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Tradução & Comunicação TRADUÇÃO COMO AÇÃO COMUNICATIVA: A

Revista Brasileira de Tradutores


PERSPECTIVA DO FUNCIONALISMO NOS
Nº. 24, Ano 2012
ESTUDOS DA TRADUÇÃO
Translation as a communicative act: the functionalist
perspective in translation studies

Silvana Ayub Polchlopek


Universidade Tecnológica
Federal do Paraná - UTFPR
RESUMO
sil-in-sc@uol.com.br
Este artigo tem por objetivo contextualizar, explicitar e ampliar o termo
funcionalismo para os estudos da tradução, bem como suas implicações
tanto para a teoria como para a prática tradutória. Nesse sentido, o
Meta Elisabeth Zilpser artigo se articula sobre três eixos principais. Num primeiro momento,
Universidade Federal de apresenta uma proposta reflexiva sobre o funcionalismo e, por essa
Santa Catarina - UFSC razão, resgata o sentido do termo ‘função’ através do seu trânsito e
metazipser@gmail.com enlace com algumas áreas de conhecimento na qual é empregado para,
em seguida, demonstrar sua aplicabilidade na área da linguística
textual. Desse cenário advém sua inter-relação com o processo de
Maria José R. Damiani Costa construção de sentidos no texto, bem como a maneira como o termo é
Universidade Federal de abordado junto aos estudos da tradução. Essa perspectiva é construída
Santa Catarina - UFSC através da exposição do trabalho de alguns teóricos representativos do
funcionalismo para os estudos tradutórios. Ao final, o artigo expõe
mjdamiani@gmail.com
algumas críticas frequentes à abordagem funcionalista, buscando
contra argumentá-las e evidenciar sua relevância como contexto
teórico-prático para os estudos tradutórios. Espera-se, desta maneira,
contribuir para o esclarecimento da concepção funcionalista e do modo
como atua no processo de tradução orientado para a análise de textos.

Palavras-Chave: estudos da tradução; funcionalismo; cultura; função.

ABSTRACT

This paper aims to contextualize the term ‘functionalism’ in the area of


translation studies, as well as its implications for translation practice
and theory. Hence, it is organized over three axes: the meaning of
‘function’ through some fields of study in which it is applied; the way it
is approached over translation studies and some critics it receives from
translation scholars. The reflexive approach proposed at first is done by
reviewing the term ‘function’ and the meanings it gains in some
correlative areas of knowledge so as to establish a difference from its
applicability in textual linguistics. From such context it is possible to
derive not only meaning construction processes within the text, but also
the way the term ‘function’ is understood in translation studies,
through some of its most representative scholars. Finally, the paper
exposes and comments some critics related to functionalism in order to
Anhanguera Educacional Ltda. emphasize the relevance of such perspective for translation studies. It is
Correspondência/Contato expected the paper offers a better comprehension of the functionalist
Alameda Maria Tereza, 4266 principles and how such approach adds to the process of translation-
Valinhos, São Paulo
CEP 13.278-181 oriented text analysis.
rc.ipade@aesapar.com
Coordenação Keywords: translation studies; functionalism; culture; function.
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Artigo Original
Recebido em: 02/07/2012
Avaliado em: 29/07/2012
Publicação: 30 de setembro de 2012 21
22 Tradução como ação comunicativa: a perspectiva do funcionalismo nos estudos da tradução

1. INTRODUÇÃO

Dentre as muitas vertentes e concepções constitutivas dos estudos tradutórios, o


funcionalismo é, talvez, a que mais recebe resistência por parte de pesquisadores, em
razão de subverter alguns dos padrões canônicos relacionados ao processo tradutório. Em
função desse caráter subversivo, a concepção funcionalista aplicada à tradução é criticada
por muitos autores e pesquisadores que a concebem como uma dissidência em tradução,
ou como um olhar apenas idealista e sonhado.

Noções como equivalência, processo tradutório, fidelidade ao texto-fonte ou


competência tradutória são, segundo a ótica funcionalista, questionados e reconstruídos
sob uma nova perspectiva: a do leitor-final, seja ele leitor do texto-fonte ou do texto
traduzido. Essa perspectiva funcionalista, no entanto, apesar das críticas negativas, tem
impulsionado muitas pesquisas de mestrado e doutorado envolvendo corpora diversos,
contribuindo para a expansão da área e abrindo outras perspectivas e olhares para a
análise do texto, permitindo diálogos multidisciplinares com o jornalismo, a sociologia, a
antropologia e a própria linguística textual.

Por não se pautar nos modelos, crenças ou concepções já apreendidas


culturalmente sobre o fazer tradutório, percebe-se, de fato, que muitos pesquisadores e
alunos encontram dificuldades em aceitar a concepção funcionalista, suas implicações e
suas especificidades. Nesse sentido, tendo como objetivo uma proposta reflexiva,
ressaltamos que não se vislumbra aqui discutir nenhum autor em especial, mas ressaltar
alguns dos princípios fundamentais que norteiam essa visão aplicada à tradução. Para
tanto, adotamos como estrutura de apresentação o eixo que percorrerá as seguintes
questões:

i. contextualização linguística;
ii. funcionalismo e sua relação com os estudos tradutórios;
iii. alguns autores funcionalistas mais representativos, sempre com vistas ao
texto em sua modalidade escrita.

2. FUNCIONALISMO E FUNÇÃO

O termo ‘função’, assim como ‘funcionalismo’, é utilizado nas mais diferentes áreas do
conhecimento, podendo ser uma grandeza matemática que descreve relações entre
fenômenos físicos, representar a utilidade de um objeto ou ainda o valor de um termo
dentro de uma oração. É, portanto, uma tarefa bastante difícil conceituá-lo de uma única
maneira, visto que sua perspectiva pode ser alterada dependendo da área de

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conhecimento a partir da qual se fala (POLCHLOPEK, 2005). Nesse sentido, existem


diversos modelos e versões desses termos vinculados a antropologia, arquitetura,
etnografia, sociologia, jornalismo e ciências matemáticas, por exemplo. No entanto,
mesmo com tantas peculiaridades, é possível rastrear um ponto em comum: ser funcional
significa responder (de alguma maneira) às necessidades (comunicativas, sociais,
matemáticas) de outra pessoa ou situação. Um pressuposto básico é o de que as atividades
parciais contribuem para o todo, ou seja, para a atividade global do sistema, segundo a
Infopédia (2003).

No que diz respeito aos estudos linguísticos, Weininger (2003, p.35) afirma que
“de modo geral, teorias funcionalistas partem da prioridade da função comunicativa que
determinadas estruturas linguísticas exercem para servir à intenção pragmática do
usuário da língua e da análise de estruturas que contribuem para esta função”. Em outras
palavras, ser funcional (ou funcionalista) implica quatro questões básicas: para que eu
quero dizer isso (função comunicativa da mensagem); por que quero dizer isso (intenção
pragmática); como vou dizer isso (estruturas que servem a essa intenção) e para quem eu
digo isso (o interlocutor). Desse processo é possível depreender um canal de comunicação
que não é neutro ou isento, visto que é carregado de intencionalidade, seja na fala ou na
escrita, explícita na forma como a linguagem é construída para servir aos propósitos de
seus interlocutores. Esse processo também não é linear ou ideal, conforme a tríade
comunicativa emissor-mensagem-receptor, visto que as situações nas quais as mensagens
são veiculadas não são padronizadas e, portanto, exigem que a intenção, as estruturas e a
função da fala ou da escrita se modifiquem de acordo com as posições ocupadas pelo
interlocutor final, com sua prática social, além do contexto no qual está inserido.

Como escola linguística, o funcionalismo nasceu na década de 70 e teve seu auge


nas décadas de 80-90. Opondo-se às abordagens formalistas como a da gramática gerativa
e a estruturalista, voltadas para a transparência na forma, nos constituintes da oração e
nas relações entre eles, nos ‘conjuntos de frases, sistema de sons e signos’ (NEVES, 2004),
o funcionalismo passou a se preocupar com as situações comunicativas, isto é, com todos
os eventos em que a comunicação poderia ocorrer (uma conversa telefônica; carta;
palestra; aula; artigo, etc.). Sendo assim, uma das questões centrais dessa nova vertente foi
compreender a ‘competência comunicativa’ (NEVES, 2004, p.44), ou seja, verificar como os
usuários da língua se comunicavam com eficiência.

Subjacente à noção de competência estava uma concepção de linguagem como


“instrumento de interação social entre seres humanos, utilizado com a intenção de
estabelecer comunicação”, conforme Camacho (1934, p.34 apud NOBREGA, 2000), de uma

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maneira dinâmica e de modo a permitir que as necessidades comunicativas respondessem


a qualquer modificação linguística e, consequentemente, cumprissem com as funções e
intenções da mensagem. A língua é vista, nesse sentido, como um produto social, e
compreender o seu funcionamento responde à forma como o processo comunicativo flui
de acordo com as necessidades intrínsecas dos interlocutores e a partir das exigências
extrínsecas da situação em que o evento comunicativo se desenvolve (MARTINET, 1978;
NOBREGA, 2000; AUSTIN, 1962; BAKHTIN, 1992). Por essa razão, o texto é
compreendido e se constitui na prática social: primeiro porque é carregado da
intencionalidade dos usuários da língua e, segundo, porque se origina das inter-relações
entre os sujeitos num processo contínuo de (re)construção de sentidos (SOBRAL, 2009,
p.7).

O funcionalismo estuda a linguagem em seu contexto de uso, visto que só é


possível construir sentidos a partir do ato comunicativo quando os interlocutores
compartilham o assunto, a situação e compreendem (ainda que intuitivamente) o uso de
determinadas estruturas em detrimento de outras, como é o caso de piadas e ironias, por
exemplo. Como afirma Davidse (1987, p.40 apud NOBREGA, 2000): “[Language] is not a
self-sufficient entity (…) it is used in and indeed evolved to serve human interaction. [Its
nature] can be understood only if we approach it functionally.” [Linguagem não é uma
entidade autossufuciente (...) é usada em – e pretende servir – para a interação humana.
[Sua natureza] pode ser entendida somente se a abordamos de forma funcional]. Essa
visão também é compartilhada pela sociolinguística, vertente na qual Bakhtin, Vigotsky e
Volochinov se destacam. De acordo com essa perspectiva, a linguagem só se concretiza
através da interação social, do dialogismo1, evidenciando uma perspectiva sócio-histórica
e também cultural (DELLAGNELO; RIZZATTI, 2009). Essa concepção implica que a fala e
a escrita só têm sentido quando produzidas num contexto, numa determinada situação
que também deve ser conhecida (ou inferida) pelo interlocutor, de modo que ele
compreenda e responda a essa interação, chamada por Bakhtin de “atitude responsiva”.
Dessa maneira, Bakhtin afirma que a linguagem é social, motivada sempre por
necessidades comunicativas que acionam as engrenagens mencionadas anteriormente:
para que; por que; como e para quem.

Nesse sentido, ‘função’ diz respeito a uma perspectiva sociocultural da língua,


designando ainda a relação entre uma forma e outra (função interna), entre a forma e o

1O dialogismo é fundado no pensamento participativo, ou seja, todo sujeito e todo sentido é constituído, em sua identidade,
num processo vinculado às relações com outros sujeitos e sentidos. Já a interação é, por sua vez, um lugar de “tensões”, a
chamada “arena simbólica da linguagem”, base do fato de sermos seres relacionais, afinal, o sentido nasce da diferença,
segundo Sobral (2009, p.7-8).

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significado (função semântica) e entre o sistema da forma e o seu contexto (função


externa), segundo Neves (2004, p.6). A autora acrescenta ainda que “o termo função nem
sempre tem o mesmo sentido e a mesma abrangência, e que existem diferentes critérios e
diferentes níveis de generalização nas diferentes classificações oferecidas dentro de cada
quadro teórico.” (Ibid., p.10). Fundamentados nessas informações, cujo objetivo é tecer
um panorama dos diversos pontos de vista relacionados ao termo ‘função’ e situar o leitor
quanto a sua relação no campo da linguística, o próximo passo é compreender a
aplicabilidade do termo ao contexto dos estudos tradutórios, apresentado a seguir.

3. FUNCIONALISMO E TRADUÇÃO

Situar o leitor na perspectiva funcionalista aplicada à linguística permite que se


compreenda a maneira como o funcionalismo atua nos estudos tradutórios, visto que
muitos dos termos associados a essa vertente teórica tendem a gerar certa confusão entre
os que estudam a linguagem e, mais especificamente, a tradução.

Conforme Nobrega (2000), Neves (2004) e Munday (2002), a Alemanha do pós-


guerra foi pioneira nos estudos relativos a teorias e prática de tradução, além de ter sido o
primeiro país a institucionalizar o treinamento de tradutores. Porém, até meados da
década de 70, a tradução ainda era vista como uma atividade de mera transferência de
códigos em nível de palavra ou frase, fortemente estabelecida nos princípios da busca de
equivalência um-para-um2. O funcionalismo surge nessa época para romper com o
formalismo saussuriano e a concepção vigente voltada para a arbitrariedade da língua,
instaurada como um sistema de regras. A concepção saussuriana conduz a uma visão
tradicionalista sobre o processo tradutório, subordinada a noções de equivalência e
fidelidade ao texto-fonte. Já o funcionalismo apresenta uma nova perspectiva
comunicativa pautada no contexto e na intenção do emissor. Consequentemente, a
tradução passa a ser compreendida como um ato ou ação comunicativa, isto é, o texto
deixa de ser um todo fechado em si mesmo e passa a comunicar propósitos e intenções
específicos entre autor e leitor-final. Gradualmente, as pesquisas passaram também a
exigir uma abordagem que considere o texto um todo incluindo seu entorno cultural, ou
seja, seu contexto externo.

A mudança mais significativa que o funcionalismo traz para os estudos da


tradução diz respeito ao processo de produção textual e à própria noção de texto.

2Equivalentes um-pra-um – equivalentes interlinguais. O conceito de equivalência é abordado em Nord (1997); Munday

(2001) e Limongi (2000).

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Segundo Nord (1991, 1997), Reiss e Vermeer (1996) o processo de tradução passa a ser
guiado por um propósito, designado por Vermeer através da palavra grega skopos e é esse
propósito que, uma vez estabelecido, deve ser alcançado na cultura alvo, por meio de uma
série de questões que o tradutor passa a gerenciar no processo de produção textual e
sempre tendo o leitor final como foco. Nesse sentido, o que importa não é a equivalência
ou a fidelidade ao texto-fonte, mas se a tradução conseguiu cumprir ou não as
necessidades do seu iniciador, isto é, quem solicitou a tradução (autor, tradutor ou outra
pessoa que não tenha necessariamente escrito o texto), de maneira apropriada ao seu
leitor e contexto final. Dessa maneira, a tradução passa a existir como texto independente
na cultura de chegada.

Em outras palavras, ser funcionalista em tradução significa ter como foco


principal a função (ou funções) inerente(s) aos textos e às traduções, visto que se
pressupõe que todo texto, traduzido ou não, detém um propósito específico, uma intenção
sustentada na relação presumida entre produtor e leitor(es) final. No entanto, quando se
traduz um determinado texto para um contexto/cultura distinto daquele em que foi
produzido (situação que pressupõe diferentes leitores), vale ressaltar que esse novo
público receptor pensa, sente, observa e avalia o mundo a partir de outra perspectiva,
podendo, até mesmo, já ter ou não certo nível de conhecimento em relação ao assunto do
texto que vai traduzir. Essas questões devem ser gerenciadas no processo de tradução de
modo que o texto referente seja plenamente compreendido por seus novos leitores, isto é,
de modo que possam construir sentido, gerar novos conhecimentos a partir do texto. De
outra maneira, se não forem considerados os pressupostos previstos pelo funcionalismo, o
que se pode garantir é apenas a possibilidade de o leitor decodificar o código escrito, ato
que destitui a língua de sua dinâmica transformadora e priva o texto da sua função de
prática social comunicativa.

Por essa razão, o funcionalismo oferece uma nova visão para o texto: ele é um ato
de comunicação, tal como os atos de fala (AUSTIN, 1962) e, nesse sentido, pleno de
significações para além das margens da página e até as especificidades culturais do seu
contexto de produção e/ou de recepção. Segundo Reiss e Vermeer (1996, p.14), o texto
passa a ser definido como uma “oferta informativa” de um produtor para um receptor.
Nesse caso, o texto alvo – ao informar o sentido e, muitas vezes, a forma do texto referente
(uma receita ou uma carta, por exemplo) – é compreendido como uma oferta informativa
sobre outra oferta informativa (o texto referente), funcionado de maneira independente
deste e determinando, por sua vez, o conceito de “adequação” (REISS; VERMEER, 1996,
p.119), isto é, de adaptação, de ajuste do texto ao novo leitor. Isso se explica em virtude de
os textos determinarem as razões e os meios da comunicação (o que e como a pessoa

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comunica), situações essas que não são padronizadas, tampouco universais, ou seja, não
se pensa e não se tem a mesma imagem de um objeto em lugares diversos. A palavra
biblioteca, por exemplo, é capaz de gerar significados e sentidos os mais diversos
considerando-se que pode ser pública, universitária ou particular. Os sentidos gerados
por ela tornam-se específicos em razão do que a palavra evoca e das sensações que
provoca nos leitores a partir de suas experiências pessoais geradas em contextos culturais
distintos. Entendendo, portanto, a língua como parte integrante da cultura, o texto passa a
ser influenciado (ou condicionado) pelas limitações da situação-em-cultura, isto é, da
situação analisada do ponto de vista da cultura que a produz (ou recebe).

Realizada entre sociedades distintas, a linguagem passa a representar a cultura


no âmbito do que Nord3 chama de comunicação intercultural, isto é, a troca de
conhecimento, símbolos e significados em contextos sociais diferenciados:
Entendo por “cultura” uma comunidade ou grupo que se diferencia de outras
comunidades ou grupos por formas comuns de comportamento e ação. Os espaços
culturais, portanto, não coincidem necessariamente com unidades geográficas,
linguísticas ou mesmo políticas (Nord, in ZIPSER, 2002, p.38).

Estruturadas dessa maneira como ambientes nos quais as pessoas interagem e


trocam conhecimentos, as situações comunicativas ganham “dimensões históricas e culturais
que condicionam o comportamento verbal e não verbal de seus agentes, seu conhecimento e
expectativas entre si” e, consequentemente, “o ponto de vista a partir do qual eles se encaram
entre si e o mundo” (NORD, 1997, p.16 – grifos nossos) aproxima-se de Sobral (2009, p. 40-
41). A questão que se coloca é que uma vez integrados na mesma cultura, emissor e
receptor interagem sem maiores dificuldades; porém, quando pertencem a comunidades
culturais diferenciadas, pode haver a necessidade de um intermediário capaz de não só
estabelecer como também de manter a comunicação entre os interlocutores.

Por essa razão, é comum acreditar que o funcionalismo é apenas uma teoria
descritiva. Segundo Nord (1997, p. 2), o funcionalismo não descreve apenas o que pode
ser observado no processo de tradução ou os resultados desse processo. O funcionalismo
emprega métodos descritivos para localizar e comparar normas e convenções válidas em
diversas comunidades culturais; assim, é também normativo e avaliativo em termos da
funcionalidade do texto (traduzido ou não) numa determinada situação-em-cultura.
Como resultado direto desse novo paradigma, a equivalência não é mais considerada o
objetivo maior da tradução, na medida em que a existência de outros elementos passa a

3Unter “Kultur” verstehe ich eine Gemeinschaft oder Gruppe. Die sich durch gemeinsame Formen des Verhaltens und

Handelns von anderen Gemeischaften oder Gruppen unterscheidet. Kulturräume fallen daher nicht zwangsläufig mit
geographischen. sprachlichen oder gar staatlichen Einheiten zusamunen.

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ser considerada fundamental no processo de tradução, a saber: cultura; conhecimento do


leitor; função da tradução; propósito e intenção do autor.

O tradutor ganha também um papel mais relevante e humano, distante do


trabalho mecânico presente em outras teorias. Além de dominar suficientemente as
línguas envolvidas, deve ser bi cultural, ou seja, deve ter um bom conhecimento acerca
das manifestações culturais dos contextos envolvidos no processo de tradução (contexto
de produção do texto referente e de recepção do texto traduzido), a fim de que as
intenções do autor do texto referente sejam preservadas e claramente percebidas. A figura
do tradutor ganha uma relevância maior à medida que focaliza aspectos pragmáticos e
culturais da língua, enfatizando a natureza específica da competência tradutória como
algo que vai além da proficiência linguística para a proficiência das particularidades
culturais dos grupos sociais envolvidos no processo de tradução.

O tradutor é visto por Nord (1991) como um “critical recipient” (receptor crítico)
devido a sua capacidade de gerenciar as variáveis culturais e atuar como mediador entre
dois códigos, motivo pelo qual está sempre “em conflito” entre as culturas envolvidas e o
receptor, indiretamente ativo durante o processo de produção textual. A influência do
leitor sobre todo o processo é decisiva, exercendo a função de voz norteadora para o
tradutor. Conforme Nord (1997, p.17), os tradutores permitem, dessa maneira, que a
comunicação aconteça entre diversas comunidades culturais, mesmo as mais distantes,
pois conseguem preencher a lacuna existente entre comportamentos verbais e não verbais,
expectativas, conhecimentos prévios e perspectivas distintas. A possibilidade de
preencher essa lacuna se explica porque as situações comunicativas são cenários nos quais
as pessoas interagem e, diga-se, cenários não universais, mas culturalmente marcados.

Outra consequência direta e que implica mudanças nas visões tradicionalistas


sobre a tradução é o papel do texto-fonte. Este deixa de ser o critério maior para a tomada
de decisões por parte do tradutor, atitude mais comum em teorias fundamentadas na
linguística e na equivalência. O texto referente passa a ser visto como uma das várias
fontes de informação utilizadas pelo tradutor para dar conta do processo de tradução. Em
outras palavras, a sacralidade do texto-fonte é desfeita, permitindo ao tradutor uma maior
liberdade quanto às decisões, escolhas, alterações e estratégias (omissão; adição; expansão
de informações; alteração de estrutura, por exemplo) que devem ser consideradas caso o
contexto de recepção e o público leitor assim o determinem. Os itens informacionais
escolhidos pelo tradutor são transferidos para o texto traduzido, seguindo a apresentação
que o tradutor acredita ser adequada ao propósito de seu trabalho, fazendo da tradução
ela mesma uma oferta de informações para o leitor final (NORD, 1997, p.26).

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Nesse cenário integram-se as teorias de Katherina Reiss, Hans Vermeer e


Christiane Nord, três dos principais teóricos funcionalistas em tradução, comentados a
seguir.

4. ALGUNS TEÓRICOS

Tradutora experiente e influenciada ainda pelas noções de equivalência que perduraram


boa parte da década de 70, Katherina Reiss desenvolveu o que chamou de ‘tipologia
textual’ (ou situações comunicativas) unindo algumas funções e dimensões da
linguagem4. Reiss sugeria que a transmissão de funções predominantes do texto-fonte
(TF) era fator decisivo para avaliar a adequação do texto-traduzido (TT) ao leitor-final e,
para tanto, utilizava critérios de instrução (Instruktionen) intra e extra linguísticos, que
foram, posteriormente, expandidos por Christiane Nord (1991). Tais critérios permitiam
ao tradutor avaliar o significado do TF, conferindo-lhe o poder de ‘interpretar’ o texto. A
abordagem de Reiss considerava três características importantes: i. a transmissão da
função predominante do TF era o fator principal para julgar o TT; ii. a importância dos
critérios de instrução variava de acordo com a tipologia textual; iii. o reconhecimento de
que a função comunicativa do TT poderia divergir daquela do TF e de que o TT poderia
ser dirigido a um público diferente do que fora intencionado pelo autor – razão pela qual
se fazia necessário avaliar a funcionalidade do TT em relação ao contexto da tradução. De
acordo com a perspectiva de Reiss, a tradução ideal seria aquela na qual o propósito na
língua de chegada (LC) fosse equivalente em relação ao conteúdo conceitual, a forma
linguística e a função comunicativa do TF (apud NORD, 1997, p.9). Mesmo criticada por
priorizar o TF, Reiss se destacou por definir, igualmente, a importância do TT para além
de estruturas linguísticas em situação de simples equivalência, uma noção que, além de
limitar a prática tradutória, não era mais considerada critério determinante de escolhas
metodológicas (NORD, 1997).

A ponte entre teoria e prática foi instituída por Hans Vermeer5 conforme seu
objetivo de se afastar das teorias linguísticas. Seu posicionamento é relatado em um
trabalho de 1976:
A linguística por si só não irá nos ajudar. Primeiro, porque traduzir não é meramente e
nem primeiramente um processo linguístico. Segundo, porque a linguística não
formulou ainda as perguntas certas para lidar com os nossos problemas. Vamos, então,
procurar em outro lugar. (apud NORD, 1997, p.10)

4Cf. Munday (2002, p.73-4) e Nord (1997, p.9)


5Cf. Munday (2000, p.79-81) e Nord (1997, p. 27-37) – a skopos foi desenvolvida no final da década de 70 (1978): “Linguistics
alone won´t help us. First, because translating is not merely and not even primarily a linguistic process. Secondly, because
linguistics has not yet formulated the right questions to tackle our problems. So let’s look somewhere else”.

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30 Tradução como ação comunicativa: a perspectiva do funcionalismo nos estudos da tradução

Vermeer considera a tradução um tipo de transferência na qual signos


comunicativos verbais e não verbais são transferidos de uma língua para outra, ou seja,
um processo que é visto de maneira semelhante ao ato de fala, só que na escrita: uma ação
humana (NORD, 1997, p. 11). Subjaz a essa ideia de “ação” a intenção, o propósito da
comunicação, verbalizadas ou não que, por sua vez, encontra-se inserida em um sistema
cultural particular e que condiciona sua avaliação. Conforme Nord (1997, p.16 apud von
Wright, 1963) ação é o processo de agir e significa que as mudanças no mundo (na
natureza) são intencionalmente provocadas ou evitadas. Ação (ou a interação humana)
pode ser descrita, portanto, como a mudança ou transição intencional de um estado de
relacionamentos para outro e que afeta dois ou mais agentes. E essa interação é
comunicativa quando realizada através de signos produzidos intencionalmente por um
agente no papel de emissor e dirigido para outro no papel de receptor. Vermeer utilizou a
palavra grega skopos (objetivo, propósito) para definir o que chamou de ‘teoria da ação
proposital’ ou skopostheory. É o propósito da tradução que determina os métodos e
estratégias a serem empregados pelo tradutor para conseguir um resultado
funcionalmente adequado (MUNDAY, 2002, p.79).

A skopostheory concentra-se nos aspectos interacionais e pragmáticos da tradução,


determinados pelo skopos que se pretende atingir no contexto alvo, voltada a figura do
addressee6, conceito presente também na teoria de Nord (1991). Como resultado desse novo
paradigma, a tradução voltava-se exclusivamente para o TT, opondo-se a Reiss, para
quem o TF era a medida para avaliar a qualidade da tradução.

Emprestando conceitos de Reiss e Vermmer, o modelo de análise proposto por


Nord (1991; 2005) aparece como uma postura de equilíbrio, estabelecendo o processo de
tradução com a atuação conjunta do TF e do TT e a função textual. Subjazem à teoria de
Christiane Nord duas importantes qualidades da autora que fundamentam sua concepção
de tradução: Nord foi e é, ao longo de sua vida, professora de tradução, além de tradutora
juramentada, o que lhe confere uma boa visão sobre a prática real do ofício do tradutor e
das dificuldades que novos tradutores podem enfrentar no aprendizado e no exercício da
profissão. Alia, em si mesma, a conjugação da teoria e da prática. Além disso, a autora
reúne um extenso trabalho acadêmico (teoria, metodologia, pedagogia, estilística
comparativa e analise do discurso hispano-germânica) e junto a instituições como CETRA
e a European Society for Translation Studies desde 1998. A conjugação teoria-prática lhe
confere um aporte de conhecimento bastante amplo sobre a vertente funcionalista.

6O addressee se caracteriza como receptor ou como público intencionado pelo autor no TF com seus conhecimentos culturais

específicos, suas expectativas e necessidades comunicativas.

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Nord aponta para o que parece ser um consenso entre teóricos: o de que uma
análise completa do TF deve não só preceder a tradução, como também assegurar ao
tradutor total compreensão e interpretação do texto. Desse modo, seria possível explicar
suas estruturas linguísticas e textuais, sua relação com os sistemas e normas da língua,
além de se obter uma base confiável para a tomada de decisões durante o processo
tradutório. Para um tradutor profissional (experiente), tais considerações ocorrem quase
“intuitivamente” na prática diária. Porém, a questão é que “propósitos diferentes
requerem abordagens diferentes”, sugerindo que os modelos existentes de análise textual
não são os mais apropriados à tradução (NORD, 1991, p.1). Dessa forma, o problema a
resolver é como conduzir um processo que satisfaça a análise do TF e permita lidar de
modo eficiente com os obstáculos que a tradução normalmente expõe.

Nord parte da necessidade de um ‘modelo de análise do TF integrado num


conceito global de tradução, como referência permanente ao tradutor’ (NORD, 1991, p.1)
para desenvolver uma sistematização que possa ser utilizada com qualquer tipologia
textual ¡ lembrando a teoria de Reiss ¡ e em qualquer situação de tradução; que tenha
como base a função dos elementos e das características observáveis dentro do conteúdo e
estrutura do TF; que tenha na figura do tradutor a escolha das estratégias mais adequadas
para o propósito da tradução que está trabalhando; que possa ser utilizado pelo
profissional em tradução, como forma de reflexão sobre a sua prática, e por trainees
(estudantes),enfatizando a sua competência linguística e cultural; e que seja adequado aos
estudos da tradução, ao treinamento e à prática tradutória.

Portanto, ainda que os textos não sejam produzidos exclusivamente para serem
traduzidos, serão submetidos à função de análise, no nível da sentença e acima dela, ou
seja, passam por abordagem “de investigação” através de características: externas (macro)
e internas (micro) presentes na produção e recepção desse texto.

Nord (1997, p.1) define, então, funcionalismo como meio de focalizar a


função(ções) dos textos e traduções, especialmente quando elementos dos dois códigos
linguísticos/culturas estão envolvidos na transmissão da mensagem entre Emissor ou
Produtor Textual (tradutor ou iniciador) e Receptor. Consequentemente e, segundo Nord
(1991; 1997; 2005), as situações que determinam ‘o que’ e ‘como’ as pessoas se comunicam
podem ser modificadas sempre que a situação comunicativa exigir e/ou se outras
variáveis forem colocadas em prática, visto que essas situações ou eventos comunicativos
não são institucionalizados ou padronizados, mas ocorrem inseridos em ambientes
culturais que as estabelecem e condicionam.

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32 Tradução como ação comunicativa: a perspectiva do funcionalismo nos estudos da tradução

Devido à inexistência de contextos comunicativos padronizados, Nord (1997, p.9)


compreende o termo “função” como a representação do ato comunicativo que, por sua
vez, determina a função que o texto (traduzido ou referente) terá para o público alvo num
determinado momento, lugar e, portanto, o propósito que motivará sua produção. Em
outras palavras, é o contexto que ajuda a definir a função textual, bem como as estratégias
pragmáticas necessárias para concretizá-la. Logo, não há como analisar TF e TT
separadamente, visto que um precisa recorrer ao outro para que o processo de tradução
ocorra de modo funcional, isto é, que o texto de fato comunique a intenção e o propósito
do autor. Por outro lado, a situação de produção do TF nem sempre é a mesma da
situação de recepção (leitura) do TT, principalmente se houver uma distância de tempo e
espaço entre ambos.

A função textual pode, então, ser analisada considerando-se o contexto de


produção do TF e o contexto de recepção do TT. Ao analisar o TF, o tradutor tem
condições de reconstruir as reações desses primeiros leitores, para só então inferir a
intenção do autor. A partir daí, o tradutor é capaz de antecipar as reações do público-
leitor alvo, analisando o contexto sociocultural de recepção (leitura), e definir as
estratégias tradutórias para o TT. A função (propósito + intenção do autor) é estabelecida,
portanto, no contexto comunicativo e também através dele, ou seja, é o contexto que
determina a função do TF e do TT, assim como são as estratégias que determinam o modo
como o autor ou o tradutor podem concretizar essa função, valendo-se da articulação de
elementos linguísticos.

Como os contextos são histórica e culturalmente marcados, isto é, influenciados


pelo momento histórico e pela cultura do emissor/leitor, o processo de tradução
estabelece o que Nord chama de uma comunicação intercultural considerando-se os
seguintes passos: 1) análise da situação comunicativa e das estratégias e articulações
linguísticas empregadas pelo autor na produção do TF; 2) análise dos elementos do TF
que deverão ser adequados ao propósito comunicativo do leitor da tradução, preservando
a intenção do autor, mas alterando a função se for necessário e, 3) produção de uma
tradução funcional e adequada às necessidades do Iniciador (I) se houver algum.

5. CRÍTICAS

Como todo movimento teórico e/ou metodológico que surge para romper barreiras ou se
mostrar oposto a algo anteriormente tido como certo, o funcionalismo é criticado em
vários aspectos. Tais críticas são válidas na medida em que contribuem para que se
conheça o trabalho do tradutor e se possa esclarecer sempre mais o campo de estudos em

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relação a essa nova perspectiva, visto que não se sustentam aquelas que não se baseiam
em uma experiência real, em um conhecimento empírico acerca dessa postura tradutória.
A seguir discutimos rapidamente algumas dessas críticas, conforme expostas por Nord
(2002).

Conforme mencionado, o enfoque funcionalista em tradução se fundamenta na


teoria do skopos, ou seja, no fato de que todo texto, seja ele um original ou uma tradução,
tem uma função e um propósito específicos e que, por essa razão, a maneira como esse
texto é produzido, sua estrutura de organização, de linguagem e de informação devem
seguir o propósito e a função intencionados e devem estar sempre voltados ao leitor final.
Assim, a primeira crítica é a de que pode haver ação sem intenção. Na verdade, nenhuma
palavra é dita ou nenhuma ação é executada sem que haja alguma intenção por parte de
quem falou ou agiu. O próprio Vermeer define “ação” como um “comportamento
intencional” (REISS; VERMEER, 1996). Porém, para a teoria funcionalista, segundo Nord
(2002), não é relevante que a ação seja intencional, mas sim que seja interpretada como
sendo intencional por alguém, visto que a intenção é o resultado de uma decisão livre
numa situação que permite duas ou mais formas de agir (incluindo a escolha sobre o não
agir).

O mesmo vale para quando se argumenta que, ao traduzir, tendo em mente uma
finalidade específica, o tradutor exclui outras possibilidades de interpretação do texto.
Sim, é possível que isso aconteça, caso contrário haveria uma tradução para cada um dos
leitores numa determinada cultura alvo. O que faz o tradutor é determinar um ponto que
seja comum para o grupo de leitores, de forma a tornar possível um critério de decisão e
realizar sua tarefa tendo em vista esse grupo, a menos que a tarefa de tradução receba
claramente um objetivo potencial e específico. Portanto, todo tradutor, se deseja que sua
tradução se torne compreensível, ainda que intuitivamente, pensa num leitor final.

Outra questão levantada sobre o leitor final é o fato de que a tradução, à luz do
funcionalismo, extrapola os conceitos mais tradicionais sobre o ato tradutório,
especialmente quando preconiza que não se precisa partir de um texto-fonte para que se
tenha uma tradução, concepção e práticas defendidas por Reiss e Vermeer (1996). Essa
rejeição em conceber o princípio do ato tradutório sem um texto de base evidencia,
sobretudo, uma contradição dentro da própria academia e do fazer teórico e reflexivo
proposto no ambiente acadêmico. Vejamos: busca-se visibilidade para os estudos
tradutórios; insiste-se no posicionamento reflexivo, na possibilidade de explorar caminhos
e perspectivas diversas sobre um mesmo objeto de estudo e, neste caso específico, as
manifestações tradutórias; enfatiza-se a dessacralização do texto fonte focalizando a

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tradução como processo e não como produto, mas rejeita-se a visão de que a própria
interpretação dos fatos, concretizados na fala ou na escrita, já se configura como tradução,
“a própria atividade simbólica humana consiste em traduzir (...) ampliando o sentido de
tradução (...) pois torna explícitos atos que realizamos no dia a dia sem mesmo nos
darmos conta”, seguindo o raciocínio de Sobral (2008, p. 8). A própria teoria da
representação cultural (ZIPSER, 2002) comprova e reitera através de inúmeros
desmembramentos em pesquisas acadêmicas que não precisamos necessariamente de um
texto para que a tradução possa ocorrer. Nesse sentido, de fato não precisamos aceitar o
novo, mas devemos estar abertos a ele e admitir que a manifestação tradutória reclama
um conceito muito mais amplo, que permita ir além das restrições que acabam sendo
impostas a ela.

Considerando esse sentido mais amplo, parece infundada a crítica de que o


funcionalismo não respeita ou desconsidera o texto original. Para isso lembramos o
conceito de texto vigente na teoria: o texto é em sua essência um ato comunicativo
(NORD, 1991, p. 12-15), sujeito a variáveis externas e internas à situação comunicativa que
o produziu e que, por sua vez, também está sujeita às variáveis persentes na sua recepção.
Em outras palavras, não existe “um” original, mas sim tantos “originais” quanto
tradutores-leitores existirem, seja esse original o texto propriamente dito, registrado em
papel, ou a própria situação de comunicação.

Outra questão correlata é o fato de se pensar o funcionalismo apenas como uma


teoria de “adaptação” textual. A questão de o leitor final ser o fator de maior destaque no
processo de tradução funcionalista não significa que adaptar (ou adequar) o texto a ele
seja o único propósito da atividade tradutória. No processo de tradução funcionalista a
intenção do autor é respeitada e mantida entre os textos, e esse fator justifica a
possibilidade de o processo de tradução funcionalista poder ser aplicado também à
literatura, conforme as já conhecidas traduções de Graciliano Ramos e Jorge Amado, por
exemplo, para idiomas relativamente distintos da língua portuguesa. Em nenhum
momento se perdeu a qualidade ou estilo pessoal da escrita desses autores por se
privilegiar o leitor final.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Delisle e Woodsworth (1998), no prefácio de “Os tradutores na história”, afirmam que as


pessoas têm traduzido desde tempos imemoriais e que os tradutores têm sido elos vitais
na transmissão de conhecimentos entre sociedades separadas por barreiras linguísticas e,
devemos acrescentar, também culturais. Se o propósito de um texto é, independente de

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sua área de conhecimento, ser uma oferta de informação, ela deve ser clara (e adequada,
se necessário) a qualquer público que possa se beneficiar dessa oferta. Voltando um pouco
antes dessas barreiras linguísticas lembramos que, enquanto característica evolutiva, a
linguagem foi o fator decisivo para nos diferenciar de outras espécies e que, graças a essa
linguagem, pudemos desenvolver a capacidade de criar, organizar e nomear símbolos e
significados. Portanto, o ato de traduzir não deve (ou não deveria) ficar restrito apenas a
variáveis linguísticas, mas também culturais, temporais, geográficas e identitárias entre
emissor (tradutor, iniciador, autor) e destinatários.

De acordo com Bakhtin (1992), todo discurso manifestado pelo sujeito sofre
também influências ideológicas do próprio autor, do interlocutor e, principalmente, do
contexto discursivo em que se enquadra. Assim, pode-se afirmar que a linguagem em
tradução, considerando os preceitos bakhtinianos, jamais é neutra, jamais pode ser vista
como transcodificação isenta, isto é, como transferência literal de sentidos e signos,
justamente porque carrega consigo historicidades, marcas pessoais e visões de mundo
específicas. Tudo isso implica a necessidade de acomodações nessa língua, de modo que o
destinatário construa sentidos a partir da leitura da tradução e compreenda a existência
de Outro como diferente – apenas diferente, e não melhor ou pior, nem agente de
dominação ou de submissão.

A discussão proposta neste artigo não se pretende uma imposição do


funcionalismo a nenhum leitor e nem a sobreposição dessa vertente teórica sobre
qualquer outra. Os argumentos visam tão somente torná-la mais transparente para o
leitor, a fim de demonstrar que o funcionalismo, assim como qualquer outra perspectiva
teórica, é apenas uma entre muitas abordagens para se discutir uma atividade tão
complexa como a tradução. De maneira mais geral, queremos dizer que, antes de o texto
ser discutido como sendo funcional ou equivalente, como voltado ao leitor ou ao autor, é a
própria área da tradutologia que ganha, ao reforçar seus contornos e consolidar a
atividade tradutória – seja qual for a concepção adotada – como um território híbrido e
múltiplo.

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Tradução de Sérgio Bath.

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Silvana Ayub Polchlopek


Tradutora e professora de Língua Inglesa na
Universidade Tecnológica Federal do Paraná -
UTFPR. Membro do grupo de pesquisa
TRAC/CNPq - Tradução e Cultura. Mestre e
Doutora em Estudos da Tradução pela
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC,
com ênfase em tradução jornalística.

Meta Elisabeth Zilpser


Professora de Língua Alemã e Tradução na
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.
Membro do Grupo de Pesquisa Tradução e
Cultura TRAC/CNPq. Doutora pela Universidade
de São Paulo - USP.

Maria José R. Damiani Costa


Professora de Língua Espanhola, Linguística
Aplicada e Tradução da Universidade Federal de
Santa Catarina - UFSC. Membro do Grupo de
Pesquisa Tradução e Cultura - TRAC/CNPq e
Doutora pela Universidad Complutense de
Madrid.

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