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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA

INSTITUTO DE PSICOLOGIA - IPSI


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA – PPGPSI
DISCIPLINA CORPO, CLÍNICA E POLÍTICA
PROF. SUELY AIRES

YASMINE CÉLI DOS SANTOS FERREIRA

O FEMININO E A FEMINILIDADE NA PSICANÁLISE

Salvador
2022
O FEMININO E A FEMINILIDADE NA PSICANÁLISE

A Psicanálise centra seus estudos na sexualidade desde a sua origem. Freud, seu
pioneiro, trouxe questões relevantes acerca do inconsciente e da formação psíquica do ser
humano. Em meio aos seus estudos, este teórico contribuiu com diversas reflexões acerca
da sexualidade humana e da relação homem-mulher.

Durante suas pesquisas, Freud buscou desvendar a mulher e o que ela quer. Diante
da impossibilidade de compreendê-la, questionou seu desejo. Partindo disto, a sexualidade
feminina pode ser entendida através do contraponto com a sexualidade masculina, pois,
para Freud ([1932-1933] 1996), a sexualidade da menina é mais complexa por conter
tarefas extras, as quais não possuem semelhanças com a do menino.

Na obra freudiana, são expostas três possíveis saídas de desenvolvimento da


menina: 1) o abandono e inibição da sexualidade (abandono da vida sexual); 2) a inserção
no "complexo de masculinidade", em que a menina mantém a esperança de possuir o
pênis, que pode resultar na escolha de objeto homossexual; 3) a feminilidade propriamente
dita, em que a mulher torna-se mãe (FREUD, [1931] 1996; [1932-1933] 1996).

Fuentes (2012b) argumenta que apesar de Freud ter apontado a maternidade como
uma saída para a mulher, o filho não satura o desejo feminino. E continua:

Contudo, ainda que a mulher não se confunda com a mãe, um filho pode ser
uma boa solução para uma mulher que assim o deseja, e, se Freud foi criticado
por ter reduzido a mulher à mãe, entretanto, ele soube reconhecer que a
maternidade não é o único destino da feminilidade, nem fez desta uma vocação
natural das mulheres (p.104-105).
Lacan, prosseguindo com a ideia freudiana sobre a sexualidade feminina, inicia
sua teoria sobre o feminino mantendo, inicialmente, o falo como elemento central. Mas,
ao longo da sua escrita, torna-se notória a diferença teórica entre os pensadores.

Lacan afasta-se da teoria freudiana ao elaborar um caminho para a feminilidade a


partir do não-ter ao parecer que é. Lacan (1972-1973/2008) reformula a passagem
freudiana que destacava o “não ter o falo” das mulheres afirmando que a partir da obtenção
do significante fálico, tudo gira em torno do ser o falo e não mais do não tê-lo.

Ao passo que Freud formalizou o processo de tornar-se mulher, Lacan aposta na


posição feminina na relação amorosa. Logo, pode-se dizer que a obra lacaniana contribui
para o debate acerca da feminilidade na Psicanálise ao postular a existência do gozo para
além do falo discutido por Freud a partir da inveja do pênis.
Posteriormente, Joan Rivière [(1929) 2005], em seu trabalho intitulado
Feminilidade como máscara utiliza o termo mascarada ao expor o caso clínico de uma
mulher intelectualizada que ocupa a função de mãe, esposa, dona de casa e profissional,
sendo bem sucedida em todas essas esferas, porém sofria de ansiedade por reconhecimento
após suas apresentações públicas relacionadas ao trabalho. A partir deste caso, a autora
discute o comportamento/posição ocupada pela mulher frente ao seu desejo pelo pênis do
pai e sua revolta contra a castração.

Grant (1998) acredita que a grande contribuição de Rivière foi afirmar que a
feminilidade é uma máscara para acobertar a masculinidade. Deste modo, a autora trouxe
o conceito da mascarada, bem como a ideia de que a máscara da feminilidade pode ser
usada pelas mulheres caso estas desejem a masculinidade e para evitar represálias.

Outros exemplos também são citados para ilustrar a máscara da feminilidade


utilizada pelas mulheres da época, a qual também pode não diferir da atual:

É possível observar na vida cotidiana a máscara da feminilidade tomar formas


curiosas. Uma competente dona de casa de minhas relações é mulher de grande
habilidade e capaz de desempenhar tarefas tipicamente masculinas. Entretanto,
quando chama por exemplo um pedreiro ou estofador, ela sente-se compelida a
ocultar todo o seu conhecimento técnico, demonstrando respeito pelo operário,
fazendo sugestões de maneira inocente e leiga, como se fossem ‘palpites ao
acaso’ (RIVIÈRE, 1929, p. 17-18).
Bessa (2012a; 2012b) explica que por não ser possível ao ser falante ser homem
ou mulher biologicamente devido ao corpo capturado pelo significante, a alternativa é
parecer homem ou mulher, sendo o falo um elemento fundamental para isto. Deste modo,
acreditava-se que a menina assumiria, na parceria sexual, a posição de ser o falo, pois é
privada dele.

A proposta de utilizar o termo mascarada para tratar do pare-ser homem ou mulher


remete à Lacan ([1958] 1998). Este, também baseado no trabalho de Rivière, traz ainda
que pela feminilidade encontrar refúgio na máscara há como consequência fazer com que
a própria ostentação viril pareça feminina no ser humano.

Brousse (2012) acredita que Lacan retomou o conceito de mascarada para fazer
dele um modelo de uma posição feminina do desejo caracterizado pela máscara ser a coisa
mesma, ser o feminino. Logo, a mascarada pode ser compreendida como a subjetivação
da falta fálica, na qual a mulher se apresenta como fálica na tentativa de corresponder ao
objeto causa de desejo do homem.

Diante desta esfera fálica, Guimarães (2014) questiona que máscara seria essa
utilizada pela mulher e aponta:

A mulher multimídia, multitarefa, polifacetada, com funções diversas,


autônoma, independente, capaz, a super supermulher, que, frequentemente,
pretende ser mais potente que os homens. Essa máscara tem várias [sic]
aspectos, e é importante considerar que o modo de nomear o feminino através
dela traz uma conexão implícita, uma posição diante dos homens, ou seja, os
desfaliciza, colocando-se no mesmo nível ou acima deles (p. 18).
Por outro lado, Grant (1998) acredita que a máscara seria utilizada para encobrir
este vazio e cita que uma das maneiras de esclarecer a afirmação “a mulher não existe”,
encontrada na obra lacaniana, no Seminário 20: Mais, ainda, é entendendo que o lugar da
mulher permanece vazio.

Por isso, há a associação entre as mulheres e os semblantes. Este último, “é algo


cujo objetivo é o de velar o vazio, vazio presentificado no real do corpo em parte dos seres
humanos e que aponta para a castração” (GRANT, 1998, p. 255-256). Logo, fazer
semblante de mulher seria uma forma de demonstrar a masculinidade que as mulheres
possuem.

O percurso da sexualidade feminina é um aspecto de grande relevância nos estudos


psicanalíticos, pois através dela outras temáticas relacionadas foram e ainda são alvo de
discussões e estudos até os dias atuais. É o caso, por exemplo, da necessidade de se
estudar, diante das diversas transformações que ocorrem no mundo atual, a posição
feminina e a feminilidade. Acerca desta última, a psicanalista Maria Rita Kehl (2016, p.
40), coloca:

[a feminilidade é] o conjunto de atributos próprios a todas as mulheres, em


função das particularidades de seus corpos e de sua capacidade procriadora; a
partir daí, atribui-se às mulheres um pendor definido para ocupar um único
lugar social – a família e o espaço doméstico -, a partir do qual se traça um
único destino para todas: a maternidade.
No mundo atual, mesmo diante de tantos progressos da mulher na sociedade, muito
impulsionados pelo movimento feminista, a mulher ainda é vista como responsável pelos
cuidados do lar e pela maternidade. A autora acredita que o fato de pensadores ratificarem
que o único lugar ao qual a mulher pertence é o lar e a função que lhe é correspondente é
a maternidade proporciona hoje o começo de uma desordem social. E afirma que “a mulher
que não é mãe praticamente não existe como entidade civil” (p. 57).

Frente a este contexto de compreender que a mulher e seu corpo ocupam um


espaço, Judith Butler deixa o olhar biológico e traz um pensamento envolvendo a
dimensão política dos corpos (que envolvem outras minorias além das mulheres), e discute
três aspectos relevantes dos corpos em sociedade: o enquadramento, o reconhecimento e
a precaridade.

Butler trabalhará com a temática da sexualidade e gênero, afirmando que no


enquadramento, destaca-se a necessidade de ser posto em um modelo binário que deve ser
seguido para ser aceito publicamente; o segundo, a autora aponta que o corpo apenas é
reconhecido se seguir o enquadramento, ou seja, faz críticas à não consideração de outras
formas de “aparecimento” (representação) na sociedade; e, por fim, lança que a
precaridade em que se encontram os corpos que não se enquadram e não possuem
representatividade nas ruas, por não serem considerados, não podem existir.

Visto isto, em seu livro Corpos em aliança e política das ruas: notas para uma
teoria performativa de assembléia, Judith Butler (2018) refere sobre o exercício
performativo, como o direito destes corpos (de mulheres, mas também de quaisquer outras
minorias sexuais e de gênero) aparecerem, serem vistos e respeitados publicamente,
enquanto seres pertencentes a uma sociedade. A autora esclarece que afirmar que um
gênero é performativo, significa que ele é uma representação, a qual é induzida por normas
obrigatórias que precisam ser seguidas, além de apresentar uma relação com o poder.
Entretanto, essa realidade de gênero também pode ser reconstruída conforme novas
orientações.

Deste modo, sob a luz de Butler (2018), pode-se refletir que o corpo também é o
uso do espaço e pode aparecer e ser possuidor de direitos independentemente da
sexualidade ou do gênero que se apresente nele. Para a autora, o sofrimento não está, então,
no corpo, mas na sociedade que tenta enquadrá-lo, não o reconhece, não o respeita e não
valida os seus desejos.

Deste modo, observa-se que o sujeito pode ocupar posições subjetivas diferentes
independentemente do fator biológico, bem como ocupa um lugar na sociedade. Por isso,
seus desejos, direitos e deveres precisam ser respeitados enquanto humano.
REFERÊNCIAS

BESSA, Graciela de Lima Pereira. A lógica do Não-todo e a devastação. In:_______.


Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012a.

. Introdução. In: . Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo


Horizonte:Scriptum Livros, 2012b.

BROUSSE, Marie-Hélène. O que é uma mulher? Rev. Latusa Digital. Ano 09, n. 49, jun.
2012. Disponível em: <http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_49_a1.pdf>. Acesso
em: 07 dez. 2022.

BUTLER, Judith. Política de gênero e o direito de aparecer. In: . Corpos em


aliança política e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

FREUD, S. Sexualidade feminina [1931]. In: . Obras psicológicas completas


deSigmund Freud, v. XXI. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros
trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

. Conferência XXXIII: Feminilidade [1932-1933]. In: . Obras


psicológicascompletas de Sigmund Freud, v. XXII. Novas conferências introdutórias sobre
Psicanálise eoutros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FUENTES, Maria Josefina Sota. A mulher não-toda: o gozo fálico e o gozo feminino. In:
. As mulheres e seus nomes: Lacan e o feminino. Belo Horizonte: Scriptum Livros,
2012a.

. As mulheres desejam o falo, mas também o invejam. In: . As


mulheres eseus nomes: Lacan e o feminino. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012b.

GUIMARÃES, Lêda. Gozos da mulher. Rio de Janeiro: KBR Editora, 2014.

GRANT, W.H. A mascarada e a feminilidade. Psicologia USP. São Paulo, v. 9, n. 2, p. 249-


260, 1998.

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. São Paulo: Boitempo, 2016.

LACAN, Jacques. A significação do falo [1958]. In: . Escritos. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar,1998.

. Deus e o gozo d’A/ mulher. In: . O Seminário: livro 20: Mais, ainda
(1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

RIVIÈRE, Joan. A feminilidade como máscara (1929). Psyquê. Ano IX, n. 16, São Paulo,
jul.-dez. 2005. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psyche/v9n16/v9n16a02.pdf>.
Acessado em: 10 dez. 2022.

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