Você está na página 1de 4

Monstros e Monstruosidades na Literatura

Os monstros estão presentes nas diversas manifestações artísticas. E como uma das mais
tradicionais, a Literatura não podia deixar de expressá-los também. Ao longo dos séculos, muitos
monstros surgiram nas letras de diversos países. A coisa toda teria começado, até onde se sabe,
com os gregos: harpias, ciclopes, minotauros, sereias e mais uma infinidade de seres
mitológicos.

Aqui no Brasil, nossa literatura não tem uma tradição significativa nesse setor, país de tradição
literária recente com forte tendência de valorização dos aspectos, por assim dizer, mais
'realistas'. Temos alguma coisa mais sombia com o Macário e Noite na Taverna de Álvares de
Azevedo, mas entre nós, a tradição gótica não rendeu grandes produções como no mundo
europeu. Na mesma época em que floreciam romances de atmosfera negra na Europa (1764 - O
Castelo de Otranto de Horace Walpole) , aqui a nossa preocupação estava voltada para o
universo grego (Arcadismo ou Neoclassicismo) e, posteriormente, para a nossa identidade
nacional, posto que país de independência recente (1822).

Contudo, temos monstros, mas são de outro nível. Em Os Sertões de Euclides da Cunha, por
exemplo, o nordestino é um hércules-quasímodo, desengonçado e estranho. 'O sertanejo é,
antes de tudo, um forte', escreve o ensaísta. Se nossa natureza era magestosa no Romantismo,
no Realismo de 30, a seca do sertão nordestino transforma a caatinga em um monstro. Ao lado
de Peri, o índio cristão de Alencar, há os índios com contornos monstruosos dos cronistas do
descobrimento (e também os que são opositores do heroi alencariano).

De acordo com Julio Jeha, 'os monstros corporificam tudo que é perigoso e horrível na
experiência humana. Eles nos ajudam a entender e organizar o caos da natureza e o nosso
próprio. Nas mais antigas e diversas mitologias, o monstro aparece como símbolo da relação de
estranheza entre nós e o mundo que nos cerca'.
Em Monstros e Monstruosidade na literatura, Jeha ainda argumenta que 'os monstros dão um
rosto (ou não) ao nosso medo do desconhecido, que tendemos a associar ao mal a ser praticado
contra nós'. O argumento do autor volta-se para as representações monstruosas como
representação metafórica do Mal, isto porque, o Mal faz parte da nossa natureza humana,
enquanto sujeitos morais.

O pesquisador destaca a obra Frankenstein de Mary Shelley (1831). Segundo Jeha, a criatura
de Shelley inaugura 'uma linhagem de monstros que falam do nosso mal-estar perante o
desenvolvimento da ciência e do progresso tecnológico, assim como diante de guerras e
genocídios'. O monstro nos revela o medo que possuimos do nosso próprio progresso
tecnológico. A Segunda Grande Guerra é um exemplo desse horror. A bomba atômica e o
Holocausto nos revelam que podemos, apesar de toda a evolução científica, sermos ainda mais
cruéis. A pergunta que a criatura de Shelley nos faz é: para onde estamos indo com o progresso
científico?

As Sete Teses

Hoje vou tentar comentar as tese teses de Cohen. Esse texto é importante, porque foi um dos
fundadores da pesquisa em monstros no mundo. Depois dele, a visão que rotineiramente se
tinha dessas criaturas como artifícios de terror passou a mudar. Os monstros mostram, como
revela a origem etimológica da palavra: monstrum (aquele que adverte, revela, mostra). As teses
do pesquisador nos aponta direções para a análise e interpretação dos monstros.

Ao afirmar que o corpo do monstro é um corpo cultural, Cohen argumenta que, ao mesmo
tempo, que não podemos compreendê-los dentro das categorias do masculino e feminino,
mesmos nos antropormórficos, e que o corpo é a representação de uma outra condição: reflete
a cultura de quem o engendrou. Nos monstros medievais, os ancéfalos (seres que possuiam a
cabeça no ventre) representam o medo, até em então, pelo desconhecido das terras além-mar.
O Godzilla, monstro que criado pelo cinema japonês, pode ser lido como a objetivação do medo
de contaminação radiotiva, proveniente de marcas traumáticas pós-segunda guerra mundial,
quando Hiroshima e Nagasaki foram destruídas pela bomba atômica.

Como não pode ser categorizado dentro dos limites estéticos e biológicos da humanidade, o
monstro sempre escapa. Ele é imortal, sobrevive as mais terríveis batalhas. O Drácula é um
exemplo disso. Tanto no plano ficcional, como no plano cultural, ele sempre retorna. Uma
pesquisa rápida na locadora próxima de sua casa vai demonstrar a quantidade de filmes sobre
o assunto. Isso aponta para uma consideração importante: necessitamos dos monstros (em
todas as culturas eles sempre existiram para impor limites e para serem amados).

Cohen ainda destaca na terceira tese de que o monstro é o arauto da crise de categoria. Ele
surge em momentos de crise, quando os nossos ideais estão se desfazendo diante das
mudanças de pensamento. E, por ser o revelador, ele torna claro a crise de categorias, entre o
eu e o outro, o masculino e o feminino (lembre-se do que já falamos sobre o(a)s hermafroditas),
raças, nacionalidades e culturas.Ele é híbrido (supera a lógica do ou um ou outro para se situar
na froteira entre o um e o outro), ambíguo.

Em resumo:
1 - Os corpos dos monstros revelam alguma informação sobre a cultura do povo que o criou.
2 - Necessitamos de monstros, por isso eles sempre estão presentes. Nunca morrem.
3 - Os monstros são híbridos, um e outro ao mesmo tempo.

Conceito III: Sete Teses

Hoje vamos conhecer um texto clássico sobre os monstros. As famosas sete teses do professor
de língua inglesa da George Washington University, Jeffrey Jerome Cohen. Para esse
pesquisador, os monstros podem ser definidos, em termos de uma teoria cultural, sobre sete
aspectos. Vejamos que aspectos são esses:

1 - O corpo do monstro é um corpo cultural

O monstro nasce nessas encruzilhadas metafóricas [momentos de incertezas, de crise], como a


corporificação de um certo momento cultural - de uma época , de um sentimento, de um lugar
(...) o corpo monstruoso é pura cultura. p. 26-27.

2 - O monstro sempre escapa

O monstro em si torna-se imaterial e desaparece, para reaparecer em algum lugar. (...) Uma
'teoria dos monstros' deve, portanto, preocupar-se com séries de momentos culturais, ligadas
por uma lógica que ameaça, sempre, mudar. p. 27-29.

3 - O monstro é o arauto da crise de categorias

O monstro sempre escapa, porque ele não se presta à categorização fácil. Eles são híbridos que
perturbam, híbridos cujos corpos externamente incoerentes resistem a tentativas para incluí-los
em qualquer estruturação sistemática. p. 30.

4 - O monstro mora nos portões da diferença

O monstro é a incorporação do Fora, do Além - de todos aqueles loci que são teoricamente
colocados como distantes e distintos, mas que se originam no Dentro. A exageração da diferença
cultural se transforma em aberração monstruosa. O diferença monstruosa tende a ser: cultural,
sexual, racial, nacional, político-cultural. p. 32-33.

5 - O monstro policia as fronteiras do possível

O monstro impede a mobilidade (intelectual, geográfica ou sexual), delimitando os espaços


sociais através dos quais os corpos privados podem se movimentar. O monstro da proibição
policia as fronteiras do possível, interditando, por meio do seu grotesco corpo, alguns
comportamentos e ações e valorizando outros. p. 41-42.

6 - O medo do monstro é realmente uma espécie de desejo

Para que possa normalizar e impor o monstro está continuamente ligado a práticas proibidas. O
monstro também atrai. Nós suspeitamos do monstro, nós o odiamos ao mesmo tempo que
invejamos sua liberdade e, talvez, seu sublime desespero. p. 48.

7 - O monstro está situado no limiar... do tornar-se

Esses monstros nos perguntam como percebemos o mundo e nos interpelam sobre como temos
representado mal aquilo que tentamos situar. Eles nos pedem para reavaliarmos nossos
pressupostos culturais sobre raça, gênero, sexualidade e nossa percepção da diferença, nossa
tolerância relativamente à sua expressão. Eles nos perguntam por que o criamos. p. 55.

Para saber mais:

COHEN, Jeffrey Jerome. A cultura dos monstros: sete teses. In: SILVA, Tomaz Tadeu
da. Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.

ANDRADE, Luiz Eduardo da Silva. A natureza monstruosa em Vidas Secas de Graciliano


Ramos. Diponível em: http://www.mafua.ufsc.br/numero11/ensaios/andrade.htm. Acesso em:
18 de nov. 2009.
JEHA, Julio (org.). Monstros e monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
OLIVEIRA, Amael. O rosto de Jano: Imagens ambivalentes da natureza em O Guarani de José
de Alencar. Disponível em:
http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao09/artigos_oliveiraa.php. Acesso em: 18 de nov.
2009.

TEXTOS RETIRADOS DO BLOG: http://conversasdemonstros.blogspot.com/, do professor


Amael Oliveira de Aracaju, Sergipe. Graduado em Letras Vernáculas e Mestrando em Letras pela
UFS e pesquisador da área de monstros.

Você também pode gostar