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SEMINÁRIO PRESBITERIANO DO SUL

RICARDO BERBET PORTO

A PROVIDÊNCIA DE DEUS E A EXPANSÃO DO EVANGELHO:

Uma análise no livro de Atos.

Campinas SP
2018
1

RICARDO BERBET PORTO

A PROVIDÊNCIA DE DEUS E A EXPANSÃO DO EVANGELHO:

Uma análise no livro de Atos.

Monografia a ser apresentada ao Seminário


Presbiteriano do Sul, como exigência do quarto
ano.
Tutor: Rev. Paulo César Tomaz

Campinas - SP
2018
2

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, por me capacitar na realização dessa monografia e


em todo o tempo de estudo, por me fortalecer em momentos de dificuldades, me mantendo
firme para chegar a esse tempo tão importante de minha vida e por ter realizado esse chamado
tão especial de ser um ministro de sua Palavra. A Ele toda a glória eternamente.
Sou grato à minha família. À minha esposa por estar sempre ao meu lado, por seu
auxílio que foi fundamental para a concretização dessa obra e, especialmente, pelo seu cuidado
com nosso filho. Ao meu filho, Gabriel, que sempre está com seu lindo sorriso, alegrando
nossos dias.
Agradeço aos meus pais: Levi e Suzi, à minha irmã, Uly, e sua família. Muito obrigado
por sempre estarem perto e me incentivando na caminhada. Também agradeço aos meus sogros:
Paulo e Ivanilde que, especialmente nesse ano, estiveram muito próximos auxiliando no
cuidado do Gabriel.
Agradeço também ao meu tutor Rev. Michael Fassheber Vallim Cruz, que me
acompanhou nesse tempo de estudos, à Igreja Presbiteriana Comunidade Viver por acreditar e
investir em meu ministério, assim como o Presbitério Metropolitano de Campinas, ao qual
também sou grato.
Agradeço ao meu Rev. Paulo César Tomaz, por todo tempo e conhecimento dedicados
na orientação do desenvolvimento dessa monografia.
Agradeço à minha turma do Seminário e peço a Deus que sejamos fiéis ao seu
chamado. Pastores segundo o coração dele.
Agradeço também ao Seminário Presbiteriano do Sul, à direção, aos professores e
funcionários.
3

RESUMO

O presente trabalho busca apresentar, a partir das Escrituras Sagradas, a doutrina da


providência de Deus e sua importância na expansão do evangelho. Para isso, são usadas,
também, obras que abordam o assunto em questão, assim como a confissão de fé de
Westminster. Inicialmente, explana-se a doutrina da providência para facilitar o entendimento
da sequência do trabalho. Em seguida, o olhar é direcionado para o livro de Atos dos Apóstolos,
analisando-se como Deus trabalhou cuidadosamente nos passos iniciais do cristianismo. Nesse
ponto, aborda-se a atuação providencial de Deus para romper as barreiras que se levantaram
contra o evangelho e, por fim, discorre-se sobre a direção dada por Deus às missões. Dessa
maneira, percebe-se a expansão do evangelho por Jerusalém, toda a Judeia e Samaria, e até os
confins da Terra, cumprindo-se, assim, a promessa e a grande comissão de Cristo em Atos 1.8.

PALAVRAS-CHAVE: providência, expansão, missão, evangelho, cristianismo, igreja,


crescimento.
4

ABSTRACT

The present work aims to present the God's doctrine of Providence and its role in the
expansion of the gospel, according to the Holy Scriptures. For the given purpose, works dealing
with the subject in question are used, as well as Westminster Confession. Initially, the doctrine
of providence is explained to facilitate the understanding of the work's development. Then the
attention is driven to the book of Acts of the Apostles examining how God worked carefully in
the early steps of Christianity. At this point, the approach is directed to God's providential action
to break the barriers that had arisen against the gospel, and finally, the discussion on the
direction given by God to the missionary activity. In this way it is noticed the growth of the
gospel in Jerusalem, all Judea and Samaria, and to the ends of the earth, fulfilling Christ's
promise and great commission of Acts 1.8.

KEYWORDS: providence, expansion, mission, gospel, christianity, church, growth, Acts.


5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 7

BASE CONFESSIONAL ........................................................................................................... 9

1 PROVIDÊNCIA DIVINA ..................................................................................................... 10

1.1 Definição ............................................................................................................................ 10

1.2 Erros cometidos quanto a essa doutrina ............................................................................. 11

1.3 Três contextos ..................................................................................................................... 13

1.4 Elementos da providência................................................................................................... 14

1.4.1 Preservação ...................................................................................................................... 14

1.4.2 Concorrência.................................................................................................................... 17

1.4.3 Governo ........................................................................................................................... 21

1.5 A providência e outras doutrinas ........................................................................................ 23

1.5.1 A providência e o decreto de Deus .................................................................................. 23

1.5.2 A providência e a responsabilidade humana ................................................................... 24

1.5.3 A Providência e a oração ................................................................................................. 26

1.5.4 A providência e os milagres ............................................................................................ 28

1.5.5 A providência e os atos maus .......................................................................................... 29

2 DEUS, POR SUA PROVIDÊNCIA, ROMPE BARREIRAS............................................... 32

2.1 Barreiras linguísticas .......................................................................................................... 32

2.2 Barreiras Socioeconômicas................................................................................................. 35

2.2.1 Comunhão na igreja de Jerusalém ................................................................................... 35

2.2.2 Comunhão entre igrejas ................................................................................................... 38

2.3 Barreiras étnicas ................................................................................................................. 39

2.3.1 O cristianismo e os samaritanos ...................................................................................... 40

2.3.2 O cristianismo e os gentios .............................................................................................. 42

2.4 Barreiras governamentais ................................................................................................... 45

2.4.1 Sinédrio............................................................................................................................ 46
6

2.4.2 Herodes ............................................................................................................................ 49

2.5 Barreira teológica ............................................................................................................... 52

2.6 Barreiras diversas ............................................................................................................... 55

3 DEUS, POR SUA PROVIDÊNCIA, DIRIGE A EXPANSÃO DO EVANGELHO ............ 57

3.1 Perseguição ......................................................................................................................... 57

3.1.2 Samaria ............................................................................................................................ 58

3.1.2 Igreja de Antioquia .......................................................................................................... 60

3.2 Encontros agendados por Deus .......................................................................................... 61

3.1.1 Filipe e o Etíope............................................................................................................... 62

3.2.2 A conversão de Saulo ...................................................................................................... 66

3.3 As viagens missionárias e a direção do Espírito ................................................................ 69

3.3.1 O Espírito diz sim!........................................................................................................... 69

3.3.2 O Espírito diz não!........................................................................................................... 73

3.4 De Jerusalém à Roma ......................................................................................................... 75

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 83

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 85


7

INTRODUÇÃO

A providência divina é extensamente tratada em obras de teologia sistemática, estando


presente, também, em inúmeros livros que abordam especificamente esse assunto. Apesar de
toda atenção dada o tópico em questão não é encontrado de forma explícita na Bíblia, no
entanto, essa doutrina é, de fato, fundamentalmente bíblica. Sendo possível perceber essa
realidade em textos doutrinários, e, também, em narrativas bíblicas, como as de José, Moisés e
Daniel.
Esse tema foi de vital importância, não só para a solidificação da igreja primitiva, como
também para a sua consequente expansão.
Em Atos 1.8, Jesus, antes de ascender aos céus, deixou aos seus discípulos uma
promessa que é ao mesmo tempo uma comissão: “mas recebereis poder, ao descer sobre vós o
Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia, Samaria
e até aos confins da terra.”1 Esse texto traz a percepção de como tal promessa foi levada adiante
por Deus, utilizando e capacitando instrumentos de sua providência, para alcançar a expansão
numérica e geográfica do cristianismo. A narrativa de Lucas mostra que Deus estava agindo
através dos eventos políticos, sociais e religiosos que permearam os eventos históricos
vivenciados pela humanidade para assim consolidar o cristianismo fazendo-o continuar a se
expandir até os dias atuais e vindouros.
O trabalho está dividido em três capítulos com seus tópicos. O primeiro foi escrito com
o objetivo de tentar trazer alguma reflexão a respeito da doutrina da providência. Iniciando com
definições encontradas por alguns autores, seguido de uma análise de equívocos cometidos na
tentativa de interpretar essa doutrina. Aborda-se também em quais contextos da criação é
possível observar a atuação da providência divina. O capítulo segue tratando do
desenvolvimento dos elementos da providência: - a preservação, mostrando que Deus criou
todas as coisas, atribuindo a elas propriedades para que permaneçam em funcionamento e,
através do seu sustento, mantém ativa toda a criação; - a concorrência, que descreve a maneira
como Deus atua nos poderes secundários e com o auxílio deles, usando suas propriedades e leis
de forma que todas as coisas aconteçam como ele quer; - e o governo, no qual Deus dirige todas
as coisas para que cumpram os seus decretos. Por fim, o capítulo encerra mostrando como a
providência se relaciona com outras doutrinas, as quais são importantes no desenvolvimento
dessa obra.

1
ALMEIDA, João Ferreira. Bíblia Sagrada. Edição Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil;
(Os textos bíblicos sempre serão utilizados nessa versão da Bíblia).
8

O segundo capítulo se desenvolve especificamente no livro de Atos. Abordam-se


barreiras que se levantaram de forma contrária à expansão do evangelho e como Deus, no
domínio de sua providência, as transpôs para que a propagação de sua Palavra pudesse
expandir-se globalmente. O capítulo começa com a barreira linguística que se estabeleceu pela
iniquidade do povo em Babel (Gn 11.1-9) e foi transposta de maneira extraordinária por Deus
(At 2). A segunda barreira rompida por Deus foi a socioeconômica, nas quais o Espírito encheu
a igreja promovendo igualdade entre irmãos (At 2.42-47; 4.32-5.11; 6.1-7) e entre igrejas irmãs
(At 11.27-30). As barreiras étnicas foram uma das mais fortes resistências ao evangelho, porém,
também rompidas por Deus de maneira que o evangelho chegou primeiro aos samaritanos (At
8) e depois aos gentios (At 10). Levantaram-se, também barreiras de governos religiosos,
através do sinédrio (At 4 a 7) e políticos (At 12). Por fim, aborda-se a forma como Deus rompe
a barreira teológica, quando judaizantes impõem aos gentios a circuncisão e o cumprimento da
lei de Moisés como requisitos para a salvação, o que tendia a anular, consequentemente, a
suficiência de Cristo (At 15).
O último capítulo destaca como Deus agiu providencialmente na direção das missões
para o cumprimento de Atos 1.8. A perseguição, que se levanta como uma barreira ao
cristianismo, torna-se um catalisador para a expansão da igreja, pois, aqueles que são dispersos
em consequência dela, anunciam o evangelho onde quer que passem (At 8.1-25; 11.19-25).
Deus direciona as missões promovendo encontros que mudam histórias de pessoas, as quais se
tornam instrumentos nas mãos de Deus para a expansão do evangelho (At 8.26-40; 9.1-19). O
Espírito direciona a missão comissionando os primeiros missionários (At 13), nesse ponto,
analisa-se a condução da história que possibilitou as viagens de Paulo. O Espírito, também,
direciona o evangelho impedindo o prosseguimento da viagem em um rumo e abrindo caminho
em outro. O capítulo se encerra com o trajeto de Paulo como prisioneiro iniciando em Jerusalém
até sua chegada a Roma (At 21-28). Nesse processo Deus cumpre o que disse que faria por
intermédio de Paulo, levando-o a testemunhar perante os gentios e reis, bem como perante os
filhos de Israel (At 9.15) e assim atingindo até os confins da terra.
9

BASE CONFESSIONAL

Essa obra está baseada na Confissão de Fé de Westminster, conforme o capítulo V,


como segue:
CAPÍTULO V - DA PROVIDÊNCIA
I. Pela sua muito sábia providência, segundo a sua infalível presciência e o livre e imutável
conselho da sua própria vontade, Deus, o grande Criador de todas as coisas, para o louvor da
glória da sua sabedoria, poder, justiça, bondade e misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e
governa todas as suas criaturas, todas as ações e todas as coisas, desde a maior até a menor.
Nee, 9:6; Sal. 145:14-16; Dan. 4:34-35; Sal. 135:6; Mat. 10:29-31; Prov. 15:3; II Cron. 16:9;
At.15:18; Ef. 1:11; Sal. 33:10-11; Ef. 3:10; Rom. 9:17; Gen. 45:5.
II. Posto que, em relação à presciência e ao decreto de Deus, que é a causa primária, todas as
coisas acontecem imutável e infalivelmente, contudo, pela mesma providência, Deus ordena
que elas sucedam conforme a natureza das causas secundárias, necessárias, livre ou
contingentemente.
Jer. 32:19; At. 2:13; Gen. 8:22; Jer. 31:35; Isa.10:6-7.
III. Na sua providência ordinária Deus emprega meios, todavia, ele é livre para operar sem,
sobre ou contra eles, segundo o seu arbítrio.
At. 27:24, 31; Isa. 55:10-11; Os.1:7; Rom. 4:20-21; Dan.3:27; João 11:34-45; Rom. 1:4.
VII. Como a providência de Deus se estende, em geral, a todos os crentes, também de um modo
muito especial Ele cuida da Igreja e tudo dispõe para o bem dela.
Amós 9:8-9; Mat. 16:18; Rom. 8-28; I Tim. 4: 10.
10

1 PROVIDÊNCIA DIVINA

1.1 Definição

Há diversas definições dessa doutrina, formuladas por diversos autores, algumas das
quais serão apresentadas neste capítulo, buscando ampliar o entendimento sobre o tema.
Começando pelo Breve Catecismo de Westminster, respondendo à pergunta sobre quais são as
obras da providência de Deus, afirma: “As obras da providência são sua maneira muito santa,
sábia e poderosa de preservar e governar todas as suas criaturas, e todas as ações delas.”2
Erickson define providência como “a ação contínua de Deus pela qual ele preserva a existência
da criação que ele fez surgir e a dirige para os propósitos que designou para ela.”3 Strong
acrescenta que ela inclui em sua demanda “coisas pequenas e grandes e exercendo cuidado
sobre indivíduos assim como sobre classes.”4 Lima detalhando um pouco mais escreve:

providência é o fato de Deus continuar a trabalhar no mundo. Uma espécie de


continuação do mundo. É a maneira como Deus, na Sua soberania, conduz a criação
em direção aos seus propósitos. A doutrina da providência trata da questão sobre como
o mundo sobrevive, e em que direção caminha. Ela procura dar uma resposta para a
pergunta sobre se há uma ordem por detrás de todos os acontecimentos, ou se tudo
acontece de modo aleatório.5

Berkhof6 define como o “permanente exercício a energia divina, pelo qual o Criador
preserva todas as Suas criaturas, opera em tudo que se passa no mundo e dirige todas as coisas
para o seu determinado fim” e acrescenta como sendo “a provisão que Deus faz para os fins do
Seu governo, bem como a preservação e governo de todas as suas criaturas”7.
Grudem apresenta uma definição que diz:

Deus está continuamente envolvido com todas as coisas criadas de forma tal que (1)
as preserva como elementos existentes que conservam as propriedades com que ele
os criou; (2) coopera com as coisas criadas em cada ato dirigindo as suas propriedades
características a fim de fazê-las agir como agem; e (3) as orienta no cumprimento dos
seus propósitos.8

Campos afirma, ainda, que:

em sua sabedoria infinita e em seu poder absoluto, Deus exerce o seu poder sobre si
mesmo (como a causa primeira) para fazer tudo o que quer diretamente, e sobre as
coisas deste mundo (causa secundárias), como instrumentos seus, para sustentar,

2
O Breve catecismo de Westminster. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1995, pergunta 18.
3
ERICKSON, Millard J. Introdução à Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1992, p.169.
4
STRONG, Augustus Hopkins. Teologia Sistemática. Vol. 1. São Paulo: Hagnos, 2003, p. 169
5
LIMA, Leandro Antônio de. Razão da Esperança: Teologia para hoje. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p.172.
6
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 1ª ed. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p. 165.
7
Ibdi, p.156.
8
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida nova, 1999, p. 247.
11

dirigir, prover e governar todas as criaturas e circunstâncias, fazendo com que todas
as coisas cooperem para a execução plena dos seus propósitos eternos.9

Para Campos, a ação providencial de Deus não necessita de nada que tenha sido criado
para ser consumada, mas ele, também, utiliza-se de sua criação como instrumento para a
concretização de seus propósitos eternos.
Pode-se dizer através dessas definições que há elementos que compõem a providência
divina, a saber, preservação, concorrência e governo. Alguns autores, como o próprio Calvino,
assim como o catecismo de Westminster, abordam apenas dois elementos: preservação e
governo. Lima, Berkhof e Grudem acrescentam a esses elementos a concorrência. Este último
não é negado pelos demais autores, pelo contrário, a concorrência está inclusa no governo, e
alguns autores vão diferenciá-la para combater determinadas doutrinas que não a levam em
consideração. A abordagem seguirá a utilização de três elementos.
A partir desse padrão adotado e das definições citadas, pode-se dizer que providência
divina é a ação contínua de Deus que mantém sua criação, age em todas as coisas, e dirige-as
para que atinjam seu fim, por Ele mesmo determinado.10
Tendo como base a definição de Providência, é necessário entender que há muitos
erros provenientes do mau entendimento ou da negação dessa doutrina. Tais erros serão
observados a seguir.

1.2 Erros cometidos quanto a essa doutrina

A doutrina da providência, como já foi dito, é amplamente baseada na Escritura,


embora o nome providência não apareça nela. Ainda assim, muitas vezes, ela é negada ou se
formulam novas doutrinas, resultando em imitações que não estão baseadas na Palavra de Deus.
Abaixo trataremos resumidamente algumas delas, mostrando suas diferenças.
a) Deísmo - O deísmo considera que Deus se afastou do mundo após sua obra da criação.
Esse conceito ultrapassa uma doutrina herética para a ciência que crê que há leis e o universo é
sustentado apenas por essas leis. O autor de Hebreus, porém, afirma que Deus está “sustentando
todas as coisas pela palavra do seu poder” (Hb 1.3), sendo assim, a obra de Deus não foi
abandonada, mas continua a ser sustentada por ele.11

9
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e sua realização histórica. São Paulo:
Cultura Cristã: 2001, p.7.
10
Definição formulada pelo autor com base nas anteriormente apresentadas pelos autores citados.
11
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 1ª ed. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p. 166.
12

b) Preservação imediata - Contrário ao deísmo e à ciência, alguns teólogos erram no


oposto, afirmando que Deus sustenta todas as coisas sem o auxílio de causas secundárias.
Entretanto, há leis naturais criadas por Deus que mantêm a ordem do mundo. A lei da gravidade
que atrai as coisas para o chão e impede que flutuemos é uma lei de ordem natural sustentando
uma infinidade de coisas. Myatt e Ferreira afirmam que “Deus governa o universo, sustentando
a sua existência e as leis da natureza.”12
c) Previsão - Não se trata apenas de uma previsão futura, ou pré-ciência. Deus prevê sim,
contudo, “é uma atuação positiva em conexão com todos os eventos da história.”13
d) Ocultismo - O ocultismo afirma que Deus é uma energia impessoal manifestando-se de
forma igual em todas as partes da criação, sendo a natureza de tudo que acontece. Trata-se de
ciclos que se repetem em toda a história. Myatt e Ferreira comentam esse erro dizendo que o
ocultismo aponta para um Deus que “não é uma pessoa que dirige a história para um fim. Ele
não é um Criador pessoal que ama e cuida das criaturas.”14
e) Teologia do processo - Essa teologia afirma que há um deus, que, assim como todas as
coisas criadas, faz parte do tempo e é limitado e finito. Esse deus é limitado pelas ações das
criaturas, e acontecimentos da história.15
f) Teologia liberal - Essa teologia não crê em um Deus que é soberano sobre todas as
coisas, pois nega a possibilidade de milagres, trabalhando a desmitologização16 da Bíblia. Dessa
forma acredita-se que Deus não dirige e governa as coisas, opondo-se, assim à providência
divina.
g) Teísmo aberto ou teologia relacional – Essa é uma das deturpações recentemente
abordada por teólogos. “Teístas abertos afirmam que, enquanto Deus é onipotente (tudo-
conhecendo), seu conhecimento é necessariamente limitado pelo grau ou extensão do
conhecimento que é intrinsecamente ‘conhecível’”17, ou seja, Deus conhece tudo que é possível
ao ser humano ser conhecido. Pinnock, um dos grandes propagadores dessa doutrina, afirma
que “tal conceito implica em que o futuro realmente está em aberto, e não disponível à exaustiva

12
MYATT, Alan; FERREIRA, Franklin. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para
o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 93.
13
STRONG, Augustus Hopkins. Teologia Sistemática. Vol. 1. São Paulo: Hagnos, 2003, p. 614.
14
MYATT, Alan; FERREIRA, Franklin. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para
o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 91.
15
Ibid, p. 92.
16
Desmitologização é um termo adotado a partir da abordagem de Bultmann, o qual afirma que há relatos no novo
testamento que ultrapassam a realidade, o que faz deles mitos. Sendo assim, essa visão está equivocada e não se
pode mais crer nela (MILLER e GRENZ, 2011, p. 53-56).
17
PADGETT, Marvin. Você está Aberto para o Teísmo Aberto?. Disponível em <http://www.monergismo.com
/textos/presciencia/aberto_open.htm>. Acesso em 31 jul. 2018.
13

presciência nem mesmo da parte de Deus.”18 Lopes aborda essa alteração teológica que possui
alguns pontos principais se opondo à providência, dos quais são destacados alguns: “Deus não
é soberano”, de maneira que redesenha a história de acordo com as decisões humanas; “Deus
ignora o futuro, pois vive no tempo e não fora dele”; “Deus se arrisca”, pois não sabia quais
seriam as decisões dos anjos e dos homens.19 Todas essas situações se opõem ao decreto de
Deus à providência, para que aconteçam, no tempo e exatamente como foram determinados.
Deus não só conhece o futuro, como ele tem total soberania sobre tudo o que acontece e executa
seus decretos atuando por sua providência, de maneira que nada foge ao seu controle.
Há, ainda, outros erros de interpretação ou negação da Palavra de Deus quanto à
providência divina. O melhor entendimento sobre ela facilitará identificá-los e corrigi-los. Paul
Helm auxilia na compreensão da doutrina trazendo os três contextos da realidade nos quais ela
se faz presente.20

1.3 Três contextos

Há três contextos, segundo Helm, nos quais Deus atua por intermédio de sua ação
providencial. O primeiro contexto é a vida de cada cristão e afirma:

Uma importante parte de nossa fé como cristãos é que Deus cuida de nós, e que os
detalhes e a direção de nossa vida estão debaixo do controle proposital de Deus. Nós
encontramos conforto no fato de que nada é tão pequeno que possa escapar da atenção
de Deus, nem tão diminuto que não mereça sua atenção.21

Como afirma o salmista “os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu
livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles foi escrito e determinado, quando
nenhum deles havia ainda” (Sl 139.16). Deus, por intermédio de sua providência, trabalha na
vida do cristão, de maneira que cada um está debaixo de sua constante preservação,
concorrência e governo.
O segundo contexto mostra que a providência divina não se limita à individualidade
do cristão, mas abarca todos os cristãos, ou a igreja, seja do passado, presente ou do futuro.
Paulo afirma que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8.28),
e Paul Helm interpreta dizendo que Paulo “estava se referindo ao insuperável poder e sabedoria

18
PINNOCK, 1985 apud FERREIRA, Franklin. O Teísmo Aberto: a Glória Roubada de Deus. Disponível em
<https:// voltemosaoevangelho.com/blog/2013/02/franklin-ferreira-o-teismo-aberto-a-gloria-roubada-de-deus/>.
Acesso em: 31 Jul. 2018.
19
LOPES, Augustus Nicodemus. Teologia Relacional: um novo deus no mercado. Disponível em
<http://www.monergismo.com/textos/presciencia/augustus_teologia_relacional.htm>. Acesso em: 31 Jul. 2018.
20
HELM, Paul. A Providência de Deus. São Paulo, Cultura Cristã, 2007, p. 16.
21
Ibid, p. 16.
14

de Deus, que O capacita a reunir esses diversos fios em benefício de cada cristão e como parte
do seu ou de sua bem-aventurança.”22
O terceiro contexto abrange o Universo por inteiro. Deus sustenta todas as coisas “toda
a natureza, inclusive aquelas forças e pessoas que são indiferentes a Deus e até mesmo
desafiadoras dele.”23 Não há nada, que não esteja debaixo de seu sustento e governo.
Deus age providencialmente em tudo e em todos. Esses três contextos não são tratados
com a intenção de limitar a providência divina, mas para auxiliar no entendimento de que a
ação de Deus se estende desde pequenas coisas até a imensidão do universo. Assim ele o faz
através de cada um dos elementos da sua providência, que estão detalhados abaixo.

1.4 Elementos da providência

Os elementos da providência divina, conforme mostrados na definição, são três:


preservação, concurso e governo.

1.4.1 Preservação

A preservação é um dos elementos da providência divina. Seu conceito é amplamente


trabalhado nas Escrituras, seja por citação direta ou por dedução teológica. Berkhof afirma que
“preservação pode ser definida como a obra contínua de Deus pela qual Ele mantém as coisas
que criou, juntamente com as propriedades e poderes de que as dotou.”24 Sendo assim, Deus
efetuou a obra da criação, mas Ele a mantém através de Sua ação contínua, sem, porém, retirar
das coisas criadas suas propriedades e poderes que deu a elas quando as criou.
A preservação é um dos elementos essenciais da providência. Deus não se limita à
criação, mas Ele a sustenta, se assim não fosse tudo se tornaria pó. Eliú falando a Jó afirmou:
“Se Deus pensasse apenas em si mesmo e para si recolhesse o seu espírito e o seu sopro, toda a
carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó” (Jo 34.14,15). Bavinck afirma que
“como as criaturas, por serem criaturas, não podem nascer de si mesmas, da mesma forma elas
não podem, por um minuto sequer, existir por si mesmas.”25
Paulo, em sua epístola aos Colossenses, falando sobre Cristo e a criação diz: “pois,
nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam

22
HELM, Paul. A Providência de Deus. São Paulo, Cultura Cristã, 2007, p. 10.
23
Ibid, p. 18.
24
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 1ª ed. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p. 169.
25
BAVINCK, Herman. Teologia Sistemática: Fundamentos Teológicos da Fé Cristã. Santa Bárbara d’Oeste:
SOCEP, 2001, p. 192.
15

tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e
para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste.” (Cl 1.16,17). Grudem comentando
esses versos afirma que “se Cristo interrompesse a sua contínua atividade de sustentação de
todas as coisas do universo, tudo exceto o Deus Triúno instantaneamente deixaria de existir.”26
Paulo reforça esse pensamento aos atenienses: “pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos,
como alguns dos vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração.” (At 17.28).
Calvino segue os passos de Paulo quando reforça que a preservação da criação tem
uma sequência lógica de que aquele que é Criador, é também sustentador de todas as coisas.

(...) assim, como aprendeu que Aquele é criador de todas as coisas, deve concluir
imediatamente que também é moderador e conservador perpétuo, e isso, não
acionando com certo movimento universal tal máquina e cada uma de suas partes, mas
sustentando, protegendo e cuidando, com certa singular providência, cada uma das
coisas que criou, até o menor pássaro.27

Para Calvino esta sequência lógica, que se baseia na fé, diz que: se Deus é Criador,
logo temos que crer em sua ação providencial preservando todas as coisas, de forma que nada,
a não ser o próprio Deus, seja autônomo. Ele reforça isso quando afirma:

Pois, ainda que nem todos raciocinem tão habilmente, seria incrível que Deus se
preocupasse com as coisas humanas se não fosse o criador do mundo, e ninguém crê,
verdadeiramente, que o mundo foi feito por Deus sem que esteja convencido de que
Ele se ocupa de sua obra28.

Para Calvino, crer em um Deus Criador significa crer em um Deus sustentador, e o


inverso também se aplica. Não há como crer isoladamente em um Deus Criador ou em um Deus
Sustentador, eles se complementam de forma lógica e, principalmente, de forma bíblica. Há
diversos textos que trazem esse entendimento a Calvino. No Salmo 33.6, Davi fala da criação
pela poderosa Palavra de Deus, e, a partir do versículo 13, o autor passa a mostrar que Deus
não retira os olhos de suas criaturas, não somente observando-as, mas conservando a vida delas.
Hebreus também aponta Cristo como aquele que preserva a criação, quando o autor da
Epístola descreve que aquelas pessoas não estavam ouvindo apenas por meio de profetas, mas
que Deus estava falando diretamente pelo Filho, então passa a descrevê-lo:

(...) nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as
coisas, pelo qual também fez o universo. Ele, que é o resplendor da glória e a
expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder,
depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas
alturas (...) Hb 1.2,3.

26
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida nova, 1999, p. 248.
27
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. São Paulo: UNESP, 2007, p. 184.
28
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. São Paulo: UNESP, 2007, p. 185.
16

O autor da epístola aos hebreus, nessa linda descrição do Filho, afirma que Deus não
apenas criou o universo por intermédio do Filho, mas que Ele, sendo o próprio Deus, sustenta
todas as coisas pela palavra do seu poder. Deus sustenta todas as coisas por sua poderosa
Palavra, a mesma que disse “haja luz” (Gn 1.3), continua sustentando todas as coisas.
A preservação de Deus é o requisito para que a criação continue existindo. O Salmo
104.29 afirma: “se ocultas o rosto, eles se perturbam; se lhes cortas a respiração, morrem e
voltam ao seu pó”, mostrando que há uma condicional através da palavra “se” para que a criação
de Deus não se acabe. Porém, Deus, por sua misericórdia, mantém a existência da sua criação
(Lm 3.22), Calvino, que “Deus logo passa à perpétua ordem da providência” 29, destacando a
perpetuação da ordem providencial divina.
Dentro de todo esse panorama da preservação, é preciso destacar alguns erros que se
apresentam. Os deístas afirmam que a preservação de Deus consiste em Ele não destruir a obra
criadora, já que na criação deu a todos propriedades para que possam continuar a existir
autonomamente. Berkhof rechaça essa opção afirmando: “Deus comunicou auto-subsistência à
criatura, quando a auto-existência e auto-sustentação são propriedades incomunicáveis, que
caracterizam unicamente o Criador” 30, se assim fosse, Deus estaria contradizendo sua própria
Palavra.
Outro erro facilmente aplicado é entender a preservação como criação continuada .
Alguns teólogos, principalmente do século XVII, afirmam que a preservação é uma espécie de
criação continuada, e que Deus, para sustentar o mundo, cria continuamente coisas novas.31
Grudem, baseando-se em Hebreus 1.3, afirma que não há criação continuada, mas que Deus
preserva aquilo que já criou.32 Campos escreve que os defensores dessa doutrina se opõem à
criação inicial de Deus, conforme Gênesis 1, e dão base para teorias evolucionistas dentro do
cristianismo.33 Ele ainda afirma: “Por causa da finitude das cousas criadas, é necessário que
Deus tenha uma obra continuada, todavia não continuação de criação, mas uma obra de
preservação daquilo que foi criado”34. Há teólogos reformados que utilizam a expressão criação

29
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. São Paulo: UNESP, 2007, p.185
30
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 1ª ed. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p.169
31
Joahannes Cocceius em sua obra Summa Theologiae ex Scriptura Repetita e Gulielmus Amesius em Medulla
Theologica, afirmaram que preservação não é nada mais do que uma criação continuada.
32
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida nova, 1999, p. 249.
33
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e sua realização histórica. São Paulo:
Cultura Cristã: 2001, p.64.
34
Ibid, p.64.
17

continuada, mas Berkhof afirma que estes “desejam simplesmente acentuar o fato de que o
mundo é mantido pelo mesmo poder que o criou.”35
A preservação da criação por Deus se faz presente em cada detalhe de Sua obra, motivo
pelo qual ela não é exterminada. A preservação, no entanto, não é o único elemento pelo qual
Deus atua providencialmente na criação, e sim parte desta ação. Deus também traz a
concorrência e o governo dentro da providência.

1.4.2 Concorrência

A concorrência ou cooperação, também é chamada por alguns de concursus, palavra


latina que origina essas traduções, sendo mais um dos elementos da providência divina. Alguns
teólogos, como Calvino, não adotam esse como sendo um dos aspectos da providência divina,
limitando-se à preservação e ao governo. Apesar disso, a concorrência está implícita e
intensamente presente no estudo de providência feito por Calvino.
A concorrência é a “cooperação do poder divino com todos os poderes subordinados,
em harmonia com as leis pré-estabelecidas de sua operação, fazendo-os agir precisamente como
agem.”36 Berkhof, em sua definição, está dizendo que é a maneira que Deus atua em e com
todos os poderes secundários, não deixando de lado as propriedades e leis que Ele mesmo
estabeleceu, de forma que suas ações ao mesmo tempo sejam direcionadas por Deus e baseadas
nas leis predeterminadas por ele. Dois cuidados precisam ser destacados nesse conceito. O
primeiro, opondo-se à ideia deísta, é que os poderes naturais não têm atuação por si mesmos e
que Deus opera neles mediando cada ato de Suas criaturas.

Quanto às coisas inanimadas, devemos dizer com segurança que, ainda que a
propriedade de cada uma lhe tenha sido infundida naturalmente, não exercem sua
força a não ser que sejam dirigidas pela presença da mão de Deus. Não são, portanto,
mais do que instrumentos por meio dos quais Deus, continuamente, introduz tanta
eficácia quanto quer, e com seu arbítrio flexiona e dirige esta ou aquela ação.37

Aqui Calvino está afirmando que as leis naturais não são suficientes para ordenarem
as ações realizadas por criaturas inanimadas, mas, ao contrário, são totalmente dirigidas pela
mão de Deus, que conduz todas as suas ações.
Calvino usa dois textos bíblicos relacionados ao sol para exemplificar a frase acima: o
primeiro fala que o sol e a lua se detiveram enquanto Josué o e povo lutavam contra os
Amorreus (Js 10.13), e o segundo, aponta para quando Deus, em favor de Ezequias, fez

35
BERKHOF, op. cit., p.170.
36
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 1ª ed. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p.170.
37
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. São Paulo: UNESP, 2007, p. 186. Grifo meu.
18

retroceder a sombra do relógio de Acaz. Partindo desses exemplos ele afirma que “por esses
poucos milagres Deus testemunhou que o sol não se levanta e se põe todos os dias por um
instinto cego da natureza, mas que governa seu curso para renovar a memória de seu favor
paternal para conosco.”38
Bavinck diz que “não é uma causalidade cega, nem um destino obscuro, nem uma
vontade irracional ou maligna, nem qualquer força natural que governa a raça humana e o
mundo, e que o governo de todas as coisas está nas mãos do Deus Todo Poderoso e do Pai
Misericordioso”,39 mostrando que além de Deus não ter abandonado sua criação, também a
sustenta, governa e dirige com a finalidade de que todas as coisas atinjam o objetivo que ele
mesmo determinou. Deus é Onipotente, e que sendo assim, pode preservar, governar e conduzir
tudo a esse fim pré-determinado, mantendo-se um Pai Misericordioso, que se importa conosco,
Sua criação.
Strong ainda alerta para algo que é uma forma diferente do deísmo, mas aos quais se
aplicam as mesmas contestações supracitadas. Essa é chamada de providência simplesmente
geral, em que Deus tem o controle do universo e do destino das nações, porém não interfere em
eventos particulares.
O segundo cuidado que deve-se tomar contraria o pensamento panteísta de que Deus
é o único agente operando no mundo. Berkhof afirma:

as causas secundárias são reais, e não devem ser consideradas apenas como o poder
operativo e Deus. É só com a condição de que as causas secundárias sejam reais que
podemos falar com propriedade de uma concorrência ou cooperação da Causa
Primeira com as causas secundárias.40

Isso demonstra que Deus dotou as causas secundárias de propriedades, permitindo que
elas continuem em funcionamento por suas leis em cooperação com o poder de Deus.
O panteísmo conduz a uma ideia de que Deus e as suas criaturas são a mesma coisa, e,
sendo assim, não há ação das causas secundárias, mas tudo se desenvolve a partir de Deus, o
qual é a causa primária que move todos os atos da sua criação. Bavinck afirma que “se Deus
for idêntico ao mundo, e, portanto, também indistinto da raça humana, então todo pensamento
e ato do homem terá que ser direta e imediatamente transferido para a responsabilidade de Deus,
dessa forma o pecado também seria da responsabilidade de Deus.” 41 Bavinck mostra, através

38
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. São Paulo: UNESP, 2007, p.186.
39
BAVINCK, Herman. Teologia Sistemática: Fundamentos Teológicos da Fé Cristã. Santa Bárbara d’Oeste:
SOCEP, 2001, p. 177.
40
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 1ª ed. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p.170.
41
BAVINCK, Herman. Teologia Sistemática: Fundamentos Teológicos da Fé Cristã. Santa Bárbara d’Oeste:
SOCEP, 2001, p. 194.
19

dessa hipótese levantada pelos panteístas, que se Deus fosse a mesma coisa que a criatura Ele
seria autor do pecado. O teólogo ainda acrescenta:

“A criação não faz com que o mundo seja independente, pois uma criatura
independente é uma contradição de termos, mas faz com que o mundo seja uma
essência distinta da essência de Deus. Não é meramente em nome e em forma que
Deus e o mundo são distintos um do outro, mas em essência e em ser.”42

A ideia panteísta envolve uma contradição de termos, pois se Deus é a criação, a


criação é independente, mas isso se torna uma contradição, pois toda criação é dependente do
seu criador. E para completar, Bavinck mostra que a diferença entre Deus e a criatura está na
essência e no seu ser. Dessa forma, ele está dizendo que, embora Deus sustente e dirija toda a
sua criação, Ele não se torna a criação, nem sequer, a única causa agente nas causas secundárias,
contrariando toda e qualquer possibilidade de sustentar a ideia panteísta. Deus dotou a criação
de propriedades e leis que a levem a agir de determinada forma, e que, ao mesmo tempo, são
dirigidas por Deus ao fim estabelecido por Ele.
As Escrituras abrangem a concorrência, seja através de afirmações ou em histórias.
Paulo, em sua carta aos efésios, afirma que “nele, digo, no qual fomos também feitos
herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o
conselho da sua vontade” (Ef 1.11), indicando que nada do que acontece está alheio à
providência. As Escrituras permeiam a providência divina em vários aspectos. Deus tem o
controle providencial do universo. No livro de Daniel, Nabucodonosor, rei do grande império
Babilônico, após ser expulso de entre os homens, vivendo entre animais, por se orgulhar do seu
grande poder e da glória de sua majestade, reconhece a soberania de Deus e afirma: “todos os
moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o
exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que
fazes?” (Dn 4.35).
Sendo o universo controlado pela providência de Deus, o mundo físico e as nações não
fogem ao Seu domínio. Jesus no sermão do monte afirma que o Pai Celeste faz nascer o Seu
sol sobre maus e bons e vir chuva sobre justos e injustos (Mt 5.45). Outros textos vão retratar a
ação providencial de Deus sobre o mundo físico (Jó 37.5,10; Sl 104.14; 165.6,7). Deus estende
seu governo sobre as nações: “pois do SENHOR é o reino, é ele quem governa as nações” (Sl
22.28) e o salmo 66.7 diz que “Ele, em seu poder, governa eternamente; os seus olhos vigiam
as nações.”

42
Ibid, p. 194.
20

Seres inanimados recebem ordens de Deus para entrarem em ação como está no
escrito: “fogo e saraiva, neve e vapor e ventos procelosos que lhe executam a palavra” (Sl
148.8). O Salmo 135 aponta que “tudo quanto aprouve ao Senhor, ele o fez, nos céus, na terra,
no mar e em todos os abismos” (Sl 135.6). Também os animais são dirigidos pelo Senhor, pois
nenhum pardal cairá sem o consentimento do Pai (Mt 10.29). Até eventos que parecem ser ao
acaso, como a sorte que se lança sobre a mesa, estão sujeitos à decisão do Senhor (Pv 16.33).
Dessa forma, orando ao Senhor e lançando a sorte, Matias foi escolhido como o apóstolo a
substituir Judas (At 1.23-26).
A atuação providencial de Deus que se estende ao universo, não deixa de lado a vida
humana, desde antes do nascimento até o seu destino, como afirma Davi: “Os teus olhos me
viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um
deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda” (Sl 139.16), demonstrando que
antes do nascimento o destino estava traçado. Paulo confirma isso quando faz uma pequena
biografia na carta aos Gálatas que diz: “Quanto ao que me separou antes de eu nascer e me
chamou pela sua graça, aprouve revelar seu Filho em mim, para que eu o pregasse entre os
gentios, sem detença” (Gl 1.15,16). Da mesma forma, estão sob a providência divina os
sucessos e derrotas (Sl 75.6,7; Lc 1.52), a proteção dos justos (Sl 4.8; 5.12; 63.8; 12.1,3; 63.8;
Rm 8.28), o suprimento das necessidades do povo de Deus (Gn 22.8,14; Dt 8.3; Fp 4.19) e
também as respostas às orações (Sl 68.10; Is 64.4; Mt 6.8; 32.33).
A Bíblia também mostra algumas situações nas quais o elemento da providência
divina, a concorrência, não aparece claramente através de uma afirmação, mas acompanhando
narrativas de alguns personagens bíblicos, percebendo-se claramente a atuação providencial de
Deus em suas histórias. Abaixo serão citadas duas delas.
Talvez uma das histórias mais marcantes que traz esta doutrina bíblica seja a de José,
em que se percebe a concorrência atuando de forma maravilhosa, desde o momento em que o
mesmo é vendido como escravo pelos irmãos (Gn 37), passando pela casa de Potifar (Gn 39),
sendo levado preso e posteriormente interpretando sonhos de dois prisioneiros (Gn 40), fato
que, mais tarde, mediado pelo copeiro-chefe, permitiu a José interpretar os sonhos de Faraó
(Gn 41) e se tornar governador do Egito, administrando o alimento para que, no tempo de
escassez, pudesse haver para todos, preservando assim a vida de sua família e a humanidade.
Quando José se revela a seus irmãos, reconhece a providência divina na atitude deles, afirmando
que Deus o enviara adiante para salvar vidas. Assim, a ação de seus irmãos foi determinada por
Deus para atingir o fim que Ele desejou.
21

A história de Sansão também demonstra a concorrência divina, quando, após perder


sua força devido à irresponsabilidade em revelar o segredo dela à Dalila (Jz 16), Sansão tem
seu cabelo cortado, é preso e seus olhos furados. Depois disso, os filisteus se reuniram para
oferecer sacrifícios a Dagon e comemorar a vitória sobre seu grande inimigo, Sansão. Todos os
líderes filisteus e mais homens e mulheres lotavam o templo. Nesse dia, Sansão foi levado à
coluna que sustentava o templo e orando ao Senhor pediu que restituísse suas forças para morrer
junto com os filisteus. E assim, matou mais homens em sua morte que em toda a sua vida. E o
que foi dito em seu nascimento (Jz 13.5) realmente aconteceu, começando a partir daí a
libertação do povo de Israel das mãos dos filisteus.
Assim como essas, muitas outras histórias demonstram a concorrência, como um fato
evidente na Bíblia.

1.4.3 Governo

O governo não é considerado apenas um elemento da providência divina. Berkhof


define como “a contínua atividade de Deus pela qual ele rege todas as coisas teleologicamente
a fim de garantir a realização do seu propósito divino.”43 Pode-se dizer que governo é a
providência divina tendo como ponto de referência a finalidade determinada por seu decreto
para todas as coisas. Este fim é a sua glória!
Deus é rei sobre todas as coisas. Sendo rei, ele governa tudo de forma a obter o
resultado por ele determinado. Hodge afirma que

se Deus governa o universo, então ele possui algum grande alvo, inclusive um número
infinito de fins subordinados, e ele tem de controlar a sequência de todos os
acontecimentos de maneira que se assegure o êxito de todos os seus propósitos.44

Deus não governa o universo sem direção. Ele dirige tudo para o seu fim que “é o
‘beneplácito da sua vontade’ (Ef 1.5), é o seu supremo propósito para esse mundo que redunda
em ‘louvor da sua glória’ (Ef 1.12).”45
Os acontecimentos não se tratam de sorte, acaso ou destino. Afirmar qualquer uma
dessas possibilidades é atribuir a elas o papel de Deus, gerando assim uma idolatria. É
semelhante ao povo de Israel que fez um bezerro de ouro fundido e disse: “Então, disseram:
São estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da terra do Egito” (Ex 32.4). Atribuíram o que
Deus fez a um bezerro feito por mãos, praticando a idolatria. Eles, não obstante, poderiam ter

43
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 1ª ed. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p.174.
44
HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Editora Hagnos, 2001, p. 433.
45
LIMA, Leandro Antônio de. Razão da Esperança: Teologia para hoje. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p.181.
22

atribuído à sorte, ao acaso, ao destino, sendo igualmente idolatria. Não se deve afirmar que se
trata de fatalismo, de pensar que tudo tem de acontecer dessa forma, mas entender que Deus
dirige todas as coisas para atingir o objetivo estipulado por Ele.
O fim decretado por Deus, para o qual ele governa o universo, é a glória do seu próprio
nome. O Breve Catecismo de Westminster, em sua primeira pergunta, questiona o fim principal
do homem, e a resposta é: “O fim principal do homem é glorificar a Deus, e gozá-lo para
sempre.”46 Esta é a finalidade para a qual o homem, assim como o universo, foi criado. Pipper
afirma:

O princípio fundamental para a nossa paixão de ver Deus glorificado é sua própria
paixão de ser glorificado. Deus é único e supremo em suas próprias afeições. Não há
quaisquer rivais para a supremacia da glória de Deus em seu próprio coração. Deus
não é um idólatra. Ele não desobedece ao primeiro e grande mandamento. Com todo
o seu coração, alma, força e mente, ele se deleita na glória das suas múltiplas
perfeições. O coração mais apaixonado por Deus em todo o universo é o seu próprio
coração.47

A glória de Deus é o objetivo último de toda a criação. Deus tem paixão de ser
glorificado, e dessa forma ele governa todas as coisas para a concretização total desse objetivo.
As Escrituras destacam algumas características do governo de Deus. Em primeiro lugar
ele é um governo universal, de forma a incluir todas as criaturas de Deus e suas ações. O salmo
97 destaca o reinado de Deus sobre os céus, as nações, sobre Sião e sobre toda a criação,
demonstrando a universalidade do seu governo. Da mesma maneira, na primeira carta aos
Coríntios, Paulo diz que Cristo está reinando e que “todas as coisas sujeitou debaixo dos pés.
E, quando diz que todas as coisas lhe estão sujeitas, certamente, exclui aquele que tudo lhe
subordinou” (I Co 15.27). O universo está debaixo do governo de Deus em Cristo. Ele é
poderoso: “ele constitui o domínio universal da onipotência que torna infalível a consecução de
seus desígnios, os quais abarcam, em sua esfera, tudo o que ocorre.”48 O Salmista expõe a
grandeza desse poder: “Reina o SENHOR. Revestiu-se de majestade; de poder se revestiu o
SENHOR e se cingiu. Firmou o mundo, que não vacila” (Sl 93.1). Tamanho é o poder do
reinado de Deus que firmou o mundo sem que ele possa vacilar. Isaías escreve as palavras do
Senhor: “Ainda antes que houvesse dia, eu era; e nenhum há que possa livrar alguém das minhas
mãos; agindo eu, quem o impedirá?” (Is 43.13) Ninguém pode impedir a ação do nosso Senhor”.
Deus é onipotente e isso reflete em seu governo. O alcance de seu poder não é limitado nem

46
O Breve catecismo de Westminster. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1995, pergunta 1.
47
PIPER, John. Alegrem-se os Povos: A Supremacia de Deus nas Missões. 2ª ed. Editora Cultura Cristã, São
Paulo, 2012, p. 38.
48
HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Editora Hagnos, 2001, p. 433.
23

mesmo por seus instrumentos, como afirma Berkouwer: “o poder do Senhor não se afigura em
uma energia consumidora que exclui toda atividade humana. Entretanto, o uso de meios
humanos também não limita o alcance de sua atividade.”49
O governo de Deus é teocrático, pois mesmo havendo a existência de governos sobre
a terra e que sejam desobedientes, em última instância, todos os governos são regidos por Deus
(cf. Rm 13.1,2). Apesar de os governos serem impiedosos e parecerem não possuir a mesma
estrutura do governo de Israel no Antigo Testamento, ainda assim é teocrático. Campos nos
auxilia a entender isso:

Jesus Cristo nos ensinou a orar para que a vontade de Deus fosse feita aqui na terra
como é feita no céu. Essa vontade decretiva de Deus sempre será feita em toda parte.
Não há nenhum evento ou ato que não seja da vontade de Deus. Deus governa cada
pessoa, cada evento e cada resultado neste mundo a ponto de todos eles contribuírem
para o bem daqueles a quem Deus chamou segundo o seu propósito. Não há como
escapar da vontade decretiva de Deus. É nesse sentido que Deus governa o mundo
teocraticamente. 50

O governo de Deus é santo. Não há nada na finalidade ou nos meios para atingi-la que
confronte sua santidade. Ele é o Rei Santo, Santo, Santo, com o qual Isaías se depara e se
apavora por ser pecador (Is 61-5). O governo de Deus é santo, seu trono é santo. Campos afirma:

Ele não pode agir contrariamente à sua natureza. Temos que firmar a nossa confiança
nesse ponto. Deus só faz o que está em consonância com a sua santa natureza. Por
isso, santos são os seus decretos, santa a sua vontade, santo é o seu poder, e assim por
diante. Tudo em Deus é santo. Portanto, santas são as suas obras no mundo que ele
criou!51

Deus governa tudo para que seus decretos sejam cumpridos e conduzam à Sua glória.

1.5 A providência e outras doutrinas

1.5.1 A providência e o decreto de Deus

O decreto de Deus é uma doutrina semelhante à providência. Grudem define da


seguinte forma: “Os decretos de Deus são os divinos desígnios eternos por meio dos quais,
antes da criação do mundo, ele determinou realizar tudo o que acontece.” 52 Enquanto o decreto
se refere aos planos de Deus antes da criação do mundo, a providência trata das ações de Deus
no tempo em cumprimento aos seus decretos.

49
BERKOUWER, G. C. The providence of God. Kampen, J. H. Kok, 1952, p. 87.
50
CAMPOS, CAMPOS, p. 151.
51
Ibid, p. 150.
52
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida nova, 1999, p. 262.
24

Bavinck53 diz que “humanamente falando nós podemos dizer que toda obra de Deus é
precedida por uma deliberação da mente e uma decisão da vontade”. Em outras palavras, a ação
providencial de Deus, é um cumprimento do seu decreto, de seus planos. É a execução da sua
vontade. Campos salienta que

O decreto vem primeiro lógica e, então, cronologicamente; a providência é a execução


temporal do decreto eterno. Todos os atos da história do mundo foram decretados por
Deus antes da fundação do mundo, mas eles são realizados no decorrer do tempo pela
obra providencial de Deus.54

A Bíblia enfatiza e associa essas duas doutrinas. Paulo afirma que Deus “faz todas as
coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11). Davi destaca os decretos de Deus em
sua vida, os quais estão se realizando enquanto escreve o salmo 139: “Os teus olhos me viram
a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles
escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda” (Sl 139.16). Paulo, assim como Davi,
aponta para determinações a respeito de sua vida, antes mesmo da criação do mundo: “Quando,
porém, ao que me separou antes de eu nascer e me chamou pela sua graça” (Gl 1.15).
No livro de Atos Deus revela aos discípulos, por intermédio de Jesus, parte dos seus
decretos, que não é só uma ordem, mas também uma afirmação: “mas recebereis poder, ao
descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em
toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra” (At 1.8). Isso se concretiza ao longo do livro
de Atos e exatamente nessa ordem.
Não há como separar essas duas doutrinas, da mesma forma que não há como negá-
las. Deus decretou na eternidade, e está executando no tempo, conforme lhe apraz.

1.5.2 A providência e a responsabilidade humana

Uma das doutrinas mais difíceis de entender e harmonizar com a providência é a


responsabilidade humana. Packer afirma que se trata de um antinômio, que ele define como
“uma contradição aparente.”55 Apesar de ele traçar esse paralelo entre a soberania de Deus e a
responsabilidade humana, podemos também associar a providência à responsabilidade humana
usando seus termos.

53
BAVINCK, Herman. Teologia Sistemática: Fundamentos Teológicos da Fé Cristã. Santa Bárbara d’Oeste:
SOCEP, 2001, p. 176.
54
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e sua realização histórica. São Paulo:
Cultura Cristã: 2001, p. 19.
55
PACKER, J. I. A Evangelização e a Soberania de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 15.
25

Primeiro é preciso entender que, nesse antinômio, a providência, especialmente no


âmbito da concorrência, tem duas partes ativas. “Sempre há duas causas que movem uma ação.
A causa primária é sempre divina e a secundária a criatura.”56 O fato de haver dois agentes não
significa que Deus executa uma parte e o homem a outra, de maneira que elas se completem.

É uma realização de Deus no sentido de que não há nada que independa da vontade
divina, e no sentido de que é determinada, momento a momento, pela vontade de
Deus. E é uma realização do homem no sentido de que Deus a leva a efeito por meio
da atividade própria da criatura. Há uma interpenetração aí, mas nenhuma limitação
mútua.57

Toda a realização é ao mesmo tempo do homem e de Deus. Nada, contudo, pode


acontecer sem que Deus tenha determinado, e o homem não se exime de sua responsabilidade.
Grudem afirma que “Deus nos fez responsáveis pelos nossos atos, que têm resultados
reais e eternamente significativos. Em todos os seus atos providenciais, Deus preserva essas
características de responsabilidade e importância.”58
Packer associa essas duas doutrinas a duas características de Deus: “a soberania
divina”, nesse caso a providência divina,

E a responsabilidade humana ou (colocando-o de forma mais bíblica) entre o que Deus


faz como Rei e o que ele faz como Juiz. As Escrituras nos ensinam que, como Rei, ele
ordena e controla todas as coisas, inclusive todas as ações humanas, segundo o seu
propósito eterno (Gn 45.8; 50.20; Pv 16.9; 21.1; Mt 10.29; At 4.27 ss; Rm 9.20 ss; Ef
1.2; etc.). As Escrituras ensinam ainda que, na condição de juiz, ele considera todo
ser humano responsável pelas escolhas que faz e as formas de procedimento a que
segue (Veja Mt 25; Rm 2.1-16; Ap 20.11-13, etc.).59

A Bíblia traz essa relação em um mesmo versículo. A traição de Judas e a crucificação


de Cristo, fazem parte de uma determinação de Deus. Judas, no entanto, não está isento de sua
responsabilidade: “Porque o Filho do Homem, na verdade, vai segundo o que está determinado,
mas ai daquele por intermédio de quem ele está sendo traído!” (Lc 22.22). A dificuldade de
entendimento desse antinômio faz parte da nossa limitação de compreensão.

É preciso aceitá-lo como ele é, e aprender a conviver com ele. Recusar-se a considerar
a aparente inconsistência como real; é preciso atribuir a aparência de contradição à
deficiência da nossa própria capacidade de compreensão; encarar estes dois princípios
não como duas alternativas rivais, mas como algo que, de alguma forma, você não
consegue compreender no presente momento, mas que são mutuamente
complementares. Portanto, é preciso ter o cuidado de não fazê-las disputar entre si,

56
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e sua realização histórica. São Paulo:
Cultura Cristã: 2001, p. 185.
57
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 1ª ed. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p. 171.
58
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida nova, 1999, p. 263.
59
PACKER, J. I. A Evangelização e a Soberania de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 19.
26

nem tirar quaisquer conclusões, a partir de qualquer uma delas, que confrontem
diretamente um princípio ao outro.60

Calvino mostra que a afirmação de Packer é um alerta importantíssimo, já que muitas


pessoas elaboraram conclusões que confrontam o princípio da responsabilidade humana. Ele,
contudo, ressalta a importância do entendimento bíblico:

Antes busquem e aprendam com a Escritura o que agrada a Deus, para que, com a
direção do Espírito, alcancem-no: preparados, ao mesmo tempo, para seguir a Deus
para onde quer que chame, mostrarão com a própria realidade que nada seja mais útil
que o conhecimento desta doutrina.61

Calvino completa afirmando a respeito daqueles que se eximem de sua própria


responsabilidade: “homens profanos são tolamente tumultuados com suas inépcias, revirando,
como se diz, o céu e a terra: se o Senhor assinalou o ponto de nossa morte, não é possível fugir,
portanto, de nada adianta trabalhar em busca de precaução.”62
Campos diz que a atitude desses homens, que transferem toda a responsabilidade para
a providência divina, pode trazer o errôneo entendimento de que Deus é culpado do mal:

se os seres humanos são passivos nas suas ações, Deus então seria o culpado direto e
único dos males morais deste mundo, um praticante do mal e responsável direto por
todos os males físicos, sociais e espirituais do mundo. Não podemos admitir uma
causa única dos atos e eventos acontecidos neste mundo. Deus e os seus agentes
secundários são ativos, de modo que a ação de Deus nunca o torna um praticante do
mal, nem o homem é isento de sua responsabilidade.63

Deus atua em todas as coisas e por meio delas, o que inclui o ser humano. Isso não
isenta o homem na responsabilidade por suas atitudes. Precisa-se buscar entendimento desse
antinômio nas Escrituras, e, na falta de entendimento, aceita-lo como é.

1.5.3 A Providência e a oração

A oração assume um papel fundamental na propagação do evangelho. Mas quando se


pensa em oração e providência divina, algumas questões são levantadas: “Se Deus sabe e tem
o controle do que vai acontecer, então por que orar com a intensão de que Deus realize nosso
pedido?”, ou “Deus muda de opinião em resposta à oração do cristão?”, ou então “Deus é
onisciente, ele conhece o meu desejo. Por que Ele não me atende sem necessidade de oração?”.

60
Ibid, p. 18.
61
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. São Paulo: UNESP, 2007, p. 199.
62
Ibid, p. 200.
63
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e sua realização histórica. São Paulo:
Cultura Cristã: 2001, p. 186.
27

Esses são questionamentos presentes na vida de muitos cristãos. Providência e oração, no


entanto, estão intimamente ligados. Essa ligação é tão profunda que:

se negarmos um, estaremos negando o outro de tão intimamente ligados eles estão. A
oração supõe uma providência divina enquanto que a obra providencial é, em parte, o
resultado da oração e está ligada a ela. Todas as vezes que Deus responde a uma
oração, ele está agindo providencialmente na vida do seu povo.64

Campos destaca que a obra providencial é “em parte” resultado da oração. É


necessário, portanto, cuidar para não se cair em erros quanto ao entendimento dessa relação.
Um primeiro erro possível ao analisar essa relação é que se trata de notificar a Deus o
que está ocorrendo. No evangelho segundo Mateus está escrito “Não vos assemelheis, pois, a
eles; porque Deus, o vosso Pai, sabe o de que tendes necessidade, antes que lhe peçais” (Mt
6.8). Deus é onisciente, e sabe das necessidades antes mesmo que se peça, portanto, a oração é
consequência da condição de necessitado.
Outro erro é acreditar que as as orações podem alterar os planos de Deus, quando o
que acontece é exatamente o contrário, elas cumprem os planos de Deus, ou nas palavras de
Helm: “a oração é, dessa forma, uma ação na ordem da providência divina como qualquer outra
ação.”65 A realidade é que “quando Deus nos desperta para a oração pode ser exatamente que
ele esteja querendo dar a uma pessoa (ou a nós próprios) aquilo que lhe pedimos. Mas nunca
inverta a ordem das coisas.”66 Agostinho afirma que “assim, também, as orações são úteis para
se obter aqueles favores que ele anteviu que daria àqueles que orassem por eles”,67
demonstrando que não é a oração que muda os planos de Deus, mas que, quando realizada por
ordenança divina, apenas confirma aquilo que Deus já havia planejado para aqueles que oram.
Campos elenca alguns motivos pelos quais devemos orar. O primeiro deles é que se
trata de uma ordem de Deus, sendo a oração um ato de obediência a Ele.68 O segundo é porque
a oração é um ato de dependência de Deus, ou seja, o reconhecimento de que somente ele pode
atende-la. O terceiro é que a oração deve ser feita para ver os planos de Deus sendo cumpridos,
“Deus não somente determina os fins, mas também os meios para conseguir os fins”69 e, muitas
vezes, a oração é o meio para se levar ao fim por Ele planejado. O quarto motivo é que a oração
objetiva glorificar o nome de Deus, pois ela é um reconhecimento de que Ele tem domínio sobre

64
Ibid, p. 278.
65
HELM, Paul. A Providência de Deus. São Paulo, Cultura Cristã, 2007, p. 137.
66
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e sua realização histórica. São Paulo:
Cultura Cristã: 2001, p. 29.
67
AGOSTINHO, apud HELM, Paul. A Providência de Deus. São Paulo, Cultura Cristã, 2007, p. 140.
68
CAMPOS, op. cit., p. 27-29.
69
Ibid, p. 28.
28

tudo e todos, isso o glorifica. Por último, a oração é parte de um culto prestado ao Senhor, pois
“as respostas às orações geralmente provocam em nós o senso de culto ao Senhor providente.”70
A oração e a providência caminham juntas. Na verdade, a oração é uma resposta à
providência divina, é o meio que Deus ordena para que a finalidade por Ele determinada seja
cumprida.

1.5.4 A providência e os milagres

Milagres são parte integrante da providência de Deus. E isso percorre toda a história,
sem os quais o cristianismo seria destituído.
McPherson define milagres como “algo feito sem recurso dos meios ordinários de
produção, um resultado realizado diretamente pela causa primária sem a mediação, ao menos
da maneira habitual, das causas secundárias.”71 Isto significa que Deus realiza milagres ora sem
mediação, agindo extraordinariamente, ora com mediação, mas não agindo em sua maneira
comum. Berkhof afirma que, na teologia,

Usualmente se faz uma distinção entre providentia ordinária e providentia


extraordinária. “Na primeira, Deus age por meio de causas secundárias em estrito
acordo com as leis da natureza, embora possam variar os resultados, com diferentes
combinações. Mas na última Ele age imediatamente ou sem a mediação de causa
secundárias, em sua operação ordinária.72

Deus age ordinariamente através das leis da natureza, que criou e sustenta. Contudo,
Ele também atua extraordinariamente, através de milagres, seja em sua intervenção direta ou
mediada.
É mister salientar que milagres são realizados somente por Deus. Campos, depois de
afirmar sobre o uso de causas secundárias ou não em milagres, destaca que “seja direta ou
indiretamente, o poder miraculoso é sempre exercido pelo Deus da providência”73 e acrescenta
que “estes (milagres) são prerrogativas divina somente.”74
Os milagres não são realizados ao acaso, ou como exibição de poder. Também não são
remendos em situações imprevistas para que voltem à ordem. Eles são “sinais da graça de Deus

70
Ibid, p. 29.
71
MACPHERSON, John. Christian Dogmatics. Edimburgo: T. & T. Clark, 1898, p. 183.
72
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 1ª ed. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p. 175.
73
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e sua realização histórica. São Paulo:
Cultura Cristã: 2001, p. 26.
74
Ibid, p. 27.
29

e de sua urgência e poder”75. Helm concorda com Leibniz afirmando que “Deus é perfeito e
não faz nada sem que tenha uma razão suficiente para isso”.76
Tudo que acontece está debaixo do governo de Deus. Sendo assim, os milagres não
fogem à regra. Deus age providencialmente ordinária e extraordinariamente. Todos os milagres
são realizados com um propósito definido e sua execução se faz necessária devido à entrada do
pecado no mundo. Berkhof afirma:

A entrada do pecado no mundo torna necessária a intervenção sobrenatural de Deus


no curso dos eventos, para a destruição do pecado e para a renovação da criação. Foi
mediante milagre que Deus nos deu a Sua revelação especial e verbal na Escritura,
bem como a Sua revelação suprema e fatual em Jesus Cristo.77

Sendo assim, sem milagres, o cristianismo deixa de existir, pois ele se fundamenta na
revelação das Escrituras sobre a encarnação de Jesus, sua morte, ressurreição, ascensão e na
esperança da sua vinda gloriosa estabelecendo definitivamente o reino de Deus!

1.5.5 A providência e os atos maus

Deus atua providencialmente em relação aos atos maus dos homens. Strong78 afirma
que é possível perceber isso em quatro tipos diferentes de providências:79
Obstante: Deus, de maneira providencial, opõe-se ao pecado, ou cria obstáculos para
a realização dele, não simplesmente para obrigar o ser humano a não pecar, mas para conceder
sua graça. Toma-se como exemplo o momento quando Abraão falou a Abimeleque que Sara
era sua irmã e mandou buscá-la, mas Deus, em sonho, falou com o rei que seria punido de morte
por causa de Sara, pois ela tinha marido. Então, em Gênesis 20.6, Deus fala com Abimeleque:
“Respondeu-lhe Deus em sonho: Bem sei que com sinceridade de coração fizeste isso; daí o ter
impedido eu de pecares contra mim e não te permiti que a tocasses”. Assim também Davi, no
Salmo 19.13, pede que Deus o guarde da soberba para que ela não o domine. Deus, em sua
providência, se opõe ao pecado de Abimeleque, assim como Davi pede que Deus o guarde do
pecado da soberba.
Permissiva: Deus permite aos homens que manifestem as más ações dos corações. Essa
ação permissiva se concretiza em não colocar obstáculos que impeçam ao homem concretizar
seu pecado. Esse ato permissivo não resulta do desconhecimento do pecado, de ser passivo

75
HELM, Paul. A Providência de Deus. São Paulo, Cultura Cristã, 2007, p. 93.
76
Ibid, p. 93.
77
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 1ª ed. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p. 176.
78
STRONG, Augustus Hopkins. Teologia Sistemática. Vol. 1. São Paulo: Hagnos, 2003, p. 619-622.
79
Ibid, p. 619-622.
30

quanto a ele, de absolvição da pena, ou ser indulgente. Ao contrário, Deus se mantém em


oposição ao pecado e o detesta, determinando a punição ao pecador. Em Romanos 1, Paulo, no
versículo 18, afirma que a ira de Deus se revela contra a impiedade e perversão dos homens, e
dos versículos 20 a 23 mostra que os homens estão transformando a glória do Deus incorruptível
em semelhança da glória de homens corruptíveis, e enfim, no versículo 24, Paulo afirma que
Deus os entregou à imundícia pela corrupção do próprio coração. O versículo 26 diz que Deus
os entregou às paixões infames e o 28, que Deus os entregou a uma disposição mental
reprovável.
Diretivo: Deus não dirige as pessoas a realizarem seus maus atos, mas direciona esses
atos para um fim que, aqueles que os praticaram, não preveem e nem pretendem. Strong afirma
que “Quando o mal está no coração e na vontade, Deus ordena seu fluxo em uma direção e não
em outra de modo que seu curso pode ser melhor controlado e não resulte em prejuízo.” 80 Dessa
forma, muitas vezes aqueles que realizam o mal se frustram, pois Deus transforma os resultados,
não sendo os que eles gostariam. A história de José mostra isso, e após o reencontro dele com
seus irmãos, que o haviam vendido como escravo, José afirma: “vós, na verdade, intentastes o
mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve
muita gente em vida” (Gn 50.20). Apesar da intenção de acabar com a vida de José, Deus
transformou o ato de maldade deles em um passo para que José se tornasse governador do Egito
e, através de seu governo, preservasse a vida de muitos. Isso, contudo, não os exime de suas
responsabilidades ou mesmo da punição ao pecado que cometeram. Campos demonstra essa
habilidade divina de transformar as atitudes más dando a elas um resultado inesperado
afirmando que “Ele fez com que pela entrada do mal no universo fosse aberta a porta da
manifestação de vários atributos de sua bondade que estariam eclipsados num mundo sem a
existência do mal.” 81 E ainda completa: “o mal moral veio à existência também para evidenciar
os propósitos redentores de Cristo. Ele serviu-se dos males para tornar mais brilhante ainda o
seu propósito salvador.”82
Determinativo: Deus também determina os limites para o mal, pois o mal moral pode
atingir níveis desastrosos. Deus permite que Satanás atinja tudo que Jó tem em suas mãos,
porém, não permite que estenda as mãos contra ele (Jo 1.12). Posteriormente, Deus permite que
Satanás toque na saúde de Jó, mas, ainda assim, ordena que não lhe tire a vida. Paulo escreve

80
STRONG, Augustus Hopkins. Teologia Sistemática. Vol. 1. São Paulo: Hagnos, 2003, p.620,621
81
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e sua realização histórica. São Paulo:
Cultura Cristã: 2001, p. 278.
82
Ibid, p. 279.
31

na primeira carta aos Coríntios que eles não receberam tentações que não fossem humanas e
acrescenta que Deus, por sua fidelidade, não permitirá enfrentarem tentações além das suas
forças (ICo 10.13). Deus não impede que haja o mal ou mesmo que tenhamos tentações.
Campos afirma que elas são necessárias e cooperam para o nosso bem: “Elas fazem parte do
grande propósito divino de aperfeiçoar os seus filhos. Elas fazem parte de ‘todas as coisas’ que
cooperam para o bem dos que amam a Deus.”83 Deus, porém, não permite que elas extrapolem
nossas forças.
A providência de Deus não contraria, em momento nenhum, outras doutrinas bíblicas,
ao contrário, elas estão plenamente alinhadas às Escrituras. É necessário, porém, buscar
conhecê-las melhor para entender suas relações, e, quando não for possível compreendê-las
perfeitamente, deve-se aceitá-las como a Bíblia as expõem.
Para uma melhor compreensão de algumas dessas relações é necessária uma leitura
atenta do livro de Atos, que será desenvolvida nos próximos capítulos deste trabalho.

83
Ibid, p. 301.
32

2 DEUS, POR SUA PROVIDÊNCIA, ROMPE BARREIRAS

A providência de Deus é uma doutrina fascinante, por isso, quando se estuda a Bíblia,
é possível ver como se manifesta por suas páginas.
Esse capítulo mostra como Deus, através do seu controle providencial, atua no livro
de Atos rompendo as barreiras que se levantam contra o evangelho e, muitas vezes, usando-as
para auxiliar na expansão do cristianismo.

2.1 Barreiras linguísticas

A primeira barreira que Deus rompe para que o crescimento do evangelho, ocorre logo
no derramamento do Espírito Santo, no primeiro dia de Pentecostes, após a ascensão de Cristo.
Essa barreira foi imposta por Deus no início da humanidade, quando os homens se levantaram
contra o mandato de Deus de povoar a terra (Gn 8.17) e construíram uma torre exatamente para
se concentrarem em uma única região da terra e para tornarem o próprio nome célebre (Gn
11.4). O Senhor, então, disse “vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que
um não entenda a linguagem de outro” (Gn 11.7). “A diversidade de línguas, portanto, aparece
na Bíblia como resultado do juízo de Deus contra a arrogância da humanidade.”84 Em Atos 2 o
que acontece é uma inversão do ocorrido em Babel.

Pentecostes foi uma inversão do julgamento na torre de Babel, quando Deus


confundiu as línguas dos homens (Gn 11:1-9). O julgamento de Deus em Babel
dispersou o povo, mas sua bênção em Pentecostes uniu os cristãos no Espírito. Em
Babel, as pessoas não conseguiam entender-se, mas em Pentecostes, ouviram e
compreenderam o louvor a Deus. A torre de Babel foi criada para exaltar o homem e
celebrar seu nome, mas Pentecostes trouxe louvores a Deus. A construção da torre de
Babel foi um ato de rebelião, mas Pentecostes foi um ministério de submissão humilde
a Deus. Um contraste e tanto!85

O derramamento do Espírito Santo foi acompanhado de três sinais: O som como de


um vento impetuoso, apareceram distribuídas entre eles línguas, como de fogo, pousando sobre
cada um, todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar outras línguas, segundo o
Espírito lhes concedia que falassem. Stott afirma:

Se permitirmos que outras partes das Escrituras nos guiem na interpretação, parece
que esses três sinais representavam pelo menos o início da nova era do Espírito (João
Batista havia associado o vento ao fogo - Lc 3.16) e a nova obra que ele viera realizar.
Se for esse o caso, o som como de um vento pode simbolizar o poder (que Jesus lhes
havia prometido, para que testemunhassem, Lc 24:49; At 1:8), a visão de fogo, a

84
LOPES, Augustus Nicodemus. O Pentecostes e o Crescimento da Igreja: A extraordinária ação do Espírito
Santo em Atos 2. São Paulo: Vida Nova, 2017, p.28.
85
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 531.
33

pureza (como a brasa viva que purificou Isaías, 6:6-7) e o falar em outras línguas, a
universalidade da igreja cristã.86

“Este dia deu início à nova era messiânica, a era do Espírito.”87 Aqui, profecias se
cumpriram (Ez 11.19; 18.31; Is 4.4, 11.2; Jl 2.28-32; Lc 3.16; 24.49; At 1.5-8). Jesus já havia
ordenado a pregação do evangelho e o discipulado, mas os discípulos precisavam ser revestidos
de poder para iniciar sua missão. Jesus capacitou aqueles homens durante três anos, e agora eles
precisavam da capacitação do Espírito Santo, o que não significa que não tivessem o Espírito,
mas que necessitavam do seu poder extraordinário e da autoridade para o bom cumprimento da
missão.88
No dia de Pentecostes, havia, em Jerusalém, pessoas de todas as nações debaixo do
céu. Lopes afirma que havia cerca de 25 mil habitantes em Jerusalém, mas em época de festas,
peregrinos judeus vinham de todo o mundo para adorar e participar dos rituais relacionados às
festividades, chegando a 100 mil. Dessa maneira, Jerusalém estava repleta de pessoas no dia
que Deus escolheu para cumprir a promessa de enviar o Espírito, com poder extraordinário, a
fim de que fossem capacitados a levar o evangelho para todas as nações. 89
Barclay afirma que não havia necessidade de outro idioma, pois todos eram prosélitos
e judeus. Sendo assim eram necessários, no máximo, dois idiomas. Quase todos os judeus
falavam aramaico e os demais dispersos em países estrangeiros falavam o grego.90 Além disso,
os discípulos “eram galileus (v.7), conhecidos por serem incultos. Eles também ‘tinham
dificuldade em pronunciar sons guturais e o costume de engolir sílabas quando falavam; assim,
eles eram malvistos pelo povo de Jerusalém por serem provincianos’”91.
Deus, entretanto, atuou providencialmente através do poder do seu Espírito, para que
falassem aqueles idiomas. Pela primeira vez uma multidão, com pessoas de idiomas diferentes,
estava ouvindo a palavra de Deus de maneira a penetrar diretamente nos corações de forma
compreensiva. Era uma mensagem e uma expressão chegando aos corações pelo poder do
Espírito Santo.92
Esse momento não foi resultado de embriaguez, como alguns zombaram, e, também,
não se tratava de um milagre de audição, ou tradução simultânea. Stott afirma que “glossolalia

86
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 67.
87
STOTT, John R. W. Batismo e Plenitude do Espírito Santo. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida
Nova, 1964, p. 23.
88
LOPES, Augustus Nicodemus. O Pentecostes e o Crescimento da Igreja: A extraordinária ação do Espírito
Santo em Atos 2. São Paulo: Vida Nova, 2017, p.20.
89
Ibid, p. 21, 22.
90
BARCLAY, Willian. The Acts of the Apostles. Lousiville: Westminster John Knox Press, 1976, p. 23.
91
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 68.
92
BARCLAY, op. cit., p. 23.
34

no dia de Pentecoste foi uma habilidade sobrenatural para falar em línguas reconhecíveis.”93
Lopes acrescenta que “o Espírito Santo havia descido sobre os apóstolos e os demais cristãos
reunidos, mas, ainda não agira sobre a multidão. Em outras palavras, o milagre fora
experimentado pelos discípulos, mas não pela multidão.”94
Esses acontecimentos despertaram na multidão, por um lado, perplexidade, por outro,
zombaria. Lopes afirma que os sinais no Dia de Pentecostes apenas despertaram o interesse da
multidão para o que se seguiria, a pregação de Pedro, que, é quase certo ter sido realizada no
idioma grego.95 Pedro, primeiramente, mostra que o que está acontecendo ali é o cumprimento
da profecia de Joel 2.28-32. Em seguida explica o que tinha dito até ali, relacionando a morte e
ressurreição de Cristo à chegada do Espírito Santo. O resultado de sua pregação é um apelo
desesperado por parte de multidão que pergunta: “Que faremos, irmãos?” (At 2.37). A resposta
de Pedro é simples, requer arrependimento e batismo e, em seguida, afirma que a promessa é
para todos aqueles a quem Deus chamar. O acontecimento do dia de Pentecostes foi histórico,
não se repetiu. O fato de os 120, que receberam o Espírito nesse dia terem falado os idiomas,
não foi uma reversão definitiva de Babel, e sim momentânea, de maneira que, já na pregação
de Pedro, o idioma é único. Qual foi, então, o propósito divino na quebra dessa barreira?
Como já destacado, esse, assim como os outros sinais, serviu de chamariz para a
pregação de Pedro. No entanto, não se limitou a isso. “Simbolizou uma nova união no Espírito,
transcendendo barreiras raciais, nacionais e linguísticas. Assim, Lucas faz de tudo para enfatizar
o caráter cosmopolita da multidão, especialmente pela expressão ‘de todas as nações debaixo
do céu’ (v. 5).”96
Deus quebra a barreira linguística demonstrando o cumprimento de Atos 1.8, de que o
evangelho chegaria até os confins da terra, e isso ocorre mesmo sem os discípulos saírem de
Jerusalém. Além disso, através desse ato realizado por sua providência, Deus está antecipando
as maravilhas que acontecerão no decorrer dos acontecimentos narrados em Atos, os quais
superam as barreiras e conduzem o evangelho a novas etnias, expandindo, assim, o reino tanto
na perspectiva geográfica como numérica.

93
STOTT, op. cit., p. 69. Glossolalia é um termo usado para o dom de línguas.
94
LOPES, Augustus Nicodemus. O Pentecostes e o Crescimento da Igreja: A extraordinária ação do Espírito
Santo em Atos 2. São Paulo: Vida Nova, 2017, p.28
95
Ibid, p. 33, 34.
96
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 71.
35

2.2 Barreiras Socioeconômicas

Classe social sempre foi algo com potencial para minar o crescimento da igreja. Ao
mesmo tempo, a Bíblia sempre mostrou a importância que Deus dá a esse assunto.
Keller em seu livro, “Justiça Generosa”, afirma que no Antigo Testamento, havia o
“quarteto da vulnerabilidade”, formado por órfãos, viúvas, estrangeiros e pobres. Esse quarteto
era contemplado pela lei, havendo sobre eles proteção da parte do Senhor (Zc 7.9,10).97 Da
mesma forma, na expansão do evangelho há essa preocupação, tanto que, quando Paulo sai para
suas viagens missionárias, os apóstolos recomendam que se lembre dos pobres, e ele diz que se
esforçou por fazer isso (Gl 2.10).
Há dois momentos importantes para o crescimento da igreja no livro de Atos marcados
pela luta contra essa barreira socioeconômica, que serão tratados a seguir. A primeira delas diz
respeito à interação entre irmãos de uma mesma igreja (At 2.42-47 e At 4.32.37) e a segunda
refere-se ao auxílio entre igrejas (At 11.27-30).

2.2.1 Comunhão na igreja de Jerusalém

Atos 2.42-47 relata como viviam os primeiros cristãos. Havia perseverança na doutrina
dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações. A soma dessas características
resultou no crescimento da igreja, pois, enquanto essas coisas aconteciam, “acrescentava-lhes
o Senhor dia a dia os que iam sendo salvos” (At 2.47).
A “comunhão” e “o partir do pão” isolados não produzem o crescimento da igreja, pois
o que muda o coração é o evangelho. Lopes afirma que “a igreja começou com o derramamento
do Espírito, a pregação cristocêntrica e a permanência dos novos crentes na doutrina dos
apóstolos. A doutrina dos apóstolos é o inspirado ensino pregado oralmente naquele tempo, e
agora preservado no Novo Testamento.”98
A doutrina e a constante oração dos cristãos são fundamentais. Quando elas se somam
às atitudes da igreja, que cultiva constantemente a comunhão, resulta em uma igreja que louva
a Deus, tem a simpatia do povo e cresce pela poderosa mão de Deus.
Na igreja primitiva, os crentes tinham tudo em comum. Eles vendiam suas
propriedades distribuindo entre todos conforme iam tendo necessidade. O texto não se refere a
isso como uma obrigação para ser parte do povo cristão, nem mesmo faz alusão à unanimidade

97
KELLER, Timothy. Justiça Generosa: a graça de Deus e a justiça social. São Paulo: Editora Vida Nova, 2010,
p. 26.
98
LOPES, Hernandes Dias. Atos: A ação do Espírito Santo na vida da igreja. São Paulo: Hagnos, 2012, p. 66.
36

nessa prática, “não se tratava de uma forma de comunismo, pois foi um programa inteiramente
voluntário, temporário e motivado pelo amor”99. Kistemaker afirma que “a meta dos cristãos
primitivos era abolir a pobreza de forma que os carentes, como uma classe de pessoas, não
existisse mais no meio deles (At 4.34a).”100 João Crisóstomo afirma:

Aquilo era uma comunidade angelical, não consideravam exclusivamente deles nem
uma das coisas que possuíam. Imediatamente, foi cortada a raiz dos males ... ninguém
acusava, ninguém invejava, ninguém tinha ressentimentos; não havia orgulho nem
desprezo ... O pobre não sabia o que era vergonha, o rico não conhecia a arrogância.101

O desenvolvimento da igreja foi maravilhoso. Tannehill comenta sobre a relação entre


o que acontecia com a igreja primitiva e o que foi descrito no Antigo Testamento: “a afirmação
de que ‘não havia qualquer pessoa necessitada entre eles’ (At 4.34) lembra Deuteronômio 15.4,
em que esta situação feliz é prometida como bênção de Deus, se as pessoas são obedientes e
não endurecem seus corações aos necessitados.”102 Deus derrama da sua bênção para que não
haja necessidade entre eles.
Stott faz questão de lembrar que isso é o resultado de uma igreja cheia do Espírito
Santo: “Lucas nos mostra agora os efeitos do Pentecoste, dando-nos uma linda descrição da
igreja cheia do Espírito.”103 O resultado dessa igreja cheia do Espírito é que “eles contavam
com a simpatia de todo o povo” (At 2.47), e consequentemente o crescimento da igreja,
resultado da soberania de Deus, de maneira que o Senhor o concedia. Stott ainda acrescenta:

A evangelização não era uma atividade ocasional ou esporádica da igreja primitiva.


Eles não organizavam campanhas quinquenais ou decenais (campanhas são boas,
conquanto que não passem de episódios dentro de um programa contínuo). Não, o
culto deles era diário (46a), e assim também o testemunho. O louvor e a proclamação
eram o transbordamento natural de corações cheios do Espírito Santo. Eles buscavam
as pessoas de fora continuamente, e então os convertidos eram acrescentados
continuamente.104

Deus enche a igreja do seu Espírito, tornando-a uma em que não há necessitados, que
evangeliza, que louva, concede-lhe a simpatia do povo e Ele mesmo acrescenta os que são
salvos. A comunhão entre os irmãos era tão grande que parecia perfeita. Contudo, problemas

99
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 531.
100
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 157, 158.
101
CRISÓSTOMO, João. Homilia VII, p. 47.
102
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p.45.
103
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 86.
104
Ibid, p. 92.
37

decorrentes na prática da comunhão começaram a aparecer. O mais interessante é que a solução


oferecida aos problemas produz o crescimento da igreja.
O primeiro problema foi a mentira de Ananias e Safira que depositaram parte do valor
aos pés dos apóstolos afirmando que era o total da venda. Pedro diz que não mentiram aos
homens, mas a Deus (At 5.4,9). A consequência é a morte deles. Houve grande temor entre a
igreja, porém, crescia mais e mais a multidão de crentes. Lopes afirma que o exercício da
disciplina e o zelo pela pureza da igreja produz não só santificação, mas também o crescimento
numérico da igreja.105
Outro problema está relacionado ao crescimento estrondoso da igreja que chegou a um
momento de dificuldades no rompimento das barreiras sócio-econômicas do povo. As viúvas
dos helenistas foram esquecidas na distribuição diária (At 6.1).
A igreja não se omitiu ao problema e precisou se organizar. Os apóstolos não tinham
como se dedicar a esse momento, por isso orientaram o povo para que escolhessem sete homens
cheios do Espírito Santo que suprissem essa necessidade. Ao serem escolhidos, foram
apresentados aos apóstolos que lhes impuseram as mãos e oraram por eles. A consequência
dessa nova organização também foi o crescimento da Palavra de Deus, multiplicação dos
discípulos em Jerusalém e muitíssimos sacerdotes que obedeciam à fé (At 6.7).
Stott faz uma lista das tentativas do diabo para destruir a igreja e sua expansão, sendo
duas delas mencionadas acima como consequência da comunhão da igreja:

Primeiro, ele tentou suprimi-la pela força das autoridades judaicas; segundo, tentou
corrompê-la com a hipocrisia, através do casal Ananias e Safira; e, terceiro, tentou
distrair seus líderes da oração e da pregação através de algumas viúvas murmuradoras,
para expor a igreja a erros e ao mal. Se ele tivesse obtido sucesso em qualquer uma
dessas tentativas, a nova comunidade de Jesus teria sido aniquilada em sua infância.
Mas os apóstolos estavam alertas o suficiente para detectar “as ciladas do diabo".
Precisamos desse discernimento espiritual hoje, para reconhecer a atividade do
Espírito Santo e a do espírito maligno (cf. 5:3). Precisamos também da fé que eles
tinham no poderoso nome de Jesus, pois os poderes das trevas só podem ser vencidos
através dessa autoridade. 106

Deus, em sua providência, não apenas trabalha na qualidade da sua igreja, mas também
transforma as tentativas do diabo para minar a sua igreja, em instrumentos para o seu
crescimento. As táticas do inimigo, então, resultaram em crescimento da igreja (At 4.4; 5.14;
6.7).

105
LOPES, Augustus Nicodemus. O Pentecostes e o Crescimento da Igreja: A extraordinária ação do Espírito
Santo em Atos 2. São Paulo: Vida Nova, 2017, p.103.
106
LOPES, Augustus Nicodemus. O Pentecostes e o Crescimento da Igreja: A extraordinária ação do Espírito
Santo em Atos 2. São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 137.
38

2.2.2 Comunhão entre igrejas

A igreja de Antioquia foi formada quando houve a perseguição devido a morte de


Estêvão. Após o anúncio somente a judeus, alguns que eram de Chipre e Cirene anunciaram
também aos gentios. “A mão do Senhor estava com eles, e muitos, crendo, se converteram ao
Senhor” (At 11.21). Barnabé foi enviado a Antioquia para saber o que estava acontecendo.
Quando viu a graça de Deus, alegrou-se e exortou a todos para que permanecessem no Senhor.
Ele foi a Tarso buscar Paulo para ajudá-lo e assim ensinavam numerosa multidão.
Um profeta chamado Ágabo, que tinha ido de Jerusalém para Antioquia, deu a
entender, pelo Espírito, que viria grande fome sobre o mundo107, o que realmente aconteceu nos
dias de Cláudio.
Kistemaker diz que “o fato de que esse profeta era cheio do Espírito Santo significa
que Deus desejava comunicar-se com seu povo a respeito de um acontecimento no futuro.”108
Deus governa e sustenta todas as coisas. Em seu governo ele revela a um homem algo que
estava por acontecer. Henry afirma que “o que ele disse não era de si mesmo, nem fantasia sua,
nem predição astronômica, nem conjetura acerca das dava a operações vigentes de segundas
causas, mas ele entender, pelo Espírito, que haveria uma grande fome pelo Espírito (v. 28).”109
Deus não hesita em usar seus servos para cumprir Seus propósitos, como Ágabo que foi um
instrumento no qual Deus, de alguma forma, transmitiu uma predição do que aconteceria para
que a igreja de Jerusalém não perecesse.
A reação da igreja não foi de dúvida, mas de prontidão. “Os discípulos, cada um
conforme as suas posses resolveram enviar socorro aos irmãos que moravam na Judeia” (At
11.29). Eles fizeram isso através de Paulo e Barnabé. Talbert afirma:

Estes cristãos gentios de Antioquia são mostrados agindo da mesma maneira que os
novos convertidos em Jerusalém haviam agido antes. Eles compartilham seus bens
materiais, no entanto, não uns com os outros, mas com os cristãos judeus em
Jerusalém. Desta forma, eles demonstram sua plena participação na igreja dos
apóstolos e testificam a unidade de judeus e gentios dentro da comunhão messiânica
(cf. Ef 2: 11-22). É significativo, além disso, que quando os discípulos de Antioquia

107
Kistemaker afirma que “a fome predita por Ágabo aconteceu durante o reinado do imperador Cláudio que
governou de 41 a 54 d.C. Lucas a classifica como uma fome grave, pois ela, em graus variados, afetou todo o
império romano. O Egito vendeu grãos para beneficiar o povo de uma Jerusalém assolada pela fome. Chipre
forneceu figos, e os cristãos em Antioquia enviaram ajuda aos crentes da Judéia (v. 29)”.
108
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 558.
109
HENRY, Mathew. Comentário Bíblico do Novo Testamento: Atos a Apocalipse. Rio de Janeiro: CPAD,
2008, p. 122.
39

agem dessa maneira, eles estão se comportando como seu professor Barnabé (4: 36-
37): "como mestre, como discípulo" (Lucas 6:40).110

A providência de Deus não se manifestou apenas através da vida de Ágabo. Deus,


quando envia Barnabé a Antioquia, além do seu ensino e do início da parceria com Paulo, já
estava preparando a igreja para a contribuição.
Lucas não mostra algo que possa conectar esse texto ao crescimento ou expansão da
igreja, porém, ela é um corpo, e se uma é afetada, automaticamente a outra também sofre. As
igrejas não devem lutar sozinhas, também não devem se omitir de auxiliar, pois não se trata
apenas do crescimento de cada igreja, mas da expansão do reino de Deus. Caso a igreja de
Jerusalém fosse fatalmente afetada por essa grande fome, provavelmente, o concílio de
Jerusalém, em Atos 15, não aconteceria e o evangelho seria deturpado, causando sérios
prejuízos ao reino.
A providência não está apenas na expansão, mas na preservação, como relatado no
primeiro capítulo. Assim como o mundo é sustentado por Deus e só pode se manter pela
providência divina, da mesma forma, a igreja se mantém pelo gracioso sustento de Deus.

2.3 Barreiras étnicas

A nação de Israel foi o povo que Deus, que por sua soberania, escolheu “para que lhe
fosses o seu povo próprio, de todos os povos que há sobre a terra” (Dt 7.6). O entendimento do
povo judeu, com o tempo, passou a ser de que não eram apenas o povo escolhido, mas que era
o povo exclusivo. Daniel-Rops afirma que “o fato de terem sido escolhidos pelo Todo-poderoso
inflamou um orgulho acional extraordinário. Podemos estar certos de que na época de Cristo
este orgulho não havia diminuído um milímetro sequer.” 111
A Palavra de Deus, porém, nunca permitiu ao povo judeu esse exclusivismo que
resultava em algo chamado orgulho nacional. Stott afirma:

não que o Antigo Testamento aprovasse tal divisão. Pelo contrário, paralelamente a
seus oráculos contra as nações hostis, ele afirmava que Deus tinha um propósito para
elas. Escolhendo e abençoando uma família, ele queria abençoar todas as famílias da
terra. 112

Isso nós vemos amplamente no Antigo Testamento. O chamado de Abraão em Gênesis


12 foi para que nele fossem benditas todas as famílias da Terra. O livro de Deuteronômio, que

110
TALBERT, Charles H. Reading Acts: A Literary and teological commentary. Geórgia: Smyth & Helwys
Publishing, 2005, p. 106.
111
DANIEL-ROPS, Henri. A vida diária nos tempos de Jesus. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida
Nova, 1988, p. 270.
112
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 207.
40

fala a respeito da escolha de Israel, em sua sequência mostra Moisés dando a bênção aos filhos
de Israel e afirma “Na verdade, amas (Deus) os povos; todos os teus santos estão na tua mão;
eles se colocam a teus pés e aprendem das tuas palavras” (Dt 33.3), mostrando que o amor de
Deus não se limita aos judeus. Os salmistas, constantemente conclamam os povos a louvarem
ao Senhor (Sl 96; 100; 117 por exemplo).
Lucas também destaca isso, quando relata as palavras de Jesus na comissão a seus
discípulos em Atos 1.8, dizendo que o evangelho deveria ser levado à Jerusalém, Judeia,
Samaria e até aos confins da terra. O mau entendimento dessas palavras poderia levar ao
exclusivismo, pelo fato de haverem judeus espalhados por todo o mundo. Sendo assim, o
evangelho seria levado somente a judeus. Isso realmente começa a acontecer em Atos 11.19,
quando “os que foram dispersos por causa da tribulação que sobreveio a Estêvão se espalharam
até a Fenícia, Chipre e Antioquia, não anunciando a ninguém a palavra, senão somente aos
judeus”.
Há alguns momentos de extrema importância em Atos para essa quebra da barreira
étnica. A primeira está no capítulo 8, quando Filipe chega a Samaria, um local de grande
desprezo pelos judeus (Jo 4.9). O segundo está em Atos 10, na conversão do centurião Cornélio.
O terceiro é exposto no concílio em Atos 15, que confirma institucionalmente a quebra da
barreira entre judeus e samaritanos ou gentios. Será observado primeiramente a vitória frente a
barreira em relação aos samaritanos.

2.3.1 O cristianismo e os samaritanos

O oitavo capítulo de Atos é fundamental para o entendimento da providência de Deus


na expansão do evangelho. Deus tornou a perseguição em uma parceira da missão e um
instrumento para o cumprimento da promessa de Atos 1.8.113 Através da perseguição o
evangelho chegou, por intermédio de Filipe, até Samaria.
Samaria, entretanto, foi sempre uma grande inimiga do povo judeu. Samaria era a
capital do reino do Norte, o qual pagava tributos a Assíria. Oséias era rei de Israel e decidiu se
unir com o Egito, prestando-lhes lealdade. A Assíria fez um cerco contra Israel e em 722 a.C.
levou a maioria da população, que foi enviada para Assíria. Os pobres foram autorizados a
permanecerem em Samaria. Estrangeiros foram levados para essa região devastada pelos
Assírios, casaram-se com os israelitas que lá ficaram. Esse povo foi chamado de samaritano e

113
Isso será observado no item 3.1, p. 71-76.
41

pediu sacerdotes que ensinassem sobre a lei do Deus daquela terra, portanto mesclaram o culto
a Deus com o culto pagão, formando um judaísmo adulterado.114
Quando os judeus voltaram do exílio babilônico começaram a reconstrução do templo
em Jerusalém e os samaritanos quiseram ajudá-los, mas não receberam permissão dos judeus.
Por conta disso, os samaritanos tentaram atrapalhá-los (Ed 3 e 4). Posteriormente, construíram
o próprio templo no monte Gerizin, que depois foi destruído por João Hicarno, rei macabeu,
por volta de 128 a.C..
Talbert destaca que “em algum momento no período de 6 a 9 a.C., alguns samaritanos
profanaram o Templo de Jerusalém com ossos humanos, um ato que levou à sua exclusão do
templo”.115 Foram séculos de rivalidade através de ações de ambas as partes. Todo esse
processo desgastante provocou ódio entre judeus e samaritanos.
Jesus ultrapassou as barreiras do ódio. Em Lucas, apresenta a parábola do bom
samaritano (Lc 10.25-37), buscando desconstruir a forte rivalidade entre esses povos,
demonstrando que o próximo, nesse texto, foi o samaritano. Em João 4 Jesus tem um encontro
com uma mulher samaritana em Sicar, cidade de Samaria e depois se hospeda na cidade por
dois dias, mostrando a eles que é o Messias. Em contraponto ao ensino de Jesus, quando os
samaritanos não querem recebê-Lo, em Lucas 9.51-56, Tiago e João se oferecem para orar a
Deus pedindo fogo do céu que consuma os samaritanos.
Esse é o panorama da relação entre judeus e samaritanos nessa época. Quando Filipe
vai a Samaria e começa a pregar, ele está por um lado desafiando a extrema rivalidade entre
judeus e samaritanos e, por outro, sendo o cumprimento da promessa de Jesus em Atos 1.8.
Tannehill afirma:

A missão de Filipe de pregar e curar é descrita de maneiras que sugerem semelhança


e continuidade com a missão de Jesus e dos apóstolos. O que eles fizeram, ele, agora,
está fazendo, mas ele o faz em uma nova área e com um novo grupo étnico. O
cumprimento da comissão de Jesus em 1:8 não espera até que os apóstolos estejam
prontos para incluir Samaria. Para manter a reivindicação de Jesus sobre Jerusalém, a
missão avança através de Filipe.116

Filipe não hesita em levar o evangelho a Samaria. Ao contrário, por onde passa leva
as boas novas e Samaria não está ausente de sua missão. Kistemaker lembra

(...) que Filipe pregou Cristo aos samaritanos. Eles não estavam mais excluídos das
boas-novas (Mt 10.5), que é a mensagem universal de Deus para todos os povos.

114
Informações obtidas no comentário de João por Willian Hendriksen, p.215-217.
115
TALBERT, Charles H. Reading Acts: A Literary and teological commentary. Geórgia: Smyth & Helwys
Publishing, 2005, p. 68.
116
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p. 104.
42

Como os samaritanos estavam, por assim dizer, a apenas meio passo dos judeus, foram
os primeiros a ouvir o evangelho de Cristo, agora que os judeus haviam expulso os
cristãos de Jerusalém. 117

A proibição dada em Mateus 10.5, em Atos 1.8 torna-se então missão.


Os apóstolos ficaram em Jerusalém, enquanto os demais cristãos fugiram levando o
evangelho por onde passavam. Apesar disso, os apóstolos não estão inertes em Jerusalém.
Comissionaram Pedro e João para verificarem o que estava acontecendo lá. A escolha de João
é um pouco irônica, tendo em vista que ele e seu irmão Tiago se ofereceram a Jesus para pedir
fogo do céu sobre os samaritanos. Apesar disso, vão a Samaria e impõem as mãos sobre aqueles
que atenderam ao apelo de Filipe, fazendo com que recebam o Espírito Santo. Os apóstolos
sabem que não podem negar o que Deus não nega. O Espírito Santo foi outorgado aos
samaritanos, então eles retornam pregando em outras aldeias samaritanas.
Wiersbe afirma que “em sua graça, Deus construiu uma ponte entre dois povos
afastados e tornou os cristãos um só corpo em Cristo.”118 As barreiras que separavam judeus e
samaritanos foi transposta por essa ponte. Havia, entretanto, uma nova ponte a ser estabelecida
entre cristãos e gentios que será tratada em seguida.

2.3.2 O cristianismo e os gentios

O cristianismo chegou aos samaritanos, cumprindo parte de Atos 1.8. Agora, Deus
realiza um processo para quebrar outra grande barreira, pela qual o evangelho chega aos gentios,
conforme descrito no capítulo 10 de Atos. Henry descreve esse momento:

a história registrada neste capítulo faz uma reviravolta inusitada e extraordinária aos
Atos dos Apóstolos. Até aqui, tanto em Jerusalém como em todo o lugar a que os
ministros de Cristo chegaram, eles pregaram o evangelho somente aos judeus, ou aos
gregos que foram circuncidados e convertidos à religião judaica. Mas agora “eis que
nos voltamos para os gentios (At 13.46).119

Deus atua providencialmente na história da humanidade, fazendo com que o evangelho


ultrapasse as barreiras raciais chegando aos gentios incircuncisos. O capítulo narra o encontro
de Pedro com Cornélio e as visões que o precedem.
A primeira visão é a de Cornélio, um centurião Romano da cidade de Cesareia.
Cornélio era um homem temente a Deus.

117
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 386.
118
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 563.
119
HENRY, Mathew. Comentário Bíblico do Novo Testamento: Atos a Apocalipse. Rio de Janeiro: CPAD,
2008, p. 104.
43

Isso quer dizer que ele frequentava os cultos dos sábados na sinagoga local e
observava o sábado como dia de descanso. Cumpria as leis judaicas de restrições
alimentares, dava generosamente contribuições materiais para aliviar as necessidades
dos pobres e orava diariamente em determinados horários. No entanto, não consentia
com a circuncisão e o batismo e se abstinha de oferecer sacrifícios. Desse modo ele
seguia o exemplo de inúmeros gentios que adoravam a Deus, mas não eram admitidos
na comunidade judaica.120

Essa característica de Cornélio foi atentada por Deus, de maneira que este lhe deu uma
visão (At 10.3-6). Deus envia um anjo a Cornélio, que não passa nenhuma informação
detalhada, a não ser quem deveria procurar e o endereço onde estava. Deus, soberano sobre
todas as coisas, poderia usar o próprio anjo para falar e anunciar o evangelho a Cornélio em sua
visão. Champlin explica por que ele não ensinou a Cornélio por meio de um anjo, fazendo um
paralelo com a visão de Ananias e Paulo:

Porquanto não parece justo que ele tivesse resignado o seu ofício a um homem mortal;
pois o oráculo teria maior autoridade dito pelo anjo do que se o evangelho fosse
pregado por um homem mortal. Porém, quando Cristo apareceu a Saulo, em sua visão
inicial, não obstante foi escolhido Ananias para ensiná-lo, a fim de que se pudesse,
mediante tal exemplo, estabelecer o ministério da pregação do evangelho, que foi
entregue à sua igreja.121

Isso poderia ter sido feito, também, por intermédio de Filipe, tendo em vista que ele
tinha batizado o etíope nas águas e depois disso foi arrebatado, estando em Cesaréia (At 8.40),
ou até mesmo por Paulo, o apóstolo dos gentios, que foi levado para lá quando os helenistas
tramavam contra sua vida (At 9.30). Wiersbe, porém, afirma que “Pedro, não Filipe, recebera
as ‘chaves’ (Mt 16.19). Deus não apenas trabalha na hora certa, mas também por meio dos
servos certos; os dois elementos são essenciais.”122
Deus decretou todas as coisas antes da fundação do mundo e algumas coisas Ele revela
em sua Palavra, pois assim decretou. O que falou através de Jesus, em Mateus 16.19, se cumpre.
O Espírito Santo é derramado por Deus em Jerusalém (Atos 2) pela pregação de Pedro aos
Samaritanos (Atos 8), impondo sobre eles as mãos, e aos gentios (Atos 10) enquanto falava.
Cornélio, em obediência a Deus, envia dois homens até Pedro.
Na segunda visão, sendo essa dada a Pedro, Deus prepara o seu coração para ser
portador das boas novas aos gentios. Wiersbe afirma: “Pedro também precisou ser preparado

120
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 485.
121
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado. Vol 3. São Paulo: Editora e Distribuidora
Candeia, 1998, p. 212.
122
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 577.
44

para esse acontecimento, uma vez que vivera como judeu ortodoxo a vida inteira (At 10:14).”
123
A preparação de Pedro ocorreu através de uma visão que o deixou perplexo (At 10.10-17).
A visão de Pedro foi pouco antes da chegada dos mensageiros. Enquanto meditava a
respeito dela, o Espírito Santo avisou que dois homens o procuravam, não enviados por
Cornélio, mas pelo próprio Espírito (At 10.20). Pedro se levantou e os recebeu. Ele entendera
a visão:

Assim, apesar de a visão ter contestado a distinção básica entre alimentos puros e
impuros que Pedro fora educado a respeitar, o Espírito a relacionou com a
discriminação entre pessoas puras e impuras, e lhe ordenou que parasse com isso.124

Enfim, o que se sucede a essas visões é o encontro com Cornélio e as pessoas que
estavam em sua casa (At 10.24-48). Após um diálogo entre eles, Pedro expõe o evangelho e,
enquanto falava, “caiu o Espírito Santo sobre todos os que ouviam a palavra” (At 10.44). Nesse
momento Deus quebra as barreiras raciais existentes na vida de Pedro e aqueles que estão ali,
tanto que Pedro faz uma pergunta retórica: “pode alguém recusar a água, para que não sejam
batizados estes que, assim como nós, receberam o Espírito Santo?” (At 10.47). Em seguida ele
ordena que sejam batizados em nome de Jesus (At 10.48).
Esse momento não encerra a questão entre judeus e gentios. Ao contrário, Pedro será
interrogado a esse respeito no capítulo 11 e depois de relatar o acontecimento, os que eram da
circuncisão, que o haviam interrogado (At 11.2) “glorificaram a Deus, dizendo: Logo, também
aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento para vida” (At 11.18).
As diferenças étnicas voltam a entrar em pauta no concílio realizado em Atos 15, com
a questão da necessidade de circuncisão aos gentios convertidos ao cristianismo. Pedro
argumenta a partir do acontecido, e o concílio chega à conclusão de que não seria necessário
perturbá-los e que algumas recomendações deveriam ser guardadas por eles (At 15.19,20).
Lopes faz uma bela declaração a respeito da ação do evangelho e sua ação que destrói
barreiras raciais:

O evangelho da paz não faz distinção entre judeu e gentio, homem e mulher, doutor e
analfabeto, religioso e ateu. O evangelho quebra muralhas, despedaça grilhões, rompe
tabus, quebra preconceitos e torna a igreja um único povo, um único rebanho, uma
única família. Não importa a cor da sua pele, a sua tradição religiosa, o sobrenome da
sua família; o evangelho se destina a todos.125

123
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 577.
124
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 210.
125
LOPES, Hernandes Dias. Atos: A ação do Espírito Santo na vida da igreja. São Paulo: Hagnos, 2012, p. 213.
45

Deus agiu providencialmente nessa situação para que a missão de expansão do


evangelho prosperasse. Champlin ressalta:

A providência de Deus fica perfeitamente saliente aqui, sem a intromissão de qualquer


pensamento ou ideia de recompensa pela busca pela verdade. Cornélio era um
homem-chave, que podia ser usado para levar avante a expansão e o desenvolvimento
da jovem igreja crista. A fim de que um mundo incapacitado pudesse ser ajudado e
que Cornélio foi escolhido, para que seu caso servisse de instrução acerca do Senhor
Jesus e de seus discípulos, a fim de que uma porta de entrada na fé pudesse ser aberta
para outros gentios. 126

Dessa forma, Champlin está dizendo que a providência de Deus está na utilização de
Cornélio como um novo instrumento na propagação do evangelho, assim como o fato passa a
ser a porta de entrada do evangelho aos gentios.
Esse fato torna possível a missão paulina na sequência do livro de Atos e é fundamental
para a expansão do evangelho, assim como é crucial para ser, ainda hoje, alvo da graça
maravilhosa e da providência de Deus que não se limitou àqueles momentos, mas se estende
por toda a história da humanidade, pela qual Deus cumprirá todos os seus propósitos.

2.4 Barreiras governamentais

O processo de crescimento da igreja foi profundamente marcado por perseguições de


governos, ora religiosos, ora políticos. Tannehill destaca que

Não só os líderes religiosos judeus, mas também os governantes políticos aparecem


na narrativa como ameaças potenciais à missão. Jesus advertiu que seus seguidores
seriam levados a reis e governadores (Lucas 21:12). (...) Tanto os governantes
religiosos quanto os governantes políticos podem ser perigosos e, às vezes, essas
forças ameaçadoras trabalham juntas.127

O próximo capítulo mostrará como a perseguição foi usada por Deus como um
instrumento de sua providência para a expansão de Seu reino. Agora, porém, a ênfase recai
sobre as barreiras humanas, que foram usadas como instrumentos para o crescimento da igreja,
mas, principalmente, foram derrotadas pela providência ordinária ou extraordinária de Deus.128
Nesse ponto serão apresentadas apenas duas delas. A primeira é a barreira que se ergue
pelo sinédrio, nos capítulos 4 a 7, e a segunda é a barreira formada pelo governo de Herodes,
no capítulo 12.

126
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado. Vol 3. São Paulo: Editora e Distribuidora
Candeia, 1998, p. 212.
127
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p. 151, 152.
128
Ver, no primeiro capítulo, o item 1.5.4 (Providência e milagres, ou providência extraordinária)
46

2.4.1 Sinédrio

O sinédrio foi uma grande oposição ao cristianismo em Jerusalém e se estendeu para


além de Jerusalém (At 9.2). O próximo capítulo mostrará como essa perseguição se tornou um
instrumento da providência divina. Aqui, porém, é ressaltada a ação do Senhor para transpor
essa barreira.
Os capítulos 4 e 5 do livro de Atos relatam as prisões de Pedro e João por causa dos
sinais operados entre o povo, pela cura de um coxo de nascença que ficava à porta do templo
(At 3.2) e por inveja pelos sinais e prodígios realizados pelas mãos dos apóstolos (At 5.12-16).
As prisões ganham destaque especial no livro de Atos. Tannehill destaca que “seções
de Atos demonstram o interesse do narrador por ecos da prisão e das provações de Jesus nas
experiências de suas testemunhas”,129 indicando que o testemunho de Cristo envolve, não
somente a proclamação do evangelho, mas participar do sofrimento de Cristo. Isso acontece,
no livro de Atos, através de prisões, açoites e martírios.
Nas duas prisões, quem se levanta contra eles são os saduceus.

Lucas deixa bem claro que ambas as ondas de perseguição foram iniciadas pelos
saduceus (4:1 e 5:17). Eles eram a classe governante dos aristocratas ricos.
Politicamente, integraram-se ao sistema romano e adotavam uma atitude de
colaboração, de modo que temiam as implicações subversivas dos ensinos dos
apóstolos. Teologicamente, criam que a era messiânica havia iniciado no período dos
macabeus; portanto, não estavam à espera de um Messias. Eles também rejeitavam a
doutrina da ressurreição dos mortos que os apóstolos proclamavam em Jesus (v. 2b).
Assim, viram os apóstolos como agitadores e hereges, perturbadores da paz e inimigos
da verdade.130

Não se trata apenas de insatisfação com curas. A pregação estava desmoralizando os


saduceus politicamente, assim como colocavam suas convicções teológicas em cheque.
Mesmo frente as prisões, o número de homens cristãos sobe para aproximadamente
cinco mil. “A palavra de Deus não está algemada” (2Tm 2.9), “a igreja continuava a crescer.
Certamente Deus realizou um milagre para fazer com que a multidão fosse a Cristo depois de
ouvir o sermão”.131 As autoridades, os anciãos e os escribas, com o sumo sacerdote, questionam
em qual nome realizaram a cura do coxo (At 4.5,6). A prisão, nesse momento, se torna um
instrumento nas mãos de Deus para a proclamação do evangelho às autoridades, como Jesus
havia predito (Lc 12.11,12). Os líderes do sinédrio não puderam fazer nada por conta do povo,

129
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p. 152.
130
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 105.
131
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 201.
47

pois glorificavam a Deus. Então ameaçaram a Pedro e João que respondem com a bela
afirmação “Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus; pois
nós não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos” (At 4.19,20).
A igreja entra em cena através da oração, pedindo que anunciem com intrepidez a
palavra de Deus frente as ameaças e recebam prontamente a resposta do Senhor, pois, “todos
ficaram cheios do Espírito Santo e, com intrepidez, anunciavam a palavra de Deus” (At 4.31).
Deus age através das prisões conduzindo a igreja à oração e age em resposta à oração
do seu povo. A igreja não se intimida com as ameaças e prega com ousadia, não por sua coragem
inata, mas pelo poder do Espírito Santo que faz o lugar onde ela estava tremer, enchendo-a do
seu poder. Mais uma vez a prisão entra em cena no capítulo 5. Deus atua novamente com a ação
de um anjo que os liberta e ordena que se apresentem no templo e preguem “todas as palavras
desta Vida” (At 5.20). Ordem que é atendida prontamente pelos apóstolos. Quando o sumo
sacerdote convoca o sinédrio e manda buscá-los, percebem que os apóstolos já não estão mais
lá, de maneira que “ficaram perplexos a respeito deles e do que viria a ser isto” (At 5.24).
Tannehill destaca que “o foco do narrador no relatório dado ao Sinédrio, e não no
próprio resgate, mostra que o principal interesse aqui não é em resgates milagrosos, mas na
impotência das autoridades humanas para controlar o curso dos acontecimentos.”132 Deus
mostra às autoridades, de forma a provocar risos ao leitor, que o controle não está nas suas
mãos, enquanto expõe a impotência humana diante da poderosa mão do Senhor, que controla
todos os fatos. Wiersbe destaca diante dessa cena:

temos vontade de sorrir ao pensar na expressão dos guardas quando descobriram que
seus prisioneiros mais importantes haviam desaparecido. Podemos apenas imaginar o
espanto dos líderes invejosos do sinédrio ao receber o relatório dos guardas! Tentavam
impedir os milagres, mas conseguiram apenas multiplicar esses prodígios!133

Eles, então, ficam sabendo que aqueles que estavam presos, agora ensinam o povo
livremente no templo. O capitão e a guarda vão buscá-los. Ironicamente, o medo que deveria
tomar conta dos apóstolos é transferido àqueles que os perseguem. O capitão e os guardas ficam
com medo de serem apedrejados pela multidão, retirando-os do templo sem violência. A queixa
deles aumenta cada vez mais. Antes era só o questionamento a respeito do nome pelo qual eles
faziam milagres. Agora estão inconformados de que os apóstolos querem lançar sobre eles o
sangue de Cristo.

132
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p. 66.
133
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 550.
48

Essa se torna mais uma oportunidade de pregar o evangelho. Pedro ressalta que desde
a morte de Jesus tentam extinguir o nascimento do cristianismo, mas não fazem nada, senão
serem instrumentos para que Deus cumpra suas promessas. Ele afirma que “O Deus de nossos
pais ressuscitou a Jesus, a quem vós matastes, pendurando-o num madeiro. Deus, porém, com
a sua destra, o exaltou a Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a
remissão de pecados” (At 5.30,31).
Ao mesmo tempo Pedro relembra as palavras de Deuteronômio 21.23, que afirma:
“porquanto o que for pendurado no madeiro é maldito de Deus”. A morte não o deteve. A
maldição se tornou em exaltação. “Eles mataram Jesus, mas Deus o ressuscitou dos mortos.
Eles o condenaram, crucificando-o, mas Deus o exaltou ao mais alto grau. Deus está agindo na
morte, ressurreição e ascensão de Jesus.”134
Após essas palavras, desejam matar os apóstolos, mas Gamaliel chama à atenção dos
israelitas para o que estão prestes a fazer. Ao fim de suas palavras, Gamaliel reconhece a
soberania de Deus e afirma que se o movimento for de homens, perecerá, mas se for de Deus,
ninguém poderá destruí-lo. Tannehill analisa apontando que

em Atos 5 há dois resgates: um por um anjo e outro por um ser humano, Gamaliel.
Gamaliel, uma pessoa de discernimento e razão, intervém à medida que a trama se
move em direção à crise e corrige aqueles levados por suas paixões assassinas (5:33).
(...) Todo o discurso de Gamaliel é uma advertência contra a ação precipitada, à luz
da séria possibilidade de que o Sinédrio possa se mostrar um tolo "lutando contra
Deus" (5:39). 135

Os apóstolos não escaparam aos açoites, mas saíram jubilosos por terem sidos
considerados dignos de sofrer afrontas por esse Nome. “E não cessavam de ensinar e de pregar
Jesus, o Cristo” (At 5.42). Deus agiu de maneiras diferentes para livrar os apóstolos da prisão.
Primeiramente os soltaram por causa do povo, depois por um anjo e agora por Gamaliel.
Contudo, a oposição do Sinédrio aumentava cada vez mais.
A oposição do sinédrio atinge um dos diáconos eleitos (At 6.1-7), Estêvão. Após a
acusação e seu discurso, diferentemente dos demais momentos em que cristãos foram livrados
por homens ou anjos, aqui o Senhor intervém diretamente. Ele vê a glória de Deus e Cristo
assentado à sua direita. O Senhor mostra que, desta vez, ele mesmo está livrando-o do
sofrimento desse corpo e que tudo o que fizera valeu a pena.

134
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 276.
135
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p. 66, 67.
49

Barclay afirma que “seu segredo era que além do que todos esses homens pudessem
fazer com ele, via que à sua espera estavam as boas-vindas de seu Senhor.”136 Wiersbe afirma
que “nosso Senhor assentou-se depois de subir ao céu, mas se levantou para receber na glória
o primeiro mártir cristão.”137
A perseguição que os apóstolos sofreram estava se estendendo à igreja. O Sinédrio
“lutou contra Deus” (At 5.39), levantou-se como uma das mais fortes resistências ao
cristianismo primitivo. Contudo, não só sofreu uma terrível derrota, como foi um instrumento
poderoso da providência divina para a expansão do evangelho.
Deus não mede forças com as barreiras que se levantam. Não há nada que possa detê-
lo. Ele é onipotente. Como reconheceu Nabucodonosor: “Todos os moradores da terra são por
ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os
moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Dn 4.35)

2.4.2 Herodes

Herodes Agripa I foi neto do rei Herodes, “o grande” e sobrinho de Herodes Antipas,
que cortou a cabeça de João Batista para entregá-la à filha de Herodias (Mc 6.14-29). Ele foi
amigo de infância de Gaio (Calígula), que se tornou imperador em Roma. Dele recebeu o título
de rei sobre Ituréia, Traconites e Abilene. Após a morte de Calígula, Agripa I apelou a Cláudio
pedindo terras de Judeia e Samaria, de maneira que, nesse tempo, seus territórios se igualavam
aos de seu avô.138
“Agripa I vivia como judeu em Jerusalém, mas em Cesareia tinha vida mundana,
vivendo segundo os costumes gregos, tendo mandado erigir estátuas suas e de suas filhas, e
cunhando dinheiro com sua efígie.”139 Por essas descrições, pode-se perceber que esse rei tinha
um ego extremamente aguçado.
Herodes mandou prender alguns cristãos para maltratá-los e fez o apóstolo Tiago,
irmão de João, passar a fio de espada, o que foi agradável aos judeus. Como ele viu que o povo
se agradou disso, ordenou a prisão de Pedro para apresentá-lo ao povo depois da Páscoa (At
12.1-42). Boor afirma que “Agripa dominava todo o reino de seu avô, Herodes, o Grande. Por

136
BARCLAY, Willian. The Acts of the Apostles. Lousiville: Westminster John Knox Press, 1976, p. 57.
137
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 560.
138
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 567.
139
DANIEL-ROPS, Henri. A vida diária nos tempos de Jesus. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida
Nova, 1988, p. 53.
50

isso, a primeira igreja não vivia mais sob um governador romano, do qual sempre se podia
esperar uma certa proteção legal, mas sob um déspota oriental, a cuja arbitrariedade estava
exposta.”140
O versículo 5 destaca, com a conjunção adversativa “mas”, que a igreja estava orando
incessantemente a Deus a favor de Pedro. Stott destaca que “Lucas emprega o advérbio ektenos
("incessante"; "com fervor" - BLH), que anteriormente havia aplicado à intensa agonia de Jesus
no Getsêmani (Lc 22.44).”141 A igreja intercedeu com grande e contínua agonia pela vida de
Pedro.
Nesse momento é importante relembrar a fala de Campos142: “A oração supõe uma
providência divina enquanto que a obra providencial é, em parte, o resultado da oração e está
ligada a ela. Todas as vezes que Deus responde a uma oração, ele está agindo providencialmente
na vida do seu povo”. Realmente Deus estava agindo providencialmente na vida de Pedro e da
igreja, ao mesmo tempo que ordenava a expansão do seu reino.
Pedro estava sob forte segurança, acorrentado a duas cadeias, com sentinelas que
guardavam à porta do cárcere e com quatro escoltas de quatro soldados. Lopes analisa a
oposição entre a oração dos cristãos e a autoridade de Herodes:

Havia naquele momento duas comunidades, o mundo e a igreja, postas uma contra a
outra, cada uma fazendo uso de suas armas. De um lado estava a autoridade de
Herodes, o poder da espada e da prisão. Do outro, a igreja em oração. A oração é a
única arma dos que não têm poder na terra, mas são filhos e filhas daquele que tem
todo poder e autoridade no céu e na terra.143

A disputa chega a parecer desleal, pois o poder humano não se compara ao poder
divino. O resultado é que Deus envia um anjo que desperta a Pedro, as cadeias caem das suas
mãos, passam pelas duas sentinelas, chegam ao portão de ferro que se abre automaticamente,
saindo pela cidade. A situação é tão magnífica que Pedro pensa que é uma visão, caindo em si,
só quando o anjo se aparta dele.
Lopes144 destaca que

seu livramento foi resultado da interação da providência natural e sobrenatural de


Deus. A igreja ora e o anjo age. As ações da terra movem as intervenções do céu. Há
uma conexão entre o mundo material e o mundo espiritual. Há uma ligação entre os
joelhos dobrados e o braço de Deus estendido. A igreja nunca é tão influente na terra

140
BOOR, Werner de. Atos dos apóstolos: comentário esperança. Curitiba: Esperança, 2002, p. 178.
141
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 234.
142
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e sua realização histórica. São Paulo:
Cultura Cristã: 2001, p. 278.
143
LOPES, Hernandes Dias. Atos: A ação do Espírito Santo na vida da igreja. São Paulo: Hagnos, 2012, p. 242.
144
LOPES, Hernandes Dias. Atos: A ação do Espírito Santo na vida da igreja. São Paulo: Hagnos, 2012, p. 242.
51

como quando ela está de joelhos diante de Deus. Pedro foi libertado pelo anjo de Deus,
mas em resposta às orações da igreja.

Não se trata de uma fuga arquitetada humanamente, mas da intervenção divina, da


providência extraordinária de Deus, que atua em resposta às orações de seu povo, livrando
Pedro das mãos de Herodes. O livramento de Pedro da prisão não foi o ponto final da
providência de Deus para romper a barreira do governante Herodes, que se levantou contra a
igreja. Ao contrário, Herodes cava sua própria cova tentando colocar-se no lugar de Deus.
Não encontrando Pedro, após sua fuga milagrosa da prisão, Herodes foi para Cesareia,
onde ficou por algum tempo. O povo de Tiro e Sidon buscava reconciliação com o Herodes,
pois suas terras eram abastecidas pelo país do rei e se apresentaram a ele.
Determinado dia o rei, com vestes reais, assentado no trono dirigiu-lhes a palavra. O
povo clamava dizendo que era a voz de um deus. Herodes não rendeu glórias a Deus e um anjo
lhe feriu, vindo a morrer comido por vermes.
Conhecemos e cremos nessa história através das Escrituras, porém, Saoût, mostra que
Flávio Josefo, um historiador judeu

“narra a participação de Herodes Agripa, em abril de 44, na festa de aniversário da


fundação de Cesareia, que acontecia de quatro em quatro anos. Agripa ‘entrou no
teatro ao amanhecer, vestido com uma túnica totalmente prateada e de um tecido
admirável... Então foi tomado de um mal intestinal e morreu três dias mais tarde’”.145

Stott completa o trecho de Josefo, afirmando que após as pessoas o aclamarem como
deus ele “não os advertiu quanto a isso nem rejeitou suas ímpias adulações.”146 Herodes não
rendeu glórias a Deus, que não divide a Sua glória: “Eu sou o SENHOR, este é o meu nome; a
minha glória, pois, não a darei a outrem” (Is 42:8), ou “Por amor de mim, por amor de mim, é
que faço isto; porque como seria profanado o meu nome? A minha glória, não a dou a outrem.”
(Is 48.11). “Em vez de Pedro ser morto por Herodes, o rei é que foi morto pelo Deus de
Pedro!”147 Pipper afirma:

Deus é a realidade absoluta com quem todos no universo devem harmonizar-se. Tudo
depende inteiramente da sua vontade. Todas as outras realidades comparadas a ele são
como uma gota de chuva no oceano ou como um formigueiro diante do monte Everest.
Ignorá-lo ou diminuí-lo é uma insensatez absurda e suicida.148

145
SAOÛT, Yves. Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1991, p. 88; JOSEFO, apud SAOÛT, 1991, p.88.
146
JOSEFO, apud STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU,
1990, p. 239.
147
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 590.
148
PIPER, John. Alegrem-se os Povos: A Supremacia de Deus nas Missões. 2ª ed. Editora Cultura Cristã, São
Paulo, 2012, p. 37.
52

Herodes morreu pelo ego inflamado pela população de Tiro e Sidom. O resultado de
todo o texto é o crescimento da igreja. Wiersbe afirma: “no início de Atos 12, Herodes parecia
no controle e tudo indicava que a Igreja perdia a batalha. Mas, no final do capítulo, Herodes
está morto, enquanto a Igreja está bem viva e crescendo rapidamente!”149
Deus está no controle de todas as coisas, decretou tudo o que aconteceria, atuou e
continua atuando providencialmente para que tudo se cumpra. As barreiras se levantam, mas
não são comparáveis ao poder e à grandiosidade do nosso Deus. Muitas vezes Deus usa sua
criação como instrumentos para cumprir seus propósitos, mas algumas vezes, ele interfere
diretamente na história, como o fez nesse texto, para que o evangelho se espalhe e cresça, como
Jesus afirmou em Atos 1.8, mas, principalmente, para que sua glória não seja diminuída e fique
intacta.
Carey afirma:

Quando deixei a Inglaterra, minha esperança de converter a Índia era muito forte;
porém, diante de tantos obstáculos, ela minguaria, se não fosse pelo sustento recebido
de Deus. Bem, Deus está comigo e sua Palavra é verdadeira. Embora as superstições
dos pagãos fossem mil vezes mais fortes e o exemplo dos europeus, mil vezes pior,
mesmo diante do abandono e da perseguição, minha fé, posta na segurança da Palavra,
ainda superaria todos os obstáculos e suportaria cada provação. A causa de Deus
triunfará.150

A causa de Deus sempre triunfa, pois ele está à frente. Não foi diferente em Atos e não
é diferente nos dias atuais. É necessário colocar a confiança em Deus e glorificá-lo, pois essa é
a razão da existência do ser humano.

2.5 Barreira teológica

O capítulo 15 de Atos é um dos capítulos mais importantes do livro. Haenchen


comenta que “o capítulo 15 é o ponto de virada, a ‘peça central’ e o 'divisor de águas’ do livro,
o episódio que completa e justifica os acontecimentos passados e faz com que os futuros sejam
possíveis.” 151 Este capítulo da história da igreja foi fundamental para o seu desenvolvimento.
Há ao menos duas barreiras que são rompidas pela providência de Deus nesse capítulo.
Uma delas é o relacionamento entre judeus e gentios e a imposição que estava sendo feita por
alguns indivíduos da seita dos fariseus, para que tivessem os mesmos costumes judaicos que
incluíam a circuncisão e o cumprimento das leis de Moisés.

149
WIERSBE, op. cit., p. 590.
150
CAREY, apud PIPER, John. Alegrem-se os Povos: A Supremacia de Deus nas Missões. 2ª ed. Editora Cultura
Cristã, São Paulo, 2012, p. 38.
151
HAENCHEN, Ernst. The Acts of the Apostles: A Comentary. Philadelphia: The Westminster Press: 1971, p.
461.
53

Apesar de ser essa uma das maiores barreiras ao crescimento do cristianismo, que foi
tratada anteriormente, a principal barreira que se levanta é a questão teológica envolvida, que
se resume ao seguinte: “Cristo é suficiente para salvação ou não?”, “a circuncisão é um
elemento essencial para a salvação?”
Os judaizantes começaram a divulgar a necessidade de circuncisão em Antioquia.
Kistemaker afirma que a

Presença (dos judaizantes) na congregação de Antioquia não tem a finalidade de


expandir a igreja por intermédio do evangelismo; nem tampouco vão ali para animar
os crentes em sua fé. Seu propósito é colocar sobre os ombros dos irmãos uma rígida
demanda, especificando se eles podem ou não ser salvos: insistem que o rito judaico
da circuncisão é necessário para a salvação dos gentios cristãos.152

Não era um debate em prol do crescimento da igreja, ou mesmo de seu crescimento


espiritual, e sim uma perversão ao evangelho, sobre a qual Paulo afirma que “ainda que nós ou
mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado,
que seja anátema” (Gl 1.8).
Stott comenta:

é claro que a circuncisão era o sinal da aliança instituído por Deus, e sem dúvida os
judaizantes enfatizavam isso, mas eles iam mais longe, fazendo da circuncisão uma
condição para a salvação. (...) Em outras palavras, eles precisavam permitir que
Moisés completasse o que Jesus havia começado, e permitir que a lei completasse o
evangelho.153

Paulo e Barnabé discutem fortemente com esses que pregam “outro evangelho” e
levam esse assunto para ser debatido em Jerusalém. Nesse momento, então, acontece o primeiro
concílio da igreja cristã, com o objetivo de sanar questões raciais e, principalmente, teológicas.
A questão envolvida não era somente o circuncidar, mas se há ou não suficiência de Cristo para
a salvação.
A igreja estava frente a discussão mais séria da sua pequena história, que poderia
atravancar o crescimento da igreja. Era uma situação delicada, mas que precisava ser resolvida
urgentemente. Davidson afirma que para evitar o risco de divisão da igreja cristã, o problema
dos judaizantes precisava ser resolvido. Uma decisão que fosse contrária à suficiência de Cristo
para a salvação seria inconcebível a Paulo e a Barnabé. Já, os judaizantes, não considerariam
os gentios verdadeiramente cristãos.154 Keller, afirma que “as igrejas gentias de Paulo
duvidariam de que as igrejas judaicas tivessem mesmo fé em Cristo, e as igrejas judaicas

152
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 2. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 60.
153
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 237.
154
DAVIDSON, F. (org). O Novo Comentário da Bíblia. São Paulo: Edições Vida Nova, 1963, p. 1127.
54

também duvidariam da salvação dos gentios.”155 A igreja poderia minar suas forças em divisões
e atritos, não levando o evangelho adiante.
A providência de Deus perpassa todo o livro de Atos, e nesse capítulo não é diferente.
Percebe-se isso nos três pontos de defesa do evangelho genuíno. A atuação poderosa de Deus
se manifesta para chegar a resolução encontrada. Deus agiu antes para que a resolução fosse
favorável, não a Paulo, Barnabé e à igreja de Antioquia, mas à verdade do evangelho e sua
expansão.
O primeiro a entrar em cena é Pedro. Ele não toma para si nenhuma vanglória, senão
o fato do privilégio de ter sido escolhido por Deus para levar o evangelho aos gentios. Ele
continua afirmando que Deus conhece os corações e concedeu o Espírito Santo, assim como
concedeu a nós, e que não estabeleceu distinção alguma entre eles e os judeus (At 15.7-9). Nos
versículos 10 e 11 Pedro conclui de forma dura, questionando por que os judaizantes estão
tentando a Deus e anuncia o teor do evangelho que não faz distinção entre os povos.
Em seguida, no versículo 12, Paulo e Barnabé anunciam o que Deus fez em suas
viagens. Lucas não detalha os sinais e prodígios nesse ponto, pois tinham acontecido em
momentos anteriores ao concílio (At 13 e 14).
Por fim, Tiago faz um resumo do debate e mostra como as Escrituras confirmam as
experiências anteriormente anunciadas. Ele cita um trecho de Amós 9.16-18, que fala da
reedificação do tabernáculo, referindo-se à morte e ressurreição de Jesus e de que os gentios
estavam inclusos na igreja de Cristo.
Tannehil destaca que tudo o que foi narrado estava debaixo dos propósitos de Deus.

A disputa é resolvida através de três discursos que juntos apresentam uma única
interpretação persuasiva do propósito de Deus. O problema é resolvido revisando as
indicações do propósito de Deus no passado. Primeiro, Pedro relembra o que aprendeu
no episódio de Cornélio (10:1 - 11:18). Então Barnabé e Paulo recapitulam sua recente
missão (13:1 - 14:28). (...) No entanto, sinais específicos da obra de Deus entre os
gentios em uma missão eficaz constituem parte da evidência na qual uma decisão deve
ser baseada. (...) Tiago mostra que as Escrituras concordam com a experiência da
igreja em sua missão. A clareza adequada surge quando a experiência daqueles que
estão ativos na missão está correlacionada com os aspectos da tradição bíblica que
apresentam o propósito salvífico de Deus em suas dimensões mais amplas. Os
discursos entram em uma compreensão coerente do propósito de Deus com respeito
aos gentios, fornecendo a base para a decisão da igreja.156

O resultado desse concílio foi uma vitória do cristianismo. A resolução enfatizou a


suficiência de Cristo para a salvação. Foram dadas algumas recomendações aos gentios, porém,

155
KELLER, Timothy. Gálatas para Você. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 41.
156
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p. 184.
55

não determinantes para a salvação, mas para observância de não afrontar os judeus e para uma
vida pura e santa perante o Senhor. Wiersbe destaca que

os judeus legalistas abriram mão da ideia de que os gentios deveriam ser circuncidados
a fim de serem salvos, e os gentios aceitaram prontamente a mudança em seus hábitos
alimentares. Foi um acordo conciliatório feito em amor, que não afetou de maneira
alguma a verdade do evangelho.157

Os apóstolos e presbíteros, com toda a igreja, enviaram uma carta, por intermédio de
Judas e Silas, a ser lida nas igrejas. Essa carta chegou à igreja de Antioquia, que se alegrou
imensamente pelo conforto recebido.
Paulo e Silas passaram pela Síria, Cilícia e depois foram para Listra e Derbe, cidades
da Galácia. As decisões dos apóstolos foram entregues nas igrejas dessa região, que, também
eram fortalecidas na fé e, dia a dia aumentavam em número (At 16.4,5).
Deus, em sua providência, planejou esse concílio no tempo certo. Ele une experiências
à inerrância de sua Palavra, que foi proferida pelo profeta Amós (Am 9.11-12) séculos antes de
sua concretização. Deus trabalha através de instrumentos de sua providência para que seu
decreto, dado antes da criação do mundo, seja cumprido. Deus foi o protagonista do concílio
narrado em Atos. Ele preservou a integridade do evangelho para que sua expansão não fosse
falha em seu conteúdo. Além disso, Deus incluiu os gentios em seu povo, como foi anunciado
pelos profetas e cantado pelos salmistas.

2.6 Barreiras diversas

Esse capítulo não tem a pretensão de esgotar as barreiras que se levantam contra o
evangelho no livro de Atos. Além dessas barreiras que Deus vence e muitas vezes utiliza como
instrumento para o crescimento da igreja cristã, há outras que não serão desenvolvidas, mas
ocorrem no livro.
O dinheiro sempre é algo que traz barreiras ao evangelho. Isso acontece em nossos
dias, e no tempo dos apóstolos não era diferente. Contrário às barreiras socioeconômicas que
Deus derrotou para que não houvesse necessitados na igreja, muitas vezes o dinheiro foi pedra
de tropeço. “O dinheiro - uma forma de poder humano - é outro fator na corrupção humana da
religião, que recebe atenção especial em Lucas e Atos.”158

157
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 601.
158
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p. 106.
56

Essa é uma Pedra que se levanta desde Judas, que traiu Jesus por dinheiro (Lc 22.3-6;
At 1.16-20). Ananias e Safira venderam uma propriedade, retiveram parte do dinheiro e
mentiram, dizendo que haviam dado tudo (At 5.1-11). Simão, o mágico, oferece dinheiro para
ter o poder de impor as mãos e conceder o Espírito Santo (At 8.9-13). Paulo e Silas são presos
por expulsar o espírito de uma mulher com espírito adivinhador que gerava lucro a seus
senhores (At 16.16-26). Demétrius, um ourives, provoca tumultuo na cidade, pois Paulo e Silas
estão pregando contra os deuses feitos por mãos (At 19.23-41). Por fim, o governador, Félix,
chama Paulo à sua presença constantemente esperando receber deste algum dinheiro (At 24.22-
27).
A idolatria também é uma barreira bem presente nos relatos de Lucas. A situação com
Demétrio, citada anteriormente, não se relaciona somente ao dinheiro, mas também à adoração
do povo de Éfeso à deusa Diana. Enquanto Paulo espera Silas e Timóteo em Atenas, seu espírito
se revolta em face da idolatria dominante da cidade (At 17.16-31).
Embora haja toda essa oposição ao evangelho, entre outras que possam não ter sido
citadas aqui, nunca se levantou uma que fosse intransponível. Deus atuou em todas essas
situações para que o Seu reino continuasse a se expandir. Para isso, Deus muitas vezes atua
diretamente nas situações, assim como, em muitas delas, faz uso de instrumentos para que Seu
reino seja estabelecido cada vez mais. No próximo capítulo, será analisado como Deus, através
de sua instrumentalidade, dirige as missões pelo caminho que ele deseja.
57

3 DEUS, POR SUA PROVIDÊNCIA, DIRIGE A EXPANSÃO DO EVANGELHO

3.1 Perseguição

O capítulo 7 de Atos se conclui com a morte de Estêvão, o primeiro mártir da jovem


igreja cristã, consentida por Paulo. A partir desse momento, levantou-se grande perseguição
contra a igreja de Jerusalém. Essa oposição ao evangelho que resultou em perseguição, prisões
e mortes, tinham grande potencial para minar o crescimento da igreja. Entretanto esse foi mais
um dos instrumentos da providência de Deus para a expansão do evangelho. “A morte de
Estêvão e a perseguição que se segue são eventos que, paradoxalmente, alargam o alcance da
missão.”159 “Do ponto de vista humano, aquele foi um dia tenebroso para os crentes, mas do
ponto de vista de Deus foi o começo de uma grande revolução espiritual, quando a igreja alargou
suas fronteiras em direção aos confins da terra.”160
A promessa de Cristo em Atos 1.8 é que os discípulos receberiam poder ao descer
sobre eles o Espírito Santo, e seriam testemunhas em Jerusalém, toda a Judéia e Samaria e até
aos confins da Terra. Os discípulos, entretanto, permaneceram em Jerusalém, onde o evangelho
estava crescendo. Com a perseguição, somente os apóstolos permaneceram em Jerusalém e os
cristãos foram dispersos pelas regiões da Judeia e Samaria (At 8.1). Kistemaker destaca a
providência de Deus na expansão do evangelho:

(...) a igreja não podia ficar limitada a Jerusalém, pois Jesus havia instruído os
apóstolos a serem testemunhas em Jerusalém, Judéia, Samaria e nos confins do mundo
(1.8). Na providência de Deus, a perseguição que se seguiu à morte de Estêvão levou
os crentes para a Judéia e Samaria e finalmente para as longínquas Fenícia, Chipre e
Antioquia (11.19). Esses cristãos testemunharam a inúmeras pessoas, com o resultado
de que a igreja continuava a crescer (11.20,21). 161

A permanência dos apóstolos em Jerusalém não foi covardia, mas, contrário a isso, Calvino
ressalta: “não de que eles estivessem livres do perigo comum, mas porque é dever de um bom
pastor se colocar contra as invasões de lobos pela segurança de seu rebanho”162. Além disso,
estando lá, poderiam acompanhar os acontecimentos assistindo aqueles que saíram pregando o
evangelho.

159
SENIOR, Donald; STUHLMUELLER, Carrol. Os Fundamentos Bíblicos da Missão. Santo André: Editora
Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010, p. 407.
160
LOPES, Hernandes Dias. Atos: A ação do Espírito Santo na vida da igreja. São Paulo: Hagnos, 2012, p. 168.
161
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 379, 380.
162
CALVIN, John. Commentary upon the Acts of the Apostles. In: Calvins Commentary. Vol. XVIII. MI: Baker
Books. 2009, p.181.
58

Dois fatos importantíssimos, que seguem à perseguição, tornam-se grandes


propulsores da expansão do evangelho para fora dos limites de Jerusalém. O primeiro é a
pregação de Filipe em Samaria (At 8) e o segundo é a formação da igreja de Antioquia (At 11).

3.1.2 Samaria

A pregação do evangelho em Atos segue exatamente o que nós podemos chamar de


índice desse livro, Atos 1.8. Os discípulos são testemunhas primeiramente em Jerusalém, em
seguida vão por toda a Judeia concomitantemente com Samaria (At 8.1,4). O capítulo 8 detalha
a pregação em Samaria, embora alguns foram pregando pela Judeia. Stott afirma que “Filipe
pregaria às multidões samaritanas (v. 6); quanto aos outros fugitivos, convém considerá-los
como testemunhas leigas (‘missionários amadores anônimos’).”163 Há um destaque à tarefa
realizada por Filipe, o que não anula a realizada por outros missionários dispersos pela Judeia
e Samaria, que, como será visto, foi fundamental para a expansão do evangelho.
Filipe foi um dos homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, eleitos
com a função de dar o suprimento às viúvas helenistas que estavam sendo esquecidas na
distribuição diária (At 6.1-3). Com a perseguição, ele foi um dos que saíram de Jerusalém,
tornando-se um grande evangelista nas mãos do Senhor.
Nesse texto pode-se ver claramente o elemento de concorrência164 em ação. Como
sempre a ação primordial e primária é de Deus. A perseguição se torna um ponto que marca a
dispersão dos cristãos. Entretanto, eles não são apenas fugitivos, mas testemunhas em trânsito.
“A grande perseguição combinada com a pregação do evangelho resultou em grande
alegria!”165
Filipe pregou em Samaria e “as multidões atendiam, unânimes, às coisas que Filipe
dizia, ouvindo-as e vendo os sinais que ele operava” (At 8.6). A pregação de Filipe não passou
desapercebida, pelo contrário, “as pessoas comuns deram atenção a Filipe, oi ochloi - uma
multidão delas, não uma aqui e outra ali, mas unanimemente. Todos tinham a mesma opinião:
era pertinente que a doutrina do evangelho fosse investigada e ouvida de forma imparcial.”166

163
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 163.
164
Elemento da providência divina, p. 20 dessa obra.
165
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 563.
166
HENRY, Mathew. Comentário Bíblico do Novo Testamento: Atos a Apocalipse. Rio de Janeiro: CPAD,
2008, p. 82.
59

Enquanto proclamava, realizava curas e expulsava demônios. Continuamente os


samaritanos viam e davam ouvidos a ele.167 “Os milagres e outras manifestações do Espírito
Santo preparam os homens para darem ouvidos à Palavra de Deus, sendo excelentes
provocadores e confirmadores da fé.”168 Wiersbe acrescenta que “a ênfase aqui é sobre a
Palavra de Deus: ao ver os milagres, o povo deu ouvidos à Palavra, e, ao crer na Palavra, o povo
foi salvo. Ninguém jamais foi salvo apenas por causa de milagres.”169
Samaria estava sedenta pelo evangelho. Filipe foi o instrumento de Deus na
proclamação. O poder derramado sobre ele em Pentecostes, que é o Espírito Santo prometido
em Atos 1.8, agindo em Filipe e lhe dando intrepidez na pregação da Palavra. Enquanto isso,
Deus estendia a mão para realizar curas, sinais e prodígios por intermédio do nome de Jesus,
conforme a oração da igreja em Atos 4.29,30.
Pedro e João vão até Samaria após receberem notícias do que Filipe estava fazendo.
Tannehill afirma que o fato de os apóstolos não poderem acompanhar os acontecimentos
externos a Jerusalém faz com que eles devam

enviar representantes para verificar estes desenvolvimentos após o evento. Os


apóstolos estão reagindo a acontecimentos que se dão sem o planejamento ou controle
deles. A verdadeira iniciativa não está nas mãos terrenas. Isto é verdade, também, para
a missão de Filipe, embora não haja referências a direções divinas até a cena com o
etíope.170

Deus está conduzindo a expansão do evangelho. Após chegarem em Samaria, impor-


lhes as mãos para receberem o Espírito Santo, Pedro e João retornam para Jerusalém
evangelizando muitas aldeias samaritanas. Assim, o evangelho se espalha ainda mais em
Samaria.
Deus usou a perseguição para conduzir Filipe até Samaria, onde ele foi um instrumento
da providência de Deus em alcançar os samaritanos e expandir o evangelho para fora dos limites
de Jerusalém, ou, como afirma Lopes, “a perseguição não labora contra a igreja, mas a seu
favor. Deus transforma o agente da perseguição em parceiro da missão.”171

167
A utilização dos verbos no imperfeito indicam que, ao mesmo tempo que Filipe continuamente pregava, a
multidão continuamente o ouvia.
168
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado. Vol 3. São Paulo: Editora e Distribuidora
Candeia, 1998, p. 170.
169
WIERSBE, Warren W. op. cit., p. 563.
170
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p. 103.
171
LOPES, Hernandes Dias. Atos: A ação do Espírito Santo na vida da igreja. São Paulo: Hagnos, 2012, p. 170.
60

3.1.2 Igreja de Antioquia

Atos 11.19-26 mostra outro braço da missão cristã em virtude da perseguição aos
cristãos originada na morte de Estêvão. “É importante notar que a chegada do evangelho em
Antioquia é o resultado da dispersão de cristãos após a morte de Estevão, não o resultado de
uma missão organizada pela igreja de Jerusalém.”172 O texto destaca a expansão geográfica e
étnica do evangelho. Não vamos nos ater ao rompimento da barreira étnica, pois já foi tratada
anteriormente. Os missionários anônimos passam pela Fenícia, Chipre e Antioquia pregando
exclusivamente a judeus. Alguns que eram de Chipre e Cirene, no entanto, pregaram em
Antioquia a pessoas de língua e cultura grega, não necessariamente judeus.173
Muitos dessa cidade creram e se converteram ao Senhor, porque a mão do Senhor
estava com os que pregavam. Henry afirma que:

A mão do Senhor era com eles para que a mensagem chegasse ao coração e
consciência dos homens, pois os pregadores só podiam falar aos ouvidos externos.
Assim a palavra do Senhor atinge sua finalidade, a mão do Senhor quando acompanha
a palavra do Senhor para escrevê-la no coração dos que ouvem.174

Kistemaker175 ainda diz que “Lucas atribui o aumento à mão do Senhor (veja 4.30;
13.11). Quer dizer, em sua providência, Deus abençoou o trabalho dos missionários e
numerosos gentios se converteram. Talvez Lucas fosse um desses primeiros convertidos”.
Os apóstolos, ficaram sabendo do ocorrido e enviaram Barnabé para fiscalizar o novo
campo de trabalho. Barnabé viu a graça de Deus e se alegrou. O filho da exortação (At 4.36)
exortou aqueles cristãos a permanecerem com firmeza de coração, no Senhor.
O resultado é que, novamente, muitos se uniram ao Senhor. O crescimento vem do
Senhor, como Atos 2.47 afirma. Stott destaca:

Deveríamos comentar também que os acréscimos não são apenas para a igreja, mas
também para o Senhor (11:24). Quando vemos "o Senhor acrescentando ao Senhor",
fazendo com que ele seja sujeito e objeto, fonte e alvo da evangelização, precisamos
nos arrepender dos nossos conceitos egocêntricos e autoconfiantes de missão cristã.176

Deus, providencialmente, usa seus servos como instrumentos para cumprirem a obra que ele
decretou. Servos que servem inconscientemente, como aqueles que perseguiram os cristãos, e

172
TANNEHILL, op. cit., p. 146.
173
Observar a discussão de Stott (p. 226-228) sobre a tradução da palavra “hellenistes”, usada no versículo 20 e
traduzida por “gregos”. A conclusão é que indica a cultura das pessoas em questão, mas não a sua nacionalidade.”
174
HENRY, Mathew. Comentário Bíblico do Novo Testamento: Atos a Apocalipse. Rio de Janeiro: CPAD,
2008, p. 120.
175
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 549, 550.
176
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 229,
230.
61

servos que, conscientemente, estão à disposição do Senhor para cumprirem a obra. Contudo,
não são os servos os responsáveis pelo crescimento do cristianismo, mas o próprio Deus. É a
mão do Senhor agindo.
A igreja que se formou em Antioquia cresceu de tal forma, que Barnabé precisou de
ajuda, por isso foi buscar a Saulo em Tarso e, naquela igreja, reuniu-se numerosa multidão. É
importante entender que Antioquia era uma cidade muito importante do Império Romano.

Com cerca de meio milhão de habitantes, Antioquia era a terceira maior cidade do
império romano, depois de Roma e Alexandria. (...) Porto movimentado e centro de
luxo e de cultura, Antioquia atraía pessoas de todo tipo, (...) Com sua enorme
população cosmopolita e seu grande poder político e comercial, a cidade oferecia à
igreja oportunidades extraordinárias de evangelismo.177

Essa cidade é estratégica na providência divina. As suas características são


fundamentais para, em primeiro lugar, levar o evangelho a pessoas de distintas etnias, inclusive
judeus; em segundo lugar, para o sustento de Jerusalém, pois era um grande poder comercial;
em terceiro lugar, para o envio dos missionários Barnabé e Paulo, tendo em vista que havia um
porto movimentado nessa cidade, que facilitaria a locomoção deles.
As maravilhas de Deus transbordaram nessa cidade e através dela:

Com o passar do tempo esta (Antioquia) passou a ser o centro de missões da fé cristã
e superou a igreja-mãe em Jerusalém. Embora Jerusalém provesse liderança e
orientação, Antioquia tinha visão e ambição. A partir dali o evangelho se espalhou
pelos países fronteiriços ao Mar Mediterrâneo. Antioquia passou a ser a cidade gentia
que ocupava uma posição estratégica entre o centro judaico de Jerusalém e as igrejas
gentílicas fundadas por Paulo.29 Depois da queda de Jerusalém em 70 d.C., Antioquia
preencheu o vácuo da liderança na igreja como um todo.178

A perseguição foi um instrumento poderoso nas mãos do Senhor, que conduziu


cuidadosa e estrategicamente os cristãos para que o alcance do evangelho fosse ainda maior.
Não se tratou simplesmente de fugitivos, mas de embaixadores do reino. Não foram apenas
perseguidores, mas, mesmo que inconscientemente, servos obedientes ao Senhor.

3.2 Encontros agendados por Deus

As missões realizadas em Atos são claramente direcionadas por Deus. Há momentos,


todavia, em que a intervenção divina se acentua, de maneira que é impossível que não atentemos
diretamente para ela. Três capítulos seguidos de Atos, 8, 9 e 10, mostram a direção divina em

177
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 581.
178
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 551.
62

três encontros, distintos em personagens, porém, semelhantes na condução divina. Tannehill


afirma:

Embora Atos 8-10 focalize, por sua vez, três diferentes personagens principais -
Filipe, Saulo e Pedro -, há alguma semelhança nos eventos apresentados. O narrador
está descrevendo um período de importantes novos desenvolvimentos na missão e faz
isso apresentando três cenas diferentes nas quais um crente é enviado a uma pessoa
inesperada, resultando em uma conversão. Em cada caso, há forte ênfase na direção
divina através de um anjo, do Espírito ou do Senhor. Como resultado, a igreja é levada
a incluir dois estrangeiros (o Etíope e o Centurião Romano) e seu amargo inimigo
Saulo.179

Serão tratados apenas dois encontros: Filipe com o Eunuco e Ananias com Saulo.

3.1.1 Filipe e o Etíope

O capítulo 8 de Atos tem sua atenção voltada especialmente para o ministério de Filipe.
Anteriormente, observamos um pouco sobre ele e seu ministério em Samaria. Filipe foi muito
bem-sucedido em seu ministério. Ele era um homem cheio do Espírito Santo (At 6.3), realizou
sinais e grandes milagres (At 8.6,13), foi um grande pregador da Palavra de Deus, de modo que
“as multidões atendiam, unânimes, o que Filipe dizia” (At 8.6).
O que ocorreu, por intermédio dele em Samaria, chamou a atenção dos discípulos que
enviaram Pedro e João para acompanhar o acontecido e impor-lhes as mãos para derramar sobre
esse povo o Espírito Santo. Dessa maneira, o Senhor se adianta, providencialmente, ao que
aconteceria – a continuidade do ministério de Filipe fora de Samaria –, não deixando o povo de
Samaria desamparado, mas concedendo-lhes o Espírito. Deus não trabalha apenas
progressivamente, esquecendo-se dos que o conheceram. À medida que ele alcança os que não
o conhecem, ele supre a necessidade daqueles que ficam, e aqui o fez, concedendo-lhes o
Espírito Santo.
Um anjo do Senhor fala com Filipe para que ele vá ao caminho que vai de Jerusalém
até Gaza. “Lucas revela que esse anjo é, na realidade, o Espírito do Senhor (vs. 29, 30). Filipe
está a serviço do Senhor, cujo Espírito se comunica com ele por meio de um anjo. Se o anjo
apareceu a Filipe ou falou com ele numa visão, não se sabe. Entretanto, a mensagem é clara.”180
O Senhor intervém, comunicando a Filipe uma nova trajetória para seu ministério. Filipe,
prontamente, se levanta e vai pelo caminho, onde encontra o carro de um Etíope eunuco. Talbert
detalha um pouco da Etiópia e do que a Bíblia fala a seu respeito:

179
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p.113.
180
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 410.
63

Etiópia na antiguidade não era a Etiópia moderna, mas o que hoje é chamado Sudão.
(...) A Etiópia era uma terra remota e distante (Ez 29.10; Et 1.1; 8.9), renomada por
suas riquezas (Jó 28:19; Is 45:14) e suas proezas militares (2 Rs 19.9; 2 Cr 14.9-13;
Is 37.9; Jr 46.9) (...) uma das nações iníquas do mundo (Is 20.3-5; 43: 3; Ez 30.1-9;
Na 3.9; Sf 2.11-12), que deveriam estar entre os estrangeiros que seriam convertidos
e reconhecer o verdadeiro Deus de Israel (Sl 68.31-32; Sf 3.9-10).181

Homero, em sua obra Odisseia, comenta: “aquele foi ter com etíopes, distantes
moradores – etíopes, divididos em dois grupos, varões dos extremos.”182 Sua referência aos
etíopes, já no século VIII a.C., é que alguns etíopes são varões dos extremos, ou, podemos
afirmar, dos confins da terra.183 Dessa maneira, Filipe cumpre o que Jesus afirmou em Atos 1.8,
sendo testemunha nos confins da terra.
Aquele Etíope tinha ido adorar em Jerusalém, e estava voltando para seu território.
Stott afirma que é possível que esse etíope fosse judeu, e por isso Lucas não o destaca como
primeiro gentio a receber o evangelho:

Mas viera adorar em Jerusalém, como um peregrino em uma das festas anuais, e
agora estava de volta, e, assentado no seu carro, vinha lendo um rolo do profeta Isaias
(v. 28). Isso pode significar que ele era de fato judeu por nascimento ou conversão,
pois a dispersão judaica tinha alcançado pelo menos o Egito e, provavelmente,
além.184

Filipe o encontra e, correndo, acompanha seu carro. Ouve, então, o eunuco lendo o
profeta Isaías. Saoût afirma que “o ministro só pode obter um rolo em grego do profeta Isaías
por um preço elevado e talvez por favor especial, porque a reprodução dos escritos não se fazia
então com a facilidade de hoje.”185 Não se sabe como, mas o etíope tinha essa cópia do livro de
Isaías e estava lendo, como era de costume na época, em voz audível.186
Deus já estava preparando o coração daquele homem para receber a mensagem, assim
como, facilitou o anúncio de Jesus, a partir desse texto e também da pergunta do eunuco: “Peço-
te que me expliques a quem se refere o profeta. Fala de si mesmo ou de algum outro?” (At
8.34). O evangelho foi pregado e houve transformação, professada na fala do eunuco: “creio
que Jesus Cristo é o Filho de Deus” (At 8.37). Filipe o batizou e foi arrebatado, sendo achado
em Azoto. E o etíope foi seguindo seu caminho cheio de júbilo.

181
TALBERT, Charles H. Reading Acts: A Literary and teological commentary. Geórgia: Smyth & Helwys
Publishing, 2005, p. 75.
182
HOMERO. Odisseia. Disponível em <http://sanderlei.com.br/PDF/Homero/Homero-Odisseia.pdf>.
183
Richard P. Martin faz uma apresentação da Odisseia e, nela, afirma que o surgimento da poesia homérica foi
no século VIII a.C. Informação obtida em <http://sanderlei.com.br/PDF/Homero/Homero-Odisseia.pdf>.
184
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 178.
185
SAOÛT, Yves. Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1991, p. 118.
186
STOTT, op. cit., p. 179.
64

Autores comparam essa cena a Elias saindo em um redemoinho da presença de Eliseu,


que recebeu porção dobrada do seu espírito. Saoût lança algumas conjecturas sobre isso:

Mas por que a alusão ao desaparecimento de Elias? Lucas (...) quis dizer que o
chanceler recebeu em dobro o Espírito de Filipe (2Rs 2.9)? Os primeiros cristãos terão
sido tocados pelo destino deste cristão negro de quem não se ouviu mais falar? Lucas
um pouco perdido em seus pensamentos, terá querido sugerir que o ministro
desapareceu totalmente, como Filipe, para responder aos catecúmenos que era vã
curiosidade perguntar-se sobre o que aconteceu, porque ele continuou seu caminho
nas mãos de Deus? (...) Talvez Lucas tenha querido dizer aos cristãos do ano 80 que
a África tinha sido reservada por Deus e realizaria seu papel no tempo previsto.187

Saoût ainda destaca em uma nota de rodapé: “poder-se-ia até mesmo perguntar: ‘o que
aconteceu com esta primeira comunidade africana?’ Porque, como Cornélio, segundo o
costume da época, a ‘casa’ do ministro, seus filhos, seus amigos, também se tornaram
cristãos.”188
Pode-se conjecturar, também, sobre a semelhança da despedida de Jesus aos seus
discípulos (At 1.9-11), que deixou a promessa e ordem a eles de levar o evangelho até aos
confins da terra. Será que Lucas quer deixar implícito essa ordem ao etíope?

Eusébio (ver História Eclesiástica ii.l) diz-nos que o eunuco etíope se chamava
Indiche, e que, retornando ao seu país de origem, pregou «o conhecimento do Deus
do universo e a habitação doadora de vida do Salvador entre os homens», assim
cumprindo as palavras que declaram que «...a Etiópia corre a estender mãos cheias
para Deus» (Sal. 68:31). No entanto, não sabemos se essas afirmativas têm realmente
qualquer base histórica.189

Não é possível saber com certeza o decorrer da trajetória do etíope, pois o autor não
deu maiores informações a respeito. Contudo, observa-se no mapa, apresentado logo abaixo, o
qual mostra o alcance do cristianismo do primeiro século. Nesse período o evangelho havia
chegado ao norte da África. A tradição atribui a João Marcos o início do cristianismo na
África190, embora, muito provavelmente, esse cristão etíope, também, tenha contribuído nessa
obra.
O mapa abaixo mostra onde o evangelho havia chegado no primeiro século. Percebe-
se nele que o evangelho tinha se espalhado por grande parte do oriente médio, tendo algum
alcance na Macedônia, já parte da Europa e também em Roma. Além dessas localidades, o norte
da África também tinha focos do cristianismo.

187
SAOÛT, op. cit., p. 124.
188
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 124.
189
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado. Vol 3. São Paulo: Editora e Distribuidora
Candeia, 1998, p. 186.
190
BUNSON, Matthew; BUNSON, Margaret e BUNSON, Stephen. Our Sunday Visitor's Encyclopedia of
Saints. Huntington: Our Sunday Visitor Publishing Division, 1998.
65

Mapa do cristianismo no primeiro século. 191

Wiersbe afirma:

Ao acompanhar a expansão do evangelho durante esse período de transição (At 2 -


10), vê-se como o Espírito Santo alcança o mundo todo. Em Atos 8, o etíope que se
converteu era descendente de Cão (Gn 10:6, em que "Cuxe" refere-se à Etiópia). Atos
9 relata a conversão de Saulo de Tarso, um judeu e, portanto, um descendente de Sem
(Gn 10:21ss). Atos 10 relata como os gentios, descendentes de Jafé (Gn 10:25),
encontram Jesus Cristo. O mundo todo foi povoado por Sem, Cão e Jafé (Gn 10:1); e
Deus deseja que o mundo todo - todos os seus descendentes - ouçam a mensagem do
evangelho (Mt 28:18-20; Mc 16:15).192

O fato é que Deus conduziu o evangelho a esse etíope, alcançando assim sua expansão
territorial até a Etiópia. Deus usou Filipe, tirando-o de todo o movimento provocado por ele,
pelo poder do Espírito, e o levando como um instrumento de sua providência para alcançar o
etíope eunuco.
Assim como o eunuco provavelmente propagou o evangelho em sua nação, Filipe foi
arrebatado, achando-se em Azoto, e evangelizava todas as cidades até chegar em Cesareia.
Campos afirma:

o importante para os nossos propósitos não é sobrenaturalidade do transporte de


Filipe, mas mostrar que, às vezes, o Senhor agiu de modo imediato para dirigir os seus
ministros da Palavra, a fim de que eles pudessem cumprir propósitos extraordinários
de Deus na pregação da Palavra. Deus trabalhou imediatamente em Filipe para que

191
The Earliest Churches. Disponível em <http://www.katapi.org.uk/images/Maps/Churches-1st-cent50pc.jpg>.
Acesso em 03 ago. 2018.
192
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 567.
66

algumas cidades, outrora filistéias, na região de Azoto, pudessem conhecer a


mensagem do evangelho pelo ministério de Filipe.193

Deus usou esse encontro para que o evangelho se multiplicasse. Antes apenas um deles
era evangelista, agora cada um segue seu caminho. O evangelho cresce quantativamente e se
expande geograficamente.
O evangelho seria levado ainda para outras regiões, e para isso o Senhor separou um
apóstolo fora do tempo. Para sua conversão, Deus usa de sua providência extraordinária.

3.2.2 A conversão de Saulo

Na história da conversão de Saulo, nitidamente, vemos o agir providencial de Deus.


Na seção anterior, observa-se frutos da perseguição pela perspectiva daqueles que estavam
sendo perseguidos. Agora, o que acontece durante a perseguição é a conversão daquele que, até
então, era o grande perseguidor da igreja, Saulo.
A ação de Deus na conversão de Saulo se manifesta gloriosamente no sobrenatural
encontro de Saulo com o Senhor e no direcionamento divino de Ananias para encontrar-se com
ele, trazendo-lhe as boas novas. Diferentemente de outro perseguidor, que teve um fim trágico,
Herodes, Saulo foi alcançado pela graça de Deus. Paulo mesmo declarou ser separado por Deus:
“Quando, porém, ao que me separou antes de eu nascer e me chamou pela sua graça, aprouve
revelar seu Filho em mim, para que eu o pregasse entre os gentios” (Gl 1.15,16).
Em Atos 8 Saulo aparece pela primeira vez na narrativa de Lucas. Saulo consentia na
morte de Estêvão e depois “Saulo (...) assolava a igreja, entrando pelas casas; e, arrastando
homens e mulheres, encerrava-os no cárcere” (At 8.3). Em Atos 9, a perseguição continua.
Saulo respirava ameaças e morte contra os discípulos do Senhor. Sua oposição aos cristãos era
tão forte, que ele foi pessoalmente ao sumo sacerdote pedir cartas para buscar, nas sinagogas
de Damasco, pessoas que fossem do Caminho194 e levá-las presas a Jerusalém. Durante a
perseguição, quando chegava a Damasco, “subitamente uma luz do céu brilhou ao seu redor”
(At 9.3). Quando a luz apareceu, Saulo caiu por terra. Kistemaker afirma que “Jesus leva Paulo
à conversão aparecendo-lhe na luz da glória celestial. Ante essa luz sobrenatural, a única coisa
que o homem pode fazer é cair por terra e prostrar-se de rosto em terra.”195

193
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e sua realização histórica. São Paulo:
Cultura Cristã: 2001, p.129.
194
Termo comumente usado por Lucas para se referir aos cristãos em Atos.
195
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 435.
67

Há muitos que querem tirar desse texto o elemento sobrenatural da conversão de Saulo.
Alguns dizem que esse momento foi resultado de insolação ou um ataque epilético,196 outros
afirmam que Saulo foi atingido por um raio.197 Esses são críticos que não creem no poder
sobrenatural de Deus. No entanto, confiando nas Escrituras como a Palavra de Deus, que não
falha, não há como duvidar do que foi relatado. As palavras de barão George Lyttelton
reconhecem bem o que aconteceu: "o que declarou ter sido a causa de sua conversão, e o que
declarou ter acontecido em consequência disso, tudo aconteceu de fato, e a religião cristã,
portanto, é uma revelação divina."198 Deus atuou providencialmente para que Paulo entendesse
que Jesus é o Cristo. Para isso foi necessário intervir de forma drástica e gloriosa.
Jesus pergunta a Saulo, porque ele o perseguia. Reconhece, nesse momento, que é um
chamado divino e pergunta: “quem és tu Senhor? E a resposta foi: Eu sou Jesus a quem tu
persegues” (At 9.5). Saulo viu “o Justo” e ouviu as palavras de sua própria boca (At 22.14).
Saulo percebeu que não perseguia somente os discípulos de Jesus, mas o próprio Jesus. Ele não
podia mais negar que a pregação dos cristãos era real, e que Jesus realmente estava vivo.

Sua resposta foi racional, consciente e livre. A palavra kyrios ("Senhor") pode ter
significado não mais do que "senhor". Mas, uma vez que estava consciente de que
estava falando com Jesus, e que ele tinha ressurgido dentre os mortos, a palavra já
deveria ter começado a adquirir o sentido teológico que teria mais tarde nas cartas de
Paulo.199

Jesus o orienta a entrar em Damasco e aguardar instruções. Seus companheiros apenas


ouviram a voz, mas não viram nada. Saulo ficou cego e foi levado, pelas mãos, até Damasco.
Lá ficou por três dias sem comer nem beber nada.
A causa da conversão de Saulo foi a graça soberana de Deus. Mas é uma graça gradual,
suave e sem violência, Jesus picou a mente e a consciência de Saulo com os seus aguilhões.
Então ele se revelou através da luz e da voz, não para esmagá-lo, mas de um modo que Saulo
pudesse responder livremente.
A ação sobrenatural de Deus não se limitou ao encontro com Saulo, mas o Senhor
também preparou um discípulo para o encontrar, Ananias. As informações sobre ele são poucas,
sendo apenas que era um homem piedoso conforme a lei e que tinha bom testemunho dos judeus
(At 22.12). Campos destaca:

196
Ibid, p. 434
197
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado. Vol 3. São Paulo: Editora e Distribuidora
Candeia, 1998, p. 190.
198
LYTTELTON, 1769 apud STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo:
Editora ABU, 1990, p. 187.
199
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 193.
68

A economia divina, em sua direção providencial, sempre faz cousas grandiosas


através de vasos de barro, vasos sem muita honra, pessoas comuns como Ananias. A
direção divina não é sempre feita a pessoas de grande destaque na vida do seu povo.
Muitos pequeninos são objetos da direção divina para Deus executar grandes coisas.
Ananias é um desses.200

O Senhor falou com Ananias através de uma visão. Diferentemente de Saulo, Ananias
sabia com quem estava falando, de maneira que responde “eis-me aqui Senhor” (At 9.10). Deus
o direciona a se encontrar com Saulo, que tinha tido a visão de um homem, chamado Ananias,
entrando e impondo-lhe as mãos para recuperar a vista. A providência de Deus se mostra,
também, na preparação do encontro de Ananias com Saulo. “Jesus prepara a ambos, Paulo e
Ananias, aparecendo a cada um em visões e dando-lhes instruções. Dessa maneira, o próprio
Jesus remove a barreira que separa o ex-perseguidor dos cristãos perseguidos.”201
Ananias, inicialmente, tentou resistir dando as qualificações negativas de Saulo. A
resposta do Senhor aponta para a nova identidade de Saulo: “este é para mim um instrumento
escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os filhos de
Israel”. Ananias obedeceu ao Senhor. “A despeito das objeções de Ananias com respeito à
pessoa de Paulo, Deus o dirige de maneira inequívoca para que ele realize a sua função de
receber Paulo, impondo-lhe as mãos e curando-o da sua enfermidade (v.17).”202 Ananias
encontra Saulo e o chama de irmão. Fala que o Senhor, o próprio Jesus que aparecera a Saulo
no caminho, o enviou para que ele recuperasse a vista e ficasse cheio do Espírito Santo. Logo
as escamas caíram dos olhos e tornou a ver.

a obra de Deus é sempre equilibrada. Deus contrabalançou um grande milagre público


com um encontro discreto na casa de Judas. A luz ofuscante e a voz do céu foram
acontecimentos dramáticos, mas a visita de Ananias foi um tanto comum. A mão de
Deus empurrou Saulo de sua posição elevada, mas Deus usou a mão de um homem
para oferecer a Saulo aquilo que ele mais precisava. Deus lhe falou do céu, mas
também falou através de um discípulo obediente que lhe transmitiu a mensagem. Os
acontecimentos "comuns" são parte tão essencial do milagre quanto os
extraordinários.203

A transformação de Paulo foi maravilhosa. Stott comenta:

a causa da conversão de Saulo foi graça, a graça soberana de Deus. Mas a graça
soberana é uma graça gradual e suave. Gradualmente, e sem violência, Jesus picou a
mente e a consciência de Saulo com os seus aguilhões. Então ele se revelou através

200
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e sua realização histórica. São Paulo:
Cultura Cristã: 2001, p.124.
201
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 444.
202
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Suas Obras: A Providência e sua realização histórica. São Paulo:
Cultura Cristã: 2001, p.124.
203
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 570, 571.
69

da luz e da voz, não para esmagá-lo, mas de um modo que Saulo pudesse responder
livremente. 204

A soberana providência de Deus atuou miraculosamente para a transformação de


Paulo. A sua conversão foi um elemento importantíssimo para a expansão do evangelho. Ele
realmente foi um instrumento nas mãos de Deus para levar o evangelho aos gentios, reis e filhos
de Israel, e compreendeu bem o quanto é importante sofrer pelo nome de Cristo.

3.3 As viagens missionárias e a direção do Espírito

As viagens de Paulo em missões foram todas divinamente ordenadas e dirigidas. A


conversão de Paulo e, posteriormente, sua ida para Antioquia deram outra roupagem ao livro
de Atos, assim como causaram um grande avanço da causa missionária. Dois momentos das
viagens serão tratados. O primeiro deles é a decisão da igreja de enviar Paulo e Barnabé em sua
primeira viagem (At 13) e o segundo é o Espírito impedindo o seu caminho e determinando
uma nova trajetória, em Atos 16.

3.3.1 O Espírito diz sim!

A primeira viagem de Paulo é narrada nos capítulos 13 e 14, mas iremos nos ater
principalmente no início do 13 e também em como Deus conduziu a história para possibilitar
os sucessos, não somente em sua primeira viagem missionária, mas também nas demais.
A igreja de Antioquia foi a que tinha profetas e mestres. Esses homens eram líderes da
igreja. Eles estavam servindo ao Senhor e jejuando, e, então, o Espírito Santo disse a eles:
“separai-me, agora, Barnabé e Saulo para a obra que os tenho chamado” (At 13.2). Quando
Jesus foi assunto ao céu, ele deixou uma promessa que ao mesmo tempo era uma ordem (At
1.8). Nela o Senhor disse que os discípulos seriam testemunhas dele em Jerusalém, toda a Judeia
e Samaria e até aos confins da Terra. Jerusalém, desde que o Espírito desceu sobre os discípulos,
passou a ter o cristianismo (At 2.41). A perseguição fez com que os cristãos saíssem pregando
em toda a Judeia e Samaria (At 8.1). O evangelho começou a chegar aos gentios (At 10 e 11.20).
Foi para os confins da terra no sentido da África (At 8.26-40) e agora o Espírito estava
direcionando aos confins da terra em outros sentidos (At 13). O Espírito conduzia a igreja para
cumprir sua missão. “Enquanto a igreja orava, o Espírito Santo falou por meio dos profetas e
tornou conhecida a sua vontade. Por intermédio do seu Espírito, Deus amplia a igreja e nomeia

204
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 193.
70

seus servos para as tarefas que ele lhes dá.”205 A nomeação foi feita, Paulo e Barnabé foram
designados e enviados, não pela igreja, mas pelo Espírito.
Tannehill faz uma análise de um padrão na comissão da missão entre Jesus, os
apóstolos e Paulo:

A cena de comissionamento em Atos 13.1-3 também faz parte do padrão. O início das
missões de Jesus e dos apóstolos é precedido por referências à oração (Lucas 3.21;
Atos 1.14), que provê oportunidade para a ação do Espírito (Lucas 3.22; Atos 2.1-4),
e o Espírito conduz diretamente à missão (Lucas 4.14,18; 6 Atos 2.5-41). A cena de
comissionamento em Atos 13.1-3 segue um padrão já estabelecido quando apresenta
uma situação de adoração e oração que leva à ação do Espírito que inicia uma missão.
A jornada missionária de Paulo e Barnabé, como as missões de Jesus e dos apóstolos,
nasce da busca e da atenção da oração e é fortalecida pelo Espírito.206

Isso mostra a íntima relação entre a oração e a providência de Deus. A direção e


fortalecimento do Espírito não dependem da nossa oração, no entanto, nesse início do
cristianismo, o Senhor usa esse padrão para que o seu Espírito se manifeste à igreja,
comissionando e acompanhando aqueles a quem o Senhor escolheu para a missão.
Kistemaker também compara a ação do Espírito sobre os apóstolos e sobre Barnabé e
Paulo:

O Espírito Santo enche os doze apóstolos em Jerusalém no dia de Pentecoste de forma


que eles são capazes de se dirigir às multidões judias (2.1-41). E o Espírito Santo
orienta a igreja em Antioquia para que nomeie Barnabé e Paulo a fim de proclamarem
o evangelho às multidões gentias. Os Doze estão envolvidos na formação da igreja de
Jerusalém que cresce rapidamente, ao passo que Barnabé e Paulo são enviados pela
igreja de Antioquia para organizar igrejas até aos confins da terra (1.8).207

Não se trata simplesmente de uma ação humana na expansão do evangelho, mas,


primordialmente, uma ação de Deus, que é respondida por homens.
O Espírito estava revelando àqueles homens algo que já havia revelado a Ananias, e
consecutivamente a nós, leitores: “Mas o Senhor lhe disse: Vai, porque este é para mim um
instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os
filhos de Israel” (At 9.15). Deus, contudo, já havia ordenado isto antes do nascimento de Paulo:
“Quando, porém, ao que me separou antes de eu nascer e me chamou pela sua graça, aprouve
revelar seu Filho em mim, para que eu o pregasse entre os gentios” (Gl 1.15,16).

205
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 1. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 596.
206
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p.161.
207
KISTEMAKER, op. cit., p. 598.
71

O preparo para as missões não se deu apenas com o comissionamento de Barnabé e


Paulo. Deus já vinha trabalhando na história para que a missão deles se tornasse possível.
Algumas características históricas e geográficas contribuíram.
O Império Romano dominava grande parte do mundo, nessa época, entretanto ele
herdou grande influência grega do império estabelecido por Alexandre, o Grande. Keller208 diz
que “cada vez mais a Grécia dava o seu cunho à vida no Império Romano; a cultura romana
era, na realidade, cultura grega, e o grego era a língua universal que unia todos os povos
subjugados do Oriente”. A língua grega foi um ponto essencial para a comunicação entre Paulo
e seu público.
As estradas romanas também foram de grande importância para as viagens de Paulo.
Keller afirma:

Longas viagens por mar e por terra, como as que Paulo empreendeu, não ofereciam
dificuldades no seu tempo, ou, pelo menos, não eram coisa extraordinária. As estradas
romanas eram na sua classe as melhores que a Europa ocidental conheceu antes de
começar a construção das estradas de ferro no século XIX. (...) As “estradas
imperiais”, muito movimentadas e bem conservadas, eram providas de estações para
a muda de carruagens e cavalos. Albergues e hospedarias ofereciam repouso e
alimento ao viajante. Uma polícia especial incumbia-se da segurança das estradas
contra os ataques dos bandidos.209

Keller ainda acrescenta que “a extraordinária rede de estradas do gigantesco império


(...) e a língua grega (...) contribuíram tanto para a rápida propagação do cristianismo como para
a diáspora ramificadíssima das comunidades judias.”210
Aliando-se a essas características do Império Romano, Deus conduziu a vida de Paulo
e Barnabé para a cidade de Antioquia, de onde foram enviados. Isso favorecia a locomoção
deles, tendo em vista que, em Selêucia (At 13.4) havia “porto situado perto da desembocadura
do rio Orontes, a uns vinte e quatro quilômetros dali.”211
Além das circunstâncias promovidas por Deus na direção da história, que auxiliaram
as viagens, a origem e formação de Paulo foram de extrema importância. Paulo, provavelmente,
falava várias línguas. Há textos que afirmam sobre seu conhecimento dos idiomas hebraico e
grego (At 21.37; 22.2). Há a possibilidade de que conhecesse também a língua licaônica (At
14.11). “Saulo era um poliglota. Embora a questão seja controversa por falta de documentação

208
KELLER, Werner. E a Bíblia Tinha Razão. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1978, p. 351.
209
Ibid, p. 391.
210
Ibid, p. 392.
211
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 244.
72

fidedigna, terá aprendido latim, mas seguramente falava e escrevia grego, essa língua comum
ou koiné da época helenística.”212
Paulo era de Tarso, “cidade não insignificante da Cilícia” (At 21.39). Estrabão afirma
que a cidade de “Tarso é bem povoada, extremamente poderosa e tem o caráter de ser a
capital.”213 Muito possivelmente, influenciado por isso, a trajetória das viagens de Paulo,
normalmente o levou às grandes cidades, causando maiores impactos. Hengel afirma:

Paulo vem de uma grande cidade helenística (Tarso) famosa por sua alta cultura, que
em sua juventude alcançou um grau especial de preeminência como resultado do favor
de Augusto e foi elevada para se tornar a "metrópole" da Cilícia. Esse
desenvolvimento torna mais compreensível a missão posterior de Paulo, centrada nas
capitais provinciais.214

Estrabão ainda afirma que “os habitantes desta cidade se aplicam ao estudo de filosofia
e a toda a enciclopédia da educação com tanto ardor que superam Atenienses, Alexandrinos e
todos os outros lugares que possam ser nomeados onde há escolas de retórica.”215 E Ramos
acrescenta:

Seria extraordinária coincidência o fato de Paulo mostrar boa formação retórica e,


simultaneamente, Lucas dizê-lo originário de uma cidade onde funcionava uma das
mais importantes escolas de retórica do tempo.216

Paulo, entretanto, foi criado em Jerusalém (At 22.3; 26.4). Kistemaker afirma que “O
verbo criado, que aparece no versículo 3 (At 22.3), refere-se ao treinamento mental e físico de
uma criança mas difere do verbo educar.”217 A saída de Paulo de Tarso, mesmo com todo o
ensino, foi um processo comum. Estrabão destaca essa característica daqueles naturais de Tarso:
“Mesmo os próprios nativos não permanecem, mas viajam para o exterior para concluir seus
estudos, e após concluí-los residem em países estrangeiros. Poucos deles retornam.”218
Apesar disso, quando Barnabé o encontrou, Paulo estava em Tarso (At 11.25,26). Ele
mesmo afirma que foi para as regiões da Síria e Cilícia (Gl 1.21), talvez tenha aperfeiçoado sua

212
RAMOS, José Augusto et al (coord). Paulo de Tarso: Grego e Romano, Judeu e Cristão. Centro de Estudos
Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra; Centro de História da Universidade de Lisboa; Centro de
Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, 2012, p.33.
213
ESTRABÃO. The Geography of Strabo: Literally translated, with notes. London: George Bell & Sons, 1903,
(14.5.13).
214
HENGEL, Martin. The Pre-Christian Paul. London: SCM PRESS, 1991, p. 1.
215
ESTRABÃO. The Geography of Strabo: Literally translated, with notes. London: George Bell & Sons, 1903,
(14.5.13).
216
RAMOS, José Augusto et al (coord). Paulo de Tarso: Grego e Romano, Judeu e Cristão. Centro de Estudos
Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra; Centro de História da Universidade de Lisboa; Centro de
Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, 2012, p.24.
217
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 2. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 379.
218
ESTRABÃO. op. cit., (14.5.13).
73

formação nesse período da vida. Ainda quanto à sua formação, ele foi instruído “aos pés de
Gamaliel” (At 22.3).219 Isso lhe deu não só conhecimento, que facilitava seu ensino, como,
também, respeito por parte dos judeus. “Quando Paulo menciona o nome de Gamaliel e revela
ter sido ensinado por esse renomado mestre da lei, suas palavras surtem efeito. Os judeus veem-
no como um fariseu e especialista na lei de seus pais espirituais.”220
Deus conduz toda a história. Ele não começou a agir em prol dessas viagens quando
designou Paulo e Barnabé para a missão. Ao contrário, em toda a história ele trabalhou para
que os seus decretos, realizados na eternidade, se cumprissem, na vida de Paulo e Barnabé,
assim como na história da humanidade. Assim também, os efeitos da providência de Deus não
se limitaram a esse momento, mas se estendem até os dias atuais, através do ensino provido
pela Palavra de Deus, que transmite esse relato, como também através do alcance do
cristianismo, que chegou na Europa e posteriormente nas Américas. Para isso, Deus usou as
vidas de Paulo, Barnabé, Silas e tantos outros, no tempo dos apóstolos e em toda a história, os
quais foram comissionados pelo Espírito Santo para proclamarem a Palavra.

3.3.2 O Espírito diz não!

Quando o Espírito designou Paulo e Barnabé a obra para a qual ele os havia chamado
(At 13.2), o texto não deixa claro se e como foi definido o roteiro de viagem, pelo contrário,
muitas vezes as situações conduziram o trajeto (At 14.5,6). Deus, porém, traçou todos os
caminhos que conduziram Paulo e seus companheiros em cada viagem, “a condução do
programa missionário (é) pelo céu, não pela terra.”221 De forma especial, será dada atenção à
direção dada a Paulo, na segunda viagem, ao ser impedido, junto à sua equipe, de seguir um
caminho, sendo determinando a ele, um outro (At 16.6-12).
Paulo iniciou sua viagem com Silas e, depois, levou consigo, também, a Timóteo. Eles
estavam percorrendo a região frígio-gálata e pretendiam seguir rumo à Ásia. Não se sabe como,
mas foram “impedidos pelo Espírito Santo de pregar a palavra na Ásia” (At 16.6). Alguns
conjecturam que o Espírito pode ter feito isso por intermédio do profeta Silas (At 15.32), mas
não há base sólida para essa afirmação. O caminho a ser percorrido era o mais óbvio.

Antioquia da Pisídia, o centro da região frigia, também ficava muito perto da fronteira
da província da Ásia. Era natural, portanto, que os olhos dos missionários se voltassem

219
Gamaliel era um rabino fariseu muito respeitado (At 5.34-39). Seu prestígio era tão alto que usava-se a frase:
“Depois que Rabban Gamaliel, o presbítero, faleceu, o respeito pela Torá acabou e a pureza e a abstinência
morreram junto”. Schürer, p. 368.
220
KISTEMAKER, op. cit., p. 380.
221
LOPES, Hernandes Dias. Atos: A ação do Espírito Santo na vida da igreja. São Paulo: Hagnos, 2012, p. 296.
74

em direção ao sudoeste, para a Via Sebaste que levava a Colossos (cerca de 240
quilômetros) e depois para Éfeso, no litoral (praticamente a mesma distância).222

Apesar da naturalidade do caminho, esse não era o destino planejado por Deus e, por
isso, Ele os impediu, ficando eles em Mísia. Tentaram mudar o caminho e partir para a Bitínia,
contudo, foram novamente impedidos pelo Espírito Santo. Saíram, então, de Mísia e desceram
à Troade.
O fato de Deus tê-los impedido de prosseguir rumo a Ásia ou Bitínia, não significa que
Ele estava impedindo esses povos de terem contato com o evangelho. Ao contrário, “Deus já
havia planejado que a mensagem chegaria a esses lugares em outra ocasião (At 18.19 - 19.41;
ver 1 Pe 1.1).”223
Paulo teve uma visão, durante a noite de um varão macedônio que rogava: “passa à
Macedônia e ajuda-nos” (At 16.9). As visões são um instrumento constante da providência
divina em Atos, direcionando o progresso do evangelho (At 9.10,12; 10.3,10-16) e, aqui,
novamente o Senhor usa esse instrumento poderoso. Stott afirma:

Haviam viajado bastante, na verdade, todo o percurso desde o extremo sudeste até o
extremo noroeste da Ásia Menor, por uma rota estranhamente tortuosa. Eles devem
ter ficado muito perplexos, perguntando qual seria o plano e propósito de Deus, pois
a direção dele havia sido quase que completamente negativa. Apenas agora recebiam
uma orientação positiva.224

Deus frustra a intenção dos apóstolos por duas vezes, mas abre uma nova porta,
Macedônia. A orientação foi dupla. “Uma direção lhes é proibida, a outra se abre a eles; de um
lado o Espírito fala ‘não vá’, do outro chama ‘venha’.”225
Paulo e sua equipe navegaram de Trôade para Samotrácia, depois a Neápolis, e dali
para Filipos, chegando, finalmente, ao destino dado por Deus. Na Macedônia percorreram as
cidades de Filipos, Tessalônica e Bereia. Assim o evangelho chegou à Europa. Talbert diz que
esse foi um comissionamento de Deus para a nova viagem de Paulo: “por meio desta história
de comissionamento, Lucas deixa claro que o alcance da Europa não é devido ao desejo
humano, mas somente à intervenção de Deus.” 226 A vida da equipe na Macedônia não foi fácil.
Lopes comenta:

222
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 292.
223
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 605.
224
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 293.
225
PIERSON, 1895 apud STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora
ABU, 1990, p. 294.
226
TALBERT, Charles H. Reading Acts: A Literary and teological commentary. Geórgia: Smyth & Helwys
Publishing, 2005, p. 139.
75

o chamado de Deus é claro, mas as providências de Deus nem sempre o são. (...)
Muitas vezes, ele faz o seu caminho na tormenta. Deus queria Paulo e Silas em Filipos.
Queria plantar uma igreja em Filipos. Mas os missionários foram parar na cadeia. A
cadeia não foi um acidente. A cadeia não frustrou os desígnios de Deus. A cadeia não
roubou dos missionários a visão da obra nem lhes arrancou do peito o entusiasmo por
fazer a vontade de Deus.227

Stott apela à história para que se atente à importância dessa mudança de rota ordenada
pelo Espírito:

Com os conhecimentos históricos de hoje, sabendo que a Europa se tomou o primeiro


continente cristão e que até recentemente era a base principal para o avanço
missionário em direção ao resto do mundo, podemos ver como foi memorável esse
progresso. Foi da Europa que, no seu devido tempo, o evangelho se espalhou pelos
grandes continentes: África, Ásia, América do Norte, América Latina e Oceânia,
alcançando assim os confins do mundo. 228

Assim, percebe-se, claramente, Deus conduzindo homens para cumprirem sua


promessa (At 1.8) de levar o evangelho até os confins da terra.
Esse texto deve alegrar as nações, pois mostra a direção divina para que, na história, o
evangelho se espalhasse por todo o mundo. “Em sua graça soberana, Deus conduziu Paulo ao
Ocidente, em direção à Europa, não para o Oriente, em direção à Ásia.”229 A graça de Deus
alcançou a Ásia e Bitínia, como relatado, contudo, essa graça, também, se estendeu à Europa.
Os alvos da providência divina não são limitados pela vontade humana. Eles são abrangentes e
Deus os alcança ordinária e extraordinariamente.

3.4 De Jerusalém à Roma

O final do livro de Atos mostra, detalhadamente, todo o processo prisional de Paulo


desde Jerusalém, até Roma. Mostra também, como Deus cuidou providencialmente da vida de
Paulo e da condução do evangelho para o cumprimento de Atos 1.8 e a vitória do cristianismo.
A abordagem histórica será resumida, e algumas situações serão destacadas para
observação de parte da atuação providencial de Deus, que perpassa toda a sequência narrada,
desde o capítulo 20 até o final do livro de Atos. Nessa sequência, cumprem-se também as
promessas feitas a Ananias referentes a Paulo: “o Senhor lhe disse: Vai, porque este é para mim
um instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante

227
LOPES, Hernandes Dias. Atos: A ação do Espírito Santo na vida da igreja. São Paulo: Hagnos, 2012, p. 297,
298.
228
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 291.
229
WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expostivo: Novo Testamento. Vol 1. Santo André: Editora
Geográfica, 2007, p. 605.
76

os filhos de Israel; pois eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome” (At 9.15,16).
Ele já levara o evangelho aos gentios, aos filhos de Israel, e agora levaria perante os reis.
Em Atos 20, Paulo se despede dos efésios dizendo que estava constrangido em seu
espírito a ir para Jerusalém, com uma única segurança dada pelo Espírito Santo de que de cidade
em cidade o esperam cadeias e tribulações. Ele se despede afirmando que não mais os veria.
Passa por Tiro, onde os discípulos, movidos pelo Espírito recomendavam que Paulo não fosse
a Jersualém. Paulo, porém, segue para Cesareia e fica na casa de Filipe, o evangelista de Atos
8. O profeta Ágabo (At 11.28) traz a eles as palavras do Espírito Santo, ilustrando com o cinto
de Paulo, que ele seria entregue nas mãos dos gentios, caso fosse para Jerusalém (At 21.11). Os
que ouviram essas palavras rogaram que Paulo não fosse a Jerusalém, mas ele respondeu: “estou
pronto não só para ser preso, mas até para morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus”
(At 21.13).
As direções dadas no texto parecem ser contraditórias, pois ele seguramente está indo
para Jerusalém por orientação do Espírito, mas os textos de Atos 21.4 e 21.11,12 parecem
mostrar que a orientação é contrária à sua ida a Jerusalém. Quanto à segunda sentença, Stott
analisa e afirma: “Com certeza, Ágabo apenas predisse que Paulo seria amarrado e entregue
aos gentios (At 21:11); os apelos subsequentes feitos a Paulo não são atribuídos ao Espírito e
podem ter sido deduções falíveis (de fato, erradas) feitas por homens, por causa da profecia do
Espírito.”230 A primeira sentença é um pouco mais complicada. Tannehill afima:

A mensagem de 21.4 vai mais longe, chegando à conclusão de que Paulo não deveria
partir para Jerusalém. Talvez a mensagem do Espírito seja coerente, mas os profetas
de Tiro misturaram sua própria conclusão com a mensagem do Espírito. O uso do
discurso indireto em 21.4 remove da mensagem um passo da expressão direta do
Espírito. No entanto, é interessante que o narrador tenha deixado emergir pelo menos
uma contradição superficial na orientação divina que Paulo está recebendo, uma
indicação de que raramente é fácil separar a revelação divina da interpretação humana.
Apelo à orientação divina não é uma fuga fácil das ambiguidades da vida humana.231

As interpretações errôneas daqueles homens sobre a direção do Espírito foram, com


certeza, movidas pelo amor que tinham por Paulo. Muitas vezes as emoções e o desejo do
coração se opõem à vontade de Deus. O Senhor, porém, colocou firmemente no coração de
Paulo sua necessidade de ir até Jerusalém, lá ele seria sua testemunha, como também, em Roma.
Paulo foi a Jerusalém, onde é recebido com alegria. Ele segue as orientações daqueles
que estão ali de se purificar, raspar a cabeça, e comparecer no templo demonstrando que

230
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 376.
231
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p.263.
77

guardava a lei. Toda a cidade, no entanto, se agitou. Arrastam Paulo para fora do templo,
começando a espancá-lo, parando somente quando o comandante e os soldados chegaram.
Levaram Paulo preso, acorrentado com duas cadeias. Ele pediu autorização para falar ao povo,
causando grande tumulto, de maneira que o comandante ordenou o açoitarem. Ele se livrou por
ser um cidadão romano.
O comandante o levou ao sinédrio. Ali, Paulo discursou falando da ressurreição,
causando grande discussão entre fariseus e saduceus, devido às diferenças teológicas. O
comandante, com medo de que Paulo fosse morto, mandou que o levassem para a fortaleza. Na
noite seguinte o Senhor se colocou ao lado de Paulo e disse: “Coragem! Pois do modo por que
deste testemunho a meu respeito em Jerusalém, assim importa que também o faças em Roma”
(At 23.11). Paulo foi preso após ser espancado pela multidão, que pedia sua morte. Livrou-se,
porém, de ser açoitado. Após o alvoroço causado pelo seu discurso, foi retirado para não ser
despedaçado pela multidão. Estava sem muitas perspectivas de sair vivo de Jerusalém.
Tannehill destaca:

Neste contexto, a confiança do Senhor é especialmente necessária. Paulo recebe essa


garantia em uma visão noturna (23.11). Quando as testemunhas de Jesus foram presas
anteriormente, as portas da prisão foram maravilhosamente abertas para eles (5.17-
21; 12.1-11; 16.23-26). O caso não é mais esse. A confiança do Senhor deve tomar o
lugar de abrir milagrosamente as portas. O poder divino que resgata da prisão tornou-
se uma presença poderosa que capacita a testemunha a suportar uma prisão que dura
anos.232

A providência do Senhor não exime ninguém de passar por dificuldades, mas ele
sempre se coloca ao lado de cada um para dar a força necessária para completar a obra para a
qual ele chamou.
O Senhor se apresentou ao lado de Paulo em uma noite e, no dia seguinte, mostrou
novamente que estava com ele. Mais de quarenta judeus faziam uma conspiração para matá-lo,
“mas a Providência ordenou a coisa de forma que o plano fosse trazido à luz, e isso para que
efetivamente não tivesse sucesso.”233 O sobrinho de Paulo ficou sabendo e notificou ao
comandante, que chamou dois centuriões, duzentos soldados, setenta de cavalaria, duzentos
lanceiros e animais para Paulo montar e chegar em segurança ao governador Félix. A proteção
do Senhor continuava sobre Paulo através daqueles homens, que foram instrumentos em suas
poderosas mãos. O governador o recebeu e, após saber sua origem, esperou a chegada dos

232
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p.292.
233
HENRY, Mathew. Comentário Bíblico do Novo Testamento: Atos a Apocalipse. Rio de Janeiro: CPAD,
2008, p. 255.
78

acusadores para que ele pudesse falar. Chamaram um orador para falar com Félix, que, após
elogios, contou uma versão deturpada do que acontecera em Jerusalém.
Paulo se defendeu, e Félix, que já conhecia coisas com respeito ao Caminho, adiou a
causa, mantendo-o detido, impedindo que recebesse qualquer visita. Um dia, Félix e sua esposa
Drusila, que era judia, chamou a Paulo para conhecer mais a respeito da fé em Cristo Jesus.
Paulo testemunhou ao governador. Félix o chamava constantemente esperando receber algum
dinheiro e o manteve preso por dois anos, quando foi sucedido por Pórcio Festo.
Novamente os judeus armavam uma cilada para Paulo e pediram que Festo o enviasse
para Jerusalém, pois na estrada o matariam. Festo disse que eles fossem em Cesareia para
acusarem Paulo. Após acusações sem provas e a defesa de Paulo, Festo, para ter apoio dos
judeus, perguntou se ele queria ser julgado em Jerusalém. Paulo, então, apelou para César. Certo
dia o rei Agripa e Berenice foram saudar a Festo e passaram alguns dias ali. Festo relatou o
caso de Paulo e Agripa quis ouvi-lo. Festo promoveu uma audiência, relatou o caso novamente
e deu a palavra a Paulo, que testemunhou do Senhor perante aqueles que estavam na corte,
incluindo o governador Festo e o Rei Agripa. Festo o interrompeu e Agripa afirmou que quase
foi persuadido por Paulo ao cristianismo. E “Paulo respondeu: Assim Deus permitisse que, por
pouco ou por muito, não apenas tu, ó rei, porém todos os que hoje me ouvem se tornassem tais
qual eu sou, exceto estas cadeias” (At 26.29). A defesa foi bem sucedida, tanto que Agripa disse
a Festo que Paulo poderia ter sido solto se não apelasse para César, porém, ele desconhecia os
planos de Deus de levar Paulo até Roma.
Além da defesa de Paulo, e mais importante ainda, foi o seu testemunho. A providência
de Deus se evidencia nessa sequência, conduzindo Paulo a testemunhar perante judeus, gentios,
comandantes, governadores e reis. Stott afirma:

Graças a Deus pela coragem de Paulo! Reis e rainhas, governadores e generais não o
intimidaram. Jesus avisou os seus discípulos que eles seriam “levados à presença de
reis e governadores” por causa de seu nome, e prometeu que lhes daria “boca e
sabedoria” (Lc 22.12ss). Jesus também disse a Ananias (que provavelmente passou
esta informação adiante) que Paulo era o “instrumento escolhido” para levar o seu
nome “perante os gentios e reis, bem como perante os filhos de Israel” (9:15). Essas
profecias tornaram-se verdade, e Paulo não falhou.234

Tannehill ainda declara que “através da viagem de Paulo a Jerusalém e Roma, o


testemunho de Jesus, o Messias, é levado às autoridades mais altas por um prisioneiro.”235

234
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 428.
235
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity of Luke-Acts: A literary interpretation. Vol 2. Minneapolis:
Fortress Press, 1990, p.45.
79

Paulo segue sua caminhada como prisioneiro e é levado para Roma. O centurião,
chamado Júlio, permite que Paulo veja alguns amigos para obter assistência em Sidom.
Navegaram de Sidom, sob proteção de Chipre. Os ventos eram contrários e eles foram
navegando, vagarosamente, de cidade em cidade. Quando estiveram em Bons Portos, Paulo
avisou que seria perigoso continuar a viagem, o centurião, porém deu mais crédito ao piloto
que a Paulo, e seguiram viagem. Saíram com destino a Fenice, para passarem o inverno, mas
veio um vento chamado Euroaquilão, o navio foi arrastado e foram levados ao léu. No dia
seguinte aliviaram o navio. No terceiro dia, lançaram a armação do navio ao mar. A esperança
já havia se dissipado. Paulo, porém, deu palavras de ânimo a eles e disse que o anjo do Senhor
tinha estado com ele e disse: “Paulo, não temas! É preciso que compareças perante César, e eis
que Deus, por sua graça, te deu todos quantos navegam contigo.” (At 27.24). Paulo disse que
não temessem e que dariam em uma ilha.
A presença do Senhor encorajando a Paulo é constante. Em Atos 23.11 o Senhor esteve
com Paulo encorajando-o, dizendo que deveria dar testemunho em Roma. Agora novamente,
Deus o encoraja através de um anjo, dizendo que todos seriam salvos, por causa dele.

Ele é assegurado de que, de sua parte, chegará seguro a Roma: Importa que sejas
apresentado a César. Assim como a fúria dos mais poderosos inimigos, assim
também o mais violento mar não pode prevalecer contra as testemunhas de Deus até
que tenham dado seu testemunho. Paulo deve ser preservado nesse perigo, pois ele
ainda tem serviço a fazer. 236

O Senhor não salva apenas a Paulo, mas, “Deus não permitiria que qualquer vida
perecesse, por causa de Paulo, a fim de que soubessem que, verdadeiramente, ele era homem
de Deus, assim vindo a crer na mensagem que ele haveria de anunciar-lhes.”237
Na décima noite, viram que estavam próximos da terra, então lançaram âncoras para
não darem em local rochoso. Alguns lançaram botes nas águas, mas Paulo os alertou que
permanecessem a bordo, caso contrário não conseguiriam se salvar. Os soldados cortaram as
cordas e deixaram o bote se afastar. Paulo rogou que todos comessem, pois estavam há quatorze
dias sem comer nada, e disse que disso dependeria a segurança deles. Ele tomou o pão, deu
graças e o partiu e todos também passaram a comer. Depois de comerem, lançaram o trigo ao
mar.

236
HENRY, Mathew. Comentário Bíblico do Novo Testamento: Atos a Apocalipse. Rio de Janeiro: CPAD,
2008, p. 290.
237
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado. Vol 3. São Paulo: Editora e Distribuidora
Candeia, 1998, p. 531.
80

No dia seguinte, ao amanhecer, avistaram uma enseada, puxaram as âncoras e se


dirigiram para a praia. Chegaram a um lugar onde duas correntes se encontravam e ficaram
encalhados. Os soldados queriam matar os prisioneiros para que não houvesse fuga, mas o
centurião os impediu para salvar a vida de Paulo. Ele ordenou que quem soubesse nadar se
lançasse ao mar e quem não soubesse se salvasse com os destroços do navio. Todas as duzentas
e setenta e seis pessoas foram salvas, como o anjo falara a Paulo.
Deus usou Paulo para salvar a vida de todos que estavam a bordo. Deus usou a vida
do Centurião para que Paulo e os outros prisioneiros fossem salvos. Deus cumpriu sua promessa
por completo (At 27.22). Deus em sua providência preserva a vida de todos que estavam ali.
Relembrando as palavras de Calvino citadas anteriormente:

assim, como aprendeu que Aquele é criador de todas as coisas, deve concluir
imediatamente que também é moderador e conservador perpétuo, e isso, não
acionando com certo movimento universal tal máquina e cada uma de suas partes, mas
sustentando, protegendo e cuidando, com certa singular providência, cada uma das
coisas que criou, até o menor pássaro.238

Assim como Deus atua com sua providência até sobre o menor pássaro, Ele sustentou,
protegeu e cuidou daqueles que ali estavam. Todos chegaram em terra sãos e salvos, sem perder
sequer um fio de cabelo. Eles chegaram a uma ilha chamada Malta, onde foram bem recebidos
pelos Bárbaros. Kistemaker observa que

Nos tempos antigos, os sobreviventes de um naufrágio que conseguiam chegar à terra


de litorais desconhecidos esperavam enfrentar a morte ou a escravidão. Isso não
ocorreu em Malta porque desde 218 a.C. a ilha pertencia a Roma. Quando os nativos
viram um centurião e soldados chegando na ilha, eles tiveram a sabedoria de mostrar
hospitalidade e cortesia aos representantes de Roma.239

Deus havia preparado essa ilha para que nesse dia houvesse uma boa recepção. “A
Providência mantêm seu cuidado por eles, e os benefícios que recebemos pela mão do homem
devem ser reconhecidos como provenientes da mão de Deus; pois cada criatura é para nós, e
nada mais, do que aquilo que Ele faz ser.” 240
Paulo ainda foi picado por uma serpente e nada lhe aconteceu. Talbert afirma que “A
finalidade é dizer que a preservação de Paulo é parte do plano divino para levar o evangelho a
Roma por meio deste inocente.”241 Os bárbaros que, inicialmente, pensaram ser ele um

238
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. São Paulo: UNESP, 2007, p. 184.
239
KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Exposição de Atos dos Apóstolos. Vol 2. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 598.
240
HENRY, Mathew. Comentário Bíblico do Novo Testamento: Atos a Apocalipse. Rio de Janeiro: CPAD,
2008, p. 295.
241
TALBERT, Charles H. Reading Acts: A Literary and teological commentary. Geórgia: Smyth & Helwys
Publishing, 2005, p. 216.
81

assassino, passaram a vê-lo como um deus. Públio, principal homem da ilha, os hospedou por
três dias. O pai de Públio estava enfermo. Paulo foi até ele, lhe impôs as mãos e o curou. Todos
os enfermos da ilha foram até Paulo e foram curados. Eles concederam honrarias aos viajantes
e os colocaram a bordo suprindo suas necessidades para a viagem.
Seguiram viagem até, finalmente chegarem em Roma. Os irmãos de lá foram encontrá-
los e, quando Paulo os viu, agradeceu a Deus e se sentiu mais animado. Deus sustentou a Paulo
durante toda a viagem, agora, com a recepção dos cristãos de Roma ele se sente grato a Deus.
Talvez os pensamentos tenham borbulhado em sua mente: Deus cumpriu sua promessa.
Cheguei em Roma. Ele me fortaleceu todo esse tempo e agora recobrou meus ânimos com
irmãos, os quais eu ansiava conhecer.

Quantas vezes Paulo dirigiu para Roma seus anseios, suas orações, seus planos! Agora
ele chegou! (...) Ninguém terá dado grande atenção à entrada de um prisioneiro judeu
com escolta militar. Não obstante, ali segue pelas ruas de Roma alguém que
influenciará de forma mais profunda e duradoura o mundo do que todos os portadores
de nomes famosos, ovacionados pelo povo de Roma quando entraram na cidade.242

Paulo chegou, recebeu o direito de ficar em uma casa com seus próprios recursos,
tendo sempre um soldado guardando-o. Depois convocou os judeus à sua casa, apresentou-lhes
sua defesa e pregou a eles o evangelho. Eles tiveram grande contenda entre si, pois alguns
creram e outros discordaram. Paulo os despediu com as palavras do profeta Isaías (At 28.26-
29; Is 6.9-10) e deu-lhes conhecimento de que a salvação de Deus foi enviada aos gentios e eles
a receberiam. Paulo, enfim, passa dois anos em sua própria casa, recebendo aqueles que o
procuravam, pregando o reino de Deus com toda intrepidez e sem impedimento algum ensinava
coisas referentes ao Senhor Jesus Cristo (At 28.30-31).
Stott destaca a providência de Deus em alguns pontos deste processo. A primeira é sua
chegada a Roma, que, embora tenha passado por diversas aflições em todo o caminho “ele
consegue! Pois foi resgatado pela providência divina.”243
Em seguida destaca que a promessa de chegar a Roma (At 23.11) foi cumprida. O
texto, porém, não fala nada a respeito de César (At 27.24). Ele, todavia, afirma:

Se a primeira promessa (de ele chegar a Roma) foi cumprida, será que Lucas teria
incluído a segunda promessa (de testemunhar diante de César) se não soubesse que
ela foi cumprida? Creio que não. Nesse caso, podemos imaginar que o prisioneiro que
esteve diante de Félix, Festo e Agripa, também esteve diante de Nero, e que ele
proclamou a Cristo fielmente na corte mais prestigiada do mundo, à pessoa mais
prestigiada do mundo. Sim, o próprio Nero, aquele que possuía talento artístico mas

242
BOOR, Werner de. Atos dos apóstolos: comentário esperança. Curitiba: Esperança, 2002, p. 365,366.
243
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 454.
82

tinha sede de sangue, ouviu o evangelho da boca do apóstolo dos gentios. Isso não
seria possível se Paulo não fosse um prisioneiro em julgamento.244

Stott exalta, também, que esse tempo de prisão resultou em três cartas de extrema
importância:

creio que, na providência de Deus, há algo especial e diferente nessas cartas da prisão.
Não foi apenas o fato de que ele agora tinha mais tempo para refletir e orar; a essência
dessas cartas deve muito à sua experiência na prisão. (...) as três principais cartas da
prisão (Efésios, Filipenses e Colossenses), mais que todas as outras, apresentam de
forma poderosa o supremo, soberano, inquestionável e inigualável senhorio de Jesus
Cristo.245

É maravilhoso perceber que Deus, em sua infinita providência, permitiu a prisão de


Paulo, o sofrimento para chegar a Roma, mas também concedeu encorajamento, e livramentos.
Sua chegada possibilitou levar o evangelho às autoridades, governadores, reis, ao imperador,
aos judeus e gentios, e tudo isso, não se limitou ao tempo, pois, os efeitos da providência divina
através da instrumentalidade do apóstolo Paulo, percorreu dois mil anos e continua
influenciando e transformando reis e reinos, judeus e gentios.
Esse capítulo se encerra com as palavras de vitória declaradas por Barclay:

o livro dos Atos chega ao final com um grito de triunfo. Em grego as palavras
abertamente e sem impedimento são uma e ressoam como um grito de vitória. É o
ponto culminante da história de Lucas. (...) No início, (Lucas) deu-nos um plano de
Atos quando nos relata que Jesus encomendou a todos os seus homens para que
pregassem em Jerusalém, em Judéia, em Samaria e nos limites da Terra (Atos 1:8).246

Barclay continua em sua afirmação:

A história terminou; começou em Jerusalém quase trinta anos atrás e finalizou em


Roma. É nada menos que um milagre de Deus. A Igreja que no início de Atos podia
ser facilmente dividida em dezenas, agora não podia ser numerada em centenas de
milhares. A história do Crucificado de Nazaré tinha percorrido todo mundo em seu
curso de conquista e agora abertamente e sem impedimento estava sendo pregada em
Roma, a capital do mundo. O evangelho alcançou o centro do mundo e pode ser
proclamado livremente, e a tarefa de Lucas terminou. 247

244
Ibid, p. 455.
245
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. São Paulo: Editora ABU, 1990, p. 455.
246
BARCLAY, Willian. The Acts of the Apostles. Lousiville: Westminster John Knox Press, 1976, p. 166.
247
Ibid, p. 166.
83

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O livro de Atos começa com Jesus reunido com seus discípulos. Antes de ser elevado
ao céu, deixa a eles uma promessa que é, ao mesmo tempo, um mandamento: “recebereis poder,
ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em
toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra” (At 1.8). Nesse trabalho foi mostrado que a
promessa de Cristo se concretizou. Lucas encerra o seu livro com uma expressão de vitória. O
evangelho passa a ser pregado sem nenhum impedimento. A jovem igreja, que inicialmente
começou com cento e vinte cristãos, cresceu numericamente e já ultrapassava centenas de
milhares.248 Ela se expandiu geograficamente, na sequência que Jesus afirmou. Champlim
mostra que Lucas sempre faz um relatório, mostrando o crescimento e alcance do evangelho.
A igreja se expandiu em Jerusalém (At 6.7); em toda a Palestina (At 9.31); em Antioquia da
Síria e arredores (At 12.24); na Ásia Menor e na Galácia (At 16.5); na Europa (At 19.20);
chegando, finalmente ao centro do império, Roma (At 28.31).249
O processo vitorioso do evangelho não foi fácil. Cristãos foram perseguidos,
caluniados, presos, açoitados, apedrejados e, muitos deles se tornaram mártires, como Estêvão
e Tiago. Outras barreiras se levantaram contra o evangelho, algumas vezes, em meio ao grupo
de cristãos. O Senhor, contudo, atuou providencialmente: preservando a fé dos cristãos e
fortalecendo-os na caminhada; usando-os como instrumentos de cooperação com sua obra; e
governando todas as coisas com seu poder e autoridade, para que nada escapasse às suas
determinações.
Os efeitos da providência divina na expansão do evangelho, relatados no livro de Atos,
ultrapassam os limites do tempo. Eles se manifestam na história e nos dias atuais por intermédio
das promessas reveladas nas Escrituras, que foram cumpridas nos dias dos apóstolos, fato que
fortalece a confiança e a certeza de que elas continuam e continuarão a se cumprir. Os impactos
da providência aparecem, também, nos ensinamentos de Atos e nas experiências de suas
personagens. Eles se evidenciam nas cartas escritas nos dias apostólicos, contidas nas
Escrituras, que são a Palavra de Deus. O Senhor, ainda, em consequência de sua providência
relatada por Lucas, continua derramando o seu Espírito, concedendo poder e transformando
pessoas em testemunhas de Cristo.

248
BARCLAY, Willian. The Acts of the Apostles. Lousiville: Westminster John Knox Press, 1976, p. 166.
249
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado. Vol 3. São Paulo: Editora e Distribuidora
Candeia, 1998, p. 328.
84

O cristianismo percorreu o tempo. Na história, levantaram-se muitas oposições ao


evangelho, mas o Senhor continuou atuando providencialmente para a preservação do
cristianismo, da integridade e expansão do evangelho.
É muito precioso saber que a mesma providência divina, presente em Atos e na
história, manifesta-se ainda hoje e continuará atuando em toda a história da humanidade.
Barreiras continuam a se levantar, oposições e perseguições surgem novamente, o martírio de
cristãos persiste. Algumas vezes o desânimo toma conta das vidas que se submetem à ordem de
Cristo de levar o evangelho. O Senhor, contudo, nunca abandona seus filhos. Ele esmigalha as
barreiras que se opõem ao evangelho, e, ele mesmo completa a boa obra que começou para
glória e louvor do seu nome.
O Senhor, também com sua providência, transforma, pelo seu Espírito, homens e
mulheres, fazendo deles instrumentos escolhidos para levar o seu nome àqueles que não o
conhecem. Ele conduz e acompanha seus mensageiros sem, jamais, abandoná-los. Incertezas,
inconstâncias e indecisões continuam a fazer parte da trajetória cristã e missionária de cada um.
Deve-se, contudo, buscar o conhecimento da vontade de Deus, e a consequente obediência ao
seu direcionamento.
Deus é soberano! Sua obra vai se completar, porque assim ele determinou. O que fez
em Atos, continua a fazer, com instrumentos diferentes, de maneiras distintas, mas confirmando
seus decretos. O Reino é dele, continua a produzir crescimento e expansão soberanamente.
Deus, ainda, derrama o Espírito Santo sobre o seu povo. O Espírito, com seu poder, comissiona
e capacita embaixadores do evangelho. Isso acontecerá até o dia da volta de Cristo. Nesse dia
todo joelho se dobrará ao nome de Jesus e toda língua confessará que Jesus Cristo é Senhor,
para glória de Deus Pai.
85

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