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No Reino dos Sentidos: uma introdução

Article · June 2013


DOI: 10.20396/urbana.v4i2.8635097

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Cristina Meneguello
University of Campinas
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i
No Reino dos Sentidos: uma introdução

ii
Martin Jay

Tradução: Cristina Meneguello

“A ideia escandalosa de que os sentidos tem uma história, como Karl


Marx uma vez observou, é um dos marcos de nossa historicidade”.1 Assim
escreveu o eminente crítico literário americano Fredric Jameson em 1981.
Nos anos que se seguiram, talvez não tenhamos passado a ler a história em
termos marxistas tal como Jameson gostaria, mas o escândalo há muito já
se dissipou. Pelo contrário, explorar a infinita variedade de experiências
sensórias tornou-se matéria-prima da análise histórica contemporânea,
assim como dos estudos culturais e das ciências sociais de forma mais
ampla. “Sentido”, como cada vez mais o compreendemos, se refere não
apenas aos dotes corpóreos naturais que nos permitem acessar o mundo,
mas também aos significados que atribuímos aos resultados deste contato.
Algumas línguas – o alemão, por exemplo, com o termo Sinn – têm
palavras-chave para ilustrar esta mesma dualidade, enquanto outras, como
o francês e o italiano, adicionam à palavra o significado de “direção” e
“orientação”, como em sens ou senso. É claro que esta complexa interação
ao longo do tempo nos permite compreender que nem o sentido dos
sentidos, nem o sentido produzido pelos sentidos, é invariável; tampouco
2
funciona como a direção do fluxo de uma rua de mão única. De fato,
conseguimos perceber ambas as mediações de tal forma que se tornou cada
vez mais difícil isolar completamente um significado do outro. O significado
chega em grande medida por meio dos sentidos, enquanto os sentidos

1
Fredric Jameson, The Political Unconscious: Narrative as a Socially Symbolic Act (Ithaca,
N.Y., 1981), 229. Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, Marx argumentou que os
sentidos eram alienados no capitalismo – assim como a propriedade, eles eram “posses” dos
indivíduos e não compartilhados comunalmente – e seriam emancipados com o fim do
capitalismo. Para uma análise crítica recente da posição de Marx, ver David Howes,
“HYPERESTHESIA, or, The Sensual Logic of Late Capitalism,” em Howes, ed. The Empire of
the Senses: The Sensual Culture Reader (Oxford, 2005), 281-303. Esta coletânea traz uma
bibliografia útil dos trabalhos recentes na área de estudos culturais dos sentidos e faz parte
da série da Berg Press intitulada “Sensory Formations”, também editada por Howes, com
coletâneas sobre os cinco sentidos assim como sobre o “sexto sentido”.
2
O mesmo vale para a língua portuguesa, em que a palavra “sentido” equivale à percepção
sensória do mundo; à direção ou orientação; e ao significado de um termo ou palavra. NT.
4

filtram o mundo através de significados culturais adquiridos, dentro dos


quais estamos imersos. Não por outra razão os gregos podiam usar “senso
comum” (koina aisthetika, que em latim tornou-se sensus communis) como
um sinônimo ao mesmo tempo para a doxa, a opinião comum, e para a
faculdade que permite que diferentes sentidos classifiquem um objeto
singular segundo categorias universais.3

Na medida em que todos os humanos chegam ao mundo sem as


orientações ou inclinações comportamentais que são dadas aos outros
animais pelo instinto inato, necessitamos de algo que veio a ser chamado
de “cultura” para compensar nossa insuficiência inerente. É o lado genial– e
algumas vezes a maldição – da nossa espécie que tenhamos inventado e
continuemos a inventar uma miríade de respostas para aquela demanda,
uma montanha de artifícios historicamente variáveis que compensem nossa
ausência de padrões de comportamento automáticos. O misto entre
natureza e invenção que precisamente produz estes resultados é,
evidentemente, uma fonte de disputa perene e sem fim. No caso dos
sentidos, distinguir o que é dado pela natureza e o que é enfatizado – ou
abrandado – pela cultura é especialmente desafiador. É bem provável que a
relativa lentidão com a qual desenvolvemos as histórias dos sentidos não se
deva apenas à natureza “escandalosa” da proposta, mas também à sua
dificuldade genuína, especialmente se reconhecermos que a evidência para
a mudança é geralmente enganosa, contraditória e de representatividade
dúbia.4 Mas, por razões que são sem dúvida históricas, tornamo-nos cada
vez mais dispostos a encarar este desafio.

Podemos apenas conjecturar quais fatores precisos levaram ao


crescimento dos estudos históricos dos sentidos. Várias “viradas” (turns) –
cultural, linguística e do corpo– abriram novos e até então inexplorados
territórios do passado que permitiram um exame mais aprofundado de um

3
Para a história do termo, ver John D. Schaeffer, Sensus Communis: Vico, Rethoric, and the
Limits of Relativism (Durham, N.C., 1990). Para um estudo recente da origem do termo em
Aristóteles, ver Pavel Gregoric, Aristotle on the Common Sense (Oxford, 2007).
4
Para uma análise sóbria destas dificuldades, por um dos mais completos estudiosos da
história dos sentidos, ver Alain Corbin, “Charting the Cultural History of the Senses”, in
Howes, The Empire of the Senses, 128-139.

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5

fenômeno antes ignorado.5 A inexorável pressão por uma maior inclusão


dos estudos da vida cotidiana, um crescente reconhecimento da dignidade
da pequena história (petit histoire), e o resgate dos temas “de baixo” de
qualquer tipo, todos conspiraram para nos alertar para a importância das
transformações históricas da experiência dos sentidos. O crescente
interesse nos sentidos nas disciplinas auxiliares como a antropologia, a
sociologia e a crítica literária, todas vieram manifestar-se nos estudos
históricos.6 Uma geração formada pelas investigações arqueológicas e
genealógicas de Michel Foucault sobre a disciplina do corpo e o cuidado de
si encontrou inspiração ao recuperar antigos estudos sobre a dimensão
corpórea do “processo civilizatório” realizados por sociólogos como Norbert
7
Elias.

Na cena artística contemporânea, o que foi chamado de “des-


estetização do estético” também centrou sua atenção na dialética da
sublimação e des-sublimação do corpo na prática artística e a na
intersecção entre a “alta” arte e seu contexto cultural mais amplo. Chamou-
se para a arena a divisão longeva entre as artes de acordo com seu registro
sensorial dominante, tabu poderoso desde Gotthold Ephraim Lessing até

5
A relevância da “virada linguística” para o novo interesse pelos sentidos pode parecer
menos óbvia que as outras duas. Entretanto, foi ela que abriu a questão para as metáforas
sensoriais incrustradas na linguagem, que nos alertou para a importância dos vetores
materiais e sensórios para convir os significados e que explorou as questões da
tradutibilidade – ou de sua impossibilidade – entre as linguagens convencionais, faladas ou
escritas e as “linguagens” das imagens, dos sons, dos odores, dos sabores e dos toques. O
desenvolvimento histórico dos sotaques, com todas as suas poderosas implicações culturais,
mostra a importância do som na compreensão da linguagem. Ver, por exemplo, os ensaios
em Talking and Listening in the Age of Modernity: Essays in the History of Sound, Joy
Damousi e Desley Deacon (eds), (Canberra, 2007). Certamente houve resistência a assimilar
os sentidos a um modelo linguístico. Por exemplo, Michel Serres, The Five Senses: a
Philosophy of Mingled Bodies, trad. Margaret Sankey e Peter Cowley (New York, 2009).
6
Ver, por exemplo, o periódico The Senses and Society, lançado em 2006. A
institucionalização dos estudos de cultura visual, os mais avançados se comparados aos
estudos voltados aos outros sentidos, é traçada por Margaret Dikovitskaya em Visual
Culture: the Study of the Visual after the Cultural Turn (Cambridge, Mass., 2005). Observe-
se que dentre as 17 entrevistas que ela realiza com as figuras centrais naquela área, anexas
ao livro, apenas um dos entrevistados ensina em um departamento de história.
7
Ver, por exemplo, os ensaios de Jan Goldstein, ed. Foucault and the Writing of History
(Cambridge, Mass, 1994). O agora familiar argumento de Foucault sobre as relações entre o
poder e o olhar exemplificados pelo Panóptico de Jeremy Bentham já foi, porém, desafiado.
Ver Chris Otter, The Victorian Eye: A Political History of Light and Vision in Britains, 1800-
1910 (Chicago, 2008). Para uma seleção de reações a Elias, ver Steven Loyal and Sthephen
Quilley, The Sociology of Norbert Elias (Cambridge, 2004).

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6

Clement Greenberg.8 A emergência das questões ecológicas ou ambientais e


a ressentida consciência do papel destrutivo que o homem tem dentro da
biosfera também tiveram seu impacto. Até mesmo a filosofia, que tão
frequentemente mostra-se hostil aos apelos básicos do corpo em seu
intento de privilegiar a mente, começou a dar-se conta do tema, mudança
esta registrada de forma irreverente por Jacques Derrida com sua infame
pergunta em seu livro sobre Hegel e Genet, Glas: “como pode a ontologia
9
apossar-se de um peido?” A mesma curiosidade hoje com frequência
alimenta os estudos religiosos, que vão bem além das ansiedades
tradicionais com os assim chamados “pecados da carne”.10

Se os sentidos podem situar-se nas instáveis encruzilhadas entre a


natureza e a cultura, eles também são lugares exemplares para se explorar
oposições perenes, tais como a agência subjetiva e a determinação
11
objetiva, a arte e a ciência, a agência e a passividade , apenas para
mencionar alguns12. Os sentidos funcionam não apenas como portadores de
informação vital sobre o mundo, abrindo-nos para os estímulos de fora, mas
agem como guardiões de nossa integridade, protegendo-nos dos perigos e
ameaças externos. Mais do que fontes de conhecimento, direção e
significado, eles servem também como avenidas para o prazer e para a dor,
cujos limites podem variar em termos culturais ou individuais. Ao mesmo
tempo em que os sentidos nos humilham em comparação com os animais,
cuja visão é mais aguda, a audição mais poderosa e o olfato mais
desenvolvido, eles nos engrandecem ao demonstrar que somos a única

8
A questão da relação entre “Arte” e as artes é explorada por Jean-Luc Nancy, The Muses,
trad. Peggy Kamuf (Stanford, Calif., 1996). Ele nos relembra que “a arte leva o sentido a
tocar a si próprio, a ser o sentido em si. Mas, desta maneira, ela não se torna simplesmente
o que chamamos de ‘um sentido’, por exemplo, a visão ou a audição: ao deixar para trás a
integração do ‘vivido’, ela se transforma em algo diverso, em outra instância de unidade, e
expõe outro mundo: não um mundo ‘visual’ ou ‘sonoro’, mas um mundo ‘pictórico’ ou
‘musical’” (21).
9
Jacques Derrida, Glas (Paris, 1974), 69.
10
Ver, por exemplo, Birgit Meyer, ed., Aesthetic Formations: Media, Religion, and the Senses
(Basingstoke, 2009).
11
Nossa língua captura de forma rica a ambivalência da agência e da passividade nos duplos
sentidos dos verbos “cheirar” [to smell], “olhar”[to look], “saborear” [to taste] e “sentir” [to
feel]. Nosso ouvir não tem um verbo assim, ao mesmo tempo ativo e passivo. Pelo contrário,
ele tem“eu ouço” [I hear] e “eu escuto” [I listen] e“eu sôo” [I sound].
12
O que o autor observa aqui são os verbos na língua inglesa que ao mesmo tempo indicam
agência e passividade. Por exemplo, na língua portuguesa seria o caso do verbo cheirar: ao
mesmo tempo uma fruta passivamente “cheira” (tem aroma) e uma pessoa cheira a fruta
(agência). NT.

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7

espécie que de forma deliberada pode desenvolver e ampliar os potenciais


que nos foram dados pela natureza. Fixando-nos de forma temporal no aqui
e no agora, onde estamos sujeitos a estímulos variáveis e constantes, não
obstante os sentidos podem despertar as nossas memórias, voluntárias e
involuntárias. Entendidos de forma experimental, os sentidos possuem
qualidades que exigem todos os recursos da linguagem para comunicar o
seu poder, e mesmo assim geralmente permanecem indescritivelmente
pessoais. Quem, afinal, se lançaria a descrever o perfume de uma rosa em
vez de a rosa em si? Entendidos de forma científica, os sentidos revelam
alguns dos segredos do pesquisador objetivo procurando respostas dentro
da fisiologia comum das espécies. Unir as perspectivas experimentais e
13
científicas nunca foi tarefa simples; nenhuma tertium comparationis foi
ainda encontrada para que se possa traduzir o Cântico dos Cânticos nos
termos da neurociência ou da psicologia cognitiva.

No entanto, o que nos interessa aqui são os sentidos compreendidos


historicamente. Um número de questões fundamentais tem guiado a
pesquisa realizada pelos historiadores dos sentidos. Como o sensório foi, de
forma geral, diferenciado discursivamente em diversos contextos? Todas as
culturas postularam os mesmos cinco sentidos, ou outros foram incluídos?
Se, como afirmaram alguns cientistas, não há nada menos do que
dezessete modos pelos quais os animais sentem o mundo de fato, algum
14
sentido além dos canônicos cinco foi atribuído aos humanos? Quando
supostos sextos-sentidos tais como o equilíbrio, o desejo ou o discurso
foram adicionados ao conjunto? Como foram compreendidos os papéis da
percepção espacial do próprio corpo [proprioception] ou o sentido
15
cinestésico? Existe um primeiro “sentido interno” [inner touch] que nos diz
16
que somos criaturas conscientes, e, se existe, tem ele uma história?
Existe a percepção “extra-sensorial”, ou, para usar termos históricos, quais

13
Tertium comparationis: a presença de ao menos uma qualidade em comum entre duas
coisas que estão sendo comparadas. NT.
14
Robert Rivlin and Karen Gravelle, Deciphering the Senses: The Expanding World of Human
Perception (New York, 1984). Os exemplos incluem a localização por eco dos morcegos, a
orientação bussolar dos pássaros em migração e os impulsos elétricos dos tubarões.
15
Inner Touch é o sentido interno, diferente dos outros cinco sentidos e que, segundo
Aristóteles (Tratado Da Alma), permite a um ser sentir que ele está sentindo. NT.
16
Para uma sugestiva tentativa de um filósofo de traçar este percurso, ver Daniel Heller-
Roazen, The Inner Touch: Archaelogy of a Sensation (New York, 2009).

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8

as tentativas já realizadas para identificar a percepção extra-sensorial, e


como estas foram encaradas?

Todas as culturas classificaram os sentidos de forma hierárquica - da


maneira como a maior parte dos autores ocidentais fez desde os gregos -
com os sentidos da visão e da audição supostamente “mais nobres” que os
outros três? Outras culturas desenvolveram diferentes hierarquias, talvez
experimentais assim como discursivas, e foram elas historicamente
modificadas? A diferenciação e o desenvolvimento desigual dos sentidos,
não importa como postulados, são dados pela natureza ou o produto das
forças históricas? Quando, se é que ocorre, o prevalente “ocularcentrismo”
17
de tantas culturas vai ceder privilégio e espaço aos outros sentidos? É
possível localizar culturas “audiocêntricas” ou “tatocêntricas”, ou mesmo
“gastrocêntricas” ou “olfatocêntricas”? Alguma vez o processo de
diferenciação e classificação foi revertido para que uma diferenciação
intersensorial pudesse ocorrer? A sinestesia - a integração harmônica dos
sentidos – é um paraíso real ou uma mera fantasia da imaginação poética?

De que formas a cultura desenvolveu tecnologias para estender e


ampliar os sentidos, criando uma gama de apetrechos exossomáticos que
compensem os limites de nossa natureza? Para além de exemplos óbvios,
como a armadura ou a anestesia que protegem nosso vulnerável sentido de
tato, os telescópios e os microscópios que ampliam o nosso alcance visual,
os aparelhos de audição que detectam frequências sonoras que nossos
ouvidos não podem registrar ou os microfones que ampliam o volume de
nossas vozes, quais outros aparelhos protéticos transformaram as nossas
capacidades naturais? De que modos a relação entre a temporalidade e o
sensório foi afetada pela invenção de aparelhos – considerando até mesmo
a invenção da própria linguagem escrita – de forma a amparar, transmitir e
reproduzir as experiências sensoriais, dos fixadores químicos para os
perfumistas às câmeras digitais e gravadores que transformaram as
paisagens sensórias visuais e aurais do mundo moderno? Alguns sentidos

17
A audição é sempre a alternativa escolhida. Ver, por exemplo, os papers do 9º Colóquio
Blankensee sobre a história moderna da audição: “Hearing Modern History: Auditory Cultures
in the 19th and 20th Century,” http://www.geschkult.fu-
berlin.de/e/fmi/arbeitsbereiche/ab_nolte/dokumente/Morat/blankensee.html

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9

foram afetados mais que outros por estas extensões tecnológicas de forma
a permitir, por exemplo, uma distinção mais explícita entre natureza e
cultura, tal como a indicada pelo conhecido contraste entre “visão e
visualidade”?18 E o que dizer daquelas técnicas e invenções voltadas a
embotar os sentidos, ou até mesmo a suspender temporariamente seus
efeitos, desde as práticas ascéticas dos faquires que podem andar sobre
carvões em brasa até os milagres da moderna anestesia médica? É possível
desassociar os dados de sentido do universo sensório humano real,
conduzindo a um reino de experiência sensória impessoal, recentemente
chamado de “cultura do diagrama?”.19

Como, historicamente, a perda ou diminuição dos sentidos foi


compreendida, lamentada ou relevada? Está correto o romancista britânico
David Lodge quando afirma que “a surdez é cômica e a cegueira, trágica?”
20
A rubrica “estudos de deficiências” [disability studies] é a melhor
categoria para interpretar reações à privação ou modificação sensória?21.
Poderia a perda de um sentido aumentar a acuidade de outro, dessa forma
paradoxalmente produzindo uma nova “habilidade”?22 Como pensar as
reivindicações por uma “cultura surda”, apartada mas não inferior, e que
gerou uma extensa literatura própria, parte dela histórica?23 Como
podemos compreender a relação entre a eliminação deliberada das
experiências sensórias coletivas - os odores fétidos da vida tradicional que
foram erradicados em nome da higiene - e as condição fisiológica da perda

18
Esta distinção tornou-se conhecida com a publicação de Hal Foster (ed.), Vision and
Visuality (Seattle, 1988), mas pode ser recuada até Thomas Carlyle em 1841. Ver Nicholas
Mirzoeff, “On Visuality,” Journal of Visual Culture 5, n.1 (April, 2006): 53-79.
19
John Bender e Michael Marrinan, The Culture of Diagram (Stanford, Calif., 2010). Eles
argumentam que os diagramas são “dados visuais” que transcendem a experiência dos olhos
reais olhando para o mundo ou representando o mundo em termos miméticos. Iniciando no
século XVIII, com a Encyclopédie Francesa, os autores mostram que os diagramas trilharam
um caminho próprio em relação a diferentes práticas modernas, tanto científicas e artísticas
quanto tecnológicas.
20
David Lodge, Deaf Sentence (London, 2008), 13.
21
Para uma exploração da relação entre os estudos de deficiência e a visualidade, ver
Disability and Visuality, Special Issue, Journal of Visual Culture 5, n.2 (Agosto 2006)
22
Helen Keller era admirada por sua extrema sensibilidade olfativa; ela sabia que uma
tempestade se aproximava pela alteração nos aromas. Ver Diane Ackermann, A Natural
History of the Senses (New York, 1991), 44.
23
Para vários exemplos, ver as publicações da Gallaudet University Press, como Deaf History
Unveiled: Interpretations from the New Scholarship de John Vickrey Van Cleve (ed.),
(Washington, D.C. 1999); The Deaf History Reader, Van Cleve (ed.) (Washington. D.C,
2007); e de Benjamin Fraser (ed.) Deaf History and Culture on Spain: a Reader of Primary
Sources (Wasington, D.C., 2010).

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de olfato individual que os cientistas denominam de anosmia? Ocorreram


danos radicais – ou talvez melhor dito, ocorreu a desvalorização dos
sentidos – em certas culturas, como provocativamente foi argumentando
por Theodor W. Adorno para o caso da “regressão da audição” das
audiências musicais modernas?24 A estimulação artificial, a manipulação e
até o desarranjo dos sentidos são um tema a ser estudado em um
capitalismo tardio que opera por meio da implacável instigação de novas
demandas de consumo?

Como podemos periodizar de forma plausível, e narrar as mudanças


do sensorial em diferentes contextos? Os períodos que estabelecemos
podem ser aplicados a outros períodos familiares a nós por sua história
política, econômica, tecnológica ou social, ou eles seguem seus próprios
desenvolvimentos internos? Conforme amadureceu o campo da história dos
sentidos, as generalizações mais amplas e em bloco sobre épocas inteiras
perderam em plausibilidade? Qual é a relação entre as suposições culturais
hegemônicas sobre os sentidos – a mentalidade [mentalité] sensória de um
período – e as práticas reais, materiais e corpóreas de uma era, que podem
se alterar segundo diferenças sociais, econômicas e de gênero? Mesmo as
tentativas para delinear de forma mais modesta e circunscrita os “regimes
25
de escuta ou regimes escópicos” tiveram que encarar as críticas de que
falharam em reconhecer as evidências que desafiam a sua suposta
26
homogeneidade . De forma similar, grandes narrativas nas quais um
sentido dominante é substituído por outro, em um deslizamento histórico,
são cada vez mais chamadas à cena. Se, por exemplo, Sigmund Freud

24
Theodor W. Adorno, “On the Fetish-Character in Music and the Regression of Listening”
[Fetichismo na Música e Regressão da Audição]. Adorno, Essays on Music, seleção, com
introdução, comentários e notas de Richard Leppert, Susal H. Gillespie (trad.) (Berkeley,
Calif., 2002), 288-317.
25
O termo “regime escópico” foi introduzido pelo crítico de cinema francês Christian Metz e
utilizado de forma mais ampla por Martin Jay em “Scopic Regimes of Modernity”, pela
primeira vez publicado em Foster, Vision and Visuality, 3-27. Seu equivalente para a audição
é desenvolvido por Peter Szendy em Listen: a History of Our Ears, Charlotte Mandel (trad.),
(New York, 2008).
26
Martin Jay utiliza a expressão “regime escópico” que retira de O Significante Imaginário –
Psicanálise e Cinema de Christian Metz, cuja obra apontou, ao distinguir o cinema do teatro,
uma espécie de contexto cultural para a visão, ou seja, a existência de tecnologias do olhar
segundo momentos históricos particulares. Para Jay, na modernidade há três subculturas
visuais dentro do regime escópico: a perspectiva cartesiana – nos moldes do Renascimento
italiano; a Arte da Descrição – que associa, assim como Svetlana Alpers, à pintura
setecentista dos Países Baixos; e o Barroco. NT.

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estava certo ao argumentar em uma célebre nota de rodapé de Civilização e


seus Descontentes que, com a adoção da postura ereta, os hominídeos
abandonaram a prioridade da estimulação olfativa em benefício da visual,
então por que razão tal substituição teve de ocorrer novamente na aurora
27
da era moderna?

Como resultado destas questões e receios, narrativas mais gerais e


populares como A Natural History os Senses de Diane Ackerman (1991),
uma obra impressionista, rapsódica e que mistura ciência, folclore e
experiências pessoais – foram suplantadas por tratados mais sóbrios e
28
sistemáticos, como A History of the Senses de Robert Jütte (2005).
Muitas das afirmações globais sobre a distribuição dos sentidos em culturas
e períodos específicos, feitas pelos pioneiros dos estúdios de mídia como
Marshall McLuhan ou Walter Ong nos parecem datadas; vale o mesmo para
o trabalho de historiadores como Lucien Febvre e Robert Mandrou. Além
disso, uma onda de estudos específicos sobre cada sentido em particular,
geralmente com o apoio de uma rede de periódicos, conferências e cursos
universitários, criaram crescentes tradições discursivas, mesmo que
incipientes. Ainda que dividida de forma desigual, com alguns sentidos
ganhando a “parte do leão” da atenção geral, e muitas vezes
hermeticamente fechada para qualquer trabalho realizado fora de sua
estreita área de atuação, a história dos sentidos – podemos hoje dizer – é
bem menos um escândalo e muito mais uma empreitada vigorosa e
dominante, com um futuro brilhante à sua frente.

i
Somos gratos à The University of Chicago Press (Chicago Journals) e à American Historical
Association que nos autorizaram a traduzir e publicar este texto de Martin Jay, originalmente
publicado na The American Historical Review, vol 116. N. 2, abril de 2011, cujo tema foi Os
Sentidos na História (The Senses in History). Optamos por traduzir a parte do texto em que
Martin Jay analisa de forma geral a “história da história dos sentidos”, lançando uma série de
questões ao leitor. A parte final do texto não foi aqui incluída, pois é a breve apresentação
de cada um dos artigos que compõe o volume da The American Historical Review
mencionado, e só faz sentido naquele contexto.

27
Sigmund Freud, Civilization and Its Discontents, James Strachey (trad. e ed.) (New York,
1961). 46-47. Para um exemplo da afirmação de que a modernidade significou o triunfo do
visual, ver Lucian Febvre, The Problem of Unbelief in the Sixteenth Century: The Religion of
Rabelais [O problema da incredulidade no século XVI – a religião de Rabelais], trad. Beatrice
Gottlieb (Cambridge, Mass., 1982), 432.
28
Aclkermann, A Natural History of the Senses; Robert Jütte, A History of the Senses: from
Antiquity to Cyberspace (Malden, Mass., 2005).

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ii
Martin Jay (1944), especialista em história intelectual e em teoria crítica, é professor de
história da Universidade da California, Berkeley (cátedra Sidney Hellman Ehrman). Dentre
seus trabalhos destacamos Imaginação Dialética (publicada originalmente em inglês em
1973 e publicada no Brasil pela Editora Contraponto em 2008); Marxism and Totality
(University of California Press, 1984); Adorno (Harvard University Press, 1984); Permanent
Exiles (Columbia University Press, 1985); Fin-de-Siècle Socialism (Routledge, 1989); Force
Fields (Routledge, 1993); Downcast Eyes (University of Califormia Press, 1993); Cultural
Semantics (University of Massachusetts Press, 1998); Refractions of Violence (Routledge,
2003); Songs of Experience (University of California Press, 2004); The Virtues of Mendacity
(University of Virginia Press, 2010); Essays from the Edge (University of Virginia Press,
2011).

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