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SUMÁRIO

1 O INÍCIO ............................................................................................................... 2

2 OS PRIMEIROS HOSPITAIS ............................................................................... 5

3 HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DOS HOSPITAIS ........................................................ 9

4 HOSPITAIS DA AMÉRICA ................................................................................. 19

5 EVOLUÇÃO HOSPITALAR NO BRASIL ............................................................ 20

6 ESPAÇOS DE CURA E LUGARES DE MEMÓRIA DA SAÚDE ......................... 23

7 GASTOS PÚBLICOS COM SAÚDE: BREVE HISTÓRICO, SITUAÇÃO ATUAL E


PERSPECTIVAS FUTURAS ..................................................................................... 34

7.1 Qual a situação atual da saúde pública no Brasil? ............................. 35

7.2 O financiamento da saúde pública no Brasil ...................................... 38

7.3 Outros pontos que vão além do subfinanciamento público da saúde 41

7.4 Considerações ................................................................................... 45

8 BREVE HISTÓRIA DOS HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS .................................... 49

9 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................... 58

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1 O INÍCIO

Fonte: blog.saude.gov.br/images/homem.jpg

Dificilmente encontraremos na história da antiguidade a denominação de um


lugar específico, onde as pessoas doentes eram recebidas e permanecessem para
receber algum tipo de tratamento.
A palavra hospital origina-se do latim hospitalis, que significa “ser hospitaleiro”,
acolhedor, adjetivo derivado de hospes, que se refere a hóspede, estrangeiro,
conviva, viajante, aquele que dá agasalho, que hospeda. Assim, os termos “hospital”
e “hospedale” surgiram do primitivo latim e se difundiram por diferentes países. No
início da era cristã, a terminologia mais utilizada relacionava-se com o grego e o latim,
sendo que hospital tem hoje a mesma concepção de nosocomium, lugar dos doentes,
asilo dos enfermos e nosodochium, que significa recepção de doentes.
Encontramos, na história, outros vocábulos que salientam os demais aspectos
assistenciais:

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Gynetrophyum: hospital para mulheres
Ptochodochium, potochotrophium: asilo para pobres
Poedotrophium: asilo para crianças
Gerontokomium: asilo para velhos
Xenodochium, xenotrophium: asilo para viajantes e estrangeiros
Arginaria: asilo para os incuráveis
Orphanotrophium: orfanato
Hospitium: lugar onde hóspedes eram recebidos
Asylum: abrigo ou algum tipo de assistência aos loucos

Da palavra “hospitium”, derivou hospício, que designava os estabelecimentos


que recebiam ou eram ocupados permanentemente por enfermos pobres, incuráveis
ou insanos. As casas reservadas para tratamento temporário dos doentes eram
denominadas “hospital” e, hotel, o lugar que recebia pessoas, “não doentes”.
A tentativa de recuar no tempo, faz-nos observar que a amplitude do termo
“hospital” seja analisada, concomitantemente, com as práticas médicas, aliadas aos
cuidados com os enfermos e o lugar onde essas práticas eram exercidas.
O exercício da prática médica na civilização assírio-babilônica1 é comprovada
por alguns documentos e fatos: a biblioteca do palácio de Nínive, que continha peças
de argila, apresentando em escrita cuneiforme 2 , textos (de e para) médicos
documentando tal atividade, desde 3000 a.C.
O Código de Hamurabi (2250 a.C) regulamentava a atuação, a remuneração e
os castigos recebidos pela negligência médica. Porém, nada restou que permitisse
saber onde e como essas atividades eram exercidas, pagas, fiscalizadas ou julgadas.
Entretanto, Herótodo, referindo-se a épocas remotas, nos indica um mercado,
onde os doentes eram conduzidos para serem questionados sobre o mal que os
agoniasse:

1 Os assírios eram povos semitas que viviam ao norte da Mesopotâmia na região dos rios Tigre

e Eufrates. O império assírio foi formado após a queda do império acadiano. Ficaram conhecidos por
integrarem uma sociedade guerreira, cruel e implacável. Disponível em: <
www.todamateria.com.br/assirios/ > Acesso em: 19/19/2018
2A escrita cuneiforme foi criada pelos sumérios, e sua definição pode ser dada como uma escrita
que é produzida com o auxílio de objetos em formato de cunha. Disponível em: <
https://www.infoescola.com/civilizacoes-antigas/escrita-cuneiforme/ > Acesso em: 19/19/2018
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“Os doentes eram conduzidos ao mercado, porque não existiam
médicos. Os que passavam pelo doente interpelavam-no com o intuito
de verificar se eles próprios tinham sofrido o mesmo mal ou sabiam de
outros que o tivessem tido. Podiam, assim, propor o tratamento que
lhes fora eficaz ou eficaz na cura de pessoas de suas relações. E não
era permitido passar pelo doente em silêncio. Todos deviam indagar a
causa de sua moléstia”.
(Herótodo apud Campos, 1944:10)

Escrito em papiros 3 , compêndios médicos, classificação de doenças,


descrições de intervenções cirúrgicas e abundante farmacopeia, com a catalogação
de mais de setecentas drogas, fascinam os estudiosos, sem falar das técnicas de
preservação de cadáveres (mumificação).
Os papiros mais importantes são de Ebers, uma enciclopédia médica que
descreve a prática da medicina no século XVI a.C.; de Edwin Smith, verdadeiro
compêndio de patologia externa e cirúrgica óssea, cujas origens podem ser retraçadas
até 3000 anos a.C.; de Leide, que trata da medicina do ponto de vista religioso; e de
Brugsch.
É através do papiro de Leide, que se refere à união entre conhecimento
científico e prática religiosa, a informação de que em cada templo existiam escolas de
medicina, sendo as mais importantes as de Tebas, Menfins, Sais e Chem, havendo
ambulatórios gratuitos, para a prática dos estudantes, futuros sacerdotes médicos.
(Molina, 1937:5), (Paixão, 1960:12).
Se não há menção à hospitais (e, também, a enfermeiros) aparecem leis civis
e religiosas que recomendam dar hospitalidade e facilitar o auxílio a enfermos e
desamparados, sendo que médicos, mantidos pelo Estado, tratavam gratuitamente os
doentes durante as guerras e, mesmo, aqueles que realizavam longas viagens.

3 Planta nativa da África tropical, da família das ciperáceas, cujas hastes são formadas de
folhas sobrepostas, que os egípcios, depois de separar umas das outras, justapondo-as e colando-as
em seguida, usavam para escrever. Disponível em: < www.dicio.com.br/papiro/ > Acesso em:
19/09/2018
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2 OS PRIMEIROS HOSPITAIS

Fonte:iqaraislam.com

Na Babilônia, a prática da medicina começou no mercado. Pode-se dizer que o


mercado foi o hospital daquela época. Segundo Heródoto, o grande historiador de
Halicarnassus (Livro I-197): “Os doentes eram conduzidos ao mercado, porque não
existiam médicos. Os que passavam pelo doente interpelavam-no com o intuito de
verificar se eles próprios tinham sofrido o mesmo mal ou sabiam de outros que
tivessem tido. Podiam assim propor o tratamento que lhes fora eficaz ou eficaz na
cura de pessoas de suas relações. E não era permitido passar pelo doente em
silêncio. Todos deviam indagar a causa da sua moléstia. ”
Não é verídica a primeira asserção de Heródoto negando a existência de
médicos naqueles tempos primitivos, nem é exata a afirmativa que gozavam os
sacerdotes das duas grandes ordens dos salmistas e mágicos e dos profetas ou
adivinhadores. Mas no último período da história assírio-babilonesca começaram a
tomar corpo os estudos médicos. Versaram principalmente sobre preparados vegetais
e minerais sobre antídotos contravenenos de serpente e escorpiões e sobre
tratamentos diversos em que o “encantamento” era tido em grande conta. A profissão
médica foi, destarte, estabelecida naquela região do globo. Segundo GARRISSON

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(Código Hammurabi – 2.250 A.C.), a remuneração dos médicos estaria mesmo
cuidadosamente regulamentada por lei, em certa época daquela civilização. A
abertura de um abcesso no olho com lanceta de bronze, por exemplo, custava 10
“shekels” de prata para os ricos, 2 a 5 para os pobres. Se o paciente falecia ou perdia
o órgão visual era o operador severamente castigado: tinha sua mão cortada, no caso
do cliente rico e, no caso de um escravo, era obrigado a dar-lhe substituto quando
morria ou metade do valor da operação, ocorrendo a inutilização do olho. Os médicos
assírio-babilonescos exerceram sua atividade até no Egito, onde eram chamados para
consulta. Existiam especialistas e a remuneração era farta. Conhecem-se os nomes
de alguns entre os que exerceram a profissão no primeiro milenário antes de Jesus
Cristo.
Arad Nanâ, médico de Asarhaddon (681-669 A.C.), deixou escrita a história do
tratamento ocular de um pequeno princípe:

“Arad Nanâ ao rei, meu senhor. Arad Nanâ é teu servidor; mil e mil votos
pelo rei, meu senhor. Possam o deus Ninourta e a deusa Goula trazer
felicidade e saúde ao rei, meu senhor. Mil votos para a criança cuja ôlho está
doente. Eu coloquei um penso sobre o seu rosto. Ontem, à tarde, retirei o
penso e também a compressa que estava em baixo. Havia sangue ou pus
no penso apenas do tamanho da extremidade do dedo mínimo. Qualquer
que seja o deus, entre os teus, responsável pela melhora, sua ordem foi bem
executada. Mil votos. Que o coração do rei, meu senhor, esteja apaziguado.
Em 7 ou 8 dias o doente ficará bom”.

Em duas das mais antigas civilizações encontramos as raízes mais remotas


das instituições hospitalares – as do Egito e da Índia. no Egito o hospital foi
representado pelo templo de Saturno. Ao tempo da fundação de Alexandria, com sua
universidade e biblioteca, seu intercâmbio com a Grécia, existiram os templos de
Serapis e IsisSerapieia e Isieria, segundo o modelo das Asclepieia gregas. Herophilus
e Erisitrastus foram os dois grandes anatomistas do Egito. Criaram os processos de
dissecção e fizeram notáveis verificações como as das relações dos nervos com o
cérebro e medula espinhal, a do 4.º ventrículo, do “calamus scriptoris”, da retina, etc.
O médico era tido em alta conta no Egito. Na Odisséia (Livro IV-182) Homero assinala
que eles excediam a todos os homens.
Deve-se ao budismo a propagação das instituições hospitalares. Segundo Mac
Eachern (apud Campos, 1944:13) Sidartha Gautama, o Iluminado (Buda), construiu

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vários hospitais e nomeou, para cada dez cidades, um médico já “formado”, prática
continuada por seu filho Upatise.
A especialização era notável, no dizer de Heródoto: “a medicina no Egito está
subdividida de modo que cada médico cura apenas uma enfermidade; o país está
repleto de médicos dos quais uns são médicos dos olhos, outros da cabeça, outros
dos dentes, outros do abdome e outros também (sic) para as moléstias invisíveis”
Durante a guerra e as viagens no interior os doentes eram tratados
gratuitamente por médicos mantidos pelo Estado. A concepção hepática
assíriobabilonesca situando no fígado a sede da circulação, atribuindo-lhe a máxima
importância vital, foi substituída, entre os egípcios, pela concepção pneumática em
que a respiração ocupava o primeiro posto, bem que soubessem ser o coração o
órgão circulatório central.
Em ordem cronológica, alguns autores indicam a existência de hospitais:
anexos aos mosteiros budistas, em 543 a.C. (Puech) existentes no Ceilão, entre os
anos 437 e 137 a.C. (Garrison); vários hospitais mantidos em diferentes lugares,
“providos de dieta conveniente e de medicamentos para os enfermos, preparados por
médicos”, por Dutha Gamoni, em 161 a.C (Robinson); 18 hospitais, providos pelo Rei
Gamari, no Ceilão, em 61 a.C. (Puech). Da mesma forma, aparecem as primeiras
referências a enfermeiros (geralmente estudantes de medicina): eles deveriam ter
asseio, habilidade, inteligência, conhecimento da arte culinária e de preparo de
medicamentos. Moralmente deveriam ser puros, dedicados, cooperadores” (Paixão,
1960:13). Na Índia existiam ainda hospitais reservados ao tratamento de animais.
Dentre os médicos hindus sobressaem-se Chakara (primeiro século da era cristã), que
se especializou no uso de drogas anestésicas e é autor de uma enciclopédia médica;
e Susrata, cirurgiã, que realizava operações de hérnias, cataratas e cesáreas.
Moises, o primeiro legislador e profeta do povo hebreu, não tratou somente de
aspectos religiosos. Seus preceitos de higiene, aplicados não apenas ao indivíduo e
à família, mas a toda coletividade, o destaca entre os grandes sanitaristas de todos
os tempos. As prescrições mais conhecidas referem-se ao contato com cadáveres, às
mulheres durante à menstruação, à gravidez e ao puerpério, às doenças de pele, às
doenças contagiosas e aos leprosos. Quanto à existência de hospitais permanentes,
nada sabemos a este respeito em Israel.

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Entretanto, ao lado dos deveres sagrados de proteção aos órfãos e viúvas, e
de hospitalidade aos estrangeiros, havia também o de amparo aos enfermos: em
albergues gratuitos para viajantes pobres e em hospedaria existia um lugar especial
reservado aos doentes. A importância da obra coletiva em favor dos doentes ganhava
destaque em caso de calamidade pública, quando se instalavam hospitais para a
população. Além disso, havia o costume de visitar os enfermos em suas casas.
Em se tratando de persas, fenícios e sírios, apesar de a documentação histórica
nos apresentar um quadro de povos altamente evoluídos na navegação, na
engenharia, na arte bélica etc., praticamente nada se sabe da existência de hospitais,
e pouco no que se refere aos cuidados da saúde e da doença.
Apenas em relação à base das doutrinas médicas persas - Ormuzd, princípio
do bem, e Ahriman, princípio do mal – encontramos menção no livro de Zoroastro:
plantas medicinais (“criadas” por Ormuzd) e enumeração e 99.999 doenças.
Entretanto, algumas fontes referem-se a “hospitais” para pobres, onde estes
eram servidos por escravos, sem esclarecer sua “independência” ou não de aspectos
“assistenciais”, ou seja, devotados aos pobres e necessitados, em geral, órfãos,
viúvas e viajantes.
A medicina chinesa, bem como sua concepção do universo e sua filosofia,
apresentam diferenças quanto à maioria dos povos orientais: o princípio das
manifestações populares opostas, os cinco elementos e o culto dos antepassados
atravessam toda civilização e impregnam o conceito de saúde e doença. Sobre o
perfeito equilíbrio entre o princípio positivo masculino Yang e o negativo feminino Ying,
se fundamentam a saúde, o bem-estar e a tranquilidade.
O que mais nos interessa é que nos ensinamentos do médico hindu Susruta
chegam à China, no século III, assim como a influência do budismo, fazendo florescer
toda uma “rede” de hospitais: instituições para tratamento de doentes em geral,
cuidados por enfermeiros (e mantidos, principalmente, pelos sacerdotes de Buda);
instituições similares, com parteiras; hospitais de isolamento para doenças
contagiosas e casas de repouso para convalescentes. Mas, também, a proibição de
dissecação de cadáveres se impôs, impedindo o desenvolvimento da cirurgia. Os
documentos não nos esclarecem sobre a causa da decadência geral da organização
hospitalar que, pouco a pouco, foi abandonada, voltando-se a medicina para aspectos
mais astrológicos.

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3 HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DOS HOSPITAIS

Fonte:www.gazetadopovo.com.br

Na Idade Média os hospitais, cuja etimologia está ligada ao ato de hospedar,


eram abertos a todas as mazelas humanas, exceto aquelas como a lepra e a sífilis,
cujas vítimas tinham prédios específicos para abrigá-los, ou as instalações com
público-alvo previamente definido, como os hospitais de St. Jacques (Santiago),
destinados aos peregrinos de Santiago de Compostela, às prostitutas e às crianças
abandonadas. Tal ‘especialização’ era, contudo, incipiente, sendo a maioria
franqueada a todos. Qualquer que seja a sua designação — Hôtel-Dieu, hospital,
hospício, albergaria etc. —, os hospitais medievais representavam o lugar por
excelência da caridade, mesmo que em alguns momentos de sua história tenham sido
usados para fins de ordem pública. Desde suas origens na Idade Média, então, pode-
se caracterizar o hospital por seu caráter notadamente religioso e como centro social
para atendimento à população carente — e será difícil extrair-lhe esta marca, até
porque a pobreza e o cuidado aos pobres são questões centrais do cristianismo. No
início as inquietações com a salvação e a compaixão com o enfermo motivaram
grande parte das doações às instituições hospitalares.

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Os períodos de epidemias marcavam um aumento das contribuições, que
podiam ser feitas sob a forma de legados e doações ou pelo recolhimento de esmolas.
Deve-se atentar que, naquela época, o pobre era revestido de um manto santificado,
era o pobre de Deus, e ao ato de abrigá-lo era atribuído igualmente um caráter
sagrado. Com o tempo as questões ligadas ao mundo terreno passaram a predominar
nas relações entre a sociedade e esses estabelecimentos transformando-os aos
poucos, e a partir do século XVI foi sobretudo um novo olhar sobre o pobre e a pobreza
que alterou a feição dos hospitais a partir do século XVI.
O manto santificado foi posto de lado, dando lugar à ideia de que uma
aglomeração de pobres representava um perigo potencial. Para fins historiográficos,
muitos autores tendem a ressaltar as especificidades locais das ações sanitárias e
práticas caritativas, no que se refere tanto a regiões quanto a países, quando, ao
contrário, muitas vezes a permanência e a similitude são as marcas mais fortes dessas
ações. As singularidades locais enfatizadas por esses autores parecem mais
perceptíveis a partir do século XVIII, quando a tensão entre os cuidados médicos e as
práticas assistenciais se fazer sentir de forma mais evidente em todo o território
europeu. As práticas caritativas, no mundo católico, passaram a serem pautadas, no
final da Idade Média, em ações pias de leigos organizados em irmandades e ordens
terceiras que espelhavam valores da Europa medieval.
A região da Itália vê surgir as primeiras irmandades e ordens terceiras que
misturavam a fé e o auxílio mútuo, com inspiração, sobretudo, nas pregações de São
Francisco de Assis e São Domingos. As irmandades e ordens terceiras foram
responsáveis pela abertura de diversas igrejas e monastérios em todo o mundo
católico. Ao longo da Idade Média a manutenção dos hospitais — como já foi visto —
passava pelos donativos e esmolas destinados às igrejas e aos mosteiros. Após o
surgimento das instituições religiosas leigas, as doações passaram a ser destinadas
a elas, que mantinham obras de caridade. Desse modo as instituições leigas se
tornaram, em certa medida, ‘mediadoras’ e depositárias da filantropia católica,
situando-se entre o filantropo e a obra de caridade. Sobre esta última, ocorreu também
uma mudança que lhe caracterizaria e conferiria um caráter mutualista, pois os
hospitais passam a não serem mais abertos a todos, mas sim apenas aos membros
de determinada irmandade ou confraria.

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Segundo Cavallo, o sistema hospitalar de Turim estava centralizado em duas
instituições: o Hospital S. Giovanni (1440), formado a partir da junção de vários
pequenos hospitais e mantido sob a influência do episcopado; e o Hospital de S.
Maurizio e Lazzaro (1575), administrado pelos militares e sob a égide da aristocracia.
Havia outros hospitais menores, mas esses dois tinham como característica principal
o atendimento aos doentes e suas atribuições foram determinadas no momento da
sua constituição, não se tornando, assim abrigo das mazelas da sociedade que
caracterizou o funcionamento dos hospitais de um modo geral.
A partir do século XVII percebe - se algumas modificações com relação à ideia
de hospital e das suas funções: sob influência da experiência italiana, ele se
transforma em um prédio singular, com arquitetura própria que responde melhor ao
papel por ele desempenhado. É nesse período que a preocupação com o isolamento
dos doentes contagiosos se faz sentir, e constroem-se hospitais fora dos limites das
cidades, como o Hospital Saint Louis (1607) em Paris, ou mesmo o Hôpital des
Incurables e a Maison de Convalescence, anexos ao Hôtel-Dieu da capital francesa
erigidos para evitar a aglomeração de doentes.

Fonte: enfeps.blogspot.com

O questionamento do hospital começou a ser feito ao longo do século XVIII,


com as mudanças na concepção de assistência e com o desenvolvimento das
discussões sobre higiene. Nesse século surgem também os hospitais especializados.
Foucault (1995) destaca que a grande diferença desses hospitais para aqueles que

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existiam até então refere-se à questão dos cuidados médicos: enquanto que a
especialização dos hospitais medievais esteve pautada na exclusão, na segregação
e na crença dos males que os loucos, os sifilíticos e os leprosos podiam transmitir às
populações, os novos hospitais estavam baseados nos cuidados específicos às
doenças. Outra característica do século das Luzes é a transformação do hospital em
uma “máquina de curar”; no século seguinte ele se tornaria um “equipamento de
saúde, lugar de prática, de ensino e de pesquisa”.

Fonte: super.abril.com.br

O historiador canadense Othmar Keel (2001) observa a distinção do modelo de


medicalização dos hospitais franceses em relação aos demais países europeus, e
afirma que isso foi possível graças ao que denomina “tecnologia clínica”, na qual
insere tanto a abertura de novos espaços para a clínica médica, como o encontro
desta com a prática cirúrgica, que tinha no hospital seu lócus de ação. E é justamente
este ponto que singulariza a Escola de Paris: o estudo ‘anatomocirúrgico’ ou
‘anátomolocalista’ da doença.
No início do século XVIII constituiu-se, na França, uma organização sanitária
pública visando o controle de epidemias e pestes, cuja atuação mais visível foi aquela
calcada na mudança de percepção a respeito do lixo, da sujeira e das águas paradas,
que passaram a ser considerados ambientes potenciais de doenças. A esta nova

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situação outras seriam acrescentadas, como a preocupação com a circulação, com
as cidades e com as condições de vida (alimentação, moradia etc.) e trabalho. O
hospital não se manteve alheio a esse clima e tornou-se, com o passar do século, um
dos focos principais de problemas. No entanto a partir do processo de reforma ou
medicalização ele se converteu em uma peça essencial na política sanitária e
demográfica posta em prática na Europa ao longo do século XIX: não só devido aos
melhores equipamentos disponíveis, mas sobretudo em virtude da formação de seu
corpo médico, inspirada na filosofia das Luzes. Era somente no hospital e na prática
cotidiana que o conhecimento médico poderia ser adquirido, reafirmando seu papel
de equipamento médico. Por outro lado, ocorreram transformações culturais
profundas que possibilitaram alterar a imagem da medicina, bem como diversificar sua
atuação e seus recursos. E em tal cenário o pequeno espaço ocupado no hospital
pela doença, pelos serviços médicos e pela terapêutica passou a ser amplamente
questionado.
Em um tempo em que os preceitos de higiene ganhavam força, a intervenção
das autoridades passou a ter papel decisivo, sobretudo nos locais conhecidos como
focos privilegiados da doença: prisões, portos, barcos e hospitais gerais. Nesse novo
quadro o hospital tradicional perdeu espaço. Foi preciso transformá-lo tanto física
como conceitualmente, foi preciso que ele perdesse sua feição assistencial em
benefício da terapêutica. Apesar de todos os questionamentos, perdura um bom
tempo sem solução o grande dilema do hospital: a presença dos ‘incuráveis’. Era
prática corrente a manutenção de leitos para esses doentes, e muitas vezes eles eram
reservados pelos benfeitores do hospital para seus beneficiários. Por mais que se
exigisse a abertura de leitos para os ‘curáveis’, sabe-se que, na prática, os leitos eram
ocupados durante longos anos pelos ‘incuráveis’.
Somente a partir do século XIX, com a efetivação do processo de
medicalização do hospital, a questão dos incuráveis começou a ser resolvida. A
controvérsia sobre a permanência dos incuráveis no ambiente hospitalar não foi
privilégio francês. Também na Inglaterra e nos Reinos Germânicos ocorreu uma
tensão crescente entre a manutenção de leitos para os incuráveis, ou seja, entre esse
tipo de ação filantrópica e um espaço maior para o ambiente de cura.
O processo de medicalização do hospital pode ser entendido como a
transformação parcial e desigual pela qual passaram algumas instituições de

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assistência na Europa, a partir do século XVIII. Essa medicalização não esteve
restrita, como já foi dito, aos hospitais. As obras de caridade vivenciaram o mesmo
processo, no qual a medicina passou a ter papel importante: ao lado das sopas, do
pão, do carvão, do vestuário e do abrigo, as visitas médicas e a distribuição de
remédios passaram a fazer parte do cotidiano dessas instituições. Para os filantropos
franceses oitocentistas, a distribuição de cuidados médicos gratuitos era mais uma
forma de assegurar a ordem social. Nesse sentido, a medicalização era uma
estratégia para o alcance do objetivo principal. Quando as doações diminuíam, as
visitas médicas e os remédios eram os primeiros itens a serem reduzidos ou mesmo
eliminados.
O século XIX foi caracterizado por grandes mudanças, pode-se afirmar que
este estava assente numa dicotomia entre a prática médica do ponto de vista teórico
– Anatomia clínica, e a Medicina Laboratorial, correspondendo respectivamente à
primeira e segunda metade do século XIX. A Medicina Laboratorial encontrava-se
apoiada numa crescente interação entre ciências biológicas e não biológicas.
No período correspondente à primeira metade do século XIX observou-se uma
crescente evolução ao nível das descobertas no campo científico e biomédico, assim
como na expansão de hospitais e na forma organizacional dos mesmos. No entanto,
esta evolução estava a afetar preferencialmente os países mais evoluídos da Europa,
(Inglaterra, França, Alemanha) e os Estados Unidos da América.
Na Inglaterra, houve um aumento significativo do número de hospitais, graças
a empresários que desafiaram padrões tradicionais e contribuíram para que houvesse
suporte financeiro. Começaram então a existir diferentes instituições hospitalares,
gerais e especializadas.
Em 1860 estavam estabelecidos em Londres, pelo menos, 66 hospitais
especializados. Alguns dos melhores hospitais especializados, ao nível de
conhecimentos foram estabelecidos nos primeiros dois terços do século XIX, podemos
então ter como referências o Royal Hospital (1814) especialista em doenças do peito;
o St´s Mark Hospital (1835) em doenças cólon-retais; The Hospital for Sick Children
(1852); The hospital for Diseases of Skin (1863); The National Hospital (1860) em
doenças nervosas; o St Peter´s Hospital (1864) em doenças urológicas, entre outros.
Estes hospitais eram encarados como opositores de hospitais de clínica geral por
aceitarem casos que estes tinham negado. Para não serem ultrapassados, os

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hospitais de clínica geral começaram então a criar departamentos especializados. O
médico coordenava nesta altura, a admissão de pacientes, os trabalhadores, a
marcação de consultas e a política hospitalar.

Fonte: pt.wikipedia.org

Apesar de existirem muitos hospitais especializados na Inglaterra a expansão


deste tipo de hospitais também passou por Paris (1802), Berlim (1830), São
Petersburgo (1834), Viena (1837) e nos Estados unidos da América (Massachusetts
em 1824, Boston em 1832, Nova Iorque em 1836, na Filadélfia em 1855), tendo estes
diferentes especializações.
Em Londres as intuições eram sólidas, no entanto, nos Estados Unidos da
América devido às grandes diferenças sociais existentes, houve necessidade de se
estabelecer uma organização social diferente. Para que pudesse existir uma
consolidação, alguns hospitais especializados dos Estados Unidos da América
associaram-se a sociedades particulares alemãs, italianas e judias, criando-se fortes
laços.
Na Alemanha e Áustria as universidades e hospitais tinham uma íntima ligação
e cooperação. Mais tarde a Inglaterra criou também esse tipo de ligação.
O ensino trouxe os hospitais para a vanguarda da prática médica,
consequentemente houve necessidade de evolução no âmbito da cirurgia. No início
do século XIX algumas operações já eram realizadas nos hospitais.
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Os hospitais de Paris tiveram uma grande ênfase ao nível cirúrgico, nos anos
40 do século XIX, resultante da entrada da anestesia na medicina.
A expansão não veio simplesmente atrás do desenvolvimento. De fato, a meio
do século, tanto na Europa como na América assistia-se a uma enorme falta de
confiança nos hospitais devido a infecções que pareciam ser endemicas e a um
elevado número de mortes causadas por doenças provenientes das enfermarias
cirúrgicas. Vários regimes foram surgindo para combater esta fase, passando pela
limpeza e desinfecção das enfermarias, tal como a ventilação, tentado deste modo
afastar a crença da infecção.
Ignaz Semmelweis (1818-1865) e Florence Nightingale (1820-1910)
contribuíram com teorias para estas reformas. Muitos planos diferentes para a
redução da mortalidade na cirurgia foram propostos antes de Joseph Lister (1827-
1912). Ele apresentou o seu regime antisséptico baseado na teoria do germe de
Pasteur, argumentando que devido à presença de um germe específico que causava
putrefacção nas feridas. Lister foi muito importante para a transformação hospitalar e
cirúrgica, onde a assepsia, antissépticos e anestesia tornaram-se amplamente
praticados no hospital. Com estas novas práticas a cirurgia passou a ocorrer com mais
frequência e permitiu a resolução de situações de maior complexidade.
Os cirurgiões formados na Alemanha, foram líderes no desenvolvimento da
cirurgia, os quais iniciaram operações mais delicadas, como a abertura do abdómen
sob condições de assepsia.
Theodor Billroth (1829-1894), cirurgião alemão que se tornou mais tarde
professor de Viena, foi pioneiro na cirurgia abdominal, usando antissépticos, e
posteriormente métodos assépticos.
Richard Volkman (1850-1905), professor de cirurgia em Halle, Theodor Kocher
(1841-1917), professor da clínica cirúrgica em Berna, Johann von Mickulicz-Radecki
81830-1889), professor de cirurgia em Breslau, Johann von Nussbaum (1829-1890),
cirurgião em Munique prestaram grandes contributos para a expansão cirúrgica.
Todos eles trabalharam em associação com grandes hospitais, e desempenhavam o
papel de professores em muitas cadeiras de cirurgia nas mais importantes escolas de
medicina.

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Desde 1860, que os laboratórios de química se associaram a grandes
investigações, já nos anos 80 e 90 do século XIX investigações bacteriológicas
ligaram-se a laboratórios hospitalares.
Claud Bernard, um fisiologista de renome, foi considerado um dos fundadores
da medicina experimental ou laboratorial, que veio assim destronar a medicina
anátomo-clínica. Descobriu em 1851 o glicogénio e a sua produção pelo fígado e em
1865 publicou Introdução ao estudo da medicina experimental.
Louis Pasteur, teve muita importância pois criou a bacteriologia patológica com
o seu Memoire sur la fermentation lactique (1857), em 1864 descobriu a existência de
micro - organismos, que provocavam doenças, criando as bases de uma nova teoria
- teoria do germe; descobriu ainda em 1880 o estreptococo, em 1881 desenvolveu a
vacina contra o carbúnculo, em 1885, alcançou o sucesso mais notável ao vacinar um
jovem pastor, mordido por um cão raivoso, injetando-lhe extratos da medula espinhal
de um cão portador da doença.
O alemão Koch ficou conhecido pela identificação do bacilo da tuberculose,
isolou também o vibrião do cólera e definiu metodologias fundamentais para a
investigação bacteriológica e epidemiológica.
Koch juntamente com o inglês R. Ross (1857 – 1932), um dos grandes
impulsionadores da medicina e higiene tropicais.
Graças a Koch e ao seu trabalho, os laboratórios de bacteriologia tornaram-se
parte integrante dos hospitais, sendo também mais tarde integrados laboratórios
patológicos.
Até então o papel do médico era observar e examinar extensamente o doente,
tendo de interrogá-lo, apalpá-lo e auscultá-lo, ponderando várias hipóteses para
chegar a um diagnóstico. Vindo em certos casos a anatomia tanatológica apoiar este
tipo de investigações. No entanto, este procedimento estava a mudar e começava a
ser introduzido o laboratório, usando aparelhos que doseiam e numeram as alterações
físico-químicas. Um elevado número de elementos da classe médica passou não só
a examinar apenas, mas também a enviar amostras para esses, o que foi
determinante para a evolução da medicina.
A descoberta do raio X, por Wihelm Roentgen em 1895 foi bastante importante,
pois rapidamente começou a ser utilizado pelos médicos uma vez que permitia um
diagnóstico mais preciso.

17
Neste século, também foram efetuadas inúmeras descobertas ao nível da
genética, mas só vieram a ter relevância no século XXI.
Com tanta inovação, não eram apenas os pacientes atraídos para o hospital
como também pessoas que queriam participar como agentes ativos nestas novas
técnicas de investigação. Os hospitais foram então perdendo o seu estigma de
caridade e tornaram-se mais atrativos para os pacientes. O papel do hospital era agora
mais do que uma simples visita ao doutor ou farmacêutico.
A posição da enfermagem foi muito debatida, pois a imagem dos enfermeiros
sofreu uma grande transformação. A antiga falta de instrução era agora substituída
por um ensino e informação mais cuidada. Estas alterações levaram a classe média
a procurar hospitais. Graças à afluência da classe média aos hospitais, estes criaram
serviços especiais e quartos privados. Na Inglaterra alguns profissionais
empreendedores aproveitaram o aumento da procura dos cuidados hospitalares para
estabelecerem as suas próprias instituições.
No final do século XIX os hospitais tornavam-se um local de afirmação do poder
médico, graças à sua aliança com a ciência, como também devido à expulsão
daqueles que exerciam indevidamente a profissão. As práticas bárbaras da
terapêutica médica, citando como exemplo a purga e a sangria, foram remetidas para
o campo tradicional. A sociedade ocidental encontrava-se em euforia, com o início da
aplicação do princípio da vacinação preventiva e da soroterapia curativa relativamente
às doenças microbianas. Verificou-se então o aumento da generosidade por parte da
sociedade para com os investigadores, ficando estes com um melhor estatuto graças
ao prestígio da ciência.

18
4 HOSPITAIS DA AMÉRICA

Philadelphia General Hospital - Fonte:philadelphiabuildings.org

O México tem o privilégio de prioridade em dois setores da civilização: na


educação universitária e na edificação hospitalar.
A primeira universidade a ser construída na América foi a “Real e Pontifíca
Universidade do México”, em 1953. O primeiro núcleo universitário a se formar nos
Estados Unidos foi o “Havard College”, cuja origem é contada a partir de 1636. Do
mesmo modo foi no México que se erigiu o primeiro hospital em terras americanas.
Cortez, levantou-o em 1524.
Conta, pois, cerca de duas décadas mais do que a primeira instituição análoga
do Brasil – a Santa Casa de Misericórdia de Santos, criada por Braz Cubas, em 1543.
O Canadá, em 1637, viu iniciar-se a sua primeira casa de assistência, terminada dois
anos mais tarde.
Foi o “Hôtel Dieu du Precieux Sang” estabelecido pela Duqueza de Aguilon, em
Quebec (MAC EACHERN). Por iniciativa de Jane Mance construiu-se, ainda, em
Quebec, outro Hôtel-Dieu, onde se originou a ordem das Irmãs de S. José, o primeiro
grupo organizado de enfermagem (Mac Eachern). Montreal logo edificou o seu Hôtel-
Dieu.
Segundo Mac Eachern, os Estados Unidos instalaram o seu primeiro hospital
para socorrer soldados enfermos. Teve sua sede em uma das ilhas de Manhattan.

19
Existiu em 1663. Outro em Nova Amsterdam foi dirigido por uma senhora holandesa,
mas fechou suas portas em 1674.
Na ausência de hospitais, muitas cidades possuíam apenas asilos
“almshouses” ou simplesmente casa de residência onde os doentes eram tratados
pelas mulheres da vizinhança.
O primeiro asilo estabelecido na colônia foi obra de William Penn, em 1713. Era
exclusivo dos quakers. A necessidade de uma instituição pública onde todos
pudessem ser aceitos determinou a criação de outro asilo em 1732 – a “Filadelfia
Almshouse”. Este parece ter sido o ponto de partida do Philadelphia General Hospital.
Baseando-se nestas circunstâncias, este hospital julga-se o mais antigo dos Estados
Unidos.

5 EVOLUÇÃO HOSPITALAR NO BRASIL

Fonte:hbrbr.uol.com.br

As transformações da realidade econômica, política e cultural que o país


enfrenta, têm feito com que cada vez mais novas tarefas sejam atribuídas para o
educador e a população a quem atende. As práticas educativas não se restringem

20
mais somente aos muros escolares. Em função das necessidades atuais de
democratização do ensino e movimentos inclusivos, diferentes instituições de caráter
governamental e não governamental vem procurando atender os direitos das crianças
e adolescentes nas mais diversas circunstâncias. A “Declaração Universal dos
Direitos da Criança” promulgada pelas Nações Unidas em 1959 foi um marco inicial
para discussão da concepção de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e
agentes do processo social e histórico no qual estão inseridos.
A ciência médica brasileira sempre acompanhou, passo a passo, os progressos
dos outros povos através das publicações ou abeberando-se nas fontes mesmas,
buscando, pessoalmente, as lições junto dos mestres e nos centros universitários dos
mais notáveis do mundo.
Temos uma medicina nacional com valores inconfundíveis, alguns
consagrados no conceito médico universal, e sua contribuição particularmente no
tocante às doenças ditas dos Trópicos e no domínio da originalidade, da observação
clínica, e da profilaxia, e da terapêutica, constituem motivo de um sadio justo
contentamento e, para que não dizê-lo, de orgulho patriótico para todos nós, sendo
igualmente, também incentivo e dever para continuação e para melhoria, e para novas
realizações – presentes e futuras.
Força é confessar, entretanto, que a esse aprimoramento médico e científico,
que vem desde os tempos coloniais, e no Império e na República, não
corresponderam, entre nós, ainda hoje os progressos do aparelhamento hospitalar,
no sentido geral, sempre lento e difícil no construir, não bastando nunca, nem na
Capital, nem nos Estados, para satisfazer às exigências da assistência necessária e
às finalidades outras, no Ensino por exemplo. Os nossos hospitais, uns mal
aparelhados, outros bem equipados, que importa, se não lhes assiste uma
sistematização conveniente de organização e de administração; se não dispõem
esses estabelecimentos de auxiliares técnico-administrativos indispensáveis para
cada setor, que facilitem, melhorem e completem o trabalho do médico e os cuidados
da enfermagem a serviço da Medicina; se não satisfazem a seus fins de Assistência.
Vale referir que desde a origem histórica da assistência hospitalar se verificou essa
disparidade entre o progresso da medicina e o lento evoluir do hospital, como
instituição médico-social de orientação científica, ainda mesma nos países em que a
assistência e sistematização hospitalares constituem, hoje em dia, uma organização

21
excelente. Registre-se, como exemplo típico desse contraste, o caso dos Estados
Unidos, onde foi também bastante tardia a aparição da instituição hospitalar, que, em
compensação, se desenvolveu depois ali mais do que em qualquer outro país.
O primeiro hospital deste Continente, de que há notícia, foi fundado por Cortez
em 1524, na cidade do México, e o mais antigo hospital no Brasil é a Santa Casa de
Santos, fundada por Braz Cubas, em 1543. Pois bem, só em 1637 construiu o Canadá
o seu primeiro hospital, e somente em 1663, mais de um século depois do México e
do Brasil, apareceu a primeira instituição hospitalar norte-americana, situada na Ilha
de Manhattan, em Nova York. O ciclo de desenvolvimento deste setor do domínio
médico e social, embora considerado como tendo corrido parelha com o progresso da
Medicina e com a própria marcha da civilização, encerra fases áureas e períodos
negros; evolução e paradas, e até involuções repetidas, em vários países e em todos
os tempos. Motivos políticos e de religiões, e preconceitos antigos, tiveram decisiva
influência nesses avanços e recuos na vida do hospital, como instituição, mesmo nos
tempos mais modernos.
Quem conhece, na sua intimidade, por exemplo, a história da assistência
hospitalar brasileira, e muitos dos contemporâneos assistimos à sua acidentada
existência nestes últimos anos, de uma atuação, aliás, cheio de esforços, de
tentativas, mas de esparsas e isoladas vitórias dignas de menção e, muita vez, mal
compreendidas ou mal apreciadas; testemunha ou participante, podemos aquilatar
qual tenha sido a carreira semelhante no seio de outros povos, o valor das realizações
alhures, do seu adiantamento, e o que custou a inovação e a criação dos padrões
modelares da organização hospitalar moderna.
Aceitemos o progresso alheio com irrestrita admiração, e sem prejuízo de um
falso nacionalismo; sirvam os seus modelos e normas para uma consciente e razoável
imitação, em adaptações convenientes.
Preciosa, é, entre todas, neste particular, a realização norte-americana, e esta
contribuição excelente nos é oferecida com uma acolhida sem restrição, e a mais
cordial, como fruto da generosidade ianque e da cooperação humana e, mais do que
isto, da Ciência, que não tem pátria.

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6 ESPAÇOS DE CURA E LUGARES DE MEMÓRIA DA SAÚDE

Hospital Gaffrée e Guinle - Fonte: https://encrypted-tbn0.gstatic.com

Falemos, agora, de nós mesmos, para ver o que fizemos, o que estamos
fazendo e o que poderemos fazer no Brasil.
Dentre os hospitais construídos na década de 1920 e ligados à política de
saúde pública proposta por Carlos Chagas, destaca-se o Hospital Gaffrée e Guinle,
cujas ações estão vinculadas às propostas da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das
Doenças Venéreas, e inseridas nas discussões de construção da nação, dominantes
no período. Destinado ao controle e tratamento da sífilis e das doenças venéreas em
geral, o hospital propunha-se a concorrer para a geração de uma nação sadia, sem a
presença da sífilis. Ao mesmo tempo, a opção do arquiteto pelo estilo arquitetônico do
neocolonial, reporta aos debates acerca da construção da nacionalidade e de uma
arte nacional, o que, em arquitetura, durante certa fase, significou a adoção do estilo
neocolonial, até o advento do modernismo, na década seguinte.
A virada do século XIX para o século XX traz mudanças na percepção da
nosologia da sífilis. O período presencia, na Europa, nova conscientização a respeito
de três doenças há muito conhecidas, que passam a ser compreendidas como
23
calamidades sociais: a tuberculose, a sífilis e o câncer. Esses males marcaram as
preocupações cotidianas, chegando mesmo a encobrir parcialmente o sucesso da
descoberta dos soros antidiftérico e antirrábico. Faure (1994, p. 204) afirma: "[...] a
tuberculose se torna perigosa quando se prova sua transmissibilidade, a sífilis quando
triunfam as teorias sobre seu caráter hereditário". Já o câncer veio a despertar enorme
inquietação quando estatísticas de óbitos alertaram sobre a sua incidência. Como
ressalta Olivier Faure (Ibidem), as descobertas pasteurianas permitiram que os
médicos diagnosticassem casos de câncer onde até então a doença passava
despercebida, fazendo com que as suas estatísticas dobrassem em toda a Europa.
Em comum, esses três novos flagelos apresentavam o espaço de atuação: a
cidade. Controlar, portanto, tais doenças era permitir o surgimento de uma cidade e
de uma civilização salubres.
Contudo, a transformação da sífilis em calamidade social, nesse período,
transcendia o ideário médico, pois trazia subjacentes as noções de pecado – das
relações sexuais – e de degeneração da raça. E foi em tal cenário que, ao longo da
primeira metade do século passado, desenvolveram-se todas as ações de controle e
profilaxia dessas doenças.
No Brasil, as políticas públicas de terapia e profilaxia, tanto as relacionadas à
sífilis quanto aquelas referentes à tuberculose, só foram desenvolvidas a partir da
Reforma Sanitária de 1920. Sérgio Carrara (1996), ao estudar a luta contra a sífilis no
Brasil entre o final do século XIX e a década de 1940, lembra que, desde os anos de
1880, já se havia implantado o ensino de dermatologia e sifilografia na Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, a cargo do professor João Pizarro Gabizzo; no mesmo
período, inaugurou-se a Policlínica Geral do Rio de Janeiro, que contava, entre suas
especialidades, com o Serviço de Doenças da Pele e de Sífilis, e com um curso livre
de sifilografia, a cargo do médico Antônio José Pereira da Silva Araújo – à época, o
grande nome da pesquisa e do combate à sífilis. O Serviço dirigido por Silva Araújo
na Policlínica foi grande formador de quadros – por ali passaram médicos como
Oswaldo Cruz e Salles Guerra.
Em 1904, na Policlínica de Botafogo, foi criado o Serviço de Moléstias da Pele,
a cargo de Juliano Moreira – este último substituído, três ou quatro anos depois, por
Eduardo Rabello, discípulo de Silva Araújo (Idem, p. 89, nota 14).

24
Entre os médicos que, no início do século XX, mais se destacaram no combate
à sífilis, encontram-se Werneck Machado e Eduardo Rabello. O primeiro sucedeu a
Silva Araújo na chefia do Serviço de Doenças da Pele da Policlínica Geral do Rio de
Janeiro e esteve à frente de diversos movimentos em prol do combate à sífilis, além
de figurar como membro da Academia Nacional de Medicina. O segundo iniciou sua
carreira vinculado à Policlínica de Botafogo, transferindo-se em seguida para a
Faculdade de Medicina, onde sucedeu a Fernando Terra na cátedra de Dermatologia
e Sifilografia e na enfermaria da Misericórdia, já nos anos de 1920; incluiu-se, também,
entre os membros da Academia Nacional de Medicina.
Na segunda década do século XX, a luta antivenérea ganha maior organização,
com a criação, em 1912, da Sociedade Brasileira de Dermatologia e Sifilografia, na
qual se congregavam os três grupos que militavam contra a sífilis no Rio de Janeiro.
Eram eles: o grupo da Faculdade de Medicina, que reunia Fernando Terra, Eduardo
Rabello e Oscar da Silva Araújo; o grupo de Manguinhos, formado por Adolpho Lutz,
Gaspar Vianna, Arêa Leão e Heráclides de Souza Araújo; e o grupo da Policlínica,
integrado por Werneck Machado e seus auxiliares. De São Paulo, faziam parte da
Sociedade: Antonio Carini e Adolpho Lindenberg, ambos ligados ao Instituto
Bacteriológico. A Sociedade editou os Anais Brasileiros de Dermatologia e Sifilografia,
periódico que iniciou sua publicação em 1925, tendo por diretores científicos Fernando
Terra, Adolpho Lutz e Werneck Machado (todos do Rio de Janeiro); A. Leitão (da
Bahia); A. Lindeberg (de São Paulo); A. Aleixo (de Belo Horizonte); U. Nonahy (de
Porto Alegre). A edição estava a cargo de Eduardo Rabello, Oscar da Silva Araújo e
Gilberto de Moura Costa.
Outra ação importante no período foi a realização, em 1918, na cidade do Rio
de Janeiro, do I Congresso Sul-Americano de Dermatologia e Sifilografia, que veio a
difundir enormemente a ideia do processo de sifilização em que se encontrava o povo
brasileiro – ideia esta subjacente às ações postas em prática pelos sifilógrafos do país
na década seguinte (CARRARA, 1997, p. 401).
O início da década de 1920 pode ser considerado o divisor de águas no que
tange à profilaxia da sífilis. A criação do DNSP e da Inspetoria de Profilaxia da Lepra
e das Doenças Venéreas, esta última a cargo do sifilógrafo Eduardo Rabello, marcou
o início de um processo de centralização da política de saúde e de ações mais
dirigidas ao tratamento e profilaxia da sífilis – ou seja, o início de nova postura política

25
com relação à doença. Vale ressaltar que a marca por excelência dessa reforma
sanitária foram o combate às endemias rurais e o projeto de inserção do sertanejo na
nação, ambos defendidos pelos intelectuais reunidos em torno da Liga Pró-
Saneamento. Apesar de tal característica primordial, as ditas endemias urbanas
também receberam atenção especial das autoridades, sobretudo em suas ações
circunscritas à capital federal, orientadas para o combate à tuberculose, à lepra e às
doenças venéreas.
O grupo formador da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas
tinha por líder Eduardo Rabello, circundado por seus discípulos mais próximos, Oscar
da Silva Araújo e Joaquim Mota, sendo estreitamente vinculado tanto à Faculdade de
Medicina quanto ao diretor do DNSP, Carlos Chagas.
A política de combate à sífilis – baseada principalmente na educação e
propaganda higiênicas e no tratamento de doentes em dispensários e/ou hospitais
especializados – não tardaria a dar resultados. Já no relatório apresentado em junho
de 1920 por Alfredo Pinto Viera de Mello, ministro da Justiça e Negócios Interiores,
era anunciada a participação dos irmãos Guinle na construção de um hospital
destinado à profilaxia da sífilis no Rio de Janeiro (BRASIL, 1920, p. xxvi). Na
mensagem enviada ao Congresso em maio do ano seguinte, ao expor o balanço das
ações realizadas em prol da profilaxia da sífilis, fundamentalmente centrada na
construção de dispensários, o presidente Epitácio Pessoa afirmava: "Outros se
organizarão ainda, entre eles um hospital para 200 doentes, dádiva generosa feita ao
Departamento Nacional da Saúde" (BRASIL, 1956, p. 276). Todas as mensagens
presidenciais de Artur Bernardes pronunciadas entre 1923 e 1926 mencionavam o
hospital para tratamento da sífilis, "obra de benemerência de dois capitalistas,
Candido Gaffrée e Eduardo Palassin Guinle" (BRASIL, 1923, p. 39).
De modo geral, o texto das mensagens procurava reforçar a grandiosidade do
projeto – o que não deixa de ser verdade se o compararmos à malha hospitalar
existente no país e, em particular, na capital republicana –, além de aludir ao
desenvolvimento do projeto do hospital para venéreos. A Fundação Gaffrée e Guinle,
mantenedora do hospital, foi constituída em agosto de 1923, mas desde 1920, ou seja,
três anos antes de sua criação, o projeto já era anunciado, a demonstrar que os
acordos entre o governo federal e Guilherme Guinle já vinham então em andamento;
a entrada da Fundação Gaffrée e Guinle nas negociações representava mera

26
formalidade jurídica. Reforça tal hipótese a afirmação de Carlos Chagas, no relatório
do DNSP de 1922; segundo o médico, dentro de poucos meses o Serviço da Sífilis
alcançaria maior desenvolvimento, com o início do funcionamento dos modernos
dispensários construídos graças à benemerência dos herdeiros de Candido Gaffrée e
Eduardo P. Guinle (BRASIL, 1923, p. 201).
Se, de um lado, os anos 1920 observam a mudança na postura do governo
federal em relação às doenças venéreas – em particular a sífilis –, de outro, o
imaginário social a respeito desta doença continuava inalterado. Representações da
moléstia como degeneradora da raça estão presentes nos discursos da população em
geral e dos médicos, sobretudo daqueles ligados direta ou indiretamente ao
movimento eugenista, uma das marcas desse período da história do Brasil.
O movimento eugênico organizado no Brasil surgiu em 1918, com a fundação,
em São Paulo, da primeira Sociedade Eugênica no país. Dela fizeram parte, entre
outros, o senador Alfredo Ellis, os médicos Arnaldo Vieira de Carvalho, Vital Brazil,
Artur Neiva, Luiz Pereira Barreto e Antonio Austregésilo (STEPAN, 2004, p. 339-345).
Com o tempo, outros médicos foram se reunindo em torno da Sociedade, como Carlos
Chagas, Belisário Penna, Juliano Moreira e Miguel Couto. A maioria dos médicos
membros da organização estava envolvida com o sanitarismo no Brasil e tinha em
Belisário Penna, conforme mencionado anteriormente, o principal divulgador de suas
idéias. A esse respeito afirma Nancy Stepan (Idem, p. 348):
Estrutural e cientificamente a eugenia brasileira era congruente, em termos
gerais, com as ciências do saneamento, e alguns simplesmente a interpretavam como
um novo ‘ramo’ da higiene. Daí a insistência em que "sanear é eugenizar".
Não é difícil entender as ações desses médicos e sua opção pelo combate à
sífilis, justamente quando se organizam em torno da Sociedade Eugênica. Stepan
(Idem, p. 349 et seq.) chama a atenção ainda para a afinidade dos eugenistas
brasileiros com as teorias biológicas francesas – ou teorias neolamarkianas, para me
valer do conceito adequado –, que possibilitavam interpretação de cunho moral e
científico para a questão da raça. A sífilis, em especial, permitia dupla interpretação –
pelos vieses das condições sociais e da moralidade. Sérgio Carrara (1997, p. 405) vai
mais longe, ao afirmar:
Conjugadas à crença em sua [da sífilis] extrema difusão no Brasil, devido ao
excesso sexual que singularizava os nacionais, suas supostas características

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hereditárias contribuíram significativamente para que a luta contra a degeneração no
país se realizasse principalmente através de intervenções sanitárias. Assim, ao invés
de se eliminar ou esterilizar os biologicamente "inaptos", como aconteceu em várias
partes do mundo ocidental, buscou-se curar os males que os afligiam.
Nesse ambiente favorável – tanto no âmbito governamental, com a criação do
DNSP e do novo Regulamento Sanitário, quanto no âmbito social, com a criação da
Sociedade Brasileira de Dermatologia e Sifilografia; a realização do Congresso Sul-
Americano de Dermatologia e Sifilografia; e a organização do movimento eugênico no
país –, foi criada a Fundação Gaffrée e Guinle, sem dúvida uma resposta às
demandas e reivindicações dos movimentos eugênico e sanitarista, cujos
representantes no governo eram Carlos Chagas, diretor do DNSP, e Eduardo Rabello,
chefe da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas.
O "grande entusiasmo científico" manifestado à época em torno da sífilis é
apontado por alguns como fator preponderante na decisão de Guilherme Guinle a
favor da construção de um hospital destinado ao tratamento deste mal (SANATÓRIOS
E HOSPITAIS, 1939, p. 7), sobretudo se considerarmos o ideário da sífilis, segundo o
qual a doença, por seu caráter hereditário, poderia degenerar as futuras gerações do
país. Para um nacionalista como Guilherme Guinle, a oportunidade de colaborar para
o futuro da nação justificaria seu investimento no projeto de Carlos Chagas e Eduardo
Rabello, sem contar o respeito profissional e a amizade que unia o industrial a Chagas
e, de certa forma, a todo o grupo envolvido nos projetos da Inspetoria de Profilaxia da
Lepra e das Doenças Venéreas.
Segundo a escritura da Fundação Gaffrée e Guinle, datada de 1923, caberia à
família Guinle a aquisição de terrenos e a construção de um hospital para sífilis e
doenças venéreas, bem como a criação de ambulatórios para diagnóstico e profilaxia
da sífilis. Todo esse patrimônio deveria ser posteriormente repassado para a
instituição. O aparelhamento e a manutenção do hospital, assim como a instalação
dos ambulatórios correriam a expensas do governo federal.
O hospital recebeu a designação de Hospital Gaffrée e Guinle, que, a partir de
então, deveria ser obrigatoriamente mantida. Ficou acordado em 12 o número de
ambulatórios a serem construídos pela Fundação, 4 dos quais ficariam subordinados
às seguintes instituições de saúde: Santa Casa da Misericórdia; Instituto de Proteção
à Infância; Maternidade de Laranjeiras; e Hospital Nossa Senhora das Dores. Um

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quinto ambulatório foi instalado nas dependências da Casa da Moeda. No entanto, a
Fundação Gaffrée e Guinle extrapolaria o número de ambulatórios estabelecido no
acordo. Em 1928, o arquiteto Porto d’Ave (1928a, p. 8) anunciava o registro de 15
ambulatórios em funcionamento, todos mantidos pela instituição; no ano seguinte,
com a inauguração do Hospital Gaffrée e Guinle, ali começaria a operar o 16º.
Quanto à manutenção da Fundação e de suas instalações, ficou definido que o
custeio do hospital e dos ambulatórios seria assegurado por verba do governo federal,
repassada pelo DNSP, além de doações, legados e taxas cobradas por serviços (a
gratuidade destes seria assegurada somente aos pobres). Com relação à sua
administração, a Fundação teria um Conselho Administrativo formado pelo diretor do
DNSP (Carlos Chagas, à época), por um especialista da Faculdade de Medicina
(Eduardo Rabello), e por um representante da família Guinle (Guilherme Guinle).
Haveria também um Conselho Consultivo formado por 17 membros, escolhidos entre
pessoas de destaque na sociedade, entre estas Ataulpho Napolis de Paiva,
Clementino Fraga, Felix Pacheco, Fernando Terra, Fernandes Figueira, Gabriel
Ozório de Almeida, José Xavier Carvalho de Mendonça, Linneo de Paula Machado,
Miguel Couto, Paulo de Frontin, e Werneck Machado.
À época de sua regulamentação, a composição do Conselho Administrativo da
Fundação Gaffrée e Guinle reafirmava a proximidade da instituição com a direção da
Saúde Pública e com a Inspetoria, que deveria dirigir seus trabalhos. Eduardo Rabello
está presente como representante da Faculdade de Medicina, além de atuar
paralelamente como responsável pela legislação antivenérea, implantada naquele
momento, e como chefe da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas.
Dois dos discípulos de Rabello também estavam diretamente ligados a esse projeto:
Oscar da Silva Araújo e Joaquim Mota – este último alcançou o cargo de diretor do
Hospital Gaffrée e Guinle, na década de 1940.
O capital inicial da Fundação foi formado com a verba destinada a tal fim por
Cândido Gaffrée; com os recursos acrescentados pela família Guinle, representada
por Guilherme Guinle; e com a doação de José Xavier de Mendonça, amigo da família,
assessor jurídico das empresas Guinle e diretor da Companhia Docas de Santos.
Sabe-se que Guilherme contou com a colaboração de todos os seus irmãos – Arnaldo,
Eduardo, Guilherme, Otávio, Carlos, Heloísa e Celina –, sempre sob a sua liderança.

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As realizações da Fundação não demoraram a aparecer. No primeiro relatório
apresentado ao Conselho Consultivo, em 1925, 6 dos 12 ambulatórios já constavam
como prontos e em funcionamento: Engenho de Dentro, Paulo de Frontin, Andaraí,
Pró-Matre, Hospício e Gávea. E as obras do hospital não tardariam a começar.
A Fundação Gaffrée e Guinle estava baseada em dois princípios: a ação
filantrópica e a pesquisa científica. Para dar corpo ao primeiro, construiu-se um
hospital, inaugurado em 1929; e, em atenção ao segundo, foi criado um Instituto de
Pesquisa, cujas obras foram concluídas em 1927, permitindo, assim, o início dos seus
trabalhos. Para divulgar ambas as vertentes de atuação, foi lançado o periódico
Archivos da Fundação Gaffrée e Guinle.
Os Archivos foram publicados ininterruptamente até 1931. Nos quatro anos
seguintes, apenas dois números foram editados: o primeiro, relativo aos anos de 1932
e 1933; e o segundo, ao período de 1934 e 1935. A partir de então o periódico deixou
de circular. A Comissão Técnica responsável por sua publicação era formada por
Carlos Chagas, Eduardo Rabello e Gilberto de Moura Costa. Vale lembrar que
Eduardo Rabello e Gilberto de Moura Costa eram também os editores dos Anais
Brasileiros de Dermatologia e Sifilografia, que começaram a circular três anos antes,
em 1925. Os Archivos publicaram trabalhos médicos como os do próprio Gilberto de
Moura Costa e de Hélion Póvoa; a partir dos anos 1930, Álvaro Ozório de Almeida
começou a publicar no periódico seus primeiros trabalhos sobre o emprego da cama
hiperbárica no tratamento do câncer e da lepra.
O Hospital, cujo projeto era assinado pelo escritório Porto d’Ave & Haering, sob
fiscalização e orientação dos médicos Eduardo Rabello e Gilberto de Moura Costa, foi
inaugurado em 1º de novembro de 1929, sem que todas as enfermarias estivessem
equipadas, visto que faltaram recursos governamentais. Seu primeiro diretor foi
Gilberto de Moura Costa, que assumiu o posto em 1924.
O projeto do hospital, elaborado para internar 320 pessoas, contava com um
prédio principal de 4 pavimentos – o quarto andar era destinado ao solarium –, onde
se localizavam os diversos serviços e um ambulatório. Nele funcionavam: os Serviços
de Pronto-Socorro; de Vias Urinárias; de Ginecologia; de Obstetrícia; os Serviços
Auxiliares ao Ambulatório do Hospital (laboratório, fisioterapia e raios X); os Serviços
de Sífilis Visceral; de Otorrinolaringologia e Oftalmologia; as salas de cirurgia; e o
Serviço de Mulheres Contagiantes. No mesmo prédio, estavam instaladas as

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Superintendências dos Serviços Administrativos, dos Serviços de Estatística e de
Enfermagem, da Renda da instituição e dos Serviços Sanitários, bem como o
anfiteatro, a rouparia, o salão de honra, a biblioteca e o museu. No campus foram
projetados pavilhões especiais para abrigar o Instituto de Pesquisa, o Biotério, a
capela consagrada a Nossa Senhora da Conceição do Brasil, a residência do diretor,
as oficinas de conservação, o dormitório dos empregados e a lavanderia
O Instituto de Pesquisa foi planejado com elementos em homenagem à
moderna bacteriologia, como, por exemplo, os vitrais da escadaria principal, que
representam os dois maiores nomes da área, Louis Pasteur e Robert Koch, ladeando
Oswaldo Cruz – o que também ilustra o cuidado com que o projeto foi pensado e
desenvolvido. Vale ressaltar que coube a José Gomes de Faria, pesquisador do IOC,
a orientação técnica do projeto do Instituto. Outra aproximação com a ciência
desenvolvida em Manguinhos pela escola de Oswaldo Cruz pode ser percebida nos
detalhes a que se ateve Gomes de Faria: laboratórios individuais, salas de anatomia
patológica, além de biblioteca própria, desvinculada da existente no Hospital.

Vitral na escada de acesso ao 1º pavimento do Bioterio . Acervo do Departamento de Arquivo e


Documentação – FIOCRUZ, Rio de Janeiro - Fonte: escolademedicinaecirurgia.weebly.com

Porto d’Ave conferia grande valor ao Instituto de Pesquisa; a seu ver, os


trabalhos ali desenvolvidos dariam projeção às atividades da Fundação Gaffrée e

31
Guinle. Em conclusão ao seu artigo sobre o Hospital Gaffrée e Guinle, na revista A
Bandeira, o arquiteto afirmava: "A grande obra que orgulha a todos os brasileiros e
que está prestes a beneficiar, inicialmente o Brasil, e depois atravessando as suas
fronteiras, toda a humanidade, pelos ensinamentos e descobertas que seguramente
terão origem no seu Instituto de Pesquisas" (PORTO D’AVE, 1927, p. 14).
No mesmo terreno do Hospital, embora funcionando de forma independente,
situava-se o laboratório de Álvaro Ozório de Almeida, custeado unicamente por
subvenção particular de Guilherme Guinle. Nesse local, Álvaro Ozório desenvolvia
suas pesquisas de fisiologia sobre o câncer e a lepra, em contato constante com o
Instituto de Manguinhos e o Instituto da Indústria e Pesquisa Animal.
O complexo para o combate à sífilis – o Hospital, o Instituto de Pesquisa e os
Ambulatórios – foi de modo geral bem recebido, não só na imprensa médica, mas
também na imprensa cotidiana. Werneck Machado, na sessão da Academia Nacional
de Medicina de 27 de setembro de 1923, discursou sobre a importância da criação da
Fundação Gaffrée e Guinle. Referiu-se à própria experiência na Sociedade Brasileira
de Profilaxia Moral, bem como à já mencionada proposta de Pizarro Gabizzo, e
solicitou um voto de louvor a Guilherme Guinle pelo patrocínio do empreendimento –
este discurso de Werneck Machado ensejou a resposta de Eduardo Rabello, citada
anteriormente. Na mesma sessão, Nascimento Gurgel, então presidente da
Academia, afirmava que a criação da Fundação constituía "notícia altamente
significativa".
Os periódicos médicos Arquivos Brasileiros de Medicina e Brazil Médico, assim
como os jornais Correio da Manhã, O Jornal e Jornal do Commercio, também
publicaram, em setembro de 1923, a íntegra dos termos constitutivos da Fundação
Gaffrée e Guinle. A grande divulgação desses termos pela imprensa especializada e
geral atesta, de um lado, o valor atribuído à ação de Guilherme Guinle, e, de outro, a
importância concedida pela sociedade ao controle da sífilis. Pode-se mesmo comparar
a relevância que a imprensa cotidiana da época conferiu à Fundação Gaffrée e Guinle
à que recebeu a Liga Brasileira contra a Tuberculose, outra presença constante nos
jornais.
Também os Annaes Brasileiros de Dermatologia e Syphilografia publicaram,
em seu primeiro número, em janeiro de 1925, um artigo sobre a Fundação Gaffrée e
Guinle. Para seus editores, aquele exemplar não poderia deixar de fazer referência à

32
instituição. O texto alude aos ambulatórios da Fundação e ao projeto que tornaria o
empreendimento uma vasta e perfeita organização de profilaxia venérea [...], [o]
grande hospital, já em construção, que obedece ao tipo dos mais adiantados das
grandes organizações hospitalares americanas, será dotado de todos os requisitos
modernos que lhe permitirão, não só prestar aos doentes uma assistência eficaz,
como servir aos interesses da ciência médica (ABDS, 1925, p. 90).
Vale mencionar que os editores dos Annaes estavam envolvidos nesse projeto:
Eduardo Rabello pertencia ao Conselho Administrativo da Fundação, Gilberto de
Moura Costa era o diretor do Hospital Gaffrée e Guinle, e Oscar da Silva Araújo era
da mesma forma ligado ao empreendimento.
A imprensa médica de grande circulação também publicava anualmente a
movimentação dos ambulatórios da Fundação, uma forma de divulgar entre a
comunidade médica os bons resultados colhidos pela instituição e a sua boa aceitação
por parte da sociedade.
Um depoimento importante é o de Oscar Silva Araújo, que substituiu Eduardo
Rabello à frente da Inspetoria da Lepra e das Doenças Venéreas. Ao assumir o posto,
em 1927, Araújo publicou nos “Arquivos de Hygiene” um balanço das ações da
Inspetoria em relação à profilaxia das doenças que constituíam objeto de trabalho
daquele órgão. No texto, a Fundação Gaffrée e Guinle era reconhecida como uma
instituição que cooperava com os trabalhos da Inspetoria. Ainda segundo Araújo, após
a conclusão das obras, a Fundação se tornaria "Uma vasta e perfeita organização de
prophylaxia venérea" (ARAÚJO, 1927, p. 216).
No relatório da Inspetoria da Lepra e das Doenças Venéreas de 1927, Oscar
da Silva Araújo expunha um balanço do trabalho da repartição nas doenças que lhe
cabia assistir. Com relação à sífilis, o médico mencionava a construção e manutenção
dos dispensários, frisando que aqueles destinados à população civil lograram maior
êxito do que os dedicados aos militares. Araújo consagrava destacada atenção ao
Serviço Especial para Prostitutas, o qual, a seu ver, alcançara ótimos resultados,
"muito superiores aos obtidos em certas cidades onde a prostituição é regulamentada"
(Idem, p. 210), em virtude sobretudo da propaganda – conferências para o público
leigo e especializado, além de exposições de educação sanitária (Ibidem).
Os bons resultados colhidos pelas campanhas de profilaxia da sífilis, bem como
o sucesso no controle da doença (ARAÚJO, 1927, p. 218-219), permitiram que, com

33
o tempo, o Hospital Gaffrée e Guinle diversificasse seus serviços. Em 1946, um acordo
entre o DNSP e a Fundação Gaffrée e Guinle permitiu que parte do Hospital fosse
arrendada ao Serviço Nacional do Câncer; o acordo vigorou por cerca de 10 anos
(BODSTEIN, 1987, p. 46-47).
Após a morte de Guilherme Guinle, em 1960, não perdurariam as relações
entre Hospital Gaffrée e Guinle e a família que o fundou e o manteve. Em meados dos
anos 1960, um acordo entre o governo federal e a Fundação Gaffrée e Guinle, tendo
à frente Carlos Guinle, transferiu para a alçada federal o Hospital, que passou a
constituir o Hospital Universitário da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Rio de
Janeiro – hoje Universidade do Rio de Janeiro (Unirio) –, e teve seu nome alterado
para Hospital Universitário Gaffrée e Guinle.

7 GASTOS PÚBLICOS COM SAÚDE: BREVE HISTÓRICO, SITUAÇÃO ATUAL E


PERSPECTIVAS FUTURAS

Fonte:celos.com.br

34
Paulo Hilário Nascimento SaldivaI e Mariana Veras, publicaram artigo sobre o
tema, onde afirmam que apesar dos marcantes avanços de nosso sistema de saúde
pública, hoje sintetizado em apenas três letras - SUS -, há ainda um grande caminho
a percorrer para prover as condições de preservar a saúde da população do nosso
Brasil. Neste texto foi abordado de maneira despretensiosa conquistas e programas
exitosos do SUS, mazelas do financiamento e má gestão, os desafios futuros e
princípios que devem nortear as ações para alcançarmos um patamar mais eficiente
de atenção à Saúde.

7.1 Qual a situação atual da saúde pública no Brasil?

Saldival e Veras partiram da premissa que o Brasil necessita de um sistema


público unificado de saúde e que o princípio liberal de privatizar serviços não é a
melhor alternativa para a maior parte da população de nosso país. É evidente que há
instituições privadas de saúde que apresentam níveis de excelência excepcionais,
mas o acesso ainda se restringe a uma minoria da população. Primeiramente, a saúde
é universo muito maior do que excelentes hospitais terciários. Mesmo esses possuem
em seus quadros profissionais formados nos hospitais públicos, o que implica a
necessidade de manutenção da excelência nos dois sistemas. Não podemos deixar
de salientar que a maior parte dos programas de residência médica pertence a
instituições públicas (Scheffer, 2015).
Outro aspecto que justifica a opção pelo foco deste texto na proposição de
melhorias e consolidação do SUS é o elenco de soluções inovadoras e efetivas
conquistadas pela saúde brasileira e que somente foram possíveis pela existência do
sistema público de saúde. São conquistas do SUS e exemplos para o mundo, o nosso
sistema nacional de transplantes, o sistema de hemocentros, o resgate de
emergências e atendimento pré-hospitalar em situações de acidentes, o tratamento
da Sida (Síndrome da Imunodeficiencia Adquirida - Aids), a distribuição de
medicamentos para o controle de doenças crônicas não transmissíveis (como
hipertensão e diabetes), os sistemas de vacinação capazes de imunizar milhões de
brasileiros em apenas um final de semana, a produção nacional de vacinas para as
doenças negligenciadas ou emergentes, bem como a expansão do programa saúde
da família. E como consequência dessas ações do SUS, os indicadores de saúde

35
melhoram expressiva e substancialmente em comparação a outras áreas, tais como
economia, educação, habitação e segurança pública. Entre os indicadores de saúde
destacamos o aumento contínuo da expectativa de vida ao nascer, a redução das
taxas de mortalidade infantil e da mortalidade materna (Victora et al., 2011; IBGE,
2018).
Vejamos, por exemplo, a variação de expectativa de vida ao nascer dos
brasileiros nas últimas décadas, como apresentada na Figura abaixo:

Variação da expectativa de vida ao nascer dos brasileiros, a partir da década e 1940 e sua projeção
para 2020 – Fonte: IBGE 2018

Como se pode depreender da Figura acima, o Brasil teve um notável aumento


da expectativa de vida ao nascer nos últimos 50 anos, fruto da melhoria das condições
de saneamento, do progresso da tecnologia médica e da existência de um sistema
unificado de saúde - o SUS - que permitiu a expansão da imunização, melhor controle
das doenças crônicas não transmissíveis e notável redução dos coeficientes de
mortalidade infantil, frutos da expansão da assistência pré-natal e cuidados perinatais.

36
Variação no tempo do coeficiente de mortalidade infantil no Brasil - mortes até um ano de vida por
100 mil nascidos vivos. – Fonte: IBGE 2018

O Brasil está colocado entre os países do mundo que mais aumentaram a


expectativa de vida ao nascer e reduziram a mortalidade infantil e, seguramente, o
SUS contribuiu muito para tais conquistas. Foi, portanto, a existência de um sistema
unificado, gratuito e organizado que propiciou que mais brasileiros tivessem
oportunidades de sobreviver ao primeiro ano de vida e viver por maior tempo.
Antes da existência do SUS, a situação era bastante diversa, pois o acesso à
saúde era possível por três vias: o pagamento pelo serviço particular/Inamps, os
sistemas de assistência à saúde desenvolvidos por trabalhadores sindicalizados ou
pelos sistemas que podemos designar como misericordiosos (Santas Casas,
Hospitais-Escola ou entidades de caridade). Os dois primeiros acessos - a assistência
privada ou sindicalizada - proviam serviços para uma pequena parcela da população,
enquanto a maior parte dos brasileiros (estimada em cerca de 80% ou mais) dependia
da misericórdia ou do seu próprio destino. O SUS, fruto da Constituição de 1988,
nasceu com a finalidade de reduzir as desigualdades de acesso à saúde e promover
a melhoria das condições de vida de nossa população. Foi uma pena, no entanto, que
um princípio moral plenamente válido - a igualdade de acesso à saúde - não tivesse
sido acompanhado de sistemas para garantir o seu financiamento, como veremos a
seguir.

37
7.2 O financiamento da saúde pública no Brasil

As mazelas do financiamento do sistema de saúde no Brasil são explicadas por


diferentes fatores. Primeiramente, é preciso ressaltar que os recursos destinados à
saúde no Brasil, embora não ideais, não diferem de países que lograram obter melhor
assistência à população do que aquela que hoje, em média, é fornecida aos brasileiros
(Piola et al., 2013). Presentemente, o financiamento à saúde no Brasil vem oscilando
nos últimos anos ao redor de 8% do PIB. À guisa de comparação, países que
oferecem acesso universal à saúde de boa qualidade despendem recursos pouco
superiores aos do Brasil, como o Canadá (10,4% do PIB) e o Reino Unido (9,9% do
PIB) (Piola et al., 2013b; Giovanella; Stegmüller, 2014). Uma leitura simples pode
indicar que haja ineficiência dos gastos e não um problema de subfinanciamento em
nosso caso.
No entanto, uma análise mais detalhada indica que o cenário é um pouco mais
complexo. Por exemplo, gastar maiores frações do PIB com financiamento do sistema
de saúde não significa melhores condições de saúde para a população. Os cinco
países que mais gastam proporcionalmente com saúde são (dados de 2015, OMS2),
por ordem decrescente, Libéria (15,2% do PIB), Serra Leoa (18,3% do PIB), Estados
Unidos da América (16,8% do PIB), Tuvalu (15% do PIB) e Ilhas Marshall (22,1% do
PIB). Mesmo com as expressivas proporções de dispêndio em saúde em relação ao
total de riquezas produzidas pelos países acima mencionados, não seria temerário
afirmar que nenhum deles possui equidade de acesso à saúde comparável às do
Canadá e do Reino Unido, que gastam muito menos para o mesmo fim. Os países
mais pobres da relação acima apresentam problemas de saúde tão graves que fazem
que os recursos alocados sejam insuficientes, ao passo que os Estados Unidos, por
optarem por um sistema predominantemente mercantilista, excluam dos recursos
alocados aqueles menos favorecidos.
O conjunto de informações acima indica que a solução para o adequado
funcionamento do sistema de saúde de um país depende de dois fatores:
financiamento suficiente e gestão adequada dos recursos obtidos. O Brasil precisa
melhorar nesses dois quesitos.
A Figura abaixo mostra a evolução temporal da contribuição relativa dos entes
federativos - união, estados e municípios - para o custeio da saúde no Brasil, deixando
claro que, embora a maior parte dos governos federais indique o financiamento da
38
saúde como tema prioritário em seus mandatos (especialmente no período eleitoral),
o que se observa é que efetivamente há um repasse dos custos progressivo para os
estados e municípios, estes últimos o elo fraco da divisão tributária vigente (Scheffer;
Bahia, 2014).

Representação gráfica da contribuição relativa da contribuição dos orçamentos federal, estadual e


municipal para o custeio da saúde no Brasil, sendo esses expressos em termos de porcentagem do
PIB. – Fonte: IBGE 2018

Outro aspecto importante a ressalvar é que o Brasil investe a maior parte de


seus recursos em saúde no sistema de saúde privado, como demonstrado na Figura
abaixo:

39
Variação temporal da contribuição relativa ao PIB dos sistemas público e privado para o custeio de
saúde do Brasil. Fonte IBGE 2018

Como se vê na Figura acima, o Brasil mantém, ao longo do tempo, o


financiamento de saúde centrado predominantemente no sistema privado de saúde,
ao qual têm acesso cerca de 23% da população. A situação acima exposta é ainda
mais preocupante, pois a cobertura à qual têm acesso os 23% da população que
pagam por isso é bastante desigual. Nos últimos anos, há um incentivo federal para a
criação de planos de saúde mais populares, com menor cobertura para doenças mais
graves. Em outras palavras, os planos de saúde, incentivados pelo governo, cobrem
as doenças de menor custo. Uma vez que ocorra uma intercorrência mais grave, como
uma neoplasia ou a necessidade de um transplante, a cobertura dos planos provados
mais simples não acontece, onerando o SUS, o qual, por sua vez, não é ressarcido.
Esse sistema visa favorecer o capital privado em detrimento do sistema público.
Resumindo, vários atores obtêm vantagens e somente um perde, perde a maior parte
da população brasileira, aquela situada nos estratos inferiores de renda familiar (Ocké-
Reis, 2007; Bahia, 2008, 2017).
A fração da contribuição do sistema público para o custeio da saúde -
atualmente em pouco menos de 50% do PIB - contrasta com aquela presente nos
países que têm sistemas eficientes de saúde com acesso universal, como Reino
Unido (94,2%), Suécia (84%) e França (81%), e aproxima-se daquela observada nos
Estados Unidos da América (47%), onde a opção foi privilegiar o sistema privado,

40
séries históricas sobre esses dados podem ser obtidas na página da Organização
Mundial da Saúde. Em outras palavras, as ações praticadas no Brasil parecem indicar
que o país não acredita mais no SUS e articula um processo de terceirização
dissimulada rumo à privatização. Em um cenário como o nosso, onde desigualdades
econômicas e sociais são marcantes, vislumbram-se no futuro graves consequências
para o acesso à saúde de nosso povo diante de ações com estas características.

7.3 Outros pontos que vão além do subfinanciamento público da saúde

A atenção primária à saúde é o atendimento inicial, cujo principal objetivo é a


prevenção de doenças, tratamento de agravos simples e o direcionamento de casos
graves para outros níveis de complexidade. Assim, cabe à atenção primária o dever
de atender e resolver grande parte dos problemas de saúde da população, além de
organizar o fluxo de serviços na rede de saúde. Diferentes programas de atenção
primária à saúde estão em vigência no Brasil. O programa Estratégia de Saúde da
Família (ESF) é hoje o principal e mais efetivo modelo de atenção básica e com
cobertura da população brasileira em torno de 60% em 2016. Nas Unidades Básicas
de Saúde atuam Equipes de Saúde da Família que oferecem atenção curativa e
preventiva (consultas, exames menos complexos, vacinação etc.) para a população
residente em um determinado território delimitado de acordo com regiões de saúde
(espaço geográfico contínuo, instituído pelo Estado, em articulação com os
municípios, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de
redes de transportes). A Região de Saúde deve ofertar serviços desde a atenção
primária até a atenção ambulatorial e hospitalar, incluindo serviços de vigilância em
saúde. De modo geral, é no nível de atenção secundária, em Unidades de Pronto-
Atendimento, Hospitais-Escola e Hospitais secundários, que são realizados os
procedimentos de média complexidade e/ou especializados. Para ser atendido nesse
nível, os pacientes necessitam ser encaminhados pelos serviços de atenção básica.
Hospitais de Grande Porte ou de alta complexidade caracterizam o terceiro nível da
hierarquia do sistema de saúde.
Além da organização do sistema, compete ao SUS o planejamento da saúde,
a assistência à saúde e a articulação interfederativa. O planejamento da saúde é
obrigatório para os entes públicos, deve considerar os problemas específicos de cada

41
região e deve induzir políticas para a iniciativa privada de forma a também
complementar lacunas do SUS. Com base nas demandas dos Conselhos de Saúde,
o planejamento de saúde deve compatibilizar as necessidades das políticas de saúde
com a disponibilidade de recursos financeiros de forma ascendente e integrada, do
nível local até o federal. Além das Ações e Serviços de Saúde, a integralidade da
assistência à saúde inclui ainda a relação de medicamentos essenciais que podem
ser usados no SUS.
A articulação interfederativa é regulamentada pelo Contrato Organizativo da
Ação Pública de Saúde. O contrato deve identificar necessidades de saúde locais e
regionais, metas (e seu respectivo controle e fiscalização), bem como
responsabilidades dos entes federativos. Embora a concepção geral do sistema seja
plenamente correta, enfrenta inúmeros desafios na prática, muitos já descritos na
literatura, que resultam num sistema heterogêneo, com marcadas desigualdades ao
longo do país (Santos, 2013). O sistema é incompleto, desfalcado e com extensão
limitada. Um dos principais entraves é a não priorização da agenda da saúde pelos
prefeitos, a falta de compromisso e o baixo financiamento generalizado no nível das
prefeituras compromete toda estrutura do sistema de saúde, prejudicando
particularmente a cobertura da assistência. Não é incomum que prefeituras menores
desconsiderem a assistência básica e foquem na contratação de ambulâncias para
transportar seus pacientes para serviços da região. Outra questão relevante é a
operacionalização de um sistema em um extenso território e de perfil socioeconômico
heterogêneo como o Brasil. A qualificação e o tamanho das equipes de saúde são
variados, bem como a disponibilidade de medicamentos e insumos básicos. A
operacionalidade de algumas Regiões de Saúde é dificultada por questões de acesso,
sejam eles físicos, logísticos, seja pela ocupação do território pela criminalidade
(Fundação Oswaldo Cruz, 2012; Santos; Campos, 2015).
O fluxo de pacientes entre a atenção básica e níveis mais elevados deve
merecer especial atenção para que os brasileiros tenham mais saúde. Ao contrário do
planejado, frequentemente os pacientes que chegam às Unidades Básicas de Saúde
(UBS) são prontamente encaminhados para serviços mais complexos, seja por
inabilidade, seja pela ausência de equipe completa e especializada - notadamente o
médico generalista -, seja por falta de infraestrutura. Muitas vezes o próprio paciente
procura diretamente prontos-socorros e hospitais contribuindo para a superlotação

42
desses serviços. Uma vez nos níveis mais complexos, dificilmente o paciente crônico
é reencaminhado à atenção básica e realiza seu tratamento por completo no sistema
secundário durante longo período, uma contribuição adicional para a superlotação da
atenção secundária.
Os problemas de fluxo podem ser exemplificados pelo descompasso entre a
realização de exames e consultas médicas e cirurgias, ou recentemente, como
divulgado amplamente pela mídia, a falta de vacinas disponíveis para atender à
demanda que emergiu ante os casos urbanos de febre amarela intensificados em
2018.
Outro exemplo recente e muito divulgado pela imprensa foi a promessa da
prefeitura do município de São Paulo em zerar a fila para realização de exames na
cidade de São Paulo mediante uma iniciativa chamada "Corujão da Saúde". De fato,
muitos exames foram realizados, porém a falta de articulação do sistema de saúde
acabou por gerar enormes custos sem que o problema fosse resolvido. Até hoje uma
grande parte dos usuários estão em filas aguardando a realização das consultas com
especialistas.
Problemas de fluxo são interpretados pelo usuário como ineficiência e o
induzem a não procurar diretamente a assistência básica. Por fim a desorganização
do sistema de saúde impacta o perfil de adoecimento no Brasil e aumenta os gastos
no setor, como exemplificado pelas elevadas taxas de diagnóstico de câncer em
estágio avançado. Isso ocorre porque o paciente percorre um longo percurso até
acessar o centro especializado e ser diagnosticado, demandando um serviço de custo
muito superior ao custo dos tratamentos da atenção básica. O problema se reproduz
também na assistência por planos de saúde, onde a atenção básica é praticamente
inexistente e o usuário frequentemente procura diretamente um hospital independente
da gravidade de seus sintomas. Ou, de forma alternativa, o usuário procura o hospital
após dificuldades de agendamento com o especialista e exames relacionados.
É importante também aprimorar a gestão e regulação dos alternativos de
gestão de serviços públicos de saúde traz consigo a privatização e transferências de
responsabilidades para o setor privado (Bahia, 2008). Uma tentativa para resolver
parte dos problemas de organização e gestão do sistema de saúde brasileiro é o
modelo de gestão através de Organizações Sociais de Saúde (OSS). Esse modelo
substitui em todo o país o modelo tradicional anterior, onde os serviços públicos eram

43
geridos somente pelo Estado (Carneiro; Elias, 2003). Na prática, esse modelo também
tem apresentado problemas. Por exemplo, só no estado de São Paulo há mais de
trinta OSS em operação, cada qual com sistemas próprios de gestão, incluindo
remuneração profissional diferente para um mesmo tipo de serviço. Apesar de
mecanismos estatais de controle das OSS, como a obrigatoriedade de publicação
anual de suas contas no Diário Oficial do Estado e auditorias, é difícil gerir e
uniformizar o atendimento de saúde das OSS. Tamanha variabilidade tem contribuído
para desigualdade no acesso e qualidade no atendimento.
Uma outra forma de gestão existente em nosso país são as Parcerias Público-
Privadas (PPP), vistas como estratégias inovadora, são baseadas em contratos e
licitações que visam metas e resultados, no entanto a premissa é que as relações
devem ser baseadas em confiança e benefícios mútuos (Almeida, 2017). São três
aspectos da PPP que o tornam distintas das demais: os parceiros possuem diferentes
metas e distintas estratégias; os produtos, como serviços prestados, são para
benefício de terceiros, seja ele o Estado, a sociedade, seja o usuário de um serviço
de saúde; sua proposta é para atuação por períodos longos (Almeida, 2017). As PPP
em visão nacional e global são um mecanismo essencial para a implementação de
políticas sociais. No Brasil, em um intervalo de quatro anos, cerca de cinquenta PPP
foram identificadas, preferencialmente nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. Essa
implementação requer que o setor público se articule com o privado, e vice-versa
(Almeida, 2017), e, talvez, seja uma forma de contribuir para a melhoria do sistema.
A escassez de profissionais da saúde é um problema a ser discutido de forma
profunda e competente A razão entre médicos por habitantes é de 1:3.000, sendo as
regiões Norte e Nordeste com as condições mais precárias (Dal Poz, 2013; Dal Poz
et al., 2013). Diante de tal fato, relações mais produtivas entre o sistema de saúde e
instituições de ensino superior precisam ser organizadas e implantadas, buscando
profissionais qualificados e em quantidade suficiente para suprir, com qualidade, a
população. A complexidade do atendimento em saúde requer a diversidade de
profissionais, onde médicos, enfermeiros, dentistas e farmacêuticos representam o
grupo de sustentação à atenção à saúde. O Brasil possui milhares de instituições
formadoras de profissionais da saúde, o que acarreta necessariamente na imperiosa
necessidade de criar mecanismos de controle da competência dos egressos. Foi-se o
tempo de contestar a existência de algumas dessas instituições no tocante à sua

44
qualidade, pois é pouco provável que essas sejam fechadas (Scheffer; Dal Poz, 2015).
Na falta de acesso à residência médica, profissionais formados não qualificados irão
procurar atuar na rede primária por algum tempo. Assim, o momento é de apoiar e
complementar a formação desses profissionais, mediante a expansão do programa
de formação continuada em serviço.
Profissionais com formação sem qualidade fazem mal à saúde dos brasileiros,
notadamente quando esses estão operando nos níveis da atenção primária e
secundária. A perda de capacidade de resolver as principais demandas de saúde
nesses níveis de atenção sobrecarrega o nível de atenção terciária, encarece o
tratamento pela solicitação de exames desnecessários, e, principalmente, prejudica o
paciente pela demora na resolução dos seus problemas. Essa demora, em muitos
casos, faz que o quadro apresentado possa evoluir, comprometendo por vezes a
possibilidade de cura. É interessante observar que mesmo com o grande contingente
de formados, o problema de desigualdade na distribuição dos profissionais pelo país
persiste (Scheffer; Dal Poz, 2015). Nesse cenário, talvez seja oportuno criar uma
carreira específica para os profissionais da saúde, de forma a dar condições de
alocação de profissionais competentes nas áreas carentes, à semelhança do que
ocorre no Judiciário.

7.4 Considerações

As seções anteriores deste estudo apresentaram alguns aspectos básicos


sobre o funcionamento do sistema de saúde do Brasil. Os desafios fundamentais a
serem enfrentados, quando se objetiva alcançar um patamar mais eficiente de
atenção à saúde, podem ser resumidos em quatro aspectos centrais: financiamento,
gestão, acesso e qualificação dos profissionais. Para a melhoria desses pontos, são
necessárias políticas consistentes e contínuas. Como as políticas devem, no melhor
dos mundos, seguir os princípios gerais do bem comum, passaremos agora a discutir
os princípios que, no entendimento dos autores, deveriam ser objeto de discussão
pela sociedade.
O primeiro deles é que o Brasil necessita de um sistema público unificado de
saúde. Como mencionado anteriormente, privatizar não irá resolver o problema da
saúde em nosso país. A saúde brasileira precisa muito mais do que apenas hospitais

45
terciários bem equipados e métodos de diagnóstico de ponta; a garantia de saúde
depende principalmente de ações efetivas de prevenção, promoção e acesso a
informação seguidas pelo acesso aos serviços de saúde de qualidade, boa
alimentação, moradia adequada, saneamento e segurança.
A questão do custeio do sistema deve merecer atenção central do governo.
Atualmente uma consulta é remunerada pelo SUS em 10 reais para médicos e pouco
mais de 6 reais para as demais profissões da área da saúde. Uma cesárea remunera
a equipe em 75 reais. Outros valores podem ser consultados no sistema de
gerenciamento da tabela de procedimentos e medicamentos e OPM do SUS. A má
remuneração leva a um atendimento de pior qualidade, com consultas que por vezes
não ultrapassam poucos minutos. Não é possível em minutos ouvir um ser humano
doente ou sequer examiná-lo mesmo que superficialmente. Para fazer que a tabela
de procedimentos médicos seja corrigida, é necessário dispor de recursos adicionais.
Como, no atual modelo, a atenção primária e secundária fica predominantemente por
conta dos municípios e estados, recaem sobre a parte menos favorecida na repartição
das receitas tributárias (especialmente os municípios) os custos da saúde da
população local. Além disso, grande parte dos municípios brasileiros, notadamente os
de pequeno porte, carece de quadro técnico para a melhoria da gestão do sistema de
saúde local visando a redução de custos. Nesse cenário, ao invés de implementar um
sistema de atendimento é bem mais fácil comprar uma ambulância, em geral com o
nome do prefeito estampado nas laterais, e enviar os necessitados a outros
municípios maiores, superlotando o sistema dos últimos. Assim, as soluções
encontradas colocam tanto o paciente quanto o sistema em uma situação de risco.
Uma sugestão para reduzir esse problema seria aprimorar o treinamento dos gestores
locais, por meio de cursos presenciais ou mesmo à distância.
Mas o treinamento dos gestores locais, por si só, não é suficiente. Muitos dos
municípios localizados em regiões mais remotas ou mesmo em zonas periféricas das
grandes cidades não conseguem fixar os profissionais de saúde na atenção básica.
Como visto acima, a melhoria da resolutividade na atenção básica é condição
absolutamente necessária para reduzir os custos do sistema, bem como para
organizar o fluxo dos pacientes, reservando o acesso aos níveis de atenção de maior
complexidade para aqueles que realmente dele necessitam. Para tal, seria oportuno

46
discutir então uma carreira de Estado para os profissionais de saúde da atenção
básica, especialmente para as áreas onde exista carência de profissionais.
O programa Mais Médicos foi uma tentativa nesse sentido e poderia ser
aprimorado. Por exemplo, talvez a atenção básica devesse, pelo menos em algumas
regiões do Brasil, ter um profissional contratado diretamente pelo SUS e não pelas
prefeituras. Além disso, principalmente nas regiões menos favorecidas, é necessário
um acesso a uma rede de Telemedicina de maneira que o médico generalista da
atenção primária pudesse ter uma segunda opinião de especialistas, melhorando
assim a capacidade de resolução ante o caso e, dessa forma, agilizando os
procedimentos e beneficiando tanto a resolutividade do sistema e, principalmente, a
saúde da população.
Ainda na área de novas tecnologias de saúde, o profissional que está na ponta
do sistema deve receber formação continuada e apoio. Parcerias consistentes e entre
as universidades e o SUS, com fortalecimento do UMA-SUS (Universidade Aberta do
Sistema Único de Saúde) e sua expansão devem ser objeto de contínuo investimento
e aprimoramento, ainda mais no contexto atual, onde foi autorizada a abertura de
muitas instituições formadoras de profissionais de saúde. Instituída pelo Decreto
n.7.385 de 8 de dezembro de 2010 e regulamentado pela Portaria Interministerial n.10
de 11 de julho de 2013 a UMA-SUS é uma rede colaborativa formada por 35
instituições de ensino superior que oferecem cursos a distância, e oferta cursos em
98% dos municípios brasileiros, sendo a maior parte dos profissionais capacitados
oriundos da atenção básica
A melhoria da gestão e redução dos custos requer a introdução de tecnologias
e a inteligência em saúde para a prevenção das doenças. O Brasil possui bons dados
de saúde, mas é necessário melhorar a sua análise. O uso de tecnologia de big data
e de simulação de sistemas complexos, técnicas frequentemente empregadas em
outras áreas do conhecimento, deve ser expandida na área da saúde. Modelos
preditivos de epidemias ou surtos de doenças infecciosas, análise de custo efetividade
de procedimentos e técnicas de tratamento devem ser objeto de análise contínua,
orientando sobre como o sistema deve se organizar para o futuro. Caso esse tipo de
análise não seja ampliada e aplicada, sempre estaremos reagindo a um problema em
detrimento do planejamento de longo prazo. Precisamos, para cada região, identificar
os problemas atuais e prever, na medida do possível, os futuros; conhecer os fatores

47
que contribuem para a situação, definir prioridades de intervenção e estratégias de
acordo com o conhecimento e recursos disponíveis com o objetivo maior da melhoria
do nível de saúde da população. Os exemplos recentes das doenças transmitidas por
vetores mostram a importância do planejamento e da inteligência em ações da saúde.
Respostas a perguntas importantes, como planejar o sistema de atenção para o
envelhecimento da população, como prevenir a epidemia de obesidade, como garantir
acesso aos tratamentos hoje disponíveis, necessitam de uma análise mais sofisticada
e, portanto, é necessário induzir a formação destes profissionais a partir do sistema
de pós-graduação do país.
A judicialização da saúde é outro aspecto que precisa ser discutido e abordado
de forma clara e transparente de forma a reduzir os custos e melhorar a gestão do
sistema. Em poucas palavras, a judicialização é um termo cunhado para exemplificar
as manifestações judiciais que obrigam o sistema de saúde a fazer procedimentos ou
adquirir remédios para pacientes específicos em virtude da complexidade e altos
custos tratamento. A maior parte dos custos da judicialização da saúde (estimados
em 1 bilhão de reais em 2015) fica por conta de medicamentos para doenças raras ou
não regulamentados pelas autoridades de saúde. No mais das vezes, há boa intenção
do juiz, mas há também exemplos de notável despreparo do judiciário. A
obrigatoriedade de fornecimento de um medicamento ineficaz (a fosfoetanolamina
para o tratamento do câncer) ou exigir, por exemplo, a realização de um transplante
de coração em 24 horas (esquecendo-se, por exemplo, de que é necessário haver um
doador compatível), mostra que o desconhecimento também permeia muitas dessas
decisões. O Brasil precisa tomar uma decisão, seja qual for ela, ante esses pontos.
Devemos investir muito em poucos, esquecendo-se que falta o pouco para muitos?
Não se pode postergar essa decisão ainda mais.
O Sistema de Saúde deve estar preparado para discutir temas que, embora
não sejam de sua alçada direta, demandam recursos substanciais do sistema. O
exemplo mais evidente fica por conta de prevenção, assistência e cuidados de
reabilitação das vítimas da violência. Nos últimos trinta anos, pouco mais de um milhão
de brasileiros morreram assassinados, número duas vezes superior às mortes da
guerra civil de Angola que teve aproximadamente a mesma duração. O trânsito, suas
dezenas de milhares de mortes anuais e as muitas centenas de incapacitados indicam
a magnitude e importância do tema. Falando de outra forma, um código de trânsito

48
leniente e um sistema viário precário oneram a saúde. É interessante que raramente
a saúde é chamada para discutir temas como o desarmamento, as leis de trânsito, os
limites de velocidade. No entanto, não é possível ignorar a questão da violência no
planejamento e custeio da saúde, mostrando que qualquer projeto de governo para a
saúde deve necessariamente contemplar o planejamento e custeio do tratamento das
vítimas de um Brasil tão violento.
Finalmente, há que considerar a qualificação dos postulantes aos postos mais
elevados da hierarquia da saúde do Brasil. Em nosso entendimento, a posição de
ministro da Saúde não deveria ser objeto de acordos de coalização partidária. No
Brasil, o ministério da Fazenda raramente é ocupado por pessoas sem qualificação
para tal, mostrando que os bancos e as corporações financeiras falam mais alto aos
nossos presidentes do que as dificuldades da saúde da população. O Brasil teve
excelentes ministros da Saúde, que honraram o cargo, mas intercalou esses exemplos
de sucesso com personagens inexpressivos, efêmeros, que se detiveram a canalizar
recursos da saúde para o seu território eleitoral. A taxa de emissão de bobagens, seja
por ações, seja por pronunciamentos exarados por esses senhores, chega a ser
inacreditável em alguns casos específicos. Certamente, a existência de uma
caricatura de ministro da Saúde não ajuda o Brasil a superar os graves problemas que
o SUS enfrenta. Portanto, seria oportuno que os candidatos a presidente do Brasil
sinalizem com antecedência o perfil de quem indicarão para o posto, assim como o
fazem para a área econômica. O Brasil não suportará mais incompetentes na saúde.

8 BREVE HISTÓRIA DOS HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS

A história da relação das sociedades com a loucura é longa. Foucault, em seu


livro “A história da Loucura”, traça um percurso sobre suas formas de concepção e
tratamento nas sociedades ocidentais. Grosso modo, Foucault mostrou que o período
do Renascimento foi marcado pela ligação da loucura com o Sagrado; no período
Clássico era entendida como desrazão; já na Modernidade, a loucura passou à
condição de doença mental.
O local de tratamento passou por diversas mudanças. O autor Paulo Amarante
faz uma interessante descrição da história do hospital, que passou treze séculos (do
IV ao XVII) sendo um local de filantropia, destinado aos miseráveis, desabrigados e

49
enfermos. A criação do Hospital Geral pelo Rei da França em 1656, inaugurou as
funções sociais e políticas do hospital. Em seu decreto de fundação, o Hospital Geral
destinava-se aos ”pobres de todos os sexos, lugares e idades, de qualquer qualidade
de nascimento, e seja qual for sua condição, válidos ou inválidos, doentes ou
convalescentes, curáveis ou incuráveis” (Foucault, 1978:49 apud Amarante).

Fonte: noticias.r7.com

O hospital, que antes era uma instituição cuja missão era praticar caridade,
mudou o foco de sua atuação para um viés político e social, isolando segmentos
sociais menos favorecidos. Este período foi nomeado por Foucault como “O Grande
Enclausuramento”, pois um grande número de pessoas passou a ser enclausurada
no Hospital Geral, através do diretor da instituição. É interessante observar que, com
a figura do diretor funda-se um terceiro poder, ao lado da polícia e da justiça, que
tinham a responsabilidade em decidir quem seria levado à internação.
No final do século XVIII, com a Revolução Francesa e o novo espírito da época
inspirado pelos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, uma quantidade
grande de médicos – que antes dedicavam-se majoritariamente à nobreza – passou
a atuar em hospitais. Aos poucos a medicina se apropriou do hospital, que passou a
ser lugar de tratamento, distanciando-se das antigas funções de caridade e controle
social. Em pouco tempo o hospital se tornou a instituição médica por excelência.
Através da observação constante dos quadros clínicos e suas evoluções, o saber
50
médico ampliou muito o conhecimento que tinha das doenças. Com base no método
científico, os hospitais tentaram se tornar ambientes em que os médicos procuravam
ao máximo controlar as variáveis para a comprovação de suas hipóteses.
É neste contexto que Philippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria e um dos
responsáveis pela clínica médica moderna, conduziu seu trabalho como diretor do
Hospital Geral de Paris, a partir de 1793. Pinel teve a famosa atitude de desacorrentar
os loucos. Ele abordou e teorizou a loucura como um fenômeno de alienação, “um
distúrbio no âmbito das paixões, capaz de produzir desarmonia na mente e na
possibilidade de perceber a realidade” (Amarante, 2007: 30). Como as causas da
alienação mental estariam no meio social, o princípio de isolamento seria fundamental
para poder proteger o paciente; outro motivo para isolá-lo seria o de permitir o
conhecimento da alienação em seu estado puro, sem interferências externas.
A hospitalização dos pacientes também permitiu a observação, descrição,
comparação e classificação dos casos de alienação mental. Para Pinel, as regras do
hospital faziam por si só uma instituição terapêutica. Foi este pensamento que
embasou o surgimento do tratamento moral: os horários, o regimento, as regras de
conduta, toda a “soma de princípios e medidas que, impostos aos alienados,
pretendiam reeducar a mente, afastar os delírios e as ilusões e chamar a consciência
à realidade” (Amarante, 2007: 33).
Esta fundamentação terapêutica possui uma implicação política: na época da
Revolução Francesa, o conceito de cidadania estava sendo construído, na medida em
que a participação da vida social e política passaram a ser uma bandeira da
sociedade. No entanto, uma distinção era feita aos alienados, que não eram admitidos
como cidadãos. A condição deles implicava na perda do livre-arbítrio e da liberdade.
Se alguma pessoa sofria de alienação mental, deveria permanecer isolada do resto
da sociedade, submetida aos tratamentos imputados pelas instituições asilares.
As instituições destinadas ao tratamento dos transtornos mentais
permaneceram hegemônicas até meados do século XX, utilizando-se da internação
como principal condição de tratamento. Além de permanecerem isolados do resto do
mundo, os pacientes eram submetidos a regras extremamente rígidas e condições
desumanas. Após a 2ª Guerra Mundial, a semelhança entre os campos de
concentração e os manicômios passou a chamar a atenção da sociedade, gerando
uma série de críticas às instituições e iniciando o caminho das reformas.

51
As que tiveram maior visibilidade ocorreram na França, E.U.A., Inglaterra e
Itália. As diferentes estratégias tinham em comum a criação de serviços extra
hospitalares, que realizassem o tratamento de maneira preventiva e descentralizada.
Os movimentos reformistas tiveram características e focos diferentes. Alguns deles
tinham premissas e propostas semelhantes, como a Comunidade Terapêutica e a
Psicoterapia Institucional, que consideravam que o problema era a forma de gestão
da instituição hospitalar e, portanto, investiram em transformações na instituição. Já a
Psiquiatria Preventiva e a Psiquiatria de Setor não acreditavam que o hospital deveria
ser o principal meio de tratamento, e propuseram a criação de outros serviços, que
iriam gradativamente diminuir a importância do hospital psiquiátrico. Por último, a
Psiquiatria Democrática e a AntiPsiquiatria, foram responsáveis pelas críticas mais
radicais ao modelo asilar e à ciência psiquiátrica; não acreditavam que reformas
poderiam melhorar as instituições de tratamento, pois elas eram apenas um efeito do
modo que as sociedades lidavam com a loucura. Propuseram uma substituição
completa das instituições hospitalares e de seus fundamentos, pois consideravam que
a ciência psiquiátrica forjava uma doença, através da qual “se construiu o conjunto de
aparatos científicos, legislativos, administrativos (precisamente, a “instituição”), todos
referidos à doença”.
Foucault aponta uma situação: ao final da Idade Média, por volta do século XV,
o problema da lepra desaparece e, com isso, um vazio aparece no espaço do
confinamento. Se toda a preocupação do poder real em torno do controle dos
leprosários desapareceu, Foucault afirma que esse acontecimento não representa o
efeito da cura exercido pelas práticas médicas, mas uma ruptura que ocorreu no modo
de entender e de se relacionar com a lepra e com o confinamento. Além disso, essa
ruptura não faz desaparecer duas noções importantes: os valores e as imagens
atribuídas ao personagem do leproso e o sentido produzido pela exclusão desse
personagem do seu grupo social. Essas duas questões são relevantes, pois elas
serão retomadas num sentido inteiramente novo para caracterizar outro fenômeno: a
loucura. No entanto, para que reações de divisão, exclusão e purificação dominassem
a loucura foram necessários quase dois séculos, pois as experiências e as formas de
se relacionar com a loucura produzidas na Renascença tinham um sentido
completamente diverso e Foucault procurará compreendê-lo. Na paisagem imaginária
da Renascença, a Nau dos Loucos ocupava um espaço fundamental. Ela transportava

52
tipos sociais que embarcavam em uma grande viagem simbólica em busca de fortuna
e da revelação dos seus destinos e de suas verdades. Esses barcos faziam parte do
cotidiano dos loucos, que eram expulsos das cidades e transportados para territórios
distantes. Foucault vê nessa circulação dos loucos mais do que uma simples utilidade
social, visando a segurança dos cidadãos e evitando que os loucos ficassem vagando
dentro da cidade. Todo esse desejo de embarcar os loucos em um navio simbolizava
uma inquietude em relação à loucura no final da Idade Média. A partir do século XV,
ela passa a assombrar a imaginação do homem ocidental e a exercer atração e
fascínio sobre ele.
A loucura, porém, não está somente ligada às assombrações e aos mistérios
do mundo, mas ao próprio homem, às suas fraquezas, às suas ilusões e a seus
sonhos, representando um sutil relacionamento que o homem mantém consigo
mesmo. Aqui, portanto, a loucura não diz respeito à verdade do mundo, mas ao
homem e à verdade que ele distingue de si mesmo.
Há, assim, duas experiências da loucura na Renascença: de um lado, uma
experiência cósmica, composta pela Nau dos loucos; de outro, uma experiência
crítica, relacionada a toda essa ligação que o homem mantém consigo mesmo. É o
confronto entre essas duas experiências que expressa a formulação que o começo da
Renascença faz da loucura. Não há, desse modo, uma única experiência formulada
pela Renascença sobre a loucura, esperando para se desenvolver, evoluir e
finalmente atingir uma forma mais acabada e mais complexa, mas seguindo a
concepção de história genealógica utilizada por Foucault, uma luta entre duas
experiências que não param de brigar entre si, pois: “As forças que se encontram em
jogo na história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao
acaso da luta”.(Foucault, 1978: 28). Será no começo do século XVI que a experiência
crítica, que fazia da loucura uma experiência na qual o homem era confrontado com
sua verdade, vence essa luta, oculta o sentido da experiência cósmica e ganha um
privilégio cada vez mais acentuado. As noções de luta e de fragmentação da
experiência da loucura, e a crítica a uma visão progressista, contínua e total da história
podem ser percebidas no seguinte trecho:

loucura, não pode ser entendida como uma figura total, que finalmente
chegaria, por esse caminho, à sua verdade positiva; é uma figura
fragmentária que, de modo abusivo, se apresenta como exaustiva; é um
conjunto desequilibrado por tudo aquilo de que carece, isto é, por tudo aquilo
53
que o oculta. Sob a ciência crítica da loucura e suas formas filosóficas ou
científicas, morais ou médicas, uma abafada consciência trágica não deixou
de ficar em vigília (Foucault, 1997: 28-29).

O século XVI, portanto, privilegia a reflexão crítica sobre a loucura e o objetivo


de Foucault será trabalhar o seguinte problema, bem ao modo de uma história do
pensamento (Foucault, 1994: 581), definida por ele como o estudo da formação, do
desenvolvimento e da transformação das formas de experiência:

Como é que a experiência da loucura se viu finalmente confiscada (...) de tal


maneira que no limiar da era clássica todas as imagens trágicas evocadas
na época anterior se dissiparam na sombra? (Foucault, 1997:29).

O filósofo pretende, desse modo, compreender a experiência que o Classicismo


teve da loucura, pensando, assim, na própria historicidade das formas da experiência.
(Foucault, 1994: 579). Para Foucault, duas questões são fundamentais para entender
a experiência da loucura no Classicismo. Primeiramente, a loucura passa a ser
considerada e entendida somente em relação à razão, pois, num movimento de
referência recíproca, se por um lado elas se recusam, de outro uma fundamenta a
outra. Em segundo lugar, a loucura só passa a ter sentido no próprio campo da razão,
tornando-se uma de suas formas. A razão, dessa maneira, designa a loucura como
um momento essencial de sua própria natureza, já que agora “a verdade da loucura é
ser interior à razão, ser uma de suas figuras, uma força e como que uma necessidade
momentânea a fim de melhor certificar-se de si mesma”.(Foucault, 1997: 36). É a partir
da metade do século XVII que a ligação entre a loucura e o internamento ocorrerá. O
internamento é importante para Foucault por duas razões: primeiramente, por ele ser
a estrutura mais visível da experiência clássica da loucura e, em segundo lugar,
porque será exatamente ele que provocará o escândalo quando essa experiência
desaparecer, no século XIX, da cultura europeia, a ponto de, por exemplo, com Pinel
ou Tuke, aparecer a ideia de uma libertação dos loucos do internamento produzido
pelo século XVII. Mas, ao contrário de fazer a história dessa suposta “libertação”,
Foucault prestará atenção à racionalidade própria desse internamento, tentando
entender os seus mecanismos e as suas práticas específicas. Além dessa
preocupação, outra é evidente na história da loucura feita por Foucault, que se
relaciona diretamente à segunda crítica que apontei no começo dessas reflexões: o
internamento do século XVII não é um estabelecimento médico, mas uma estrutura

54
semijurídica que, além dos tribunais, decide, julga e executa. Na organização das
casas de internamento, portanto, não está presente nenhuma ideia ou liderança
médica. Percebo nesse procedimento que desliga o internamento da medicina uma
determinada concepção de história utilizada que não pretende identificar o presente
com o passado, como a seguinte passagem expressa:
É preciso despedaçar o que permitia o jogo consolante dos
reconhecimentos. Saber, mesmo na ordem histórica, não significa
‘reencontrar’ e sobretudo não significa ‘reencontrar-nos’(Foucault, 1978: 27).

A história, nesse sentido, serve para diferenciar o passado do presente e, a


partir dessa constatação, produzir novas possibilidades para mudar a nossa situação
presente, ou seja, não é necessária a ligação que se estabeleceu entre internamento
e medicina. Essa será uma das principais preocupações do livro de Foucault:
desnaturalizar essa ligação que, pelo menos durante a Renascença e o classicismo,
não era evidente e nem natural. Mas ainda estou, nesse momento da reflexão de
Foucault, tratando da naturalização da relação entre loucura e internamento. Para ele,
o Classicismo inventou o internamento, de forma semelhante como a Idade Média
havia inventado a segregação dos leprosos. Assim, aquele vazio deixado pelos
leprosos foi ocupado pelos “internos”. Esse aprisionamento inventado pelo
classicismo é complexo e possui significações políticas, sociais, religiosas,
econômicas e morais. Foi necessária a formação de uma nova sensibilidade social
para isolar a categoria da loucura e destiná-la ao internamento. Essa segregação da
loucura relaciona-se com as seguintes questões: uma nova sensibilidade à miséria e
aos deveres da assistência, uma nova forma de reagir diante dos problemas
econômicos do desemprego e da ociosidade, uma nova ética do trabalho e o sonho
de uma cidade onde a obrigação moral se uniria à lei civil, sob as formas autoritárias
da coação. (Foucault, 1997: 565). Serão, assim, esses temas que darão o sentido do
modo pelo qual a loucura é percebida pela era clássica. A relação entre o internamento
e o aparecimento de uma nova reação à miséria produz, no decorrer do século XVI,
uma nova figura do pobre, bem estranha à Idade Média. A miséria não possui mais a
positividade mística que estava presente na Idade Média, mas é encerrada em uma
culpabilidade. Agora, num mundo no qual os Estados substituem a Igreja nas tarefas
de assistência, a miséria se tornará um obstáculo contra a boa marcha do Estado,
passando de uma experiência religiosa que a santifica para uma concepção moral que
a condena. Dessa forma, se o louco era, na Idade Média, considerado uma
55
personagem sagrada era porque, para a caridade medieval, ele participava dos
obscuros poderes da miséria. A partir do século XVII, a miséria é encarada apenas
em seu horizonte moral e, assim, se antes o louco era acolhido pela sociedade, agora
ele será excluído, pois ele perturba a ordem do espaço social.
O internamento, então, antes de ter o sentido médico que lhe atribuímos, foi
exigido por razões bem diversas da preocupação com a cura. No lugar onde muitos
reconhecem os signos de uma benevolência para com a doença, Foucault percebe
apenas uma preocupação com o trabalho, ou melhor, a condenação da ociosidade.
Dessa maneira, o desempregado não será mais simplesmente excluído, mas detido,
já que entre ele e a sociedade estabelece-se um sistema de obrigações: enquanto ele
tem de ser alimentado, ao mesmo tempo ele também deve aceitar a coação física e
moral do internamento. Na Europa, assim, ele é uma das respostas dadas pelo século
XVII a uma crise econômica que envolve principalmente o desemprego. Se nos
tempos de crise o internamento servia para reabsorver os ociosos e proteger a
sociedade contra as revoltas, fora dos períodos de crise ele servia para fornecer mão-
de-obra barata. Essa noção de internamento está relacionada diretamente a uma
dada concepção de trabalho, que é visto sempre como solução geral para todas as
formas de miséria. É desse modo que os loucos, ociosos por princípio, terão seu lugar
ao lado dos pobres e também serão submetidos às regras do trabalho obrigatório,
com algumas distinções importantes, pois os loucos eram incapazes para o trabalho
e para seguir os ritmos da vida coletiva. É nessa época que eles são internados,
misturando-se a toda uma outra população. O que os unia era um aspecto: a
condenação ética da ociosidade. Mas se o internamento se liga diretamente com as
exigências do trabalho, isso não quer dizer que essa relação é definida unicamente
pelas condições da economia. Longe disso, toda uma percepção moral acompanha
essa obrigação do trabalho, servindo sempre como um exercício ético de uma punição
moral. Essa noção de moralidade inventa uma nova lei civil que não mais condena,
mas administra, recupera e tenta trazer o ocioso de volta à sociedade, sem nenhum
abuso de poder. São nas instituições da monarquia absoluta, simbolizadas
anteriormente através da arbitrariedade, que a ideia burguesa da virtude como um
importante assunto de Estado se concretizará. A internação, portanto, é uma criação
institucional própria ao século XVII e assume um sentido inteiramente diferente da
prisão na Idade Média. É, assim, de uma invenção e não de uma evolução que

56
Foucault trata. De um evento decisivo que rompe e modifica o sentido anteriormente
reservado ao internamento. Um evento importante para a própria loucura, que agora
é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho e da
impossibilidade de integrar-se ao grupo, modificando o seu sentido drasticamente.
Nasce, assim, uma nova sensibilidade em relação à loucura, na qual esta é arrancada
de sua liberdade imaginária tão presente na Renascença e se vê reclusa pelo
internamento e ligada à Razão e às regras da moral. Essa história da loucura contada
por Foucault não é gloriosa, não se relaciona a conquistas do progresso e nem a
começos puros e fundadores de uma moral que encontrou finalmente a sua forma
superior, mas liga-se aos começos baixos, indecorosos e sangrentos que nascem de
batalhas incessantes nas quais, um dos componentes, através de uma força, de uma
dominação, de um ato de violência, vence e apaga os sentidos que o componente
derrotado possuía. Foucault afirma:

O grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem


tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-
las, utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto
(Foucault, 1978: 25).

Mas essa batalha possui apenas um vencedor provisório, já que o


internamento, pelo menos no sentido que ele adquiriu na era clássica, não demorará
a ser contestado e reapropriado e, enfim, a ser levado a sua derrota. Foucault,
portanto, problematiza a ideia de confusão que é atribuída à percepção clássica da
loucura e a noção de que a ciência positiva do final do século XVIII liberta o louco
desse confinamento que interna, no mesmo local, o enfermo, o libertino, a prostituta,
o imbecil e o insano, sem indicar nenhuma diferença entre eles. Se ao final do século
XVIII e principalmente a partir do século XIX essa confusão entre criminosos e loucos
provocará espantos, temos que perceber que a era clássica tratava-os de forma
uniforme. Mas essa indistinção não deve ser entendida como uma ignorância, mas
em sua positividade e em sua própria racionalidade. Foucault afirma:

Não é nosso saber que se tem de interrogar a respeito daquilo que nos
parece ignorância, mas sim essa experiência a respeito do que ela sabe
sobre si mesma e sobre o que pôde formular com relação a si própria
(Foucault, 1997: 83).

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É por volta do começo do século XVIII que nasce uma nova reflexão sobre a
doença que é animada por relações entre a doença e a vegetação. É nessas novas
normas médicas que a loucura se integra e o espaço dessa classificação se abre, sem
problemas, para a análise da loucura. Mas essa atividade classificadora chocou-se
contra a resistência profunda de uma interpretação que liga a loucura à imaginação e
ao delírio por uma teoria geral da paixão. Essa natureza hierarquizada feita pelos
classificadores sobre a loucura, assim, não abalou as suas significações mágicas e
extra médicas.
No entanto, esse pensamento médico produz uma mudança de extrema
importância, pois pela primeira vez aparece um diálogo de cumplicidade entre o
médico e o doente. E a partir do desenvolvimento, ao longo do século XVIII, desse
conjunto médico-doente, ele passará a apresentar-se como o elemento constituinte
do mundo da loucura.

9 BIBLIOGRAFIA

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Departamento Nacional de Saúde divisão de Organização Hospitalar. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd04_08.pdf. Acesso em 21 set 2018.
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Contemporânea. Ed 37. Pró Saúde. Encarte Especial da Revista Notícias
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