta -
posi ção , ao lado do mundo verdadeiro , d aquilo qu e nã o é m ai s com a feitiçaria.

que Uma caricatura desse mundo; o ferecem larvas qu e poderíamos No teatro oriental de tendênc ias meta fís icas , opos to ao te atro
ter sonha do. T êm a s ua fonte nesses es ta dos m eio so nha dos que oci de ntal de tendências psicol ógicas, há uma tomada de posse , pe-
la s fo rmas, dos seu s se ntidos e da s sua s sig n ificações sobre tod o s os
pl an os po ssívei s; o u se qu ise rem, as suas consequências vibra tórias
não são tir ad as so bre um úni co plan o. m as sobre todos os plan os do
I O texto de q ue Ariaud apresenta aqui a citação não foi en co ntrado. (N.F.) esp ír ito ao mesmo tempo.
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E é por est a multiplicidade de asp ectos sob os quais as pode- 67 - G AS TON BATY: O ENCENAD OR (1944 )
mos co nsi derar que elas adquirem a sua capacidade de perturbaçã o
e encantos, e qu e e las são uma ex citação cont ínu a pa ra o espírito. G a s to n B aty (1 8 85 -1952) , enc enador fran cês, f u n d o u , e m
É porque o teat ro or iental não toma os aspecto s ex ter iores da s co isas 1936 , O C arte l com Jou vet , D ullin e P itoeff. A sua ambiçã o f unda-
num só plano, que não se limit a ao simples obstáculo e ao encontro m ental era e ncon tra r um «e q ui líbri o do s elementos d ramático s »,
sólido desses as pectos com o sentido, ma s é porque não ces sa de co n- eq uilíb rio en tre lit eratura e espect áculo que recuse «a hip ertrofia
siderar o grau de possibilidade mental do s quais saíra m , qu e ele par- do elemento ve rbal» , a d itadura da «Se nho ra palavra » . Pa ra el e , a
ticipa da poes ia intensa da natureza e qu e con ser va as suas relações harm onia d os ele mentos do drama é indissociável de uma visão do
mágicas com tod os os graus objectivos do magneti smo uni versal. mundo unificada - un ida d e da alma e do corp o , laço entre o s actos
É so b est e âng ulo de utiliz ação m ági ca, de feiti ça ria, qu e é pre- do homem e o cosm os ... O «eq uilíb rio» do drama aparece, a ssim ,
ciso consid erar a ence naç ão, não como o refl exo de um te xto es crito co mo a expressão es té tica d e uma fi losofia. Pa ra G asto n B aty , o

e de tod a essa proj ecção de duplo s fís icos qu e emana d o escri to, se ntido da un idade , tã o vivo na tra gédia grega, no drama isabelino
o u nos M isté r io s da Idade M édia , começ ou a p erder-s e p o uco a
mas co mo a projecção arde nte de tudo o qu e pod e se r tirado de co n-
pou co , depo is d o Ren a scimento , com o tr iunf o progress i vo do s va -
sequências objectiv as de um gesto, de uma palavra , de um som , de
lores do ind i vidualismo , da ra zão e do esp írito de a nálise (espírito
uma músi ca e da s suas combinações en tre si . Esta projecção activa
sep arado r, di vi sor). O verdadeiro teatro , seg undo ele, ref ugiou -se
não se pod e faz er senão em ce na e as suas co nse qu ências e ncon tra-
então na Feir a, O I/ nos Italianos . O e ncenador m odern o d eve tentar
das diante da cena e sobre a ce na; e o autor que usa exclusivamente
reencontrar esse antig o eq uilíb rio d o d rama e , com ele, o sentido
palavras escritas não tem aí que fazer, e deve ceder o se u lugar aos
p erdi do da unidade da s coisas.
especialistas de sta feiti çaria objectiv a e animada.

o qu e deve ser a encenação


Muitos o utros precon ceit o s deveriam se r contrad ito s, mas o lu-
gar está j á bem claro para qu e po ssamos agora tentar pr eci sar o qu e
é a encenação.
Defin im os há pouco a con cepção trad icional seg und o a qual o
ence na do r e nq ua dra pl ast icam ente a o bra esc rita e reg ula me nta a
encena ção. A d m itimo- Ia proviso riamente, e não se trata d e a neg ar
mas apenas de co m pletá-la. Se uma co ncepção mai s vasta se s ubs ti-
tui r a esta, não é no seguimento de qualquer pretensão ou de al gum
emb araço, m as porque o pr óprio conte údo da obra dram át ica mu -
Extraído de Le th éâtre (' I son douh lc, Oeuvrcs completes IV, A. Artaud , Paris, 1964 . I : pp. 16-
· IR; 2: pp. 60- 62 ; 3: pp. 73-75 ; 4: pp. R2-8R.). Por am ável autorização da Édi tio n Ga llima rd . dou c nã o se pod ia mai s exprimir senão por uma técnica nova.
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o hom em qu e conhece apenas o teatro tradi cional é um a m á- seg uida «trabalham sozin has ». Há as grancles forças da natureza , o
qu ina co ns truída seg undo os princípios da filosofia ca rtes iana ; e le so l, o mar, o nevoei ro , o calor, o vento , a c h uva, mai s po dero sos qu e
tem a sua vida psíquica, a sua vida sentimental, a sua vida intelectual : o homem e qu e o o primem, o esmagam, tran sformam o se u corp o,
tud o isso es tá claro, bem orde nado; nad a escapa nem à sua própria usam a sua vontad e , remodel am a sua alma.
consciênc ia, nem à no ssa aná lise . O s dramaturgos es tuda m-no so b Ei s-nos aq u i j á long e d a dramaturgi a d o « irã o eles para a
âng ulos difer ent es, mudam-no de situação social, de ves tuári o e lin- carna? » . Ma s o reino que o teatro dev e conquist ar es te nde-se muito
guagem, passeiam-no n as intri gas mais di versas e modifi cam in fini- alé m , até ao infinito . Depoi s do homem e do se u mi stéri o interior,
tamente o se u carác ter. El e mantém -se se m pre um indi víduo ana li- depoi s das coisas e do s se us mi stérios, ch egamos a m istéri os maio-
sáve l, o Homem , tal qu al o invent aram os humani stas. re s. A morte, as pre senças invi sí vei s, tudo o que e xiste para além da
M as o hom em , na ve rdade, ult rap as sa, por tod os os lados, este vicia e da ilusão do tempo. Fl agelo da s balan ç as, o nde se eq ui libra m
es que ma do homem . A sua vida cons cien te está tod a banhad a de o bem e o mal. O que é pr eciso de dor para re sg at ar o pecado e sal-
vida inconscie nte, ou é a pe nas meio consciente. Ele não é a ideia va r a beleza do mundo. T ud o , até Deus.
cl ara qu e tem de si próprio, mas os se us sonhos obscu ro s, a sua Basta inventar iar ass im tão brevemente tod a essa riqueza ofere-
mem ória adormecida, os seu s instintos reprimidos; na so m bra da c ida ao teatro para tornar evidente que não se poder á abordar ape-
su a alma habit am os seus antepass ados, a criança qu e foi , os o utros n as com os processo s trad ici on ai s. Não se trata de fa lar de tudo isto,
hom en s qu e pod eria ter s ido. Tudo isto ap enas aflora por clarões, no m as de tornar tudo is to sensível.
campo da sua co nsc iênc ia; porém , esta vida obscura co ndiciona a C o mo é qu e a v id a in con sciente d o h omem pod eria tr aduzir-
sua outra vida. -se e m di álogo s? E la cessaria , por defin iç ão , d e ser inconscie nte .
Tamb ém os ag ru pa mentos human os têm uma vida pró pria , d i- Igu alm ente podem o s faze r fal ar c ada um d o s indi vídu o s qu e
fer ent e da dos ind ivíduos qu e os co mpõem. A lém de um ca rác ter co m põe m um g ru po; m a s o próprio g ru po, e nq uan to tal , co m o
pessoal , as com un idades são entida des dramáticas: a profissão , a se ex p rim iria a pe na s pelas p alavras, forços am ente individua is ?
cida de, a cl asse, a na ção , a raça. Nã o um a reunião de vários se res : E a v ida das coisas (não d a poesia a propó sito d as co isas, mas d as
de ca da vez um se r novo, pol icéfalo, ex istind o em si. próprias co isas), está claro qu e o se u m ei o d e e xpressão não se ria
Mas o univer so não é apenas os homens ou os agrup am entos ve rbal.
human os. Há em volta del es tudo o qu e v ive, tud o o q ue vegeta, O texto é a parte es se nc ial do drama . E le é para o drama o que
tud o o que é. E tud o o qu e é, é matéria d ra mática: os a nimais, as o caroço é para o fruto, o ce ntro só lido e m tomo do qual se vê m
plant as, as coi sas. Toda a vida quot id ian a e o se u mi stér io : o tec to , o o rdena r os outros e le mentos . E da me sma m an eira qu e uma ve z o
umbral, o banco, a porta qu e se abre e se fecha, a mesa co m o oclor fru to saboreado , o caroço fica para a ss e gurar o c resc im e nto de
cio vinho e o candeeiro e a cama e ess e batimento no coração do o utro s frutos semelhante s, o texto, assim que se de svaneceram os
rel ógio. Há personalidades inanimadas: o navio, a vida, a floresta, a prestígios da repre sentação , espera numa biblioteca poder ressus-
m ontanha . Há as máquinas construídas pelo homem mas qu e de c itá -lo s algum outro dia .
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o papel do texto, no teatro, é o papel da palavra na vida. A pa- Vê-se de sde já qual será a fun ção do encena dor.
lavra serve a cada um de nós para se formul ar a si próprio e para co- O poeta so nho u uma peça. Põ e so b re o papel o que é redutível
munic ar aos outros o que regista a s ua int eligên ci a. Exprime directa, a palavras. M as est as não podem ex prim ir sen ão um a parte do seu
plenamente , as no ssas ideias claras. E xprime também, m as indirec - so nho . O re st o não es tá no manuscrito. É ao e ncenador que cabe rá
tamente , os nossos sentimentos e as nossas sensações, na medida restituir à obra do poeta o que se tinha perdido no caminho do so-
em que a nossa inteligência as anali sa; não podendo dar da nossa nho ao manuscrito.
vida se ns íve l uma tran scri çã o integral e si m u ltâ nea, decompõe-na Para o tentar, ele regul ar á a interpret ação, não ap enas nas répl i-
em elementos suc ess ivos, em refle xo s intelectuai s, como o pri sma cas, mas nos seus prolongamentos , harmonizará o co nj unto d a inter-
decompõe um rai o de sol. pretação, ritm ará o movimento de cada quadro . Pelas roupagen s,
O domínio da palavra é imenso, dado que ab arca toda a inteli- pelo cenário, pela luz e se for caso disso pela música e pela dança,
gênc ia, tudo o que o hom em pode co m preender e formular. Mas criará em torno da acção o meio materi al e es piritua l qu e lh e con-
além di sso , tudo o que escapa à an áli se é inexprim ível pela p al avra: vé m, o a m b ie nte indescritível qu e agirá so bre os es pectado res par a
«Muito rap ida me nte, esc reve Léon D audet , e m O Sonho Acordado , os colocar em estado de receptividade, para os aprox im ar do s act o-
atingimos o fim das pal avras... O indivíduo mais sá bio e o mai s do- res , para os p ôr de acordo co m o poeta. Trata-se, para e le, de reali-
tado nã o traduz (mes mo se tem à s ua di sp osição todo o di cionário za r sob re a cena o so nho de um universo ex press ivo e coerente e de
da língu a) senão cerca da ce ntés ima parte do qu e ex pe rim e nta , do
pro vocar na sala um a alucinação colectiva.
qu e medita . O mai s imp ort ant e, o m ai s int eressante foge por e ntre
as malhas do vocabulário com o a água foge entre os dedo s.» (G. Bat y, R ideau baissé , Paris, Bord as, 1948 , pp . 216-19. )
Do s nossos sentidos à nossa alma exi stem se ndas sec re tas que
não são cru zadas pel o caminho d a inteligên cia. A aleg ria di recta,
imediata, que nos dão um belo céu , uma bela pai sagem, um belo
co rpo , reencontramo-la depurada, mas n ão m enos im ediata, não
menos directa, diante da obra pintada ou esculpida que nel a se 68 - BRECHT: ESCRITOS SOBRE O TEATRO
inspirou; não e nc ontraremos ma is nada nos comentári os lit erári os (TEXT O S DE 1930 A 1954)
qu e po ssa susci tar essa obra; o pra zer qu e no s d ar ão será de uma
qu alidade completamente diferente . Bertolt B recht ( / 898-1966 ) fo i um auto r dramático , encenador
As sim intervêm no drama os m eios de ex pressão pl ástica, co lo- e poeta alemã o. Para além de um a obra dram ática muito ri ca, dei-
rid os , luminoso s. Dep ois tod os os o utros : int erpretação , mím ica, XO I/ I/ma obra teórica imp ortante qu e se este nde dos anos vinte aos
rítmi ca, ruídos, música, etc. anos cinque nta. R ecusando o teat ro «dramático» aristotél ico . fun-
Graças a e les pod eremos esca pa r às velhas se rv idões, passar as dado na ilu são e na iden tifica çã o, def ende desde 1926 o «teatro
fronteira s e traduzir no drama integral a nossa integral visão do épico» e os se us princípios de di stan ciaçâo, Por intermédio del e.
mundo. propõe igualmente uma nova escrita dramática , uma nova prática
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d e cena e lima no va técnica de interpretação para o a cto r. O teatro . e m g ra ndes regioes industrializadas. No s ú lti mo s tempos o teatro
espaço mediador entre o espectador c o mundo. é p osto ao serviço berlinense parece ser muit o representativo nas regiões altame nte ca-
de uma verdadeira p edagogia social: su rpreendendo-se e interro- pitalizadas. Através dele c hega, por algum tempo, às co lectivida des
gando- se perante as co ntradições de uma realidade que a cena não teatrais, uma expressão demasiado for te e pro vi soriamente madura.
mais lh e apresenta co mo natural, mas com o manipul ável e trans- N a última fase do teatro berlinense, como foi dito , só se apre-
f ormá vel. o espectador prepara-se para m elh or dominar essa reali- .. se ntav a a tendênci a de desenvol vimento do teatro mod erno no se u
dade e para agir sobre ela a fim de a modificar. A p artir dos an os nível m ais puro, o chamado teatro ép ico . Tudo a que se chamasse
cinquenta as p ropostas brechtianas não cessara m de exercer. sobre revista o u cena pictórica ou aprendizagem, pertencia ao teatro é pico .
todo s a q ueles a quem o papel sociopolítico do teatro preocupa.
uma eno rme influência . qu e tem começado a ser contestada nest es
últimos a nos . 1. O teat ro ép ico

O te nua teat ro épico s ig n ifica muito m ai s do qu e aquilo qu e


nele está contido, dado que, segundo a fo rmulaç ão aristoté lic a, a
fórma é p ica e a forma dramática da declamação d e um argumento
1 - NOTA S SO BRE MAHAGON NY (1930 )
sã o proferidas de modo bas icamente difer ente um a da outra. A dife-
Teatro de divertim ento ou teat ro de aprendizagem ? re nç a e n tre ambas as formas v islum bra r-se- ia apen as no fact o de
Quando j á há al guns a nos se ou via fal ar so bre o te atro mo - uma se r executada por homens e a outra recorrer ao livro - obras
derno , referia -se o teatro de Masca vo, de Nova Iorque e de Berlim. é p icas como as do própri o H omero e as do trovador da Idade Média
Talvez se fala sse ainda de uma o u outra representação do s Jouvet e ra m , sem dúvida, representações te atrais; e dramas como o Fausto
em Paris ou de Cochran e m Londres, ou ainda d a representação de G oethe, ou o Manfred de Byron, alcançaram a su a maior dimen -
Dybuk da Habima, que no fundo pertenci a ao teatro ru sso , pois o sã o à m a is alta escala e nq ua nto livros. A diferen ça entre as fo rm as
seu director e ra Wacht an gow. Mas na realidade só existi am três dramáti ca e ép ica detectou-se , segu indo Aristót eles, nos se us mod os
grandes c idades do teatro na o pinião dos Modernos. de construção di stintos , c ujas le is são e nunc iadas e m do is ra mos
O s teatros russo, am e ricano e alem ão diferenciavam-se bas- diferentes da estética.
tante uns dos outro s. A ssemelham-se, no e n ta n to, pelo facto de E st a diferença de construção dependia do modo co mo as o bras
serem modernos, ou seja, ter em implantado novidades técnica s e e ra m a presentadas ao público, um as por int e rm édi o d a cena, as ou-
artísti c as. Num se ntido re strito têm até se me lh a nças no es tilo e , tras po r int ermédi o do livro , mas ind ep endentemente di sso . também
qu em sabe, tal vez por iss o, porque a técni ca é int emacional (não só ex istia «d rama» no interior de um a obra é p ica, e «é p ico» no inte rior
naquil o que a técnica de palco precisa de imediato, ma s também de uma o bra dramática. No sé cu lo pa ssado. o rom an ce burgu ês de-
naquil o que exe rce influência so bre eles, como, por exemplo, o se nvo lve u sofrivelmente o «dram á tico » e, por esse termo, entendia-
film e) c porque se trata de g rande s cidades progressistas situadas -se um a fo rte concen tração da fábul a e um a certa int erdependên ci a
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das suas partes . A tónic a posta sobre o choque das for ças e m pre- recol ocar na m emória outros pro ce ssos que se desenrol avam simul-
sença e uma certa impetuosidade da narrativa, eram as carac terís ti- taneamente noutro s locais, co ntrad ize r ou confirmar as fal a s de
cas do «dram ático» . O dram aturgo épico Dõblin saliento u uma boa algumas personagens por int ermédio de documentos project ado s,
diferenciação entre es tes doi s géneros dizendo que, ao contrário da fornecer a di scussões ab stractas números concretos e de imediato
obra dramáti ca , uma obra épica deixa-se cortar, como com uma te- perc eptívei s, e sclarecer, por número s e citações, episódios muito
soura, em partes capazes de continuarem' a viver a sua vida própria. plásticos mas cujo sentido nada tinha de evidente, o plano de fundo
Não temos a intenção de expor aqu i em pormenor os motivos definiu a sua po sição relativamente ao s pro cessos qu e se desenro-
pelos quais as op osições entre o gé nero é pico e o género dramático , lavam em cena; qu anto ao s act ore s , j á nã o se metamorfo se avam
durante longo tempo tidas por irredutíveis, perd eram a sua rigidez. completamente, mantinham um a certa distância em rel ação ao seu
Cont ent ar-nos-ernos em indicar que, por si próprias, algumas con- papel, apelando vis ive lme nte à crítica.
quistas técnicas deram ao teatro as co ndições para inc orporar ele- Não mai s era permitido ao e spectador que, de bo a fé, se iden-
ment os narrativos nas suas representações dramátic as . A possibili- tificasse com as personagens e se abandonass e acrítica e apatica-
dade de utili zar projecções, aumentar as hipóteses de transformação mente às emoções (das quais não retirava nenhuma conse quê ncia de
do palco pela motorização e fazer ap elo ao cinema; o equipamento ordem práti ca). A representação su bm etia os sujeitos e os procedi-
de cena viu- se ass im completad o , num momento em que não era ment os a um proce sso de di stanciamento '. O di stan ciamento e ra in-
mais pos sív el representar os pro cessos e sse nciais que punham os dispensável para qu e a peç a fosse com pree ndida . O indiscutível re-
homens em conflito com outros homens como se tinha fe ito até aí, nun cia facilmente e sobretudo ao ente nd ime nto.
de uma maneira igualmente simples , personificand o as forças qu e O natural teve que se adapt ar à marca do estranho, do anormal,
movem o mundo , ou subord ina nd o as personagens a invisíveis do insólito . Só assim se pod iam re velar as leis de causa e e fe ito . As
potência s metafísica s. acções dos homens tinham qu e , s im ulta nea mente, ser o qu e eram e
Para que estes proce ssos fossem entendidos, foi ne cessário va- poder ser outras. Foram grandes mudanças.
loriz ar o am bie nte em que os homens viviam e mostrar o sig nifi-
cado do seu alcance .
Na verdade, ess e ambiente tinha já sido mo strado no drama an-
terior, nunca co mo um elem ento au t ôno m o, ma s apenas em rel ação
à person agem principal. Nascia das reacções do her ói e em fun ção
delas . Podia ser visto como o adiv inha r de uma tempestade quando ,
sobre um a to alha de água, o navio ostenta a sua vel a e esta depois
se dobra, de stroçando-o. No teatro épico, o ambi ent e deve aparecer I Antes da udoptar o lerm o «Ve rfrem d ung» (seg undo Bernh ard Rci ch , por infl u ênc ia
enquanto manifestação autón oma. do seu tradutor ru sso . Sc rge Tre tiakov), Brecht ut iliz o u o termo «Entfremd ung», c u jo eq uiva-
lente francês. na lin gu agem filosófica. é «alie nação» . Para ev itar q ualquer co nfusã o. foi deci-
A cena co meçava a narr ar. A quarta parede não m ais faz de- dido. para a edição francesa. traduzir o term o po r " d istanc iamento» . ou " d istanc iar» qu ando
saparec er o es pec tador. Gr aças a g rande s painéis que permitiam Brecht ut iliza a forma ve rba l. (N .F .)

. i
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2. Dois esquemas o espec tado r do teat ro dramático di z: Sim, também eu já senti


isso. - É assim que eu so u. - É uma coisa bastante natural. - E será
3 - Mas Inovações!
sem pre assim. - O sofrimento deste indi víduo comove-me porque
A ó pera foi trazida da técnica padron izada do teatro moderno.
para ele não há sa ída. - Est a art e é sublime : tudo aq ui é indi scutíve l.
O teat ro mod ern o é o teatro épico. O es que m a segui nte mostra as
- Choro com aqu ele qu e chora, e rio com o que ri.
diferen ças profundas entre o teat ro épico e o teatro d ramático. J

o esp ectador do teatro ép ico diz: Nu nca tinha pen sado nisto. -
A FO RMA DRAMÁTI C A A FO R MA É PIC A
DO TEATRO
É ins ólito, quase inacreditável. - Isto tem que acabar. O sofrimento
DO T E ATRO
de ste indivíduo co m ove-m e porque para e le pode ria exist ir um a
é acção é narração saída . - Esta arte é sublime: nad a aq ui é indiscutíve l. - Rio-me da-
impl ica o es pectador n uma ac ção faz do especta d o r um ob se rv ad o r, m as
cé n ica quele qu e chora, e cho ro pelo qu e ri.
esgo ta a sua activ idade intelect ua l acorda a s ua act ivid a de intel ect ual
propo rc ion a -lhe se ntimentos obrig a-o a tomar de c isõe s
Experiên ci a afectiva Visão do mundo
2. - A COMPRA DO CO B R E . Segunda no ite (1938)
O es pec tado r é mer gu lhad o em O es pec tador é co loc ado d ia nte de
qu a lqu er coisa q ualq uer co isa
A ce na da rua
S uges tão Argume nta ção Mode lo -base de uma ce na de teat ro épic o
O s sentim en tos são co nservados ta l e O s se ntimentos são e xa ltado s at é se ( ...)
q ua l tomarem em conhecimen to
O esp ect ad or es tá no interior e participa É relativamente fácil propo r um mod elo-base de teatro épico .
O espect ador está em fre nte e estuda
Parte-se do princípio que se conhece o O homem é o bj e c to d e investigação Quando dos exercícios práticos, tinha o hábito de e scolhe r como
homem
exe m plo de um teatro é p ico do s mai s puros, numa ce rta medida
O homem é imutá vel O hom em tran sforma -se e tran sforma
«natural» , um pro ce sso sus ce ptíve l de se desenrol ar em qualqu er
Interesse apaix onado pelo desenlace Inter esse ap aix o na do pe lo
desen vol v imen to es q uina de rua: a testemunha ocular de um ac idente mo stra, co m a
Uma ce na par a a segui nte Cada ce na po r si gestualida de adequada, como as coisas se passaram às pessoas agru-
C re sc imento orgân ico M ontagem padas. Essas pessoas podem nã o ter vist o nada, o u simplesmente
Evolução co n tínua Salto s
O ho mem co mo dado fixo
não ter a me sm a opinião da testemunha , ve r o ac idente «de o utro
O hom em co mo p ro ce sso
O pe nsa mento de termi na o se r O se r soc ia l de te rm ina o pe nsa me nto
modo »; o essenc ial é qu e o dem on str ad o r ex iba o co mporta mc nto
Sentimen to Razão do cond utor, ou da vítima, o u de um e do o utro, de tal mod o que a
assi st ên cia possa formar uma opinião so bre e sse ac ide nte.
Est e ex emplo de te atro é pico do tipo mai s primitivo parece
IEste quadro não sublinha opos ições absolutas, mas simplesmeJ1le dcslocamenlc's de sim p les de compreender. Porém , a experiência demonstrou que
tónica. É assim que, no interior de uma representação destinada a inform ar o público. se pode
fazer ape lo quer à sugestão afectiva, quer à persuasão puramente racional. (N A .) reserva d ificuldades es pa ntosas ao aud ito r o u ao leitor, desde qu e
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sejam convidados a medir o que implica a de cisão tomada de consi- ilusão . A apresentaç ão do nosso demonstrador tem o carácter de
derar uma tal demonstração numa esquina de rua como uma forma uma repetição: o acontecimento já se produziu, o qu e tem agora lu-
básica de grande teatro, como o teatro de uma era científica. Porque gar é a sua repetição. Que a cena de teatro siga, neste ponto, a cena
isso significa que este teatro épico pode aspirar a uma maior ri- de rua e o teatro não esconderá mais que é teatro, assim como a de-
queza, complexidade e investigação de pormenores, embora, para monstração na esquina da rua não esconde que é demonstração (não
ser uma forma de grande teatro, não tenha qualquer necessidade de se apresenta como o acontecimento) . O facto de a intriga ter sido re-
conter outros elementos além dos da demonstração na esquina da petida e o texto decorado, todo o apare lh o teatral e toda a prepara-
rua e que , em contrapartida, não poderia mais ser chamad o de teatro ção, tudo isso aparece à luz. O qu e acontece, pois, à em oção vivida
épico se lhe viess e a faltar um do s elementos essenciais dessa de- pelo espectador? Pode ele ainda viver a realidade representada?
monstração. Enquanto isto não for compreendido, enquanto não for A cena de rua determina que e la deva se r a natureza daquilo
captado o que há de novo, de pouco habitual , de absolutamente pro- qu e se entende fazer viver pelo espectador. O demonstrador, sem
vocante para qu e o sentido crítico possa afirmar que esta demons- qualquer dúvida, viv eu alguma co isa, mas a sua ambição não chega
tração numa esquina de rua chega para fornecer um modelo-base de ao ponto de levar o espectador a «v ive r» a sua demonstração; mais
grande teatro , não se pode verdadeiramente compreender o que se qu e isso, a experiência que o condutor e a sua vítima viveram, ele só
segue I . a transmite parcialmente e, por mais vida que instile na sua demons-
Pelo contrário, a perfeição da sua demonstração dev e se r limi - tração, não procura tomá-la num acontecimento que o espectador te-
tada, porque a demonstração seria contrariada se cada um notasse a nha prazer e m v ive r. Assim , a demonstração não perde nada do seu
capacidade que o d emonstrador possui para se metamorfosear. valor se não recriar o terror suscitado pelo acontecimento e p erderia
O demonstrador deve evitar comportar-se de tal maneira que a as- mesmo muito do seu val or se o recriasse, Não se pretende fazer nas-
sistência venha a gritar: Com o () seu condutor é verídico! Ele não cer emo çõe s puras. Um teatro que a siga ne ste aspecto atinge, é ne -
tem que manter sob o seu enc anto o que quer que seja. Não tem que cessário compreendê-lo, uma mudança completa de função '.
empurrar quem quer que sej a para fora da esfera da vida quotidiana Um dos elementos esse nc ia is da cena de rua reside na atitude
para o elevar a uma esf era superior . Não tem necessidade de pos- natural que o demonstrador adopta a partir de um duplo ponto de
suir um particular talento de sugestão.
O aspecto deci sivo é que, na nossa ce na de rua , uma elas carac- I Par a n ão ultrapa ssar o s limite s d a ce na -tipo . o te.u ro tem apena s nec~ss i '.lade de
terí sticas maiores do teatro tradicional está ausente: o preparar da de sell \'olver e sta técni c a particular qu e tem p or efeito s u bme te r as elll.oç ,ÕCs a .c n t lca d o
es pe c tado r. O que nao qu e r di zer. é c laro, q ue. po r p rin cípio . seja nccess úrio impedir o cs pec -
tud or de partilha r a lg umas e mo ções qu e lh e são apresentadas; p~)rém , a tOl~ada a c:~go d e
e mo çõe s não é sen ão 1I1na fo rma bem preci sa ( 1110111(' n lo . con sc q l.lc nCI3) da .c,nu c a . () dcrn on s-
1 Pen sem o s: é evident e ( IUC es te proces so não é aquilo a qu e c hama m o s d e proce sso trador do te atro . o uc tor. d eve utili zar lima técni c a que lhe permna Iransn~'t'r, com uma ce rt a
art ístico . O demon st rad or n ão tem nece ssidade de se r um a rtista . O que e le deve sa be r faze r rese rva . 1I1n det erminad o d istanci ament o, (} 10111 qu e util iza deve pcrnuur qu e ~ cs pcctadOl
para atingir o se u objcctivo , praticamente qu alqu er um o sa be fa zer. Suponhamos que e le n ão po ssa di zer: «e le en c rv a- sc inurilmeutc. é demasiado tarde . e nfim ». e tc. Rc~umtn<.~ ~) : o a~~o.r
es tá em es tad o de exec uta r um mov ime nto assi m tão ra p ida me nte como a v ítima ; ba star-lhe- á de ve mante r-se d emon strad or : de ve torn ar a pcrson a gcJn qu e re pre sent a nU111 4) tcr~ct~~' pe sso a
acre scentar: «e le ia três ve ze s mais depressa) , c a s ua demonstra ção não se e nc o ntra rá umpu- c não tuzc r de saparec er na su a repre sen taç ão tod os o s traç o s de «ele faz ist o, ele di z i sto» . El e
tada de um el em ento e ss e ncial. nem perderá nad a d o se u val or. (N A .) não de ve c hega r a m (·tll111o r (o s('u r -se i lltcgJ'a l nu'Iltl' _ (N .t\ .)
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vista, dado qu e tem em conta a permanência de duas s ituaç ões : e so bretudo, o que é qu e fez a vítima?), a demonstração pode en -
comporta-se com naturalidade. Nunca esquece e nunca deixa esque- contrar-se mod ificada a tal ponto que o efe ito de di stanciação inter-
cer qu e não é a personagem mo strada, mas o demonstrador. Por vém. Pela aten ção que e le agora presta ao mais pequeno pormenor
outras palavra s, o que o público vê, não é a am álgam a de demons- do se u movimento , pel a circuns pecçã o com a qu al o executa, vero -
trador e da personagem mostrada, ma s o demonstrador, não como s im ilmente com lentidão , o demonstrador o btém o efeito de d istan-
um terceiro, aut ónomo e harmoni oso com co ntornos vagos herd ados c iam ento : ele distancia essa . fr acção do processo , realça a sua im-
de a (o demonstrador) e de b (a personagem most rada), tal como o portân cia, toma-o notável. É neste facto qu e o efeito de di stanciação
teatro tradicional nos oferece nas suas produções I . As opiniões e o s do teatro épico se revel a útil também ao demonstrador, ou , para no s
sent imentos do demonstrador não se confundem co m as opiniões e exprimirmos doutro m odo, aparece também nesta pequena ce na de
os se n timentos da personagem mostrada. teatro natu ral numa es q ui na de rua, nest a cena quotidiana qu e nad a
Chegam o s assim a um do s elemento s e ssenciais do teatro tem a ver com a arte . Po r e ntre os eleme ntos de uma dem on stração
épico, àquilo que é costume chamar de efeito de distanciaç ão . Para na ru a , mais fácil ainda de di stinguir é a passa gem abrupta da re-
ser breve, trata-se aqui de uma técnica qu e permite dar ao s proces- pr esentação ao comentário, fen ómeno característi co do teatro épico.
sos a se rem representado s o pod er de col ocar homens em conflito O demonstrador corta a sua imitação com explicaçõe s, tant as vezes
co m o utros hom ens, pr oporci onar o and am ento de fac tos insólitos, qu antas lhe parece po ssível. O s coros e as projecções de documen-
de factos qu e necessit am de uma ex plicação, qu e não são evi de ntes, to s do teatro épico, o apelo d irect o dos se us ac tores ao pú bl ico , não
qu e não são simples me nte naturais. O obj ecti vo dest e efe ito é forn e- rel e vam de outro princípio.
cer ao espectador a po ssibilidade de exercer um a crí tic a fecunda, E n tre o te a tro ép ico natu ral e o teatro ép ico art ific ial , não
colocando-se do lado de fora da cena para que adquira um ponto de existe uma diferença de natureza ao nív el dos seus element os cons-
vista social. Pod eremos nós demonstrar o c arác te r pertinente do titutivo s. O no sso teatro de rua é primitivo , o pretexto, a fin alidade e
efeito de di stanciação no cas o do nosso demonstrad or de rua? o s meio s da representação não «valem nad a ». M as trata-se , não se
É facil imaginar o qu e ac ont eceu qu ando o demon strador negli - pode negar, de um proce sso pertinente cuj a funç ão soc ial é clara e
genc io u pro vocá-lo. Poderíam os ter a situação seguinte : um espec- det ermina cada um d os seus e leme nto s. A representaçã o tem po r
tador diria: «se a vítima, co mo você o mo str a, pô s primeiro o pé di - pret e xto um incidente que pode ser d iver samente apreci ado; pode
repeti r-se sob uma forma ou sob outra e não está a ind a acabado, terá
reito no passeio, então... » , e o nosso demon strador a interrompê-lo:
consequ ênci as, de tal m aneira qu e o julgam ento que se emi te sobre
«Mas mostrei que ele terá avançado primeiro o pé es q uerdo ...». No
e le tem import ân cia. O o bj ectivo da re pres en ta ção é perm itir que
de curso da co ntrovérs ia (o dem on strador pou sou primeiro o pé es-
cada um emita mais facilmente uma opinião m oti vada pelo e sob re
qu erd o ou o pé direito sobre o passeio durant e a s ua demonstração?
o inc idente . Os mei o s da representação reag em a esse o bjectivo .
O teatro épico é um teatro d e elevad a qualidad e artísti ca, cujos
_ Foi Stani slavsk i quem desen volveu ma is perfe ita ment e esta técnica de represe nta-
sujeito s são complexos e os objectivos sociais e ambiciosos. Ao pro-
çao . (N. A .) por a ce na da rua co mo modelo esse nc ia l de teatro ép ico , atri buímos
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claramente a esse teatro uma função social e avançamos critérios longe de desconfiar que não estão sós. Na realidade, arranjamo-nos
que permitem determinar se ele constitui, ou não, um processo per- para que tudo seja visto sem dificuldade. Simplesmente, o arranjo é
tinente. O modelo-base tem um significado prático. No decorrer da camuflado.
elaboração de um espectáculo, que muitas vezes levanta dificulda- O FILÓSOFO
des de pormenor, problemas artísticos e sociais, fornece aos actores
e àqueles que os dirigem, o meio de as controlar a fim de que a fun- Ah, bom! O público admite tacitamente que não se encontra
ção social atribuída ao conjunto do aparelho teatral não seja masca- num dado teatro e que a sua presença, aparentemente, não é notada.
rada nem mutilada. Tem a ilusão de se encontrar diante de um buraco de fechadura.
Mas então deveria esperar até estar no vestiário para aplaudir.

3 - A COMPRA DO COBRE. Segunda noite (1939-40). «Destruição da O ACTOR


ilusão e da identificação»
Mas, justamente, os seus aplausos confirmam que os actores
O DRAMATURGO conseguiram representar como se ele não estivesse presente!

O que aconteceu à quarta parede?


O FILÓSOFO

O FILÓSOFO Teremos necessidade de uma convenção assim tão secreta e


complicada entre ti e os actores?
O que é?

O OPERÁRIO
O DRAMATURGO
Eu cá não tenho essa necessidade. Mas será que os artistas a têm?
Habitualmente, fazemos teatro não como se a cena tivesse três
paredes, mas quatro; estando a quarta do lado do público. Susci-
O ACTOR
tamos e alimentamos a ideia de que o que se passa em cena é um
processo de acontecimentos autênticos da vida; ora, na vida, evi- Dizem que é necessária a uma representação realista.
dentemente que não há público. Fazer teatro com a quarta parede
significa, pois, fazer teatro como se não houvesse público. O OPERÁRIO

Eu sou a favor de uma representação realista.


O ACTüR

Compreendes, o público vê, sem ser visto, acontecimentos bas- O FILÓSOFO

tante íntimos. É exactamente corno se alguém, por um buraco de fe- Mas que estejamos sentados num teatro e não diante de um bu-
chadura, espiasse uma cena cujos protagonistas estivessem muito raco de fechadura, também é uma realidade, ou não? Como se pode
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considerar reali sta a escamoteação dessa realidade? Não , nós quere- O FILÓSOFO
mos abater a quarta parede. De um golpe, a convenção é denun -
ciada. Para o futuro, não tenham escrúpulos e mostrem que arranja- A nós.
ram tudo de maneira a facilitar a nossa compreensão.
O ACTOR

. O ACTOR Pela arte, meu se nho r ! E são espectadores simples e acessíveis!


o qu e significa que , a partir de hoje, tomamos oficialmente no- Talvez se esforcem por urna casa diferente , onde e nc o ntrem outro
tícia da vo ssa presença. tipo de condições, onde as raparigas de bom g ra do lhes mostrem os
se us traseiros.
o FILÓSOFO
N aturalmente. Sempre que se utilizem as demonstrações. O FILÓSOFO

E aqui, em vossa c asa, as raparigas só mo stram o traseiro aos


o ACTOR (murmurando) colegas de trabalho, onde só nos deixam entrar muito distintamente
Então de novo «Ele fala à parte », diz «respeitável público, eu como?
sou o R ei Herodes» e atira as pernas para o camarote oficial!
O DRAMATURGO
o FILÓSOFO (m urm ura ndo )
Meu caro se nho r, c uid ado !
Não há avanço mais difícil que o regresso à razão!
O OPERÁRIO
o ACTOR (num repente)
Os traseiros colocou-os ele em debate.
Meu caro senhor, o teatro é, nalguns casos, muito regressivo ,
isso já sa be mos. No entanto, até agora, ainda não descobriu as sU:J..';
O FILÓSOFO
formas. Por isso não se dirigiu directamente aos espectadores. Pode
também tornar-se tão genial e c o rr up to que nem sempre se faça Então mostrai -nos qu ando muito as almas!
co m pree nder. Para lidar com ele tem que se caminhar por entre de-
safi os c ons c ientes. Meu caro, aqui e até agora, ainda não ac tu árn os O A CTOR
para idiotas e imbecis que compram um bilhete só pela art e.
E vós pensai s que isso se faz sem vergonha ? E o que é que
quereis dizer com quando muito?
o OPERÁRIO
A quem é que ele se refere como idiotas e imbecis?
480 48t

o DRAMATURGO sobriedade. um tal Não nos deixes tomar decisões neste estado de
É grave que anuleis cada passo dado. Não poderia pelo menos embriaguez! ou Intervenhamos na reflexão! é estar perante a actua-
agora, depois de ter reagido com ira filosófica, reagir com sereni- ção do nosso mago correctamente posta em cena, no entanto isto é
dade filosófica? apenas uma fase inferior. Já descobrimos que temos que arrumar as
convicções, só nos aproximamos do prazer pela arte, no qual nos
o FILÓSOFO afastamos da sobriedade e nos aproximamos da embriaguez - já sa-
bemos que a escala completa da sobriedade à embriaguez e que a
A nossa atitude crítica deriva do facto de termos ganho de ora
oposição entre a sobriedade e a embriaguez estão presentes no pra-
em diante uma grande confiança no trabalho e na invenção humanos
zer pela arte.
e uma desconfiança contra o facto de tudo ter de permanecer como
É escusado, ainda que para os nossos objectivos fosse emba-
está, mesmo quando está mal como nas nossas intuições. A coacção
raçoso, querer representar as personagens e as cenas dando frios
e a repressão deveriam, pelo menos uma vez na História, forçar tra-
conhecimentos e ponderações. Todas as ideias, expectativas, simpa-
balhos grandiosos, a possibilidade de explorar o Homem, deveria
tias, que nós indivíduos manifestamos na realidade, também aqui
ter colocado em movimento cérebros para conceberem projectos,
gostaríamos de pôr a público. Não devem ver personagens, que são
com os quais também o público precisava de beneficiar de forma
apenas agentes dos seus actos, mas sim pessoas: matérias temáticas
consciente. Hoje tudo está paralisado. Por isso o seu actor só pode.
que se passeiam, ainda por gastar e não definidas, que vos podem
de agora em diante, representar as personagens que ajam de um
surpreender. Só tais personagens acima descritas vos farão exercitar
modo diferente daquele que se pode imaginar, como se assim agis-
verdadeiramente o pensamento e mesmo possuir interesses exigen-
sem por existirem razões suficientes para agirem dessa forma. Tal
tes por sentimentos de pensamento instruído e enriquecido, num
como um grande engenheiro, que possui mais experiência, que
pensamento a todos os níveis da consciência, clareza e eficácia.
corrige desenhos do seu predecessor, traça novas linhas sobre as já
existentes, risca algarismos e substitui-os por outros, tece anotações
o ACTOR
e comentários críticos, poderíeis também conceber as vossas perso-
nagens utilizando os desenhos. Poderíeis representar assim a p"i- Não estarei eu de pés e mãos atados ao excerto deste texto do
meira cena do Rei Lear, na qual ele divide o reino pelas filhas em autor'!
proporção do amor que elas nutrem por ele, onde ele utiliza uma
medida totalmente ilusória. Deste modo, o espectador diria para o fILÓSOFO
consigo: Ele está a proceder erradamente, quando não o disse, 011 Poderíeis trabalhar o texto como um discurso autêntico mas
quando disso se apercebeu, 011 pelo contrário quando reflecti a so- ambíguo. Um César alterado, sabeis vós como é, rodeado de nobres
bre a sua atitude, atentados, murmura para um Brutus consciente: Também til,

E que tipo de reflexão se trata aqui? Será uma ret1exão contra o Brutus? - O ouvinte de um tal relato não o compreende nas suas en-
sentimento de uma simples luta pela sobriedade? Um tal apelo à trelinhas, mas sim de um outro modo, não aprendeu muito, o seu
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conheci me nto do mundo não pro gr ediu cons ide rave lmente. Mesmo int erpretar , co locar-vos na sua situa ção , read optar a sua aparênci a
qu ando es tá disposto a gene ralizar, pode fazê-lo em muitas direc - física , a sua m ane ira de pensar. É uma da s operações da co nstrução
ções fa lsas. Só altera is o actor nesta vaga e indi stinta apresentação e da personagem . Isto convém perfeitam ente a o n osso objectivo ,
representas a própri a vida em si. Quando tiverd es acabado, o es pec- bast a qu e depo is sa ibais sair dela. Há um a g rande diferença entre
tador deve ter visto mai s do que uma testemunha ocular do processo aquel e que faz a sua idei a e qu e logo tem necessid ade de imagina -
primitivo . ção, e aquele qu e se co nte nta com um a ilusão e lo go tem ne cessi -
dad e de faze r ca lar a sua inte ligê nci a. Os nosso s fins exigem ima gi-
o D RAM AT URGO nação ; nó s qu erem os tr an smiti r ao es pec tado r a id ei a qu e tem os
de ste o u da qu el e facto , não qu e remos criar ilu sões .
O que é feito dos excertos fantás ticos? Não fo rne ce m ape nas
relatos so bre o poeta?
O ACTO R

o F ILÓSOFO C reio qu e es tás a faz er um a ideia excessiva , qu ase ilusória, da


int en sidad e com que nós, os ac to res do teatro antigo, nos identifica-
N ão , não só. Isso são pa ra vós rel ato s de sonhos o u de ras -
mos com os nossos papé is. Po sso-t e afirmar qu e . ao represent arm os
cunhos, nos quai s o esc ritor dos excert os utili za a realidade. Mesm o
o R ei Lear , nos vêm à ca beça coisas qu e Lear teri a tido mu ita difi-
qu ando estais procu rand o o que e le poderia te r visto, qu al poderia
culdade e m imagin ar.
ter sido a intençã o da sua narrat iva e assim po r diante; para vós
existe a inda muito espa ço.
O FILÓSOFO

Não tenh o dúvid as. N ão tenho dú vida de que vós sois perfeita-
o ACTOR
mente capazes de apresentar um ce rto efeito e de ev itar o utro e assim
Pelo contrário, vós não qu erei s di zer qu e e u nã o devo imitar por di ant e ; qu e sabeis obse rvar se o acessório es tá bem no seu lugar e
uma personagem, na qual eu não m e tenh a transportado em espírito? se o bobo não irá pôr- se a mexe r as orelhas no m omento da vossa
tir ad a. M as tod as estas preocupações rem ont am aind a aos es forços
o F ILÓS OFO qu e faze is para que o públ ico fique prisione iro das suas ilusões. Elas
Para co nstruir a per sonagem são necessárias vá rias ope rações. pod em perturbar a vossa identificação, embora reforcem a do públ ico.
Em gera l, vós não imitai s pessoas qu e tivéssei s visto , mas co meça is O ra, na ve rda de, o que mais import a e de lon ge , é qu e a ide ntificação
por criar um a ideia das person agen s que qu erei s imitar. Part is da- do público não se concre tize e não qu e a vossa seja pertu rbada.
qu ilo qu e vos fornece o texto que tereis que dizer, as ac ções e reac-
ções qu e vos são prescrit as, as situações nas q ua is a vossa person a- O ACTO R

gem se deve desenvolve r. É evidente qu e vos se rá se m pre preci so Deveríam os ent ão meter-nos na pele da personagem apen as no
recolocar em pensament o dent ro da pele da per sonagem qu e deveis dec urs o dos ensaios e não durante a represent ação?
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o FILÓSO FO Mas medirei a m ae stria da vossa repre sentação pel a pouca identifi-
cação que e la requeriria e não, como é costume fazer-se, pelo gr au
Desta vez, fico embara çado. Pod eri a responder simplesmente
de ident ificação que o actor é capa z de atingi r.
que não deveríei s, quando repre sentais, enfi ar-vos na pel e da perso-
nagem. Teria o direito de responder assim. Primeiro porque eu pr ó-
prio fiz a distinção entre o identificar-se com um a per son agem e o
o D RAMATUR GO
meter-se na su a pel e ; depois, porque acredito verdadeiramente qu e a Pod e dizer-se assim: da me sma manei ra qu e ago ra se tomam
ident ificaçã o é supé rfl ua; mas sobre tudo porque temeria, no caso de por diletant es aq ue les qu e não co nsegue m ating ir a identificação ,
vos dar uma outra re spos ta, qualque r qu e ela fos se, de não ter fe- talvez no futuro sejam tidos por d ilet ante s aq ueles que não con se-
ch ado a porta gra nde a todo o bricabraque par a abrir uma pequena. guem nã o se identificar? Descan sa. Bem podes fazer sáb ias conces-
Apesar di sso , hesito . Num limit e ex tre m o, po sso imaginar qu e a sões, o teu es tilo de representação nã o dei xa de ser menos descon-
identificação seja ino fens iva. Por toda uma sé rie de disposições, po - certante ao s no sso s o lho s.
deri a se r torn ada in ofensiva. Seria preci so iterrompê-la, fazer com
qu e inter viesse ap en as em momentos det erm inad os, ou então seria o A CTOR
necessário qu e e la fosse muit o, muito ligeira e substituída po r o u- Se rá que a e lim inação da ide ntífica ção s ignifica a elim inação
tras opera çõe s en érgicas. De facto, j á vi uma represent aç ão desse de tudo o que diz re spe ito aos se ntimentos?
tipo . Tratava- se da última de uma lon ga sé rie de repeti ções, tod o s os
actores estavam cansados, queriam ap en as rem emorar um a última o FI LÓ SO FO
vez o texto e a movimentaçã o no palc o , moviam-se mecani camente
Não , não . Não se de ve entravar nem a participação afectiva do
e falavam a meia voz. Fiquei con tente co m o efeito produzido, po-
público , nem a do actor. Também não é preci so imp edir a represen -
rém não poderia ter dit o co m seg ura nça se e les se identificavam o u
tação do s se ntimen to s, nem a s ua utilização pelos actores. Unica-
não. Mas devo acr escentar que os ac to res não ou sariam nunca re-
mente, das numerosas fonte s po ss ívei s de se ntime ntos , há uma, a
presentar assim diante de um público, quer d izer, co m tão pou co rc-
identificação , q ue não se de ve utili zar, ou qu e pelo men os se deve
levo , mostr ando-se assi m tão desprendido s de qu alquer o br ig aç ão
fazer passar para segundo plano .
de produzir um efe ito (porque estavam totalmente conce ntrados no s
«pormenores ex te rio res »), de tal mod o qu e a identifica çã o , se ror
acaso tivesse ocorrido, não era em bara çosa, sem dúvida por uma 4. PEQU EN O ORG ANON PARA O T EA TR O ( 1948 ) E A DE NDA A O
ún ica razão, a de qu e a interp retação não era animada. Em resumo , PEQU EN O O RGANON ( 1954). A fáb ula
se pudesse es tar ce rto de que, ao declarar po ssível um a identificação
muito ligeir a, não vos indu ziria a m inimi zar a e norme diferen ça e n- 64
tre a nova repres entaç ão e a antiga, a qual repousa so bre a identifi- Fazend o a exegese de um tal m at e rial gestual, o ac to r toma
cação absoluta, decl araria possível uma ide ntificaçã o mu ito lige ira. posse da per sonagem tom and o pos se dafábula. Não é senão a partir
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dela, um acontecimento global delimitado, qu e lhe é possível, por que int eressasse, seria esta particularidade que teria qu e ser sufi -
assim di zer, atingir com um só salto a sua personagem definitiva cientemente di stanciada) . A s partes da fábu la dev em , portanto ,
que ultrapassa todos os traços parti culares e característicos. Se el e opor-se cuidadosamente umas às o utras, dando-lhe a sua estrutura
fez o que pôde para se surpreender com as contradições nas diversas própria, de uma pequena peça dentro da pe ça. Com este objectivo, o
atitudes, sabe ndo qu e ter á também que surp ree nde r o seu público, a melhor é chegar a um acordo relativamente ao s títulos como os do
fábula na sua totalidade dá-lhe a possibilidade de fazer uma monta- par ágrafo anterior. Os títulos devem conter a ponta social, mas, ao
gem de elementos contraditórios; porque a fábula proporciona, en- me smo tempo, dizer qualquer co isa sobre a forma de representação
quanto acontecimento delimitado, um determinado sentido, o que desejável, quer dizer, seg undo o s caso s, im itar o tom de um título de
quer dizer que, por entre numerosos interesses possíveis, ela só sa- cr ônica, de balada, de j ornal ou de retrato de costum es . Uma forma
tisfaz int eresses determinad o s. sim p le s de representação distanciante é , por exe m p lo , aquela com
que habitualmente são tratados os usos e costumes. Uma visita que
65 se faz, o tratamento res ervado a um inimigo, um e nc o n tro de namo-
Tudo é em função da fábula, e la é o coração do espectáculo rados, acordos de natureza comercial ou política, podem ser dad os
teatral. Porque de entre o que se desenrola entre os homens, es tes como se representassem simplesmente um co stume que re ina nesses
recebem tudo o que pod e se r d iscutível, criticável, mud ável. Mesmo lugares. Assim representado, o processo único e p articular toma um
que o homem particular que o actor apresenta deva finalmente ade - aspecto surpreendente porque aparece co mo qu alquer coi sa de ge-
quar-se a mais do que apenas aq uilo que se passa, o seu motivo é ral , tom ado usual. O s im p les facto de se interrogar se e ste processo
ainda e ssen cialmente que o acontecimento retenha tanto mais a o u um dos se us elementos deveria e fec tivamente tornar-se co stume ,
atenção do que aquilo que afecta um homem em particular. O grande distancia o próprio processo. O e stilo po éti co das crónicas hi stóri-
em p re nd imento do teatro é a fábula, essa composição global de cas pode ser estudado nas barracas de feira chamadas « panora mas».
todos os processos gestuais, contendo as informaçõ es e os impulso s Di stanciar s ig n ific a também tomar ilu stre, pode-se simplesmente
que deverão daí em diante constituir o prazer do público. representar alguns processos como proce ssos ilustres, como se fo s-
se m conhec idos de tod a a ge nte há lon ga data, incluindo os seu s
67 pormenores e como se no s esforç ássemos para não derrogar part e
A fim de que o público não seja sobretudo convidado a atirar- alguma à tradição . Resumindo: muitas maneiras de narrar são pen -
-se para a fábula como para dentro de um rio, para se deixar levar in- sáve is, umas sã o conhecidas, as outras es tão ainda por inventar.
diferentemente ali ou acolá, é preci so que os diversos acontecimen-
tos sej am en cadeados de tal maneira qu e os nós chamem a atenção. (A D E N DA)
Os acontecimentos não de vem seg uir-se imperceptivelmente, pel o
contrário, é pr eciso qu e se possam interpor o s comentários. (Se A f ábula não co rres po nde ape nas a um desenrolar de aconteci -
fos se pre ci samente o ca rac ter obscuro das relações de causa lidade mentos retirados da vida co m um dos homens, tal como se pud essem
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ter acontecido na realidade. São pro cedimentos ajustados no s quai s Naturalmente que é preci so começar por e stabel ec er e m que
se exprimem as ide ias do inventor da fábula sobre essa me sma vida. condiçõ es se desenrola es ta história de amor, qu ai s são as suas rela-
Assim , as personagens não são sim plesme nte reproduções de pes- ções com o conjunto da fábula, qual é o se u sig nificado para a ideia
soas viva s, elas são ajustadas e modeladas em função da s idei as . principal. Fausto desviou-se dos esforços «s upe riores», abstractos,
O saber que os actores vão buscar à su a experiência e ao s livros «puramente espirituai s» empreendidos para ch eg ar ao prazer de vi-
está frequentemente em contradição com o s procedimentos e as per- ver e vira-se agora para as experiências terrestres «puramen te sen-
so na ge ns aj us tadas, e é nece ssário que eles registem e con servem suais» . Em conseqü ência, as suas relações eom Margarida tornam-
esta contradição na sua representação. Precisam, simultaneamente, -se fatai s, quer di zer que ele entra em conflito com Margarida , a sua
de se inspirar na realidade e na obra de ficção , porque à se me lha nça união transforma- se em div órcio, o prazer torna-se dor. O co nll ito
do que acontece no trabalho dos es critores teatrai s, a realidad e deve vai desembocar na destruição total da personagem fem inina, e isso
aparecer na obra com a sua rique za e a sua actualidade, a fim de que afecta gravemente Fausto . Todavia, este conflito nã o pode ser repre-
sej a libertada e possa ser apercebido o que a obra apresenta de par- sentado com rigor sen ão através de um outro conflito, muito maior,
ticular ou de universal. que domina toda a obra, nas suas duas partes. Fausto escapo u à con-
O estudo do papel é, ao me smo tempo, um estudo ela fábula; tradição dolorosa entre as experiências «puramente esp irituais» e os
mai s exactamente, ele será prim eiro uma etapa essencial da fábula ape tites «puramente sensuais » não satisfeitos , insa ci áveis, e isso
(O qu e é que acontece a este homem? Como é que ele reage ? Que graças à ajuda do diabo . Na esfera «puramente sens ua l» (a história
faz ? Qu e opiniões encontra? Etc.). de amor) , Fausto choca contra o mundo circundant e repre sentado
Para tanto , é preciso que o actor mobilize o se u conhecimento por Margarida e é -lhe necessário de struí-la para se salvar. A solução
do mundo e dos homens e, além di sso, que coloque as suas qu estões da contradição principal é dada no final da peça no se u todo e só en-
como um dialéctico (algumas quest õe s só são colocadas pel os dia- tão esclarece o lo cal e o significado das con trad ições secundárias.
lécticos). É preci so qu e Fausto ab andone a sua atitude parasit ária e apática de
Exemplo: um actor tem que representar Fausto. A relaçã o amo- puro consumidor. No trab alho produtivo. para benefício da humani-
rosa de Fau sto com Margarida tem um desenlace fatal. A qu e st ão dade , unem-se a acção es pi ritual e a acção se ns ual e na produção da
coloca- se: teria sido diferente se Fausto tivesse casado com M ar ga - vida nasce a ale gria de vive r.
rid a? Usualmente, esta pergunta não seria feita. Ela surge-n os como Regre ssando à no ssa história de amor, podemos ve r que um c a-
demasiado banal , baixa, pequeno-burguesa. Fausto é um g énio , um sa me nto, por mai s burgu ês qu e fo sse , impossível para o gé n io, con-
espírito superior que aspira ao infinito; como ousar se q ue r co loc ar a trário à sua carreira. teria sido, apesar de tudo. num sent ido relativo.
qu estão: porque é que ele não se casa? Mas as pessoas s im p les fa- a melhor solução vi st o se r a mais produtiva , po r isso constituiria
ze m esta pergunta. Só isso deve se r o bastante para incitar o ac tor a a união oportuna no se io da qual a mulher amada teria podido de-
colocá-Ia também. E depois de ter reflectido um pouco sobre ela, o se nvo lver-se em vez de ser destruída. Então , Fausto dificilmente
act or notará que esta pergunta é uma pergunta muito ne ce ssária, permaneceria Fausto, é um facto, ficaria prisioneiro (como muitas
muito frutuosa . vezes acontece) da m edi ocridade, etc.
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o actor qu e coloca valenteme nte a pergunta da s pessoas simples e saltos, ev itando -se aquela ban al idealização (uma pal avra e nc ade ia
poderá fazer deste não cas ame nto uma fase delimitad a do de senvol- a seg u inte) e este ajustamento de fragment os nã o indep endentes,
vim ento de Fausto, enqu anto de outra maneira, com o é co stume, puramente utilitári os, tendo e m v ista um desenlace qu e acalma tudo.
contribuirá apenas para mostrar que so bre esta terra quem qu er qu e
Extra ídos da G esammeltc lI' er k c 15 . Ber tolt Breclu . Frankfurt . 1967 . © Suhrkam p Verlag.
entenda elevar-se é infalivelmente o brigado a fa zer so fre r; qu e o
trágico da v id a nasce inelutavelmente do facto de qu e a alegria e o
desenvolvimento se pagam; em resumo, a máxima mais bárbara e
mai s pequeno-burgu esa : que ali onde se aplaina, vo am as aparas.
As repres entaçõ es do teatro burguês tendem sempre para a ca-
muflagem d as contradições, para a sim ulaç ão da harmoni a, para a
idealização. O s estados das cois as s ão representados com o se não pu-
des sem ab solutamente ser de outra maneira; os caracteres como indi-
vidu alidades no sentido etimológico do termo, indivis íveis por natu-
reza , de uma só «assentada», como afirmando-se nas situações mais
diversas e , para di zer verd ade, existindo tam bém fora de qu alquer si-
tuação. Ali onde existe de senvolvimento, ele é constant e e linear, não
avança por saltos e são sempre os desenvolvimentos no interior de um
quadro bem determinado, qu e nun ca se pode fazer rebent ar.
Isto não corresponde à realidade e é pre ci so , portanto, que um
teatro realista o abandone.
Um emprego autêntico , profundo, interventivo , dos efeitos de
di stanciamento implica que a soc ied ade co ns ide re o se u est ado
como histórico e melhorável. Os e fe itos de distan ciamento aut ênti-
cos têm um carácter comba tivo .
Que as cenas sej a m represcntadas, primeiro s im p lesm e nte ,
com a e xpe r iência que vem da vida, na orde m da sua s uc essão, em-
bora sem demasiadas preocupações para com as seguintes ou me smo
para com o se ntido ge ra l da peça , reveste-se da mai or import ân cia
para o aju st am ento de uma fábula aut êntica. Com efeito, esta de -
senv ol ve- se e ntão de mod o contraditóri o , cada cen a cons e rva o se u
sentido parti cular, produz (e esgota) uma multiplicidade de ideias
e, no conjunto, a fábula de senvolv e-se aut enticamente , com desvios
493

ÍNDIC E

NOTA PRÉ VIA 9

1 - PLATÃO: A R epública (entre 389 e 370 a.C c) 11


I . Narr ativa e teatro.. .................. ............. ............. .............. I1
2. Sociologia da im itação...... ......... ....... ......... ........... ....... ... 13

2 - AR ISTÓTELES: Poética (cerca de 330 a .Ci) 19


I. A imi tação ........ ....... ........................................................ 20
2. A tragé di a......................... ....... ...... .................................. 22
3. A fáb ula 24
4 . Es tru turas da fábu la 26
5. O terror e a piedade.... ..... ..... ........ ...... ......... ..... .......... .... . 28

3 - BHARATA: Tra tado do Teatro (cerca da época de J. Cristo) . 31


A criação do teatro ..... ...................... ............. ..... ....... .......... 32

4 - HORÁCIO: Arte Poética (entre 23 e 13 a.C ,') 37


Temática das idades 38

5 - TE RTULIANO : Sobre os espectáculos (séc. lI) 39


I. Origem d iabó lica do teatro 40
2. Seduzi r pa ra o peca do ..................................................... 42
3. Macaquearo Criador 44
494 495

6 - SANTO AGOSTINHO: Co nfiss ôcs (sé c. IV ) . 45 15 - MAIRET: Prefáci o de S ilvanira ( 163 1) 87


O prazer do trágico . 45 I . Os géneros do teatro 88
2. As três unidades 90
7 - Z EA M I: O espelho da por e outras obras (séc . XIV) . 48
I. A «flo r» do teatro . 48 16 - HEDELIN D' AUBIGNAC: A prática do teat ro ( 1657) 93
2. A teoria do s se te décimo s . 49 I. A ad aptação ao público..... 94
3. Como atingir o prodígio . 51 2. A verosimilhança 97
4. A exi stência e o nada . 53 3. A representação do lu gar 99
5. A escada dos nove degrau s . 4. O tempo teatral .......... ............................................ ....... 103
53
5 . Acção e discurso 104
8 - JODELLE: L'Eug êne (155 2 ) .. 58
17 - CORNEILLE: Di scursos ( 1660) 106
Para um a comé dia modern a . 58
I. Verosimilhança e necessidade 106
9 - G RÉ V IN : Th éâtre ( 156 1) . 61 2. A un idade de acção 112
I. Os perigos da co méd ia . 61 3. A unidade de lugar 113
2. Os coros .. 63 18 - MOLIERE: A Crítica à Es co la de Mulheres (1663) I 17
10 - Jean de La TAILLE: D e L' art de la Tragédi e ( 1572) .. 65 O tom da coméd ia 118
1. Os temas da s tragédias . 65 19 - DRYDEN: Ensaio so bre a poesia dram áti ca (1668 ) 121
2. A s regras do teatro . 66 Diálogo entre du as dramaturgias 121
11 - SlDNEY: A Defe sa da poe sia (1595) .. 68 20 - RACINE: Bérénice (1671 ) 128
O objectivo da comédia .. 69 Os motores da trag édia 128

12 - SHAKESPEARE: Henry V ( 159 8) e Hamlet (1600) . 71 2 1 - BOILEAU: Arte poéti ca (1674) 129
I. A ilu são teatral. . 71 I. A e moção trági ca 130
2. Conselhos aos actores .. 77 2. Para uma comédia arist ocrática 131

13 - LOPE DE VEGA : A arte nova de compo r pe ças neste 22 - OU BOS: Reflex ões críticas sobre a poesia c

tempo ( 1609) .. so bre a pintura ( 17 19) 132


79
I. As paixões «supe rfic ia is » 133
A art e de co m por co ntra as regras da arte . 79
2. Acção e narrativa 134
14 - OGIER: Prefácio ao leitor ( 162 8) .. 84 3 . A poesia do es tilo 135
I. O gosto das nações .. 84 '4 . A pompa trágica 137
2 . Sobre a tragicomédia . 86 5 . Não há ilusão no teatro 13l:\
496 497

23 - LA MOTIE: Di scurso pela ocasião d e R omulus (1722 ) . 141 1. O interesse da tragédia pop ular . 199
Sobre o es pectác ulo . 141 2. O drama e a ar te . 20 1
24 - RICCOBONI : A arte de representar ( 1728) . 143 3 1 - JOHNSON : Pref á cio a Shakespe a re (\ 765) . 205
A sinceridade do act or . 144 I. O gén ero sha kespea riano . 206
25 - VOLTAIRE: Brutus (1730) e outras obras ..•..: . 145 2. A ficção . 207
1. Espectáculo e conveniência .. 145 32 - BEAUMARCH AIS: Ensaio so bre o g énero dram áti co
2. O amor na tra gédia .. 149 2 11
sé rio ( 176 7) ..
3. A m istu ra do s gé neros . 151 2 11
A modernidad e do d rama ..
26 - DID EROT: Conversas sobre o filh o natural ( 1757) e 2 16
33 - LESSING: A dramat urgi a de Hamburg o ( 1767- 1768 ) ..
outras obras . 153
1. A interpret ação das regras .. 216
I. Texto, gesto e sensibilidade . 153
2. Liberdade do criado r . 218
2. O género sério . 158
3. O género mi sto . 220
3. Teoria das condições . 163
4 . A quarta parede .. 165 34 - MERCIER: Sobre o teatro (1773) 223
5. Teatro e poesia .. 168 I. O objectivo da arte dramática .. 223
6. A psicologia do actor .. L71 2. O drama e a co média .. 225
7. O ofício de ac to r . 177 3. Novos temas dramá ticos . 227
8. Natureza e gé nio . 18 1 229
35 - SCHILLER: Os Salteadores ( 178 1) c outras obras ..
27 - HUM E: D issertaçã o sob re a tragédia (1757) . 185 I . O teat ro irrepresentável . 229
O sentime nto do belo .. 185 2. O ac to r so nâ m bulo .. 232
28 - ROUSSEAU: Ca rta ao Senhor d 'A lem bert sob re os 3. Prazer liberal e ar tes co moventes .. 234
espect áculos ( 1758) .. 189 4 . Sobre o patéti co . 23 7
I. O efe ito de distanciamento .. 189 5. A tragéd ia e a coméd ia . 239
2. Teatro e sociedade .. 190 36 - GO ETH E: Tratado so bre a poesia épica e (f poesia
3. O teatro do Po vo . 192 dram áti co ( 17l)7) . 242
29 - NOVERRE: Cartas sobre a dan ça (1760) .. 194 Os moti vos, os mundos c os meios .. 242
A coordenação das artes teatrai s .. 194
37 - HUMBOLDT: Do estado actual da cena trágico
30 - MARMONTEL: Poética fr an cesa (1763) e francesa (1800 ) .. 246
outras obras .. 199 A natureza , a arte e os signos .. 246
499
498

38 - LED O UX : A arquitec tura co nsiderada em relação co m 45 - V IG NY: Carta a Lord ** * ( 1829) 3 13


a arte . os costumes e a leg isla ç ão ( 1804) . 25 1 Sobre uma certa cortesia d ramáti ca 3 14
Arqui tec tura teatral e se ns ib ilidade do púb lico . 252 46 - D UMAS: A ntôni o (\ 831 ) 32 1
39 - SCHLEGEL: C urso de literatura dramáti ca ( 1808) . 259 O d ra ma no mundo m od erno 321
1. Definição do teatro . 259 47 - H EG EL: Es tét ica (1832) 323
2. Da Poéti ca à Estéti ca . 262 1. N atu re za do drama 324
3. A un id ade de acção . 263 2. A lei da un idade 328
4. Uma un id ad e orgâ nica . 266 3. A d icção dra mática 330
5. O s antigos e os româ nticos . 267 4. A q uestão do e nvo lv imento 333
40 - CONS TANT: Alg umas reflexões so bre a tragédia de 5. O con tli to trágico 336
Walls tein e so bre o teatro alemão e outras obras ( 1809) .. 268 6. A co m édia 339
I . Paixões e individua lida des . 268 7. O gé nero interm édio 340
2. O n úmero de person agen s .. 27 1 48 - WA GNER: A obra de arte do f ut uro (\850) 342
3. Teat ro e po lít ica . 272 O Drama e a un ião das artes 343
4 . A d imensão social . 277
49 - N IETZ SC H E : A origem da tragédia ( 187 1) 346
41 - Mad am e de Staêl: Da Alemanha ( 18 13) . 282
O Coro c o he ró i 347
Relatividade das dr am atu rgias . 282
50 - ZO LA: O na tura lism o no tea tro ( 188 1) 35 1
42 - MA NZONI : Carta ao Sr. C. sobre a unidade de tempo
O meio e a per son agem 352
e lugar na tragéd ia (1823) . 285
1. O siste ma histórico . 286 5 1 - ST R IND BERG : Prefác io a M en ina J úlio (1888) 355
2. As regras levam ao roma nesco .. 287 A pe rsonagem e a nov a ps icolog ia . 356

43 - STEN D HAL: Racine e Sliakcspcarc (1823) . 289 52 - M A ETER LI NK : O teso uro d os hu mildes ( 1896) 358
1. Os instantes de ilusão per fei ta . 290 O trág ico q uotidiano 358
2. O que é o romanticisrno . 294 53 - JAR RY: Da in utilidade do teatro para o teatro ( 189 6) ... 36 2
3. Prop ostas para um a nova d ram aturgia . 295 Cená rio e jogo abs tracto 362
44 - HUGO : P ref ácio de Cromwcll ( 1827 ) . 300 54 - A NTO INE: COI/I'asa sobre a encenaçã o ( 1903) 366
I. As três idades da civ ilização . 300 As ta re fas do e nce nador natu ral ist a 367
2. Libe rdade e natu reza . 306
3. A cor local . 309 55 - STAN ISLAVSK I: A forma ção do a cto t ( 1926) 370
4. Um teat ro lot ai . 3 11 I . V iver o pa pel .... .......... ........... 37 1
500 501

2. O se m ág ico 375 64 - SC HLE MMER: O ba ilado m ec ânico (1927) 436


3. A memória afectiva 379 Plás tica e abs tracç ão 43 7
4. As acçõe s físicas 382 65 - PISC ATO R : O tea tro po lítico ( 1929) 440
56 - CR AIG : Sobre a arte do teatro (tex tos de 1905 e 1907) .. 386 As g ra ndes linhas de um a d ramaturg ia soc iológica 440
I. O en cen ador, artista do teatro futuro 386
66 - ARTAU D: O teatro e o seu du p lo ( 1938) 44 7
2. O actor e a Super-Marione ta ( 1907) :.. ... ... 39 1
I. O teatro c a cultura 447
57 - MEYER HOLD : Escritos sobre o tea tro (textos de 1907 , 2 . O teat ro e a alq uimia 450
I91 2 e1 922 ) 395 3. Sobre o teatro de Ba li 452
I. O teatro e a convenção 396 4 . Te at ro o rie ntal e tea tro ociden ta l .... ..... ....... ............ .... . 455
2. O actor e o cab otino '" 400
67 - GASTON BATY: O encenador (1944) 46 1
3. O actor e a biomecâni ca ( 1922) 403
O que deve ser a ence nação 46 1
58 - MARINETTI: Manifesto dos autores dra má ticos
68 - BREC HT: Escritos sobre o teatro (tex tos de 1930 a 195 4 ). 46 5
futuris tas ( 191 I ) '" 408
I - Notas sobre Mahagonny ( 1930). Teatro de divertimento
Para um teatro futurista 409
ou te atro de apre nd izagem? 466
59 - CO PE AU: Registos / (tex tos de 191 7 a 1930) 41 2 I. O teatro é pico. ... 467
O actor e o palco nu 4 12 2. Dois esq uemas 470
2 - A Compra do Cobre. Se g unda Noite ( 1938).
60 - O expressionismo. KORNFELD : O homem espiritual e o
A ce na da rua. 47 1
homem psico lógico (19 18) - G O LL: O superdrama (1919) 415
3 - A Compra do Cobre . Se gu nda Noite (1939 -40) .
I. O hom em esp iritua l e o hom em psicol ógico 4 16
Des truição da ilusão e da ide ntificação 4 76
2. O superdrarna 41 8
4 - Pequeno Organon para o Tea tro (1948) e Adendo ao
6 1 - TAI ROV: Princesa Bra mbilla , conferência de Peq uen o Organon ( 1954 ).
3 / de Maio de 1920 4 21 A fá bula 48 3
Encen ação e tex to 422

62 - W IT K IEW ICZ: Intro du ção à teoria da forma


pu ra ( 1920) 4 26
A for ma pura no tea tro 426

63 - APPIA: A obra de ar fe viva (192 1) 429


I. Os e lementos 430
2. O espaço vivo 433

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