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Tempos de Babel: anacronismo e destruição. São Paulo, Lumme editor, 2007.

Tempos de Babel: destruição e anacronismo

Raúl Antelo

Para que serve a história da arte? Para


muito pouco, se ela se satisfaz com
classificar sábiamente objetos já
conhecidos, já reconhecidos. Para muito
mais, se ela consegue colocar o não-saber
no centro de sua problemática e tornar
essa problemática a antecipação, a
abertura de um novo saber, de uma forma
nova do saber, ou até mesmo da ação.

Georges Didi-Huberman – Perante o


tempo

Tempos cortados, tempos colados

O saber da história, nos diz Didi-Huberman, repousa prioritariamente no


não-saber como indispensável abertura ao novo. Esse não-saber solicita a
destruição de antigas convenções, como, aliás, nos ensinara Benjamin,
destruição essa que se ativa a partir, justamente, da consciência histórica, cuja
mais profunda emoção é uma insuperável desconfiança com relação à vida e
uma disponibilidade permanente para reconhecer que tudo nela pode dar errado.
Auto-confiante, a destruição acredita que nada é permanente mas, por essa
mesma convicção, o destruidor vê saídas por toda parte e, onde outros só
encontram muros ou montanhas, ele, mesmo assim, vê uma saída. Mas porque
ele vê uma saída por toda parte, o crítico que pratica destruição precisa se
desvencilhar das coisas, espalhando-as também por toda parte. Nem sempre por
meio da força bruta. Ás vezes, por via mais refinada ou sutil. Justamente porque
quem destrói vê alternativas por toda parte, ele está sempre postado numa
encruzilhada. No entanto, como ele nunca sabe, ao certo, o que o futuro lhe
depara, o crítico que destrói reduz tudo quanto existe a escombros, não em nome

1
do culto romântico às ruínas, mas em virtude da saída que, não obstante, elas lhe
permitem vislumbrar1.
Essa teoria da modernidade enquanto destruição não é apenas datada
como também localizada. Pertence ao mundo das oposições dilemáticas de
entre-guerras e se posiciona, ainda, entre Velho e Novo Mundo. Gostaria de
propor um percurso possível para melhor entendermos sua gênese. É uma
trajetória que, sem cessar, cruza os campos do pensamento e das linguagens
experimentais da arte. Para tanto, tomo a liberdade de relembrar que, entre 1923
e 1926, quando Walter Benjamin está começando a esboçá-la em Rua de mão
única, interessa-se já aí por um conjunto multifário de artigos que lhe
determinam o modo de reconstruir a experiência de modernidade. Eles podem
ser uma planta de pharus, um postal de saudações, os calendários de bolso, um
pisa-papéis, artigos de mundanidade, um medalhão, um moinho de orações, uma
colher antiga, um leque, um relevo, um mapa antigo, brinquedos, uma folha de
estampas para modelar, o estereoscópio, o guarda-roupa de máscaras, em uma
palavra, um conjunto de objetos perdidos e de objetos achados na memória. Há
uma passagem muito esclarecedora de Rua de mão única, em que o filósofo
penetra, finalmente, na loja de selos. Em seu interior, ele observa,

os selos estão pejados de numerozinhos, letras minúsculas e olinhos. São


tecidos celulares gráficos. Tudo isto fervilha misturado e como os animais
mais simples, continua vivo mesmo que feito em pedaços. Por isso é que,
de bocadinhos de selos que se colam uns aos outros, se fazem imagens tão
impressionantes. Mas nelas a vida tem sempre o cunho da decomposição,
como sinal de que é composta do que já está morto. Os seus retratos e
grupos obscenos estão repletos de ossadas e inumeráveis vermes2.

Benjamin publica esse texto, autêntica alegoria teórica da vanitas barroca,


em 1928. Na mesma época, para sermos exatos, no domingo 12 de agosto, os
leitores do jornal La Nación de Buenos Aires conheciam, através de “Nueve
dibujos y una confesión”, uma relação semelhante, a lista de obras de arte
preferidas pela pintora Norah Borges, irmã do escritor Jorge Luis Borges, uma
enumeração muito na linha Apollinaire, plena manifestação do caráter destrutivo
voltado contra o patrimonialismo tradicional. Nela aparecem os brinquedos
populares de papelão pintado e as bonecas de serragem, com anáguas
engomadas. Trata-se, como se vê, igualmente, de uma enumeração caótica, a
1
Cf. BENJAMIN, Walter - “The Destructive Character” in Selected writings. Volume II 1927-1934. Trans. R.
Livingstone et al. Ed. M.W. Jennings, H. Eiland and G. Smith. Cambridge, Harvard University Press, 1999, p.
536-40.
2
E acrecenta: “Nos selos, os países e os mares não são mais que províncias, os reis são apenas os mercenários
dos números que a seu bel-prazer derramam sobre eles a sua cor. Os álbuns de selos são mágicas obras de
consulta, os números dos reis e palácios, dos animais e alegorias e Estados estão neles inscritos. A circulação
postal assenta na sua harmonia, tal como a circulação dos planetas assenta nas harmonias dos números da
astronomia” Cfr. BENJAMIN,Walter – Rua de Sentido Ùnico e Infância em Berlim por volta de 1900. Trad.
Isabel de Almeida e Sousa e Claudia M.Rodrigues. Pref. Susan Sontag. Lisboa, Relógio d´Água, 1992, p.94-95

2
preanunciar as imagens que a própria Norah Borges desenhará para ilustrar La
cruzada de los niños de Marcel Schwob (1949).

Los mates de plata con un pajarito. Los nacimientos de yeso policromado.


Los títeres vestidos de zarza o de tarlatán. Los cuadros de Picasso. Las
antiguallas: Las fotografías de 1880 y los viejos figurines de moda de
1860, las estampas con colores vivos de calcomanía, al estilo Pablo y
Virginia—como as que Norah Borges prepara para o último número da
revista Martín Fierro, preanúncio de seus desenhos para a edição em
francês, posterior à guerra—o unas estampas de niñas con pamelas de paja
de Italia y guirnaldas de flores, en un paisaje de las Antillas. Los frescos
de La Historía de Herodes de Masolino. Los cuadros de Abrahan Angel y
de los niños mejicanos. Los altares de las iglesias de Portugal. Los
abanicos isabelinos donde está pintado un niño jugando al aro. Los
cuadros de Pruna y sus dibujos para decoraciones de teatro. Las cajitas de
música, con una sola pieza. Los herbarios y las colecciones de mariposas.
(...). Los gráficos de Santa Rosa de Lima, con corazones y palomas. Las
casas blancas de Le Corbusier Saugnier. Los cuadros celestes y rosados de
Irene Lagut. Las casas de Buenos Aires con alegorías de yeso: columnas,
el cuerno de la abundancia, sirenas. Las manos de bronce de los
llamadores. Los carritos de los panaderos que tienen pintados pájaros y
manos entrelazadas con una rosa. La ropa de lentejuelas de los acróbatas.
Los trajes de luces y las medias rosadas de los toreros. Y los globos
terrestres de cartón con el delicioso celeste de los mares”3.

Mas não nos afastemos de Walter Benjamin. Não é nada fortuito que,
enquanto redigia Rua de mão única, Benjamin tenha lido, e até mesmo
resenhado, uma obra muito próxima desse universo feérico de Norah, um livro
do escritor espanhol Ramón Gómez de la Serna (1888-1963), incensado pelos
vanguardistas do Prata como o mais radical representante do novo, livro esse
que deixaria profundas marcas não só nos materiais colhidos por Benjamin para
uma teoria da modernidade, mas também na linguagem mais apta para
empreender essa pesquisa. Refiro-me a O circo. Benjamin observa, na análise de
Ramón, a emergência de um tipo de arte nova, muito econômica e de
divertimento popular, algo realmente inédito, de massas, porém, tão
indestrutível como as construções romanas. Algo feito para durar na memória.
Nesse universo, argumenta, as pessoas não se interessam mais por aquilo que é
representado, o quid est, mas pelo valor autêntico que passa perante os seus
olhos, o quod est. Como Seurat ou Picasso, Benjamin julga que Ramón
demonstra, por essa via, a origem da precária situação das massas urbanas, seu

3
BORGES, Norah - “Nueve dibujos y una confesión: Lista de las obras de arte que prefiero”. La Nación,
Buenos Aires, 12 ago 1928 apud ARTUNDO, Patricia – Norah Borges. Obra Gráfica 1920-1930. Buenos Aires,
s.c.p., p.157.

3
escasso receio perante a morte e sua crescente desconfiança com relação aos
valores culturais gradativamente entorpecidos. Em suma, o que interessa a
Benjamin, na escritura de Ramón, não é o fato de ele ter feito algum tratado
sobre o circo como "símbolo" do sentimento de vida, mas chama-lhe a atenção
que ele tenha reunido uma “coleção de apontamentos que se ajusta à realidade
como o fraque ao palhaço”.
Antecipando o que ele mesmo fará com o flâneur, o dândi ou o boêmio,
na Paris de Baudelaire, Benjamin destaca, portanto, que, na teoria do moderno,
em vias coletivas e simultâneas de elaboração, o belo não é um atributo do
objeto mas um modo de ele funcionar em um determinado contexto cultural, daí
que o percurso de Ramón seja sagazmente pontuado pelas personagens que ele
encontra no circo4.
Gómez de la Serna, como dissemos, era um escritor-farol, não só para
seus colegas espanhóis mas, basicamente, para os vanguardistas do Prata, entre
os quais ele viveu longos anos de exílio. Sua obra de escritor dialoga
intensamente com a de Borges ou Girondo e seu trabalho como crítico de arte—
penso, por exemplo, em seu livro sobre Velázquez—guarda intensa correlação
com experiências artísticas em curso na obra de Macedonio Fernández. No
campo das imagens, por exemplo, Norah Borges também estava elaborando uma

4
São elas o magnetisador, o ilusionista, o contorcionista, as amazonas... Benjamin destaca aliás que Ramón “é
ainda melhor no detalhe (em cada um deles). Sobre a louça da cozinha e o guarda-roupa do mágico, a esteira que
o elefante pisa, o banquinho, os blocos e tonéis que são escalados por animais vestidos, a almofada de veludo
bordado sobre a qual a atleta se deita durante seu número, enfim, sobre o conjunto do inventário do circo suas
notas dizem o mais importante, isto é, o que mais nossa fantasia engolir; na verdade, é um inventário do sonho
desgastado. Não existe ainda nenhuma convenção intelectual que oriente as discussões sobre as coisas do circo.
Seu público é tão respeitável quanto o de qualquer teatro ou sala de concertos. Isto porque no circo a realidade
tem a palavra, não a aparência. É muito mais provável que um senhor peça o programa ao vizinho enquanto
Hamlet apunhala Polônio do que no momento em que o acrobata executa seu duplo salto mortal. Exatamente
por isto, o público do circo como um todo é, sem dúvida, o mais dependente; a licenciosa pequeno burguesia,
assim como o artista, o palhaço ou a amazona, só abandonam seus limites, suas restrições, quando têm de lidar
com eles na arena. O circo é talvez um parque natural sociológico, no qual se executa o jogo entre as castas dos
senhores, composta de criadores de cavalo e domadores, e um dócil proletariado, a plebe dos palhaços e dos
empregados de estrebaria ainda ingênua, sem força revolucionária. É um (talvez estranho) lugar da liberdade de
classe. Mas é ainda um lugar da liberdade em outro sentido: com razão disse Serna, em um conhecido discurso
realizado do trapézio em um circo de Milão, que a verdadeira liberdade dos povos seria antes de mais nada
conquistada em um circo. A mim parece que há apenas duas profissões que naturalmente sejam fiadoras da
liberdade, e nenhuma das que se possa geralmente pensar. Certamente não as muito suspeitas irmãs
misericordiosas (...) ou os pacifistas (...), mas os matemáticos e os palhaços: o mestre do pensamento abstrato e o
mestre da natureza abstrata. A liberdade, garantida por suas assinaturas, seria a única na qual eu confiaria. Essa
liberdade conquistada no grande circo seria também a liberdade no interior do mundo animal, aquela que o
patronato roubou dos homens. Pois este é o segredo do sentimento especial com que cada um adentra o circo: no
circo, o homem é um convidado do reino dos animais. Os animais selvagens estão apenas aparentemente sob a
tutela dos domadores; as artes que eles representam são sua maneira de entreter e destruir o irmãozinho mais
novo, aliás, a única coisa que podem fazer com ele. A gente do circo aprendeu com os animais. Como pássaro de
galho em galho, assim voam de trapézio em trapézio os acrobatas; como duas doninhas, as mãos do mágico
atravessam o espaço; senta-se a amazona nas costas do cavalo como borboleta; como uma anta, o bobo Augusto
fareja, funga a areia da Arena. Como eles, no circo também todo o resto, desde a entrada, as passagens, portões
estão repletos de vida animal. No intervalo, o público se espreme em direção ao buffet, pois nada dá mais apetite
do que uma noite no circo” Cfr. BENJAMIN, Walter - “Ramon Gomez de la Serna, Le Cirque. Paris: Simon Kra
1927. 214 pags” in Gemmelte Schriften. s. 70 bis 72, Bande III, Kritiken und Rezensionen, Frankfurt, Suhrkamp,
1980. Devo a tradução ao prof. Antonio Carlos Santos da UNISUL.

4
percepção do moderno muito semelhante a dele e, por tabela, à do próprio
Benjamin. A partir de suas prematuras e familiares Notas lejanas, a obra de
Norah poderia ser igualmente caracterizada como quincalha de quiosque, em
especial as vinhetas para a segunda época da revista vanguardista Proa. São
imagens de sua viagem por Portugal, com aldeãs bastante parecidas com as de
seu amigo Almada Negreiros, é claro, muitas sereias, naturezas mortas e moças
à janela, explorações da terra de seus ancestros, porém, há também incursões em
um espaço que Edward Said não hesitaria em chamar de oriental. Se os homens
são, no circo, meros convidados dos animais, como diz Benjamin, Ocidente, sem
dúvida, é mero turista em Portugal. Os nomes podem variar. Chamam-se Valery
Larbaud5, Ramón Gómez de la Serna, os irmãos Borges, ou até mesmo Hermann
von Keyserling. Com efeito, em 1930, o filósofo kantiano fez uma série de
conferências em Lisboa, retomando os tópicos de seu livro Análise espectral da
Europa (Das Spektrum Europas, 1928) e um ano depois essas mesmas
observações de Keyserling seriam divulgadas nas páginas da Revista de
Occidente, o periódico de Ortega y Gasset. Dizia Keyserling nelas, por exemplo,
que Portugal ultrapassara a tal ponto o hispânico que, diferenciando-se
completamente dele, formara um contraste absoluto com a tradição integral de
Castela. Eugenio d´Ors, o teórico do barroco, defendia também uma tese muito
parecida. “Portugal es el compendio de España. Es su archivo, estilo y cifra, su
quintaesencia”, aquilo que os químicos chamariam seu alcaloide6. Ora, como
confim do hispânico, Portugal é, por isso mesmo, área de mescla e contato,
problemática superposição de extremos, aliança de construção e destruição,
território do Bem e do Mal absolutos. Funciona, nesse sentido, tal como o circo,
como um parque sociológico. Como a co-essência do Ocidente. Como um ser
singular plural.
Nessa forma híbrida de manifestação do europeu, como um aspecto super-
humano, angélico, que é uma obsessão proliferante no universo de muitos
artistas, Kafka ou Klee, os Borges ou Almada Negreiros, mas é também um
aspecto central na teoria da história de Benjamin, ressoam, como é óbvio, as
Elegías de Duino de Rainer Maria Rilke. A metafísica biológica de Rilke nelas
recupera a herança do vitalismo irracional de Schopenhauer e Nietzsche,
remotamente filiado a Leibniz, exprimindo-o, porém, com a ambivalência do
Jugendstil, na humanização do animal e na concomitante animalização do
homem. Como sabemos, esse ambivalente limiar entre o humano e o desumano
foi apresentado por Rilke em suas elegias mas, a rigor, foi desenvolvido, mais
adiante, por Benjamin, em um ensaio sobre Karl Krauss, dedicado, por sinal, a
seu melhor amigo nos anos 30, Gustav Glück.
5
Cf. ANTELO, Raul – “Valery Larbaud, la china et la rapariga” in RIVAS, Pierre (ed) – Dernière tentation de
Valery Larbaud: le Brésil. Vichy, Aux Éditions des Cendres, 2005, p.67-75
6
D´ORS, Eugenio – “Glosas a Portugal” in Nuevo Glosario. La tradición. Buenos Aires, Editoriales Reunidas,
1939, p. 105-107. Haveria, então, dois extremos, Grécia e Portugal. “El simple de lo clásico y el simple de lo
barroco”. Norah percorre ambos os extremos. Elabora grecas para a revista ultraista Grécia, de Sevilha, porém
pinta também pastoras portuguesas na nova Arcádia lusitana.

5
Glück: destruição e felicidade

Quem é Gustav Glück? “Não é nenhum escritor”, esclarece Benjamin a


um outro amigo, Gerhard Scholem. Glück não passa de um banqueiro, um
“mundano e excelente banqueiro”, como o apresenta em carta a outro amigo
comum, Alfred Cohn, antigo companheiro de estudos e, à época, empresário em
Barcelona. Mas Glück será também o modelo a partir do qual Benjamin vai nos
propor a tipologia do caráter destrutivo que me interessa aqui esmiuçar. Antes
de mais nada, contudo, digamos que o empreeendedor Glück, o mais acabado
representante da destruição, detinha um conjunto de virtudes que,
sumultâneamente, também atraíam a Benjamin no abalo sísmico que derrubou (e
reconfigurou) Lisboa no século XVIII7. Um dos aspectos mais surpreendentes
do texto dedicado por Benjamin ao terremoto é, justamente, o seu profundo
desinteresse pelo contexto histórico iluminista em que ele se verificou. A
diferença de Kant, quem acreditava que os movimentos destrutores originavam-
se pela presença de gases e vapores subterrâneos represados, Benjamin, pelo
contrário, julgava que os abalos se deviam a fenômenos na superfície terrestre,
i.e. a um mero jogo entre placas. O argumento horizontal fundamentava a
afirmativa benjaminiana de que “as massas enfrentam constante deslocamento
para manter o equilíbrio”, daí que fantásticas tensões fossem sempre geradas
entre as placas superficiais, até elas se chocarem entre si e redistribuírem um
novo equilíbrio. Mesmo aceitando o argumento de Benjamin, pouco importa se
verdadeiro ou falso, não deixa de surpreender-nos a recusa do filósofo em
admitir o modelo vertical vulcânico, inclinando-se, porém, pela turbulência
horizontal entre vários estratos, o que enfatiza, em seu método de trabalho, um
modelo expressionista de forças em confronto, aquelas que, segundo o próprio
Benjamin, sedimentam a experiência de ruptura8.
Segundo Jeffrey Mehlman, essa expressividade imaginária de Benjamin
deriva do deslocamento caleidoscópico com que o autor assimila essa dinâmica
aos recursos da linguagem e da própria interpretação. Em última análise, o
objetivo de Benjamin, com sua teoria da destruição, é o de desqualificar a
explicação kantiana do poder, em nome de uma teoria de tensões superficiais,
realizando o que Mehlman denomina “the deconstruction of the metaphorics of
(“volcanic”) expression through an appeal to the inherent violence at play within
the terrestrial (or linguistic) surface”9. Além do mais, é bom observar que essa

7
Cf. BENJAMIN, Walter – “The Lisbon Earthquake” in Selected writings. Volume II 1927-1934. Trans. R.
Livingstone et al. Ed. M.W. Jennings, H. Eiland and G. Smith. Cambridge, Harvard University Press, 1999,
p.536-40. O programa de rádio foi emitido em outubro de 1931.
8
Para uma leitura vertical, cf. OEHLER, Dolf – Terrenos vulcânicos. Trad. S. Titã Jr et el. São Paulo,
CosacNaify, 2004.
9
Cf. MEHLMAN, Jeffrey. Walter Benjamin for Children. An Essay on His Radio Years. Chicago, The
University Chicago Press, 1993, p. 30.

6
superfície crispada e atravessada por movimentos constantes permanece ela
própria em estado de perpétua turbulência, porém, de maneira tão imperceptível
que nós quase não a sentimos. Essa anestetização dos sentidos, tema aliás da
reprodução técnica dos objetos, corre paralela, entretanto, à criação de um
quadro generalizado de comoções, que é o assunto do ensaio sobre o caráter
destrutivo que, segundo Benjamin, define-se como aquele que não resgata nada
de duradouro e que, por isso mesmo, vê caminhos por toda parte; mas,
precisamente, por intui-los, precisa abri-los na prática, já que o destruidor
encontra-se sempre numa encruzilhada de veredas que se bifurcam.

Destruição

Ora, em que consiste afinal o caráter destrutivo? O caráter destrutivo


caracteriza-se por um conceito decisionista da verdade e da lei, vindo
complementar assim o caráter melancólico, analisado por Benjamin em seu
ensaio sobre o drama alegórico. Mas na teoria da destruição, situada entre
liberalismo, bolchevismo e anarquismo, Benjamin argumenta que o caráter
destrutivo conhece apenas uma palavra de ordem (abrir espaço) e uma única
atividade (despejar). Sua necessidade de ar puro e espaço aberto ultrapassa
fartamente qualquer ódio. O caráter destrutivo, segundo Benjamin, é
nietzscheanamente jovem e sempre alegre, porque destruir rejuvenesce. O autor
chega a essa imagem apolínea do destruidor, após ponderar até que ponto se
simplifica o mundo depois de sua destruição. É esse, a seu ver, o grande vínculo
que enlaça e unifica tudo quanto existe. Entretanto, aquilo que fornece ao caráter
destrutivo o espetáculo da mais profunda harmonia é, contraditoriamente, sua
visão dionisíaca da vida. Não há, contudo, imagens que ameacem o caráter
destrutivo, uma vez que, para Benjamin, o destruidor tem muito poucas
necessidades, sendo a mais remota delas saber o que virá substituir aquilo que
for destruído.
O caráter destrutivo é, portanto, um sinal, obviamente exposto à
controvérsia; porém, evitar essa controvérsia seria completamente inútil. O
caráter destrutivo não tem interesse em ser compreendido. Qualquer tentativa
nessa direção é banalmente superficial. Ele não se sente afetado de
incompreensão. Como antecipando certos argumentos que leremos, mais tarde,
em Roland Barthes, Benjamin nos diz que o mais mesquinho de todos os
fenômenos burgueses, a fofoca, surge só porque as pessoas não querem ser
incompreendidas. O caráter destrutivo, pelo contrário, tolera a incompreensão
até suas últimas consequências mas, por isso mesmo, não promove fofocas. O
caráter destrutivo milita na linha de frente do tradicionalismo. Assim como
algumas pessoas delegam coisas à posteridade, tornando-as inacessíveis e,
portanto, conservando-as, outras, no entanto, nos diz Benjamin, transferem
situações, tornando-as pragmáticas e, assim, liquidam-nas. Estas últimas é que
são as autênticas figuras destrutivas.

7
O caráter destrutivo não se alimenta, então, do sentimento de que a vida
valha a pena, mas, pelo contrário, de que nada justifica o suicídio10. O destruidor
reage, em suma, a uma constelação de perigos que ameaçam tanto àquilo que é
transmitido pela tradição, quanto àquele que recolhe essa mesma tradição. Nada,
portanto, está livre da destruição.
Essa teoria da destruição, como disse, baseada na figura do diretor do
departamento internacional de um banco, o Reichskreditgesellschaft, é
estimulada também por uma reflexão acerca do terremoto de Portugal, quer
dizer que se situa na encruzilhada de Europa-América, como uma ponte
intransponível para o próprio Benjamin, cujo suicídio, a caminho de Lisboa, a
caminho da América, de certo modo, ela prepara e anuncia11. Cabe agora
analisar as consequências éticas e estéticas dessas idéias para a
desmaterialização da experiência e para a disseminação do sentido nesse ponto
intermediário e ambivalente, nesse entre-lugar inscrito, simultâneamente, em
dois registros, a ordem metropolitana e o sistema colonial. Esse ponto nos
fornece, segundo Benjamin, uma imagem dialética da modernidade de entre-
guerras, imagem, como sabemos, fulgurante e fugaz.
Justamente em um dos fragmentos das Passagens, Benjamin se vê a si
mesmo, enquanto crítico cultural, carregando na própria mão o machado afiado
da razão, como um “caráter destrutivo”, sem olhar nem à esquerda nem à direita,
para não ter de contemplar o horror que habita nas paragens primordiais. Sebald,
em seu texto Sobre a história natural da destruição (o mesmo título, aliás, que
Solly Zuckerman pretendia dar a suas memórias da destruição de Colônia),
evoca uma situação semelhante. Os retirantes de uma cidade alemã
bombardeada durante a guerra não têm coragem de olhar pela janela do trem em
que abandonam a área. Só o estrangeiro contempla, horrorizado, a cabeça da
Medusa.
Crítico do iluminismo, como mais tarde o seriam Adorno & Horkheimer,
Benjamin defende, também, nesse mesmo fragmento acima citado—aliás, à
maneira dogmática de seus próprios críticos—que “a razão deve limpar todo o
terreno e livrá-lo da vegetação rasteira da delusão e do mito”[N 1, 4]. Ora, talvez
fosse possível, com Zizek, atribuir ao caráter destrutivo de Benjamin aquilo que
o psicanalista esloveno afirma de Brecht, que ele foi o único a compreender o
pouco de poesia que ainda habitava o estalinismo. Para Benjamin, contudo, não
bastava a simples restauração de um valor primordial, porque a reconstrução, na
identificação, não passa de uma operação homogênea, e pelo contrário, a
10
Cf. BENJAMIN, Walter - “The Destructive Character” in Selected writings. Volume II 1927-1934, op. cit.,
p.541-2..O ensaio, como sabemos, é publicado no Die Frankfurter Zeitung a 20 de novembro de 1931. Embora
Benjamin tenha admitido, em carta a Scholem, que o modelo para o caráter destrutivo teria sido Gustav Glück,
muitos ainda assimilam o caráter destrutivo à figura de Brecht.
11
Para uma leitura pós-colonial dessa tradição, cf. KRANIAUSKAS, John - “Cuidado, ruinas mexicanas!: Rua
de mão única e o inconsciente colonial” in BENJAMIN, Andrew & OSBORNE, Peter (ed.) – A Filosofia de
Walter Benjamin. Destruição e experiência. Trad. M.L. Borges. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 149-164
ou BUCK-MORSS, Susan – “Hegel & Haiti” in Critical Inquiry, summer 2000, v. 26, nº 4, p. 821.

8
construção de uma constelação heterogênea, como a que ele defendia, sempre
supõe a destruição das representações históricas herdadas [N,7,8].
Na medida em que a relação do presente com o passado é puramente
temporal, o vínculo entre ambos os tempos só se reconhece na imagem dialética
ou figurativa, porque somente as imagens dialéticas são, para Benjamin,
imagens autênticamente históricas, isto é, imagens não arcaicas. Seu conceito de
progresso descansa, portanto, na idéia de catástrofe, porque só a autêntica
catástrofe consistiria, já não no imperativo de que as coisas mudem, mas no
espanto de que elas continuem como sempre. Que o objeto da crítica cultural
seja então arrancado do curso da história era, a seu ver, uma simples
conseqüência da estrutura monadológica do objeto. Em função dela, o objeto
cultural, longe de ser dado, constitui-se na desintegração da própria continuidade
histórica. Por isso, para Benjamin, a historiografía materialista não deveria
selecionar um objeto já existente. Antes, porém, ela deve arrancá-lo,
dinamitando-o do curso da história evolutiva [N 10 A, 1].
Mas detenhamo-nos na condição híbrida, digamos assim, ibero-
americana, da teoria da destruição de Benjamin. Fixemos o foco, mais uma vez,
em seu modelo. Ao estourar a guerra, o banqueiro Gustav Glück conseguiu o
que Benjamin aliás só pôde desejar: ele chegou a fugir da Europa. Em fins de
1937, com efeito, Glück viaja a Londres e, em seguida, veio para a América,
instalando-se, em meados de 1938, em Buenos Aires, onde obsteve a cidadania
argentina12. Dirigiu, nessa cidade, o banco Roberts, durante vários anos, porém,
criou, também, uma liga de resistência pró-austríaca. Uma das vias de
manifestação do tal Comitê Austríaco de Glück era a Junta de la Victoria,
associação feminista anti-fascista, através da qual Glück captava recursos
financeiros que eram, mais tarde, enviados por ele mesmo à frente de guerra. A
Junta era dirigida por Cora Ratto de Sadosky13 e Ana Rosa Schlieper de
Martinez Guerrero e nela militavam artistas e intelectuais de amplo espectro,
como a escritora Maria Rosa Oliver, a fotógrafa Annemarie Heinrich, a

12
Agradeço à Dra. Gudrun Schwarz, dos Arquivos Walter Benjamin, depositados na Akademie der Künste,
Berlim, pela cópia de correspondências enviadas.
13
Professora de matemática e ativista de direitos humanos, Cora Ratto de Sadosky (1912-1981) formou-se na
Universidade de Buenos Aires, onde foi líder estudantil da FUA. Integrou ligas anti-fascistas, pró-republicanas,
durante a guerra da Espanha, e de denúncias anti-imperialistas, durante a guerra do Chaco. Casou-se em 1937
com seu colega de ciência e militância, Manuel Sadosky. Ao estourar a guerra, Cora colaborou na fundação da
Junta de la Victoria, em 1941, da qual se tornou diretora, organização que chegou a ter 50.000 simpatizantes na
Argentina e arrecadou enormes quantias para os exércitos aliados. Em 1945, representando a Junta, Cora fundou,
em Paris, a União Internacional de Mulheres, presidida pela Passionária. A partir de 1946, residindo já em Paris,
cursou estudos com o Professor M. Frechet, sem completar o doutorado, em função de uma viagem do casal à
Itália. Foi a primeira especialista latino-americana em computação. Após a queda do peronismo, Cora e o
marido, retornando ao país natal, são incorporados à faculdade de Ciências Exatas da UBA, onde Cora completa
o doutoramento em 1958. Leciona na UBA de 1956 a 1966, período em que criou a "Fundação Albert Einstein"
para financiamento de pesquisas. Com o golpe de Ongania, em 1966, foi presa e perdeu o emprego,
abandonando a matemática em favor da militância social. Em 1965, Cora criou e ajudou a dirigir a revista
Columna 10, cuja função precípua era esclarecer o público argentino a respeito da sanguinária biopolítica
detonada pela guerra do Vietnã. Às vésperas da ditadura, no final de 1974, os Sadosky abandonaram o país e se
instalaram em Caracas e mais tarde em Barcelona, onde Cora morreu.

9
psicanalista Mimi Langer14, ou artistas plásticas como Raquel Forner15 ou María
Carmen Portela de Aráoz Alfaro, quem, à época, hospedava em sua casa o poeta
exilado Rafael Alberti16. Havia ativistas sociais menos conhecidas como Nadja
Bider, cuja filha, Tamara Bunke, se tornaria a famosa Tânia, a guerrilheira da
Revolução Cubana, ou Catalina Guagnini, uma das líderes da futura ONG
“Familiares de Detenidos y Desaparecidos por Razones Políticas”, na última
ditadura. Havia socialites, como Dalila Shaw de Vergara del Carril ou Margot
Portela de Parker, mas havia também cientistas, como Teresa Satriano de
Daurat, Margarita Argúas e Telma Reca. Militava, ainda, com elas a escritora e
artista plástica Silvina Ocampo, mulher de Adolfo Bioy Casares e íntima
colaboradora de Borges. E uma das suplentes da Junta de la Victoria chamava-
se, precisamente, Norah Borges de Torre. Vale dizer que a própria nômina das
integrantes da Junta, como se vê, é um rol, quase disparatado, do carater
destrutivo da modernidade periférica.

Glück e a política do anacronismo

Mas voltando a Glück, como propulsor da destruição, valeria a pena


observar que ele provinha de uma família sensível à questão. O crítico de arte
Gustav Glück, o pai do banqueiro, defendera, em mais de uma ocasião, a
questão do anacronismo como procedimento de renovação estética, questão essa
que nos levaria, muito mais adiante, com Didi-Huberman, à consciência de que
a história só pode ser anacrônica (através da montagem) e de que só podemos
ambicionar uma história dos anacronismos (através do sintoma).
Ora, em seu livro sobre a Arte da Renascença fora da Itália, Glück
argumenta que, ao se tornar secularizada, a arte especializa os seus gêneros e
ilustra o caso com a pintura de Brueghel, o Velho—ou o camponês, Bauer—
quem não duvidou em mundanizar e vitalizar o quadro de costumes, com o qual
não mediu esforços em praticar anacronismos. “El Cristo con la Cruz representa
una ejecución como las que eran comunes en la época del duque de Alba en los
Países Bajos. El pueblo se apretuja para contemplarlo, la escena bíblica se
transforma casi en fiesta popular”—diz Glück17. Assim, também, o cerco de

14
Langer, uma das pioneiras da psicanálise em Buenos Aires, é autora, entre tantas outras obras, de um curioso
ensaio sobre “Psicanálise e ficção-científica”, de 1969.
15
Pintora visionária, muito influenciada pelo afresco renascentista, Forner expressou também profundo pathos
pela Guerra Civil Espanhola.
16
O poeta espanhol Rafael Alberti, que quando jovem quis ser pintor e sempre se sentiu muito atraído pelas artes
plásticas, morou durante quatro anos no apartamento de Araoz Alfaro, advogado do Partido Comunista
argentino, na avenida Quintana. Escreveu várias páginas a respeito da fazenda codobesa de Totoral (De los
sauces, 1940, ilustrada por duas aguas-fortes de Maria Carmen Portela) e redigiu o catálogo Maria Carmen
Portela (Buenos Aires, Losada, 1956). A biblioteca do poeta, em Cádiz, conserva um volume, autografado, de
Gustav Glück pai, sobre Brueghel, o Velho. Alberti associava a pintura de Brueghel ao verde (“florecido/verde-
Brueghel-flamenco”, ele escreve em um dos poemas de A la pintura,1948).
17
Cf. GLÜCK, Gustav - Arte del renacimiento fuera de Italia. Trad. Ramón Iglesias, com um estudo original
sobre a arte da Renascença na Espanha, por José Camón Aznar, e outro sobre as artes industriais espanholas por

10
Belém acontece, com neve, numa típica paisagem holandesa. Brueghel teria
transformado, então, coerentemente, a Torre de Babel em modelo de arquitetura
de sua época, assim como a adoração dos Reis Magos passa a evocar o estilo
fantástico do Bosco.
Assim sendo, e baseado na definição do poeta francês Maurice Scève,
quem afirmara que um pintor pode muito bem reproduzir a brancura da neve
mas nunca consegue transmitir sua temperatura, Glück conclui que “la obra de
Brueghel viene a desmentir esa afirmación”, argumentando, em suma, que o
anacronismo do artista serve, aos fins do ultrapassamento da visão, para uma
cabal abordagem anestésica. Para tanto, Brueghel teria importado da Itália
motivos dinâmicos que ele incorpora, in continente, à sua obra. Tanto por suas
inscrições latinas, quanto pelos jogos verbais, característicos das sociedades
retóricas da época, é difícil afirmar que a obra de Brueghel seja, propriamente,
popular. Destina-se, contudo, aos círculos letrados, ainda quando seu autor
“parece un Rabelais dibujando las costumbres y los vicios del siglo. De nuevo,
alejado enteramente de la concepción del artesano medieval, se nos presenta
como el artista de pensamiento moderno”18.
Ora, essa modernidade de Brueghel é diretamente tributária do princípio
compositivo adotado, o anacronismo, que, no caso, assemelha-se ao mosaico e
sua obra, portanto, não deve ser avaliada a partir da pureza de estilo mas em
função das mesclas, porque “los grandes resultados no se obtienen casi nunca
sin influencias extranjeras”19. É, justamente, essa idéia de estranhamento que
causará forte impacto em um de seus leitores, Bertold Brecht.
Com efeito, pouco antes da guerra, Brecht redige umas notas (só editadas
mais tarde, em 1957) sobre o efeito de distanciamento nas pinturas de Brueghel,
notas essas construídas a partir das análises de Glück. Eles se conheceram em
Santa Mônica, onde ambos estavam exilados. Embora o dramaturgo já tivesse
frequentado a obra do crítico de arte vienense—Helen Weigel deu-lhe de
presente, em 1934, os livros dele sobre Brueghel—o encontro californiano deve,
certamente, ter estimulado Brecht a escrever seu texto sobre o efeito de
distanciamento em Brueghel. Nele Brecht argumenta que, se analisadas a fundo,
as telas de Brueghel contêm inúmeras contradições.

En la Caída de Ícaro la catástrofe coge de sorpresa el idilio de tal forma


que contrasta ostensiblemente y surgen también valiosas consideraciones
sobre el idilio. No permite que la catástrofe modifique el idilio; más bien
éste, conservándose él mismo inalterado, es mantenido siempre intacto,
únicamente transtornado. En el gran cuadro de guerra Margarita la loca
no guía el pincel del pintor la atmósfera de pavor de la guerra, cuando

Andrés Calzada. Barcelona. Labor, 1936, p.58. Agradeço à seção Reservados da Biblioteca do Congresso, em
Buenos Aires, a consulta a essa obra de Glück.
18
IDEM – ibidem, p.61.
19
IDEM – ibidem, p.16.

11
presenta a la autora, la furia de la guerra, en su desamparo y estrechez y la
confiere un carácter de sirvienta; de esta manera crea un espanto más
profundo. Cuando en un paisaje flamenco pone un macizo alpino o
contrapone al vestido europeo de la época el vestido asiático antiguo,
entonces una cosa denuncia a la otra y la muestra en su singularidad, pero
al propio tiempo encontramos paisaje al fin y al cabo, gente por todas
partes20.

Brecht nos diz, em poucas palavras, que não há, nesses quadros, uma
única atmosfera, mas uma variedade de atmosferas—uma atmosfera
multifocalizada—e que, conquanto Brueghel ponha seus constrastes em
equilibrio, eles, entretanto, nunca são unificados pela ação do pintor. Não há
neles, portanto, uma separação do trágico e do cômico, mas, pelo contrário, o
trágico já contém o cômico, assim como o cômico incorpora também o trágico.
“Apenas habrá otro pintor que haya pintado el mundo tan hermoso como
Brueghel, el cual representó la vida de los hombres de forma tan inversa.
Transmitió a sus hombres poco prácticos, insensatos, ignorantes, un mundo
soberbio. La belleza de la naturaleza tiene en él algo prepotente, no explotado;
todavía no ha sido dominada, apenas contaminada por los hombres”21.
A contaminação nos abre, em suma, o problema da dispersão, da
disseminação, da poeira, e ela, por sua vez, nos coloca, críticamente, a relação
do artista com o tempo e a morte, isto é, o final do jogo para a arte. Diríamos,
em outras palavras, que a destruição alimenta, então, uma relativa circularidade,
a de que a reprodutibilidade ou, melhor dizendo, a destruição que se manifesta
através da reprodutibilidade, permite pensar o singular como algo absolutamente
disseminado.
Logo depois da guerra, em 1948, Gustav Glück ainda publica um livro, O
caminho da imagem. Vivido. Ouvido. Achado (Der Weg zum Bild. Erlebtes.
Erlaucschtes. Erfundenes22), onde dedica um capítulo muito instigante à
problemática do original e da cópia, não por acaso, questão central no famoso
ensaio de Benjamin sobre a obra de arte em época de reprodutibilidade infinita.
Em seu raciocínio, o paradoxo da destruição vem coincidir, sintomáticamente,
com o paradoxo da ideologia: quanto mais poderosa for a ideologia, mais ela
estará exposta à sua própria destruição. A destruição define-se, em suma, como
20
Cf. BRECHT, Bertold – “El efecto de distancianciación en los cuadros descriptivos de Breughel el Viejo” in
El compromiso en literatura y arte. Trad. J. Fontcuberta. 2ª ed. Barcelona, Península, 1984, p.200-1.
21
IDEM- ibidem, p.201 Essa construção enviesada ou oblíqua, diagonal, é ilustrada pela Torre de Babel. Brecht
observa que “la torre es construida de soslayo. Contiene elementos rocosos que ponen al descubierto lo artificial
de la construcción de piedra. El transporte de material es muy arduo; el esfuerzo es despilfarrado
ostensiblemente; arriba parece llevarse a cabo un nuevo plan que reduzca la tentativa planeada en un principio.
Reina una fuerte opresión, la actitud de los que transportan el material es muy sumisa. El jefe de las obras está
guardado por gentes armadas”. Dir-se-ia que Brueghel impõe aí uma teoria da soberania de inspiração
impolítica. Cf. ibidem, p.203.
22
GLUCK, Gustav - Der Weg zum Bild. Erlebtes. Erlaucschtes .Erfundenes. Viena. Anton Schroll & Co., 1948.
Tive acesso a essa obra na biblioteca da Universiteit Leiden, na Holanda. Agradeço à profa Marilene Nagle pela
cópia da mesma.

12
distanciamento, mas também como dispêndio. Nesse sentido, ela excede até
mesmo sua identificação figural às ruínas. Ela é gesto, dispersão, disseminação e
fulguração anacrônica da poeira.
Digamos, então, para enriquecer nosso percurso anamnésico, que o crítico
italiano Elio Grazioli, ao analisar, recentemente, fenômenos de materialização
da poeira, na arte contemporânea, fala de “polveri vere, anzi verissime, versione
ecologica della polvere, ma anche grandi metafore di una polverizzazione ormai
planetaria, ovvero di una visione planetaria della polverizzazione”, o que lhe
permite concluir, de maneira neo-barroca, que destruição e anacronismo são as
ferramentas decisivas para uma renovação da história da arte. A lição, portanto,
é simples.

Tutto è polvere, tutto può andare in polvere. Come dimenticare la nuvola


di polvere che sommerge tutta la parte sud di Manhattan dopo il crollo
delle Torri Gemelle? L’attentato terroristico inimmaginabile polverizza
nel reale un Occidente immaginario e simbolico. New York, metropoli
simbolo dell’Occidente intero, Wall Street, centro simbolico
dell’economia mondiale, ricoperti di polvere sono l’immagine più che
metaforica, indicale della minaccia, della fine imprevista e possible di un
Occidente immaginario, cioè di una presunta identità che si costruisce
ancora sull’opposizione. Il paradosso? Ancora l’arte, ancora l’
“allevamento di polvere”. Passando per l’arte, anche l’11 settembre 2001
alleva la propria polvere, si presenta come un nuovo inizio, il bisogno di
un ricominciamento. Non esiste infatti un’arte della fine, né una fine
dell’arte: la polvere in arte si alleva”23.

Mas em O caminho da imagem. Vivido. Ouvido. Achado já nos deparamos


com esses mesmos paradoxos. Cabe lembrar que a obra de Glück foi dedicada a
seu filho, Paul, mais tarde diretor do Museu Histórico de Viena, e se apresenta
em forma de diálogo entre um catedrático de arte e uma dama da nobreza. Nela
Glück discute, como já apontamos, a problemática do original e da cópia, cerne
da teoria benjaminiana sobre a obra de arte. Assim, frente a uma cópia de
Rubens feita por Delacroix, o consagrado catedrático ficcional de Glück vê, a
rigor, duas coisas, a destruição do original, claro, mas também um esforço do
artista por manter próximo de si um original cada vez mais distante, uma proto-
imagem (Urbild), completamente perdida. Afinal de contas, chega a perguntar-
se o erudito, o que saberíamos da Grécia se não fosse pelas nada nobres cópias
romanas? Uma pergunta, aliás, completamente brechtiana.
É ponto pacífico que costumamos considerar qualquer cópia como algo
inferior ao original, mas isto não porque o artista segundo seja menor do que o
primeiro. A base desse nosso equívoco reside em que, via de regra, assimilamos

23
Cf. GRAZIOLI, Elio – La polvore nell´arte. Milano, Bruno Mondadori, 2004, p.295.

13
o ato de fazer, de construir, com o de criar, o que acarreta duas consequências.
Não existem, de fato, cópias confiáveis, assim como também não há duas cópias
idênticas. Mas, nesse caso, se não existe tão somente cópia do outro mas
também do mesmo, enquanto réplica (Repliken), enquanto figura (Gleichen), a
questão da reprodução coloca, em última análise, uma questão ética, em outras
palavras, ela nos mostra que o vínculo entre arte e sociedade é, em última
instância, indecidível, já que ele descansa, como diria Ernst Bloch, no princípio
de não-simultaneidade do simultâneo (Ungleichzeitigkeit des Zeitgleichigen).
Assim sendo, até mesmo os grandes artistas, como Tiziano ou Rubens,
impossibilitados de atenderem todos os pedidos que recebiam, não duvidaram
em recorrer, aliás frequentemente, a seus discípulos, para a realização dessas
cópias. Disseminaram-se assim as versões e, por exemplo, do Cristo em pranto
de Tiziano, há a rigor três copias, uma em Viena, e outras duas em Madri. Às
vezes, esses quadros, verdadeiras provas de artista, eram pintadas a partir de
notas e instruções verbais muito precisas, e não exatamente a partir de uma
imagem contemplada, fato que comprova que a reprodução abria as portas da
dimensão anestésica da arte24.
Esse caso extremo determina, entretanto, o conjunto e nos leva a pensar
em cópias sem original, fundações sem fundador e traduções na própria língua
(in seine eigene Sprache)25, em poucas palavras, permite-nos postular histórias
anacrônicas. O erudito de Glück cita, então, o caso de uma obra de Roger van
der Weyden, conservada em um acervo dinástico (o Kreuzabnahme, exposto no
Escorial) e cita, ainda, uma cópia dele, feita por Joos van Cleeve, propriedade de
uma instituição americana (a coleção Johnson do Philadelphia Museum). Esta
última imagem é uma cópia excessivamente clara e brilhante, muito menos
intensa do que o original, não existindo entre ambas qualquer tipo de relação
espiritual interna, o qual afeta a figuralidade (o retorno) da composição (die
Gleichheit der Komposition), de modo tal, concluiríamos, que não existindo
identidade entre esses dois indivíduos (Zwischenmenschen) há, contudo, entre
eles, uma correspondência, um entre-lugar artístico (Zwischenkünstler), um
espaço de negociação.
Outro tanto teria se dado entre Tiziano e Rubens. Considerado por Rubens
como seu precursor, teve o artista de Flandres ocasião de copiá-lo em duas
oportunidades. Ainda jovem, quando o duque de Mantua encomenda-lhe uma

24
“Mit Hilfe von kleinen Skizzen, Detailzeichnungen und persönlichen Answeisungen des Haptes der Werkstatt
wird hier ein Gemalde geschaffen, das in der Konzeption völlig dessen Absichten entspricht, ohne aber seine
künstlerische Handschrift zu zeigen”. Cf. GLÜCK, Gustav - Der Weg zum Bild. Erlebtes .Erlaucschtes
.Erfundenes, op. cit., p. 190.
25
È a posição de Borges, já desenvolvida em 1926. Uma tradução não precisa passar de uma língua a outra. “¿A
qué pasar de un idioma a otro? Es sabido que el Martín Fierro empieza con estas rituales palabras: ‘Aquí me
pongo a cantar – al compás de la vigüela’. Traduzcamos con prolija literalidad: ‘En el mismo lugar donde me
encuentro, estoy empezando a cantar con guitarra’, y con altisonante perífrasis: ‘Aquí, en la fraternidad de mi
guitarra, empiezo a cantar’, y armemos luego una documentada polémica para averiguar cuál de las dos
versiones es peor. La primera, ¡tan ridícula y cachacienta!, es casi literal”. Cf. Borges, Jorge Luis – “Las dos
maneras de traducir” in Textos recobrados 1919-1929. Barcelona, Emecé, 1997, p.257-259.

14
série de réplicas de Tiziano, e já adulto, ao conhecer a coleção de pintura vêneta
de Felipe II, em Madri. Quer dizer que coube a Rubens traduzir Tiziano à sua
própria língua, obtendo como resultado algo neutro e, ao mesmo tempo, muito
complexo: uma imagem que não é Tiziano, nem Rubens, mas Tiziano e Rubens
juntos e simultâneos (Tizian und Rubens zugleich und zusammen). Em outras
palavras, a transposição madura é uma diferença—uma demora, uma reserva,
uma temporalização—do entre-lugar artístico que unia (separando-os) aos dois
artistas. Em resumo, em O caminho da imagem, fiel ao axioma aristocrático
indocti discant, et ament meminisse periti (i.e. aprendam os ignorantes e
relembrem os sábios), Glück nos ensina (e ensina, antes de mais nada, a seus
próprios filhos, tanto a Paul quanto a Gustav) que a destruição, de que seu filho
Gustav faria profissão de fé, enquanto banqueiro e político da resistência anti-
fascista, funciona, ao mesmo tempo, como distância e como excesso, já que ela
é gesto, dispersão, disseminação e fulguração anacrônica de uma materialidade
estraçalhada que, portanto, ativa-se em suspensão, ora como mera alegoria da
pulverização ontológica ocidental, ora como visão ocidental da pulverização
dessa mesma modernidade que, enfim, precipita-a em uma imagem.

Marginal ou anacrônico?

A modernidade periférica costuma interpretar essa autonomização do


campo (que Glück pai já detectara em Brueghel), de maneira especular, como
arte pela arte, isto é, como condição históricamente marginal do artista moderno.
Sérgio Milliet, que está lendo essa mesma obra de Gustav Glück, em São Paulo,
durante a guerra, observa que, para Glück, a pintura já se encontrava, a partir do
século XIV, totalmente emancipada da arquitectura. “‘Na criação dos grandes
artistas se manifesta desde então, em certo sentido, algo daquilo a que muito
mais tarde os franceses chamariam arte pela arte’. É a liberdade artística que
pouco a pouco se torna o ideal do pintor indivualista descrente da Igreja”.
Milliet ilustra essa tese, precisamente, com o caso de Brueghel, pintor das festas
camponesas, em que “os personagens têm pequena importância: são peças de
uma armação maior”, pormenores de um todo voltado aos valores telúricos.
Então, para um modernista sul-atlântico como Milliet, a obra de Brueghel, alheia
por completo à crítica política, identifica-se com os valores da vida simples e
sua marginalidade, em última instância, reside na ausência de preocupação
religiosa, isto em uma época em que a Igreja era, pura e simplesmente, tudo.
Talvez houvesse nele—imagina Milliet—“um sentimento de revolta ou de
censura que só podia manifestar-se na passividade da abolição do assunto
católico”. E, em confronto com o Bosco, diz Milliet que aquilo que o Bosco
fustiga, Brueghel reprime-o, marcando esse mesmo gesto dois valores
antagônicos, extroversão em um deles e introversão no outro26.
26
Milliet cria o conceito de marginalidade em 1942 e nos alerta para não definirmos essa posição social com
prescindência de categorias psico-analíticas (“as tendências neuróticas de cada um”). Assim, “o reconhecimento

15
Oscilando pois entre os vetores de seus próprios mestres na sociologia da
cultura—o pessimismo etnocultural de Reuter e o otimismo liberal de Pearson—
Milliet nos propõe, à maneira aliás de Stonequist, o conceito de margem como
lugar de una negociação dilacerada. É a mesma noção, aliás, que contrapõe a
sociedade fechada do trabalhador e a sociedade aberta do aventureiro, em Raízes
do Brasil, o ensaio de Sérgio Buarque de Hollanda, tão influenciado por
Simmel, como, mais tarde, também o seria Octavio Paz, em El laberinto de la
soledad. São idéias, de resto, que, mais adiante, serão retomadas por Antonio
Candido, ao apontar o artista egresso de 1922 como uma instância ambivalente
de destrutor/modernizador, o que lhe permite postular uma tipologia funcional
nas relações entre literatura e marginalidade (a essas alturas, anos 70), chamada
já, sem peias, subdesenvolvimento.
Poderíamos, no entanto, propor uma outra política do tempo: a do
anacronismo. Ela implicaria, ao mesmo tempo, a inequívoca singularidade do
evento e a ambivalente pluralidade da rede, na qual, através de uma constelação,
esse acontecimento, finalmente, amarra-se no plano simbólico. Benjamin com
Borges, Brecht com Brueghel. Desse modo, o tempo se redefine como tempo-
com (como diferença ou diferimento, como con-temporização ou atraso
originário). Significa, portanto, que a essência do tempo é uma co-essência que
atua, que se ativa, no presente de uma leitura. Mas uma co-essência abre-se, por
lógica, à própria essência do tempo-com, da con-temporização, de tal modo,
poderíamos dizer, que uma temporalização não pode ser definida, de fato, como
um conjunto aleatório de tempos quaisquer, em que o tempo da crise ficaria
sempre aberto e indefinido. Se adotássemos esse critério, com relação a qualquer
ruptura de valor ou mudança de função, os tempos enfrentados na leitura
anacrônica só poderiam ser pensados enquanto meramente acidentais. Ao
contrário, porém, a temporalização do anacronismo significa uma participação
temporal na temporalidade, ou, em suma, uma hiper-temporalização, infinita e
potencializada do evento. Se o que define o anacronismo é, portanto, a con-
temporização, o tempo-com, então, não é o tempo per se o que define a história
cultural. Aquilo que define o tempo é, pelo contrário, o com, é a sua sintaxe ou
composição, seu uso, sua política, e não uma hipotética matéria livre ou
indeterminada27. Essa conclusão, como é óbvio, nos obriga a repensar, mais uma
vez, a política do tempo, as alianças anacrônicas do crítico cultural.

da marginalidade não deve processar-se apenas através da expressão acomadatícia ou negativista, passiva ou
dissolvente. É na exata compreensão da distância verificada entre o indivíduo-satisfação e o grupo-segurança,
isto é, na fuga do artista ao controle de uma sociedade, que vamos perceber a marginalidade, delimitá-la e
caracterizá-la”. Cf. MILLIET, Sérgio - “Marginalidade da Pintura Moderna” in Sérgio Milliet - 100 anos:
trajetória, crítica de arte e ação cultural. Ed. Lisbeth Rebollo Gonçalves. São Paulo, Associação dos Críticos de
Arte/Imprensa Oficial, 2004, p. 223.
27
Cf. NANCY, Jean-Luc - Ser singular plural. Trad. Antonio Tudela Sancho. Madrid, Arena, 2006, p.46.

16

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