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Uma teoria feminista-vegana: a política

sexual da carne
A política sexual da carne: a tratam, particularmente, da ligação entre a o-
pressão das mulheres e a dos animais não huma-
relação entre carnivorismo e a nos: The sexual politics of meat: a feminist-vege-
dominância masculina. tarian critical theory (1990) e The pornography
of meat (2003). Dentre outros livros, pode-mos
ADAMS, Carol. citar: Ecofeminism and the sacred (1993); Neither
Tradução de Cristina Cupertino. man nor beast: feminism and the defen-se of
animals (1994); Animals and women: feminist
São Paulo: Alaúde, 2012. 350p. theoretical explorations, com Josephine Donovan
(1995); Violence against women and children: a
christian theological sourcebook, com Marie
Fortune (1995); The inner art of vegetarianism
Carol Adams pode ser apresentada como (2000); Prayers for animals (2004); Meditations
uma escritora feminista e ativista pelos direitos on the inner art of vegetarianism (2001); e o
dos animais. Uma escritora atuante e versátil, que prefácio de Sister species: women, animals, and
publicou suas ideias sobre o vegetarianismo, os social justice (2011).
direitos dos animais, a violência doméstica e o Finalmente, depois de vinte anos após a
abuso sexual em artigos, livros, revistas, sites e en- publicação da primeira edição, a obra A política
ciclopédias. Dos livros que escreveu, há dois que sexual da carne é lançada no Brasil, ganhando

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um novo subtítulo: A relação entre carnivorismo simplificando e coisificando o corpo dos animais.
e a dominância masculina, lembrando que o Para a autora, o vegetarianismo é visto como
original teve como subtítulo: “A feminist-vegeta- não natural, enquanto o carnivorismo dos outros
rian critical theory”, o que nos fornece um impor- animais é transformado em paradigmático. Os
tante dado para questionarmos: As teorias feminis- animais se tornam coisas a serviço dos prazeres
tas são aceitas no Brasil? É importante essa ques- carnais, ditos naturais, pelos machos humanos,
tão, pois o subtítulo do original sugere uma propos- ditos predadores. Assim, os direitos animais são
ta teórica feminista, e sua negação ou mesmo criticados e as desanalogias mais profundas com
ocultação representa, por outro lado, o descaso. animais carnívoros permanecem intocadas,
A questão colabora para pensarmos que a porque a noção de seres humanos como preda-
resposta é negativa, existe uma falta das traduções dores é consoante com a ideia de que precisa-
feministas ou mesmo a escassez desses textos. mos comer carne. Diz a autora que, de fato, o
Através da leitura de textos literários e carnivorismo é verdadeiro para apenas 20% dos
filosóficos, Adams propõe e discute uma análise animais não humanos, segundo a biologia atual.
mais apurada das ligações entre feminismo e Em A política sexual da carne, ela nomeou
vegetarianismo, bem como a relação entre o esse processo conceitual no qual o animal desa-
patriarcado e a prática de comer carne. parece da estrutura do referencial ausente. Ani-
Descreve o que chama a estrutura do “referencial mais em nome e corpo são feitos ausentes como
ausente”, sendo o que, nesse contexto, separa a animais para que a carne exista. Se animais estão
carne e o animal morto a partir do produto final. vivos, eles não podem ser carne. Logo, um cadá-
A função do referencial ausente é manter a carne ver substitui o animal vivo, e animais se tornam
separada de qualquer ideia de que ela era um referenciais ausentes. Os animais são feitos ausen-
animal. As mulheres são referenciais ausentes em tes através da linguagem, que renomeia cadáve-
nossa cultura também, sendo vistas como um res antes que consumidores e consumidoras
corpo a ser consumido e usado pela publicidade participem em comê-los. O referencial ausente
e de muitos outros modos. A teoria feminista é nos permite esquecer do animal como uma enti-
importante, porque nos ajuda a entender o dade independente. O assado no prato é desen-
modus operandi de como as opressões estão corporado do porco o qual ela ou ele um dia foi.
interligadas. O livro mostra como os animais são O referencial ausente resulta do cativeiro ideoló-
consumidos, literalmente, e como as mulheres gico e o reforça: a ideologia patriarcal estabele-
são consumidas, visualmente, através de acesso ce o padrão cultural de ser humano e de ser
sexual de seus corpos estupráveis. animal. Na política sexual da carne, é simples-
A Política Sexual da Carne discute como, mente impossível ser homem sem comer carne.
especialmente em tempos de escassez, muitas A segunda parte do livro, intitulada “Da bar-
vezes as mulheres dão aos homens a carne, a riga de Zeus”, está dividida em três capítulos, os
qual eles consideram ser o “melhor” dos quais são, respectivamente: “Textos desmembra-
alimentos. dos, animais desmembrados”, “O monstro vege-
O livro é dividido em três partes e nove capí- tariano de Frankenstein” e “O feminismo, a Grande
tulos. A primeira parte do livro, intitulada “Os textos Guerra e o vegetarianismo moderno”. Os capí-
patriarcais da carne”, é dividida em quatro capítu- tulos da segunda parte abordam alguns roman-
los que são: “A política sexual da carne”; “Estupro ces nos quais aparecem personagens vegetaria-
de animais, retalhamento de mulheres”; “Violência nas. A autora entende que a teoria feminista é a
mascarada, vozes silenciadas” e “A palavra se base para essa crítica literária, já que a história
fez carne”. A autora cunhou o termo “antroporno- da carne é feita não somente de textos de carne,
grafia”, que significa mostrar animais como seres mas principalmente do apagamento da palavra
que pedem para serem comidos, uma feminista e vegetariana. Diz ela: “Mudar um animal
perspectiva que, segundo ela, é um dos alicerces do seu estado original, fazendo-o se transformar
do patriarcado. Desse modo, a “antroporno- em comida, compara-se a mudar um texto do
grafia” é o conceito central, criado nessa primeira seu estado original, fazendo-o se transformar em
parte, que está no bojo da análise dos textos algo mais agradável” (p. 148). Para as escritoras
referentes à carne que compõem a sequência. abordadas, a questão do vegetarianismo torna-
Carol Adams (2011) pergunta-nos se somos se uma mediação feminina complexa entre as
predadores ou não. Ela diz que, na tentativa de relações de poder estabelecidas tanto no
nos ver como seres naturais, algumas pessoas especismo quanto no sexismo.
argumentam que os seres humanos são simples- A terceira parte do livro: “Coma arroz, tenha
mente predadores como alguns outros animais, fé nas mulheres”, está dividida em “A distorção

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do corpo vegetariano” e “Por uma teoria crítica edições: a original e a traduzida. Observamos,
feminista-vegetariana”. Nessa parte, ela lança ao ler e analisar a tradução, comparando-a
sua proposta, que é a de uma teoria crítica femi- com o original, que, na capa do livro As políticas
nista-vegetariana, argumentando que a defesa sexuais da carne, há uma ilustração que apa-
dos animais é a teoria e o vegetarianismo é a receu originalmente em uma toalha de praia
prática, assim como o feminismo é a teoria e o em 1969, mostrando uma mulher dividida em
vegetarianismo faz parte de suas práticas, ou cortes de “carne”, como a imagem dos cortes
seja, para o leque de práticas feministas, é da carne de vaca, e na qual se lia o subtítulo:
necessário pensar a carne como elemento viril “Qual é o seu corte?” Na tradução, a capa foi
da cultura patriarcal. O consumo da carne é de trocada por uma imagem com silhuetas femi-
domínio mais masculino, e o vegetarianismo, ninas sensuais impressas em cima de um fundo
então, age como um sinal de doença da cultura preto e branco, que sugere o couro de uma va-
patriarcal, expressa em três modos: na revela- ca. A troca das imagens sugere, para nós, uma
ção da nulidade da carne, na nominação das suavização no impacto das comparações entre
relações e na recusa do consumo de carne e a violência sexista e a especista, além disso, vai
da cultura patriarcal. ao encontro dos interesses dos latifundiários
É importante observar que o título da resenha nacionais, já que somos um dos maiores exporta-
propõe uma Teoria Feminista-Vegana, mas o livro dores de carne no mundo.
é sobre uma teoria crítica feminista-vegetariana, Havia algumas imagens publicitárias internas
como sugere o último capítulo. Optamos pelo no livro original que foram abortadas pelo editor
termo feminismo-vegano, pois a palavra vega- da tradução, a sua ausência colabora para nosso
nismo aparece no texto de Adams nos comentá- argumento referente à capa, o que nos leva a
rios da vigésima edição, isso está dado pelas pensar que essas imagens foram supridas no intuito
condições de produção, já que a terminologia de diminuir gastos gráficos ou por desinteresse
veganismo aparece na literatura acadêmica do editor. De qualquer modo, a tradução e publi-
somente no final dos anos 1990. Quando o livro cação do livro A Política Sexual da Carne torna
foi escrito, era comum a palavra vegetarianismo, mais acessível a discussão proposta por Adams e
que está relacionada à questão da alimentação se transforma em uma ferramenta para se pensar
e serve para diferenciar as pessoas que não co- as relações entre a opressão das mulheres e dos
mem nenhum tipo de carne, enquanto a palavra animais como baseadas na mesma hierarquia
veganismo é mais ampla, significa a prática de que sustenta o pensamento patriarcal.
não utilizar produtos derivados de animais não só
na alimentação, mas também no vestuário, nos Patrícia Lessa
produtos domésticos, entre outros. Universidade Estadual de Maringá
A obra é rica, embora a tradução deixe Michelle Camargo
muito a desejar. Vale a pena comparar as duas Universidade Estadual de Campinas

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