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Alberto da Silva Jones

O MITO DA LEGALIDADE DO LATIFÚNDIO


Legalidade e Grilagem no Processo de Ocupação das Terras Brasileiras
(Do Instituto de Semarias ao Estatuto da Terra)

SÃO PAULO
2003

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INDICE

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1
A POLÍTICA FUNDIÁRIA COLONIAL : O INSTITUTO DAS SESMARIAS
1. Considerações Gerais
2. Sistema Sesmarial e Formação da Propriedade Rural na Colônia
3. Considerações Finais

CAPÍTULO 2
CRISE DO SISTEMA SESMARIAL E REESTRUTURAÇÃO DAS RELAÇÕES DE
PROPRIEDADE
1. Contexto e Conjuntura da Crise
2. O Império das Posses
3. A Lei de Terras: Legitimação dos Privilégios
3.1. Considerações Básicas
3.2. A Questão da Propriedade Territorial
3.2.1. As Terras Devolutas
3.2.2. As Sesmarias Legalizadas
3.2.3. As Sesmarias Caídas em Comisso
3.2.4. A Legitimação das Posses
4 . Colonização e Imigração Estrangeira
4.1. Colonização Sistemática : O Projeto de Wakefield
4.2. Colonização Dirigida : O Projeto do Latifúndio
5. Considerações Finais : Heranças da Política de Terras do Império

CAPÍTULO 3
LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA E LUTA PELA TERRA NA REPÚBLICA: (1889-1964)
1. Considerações Preliminares
2. Legislação e Propriedade Territorial: Legitimação de Privilégios
3. Constituição de 1891: União, Estados e Legitimação da Propriedade
4. Legislação Federal e Terras Devolutas (dos Estados?)

CAPÍTULO 4
A POLÍTICA FUNDIÁRIA DO REGIME MILITAR : 1964 - 1984
1. Antecedentes Mediatos da Conspiração Militar e Questão Agrária
2. Mensagem no 33 : O Diagnóstico Militar da Questão Agrária
3. Instrumentalização Jurídica e Política Fundiária de Governo
3.1. O Estatuto da Terra e Legislações Anteriores
3.2. O Estatuto da Terra e a Política Fundiária
3.2.1 Execução da Política Fundiária: "Intenção e Gesto"
3.2.2. Instrumentos de Ação Fundiária
3.2.2.1. Discriminação de Terras Públicas
3.2.2.2 Arrecadação de Terras Devolutas

2
3.2.2.3. Desapropriação de Imóveis Rurais
3.2.2.4. Aquisição de Imóveis Rurais e PROTERRA
3.2.2.5. Colonização
3.2.3. Titulação de Terras Públicas: Alienação e Privilégios
3.2.3.1. Legitimação de Posses
3.2.3.2 .Alienação com Dispensa de Licitação
3.2.3.3. Concessão com Dispensa de Licitação
3.2.3.4. Alienação em Concorrência Pública: Licitação
3.2.3.5. Alienação com Licitação e Direito de Preferência
3.2.3.6. Concessões Especiais
3.2.3.7. Doação de Terras Públicas
3.2.3.8. Usucapião Especial

CAPÍTULO 5
POLÍTICA FUNDIÁRIA DO REGIME MILITAR: RECONCENTRAÇÃO E
PRIVILÉGIOS
1. Considerações Preliminares
2. Alienação e Apropriação de Terras Novas
3. Reconcentração Fundiária e População : Uma face da Excludência
4. Destinação e Utilização das Terras: Caráter Parasitário da Privatização

CONCLUSÕES

BIBLIOGRAFIA

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PREFÁCIO

Sedi Hirano

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AGRADECIMENTOS

Agradecer é realçar afetos. Atos solidários de amigos: de amor. De ajuda e de


companheirismo. Na verdade, a presença no momento da aflição ou do contentamento. Por tudo
isso, quero reconhecer a ajuda e a amizade que nunca me faltaram. E sobretudo, o incentivo e o
apoio, sem os quais jamais seria possível realizar este trabalho.
Agradeço, por tudo isso:
À Maria Arminda do Nascimento Arruda, que acreditou na possibilidade deste trabalho
e que, com a sua amizade e apoio, tornou esta possibilidade em realidade. A sua ajuda, lendo e
analisando os primeiros rascunhos, incentivou-me e, mais que isto, deu-me motivação para
desenvolvê-los. Sem a sua solidariedade, jamais poderia escrever a presente Tese.
À Sedi Hirano, que aceitando orientar-me, ajudou-me, entusiasticamente, a caminhar,
caminhando comigo: como o amigo, ajudando-me nas dificuldades; como mestre, ensinando-me
que caminhar pode ser penoso, mas, que é gratificante. Além da amizade de sua família, que
fizeram de minha estadia em São Paulo um momento de muita satisfação e alegria.
À José César Gnaccarini que, na hora mais difícil, no abismo prenunciado, foi luz e foi
ponte: iluminando e indicando caminhos novos e seguros. Que lendo os meus rascunhos, deu-
me motivação para transformá-los num trabalho decente e sério. Modesto, mas produto de um
esforço construtivo e esperançoso. Devo muito a seu incentivo, e apoio. Sobretudo a sua
amizade e carinho, construídos na caminhada, desde o momento crítico, do Exame de
Qualificação, e que nunca me faltaram, especialmente, nos momentos de que mais os
necessitava.
Ao professor Gildo Marçal, pelas críticas que se tornaram efetivas contribuições, vindas
no bojo do Exame de Qualificação, e que me ajudaram a escolher com mais objetividade o
caminho a trilhar na pesquisa.
Ao professor Francisco de Oliveira, com quem aprendi muito. Sobretudo com o seu
entusiasmo para debater e com a sua humildade para ensinar, como poucas vezes se pode
testemunhar. “Chico”- permita-me o tratamento afetuoso - foi para mim um exemplo de
esperança e de trabalho.
Ao professor José de Souza Martins e aos colegas e amigos do Curso sobre a obra de
Henri Lefebvre, com os quais tive a alegria de experimentar a poesia da vida, da esperança e da
necessidade de construir um mundo melhor, mais belo: representativo da beleza necessária.
À Socorro Gomes, deputada do povo do Pará, amiga dos posseiros e dos sem terra de
todo o Brasil, que luta no Congresso e no campo, contra a “grilagem especializada”, a
apropriação privilegiada e a vergonhosa ilegitimidade, que sempre foram as gêmeas prediletas
do latifúndio especulativo e parasitário neste País. Devo agradecer a ela e aos seus

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companheiros de trabalho que me apoiaram efetivamente, remetendo-me vasta documentação
do Parlamento, sem a qual, dificilmente eu poderia ter realizado as análises que sustentam este
estudo.
A Carlos Lorena, saudoso amigo, que, em 1986, foi o meu primeiro grande incentivador
para que estudasse as ilegitimidades inerentes aos imóveis rurais, quando então, ocupava o
Cargo de Diretor de Cadastro do INCRA. Lorena foi, para mim, um grande exemplo de luta e
de trabalho.
A Maurinho Luiz dos Santos, amigo e colega do Departamento de Economia Rural da
Universidade Federal de Viçosa, que sempre me incentivou com imenso entusiasmo e, desta
forma, tornou possível a superação dos momentos de desânimo e, quiçá, de desespero, por que
passam todos os estudantes, ao realizar suas pesquisas. Também ao colega Fernando Antônio
Silveira da Rocha, que sempre me incentivou e efetivamente, apoiou-me na realização do Curso
na USP.
A colega e amiga Valéria Aroeira Braga, que foi uma grande incentivadora desta
pesquisa. Que me colocou à disposição todos os seus livros de Direito Agrário e, desta forma,
ajudou-me objetivamente, a executar este trabalho.
Aos colegas Francisco Armando da Costa e Wilson da Cruz Vieira, do DER/UFV, que
sempre me incentivaram, inclusive resolvendo problemas, diante das minhas dificuldades em
lidar com a construção de gráficos pelo computador. Foi um apoio relevante, e que me liberou
de imensas horas que certamente eu perderia tentado fazer a “arte final” desses materiais.
Gostaria de registrar um agradecimento especial à Folha de São Paulo, que, ao se
mostrar interessada pelo estudo que eu estava fazendo, inclusive comentando comigo e
publicando um breve artigo sobre o tema, deu-me esperança de que o mesmo não fosse, apenas,
um exercício acadêmico, mas que, de fato, pudesse vir a se constituir em uma contribuição para
o debate e, quem sabe, para a busca de novos caminhos para se combater a grilagem
especializada, a ilegitimidade e a usura da terra, que têm destruído o sonho e a vida de tantas
pessoas e entravado as possibilidade de desenvolvimento independente e sustentado da
economia e da sociedade brasileiras. Além de me fazer voltar a acreditar no papel crítico e
combativo da imprensa independente.
Um agradecimento especial à Tedinha e ao “Russo”, do Departamento de Economia
Rural, sempre solidários comigo em todos os momentos; a Sônia e Isabel, da Secretaria de Pós-
Graduação em Sociologia da USP, pelo apoio constante, mas, sobretudo pela solidariedade,
simpatia e amizade. Sem a sua ajuda preciosa seria dificílimo fazer este trabalho.
Devo, igualmente, agradecer a tantas outras pessoas, que seria impossível registrar aqui.
Por outro lado, também é preciso reconhecer o apoio de pessoas que, embora não
ligadas diretamente aos esforços de elaboração da tese, foram de preciosa solidariedade,
trazendo amizade, carinho e alegria, ingredientes fundamentais à vida e ao trabalho.
Assim foi a minha família. Meus irmãos, minha esposa, Patrícia, e meus filhos, Caio e
Carlos. Agradecer a esposa é quase um ato impossível. Assim, prefiro lembrar o seu apoio
carinhoso, dedicado, de afeto e solidariedade. Aquele calor de todos os momentos que aquece e
ilumina, que aconchega e constrói. Espiritual, muito mais que simplesmente material. Mas foi,
igualmente, a labuta conjunta, em muitas noites de trabalho, discutindo as idéias, debatendo os
textos: juntos, sempre juntos na vigília do árduo trabalho de construir uma tese a partir de
documentos, dados, literaturas... hipóteses... Ato impossível, sim, porque a solidariedade é
incomensurável, é puro sentimento. É unidade. Esta tese é também dela.

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Assim, também foram outros amigos preciosos, como Carlinhos Marighella, Gey
Espinheira, Adna Aguiar, José Guilherme da Motta, Edgard de Vasconcelos Barros, Eliel
Judson Pinheiro, Ricardo Albinati e o meu colega de curso, Antônio César e sua família, que
nunca faltaram com sua amizade e carinho em todo o nosso árduo percurso.
Finalmente, desejo agradecer a Universidade Federal de Viçosa, especialmente aos
meus colegas do Departamento de Economia Rural, indistintamente, pelo apoio que nunca me
negaram. À CAPES, pela Bolsa de Estudos e, muito em particular à Universidade de São Paulo,
a USP, pela oportunidade que me ofereceu para participar de um excelente Curso de Pós-
Graduação, que, independentemente de qualquer outra referência, deu-me a oportunidade única
de conviver em um ambiente acadêmico crítico, profundo, criativo, e sobretudo, de seriedade.
Qualidades que têm sido raras de se encontrar.
A todos, indistintamente, agradeço com um beijo e um aceno.

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RESUMO
Partindo do fato de que as terras brasileiras são originalmente públicas, buscou-se nesta
pesquisa, a análise objetiva do processo de formação da propriedade da terra no Brasil: um
processo, de fato, de privatização, de transferência, para o domínio privado, de um patrimônio
territorial que nasceu público.
Deu-se ênfase particular a análise da Política Fundiária desenvolvida no período do
Regime Militar, que se estendeu de 1964 a 1984. Por um imperativo metodológico e de análise,
foi realizado um estudo sistemático das características e das conjunturas fundamentais em que
este processo de transferência das terras públicas para o domínio particular foi realizado em
outros distintos períodos da história agrária brasileira. Este procedimento teve o objetivo,
apenas, de permitir a análise comparativa do processo de privatização das terras no País, tal
como ocorrido em distintos períodos.
Ficou evidenciado, pela análise - das legislações, atos administrativos, projetos e outros
documentos e dados, assim como da literatura especializada - que, desde as suas origens mais
remotas, no instituto sesmarial, o processo de transferência das terras para a iniciativa de
particulares, no Brasil - necessário e inevitável, à sua incorporação ao processo de produção e
reprodução econômico-social - sempre se fundou no privilégio, quanto à alienação ou
concessão, e na ilegalidade, quanto a sua configuração jurídica e formal. Portanto, torna-se
legítima a hipótese de que não se efetivou, juridicamente, a transferência de domínio sobre estas
terras para a propriedade particular. É neste sentido específico que se pode afirmar que elas
permaneceram públicas.
Neste contexto, a análise comparativa dos diversos períodos, não deixou dúvidas que,
apesar das formas e conjunturas diferentes que assumiu, sempre persistiu, neste processo, uma
característica fundamental: a privatização privilegiada e juridicamente questionável. Esta foi a
hipótese de trabalho desenvolvida, e que ficou amplamente evidenciada neste estudo.
Neste contexto, a Política Fundiária posta em prática pelos Governos Militares, fundada
no Estatuto da Terra, aliás, informado este, politicamente, pela Mensagem 33, do General
Castelo Branco, significou a continuação, sob novas formas e em uma nova conjuntura - tanto
interna quanto internacional - das mesmas condições de privatização e legitimação privilegiadas
e juridicamente questionáveis.
Mais do que isto. A análise da legislação, dos atos administrativos e dos projetos de
desenvolvimento rural e outros, postos em prática neste período, demonstraram, de forma
veemente, de que é exatamente nele, que o processo de privatização privilegiada e juridicamente
questionável, assume a sua forma mais acabada de grilagem especializada. Na qual o próprio
privilégio e ilegalidade são incorporados ao ordenamento jurídico e administrativo e assumem,
enfim, o “estatuto de lei”.

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Assim, em conclusão, ficou evidenciado que a Política Fundiária implementada pelos
Governos Militares representou, efetivamente, a consagração destes “antigos” métodos de
alienação privilegiada e legitimação questionável, que vinham persistindo no Brasil desde o
instituto sesmarial. Que isto significa, por um lado, que foi ampliada, em escala nunca antes
registrada na história agrária do País, a excludência social e a expulsão ilegal e ilegítima, de
pequenos produtores, posseiros e indígenas, sobretudo fundadas no fato de que a maioria destes,
como sempre foi comum no ordenamento agro-fundiário brasileiro, não dispunham da titulação
legal das terras que possuíam ou ocupavam - embora detivessem, legitimamente, o direito real
de posse sobre estas.
Este direito é que foi, ilegalmente, esbulhado pelos verdadeiros processos de grilagem
especializada, praticados, inclusive, diretamente pelo próprio “Poder Público”.
Como em nenhum outro momento do passado histórico, desde o período colonial, a
legitimação das terras possuídas efetivou-se de forma relevante; e como os atos praticados pelas
autoridades fundiárias, durante o período do regime militar, foram, e continuam sendo,
juridicamente questionáveis - por ferirem preceitos constitucionais e princípios elementares do
Direito Administrativo, que afirma que a nenhum servidor público é permitido praticar qualquer
ato que não os expressamente delimitados em Lei - pode-se concluir que as terras brasileiras
continuam, em sua maior ou mais relevante parte, públicas.
São “propriedades”, juridicamente, questionáveis.

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INTRODUÇÃO

No Brasil, onde as terras são, originalmente, públicas, a sua incorporação ao


processo de produção social não prescindiu da transferência do seu domínio para a
iniciativa privada. Assim, uma dimensão relevante para a análise da estrutura agrária
brasileira, refere-se à institucionalização do processo de reconhecimento e legitimação
da propriedade privada territorial rural pelo Estado. Trata-se de um processo, de fato, de
privatização das terras públicas: de transferência, para a esfera privada, do domínio
sobre um território que nasceu público. Este é exatamente o caso do Brasil que está
sendo estudado neste trabalho.
Como afirma Hely Lopes Meirelles:
“No Brasil todas as terras foram, originalmente públicas, por pertencerem à
nação portuguesa, por direito de conquista. Depois passaram ao Império e à
República, sempre como domínio do Estado. A transferência das terras
públicas para os particulares se deu paulatinamente, por meio de concessões
de sesmarias e de datas (instituto sesmarial), compra e venda, permuta e
legitimação de posses (Lei 601). Daí a regra de que toda terra sem título de
propriedade particular é de domínio público.1”

Apenas cabe acrescentar, que a exigência legal, refere-se ao título legítimo,


portanto, não a qualquer título. Este problema, que é central a este estudo, é tratado de
forma objetiva nos diversos capítulos, que se ocupam de momentos diferentes da
Política Fundiária implementada no Brasil.
Neste contexto, a análise da dimensão jurídico-política assume uma relevância
específica. A importância e eficácia concretas da dimensão jurídica, política e
ideológica é enfatizada, neste trabalho, por se entender que essa dimensão, geralmente
conceituada como "superestrutural", não pode ser reduzida à condição de mero
"reflexo" da "base econômica", sem influência efetiva sobre as condições de
sociabilidade. Muito pelo contrário. O debate acerca da problemática da
"determinação em última instância" não caberia neste trabalho. Por isto, apenas se
procura aqui definir claramente a posição teórica que será adotada. Concorda-se, neste
contexto, com a seguinte perspectiva, defendida por Sedi Hirano:

1 MEIRELLES, 1971, p. 447. Grifos nossos.

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"em suma, o que afirmamos reiteradamente é que as estruturas ideológicas e
jurídico-políticas não podem ser desqualificadas na análise da constituição da
formação social(... ).2 "

É nesse sentido que é analisado, neste trabalho, o problema específico das


políticas fundiárias propostas e postas em prática no Brasil: Enquanto respostas
específicas aos problemas agrários objetivos, gestados em distintas conjunturas, desde o
seu descobrimento. No sentido, portanto, de que formam uma totalidade dinâmica, em
movimento, cujas múltiplas articulações e determinações, antes de serem, apenas,
subsumidas, necessitam ser esclarecidas. Analisadas.
Busca-se esclarecer os instrumentos e mecanismos, sobretudo jurídicos e
institucionais, através dos quais o Estado procurou regular e imprimir sua marca aos
processos concretos de ocupação e exploração do território brasileiro. Trata-se,
portanto, de um amplo e complexo processo de privatização territorial, cujas
especificidades necessitam ser investigadas objetivamente.
Este processo de privatização de terras, necessariamente mediado por iniciativas
do Estado - no campo jurídico, administrativo econômico, etc. - assumiu características
distintas e implicou situações diversas, conforme os diferentes momentos e conjunturas
históricas, econômicas, sociais, políticas, jurídicas e culturais, entre outras igualmente
relevantes, vividas ou enfrentadas pelo Brasil, desde as suas origens coloniais. E neste
sentido, que a análise do processo de alienação de terras públicas e de sua legitimação,
poderá se constituir numa contribuição relevante ao estudo da questão agrária brasileira.
Esta é a contribuição que se espera oferecer com o presente trabalho.
Atualmente, quando mais uma vez, a necessidade de realização da reforma
agrária é colocada na ordem do dia, o problema da propriedade privada rural, no Brasil,
é reposto de forma contundente.
Em primeiro lugar, porque o pressuposto fundamental, reiteradamente colocado
pelas autoridades do Estado, como restritivo à realização da reforma agrária, refere-se
aos “custos elevados” implicados nos processos de desapropriação. Desapropriação
esta, assumida, aprioristicamente, como sua condição necessária, fundamental,
inevitável.
Em segundo lugar, porque a resistência oposta ao processo de reforma agrária,
por grupos autodenominados de “ruralistas”, fortemente organizados e ativos
politicamente, tem levado o Estado e, às vezes, a opinião pública, à aceitação do falso
pressuposto de que a maioria, senão, todas as terras ocupadas no País, são,
efetivamente, propriedades privadas legítimas. Neste caso, representando, a reforma
agrária, antes de mais nada, um grave atentado à propriedade privada, que é um dos
pilares da ordem econômica nacional, assegurado pela Constituição Federal.
Este estudo, que realiza uma ampla e cuidadosa revisão e análise dos processos
de alienação, apossamento e legitimação das terras públicas no Brasil, recuando aos
primórdios do seu descobrimento e avançando até a aprovação do Estatuto da Terra, em
novembro de 1964, e sua implementação pelos Governos Militares, questiona, com
veemência, estes dois pressupostos.
Para consubstanciar este questionamento, fundamenta-se, por um lado, no
levantamento e análise objetivos das principais legislações contidas nos ordenamentos

2 HIRANO, 1988, p.47.

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jurídico e fundiário brasileiros, (e portugueses, referentes ao período Colonial) vigentes
em diferentes momentos da história agrária do país, e através dos quais, o Estado
regulamentou e conduziu o referido processo de privatização territorial. Por outro lado,
analisa-se, da mesma forma, o processo concreto de apossamento e ocupação das terras
públicas e as respectivas iniciativas do Estado, para efetivar o seu reconhecimento legal.
Estas análises são complementadas pelo estudo de determinadas estatísticas referentes à
distribuição da propriedade, da utilização das terras apropriadas e dos movimentos
demográficos, especificamente em relação ao período do Regime Militar.
Com base nestas análises, argumenta-se, nesta pesquisa, e contrariamente aos
pressupostos citados acima, no sentido de que a alienação das terras públicas brasileiras,
tanto através das concessões, inicialmente postas em prática pela Coroa Portuguesa,
quanto pelas demais formas de apropriação e legitimação de posses, que se lhes
seguiram, fundaram-se, de modo relevante, no privilégio, quanto à alienação; e na
ilegalidade, quanto aos registros. Trata-se, por conseguinte, neste sentido específico, de
construir e de defender a hipótese de que são processos de apropriação e legitimação
privilegiadas.
Por outro lado, os processos de legalização e registros dos imóveis rurais em
poder de particulares - sobretudo no que se refere à grandes áreas -, na medida em que,
na maioria absoluta dos casos, se furtaram ao cumprimento das formalidades legalmente
sancionadas - especialmente, desde a Lei de Terras de 1850 - são juridicamente
questionáveis.
Estas posições e hipóteses, tais como defendidas neste trabalho têm, de
imediato, pelo menos, duas implicações importantes:
A primeira refere-se ao fato de que os alegados custos com “desapropriação”
para fins de reforma agrária, são ampla e objetivamente questionáveis. Poderão estar,
com certeza, infinitamente abaixo das estimativas do Governo, se este levar em
consideração que boa parte das terras ocupadas privadamente no País, continuam
públicas, logo não implicando, necessariamente, custos com indenização territorial.
Quando muito, poderão implicar, apenas - se estas posses gozarem do benefício da
“boa-fé” e forem efetivamente exploradas - a indenização de possíveis benfeitorias
úteis, e necessárias. E nos casos das posses mansas e pacíficas, exploradas diretamente
pelas famílias que nelas residem, nos termos da legislação em vigor, cabe ao Estado
legitimá-las, fornecendo os respectivos títulos de propriedade. Neste caso, a legitimação
destas posses seria parte relevante do próprio processo de reforma agrária que se
pleiteia. Entretanto, como será visto nos diversos capítulos deste trabalho,
especialmente nos capítulos 4 e 5 que se ocupam da análise da Política Fundiária
implementada pelos Governos Militares, exatamente estes casos foram,
contraditoriamente, penalizados, o que dificultou, ainda mais, qualquer alternativa ao
desenvolvimento de uma reforma agrária efetiva no País.
No caso contrário, nem isto. Porque ao Executivo não cabe indenizar à terceiros
por terras devolutas, que, “ipso facto”, pertencem ao Estado, sendo, ao contrário, dever
de ofício do Poder Público, promover as respectivas ações discriminatórias para dirimir
estas dúvidas, antes de qualquer iniciativa no âmbito indenizatório.
Desta forma, os “custos de desapropriação para fins de Reforma Agrária”
poderão, de fato, ser infinitamente inferiores aos que são estimados e, portanto, a
possibilidade de execução da Reforma poderá ser amplamente viável e possível, ao

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contrário do que tem sido argüido pelos seus executores ou opositores. Porque, não se
trata, no caso, nem sequer de se argüir as formas de pagamento das indenizações, mas,
se elas são efetivamente devidas. No caso em que forem devidas, caberão as
indenizações, que devem ser pagas na forma legalmente estabelecida.
A segunda implicação que pode ser retirada das análises realizadas nesta
pesquisa, refere-se ao fato de que a legalidade das propriedades rurais, sobretudo
quando se referem à grandes áreas - independentemente de serem ou não produtivas - é,
juridicamente, questionável. Este fato, que será evidenciado neste estudo de forma
efetiva e exaustiva, reforça a asserção anterior.
Como registra Hely Lopes Meirelles3, entre outros juristas e estudiosos da
questão fundiária consultados na realização deste trabalho, as terras brasileiras são,
originalmente, públicas. Sendo assim, uma dimensão relevante no estudo da questão
agrária, que necessita ser contemplada de forma específica, refere-se ao problema da
legitimidade dos processos de privatização das terras agrícolas do País. Trata-se,
portanto, de analisar o problema jurídico e concreto da transferência, para particulares,
do domínio sobre terras, cuja propriedade era, originalmente, pública. E das condições
concretas em que esses processos foram implementados. Esta é a proposta de estudo
desenvolvida nesta pesquisa.
A dimensão de legitimidade do processo de alienação das terras públicas é
referida, neste estudo, em relação às formas institucionais específicas - jurídicas e
concretas - através das quais o Estado, em diferentes momentos da história do país,
consentiu, ou impediu, a aquisição ou o reconhecimento legal da ocupação particular, de
terras do seu patrimônio, procurando regulamentá-las.
É preciso não perder de vista, entretanto, que o reconhecimento legal da
propriedade privada rural, pelo Estado, envolve, necessariamente, processos sociais e de
sociabilidade, que se materializam na inclusão, ou excludência, de determinadas
camadas da população em relação à propriedade da terra. É neste nível que se situa, ou
engendra-se, a apropriação e a legitimação privilegiadas.
Trata-se, portanto, de analisar as formas e meios jurídicos, institucionais e
administrativos concretos, através dos quais, o Estado buscou, não apenas reconhecer e
assegurar o acesso à propriedade da terra e sua respectiva legalização formal, para
determinadas camadas sociais da população. Porque este processo significou,
igualmente, a negação deste mesmo direito para um amplo conjunto da população que,
desde os primeiros momentos da colonização e durante todo o processo de consolidação
da ocupação territorial do País, havia-se alojado, com ou sem o consentimento do
Estado, em pequenas posses, destinadas à agricultura de subsistência, utilizando-se do
trabalho da própria família.
Foi desta forma, historicamente constituída, que, pela instituição de um conjunto
de instrumentos administrativos e de procedimentos jurídicos, ou pela simples omissão
do Estado diante da violência privada, praticada reiteradamente pelos grandes
detentores de terras contra os pequenos posseiros e indígenas, que estes foram,
paulatina, mas sistematicamente, transformados em “invasores” e “intrusos”, nas terras
que secularmente ocupavam e nas quais sempre viveram e trabalharam. Até serem
expulsos.

3 Op. cit.

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Por uma questão de necessidade metodológica e com o objetivo de facilitar o
estudo comparativo destes processos, tais como implementados em diferentes
momentos e conjunturas da história agrária do Brasil, privilegiou-se a análise da Política
Fundiária posta em prática no período do Regime Militar (1964-1984).
Neste período a alienação de terras devolutas e a legitimação de toda a sorte de
grandes ocupações ou posses, foram amplamente incentivadas e praticadas pelo Estado,
com base na regulamentação estabelecida pelo Estatuto da Terra, de 1964, que, depois
do Regulamento de 1854, referente à Lei 601 de 1850, foi a grande tentativa do Estado
brasileiro de assumir a iniciativa do controle efetivo na condução da Política Fundiária
do País, muito especialmente, no que se referia à alienação de terras devolutas e à
legitimação de posses em domínio particular. Na verdade foi a segunda tentativa, após a
Independência Nacional, de subordinar a alienação de terras devolutas ao processo mais
amplo de desenvolvimento da economia nacional. A primeira foi em 1850.
E também, porque foi exatamente neste período, que o processo de privatização
de terras públicas e de legitimação de grandes áreas de terras devolutas em poder de
particulares, assumiu, do ponto de vista aqui defendido - de alienação e legitimação
privilegiadas - sua dimensão de maior radicalidade, especialmente se comparado aos
demais momentos da história fundiária brasileira.
O Estatuto da Terra foi, depois do fracasso na implementação da Política
Fundiária do Império, tal como posta no Regulamento da Lei 601/1850, a primeira
tentativa sistemática e legalmente constituída de regulamentar o processo de alienação
de terras públicas e de legitimação das posses sobre estas. A Lei 4.504, de 30 de
novembro de 1964, referia-se à regulamentação do imperativo Constitucional, de 1946,
de permitir “a justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para
todos”. Entretanto, era muito mais do que isto. A aprovação do Estatuto da Terra,
sobretudo se se tiver em consideração a conjuntura em que se materializou, significava
colocar, juridicamente, nas mãos do Poder Executivo, a plena possibilidade de dispor de
todas as terras devolutas do país, inclusive permitindo, pelo instituto da
“desapropriação por necessidade social e para fins de reforma agrária” a
intervenção do Estado na esfera das propriedades privadas legítimas e, em determinadas
circunstâncias, nas terras devolutas dos Estados e Municípios.
Essas são as razões metodológicas e objetivas, que explicam a ênfase da análise
neste período. Este procedimento foi fundamental para permitir o estudo comparativo
do processo de alienação ou ocupação de terras públicas noutros períodos da história do
Brasil, sem o qual seria improfícua qualquer avaliação. Desta forma, buscou-se ampliar
as possibilidades de compreensão do processo e realçar suas respectivas especificidades.
Também porque era necessário investigar se, em algum outro momento da história
agrária brasileira, o processo de alienação e legitimação de terras públicas, foi efetiva e
legalmente realizado de forma relevante. A análise feita nos diversos capítulos
evidenciaram que a resposta a esta pergunta é negativa.
Considerando-se, que desde os primeiros momentos do processo de colonização,
o Estado Português sempre teve o cuidado de apenas ceder a "posse útil" e não o
domínio sobre as terras agrícolas, a formação da propriedade privada territorial rural no
Brasil, sempre esteve marcada pela problemática do privilégio, em sua concessão, e da
ilegalidade, em sua confirmação ou titulação. Ou seja, o processo de legitimação da
propriedade privada territorial, que só assume a forma moderna de propriedade absoluta

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da terra (propriedade burguesa) a partir da promulgação da Lei 601 de 1850, sempre
esteve eivado de impedimentos políticos e, sobretudo jurídicos e burocráticos. Como
Registra oportunamente Costa Porto,
"(...)talvez a linguagem das cartas dos donatários por esta
concepção de que el-Rei cedera direitos dominiais sobre o
solo, quando, na verdade, se limitara a outorgar 'poderes
políticos', largos, sim, 'direitos majestáticos quase absolutos'
mas de nenhum modo, direitos sobre o solo.4"

Tratavam-se das concessões de posse com cláusulas de resolubilidade, ou seja,


que a qualquer momento poderiam ser revertidas ao domínio da Coroa. Raymundo
Faoro registra magistralmente o sentido profundo, político e econômico desse instituto
jurídico:
"Os forais - a carta foral - , pacto entre o rei e o povo,
asseguravam o predomínio do soberano, o predomínio já em
caminho para o absolutismo, ao estipularem que a terra não teria
outro senhor senão o rei.5"

Não se tratavam, portanto de propriedades privadas no sentido liberal, de


propriedade absoluta, perspectiva esta, que seria aberta, apenas, com a aprovação da Lei
de Terras. Donde a sua relevância para a análise dessa problemática.
Esses impedimentos ao processo de reconhecimento real (confirmação de
sesmarias) e, posteriormente, de reconhecimento legal (legalização ou revalidação, nos
termos da Lei 601 de 1850, sobretudo), em última análise, apenas serão ultrapassados
em circunstâncias muito especiais e por determinados grupos muito particulares:
geralmente os mais próximos (social, política ou economicamente) aos círculos do
poder6. Esta situação sempre facilitou, historicamente, a ação destes grupos em
detrimento da maioria da população rural. Neste sentido - e esta é uma das
particularidades que se pretende evidenciar neste estudo - e mesmo tendo em estrita
consideração o conceito de "Estado de Direito", no qual o processo de legitimação da
propriedade territorial não prescinde do atendimento das formalidades legais e de
requisitos juridicamente instituídos, tem-se, forçosamente que se concluir, que a
propriedade fundiária, no Brasil, sempre se construiu, historicamente, como propriedade
não-absolutizada (até 1850) e, na melhor das hipóteses, de legitimação privilegiada,
desde sempre.
É neste sentido que aqui se entende que a propriedade fundiária no Brasil, do
ponto de vista do Direito, mas, também da praxis social, sempre esteve eivada de
privilégio e da ilegitimidade. Assim, tratam-se, ainda hoje, de propriedades
juridicamente questionáveis
Pode-se afirmar que as Políticas Fundiárias postas em prática no Brasil, por um
lado, e o processo de avanço indiscriminado e extra-legal, das posses, por outro,
geraram uma espécie de "estado hobbesiano" ao nível da prática, fenômeno este,

4 COSTA PORTO (S.d., p. 21). Grifos nossos.


5 FAORO (1996, p.7).
6Esta é, aliás, uma das críticas fundamentais de Wakefield ao processo de concessão de terras nas colônias, contra o
qual ele propunha a venda de terras pelo Estado, como será visto no capítulo 2.

15
sobretudo agravado, no período compreendido entre 1822 e 1850, conhecido como o
"império das posses". Este período corresponde, na história fundiária do Brasil, ao da
formação e consolidação definitiva do latifúndio, e está na base da formação das
oligarquias rurais, possibilidade até então vedada, dado o próprio caráter da legislação
agrária das sesmarias e da política econômica de feição absolutista e mercantil de
Portugal7. O curioso é que essa espécie de "estado hobbesiano" reaparece com todo o
seu vigor em consonância com a implementação da Política Fundiária do pós-1964.
Foi no período de 1822 a 1850 quando, tendo sido suspensa a concessão de
sesmarias (julho de 1822) e, "decaída", com a Independência do Brasil, em setembro
daquele ano, toda a legislação portuguesa, por um lado, e não tendo sido aprovada
nenhuma outra regulamentação do acesso à propriedade rural, por outro lado, que
grassaram, sobretudo, as grandes posses, muito mais que as pequenas. Entretanto, se por
um lado, a ausência de regulamentação sobre a propriedade territorial facilitou o avanço
das posses, por outro, esta mesma ausência impossibilitava a legalização das ocupações.
Ou seja, não permitia, formal e juridicamente, a formação da propriedade legítima. O
problema assim criado pelo desenvolvimento das posses extra-legais, ficará sem solução
até 1850. Exatamente o equacionamento deste problema da legitimação
(reconhecimento pelo Estado) dessas posses, além de outros problemas gestados no
período anterior, estará no cerne do debate legislativo da década de 1840, que terá como
resultado a aprovação da Lei de Terras de 1850.
O relevante neste processo, como se pretende evidenciar neste estudo e
comparar com a situação do pós-1964, é que, apesar das alternativas legais e políticas
abertas pela Lei 601, - que diga-se de passagem, mantinha o mesmo caráter de
legitimação privilegiada e excludente anterior - sua aplicabilidade foi sistematicamente
sabotada, tanto no que se referia à arrecadação e à discriminação de terras devolutas,
quanto no que tocava à política tributária (inviabilizada), quanto ainda, o que é mais
relevante, à legitimação e ao registro das terras que se encontravam no patrimônio
privado e poderiam, obedecidas as formalidades legais estabelecidas, ser legalizadas e
tituladas. O outro fracasso na implementação da Lei 601, referia-se ao fato da "venda
de terras em hasta pública" que não se materializou como era esperado, por motivos
que serão oportunamente analisados neste estudo8.
Não se tratava, neste contexto, de se ter transformado a Lei 601 de 1850 em letra
morta, como se defenderá neste trabalho. Trata-se, antes, de se assegurar, manter e
ampliar os privilégios de legitimação pelas vias da pressão privada, por um lado e, por
outro, da tentativa, sempre presente na história política do Brasil, de subordinar aos
interesses privados as ações do aparelho burocrático do Estado. Esse processo sempre
implicou a articulação entre a violência privada e a manipulação das ações da
burocracia pública em benefício das camadas privilegiadas, então já ciosas, embora
ilegal e ilegitimamente, do domínio territorial, e não apenas de posses condicionadas,
como anteriormente a 1822. Por isso, o próprio processo de legalização da propriedade

7A respeito da discussão detalhada desta dimensão fundamental do desenvolvimento e da formação econômica,


social, cultural e política do Brasil, que fugiria aos objetivos desta pesquisa, ver os excelentes trabalhos de FAORO
(1996) e NOVAES (1978). Ver, ainda, os estudos clássicos de Caio Prado Júnior (1977 e 1979), publicados no final
da década de 1930 e durante os anos 40; a História Econômica de Roberto Simonsen (1978) e os trabalhos pioneiros
de Nestor Duarte (1939), Malheiro Dias (1924), entre muitos outros. A respeito, especificamente da problemática das
sesmarias em Portugal, ver, especialmente o trabalho de Virgínia Rau (1982).
8 Ver o capítulo 2.

16
privada moderna, burguesa, no Brasil é, na sua origem, eivado do privilégio, da
ilegalidade e da excludência.
É tendo como referência esse contexto e sentido que, neste trabalho, defende-se
a hipótese de que há uma determinada lógica, fundada na excludência e no privilégio,
que vem presidindo todo o processo de formação, desenvolvimento e legitimação da
propriedade territorial rural no Brasil. Esse processo assume seu caráter efetivo de
absolutização da propriedade e seus meandros fundamentais de violência ilegítima, a
partir da promulgação da Lei de Terras de 1850 que, ao estabelecer critérios legais para
o processo de privatização, típicos da sociedade burguesa, criou, juridicamente, o
divisor de águas, que possibilitava a separação entre o que era e o que não era legítimo,
no âmbito da propriedade fundiária. Portanto, ao persistirem as ações de incorporação
de áreas (públicas ou não) ao domínio de terceiros, fora dos critérios legalmente
sancionados pelo Estado, pode-se caracterizar tais ações como ilegítimas. De igual
forma, as propriedades gestadas nestas circunstâncias são, também, ilegítimas. Esse é o
contexto da argumentação que aqui será desenvolvida, fundamentada e defendida.
Com o advento do Estatuto da Terra, na segunda e relevante tentativa de
enquadramento legal do problema fundiário brasileiro após a Independência, em 1964, a
situação fundiária encontrada permanecia caótica. Aliás, uma das justificativas de sua
promulgação era exatamente o reconhecimento desta situação9. As medidas propostas
nesta Lei e nos atos administrativos que a complementaram, aparentemente indicavam
alternativas importantes para o equacionamento de inúmeros problemas, especialmente
no campo da legitimação da propriedade e da superação da estrutura agrária concentrada
e excludente que persistia no País.
Diz-se aparentemente, posto que, como a Lei 601 de 1850, o Estatuto da Terra
de 1964, também era uma lei de propriedade, porém os seus resultados implicaram
numa radicalidade ainda maior no que toca aos processos de legitimação privilegiada e
excludência social. Neste sentido, a Lei 4.504/1964 não realizou nenhuma Reforma
Agrária, ou, como concluiu Octávio Ianni, realizou, na prática, uma contra-reforma
agrária10. Se o regime militar operou uma profunda transformação na estrutura da
propriedade territorial no Brasil ou não, não é o aspecto mais fundamental desta
questão. E é óbvio que foi operada uma transformação importante na estrutura agrária.
Só que uma transformação que significou, ao contrário do que era, aparentemente,
proposto na Mensagem 33 e no Estatuto da Terra, a consagração da legitimação
privilegiada e da excludência. Embora seja forçoso admitir que as medidas postas em
prática, possibilitaram mudanças relevantes do âmbito da propriedade rural, da
produtividade do trabalho agrícola e da própria diversificação da cesta de produtos da
agricultura brasileira.
Para aqueles que concordam com as teses do senhor Roberto Campos11 no
sentido de que o desenvolvimento econômico exige, como pré-condição,
necessariamente, alguma forma de autoritarismo e violência antidemocrática, a Política

9Vide Mensagem 33 do Presidente General Humberto de Alencar Castelo Branco, analisada em pormenor no
capítulo 4. (BRASIL. Presidência da República. Brasília: 1964).
10Ou seja, reforçando a alienação de terras públicas e a legitimação privilegiada e excludente, inversamente ao que,
aparentemente, era proposto na Mensagem 33. Cf. IANNI (1979).
11 Vide SIMONSEN e CAMPOS (1976). Especialmente o Capítulo X, pp. 223 a 257, onde essas teses são
defendidas por Roberto Campos, ao relacionar as “premissas cruéis” que, segundo ele, acompanharam sempre o
desenvolvimento econômico.

17
Fundiária do Regime Militar representou um grande avanço técnico. Caso contrário, há
que se discutir as várias alternativas históricas possíveis. Neste rumo é que esta proposta
de estudo é desenvolvida. Discutir a questão do desenvolvimento econômico, na
perspectiva de uma comparação com o desenvolvimento de um processo de
legitimidade da propriedade territorial brasileira é o sentido mesmo deste trabalho.
Por estas razões é que se considerou relevante a análise e recuperação, ainda que
em suas linhas fundamentais, dos diversos momentos e das diferentes políticas de terras
postas em prática no Brasil, desde o seu descobrimento até o Estatuto da Terra e sua
implementação e resultados. Talvez por esta via seja possível contribuir para o debate e
a crítica acerca da suposta legitimidade das grandes propriedades rurais do Brasil, cuja
origem legal, é, geralmente pouco conhecida. E que, ainda assim, constitui-se em
verdadeira muralha fantasmática a opor-se à reforma agrária no País.
A análise desse amplo e complexo processo é realizada nos diferentes capítulos
deste estudo, na forma a seguir sumarizada:
O capítulo 1 ocupa-se do estudo do período colonial, no qual o acesso às terras
brasileiras subordinou-se ao instituto das sesmarias. Discute, de forma sistemática, as
transformações operadas na implementação deste instituto na Colônia, em face das
especificidades de sua situação econômica e política, o que explica os resultados
contraditórios da implementação deste instrumento pelo Estado Português, quer fosse na
Metrópole, onde consolidou, sobretudo, as pequenas propriedades produtivas, quer
fosse na Colônia, onde deu ensejo à formação de grandes propriedades, nas quais
permaneciam grandes áreas de terras ociosas12.
Neste sentido, no capítulo 1 procura-se colocar em evidência, que este
fenômeno de formação de grandes unidades de exploração decorreu de algumas
conjunturas específicas, presentes na Colônia, especialmente, nas etapas iniciais do
processo de ocupação do território, quando era priorizada a sua consolidação e defesa,
contra ambições estrangeiras. Este processo implicava a necessidade de assegurar-se as
condições de reprodução econômica da colônia, o que significava estabelecer processos
produtivos em larga escala, voltados para a realização no mercado mundial. Este fato
está na origem da formação de uma estrutura agrária fundada em grandes propriedades e
sustentadas pelo trabalho escravo. É neste contexto que se pode compreender o
privilégio embutido nas grandes concessões de sesmariais: elas exigiam, que o
concessionário, mais do que simples títulos de nobreza, tivesse recursos para suportar o
empreendimento 13.
O objetivo deste capítulo é levantar os pontos fundamentais para o
desenvolvimento das análises ulteriores, ao apresentar, como base no estudo das
legislações e atos da Corte Portuguesa, por um lado, e em diversos trabalhos,
especialmente, de Virgínia Rau, Cirne Lima, Roberto Simonsen, Prado Júnior e Costa
Porto, citados, por outro, uma síntese do sentido fundamental do processo de
privatização das terras brasileiras, tal como implícito no instituto das sesmarias. A
conclusão desta análise aponta para o fato, relevante e fundamental, de que, se por um

12 Ver a este respeito, especialmente, SIMONSEN (1978), LIMA (1954), COSTA PORTO (S.d.), GUIMARÃES
(1981), RAU (1982), SMITH (1990), MEIRELLES (1991), entre muitos outros estudiosos dos quais alguns
citaremos no decorrer deste trabalho.
13 Especificamente a este respeito, ver os argumentos de PRADO JR.(1975), SIMONSEN (1978) e GUIMARÃES
(1981).

18
lado, nascia, com a aplicação do instituto de sesmarias ao Brasil, o processo de
concessão privilegiada de terras, por outro lado, não se configurava a transferência
plena, absoluta, da propriedade sobre as terras concedidas, que estavam sujeitas às
cláusulas resolutivas. Assim, nesta etapa da história agrária brasileira, salvo algumas
concessões que foram confirmadas pela Corte e não caíram, ulteriormente, em comisso,
poucas foram as propriedades efetivamente legitimadas.
A legitimação da propriedade privada, cuja origem pode ser encontrada neste
período, apenas terá a possibilidade de realizar-se com a Lei 601, de 1850.
Partindo das conclusões do primeiro capítulo, no capítulo 2 busca-se a análise
detalhada e objetiva do amplo processo de reestruturação das relações de propriedade,
engendrados pela crise do sistema sesmarial, e, muito mais do que isto, pela crise da
transição para a Independência e consolidação do Estado Nacional, na nova conjuntura
do desenvolvimento do capitalismo em escala mundial, em meados do século XIX.
Iniciando a análise no contexto da ruptura institucional com a Metrópole e da
continuidade das relações com a economia mundial em sua condição de país
independente, no capítulo 2 procura-se discutir o problema fundiário como parte
importante de conjunturas e problemas de maior relevância e gravidade: a manutenção
da independência e unidade nacionais, a consolidação do Estado, etc. Nesse contexto,
são estudadas as propostas de reestruturação da política fundiária e econômica, que
vinham sendo colocadas ao debate parlamentar desde 1821; especialmente no que se
referia à suspensão das concessões de sesmarias e a alternativa à implementação de um
mercado de terras, estritamente associado à implementação de uma política específica
de promoção da imigração estrangeira, particularmente fundadas nas teses da
“colonização sistemática”, de Wakefield14, publicadas em 1834, visando à substituição
gradual, mas sistemática, do trabalho escravo.
Nesse sentido, é analisado o processo de promulgação da Lei 601 de 1850 e suas
possíveis articulações com as teses da colonização sistemática, de Wakefield, enquanto
uma alternativa à absolutização da propriedade privada e implementação do trabalho
livre na agricultura. O capítulo 2 conclui, com base na análise detalhada da Lei 601, do
seu Regulamento, de 1854 e de suas implicações concretas ao nível da sua
implementação, que a Política Fundiária e a tentativa de estruturação de um mercado de
trabalho livre, formuladas inicialmente na década de 1840, foram subvertidas. Assim,
persistiu, senão o processo de concessões privilegiadas, do antigo instituto sesmarial,
certamente, o processo de apropriação privilegiada de terras públicas, fundado nas
posses. O dado novo, que é engendrado neste contexto, refere-se ao fato de que, ao
determinar a proibição do apossamento de terras públicas, e ao condicionar a
legitimação de posses e sesmarias em comisso, ao processo de registro, subordinado
este às exigências de medição, demarcação, residência habitual e exploração efetiva da
terra, era criada, objetivamente, a possibilidade legal para a caracterização do fenômeno
das apropriações, como legítimas ou não, conforme cumprissem ou não as exigências
formalmente instituídas.
Será com base na análise destas condições, que a legitimidade e legalidade das
propriedades poderão ser, de modo objetivo - e juridicamente - questionadas. Esses são
os produtos mais evidentes do fracasso da Política Fundiária do Império, e que são

14 Teses estas desenvolvidas em WAKEFIELD (1967).

19
herdados pela República. Este período corresponde, na história fundiária no Brasil, ao
de formação e consolidação definitiva do latifúndio; e está na base da formação das
oligarquias rurais, possibilitada pelo desenvolvimento do liberalismo conservador e
derrocada do absolutismo mercantil na ex-colônia portuguesa.
O capítulo 3 analisa esta herança. Coloca em evidência, com base no estudo
cuidadoso das legislações agrárias e atos administrativos dos Governos do período que
se estende de 1889 a 1964, que o problema da legitimação de posses é efetivamente
posto em plano absolutamente secundário. Ao nível Federal, o Estado apenas apresenta
algumas tentativas esporádicas e casuísticas, no sentido de regulamentar a utilização dos
bens da União. Fica claramente documentado, neste capítulo, o fato de que o acesso às
terras públicas brasileiras continuou amplamente entregue ao sabor das ambições das
oligarquias estaduais, fato que vem a reforçar o caráter, não apenas do privilégio na
apropriação, mas, sobretudo na titulação dos imóveis rurais. A regulamentação do
processo de alienação e legitimação de terras públicas, sempre argüido neste período, é
tão só, e apenas timidamente, tentado em 1946.
Nas conclusões deste capítulo evidência-se que, também neste período, o
processo de apropriação e legitimação de terras públicas, no Brasil, não foi efetivamente
enfrentado. Este fato é, sobremaneira, agravado no segundo pós-guerra, tanto pela
implementação de políticas públicas objetivando a aceleração do desenvolvimento e
integração nacionais, que ampliaram a especulação com terras em áreas, até então,
pouco valorizadas, como a região Centro-Oeste e Norte; como, por outro lado, pela
nova face que passa a acompanhar a luta pela terra e pelas condições de trabalho, pela
população excluída da propriedade territorial e dos meios de trabalho; população esta,
que passa a organizar-se em ligas e sindicatos de trabalhadores rurais, para lutar em
defesa de seus direitos, sistematicamente anulados.
O capítulo 4 ocupa-se da análise da Política Fundiária implementada pelo
Regime Militar. Partindo de uma análise da conjuntura que engendrou a conspiração,
procura compreender o contexto em que o Estatuto da Terra é proposto e implementado.
Analisa cuidadosa e objetivamente a Mensagem 33 e a Lei 4.504, buscando colocar em
evidência que formam uma unidade, na qual é apresentado um determinado Projeto de
Política Fundiária e de Desenvolvimento Rural, claramente colocados e fundamentados
em determinado modelo de desenvolvimento econômico. Neste sentido, põe em
evidência, com base no estudo objetivo, principalmente, da Mensagem 33, enquanto
justificativa do projeto de lei de Estatuto da Terra, mas também de outros documentos
oficiais, bem como de documentos de organizações ligadas aos trabalhadores rurais e
outros, que o Projeto, então, encaminhado ao Congresso Nacional, o Estatuto da Terra,
foi efetivamente implementado nos termos propostos pelas autoridades fundiárias do
Governo, e que, portanto, é equivocada a noção que parte do pressuposto de sua não
realização.
Ao contrário da leitura geralmente feita, especialmente no que se refere à
Reforma Agrária, tal como exposta na Lei 4.504/64, esta pesquisa procura demonstrar
que esta era concebida no Estatuto da Terra, apenas como uma alternativa, entre outras,
para a promoção do desenvolvimento econômico nacional. Na verdade, a Reforma
Agrária era concebida, neste contexto, apenas com o objetivo de aliviar tensões sociais.
Exatamente por esta razão pôde, efetivamente, ser reduzida aos programas de
assentamento, no bojo dos projetos de colonização. Entretanto, era esta a assim

20
chamada “reforma agrária distributivista” posta no Estatuto. Ou seja, ao contrário do
que geralmente é colocado, a análise feita neste trabalho evidencia que o Estatuto da
Terra em nenhum momento incorporou uma real Reforma Agrária distributivista.
Na verdade, o objetivo explícito no Projeto de Desenvolvimento Rural
representado pelo Estatuto da Terra, conforme se referia a Mensagem 33, do Governo
Castelo Branco, era fundamentado tão só na busca do aumento da produção e
produtividade agropecuária, o que significava, para os teóricos deste modelo, o
incentivo e apoio à formação e ao desenvolvimento de empresas rurais médias e,
sobretudo grandes, nas quais, por suposto, haveria maior “eficiência” econômica. É
neste contexto que, no capítulo 4, é apresentada e defendida a hipótese de que o Projeto
de Desenvolvimento Rural dos Governos Militares, funda-se no pressuposto da
necessidade de se promover instrumentos de política agrícola que incentivassem a
formação de médias e grandes empresas agropecuárias, por um lado e a formação de
uma “classe média rural”, por outro. No âmbito deste modelo, a “reforma agrária” era
pensada apenas, e em última instância, como alternativa para acomodar tensões e
conflitos sociais graves. Esta a “reforma agrária” que, realmente implementaram. Isto
era exatamente o que estava proposto, com clareza, no texto da Mensagem 33 e
regulamentado no Estatuto da Terra. Esta foi a proposta efetivamente executada pelos
Governos Militares.
Assim, o capítulo 4 busca aprofundar as hipóteses fundamentais defendidas
nesta Introdução. A análise objetiva dos “instrumentos de ação fundiária” e das “formas
de alienação de terras públicas”, implementados pelos Governos Militares, não deixa
dúvidas de que o processo de apropriação e legitimação privilegiadas, que vinha, desde
longa data, estruturando-se na história agrária no Brasil, assume a sua forma mais
acabada, de grilagem especializada, neste período. Este conceito é criado neste
trabalho, para definir os atos de expropriação ilegítima de terras devolutas ou objeto de
exploração ou posses legítimas por pequenos produtores rurais, geralmente fundadas na
exploração de artifícios legais e jurídicos, quando não, na falsificação de documentos,
com o objetivo de “criar a aparência de legalidade” da propriedade. Este processo é
também caracterizado quando as autoridades fundiárias, com base em meros atos
administrativos e geralmente contrariando exigências da legislação em vigor, promovem
a alienação de terras em licitação pública ou não; ou, mais grave que isto, instituem
“formas de titulação” visivelmente voltadas para o privilegiamento de determinadas
situações ou camadas sociais, como fica amplamente evidenciado nos capítulos 4 e 5
deste trabalho. Neste caso, caracterizam atos de improbidade administrativa e, em
determinadas situações, de “crimes de colarinho branco” ou simples corrupção. De
qualquer maneira, tratam-se de atos de titulação, alienação ou legitimação juridicamente
questionáveis. Esta é a conclusão básica deste capítulo, e que procura fechar o conjunto
da análise comparativa do processo de privatização das terras brasileiras.
O capítulo 5 apenas procura reforçar com ampla documentação as conclusões do
capítulo anterior, colocando em evidência alguns dados e estatísticas sobre áreas
privatizadas no período, sua distribuição por regiões e estratos, e assim a utilização ou
destinação das terras apropriadas, isto por um lado; e, por outro lado, dados referentes
aos movimentos da população rural e urbana no mesmo período e por regiões.
Esta introdução não poderia ser encerrada sem uma referência à vasta literatura
que, no Brasil, ocupou-se, desde várias perspectivas teóricas e analíticas, das questões

21
levantadas por este estudo. As referências bibliográficas específicas serão desenvolvidas
no âmbito dos diferentes capítulos, na medida em que sejam suscitadas as questões
pertinentes e respectivas análises. Por esta razão, neste momento apenas será traçado um
perfil amplo das diferentes perspectivas teóricas e analíticas desenvolvidas acerca dos
problemas pertinentes à questão agrária e à política fundiária brasileiras.
Até porque seria impossível numa Introdução proceder-se à revisão exaustiva da
literatura que, em diferentes momentos e de diversas formas e perspectivas teóricas e
analíticas, se ocuparam da análise dos problemas ligados à estrutura agrária brasileira.
Além disso, fugiria à capacidade intelectual e de síntese do autor proceder a tão
ampla e relevante revisão, sem cometer omissões indesculpáveis. Assim, e com o
objetivo apenas de indicar as trajetórias fundamentais do debate, este tópico procura,
apenas, pôr em realce as linhas gerais seguidas pelos diversos estudos, indicando suas
características e pontos de vista fundamentais.
A questão agrária tem sido estudada de diversas perspectivas por diferentes
pesquisadores e analistas brasileiros. Neste sentido há uma ampla literatura científica, -
cujas referências específicas serão apresentadas na medida em que as diferentes
dimensões do problema sejam abordadas no decorrer deste trabalho -, e a qual se ocupa
da investigação da questão agrária nas suas especificidades e relações com o processo
de formação e desenvolvimento da sociedade brasileira, por um lado, e das implicações
geradas neste contexto pela trajetória histórica da estruturação e desenvolvimento da
produção capitalista e da economia de mercado.
Tratam-se de estudos que abrangem uma vasta área no âmbito das Ciências
Sociais. Ocupam-se de problemas que vão, desde as análises acerca do caráter do
processo de colonização e da economia colonial, até aos processos de modernização da
agricultura e suas relações com desenvolvimento do capitalismo na produção
agropecuária. No contexto destes estudos, são relevantes os trabalhos de Oliveira
Vianna (1923), onde é formulada de forma sistemática a tese do "feudalismo colonial",
acompanhada de perto pelo trabalho de Malheiro Dias (1924) que, retomando as
conclusões de Vianna busca desenvolver uma análise, fundamentada nos instrumentos
jurídicos de concessão de terras pela Coroa Portuguesa, para concluir pelo caráter feudal
da formação colonial. A tese do feudalismo é posta em questão por Roberto Simonsen
(1937), seguido de perto por Caio Prado Júnior (1939), ambos defendendo a tese de que
a economia colonial possuía caráter capitalista, embora, estes autores se fundamentem
em argumentações teóricas distintas. Na defesa contundente do "Feudalismo Colonial"
encontra-se, ainda, Nestor Duarte (1939), com seu estudo, que se tornou clássico, "A
Ordem Privada e a Organização Política Nacional".
Ainda acerca deste debate, muitos outros autores poderão ser arrolados, como
Celso Furtado que em 1959, já no novo contexto do debate nascido no segundo pós-
Guerra, publica um livro, que se tornou, também clássico, Formação Econômica do
Brasil, no qual defende a tese do capitalismo colonial; entretanto, apresentando
distinções importantes em relação aos argumentos defendidos nos trabalhos de
Simonsen e Prado Júnior, sobretudo, ao admitir que, as transformações do mercado
mundial ao deprimirem as exportações brasileiras, provocaram, em determinados
setores da economia, uma atrofia e uma regressão à formações pré-capitalistas. Segundo
Furtado, portanto, o sistema colonial era capitalista em sua origem, mas as estruturas
agrárias atuais regridiram a um estado semi-feudal, depois de um longo processo de

22
involução. Furtado, na verdade, já se filia à nova corrente "dualista" que se desenvolve a
partir dos anos 50. Nesse grupo de analistas pode-se incluir ainda Lambert (1959), Paul
Singer (1961). Em 1964 é publicado o trabalho clássico de Passos Guimarães, Quatro
Séculos de Latifúndio, retomando a tese do feudalismo colonial, reforçando os
argumentos de Nestor Duarte. Para uma excelente análise desse debate ver TOPALOV
(1978); HIRANO (1988), especialmente o capítulo 1, onde é realizada uma análise
crítica das teses acerca do sistema colonial. Recentemente, estas teses receberam forte
crítica, e especialmente, entre outros estudiosos, por parte de OLIVEIRA (1983 e 1984).
Por outro lado, no que se refere a análise da dimensão jurídica e suas
articulações com a dinâmica concreta da ocupação produtiva da terra e da formação da
propriedade privada rural, persiste a necessidade de se desenvolver investigações mais
especializadas. É neste contexto particular que a análise específica da política fundiária
necessita, do ponto de vista aqui defendido, ser aprofundada e realizada com maior
detalhamento. Especialmente no que se refere ao estudo objetivo das Políticas de posse
e uso da terra, implementadas pelo Estado, em diferentes conjunturas do
desenvolvimento brasileiro. Trata-se da necessidade de estudo sistemático do amplo e
diversificado conjunto de instrumentos jurídicos, políticos, administrativos, e
econômicos, dentre outros, instituídos com o objetivo específico de assegurar e oferecer
caráter de legitimidade, burguesa ainda, isto é uma legitimidade histórica e por isso
transitória na sua forma específica, ao processo de apropriação absoluta do território,
enquanto condição prévia e necessária à ocupação produtiva da terra sob o capitalismo.
É neste contexto e nesta direção que se situa este estudo.

23
CAPÍTULO 1

A POLÍTICA FUNDIÁRIA COLONIAL: O INSTITUTO DAS SESMARIAS


"No dia 21 de abril de 1500, quando aqui chegaram os portugueses, o país
que viria a ser chamado Brasil perdeu a autonomia sobre o seu território e
iniciou-se o processo de grilagem. Os anos se passaram e estão-se
completando cinco séculos de história de dominação, exploração e grilagem,
por um lado, e de escravatura, miséria e luta pela reconquista da terra, por
outro.”15
"Com o descobrimento do Brasil, no preciso momento do seu descobrimento,
automaticamente, todo o seu território passa ao domínio de Portugal. Não só
no sentido político-estatal, que se pode extrair da palavra domínio -
autoridade e poder portugueses sobre a terra submissa - mas, identicamente,
no que se contém como sinônimo de propriedade - todo território brasileiro,
como objeto de relação jurídico-real, passa a ser integralmente, de
propriedade do Reino."16

1. Considerações Gerais

É significativo que os dois comentários acima, um de um religioso envolvido


com a luta pela reforma agrária no Brasil contemporâneo, outro, de um professor de
Direito, coincidam no fundamental: a história da soberania brasileira começa com a
perda da soberania; e a história da propriedade territorial, no Brasil, inicia-se pela perda
de domínio sobre o seu território, e sua respectiva anexação ao patrimônio dominial de
um outro Estado. Desta forma também o entende Ruy de Cirne Lima, quando afirma
que "a história territorial brasileira começa em Portugal" e que a ocupação do seu
território pelos portugueses, em nome da Coroa, "transportou inteira, como um grande
vôo de águias, a propriedade de nosso imensurável território para além-mar.17”
Duas situações objetivas derivam-se deste fato histórico:
Primeira, que ao ser descoberto o Brasil, e integrado ao patrimônio do Estado
Português, por direito de conquista, ficava implícita à transformação de todo o seu
território em propriedade colonial do Reino de Portugal, passando a constituir-se em

15ASSELIN (1982, p.11).


16NASCIMENTO (1985, p.7).
17 LIMA (1954, p.11)

24
uma espécie particular de “propriedade” estatal, pública. Isso significava, igualmente,
que a partir deste ato formal de tomada de posse - um ato não apenas jurídico e político,
mas, sobretudo econômico - deixou de existir, no Brasil, terra adéspota, sem dono.
Todas as terras passam, desde então, formalmente, à condição de domínio da Coroa
Portuguesa.
Segunda, que esta sujeição - jurídica, política e econômica - significava,
objetivamente, que o acesso e a exploração (produtiva ou não) das terras coloniais,
passava, necessariamente, a ser mediados pelo consentimento do Governo de Portugal.
Tratava-se, portanto, de um processo de privatização, de transferência de direitos,
fossem do uso ou, em alguns casos, do próprio domínio, sobre as terras coloniais.
Porque, Portugal, ao deter, juridicamente, a propriedade da Colônia, detinha, “ipso
facto”, o direito de autorizar ou impedir o acesso ou a exploração das terras coloniais,
que eram do seu domínio.
Entretanto, para explorá-las e torná-las produtivas, e desta forma poder auferir
concretamente os frutos desta propriedade colonial, necessariamente, a Coroa
Portuguesa teria que submeter-se às condições objetivas das conjunturas políticas e
econômicas, tanto internas ao Reino quanto, sobretudo internacionais. Estas condições
situavam-se para além da vontade do Estado Português e não dependiam, da sua
condição de “proprietário formal” da Colônia. É nesta conjuntura objetiva que o Estado
Colonial Português se verá obrigado a implementar um determinado e específico
processo de ocupação e exploração da Colônia, ao integrá-la ao seu patrimônio.
Portanto, a colonização do Brasil e as formas jurídicas e administrativas concretas,
implementadas pelo Estado Português, para assegurar o seu domínio e a exploração
sobre o espaço colonial, exigirão de Portugal um determinado e específico processo de
colonização. Este processo é fundado no consentimento, ainda que oneroso,
possibilitando à determinadas camadas da população portuguesa empreender, em
sociedades ou individualmente, o povoamento e a exploração da Colônia.
Este consentimento, nas condições objetivas da época, implicaram a necessidade
da concessão de determinados privilégios, em troca da garantia do domínio colonial
português. Disto derivam, os amplos poderes consentidos pelo Estado Português aos
primeiros colonizadores, na verdade, autênticos delegados políticos do Rei. Por outro
lado, estes concessionários, ao receberem, em certo sentido, a transferência do direito de
exploração da propriedade, estavam, da mesma forma, sujeitos às condições objetivas,
impostas pela situação da Colônia. Isto significa que, para poderem exercer este direito
de exploração - de propriedade -, necessariamente teriam que promover os meios, antes
de tudo, econômicos, capazes de assegurá-lo. Isto significava que deveriam estes
concessionários, reproduzir o mesmo modelo de realização da propriedade recebida,
promovendo a concessão de sesmarias para pessoas que pudessem diretamente explorar
a terra e promover a defesa e ocupação da Colônia. Desta forma era assegurada a
reprodução da totalidade do sistema.

25
É nesta conjuntura que o instituto das sesmarias será implementado no Brasil,
adquirindo as especificidades que efetivamente o caracterizaram aqui, e que se
distanciaram, em muitos sentidos, da forma e atributos que possuía, primitivamente, no
Reino. Se na Metrópole este sistema de colonização implicou a formação de pequenas
propriedades produtivas e, aqui, o contrário, isto deveu-se certamente às condições
coloniais. E não apenas, nem fundamentalmente, ao fato de que na Colônia existiam
terras abundantes - embora este fato fosse relevante. Também porque, a produtividade
do trabalho, sobretudo em face das dificuldades de incorporação de meios técnicos,
implicava a exploração extensiva da terra, para tornar possível a produção na
quantidade e volume necessários à sua realização no mercado mundial, sem o que não
seria possível a reprodução do sistema. Esta mesma espécie de limitação concreta, no
que se refere à possibilidade de consecução de força-de-trabalho local ou oriunda da
Metrópole, implicaria no imperativo da importação de escravos africanos. Dessas
limitações impostas à exploração da Colônia, derivam-se a formação de grandes
plantações e a exploração da mão-de-obra escrava.
Portanto, privilégios - nas concessões -, escravismo, como forma de produzir, e
latifúndio, não são invenções ou reinvenções do processo de colonização portuguesa,
mas exigências das próprias condições objetivas da Colônia e de sua inserção no
processo de reprodução da economia portuguesa, na conjuntura do mercantilismo18.
Colocar clara e objetivamente este ponto de partida no que toca ao processo de
formação da propriedade territorial rural no Brasil é fundamental para que se possa
compreender a imensa complexidade e as especificidades que envolveram a formação
da propriedade rural brasileira e o confuso quadro - econômico, jurídico e político - no
âmbito do qual se processou a sua legitimação.
No que se refere, especificamente, à formação e desenvolvimento da
propriedade territorial rural no Brasil, há que se registrar, em decorrência da conjuntura
esboçada acima, um fato relevante e que, em certo sentido, está na sua origem e que
condicionará, objetivamente, o seu processo de consolidação e desenvolvimento: trata-
se do fato de que no Brasil, assim como em todos os países de origem colonial, as
terras, antes de se tornarem propriedade privada, são, genéticamente, propriedade
estatal, pública. O problema que se colocava, portanto, a este nível, era o de transferir o
direito de exploração, portanto de propriedade real, da esfera pública para a esfera
privada. Por outro lado, tatava-se de definir, juridicamente19, os objetivos deste processo
de privatização e os meios de legitimação desta transferência de domínio. Ou seja,
instituir e viabilizar as formas para materializar esse direito real de propriedade,

18 Ver a respeito dessa conjuntura e de suas implicações para o sistema colonial em Portugal e no Brasil, os
excelentes trabalhos de SIMONSEN (1978), PRADO JÚNIOR (1977), FAORO (1996), NOVAES (1978),
GORENDER (1978), entre muitos outros que serão estudados no decorrer deste trabalho. Esta conjuntura é discutida
com alguma riqueza de detalhes neste e no próximo capítulo deste estudo.
19 Ver a este respeito, os argumentos de Fernando Novaes (NOVAES, 1978).

26
transformando-o em direito formalmente assegurado. Tal é o problema a ser enfrentado
no Brasil, que neste trabalho é posto em questão.
Como já foi observado, com o descobrimento, o território brasileiro passou a
integrar o domínio colonial português. Passou, portanto, como observa, com razão
Novaes20, a integrar, de forma subordinada, a economia mercantil e colonial portuguesa
e, neste sentido, a configurar-se como uma “colônia de exploração”, isto é, vinculada às
demandas políticas e aos interesses econômicos do país colonizador. Dessa conjuntura
concreta engendram-se as especificidades de sua formação, sobretudo no que se refere
às condições de sua reprodução econômico-social enquanto nação colonizada.
É neste sentido que a formação e desenvolvimento da propriedade territorial
brasileira não pode ser desvinculada da tradição jurídica e da situação política e
econômica de Portugal e do Brasil enquanto colônia. Por outro lado, embora exista
necesariamente esse nexo, ele não deve ser interpretado como significando que a
transposição da experiência jurídica, política, administrativa e econômica de Portugal
para a situação do Brasil, tenha ocorrido sem transformações e ajustamentos relevantes.
Estas transformações efetivamente foram observadas e eram resultado do próprio
contexto das condições materiais de reprodução econômico-social da Colônia e da sua
inserção no âmbito da economia mercantil, subordinada aos interesses metropolitanos.
Por isso, a gênese e, sobretudo, o desenvolvimento do direito de propriedade no
Brasil e, mais do que isso, o próprio processo de ocupação e apropriação dos seus solos
agrários, não são produtos de uma mera extensão do Direito Português e das formas de
apropriação territorial existentes em Portugal. Esta a razão, por exemplo, do instituto de
sesmarias ter apresentado características e, sobretudo, resultados diferentes em Portugal
e no Brasil. Lá promovendo a colonização interna e ocupação produtiva dos solos
agrícolas, sobretudo após a fase das presúrias, na época da Reconquista, tendendo à
formação de pequenas propriedades. Como registra Virgínia Rau:
"Com o terminar das campanhas da Reconquista, a presúria
morre e desaparece paulatinamente como sistema de aquisição
de terras, ao passo que o sedentarismo e a paz trazem consigo a
divisão das glebas, o sesmar os territórios conselhios (...)
Primeiro, integradas nesse movimento de colonização interna em
que o homem ganha direito à terra pelo cultivo e em que a
organização municipal alastra acolhendo o trabalhador à sombra
protectora dos forais, as sesmarias garantiram a fixação do
povoador e o aproveitamento do solo.21”
Aqui, pelo contrário, gestando o desenvolvimento da grande propriedade agro-
exportadora escravista e não conseguindo impor a condição de exploração efetiva à
totalidade do solo concedido. Mesmo em Portugal, como registra Virgínia Rau:
"(...)quando a atracção periférica do mar e o incremento das
atividades e imunidades urbanas fizeram tomar novos rumos ao
desenvolvimento social e económico do país, elas serviram para

20 NOVAES, op. cit.


21 RAU (1982, p. 142).

27
enfrentar problemas diversos daqueles que a viram
desabrochar.22“
Virgínia Rau refere-se, neste trecho, às mudanças promovidas no instituto de
sesmarias, no âmbito da Carta Régia de 25 de junho de 1375, objetivando, distintamente
de sua formulação original, voltada para a colonização interna e ocupação efetiva do
solo, após a Reconquista, a superação da grave crise por que atravessava o Reino,
especialmente em virtude da queda na população trabalhadora rural, causada "pela
peste ou pela fuga", por um lado, e pela "hipertrofia dos centros urbanos". Neste
contexto de crise, a Lei de 1375 visava obstar o abandono das terras aráveis, além de
enfrentar outros problemas de ordem econômica, como a falta de alimentos e mão-de-
obra rural e o consequente aumento dos salários, que inviabilizavam a exploração das
propriedades rurais23. Esse contexto de crise é assim descrito por Virgínia Rau:
"No meio do século XIV a economia da terra tinha perdido o
equilíbrio e a desorganização agrária corria a par com a
instabilidade monetária e a alteração dos valores sociais. A
rarefação da população campesina, pela peste ou pela fuga, a
hipertrofia dos centros urbanos, conjuntamente com a nova
autoridade social de mesteirais e mercadores, geravam o grande
drama econômico português e europeu. Para se opor ao êxodo da
população do campo para as cidades, à escassez de mão-de-
obra e ao encarecimento dos salários, à decadência agrícola e ao
aumento da indústria pastoril, os legistas jungiram todos os
elementos julgados susceptíveis de suster a crise e deram corpo
a uma norma jurídica, mais tarde denominada das Sesmarias.24"
No caso do Brasil, as transformações neste instituto serão ainda mais relevantes.
O contexto em que Portugal decide-se por iniciar a ocupação efetiva e a colonização do
território brasileiro é colocado por Roberto Simonsen nos seguintes termos:
"Era por demais violento o contraste que uma terra inteiramente
selvagem, habitada por povos ainda no limiar da civilização,
oferecia aos mercadores e navegantes portugueses. De nada
valiam aqui os processos de força com que Portugal impôs a
sua suserania e o seu monopólio comercial na Ásia (...)
Produtos prontos para o tráfico comercial normal não existiam;
povoações de caráter estável, para serem ocupadas e
exploradas, que pagassem com tributos o direito de existência,
também não eram encontradas. O Brasil era problema novo em
face a expansão comercial e marítima que os povos europeus
estavam iniciando.25”
Donde, conclui Simonsen:
"A situação exigia... solução radical por parte do reino. A colônia,
com as perdas infringidas pelos corsários e pelos naufrágios, tão
comuns na época, não dava saldo à Coroa, mesmo porque, tudo
nos leva a crer que era irregularíssimo o comércio português do

22 Id., loc. cit., p. 142.


23 Idem., loc. cit. Ver também, a este respeito, CIRNE LIMA (1954; especialmente o capítulo 1).
24 RAU (1982, pp.142 e 143). Também CIRNE LIMA (1954; especialmente o capítulo. l).
25 SIMONSEN (1978, p. 52).

28
pau-brasil. Mas a perda da colônia representava um risco para
a navegação portuguesa das Índias Orientais e golpe nas suas
esperanças de encontrar metais preciosos, cujas possibilidades
se acentuaram com a descoberta das minas do Peru e México e
as notícias do acesso ao Rio da Prata. Estava em jogo o
prestígio do Império Colonial Português, em pleno fastígio do
poder e em franca competição de empreendimentos marítimos
com a Espanha."26
Diante desta perspectiva e nesta determinada conjuntura, Portugal toma a
iniciativa de proceder a ocupação do território brasileiro e de promover a sua
colonização. Entretanto, tal empreendimento implicava investimentos que não poderiam
ser suportados pelo orçamento do Reino27. Dai buscar-se a associação com a iniciativa
de particulares, gestando-se, desta forma, o sistema de Capitanias, ainda que fundado no
instituto sesmarial, que impunha restrições aos concessionários. Para a consecução
desse projeto específico de colonização, que nesta primeira formulação, não conseguiu
atingir os objetivos almejados de ocupação e defesa do território, por um lado, e de
carrear riquezas e tributos para a Coroa, por outro, recorreu Portugal, como afirma,
entre outros, Marcelo Caetano, a
"soluções já antes experimentadas... Quando D. João III resolve
ocupar-se da colonização do Brasil, estende aqui a fórmula
ensaiada, primeiramente, no reino e, depois, experimentada nas
ilhas atlânticas.28”
Do ponto de vista de sua interpretação jurídica e concreta, o sistema de
concessões de terras adotado por Portugal para o Brasil apresenta, como observa Costa
Porto dois ângulos fundamentais. O primeiro, refere-se ao problema da repartição
política - da jurisdição e do “imperium” - aspecto este sobre o qual se têm dado maior
ênfase e que se ocupa dos poderes políticos-administrativos, adstritos aos grandes
concessionários. O segundo reporta-se à questão específica da distribuição propriamente
dita do solo, ou seja, da distribuição da propriedade territorial entre concessionários,
que, segundo aquele autor, é mais relevante:
"A leitura das cartas de doação desvela-nos singelamente em que consistia o sistema
de donatárias sob o primeiro aspecto: a determinado número de vassalos foi dada uma
porção de terras - delimitadas ao longo da costa e, para o interior, 'tanto quanto
poderem penetrar e fôr de minhas conquistas' - outorgando-se-lhes poderes largos,
imensos, 'majestáticos', mas, convém sempre inistir, poderes 'políticos', de comando,
jurisdicionais pois, como cousa própria, apenas receberam aquele nastro de dez
léguas, que lhes constituem o domínio privado.29"

No que se refere à propriedade da terra, esta continuaria integrando o patrimônio


da Coroa, encarnada no Rei. Tratam-se de “reguengos” que, por definição do instituto,
deveriam ser repartidos e distribuídos entre os moradores, isentos de qualquer foro ou
onus, exceto o dízimo da Ordem de Cristo, sobre os frutos colhidos na terra. É neste

26Id., p. 58. Grifos nossos.


27 SIMONSEN (1978).
28 CAETANO (1980, p.13).
29 COSTA PORTO (S.d., pp.24 e 25. Grifos nossos).

29
sentido específico, que o instituto de sesmarias, no Brasil, não possibilitava a
constituição da propriedade absoluta da terra30, mas apenas a posse útil, sujeita a
cláusulas resolutivas. Estas, no caso do Brasil Colonial, eram rigorosas: proibiam o
arrendamento, exigiam a residência habitual do concessionário ou prepostos, a cultura
permanente e a respectiva medição, como condições para sua Confirmação pela Coroa.
Proibia, ainda, a concessão de mais de uma sesmaria ao mesmo concessionário,
familiares ou herdeiros em linha direta. Tudo isso, além das dificuldades burocráticas e
de natureza geográfica e técnica, contribuía para dificultar o processo de legitimação
das sesmarias recebidas, no período colonial.
Todas estas medidas administrativas e jurídicas não foram, outrossim,
suficientes para impedir que as sesmarias, enquanto posses ilegítimas, pudessem ser
ampliadas, como, de fato, sempre ocorreu durante todo o período colonial e, sobretudo,
nos primeiros anos após a Independência Nacional. Apesar dessas restrições e
dificuldades, como observara Costa Porto, é no instituto das sesmarias "que se baseia
toda a história de nossa evolução fundiária.31"
Pela análise do texto da “Lei de Sesmarias”, a Carta Régia de 1375, que "obriga
a prática de lavoura e o semeio da terra pelos proprietários, arrendatários, foreiros e
outros, e dá outras providências"; e que, ao mesmo tempo, criava o instituto das terras
devolutas, passíveis de serem transferidas a "quem as lavre, e semeie", verifica-se
como o Estado, diante de uma situação de crise profunda, reintroduz formalmente, no
Direito de Propriedade, em Portugal, o instituto do confisco 32 e, implicitamente, vincula
a manutenção e reconhecimento da propriedade territorial rural ao cumprimento de
determinada “função social”, mas, sobretudo econômica, como fica evidente no
seguinte trecho da Carta Régia de 1.375:
"Se os senhores das herdades não quiserem estar por aquele
arbitramento, e por qualquer maneira o embargarem por seu
poderio, devem perdê-las para o uso comum, a que serão
aplicadas para sempre(...).33”
Foi dito: "reintroduz formalmente", no sentido de que, o sistema de sesmarias,
que já se achava consolidado nos costumes do Reino - herdado da tradição "romana,
visigoda, e mesmo, talvez, sarracena, de repulsa ao solo inculto 34", - vir a ser
consolidado em Lei no Reinado de D. Fernando, diante de grave crise econômica e
social, como registram, por exemplo, Costa Porto e Virgínia Rau35.
Referindo a este problema da consolidação do direito português diante das
condições concretas do desenvolvimento conturbado do pequeno Reino, Faoro registra
que

30 Ver a respeito deste aspecto o excelente estudo de Roberto Smith. SMITH (1990).
31 COSTA PORTO (S.d.: loc. cit.).
32 NASCIMENTO (1985)
33 In.: MEAF, op. cit. p.356.
34 COSTA PORTO, s.d. p. 26.
35 COSTA PORTO (op. cit.); RAO (1980).

30
"os costumes, além do extenso território das práticas extra-
legais, conservam caráter godo, sobrepondo-se, em muitos
assuntos, à ordem jurídica formalizada. De outro lado, a
dispersão da autoridade, fenômeno geral na Idade Média,
conspirava em favor do predomínio do direito costumeiro do
costume da terra, réplica continental do Common Law. Sobre
esse manto de muitas cores e de muitos retalhos, o direito
romano já se impõe como modelo de pensamento e ideal de
justiça(...) Não subsistiria se não o fecundasse o adubo dos
interesses que se aproveitaram da armadura espiritual,
conservando-a por fora e dilacerando-a na intimidade.36"

“Conservando-a por fora e dilacerando-a na intimidade”, assim Faoro traduz de


forma contundente uma das características mais fundamentais da consolidação do
Direito na história de Portugal e que terá continuidade zelosa na Colônia brasileira,
estendendo-se pelo Império, chegando fortalecido ao Brasil republicano. É dessa forma
que o Direito passa a se constituir num conjunto de normas jurídicas, "formalmente
neutras" (válidas para todos: pois "todos são iguais perante a lei") - conservado, assim.
por fora, no dizer da Faoro -, mas econômica e politicamente direcionado - contexto em
que é dilacerado na intimidade, para usar os termos de Faoro. A conclusão desse
raciocínio por Raymundo Faoro é cristalina:
"Serviu-se para esta obra gigantesca, do Direito Romano, o qual justificava
legalmente (os) privilégios, revelando-se um instrumento ideal para cumprir uma
missão e afirmar um predomínio. 37”

O que é importante reter neste momento, e ao que se retornará em outros pontos


deste estudo, é que fica evidenciado na legislação sesmarial um fato da maior
relevância, e que irá permear todas as políticas de terras e todas as legislações agrárias
brasileiras até os dias atuais. Trata-se da perda de propriedade, pelo não cumprimento
de sua função social, bem como de outras exigências explicitadas nos diferentes Forais e
Cartas de Doação. Essas terras, devolutas, retornavam ao domínio do Estado, que
promovia a sua redistribuição a quem as lavrasse, nas mesmas condições anteriores,
quer se tratassem de terras sujeitas ou não a tributos. Ou seja, nesse processo de
confisco de terras improdutivas pelo Estado, e sua redistribuição a terceiros, que
obedecia a rito próprio e graduado de expropriação - especialmente no Reino - as terras
eram redistribuidas nas mesmas condições em que se encontravam anteriormente
concedidas: se sujeitas a foro ou não, continuavam sujeitas às mesma condições. Não
podiam ser grassadas com nenhum ônus, além dos anteriormente existentes.
Mantinha-se, outrossim, as mesmas exigências. Especialmente com relação ao
cultivo e exploração da terra.
Tratavam-se das clausulas de resolubilidade, que eram parte relevante de todo
documento de concessão de sesmarias. Eram exatamente estas cláusulas que impediam
a absolutização da propriedade e que condicionavam todo o processo de sua

36 FAORO (1996, p.11).


37 FAORO (1996, p.11. Grifos nossos).

31
confirmação por parte do Estado. Entre outros motivos, de caráter estritamente
econômico, esta é, certamente, uma das razões da desvalorização da propriedade
territorial rural, sobretudo no Brasil Colonial. As terras eram, em última instância,
domínio da Coroa, como que permanecessem hipotecadas. Por isso não podiam cobrir
as funções hipotecárias nem servirem de garantias para dívidas. No caso do Brasil,
muito rigorosamente, esse problema é persistente, posto que aqui era vedado
formalmente, aos concessionários, arrendarem as terras que recebiam, sob pena de
confisco, posto que a condição sob a qual recebiam as sesmarias era a de explorá-las e
torná-las produtivas, com o seu trabalho ou com a ajuda de subordinados (vinculando-
se, assim, aos objetivos de colonização e defesa). A concessão ou arrendamento de
terras, na Colônia, eram atributos dos prepostos da Coroa Portuguesa.
Deste corolário jurídico fica evidente a estreita vinculação econômico-social do
Direito de Propriedade38. Resta claro, neste caso, que o objetivo do instituto era obrigar
aos concessionários à exploração efetiva das terras que recebiam - ou diretamente, por
seus próprios meios, ou, nos casos em que a esses meios excedesse, "legitimamente39",
cedendo-as, sob foro, a quem a pudesse explorar, "de modo que todas venham ser
aproveitadas40". Se o não cumprimento dessa exigência legal ocorresse "por
negligência ou contumácia" (...) "as Justiças territoriais, ou as pessoas que
sobre isso tiverem intendência", estavam legalmente autorizadas e, mais que isto,
obrigadas, a dar início ao processo de expropriação ou confisco, procurando redistribuí-
las, "a quem as lavre, e semeie por certo tempo, a pensão ou quota
determinada". Por fim, estabelecia-se que, não havendo acordo do concessionário com
o foro estabelecido, pelos árbitros próprios, ou se o concessionário tentasse, por
qualquer meio, embargar o processo, as suas terras seriam confiscadas: deveriam
"perdê-la para o comum, a que serão aplicadas para sempre"41.
É relevante registrar que esse conjunto de normas, contidas na Carta Régia de
1375, não apenas procurava ser fortemente rigoroso quanto às exigências que
estabelecia em relação aos sesmeiros, mas, o que é ainda mais relevante, definia
claramente as alternativas e condições em que deveriam ser aplicadas as respectivas
sanções. Admitia, por exemplo, a possibilidade de determinados concessionários,
eventualmente, possuírem mais terras do que poderiam diretamente explorar. Esta
situação, no Reino, advinha do fato de que, na tradição jurídica e consuetudinária
portuguesa, sempre foi respeitada a titularidade legítima, anteriormente existente.
Quando da implementação do sistema de sesmarias - após a pacificação do Reino, e

38A outra dimensão da concessão de sesmarias, que merece maior destaque do que tem sido dado pelos diversos
estudos, refere-se ao fato de que ela permitia a racionalização e implementação da cobrança de tributos por parte do
Estado. Segundo Faoro (op. cit., p.7) "a concessão de forais permitiu melhor sistema de cobrança, com o
arrendamento dos direitos aos concelhos, mais tarde substituído pelo arrendamento a particulares,
Facilitava-se com a medida, além disso, o amoedamento das arrecadações, numa prematura
transformação da economia natural para a economia monetária."
39 Na Metrópole.
40 Carta Régia de 1375. In.: MEAF; p. 355.
41 Idem, p. 355.

32
superada a fase das presúrias - estes direitos foram, sempre, assegurados. Esta situação
não existia no Brasil colonial, eis porque, aqui, não seria permitido o arrendamento a
terceiros, das terras recebidas, sobretudo porque, na origem da concessão de sesmarias
estava a presunção de que as terras seriam efetivamente exploradas. Por isto era
estabelecido que "não se desse a pessoa mais terras do que ela boamente
pudesse explorar."
Logo, na ocorrência de subestabelecimento de terras negava-se aquela presunção
jurídica. Neste caso, a concessão não teria respeitado a este requisito legal da efetiva
exploração, além de ferir o preceito de que apenas aos prepostos da Coroa era dado o
direito de fazer concessões territoriais. Haviam ainda outras razões associadas a esse
contexto no Brasil colonial, como já registrado42.
Em Portugal, no caso de possuir-se terras em excesso, possibilitava-se, aos
beneficiários, cedê-las sob foro, a quem as pudesse aproveitar, ficando subentendido
que se mantinham na posse das respectivas áreas. Na Colônia, não. A preocupação,
aparentemente precoce, da Coroa Portuguesa, em assegurar o povoamento e a
exploração agrícola, como condições para assegurar a defesa de sua soberania sobre a
Colônia terá implicações importantes no que toca à manutenção da integridade
territorial brasileira, cujos resultados mais relevantes, além dos de haver atendido aos
objetivos imediatos citados, aparecerão, sobretudo, após a Independência do Brasil.
Embora essa dimensão da questão fuja aos objetivos deste estudo, é interessante
registrar algumas observações de Álvaro Lins, a respeito do instituto do "uti-
possedetis", que segundo aquele autor ficará historicamente ligado ao nome dos
"dois Rio-Branco: o primeiro, porque o definiu com precisão e
segurança e o segundo, porque lhe deu aplicação vitoriosa numa
série de litígios e negociações.43"
Gilberto Freire, referindo-se ao papel das “Bandeiras” enquanto forma de
assegurar o povoamento e soberania portuguesas sobre as terras da Colônia, assim se
expressa:
"O bandeirante torna-se desde os fins do século XVI um fundador
de sub-colônias e já se faz senhor das alheias num imperialismo
que tanto tem de ousado quanto de precoce. Com o bandeirante o
Brasil auto-coloniza-se.44"
O instituto do "uti-possedetis" será o princípio utilizado pelo Império para
assegurar a soberania brasileira sobre territórios em litígios com nações limítrofes e
estabelece que deveria manter-se a soberania territorial com base na comprovação da
ocupação produtiva de terras por cidadãos das respectivas nações pleiteantes:
"O governo de S.M., o Imperador do Brasil, reconhecendo a falta
de direito escrito para a demarcação de suas raias com os
Estados vizinhos, tem adotado e proposto as únicas bases

42 A este respeito ver Virgínia Rau, Costa Porto e Cirne Lima, citados.
43 LINS (1965, p.193).
44 FREYRE (op. cit., p. 120).

33
razoáveis e equitativas que podem ser invocadas: o uti-
possedetis, onde este existe, e as estipulações do Tratado de
1777, onde elas se conformam ou não vão de encontro às
possessões atuais de uma ou outra parte contratante (26 de
novembro de 1857).45”
O objetivo era sempre econômico: manter e ampliar a exploração agrícola;
assegurar o povoamento e ocupação do território e, na Colônia, além destes objetivos,
buscava-se garantir a defesa e integridade territorial contra pretensões estrangeiras.
Numa expressão, tratava-se de salvaguardar a soberania portuguesa, o que,
necessariamente, implicava a implementação de processos de produção relevantes,
voltados para o mercado mundial, capazes de sustentar a reprodução de todo o sistema.
Além, é claro, de promover a política tributária da Coroa, ampliando seus ingressos.
Por outro lado, a referida Carta Régia de 1375, previa, na sua versão originária e
na conjuntura de crise na qual foi outorgada, em Portugal, igualmente, restrições à
faculdade de serem mantidos animais de trabalho, conforme as necessidades da
exploração, por um lado; e, por outro lado, estabelecia que
"para obviar o desaproveitamento das coutadas e herdades, que
em prejuízo da agricultura se deixarem exclusivamente para
pastos, proibe-se a todo que não for lavrador, ou não tiver a
lavoura, ou não servir lavrador em ministério relativo à economia
rural, o ter ou conservar gados."46
Finalmente, a Lei de Sesmarias estabelecia, claramente, as condições sob as
quais se deveria proceder ao confisco das terras não aproveitadas: 1. Por "contumácia
ou negligência", caso em que o concessionário seria constrangido a cedê-la, por algum
tempo, sob foro, convertido "ao bem do comum". 2. Ou a perdê-la para sempre, caso
o concessionário tentasse, por qualquer meio, embargar a aplicação da sanção
legalmente estabelecida, como já registrado. Ressalve-se, ainda uma vez, que a
possibilidade de arrendar ou ceder a terra a terceiros, admitida no Reino, não será
permitida no Brasil colonial. Afora isto, as demais faculdades e exigências do instituto
sesmarial eram aplicáveis integralmente ao Brasil colonial.

2. Sistema Sesmarial e Formação da Propriedade Rural na Colônia.


O sistema sesmarial, gestado na conjuntura econômica e sociocultural de
Portugal da segunda metade do século XIV, destinado originalmente à tentativa de
reorganização das relações de propriedade, na conjuntura da grave crise de
abastecimento interno do Reino e no bojo de uma formação social emergente, que se
houvera estruturado sobre conquistas e conflitos territoriais, e desenvolvera no âmbito
do mercantilismo, será afetado por frequentes crises e sofrerá várias reestruturações,
ainda em Portugal, desde as suas origens remotas, no Reinado de D. Fernando I . Do
ponto de vista jurídico-econômico, o sistema sesmarial é instituído no contexto de grave

45 Citado por LINS (op. cit., p.193. Grifos nossos).


46 Carta Régia de 1375. In: MEAF (1983: 355 -356).

34
crise política e no bojo da Revolução de Avis, pela Carta Régia47 de 1375, visando a
reorganização das atividades de exploração agropecuária, regulando determinadas
relações de sociabilidade.
No Brasil, o sistema sesmarial sofrerá, inúmeras alterações, tanto jurídicas
quanto no âmbito de sua aplicabilidade jurídico-real, conforme as exigências
econômicas, sociais e políticas, específicas da sua situação colonial, e da sua inserção
no âmbito da política mercantil do Império Português. As mudanças verificadas no
sistema em sua aplicação à situação da Colônia, nascem, como se registrou acima,
vincadas pela necessidade de ocupação, manutenção e defesa do território48, muitas
vezes ameaçado por incursões de mercadores concorrentes, e sobretudo de nações
estrangeiras, especialmente as que relutavam em aceitar pacificamente os Direitos
Políticos de jurisdição, portugueses, sobre a Colônia, fundados nas “Bulas Papais”.
Resulta desta conjuntura, muito mais que da mera extensão do território, o fato de que,
no Brasil, as sesmarias venham a assumir as características de grandes áreas territoriais.
A necessidade de povoar as terras tinha exatamente esse sentido de ocupar (isto é,
garantir a defesa) do território contra estas incursões. Por outro lado, o baixo nível de
desenvolvimento das técnicas de exploração agrícola e, sobretudo, da carência de mão-
de-obra, - ou seja, das forças produtivas - bem assim, como da necessidade de
inserção da Colônia no mercado exportador de produtos de alto valor comercial,
contribuíram, efetivamente, para o alargamento das dimensões das sesmarias
concedidas na Colônia. E, aliadas a estas limitações, estava o desenvolvimento do
trabalho compulsório, sobretudo através da escravidão africana. Entretanto, permanecia
o caráter de concessão real sujeita a cláusulas resolutivas; ou seja, tratavam-se de
condições que impossibilitaram a absolutização da propriedade da terra. Como registra
Roberto Smith:
"A resultante da colonização portuguesa no Brasil foi responsável
por uma característica relevante no contexto de sua formação
social - a não-absolutização da propriedade fundiária até a
segunda metade do séc. XIX.(...) O absolutismo português, desde
muito cedo, encontrou o seu rumo mercantil que o projetaria em
escala mundial. Ao mesmo tempo, colocou sob controle qualquer
possibilidade de tomada de poderes territoriais dispersos, de
cunho feudal, por parte da nobreza fundiária. Como decorrência, a
propriedade da terra em Portugal não se objetivava através de um
caráter de autonomia de domínio privado, em relação ao Estado,
na sua vinculação mercantil ao lucro, como acontecia na
Inglaterra. A propriedade da terra, além da grande parcela
pertencente à Coroa, constitui-se, antes, em posses, com área

47 Id., loc. cit.


48Por isso, tratavam-se de "poderes políticos", cf. COSTA PORTO (S.d., p.21), e não de domínio pessoal sobre todo
o solo doado aos capitães-mores, exceto a parte especificamente a eles destinada que, de resto não poderia ser
demarcada em terras contíguas. Disto derivava o seu poder de jurisdição e a sua autoridade para, em nome da Coroa,
promover a doação de sesmarias aos habitantes da terra, assim como prover a administração e a justiça, conforme os
termos regulamentados pelas Ordenações do Reino.

35
limitada, objeto de concessão revogável, condicionada a sua
efetiva exploração.49 "
É neste contexto que, ao ser transposto para o Brasil, onde o sistema de
sesmarias é introduzido juntamente com as chamadas Capitanias Hereditárias, o
objetivo da Coroa, era proceder a concessão de terras a particulares visando a ocupação
do território, sua defesa e sua exploração econômica. Por esta razão o processo de
concessão era amplamente privilegiado, entretanto, ao mesmo tempo, buscava
assegurar, não apenas o domínio territorial, mas a ampliação da massa de tributos
destinados à Metrópole. Esse fato está explícito, por exemplo, no Foral de doação da
Capitania de Duarte Coelho, onde estão, claramente estabelecidos, os poderes que lhes
são delegados pela Coroa portuguesa, para que promova a ocupação, colonização,
administração e defesa do território:
"O capitão da dita capitania e seus sucessores darão e repartirão
as terras de cada sesmaria (...) às quais(...)darão na forma e
maneira que se contem em minhas Ordenações e não poderão
tomar terra alguma em sesmaria para si nem para sua mulher,
nem para seu filho primogênito, herdeiro da dita capitania.50"
Do ponto de vista estritamente patrimonial, como registra Costa Porto, o que
pertence efetivamente aos donatários eram:
"rendas e direitos & foros e trebutos que a elas (alcaidarias)
pertencerem"; "as moendas dagua, marynhas de sal e quaesquer
outros enjenhos de qualquer calydade que seya; "metade da
dizima do pescado" - a vintena; a "redizima de todas as rendas"
da Capitania, isto é, "que todo rendimento... aya...huma dizima
que he de dez partes huma"; "a vintena parte do que
lyquydamente render para mym foro (forro) de todos os custos do
brasyll da capitania"; a faculdade de venderem a cada ano 24
peças de escravos que "resgatarem e ouverem na dita terra";
dispensa dos "direitos de sysas, emposições de saboaryas,
trebutos de sall, etc."51
Fica evidenciado, na citação acima, que os poderes concedidos aos donatários se
caracterizavam, antes de tudo, como poderes políticos, não de domínio territorial sobre
a terra. Com relação ao direito de propriedade sobre a terra não resta dúvidas de que era
profunda e estritamente limitado. Das sessenta léguas doadas, por exemplo a Duarte
Coelho, que se dividiam em duas partes, apenas uma destas, de dez léguas, pertencia
privativamente ao donatário, que exercia, apenas sobre esta área, o domínio pleno,
alodial, desde que preenchidas as exigências constantes das Ordenações, estando esta
área "lyvre, izenta" de qualquer ônus ou tributo, exceto o dízimo a ser pago à Ordem de
Cristo. O Capitão-Mor, após vinte anos de posse da capitania, poderia separar e
demarcar essa área onde quisesse, "não as tomando porém, juntas sanam

49SIMITH (1990, p. 149).


50 Citado por Costa Porto, op. cit., p.21.
51 Id., p.22.

36
repartydas em quatro ou cynco partes" respeitando distância, entre cada parte, de,
pelo menos, duas léguas.
No que tocava às cinquenta léguas restantes, deveria o donatário proceder à
distribuição, em sesmarias, entre os moradores, sobre estas terras não exercendo
nenhum poder de domínio alodial. Por isso, comenta Costa Porto, citando um
documento da época:
"o donatário não hé senhor absoluto das terras senam sesmeiro e
repartidor (...) e enquanto sesmeiro não é mais sesmeiro que
outros sesmeiros, conforme a verba de sua daçam."52
O mesmo princípio jurídico vinha explícito na seguinte Carta de Doação, feita
pela Coroa Portuguesa, a Martim Afonso de Souza:
"A quantos minha carta virem, faço saber, que as terras que
Martim Afonso de Souza do meu conselho achar e descobrir na
terra do Brasil, onde o envio por meu capitão-mor, que possa
aproveitar, por esta minha carta que lhe dou poder para que ele
(...) possa dar às pessoas que consigo levar, e as que na dita
terra quizerem viver e povoar, aquelas partes (...) que bem lhe
parecer, e segundo lhe o merecer por seus serviços e qualidades,
e as terras que assim der será para eles e todos os seus
descendentes (...) Que dentro de dois anos de dada, cada um
aproveite a sua e que se no dito tempo assim não o fizer, as
poderá dar a outras pessoas para que as aproveitem, com a
dita condição."53

Como se pode verificar, a implantação do sistema de Capitanias, em 1532, em


nada alterou a lógica que presidia a concessão de terras com base no instituto de
sesmarias. O sistema de Capitanias operou, entretanto, pequenas mudanças, de cunho
especificamente administrativo: as concessões de sesmarias, de forma diferente de como
ocorria na Metrópole, passaram, por delegação, a ser outorgadas aos Capitães-Mores,
entretanto, sempre sujeitas à confirmação real. Esta mudança representava, na prática,
um mecanismo jurídico regulacionista mais complexo e que possibilitava determinado
controle sobre todo o processo de ocupação territorial. Que originalmente, em Portugal,
e como assimilação do Direito Romano, se constituía num dos instrumentos
fundamentais de popularização produtiva da propriedade territorial, vinculado aos
Conselhos, e estritamente associado à municipalidade. Segundo Faoro, por exemplo, a
hierarquia formal, jurídica, assim estabelecida para resolver pendências e problemas nas
questões associadas à propriedade rural, tinha um forte caráter centralizador e, em
última análise, representava, politicamente uma espécie de aliança entre "o rei e o
povo" e que funcionava como um forte bloqueio à possíveis pretensões políticas da
aristocracia agrária. Neste sentido, tratava-se de uma medida que bloqueava o caminho
ao enfeudamento.

52 COSTA PORTO (S.d. p.22).


53 Citado em NASCIMENTO (1985, p.11. Grifos nossos).

37
Esse "modus operandi" irá persistir, igualmente, durante o período dos Governos
Gerais, no qual, o sistema de sesmarias permanece praticamente inalterado, porém,
administrativamente, passa a ser integrado por mais um escalão de delegação
burocrática, no que toca ao poder de conceder sesmarias. Pela ordem de hierarquia
burocrática, cabia os Governadores Gerais e aos Capitães-Mores das Províncias, por
delegações sucessivas e hierarquizadas, o poder de realizar determinadas concessões,
sendo que as destes últimos estavam sujeitas a Confirmação pelos Governadores Gerais,
e todas, à Confirmação pelo Rei de Portugal. Permanecem as cláusulas de
resolubilidade, ou seja, as concessões continuavam sujeitas ao efetivo aproveitamento,
residência habitual e medição; não sendo permitido, por outro lado, aos concessionários,
o arrendamento de terras a terceiros. Esse sistema permanecerá operacional no Brasil,
até a sua suspensão em julho de 1822 e a sua definitiva extinção, com a Independência
Política da Colônia, em setembro de 1822.
Outra característica relevante do sistema sesmarial referia-se as restrições
impostas quanto ao tempo de duração das concessões que, inicialmente, assim como em
Portugal, também no Brasil, era limitado, como pode-se apreender da análise do texto
da Carta de Doação de Martim Afonso de Souza, de 1530, "somente na vida daqueles
a quem der e não mais". Entretanto essa limitação temporal será modificada, no Brasil
colonial, passando as sesmarias a serem concedidas em caráter perpétuo, embora
permanecessem as cláusulas resolutivas, que possibilitavam a revogação da concessão
qualquer tempo, fosse de forma onerosa ou não.
O fato mais relevante a ser registrado, nesse contexto, refere-se à permanente e
sistemática preocupação do Estado Português em estabelecer limites bastante precisos à
formação da propriedade da terra no Brasil. Todos esses impedimentos de ordem
administrativa, jurídica, econômica e burocrática, que se está dando destaque neste
trabalho, se, por um lado, não impediram a formação de imensas propriedades
territoriais no Brasil, muito pelo contrário; por outro lado, também não permitiram a
legalização dos abusos sobejamente cometidos à revelia da legislação. Este fenômeno
está na origem das dificuldades impostas ao processo de legitimação da propriedade
territorial rural, no Brasil, constituindo-se no fundamento legal para a definição do seu
caráter de ilegitimidade, especialmente do ponto de vista jurídico.
Entretanto, como se fez notar, contrariando as normas régias, as sesmarias
brasileiras passaram a ser, concedidas à título perpétuo, ainda que permanecessem
sujeitas às condições de resolubilidade referidas, e que persistirão por todo o período.
Tal fato introduz significativa mudança entre a implementação do sistema, quer fosse na
Colônia ou em Portugal. É assim que, no Brasil, o concessionário passaria a dispor
livremente da terra recebida, apenas com a obrigação de lhe dar aproveitamento nos
prazos e condições determinados nas Cartas de Doação, (que giravam em torno de dois
a cinco anos) sob pena de multa ou confisco. Entretanto, os estudiosos dessa questão
são unânimes, como se tem registrado, em reconhecer que tais sanções raras vezes eram

38
aplicadas; sobretudo quando se tratavam de multas, às quais, mesmo quando aplicadas,
não eram pagas.
É neste contexto de extrema burocratização, quando a Coroa portuguesa buscava
consolidar a organização de um sistema complexo de controle sobre a concessão e
exploração das terras rurais, visando coibir o já vasto processo de multiplicação de
sesmarias e apossamento de terras "públicas", à margem das determinações legais, que
se pode tentar explicitar e compreender alguns dos problemas mais relevantes, no que se
refere à formação e desenvolvimento da propriedade privada da terra no Brasil, por um
lado; e o seu flagrante caráter de ilegalidade, por outro.
A hipótese desenvolvida, neste trabalho, a respeito desta problemática, funda-se
no fato de que, desde a sua origem, a propriedade territorial no Brasil foi sempre o
resultado da luta concreta e desigual (política, jurídica, social e econômica), pelo
apossamento de áreas importantes do território brasileiro. Esse processo de apropriação
de terras, sempre ocorreu concomitante e paralelamente às concessões legítimas;
entretanto, quase sempre, se forjou à margem do consentimento legal. É neste contexto
que a luta pela posse da terra tendeu a agravar-se cada vez mais, à medida em que a
economia se desenvolvia e integrava-se ao mercado primário-exportador, provocando o
aumento da demanda por terras. Este fenômeno agravou-se, sobretudo, após à
Independência Política da Colônia, em 1822.
De qualquer maneira, o fato, juridicamente relevante, no que toca à política
fundiária posta em prática no período em que esteve em vigor o instituto das sesmarias,
- que se estende até julho de 1822, quando é definida a suspensão de sesmarias - é que
este sempre representou a tentativa do Estado Colonial Português em manter estrito
controle sobre todas as terras da Colônia, inclusive as doadas, que permaneciam sujeitas
às cláusulas resolutivas.
Por outro lado, como apenas através do reconhecimento formal do Estado era
possível assegurar o domínio legítimo das terras ocupadas, persistiu, na Colônia, uma
situação, na qual predominavam “propriedades ilegítimas”: ou porque não tinham sido
confirmadas pela Coroa Portuguesa, ou porque não foram registradas (tombadas),
conforme as exigências da legislação vigente no período; ou, ainda, porque tiveram as
suas áreas acrescidas de terras livres, para além das concedidas formalmente; ou,
finalmente, por se tratarem de sesmarias e concessões caídas em comisso, pelo não
cumprimento das cláusulas resolutivas. Além destas situações, existiam, ainda, as
posses estabelecidas sobre terras públicas, independentemente de qualquer
consentimento por parte do Estado.
Tratavam-se, neste amplo contexto, todas estas, de “possessões ilegítimas”, quer
se tratassem de sesmarias irregularmente mantidas - caídas em comisso, ou nunca
confirmadas - quer, de simples posses, sendo indiferente o fato de se tratarem de
grandes ou de pequenas áreas. Em todos estes casos, persistia, portanto, a necessidade
de revalidação, para os casos de concessões que se tornaram irregulares por não
preencherem as exigências formais; ou, de legitimação, no caso das posses procedidas à

39
revelia do consentimento formal do Estado, mas que preenchiam determinadas
exigências, em especial referentes à exploração efetiva e morada habitual do posseiro,
além de terem sido estabelecidas com “boa-fé”.

3. Considerações Finais
Após a consolidação do domínio de Portugal sobre a Colônia, tentado
inicialmente através da instituição da chamadas Capitanias Hereditárias, cujos
resultados econômicos e, sobretudo políticos, se mostraram insuficientes para a
consecução dos objetivos de colonização e defesa do território, Portugal adota, ainda
com base no instituto de sesmarias, um novo modelo de administração, baseado na
concentração do poder em mãos de Governadores Gerais. Os Regimentos, que passam a
regulamentar a Política de Terras, com a instituição dos Governos Gerais, a partir de
1549, além de tornarem mais complexos a hierarquia e o sistema burocrático para a
concessão e reconhecimento das sesmarias, pelo Estado, estabeleceram novas e
fundamentais exigências.
Torna-se mais rigorosa, entre outras, as exigências da residência habitual e
cultivo efetivo das terras, assim como a proibição de alienar as terras recebidas por um
prazo mínimo de três anos. Exige-se, em relação às concessões de terras destinadas à
construção de engenhos, isto é, à produção da cana e fabricação do açúcar - que era o
produto de maior valor e interesse comercial na época -, que apenas fossem doadas à
pessoas que "tinhão possibilidades para o poderem fazer dentro do prazo que
limitardes"; e que se obrigasse, aos seus concessionários, à construção de torres e casas
fortes "de feição e grandeza que lhe declarasse na carta" de concessão, o que
significava que este tipo de concessões apenas se destinavam à pessoas de posses, muito
mais que de “calidades”54.
É nesse sentido, que se pode afirmar que a preocupação do Estado Português era
específica e estava voltada para a implementação da agricultura mercantil, do
povoamento e da defesa e consolidação de sua soberania territorial na Colônia. De
forma semelhante, as concessões de terras se definiam de maneira privilegiada e
excludente: voltava-se para a formação de grandes propriedades destinadas à agricultura
de exportação e passava a exigir, em face às dificuldades de consecução de mão-de-obra
livre, migrante, a incorporação do trabalho escravo, que era facilitada pelo tráfico pré-
existente.
Em face de todas estas contigências e necessidades, as concessões eram feitas
apenas em favor dos "homens de posses ou calidade". Segundo Alberto Passos
Guimarães, mais de posses que de “calidade”, sendo, neste sentido, excludente, em
relação à população em geral.
Apesar disso, as medidas reguladoras instituídas, acabaram por se constituir em
obstáculos à legitimação das terras possuídas, mesmo quando formalmente concedidas

54 GUIMARÃES, 1981.

40
pelo Estado. Este fenômeno será, sobretudo, agravado em face das exigências legais, do
formalismo jurídico e das implicações e exigências de ordem burocrática, que o
processo de legalização das terras possuídas exigia.
Considerando-se, por um lado, que o direito sobre a terra, isso é, o
reconhecimento formal da propriedade, apenas poderia ser materializado após a
confirmação real; e que, por outro lado, ao nível da realidade concreta da Colônia, dadas
as suas dimensões, condições geográficas e à ausência de especialistas habilitados para
realizar os levantamentos topográficos, medições, etc., raras vezes estas exigências
legais foram cumpridas. Sob alegações desta natureza, além dos custos efetivamente
envolvidos nas atividades que o processo de legitimação impunha, o fato é que, a
legalização das sesmarias, apenas em raras ocasiões, foi realizado. E, ainda assim,
quando era realizado, geralmente fundava-se em procedimentos meramente
declaratórios: em estimativas genéricas de áreas, limites e confrontações, feitas pelos
próprios sesmeiros.
Este fenômeno está na origem do processo de emissão de títulos de propriedade
que não apresentam coerência e, na maioria dos casos, não coincidem com as áreas, às
quais se deveriam referir.
Por outro lado, mesmo quando confirmadas, muitas sesmarias caíram em
comisso, por não terem cumprido, com o passar do tempo e em face das sucessivas
crises econômicas, às exigências definidas nas cláusulas resolutivas, especialmente no
que se referia à exploração efetiva e morada habitual do cossessionário ou de seu
representante. Ou pelo puro e simples abandono das terras recebidas. Tais fenômenos
davam ensejo às terras devolutas, isto é, devolvidas ao patrimônio do Estado, conceito
este, que com o tempo, passou a estender-se, no Brasil, à qualquer área que não tivesse
nenhuma destinação ou utilização, por parte do Estado nem pertencessem, por título
legítimo, a particulares.
Outra particularidade relevante para a situação brasileira, referia-se às dimensões
da áreas cedidas em sesmarias. As normas reguladoras, contidas nos Regimentos, assim
como nos diversos atos administrativos em vigor na Colônia, faziam apenas referências
vagas e subjetivas à dimensão das áreas que deveriam ser concedidas, recomendando
"não dar a cada pessoa mais terra que aquela que boamente, segundo suas
possibilidades, vos parecer poderá aproveitar." Se forem associadas essas
condições, puramente formais e subjetivas, à realidade econômica concreta da
agricultura colonial, fundada na exploração extensiva e no escravismo, portanto,
"predadora de terras e de homens55", na qual era baixíssima a produtividade do
trabalho, tornam-se compreensíveis as razões das concessões das imensas sesmarias,
especialmente no Nordeste brasileiro, onde se destinavam à produção do açúcar ou à
pecuária rústica, nos sertões; e, mais tarde, nas regiões produtoras de café,
especialmente no Vale do Paraíba.

55 GUIMARÃES (1981).

41
A Carta Régia de 1695 assinala a primeira tentativa efetiva da Coroa Portuguesa
no sentido de restringir o tamanho das áreas a serem dadas em sesmarias e a impor
outras exigências além do dízimo. Este diploma legal estabelecia que para as pessoas a
quem fossem, no futuro, concedidas sesmarias, ser-lhe-iam exigidas, além da obrigação
de pagar o dízimo da Ordem de Cristo e as demais exigências costumeiras, que,
igualmente, fossem obrigadas ao pagamento de "um foro segundo a grandeza e
bondade da terra" e que, "não se conceda a cada morador de sesmaria mais de
quatro léguas de cumprimento e uma de largura."
As medidas da Coroa Portuguesa, sobretudo, as referentes às exigências de
limitação de áreas, número de sesmarias por concessionários e suas famílias, bem como
ao pagamento de tributos, além do dízimo de Cristo, que vinham desde a origem do
sistema em 1375, oscilavam, ora restringindo, ora possibilitando, a expansão das
sesmarias, sobretudo no que toca à áreas e ao número de concessões por sesmeiros. Por
exemplo, após a Carta Régia de 1695 citada acima, restringindo as dimensões para cada
concessionário, a Carta de 1698 fixava a área em duas léguas, no máximo. Menos de um
ano depois, a Carta Régia de 20 de janeiro de 1699, enquanto estabelecia um foro por
légua concedida e reafirma a exigência de medição e demarcação, abria a possibilidade
de expansão dos limites das sesmarias, para "as pessoas que tivessem terras e
sesmarias, ainda que de muitas léguas, se as tivesse povoado e cultivado.56"
Nesses casos, poderiam ser concedidas novas sesmarias.
Esses avanços e recuos da legislação verificaram-se por todo o período colonial
e estavam, sobretudo, associados às expectativas econômicas do Reino e as pressões dos
proprietários de sesmarias, em determinadas conjunturas e regiões determinadas.
Entretanto, a legislação vai tornando cada vez mais rígidos os critérios de legitimação
das sesmarias e demais posses territoriais, sobretudo, na medida em que as
confirmações reais passam a ser, permanentemente, dificultadas pela ausência de
condições de demarcação e definição de limites e confrontações. É nesse sentido que a
propriedade territorial rural no Brasil permanece, na hipótese defendida neste trabalho,
ilegítima: ou seja, que salvo em raríssimos casos, as concessões ou não foram
confirmadas ou não foram legalmente tituladas. Essa questão da legalização será
retomada em detalhes, ao se discutir, nos capítulos 2, 3 e 4, as formas legais de registro
e suas condições de efetividade. No caso acima, referente ao período colonial, as
concessões ulteriores evidenciam que tais determinações, na prática, não foram
implementadas57.
A Carta Régia de outubro de 1753, ordenava que não fossem concedidas
sesmarias a quem já as houvesse recebido, e estabelecia como critério, para reforçar tal
impedimento, que fosse exigido dos pleiteantes, que "jurassem... não possuírem
sesmaria alguma."58 De qualquer maneira, apesar do seu caráter subjetivo, esta

56 COSTA PORTO (S.d.).


57 Ver a este respeito, LIMA (1954) e COSTA PORTO (S.d.).
58Carta Régia de 20 de outubro de 1753.

42
determinação oferece a perspectiva para que se compreenda o emaranhado processo de
privilegiamento na concessão de propriedade, que vinha persistindo na Colônia, e que já
se configurava em uma situação de grave concentração da propriedade territorial, na
época. Bem entendido, tratavam-se das terras passíveis de serem economicamente
exploradas, ou seja, as que se situavam, em termos de localização e fertilidade,
próximas às regiões mais densamente povoadas e acessíveis. Neste sentido, tem razão
Alberto Passos Guimarães ao defender o ponto de vista de que as posses agiram como
alternativa à quebra de monopólio do latifúndio; entretanto é necessário registrar e ter
em estrita consideração, que essas pequenas posses, a que se refere, certamente, Passos
Guimarães, apenas tinham a possibilidade de se implantarem sob duas condições:
(a) A margem do consentimento legal por parte do Estado, portanto,
ilegitimamente, sendo, por este motivo, sempre passíveis de expropriação,
confisco, ou de mera incorporação pelo latifúndio, ou
(b) nas franjas ou periferia das regiões latifundiárias, logo nas "piores terras"
em termos de localização e fertilidade, sujeitas aos ataques indígenas, e outras
limitações, e, ainda assim, igualmente ilegítimas e sempre passíveis de
incorporação pela expansão do latifúndio. Esse tipo de formação de pequenas
posses sempre ocorreu em todo o período colonial e coexistiu com o sistema
de sesmarias59.
De qualquer forma, as determinações contidas nestas Cartas de Doação, Forais,
etc., nunca, ou quase nunca, interferiram de maneira efetiva na formação e
desenvolvimento do processo de apropriação, especialmente quando se tratavam dos
latifúndios. Estes grassavam, tanto sob o manto protetor da legislação vigente, quando
eram legitimados; quanto, sobretudo, à margem da lei, especialmente, pelo avanço das
grandes posses. Esta situação estará na ordem do dia, quando é posta a questão da
“legitimação das posses”, no âmbito do debate parlamentar que precedeu a
aprovação da primeira Lei de Terras do Brasil Independente, na década de 1840.
Por outro lado, é necessário ter muito claro que a legislação, enquanto tal, isto é,
em seu aspecto estritamente jurídico, formal, nunca impediu que, preenchidas as
exigências estabelecidas, os sesmeiros pudessem ampliar as áreas de suas concessões,
mediante processos legais de compra, troca, doação de terceiros, ou outro qualquer meio
ou instrumento sancionado de transferência de propriedade. Entretanto, a pura anexação
de terras públicas contíguas, ou mesmo de pequenas posses existentes nas fronteiras de
expansão dos latifúndios, parece ter sido, desde sempre, o método efetivamente
utilizado pelos grandes detentores de terras, para ampliarem cada vez mais os seus
domínios.

59 Esta questão será estudada com maior detalhamento no capítulo 2, onde será discutido o contexto da aprovação da
Lei 601 de 1850 e suas implicações.

43
Adquirido o domínio, isto é, a confirmação, ou titulação legal da propriedade, o
sesmeiro poderia fazer da terra quase tudo o quanto quisesse, inclusive, incorporar as
terras públicas contíguas. Só lhe era vedado o direito de arrendar a terra recebida,
"por não serem dadas as sesmarias senão para os sesmeiros as
cultivarem e não para repartirem e darem a outros, o que só é
permitido aos capitães e donatários."60
Em suma, a Confirmação Real da doação restringia-se ao concessionário que
houvesse cumprido, no prazo definido, as cláusulas resolutivas, em particular no que
referia à ocupação e exploração da terra recebida, diretamente, ou por prepostos seus. A
referência, aos “prepostos”, é relevante, posto que se encontra na origem de
determinados processos de sociabilidade, através dos quais, os latifundiários começaram
desenvolver a prática de permitir a residência de famílias pobres, geralmente nos limites
e confrontações de suas propriedades, mas sobretudo, das novas áreas a elas
incorporadas, muito especialmente quando se tratavam de grandes posses, ilegítimas,
sob a condição de, eventualmente, fazerem prova ou testemunharem a sua
titularidade, em caso de qualquer dissídio ou contencioso sobre a posse da terra. Além, é
claro, de servirem como mão-de-obra eventual, quer fosse para o trabalho na
agricultura, quer fosse para outras tarefas "menos nobres", como servirem na condição
capangas, jagunços, etc.
Esse fenômeno assumirá particular relevância no contexto que se seguiu à
aprovação da Lei 601 de 1850, - analisado no próximo capítulo - e está na origem de
determinadas relações de sociabilidade, tais como as fundadas no compadrio, nos
chamados “moradores de condição”, e em todo um conjunto de relações sociais de
dependência e subordinação pessoal, como a de agregados e de determinados tipos de
parceria etc., relações essas que sofrerão profundas transformações61 com o passar do
tempo e, sobretudo, com a incorporação de novas áreas, em face do desenvolvimento da
economia nacional.
É na conjuntura de meados do século XVIII que se verificam alguma mudanças
relevantes na implementação das exigência contidas no instituto de sesmarias. São
adotadas providências legais no sentido de se efetivar a reincorporação das áreas
pertencentes às antigas Capitanias Hereditárias, ao patrimônio do Reino, embora
mediante compensações financeiras ou mobiliárquicas, aos antigos donatários. Ainda
neste contexto, a Carta Régia de 3 de setembro de 1759, determinava o confisco dos
bens dos jesuítas, incorporando ao patrimônio do Estado, uma vasta área territorrial, que
se encontrava em poder da Companhia de Jesus, tornando-a passível de redistribuição
nos termos do Instituto das Terras Devolutas. Junte-se a estas providências, as já
mencionadas iniciativas legislativas, no sentido de exigir maior rigor no aproveitamento

60 Determinações estas, constante das diferentes Cartas de Doação e dos Regimentos. Cf. COSTA PORTO (S.d.)
61 A respeito, especificamente, destas transformações nas condições de sociabilidade e suas implicações para a
“formação do proletariado brasileiro”, consultar o excelente estudo de José César Gnaccarini, especialmente, a
Introdução e os capítulos 1, 3 e 4. (GNACCARINI, 1980).

44
econômico das terras, sob pena de multa ou confisco, por um lado; e outras medidas
legais, no sentido de impor a redução das áreas a serem concedidas.
Estas medidas administrativas e legais, ainda que tendo a sua eficácia social
comprometida por um conjunto de dificuldades, e mesmo que tendo, como,
efetivamente, parece que tiveram, pequeno ou quase nenhum efeito sobre o processo
concreto de apossamento e de luta pela terra; ainda assim, eram indicativas de uma
conjuntura na qual o Estado estava atento aos movimentos do processo de ocupação
territorial e aos desmandos, especulação, ou mera ganância e usura, que, desde sempre,
acompanharam a expansão do processo de apropriação territorial na Brasil.
Tais mudanças, não por coincidência, são implementadas no momento em que as
atividades mineradoras ganham certo corpo no âmbito da economia colonial. Nesse
contexto é que pode ser lida a problemática da tentativa, por Lisboa, de regulamentar
restritivamente as áreas a serem concedidas em sesmarias, por um lado e, por outro,
como se afirmou acima, procurar equacionar o problema das antigas capitanias,
instando pela sua reincorporação ao patrimônio do Estado. No mesmo sentido, datam
deste período, outras medidas administrativas e legais tendentes a preservar as terras sob
o controle do Estado. Todas essas medidas estão associadas às expectativas abertas pelo
chamado Ciclo da Mineração. Mesmo porque, diante da incerteza da Coroa em relação
à potencialidade e, sobretudo a localização das prováveis jazidas minerais, a cautela
orientava o Estado a optar por limitar de forma rigorosa o processo de concessões, por
um lado, e a ampliar suas exigências tributárias, por outro lado.
Neste contexto, é enfatizado o princípio contido no instituto das sesmarias, que
restringia a propriedade territorial, reforçando seu caráter de propriedade não
absolutizada, como bem registra Roberto Smith62. É neste sentido que a Carta Régia de
1777 reforça o princípio de que ao sesmeiro cabia apenas a posse útil da terra, sujeita às
condições de resolubilidade. Ou seja, reforça-se o caráter de concessão limitada de uso,
enquanto atributo fundamental do processo de concessões de sesmarias, estabelecendo-
se, além do dízimo da Ordem de Cristo, a cobrança de um foro por légua, conforme a
"generosidade da terra", exigência esta, já instituída desde a Carta de 1695, quando
foram, igualmente reforçadas, as exigências de medição, demarcação, cultura
permanente e morada habitual, com um rigor nunca antes verificado.
Apesar dessa vasta produção legislativa, - e Portugal era pródigo em produzir
legislações, normas e regulamentos63 -, a eficácia social desse vasto aparato jurídico (e
da burocracia a ele associada) era mínima, sobretudo quando se referia aos direitos "dos
comuns". Ao nível da realidade concreta, continuava a expansão do processo de
incorporação de terras públicas (e das terras indígenas e ocupadas por pequenos
posseiros) ao patrimônio privado de grandes sesmeiros, à margem da Lei.

62 SMITH (1990).
63Aliás, uma característica que será incorporada à tradição administrativa e legislativa brasileira.

45
Entretanto, se por um lado a eficácia jurídico-prática da legislação era mínima, e
possibilitava efetivamente a legitimação privilegiada, ou seja, era mais fácil e ágil para
os "homens de posses e calidades", acima de todos, os que viviam na órbita da
Corte; por outro lado, esta mesma legislação, criava uma rigorosa barreira jurídica à
legitimação das terras, tanto das sesmarias não confirmadas, ou caídas em comisso,
quanto, sobretudo, das posses, fossem elas grandes ou pequenas.
Entre as muitas restrições à legitimação, isto é, à confirmação régia, das
sesmarias concedidas, particularmente, no que tocava às exigências de cultura
permanente, morada habitual e demarcação, como foi mencionado muitas vezes neste
capítulo, estavam as condições estabelecidas no Alvará de 25 de Janeiro de 1809, que
determinava a proibição de se passar Cartas de Concessão, ou de efetivar qualquer
confirmação de sesmarias anteriormente concedidas por Governadores e autoridades
provinciais, sem que houvessem sentenças transitadas em julgado. Esse fato dá uma
idéia da dimensão assumida pelo problema da ilegalidade ligada ao processo de
apropriação de terras. E de como o Estado procurava criar uma barreira jurídica à
legitimação desta situação que, já nessa época, era caótica e eivada de arbitrariedades e
conflitos.
É óbvio que essa decisão, como as demais de caráter jurídico ou judicial, não
irão impedir que o processo de apropriação ilegítima e seus respectivos conflitos
continuem. Entretanto, significarão, efetivamente, uma barreira à sua legitimação, que,
por suposto, teria que ser decidida em juízo e conforme os critérios estabelecidos em
Lei, por exemplo, quanto à medição, delimitação de confrontações e limites, por um
lado, e exploração e morada habitual, por outro. Tais serão os critérios que persistirão
para dirimir as demandas judiciais pela legitimação de posses e sesmarias, no período, e
que serão reafirmados pela Lei 601 de 1850. E depois desta, por todas as legislações que
se ocuparam da matéria.
Nesse sentido, são relevantes os argumentos de Roberto Smith de que, no que
toca ao sistema sesmarial e suas implicações para a formação da propriedade territorial
no Brasil, ele se "constituiu sempre um campo amorfo e indefinido por onde
vicejaram os interesses econômicos”. E que, no sentido de tentar impedir a
formação de grandes propriedades impordutivas, o sistema de sesmarias foi tornado
"letra morta". E arremata, de forma contundente:
"o que nem sempre é compreendido, e às vezes até
obscurecido pelo viés da ortodoxia - que procura sempre
enfatizar que as leis não modificam a 'base econômica' - é que a
vigência da ordenação sesmarial foi, sobretudo, impeditiva
da legitimação da propriedade privada fundiária.64"

Esse problema, agravou-se ainda mais pelo avanço desenfreado das posses, no
período de 28 anos que se estendeu de julho de 1822, quando o sistema sesmarial é
extinto no Brasil sem que tenha sido substituído por nenhum tipo de regulamentação no

64 SMITH (1990., pp.344 - 345. Grifos nossos).

46
que toca ao acesso à terra, até a aprovação da Lei de 601, de 1850. Este período é
conhecido como o "Império das Posses”. Apesar da extinção do regime sesmarial e
da suspensão de concessões, pela Resolução 76, de 17-07-1822, e de não entrar em
vigor nenhuma regulamentação jurídica que disciplinasse o assunto, o processo de
incorporação das terras públicas, mas não só destas, ao patrimônio privado, continuou
mais célere que nunca. Tanto o Governo Imperial procedeu a concessões de sesmarias
neste período, por expressa determinação do Imperador e contrariando à norma
estabelecida - que mandava "suspender a concessão de sesmarias até a
convocação da Assembleia Nacional Constituinte e Legislativa" - quanto
prosseguiu o avanço das posses. Sobretudo das grandes posses.
Esse é um fenômeno característico nas relações entre o direito e a sociedade no
Brasil, e que persistirá até os dias atuais: sempre que a Lei cria restrições ou abre
exceções, na prática, as restrições destinam-se a impedir o avanço dos direitos do grosso
da população, enquanto as exceções, destinam-se a permitir e mesmo, facilitar, o avanço
das regalias das camadas privilegiadas, sobretudo das suas frações próximas do poder,
ou que lhe dão sustentação e legitimidade. Desta forma permitem, objetivamente, a que
essas camadas de classe continuem a expandir seus privilégios e, sobretudo, seu
patrimônio. Sob a proteção das "exceções abertas pela Lei", e como será visto nos
próximos capítulos, das "Leis de exceção", como ocorrerá no Regime Militar, (no qual
o próprio Estado passa a ser um "Estado de Exceção"), são criadas as condições
efetivas para assegurar os privilégios e, sobretudo o poder econômico, político e
patrimonial, etc., dessas camadas privilegiadas, por um lado, e radicalizar a excludência,
por outro, processo este, geralmente fundado no direito e na violência fora da lei. Essa é
a lógica que vem presidindo as Políticas de Terras no Brasil, desde o período Colonial:
privilégio e excludência: Direitos formalmente garantidos, e violência, pública e,
sobretudo, privada (sob a proteção pública) como forma de exercício do poder, na luta
pela consolidação e alargamento dos privilégios, antes de todos, os ligados à
propriedade territorial e ao "poder local". Uma dialética perversa que pode, muito bem,
caracterizar a dinâmica das políticas de Terras, desde a Colônia e o Império, e que
atinge seu ápice no período do Regime Militar, onde a "simbiose" entre a violência
'legítima' exercida pelo Estado" e a violência ilegítima, exercida por grupos privados,
passam a fazer parte do cotidiano da luta pela terra no País.
Como se vinha afirmando, - antes das ilações mais gerais do parágrafo anterior -
os problemas agravados no período do “império das posses” eclodirão durante o
acirrado debate legislativo que levou a aprovação da Lei de Terras e, sobretudo, após a
sua regulamentação, em 1854.. Esse problema, dada a sua relevância para este estudo,
será objeto de análise detalhada no próximo capítulo.
Cirne Lima, citando as memórias de Gonçalves Chaves, resume nos seguintes
termos os resultados implicados para a agricultura e estrutura agrária brasileiras pelo
Regime de Sesmarias:

47
"Segundo a memória aludida, os resultados produzidos pela
legislação de sesmarias foram os seguintes: 1o- Nossa população
é quasi nada, em comparação com a imensidade do terreno que
ocupamos há tres séculos. 2o- As terras estão quasi todas
repartidas e poucas há a distribuir que não estejam sujeitas a
invasão dos índios. 3o- Os abarcadores possuem até 20 léguas de
terreno e raras vêzes consentem a alguma família estabelecer-se
em alguma parte de suas terras e mesmo quando consentem, he
sempre temporariamente e nunca por ajuste, que deixe ficar a
família por alguns anos. 4o - Há muitas famílias pobres, vagando
de lugar em lugar, segundo o favor e capricho de proprietários das
terras e sempre faltas de meios de obter algum terreno em que
façam um estabelecimento permanente. 5o - Nossa agricultura
está em o maior atraso e desalento, a que ela pode reduzir-se
entre qualquer povo agrícola, ainda o menos avançado em nossa
civilização.65 "
Como registra Tupinambá Nascimento66, "a idéia de distribuição de terras
contida no regime de sesmarias é eficiente, vista sob o aspecto do cultivo do
terreno e justiça social, mas se abstraindo da visão executiva do Regime", quer
dizer, ele é negado pela prática do processo de ocupação e legitimação das grandes
possessões, que não atendiam às exigência de moradia habitual e cultivo efetivo do solo.
Esta é, inclusive a visão de Alberto Passos Guimarães, ao afirmar:
"a legislação de sesmarias, traída em suas origens pelo
monopólio feudal, revela-se incapaz de servir às finalidades
expressamente declinadas em seus textos: a disseminação de
culturas e povoamento da terra.67”
Entretanto, dois fenômenos interessam, diretamente, neste Capítulo. Primeiro, o
fato, brilhantemente defendido por Roberto Smith, de que o regime sesmarial significou
um bloqueio à legitimação da propriedade absoluta (burguesa) da terra no Brasil.
Significa isto que, se por um lado, o processo de ocupação privilegiada, seja ou não à
margem da lei, avançou, no Brasil, por outro lado, com o tempo, e dado ao fato de que
muitas dessas "apropriações" ou mesmo concessões, não preencheram os requisitos
legais exigidos para sua confirmação pela Coroa, na verdade, tornaram-se ilegítimas.
Portanto, passíveis de serem vertidas ao patimônio do Estado, enquanto terras
devolutas.
Segundo, que o fato acima significa, do ponto de vista do Estado de Direito, do
acato com validade social ao princípio jurídico de propriedade, não permitir o sistema
de sesmarias a constituição legal da propriedade absoluta, embora não tenha impedido a
formação real das grandes posses, tornadas em latifúndios, e seu sistema iníquo,
privilegiado, que passou a dominar a paisagem do Brasil Rural. Tratam-se, portanto, de
propriedades ilegítimas em sua origem, salvo os raros casos de sesmarias confirmadas

65 LIMA (op. cit., pp. 42 e 43).


66 NASCIMENTO (1985, p.13).
67 GUIMARÃES (1981, p.57).

48
que não caíram em comisso ou as revalidadas pela Lei 601, ou das posses que foram
ulteriormente legitimadas.
Tendo-se em consideração este contexto, aqui se antecipa uma argumentação
fundamental desta pesquisa. Como será posto em evidência no decorrer deste estudo,
em nenhum momento foram plenamente preenchidos os requisitos, legalmente exigidos,
para a legitimação da propriedade, sobretudo no que toca à efetiva exploração, morada
habitual e o mais importante, juridicamente, a demarcação de limites e confrontações e
registros de propriedade. Portanto, que também não foram, na esmagadora maioria dos
casos, lavrados os documentos (Registros, Escrituras) na forma exigida pela legislação
pertinente. No próximo capítulo, ao discutir a Lei 601 de 1850, ter-se-á a oportunidade
de por em evidência, que as maiores divergências em relação ao Projeto de Lei de
Terras, pautavam-se ao problema da legitimação das posses e revalidação das sesmarias
caídas em comisso ou irregulares, por um lado; e acerca dos impostos e tributos, por
outro. Os aspectos ligados à colonização estrangeira, enquanto alternativa à substituição
do trabalho escravo, constituiram-se, quase, que em unanimidade, entre os legisladores.
As divergências, neste caso, referiam-se à questionamentos quanto às formas do
financiamento do processo de emigração. É por esta razão, como será detalhado no
próximo capítulo, que é importante enfatizar que a lei 601 de 1850 é uma lei de terras
e não de imigração: sua preocupação e objetivo central era, portanto, assegurar a
legitimação privilegiada da propriedade, contra a possibilidade de sua democratização.
Daí sua vinculação à deteminadas teses de Wakefield. Talvez aí se encontre, também, a
explicação para o fato, aparentemente contraditório, desta Lei ter sido conduzida e
aprovada por gabinetes conservadores e sob vigorosa oposição dos liberais. Este
assunto será objeto do próximo capítulo.
Esta situação ganha maior relevância após a Independência e com o
desenvolvimento e integração da economia nacional, nas primeiras décadas do século
XIX. Neste contexto, o vazio criado pela omissão administrativa e legal, sobretudo no
período de do Império das Posses (1822-1850) quando não existia nenhuma norma
especificamente reguladora do acesso à terra, gerou o ambiente propício ao
apossamento desordenado de terras públicas, que desde então tornou-se uma constante
na história agrária do Brasil, agravando ainda mais o quadro caótico herdado do sistema
sesmarial, como será estudado com detalhes no próximo capítulo.

49
CAPÍTULO 2

CRISE DO SISTEMA SESMARIAL E REESTRUTURAÇÃO DAS RELAÇÕES


DE PROPRIEDADE

1. Contexto e Conjuntura da Crise

O sistema sesmarial, gestado em uma conjuntura econômica e sócio-cultural


longínqua, destinado, originalmente, à tentativa de reorganização das relações de
propriedade no contexto de uma formação social emergente que se estruturara sobre
conflitos territoriais e desenvolveria no âmbito do mercantilismo, sofrerá inúmeras
crises e reestruturações, ainda em Portugal, desde as suas origens remotas no século
XIV68. Do ponto de vista jurídico, o próprio instituto é institucionalizado no contexto
de grave crise69 e no bojo da Revolução de Avis, no reinado de D. Fernando, em 1375.
Passará, ulteriormente, por um conjunto complexo de redefinições e consolidações na
medida em que Portugal articula-se com a corrente caudalosa do desenvolvimento
mercantilista e da expansão colonial70, entretanto, perdendo, cada vez mais, a sua
relevância e eficácia social e econômica, sobretudo, na medida em que o poder político
no Pequeno Reino desloca seu ponto de sustentação para os setores ligados à economia
mercantil e ao lucro de alienação.
Segundo Faoro71, Portugal desde muito cedo deixa de ser uma Monarquia
Agrária para fundar-se numa forte aliança com o capital mercantil72. Faoro vale-se da

68 Vide capítulo 1 deste estudo. Para uma análise mais detalhada e profunda dessa conjuntura ver o excelente
trabalho de Virgínia Rau (op. cit.).
69Esse contexto de crise é assim descrito por Virgínia Rau: "No meio do século XIV a economia da terra tinha
perdido o equilíbrio e a desorganização agrária corria a par com a instabilidade monetária e a alteração
dos valores sociais. A rarefação da população campesina, pela peste ou pela fuga, a hipertrofia dos
centros urbanos, conjuntamente com a nova autoridade social de mesteirais e mercadores, geravam o
grande drama econômico português e europeu. Para se opor ao êxodo da população do campo para as
cidades, à escassez de mão-de-obra e ao encarecimento dos salários, à decadência agrícola e ao
aumento da indústria pastoril, os legistas jungiram todos os elementos julgados susceptíveis de suster a
crise e deram corpo a uma norma jurídica, mais tarde denominada das Sesmarias." (op. cit.,pp.142-143).
70Acerca da problemática e especificidade do sistema colonial em sua feição moderna, articulada ao
desenvolvimento do capitalismo mercantilista, ver o trabalho de NOVAIS (op. cit).
71op. cit. capítulo I.

50
formulação de L. Trotsky sobre o “desenvolvimento desigual e combinado” para
explicar o destaque do Estado português e sua política colonial no Brasil em relação à
sociedade; os “saltos” da vida retardatária em relação à evolução “normal” face aos
acicates impostos pelo mercado mundial; a combinação de fases distintas e amálgama
de formas “arcaicas” com modernas. Nesse novo contexto o sistema sesmarial é
retomado nos contornos do colonialismo moderno, muito mais como recurso de
ocupação, colonização e defesa73 contra possíveis ingerências territoriais estrangeiras,
na conjuntura do acirramento da contradições gestadas pela concorrência internacional
mercantilista, ainda que mantendo, como sempre, o seu caráter administrativo, fiscal e,
sobretudo tributário.
É neste sentido que, ao ser transposto para o Brasil, o instituto, necessariamente,
sofrerá profundas transformações, e não poderá, evidentemente, cumprir as suas funções
e realizar os seus objetivos primitivos, sobretudo, o de garantir a legitimação, apenas,
das propriedades produtivas. No caso do Brasil, desde o início do período colonial, o
seu objetivo fundamental era a garantia de ocupação e defesa do território, enquanto
domínio do Estado e da Coroa, muito mais do que a sua ocupação efetivamente
produtiva, embora esta, é claro, fosse condição mínima necessária, fundamental para
assegurar a reprodução do sistema econômico e político como um todo. E neste sentido,
estrutura-se com base na grande propriedade escravista e mercantil agro-exportadora
açucareira74, unidade produtiva esta que, ditada pelas necessidades impostas pela
realidade econômica e política da Colônia, representava, de fato, um determinado nível
de desvirtuamento do Instituto, estando na origem da formação do latifúndio, sobretudo
improdutivo, no Brasil.
Provavelmente, esse fato, concreto, real, explique a "tolerância" por parte do
Estado português, em relação a determinado nível de "desvirtuamento" do instituto
sesmarial na Colônia. Segundo Raymundo Faoro,
"depois de perder o caráter administrativo que lhe fora infundido
pelos legisladores de Portugal, para acentuar seu conteúdo
dominial, o regime de sesmarias gera, ao contrário de seus
propósitos iniciais, a grande propriedade. Para chegar a essas
linhas de contorno, muito se deve ao influxo da escravidão e ao
aproveitamento extensivo da pecuária, fatores que se aliam ao
fato de que, para requerer e obter sesmaria, era necessário o

72FAORO (op. cit). Esse aspecto é igualmente realçado por Roberto Smith (op. cit.) Ver especialmente, as páginas
343-344.
73Características essas que, aliás, também estiveram associadas à organização primitiva do sistema sesmarial em
Portugal desde o período que Virgínia Rau (op. cit.) denomina de "Reconquista". Tratava-se, portanto, de um recurso
de colonização efetiva do território, inicialmente fundado nas antigas "Presúrias", meras ocupações das terras
conquistadas aos mouros. O sistema de sesmarias, portanto, deveria, consolidada a paz, constituir-se em uma política
específica de colonização, fundado em concessões de caráter administrativo e tributário, pelo Estado, e tendo como
condição básica, a exploração efetiva do solo. Portanto, desde suas origens mais primitivas o instituto das sesmarias
já era estabelecido como alternativa à ocupação produtiva do solo, enquanto forma pacífica de garantir o domínio
territorial pelo Estado.
74Ver a respeito dessa conjuntura: PRADO JR (op. cit.); FAORO (op. cit.); GUIMARÃES (op. cit.); SIMONSEN
(op. cit.) entre muitos outros estudiosos da História Econômica e da economia brasileira, citados no decorrer deste
trabalho.

51
prévio prestígio político, confiada a terra não ao cultivador
eventual, mas ao senhor de cabedais ou titular de serviços
públicos". Instaura-se plenamente a figura dominante da
“sesmaria de engenho.75”
Daí também que, na medida em que os riscos de perda da hegemonia e do
domínio territorial da Colônia sejam superados, ocorram as reiteradas tentativas,
mediante os diferentes Alvarás que, em distintos períodos e conjunturas econômicas,
são propostos com o objetivo de fazer o instituto das sesmarias retornar ao seu eixo
primitivo de garantir, apenas, as concessões territoriais condicionadas à ocupação
produtiva da terra e ao cumprimento das demais cláusulas de resolubilidade,
particularmente, no tocante ao pagamento de foros e tributos que, paulatinamente, são
acrescidos ao primitivo dízimo da Ordem de Cristo, sobretudo na medida em que a
economia colonial crescia e se tornava mais complexa e importante para o Orçamento
Metropolitano. Entretanto, apesar de todos os possíveis desvirtuamentos e crises, uma
característica, efetivamente a mais importante do instituto de sesmarias, é mantida - pelo
menos formalmente76 - em todo o período de aproximadamente cinco séculos: a de não
possibilitar a absolutização (embora, não também, o enfeudamento) da propriedade
territorial, especialmente, a rural, no caso do Brasil77. Especialmente a partir de meados
do século XVIII, quando, diante da anarquia reinante na estrutura fundiária, começa a
impor limitações muito rigorosas ao reajustamento produtivo da economia às novas
condições de produção, situação esta que se tornará insustentável nas primeiras décadas
do século XIX. O enquadramento legal dessa característica da Colônia, frontalmente
contrário às Ordenações Filipinas, é exposto sucintamente por Ruy Cirne Lima, quando
afirma:

75 Op. cit., p. 407.


76 Aqui se diz "formalmente" no sentido de que a exigência é legalmente assegurada, portanto se constituindo em
condição "sine qua non" à legalização das possíveis ocupações territoriais que, de fato, isto é, à margem das normas
reguladoras do acesso à propriedade, nunca deixaram de ocorrer. Entretanto, ao serem formalmente, isto é,
legalmente, mantidas as normas reguladoras do acesso e legitimação das terras, de fato, era criada uma situação, na
qual, as apropriações que não se ajustassem a essa exigência, também apenas "aparentemente" se constituíam em
verdadeiras propriedades, posto que dependiam sempre de confirmação, isto é, reconhecimento, por parte do Estado.
Isso fazia com que todo o processo retornasse aos termos do instituto de sesmarias, portanto podendo, nestes casos,
fazer valer as exigências formais, e implicar, assim, o confisco da terra e, mais que isso, até a prisão, dependendo da
conjuntura e do "status" do ocupante ou posseiro. Portanto, esse "formalismo jurídico" em sua contradição com o fato
concreto das ocupações, era uma carta forte na manga do Estado Colonial, sobretudo porque, mesmo as concessões
legalmente feitas, não asseguravam a absolutização da propriedade. Tratava-se de um duplo artificio legal a impedir a
efetivação do processo de apropriação. Esta característica do instituto jurídico da sesmaria dá razão a Faoro ao
defender a tese de que, em Portugal, a propriedade territorial, nos termos do instituto da sesmaria, bloqueia o
enfeudamento; e a Roberto Smith ao referir-se ao fato de que a propriedade territorial, neste contexto, tanto em
Portugal como no Brasil, não se absolutiza: isto é, que embora não sendo feudal, também, não assume o caráter
absoluto, mercantil, da propriedade burguesa. Este ponto de vista é aqui defendido, constituindo-se num dos
pressupostos básicos da hipótese de trabalho.
77 Sim, porque a propriedade imobiliária urbana estava igualmente sujeita ao mesmo instituto em Portugal e, depois,
no Brasil Colonial. As implicações e relevância desse fato, será claramente sentida no Brasil, em 1808, com a
chegada da Corte portuguesa após à fuga decorrente da invasão das tropas de Junot, quando diversas residências,
sítios, quintas e até fazendas, são simplesmente requisitados pelo Poder Real, para alojar a Corte, passando a ser
efetivamente incorporada ao patrimônio da Coroa, embora sob determinada renda arbitrada pelo Estado, com a
simples afixação das iniciais "PR" (Propriedade Real) em suas fachadas. Esse fenômeno será, desde então marcado
no imaginário e na consciência "nativista" brasileira, em relação à sujeição "reinol" e será um dos móveis ideológicos
da resistência que permeará toda a crise que levou a independência e ao Segundo Reinado.

52
“o espírito dominialista inspira as disposições novas: as
concessões de sesmarias são meramente concessões
administrativas (e não privadas) sobre o domínio público.”78
Por outro lado, permanece, em letra de lei, a obrigação ao cultivo da terra
sesmarial, como expresso no Alvará de 5 de janeiro de 1785 (que consolida a
legislação). Ao lado da concessão sesmarial, obtém-se a propriedade da terra, não
legitimada pelo Estado, pelo simples apossamento. Quando a legislação de sesmarias é
abolida, em 1822, cria-se um vácuo legal que, segundo o entendimento de Cirne Lima -
do qual se discorda neste trabalho - dá lugar ao apossamento de terras como único modo
legítimo de apropriação, tanto mais legítimo quando a Lei de Terras de 1850 irá torná-lo
legal - pelo apelo ao direito consuetudinário, conforme a argumentação de Cirne Lima -
valendo-se do instituto da legitimação.
Neste entendimento, esta legitimação não se ateve ao propósito tão somente de
evitar uma hecatombe na grande lavoura - no caso de as grandes posses não se haverem
legitimado - mas, acima de tudo porque a posse com trabalho produtivo é fonte
antiquíssima de apropriação no direito português, e, pela via legítima do costume, se
arraigou por igual no direito brasileiro. Provisão de 14 de março de 1822, citada por
Cirne Lima, ao regular medições e demarcações de sesmarias proíbe prejuízos a
eventuais ocupantes com cultura efetiva do terreno, conservando-os em suas posses79.
Por outro lado, como registra Smith, "a sempre presente tentativa da Coroa de
disciplinar a ordem econômica gerou dois tipos de acomodamento", por um lado,
sob o amparo e proteção do Estado e, por outro, ao nível concreto, "sob um mundo
situado fora da concessão da legitimidade estatal."80
Este último se constituiu sempre, segundo aquele autor, em um campo amorfo e
indefinido por onde vicejaram os interesses econômicos. "A coroa, até o fim do
regime sesmarial, em 1822, vetou a grande propriedade fundiária e procurou
de certa forma proteger a pequena posse produtiva", afirma Smith, o que parece
ser uma conclusão que encontra pouco fundamento empírico, posto que o grande
problema enfrentado nessa conjuntura situava-se entre grandes posseiros e antigos
sesmeiros, embora a aparência, criada pela dimensão jurídica e pelo caráter
generalizante da representação normativa, dê a impressão que se tratava de assegurar as
pequenas posses, o que não correspondia aos fatos concretos.
Por outro lado, ao referir-se de forma abrangente à todas as posses (incluía
grandes e pequenas) e, formalmente, assegurava os interesses destas últimas. Entretanto,
como a realização de um direito formalmente garantido exige, concretamente, a
"provocação" de ações no judiciário, este era e continua sendo um fator impeditivo de
materialização ao nível do Direito Real. Além, é claro, das pressões efetivamente
exercidas, ao nível concreto do quotidiano, pelos grandes posseiros e sesmeiros na luta

78 Pequena história territorial do Brasil. Sesmarias e terras devolutas, 2a ed. Porto Alegre, Sulina, 1954, p.39.
79 Citado em LIMA (1954, p.52).
80 SMITH (1990, p.334).

53
pela terra, como aliás é vastamente documentado pela crônica da época81. Por outro
lado, tem razão Smith, ao afirmar, na página 345, que "a grande propriedade fez
parte da economia submersa, enquanto grande posse ou sesmaria nunca
confirmada82", o que tem outra significação completamente distinta de "pequenas
posses produtivas." Compram-se e vendem-se as terras assim apropriadas, ao arrepio
da lei, porque, como diz Smith,
“o escravismo conduz ao latifúndio e não o inverso. Escravo é
estoque, enraizado na tradição dos valores mercantilistas” (...)
“Escravo é riqueza (não o é a terra) e substrato de status da
classe proprietária, é garantia de dívida (pela hipoteca, só a ele
aplicável, não à terra).”83
Idêntica é a compreensão de José de Souza Martins, posto que, como afirma, no
regime da subordinação da produção colonial ao capital mercantil, a condicionante
maior é que a terra não pode expressar a relação-valor, na espécie de “valor” da terra,
mas apenas o escravo a expressa na forma do “valor” do escravo. É nesse nexo que se
manifesta a acumulação mercantil, do ponto de vista da colônia 84. Conforme Smith:
“O estatuto da propriedade não absolutizada (isto é, a não
instauração no plano jurídico da propriedade territorial privada
moderna), que conjuga as relações superestruturais do direito
com a base da produção, que é mercantil, objetiva a incorporação
estatal no cerne da propriedade fundiária, como elemento
desencadeador e impulsionador dos interesses (associadamente)
mercantis e fiscais.”85

É nesse contexto mais amplo e no bojo de suas diferentes conjunturas, que se


agudiza a crise do sistema sesmarial, já reconhecida pelo Estado Português86 desde as
últimas décadas do século XVIII, e que levará a sua extinção e a tentativa de
reestruturação das relações de propriedade no decorrer da primeira metade no século
XIX.
No caso do Brasil, a força das contradições que estão envolvidas neste processo
de transição e desenvolvimento, que transcende, em muito, a mera questão da
regulamentação fundiária, far-se-á sentir em sua plenitude, tendo sido a parteira, tanto
da sua independência política, quanto, sobretudo, da própria estruturação do poder e do
Estado independentes, no bojo de uma nova ordem econômica e política, tanto interna,

81 Ver Ruy Cirne Lima, op. cit.


82 Op. cit. Grifos nossos.
83 Op. cit. p.335.
84 MARTINS (1990).
85 Op. cit., p. 158.
86 "Tantas foram as liberalidades nas concessões de sesmarias, com áreas e 10, 20 e até 100 léguas,
com diversas doações a um mesmo requerente, que em 1822, não havia mais terras a distribuir." (Faoro,
op. cit., p.407). É com essa argumentação que Faoro, baseando-se nos argumentos de Cirne Lima, afirma, a respeito
suspensão formal do regime de sesmarias, que ele estava, de fato, abolido, pela ausência de terras para distribuição,
mesmo antes da Resolução no 76 de 14 de julho de 1822, que o suspendeu.

54
quanto internacional87. Uma nova ordem fundada, agora, não nos enfraquecidos laços da
concorrência mercantilista, mas na hegemônica exigência de ampliação dos mercados
(tanto consumidores quanto, sobretudo, de investimentos) no bojo da lógica do
capitalismo industrial em franco desenvolvimento. É nesse novo contexto que devem
ser localizados, tanto os processos de independência nas diversas colônias, e de ruptura
do "pacto colonial", quanto os diferentes processos que engendraram Leis de terras em
diversos países, assim como os processos abolicionistas.
O regime de sesmarias, por outro lado, embora não impedisse o alargamento das
apropriações de terras pela via da posse ("extra-legal" ou ilegalmente), não permitia,
entretanto, a legitimação das terras assim obtidas88. A não ser em casos nos quais
ficassem comprovadas a morada habitual, a exploração efetiva e a medição das terras
ocupadas por apossamentos. Tratava-se, outrossim, de uma excepcionalidade, como o
caso ilustrado pela Resolução de julho de 1822, posto que a via normal apenas era
assegurada pela concessão real. Daí que os posseiros fossem sistematicamente acusados
de intrusos, invasores, sobretudo quando se tratavam de pequenas áreas. Mas esses
casos estavam sempre regulados, ao nível da praxis, por um lado, pela ação dos
latifúndios e, por outro, pelas dificuldades e riscos inerentes a esse processo de
ocupação, que apenas poderia ocorrer em terras afastadas, estando sempre sujeito a
resistência dos indígenas.
No caso das grandes posses, apenas as dificuldades interpostas pelas terras
sertanejas e pelos indígenas eram limitações a serem consideradas; dificuldades essas
sempre superadas pela prea aos indígenas e pelos sistemáticos massacres que, de resto,
sempre afetaram os pequenos posseiros, quando esses se encontravam no caminho da

87Trata-se, como bem registra Roberto Smith, da conjuntura do último quartel do século XVIII e das primeiras
décadas do século XIX, "onde se enquadra mais significativamente a Revolução Industrial. Diante de uma
perspectiva colonial, essa é a fase da desagregação do ordem colonial, onde a Independência dos
Estados Unidos é evento marcante. A Revolução Francesa, a revolta dos escravos de São Domingos e o
espraiamento das idéias igualitárias e do pensamento liberal conjugam forte inflexão histórica, revelando
significativa mudança nas relações entre os homens e dos homens com a natureza, através da técnica e
do conhecimento científico acionados para a valorização do capital. Tal mudança estava fadada a ter
grande influência econômica e política em todo o mundo colonial.” (op. cit., p.342).
88Como oportuna e corretamente registra Roberto Smith (op. cit.,p.347), em toda a sua evolução o aparato jurídico
estatal colonial não serviu aos interesses de apropriação privada da terra, dificultando sua legitimação e não
permitindo sua absolutização. "O Direito público, constituiu antes, um balizamento a ser observado pelos
interesses particulares e locais dos latifundiários" . Por outro lado, ainda segundo aquele autor, "os grandes
proprietários... não detinham suficiente poder sobre o Estado para redirecionar o estatuto da sesmaria a
seu favor."(Id. Ibidem). Entretanto, cabe registrar que isso não significa de forma alguma que as pequenas posses
fossem beneficiárias do sistema. Nesse aspecto parece ter razão Faoro ao associar as dificuldades jurídicas criadas
pela legislação territorial do Reino, ao problema de assegurar, por um lado, sempre, o domínio eminente da Coroa
sobre todas as terras e, por outro, e com base no fato de que o "Rei era o maior proprietário."(Faoro, op. cit.),
assegurar as condições de exploração efetiva da terra e, sobretudo, seu caráter administrativo e tributário e, dessa
forma, impedir a possibilidade de qualquer espécie de enfeudamento. No caso do Brasil o equaciomento dessa
questão da legitimidade será claramente abordado no seio da Lei 601 de 1850 e dá razão, em sentido estritamente
jurídico, às teses de Roberto Smith: pode-se observar no texto legal citado, como se verá, a distinção, aliás
importantíssima, entre "Legitimação" (art. 5o da Lei 601), destinada às posses, portanto, por suposto, consideradas
ilegítimas até então; e "Revalidação" (art. 4o da mesma Lei), destinada às "sesmarias e outras Concessões do
Governo Geral ou provincial que se acharem cultivadas ou com princípios de cultura e morada efetiva(...)
embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições com que foram concedidas." Como se
verá, a Lei 601 assegurará a ambos os casos, o que não significa, de nenhuma forma, privilegiar a pequena posse em
detrimento das sesmarias ou latifúndios.

55
expansão latifundiária. Mais uma vez, como se pode observar, a saga do privilégio e da
violência privada facilitava tanto a expansão pelas grandes posses, quanto as
possibilidades de sua legitimação. Havia, igualmente, o problema de grandes posses que
se estabeleceram em sesmarias "abandonadas", sobretudo na área de expansão da
economia cafeeira. Este problema da expansão das posses nesta áreas, sobre antigas
sesmarias mais ou menos abandonadas após a decadência da mineração, estará no cerne
dos conflitos entre posseiros e sesmeiros e será um dos pontos centrais do debate
parlamentar, na década de 1840, quando se estavam definindo os critérios legais de
regularização ou legitimação das terras no Brasil e que vierem a ser a Lei 601 de 1850.
Mesmo quando se tratavam das concessões legalmente realizadas pela Coroa, na
medida em que estavam sujeitas às clausulas de resolubilidade, permaneciam sempre
limitadas pelo estatuto jurídico e concreto de propriedades condicionadas, não-
absolutizadas ou seja, que poderiam, a qualquer momento, geralmente com fundamento
nas cláusulas claramente estabelecidas nos documentos de doação, ser confiscadas e
retornar ao domínio da Coroa. Exatamente por isso não poderiam servir para fins
mercantis e, sobretudo, hipotecários.
Entretanto, as contradições entre a legislação e prática da apropriação efetiva,
gestadas pelo avanço das posses e pelo não cumprimento das cláusulas de
resolubilidade (que legalmente ensejariam a anulação das concessões), aliados à
anarquia e ao privilégio, - que se transformaram em verdadeira instituição na Colônia -
gestaram a situação caótica da estrutura fundiária brasileira que, já no final do século
XVIII, era insustentável e que se prolongará, apesar das tentativas reguladoras ao nível
jurídico, até ou dias atuais.
Esta caótica situação era claramente exposta no Alvará de 5 de outubro de 1795,
que tratava de tentar regularizar de forma global a questão da propriedade fundiária na
Colônia, em cujo preambulo referia-se a "(...) abusos e irregularidades e desordens
que têm grassado...em todo o estado do Brasil". O entendimento de Cirne Lima é,
entretanto, diverso deste. De acordo com ele, o sistema de posses não era ilegítimo,
mas, sobretudo, pertencia aos costumes em conformidade com abundante jurisprudência
que cita. Esta situação impusera-se em Portugal em virtude do despovoamento
resultante das navegações e guerras de conquista e da influência crescente do direito
romano. Reporta ainda que, na Lei das Sesmarias, incorporou-se, desde então, o
princípio da retenção pelo, ocupante, da propriedade cujo titular se ausentasse e não a
lavrasse. Deste modo manifesta-se a opinião de Cirne Lima:
“Era a ocupação, tomando o lugar das concessões do Poder
Público, e era, igualmente, o triunfo do colono humilde, do rústico
desamparado, sobre o senhor de engenhos ou fazendas.”89
Deste entendimento poder-se-ia concluir que a expansão inusitada das posses a
partir de 1822 estivesse sendo feita em cima das terras de sesmarias incultas e

89 Op. cit., pp. 20-1 e 47.

56
abandonadas, (a maioria das terras, se é certo que praticamente todas as terras estavam
já distribuídas em sesmarias) e, indiferentemente, por grandes e pequenos posseiros. É
este, sem dúvidas, o raciocínio que está na base da afirmação de Maurício Vinhas de
Queiroz, a da predominância historicamente possível da pequena propriedade, não
fosse a Lei de Terras de 1850.
De qualquer modo, qualquer que fosse o caso, esta situação, concretamente,
indicava a necessidade de redefinição dos critérios jurídicos de legitimação das terras
que se encontravam em poder privado. As inúmeras tentativas realizadas através dos
Alvarás encontraram, sistematicamente, a resistência, tanto dos latifundiários, quanto
das burocracias da Colônia, sobretudo ao nível provincial ou local, dada a estreita
dependência entre a burocracia e os potentados locais que se consolidaram
definitivamente no Brasil desde o período das Regências (Faoro).
Essa necessidade de reestruturação do estatuto legal da propriedade devia-se,
fundamentalmente aos permanentes conflitos que começaram a aparecer entre os
antigos sesmeiros e os novos grandes posseiros, que, por exemplo, assumirá
características de iminente radicalidade no contexto da expansão do café sobre as
antigas sesmarias, quase abandonadas, do vale do Paraíba, entendimento este, comum a
Faoro e a Caio Prado Júnior. Essa problemática dos conflitos entre grandes posseiros e
antigos sesmeriros está no âmago do debate parlamentar da década de 1840, que
desembocaria na conturbada elaboração e aprovação da Lei 601 de 1850.
Tal é o caso, por exemplo, do Alvará de 1795, que buscava tornar mais rigorosos
os processos de doação e confirmação de sesmarias, reafirmando a exigência do
cumprimento das cláusulas de resolubilidade, pactuadas, especialmente exigindo a
medição, registro, residência e exploração efetiva. Esse Alvará foi revogado, por
decreto, pouco mais de um ano depois. Permanece, assim, a situação de ilegalidade para
a maioria das terras ocupadas na Colônia, situação essa que se estenderá e agravará, até
a suspensão do instituto de sesmarias, em julho de 1822, pouco antes da Independência
do país, recrudescendo-se durante todo o período do "Império das Posses" (1822-1850),
quando o Estado virtualmente se retira, envolvido em problemas políticos mais
emergentes, da questão específica da legitimação da propriedade, limitando-se, apenas,
ao estabelecimento de um preceito genérico acerca do problema da propriedade na
Constituição de 1824.
É nesse contexto que se articulam, ou entram em choque, as contradições,
conflitos e conciliações entre o exercício legal da violência pelo Estado, por um lado, e
a violência privada, dos latifundiários, por outro, contradições estas, que sempre
estiveram presentes no processo de desenvolvimento e reorganização da estrutura agro-
fundiária brasileira.
Na verdade o Estado, propriamente, não se retirou da questão, mas, face à
conjuntura de instabilidade política do período e incapaz de fazer face às oligarquias
latifundiárias das províncias, os governantes optam por uma estratégia jurídico-política
hábil e inteligente: por um lado asseguram o pleno direito de propriedade na

57
Constituição, evitando, desta forma o conflito direto com os latifundiários; por outro
lado, não promovem a regulamentação infra-constitucional do preceito constitucional
(artigo 179, XXII da Constituição de 1824), evitando, desta forma, envolverem-se num
confronto direto com o latifúndio num momento delicado de consolidação do Poder
Político e do Estado Independente em formação. Só que, com os direitos
constitucionalmente assegurados e sem nenhuma norma reguladora que limitasse a sua
ação, as grandes posses avançaram celeremente, consolidando definitivamente sua
posição na estrutura fundiária brasileira. Essa questão só será retomada na década de
1840, quando se inicia a consolidação do poder mediante o chamado "Golpe da
Maioridade", embora na conjuntura de um equilíbrio político eminentemente instável.
É neste sentido e contexto, também, que a certeza do privilégio e da impunidade,
fará com que o próprio processo de legalização (titulação) das terras ocupadas, sejam
por posses (que necessitavam ser legitimadas) ou se tratassem, simplesmente, de
sesmarias não confirmadas ou caídas em comisso mas não arrecadadas pelo Estado (que
exigiam revalidação), nunca tenha preocupado seriamente os grandes proprietários90 . É
assim que, na sua maioria, os processos de confirmação das sesmarias, durante o
período colonial, e a titulação dos diversos tipos de imóveis rurais, ulterior a Lei 601 de
185091 , - permanecendo sempre neste último caso, como não poderia deixar de ser em
um Estado de Direito, a alta exigência de que fossem realizados dentro das formalidades
legalmente estabelecidas, inclusive prazos92 - nunca tenham sido rigorosamente
efetivados. Este fato concreto, real, torna a maioria das terras até então apropriadas,
ilegais ou, no mínimo, de legitimidade questionável.
As justificativas para o não cumprimento das cláusulas e exigências legalmente
estabelecidas ou pactuadas eram as mais diversas: dificuldades naturais, deficiência da
burocracia agrária, falta de pessoal habilitado, geômetras, topógrafos, etc. Entretanto,
tais alegações não podem revogar exigências legais. Portanto, o fato concreto, no
entendimento aqui proposto, é que as propriedades não legitimadas ou legitimadas à
revelia das exigências legais, são juridicamente questionáveis: em termos jurídicos esses
títulos são nulos.
Apesar das resistências contra as grandes posses e do debate acirrado que gerou
no que toca a sua limitação ou não-legalização, acabou, a Lei 601, por assegurar, na
prática, todas as posses mansas e pacíficas, que se formaram, sobretudo no período que
vai de julho de 1822 até a data da promulgação da referida Lei. A partir desta data, por
suposto legal, apenas seria permitido o acesso à propriedade pela via da compra e
venda, fato este que, entretanto, como se verá, não será efetivamente materializado,

90Este fato, mais do que qualquer outro, está na base do fracasso na implementação da Lei 601 de 1850 e de todos os
fracassos que continuaram acompanhando a luta pela terra no Brasil até os dias atuais, e que ganhou profunda
radicalidade no contexto do regime autoritário, entre 1964-1984, como se verá nos capítulos 4 e 5 deste estudo.
91 É neste sentido que se pode afirmar que no Brasil nunca ocorreu nenhum processo de reforma agrária; ao
contrário, como bem coloca Octavio Ianni para o período do Regime Militar, que será objeto dos dois últimos
capítulos deste trabalho, o que houve, de fato, foi uma "contra-reforma" agrária.
92Na verdade, essa situação persistirá até os dias atuais, como se pretende por em evidência neste trabalho.

58
persistindo, sobretudo no que toca às terras não ocupadas ou do Estado, genericamente
denominadas de devolutas, o simples acesso privado pela via da posse. A persistir esse
tipo de apropriação, o problema das posses permanece, nunca tendo sido seriamente
enfrentado pelo Estado Imperial e, depois, pela República, limitando-se o Estado, por
um lado, a legitimar as posses, por suposto produtivas, ou vender as terras devolutas a
"preço vil", e por outro lado, simplesmente deixando esse processo ao livre jogo das
forças do latifúndio, no qual a violência, sobretudo contra a massa de pequenos
produtores rurais permanece cada vez mais radicalizada, assumindo a forma crônica e
ilegítima que se pode observar nos dias atuais.
Em 1850, após um longo período de convulsões internas e um acirrado debate
parlamentar específico que durou 7 anos para aprovação e mais 4 até a sua
regulamentação, a Lei 601, cujas teses centrais já vinham sendo postas desde 1821 por
José Bonifácio, estabelece critérios jurídicos para a legitimação de todas as terras
ocupadas até então, fosse de forma legal (sesmarias) ou não (as posses). Na origem do
processo parlamentar esteve a grande expansão cafeeira a partir de 1830. A produção de
café nos anos 1831-1840 triplicou em relação à década anterior, e na década seguinte
duplicou, quando inicia seu deslocamento em direção ao “Oeste” paulista, conforme
dados de Taunay elaborados por Sérgio S. Silva93. Como escreve Emília Viotti da
Costa:
“A caótica situação da propriedade rural e os problemas da força
de trabalho impeliram os setores dinâmicos da elite brasileira a
reavaliar as políticas de terras e de trabalho. A Lei de Terras de
1850 expressou os interesses desses grupos e representou uma
tentativa de regularizar a propriedade rural e o fornecimento de
trabalho (...). O assunto foi discutido pela primeira vez no
Conselho de Estado em l842 e um projeto de lei apresentado à
Câmara dos Deputados no ano seguinte. O projeto baseava-se
nas teorias de Wakefield e inspirava-se na suposição de que
numa região onde o acesso à terra era fácil seria impossível obter
pessoas para trabalhar nas fazendas a não ser que elas fossem
compelidas pela escravidão. A única maneira de obter trabalho
livre nessas circunstâncias seria criar obstáculos à propriedade
rural. (...) O projeto foi elaborado tanto para regularizar a situação
daquelas propriedades que tinham sido ilegalmente adquiridas,
como também, ao mesmo tempo, para estender o controle
governamental sobre as terras em geral.”94

Foram mudanças legais sem que, contudo, se modificassem as condições reais


do processo de apropriação territorial, que permanece, ou sem legalização (registro,
titulação) das propriedades ou, simplesmente, fundado em "registros de vigário",
vagos e, geralmente, suspeitos, relatos de áreas, limites e confrontações, realizados
pelos próprios latifundiários. Assim, persistirão os mesmos problemas de apropriação

93 Sérgio S. Silva. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil, São Paulo: Alfa-Ômega, 1976, p. 49.
94 Emília Viotti da Costa. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Grijalbo, 1977. p.133.

59
privilegiada e legitimação (titulação) questionável, que sempre estiveram presentes na
formação da propriedade territorial brasileira.
O processo de consolidação da propriedade territorial rural no Brasil, assim, na
prática, sempre assumiu a forma de uma violência legitimada pelo fato consumado da
apropriação, fundado na força e no poder local dos latifundiários, processo esse que será
consolidado nos primeiros anos da emergência do Brasil como nação independente,
envolvendo um quadro complexo de articulações e cooptações, que sempre estiveram
no íntimo do processo de legitimação política do poder no Estado95 independente,
sobretudo no período transicional das Regências96. Essa situação, provavelmente, está
na base do fenômeno amplamente conhecido no Brasil de que o processo legislativo
territorial sempre é deflagrado a reboque do efetivo processo de ocupação e, quase
sempre, procurando legitimar os privilégios conquistados pela força do latifúndio e dos
potentados locais, tornando, assim, de certa forma, o Estado, como mero legitimador do
"fato consumado".

2. O Império das Posses


Após o período conturbado por que passou entre 1808, com a transmigração, e o
retorno da Corte Portuguesa, em 1821, gestou-se, no Brasil, profunda incerteza quanto
ao caráter e consolidação do Poder do Estado e da sua própria integridade territorial.
Tratam-se, portanto, de questões que transcendiam, em muito, à problemática
específica da propriedade rural, embora a ela não fossem indiferentes, sobretudo na
medida em que as condições estruturadoras da sociabilidade estavam estritamente
articuladas ao poder local, numa comunidade de bases institucionais frouxas e dispersas
pela vastidão do território. Nesse contexto, a articulação das condições que pudessem
servir de base à sustentação de um poder emergente, em um país que inevitavelmente
marchava para uma ruptura institucional com sua antiga metrópole, numa conjuntura
internacional em franca ebulição e desenvolvimento, ameaçava o tênue equilíbrio que
poderia assegurar qualquer base segura ao poder de um Estado Unitário.
Havia, de imediato, vários riscos envolvidos nesta transição: o retorno à
condição de colônia, que era uma ameaça presente, embora fortemente rechaçada
internamente; contrapondo-se a esta ameaça, a alternativa à independência era
francamente ameaçada pelo perigo da cessessão e da república, que alias, assume os
contornos iminentes nos diversos levantes que ocorrerão após a Independência política
do país, sobretudo na fase das Regências. Além das mediações colocadas imediatamente
às opções e alternativas internas ao país, Portugal não seria indiferente a esses

95Referindo-se a esse contexto, Faoro (op. cit., p.329) afirma que, nesse período de consolidação do poder no
contexto da estruturação e consolidação da nação independente, "governar, dada a estrutura que os interesses
articulam, consistia em proteger, guiar, orientar a camada que detinha o poder econômico. Para que a
combinação funcione será necessária a concentração do governo, o entendimento com os especuladores,
o alargamento da camada dirigente, com muitos funcionários às ordens de um estado-maior."
96 Ver a respeito deste contexto, especialmente, os capítulos VII, VIII e IX do excelente trabalho de Raymundo
Faoro (op. cit).

60
movimentos, e tentaria impor suas posições97, que, em última instância, foram
negociadas em termos de uma significativa indenização e na continuidade monárquica e
dinástica, como os fatos evidenciaram.
Nesse contexto de conflitos, muito mais imediatamente colocados em termos da
consolidação do poder nacional, e da liberdade econômica do Brasil, digladiam-se
diversas facções tentando fazer valer seus privilégios e posições na estrutura do poder.
Economicamente, por um lado, havia a exigência, imposta pelo novo contexto
internacional, que apontava para a impossibilidade do desenvolvimento do País, se
mantida a tradicional estrutura escravista, de baixa produtividade e impedidora do
desenvolvimento do mercado interno, livre, fundado no novo contexto da concorrência,
inerente à integração a um mercado mundial capitalista, agora em sua fase industrial.
Por outro lado, seria impossível a manutenção da subordinação aos interesses mercantis
metropolitanos e o retorno ao antigo e superado (desde 1808) "pacto colonial". Havia-
se, há muito, encerrado a lógica do mercantilismo e, portanto, as possibilidades de
sobrevivência e reprodução da economia nacional em bases escravistas e agro-
exportadoras estavam profundamente comprometidas.
É nesse contexto que se situam as pressões inglesas no sentido da libertação das
colônias98 e da extinção da escravatura. Entretanto, concretamente, no Brasil, as
exigências implicadas nesta profunda transição, impunham alternativas e opções
econômicas dificilmente conciliáveis e de materialização problemática, sobretudo no
curto prazo99. Tratava-se de consolidar a integridade nacional, contra a cessessão;
reorganizar as bases políticas do poder de Estado emergente, contra os riscos de
restauração colonial; pacificar as lutas entre facções locais; dar fluidez e efetividade ao
problema grave da produção agro-exportadora e da propriedade territorial, caóticos
desde muitos anos - portanto, de redefinir o instituto da propriedade rural - e,
finalmente, transitar para o trabalho livre, em sua sociedade sustentada nas colunas
corroídas da escravidão.
Portanto, não se tratava apenas de dar fluidez, racionalidade e legitimidade à
estrutura agrofundiária. Ao contrário, este problema emergia como relevante no bojo do
equacionamento de questões políticas e econômicas mais graves e emergentes.
Provavelmente por isso, e não por motivos especificamente ligados à propriedade

97Como ficou evidente na convocação da "Cortes Portuguesas" após o retorno de D. João VI a Portugal que se reúne
na ausência dos Deputados brasileiros e adotam medidas que indicavam francamente o rumo da re-colonização do
Brasil (vide a esse respeito, entre muitos outros estudos, SMITH (op. cit); FAORO (op. cit.).
98Bentham: "Emancipate your Colonies" (In.: SMITH, op. cit. p. 248).
99Este fato talvez explique a posição ambígua e contraditória de José Bonifácio de Andrada e Silva, por exemplo, a
respeito da extinção do trabalho escravo. Como se sabe, desde 1821, antecipando-se inclusive, a publicação das teses
de Wakefield, Bonifácio já expunha as linhas mestras que fundamentariam as teses da Colonização Sistemática e que,
na década de 1840 iriam fundamentar os preceitos consagrados na Lei 601, especialmente a abolição do sistema de
doações de terras com base no instituto das sesmarias, que deveria ser substituído pelo processo de compra e venda; a
necessidade da colonização estrangeira, como alternativa à substituição, no médio ou longo prazos do trabalho
escravo. Não é, portanto, coincidência que na Resolução 76, de 14 de julho de 1822, a ele atribuída e ratificada
apenas em 1823 pelo Imperador, tenha sido "abolido" sumariamente o regime de sesmarias e consagrado o princípio
da legitimação das posses produtivas, contra a presença de sesmarias abandonadas ou deficitárias.

61
territorial em si, é que o instituto de sesmarias é revogado, em 14 de julho de 1821100
sem que tenha sido substituído por nenhuma outra regulamentação territorial até 1850, a
não ser as garantias fundamentais ao Direito (genérico) de propriedade asseguradas na
Constituição de 1824.
Finalmente, o funcionamento da economia enfrentava problemas de outra
natureza, como as pressões externas da Inglaterra, em franco desenvolvimento industrial
e sequiosa por assegurar a expansão dos mercados, tanto para seus produtos industriais,
quanto fornecedores de matérias-primas; mas sobretudo, como ficará claro nas teses
neo-colinalistas, particularmente de Bentham e Wakefield, no sentido de assegurar a
ampliação do mercado para a exportação de capitais, então vigorosamente defendida,
sobretudo por Wakefield, com base nas teses de Adam Smith, enquanto alternativa para
superar a crise de excedentes de capital na "mother country" (Smith. op. cit.). É neste
contexto, por exemplo, que se fundam as teses da Colonização Sistemática101.
Tratavam-se, portanto, de problemas que não eram especificamente adstritos à
regulamentação da propriedade territorial. Demais, legal ou ilegalmente, as terras
estavam sendo incorporadas ao sistema produtivo da economia, sobretudo, através de
sua articulação e subordinação aos segmentos básicos da economia, ligados à atividade
agro-exportadora. Neste contexto a abolição era uma exigência mais vigorosa,
entretanto de difícil equacionamento, posto que os escravos compunham a força de
trabalho fundamental, de difícil substituição, no curto prazo, sobretudo pela ausência de
um sistema oficial de crédito e da impossibilidade de viabilizá-lo de forma adequada.
Até 1850 nenhum dos dois problemas será efetivamente enfrentado, apesar de todas as
pressões internas e, sobretudo, internacionais.
Essa conjuntura, interna e internacional, talvez explique porque com a suspensão
da concessões de sesmarias em 14 de julho de 1822, e com a revogação de toda a
legislação agrária portuguesa, com a Independência dois meses depois, a questão do
acesso à propriedade territorial permaneça sem nenhuma regulamentação específica até
1850. De fato, o que ocorre é que a questão genérica do direito de propriedade, em seus
contornos efetivamente burgueses de propriedade absoluta, ficará assegurado,
genericamente, na Constituição Política do Império do Brasil de 1824, nos seguintes
termos:
"Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos
Cidadãos Brasileiros, que têm por base a liberdade, a segurança
individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do
Império, pela maneira seguinte. (...)”

100Como comenta Roberto Smith (op. cit. p.284) "o regime sesmarial, em desagregação há longo tempo no
Brasil colônia, termina por ser extinto em 1822, pouco tempo antes da Independência. Isso parece ter
ocorrido em circunstâncias marcadas pela discrição, onde institucionalmente não se procurava
fazer alarde sobre seu fim" (grifos nossos). Essa discrição a que se refere Smith é relevante e, certamente, está
associada à preocupação do Governo, na época, em não contribuir, ainda mais, para a radicalização dos conflitos,
especialmente nas Províncias.
101"A preocupação central de Wakefield era, portanto, com o fenômeno de rebaixamento geral da taxa de
lucro na Inglaterra desde 1815, tendo em vista o excesso de capital, e não como decorrência da elevação
do custo da reprodução da força de trabalho." (SMITH, R. op. cit., p. 250).

62
"XXII - É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua
plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e
emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente
indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos, em que terá
lugar esta única exceção, e dará as regras para determinar a
indenização."102
É nesse contexto, de vazio da regulamentação infra-constitucional com relação,
especificamente à propriedade territorial, que se configura a situação conhecida como
"Império das Posses", ou seja, fundado no fato de que não havia, legalmente, o
estabelecimento de instrumentos legais que assegurassem a legalização das aquisições
de terras, nem regulassem o seu acesso. Neste sentido o Estado realmente, e não apenas
virtualmente, retira-se da luta pela terra. Império das Posses, sim, posto que, nesse
contexto de impossibilidade de legalização e, portanto de reconhecimento formal, das
propriedades pelo Estado, apenas era possível o acesso à terra, pela via da mera
ocupação, sem nenhum limite ou restrição. Daí a agudização da profunda anarquia que
já vinha ocorrendo, à margem da legislação sesmarial, antes, quando as posses sempre
avançaram à revelia do instituto de sesmarias. É óbvio que, nessa conjuntura, os grandes
posseiros, mais que os pequenos, tinham concretamente a possibilidade de fazer valer,
pela força privada e fundados no prestígio, as suas ambições e pretensões territoriais.
Neste sentido, discorda-se frontalmente da noção que Maurício Vinhas de Queiroz
fornece do “Império das Posses”. Segundo a interpretação daquele autor, o vazio
jurídico, a perpetuar-se num lapso de tempo maior, teria gerado uma autêntica reforma
agrária, a saber:
“a expansão livre e impetuosa da economia dos posseiros, os
quais se atiravam sobre as terras inexploradas em um ritmo até
então desconhecido. Em 1850 esse processo - que levado às
últimas consequências tornaria o Brasil um país de estrutura
agrária muito diversa da atual - foi drasticamente interrompido;”

e, por isso, representou uma

102” Constituição Política do Império do Brasil", jurada em 25 de março de 1824 (In.: MEAF, 1983, p.357. Grifos
nossos). Verifica-se, dessa forma que a questão da propriedade da terra não fica absolutamente à revelia; pelo
contrário, a propriedade é vigorosamente assegurada pela Lei Magna. O problema é que, como sempre acontecerá no
Brasil, adia-se a regulamentação do preceito, jogando-a para "a Lei Ordinária", Lei essa, que como a prática histórica
parlamentar demonstrou, só será aprovada em 1850 e regulamentada apenas em 1854. Fato relevante a ser observado
é que a Constituição do Império atribui valor monetário e a propriedade absoluta à terra, incentivando, por esse meio,
a especulação e a usura, já então em franco desenvolvimento no País. Por outro lado, com o vazio na regulamentação,
criado pela extinção da legislação sesmarial, com a Independência, não haverá nenhuma regulamentação que limite,
por um lado, as possibilidades de apossamento de terras e, por outro, lhe assegure as condições de legalização. Assim,
com o direito genérico à propriedade assegurado, e na falta da regulação estatal fará com que, na prática, subsista um
espécie de "estado hobbesiano", onde imperará sempre a "lei do mais forte", o que tornará definitivamente assegurada
as possibilidades de hegemonia do poder local-latifundiário, sobretudo numa conjuntura de instabilidade política
ligada à consolidação do Estado Independente, quando então, as facções em luta pela hegemonia no poder, não
permitirão que o Governo se atreva a ferir interesses locais. Essa conjuntura é evidenciada pelos inúmeros levantes e
conflitos rurais que ocorreram entre 1821 e 1850, que só serão efetivamente controlados, no Segundo Reinado. É
obvio que nessa conjuntura, o vazio da regulamentação agrária possibilitasse, sobretudo, a consolidação do latifúndio
e do poder local, instituindo no Brasil independente, os sistemas de cooptação entre o poder local-regional e as
facções em luta pela hegemonia no poder central, que daí para frente sempre estarão presentes no cenário político
brasileiro, sobretudo no Parlamento.

63
“severa limitação dos direitos que tinham sido conquistados pelos
posseiros, conduzindo destarte à gradual passagem das formas
escravistas a outras formas de trabalho no campo mais ou menos
livres, dentro dos mesmos latifúndios.”103

Por outro lado, essa mesma situação dará origem a um grave problema de
legitimação de terras. Se por um lado, nesse período, não poderia ser arguida nenhuma
hipótese de ilegalidade com relação aos processos possessórios, por mais que estes
fossem nocivos aos interesses econômicos ou mesmo “injustos”; por outro lado, dada
essa mesma ausência de legislação específica, as terras então apropriadas, não podiam
ser legalizadas, reconhecidas formal e legalmente pelo Estado. Essa questão só retornará
à ordem do dia na década de 1840 e após a aprovação da Lei 601, que tentará
regulamentar as formas e o conteúdo do direito de propriedade territorial na Brasil.
Nesse sentido, o Império das Posses foi, na verdade, o império dos latifundiários
e dos potentados locais: nesse período eles consolidaram não apenas seu patrimônio
territorial, mas sobretudo, o seu poder político local104 que, dadas suas articulações
políticas, enquanto possível base de sustentação dos grupos no poder, esse período
correspondeu, igualmente, ao da consolidação do papel fundamental que passaram a
ocupar os potentados locais e latifundiários, enquanto base de sustentação dos diferentes
governos nacionais.
Essa situação estará, daí em diante, fortemente presente nas diferentes políticas
do Estado Nacional e, seu primeiro teste será realizado no debate parlamentar de 1843-
1850, em relação, especificamente, ao problema da propriedade fundiária 105.

3. A Lei de Terras: Legitimação dos Privilégios

103 Maurício Vinhas de Queiroz. Notas sobre o processo de modernização no Brasil. Revista do Instituto de Ciências
Sociais, 3(1). Rio de Janeiro: 1966, p. 141.
104Neste sentido, contribuiu efetivamente para a consolidação do poder das oligarquias locais, a instituição da
Guarda Nacional, no período Regencial, que atribui formal e efetivamente aos latifundiários patentes militares (de
"Coronéis"). Esse fato, associado outras mudanças jurídicas, políticas e administrativas relevantes, promovidas, no
período Regencial, consolidará definitivamente o poder das oligarquias locais latifundiárias (vide Raymundo Faoro,
op. cit.).
105Um problema relevante nesse contexto é exatamente o da legitimação das posses (grandes posses, bem
entendido), contra as pretensões de antigos sesmeiros. Não se tratava, como às vezes interpretam alguns autores (Vg.
Faoro, op. cit.; Passos Guimarães, op. cit.) da defesa das posses (por suposto pequenas) contra os latifúndios
(representados pelos sesmeiros). Ao contrário, representava os interesses das grandes posses, - que se formaram no
período que se estende entre o processo político da Independência e a consolidação do poder nacional, - contra os
antigos sesmeiros, sobretudo aqueles representados por elementos ligados aos privilégios da antiga Corte portuguesa.
Trata-se, sobretudo, de grandes posses que se formaram, por exemplo, entre o Rio de Janeiro, Minas e São Paulo,
durante a expansão da cultura do café, que afetaram interesses de antigos sesmeiros do vale do Paraíba (Faoro, op.
cit.). É nesse sentido que o problema se coloca de forma diferente no Nordeste, cuja estrutura fundiária, concentrada,
fora consolidada com base nas sesmarias durante o ciclo áureo da cana-de-açúcar e na região do café, que será
consolidada sob o "império das posses". Por essa razão não se pode, simplesmente, como o faz Passos Guimarães, e
em parte Emília Viotti da Costa, entre outros, atribuir a aprovação da Lei de Terras "aos interesses cafezistas.":
tratava-se, na verdade de uma questão que, política e economicamente, ultrapassava os interesses difusos, embora
concretamente manifestados, de oligarquias locais. Na verdade, envolvia a mudança de hegemonia do eixo
econômico, que passa a se deslocar para a região centro-sul, desde 1808 e sobretudo na segunda metade do século
XIX. E sobretudo, tratava-se de assegurar o monopólio da propriedade territorial: é neste sentido que a Lei 601 é uma
lei de terras, muito antes de uma lei de colonização (cf. Faoro, op. cit.; Prado Jr. op. cit.; Linhares [1981], entre
muitos outros).

64
3.1. Considerações Básicas
É nesse contexto, - acima explicitado apenas em suas linhas fundamentais106 -
que se pode afirmar que a Lei 601, de 1850, é, efetivamente, uma lei de propriedade
territorial, uma lei de terras, e não um Projeto de colonização, embora esse tema não lhe
fosse estranho, sobretudo se se tiver em consideração o contexto em que a problemática
da economia agrária brasileira vinha sendo colocada desde 1821107.
Os debates Parlamentares que antecederam a aprovação da Lei 601 evidenciam a
centralidade da questão da legitimação da propriedade. É exatamente no contexto de se
assegurar a propriedade da terras, por um lado revalidar as sesmarias e, por outro,
legitimar as posses (grandes posses), que se travam os debates e as divergências mais
acirradas e relevantes. É nesse contexto, por exemplo, que se deve situar o problema dos
impostos e tributos, sobretudo o Direito de Chancelaria, que equivalia ao pagamento do
registro das terras. O fato de que a arrecadação desses impostos, assim como dos
recursos arrecadados com a venda de terras, serem destinados à importação de colonos
estrangeiros livres, não é argumento suficiente para se afirmar que tal representasse um
rateio de tais dispêndios, entre proprietários de distintas regiões e condições. Na
verdade, como se verá neste capítulo, tais recursos têm a seguinte destinação, conforme
o artigo 19o. da Lei 601 de 1850: "1. ulterior medição das terras devolutas”; “2.
importação de colonos livres(...)."
As questões da força de trabalho e da imigração 108 sempre foram preocupações
permanentes no processo de colonização brasileira, tendo sido, num primeiro momento,
equacionadas pela "imigração forçada" de escravos africanos.
Assim, duas questões aparecem claramente colocadas na década de 1840, no que
toca, especificamente à questão agro-fundiária, ao Parlamento: (1) A da legalização da
propriedade territorial e da regularização efetiva da questão fundiária, que envolvia as
terras que se encontravam no domínio privado por algum título legítimo (como era o
caso das antigas sesmarias, mesmo quando em comisso pelo não cumprimento de
algumas das cláusulas resolutivas); e as posses mansas e pacíficas, por um lado e, por
outro, a arrecadação e demarcação das terras públicas e devolutas e, (2) A questão da
colonização e da migração estrangeira, envolvendo problemas da maior relevância na
medida em que se direcionava em duas frentes articuladas: (a) a importação de colonos
livres e pobres, que deveriam ser destinados às atividades assalariadas nas propriedades

106Posto que entrar em todos os seus detalhes, embora da maior relevância, fugiria em muito dos objetivos desse
estudo, que se ocupa da questão específica da luta pela legitimação da propriedade fundiária. Portanto, os aspectos
acima indicados em suas linhas gerais e mais significativas, não teve a pretensão de oferecer um quadro completo da
conjuntura do século XIX no Brasil, mas apenas de tentar localizar o contexto em que a questão da propriedade
fundiária e da estrutura agrária brasileira estava colocada.
107Ver o documento “Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório para os Senhores Deputados da Província
de São Paulo” encaminhado à Constituinte Portuguesa (5.10.1821), onde são antecipadas as teses básicas adotadas na
Lei de Terras (In. SMITH, op. cit. p. 286).
108Entretanto, deve-se ter bem claro para efeitos de qualquer análise dessa questão, que o problema da mão-de-obra
nunca esteve dissociado do problema da propriedade territorial. Neste sentido, como ficou explicitado até aqui, o
instituto de sesmarias nada mais era do que uma forma determinada de propor uma solução adequada a essa
problemática em determinado contexto histórico, econômico e político.

65
rurais na condição de trabalhadores livres e (b) à organização de colônias, pelo Estado,
em determinadas regiões, sobretudo nas fronteiras109.
Assim, na verdade a Lei de Terras se destinava à regulamentação de duas
situações distintas e não tão articuladas como é comum supor-se.
1a. A questão da legalização da propriedade privada, que significava reconhecer
e transferir para o domínio privado, todas as terras economicamente destinadas à
exploração agropecuária; e destacar as terras remanescentes, devolutas, que deveriam
funcionar como um fundo de reserva de terras a servir de atração à imigração
estrangeira livre, então importante, face ao aumento das pressões externas e internas,
contra o trabalho escravo, na nova conjuntura econômica que se estruturava no país.
Como se sabe, argumentação básica da tese de Wakefield110 a respeito da "colonização
sistemática" tinha como pressuposto fundamental a existência de terras livres e estatais,
que deveriam servir como meio de regulação do mercado (de terras e de trabalho), com
o objetivo explícito, de facilitar a atração de colonos livres, (pobres e capitalistas) por
um lado, e impedir a dispersão da força de trabalho (colonos pobres) sobre a vastidão de
terras disponíveis, que segundo a argumentação wakefieldiana, dificultaria ou mesmo
poderia impedir a formação e, sobretudo, o desenvolvimento, de unidades produtivas
capitalistas111. O controle dessa possibilidade à inversão de capital na agricultura das
colônias, segundo aquele economista, apenas poderia ser eficiente se promovido através
da intervenção do Estado, pela via Legal: isto é, criando óbices jurídicos à dispersão do
processo de apropriação territorial. Isto seria feito mediante o recurso à venda de terras
e, especialmente, pelo controle da emissão dos títulos legais de propriedade112.
No caso do Brasil esses óbices enfrentavam, a resistência imposta pelos
latifundiários, que tentavam "privatizar" (em lugar do Estado) em seu beneficio próprio
a quase totalidade das terras economicamente aproveitáveis ou importantes. Ora, na
ocorrência desse fato, esvaziava-se o pressuposto fundamental da colonização
sistemática113, tal como teorizada por Wakefield, que seria a existência de terras livres e

109O que já se constituía no desvirtuamento das teses da “colonização sistemática”, tal como formulada por
Wakefield como se verá oportunamente. Pode-se dizer que essa é a concepção latifundiária das teses da colonização
sistemática de Wakefield que, evidentemente tem um sentido diferente e era uma alternativa ao desenvolvimento de
um projeto capitalista, onde o controle das terras pelo Estado era condição básica para regular o mercado de terra e
trabalho, em apoio a investimentos capitalistas: assegurar fluxo contínuo de mão-de-obra assalariada, pela via da
imigração, custeada pelo Estado com o fundo arrecadado pela venda de terras aos assalariados que desejassem
abandonar o mercado de trabalho (que Marx dirá que corresponde ao resgate pago pelo trabalhador ao capitalista para
libertar-se do trabalho assalariado); assim como reservas de terras passíveis de serem privatizadas para eventuais
investidores. (Ver a respeito: MARX, 1975; Livro I, capítulo XXV; WAKEFIELD, op. cit.; SMITH, op. cit.)
110Que serviu de inspiração às teses defendidas no Parlamento por ocasião da discussão do Projeto de Lei que
resultaria, em 1850, na Lei 601.
111 As teses de Wakefield, dada a sua relevância, serãp tratadas de forma específica no item 4 deste capítulo.
112Ver a respeito MARX (1975) e SMITH, (op. cit).
113Como oportunamente registra Marx (op. cit., p. 892) “se de um só golpe, se transformassem todas as terras
de propriedade comum em terras de propriedade privada, destruir-se-ia o mal pela raiz, mas as colônias
seriam também destruídas.” Na prática, no Brasil, a negativa latifundiária em demarcar e legalizar suas terras,
assim como os óbices impostos, à arrecadação das terras devolutas do Estado, funcionaram neste sentido apontado
por Marx: acabaram por impossibilitar o Estado de controlar a “emissão de bom título” preconizada como
fundamental na estratégia de Wakefield. Era uma situação que funcionava, na prática, como se todas as terras, ou
pelo menos sua porção mais relevante, houvesse sido “privatizada” em favor do latifúndio. Nisso reside, na opinião

66
estatais, passíveis de serem transferidas à iniciativa privada. Como se verá, advém desse
fato o fracasso da “colonização sistemática” e da atração de imigrantes europeus para
o Brasil. É neste sentido que a legalização e o controle rigoroso sobre as terras,
sobretudo improdutivas e devolutas, era fundamental para o Estado; e é neste sentido
que tentará atuar, inicialmente, a Lei 601. A esta tentativa de controle sobre as terras
públicas é que se opõem todos os latifundiários, fossem, ou não, cafeicultores. Este fato
coloca o segundo nível do problema enfrentado pela Lei 601 de 1850 - a colonização
estrangeira.
2a. A questão da Colonização e, conjuntamente a esta, o problema da imigração
estrangeira, sobretudo a européia, como se pôde antever pelos problemas levantados no
item anterior, é de fato, esvaziada, embora permaneça no discurso e na Legislação
aprovados. Porquê? Porque, na indisponibilidade, para o Estado, de terras
economicamente aproveitáveis, que seriam as terras, no mínimo, mais próximas aos
circuitos produtivos e mercantis, apenas sobrariam as terras distantes, que não tinham a
possibilidade, como não tiveram, de cumprir o objetivo de servir como fundo de reserva
para atrair colonos livres europeus, como acontecera, por exemplo, com os Estados
Unidos e na Austrália.
Esta situação era muito mais relevante, enquanto bloqueio à imigração, por
exemplo, do que o fato da persistência da escravatura no Brasil, (embora esta também
levantasse suspeitas nos Governos Europeus). Além de impedir a alternativa de oferta
de terras enquanto atrativo para a emigração estrangeira, criava uma situação
importante, que permanecerá como um profundo e permanente entrave à reestruturação
das relações de propriedade no Brasil: por um lado era bloqueado o processo de
legalização da propriedade da terra, fazendo-se perpetuar o estado de incerteza quanto à
propriedade, limites e confrontações das fazendas; "incerteza" esta que, em última
instância, resolvia-se pela violência privada ou pela manipulação de privilégios junto às
burocracias locais e provinciais. Por outro lado, o que é de relevância ainda maior,
deslocava o centro do problema da regularização fundiária, para a colonização.
Neste último caso, a estratégia dos interesses latifundiários, que persistirá até os
dias atuais, foi esvaziar o debate e sobretudo os processos legais e administrativos que
pudessem estabelecer claramente os limites dos domínios privados e sobretudo a sua
execução no campo, deslocando a questão para o âmbito amorfo e discutível da
migração e colonização, sobretudo, como desbravamento.
Assim, na incerteza quanto a situação efetiva da estrutura agro-fundiária, a tese
da colonização era sempre, desde então, colocada em duas direções: (a) promover a
vinda de colonos pobres para servirem de mão-de-obra, submissa, porque endividada,
para os latifúndios; e (b) promover a colonização estatal em núcleos e áreas afastadas

aqui defendida, a causa básica do fracasso do Projeto econômico associado à Política de Terras do Império, para o
Brasil: tanto no sentido da atração de migrantes estrangeiros, quanto, sobretudo, do desenvolvimento de uma
agricultura fundada no trabalho livre, com todas as suas consequências, hoje conhecidas. Este específico projeto
capitalista para o Brasil , neste caso, em face da rigorosa oposição latifundiária, morreu ao nascer.

67
dos domínios latifundiários - inicialmente nas fronteiras do Império ou em áreas de
risco pelo interior do país. Esta era uma proposta absolutamente distinta da
“colonização sistemática” de Wakefield: na verdade, negava-a. Era, certamente a
“colonização sistemática dos grades detentores de terras”. Nessa perspectiva
residem, primitivamente, as teses que ainda hoje são defendidas pelo latifúndio e suas
organizações e representantes parlamentares, ao darem ênfase na colonização 114 no
sentido de desbravamento 115.
Como se vinha dizendo, a Lei 601 ocupa-se, antes de tudo, da delimitação do
direito de propriedade e das formas de acesso legal às terras, no contexto de um país
emergente e no âmbito de uma conjuntura econômica internacional em franco
desenvolvimento e amplamente competitiva. Neste sentido, a Lei 601 representa uma
espécie de marco zero116 da legitimidade do acesso à propriedade territorial brasileira, e
disso vem, na posição aqui defendida, a sua maior relevância teórica e concreta.
Já no preambulo da Lei de Terras é definido, clara e transparentemente, o seu
nível de abrangência - a totalidade das terras do Brasil, excluindo-se as sesmarias
confirmadas e que não se achavam em comisso que, por suposto, eram aceitas como
propriedades privadas legítimas e como tais reconhecidas pelo Estado. É assim que a
Lei 601,

"Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que


são possuídas por título de sesmarias sem preenchimento das
condições legais, bem como por simples títulos de posse mansa e
pacífica: e determina que, medidas e demarcadas as primeiras
(devolutas), sejam elas cedidas a título oneroso, assim para
empresas particulares, como para o estabelecimento de colônias
de nacionais e estrangeiros, autorizando o Governo a promover a
colonização estrangeira na forma que se declara."117

A situação fundiária ficava, desta forma, claramente delimitada: 1. As sesmarias


que se encontravam legalmente asseguradas, isto é, que preenchiam as clausulas de

114E mesmo no âmbito deste processo de imigração, na medida em que passa a adquirir alguma importância o
mercado de terras, começará a ser defendida a tese de que o processo de colonização deveria ser entregue à iniciativa
privada e não ao Estado. Tentava-se, dessa forma, manter e ampliar o domínio das camadas privilegiadas sobre o
mercado de terras em todos os níveis. A articulação dessas teses, que se gestam historicamente desde esse período, é
um capítulo importante da subordinação da terra e da ampliação dos privilégios no trato dos negócios agro-fundiários.
A análise específica desta estratégia de controle das terras públicas merece pesquisas mais detalhadas, que fogem aos
objetivos deste trabalho. Fica aqui essa sugestão.
115 Ver adiante, os capítulos 4 e 5 onde este tema é discutido detalhadamente.
116Como é evidenciado no decorrer deste capítulo e com base na análise cuidadosa e objetiva dos termos da Lei 601,
ela de fato e de direito, estabelece um marco zero em relação à propriedade territorial no Brasil Independente. Isso
não significa que ela revogue a situação de fato existente na estrutura agrária brasileira naquele dado momento. Pelo
contrário, a Lei 601 toma como referência exatamente a diversidade de situações concretamente existentes e, realiza
duas distinções fundamentais: 1. separa claramente o que sejam terras públicas (devolutas e do Estado) das terras que
se encontravam no domínio privado (sesmarias ou concessões anteriores ou meras posses); 2. estabelece dois critérios
e âmbitos distintos de reconhecimento, pelo Estado, das terras que se encontravam no domínio privado (Revalidação,
para as terras que advinham de concessões ou sesmarias; e Legitimação para as demais terras que apenas se
fundavam nas posses). Finalmente, estabelece que a única forma de acesso às terras devolutas, dali para adiante seria
a venda.
117In.: MEAF (op. cit., p. 357).

68
resolubilidade, vale dizer, estavam com exploração efetiva e morada habitual de seus
respectivos concessionários, medidas e demarcadas, etc., eram reconhecidas como
propriedades privadas, legalmente118 ; 2. As sesmarias e outras concessões que não
preenchessem as condições acima, necessitavam de revalidação, e para tanto eram
estabelecidos determinados critérios que serão analisados adiante; 3. As posses mansas
e pacíficas, que teriam que ser legitimadas (o que implicava a admissão tácita, mas
efetiva, de que não eram legítimas), e para tanto eram estabelecidos, igualmente,
critérios que serão também analisados neste estudo. 4. Finalmente, definia as terras
devolutas da União (as que não se enquadrassem nas condições acima, e não estivessem
destinadas a algum domínio ou uso do Estado, Províncias ou Municípios), ficando
definido, assim, o conceito de propriedade do Estado em oposição às terras devolutas do
Estado.
O que distingue, essencialmente, estas situações, sendo de interesse para a
argumentação básica deste estudo, é o termo “revalidação”. Por esta terminologia, o
legislador sinalizou que as terras nesta situação necessitavam apenas de se verificar se
cumpriam as cláusulas de resolubilidade ou se feriam interesses fundiários constituídos,
como posses produtivas em seu interior ou outras condições, juridicamente
estabelecidas, após o processo de concessão. Mas significou igualmente que, em
princípio, eram propriedades consideradas legítimas, podendo apenas sofrer algumas
limitações ou restrições, sobretudo em função do não cumprimento de cláusulas legais
ou de sentenças judiciais eventualmente pronunciadas contra elas ou a favor de
terceiros.
Em relação às posses, a situação é absolutamente distinta das anteriores:
tratavam-se de áreas apossadas, por suposto ilegal ou extra-legalmente, e que tinham a
expectativa de direito de serem legalizadas pela Lei 601, nos termos claramente
estabelecidos nesta mesma Lei. Na medida em que a lei assegurava a legitimação das
posses mansas e pacíficas produtivas, exceto quando se encontrassem no interior de
sesmarias não caídas em comisso, a situação dos posseiros (grandes posseiros, como se
verá) estará plenamente assegurada. Mesmo contra os interesses de determinadas
sesmarias, sobretudo as que haviam caído em comisso. Este é o cerne da questão entre
posseiros e sesmeiros, e não tem nenhuma relação fundamental com pequenos posseiros
como se verá adiante.
Portanto, tratava-se, de estabelecer os critérios jurídicos fundamentais que
passaram a nortear os processos de legalização da propriedade territorial, por um lado; e
de definir, claramente, por outro lado, a posição do Estado em termos do
reconhecimento formal, jurídico, da propriedade territorial, aliás, consagrado na
Constituição de 1824. Em suma, a Lei 601 de 1850 apresenta-se como uma legislação
específica de propriedade e estabelece claramente, todos os marcos jurídicos e

118Este era o caso, sobretudo, das terras do nordeste açucareiro, cuja estrutura agro-fundiária consolidara-se, do
ponto de vista jurídico e, em grande parte, concreto, sob a égide do instituto das sesmarias (Cf. SMITH, op. cit. e
FAORO, op. cit.)

69
administrativos, fundamentais, no âmbito do Estado de Direito, para a constituição legal
da propriedade privada da terra.
Por esta razão, estritamente jurídica, mas também concreta, é que as sesmarias
que preenchiam as cláusulas de resolubilidade, foram consideradas, legalmente, como
parte do domínio privado e, portanto, não estavam abrangidas pela Lei 601, que se
destinava à legitimação ou revalidação das situações que se encontravam em conflito
com as normas legais até então estabelecidas.
Esclareça-se, entretanto, que a Constituição de 1824 consagrava o Direito de
propriedade. Entretanto, na medida em que não definia os critérios para materialização
deste direito, permitiu, durante o período do império das posses (1822-1850), o avanço
indiscriminado das posses sobre as terras disponíveis (fossem públicas ou não), situação
que gestou um profundo conflito, especialmente entre grandes posseiros e antigos
sesmeiros, que a Lei 601 buscava conciliar. Observe-se, "en passant" a esse respeito,
que as posses que se estabeleceram sobre antigas sesmarias que preenchiam as
condições de resolubilidade, portanto, legalmente reconhecidas como contidas no
domínio privado, eram consideradas ilegais, e davam apenas direito à indenizações por
possíveis benfeitorias. Caso contrário das posses sobre sesmarias ou concessões caídas
em comisso, como já registrado.
Esta a razão fundamental que pode ser arguida em defesa do fato de que, nos
debates parlamentares, dois pontos concentraram as maiores polêmicas:
1o) O problema da legitimação das posses e da revalidação das sesmarias ou
outras concessões que não preenchiam as condições legais (que era sobretudo, embora
não apenas, o caso do vale do Paraíba) e;
2o) Os problemas dos impostos e tributos, sobretudo o Direito de Chancelaria119.
Os problemas referentes à necessidade da promoção da migração e da
colonização, como pode ser deduzido da análise dos debates parlamentares que
antecederam a aprovação da Lei 601, não apresentaram maiores divergências. Na
verdade havia, praticamente, consenso quanto a este ponto120. As mudanças ocorridas na
legislação sobre o trabalho livre, nos anos 1830 e 1837 referendavam o sistema de
controle da mão-de-obra própria ao escravismo dominante. Como diz Brasílio Sallum
Jr.: Se era verdade que essas leis
“protegiam de forma mais eficaz que as Ordenações o dinheiro
adiantado pelos fazendeiros bem como a disciplina das fazendas,
não resolviam, de um lado o problema do endividamento dos
imigrantes e, de outro, permitiam tal dose de parcialidade no
julgamento das questões em que se envolviam os trabalhadores

119Veja-se a respeito dessas questões, entre outros, os excelentes trabalhos de Raymundo Faoro e, sobretudo, para
uma análise mais sistemática desta problemática, os estudos de Roberto Smith e José Murilo de Carvalho, todos
citados. Este tema é retomado, em suas linhas fundamentais, no capítulo 3.
120Ver a respeito os trabalhos citados na nota anterior, particularmente, Roberto Smith e José Murilo de Carvalho.

70
que dificultavam a imigração, já que contribuíam para a má fama
que as colônias da Província tinham na Europa.”121
Apesar de o sistema de parceria haver sido abandonado nos anos 50, os novos
contratos de locação de serviços eram firmados de tal modo que, como diz Sallum,
“permitiam que fossem enquadrados nas leis de locação de serviços datadas
de 1830 e 1837122.” Apenas a partir dos anos 60 iriam alguns fazendeiros adotar-se
uma espécie de contratos, só generalizada nos anos 80 - da grande imigração (em 1884 é
que o problema da dívida dos colonos com os fazendeiros resolve-se definitivamente
com o subsídio total da imigração pelo governo paulista) - que suavizavam para o
colono as condições draconianas anteriores. E apenas em 1879, uma nova lei veio
representar
“em comparação com as leis anteriores (...) um grande avanço na
proteção aos trabalhadores”, (posto que) “procurou reduzir a
dependência dos imigrantes em relação aos proprietários,
impedindo que estes cobrassem mais do que 50% dos gastos que
tivessem feito com a sua importação, além de estabelecer prazos
máximos para os contratos de trabalho.”123
As divergências e, sobretudo, as resistências mais importantes, no debate
Parlamentar, eram levantadas em relação aos impostos e vinham, muito mais, de uma
tradição antiga do Direito português, que sempre se caracterizou por uma fraca ou nula
tributação territorial, em oposição a uma forte tributação dos processos de transmissão
da propriedade (Faoro, op.cit.). Assim, pode-se afirmar com relativa segurança, que as
divergências com relação a esse ponto da Lei 601/1850 advinham do fato efetivo de que
os latifundiários não desejavam pagar os referidos impostos124; donde as frequentes
referências, no debate parlamentar da década de 1840, a "estelionato público", que o
Estado estaria pretendendo promover em relação aos "proprietários" de terras no
Brasil125. Além, é claro, da ameaça, pelo não pagamento dos impostos, de perda da
propriedade126 ou de sua conversão em mera posse, com todas as implicações que tal
fato significava.

121 Brasílio Sallum Júnior, Capitalismo e cafeicultura. Oeste paulista: 1888-1930. São Paulo: Duas Cidades, 1982, p.
85.
122 Idem, p. 83.
123 Idem, pp. 84 -5; 86 - 89.
124Essa questão é levantada reiteradamente pelas autoridades Coloniais ao se reportarem aos processos de
confirmação de sesmarias, que sistematicamente não era requerida pelos concessionários, em boa medida para evitar
os custos tributários (ver a respeito, sobretudo, Ruy Cirne Lima e Raymundo Faoro, ambos citados).
125Como bem registra José Murilo de Carvalho, "oposição maior ainda seria feita, no entanto, às taxas e
impostos, e às cláusulas de expropriação, salientando-se no ataque, Galvão e Urbano. Este último diria,
ao discutir o direito de chancelaria, que por em dúvida a legitimidade das posses mansas e pacíficas era
princípio 'anárquico e subversivo da ordem pública e destruidor de todo o direito'. Mais tarde rejeitaria tudo
que não se referisse à colonização por ser 'extorsão violentíssima, um verdadeiro estelionato público.'
"(op. cit., p. 42).
126O que, segundo Urbano, citado por Murilo de Carvalho, tornar-se-ia um atentado à propriedade privada em geral,
além de inconstitucional, e representava um risco à ordem pública (p.43).

71
Portanto, parece frágil a tese de que a resistência aos impostos devia-se ao fato
de que os mesmos beneficiariam aos cafeicultores em detrimento de outros
latifundiários, especialmente nordestinos, por se destinarem à cobertura de despesas
com a migração estrangeira127. Simplesmente porque não era este o caso. O fato dos
dois problemas aparecerem associados nos debates parlamentares não é prova suficiente
de que houvesse uma associação direta entre ambos: quer dizer, o imposto de
chancelaria não estava sendo criado para promover a imigração. A imigração, sim, é que
seria, parcialmente, financiada com recursos advindos deste imposto, assim como da
venda de terras devolutas128. Tratava-se, de fato, no caso do “Direito de Chancelaria”,
que era o mais criticado, de um imposto de transmissão "inter vivos" sobre a
propriedade, que, como se sabe, é uma prática tributária corrente em qualquer transação
mercantil-imobiliária no universo do direito burguês, que se encontrava em vias de
implantação no Brasil129. Nesse sentido, pode-se arguir a hipótese de que a
argumentação, que associava o imposto sobre a transmissão da propriedade, ao rateio de
eventuais custos de imigração de estrangeiros livres para a lavoura cafeeira; que a
mesma atuava com o sentido de um argumento "demagógico" contra qualquer imposto
sobre a propriedade latifundiária130 e, em última instância, visava desviar o cerne da
questão, (da propriedade para a tributação vinculada à colonização dirigida) na tentativa
de abortá-la.
A questão mais grave e mais relevante, entretanto, era a que opunha antigos
sesmeiros e posseiros. Vale registrar que ambos, sesmeiros e posseiros, têm que ser
claramente qualificados: tratavam-se de grandes posseiros que se estabeleceram em
terras devolutas (públicas), ou “particulares” (sesmarias abandonadas) e de sesmeirios
que haviam caído em comisso, por estarem suas concessões ou abandonadas, ou não
confirmadas, pela falta de cumprimento das condições legais estabelecidas nas cláusulas
resolutivas.

127Embora, é evidente, a migração de colonos pobres, de fato beneficiasse sobretudo essa camada dos latifundiários.
Mas o que fica claro nos debates e, depois no texto da Lei 601, é que a resistência estava nas restrições que a Lei 601
estabelecia em relação à revalidação das sesmarias e à legitimação das posses, sobretudo no que se referia à restrições
aos tamanhos das posses (e sesmarias em comisso), o seu condicionamento à efetiva exploração e residência habitual
e à exigência do imposto de chancelaria.
128Na verdade, segundo a lógica da teoria da “colonização sistemática”, então arguida, o financiamento de migrantes
era assegurado pela venda de terras aos ex-assalariados que, após fazerem um pecúlio, trabalhando para os
capitalistas, e portanto, promovendo a acumulação de capital, ao pagarem pelas terras, estavam de fato, financiando,
através do Estado, a vinda de seus substitutos. Logo, essa idéia de financiar migração com imposto é, realmente,
estranha à tese da colonização sistemática (vide Wakefield, op. cit. e Marx, op. cit.). Aliás, o artigo da Lei 601 que se
refere a esse problema afirma que os recursos advindos dos impostos de chancelaria e da venda de terras serão
aplicados “1o à ulterior medição de terras devolutas e 2o à importação de colonos livres.”
129Ver a esse respeito o excelente estudo de Roberto Smith, que procura evidenciar a relevância de Lei 601 no
sentido de possibilitar, no Brasil, a gênese da propriedade absoluta e mercantil da terra, enquanto pressuposto à
mercantilização da força de trabalho, numa perspectiva teórica enriquecedora e criativa na abordagem deste tema.
130Embora fosse verdadeira a parte da argumentação referente ao fato de que a imigração beneficiaria especialmente
os cafeicultores. Só que os objetivos perseguidos pelos que assim argumentavam era impedir a tributação da terra;
não fazer oposição à imigração estrangeira, de que aliás não havia cogitação imediata, o que dá um sentido
completamente distinto ao fato. Isso fica claro nos debates parlamentares da década de quarenta do século XIX (Cf.
CARVALHO, op. cit.)..

72
Como esse conflito opunha, basicamente, latifundiários (grandes posseiros e
sesmeiros) dos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo (embora fosse um
fenômeno extensivo a todo o país), sobretudo porque a expansão da cultura cafeeira,
especialmente no Vale do Paraíba, ocorrerá sobre terras de antigas sesmarias mais ou
menos abandonadas, desde a decadência do ciclo da mineração (Cf. Faoro e Prado
Júnior, citados), valorizando-as; vem à tona um conflito que tem sido interpretado no
sentido de que a Lei 601 achava-se subordinada aos interesses destes cafeicultores131:
paulistas, por exemplo, na opinião de Alberto Passos Guimarães, ou fluminenses,
segundo Murilo de Carvalho.

3.2 A Questão da Propriedade Territorial


A desorganização da estrutura fundiária brasileira, como reiteradas vezes
registrou-se, era um problema reconhecido desde os últimos lustros do período colonial.
Estava na origem, não apenas de conflitos entre latifundiários - fossem, estes, sesmeiros
ou grandes posseiros - como afetava, negativamente, as possibilidades de
desenvolvimento da produção agro-exportadora, fundamental, sobretudo após a
Independência, à estabilidade econômica, política e social da nação emergente. Os
conflitos pela terra politizaram-se e ganharam radicalidade no período de consolidação
da Independência nacional, numa fase de instabilidade econômica, política e social, que
iria persistir por um longo período, que se estenderá desde 1821 aos finais da década de
1840, projetando-se, outrossim para adiante, e marcando endelevelmente todo o
processo de desenvolvimento ulterior da sociedade e da economia política Brasileiras.
É nessa conjuntura de crise que será encaminhada a discussão do Projeto que
redundará na Lei 601 de 1850. Tratava-se de tentar por termo à situação caótica da
propriedade rural por um lado e, por outro, de criar alternativas econômicas à
organização da produção, sobretudo no que se referia à oferta de força-de-trabalho livre,
necessária ao desenvolvimento da produção agro-exportadora, e alternativa à
escravidão. Neste contexto, como se observou acima, dois problemas aparecem
claramente colocados na Lei 601: 1. Resolver o problema da propriedade privada das
terras e separar clara e legalmente o patrimônio territorial público do privado; e 2.

131Neste sentido pode-se afirmar que se os cafeicultores tiveram interesses nesse processo - e é obvio que tiveram -
tais interesses referiam-se fundamentalmente à legitimação de suas posses: à propriedade privada da terra que
detinham, o seu reconhecimento pelo Estado. Por isso não opunham grande resistência aos impostos, por exemplo, o
de chancelaria, embora, como os demais latifundiários, defendessem sua redução ao mínimo, por ser esta uma
alternativa para legitimar suas vastas posses. Tratavam-se, portanto, de interesses que eles defendiam enquanto
latifundiários e não enquanto cafeicultores. O objetivo era sempre, antes de tudo, assegurar a legitimação da
propriedade da terra. É obvio que haviam outros interesses envolvidos neste processo, como, por exemplo, o interesse
no financiamento, pelo Estado, da imigração de estrangeiros pobres, processo esse, aliás, que sistematicamente
fracassará, sem que seja afetado seriamente o desenvolvimento inicial da economia cafeeira. Trata-se, como parece
claro, de um conflito sobre legitimação da propriedade e não, especificamente, ou prioritariamente, sobre
colonização. É necessário fazer, como o faz Paula Beiguelman (A grande Imigração. In.: Pequenos Estudos de
Ciência Política), a distinção entre o período histórico-econômico de 1840-1890 (imigração restrita) e o de 1890 em
diante (imigração de massa).

73
encaminhar alternativas ao problema da mão-de-obra livre, autorizando o Estado a
promover a colonização estrangeira. Serão essas duas, as questões fundamentais
colocadas para equacionamento pela Lei 601 de setembro de 1850. Em torno delas é
que girarão os demais problemas candentes a respeito da Política agrícola e de terras do
Império.
Neste tópico será analisada a questão da propriedade territorial, na perspectiva
de sua legitimação pelo Estado e suas respectivas implicações. No tópico seguinte deste
capítulo serão discutidos os problemas da migração estrangeira e da colonização, assim
como as suas diversas articulações com o problema da propriedade territorial e o seu
controle.
A Lei 601 é conhecida, desde a sua promulgação, como a Lei de Terras, numa
referência contundente a respeito do seu objetivo fundamental: regular e estabelecer os
critérios jurídicos, com base nos quais seria (ou não), de então para adiante,
reconhecida, pelo Estado, a propriedade privada e legítima da terra. Neste sentido
estabelecia também, como observa Roberto Smith, as condições institucionais e
jurídicas fundamentais para a transformação da antiga propriedade resolutiva, fundada
no instituto de sesmarias, em propriedade privada plena, absoluta, mercantil, da terra.
Demarca, dessa forma, claramente, os limites legais e legítimos da separação entre a
propriedade territorial pública e privada no Brasil, e portanto, as condições
institucionais da propriedade mercantil, burguesa, da terra.
Antes de se entrar no âmago da discussão dos diversos artigos e parágrafos da
Lei 601 e suas implicações para a realidade agro-fundiária brasileira, alguns
esclarecimentos são necessários com relação a propriedade territorial e ao acesso à terra
no Brasil. A Lei 601 estabelece, juridicamente, e com base na situação efetivamente
existente na realidade agrária e econômica brasileira da época, uma clara distinção
quanto ao estatuto jurídico das terras do país em relação à propriedade territorial, e
indica as formas institucionais para a sua legitimação e reconhecimento pelo Estado:
a. Haviam as terras devolutas, parte do domínio do Estado. Tratavam-
se de terras que não se confundiam nem com a propriedade do Estado, como as
destinadas a algum uso da União, das Províncias ou dos Municípios; nem com
as demais terras que se encontravam, legitimamente, no domínio privado. As
terras devolutas, por suposto, livres, sem nenhuma destinação ou utilização
pública ou privada, que sempre estiveram sujeitas aos diversos modos e formas
de apossamento, são estritamente regulamentadas pela Lei 601, ficando, logo
no seu artigo primeiro, o acesso a essas terras, condicionado à compra ao
Estado. A única exceção aberta, referia-se a possibilidade de cessão, por parte
do Estado, a terceiros, na faixa de fronteira do Império com países estrangeiros.
Portanto, no caso das terras devolutas, fica definitivamente vedado, como

74
ilegítimo e ilegal, logo, sujeito às sanções - que vão do despejo com idenização
e multas à prisão -, o seu apossamento132.
b. Haviam as sesmarias ou outras concessões oficiais legítimas e
como tais reconhecidas, que, portanto, eram parte efetiva do domínio privado,
legalmente destacado do patrimônio público. Tratavam-se das sesmarias
confirmada e não caídas em comisso, assim como outras concessões do
Governo Geral, Provincial ou municipal. Referiam-se as antigas sesmarias e
concessões que se achavam integradas efetivamente à produção econômica e
de exportação, (como era, por exemplo, a situação das terras da zona açucareira
do Nordeste, embora houvessem outras situações que tais, em todo o território
do país). Esse problema será analisado detalhadamente mais adiante. Estas,
junto com as terras de domínio efetivo do patrimônio do Estado (as que tinham
algum uso público, Nacional, Provincial ou Municipal), são legalmente
reconhecidas como parte legal do patrimônio legítimo - público e privado - e
como tais ficam fora do âmbito de abrangência do Universo da
regulamentação da Lei 601, que se destinava ao estabelecimento das condições
legais para a legitimação das terras consideradas de ocupação irregular: extra-
legal e ilegítima.
c. Haviam as sesmarias ou outras concessões anteriores não
confirmadas ou caídas em comisso pelo não cumprimento de algumas ou
todas as condições de resolubilidade, ou simplesmente abandonadas pelos
concessionários ou sesmeiros. Essas concessões e sesmarias, que eram parte
dos latifúndios, têm, na Lei 601, a expectativa de direito à sua revalidação,
entretanto, estando esse processo sujeito à determinadas condições claramente
estabelecidas na Lei 601, referentes, sobretudo à presença de posses em seus
interiores, que deveriam, em determinadas condições, ter prioridade. Disto
deriva o sério conflito, como se verá adiante, entre sesmeiros (estes sesmeiros)
e posseiros (grandes, sobretudo).
d. Finalmente, haviam as posses, geralmente grandes, mas também as
pequenas, que se formaram, sobretudo no período que se estendeu entre 1822,
quando é suspensa a Lei de Sesmarias e 1850, quando a Lei 601 é aprovada. As
grandes posses formaram-se nesse período, acompanhando as possibilidades
abertas ao desenvolvimento da economia agrícola, e das amplas perspectivas
gestadas pela Independência nacional, e se estabeleceram sobre sesmarias mais
ou menos abandonadas, ou pela decadência econômica, como o caso de boa
parte das sesmarias do Vale do Paraíba, de Minas Gerias e parte de São Paulo,
após o final do ciclo da mineração (Faoro, op. cit.); ou pelas pressões

132Esse princípio, referente à proibição da invasão de terras legítimas (do Estado ou particulares), e a punição de tais
atos de invasão com despejo sem nenhum direito, multa e prisão, é claramente estabelecido no artigo segundo; sendo
ressalvado apenas os casos de "hereus confinantes" que deveriam ser resolvidos no campo do direito civil. Isto, de
certa forma permitia a invasão de áreas estatais, quando confinantes com propriedades particulares, recurso, aliás,
muito usado pelo latifúndio.

75
decorrentes de outros conflitos engendrados no processo de independência e de
consolidação do Estado Nacional, quando muitos portugueses, beneficiários de
sesmarias pela antiga Corte metropolitana, caíram em desgraça. Haviam posses
que se formaram igualmente, em terras devolutas estatais, o que era mais raro
no período, sobretudo, nas zonas economicamente mais vantajosas, inclusive
no Nordeste, face às imensas dimensões que tiveram as sesmarias concedidas
no período colonial.
Ainda quanto as posses, haviam também as pequenas posses, que sempre se
constituíram, por diversas formas e em diferentes conjunturas nas diversas regiões do
país, dentro ou fora das sesmarias ou em terras devolutas, mas sempre em áreas
afastadas das melhores terras, e geralmente com a anuência ou omissão do Estado ou
dos latifundiários. Embora essas pequenas posses, enquanto tais, fossem asseguradas
pela Lei 601, sobretudo elas, que preenchiam as condições básicas de legitimação, que
seriam a morada habitual e a cultura efetiva, serão exatamente as que não conseguirão
fazer valer sua expectativa "líquida e certa" de direito, passando, seus ocupantes a fazer
parte, desde então, do imenso exército dos expulsos da terra e da sociedade civil (ver
Faoro, op. cit.). Esses pequenos posseiros, por motivos de diversas ordens, nunca, ou
raramente, terão a possibilidade de fazer valer os seus direitos civis, sobretudo quanto à
propriedade, e desde essa época passam a constituir o imenso exército dos excluídos da
terra, (os "sem terra") e do trabalho livre, como será analisado adiante.

3.2.1. As Terras Devolutas


Como já registrado, a Lei 601, em primeiro lugar,
"Dispõe sobre as terras devolutas do Império (...) e determina
que, medidas e demarcadas, (...) sejam elas cedidas a título
oneroso, assim para empresas particulares, como para o
estabelecimento de colônias de nacionais e estrangeiros (...).133

Com esse enunciado, o Estado define claramente o estatuto jurídico das terras
devolutas do Império, ou seja, define claramente, as terras devolutas como integradas
ao acervo das terras públicas do Estado, portanto excluídas do patrimônio privado. E
mais, estabelece, no artigo segundo da Lei 601, que quem se apossar de terras devolutas
(tal como de alheias), serão obrigados a despejo, sem nenhum direito a benfeitorias ou
outros, além de estarem sujeitos a penas que vão de dois a seis meses de prisão e multa,
além da obrigação de ressarcimento dos danos eventualmente causados pela queima e
derrubada de florestas. O enunciado desse artigo deixa evidente o estatuto das terras
devolutas enquanto terras do Estado e que apenas poderiam ser adquiridas pela compra
ou através de sua anuência (no caso das fronteiras). Desta forma o Estado, de fato e de
direito, constitui um patrimônio efetivo de terras públicas. Esse patrimônio, embora

133Lei 601 de 1850. (grifos nossos).

76
passível de ser privatizado, nos mesmos termos da legislação estabelecida pela Lei 601,
apenas poderia sê-lo, através da transação de compra com o Estado ou de sua cessão por
este. Qualquer outra forma de apossamento ficava, portanto, definida não apenas como
ilegal e ilegítima, mas como crime.
A dilapidação, pelo apossamento, desse acervo de terras estatais, ocorreu
portanto de forma ilegal e ilegítima. É neste sentido que a hipótese aqui defendida
afirma o caráter de ilegitimidade e de juridicidade questionável com relação à maioria
das terras brasileiras, situação esta que se prolonga até os dias atuais. Como se verá, o
mesmo fenômeno, em outro contexto e sentido, ocorrerá com as demais terras do país.
Parece plausível a hipótese de que o objetivo fundamental do Estado ao definir o
estatuto das terras devolutas (artigo 3 o da Lei 601) tenha sido o de separar esse conjunto
de terras públicas, das terras do domínio privado (artigo 1o, parágrafos 2 o e 3o), conjunto
esse, que deveria funcionar como "reserva de terras livres e estatais", passível de
sustentar possíveis alternativas de empreendimentos agrícolas avançados, sustentados
no trabalho livre e apoiados na emigração e colonização (estrangeira e nacional), por um
lado e, por outro, tentar regular o confuso mercado de terras em expansão no Império.
O que era, aliás, o argumento central da colonização sistemática, tal como
formulada por Wakefield. Portanto, não se tratava primariamente, de impedir a
formação de pequenas propriedades (embora essa fosse uma de suas implicações
fundamentais), mas de assegurar as condições para a atração de investimentos na
agricultura, o que significava, colocar à disposição dos capitais interessados, reservas de
mão-de-obra e de terras. Por isso não, se pode simplesmente, afirmar que o objetivo da
colonização sistemática fosse impedir o acesso à terra, pelos trabalhadores para, assim,
colocá-los à disposição do capital. Ou seja, para isso não seria necessário impedir a
genericamente aos trabalhadores de terem acesso à essa possibilidade: bastava, e esta
era a tese de Wakefield, fazer com que os trabalhadores empregados pagassem, com a
compra da terra, a continuidade do processo de exploração da força de trabalho. Essa
argumentação de Wakefield será analisada no item 4 adiante. Portanto, tratava-se antes,
de criar as condições para a subordinação da força-de-trabalho ao capital, gravando a
terra com determinado ônus: isto é, mercantilizando-a, como bem observa Roberto
Smith, e por essa via, possibilitar a estruturação das condições de reprodução do capital,
enquanto relação social na agricultura. Isso é diferente de pensar a lei como uma espécie
de demiurgo do trabalho assalariado. Tanto isso é verdade que, apesar da Lei 601
estabelecer estes pré-requisitos, as relações de trabalho na agricultura brasileira ainda
permanecerão por muito tempo assumindo modalidades diversas do assalariato.
Neste sentido, o Estado veda terminantemente (artigo 1o) "as aquisições de
terras devolutas por outro título que não seja a compra", permitindo, como única
exceção, "as terras situadas nos limites do Império com países estrangeiros em
uma zona de 10 léguas, as quais poderiam ser concedias gratuitamente."
(artigo 1o). Distingue, igualmente (artigo 3o, parágrafo 1 o) as terras públicas devolutas,
subordinadas ao controle e administração fundiária do Estado e destinadas à venda, da

77
propriedade estatal (as destinadas a algum uso público nacional, provincial ou
municipal).
É provável que o detalhamento dado ao problema das terras devolutas revelasse
a intenção de um projeto inspirado nas teses de Wakefield134. Ou como registra Roberto
Smith, considerando que essas idéias vinham sendo defendidas desde 1821, por José
Bonifácio, portanto, antes da publicação dos trabalhos de Wakefield, pode-se arguir,
igualmente, que essas teses tenham sido produto da própria experiência de diversas
colônias, ulteriormente sistematizadas por aquela estudioso. Difícil definir essa questão.
Entretanto, mais importante é o fato de que a problemática da arrecadação de
terras, pelo Estado, era condição fundamental para a implementação de uma política de
terras, capaz de servir de suporte ao desenvolvimento da agricultura, por suposto mais
produtiva e eficiente, fundada no trabalho livre, e parece ter sido esse o sentido
econômico fundamental que subjazia a essa decisão. Além, é claro, de tentar impor um
termo, pela via da regulamentação, à situação caótica e conflitiva que vinha grassando,
no Brasil, desde os últimos anos do período colonial, em termos de invasão ilegal e
especulativa das terras públicas e livres, deixando o Estado quase sem nenhuma
alternativa à implementação de uma economia política e de uma política de terras
capazes de criar as condições necessárias ao desenvolvimento econômico e social do
país.
Assim, fica claramente delimitado o objetivo central do Estado no que se referia
à situação desse conjunto importante das terras do país: as terras livres estatais, que são
definitiva e legalmente separadas do domínio privado, ao mesmo tempo em que se
distiguem da propriedade estatal. São assim, de fato, delimitadas como terras públicas
estatais, no sentido definido por Wakefield: logo condição e pré-requisito fundamental à
colonização sistemática (vide Smith, op. cit.). Não se tratando de terras "aplicadas a
algum uso público nacional, provincial ou municipal" nem de terras inclusas no
domínio privado por título legítimo (sesmarias confirmadas ou revalidáveis pela Lei 601
e as posses mansas e pacíficas, legitimáveis pela mesma Lei), todas as demais terras são
incluídas no rol de terras devolutas do Império o que, em termos jurídicos, significa que
integram o conjunto das terras públicas. Com isso, do ponto de vista da legalidade, do
Estado de Direito, deixa de existir, no Brasil, terras "sem dono", "adéspotas"135.

134Sobretudo as teses de Wakefield em relação ao equilíbrio necessário entre disponibilidade de terras e população,
que aquele autor coloca claramente em diversos momentos de sua obra, e que fica especialmente claro na seguinte
passagem: "Eles não podem alterar a proporção entre população e terra(...); mas a proporção entre
população e terra com bom título está dentro do seu controle (...) o governo, assim, é capaz de
regular a proporção entre o tamanho da população e acres de terra apropriada" (WAKEFIELD, E. G.
England & América. op. cit. p. 94).Grifos nossos.
135E como é evidente, todas as terras tendo dono (seja o Estado ou proprietários privados), apenas podem ser
transferidas para terceiros por alguma forma legalmente estabelecida. Qualquer outra forma de apossamento ou
apropriação, que não as ajustadas às exigências estritamente estabelecidas e reconhecidas pelo Direito, são formas
ilegítimas e ilegais, independentemente de se tratarem de terras públicas ou particulares. É neste sentido que aqui se
faz referência ao fato de que a propriedade territorial no Brasil, em sua maior parte, é juridicamente questionável: ou
porque nunca foi legalizada, ou porque o foi de forma incorreta ou fraudulenta.

78
Isso significa, concretamente, que todas as terras devolutas são patrimônio do
Império (isto é, do Estado) e apenas pela via da compra a (ou, excepcionalmente, de
concessões), poderão ser transferidas ao domínio privado, sendo vedada qualquer outra
forma de aquisição dessas terras, como ilegítima. Assim, as terras existentes no país, ou
eram públicas ou privadas; ou seja, todas as terras que não se encontrassem (e
encontrarem daí para adiante), comprovadamente, legalmente, no domínio particular,
são terras públicas136. Isso incluía, antes da Lei 601, as sesmarias caídas em comisso e
depois desta lei, todas as terras que não foram revalidadas (caso das sesmarias em
comisso) ou posses que não foram legitimadas (vide o artigo 8 o da Lei 601 de 1850).
Em suma, a partir da Lei 601, todas as terras, indistintamente, que não foram
legitimadas, passaram ao domínio do Estado, ficando estabelecido que
"os possuidores que deixarem de proceder à medição nos
prazos marcados pelo Governo serão reputados em
comisso, e perderão, por isso o direito que tenham a ser
preenchidos das terras concedidas por seus títulos, ou por
favor da presente Lei, conservando-os somente para serem
mantidos na posse do terreno que ocuparem com efetiva
cultura havendo-se por devoluto o que se achar inculto."
(Atrigo 8o Lei 601/1850. Grifos deste autor).
Embora, de fato, a quase totalidade das terras que não cumpriu as determinações
deste preceito legal continuando, entretanto, no domínio privado. Mas não resta
dúvidas, que ilegalmente, do ponto de vista do Estado de Direito. Tratam-se, portanto,
de "propriedades ilegítimas". Neste caso era apenas assegurado a posse da área
efetivamente ocupada com morada habitual e cultura efetiva. Essa situação, como se
verá no decorrer desse estudo, persistirá virtualmente, até o período inaugurado pela
regime militar, sobretudo pela "valorização" das terras em decorrência do "milagre
econômico", quando tem início um vigoroso e radical processo de "legalização" das
terras, ou pela "compra a preço vil" ao Estado, em negociatas amplamente denunciadas
na época e demonstrada por muitos estudos e pelo que foi apurado pelas várias
Comissões Parlamentares de Inquérito, como se verá neste trabalho. Será essa a
característica desse fase, onde com base nas alternativas abertas pela Política Fundiária
do Regime Militar, sobretudo pela "nova regulamentação" representada pelo Estatuto da
Terra, de 1964, atuará um verdadeiro exército de grileiros e especuladores, apoiados por
advogados e pistoleiros, que tratam de "formalizar" a titulação de terras, numa
verdadeira subversão da ordem jurídica e institucional, expulsando violentamente
pequenos produtores rurais, posseiros e índios. Esses fatos serão estudados nos capítulos
4 e 5 desse trabalho. Aqui são referidos apenas para registrar a sua gênese neste período
específico da história agrária brasileira e sua mudança, apenas, de forma, embora
imposta pela nova conjuntura aberta a partir de 1964, como se tentará por em evidência.

136É interessante registrar a esse respeito, o racioncínio de Cirne Lima (op. cit.p.111): "terra devoluta, nos primeiros
tempos, era todo nosso território."

79
Parece portanto, muito claro o sentido atribuído às terras devolutas: assegurar
para o Estado um fundo de terras livres, capaz se sustentar uma política fundiária
ajustada às novas exigências econômicas que se colocavam ao país. Nesse sentido
parece igualmente clara a influência das teses wakefildeanas, sobretudo no que refere à
manutenção de determinado equilíbrio entre a "oferta de terras com bom título" e a
população, enquanto condição necessária ao desenvolvimento de uma agricultura
mercantil e capitalista.
Na verdade, a colonização sistemática baseava-se na disponibilidade de terras
públicas e livres, que pudessem ser privatizadas e, assim, atrair colonos ricos,
investidores, por um lado, e pobres, por outro, que não podendo pagar, estes últimos,
pelas terras "livres estatais" teriam que trabalhar para aqueles, até poderem adquirir sua
própria terra. Assim seria formado um fundo de terras, por um lado, e de trabalhadores
pobres, por outro: os pressupostos e ingredientes fundamentais e básicos aos
empreendimentos capitalistas na agricultura. Esta era, em síntese, a argumentação
básica e justificadora da colonização sistemática de Walkefield que, ainda assim, no
Brasil, foi completamente escamoteada pela vigorosa oposição do latifúndio.
Por um lado, a arrecadação de terras devolutas, públicas, que deveriam formar o
fundo de terras para a dinamização da agricultura foi bloqueada na prática: os
latifundiários não providenciaram efetivamente a legalização e registro de suas terras e,
associados às burocracias locais, geralmente a eles atreladas, bloquearam qualquer
alternativa à demarcação e, sobretudo, a arrecadação das terras devolutas. Por outro
lado, a colonização foi reduzida à importação de colonos pobres para servirem de mão-
de-obra barata nos latifúndios ou para colonizarem zonas de risco, como as áreas de
fronteira do Império. Assim, fracassou, na origem, qualquer possibilidade de
desenvolvimento deste Projeto agro-fundiário para o Brasil, com as consequências hoje
amplamente conhecidas e que aqui estão sendo analisadas.
Desde essa época, a legalização da propriedade rural no Brasil foi impedida ou,
na melhor das hipóteses, profundamente dificultada, pelos latifundiários, que
deslocaram a solução do problema fundiário, jogando-o para o campo amorfo da
colonização, afastando-o do âmbito da separação legal entre as terras públicas e
particulares. Assim engendraram-se as condições para a perpetuação da situação caótica
da estrutura agrária e, junto a esta, as possibilidades ao apossamento desenfreado e
ilegal das terras do país. Daí por diante jamais se falará em legalização da propriedade,
mas em colonização, por suposto, sempre pensada em terras distantes dos domínios
latifundiários. Por essa razão, fracassou, até mesmo, o processo de importação de
colonos, fossem pobres ou, sobretudo, ricos, para a agricultura. Colonização em terras
afastadas e não reforma agrária torna-se, desde então, o lema básico defendido pelo
latifúndio e pelos Governos.
O desvirtuamento, no debate Parlamentar da década de 1840, e o esvaziamento,
depois de 1850, dessa alternativa ao fundo de terras livres estatais, pelo deslocamento
do problema para a migração de estrangeiros pobres, e da colonização como

80
desbravamento, por um lado; e por outro, pela inviabilização efetiva do processo de
discriminação das terras devolutas e do registro das terras do domínio privado,
implicaram no retumbante fracasso da política de terras do Império e, muito mais que
isso, de qualquer alternativa ao desenvolvimento sustentado da agricultura e do
processo de colonização sistemática no país.
O duplo desvirtuamento desta alternativa - a não legalização do domínio
privado, logo também do público - por um lado; e, por outro, a transformação da
colonização sistemática, em mero processo de atração de trabalhadores pobres para
servirem de mão-de-obra de fácil exploração pelos latifúndios, aliada a formação de
colônias em áreas de risco137 - o que era apenas uma dimensão das propostas
wakefildianas - implicou na inviabilização de qualquer alternativa para o “take-off” da
economia agrária brasileira, que assim persistiria nos velhos padrões agro-exportadores,
de baixa produtividade e fundados, ainda por mais quase quatro décadas, no trabalho
escravo, sem muita margem, ou alternativa, de transformação. A outra alternativa,
referia-se à possibilidade da aplicação de capitais de alguma monta, valendo-se da
impossibilidade imediata de imigrantes pobres poderem adquirir terras, portanto,
transformando-se, de fato, em exército de reserva de força-de-trabalho para os capitais
que se aplicassem nas terras, as quais assim, igualmente, funcionariam como um fundo
de terras regulado pelo Estado e à disposição dos capitais. Esta era a essência da tese da
colonização sistemática de Wakefield.
O fracasso da política de terras tentada pela Lei 601 de 1850, na leitura aqui feita
e no contexto até aqui apresentado, está na origem do fracasso brasileiro, mesmo em
atrair imigrantes pobres, como é fenômeno vastamente conhecido; muito mais ainda, em
atrair "investidores" capitalistas estrangeiros, numa economia desregrada ao nível da
“praxis”. Na opinião de Wakefield, apenas através do controle, pelo Estado, da emissão
de “bons títulos” era possível manter-se a correlação adequada entre população e terra.
Duas implicações estão envolvidas nessa formulação:
1. Não se tratava, apenas, de impedir o acesso à propriedade, pelo menos por
algum tempo, aos imigrantes pobres: estes teriam que ter a expectativa de
poderem-se tonar proprietários, senão a imigração seria comprometida;
2. Tratava-se, igualmente, para os capitalistas que pretendessem investir nas
colônias, de terem asseguradas duas condições fundamentais: (a) a
possibilidade de acesso legal e legítimo às terras necessárias ao seu
investimento (com bom título - e “bom preço”); e (b) a possibilidade de
abastecerem-se continuamente de mão-de-obra.
Conforme muito acertadamente apontou Sallum, a atração de imigrantes
estrangeiros pobres só ocorreu numa contingência histórica especial em que
“países que, no continente americano, concorriam com o Brasil
na captação de imigrantes - Estados Unidos e Argentina -

137E distante dos domínios latifundiários.

81
sofriam, no fim da década de 80 e durante a década de 90,
uma queda no seu ritmo de crescimento econômico.”138

Dessa forma, o problema da reestruturação agro-fundiária brasileira é, já em


1850, negado, na prática, pelos potentados da terra, reduzido ou a um processo de
colonização, sempre em terras distantes; ou à simples atração de mão-de-obra migrante
e barata para servir nos latifúndios. É, como se tem demonstrado, neste estudo - com
base na análise da legislação, do debate parlamentar da época e da literatura
especializada - através destes e de outros diversos expedientes que, no Brasil, tem sido
esvaziada qualquer possibilidade de regularização fundiária, persistindo, assim, aquilo
que neste trabalho se têm denominado de uma espécie de "estado hobbesiano", no que
toca ao problema fundamental da propriedade fundiária. Disso advém a ilegitimidade e
ilegalidade da maior parte das propriedades territoriais rurais do Brasil.

3.2.2. As Sesmarias Legalizadas


Tratavam-se das antigas sesmarias confirmadas antes da aprovação da Lei 601
de 1850. Eram as sesmarias que não haviam caído em comisso, ou seja, que
preencheram as exigências das cláusulas resolutivas: medição, demarcação e, sobretudo,
exploração efetiva da terra. Nesta categoria de propriedades legítimas estavam, por
exemplo, a maioria das sesmarias nordestinas, especialmente as dedicadas à exploração
canavieira, cuja legitimidade, assegurada pela confirmação real, consolidara-se ainda no
período colonial (FAORO, op. cit.). Nessa situação encontravam-se, igualmente, muitas
outras sesmarias espalhadas pelas diversas regiões do país.
Essas terras serão reconhecidas como pertencentes, legitimamente, ao
patrimônio privado pela Lei de Terras. E, neste sentido, passam a gozar de todos os
requisitos da propriedade absoluta, burguesa, como bem registra Roberto Smith139, ou
seja, são eximidas das antigas cláusulas resolutivas140, assumindo, assim o caráter
amplamente mercantil.
Estas sesmarias estão excluídas do âmbito de abrangência da Lei 601 de 1850,
que se destinava à regulamentação das terras devolutas do Império e das possuídas por
título de sesmarias, sem preenchimento das condições legais; ou as resultantes de posses
mansa e pacíficas. Esse procedimento regulador torna essas sesmarias distintas e
autônomas em relação ao patrimônio público, do Estado, para todos os fins, econômicos
e jurídicos141 etc. Desta forma, e acompanhando a tradição da regulamentação fundiária

138 SALLUM JR. (1982: 91)


139op. cit.
140Como se verá nos capítulos 4 e 5 deste estudo, com o Estatuto da Terra, de novembro de 1964, aparentemente são
restabelecidas cláusulas restritivas, como o caso da exigência do cumprimento da função social da propriedade, o que,
daria ensejo à expropriação para fins de reforma agrária. Mas como será evidenciado, estas exigências funcionam
mais como exceção que como regra.
141O artigo 23 do Decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854, que regulamentava a Lei 601, afirmava claramente que
"estes possuidores, bem como os que tiverem terras havidas por sesmarias e outras concessões do

82
de Portugal, são assegurados plenamente os direitos estabelecidos pela situação anterior.
Talvez esse fato explique a posição distinta de muitos sesmeiros, especialmente do
Nordeste, em relação a Lei 601 de 1850. Eles, ao terem os seus direitos de propriedade
plenamente assegurados e, mais que isso, ampliados pela decadência das antigas
cláusulas resolutivas das sesmarias, além de não serem atingidos pelo imposto de
chancelaria, posto que não necessitavam revalidar nem adotar nenhuma outra
providência em relação aos seus títulos, amplamente aceitos como legítimos pela Lei,
não eram, por isso mesmo, afetados pelo problema específico das posses, posto que
estas, em caso de existirem em domínios legítimos, que era caso dessas sesmarias,
ficavam sujeitas a despejo sem direito algum, e outras penas legalmente previstas, por
serem consideradas meras invasões, ilegais, de domínio privado legítimo. É verdade que
esses sesmeiros legítimos opunham-se, como sempre, à imposição de novos impostos,
aliás pelos motivos já apontados nas páginas anteriores.
Em suma, os direitos e privilégios adquiridos e ampliados por esse grupo de
latifundiários são amplamente acatados, sem qualquer restrição, pela Lei 601 de 1850,
portanto, pelo Estado, o que contribuirá de maneira efetiva para a consolidação desse
tipo de latifúndios, uma vez que, como se sabe, no período colonial, foram muitos, os
abusos consentidos na concessão de sesmarias, e que quase nunca eram coibidos pelo
processo de confirmação real, que como já se registrou amplamente no capítulo anterior,
muitas vezes era conseguida pela influência ou “status” do concessionário, sobretudo a
sua proximidade à corte portuguesa. O fato da Lei 601 de 1850 não determinar qualquer
restrição a esse tipo de latifúndio, muito provavelmente deve ser atribuído à conjuntura
em que a mesma foi elaborada que, como se viu no início deste capítulo, era de extrema
instabilidade, sobretudo no que se referia à consolidação da independência política e
integridade nacionais, processos esses que tinham seu ponto fundamental assentado no
poder local.

3.2.3. As Sesmarias Caídas em Comisso


As sesmarias ou outras concessões anteriores à Lei 601, caídas em comisso, isso
é, que não preenchiam as condições resolutivas, são fortemente penalizadas. Estavam
sujeitas à revalidação, o que significava colocá-las “sub judice”. Aparentemente, a Lei
de Terras assegurava a legitimação dessas sesmarias. Entretanto, ao exigir a sua
revalidação enquanto condição “sine qua non” para a efetivação do seu reconhecimento
pelo Estado, levantava a legítima suspeita de que nem todas essas sesmarias deveriam

Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta de cumprimento das condições de
medição, confirmação e cultura, não têm precisão de revalidação, nem de legitimação, nem de
novos títulos para poderem gozar, hipotecar ou alienar os terrenos de que se acham no domínio."
Portanto, igualmente não estavam sujeitos ao contestado imposto de chancelaria, que correspondia aos processos de
legitimação das posses ou de revalidação das sesmarias caídas em comisso. A oposição maior dos proprietários dessa
categoria de terras legítimas estava com relação aos demais tributos gravados sobre a propriedade. Daí a diferente
posição desses sesmeiros em relação a Lei 601, quando comparada com a posição dos latifundiários (sesmeiros e
posseiros) das regiões do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.

83
ser legitimadas ou, pelo menos, mesmo as que o fossem, apenas o seriam em
determinadas circunstâncias.
Parece plausível supor que a restrição não se limitasse aos problemas de
exploração efetiva do solo, morada habitual do sesmeiro ou seu representante, nem tão
pouco, aos problemas de medição, limites e confrontações, caso em que teriam que ser
incluídas as demais sesmarias que, igualmente, não atendiam a todas essas exigências
legais. Assim sendo, qual o fato distintivo que justificava esse procedimento
discriminatório da Lei 601 em relação a esse grupo específico de latifundiários?
A resposta a essa pergunta é, evidentemente, complexa e exige uma pesquisa
histórica detalhada, que ainda estar por ser feita. Embora a análise detalhada dessa
questão específica fuja aos objetivos e limites deste estudo, pode-se aventar algumas
hipóteses a esse respeito. Mas, qualquer que seja a resposta que se possa dar a essa
discriminação, uma coisa parece ficar muito clara: esses sesmeiros, ou haviam caído em
desgraça em face dos conflitos de interesses que envolveram a transição para o Estado
independente ou, na melhor das hipóteses, não possuíam prestígio suficiente para fazer
valer os seus interesses, ou ambas as coisas.
Maria Yêda Linhares e Francisco Carlos Teixeura da Silva, a esse respeito,
oferecem uma resposta conjuntural, embora plausível e, muito provavelmente, os fatos
por eles aventados tiveram grande influência nesse processo. Eles se pronuncia nos
seguintes termos:
“O fato novo residia, fundamentalmente, numa alteração do peso
relativo dos diversos segmentos de classe que integravam o
aparelho estatal do Império: ao lado da tradicional aristocracia
latifundiária nordestina e da burguesia mercantil, principalmente
do Rio de Janeiro, surgia um riquíssimo lobby de fazendeiros
fluminenses, mineiros e paulistas, dispostos a tomar parcelas de
poder.(...) Uma lei de terras e uma firme política imigracionista
eram fundamentais para esses novos ricos: suas terras não
tinham origem nas antigas sesmarias mas na tomada pura e
simples de terras devolutas. Fazia-se necessário regularizar uma
situação que já beirava a violência e, simultaneamente, fechar a
porta pela qual esses mesmos homens passaram. Talvez
mais importante que impedir a formação de um campesinato livre
ou uma via ‘farmer’ de desenvolvimento agrícola, era impedir que
a violência que dividia a classe dominante, como diria Warren
Dean, se exacerbasse(...).”142
Todos os argumentos apresentados acima por LINHARES & SILVA são
verdadeiros, entretanto, nenhum deles dá conta do fato de não terem sido estendidas, às
demais sesmarias, as mesmas restrições. O fato distintivo mais importante arguido por
LINHARES & SILVA refere-se à formação de grandes posses, que estiveram na origem
da formação, especialmente, das novas fazendas de café no Vale do Paraíba,

142LINHARES (1981. p. 32). Grifos nossos.

84
estendendo-se por Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Entretanto, mesmo esse
fato necessita ser qualificado, uma vez que grandes posses existiam por todas as regiões
do Brasil e, porque, a Lei 601 veda terminantemente, como se viu acima, as posses,
fossem grandes ou pequenas, sobre as antigas sesmarias confirmadas e legitimadas.
Assim, a esses argumentos devem ser acrescentados alguns outros, que possam dar
conta da especificidade que envolvia o caso das sesmarias passíveis de revalidação. Ao
se discutir as posses no próximo item essa questão será melhor retomada.
Mas vale a pena, ainda aqui, registrar os argumentos de Raymundo Faoro, para o
caso específico da região do Vale do Paraíba. Ele argumenta no sentido de que as terras
do Vale foram incorporadas, no período da decadência do ciclo da mineração e,
sobretudo, acelerado com o desenvolvimento da cafeicultura. Tratavam-se de terras de
antigas sesmarias “abandonadas” em virtude da decadência da atividade mineradora,
tendo sido parcialmente ocupadas por pequenos posseiros, com o consentimento dos
antigos concessionários e, ulteriormente, por grandes posseiros, com a expansão da
cultura do café. Com a valorização dessas terras, decorrente do avanço e da importância
assumida pela cafeicultura, segundo Faoro, os antigos sesmeiros tentaram recuperar
suas concessões, gerando-se, neste contexto, os conflitos entre eles e os posseiros, que o
debate Parlamentar da década de 1840 registra.
Embora esta argumentação de Faoro seja parcialmente convincente, e que,
provavelmente, corresponda à realidade de alguns contenciosos que envolveram
determinadas sesmarias da região do Vale, ainda assim, parece insuficiente para
permitir a sua generalização a respeito da referida discriminação.
Assim, ainda que a guisa de hipótese, posto que este trabalho não comportou
nenhuma pesquisa especificamente histórica desse problema, o que fugiria aos seus
limites, parece que uma hipótese provável para explicar essa discriminação é a de que
muitos sesmeiros dessa e de outras regiões, próximos à antiga Corte Portuguesa quando
da sua permanência no Brasil (1808-1821) e beneficiários de concessões, especialmente
nesta área, tenham, ou retornado à Portugal com a Corte, ou caído em desgraça política
em decorrência dos conflitos que levaram à Independência. Ulteriormente, com a
definição da continuidade monárquica e dinástica, após a consolidação do Estado
Nacional, é provável que alguns desses antigos sesmeiros desejassem, sobretudo pela
valorização das terras provocada pelos preços favoráveis do café, recuperar seus
domínios. Impedí-los seria, nessa hipótese, o objetivo claro da discriminação legal.
Por outro lado, têm razão Linhares & Silva, num aspecto fundamental, mas que
se refere ao problema específico das posses: “fazia-se necessário regularizar uma
situação que já beirava a violência” e, simultaneamente, “fechar a porta pela
qual esses mesmos homens (grandes posseiros) passaram .143”
Ao analisar-se a questão da legitimação das posses, algumas especificidades
fundamentais desse problema serão melhor esclarecidos. O fato é que as sesmarias e

143Id. Ibidem.

85
outras concessões oficiais que se enquadravam no caso da revalidação (artigo 4o da Lei
601/1850), estavam condicionadas, para a sua revalidação legal, a uma análise “caso a
caso”, sendo sempre assegurados todos os direitos das posses produtivas porventura
instaladas no seu interior. Esse procedimento operacional, como se pode concluir,
permitiria a identificação dos casos de sesmeiros que foram beneficiários da antiga corte
portuguesa e que com ela retornaram à Portugal - o que caracterizava o “abandono” -;
os caídos em desgraça política e, igualmente, aqueles que simplesmente estavam em
comisso por motivos estritamente econômicos, como o caso aludido, por Faoro, de
muitas sesmarias do Vale do Paraíba, que se encontravam mais ou menos abandonadas
ou ocupadas por posses (grandes e pequenas) em face da decadência do ciclo da
mineração. Mesmo com essas especificidades a serem tidas em consideração, era
sempre prioritário, como se verá no próximo item, assegurar os direitos de legitimação
dos posseiros (grandes, bem entendido), aliás como fica evidente no artigo 5 o, parágrafo
3o da Lei 601. Entretanto, neste último caso, saem “vitoriosos os sesmeiros” (Faoro, op.
cit.).
Será exatamente em função dos conflitos engendrados no bojo das relações entre
esse tipo de sesmarias e as grandes posses (sobretudo, posto que as pequenas, como se
verá, enfrentavam outras pressões e restrições), que se travarão os debates mais radicais
na elaboração da Lei 601. Vale, por outro lado, registrar que os conflitos entre posseiros
e sesmeiros legitimados pela Lei 601 ou, antes; igualmente regulados no artigo citado
acima, estabelecia critérios estritamente jurídicos, que procuravam assegurar
amplamente, os direitos de ambos: em todos os casos, aos posseiros passíveis de
legitimação que se encontrassem nas sesmarias não incursas em comisso cabia apenas a
indenização das benfeitorias; sendo ressalvados os casos: 1. de ter sido declarada boa a
posse por sentença passada em juízo entre as partes; 2. ter sido a posse estabelecida
antes da medição da sesmaria ou concessão e não perturbada por cinco anos (usucapião)
e 3. ter sido a posse estabelecida depois da referida medição e não perturbada por dez
anos (usucapião). Como se verifica, mais uma vez a discriminação fica evidente: aos
sesmeiros não caídos em comisso, legitimados, eram assegurados todos os recursos,
sendo assegurados, igualmente, às posses, recursos jurídicos semelhantes, todos
perfeitamente regulamentados. Quanto às sesmarias e às concessões em comisso,
sujeitas à revalidação, apenas poderiam ser revalidadas após a comprovação do
preenchimento das condições resolutivas e só após serem destacadas as posses mansas e
pacíficas, o que evidencia o tratamento desigual dado a ambos os casos.
No primeiro caso, pondo em condições de igualdade jurídica posseiros (grandes,
reitere-se) e sesmeiros; no segundo, privilegiando largamente os posseiros:
“Dada a exceção do parágrafo antecedente144, os posseiros
gozarão do favor que lhes assegura o artigo 1o, competindo ao
respectivo sesmeiro ou concessionário ficar com o terreno que

144Que se refere às sesmarias legítimas ou legitimadas pela Lei 601 de 1850.

86
sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se
também posseiro para entrar em rateio igual com eles.”145
O que todos os estudiosos desta questão registram, é que esse problema assumiu
relevância fundamental exatamente na região de expansão da produção cafeeira, cujas
terras foram incorporadas ao patrimônio privado pela via das posses e não das
sesmarias, como no caso da maior parte das terras ocupadas no Brasil, sobretudo na
região Nordeste, e quanto a isso não parece pairar maiores dúvidas. Certamente a
relevância econômica da produção cafeeira teve profunda influência, aliás, muito mais
pelo que o café representava em termos de divisas para a nação e economia emergentes
do que, especificamente, para o atendimento de situações particulares.
Exatamente por fazer essa leitura é que aqui se defende a hipótese de que os
interesses que, certamente, tiveram os cafeicultores na aprovação da Lei 601, situavam-
se, antes de tudo, na legitimação de suas posses, antes mesmo da colonização e
migração estrangeira: tratava-se, portanto, de interesses que eles tinham enquanto
latifundiários e não enquanto cafeicultores. Assim é que aqui se defende que Lei de
Terras é uma legislação sobre a propriedade, onde a migração aparece apenas de forma
subsidiária e acessória, embora de muita relevância, sobretudo diante das pressões
concretas da Inglaterra para a supressão definitiva do tráfico e, em última análise da
abolição do trabalho escravo146.

3.2.4. A Legitimação das Posses


Como já se registrou, o período que se estendeu entre a suspensão da Legislação
Sesmarial, em 14 de julho de 1822 e, mais que isso, da decadência de toda a legislação
portuguesa, com a Independência do Brasil, em setembro daquele ano, até 1850, quando
é aprovada a Lei 601, é conhecido como o “Império das Posses”.
Neste período o Estado limita-se, pelos motivos amplamente discutidos nas
páginas anteriores, a assegurar o direito genérico de propriedade na Constituição de
1824. É, assim, assegurado e ampliado o direito sobre a propriedade das terras, na
medida em que, decaído o instituto de sesmarias, ficavam igualmente revogadas todas
as suas demais disposições reguladoras, particularmente, no que aqui interessa, as
cláusulas resolutivas: as limitações de tamanho e as concessões de mais de uma
sesmaria por concessionário etc.
Criava-se, dessa forma, objetivamente, a oportunidade para o avanço
desenfreado do apossamento de terras, sobretudo públicas. Diz-se, sobretudo públicas,
posto que as posses avançaram, igualmente, sobre terras particulares, em partes não
aproveitadas das imensas sesmarias, mas sobretudo, sobre as pequenas posses e terras
tribais. É necessário ter muito claro que o processo de apossamento não tem a sua

145Artigo 5o, parágrafo 3o da Lei 601/1850.


146 A análise das relações entre estas duas questões: mercantilização da terra como pressuposto para o
desenvolvimento da mercantilização da força de trabalho é brilhantemente discutida por Roberto Smith (op. cit.)

87
origem na legislação ou na ausência desta: ele se deve às oportunidades abertas, com a
independência política, e as novas perspectivas de desenvolvimento econômico, como
será, sobretudo o caso das terras apossadas pelo avanço extensivo das fazendas de café
nas regiões de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A ausência ou impropriedade
da legislação apenas facilitou a exacerbação do processo.
A falta da regulamentação infra-constitucional, isto é de uma legislação
específica que regulamentasse o acesso e o uso das terras e que estabelecesse as
condições jurídicas efetivas sob às quais o novo Estado orientaria sua política de terras,
apenas criou a oportunidade para o avanço desregrado das posses, como de fato ocorreu
no período. Neste sentido e contexto, parece plausível supor que, na ausência de uma
legislação que estabelecesse limites claros e precisos ao acesso e apossamento de terra,
beneficiaram-se, sobretudo na conjuntura política e econômica do Brasil da época,
muito mais os latifundiários (grandes posseiros e sesmeiros) e potentados locais, do que
a massa do povo que, apesar disso também tinha a oportunidade “legal” - isto é, apenas
formal - de ocupar áreas de terras147 e nestas se manter.
Entretanto, se a oportunidade legal, é condição necessária, não é condição
suficiente para o cidadão pobre realizar seu desejo de tornar-se proprietário de terras. E
menos ainda de manter a sua propriedade. Por um lado, parece óbvio que esses cidadãos
não tinham a oportunidade, senão provisória e eventual, de alojar-se em terras devolutas
ou dos latifundiários; por outro lado, longe delas, no sertão hostil, de natureza, de
segurança e sujeito aos ataques de nativos, eles igualmente teriam poucas oportunidades
de se constituírem efetivamente. Assim, o Império das Posses foi, efetivamente, como já
se registrou acima, o império do latifúndio: das grandes posses.

147Posto que a quebra do monopólio legal imposto pelo instituto de sesmarias, muito bem captado por Alberto
Passos Guimarães (op. cit., p.113), não implicava, por outro lado, necessariamente, na quebra do monopólio
fundiário, sempre subordinado às condições econômicas de valorização das terras. É neste sentido que a implicação
tirada por Passos Guimarães a respeito da quebra do monopólio da “aristocracia”, pelas posses, não parece ter base
empírica e histórica sólida: o monopólio passa, de fato, das mãos da coroa concedente, para os latifundiários que o
exercem com todo o rigor. Mesmo porque, pequenas posses sempre se instalaram, independentemente do monopólio
estabelecido pela legislação sesmarial, e continuarão existindo sempre no Brasil. Portanto o Império das Posses, não
representou a consolidação e, menos ainda, a democratização do acesso à propriedade; ao contrário, foi a grande
oportunidade para a consolidação definitiva do latifúndio no Brasil. Nesse particular Roberto Smith (op. cit.), ao
contrário de Passos Guimarães, parece estar no rumo de interpretação mais coerente. Cirne Lima, em trecho citado
por Passos Guimarães (op. cit., p.114), defende ponto de vista semelhante ao deste, ao afirmar que, “apoderar-se de
terras devolutas e cultivá-las, tornou-se coisa corrente entre nossos colonizadores, e tais proporções essa
prática atingiu que pôde, com o correr dos anos, vir a ser considerada como meio legítimo de aquisição
de domínio, paralelamente, a princípio e, após, em substituição ao nosso desvirtuado regime de
sesmarias(...). Depois da abolição das sesmarias, então, passou a campear livremente, ampliando-se de
zona para zona à proporção que a civilização dilatava a sua expansão geográfica. Era a ocupação
tomando o lugar das concessões do poder público, e era igualmente o triunfo do humilde, do
rústico, sobre o senhor de engenhos e fazendas, o latifundiário sob favor da metrópole.” (grifos
nossos). Que “era a ocupação tomando o lugar das concessões do poder público”, não resta dúvidas. Mas que
era “o triunfo do humilde, do rústico, sobre o senhor de engenhos e fazendas”, parece não se confirmar
historicamente. Aliás, o próprio Passos Guimarães (op. cit., p.118) ao afirmar que “ressalve-se, porém, que onde
o velho tipo de latifúndio colonial, feudal e escravista lançara raízes, como por exemplo no nordeste
açucareiro, a posse dificilmente teria tomado, àquela época, proporções muito extensas” (grifos
nossos), apenas reforça esse argumento.

88
Na década de 1840, quando o Estado toma a iniciativa de propor uma Lei de
Terras, será a questão da legitimação dessas posses, e o controle do seu avanço sobre as
terras livres (estatais), sobretudo pelos latifúndios, e, certamente em menor escala,
também por pequenos posseiros, a que se colocará no centro do debate e, depois, no
ponto mais relevante da Lei 601 de 1850. É assim que, inclusive, o problema das terras
devolutas do Império, nesse contexto, é colocado como uma via ao bloqueio do avanço
das posses sobre essas terras. E, com certeza, o Governo não estava preocupado com as
“pequenas posses” ao estabelecer as restrições ao acesso às terras devolutas do Estado,
determinando que este apenas poderia ocorrer mediante à compra. Estava, sim,
preocupado com o avanço especulativo das grandes posses, posto que, apenas estas
teriam, como de fato tiveram, a possibilidade de inviabilizar a política de terras, de
desenvolvimento e de colonização do Estado.

É nesse contexto da consolidação das grandes posses, que o Estado aprova uma
Lei de Terras, assegurando amplamente a legitimação das posses mansas e pacíficas. É
relevante registrar que são dois, os pontos fundamentais, pacificamente estabelecidos na
Lei 601 de 1850: 1. Reconhecer como legítimas as sesmarias confirmadas e 2.
Assegurar todos os meios para a legitimação das posses. As restrições recairão, apenas,
nas sesmarias e grandes concessões inexploradas e não confirmadas ou em comisso,
como já foi explicitado acima. Em relação às terras devolutas, a legislação é rigorosa,
mas inócua148 do ponto de vista prático. Foi quase que imediatamente inviabilizada,
sobretudo pelos potentados locais, qualquer possibilidade de sua demarcação e
arrecadação para o patrimônio das terras livres do Estado, assim permanecendo, a sua
maior parte, até os dias atuais, sempre sujeitas ao avanço das posses e disponíveis para
a incorporação ao patrimônio latifundiário.
Em princípio, pode-se dizer que na Lei 601 de 1850 os legisladores seguiram a
mesma lógica da tradição reguladora portuguesa, assegurando o reconhecimento das
situações anteriormente consolidadas. Assim é que se estabelece o critério de
reconhecimento da legitimidade das sesmarias confirmadas, como se registrou acima e,
por exclusão destas e das demais terras legitimáveis do patrimônio privado e das terras
públicas, define-se o âmbito do estatuto das terras devolutas do Império. Entretanto,
com relação às demais terras em poder privado (posses e sesmarias passíveis de
revalidação), a postura é de sujeitá-las, não apenas às condições anteriores de
exploração e morada efetiva, mas de colocar boa parte delas disponíveis para um
determinado Projeto de exploração econômica. Antes de tudo tratava-se, do ponto de
vista do Estado, de assegurar um fundo de terras livres estatais capaz de sustentar uma
determinada política de transição para uma agricultura fundada no trabalho livre,
provavelmente, com base nas formulações da colonização sistemática. Em segundo
lugar, tratava-se, ainda do ponto de vista do Estado, de assegurar a propriedade para os

148Como é largamente registrado por muitos pesquisadores aqui citados. Veja-se, por exemplo, o excelente trabalho
de José Murilo de Carvalho (op. cit.).

89
grandes posseiros, sobretudo os cafeicultores, dada a relevância desse ramo da atividade
agro-exportadora para a economia da nação nascente. Finalmente, tratava-se de tentar
disciplinar a estrutura fundiária e promover a migração estrangeira.
Entretanto, o problema da legitimação das posses é posto em oposição a
revalidação de uma vastidão de sesmarias mais ou menos abandonadas, como acima se
discutiu. Disso advém o amplo conflito, no parlamento, entre posseiros e sesmeiros.
Triunfam, num primeiro momento os sesmeiros na disputa pelas terras do Vale do
Paraíba (FAORO op. cit.). Mas, afora este caso, triunfam os grandes posseiros,
sobretudo de Minas e São Paulo; e a Lei 601 registra de forma transparente esse fato, no
o
seu artigo 5 ao enunciar que:
“serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por
ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se
achem cultivadas ou com princípios de cultura e morada habitual
do respectivo posseiro ou de quem o represente, guardadas as
regras seguintes:
“ 1o Cada posse em terras de cultura ou campos de criação,
compreenderá, além do terreno aproveitado ou do necessário
para pastagem dos animais que tiver o posseiro, outro tanto mais
de terreno devoluto que houver contíguo, contanto que em
nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma
sesmaria para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na
mesma comarca ou na mais vizinha;
“ 2o As posses em circunstância de serem legitimadas, que se
acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, não
incursas em comisso ou revalidadas por esta Lei, só darão direito
à indenização pelas benfeitorias.”
“Exceptua-se desta regra o caso de verificar-se a favor da posse
qualquer das seguintes hipóteses: 1. o ter sido declarada boa por
sentença passada em julgado entre os sesmeiros ou
concessionários e os posseiros; 2. ter sido estabelecida antes da
medição da sesmaria ou concessão e não perturbada por cinco
anos; 3. ter sido estabelecida depois da dita medição, e não
perturbada por dez anos.
“ 3o Dada a exceção do parágrafo antecedente, os posseiros
gozarão do favor que lhes assegura o  1o competindo ao
respectivo sesmeiro ou concessionário ficar com o terreno que
sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se
também posseiro para entrar no rateio igual com eles.”

Como se pode observar, o parágrafo primeiro marca o triunfo das teses dos
posseiros com relação ao tamanho das posses passíveis de serem legitimadas: assegura,
inclusive, além das áreas efetivamente exploradas, mais “outro tanto(...)de terreno
devoluto que houver contíguo” indo até o tamanho das sesmarias concedias na
região. A referência à terreno devoluto deixa claro que se tratavam de áreas não

90
exploradas, ou não demarcadas de antigas sesmarias ou de terras públicas, o que dá a
dimensão exata do atendimento, por parte do Estado, das reivindicações dos posseiros.
O parágrafo segundo, contrariamente, deixa claro o respeito, por parte do
Estado, aos direitos das sesmarias legítimas e revalidadas pela Lei 601, assegurando
aos posseiros apenas o direito a idenização de benfeitorias149 e ressalvando os casos em
que teriam prioridade as posses: ter sentença favorável, transitada em julgado; ter sido
processada antes da medição e não perturbada por cinco anos; ou, finalmente, no caso
de ter sido efetivada antes da referida medição, não haver sido perturbada por dez anos.
Os dois últimos casos caracterizam situações típicas de usucapião.
O relevante a ser registrado nesse conjunto de regulações, é o fato de estar
implícita a necessidade de se acionar o poder público150, especialmente, o judiciário,
para fazer valer tais direitos. Isso, efetivamente, excluía os pequenos posseiros e mesmo
dos muitos médios posseiros, aliás, como observa Faoro (op. cit., p. 410), posto que
estes não dispunham de recursos e, menos ainda, de condições materiais, para
contratarem advogados e mesmo se deslocarem ou manterem-se nas capitais das
Províncias ou do Império. Nem prestígio na Corte, para garantir privilégios.
É nesse contexto do funcionamento do poder judiciário que sempre residirão os
entraves efetivos à materialização dos direitos de propriedade pelos pequenos e médios
posseiros, por mais que tais direitos estejam amplamente assegurados em Legislação. É
neste sentido que as normas jurídicas, embora possam dar uma boa indicação de
determinados avanços sociais, na verdade tratam-se de avanços formais, de simples
indicadores de avanços reais, cuja materialização estão em “devir”: exige outras
mediações que, em última instância, podem levar a resultados profundamente
contraditórios. Neste caso, dada a necessária generalidade que a norma teria de
apresentar para assegurar as posses, necessariamente referia-se à todas as elas (grandes
e pequenas). Na prática, apenas as grandes posses, e só excepcionalmente, as pequenas,
terão a possibilidade efetiva de realizar esse direito “legalmente assegurado.”151
Finalmente, o parágrafo terceiro, da Lei 601/1850, deixa clara a posição
assumida pelo Estado frente ao conflito entre posseiros e os demais sesmeiros e
concessionários em processo de revalidação. A estes sesmeiros caberia apenas as terras
que restassem após o rateio entre as posses legitimáveis. Essa posição contrária a esse
conjunto de sesmeiros é tão evidente, que chega a sugerir a que esses sesmeiros ou
concessionários podem “considera-se posseiros para entrar no rateio igual

149Observe-se que, neste caso, o confronto não era entre posseiros e sesmeiros em comisso; mas entre aqueles e
sesmeiros legítimos.
150 Para uma discussão detalhada desta questão ver o capítulo 3 deste trabalho.
151Essa especificidade do formalismo jurídico e suas contradições com sua aplicabilidade prática, será explorada
sistematicamente por todos os latifundiários de todos os tempos no Brasil, para fazerem valer seus direitos. Para
tanto, dependendo da conjuntura, armar-se-ão de verdadeiros exército de assessores jurídicos, advogados(...) e
jagunços. Esse fenômeno adquirirá grande relevância no período do regime militar, assumindo a forma acabada de
“grilagem especializada”, como se verá nos capítulos 4 e 5 deste estudo. De qualquer maneira, no caso específico da
luta pela terra, além da batalha judicial, os latifundiários e seus prepostos, utilizarão vastamente de muitos outros
recursos, como a violência direta, a morosidade da justiça, a coação, o suborno e o assassinato.

91
com eles”. Como no caso anterior, esse processo discirminatório exige a mediação do
Estado e, quase sempre, através do judiciário, o que, como se afirmou acima, exclui, em
princípio, os pequenos e médios posseiros152. Portanto fica claro que, efetivamente, não
seriam os pequenos e médios posseiros os beneficiários da Lei 601, por mais que,
formalmente, estes tivessem a possibilidade de se manterem legalmente na posse.
Essa problemática continuará, portanto, eclodindo no bojo dos inúmeros
movimentos sociais de resistência de pequenos posseiros contra a sua expulsão para
áreas cada vez mais afastadas dos interesses do latifúndio, sobretudo à medida em que a
valorização das terras vá engendrando a necessidade do seu monopólio efetivo pelos
poderosos e especuladores de terras.
É por esse conjunto de artifícios e deliberações de Políticas de Terras e de
desenvolvimento, que os diferentes Governos, no Império e na República,
sistematicamente, deslocarão o problema da legitimação da propriedade para o campo
amorfo e nebuloso da colonização 153, sobretudo entendida como desbravamento: como
alternativa ao assentamento de trabalhadores pobres nas áreas ainda não pleiteadas pelo
avanço latifundiário e especulativo.

4 COLONIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO ESTRANGEIRA


A questão da colonização colocou-se para o Brasil, desde os primeiros anos após
o seu descobrimento, sobretudo, no sentido da atração de mão-de-obra para atender às
necessidades produtivas e assegurar a sua ocupação territorial. É neste sentido que os
problemas da colonização e da consecução de mão-de-obra (compulsória ou livre) para
a produção imediata, sempre estiveram associados. As formas, politicamente adotadas,
para o equacionamento desses problemas, é que se articularam de modos diferentes e
sofrem mudanças relevantes, à medida em que a formação econômico-social
desenvolve-se na Colônia.
Como se sabe, a opção imposta pela conjuntura econônica das primeiras décadas
do século XVI, foi a do trabalho escravo154, aliado ao sistema de concessão de grandes
áreas de terras, com base no antigo instituto das sesmarias. Tratava-se, portanto, de um
modo específico de colonização do território brasileiro, fundado na lógica da
acumulação mercantilista, portanto, na subordinação da produção ao comércio155 e no
“lucro de alienação”.
Na conjuntura do século XIX, como ficou esclarecido nas páginas anteriores, é
reposto, pelo Conselho de Estado, o problema da colonização. Desta vez, em uma

152 Ver também FOWERAKER (1982) e os capítulos 4 e 5 deste estudo.


153 E das “Políticas Agrícolas”.
154A respeito de uma análise sistemática dessa questão ver, especialmente, o excelente estudo de Gorender (op. cit.).
155Em suas linhas fundamentais essa conjuntura foi exposta e analisada no capítulo 1 e nos itens iniciais deste
capítulo 2. Entretanto, para uma análise mais detalhada dessa problemática, e das controvérsias em torno do caráter
da economia colonial, há uma vastíssima literatura, algumas delas citadas neste trabalho, especialmente, os trabalhos
clássicos de Oliveira Vianna, Nestor Duarte, Malheiro Dias, Caio Prado Júnior, Fernando Novais, Raymundo Faoro,
Celso Furtado, Passos Guimarães, Sedi Hirano (todos citados) entre outros.

92
conjuntura completamente distinta, articulado a uma nova política de terras, nascida
sobre os escombros do antigo sistema sesmarial e condicionado pelas novas exigências
do mercado mundial capitalista em franco desenvolvimento industrial. Entretanto, essas
novas exigências não poderiam ser atendidas “ex abrupto”, à revelia da realidade efetiva
do país, em grande parte ainda fundada nos ditames do antigo sistema produtivo, no
trabalho escravo e na desorganização fundiária gestada pelas contradições do antigo
instituto de sesmarias: a estrutura agro-fundiária vigente. Assim, a reorganização das
relações de propriedade e de trabalho, exigidas pelo novo contexto interno e
internacional, e propostas pelo Conselho de Estado, na década de 1840, deparava-se,
objetivamente, com as resistências da antiga conjuntura colonial e escravista (as
relações de produção e propriedade vigentes): sobretudo, a resistência dos latifundiários.
É nesse sentido que a alternativa a um Projeto de “colonização sistemática”, ao
estilo wakefieldiano, não é bem aceita no Parlamento e será escamoteada na prática.
A proposta de “colonização sistemática” feria frontalmente os interesses de boa
parte dos latifundiários, sobretudo, na medida em que implicava uma determinada
política de terras, cujo objetivo fundamental seria a regulamentação da propriedade
privada, pelo Estado, e da mesma forma, a regularização das terras públicas (devolutas),
que deveriam ser, legal e concretamente, separadas do domínio particular, sendo vedado
o seu apossamento privado, senão pela via onerosa ou pela anuência do Estado. Isto
significava separar legalmente o patrimônio territorial público do particular e, portanto,
impedir a apropriação livre de terras públicas, sobretudo pela expansão desregrada das
grandes posses e sesmarias.
Embora o Estado, dada a conjuntura de instabilidade do período, já analisada nas
páginas anteriores, se apressasse em assegurar a legitimação de quase todas as terras em
domínio privado156 por título legítimo ou legitimável; na medida em que pressupunha a
arrecadação de terras devolutas, - que sempre se constituíram em um campo aberto para
a ampliação dos latifúndios -, levantou forte resistência ao projeto.
É assim que o projeto de “colonização sistemática” é, na prática, completamente
desvirtuado, e reconvertido em uma política de migração que se resumia à atração de
colonos pobres para os lavouras ou para a formação de colônias de ocupação de
fronteiras. Por outro lado, a dimensão fundamental do projeto wakefieldiano, que
deveria servir de vetor à imigração - a legitimação da
propriedade pública e privada - foi inviabilizada: os latifundiários (sesmeiros e
posseiros) por um lado, não legalizaram suas terras ou o fizeram de forma escamoteada,
e por outro lado, inviabilizaram completamente, a arrecadação das terras devolutas
estatais. Isso, na prática, correspondia a impedir o controle do Estado sobre a oferta de
“terras com bom título”, fundamental, no modelo de Wakefield, para sustentar a
correlação adequada entre população e titulação das terras, e, portanto, à viabilização da

156Além disso, ainda admitindo a legitimação de “outro tanto mais de terra que houver contíguo” até o limite de
antigas semarias, como já visto, o que significava a permissão para a expansão de área, dos latifúndios.

93
colonização sistemática. Esse “novo projeto” nascido do Parlamento da década de 1840,
nada ou muito pouco tinha a ver com o projeto de Wakefield.

4.1 Colonização Sistemática: O Projeto de Wakefield


A primeira e, talvez, mais importante observação a fazer-se com relação ao
projeto de colonização sistemática de Wakefield, é que ele, na verdade, fundava-se em
uma teoria da crise de subconsumo de capital, tendo em consideração a situação da
Inglaterra dos inícios do século XIX e, por fundamento as teses da extensão do mercado
de Adam Smith.
Neste sentido, a colonização sistemática, em Wakefield, aparece enquanto uma
alternativa pragmática à crise de subconsumo: visava, portanto, abrir, pela via da
exploração econômica das alternativas representadas pelas colônias, possibilidades de
aplicação para os excedentes de capital metropolitano, impossibilitados de manter a taxa
média de lucro e acumulação, caso fossem reinvestidos na metrópole157. Assim,
segundo Wakefield, esse excedente de capitais, em vez de ser emprestado para outros
países, sem criar emprego na Inglaterra, poderia ser investido nas colônias, gerando
dessa forma, pela ampliação do campo de emprego do capital e do trabalho, riquezas
que se converteriam, em última análise, em favor da “mother country”, evitando os
riscos acima mencionados. Esse era o contexto geral da formulação da teoria da
colonização sistemática, por Wakefield:
“Os objetivos de uma velha sociedade em promover a
colonização parecem ser três: primeiro, a extensão de mercado
para colocação da sua própria produção excedente; segundo,
alívio do número excessivo (de habitantes); terceiro, ampliação
do campo de emprego do capital... (...) Esses três objetivos
podem ser reunidos sob um só: uma ampliação do campo
de emprego do capital e de trabalho.”158
Tratava-se, portanto de um projeto de desenvolvimento do capitalismo em escala
mundial (visando manutenção das taxas de acumulação de capital nas metrópoles) pela
extensão dos mercados (de capital e trabalho) aos espaços coloniais159. Disso deriva as
propostas de Wakefield, em relação aos problemas específicos, relativos aos processos
de legitimação, pelo Estado, da propriedade territorial nas colônias, onde as terras eram
formal e efetivamente livres, o que criava a possibilidade - que deveria ser evitada, do
seu ponto de vista - da “colonização expontânea”. Segundo essa perspectiva, para que
fosse possível a implementação de um projeto de colonização sistemática - em oposição

157 Como observa corretamente Roberto Smith (op. cit., p.250) “a preocupação central de Wakefield era,
portanto, com o fenômeno do rebaixamento geral da taxa de lucro na Inglaterra desde 1815, tendo em
vista o excesso de capital, e não como decorrência da elevação do custo de reprodução da força de
trabalho.”
158Wakefield (op. cit., p. 250. Grifos nossos).
159 Neste sentido, tem razão SIMITH (op. cit.) ao localizar esta problemática no âmbito do imperialismo nascente no
período.

94
à “expontânea” - era fundamental que as terras não apenas fossem incultas, mas estatais
e passíveis de privatização por via onerosa. Quer dizer, era necessário que as terras
livres passassem ao domínio do Estado, permanecendo passíveis de privatização. A
explicação de Wakefield para a esta proposição - de resto estranha ao ideário liberal, por
pressupor a intervenção do Estado - era a de que, na ocorrência de homens e terras
livres, seria impossível a combinação 160 do trabalho: ou seja, a acumulação de capital.
Esse raciocínio fica claro em duas situações descritas por Wakefield161:
- Uma, refere-se a história de um tal senhor Peel que, mesmo tendo tomado
todas as precauções para assegurar seu empreendimento, tendo levando consigo para
Swan River, Austrália, víveres, meios de produção no valor de 50.000 libras esterlinas,
3.000 trabalhadores, etc., foi surpreendido pelo abandono completo, por parte dos
trabalhadores, ficando o senhor “Peel sem um criado para fazer a sua cama ou
trazer-lhe água do rio162.” Comentando essa história, Marx, afirma ironicamente:
“Infeliz Peel, que previu tudo, menos trazer as relações de
produção da Inglaterra para Swan River!”163.

- A outra situação refere-se às críticas de alguns investidores que estiveram com


o próprio Wakefield no Canadá e no Estado de Nova Iorque, as quais são assim
resumidas:
“Nosso capital estava pronto para muitas operações que exigem
prazo muito longo para sua execução; mas poderíamos começar
essas operações com trabalhadores que, sabíamos, logo nos
dariam as costas? Se tivéramos, então, a certeza de contar com o
trabalho continuado desses imigrantes, imediatamente e com
satisfação os teríamos contratado e a alto preço. Aliás, para
contratá-los não era impecilho a certeza de perdê-los;
bastava-nos saber que contávamos com novo suprimento de
trabalhadores, segundo nossas necessidades.”164
Nesta segunda situação narrada por Wakefield, ficam ainda mais claros, do que
na anterior, os objetivos perseguidos pela colonização sistemática. O risco de perder
alguns trabalhadores que, eventualmente, pudessem se estabelecer como produtores
independentes, não era o maior problema a ser enfrentado pelos investidores
capitalistas; desde que lhes fosse assegurado um fluxo permanente e continuado de
trabalhadores. Isso poderia ser assegurado, segundo Wakefield, usando de uma dupla
estratégia: por um lado, através da intervenção do Estado, assegurando a possibilidade
de acesso à propriedade da terra, sem o que não haveria motivação para atração de
migrantes; por outro, garantindo este acesso, apenas mediante a via onerosa, baseada no

160quer dizer, subordinação por compulsão econômica, como traduz Marx, esse “eufemismo” do economista político
Wakefield.
161 WAKEFIELD, op. cit.
162Id., Ibidem., p.33.
163MARX, (op. cit., p. 885). Grifos nossos.
164Wakefield, England and America. Citado por Marx (op. cit., p. 891)

95
“preço suficiente” e, assim, condicionanando a aquisição de terras, sobretudo pelos
migrantes mais pobres, - que certamente eram a maioria -, à necessidade de trabalharem
como assalariados por algum tempo, até formarem uma poupança “suficiente” para a
compra da sua propriedade ao Estado e, assim poderem abandonar o mercado de
trabalho.
Dessa forma, como bem registra Marx, atingia-se dois objetivos com uma só
o
medida - a arrecadação de terras pelo Estado: 1 ao se garantir a possibilidade efetiva e
legal do acesso a terra (com “bom título”), criava-se a motivação fundamental para
o
atrair imigrantes (sobretudo pobres); 2 ao se estabelecer que a aquisição da terra
apenas poderia dar-se pela via onerosa, agregava aquela “expectativa-motivação” dos
imigrantes pobres, a necessidade de assalariar-se, por algum tempo, a fim de formarem
o seu pecúlio e, dessa forma, poderem-se tornar produtores independentes. Veja-se,
neste caso, que essa “expectativa-motivação”, na medida em que era alimentada pela
possibilidade, de fato, de aquisição de terras por colonos pobres, poderia reverter-se em
maior dedicação e produtividade do trabalhador, levando-o a suportar maiores taxas de
exploração e, portanto, produzir, também, maiores taxas de lucro e de acumulação.
Tudo no mais perfeito figurino da lógica da acumulação capitalista. Além dessas
duas, outras implicações podem ser anotadas: primeira, ao trabalharem como
assalariados, por algum tempo, estavam os trabalhadores promovendo a acumulação de
capital; segundo, ao abandonarem o mercado de trabalho e adquirirem terras ao Estado,
através do pagamento da renda capitalizada, estavam, estes trabalhadores, de fato,
pagando para que o Estado formasse um fundo público para importação de novos
trabalhadores que deveriam substituí-los. No dizer de Marx pagando seu resgate, pelo
direito de abandonar o mercado de trabalho.
Segundo Marx, esta posição intervencionista de Wakefield poderia ser explicada
pelo fato de que “se de um golpe se transformasse todas as terras de
propriedade comum em terras de propriedade privada, destruir-se-ía o mal” (da
autonomização do trabalhador) “pela raiz, mas as colônias seriam também
destruídas.”165

4.2. Colonização Dirigida: O Projeto do Latifúndio


Exatamente a negativa imposta, na prática, pelos latifundiários, ao não
demarcarem e não registrarem, ou ao registrarem de forma incorreta, as terras em seu
domínio, por um lado, e a inviabilização da arrecadação das terras devolutas do Império,
por outro lado, correspondia, objetivamente, a uma espécie de “privatização” de todas
as terras do Brasil. Na melhor das hipótese, impossibilitava o Estado de dispor de terras
que pudessem ser oferecidas, com “bom título”, enquanto atração de migrantes,
sobretudo investidores.

165Marx, op. cit. p. 892.

96
Esse argumento é perfeitamente compreensível se se tiver em consideração as
imensas dimensões das concessões de antigas sesmariais, por um lado, e o fato de que
elas ocupavam, efetivamente, todas as terras de melhor localização e fertilidade. Assim,
além da impossibilidade jurídica, fundamental, ao esquema wakefieldiano, havia a
impossibilidade concreta, pela falta de terras economicamente interessantes para o
Capital. Desta forma criava-se, na prática, no Brasil pós-1854, uma situação em que o
capital, se se quisesse instalar no país, teria que proceder a um significativo desembolso
de imobilização, na medida em que teria que adquirir as terras nas condições correntes
de um mercado que já era
especulativo; e não ao Estado, como pressupunha o projeto de Wakefield. O preço
suficiente da terra estatal de Wakefield, embora estivesse acima das possibilidades de
aquisição dos assalariados, estaria, certamente abaixo dos preços especulativos do
mercado privado de terras, ainda mais se se imaginar a situação de desorganização
fundiária brasileira, na qual, poucas terras tinham “bom título” (quando tinham).
Aqui começa a derrocada do projeto de colonização capitalista de Wakefield e
sua reconversão em projeto de colonização dirigida para os latifúndios.
Nessas condições, nem mesmo a atração de colonos pobres poderia funcionar 166,
haja vista os sistemáticos protestos e as proibições dos Governos de países europeus
com relação a imigração para o Brasil. Na maioria dos casos, os colonos eram colocados
nos latifúndios em condições quase servis de trabalho, onde os salários eram
sistematicamente aviltados e corroídos por dívidas com os patrões, em fenômeno já
muito bem documentado pela historiografia. A situação mais comum, e perfeitamente
ajustada às condições do latifúndio cafeeiro, era a parceria, cujo exemplo magistral da
época era dado pela parcerias do Senador Vergueiro, logo generalizadas como
sistema167.
Em suma, o projeto de colonização sistemática de Wakefield, que teria inspirado
os legisladores da década de quarenta do século XIX ficou mesmo só como inspiração.
A colonização foi reduzida à mera importação de colonos pobres que deveriam servir,
por certo tempo no latifúndio, não para ganharem seus salários e formarem um pecúlio
para aquisições de terras168, no futuro previsível; mas antes, para cobrirem as dívidas
decorrentes das despesas de viagem e contraídas nos barracões das fazendas. Portanto,
numa situação ainda mais desvantajosa do que a antevista por Marx, no modelo
wakefieldiano, quando os colonos ao comprarem terras estavam financiando seus
substitutos. Na colonização dirigida do latifúndio brasileiro, esses colonos teriam que

166como, de fato, não funcionou.


167Ver a esse respeito os trabalhos de José Murilo de Carvalho, Roberto Smith e Alberto Passoas Guimarães, todos
citados neste estudo. Ver igualmente os estudos de Paula Beiguelman, A Grande Imigração em São Paulo (I), Revista
do Instituto de Estudos Brasileiros. no 3, 1969, p. 99; Emília Viotti da Costa, Da Senzala à Colônia, Difel, São Paulo,
1966, págs. 104-105; Sérgio Buarque de Holanda, Prefácio, In.: Tomás Davatz, Memórias de um Colono no Brasil
(1850), Livraria Martins, 1972, pág. XLI; o próprio texto de Davatz, cit., pág. 64; Brasílio Sallum Jr., Capitalismo e
Cafeicultura. Oeste paulista (1888-1930), Duas Cidades, São Paulo, 1982, págs. 76-78.
168Embora essa aparência ou ilusão persistisse, alimentada no ideário e na legislação. Na prática a materialização
dessa possibilidade era remota ou inexistente

97
pagar, e muito caro, pela sua própria transferência para o Brasil169. Ou seja, a se adotar o
raciocínio de Marx, eles teriam que pagar um duplo resgate: o dele próprio e o do seu
substituto.
Diante da situação exposta acima, parece que esses fatos, muito mais do que a
presença do escravismo no Brasil, podem permitir a compreensão do porque o projeto
de colonização brasileiro fracassou retumbantemente; do porque, muitos imigrantes
vindos ao Brasil, aqui apenas transitavam rumo a outros países, sobretudo da Bacia do
Prata. Explica, igualmente, porque a economia agrária brasileira permaneceu entrevada
na improdutividade, assim como as dificuldades, por ela, enfrentadas, para transitar ao
trabalho livre e à economia de escala.
Pode-se dizer que a colonização dirigida pelo latifúndio é a pré-história, de uma
história inacabada: a história das diversas formas, sobretudo arcaicas e anacrônicas, de
subordinação indireta do trabalho ao capital no campo. E, por outro lado, que a negativa
dirigida pelo latifúndio, aos processos de legitimação das terras brasileiras, neste
período é, “mutatis mutandis”, a pré-história da história inacabada da reforma agrária
brasileira, que em 1964, cento de dez anos depois, é novamente reposta para ser
novamente, escamoteada, como se pretende evidenciar na segunda parte deste trabalho.

5. Considerações Finais: Heranças da Política de Terras do Império


De julho de 1822 à promulgação da Lei 601, em 1850, consolidara-se
definitivamente, no Brasil, o latifúndio fundado na posse. Através do expediente de
incorporar, pura e simplesmente, vastas áreas de terras, por suposto, devolutas, porém
raramente desocupadas, os grandes detentores de terras e, com eles, outros
especuladores imobiliários170, expandem de forma célere seus domínios e seu controle
sobre as terras devolutas, esmagando, afugentando, ou assimilando, índios, posseiros
pobres ou pequenos agricultores de “subsistência”, que sempre encontraram em seu
caminho.
Se o antigo instituto sesmarial foi um instrumento que permitiu a concessão e
acesso privilegiados à propriedade territorial no Brasil, o “império da posse”, como é
conhecido esse período, foi ainda mais, porque reforçado pelas novas garantias
constitucionais171, permitiu a ampliação, ao nível concreto, de tais privilégios. Esse
período significou a transferência, de fato, do controle sobre as terras devolutas, que,

169Caso em que, de fato, pode-se falar de resgate.


170 Octávio Ianni, referindo-se a situação de Sertãozinho, que em certo sentido pode-se considerar semelhante ao que
vinha acontecendo em outras áreas da expansão das apropriações de terras rurais no período, afirma que “a área fora
ocupada, desde meados do século XIX, por criadores, agricultores e comerciantes de terras vindos do
Oeste Paulista, das vizinhanças de Minas Gerais e de outras partes. (...) Na década de oitenta, o café
tomou conta da vida econômica da área que passou a fazer parte do município de Sertãozinho; da
mesma forma que estava tomando conta, das terras devolutas, fazendas e sítios em toda a região
que circunda Ribeirão Preto.” IANNI (op. cit., p.11. Grifos nossos)
171 Trata-se da Constituição de 1824, que assegurou o pleno direito de propriedade (art. 179; XXII).

98
embora formalmente, permanecendo na esfera do Estado, passou, na prática, para o
campo de influência direta dos poderosos locais.
Como ficou evidenciado no capítulo anterior, na vigência do instituto da
sesmaria, apesar das amplas possibilidades abertas à incorporação latifundiária, no
Brasil, a sua legitimação, ou o reconhecimento de domínio sobre as terras possuídas,
estava, ainda assim, sob o controle do Estado. Este, a qualquer momento poderia
exercer o seu direito de negar, ou não, o reconhecimento das ocupações, fundado nos
dispositivos legais e, sobretudo nas cláusulas resolutivas, que eram parte substantiva dos
documentos de doação.
Se, por um lado, ao nível da realidade, tais limitações não foram suficientes para
conter o avanço desordenado das ambições, sobretudo, latifundiárias172, por outro lado,
ao nível jurídico e institucional, entretanto, esse avanço estava inevitavelmente limitado,
ou mesmo condenado, pelo seu caráter de ilegitimidade.
Ilegitimidade, aliás, duplamente configurada. Primeiro, juridicamente, pelos
termos da própria legislação de terras, expressos nos documentos de concessão, e
cabalmente caracterizada pela ausência da confirmação explícita por parte do Estado,
antes da Lei 601; e pela ausência de registros ou por tê-los feito em contradição com as
normas legais, depois daquela Lei. Segundo, pela própria tradição e pelos costumes, que
sempre estiveram ligados ao instituto de sesmarias, e que pressupunham a exploração
efetiva da terra como única alternativa para assegurar o seu efetivo reconhecimento,
pela comunidade e, em última instância, pelo Estado173, princípios estes, aliás,
igualmente consagrados na legislação.
Esses princípios, mas, sobretudo, as exigências legais formalmente instituídas,
eram particularmente rigorosos para a situação das terras do Brasil. Na Colônia era,
explicitamente, vedada a possibilidade do arrendamento, ou de cessão de terras à
terceiros, por parte dos beneficiários de doações de sesmarias. Tal se fundava no
pressuposto, explicitamente, aliás, colocado nos Forais, nas Cartas de Doação e nos
Regimentos, de que as terras eram concedidas para serem efetiva e diretamente
exploradas, cabendo, apenas, e privativamente, aos prepostos da Coroa, o poder para
arrendá-las ou doá-las. Esta regra, radicalmente diferente da que vigia em Portugal
(onde era permitido, ao concessionário, ou explorar diretamente a sua sesmaria, ou fazê-
la explorar por terceiros, sob determinada pensão ou foro174), indicava, de forma clara, o
objetivo do Estado Português em relação às terras Coloniais.

172 Porque, a bem da verdade, há que se reconhecer que também cidadãos pobres e despossuídos, igualmente tinham
“o sonho da terra”, e puderam, naquela ocasião, estabelecerem-se em pequenas posses nas quais passaram a fundar
suas “roças”, dando origem à uma modalidade específica de produção direta, independente, que veio a ser conhecida
na literatura como “agricultura de subsistência”. Ver a respeito, entre outros KARÁVAEV (1989).
173 Ver a esse respeito a excelente análise feita por Virgínia Rau (op. cit.), especificamente para as sesmarias
portuguesas; e Cirne Lima (op. cit.) e Costa Porto (op. cit.), para a situação específica da aplicabilidade do instituto
nas condições do Brasil Colonial. Parte dessa discussão encontra-se no capítulo 1 deste estudo.
174 Carta Régia de 1375.

99
No Brasil, tratava-se de assegurar não apenas a exploração efetiva da terra, mas,
sobretudo, a consolidação da ocupação e do domínio do Estado Colonial sobre o
território. Provavelmente, a essa filosofia inscrita na política fundiária colonial, deve-se
a tendência do instituto de sesmarias, na colônia, a estabelecer, com rigor, profundas
dificuldades para a concentração da terra em cadeias intra-familiais de propriedades.
Portanto, dificultando a formação, estruturada, de núcleos locais de poder, de caráter
feudalizante.
Esta é, aliás, a hipótese defendida por Raymundo Faoro175, para afirmar o caráter
anti-feudalizante da propriedade territorial fundada no instituto de sesmarias, tanto em
Portugal quanto no Brasil, através do qual, a Coroa mantinha o pleno controle e, em
última instância, o domínio, sobre todas as terras da nação. Por este meio o Estado
tinha, pelo menos formalmente, a possibilidade (ou virtualidade) de manter o controle
sobre as terras coloniais, podendo exigir ou indicar a sua destinação ou uso específico e,
em última instância, manter em suas mãos, formalmente, isto é, juridicamente, a única
alternativa de legitimação: A exigência da confirmação real.
A contradição entre essas duas alternativas de acesso à propriedade territorial, a
possibilidade concreta, real, da posse (sempre extra ou ilegal) de terras; e as concessões
ou doações (e depois de 1850, a compra), através do Estado, que assegurava
determinado estatuto da propriedade, persistirá no Brasil e será sempre o grande
problema de política fundiária, a ser enfrentado pelo Estado.
Esse problema seria, como se viu, profundamente agravado no período que vai
de julho de 1822 (quando e suspenso o instituto de sesmarias) à setembro de 1850,
quando é promulgada a Lei 601. Nesse período, na ausência de qualquer
regulamentação específica, pelo Estado, a respeito do acesso a terra e da legitimação da
propriedade territorial, apenas o apossamento de fato, permanecia como recurso para a
ocupação dos espaços territoriais. Esse problema seria, sobremaneira, agravado pela
Constituição de 1824, que modificara o estatuto da propriedade territorial, tornando-a
propriedade absoluta, ou seja, não sujeita a nenhuma cláusula restritiva ou condição,
face à decadência legal das cláusulas resolutivas que vigiam no regime de propriedade
anterior.
Criou-se, assim, uma situação ainda mais complexa e intrincada: era assegurado
o pleno direito à propriedade privada, mas não eram assegurados, juridicamente, nem os
instrumentos, nem os meios, nem os critérios, que servissem de parâmetros para a
definição dos limites e legitimação referentes à propriedade territorial.
Nessa conjuntura, embora, genericamente, a todos ficasse facultada a
possibilidade de apossarem-se de terras nacionais, tal faculdade, de fato, era muito mais
vantajosa para os grandes detentores de sesmarias e outros poderosos que, por essa
grande brecha aberta nas possibilidades de acesso a terra, apressaram-se em ampliar os

175 Op. cit.

100
limites de seus já vastos domínios. A Lei de Terras, de 1850 assegura a legitimação
exatamente dessa situação privilegiada.
Assim, aos pequenos posseiros, para usar um eufemismo comum em lógica
jurídica, caberia a condição, (embora formalmente assegurados os seus direitos de
posse, pela isonomia legal com os demais posseiros), de “exceção que confirmava a
regra”. Melhor seria usar, para esse caso, uma expressão mais ajustada: eles estavam na
condição “de regra que legitimava a exceção”. Porque, assegurar, juridicamente, as
grandes posses era, de fato, a regra consagrada em 1850.
Por essa razão é que, neste estudo, se propõe a distinção entre grandes e
pequenos posseiros. E se faz referência à apropriação privilegiada. É evidente que
havia, legal e efetivamente - mais legal, que efetivamente -, a possibilidade para todos,
de ocuparem (e depois da Lei 601, de legitimarem) determinadas parcelas do território
brasileiro e aí se estabelecerem como pequenos agricultores de subsistência ou grandes
plantadores. Entretanto, como se viu neste capítulo, os estudiosos do problema são
unânimes em reconhecer, evidentemente com base na análise de documentos daquela
época, que é exatamente nesse período que o latifúndio se consolidada definitivamente
no Brasil. E é exatamente essa situação que se busca assegurar com a Lei de Terras.
Portanto, também, legitimação privilegiada.
Assim, a Política Fundiária do Império176 configurou-se, efetivamente, como
uma política de legitimação privilegiada da propriedade territorial rural no Brasil.

176 Como bem observa FOWERAKER (op. cit.) , “no apogeu do Império, o Estado recompensou o posseiro e criou
o incentivo para a exploração econômica do interior. Dessa época em diante a posse tem-se constituído um direito em
potencial à propriedade no Brasil, mas um direito que requer a intervenção do Estado para tornar-se real, e isso tem
acontecido apenas raramente.” E, mais adiante, na mesma página, comenta que “é apenas o Estado quem define o
que é propriedade privada, o que é posse e o que são terras devolutas (...); em resumo, é quem define as regras básicas
para a luta vindoura sobre a terra. Durante o Império, (...) o estado monopolizou a terra e deu somente títulos aos que
a compraram, deixando assim pouca folga legal onde se apoiarem os reclamantes. É verdade que o Estado pode não
ter jamais exercido o controle integral sobre a terra (...) mas pelo menos a linha de demarcação entre o público e o
privado era clara.” (p. 122).

101
CAPÍTULO 3

LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA E LUTA PELA TERRA NA REPÚBLICA:


(1889 - 1964)

1. Considerações Preliminares
O problema fundiário posto para o Estado brasileiro, desde a sua consolidação
na década de 40 do século XIX, era o de viabilizar as condições institucionais e efetivas
para disciplinar, juridicamente, o acesso e a garantia à propriedade privada territorial
rural. Isto significava envidar esforços no sentido de demarcar, legalmente, a separação
entre as terras do domínio público e as de domínio privado, por um lado; e materializar,
por outro, esta demarcação ao nível da realidade. Tratava-se, portanto, de tentar oferecer
caráter de legitimidade à todas as terras, quer fossem públicas ou particulares, na nova
conjuntura de país independente e de sua inserção na economia e no conserto mundial
das Nações.
As respostas apresentadas a este problema, e sobretudo os seus resultados
concretos, foram objetivamente diferentes, conforme os distintos movimentos de
conjunturas mais amplas vividas pelo país, em momentos diversos do seu
desenvolvimento histórico. Provavelmente por motivos dessa natureza, é que a maioria
das iniciativas no campo político, econômico, legislativo, e judiciário, embora se
apresentassem como logicamente coerentes, do ponto de vista de sua estrutura jurídica e
legal, sempre se depararam com limitações e bloqueios dificilmente superáveis ao nível
administrativo e concreto de implementação no contexto da formação econômico-social.
Tratavam-se de limites decorrentes ou impostos ao nível da “praxis”, tanto pelas
conjunturas econômicas, quanto sociais, políticas, culturais, regionais, administrativas,
etc.
A efetiva regulamentação da propriedade privada das terras - que virtualmente
possibilitaria a implementação do projeto de alienação das terras devolutas, e a
implementação do mercado de trabalho livre, na perspectiva wakefieldiana177 - apenas

177 Segundo Alberto Passos Guimarães (op. cit., p. 111), “as teses de Wakefield correspondiam a um período
em que a terra já se tinha convertido em mercadoria, o que ainda não se havia verificado em nosso país,

102
seria posta em prática pela Lei de Terras de 1850, sendo regulamentada, somente em
1854. Entretanto, o seu instrumento operativo mais importante, que seria a demarcação
e o registro das terras possuídas e a discriminação e arrecadação das terras devolutas,
que deveriam ficar sob o controle do Estado, fracassou de forma contundente.
Este fracasso da Política Fundiária do Império, tentada após a consolidação do
Estado independente, na década de 1840, e formalizada juridicamente pela Lei 601 de
1850, foi apenas o primeiro.
O controle efetivo das terras devolutas brasileiras, que formalmente permanecia
nas mãos do Estado, desde o “império das posses” e, sobretudo, no período regencial,
tinha passado, de fato, às mãos do latifúndio, das oligarquias locais e dos especuladores
imobiliários que, já na segunda metade do século XIX, com a valorização das terras,
sobretudo pela expansão da cafeicultura, começaram a se organizar em empresas de
imigração e colonização.
Pode-se dizer que o controle sobre as terras era exercido por duas vias: 1. “De
fato”, isto é, à margem das normas juridicamente instituídas - direta e imediatamente, ao
nível local, pela força e autoridade privadas dos latifundiários: sobretudo quando os
conflitos não se publicizavam e quando as disputas pela terra, se estabeleciam contra
pequenos posseiros e indígenas. 2. “De direito”, isto é, fundado, pelo menos
formalmente, nas normas juridicamente sancionadas. Neste caso, o controle era
exercido de forma mediata e institucional, pela via administrativa ou judicial. Sofria este
processo, geralmente, a influência, ou mediação, dos representantes dos interesses
latifundiários, quer fosse no Parlamento e no Executivo, quer fosse, em última instância,
no próprio Judiciário que, localmente, sempre sofreu a forte influência, quando não a
pressão direta, e nem sempre discreta178, das oligarquias, geralmente incrustadas nas
burocracias da Administração Pública, sobremaneira poderosas ao nível local. Isso não
quer significar, linearmente, que as oligarquias dispusessem da plena direção e controle
do aparelho administrativo do Estado, mas que, as medidas adotadas, política,
administrativa e judicialmente, raramente feriam os seus interesses, muito
particularmente quando se tratavam de temas referentes a apropriação de terras

antes do século XIX.” Nessa conjuntura, segundo Passos Guimarães, e neste sentido concorda-se aqui com a sua
argumentação, “a aristocracia rural portuguesa, no Brasil colonial, e a ‘nobreza’ rural brasileira, logo depois
da independência, não precisavam recorrer a esses artifícios do sistema mercantil, porque no seu tempo
a terra era ainda um privilégio (...) e não uma mercadoria. Bastava impedir, por meios jurídicos, as
doações e, por meios violentos, as ocupações, àqueles que, ao arbítrio dos grandes senhores
dominantes na Metrópole ou no Estado nacional nascente, não possuíssem dotes de nobreza ou
fartura de dinheiro para merecer sesmarias.” (Id. Ibidem, p. 111).
178 A influência das oligarquias, sobretudo ao nível local, é expressa nos seguintes termos por Raymundo Faoro: “O
coronel tem capangas, elementos sem vontade própria, como os têm os subcoronéis (...). Em regra o
compadrio une os aderentes ao chefe, enquanto goza da confiança do grupo dirigente estadual e
enquanto presta favores, com o domínio do mecanismo policial, muitas vezes do promotor público, não
raro expresso na boa vontade do juiz de direito. As autoridades estaduais - inclusive o promotor
público e o juiz de direito - são removidas, se em conflito com o coronel. Até a supressão da
comarca, seu desmembramento, elevação da entrância são expedientes hábeis para arredar a
autoridade incômoda.” (FAORO, op. cit. p. 632. Negritos nossos).

103
devolutas e sobretudo, quando contenciosos179 sobre a terra envolviam pequenos
posseiros e indígenas. Esses processos estão na origem da consolidação “legal” do
imenso domínio que os latifúndios, efetivamente, sempre detiveram no Brasil. Daí a
necessidade de se questionar a sua legitimidade.
Cabe relembrar, a essa altura, que os debates parlamentares que antecederam a
aprovação da Lei 601 giraram, exatamente sobre questões desta ordem, que já se
mostravam pertinentes à conjuntura agrária brasileira daquela época, como foi
amplamente discutido no capítulo anterior.
Os fazendeiros do Vale do Paraíba, por exemplo, detinham, nessa época dos
debates sobre a Lei de Terras, a liderança da produção de café, beneficiando-se, por um
lado, da revalidação das sesmarias, que assegurava suas propriedades; e, por outro lado,
pelo fato de disporem da mão-de-obra escrava, que já possuíam, assim como, do fato
das suas lavouras de café, já instaladas, se encontrarem em plena fase de maturação
(FAORO, op. cit.). Esta liderança da cafeicultura fluminense apenas começaria a ser
ameaçada pela cafeicultura paulista, sobretudo do chamado “Oeste Paulista” e
adjacências, a partir da década de 1860, quando perde aquela vantagem comparativa
inicial, entretanto, por outras razões180 que não as especificamente ligadas à propriedade
territorial.
Pode-se então concluir que a maior oposição posta a Lei 601 de 1850 devia-se
ao fato de ser ela uma lei de propriedade. Neste sentido e contexto, uma lei que indicava
a intenção do Governo em retirar às oligarquias rurais, pelo menos formalmente,
juridicamente, o controle absoluto e direto, que exerciam sobre as terras. Logo, também,
boa parcela do seu poder político. Referia-se ao fato do Estado pretender imiscuir-se, do
ponto de vista das oligarquias latifundiárias, em assuntos específicos de esfera privada,
no âmbito da propriedade territorial181. Daí as freqüentes acusações de “estelionato
público” e as ameaças, nem sempre veladas, de violência social e política, ou mesmo de

179 Ainda Faoro faz uma referência a um dito popular dos sertões “quem tem padrinho não morre pagão”, que dá
bem a medida da necessidade da mediação dos poderosos locais nas relações com as situações correntes da vida
quotidiana do cidadão comum. Continua ele, “lidar com a polícia, com a justiça, com os cobradores de
impostos, obter uma estrada, pleitear uma ponte, são tarefas que exigem a presença de quem possa
recomendar o pobre cidadão (...). Esse benfeitor, de seu lado, detentor de conexões, tem, à medida que
a sociedade se torna complexa, um corpo de assessores: o médico, o advogado, o padre, o coletor.
Os auxiliares, em breve, na medida em que se institucionalizam e se homogeneizam os vínculos legais e
costumeiros, disputarão o lugar do coronel” (op. cit., p. 633. Grifos nossos).
180 Referiam-se, especialmente, ao esgotamento das terras, ao retardamento na substituição do trabalho escravo, que
desde 1850 já dava indicações de ter o seu fluxo cortado, e, conseqüentemente, aumentado o seu peso relativo nos
custo de produção, sobretudo pela depreciação do capital imobilizado em escravos - pelo seu desgaste físico e
envelhecimento - que causavam prejuízos, pelo fato corretamente registrado por Francisco de Oliveira, de situar-se na
categoria do Capital Constante (In.: OLIVEIRA: 1984, Capítulo 1); junte-se a esses problemas o endividamento com
os comissários e, sobretudo, com os Bancos que ganham impulso, na época, incentivados pela nova conjuntura de
ampliação da produção e produtividade da cafeicultura, sobretudo nas zonas novas e fundadas no trabalho livre e na
incorporação do progresso técnico, que, por outro lado, passaram a exigir recursos para o financiamento da produção
que, do ponto de vista financeiro agregado, dificilmente podiam ser cobertos pelas ações privadas de comissários.
Apesar do imposto territorial ter sido eliminado pelo Senado (ver Murilo de Carvalho, op. cit., p. 50). Permanecia
apenas o imposto de chancelaria, que correspondia a um imposto de transmissão de bens imobiliários.
181 Que era assegurada pela Constituição de 1824. Daí a acusação de inconstitucionalidade imputada a Lei 601/1850.
Ver a respeito, CARVALHO (op. cit., p. 42 - 44 ).

104
convulsão nacional182, caso a Lei de Terras fosse posta efetivamente em prática. Nesse
sentido, pode-se imputar esse viés “ultra-liberal” do latifúndio à ampliação da
autonomia local, célere, no período do "império das posses" e, de certa forma e até certo
ponto, consolidadas no poder político, que efetiva e realmente, passaram a deter as
oligarquias no período regencial. Poder este, sobretudo, reforçado pela criação da
Guarda Nacional e, até certo ponto, pela desmobilização do Exército, na conjuntura da
transição para a Independência e consolidação da unidade e do Estado Nacional.
Nesse contexto, e nesta conjuntura específica, a centralização promovida com a
ascensão do Imperador Pedro II e a efetiva e vigorosa instituição do Poder Moderador, e
do Conselho de Estado, efetivamente soavam, às oligarquias, como um forte golpe nas
suas pretensões de autonomia local.
Efetivamente tratava-se de uma oposição política183, a que era contraposta à Lei
de Terras de 1850. Tratava-se de assegurar, sobre as bases da manutenção do domínio
territorial, o poder local dos latifundiários, elevados, desde o período regencial, à
condição de coronéis da Guarda Nacional, medida esta que eqüivalia, na prática e
politicamente, à institucionalização e, portanto, ao reconhecimento, pelo Estado, do
poder efetivo destas oligarquias. Nessa época consolidou-se o seu poder e influência
políticos que, de resto, sobreviverão no período Republicano. Neste período, esse poder,
de fato oligárquico em suas origens, desenvolve-se, sobretudo com base nos
permanentes arranjos e alianças, que se materializam, apesar das diferenças e
contradições que efetivamente, sempre existiram, entre famílias e grupos de potentados
locais, conflitos estes que geralmente giravam em torno do controle sobre a propriedade
territorial e a consecução de favores econômicos, políticos e financeiros do Governo.
A oposição à Lei 601 fica evidenciada quase que imediatamente após a sua
regulamentação, em 1854. Mesmo antes de sua aprovação, durante os debates
parlamentares, atribuía-se à radicalidade da referida Lei, o sentido de um forte indicador
de que a mesma não seria implementada, como registra Murilo de Carvalho184, suspeita,
aliás, que se mostrou plausível. A respeito, especificamente, da oposição concreta à
implementação das medidas práticas preconizadas na Lei 601 e seu Regulamento,
afirma Murilo de Carvalho:
“A leitura dos Relatórios dos Ministros do Império (até 1860) e da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas (de 1860 a 1889) são um
contínuo reafirmar de frustrações dos ministros e dos funcionários
das repartições encarregadas de implementar a lei, frente aos
obstáculos de várias naturezas que se lhes apresentavam. No
que se refere especificamente a terras, os pontos mais
importantes para implementação eram o registro paroquial, a

182 Idem. p. 43.


183 No sentido captado por Joe Foweraker ao firmar que “a história legal é também uma história política,
enquanto resultado das iniciativas do Estado para exercer o controle sobre a terra.” (FOWERAKER, op.
cit.: 124).
184 Op. cit., p. 45.

105
separação e medição das terras públicas, a revalidação de
sesmarias e a legitimação de posses com a respectiva medição e
demarcação.”185
Ou seja, a oposição dirigia-se ao cerne da Lei 601: a problemática da
legitimação da propriedade territorial rural. Como foi analisado no capítulo anterior, os
senhores de terras recusaram-se contundentemente, por um lado, a regularizar e registrar
as áreas que possuíam; e, por outro lado, tentaram impedir, de forma sistemática e
eficiente, a discriminação das terras devolutas. Isto significava, efetivamente, o
impedimento à institucionalização da estrutura fundiária, na forma jurídica exigida pela
nova conjuntura econômica, social e política do país. A contrapartida desse fato,
entretanto, para os latifundiários, seria que a maioria das terras possuídas, por esta
mesma razão, também permaneciam ilegítimas.
As terras devolutas, desconhecidas pelo Estado, mas evidentemente, muito bem
conhecidas pelas oligarquias locais186, continuaram, entretanto, à mercê da ocupação
desordenada, mas da legitimação privilegiada. Assim, ao perpetuarem a desorganização
fundiária, fundada na incerteza quanto ao domínio sobre o que seriam terras públicas ou
privadas, ficavam, na prática, asseguradas, as condições efetivas para a perpetuação de
poder oligárquico, sobretudo ao nível local. E por meio de alianças e outras formas de
articulações políticas, que sistematicamente sempre foram celebradas entre as
oligarquias, até certo ponto, o poder e influência configurados nelas, se estendiam ao
nível provincial e, até mesmo, em determinadas conjunturas, ao Governo central.
A desorganização fundiária, que permaneceu no rastro da Política de Terras da
Monarquia, seria um dos problemas mais graves a ser enfrentado pelos Governos
republicanos. A alternativa à transferência da gestão dessa questão para a alçada dos
Estados da Federação, consagrada na Constituição Republicana de 1891, como se verá
neste capítulo, eqüivalia, mais uma vez, a colocar todas as terras do país sob arbítrio das
forças oligárquicas187, fortemente arraigadas nas diferentes burocracias dos Estados.
Como se argumentou no capítulo anterior, a falta de controle do Estado sobre as
terras devolutas, eqüivalia, na prática, a uma ampla e total privatização de todas as
terras do país. Esse fato inviabilizava qualquer tentativa mais ampla de reorganização
fundiária e, portanto, de atração de colonos. O Estado ficava, de fato, impedido de poder
oferecer terras com “bom título”, para usar os termos de Wakefield, capazes de servir de
atrativo à imigrantes estrangeiros, sobretudo quando se tratassem de imigrantes que
desejassem investir, ou estabelecerem-se como pequenos produtores independentes na
agricultura brasileira.

185 Op. cit., p. 47.


186 Pelos sertões do Brasil, todas as pessoas, sobretudo aqueles que detinham o conhecimento da máquina do Estado,
detinham uma noção mais ou menos clara das terras devolutas existentes, as chamadas terras “sem dono”.
187 Essa hipótese de que à transferência do domínio sobre as terras devolutas para a alçada dos Estados representou,
objetivamente, a sua entrega ao controle das oligarquias e defendida pela maioria dos estudiosos desse tema. Ver,
entre outros já citados neste estudo, WESTPHALEN (1968) e ALVES (1995).

106
Nesse contexto, restou apenas a alternativa à atração de imigrantes pobres que
deveriam servir nas grandes plantações, sobretudo na cafeicultura188.
Efetivamente, diante de tais condições, não se pode falar em “colonização
sistemática”, apesar das críticas que possam ser feitas a este caminho da transição, nas
colônias, para a economia de mercado, fundada no trabalho livre. Entretanto, esse foi o
produto mais visível do fracasso da política fundiária do Império, que se estenderia à
República, e cujo vigor apenas seria abalado pelo movimento, historicamente registrado
como Revolução de 1930.
Apesar da tentativa ao nível institucional, para regulamentar a propriedade
territorial, pela via jurídica, sobretudo pela exigência do registro, os grandes detentores
de terras, ao que tudo indica, tinham um outro projeto, que acabou por se impor.
Tratava-se de um projeto que se situava, como parece evidente, para além (ou aquém)
do “Estado de Direito”: o Estado inspirado nos princípios do liberalismo econômico e
jurídico, e que supunha, como condição necessária à legitimação - sobretudo a da
propriedade territorial - a alternativa à lei. Esta deveria ser assegurada pela via
legislativa e, em última instância, judiciária. Este parecia ser o projeto que estava sendo
proposto pelas elites governantes do Brasil e que, no que se referia à questão fundiária,
foi vetado pelo latifúndio. Se se quisesse utilizar outra terminologia, poder-se-ia dizer
que o caminho eleito pelos grandes detentores de terras, fundava-se em um projeto que
optara pela barbárie, em oposição a via civilizada, pacífica, negociada, fundada em
princípios estabelecidos, ainda que formalmente, em Leis e regulamentos, social e
politicamente sancionados.
Dessa forma, pode-se levantar a hipótese de que, tendo-se em consideração o
cenário que emergiu com o fracasso da Política Fundiária do Império, o ordenamento

188Verena Stolcke (1986) faz uma brilhante defesa do colonato, procurando demonstrar que esse sistema de
exploração de trabalho "que os fazendeiros adotaram como substituto para o trabalho escravo não só provia
as fazendas cafeeiras em expansão de trabalhadores baratos e disciplinados, mas oferecia uma
vantagem adicional sobre o trabalho assalariado. O colonato deu aos produtores de café uma flexibilidade
diante das flutuações de preços que de outra forma não teriam (...). Esse sistema permitia aos
fazendeiros comprimir os salários em dinheiro nas épocas de baixa de preços do café, sem por em risco a
oferta de mão-de-obra(...)." (loc. Cit., p.54). Com essa argumentação e apoiando-se em depoimentos da época,
procura, aquela autora, defender a tese de que o colonato era a melhor alternativa para a cafeicultura, inclusive
argumentando, na página 56, de que uma prova "de que o colonato não estava vinculado às condições
especiais sob as quais o café penetrou e se expandiu no estado é a sua persistência praticamente
inalterada até o início dos anos 60."(Idem.; negritos nossos). Entretanto, se essa forma de exploração do
trabalho era a mais adequada àquela conjuntura, isso não quer significar que outras alternativas, como o assalariato
não fossem possíveis ou mais eficientes. Prova apenas que, certamente, não o eram naquela conjuntura, onde o
bloqueio ao acesso e à formação de pequenas propriedades, impedia que se constituísse e desenvolvesse um mercado
permanente de mão-de-obra livre, sobretudo da mão-de-obra excedente da produção familiar, ou de imigrantes pobres
que, como supunha Wakefield, que, na expectativa de adquirir sua pequena propriedade, sujeitassem-se ao árduo
trabalho assalariado. Visto deste ângulo pode-se dizer que o colonato não foi a melhor, mas a única opção que restou
à cafeicultura, diante do bloqueio à via da "colonização sistemática". Nesse sentido específico, pode-se concordar
com Verena Stolcke, no sentido de que era a alternativa mais eficiente naquela conjuntura, isto é, "no ponto". A
hipótese de Verena, embora fundamentada em referências empíricas, tinha referência pontual. Essas observações têm
apenas o objetivo de esclarecer o problema do desvio do projeto de colonização sistemática, tal como formulado por
Wakefield. A discussão específica do problema levantado brilhantemente por Verena Stolcke fugiria aos objetivos
deste trabalho. Para uma visão diferente desta problemática ver OLIVEIRA (1984, capítulo 1) e OHLWEILLER
(S.d.).

107
jurídico foi, em boa parte, colocado à margem do processo, ou subvertido189.
Convertido em ordenador ou legitimador quase-passivo da des-ordem que se
estabelecera: do “fato consumado”. Daí a permanente e persistente alternativa aos
Registros, por suposto, de Direitos Reais sobre a terra, anteriormente constituídos. Daí a
profusa e confusa legislação agro-fundiária brasileira, sempre eivada por casuísmos e
minudências, aparentemente irrelevantes, mas que eram fundamentais a perpetuação da
estrutura fundiária enrijecida. Daí as promulgações e revogações de Leis e decretos
administrativos e simples portarias, que serão uma constante em todo o ordenamento
jurídico-fundiário brasileiro, como está sendo analisado neste estudo. Daí as
permanentes crises institucionais e de “governabilidade” e a impunidade, que se
tornaram cada vez mais freqüentes no país, muito especialmente no período
republicano.
É no contexto deste tipo de análise e interpretação da eficácia legal, que se torna
possível formular a hipótese teórica de que, ainda quando uma determinada lei, ou
conjunto de leis, não tenham sido implementadas, elas efetivamente têm seus efeitos
assegurados ao nível da realidade social, ainda que pela via da negação.
É neste sentido que se faz, neste trabalho, referência às expressões “legitimação
privilegiada” e “propriedades juridicamente questionáveis”. A suposição que subjaz a
estas expressões é de que há uma contradição em termos na política fundiária que nasce
com a Lei 601 e que permeará de forma indelével, todas as políticas ulteriores que
tentaram trazer o ordenamento fundiário brasileiro para o campo da legalidade e do
direito burguês, liberal. O ordenamento jurídico, na prática, acabou por configurar-se
em oposição à própria ordem burguesa, supostamente estabelecida, ou pretendida. Uma
ordem que consagrava - e ainda consagra - formalmente, os princípios da propriedade
privada absoluta (especialmente a fundiária), da isonomia legal ou da igualdade perante
a lei; do respeito ao direito adquirido, ou legalmente assegurado, à coisa julgada, etc.
Entretanto, na prática a maioria destes princípios fora subvertida, acabando por servir
primordialmente para assegurar os privilégios de determinados grupos sociais
fortemente estabelecidos190. É neste sentido que a luta para dar legitimidade, do ponto
de vista jurídico, a propriedade fundiária no Brasil, será o grande desafio da República
nascente, sobretudo após a promulgação da Constituição de 1891, como se analisará em
seguida.

189 Essa referência pode ser esclarecida com os seguintes comentários de Joe Foweraker: “A maior parte dos
litígios sobre a terra não é entre indivíduos, mas entre grandes grupos de interesses econômicos e
setores da administração pública (o Estado e suas várias manifestações burocráticas). Isso acontece não
somente porque são esses os atores que dispõem de recursos para fazer frente às custas dos litígios,
como também porque os julgamentos legais podem ser firmemente vistos como dependendo do
quanto de pressão política possam os diferentes litigantes exercer sobre o sistema legal. Só o
poder político pode garantir o controle legal da terra(...).” (Op. cit., pp. 123-124. Grifos nossos).
190 Um exemplo de subversão da legalidade estabelecida é dado pelo caso da luta pelas terras do Oeste do Paraná,
que envolveu, após a exclusão dos pequenos posseiros da região do Contestado, um acirrado contencioso entre a
União, o Governo do Paraná e as Companhias privadas de ferrovias e colonização, que se prolongou por mais de
cinco década: os privilégios criados nesse tempo foram, enfim, assegurados.

108
2. Legislação e Propriedade Territorial : Legitimação de Privilégios

As crescentes dificuldades enfrentadas pela implementação das medidas


propostas na Lei de Terras, já amplamente discutidas, geraram, ainda no Império,
algumas tentativas de reformulação da legislação de 1850. Objetivamente, segundo José
Murilo de Carvalho, dois projetos, neste sentido, foram encaminhados, entretanto, sem
êxito. Um deles, elaborado na gestão do Ministro da Agricultura de 1878, Sinimbu, foi,
posteriormente, enviado ao Conselho de Estado, em 1880, por iniciativa do ministro
Buarque de Macedo, que o sucedeu, tendo sido neste mesmo ano apresentado à Câmara,
que o aprovou em primeira discussão, sem entretanto, ter continuidade. O outro Projeto
foi apresentado, já nos últimos anos do Império, por Antônio Prado, tendo sido,
igualmente, aprovado pela Câmara em 1886 e enviado ao Senado, onde sofreu solução
de continuidade em face da proclamação da República191.
A primeira medida legislativa da República, no sentido de enfrentar os
problemas herdados do fracasso da política fundiária do Império192, particularmente no
que se referia à legitimação das posses, revalidação de sesmarias e seus respectivos
registros; e, sobretudo, à discriminação, arrecadação e venda das terras devolutas do
Estado, sobre as quais os processos de posse e ocupação aceleraram-se na segunda
metade do século XIX, apesar da proibição expressa na Lei 601, vem sob a forma do
Decreto no 451 B, de 31 de maio de 1890, seis meses após a Proclamação, que
“estabelece o Registro e Transmissão de Imóveis pelo Sistema Torrens.”
Tratava-se, em princípio, como fica evidente pela análise de conteúdo do
referido Decreto, de uma tentativa do Governo, para enfrentar, pela via administrativa,
dos registros, à desorganização fundiária que persistia. Particularmente, visava-se, por
este meio, evitar o avanço das posses sobre terras devolutas, utilizando-se de uma
estratégia fundada na garantia de propriedade, que era oferecida pelo Estado, para as
terras que fossem, efetivamente, registradas neste novo sistema. Este Decreto indicava a
fragilidade e o fracasso das formas de registros anteriores, sobretudo o paroquial, e
representava uma alternativa legal e adminstrativa à substituição do registro de terras
em poder de particulares.
De resto, cabe recordar, após a publicação do Regulamento de 1854, foram
exigidos registros, apenas, das sesmarias por revalidar e das posses por legitimar;
ficando isentadas da necessidade de registro todas as demais terras possuídas por título
legítimo (artigos 22 e 23, do Decreto 1.318/1854). Em sendo assim, pode-se concluir
que o problema a ser enfrentado era, efetivamente, o avanço das posses sobre terras
devolutas; bem como a continuidade, sem regularização nem legitimação, de terras

191 Ver Murilo de Carvalho (op. cit., p. 50).


192 Esta medida legislativa, situada ainda na perspectiva de se enfrentar indiretamente o problema fundiário pela via
dos Registros Públicos, antecede à promulgação da primeira Constituição Republicana, de 1891, que transferirá a
administração da maior parte das terras devolutas, para os Estados da Federação.

109
possuídas desde antes da Lei 601. Quanto as posses constituídas após a Lei 601 eram
efetivamente ilegítimas e ilegais, portanto nulas (artigos 1o e 2o da Lei 601/1850).
Diante desta situação e da persistência das práticas de apossamento ilegítimo de
terras devolutas do Estado, que se agravaram na segunda metade do século XIX,
sobretudo com a valorização das terras e dos sensíveis prejuízos que esta situação
causava à arrecadação, além dos freqüentes conflitos que se vinham agudizando, o
Governo tentará, mais uma vez, enfrentar o problema, ainda que pela via indireta dos
registros. Virtualmente o Estado abandona, ou pelo menos, releva para um plano
absolutamente secundário, a política de discriminação e arrecadação de terras devolutas,
contentado-se com medidas específicas de colonização 193 e da indução aos registros de
terras possuídas, na expectativa de, por essa via, conseguir algum tipo de controle sobre
as terras do Estado.
O que é curioso, neste contexto, e parece merecer melhor atenção, é o fato do
novo sistema de registros apresentar duas peculiaridades relevantes: A primeira é que se
tratava de um registro facultativo, apesar das evidentes vantagens que apresentava aos
detentores de imóveis que optassem por esta forma de registro. A segunda refere-se ao
fato de que o Registro Torrens era instituído de forma paralela e concomitante ao
Registro Imobiliário existente, que passou a ser denominado de “Registro Comum”.
Essa duplicidade de alternativas para registro de imóveis, sobretudo rurais,
poderia dar, e parece ter dado, oportunidade, a verdadeiros processos de expropriação
por via registral. De grilagem especializada. Isso porque, aos imóveis registrados
neste novo sistema eram assegurados plenamente os direitos de propriedade, logo, a
propriedade legalmente reconhecida com prioridade sobre quaisquer outras formas de
direitos reais sobre a terra, (como, por exemplo, as posses mansas e pacíficas),
ressalvadas apenas as hipóteses de fraudes no decorrer do próprio processo de registro
no Sistema Torrens, como será analisado adiante.
Eram admitidas ações judiciais, tanto reivindicatórias quanto contestatórias,
apenas quando tempestivas, sob pena de prescrição. Isto é, quaisquer ações ou oposição
em relação à propriedade do imóvel registrado no Sistema Torrens, deveriam ser
propostas no decorrer do prazo, rigorosamente estabelecido na Lei ou pelo juiz para a
sua propositura. Decorridos os prazos decadencial (do direito) e prescricional (para
propositura das ações) configurava-se a perda de todo e qualquer direito sobre o imóvel.
Tupinambá Nascimento, esclarece a questão do Registro Torrens nos seguintes
termos:
“O sistema Torrens se baseia numa idéia simples. A depuração do título a
registrar deve ser feita antes do registro, oportunizando-se a qualquer
interessado obstaculizar seja o imóvel transcrito em nome de quem o está
pretendendo. Mas essa oportunidade de oposição deve ser executada
dentro de um prazo previsto em lei. A não-oponibilidade tempestiva significa
que aquele que poderia se opor precluiu deste direito, trazendo como

193 Um estudo sistemático e competente sobre as políticas de colonização desenvolvidas pelos Governos brasileiros
desde a década de 1930 até 1984, foi realizado por José Vicente Tavares dos Santos (SANTOS, 1993).

110
conseqüência jurídica o silêncio para todo sempre a respeito desta
oposição. Em outras palavras, ao em vez de se permitir que após o registro,
os interessados fundamentadamente o desfaçam, se obriga que os mesmos
ou, de logo, no prazo que o juiz lhes dá, impugnem fundamentadamente o
registro ou, pelo silêncio, tem-se como renunciado implicitamente o seu
direito de oposição, precluindo para todo sempre qualquer direito de
reclamação.194”

Não se trata, do ponto de vista defendido neste estudo, de se questionar a


instituição do Sistema Torrens no que toca à sua relevância jurídica e administrativa,
menos ainda, de questionar a sua eficácia enquanto um sistema rigoroso de Registro
Público, capaz de contribuir efetivamente para a racionalização dos sistemas de
registros de propriedade, sobretudo rural, cujas imperfeições já foram até certo ponto,
analisadas. O problema reside em outro nível.
Para além das dificuldades experimentadas na implementação dos sistemas de
registros anteriores, - o que pode, em certo sentido, explicar o caráter facultativo do
novo sistema - de fato, a possibilidade de utilizá-lo, não apenas como alternativo, mas
como contraposto à presumíveis direitos assegurados pelas outras formas de registro -
para não se falar no vasto número de posses mansas e pacíficas, sobretudo pequenas,
sem registro algum - poderia erigir, assegurando, direitos novos sobre propriedades ou
posses mais antigas, ou não registradas, ou ainda, que apenas tinham a presunção de
direito assegurada pelas outras formas registrais. Exatamente nesse ponto está a
distinção fundamental que separa o Sistema Torrens, das formas de Registros Públicos
que lhe antecederam. Nos Registros comuns, havia apenas a “presunção do direito”.
Como argumenta Pontes de Miranda,
“presunção é menos que fé pública. Presunção por si só não protege o
terceiro, porque a presunção se elimina, cancelando-se o registro, ou
modificando-se, em virtude de retificação.”195

Ou seja, o registro comum de imóveis não assegura plenamente o direito sobre o


imóvel, posto que pode ser anulado por erro, fraude, etc. Por outro lado, a negligência
ou o desconhecimento do detentor do direito real, em relação às normas jurídicas que
regulam determinados procedimentos de registro, podem ensejar registros viciados ou
de má-fé, sobretudo se consolidados pela decadência dos prazos. Desconhecimento este,
que, legalmente, não pode ser argüido em defesa196 da parte eventualmente lesada.
Esta sempre foi uma grande porta aberta a grilagem especializada, fundada nas brechas
abertas pela lei e que, como se verá nesta pesquisa, aperfeiçoou-se, na medida em que
os problemas fundiários se tornaram mais complexos e as terras mais valorizadas. Essa
modalidade “legal” e especializada de grilagem será cada vez mais desenvolvida com o

194 NASCIMENTO, 1985, p. 104 (Itálicos de Nascimento; negritos nossos).


195 PONTES DE MIRANDA (op. cit., Tomo XI, p. 234).
196 Artigo 3o do Decreto-lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução do Código Civil Brasileiro,
“ninguém se excusa de descumprir a lei, alegando que não a conhece.”(BRASIL. Presidência da
República. Rio de Janeiro: 1942).

111
suporte de verdadeiras assessorias jurídicas, tornando-se, em si mesma, um forte
obstáculo aos processos de regularização fundiária e de reforma agrária.
Nestes casos configurar-se-ia o que aqui se está denominando de
“expropriação197 por via registral” que, como se tentará pôr em evidencia no decorrer
deste estudo, sempre se constituiu em uma porta aberta à grilagem especializada,
promovida, cada vez mais, com apoio e assessoria jurídica qualificada. Essa é uma
hipótese que necessita ser explorada em estudos específicos.
Pelo Decreto 451-B (artigos 46 a 48) era assegurada a possibilidade, de se opor
ações contra os registros, entretanto, em prazos críticos, rigorosamente estabelecidos:
“nunca menor de cinqüenta dias, nem maior que quatro meses, para a
matrícula” (ou seja, para se opor ao registro) “se não houver oposição” (artigo 8o); e
seis meses, para se opor sentença e mandado, ou seja, qualquer outra ação como as
reivindicatórias. Afora esses prazos, apenas caberiam ações de indenização por perdas e
danos e, ainda assim, em face de quem se beneficiou de erros ou fraudes. Nunca contra
o proprietário adquirente, que não poderia ser incomodado em sua posse, como explicita
o Decreto (artigo 20). Afora essas alternativas, só restava a opção à ações indenizatórias
por perdas e danos, como resta claro no artigo 76 do referido decreto:
“Art. 76. Salvo o disposto no artigo antecedente, o indivíduo privado de um
imóvel ou direito real, por erro ou omissão na matrícula ou fraude de terceiro,
pode acionar por indenização o que do erro ou fraude se houver aproveitado.
o
 1 Prescreverá esta ação em cinco anos, a contar da perda da posse e,
para os incapazes, do dia em que cessar a incapacidade.
o
 2 O adquirente ou credor hipotecário de boa fé não podem ser perturbardos
na posse, ainda quando o título do alienante haja sido matriculado
fraudulentamente, ou tenha ocorrido erro na delimitação.” 198

A tentativa de indução ao registro no novo sistema das terras em domínio


privado, pelos presumíveis proprietários, explícita nos diversos artigos do Decreto 451-
B, por suposto, fundados nas vantagens representadas pela ampla garantia de
propriedade, que efetivamente era assegurada, não deixava dúvidas sobre os objetivos
desta Legislação. Em primeiro lugar, disciplinar e regularizar as terras em poder de
particulares, buscando minimizar, dessa forma, e pela via jurídica da garantia do
registro, os conflitos, que se agudizavam, entre grandes fazendeiros e entre estes,
pequenos sitiantes e o Estado. Em segundo lugar, buscava o Governo, pela via indireta

197 Esse é um problema que sempre existiu na luta pela propriedade no Brasil desde o período colonial. Por exemplo,
a resolução de julho de 1822, acerca do pleito de um posseiro que foi atingido pela concessão de sesmaria dá uma
idéia das implicações deste problema. Entretanto, será após a Constituição de 1891 que esse tipo de ação trará
maiores conseqüências. Os caso da CITLA/LUPION, no Paraná, do Grupo Laranjeiras, no Mato Grosso, são apenas
dois exemplos da gravidade dessa problemática. A esse respeito, como comenta Foweraker, “evidentemente o
sistema legal é usado e abusado na prolongada luta pelo controle da terra; e as pressões exercidas sobre
o sistema legal, tanto por capitais privados como por setores do Estado, fazem dele um instrumento
parcial do controle político, ao invés de um instrumento imparcial de justiça.” (op cit., p. 145).
198 Decreto 451-B de 31 de maio de 1890. In.: MEAF (op. cit. Grifos nossos)

112
do registro das terras em domínio privado, proceder à discriminação ou o controle do
acesso às terras públicas, devolutas - por exclusão daquelas.
Dessa forma, e na medida em que os registros fossem implementados, e gerando
as cadeias dominiais, o Estado teria, teoricamente, a possibilidade de, regularizada a
situação fundiária, poder assumir efetivamente o controle do processo de privatização
das terras do seu domínio. Essa segunda alternativa, em especial, foi inócua, como os
resultados da situação das terras devolutas o demonstrou.
O artigo terceiro do Decreto em questão faz referência explícita à vantagem
maior oferecida pelo novo sistema de registro, ou seja, a plena e “irrefragável” garantia
de propriedade do imóvel matriculado. Por outro lado, provavelmente em face das
dificuldades já enfrentadas no âmbito da execução dos registros paroquiais, o seu artigo
primeiro estabelecia como facultativo o registro de terras havidas por transações entre
particulares, ao colocá-lo nos seguintes termos:
o
“Art. 1 Todo imóvel, suceptível de hipoteca e ônus real pode ser inscrito sob o
regime deste decreto.
“As terras públicas, porém, alienadas depois da publicação dele serão sempre
submetidas a esse regime, (sob) pena de nulidade da alienação, sendo o preço
restituído pelo Governo, com dedução de 25%199.”

Como se observou acima, o artigo 3o do Decreto em questão reforça as garantias


do registro ao estabelecer que “todo documento exibido como ato do oficial do
registro e por ele assinado ou por seu ajudante, será recebido como prova
irrefragável” de propriedade, salvo o disposto nos parágrafos 2 o e 3o do artigo 75. Estes
parágrafos referem-se aos atos ilícitos, e que dão ensejo a anulação dos títulos, após
trânsito em julgado, nos termos dos artigos 70 a 73, que se referem, respectivamente: (a)
à fraudes no processo de registro ou transcrições; (b) negligência, “má-fé” ou erro,
cometidos pelos oficiais de registro; (c) falsificação dos atos de registro e, finalmente,
(d) detenção, não autorizada, de título alheio.
Todos esses atos encontram-se classificados no Capítulo das “Penalidades” e
implicam, respectivamente, nas penas de estelionato (art. 70), de multa e indenização
por perdas e danos além das penas previstas no “Código Criminal” (art. 71), falsidade
ideológica (art.72) e penas estabecidas para o crime de furto, para o detentor de título
alheio (art.73).
O rigor, formalmente, estabelecido no Decreto 451-B oferece o sentido da relevância
atribuída, pelo legislador, à necessidade de tornar rígidos os procedimentos de
legitimação da propriedade. Independentemente de se questionar a eficácia ou não, ao
nível da realidade, da aplicação destes preceitos, há que se ter em consideração que este
Decreto abria, efetivamente, a possibilidade para se tentar enfrentar com alguma
possibilidade de êxito, as irregularidades existentes, muito especialmente as fraudes.
Mas, com a mesma veemência, abria as portas a apropriação ou expropriação por via

199 Idem., p. 475.( Grifo nosso).

113
registral e a grilagem especializada, como se referiu acima. Joe Foweraker, refere-se a
esta questão ao analisar o período que se seguiu à promulgação da Constituição de
1891, quando a gestão das terras públicas passam para os Estados. Segundo ele,
“a mudança no controle das terras devolutas favoreceu mais uma vez a
concessão de terras para companhias privadas e para o capital particular. Esta
circunstância, mais que qualquer outra, marcou o início da luta legal pela terra
no Brasil.”200

Cabe lembrar que, desde a promulgação do Decreto em análise, a venda de


terras públicas implicava, necessariamente, seu registro pelo Sistema Torrens, com
todas as garantias citadas. Como era freqüente o Estado alienar terras quase sempre já
ocupadas por posses ou por pequenas propriedades legítimas, estes posseiros e
proprietários, necessariamente tornavam-se passíveis de despejo. É nessa conjuntura
que uma
“(...)legião de advogados ambiciosos, mais o longo desenrolar das disputas
legais que ‘progridem’ sucessivamente através de uma pirâmide de injustiça,
compreendendo os diferentes tribunais, desencorajam e desqualificam (...)
mesmo os indivíduos mais poderosos.”201

Portanto, junto ao rigor deste do Decreto, talvez tivesse sido oportuno o


estabelecimento de salvaguardas legais, que assegurassem, contra a má-fé, e a fraude
especializada, os direitos reais de uma vastidão de propriedades sem registro,
especialmente, de pequenas posses, espalhadas pelo território brasileiro. Ao contrário
disso, e esse fato em si mesmo já mereceria estudos especializados, o Decreto 451-B,
limita-se, rigidamente, a assegurar a propriedade em favor de quem detém o registro,
ainda quando este tenha origem viciada ou mesmo fraudulenta (artigo 76, parágrafo 2o).
E possível contra argüir, qualificando estas observações de meta jurídicas, que,
efetivamente, são. Apesar disto, pode-se dizer que o parágrafo 2o do artigo 76 legitima,
no caso da propriedade fundiária, o furto e a receptação de terras. Como é sabido, o
furto e a receptação de produtos ou coisas de origem ilegal sempre se constituíram em
crimes nos termos dos Códigos Criminal e Penal brasileiros. Portanto, o tratamento
distinto dado a esses delitos quando se referem à propriedade territorial, configura
efetivamente um privilégio e trata-se, nesse sentido, de um assunto que, no mínimo,
mereceria análise especializada.
Por outro lado, ao estabelecer que as alienações de terras públicas teriam,
necessariamente, que sujeitar-se ao registro Torrens, abria esta regulamentação,
igualmente, a perspectiva para se racionalizar e, em certo sentido, tentar por termo, às
fraudes nos negócios com as terras do Estado202 , pelo menos pelas vias administrativa
ou judiciária. Quer dizer, a partir desse momento, as fraudes eventual ou efetivamente

200 FOWERAKER, op. cit., 123.


201 Id. Ibidem.
202 Convém lembrar que este Decreto é anterior à Constituição de 1891, que transferiu para os Estados a
competência sobre as terras devolutas em seus territórios, o que, certamente, iria dificultar a gestão das terras
públicas, como se verá adiante.

114
cometidas, assim como as irregularidades, colocavam-se à margem da lei. Tornando,
portanto, nulas, as alienações de terras devolutas que não fossem registradas no novo
sistema, inclusive, prevendo o retorno das terras ao Estado mediante restituição de
apenas 75% do valor recebido, ao adquirente infrator (art.1o, Decreto 451-B).
Entretanto, ao que tudo indica, este artigo foi efetivamente negligenciado. Não há
notícias de nenhuma devolução de terras ao Estado com a dedução de 25% prevista
naquele artigo. Aqui, como se vê, mais uma vez se configura o direito do privilégio,
neste caso, pelo não cumprimento das exigências estabelecidas formalmente203 .
Quanto ao registro das terras em domínio privado, haviam as exigência
explicitadas nos artigos 7o a 9o referentes à instalação do processo de Registro:
o
“Art. 7 O requerimento virá instruído com os títulos de propriedade, e
quaisquer atos que a modifiquem, ou limitem, um memorial indicativo de todos
os seus encargos, no qual se designarão os nomes e residências dos
interessados, ocupantes e confrontantes, e, sendo rural o imóvel, a planta
dele.”

Assim, pode-se supor, tornava-se problemático e, no limite, profundamente


dificultado, o registro fraudulento ou viciado, por exemplo, de terras sobre as quais não
se dispusessem de alguma documentação. O que não quer dizer que houvesse a garantia
efetiva de que tais fraudes e delitos não ocorreriam, ou que não tenham ocorrido. Esta
hipótese, aliás, é presumida no texto do próprio Decreto, a julgar pelas penalidades
previstas e caracterizadas nos artigos 70 a 73 indicados acima. O maior problema,
entretanto, continuava a persistir na rigidez dos prazos prescricionais e decadenciais,
que poderiam ser, com a ajuda e habilidade de advogados e conivência de Oficiais de
Registros, utilizados para legitimar situações duvidosas e mesmo fraudulentas.
Entretanto, como será visto adiante, não houve como impedir, após a Constituição de
1891, que vários Estados alienassem terras, supostamente do seu domínio, e
fornecessem os respectivos registros, sem contudo, respeitarem sequer os próprios da
União, menos ainda as posses (legítimas ou legitimáveis) efetivamente existentes nas
áreas que privatizavam, evidentemente, de forma ilegítima, posto que, neste caso se
tratavam de terras que não pertenciam ao patrimônio estadual. Entretanto, isto não
impediu a expulsão e, muitas vezes, como no Paraná, Pará e Mato Grosso, para ficar só
nesses casos, a violência direta e o massacre de indígenas, pequenos proprietários e
posseiros que secularmente viviam nas áreas.
No que toca ao formalismo exigido para a instalação do processo de registro,
que, de resto, gerava o pleno direito sobre o imóvel, e sobre o qual, inclusive, era
assegurado que “nenhuma ação reivindicatória será recebida contra o proprietário
do imóvel matriculado” (artigo 75) sendo:

203 No imaginário popular brasileiro há inclusive, uma expressão que traduz exatamente essa modalidade de
privilégio: “Aos amigos tudo. Aos inimigos a lei” ou “aos amigos tudo, aos inimigos o rigor da lei”; e uma outra, que
traduz a dimensão mais complexa desse fenômeno, que diz: “manda que pode, obedece quem tem juízo”. Neste
último caso ficando claramente expresso o fato do poder direto de vigiar e punir.

115
“a exibição judicial do título ou outro ato de registro, (...) obstáculo absoluto a
qualquer litígio contra o conteúdo de tais documentos e contra a pessoa nele
o
designada.” (artigo 75;  1 ).

Ressalvados os casos de fraudes e erros de registro, já mencionados, pode-se


afirmar que se tratava de um instrumento efetivo, no sentido de possibilitar a
constituição do direito de propriedade e, em certo sentido, a contenção de determinados
abusos na área de legitimação da propriedade, especialmente rural.
Tratava-se de um formalismo, em tese, rigoroso. Neste sentido, portanto, apenas
podendo ser burlado por ato deliberado de fraude, logo, por dolo. Apesar disto, era
admitido o ato culposo, “involuntário” do oficial de registro ou de seus prepostos,
especialmente argüidos pelos advogados de defesa de possíveis fraudadores e falsários.
Por outro lado, como as questões judiciais, especialmente os contenciosos, são
dispendiosos, profundamente morosos e de resultados imprevisíveis, havia,
especialmente para aqueles que conheciam os meandros do Judiciário e da burocracia
Pública, a presunção de que dificilmente tais ações seriam propostas, especialmente
quando se tratassem de pequenos proprietários e, sobretudo de indígenas e posseiros.
Estes, aliás, uma vez despejados ou expulsos de suas posses, jamais teriam como fazer
prova delas em juízo. Tudo conspirava, portanto, contra a massa dos pobres do campo.
Feitas essas ressalvas, há que se admitir que o Registro Torrens se configurava
em um instrumento bastante atraente, e certamente eficaz, para aqueles que
efetivamente possuíssem terras legítimas ou passíveis de legitimação. Entretanto, isto
não excluía a má-fé de outros. É neste contexto que os prazos prescricionais e
decadenciais funcionam como uma faca de dois gumes. Poderiam ser, da mesma forma,
utilizados por pretendentes de má-fé, especuladores e grileiros especializados, que, de
posse do conhecimento das alternativas jurídicas e dos prazos legais, associados ao
conhecimento da existência de terras devolutas ou ainda não registradas, ou fragilmente
asseguradas por registros, como o paroquial, para se apressarem em requerer a matrícula
de imóveis, sob o novo Sistema e, por esse meio obter a propriedade da terra. Neste
caso, decorridos os prazos legais e não havendo contestação, assegurariam em seu
benefício o direito sobre a propriedade.
Essa era a outra alternativa assegurada pelo Decreto 465-B. Esse fenômeno foi
muito comum na aquisição de terras devolutas aos Estados. O pretendente ou requeria
ou candidatava-se a aquisição da suposta terra devoluta, aos órgãos próprios dos
Estados e, feita a compra, e não havendo oposição, recebiam os títulos e imitiam-se na
posse. Sucede que os Estados raramente cumpriam as exigências legais de verificar se
se tratavam, de fato, de terras devolutas, isto é, livres204 . Sempre existiram posseiros
ou indígenas na maioria dessas áreas que, por desconhecerem os procedimentos que
estavam sendo adotados, eram surpreendidos pelo “proprietário” das terras que
ocupavam, já munidos dos respectivos títulos “legítimos”.

204 A este respeito ver o capítulo 4, adiante.

116
Tendo-se em consideração que muitos pequenos posseiros e até proprietários,
espalhados pelos vastos interiores do país, não detinham o domínio desse tipo de
conhecimento, posto que, nem sequer de outros recursos dispunham, muitos deles nem
mesmo possuindo o seu próprio Registro Civil, - e portanto, muito menos o de suas
posses ou propriedades205 - pode-se deduzir as implicações que essa alternativa abria à
especulação imobiliária e a grilagem especializada, fundada na expropriação por via
dos registros. Este seria o lado problemático do Registro 4Torrens, amplamente
agravado pelas “vendas” de terras devolutas realizadas pelos Estados da Federação após
a Constituição de 1891.
Além disso, há que se ter em consideração, que a burocracia e o formalismo
jurídico exigidos para a instalação dos procedimentos de registro e, sobretudo, as
dificuldades postas para a proposição de ações contra imóveis registrados de forma
viciada, de fato, excluíam a maioria da população, sobretudo os pequenos posseiros e
proprietários. Além, é claro, da ameaça direta e nem sempre discreta dos latifundiários
sobre a multidão de pequenos posseiros e indígenas.
Em suma, mesmo admitindo que, formalmente, o Decreto 451-B tenha sido
baixado pelo Governo Federal para tornar legalmente possível o combate às freqüentes
e já conhecidas fraudes e irregularidades no processo de regularização fundiária, tem-se,
necessariamente que se admitir a hipótese de que o mesmo tenha sido utilizado, (e os
fatos parecem indicar, com suficiência, que efetivamente o foi) por outro lado, ao nível
concreto, e dadas as limitações e dificuldades impostas, sobretudo aos pequenos
posseiros, mas não apenas a estes, pelos motivos já apontados, para dar ensejo a
verdadeiros processos de expropriação206 e grilagem especializada de terras.

3. Constituição de 1891: União, Estados e Legitimação da Propriedade


A Proclamação da República trouxe uma profunda transformação na gestão da
política fundiária do Brasil. Com a promulgação da primeira Constituição Republicana,
em 1891, e consagrado o Sistema Federativo, cinde-se a autonomia política e
administrativa sobre a implementação da política de terras devolutas, entre União e
Estados. Cinde-se, também, o processo legislativo sobre o acesso à propriedade
territorial rural no país.
Para além de qualquer inferência de cunho puramente abstrato a respeito dessa
opção política, o fato é que ela vinha de encontro a antigos anseios das oligarquias

205 Referem-se aqui ao fato comum no meio rural, sobretudo, de que muitas vezes as transações com pequenos lotes
de terra eram feitas com base em instrumentos particulares, muitos deles sequer sendo registrados. Ver a respeito das
condições de registro de terra no Brasil, Nascimento (op. cit., pp.95-107), Octávio Ianni, Ditadura e Agricultura.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira (1979(a)).
206 Como será estudado nos próximos capítulos, essa modalidade de expropriação de pequenos posseiros, no qual o
suposto proprietário já aparece diante deles munido do respectivo título de propriedade, tornou-se uma prática cada
vez mais comum de grileiros especializados na medida em que as terras se valorizavam e o desenvolvimento
econômico passava a incluir novas terras ao circuito produtivo, especialmente com o avanço das ferrovias, em finais
do século XIX e, a partir dos anos de 1950, das rodovias. No período do regime militar, esse fenômeno foi
amplamente denunciado e documentado, como será demonstrado nos próximos capítulos.

117
regionais, de consolidação e fortalecimento do poder ao nível local. Segundo a maioria
dos estudiosos desta problemática, como será visto neste capítulo, este fato significava
transferir formal e efetivamente para os Estados e, por essa via, para o controle das
oligarquias locais fortemente arraigadas nestes, o poder de decisão sobre os problemas
regionais, particularmente no que se referia ao controle do acesso da propriedade
territorial.
Na história política do Brasil, desde o período de consolidação da
Independência, como foi visto no capítulo anterior, sempre que pairava alguma ameaça
a desestabilizar o poder central, as oligarquias locais tentavam de forma veemente
ampliar seus poderes ou conquistar novos espaços. Tal aconteceu após a abdicação de
Pedro I, assumindo maior radicalidade no período regencial, e tal volta a acontecer,
embora em uma conjuntura profundamente distinta, com a queda da Monarquia. Se no
período regencial foi possível a reação centralizadora com o Golpe da Maioridade e a
consolidação do II Reinado, tal não ocorrerá com a Proclamação da República, na qual
as oligarquias, fortalecidas com a importância da cafeicultura na balança exportadora,
impõem o seu projeto, que apenas será ameaçado seriamente, com a Revolução de 1930
e, ainda assim, resultando numa solução de compromisso, pela qual as oligarquias
passam a dividir a hegemonia no bloco do poder, sobretudo ao nível federal, mas
mantém virtualmente intocados os seus privilégios aos níveis locais e regionais,
sobretudo no que se referia ao controle quase absoluto das políticas de terra e agrícola.
A alternativa federativa, nesse sentido, representou uma vitória das oligarquias
locais que, sempre que se instalava qualquer crise no bloco de poder, especialmente, ao
nível central, aproveitavam-se para reforçar a sua autonomia política, sobretudo no que
se referia aos processos de administração e controle das terras devolutas e do acesso
privilegiado às finanças do Estado.
Foi assim na crise da transição para a Independência, quando o poder
oligárquico local foi fortemente consolidado, atingindo seu ápice político no período
regencial. A reação centralizadora, com o chamado Golpe da Maioridade, que
representou o enfraquecimento, embora provisório, das oligarquias locais em relação ao
poder central, trouxe no seu bojo, como se viu no capítulo anterior, a tentativa de se
promover o processo de regulação institucional do acesso à terra, com a promulgação da
Lei 601. Por outro lado, a resistência imposta ao nível da implementação desta Lei, na
verdade, dava a indicação segura de que o poder e a influência daquelas oligarquias,
entretanto, permaneciam amplamente arraigados.
A crise que levou ao fim do Império, até certo ponto, representou uma dimensão
relevante da resistência das oligarquias contra a centralização do poder207. É nesse
contexto que a opção pela Federação correspondeu, de fato, aos interesses fundamentais
das oligarquias rurais, especialmente as que se achavam vinculadas à cafeicultura,

207 Este argumento é defendido pela maioria dos estudiosos: Veja-se, em particular, Raymundo Faoro, Joe
Foweraker, Westphalen, Octávio Ianni, Fábio Alves, Caio Prado Júnior, José de Souza Martins, Otto Ohlweiler, todos
já citados neste estudo.

118
sobretudo paulista e mineira, que já então, se estruturara de forma amplamente
sustentada pela mão-de-obra livre, embora ainda sob a forma do colonato, mas
amplamente assentada nos mecanismos de “eficiência econômica” típicos do
capitalismo. O processo de produção e organização do trabalho, nestas fazendas,
consolidaram suas vantagens comparativas em relação à cafeicultura escravista do Vale
do Paraíba, beneficiária ainda, das políticas econômicas implementadas pelos Gabinetes
do Império, e que sofrerá o golpe final com a Abolição em 1888; um ano antes da
desagregação da Monarquia e da entrada do País na fase republicana.
É nessa conjuntura que as teses republicana e federativa realmente vinham de
encontro às reivindicações dos fazendeiros, sobretudo os cafeicultores paulistas e
mineiros. É nesse sentido, por exemplo, que Raymundo Faoro desenvolve sua análise a
respeito da adesão à estas teses, pelos fazendeiros de café, especialmente de São Paulo e
Minas Gerais:
“As mudanças da estrutura interna da fazenda, mais empresa do
que baronia, com a necessidade de ordenar racionalmente os
cálculos econômicos, reivindica autonomia regional, próxima aos
latifundiários. A fórmula federalista servirá à nova realidade em
todos seus termos, aproximando as decisões políticas do
complexo econômico. Por essa via as idéias republicanas
entram nas fazendas - nas fazendas não essencialmente
escravistas - com impacto inquietador.”208
No mesmo sentido vão os argumentos de Joe Foweraker209, ao comentar,
fundamentando-se no trabalho de Westphalen210, que
“com o final do Império, pela Constituição de 1891, a propriedade
legal e o controle político das terras devolutas passaram aos
estados e, daí para as oligarquias locais e proprietários de
terras.”211
Para Ohlweiler a Proclamação da República e a opção pelo federalismo tinham o
mesmo sentido apontado pelos autores citados:
“A república federativa contemplava os interesses gerais do setor
agroexportador: o imposto sobre as exportações favorece as
unidades mais ricas; o imposto sobre importações, que afeta o
custo de vida do conjunto, destina-se a União; as terras públicas
ficam sob a responsabilidade dos Estados assim permitindo
que as oligarquias regionais controlem sua distribuição; e,
por fim, o princípio de intervenção federal nos Estados, pode ser
usado para fins da política do governo central ditada pelas
oligarquias regionais 0mais poderosas.”212

208 FAORO (op. cit. , p. 456. Grifos nossos).


209 Op. cit.
210 WESTPHALEN (1968).
211 FOWERAKER, (op. cit., p. 123)
212 OHLWEILER (S. d., p. 102. Grifos nossos).

119
A Constituição de 1891 como foi registrado acima, transferiu para os Estados da
Federação a autonomia política, legislativa e administrativa sobre
“as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos
territórios, cabendo a União apenas a porção de território que for
indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações,
construções militares e estradas de ferro federais.”213
Desta forma, passaram para a jurisdição dos Estados, não apenas as terras do
domínio público, mas, o que é ainda mais relevante, o poder de legislar sobre a sua
concessão, discriminação e legitimação das que fossem possuídas214. À União restou
apenas as terras devolutas situadas numa estrita faixa de fronteira com países
estrangeiros (66 quilômetros) e a pequena faixa costeira - os chamados terrenos de
marinha - uma faixa de 33 metros, sujeita às influências das marés. Pode-se dizer,
portanto, que neste contexto, a União se retira da questão fundiária, limitando-se apenas
à gestão da restrita parcela de terras devolutas incursas no seu patrimônio, deixando
para os Estados o poder, assegurado, aliás, pela sua autonomia constitucional, para
administrar todas as terras dos seus domínios.
Portanto, ao serem transferidas para os Estados a propriedade e a competência
legislativa sobre a maioria das terras devolutas, pelo fato de se situarem em seus
respectivos territórios, quase nada restou à União para administrar. Este fato significa,
efetivamente, que os problemas de legitimação de posses e de alienação de terras
públicas, antes mesmo de serem enfrentados de forma efetiva pelo poder Central, foram
colocados sob o arbítrio dos Estados e, como se observou acima, das oligarquias locais.
Exatamente as mesmas oligarquias que, desde a promulgação da Lei 601, vinham
impondo um conjunto de restrições e dificuldades, muito particularmente em relação à
implementação das medidas relativas à legitimação e registro das terras havidas por
particulares e à discriminação das terras devolutas215. Nesse contexto, como observa
Foweraker ao estudar o caso do Paraná, poderiam os governos estaduais administrar as
terras com tanto maior
“impunidade, quanto mais conseguisse o seu próprio sistema
legal criar uma autoridade legal separada, sendo os sistemas

213 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891. Artigo 64 (In.: MEAF, op. cit., p.477. Grifo
nosso).
214 Ressalvados apenas os processos de ação discriminatória que continuavam privativos à alçada da União.
215 Essas terras que como já se explicitou nesse trabalho englobavam a totalidade das terras que pertencem ao
domínio público e que não se encontravam afetas a alguma utilização pública, eram “terras que nunca deixaram
de pertencer ao domínio público, ou que, tendo sido transpassadas a particulares, retornaram ao Poder
Público por não terem seus donatários cumprido com suas obrigações” (BASTOS, 1990, p. 265). Tais terras
até a Proclamação da República pertenciam ao patrimônio da Nação, tendo sido, pela Constituição de 1891
transferidas para o domínio dos Estados da Federação (art. 64 da Constituição de 1891) que passaram a administrá-
las. Essa situação irá gerar conflitos importantes sobre a autonomia e a competência para a gestão dessas terras,
sobretudo entre a União e os Estados e, muitas vezes, entre diferentes Estados da Federação. Nesse contexto, que
Foweraker (op. cit.) caracteriza de “autoridade dual”, os conflitos reais e legais sobre a propriedade da terra
agudizam-se, beneficiando-se dele, sobretudo, os grupos mais poderosos de especuladores imobiliários e as
“companhias colonizadoras”. Mas persistirá o problema da legitimidade dos títulos de propriedade, questão esta cujo
contencioso geralmente envolve dissídios entre os Estados e a União, e que apenas poderão ser dirimidos pela via
judicial.

120
estaduais apenas frouxamente articulados ao Federal, numa
subordinação ambivalente.”216
Cabe registrar, por outro lado, que a Constituição Republicana de 1891
assegurava plenamente o direito de propriedade nos mesmos termos da Constituição de
1824, ao admitir no artigo 72, parágrafo 17, a possibilidade de “desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia”, e neste sentido
representava, de fato, um retrocesso em relação a Carta Régia de 1375 e à Lei 601 de
1850, que condicionavam a propriedade territorial rural à sua exploração efetiva, sob
pena de cair em comisso.
Os preceitos das duas Constituições, a de 1824 e a de 1891, neste sentido são
simétricos217: referem-se a obrigação, por parte dos proprietários privados, e sob a
condição da prévia indenização, de permitirem obras públicas, como servidões, abertura
de ruas, estradas, construção de prédios e obras públicas, etc. Não se referiam a
subutilização ou a não exploração da terra. O que é profundamente diferente de
expropriação pelo não cumprimento da função social, seja da concessão, como no caso
do instituto de sesmarias (pelo qual as terras eram concedidas para serem exploradas),
seja no caso da Lei 601 e de outras Constituições Republicanas, a partir da de 1934, que
formalmente estabelecem a figura da desapropriação por interesse social ou utilidade
pública. Ainda assim, na Constituição de 1934 esse preceito é formulado de forma
negativa:
“Art. 113. A Constituição assegura a todos os brasileiros e a
estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos
concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual
e à propriedade nos termos seguintes:
(...)
17. É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser
exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a
lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade
pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa
indenização218...”
Convém registrar, entretanto, que não havia no horizonte desse preceito
constitucional nenhuma intencionalidade no sentido de algum tipo de
reordenamento da distribuição da propriedade rural e, menos ainda, de reforma agrária,
tal como se entende atualmente, mas, como sempre foi da tradição jurídica portuguesa,
no sentido de possibilitar o desenvolvimento de servidões públicas, obras de infra-
estrutura e urbanismo, como construção de praças, cemitérios, prédios públicos,

216 Op. cit., p. 124. Grifos nossos.


217 Observe-se que com a revogação das cláusulas resolutivas do instituto sesmarial pela Constituição Imperial de
1824, aliada à garantia da propriedade privada plena da terra, assegurada naquela Constituição, criam-se as condições
jurídicas fundamentais que asseguraram o império das posses, no qual, durante 28 anos, o latifúndio expande-se e
firma-se em todo o país para nunca mais ceder. Neste sentido, a omissão da exigência de exploração da terra, na
Constituição de 1891, da mesma forma abre amplas possibilidades para a constituição e avanço do latifúndio no país.
218 Artigo 113 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934. In.: MEAF, op.
cit., p. 502. Grifos nossos).

121
estradas, etc. Ou seja, não se pode assimilar esse preceito ao da “função social da
propriedade” ou similares. Geralmente as medidas que poderiam ser, em certo sentido,
interpretadas como obrigando os proprietários a explorarem efetivamente suas
concessões, como se viu nos capítulos 1 e 2 deste trabalho, eram grafados em leis
específicas, de caráter infra constitucional. O sentido atualmente atribuído à função
social da propriedade aparecerá claramente na Constituição de 1934 (artigo 113; 17).
A referência à desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por
interesse social, como se verá no decorrer da análise do período republicano, aparecerá
em todos os textos constitucionais. Entretanto, as formas e condições para execução dos
procedimentos de desapropriação variará no decorrer do tempo, indo desde a referência
ampla, como no caso da Constituição de 1891 à “prévia e justa indenização”, sem fazer
referência à sua forma de pagamento, até a especificação da exigência da indenização
prévia e em dinheiro, como no caso da Constituição de 1946219. É evidente que
dependendo da forma como tenha sido definido o pagamento da indenização, o processo
de desapropriação para fins de interesse social poderá ser facilitado ou até impedido.
Esse problema será analisado no momento oportuno no decorrer deste trabalho.
Entretanto, há uma dimensão fundamental que antecede ao problema da
desapropriação e que, portanto, é mister que seja colocado de imediato. Trata-se do fato
de que só há a possibilidade de desapropriar terras que tenham sido, ou sejam, objeto de
propriedade privada anterior e legítima. Falar em desapropriação220 é admitir, “a
priori”, a existência legal da propriedade privada sobre a terra. Exatamente nesse ponto
residem os problemas que aqui se estão analisando.
A titulação das propriedades rurais no Brasil, como se vem tentando demonstrar
neste trabalho e como se pretende deixar evidenciado ao final do mesmo, é,
juridicamente, questionável221. Dificilmente os títulos de propriedade resistem a uma
análise jurídica mais objetiva222.
E, como no Brasil não existe “res nullis”, isto é, terras sem dono, adéspotas,
como já se analisou em outra parte deste trabalho, as terras ou são de domínio privado, e

219 Este problema, de grande relevância, é nesse momento apenas levantado, posto que será objeto de análise
detalhada quando do estudo da Política Fundiária do regime militar, no qual o mesmo aparece de forma mais efetiva.
Entretanto, vale a pena antecipar a respeito as seguintes observações de José Gomes da Silva: “De 25 de março de
o
1824, quando foi promulgada a Constituição Política do Império, até a Emenda Constitucional n 27 de 28
de novembro de 1985, quando foi feita a última modificação na Carta Magna, é possível registrar algumas
tendências muito claras no perfil do tratamento constitucional da questão agrária. (...) Enquanto na
Constituição de 1824 ‘a propriedade era garantida em toda a sua plenitude’ (art. 179, parágrafo 22), na de
1969 é imposto um condicionamento social, depois de ter passado pelos estádios intermediários que
admitiam apenas restrições em função da necessidade e utilidade pública (art. 153, parágrafo 22).Essa
evolução reflete-se no instituto de Desapropriação por Interesse Social para Fins de Reforma Agrária e na
forma de pagamento das desapropriações”. (In.: Reforma Agrária. ABRA, novembro/88, pp.14 -15). Esse
problema será objeto de análise no capítulo 4.
220 Segundo Bandeira de Mello, a “desapropriação consiste, do ponto de vista teórico, no procedimento
administrativo através do qual o Poder Público compulsória e unilateralmente que despoja alguém de uma
propriedade e a adquire para si, mediante indenização, fundado em um interesse público.”(BANDEIRA
DE MELLO, 1996, p. 504).
221 Ver os capítulos 4 e 5, onde esta questão é amplamente estudada.
222 Ver a esse respeito o depoimento do Sr. Oldair Zanata à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a política de
incentivo fiscal na Amazônia (In.: INCRA, 1980).

122
para isso é condição “sine qua non” a exibição do título legal de propriedade, ou das
condições efetivas que caracterizam as posses legitimáveis; ou são terras devolutas,
portanto, públicas. Quanto a estas últimas, como é evidente, não cabe desapropriação:
elas são, por definição, propriedades públicas, terras do Estado. E o Estado não pode
desapropriar-se a si mesmo. E menos ainda, auto-indenizar-se ou indenizar a terceiros
por terem invadido suas terras.
No caso das terras devolutas se encontrarem em posse de terceiros, caberia, por
princípio, conforme a Lei 601 de 1850 - princípio este mantido pelas legislações
ulteriores - o despejo sem direito algum, nem mesmo a benfeitorias, e “pena de dois a
seis meses de prisão” e multa, além da satisfação de danos causados, como já
observado. Até porque é vedado o usucapião em terras públicas.
Entretanto, ao nível da realidade objetiva, e também legal, sempre foi admitida a
hipótese de que, estando terras, devolutas ou não, em posse de particulares, que nelas
residissem e as tornassem produtivas com o seu trabalho e de sua família, por
determinado período de tempo e sem oposição, havia a possibilidade legítima, do
Estado vir a legalizá-las, pela venda ou por sentença declaratória.
Na Constituição de 1934, o art. 125, repetido pelo art. 148 da Constituição de
1937, assegurava o domínio de até 10 hectares a todo brasileiro, que não sendo
proprietário ocupasse por 10 anos contínuos um trecho de terra, sem oposição,
tornando-o produtivo, o que seria legitimado por sentença declaratória. Na Constituição
de 1946, esse preceito é modificado pelo artigo 156, que no  1 o abre a perspectiva de
se assegurar aos “posseiros de terras devolutas, que nelas tenham morada
habitual, preferência para aquisição de até 25 hectares”; e no  3o do mesmo
artigo, amplia a área (referida nos artigos 125 da Constituição de 1934 e 148 da de
1937), para 25 hectares, mantendo iguais as demais exigências de moradia e exploração
efetiva e de não possuir propriedade rural nem urbana.
Assegurando a preferência para esses posseiros, no caso de vendas de terras
devolutas, ou lhes reconhecendo a propriedade, pela via de sentenças declaratórias,
sempre que se referissem à posses efetivamente exploradas. Entretanto, transformar esta
possibilidade constitucional em pretexto para legalização de imensas áreas, como vem
sistematicamente ocorrendo no país, não encontra nenhuma justificativa ou respaldo na
legislação.
Tratam-se, portanto, nestes casos, de apropriações e, se registradas, de
legitimações, privilegiadas. Mesmo quando esses processos possam estar ou tenham
sido mascarados por leilões ou “licitações” para “alienação”, pelo Estado, a preço
vil223. Nesses casos o que efetivamente existe é um simulacro de compra, através do
qual, busca-se oferecer legitimidade e substância, pelo aparente cumprimento do
formalismo da venda exigido pela legislação. Pode-se afirmar que nesses casos, aliás

223 Situações estas que serão analisadas nos capítulos 4 e 5 e que caracterizam situações de “grilagem
especializada”.

123
como alguns depoimentos à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário
deixará claro, de um mero simulacro de compra e venda de terras devolutas: o Estado
“finge” que vende (só que efetivamente vende); e o adquirente privilegiado “finge” que
compra, (só que, efetivamente, compra). O processo em si é que é completamente
viezado, fundado no privilégio. Na melhor das hipóteses, fundados na utilização de
informação privilegiada.
Bastam essas observações, neste momento, para levantar este problema que será
detalhadamente analisado no próximo capítulo, que se ocupa do período do Regime
Militar, quando o mesmo ganhou maior intensidade e relevância. A introdução desta
problemática é importante para a sua localização no âmbito desse estudo e até porque
esse artifício da “compra a preço vil”, ao Estado, sempre esteve presente no período
Republicano, agravando-se à medida em que a expansão da produção agrícola e,
sobretudo, das redes de comunicação e transportes, começaram a facilitar a
incorporação de novas áreas à economia agrícola nacional e, portanto a despertar o
interesse e a cobiça, em face da valorização das terras. Esse fenômeno, que tem início
com a expansão das ferrovias, ainda no Império, adquirirá grande impulso durante todo
o período republicano Torna-se especialmente grave na segunda metade deste século,
trazendo no seu bojo um conjunto complexo de problemas fundiários e de conflitos,
quase sempre violentos, pela posse da terra.
Nesse contexto cabe questionar-se o direito de propriedade, ou seja, a
legitimidade da ocupação ou a legalidade dos títulos de propriedade. Dirimir essa
dúvida tem sido desde sempre o problema primordial, senão fundamental, a ser
enfrentado para que se possa assegurar o acesso democrático e produtivo à terra no
Brasil.
Veja-se que distribuir terras é diferente de redistribuir a propriedade.
Redistribuir a propriedade supõe a existência de uma distribuição anterior da mesma,
quando na verdade o que houve, pelo menos em relação à maioria das terras do Brasil,
foi uma apropriação privilegiada e, muitas vezes, ou geralmente, em oposição à
legislação vigente; ou seja, contra o consentimento formal do Estado.
No primeiro caso, distribuir a terra, significa assegurar o acesso à terra que, no
Brasil, é originalmente pública, ainda que pela via da compra ao Estado. No segundo
caso, acrescente-se, ao se falar de desapropriação, fica pressuposto o reconhecimento
dos privilégios construídos pela apropriação anterior (geralmente fundada em simples
processos de posse ilegítima de grandes áreas) inclusive, motivando a sua recompensa
destes atos com indenizações, não importa a forma de pagamento. Falar em
desapropriação, sem se questionar a legitimidade da propriedade e o processo de sua
constituição, no Brasil, é, além do exposto, oferecer argumentos em defesa do
latifúndio. Oferecer subsídios para as defesas ideológicas da propriedade, sob alegação
de que, com a reforma agrária, se pretende atentar contra a propriedade privada
(legítima?), quando de fato, o que a história fundiária brasileira tem evidenciado é que

124
houve (e continua havendo) um sistemático atentado ao patrimônio público das terras
devolutas do país.
Portanto, no caso brasileiro, qualquer iniciativa de “reorganização” fundiária, ou
qualquer medida de reforma agrária, necessariamente tem que transitar pela verificação
da legalidade dos títulos de propriedade em poder de particulares, especialmente nas
áreas de reforma agrária224.
A relevância desse fato parece óbvia: se as terras em domínio privado não
estiverem fundadas em títulos legítimos, não cabem processos de desapropriação e,
menos ainda, qualquer indenização por parte do Poder Público, independentemente de
cumprir ou não a função social. Posto que, não sendo propriedade legítimas, não há,
sequer, porque se argüir da sua função social. No limite, esse procedimento legal
poderia representar uma redução significativa dos gastos públicos com desapropriações.
Poderia, por outro lado, facilitar a ação do Estado no sentido de assumir o controle
sobre as terras devolutas, sobre as quais, como se vem analisando neste trabalho, desde
1850, quando tal processo foi legalmente instituído, jamais o Estado brasileiro teve
efetivas condições de exercer.
Quanto as propriedades legítimas, que estejam fundadas em títulos legítimos, - e
tudo indica que são muito poucas - caberiam as desapropriações, conforme previstas nos
textos constitucionais ou estabelecidas pela legislação pertinente, ou seja, com base nos
princípios do cumprimento de sua função social. A verificação da consistência ou
inconsistência legal dos títulos, supondo-se o efetivo combate à fraude e a participação
efetiva de organizações civis especializadas, além do Judiciário e instituições públicas
específicas, poderia efetivamente ser realizada. A morosidade na decisão judicial ou
mesmo administrativa a respeito deste problema, que sempre foi uma constante em toda
a história do país desde os tempos do instituto de sesmarias, apenas vem reforçar a
hipótese de que o processo de registro e titulação, ou seja, da legitimação da
propriedade rural no Brasil é efetivamente, fundado no privilégio.
Entretanto, exatamente a possibilidade de controle efetivo sobre a alienação das
terras públicas é que, ao ser passada para a alçada dos Estados, pela Constituição de
1891, tornou-se profundamente problemática.
Como se registrou no capítulo anterior, até os últimos anos do Império, a
maioria das sesmarias por revalidar e das posses por legitimar não haviam sido
efetivamente registradas, além de ter-se agravado a prática do avanço das posses sobre
as terras devolutas existentes. Como registra José Murilo de Carvalho, em 1886, três
anos antes da Proclamação da República, o Relatório do Ministro da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas informava que, naquele ano, “grande número de
sesmarias e posses permaneciam sem revalidar e sem legitimar, e as terras

224 O que não impede que, paralelamente, se implementem os processos de desapropriação para fins de reforma
agrária, dentro de uma política específica nesses termos, e quando a desapropriação couber, ou seja, quando se
tratarem de áreas legitimamente de domínio particular; o “ônus da prova” cabendo sempre ao suposto proprietário,
como aliás determina a legislação em vigor. Porque a referência básica é a de que as terras brasileiras são,
originalmente, públicas.

125
públicas continuavam a ser invadidas.225” Assim, permaneciam, nos primeiros anos
da República, os problemas da desorganização e ilegitimidade fundiárias, por um lado; e
do apossamento de terras públicas, por outro, a essa altura de forma efetivamente ilegal,
posto que explicitamente proibida pela Lei 601 de 1850, então em vigor. Esta era a
situação encontrada à época da promulgação da Constituição de 1891, que transferiu a
gestão das terras devolutas para o âmbito da Administração Estados.
Ou seja, a situação da legitimidade da propriedade, sobretudo no que se referia à
titulação de terras, no final do Império, era absolutamente inconsistente do ponto de
vista da legalidade e do direito. Foi diante desse contexto e nesta conjuntura, que o
primeiro Governo Republicano, seis meses após a Proclamação da República, como
analisado acima, editou o Decreto 451-B, instituindo o Registro Torrens. Entretanto,
como se viu, este registro era obrigatório apenas para os processos de alienação de
terras públicas, permanecendo facultativo para as transações entre particulares.
Agrava-se, por outro lado, o problema da legitimação das propriedades rurais e,
mais do que isso, do próprio acesso às terras devolutas, com a transferência da
competência para tanto, da União para os Estados. Fundamentados na autonomia que
lhes era assegurada pela Constituição, os Estados dão início aos processos de alienação
de terras devolutas, cada um, no decorrer do tempo, promulgando suas próprias
legislações fundiárias e criando suas instituições específicas para administração das
terras públicas.
O problema, como é óbvio, não se situava, efetivamente, na promulgação de
princípios gerais e normas ou regulamentos, proclamados pelas diferentes legislações
estaduais, ou mesmo indicados na Constituição Federal. Situava-se, objetivamente, no
amplo processo de concessão e alienação de terras promovidos pelos diferentes Estados
da Federação, assim como na continuidade de ocupação privilegiada de terras devolutas,
sobretudo pela via de grandes posses ou concessões pelos Estados, sob os mais
diferentes pretextos. Pode-se dizer que o avanço das grandes posses continuou durante
todo o período republicano, paralelamente à concessão ou vendas de terras pelos
Estados. A venda ou a concessão de terras públicas eram realizadas, geralmente, como
registrou José de Souza Martins e muitos analistas desta questão, para grandes grupos e
empresas privadas.
Fugiria aos objetivos deste estudo a análise específica da legislações estaduais e
dos diversos conflitos fundiários criados pela ação imediata, ou pela omissão, dos
Estados da Federação. Referências a essas questões serão feitas na medida em que
contribuam para a melhor explicitar ou esclarecer as hipóteses defendidas neste estudo.
Os problemas fundiários serão agravados, após a Constituição de 1891, em face
dos diversos conflitos acerca da legitimidade e da competência dos Estados e da União
para alienarem terras devolutas ou titularem terras que se encontravam em domínio
privado. Ou seja, o processo de legitimidade da propriedade territorial ficará

225 (In.: CARVALHO, op. cit., p. 47).

126
profundamente comprometido com essa mudança. É nesse sentido que se pode afirmar,
como o fizeram os estudiosos citados neste trabalho, que o controle sobre as terras
passou efetivamente às mãos das oligarquias estaduais, perpetuando-se a apropriação e
legitimação privilegiadas.
O fato mais importante a registrar com relação a Constituição de 1891 é que a
União renuncia ao controle, ainda que formal, da maior parte das terras devolutas do
país. Esta situação dará origem a um acirrado e permanente contencioso com os
Estados, sobretudo envolvendo problemas de competência legal para alienar e titular
terras públicas. Desse contencioso acerca da legitimidade e das competências sobre as
terras devolutas valem-se, efetivamente, toda a sorte de especuladores, como muito bem
observa Foweraker:
“Como o título da terra, porém, sempre se origina em alguma área
administrativa (no domínio público), onde esses títulos conflitam com a história
legal atravessa contradições políticas maiores, que pode provocar o confronto
direto entre diferentes setores federativos.” (op. cit.:145).

Ao desenvolver esta argumentação, Foweraker chama a atenção para o fato de


que, enquanto os diferentes órgãos federais e estaduais se encontram envolvidos em
imensas e complexas disputas legais acerca da competência sobre determinadas áreas,
os grupos econômicos efetivamente passam a ter maior liberdade para avançar e ocupar
imensas áreas, especialmente nas regiões de fronteira, onde esses grupos
“dispõem de maior liberdade para as suas operações econômicas
precisamente porque a situação legal é tão mal definida (ao
contrário das relações institucionalizadas das sociedades
maiores, onde a relação legal de propriedade é essencial à
atividade econômica e à acumulação).”226
Nessa conjuntura complexa de interesses em conflito perpetuam-se os dissídios
e contenciosos entre União, Estados, grandes corporações e proprietários, dificultando,
em grande parte qualquer possibilidade, ainda que formal, que o Estado pudesse ter para
interferir na estrutura agrária. As grandes vítimas, de fato, nesse contexto, são os
pequenos posseiros e indígenas, que só não se pode afirmar que foram ignorados,
porque foram brutalmente esmagados quando não simplesmente dizimados.

4. Legislação Federal e Terras Devolutas (dos Estados?)


Com a transferência da autonomia política e administrativa sobre a maior parte
das terras devolutas para os Estados, restringiu-se a autonomia federal às terras públicas
da União, que eram basicamente a faixa de fronteira e os terrenos de marinha. As
diretrizes gerais, que persistentemente tentará a União imprimir, sob a forma de uma
política fundiária, de fato, terão, neste contexto, a sua eficácia restrita às terras devolutas
federais.

226 FOWERAKER. (op. cit., p. 145)

127
Por um lado, a adequação227 entre as legislações dos Estados e a Federal,
pressuposta na Constituição Federal, como se observou, era frágil e, por outro lado,
gozando os Estados de autonomia sobre seus territórios, dificilmente a União poderia
impor, mesmo que o desejasse, exigências legais no campo da política fundiária.
Efetivamente, portanto, a União procurará ater-se, em última análise, às terras de seu
domínio e, apenas em situações especiais, entrará em disputas e contenciosos com os
Estados, sobretudo quando as questões sobre terras envolverem retornos tributários
relevantes para o orçamento da União. Nunca os contenciosos têm por referência a
defesa de direitos sobre as posses, sobretudo quando se tratam de pequenos ocupantes,
como no caso do Oeste do Paraná, do Mato Grosso e, mais recentemente, do Pará228.
Após o Decreto 451-B, já analisado, outra tentativa de regulamentação federal
sobre as terras devolutas vai aparecer, indiretamente, no Decreto 2.453-A de 5 de
janeiro de 1912. Diz-se indiretamente posto que este Decreto reportava-se de forma
particular ao incentivo da produção do látex, na conjuntura de crise que se apresentava
para a produção e exportação nacional da borracha sob o impacto da concorrência
britânica; e para uma específica política de colonização e integração da Amazônia à
economia nacional. Como observa Edilson Martins229,
“De 1870 a 1912 o Brasil torna-se o maior exportador mundial de
borracha, chegando a contribuir com 100% de toda a produção do
mercado internacional. Os ingleses, cuja tradição colonialista
nunca foi posta em dúvida, contrabandearam no final do século
XIX 70 mil mudas de seringa de nosso país, e racionalizaram o
cultivo em suas colônias asiáticas(...).”
O Decreto 2.453-A, de 5 de janeiro de 1912, como será visto, destina-se
especificamente ao incentivo à produção do látex, e, mais que isto, a uma determinada
política de colonização e ocupação da Amazônia, indicando medidas objetivas para a
implantação de um amplo programa de desenvolvimento, que envolvia a construção de
infra-estrutura ferroviária e outras ações específicas, na área da de colonização, da
concessão de terras para a instalação de colônias agrícolas e de grandes empresas
agropecuárias e de pesqueiras, envolvendo inclusive, a instalação de estruturas para

227 É pressuposto do ordenamento jurídico federativo que as legislações ordinárias, inclusive as Constituições
estaduais, não podem ferir preceitos estabelecidos na Constituição Federal. Nesse sentido, todas as Leis de Terras dos
Estados, por definição não poderão ferir os preceitos constitucionais. Como se verá, será exatamente através da
argüição destes preceitos constitucionais que a União procurará redefinir a sua autonomia sobre boa parte das terras
devolutas estaduais, ampliando a abrangência dos seus bens. Por outro lado, como é igualmente preceito
constitucional o respeito “aos direitos adquiridos, o ato jurídico, à coisa julgada”, assegurados em todas as
Constituições brasileiras. Assim, as situações anteriormente consolidadas - mais uma vez o “fato consumado”,
dificilmente podem ser revertidas. Isso faz com que os contenciosos sobre as terras devolutas prolonguem-se
indefinidamente, acabando por assegurar privilégios e, sobretudo atos ilegítimos, como se verá neste trabalho.
Apenas a Constituição de 1967 (após a Emenda Constitucional no 1, de 1969. BRASIL. Presidência da República.
Brasília: 1969) embora assegurando aqueles princípios (art. 153), e provavelmente em face do “estado de
exceção” em que vigorava, interferiu efetivamente nessa questão como será visto em lugar próprio deste estudo.
228 Há uma vasta literatura a respeito dessas questões. Ver em especial FOWERAKER (op. cit.); MEDEIROS,
(1989) e FACÓ (op. cit.).
229 MARTINS, E . 1982., p. 24.

128
beneficiamento da produção, assistência técnica e social, além de uma conjunto amplo
de outras medidas relevantes:
“Estabelece medidas destinadas a facilitar e desenvolver a
cultura da seringueira, do caucho, da maniçoba e da
mangabeira e a colheita e beneficiamento da borracha
extraída dessas árvores e AUTORIZA o Poder Executivo não
só a abrir os créditos precisos à execução de tais medidas,
mas ainda a fazer as operações de crédito que para isso
forem necessárias.”230
Parece lícito, neste sentido, levantar-se a hipótese de que este Decreto, na
verdade um vasto projeto de desenvolvimento e integração econômica, o primeiro
efetivamente estruturado neste sentido para a Amazônia, tivesse, pelo menos, duas
metas latentes: 1.uma, claramente explicitada no seu texto, referia-se à tentativa de
recuperar a hegemonia perdida pelo incentivo à produção racional da borracha,
inclusive a sua pré-industrialização; 2. Outra, referia-se a tentativa efetiva de ocupar
produtivamente esse espaço ameaçado de internacionalização231, promovendo além do
incentivo à produção e beneficiamento da borracha, o incentivo à instalação de
indústrias pesqueiras e de conservas, de produção de alimentos e pecuária; além de
indicar um amplo projeto de construção de ferrovias integrando a Amazônia, por um
lado, às fronteiras com o Peru, atravessando todo o Território do Acre (pouco antes
incorporado ao território brasileiro) e, por outro lado, integrando a Região à Pirapora
(MG), ao Maranhão e ligações “aos portos iniciais e terminais de navegação dos
rios Araguaia, Tocantins, Parnaíba e São Francisco.” (art. 6o, incisos I, II e III)232.
Oldair Zanata, ocupando-se da problemática da titulação da terra rural no Brasil,
refere-se nos seguintes termos a respeito, especificamente, deste Decreto:
“(...) Em 1904, porém, depois de solucionadas as dúvidas de
limites com a Bolívia, foram incorporadas ao Brasil partes das
terras que viriam constituir o Território Federal (hoje Estado) do
Acre. A situação fundiária peculiar ali verificada, que incluía terras
tituladas pela Bolívia, pelo Estado do Amazonas e pelo ex-Estado
Independente do Acre, levou o Governo Federal a baixar o
Decreto 2.543-A, de 1912, que estabelecia normas a serem
aplicadas no então Território Federal.” 233
Como se pode observar, colocado o problema desta maneira, fica a impressão,
de que o Decreto 2.543-A foi baixado para equacionar a situação fundiária específica do

230 Decreto 2.543-A/1912; intróito (BRASIL. Presidência da República. Rio de Janeiro: 1912 ).
231 Nesse sentido Edilson Martins (op. cit., p.50. Grifos nossos) registra que “no dia 31 de outubro de 1853, o
Governo dos Estados Unidos solicitava oficialmente ao Brasil que abrisse a Amazônia à navegação
internacional (...). Até 1912 - ano que o Brasil perde a hegemonia mundial da produção de borracha,
que mantinha desde 1870 - não foram poucas as pressões no sentido de internacionalizar a Amazônia,
nem menores as lutas internas entre países formadores de sua bacia.
232 Vide, Decreto 2.543-A, de 5.01.1912.Op. loc. cit.
233 Zanatta, Oldair . A titulação de terra rural no Brasil . INCRA. Simpósio Internacional de Experiência
Fundiária. (MEAF. Salvador-Bahia: agosto de 1984, p. 9. Grifos nossos).

129
Território Federal do Acre234 após o acordo com a Bolívia, em 1904 e com o Peru, em
1909. Efetivamente este não é o caso. O que se pode dizer, em relação à situação
fundiária do Território do Acre, que é tratada no Artigo 10 do referido Decreto,
especificamente nos parágrafos 1o e 2 o, é que a União reporta-se à providências no
sentido da regularização fundiária do mesmo, reconhecendo todos os títulos legítimos (
1o, alínea “a”) e as posses mansas e pacíficas que se achem com efetiva exploração e
morada habitual dos posseiros ou de quem os represente ( 1 o, alínea “b”); e no
parágrafo 2 o determinava a área máxima de 10 quilômetros de quadra para cada lote de
terra.
Trata-se, inclusive de um parágrafo que implica dúbia interpretação, posto que,
enquanto, como se viu, o “caput” do artigo 10 e seus dois primeiros parágrafos
reportam-se à situação específica do território do Acre, o parágrafo 3 o deste mesmo
artigo refere-se a uma situação genérica e nacional:
“ 3o O governo reverá as disposições da Lei 601, de 18 de
setembro de 1850 e Decreto 1.318, de 30 de janeiro de 1854,
expedindo novo regulamento de terra com as modificações da
presente lei e as que mais convenientes parecerem à atual
situação dos territórios federais.”235
Voltando à análise de conteúdo do Decreto, observa-se que toda a sua estratégia
de promoção da política de melhoramento da produtividade e beneficiamento da
borracha fundam-se, em primeiro lugar, sobre uma determinada política de isenções
fiscais e prêmios de produtividade e eficiência. Pode-se, dizer que o Decreto é inovador,
inaugurando, em certo sentido, as políticas de incentivos fiscais para a Amazônia.
É neste contexto que, logo no seu artigo 1o, é estabelecida a isenção de impostos
de exportação e expediente para a aquisição de “todos os utensílios e materiais
destinados a essas culturas, seja extrativa ou não”. No artigo 2o “institui prêmios
para plantações inteiramente novas” e estabelece uma série de incentivos à
produção. Institui, igualmente, (artigo 3 o) “estações experimentais e de assistência
técnica, distribuição de sementes selecionadas” etc., em diversos Estados
produtores de seringueira, maniçoba e mangabeira. Estabelece, “além dos prêmios e
incentivos” indicados nos artigos primeiro e segundo,

234 A relevância do Acre no contexto deste Decreto deve-se, sobretudo, ao fato, registrado por Edilson Martins de
sua “vocação para a produção do látex (ser) inquestionável, tamanhas são as reservas naturais dessa
árvore em todo o seu território.” (op. cit., p.27). E ainda como observa aquele autor (op. cit. p. 50). “O Brasil
anexou o atual Estado do Acre, antes pertencente à Bolívia e ao Peru, nos primeiros anos deste século,
depois de uma guerra antiimperialista que se estendeu durante três anos, liderada pelo caudilho gaúcho
Plácido de Castro.”
235 É importante recordar que ao se referir aos territórios federais, na verdade a União referia-se, genericamente às
terras de sua alçada administrativa - as terras devolutas da União. Por outro lado, as demais medidas do referido
Decreto, inclusive destinadas à instalação de hospedarias em Belém e Manaus, além do Acre, assim como a
referência às ferrovias, deixam evidente que esse Decreto foi inscrito sob a inspiração de um incentivo à ampliação e
aperfeiçoamento da produção de borracha, inclusive de maniçoba, mangabeira e caucho, que envolviam vários
Estados da Federação (ver artigo 3o ), particularmente da Região Nordeste. Portanto, parece equivocar-se o Dr. Oldair
Zanatta ao reduzir a abrangência do Decreto apenas ao Território do Acre.(Negritos nossos na citação).

130
“Art. 4o A título de prêmios de animação, até 400$000 à primeira
Usina de refinação de borracha seringa que reduza as diversas
qualidades a um tipo uniforme e superior de exportação e que se
estabelecer em cada uma das cidades de Belém e Manaus(...).”
Todas essas medidas situam claramente o espírito e os objetivos deste decreto:
tratava-se efetivamente de um esforço desesperado para recuperar a competitividade
brasileira no mercado internacional da borracha, que neste ano de 1912, caíra a limites
críticos sob o impacto da concorrência britânica. Segundo dados do estudo de Fernando
Henrique Cardoso e Geraldo Muller236, citado por Edilson Martins:
“em 1878, 100% da produção mundial de borracha cabia ao Brasil. Em 1890, a
produção decresce para 90%. Nos quatro qüinqüênios consecutivos a partir de
1900, isto é, de 1900 a 1919, a participação cai de 70% para 53%, 34%, 12%;
no quinquênio 1925/29, mal atinge 2%.”

Entretanto, jamais o Brasil conseguirá recuperar sua posição no mercado


exportador de borracha e esse fato talvez explique o abandono das diversas medidas
preconizadas neste Decreto, voltando a Amazônia a ser relegada ao quase completo
abandono, do ponto de vista das políticas públicas de incentivo à produção e à
integração nacional, que apenas serão efetivamente recolocadas na ordem das
preocupações federais na segunda metade deste século, sobretudo com a instituição do
PIN - Programa de Integração Nacional - no período militar, que será estudado nos
próximos capítulos.
Mas, é relevante fazer algumas referências a outras medidas preconizadas no
Decreto 2.543-A, senão pelos seus resultados, que foram inócuos diante da crise
apontada, pelo menos pelo pioneirismo em propor medidas de integração da Amazônia
e antecipando-se na sua defesa contra as diferentes tentativas de sua
internacionalização237.
No que se refere a uma política específica de imigração, o seu artigo 5o
estabelece a meta de mandar o Governo construir três hospedarias “em Belém,
Manaus e em ponto apropriado do Acre”, para alojar imigrantes; hospitais
interiores, “cercados de pequenas colônias agrícolas, nos quais possam ser
recebidos doentes a tratamento, praticada a vacinação gratuita, etc.” Estas
medidas idealizadas no referido Decreto dão a dimensão da preocupação da Governo
Federal em implementar uma política específica de ocupação da Região Amazônica - e
não apenas do Acre, como parece supor Zanatta - muito provavelmente em decorrência,
tanto da expectativa em recuperar a produção de borracha e desenvolver outras
atividades de exportação, como a pesqueira, assim como da implementação da produção
de alimentos para o abastecimento interno da Região, como evidenciam as claras
referências às metas de estabelecimento de colônias de pequenos produtores, muito

236 Citado por Edilson Martins (op. cit., p. 50)


237 Ver a esse respeito, Edilson Martins (MARTINS, E. op. cit.); Osni Duarte Pereira (PEREIRA,1971); Octávio
Ianni (IANNI, 1979 e 1979(a)); Lúcio Flávio Pinto (PINTO, 1980 e 1986), entre muitos outros.

131
provavelmente visando à assegurar a ocupação efetiva da Região e, por este meio, tentar
obstar possíveis pretensões territoriais alienígenas.
Neste mesmo sentido pode-se situar o ambicioso projeto de transportes,
sobretudo ferroviário, estabelecido no artigo 6o :
“Art. 6o O governo fará executar no menor prazo possível os
seguintes melhoramentos e medidas complementares:
I. Construção de estradas de bitola reduzida ao longo dos rios
Xingu, Tapajós e outros do Pará e Mato Grosso e do Rio Negro,
Rio Branco e outros do Amazonas (...)
II. Construção de uma estrada de ferro que partindo de um ponto
conveniente da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (...) passe pelo
Vale do Rio Branco e por um ponto entre Sena Madureira e Cataí
e termine na Vila Traumaturgo, com um ramal para a fronteira do
Peru, pelo Vale do Rio Purus (...)
III. Construção de uma estrada de ferro partindo de Belém e ligando-se à rede
geral de vias férreas, em Pirapora, no Estado de Minas Gerais e em Coroatá,
no Estado do Maranhão, com ramais necessários à ligação dos portos iniciais
ou terminais de navegação dos rios Araguaia, Tocantins, Parnaíba e São
Francisco.” (In.: Op. cit. Grifos deste autor).

Tratava-se, portanto, de um projeto que ia muito além da dimensão particular da


regularização fundiária, no bojo do qual, inclusive, esta se constituía apenas um tópico,
muito especialmente em se tratando da questão do Acre, cuja relevância, como se
observou acima, vinha exatamente de sua importância quanto ao projeto de exploração
do látex. Portanto, a inviabilidade desse projeto deve-se, muito provavelmente, aos seus
custos elevados, por um lado, e à decadência da posição brasileira no mercado
internacional da borracha, em última análise. Esse fato é igualmente relevante para se
compreender o fracasso do próprio projeto de colonização que, apesar das ofertas
atraentes de incentivos de todos os tipos, desde a concessão de terras para colonos e
empresários, até incentivos fiscais de todas as ordens, - das isenções fiscais amplas,
tanto para importação de equipamentos, como de insumos, mudas, pesticidas, animais
de trabalho, etc., até a aquisição de embarcações fluviais - acrescidos do pagamento de
prêmios em dinheiro.
No que se refere, especificamente, à questão fundiária, como já foi comentado, o
Decreto em questão delimita duas referências bastante específicas: Numa primeira, e
repetindo os preceitos da Lei 601 de 1850, reporta-se especificamente à questão
fundiária acreana, buscando oferecer legitimidade a todas as terras possuídas, quer seus
títulos tivessem origem no Governo boliviano, no do próprio “ex-Estado Independente”
do Acre, ou do Amazonas, quer se fundassem em posses mansas e pacíficas, ficando
estas, sujeitas às mesmas condições estabelecidas pela Lei 601/1850 e respectivo
Regulamento. Para as terras a serem alienadas, estabelecia-se o limite de dez
quilômetros em quadra, o que dá a idéia das dimensões latifundiárias em prática no

132
território238. Numa segunda, extrapola a situação do território e projeta-se no sentido da
situação das terras devolutas da União.
Por esta segunda via são repostas as antigas pretensões de se promover a revisão
da Lei 601 de 1850 e seu o respectivo Regulamento. Tratava-se, evidentemente de uma
referência à situação da totalidade das terras devolutas do país e não apenas a questão
do Acre, como pretendeu Oldair Zanatta, ex-diretor do Departamento de Cadastro do
INCRA. De resto, aquele autor atribui à falta de estrutura operacional do Ministério da
Agricultura, criado pelo Decreto 1.606/1906, que deveria superintender a execução da
política de terras públicas e registro de terras possuídas, etc., o fracasso na execução do
Decreto em questão que, segundo ele, não foi efetivamente executado239. Aliás pelas
razões que foram acima aludidas, e não, apenas, pela falta de estrutura operacional do
Ministério, embora essa variável certamente fosse restritiva, no caso de se realizarem as
demais condições preconizadas no Decreto.
A revisão das disposições da Lei 601/1850 e respectivo Regulamento, indicadas
o
no  3 do artigo 10, do Decreto 2.543-A/1912, viria a ser realizada um ano depois
mediante o Decreto 10.105 de 5 de março de 1913, que “aprova o novo regulamento
de terras devolutas da União.” 240
Como se pode observar pelo próprio teor deste Decreto, ele, aparentemente se
refere, de forma genérica, à todas as terras devolutas da União, entretanto,
imediatamente abaixo faz referência ao “disposto no art. 10 e seus respectivos
parágrafos, da Lei 2.543, de 5 de janeiro de 1912 (...)”, que se refere, como se viu
acima, em princípio, à situação do Território Federal do Acre. Assim, permanece uma
profunda dubiedade: trata-se, em ambos os casos, de normas jurídicas destinadas aquele
território, ou ao conjunto das terras devolutas da União? Esta referência dúbia é efetiva
nos dois casos. Tanto do Decreto241 2.453/1912 como o Decreto 10.105 de 1913,
embora em princípio refiram-se à situação do Acre, em ambos os casos, estendem boa
parte de suas disposições ao conjunto das terras devolutas da União.
Esse tipo de confusão quanto à própria definição da abrangência territorial da
norma, dá uma idéia da insegurança como a questão fundiária tem sido tratada. No

238 Veja-se a respeito o Decreto 10.320, de 7 de julho de 1913( BRASIL.Presidência da República. Rio de Janeiro:
1913.), que modifica os artigos 1o e 3o do Regulamento aprovado pelo Decreto 10.105/1913, dá as seguintes
o
redações: “Artigo 1 As terras devolutas, situadas no Território Federal do Acre (...) só podem ser
adquiridas por compra, na forma estabelecida pelo presente regulamento e mais disposições em vigor”;
o
e “Artigo 3 São reconhecidos como legítimos os títulos expedidos pelos governos da Bolívia e do Peru,
do Estado do Amazonas e do ex-Estado Independente do Acre, antes da fundação de cada
departamento, em virtude da Lei 5.188, de 7 de abril de 1904.” (Grifos nossos).
239 Zanatta (op. cit., pp. 9-10)
240 Esse regulamento viria substituir o Regulamento criado pelo Decreto 1.318 de 1854, referente à Lei 601 de 1850.
Tal como o Decreto 2.543 analisado anteriormente, também este não foi efetivamente implementado, tendo sido
revogado pelo Decreto 11.485/1915, cujo artigo único determinava: “Fica suspenso, até que se organize a lei
de terras, que será submetida ao voto do Congresso Nacional, o regulamento a que se referem os
Decretos 10.105, de 5 de março de 1913, e 10.320, de 7 de julho do mesmo ano; revogadas as
disposições em contrário.” (BRASIL. Presidência da República. Rio de Janeiro:1915).
241 Trata-se de um Decreto e não de uma Lei, como consta do intróito do Decreto 10.105, o que pode dar uma
idéia, ainda que superficial da forma “descuidada” como eram tratadas as legislações fundiárias.

133
mínimo pode ser um indicador objetivo das dificuldades do Governo Federal em tentar
disciplinar as posturas administrativa e legislativa acerca das terras do seu domínio. As
implicações desse tipo de dubiedade, do ponto de vista jurídico e administrativo - que é
um indicador de dificuldades maiores ao nível da realidade - implicam sérios óbices ao
encaminhamento do processo de administração das terras devolutas, tanto da União
quanto dos Estados, o que facilitará, enormemente, os processos de grilagem
especializada.
Essa confusão fica evidente ao se comparar o texto do Decreto 10.105/1913 ao
do Regulamento que institui. No seu artigo 1 o fica definida a aprovação
“(...) do novo regulamento de terras devolutas da União que
com este baixa, assinado pelo Ministro de Estado dos Negócios
da Agricultura, Indústria e Comércio.”242
Pelo enunciado deste artigo é evidente que o mesmo de refere à instituição de
um novo regulamento de terras públicas da União, em substituição ao anterior, de 1854.
Entretanto, no texto do próprio regulamento instituído por este Decreto, já no seu
primeiro artigo, retoma-se, de forma abertamente contraditória com o enunciado geral e
o “intróito”, referindo-se à questão específica do Acre, como se a apenas aquele
território se referisse:
“Art. 1o As terras devolutas, situadas no Território Federal do
Acre, dentro dos limites declarados no tratado assinado em
Petrópolis aos 17 de novembro de 1903, e de acordo com o
Decreto 1.915, de 2 de maio de 1910, só podem ser adquiridas
por título de compra, na forma estabelecida pelo presente
regulamento e mais disposições em vigor.”
E assim, prosseguem os diversos artigos deste contraditório Decreto, ora dando a
clara impressão de referir-se à totalidade das terras devolutas da União, ora parecendo
referir-se apenas à situação específica das terras devolutas do Acre. Por exemplo, no
artigo 2o ao definir o que são terras devolutas, reproduz quase na íntegra o texto da Lei
601/1850, numa indicação que não deixa dúvidas de se referir ao conjunto das terras da
União.
Fundamentalmente, este Regulamento aplica os mesmos critérios estabelecidos
pela Lei Imperial de 1850, acrescidos de algumas poucas modificações, especialmente,
no que se referia aos critérios de registros a aos procedimentos de legitimação e
revalidação de posses e concessões, aperfeiçoando esses procedimentos, tanto no que se
referia aos aspectos meramente administrativos, quando houvesse consenso entre o
Estado e os pleiteantes à legitimação de posses; ou a procedimentos contenciosos, ou
judiciais, quando aquele consenso não fosse passível de ser conseguido.
O Capítulo III deste Regulamento ocupa-se do “Registro de Terras” e estabelece
um prazo de “três anos, prorrogável pelo Ministro da Agricultura, Indústria e

242 Decreto 10.105 (BRASIL. Presidência da República. Rio de Janeiro:1913.).

134
Comércio” (art.19) para que todos os concessionários fizessem as declarações de suas
posses de forma detalhada, fundamentando-se em documentos ou - na inexistência
destes - no testemunho de pessoas idôneas243, de que preenchiam as condições para
requerer a legitimação de suas posses, estando, como sempre, estas, condicionadas à
exploração efetiva e morada habitual.
Entretanto, fato relevante a ser registrado, é que se tratavam apenas de
“declarações”, feitas pelos interessados, de áreas que, supostamente, estavam em seu
domínio e preenchiam as condições de revalidação e legitimação. Nesse sentido,
enquanto meras declarações, aliás como na Lei 601/1850, deveriam, necessariamente
ser tomadas à termo pelos oficiais de registro. Exatamente por isso não constituíam
prova suficiente de propriedade, aliás, como explicitamente expõe o artigo 24 do
Decreto em análise:
“Art. 24. As declarações do registro não conferem direito algum
aos possuidores, devendo ser aceitas tais como forem
apresentadas; quando não contiverem as competentes
especificações, poderão ser feitas aos representantes as
observações necessárias, não podendo, porém ser recusadas
as declarações, se as partes insistirem no seu registro.”
“Parágrafo único. No livro de registro serão lançadas
resumidamente as observações que forem feitas.” 244
Verifica-se, portanto, a cautela explícita nesse artigo para evitar-se, por um lado,
a recusa arbitrária de se tomar a termos possíveis reivindicações de posses por
presumíveis posseiros e, por outro lado, acautelar contra a utilização das certidões
declaratórias - que apenas serviam para comprovar o cumprimento dos prazos para
apresentação das respectivas declarações - como documentos hábeis de comprovação do
direito de propriedade.
Entretanto, ao que tudo indica, apesar destas cautelas legais, que distingem estas
certidões de declaração de posses, dos títulos definitivos de propriedade, legalmente
regulamentados, parece que muitas certidões declaratórias foram ulteriormente
utilizadas para gerar títulos de propriedade245, em evidente afronta à legislação, gerando
portanto, junto com a grilagem especializada e com a simples fraude, uma
verdadeira indústria da titulação. Esta é uma das situações mais graves gestadas no
processo de ocupação e legitimação privilegiadas da terra no Brasil e que, antes de mais

243 “Art. 31. Na falta do título das posses de terras, deverá o possuidor fazer, no foro da situação do
o o o o
imóvel, justificação da existência das condições estabelecidas nos arts. 5 , 6 , 7 e 8 , por meio de
testemunhas idôneas, residentes no lugar em questão, ou em suas circunvizinhanças, desde antes da
soberania do Brasil, nos termos do art. 3o deste regulamento.” (Decreto 10.105/1913). Note-se que esse
artigo volta a dar a clara referência de que o Regulamento se refere à situação específica do Território Federal do
Acre.
244 Decreto 10.105/1913 (Loc. cit.).
245 Fato que ocorrerá sistematicamente, sobretudo no período do Regime Militar, onde essas certidões foram
habilmente utilizadas pela grilagem especializada para “gerar” documentos legitimados, e assegurar supostos
direitos, como tem sido, muitas vezes, denunciado por vários depoentes. Ver a respeito o capítulo 5 deste trabalho e o
Relatório Final da CPI do Sistema Fundiário (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1979).

135
nada, tem que ser enfrentada pelo Estado. Tal constitui-se em medida prévia, portanto,
para o reconhecimento e equacionamento da situação fundiária caótica que persiste no
país desde os tempos remotos da Colônia e do Império. Este ainda se constitui em um
problema atual a ser enfrentado pelo Estado.
No campo da legitimação das terras possuídas, o decreto em análise,
aparentemente apresenta um rigor maior, se comparado com o estabelecido na Lei
601/1850. No artigo 29 fica regulamentado:
“o prazo máximo de quatro anos” para revalidação e legitimação
de posses e concessões, sob pena de as ver cair em comisso e
de serem em toda a sua extensão reputadas devolutas;”
ao contrário da Lei imperial, que reputava em comisso, apenas, a parte não aproveitada
efetivamente pelo posseiro ou concessionário que não providenciassem o registro, como
se viu no capítulo anterior. Outra observação relevante a este respeito, refere-se ao fato
de que a revalidação de que trata este artigo, uma vez procedida, nos termos exigidos,
gerava um título processado sob o Sistema de Registro Torrens que, como observado
acima, assegurava plenamente o direito de propriedade ( 1 o do art. 29 do Decreto
10.105/1913).
Por outro lado, o princípio da proibição da formação de posses sobre terras
devolutas, já consagrado na Lei 601, é reafirmado neste Regulamento (art. 43), ficando
as mesmas sujeitas a ação de despejo e multas, com a perda de benfeitorias.
Neste caso está implícita neste Decreto a lógica da propriedade burguesa: quer
seja propriedade privada ou estatal. E exatamente por se constituir em propriedade, não
poderiam ser passíveis de apossamento, apropriação ou uso, sem o consentimento
explícito de seu titular de direito. Por isso, ou seja, pelo fato mesmo de se fundarem no
princípio liberal da propriedade, é que são proibidas, por definição, as ocupações de
terras públicas; aliás, como são vedados, pela mesma razão, a formação de posses sobre
as propriedades particulares legítimas. Essas atitudes ou ações - de ocupação de terras
alheias - salvo quando asseguradas por outros requisitos legalmente estabelecidos, são
consideradas invasões da propriedade (estatal ou privada) sendo, “ipso facto”
sancionadas negativamente - com multas, despejo, perda de benfeitorias, indenizações
por danos etc. Assim sendo, as grandes invasões de terras públicas, pelo latifúndio, fato
notavelmente conhecido na história da terra do Brasil é, antes de tudo um ato de afronta
a sociedade ao Estado de Direito e à legislação.
No capítulo VIII deste Decreto, que se ocupa das “multas e penalidades”, são
mais uma vez definidas todas as espécies de atos ilícitos em relação à formação
fraudulenta da propriedade territorial, que vão desde as “declarações falsas para fins
de obtenção de revalidação ou legitimação de terras” (art.138); à exibição dolosa
de documentos falsos, que ficam sujeitas às penas do Código Penal (art. 139); à
dificultação das atividades de demarcação e estabelecimento de divisas e confrontações
(art. 140); à aquisição, por meios fraudulentos, de maior extensão de terras do que a
legalmente permitida (art. 141) - cuja penalidade, além de multas, recaía na devolução

136
das terras compradas em excesso com perda do preço pago pelas mesmas ao Estado -; a
destruição de marcos demarcatórios de trabalhos topográficos, a dilapidação de terras
públicas e finalmente, a sabotagem ou bloqueio à execução da Lei (respectivamente,
artigos 142 a 145)246. Todos estes atos ilícitos são claramente concebidos como
impeditivos à titulação efetiva, podendo e, em certos casos, implicando, a anulação dos
títulos, sem detrimento de outras sanções.
Apesar disso as terras públicas continuaram a ser invadidas e, o que é ainda mais
grave, tituladas, em evidente contradição com as exigências legais mais elementares,
quando não fundadas em documentos falsos, deliberadamente fraudados para
fundamentar o registro de propriedades, no contexto do processo que aqui se está
denominando de grilagem especializada247. Esse verdadeiro fenômeno da grilagem
especializada sempre ocorreu, tanto contra os princípios mais elementares da política de
ocupação de terras devolutas, assegurados em todos os diplomas legais vigentes no País,
desde a Constituição Federal até o mais simples Decreto ou Portaria de Órgãos do
Executivo e, como é evidente, tanto em prejuízo da multidão de pequenos posseiros,
quanto da economia do País. Os pequenos posseiros, diga-se de passagem, que
efetivamente residiam em suas posses e as exploravam e que, por isso, sempre tiveram o
direito de propriedade assegurado legalmente, mas, negado pela ação privilegiada do
latifúndio e dos oficiais de registro, quando não encoberto pela ação ou omissão do
próprio Judiciário. Este, sempre célere ao reconhecer os “direitos” dos grandes
posseiros, elevados à condição de proprietários legítimos, e sempre omisso, quando não
deliberadamente “moroso”, quando se tratava de reivindicações, ainda que legítimas, de
pequenos posseiros. Esse fenômeno esta amplamente denunciado, documentado e
reconhecido na história das terras no Brasil248.
Apesar dos aspectos relevantes e inovadores do Decreto 10.105/1913, que
procurou retomar o eixo liberal aberto pela Lei 601/1850, para implementar o processo
de regularização fundiária no Brasil, pelo menos no que se referia às terras devolutas da
União, não foi efetivamente implementado, tendo sido sumariamente revogado dois
anos depois, em 1915, pelo Decreto 11.485, de 10 de fevereiro, cujo único artigo
prescrevia:
“Artigo único. Fica suspenso, até que se organize a lei de terras,
que será submetida ao voto do Congresso Nacional, o
Regulamento a que se referem os Decretos 10.105, de 5 de

246 Ver Decreto 10.105/1913 (Loc. cit.).


247 Ver a esse respeito, entre outros depoimentos da CPI do Sistema Fundiário, que é analisada no último capítulo
deste estudo, e o citado depoimento de Oldair Zanatta à CPI dos Incentivos Fiscais da Amazônia, onde este senhor,
então Diretor de Cadastro do INCRA, portanto, pessoa insuspeita para se referir a tais fatos, faz referência ao
conjunto de equívocos, mas, sobretudo, de fraudes nos registros de terras, especialmente ao se referir a deflagração de
“verdadeiros processos de grilagem de terras” (Zanatta. Op. cit.).
248 Ver a respeito, as conclusões e os depoimentos das CPI’s - Comissões Parlamentares de Inquérito - do Sistema
Fundiário (1979); dos Incentivos Fiscais da Amazônia (1980) e das Causas da Violência no Campo (1991). As
referências específicas a estas CPI’s são feitas no capítulo 5.

137
março de 1913 e 10.320 de 7 de julho do mesmo ano; revogadas
as disposições em contrário.”
É, no mínimo curiosa, a coincidência dos termos deste decreto de 1915, com a
“Resolução249 de Consulta da Mesa do Desembargo do Paço”, de 17 de julho de 1822,
que suspendia a concessão de sesmarias até a convocação da Assembléia Geral
Constituinte. No caso da Resolução no 76/1822 abriu-se, como foi visto no capítulo 2,
vinte e oito anos de “império das posses”, período no qual o latifúndio avançou de
forma célere, incorporando as terras devolutas do Império, consolidando-se
250
definitivamente na estrutura agrária brasileira , para nunca mais perder este espaço e a
posição política e econômica a ele inerentes.
O Decreto de 1915, de forma semelhante à Resolução de 1822, reporta-se à
“nova lei de terras” que seria submetida ao voto do Congresso Nacional. Esta lei, apenas
será votada em 1946, portanto, trinta e um anos depois251, constituindo-se no Decreto-
lei 9.760, de 5 de setembro daquele ano. Neste período, como nos 28 anos do “império
das posses”, o Governo Federal virtualmente retira-se das disputas pelas terras
devolutas, deixando-as, neste novo “novo império do latifúndio”, sob a guarda das
oligarquias regionais arraigadas fortemente nos Estados; com a agravante de que, neste
caso, os direitos de gestão sobre as terras devolutas do País estavam, juridicamente,
assegurados e nas mãos das oligarquias estaduais. Este fato facilitou o avanço da
legitimação formal da ação privilegiada sobre a apropriação e alienação de terras
devolutas, especialmente no que se referia ao acesso às terras no âmbito dos Estados da
Federação.
A esse respeito, assim se pronunciou Oldair Zanatta em Depoimento à
Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Política de Incentivos Fiscais da Amazônia:
“A experiência no trato das terras públicas tem demonstrado que
uma significativa parte dos Estados, não soube dar a devida
destinação às terras devolutas incorporadas ao seu patrimônio.
Alguns conduziram-nas com próprios federais, com próprios
estaduais e até com terrenos de marinha. Outros titularam a
mesma área mais de uma vez, havendo também diversos casos
de alienação por um Estado de terras devolutas pertencentes a
outro.(...) Mudou também de modo substancial, a sistemática de
alienações de terras públicas: o que antes era para ser
regularizado em função de morada habitual e exploração
efetiva, deu lugar aos processos de aquisição de terras
mediante requerimento.” 252

249 Ver, Resolução 76 de Consulta da Mesa do Desembargo do Paço de 17.07.1822 (In.: MEAF, Op. cit., p. 356).
250 Ver capítulos 1 e 2 deste estudo.
251 Apenas à guisa de curiosidade, entre 1850 (ou 1854) e 1964, portanto, aproximadamente 100 a 110 anos de
história agrária do Brasil, somando-se os 28 anos do “império das posses” (1822-1850) aos 31 anos do “novo império
do latifúndio” (1915 a 1946), tem-se que, neste período de 110 anos, durante 60 anos as terras públicas foram
saqueadas ilegal e ilegitimamente pela grilagem especializada, passado a se constituírem nas “grandes propriedades”
hoje conhecidas.
252 CPI dos Incentivos Fiscais da Amazônia (op. cit. pp. 3 - 4. Grifos e sublinhados nossos).

138
Por outro lado, a União, no período de 1915 a 1946, baixou um conjunto
numeroso de normas legais específicas e regulamentos, entretanto, todas eles voltados
para a regulamentação da disposição e uso dos bens federais, isto é, que não atingiam
diretamente as terras devolutas dos Estados da Federação. Como registra, de forma
correta, Oldair Zanatta, a respeito destas normas,
“todas, no entanto tinham caráter especial e destinavam-se a regular aspectos
acidentais de matéria mais ampla: os bens imóveis da União.

São desse período, por exemplo, normas relativas a aforamentos


e alienações de imóveis, terrenos de marinha, criação de colônias
agrícolas e fundação de núcleos coloniais, florestas, parques
nacionais, administração de bens públicos, etc., compreendendo
um vasto conjunto de leis e atos caracterizados, na sua maior
parte, pelo casuísmo, oportunidade e conveniência político-
administrativa.”253
É importante registrar que um ano depois, em 1 o de janeiro254 de 1916, com a
Lei 3.071, é sancionado o Código Civil, que “regula os direitos e obrigações de
ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações” 255. O
Código Civil de 1916, juridicamente bem elaborado e, inclusive, considerado um dos
mais avançados do mundo, um “verdadeiro monumento jurídico”, apesar disso, em seu
artigo 65 define, apenas genericamente, os bens públicos, distinguindo-os dos
particulares nos seguintes termos:
“São públicos os bens do domínio nacional, pertencentes a União,
aos Estados e aos Municípios. Todos os outros são particulares,
sejam quais forem as pessoas a que pertençam.”256
Por outro lado, o Código Civil de 1916 contempla dois institutos jurídicos
relevantes para o problema do direito de propriedade, em especial, para o caso que aqui
interessa mais de perto, o Direito Agrário. Tratam-se, por um lado, do instituto do
Direito das Coisas, em particular as questões ligadas à posse e à propriedade; e por
outro lado, do Capítulo que se ocupa dos Direitos Reais.
Este último é especialmente relevante para o caso das posses agrárias, haja vista
que estas sempre se fundaram em direito real sobre as terras ocupadas, sem contudo ter
assegurados, formalmente, a plena propriedade - o que apenas poderia ser materializado
pela titulação 257 conforme as formalidades legais estabelecidas. É nesse contexto que a

253 Zanatta (op. cit., p. 10. Grifos nossos).


254 Curiosamente em um feriado universal.
255 Lei 3.071, de 1o. de janeiro de 1916. Código Civil, artigo 1o (BRASIL: Congresso Nacional. Rio de Janeiro:
1916).
256 Art. 65 do Código Civil de 1916. Ver a esse respeito os comentários de Nascimento (op. cit.,p.104),
MEIRELLES (1991, p. 448) e ALVES (1995, p. 97).
257 Como argumenta com propriedade Nascimento (Op. cit., p. 101. Grifos nossos) “o registro imobiliário, nas
transmissões ‘inter vivos’ entre particulares é fundamental, porque fato gerador da constituição do direito.
Sem ele, o direito real não se caracteriza, não há oponibilidade ‘erga omnes’, há simples direito pessoal
que se circunscreve a uma relação obrigacional entre duas pessoas. Mas, entenda-se, sem o registro na
circunscrição imobiliária não se forma o direito de propriedade. Isso é absolutamente correto nos

139
questão dos registros, conforme abordada anteriormente apresentava relevância
fundamental e será quase sempre sobre ela que insistirá o Governo no sentido de
disciplinar a propriedade territorial.
De qualquer maneira, mais uma vez, a questão da legitimação e reconhecimento,
pelo Estado, da propriedade territorial é apenas genericamente tratada na legislação,
permanecendo, portanto, sujeita às flutuações das ações objetivas de apropriação
privada, especialmente por parte dos mais poderosos, posto que apenas estes, como se
tem evidenciado neste estudo, e como foi vastamente documentado por inúmeros
estudiosos - muitos citados neste estudo - tinham, de fato, poder suficiente para
apoderar-se de grandes parcelas de terras públicas (e particulares, no caso em que
incorporavam inúmeras pequenas posses) e legitimar suas pretensões territoriais.
Inclusive pela via da subversão do sistema de registros, sobretudo pela alternativa à
fraude, ou aproveitando-se da ignorância a respeito das leis e de direitos que estas
asseguravam, por parte de pequenos posseiros e proprietários. Estes, na maioria dos
casos, foram surpreendidos pelos “donos das terras” que ocupavam há muitas
gerações.”258
A Constituição de 1934, nascida na nova conjuntura da derrota, embora parcial,
das oligarquias agrárias, na “Revolução de 1930”, tenta recuperar o terreno cedido pela
Constituição oligárquica e ultra-federativa de 1891.
No seu artigo 20, ao delimitar os bens da União, procede a uma ampliação de
sua abrangência, incorporando parte das terras devolutas que até então tinham sido
transferidas ao domínio dos Estados, incorporando-as aos bens da União; e no artigo
166 amplia a faixa de fronteira para cem quilômetros, estabelecendo o parágrafo 3o
deste artigo, a sua subordinação à regulamentação da União e sujeição da sua alienação
ao Poder Legislativo, o que limitava a autonomia dos Executivos estaduais. Entretanto
tratava-se, ainda assim, de uma modesta incursão neste sentido, o que pode ser um
indicador da força que ainda mantinham as oligarquias estaduais.
Ao assegurar, no “caput” do art. 113, “a inviolabilidade dos direitos
concernentes à liberdade, a subsistência, à segurança individual e a propriedade” a
Constituição de 1934 parece confirmar o seu caráter “pós-revolucionário”; entretanto, o

negócios entre vivos.” O que não quer dizer que esse direito seja absolutamente assegurado. Por outro lado, o
registro imobiliário pressupõe alguma fonte anterior de direito: seja a posse legitimável, comprovada ou qualquer
outra forma legítima de acesso à propriedade, como as concessões pelo Estado. Nesse sentido, a matrícula do imóvel
e seu respectivo registro apenas dão fé pública, no caso do Registro Torrens, ao título de propriedade caracterizando a
oponibilidade ‘erga omnes’. Nesse mesmo sentido, o registro comum de imóveis não trás no seu bojo, senão
segurança relativa, porque assegura apenas a presunção de direito, podendo tal presunção ser desfeita quando, por
exemplo, há defeito na cadeia dominial. Trata-se, portanto de uma presunção “juris tantum" (Cf. Paulo Tormin
Borges, “O imóvel rural e seus problemas jurídicos”, Ed. Saraiva, 1981: 102). Também porque “se quem
transmitiu não era dono, a transcrição também não transmite, porque o título não tem validade
jurídica”, como afirma Nascimento (Id. Ibdem).
258 Edilson Martins dá um excelente exemplo de situações como esta ao citar o seguinte depoimento de um posseiro
da Região do Araguaia: “(...) Quando aqui cheguei tinha minha terra. E quem não tinha? Terra nessas
bandas nunca teve dono, os donos chegaram depois, havia roça, criava umas cabeças de gado e até
bode.(...) Um dia apareceu os donos da minha terra, e não é que tentei resistir? E não é que me dei
mal? Não é que tive de fugir depois de estrepar um filho da puta, o primeiro na minha vida, na ponta de
um punhal? Uma desgraça !”. (MARTINS, E. op. cit., p. 142. Grifos nossos).

140
item 3, ao assegurar que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada”, embora, aparentemente indique o respeito a um preceito
genérico do direito liberal, na verdade, criava óbices especialmente no que se referia à
tentativa de regularização fundiária, uma vez que poderia ser argüido em defesa de
“direitos” adquiridos em conseqüência de efeitos do “fato consumado” e pela sua
persistência no tempo: como já se fez referência, os célebres prazos decadenciais e
prescricionais, ou simplesmente, ao longo tempo havido na posse, independentemente
de sua magnitude ou utilização.
Fato relevante nesta Constituição de 1934, no que toca a propriedade territorial,
era a referência feita no item 17 do artigo 113 afirmando que:
“É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser
exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a
lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade
pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa
indenização (...).” 259
Ao estabelecer que o direito de propriedade era assegurado na condição de não
ser exercido contra o interesse social ou coletivo, esta Constituição dá um largo passo
para consagrar o princípio da propriedade condicionada à sua função social. É evidente
que a mera proclamação ou mesmo a consagração legal deste princípio não implica
mudanças ao nível concreto das relações sociais de propriedade. Entretanto, por um
lado, esse fato é indicador de que a luta por essas novas condições de existência já se
havia estabelecido ao nível das relações de sociabilidade; e, por outro lado, cria
efetivamente, a possibilidade, ao nível jurídico, de ampliar estas lutas sociais ainda mais
profundamente, na medida em que se constituia em restrição legal a ação discricionária
do latifúndio.
Ainda relevante no contexto da questão fundiária é a referência Constitucional
ao direito, assegurado no artigo 125, a adquirir o domínio de até 10 hectares de áreas
que possuam e na qual residam e trabalhem, desde que não sejam proprietários rurais
nem urbanos, e desde que não tenham sido incomodados por oposição alheia por dez
anos, ou seja, reconhecendo o direito a usucapião sobre terras inexploradas, se
particulares, ou o direito à legitimação de posse sobre terras públicas, recolocando,
desta forma o direito secular de propriedade fundado na exploração efetiva do solo e
residência habitual, assegurado por todas as legislações anteriores, desde o instituto das
sesmaria.
A consagração deste direito na Constituição é relevante, posto que tem sua
validade obrigatória para todos os Estados da Federação e para todas as terras fossem
públicas ou privadas. Isso não quer significar que tal preceito assegurou - e de fato não
o fez - o acesso à legitimação das pequenas posses; entretanto, instituía a possibilidade
legal para a defesa dos pequenos posseiros e para a sua luta pela legalização das terras

259 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, art. 113, inciso 17. Cabe
registrar a curta duração desta Constituição, substituída pela de 1937, como será comentado adiante.

141
possuídas. Na pior das hipóteses servirá, este preceito, para se documentar a
expropriação e expulsão ilegal de pequenos posseiros das terras que sempre ocuparam.
Assegura, ainda, a Constituição de 1934, o “respeito” às posses dos silvícolas,
onde se acharem “permanentemente localizados260”, sendo proibida a alienação.
Finalmente, outro preceito relevante é estabelecido pelo artigo 130, que limita as
concessões a dez mil hectares. Para além desse limite estava sujeita à prévia autorização
do Senado. Tratava-se de uma área efetivamente imensa, o que dá a dimensão das
pressões no sentido de que fosse estabelecido o limite das concessões livres do controle
federal o mais amplamente possível261. Tudo isso dá a exata dimensão da influência que
as oligarquias agrárias mantinham sobre assuntos de seu interesse direto, mesmo
quando sob a alçada do Governo Federal.
A Constituição de 1937, outorgada após o Golpe do Estado Novo, restringe os
direitos assegurados pela anterior. Por um lado, mantém inalterados os mesmos limites
assegurados pela Constituição de 1934 para os bens de domínio da União e dos Estados
( artigos 36 e 37 da Constituição de 1937). Por outro lado, limita sutil, mas efetiva e
amplamente, os direitos sociais assegurados na Constituição de 1934, pelo artigo 113, e
que são reduzidos pelo artigo 122 da Constituição de 1937 nos seguintes termos:
“Art. 122. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no
país o direito à liberdade, à segurança individual e a propriedade nos seguintes
termos:
(...)
14. O direito de propriedade, salvo desapropriação por necessidade ou
utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus
limites serão definidos nas leis que lhes regulares o exercício.”

Observe-se que esse artigo da Constituição de 1937 elimina, em seu “caput” a


referência ao fato de que “o direito de propriedade (...) não poderá ser exercido
contra o interesse social ou coletivo.” Por outro lado, mantém, apenas, a
desapropriação por necessidade social ou utilidade pública mediante indenização prévia,
entretanto reportando o seu conteúdo e limites para definição “nas leis que regularem
o exercício.” (art.122, 14, da Constituição de 1937). Ora, na medida em que se retira a
referência ao fato de o direito de propriedade não poder ser exercido contra o interesse
social ou coletivo, a desapropriação por necessidade ou utilidade pública retorna aos
termos conservadores da Carta de 1891, já comentados, e que se limitavam a realização

260 Essa expressão “permanentemente localizados”, aparentemente desproposital, foi ulteriormente utilizada para
se tentar a expropriação das reservas indígenas, sob a alegação de que se estes se deslocaram para outras áreas - o que
sempre ocorria pelo fato de serem nômades - caracterizava-se o descumprimento desse preceito previsto no artigo
125 da Constituição, perdendo, portanto, a proteção assegurada neste artigo, e assim, dando ensejo a sua ocupação ou
alienação para terceiros. Há nesse sentido até súmula do STF.
261 Como nos debates parlamentares da década de 1840, que acabaram assegurando na Lei 601 a possibilidade de
legitimar posses do tamanho das sesmarias havidas na região ou na mais próxima, sendo ainda assegurado a
possibilidade de se acrescer a essas posses novas áreas contíguas, havendo, até aquele limite (ver capítulo 2 deste
trabalho). Há muita semelhança nessas duas situações, o que permite levantar a hipótese da persistente tentativa de
grandes posseiros em assegurar seus privilégios. Esta será uma constante da questão fundiária brasileira, responsável
pela persistente concentração da propriedade rural por um lado e, pela sistemática e crescente exclusão da vasta
população de pequenos proprietários, posseiros, trabalhadores rurais e índios, apesar das “garantias” proclamadas em
todas as legislações que a eles se referiam.

142
de obras públicas, servidões, etc. nenhum limite, de fato, imposto a propriedade
territorial enquanto tal, que poderia continuar improdutiva etc. Essa restrição que
reaparece na Constituição de 1937, pode ser lida como produto das novas articulações
entre Vargas e as oligarquias, na nova conjuntura de sustentação do Estado Novo262.
Nesse contexto, são mantidos os limites de 10 hectares para a legitimação de pequenas
posses mansas e pacíficas (art.148), tal como na Constituição de 1934, e de 10.000
hectares, para a concessão, independentemente de autorização, federal, no caso
transferida do Congresso, para o Conselho Federal (art.155). Esse último artigo indica
claramente a influência do latifúndio na conjuntura agrária enfrentada durante o Estado
Novo.
A novidade, em termos de terras devolutas da União vai aparecer no artigo 165,
onde a faixa de fronteira é ampliada de 100 para 150 quilômetros, que passam a ser
controladas pelo Conselho Superior de Segurança Nacional. Esta medida, de fato,
ampliava arbitrariamente a área abrangida pelas terras devolutas da União em
detrimento das dos Estados. Entretanto, apesar disso a autonomia dos Estados sobre
essas áreas pouco será afetada por esta nova diretriz federal.
Em suma, efetivamente a Constituição de 1937 representou um amplo retrocesso
quanto aos problemas de política fundiária, o que pode ser uma evidência de que o
poder e a influência das oligarquias locais, não foram afetados seriamente pela política
do Estado Novo. Por outro lado, um sintoma evidente desse acordo tácito263 do Estado
Novo com as oligarquias rurais é o fenômeno, amplamente conhecido, de que as
profundas reformas introduzidas por Vargas nas relações trabalhistas, não são
estendidas ao campo, que continuou tranqüilamente sua trajetória de sempre.
Como escreveu José de Souza Martins:
“É significativo que Vargas não tenha estendido aos trabalhadores
rurais direitos legais semelhantes aos dos trabalhadores urbanos.
Vargas não quis ou não pôde, enfrentar os grandes proprietários
de terra e seus aliados. Foi em seu governo que se
estabeleceram as bases para um pacto político tácito, ainda
hoje vigente, com modificações, em que os proprietários da
terra não dirigem o Governo, mas não são por ele
contrariados.” 264

262 Ver a respeito Foweraker, op. cit.


263 “É significativo que Vargas não tenha estendido aos trabalhadores rurais direitos legais semelhantes aos dos
trabalhadores urbanos. Vargas não quis ou não pôde, enfrentar os grandes proprietários de terra e seus aliados. Foi
em seu governo que se estabeleceram as bases para um pacto político tácito, ainda hoje vigente, com
modificações, em que os proprietários da terra não dirigem o governo, mas não são por ele contrariados”.
Assim se refere José de Souza Martins à conjuntura política de sustentação e alianças entre o Estado Novo e as
oligarquias rurais, embora tenha sido precedido pela conjuntura da Revolução de 1930, que colocara na direção do
bloco de poder “uma aliança de militares e oligarquias regionais marginalizadas pelo sistema oligárquico, aliança de
inspiração centralizadora, desenvolvimentista e, em princípio, anti-oligárquica” (In.: MARTINS, J.S. 1994, p. 71-72.
Grifos nossos). Ver a esse respeito, além dos estudos citados, Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto”,
Editora Alfa-ômega, São Paulo, 1975.
264 MARTINS, J.S (1994, pp. 71-72). Grifos nossos. Ver a este respeito, além dos estudos citados, Victor Nunes
Leal, “Coronelismo, Enxada e Voto”. São Paulo: Alfa-ômega, 1975.

143
Assim se refere Martins à conjuntura política de sustentação e alianças entre o
Estado Novo e as oligarquias rurais, embora, tenha sido precedida pela conjuntura da
Revolução de 1930, que colocara na direção do bloco de poder “uma aliança de
militares e oligarquias regionais marginalizadas pelo sistema oligárquico,
aliança de inspiração centralizadora, desenvolvimentista e, em princípio, anti-
oligárquica265.” Ou, nas palavras de Francisco C. Weffort:
“Este tipo de atitude política (de puro equilíbrio) teve suas
condições de eficiência no compromisso fundamental entre a
estrutura agrária e a indústria incipiente e relativamente marginal
à atividade econômica básica que era a agricultura. Permaneceu
possível sua eficiência enquanto foi possível a coexistência entre
estes dois setores de produção266.”
No que se refere aos problemas especificamente fundiários, como se afirmou
acima, a União apenas retomará a ação legislativa 31 anos após a revogação do Decreto
10.105, em 5 de setembro de 1946, com o Decreto-lei 9.760, que “dispõe sobre os
bens imóveis da União e dá outras providências”, treze dias antes da promulgação
da Constituição de 1946 e após o fim da ditadura do Estado Novo.
Segundo Cláudio José Ribeiro 267, diretor do Departamento de Desenvolvimento
Rural do INCRA, em painel no Simpósio Internacional de Experiência Fundiária,
realizado em Salvador, Bahia, em 1984, o Decreto-lei 9.760 de 1946 foi a maior
inovação introduzida na Lei 601 de 1850. Dispondo sobre os bens imóveis da União,
esse decreto-lei regulamentou a discriminação das terras públicas, alterando os
procedimentos puramente administrativos para instituir o processo administrativo-
contencioso. Conforme explicitamente estabelecido no Capítulo II - “Da indentificação
dos Bens”, nas partes que se ocupam da discriminação das Terras da União, (artigos
19 a 31)268, regulamenta a discriminação administrativa e na Subseção III, “Da
discriminação Judicial”, estabelece o procedimento contencioso:
“Art.32. contra aqueles que discordarem em qualquer termo da
instância administrativa ou por qualquer motivo não entrarem em
composição amigável, abrirá a União, por seu representante em
Juízo, a instância judicial contenciosa.”269
Como se pode inferir pela análise deste Decreto-lei, em certo sentido, ele
corresponde a uma consolidação e aperfeiçoamento dos princípios jurídicos e regras
estabelecidos desde a Legislação de 1850, incorporando, inclusive todo o conjunto

265 Id. Ibidem.


266 WEFFORT, F. C. 1965, p. 197.
267 RIBEIRO (1984).
268 Esses artigos, pela Lei 6.383 de 7 de dezembro de 1976, que dispõe sobre o processo discriminatório das terras
devolutas da União, deixaram de ser aplicados aos imóveis rurais (artigo 32 da Lei 6.383/76).
269 Está é a previsão normativa, infra constitucional do “Princípio da Universalidade da Jurisdição”, para ser
exercitado em favor da União, possibilitando expressamente a revisão da matéria apreciada na esfera administrativa,
perante o Poder Judiciário.

144
confuso das legislações republicanas, especialmente após 1915. Tratava-se, de fato, da
referida “Nova Lei de Terras” referidas no Decreto de 1915, e viria com o intuito de
substituir o Regulamento de 1854.
Entretanto, parafraseando Faoro ao se referir à Lei de Terras de 1850, pode-se
afirmar que essa “nova” Lei de Terras já vinha com, pelo menos 31 anos de atraso. De
1915 a 1946 passaram-se 31 anos de intenso desenvolvimento da economia brasileira,
de determinado nível de consolidação industrial e, sobretudo, de profundas
transformações tanto no âmbito internacional (a Grande Depressão e a II Guerra
Mundial, em particular) quanto no âmbito interno. Como é evidente, nesse período,
igualmente, avançaram e consolidaram-se celeremente as grandes apropriações, em boa
parte sob o patrocínio aparentemente legal, “vendas” pelos Estados; pela expulsão
sistemática, mais uma vez - como no império das posses - dos pequenos posseiros além
da continuidade de verdadeiros genocídios contra populações indígenas. Ou seja, nesse
período consolida-se, no que toca a questão fundiária, a estrutura do “novo
latifúndio”: mais arrogante e cioso de “seu papel na vocação agrícola do país.”
Assim, juntou-se ao argumento do privilégio, a suposta relevância da grande
propriedade para o desenvolvimento da economia e da sociedade brasileiras. Muda-se,
desta forma, o discurso do latifúndio, mascarando-se de uma justificativa econômica.
Será, daí para adiante, em nome de seu papel fundamental para economia brasileira, e
sempre, para as exportações, que a sua manutenção, modernização e continuidade serão
sistematicamente assegurados, inclusive, e cada vez mais, com forte suporte
institucional e apoio dos programas de Governo, especialmente pela via de subsídios,
concessões territoriais e créditos subsidiados. Esses procedimentos, supostamente
fundados na ciência econômica e na técnica, atingirão seu ápice no período do Regime
Militar.
No início do Governo Juscelino Kubitscheck, na Mensagem presidencial de 15
de março de 1956, propõe-se, uma política de Reforma Agrária que desse solução à
problemática situação do campo, marcada conforme o diagnóstico oficial, pelo
“desequilíbrio entre o número reduzido dos proprietários rurais e o número
elevado dos que trabalham em gleba alheia270.”
No entanto, ao final de seu Governo, Juscelino “afirmará como justificativa à
sua gestão omissa, posição inversa, ao declarar que mudanças em
profundidade na agricultura teriam sido inócuas sem um respaldo de um
desenvolvimento industrial que o sustentasse271.” Em entrevista a jornais do País, o
Presidente da República afirmava que, tão somente agora, a “Reforma Agrária é uma
necessidade inadiável (...) pois já existe no Brasil uma indústria de base capaz

270 Citado em Aspásia de Alcântara Camargo. “A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964).
In.: História Geral da Civilização Brasileira. [Org. por Boris Fausto, t.III, v. 3, São Paulo: Difel, 2a ed., 1983, p. 154.
271 CAMARGO, A. A. (1983, p. 154).

145
não só de dar cobertura a um tal programa como de levá-lo às conseqüências
mais objetivas.”272
Deste modo (como no Governo Vargas) a “política do possível” - na
interpretação de Maria Vitória de Mesquita Benevides, no que é seguida por Aspásia
Camargo - parece ter sido a de conseguir da facção ruralista uma posição de
neutralidade diante do Programa de Metas, em troca da conservação das
relações sociais no campo.”273 A tentativa de aplicação por medida legislativa das
Leis trabalhistas ao campo, feita pelo PTB, é bloqueada, no governo Juscelino e só será
aprovada no governo Jânio Quadros. A estratégia conciliadora do governo Kubitscheck,
implicou significativo reforço do Departamento Nacional de Obras Contras as Secas
(DNOCS), autarquia Federal, que esteve sempre sob o controle oligárquico 274, e a
criação da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste, sob direção de Celso
Furtado, declaradamente avesso à Reforma Agrária:
“É certo que as concepções que norteiam a criação da SUDENE
não implicam ataque frontal à má distribuição da propriedade do
Nordeste. Enfatizando, porém, uma estratégia global de
racionalização da produção agrícola (combinada à implantação
industrial e à expansão das fronteiras agrícolas) o objetivo é
confinar a resolução dos conflitos sociais à tensa Zona da Mata,
onde se pretende ao mesmo tempo estimular a elevação da
produtividade e liberar parte das terras para o cultivo familiar
de alimentos” (...) “a intenção é diluir medidas mais
redistributivas e conflituosas no bojo de um amplo programa
em que muitos interesses serão beneficiados e poucos
radicalmente descartados.”275
Não obstante, se aos interesses industriais contemplados no Programa de Metas
contentava o mero controle das medidas cambiais produzidas por uma agricultura
latifundiária voltada à exportação e já estruturalmente esgotada, os demais interesses e a
Sociedade abriram, no apagar das luzes do governo Juscelino, um amplo debate sobre a
propriedade da terra e o conseqüente distino histórico das massas excluídas no campo.
As organizações dos trabalhadores rurais expandem-se e no governo seguinte, de Jânio
Quadros, o debate é retomado em um âmbito mais vasto e complexo, ao efetivar-se
também fora dos quadros institucionais oficiais - Executivo e Congresso. Ao mesmo
tempo, como avalia Aspásia Camargo, é possível deslocar do “governo Goulart para o
governo Jânio o início da implementação de um programa oficial de reformas,
que se frusta em virtude de sólidas resistências que encontra no Congresso, na
Sociedade Civil, e no âmbito do próprio Estado (Executivo).” Como diz Camargo,
torna-se necessário “captar o impacto das propostas de Reforma Agrária como

272 Id. Ibidem.


273 Idem, p. 155.
274 Cf. Francisco de Oliveira. Elegia para uma re(li)gião. Sudene, nordeste, planejamento e conflito de classes. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
275 CAMARGO A.A., op. cit., p. 165. Grifos nossos.

146
revelador de uma nova crise de poder” , ou a crise do ciclo populista que tivera
início com Vargas276.
Como bem registra José de Souza Martins277,
“O fim do governo Vargas promoveu a restauração da
democracia(...) e também o retorno ao poder dos representantes
dos interesses oligárquicos e rurais, mantidos sob controle
durante a ditadura. Vargas, em princípio não necessitara das
oligarquias para governar, já que seu governo não dependia
necessariamente do voto (quando dependeu, a opção foi pela
ditadura)...”
A Constituição Federal de 1946, aparentemente, inaugura uma nova fase no
tratamento do problema fundiário brasileiro ao estabelecer no seu artigo 147 que
“o uso da propriedade será condicionado ao bem estar social. A
lei poderá, com observância do disposto no artigo 141, .16,
promover a justa distribuição da propriedade com igual
oportunidades para todos.”
Diz-se que, apenas aparentemente estavam lançadas as bases para uma nova
postura em relação à questão fundiária, porque, de fato, os preceitos constitucionais de
1946, na forma como foram formulados, realmente não abriam, em nenhum sentido,
espaço para tal perspectiva.
Primeiro porque, na verdade, o artigo 147 da Constituição de 1946, representava
um recuo em relação ao preceito no mesmo âmbito, estabelecido pela Constituição de
1934, que era categórico ao afirmar que o direito de propriedade era garantido, mas que
não poderia
“(...) ser exercido contra o interesse social ou coletivo na
forma que a lei determinar.”(Art. 113, 17 da Constituição de 1934).
Segundo, porque o artigo 147 é facultativo, ao afirmar que a “Lei poderá”
promover a justa distribuição, o que significa dizer que poderá ou não. Finalmente, o
que é muito relevante e que tem sido realçado por todos os estudiosos, além de se referir
apenas à possibilidade, condiciona-a às exigências do artigo 141,  16, que finalmente
condiciona as desapropriações por utilidade pública e interesse social, à “prévia e justa
indenização em dinheiro”. Assim, veda-se efetivamente qualquer possibilidade de
promoção da “justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para
todos.” Tratam-se, claramente de artifícios legislativos muito bem estruturados para
impedir qualquer processo de desapropriação de latifúndios, a menos que lhe seja paga -
neste caso, sim, é categórico - “prévia e justa indenização em dinheiro”.
Entretanto, um fato importante que tem sido negligenciado, e que igualmente é
uma sutileza da linguagem cifrada do direito, refere-se ao fato, que se tem insistido
neste trabalho, de que, ao se falar em desapropriação, fica subsumido o reconhecimento,

276 Idem. p.169.


277 MARTINS, J. S. (1994, p. 71). Grifos nossos.

147
tácito, mas efetivo, da propriedade sobre as terras. Esse fato é sempre omisso nas
diversas legislações, mas sempre assegurado tacitamente, e como nos textos legais,
formalmente. Assim, os privilégios são legalmente assegurados.
Como as leis se interpretam, também, à luz das leis anteriores e da coerência dos
Sistemas Jurídicos, deu-se no momento histórico uma forte polêmica a respeito da
intenção da lei e da jurisprudência (interpretação teleológica-sistemática-histórica).
Voltam à cena medidas já propostas durante o segundo governo Vargas, pelo mesmo
que a havia defendido antes Carlos Medeiros Silva. Como disse então esse jurista, a
desapropriação por interesse social que é
“ela sim concebida (como modalidade diversa da desapropriação
por necessidade ou utilidade pública) na elaboração
constitucional, mas a corrente conservadora não aceita a
inovação e pretende identificá-la com as fórmulas tradicionais,
incompatíveis, por sua natureza com a revenda do bem
expropriado. Para vender tal resistência, manifestada na Câmara
dos Deputados, Hermes Lima redigiu, emenda ao artigo 147 da
Constituição, libertando-a da remissão ao artigo 141, parágrafo
16, como membro da Comissão de Juristas, organizada pelo
ministro Nereu Ramos em 1956278.”
Com este procedimento procurava-se estabelecer formas de pagamento
estabelecidas em lei, consoante, aliás, na interpretação do jurisconsulto, ao espírito do
legislador constitucional. Já, em outra direção, o substitutivo do deputado José Jofilly,
que ganhara o apoio público de Jânio previa a indenização prévia em dinheiro pelo valor
declarado pelo proprietário para fins de Imposto Territorial Rural, um valor sempre
muito abaixo do preço de mercado279.
Nesse contexto, prefere-se neste trabalho, a leitura feita por José de Souza
Martins, em oposição a de Oldair Zanatta, por exemplo. Este último, afirma de forma
“ufanante”, que
“a Constituição de 1946 inaugurou uma nova fase na evolução do
sistema fundiário brasileiro ao consignar no seu artigo 147, que o
uso da propriedade será condicionado ao bem estar social.”280
José de Souza Martins argumenta no sentido contrário, e corretamente, de que
“a Constituição de 1946 não alterou substancialmente esse pacto,
antes o reforçou (...). Uma garantia essencial da ordem era o
dispositivo constitucional que estabelecia como restrição às
desapropriações de terra para fins sociais (inclusive, pois, a
reforma agrária) a obrigatoriedade da indenização prévia e em
dinheiro ao proprietário. Esse dispositivo tornava a reforma
agrária economicamente inviável. Sendo dispositivo da

278 Citado em CAMARGO (1983, p. 175).


279 Idem, p. 176.
280 Zanatta, (op. cit., p. 12)

148
Constituição, tornava essa possibilidade ainda mais remota (...).”
281

Enfim, tratava-se de assegurar constitucionalmente que as terras em poder dos


latifúndios seriam intocadas. Neste sentido, pode-se afirmar que a Constituição de 1946,
por trás de uma fachada “democrática” - democrática, aliás, no sentido de ter sido
promulgada na conjuntura que sucedeu à ditadura do Estado Novo - na verdade, era
absolutamente autoritária no que se referia à questão da propriedade fundiária. Como de
outras vezes em que se tentou a reestruturação do ordenamento jurídico-institucional no
País, como em 1822, 1850, 1889 e 1930, as oligarquias latifundiárias aparentemente
abrem mão de suas prerrogativas, na Lei, para assegurá-las, na prática. Ainda assim,
utilizando-se sempre, e sistematicamente, dos artifícios amplamente permitidos pela
hermenêutica jurídica.
No que toca aos problemas fundiários, uma análise atenta de outros artigos da
Constituição de 1946 não deixa margem à dúvidas quanto à manutenção da mesma
estratégia jurídica e política adotada após a aprovação da Lei 601 de 1850: a de deslocar
a questão da legitimação de todas as terras em domínio particular e da arrecadação das
terras públicas, para o campo amorfo e pantonoso da colonização oficial, sempre em
áreas externas ao latifúndio. Projeto esse, como sempre, apresentado, sob as vestes de
uma verdadeira política de colonização, bem-estar e justiça social.
Tal caso fica evidente no artigo 156 e parágrafos da Constituição de 1946:
“Art. 156. A lei facilitará a fixação do homem no campo
estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento de
terras públicas. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e,
dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e os
desempregados.”
 1o Os Estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas,
que nelas tenham morada habitual, preferência para aquisição
até 25 hectares.
 2 o Sem prévia autorização do Senado Federal não se fará
qualquer alienação ou concessão de terras públicas com área
superior a10.000 hectares.
 3o Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano,
ocupar, por dez anos ininterruptos, sem oposição nem
reconhecimento do domínio alheio, trecho de terra não superior a
25 hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele
morada, adquirir-lhe-á a propriedade, mediante sentença
declaratória devidamente transcrita.”
A referência “à preferência para aquisição” funda-se no fato de que as terras
devolutas, públicas, não são, legalmente, passíveis de usucapião (assunto tratado no  3o
deste mesmo artigo); por isso tinham que ser adquiridas por venda e não adquiridas por
sentença declaratória, como no caso da ocupação mansa e pacífica, no tempo, e sem ser

281 MARTINS, J.S. (1994., p.72)

149
perturbada, de terras particulares. Neste caso, o suposto é de que estas terras
“particulares” não estavam “cumprindo a sua função social”. Ou seja, os conceitos e
preceitos jurídicos são rigorosamente definidos, o que implica a aceitação da hipótese
de que, quando se trata da legislação sobre a propriedade territorial, não ocorrem
equívocos involuntários.
Mais uma vez , fica claro o zelo em assegurar a manutenção do privilégio de
acesso às terras públicas, em áreas de até 10.000 hectares; cuja coincidência com a
mesma filosofia posta na Lei 601 pelos, então, grandes posseiros, não pode ser atribuída
a mero exercício de rotina. Mais uma vez, trata-se de assegurar privilégios de grandes
posseiros e de excluir os pequenos. Observe-se que o parágrafo terceiro, referido acima,
é repleto de artifícios jurídicos que, em última análise, acabarão por anular o suposto
direito a propriedade por ele assegurado aos pequenos posseiros, em termos do
Usucapião. A exigência de que a aquisição do direito de propriedade, no caso do
usucapião, apenas poderá ser assegurada por sentença declaratória devidamente
transcrita, o pressupõe a instalação do processo judicial, com a exigência de todas as
formalidades a este necessárias. Como se verá, muitos pequenos posseiros, que
objetivamente tinham direito a esse benefício nos termos do usucapião, por não o terem
requerido (ou sido impedidos de o requerer) pela ação deliberada de terceiros, inclusive,
por expulsões, etc.), Não puderam obter as necessárias “sentenças declaratórias”,
acabaram dando ensejo à expropriação por via registral e da grilagem especializada.
Além de se tornarem, esses pequenos posseiros, objeto da violência privada,
sobretudo na segunda metade deste século, cujo objetivo era a expulsão e a
descaracterização de suas posses, isto é, de seus direitos, como se verá adiante.
Cabe aqui, apenas acrescentar alguma ilustração do que é o procedimento
normal de titulação de terras no Brasil de hoje. Em estudo sobre o Vale do
Jequitinhonha, em Minas Gerais, Maria Aparecida de Moraes Silva reconstruiu este
procedimento-padrão através do qual as terras de antigos ocupantes são expropriadas:

“o cenário amedrontou os camponeses das partes baixas (dos chapadões), das


veredas e das grotas. A linguagem comum era de que ao governo pertenciam
todas aquelas terras e de que ele tomaria tudo.(...) O medo de ficar sem as
terras fez com que os camponeses as “vendessem”, a qualquer preço, aos
compradores paulistas. (...) As terras compradas foram em seguida revendidas
às grandes companhias. (...) Nesta venda, ocorreram as retificações de
áreas, um ardil jurídico para disfarçar o roubo das terras282.”

A empresa estatal Rural Minas faz a medição e legitimação (expede um título de


domínio) e o Cartório de Registro de Imóveis faz a inscrição titulatória. Pagam-se
pequenas posses com área em torno de 10 hectares e titulam-se latifúndios de até 5.000
hectares e mais283

282 Cf. SILVA, M.A.M., Fome: a marca de uma história. In.: Maria Antonieta M. Galeazzi (org.) Segurança
Alimentar e Cidadania, 1996, pp. 41-42. Grifos nossos.
283 Id. Ibidem.

150
Após a II Guerra Mundial, especialmente no que se estende de 1946 a 1964, a
par com a nova conjuntura das tensões internacionais, colocava-se o problema da
“Guerra Fria” e, com ele, o da “nova” geopolítica dos grandes blocos ideológicos. Neste
contexto, a economia brasileira desenvolve-se e consolida seu processo de
industrialização, como parte do Bloco Ocidental. Nesse amplo processo de
desenvolvimento e integração hemisférica, a agricultura brasileira expande-se,
sobretudo, pela incorporação de novas áreas produtivas, especialmente, ao longo das
rodovias construídas ou simplesmente projetadas; fato que viria agudizar ainda mais a
situação fundiária do país.
Nesse contexto abre-se um amplo debate na Sociedade sobre a justificativa
social da forma atual da propriedade da terra. O presidente Jânio afirma no Cairo que “a
era das vastas plantações está terminando.”284
Enquanto a propriedade da indústria não é objeto de questionamento, apesar de o
crescimento industrial ser concentrador de renda e fazer-se as expensas de apropriação
privada de vultosos fundos públicos, a propriedade da grande lavoura é incriminada em
amplos setores da Sociedade Civil, a que faz coro a Mensagem Presidencial de 1961 e a
conseqüente criação do Grupo de Trabalho para o Estatuto da Terra e o apoio à ação
parlamentar do deputado José Jofilly, da ala jovem do PSD e da Frente Parlamentar
Nacionalista como Relator da Comissão Especial da Reforma Agrária. O próprio vice-
presidente da Associação Comercial e Deputado Federal pela Paraíba, sai a público para
defender medidas semelhantes à da Revisão Agrária do Governador Carvalho Pinto, de
São Paulo. E o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, promove Simpósio, em cujas
conclusões, insere esta recomendação:
“Não é possível recuperar o homem do campo no Brasil, isto é,
65% de sua população sem lhe dar o instrumento por excelência
que é a propriedade da terra. (...) A reforma agrária é um
instrumento eficaz de democratização e promoção social de que
lançam mão hoje os governos dos mais diversos matizes (...)
todos obedientes à necessidade de ascensão das massas
camponesas, que é uma das constantes de nossa época.285
Os movimentos sociais e a resistência dos pequenos posseiros e proprietários -
especialmente contra a sua expulsão de áreas de terras devolutas que ocupavam, na
maioria das vezes, há muitas gerações - que sempre existiram no país e que sempre
foram objeto da repressão oficial ou da violência quotidiana e privada dos latifundiários,
entrará na “era da guerra fria”, sendo “ipso facto” incorporadas ao campo da nova
geopolítica da segunda metade do século. Por essa via, a questão agrária, já tantas vezes
tratada como caso de polícia, de banditismo social ou de fanatismo religioso, passa a
ganhar “status” de “ameaça à estabilidade política e à segurança nacional e
hemisférica.”

284 Cf. Jornal do Comércio, 12 de junho de 1959, cit. em CAMARGO (1983, p. 170.).
285 Apud. CAMARGO (1983, pp. 172-173).

151
Neste novo contexto, o poder dos latifúndios assume, igualmente, a nova
vitalidade de aliados paramilitares na “guerra suja” que se anunciara. O problema
fundiário, efetivamente um problema social, passa, nessa conjuntura, a ser encarado
como um problema adstrito à segurança interna, sendo, por isso, militarizado.
Os posseiros, especialmente, aqueles que tentam lutar por seus direitos à terra,
assumem, juntamente com seus aliados - políticos, intelectuais, sindicalistas, membros
do clero, etc. - a condição de “inimigos internos”.
São os novos tempos que se avizinham, e que trarão vinte anos de regime
autoritário, nos quais a questão fundiária, nunca resolvida até então, será tratada e
retratada com as cores, ora eufóricas, da integração e desenvolvimento nacionais; ora
sombrias, enquanto grave ameaça à segurança interna e hemisférica. Neste contexto, da
questão fundiária e da luta pela terra, a legislação e o privilégio, têm um novo
fundamento: o serviço de defesa da pátria.

152
CAPÍTULO 4

A POLÍTICA FUNDIÁRIA DO REGIME MILITAR: 1964-1984

1. Antecedentes Mediatos da Conspiração Militar e Questão Agrária


Não caberia, num estudo desta natureza e tendo em consideração os seus
objetivos específicos, uma análise detalhada das diversas conjunturas que, no decorrer
de um razoável período de tempo, implicaram na conspiração de 1964.
Entretanto, o tratamento dado pelos Governos Militares à questão da luta pelo
acesso à propriedade da terra e pelas condições de trabalho no campo, por um lado, e a
compreensão, nesse contexto, da Política Fundiária posta em movimento, por outro
lado, não poderiam ser adequadamente fundamentadas sem uma referência, ainda que
“en passant”, às diversas conjunturas e movimentos que se vinham gestando no País
desde, pelo menos, o segundo Pós-Guerra; e que, finalmente, implicaram na vitoriosa
conspiração, em 1964, que repôs no poder as forças mais conservadoras do país286.
Na conjuntura deste período, certamente, a questão agrária era relevante.
Entretanto, apenas uma, entre outras questões, igualmente relevantes, como a cambial, a
da remessa de lucros, a da nacionalização de empresas, especialmente as refinarias de
petróleo, etc. Em suma, tratava-se de um conjunto de questões econômicas e políticas
importantes, e que transcendiam, em muito, aos problemas estritamente ligados à
questão fundiária.
Tendo-se em consideração os profundos e complexos problemas políticos e
econômicos, entre outros - tanto internos quanto nas relações com o exterior -
envolvidos na conjuntura do segundo pós-guerra, pode-se afirmar com certa
tranqüilidade, que o destaque assumido pela questão agrária, apesar das contradições e
da gravidade que, efetivamente, apresentava, estava, apesar disso, muito mais associado
à alegada possibilidade da pobreza rural vir a se constituir em base para uma possível

286Para uma descrição e análise detalhadas, desse período, remetemos o leitor aos seguintes estudos, entre outros
também relevantes: SKIDMORE, T (1994; 1982-1996 E 1988/1994); BASBAUM, L. (1995-1996); CARONE, (1980
e 1982); ALBUQUERQUE. (1984). Para um estudo mais detalhado da conjuntura imediata da Conspiração, ver o
livro de “Diários e Memórias” do Senador Auro Moura Andrade, publicado postumamente, em 1985, por Glauco
Carneiro (MOURA ANDRADE, 1985).

153
revolução, de fundo agrário e de caráter socialista, nos moldes das Revoluções Chinesa
ou Cubana, do que a qualquer outra pretensão dos conspiradores em promover a “justa
e eqüitativa distribuição da terra”.
Aquela argumentação, aliás, seria a tecla, reiteradamente acionada, tanto pelos
militares287 e grupos conservadores do Brasil, quanto por alguns organismos
internacionais, especialmente dos Estados Unidos288, como a “Agência Internacional de
Desenvolvimento” (AID) e a “Aliança Para o Progresso 289 ” que exerceram forte
influência, na época, sobre os países latino-americanos, entre eles o Brasil .
Por outro lado, a sucessão de golpes e tentativas de golpes de estado, no Brasil,
deixam evidente que a luta pelo poder, que se travava no País, tinha razões que
transcendiam, em muito, a questão agrária e a pobreza rural, embora não fosse a estas
indiferentes. Somando-se a isto o contexto do acirramento das contradições políticas e
ideológicas engendradas no âmbito da Guerra Fria290, pode-se ter uma noção mais ou
menos objetiva da gravidade dos problemas envolvidos no período. Tratavam-se, no
caso brasileiro, do golpe de 1945, que pôs fim ao Estado Novo; da tentativa de golpe de
1954, frustrada pelo suicídio de Vargas, e, sobretudo, pela vigorosa reação popular
contra os conspiradores; da nova tentativa de golpe, contra o Governo Kubitschek291,
também sufocada; da renúncia do Presidente Jânio Quadros, após, aparentemente,
afastar-se das expectativas políticas da UDN e da implementação do programa de
austeridade do FMI; e, finalmente, da tentativa de golpe para impedir a posse, legítima
e constitucional, do Vice-Presidente João Goulart, em 1961.

287 Como se pode verificar pela seguinte passagem do “Manifesto dos Ministros Militares”, de 30 de agosto de
1961, apresentando ao Congresso Nacional as alegações para impedir o retorno e, conseqüentemente, a posse do
Vice-Presidente João Goulart: “(...) As Forças Armadas do Brasil, através da palavra autorizada de seus
Ministros, manifestam à Sua Excelência o Sr. Presidente da República (Ranieri Mazzilli) como já foi
amplamente divulgado, a absoluta inconveniência, na atual situação, do regresso ao País do Vice-
Presidente, Sr. João Goulart.” (Vem) “(...) agora com aquiescência do Sr. Presidente da República,(...)
ressaltar, de público, algumas das muitas razões em que fundamentam aquele juízo (...) Já ao tempo
em que exercia o cargo de Ministro do Trabalho, o Sr. João Goulart demonstrara, bem às claras, suas
tendências ideológicas, incentivando e mesmo promovendo agitações(...) E não menos verdadeira foi a
infiltração que, por essa época, se processou no organismo daquele Ministério, até em pontos-chaves de
sua administração( ...) de ativos e conhecidos agentes do comunismo internacional, além de
incontáveis elementos esquerdistas”. (In.: MOURA ANDRADE, op. cit. pp. 66-67. Grifos nossos).
288 A respeito, especificamente, da manipulação ideológica dos problemas econômicos, sociais, políticos, etc.
especialmente com relação ao espaço latino-americano, ver o excelente estudo de KATCHATUROV, K.A. (1980),
muito particularmente, os Capítulos II, III e IV. Com relação, especificamente, à doutrina da Segurança Nacional, e o
caso do Brasil, ver COMBLIN, J. (1978), especialmente os capítulos 1, 2 e 4.
289 Formulado em 1961, o Programa da “Aliança para o Progresso” era parte fundamental da Política de “Novas
Fronteiras” do Governo Kennedy. Na verdade este Programa representava a continuação, sob novas formas, dos
mesmos princípios formulados pela “Doutrina Monroe” (de 1833) nunca abandonada, e da Política do “Big-Stick”,
instituída no Governo Roosevelt, de 1901-1909 (ver. KATCHATUROV, op. cit. Capítulo 1).
290 O “Manifesto dos Ministros Militares”, acima referido, assim se referia a este problema: “Ora, no quadro de
grave tensão internacional, em que vive dramaticamente o mundo de nossos dias, com a comprovada
intervenção do comunismo internacional na vida das nações democráticas e, sobretudo, das mais
fracas, avultam, à luz meridiana os tremendos perigos a que se acha exposto o Brasil” com a possibilidade
da posse de João Goulart na Presidência da República. (In.: MOURA ANDRADE, op. cit. 67. Grifos nossos). José
de Souza Martins localiza, com propriedade, a relevância do contexto criado pela “Guerra Fria” no sentido da
radicalidade com que as lutas camponesas passaram a ser tratadas e reprimidas pelo Estado brasileiro no segundo
pós-guerra. Ver MARTINS, J.S. (1994).
291 Ver a respeito desta tentativa de golpe, o conjunto de documentos publicados por Edgard Carone (CARONE,
1980: 142 a 148). Ver também (MOURA ANDRADE, op. cit., especialmente as páginas 27-31).

154
Todos esses fatos são indicadores bastante objetivos de que o Golpe de 1964 não
era um fato isolado, nem muito menos novo, mas que, ao contrário, apenas representou
o momento vitorioso desse conjunto de tentativas frustradas de retomada do poder pelas
elites mais conservadoras do país, amplamente comprometidas com um determinado
projeto, supostamente liberal, de “abertura” e internacionalização da economia
brasileira, mas, sobretudo, de alinhamento do Brasil no âmbito da aliança Ocidental. Ou
seja, no âmbito do “bloco anti-soviético”.
Neste sentido, é evidente que não se tratava, apenas, de um Golpe,
especificamente voltado contra o Governo de João Goulart292, fundado no fato de que o
Presidente ter-se-ia guinado para as esquerdas, ou de haver sido deflagrado em
decorrência da inabilidade política do Presidente para lidar com uma crise,
supostamente, conjuntural, como argumenta Skidmore293. Este era, certamente, o
pretexto, nunca o motivo da conspiração. Tratava-se, como os fatos ulteriores vieram a
deixar evidente, de um golpe contra qualquer aspiração à auto-determinação política do
País, e sobretudo, contra à escolha, que aparentemente estava sendo feita, por uma via
democrática e independente de desenvolvimento da economia nacional, e de não-
alinhamento no campo político. Tudo isto feria os princípios consagrados na “Doutrina
Monroe”, nunca abandonada, especialmente tendo-se em consideração a conjuntura da
“Guerra Fria” e da alegada “ameaça do comunismo internacional”.
Os motivos294 e, sobretudo, os objetivos do Golpe, ao que as evidências parecem
indicar, eram outros, e estavam fortemente marcados pelas posições políticas e
ideológicas derivadas da “doutrina Monroe” e, em especial, da sua concretização na
“política preventiva”, estruturada no início do século, e que lançava as primeiras bases
para o “direito” de intervenção dos Estados Unidos nos assuntos internos dos países
latino-americanos sob o pretexto de combater “a anarquia reinante e as

292 O Senador Auro de Moura Andrade, presidente do Senado e do Congresso Nacional, na oportunidade da
renúncia de Jânio Quadros, assim avalia aquele fato: “Está claro que João Goulart acabaria sendo o
herdeiro dos males advindos daquele grande crime praticado por Jânio Quadros (...). Foi ele quem,
com sua fuga aos deveres, desamparou e cassou a própria geração e a geração de nossos filhos, os
direitos, as garantias, as liberdades de nosso povo no dia em que praticou o supremo crime da
infidelidade à democracia. Todos os jovens que até hoje não puderam votar num Presidente da
República saibam que isto se dá pelo ato irresponsável do Sr. Jânio Quadros”. Este depoimento, de
Auro Moura Andrade deixa claro que o Golpe de 1964 ganha vigor nesta conjuntura. O importante, no depoimento,
não é a acusação ao Sr. Jânio Quadros, mas o fato de localizar, na sua renúncia, o terreno fértil, o pretexto, como se
afirma neste trabalho, para a aceleração do movimento conspiratório. Por outro lado, fica sub-explícito, neste mesmo
depoimento, o fato de que João Goulart e o seu Governo não foram a causa nem provocaram o Golpe, mas, sim, que
foram surpreendidos por este.
293 SKIDMORE, T. (1988). Ver, especialmente, os capítulos I e II, onde, apesar de uma vigorosa e sistemática
análise de vasto material empírico e de ampla literatura, Skidmore procura argumentar no sentido de minimizar o
papel dos Estados Unidos nos acontecimentos de 1964, tendendo a argumentar no sentido de que, caso o Presidente
João Goulart fosse um político mais hábil, poderia ter evitado a sua deposição e o Golpe de Estado. Entretanto, outros
trabalhos, especialmente, o excelente estudo-denúncia de Marcos Sá Corrêa (CORRÊA, 1977), fundamentado em
vasta documentação, inclusive do Departamento de Estado Norte Americano e da CIA, põe em evidência a hipótese
contrária.
294 Segundo Ianni vários eram os motivos alegados para o Golpe: “A inflação, a queda da taxa de inversões, as
greves operárias, a politização crescente das classes assalariadas, na cidade e no campo, a luta pelas
reformas de base (agrária, bancária, habitacional, educacional e outras), vários foram os motivos
alegados pelo imperialismo e seus aliados no País, para justificar e apressar o Golpe de Estado de 31 de
março da 1964”. (IANNI, 1979(a), p. 17)

155
‘transformações políticas indesejáveis’, e, mais tarde (...) a ‘ameaça do
comunismo.”295 Essas posições doutrinárias dos Estados Unidos assumiram grande
relevância no contexto da Guerra Fria.
Por outro lado, a expressão ideológica e unificadora dessa verdadeira doutrina de
ação política, fundava-se no discurso, aparentemente científico, mas prosélito, do
anticomunismo, baseado na falsa oposição entre “democracia e socialismo”296, e
tendo a sua estratégia pragmática de ação, “teoricamente”, elaborada com base na
concepção do combate ao “inimigo interno” e fundado na doutrina da Segurança
Nacional e na defesa hemisférica297. Pode-se mesmo afirmar que essa doutrina era a
base de uma espécie particular de “marketing político” do capitalismo ou, mais
exatamente, do capitalismo norte-americano. Por outro lado, como argumenta Thomas
Skidmore298, os problemas e as questões associadas à conspiração de 1964 vinham-se
desenvolvendo desde longa data:

“O desenlace do Governo Vargas de 1951-54 criou o contexto


político e as linhas de ação para a década seguinte. Havia, em
primeiro lugar, a questão do nacionalismo econômico. Como o
Brasil deveria tratar os investidores estrangeiros? Que áreas
(como petróleo, minérios, etc.) deveriam ser reservadas para o
capital nacional, público ou privado? Como poderia o país
maximizar seus ganhos com o comércio exterior?
(...)
“As relações trabalhistas no setor agrícola também
reclamaram atenção durante o governo de Getúlio Vargas. No
início de 1954 o presidente autorizou o ministro do Trabalho, João
Goulart, a dar começo à organização dos trabalhadores agrícolas
do estado de São Paulo. O maior índice de pobreza do Brasil era
apresentado no campo, onde a renda e os serviços públicos eram
muito precários em relação aos das cidades. Faltava, entretanto,
a Vargas, qualquer apoio político mobilizável para aquela

295 KATCHATUROV (Op. cit., p.19).


296 Essa falsa dicotomia é explicitamente utilizada na Mensagem 33, do General Humberto de Alencar Castelo
Branco, que encaminha a Lei 4.504, o Estatuto da Terra, ao Congresso Nacional, ao tentar caracterizar as duas
alternativas possíveis, segundo os teóricos do documento, para a Reforma Agrária. (BRASIL. Presidência da
República. Brasília: 1964).
297 Esses fenômenos são explicitamente reconhecidos por Skidmore: “Os conspiradores sustentavam idéias
marcadamente anticomunistas desenvolvidas na ESG (Escola Superior de Guerra), segundo o modelo do
National War College dos Estados Unidos. No Brasil a ESG já era um centro altamente influente de
estudos políticos através de seus cursos de um ano de duração freqüentados por igual número de civis e
militares destacados em suas áreas de atividade. Da doutrina ali ensinada, constava a teoria da ‘guerra
interna’ introduzida pelos militares no Brasil, por influência da Revolução Cubana. Segundo essa teoria, a
principal ameaça vinha não da invasão externa, mas dos sindicatos trabalhistas de esquerda, dos
intelectuais, das organizações de trabalhadores rurais, do clero, dos estudantes e dos professores
universitários. Todas essas categorias representavam séria ameaça para o país e por isso, teriam
que ser todas elas neutralizadas ou extirpadas através de ações DECISIVAS.” (SKIDMORE,
1988/1994, p. 22. Grifos nossos).
298 A respeito das conjunturas, especialmente, políticas, do amplo período que vai do Governo Vargas, em 1930 à
Tancredo Neves, em 1985, ver os excelentes trabalhos de Thomas Skidmore (SKIDMORE, 1988/1994 e 1982/1996).
Foi dos trabalhos de deste autor que retiramos o termo “conspiração” que é usado, neste estudo, para se referir ao
movimento que derrubou o Governo Constitucional de João Goulart.

156
iniciativa. Por outro lado os grandes proprietários de terras
estavam bem representados em todos os níveis
governamentais, daí resultando o aumento do número dos
inimigos ativos do presidente sem que conseguisse realizar
qualquer reforma.”299
É nesse contexto, que a resistência dos pequenos agricultores sem terra ou com
pouca terra, dos trabalhadores rurais e, sobretudo, dos posseiros, começa, no pós-guerra,
a assumir novas formas de organização e de luta. A politização destas lutas sociais no
campo começa a assustar, cada vez mais, as oligarquias agrárias e as elites políticas
conservadoras, em particular, os militares. Sobretudo, na medida em que passava a
articular os movimentos e reivindicações rurais com as lutas urbanas, especialmente no
âmbito sindical, oferecendo, desta forma, maior organicidade às reivindicações de
acesso às terras, em particular, as devolutas. Por outro lado, ganha certa expressão as
reivindicações de direitos trabalhistas e a extensão destes ao campo300, particularmente
no Nordeste.
Mais uma vez, e desta vez de forma sistemática e organizada, os pequenos
posseiros e trabalhadores rurais procuram garantir o seu direito de permanência ou
acesso à terra e aos frutos do seu trabalho, em franca oposição ao livre acesso, que
sempre tiveram à terra e à subordinação do trabalho, os latifundiários, os “grandes
posseiros” privilegiados. Nesse sentido, tem razão José de Souza Martins ao afirmar
que:
“Depois de décadas de imobilismo, quebrado eventualmente
pelos movimentos messiânicos e por anárquicas manifestações
de banditismo rural no Nordeste, mas também em São Paulo e
Santa Catarina, os trabalhadores rurais de várias regiões, durante
os anos cinqüenta, começaram a manifestarem-se de modo
propriamente político.”301
O que se quer realçar, com as referências acima, é o fato de que a luta pela terra,
em particular, e os movimentos de resistência dos pobres do campo, de modo geral,
sempre estiveram presentes no Brasil. Portanto, tratavam-se de questões e de problemas
que não eram, em nenhum sentido, uma novidade no contexto da conspiração de 1964,
nem, menos ainda, produtos de ações ou de omissões deliberadas do Governo João
Goulart.
A novidade, em relação ao problema, residia no fato de que as reivindicações
dos pequenos posseiros, pequenos proprietários e trabalhadores rurais passaram a
assumir formas reivindicatórias organizadas e públicas, fugindo, assim, ao estrito
arbítrio da patronagem. Até então, a luta efetiva pela propriedade territorial e pela

299 SKIDMORE, T. (1988/1994, pp. 26 e 27). Grifos nossos.


300 Que, como se viu na citação acima, havia sido levantada na gestão Vargas, em 1954, dando origem à queda do
Ministro do Trabalho, João Goulart.
301 MARTINS, J. S. (1994, p. 60). Grifos nossos.

157
defesa contra a exploração do trabalho, restrita ao âmbito dos grupos privilegiados,
sempre foram, de uma ou de outra formas, resolvidos, como se viu nos capítulos
anteriores, ou nos bastidores da administração do Estado, ou fundadas na violência
direta dos latifundiários e poderosos. E sempre em detrimento da massa dos pequenos
posseiros e dos pobres do campo. Estes, na melhor das hipóteses, ou eram empurrados
para regiões cada vez mais distantes, ou assimilados como agregados, “arrendatários”
ou “parceiros”302. Quando não eram pura e simplesmente eliminados fisicamente,
situação, aliás, não desprezível em qualquer análise desta problemática, considerando-se
a sua magnitude e seu significado nos processos de expropriação territorial.
Como foi amplamente discutido no capítulo 2, ao deslocar a questão da
legalização da propriedade, pretendia pela Lei 601 de 1850, para a alternativa à
colonização (reduzida esta, ou ao colonato nas fazendas de café; ou ao
“desbravamento”), o latifúndio empurrou, igualmente, o problema da aquisição da
propriedade da terra, pelos pobres, para distante de suas áreas de influência ou interesse.
E, sobretudo, para as margens das determinações legais.
Era, como pôde ser verificado em detalhes nos capítulos anteriores,
formalmente, reconhecido o direito ao acesso à propriedade terra pelos pequenos
posseiros, desde que este direito fosse exercido de forma estritamente limitada, tanto em
termos da dimensão das propriedades, quanto realizado em regiões afastadas dos
domínios do latifúndio: o que significava uma referência clara à colonização 303 no
sentido de ocupação e desbravamento das fronteiras. A outra alternativa, a esta
associada, era a incorporação de imigrantes, inicialmente estrangeiros e depois, também,
nacionais, às grandes explorações. Em síntese, o acesso à terra sempre esteve, na
prática, vedado ao grosso da população pobre do campo, embora fosse, formalmente,
assegurado.
O fato é que, juridicamente, não havia como assegurar os direitos de propriedade
para as grandes posses sem assegurar o mesmo direito, ainda que formalmente, para
todas as posses, independentemente dos seus respectivos tamanhos: Portanto, teriam
que ser extensivos, também, às pequenas posses. Tratava-se de manter, pelo menos
formalmente, o instituto jurídico da “isonomia”, um dos pilares do Direito.

302 Ver a este respeito, entre muitos outros, por exemplo, IANNI (1984).
303José Vicente Tavares dos Santos, em seu excelente artigo “Colonização de novas terras: a continuidade de
uma forma de dominação, do Estado Novo à Nova República.” (SANTOS, 1995), coloca com muita propriedade o
sentido do processo de colonização, tal como proposto e posto em prática no Brasil, nos seguintes termos: “Há trinta
anos, a sociedade brasileira aguarda a implementação ampla da reforma agrária prevista no Estatuto da
Terra, razão suficiente para analisar o seu alcance pelo seu inverso, ou seja, o processo de
colonização de novas terras, o qual não supõe uma redefinição da propriedade fundiária, mas a
incorporação de novas terras, devolutas ou públicas, ao processo de ocupação humana do território”
(loc. cit., p. 39. Grifos nossos). Ou seja, sempre em terras afastadas dos domínios do latifúndio. A respeito desta
questão, ver, além do artigo citado, o excelente estudo de José Vicente Tavares dos Santos, Matuchos: Exclusão e
Luta - do Sul para a Amazônia (SANTOS, 1993) e MINC (1985).

158
Por outro lado, os direitos dos pequenos posseiros, embora, diante dessa
contingência legal, estivessem, juridicamente assegurados, acabaram por ser
efetivamente anulados. Sobretudo, na medida em que apenas poderiam ser
materializados pela via judiciária, ou seja, pela respectiva proposição do processo de
legitimação e registro, ou do requerimento do direito de usucapião.
Assim, por exemplo, especialmente no caso da aquisição de propriedade pela via
do usucapião - que era, basicamente, a única forma efetiva do pequeno posseiro tentar304
adquirir a propriedade sobre terras inexploradas ou abandonadas - apenas poderia ser
alcançada pela alternativa judicial, na medida em que este processo dependia de
sentenças declaratórias. Sem este procedimento processual, os pequenos posseiros
continuavam apenas com o chamado direito real de uso: ou seja, permaneciam meros
posseiros.
Como se argüiu no capítulo anterior, de diversas formas, mas sobretudo, pela via
registral - especialmente após a instituição do Registro Torrens - os posseiros poderiam
ter a sua “presunção” de direito real de posse305, anulada. Por isso, a ação primeira dos
supostos proprietários de terras ocupadas por posses, mas sobretudo, dos grileiros,
sempre foi a destruição de tudo quanto pudesse caracterizar ou configurar as posses.
Quando não do puro e simples assassinato dos posseiros e seus familiares e da
respectiva ocultação dos cadáveres.
Quanto à legitimação de posses, que se destinavam às posses estabelecidas em
terras devolutas, e sobre as quais era vedada a alternativa ao usucapião, exigia-se todo
um rito jurídico e de registro, que, efetivamente, sempre dificultou, quando não,
simplesmente, afastou, desta alternativa, a maioria dos pequenos posseiros. Nos termos
da Lei 601 de 1850, como foi visto no capítulo 2, cabia aos posseiros a iniciativa deste
processo. Em face do sistemático fracasso da política de registros e de arrecadação de
terras devolutas, analisados naquele capítulo e no capítulo 3, a maioria das posses
permaneceram sem registro, por um lado e, por outro, propagando-se de diversas formas
e dimensões, por todas as regiões do País. Por suposto, um dos principais móveis do
Estatuto da Terra seria regular essa forma “ilegal” de ocupação de terras devolutas, que
se vinha agravando desde 1850. A partir da regulamentação contida no Estatuto da
Terra, fundamentalmente, a única forma legal de se adquirir a propriedade fundada na

304 Aqui se diz “tentar” porque, como é fato conhecido, e como bem registra o Documento da CONTAG “Posição
da CONTAG Sobre o Programa Nacional de Política Fundiária”: “Historicamente, o usucapião foi
sempre considerado ineficaz no que se refere à propriedade particular, para garantir ao posseiro a sua
aquisição quando verificado o conflito pela posse da terra, eis que o Direito Possessório, desde o Direito
Romano, caracteriza esse conflito como oposição à posse, tornando, desse modo, inaplicável o
Usucapião”. (CONTAG, 1982, p. 7. Grifos nossos).
305 Veja-se a este respeito, por exemplo, o insuspeito comentário de Paulo Yokota, Presidente do INCRA no último
Governo Militar, ao afirmar que: “A evolução da legislação agrária reconheceu sempre na posse um
elemento gerador de uma expectativa de direito, desde que obedecidas as condições mínimas de
exploração agropecuária efetiva e morada habitual” (YOKOTA, s.d., p. 1). Na página seguinte o Presidente do
INCRA volta a se referir a estas posses, como posses legítimas e que teriam que ser asseguradas nos processos
discriminatórios. Esta questão voltará a ser discutida no decorrer deste capítulo, na análise do Estatuto da Terra, neste
e no próximo capítulo.

159
posse mansa e pacífica de terras devolutas, que corresponderia à “legitimação das
posses”, seria através dos processos discriminatórios. Este assunto será discutido
detalhadamente neste capítulo.
Na verdade, foi através dessas alternativas que as grandes posses sempre se
consolidaram e legitimaram, em verdadeiros e sistemáticos processos de grilagem
especializada306 das terras públicas. É evidente que estas ações, também tiveram seus
efeitos sobre uma infinidade de pequenas posses mansas e pacíficas de pequenos
produtores familiares, que sempre se instalaram pelos sertões do Brasil, desde tempos
imemoriais. Assim, o privilégio na apropriação e legitimação, por um lado, e a violência
sistemática contra os pequenos posseiros, por outro, sempre foram os meios para a
consolidação dos latifúndios em todos os rincões deste país e a causa original dos
conflitos pela terra no Brasil.
Em suma, a rápida recapitulação, feita acima, das formas de luta pela terra e de
acesso à propriedade rural, já estudadas nos capítulos anteriores, teve apenas o objetivo
de introduzir a assertiva de que, no Brasil, para os pequenos posseiros, a luta pela terra,
sempre se constituiu em uma guerra constante, permanente, sistemática, sem fronteiras.
Sobretudo, uma guerra sem quartel, sem regras jurídicas definidas, sem ética. Sempre
foi uma guerra travada fora da Lei: uma “guerra suja”307.
Afora os casos limites de lutas dos pobres rurais contra a opressão por meio de
movimentos messiânicos, cangaços etc., que poderiam ser considerados como uma
espécie de “proto-história” da resistência dos pobres do campo no Brasil, a sua luta pela
terra e pelo trabalho começa a organizar-se, politicamente, na segunda metade deste
século. Até porque, com o desenvolvimento econômico do país, especialmente após a
Segunda Guerra, e sobretudo no período Kubitschek, em face da transferência da
Capital Federal para a região Centro-Oeste e do intensivo programa de rodovias
implementado, passou-se, cada vez mais, a apertar o cerco contra a massa de pequenos
posseiros dos distantes sertões, sobretudo, na medida em que vastas áreas do território
brasileiro passaram a ser incorporadas à economia nacional, senão produtivamente, pelo
menos especulativamente, pela implementação de grandes projetos de obras públicas,
especialmente, ferrovias, açudes e rodovias308.

306 No capítulo 5 são feitas referências a respeito da grilagem no Brasil pós-1964.


307 Ver a respeito dessas formas específicas de Grilagem e Violência, entre muitos outros, os trabalhos de ASSELIN,
V (1982); MARTINS, E. (1979 e 1972 ); PUREZA (1982); KOTSCHO (1982); PEREIRA (1971) e MOVIMENTO
DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (1987).
308 Neste sentido, vale a pena, mais uma vez, citar o Presidente do INCRA Paulo Yokota, ao proclamar
elogiosamente que: “Nem todos os brasileiros possuem a clara consciência de que nestas três
décadas, o Brasil dobrou efetivamente de dimensão. Desde 1500 a 1960, portanto, em 460 anos,
ocupou-se a metade litorânea, e alguns pontos isolados junto a alguns rios interiores (...) A partir dos anos
70, a ocupação do Centro-Oeste e da Amazônia passou a ser sistemática e contínua. Aragarças,
Jacareacanga, entre outros, eram pontos somente conhecidos pelos pioneiros da FAB, e ligados a alguns
acontecimentos políticos. Hoje, a ocupação entre Brasília e Cuibá é sistemática (...) O Brasil dobrou de
tamanho em três décadas” (YOKOTA. Op. cit., pp.7 e 8. Grifos nossos).

160
Como a lógica que, sistematicamente, presidiu a esses processos de expansão
dos interesses capitalistas no campo brasileiro, sempre foi a de empurrar para cada vez
mais longe os pequenos posseiros, proprietários e indígenas, - inclusive não
reconhecendo seus direitos efetivos à legitimação da propriedade das terras que
possuíam - foram-se engendrando, nesse contexto, novos confrontos e novos sujeitos309,
dando novo impulso e caráter à resistência popular nos sertões do País. Tratava-se do
aprofundamento e da verdadeira instituição daquilo que, neste trabalho, se está
denominado de grilagem especializada, que se tornou em um dos instrumentos mais
importantes da legitimação privilegiada de “falsas posses” e “propriedades”, sobretudo
após a aprovação do Estatuto da Terra.
Os casos de Trombas, em Goiás, e do Oeste do Paraná, em relação,
especificamente, à luta pelo acesso à propriedade da terra; e das “Ligas camponesas”,
em relação à defesa das condições de existência e reprodução dos trabalhadores rurais
empregados nos “novos” latifúndios canavieiros, são particularmente esclarecedores do
novo colorido que passou a ser impresso aos movimentos de resistência dos pobres e
excluídos do campo no segundo pós-guerra. Estes movimentos prolongar-se-ão, de
forma sombria e dolorosa, no contexto da repressão violenta desencadeada310 após os
acontecimentos de 1964.
No Paraná311, para tomar um exemplo particular, a luta pela garantia de posse da
terra era antiga, e vinha-se desenrolando desde os últimos anos do Império, com a
doação, pela Coroa, de uma faixa de nove quilômetros de cada lado da ferrovia que
seria construída, ligando São Paulo ao Rio Grande. Havia, um contencioso entre os
Estados do Paraná e Santa Catarina, acerca dos direitos sobre as terras da região
fronteiriça, na divisa destes Estados, “ipso facto”, conhecida como “Contestado”.
Nesta região, o Governo havia concedido à companhia Southern Brazil Lumber
and Colonization uma área de 180 mil hectares. Os posseiros, que desde muito se
encontravam instalados na região, foram sumariamente expulsos, e a eles vieram se
juntar, a partir de 1908, a massa de desempregados das obras da ferrovia, dando início a
uma acirrada luta, que culminou com o violento confronto, que ficou, historicamente,
conhecido como a “Guerra do Contestado”, cujo ápice ocorreu entre 1912 e 1916,

309 Ver a respeito, MARTINS, J. S. 1994, especialmente o Capítulo II.


310 “Assim, o terror foi desencadeado, na zona do açúcar, diretamente por usineiros e senhores de
engenho. Toda a ampla organização sindical dos trabalhadores rurais foi destruída e ainda hoje não se
tem idéia do número de dirigentes camponeses assassinados nos primeiros dias da repressão. (...) Ao
correr dos meses, as prisões permanecem abarrotadas. Alguns milhares de camponeses, trabalhadores,
estudantes, intelectuais encontram-se detidos. As torturas, espancamentos, violações de domicílio,
passam a constituir fatos de rotina. Voltam a dirigir a polícia velhos torturadores do período
estadonovista” . Nesses termos é descrita a conjuntura de terror e repressão que se seguiu imediatamente a tomada
do Poder pelos Militares, em 1964. (In. ARRAES, M. s. d.). Grifos nossos. Ver também, a este respeito, Carlos
Minc (MINC, op. cit.).
311 A breve reconstituição aqui feita deste, episódio, deve-se, em particular aos trabalhos de Joe Foweraker, Fábio
Alves e José de Souza Martins, entre outros, todos citados (vide Referências Bibliográficas ao final deste estudo).

161
quando os posseiros foram violentamente massacrados, aliás, num genocídio similar ao
que acontecera em Canudos, nos sertões da Bahia, poucos anos antes.
Mas a derrota na Guerra do Contestado não colocou um ponto final nas lutas
desta região. Elas se estenderam, após liquidados os primeiros posseiros, num profundo
e grave contencioso acerca das concessões territoriais, que envolveu o Governo do
Paraná, as Companhias ferroviárias e de colonização e a União, e que se prolongarão até
os primeiros meses do golpe de 1964. Segundo Joe Foweraker:
“Em geral, essas concessões de terras eram feitas em lugar de pagamentos
em dinheiro, exigindo as companhias garantias por seus investimentos. As
companhias eram de origem estrangeira (tal como a Companhia Brazil
Railways, dos Estados Unidos e a sua subsidiária Southern Brazil Lumber and
Colonization, isto é, Madeira e Colonização do Sudoeste do Brasil, e Chémins
de Fer Sud-Ouest Brésiliens, da França, ou Estradas de Ferro do Sudoeste
Brasileiro), e a disposição dos governos Estadual e Federal para abrirem mão
do território nacional reflete a dificuldade em atrair capital para esse tipo de
empresa (...)

“O estado, a princípio, recusou-se a reconhecer a validade dessa


concessão, que havia sido feita a uma distância de 9 quilômetros
para cada lado da linha férrea projetada, argüindo que apenas ele
administrava as terras dentro das suas fronteiras. No sentido
estrito, entretanto, a concessão havia sido feita antes da
Constituição de 1891 e, finalmente, parece que o estado teve que
se curvar... Neste momento (1917) porém, não havia mais
hipótese para a concessão de terra ao longo da ferrovia, porque
essa terra se estendia próxima ao litoral e já estava povoada.
Assim, em seu lugar, extensas concessões foram feitas bem no
interior do estado, francamente dentro da área de fronteira.”312

Observe-se que esse “novo” conflito, agora entre as companhias particulares, o


Estado do Paraná e a União, se estabelece em torno do espólio da Guerra do Contestado,
encerrada com a liquidação militar dos posseiros. Observe-se, igualmente, que a
conciliação de interesses, acabaram, em princípio, assegurando o reconhecimento das
concessões do Império às Companhias Ferroviárias e de “Colonização”, por um lado; e,
por outro, permitindo compensações, com a abertura de novas concessões e da
possibilidade de titulação de terras nas fronteiras. Assim, o conflito apenas é adiado.
A Constituição de 1937 incorporou terras desta região aos bens da União, ao
estender a 150 quilômetros a faixa de fronteira 313, fazendo reacender o contencioso
entre o Estado do Paraná, a União e as empresas de colonização e ferrovias. Observe-se,
igualmente, que nesse conflito de grandes interesses, os remanescentes dos pequenos
posseiros, boa parte eliminada fisicamente na Guerra do Contestado em 1916, não
aparecem como interlocutores nas contendas entre os grandes interesses fundiários.
Nesse sentido, como registra Martins,

312 FOWERAKER (op. cit., p. 125).


313 Artigo 165 da Constituição de 1937 (In.: MEAF, op. cit.).

162
“Desde o século XIX, a grilagem de terras era uma questão
restrita a litígios no interior das próprias oligarquias, envolvendo
número restrito de pessoas, casos quase sempre debatidos e,
bem ou mal, resolvidos no judiciário como sendo apenas casos de
dúvidas, quanto a direitos ou de notória falsificação de
documentos.”314
Neste contexto, chama a atenção, José de Souza Martins, para o fato de que a
questão da grilagem passa a assumir as feições de uma questão
“política moderna no caso do sudoeste do Paraná, nos anos
cinqüenta, quando as terras federais começaram a ser vendidas
pelo governo do estado, provocando a duplicidade de títulos.”315

Na verdade, o contencioso sobre as terras do Oeste do Paraná, dá uma noção


bastante objetiva da luta pela terra, quando deflagrada por grandes grupos econômicos
e, geralmente com o patrocínio ou participação de autoridades do Estado da Federaçãp,
e da grilagem especializada. Como registra Foweraker, nos anos cinqüenta,
aproveitando-se do amplo contencioso que se estabelecera, e da indefinição acerca da
autonomia legal sobre as terras da região, tanto o Governo do Estado do Paraná, quanto
o Federal, como as próprias companhias de Colonização estavam titulando terras na
região, cada uma delas alegando agir dentro do seu estrito direito sobre as respectivas
áreas316; segundo aquele autor, “muitas vezes sequer obedecendo a esse
imperativo legal.”
Ainda segundo Foweraker, a liberdade de ação do Estado do Paraná dependia da
correlação e da constelação de forças em movimento no período. Dessa conjuntura
valeu-se o então Governador do Estado, Moisés Lupion:
“(...) No seu mandato anterior ele havia sido um dos pilares da
administração Dutra e continuou influente até 1955. Como foi
mencionado...ele próprio havia encabeçado um grupo econômico
com importantes interesses no oeste, entre os quais
encontravam-se nada menos do que títulos em Missões e parte
de Chopin (formando juntos uma grande propriedade de 425.731
hectares) que a firma de Lupion, a CITLA, havia obtido da SEIPU
em 1951. Essa transação era absolutamente ilegal e
inconstitucional, envolvendo extenso suborno, nepotismo e
corrupção (...).” 317

É nesse contexto, de uma prolongada luta contra as populações pobres da região,


uma luta que foi levada às raias da violência pela deflagração da Guerra do Contestado
contra os posseiros e pequenos colonos, entre 1912 e 1916, que ressurge com muito
vigor, o movimento de resistência de pequenos proprietários, em 1957. As raízes desta
nova luta eram antigas, como se vê, e não pode, pura e simplesmente, ser imputada à

314 MARTINS (1994, p. 64).


315 Id. Ibidem., p. 65
316 Ver, FOWERAKER (op. cit., pp. 128-130); e MARTINS, J.S. (1994, p. 67).
317 FOWERAKER,( op. cit., pp. 129-130. Grifos nossos).

163
presença do Partido Comunista na Região. Quer dizer, não se tratava de uma luta
promovida por “elementos alienígenas”, dotados de “ideologias exóticas” nem mesmo
insuflada “irresponsável e demagogicamente” pela SUPRA ou pelo Governo João
Goulart, como tentou fazer crer o discurso de sustentação ideológica do Governo
Castelo Branco318.
A presença de militantes de esquerda neste, como em outros movimentos
populares de resistência contra a secular opressão e excludência, de que sempre foram
vítimas os pobres da cidade e do campo, é muito mais conseqüência, do que causa, da
radicalidade assumida por esses movimentos. Portanto, tais argumentos aparecem,
claramente, como o pretexto para se mover novas formas de extermínio, de “cerco e
destruição” . As causas sempre foram a excludência social dos pobres, o desrespeito aos
seus direitos de propriedade, a violência sistemática contra estes direitos e suas
reivindicações, especialmente, sobre a posse das terras de trabalho, aliás, legalmente
assegurada.
Enfim, as causas sempre se fundaram no processo de apropriação privilegiada e
de legitimação questionável, como se vem tentando demonstrar neste estudo, que
remonta ao instituto de sesmarias. E, como será evidenciado objetivamente, esse
processo assume novos e mais efetivos contornos no pós-1964, sendo este fato o ponto
fundamental, dentre outros, como é óbvio, da análise crítica que se está desenvolvendo
da Política Fundiária dos Governos Militares, enquanto continuidade, sob novas formas
do mesmo processo de apropriação privilegiada e legitimação, juridicamente
questionável, que se vem aprimorando no Brasil desde 1854.
Diversos sempre foram, portanto, os pretextos para se mobilizar as armas da
repressão violenta e do genocídio contra as populações pobres do meio rural brasileiro:
“acusação de monarquistas”, contra os habitantes de Canudos; “infiltração comunista”,
como nos casos do pobres de Porecatu, do Araguaia, de Trombas do Formoso, das Ligas
Camponesas, dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e tantos outros movimentos
populares no pós-1964. Como se pode concluir pela pequena revisão feita acima,
sempre foram argüidos os mesmos pretextos para justificar a mesma violência contra os
pobres do campo. Apenas, a cada circunstância e dependendo das diferentes conjunturas
ou objetivos políticos dos que o promoveram institucionalmente, mudando-se os
pretextos e as justificativas319.

318 Ver a respeito a Mensagem no 33, do General Castelo Branco ( Loc. cit.).
319 Fugiria aos objetivos deste estudo a análise detalhada dos diversos movimentos de resistência popular no campo
e das formas de violência (oficial e privada) usadas para reprimí-los. A abordagem, feita acerca do Caso do Oeste do
Parará teve, apenas, o objetivo de exemplificar a historicidade das lutas das populações rurais em defesa de seu
legítimo e legal direito à propriedade da terra onde residem e trabalham. Assim, a idéia é evitar que a abordagem de
casos específicos dêem a impressão de que surgiram naquela determinada conjuntura específica, quando na verdade,
a maioria dos focos de tensão social no campo, embora possam aparecer em determinado momento, são pontas de um
“iceberg” que se vinha estruturando desde muito antes; certamente, desde os finais do século passado, como o caso
estudado acima deixou claro. A respeito, especificamente, desses movimentos sociais há uma vastíssima literatura.
Sobre o tema remetemos o leitor, em especial, às seguintes: MARTINS, J.S. (1994; 1993; 1992; 1990; 1983; 1985);
FOWERAKER (1982); IANNI (1979; 1979(a); 1981 e 1984); BASTOS, E. (1984); FACÓ (1980); ARRAES, M.
(S.d.); CARVALHO M. (1980); CONCEIÇÃO, M. (1980); CONTAG (1981 (a); D’INCAO (1983); MEDEIROS,
L.S. (1989); MARIGHELLA, et. alii. (1980); MARTINS, E. (1979); KOTSCHO (1982).

164
2. Mensagem no 33: O Diagnóstico Militar da Questão Agrária

A Mensagem 33, do General Humberto de Alencar Castelo Branco, que


encaminhou o Projeto de Lei do Estatuto da Terra ao Congresso Nacional, constitui-se
em um documento da maior relevância para a compreensão do encaminhamento dado à
questão agrária e agrícola pelo Regime Militar. Ela resume as noções teóricas e
ideológicas fundamentais do modelo de “Reforma Agrária e de Desenvolvimento
Rural” proposto pelo Governo. Neste sentido, a Mensagem pode ser interpretada como
um documento que expõe as Diretrizes de Governo para orientar a Política Fundiária e
de Desenvolvimento Rural, que seria implementada.
Nela é realizado um amplo, ainda que superficial, balanço do que, então, se
denominava, de “problema agrário” brasileiro e de suas articulações e implicações para
com o processo mais amplo de desenvolvimento econômico nacional, sendo indicadas,
nesse contexto, as linhas e diretrizes gerais que, no entendimento do Governo que se
instalava, deveriam orientar o encaminhamento das soluções necessárias às diversas
exigências da conjuntura fundiária e agrícola do País.
Desvendar, portanto, a lógica e o contexto em que este documento foi elaborado
e proposto, o sentido do diagnóstico que realizava da questão agrária e as propostas de
solução que apresenta, torna-se condição fundamental para se compreender o sentido
das reformas indicadas e, mais do que isto, os rumos pretendidos e objetivos
perseguidos na busca do desenvolvimento econômico e social brasileiro 320 e, dentro
deste, o papel que era atribuído à propriedade rural, em geral, e à agricultura, em
particular. Fora do contexto da Mensagem 33, que lhe dá o necessário enquadramento
de uma Política de Governo - e não, apenas, nem necessariamente, de uma “política
pública” - o Estatuto da Terra é mera abstração sem sentido.
Pode-se, de imediato, afirmar que a Mensagem apresenta duas dimensões
absolutamente distintas e articuladas. Em primeiro lugar, procura, aparentemente,
desenvolver um diagnóstico geral do problema agrário brasileiro e das formas como o
mesmo teria sido abordado e enfrentado pelo Governo João Goulart. Neste contexto, o
documento desenvolve-se em dois sentidos: (a) Um, recuperando o diagnóstico geral da
questão agrária, da concentração fundiária e da renda, da baixa produtividade da
agricultura, etc. Estas características, concebidas como bloqueios, deveriam ser
ultrapassadas para viabilizar o pretendido desenvolvimento econômico nacional,
sobretudo pela integração do setor agrícola ao industrial. (b) Noutro sentido, era uma
severa crítica ao Governo Goulart, argumentando que o mesmo, ao invés de enfrentar

320 Segundo a lúcida interpretação de Octávio Ianni, “desde o primeiro momento, o governo militar instalado
com o golpe de 1964 foi levado a adotar uma política de portas abertas ao capital estrangeiro, isto é, para
o imperialismo. O conjunto do aparelho estatal, em suas condições econômicas e políticas de atuação, foi
posto a serviço dos interesses da empresa imperialista multinacional e nacional. Desse modo
inaugurou-se uma época de desenvolvimento capitalista intenso e generalizado, na indústria e
agricultura, na cidade e no campo. Daí a política agressiva e repressiva, em termos econômicos e
políticos, no sentido de superexplorar a força de trabalho do proletariado industrial e agrícola.”
(IANNI,1979(a). Pp.19-20. Grifos nossos).

165
“realisticamente” os problemas agrários, ter-se-ia aproveitado da pobreza rural para
promover a inquietação social, criar expectativas demagógicas, insuflar a luta de
classes, e obter por essas formas, dividendos políticos e, enfim, apoio, para um
determinado projeto socializante, e portanto, contrário aos interesses nacionais321.
Em segundo lugar, e com base no diagnóstico apresentado nos termos acima,
procurava o Documento, fundamentar a sua proposta de solução para o problema
agrário brasileiro. A solução apontada, fundava-se em duas diretrizes básicas: (a)
promover a regulamentação do preceito da Constituição de 1946 referente à promoção
da “justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”,
estabelecendo medidas tendentes a realização de uma “reforma agrária” nos termos
Carta de Punta Del Este; e (b) avançando, para além da distribuição da propriedade,
implícita na diretriz Constitucional, através da implementação de um conjunto de
medidas e instrumentos de apoio à produção agrícola e à sua integração com o
desenvolvimento urbano e industrial. Neste sentido, como é explicitamente referido na
Mensagem 33, o Projeto que encaminhava ao Congresso Nacional, não era apenas uma
lei de reforma agrária, mas
“visava também a modernização da política agrícola do País,
tendo por isso mesmo objetivo mais amplo e ambicioso; é uma
lei de Desenvolvimento Rural.”

Assim, pode-se afirmar que a Mensagem 33 compunha-se de dois tipos de


discursos cuidadosamente articulados: Um discurso “técnico” - por suposto,
teoricamente fundamentado - até certo ponto, fundado em uma análise de dados
objetivos referentes à realidade rural brasileira; e um discurso ideológico, fundado nos
preceitos doutrinários desenvolvidos na Escola Superior de Guerra, muito em particular,
referentes à ideologia da defesa interna e da segurança nacional e hemisférica, cuja base
era o anticomunismo.
Os dois discursos, como se verá, se completavam. Conjuntamente,
representavam, por um lado, a fundamentação teórica e, por outro, a justificativa
política e ideológica do projeto Fundiário e de Desenvolvimento Rural do Governo. Do
ponto de vista do discurso, pode-se afirmar que se tratava de um documento bem
elaborado e, do ponto de vista de um Projeto de Governo, tratava-se de um projeto
coerente com os princípios que defendia e bem fundamentado. Por isso mesmo a
análise, tanto da Mensagem 33, como do Estatuto da Terra não pode ser feita de forma
separada, exigindo, portanto, um estudo cuidadoso de suas proposições fundamentais.
A Mensagem e o Estatuto da Terra importam, assim, em dois diagnósticos
específicos. Um, da própria estrutura agrária e da economia agrícola brasileira. Outro,
acerca das formas como estas questões foram tratadas pelo Governo Goulart, portanto,

321 Estes argumentos, se verdadeiros, seriam uma justificativa legalista da intervenção militar, constitucionalmente
prevista. Não se trataria, portanto de um Golpe de Estado, posto que estariam apenas, as Forças Armadas
“restabelecendo a Ordem Constitucional”, ferida pelo Presidente da República. (Ver a este respeito, SKIDMORE,
1988/1994).

166
um diagnóstico da dimensão política do problema. Por isso mesmo, as soluções
apontadas caminham em dois sentidos: por um lado, pela proposição de uma política de
“distribuição” de terras e de apoio à produção e, por outro lado, definindo, com bastante
clareza, o sentido que era atribuído, pelo novo projeto, tanto ao problema do acesso à
terra, quando, sobre as formas de se combater o atraso e a pobreza rural. O Estatuto da
Terra oferecia a forma jurídica ao Projeto de Desenvolvimento Rural.
Quer dizer, a Reforma Agrária, no sentido que lhe era atribuído, de
“distribuição” de terras para aliviar tensões sociais, era complementar ao
desenvolvimento econômico da agricultura. Especialmente quando se referisse ao
atendimento a pequenos agricultores - por suposto, condicionado ou à existência de
tensões ou a projetos de “desbravamento” (Colonização)322 - a distribuição de terras era
definida como medida social, quer dizer, na linguagem de seus teóricos, “não-
econômica”. Ou seja, destinava-se a resolver problemas “sociais” de pobreza, ou
tensões e conflitos sociais, não a maximizar a eficiência econômica. É neste contexto
que a Reforma Agrária é definida como um projeto “social” e “não-econômico”.
Neste sentido, busca-se dar à Reforma Agrária um caráter específico. Ela
deveria se fundamentar na regulamentação do preceito Constitucional de 1946. Isso
significava manter, em princípio, o acesso à terra nos termos daquela Constituição que,
como se viu no capítulo anterior, estabelecia limites para as pequenas e para as grandes
concessões ou aquisições de terras: até 25 hectares323, para preferência de compra ou
aquisição de terras devolutas com base nas posses mansas e pacíficas, ou por usucapião,
para terras “particulares” inexploradas ou “abandonadas”; e até 10.000 hectares324, para
alienações ou concessões de terras públicas, independentemente de autorização do
Congresso Nacional. Portanto, no contexto da Reforma Agrária em pauta, a proposta do
Governo Castelo Branco era regulamentar os preceitos que já constavam da
Constituição de 1946. Esta era a Reforma Agrária proposta claramente na Mensagem 33
e no Estatuto da Terra.
Esse fato, em si mesmo, tem-se que reconhecer, representava um grande avanço,
porque como se sabe, a maioria dos “imperativos” constitucionais não são,
juridicamente, auto aplicáveis. Necessitam de regulamentação pela legislação infra
constitucional para terem vigência prática. E é exatamente a ausência da
regulamentação por lei ordinária que faz com que muitas conquistas asseguradas pelas
Constituições nunca se materializem, sendo esta, inclusive, uma alternativa geralmente
usada pelas forças contrárias a determinadas iniciativas, quando não conseguem,

322 O termo “desbravamento” é explicitamente usado na Mensagem 33, com o sentido de colonização em áreas
pioneiras. Como registra YOKOTA (op. cit., p. 8) “Os projetos de colonização oficial estão mais presentes
em frentes realmente pioneiras, procurando atender a uma camada mais modesta da população,
dando elevada prioridade àqueles que foram obrigados a se deslocar de seus antigos locais de trabalho
(...).” (Grifos nossos).
323 Parágrafos 1o e 3o do Artigo 156 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946.
324 Parágrafo 2o, art. 156 da Constituição de 1946, referida na nota anterior. Esta área foi reduzida para 3.000
hectares, pelo Governo Militar, para alienação independente de alienação pelo Senado Federal.

167
conjunturalmente, fazer valer seus pontos de vista na Constituição. Assim, através da
obstrução, no Legislativo, impedem a elaboração da necessária regulamentação infra
constitucional e, com ela, a materialização do direito assegurado na Constituição. Esta é
uma prática corrente no Brasil, como se sabe, e que torna ineficaz, por omissão do
Legislativo, parte relevante dos preceitos constitucionais.
Isso significa, por outro lado, que o Estatuto da Terra, ao regulamentar o
preceito Constitucional citado, criava, juridicamente, a possibilidade para se poder
viabilizá-lo. Ou seja, de por em prática, legalmente, o processo de alienação das terras
devoluta: de privatizá-las. O que não quer dizer que esta regulamentação por si só
assegurasse que isto seria realizado. E, menos ainda que este processo de alienação de
terras públicas seria realizado em benefício da pequena propriedade ou dos pequenos
posseiros e sem terras. Aliás, os fatos que se seguiram à sua promulgação mostraram
exatamente o contrário. A simples leitura do modelo de desenvolvimento rural
explicitamente insinuado na Mensagem 33 já era suficiente para se verificar que,
naquele contexto, a integração da população marginalizada do setor agrícola, não seria
prioritariamente processada mediante a alternativa a uma reforma distributivista de
terras, mas pela alternativa à “modernização” da agricultura, pelo incentivo à empresas
rurais, empresas estas, não necessariamente pequenas, ao contrário.
A via escolhida, portanto, era a da incorporação da população rural pelo
emprego e, não necessariamente pela doação ou distribuição de terras. E pela
dinamização paralela do processo de industrialização e urbanização. Neste contexto,
pode-se concluir que a reforma agrária era, efetivamente, complementar à política de
desenvolvimento rural, e não o contrário. Os fatos e todas as criticas ulteriores à política
fundiária do período militar comprovam essa afirmação. Entretanto esta proposta estava
claramente formulada na Mensagem 33, de novembro de 1964.
Com base na regulamentação contida no Estatuto da Terra pôde, o Governo,
promover, efetivamente, por um lado, um amplo processo de alienação de terras
devolutas em todo o território nacional325 e, por outro lado, implementar um amplo e
eficiente conjunto de instrumentos de políticas agrícolas e de crédito rural que,
inegavelmente, deram grande impulso à produção e a produtividade do setor agrícola
brasileiro. A contrapartida da implementação deste modelo foi a reprodução, nas “áreas
novas326” incorporadas à agricultura, da mesma concentração fundiária. Esta foi a
“reforma agrária”, e, sobretudo agrícola, de fato, feita pelo regime militar. É neste
sentido específico, que não procede a afirmação de que o Estatuto da Terra não foi
executado.

325 Esse fato será analisado no capítulo 5, ao ser estudado o problema das terras novas incorporadas ao patrimônio
privado no período 1964 a 1980.
326 Este problema é objetivamente estudado no capítulo 5, adiante.

168
Ele efetivamente o foi, como os dados da incorporação de novas áreas ao
patrimônio privado, entre 1960 a 1980, na ordem de 114.965.285 hectares327, ou seja,
um acréscimo de 47,9% de área nova, no período, em relação a 1960, não deixa dúvida.
Para se ter uma idéia, esta cifra correspondia a 31,10% do total da área de todos os
estabelecimentos agrícolas recenseados em 1980328. A estratégia de desenvolvimento
implementada e os resultados perseguidos estavam claramente contidos da Mensagem
33 e, portanto, no instrumental normativo que compunha, o Estatuto da Terra. Que era
uma alternativa de desenvolvimento excludente e concentracionista, não resta dúvida.
Mas era exatamente esta a alternativa proposta pela Mensagem 33 e, portanto, pelo
Estatuto da Terra, e que tem que ser colocada clara e objetivamente. O problema,
portanto, como muito bem levantou a Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Agricultura (CONTAG), não estava em negar que o Governo tenha executado o
Estatuto da Terra, mas em identificar para que extratos de área essas terras novas
discriminadas foram efetivamente destinadas329 e sob que condições. Este problema será
analisado no próximo capítulo.
Esta “Reforma Agrária” era coerente com o modelo proposto de maneira clara
na Mensagem 33, e, portanto, também no Estatuto da Terra, ao identificar tanto o
latifúndio quanto o minifúndio como pontos de estrangulamento, igualmente nocivos,
ao desenvolvimento da economia rural. Neste contexto, inclusive, nota-se claramente a
tendência a qualificar o minifúndio como ainda mais problemático para a agricultura, do
que o latifúndio, na medida em que este último poderia vir a modernizar-se,
transformando-se em empresa rural, ou pela incorporação de novas tecnologias e
processos, se incentivados adequadamente (aliás, os incentivos eram assegurados pela
política de desenvolvimento rural) ou, noutra alternativa, se a isto fosse induzido pelo
ITR progressivo. Esse fato está explicitado em dois artigos distintos do Estatuto da
Terra, além de ser claramente colocado na Mensagem 33. No Parágrafo Único, letra “a”
do artigo 4 o, onde se lê:
“Parágrafo Único. Não se considera Latifúndio:

327 Este número foi calculado pelo autor com base nos Censos Agropecuários do IBGE (JONES, 1987). Paulo
Yokota apresenta, curiosamente, dados semelhantes, ao se referir às áreas discriminadas pelo INCRA: “Desde a
criação do Estatuto da Terra o Brasil já discriminou 115 milhões de hectares, o que significa cerca
de um terço da área de jurisdição Federal, sendo mais de 70 milhões de hectares só no Governo João
Figueiredo. Desta área, mais de 35 milhões de hectares localizam-se na região Centro-Oeste, preparando
uma firme base documental para a expansão agropecuária.” (op. cit.. p. 3. Grifos nossos). Como se verá no
próximo capítulo, estes dados são coerentes com a expansão das áreas novas incorporadas ao patrimônio privado no
período 1960 a 1980.
328 Tratam-se de cálculos feitos pelo autor com base nos Censos. Estes dados são apresentados de forma detalhada
no capítulo 5 adiante. Parte desses dados foram apresentados na Dissertação de Mestrado do autor (JONES: 1987).
329 No documento “Posição da CONTAG sobre a Política Fundiária”, esta questão é levantada nos seguintes termos:
“Recentemente, o Presidente da República e o Ministro Extraordinário para Assuntos Fundiários
declararam a imprensa que o Governo estava executando o Estatuto da Terra, tendo titulado, desde
1964, cerca de 31 milhões de hectares, área correspondente ao estado do Rio Grande do Sul. Todavia
não esclareceu quantos desses 31 milhões de hectares foram titulados para as grandes
propriedades e quantos foram destinados aos trabalhadores rurais (...) Estamos convencidos de
que foram os latifundiários os grandes beneficiários dessa titulação” (CONTAG, 1984, p. 8. Ver
também, JONES, 1987, p.180). Ver o capítulo 5, deste trabalho, onde esses dados são cuidadosamente estudados.

169
a) O imóvel rural, qualquer que seja sua dimensão, cujas
características recomendem, sob o ponto de vista técnico e
econômico, a exploração florestal racionalmente realizada,
mediante planejamento adequado.” 330

O curioso é que o art. 4o refere-se às definições gerais, inclusive, de Latifúndio


(ver, item “V” deste artigo). Mas insere um parágrafo único, após ter definido o que é
latifúndio, para também definir o que “não se considera latifúndio”. Não que se queira
aqui fazer uma análise tendenciosa do Estatuto da Terra, mas, realmente, é curioso esta
reafirmação pelo oposto. Alhures, neste estudo, já se fez referência às exceções abertas
pelas normas jurídicas.
A mesma salvaguarda às grandes áreas é assegurada no parágrafo 3o, alínea “c”
do artigo 19 do Estatuto da Terra, onde se pode ler:
“ 3 o Salvo por motivo de utilidade pública, estão isentos de
desapropriação:
(...)
c) os imóveis que, embora não classificados como empresas
rurais situados fora da área prioritária de Reforma Agrária,
tiverem aprovados pelo IBRA, e em execução, projetos
que, em prazos determinados o elevem àquela categoria.”
331

Veja-se que esta norma refere-se aos imóveis que se subsumem efetivamente na
definição de latifúndios. Basta que apresentem projeto ao IBRA para se tornarem
isentos da desapropriação por interesse social para fins de Reforma Agrária. Veja-se,
igualmente, que, ao ficarem fora das “áreas prioritárias de Reforma Agrária” já teriam,
em princípio, a segurança de não correrem o risco deste tipo de desapropriação; apesar
disso, assegurou-se-lhes mais esta salvaguarda. Com relação ao ITR, da mesma forma,
bastava a apresentação de Projeto para ter o imposto ou reduzido em até 90%, ou por
um prazo de carência de três anos (art. 50,  5 o e 12 da Lei 4.504, de 30 de novembro
de 1964).
Quanto ao minifúndio, este não teria, por suposto do modelo econômico,
nenhuma destas possibilidades, dada a limitação “endógena”, representada pela sua
diminuta dimensão territorial que, sequer, seria suficiente para a manutenção de uma
família de trabalhadores rurais. Essa questão é colocada nos seguintes termos na
Mensagem 33:
“Essa distorção fundiária pode ser ainda avaliada pelo aumento
da percentagem da área ocupada pelos estabelecimentos rurais
que se enquadram nos extremos das classes de área. Dados
referentes ao último período intercensitário revelam, na verdade,
um inconveniente aumento da ocupação de área tanto no que
tange às propriedades com área superior a 10.000 hectares,

330 Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 (BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1964. Grifos nossos).
331 Lei 4.504, citada.

170
como nos estabelecimentos com superfícies inferiores a 10
hectares.
“Particularmente com relação a estes últimos, o aumento
verificado - mais de 76% - identifica uma inconveniente anomalia
estrutural que cabe a uma Reforma Agrária corrigir.”

“Corrigir”, na linguagem do modelo de desenvolvimento rural em pauta, quer


dizer eliminar.
Isto, com certeza, não significava, no contexto da estratégia de
desenvolvimento, implícita no projeto de Política Fundiária do Governo na época, que
as áreas dos minifúndios seriam ampliadas. Pelo contrário, significava, claramente, que
ele deveria ceder espaço para a formação empresas familiares, o que é uma outra coisa
completamente diferente. Os dados que evidenciam a sua redução tanto em termos de
número, quanto de área média332 no período entre 1960 e 1980 são a prova eloqüente
deste fato.
Por outro lado, a Mensagem 33, faz clara referência no sentido da manutenção e
do reconhecimento da relevância das grandes propriedades, transformadas em empresas
rurais, que seriam incentivadas. Esta referência era coerente com a política de incentivo
ao desenvolvimento da produtividade do trabalho agrícola, fundado na iniciativa
privada, como fica claro no seguinte trecho da Mensagem:
“A extrema variação de situações regionais no Brasil impõe
entretanto que não se criem restrições à manutenção e
formação de grandes empresas rurais em áreas, onde a
pressão demográfica é moderada e onde a natureza do solo ou o
tipo de cultivo tornem tecnicamente aconselhável a exploração
em grandes unidades desde que garantidos os princípios de
justiça social e o uso adequado da terra com alto índice de
produtividade. O projeto333 anexo não interfere nem se
contrapõe às empresas rurais existentes ou a serem criadas;
antes as reconhece como legítimas formas de exploração da
terra, dando-lhes o merecido relevo, dentro da definição do
inciso V do art. 4o, e propiciando-lhe ainda as numerosas
medidas preconizadas no título relativo à Política de
Desenvolvimento Rural.” 334

Este trecho da Mensagem 33 deixa claro o sentido atribuído pelo Projeto do


Governo à solução do problema agrário. Não omite, sequer, a possibilidade,
efetivamente aberta, para a promoção de uma política de formação de grandes
propriedades, por suposto, empresariais, nas regiões “onde a pressão demográfica é
moderada e onde a natureza do solo ou o tipo de cultivo tornem tecnicamente
aconselhável”. Ou seja, estava efetivamente assegurada a alternativa para a
implementação de grandes concessões ou “vendas” de terras na Amazônia, no Centro

332 Ver Quadro 2.C (anexo 2).


333 Isto é, a Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, que dispõe sobre Estatuto da Terra e dá outras providências.
334 Mensagem 33 (Loc. cit. Grifos nossos).

171
Oeste, etc., por suposto mediante a implantação de grandes empresas agropecuárias. O
problema não está, efetivamente, na proposição da diretriz, de se implementar ou
incentivar a estruturação de empresas agropecuárias eficientes, independentemente de
seus respectivos tamanhos físicos, mas na suposição apriorística de que tais empresas
deveriam ser estruturadas sobre grandes áreas, especialmente nas regiões de “baixa
densidade populacional”.
Este fato, sim, é que levanta suspeita com relação ao Projeto de Estatuto da
Terra do Governo Castelo Branco. Parece que mais uma vez se está diante do mesmo
projeto dos “grandes posseiros” e sesmeiros da década de 1840, ou seja, dos
latifundiários e especuladores. Os dados sobre áreas novas, que são analisados no
capítulo seguinte, evidenciam os resultados implicados por esta diretriz.
Paulo Yokota, discursando sobre a região Centro-Oeste, ao defender com
clareza cristalina esta “idéia força” do Estatuto da Terra, procura, inclusive justificá-la
“teoricamente” nos seguintes termos:
“Registra-se que a disseminação de grandes propriedades na região Centro-
Oeste, com base nos incentivos fiscais, antes mesmo da multiplicação dos
meios de comunicação, não pode ser considerada como uma tendência
anormal. A própria teoria da localização, com comprovações empíricas
(sic) indica a tendência à instalação das grandes propriedades mais distantes
dos principais centros do mercado nacional ou pontos de deslocamento para o
mercado internacional. Anormal seria a multiplicação de grandes propriedades
nos arredores dos maiores centros urbanos.”335

O problema é que esta possibilidade representou, efetivamente, a abertura para a


reprodução do latifúndio e da concentração fundiária em vastas áreas de terras
devolutas, tornando ainda mais grave a situação da excludência social e da violência no
campo, inclusive, sem a pressuposta contrapartida da formação de empresas
agropecuárias de alta produtividade.
Veja-se que este posicionamento de Política Fundiária do Governo indica um
sentido contrário, em termos de tratamento, ao que é definido para o minifúndio. Como
se afirmou acima, essa diferença no tratamento do problema de um e de outro casos, era
perfeitamente coerente com o modelo de desenvolvimento agrícola proposto. O vetor do
modelo de desenvolvimento defendido pelo Governo, era assegurar a eficiência
econômica na alocação de recursos na agricultura. Entre estes recursos, a própria terra,
que deveria cumprir uma “função social, o que, por suposto, necessariamente implicava
em possuir uma dimensão mínima de área para suportar esta condição e tornar viáveis
outros investimentos. Isto, quer dizer que, por não possuir, endogenamente, esta
possibilidade, o minifúndio era, por definição, descartado. A par dessa condição prévia,
apenas seria possível superar os supostos bloqueios ao desenvolvimento, pelo incentivo
à iniciativa privada e à concorrência, no setor agrícola. Nesses parâmetros da economia
de mercado é que se fundava o princípio da “igualdade de oportunidades no acesso à

335 Op. cit. Grifos nossos.

172
terra para todos”. O sentido liberal do Projeto, inclusive assegurado no Capítulo da
Constituição Federal referente à ordem econômica.
De qualquer maneira, a tendência exacerbada à defesa da manutenção e
incentivo à formação de grandes propriedades rurais, especialmente nas regiões de
pouca densidade populacional, não encontra maiores justificativas, considerando-se o
caráter de desenvolvimento capitalista que, supostamente, subjazia ao projeto. Parece,
neste sentido e contexto, portanto, muito mais um projeto latifundiário para a
subordinação do desenvolvimento do capitalismo336 aos seus interesses agrários, por
mais que isto pareça um contra-senso. Trata-se, efetivamente, de uma contradição.
Como foi analisado no capítulo 2, a tentativa de 1850, fundada na teoria da colonização
sistemática de Wakefield, sofreu o mesmo desvio que, aparentemente, volta a tentar
insinuar-se com o modelo de desenvolvimento econômico e de superação da pobreza
rural, tal como proposto e viabilizado pelos governos militares após assumirem o poder
em 1964.
Neste contexto e sentido, a solução defendida era a promoção da modernização
do setor agrícola, que, por suposto, implicaria, uma melhor e mais eficiente “alocação
de recursos e de fatores econômicos” na agricultura, em particular, e uma nova
dinâmica na absorção e aproveitamento da mão-de-obra na agricultura e do emprego no
meio rural. Em conseqüência ter-se-iam efeitos dinâmicos nas atividades industriais, em
decorrência da pressuposta ampliação do mercado interno, pela incorporação do setor
agrícola e da sociedade rural, tanto à rede de consumo produtivo, como de bens de
salários. Desta forma, e indiretamente, seria promovida a otimização do emprego, pela
via da integração intersetorial, exigida, segundo os teóricos do modelo, pelo novo
estágio de desenvolvimento da economia nacional, o que, inclusive, poderia implicar em
uma nova estruturação para o mercado de terras. Esta problemática é colocada nos
seguintes termos na Mensagem 33:
“O problema agrava-se agudamente com a crescente
industrialização do País e com a concentração populacional nos
grandes centros urbanos. Toda essa população absorvida no
trabalho urbano cria exigências cada vez maiores de suprimento
de alimentos, demandando uma organização mais
sistematizada de sua produção, transporte e distribuição. Em
contraposição, o crescimento da produção industrial gera a
necessidade de alargamento do mercado consumidor, ou seja, a
incorporação de novas áreas da população ao consumo dos
produtos industriais, o que se obterá pela elevação dos

336Referindo-se à conjuntura da década de 40 do século passado, quando se desenvolveu o debate parlamentar que
precedeu a promulgação da Lei 601 de 1850, Murilo de Carvalho conclui dizendo que, “mesmo a modernização
conservadora ao estilo prussiano, esboçada em 1843 e em 1850, não se verificaria. Faltariam alguns
ingredientes básicos: do lado da sociedade os barões do aço se unirem aos barões da cevada; do lado do
Estado, um Exército ao mesmo tempo reformista e confiável à grande propriedade, capaz de garantir
pelo militarismo a implantação das reformas.”(CARVALHO, Op. cit. p. 54. Grifos nossos). A imaginar-se,
por analogia, a hipótese acima, levantada por Murilo de Carvalho, para o contexto de 1964, pode-se supor que o
modelo, então proposto, a sair vitorioso, pelo menos no que toca ao desenvolvimento da agricultura, estariam os
mentores da política fundiária e do desenvolvimento rural de 1964, optando pela utilização de uma via “ultra-
prussiana” para o desenvolvimento do capitalismo na agricultura brasileira.

173
padrões econômicos da população rural, facultando-lhe
poder aquisitivo para acesso aos produtos industrializados. A
interdependência entre campo e o meio urbano e industrial é
contingência do próprio desenvolvimento econômico do País e
essa interdependência traduz-se nos seguintes aspectos
fundamentais do processo de crescimento e integração
nacionais, dando a Política de Desenvolvimento Rural várias
e insubstituíveis atribuições.”337

Neste sentido, fica claro que o parâmetro fundamental seria a incorporação do


progresso técnico à agricultura, por um lado e, por outro, à implementação de
instrumentos de política agrícola, como, por exemplo, o crédito rural subsidiado,
voltado para o financiamento da produção (tanto de custeio como de investimentos), o
benefeciamento, a estocagem e a comercialização dos produtos agropecuários. No
contexto de um modelo desta natureza, a reforma agrária “distributivista” era,
efetivamente, uma ação complementar, não prioritária. Era concebida enquanto um
solução “social”, ou seja, uma espécie de “mal necessário”.
Isto significa que a pequena produção338, embora não tendo maior relevância
econômica - dada a impossibilidade, pressuposta no modelo, de gerar os excedentes
necessários à dinamização da economia como um todo - entretanto, em determinadas
situações bastante específicas, possuía relevância “social”. Em particular, face às
necessidades imediatas de minorar a miséria rural, ou para apoiar os processos de
transferência de populações de áreas prioritárias de desenvolvimento, como, por
exemplo, nos casos de construção de barragens, hidro-elétricas, vias de comunicação
etc. Finalmente, no outro extremo do caso brasileiro da época, quando este
procedimento fosse necessário para amortecer as tensões sociais, no sentido de evitar-se
implicações políticas “indesejáveis”.
Assim, a prioridade na solução do “problema agrário” deveria recair, como de
fato recaiu, na implementação da política de desenvolvimento rural, sendo a reforma
agrária “distributivista” reduzida aos limites estritamente definidos pelos projetos de
colonização, em particular em áreas de grande incidência de posseiros, arrendatários e,
sobretudo de tensões e conflitos sociais. Ou seja, o pressuposto continuava sendo o da
existência de uma situação dual na economia brasileira, donde inclusive, a ênfase, por
um lado, em duas formas de soluções, uma fundada nos instrumentos de
desenvolvimento econômico e outra na “colonização oficial” e reforma agrária
“distributivista”. Neste contexto, é idealizado o grande esforço na integração nacional,
consagrado no PIN - Programa de Integração Nacional - em 1970.
A alternativa prioritária, proposta para a superação da pobreza rural, neste
contexto, era “o aumento da produção, da produtividade e da renda líquida do

337 Mensagem 33 (Loc. cit.). Grifos nossos.


338 Um excelente estudo acerca “das potencialidades do pequeno produtor na oferta de produtos agrícolas”, e suas
relações na economia brasileira, foi realizado por Maurinho Luiz dos Santos (SANTOS, M.L. 1993). Outro estudo
igualmente importante, referente especificamente, ao problema dos “condicionantes da modernização” da pequena
produção, foi feito por Sebastião Teixeira Gomes (GOMES, 1986).

174
produtor”, como pode ser lido em quase todos os documentos operacionais das
instituições governamentais ligadas ao setor agrícola do período que se seguiu à
implementação desse modelo de desenvolvimento rural. Portanto, o modelo era
coerente, em sua totalidade, com a solução do problema rural, tal como apresentada pelo
diagnóstico do Governo e tendo em consideração a conjuntura da época.
Neste contexto, a distribuição de terras para a formação de pequenas
propriedades, na medida em que estas não tinham (ou tinham de forma muito limitada),
por definição, a possibilidade de responder, em termos da oferta de excedentes para o
mercado, de forma relevante, teria que ser, necessariamente, limitada ao mínimo
imprescindível para amortecer ou conter as tensões. E é exatamente isto que fica claro
na definição das áreas prioritárias para fins de reforma agrária. Os demais problemas da
pobreza rural, neste modelo, seriam resolvidos efetivamente, na medida em que a
economia se modernizasse ampliando a produção e a produtividade agrícolas e a sua
capacidade de dinamizar os processos de absorção de mão-de-obra e geração de renda
no campo. Mas, também, no setor industrial ou agro-industrial. Por isso a Mensagem 33
se refere ao fato de que tinha um objetivo mais amplo e ambicioso, sendo uma lei de
desenvolvimento rural.339
Neste contexto, a reforma agrária, tal como proposta, tinha, de fato, apenas o
estatuto de objetivo complementar ao processo de desenvolvimento rural. O
fundamental era a promoção do desenvolvimento, assegurado pelos instrumentos de
política agrícola. É neste sentido que se está, aqui, afirmando que o Regime Militar
implementou, efetivamente, o seu (e não outro) projeto de reforma agrária. E sobretudo,
implementou, com veemência, o seu projeto de desenvolvimento rural.
Todas essas questões estão claramente colocadas na Mensagem 33 e
rigorosamente regulamentadas no Estatuto da Terra. Portanto, neste sentido, não se
pode argüir que o Governo apresentou um determinado Projeto de Reforma Agrária na
Lei 4.504/64, e executou outro. Ou que não executou nenhum Projeto. O que, de fato, se
pode afirmar, é que a Política Fundiária do período pós-1964, fracassou
contundentemente, em termos de sua alegada meta de cumprir o imperativo
constitucional de “promover a justa distribuição da propriedade, com igualdade
de oportunidade para todos”. Neste caso, entretanto, a crítica situa-se noutro
patamar: refere-se ao fato de que a Política Fundiária dos Governos Militares foi,
efetivamente, a continuidade, por outros meios, do mesmo processo de apropriação e
legitimação privilegiadas. Por isto a concentração da propriedade fundiária persistiu e
agudizou-se, assumindo novo sentido no contexto do período. Desta forma, é
procedente a seguinte crítica realizada pela CONTAG:
“Hoje, não se trata apenas das dificuldades de acesso à terra em
função de uma distribuição historicamente desigual de
propriedade e do zelo dos latifundiários para com a integridade

339 Veja a Mensagem no 33 (Loc. cit.).

175
de propriedades que, mesmo improdutivas, consideram ‘suas’ por
tradição.
“Hoje, têm os trabalhadores de enfrentar toda uma política
agrária cuja tônica tem sido a separação do trabalhador da
terra, através da penalização do minifúndio e do apoio, quase
sem limites, à grande propriedade. A intervenção
governamental no campo cresceu nesses 20 anos, não no
sentido de atender às necessidades dos trabalhadores rurais
de que falava a Mensagem 33 que encaminhou o Estatuto da
Terra ao Congresso Nacional, mas sim no de favorecer a grande
propriedade, através de isenções e subsídios, de suporte
financeiro a projetos anti-sociais ou, mais diretamente, de
grandes obras públicas que se tornaram, elas próprias, motivo de
desassossego para a população trabalhadora rural.
“(...) A grande propriedade, que já se sabia um aliado precioso do autoritarismo político,
tornou-se um suporte econômico fundamental à implementação de uma política
econômica... de favorecimento irrestrito ao grande capital.”340

Esta postura oficial era seqüência normal, como contra-propositura, a um


processo de feições muito interessantes, que nos planos ideológico e político se foi
configurando nos primeiros anos da década de 1960. Uma tendência de pensamento-
ação que reuniu governadores estaduais, setores da Igreja Católica, intelectuais e uma
parcela importante da opinião pública urbana em grandes centros. Aspásia de Alcântara
Camargo enfatizou a aliança que Jânio Quadros procurou estabelecer com
governadores, consubstanciada
“em ajuda financeira e administrativa através das ‘reuniões de
governadores’ que tinham como objetivo reforçar o
desenvolvimento regional e reduzir os desequilíbrios internos (em
oposição à “severidade juscelinista” que se nutria de reforço da
órbita federal) ... no sentido de neutralizar o clientelismo e o
tradicionalismo. Nesse particular é bem sugestiva a amarga
hostilidade que o presidente retrospectivamente revela contra o
DNOCS e os latifúndios. ... Em contrapartida, as alianças no
Nordeste parecem tecer-se na órbita dos executivos
modernizantes - como Cid Sampaio, Pedro Gondim e outros,
bafejados por uma política de composição mais aberta com
grupos até então excluídos, e comprometidos com
transformações sociais na região.”341

Essa tendência mostra-se uma vez ainda na tentativa do governador de São


Paulo, Carvalho Pinto, de reformar a estrutura agrária paulista com a Lei de Revisão
Agrária (Lei Estadual no. 5944/60)342, de iniciativa de seu Governo, e que Caio Prado
Júnior saudou como um válido sinal em defesa da Reforma Agrária. Não obstante, o
contra-ataque das forças latifundiárias foi imediato e fulminante. Na avaliação de T.

340 CONTAG (1984, pp. 3-4. Grifos nossos).


341 CAMARGO, 1983, pp. 183-84).
342 Cf. A revisão agrária em São Paulo, separata de Agricultura em São Paulo, abril de 1961.

176
Lynn Smith, essa tentativa não passou de mero protesto “que se perdeu sem eco no
curso da história”, posto que a medida
“foi anulada em 1963 por uma emenda constitucional que proibiu
aos Estados a tributação de um imposto geral sobre a
propriedade, atribuindo, sem qualquer preparação, aos
municípios.”343

Formara-se então, nos grandes centros urbanos, uma opinião pública favorável a
teses de “democratização de estruturas arcaicas” no campo, a que, entre outros,
Smith e Celso Furtado dão expressão. Furtado refere-se naquele momento às pré-
condições revolucionárias no Nordeste, atribuindo-as a uma estrutura agrária
caracterizada pelo bloqueio da mobilidade social - requisito de uma sociedade moderna
de classes. Smith endossa as teses de um escritor católico conservador (Gustavo
Corção) que, falando em 1961, faz entretanto, o mesmo diagnóstico da estrutura agrária:
“baixo índice de mobilidade social vertical e alto grau de mobilidade
geográfica” e diz ser uma das razões suficientes para uma reforma agrária no Brasil344.
O texto de Smith é uma espécie de recensão dessas idéias generalizadas. Ele afirmava,
em contra-ofensiva aos argumentos anti-reformistas que privilegiam terras totalmente
inexploradas além-fronteira agrícola:

“Mesmo no Brasil, na Colômbia, na Bolívia, na Venezuela e nos


outros países em que grande porção do território nacional ainda
permanece por desbravar, uma reforma agrária genuína é, em
grande parte um projeto que nada tem a ver com a ocupação de
novas terras. Por isso cresce entre as técnicas de reforma a
importância das medidas pelas quais o Estado torna a imitir-se
nos direitos de propriedade de uma porção considerável das
terras aráveis e das pastagens dentro de seus limites.”345

Smith refere-se a várias dessas medidas, como a não indenização em dinheiro e


pelo valor comum (de mercado) da terra, a fixação de tetos à propriedade (ao seu
tamanho), e a necessidade de uma agência pública destinada a comprar as terras onde
elas se ofereçam no mercado para formar um fundo de terras e pressionar os preços de
mercado pela oferta (voltada aos pequenos compradores).
Na citação a Corção, Smith endossa uma outra avaliação que se tornara lugar-
comum nessa corrente de idéias: a altamente problemática “deficiência legal e técnica
no registro dos títulos da propriedade territorial.”346 Inquinava-se a propriedade
territorial no campo de fraudulenta e iníqua, posto que calcada no privilégio. No já
citado estudo de Maria Aparecida Moraes da Silva, consta uma exemplificação dos

343 T.Lynn Smith. Organização rural. Problemas e soluções. São Paulo: Pioneira, 1971, p. 48 e nt.
344 Palestra de Gustavo Corção no simpósio sobre Reforma Agrária patrocinado pelo Instituto Brasileiro de Ação
Democrática, citada em LYNN SMITH (1971, p. 55 e nt).
345 LYNN SMITH (1971, pp. 64-65).
346 Op. cit., p. 55.

177
procedimentos e ações jurídico-políticas que conduzem a essa “deficiência legal e
técnica.”
Portanto, outro tem de ser, necessariamente, o sentido da análise e sobretudo, da
crítica à Política Fundiária implementada pelo Governo, especialmente no que se refere
à ampliação da violência e da repressão aos movimentos sociais no campo e, sobretudo
daquilo que, neste trabalho, se está denominando de grilagem especializada347. Neste
âmbito específico, pode-se afirmar que o discurso de justiça social e de realização de
uma reforma agrária “democrática” foi, efetivamente, contraditório com a prática da sua
implementação no período dos governos militares. Que, ao contrário do que foi
proposto e, sobretudo, o que é grave, contra as determinações explicitamente contidas
nas diversas legislações, inclusive no próprio Estatuto da Terra, os direitos legalmente
assegurados à multidão de pequenos posseiros que preenchiam as exigências de morada
habitual e exploração efetiva, (assim como das populações indígenas) não foram
respeitados, ao contrário; em verdadeira afronta a lei, inclusive e sobretudo, pelo
próprio Estado. Neste caso, caracterizando a ilegitimidade e inconstitucionalidade de
inúmeros atos das Autoridades Fundiárias do Governo, especialmente no que se referia
aos processos de alienação, venda e concessão de terras públicas. Atos que, portanto,
necessitam ser revistos, especialmente quanto a sua validade jurídica, aliás como
preceituado pela Constituição de 1988 348.
Neste sentido, a Política Fundiária do Estado apenas “modernizou” o processo
de apropriação e legitimação privilegiadas, ampliando-o a uma escala sem precedentes
na História do Brasil, tanto em termos da área envolvida (em torno de 114.000.000 de
hectares), como pela violência brutal exercida pelo próprio Estado através de seus
Órgãos de repressão e de “Ordem Política e Social”, contra os posseiros e trabalhadores
rurais, então reduzidos à condição de “inimigos internos” ou de “agentes do
comunismo internacional”. Estes fatos estão na base do processo de militarização
da questão agrária349.
A segunda dimensão do diagnóstico apresentado na Mensagem 33, como se
anotou acima, referia-se a forma como o Governo Goulart vinha se ocupando do
problema agrário. Neste contexto, o diagnóstico transfigura-se abertamente num
genérico e confuso discurso ideológico, aparentemente com o duplo objetivo, de colocar
a relevância do problema, por um lado, e justificar o golpe contra o Governo Goulart,
por outro.
Partindo de algumas estatísticas gerais a respeito da desigualdade social no
campo e da concentração exacerbada da propriedade rural, apontadas como raízes dos
profundos e graves problemas enfrentados pelo País no seu processo de

347 Ver a respeito o próximo capítulo, a CPI do Sistema Fundiário (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1979), IANNI
(1979(a), especialmente o capítulo 5).
348 Ver a este respeito as referências feitas por GUEDES PINTO (1995).
349 Ver a respeito da militarização da questão agrária o excelente estudo de José de Souza Martins (MARTINS,
1985).

178
desenvolvimento, a análise apresentada na Mensagem 33, desvia-se para acusações ao
Governo Goulart, afirmando que este, ao invés de enfrentar “realisticamente” os
problemas agrários, propondo soluções adequadas, utilizava-se da situação para
promover a subversão da ordem no meio rural, como se pode verificar pelo seguinte
trecho do documento:
“(...) A necessidade de se dar à terra uma nova regulamentação,
modificando-se a estrutura agrária do País, é de si mesma
evidente, ante os anseios de reforma e justiça social de legiões de
assalariados, parceiros, arrendatários, ocupantes e posseiros que
não vislumbram, nas condições atualmente vigentes,
qualquer perspectiva de se tornarem proprietários da terra
que cultivam. A ela se soma, entretanto, no sentido de
acentuar-lhe a urgência, a exasperação das tensões sociais
criadas, quer pelo inadequado atendimento das exigências
normais do meio agrário, como assistência técnica e
financiamentos, quer pela proposital inquietação, que para fins
políticos subalternos, o Governo anterior propagou pelas
áreas rurais do País, contribuindo para desorganizar o sistema
de produção agrícola existente, sem o substituir por outro mais
adequado.
“Ao invés de dar ao problema uma solução de direção e
construção, a ação governamental, só se exerceu na
exasperação das tensões, no agravamento das contradições
do sistema rural brasileiro, levando inquietação a toda a parte
(...).”350
Trata-se, efetivamente, como se pode verificar, de um discurso simplesmente
ideológico, sem maior relevância, enquanto análise, dos problemas enfrentados pelo
Governo Goulart e, menos ainda, das formas propostas, por este, para enfrentar o
problema agrário. Veja-se, por exemplo, que a premissa básica deste parágrafo, “a
necessidade de se dar a terra uma nova regulamentação”, que efetivamente era
da maior relevância, já vinha sendo proposta desde os anos que se seguiram ao fracasso
do Regulamento da Lei 601 de 1850, tendo sido reiteradas vezes propostas em 1912351,
1913352 1915353 e 1946354, como já analisado no segundo e no terceiro capítulos deste
estudo.

Pode-se afirmar, ao analisar a argumentação exposta na Mensagem 33 a este


respeito, portanto, o seguinte: os dados apresentados acerca da concentração da
propriedade rural e da exasperação dos conflitos no campo eram verdadeiros, mas nada
tinha a ver com a gestão João Goulart. Portanto, a imputação, ao Governo
Constitucional deposto, de estar promovendo a inquietação social e a subversão da

350 Mensagem 33 (Loc. cit. Grifos nossos).


351 Decreto 2.543-A, de 5 de janeiro de 1912. (Loc. cit.).
352 Decreto 10.105, de 5 de março de 1913. (Loc. cit.).
353 Decreto 11.485, de 10 de fevereiro de 1915.
354 Decreto-lei 9.760, de 5 de setembro de 1946. (BRASIL. Presidência da República. Rio de Janeiro: 1946.).

179
ordem no campo e na cidade, realmente soa como mera justificativa da conspiração e do
Golpe de Estado.
No que se referia à acusação de falta de proposição de alternativas à solução dos
problemas Agrários, pelo Governo João Goulart, a afirmação é efetivamente falaciosa e
não se sustenta empiricamente: Além da estruturação da SUPRA, o Governo Goulart
havia decretado, em 13 de março de 1964 a desapropriação, para fins de reforma
agrária, da faixa de 10 quilômetros ao longo das margens das rodovias, ferrovias e
açudes de responsabilidade da União e, em 15 do mesmo mês de março, em Mensagem
de abertura da Legislatura de 1964, propunha uma série de outras medidas necessárias
ao equacionamento de diversos problemas sociais, entre os quais, um dos mais
importantes, senão o mais importante, referia-se a Reforma Agrária.
Antes disto, em 1962, com a promulgação da Lei 4.132, de 10 de setembro, era
instituído e regulamentado o instituto jurídico da desapropriação por interesse social,
“visando a promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu
uso ao bem estar social.”355
Havia, inclusive, na mensagem de abertura da legislatura referida acima, o
Governo Goulart, proposto mudanças356 na Constituição de 1946, em particular visando
a modificação do dispositivo que exigia a indenização prévia e em dinheiro para a
desapropriação por interesse social e utilidade pública. Quinze dias depois, a
conspiração militar interrompia estas medidas, depondo o Presidente da República.
Como se sabe, todas essas medidas propostas pelo Governo deposto, foram
ulteriormente apresentadas, pelo próprio Regime Militar, sendo que, no caso dos
modestos 10 quilômetros pretendidos pelo Governo Goulart, o Governo Militar
estendeu, em 1971, para 100 quilômetros de cada lado das rodovias federais construídas
ou projetadas para a área da Amazônia Legal357.
Portanto, os argumentos contra o Governo Constitucional do Presidente João
Goulart, incluídos na Mensagem 33, expunham claramente, a face ideológica da
avaliação358. Era, de fato, uma tentativa de justificar a Conspiração contra o Presidente
João Goulart, por um lado e, por outro, de lançar as primeiras sementes para a violenta
repressão que imediatamente seria deflagrada no campo (e também nas cidades).
Ao mesmo tempo funcionava como uma introdução justificadora, do ponto de
vista do planejamento, para o amplo processo de privatização de terras devolutas e da

355 Vide, RIBEIRO (1984, p. 9): “Esse instrumento jurídico (Desapropriação por Interesse Social) foi
o
instituído com a Lei n 4.132, de 10 de setembro de 1962, visando a promover a justa distribuição da
propriedade ou condicionar o seu uso ao bem-estar social”. Convém registrar que o Dr. Cláudio José
Ribeiro, era Diretor do Departamento de Desenvolvimento Rural do INCRA, no Governo do General João
Figueiredo.
356 Que foram, depois, reeditadas com a Emenda Constitucional n o 10, de 9 de novembro de 1964, e que foi
apresentada pelos tecnocratas e juristas do Governo Castelo Branco, como resultado de “exaustivos estudos” de um
Grupo de Trabalho especialmente criado com a finalidade de propor um Projeto Agrário.
357 Ver. Decreto-lei 1.164, de 1o de abril de 1971, “intróito”.( BRASIL. Presidência da República. Brasília: 1971.).
358 Ver a respeito desses fatos, MINC (1985), GUEDES PINTO (1995), CONTAG (1984), SINATORA e outros
(1985)

180
concentração da propriedade territorial rural, fundados num determinado modelo de
desenvolvimento econômico de cunho liberal e, portanto, na “igualdade formal de
oportunidades359” por um lado, e na “concorrência” efetiva entre desiguais, em última
instância.

3. Instrumentalização Jurídica e Política Fundiária de Governo

3.1. O Estatuto da Terra e Legislações Anteriores


Como se estudou nos capítulos anteriores, desde 1854 vêm, os diferentes
governos brasileiros, tentando disciplinar, administrativa e juridicamente, o processo de
acesso às terras públicas no Brasil: na verdade, a sua privatização. O objetivo das
diferentes tentativas reguladoras sempre foi a de buscar conter e combater a ocupação
ilegítima e, sobretudo, especulativa, de grandes áreas de terras públicas. É neste sentido
que todas as diversas normas reguladoras do acesso e legitimação de posses e
propriedades foram propostas. Entretanto, sempre esbarraram na oposição sistemática
dos grandes detentores de terras, especuladores e posseiros, ao nível concreto da sua
implementação prática.
A última tentativa, anterior ao Estatuto da Terra, de novembro de 1964, neste
sentido, foi, como discutido no capítulo 3, o Decreto-lei360 no 9.760, de 1946 que,
entretanto, continuava limitado às terras devolutas federais. Apesar do rigor
formalmente estabelecido neste Decreto-lei, como se pode observar pelos artigos abaixo
mencionados, os processos discriminatórios e de arrecadação das terras públicas
federais continuaram a ser protelados quando não, efetivamente inviabilizados, pelo
grandes posseiros e especuladores de terras:

“Art.61. O SPU exigirá de todo aquele que estiver ocupando


imóvel presumivelmente pertencente à União, que lhe
apresente os documentos e títulos comprobatórios de seus
direitos sobre os mesmos”.
(...)
“Art. 63. Não exibidos os documentos na forma prevista no art. 61,
o SPU declarará irregular a situação do ocupante, e,
imediatamente, providenciará no sentido de recuperar a União a
posse do imóvel esbulhado.”361
Outras tentativas foram realizadas, desde então, para fazer frente aos problemas;
entretanto, todas sem resultados concretos ao nível de campo. Foi assim, por exemplo,
com a criação do INIC - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - em
1954, instituído pela Lei 2.163 de 5 de janeiro, que, entretanto, tinha como objetivos a

359 Isto é, o acesso à propriedade rural estava livremente assegurado à todos, entretanto, subordinado ao princípio da
liberdade de competição, ou seja, ao mercado.
360 Em 1956, a Lei 3.081, procurou, mais uma vez, disciplinar o processo discriminatório de terras federais,
estaduais e municipais, entretanto não obtendo êxito em face da resistência encontrada, por um lado; e da
complexidade estabelecida para o referido processo, por outro.
361 Decreto-lei no 9.760, de 5.09.1946 (Loc. cit.).

181
assistência e encaminhamento de trabalhadores migrantes nacionais e estrangeiros para
as diversas regiões, a sua seleção, orientação e estabelecimento em colônias agrícolas e,
finalmente, a coordenação de um programa nacional de colonização. Um ano depois,
em 1955, pela Lei 2.613, de 23 de setembro, foi instituído o SSR - Serviço Social Rural
- com objetivo genérico de atender “as necessidades sociais dos homens do
campo”. Estes órgãos pouco puderam realizar diante das resistências de diversas ordens
encontradas, sobretudo no que se referia ao acesso à áreas em condições adequadas para
a instalação de seus projetos. As terras devolutas para as finalidades de colonização e
assentamento, geralmente não reuniam as mínimas possibilidades de assegurar o
sucesso destes, sobretudo pela suas condições de localização: as melhores terras
continuavam sob o controle efetivo de grupos privilegiados, profundamente arraigados
na estrutura social rural e, em particular, nas burocracias encarregadas da
implementação das políticas de terra, agrícola e de colonização.
Em 1962, já no período inicial da crise do Governo João Goulart, estes órgãos
são substituídos pela SUPRA - Superintendência da Reforma Agrária - que tinha,
institucionalmente, o objetivo mais ambicioso de elaborar e executar um Programa de
Reforma Agrária. A SUPRA, como se registrou acima, teve vida curta, ao ter sido o
Governo João Goulart, surpreendido pelo movimento conspiratório de 1964. Aliás, um
dos motivos de justificação ideológica da conspiração seria a própria atuação desta
Superintendência, considerada como de caráter estritamente ideológico e de promoção
da inquietação social no campo.
Tendo-se em consideração todo esse amplo conjunto de medidas normativas,
tanto no campo jurídico - com as leis - quanto administrativos - pelo conjunto de
decretos, portarias, instruções, etc. dos Órgãos do Executivo - o que se pode afirmar a
respeito do Estatuto da Terra é que, ao contrário da ampla propaganda oficial de que a
Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, seria uma construção legislativa avançada,
elaborada depois de minuciosos e sistemáticos estudos por um específico grupo de
especialistas, na verdade esta Lei representa, como sempre foi da tradição legislativa
portuguesa, uma consolidação das diversas normas que a antecederam, a começar pela
Lei 601 de 1850 e fechando, com o Decreto-lei 9.760, de 1946.
O fato de ter sido uma consolidação de normas anteriores362, diga-se, não
constitui, em si mesmo nenhum demérito. Mas este fato necessita ser colocado com

362 Como foi visto nos capítulos anteriores, desde 1850, muitas normas foram propostas para tentar por termo aos
processos de apossamento ilegítimo de terras devolutas do país. Assim, os conceitos de discriminação e arrecadação
de terras devolutas, o próprio conceito de terras devolutas, o de legitimação de posses, de ratificação de títulos
legítimos de propriedade, de colonização etc., todos estes conceitos consagrados no Estatuto da Terra, já se
encontravam claramente postos e regulamentados na Lei 601 de 1850 e respectivo Regulamento de 1854. O mesmo
pode-se dizer com relação aos processos de registros públicos, aperfeiçoados, quer pelo Decreto 415-B, de 31 de
maio de 1890, que instituiu o Registro Torrens, quer pelo Próprio Código Civil de 1916. Todos esses construtos
jurídicos e normativos são reiteradamente aperfeiçoados pelas normas e decretos Federais, desde 1912 até 1946,
como se viu no capítulo 3. Até mesmo com relação à integração e desenvolvimento da Amazônia, o Decreto 2.543,
de 5 de janeiro de 1912, como foi visto, antecipou medidas similares às, depois, proclamadas, pelos dirigentes dos
Governos Militares, como criações de sua “lavra”, como o Estatuto da Terra e as medidas preconizadas no PIN -
Programa de Integração Nacional. (Ver a respeito os capítulos 2, 3 e 5 deste trabalho).

182
objetividade para se evitar a “legitimação” do “bias” que passou a ser uma característica
da tecnoburocracia que se instalara no período, de pretender apresentar todos os seus
projetos e iniciativas - seja no campo legislativo como em qualquer outro - como
construções originais e avançadas, geralmente, omitindo as fontes onde beberam
determinadas idéias, conceitos e propostas e, mais que isto, tentando fazer “tabula rasa”
das experiências anteriores, quando não, simplesmente, de negar a sua existência.
Com isso não se pretende desqualificar o Estatuto da Terra e, menos ainda,
desconhecer que o mesmo tenha oferecido a sua contribuição específica ao tratamento
da questão fundiária. Mas trata-se de localizar a Lei 4.504, de 1964 no seu lugar
adequado, no conjunto da construção histórica do ordenamento jurídico brasileiro.
Acima já se fez referência à sua relevância pelo simples fato de representar a
regulamentação do preceito Constitucional (de 1946), de fazer-se cumprir a função
social da propriedade e promover a justa distribuição da mesma com igual oportunidade
para todos. Sem esta regulamentação este imperativo constitucional era de fato, mas
também de direito, uma proclamação vazia - porque impossível de ser viabilizado e
avaliado legalmente. Assim, a Lei 4.504/64 criava, de direito, a possibilidade de o
Executivo poder, efetivamente, implementar o processo de regularização fundiária e de
privatização das terras públicas. Porque se tratava de privatizar as terras públicas para
incorporá-las ao processo produtivo.
As formas como isto seria feito dependiam, efetivamente, das diretrizes de
Política Econômica, ou seja, da opção, feita pelo Governo, por um determinado Projeto
ou modelo de Desenvolvimento Econômico e Rural. Por isto mesmo não se pode
separar o Estatuto da Terra da Mensagem 33, do General Castelo Branco.
Por outro lado, o Estatuto da Terra efetivamente realizou alguns avanços no
campo normativo, especialmente ao elaborar alguns construtos, como o de módulo
familiar, empresas rurais, latifúndio e minifúndio, de tal forma que, em certo sentido
possibilitaria a sua avaliação em termos do preceito constitucional. Entretanto, como
será abordado adiante, estes “construtos”, ao se fundarem, como aliás, não poderia ser
de outra forma, em parâmetros arbitrários, necessariamente se prestariam a
interpretações diversas. Neste sentido, poderiam ser utilizados tanto para promover
como para impedir o acesso ou a legitimação a determinados tipos de propriedade rural.
Os critérios, neste contexto, continuavam fortemente vinculados, por um lado, às
prioridades definidas no modelo de desenvolvimento; e, ao nível dos casos concretos, às
mediações das burocracias locais, fortemente influenciáveis, ainda mais em função do
contexto de radicalidade ideológica e repressão que se instituiu, muito especialmente
após 1968. Essa situação seria ainda mais agravada, com as sistemáticas exceções
abertas na Lei e, sobretudo nos Decretos e atos do Executivo, como, por exemplo, no
caso da definição de latifúndio e, no mesmo artigo, “do que não se considerava
latifúndio”.

3.2. O Estatuto da Terra e a Política Fundiária

183
O Estatuto da Terra propunha-se a ser uma “Lei de Desenvolvimento Rural”,
fundamentando-se na Mensagem 33 do General Humberto de Alencar Castelo Branco.
Exatamente para isto era fundamental estabelecer os critérios de acesso à propriedade
rural legítima. Guedes Pinto refere à Lei 4.504/64 nos seguintes termos, buscando
enfatizar o fato de que a mesma pretendia dar forma e regulamentação a este projeto de
desenvolvimento, tal como formulado, em suas linhas fundamentais pela Mensagem 33
que a encaminhava à análise e aprovação pelo Congresso Nacional:
“Trata-se de texto longo (128 artigos), detalhista, abrangente, e
deve-se dizer, bem elaborado. Na verdade, como dizia a
Mensagem 33 que encaminhou o projeto ‘não se contenta o
projeto em ser uma lei de reforma agrária. Visa também a
modernização da política agrícola do País, tendo por isso mesmo
objetivo mais amplo e ambicioso; é uma lei de Desenvolvimento
Rural363.”

A persistir a confusão e incerteza jurídicas acerca da legitimidade da


propriedade territorial, que vinham desde os primórdios da Independência, qualquer
possibilidade de um projeto de desenvolvimento rural fundado nos pressupostos da
economia de mercado capitalista, como o que se pretendia, seria profundamente
dificultada. Os riscos embutidos nesta incerteza legal impunha, necessariamente,
“custos adicionais” ao investimentos na agricultura ao perturbar de forma relevante o
“mercado de terras” e de trabalho na agricultura364. Portanto, era necessário assegurar-se
o acesso à propriedade territorial legítima, por um lado, e por outro, legitimar as
ocupações existentes, discriminando as terras públicas da particulares. Além de se
prover os instrumentos econômicos de apoio à produção agropecuária.
Curiosamente, tratava-se do mesmo problema enfrentado em 1850, que, como
amplamente analisado no capítulo 2, havia sido permanente adiado, nunca tendo
conseguido o Estado, apesar de seus inúmeros esforços legislativos e administrativos,
equacioná-lo, em face da oposição sistemática da especulação latifundiária.
Entretanto, após 1964, o contexto era outro. Internamente, por um lado, o Golpe
de Estado havia assegurado o poder de grupos comprometidos com um projeto
econômico e político liberal, fortemente arraigado, tanto interna quanto externamente,
fundado um determinado modelo de integração à economia capitalista Ocidental e ao
mercado mundial. Por outro lado, o receio de que a pobreza rural servisse de estopim à
deflagração de revoluções de caráter socializante colocava, para os grupos que
integravam o bloco no poder, a necessidade de amenizar a pobreza rural, promovendo
“reformas agrárias” específicas e limitadas365, buscando a formação de uma “camada

363 GUEDES PINTO. Op. cit., p. 12. Grifos nossos.


364 Ver J. Foweraker a respeito da relevância da dimensão jurídica para as relações de propriedade e de mercado na
agricultura, especialmente o capítulo 4 “A história Legal da terra na fronteira e a questão da Autoridade dual.”
(FOWERAKER, op. cit. , pp. 121-146).
365 Como muito bem registra Otávio Ianni, (1979), tratava-se da necessidade de “distribuir alguma terra, para não
distribuir terra nenhuma” no sentido de promover uma ampla reforma da estrutura agrária.

184
média rural” que, por suposto, funcionaria como uma barreira à penetração de
tendências radicais e de “ideologias exóticas”. É neste contexto, característico da
“Guerra Fria”, que se colocam os problemas rurais do ponto de vista do modelo
defendido na época. E é neste contexto, igualmente, que se pode situar as propostas de
Reforma Agrária de Punta Del Este, à qual se reportava, explicitamente, a Mensagem
33.
Assim sendo, toda a construção normativa do Estatuto da Terra estava
objetivamente direcionada. Tratava-se de dar legitimidade a este determinado projeto de
desenvolvimento rural e, dentro dele, de acesso à propriedade territorial. No caso do
Brasil, os seculares problemas colocados pela simples ocupação de terras públicas pela
via da posse, sem a necessária providência de legalização, impunha duas ordens de
medidas por parte do Executivo. Por um lado, providenciar a legitimação das terras
efetivamente em poder de particulares por título legítimo ou legitimável (as posses); e,
por outro lado, arrecadar as terras públicas, as quais deveriam servir de base e
sustentação ao projeto de desenvolvimento rural, podendo o Governo aliená-las
conforme as diretrizes politicamente estabelecidas e as necessidades econômicas
pressupostas no modelo.
É neste sentido que o Estatuto da Terra, ao regulamentar o preceito
constitucional referido representava uma medida efetivamente da maior relevância.
Entretanto, sua implementação, como se referiu acima, e como será visto no próximo
capítulo, mais uma vez, será fortemente viezada no sentido de preservar os grandes e
poderosos interesses (e, mesmo, os escusos), aliás, como foram reconhecidos pelas
próprias autoridades do Executivo 366, sobretudo os da grilagem especializada.
Indícios da influência destes interesses podem ser claramente detectados já no
texto da Lei 4.504/64 e, mais ainda, no conjunto de atos normativos que a
complementaram ou suplementaram, sobretudo, mas não apenas, após a implementação
do PIN - Programa de Integração Nacional - em 1970, que implicou a ampliação, em
escala sem precedentes, da especulação imobiliária, especialmente, na Amazônia Legal.
Esclarecer estas questões é o objetivo específico deste tópico.
Já nas “disposições preliminares” (Título I)367, ao proceder, no Capítulo I, à
formulação dos diferentes “princípios e definições” começam a se configurar, com
clareza, os objetivos específicos e os princípios fundamentais que norteariam a sua
consecução, na ótica proposta pelo Governo.
Nos parágrafos 1o e 2 o do artigo primeiro do Estatuto da Terra são definidas - e,
veja-se, de forma separada - as medidas concernentes à reforma agrária e à política
agrícola. Ao serem assim formulados, indicam que se tratam de dois conjuntos distintos
de ações a serem implementadas no contexto de um mesmo Projeto. Em sendo assim,
ficam implícitas, como é normal em qualquer Plano de Governo, prioridades distintas,

366 Ver a respeito: YOKOTA (op. cit.); ZANATTA (op. cit.) e RIBEIRO (op. cit.).
367 Ver Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 ( BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1964.).

185
hierarquizadas. Estas, não podem ser apreendidas, como a aparência pode levar a crer,
pela sua ordem na exposição do documento, mas pela ênfase que lhe é imputada no
contexto do Projeto. Assim, embora a Reforma Agrária venha conceituada antes da
Política Agrícola, isso não quer significar que a sua prioridade esteja assegurada em
relação àquela. Na verdade, o problema neste caso, refere-se ao fato de que a “reforma
agrária” é conceituada de forma qualificada: destina-se a “distribuição” da propriedade,
de forma específica e localizada, objetivando promover a paz social, necessária à
implementação do amplo projeto de desenvolvimento rural, no bojo do qual a variável
fundamental é a geração de excedentes econômicos relevantes para o conjunto da
economia nacional e fundado, não da pequena propriedade familiar, mas no aumento da
produtividade, sobretudo em “médias” e grandes empresas agropecuárias.
Assim, reforma agrária passa a perseguir dois objetivos distintos e não
necessariamente correlacionados ou, pelo menos, correlacionados de formas distintas e
específicas, conforme a sua relevância no conjunto do Projeto e do modelo de
desenvolvimento referido:
1. Um, o mais importante, referia-se ao estabelecimento do princípio de que o
Executivo poderia, legalmente, interferir, modificando, a distribuição e o
acesso à propriedade fundiária - e não só com relação às terras públicas, mas
também às particulares, pelo instituto da desapropriação por interesse social.
2. O outro, referia-se ao aumento da produtividade agrícola e da renda: neste
caso, não bastava apenas o acesso à propriedade da terra, mas a um
determinado tipo de propriedade - a empresa agropecuária - capaz, por
suposto do modelo - de valorizar-se e tornar eficientes os demais
instrumentos e recursos econômicos postos a serviço da promoção do Projeto
de Desenvolvimento Rural. Ou seja, cuja materialização dependia das demais
medidas e instrumentos de política agrícola.
Assim, pode-se dizer que havia duas propostas de reforma agrária no Estatuto da
Terra: uma de caráter “social” visando tão-somente à resolução de problemas de
pobreza extrema e tensões sociais: esta acabaria sendo resolvida (ou reduzida, segundo
alguns368 analistas) pelos mecanismos e instrumentos da colonização. A outra - fundada
na formação de médias e grandes propriedades369 - priorizada e, efetivamente.
executada pelo Governo, básica em seu projeto, destinava-se a promover o aumento da
produção e produtividade agropecuárias e à geração de excedentes econômicos,
relevantes para a economia nacional e para a exportação. Esta reforma fundava-se na
estruturação, fortemente incentivada e subvencionada, pelo Governo, de um complexo

368 Ver, entre muitos outros analistas do tema, por exemplo, GUEDES PINTO (op. cit.); CONTAG (op. cit.);
GRAZIANO DA SILVA (1980, 1982 e 1985).
369 Mas, sobretudo, fundadas em grandes propriedades territoriais, especialmente nas regiões de fronteira agrícola,
como a Amazônia Legal e a Centro-Oeste. Ver a este respeito YOKOTA (op. cit.) para uma referência oficial a este
tipo de prioridade. E também a continuidade deste capítulo e o capítulo 5, em particular.

186
de empresas agropecuárias de dimensões e atividades diversas espalhadas por todas as
regiões do País.
Vistos desta perspectiva, pode-se compreender com mais clareza como os
instrumentos de política agrícola articulam-se com os (“dois”) projetos de “reforma
agrária” implícitos no Estatuto da Terra:
1. Uma Reforma Agrária “distributivista”, voltada para a solução de problemas
emergentes de pobreza e tensão social, cuja implementação acabou sendo
resolvida pela colonização. Esta, por seu turno, era estratificada em
Colonização Oficial, voltada para os mais pobres e implementadas em regiões
geralmente desprovidas de infra-estruturas; e em Colonização Particular,
destinada à agricultores de melhor situação econômica, geralmente, oriundos
de regiões minifundiárias tradicionais, especialmente do Rio Grande do Sul e
Paraná370, que se destinavam a assentamento em glebas de melhor localização
e fertilidade371 nas regiões de expansão da fronteira agrícola, em particular no
Mato Grosso, inicialmente, e na Amazônia Legal, sobretudo em Rondônia, na
seqüência.
2. Outra, que foi, efetivamente, a “grande reforma fundiária” implementada
pelos Governos Militares, fundava-se num vasto e amplo programa de
concessões, vendas e legitimação de terras e propriedades, geralmente médias
e grandes (em termos de áreas), por suposto, todas, destinadas à estruturação
de empresas372, e fortemente sustentadas pelos instrumentos de política
agrícola: em particular, o crédito subvencionado, os subsídios, os incentivos
fiscais e, em casos mais específicos, contando, inclusive com o
financiamento, em condições facilitadas, para aquisição da própria terra,
como nos casos do PROTERRA e do FUNTERRA 373. Esses casos serão
abordados na continuidade deste tópico, ao serem analisados os
“instrumentos de ação fundiária” e os processos de “titulação de terras da
União” assim como as suas implicações para a estrutura fundiária do País.
É neste amplo contexto que são definidos, no artigo 4o da Estatuto da Terra374,
os “construtos” instrumentais básicos do Projeto: “imóvel rural”, “propriedade

370 Ver a respeito da articulação entre os Projetos de Colonização deste período e os movimentos de reconcentração
fundiária na região Sul, os excelentes trabalhos de IANNI (1979 e 1981) e SANTOS (1993). A respeito,
especificamente do sentido e objetivos da Colonização Particular, tal como concebidos pelo INCRA, ver os trabalhos
citados de Paulo Yokota, Oldair Zanatta e Cláudio Ribeiro. Ver também MINC (op. cit.) a respeito destas medidas e
suas relações com os interesses do latifúndio.
371 Ver a respeito, Oldair Zanatta, Paulo Yokota e Cláudio Ribeiro, todos citados.
372 Cuja caracterização para efeitos de reconhecimento pelo IBRA, e depois pelo INCRA, fundava-se na formalidade
de apresentação de um simples Projetos de exploração agropecuária (letra “c” do .3o do art. 19 da Lei 4.504/64). É
verdade que era estabelecido um prazo para sua implementação o que, entretanto, dificilmente poderia ser
efetivamente comprovado, haja vista as liberalidades estabelecidas para a implementação do mesmo. Esse assunto
será analisado neste capítulo.
373 Para uma crítica ao PROTERRA e FUNTERRA, ver os documentos da CONTAG, citados.
374 Ver a Lei 4.504/64 (Loc. cit.), artigo 4o , incisos I a IX e respectivo Parágrafo Único. Não se considerou
necessário transcrever aqui todos estes conceitos que, entretanto, serão abordados no decorrer da análise.

187
familiar”, módulo rural, minifúndio, latifúndio, empresa rural, “parceleiro”,
“Cooperativa Integral de Reforma Agrária” e “Colonização”. Duas coisas, de imediato,
chamam a atenção na análise destes conceitos e, curiosamente, ambas com relação ao
“latifúndio”. Trata-se, por um lado, de sua especificação, que poderia ser realizada,
aparentemente, à base de indicadores “técnicos”, em “latifúndio por exploração”,
quando, independentemente de sua área, não alcançasse os níveis médios de
produtividade em termos de seu tipo de exploração e área disponível agricultável; e
“latifúndio por dimensão”, cujo conceito de aproxima de sua formulação corrente, mas
que é definido em função módulo rural: possuir área superior a seiscentos módulos de
exploração familiar. Esse assunto será retomado. A outra curiosidade, refere-se ao fato
de também se definir “o que não é considerado latifúndio”, como já comentado acima.
Este segundo caso configura-se claramente como uma espécie de salvaguarda legal
contra processos de desapropriação.
No caso dos latifúndios (por exploração e por dimensão) vale a pena realizar
uma análise mais cuidadosa. Aparentemente, essa conceituação representa um avanço,
sobretudo na medida em que permitiria, em princípio, caracterizar como latifúndios a
quase totalidade dos imóveis rurais do país. Uns pelo fato de apresentarem áreas
imensas e inexploradas, outros porque, mesmo detendo pequenas áreas, permaneciam
inexplorados, aguardando valorização. Entretanto, o raciocínio inverso é igualmente
aplicável: poderiam estar enquadrados na categoria de empresas, portanto, excluídos do
conjunto dos latifúndios, propriedades imensas, de mais de 100.000 hectares, bastando
para tanto a existência de Projetos aprovados pelo IBRA ou depois, pelo INCRA e
apenas iniciados. “Tecnicamente” seria, como de fato sempre foi, impossível comprovar
uma coisa ou outra. Assim, na melhor das hipóteses os contenciosos de desapropriação
continuariam tramitando por dezenas de anos nos diversos tribunais, inviabilizado,
assim, qualquer alternativa de redistribuição da terra. Finalmente, pelo simples fato de
possuir a capacidade de abarcar no seu seio qualquer tipo de propriedade,
independentemente de seu tamanho, acabou por tornar impossível a sua aplicação aos
casos concretos.
Assim, o que, em princípio parecia um preciosismo técnico capaz de dar maior
efetividade e viabilidade à identificação dos imóveis rurais que não cumpriam o
imperativo constitucional da função social da propriedade, acabou por assumir o efeito
exatamente inverso. Se agregar-se a este fato, as demais salvaguardas e exceções abertas
na Lei 4.504, de fato, o latifúndio nunca, na história agrária brasileira esteve tão imune a
qualquer ameaça de expropriação ou “comisso”. Nem mesmo no período colonial,
quando esteve sujeito às cláusulas resolutivas e às normas contidas nas Ordenações do
Reino e subordinados ao instituto das sesmarias.
Aliás, por este meio, os latifúndios se livraram, inclusive, do Imposto Territorial
Rural, beneficiando-se das reduções contidas no artigo 50, parágrafo 5o, alíneas “a” e
“b”, além, é claro, dos incentivos fiscais e creditícios a que faziam jus pelo simples fato
de apresentarem um Projeto ao IBRA/INCRA que, uma vez aprovado os faziam, como

188
num toque de mágica, transitar para a condição de “empresas rurais”. Além,
evidentemente, de ficarem isentos do risco de desapropriação por interesse social, como
explicitamente assegurado no parágrafo 3 o , alínea “c” do artigo 19 do Estatuto da Terra,
já comentado.
Outra particularidade, esta, ao juízo analítico aqui desenvolvido, ainda mais
problemática, refere-se ao diagnóstico fundamental das causas do problema agrário
brasileiro, tal como formulado na Mensagem 33: a dicotomia “latifúndio-minifúndio”.
Aparentemente, como no caso analisado acima, trata-se de um diagnóstico “perfeito”,
preciso, impecável. Só que ele apresenta dois problemas fundamentais que o anulam:
Primeiro, porque o problema agrário no Brasil, como em qualquer outra latitude,
não depende estritamente da referência à terra, enquanto “coisa” ou “bem”, como é da
sua definição no campo jurídico, mas da propriedade: ou seja, das relações entre os
homens a respeito do domínio das coisas. Portanto, trata-se de questão mais complexa e
que envolve determinados conjuntos de relações de sociabilidade: disso advém a sua
complexidade e o fato de que não basta normatizar para resolvê-la. Se se tratasse de
simples relação entre o homem e a coisa, como é colocado, por exemplo no Código
Civil, bastava a norma, senão para resolvê-lo, pelo menos para reduzí-lo à dimensões
irrelevantes ou pelo menos, aceitáveis do ponto de vista da sociabilidade e, sobretudo do
Direito.
Segundo, e mais complexo e de difícil reconhecimento à primeira vista, é o fato
deste “diagnóstico” atribuir ao latifúndio e ao minifúndio o mesmo grau de
responsabilidade pelas dificuldades enfrentadas pela estrutura fundiária brasileira,
estando na raiz da injusta distribuição da propriedade e da renda. Observe-se que esta
conceituação só se tronava possível pela condição, anteriormente apontada, de se tratar
a terra como uma coisa e não como uma mercadoria, ou seja, uma relação social: um
imóvel rural. Segundo porque, de forma sutil e aparentemente “técnica”, coloca no
mesmo patamar as grandes e as pequenas propriedades, logo, tanto os especuladores e
os latifundiários quanto os trabalhadores e pequenos produtores. Desta forma, torna
profundamente difícil localizar as causas mais profundas da concentração fundiária e de
suas implicações para a economia rural, sua reprodução e desenvolvimento.
Esta construção “teórica”, tal como posta no Estatuto da Terra, permite e implica
qualquer interpretação ou diagnóstico: Ou seja, será, por um lado, a concentração, mas
por outro, a dispersão da propriedade, a causa fundamental dos problemas agrários.
Assim, volta-se, como no caso anterior, à estaca zero.
O agravante, neste diagnóstico desenvolvido na Mensagem 33, é que ele aponta
no sentido da reconcentração fundiária. Como o minifúndio é, por definição,
problemático por não possuir, endógena e intrinsecamente, a possibilidade de assegurar
o sustento de uma família de trabalhadores, portanto, menos ainda, de gerar “excedentes
econômicos”, a única alternativa é excluí-lo da solução do problema. Ou seja, o
minifúndio, enquanto tal, é apenas parte do problema, nunca da solução.

189
Quanto ao latifúndio, se por um lado, era considerado parte do problema, por
outro lado, era, igualmente, considerado parte da solução, sobretudo na medida em que
pudesse incorporar os progressos técnicos, administrativos, gerenciais, adequando-se,
desta forma, às exigências econômicas e constitucionais de respeito à função social da
propriedade. Para tanto, como não possuía restrições endógenas, bastava, apenas, ao
Governo, assegurar-lhe os meios adequados, como crédito, subsídios, assistência
técnica, etc. e o problema seria resolvido. Este foi o caminho eleito pelo Projeto do
Governo.
Tudo isto estaria bem posto, pelo menos teoricamente, se fosse possível
correlacionar, objetivamente, as possibilidades de desenvolvimento da produtividade do
trabalho na agricultura de forma relevante e unívoca à “variável” área passível de
exploração. Ainda assim, por exemplo, há que se considerar que a área média dos
minifúndios brasileiros, pouco diverge da área de propriedades familiares de caráter
empresarial em outras latitudes, como por exemplo, a França, o Reino Unido375, etc.,
onde, apesar da pequena área agricultável, o excedente econômico gerado por estes
produtores é relevante, em termos comparativos, em relação às suas respectivas
economias nacionais.
Portanto, o problema não está, necessariamente, relacionado à dimensão da
propriedade em si mesma, mas à excludência com relação a esta e a outras condições de
apoio à atividade produtiva no campo que, no Brasil, sempre que implementadas, foram
efetivamente apropriadas privilegiadamente, por determinadas camadas sociais. Tais os
casos das diversas medidas e recursos colocados, por exemplo, à disposição do
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) para enfrentar os
problemas da seca no Nordeste; das regiões ribeirinhas do Vale do São Francisco e de
outros rios brasileiros; do sistema de preços mínimos, do sistema de assistência técnica,
do sistema de crédito rural, etc.
Após 1964, o mesmo processo volta a repetir-se, como no caso do crédito rural,
do PROTERRA/FUNTERRA, do seguro agrícola - o PROAGRO, para ficar apenas
nestes exemplos mais conhecidos, que raras vezes chegaram efetivamente aos
“pequenos produtores” ou flagelados das secas ou das enchentes, aos quais, por suposto,
eram destinados O mesmo pode-se dizer, em sentido inverso, com relação aos
latifúndios376 no Brasil: sempre foram objeto de todas as regalias, incentivos e
privilégios e, apesar disso, as únicas coisas que conseguiram efetivamente desenvolver
foram as suas áreas, as suas cercas, e o percentual de terras improdutivas.
As implicações deste diagnóstico do problema agrário brasileiro, tal como
realizado na Mensagem 33 e no Estatuto da Terra, e dos meios e estratégias
estabelecidos para resolvê-lo podem ser efetivamente evidenciados por um lado, pelos
instrumentos de ação fundiária e respectivos métodos de alienação, ou reconhecimento

375 Ver a respeito ABRAMOVAY (1992), CHONCHOL (1986).


376 Ver a respeito a nossa Dissertação de Mestrado (JONES, 1987).

190
de domínio particular sobre terras públicas e, por outro lado, pelos resultados da
implementação destes procedimentos em termos de suas conseqüências efetivas sobre a
distribuição da propriedade territorial rural e a destinação dada às novas terras, assim
apropriadas.

3.2.1 - Execução da Política Fundiária: “Intenção e Gesto377”

Na realidade, o problema fundiário brasileiro, antes de ser posto em termos de


urgência na “redistribuição da propriedade” territorial rural (que é necessária),
continuava sendo o de proceder à clara separação entre as terras públicas e as que se
encontravam em domínio privado.
Por inusitado que possa parecer, persistia, no Brasil dos anos 60, deste século, o
mesmo problema já posto nos anos 40 e 50 do século passado e a mesma herança do
fracasso da Política Fundiária do Império.
Por isso, admitir, “a priori”, que o problema fundiário fundava-se na desigual
distribuição da “propriedade”, apesar de parecer uma posição teoricamente correta e
progressista, significava cometer um equívoco de princípio. Porque significa admitir,
igualmente, que as grandes posses sobre terras devolutas, públicas, que pertencem, de
direito378, ao Estado, seriam propriedades privadas legítimas, sem questionar a sua
origem legal. Estas podem, até, apresentarem-se, na aparência, como grandes
“propriedades” privadas, porém, não legítimas. E não são, de direito, propriedades
legítimas, como demonstrado nos capítulos anteriores, e por várias razões:
Primeiro, juridicamente, por não preencherem os requisitos mínimos, legais,
exigidos para caracterizá-las. Segundo, porque, a grande parte das terras ocupadas no
Brasil, sobretudo, por grandes posses, ocorreu a partir dos anos cinqüenta deste século,
muito particularmente, nas décadas dos sessenta e setenta. Os dados apresentados no
próximo capítulo, sobre “áreas novas” incorporadas ao patrimônio privado, entre 1960 e
1980 dão conta deste fato. Aliás, o senhor Paulo Yokota, na época Presidente do
INCRA refere-se exatamente a este problema nos seguintes termos:
“Nem todos os brasileiros possuem a clara consciência de que
nestas três últimas décadas o Brasil dobrou efetivamente de
dimensão... Desde 1500 a 1960, portanto, 460 anos, ocupou-se a
metade litorânea e alguns pontos isolados junto aos rios
interiores (...)
A partir dos anos setenta a ocupação da Amazônia e do
Centro-Oeste passou a ser sistemática e contínua(...).” 379

377 Essa expressão é aqui utilizada em referência ao sentido dado à mesma na poesia de Chico Buarque de Holanda e
Ruy Guerra (1973), “Fado Tropical”: “É que há distância entre intenção e gesto (...).”
378 Ver Hely Lopes Meirelles : “No Brasil todas as terras foram, originalmente, públicas, por pertencerem à
nação portuguesa, por direito de conquista. Depois passaram ao Império e à República, sempre como
domínio do Estado” (MEIRELLES, 1991, p. 447).
379 YOKOTA (op. cit., p.8). Grifos nossos.

191
Portanto, o problema agrário brasileiro não é de “redistribuir a propriedade”,
mas, sim, de distribuir a terra, para torná-la efetivamente produtiva, o que é outra
coisa, completamente distinta. Quanto à propriedade, esta terá que ser questionada,
especialmente no que se refere ao estatuto jurídico da sua legalidade e da sua
legitimidade de direito, muito particularmente quando se tratarem dos imensos
“domínios” fundados, ou na simples posse, ou em títulos juridicamente duvidosos, ou
simplesmente falsos, portanto nulos. Se o título é falso, é nulo, logo, não se pode argüir,
com base nele, o direito de propriedade privada, posto que as terras, no Brasil, nunca
foram “res nullius”, ou seja, sempre foram, originalmente, propriedade do Estado380.
Portanto, para se tornarem propriedade de terceiros há, necessariamente, que possuir o
documento, juridicamente hábil, que legitime a transferência de domínio, ou seja, é
imprescindível a transcrição legítima do imóvel. Em suma, que se funde
indubitavelmente a cadeia sucessória legalmente exigível. Estes procedimentos são,
juridicamente, irrecusáveis. O “ônus da prova” de propriedade não é do Estado, mas do
suposto proprietário.
Redistribuir a terra significa, efetivamente, possibilitar a implementação do
imperativo constitucional de 1946, referido pela Mensagem 33, de assegurar o acesso
democrático e justo à terra, de resto, como se afirmou no parágrafo anterior, um
patrimônio que sempre pertenceu à nação. Como tem sido defendido pelos juristas mais
respeitados, a terra, no Brasil, é originalmente pública. Portanto, para se encontrar em
domínio privado tem que possuir, claramente estabelecido, em algum momento de sua
história, o instrumento legal, através do qual, o Estado transferiu o domínio, ou
reconheceu transferência anterior, ou a posse legítima, de parcelas de seu território. Este
é, efetivamente o problema fundiário a ser resolvido no Brasil. Ele é, aliás, claramente
reconhecido, inclusive, pelas autoridades fundiárias do Governo Militar, quando
propuseram a regulamentação do preceito constitucional referente ao acesso à
propriedade rural e ao reconhecimento, enquanto condição prévia deste, da prioridade
dos processos discriminatórios.
Portanto, estes processos têm um papel fundamental e insubstituível no contexto
do problema fundiário e da questão agrária brasileira. Sem se identificar, clara e
legalmente, quais são as terras devolutas da União, Estados e Municípios e quais as que
se encontram, legitimamente, em domínio privado, sejam posses legitimáveis ou
propriedades legalmente tituladas, soa como apócrifa, qualquer proposição de
redistribuição da propriedade rural no Brasil.

380 Cabe registrar que há controvérsias, entre os juristas, a respeito da existência, ou não, de terras “sem dono”,
adéspotas, no Brasil. Neste trabalho, aceita-se o argumento que defende o fato de que, desde, pelo menos, a Lei 601
de 1850, não mais se poderia falar em terras sem dono no Brasil. Como foi amplamente discutido no capítulo 2 deste
estudo, a Lei 601 referia-se claramente ao fato de que não estando determinadas terras, “aplicadas a algum uso
público nacional, provincial ou municipal” e não estando, por qualquer título legítimo, incorporada à propriedade
particular, são terras devolutas (artigo 3o da Lei 601/1850): ou seja, tratam-se de terras incorporadas ao acervo das
terras públicas da nação”. Ver a respeito da questão, PONTES DE MIRANDA (op. cit), MEIRELLES (op. cit.);
NASCIMENTO (op. cit.) e CARVALHO SANTOS (op. cit.), entre muitos outros.

192
É exatamente por esta razão que o latifúndio, os grileiros especializados e os
especuladores imobiliários sempre se opuseram, em todos os momentos da história
agrária brasileira, aos processos discriminatórios em geral, e aos registros de imóveis,
em especial.
Quando a exigência de registros públicos, em face do desenvolvimento
econômico e do aperfeiçoamento do ordenamento jurídico do país, tornou necessária a
titulação e matrícula dos imóveis, especialmente nos anos que se seguiram ao 1964, a
recorrência aos métodos e processos fraudulentos, à grilagem especializada ou à “nova”
violência, “politicamente justificada”, tornaram-se os instrumentos privilegiados por
esses grupos que sempre tiveram, como se vem demonstrando nos capítulos anteriores,
o controle efetivo das terras no Brasil.
Por isso persiste o processo de apropriação privilegiada, fundado nas grandes
posses de legitimação questionável, posto que os títulos de que dispõem (quando
dispõem de títulos) geralmente não resistem a uma análise jurídica, ainda que
superficial381. Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a
Política de Incentivos Fiscais da Amazônia, o Diretor do Departamento de Recursos
Fundiários do INCRA, pronunciou-se a respeito desta questão nos seguintes termos:

“No exame da situação dominial, o estado de precariedade da


documentação é uma constante. Grande parte dos títulos
examinados não resistem a uma análise jurídica mais profunda,
pois não só apresentam uma filiação dominial imperfeita,
como os dados que estabelecem, relativos à área, limites e
confrontações, não correspondem à localização física dos
imóveis a que se referem.
“Outro fato relevante que tem dificultado a ação do INCRA diz
respeito à deficiência dos registros públicos. Muitos Cartórios de
Registro de Imóveis (...) deram ensejo à inúmeras
irregularidades, algumas praticadas de “boa fé”, sem a intenção
de lesar o patrimônio público, outras com a evidente finalidade
de dar cobertura à invasões, num autêntico processo de
grilagem de terras382.”

O reconhecimento da fragilidade jurídica e da fraude na emissão de “títulos” de


propriedade é quase um consenso entre os juristas e especialistas da área. Geralmente a
defesa da tese contrária funda-se no argumento, amplamente questionável e, de qualquer
forma, juridicamente ineficaz e inaceitável, de que se tratam de propriedades que,
embora tendo origens viciadas, são produtivas, portanto devendo ser respeitadas. De
qualquer forma, trata-se de um problema que necessita ter uma solução objetiva.
Paulo Yokota, então Presidente do INCRA, após reafirmar o princípio, sempre
assegurado por todas as legislações agrárias brasileiras, desde o período colonial, de que

381 Ver a este respeito, o depoimento de Oldair Zanatta, Diretor do Departamento de Recursos Fundiários do INCRA
na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre política de incentivo fiscal na Amazônia (In.: ZANATTA, 1980).
382 Idem. p. 26. Grifos nossos).

193
a posse se constitui em elemento gerador de “expectativa de direito, obedecidas as
condições mínimas de exploração agropecuária efetiva e morada habitual”, faz
referência à importância da discriminatória para separar as áreas “legitimamente
privadas” das privatizáveis e das áreas públicas, que poderiam, estas últimas, ser
mobilizadas pelo Governo, para ações fundiárias específicas. Neste contexto, Paulo
Yokota faz a seguinte referência ao conceito jurídico de propriedade privada legítima:

“(...) Estas devem contar com uma origem perfeita, ou seja, um


claro processo de destaque do patrimônio público para o privado;
uma cadeia dominial perfeita, ou seja, uma história contínua e
obedecendo a todos os preceitos da legislação, desde a sua
origem até o presente; localização e dimensão indiscutíveis,
devidamente identificadas por pontos geodésicos ou acidentes
geográficos bem definidos, com demarcações e medições
tecnicamente aceitáveis383.”

Por outro lado, aponta as seguintes exceções:


“A legislação prevê algumas situações onde as insuficiências parciais das condições de
um documento de terras rurais podem ser sanadas pelo reconhecimento explícito
das autoridades fundiárias. Tais autoridades contam com limites claros de sua
competência, estabelecidos pela legislação, não sendo válidos os atos que
extravasem tais limites384.”

Trata-se do princípio fundamental do Direito Administrativo que afirma que, ao


servidor público, só é dado o direito de praticar atos explicitamente autorizados em lei.
Ao contrário do princípio aplicado ao cidadão comum que pode praticar qualquer ato
não vedado pela lei. Por este princípio da legalidade, em vigor, no país, os atos
administrativos que exorbitaram são nulos por definição.
Portanto, continua em aberto, pelo menos juridicamente, a possibilidade de ser
rever as “aquisições” e “alienações”, pelo Estado, de imóveis rurais no País, inclusive os
atos ilícitos praticados por autoridades fundiárias, na via jurisdicional do Estado, sendo
que, a revisão da legalidade destes atos administrativos é pacífica, quer pela doutrina
jurídica, que pela jurisprudência. Esta revisão das “concessões de terras” foi prevista na
Constituição de 1988.
Ou seja, legalmente, qualquer imóvel que não preencha todos estes requisitos
legais, não é, do ponto de vista da sociedade de direito e do ordenamento jurídico
vigente, efetivamente, propriedade privada legítima. É neste sentido que aqui é feita a
referência a hipótese de que estas “propriedades” são juridicamente questionáveis. E as
análises realizadas, até o momento, neste trabalho, já permitem afirmar, com certa
tranqüilidade que, efetivamente, o são.
A análise dos meios e instrumentos, através dos quais, foram promovidas as
ações fundiárias pelo Governo, após a aprovação do Estatuto da Terra, especialmente as

383 YOKOTA (op. cit., p. 2. Grifos nossos).


384 Idem, loc. cit.

194
que se destinaram a enfrentar os problemas de legitimação das terras em poder de
particulares e sua clara separação em relação às terras públicas, interessa,
especificamente, a este estudo.
A arrecadação destas terras e seu respectivo registro pelo Estado, contidos no
âmbito dos processos discriminatórios e de arrecadação de terras públicas, são a
primeira instância relevante, para se compreender como estas questões foram
enfrentadas e suas respectivas conseqüências, enquanto implementação de determinada
Política Fundiária ou de acesso à propriedade territorial.
A outra instância relevante, nesta dimensão específica da Política Fundiária,
refere-se às ações de Governo no sentido de promover determinadas intervenções na
estrutura das relações de propriedade: tratam-se das medidas específicas - uma vez
resolvida a questão da legitimidade de domínio sobre as terras - no sentido de adequar a
sua distribuição e uso. Nesta segunda instância, com base no ordenamento jurídico
implementado a partir do Estatuto da Terra, os Governos Militares desenvolveram ações
nos campos da desapropriação de imóveis rurais, aquisição de propriedades e,
finalmente, no âmbito da colonização. Por suposto do modelo implícito no Projeto da
Lei 4.504/64, estas seriam, objetivamente, as ações da “reforma agrária”, tal como
subjacente ao Projeto de Desenvolvimento Rural do Governo.
É neste contexto que podem ser caracterizados e analisados as formas e os meios
de regulação e intervenção do Estado na propriedade territorial e na estrutura agrária
brasileira, conceituados, genericamente, pelo Governo, como “instrumentos de ação
fundiária”. São estes, o processo discriminatório de terras; a arrecadação das terras
devolutas, públicas; a desapropriação de imóveis rurais; a aquisição de imóveis pelo
Estado; e, finalmente, os processos de colonização 385. Conjuntamente a estes
instrumentos, foram implementados, pelo Governo, os processos de alienação e
titulação da terras públicas, ou seja, o efetivo processo de privatização de terras, provido
pelo Estado, fundado na regulamentação expedida com base no Estatuto da Terra.
Este capítulo não poderia ser concluído, portanto, sem a análise destes
instrumentos, posto que foi exatamente através deles que o Estado pôde implementar o
seu Projeto de Política Fundiária e Desenvolvimento Rural.

3.2.2. Instrumentos de Ação Fundiária


Como já foi registrado, os principais instrumentos de ação fundiária utilizados
pelo Estado, após 1964, e com base no conjunto de legislações e atos administrativos
que se seguiram à Lei 4.504/64, são: a Discriminação de Terras; a Arrecadação e
Matrícula das Terras Públicas; a Desapropriação de Imóveis Rurais; a Aquisição de
Imóveis e, finalmente, a Colonização. Estes, portanto, são os meios efetivos pensados

385 Ver a respeito dessa classificação e respectivas conceituações, ZANATTA (op. cit.) e RIBEIRO (op. cit.).
Poderão ser igualmente compulsados os “manuais” técnicos e operacionais do INCRA.

195
pelas autoridades fundiárias para transformar a “injusta” estrutura agrária existente no
País386.
Observe-se que nesta classificação operacional dos instrumentos de ação
fundiária oferecida pelo INCRA 387, não aparece a “Reforma Agrária” como instrumento
de ação fundiária. Esse fato é significativo, posto que deixa evidente que a Reforma
Agrária, tal como pensada pelos dirigentes da Política Fundiária, não se constituía,
sequer em um instrumento operacional para a transformação da estrutura agrária. A
análise dos diferentes processos, neste sentido, implementados pelo INCRA, indica que
a Reforma Agrária era pensada, apenas, como última instância que, de resto, seria
alcançada em resultado da ação destes instrumentos, evidentemente, entendidos como
articulados aos demais instrumentos de política agrícola e desenvolvimento rural, como
subsídios, crédito, assistência técnica, etc. Tudo isto é coerente com o Projeto de
Desenvolvimento Rural e Fundiário, tal como arquitetado pelo Governo e claramente
regulamento no Estatuto da Terra, como se pode verificar pelas análises aqui
desenvolvidas.

3.2.2.1. Discriminação de Terras Públicas


As ações discriminatórias, que consistem em separar as terras devolutas,
públicas, das que se encontram em domínio particular legítimo, são consideradas,
inclusive pelas autoridades fundiárias, como o instrumento fundamental da ação
fundiária.
Segundo Cláudio Ribeiro, diretor do Departamento de Desenvolvimento Rural
do INCRA, a discriminatória é um criação “genuinamente brasileira” e se deve às
especificidades do processo de desenvolvimento da organização fundiária do País, cujas
terras, originalmente públicas, foram ocupadas de forma desordenada e, quase sempre,
atropelando as iniciativas legais e administrativas.
Este processo, amplamente analisado nos capítulos anteriores, sempre se fundou
na apropriação privilegiada, quer estivesse, ou não, baseado no consentimento do
Estado. O curioso, neste processo de ocupação de terras públicas, e realmente peculiar à
história agrária brasileira - neste caso, efetivamente uma “criação genuinamente
brasileira”, para utilizar aquela expressão de Cláudio Ribeiro - foi o fato de que,
também o processo de legitimação, ter sido privilegiado e juridicamente questionável.
Apenas essa dupla configuração do privilégio pode explicar como e porque, até os dias
atuais, persiste a necessidade prioritária das ações discriminatórias, cujo objetivo é
exatamente separar, legalmente, as terras públicas das particulares.
Tendo em consideração a persistência desta característica dos processos de
ocupação das terras brasileiras e a extensão dos privilégios à própria esfera jurídica, a
questão que persiste junto a ela, refere-se ao fato de se saber se a proposta, tão

386 Vide Estatuto da Terra (Lei 4.504/64). Loc. cit.


387 Ver, por exemplo, Cláudio. J. Ribeiro, op. cit., pp. 6-7.

196
enfaticamente anunciada pelos mentores do Estatuto da Terra e da Política Fundiária do
Estado Militar, realmente significou, pelo menos, a minimização deste problema. Ou
seja, se este duplo privilégio no acesso e na legitimação das terras públicas foi, ou não,
efetivamente enfrentado e combatido.
Parte da resposta a esta questão será dada neste capítulo, ao serem analisadas as
formas, processos, instrumentos e métodos, administrativa e juridicamente
estabelecidos, tanto para as ações discriminatórias, como de arrecadação, quanto,
sobretudo, no que se refere às diferentes formas de desapropriação de terras em domínio
privado ou de privatização de terras públicas.
Por definição, o processo discriminatório tem por objetivo identificar as terras
devolutas, públicas, e separá-las, legalmente das terras particulares. Os procedimentos
para este mister se fundam, desde a Lei de Terras388 de 1850, que o introduziu no
ordenamento jurídico brasileiro, num processo de exclusão das propriedade particulares
legitimamente constituídas.
Veja-se que é uma constante no ordenamento jurídico-fundiário brasileiro a
referência à expressão “legitimamente constituída” para se referir às terras em poder
de particulares. Isto significa que as terras que tenham origem duvidosa ou abertamente
fraudulenta - e como se viu acima, é a esmagadora maioria, pelo menos antes da
implementação das “ações fundiárias” dos Governos389 Pós-1964 - não são propriedades
legítimas. São juridicamente questionáveis. Responder a esta questão sempre foi a
tentativa dos diferentes governos brasileiros, desde, pelo menos, 1850. Como já vinha
sendo, antes da Independência, preocupação da Coroa portuguesa390.
O processo discriminatório é privativo da União e implementado pelo ICRA no
âmbito das terras de seu domínio 391, ou seja, as terras devolutas situadas na faixa
fronteira, ampliada esta, para 150 quilômetros de largura, paralela a linha divisória do
território nacional com outros países, tal como redefinida pela Lei no 6.634, de 2 de
maio de 1979392. Como foi analisado nos capítulos anteriores, a faixa de fronteira foi
inicialmente definida em 66 quilômetros (Lei no 601/1850), posteriormente foi
aumentada para 100 quilômetros (Constituição de 1934, art. 166). Estão igualmente
incluídas, entre as erras devolutas da União, a faixa de 100 quilômetros, situada de cada
lado das rodovias federais, construídas ou projetadas na Amazônia Legal393.
Os processos discriminatórios sempre enfrentaram a oposição sistemática e
persistente dos grandes detentores de terras do Brasil. Exatamente porque, nestes

388 Ver o capítulo 2 deste estudo, onde o tema é detalhadamente discutido.


389 Quantos a estas, há que se questionar a legalidade dos atos das autoridades fundiárias do período.
390 Ver o capítulo 1 deste trabalho, que se ocupa do período colonial.
391 Ou em convênios com os Órgãos de Terras dos Estados da Federação, quando for o caso.
392 Lei 6.634, de 2 de 1979: “Dispõe sobre a Faixa de Fronteira, altera o Decreto-lei no 1.135, de 3 de
dezembro de 1970, e dá outras providências”. (BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1979.). Ver
especialmente, o Arts. 1o e 2o, parágrafos 1o , 2o . e 3o, que se referem à instalação de indústrias nas áreas de fronteira.
393 Decreto-lei 1.164, de 1o de abril de 1971, que “Declara indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento
nacionais terras devolutas situadas na faixa de cem quilômetros de largura em cada lado do eixo de
rodovias na Amazônia Legal e dá outras providências”. (Loc. cit.).

197
processos, os supostos detentores de terras têm o “ônus”, legalmente previsto, de
apresentar as provas da legitimidade de seus domínios, quer sejam títulos, quer sejam
testemunhos idôneos, no caso de posses. Como já foi mencionado acima, os títulos de
propriedade apresentados não resistem, segundo Carlos Ribeiro, “ao primeiro embate
jurídico”, e conclui :

“Têm-se constatado titulações irregulares promovidas por


Estados-Membros da Federação, transcrições ou registros
irregulares em cartórios, processados em decorrência de
‘grilagens’, gerando presunção de domínio, assim como
ocupações especulativas, muitas das quais sem exploração da
terra, além de outras situações adversas ao encerramento da
instância administrativa.” 394

Quando, neste trabalho faz-se referência à “grilagem especializada” refere-se


aos processos fraudulentos de legitimação de terras devolutas (mas geralmente ocupadas
por posseiros e indígenas, especialmente nas regiões afastadas dos sertões), promovidos
com a aparência legal e, geralmente com orientação jurídica e conivência de Cartórios e
dos órgãos oficiais de terras dos Estados. A fraude de documentos vai desde o furto à
emissão de documentos falsos ou ao “aquecimento” de documentos frios, utilizando-se
de artifícios abertos pela legislação. A pesquisa já citada, sobre o Vale do
Jequitinhonha, de autoria de Maria Aparecida de Moraes Silva, reconstrói os
mecanismos de expropriação da massa de posseiros e de legalização das novas
propriedades. Esta pesquisa confirma as anteriormente citadas avaliações sobre a ilegal
e injusta titulação de terras no Brasil. Conforme o seu relato, no Vale do Jequitinhonha,
durante o período militar, as grandes companhias se apossaram das áreas elevadas das
chapadas e procederam à derrubada da mata e limpeza do terreno pelas queimadas e
pelos tratores. Fizeram espalhar pelas redondezas, a notícia de que toda aquela área era
propriedade pública e que o governo iria retomar as terras; assim infundindo o medo de
perda da terra nos camponeses que as detinham como posses mansas e pacíficas desde
tempos imemoriais nas grotas e veredas como terra pessoal, e nas chapadas como terra
comum. Compradores, vindos de São Paulo, ou simplesmente identificados como
“paulistas” passaram então a comprar os direitos de posse a preços irrisórios.
As compras referem-se a áreas pequenas - 2,4 ha., 4,8 ha., 9,8 ha., 10,9 ha -
algumas maiores, sendo uma de 217,6 ha e outra de 969,1 ha. - mas, ao proceder-se, em
seguida, à medição e legitimação de domínio, procedimento de que se encarrega a
estatal do governo mineiro, a autarquia Rural Minas, de conformidade com o relato da
pesquisadora, neste procedimento, já sob patrocínio e tutela das grandes companhias
que compraram as áreas aos “paulistas”, as pequenas posses se transubstanciam em
vastos latifúndios, com áreas de 807 ha, 2.934 ha, l.620 ha., 217 ha., 898 ha., 3.684 ha.,
o que representou acréscimos descomunais. Na chapada, os sitiantes detinham o uso de

394 RIBEIRO (op. cit., p.7. Grifos nossos). A mesma posição é exposta por Paulo Yokota e Oldair Zanatta, citados.

198
parcelas da terra apossada em comum para a extração de madeira e para pastagem do
gado nas beiradas da mata. Alguns deles até já haviam feito pagamentos para a medição,
mas não tiveram o dinheiro suficiente para pagar o documento oficial e o registro em
cartório. Mas a maioria nem mesmo sequer procedeu à demarcação, de sorte que uma
compradora final, a Companhia. ACESITA, adquirira através de terceiros as posses com
documentos antigos, já cercadas, nos demais casos simplesmente derrubou cercas e
construções e procedeu ao cercamento das terras devolutas.
Já a Companhia. SUZANO, essa não respeitou até terrenos demarcados,
segundo relato de sitiantes à pesquisadora395. As terras ali haviam sido, por meio de
decreto governamental, - tipificando a ação burocrático-autoritária - declaradas
impróprias à agricultura e só adequadas ao reflorestamento, conforme legislação de
incentivos fiscais que beneficiou essa atividade destinada a grandes empresas. Pois,
conforme o relato da pesquisadora, a

“lei de 1966, ao definir a área dos distritos florestais imprimindo a


esta região tais características, negou toda uma história passada
de ocupação da terra, além do modo de vida destas populações e
da história natural. Neste sentido, baseando-se nos projetos
modernizantes, todo um mundo assentado em relações
específicas com a terra e dos homens entre si foi determinado a
desaparecer. O modo de vida secular assentado nas relações
homem-natureza, no direito costumeiro da posse pessoal e da
terra comum e na existência de uma história da natureza
sucumbiu, em menos de duas décadas, diante do fogo nas
chapadas, das grandes máquinas de terraplenagem, das moto-
serras, das invasões das terras nas veredas, da destruição dos
marcos naturais que separavam as posses, das destruições das
nascentes de água. Neste processo avassalador, nem mesmo os
mortos foram poupados. Muitos cemitérios desapareceram sob o
nivelamento do solo feito pelas máquinas.”396

As citações acima, como outras referidas neste estudo, como uma infinidade de
outros pronunciamentos no mesmo sentido, tanto de autoridades fundiárias, como de
depoentes nas diferentes Comissões Parlamentares de Inquérito sobre o problema
fundiário, que seria impossível e desnecessário, até, arrolar neste estudo, dão a prova
mais cabal e objetiva a respeito dos problemas que se encontram na raiz da
concentração fundiária brasileira: a apropriação privilegiada e a legitimação
questionável, juridicamente, de imensas áreas que, noutro contexto, poderiam
efetivamente ser incorporadas à economia rural, possibilitando o acesso produtivo à
milhões de pequenos e médios produtores e trabalhadores rurais. E, neste caso, sem
nenhum custo de aquisição de Terra, pelo Estado, posto que se tratam de terras públicas.
Pelo contrário, podendo, inclusive gerar as receitas necessárias à implementação de um
efetivo Projeto de Desenvolvimento Econômico para a agricultura brasileira. E sem que

395 MORAES E SILVA (1996:, pp.41-46 e 47-52).


396 Idem, p. 39.

199
isto significasse nenhuma restrição, “a priori”, para o apoio efetivo, por parte do
Estado, à implantação e implementação de empresas agropecuárias de diversos portes e
produtividade.
É exatamente neste nível, que o diagnóstico apresentado na Mensagem 33 e no
Estatuto da Terra é um profundo e estrondoso equívoco. O maior problema a ser
enfrentado na questão fundiária brasileira, não se situa na eliminação dos minifúndios,
mas nos latifúndios ilegítimos (e não importa se produtivos ou não. O problema é que
são ilegítimos e ilegais: em sua maioria produto da fraude e efetivamente
especulativos). Este é o primeiro problema a ser enfrentado.
Enquanto não for assegurado o acesso legal e legítimo à terra, como estabelece o
preceito Constitucional de 1946, não se pode discutir com objetividade as formas e
meios para o crescimento da produtividade na agricultura. Por outro lado, estando
assegurado o acesso produtivo e legal, à terra, torna-se, inclusive, possível implementar,
de forma objetiva, uma política tributária conseqüente: não para “punir” os
“improdutivos”, mas para premiar a produtividade.
É neste sentido, o próprio minifúndio, como todos os problemas que,
efetivamente, apresenta, nada mais é do que o resultado da política de apropriação
privilegiada e de legitimação questionável, que provocou a profunda excludência social
em relação ao acesso à terra no Brasil, apontada por todas as estatísticas e estudos
especializados sobre o tema, desde o período em que vigia o instituto de sesmarias.
Até porque é profundamente difícil, senão impossível, dadas as exceções e
liberalidades permitidas pelas diversas normas e regulamentos, classificar, qualquer que
seja o imóvel rural, de “improdutivo”. Assim, uma política fundiária, tributária e fiscal
que procurasse premiar o trabalho, a eficiência e a produtividade, ao contrário da visão
“repressiva” e “autoritária”, que só imagina a via da “punição”, certamente daria os
resultados até agora nunca conseguidos. Neste contexto - nunca proposto nem tentado
pelos Governos Militares - tornar-se-ia, provavelmente, possível uma profunda
transformação da estrutura fundiária e da economia rural brasileira.
É neste sentido que, também, a política tributária “progressiva e regressiva”,
proposta no Estatuto da Terra (independentemente das exceções que abre e que
possibilitam, de fato, a fuga e a sonegação) é, na melhor das hipóteses, produto de uma
má compreensão da questão fundiária brasileira e de sua história de privilégios,
impunidade e sonegação e, na pior da hipóteses, produto de mera demagogia. Os
resultados alcançados pela aplicação desta política é a prova mais evidente do seu
equívoco.
De qualquer maneira, como já mencionado anteriormente, o processo
discriminatório teve, efetivamente, resultados relevantes. Significou a arrecadação de
aproximadamente 129,6. milhões de hectares, segundo Cláudio Ribeiro; 111,8 milhões
de hectares, segundo Oldair Zanatta e 115 milhões de hectares, conforme Paulo

200
Yokota397, ou seja, segundo as estatísticas do INCRA. Como será visto no próximo
capítulo, esta área é coerente com a registrada pelo IBGE, para a incorporação de áreas
novas aos estabelecimentos agrícolas entre os Censos de 1960 e 1980, ou seja, à
propriedade particular. As duas citações abaixo, respectivamente, de Cláudio Ribeiro e
Oldair Zanatta, registram este fato:
“Nas áreas sob jurisdição federal, num total de aproximadamente, 357,5 milhões de
hectares, o INCRA já discriminou até junho de 1984, em torno de 129,6 milhões de
hectares398(...).”

“A arrecadação de terras devolutas possibilitou a incorporação ao patrimônio da União


até o momento, um total de 111,8 milhões de hectares na Amazônia Legal e na Faixa
se fronteira. Deste total, estima-se que 70% encontra-se ocupado, titulado ou em fase
de titulação 399(...).”

A diferença entre as estatísticas apresentadas pelos três diretores do INCRA,


muito provavelmente devidas a períodos diferentes, é menos importante do que o fato
de que, entre 1960 e 1980 foram discriminados em torno de 112 milhões de hectares de
terras no âmbito federal. O problema, de fato, reside em como ou se estas terras foram,
ou não, arrecadadas para o patrimônio da União; ou “transferidas” para particulares. E,
sobretudo, isto sim, é relevante, em favor de quem400 estas terras foram privatizadas.
Este assunto será tratado no próximo capítulo.
Este problema é referido por Oldair Zanatta, nos termos abaixo, fato que já dá
um idéia de que o seu tratamento continuaria, como desde sempre a ser protelado sob os
mais diversos pretextos:
“Esse processo acelerado de discriminação tem possibilitado
resguardar terras devolutas da ação de ‘grileiros’. Todavia, a
impossibilidade de sua destinação imediata por problemas
de técnica, ou até mesmo de mercado, coloca-as à mercê da
invasão de NOVOS POSSEIROS. Isso vale dizer que a
destinação de uma área, após algum tempo de sua
discriminação, impõe a necessidade de novo
levantamento.”401

Como foi analisado nos capítulos 1 e 2, desde o período Colonial os grandes


detentores de terras apresentavam os mais diversos argumentos para justificar a
ausência de registro das terras em seu domínio, ainda que legítimo. Sempre se referiam
à falta de condições efetivas para executar as exigência legais: ausência de técnicos
especializados; a “imensidão” do território (e certamente, das concessões ou posses);

397 YOKOTA (op. cit., pp. 2-3).


398 RIBEIRO (op. cit., p. 7). Grifos nossos.
399 ZANATTA (op. cit., p. 18). Grifos nossos. A diferença entre os dados de Zanatta e Cláudio Ribeiro, deve-se ao
fato de que este último trabalha com dados até 1984, enquanto os de Zanatta computa estatísticas até o ano de 1980.
O dado do IBGE para o período, refere-se a um total de 1114.965.285 de hectares de áreas incorporadas aos
estabelecimentos rurais, entre os anos de 1960 e 1980. A análise destes dados será realizada no próximo capítulo, ao
se estudar os resultados da Política Fundiária do Regime Militar.
400 Esta questão, de fato, pertinente, foi, como visto acima, levantada pela CONTAG (op. cit., pp.1984: 8-9).
401 ZANATTA (op. cit., p. 7-8).

201
falta de aparelhamento dos órgãos públicos encarregados de executar a política de
terras, etc. Como se vê pelas palavras de Oldair Zanatta, em pleno final de século XX,
os pretextos não de modernizaram.
Isso eqüivale a dizer, completando a exposição de Zanatta, que o processo de
ocupação privilegiada é absolutamente ilegal, e continua. Ilegal, posto que agora se
tratam de terras discriminadas pelo Governo Federal, portanto de invasões de terras
legalmente incorporadas, enquanto imóvel, ao patrimônio público. Isto significa que
persiste o privilégio e a impunidade dos grandes invasores. Sim, posto que os pequenos
posseiros, nestes casos, no máximo, poderiam ser incorporados a algum programa de
colonização oficial.
Na verdade, essa confissão feita pelo Diretor de Recursos Fundiários do INCRA,
em um Simpósio Internacional de Experiência Fundiária, dá a dimensão dos grandes
interesses que continuavam, em pleno final do Regime Militar (o documento é de
agosto de 1984) a vigir no campo.
Destes problemas se tratam, ao se discutir uma efetiva política de reforma
agrária para o Brasil, e não da mera re-distribuição da propriedade402. O primeiro passo
de um processo efetivo de Reforma Agrária, portanto, é identificar as propriedades
legítimas403. O instrumento para deflagração deste processo já existe legalmente e é a
ação discriminatória. Veja-se, que neste caso, não há sequer, a necessidade dos famosos
e intermináveis debates parlamentares acerca do estabelecimento do “rito sumário”, do
“rito sumaríssimo404”, etc. Tratam-se de simples processos de reintegração de posse
em favor da União. Senão, as grandes indenizações, geralmente indevidas,
transformarão a Reforma Agrária em um “big business” para os latifúndios e
especuladores imobiliários. Aliás como efetivamente sempre ocorreu no período aqui
estudado, conforme registrado por muitos estudiosos e amplamente denunciado pela
imprensa e pelos órgãos representativos dos trabalhadores rurais.
Os juizes têm sido céleres em deferir liminares de reintegração de posse em
favor de supostos proprietários e contra pequenos posseiros, sem sequer argüirem, com
certeza, a legitimidade dos pleitos que lhes são propostos. Certamente poderiam, da
mesma forma, serem céleres em deferir as liminares de reintegração de posse, com
maior rigor jurídico ainda, porque fundados numa discriminatória legítima, em favor da
União. E disto se trata.

402 Porque para re-distribuir a propriedade, é necessário que hajam propriedades legítimas. E, no caso do Brasil, é
exatamente esta legitimidade que se deve questionar. Portanto, na pior das hipóteses, se se quiser colocar o problemas
nestes termos, tratar-se-ia de re-distribuir as terras públicas.
403 Ver por exemplo: (a) Foweraker, citado, que faz ampla referência “a indústria da posse”, promovida pelas
grandes empreiteiras e especuladores de terra, analisando, em especial, o caso Lupion, no Paraná; (b) CONTAG, no
documento citado, sobre a Política Fundiária do Regime Militar. Também poderão ser compulsados os Relatórios das
CPIs.: (a) do Sistema Fundiário; (b) dos Incentivos Fiscais da Amazônia e, mais recentemente, a CPI das Causas da
Violência no Campo.
404 Processos estes que, sob a aparência de virem a contribuir para a agilização das desapropriações necessárias à
execução da Reforma Agrária, na verdade sempre foram o caminho mais curto para retardá-la e, no limite, impedir
que ela fosse implementada.

202
O fato é que tem sido, praticamente, impossível a implementação da
discriminatória administrativa. As discriminatórias levadas para a via contenciosa,
legalmente previstas para os casos em que não haja o “acordo”, fundamental àquela,
permanecem tantos anos nos tribunais, que acabam por se tornarem inócuas. Até
porque, durante este tempo, os especuladores os grileiros “comuns” e “especializados” e
os latifundiários - que nem sempre são pessoas diferentes - já encontraram alguma
“destinação” para as “suas” terras: ainda que seja, a de transferí-las a terceiros. Os
depoimentos contidos nas Comissões Parlamentares de Inquérito, especialmente a que
se ocupou do Sistema Fundiário, documentam amplamente estes processos.

3.2.2.2. Arrecadação de Terras Devolutas


A arrecadação das terras devolutas, públicas, é uma implicação recorrente, em
princípio, das ações discriminatórias, aliás, constituindo-se no seu primeiro e mais
importante objetivo. Assim, as terras extremadas no processo discriminatório, sendo
devolutas, são incorporadas, formalmente, ao patrimônio das terras públicas, seja da
União ou dos Estados da Federação. Sendo ou estando, legitimamente, em poder de
particulares, por suposto, procede-se a titulação em favor de destes.
Os processos de discriminação e arrecadação de terras devolutas estão, do ponto
de vista legal, intimamente correlacionados. Entretanto, tantas têm sido as resistências
encontradas na implementação destes processos, que os mesmos passaram a ser
executados de forma separada, um complementando o outro. Como explica Cláudio
Ribeiro:

“Não obstante a arrecadação esteja implícita na discriminatória, o


INCRA sempre adotou a política de arrecadar as terras devolutas
apuradas, após a lavratura do termo da instância,
matriculando-as em nome da União. O procedimento é feito pelos
Estados, exceção ao da Bahia, cuja legislação pertinente faculta
dessa prática, que se seguida, obriga o órgão fundiário
estadual à aplicação do dispositivo da licitação pública,
como pré-condição para outorga de título de
propriedade.”405

Em continuidade à mesma argumentação, Ribeiro esclarece que, apesar do fato


de existir, entre os juristas uma forte corrente doutrinária que entende como dispensável
o registro de terras devolutas, com base no argumento de que, historicamente, todas as
terras brasileiras são públicas, exceto aquelas por algum título legítimo, transferidas
para o domínio particular, portanto não necessitando de outra publicidade senão aquela,
ficando o ônus da prova para os pretensos proprietários particulares; entretanto,
“a própria experiência adquirida pelo INCRA no campo da
administração fundiária recomendou a efetivação do registro,
como forma salutar de publicizar o domínio da União (...)

405 RIBEIRO (op. cit., p. 8. Grifos nossos).

203
Assim, as terras devolutas apuradas pelo INCRA foram sempre
levadas a registro imobiliário, iniciando-se, a partir de então, a
filiação dominial da terra pública federal. Essa providência tem
evitado que imensas extensões de terras devolutas sejam
incorporadas ilegalmente ao domínio particular, por ação da
‘grilagem’ fabricada por indivíduos inescrupulosos.”406

As citações acima, do Diretor de Desenvolvimento Rural do INCRA, permitem


esclarecer algumas questões importantes. A primeira refere-se a um fato central na
problemática das ações discriminatórias, que seria o de extremar as propriedades
públicas e particulares. Esse procedimento, instituído, formalmente, em 1850, com a Lei
de Terras, não tem sentido se não estiver estritamente associado ao processo de
arrecadação das terras devolutas enquanto patrimônio efetivo da Nação. Até porque,
para se delimitar e reconhecer como legítimas, as terras particulares, é necessário
extremá-las das devolutas, o que significa, a delimitação de ambas, e, é evidente, o
reconhecimento recíproco e concomitante. Como sempre coube ao Estado a legitimação
das propriedades particulares, teoricamente, este não deveria ter tido dificuldades para
legitimar o reconhecimento do seu próprio patrimônio.
Entretanto, como se vem demonstrando até aqui, neste trabalho, o Estado nunca
conseguiu, efetivamente, sequer, fazer valer o reconhecimento de seus domínios. Este
fato é um forte indício de que o controle efetivo sobre as terras do País sempre lhe
fugiram.
Estritamente associado a este problema, está o fato de o INCRA, com base na
“experiência adquirida” na administração fundiária, ter optado pelo registro, ainda que
isso não fosse, legalmente, necessário. Por que? Porque, se assim não procedesse,
abriria, ainda mais, as portas à grilagem especializada e à fraude. É o que fica claro nos
argumentos de Cláudio Ribeiro e Oldair Zanatta. Resta saber se este procedimento foi
suficiente para impedí-las. Segundo Zanatta, não.
De qualquer maneira, era melhor adotar este procedimento do que não fazê-lo,
até porque, e este parece o resultado mais relevante, por este meio se fundava a cadeia
de filiação dominial, com base na qual, a qualquer momento, poderia o Estado,
questionar a legitimidade de determinados títulos de “propriedade”. Se ele assim não
tem agido, as razões necessitam ser esclarecidas, senão teórica, com certeza,
juridicamente, porque é dever de ofício, portanto irrecusável, das autoridades fundiárias,
cumprir e fazer cumprir as determinações contidas no ordenamento jurídico. A omissão
ou, mais grave, a conivência com os reconhecidos processos ilegítimos de alienação e
aquisição de propriedades, caracteriza crime de improbidade administrativa.
Finalmente, cabe uma análise à referência feita à legislação fundiária do Estado
da Bahia que, segundo Cláudio Ribeiro, permite a arrecadação de terras devolutas
estaduais, sem a exigência do respectivo registro. Neste caso particular, pode-se argüir
por que os baianos, aliás de reconhecida tradição jurídica, optaram pela doutrina que se

406 RIBEIRO (op. cit., p. 8). Grifos nossos.

204
fundava na publicidade historicamente constituída, logo, tornando desnecessário o novo
registro com a mesma finalidade. Entretanto, o arremate do raciocínio do Diretor do
INCRA é sutil e profundo, ao afirmar que, procedendo desta forma, estaria o órgão
fundiário do Estado da Bahia desobrigado de submeter os processos de alienação de
terras devolutas às exigências legais de licitação pública. Por que? A resposta parece
óbvia. Esse tipo de problema será discutido adiante quando da análise dos
procedimentos de alienação de terras públicas.
De qualquer maneira, a Lei 6.383, de 7 de dezembro de 1976, introduziu a
obrigatoriedade de matricular no Cartório de Registro de Imóveis, as terras devolutas
arrecadadas, segundo Ribeiro407, sob a influência da experiência do INCRA.
Outra modalidade de arrecadação, criada pela Lei 6.383/76, era a chamada
arrecadação sumária, discriminada pela via cartorial. Consistia em procedimento
aparente simples de se levantar nos cartórios de registro de imóveis, a inexistência de
domínios particulares em determinadas áreas previamente selecionadas 408. Na medida
em que não houvesse oposição ou pleitos de terceiros quanto ao domínio ou posse,
especialmente em áreas declaradas indispensáveis à segurança e desenvolvimento
nacionais, poderiam as terras, assim consideradas devolutas, ser matriculadas em nome
da União. Todo o processo se fundava na emissão de certidões negativas409, lavradas
pelos Cartórios de Registro de Imóveis e pelo SPU - Serviço de Patrimônio da União -
e, complementarmente, pelos Órgãos Estaduais de Terras.
Para não fazer longos comentários sobre este problema que já tantas vezes tem
sido mencionado neste trabalho, pode-se afirmar que, embora este procedimento pareça
um grande avanço, na verdade ele só afeta os pequenos posseiros, que sequer tomam
conhecimento de sua instalação. Assim, pode-se afirmar, o próprio Estado pratica, por
este meio, efetivamente, um processo de expropriação por via registral, como já se fez
referência neste trabalho ao se analisar as implicações do Registro Torrens. A este
respeito pode-se dizer que muitas licitações e alienações de terras devolutas, realizadas
por diferentes Estados da Federação, implicaram na transferência para particulares, de
enormes áreas, onde viviam e trabalhavam milhares de posseiros e indígenas410. Apenas
para fazer uma referência insuspeita a respeito, especificamente, deste problema, vale a

407 Op. cit.


408 Note-se que este procedimento inverte o “instituto” do “ônus da prova”, passando-o ao Estado, e não aos
particulares, a investigar a legalidade de seus domínios. É assim que, procedimentos “técnicos” aparentemente
criativos e inovadores são “virtualmente inventados” para facilitar certas ações ou atividades administrativas, mas,
que na verdade, apenas servem para “legitimar” procedimentos “alternativos” e que acabam por complicar, ainda
mais, os processos normais da administração. Na verdade apenas aparecem como complicadores dos procedimentos,
inviabilizando-os.
409 Como os pequenos posseiros nunca detinham título de suas posses, portanto, não podiam as mesmas estar
registradas nos Cartórios, as certidões negativas, referidas, faziam “tabula rasa”, dessas posses. Assim muitos
posseiros foram vítimas da expropriação cartorial, como se tem referido neste estudo.
410 Fatos desta natureza têm sido documentados e denunciados de várias formas e em várias oportunidades. Apenas
para referir algumas fontes, veja-se: FOWERAKER (op. cit.), MARTINS, E. (op. cit.); IANNI (1979 e 1981) e
YOKOTA (op. cit.). Veja-se igualmente: CÂMARA DOS DEPUTADOS (1979); CONTAG (1984); e MORAES E
SILVA (1996).

205
pena anotar o seguinte trecho do trabalho de Paulo Yokota, na oportunidade, Presidente
do INCRA:
“Também a vastidão do território dificultou o exame acurado das
ocupações pioneiras existentes. No passado, infelizmente,
autoridades foram induzidas a promover licitações de terras,
com grandes lotes definidos na prancheta, sem um prévio
trabalho discriminatório. Assim foram tituladas áreas que
contavam com posseiros, sem que os direitos dos mesmos,
previstos na legislação, fossem respeitados, criando-se um
conflito de pretendentes.”411
Yokota refere-se a “autoridades do passado” que realizaram trabalhos de
alienação de grandes áreas de terras, levantadas na “prancheta”, o que é, de fato,
verdade. Entretanto, não se vê qual a diferença entre lotear terras na prancheta, ou
arrecadá-las por via cartorial, como no caso da “arrecadação sumária”: é claro, como
este estudo vem demonstrando, e como muitos outros também já o indicaram, que os
pequenos posseiros nunca, ou apenas raramente, registraram legalmente, suas posses.
Talvez isso explique o porque da “arrecadação sumária”.

3.2.2.3. Desapropriação de Imóveis Rurais


Como foi amplamente analisado nos capítulos anteriores, o instituto da
desapropriação foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição
Imperial de 1824412. Entretanto, sempre com o sentido específico de “desapropriação
por necessidade ou utilidade pública”, ou seja, estritamente vinculado à idéia de
realização de obras públicas, do interesse específico do Estado, tais como estradas,
servidões, ferrovias, barragens, edificações públicas, fortificações e construções
militares, ruas, avenidas, etc. Nesse contexto, por exemplo, as áreas destinadas à
formação de colônias, fossem agrícolas ou militares, seriam sempre e, por definição, em
terras devolutas, públicas.
A desapropriação “por interesse social”, concebida numa perspectiva mais
abrangente de promoção - além das obras acima referidas, de necessidade ou utilidade
pública413 - de outras iniciativas, objetivando mudanças relevantes no ordenamento
social, apenas será introduzida no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição
de 1946 (art. 141,  16)414. E, certamente esse novo sentido atribuído aos processos de
desapropriação, deveu-se à tomada de consciência por parte de determinados grupos

411 YOKOTA (op. cit., p. 5). Grifos nossos.


412 Art. 179, inciso XXII, da Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824 (In.: MEAF. op.
cit., p. 357). Ver a discussão desse problema no capítulo 2 deste estudo.
413 Tais são os casos das Constituições de 1891 (art. 72,  17); de 1934 (art. 113,  17); de 1937 (art. 122, 14).
414 A Constituição de 1967, mantém este princípio da Constituição de 1946, em seu artigo 153,  22 na redação
alterada pela Emenda Constitucional no 1, de 17 de outubro de 1969. Antes, porém, com a Emenda Constitucional no
10, de 9 de novembro de 1964, alterava o, então,  16, do artigo 141, instituindo, o pagamento da indenização prévia,
em títulos da dívida pública, para os casos de desapropriação por interesse social (art. 5 o). (In.: MEAF, op. cit.. pp.
575 e 576). Que passa a ser do artigo 153,  22, na redação final dada a Constituição de 1976, pela Emenda
Constitucional No 9 de 17 de outubro de 1979. (Idem , pp. 3-4).

206
integrantes do bloco no poder, de que muitas áreas ocupadas ilegal e improdutivamente,
estariam dificultando ações de interesse para o desenvolvimento econômico e social,
especialmente, a dinamização de atividades produtivas, em particular, no setor
agropecuário. Por isso mesmo, a introdução desta nova modalidade de desapropriação
começa a ser introduzida no ordenamento político e jurídico brasileiro a partir dos anos
trinta deste século, muito especialmente no contexto da Constituição do “Estado Novo”
quando começam a se consolidar outras forças sociais no bloco do poder, com a perda
paulatina da hegemonia pelas oligarquias agrárias. Entretanto, como foi visto no
capítulo anterior, como essa perda de hegemonia implicou, por outro lado, apenas uma
nova correlação de forças, mantendo, as oligarquias, o seu prestígio no meio rural, a
separação entre a desapropriação por utilidade e necessidade pública, voltada sobretudo
para o meio urbano, e a desapropriação por interesse social, mais direcionada ao
reordenamento rural, passam a obedecer à critérios diferenciados.
A desapropriação por utilidade e necessidade pública, no sentido acima
explicitado, destinando-se, basicamente, à obras de “infra-estrutura” econômica e social,
terá critérios que possibilitam maior agilidade na imissão na posse pelo “Poder
Expropriante”, cabendo ao expropriados, apenas, a discussão dos valores e condições de
desapropriação no campo judiciário, entretanto, sem nenhuma possibilidade de impedir
ou retardar o processo de desapropriação.
No caso da desapropriação por interesse social e, especialmente, para “fins de
reforma agrária”, o processo expropriatório obedece a critérios que, em última instância,
praticamente inviabilizam, senão a desapropriação em si mesma - que poderá ser
conseguida pela via contenciosa no curso de um longo espaço de tempo - pelo menos,
certamente, a consecução da sua finalidade.
O instituto jurídico da desapropriação por interesse social, apenas veio a ser
regulado, infra-constitucionalmente, pela Lei 4.132, de 10 de setembro de 1962, no
Governo João Goulart, com o objetivo de facilitar ações de reforma agrária, ou, como
afirma Cláudio Ribeiro415:

“esse instrumento jurídico foi instituído pela Lei 4.132 de 10 de


setembro de 1962, visando promover a justa distribuição da
propriedade da terra ou condicionar o seu uso ao bem-estar
social.”

Em assim sendo, também quanto a esta dimensão relevante do ordenamento


jurídico referente à desapropriação por interesse social, o Estatuto da Terra apenas o
incorporou. Como se disse acima, apenas no que toca ao problema da forma de
pagamento da indenização, que passou, a partir da Emenda no 10, a ser permitida em
títulos da dívida pública, o Governo Militar conseguiu avançar. Entretanto, mesmo esta
medida já havia sido proposta pelo Governo cessante.

415 RIBEIRO, op. cit., p. 9. Grifos nossos.

207
A reiteração destes argumentos tem, apenas, o objetivo de registrar o fato,
historicamente, posto que, geralmente, o Estatuto da Terra tem sido apresentado como
um “monumento jurídico” elaborado pela competência e criatividade dos tecnocratas
dos Governos Militares, o que, de fato, não corresponde à realidade. De qualquer forma,
pode-se afirmar que, em princípio, o Governo teve o mérito, que não é desprezível, de
fazer aprovar a mudança na forma da indenização, o que poderia ter facilitado profundas
transformações na distribuição “justa” da terra, especialmente se associado à
regulamentação, já referida, do preceito Constitucional referente à função social da
propriedade.
De qualquer maneira, como reiteradas vezes já se referiu neste estudo,
desapropriar é um ato que apenas pode ser praticado a respeito de quem detém,
legalmente, a propriedade legítima do imóvel. Quer dizer, admitida a hipótese da
propriedade ser legítima, a desapropriação poderá ser promovida, segundo Ribeiro,
quando os demais instrumentos jurídico-legais tornam-se ineficazes para proporcionar o
acesso à propriedade rural. Por outro lado, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello,
"à luz do direito positivo brasileiro, a desapropriação se define
como o procedimento através do qual o Poder Público, fundado
em necessidade pública, utilidade pública ou interesse
social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo,
adquirindo-o originariamente mediante indenização prévia, justa e
pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou
rurais em que, por estarem em desacordo com a função social
legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em
títulos da dívida pública, resgatáveis em parcelas anuais e
sucessivas, preservado seu valor real.”416
A desapropriação, em face do exposto, funciona, em termos de sua aplicação,
como uma faca de dois gumes: Por um lado, possibilita a perda da propriedade por parte
do particular e, por outro lado, é forma de aquisição originária da propriedade, sob a
perspectiva do Poder Público. Esta é a interpretação e aplicação do instituto, em face
dos sujeitos envolvidos: Estado e particular.
Neste sentido, em face dos pressupostos informados e inferidos neste trabalho,
pode-se concluir que a aplicação prática da desapropriação, resta completamente
subvertida e sem observância de seus pressupostos e objetivos teóricos e jurídicos. É,
portanto, impossível perder um bem do qual formalmente não se é proprietário e, ao
mesmo tempo, é impossível, outrossim, adquirir-se e, ainda mais originariamente, algo
ou, mais especificamente, um bem imóvel que já se possui. A aplicabilidade da
desapropriação, como se pode observar, nestes termos, caracteriza ato de improbidade
do Estado e, ao mesmo tempo, enriquecimento ilícito para o particular417 que se
beneficiou do mesmo.

416 Curso de direito administrativo. (BANDEIRA DE MELLO, 1996., p. 504).


417Os dois comportamentos, portanto, ensejam providências criminais. Para o Administrador Público aplicador
irregular do instituto da desapropriação, implica a perda do cargo, em termos administrativos, sem contar com as

208
A desapropriação por interesse social tem os seus objetivos definidos no artigo
18 do Estatuto da Terra418, que, na verdade, busca regulamentar o preceito
constitucional da função social da propriedade, recaindo, em princípio e por definição,
sobre os minifúndios e latifúndios que se encontrem nas áreas declaradas prioritárias
para fins de reforma agrária por Decreto do Governo Federal. Segundo Oldair Zanata,
que argumenta fundamentando-se no artigo 18 do Estatuto da Terra, tratam-se de
imóveis que, pelas suas próprias características, dimensões ou formas de exploração,
não cumprem a exigência legal de sua função social. Neste contexto, Cláudio Ribeiro,
argumenta que
“o INCRA tem acionado esse instrumento em regiões onde se
apresentem elevada incidência de conflitos quanto à propriedade,
posse e uso da terra, no intuito de corrigir a estrutura fundiária da
região-problema.” 419

Entretanto, a posição defendida pelos trabalhadores rurais, pequenos


proprietários e posseiros, nos Congressos da CONTAG - Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Agricultura - apontam críticas fundamentais à implementação deste
instrumento. Entre as críticas apresentadas, por exemplo, nos 3o e 4o Congressos, os
Trabalhadores Rurais denunciam:

“que nas áreas já desapropriadas por interesse social tem


ocorrido com freqüência casos em que os latifúndios, através
de fraudes no cadastro, inclusive com a conivência do
INCRA, têm conseguido manter grandes áreas irregularmente
classificadas como empresa rural.”420
(...)
“que em várias dessas áreas os trabalhadores que lutaram pela
desapropriação... têm sofrido inúmeras pressões de latifundiários
e grileiros devido à demora do INCRA em se imitir na posse da
terra;”421

“que os últimos governos não cumpriram as recomendações do Estatuto da


Terra em relação às áreas desapropriadas por interesse social.”422 Ou
seja, não promovendo o acesso aos pequenos posseiros, trabalhadores,
arrendatários, etc., existentes nestas áreas, geralmente de tensão e conflito;
pelo contrário, incorporando-as ao patrimônio do INCRA e depois, transferindo-
as à iniciativa privada.
“que os projetos de colonização, bem como em casos de
desapropriação por tensão social, os critérios de seleção

providências civis (restituição do dinheiro ao erário público) e demais tipificações criminais. Ao particular, por seu
turno, a mesma sorte de providências e punições, no âmbito administrativo, civil e criminal.
418 Ver Lei 4.504/64 (Loc. cit.).
419 RIBEIRO, op. cit., p. 11. Grifos nossos.
420 CONTAG (1985, p. 75). Grifos nossos.
421 Idem, p. 75.
422 Idem., p. 75; grifos nossos.

209
marginalizam os trabalhadores rurais do acesso à terra, além de
beneficiar pessoas sem passado nem vocação agrícola.”423
A respeito de questões desta natureza, ver, por exemplo, o seguinte depoimento -
e há muitos depoimentos semelhantes - citado por Octávio Ianni, a respeito da
privatização das “áreas de interesse para o desenvolvimento e segurança, nacionais”, na
faixa de 100 quilômetros das rodovias na Amazônia, que, pelas normas da Lei 5.504,
deveriam ser destinadas à “reforma agrária”:
“Essas são terras de barão. Quando abriram essa estrada.
Disseram que ia ter terra para os pequenos, que ia haver
loteamento para os agricultores que quisessem ocupar lote de
terra e tal. Quando abriram as inscrições já estava tudo
tomado e só por gente da cidade.”424

Fenômenos semelhantes, que caracterizam o privilégio de grandes interesses ou


o desrespeito aos direitos legalmente assegurados aos pequenos posseiros, proprietários
e indígenas, são evidenciados nos chamados processos de desapropriação por “utilidade
pública”, especialmente nos casos de construção de barragens e hidroelétricas. As
seguintes críticas foram postas no 3 O Congresso da CONTAG, realizado em Brasília, de
21 a 25 de maio de 1979:
“(...) que as desapropriações por utilidade pública têm sido causa de
desagregação de comunidades rurais e de agravamento do êxodo rural;
(...) que os trabalhadores dessas regiões não têm recebido do
Poder Público nem mesmo as indenizações justas e prévias
estabelecidas pela Constituição Federal.;
que, ao contrário, têm tido suas posses e benfeitorias destruídas
e, quando muito recebem indenizações irrisórias e tardias.”425

Finalmente, cabe reiterar as afirmações que vêm sendo desenvolvidas a respeito


dos processos de desapropriação, de que os mesmos têm como pressuposto necessário a
existência da propriedade legítima. Isto significa que as autoridades responsáveis pela
gestão da Política Fundiária, especialmente as vinculadas ao INCRA, que é o Órgão
especializado do Executivo, legalmente responsável por esta área, não podem, em
nenhuma hipótese cometer “equívocos” de propor “desapropriações” e, menos ainda,
indenizações, de terras que, no decorrer do processo, vêm a ser reveladas como sendo
públicas, nem, muito menos, desapropriá-las para, em seguida, revendê-las ou concedê-
las aos antigos “proprietários”, como foi denunciado no Congresso da CONTAG e
como se pode deduzir da seguinte Acórdão de Agravo de Instrumento, contra o INCRA:
“EMENTA: Ação de desapropriação - Se no seu curso o órgão
desapropriante verificar que o domínio do bem que pretender

423 CONTAG (1979, p.158).


424 (IANNI, 1984, p. 179, grifos nossos). Ver detalhes a respeito de processos similares no Estado do Pará, Paraná e
Mato Grosso em FOWERAKER (op. cit.).
425 CONTAG (1979, pp. 166-167).

210
incorporar compulsoriamente ao seu patrimônio já lhe
pertence, o que lhe cumpre fazer é desistir da ação e, pela via
própria, obter reconhecimento da condição de proprietário, nunca,
porém, pleitear tal reconhecimento na mesma
expropriatória.”426

É realmente curioso o “equívoco” cometido pelo “órgão expropriante”, isto


é, o INCRA, como fica evidente nesta sentença do TRF do Mato Grosso. Primeiro, fica
evidente que o INCRA estaria pleiteando a desapropriação de imóvel que “já lhe
pertencia”; segundo, que havia cometido um erro jurídico elementar, de “Petição”, ao
requerer na mesma expropriatória, o reconhecimento de sua condição de proprietário, o
que, como indefere o Juiz, deveria ser proposto “pela via própria”. Parece incrível que a
Procuradoria Jurídica do próprio INCRA desconhecesse tão elementarmente o
procedimento que lhe competia exigir de terceiros.
Entretanto, fatos como este são comuns quando se trata de por em prática
qualquer que seja o tipo de ação fundiária, especialmente quando implica interferir nos
grandes interesses dos especuladores de terras. Que esse tipo de “equívoco” é suspeito,
não resta dúvidas. Especialmente, em se tendo em consideração que as ações de
desapropriação são propostas e conduzidas pela Procuradoria Jurídica do INCRA.

3.2.2.4. Aquisição de Imóveis Rurais e PROTERRA


Em 1971, dentro da perspectiva do Governo, de “promover o mais fácil acesso
do homem à terra427 ”, é instituído, com base no Decreto-lei no 1.179, de 6 de julho, o
Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agro-indústria do Norte e
Nordeste (PROTERRA) conforme enunciado no artigo 1o:
“É instituído o Programa de Redistribuição de Terras e de
Estímulo à Agro-indústria do Norte e Nordeste (PROTERRA),
com o objetivo de promover o mais fácil acesso do homem à
terra, criar melhores condições de emprego de mão-de-obra e
fomentar a agro-indústria nas regiões compreendidas nas áreas
de atuação da SUDAM e da SUDENE.”428

Para se ter uma idéia da importância atribuída a este mecanismo de aquisição de


imóveis, foram destinados nada menos que quatro bilhões de Cruzeiros, na época, ao
Programa (art. 2o), que deveriam ser aplicados nos seguintes fins (art. 3o):
“a) aquisição de terras ou sua desapropriação, por interesse
social, inclusive mediante prévia e justa indenização em
dinheiro, nos termos que a lei estabelecer, para posterior venda

426 Agravo de Instrumento no 38.461 - MT. TRF, 3a Turma, de 21 de março de 1979 9 (In.: Diário da Justiça de 24
de outubro de 1979).
427 RIBEIRO (op. cit., p. 11)
428 Decreto-lei no 1.179, de 6 de julho de 1971 (BRASIL. Presidência da República. Brasília: 1979.).

211
a pequenos e médios produtores rurais da região, com vistas
à melhor e mais racional distribuição de terras cultiváveis;429
b) empréstimos fundiários a pequenos e médios produtores rurais, para
aquisição de terra própria cultivável ou ampliação de propriedade considerada
de dimensões insuficientes para exploração econômica e ocupação da família
do agricultor;
c) financiamento de projetos destinados à expansão da
agroindústria, inclusive a açucareira, e da produção de
insumos destinados à agricultura;
d) assistência financeira à organização e modernização de
propriedades rurais, à organização ou ampliação de serviços de
pesquisa e experimentação agrícola, a sistemas de armazenagem
e silos, assim como a meios de comercialização, transportes,
energia elétrica e outros;
e) subsídio ao uso de insumos modernos;
f) garantia de preços mínimos para os produtos de exportação;
e
g) custeio de ações discriminatórias de terras devolutas e
fiscalização do uso e posse da terra.”430

Como se pode verificar, tratava-se de um Programa ambicioso e relevante.


Entretanto, evidentemente, seus objetivos não eram facilitar o acesso à terra aos
pequenos produtores, especialmente os sem terra ou com pouca terra. Tratava-se, como
fica evidente no enunciado de seus diferentes objetivos, de incentivar a formação de
empresas rurais, muito especialmente voltadas para a “modernização” dos processos
produtivos, entendida esta, como a incorporação de processos e métodos mais
“avançados” de produção, mediante a incorporação de novos insumos e tecnologias,
assim como, pela implementação de métodos de gerência “racional” e, sobretudo,
voltados para a produção de energéticos e exportáveis. Ou seja, tratava-se de um
Programa perfeitamente coerente com o “espírito” defendido na Mensagem 33. Quanto
à sua formulação, pode-se dizer que se tratava de um projeto bem elaborado e que, se
executado como preconizado, apesar de não ter a possibilidade de efetivar a “justa”
distribuição da terra, teria promovido um relevante incremento da produtividade e
organização da agroindustria nas Regiões Norte e Nordeste. O problema é que, mesmo
neste sentido, o PROTERRA/FUNTERRA fracassaram retumbantemente em atingir os
objetivos a que se propunha431.

429 Para este fim foi criado o FUNTERRA (Fundo de Redistribuição de Terras), art. 2o do Decreto 70.677, de 6 de
junho de 1972 ( BRASIL. Presidência da República. Brasília: 1972.).
430 Decreto-lei no 1.179/71 (Loc. cit.)
431 Posição contrária a esta é defendida por Cláudio Ribeiro (RIBEIRO, op. cit., p.12): “Este programa, ao longo
de 13 anos (...) tem proporcionado resultados bastante expressivos com a aquisição de 626 mil hectares
nos Estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí e Maranhão, beneficiando cerca de 20 mil
famílias.”

212
O que efetivamente promoveram foi o mais fácil acesso à terra à grupos
específicos, inclusive de profissionais liberais, especialmente da área de ciências
agrárias432 (agrônomos, veterinários, e outros). Esses grupos, além de sempre terem sido
os tradicionais beneficiários de todos os programas oficiais, tiveram, assim, a
possibilidade de, não apenas obter recursos para a aquisição da terra, mas, também, de
assegurarem amplos e vantajosos financiamentos aos seus projetos. Mais uma vez,
pode-se dizer, foi promovida uma determinada e específica “redistribuição” de terras e
recursos, entretanto, não para as populações trabalhadoras, sem terra ou com pouca
terra.
Entretanto, como se vem tentando evidenciar neste capítulo, esta era a “Reforma
Agrária e Agrícola” contida no Projeto encaminhado pela Mensagem 33 e posta em
prática pelos Governos Militares. Este era o cerne de sua Política Fundiária e de
Desenvolvimento Rural então proposta.
Essas afirmações podem ser confirmadas, entre outros dados e depoimentos,
pelas seguintes colocações levantadas pela CONTAG ao apresentar, em 1984, uma
avaliação sobre o Programa Nacional de Política Fundiária dos Governos Militares:
“No que diz respeito à redistribuição de terras o PROTERRA não
só representou um retrocesso na Reforma Agrária(...)
Ressuscitou o pagamento em dinheiro das indenizações por
desapropriação, em flagrante contradição com o que
preconizava a legislação em vigor, isto é, o pagamento das
indenizações em Títulos da Dívida Pública.
Na prática ficou evidenciado que o PROTERRA não passou de
um mecanismo de crédito e incentivo financeiro fáceis e vultosos
para o latifundiário e como instrumento de liberação de mão-de-
obra e seu aviltamento.”433

3.2.2.5. Colonização.
Como foi amplamente discutido nos capítulos anteriores, no Brasil os processos
de colonização, especialmente após a aprovação da Lei 601 de 1.850, sempre foram
concebidos como forma de atração e fixação de populações pobres, inicialmente, de
migrantes estrangeiros, depois, já nas primeiras décadas do século XX, de migrantes
nacionais, ou em regiões de fronteira, como o objetivo genérico de ocupação e
desbravamento, ou nas áreas dominadas pela produção para exportação, como forma de
assegurar a mão-de-obra necessária a estes empreendimentos.
Nesta perspectiva, os processos de colonização, apesar de incorporar tais
objetivos, na verdade, situavam-se em um contexto mais amplo de política de ocupação
de terras e desbravamento: tratava-se de demarcar com clareza a relevância e os

432 Ver o inciso V do artigo 25 da Lei 4.504/64, que regula as prioridades para venda das terras públicas, e que são
os mesmos que regulam as ações, neste sentido, para os financiamentos do PROTERRA/FUNTERRA.
433 CONTAG (1982, pp. 3-4). Grifos nossos.

213
objetivos deste processo. Ele teria que ser implementado de forma complementar e não
antagônica com os interesses do latifúndio ou das “grandes empresas” agropecuárias:
deveriam, ao contrário, funcionar como suporte ao desenvolvimento destas434.
Exatamente por isso os processos de colonização sempre foram pensados, pelos
Governos brasileiros, ou com a característica de desbravamento de novas fronteiras ou
como celeiro de mão-de-obra para as grandes fazendas. E sempre longe dos domínios
do latifúndio, especialmente quando se tratasse de colonização voltada para a fixação de
populações pobres mediante o acesso a pequenas parcelas de terra.
Na concepção do Estatuto da Terra, apesar de se ter utilizado de uma
terminologia atualizada, aparentemente, coerente com determinadas concepções
“teóricas avançadas”, o espírito do Projeto de colonização continuava o mesmo.
Especialmente quando se tratava da “resolução” de problemas de tensão e conflitos
sociais. Desde o início, mas especialmente a partir da implementação do Programa de
Integração Nacional (PIN), no Governo do General Emílio Garastazu Médici, a idéia era
associar as terras “vazias” da Amazônia aos homens sem terra, especialmente do
Nordeste.
Mas não apenas isto: logo começaram a aparecer os argumentos referentes à
“crise minifundiária” da região Sul, em especial do Paraná e do Rio Grande do Sul, que,
por suposto, passava a exigir o deslocamento de populações dessas áreas para as regiões
onde houvesse maior disponibilidade de terras. É no contexto deste tipo de
argumentação que será promovido um amplo programa de aliciamemto de pequenos
sitiantes435 desta região para que vendessem suas áreas e se deslocassem para áreas
maiores nas Regiões pioneiras - inicialmente, no Mato Grosso e, na seqüência, na
Amazônia, especialmente Rondônia 436. Assim, surge um novo argumento: aliar a
experiência destes agricultores à formação de pequenas e médias empresas, na
Amazônia e no Centro-Oeste.
Com base nestas duas “concepções”, começam a ganhar corpo, “teoricamente”
as teses da Colonização Particular em oposição à Colonização Oficial. Esta destinando-
se aos migrantes mais pobres e desprovidos de recursos materiais e experiência agrícola
“mais avançada”; aquela, destinada a agricultores, especialmente da Região Sul, ou

434 São relevantes, a este respeito, os trabalhos de José Vicente Tavares dos Santos (citados), que procedem a uma
análise fundamentada dos processos de colonização desenvolvidos no Brasil, muito particularmente, as articulações
entre a Colonização promovida sob a égide do Estatuto da Terra e suas repercussões na luta pela terra no Rio Grande
do Sul. Muito importante é o estudo de Octávio Ianni, “Colonização e Contra-Reforma Agrária”, onde ele realiza
uma excelente análise da articulação dos processos de colonização com a reconcentração fundiária, sobretudo nas
regiões sul e sudeste, numa perspectiva que antecipa, até certo ponto, as constatações feitas por José Vicente Tavares
dos Santos.
435 Ver a respeito, especificamente do problema dos Projetos de Colonização envolvendo pequenos sitiantes do Rio
Grande do Sul, o excelente estudo de José Vicente Tavares dos Santos (SANTOS, 1993).
436 Essa questão foi tratada de forma competente e profunda por Octávio Ianni, em seu livro Colonização e Contra-
Reforma Agrária. José Vicente Tavares dos Santos procedeu a um excelente estudo deste problema em Matuchos,
Exclusão e Luta (ambos citados). Ver igualmente a tese de Mestrado do Autor (JONES, 1987). Ver o depoimento do
Presidente da Associação de Empresários a Amazônia à CPI do Sistema Fundiário (citado por JONES, 1987, p. 95).

214
estrangeiros, que pudessem aliar experiência agrícola a alguma disponibilidade de
recursos, sobretudo financeiros. Estes, por suposto, poderiam pagar pelos lotes, com o
produto da venda de suas pequenas parcelas no Sul, resultando assim, num duplo efeito:
por um lado, possibilitando a reconcentração das áreas de empresas agropecuárias no
Sul, por outro lado, assegurando os lucros da especulação imobiliária 437 promovida
pelas Empresas de Colonização Particular. Este fato é claramente colocado por Paulo
Yokota, então Presidente do INCRA, nos seguintes termos:
“Nas conjunturas agropecuárias favoráveis, os resultados colhidos
no Centro-Sul foram utilizados na ampliação de áreas nas regiões
Centro-Oeste, principalmente para assentamento de filhos de
colonos que foram pioneiros no Sul. Aproveitando mão-de-obra
qualificada, treinada numa agropecuária de melhor nível
tecnológico, a colonização privada está gerando uma classe
média rural de grande importância, tanto na produção pecuária,
de cereais, como em alguns produtos de alto valor comercial,
como café, cacau, pimenta(...). As necessidades de
investimento são elevadas e as limitações de financiamentos
a médio e longo prazos constituem restrições para a
ampliação dos projetos de colonização privada. Na nova
conjuntura de fretes mais caros e custos financeiros mais realistas
as atividades exercidas nestes projetos deverão se deslocar
para os que proporcionam retornos reais positivos,
obrigando a uma maior racionalidade.”
“Os projetos de colonização oficial estão mais presentes em
frentes realmente pioneiras, procurando atender a uma
camada mais modesta da população, dando elevada prioridade
aqueles que foram obrigados a se deslocar de seus antigos locais
de trabalho, pela formação de reservas indígenas, pela
construção de projetos de hidrelétricos, por questões fundiárias.
Isso além de atender à corrente de migração expontânea.”438

É exatamente este o sentido em que é regulamentada a Colonização Oficial, no


Capítulo II, Seção I, da Lei 4.504 de novembro de 1964, e a Colonização Particular, na
seção II do mesmo capítulo. Portanto, mais uma vez, os projetos implementados nesta
áreas estavam claramente postos no Estatuto da Terra e claramente referidos nas
diretrizes expostas na Mensagem 33 do General Humberto Castelo Branco.
Aliás, essas conclusões são claramente colocadas por Cláudio Ribeiro, Diretor
do INCRA, no texto citado, ao afirmar que:
“A colonização propriamente dita é o complemento essencial
da desapropriação e intervenção do Poder Público na
propriedade privada da terra rural, que não cumpre sua
função social, definida em Lei. É também o instrumento
utilizado pelo Poder Público para colocar em uso terras
discriminadas e arrecadas, transferindo-as ao domínio

437 Ver detalhes acerca deste processo no próximo capítulo.


438 YOKOTA, op. cit., p.8. Grifos nossos.

215
privado. Ressalte-se a colonização como instrumento de
desenvolvimento em áreas pioneiras, regulando e dando
tratamento aos fluxos migratórios naturais ou orientados por
ações do Governo.”439
Assim, também em se tratando das ações de Colonização, pode-se afirmar que
elas foram implementadas exatamente como eram concebidas no corpo do modelo de
desenvolvimento rural e de “reforma agrária” proposto pela Mensagem 33 e pelo
Estatuto da Terra. Se estas ações não promoveram, efetivamente, como de fato não o
fizeram, a ampla distribuição da propriedade para os posseiros e pequenos agricultores
com pouca terra ou para os trabalhadores rurais sem terra, é porque o sentido da
proposta do Governo não pressupunha esta alternativa como uma meta relevante ao
desenvolvimento rural, mas apenas como um meio de amenizar as tensões sociais mais
graves e suprimir conflitos no campo.
Ou seja, o Projeto de Reforma Agrária do Governo era distinto da leitura feita do
mesmo pelas camadas pobres e pelos trabalhadores rurais do campo, que tinham a
expectativa de ter acesso a um pequeno pedaço de terra, ou, como bem colocou, José
Vicente do Santos, que alimentavam o “sonho da terra”. Mas isso não significa que o
Estatuto da Terra, tal como foi concebido não tenha sido executado, ao contrário: ele o
foi em toda a sua essência. A análise dos instrumentos acima não deixa dúvidas quanto
a este fato.

3.2.3. Titulação de Terras Públicas: Alienação e Privilégios


Este capítulo, que analisa a proposta da Política Fundiária do Governo, tal como
exposta na Mensagem 33 e regulamentada pela Lei 4.504/64 e normas e decretos que se
lhes seguiram durante todo o período dos Governos Militares, não poderia ser concluído
sem uma análise das formas de alienação ou privatização das terras públicas.
Afinal, este foi o objetivo fundamental da regulamentação do imperativo
constitucional de 1946, proposto na Mensagem 33, que encaminhava o Estatuto da
Terra ao Congresso Nacional. Antípoda, do Estatuto do Trabalhador Rural, reduzia o
problema da propriedade enquanto condição inseparável da atividade produtiva,
portanto envolvendo relações entre o capital e o trabalho, à uma simples relação formal
entre o sujeito e a coisa: o homem e a terra.
Neste contexto, o Estatuto da Terra era, efetivamente, “da Terra” e não do
Trabalhador Rural, configurando-se, neste contexto, exatamente como o instrumento
normativo que possibilitaria ao Governo, assegurar a subordinação do trabalho pela
subordinação do processo de acesso à terra a determinados interesses bastante
específicos. Tratava-se, senão de regulamentar efetivamente todas as terras ilegalmente
em poder particular (o “fato consumado”), pelo menos, de promover, dentro de um

439 RIBEIRO, op. cit., p. 12. Grifos nossos.

216
determinado e específico projeto de desenvolvimento econômico, e de integração da
agricultura à economia nacional, a alienação das terras públicas dentro de uma
específica finalidade.
Subordinado, desta forma, o acesso à terras aos imperativos da geração de
excedentes econômicos, o modelo de desenvolvimento proposto de fato colocava o
acesso à propriedade fora - e longe - do alcance dos trabalhadores rurais.
Era, portanto, efetivamente um Estatuto da Terra e não do trabalhador rural.
Pois, como bem acertadamente José de Souza Martins definiu o Estatuto da Terra:
“O que os militares tentaram fazer (...) juntamente com a
elaboração do Estatuto da Terra, foi desenvolver uma política de
ocupação da Amazônia, como meio de resolver a contradição que
dificultava a solução política para o problema da associação do
grande capital com a propriedade da terra. O Estatuto viabilizou
essa associação, e a política para a Amazônia, com a criação da
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM - ,
tornou-se real.(...) Através do governo militar, os grandes
capitalistas passaram a ser subsidiados para se tornarem,
também, grandes proprietários de terra. (...) No caso brasileiro, os
militares constataram que, se a propriedade da terra representa
um impecilho ao desenvolvimento do capital na agricultura, é
necessário remover esse impecilho, sem impugnar ou limitar o
direito de propriedade, que ocorreria através da nacionalização da
propriedade (da terra) ou através da reforma agrária.”440

Para o bem ou para o mal, foi efetivamente promovida uma ampla modificação
no caráter e na forma da estrutura fundiária brasileira. Se isso implicou - como de fato
implicou - a manutenção e, até, agravamento, da concentração da propriedade fundiária,
talvez a explicação deste fato possa ser dada pelo próprio caráter do modelo de
desenvolvimento econômico proposto que, fundado na necessidade de aporte de
recursos de forma concentrada, implicava determinado nível de excludência dos
trabalhadores com relação à propriedade territorial: esta era uma restrição do próprio
modelo, aliás, implícita no conceito do minifúndio como unidade de produção
impossível de ser mantida, por suas próprias condições e características endógenas.
É, portanto, no contexto deste modelo e desta concepção do desenvolvimento
econômico, segundo os quais, os problemas da superação da pobreza e da excludência,
social, em particular, a rural, apenas poderiam ser efetivamente resolvidos pela
ampliação da capacidade da economia rural (e industrial) de absorver mão-de-obra e
gerar rendas, economias de escala e excedentes, sobretudo, exportáveis, e não

440 José de Souza Martins. As lutas dos trabalhadores rurais na conjuntura adversa. In: Direito insurgente II. 1988-
1989. Anais da reunião do conselho do Instituto Apoio Jurídico Popular. Rio de Janeiro: S.d., p. 11.

217
necessariamente pela “distribuição” de pequenas parcelas441 de terras, que o processo de
privatização das terras públicas é colocado.
Destarte, apenas tendo em consideração estas características do modelo é que se
poderá compreender as diferentes formas de alienação de terras públicas ou de
legitimação de terras devolutas em poder de particulares, conforme os instrumentos
jurídicos e administrativos legalmente estabelecidos para este mister pelos Governos
Militares.

3.2.3.1. Legitimação de Posses


O processo de legitimação de posses, legalmente assegurado desde o longínquo
instituto de sesmaria e, sobretudo, consagrado na Lei 601 de 1850442, sofreu, com a
instituição das normas e regulamentos que se seguiram à promulgação da Lei 4.504, de
novembro de 1964, um profundo e imenso recuo. Foram estabelecidas as regras
fundamentais que iriam possibilitar um amplo e sistemático processo ilegítimo (mas,
aparentemente, “legal”) de expulsão dos pequenos posseiros de suas terras de trabalho.
Pelas novas regras e regulamentos estabelecidos a partir de 1964, a legitimacão
de posses dar-se-á para áreas de até 100 hectares e consiste, não no fornecimento, pelo
Estado, do título de propriedade, mas em uma Licença de Ocupação (ou Concessão de
Direito Real de Uso, assegurado, em princípio, Constituição Federal de 1967, no seu
Art. 171)443, com prazo mínimo de quatro anos, aos posseiros que preenchessem as
exigências de morada habitual e cultura efetiva, diretamente efetuadas pelo mesmo e
sua família, desde que não fossem proprietários rurais. Ao final deste prazo, teria ainda
o posseiro (pequeno posseiro, bem entendido) que comprovar a sua “capacidade para
desenvolver a área”. Ainda assim, ele teria apenas a preferência para adquirir o lote,
pagando pelo mesmo o “valor histórico da terra nua”, constante na tabela do INCRA,
sujeitando-se além destas, as seguintes condições:
“Art. 29 O ocupante de terras públicas, que as tenha tornado
produtivas com o seu trabalho e o de sua família, fará jus à
legitimação da posse da área contínua até 100 (cem) hectares,
desde que preencha os seguintes requisitos:
I. não seja proprietário de imóvel rural;
II. comprove morada permanente e cultura efetiva, pelo prazo
mínimo de 1 (um) ano.
 1 o A legitimação da posse de que trata o presente artigo
consistirá no fornecimento de uma licença de ocupação, pelo
prazo mínimo de 4 (quatro) anos, findo o qual, o ocupante terá a

441 Ou, como dizia o Senhor Roberto Campos, “pela distribuição de um bolo insuficiente”: Ver, o capítulo 5
adiante, onde estes argumentos de Roberto Campo são discutidos. Também, SIMONSEN & CAMPOS (1976),
especialmente o Capítulo X.
442 Ver capítulos 1 e 2 deste estudo.
443 Esta mesma condição é, inclusive, mantida na Constituição Federal de 1988, no seu Art. 183, parágrafo 1o.

218
preferência para a aquisição do lote, pelo valor histórico da
terra nua, satisfeitos os requisitos de morada permanente e
cultura efetiva e comprovada a sua capacidade para desenvolver
a área ocupada.”444

Observe-se que se tratava, evidentemente, de uma arbitrariedade e, além disso,


em absoluta afronta ao ordenamento jurídico brasileiro, que sempre assegurou o direito
de aquisição da propriedade da terra com fundamento na posse mansa e pacífica,
explorada diretamente pelo posseiro e sua família445.
Como será analisado no estudo acerca das “outras formas” de alienação e
titulação de terras públicas, a restrição acima, que se referia exatamente aos pequenos
posseiros, não terá o menor efeito sobre as pretensões de grandes especuladores,
posseiros e grileiros especializados.
Apenas para se fazer uma comparação entre as duas regras de legitimação de
posses - a de 1850 e a atual - veja-se como esta questão era colocada na Lei de Terras:
“Art. 5o Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas,
adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro
ocupante, que se acharem cultivadas ou com princípio de cultura
e morada habitual do respectivo posseiro ou de quem o
represente, guardadas as regras seguintes:
 1o Cada posse em terras de cultura ou em campos de criação,
compreenderá, além do terreno aproveitado ou do necessário
para pastagem dos animais que tiver o posseiro, outro tanto mais
de terreno devoluto que houver contíguo, contanto que em
nenhum caso a extensão total da posse exceda a uma sesmaria
para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na mesma
comarca ou na mais vizinha446.

Só que neste caso, como foi estudado e discutido no capítulo 2, o objetivo era
assegurar os direitos e, evidentemente, os privilégios das grandes posses. Na Lei de

444 Lei 6.383, de 7 de dezembro de 1976 (BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1976.). Grifos nossos. Embora
esteja para além do período de análise deste trabalho, é interessante tecer-se alguns comentários a respeito da
continuidade destas questões: A Constituição Federal de 1988 introduziu o contraditório nos processos
administrativos (Art. 5o, LV). Como avalia Luiz Lanzellotti Baldez: “Os juizes ... não podem mais conceder
liminares sem a audiência e defesa da parte ré - a comunidade dos posseiros ocupantes da terra
(litisconsórcio), presença necessária no processo para que tenha caracterizado o contraditório. Esse é o
maior ganho das ocupações na Constituição.” Cf. A terra na Constituição. In: Direito insurgente II. 1988-1989.
Anais da reunião do conselho do Instituto Apoio Jurídico Popular. Rio de Janeiro: S.d., p. 88.
445 O  3o do artigo 153 da Constituição Federal de 1967, ao afirmar que “a lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, rigorosamente assegurava as “posses legitimas”, assim
definidas desde a Lei 601 de 1850, e por todas as legislações ulteriores, as posses mansas e pacíficas, adquiridas de
boa-fé e efetivamente exploradas pelos respectivos posseiros e suas famílias. Esse direito à legitimação, amplamente
assegurado na Lei 601 de 1850, como se viu no capítulo 2, (para garantir privilégios dos grandes posseiros) mas que
também se estendiam aos pequenos, foi, para estes últimos, gradativamente restringido, até reduzir-se a 25 hectares.
A Constituição de 1967, aparentemente, beneficia os pequenos posseiros, ampliando o limite para 100 hectares
(art.171). Entretanto, transforma o direito líquido e certo de legitimação, restringido apenas pela exploração efetiva e
morada habitual, em um “direito” que será disposto pela Lei Federal, que, como se vê acima é reduzido a quase nada.
Trata-se da antiga tradição do Executivo de se utilizar da alternativa legal para “dar” formalmente, com uma mão e
“retirar”, efetivamente, com a outra.
446 Lei 601 , de 18 de setembro de 1850 (In.: MEAF, op. cit., pp.357-361).

219
1976 e no Estatuto da Terra, as formas de assegurar os mesmos privilégios são
juridicamente efetivas e especializadas, como será evidenciado pela análise que realiza a
seguir.

3.2.3.2. Alienação com Dispensa de Licitação


Esta modalidade de alienação, que procura, aparentemente, compensar as perdas
impostas aos pequenos posseiros, aproxima-se da norma consagrada na Lei 601 de 1850
e respectivo Regulamento, em vários sentidos. Destina-se à alienação de grandes áreas,
até 3.000 hectares, mantidos os requisitos de posse mansa e pacífica por mais de dez
anos, residência habitual e cultura efetiva e direta pelo posseiro e sua família. Trata-se,
outrossim, de um processo de alienação de terras públicas, precedido de Decreto Federal
que autorize a dispensa de licitação, além do pagamento do “valor da terra nua”. Então
não se trata de legitimação, mas de venda de terras públicas; não se trata, também, de
reconhecimento do direito de posse, de quem trabalha na terra e a torna produtiva, mas,
de assegurar de forma seletiva, o direito de adquirir a propriedade mediante
determinados critérios de seleção de clientes.
Veja-se que tais exigências, efetivamente, colocam fora desse tipo de
procedimento a grande massa de pequenos posseiros. Além do pagamento do preço da
terra nua, que apesar de ser “irrelevante” para os grandes posseiros e, sobretudo para
grileiros especializados e especuladores; era “proibitivo” para os pequenos posseiros e
agricultores - neste caso, fazendo lembrar os critérios o preço adequado, de Wakefield.
Além disto, a exigência de Decreto Federal de dispensa de licitação deixa claro que este
procedimento era exclusivo para os processos de apropriação privilegiada e excludentes,
em relação ao resto da população que, legitimamente, explorava suas pequenas posses,
muitas vezes há muitas gerações. Este procedimento se constituiu, de fato, em um dos
métodos da “grilagem especializada” na qual o “proprietário” já se apresentava diante
do posseiro munido do respectivo “título legítimo de propriedade.”447 Como se pode
verificar, mais uma vez as autoridades fundiárias se utilizam da linguagem cifrada do
jargão jurídico, não apenas para restringir os direitos reais dos pequenos posseiros, mas,
sobretudo, para facilitar a alienação de terras públicas, inclusive, ocupadas por posseiros
e indígenas, para a iniciativa privada. Este tipo de procedimento consagra, portanto,
legalmente, privilégios.

3.2.3.3. Concessão com Dispensa de Licitação.


Essa modalidade de alienação e titulação de terras públicas, de forma mais
profunda que a anterior, configura-se em um verdadeiro monumento jurídico à grilagem

447 Ver a respeito, o Relatório da CPI do Sistema Fundiário (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1979).

220
especializada, à ilegalidade e à fraude. Trata-se de uma verdadeira “obra prima” do
estelionato no campo da legislação fundiária.
Ocupa-se, essa modalidade de titulação de terras públicas em favor de
particulares, de legitimar títulos ilegítimos. Ou seja, “em áreas de até 600 vezes o
módulo de exploração indefinida448” - isto é, de latifúndios, conforme a definição do
Estatuto da Terra - contemplando, indistintamente,
“pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, detentoras de
áreas transcritas no registro imobiliário, com vícios insanáveis,
cuja cadeia dominial tenha sido INICIADA EM 28 DE JUNHO DE
1966449.”

Só faltou a esta regra a referência ao nome ou nomes das “pessoas físicas ou


jurídicas de direito privado” a que se destinava este privilégio. “vícios insanáveis”
em linguagem jurídica, significa fraude, nulidade, documento forjado, ilegal. Como
então proceder à mágica de tornar legítimos títulos sabidamente ilegítimos? Como se
disse acima, este fato dispensa maiores comentários: trata-se de um monumento ao
privilégio. Por isso mesmo preferiu-se explicitar este procedimento com base na citação
de trecho do Trabalho do Diretor de Departamento de Desenvolvimento Rural do
INCRA, Cláudio José Ribeiro, portanto, pessoa absolutamente insuspeita, neste caso
específico, para a definição dessa modalidade de “alienação, venda e titulação” de
terras públicas.
É claro que havia, também, determinadas exigências: “o prévio cancelamento
dos registros” - que seria desnecessário, posto se tratam, juridicamente, de títulos
nulos - e a “implementação de projeto de relevante interesse nacional”,
naturalmente, definido como tal pelas mesmas autoridades que tornaram legítimos
qualquer documento ilegal.
“A concessão se formaliza com a expedição de Contrato de
Concessão de Terras Públicas, antecedido de Resolução do
Senado Federal, de Decreto Federal autorizativo de dispensa
de licitação e o pagamento da terra nua pela pauta vigente no
INCRA.”450

Segundo Oldair Zanatta, diretor do Departamento de Recursos Fundiários do


INCRA, tentando minimizar a formulação absolutamente casuística desta norma de
alienação de terras devolutas da União para a iniciativa privada, defendia, no Simpósio
Internacional de Experiência Fundiária, realizado em Salvador, em 1984, que o Contrato
de Concessão de Domínio de Terras Públicas,

448 RIBEIRO, op. cit., p.16.


449 Citado em RIBEIRO, op. cit., p.16. Grifos nossos.
450 RIBEIRO, op. cit.: 16. Grifos nossos.

221
“foi uma forma adotada para proteger investimentos
pioneiros na Amazônia. Teve pouca aplicação e está
praticamente em desuso.”
Difícil compreender uma norma tão casuística, ilegal e danosa a probidade
administrativa e ao patrimônio da União. Observe-se que, diante de seu flagrante caráter
de fraude contra o patrimônio do país, busca-se agregar um conjunto de “exigências” e
especificações com a nítida intenção de oferecer-lhe uma “estética” de justificação:
afirma-se que se destinava a “proteger investimentos pioneiros” (de 28 de junho
de 1968!).
Por outro lado, segundo os defensores deste procedimento, o mesmo
pressupunha a “implantação de projetos de relevante interesse regional”, além de
exigir a aprovação do Senado Federal (o que significa afirmar que se tratam de áreas
que excediam ao limite constitucionalmente estabelecido para alienação de terras
públicas independentemente de autorização). Para finalizar, afirmam que o rigor do
procedimento exigia, ainda, o necessário “Decreto Federal” dispensando a licitação
pública (ou seja, a concorrência). Tudo isto, na verdade não justifica nem consegue
ocultar o evidente caráter de apropriação e legitimação privilegiada451 e de “grilagem
altamente especializada”, assegurados por esta norma.

3.2.3.4. Alienação em Concorrência Pública: Licitação452


Trata-se de outra modalidade de transferência de domínio de grandes extensões
de terras públicas para particulares, sob a capa, mais uma vez, “do interesse
nacional”, pressupostamente compatibilizados os interesses privados, com os planos
de desenvolvimento453 . Trata-se de alienação de áreas públicas de até 3.000 hectares,
ou seja, o limite máximo permitido pela Constituição Federal, independentemente da
autorização do Senado Federal. O negócio se concretiza através de um “Contrato de
Alienação de Terras Públicas” ou “Promessa de Compra e Venda”, conforme o caso, no
qual o adquirente obrigava-se a determinadas cláusulas resolutivas que, se não
cumpridas, dariam, teoricamente, ensejo à anulação do processo de alienação,
retornando a área ao Patrimônio da União. Segundo Oldair Zanatta esse tipo de negócio
foi amplamente utilizado nas “regiões pioneiras, especialmente Pará e Rondônia.”
Mais uma vez, estava aberta a possibilidade de “Vendas” de grandes extensões
de terras públicas da União, bastando que fossem apresentados Projetos que,
formalmente, fossem considerados como “relevantes ao desenvolvimento regional” e
compatíveis com os Planos de Desenvolvimento.

451 Além disto, se todas estas exigências fossem cumpridas, especialmente a autorização do Senado e o Decreto
Presidencial, isto apenas forneceria a prova material de que se tratava de uma fraude em larga escala, envolvendo
vários escalões do Governo, inclusive, a “Presidência” Militar da República.
452 Esse procedimento é regulamentado pelo Decreto no 71.615, de 1972; Instruções Especiais do INCRA, números
6-A , 11 e 12; artigo 135 do Decreto-lei no 9.760, de 1946 e artigo 143 do Decreto-lei no 200/67.
453 RIBEIRO, op. cit., p. 16

222
3.2.3.5. Alienação com Licitação e Direito de Preferência
Trata-se de uma modalidade específica da forma anterior, onde, curiosamente,
“há” concorrência entretanto, é mantido o “direito” de preferência de um dos
concorrentes: portanto não há, efetivamente, a concorrência.
Refere-se, esta modalidade de concessão de terras públicas, à alienação de áreas
de até 3.000 hectares454, nas quais os pleiteantes não preenchem as exigências legais
mínimas para a legitimação de posse ou para alienação sem concorrência (ou seja,
cultura efetiva e morada habitual, para legitimação de posse; e projeto de relevante
interesse nacional, no outro caso). E, nem mesmo, possuem os referidos “títulos com
títulos insanáveis”. Oldair Zanatta coloca claramente esta questão nos seguintes
termos:
“Trata-se de procedimento que consiste na venda de áreas
ocupadas, nas quais não ocorrem os pressupostos para
legitimação de posse ou para alienação sem concorrência.
São áreas de até 3.000 hectares, cujos ocupantes geralmente
não satisfazem o requisito de morada permanente. Essas
áreas são alienadas em concorrência pública, ocasião em que é
deferida aos ocupantes a preferência na aquisição (...).” 455
Ou seja, com esta modalidade ficava assegurada a possibilidade de transferir de
forma seletiva e privilegiada, - a “ocupantes que não preenchem o requisito da
morada permanente”, portanto “ocupantes que não ocupam”, portanto, que não
são ocupantes - grandes áreas de terras públicas, na verdade, independentemente de
qualquer que seja o critério estabelecido ou situação dos pretendentes, como se vê.
Restrições, rigorosamente, apenas recaíam sobre os pequenos posseiros. Como se
afirmou acima, nunca o latifúndio teve tanta regalia e segurança na história fundiária do
Brasil.
Além da ampla garantia de legitimação de “títulos com vícios insanáveis”,
foi criada mais essa possibilidade para assegurar a apropriação e legitimação
privilegiadas de terras devoltas, num verdadeiro assinte ao ordenamento jurídico e à
consciência nacionais, o que apenas poderia ser explicado pela presença de um “Estado
de exceção” e de um regime autoritário em toda a sua plenitude: cerceamento da
independência do Legislativo - pelas sistemáticas cassassões de opositores do regime - e
do Judiciário; desorganização da sociedade civil, violentamente reprimida, e imprensa
sob censura prévia rigorosa. Prisões, torturas...
Assim, como explica Oldair Zanatta, em sua brilhante defesa deste instrumento
“técnico” de incentivo ao Desenvolvimento Rural:

454 Sempre e rigorosamente, 3.000 hectares, ou seja, a área máxima situada fora do “controle” mediante a aprovação
do Senado Federal, prevista na Constituição, o que agilizaria, ainda mais, as transações.
455 ZANATTA (op. cit., p. 22). Grifos nossos.

223
“Essas áreas são alienadas em concorrência pública, ocasião em
que é deferida aos ocupantes a preferência de aquisição,
assegurando-lhes sempre o direito de indenização das
benfeitorias edificadas de ‘boa-fé’, caso não sejam considerados
vencedores na concorrência ou não lhes interesse a aquisição da
propriedade.”456
Veja-se que a argumentação de Zanatta é absolutamente contraditória: primeiro
ele se refere à realização da concorrência pública, mas que é “deferida457” a preferência
de aquisição aos “ocupantes”: logo, não há concorrência. Em seguida, refere-se ao fato
de que é assegurado aos ocupantes “que não sejam considerados vencedores na
concorrência ou não lhes interesse”, etc., o que não faz nenhum sentido, posto que
se lhes foi deferida a preferência de aquisição, logo não houve concorrência, portanto,
não há a hipótese, de “não serem considerados vencedores na concorrência”, que
nunca houve: uma contradição em termos.
O que pode ocorrer, é que especuladores, pois parece que deles se trata neste
caso, “desistam” da aquisição, optando pela indenização. Até porque nada assegura
que se impedirá, como se tem demonstrado neste trabalho, que ulteriormente estas
mesmas terras voltem a cair em suas próprias mãos, como chamava a atenção Ribeiro
em citação acima, e, portanto, que todo o processo volte a se repetir, na verdadeira
ciranda do assalto às terras da União que foi criada por esses métodos de “titulação de
terras públicas” promovidos pela tecnoburocracia da Política Fundiária dos Governos
Militares, em nome do desenvolvimento e da segurança nacionais.

3.2.3.6. Concessões Especiais


Essa modalidade de privatização de terras públicas é regida pelos Decretos:
68.524, de 15 de abril de 1971, que “dispõe sobre a participação da iniciativa privada
na implantação de projetos de colonização nas áreas prioritárias para Reforma
Agrária, nas áreas do Programa de Integração Nacional e nas terras devolutas da
União na Amazônia Legal”; 71.615, de 22 de dezembro de 1972, “que regulamenta o
Decreto-lei 1.164/71, e fixa as normas para a implantação de Projetos de Colonização,
concessão de terras e estabelecimento ou exploração de indústrias de interesse da
segurança nacional, nas terras devolutas localizadas ao longo das rodovias, na
Amazônia Legal”. Além dos Decreto-lei 178/67, que “dispõe sobre a cessão de
imóveis da União Federal para as finalidades que especifica”; e Instruções Especiais do
INCRA, nos 13/76 e 15/78. Como se vê, tudo era rigorosa e meticulosamente planejado.
Este modo de privatização de terras públicas destina-se à concessão de áreas
para a implantação e o desenvolvimento de Projetos de Colonização através de

456 Id. Ibdem, p. 22.


457 A expressão “deferida”, significa que houve, anteriormente, um “requerimento”. Logo, não se trata de venda,
mas de concessão de terras públicas mediante requerimento. A venda, neste caso, é simbólica, mera formalidade,
como o caso do “preço vil” da terra nua.

224
Empresas Particulares458. A transferência de domínio da propriedade da área é
materializada no “Título de Domínio com Condição Resolutiva”, que se refere à
obrigação da Empresa concessionária à executar o Projeto de Colonização previamente
aprovado pelo INCRA. O mesmo procedimento é extensivo às cooperativas, entretanto,
neste caso não há a exigência da concorrência por um lado, nem a transferência de
domínio à concessionária, por outro lado.
No caso das cooperativas, apenas é cedido o direito de uso da área para
implementar o Projeto de Colonização, sendo que a titulação de lotes, no caso do
projeto ter sucesso em sua implantação e implementação, fica a cargo do INCRA que
emite os títulos, diretamente para os parceleiros.

3.2.3.7 Doação de Terras Públicas


A doação destinava-se à transferência de terras devolutas federais aos
Municípios da Amazônia Legal e da Faixa de Fronteira, especificamente destinadas à
expansão ou construção de cidades, vilas e povoados. Neste caso procedia-se,
juridicamente, à transferência de domínio aos Municípios, com cláusulas resolutivas
vinculando a doação ao respectivo projeto de desenvolvimento municipal. A doação,
materializada no Título de Domínio, exigia a autorização formal, por Decreto do Poder
Executivo Federal, conforme o que era estabelecido pelas Leis 6.431, de 1977 e 6.925,
de 1981, e pelo Decreto 80.511 de 1977.
Além destas modalidades específicas de alienação de terras públicas da União,
havia o procedimento de “Ratificação de Títulos”, que se referia a ações de
regularização fundiária voltado para a convalidação de títulos de propriedade expedidos
pelos Estados-Membros da Federação, especialmente em áreas de fronteira e de terras
devolutas pertencentes à União, irregularmente tituladas pelos Estados da Federação.
Outra modalidade de legitimação era o “Reconhecimento de Domínio”, que se
referiam ao reconhecimento formal, por parte da União, da situação dominial existente
na faixa de fronteira e nos Territórios Federais, por ocasião da promulgação do Decreto-
lei 9.760 de 1946, amplamente estudado no capítulo anterior.

3.2.3.8. Usucapião Especial


Instituído pela Lei no 6.969459, de 10 de dezembro de 1981, já no último
Governo do ciclo militar, o Usucapião Especial, recupera o antigo preceito
constitucional, que assegurava a legitimação das posses mansas e pacíficas, para os
trabalhadores rurais que residissem nas respectivas posses e que as fizessem produzir
com o seu trabalho e de sua família, anulado pela Constituição de 1967. As áreas para
legitimação de posses, cobertas por este preceito foram sistematicamente reduzidas nas

458 Que, segundo depoimento de D. Moacyr Grechi, Bispo do Acre e Purus à CPI do Sistema Fundiário (ver capítulo
5) poderia atingir a 500.000 hectares, por projeto. Um verdadeiro “big business”.
459 Lei no 6.969, de 10.12.1981 (BRASIL. Congresso Nacional. Brasília: 1981.).

225
sucessivas Constituições Republicanas, sendo inclusive vedado o direito de usucapião
sobre terras devolutas.
Como se discutiu no capítulo 2, a Lei 601 de 1850 permitia a legitimação de
posses imensas, até o tamanho das sesmarias concedidas, anteriormente na região. As
Constituições de 1934 e 1937 reduzem esta área para 10 hectares. A Constituição de
1946 amplia para até 25 hectares, conforme o parágrafo 1 o do artigo 156. De qualquer
maneira, o que fica evidente nestes procedimentos é que sistematicamente eram
impostos limites rígidos à garantia e legitimação de pequenas posses, que passou de
direito líquido e certo, como o era na legislação Colonial e Imperial, à simples
“concessão” do Poder Público. Ou seja, houve, efetivamente, no que se refere aos
pequenos posseiros uma perda efetiva de Direito no período Republicano. Com o
regime militar, no Pós-1964, essa perda de direito é plenamente assegurada e
consagrada.
O Usucapião, neste sentido, representou uma abertura para o passado.
Esse verdadeiro “avanço para o passado” recupera direitos assegurados pelos
imperativos constitucionais acima mencionados, e que foram negados pela Constituição
de 1967.
Neste sentido e parafraseando Faoro ao se referir à vitória dos sesmeiros na Lei
601 de 1850, afirmando que, apenas tardiamente, aquela legislação viria a assegurar o
direito dos posseiros, em relação aos privilégios dos sesmeiros do Vale do Paraíba,
pode-se dizer que o “avanço” realizado, com o Usucapião Especial, em 1981, com a
restituição do antigo direito de aquisição da propriedade sobre posses mansas e pacíficas
de até 25 hectares, no caso, inclusive, extensivo às terras públicas (para as quais o
usucapião sempre esteve vedado460), também chegou tardiamente.
A esta altura o cerco, a alienação e a legitimação privilegiados das terras públicas
brasileiras já haviam assegurado a maior parte das melhores terras do país para os
grupos privilegiados, como os dados acerca da apropriação de áreas novas, analisados
no próximo capítulo evidenciam objetivamente.

460 A Constituição Federal de 1988 reafirma a imprescritibilidade das terras públicas.

226
CAPÍTULO 5

POLÍTICA FUNDIÁRIA DO REGIME MILITAR: RECONCENTRAÇÃO E


PRIVILÉGIOS

1. Considerações Preliminares

Os problemas de legitimação das iniciativas privatizantes e de legalização das


posses em domínio particular, jamais solucionados de forma efetiva, ainda que
formalmente tentados, ganharam profunda relevância no período que se seguiu a abril
de 1964 e à consolidação do Regime Militar. Com a aprovação, em novembro daquele
ano, da Lei 4.504, pela primeira vez, após a aprovação da Lei 601 de 1850 e seu
respectivo Regulamento, o Governo Brasileiro conseguiu encaminhar e aprovar uma
Legislação que regulamentava o processo de alienação de terras públicas e de
legitimação das posses que se encontravam em poder de particulares. A regulamentação
do processo de alienação e legitimação de terras, através da Lei 4.504, de novembro de
1964, foi o grande mérito que, efetivamente, teve o Governo Militar, no âmbito da
Política Fundiária.
No capítulo anterior, ao analisar-se esta problemática, ficou evidenciado que
para muito além deste grande mérito - de regulamentar, juridicamente, o acesso às terras
devolutas - estava o fato do Estatuto da Terra ter colocado, objetivamente, nas mãos do
Governo, o poder para promover a alienação de terras públicas. Portanto, a
possibilidade de conduzir determinado processo de reorganização fundiária, na medida
em que assegurava os meios, jurídicos e administrativos, necessários ao processo de
venda de terras devolutas ou de reconhecimento de titularidades legítimas existentes
sobre estas.
Efetivamente, os Governos militares exerceram este poder: promoveram uma
grande transformação na estrutura agrária brasileira, ao implementar um vasto processo
de alienação de terras públicas, ou de reconhecimento de posses sobre estas, em todas as
regiões do país. Este processo foi especialmente relevante nas chamadas “regiões de
fronteira”, onde predominavam as terras devolutas ou irregularmente ocupadas, como as
Regiões Centro-Oeste e Norte. Mas, foi também relevante, nas demais regiões do País.

227
Como resultado destas ações do Governo no âmbito da Política Fundiária, modificou-se
profundamente o perfil da propriedade privada territorial no Brasil. Por um lado,
assegurando a “propriedade absoluta” para determinadas camadas, de fato privilegiadas,
da população e, por outro lado, aprofundando a excludência social de uma imensa
massa de pequenos produtores, posseiros e indígenas. A resultante desses processos de
“privatização privilegiada e excludente” foi o aumento, sem precedentes na história do
Brasil, de massa de trabalhadores expulsos das terras onde residiam e trabalhavam, que
vieram a se incorporar aos contingentes marginalizados dos centros urbanos, fossem
estes grandes metrópoles ou pequenas cidades do interior da Brasil.
Portanto, não quer significar a citada regulamentação que o processo de
privatização de terras, promovido pelo “Regime Militar”, tenha representado o acesso à
propriedade rural para a grande massa de pequenos produtores com pouca terra,
posseiros, ou trabalhadores rurais sem terra461, fundado na perspectiva de uma reforma
agrária de caráter distributivista ou “democrática” como era, aparentemente, proclamada
na Mensagem 33. Como também não significou, sequer, a legalização ou o
reconhecimento de posses legítimas que se encontravam em poder destas camadas da
população que vivia e trabalhava no campo.
Entretanto, não deixava, apesar disto, de representar uma profunda
transformação no ordenamento agrário, sobretudo porque, ao promover a alienação ou a
legitimação de posses sobre vastas áreas do território do País, engendrou as condições
fundamentais para a incorporação ao processo produtivo (e também especulativo) de
porções relevantes das terras agrícolas brasileiras. Este foi o outro resultado da Política
Fundiária dos Governos Militares no período, e que pode ser tributado à iniciativa de
aprovação do Estatuto da Terra e das medidas jurídicas e administrativas que o
complementaram.
Portanto, não se podem situar, singularmente, ao nível destas medidas, as
críticas passíveis de serem feitas à Política de Terras do Regime Militar. Estas críticas
devem centrar-se nas formas assumidas pelo processo de alienação de terras públicas,
que, além de “repetirem erros” do passado, como afirmava o Ministro da Agricultura,
Luís Fernando Cirne Lima, em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito do
Sistema Fundiário, na verdade, foram muito além disto. Promoveram, não apenas a
incorporação das terras ao patrimônio particular, mas sobretudo, a apropriação
especulativa destas terras e a expropriação, ilegítima e ilegal, de imensas camadas de
produtores rurais que, secularmente, viviam e trabalhavam nas terras brasileiras. Ou
seja, a crítica deve estar centrada no fato de, nos Governos Militares, terem-se
aprofundado de um modo deliberado os seculares processos de privatização,
apropriação e regulamentação privilegiadas e excludentes das terras públicas. Além de
possibilitarem o aprofundamento da titulação questionável e ampliar, desta forma, os

461 Ao contrário. A este respeito ver os Capítulos I e II do Livro, Ditadura e Agricultura (IANNI, 1979(a)) onde é
realizada uma análise profunda e competente das articulações entre a Política Fundiária e o Modelo Econômico posto
em prática pelo Regime Militar.

228
processos de grilagem especializada, geralmente fundados na fraude ou sustentados nas
colunas da corrupção.
Por questões desta natureza, é que se pode levantar a hipótese de que, apesar
dos possíveis méritos no campo estritamente econômico, - tomado este termo no sentido
estrito definido no Modelo462, de aumento da oferta de produtos agrícolas, e da
participação da agricultura no mercado interno e externo, da sua diversificação, etc. -,
por outro lado, aumentou também, e certamente, mais que proporcionalmente a estes
resultados, a excludência social e a miséria de vastas camadas da população rural463.
O Ministro da Agricultura, Luís Fernando Cirne Lima, no depoimento prestado à
Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário464, em 2 de agosto de 1977,
resumiu, nos seguintes termos, a formulação da Política Fundiária, tal como posta em
prática, então, pelo Governo Federal:
“Ao assumir responsabilidades públicas em 1 de novembro de
1969 elegi, como uma das metas, o que se convencionou
denominar a ocupação dos espaços vazios. A tarefa de ordenar
a ocupação de terras rurais e os deslocamentos dos excedentes
liberados da agricultura indicou a fusão de dois órgãos então
existentes: Instituto Brasileiro de Reforma Agrária - IBRA, e
Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrícola - INDA. A
reforma agrária só tem sentido se visar ao desenvolvimento
agrário, já que a distribuição da terra, quando
desacompanhada da assistência técnica e das condições de
escoamento e comercialização do produto agrícola, não
produz conseqüências duradouras. O pequeno proprietário,
desassistido, é presa fácil dos poderosos que acabam por
retomar-lhe a terra dentro da chamada “economia de
mercado puro.”
“Fundado o INCRA em 1970, diversos fatores levaram o novo
órgão a enfrentar mais a colonização do que a Reforma
agrária. A decisão, antes de entender que aquela seja mais
importante do que esta, partiu de pressupostos vários que ainda
entendo como certos.
“É o Brasil um dos poucos países do mundo com
possibilidade de aumentar a sua fronteira agrícola, colocando
nas áreas novas os excedentes da população rural. Uma
reforma agrária poderia, sem dúvida, cuidar de reduzir os
deslocamentos, pela reordenação da propriedade, mas a um
custo, na época, talvez muito alto.465”
Observa-se, nestes comentários do Ministro Cirne Lima, que o Governo fazia
uma clara distinção entre colonização e reforma agrária. A Reforma Agrária era pensada
como a reorganização da estrutura agrária, em áreas amplamente ocupadas, visando a
reorganização da posse e uso da terra, a modernização e diversificação da agricultura e

462 Ver a especificação dos objetivos perseguidos no âmbito destas políticas implementadas pelos Governos
Militares, o Capítulo II “Agricultura e Acumulação” (IANNI, 1979 (a)), especialmente as páginas 37 a 44.
463 Estes fatos podem ser depreendidos das estatísticas acerca da incorporação das áreas novas por um lado e, por
outro, das informações referentes à dinâmica das populações rurais e urbanas, no período, analisados adiante, neste
capítulo.
464 CÂMARA DOS DEPUTADOS, op. cit.
465 CAMARA DOS DEPUTADOS, op. cit. p. 10; grifos nossos.

229
o aumento da produtividade. Portanto, implicando necessariamente, o processo de
desapropriação, além de outros investimentos. Por estas razões era considerada onerosa,
devendo, “ipso facto”, ser evitada. Exceto nos casos excepcionais de conflitos e tensões
sociais graves466. Por outro lado, a colonização significava o assentamento de
populações em áreas de terras devolutas, evitando-se, desta forma, os custos com o
processo de “desapropriação”. Mas, sobretudo, evitando-se ferir os interesses
latifundiários e especulativos das grandes empresas de colonização particular e
empreiteiras. Ou seja, aproveitando-se da “vantagem comparativa” possuída pelo fato
de ser “o Brasil um dos poucos países do mundo com possibilidade de aumentar a sua
fronteira agrícola, colocando nas áreas novas os excedentes da população rural”. De
ainda hoje existirem, no Brasil, amplas reservas de terras livres e públicas.
Entretanto, esta opção significava, também, atender a uma antiga tese do
latifúndio em relação à colonização - entendida “como desbravamento” - ou seja, que
deveria ser realizada longe de seus domínios. Este problema foi cuidadosamente
discutido no segundo capítulo deste estudo. A este respeito é interessante registrar as
seguintes observações de Carlos Minc:
“Correspondem, portanto, à instalação de colonos em terras
distantes dos grandes centros nacionais de consumo, em áreas
mal servidas de infraestrutura básica (estradas, irrigação e
eletrificação) e principalmente em zonas distantes das terras
dos poderosos latifundiários do Nordeste e do Sudeste.
Estes assim tiveram seus domínios intocados, ainda que
todos os latifúndios sejam passíveis de desapropriação para fins
de reforma agrária, segundo o Estatuto da Terra (...).”467
No âmbito deste diagnóstico, cuidadosamente elaborado pelos “técnicos” do
Governo, a colonização apresentava todas as vantagens: significava um móvel
fundamental e pouco oneroso para a integração nacional, a ser promovida pela ocupação
dos “espaços vazios”, mediante os projetos de assentamento, dirigidos às populações
pobres que migravam “expontaneamente”; ou pela via do assentamento dos
“excedentes” potenciais de população de regiões mais “desenvolvidas”. Desta forma,
evitava-se “desorganizar a produção agrícola, em áreas tradicionalmente exploradas”,
como se fazia referência na Mensagem 33, do General Castelo Branco, ao acusar o
Governo João Goulart e a SUPRA de promoverem a inquietação no campo e a
desorganização do sistema produtivo da agricultura.
Mas, sobretudo, como registraram Carlos Minc468 e Octávio Ianni469 entre
muitos outros estudiosos do tema, significava manter intocados os domínios dos

466 Entretanto, mesmo nestes casos, se se tiver em consideração o caráter excepcional do próprio regime, há que se
atentar para o fato de que, muitas vezes, as tensões e conflitos pela terra eram simplesmente encarados como atos
subversivos, sendo os pequenos posseiros e seus líderes perseguidos ou presos, o que reduzia substantivamente a
necessidade de “desapropriação”, e até mesmo, o simples procedimento legal de legitimação de pequenas posses em
favor daqueles posseiros. Há que se ter ainda em consideração, neste contexto, que muitas vezes as próprias milícias
de jagunços atuavam como forças paramilitares, reprimindo “ações subversivas”, como eram geralmente encarada a
resistência dos posseiros à expulsão das áreas onde trabalhavam e residiam.
467 MINC (1985, p. 9). Grifos nossos.
468 Op. cit.

230
latifúndios. Neste sentido, o Estatuto da Terra, além de não conter nem defender
nenhum Projeto de Reforma Agrária distributivista ou democrática, configurava-se,
efetivamente, como um Projeto de “Contra-reforma Agrária” como corretamente
demonstrou Octávio Ianni470.
Aparentemente, as teses defendidas por Fernando Cirne Lima - que eram as
mesmas teses do Governo na época - apresentavam coerência “técnica”. Seria,
aparentemente, menos oneroso e mais “racional” para o processo de desenvolvimento
agrícola, nas condições específicas do Brasil, onde permaneciam imensas áreas de terras
“livres e desocupadas”, incorporá-las ao processo produtivo, e fornecer assistência
técnica e creditícia, etc., antes de promover a desapropriação em áreas onde, bem ou
mal, o processo produtivo caminhava.
Para estes espaços específicos, seriam destinados os diversos instrumentos de
Política Agrícola, de incentivo à incorporação do “progresso técnico e científico” e de
implementação de processos de produção “mais eficientes”, na expectativa de que, por
estes meios, os produtores rurais fossem induzidos a modernizar suas propriedades e
tornarem-se “empresários rurais”, etc.
Segundo esta linha de argumentação, a reforma agrária era deslocada para a
promoção da colonização. Transformada, esta, no assentamento de populações rurais
excedentes, em áreas de terras devolutas, e, apenas excepcionalmente, em áreas de
ocupação antiga, quando pairassem ameaças de conflitos ou tensões potenciais. Todo o
processo pressupunha-se como acompanhado de um amplo programa de assistência
técnica e creditícia, extensão rural etc. A implementação de um Projeto de
Desenvolvimento Rural deste porte exigia, segundo os “técnicos” e especialistas do
Governo, ações concentradas, para se evitar, a “pulverização de recursos” - como era
afirmado nos documentos da época - donde a fusão do IBRA-INDA e nascimento do
INCRA, no bojo do Programa de Integração Nacional.
Esta formulação, aparentemente coerente, entretanto, escondia contradições
importantes. A primeira delas, é que esta estratégia de desenvolvimento rural, ao ser
implementada, mostrou-se contraditória com a tese central do Governo, que se colocava
em termos promover a maior eficiência nas explorações agropecuárias. Isso,
necessariamente, deveria significar, além da implementação dos instrumentos de
política agrícola, o combate ao “latifúndio” - quer fosse por dimensão ou, sobretudo,
por exploração. Exatamente esta linha de ação não foi implementada: os latifúndios
proliferaram por todo o país, muito particularmente nas regiões onde predominavam as
terras públicas, como o Centro-Oeste e o Norte471, mantendo-se quase intocado nas
demais regiões.
Além disto, os latifúndios, apesar de se beneficiarem do crédito e de toda sorte
de incentivos oferecidos pelo Governo, não se modernizaram como pressupunham os

469 IANNI (1979).


470 IANNI (1979 e 1981).
471 Ver os Quadro 1.A e 1.B e a figura 2, adiante.

231
“experts” do Governo. Permaneceram quase, senão inteiramente, no mesmo nível de
“produtividade” - ou improdutividade - apesar de terem efetivamente abocanhado a
maior parte dos créditos incentivados e subsídios oferecidos pelo Estado.
Portanto, o que esta proposta do Governo, de fato, significou, do ponto de vista
da propriedade fundiária, foi a reprodução, sob novas formas, da mesma estrutura
agrária concentrada e fundada no privilégio e na ilegalidade. E na ampliação do poder
latifundiário, agora amplamente capitalizado pela apropriação privada de fundos
públicos.
Como muito bem analisou IANNI472 a “estratégia” de proceder a concessões de
pequenas parcelas nas áreas distantes das fronteiras agrícolas, especialmente na
Amazônia, representava uma alternativa à distribuição de pouca terra, para evitar-se a
reforma agrária efetiva, por um lado e, por outro, significava, a promoção da
reconcentração da propriedade nas regiões originárias dos migrantes, especialmente as
Regiões Sudeste e, sobretudo, Sul. Neste sentido, realizando o que Otávio Ianni
denominou de Contra-Reforma Agrária473.
Por outro lado, continua Luís Fernando Cirne Lima, no depoimento citado, a
esclarecer as formas pelas quais persistia a tendência à manutenção do latifúndio, apesar
das tentativas, da sua gestão no Ministério, em sentido contrário:
“Há, contudo, uma superposição de órgãos, por vezes
conflitantes, no trato da ocupação de novas áreas. A SUDAM e a
SUDENE (organismos de desenvolvimento regional) não
demonstram qualquer desafeição pelo latifúndio. Assim
eram, e suponho que ainda o sejam, aprovados projetos
extensos, sem qualquer resguardo das posses porventura
existentes nas áreas.
“Atendendo interesse político-social e acima de tudo por uma
questão de justiça ao pioneirismo expontâneo e desassistido,
propusemos em 1972, o decreto que leva o número 70.430, de 17
de abril desse ano, e que expressamente estabelece que “as
pessoas domiciliadas na área de empreendimentos financiados
com incentivos fiscais ou em áreas pioneiras, formem elas ou não
coletividades urbanas, não poderão ser desalojadas de suas
moradias ou posse de terras por elas cultivadas sem audiência
prévia do Ministério da Agricultura.”
“Por outro lado, descrente de que a ocupação dos espaços
pela grande empresa seja a fórmula ideal, pois ela repete
erros, adotou-se uma nova filosofia para a incorporação
daquelas áreas sob a jurisdição do INCRA. O começo foi a
retomada pelo governo Federal, a partir do Decreto- lei número
1.164, de abril de 1971, da disciplina fundiária das terras
devolutas situadas na faixa de 100 quilômetros de largura de
cada lado do eixo das rodovias federais na Amazônia Legal.

472 IANNI (1979 e 1981).


473 Representada pelo fato, também citado na Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, pelo Bispo
do Acre e Purus, Dom Moacyr Grechi, de que as mesmas empresas colonizadoras que haviam vendido terras a
pequenos sitiantes no Sul do País, agora passavam a recomprá-las e vender novas áreas nas regiões Centro-Oeste e
Amazônica, num verdadeiro círculo vicioso da especulação imobiliária e dos privilégios no processo de apropriação
(In.: CAMARA DOS DEPUTADO, op. cit.).

232
Elas passaram à condição de áreas necessárias à segurança
e ao desenvolvimento nacionais. (...)
Na experiência de colonização da Amazônia, concentrada
especialmente na região de Altamira, no Pará, mais uma vez
prevaleceu a idéia de criação de uma classe média rural que,
lado a lado com a empresa, dentro dos limites
constitucionais de 2 a 3.000 hectares, começasse a ocupação
de uma área fértil e desse início aos trabalhos práticos que
permitissem decisões mais seguras de conciliação de
interesses coservacionistas da floresta amazônica com o
desenvolvimento da região.
“Procurando evitar a especulação e o latifúndio improdutivo,
as terras foram vendidas aos empresários em concorrência e com
a obrigatoriedade de apresentação de Projetos agropecuários,
com prazo de início. Foi a primeira licitação de terras públicas
que se fez no Brasil, onde a regra ainda copiava os métodos
das sesmarias, mediante doações graciosas ou o
reconhecimento de posses latifundiárias artificialmente
estabelecidas.”474
Duas dimensões muito importantes da questão fundiária, tal como concebida
pelas autoridades do Governo, são colocadas, claramente, nesta parte do depoimento de
Cirne Lima. Primeiro, que o objetivo do Governo, nesta área, era a formação e
desenvolvimento de uma classe média rural, especialmente, utilizando-se da alternativa
de ocupação de áreas novas, ou seja, de terras públicas. Esta alternativa era considerada
fundamental ao desenvolvimento e integração nacionais. Neste sentido é implementado
o PIN (Programa de Integração Nacional) na gestão do General Emílio G. Médici.
Segundo, ao chamar a atenção para o fato de que pela primeira vez era realizada
uma licitação de terras públicas, no Brasil, “onde a regra ainda copiava os métodos das
sesmarias, mediante doações graciosas ou o reconhecimento de posses latifundiárias
artificialmente estabelecidas.”475
Portanto, não se trata de negar, neste contexto, o fato de que os Governos
Militares procederam a uma determina e, em certo sentido, profunda, reorganização da
estrutura agrária e agrícola do País. Trata-se, antes, de compreender o sentido e as
implicações do seu Projeto neste campo. Neste contexto, é mister reconhecer que os
Governos Militares efetivamente, promoveram uma determinada e específica reforma
na estrutura agrária e agrícola do País. Uma reforma, inclusive, que reproduziu, sob
novas formas, o mesmo projeto concentracionista, que, aliás, vinha-se gestando desde a
vitória das forças conservadoras após a aprovação da Lei 601 de 1850476. Foi,
entretanto, uma reforma, especialmente no âmbito das políticas agrícolas, que deu um

474 CÂMARA DOS DEPUTADOS (1979, op. cit. p. 10).


475 “Doações graciosas” isto é, privilegiadas, e “reconhecimento de posses latifundiárias artificialmente
estabelecidas”, que significa legitimação igualmente privilegiada de grandes posses ilegítimas, portanto,
juridicamente questionáveis. E observe-se que Luís Cirne Lima está-se referindo à década de 1970. Além disso,
considerando as formas de alienação e titulação de terras públicas, analisados no Capítulo anterior, pode-se ter uma
noção exata do que significaram, de fato, esses processos de licitação.
476 Ver a este respeito o trabalho de José Murilo de Carvalho (CARVALHO, op. cit.) e os capítulos 2 e 3 deste
estudo.

233
efetivo impulso à produtividade do trabalho em determinados setores da agricultura
brasileira, se considerada de forma agregada. Mas era exatamente este o modelo de
desenvolvimento rural concebido pelo Governo. Os seus “custos sociais” - a
excludência, a marginalidade, a repressão aos movimentos de resistência das populações
rurais, etc. - eram parte consistente deste Projeto477, e considerados perfeitamente
“racionais” na perspectiva de uma análise de “custo-benefício”. A respeito deste
Modelo de desenvolvimento Octávio Ianni faz os seguintes comentários:
“Desde o primeiro momento, o governo militar instalado com o
Golpe de Estado de 1964 foi levado a adotar uma política de
portas abertas para o capital estrangeiro, isto é, para o
imperialismo. O conjunto do aparelho estatal, em suas condições
econômicas e políticas de atuação, foi posto a serviço dos
interesses da empresa imperialista multinacional e nacional.
Desse modo, inaugurou-se uma época de desenvolvimento
capitalista intenso e generalizado, na indústria e na agricultura, na
cidade e no campo. Daí a política agressiva e repressiva, em
termos econômicos e políticos, no sentido de superexplorar a
força de trabalho do proletariado industrial e agrícola.”478
Portanto, é relevante, neste contexto, procurar compreender o sentido deste
processo de privatização de terras públicas, especialmente em termos de seus
beneficiários imediatos.
Ao analisar-se, no item 3.2.6 do capítulo anterior (“Titulação de Terras Públicas:
Alienação e Privilégios”) as diferentes modalidades e critérios de legitimação de posses
e alienação de terras devolutas, ficou claro o sentido de facilitar o acesso à terra ou a
legitimação de posses para determinadas camadas privilegiadas, inclusive, assegurando
a legitimação e titulação de terras cujos pleiteantes não dispunham de documentação
alguma que lhes assegurasse direitos sobre as terras pretendidas; de pleiteantes que
detinham títulos com “vícios insanáveis” (isto é, falsos ou produto de fraude); ou, ainda,
daqueles que não preenchiam nenhum dos critérios legalmente instituídos para
assegurar o direito à propriedade das terras479. Ou seja, foram asseguradas todas as
facilidades para o acesso à terra a determinados grupos privilegiados, sob o pretexto de
estarem contribuindo para a integração e desenvolvimento nacionais480 .
Em suma, se até então era, pelo menos, exigida a morada habitual dos posseiros
ou de seus representantes e a cultura efetiva da terra possuída, depois dos critérios

477 Ver adiante, as teses de Roberto Campos acerca da necessidade do autoritarismo enquanto condição para
assegurar “taxas adequadas” de crescimento, ao fazer referência ao que denominava de “premissas cruéis”
(SIMONSEN & CAMPOS, 1976. Pp. 223-225)
478 IANNI. 1979(a) pp. 19-20. Grifos nossos.
479 Ou seja, os privilégios assegurados, neste contexto, eram efetivamente muito mais amplos do que os concedidos
aos grandes posseiros e sesmeiros pela Lei 601 de 1850. Nunca na história da terra brasileira, os privilégios na
aquisição da propriedade foram tão amplos quanto os assegurados pela legislação e pelos atos administrativos que
deram forma à implementação do Estatuto da Terra. E nunca a ilegalidade e a inconstitucionalidade destes atos foram
tão amplas e escancaradas, quanto neste período.
480 Ver capítulo 4, onde estas questões são ampla e objetivamente detalhadas e discutidas.

234
instituídos, sobretudo administrativamente, pelo Governo e por seus Órgãos fundiários,
eram assegurados o reconhecimento ou a legitimação de posses, ou mesmo o direito de
preferência para aquisição de propriedades fundiárias, a grupos e pessoas que não
preenchiam nenhum dos requisitos legalmente estabelecidos.
Nestes casos, cuja incidência maior passa a verificar-se a partir dos finais dos
anos 60 e inícios de 70 deste século, fica absolutamente caracterizada a
inconstitucionalidade481 dos atos administrativos de alienação de terras públicas ou de
legitimação de posses sobre estas, por contrariarem a legislação em vigor. Inclusive, por
ferirem os imperativos constitucionais que regulamentam a matéria. Isto torna
questionável, juridicamente, a maioria dos títulos concedidos pelo Regime Militar,
independentemente dos seus possíveis resultados econômicos482.
O Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário
documenta vastamente este fato. Naquele Relatório, ao incorporar e comentar o
depoimento de José Francisco da Silva, Presidente da CONTAG, o Relator da Comissão
expressa-se nos seguintes termos, tentando dar conta da relevância e gravidade deste
fenômeno de privatização privilegiada; especialmente enfatizando os riscos de que, por
estes meios, fosse reproduzida a mesma estrutura fundiária concentrada em áreas novas,
ou seja, ainda não incorporadas ao patrimônio particular:
”Indicou o último recadastramento de imóveis rurais (que), em
1972, foram cadastrados apenas 393.230.000 hectares, o que
corresponde a menos de 50% da área terrestre do País,
sugerindo, portanto, que mais da metade do nosso território está
para ser ocupado, sobretudo a região norte, em que a taxa de
ocupação é estimada em 12%.”
“Afirmou o depoente que ‘embora a elevada concentração da
posse da terra possa ser considerada oficialmente como
prejudicial ao desenvolvimento econômico e social da agricultura,
ao se promover a alienação de grandes extensões de terras
públicas a poucos favorecidos, estamos correndo o grave risco

481 Até porque, os atos administrativos dos órgãos fundiários ou os Decretos do Poder Executivo não podem
contrariar a Legislação pertinente à matéria e, ainda menos, a Constituição Federal. Por isso, são juridicamente
questionáveis, porque inconstitucionais.
482 Entretanto, considerando-se as teses de Roberto Campos, um dos mais importantes e prestigiados teóricos do
modelo de desenvolvimento econômico brasileiro da época, pode-se concluir que o desprezo pela Constituição ou o
desdém pela excludência social e econômica de boa parte da população, eram parte substantiva do Projeto. Isso fica
claramente estabelecido na seguinte passagem do seu trabalho “A Opção Política Brasileira” , publicado como o
Capítulo X no livro “A Nova Economia Brasileira” (SIMONSEN & CAMPOS, 1976. pp. 224 e seguintes): “(...)A
terceira premissa cruel é que no atual contexto histórico, um certo grau de autoritarismo parece
inevitável na fase final de modernização, isto é, na transição para a sociedade industrial(...) Essa
desagradável conclusão é acentuada mesmo por ‘grandes liberais’, como Raymond Aron e Gunnar
Myrdal(...) O problema torna-se ainda mais sério nas sociedades que sofrem ao mesmo tempo de inflação
e estagnação. Pois então se trava uma espécie de guerra civil incruenta, em que as diversas classes
lutam pela redistribuição de fatias de um bolo insuficiente(...) Não é de estranhar portanto que o
autoritarismo, longe de ser um caso de patologia política, parece ser hoje a forma política
prevalecente na maioria dos Países.” (Grifos nossos).

235
de transplantar, para as áreas ainda não ocupadas, a mesma
injusta distribuição da terra vigente nas regiões já ocupadas’483.”

Esses trechos dos depoimentos de Luís Fernando Cirne Lima e de José


Francisco da Silva, transcritos e enfatizados no Relatório Final da Comissão
Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, colocam claramente o cerne da
contradição embutida no discurso da Mensagem 33 e no texto do Estatuto da Terra, e
que se refere ao reconhecimento “formal”, pelo Estado, de que a elevada concentração
da propriedade da terra e a dicotomia minifúndio-latifúndio são prejudiciais “ao
desenvolvimento econômico e social da agricultura” mas que, na prática, age-se de
forma inversa ao diagnóstico, ao promover a reprodução da mesma reconcentração em
áreas ainda não efetivamente ocupadas pela iniciativa privada. Ou seja, em áreas onde
há predominância de terras públicas e nas quais, se realmente fosse objetivo do Governo
proceder a alguma espécie de reforma agrária, poderia o mesmo ter implementado o
processo de acesso à terra, atendendo ao preceito constitucional referido na Mensagem
33.
Tudo isso significa, como ficou amplamente discutido na capítulo 4, que o
Projeto de Desenvolvimento Rural e de “Reforma Agrária” propostos no âmbito do
Estatuto da Terra, efetivamente, caminhavam no sentido da consolidação de “médias” e,
sobretudo, “grandes” empresas agropecuárias, enquanto formas pretensamente
adequadas a superar a miséria no meio rural. Portanto, que não havia, naquele Projeto, o
objetivo de facilitar o acesso à terra à população sem ou com pouca terra. Pior: sequer
se pretendia assegurar os direitos reais de pequenos posseiros, direitos estes, aliás,
garantidos por todos os diplomas legais e pelas Constituições Brasileiras anteriores a
1967, como amplamente documentado nos diversos capítulos deste estudo.
Antes de entrar na análise de alguns dados sobre o processo de privatização das
terras novas por extratos de área nas diferentes regiões do País, convém fazer alguma
referência a um trecho do Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito do
Sistema Fundiário, que esclarece exatamente este aspecto da questão, referente ao tipo
de propriedade e de dimensões de áreas tais como definidos pelo INCRA:
“(...) Além disso o INCRA prevê para 75/79 a instalação de 4 mil
propriedades-famílias (110 ha) e 1.200 médias empresas (até
3.000 ha) e 120 grandes empresas (até 72 mil ha), perfazendo
um total de mais de 10 milhões de hectares.”484

483 CÂMARA DOS DEPUTADOS, op. cit. p. 10. Grifos nossos.


484 Trecho do Depoimento de José Gomes da Silva, comentado no Relatório Final da CPI do Sistema Fundiário
(CÂMARA DOS DEPUTADOS op. cit. p. 5). Apenas para uma ilação sem maiores pretensões, esses dados
significam que o INCRA, pelo menos ao nível de “planejamento” imaginava a seguinte proporção na implementação
destas metas: Propriedades-Família = 440.000 ha; Médias Propriedades = 3.600.000 ha; Grandes Empresas =
12.680.000 ha. Essas metas, embora apenas ao nível da “imaginação” dos “Planejadores” dispensam maiores
comentários; e dão uma idéia de como era “pretendida” a ação fundiária na época. É a idéia de reforma agrária e
desenvolvimento rural pretendidos.

236
Este trecho extraído do depoimento de José Gomes da Silva oferece uma pista
para a compreensão das dimensões atribuídas pelo Governo aos conceitos de
“propriedade-famílias” com área em torno de 110 hectares; “médias empresas” com
área de até 3.000 hectares e, finalmente, grandes empresas, com áreas de até 72.000
hectares. Observe-se que o “gap” entre as propriedades familiares (de 110 hectares) e
“médias” (de até 3.000) e, sobretudo, de “grandes empresas” (de até 72.000 hectares!!!),
não deixam margem a nenhuma dúvida de que se tratava de um projeto de manutenção
e, mais que isto, de ampliação, dos interesses do latifúndio.
Ao proceder-se a análise dos dados dos Quadros 1.A e 1.B adiante, referentes à
distribuição do processo de apropriação de áreas novas por estratos e regiões, ficará
mais claro o sentido e implicações deste modelo conceitual, tal como proposto e
implementado pelo INCRA. De qualquer maneira, definir propriedades “médias” como
imóveis com áreas de até 3.000 ha, e “grandes empresas”, com áreas de até 72.000
hectares, é claro indicativo do vínculo latifundiário, ou especulativo, do Projeto
Fundiário do governo.
Por outro lado, e para encerrar estas observações introdutórias ao estudo das
implicações da Política Fundiária posta em prática a partir da aprovação do Estatuto da
Terra, é interessante, ainda, fazer mais uma referência ao Relatório Final da Comissão
Parlamentar de Inquérito citada, onde é realçada a “filosofia do Ministério da
Agricultura” no âmbito de implementação desta política de distribuição de terras e de
desenvolvimento rural:
“Por outro lado a filosofia do Ministério da Agricultura é no sentido
de dar cobertura às grandes empresas, relegando por completo a
colonização em sentido social que foi a meta almejada pelo
Governo passado. O próprio Ministro da Agricultura teve a
oportunidade de afirmar: “a ausência de regularização fundiária
constitui o principal obstáculo ao desenvolvimento agrícola da
região, na medida em que o colono, sem possuir legalmente sua
terra, fica marginalizado do processo econômico (...).”
“Da preocupação com a colonização em sentido social, nós
chegamos à filosofia da ocupação da Amazônia pela pata do boi e
estes frutos estamos colhendo hoje. Prestando depoimento nesta
CPI, na sua reunião de 11.5.77, o Bispo D. Moacyr Grechi, do
Acre afirmava: ‘A respeito das empresas de colonização que, na
Amazônia, podem conseguir a absurda extensão de até
500.000 hectares de terra para cada projeto, resta questionar
se a propalada experiência delas neste tipo de empreendimento
não camufla o processo típico da exploração da população
migrante, sendo uma das causas da própria migração. Vejam:
empresas que “colonizaram” o Paraná, por exemplo, estão
hoje readquirindo as terras por elas vendidas aos colonos
atraídos do Sul ou do Norte e estão vendendo novas terras aos
mesmos colonos na Amazônia. Tudo isso é normal?”485

485 CAMARA DOS DEPUTADOS op. cit. pp. 5-6. Grifos nossos.

237
Este trecho do Relatório da CPI não deixa dúvidas quanto às implicações do
processo de privatização privilegiada, promovido pelo Governo, embora, estivesse este,
fundamentado no discurso de justa distribuição da terra com igualdade de oportunidades
para todos. Nos capítulos 2 e 3 foram feitas referências ao papel que passaram a
desempenhar as “Empresas de Colonização”, enquanto alternativa à promoção do
monopólio e exercício do controle efetivo sobre as terras devolutas do Governo.
Por este meio, estas empresas passaram a adquirir o “direito” de promover, em
nome do Poder Público, o controle sobre o próprio processo de alienação de terras. Quer
dizer, antes de se deflagrar o processo de privatização da terra, o próprio controle e
gestão deste processo passa a ser desenvolvido pela “iniciativa privada”. Esta é, de fato,
uma invenção peculiarmente brasileira, para usar a expressão do Ministro Cirne Lima, e
que permitiu a privatização das próprias ações do Estado. No limite, o próprio Estado.
A referência feita, pelo Bispo do Acre e Purus, de que as empresas
colonizadoras conseguem até a “absurda extensão de até 500.000 hectares por
projeto” não deixa nenhuma dúvida a este respeito. Esta é a outra forma, mais
avançada, da grilagem especializada a que se tem feito referência neste trabalho.
Assim, o próprio processo de privatização de terras públicas, no período do regime
militar é “terceirizado” de forma peculiar.
Feitas estas observações gerais, cabe afirmar que este capítulo não tem por
objetivo levantar evidências empíricas, enquanto condição para comprovar hipóteses.
Limita-se, apenas, a apresentar alguns dos resultados relevantes destas políticas de
governo, especialmente no que toca ao problema da privatização de terras públicas e da
sua distribuição por extratos de áreas e por regiões, tal como efetivamente ocorreram no
período, em decorrência da implementação das medidas preconizadas no Estatuto da
Terra e nas diversas normas administrativas e legais que o complementaram.
Especialmente, busca-se a análise desses fenômenos, em relação ao que, neste
estudo, é denominado de “áreas novas”, ou seja, o diferencial de áreas em domínio
privado, computado entre os censos de 1960 e 1980, e que passou, por suposto, a ser
incorporado à propriedade particular neste período. Como foi registrado no capítulo
anterior, estas áreas correspondem, aproximadamente, ao volume das terras
discriminadas486 pelos órgãos fundiários do Governo, após a aprovação do Estatuto da
Terra.
É evidente que a escolha pela análise dos dados referentes às “áreas novas” é
arbitrária. Entretanto, tem a vantagem analítica, de permitir o estudo específico das
formas e meios, através dos quais, se processou a alienação de terras públicas, ou a
legalização de posses sobres estas, em decorrência da aplicação dos instrumentos e
ações fundiários definidos pelo Estado, no período, em função da Lei 4.504/64 que, ao
regulamentar o “imperativo constitucional” de 1946, na verdade, instrumentalizou
jurídica e administrativamente o Estado para que pudesse promover a alienação de
terras públicas, ou o reconhecimento de domínios particulares sobre estas. Estes dados

486 Ver a respeito das estatísticas correspondentes, YOKOTA e ZANATTA (citados) e o Capítulo 4 deste estudo.

238
serão complementados pela análise de outras estatísticas, particularmente as
relacionadas com os movimentos da população rural e urbana, por um lado, e com a
destinação dada às terras agrárias, no país, por outro lado.
Destarte, as análises feitas neste capítulo têm, apenas, o objetivo de lançar mais
alguma luz acerca dos resultados da Política Fundiária do Governo no período, tal como
proposta e tal como implementada pelo Governo. Neste sentido específico, o presente
capítulo procura complementar as análises anteriores, buscando esclarecer aspectos
relevantes associados ao projeto e ao discurso de desenvolvimento rural do Governo.
Por outro lado, procura indicar algumas referências gerais que possam permitir a
comparação entre a Política de Terras dos Governos Militares, e iniciativas similares
implementadas em outros momentos da história agrária brasileira.
Nesta perspectiva, além da constatação do fato concreto de que a estrutura
fundiária brasileira sempre se caracterizou por um elevado grau de concentração,
conforme evidenciaram inúmeros estudos, alguns dos quais citados neste trabalho 487, é
fundamental que se busque compreender as especificidades e os meandros dos
fenômenos e processos que o engendraram - e como visto nos capítulos anteriores,
ainda o engendram - assim como os motivos econômicos, sociais, políticos, etc., que se
encontram subjacentes a esse processo de alienação e apropriação privilegiadas das
terras públicas no Brasil. Neste trabalho, esta problemática é analisada a partir de uma
perspectiva específica: o estudo das mediações entre a formulação de normas jurídicas e
administrativas e suas respectivas relações e implicações, ao nível concreto, da sua
implementação.
A tarefa de deslindamento deste processo vem sendo desenvolvida em dois
níveis estritamente articulados: um quantitativo, no qual se buscou colocar em evidência
a dinâmica física e espacial do processo de apropriação e do incremento de quantidades
de terras devolutas incorporadas à propriedade privada rural e sua respectiva destinação,
no período, com a referência a estratos de áreas dos estabelecimentos e a regiões do
país; outro, qualitativo, pelo qual se buscou colocar em relevo as formas, meios e
instrumentos, jurídicos e administrativos, utilizados pelo Estado, para justificar e
sustentar a implementação deste processo específico de alienação de terras públicas ou
do reconhecimento de domínios privados sobre estas; e os seus efeitos sobre a estrutura
fundiária e os movimentos da população rural e urbana.
A análise, especialmente desta segunda perspectiva, oferece a possibilidade de
captar e compreender a especificidade do Projeto de Desenvolvimento Rural e da
Política Fundiária, tal como propostos pelos Governos a partir de 1964. A análise
quantitativa foi desenvolvida com base no levantamento e tratamento estatístico de
dados específicos, relativos: (a) às quantidades de áreas, diferencialmente apropriadas,
discriminadas por estratos de área, regiões do país e em nível agregado do país
(Quadros 1.A - Terras novas; e Quadro 1.B - Distribuição Intrarregional e

487 GRAZIANO DA SILVA (1980 e 1982); DELGADO (1985); MARTINS (1983), JONES (1987).

239
Interregional); (b) às variações da população rural e urbana no período (Quadro 2.A -
População Rural e Urbana; e Quadro 2.B Taxas de Incremento da População); e (c) ao
estudo dos dados referentes à utilização ou destinação das terras, produtiva ou
especulativamente (Quadro 3 - Utilização e Destinação das Terras).
Estas análises estão estritamente associadas a, e, em certo sentido, são
informadas pelo modelo de desenvolvimento rural e, muito especialmente, pelos
instrumentos jurídicos e administrativos instituídos e utilizados pelo Governo para
implementar uma determinada política de alienação de terras públicas e de legitimação
de terras em poder de particulares.
Isto porque, conforme as diretrizes definidas na Mensagem 33 e nos diversos
atos administrativos e documentos do Governo, elaborados para justificar ou orientar a
execução da Política de Terras, as transferências de domínio e o reconhecimento de
propriedade privada sobre as terras públicas, subordinavam-se, sempre, à execução
“projetos relevantes” para o desenvolvimento nacional ou regional - por isso,
amplamente subsidiados - ou para coibir tensões e conflitos sociais considerados
significativos.
Assim sendo, torna-se legítima a expectativa de que a taxa de utilização das
terras agrícolas, então apropriadas, fosse, na pior das hipóteses, proporcional à taxa
histórica de ocupação das terras agrícolas. Portanto, que se elevasse no período.
A tendência contrária seria, em certo sentido, indicativa do fracasso da
“Política” implícita no Projeto de Desenvolvimento Rural do Governo, especialmente a
vinculada à implementação do imperativo constitucional de promover a justa e
eqüitativa distribuição da propriedade da terra. Ou, na melhor das hipóteses,
significaria o desvirtuamento do projeto específico da Reforma Agrária, tal como
proclamado pelo Governo. Observe-se que este desvirtuamento da idéia da promoção
da “Reforma Agrária Democrática”, proclamada na Mensagem 33 e no Estatuto da
Terra, apresenta semelhanças com o desvirtuamento das teses da “Colonização
Sistemática” em relação a Lei 601 de 1850, como evidenciado pela análise realizada no
capítulo 2. Em ambos os casos os Projetos Fundiários e de Colonização que se
implementou efetivamente, pouco, ou nada, tinham a ver com as teses originalmente
defendidas e incluídas nas respectivas legislações e, menos ainda, com os objetivos
originalmente definidos. Ou seja, estes foram apenas pretextos para a continuidade das
mesmas tendências anteriores.
Nesta hipótese, pode-se afirmar que persistia o mesmo e antigo processo de
alienação e legitimação privilegiadas, embora sob nova roupagem. O que não significa
que o governo não tenha implementado um determinado projeto de reestruturação
fundiária, ao contrário.
Neste contexto, a compreensão objetiva da Política Fundiária desenvolvida pelo
Estado, no período, exige procedimento metodológico complexo. Não pode ser reduzida
à sua expressão puramente quantitativa, tal como evidenciada pelas estatísticas da
concentração na distribuição da propriedade rural. Exige, para além destas evidências, a

240
análise cuidadosa e objetiva de outras manifestações do processo de ocupação e
legitimação da propriedade e seus efeitos sobre a economia e à sociedade rurais. Nesta
conjuntura, a análise dos movimentos interregional e intraregional do processo de
apropriação e privatização de terras públicas exige, no mínimo, o estudo de sua
articulação com a destinação (produtiva ou especulativa) dada às terras incorporadas ao
patrimônio privado, por um lado, e com as variações entre a população rural e urbana,
por outro.
Estritamente associada a esta análise, é fundamental que se procure discutir os
meios e métodos utilizados pelo Estado na efetivação concreta dos processos de
incorporação das terras “novas” ao patrimônio de novos ou de antigos estabelecimentos.
Ou seja, a análise efetiva dos instrumentos de política fundiária, estudados no capítulo
anterior, em articulação com os seus resultados, no período. Até porque, como vem
sendo registrando reiteradas vezes neste estudo, a incorporação de “terras novas”, seja
pela ação ou pela omissão das autoridades fundiárias do Estado, não significa,
necessariamente, que se trataram de alienação ou de reconhecimento de domínio sobre
terras devolutas, “livres” e desocupadas. Logo, o processo de alienação de terras
públicas, incorpora, necessariamente, determinadas e específicas relações de
expropriação de populações ao nível do exercício da força bruta e do engodo contra
direitos reais. Portanto, de grilagem especializada. Especialmente quando se referem
aos “pequenos posseiros” e indígenas que, legal e legitimamente, sempre tiveram seus
direitos reais ou civis, de propriedade, assegurados, como se demonstrou amplamente
nos capítulos anteriores.
Direitos estes, sistematicamente anulados na prática, como se vem
documentando nesta pesquisa. Este fato é a evidência mais contundente de que persiste
a legitimação privilegiada e juridicamente questionável.
Em sendo assim, pode-se afirmar que a Política Fundiária do Governo, no
período, em vez de promover o imperativo constitucional de assegurar a “justa
distribuição da terra, com igual oportunidade para todos” nem sequer, promoveu, na
maioria dos casos que envolveram pequenos posseiros e indígenas, a titulação da
propriedade territorial, legalmente exigida, portanto obrigatória para o Governo. Como
se fez menção no capítulo anterior, este fato caracteriza o ato de improbidade
administrativa por parte das autoridades fundiárias, por um lado; e de enriquecimento
ilícito, por parte dos cidadãos que dele se beneficiaram488, por outro.
Estes fatos, independentemente de que se faça qualquer referência aos atos de
violência pura e simples contra posseiros e indígenas - atos estes, vastamente
conhecidos e documentados - caracterizam ilícitos, do ponto de vista jurídico,
praticados pelas autoridades fundiárias e por inúmeros cidadãos que se tornaram
detentores de grandes “propriedades”, muito especialmente, nas Regiões Centro-Oeste,

488 Mas que, na verdade, eram objeto de muitas posses legítimas de terceiros, que portanto, detinham o direito real
sobre a terra e a expectativa de sua legalização, pelo Estado.

241
Nordeste e Norte. Mas, em menor escala, também nas demais regiões. Tratam-se,
portanto, de atos passíveis de questionamento e, mais do que isto, de enquadramento
civil e criminal pelo Poder Judiciário489, posto serem atos praticados ao arrepio ou em
clara contradição com preceitos constitucionais.
A caracterização dos atos ilícitos ficou amplamente demonstrada no capítulo 4.
Entretanto, considerando-se que esse é um dos traços fundamentais no processo de
“distribuição” de terras púbicas - sob a capa de vendas, licitações, etc.-, convém
destacar como estes atos são praticados: Na medida em que terras públicas são
“concedidas” a particulares, em contradição com determinados preceitos normativos e
legais, o Estado, ou como preferem os juristas, o Poder Público, atua, na prática,
privilegiando poucos cidadãos em detrimento da imensa camada da população rural, que
efetivamente, detinha direitos reais sobre as terras onde vivia e trabalhava, inclusive
cumprindo os requisitos legais quanto ao acesso, posse e uso da terra. Neste sentido, o
ilícito configura-se objetivamente, quando a materialização do direito de propriedade
afeta direitos reais precedentes, fundando-se em deliberações privilegiadas das
autoridades públicas. É neste sentido, do ponto de vista jurídico, que se consubstancia e
caracteriza, na prática, o ato ilícito. Segundo Hely Lopes Meirelles, o controle judiciário
ou judicial
“é o exercido privativamente pelos órgãos do Poder Judiciário
sobre os atos administrativos do Executivo, do Legislativo e do
próprio Judiciário quando realiza atividade administrativa. É um
controle a posteriori, unicamente da legalidade, por restrito à
verificação da conformidade do ato com a norma legal que o rege.
Mas é, sobretudo um meio de preservação de direitos
individuais porque visa impor a observância da lei em cada
caso concreto, quando reclamada por seus beneficiários.
Esses direitos podem ser públicos ou privados - não importa -
mas sempre subjetivos e próprios de quem pede a correção
judicial do ato administrativo, salvo na ação popular em que o
autor defende o patrimônio da comunidade lesado pela
Administração490.”
Nesta mesma linha de argumentação, Celso Antônio Bandeira de Mello, salienta
que, acerca do controle judicial dos atos administrativos
“é ao Poder Judiciário e só a ele que cabe resolver
definitivamente sobre quaisquer litígios de direito. Detém, pois, a
universalidade da jurisdição, quer no que respeita à legalidade ou
consonância das condutas públicas com atos normativos
infralegais, quer no que atina à constitucionalidade delas. Neste
mister tanto anulará atos inválidos como imporá à Administração
os comportamentos a que esteja de direito obrigada, como
proferirá e imporá as condenações pecuniárias cabíveis.”491

489 Refere-se aqui ao princípio jurídico do “controle da legalidade dos atos administrativos”, praticados pelas
autoridades do Estado.
490 Op. cit., p. 601. Grifos nossos; itálicos de Hely Lopes Meirelles.
491 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 70.

242
Apesar disso, a reprodução, em áreas novas, da mesma estrutura agrária
concentrada é, entre inúmeras outras, uma evidência contundente de atos ilícitos,
portanto, juridicamente questionáveis.
Por motivos desta natureza, cuja relevância é indiscutível, é que se torna
absolutamente necessária a análise das evidências referentes à luta pela posse da terra,
muito especialmente dos movimentos de resistência dos posseiros, lesados em seus
direitos reais e legítimos e escorraçados das terras onde sempre viveram e trabalharam.
A análise desses processos, dado o seu caráter eminentemente qualitativo, e até porque
as estatísticas a respeito da violência são de difícil levantamento, pode, entretanto, ser
intentada por vias indiretas, como por exemplo, pela estudo da dinâmica da população
rural e urbana, dos conflitos e dos crimes praticados na luta pela terra, etc.
Igualmente difícil, ao nível agregado, seria aferir o volume e a qualidade dos
processos de alienação de terras, pelo Estado, se feitos de forma legal ou não, como
acontece nos casos de grilagem, em particular, quando se trata daquilo que neste estudo
se está denominando de “grilagem especializada”. Aquela que é processada sob a
cobertura de procedimentos aparentemente legais, mas que são “legais” apenas na
aparência formal. Na realidade, ferem direitos assegurados legalmente a terceiros.
Entretanto, este método de grilagem especializada está amplamente caracterizado em
diversos depoimentos prestados à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema
Fundiário e analisada no seu Relatório Final. Naquele Relatório, este procedimento de
grilagem é descrito da seguinte forma:
“Por sua vez, Dom Moacyr Grechi, Bispo do Acre e Purus,
destacou que, ‘80% das terras do Acre foram vendidas a
investidores do Centro-Sul sem que se procedesse a
regularização fundiária do Estado, e que muitos especuladores
adquiriram seringais a baixo preço para vendê-los mais tarde com
grande margem de lucro’. Ressaltou que os abusos são cometidos
de duas formas: a) pelo esticamento, ou seja, pela compra de
área sem delimitação exata, à qual são, posteriormente anexadas
áreas subjacentes, com a conivência dos cartórios; b) pela
falsificação de títulos, inclusive na Bolívia.
“Além destas irregularidades, bastante generalizadas, agravam-
se os problemas sociais a partir do momento em que começam a
ser derrubadas as áreas adquiridas pelas empresas, para formar
pastagens. Sendo que a terra é ocupada geralmente por
famílias de seringueiros ou agricultores; um dos primeiros
objetivos dos fazendeiros é o de “limpar a área”, isto é, tirar
das terras os moradores que nela trabalham há 5, 10, 20 ou 40
anos, sem o menor respeito pelos direitos dessa gente.
Aproveitando-se do fato de que os seringueiros e colonos não
conhecem as leis agrárias e os direitos que elas lhes
garantem, ou por não ter como fazê-los respeitar, é comum a
prática de expulsar posseiros por métodos como: a) não
fornecimento de mercadorias para os seringueiros, obstrução de
varadouros, proibição de desmatar e fazer roçados; b) destruição

243
de plantações, invasão de posses, derrubadas até perto das casas
dos posseiros, deixando-os sem ou quase sem terras para
trabalhar; c) compra de posses e benfeitorias por preços irrisórios
ou, quando muito, em troca de uma área muito inferior ao módulo,
que não permitirá ao posseiro e família trabalhar e progredir; d)
atuação de pistoleiros que amedrontam os posseiros numa guerra
psicológica através de ameaças ou mesmo de espancamentos e
outras violências; e) ameaças feitas por policiais a serviço de
proprietários; prisões de posseiros, por questões de terra, sem
ordem judicial ou por ordem judicial sem que tenha sido
movida a ação competente(...).”492
A métodos similares se fez referência em capítulo anterior. Estes são, em linhas
gerais, os métodos da grilagem especializada: da apropriação e da regulamentação
privilegiadas, que caracterizaram de maneira relevante a execução da Política de Terras
posta em prática no período Militar.
Tendo em estrita consideração as restrições metodológicas citadas acima, é que
se fez a opção, neste capítulo, por complementar à análise documental, realizada no
capítulo anterior, com algumas estatísticas referentes ao volume e distribuição de terras
incorporadas ao patrimônio privado no período, ao movimento da população rural e
urbana, e à destinação dada à terra.

2. Alienação e Apropriação de Terras Novas


O conceito “áreas novas”, tal como definido neste trabalho, não significa que
estas terras estivessem desocupadas ou livres. Na verdade, não há nenhuma razão
lógica, nem histórica, nem jurídica, para esta suposição. Pelo contrário, todos os estudos
anteriores e todas as evidencias dão conta do fato de que essas terras, ao serem
discriminadas ou incorporadas ao patrimônio público ou privado, já haviam sido, na
maior parte dos casos, objeto de ocupação ou posse anterior: por posseiros e pequenos
proprietários, ou eram o “habitat” histórico de indígenas. Todos estes, detendo,
portanto, legitimamente, direitos reais sobre estas terras493. Essa situação ficou
amplamente demonstrada nos capítulos anteriores.
Portanto, a extinção destas posses não caracteriza, apenas, um processo de
expropriação dessas pessoas em relação ao seu direito real à propriedade, mas uma
expropriação arbitrária e ilegal: uma modalidade qualificada de grilagem especializada,
ilegítima.
Nos casos de posses legítimas, como inclusive reconhecia Paulo Yokota494,
Presidente do INCRA, caberia ao Estado, legitimá-las e fornecer os respectivos títulos

492 CÂMARA DOS DEPUTADOS op. cit., p. 13-14. Grifos nossos.


493 Exceto nos casos de áreas reservadas que são, juridicamente, consideradas como inalienáveis; o mesmo se
aplicado, em certo sentido às terras tradicionalmente habitadas por indígenas que da mesma forma estavam
“legalmente protegidas”, sendo que estas últimas necessitavam de demarcação. Entretanto, tanto umas quanto as
outras sempre foram objeto de invasões, sobretudo por latifúndios e, em escala mais reduzida, mas nem por isto
menos relevante, de pequenos posseiros e sobretudo por garimpeiros e madeireiros. Estes últimos, geralmente,
orientados e dirigidos por grandes grupos de especuladores imobiliários e contrabandistas.
494 Op. cit.

244
de Propriedade. A ausência desta providência administrativa e, mais que isto, o
descumprimento deste imperativo legal, pelo Poder Público, está na base da apropriação
privilegiada, da titulação juridicamente questionável, e da exacerbação da violência na
luta pela terra, que são as características fundamentais deste período. Além de
caracterizar ato delituoso de improbidade administrativa ou, na melhor das hipóteses, de
negligência culposa na gestão da “coisa pública”, por parte das autoridades fundiárias
do Governo. Isto significa afirmar que se tratam, “ipso facto”, de atos nulos: portanto,
que não transmitem a propriedade, que, desta forma, continua ilegal e ilegítima.
Isto posto, o conceito de “áreas novas” refere-se, apenas, ao diferencial de áreas
em poder de particulares, recenseadas entre os Censos de 1980 e 1960. Tratam-se de
áreas que, por suposto, foram objeto de apropriação ou alienação neste período. Os
Quadros 1.A e 1.B adiante, permitem uma visão de conjunto da dinâmica física do
processo de apropriação diferencial da propriedade fundiária sobre estas áreas no Brasil,
no período, tanto em termos de diferentes regiões como intraregionalmente. Estes dados
estão, para facilitar a sua compreensão, discriminados por estratos de área.
O Quadro 1.A oferece uma visão objetiva da distribuição (e direção) seguida
pela incorporação à propriedade privada, de áreas novas no Brasil, pelas diferentes
regiões e por estratos de propriedades rurais. Este quadro indica claramente que a maior
quantidade de área incorporada privadamente no País deu-se na Região Centro Oeste,
46,5%, o que significa quase a metade de todo o incremento no período. Isto significa
53.449.893 de um total de 114.965.285 hectares495.
QUADRO 1. A
Áreas Novas (1960-1980): Distribuição Inter-regional, Brasil

Especificações: Estratos de Área


Brasil e Regiões Total 0 - 10 10 - 100 100 - 1000 1000 mais
1. Brasil 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
2. Norte 15,7 10,0 30,1 25,0 4,7
3. Nordeste 22,1 57,7 38,8 20,0 16,6
4. Sudeste 7,9 (- 4,3) 8,0 13,2 4,4
5. Sul 7,8 32,7 13,7 11,3 1,8
6. Centro-Oeste 46,5 3,9 9,4 30,5 72,5
Fonte: FIBGE - Censo Agrícola de 1960 e Censo Agropecuário de 1980, com dados agrupados e
percentagens calculadas por JONES (1987).

As referências a respeito deste período, feitas pelas autoridades fundiárias


brasileiras em relação às ações discriminatórias e ao incentivo à formação de médias e

495 Ver o ANEXO 1 - QUADRO 1 - Distribuição de Áreas Novas Incorporadas ao Patrimônio Privado: 1960-1980 -
Números Absolutos.

245
grandes empresas rurais, especialmente nas chamadas “regiões de fronteira”, reforçam
estes dados496.
Em seguida, curiosamente497, vem a Região Nordeste, com 22,1% do total das
áreas incorporadas ao patrimônio privado, o que denuncia, efetivamente, que boa parte
das propriedades desta região não se encontravam legalmente regularizadas no período,
configurando-se em posses sobre terras devolutas. Segue-se, em importância, a Região
Norte498, com 15,7%, da incorporação ao patrimônio privado, de terras novas. Este é,
em linhas gerais, o perfil da expansão da propriedade privada, sobre a “fronteira
agrária”, em termos físicos de ocupação de terras, por suposto, devolutas. Reflete, neste
sentido específico, o processo de privatização de terras públicas, ou do reconhecimento
de domínios, que foram “legalizados”, nos termos analisados na capítulo anterior. Nas
regiões Sul e Sudeste, as taxas são de 7,8% e 7,9%, respectivamente, o que indica a
menor disponibilidade de terras “devolutas” ou “irregularmente” tituladas, além do fato
de se tratar de regiões onde o processo de ocupação das terras se encontrava,
aparentemente, melhor consolidado no período.

QUADRO 1.B
ÁREAS NOVAS (1960-1980): DISTRIBUIÇÃO INTRA-REGIONAL, BRASIL

Especificações: ESTRATOS DE ÁREA

Brasil e Regiões Total 0 - 10 10 - 100 100 - 1000 1000 mais


1. Brasil 100,0 2,6 14,7 35,5 47,2
2. Norte 100,0 1,7 28,1 56,1 14,1499
3. Nordeste 100,0 6,9 25,8 32,0 35,3
4. Sudeste 100,0 (- 1,4) 14,9 59,7 26,8
5. Sul 100,0 11,0 26,1 51,9 11,0
6. Centro-Oeste 100,0 0,2 3,0 23,3 73,7
Fonte: FIBGE - Censo Agrícola 1960 e Censo Agropecuário de 1980, com
dados agrupados e diferenciais e correspondentes percentagens
calculados por JONES (1987).

496 Ver, especialmente, os dados citados por YOKOTA (op. cit.) e ZANATTA (op. cit.) no capítulo 4.
497 Diz-se “curiosamente” por se tratar de uma Região de ocupação muito antiga e de estrutura agrária
fundamentalmente consolidada já da década de 50 do século passado (ver CARVALHO e FAORO, citados). Este
fato é um forte indício de que, também neste caso, a maioria das áreas eram apenas posses que foram legitimadas
neste período.
498 Deve-se fazer uma ressalva em relação aos dados referentes à Região Norte, que apresentaram problemas entre
os Censos de 1960 e 1980. Segundo GRAZIANO DA SILVA (1974, p.5), “embora o número de
estabelecimentos tenha quase dobrado no período, a área total recenseada na região diminuiu
ligeiramente, devido à forte redução apresentada pelos Estados do Acre, Amapá e Amazonas”. Com base
na constatação de que a referida redução afetou sobretudo os estratos de área mais elevada, Graziano da Silva defende
a suposição de que “não foram recenseadas em 1970 algumas das grandes propriedades existentes em
1960, o que explicaria a redução da área total apesar de quase ter duplicado o número de
estabelecimentos.” (Id. Ibidem., p.5). Isto talvez explique o segundo posto ocupado pelo Nordeste.
499 Vejam-se as observações de GRAZIANO DA SILVA constantes da nota anterior.

246
O Quadro 1.B, acima, permite o detalhamento dos dados do quadro anterior, em
termos da distribuição interna a cada região. Ao analisar-se, com base nos dados deste
quadro, a distribuição da apropriação de áreas novas, por estratos, verifica-se que
47,2%, portanto, virtualmente, metade de todo o incremento observado no País, irá
destinar-se aos estabelecimentos com mais de mil hectares. Por outro lado, 35,3%,
destinam-se à propriedades de área situada entre 100 a 1000 hectares. Estes dois
estratos, em conjunto, totalizam, em relação ao país, a privatização de 82,7% de toda a
expansão de áreas novas. Isso significa 95.039.359 hectares, de um total de
114.965.285. Apenas 14,7% e 2,6%, respectivamente, são incorporados aos
estabelecimentos dos estratos de 10 a 100 e de até 10 hectares. Estes dados confirmam a
tendência, e, mais que isso, a proposta e a estratégia de ocupação e privatização de
terras devolutas, tais como defendidas pelos Órgãos Fundiários do Governo, no período,
fatos amplamente discutidos no capítulo anterior.

Este perfil pode ser observado para todas as distintas regiões do País, muito
especialmente para aquelas onde o volume de terras devolutas era mais significativo,
como as regiões Norte e Centro-Oeste.

A maior concentração é observada para os estratos de 100 a 1.000 hectares


(35,5%) e, sobretudo, os acima de 1.000 hectares que, sozinhos, apropriaram-se de
47,2% do total da terras devolutas, reconhecidas como propriedades privadas no
período500.

Por outro lado, apesar da análise da Região Norte ficar prejudicada, como se
observou acima; ao analisar-se os dados da região Centro-Oeste, que significou 46,5%
do incremento total do País, tem-se que, nesta Região, 73,7% do total da área
destinaram-se aos estabelecimentos com mais de 1.000 hectares. Fica, portanto,
evidente o viés latifundiário do Projeto de Política Fundiária do Governo.

Essas informações poder ser visualizadas nos gráficos adiante:

500 Ver figura 2.

247
Figura 1 - Apropriação de áreas novas: Distribuição interregional, em percentagem.
Brasil, 1960-1980
Norte
15,7%

Centro-Oeste
46,5%

Nordeste
22,1%

Sudeste
7,9%
Sul
7,8%

Fonte: Dados da Pesquisa

Figura 2 - Apropriação de áreas novas por estratos, em percentuais. Brasil, 1960-


1980
0 - 10
2,6% 10 - 100
14,7%

1000 mais
47,2%

100 - 1000
35,5%

Fonte: Dados da Pesquisa

248
De qualquer maneira, é também relevante, o fortalecimento dos
estabelecimentos com área entre 100 a 1.000 hectares, o que é indicativo de que, em
certo sentido, verificou-se o fortalecimento de unidades produtivas consideradas como
“médias empresas”, na ótica do modelo do Governo501.
Entretanto, o dado mais relevante que aparece nestes quadros, é eloqüentemente
documentado pela Região Centro-Oeste. Tratava-se, no período, de uma típica região
onde predominavam terras públicas, e portanto, onde o Governo tinha a plena liberdade
de dispor das terras e implementar o seu projeto de desenvolvimento Rural. Exatamente
nesta região, observa-se o privilegiamento de grandes propriedades: As pequenas
propriedades, de menos de 10 hectares detêm apenas 0,2% das áreas novas e as
chamadas “propriedades-família”, de até 100 hectares, apenas 3,0%. Por outro lado, as
chamadas propriedades “médias” (em torno de 100 ha) detêm apenas 23,3% da área.
Entretanto, o verdadeiro privilégio do processo de alienação de terras devolutas aparece,
com as propriedades do estrato de mais de mil hectares, que se apropriam de 73,7% do
total das áreas novas, nesta Região 502 que, sozinha, representou 46,5% do total de áreas
novas privatizadas no País503.
Outra informação importante refere-se à Região Sudeste, onde há uma redução
de 1,4% no estrato de propriedades de até 10 hectares - que significou, em relação à
distribuição das terras deste estrato, para o Brasil, uma redução de 4,3%, conforme se
pode verificar no Quadro 1.A - o que denota que este estrato foi penalizado pela política
de terras do governo. Talvez pelo fato de se situar, em princípio, nos estreitos limites
entre o minifúndio e as chamadas “empresas-família”, imaginada, pelo modelo do
Governo, como situando em torno de 110 hectares. De qualquer maneira, os
estabelecimentos deste estrato tiveram um comportamento coerente com o processo de
concentração da propriedade que acompanhou a estratégia de desenvolvimento rural
posto em prática pelo Governo, de privilegiar “médias” e “grandes” empresas rurais504.
Observa-se, neste sentido, que o estrato de estabelecimentos com 100 a 1.000 hectares é
o que apresenta maior ganho de área no período, correspondendo a 59,7%, ou seja, mais
da metade da incorporação de áreas novas, seguido pelos estratos de mais de mil
hectares, correspondendo a 26,8%, e, finalmente, em situação bem mais inferiorizada,
aqueles que, pelas conceituações do INCRA, poderiam ser definidos como propriedades
familiares, correspondendo a apenas 14,9%.
Esses dados, certamente, indicam, que para além da regulamentação de áreas
novas, isto é, as que foram privatizadas no período, de apenas 7,9% do total do País (ver
Fig.1), houve uma redistribuição de áreas entre as propriedades existentes na Região:
nesta redistribuição, foram ampliadas as propriedades de 100 a 1.000 hectares e, em

501 Entretanto, cabe registrar que as áreas médias para as empresas deste tipo, conforme as informações de Oldair
Zanatta e Paulo Yokota, como se registrou no capítulo anterior, situavam-se em torno de 500 a 700 hectares,
conforme a região.
502 Dados do Quadro 1.B - Áreas Novas: Distribuição Intraregional: Brasil - 1960-1980.
503 Vide Quadro 1.A - Áreas Novas: Distribuição Interregional: Brasil - 1960-1980. Cf. Figura 1.
504 Ver depoimentos de Fernando Cirne Lima e José Gomes da Silva, na CPI do Sistema Fundiário (op. cit.).

249
certo sentido, de forma também importante, as de mais de mil hectares e, em menor
escala, as de 10 a 100 hectares em detrimento, sobretudo, das pequenas propriedades, de
menos de 10 hectares. Estas últimas, de acordo com os dados de ambos os quadros (1 A
e 1 B), perderam áreas: -4,3% em relação ao estrato no país e -1,4% internamente à
Região Sudeste.
Tratava-se, portanto, de um modelo de desenvolvimento francamente fundado
no pressuposto da concentração da propriedade da terra em grandes áreas, estruturadas
em “empresas agropecuárias”, como estratégia para a promoção do desenvolvimento
rural. É evidente que, neste contexto, não se pode, sequer, imaginar que pretendia o
Governo, no período, proceder a nenhuma espécie de “reforma agrária distributivista”.
E, pelos motivos discutidos no capítulo anterior, menos ainda, que ele tivesse interesse
em reforçar o volume ou o número de “pequenas propriedades”, entendidas estas, como
as de área inferior a 110 hectares. Este deveria ser, segundo as autoridades fundiárias, o
tamanho mínimo adequado para uma “propriedade-família”, como foi registrado no
depoimento de José Gomes da Silva à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema
Fundiário, citado acima505.
Embora esses dados, referentes à dimensão física das áreas e sua distribuição,
sejam insuficientes para se caracterizar o significado mais profundo do processo de
apropriação territorial, especialmente quanto aos seus efeitos na dinâmica da
produtividade do trabalho na agricultura e os seus resultados econômicos fundamentais,
por outro lado, são um indicador seguro do processo de discriminação social e
excludência da população rural506 em relação à propriedade da terra, ou seja, aos meios
de vida e de trabalho no campo507.
Neste sentido, por exemplo, se se tiver em consideração que o vetor fundamental
do diagnóstico do “problema agrário”, tal como apresentado na Mensagem 33, indicava
a necessidade de eliminação do minifúndio e do latifúndio (o que, em si mesmo, faz
supor que se referia às áreas “antigas”, isto é já ocupadas), a persistência, nas áreas
“novas”, incorporadas ao patrimônio privado no período, da mesma tendência
concentracionista e polarizada, com certeza, é indicativa de que a proposta do Governo
resumia-se, na prática, aliás, como foi exaustivamente documentado no capítulo
anterior, à simples eliminação dos minifúndios e ao reforço das grandes propriedades,

505 Ver a este respeito, os Depoimentos de José Gomes da Silva, José Francisco da Silva, Don Moacyr Grechi,
Edilson Martins Silveira, Luiz Fernando Cirne Lima, João Carlos de Souza Meireles, entre muitos outros, à CPI do
Sistema Fundiário (CAMARA DOS DEPUTADOS, 1979). Ver, igualmente, o depoimento do Senhor Oldair Zanatta
à CPI dos Incentivos Fiscais da Amazônia (INCRA, op. cit.).
506 Este fenômeno será evidenciado ao se analisar os movimento da população - rural e urbana - adiante.
507 Embora a ênfase nestes dados a respeito do processo de apropriação da terra seja de grande relevância para a
análise da questão agrária, considera-se procedentes, e por isto, registra-se nesta nota, as críticas e ressalvas de Sérgio
Silva (in BELLUZZO & COUTINHO, orgs. 1993., pp. 177 e seguintes), no sentido de que a análise do “processo
de produção brasileiro”, como coloca aquele autor, tem de incluir, além do estudo da “distribuição da terra
como fator explicativo da questão agrária e, em particular da estrutura da produção agrícola no Brasil”,
outras informações e dados que permitam captar a dimensão relevante entre os dados físicos acerca das
áreas e as suas outras relações relativas “à questão da terra no capitalismo” (loc. Cit. p.176).

250
fossem ou não definidas como empresas ou latifúndios pelo INCRA, como pode-se
visualizar com clareza na figura 2.
Portanto, persistiam, sob novas formas, os mesmos processos de alienação,
apropriação e legitimação privilegiadas, que sempre caracterizaram todas as Políticas de
Terra e respectivas iniciativas de reorganização da estrutura fundiária brasileira postas
em prática desde o fracassado Regulamento de 1854. Este fenômeno ficou
objetivamente esclarecido pelos dados do Quadro 1.B .
Aliás, esse procedimento era facilitado, ao nível da formulação legislativa, no
âmbito do Estatuto da Terra, pelo construto de “empresa rural” que fora habilmente
formulado como oposto (ainda que apenas formalmente) ao de “latifúndio” (“por
dimensão” ou “por exploração”), por um lado, e ao de minifúndio, por outro. Este
procedimento permitia transformar, como num toque de mágica, “latifúndios por
dimensão” em “empresas” e minifúndios em “latifúndios por exploração”. Essa
tipologia, criada no Estatuto Terra e aparentemente coerente enquanto uma formulação
de critérios “técnicos”, na verdade, permitia tornar iguais cousas e, sobretudo,
realidades, profundamente diferentes, como o latifúndio e o minifúndio. Além de
permitir, o que é ainda mais relevante e grave, na medida em que se definia como
“causa” fundamental dos problemas rurais a persistência da dicotomia “latifúndio-
minifúndio”, a colocação de grandes propriedades especulativas e geralmente ilegítimas
e de pequenas explorações de subsistência, na mesma situação de “nocividade” em
relação ao desenvolvimento da agricultura brasileira. Inviabilizava-se, desta forma,
qualquer possibilidade de ação jurídica ou administrativa coerente neste âmbito.
E, ainda mais relevante, colocava o minifúndio apenas como parte do problema,
enquanto os latifúndios, se eficientemente incentivados, poderiam vir a se constituir em
empresas rurais eficientes e, desta forma, transformarem-se num dos suportes
fundamentais do processo de desenvolvimento rural. Este diagnóstico, tal como
realizado pelo Governo, por outro lado, oferecia aos defensores do latifúndio, a
possibilidade de justificarem política e economicamente, a sua existência, ainda que
calcada na ineficiência.
A necessidade de sua existência, neste sentido, seria justificada na medida em
que, por suposto, eles reuniam as condições potenciais, em termos de área, que, se
adequadamente apoiadas pelo Estado, poderiam sustentar o crescimento da produção
agropecuária e contribuir para o desenvolvimento nacional mediante a oferta de
produtos, tanto para o consumo interno quanto para a exportação, auxiliando, neste
sentido, a amenizar os problemas da “balança de pagamentos”, etc. Ou seja, tinham,
potencialmente, a possibilidade de dar respostas rápidas aos incentivos econômicos e as
oportunidades do mercado. Quanto à sua secular ineficiência, esta seria “explicada
técnica e cientificamente”, como resultado de determinadas conjunturas econômicas e
até mesmo edafo-climáticas, etc. Entretanto, sempre e sobretudo como resultado da falta
de incentivos por parte do Governo, sobretudo no que se referia à ausência de políticas
adequadas. Especialmente no que se referia à oferta de créditos, preços, subsídios, etc.

251
Neste contexto, não sendo, portanto, a ineficiência, uma característica intrínseca ao
latifúndio, mas produto da “insensibilidade” do Governo para com a necessidade de
implementação de políticas agrícolas. Desta forma, o latifúndio passava de “vilão”,
como aparentemente era conceituado na Mensagem 33, à vitima.
Estes argumentos, “teoricamente fundamentados” pelos “especialistas” em
desenvolvimento e economia rural do Governo, forneciam, na verdade os insumos e
instrumentos básicos para a defesa ideológica do latifúndio: a sua linha de
argumentação econômica fundamental. Estes argumentos serão os instrumentos e
recursos cada vez mais utilizados pelos grandes detentores de terras, ou seus
representantes no Legislativo e no Executivo, para exigir créditos subsidiados,
incentivos diversos e, até, para aplicarem calotes ao Banco do Brasil e às agências
públicas de desenvolvimento regional. Além, é claro, e acima de tudo, de servirem para
assegurar a defesa pura e simples da propriedade latifundiária, mesmo quando pouco
produtiva ou não-explorada, posto que a responsabilidade sempre caberia, a considerar-
se válidas estas teses, ou às “Políticas Agrícolas”, ou às “catástrofes naturais” ou, ainda,
até mesmo, à sazonalidade da “natureza” ou “da demanda”, etc.
Afinal, segundo o discurso do Governo, para que os latifúndios pudessem
cumprir esta tarefa e serem classificados como empresas, bastaria que preenchessem
certos requisitos “técnicos”, e, neste sentido, era suficiente que apresentassem Projetos
de aproveitamento agrícola para sua exploração aos Órgãos fundiários. Por esta mágica,
não apenas os latifúndios se transformavam em empresas mas, o que é ainda mais
relevante ao caso, passavam a ser beneficiários dos amplos incentivos fiscais e outros,
generosamente postos à sua disposição pelos Governos Militares. Tudo isso estava
claramente posto na Mensagem 33 e rigorosamente definido e regulamentado no
Estatuto da Terra508.
Neste contexto e sentido, não é de se estranhar que o próximo passo nesta
batalha para a consagração dos seculares privilégios do latifúndio, tenha sido a
estruturação e defesa de um novo construto, o de “latifúndio produtivo”, intentado,
quase que imediatamente após o final do ciclo militar, pelos grupos que se opunham à
realização efetiva de uma reforma agrária no País. Especialmente diante da perspectiva
de que fosse retomada a idéia da reforma agrária 509, com o sentido de democratizar o
acesso à propriedade rural e questionar a legitimidade dos latifúndios, na conjuntura
favorável, que então se criara, para estas teses, e que aparentava se consolidar após o
retorno do País à chamada “normalidade democrática”.
Entretanto, a simples análise dos dados acima já é suficiente para identificar o
sentido da política de terras posta em prática pelos governos militares no período. Esta
política estava, como se demonstrou no capítulo anterior, explicitamente colocada no
Projeto de Desenvolvimento Rural do Governo, e era minuciosamente regulamentada
no Estatuto da Terra. Por esta razão não se pode, em nenhum sentido, argüir que foi

508 Ver Mensagem 33 (BRASIL. Presidência da República. Brasília: 1964).


509 A análise desse fato, embora da maior relevância, situa-se para além do período definido para este estudo.

252
proposta uma reforma agrária avançada, no Estatuto da Terra, e outra, distinta, na sua
execução.
Neste sentido específico, as análises realizadas neste estudo, não deixam
nenhuma dúvida de que a “reforma agrária” incursa na Lei 4.504, de novembro de 1964,
foi, efetivamente, a que o governo implementou. O que fica, também, evidente neste
contexto, é que a proposta de desenvolvimento rural apresentada na Mensagem 33 e no
Estatuto da Terra jamais incluiu a proposição de uma reforma agrária distributivista e
democrática, especialmente se esta é entendida no sentido de beneficiar aos pequenos
posseiros ou aos agricultores sem terra ou com pouca terra, como foi analisado
amplamente no capítulo anterior.
O Projeto de Desenvolvimento Rural proposto e posto em prática pelo Regime
Militar, como se vem demonstrando, era, de fato, concentracionista, aliás, como o era o
próprio “Modelo” de desenvolvimento econômico: fundado na estruturação das
condições fundamentais e dos instrumentos básicos para a assegurar a reprodução
ampliada de capital, o que pressupunha a concentração e centralização de determinados
recursos econômicos. Sobretudo a concentração do capital e da terra. Isto implicava, o
arrocho salarial, a concentração de renda, dos meios de produção e, evidentemente,
também da propriedade fundiária510. Octávio Ianni resume de forma objetiva esse
fenômeno nos seguintes termos:
“Durante os anos 1964-78, o Estado Brasileiro foi levado a realizar
uma política econômica razoavelmente agressiva e sistemática de
subordinação da agricultura ao capital. Nesses anos, o processo
de subordinação da agricultura à indústria, do campo à cidade,
entrou em uma fase mais intensa e generalizada do que em
ocasiões anteriores de tempo recente. As medidas
governamentais adotadas propiciaram a aceleração e a
generalização do desenvolvimento intensivo e extensivo do
capitalismo no campo. Nas atividades em que já se havia
organizado uma agricultura capitalista, como na cana de açúcar,
por exemplo, o poder estatal foi levado a apoiar ou induzir a
concentração e a centralização do capital, juntamente com a
maquinização e a quimificação do processo produtivo. Nas
atividades em que eram escassas, dispersas ou inexistentes as
organizações capitalistas de produção, como na pecuária rústica
da Amazônia, por exemplo, o poder estatal foi levado a induzir,
incentivar ou apoiar tanto a constituição de empreendimentos
capitalistas como a concentração e a centralização do capital. Por
um lado, principalmente nas atividades agrícolas localizadas no
Centro-Sul, o Estado foi levado a favorecer o desenvolvimento
intensivo do capitalismo. Por outro lado, como nas terras-do-sem-
fim, devolutas, tribais ou ocupadas na Amazônia, o Estado foi
levado a favorecer o desenvolvimento extensivo do capitalismo.
Nos dois casos, isto é, nos dois extremos, a atuação do poder
estatal desempenhou-se e desempenha-se de modo

510 Ver especificamente a respeito do Modelo Econômico e de desenvolvimento do período, TAVARES (1983),
BRESSER PEREIRA (1985); DELGADO (1985), entre outros.

253
particularmente agressivo e repressivo, em termos econômicos e
políticos511.”

3. Reconcentração Fundiária e População: Uma Face da Excludência


Uma das conseqüências do processo de reconcentração fundiária e que denuncia,
objetivamente, o efeito perverso - e inverso ao proclamado na Mensagem 33, a respeito
da promoção da “justiça social no campo” - pode ser, ainda que de forma indireta,
depreendido da análise da variação das populações rural e urbana no período.
Quadro 2.A - População Rural e Urbana: Brasil e Grandes Regiões 1960 - 1880
(Percentuais)

ESPECIFICAÇÕES 1960 1970 1980

Brasil e Regiões Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana


1. Brasil 55,3 44,7 44,0 56,0 32,4 67,6
2. Norte 62,6 37,4 55,0 45,0 48,4 51,6
3. Nordeste 66,1 33,9 58,2 41,8 49,5 50,5
4. Sudeste 43,0 57,0 27,3 72,7 17,2 82,8
5. Sul 62,9 37,1 55,7 44,3 37,6 62,4
6. Centro Oeste 65,8 34,2 52,0 48,0 32,2 67,8
FONTE: FIBGE - Anuário Estatístico (1984), com dados agrupados e correspondentes percentagens
calculados por JONES (1987).

O Quadro 2.A, acima, evidencia que, ao nível agregado do País, a população


rural caiu, entre 1960 e 1980, de 55,3% para 32,4%, enquanto a urbana cresceu,
inversamente, na mesma proporção. Observa-se, por outro lado, que, em todas as
regiões, indistintamente, há uma queda relevante da população rural em relação a
urbana. Parece óbvio que não se pode explicar esse fenômeno, apenas, afirmando que o
mesmo reflete um comportamento “normal” e inerente, ao “processo de
desenvolvimento econômico”. Primeiro, porque é necessário especificar qual o caráter e
de que tipo de desenvolvimento se trata. Portanto, de qualificá-lo. Segundo, e mais
importante, porque este comportamento, no caso do Brasil, é comum a regiões
profundamente distintas no que se refere aos níveis de desenvolvimento como, por
exemplo, as Regiões Sudeste, Norte e Centro Oeste.
Fugiria aos objetivos deste estudo a análise das causas mais profundas dessas
flutuações da população rural e urbana. Entretanto, é interessante observar suas
relações, paralelamente aos movimentos de concentração da propriedade rural, nas
diferentes regiões do país. Uma observação, ainda que genérica a este respeito, parece
indicar que nas regiões onde a apropriação de áreas novas deu-se de forma mais
concentrada, privilegiando grandes propriedades, como por exemplo, a Região Centro-
Oeste, é mais acentuada a queda da população rural e mais exacerbado o crescimento da

511 IANNI (1979(a), pp.,16-17). Grifos nossos.

254
população urbana512. No caso desta Região o fenômeno do extremo crescimento da
população urbana, por exemplo, parece indicar que o mesmo se deveu, por um lado, à
imigração em larga escala de habitantes de outras regiões e, por outro lado, à expulsão
de boa parte da população rural desta região em face da extrema concentração da
propriedade, como se observou no item anterior.
É verdade que esse fenômeno está associado, fundamental e genericamente, ao
processo de desenvolvimento econômico do País, que amplia a demanda efetiva por
novas áreas, em face da necessidade de expansão do processo produtivo, como também,
especulativo, face a valorização das terras. Entretanto, não se limita apenas a isto.
O fenômeno de incorporação de novas áreas, a menos que se tratem de terras
livres e desocupadas, mas, sobretudo, quando essa incorporação é feita de forma
especulativa, implica necessariamente processos de expropriação que, em última
análise, podem representar redução significativa da população rural. Por outro lado,
inversamente, a incorporação produtiva de novas áreas agrícolas tende a aumentar, em
números absolutos - embora possa implicar, em determinadas condições, reduções em
termos relativos - a população trabalhadora rural.
No caso do Brasil pós-64, a expropriação e expulsão de trabalhadores rurais de
suas posses foi mais do que proporcional à incorporação de “novos” trabalhadores ao
processo produtivo, em face da privatização das terras, tal como promovida pelo
Governo. Isso significa, certamente, que estas terras permaneceram inaproveitadas,
improdutivas ou, apenas extensivamente exploradas. Ou seja, tratou-se de um processo
de privatização privilegiada e de caráter amplamente especulativo. Neste caso, negando
o discurso da Política Fundiária do Governo: tanto o de promover a ocupação produtiva
da terra513, quanto no que se referia ao acesso à propriedade pala massa dos pequenos
posseiros e arrendatários e a reinstalação de outros trabalhadores expropriados. É neste
sentido que o dignóstico exposto na Mensagem 33 pode ser interpretado como uma
espécie de justificativa ideológica do “Golpe no Campo514”, portanto como simples
“pretexto” para as iniciativas no âmbito da alienação privilegiada de terras devolutas e
da “grilagem especializada”.
Entretanto, não se pode atribuir este fenômeno demográfico, exceto em situações
e regiões específicas, como, possivelmente, o Sudeste, à excludência social de
trabalhadores que se tornaram supérfluos, em resultado do aumento da produtividade do
trabalho em determinados ramos da economia rural. Menos ainda, quando a
excludência se referiu aos trabalhadores empregados na produção imediata na

512 É verdade que a transferência do Distrito Federal é um dado relevante a ser considerado neste contexto.
Entretanto este dado é parte do mesmo fenômeno, não podendo ser dele separado. Ver Quadro 2.B adiante. Para uma
visualização dos resultados dessas relações entre área total privatizada, área utilizada e população rural e urbana, ver
a Figura 5 (vide conclusões)
513 Para uma visualização da variação percentual da área utilizada por atividade agroprcuária e florestal, ver a Figura
3.
514 Expressão utilizada por Carlos Minc. Op. cit.

255
agricultura. Ou seja, embora, por um lado, seja verdadeira a asserção de que o aumento
da produtividade do trabalho agrícola gere certo nível de desemprego, de população
rural excedente em relação às necessidades de mão-de-obra na produção imediata; por
outro lado, este processo apenas opera a ampliação, em escala crescente, desta
excludência, em relação à população trabalhadora já expropriada de seus meios de
existência e produção. Ou seja, da terra e dos instrumentos de trabalho. Ambos os
fenômenos geram e ampliam a excludência social e a expulsão do trabalhadores em
relação ao processo de produção imediata.
Isso não quer significar que esta situação específica de excludência social da
força de trabalho não ocorra na agricultura, e menos ainda, que este processo não seja
relevante. Significa, contrariamente, que no caso específico da maioria das regiões do
país, a excludência social observada é muito mais produto da expropriação territorial do
que da incorporação do progresso técnico e do aumento da produtividade do trabalho na
agricultura. Essa afirmação ficará mais reforçada ao se analisar a taxa de utilização das
terras agrícolas, adiante.
Feitas estas ressalvas, pode-se afirmar que os dados demográficos referentes ao
comportamento das populações rurais nas Regiões Sul e, em particular, na Sudeste,
podem sugerir, quando associados à dinâmica das áreas dos estabelecimentos e à
relevância dos processos produtivos e sua vinculação mercantil, que, nestas regiões,
parcela significativa da redução das populações rurais pode estar associada à
intensificação dos processos de produção, que igualmente, acompanharam a
reconcentração das propriedades, como se estudou no item anterior. Sem excluir,
evidentemente, a simples expropriação de pequenos posseiros, proprietários e indígenas
pela via especulativa e ilegal, próprias dos métodos da grilagem especializada e da
“acumulação originária”, se se quiser utilizar esta categoria analítica desenvolvida por
Marx.
Esta situação é especialmente significativa para a Região Sudeste. Por outro
lado, no que toca à Região Sul, outros estudos515 chamaram a atenção para a relevância,
associada a esses processos, do deslocamento de contingentes de pequenos produtores
para as regiões de “fronteira”, particularmente para a Amazônia e Centro-Oeste.
Quer dizer, o deslocamento de contingentes de pequenos produtores para estas
áreas novas de ocupação e colonização, fizeram com que, neste período, o Governo se
utilizasse da Política Fundiária com o objetivo, também, de possibilitar a liberação de
terras em determinadas regiões, como o caso da região Sul e Sudeste. Tratavam-se de
regiões que passavam a exigir, na opinião dos especialistas do Governo 516, a ampliação
da área das propriedades para torná-las economicamente eficientes, sob pena de se criar
entraves ao desenvolvimento do setor agrícola.

515 Por exemplo, IANNI (1979), TAVARES DOS SANTOS (1993), VELHO (1979 e 1981) .
516 E de empresários e especuladores imobiliários, como fica claro no depoimento de João C de Souza Meireles.

256
É neste contexto que o conceito de “minifúndio”, como uma situação impossível
de ser mantida, evidencia toda a sua exuberância de uma argumentação, aparentemente,
fundamentada na teoria econômica, mas que, na prática, correspondia muito mais a uma
justificativa ideológica para a implementação do processo de reconcentração fundiária
pretendida.
É neste sentido e contexto que se enuncia, claramente, o depoimento de João
Carlos de Souza Meireles, Presidente da Associação de Empresários da Amazônia, à
Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário, ao afirmar que:

“...é assim que verificamos que no Rio Grande do Sul o problema


do minifúndio passa a ser um dos mais graves problemas daquele
Estado. No Vale do Rio Uruguai, tanto no Rio Grande quanto em
Santa Catarina, existem municípios onde a propriedade média
não tem dimensão superior a 2,5 hectares, ou seja, um
alqueirinho [paulista] ou meio alqueire goiano; não tem
dimensões, portanto, para fazer sobreviver a uma família. Os
estudos da Secretaria de Agricultura e das Cooperativas do Rio
Grande do Sul demonstram que no Vale do Rio Uruguai a
dimensão econômica para uma propriedade deveria ser de 45
hectares. Portanto, para cada 18 agricultores daquelas regiões
de 2,5 hectares, 17 deveriam ser deslocados para novas
fronteiras, e como lá, como no Paraná, como em Santa Catarina
e São Paulo, e como já começa a acontecer no Sul do Mato
Grosso, a alternativa, se não for aberta uma nova fronteira,
que significa a Amazônia, vai ser o incorporar-se desse
patrimônio da Nação, que é a capacidade de trabalho desse
agricultor, que é o seu conhecimento efetivo no trato da terra, à
comunidade dos marginais urbanos que, tendo a vida inteira sido
treinado para a lavoura da terra, passa a ser o homem que vai à
cidade à busca de alguma coisa que não sabe fazer e não tem
prática para fazer517”.

Observe-se que este discurso do Presidente da Associação de Empresários da


Amazônia, que anteriormente fôra político militante em São Paulo, retomava
exatamente o argumento do INCRA em defesa da Colonização Dirigida. Na verdade
estava defendendo, não apenas a abertura das fronteiras, mas, provavelmente, a
aquisição das terras a que se referira, na mesma CPI, o Bispo do Acre e Purus,
destinadas ao desenvolvimento de Projetos de “Colonização Particular”, que era um
excelente negócio para as companhias privadas de “colonização”.
Pelo depoimento acima fica evidente a “estratégia” de ocupação das
“fronteiras”, tal como proposta e posta em prática pelos Governos Militares e
coerentemente articulada com a sua Política Fundiária. Tratava-se, não apenas de
possibilitar a expansão do capital em condições vantajosas para as regiões de
“desbravamento”, ou pioneiras; mas, sobretudo, e paralelamente, significava também

517 Depoimento prestado à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário (CÂMARA DOS
DEPUTADOS (1979, p.48); grifos nossos.

257
uma forma de possibilitar a intensificação da produção em escala cada vez maior e mais
profunda nas regiões de ocupação antiga como o caso das regiões Sudeste e Sul. Nesse
sentido, o avanço extensivo do capital nas regiões de “fronteira econômica” funcionava
como “motor complementar de acumulação” ao nível do país518. Neste contexto é
interessante registrar a referência ao “Sul do Mato Grosso”, atual Mato Grosso do Sul,
típica região de expansão da “fronteira econômica” recente, na época, e que, segundo
este depoimento, já se encontrava saturada e exigindo a “abertura de nova fronteira que
seria a Amazônia”.
De qualquer maneira, não se poderá estender o raciocínio acima, referente aos
casos das Regiões Sul e Sudeste, generalizando-o para as demais regiões do país,
particularmente as Norte e Centro Oeste. Nestas, o que parece ter acontecido foi o
avanço extensivo do capitalismo, aproveitando-se, sobretudo, das amplas vantagens,
subsídios e privilégios colocados à sua disposição pelo Estado. Antes de todas, as
relativas ao acesso fácil e quase, quando não gratuito, mas sempre privilegiado, à
propriedade de vastas áreas pelo interior do País. Facilidade esta, aliás, que uma vez
materializada, abria as portas dos cofres públicos a toda a sorte de subsídios e
privilégios. Esta parece ser a conclusão a que chegaram alguns importantes
pesquisadores desta questão, no período, tais como Foweraker519, Ianni520, Bresser
Pereira521, entre muitos outros.
É interessante notar como as maiores reduções observadas em relação à
população rural encontram-se nas Regiões Sudeste e Sul, exatamente as regiões do país
nas quais a agricultura mercantil é mais desenvolvida e integrada e nas quais a
emigração, especialmente na região Sul, foi fortemente induzida no período522. Nestas
regiões, a população rural registrou uma redução, respectivamente, de 32,5% e 3,2%, no
período. Estes dados encontram-se no Quadro 2.B. No caso da Região Sudeste, a
significativa queda da população rural provavelmente está associada, além do processo
anotado de reconcentração da propriedade, ao desenvolvimento da produtividade do
trabalho na agricultura, fortemente sustentado pela incorporação de inovações técnicas
ao processo de produção.
Quadro 2.B - População Rural e Urbana: Taxas Percentuais de Incremento, Brasil
e Grandes Regiões, 1960 -1980

ESPEC IFICAÇÕES Total Rural Urbana


1. B r a s i l 69,8 (-0,5) 157,0

518 JONES (op. cit.).


519 Op. cit.
520 Op. cit.
521 BRESSER PEREIRA (1985).
522 Ver a este respeito, especialmente os trabalhos de TAVARES DOS SANTOS (1993 e 1995) e IANNI (1979,
1979(a) 1981 e 1984).

258
2. N o r t e 129,5 77,2 217,1
3. N o r d e s t e 57,0 17,6 133,7
4. S u d e s t e 68,9 (-32,5) 145,3
5. S u l 61,9 (-3,2) 172,4
6. C e n t r o - O e s t e 156.4 25,5 407,7

Fonte: FIBGE - Censos Demográficos 1960 e 1980

Parece evidente que não se pode atribuir essas extremas variações da população
ao fato de as pessoas terem “decidido” mudar de região ou de atividade; ou, ainda, que
tenham sido “atraídas pelas luzes das cidades”. Nem, simplesmente, pode-se atribuir
este fenômeno, de maneira simplista ou linear às transformações internas aos processos
de produção imediata. Embora estas transformações sejam uma das variáveis que
acelera o processo, ao gestar, em escala crescente, um excedente de população em
relação à demanda efetiva por força de trabalho na produção imediata523.
É, por outro lado, necessário associar esses dados com os fatos concretos que
subjazem a eles e que podem ser levantados em diversas fontes: estatísticas econômicas
e demográficas, imprensa, pesquisas especializadas, etc. No caso do Brasil, a própria
existência, cada vez mais acentuada por pesquisas e noticiada pela imprensa, dos níveis
de pobreza, da concentração da renda e da propriedade, assim como do desemprego, do
subemprego e da criminalidade nas grandes cidades, são evidências de que essas
pessoas não “emigraram” apenas porque resolveram mudar de vida. Na prática, o que
ocorre é o contrário, elas migram porque mudaram de vida: foram transformadas em
“população excedente”, em elementos excluídos da cidadania e da sociedade
estabelecida.
Afinal, fica realmente muito difícil explicar como, “voluntariamente”, essas
pessoas resolveram tornar-se proletários, bóias-frias, desempregados, mendigos,
marginais urbanos, “meliantes”... presidiários.
Essa busca de “melhores condições de vida” na cidade, como a aparência dos
fatos leva a crer, é, ela mesma, uma forma de ilusão que se cria para o homem
expropriado ou em vias de expropriação, sobretudo através dos mecanismos de
manipulação da opinião pública. É relevante, neste sentido, lembrar a imensa
publicidade acerca das “vantagens existentes nas zonas de colonização” das regiões
Centro Oeste e Norte, amplamente divulgadas entre pequenos produtores e sitiantes,
muito particularmente nas Regiões Sul e Sudeste524, tanto pelos órgãos fundiários do
Governo quanto por cooperativas e companhias de colonização, etc; com o objetivo

523 Seria de interesse ver, a este respeito, os argumentos desenvolvidos por Marx no capítulo XXIII, especialmente,
seções 3 e 4, paginas 730-752. (MARX, 1975).
524 Ver a este respeito IANNI (1979), TAVARES DOS SANTOS (1994), JONES (1987).

259
claro de seduzir525 os pequenos produtores a alienar seus sítios e emigrarem para as
áreas onde eram executados os Projetos de Colonização.
Na verdade, há de pelo menos suspeitar-se, ao intentar uma análise dessas
questões, de que as mesmas não possuem existência independente dos demais processos
de reprodução econômico-social. Assim, basta uma rápida confrontação entre os dados
demográficos e os referentes à concentração fundiária526, para se concluir que
apresentam relações “demais” para não estarem articulados.
Uma informação complementar a esse respeito pode ser retirada da variação das
populações urbanas. Pela análise dos dados do Quadro 2.B pode-se observar que as
taxas de incremento da população urbana foram elevadas em todas as regiões, mas
especialmente nas chamadas regiões de fronteira, nas quais a apropriação ou
legitimação de posses sobre áreas novas foram mais relevantes. São os casos da Região
Centro-Oeste, com um incremento de 407% e da Região Norte, com 217%.
As altas taxas de incremento da população urbana nessas regiões devem,
provavelmente, ser atribuídas, para além do grande fluxo migratório, oriundo de outras
regiões, ao próprio “êxodo rural” intrarregional, provocado, este, pelos processos de
reconcentração da propriedade sobre “áreas novas”, promovida pela alienação de
grandes áreas, por suposto devolutas e livres, mas que, na verdade, abrigavam uma
imensidão de pequenos posseiros que, assim, foram empurrados para os centros
urbanos.
Observa-se, pelo mesmo Quadro, que as Regiões Sudeste, Sul e Nordeste
apresentaram, igualmente, alta taxa de crescimento da população urbana. No que se
refere à Região Sudeste, essa taxa deve-se, em boa parte, às migrações interregionais,
fenômeno largamente conhecido. E o qual parece, igualmente, estar acrescido pelo
êxodo rural da própria região provocado tanto pela intensificação da agricultura, e pelo
desenvolvimento da escala de produção na agropecuária, como, também, pela
reconcentração da estrutura agrária.
No que se refere à Região Sul, embora os dados acima não permitam avançar
maiores detalhes, o fenômeno urbano parece ser devido, por um lado, à reconcentração
fundiária intraregional, ao passo que na Região Nordeste, a esses fenômenos de
reconcentração estão, possivelmente, associados tanto a manutenção dos altos padrões
de concentração, como a transformações no processo de produção, que foram acrescidos
às conhecidas dificuldades edafoclimáticas, sobretudo provocadas pelas secas. A taxa de
redução na população rural (de -3,2%) é relativamente alta na comparação com o
Sudeste, dada a, ali e ainda em 1970, elevada proporção de população rural sobre o
conjunto da população (55,7%, se comparada a 27,3% no Sudeste).

525 Ver a respeito destes processos de “manipulação da opinião pública” os excelentes trabalhos de Hernry Lefebvre
e Norbert Guterman, La Conscience Mistifiee (LEFEBVRE & GUTERMAN, 1979) e La Presencia y la
Ausência - Contribucion a la Teoria de las Representaciones (LEFEBVRE, 1983).
526 Ver a figura 5. Comparar esta com as figuras 1, 2, 3 e 4.

260
Essas informações, como se afirmou acima, têm apenas o caráter complementar,
no sentido de lançar mais alguma luz sobre o fato central em questão. Neste trabalho
não caberia a análise pormenorizada das causas mais específicas e profundas dos
movimentos demográficos, posto que tal fugiria aos objetivos deste trabalho.

4. Destinação e Utilização das Terras: Caráter Parasitário da Privatização

Se a análise do volume físico das terras privatizadas neste período indica que
persistiu a tendência, historicamente conhecida, à manutenção e agravamento do
elevado padrão de concentração da propriedade fundiária e da estrutura agrária, o estudo
das variações entre as populações rurais e urbanas indicaram, ainda que genericamente,
que àquela concentração corresponderam determinados padrões de distribuição regional
entre populações rurais e urbanas, a destinação efetivamente dada às terras daquela
forma apropriadas ou privatizadas pode oferecer a possibilidade de se captar o caráter,
sentido e objetivos da Política de Terras e de Desenvolvimento Rural postas em prática
pelos Governos Militares.
Mais uma vez, cabe chamar a atenção para o fato de que a análise da variável
“Utilização e Destinação das Terras” (Quadro 3) é realizada, neste item, apenas com a
intenção de levantar algumas indicações gerais a respeito de possíveis relações entre
estes fenômenos, e em nenhum momento tem o objetivo de testar hipóteses ou relações
que efetivamente existam entre eles. Este estudo mais aprofundado - embora relevante -
fugiria aos propósitos específicos deste trabalho.
Feitas estas ressalvas, a análise da destinação e utilização das terras tomou como
indicadores, os dados gerais constantes dos Censos Agropecuários para os anos de
1960, 1970 e 1980, referentes a, por um lado: áreas total, utilizada, produtiva mas não-
utilizada e improdutiva, por um lado; e por outro lado, os dados referentes ao
detalhamento da área utilizada por tipo de exploração: lavouras, pastagens naturais e
plantadas, matas naturais e plantadas e florestas. Esses dados constam do Quadro 3,
adiante:

261
QUADRO 3 - Utilização e Destinação das Terras: Brasil e Regiões: 1960 - 1980
(Percentuais)

Brasil e Área Produtiva Não Lavouras Patagem: Patagem Pastagem Matas Matas
Regiões Utilizada Utilizada Perm./Temp. Total Natural Cultivada Naturais Plantadas

Brasil
1960 83.0 11.7 12.0 46.8 s/r s/r 24.1 s/r
1970 83.6 11.4 11.5 52.4 80.7 19.3 19.1 0.6
1980 85.4 9.2 13.4 47.8 65.3 34.7 22.8 1.4
Norte
1960 84.3 12.8 1.8 9.5 s/r s/r 73.0 s/r
1970 81.8 14.8 2.6 19.2 85.6 14.4 59.8 0.2
1980 86.0 9.7 4.2 18.6 51.2 48.8 62.7 0.5
Nordeste
1960 72.7 20.0 13.8 34.5 s/r s/r 24.4 s/r
1970 73.7 20.6 14.0 37.5 79.4 20.6 22.1 0.1
1980 77.0 18.3 16.0 38.6 69.7 30.3 22.2 0.2
Sudeste
1960 87.5 7.2 15.6 59.6 s/r s/r 12.3 s/r
1970 89.1 5.6 13.8 64.4 76.2 23.8 9.6 1.3
1980 90.3 4.0 16.4 59.3 63.0 37.0 11.0 3.6
Sul
1960 86.0 10.5 20.9 46.7 s/r s/r 18.4
1970 85.6 10.0 24.2 47.5 83.2 16.8 12.5 1.3
1980 88.3 5.8 30.4 44.5 73.6 26.4 10.4 3.0
Cent.-Oeste
1960 89.2 6.5 2.2 69.8 s/r s/r 17.2 s/r
1970 87.5 7.7 2.9 68.0 83.6 16.4 16.6 0.0
1980 87.4 6.6 5.7 59.6 63.6 36.4 21.6 0.5

Fonte: Dados da Pesquisa.

A figura 3 - “Área utilizada por tipo de exploração” - e a Figura 4 - “Variação


da área utilizada - oferecem uma melhor visualização do caráter parasitário que subjaz
aos processos de apropriação privada das terras neste período.

262
Dado o caráter e propósitos da análise acerca do problema em estudo, não se
julgou necessário descer a pormenores em termos de especificação do processo
produtivo, mesmo porque as estatísticas, ao nível agregado, além de serem incompletas
para o período, não contribuiriam de forma relevante para a elucidação dos objetivos
estabelecidos. Por outro lado, os dados e as evidências que foram trabalhados durante o
processo de pesquisa mostraram-se suficientes para a elucidação da hipótese básica de
trabalho e objetivos propostos.
Neste item realiza-se a análise da destinação (produtiva ou especulativa) que, em
última análise, foi dada às terras. Quando se estudou, acima, a dimensão física das áreas
novas apropriadas, pôde-se ter uma visão dos rumos gerais do processo. A análise da
variação da destinação dada às terras no período 1960 a 1980 possibilita a compreensão
do caráter efetivamente assumido pelo mesmo. A unidade destas duas dimensões
oferece as condições necessárias à interpretação do processo de privatização de terras,
tal como posto em prática pelo Governo e suas respectivas articulações no bojo do seu
Projeto de Desenvolvimento Rural.
O Quadro 3, oferece uma visão de conjunto dos padrões de utilização das terras
no período, para o País e pelas diferentes Regiões, com algum detalhamento para os
tipos de exploração527.
Analisando-se a coluna referente às terras declaradas como utilizadas, verifica-se
que o padrão de utilização das mesmas permanece virtualmente constante em todo o
período528, tanto para o conjunto do país, como para todas as regiões, exclusive a
Centro-Oeste, onde este padrão cai, ligeiramente, de 89,2% para 87,4%. Essa queda é,
aparentemente, irrelevante, mas se se considerar que esta Região representou a
incorporação de 46% de todo o incremento de área do país, pode-se imaginar o
significado deste dado. Esses problemas serão melhor elucidados adiante. De qualquer
maneira, pode-se perceber que o conceito de “terra utilizada” é de caráter declaratório.
Ou seja, ao responderem ao Censo, os proprietários declaram como utilizadas as terras
indistintamente destinadas a explorações efetivas, assim como as terras simplesmente
“aproveitadas” de forma extensiva, como as pastagens e matas naturais.
Independentemente de qualquer avaliação subjetiva deste fato, ele efetivamente distorce
a realidade no que diz respeito à utilização efetivamente produtiva da terra apropriada.
Feitas estas observações, o que se pode depreender, em linhas gerais, pela
análise dos dados do Quadro 3 é que a variação do padrão de aproveitamento ou
utilização das terras, apesar da ampliação da área apropriada no período ficar em torno
de 46%, como se verificou acima, é estatisticamente pouco significativa, nunca
ultrapassando o valor dos 5%. Por outro lado, esse dado é ainda muito geral e oferece
uma idéia incompleta do quadro efetivamente assumido pelo processo de utilização
produtiva das terras no País e nas diferentes regiões. Uma noção um pouco mais

527 Para uma visualização desse fenômeno, ver a figuras 3 adiante.


528 Ver a figura 4.

263
esclarecedora, entretanto, pode ser conseguida ao se analisar este dado desagregando-o
por tipos de exploração ou destinação (ver Quadro 3 e fig. 3).
Procedendo desta maneira, percebe-se que o volume significativo das terras em
propriedade particular, no período, destinou-se, sobretudo, às pastagens naturais (isto é,
à pecuária extensiva) e à exploração de florestas e matas naturais (isto é, extrativismo
vegetal), sendo que as áreas destinadas à lavouras (incluindo permanentes e
temporárias) permaneceram, em todo o período, efetivamente em segundo plano ( por
exemplo, em relação ao País como um todo, variando, entre os anos de 1960 a 1980,
entre 12 a 13,4% da área utilizada) o que, efetivamente, reflete um padrão de utilização
irrelevante, sobretudo se se tiver em consideração a dimensão da área incorporada, entre
1960 e 1980 à propriedade privada. Esse dado torna-se ainda mais dramático pelo fato
de ser padrão generalizado em todas as regiões do País.
Para o conjunto do País, observa-se que a utilização das terras, ainda que
sobreestimada nas declarações, como se observou acima, apresentou os seguintes
resultados:
No ano de 1960 registrou-se que apenas 12,0% das terras em propriedade
particular foram destinadas à plantação de lavouras, incluindo temporárias e
permanentes. Por outro lado, 46,8% da área, portanto, quase metade, foram destinadas à
pastagens, incluindo pastos naturais que, para este ano, os dados censitários não fizeram
distinção com relação às pastagens plantadas, o que apenas acontecerá a partir do Censo
Agropecuário de 1970. A exploração de matas naturais representou 24,1% de toda a
utilização de terras para o país, isto é, incorporando, indistintamente, as diferentes
regiões. Estes dados não deixam dúvida a respeito do padrão de utilização das terras em
seu sentido mais geral: abstraindo-se dos 11,7% ocupados com as lavouras, pode-se
afirmar que a exploração da terra é realizada, sobretudo, extensivamente, pela
exploração de pastos e matas naturais.
Os dados referentes ao ano de 1970 não indicam nenhuma mudança relevante
neste padrão de utilização que se mantém, virtual e praticamente o mesmo. A área
produtiva e não-utilizada, que em 1960 situava-se em torno de 11,7% permanece neste
patamar (11,4%). Por outro lado, e contraditoriamente à expansão das áreas apropriadas,
as terras utilizadas para as lavouras caem meio ponto percentual (para 11,5%) em
relação ao censo anterior, o que é um dado significativo se se considerar a expansão de
área referida. As terras destinadas às pastagens, isto é, à pecuária, sobem ligeiramente,
de 46,8% em 1960, para 52,4% em 1970; entretanto, 80,7% da pecuária é feita em
pastos naturais (a chamada “ocupação de fronteiras pela pata do boi”), e apenas 19,3%
é destinada a áreas plantadas. A exploração de matas e florestas cai de 24,1% para
19,1%, o que denota o avanço do desmatamento para formação de pastagens extensivas,
sendo que apenas 0,6% são indicados como destinados à exploração de matas e florestas
cultivadas.
Finalmente, em 1980, as áreas destinadas a lavouras passam para 13,4%, o que é
um incremento absolutamente irrelevante para o período se se considerar a expansão,

264
em torno de 46%, da área apropriada, o que, efetivamente indica que esse processo de
privatização de terras, realizado sob forte estímulo estatal, como se viu acima, não
implicou, efetivamente, uma ocupação verdadeiramente produtiva e, menos ainda, a
implantação de lavouras.
Por outro lado, as pastagens, surpreendentemente, regrediram em relação à
década anterior, em termos de áreas, caindo de 52,4 para 47,8%, retornando,
praticamente, aos níveis de 1960, embora a área de pastos plantados tenha aumentado
em 15,4% em relação a 1970, passando para a casa dos 34,7%, o que, ainda assim, deixa
claro que, da mesma forma que na agricultura, a expansão das pastagens ficou muito
aquém do que seria de se esperar, tendo-se em consideração a incorporação de áreas
novas, especialmente nas Regiões Centro-Oeste e Norte.
Nestas Regiões, as alienações e “concessões” de imensas áreas de terras
devolutas, eram justificadas sobretudo à base de Projetos agropecuários que, por
suposto, exigiam grandes áreas529. Este dado deixa evidente de que essas apropriações
não tinham nenhuma pretensão efetivamente produtiva, ainda que simplesmente
extensiva - como a alegada pela chamada “ocupação pela pata do boi”: Destinou-se,
sobretudo à especulação. Tratou-se, de fato de apropriação privilegiada530: Além das
terras, permitiu, a estas camadas privilegiadas, beneficiarem-se - na medida em que a
alienação ou legitimação de grandes áreas era incentivada, exigindo apenas a
apresentação de Projetos Agropecuários aos Órgãos Fundiários - de vultosos recursos,
tanto via incentivos fiscais, mas sobretudo, pelo financiamento de projetos a créditos
fartos e subsidiados.
As áreas de empreendimentos florestais permaneceram sobretudo na forma de
exploração de matas naturais (22,8%), apenas 1,4% destes empreendimentos sendo feito
em “matas plantadas”; o que oferece uma noção precisa do avanço do desmatamento,
sobretudo na Amazônia, para a extração pura e simples de madeiras nobres, muito mais
que para a implantação de pastagens ou da pecuária extensiva, como se alegava, apesar
da nocividade social e econômica igualmente representada por este tipo de “pecuária
rústica”, como bem a denominou Octávio Ianni531.
Esses dados indicam, seguramente, que a agropecuária brasileira, apesar da
elevada expansão de sua área física e da sua concentração em grandes propriedades, no
período, caracterizou-se fundamentalmente, pela implementação de explorações
extensivas, especialmente nas zonas “incentivadas” pelo Governo (como Amazônia
Legal532 e Centro-Oeste). Ou se destinaram as terras à pura e simples exploração de
recursos naturais e à especulação usurária com os custos não apenas sociais, mas
igualmente econômicos, até aqui indicados: tanto em termos de “excludência social”
dos pequenos posseiros e indígenas, quanto de prejuízo aos cofres públicos, pelos

529 Ver os argumentos de Paulo Yokota, em YOKOTA, loc.cit.).


530 Ver a respeito de detalhes desta problemática, DELGADO (op. cit.) e JONES (op. cit.).
531 IANNI (1979(a)).
532 Que incorporava parte das Regiões Nordeste e Centro-Oeste.

265
vultosos recursos que, por suposto, eram utilizados nos Projetos de Desenvolvimento
Agropecuário, sempre apresentados pelas “empresas” rurais sem retornos sociais ou
econômicos palpáveis. Se estes Projetos tivessem, de fato, sido implementados, ainda
que em mínima realização, a taxa de utilização produtiva da terra, especialmente nas
regiões incentivadas, como na Amazônia Legal e Centro-Oeste, seria certamente muito
mais elevada, assim como teria crescido a oferta de alimentos e matérias-primas, como
sempre se buscava justificar o gasto público e as transferências de propriedade estatal
nos respectivos projetos533.
Esta é a dimensão fundamental que pode definir o caráter do processo de
ocupação das áreas novas e de sua privatização, pelo Estado, neste período: tratou-se da
alienação de grandes áreas de propriedade estatal que, no fundamental, vieram a
transfigurar-se tão só em “pequenas explorações” - dada a insignificância do capital
produtivo investido - e, portanto, permanecendo com o caráter de latifúndio. Este fato
tem levado muitos estudiosos do assunto a afirmar que esta ocupação caracteriza-se pela
apropriação da terra como “reserva de valor534”. Este conceito, inclusive, acha-se, pelo
menos aparentemente, embutido no conceito legal de “latifúndio por exploração535” que
relaciona a área do imóvel rural à área efetivamente explorada ou passível de
exploração econômica, o que, em última análise, significa classificar os imóveis pelo
seu padrão de exploração. Infelizmente, este conceito, como foi visto, permite também o
contrário, transformar pequenas áreas em latifúndios e, desta forma contribui mais para
obscurecer que para esclarecer o problema.
O Estatuto da Terra define como latifúndios por exploração os imóveis que,
mesmo situando-se em termos físicos, dentro dos limites de 600 módulos fiscais ou
familiares, não têm realizada a exploração efetiva de suas áreas, as quais se mantêm
improdutivas, “com fins especulativos ou de exploração deficiente ou inadequada”
(INCRA, 1984). Não fora o adjetivo “inadequada” utilizado pela legislação em vigor e
pelo INCRA, e que se presta a interpretações dúbias, os dados do Quadro 3 acima
permitiriam classificar a quase totalidade dos estabelecimentos rurais brasileiros,
independentemente das regiões nas quais se situam, como latifúndios “por dimensão” e
sobretudo “por exploração”. Esses fatos fornecem a outra perspectiva para a análise do
processo de apropriação e privatização das terras devolutas neste período: tratou-se de
um processo de privatização de terras públicas ou irregularmente ocupadas, não
necessariamente voltada para a utilização efetiva ou produtiva das terras, uma vez que a
maior parte das mesmas, em todas as regiões, quase que indistintamente, destinaram-se,
na melhor das hipótese, à ocupação extensiva ou ao mero extrativismo vegetal

533 Ver a respeito deste tema e do “enriquecimento ilícito” que se debateu, no contexto da análise desses
“incentivos fiscais” e financiamentos, na CPI do Sistema Fundiário, o “Relatório Final” (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, op. cit.).
534 GRAZIANO DA SILVA (1980 e 1982); SILVA (1981); MARTINS (1983); DELGADO (op. cit.)
entre outros.
535 Ver a Lei 4.504/64 do Estatuto da Terra (Op. cit.)

266
(sobretudo madeireiro), quando não permaneceram, simplesmente, inexploradas e
aguardando valorização. Este fato foi singularmente característico nas Regiões Norte e
Centro-Oeste, onde a maior parte dos estabelecimentos rurais destinaram-se ou à
extração vegetal ou à pecuária extensiva.
A outra dimensão característica deste processo - típico dos chamados métodos
da “acumulação primitiva ou originária” de capital - é fornecida pela forma violenta sob
a qual se deu a expropriação e a expulsão de posseiros que detinham direitos reais, e de
indígenas, sobretudo pela intervenção efetiva dos Órgãos Fundiários do Estado, na
promoção privilegiada da alavancagem destes processos. A asserção acima pode ser
documentada pelo seguinte trecho do texto intitulado “Conflitos de Terra”, editado pelo
Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário:
“Certos órgãos públicos ao alocarem no meio, nos últimos anos, um enorme
volume de incentivos, subvenções e concessões de terras públicas, antes de
democratizarem o acesso à terra contribuiram para agravar a
concentração da propriedade fundiária e dos recursos públicos
destinados à agricultura e à pecuária. A maior parte dos projetos
agropecuários aprovados no âmbito da SUDAM e da SUDENE refletem esta
situação. A implantação deste novo tipo de latifundismo não abdicou,
entretanto, das formas tradicionais de imobilização de mão-de-obra (peonagem
da dívida) e, além disto, instituiu mecanismos coercitivos, fundados na
violência, objetivando a desorganização da economia dos pequenos
produtores agrícolas que há décadas, senão séculos, cultivam e têm
morada habitual nestas regiões. O resultado mais imediato destas tentativas
tem sido a expulsão de imensos contingentes de trabalhadores rurais das
terras que cultivam e a implantação de um clima de violência sem
precedentes na área rural536.”

Enfim, os dados até o momento analisados parecem pôr em evidência que o


processo de privatização da propriedade fundiária no período do Regime Militar
reproduziu, sob novas formas e agravando, o mesmo padrão de baixa utilização e
extrema concentração do passado. No caso deste período, todas as evidências indicam
que este processo de apropriação, sobretudo nas ditas “regiões de fronteira” (Centro-
Oeste e, particularmente, Amazônia Legal), não esteve acompanhado da intenção de
implantar nenhum processo de produção agropecuária efetivamente relevante, à qual,
por exigência legal e por suposto lógico do “modelo” de desenvolvimento proposto,
deveriam ter-se subordinado as alienações estatais e os subsídios despendidos. Tratou-
se, portanto, efetivamente, de um processo de alienação e titulação de propriedade
oferecidas na qualidade de privilégio a determinadas camadas da população contra os
direitos reais de posseiros e indígenas, assegurados legalmente. Portanto, de legalidade
questionável.
Um exemplo cristalino deste fato é dado pelo depoimento do Senador Alexandre
Costa à Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Fundiário. No referido
depoimento, o aludido Senador da República afirma e esclarece as formas como as
terras adquiridas a “preço vil” ao Governo do Estado do Maranhão, são incorporadas ao
“capital social” de “sua empresa rural” com valor aumentado pela reavaliação da mesma

536 Cf. MIRAD/INCRA,Secretaria Geral. Coordenadoria de Conflitos Agrários. Conflitos de Terra. Vol.
I, 1986; grifos nossos.

267
propriedade, tomando por base a existência de “árvores, madeira, benfeitorias”. E como
esta nova avaliação acabou gerando o inesperado enriquecimento dos respectivos sócios
desta “empresa rural”, ao habilitá-la a realizar um “aumento de capital” e por isto
possibilitando a obtenção favorecida de empréstimos de dinheiro à guisa de
financiamento a juros subsidiados e prazos de carência excepcionalmente vantajosos
junto ao Banco do Nordeste do Brasil, etc537. Uma história muito interessante.
Processos similares ocorreram em relação aos “incentivos fiscais”,
especialmente na área da SUDAM, onde, normalmente eram estabelecidos na proporção
de duas unidades de incentivo para uma de “capital próprio” declarado no Projeto a ser
investido pelo “empresário”. Quer isto dizer, na verdade, que o referido “investidor”,
que já havia por incentivos adquirido a terra, recebe, além desta, duas unidades de
capital “como outros tantos incentivos”. Estas são conhecidas particularidades das
formas como se pode “acumular capital” às custas dos fundos públicos sem
necessariamente envolver-se em nenhuma atividade ligada à produção, seja ela
diretamente produtiva ou não. Estas são formas que vigiram de um modo muito especial
no período do Regime Militar, particularmente nas regiões de “fronteira e integração
nacional”.
É neste contexto e sentido que Bresser Pereira refere-se aos processos através
dos quais o Estado, em nome da necessidade da “ocupação dos vazios demográficos”,
da modernização e do desenvolvimento da agricultura, etc., transfere vultosos recursos
do orçamento nacional para determinadas frações de classe do capital, reforçando desta
forma, ainda mais, os instrumentos e mecanismos utilizados pela “burguesia em
expansão, na sua luta para a subordinação plena da agropecuária ao grande capital”538.
Delgado (1985) põe em evidência essas formas e mecanismos através dos quais
“(...)esses capitais encontram também na agricultura possibilidades de captura
de margens monopólicas de lucro operacional e ganhos financeiros, oriundos
da valorização do patrimônio territorial.”

Assim, em suas linhas fundamentais, ficam caracterizadas as formas de


alienação e legitimação privilegiadas, tais como postas em prática no âmbito da Política
Fundiária e de desenvolvimento rural do período militar. Por um lado ela possibilitou,
embora sob novas formas, a manutenção e agravamento da estrutura fundiária
historicamente concentrada, em contradição com o discurso contido na Mensagem 33.
Por outro lado, ampliou em escala sem precedentes a excludência das populações rurais,
fundada, sobretudo, nos processos de expropriação de posseiros, pequenos proprietários
e índios, provocados pela alienação de terras devolutas sem o necessário - e legalmente
exigido - processo de discriminação, o que transformou estas “vendas” em uma espécie
muito particular de grilagem especializada, ampliando de forma exacerbada e iníqua as
populações carentes das áreas urbanas, em particular nas regiões onde sua ação

537 CÂMARA DOS DEPUTADOS (op. cit.).


538 BRESSER PEREIRA (1985 e 1986).

268
fundiária foi mais efetiva, como por exemplo o Centro-Oeste. Apesar deste amplo
processo de alienação de terras públicas que, no período, alcançou uma cifra de
aproximadamente 46% da área agrícola do país, as taxas de ocupação da terra
permaneceram virtualmente estacionárias nos mesmos níveis de 1960 (ver a fig.3), o
que não deixa duvidas de que a apropriação de vastas áreas de terras públicas,
promovida e extremamente facilitada no período, nunca teve o objetivo de proceder à
exploração efetiva da terra: antes teve caráter especulativo em relação à valorização
meramente financeira dos imóveis. E sobretudo, representaram uma via de acesso fácil,
não apenas à terra, mas através desta, ao crédito favorecido e outros subsídios alocados
especificamente a essas regiões do país, na espécie de privilégios inadmissíveis que
geraram o rápido enriquecimento dos maiores beneficiários desta Política de
Desenvolvimento Rural.

269
CONCLUSÕES

Este estudo ocupou-se da análise sistemática do processo de formação e


legitimação da propriedade privada territorial no Brasil, recuando às suas origens no
sistema sesmarial, e avançando até a aprovação do Estatuto da Terra, em novembro de
1964, e sua implementação no período dos Governos Militares.
Este recuo no tempo objetivou apenas permitir a análise comparativa da
materialização deste processo, tal como ocorrido no período do Regime Militar, com a
sua ocorrência, ou não, em outras circunstâncias e conjunturas da história da terra no
Brasil, por um lado; e, por outro, possibilitar a efetiva verificação da ocorrência, em
algum outro momento da história fundiária brasileira, da efetiva legitimação e
legalização, de forma relevante, das terras em domínio privado. A resposta a esta última
questão, como ficou evidenciada no decorrer da análise realizada, é negativa.
Muitos estudos relevantes foram realizados em torno desta problemática,
especialmente a abordando de perspectivas teóricas e concretas distintas: acerca do
caráter e especificidades da sociedade e economia coloniais; do desenvolvimento do
capitalismo na agricultura, assim como dos efeitos e conseqüências deste processo,
sobre as condições de sociabilidade, as relações de trabalho, a produção familiar ou de
subsistência e do desenvolvimento do mercado interno, etc. Muitos desses estudos,
centraram-se na problemática da modernização da agricultura, da incorporação de
inovações e do progresso técnico e científico. Outros ainda, discutiram questões
específicas acerca da viabilidade econômica da pequena produção nas condições de uma
economia de mercado, especialmente, as suas possibilidades de gerar excedentes
econômicos relevantes e, desta forma, vir a ter a possibilidade de contribuir para o
atendimento da demanda interna de alimentos e de determinados bens de salário, assim
como da sua transição ou integração ao mercado e aos chamados complexos
agroindustriais, etc. Ainda outros, procuraram demonstrar as possibilidades econômicas
do desenvolvimento da agricultura vir a se constituir em um forte suporte à consecução
de divisas, fundamentais ao desenvolvimento sustentado da economia brasileira.

270
Uma breve referência a essas linhas de pesquisa e análise e à respectiva
bibliografia a respeito foi resenhada, em seus traços e características fundamentais, na
Introdução deste trabalho.
No contexto deste amplo e significativo debate, buscou-se, com esta pesquisa,
desenvolver uma linha específica de análise, ainda pouco explorada, que, por isso,
poderia vir a se constituir em uma contribuição de relativa importância para a
compreensão da questão fundiária e do Direito Agrário. Trata-se do estudo do processo
de privatização ou legitimação da propriedade territorial rural, abordada da perspectiva
de sua formulação jurídica e implicações concretas: da transferência, para o domínio
privado, do domínio sobre terras que são originalmente públicas.
Como foi amplamente demonstrado no decorrer do estudo, as terras brasileiras
são, originalmente, públicas, pelo fato de terem sido, primitivamente, integradas ao
Império colonial português, por direito de conquista. Passaram, ulteriormente, com a
Independência Política, em 1822, ao Império Brasileiro e, com a Proclamação da
República, ao domínio da União, sempre como propriedade do Estado. Neste contexto,
a sua incorporação ao processo de produção e reprodução social não prescindiu da sua
transferência para a iniciativa de particulares. Trata-se, efetivamente, neste sentido
específico, de um amplo e multifacetado processo de privatização territorial. O estudo
deste processo foi o objetivo central deste trabalho, com especial relevância para a
Política Fundiária implementada pelos Governos Militares.
Uma dimensão relevante à análise da estrutura agrária brasileira, amplamente
realçada nesta pesquisa, refere-se à institucionalização de determinados processos de
alienação ou reconhecimento e legitimação, pelo Estado, da propriedade territorial rural.
Trata-se de um processo de privatização de terras públicas: da transferência, para a
esfera privada, do domínio sobre um território que nasceu público. Este é exatamente o
caso que foi analisado, detalhada e objetivamente, neste estudo.
É desta perspectiva e neste contexto, que se pode afirmar com certa
tranqüilidade que uma dimensão relevante no estudo da questão agrária, que exige
tratamento específico, refere-se a análise do problema da legitimidade dos processos de
privatização das terras agrícolas do País, e das condições concretas e objetivas sob as
quais este processo foi implementado em diferentes momentos da história agrária e,
sobretudo econômica do Brasil. Como foi documentado por esta pesquisa, este processo
de legitimação, de reconhecimento, pelo Estado, de domínios privados sobre terras
públicas, ou a alienação destas, está na origem da formação e desenvolvimento da
propriedade privada legítima da terra no Brasil e exerce, ainda hoje, forte influência
sobre as condições de sociabilidade e de reprodução e desenvolvimento da agricultura
brasileira. Neste sentido, representando uma dimensão fundamental na discussão da
Questão Agrária, em particular, da Reforma Agrária.
Ficou amplamente esclarecido que a dimensão de legitimidade do processo de
alienação das terras públicas, ou do reconhecimento do domínio privado sobre estas, é
aqui referida em relação às formas institucionais - jurídicas, administrativas e concretas

271
- através das quais o Estado, em diferentes momentos da história do País, consentiu - ou
impediu - o acesso, a aquisição ou o reconhecimento de posses ou a ocupação particular,
de terras do seu patrimônio, procurando regulamentá-las.
Neste contexto, foi enfatizado que é necessário, na análise deste problema,
nunca perder de vista, que o reconhecimento legal da propriedade privada rural, pelo
Estado, envolve, necessariamente, processos sociais e de sociabilidade, que se
materializam na inclusão - ou excludência - de determinadas camadas da população em
relação ao acesso à propriedade da terra. E que é neste contexto muito particular que são
engendradas e efetivamente estruturadas as condições objetivas da concessão, alienação
e apropriação privilegiadas.
Portanto, como ficou evidenciado pelas análises - da legislação, dos dados e de
outros documentos, assim como da literatura especializada - e pela abordagem feitas,
trata-se, de estudar as formas e meios jurídicos, administrativos e concretos, através dos
quais, o Estado buscou, não apenas, assegurar o acesso à propriedade da terra e sua
respectiva legalização formal, para determinadas camadas sociais (privilegiadas) da
população. Porque este processo significou, também, e objetivamente, por outro lado, a
negação deste mesmo direito de acesso à propriedade, ou ao simples uso da terra, para o
amplo conjunto da população. População esta que, desde os momentos iniciais do
processo de ocupação territorial e colonização do Brasil, havia-se alojado, com ou sem
o consentimento do Estado - mas sempre, e em última análise, em seu interesse - em
pequenas posses, onde se dedicou à agricultura de subsistência, sustentada pelo trabalho
da própria família. Até ser expulsa da terra.
É assim que o objetivo central deste estudo foi o de evidenciar que o processo de
ocupação e privatização das terras brasileiras, - que assumiu diferentes formas conforme
as diversas conjunturas enfrentadas ou vividas pelo País desde a sua origem colonial até
os dias atuais - sempre se fundou no privilégio, quanto às concessões ou alienações e na
ilegalidade quanto a sua legitimação formal, por parte do Estado.
Esta situação equivale a afirmar que a propriedade privada sobre as terras no
Brasil, ainda hoje, carece de legitimidade: que, portanto, a maior parte das terras em
domínio privado, do ponto de vista da legalidade e do Direito, permanece pública.
Tratam-se, neste sentido, de meras posses, algumas passíveis de legitimação.
Isto equivale, igualmente, a afirmar que, ainda hoje, talvez a tarefa política e
administrativa mais relevante do Estado, no âmbito da regularização fundiária, ainda
seja a da legitimação das posses: isto é, do reconhecimento e legalização das posses
legítimas. E, diga-se de passagem, tanto as grandes, quanto, sobretudo as pequenas. Este
processo necessita, como a análise dos problemas criados pela ocupação e alienação
desordenada de terras públicas, - sobretudo no Pós-1964 - demonstrou, subordinar-se,
de forma veemente, aos critérios da exploração efetiva da terra e do cumprimento da
função social da propriedade. Especialmente no caso da legitimação ou reconhecimento

272
das imensas posses, este processo deve ser regulamentado de forma a assegurar,
rigorosamente, os limites constitucionais estabelecidos539.
Aliás, como se verificou, especialmente no capítulo 4, este é,
fundamentalmente, o objetivo das “ações discriminatórias”. Estas permanecem urgentes
e, na verdade, são a pré-condição necessária - ainda que não suficiente - para a
realização de uma Reforma Agrária efetiva no Brasil.
Junto a este procedimento legal, e tão importante quanto ele, é a efetiva
arrecadação das terras devolutas, públicas, separando-as, definitivamente, do espaço das
terras particulares legítimas540. Neste contexto é que, espera-se, resida a relevância deste
esforço de investigação e análise.
Embora uma Conclusão não deva ser um resumo das teses ou hipóteses
defendidas nos diferentes capítulos, nem a simples repetição dos mesmos argumentos já
enunciados no texto, mas uma síntese das hipóteses e argumentos defendidos, vale a
pena sumarizar os pontos fundamentais que foram levantados e discutidos.

II
A hipótese central, que orientou a análise realizada neste trabalho, baseou-se no
fato fundamental de que as terras brasileiras, sendo públicas, implicaram, para a sua
incorporação ao processo de produção e reprodução econômico-social, em determinados
processos de alienação e privatização. Ou seja, implicaram, necessariamente, a
mediação do Estado, para que se pudessem configurar como propriedades privadas,
legitimamente reconhecidas. Este fato implicou um processo de transição do domínio
público para o privado, sobre as terras agrárias, que assumiu diferentes especificidades e

539 Que, ainda assim, permitem a alienação ou a apropriação de terras públicas, sem a verificação pelo
Estado, de verdadeiros latifúndios, sobretudo especulativos. O limite constitucional poderia e deveria ser
rigorosamente reduzido no que toca à aquisição de terras públicas, ficando, outrossim, aberta a
possibilidade de aquisição de áreas maiores, que a este limite excedessem, pela via da aquisição no
mercado privado de Terras. Esta seria uma excelente alternativa para o Estado, de fato, regular a
problemática do cumprimento da função social da propriedade e evitar a formação da “propriedade
especulativa”. Esta poderia ser, efetivamente, uma metodologia, uma regra, ou mais que isto, um
corolário, para a realização da Reforma Agrária necessária, capaz, neste contexto, de organizar a
ocupação fundiária do País.
540 Procedimentos estes que, como ficou evidenciado neste estudo, necessitam ser revistos, uma vez que
foram profundamente subvertidos, quanto aos seus efetivos e legítimos objetivos, pelas autoridades
fundiárias do Período Militar, que os transformaram, de forma ilegal e ilegítima, em verdadeiros
monumentos à grilagem especializada e ao privilégio, em verdadeira afronta ao ordenamento jurídico, em
particular à Constituição da República. O mesmo se aplica às alienações feitas por estes meios no
período, especialmente no que se refere à “licitação”, “venda” ou “titulação” de grandes posses,
particularmente na Amazônia Legal e na Região Centro-Oeste, que necessitam urgentemente ser revistas,
posto que em sua maioria são juridicamente questionáveis, cobrando-se a respectiva responsabilidade
civil e penal daquelas Autoridades que, notoriamente, cometeram atos ilícitos de improbidade
administrativa e, em certos casos, de “crime de colarinho branco” ou mesmo corrupção, na melhor das
hipóteses, passiva.

273
características, conforme os distintos momentos e conjunturas vividas e enfrentadas
pelo País.
Iniciando-se com base no instituto português das sesmarias - analisado no
capítulo 1 - a transição das terras públicas brasileiras para o âmbito da iniciativa
privada, entretanto, não se configurou nos termos da propriedade privada absoluta da
terra. Na verdade, como ficou amplamente discutido e demonstrado nos capítulos 1 e 2,
a Coroa Portuguesa, durante todo o período colonial, apenas cedeu a “posse útil” sobre
as terras. Raras foram as sesmarias efetivamente confirmadas, sobretudo se se tiver em
consideração o volume das concessões que nunca o foram ou das que caíram em
comisso após terem sido confirmadas. Além, é claro, das imensas áreas dos “grandes
sertões” que não foram efetivamente alcançados neste período.
Isso posto, é necessário nunca esquecer que o Governo Português, desde os
primeiros momentos do processo de colonização, sempre teve o cuidado de apenas
ceder a “posse útil”, condicionada, sujeita às cláusulas de resolubilidade e não do
domínio pleno sobre as terras agrícolas. Isso fez com que a formação da propriedade
fundiária, no Brasil, sempre estivesse marcada pela problemática do privilégio, em sua
concessão, e da ilegitimidade, na sua confirmação ou titulação.
É neste contexto que o processo de legitimação da propriedade privada da terra
no Brasil, apenas teve a oportunidade de se constituir, legitimamente, e assim ter a
possibilidade de passar a assumir a sua forma jurídica moderna, de propriedade
absoluta, burguesa, com a aprovação da Lei 601 de 1850 - a Lei de Terras - e,
sobretudo, após a sua Regulamentação, em 1854, estudados no capítulo 2. Ainda assim,
o processo de reconhecimento legal das terras possuídas, no âmbito da Lei de Terras -
exceto para as sesmarias e outras concessões não devolutas, que foram reconhecidas
como propriedades privadas legítimas - permaneceu eivado de impedimentos políticos e
sobretudo jurídicos, administrativos e burocráticos.
Apesar disso, como foi sistematicamente estudado no capítulo 2, a Lei de Terras,
de 1850 - por ter sido a primeira legislação fundiária do Brasil Independente que
regulamentou a matéria - constituiu-se numa espécie de marco zero da legalidade da
propriedade privada territorial do País: reconheceu como propriedades legitimas as
antigas sesmarias confirmadas e regulou sobre as terras devolutas (sem destinação
pública nem privada), as sesmarias irregulares (sujeitas à revalidação) e as posses, que
poderiam ser legitimadas, após medidas, demarcadas e verificada a sua exploração
efetiva pelos respectivos posseiros.
Desde então, a legalização da propriedade rural no Brasil foi profundamente
dificultada pelos interesses dos latifundiários, que desviaram a solução do problema
fundiário, jogando-o no campo amorfo da colonização, afastando-o do âmbito da
separação legal entre terras públicas e particulares.
Desta forma, engendraram-se definitivamente as condições fundamentais que
possibilitaram e que são responsáveis, até os dias atuais, pela desorganização e
concentração fundiárias e pelo apossamento e ocupação indiscriminados e ilegais das

274
terras públicas, especialmente pelos grandes posseiros e pela grilagem especializada.
Processos estes, como se viu nos capítulos 2, 3 4 e 5, sobretudo, fundados no privilégio
e na ilegalidade.
De modo geral, como foi discutido no capítulo 2, os estudiosos associam a Lei
de Terras de 1850 às teses da colonização sistemática de Wakefield, e o debate
parlamentar da década de 1840, que a precedeu, parece dar-lhes razão. Entretanto, uma
análise mais cuidadosa mostra que não é exatamente a proposta da colonização
sistemática, tal como teorizada por Wakefield, a que vem a ser implementada após a Lei
601. Na verdade, a colonização sistemática baseava-se na disponibilidade de terras
públicas e livres, que pudessem ser privatizadas, servindo, assim, para atrair colonos
ricos, investidores, por um lado e, colonos pobres, por outro, que não podendo pagar
pelas terras "livres estatais" teriam que sujeitar-se ao assalariato, trabalhando para
aqueles, até poderem “poupar” o pecúlio necessário à aquisição de sua própria parcela
de terra. Permanecendo como pressuposta, a possibilidade legal de aquisição de
pequenas parcelas de terra por colonos com melhor situação econômica e por
assalariados, após a acumulação de determinado pecúlio.
A idéia subjacente a esta proposta de Wakefield era a criação de um mercado
de trabalho - formalmente livre - permanente, alimentado pelo bloqueio ao acesso livre
e imediato à propriedade da terra; acesso este que seria inevitável no caso de se permitir
a “colonização expontânea” e o livre acesso à terra. Daí a expressão “colonização
sistemática” - em oposição a “expontânea”- isto é, promovida e regulada pelo Estado.
Entretanto, não foi este o projeto efetivamente implementado no Brasil, após a
aprovação da Lei 601, na segunda metade do século XIX, onde o colonato e, em
situações críticas, a parceria, e muito poucas vezes o assalariato puro foram as formas
de incorporação do trabalho ao processo produtivo. Ou seja, o mercado de trabalho
(formalmente) livre, suposto pela teoria de Wakefield, foi, na prática, substituído pelo
sistema de colonato; e o acesso à pequena propriedade (familiar) - igualmente suposta
pela teoria da colonização sistemática - como rotina do fluxo da economia, no Brasil,
apenas se torna uma possibilidade nos períodos de crise do setor agro-exportador.
Desta maneira, os pressupostos fundamentais da teoria da colonização
sistemática, que seriam a formação de um fundo de terras livres e estatais, por um lado,
e de trabalhadores livres e pobres, por outro (os ingredientes básicos à estruturação de
relações capitalistas na agricultura) foram completamente desvirtuados, e efetivamente
subvertidos, no Brasil, senão em sua formulação legislativa, certamente ao nível de sua
implementação: redefinidos em função dos interesses latifundiários. Portanto, da
persistência da apropriação privilegiada.
A colonização sistemática foi, como se registrou neste estudo, reduzida, desta
forma e nesta conjuntura, à simples importação de imigrantes pobres para servirem de
mão-de-obra barata para os latifúndios, ou para a colonização - concebida como
desbravamento - em zonas de alto risco, como as fronteiras do Império ou nos sertões.
Em regiões afastadas, portanto, das áreas de interesse imediato dos potentados da terra.

275
Por outro lado, a arrecadação de terras devolutas, públicas, que deveriam formar o
fundo de “terras livres e estatais” necessário à implantação da agricultura fundada no
trabalho livre, (autônomo ou assalariado), foi bloqueada na prática: os latifundiários não
legalizaram as terras possuídas e, associados às burocracias locais, a ele, geralmente,
atreladas, bloquearam qualquer alternativa à demarcação e sobretudo de arrecadação das
terras devolutas pelo Estado, que assim permaneceram à sua disposição, sobretudo
quando a demanda por novas terras exigia a expansão das fronteiras agrícolas,
ampliando, assim de seus domínios.
É no contexto deste processo que os pequenos posseiros, que anteriormente, se
haviam instalado nessas regiões, ou os indígenas, sempre foram, “ciclicamente”
empurrados para terras mais longínquas, originando aquilo que tem sido denominado de
“fronteira pioneira” ou “em movimento”: na verdade constituída, sistematicamente,
pelos “expulsos da terra”, os excluídos. Fenômeno este que caracteriza, além do
privilégio, citado acima, a ilegitimidade das propriedades assim constituídas, uma vez
que o direito desta camada da população à permanecer na terra onde vivia e trabalhava
sempre esteve assegurado, juridicamente, pela legislação e pelos costumes. Portanto,
privilégio e ilegalidade permanecem sendo os traços fundamentais do processo de
apropriação e legitimação destas, pelo Estado, no Brasil.
Foi assim, que fracassou, na origem, a possibilidade de desenvolvimento do
projeto agro-fundiário de cunho liberal, tal como inspirado por Wakefield, no Brasil,
com as conseqüências conhecidas. Talvez este fato explique a aprovação da Lei 601 por
Gabinetes conservadores. Daí para adiante dificilmente se tocará efetivamente na
questão da legalização da propriedade, menos ainda, em reforma agrária, ou
simplesmente em reordenamento fundiário, mas em colonização. Esta, sempre dirigida
para terras distantes dos domínios dos latifundiários.
Por isso fracassou, até mesmo, o processo de atração de colonos, fossem
pobres ou, sobretudo, ricos, para a agricultura, na segunda metade do século XIX.
Processo este, de imigração de colonos pobres, que apenas se intensificará, nas últimas
décadas do século XIX com a expansão da cafeicultura de exportação, portanto, ainda
aqui, impulsionada pelos interesses latifundiários. Além de algumas iniciativas de
colonização dirigida à terras afastadas (em oposição e antípoda da reforma agrária),
como se observou nas primeiras quatro décadas da República. Colonização e
assentamento, e nunca reforma agrária, torna-se o lema e o tema predileto dos
latifundiários e das diferentes políticas fundiárias governamentais, desde então.
Esta a herança deixada pela política fundiária do Império e que, a rigor, como
se analisou no capítulo 3, jamais foi enfrentada pela República que, de 1891 a 1964,
limitou-se à tímidas iniciativas jurídicas e, sobretudo, administrativas, no âmbito da
regulamentação do uso dos bens da União. Enquanto, nos Estados da Federação,
prosperava a alienação e legitimação privilegiadas, sobretudo subordinadas ao comando
e aos interesses das oligarquias locais.

276
Cabe notar, neste contexto, uma interessante curiosidade: entre 1915 e 1946,
ocorre um fenômeno semelhante ao provocado pela “Resolução 76 de 1822”, que
inaugurou os 28 anos de “império das posses”, nos quais o latifúndio expandiu-se e
consolidou-se definitivamente no País. Trata-se do Decreto no 11.485, de 5 de janeiro de
1915, cujo único parágrafo determinava: “fica suspenso até que se organize a Lei de
terras, que será submetida ao voto do Congresso Nacional”, o Decreto 10.105/1913, que
regulamentava a utilização e acesso às terras devolutas e aos bens da União. Esta nova
Lei de Terras, como foi visto no capítulo 3, apenas viria a ser aprovada, 31 anos
depois, sob a forma do Decreto 9.760, de 5 de setembro de 1946. Abriu-se assim mais
31 anos de plena possibilidade, como de 1822 a 1850, para um novo ciclo de expansão
latifundiária.
Somando-se estes dois períodos, tem-se que, de 1822 à 1946, portanto, em 124
anos de história fundiária, durante 59 anos, não havia nenhum regulamento que
limitasse as possibilidades de expansão latifundiária. Se a isto se somarem os períodos
em que as normas instituídas foram sistematicamente desrespeitadas, na prática, como
de 1850 a 1891 (quando é promulgada a primeira Constituição republicana) tem-se que,
destes 124 de história da propriedade da Terra, entre a Independência e o Decreto de
1946, pelo menos durante 100 anos - um século, portanto - os latifundiários foram,
efetivamente os “donos” de todas as terras do País. “Donos”, não proprietários. Posto
que esta mesma “ausência” legal não permitia a legitimação das terras apossadas que,
portanto, permaneceram juridicamente questionáveis.
É assim que a maioria das “propriedades” continuaram ilegítimas e a violência
privada do latifúndio sempre agiu à sombra da lei e sob a proteção do Estado,
avançando no campo, expulsando pequenos posseiros e índios, parindo os sem terra e
sem pátria - a miséria rural e urbana - que assume a sua forma mais acabada, de
grilagem especializada, no período do Regime Militar.

III
O breve quadro resumido acima das análises realizadas nos três primeiros
capítulos deixou, entre muitas outros fatos relevantes, evidente, que o processo de
apropriação, apossamento e alienação de terras públicas, sempre se fundou no
privilégio, assim como as ações administrativas, jurídicas e cartoriais de legitimação e
registro, quando efetivadas, geralmente o foram de forma juridicamente questionável.
Juridicamente questionável, sobretudo, porque nunca cumpriram as exigências e
requisitos legais ao procederem os respectivos registros. Na medida em que a sociedade
e a economia se desenvolviam, na primeira e, sobretudo, na segunda metade do século
XX, passando a exigir a exibição dos títulos formais de propriedade, mais uma vez,
buscou-se, na generalidade dos casos, alternativas ilegítimas ou apenas aparentemente
legais, como os instrumentos particulares de compra e venda, quando não, a simples
falsificação de documentos, tanto pela adulteração de escrituras legítimas (alterando
para mais, as áreas), realizadas no interior dos cartórios, quanto, simplesmente, pela

277
geração destas a partir de documentos que não se destinavam a esta finalidade, como as
Certidões de Declaração de Posses, quando não, ainda, simplesmente forjados e de
falsidade evidente. Fatos que são caracterizados, pelo INCRA e pela legislação,
eufemisticamente, como “vícios insanáveis”.
É no contexto desse amplo processo de falsificação, que tem origem a grilagem
especializada, conceito este, que foi introduzido por este estudo para caracterizar todos
os tipos históricos de falsificação de títulos e documentos, sobre os quais se procuraram
edificar a “legitimidade” das “propriedades ilegítimas”: de autênticos e incontestáveis
processos de grilagem de terras públicas e de posses legítimas, sobretudo pequenas,
assim como das terras reservadas e indígenas.
Este processo surge de forma tímida ainda nos finais do período sesmarial e
mais intensamente após o “império das posses”, quando a Lei 601 de 1850 passa a
exigir a legitimação das posses e a revalidação das sesmarias. É desta época, como foi
visto no capítulo 2, que teve início o procedimento de se permitir a ocupação de
pequenos espaços, geralmente nos extremos de áreas apossadas, por trabalhadores
pobres, com a condição de testemunharem a “propriedade” ou “titularidade” em “favor”
do patrão ou “concessionário”. Outra forma utilizada, ainda na época do Império, era a
“cessão” ou venda de “terras públicas”, mediante instrumentos particulares ou
celebração de simples contratos de arrendamento, aforamento ou parceria, os quais,
ulteriormente, uma vez registrados em Cartórios, ensejavam uma “espécie” particular de
“prova” - evidentemente ilegítima - que servia para promover o registro das
“propriedades”. Outra forma historicamente conhecida, era o próprio registro de vigário,
que deu ensejo a toda espécie de arbitariedades e fraudes no processo de legitimação
privilegiada. E assim por diante, como foi amplamente discutido neste trabalho. Todo
esse processo era sustentado pelas colunas do privilégio, da impunidade e da
ilegitimidade.
É neste contexto que neste estudo sustenta-se a hipótese de que a maioria da
propriedades territoriais rurais no Brasil são efetivamente ilegítimas, isto é,
juridicamente questionáveis, fato este, aliás, pressuposto na Legislação pertinente que
sempre previu - e exigiu - nas ações discriminatórias, a comprovação da titularidade
legítima, quando se tratavam de terras em domínio particular. O ônus da comprovação
de titularidade sempre cabendo, ao suposto proprietário ou posseiro. Entretanto, a
simples exibição de documentos, na maioria dos casos com vícios insanáveis - como
reconhecia o próprio INCRA - geralmente era suficiente, e simplesmente aceita,
servindo destarte, para se proceder ao reconhecimento de titularidade, especialmente das
grandes posses. Isto, para não insistir no fato de que muitos destes títulos tinham a sua
origem efetivamente forjada, ainda que mesmo no interior dos Cartórios de Registros,
como foi amplamente documentado neste estudo e como tem sido denunciado e
comprovado por inúmeros outros pesquisadores e admitido pelo próprio INCRA.
O “esticamento da propriedade” referido pelo Bispo do Acre e Purus perante a
CPI do Sistema Fundiário e levantado em inúmeras pesquisas, algumas delas discutidas

278
neste estudo, era apenas uma das formas que sempre foram utilizadas. A outra era a
grilagem direta, fundada na violenta intimidação e expulsão dos pequenos posseiros.
Todos esses fatos, amplamente conhecidos, fazem parte da história da formação da
“propriedade privada da terra” no Brasil. É evidente que este processo não poderia ter
logrado o êxito que logrou, se não tivesse contado com a omissão ou a conivência
efetiva do Estado, e em especial dos Cartórios e do Poder Judiciário, especialmente em
suas representações ao nível local.
Este processo de apropriação privilegiada e legitimação juridicamente
questionável, assume a sua forma mais acabada de grilagem especializada a partir de
novembro de 1964, com a consolidação do Regime Militar e a aprovação e
implementação da Lei 4.504 que instituía o Estatuto da Terra. Essa problemática foi
amplamente analisada nos capítulos 4 e 5 deste estudo, mas vale a pena recordar seus
traços fundamentais nesta conclusão.
Como ficou amplamente documentado e discutido naqueles capítulos, os
problemas de legitimação das iniciativas privatizantes e de legalização das posses em
domínio particular, jamais solucionados de forma efetiva pelo Estado, ainda que
formalmente tentados, ganharam profunda relevância neste período. Com a aprovação
do Estatuto da Terra, o Governo Militar conseguiu encaminhar uma legislação que
regulamentava efetivamente o processo de alienação de terras públicas e de legitimação
das posses que se encontravam em poder de particulares. Foi enfatizado neste estudo
que o fato de haver instituído esta regulamentação foi o grande mérito que,
efetivamente, teve o Governo Militar no âmbito da Política Fundiária, posto que, desde
o fracasso na implementação do Regulamento de 1854, jamais havia o Estado
conseguido regulamentar efetivamente o procedimento de alienação de terras públicas
ou de reconhecimento de domínios particulares sobre estas.
Como se procurou enfatizar, para além deste grande mérito - de regulamentar
juridicamente o acesso às terras devolutas - estava o fato do Estatuto da Terra ter
colocado, objetivamente, nas mãos do Governo, o poder para promover a alienação de
terras públicas; portanto, a ampla possibilidade de conduzir determinado processo de
reorganização fundiária, na medida em que assegurava os meios, jurídicos e
administrativos, necessários ao processo de venda de terras devolutas ou do
reconhecimento de “titularidades” sobre estas. Isso tornou possível, contrariamente, a
própria legitimação do privilégio, contra a antiga legitimação privilegiada, até então
vigente no País. É neste sentido que a grilagem especializada assume a sua forma
definitiva neste período, como se fundamentou efetivamente nesta pesquisa.
Foi neste contexto e na conjuntura da época, que os Governos Militares
exerceram efetivamente este poder. Promoveram uma grande transformação na estrutura
fundiária brasileira, ao implementar um vasto processo de alienação de terras públicas
ou da legitimação de grandes posses, ou de concessões privilegiadas sobre estas,
especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, mas em certos limites, em todas as
demais regiões do País. Como resultado deste processo modificou-se profundamente o

279
perfil da propriedade privada territorial no Brasil. Por um lado, assegurando e
promovendo a “proriedade absoluta” de grandes extensões de terras para camadas, de
fato, privilegiadas, da população; por outro, aprofundando a excludência social e
provocando a expulsão ilegal de uma imensa massa de pequenos produtores, posseiros e
índios, elevando a um nível jamais conhecido na história agrária brasileira, o processo
de apropriação, concessão e legitimação privilegiadas. Instituindo, definitivamente, a
grilagem especializada como meio, método e forma de aquisição e legitimação da
propriedade privada da terra no Brasil.
É neste sentido e contexto que, neste trabalho se defendeu e fundamentou a
hipótese de que o Estatuto da Terra jamais contemplou qualquer iniciativa efetiva no
âmbito da promoção da reforma agrária. Muito pelo contrário. É assim, que a leitura
feita neste estudo a respeito desta problemática diverge daquela que supõe que o
Estatuto da Terra continha uma efetiva proposta de reforma agrária distributivista e que,
foi subvertido, desvirtuado, tendo o Governo implementado um projeto diferente do
original, desviando a proposta e a reduzindo às iniciativas da colonização.
A tese aqui defendida é que esta subversão ocorreu, como foi amplamente
discutido no capítulo 2, no âmbito da aprovação da Lei 601 de 1850, quando o projeto
de “colonização sistemática” que, efetivamente previa o controle do acesso a terra pelo
Estado, e sua venda a colonos, foi simplesmente reduzido à mera atração de colonos
pobres para servirem nos latifúndios ou desbravarem regiões de fronteira ou de risco. O
Estatuto da Terra, neste sentido, apenas foi uma espécie particular de consolidação
formal e concreta desta proposta em novos termos.
É neste sentido específico que se defendeu a hipótese de que o Estatuto da
Terra não se resumiu a um ato de “estética política” mas, ao contrário, que o Projeto de
Política Fundiária e de Desenvolvimento Rural contido no mesmo foi efetivamente
implementado pelo Governo, exatamente nos termos propostos. Assim, ao contrário da
leitura geralmente feita, especialmente no que se refere ao problema da reforma agrária
tal como exposta na Mensagem 33 e no Estatuto da Terra, ficou demonstrado que a
mesma era, de fato, concebida, apenas, como uma possibilidade, entre outras, para a
promoção do desenvolvimento econômico e integração nacional. Por isto pôde ser
reduzida aos procedimentos de colonização e assentamento. Na verdade, a reforma
agrária era concebida apenas com o objetivo de aliviar tensões sociais. Mas era esta,
exatamente, a “reforma agrária” contida, fundamentada e defendida no âmbito do
Estatuto da Terra. E neste sentido específico foi, efetivamente implementada. Ou seja,
ficou evidenciado, contrariamente ao que geralmente é colocado, que o Estatuto da
Terra em nenhum momento, em sua versão levada à ratificação pelo Congresso
Nacional, contemplou uma efetiva reforma agrária democrática e distributivista.
É, enfim, neste contexto que, efetivamente, a proposta de “reforma agrária”,
colonização e desenvolvimento rural, contida no Estatuto da Terra foi efetiva e
amplamente implementada pelos Governos Militares. A crítica - de que os Militares não

280
executaram o Projeto de Reforma contido no Estatuto da Terra, conforme aqui
amplamente discutido e documentado, carece de fundamento empírico e concreto.
A conclusão desta pesquisa, neste caso específico, permite afirmar que o Projeto
de Desenvolvimento Rural e de Política Fundiária contido e detalhado no Estatuto da
Terra, na Mensagem 33 e em todos os documentos específicos do Governo para este
mister foram efetivamente executados na forma e conforme os métodos propostos e
sobretudo os objetivos políticos e econômicos claramente propostos.
Neste contexto, a “reforma agrária” sempre foi concedida como destinada a
resolver problemas de tensões sociais em áreas de conflitos potenciais e em nenhum
momento era pensada e menos ainda concebida, como ficou amplamente esclarecidos e
demonstrado, como alternativa para possibilitar o amplo e democrático acesso à terra,
sobretudo, se este acesso é pensado em termos de pequenos produtores e propriedades.
Este problema está analisado e discutido nos capítulos 4 e 5 deste estudo.
A crítica passível de ser feita ao Regime Militar, neste contexto, refere-se
exatamente, ao fato de que o seu projeto fundiário, coerente com o seu “Modelo de
Desenvolvimento Econômico” era de cunho concetracionista; que se fundou na
consagração, sob novas formas, dos antigos processos de alienação e apropriação
privilegiadas; que persistiu o caráter juridicamente questionável, que continuou inerente
aos diferentes processos de legitimação das posses, atingindo, inclusive as ações de
alienação, licitação e venda de terras por parte dos órgãos fundiários e pelas autoridades
do Estado. Porém não se pode, fundamentadamente, criticar os Governos Militares de
terem apresentado uma proposta ou projeto no Estatuto da Terra e implementado outro.
Esta argumentação, como ficou evidenciado neste estudo, carece de fundamentação
empírica. Ela é facilmente contestada pelas simples análise da Mensagem 33.
Estes fatos estão amplamente comprovados, em especial na parte final do
capítulo 4, onde foram analisadas as formas de alienação ou titulação de terras públicas
postas em prática pelos Órgãos Fundiários do Governo, em especial, pelo INCRA.
Para finalizar estas conclusões vale a pena fazer referência a estes
procedimentos que, na verdade, se configuraram em verdadeiros monumentos à
grilagem especializada e de afronta ao ordenamento jurídico brasileiro.
A Legitimação de Posses (de pequenas posses, bem entendido) sempre
assegurada desde o longínquo instituto de sesmarias e amplamente consagrado na Lei
601 de 1850 é reduzido a nada, ou quase nada, com a instituição das normas e
regulamentos que se seguiram à promulgação da Lei 4.504 de novembro de 1964, em
especial, após a instituição do INCRA. Com estes instrumentos, foram estabelecidas as
regras fundamentais que iriam possibilitar um amplo e sistemático processo (ilegítimo,
mas aparentemente “legal”) de expulsão dos pequenos posseiros e índios das terras onde
viviam e trabalhavam.
Por outro lado, para assegurar o domínio dos grandes posseiros e sobretudo dos
novos especuladores e grileiros especializados foi edificado um verdadeiro monumento
à concessão de privilégios e a entrega, a “preço vil”, das terras brasileiras,

281
especialmente nas regiões que começavam a valorizar-se em face das iniciativas do
Governo, especialmente, no âmbito do Programa de Integração Nacional.
Tratava-se de muito mais do que um simples processo de concessão, ainda que
privilegiada, de terras. Apenas este fato não explicaria as amplas “aquisições de terras
devolutas”, por exemplo, na distante Amazônia. O fato mais relevante e que necessita
ser devidamente levado em consideração, neste contexto, é que, junto com as terras (e a
promessa de explorá-las e de contribuir para o desenvolvimento, integração e,
sobretudo, a segurança nacional, que era “comprovados” pela simples apresentação de
um “Projeto Agropecuário ou Florestal”) vinham os subsídios, os créditos à juros
negativos e prazos de carência generosos, além da ausência completa de fiscalização
quanto a aplicação dos recursos ou da implementação dos “Projetos”. Ou seja, a terra
era, antes de tudo, um meio para o acesso fácil aos cofres públicos, ao enriquecimento
fácil (e ilícito), etc. Além de permitir, no caso das pessoas físicas mas, sobretudo
jurídicas, amplas deduções no Imposto de Renda pela via da famosa “Cédula G”, o que
se constituía, efetivamente, em um recurso adicional para aumentar as “rendas” das
pessoas físicas ou os “lucros” das empresas ou pessoas jurídicas, que representavam
reduções, muitas vezes relevantes, nos preços ou custos de produção, viabilizado pela
sonegação de impostos e tributos devidos ao Estado.
Em suma, a terra não era, apenas, uma simples reserva de valor. Era muito mais
do que isto: pela via dos subsídios e dos créditos incentivados, ela permitia o acesso
imediato a vultosos financiamentos que permitiram a transformação das antigas
oligarquias latifundiárias em verdadeiras oligarquias agro-financeiras, ou, na pior da
hipótese, viabilizava, na conjuntura da Ditadura Militar, a associação entre aquelas e os
novos “industriais” e grupos econômicos, nacionais e estrangeiros, que afluíam ao
Brasil no período. Apenas este fato ou “esta hipótese” pode explicar como, apesar dos
vultosos recursos e do imenso volume dos projetos incentivados e aprovados pela
SUDAM e pela SUDENE, e financiados pelos bancos estatais, a agropecuária na
Amazônia e no Nordeste (excluindo talvez o PROALCOOL, que, ainda assim, se
configurou em outra conjuntura, cuja análise fugiria ao âmbito deste estudo) continuou
no mesmo patamar de baixa produtividade e utilização de terras historicamente
conhecidos.
É neste contexto que são instituídas as distintas modalidades de alienação,
titulação ou de reconhecimento de domínio sobre terras públicas de todo e qualquer tipo
de pleiteante, e a regularização de qualquer tipo de títulos e documentos de “posse” ou
“propriedade”, inclusive aqueles que estão gravados de “vícios insanáveis”, isto é,
absolutamente ilegais, falsos.
Excetuando-se a “alienação com dispensa de licitação” que apesar de não se
destinar, efetivamente, a facilitar o acesso à terra aos pequenos posseiros e proprietários,
aproxima-se da norma consagrada pela Lei 601/1850, de assegurar a propriedade aos
detentores de posses mansas e pacíficas; as demais modalidades de alienação
legitimação, titulação ou concessão de terras públicas, postas em prática neste período,

282
são, efetivamente, a evidência mais contundente da ilegalidade, da inconstitucionalidade
e da consagração da grilagem especializada, como ficou documentado no capítulo 4 e
cujos resultados, nocivos ao patrimônio público e à população brasileira, que foi
excluída amplamente do acesso a este patrimônio, foram amplamente evidenciados
pelas estatísticas apresentadas.
Para não estender, desnecessariamente, esta conclusão, posto que os dados já
foram suficientemente estudados, basta relembrar o caso da chamada Concessão com
Dispensa de Licitação. Esta modalidade de alienação de terras públicas é um
verdadeiro monumento à grilagem especializada, a ilegalidade e à fraude. Ocupa-se
efetivamente de legitimar títulos ilegítimos “em áreas de até 600 vezes o módulo de
exploração indefinida” - noutras palavras, latifúndios e, mais que isto, oculta-se a
referência aos “3.000 hectares” que é o limite constitucional para alienação de terras
públicas sem a exigência de aprovação do Congresso Nacional; o que autoriza supor a
possibilidade de exceder a este limite legal.
O fato mais relevante desta modalidade de titulação é que ela se destina
“(a) pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, detentoras de áreas
transcritas no registro imobiliário, com vícios insanáveis, cuja cadeia
dominial tenha sido iniciada em 28 DE JUNHO DE 1966541 .”

Como foi comentado no capítulo 4, apenas faltou nesta norma do INCRA a


referência ao nome ou nomes das “pessoas físicas ou jurídicas de direito privado” às
quais se destinava este indiscutível e ilegítimo privilégio.
A análise das informações contidas na figura 5, abaixo, que associa os
resultados da implementação do “Projeto de Desenvolvimento Rural” como se referia a
Mensagem 33, em termos das áreas novas, isto é da legitimação de posses sobre terras
devolutas, confrontando-a com as variações da área utilizada e das populações rurais e
urbanas, no período, não deixa nenhuma margem à dúvidas acerca do caráter de
privilégio e excludência envolvido no Modelo Econômico e na Política de Terras e
Agrícola posta em prática entre 1964 e 1984.

541 RIBEIRO, op. cit., p. 16. Grifos nossos.

283
Figura 5 - Variação da Área Nova Total e Área Utilizada; População Rural e
Urbana: Brasil 1960-1980
(PERCENTUAIS)
170
150 157

130
110
90
%

70
46
50
30
10 2,4
-0,5
-10
Área total Área Utilizada População Rural População Urbana
-30

Fonte: Dados da Pesquisa.

Enquanto a área nova apropriada privadamente no período chegou a 46%, a


utilização agrícola, pecuária e florestal, para o conjunto das terras brasileiras, entre 1960
e 1980, cresceu apenas 2,4%, o que é, em si mesmo um dado eloqüente a denunciar que
a alienação de terras pelo Estado, e, junto com estas, que todo o imenso volume de
subsídios e outros recursos postos à disposição desse processo, apesar de terem sido
realizados sob o pretexto de promover o desenvolvimento agrário, na verdade não
conseguiram lograr este objetivo. Ou seja, certamente forma em sua maior parte
destinados, como as terras, para outras finalidades.
Os efeitos disto ficam claros, por um dado, na redução da população rural, que
embora aparentemente pequena, de 0,5% seria contraditória com o volume das terras
apropriadas. Este dado, associado ao pequeno incremento da área utilizada indica,
seguramente, o caráter parasitário e especulativo da Política Fundiária posta em prática
no período. A outra face deste problema, que foi analisado objetivamente no capítulo 5,
é visualizada na Figura 5 acima, na coluna referente ao incremento da população
urbana, da ordem 157%, ou seja, um número que apenas pode ser explicado pela imensa
distorção contida, no Modelo, mas, sobretudo, pela excludência e expulsão da terra, sem
nenhum precedente na história agrária brasileira, de que foi vítima a população
trabalhadora rural, neste período dos Governos Militares.
É neste sentido que, aprofundou-se, especialmente no capítulo 4 e 5 as hipóteses
fundamentais defendidas neste trabalho. O estudo objetivo dos “instrumentos de ação
fundiária” e das formas de alienação de terras públicas, implementados pelos Governos
Militares, não deixam dúvidas de que o processo de apropriação e legitimação
privilegiadas, que vinha, desde longa data, estruturando-se na história agrária do Brasil,
assumiu a sua forma mais acabada de grilagem especializada, neste período. Este
conceito, como foi registrado, é criado e desenvolvido neste trabalho, para definir os
atos de apropriação ilegítima de terras devolutas, ou que são objeto de exploração por

284
posses legítimas, por pequenos produtores rurais - mas também de terras reservadas -
geralmente fundadas na exploração de artifícios legais e jurídicos, quando não, na
simples falsificação de documentos, com o objetivo de “criar a aparência de legalidade”
da propriedade.
Este processo fica igualmente qualificado e caracterizado quando autoridades
fundiárias, com base em meros atos administrativos e geralmente contrariando as
exigências da legislação em vigor, promovem alienações de terras em licitações,
públicas ou não; ou, mais grave que isto, quando instituem “formas de titulação”
visivelmente voltadas para o privilegiamento de determinadas situações ou camadas
sociais, como ficou amplamente evidenciado e comprovado documentalmente nos
capítulos 4 e 5 deste trabalho. Neste caso, caracterizam atos de improbidade
administrativa e, em determinadas situações, de “crime de colarinho branco” ou simples
corrupção. De qualquer maneira tratam-se de atos de titulação ou legitimação
privilegiadas e juridicamente questionável.
Isso significa afirmar que estes processos, que vêm persistindo na luta pela terra
desde os tempos do instituto de sesmarias, teve plena continuidade, sob novas formas,
no período do regime militar. Esta é a conclusão geral deste estudo e que procura fechar
com o conjunto da análise comparativa do processo de privatização de terras no Brasil.
Por estas razões, pode-se com certa tranqüilidade afirmar, que a maior parte das
terras que atualmente se encontram em domínio particular continuam ilegítimas.
Portanto, que permanecem públicas. Até prova em contrário.
Esta é a contribuição que se espera oferecer com este estudo.

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Decreto-lei n. 1.414, de 18 de agosto de 1975, e dá outras providências.(Ratificação de
títulos expedidos pelos Estados na Faixa de Fronteira e doação de áreas a Municípios).
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aquisição, por usucapião especial, de imóveis rurais, altera a redação do  2o do art. 589
do Código Civil, e dá outras providências. Brasília: 1981.
BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 2.543-A, de 5 de janeiro de 1912. Estabelece
medidas destinadas a facilitar e desenvolver a cultura da seringueira, do caucho, da
maniçoba e da mangabeira e a colheita e beneficiamento da borracha extraída dessas
árvores e autoriza o Poder Executivo não só a abrir os créditos precisos à execução de tais
medidas, mas ainda a fazer as operações de crédito que para isso forem necessárias. Rio
de Janeiro: 1912.
BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 10.105, de 5 de março de 1913. Aprova o novo
regulamento de terras devolutas da União. Rio de Janeiro: 1913.
BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 10.320, de 7 de julho de 1913. Modifica os
o o
artigos 1 e 3 do Regulamento aprovado pelo Decreto n. 10.105, de 5 de março de 1913.
(Terras devolutas da União). Rio de Janeiro: 1913.

286
BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 11.485, de 10 de fevereiro de 1915. Suspende
o regulamento de terras devolutas da União, a que se referem os Decretos ns. 10.105, de 5
de março de 1913, e 10.320, de 7 de julho de 1913. Rio de Janeiro: 1915.
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desapropriação por utilidade pública. Rio de Janeiro: 1941.
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Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: 1942.
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sobre os bens imóveis da União, e dá outras providências. Rio de Janeiro: 1946.
BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 68.524, de 16 de abril de 1971. Dispõe sobre
a participação da iniciativa privada na implantação de projetos de colonização nas zonas
prioritárias para a reforma Agrária, nas áreas do Programa de Integração Nacional e nas
terras devolutas da União na Amazônia Legal. Brasília: 1971.
BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 70.677, de 6 de junho de 1972. Dispõe sobre a
execução do Decreto-lei n. 1.179, de 6 de julho de 1971, que institui o PROTERRA
(PROTERRA/FUNTERRA). Brasília: 1972.
BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 71.615, de 22 de dezembro de 1972.
o
Regulamenta o Decreto-lei n. 1.164 de 1 de abril de 1971. Brasília: 1972.
BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 80.511, de 7 de outubro de 1977. Autoriza a
doação de porções de terras devolutas a Municípios incluídos na Região da Amazônia
Legal, para fins que especifica, e dá outras providências. Brasília: 1977.
BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei n. 178, de 16 de fevereiro de 1967. Dispõe
sobre a cessão de imóveis da União Federal para as finalidades que especifica. Brasília:
1967.
BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei n. 1.110, de 9 de julho de 1970. Cria o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, extingue o Instituto Brasileiro
de Reforma Agrária - IBRA, o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário - INDA e o
Grupo Executivo de Reforma Agrária - GERA, e dá outras providências. Brasília: 1970
BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei n. 1.164, de 1o de abril de 1971. Declara
indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais terras devolutas situadas na
faixa de cem quilômetros de largura em cada lado do eixo das rodovias na Amazônia Legal,
e dá outras providências. Brasília: 1971.
BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei n. 1.179, de 6 de julho de 1971. Institui o
Programa de Redistribuição de Terras e Estímulos à Agroindústria do Norte e do Nordeste -
PROTERRA, altera a legislação do imposto de renda relativa a incentivos fiscais, e dá
outras providências. Brasília: 1971.
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Regulamenta o Decreto-lei n. 1.164, de 1o de abril de 1971, alterado pelo Decreto-lei n.
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colonização, concessão de terras e estabelecimento ou exploração de indústrias de
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YOKOTA, Paulo. A ação do INCRA e a região centro-oeste. Brasília: Seção Gráfica da


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ZANATTA, Oldair. A titulação de terra rural no Brasil. Bahia: INCRA. Simpósio internacional
de experiência fundiária. 1984.

293
Figura 1 - Apropriação de áreas novas: Distribuição interregional, em percentagem.
Brasil, 1960-1980
Norte
15,7%

Centro-Oeste
46,5%

Nordeste
22,1%

Sudeste
7,9%
Sul
7,8%

Fonte: Dados da Pesquisa

Figura 2 - Apropriação de áreas novas por estratos, em percentuais. Brasil, 1960-


1980
0 - 10
2,6% 10 - 100
14,7%

1000 mais
47,2%

100 - 1000
35,5%

Fonte: Dados da Pesquisa

294
295
Figura 3 - Área utilizada por tipo de exploração, em percentagem. Brasil, 1960-1980

60,0 52,4
47,8
46,8
50,0

40,0
1960

24,1 19,7 24,2 1970


%

30,0

1980

20,0 12,0 11,5 13,4

10,0

0,0
Lavoura Pastagem Matas

296
Figura 4 - Variação da área utilizada, em percentagem. Brasil e Regiões, 1960/80

100
89,1 90,3 88,3 89,2 87,5
85,6 87,4
83,6 85,4 84,3 81,8 86,0 87,5 86,0
90
83,0
77,0
80 73,7
72,7

70

1960
60
1970
% 50
1980
40

30

20

10

0
Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

297

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