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Lf ~l(\ç rrD e VliX) - rtO( se::; Poderíamos

sinônimas,
substituir
(Existirão
a palavra criaçiio
realmente
por outras,
sinônil~lOs. isto é. palavras
quase
que
tenham exatamente o_l1lcsmo significado'!) Se ~ubstituíssemos a
. Ir L~ C'f' ~~
(
t~~
. \ YC7'-' v-l_ ~ \. \
palavra criaçiio pela palavra ill\·cllçiio. por exemplo. j,Í seria ou-
tra teoria da literatura que estaria por detr,ís. "A i;1venção do
8 texto litenírio." Invenção é lambém a criaç;)o de lima coisa no-
va. mas não de modo divino e al1soluto. Inventar é usar o en-
A CRIAÇÃO genho humano. é interferir localizada.mente no conjunto dos
DO TEXTO LITERÁRIO artefatos de que o homem dispüe para tornar sua vida mais rica
e mais interessante. Dentro de um sistema de Verdade. ifl-
VCIIÇÜO tem até algo de pejorativo. Diz-se de uma mentira: isso é
uma invenção. Daí havcr algo de provocador n() uso da palavra
illFCIIÇÜO para designar o fazer artísticQ. O e~erilor que diz "eu
o título que me propuscram. e que aceitei. é extremamente invento" recusa as verdades ab~olutas e os I'alo"res e~l<Íveis.
ambicioso. Quercr sintetizar. numa breve comunicação, as ressalta sua habilidade mais do que SU<linspiração. O inVl:nlor
questões que esse título anuncia. seria urna pretcnsão ou uma in- não acredita necessariamente em Deus: Irah,lIll<I no mundo dos
genuidade. Fique. pois. desde logo claro que pretcndo apenas le- recursos humanos. Cham,lda de ill\·CflÇilo. a ohra de arte é com-
vantar aqui alguns pontos quc me parecem ftilldamentais. deixan- parável ;\ pülvora ou ao <I\·ião. ;\ceila-~e assim (Iue um,i in-
do (1 campo aberto para os dcpoimentos·dos escritores e as inter- venção também é circunscrita no templi: 01a ~er<Í suhstituída por
vençücs dos ouvintes que se seguirão 8S minhas colocações. outra. mais engenhosa. llIais llIoderna. Ess;\ é ln11,\ 1),11,1\'1';1 C<lra
., A criação do texto litenírio." Embora pareça bastante neutro, às vanguardas uo século XX. que ddendem o constantc prnduzir
cio novo como Ulll valor.
em sua generalidade. esse título j<Í implica uma determinada teoria
da literatura. !\ palavra criaçtlo supüc o tirar do nada, o tornar ex- Outra palavra quase sinllllim;1 das du,ls ;lIllL'riorcs é a p,lIana
istente aquilo que não existia antes. É urna palavra teológica. As- pmdllçiio. "A produç;)o do texto liler;íri(l." 1:,,;\ é uma pal;I\'1a
sim como Dcus criou o mundo a partir do Verbo. a~;sim o autor marcadamcnte materialista. Fm ccollollli;l. IJ/'IIdll('cllI é ;1 <:ri;u,:;)o
literário instauraria um munuo novo. nascido de sua vontade e de de bens e de serviços C<lP;lICS de suprir as Ilccessitl:ides m;llc.ri;lis
sua palavra. Para o leitor. esse mundo seria doado. com todas as do homcm. Produção implica quantidadc de o\ljC!OS c wlclivi-
suas maravilhosas novidades. como o jardim do Éden a Adão. A elade de produtores e consumidores. Não telll, portanto, qualquer
palavra criaçiiIJ, aplicada ao razcr artístico, pertcnce ao vocabulário conotação sobrenatural: é ainda mais tern:na do que a p,1I;I\'1'a ill-
uo idealismo romântico: presume que o artista não imita a na- vCJlçiio. E, das três p,llavras "qui apreselll<ld,IS COIllO p()ssí\Tis. l; <I

tureza. mas cria uma outra natureZ<1. gerada por um c,:.;cesso de que se liga ele nH)do mais homo!!êne(1 COIll a palavra (C.rlO, COIll-
car:íter divino c destinada a uma completude autúnoma. preendido este como objeto nl<ltcri;d l' COIIClC[O. Inserido IllIlll
Entretanto, o título proposto aeopla criaçt70 a outra palavra processo de produç;10. o lc.\!o fica cquil';lr,ldo ,I um produto dI)
que aponta para outras teorias. mais recentes. I~ a palavra texto. mundo industrial. como um guarda-chuva ou uma m,íquinil dc
costura.
Ao introduzir-se a palavra (exlO. remete-se para a matcrialidadc
du escrito, e atenua-se o incf<Ívcl da palavra criaçt7o, Forma-se as- Outras duas palanas poderi;lm ainda substituir. lH:sse univer-
sim um título de compromisso. de conciliação entre o "divino" da so vocabular. ,IS três anteriores: scri;lIn as pal,lvr;ls rt'{JU',I'('II(({(:C;Ol'
!!Cnese e o "humano. demasiadamentc hUlTlano" do objeto criado. expresstlIJ. Mas. para uS<Í-las. dcvcríamos rclirar ,I 1,;1I,IH<I (CX(O e
Como. porém. as alianças contaminam. o pniprio texto. aqui re- deixar ,lpenas ";] representaç:io liter;:ri;l" ou "a cxpress;lo lill'-
sultante de uma criação. torna-se um objeto algo miraculoso, co- r,íria", E esse fato ilOS mostra que j<Í eSI;lIlIO$ (:1\1outras C<lte,l!ori;ls
discursivas e enl outr,lS \'isadas ll'(íric;ls.
mo uma pomba surgida dc uma cartola.

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Por que fica impróprio "a representação do texto literário" ou \_;.':,\,\~»),\j,. ~) \h *


"a expressão do texto literáriÇ>"? Porque representação e ex- \)\)J
. .c,,!,f\~G\\
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pressão, diferentemente das três palavras previamente sugeridas,
;~. A literatura nasce de uma dupla fa!t<l: uma falIa sentida no
remetem para algo anterior ao texto, algo de preexistente; um
mundo (no caso da representação), um indivíduo (no caso da ex- mundo, que se pretende suprir pela linguagem. ela própria senlid;l
pressão). Representação é a palavra mais antiga em nossa teoria ef!l seguida com falta,
literária; é a mimese de Aristóteles. Supõe uma visão do real e /, A primeira falta é experimentada por todos, no mundo físico a
uma determinada imitação que, mesmo sendo uma transfor- ; que chamamos real. O mundo em que vivenlos. o rilllndo em qUL'
mação, tem o mundo como ponto lIe partilla. Expressão pertence tropeçamos diariamente. não é satisfatôrio, FSS;l 0 uma conslal;lç:io
ao vocabulário da psicologia e foi valorizada pelo romantismo tar- a que se chega bem cedo. na existência. ;\0 nascermos. o primeiro
dio. que privilegia, no ato de escrever. o sujeito emissor, com sua esforço para respirar e o choro emitido cm Cllnseqii0ncia j,i el'idell-
personalidade e seus afetos. ciam a falta do conforto 1I0 útero materno, Nos dias e meses
;\mbas as palavTas estão atualmente postas sob suspeita, na seguintes o bebê percebe (reclamando) o hlo de que a m,je 11;10 es-
teoria literária; porque a filosofia contempor<1nea duvida da possi- tá sempre presente, como ele o desejaria. ou de quc seu corpo mio
bilillade de se captar o mundo como uma totalidade representável está em permamellle bem-estar. Esse descontenlamento plimiíril1
e a lingüística questiona a anterioridade da idéia à palavra, a pri- que nos traz o estar no l11undo só faz acentuar-se pela vida ;lIora. ;'1

mazia do sentido sobre o dito. medida que à simples sensação da falta sc acrcseen[;lm as espLCU-
E agora, como ficamos? O que faz o escritor? Cria? Inventa? " lações racionais sobre como as coisas deveriam ser c n,IO S,IO.
Produz? Representa? Exprime? A respeito de cada um desses "~'o Quando digo qúe o mtindo não é satisfalório. pensa-se logo
verbos manifestei urna margem de reserV<l. que é característica de (concordando) no mundo atual. lIesde as amcaças de guerra nu-
um certo mal-estar da teoria- literária alual. pouco propensa às clear até os problemas gritantes de nossa realidadc brasileira, tvlas
definições categóricas e totalizantes. mais desconfiada dc scus seria ilusório pensar que nos c<lbe o doloroso privilégio de vivcr
pressupostos filosóficos e mais cética a respeito de suas possibili- um real insatisfatório. Todos os momentos da história do homelll
d<ldes "científicas". foram vividos como insatisfal<Írios ou mcsmo insuporl<íl'eis,
Esse mal-estar terminológico não deve, entretanto, desenco- Flaubert gostava de lembrar S<lO Policarpo, um rwírtir do século 11
rajar-nos. As palavras lIevcl11 ser revisitadas. reexaminadas e ex- de nossa era, que dizia: "tvleu Deus. em que século me lileslL's
ploradas. elas nos ajudam na aproximação 1I0 saber que buscamos nascer!", Dezessete séculos mais ta rde. o escri lor Ira ncês rc lom;l-
na medida mcsma em que conhecemos seus pressupostos e seus va essas palavras como suas, Cem anos lIepois. eu comcntci com
limites. E essa foi minha intenção ao examiná-Ias aqui, de modo Osrnan Lins essa citação de Policlrpo/Flauberl. O escritor bra-
forçosamente sumário, Q,i~x~o. invenção. produçã(?2._ rep'!:esen- sileiro concordou C()~llela. élcrcsccntando por SU;I conla: "Em quc
~~5~~ .~?'PJe~Jiio-:--q u ai q uc ~'~~sKU2~I~~'~rjã JiPJ~iilli!.SLd~s g,?s- século e em qlle IlIgl/r me fizestes nélscer!", Podemos arrematar
t:rl/as. com as qUals se tenta captar o fazer lIterárIO, pode ser por com 130rges em sua fina ironia. dizendo ;1 rcspcito de ;d~uL;m:
nós agora retomada, contanto que explicitel110s o modo como as "Coube-lhe, como a todos. maus tcmpos p;lra l'i\Tr",
estamos retomando. O que torna o real de nosso momento histórico mais agulla-
A literatura, felizmente. continua existindo, apesar de não mente insatisfatório éa maior complexidade de dados de quc dis-
acreditarmos mais na possibilidade de a linguagem representar ou pomos, aumentando nossa capacidade lIe conhecer c. paradoxal-
expressar um real prévio, criar, inventar ou produzir um objeto mente, impedindo-nos de chegar a uma vis,lo de conjunto, O que
que seja auto-suficiente ou. pelo contrário. reabsorvido e utilizado há, e já houve em doses. mais confortadoras para o homem. S;IO
pelo real concreto, A literatura parte d~l)}.u~ce_ill....9!L~retende di- modos de reagir à insatisfação que o mundo nos causa: pela re-
zer. falha sempre ao-JízTiu--:-iiúls--âüTiliwr lIiz outra cOlSã,"ÕeSVen- ligião. aceitando os desígnios da providência c remctendo () mun-.
-J;ilU]l ~)~nUõ'maIsr~alllo
.-- o

- que ;ql'ieJe qa-eprete;:;di~·di;.-er.


._----~..._- ._--" _. -~
'_.
---- ~ do sem falhas para o além-morte: pela aç;lo social. desde aquelas

102 lO3
~... ,;
I'

integradas num vasto projeto político até as isoladas, _que se apli-


Inúmeros ~ão os escritores quc defincm a literatura a partir da
cam a fazer pequenos consertos no rcal: pcla imaginação, pelo faz- faltaJFlaubcrlf; "A vida é 1,1u horrível que st'> seyod~ ..?up(~rt<í-Ia
dc-conta,_'lL!.~_r~os compensa~ po~_alg.un~ ~l~f!1<::IJtos~ºá iiisütis- evitan~lo-a; e p(xlemos f<l7:~-lo'quando se vive ii~mundo da arlc".
façiio causada peiõrc~t1. ' " Fernando Pess'o1: "/\ literatUJ:;I,~Õnl~) loda ;;rte:-Cllma Cllnfiss,10
Det~nhiliiló:il'l;s n'esse lÍitimo rccurso. o da imaginaçãà, A de que a vida não basta", No cntanto, nl'nhum d()s d(jis es'crevcu
imaginaç,10 como fuga ou compcnsaç<1o. como prêmio de pn!~er, é ul11a obra que se possa C<lracterizar conlll uma fuga para um Illun-
cxcrciUdct jj(JI' todós os st:res hum;lIlos, /\Iguns, eriirelanto, exte- do mais alegrc do que o rc'll. E !3(lI'ges) l'llj;IS Lihulas podem parc-
riorizam sua imaginação, inscrcvem-se em objetos expostos à per- cer, ü primeinL visla. como desvincul"das do rcal. ,Irirm<t: "A lite-
ccpção de outras pessoas, Esse é o modo artístico de exercer a ratura nasce da inrclicidade. A felicidadc n;locxi 'e nada, t\""m'Mi-
imaginaç,10 c de compensar o que falta no mundo. Nãu nos impor- CiUal e queC~~Ji?Xljj~~ã'"filt'(jlI;~í~lcL~~Ea':" Essa ~~"
ta, por enquanto, o valor dessc razer. isto é, se o objeto produzido ein-'(jlIé'sC; transfo'lli'í7í- a infelicidade é qll'e pode Cllmpensar a falta,
realiza ou n<1o o objctivo de substituir um real insatisfatôrio. Ten- não pelo que ela cria ou representa. mas por scu modo dc ser. /\
tar dar uma forma concrcla ao imaginado é. de qualquer modo, isso voitnremos mais adianlc,
uma atividadc dc tipo artístico.
De todas as prMicas de que podcmos valer-nos para refazer o , . Invcntar um outro Illllildo mais plenl! ou e\'illenci,lr as lacullas !!/"-
, elesse em que vivcmos s,10 duas mancir,ls dc rcclamar da l'all,1, •
rcal. COI11 a ajuda da imaginação. a quc aqui nos ocupa é a Mas aí chcgamos ao grande p'lrado.\o quc funda o fazer lilcr<Írio,
literária. isto é, a rcconstrução do mundo pelas palavras. 'Nas A literatura cmpreendc suprir;1 falIa por um sistcma quc funciona
histórias in\'cnladas podemos, eventlwlmente, encontrar um mun- em falta, em falso: cssc sisiCnia é <l lingu'lgclll. Us signos verbais
do preferível àquele em que vivemos: el11 certos poemas podemos \ 1-·· s<1o substitutos das coisas.scu uso rcpousa numa nler;1 cOJl\'cnção
Clll.:ontrar os dados do rcal harmonizados dc modo mais satis- I '

fatôrio, 1\las dizer que a ohra liteníria compensa assim, positiva- sIm. dIZer as cOisas e 'aceitar pcrdc-Ias, dIstanCIa-bis c alc Illcsmo
mentc. as falhas do real kvar-nos-ia a uma vis<1o idílica da literatu-
anulá-Ias, /\ linguagcm ni'io podc subslituir o Illundo, ncm ao
ra: supor quc todas as n,llTati\'as e todos os poemas apresentam mcnos represenl<í-Io ,(,li
d.c cor.rcspondência: I'ielmenle, l'mle
c~)isa ser;í apenas cv(icá~li),
.represcnlad;l ,por tal aludir
si~no, a AS_/'
ele
um mundo mais belo. mais prazeroso do que o mundo real. A li- através ele um pacto que implica a perda do rc;lI concreto,
teratura seria cntão aquele famoso "sorriso da sociedade", e o es- \ A lingu,lgem tem uma funçiio rdercnciaJ c uma prclenstlO
critor uma incorrigívd Poliana ou UIlI inofensivo sonhador. ./ , represcntaliv,l. Entrcl'lnl(). o IllUllLio l'Ii"Lil! pcl<l linguagcm nuncl
As obras estão aí para desmenti-Io. Que dizer daquelas narra- esl<Í tolalmcntc ,ldcquado ao rc,lI, Narr<lr uma histúria, Ill_esnll'.
tivas que nos mostram Urll mundo ainda mais terrível do que esse.
q 1~1~'U:.sl~~I,~i,l:.ll)"I7çúÜ:Y]íiÚ""h~_J2U;~~· pessoas
j,í t<1o insatisfatório. quc nos cerca? E daqueles poemas que mani- nunca contam o Illcsmo fal,o da mesnlil forma: a simples cscolha
fcstam urna dor ou um pavor ainda maiores do que os quotidiana- dos pnrmclllires.a sc.:rcm n,lITados, a (lrdcn,lç,lo dos fatos e o ,in-
mente nos assaltam? E csse é o modo de ser histórico da literatura '\l

!
guio de quc eles si'io cllcar'ldos. (udo isso l'Iia a possibilidade dc
co~lp()r'inca'.-'~:~~-J.-:.'-ll-'a-~-(~-_~~~~-,S-)_ COE=~e:r~ mil e uma hislúrias. das quais Ilcnhum;1 sl'r;í <I "rcal", Sempre cs-
-Ura. ncssàs-í."J, .H1SOl;gatlvas Te-se ,nnda l11alS claramente a IIlSatls- j lar,í faltando. na hisl(íria. <l1~(l dl! rc,lI: c 1ll1lil,IS vezcs se cs(ar;í
ração causada pela falta. Áccntuar o quc estú mal. torná-Io per- ~ criando. na histlÍria, algo quc f,lIla\',1 no rcal. Uu mclllllr. algo que,
ceptível e generalizado até o insuporlúvel. é ainda sugerir. indire- t
ao se produzir na hislúria. rcvel<l,uma illlpcrdo;ivl'i fal~l~1no real. ~
tamentc, o q uc devcria sc r e não é . Escrever um poem,l é l,imbcm. PCllJ tem:l, Ill<lgnlilcar um llU
,.•' .' ')-'
. ,.!. -, , Na sua .~
gênese
--'-~---e na sua realizaçüo. a literatura a. 011la-.--
sempre • v;írius aspectos dl! 1'C,i1.dcsprczando outros: l'cl,1 forma. rilmar as
" \:I 7'.\., '".I ~
pará'o 'ue
•. __falta,~-:;no mundo c...•••
~em __.•••..••
nós.
_ Ela emprcende dIzer as palavras como um convitc a rilmar o mundo, criar harmonias de f
, :.,' coisas como são. faltantes, ou como deveriam scr. completas, som c de sentido que n<1ose percehclll na linguagem correnle: ins-
" . ".

(
.
--
Trágica ou epifânica. negativa ou positiva, ela estéí sempre dizendo
:~

, ljue
" !__
1
: -
---

2 rea!JwQ.~~,_
=. ~.--~~-'''"''-._....... ....• '.......... -'- .... - - -
taurar o que Valéry define COIllO a "hcsilaç,10 cntre_ C! ,~onl e o SCIl-
tido", Na mônada do pocma. o mundo fica momentancamcilic

10·1 IO,'i
Ç)
( cifrado, a captação do particular insinuando que uma plenitude do , ou o poema e são suas linhas de força invisíveis. até o lavor minu-
. mundo é de~ejável e possível. ~Ti,aso do estilo, que consiste em colocar as r'alanas cm determina-
O hurizonte da literatura é sempre o real que se pretende re- da ordem, pesando como numa balança os sons c os ritmos. A for-
presentar-em sua dolorosa condiç;lo de falta ou reapresentar nu- ma buscada pelo escri.t9r'é"'não apenas essa forma sensívcl íiãõíã:
._ _._, ~ .- ,_ _ __ •• _'_. ,.:... __ - •• _ •• - __ .o~ ---_

ma proposta alternativa de cOlllplelude. Mas. por ser linguagem, a , Teriafiaade do Iscurso-maso aõ"mesrno f'enipo. a forma do sentido.
literatura nunca pode ser realista. O chamado realismo nada mais f , nõ arranjo )LIsta' as'rcfêrg-nci,is',-n7t-'cxriõr;lç~o-d;ls éOrl~(aç()~s. ;\
é do que um conjunto de efeitos, baseados el11 convenções que t 1~~irrCo'§là-~r.é~i~j~ ,f,': ~C_~l rdLi~)~.aIn<;!lt.e t ~,!ll]
ad ãj)7lra
variam historicamente. Céline assim explicava sua experiência, f 'colher,
I ,.""'''' no ••real,
'" veruades
.",,_. .__que
••...• não
>- '--', se vêem
~-, ,',-" •..0'" 'QP.S q~l_c
a ulho ..vistas,
'obri am a reformular o'prórrio real.-_
ele parcce torto pelo deito da rclraçao: entao, se qUIsermos que ' - Só poJ'êser-;;CritZ;j: nqucl~-(íue ~onhecc c aceita esse pcrcur-
ele pareça reto, lemos de quebr;í-lo antes de mergulhá-Io na água. so enviesado do real às palavras e das palavras ao real. aquele quc
aparentemente realIsta: ~uando se m=rgulh,~ um bast.ão na ágUa,)'
~ssa
------ ág,ua que
-~ obriga •.•••a~ entortar _ o real..•__rara que
.~ ~_ •.•• ele volte a
...-._••'_';.o~_. 1.'
sabe que seu caminho é o indireto. Dizia Clarice Lis[Jector:
ser Q.~ -realmente era, é a IlIlguagem li~!.ária. Já dizia
Words\Vorth: "A [Joesia é 'lm11\:;'/íiigüilgcj;]'JJStz;rcid;'::-Qualq uer Escrever é o modo de qucm tem a palavra como iSC1:a )ala ,-~t
linguagem dCfo)-niii-ã"SColsas:'e a ling~prénaaocscritor, para cando o quc
,",":;.-\ ••.~ •••.•
niio é pal'1\'fa..;.Um;1,-cz quc SCPL'SCOU
~_:..;.'~~,--,<"''''''.~~:;''-,.r-.':!,"-''~:'': ,
,I cl1lrclinh,l,
._
po-
dar verdade;ls coisas. assume decididamente seu estatuto de ar- dia-se com aliVIO Jogar a palavra lora, "',Ias,11 ccssa a analogia: a nao,
tifício e de ilusão. Daí a importância da forma e sua relação com a
Jalavra. ao ~ morder
.•.. -..;:..~""" -
a isca, incorporou-a,
",~~-,"--
.•..
~
verdade. na literatura.
Para se pensar essa relação da literatura com a verdade, vale a Saber que o escritor só atinge o "dcveras" como um "fingi-
pena lembrar os vari,riveis sentidos da palavra miro. Para os povos dor" (Fernando Pessoa), só alcança a verdade através de uma téc-
primitivos, o mito é a história verdadeira ror excelência; em nica, é ter consciência da gravidade de seu ofício: um fazer que
muitos desses [JOvos. são os relatos do quotidiano que são chama- !J.0 ~~s.~~e_(: n~.~,~~._~I.~~~~~SI,~~:
() que se COrl(lffm'f;~~larZJi'-
dos de "históri<JS falsas'o, Em nossa civilização. ao contrário, mito {) ma nau e um mero obJclO ornameHtal. l1]as Ulll objillLQ.!.lde o n:al
se dá a ver. O compromisso do CSCril(;r'C'õiíl~undo I~;;;r:)r
tomou oMais
tirosa. sentido
do que
de coisa
duas [Juramente
concepções imaginária
diferentes e.daportanto,
verdade. men-'
dois modos diferentes de buscá-l<í. Muito diverso de um devaneio
são {{V
,.1
fl't•... 'li;nc'(;;'~I:;;-misso com a forma: é o que Roland Barthes chamou
de "responsabilidade da forma",
fantasioso. o mito é um sistema simbólico rigorosamente forma- A simples denúncia, pela linguagcm. do que vai mal no mun-
lizado. O modo literária de buscar a verdade continua sendo o do, não tem a eficácia conscguida pelo trabalho da forma na lite-
modo simbólico do mito. ratura. Os artifícios do escritor revelam. ao rneslllo lempo. o quc
Contrariamente ao quc pensam os que têm uma concepção falta no mundo e aquilo que ncle- devcria eslar. FeI,1 força de SU,1
meramente instrulllental da linguagem~ a fonnQiizQÇào ejorati- articulação. contra[JoSta ú "desordem asi;ítica do mundo real"
vamcnte chamada de artifício),
~~-.._,.-c'.''''''. .---~'.'
n<llitera~n;~
" •..•. __ ,,~_~ __ ,_ •.•.
_
6:11í"ê;;ação'efirrí
_.__ ~_~_ •..• ~.-. . .
(Sorges). a obra literária dcmonstra que o hOlllcm é capaz de unl<l
ll~~~ uma ce;:.\.i!-'(er(~~:~~l~J}~o .....
L!~lr5)Elll~~..in~disp~nsá- harmonia maior. Mesmo as obras cuja tern,ílic;1 é a dcsordem c a

~.r.~~.0~:. 0l)g_~~h.~~~.
~~!J}5!JJ.l,!;1,S.~~ que.{(nº~)
A.:~~~!~j~!l~!!.~.5?,,~~':.r~~t~r
...p.JL.~I<Í.~q.u.s.h!.~i;!--ilguçada .valõ.~_~_s,~ --1~'1i\lhtt-
ahre .t~'i<~has]2'
~ laz:~_u.~,-i~!.an Q~.oY_9~.~11ge~;.~12~aJeorclenaç~:?~?..m,~~~.o. E
I
í
falta. quando possuem essa i'orça da forma. Clllnprclll uma funç;lo
positiva. Nietzsche dizia: "Todas ,IS cois<ts hoas siio fortes estimu-
lantes em favor da vida: é a!i,ís o caso dc t(ld(l~!I_
" ) por esse art1llcl0 da_toj'IDa que a literatura atinge uma verdade do ~
.'
}',
", ( rC~.:..,~:.rp'or -ii'ii~~giress;o verd,~~_<9iec li} -e~~ç~ií~~~iz~1:!Fiaube'iJ
'd~ia que nunc'a cõ fundo que escandaliza mas a formü:"-""':-:-::-:-:;;-'- rentemente uma ,lção alienante do real. I'ois. quando esse Illullllo
. ·~)\-tnra5aITll)uã,,-oTõril1a seexerce "em-iodos oÇ'níveis da obra
... ··'iteníria. desde as grandes estruturas. que sustentam a narrativa
justa.
invenlado
Por Ulll
ele outro
é se [Joderoso
erg.ue
lado, com arival edaquele
perturbadora
inventar que accil<ív,\\11OS
celtoa
arresenLHr quc lhe dü COIllOreal.
a for\11a
(1 illl'xistl'nte é só apaj
.,:'dl ).'}~
, ( : 106 107
,
.) j

-
Já Arist6teles, em sua teorra da_ representação poética, defendia
não a veracidade mas a verossimilhança: No
pli'a ato
e asdeintenções
recriação primitivas
da obra pela leitura, sãoa proposta
cio autor superadas, inicial
Entre se oam-l
di- . o

Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é. sim. o de represen-


tar o que podia acontecer, quer dizer. o que é possível segundo a que °
zer eos propósitos
ouvir, entrede oum emissor e eo as
escrever ler.expectativas de ummaiores
ocorrem coisas receptor:do )
verossimilhança e a necessidade. há um saber inconsciente circulando na linguagem. instiluiç,lo c ,.J
"/,\"): - o Representnr o que poderia ter acontecido é sugerir o que bem O
comum de autoresassim,
que importa, e leitores.
n<lo S,IO as intcnçCles mensageiras do ,.ff
>"lf

)'i; J .\) r.0~.~~~r"e.[e~êàrlJoSS-íbliLd·;ile~Er;,alfZã'd.~~do:e,a~.,s é autor (por melhores que sejam), e sim sua cap:lcidadc de imprimir
,- -nesse sentido que a htemtura pode ser e c rcvoluclOnana: por n obra aquele impulso poderoso e aquela ahcrtura estimulante
, () nHÍliTer'V'íva aú(opià: nãõ' cônio 'o irrí~lgini{rio"<illlP,(;s~Ívél~m'a~' co- que convide o leitor a prosseguir sua criação, Todavi;1. assim como
o T1TGõ~lsna-gíiiáverpósSível.0"-'-- ", ", .. ,. o autor nüo é o dono absoluto da obra, que o ullrapassa. o leilor
·l-'-!(;-t'iXricc~Lispector observava: "Escrever é tnntas vS?~~~r-
.,; §e do ue nunca existiu". Lembrm::::~e do que nuncn existiu é não também nüo pode ler a prelensão de ser sober;lIlO em sua leilur:l. /
Aleilara <5um aprendizado de alenç:lo. de sensihilidade e dc in- ,
'cOl';-formar·se C(;111() mUlldo e suas histlÍrias. não considerar o real
venção. A grande obra não pode ser lida de qualquer maneira, ao (
, como o inelut;ívet; é afirmar
que as coisas poderiam ter sido ou-
tras. poderão ser outras. A função revolucionária da literatura não
consiste em emitir mensagens revolucionárias, mas em levantar, cri tas ciquela~
bel-prazer linhas subjetividade
da pura de força quc dopodem
leilor.serporquc
moduladas c prolon;
nela estão ins-{
gadas .. mas nao anuladas.
por suas reordenações e invenções. uma dúvida radical sobre a fa- Na circulação entre a proposta que é a ohra e sua recepção
talidade do real. sobre o determinismo da histlÍria. É o que diz pe'lo leitor cria-se não propriamcnle um mundo paralelo, repre-
Miguel Torga. emadminíveis versos: "Canta, poeta. canta!! Violen- sentado, e sim uma vis:lo valorativa do mundo em que vivcmos,
ta o silêncio conformado.! Cega com outra luz a luz do din.! Desns- Assim, a obra liter:íria é construç;lo do rcal e convite reiler:Hlo ao
sossega o mundo sossegado.! Ensina a cada alma a sua rebeldia". seu ultrapassamento. Essa comprecnsão permitida pela obra
Assim COlllO a literaturn não representa fielmente o real, tam- !ileníria é diversa da compreensão racional. visada pelos discursos
b<5m não age diretamente
•....
sobre ele. ~:::;,.~-..-_.-._--.-
A falta p(~de.. ~~ ser -.-.~
di Ia..•..,...-
m'ls _.não
.•.•..-
", instrumcntais da eiênci;l e da filosofia: é uma inteligC'ncia scnsí\'el.
~9JS~12!i~, Ainda Flaubert: "S~.:2·~s' fcil'lis piiIj dizêJg. que se opera cm nossa mente como em nosso corpo. pelo podcr
nüo par.1 tê-Io;'. O que a literatura pode. e faz, <5ampliar nossa com· de uma linguagem e111que as palavras eVOC:lI11ohjetos. mas SÜO.
pr~eal. por um processo que consiste em destruÍ-lo e re- ao mesmo tempo. objdos se nsÍ\'l:is e ;110 meSnlll sel)suais.
constrUÍ-Ia, alribuindo-Ihe valores que. em si, ele não lemo Como Assim. a literatura IlllI 1 C:l cst;,í afaslada do rc,J1. Trabalh:lr o
"
loJa arte "representativa". aliás. Comentando um filme sobre o j imagilHírio pela lingu:g!.em n,IO é scr C:lplur,ldo I)elo imagin:írio.
garimpo, que lhe foi moslrndo. um velho garimrciro observou: "Tu- mas caplurar. ;llravés uo illlagin,írio. \'erd,l(ks do re;J1 que n;lo se
do o que está lá, a genle já conhece: mas no filme ludo transpareee dão a ver fora de uma ordem silllb<ilica, ,\ IU~:J do re,J1. ou scu
c a gente reconhece" (U Estado de S. Paulo, .( de mnio de IlJ7K). oposto, o realismo, nunca se efetuam tol<J1lllcnte na liter:llur:1.
pois as duas atitudes têm o real como hori/onle e a ling.uagem co-
mo mediação. A linguagem é obsuículo. 11\1C:lminl1o do real. f.lJ:1S
( A criaçüo liter<Íria é um processo que tem dois p,ólos:. 0. es- é também possibilidade de fund:í-Io. Fora da ordem da lingua~em.
lerilor c o Ieilor. Â obra literária só cXlste. de falo (' IIldeflnlda- o real é apenas C'IOS. Como lembra Oct:l\'jo 1',1/. "a palaHa não S(l
\mente, enquanto recriada pela leitura. ofício que deve ser tão ali- diz o mundo. 'mas tamb<5m o funda - ou II tr:Jnsforma", Pre-
'vo quanto o do escritor. tendendo subslituir o real ou. pelo contnírio. l'Slll'lh,í-lo. scmpre <5
Nesse processo. o escritor é o deseneadendor. mas não o dono a ele que a literatura se refere. Tanto a fuga CllnlO o mergulho·
bsoiuto, como certo romantismo remancscentc quer fazer crer. obrigam-nos aTcr esse rcal. a question,í-Io e a ITin\'cnt:í-lo.

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Como todas as atividades humanas (a partir da própria fala),
ali-teratura nasce da vivência da falta e da aspiraçãc à comple-
tud:e. Essa compJetude. a literatura não nos pode dar. O que ela .';'
nos ,pode dar. isso sim. é uma forma de conhecimento que satisfaz:
não )uma verdade abstrata e dada. mas Ullla verdade corporificada
e em obra.
Cls inúmeros saberes carreados pela literatura são meros pre-
textos para um saber maior: o saber lia falta. e a permanente
manute nçào do desejo de supri-Ia. O mundo deixa a desejar, as
palavras estão sempre em falta: a literatura o diz. insistente e ple-
namente.[ IS184]
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