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Feminino e Violência
Feminino e Violência
Resumo
A problemática da violência doméstica contra a mulher se apresenta de modo inquiridor quan-
do as relações amorosas por ela marcadas revelam um tipo particular de gozo, onde o Outro é
tudo. Mulheres se submetem a homens violentos e não conseguem romper o ciclo interminável
de renúncia em prol do Outro. Para algumas mulheres, a busca insaciável pelo Outro é desloca-
da metonimicamente da mãe para o homem, perpetuando assim seu lugar de objeto rebotalho,
desprezível. Neste lugar, a violência assume conotações de amor, um amor ao avesso, fazendo a
mulher gozar da devastação.
Palavras-chave
Falo, Gozo do Outro, Violência, Devastação.
de satisfação. Estabelece-se uma falta, que a relação da menina com a mãe como o
promove a si mesmo à condição de desejar. cerne da feminilidade – a mãe como a
O desejo da mulher remete ao desejo do mulher do pai, como objeto de amor que
falo, o que, no caminho da feminilidade, precisou deixar para seguir seu caminho
pode equacionar o filho como substituto de mulher ao lado de um Outro, portador
daquele. Assim, Freud une simbolicamente do falo. Assim, o psiquismo feminino se
a mulher e a mãe. Em sua própria travessia constitui sob a ameaça da perda do amor.
em direção ao feminino, a menina precisa A perda primordial faz esse sujeito lidar
superar sua inveja do pênis, afastando-se com uma falta-a-ser, que lhe é constituinte,
da masculinidade clitoridiana e de seu algo presente em ambos os sexos. Contudo,
“pênis inferior”. Esta passagem insere na a mulher lida com uma outra falta, que é
mulher uma marca, uma ferida narcísica, da ordem do corpo, portanto, uma dupla
que determina sua forma de escolha do falta. A mãe não consegue nomear a falta
objeto amoroso – que geralmente é uma que a castração promove na filha, uma
forma narcísica: ama ser amada por ele fez que ela mesma é um ser castrado. Seu
(FREUD,1933/1996, p.119). Deixa a mãe olhar apresenta um furo inquiridor da
pelo pai e deste para outro homem que ausência de palavras. Esta segunda falta
do pai se derive. Ama aquele que possui o diz respeito a um corpo que não possui o
que ela não tem. Somente este ser fálico se suporte simbólico de que necessita para a
constitui capaz de realizar este desejo, mes- constituição de seu sexo. Trata-se mesmo
mo que fantasiosamente. É nesse momento, de uma ausência, que obriga a mulher a se
frente ao Édipo, em que se vê castrada utilizar do amor como uma suplência, um
como a mãe e impelida a abandonar o substituto do falo. Busca o falo no corpo
objeto original de amor que ela representa, do homem, e faz isso pelas vias do amor
que ressurge na menina o ódio da separa- e de seus derivados. Assim, o feminino se
ção do seio materno, que um dia precisou constitui algo da ordem do inominável,
abandonar. Trocas importantes são feitas, não dito. Por esta razão, a mulher deseja
apesar de não serem completas: o clitóris ser amada por um homem que a nomeie
pela vagina e a mãe pelo pai. Diante da enquanto mulher, que lhe conduza ao lugar
impossibilidade de ter o objeto, o traz para do “outro” sexo, o feminino.
dentro de si sob a forma de identificações. A mulher tem uma relação com o
Contudo, um resto da relação com a mãe falo em três momentos: a mulher é o falo
permanecerá no inconsciente feminino. (significante do desejo masculino), a mulher
Atribui a esta a responsabilidade de tê- ocupa o lugar de objeto-causa de desejo na
la feito mulher. O caso Dora (FREUD, fantasia masculina, e a mulher fazendo
1905/1996) exemplifica esta presença sinthoma ao homem. Ocupar uma posição
materna, pois ilustra que a feminilidade é frente ao masculino remete a uma fantasia
construída à imagem de uma outra mulher. investida de um desejo. A mulher sustenta
Quando o Sr. K macula a imagem da Sra. o desejo e busca recuperar o gozo perdido
K, Dora vê sua própria imagem de mulher ao ocupar um desses lugares na fantasia
maculada. Freud não enxergou este desdo- masculina. Apresenta-se como o objeto
bramento do feminino e manteve a mulher mais-de-gozar. O homem toma a mulher
sob a insígnia do continente negro como objeto mais-de-gozar em sua fantasia
como um fetiche, enquanto a mulher busca
III – Lacan: além no homem o objeto erotomaníaco, isto é,
do impasse freudiano acredita ser amada por ele. O gozo que a
Todavia, foi Lacan quem deu um passo à mulher procura é de saber que é amada por
frente, além do Édipo freudiano, enfatizando um homem por aquilo que ela não é.
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O lugar do desejo feminino frente à violência
Lacan avança e coloca a mulher “mais Para isso, a mulher usa da mascarada
além” do Édipo e de sua lógica fálica. Elas para ocupar um desses lugares e gozar na
estão sob a égide de uma lógica fálica, fantasia do homem, mesmo que para isso
porém não-toda fálica – o que cria uma tenha que ir de uma pequena concessão
dissimetria entre o masculino e o feminino. até a fustigação. Lacan (1974/2003, p.71)
A mulher não é um homem invertido. defende que esta vida de concessões no
A mulher não é um homem castrado. encontro com o mundo masculino gera a
Por não estar totalmente sob uma lógica mascarada masoquista na mulher. Ela se
fálica, a mulher possui um gozo outro, realiza por procuração do Outro.
exclusivamente feminino, que deixa os
homens de fora. Esse gozo exclusivo é algo V – A violência contra
da ordem do real, não se pode dizer nada a mulher como devastação
sobre ele, nenhuma palavra. É um gozo A palavra “devastação” (ravage, em fran-
mais além do falo. cês) em si pode ser definida como arrazar,
destruir, arrebentar. Trata-se de uma pala-
IV – Fantasias de violência no Édipo vra derivada do verbo ravir, que significa
Em 1919, Freud escreve sobre um tipo arrancar, encantar, arrebatar – nuances da
especial de fantasia infantil que revela palavra que nomeia aquilo que, às vezes, é
nuances da sexualidade feminina e se chamado de amor. Para Lacan (1974/2003),
tornará o fundamento de suas escolhas a devastação é uma experiência subjetiva
amorosas (FREUD, 1919/1996, p.197). A que aparece na relação entre a mãe e a
fantasia se desdobra em três momentos, filha primordialmente e, posteriormente,
onde um adulto, identificado como o pai, na relação amorosa da mulher com o
bate numa criança, identificada como homem e no seu modo de lidar com seu
sendo, num determinado momento, próprio corpo. Trata-se do efeito da mãe
aquele que fantasia. Conclusões podem sobre a filha, quando esta se mantém numa
ser elaboradas a partir desta fantasia reivindicação fálica lançada sobre o Outro
masoquista: a menina se aproxima de uma materno, que faz a filha gozar da mãe e
posição masculina, identificando-se com o supostamente entender-se como objeto
falo, num certo momento. Em outro, nota- castrado do qual a mãe goza. Assim, em
se a presença inconsciente da violência na suas escolhas amorosas, a mulher deseja
trama afetiva que envolve o amor edípico ocupar a posição de objeto mais-de-gozar
da menina, percebido por esta como fonte na fantasia do homem, porém, não sem
de gozo, unindo-a afetivamente ao pai. uma luta: a de não se tornar novamente
Freud considerava o masoquismo objeto de gozo na existência do Outro,
“como expressão do ser da mulher” (FREUD, como ocorreu em sua relação com o Outro
1924/1996, p.179). Essa constituição “substi- materno. É o amor que fará esta mediação.
tui uma formula de gozo por outra: ‘ser espan- Porém, manter-se como objeto de gozo do
cado’ substitui ‘ser amado’ no sentido genital” Outro, sendo posse do Outro e gozar dessa
(SOLER, 2005, p.60). Lacan (1966/1998, posição representa uma devastação para a
p.741) acrescenta que esta disposição em mulher (BROUSSE, 2003, p.62 ).
ocupar o lugar de objeto refere-se primor- Em 1931, Freud já havia descoberto
dialmente ao desejo do Outro e não ao seu algo resistente na subjetividade feminina,
próprio desejo. Por esta razão se diz que a algo que a constitui como mulher e que
mulher ocupa o lugar de objeto fálico na se origina na “catástrofe” que é o deslo-
fantasia masculina, enquanto que a ma- camento que a menina faz da mãe para
soquista procura ocupar o lugar de objeto o pai, como um segundo na devastação.
depreciado diante do desejo do Outro. Neste texto, Freud aponta os caminhos
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Tharso Peixoto Santos e Souza
que a inveja do pênis pode traçar no fe- sem valor. O autoaniquilamento se torna
minino. Trata-se de um resto que marca uma via possível (BROUSSE, 2003, p.65).
a relação mãe-filha e de onde partem as A metonínia da devastação faz com
demandas amorosas da mulher. É devas- que as escolhas amorosas da filha sigam o
tador, é indizível, porque é algo da ordem padrão de seu relacionamento com a mãe.
do impossível de ser suportado (FREUD, Na ausência do amor, existe a devastação.
1931/1996, p.242). O homem-devastação é aquele que a ilude
Lacan (1974/2003) situa a devastação com o engodo de ser tudo aquilo que ela
no campo do desejo do Outro. A mãe é precisa para existir como objeto, mesmo
tida como o Outro primordial para a filha, que sendo um objeto rebotalho. Ao marcar
a qual é significada pelo desejo materno o corpo da mulher com a violência, goza
enquanto objeto. Quanto mais a mãe perversamente e a faz gozar a devastação.
investe a filha desse desejo tanto mais Para ela, a violência assume um significado
a filha depende dele. A filha, enquanto de amor.
sujeito, identifica e interpreta esse desejo
do Outro materno, isto é, o quanto é ou VI – Conclusão
não desejada. Assim, a filha busca o lugar É no campo do amor que a violência se ma-
que entende dever ocupar diante desse nifesta de forma mais cruel e terrível. Uma
desejo materno, um lugar de objeto agal- relação de amor pode esconder uma relação
mático, objeto a. Quando a menina entra de ódio. O ódio pode ser interpretado como
no complexo de Édipo, faz um movimento amor. Tratar desta questão é interrogar
de ressignificação, abandonando esse lugar sobre o que quer uma mulher. No desam-
ocupado até então no desejo do Outro paro de seu ser, encontra na violência uma
materno. O pai é agora o Outro que trará expressão avessa daquilo que deseja de um
um novo significado a ela: de que a mãe homem: uma mediação fálica que lhe traga
não pode significá-la como mulher, uma alguma significação como sujeito feminino,
vez que também vivencia, ela mesma, que lhe diga o que é ser mulher.
a falta fálica. Assim, a filha remete ao As leis de proteção à mulher apontam
pai suas demandas fálicas e o Édipo se seu lugar na sociedade: respeito e integrida-
processa. Se a mãe permanece toda mãe de. Mas é a mediação do amor que aponta
e não dividida pelo gozo fálico de um para um caminho que possibilita aplacar a
homem, a filha permanece como objeto inquietude da falta. Não removê-la, apenas
de gozo materno, sendo atravessada por acolhê-la. ϕ
esse gozo do Outro que a devasta: é para
a mãe um fetiche ou um dejeto. Fetiche
quando a criança se torna o “refém fálico”
da mãe totalmente ocupada com ela. De-
jeto quando a mãe está em nada ocupada
com a criança, nomeando-a enquanto
injúria, insulto. A falta de uma interdição
paterna e a consequente inscrição fálica
desse sujeito criam para si o equívoco do
nome que possui ou deve possuir. Na in-
certeza, é o lugar de objeto do Outro que
lhe confere um nome. O efeito é devas-
tador. O sujeito é reduzido ao “silêncio”,
seu corpo é desfalicizado como um corpo
em excesso, que é oferecido como objeto
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O lugar do desejo feminino frente à violência
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