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"O SACERDOTE E O FEITICEIRO":

UMA ANÁLISE DA HISTÓRIA POLÍTICA E MILITAR DO BRASIL PÓS-64

Trabalho apresentado no Simpósio Internacional


―40 anos do golpe de 1964: novos diálogos, novas perspectivas‖

Mesa-redonda 1: Escrevendo a história da ditadura: jornalistas e escritores

Promoção:
Departamento de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Arquivo Ana Lagoa
Universidade Federal de São Carlos, Brasil

Adriano Nervo Codato


adriano@ufpr.br
Departamento de Ciências Sociais
Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira
Universidade Federal do Paraná, Brasil

(versão preliminar; não citar)

Junho
2004
“O Sacerdote e o Feiticeiro”: uma análise da história política e militar do Brasil
pós-64

Resumo
Este estudo analisa os dois primeiros volumes dos quatro planejados da série "As
ilusões armadas" do jornalista Elio Gaspari. Discute-se, a partir do exame das fontes, da
narrativa histórica e das concepções metodológicas presentes nos livros A ditadura
envergonhada (São Paulo: Companhia das Letras, 2002) e A ditadura escancarada (São
Paulo: Companhia das Letras, 2002) a interpretação proposta pelo autor para o sub-
período compreendido entre 31 de março 1964 e o primeiro semestre de 1974. O
argumento central que defendemos critica o papel demiúrgico conferido aos generais
Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva na montagem e na desmontagem do regime
ditatorial-militar. Esse argumento serve como ponto de partida para tematizarmos as
abordagens "subjetivistas" do poder e sua relação com a história política brasileira
recente.

2
"O SACERDOTE E O FEITICEIRO":

UMA ANÁLISE DA HISTÓRIA POLÍTICA E MILITAR DO BRASIL PÓS-64

―Todo particular é representativo — o


problema está sempre em precisar o que
ele representa‖.

Abraham Kaplan

Alguns livros sobre o ―regime militar‖ (1964-1985) alcançaram um notável sucesso


editorial. Figuraram na lista de best sellers e tornaram-se assunto de rodas acadêmicas,
mas principalmente não-acadêmicas. Pautaram não somente o debate, mas
principalmente a interpretação sobre a política brasileira contemporânea. Exagerando,
era como se a cada novo lançamento uma parte da verdade histórica – ou a verdade
sobre uma determinado governo – fosse enfim descoberta e revelada1.

Penso que há certos trabalhos, de natureza bastante distinta (memórias, relatos,


depoimentos, biografias, crônicas jornalísticas, teses acadêmicas, histórias políticas
etc.), que ilustram bem o que se quer dizer. Esquematicamente, poderíamos estabelecer,
ainda que de maneira provisória, uma cronologia de obras (de acordo com as suas datas
de publicação) que definiram um padrão e marcaram uma mudança importante no tipo
de informação oferecida ao público: nos anos setenta, a trilogia do jornalista Carlos
Castello Branco2, ao lado do livro do general Hugo Abreu, cujo sugestivo título era O
outro lado do poder3, polarizaram a atenção dos leitores cultos e das camadas médias
intelectualizadas e politizadas ―à esquerda‖; nos anos oitenta, a síntese histórica da
época realizada por Thomas Skidmore4, o depoimento-relato de Zuenir Ventura5, e dois
trabalhos universitários: Estado e oposição no Brasil (1964-1984)6, de Maria Helena
Moreira Alves e, com notável repercussão, o livro de René Dreifuss: 1964: a conquista
do Estado7. A vasta documentação consultada do ―complexo IPES-IBAD‖, organização
do patronato brasileiro que idealizou, financiou e apoiou ativamente o golpe de Estado,
e, principalmente, reproduzida pelo autor como apêndice ao livro, fascinou o público

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quando o trabalho foi publicado em 1981 (portanto, ainda durante o regime ditatorial-
militar), seja pelo caráter inacessível e, portanto, inédito dos documentos, seja pela
crença de que estes constituíam uma prova definitiva da natureza da ação política das
elites (empresarial, militar, multinacional) em 1964: uma conspiração.

Na revisão crítica que fez dos estudos de Ciência Política no Brasil no início dos
anos noventa, Fábio Wanderley Reis identificou uma das fontes da notável deficiência
dessa literatura acadêmica. Tratava-se do que chamou de abordagem ―jornalística‖ ou,
mais propriamente, do estilo historiográfico-jornalístico que assumiam os ―estudos de
caso‖ na maior parte das dissertações de mestrado e teses de doutorado: quando são
analisados ―temas da atualidade ou do passado recente [...], tal perspectiva tende a
exibir a lógica da investigação detetivesca, onde se trata de desvendar o ‗oculto‘‖. Isso
implica em duas faltas correlatas: do ponto de vista analítico, ela termina numa ―visão
conspiratória do processo político‖; do ponto de vista do procedimento metodológico,
induz à busca da ―fonte privilegiada (o informante bem situado, muitas vezes secreto,
que ‗conta tudo‘...)‖ 8.

Nos anos noventa, o livro de memórias do ex-ministro Roberto Campos, A


lanterna na popa9, os depoimentos de oficiais importantes, situados em posições
estratégicas na hierarquia, tomados pelo Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV) a fim de resgatar a ―memória
militar‖ sobre o regime de 196410, e, dentro desse projeto, o volume em separado
Ernesto Geisel11, constituíram referência obrigatória para fixar a idéia, no público leitor,
do ―observador privilegiado dos acontecimentos‖. A eles se sucederam: Memória viva
do regime militar, uma coletânea de entrevistas com ―personalidades‖ feitas por
Ronaldo Costa Couto12 e Histórias do poder: cem anos de política no Brasil13, para ficar
somente nos mais importantes.

Mas, sem dúvida, o Ernesto Geisel foi o texto que representou o tipo de
literatura mais bem-sucedida sobre o ―regime militar‖. Seu efeito sobre a audiência não
especializada foi tanto maior quando se consideram três coisas: em primeiro lugar, o
proverbial mutismo do general Geisel, mutismo esse superposto ao caráter
―confidencial‖ ou ―secreto‖ que todas as decisões importantes tomaram durante o
regime ditatorial-militar; em segundo lugar, um desejo sincero de conhecer ―como as
coisas se passaram de fato‖, expectativa do público alimentada, por sua vez, pela
natureza da fonte: o depoimento. Ocorre que um dos erros correlatos dessa esperança é

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supor que o depoente ―saiba tudo‖ e, mais, que esteja disposto a ―contar tudo‖; por
último, uma certa supervalorização da ―história de vida‖ (talvez um efeito da hegemonia
da História Cultural), mesclada com a vontade de penetrar na intimidade do entrevistado
para daí alcançar, (sabe-se lá como), a caixa preta do Estado e decifrar seus segredos
políticos e sua imensa maquinaria burocrática. Assim, tanto os livros de memórias,
quanto os de depoimentos têm pelo menos um poderoso inconveniente: autores (no
primeiro caso) e leitores (no segundo) freqüentemente ficam prisioneiros de uma
espécie de ―ilusão biográfica‖14. Supor que uma vida constitui um conjunto compacto e
coerente, alinhavado por um projeto, pessoal ou político, e que é permitido ao biógrafo
ou ao biografado firmar nexos causais, encontrar razões e desvendar as verdadeiras
intenções de tais ou quais posturas dá na verdade uma coerência artificial onde ela não
pode existir senão a posteriori15. Daí que essa ilusão subjetivista seja apenas a outra
face de uma ilusão objetivista: aquela que acredita ser possível ―fazer o documento falar
por si próprio‖. Freqüentemente, se nas mãos dos historiadores positivistas os
documentos tendem a se transformar em ―provas‖ definitivas, nas mãos dos praticantes
de uma sorte de Sociologia Política essencialmente ensaística eles não passam de
ilustração, ou de exemplos mais ou menos circunstanciais, de explicações construídas
indutivamente.

Por tudo o que se relatou acima, nem a recepção dos leitores (extremamente
positiva, se medida pelo sucesso comercial), nem a distinção com que foram tratados os
três livros já publicados de Elio Gaspari sobre o processo político brasileiro entre 1964 e
197916 – seja em razão da papelada exclusiva que mobiliza, seja em razão das
informações inéditas que revela – são novidade ou surpresa. Atualizam um padrão que
satisfaz o público não-acadêmico, impressionam os impressionáveis e repõem, agora de
acordo com suas fontes especiais – gravações ―secretas‖, diários pessoais, conversas
reservadas –, o mesmo julgamento definitivo sobre a natureza desses trabalhos: enfim,
―está tudo ali‖17.

Essa avaliação – superposta às duas ilusões simétricas já referidas – evidencia


menos os conteúdos dos livros em si mesmos (ou as pretensões de quem os escreve), e
mais a lógica própria do campo jornalístico, que se encarregou de convertê-los (e ao
autor) em notoriedades. Certas propriedades desse campo são bem conhecidas:

―a tendência a identificar o novo com o que chama ‗revelações‘ ou a


propensão a privilegiar o aspecto mais diretamente visível do mundo

5
social, isto é, os indivíduos, seus feitos e sobretudo seus malfeitos, em
uma perspectiva que é com freqüência a da denúncia e a da acusação, em
detrimento das estruturas e dos mecanismos invisíveis [...] que
orientaram as ações e os pensamentos [...]; ou ainda a tendência a se
interessar mais pelas ‗conclusões‘ (supostas) que pela progressão pela
qual se chega a elas‖18.

Ora, quando essa visão enquadra ao mesmo tempo o campo político (destacando
menos a sua lógica e mais seus absurdos, escândalos etc.) e o campo científico e/ou
cultural – lembre-se que se trata de um (na verdade três) livro(s) sobre a Política – o
efeito, na minha opinião, é duplo. As rotinas, os hábitos de pensamento e
principalmente a concorrência entre os jornalistas impõem-se sobre as formas
específicas do campo científico (suas escalas de valores e distinção, preferências e
atitudes – sua prática, enfim) transpondo, para um terreno estranho, ―a obsessão pelo
furo e a tendência a privilegiar sem discussão a informação mais recente e de acesso
mais difícil‖19. Na mesma direção, os acontecimentos (circunstanciais ou ―históricos‖)
são deslocados do sistema de relações – políticas, sociais, ideológicas – no qual estão
inseridos e onde podem adquirir um sentido, para aparecer como ―produto da confusão e
dos improvisos‖20. Isso autoriza a conclusões surpreendentes: o regime ditatorial-
militar, desde que tomado pelos seus aspectos exteriores e farsescos, não foi somente
uma sucessão absurda de incompreensões da ―esquerda‖ e da ―direita‖ diante do sentido
da História, mas uma ―comédia de enganos‖ ridícula e irracional21. Somente a
―irracionalidade‖, compreendida aqui especificamente como ausência de organização e
coesão interna dos aparelhos do Estado, justificaria o descontrole das cúpulas das
Forças Armadas sobre a ―comunidade de informações‖ e os grupos repressivos e sua
progressiva autonomização22.

Não pretendo fazer aqui, como já enfatizei, ou um balanço crítico da literatura


―jornalística‖ sobre o ―regime militar‖, ou uma sociologia da sua recepção junto aos
leitores médios e críticos culturais. Penso que o projeto do jornalista Elio Gaspari, o
―caso‖ escolhido para analisar, deva ser compreendido também em um outro nível.
Como é óbvio, a narração dos acontecimentos políticos, do golpe de Estado, em 1964,
à extinção do Ato Institucional n. 5, em 1979, comporta, evidentemente, uma
interpretação do seu sentido e das relações causais entre eles. De resto, não foi outra
coisa que o autor sugeriu quando expôs seu objetivo – ―O propósito era simples: tratava-

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se de explicar por que os generais Ernesto Geisel (o Sacerdote) e Golbery do Couto e
Silva (o Feiticeiro), tendo ajudado a construir a ditadura entre 1964 e 1967,
desmontaram-na entre 1974 e 1979‖23 – e a tese a ser sustentada: ―Para quem quiser
cortar caminho na busca do motivo por que Geisel e Golbery desmontaram a ditadura, a
resposta é simples, porque o regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem, era
uma grande bagunça‖24.

Há, nesses dois enunciados, três proposições ―teóricas‖, ainda que implícitas,
que poderiam ser evidenciadas: a que informa a concepção de poder subjacente a esse
tipo de interpretação histórica; a que descreve uma certa modalidade de relação entre
o(s) ator(es) individual(ais) e a estrutura político-institucional; e a que representa,
segundo um entendimento específico, a forma ―disfuncional‖ de funcionamento das
instituições do Estado nos regimes políticos de exceção. O que se pretende neste paper
é sugerir as dificuldades que relevam dessa concepção implícita de poder e examinar
certos pressupostos da apresentação (e explicação) do processo histórico concreto.
Pode-se assim, por essa via, chamar a atenção para seus efeitos potenciais sobre o
trabalho dos especialistas em Ciência Política, Sociologia Política e História Política.

Na impossibilidade de desenvolver os argumentos em todas as suas dimensões


vou limitar-me a apresentação de três hipóteses de leitura:

1. a concepção de ―poder‖ – o poder do general Geisel; o poder do general Golbery


– é relacional: poder é igual à capacidade de impor a sua vontade a outros
agentes sociais; e subjetivista: o poder só existe se exercido conscientemente por
um indivíduo; já a verificação dessa ―capacidade‖ é substancialista, ou seja,
poder é igual à posse de um dado recurso (institucional), que é a fonte mesma
desse poder: no caso, a Presidência da República;

2. contraditoriamente, foi o autoritarismo pessoal do Presidente da República


(essencialmente um traço de personalidade e uma visão de mundo) que se tornou
o substituto prático daquilo que a estrutura organizacional da ―administração
pública‖ e, no seu interior a Presidência, viu-se incapaz de prover: a
coordenação do conjunto dos aparelhos do Estado e a barragem das tendências
autonomistas, centrífugas, descentralizadoras etc. que caracterizaram seu
funcionamento;

7
3. a (des)organização interna do sistema institucional dos aparelhos do Estado
ditatorial-militar – problema esse que está na raiz da autonomia relativa de
certos ramos, (principalmente aqueles ligados à ―repressão‖), e que é a
expressão da concorrência intensa entre as várias facções internas das cúpulas
das Forças Armadas, numa palavra: o ―caos‖, – é a forma regular de inter-
relação das ―partes‖ do Estado num regime ditatorial-militar25;

No limites dessa comunicação, vou limitar-me a desenvolver e explicar o último


ponto.

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O projeto do jornalista Elio Gaspari, de interpretação da política nacional no


período de 1964 a 1979, divide-se em dois blocos que compreendem cinco tomos
independentes: a primeira parte, ―As ilusões armadas‖, reúne dois livros: A ditadura
envergonhada (que cobre o período de 31 de março de 1964 a dezembro de 1968) e A
ditadura escancarada (que cobre o período de janeiro de 1969 a dezembro de
1973/julho de 1974, ou os ―anos de chumbo‖, o ―mais duro período da mais duradoura
das ditaduras nacionais‖26). A segunda parte, ―O Sacerdote e o Feiticeiro‖, reúne três
livros: A ditadura derrotada (que cobre o período que vai de meados de 1973,
aproximadamente, a novembro de 1974) e outros dois volumes planejados ainda sem
título. Um que vai do início de 1975 a 11 de outubro de 1977 e outro de 12 de outubro
de 1977 a 15 de março de 1979. Essa separação corresponde a uma periodização
rigorosa, que enfatiza os acontecimentos-chave na cena política nacional pós-1964, com
ênfase sobre o comportamento militar, o ―poder militar‖ etc.

As qualidades dos livros são mais que evidentes. Destaque-se três aspectos,
começando pelo estilo narrativo, que os historiadores profissionais têm deixado de lado.
Elio Gaspari definitivamente conta uma história, ainda que faça questão de enfatizar
que seu objetivo nunca tenha sido escrever a história da ditadura militar brasileira, pois
―falta ao trabalho a abrangência que o assunto exige, e há nele uma preponderância de
dois personagens (Geisel e Golbery) que não corresponde ao peso histórico que tiveram
nos 21 anos de regime militar27‖.

O apoio empírico do trabalho é notável. O autor pôde consultar, juntamente com


a série de documentos textuais (cerca de 4 mil) do governo Geisel depositados no
CPDOC/FGV e de acesso público, um conjunto de fontes exclusivas: o arquivo privado

8
do general Golbery do Couto e Silva (cerca de cinco mil documentos); entrevistas
(cerca de vinte) com o general Ernesto Geisel entre 1984 e 1996 (das quais só foram
recuperadas doze gravações em fita cassete); o Diário de Heitor Ferreira (dezessete
cadernos), assistente de Golbery no SNI (1964-1967), secretário de Geisel na Petrobrás
e na Presidência da República (1971-1979) com suas notas e observações entre 1964 e
197628; gravações secretas (cento e vinte fitas cassete com cerca de duzentas e vinte
horas) de conversas entre o general Geisel e seus colaboradores feitas entre outubro de
1973 e março de 197429, além de uma série de entrevistas com personalidades políticas
(civis e militares) do regime militar e da oposição liberal e de esquerda (PCB), que
somavam aproximadamente cerca de 200 pessoas30.

Por último, mas não menos importante, o projeto de Gaspari (seja por suas
intenções, seja pela repercussão que ganhou) promove, ou, ao menos, espera-se que
promova, um resgate do gênero ―história política‖.

Essa dimensão dos estudos políticos tem sido cada vez mais esquecida (e
negada) pela Ciência Política da corrente dominante em função do conjunturalismo dos
temas de investigação, da perda da dimensão temporal das análises, da imposição de
certa agenda e de certos objetos de pesquisa e da preferência crescente pelos métodos
quantitativos.

A primeira dificuldade pode ser conferida a partir da mudança dos problemas de


pesquisa de acordo com a evolução dos problemas políticos ―na realidade‖ 31. A
seqüência (na ―prática‖ e na ―teoria‖ que deveria pensá-la) ‗autoritarismo-transição
política-consolidação democrática-democracia-instituições democráticas‘ indica a
ocorrência de um fenômeno não apenas curioso: penso que os cientistas políticos e suas
investigações passam a ser dirigidos de certa forma pelo ―campo político‖, isto é, pelas
questões que esse campo coloca (e pelas que ele não coloca), sob a forma que ele
coloca, e segundo as alternativas de interpretação que ele permite. Daí que o objeto de
pesquisa – o pequeno mundo da política (na expressão de Pierre Bourdieu32) – domine o
pesquisador, e não o contrário. Mas tanto quanto esse fenômeno não é percebido, mais
se procura exercer um poder sobre o campo científico como um todo, através da
imposição dos objetos de pesquisa legítimos (e das temáticas, e dos métodos de
investigação e dos modelos de estruturação teórica) e dos recursos para as
investigações.

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Nesse registro e de acordo com essa dinâmica intelectual peculiar, os
acontecimentos – resultados parciais de uma cadeia causal ―sobredeterminada‖ –
deixam de ser vistos como elementos no interior de processos (―de longa duração‖) para
se transformarem em fatos. Uma sorte de ―eventos-evidências‖. Há portanto um
rebaixamento de dois tipos de interpretação: a estrutural (vinculada a variáveis de tipo
sócio-econômico) e a processual (vinculada a variáveis de tipo histórico-social). Enfim,
a preferência pelos métodos quantitativos (e uma redescoberta do papel do survey, e de
outras técnicas semelhantes, onde os resultados podem ser expressos em grandezas
matemáticas passíveis de serem manipulados pela Estatística), em detrimento dos
métodos qualitativos, surge como uma alternativa natural.

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A fim de proceder a uma análise mais rigorosa do conteúdo do projeto e dos


pressupostos da investigação, interpretação e apresentação dos resultados da pesquisa
sobre os quatro governos militares, considere-se três passagens. Elas ilustram a terceira
hipótese de leitura que propus para o entendimento do trabalho de Gaspari:

Após o ―Ato Institucional n. 5 [...] a ditadura envergonhada foi


substituída por um regime a um só tempo anárquico nos quartéis e
violento nas prisões‖. A ―tortura e a coerção política dominaram o
período. A tortura envenenou a conduta dos encarregados da segurança
pública, desvirtuou a atividade dos militares da época, e impôs
constrangimentos, limites e fantasias aos próprios governos ditatoriais‖33.

―Os dois generais [Geisel e Golbery] voltaram ao poder no dia 15 de


março de 1974. Tinham o propósito de desmontar a ditadura radicalizada
desde 1968, com a edição do Ato Institucional n. 5. Queriam
restabelecer a racionalidade e a ordem. Geisel‖, em particular ―[...]
queria mudar porque tinha a convicção de que faltavam ao regime
brasileiro estrutura e força para se perpetuar‖34.

―Geisel restabeleceu o primado da presidência republicana sobre os


comandantes militares, que, desde 1964, viam o presidente como um
delegado da desordem a que denominavam ‘Revolução’‖35.

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Na série das muitas reportagens, resenhas e comentários sobre os dois primeiros
tomos, somente Heloisa Starling enfatizou o que nos parece o argumento do Autor.
Segundo ela, Gaspari apresenta

―as características peculiares do sistema de poder instaurado a partir do


golpe de 1964 por uma coalizão de forças militares que assume o
controle do Estado – um Estado, na aparência, muito forte,
principalmente em razão de sua capacidade de proceder continuamente
ao alargamento dos instrumentos de arbítrio e de violência. Nos termos
sugeridos por Gaspari, porém, esse era também um Estado atravessado
por uma situação estrutural de constante instabilidade interna –
instabilidade que provém de dentro do núcleo de poder, reduz
sistematicamente a capacidade de comando do governo já desde o início
da Presidência do general Castello Branco‖. A fragilidade do ―regime
autoritário‖ acaba por impactar ―a sociedade brasileira na forma de
terrorismo, corrupção e barbárie‖. Ou, por outra, ―os ciclos mais intensos
de expansão da violência do autoritarismo não projetaram a força do
Estado sobre a sociedade; ao contrário, projetaram sua debilidade ou,
mais exatamente, projetaram a decomposição de suas funções corroídas
pela condição de instabilidade interna constante‖36.

Mas essa oposição entre um Estado ao mesmo tempo ―forte‖, em função do


aumento da sua capacidade repressiva, e um Estado ―fraco‖, em função da instabilidade
interna que o caracteriza, e que impede a institucionalização de um regime autoritário
em bases ―normais‖ (isto é, sem o recurso constante ao ―terrorismo, corrupção e
barbárie‖), e que por isso mesmo também bloqueia ou inibe a criação de mecanismos
institucionais para o controle dos aparelhos responsáveis pelo ―terrorismo, corrupção e
barbárie‖, é puramente descritiva e de resto responsável pelo engano essencial que
induz à conclusão polêmica do autor: a única saída para esse impasse seria a intervenção
do ―homem providencial‖ (Ernesto Geisel) que, através da adoção de um estilo fechado
e autocrático de administração, poderia promover a concentração do poder e a
centralização do processo decisório nas suas várias instâncias.

Na verdade, se o progressivo enfraquecimento das capacidades de iniciativa,


coordenação e decisão do Estado ditatorial-militar é a causa do aumento da repressão e
da tortura, ele é, por seu turno, o resultado necessário do modo próprio de organização

11
do sistema institucional dos aparelhos do Estado brasileiro sob o regime de exceção – e
não uma manifestação superficial da anarquia, da irracionalidade e da desordem.

Nicos Poulantzas estipulou os traços gerais da forma de Estado/forma de regime


de exceção e, no seu interior, os traços específicos da forma de Estado/forma de regime
ditatorial-militar37.

Em resumo, trata-se de um Estado em crise permanente. Paradoxalmente, a


intensificação das contradições internas do Estado – que se cristalizam e se fixam em
incontáveis clãs e facções que se eliminam mutuamente – se dá no quadro da
estruturação hierarquizada, centralizada e unitária própria às forças armadas,
convertidas em aparelho dominante do sistema estatal. O locus dessa luta política (o
―caos‖ que reina no ―Estado militar‖) deve-se, em primeiro plano, à eliminação ou
proibição das organizações políticas tradicionais – partidos, associações etc. – e a
transferência desse papel de representação para as cúpulas das forças armadas. A forma
das contradições internas que atravessam esse Estado deve-se, por sua vez, ao arranjo
institucional e às suas características específicas. Há um reforço considerável do
centralismo burocrático do Estado, graças à transferência do papel dominante, entre os
seus aparelhos, ao aparelho repressivo (as Forças Armadas em primeiro plano). Isso
implicará na extrema rigidez hierarquização e superposição dos centros de poder real no
seio do Estado e no paralelismo entre seus ramos. A ―ossatura e seu cimento interno,
ideológico e repressivo‖, do Estado ditatorial-militar ―estão fundados sobre uma partilha
bastante delicada entre clãs e facções, entre ramos e aparelhos prodigiosamente
emaranhados, superpostos e [mal] hierarquizados nas suas funções e esferas de
competência‖. Esse Estado passa assim a ser ―organizado em ‗feudos‘ cujas relações
carecem de flexibilidade‖. Ora, ―é precisamente essa organização do Estado de exceção
que [...] permite a autonomização relativa particular, sobre uma base de poder próprio,
de diversas facções e clãs, onde alguns, defendendo seus privilégios, podem
constantemente obstaculizar as tentativas eventuais de outras facções para ‗normalizar‘
e ‗fazer evoluir‘ o regime‖38.

Desse ponto de vista, não é estranho a ocorrência de processos de acumulação e


de condensação das contradições existentes no seio dos aparelhos do Estado dos
regimes de ditadura militar. Sob a centralização institucional do poder, as contradições
de classe, as contradições entre os diversos interesses corporativos dos membros de
cada aparelho, as contradições entre os sub-sistemas ideológicos internos que marcam

12
cada um deles, cristalizam-se em contradições muito importantes entre os diversos
aparelhos. A essas contradições juntam-se as internas a cada aparelho39.

Olhados mais de perto esses processos derivam, a nosso ver, de três fontes
específicas:

1. da ausência característica de centros (políticos/burocráticos) de coesão


inter-aparelhos que enfeixem o sistema estatal e confiram a ele uma
direção política única;

2. da falta de uma ideologia unificadora que permita a coesão político-


ideológica entre os diversos aparelhos que compõem o sistema estatal40;

3. da inconsistência de regras claras e explícitas para a


circulação/transferência do poder político entre as várias facções
militares presentes no sistema estatal41.

Portanto, a consideração dessas três fontes de crise, fontes essas que derivam da
estrutura organizacional particular do sistema institucional dos aparelhos do Estado num
regime ditatorial-militar, põem em evidência a natureza estrutural e não-contingente do
seu caráter ―anárquico‖, além de permitir ler os outros dois problemas – a natureza do
―poder‖ e a questão do ―poder pessoal‖ – em nova chave interpretativa.

Notas

1
O balanço completo dessa literatura ainda está por ser feito. À exceção de resenhas em jornais ou em
periódicos científicos, cujo grau de interesse e profundidade é variado, não há uma visão geral sobre boa
parte da já vasta produção sobre o período.
2
CASTELLO BRANCO, Carlos. Os militares no poder. Vol. I: Castello Branco. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1977, 685 p.; CASTELLO BRANCO, Carlos. Os militares no poder. Vol. II: O ato 5. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p.; CASTELLO BRANCO, Carlos. Os militares no poder. Vol. III : O
baile das solteironas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979, 760 p.
3
ABREU, Hugo. O outro lado do poder. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979, 208 p.
4
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castello a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, 608 p.
5
VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, 314 p.
6
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984, 362
p. A autora registra que o estudo que deu origem ao livro foi redigido no Massachusetts Institut of
Tecnology, EUA, graças a uma bolsa de estudos concedida pelo Social Science Council Research e pelo
American Council of Learned Societies.
7
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe.
Petrópolis: Vozes, 1981, 814 p. Originalmente, tese de doutorado em Ciência Política apresentada na
Universidade de Glagow, Escócia.

13
8
REIS, Fábio Wanderley. O tabelão e a lupa: teoria, método generalizante e idiografia no contexto
brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n. 16, jun. 1991, p. 28-29. Mais
recentemente o autor voltou ao tópico, agora mais contundente, em As Ciências Sociais nos últimos vinte
anos: três perspectivas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 12 n. 25, out. 1997, p. 7-
28.
9
CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa (Memórias). Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. No resumo do
livro que consta da biografia do Autor no sítio da Academia Brasileira de Letras, pode-se ler o seguinte:
―Em seu mais comentado livro‖, Roberto Campos ―fez uma auto-avaliação da trajetória como diplomata,
economista e parlamentar, descrevendo detalhes da convivência com John Kennedy, Margareth Thatcher,
Castelo Branco, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Jânio Quadros‖.
http://www.academia.org.br/cads/21/rcampos.htm / data de acesso: 8 jun. 2004. Um livro sem a mesma
repercussão, mas igualmente importante, foi PASSARINHO, Jarbas. Um híbrido fértil. Rio de Janeiro:
Expressão e Cultura, 1996.
10
Cf. D‘ARAÚJO, Maria Celina, SOARES, Glaucio Ary Dillon, CASTRO, Celso (orgs.). Visões do
golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, 257 p.; Os anos de chumbo:
a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, 327 p.; e A volta aos
quartéis: a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, 329 p.
11
D‘ARAÚJO Maria Celina & CASTRO Celso (orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora
Fundação Getulio Vargas, 1997, 508 p.
12
COUTO, Ronaldo Costa. Memória viva do regime militar – Brasil: 1964-1985. Rio de Janeiro: Record,
1999, 391 p.
13
DINES, Alberto, FERNANDES JR., Florestan, SALOMÃO, Nelma. Histórias do poder: cem anos de
política no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2000. O gênero biografia permanece pouco desenvolvido.
Descontado o livro apologético de Armando Falcão sobre Geisel (v. FALCÃO, Armando. Geisel: do
tenente ao presidente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, 281 p.), somente Castelo Branco mereceu
um trabalho mais profundo e profissional. V. DULLES, John W. F. President Castello Branco: Brazilian
Reformer. College Station, Texas: A & M University Press, 1980. Comentei o livro do ex-ministro de
Geisel em: CODATO, Adriano Nervo. Geisel: o senhor fechado da Abertura. Revista de Sociologia e
Política, n. 6/7, 1996, p. 203-207. (Resenha bibliográfica).
14
Cf. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p. 74 e segs.
15
Retomo aqui trecho de: CODATO, Adriano Nervo. O general e o político no fio da navalha. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13 n. 37, p. 202-203, 1998 (Resenha bibliográfica).
16
Cf. GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, 417 p.; A
ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, 507 p.; A ditadura derrotada. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003, 538 p.
17
Daniel Piza, Elio Gaspari conta história do regime militar. O Estado de S. Paulo, 23 nov. 2002. O
articulista vai além para enfatizar não só o caráter completo e portanto desmistificador do trabalho, mas a
objetividade e neutralidade do seu autor: ―Talvez pela proximidade histórica, talvez pelas dificuldades da
historiografia brasileira, o período do regime militar (1964-1985) era mais pródigo em interpretações do
que em informações. Diversas perguntas pairavam sobre diversos episódios, como nuvens de chumbo, e
as avaliações se dividiam com a mesma carga elétrica que dividiu aqueles anos todos. Com um arsenal
exclusivo de arquivos, entrevistas e livros [...] Elio Gaspari [...] desarma as versões de direita e esquerda
sobre seus papéis‖ (grifos meus).
18
BOURDIEU, Pierre. O jornalismo e a política. In: _____. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1997, p. 132.
19
Id., ibid., p. 138.
20
Daniel Piza, Elio Gaspari conta história do regime militar, op. cit. A passagem completa é a seguinte:
―Uma das principais impressões que a leitura dos dois volumes [A ditadura envergonhada e A ditadura
escancarada] deixa é a de que muitos dos acontecimentos foram mais casuais e auto-alimentados do que
se supunha. A sucessão de atos e contingências parece ganhar moto próprio: muitas das criaturas tomam
conta dos criadores, passando de coadjuvantes a determinantes. O que se forma é em grande parte um

14
produto da confusão e dos improvisos, e as mesmas contradições que levam um grupo ao poder são as
que de lá o tiram depois‖.
21
Cf. José Arthur Giannotti, Elio Gaspari faz história. Revista Pesquisa Fapesp, n. 86, abr. 2003.
22
Para a crítica desse ponto de vista, sustentado na parte IV de A ditadura escancarada (A Gangrena, p.
359-464), v. Daniel Aarão Reis Filho, A longa noite da repressão. Folha de S. Paulo, Caderno MAIS!, 19
jan. 2003, p. 14: ―As torturas não eram produto da anarquia, mas derivavam de uma ordem, encarnavam a
Ordem‖. Heloisa Starling sustenta a avaliação oposta sobre o núcleo do argumento de Elio Gaspari diante
da prática da tortura política: ―Dessa vez, a existência da tortura não surgiu na história do regime militar
nem como incidente, como algo que escapou ao controle, nem como resíduo, efeito não controlado de
uma guerra que se desenrolou apenas e de forma incipiente nos porões do regime militar [...]‖. Cf. Rastros
do regime militar. Folha de S. Paulo, Jornal de Resenhas, 10 maio 2003, p. Especial-8.
23
A ditadura envergonhada, p. 13. Na série de resenhas que se seguiu à publicação dos dois primeiros
volumes houve uma predisposição dos analistas em descobrir e julgar mais as intenções do autor do que o
sentido mais geral do projeto. Assim é que, para comprovar o que se quer dizer, é suficiente avaliar os
julgamentos referidos a um aspecto particular de todo o trabalho: qual a imagem projetada do general
Geisel para a posteridade? E, nessa linha, qual o peso real das suas convicções, das suas ações e das suas
omissões no processo de ―abertura‖? Diante da primeira questão há duas interpretações opostas. Para ficar
em poucos exemplos: Marcelo Ridenti (Gaspari demonstra o sabido sempre negado. Folha de S. Paulo,
15 nov. 2003, p. E3.) e Mario Maestri e Mário Augusto Jakobskind (A historiografia envergonhada.
http://www.espacoacademico.com.br/024/24res_gaspari.htm. Acesso em: 15 maio 2004) sublinharam a
simpatia do autor diante da sua personagem; Janio de Freitas (Passados esquecidos. Folha de S. Paulo, 30
nov. 2003, p. A5) e Mario Sérgio Conti (A tristeza de ―A ditadura derrotada‖.
http://nominimo.ibest.com.br. 11 nov. 2003. Acesso em: 15 maio 2004) enfatizaram, ao contrário, que,
todas as contas feitas, a exposição da posição do general Geisel diante da tortura (como prática e
enquanto ―sistema‖) revela, graças às transcrições feitas, um Geisel mais sombrio que virtuoso. Mario
Sérgio Conti lembrou a ironia de Delfim Netto diante daqueles ―que se surpreenderam com a
demonstração categórica de que Geisel apoiava a tortura e o assassinato de opositores, bem como o
desaparecimento dos seus cadáveres. ‗Ah, eu pensei que ele era um democrata‘, disse Delfim‖ (ibid.). ―A
imagem difundida de Geisel, antes ainda de ser ‗candidato‘ à sucessão de Médici, era a de homem de
princípios respeitáveis e rígidos. Os modos prussianos e seu silêncio favoreceram a construção da
imagem. Mas, sobretudo, consolidou-a depois da posse a crônica política da época, por sua parte
principal: tudo era interpretado como indicação de sentimentos e objetivos democráticos, humanitários e
éticos de Geisel, em contraposição à arbitrariedade geral em vigor desde 64. [...] esta versão, intocada até
aqui, não resiste às transcrições feitas em A Ditadura Derrotada. [...] Geisel enfim se torna portador do
espírito antidemocrático (e pior do que isso) que iniciou a ‗lenta, gradual e segura distensão‘ tangido por
circunstâncias mais fortes do que sua prepotência‖ (Janio de Freitas, ibid.). Sobre este ponto em especial,
v. a ascendência das preferências de Golbery (o ―Feiticeiro‖) sobre o ―Sacerdote‖ no andamento da
política de liberalização controlada do regime ditatorial-militar em: Plínio Fraga, Escritos do Feiticeiro.
Folha de S. Paulo, 5 nov. 2003, p. E7; e Mino Carta, Deus, perdoai-o, não sabia o que fazia.
CartaCapital, Ano IX, n. 218, 4 dez. 2002. Para o último, já a leitura do Ernesto Geisel (op. cit.)
demonstrava ―que o protagonista não teve o mais pálido entendimento quanto ao projeto traçado pelo
conselheiro-mor, Golbery do Couto e Silva‖ (ibid.)
24
A ditadura envergonhada, p. 41, grifos meus. Para o coronel Jarbas Passarinho, note-se, a finalidade do
projeto, junto com seu argumento fundamental, revelam desde logo que a história do regime não é apenas
contada destacando dois personagens (Geisel e Golbery). É contada em função do ponto de vista do grupo
político-militar que representavam nas Forças Armadas. ―Pergunta: O senhor tem sérias restrições aos
livros do jornalista Élio Gaspari (da coleção "As Ilusões Armadas", sobre o golpe de 1964). A visão é
equivocada? Resposta: Não, é altamente facciosa, porque se baseou em cinco mil documentos que
Golbery (general Golbery do Couto e Silva) deu a ele. P.: O senhor leu os livros? R.: Vinte páginas. Os
documentos do Golbery eram para denegrir Costa e Silva, Médici etc. P.: Mas os livros foram elogiados.
R.: Eu sou a voz de uma grande parcela do exército que não tem espaço. P.: O senhor usou a expressão
facciosa. R.: Sim, facciosa. Quem lê a história dele, lê segundo Golbery. Gostaria que lesse segundo
todos‖. Fernando Rodrigues, Março de 1964 – Entrevista: Jarbas Passarinho. Jornal de Brasília, 28 mar.
2004.
25
Marcelo Ridenti, ainda que não tenha desenvolvido o argumento, chamou a atenção para esse aspecto
em: A ditadura em questão: 40 anos do movimento de 1964 revisitados por Gaspari. Trabalho

15
apresentado na VII International Conference of the Brazilian Studies Association (BRASA). Pontifícia
Universidade Católica. Rio de Janeiro, RJ. Junho 9-12, 2004.
26
A ditadura escancarada, p. 14.
27
A ditadura envergonhada, p. 20. Mesmo essa auto-avaliação não parece ser tranqüila: ―Não há dúvida
de que esses cinco volumes não pretendem contar a história da ditadura como Jules Michelet escreveu a
história da Revolução Francesa [!], mas sua narração não se limita aos jogos de Geisel e de Golbery, pois,
conforme seu contexto vai se ampliando, o vasto panorama resulta num modelo de Histoire
événementielle, dessa história que se dedica à narração cuidadosa dos acontecimentos‖. José Arthur
Giannotti, Elio Gaspari faz história, op. cit., grifos meus.
28
Aí ―está o mais minucioso e surpreendente retrato do poder já feito em toda a história do Brasil‖ (A
ditadura envergonhada, p. 15);
29
A lista de fontes consta de A ditadura derrotada, p. 16-17. O critério adotado para o uso da
documentação (citações) foi o seguinte: só se reproduziu comentários de natureza pessoal sobre
personagens públicos quando envolviam questões políticas. Cf. A ditadura derrotada, p. 18. Gaspari
especula as razões da preservação desse material e, surpreendentemente, conclui que foi exatamente
―‗porque [seus proprietários] desejavam preservar o registro histórico de suas atividades públicas‖ (A
ditadura envergonhada, p. 16). Para uma crítica da forma de interpretação dessas fontes (a
―monumentalização‖ (Jacques LeGoff) documentação), v. NAPOLITANO, Marcos. Historiografia,
memória e história sobre o regime militar brasileiro. Trabalho apresentado na VII International
Conference of the Brazilian Studies Association (BRASA). Pontifícia Universidade Católica. Rio de
Janeiro, RJ. Junho 9-12, 2004.
30
A ditadura envergonhada, p. 16.
31
Veja-se, por exemplo, o caso da literatura da ―transitologia‖ e da ―consolidologia‖. Cf. ARTURI,
Carlos S. O debate teórico sobre mudança de regime político: o caso brasileiro. Revista de Sociologia e
Política, n. 17, 2001, p. 11-31.
32
Cf. BOURDIEU, Pierre. Propos sur le champ politique. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2000.
33
A ditadura escancarada, p. 14, grifos meus.
34
A ditadura derrotada, p. 15, grifos meus.
35
A ditadura derrotada, p. 16, grifos meus. Os mecanismos que permitiram ao presidente Geisel atingir
seus objetivos estratégicos serão contados no quarto volume da série.
36
Heloisa Starling, Rastros do regime militar. Folha de S. Paulo, Jornal de Resenhas, 10 maio 2003, p.
Especial-8.
37
Cf. POULANTZAS, Nicos. La crise des dictatures. Portugal, Grèce, Espagne. Paris: Seuil, s/d.
38
Id., ibid., respectivamente p. 35, 107, 55 e 109. As citações textuais são da p. 109. Para uma visão mais
sistemática, cf. em especial o cap. V: Les Appareils d'Etat.
39
Id., ibid., p. 146.
40
No fascismo, o partido é o aparelho unificador da aparelhagem institucional. A ideologia fascista
encarrega-se de cimentar a coesão dos diversos aparelhos, os quais ela impregna profundamente. Sobre a
base desta ideologia, os regimes fascistas erigem um aparelho – o partido fascista – que, além de seu
papel frente às massas populares, funciona também como o aparelho que ―solda‖ os outros mantendo sua
coesão. Id., ibid., p. 145.
41
João Roberto Martins Filho ressalta que o regime ditatorial ficou marcado, desde o início, por uma
dinâmica política bastante peculiar: unidade castrense frente o mundo político, dependência civil diante
dos militares e impotência paisana face ao avanço do processo de militarização dos mecanismos de
representação política e das arenas decisórias estratégicas. Nesse movimento, já estariam presentes dois
processos intramilitares que se constituiriam em fatores permanentes de crise no regime militar e iriam
configurar sua dinâmica particular: 1) o surgimento precoce de tensões na oficialidade em torno do
problema da sucessão presidencial; e 2) a quase imediata aparição de tensões na caserna diante da melhor
forma de participação política dos militares no governo. Cf. O palácio e a caserna: a dinâmica militar das
crises políticas na ditadura (1964-1969). São Carlos, Editora da UFSCar, 1995, p. 52-53.

16

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