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Reflexões sobre a indústria cultural a partir de Pierre Bourdieu:

a importância dos conceitos de Habitus e Capital Cultural


JEAN HENRIQUE COSTA*

Resumo
Este conciso escrito tem por objetivo estabelecer um diálogo com os
conceitos de habitus e capital cultural em Pierre Bourdieu, visando
apontar algumas de suas possibilidades explicativas para uma
compreensão relacional da chamada indústria cultural. Trata-se, logo,
de um ensaio bibliográfico que busca apresentar os conceitos citados a
partir de uma de suas possibilidades de operacionalização, isto é, o
consumo midiático.
Palavras-chave: Pierre Bourdieu; Habitus; Capital Cultural; Indústria
Cultural; Consumo Midiático.

Abstract
This concise essay established a dialogue with the concepts of habitus
and cultural capital in Pierre Bourdieu, in order to point out some of
its explanatory possibilities for an relational understanding of so
called cultural industry. It is, therefore, a bibliographic essay that
seeks to present the concepts quoted from one of his possibilities of
operation, namely, the media consumption.
Key words: Pierre Bourdieu; Habitus; Cultural Capital, Cultural
Industry; Media Consumption.

*
JEAN HENRIQUE COSTA é Doutor em Ciências Sociais (PGCS/UFRN). Professor
Adjunto IV da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

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Pierre Bourdieu e a domínio expresso das
Sociologia da Prática operações necessárias para
atingi-los e coletivamente
Para Pierre Bourdieu, orquestradas, sem ser o
os julgamentos produto da ação
estéticos não são organizadora de um regente
simplesmente reflexos (BOURDIEU, 1994, p. 60-
de vontades 61).
individuais (primado O conceito de habitus
da ação), nem permite ver os processos
tampouco sociais não apenas como
substancialmente reflexos do espaço social,
macro-determinações mas também, como
de arranjos coercitivos criatividade dos agentes.
(primado da estrutura). Daí que o exame
Resultam, pois, de oferecido por Bourdieu é,
toda herança cultural e deste modo, uma análise
social do indivíduo, de mão dupla, isto é,
segundo seus níveis de entre as estruturas objetivas (dos
capital cultural, obtidos por meio da campos sociais) e as estruturas
família e da instituição escolar, que, incorporadas (do habitus).
relacionalmente, definem atitudes em
relação à cultura e, num jogo de Segundo Loïc Wacquant (2007, p. 65-
aceitações, negociações e recusas – nas 66), o habitus transcende a oposição
estruturas estruturadas e estruturantes entre objetivismo e subjetivismo na
(habitus) –, deliberam as disposições medida em que se trata de uma noção
sociais (dentre elas, o gosto). mediadora entre a interiorização da
exterioridade e a exteriorização da
Prontamente, para a compreensão do interioridade, ou seja, a sociedade torna-
consumo midiático é mister considerar se depositada nas pessoas sob a forma
o conceito bourdieusiano de habitus. de disposições duráveis e propensões
Objetivamente, trata-se de disposições estruturadas para pensar, sentir e agir,
duráveis – por isso a proximidade com que então as guiam em suas respostas
o hábito –, todavia, estruturantes, criativas aos constrangimentos e
criadoras de práticas que podem ser solicitações de seu meio social
reguladas ao mesmo tempo sem ser o existente.
resultado unilateral da coerção direta de
determinados arranjos sociais. Assim, Contra o estruturalismo, a teoria do
por habitus Bourdieu entende os: habitus reconhece que os agentes
fazem ativamente o mundo social
Sistemas de disposições duráveis, por meio do envolvimento de
estruturas estruturadas predispostas instrumentos incorporados de
a funcionar como estruturas construção cognitiva; mas também
estruturantes, isto é, como princípio afirma, contra o construtivismo, que
gerador e estruturador das práticas e estes instrumentos foram também
das representações que podem ser eles próprios feitos pelo mundo
objetivamente “reguladas” e social (WACQUANT, 2007, p. 67).
“regulares” sem ser o produto da
obediência a regras, objetivamente Bourdieu proporciona, então, uma
adaptadas a seu fim sem supor a perspectiva de análise da vida social
intenção consciente dos fins e o mais ancorada numa busca de síntese

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epistemológica do que a partir do produtos, mas também, produtores de
“objetivismo”. Segundo Ortiz (1994), a significados, modos de reflexão e
perspectiva teórica de Bourdieu busca condução da vida cotidiana.
uma mediação entre o agente social e a
Habitus: estabelecendo proximidades
sociedade, no qual os métodos
e distâncias sociais
epistemológicos oscilam entre o
objetivismo e a fenomenologia. Adentrando na discussão sobre habitus
“Enquanto a perspectiva e disposição estética,
fenomenológica parte da experiência conseqüentemente, a cada classe de
primeira do indivíduo, o objetivismo habitus corresponde um conjunto de
constrói as relações objetivas que afinidades, gerando, por conseguinte,
estruturam as práticas individuais” proximidades e distâncias sociais.
(ORTIZ, 1994, p. 08). É exatamente A cada classe de posições
dessa polarização que Bourdieu procura corresponde uma classe de habitus
se esquivar. (ou de gostos) produzidos pelos
condicionamentos sociais
Assim, Bourdieu resolve esse problema associados à condição
epistemológico por meio de um correspondente e, pela
conhecimento intitulado praxiológico, intermediação desses habitus e de
ou seja, uma sociologia da prática, suas capacidades geradoras, um
baseada no reequacionamento da conjunto sistemático de bens e de
dicotomia entre estrutura e ação, propriedades, vinculadas entre si
controvérsia nascida com Durkheim por uma afinidade de estilo
(objetivismo) e Weber (subjetivismo) e (BOURDIEU, 1996, p. 21).
perpetuada ao longo do pensamento O habitus é, portanto, um conjunto
sociológico moderno. Ao reequacionar unificador e separador de pessoas, bens,
esse problema, ou seja, da interioridade escolhas, consumos, práticas, etc. O que
da exterioridade e da exterioridade da se come, o que se bebe, o que se escuta
interioridade – retomado de Sartre, e o que se veste constituem práticas
conforme lembra Ortiz –, Bourdieu distintas e distintivas; são princípios
possibilita uma análise, até certo ponto, classificatórios, de gostos e estilos
conciliadora de um indivíduo que é diferentes. O habitus estabelece, perante
produto, mas também produtor da esses esquemas classificatórios, o que é
sociedade (e História), ou seja, a requintado e o que é vulgar, sempre de
estrutura é estruturada, mas também forma relacional, já que, “por exemplo,
estruturante. o mesmo comportamento ou o mesmo
Ainda de acordo com Ortiz (1994, p. bem pode parecer distinto para um,
11), “o objetivismo constrói uma teoria pretensioso ou ostentatório para outro e
da prática, mas somente enquanto vulgar para um terceiro” (BOURDIEU,
subproduto negativo”. Do lado oposto, 1996, p. 22).
o método fenomenológico considera o Com Bourdieu, tomando-se, por
mundo objetivo como uma rede de exemplo, o “gosto” musical como mira,
intersubjetividade. Em ambos os casos este não pode ser visto apenas como
não ocorre nenhuma tentativa relacional uma subjetividade direta, mas também,
de síntese. como uma objetividade interiorizada,
O conceito de habitus é relacional e isto é, com um quantum de ação,
procura sair dessa situação. Trata-se de contudo, também condicionado pela
modos de ser, pensar e agir que são estrutura social.

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Em sua obra douta no normas de sua
assunto – A Distinção própria percepção e,
– Bourdieu já nos tacitamente, define o
mostra que o modo de percepção
chamado “gosto” não que aciona certa
é um privilégio disposição e certa
natural, mas sim, competência como o
resultado do processo único legítimo”
geral de educação, (BOURDIEU, 2008,
seja ligado à p. 32)1. Assim, sem o
instrução formal, seja acesso ao meio de
ligado à herança decodificação da arte
cultural familiar. não se tem acesso ao
Assim: seu entendimento.
Decididamente, seu
consumo fica
Contra a ideologia carismática obstruído. “A obra de arte só adquire
segundo a qual os gostos, em sentido e só tem interesse para quem é
matéria de cultura legítima, são dotado do código segundo o qual ela é
considerados um dom da natureza, codificada” (BOURDIEU, 2008, p. 10).
a observação científica mostra que
As obras produzidas pelo campo de
as necessidades culturais são o
produção erudita são obras ‘puras’,
produto da educação: a pesquisa
‘abstratas’ e esotéricas. Obras
estabelece que todas as práticas
‘puras’ porque exigem
culturais (freqüência dos museus,
imperativamente do receptor um
concertos, exposições, leituras, etc.)
tipo de disposição adequado aos
e as preferências em matéria de
princípios de sua produção, a saber,
literatura, pintura ou música, estão
uma disposição propriamente
estreitamente associadas ao nível de
estética. Obras ‘abstratas’ pois
instrução (avaliado pelo diploma
exigem enfoques específicos, ao
escolar ou pelo número de anos de
contrário da arte indiferenciada das
estudo) e, secundariamente, à
sociedades primitivas, e mobilizam
origem social (BOURDIEU, 2008,
em um espetáculo total e
p. 09).
diretamente acessível todas as
formas de expressão, desde a
Deste modo, Bourdieu consegue
música e a dança, até o teatro e o
descortinar o acesso e a decodificação canto. Por último, trata-se de obras
da obra de arte erudita como esotéricas tanto pelas razões já
naturalização do espírito. Mostra, pelo aludidas como por sua estrutura
contrário, que o consumo e o complexa que exige sempre a
conseqüente entendimento da obra de referência tácita à história inteira
arte legítima se dão pelo domínio do das estruturas anteriores. Por este
código daquela obra, código esse que é, motivo, são acessíveis apenas aos
por sua vez, criado pelo próprio sistema detentores do manejo prático ou
de produção da obra de arte legítima, teórico de um código refinado e,
que consegue criar as regras de conseqüentemente, dos códigos
produção do sentido “legítimo” da obra, 1
Como não nos deixa esquecer Max Weber
bem como seus respectivos meios de (2000, p. 139): todas as dominações “procuram
decodificação. Prontamente, “toda a despertar e cultivar a crença em sua
obra legítima tende a impor, de fato, as ‘legitimidade’”.

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sucessivos e do código desses do espírito” (BOURDIEU, 2008, p. 23),
códigos. Destarte, enquanto que a somente pode ser entendida por quem
recepção dos produtos do sistema domina seu código. As camadas
da indústria cultural é mais ou populares, aquilo que Ortega Y Gasset
menos independente do nível de
(1959) chamou de homem-massa 2 , não
instrução dos receptores (uma vez
dominam tal codificação. Por não
que tal sistema tende a ajustar-se à
demanda), as obras de arte erudita fazerem parte de seu mundo cotidiano,
derivam sua raridade propriamente esses bens culturais legítimos terminam
cultural e, por esta via, sua função se distanciando da lógica cultural de
de distinção social, da raridade dos grande parte da população que, em sua
instrumentos destinados a seu formação cultural familiar/escolar, não
deciframento, vale dizer, da teve contato com os meios necessários à
distribuição desigual das condições decodificação erudita. Destarte, se
de aquisição da disposição afugentam.
propriamente estética que exigem e
do código necessário à Para o público que está fora dessa
decodificação (por exemplo, através produção simbólica, a superfície da
do acesso às instituições escolares música legítima (séria) parece
especialmente organizadas com o demasiadamente estranha e
fim de inculcá-la), e também das desconcertante. Portanto, é primoroso
disposições para adquirir tal código inferir que, não apenas na produção,
(por exemplo, fazer parte de uma mas relacionalmente no consumo, o
família cultivada) (BOURDIEU,
campo da produção erudita se diferencia
1987, p. 116-117).
de forma objetiva do campo da indústria
Como conseqüência, aquele que não cultural. Nessa diferenciação Bourdieu
domina o arcabouço conceitual termina é bastante claro:
por se distanciar dessas chamadas artes O sistema de produção e circulação
nobres do espírito, uma vez que não de bens simbólicos define-se como
consegue decodificar sua mensagem, o sistema de relações objetivas
seu estilo, sua “aura”, conforme termo entre diferentes instâncias definidas
benjaminiano. Portanto, sente-se pela função que cumprem na
divisão do trabalho de produção, de
embaralhado. “O espectador desprovido
reprodução e de difusão de bens
do código específico sente-se submerso, simbólicos. O campo de produção
‘afogado’, diante do que lhe parece ser propriamente dito deriva sua
um caos de sons e de ritmos, de cores e estrutura específica da oposição –
de linhas, sem tom nem som”
(BOURDIEU, 2008, p. 10). 2
Homem-Massa: “Um tipo de homem feito de
pressa, montado tão somente sobre umas
Com o consumo midiático não é quantas e pobres abstrações [...] Idêntico em
diferente. Conforme destaca qualquer parte [...] Esse homem-massa é o
oportunamente Theodor. W. Adorno: homem previamente esvaziado de sua própria
história, sem entranhas no passado [...] Mais do
“aquele que não entende alguma coisa que um homem, é apenas um casco de homem
projeta, com uma inteligência superior constituído por meros idola fori; carece de um
semelhante à do asno da canção de ‘dentro’, de uma intimidade sua [...] Massa é
Mahler, sua insuficiência sobre o todo aquele que não se valoriza a si mesmo – no
objeto, explicando-o como algo bem ou no mal – por razões especiais, mas que
se sente ‘como todo mundo’, e, entretanto, não
incompreensível” (ADORNO, 2001, p. se angustia, sente-se à vontade ao sentir-se
146). Daí que a chamada música idêntico aos demais”. (ORTEGA Y GASSET,
erudita, “a mais espiritualista das artes 1959, p. 28-59).

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mais ou menos marcada conforme é [...]” (BOURDIEU, 2004, p. 30).
as esferas da vida intelectual e Certamente, a relação entre os
artística – que se estabelece entre, produtores e a demanda é estrutural
de um lado, o campo de produção nessa distinção:
erudita enquanto sistema que
produz bens culturais (e os
Um empreendimento encontra-se
instrumentos de apropriação destes
tanto mais próximo do pólo
bens) objetivamente destinados (ao
comercial (ou, inversamente, mais
menos a curto prazo) a um público
afastado do pólo cultural), quanto
de produtores de bens culturais que
mais direta ou completamente os
também produzem para produtores
produtos oferecidos por ele no
de bens culturais e, de outro, o
mercado corresponderem a uma
campo da indústria cultural
demanda preexistente, ou seja, a
especificamente organizado com
interesses preexistentes, e a formas
vistas à produção de bens culturais
preestabelecidas (BOURDIEU,
destinados a não-produtores de bens
2004, p. 59).
culturais (‘o grande público’) que
podem ser recrutados tanto nas
frações não-intelectuais das classes Por exemplo, toda canção ou filme
dominantes (‘o público cultivado’) popular é, evidentemente, produzido
como nas demais classes sociais. conforme as regras abertas de um
Ao contrário do sistema da mercado que, em si, pretende que tal
indústria cultural que obedece à lei bem seja compreendido por todos. A
da concorrência para a conquista do música de massa, como indústria
maior mercado possível, o campo cultural, tem que chegar a todos os
da produção erudita tende a ouvidos sem nenhuma obstrução.
produzir ele mesmo suas normas de
Caracteriza-se, segundo as
produção e os critérios de avaliação
de seus produtos [...] (BOURDIEU,
hierarquizações presentes nos espaços
1987, p. 105). sociais, como indústria cultural,
aprofundando cada vez mais a distância
Assim, o campo da indústria cultural em relação aos bens culturais eruditos.
obedece fundamentalmente aos
imperativos do mercado. Logo, seus Em termos de distinção no espaço
produtos decorrem das condições de sua social, reforça Bourdieu (2008, p. 57),
produção, tendo seu sistema submetido “para aqueles que julgam ser detentores
a uma demanda externa: todos a do gosto legítimo, o mais intolerável é,
compreendem, pois são bens produzidos acima de tudo, a reunião sacrílega dos
segundo o nível do público. Nesse gostos que, por ordem do gosto, devem
ínterim, o elemento basal na distinção estar separados”: comerciais x não
entre arte legítima e arte da indústria comerciais; bens legítimos x bens
cultural é a proximidade com o mercado criados pelas mãos do mercado. O
e sua relação com uma demanda consumo cultural é, então, marca de
preestabelecida. distinção de classe, criador e criatura
dessa diferenciação no espaço social.
A oposição entre o elemento comercial
Em suma, “as diferenças de capital
e o não comercial se encontra por toda
parte: “ela é o princípio gerador da cultural marcam as diferenças entre as
classes” (BOURDIEU, 2008, p. 67) e,
maior parte dos julgamentos que, em
matéria de teatro, cinema, pintura, conseqüentemente, de gosto e
apropriação estética. O capital cultural é
literatura, pretendem estabelecer a
fronteira entre o que é arte e o que não o orquestrador dessa disposição.

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Capital Cultural: família e escola As crianças oriundas dos meios
estruturando habitus mais favorecidos não devem ao seu
meio somente os hábitos e
Para Bourdieu (2007, p. 74-78), o treinamento diretamente utilizáveis
capital cultural existe em três estados: nas tarefas escolares, e a vantagem
incorporado, objetivado e mais importante não é aquela que
institucionalizado. O estado retiram da ajuda direta que seus
incorporado nos mostra que a pais lhes possam dar. Elas herdam
acumulação de capital cultural exige, também saberes (e um ‘savoir-
faire’), gostos e um ‘bom gosto’,
por parte do indivíduo, uma
cuja rentabilidade escolar é tanto
incorporação que pressupõe um trabalho maior quanto mais freqüentemente
de inculcação e de assimilação, um esses imponderáveis da atitude são
tempo que deve ser investido atribuídos ao dom [...] O privilégio
pessoalmente pelo sujeito, um trabalho cultural torna-se patente quando se
de aquisição do sujeito sobre si mesmo. trata da familiaridade com obras de
Sintetizando: um investimento paciente arte, a qual só pode advir da
e árduo no mundo das economias freqüência regular ao teatro, ao
simbólicas. O estado objetivado, por sua museu ou a concertos (freqüência
vez, expressa “o capital cultural que não é organizada pela escola,
objetivado em suportes materiais, tais ou é somente de maneira
esporádica). Em todos os domínios
como escritos, pinturas, monumentos
da cultura, teatro, música, pintura,
etc.”. Diferente do estado incorporado jazz, cinema, os conhecimentos dos
que é intransferível, o estado objetivado estudantes são tão mais ricos e
é transmissível em sua materialidade, ou extensos quanto mais elevada é a
seja, a possessão dos instrumentos que sua origem social (BOURDIEU,
permitem desfrutar de um quadro ou 2007, p. 45).
utilizar uma máquina. Por fim, o estado
Vê-se, por conseguinte, que as
institucionalizado representa a
desigualdades sociais já chegam ao
certificação (“escolar”) dos estados
sistema escolar herdadas do meio
anteriores.
familiar, que torna, de antemão, cada
Esse capital cultural é obtido em dois criança desigual conforme o capital
ambientes específicos: através da cultural herdado.
herança do meio familiar e da A escola, conseqüentemente, também
instituição escolar. Para o autor, “cada contribui nesse processo de instituição
família transmite a seus filhos, mais por das disposições estéticas. A escola é,
vias indiretas que diretas, um certo relacionalmente, um espaço social no
capital cultural e um certo ethos, qual se interioriza o arbitrário cultural3.
sistema de valores implícitos e
profundamente interiorizados”
(BOURDIEU, 2007, p. 41-42). Essa
3
transmissão vai muito além dos “[...] a AP [ação pedagógica] implica o
investimentos em certificação escolar. trabalho pedagógico (TP) como trabalho de
inculcação que deve durar o bastante para
Transmite-se via família, para além do
produzir uma formação durável; isto é, um
estado institucionalizado do capital habitus como produto da interiorização dos
cultural, toda uma disposição estética, princípios de um arbitrário cultural capaz de
todo um sistema de disposições perpetuar-se após a cessação da AP e por isso de
culturais que definem as atitudes do perpetuar nas práticas os princípios do arbitrário
interiorizado” (BOURDIEU; PASSERON,
indivíduo frente aos bens simbólicos.
1992, p. 44).

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Logo, é responsável pelas disposições uso, as competências julgadas
estéticas em razão de sua legitimidade. necessárias em determinado
momento, assim como espaços em
Daí que um indivíduo educado numa que se forma o valor de tais
família que consome os bens da competências, ou seja, como
indústria cultural cotidianamente, e que mercados que, por suas sanções
não tem acesso ao arbitrário cultural positivas ou negativas, controlam o
legítimo via Escola, somente pode ter o desempenho, fortalecendo o que é
consumo midiático da indústria cultural ‘aceitável’, desincentivando o que
como recurso de sentido maior em seus não é, votando ao desfalecimento
meios de entretenimento. Distintamente: gradual as disposições desprovidas
de valor (BOURDIEU, 2008, p.
A imersão em uma família em que 82).
a música é não só escutada (como
ocorre nos dias de hoje com o Indivíduos socializados sem herança
aparelho de alta fidelidade ou o cultural familiar portadora do habitus
rádio), mas também praticada musical legítimo e educados em
(trata-se da ‘mãe musicista’ instituições de ensino não voltadas para
mencionada nas Memórias o fomento de uma cultura artística
burguesas) e, por maior força da
legítima terminam desprovidos do
razão, a prática precoce de um
instrumento de música ‘nobre’ - e, acesso aos códigos para os mercados de
em particular, o piano - têm como bens simbólicos eruditos. Terminam
efeito, no mínimo, produzir uma consumindo, muito provavelmente, os
relação mais familiar com a música bens culturais da chamada indústria
que se distingue da relação sempre cultural.
um tanto longínqua, contemplativa
e, habitualmente, dissertativa de Bourdieu reconhece que o elemento
quem teve acesso à música pelo orquestrador do consumo dos bens da
concerto e, a fortiori, pelo disco indústria cultural é o caráter pessoal e
(BOURDIEU, 2008, p. 73). direto de tais códigos. “Seja no teatro ou
Deste modo, por exemplo, o contato no cinema, o público popular diverte-se
com a música erudita desde cedo, seja com as intrigas orientadas, do ponto de
por meio da prática musical, seja por vista lógico e cronológico, para um
meio da freqüência a concertos, cria happy end...” (BOURDIEU, 2008, p.
esse habitus musical erudito. Logo, o 35). Daí que o consumo desses bens não
capital cultural constitui-se no elemento pode ser pensado somente como
basilar para a definição do tipo de imposição de algo, mas sim, como a
consumo cultural que o indivíduo terá sugestão de algo que faz sentido. Para
como habitus (de classe). Bourdieu (2008, p. 37), a música
popular, por exemplo, é mais “popular”
A família e a escola são os espaços nos em razão de ser menos eufemística e
quais se formam esses juízos de oferecer um prazer mais imediato. “...
atribuições. São os dois espaços que são mais ‘populares’ que outros
possibilitam ao indivíduo o ingresso nas espetáculos [pois] deve-se ao fato de
distintas formas de uso e decodificação que, por serem menos formalizados [...]
da economia legítima dos bens e menos eufemísticos, eles oferecem
simbólicos. satisfações mais diretas e imediatas”.
A família e a escola funcionam, Logo, a música de massa faz mais
inseparavelmente, como espaços sentido para as camadas populares, uma
em que se constituem, pelo próprio vez que possui uma codificação mais

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direta para qualquer pessoa apreender, capital cultural do ouvinte. A figura
diferentemente dos bens da economia abaixo mostra graficamente uma
cultural legítima. representação simples desse consumo,
fundada numa relação entre
Nesse sentido, o consumo midiático
escolarização e origem cultural familiar.
obedece, fundamentalmente, ao nível de

Capital Cultural Herdado (Família)


Competência Cultural Legítima

Capital Cultural Institucionalizado (Escola)


Figura 01 – Competência Cultural Legítima
Fonte: Resumidamente adaptado de Bourdieu (2008).

Como desfecho, o consumo midiático é domínio do código de leitura de sua


produto e produtor direto do capital estrutura. Sem tal código o encontro é
cultural do ouvinte. Tal capital cultural estruturalmente dificultado.
é definidor desse consumo. Definidor e
definido pelo habitus (de classe), o
indivíduo consome aquilo que, em Referências
geral, faz parte de seu cotidiano e que, ADORNO, Theodor W. Prismas: crítica
primeiramente, o habilita a decifrar os cultural e sociedade. Tradução de Augustin
códigos que o rodeiam. Assim, seria Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São
Paulo: Ática, 2001.
muitíssimo improvável verificar um
conjunto de operários ouvindo Alban BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social
do julgamento. Tradução de Daniela Kern e
Berg em meio à edificação de um
Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: EDUSP;
shopping center. Faltaria o capital Porto Alegre: Zouk, 2008.
cultural necessário à decifração do
________. Escritos de Educação. In:
código específico a este tipo de bem NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio
cultural. Daí que “um operário consegue (orgs.). Pierre Bourdieu: escritos de educação.
discernir entre alguns nomes de pintores 9. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
famosos, como Picasso, mas sem ________. A produção da crença: contribuição
compreendê-los realmente na natureza para uma economia dos bens simbólicos.
de suas obras” (ORTIZ, 2000, p. 187). Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira
Para o entendimento – decodificação – e Maria da Graça Jacintho Setton. 2. ed. São
da chamada arte legítima, requer-se o Paulo: Zouk, 2004.

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________. O poder simbólico. Tradução de ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das
Fernando Tomaz. 6. ed. Rio de Janeiro: massas. Tradução de Herrera Filho. Rio de
Bertrand Brasil, 2003. Janeiro: Livro Ibero Americano, 1959.
________. Compreender. In: BOURDIEU, ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São
Pierre (org.). A miséria do mundo. Tradução Paulo: Brasiliense, 2000.
de Mateus S. Soares Azevedo et al. 5 ed.
________. A procura de uma sociologia da
Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
prática. In: ORTIZ, R. (org.). Pierre Bourdieu.
________. Razões práticas: sobre a teoria da 2. ed. São Paulo: Ática, 1994.
ação. Tradução de Mariza Corrêa. 9. ed.
WACQUANT, Loïc. Esclarecer o habitus.
Campinas, SP: Papirus, 1996.
Educação & Linguagem, ano 10, n. 16, p. 63-
________. Esboço de uma teoria da prática. In: 71, jul./dez. 2007.
ORTIZ, R. (org.). Pierre Bourdieu. 2. ed. São
WEBER, Max. Os tipos de dominação. In:
Paulo: Ática, 1994. (Coleção Grandes Cientistas
________. Economia e sociedade:
Sociais, n. 39).
fundamentos da sociologia compreensiva. Vol.
________. O mercado de bens simbólicos. In: 1. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe
MICELI, Sergio (org.). A economia das trocas Barbosa. 3. ed.Brasília: Editora UNB, 2000.
simbólicas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1987.
________; PASSERON, Jean Claude. A
Recebido: 2012-08-26
reprodução: elementos para uma teoria do
Publicado: 2013-01-03
sistema de ensino. Tradução de Reynaldo
Bairão. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1992.

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