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NOTA AZUL

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Freud, Lacan e a Arte

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Alain Didier~ Weill
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Como compreender, hoje, o
sentido do ato artfstico
O que a prática do senão como a tentativa
psicanalista não cessa de humana de lutar contra a
lembrar é que a mes- ameaça de um saber que
tiçagem de substâncias tão nos olha de todos os lados,
heterogêneas quanto o são dos satélites à televisão, que
a materialidade do corpo, a nos ouve de todas as partes,
imagem do corpo e o verbo suas estatísticas e pesquisas
enxertado neste corpo de opinião, e que instrui
institui entre corpo, nossos corpos, múltiplos
imaginário e palavra uma regimes e academias de
nodulação cujo caráter ~stica? Neste sentido, a
problemático traduz-se por criação artfstica preservaria
este sofrimento que se aquilo que constitui o mais
chama sintoma. íntimo do sujeito: o enigma.
A partir deste ensina:- Em Nota Azul estão
mento quotidiano con- rewúdos diferentes mo-
cedido ao psicanalista, m~ntos de seu trabalho
Alain Diclier-Weill teórico: desde uma de.suas
interroga as relações intervenções nó Seminário
existentes entre a,arte e a de Jacques Lacan até um.
psicanálise, trazendo em· artigo inéditÓsobre a
sua reflexão as incidên- concepção <!e sublimação
cias do ensino de Lacan ea\ Freud. Além disso,
sobre a função do real publicamos a tradução de
na estruturação do L' Artysp (Paris, 19%),
psiquismo humano. manifesto dirigido a artistas
Como podemos, então, e psicanalistas , escrito. por
assumir o reconheci- Alain Didier-Weill com
mento de que não somos outros dois psicanalis~,
senhores da palavra, mas Chawki Azouri e Claude
de que somos instituidos Rabant, assim como a
pelo que dizemos? contribuição de Marro
Antonio Coutinho Jorge
sobre o poder da palavra e a
obra de Oarice Lispector.
NOTA AZUL
NOTA AZUL
Freud , Lacan e a Arte

Alain Didier-Weill

com a colaboração de :
Chawki Azouri
Ctaude Raban t
Marco Antonio Cou ti nho Jo rge

l t reimpressão

TRADUÇÃO
Cristina Lacerda (parte I)
Marcelo Jacques de Moraes (parte 11)

\I I;o [ <=- oott-


Copyright © 1976, 1977, .1996, 1997 Alain Didier-Weill
Copyright ©1996 Chawki Azouri
Copyright ©1996 Claude Rabant
Copyright ©1997 Marco Antonio Coutinho Jorge

Tradução
Cristina Lacerda
M.ilTcelo Ja cques de Moraes

Revisão Técnica
Marco Antonio Coutinho forge

Projeto Gráfico e Preparação


Cmrtra Capa

ISBN
85-8601 1-04-5

1997
Todos os direitos desta edição reservados à
Contra Capa Livraria Ltda.
<ccapa@easynet.com. br>
Rua Barata Ribeiro, 370 - Loja 208
22040-000 -Rio de janeiro - RJ
Te! (55 21) 236-1999
Fax (55 21) 256-0526
SUMÁRIO

Parte I

Alain Didier-Weill
Preliminar a uma revisão da concepção de
sublimação em Freud 7

1' artysp

Alain Didier•Welll
O artista e o psicanalista questionados um
pelo outro 19
Chawk i Azouri
Testemunhos de um encontro com o vazio 37
Claude Rabant
O vazio, o enigma 47

Parte n

Alain Didier-Weill
A Nota Azul: d e quatro tempos subjetivantes
na música 57
O circuito pulsional 85
Marco Antonio Coutinho Jorge
Clarice Lispector e o poder da palavra 105
PRELIMINAR A UMA REVISÃO DA CONCEPÇÃO
DE SUBLIMAÇÃO EM FREUD

Alain Didier- Weill

FREUD E O ARTlSTA

Dar continuidade a uma reflexão sobre a


sublimação requer que, preliminarmente, lo-
calizemos os pontos que, na elaboração de
Freud, possam ter sido obstáculos a seu pró-
prio avanço sobre a questão.

1º) O artista é um introvertido. Comece-


mos por esta citação extraída de Introduction q
la psychanalyse: "O artista é um introvertido que
beira a neurose. Animado por impulsos e ten-
dências extremamente fortes, ele quer conquis-

7
PRELIMINAR A UMA REVISÃO DA CONCEPÇÃO

tar honra, poder, riqueza e o amor das mulheres.


Mas faltam-lhe os meios de providenciar para si
tais satisfações. E por isso, como todo homem in-
satisfeito, ele dá as costas para a realidade e con-
centra todo seu interesse, e também sua hbido, nos
desejos criados por sua vida imaginativa (...)"1•

Interrompo essa citação, cujo aspecto


r educionista é patente, para observar que
Freud deixa de considerar a questão do belo.
Ele se interessa pela intenção do artista sem
se deixar questionar pelo produto artístico
como tal, que existe independentemente dos
aspectos psicobiográficos do criador.

Eis por que Freud não se pergunta o que é


o sublime, mas apenas o que é a sublimação.

2 12) A arte como sedativo. Em numerosas


passagens, Freud trata a arte como um seda-
tivo, como um ópio, como uma consolação,
muito próxima do que diz da ilusão religiosa.

1. N. do T. Trata-se do último parágrafo da Conferênci8


XXID:as-caminhosda fonnaçãodossintomas( I 916-191 7};
cf. f'reud, S. "Conferências Introdutórias sobre Psicarullise",
l}iiçiioStandardBrasiieim, vo1. XVI. Rio de.Janeiro,~ 1976,
p.438-439.

8
ALAIN O IDIER-WEILL

Esta concepção está, para ele, ligada ao fato


de que o princípio de prazer~ como objetivo
da vida, não pode proporcionar, por causa da
cultura, uma felicidade duradoura, pois não
consegue senão momentos fugidios de satisfa-
ção relacionados a uma descarga de tensões.

Observamos quanto a isso que Freud, ao


fazer do princípio de prazer objetivo da vida
(Malaise dans la civilisation, 1928), deixa d e
lado o que havia dito, oito anos antes, sobre a
pulsão de morte como objetivo da vida.

3º) Freud pensa o artista sob um ponto d e


vista e terno, sem o situar como intérprete con-
creto e singular de seu tempo.

4°) Freud interpreta a narcose facultada pela


arte romo ligada a forças imaginativas do artista.
Nisso ele está defasado em relação aos artistas de ·
seu tempo, que, desde Kant, estavam preparados
para considerar a produção do sublime como o
efeito de uma explosão do imaginário.

SQ) Freud em contradição consigo mesmo.


Malaise dans la civilisation inicia com a ques-
tão do sentimento oceânico no debate com
Romain Rolland. Mostra-se capital para Freud

9
P!RF.UMINAR A UMA REViSÃO DA CONCEPÇÃO

não denegar a existência deste sentimento-


"estou disposto a admitir a existência do sen-
timento oceânico em um grande número de
.homens"-, mas subtrair-lhe um papel origi-
nal na origem d~ vida religiosa.

Na verdade, se fosse esse o caso - uma


posição mística original na origem da religio-
sidade -, a concepção freudiana de Totem et
tabu ficaria arruinada,uma vez que, para
Freud, o sentimento religioso é efeito de um
assassinato primordial que induz, com a apari-
ção do remorso, o retomo de wn pai todo-po-
deroso que é o verdadeiro fundador da religião.

O ponto que Freud não chega a pensar é


que haja um laço originário entre o assassi-
nato do pai e a aparição do sentimento oceâ-
nico. Com efeito, a concepção trazida por
Lacan do significante do Nome-do-Pai é a de
uma metáfora indutora de uma superabun-
dância vital, cujo caráter ilimitado evoca para
nós o ·s entimento oceânico.

Se vincularmos esta experiência do ilinúta-


do, que é o sentimento oceânico, ao que Freud
introduz com a pulsão de morte - entendida

10
ALAIN DIDil!R-WEJLL

como o que chama o homem ao mais-além dos


ümites da vida -, devemos retomar a concep-
ção freudiana da sublimação tal qual se apre-
sentava antes de 1920. Nesta perspectiva, re-
pensamos a sublimação ligada a um ~p~o à •
simbolização e não a uma dessexualizaçao. A
sublimação seria, nesta perspectiva, não secun-
dária em relação ao sexual, mas primária, es-
trutural, de tal sorte que o dualismo freudiano
(Eros- Tanatos) corresponderia à divisão
construída por Lacan entre:

- o Eu assujeitado ao objeto sexual pela


ordem libidinal (Eros),

- o Sujeito assujeitado à ordem simbóli-


ca, que Lacan interpreta como máscara da
pulsão de morte.

São assim postos em perspectiva dois ti-


pos de desejos antinômicos: desejo conforme
o Eu, causado por aquela causa material que é
o objeto sexual; desejo X, causado por aquela
causa material que é a finalidade significante.

Lacan substitui esse dualismo freudiano


pela trilogia RS.l., o que tem por função criar

l1
PRELIMINAR A UMA REVISÃO DA CONCEPÇÃO

uma nodulação a três, uma vez que existe um


terceiro elemento - o real - que é comum
a Eros e a Tanatos: de um lado, Eros lida com
um real sexual, silencioso, na ordem libidinal;
de outro, o real, uma vez que ele é aquilo de
que o simbólico tem que se encarregar para
içá-lo à simbolização do par-l'être2, não é ex-
clusivamente sexual. Por exemplo, o real da
lei da gravidade que confere ao corpo seu peso.

·Assim, em Lacan, a mesma palavra, reaf,


remete a dois aspectos: o real que passa no
desejo sexual sem ser nomeável e o real do
qual o par-l'être é culpado sempre que não o
simboliza, como faz, por exemplo, o dança-
rino ao subtrair seu corpo à gravidade.

FREUD, LACAN E O FIM DE UMA ANÁLISE

Nesta passagem de Freud a Lacan, do dois


ao três, existe uma retomada por Lacan do
sentimento oceânico, ao qual ele confere o es-

2 . N. do T. O autor joga com a homofonia entre pnrfetrc,


neologismo criado por Lacan para desiznaro Sujeito em
seu ser de fala, falcnte, e par-l'être, literalmente pelo-
ser, pclll.-lctrd.

12
ALAIN DIDIER·WEILL

tatuto do gozo místico. Nessa perspectiva,


Lacan situa-se na linhagem de certos nústi-
cos (Angelus Silesius, Hadewijch de Antuér-
pia e Santa Tereza d' Ávila) e acrescenta o se-
guinte: "tais jaculações místicas não são ta-
garelice, nem palavrório; são, em suma, o que
de melhor podemos ler. [...} E, assim, vocês
ficarão convencidos de que eu acredito em
Deus. Creio no gozo da mulher, no que ele é
• 113
a-mais... .

Ao reintroduzir a posição mística, bem


como ao questionar a função feminina da
transferência, Lacan faz recuar a concepção
freudiana do fim da análise: esse fim não é,
como para Freud, redutível ao luto da ilusão
de idolatria do pai, pois, mais-além do pai
imaginário, há um pai simbólico barrado por
um real que conceme ao feminino: "Creio no
gozo da mulher, no que ele é a-mais. [...1Este
gozo que se experimenta e do qual nada se sabe,
não será ele justamente o que nos coloca na via
da ex-sistênda? Por que não interpretar uma
face do Outro, a face Deus, como sustentada
pelo gozo feminino? Tudo isso se produz graças

3. Lacan,J.le Séminaire, livreXX: Encvtr:. Patis, Seuil, 1975,


p. 70-71.
13
PRELlMlNAR A UM A REVISÃO DA CONCEPÇÃO

ao ser da significância, e este ser não tem outro


lugar senão o lugar do Outro..."".

"Deus é precisamente o lugar onde é pro-


duzido o dieu - o díeur- o dire. [...I E enquan-
to alguma coisa ainda seja dita, a hipóte~e Deus
estará aí"5 •

Para Lacan, Deus como hipótese "não saiu


de cena". A "não-saída" desta hipótese encon-
tra seu lugar em Lacan no termo "suposição"
de um sujeito suposto saber.

O SONHO DE IRMA E A PULSÃO INVOCANTE

Lacan supõe, naquele que vai se tomar ana-


lista, um desejo X ligado ao instinto de morte,
do qual dá uma ilustração marcante no Semi-
nário Le moi dans la théorie de Freud et dans la
technique de la psychanalyse, ao comentar o so-
nho de Irma: Lacan interpreta a produção do
significante trimetilamina como a produção de

4. Idem, p.71.
5. Idem, p.44.

14
ALAIN DTOIER·WEILL

um significante no plano do qual acontecem o


que ele chama de uma "liberação do sujeito" e
de uma "saída da culpa inconsciente".

Eis a maneira como Lacan comenta a pro-


dução de trimetilamina: "Tal como um orácu-
lo, a fórmula não dá resposta alguma a qual-
quer coisa que seja". Mas o modo pelo qual
ela se enuncia, seu caráter enigmático, é que
é a resposta à questão do sentido do sonho.
Pode-se decalcar a formulação islâmica: "Não
há outro Deus senão Deus: não há outra pa-
lavra, outra solução para o vosso problema,
senão a palavra".

Uma outra voz toma a palavra... Podería-


mos chamar de Nemo este sujeito fora do sujei-
to que designa toda a estrutura do sonho ... Não
há outra palavra do sonho senão a própria na-
tureza do simbólico... Esta palavra não quer di-
zer nada senão o que é, uma palavra...

Seria uma palavra delirante se o sujeito so-


zinho tentasse achar aí, à maneira de um
ocultista, a designação secreta do ponto onde
está, na verdade, a solução do mistério do su-
jeito e do mundo. Mas ele não está sozinho.

15
PRELIMINAR A UMA REVISÃO DA CONCEPÇÃO

É dentro dessa possibilidade de dirigir-se a


- pela qual o sujeito sai da solidão -que
Freud, a nosso ver, entra na dimensão de uma
invocação que estrutura não a Demanda, mas
a pulsão invocante.

A diferença entre ambas está em que a


demanda visa a um Outro que deve estar
imediatamente presente, ao passo que a in-
vocação dirige-se a um Outro que não está
pré sente senão como por-vir. A pulsão
invocante é assim transferência no tempo.

O paradoxo temporal ligado à produção


do significante trimetilamina é o seguinte: de
um lado, por intermédio deste significante, o
sujeito se dirige a um Outro que ainda não
está presente, mas cujo advento é esperado
em virtude de uma certa transferência no tem-
po; por outro lado, nesta invocação para o
futuro, o Sujeito toma nota, no presente, do
fato de que ele está fazendo uma aposta com
a quaJ afirma que acredita "nisso".

Acreditar nisso, e não acreditar "nele" ou


"neJa", é a definição mais sucinta que pode-
mos dar do amor.

16
l' a r t y s p

Ala in Didier-Weill
Chawki A:r.ouri
Claude Rabant

Três textos. Três proposições resultantes de um


diálogo orientado pelo desejo comum de uma
"máquina anti-<enSUra". Três abordagens para
um manifesto dirigido a artistas e a psicanalis-
tas. Triplo e mesmo desenho de um movimen-
to em que se pcssam cruzar e questionar dife-
rentes experiências habitadas por um mes-
mo anseio: o do gesto em seu acontecimento
e o da palavra em seu ato.

MCMXCVI
PARJS
O ARTISTA E O PSICANALISTA QUESTIONADOS
UM PELO OUTRO

Ala in Didier- Wem

A QUESTÃO QUE O ARTISTA PROPÕE AO


PSICANALISTA

Que o humano é o efeito da mestiçagem


de substâncias tão heterogêneas quanto o são
a materialidade do corpo, a imagem do cor-
po e o verbo enxertado neste corpo, tal é o en-
sino quotidianamente concedido ao psicanalista.

19
O ARTISTA E O PSICANALISTA

O que a prática do psicanalista não cessa


de lembrar-lhe é que essa mestiçagem, pela qual
o real, o simbólico e o imaginário se entrelaçam,
institui entre corpo, imaginário e palavra uma
nodulação cujo caráter problemático traduz-
se por este sofrimento que se chama sintoma.

Se a ênfase do sofrimento incide sobre o corpo,


o sintoma expresso pelo analisando privilegiará o
mal-estar que pode um sujeito experimentar na
maneira que tem de habitar o próprio corpo. &se
mal-estar é a própria expressão do fato de qu~,
após ter-se tomado falante, o homem se viu des-
pojado daquela naturalidade que tanto o fascina
no corpo do animal: será concebível um cavalo,
ou wn gato, que dê a impressão de estar mal alo-
jado em seu corpo, de sentir-se apertado nele ou,
ao contrário, de nele perder-se?

Que poderá a análise transmitir a um sujei-


to que sofre de não sentir-se "em casa" no seu
próprio corpo? De que modo poderá o anali-
sando- o qual, mergulhado na depressão, tem
a sensação de receber tamanha pressão da gra-
vidade que não mais pode erguer um corpo que
se tomou excessivamente pesado - reencon-
trar a leveza saltitante desse corpo?

20
ALAIN DIDIER-WEJLL

A experiência nos ensina que o sujeito


pode esquecer esta dimensão do corpo que
pesa - vale dizer daquele companheiro que
é o cadáver potencial - quando o real do
corpo redescobre o liame primordial com o
poder originário daquele véu humanizante
que é a vestimenta, a roupa.

Por efeito da humanização trazida por


este véu, o real do corpo subtraído ao reino
exclusivo do peso toma-se um real chamado
a elevar-se, a erguer-se num movimento que
o impele a olhar para o céu. O enigma deste
movimento ascensional em que nosso ances-
tral, o Homo erectus, ergueu-se um dia envol-
ve uma outra força que não a do músculo.

E assim é que esse movimento de


reerguimento, que pode transmitir um traba-
lho analítico, prende-se à capacidade do ana-
Usando de poder esquecer que seu corpo não é
apenas material: este corpo encerra a possibi-
lidade de ser imaterializado pelo enxerto do véu
imaginário e da palavra.

Esse enigmático poder de esquecimento-


que o analista articula ao esquecimento pri-

21
O ARTISTA E O PSICANALISTA

mordial do recalque originário- é a primei-


ra pergunta que o analista recebe do artista
quando este se faz dançarino: não é o artista
aquele que nos instrui sobre a aptidão do cor-
po para recusar o peso ao dar testemunho de
sua parte de imaterialidade?

Se, na primeira face que apresenta , o


sinto ma humano, ao privilegiar o sofri-
mento ligado ao corpo, é questionado
pelo destino que -a dan ça outorga ao cor-
po, em sua segunda face, o sintoma hu-
mano, estando ligado à perturbação da
imagem do homem, receb e, agora do pin-
tor, uma pergunta fundamental.

O sofrimento ligado à imagem do corpo


prende-se ao fato d e que esta imagem é
estruturada como fundamentalmente depen-
dente do olhar do outro. A expressão desta
dependência toma, de modo geral, duas di-
reções antinômicas.

Na primeira destas direções, o sujeito é


conduzido à seguinte pergunta: "Serei eu con-
forme ao que o olho do Outro espera de mim?
Tenho eu a boa fonna, o bom uniforme?".

22
ALAIN DrOIER-WEILL

A experiência nos ensina que, para adqui-


rir tal conformidade, o sujeito está pronto a
se renegar. Para isto, uma vez que a função
do olhar é a de procurar uma imagem, ou seja,
algo de fundamentalmente silencioso, ele está
pronto a desqualificar-se como ser falante e, se
este sujeito é uma mulher, a obedecer, como
imagem, à seguinte injunção: "Seja bela e cale-
se!". O sentido dessa auto-desqualificação é:
"Consinto no silêncio já que consinto em não
ser mais do que imagem visível, quer dizer, coi-
sa despojada de invisível. Na verdade, sei que o
que fala não poderia ser senão invisível".

A segunda direção que pode tomar o so-


frimento do sujeito exposto ao olhar prende-
se ao que lhe acontecerá quando, deixando-
se transparente sob o "olho mau" medusante,
tem então a experiência de perder aquela coisa
viva que há nele e que é a sua parte de
invisibilidade. A partir daí, sua imagem, des-
pojada de sua parte de inimaginável, desa-
parece, pois sua consistência visível vinha-lhe
apenas da existência de sua carga de invisível.

Que acontece ao sujeito que é visto de to-


dos os lados por um olhar onividente, onisd-

23
O ARTISTA E O PSICANAUSTA

ente? Ele é medusado, tornado estátua, redu-


zido à imobilidade. O deslocamento e o mo-
vimento só se tornarão de novo possíveis para
ele caso reencontre, por um trabalho psica-
nalítico, aquele ponto para além da imagem
que é, como indica o segundo mandamento
da lei mosaica, a palavra.

Desse terceiro ponto em que a palavra e a


imagem cessam de estar dissociadas, pode
apàrecer um outro tipo de olhar, completa-
mente diverso daquele do "olho mau": esse
novo olhar que o analisando encontra no fim ·
da análise é, contrariamente ao olhar que tudo
sabe, wn olhar que não sabe tudo e que está,
por isto mesmo, disposto a poder não conhe-
cer, mas reconhecer o que há de invisível no
sujeito. Poder-se-ia dizer ql.!e o advento deste
oTh.ar se dá como olhar que ouve: manifesta-
se pela primeira vez na cena trágica grega
quando Apolo - deus da imagem - conse-
gue "ver" o que ouve: a música de Dioniso.

É neste ponto que o analista que se inter-


roga sobre a estrutura do olhar que ele pró-
prio pousa no analisando encontra a questão
do olhar do pintor: não é o pintor aquele que

24
ALAIN DIDIER-WEILL

sabe ouvir o invisível e sabe deixá-lo à mostra


com algumas manchas de cor?

O terceiro sentido em que se experimenta


o sintoma é aquele que se induz no sujeito
quando a palavra deste, desajeitada, intimi-
dada pelo temor de não articular, de gague-
jar, prefere esconder-se no silêncio para não
correr o risco de fazer ouvir, para além do
que as palavras poderiam fazer escutar, a di-
mensão do inaudito própria ao inconsciente.

Como pode um sujeito, na verdade, assu-


mir o reconhecimento de que é instituído não
pelo domínio do que pensa, mas pelo que diz,
já que, do momento em que ele se permite fa-
lar verdadeiramente, descobre que não é se-
nhor da palavra, pois é ela que é a sua senho-
ra: é a palavra que dispõe do poder criador
de transgredir o código e de deixar aparece-
rem significações inéditas.

É à medida que é levado a reconhecer que


o fato de não assumir o poder metafórico da
palavra é indutor do sintoma humano, que o
analisando é levado a recolher do poeta, do
músico, a seguinte pergunta: de que é feita a

25
0 ARTISTA E O PSICANAUSTA

sua relação com a linguagem se, por sua práti-


ca, ele é conduzido a subverter o que a prosa
faz ouvir de sensato, fazendo ouvir, pelo poe-
ma e pela música, o que o poema ou a música
transmitem de propriamente inaudito?

A QUESTÃO QUE O PSICANALISTA


PROPÕE AO ARTLSTA

Se as três faces do sintoma conduzem o ana-


lista a interrogar o inaudito, o invisível e o imaterial,
dos quais o músico, o pintor, o dançarino são os
embaixadores, não receberá o artista, em
contrapartida, uma pergunta do psicanalista?

Sim: o artista recebe do psicanalista a per-


gunta sobre a significação ética da palavra. En-
tender por que esta significação (oi recebida por
Freud através da herança grega nos leva are-
conhecer que, muito além do núto de Édipo, é
a significação da estrutura trágica que é decisi-
va para apreendermos o alcance da ética. Nes-
se sentido, a interpretação que nos propõe
Nietzsche para compreender a essência do trá-
gico mostra-se um caminho fecundo. Que está
dizendo Nietzsche quando afirma que a cena
trágica é o lugar de reconciliação de Dioniso e

26
ALAIN DlDIER-miLL

Apolo, senão que na verdade é possível essas


duas divindades que tudo opõem - pois uma
se encarrega da démesure da música e da dan-
ça e a outra do mundo da medida e da forma
-cessarem de se opor?

Esta cessação se produz à medida que Apolo


dá ao poeta trágico a possibilidade de traduzir,
com a forma visível, aquela essência íntima,
anterior a qualquer forma, que é a música.

Nessa operação, o poeta é um tradutor que


consegue que o ilinútado da mensagem mu-
sical encarne-se nos limites da imagem
apolínea: a palavra do poeta é assim o
significante pelo qual se podem amarrar o
real da música e a imagem especular.

Essa nodulação evoca uma outra pela qual


a linguagem escolástica introduzia, entre a es-
sência musical das coisas (universalia ante rem)
e o conceito apolíneo (uniuersalia post rem), a
existência dos uniuersalia in re como consti-
tuintes da realidade.

O que conservamos dessa nodulação -


que não deixa de evocar o nó borromeano -

27
O ARTISTA E O PSICANAUSTA

é que é necessária a palavra de um poeta tra-


dutor para que o real musical possa ser to-
mado pela imagem apolínea. Na tensão que
assim se estabelece entre o coro dionisíaco {que
assume não só a herança dionisíaca da dança
como a herança apolínea das leis da cidade) e
o ator, surge um diálogo que introduz a ética,
uma vez que tal dispositivo é o de um tribunal
onde se avalia a repartição das responsabilidades
dos De~ e dos Heróis. Esse tribunal da pala-
vra evoca o processo no qual o analisando con-
sente em engajar-se, investindo no novo lugar
trágico que é o divã: o sujeito do inconsciente
não seria o poeta tradutor que toma visível aqui-
lo que a imagem especular tem de inaudito e
que, inversament.e, permite a este inaudito
encarnar-se como invisível no visível?

Neste sentido, o tribunal da palavra colo-


ca uma questão para todo criador artístico:
quando um sujeito engaja-se efetivamente no
caminho da criação ele não tem que levar em
conta, caso seja músico ou dançarino, a tradu-
ção de seu ato dionisíaco na linguagem apolínea
da forma. Inversamente, caso seja pintor, não
lhe é exigido dizer qual o real invisível que ele
consegue encarnar numa imagem visível.

28
ALAIN DIDIER-WEILL

Se este pôr entre parênteses a palavra não


é em nada prejudicial à qualidade do ato artís-
tico, propõe, no entanto, a questão dele decor-
rente, que é a de pôr entre parênteses a ética.

Um exemplo caricatural: que pensar da


intensa emoção estética que levava os oficiais
nazistas a soluçarem quando ouviam música
do Romantismo, mesmo se, à saída do con-
certo, retomavam sua tarefa quotidiana?

Se a música tem por sua conta um real


ilimitado que o limite da palavra sequer pode
transmitir, significa isto que o homem, quan-
do tomado pela música, cessa radicalmente
de estar sob a ascendência da ética transmiti-
da pela palavra?

É porque podemos supor o horror do qual


ver-se-ia Chopin tomado ao ter conhecimen-
to de que aos soluços que sua música provo-
cava entre 20 e 22 horas sucedia a tranqüila
retomada de um trabalho de morte, que po-
demos dizer que, embora a música não enun-
cie de maneira categórica o mandamento
''não matarás", ela traz implícita, no entan-
to, uma promessa não-formulada.

29
O ARTISTA E O PSICANALISTA

É este caráter de promessa não-formula-


da próprio à criação artística que, hoje em dia,
levanta para nós uma questão.

É à medida que aquilo que especifica o mal-


estar de nosso mundo está ligado ao fato de
que o desenvolvimento científico das técnicas
tende a ameaçar, de maneira totalmente
nova, a humanização prometida pela via da
palavra, que a responsabilidade do analista
-lutar, 'a sua maneira, contra toda ameaça
que paire sobre a existência da palavra -
passa iguabnente pela atitude de colocar a
questão da responsabilidade atual do artis-
ta, de modo que, também ele, embora por
outros meios, esteja na resistência contra o
desfalecimento do verbo.

Um dos modos pelos quais podemos,


hoje, definir o mal-estar de nossa civiliza-
ção está em que a nova encarnação da ame-
aça ao ·logos resulta dos efeitos globais da
difusão de um saber de ordem científica,
saber anônimo, saber sem sujeito, que se tra-
duz na onipotência de um olhar posto so-
bre o homem. Somos olhados de todas as
partes: do exterior, pelo olho longínquo dos

30
ALAIN DIDIER-WEILL

satélites e, mais de perto, pelo olho


televisivo que introduz, no interior das ca-
sas, a dimensão de um saber anônimo.

Quanto à nossa interioridade física, está


ela doravante sob o olho das múltiplas son-
das endoscópicas, que vêm perscrutando o
interior de nossas cavidades corporais até
o ponto de terem feito cair o mistério dos
mistérios, que era o da nossa concepção: que
efeito pode ter sobre o inconsciente huma-
no o fato de sabermos que existe um saber
que olha o encontro do espermatozóide com
o óvulo?

Este olho anônimo científico, que toma


o lugar do olho divino, não leva mais à cul-
pa, antes disso a um perigo mais radical: o
do aniquilamento puro e simples do sujeito ·
do inconsciente, que não pode, com efeito,
ter oportunidade de existir senão à medida
que permaneça inconsciente, isto é, não
sabido de todo saber exterior. Ao olho de
Deus, que é devastador pela culpa que in-
duz, pois ele julga e condena, opõe-se o olho
científico que não julga: contenta-se com
saber de modo absoluto.

31
O ARTISTA E O PSICANAUSTA

A diferença entre esses dois olhares está


em que o primeiro induz ao recalque, causa
de neurose, ao passo que o segundo leva an-
tes a uma foraclusão do sujeito que, perden-
do seu incógnito, perde sua relação com o que
institui este incógnito: a palavra.

O sujeito que se presta a ser - não visto


- olhado não pode mais emprestar-se à pa-
lavra constituinte: pode, quando muito, su-
jeitar-se·a uma palavra constituída por uma
sociedade de espetáculo na qual ele é espera-
do como espetacular, quer dizer, não mais
como Sujeito mas como Eu. Se ele não se dá a
si próprio como espetáculo, ele é reduzido à
posição de ser um espectador que, com seu
olho, contempla a cena de um mundo do qual
está excluído como agente, p ois seu olhardes-
tina-o à função de espectador.

Uma das expressões do mal-estar ligada à


sociedade de espetáculo manifesta-se, desde os
anos 1920, no discurso fascista que denuncia
um mundo que, sob o choque do materialismo,
é progressivamente despojado de espírito.

O que acontece quando a extensão do


campo do olhar deixa cada vez menos opor-

32
ALAIN DIDIER-WEILL

tunidades ao campo da p alavra? Se a pala-


vra é aquilo por que a matéria é sublimada, o
empobrecimento da palavra traduz-se
correlativamente pela extensão da noção de
matéria. O perigo maior da percepção
invasiva do materialismo reside nos tipos de
soluções que aparecem para lutar contra a
matéria. Nosso século viu aparecer o discur-
so fascista que, em seu ponto de partida, é
tentativa de reencontro da pureza de uma
alma coletiva ameaçada pela impureza da
matéria, seja esta comunista ou capitalista.

À solução dualista do fascismo, que para


abater a racionalidade do Iluminismo joga a
carta da obscuridade romântica, a p sicanáli-
se foi na época, como observou Thomas·
Mann, o único pensamento a opor-se, a lu-
tar, no plano do pensamento, contra o fascis-
mo, uma vez que a psicanálise não jogava,
como este, o irracional contra o racional, mas
o racional com o irracional. Entre a clareza
da razão e a exigência obscura da pulsão, a
psicanálise põe em evidência a existência de um
terceiro ponto: a palavra do sujeito do incons-
ciente, que carrega a um só tempo as luzes do
século XVni e o romantismo do século XIX.

33
O ARTISTA E O PSICANALISTA

Decerto não foi por acaso que a psicanáli-


se nasceu em nosso século com a descoberta,
por Freud, do trauma pelo qual o infans expe-
rimenta, no alvorecer de sua vida histórica, o
surgimento de um olhar medusante que o re-
duz à pura materialidade de um corpo petri-
ficado porque repentinamente destituído de
qualquer habitação simbólica.

Se existe portanto uma relação entre o ho-


mem moderno traumati.zado pela onisciência
de wn saber que olha e o infans trawnatizado
pela dimensão do saber absoluto do olhar, é que
o homem, fundamentalmente, é trawnatizável
e C)Ue nossa época conjuga, paradoxalmente, à
emergência de um progresso emancipador o
aparecimento de um olhar eminentemente
ameaçador para este progresso.

Como compreender o sentido do ato ar-


tístico senão como a tentativa feita pelo ho-
mem de lutar contra essa ameaça, substituin-
do ao homem, ameaçado de anonimato pelo
saber absoluto, a parte de incógnito que é seu
bem mais íntimo? Onde o homem, observado
de todos os lados, fica transparente, eis que o
pintor recorda-lhe que ele continua habitado

34
ALAIN DTDJI!R-WEILL

pelo invisível; onde o homem é ouvido de to-


dos os lados por todas as mídias, pelas esta-
tísticas, pelas pesquisas de opinião, a música
vem lembrar-lhe que, ao contrário e contra
tudo, o inaudito conserva suas exigências;
onde os movimentos do homem são calibra-
dos, por todos os lados, pelas marchas milita-
res e, hoje em dia, sobretudo pela maneira de
movimentar-se dos novos ídolos que são os
stars, o dançarino é a<]uele que relembra ao
homem o fato de que nele permanece um mo-
vimento original cujo caráter absolutamente
inimitável e le tend e a esquecer, dada a
pregnância das imagens que sugerem a imi-
tação massificada.

35
TESTEMUNHOS DE UM ENCONTRO
COMO VAZIO

Chawki Azouri

Quinze anos após a dissolução da École


Freudíenne e a constituição dos diferentes gru-
pos dela originários, a conclusão de Lacan, em
1978,·sobre a transmissão da psicanálise perma;
nece válida: "A psicanálise é intransmissível...
Cabe a cada analista reinventar a psicanálise...
Cabe a cada analista reinventar a maneira de
manter viva a psicanálise". Apesar de sua de-
cepção com o passe, experiência que introdu-
ziu em 1967 para pernútir à comunidade dos
analistas aprender sempre com a
inventividade do recém-chegado, nem por
isso deixou Lacan de afirmar que o Outro não
existe, que o Outro não existe senão barrado. O
analista em formação/ que está no fim de sua
análise, está apto a dar-se conta disto, a encon-

37
TESTEMUNHOS DE UM ENCONTRO

trar o vazio no Outro e a disso dar testemunho.


Ai reside a capacidade de reinvenção dos ana-
listas. Mas a Instituição, inclusive a dele, na pre-
tensão de presentificar o Outro, continuará a
opor-se. O grupo mais uma vez leva a melhor
sobre o sujeito, e a École Freudienne de Paris, a
não ser porque foi dissolvida, não teve sucesso
onde a Intemational Psychoanalytical Association
(I.P.A.) fracassou.

Ora, desde a instalação de uma organiza-


ção internacional para a transmissão da psi-
canálise em 1910, o risco de exaurir-se não pas-
sou ao largo de muitos dos pioneiros que vive-
ram a primeira época do movimento, qualifi-
cada por Ferenczi de "guerra de guenilhas" e
de "combate não organizado"1• Ferenczi reco-
nheceu ter sido este combate que ganhou, para
o movimento ana1ítico, a "simpatia dos tempera-
mentos artísticos - cuja compreensão intuitiva
dos problemas focalizados por nós aliada à sua
aversão por tudo o que é escolástico, alinhou-os
ao nosso lado -, o que contribuiu significativa-
menre para a propagação das idéias de Freud".
1. N. do E. Para esta e as outras citações de Ferenczi, cf.
Fcrencr.i, S. "Sobre a história do movimento psicanalítico",
em Ob.u.ls Completas, vol. 1. São Paulo, Martins Fontes, 1991,
p.145- 154.
38
CHAWKI AZOURI

Mas, conforme observou igualmente


Ferenczi, "se uma parcela da sociedade que
reúne muito valor e muitos dotes simpatiza
conosco justamente por causa de nossa ca-
racterística de não-organização, a maioria,
habituada à ordem e à disciplina, encontra
nisso novo alimento para a sua resistência".
"Aos olhos desta grande maioria, somos uns
exaltados, sem organização nem disciplina, e
desse modo não vamos conseguir nos impor",
acrescenta Ferenczi, lamentando os inconve-
nientes nada desprezíveis que disso decorrem
nos seguintes termos: "Daí resulta que somos
considerados como apátridas, como pobres
miseráveis, pelos donos dos laboratórios de
pesquisa e experimentação, os quais duvidam
que possamos deter conhecimentos ignorados
por nossos parentes ricos".

Esse texto de Ferenczi, texto fundador da


I.P.A., escrito em 1910 a pedido de Freud e
sob a influência deste, dispensaria comentá-
rios não fosse tão atual. Podemos observar,
no texto, que a escolha estratégica de conquis-
tar "a grande maioria da sociedade" e de esta-
belecer aliança com a medicina, reconhecida
como "parente rico", faz-se acompanhar de

39
TESTEMUNHOS DE UM ENCONTRO

uma estrutura organizacional que privilegia a


ordem e a disciplina e realiza-se em detrimento
da aliança natural e primeira com os artistas,
que se tornam o parente pobre que se gostaria
de esquecer. Se essa busca de honorabilidade
que se quer científica só se pôde produzir gra-
ças a um distanciamento em relação às artes,
contribuiu ela sobretudo para o recalcamento
da mensagem freudiana, para a redução desta
a enunciados cristalizados transmitidos como
dogmas. A história do movimento analítico
mostrou o vínculo orgânico que existe entre este
tipo de transmissão e a própria estrutura de or-
ganização internacional construída segundo o
modelo da Igreja. Alguns, como Tausk e Witte.ls,
lamentaram, já no dia seguinte da fundação -
6 de abril de 1910 -, essa nova aliança com a
Medicina bem como a escolha da Suíça como
sede da presidência da nova associação. Para
eles, tais escolhas se fizeram em detrimento da
neurose dos psicanalistas vienenses e do solo
doentio que era Viena, necessários a primeira
ao acesso dos analistas à doutrina freudiana e
o segundo à difusão das idéias de Freud.

Com o propósito de trazer ao movimento


analítico a credibilidade de que carecia, a es-

40
CHAWKI AZOUJU

trutura institucional que se supunha trans-


mitir a mensagem fre udiana operou um
recalcamento no próprio lugar de onde Freud
a enunciava, um lugar tecido pelo vazio e pela
origem. Grande parte da dimensão criativa
da análise foi assim esquecida. Com o passe,
Lacan tentou reencontrar o caminho de urna
reinvenção possível na análise, apostando no
testemunho do analisando sobre a relação
opaca com a origem e com o vazio
experienciada no final da análise. Se é fato
que, ao encerrar o Congres sur la transmission
em 1978, Lacan reconheceu que o fracasso
do passe toma a psicanálise intransmissível,
sabemos por outro lado o quanto isso é expli-
cado pelo fato de que o gregário acabara no-
vamente prevalecendo na École Freudienne de
Paris. Com a dissolução desse gregário em
1980, estávamos de novo livres para
reinventar. Desde então, até que ponto a
reconstituição dos diferentes grupos terá fa-
cultado um novo tipo de laço social, de
reinvenção e de transmissão da psicanálise?
As crises, as divisões e as dissidênàas que se
abatem sobre nossas associações não serão um
sintoma do retomo do mesmo, pelo fato de que
o grupo acaba sempre por vencer o sujeito, de

41
TESTEMUNHOS DE UM ENCONTRO

que a "maioria" almejada por Ferenczi aca-


ba sempre, como em 1910, levando a melhor
sobre a minoria e de que a dimensão artística
da psicanálise acaba sempre pagando a conta
de sua busca de honorabilidade científica?

Reencontrar os camírihos da reinvenção


na psicanálise passa, aos nossos olhos, pela
redescoberta dos "ingredientes" de que Freud
se serviu para inventar a psicanálise e de que
Lacan, com sua abertura para outras discipli-
nas, igualmente lançou mão para tomar a fun-
dar a psicanálise. Se Freud reconhece que nos-
sos verdadeiros mestres são os clássicos, se o
Romantismo balizou o terreno da invenção da
psicanálise e se o Surrealismo foi o primeiro
movimento a reconhecer e a transmitir as idéi-
as de Freud na França, pensamos que é reno-
vando laços com a arte e a criação artística que
• p oderemos retomar a via da reinvenção na
psicanálise. E isso porque arte e criação artís-
tica são parte de nosso recalcado.

A arte e a criação artística são parte do


que foi :recalcado pela Instituição psicanalíti-
• ca no mesmo diapasão que a loucura, a femi-
nilidade e o fim da análise. Trata-se sempre de
uma relação com o furo, com o vazio no Outro,

42
CHAWKI AZOURI

que o artista, o louco, a mulher e o analisando em


fim de percurso- cada um a sua maneira - po-
dem encontrar e da qual podem dar testemunho.

Já neste recalcamento, Freud conta, e mui-


to. Diz ele que "de onde o artista retira sua
força criadora, esta não é uma questão que
diga respeito à psicanálise", e que esta última
"deve infelizmente baixar as armas diante do
problema constituído pela criação literária".
Na mesma direção, ao invés de procurar tet
um encontro pessoal com .Arthur Sclmitzler,
em cuja obra ele encontra um ou outro ponto
obscuro e que só pôde detectar após um pe-
noso trabalho de investigação, Freud evita
fazê-lo "por temor de encontrar o seu duplo".
Igualmente, a propósito de Nietzsche, Freud
escreve a Fliess que tem esperança de encon-
trar na obra do filósofo "palavras para mui-
tas coisas que pennanecem mudas nele", mas
nunca chega a ler mais do que algumas pági-
nas de Nietzsche. Trata-se também aí de uma
questão de anterioridade com relação às idéi-
as. Quanto aos psicóticos, se é hábito lembrar
que Freud não gostava deles, não deve isso
ser tomado como uma boutade, mas como um
fato de estrutura que põe em jogo os mesmos

43
TESTEMUNHOS DE UM ENCOI'ITRO

temores. Prova disso é a reflexão que Freud


apresenta a Jung sobre Otto Gross: Freud se
recu sa a aceitá-lo como paciente e, ao
encaminhá-lo a Jung, reconhece que sua re-
cusa tem origem no mesmo temor, qual seja
"a inevitável abolição dos limites de proprie-
dade na reserva de idéias produtivas". O pro-
blema transferencial que os loucos colocavam
para Freud acionava nele o medo de ver-se
roubado de sua originalidade teórica e da pa-
ternidade de seus conceitos.

A Instituição analítica construiu-se em par-


te para tranqüilizar Freud em relação a essa
paternidade. E disto decorreria um modo de
reprodução dos analistas baseado em uma te-
oria do fim da análise entendido como uma
identificação com o analista, vale dizer como
uma reprodução do mesmo. Também para
isso, Freud contou muito. Em seu texto que se
tomaria testamentário da questão do fim da
análise, Freud o concebe como condicionado
pela submissão ao pai, imposta ao analisan-
do à guisa de dívida com relação ao mestre:
"O homem não quer submeter-se a um subs-
tituto do pai, não quer sentir-se obrigado a
nenhum reconhecimento ...". Freud conside-

44
CHAWKl AZOURl

ra que essa "recusa de fenúnilidade", tanto


no homem como na mulher, é o limite
instransponível do fim da análise. Mas, para-
doxalmente, alguns anos antes, em 1932, ha-
via Freud reconhecido aos poetas um saber que
recusava aos psicanalistas: "Se quiserem saber
mais sobre a feminilidade, dirijam-se aos poetas". •

Se Freud temia a proximidade do psicótico,


e terminou por duvidar da possibilidade de
uma transferência psicótica, Lacan propõe fa-
lar de uma "transferência ao psicótico", indi-
cando com isso uma subversão da relação do
analista ao saber. A trajetória clínica, teórica
e institucional de Lacan marca profundamen-
te sua concepção do fim da análise. Esta con-
cepção vai mais-além da "recusa da feminili- •
dade" como rochedo intransponível, até re-
giões em que o encontro do vazio no Outro é
possível, em que ''se vivenda que o homem
não tem ajuda a receber de ninguém", "que
ele aprendeu sem ter tido mestre", momento
cujos efeitos de extrema aflição e desassosse-
go dão testemunho da passagem a analista.
Deste encontro com o vazio no Outro, o ana-
lista em fim de análise pode dar testemunho,
e Lacan chega mesmo a considerar que deste

45
TESTEMUNHOS DE UM ENCONTRO

momento pode nascer uma "iniciativa possí-


vel de um novo modo de acesso do psicana-
lista a uma garantia coletiva".

Não se espera do artista que dê testemu-


nho, como o analista, embora de modo dife-
rente, de que teve certo acesso ao vazio ·no
Outro? Em entrevista ao jornal Líbératíon
(agosto d e 1995), quando lhe perguntaram
sobre o lugar do silêncio e d o vazio em sua
obra, o pintor e escultor coreano Lee Ufan res-
pondeu: "O vazio não é o espaço em que o
artista fala. É o lugar em que aparecem o ros-
to e a voz do Outro p elo viés do toque d o ar-
tista. Quando se toca tambor, ouve-se um som
que não pertence nem ao tambor nem a quem
o toca".

46
O VAZIO, O ENIGMA

Claude Rabant

" esses d ois obj etos da voz , quase


planetarizada, senão estratosfcrizada, por nos-
sos aparelhos, e do olhar, cujo caráter invasor
não é menos sugestivo ..."
Jacques l.acan
Le Séminaire de Z4 de junho de 1964

SUJEITO DA CI~NC IA E SUJElTO DO ENIGMA

Se o analista só se pôde formar, historica-


mente, no campo da ciência, e se o sujeito se
vê cada vez mais confrontado à "relação com
essa ciência, à medida que ela invade o nosso

47
' O ENIGMA
O VAZIO,

campo, que ela se desenvolve," 1 não é menos


verdade que a experiência analítica nos faz
defrontar com outras dimensões do sujeito,
que designarei, genericamente, de "sujeito do
enigma". É ao enigma, com efeito, que ana-
lista e analisando estão conjuntamente sub-
metidos no curso de uma análise. De que
modo, portanto, ter em conta essas outras di-
mensões que ligam a análise não mais à ciên-
cia, mas às práticas artísticas, às práticas de
uma invenção sem modelo? E como encon-
trar, com respeito a esses dois objetos, a voz
e o olhar, dos quais a ciência n os impõe uma
modelização planetária, modos de interven-
ção de um outro tipo?

Não se trata de fazer uma guerra


disfarçada à pró pria ciência, ou a suas des-
coberta.s mais confirmadas - como querer
satanizar as novas possibilidades de procria-
ção esclarecida ou de pesquisas a partir do
genoma, em proveito de uma mentalidade
conservadora em termos de moraJ - , mas
antes de abordar as novas condições de lidar

1. Lacan,J.leSéminllircde 24 de junho de 1964, notas


inéditas.

48
CLAUDE RABANT

com esses dois objetos, a voz e o olhar, tal como


estas tramam a nossa existência. E, ao f~lo,
não nos podemos contentar com um
enfeudamento, como sujeitos da ciência, ao dis-
curso teórico-prático da conformidade. No
fundo, a questão é: onde ainda há revolta?

Nossa hipótese é que existem nas práticas


artísticas, como em certas práticas que é pos-
sível qualificar um tanto rapidamente de
"místicas" (para distinguí-las das religiões
estabelecidas), reservas de revolta de que ne-
cessitamos para sennos guiados no dédalo da
planetarização, ou da estratosferização como
dizia Lacan. O ponto comum dessas práticas
está em uma certa relação com o vazio, que
as opõe ao "demasiado-pleno" sem volta
dos objetos da tecnização desenfreada (com
a miséria e a morte que dela decorrem).

Quer se trate de frea r uma aceleração


excessiva (e não aderiríamos sem alguma
re serva à crítica corren te aos excessos da
"velocidade" de nosso arrebatamento)
ou, ao contrário, de encontrar uma outra for-
ma de aceleração, estrategicamente
dialé tica em relação à primeira - certa-

49
O VAZIO, O ENIGMA

mente há de ser este um dos pontos da dis-


cussão que deve ser incentivada.

NOSSO MITO QUE DESAPARECE

De qualquer modo, temos que trabalhar


em tomo do sentimento de um certo perigo
- quaisquer que sejam as diferenças de apre-
ciação desse perigo - , um perigo que
Nietzsche já relacionava às conseqüências do
que chamava de "nosso mito que desaparece".

"O filósofocomo.freiodarodadolempo. Énas ép?-


cas de grande perigo que aparecem os filósofos -
no momento em que a roda gira cada vez mais rápi-
do - , e eles e a arte tomam o lugar do mito que
desaparece. Mas os filósofos se lançam com grande
antecedência, pois a atenção dos contemporâneos
apenas lentamente volta-se para eles"2•

2. Nietzsche, f . Le livre du philosophe. Paris, Flanunarion,


199 1, p.42.

50
CLAUDE RABANT

Eles e a arte - nós e a arte - tomamos o


lugar do mito que desaparece. Duro destino,
diríamos nós, o de ser este mito que desapare-
ce. Não que tal desaparecimento se tenha com-
pletado; segundo toda verossimilhança, ele ape-
nas começa, e não podemos imaginar que se
complete sem o nosso próprio desaparecimen-
to. Mas estamos nesta desaparição - esta
"disparescência ", a essência de nossa
desaparição. Seria preciso, pois, não apenas
explorar esse mito, e mesmo.restaurar sua ori-
gem (o que não acreditamos possível), mas des-
camar seus restos, e .interrogar suas figuras de
desaparição, como figuras de nossa própria
morte e arcanos de nossa miséria. Não é, com
toda a evidência, para uma forma flamejante
da arte que nos voltamos, mas para suas for-
mas mais simples e mais extremas de pôr limi-
tes a nu. Pois é a partir desses limites que a es--
perança pode (re)tomar vigor. Apenas, a ad-
vertência de Nietzsche permanece, parece-nos,
sempre verdadeira, o aguilhão de nossa neces-
sária modéstia: devemos nos lançar com gran-
de antecedência, e é aqui que a lentidão retoma,
não como exigênáa generalizada de uma mo-
deração do tempo, mas como prova de uma
longanimidade de apostar em um tempo que

51
O VAZIO, 0 ENJCMA

extravasa sua velocidade atual de rotação. É


por isso que dizíamos ser possível tratar-se de
urna outra aceleração (e mesmo de uma ace-
leração ainda maior, em relação à qual a ve-
locidade atual seria apenas aparente). Esta
lentidão é o que daria testemunho de uma
certa relação com os "contemporâneos", tanto
quanto nos for possível voltarmo-nos, com
eles, para alguma coisa que necessariamente
ainda não chegou. Portanto, tal lentidão se-
ria "simultaneamente'' o testemunho desta
contemporaneidade, mas apenas à medida
que não somos "ainda" necessariamente ca-
pazes, todos e coletivamente, de percebê-la.

Isto significa, a nosso ver, que trata-se de


um espaço que clauclica necessariamente den-
tro,e fo~a da escrita, numa fronteira da visibi-
lidade ·"atual", da inscritibilidade "atual" -
uma fronte ira em que há decisões a tomar
e que são, muito especialmente, decisões de
leitura. Chamamos aqui de decisões de lei-
tura aquelas que estão para além do sim-
ples acionamento, ou investigação, do do-
mínio político-religioso da amizade (em
particular da amizade pelo texto - e sobre
isso os analistas têm muita coisa a dizer).

52
CLAUDE RABANT

Tais decisões que cortam ou incisam o


domínio da amizade (em seu duplo sentido
político e religioso 3 ) são justamente, parece-
nos, as que têm a ver com a arte, que sempre
tiveram a ver com a arte na sua ponta mais
difícil, a menos imediatamente reconhecida
na contemporaneidade dos objetos (olhar e
voz). A ponta dessa leitura-para-além está, por
exemplo, inscrita na injunção paradoxal de
um Angelus Silesius: "Torna-te tu mesmo o
texto e a essência (do texto)4 ".

3. c f. DerTida,J. Politiques de I'amitíé, Paris, Galíléc, 1994.


4. "Bechluss I Freund es ist auch genug. Im Fali du
mchr will~t lesen/ScgeJ:l und wettfc ~bst die Schrifi
und selbst das We.~n": ("Resolução I Também é bas-
tante amigo. No caso de você querer ler mais,IF.ntão vá e
se transfonne na própria escrita e no próprio ser''.
Angclus Silesius. DerCherubinische Wande.mnann [Oca-
m.í.nhante angelical], 1674. (N. do T. Scheffler Uohannes),
poet.a alemão, mais conhecido sob o pseudônimo de
Angelus Silesius (Breslau, 1624 - id. 1677). De origem
protestante, converteu -se ao catolicismo e tornou~se je-
suíta, elaborando, porém, uma filosofia mística que se
aproxima do panteísmo mais audacioso. Seus epigramas
são altamente poéticos e um dos grandes monumentos
do barroco alemão: Agradeço a gentil colaboração de
Hector Ivan de Albuquerque Ferreira para a tradução do
alemão).

53
O VAZIO, O ENIGMA

E como, nesta fronteira, pôr outra coisa


que não o corpo (nem a alma, nem um não
sei qual sublime éter)? Isso não exclui decerto
- e bem ao contrário- a questão da beleza,
mas encerra-a na questão do vazio, repelin-
do-a para as margens e para os interstícios
dos objetos. Que fizeram os analistas de seus
corpos? Esta é uma pergunta que me permiti
propor, e que reponho aqui, sem repouso, como
indício do que não se deve esquecer. Porque o
corpo seria hoje o espaço (mais ou menos aper-
tado) que nos é dado entre a ciência e o enigma
- o espaço de respiração (talvez sufocante)
entre o donúnio da amizade e o do ininscritível
(presente suspenso entre o terrível passado e o
futuro sem nome). Não figura a arte aquilo que
deve decifrar (por sua conta e risco) o nome do
futuro e incisá-lo diretamente em nossa car-
ne? Trata-se de fazer menos objetos que es-
paços entre os objetos?

Corpos dos dançarinos sacrificados à dan-


ça, entre o nu e o vazio- obsidiana5•

5. N. do E. Do lat. obsidianus lapis, 'pedra de Óbsio'.


Rocha constituída de material vítreo vulcânico, de
que se faziam instrumentos cortantes e espelhos.

54
CLAUDE RABANT

Pôr sob o olhar campos e experiências ou,


de voz a voz, nodular distâncias entre os ob-
jetos seria, pois, tentar criar uma visão (para
além do olhar) e o domínio de um silêncio,
fecundo de diversas escutas, uma e outro en-
trelaçados decerto à amizade, carregada de
nossos terrores e de nossos vãos esforços,
como de nossos erros, mas incisando-a no sen-
tido do que poderia ser uma "significação de
época" (afinal estamos chegando a corte de
séculos, mesmo se isso faz parte do impossí-
vel desaparecimento de nosso mito, de seu
resto indelével, como tantos outros e atuais
cortes de sofrimentos coletivos).

E é prováve·l que tenhamos numerosos


parênteses para abrir e para deófrar pacien-
temente, lentamente, antes de chegarmos a
pressentir aquele extremo e breve frêmito da
beleza em algum nada ou em algum real em
que ela se encontre.

55
ANOTA AZUL:
DE QUATRO TEMPOS SUBJETIVANTES
NAMUSICA

Alain Didier~ Weill

De que magia a música retira este poder


de nos transportar de um estado para um ou-
tro? Do ponto em que estávamos antes de pe-
gar esse meio de transporte, eis-nos em outro
ponto, após uma estranha viagem cujos me-
andros eu gostaria de tentar delinear.

Para chamar a atenção sobre esses mean-


dros, que são também tempos lógicos, tomo
como ponto de partida o que se passa na em~
ção musical: vocês devem ter notado, quan~
do ocorre de a emoção musical nos invadir,

57
A NOTA AZlJL

que ela suscita dois movimentos, dois "esta-


dos de alma", dos quais poderíamos provisori-
amente dizer que realizam a conjugação de um
estado de felicidade e de nostalgia psíquica.

Se ainda não estamos em condições de des-


tacar a natureza desse gozo nostálgico, obser-
vem por enquanto que a Nota de música que .
em nós acertará na mosca e desenvolverá o es-
tado de gozo será, sem jamais ser monótona,
sempre a mesma, no sentido em que será dis-
parada tanto de uma simples cantiga quanto
do pian? de Mozart ou do sax de Lester Young.

Batizemos essa nota que acerta na mosca


e nomeemo-la com esta metáfora colorida de-
vida a Chopin: a Nota Azul.

Não há nenhuma dúvida de que e~ Nota


Azul, da qual estabelecemos como uma das
características estruturais o fato de que é,
para o ICS (inconsciente), sempre a mesma,
deva ser articulada com aquilo que ocorre na
repetição. Ela conjuga o paradoxo de pro-
duzir um efeito que, por mais estritamente
idêntico a si mesmo que seja, não se impõe
por nenhum caráter coercitivo da repetição. Ao
contrário, assim como o automatismo de re-

58
ALAIN DIDIER-WEILL

petição freudiano é vivido neste peso de não-


sentido irredutível que, ao arrancar o Sujeito
de sua dimensão temporal, ejeta-o do que há
de tão enigmático na presença do "presen-
te", a Nota Azul tem este poder de veicular o
Sujeito no sentido e na presença. Poder, em
suma, de preservar, de premunir o Sujeito
contra o tédio, o monótono, como se o gozo
conferido por essa Nota Azul o premunisse con-
tra a percepção de sua repetição. Tão logo essa
percepção se tomasse sensível, a Nota Azul,
caindo no campo do bordão, assinaria seu
declínio significante, da mesma maneira que
um significante pode, se o maltratarmos, se
dele abusarmos, perder seu poder de evoca-
ção: dobrada, de volta à ordem do refrão, a
Nota Azul não será nada além de uma nota
descolorada da gama cromática. Sua sonori-
dade, então, não nos deixará nada mais se-
não a lembrança do momento em que está-
vamos por ela atordoados.

Para explorar que sentido convém dar a


essa possibilidade de usura do significante, ob-
servem que, uma vez destituída de sua cor, a
Nota Azul nos oferece uma vantagem: po-
demos dela nos apoderar cantarolando-a,

59
A NOTAAZUL

tomá-la e retomá-la trauteando-a, ao passo


que ela escapa a toda apreensão possível en-
quanto tiver mantido sua cor azul: o gozo de
que ela está prenhe não nos será certamente
revelado pelo fato de que cantávamos nós mes-
mos essa Nota Azul. Só poderemos atingir esse
gozo por intermédio de um outro real, do qual
seremos os ouvintes absolutamente dependen-
tes, já que é unicamente pela mediação de sua
presença real que teremos um acesso possível
a ela. Que haja uma interrupção das vibra-
ções sonoras que a suportam, o encanta-
mento logo cessará e nosso poder de pro-
longar imaginariamente em nós o efeito da
Nota não será maior que o de reproduzi-la,
como se pudéssemos havê-la gravado em
algum microsulco mnésico e tê-la à dispo-
sição: pois essa fugitiva não se guarda, mes-
mo que esteja em algum lugar de nossa dis-
coteca. Ela só se dá a nós uma vez que ime-
• diatamente nos escapa. Nesse sentido, essa
impossibilidade de mantê-la aprisionada
faz d e nós seus prisioneiros, como se o po-
der que ela tinha sobre nós estivesse ligado
à sua ininscritibilidade. 1

J. Há aí uma via para entrar na compreensão do3x Cl>x.

60
ALAIN DIDIER·WEILL

Dessa nota direi que se não é simbolizável,


no sentido em que não poderemos inscrevê-
la, em que não poderemos reter em nós o e feito
eminentemente fugaz que ela produz e cuja
extinção é estritamente tributária do real das
vibrações sonoras que a s uportam, ela é em
compensação simbolizante. Simbolizante no
sentido em que nos abre para o efeito de to-
dos os outros significantes, como se fosse sua
senha: efetivamente, sob o impacto da Nota
Azul, o mundo começa a falar conosco, as
coisas, a ter sentido: os significa ntes da ca-
deia lCS, de mudos que eram, despertam e
começam, assim causados pela Nota Azul,
a nos contar casos. 2

Essa Nota Azul nos evoca, é claro, o que


está e m jogo no amor: se para o apaixonado
o mundo inteiro, a menor folha tremendo, o
menor reflexo, começam a fazer sentido, é por-
que há em algum lugar para ele um amado
cujo poder simbolizante, poder de criar um

2. N. do T. O autor emprega aqui a expressão familiar


faire la causcttc, que significa convery;ar. Mais adiante o
autor vai novamente explorar o jogo entre causerlcau-
sar e causerlconversar.

61
A NOTA AZUL

verdadeiro desencadeamento da cadeia ICS, está


ligado, como o da Nota Azul, ao fato de poder
marcar sem apelo o limite absoluto do sentido e de
invocar a dimensão do mais-além do sentido.

A nahtreza do modo de articulação da


Nota Azul com suas vizinhas diacrônicas me-
rece reter-nos: se escutarmos, por exemplo,
um improviso de jazz verdadeiramente ins-
pirado, não poderemos não nos espantar com
o fato de que o encadeamento das notas pe-
las quais nos deixaremos levar nos conduz sem
nenhuma dúvida, e qualquer que seja seu
modo próprio de encaminhamento, rumo a
um ponto fixo do qual não é demais dizer que
as notas têm como a pré-ciência, o pré-sen-
timento: se o ponto de explosão do sentido,
de ruptura temporal que é a Nota Azul, é
assim de algum modo anunciado nas notas
antecedentes, não estaríamos no direito de
opor ao efeito de posterioridade3 referido por
Lacan no Discurso articulado um efeito de
anterioridade próprio ao discurso musical?

3 N.do T. Trata-se do lermo 11pres-coup, versão de


Lacan para o termo freudiano nachtrãgfich. O autor
forja em seguida o tenro avsnt-coup, traduzido aqui
por anterioridade.

62
ALAIN DIDIER·WEILL

Nesse sentido, a Nota Azul não é tanto o que


vai dar, por efeito retroativo, seu sentido ao
início da frase musical: ela é realização da
promessa da qual o discurso antecedente era
portador; ela é a continuação, poderíamos
dizer, do saber suposto da linha diacrônica.

Se quiséssemos comparar um improviso


musical a uma arqtútetura, poderíamos tam-
bém dizer que ele é sustentado por uma viga
mestra cuja particularidade seria de não es-
tar ainda aí, de não estar senão por vir.

Tudo se passa como se no improviso o cri-


ador tendesse a essa viga mestra ou, mais pre-
cisamente, como se ele fosse chamado por ela e
não fizesse nada além de responder a seu ape-
lo. Essa formulação tem o interesse de fazer sen-
tir que o músico deve reconhecer o caminho
que o levará ao ponto preciso em que terá que
se abolir. Ponto que preexiste mas de uma
preexistência cuja paternidade, paradoxalmen-
te, é dele, como se, ao colocar no instante os
germes de uma existência por vir, ele criasse
no ouvinte uma forma de espera que tivesse
todas as características da esperança: esperan-
ça na realização do que seria da ordem de uma
promessa na qual ele se houvesse loucamente

ó3
A NOTA AZUL

engajado corno criador. Reconheço, dado o que


estou antecipando, que você tem o direito de
esperar de mim que cu encontre aquilo cuja
existência lhe faço supor: a Nota Azul.

Que a Nota Azul seja esperada não quer


dizer que ela não surpreenderá o ouvinte. De-
certo que ela não o surpreenderá segundo a mo-
dalidade do chiste referida por Freud neste du-
plo movimento de "sideração e luz". Mas esse
•. ponto de "sideração" não significa que o gozo
do chiste não esteja aquém do gozo da Nota
Azul, no sentido em que este último, não sendo
radicalmente inesperado, se reduplica com a
descoberta de que não é vão esperar o gozo.

A Nota Azul não introduz apenas ao gozo


de si mesma mas, analogicamente, ao prazer
" preliminar do certame amoroso, à dimensão
de uma promessa de gozo.

O que ocorre conosco no instante de re-


alização dessa promessa é de natureza a
permitir articular o que se passa na dialética
do Sujeito e do Outro, uma vez que não
mais sendo, neste tempo forte de explosão
de sentido, nem Um nem Outro, temos que
nos perguntar de que lugar, como Ouvintes,

64
ALAIN DJDIER-WEII.L

funcionávamos antes desse tempo de explo-


são. Se fôssemos Um ou Outro.

UM OU OUTRO?

Vou tentar mostrar que ao inverso do


chiste] o Ouvinte de música é instantaneamente
Um e Outro. Se quisermos no entanto delinear
a estrutura dessa instantaneidade, não pode- •
mos fazer de outra maneira a não ser indican-
do um certo número de tempos lógicos.

Num primeiro tempo lógico, somos o Ou-


tro e muito precisamente o Outro do Sujeito
da criação musical.

Tomemos como suporte provisório o que


ocorre no chiste: não há chiste como tal se-
não ratificado pelo riso do Outro, diz-nos
Freud numa perspectiva que é preciso alar-
gar, pois ao fazer do Outro apenas um puro
Auditor, ele deixa de lado a dimensão do de-
sejo do Outro, isto é, ele não se pergunta por
que não se faz chistes, ou lapsos, com qual-
quer pessoa. Nesse caso, reduzir o Outro a
uma simples presença cujo riso vai assinalar

65
A NOTA AZUL

para nós que acabamos de acertar na mosca


equivale a acantoná-lo numa posição de puro
receptor e passar ao largo de sua dimensão
de emissor: emissor do desejo inconsciente.

É preciso assim colocar para a dialética


freudiana um tempo lógico preliminar: se para
Freud o riso do Outro assinala ao Sujeito que
ele acaba de encontrar um bom entendedoz-4
de seu desejo lCS, ao qual ele responde por uma
saudação de reconhecimento,5 devemos, ao
inverso, considerar que um clúste só brotará do
.. Sujeito do ICS se houver, na presença Outra ao
qual está confrontado, algo que permita o
nascimento desse traço. É porque esse algo é
o desejo inconsciente, que podemos antecipar
que ao gozo induzido no Outro pela palavra
do Sujeito mescla-se, para além de um reco-
nhecimento do saber rcs, um reconhecimen-
to, no sentido figurado, por ter sido o

4. N. do T. O autor emprega aqui o termo entendeur,


derivado do verbo cntendre, que tem ordinariamente o
sentido de ouvir.
5. N. do T. O autor joga aqui, como o fará mais explici-
tamente no fmal do parágrafo, com o sentido figurado da
palavra reconnaissa.ncc, que, neste contexto, também
pode1'ia ser traduzida por gratidão.

66
AL.AIN DJDIER-WEILL

inspirador, a causa desse gozo: o Ouvinte goza


menos por ter sido divertido 6 do que por des-
cobrir-se a "musa" do Sujeito.

O Outro, reconhecendo na palavra do


Sujeito uma resposta dada à questão de seu
desejo, vê então essa questão promovida à
condição de atualidade. Ele manifesta sua
satisfação por um riso ao qual responderá
-ponto pouco considerado por Freud- o
riso do Sujeito, pois o Sujeito, ponto funda-
mental, vai rir de seu próprio chiste.

O que o Sujeito manifesta por seu riso é a


alegria da descoberta de uma articulação in-
consciente que subitamente aparece possível •
entre o desejo do OutTo e seu desejo de Sujei-
to. Como se o instante em que o riso se apo-
derava por sua vez de Sujeito funcionasse
como uma comemoração deste tempo de tra-
vessia da castração simbólica através do qual
o Sujeito, sustentado pela presença ativa do
significante do Nome-do-Pai, escapava ao
assujeitamento do desejo do Outro e nascia
para seu próprio desejo (~O a).

6. N. do T. O autor emprega aqui o termo a-musé para


jogar com a muse do fim da frase.

67
A NOTA AZUL

Apontemos de passagem que temos aí


uma pista segura para abordar o que está em
questão no Real do Pai para que o significante
do Nome-do-Pai possa operar e levar o Sujei-
to ao termo da castração simbólica; a partir
da hipótese segundo a qual o chiste é como
.. uma reprodução "miniatura" do processo da
castração simbólica -no sentido em que abre
para o Sujeito o caminho de seu desejo-, su-
ponhamos que o êxito dessa abertura esteja
ligado ao que se passa no Outro, neste caso na
possibilidade manifestada pelo Outro de rir, de
gozar do significante da Criança. Aprofundar
essa questão nos faria certamente descobrir que
colocar em jogo o significante do Nome-do-Pai
não deixa de necessitar deste real do Pai que é
sua aptidão a poder rir, a poder gozar de wn cer-
to modo dos significantes de sua Criança.

Há aí entre o Pai e o Filho dois gozds hete-


rogêneos que circulam: um é o gozo do Ou-
tro, pois que é o gozo deste significante que
lhe falta e com o qual o Sujeito o presenteia
ao manifestar-se como o autor. O outro é gozo
do Sujeito, uma vez que o que se coloca em
perspectiva para ele não é um significante,

68
ALAIN DIDIER-WEILL

mas o mais estranho dos objetos: o objeto a


lacaniano.

A assimetria desses gozos marca-se ainda


nos descompassos não apenas lógicos mas cro-
nológicos que escandem os encadeamentos
dialéticos do Outro e do Sujeito. Localizemos
quatro tempos mínimos nessa dialética do
chiste:

12 tempo: presença e pesagem do desejo do


Outro (f.,)

resposta do Sujeito ao 12 tempo ~


22 tempo:
produção do .Cluste

resposta do Outro (não barrado)


3" tempo:
como ouvinte a·o 22 tempo ~ riso

4• tempo: resposta do Sujeito ao 3~ tempo~


nso

Deixemos agora o campo do chiste para


retornar a nossa questão preliminar: o
melômano ouve como Sujeito ou como Outro?

69
A NOTAAZUL

A dificuldade de abordagem do campo


musical está ligada, em parte, ao fato de que
os quatro tempos localizáveis no chiste supor-
tam-se com uma referência cronológica que
não se sustenta mais no campo da música:
aqui, esses quatro tempos, se é que existem,
só poderiam ser simultâneos.

É nessa perspectiva que o rnelômano que


somos é, no primeiro tempo lógico, o Outro.
Se tal música se apodera de nós é porque ao
ouvir nela ~ resposta, a questão que nos
habita toma-se, por ter podido suscitar uma
tal resposta, viva. Sua presença que ignorá-
vamos é chamada de volta pelo fato de que
uma outra pessoa, o Sujeito músico, prova que
dela recebeu o chamado.

Entretanto a produção do Sujeito músico


não nos toma apenas sensíveis à presença de
nosso desejo ICS; ela nos diz uma coisa bem
diferente: que nosso desejo não é angustian-
te. Aí reside uma das fontes de nosso gozo como
Outro: um Sujeito - o criador de música -
nos dá testemunho de que a presença do dese-
jo do Outro que somos pode não funcionar para
ele como esse "che vuoi?" angustiante. Nesse

70
ALAIN DIDIER-WEILL

caso é até mesmo o contrário que se produz,


pois se a questão formulada pelo Outro no
"che vuoi?" deixa o Sujeito sem resposta, aqui
o Sujeito, ao nos responder, faz surgir em nós
a presença de uma questão cuja natureza se
revela não esterilizante, mas fecundante para
ele: se há assim algo em nós que está perdido
para nós mesmos e que insufla a palavra ao
Sujeito, descobrimo-nos dando a esse Sujeito
o que não temos, e reconheçamos que esta é a
fórmula com que Lacan designa, desde sem-
pre, o amor. Digamos que é precisamente
por poder realizar uma tal conjunção para
o amor que nosso desejo não é angustiante
para o Sujeito. O que há de fato de angus-
tiante no "che vuoi ''? Não é tanto porque o
Outro espera algo sobre o que nada sabe-
mos, mas porque vivíamos o Outro como
nos imputando a possibilidade de reconhe-
cer e de outorgar-lhe esta "coisa" que ele
espera de nós. Mas se esse Outro suposto
desejar-nos se conjuga num Outro suposto
amar-nos, nós não mais lhe imputamos que
~sp~r~ d~ nós um ubjetu y_u~ supostamente
possa preencher esse desejo: causa do de-
sejo do Outro, não podemos ser, ao mesmo
tempo, objeto de saciação.

71
A NOTAAZUl

Se a dimensão de espera ligada à angús-


tia do objeto depende de que, como Sujeito,
tenhamos menos o sentimento que o pré-sen-
timento da coisa que poderíamos nos tomar
para o Outro, é possível dizer que o nível do
desejo a que temos acesso quando não visa-
mos a objetalização do Sujeito não está
estruturado na espera, mas num "puro" pre-
sente: o da subjetivação em ato.

Que d esejo é então este cuja natureza, con-


tra-natureza, é de não visar o outro como ob-
jeto mas como sujeito dividido? É a barra do
Sujeito que sustenta esse desejo do Outro? Ou
é o desejo do Outro que cria a barra do Sujei-
to ao suscitar o fulgor do chiste?7

Essas duas questões são, d e fato, apenas


uma, se formularmos que o desejo do Outro é
sustentado pela barra do Sujeito, visto que ela
está por vir, qu'e ainda não está aí como nos-
sa "Nota Azul". Nesse sentido, o d esejo do
Outro é criador da barra do Sujeito ao mes·
mo tempo em que é sustentado por ela.

7. Questão que introduz a do desejo do analista.

72
AlAIN DIDIER-WEill

É no próprio movimento que suscita o in-


teresse do Outro pelo furo do Sujeito que é pre-
ciso ver o interesse do Sujeito pelo furo do Ou-
tro, ainda que não haja simetria alguma nesse
inter-essamento mútuo: com efeito, se o Sujeito
se interessa por sua própria barra, a barra que
há no Outro não é questão para este; ela só é
questão para o Sujeito, que, por vezes, encon-
'tra-se em posição de poder trazer uma respos-
ta. Resposta que introduzirá o Outro à presen-
ça da impossível questão pela qual é habitado.

Se indicamos o ponto culminante dessa


resposta no que um músico de gênio chamou
de a Nota Azul, é porque a magia desse ins-
tante parece depender de que ele concretize
o fato de que o único encontro possível entre
o Outro e o Sujeito está em conjugar através
desse instante de suspensão temporal seu úni-
co denominador comum: o objeto a; como se
eles não pudessem encontrar-se senão para
comemorar, no reconhecimento do dom do
que não têm, a impossibilidade de qualquer
moeda de troca entre eles. O que há de inesti-
mável no achado da "Nota Azul" é que, para
a insaciabilidade da Demanda, ela é a única
resposta que sabe não ser nem sim nem não:

73
A NOTA AZUL

ela é comemoração de um ato psíquico funda-


dor, de um nascimento. É nisso que o
renascimento para o qual a música nos convi-
da deve ser compreendido como uma autêntica
transmutação subjetiva.

Para abordar o 2!,) tempo, é preciso tirar as


conseqüências do fato de que toda música que
nos toca conjuga um estado de felicidade com
um estado de nostalgia. Mas o que é a nostal-
gia? E quem ela visa?

Se a insondável nostalgia que é filtrada da


voz de Billie Holiday nos enche de felicidade, é
porque não se trata de desamparo: não somos
levados a ter pena dela. Sua voz não nos faz
evocar a posição de wn Sujeito na sarjeta, des-
peitado por wn Outro surdo e indiferente à sua
busca, muito ao contrário. É de fato o Outro
presentificado por sua voz que nos aparece
como um Outro rasgado de um amor impossí-
vel para o Sujeito. Nesse sentido, não é de seu
amor impossível pelo Outro que nos fala Billie:
é do amor impossível do Outro por ela.

É sua aptidão a supor no Outro um amor


rasgado, impossível, que secundariamente

74
ALAIN OTDIER-WEILL

rasga o Sujeito e faz dele, para além de um Su-


jeito amado, um Sujeito amante. Observem que
sem esse salto o Sujeito não estaria longe da
posição erotômana: salto na amânàat~, induzi-
do pela assunção deste rasgo que arranca do
Sujeito esses acentos rasgantes, e que nos ras-
garão tanto mais seguramente por nos serem
destinados, uma vez que esse Outro somos nós.

A modalidade pela qual nos é revelado


que esse Outro somos nós é absolutamente es-
sencial, uma vez que ela é o pivô de nosso
acesso a uma outra posição: a de Sujeito.

Se, de fato, nos acontece de sermos abaJa-


dos pelo que nos aparece como tão "familiar"9
nessa nostalgia musical, não é que 00$ a reconhe-
çamos: é que nós sornos reconhecidos por ela.

8. N. do T. O autor forja a palavra aimance, substantivo


para o adjetivo aima.nl, traduzido acima como amante,
mas que, como substantivo, significa imã. O verbo
aima.nter, por exemplo, significa imantar.
9. Observem a esse respeito o que di%íamos acíma da
angústia: essa "familiaridade" não é acompanhada por
uma "inquietante estranhc%a"; (N. do T.: Esta última
expressão dá titulo à tradução francesa do artigo Das
l.!nheimliche, de Freud).

75
A NOTA AZUL

Como se, de repente, o ouvinte que havia em


nós passasse para o outro lado e começasse a
nos escutar. A escutar este impossível amor que
por ser cantado pelo Sujeito vai poder, por ser
assim revelado a nós mesmos, alçar o vôo de
um amor de transferência: uma vez que não
somos mais nós que ouvimos a música, mas
ela que começa a nos ouvir, nós a constituí-
mos como Sujeito suposto saber sobre o qual
transferimos nosso amor.

O termo transferência deve evocar aqui a


b áscuJa topológica que fez oscilar o Ouvinte
da posição de Outro à de Sujeito. Ao passo
que no 1° tempo lógico o músico trazia ao Ou-
vinte uma resposta fazendo surgir a antece-
dência de uma questão, num 2° tempo essa
resposta significante vai topologicamente in-
verter-se e constituir-se como a questão a par-
tir da qual ao Ouvinte, não mais solicitado
como Outro, será consignado que se consti-
hta como Sujeito no campo musical dessa nova
questão significante.

Essa transferência topológica é o correlato


de uma transferência de amor na qual reen-
contramos os tempos lógicos correspondentes.

76
ALAIN DIDIER-WEILL

1°· tempo: o Ouvinte é identificado como Ou-


tro, conjunção de um lugar de desejo e de
amância impossível. Uma vez identificado
como Outro, o Ouvinte vai, 3º· tempo lógico,
identificar-se com um significante desse Ou-
tro, mas pelo viés de uma chicana correspon-
dente a este zo. tempo lógico no qual ele se
identifica, de modo imaginário, com a posi-
ção "de amado" do Sujeito da música.

No entanto, mal ele está nessa posição de


amado, ei-lo em posição de poder descobrir a
presença suposta Amante para a qual ele é um
amado impossível. Com essa presença ele vai
simbolicamente identificar-se, ilustrando este
ponto antecipado por Lacan a propósito da
identificação simbólica: que ela é possível por~
nos que o Outro possa não preencher, mas sus-
tentar a demanda do Sujeito. Isto é, que ele possa
manter esta posição de Amante ODesejante.

Nesse terceiro movimento identificatório,


o Ouvinte realiza esta articulação ICS do ama-
do ao amante, na qual Lacan localiza a es-
sência da transferência, e produz-se como
Sujeito falante: aqui, como Sujeito cantan-
te ou Sujeito "m usica nte".

77
A NOTA AZUL

O impacto sobre o Ouvinte desse ponto


de báscula está em realizar esta inverossímil
conjunção entre o que ele pode ouvir e o que
pode dizer: ponto de conjunção de onde a
Palavra do mundo que lhe fala torna-se ao
mesmo tempo sua palavra de Sujeito.

Se nesse ponto topológico a música "nos"


fala, é num duplo sentido, tanto topológico (sen-
tido simultaneamente centrípeto e centrífugo)
quanto significante: poderíamos ainda dizer
que a significância explode em nós, com seu
cortejo de gozo, mesmo quando não pudermos
mais dizer de onde vem o signHicante que nos
atravessa: sentido centrífugo, sentido
centrípeto? A essa dupla questão, podemos res-
ponder que nosso gozo não é somente o de um
Ouvinte: é igualmente o de um Sujeito falante,
criador, uma vez que os significantes que ouvi-
mos, que nos falam, somos também nós que os
falamos, que os dizemos. E em todo caso, se não
é totalmente de nós que se trata, "poderiarnos ter
sido" 10 nós. Retornaremos a esse amditionnel ~·

1O. N. do T. No original : ça ''aurait pu être". .. O verbo


pouvoir(poder) encontra- se aqui no conditionnelpas.sé
(equivalente em português ao futuro composto do preté-
rito) a que se refere a frase seguinte.

78
ALAIN OIOIER-WEILL

Enfim, um 42 tempo nos parece, com a


emergência da Nota azul, passível de ser iso-
lado: ao introduzir a explosão, a interrupção
temporal, é ela quem nos introduz na
temporalidade, uma vez que os três primei-
ros tempos, contrariamente à cronologia da-
queles cuja n ecessidade indicamos no desen-
rolar do êxito do chiste, são puramente lógi-
cos, desenvolvendo-se numa pura instan-
taneidade.

Poderíamos provisoriamente adiantar que


o ponto de báscula que opera na música, sen-
do ao mesmo tempo ponto d e conjunção
topológica e temporal, simboliza este ponto
incandescente da linguagem no qual se pro-
duz uma articulação matemática e ntre o
topológico e o temporaL

Clinicamente, o fato indiscutível de que


a música devolva o u so do significante a um
Sujeito que para isso tenha perdido a dis-
posição articula-se com este ponto pivô da
música em torno do qual localizamos a me-
tamorfose da mensagem do Outro em men-
sagem do Sujeito.

79
A NOTA AZUL

O Sujeito falante que vemos assim formar-


se no campo do Outro é situável como osci-
lando entre duas possibilidades: a primeira,
que é a de um encaminhamento ao longo da
rota do tempo, tropeça na segunda, que é esta
derrota do tempo, este ponto "azul" de ex-
plosão da significância.

Por rota do tempo entendo esta dimensão


da música que, tomando-nos pela mão, nos
faz passar de uma nota para outra e saltar o
intervalo, com esta segurança soberana que
nos diz que não cairemos entre duas, que não
seremos "abandon ados". De salto em salto,
somos pegos, sustentados, deixamo-nos levar,
a té mesmo transportar.

Observem sobre esses saltos, que não são


aliás todos iguais - alguns são de pulga, ou-
tros de gafanhoto-, que eles não nos 1fazem
tanto saltar "dentro" do tempo quanto fazem
saltar o tempo "em'' nós: o fluxo temporal
cujo escoamento então sentimos nos habita
de tal modo que é ele, mais do que nós, que
responde "Presente", e nisso nos outorga o
mais belo dos "presentes": "o" Presente.

80
ALAIN OIOIER-WEILL

Se escolhi dizer do tempo musical que ele


podia nos "habitar" é para marcar que ele
não nos "possui". Nem nos assombra.t1

Ser habitado pda música, no sentido em


que o compreendo aqui, é, ao contrário, to-
car com o dedo neste ponto enigmático já evo-
cado em que a mensagem do Outro toma-se
nossa própria Palavra. Direi de um tal
reviramento que ele é este instante lacaniano
de emergência do Sujeito no lugar do Outro:
instante em que, na alteridade absoluta dos
significantes do Outro, essas notas do Outro
começam a ressoar como minhas, ou mais pre-
cisamente como se "pudessem ter sido'' mi-
nhas12. O momento de emergência do Sujeito

11. F.ssa. questão da assombração pode em compensação


ser colocada para o criador: Schumann fugindo na flo-
resta, assombrado por uma música, como uma casa. pode
ser por um fantasma. Quanto à possessão pela música,
haveria um estudo especial a dedicar aos estados de pos-
sessão pelo ritmo (a transe vodu, por exemplo).

12. N.do T. No original: auraient pu. Trata-se do ·


conditionnel passé referido pouco acima e que o autor
retoma no próximo parágrafo.

81
A NOTA AZUL

não seria o momento em que o Sujeito encon-


trou o caminho - tão misterioso por sua pró-
pria natureza - do Sujeito fálico, do qual
Lacan diz que ele é o S do Sujeito barrado?

É sem dúvida a partir de uma mediação


sobre esse conditionnel passé que o objeto a pode
colocar-se em perspectiva: este "poderia ter
sido eu se... " 13 nos indica a modalidade par-
ticular pela qual reconhecemos o que, neste
advento subjetivo, perdemos no caminho: per-
da deste mais Real de nós mesmos de que to-
mamos como que a medida sem nenhuma
amargura; ao contrário, com alegria.

DOPASSE

De Um ·a o Outro, ou melhor do Outro ao


Um, algo não passa: é precisamente essa per-
da que faz com que possamos ouvir o Outro,
ouvi-lo até perfeitamente, sem por isso poder
conversar dali de onde ele conversa. 14

13. N. do T. No original: "ça aurait pu êtrc moi sí..."

14. N. do T. O autor emprega aqui o verbo causer, que


pode ser também traduzido por causar.

82
ALAIN DIDIER-WEILL

Isso nos remete ao fato de que, como seres


de Fala, não somos assimiláveis à nossa ca-
pacidade de Escuta, não podemos dizer tudo
o que ouvimos, algo morre a caminho, graças
ao que, aliás, o que ouvimos permanece ines-
gotável. Se não fosse assim, haveria a possibi-
lidade de considerar como uma garantia de
verdade o fato de falar em Nome daquele que
diz, ou meio-diz, a verdade.

Nesse sentido, este "resto insensato" po-


deria ser para os teóricos que pensam restituir
"todo1' o sentido do que ouvem o equivalente
desta prova narcísica apontada por Freud
quando ele evoca o homem diante das desco-
bertas de Copémico, de Darwin e de Freud.

Prova que guarda relação com aquela que


Lacan chamou de passe: a dissimetria aqui
evocada entre Escuta e Fala me parece estru-
turalmente situada na dissimetria Passador-
Passante. Do mesmo modo que um ouvinte
de música, por melhor entendedor15 que seja,
nem por isso está num caminho de criação
musical diferente do de um conditíonnel passé

15. N.do T. No original entendeur.

83
A NOTA AZUL

(nosso 39. tempo lógico), o passador não é pre-


cisamente suposto ter que falar do nível em
que é, em todo caso, suposto poder ouvir: se
ele tem que ser o bom Ouvidor16 do Passante,
ele não é por isso obrigado a estar em posição
de falar de onde fala o Passante.

*Publicado originalmente na revista Ornicar? nll8, in-


verno. Paris, 1976-1977.

16. N. do T. No original entendant. Ver nota 4.

84
O CIRCUITO PULSIONAL

Ala in Didier- Weill

INTROD UÇÃO DE JACQUES LACAN


A FALA DE ALAIN DIDIER-WEILL

"-·- Eis minhas questões, que coloco c que espero


poder resolver este ano; quero dizer que isso nos
leva a algo de fundamental quanto ao que é da
estrutura do corpo, ou mais exatamente do corpo
considerado como estrutura. Que o corpo possa
apresentar toda sorte de aspectos que são de pura
fom1a, que há pouco pus sob a dependência da
sugestão, eis o que me importa. A diferença da for-
ma,da forma corno sempre mais ou menos sugerida
com a estrutura, eis o que eu gostaria de colocar em
evidência para vocês este ano.

85
O CIRCUITO PULSIONAL

Desculpo-me, pois, isso, devo dí7..er, certamente não


é o que eu gosfru'ia de ter trazido de melhor esta
manhã. Tive, vocês estão vendo, uma gt•andc preo-
cupação, estou embaraçado--éocasodc di7..cr, não
é a primeira ve:r.- estou embaraçado a propósito
do que tenho que proferir díante de vocês, e é por
isso que vou llies dar a oporturúdade de ter alguém
aqui que será nesta manhã um melhor orador do
que cu, quero di;r.cr Alain Didicr, que está aqui pre-
sente,e que convido para vir enunciar para vocês a
respeito do que tirou de certos dados que são os
meus, que são desenhos de escrita e que ele quer
lhes participar".

Jacques Lacan

Em primeiro lugar, devo dizer que o Dr.


Lacan me pega completamente desprevenido,
que eu não estava a par de que ele proporia
passar-me a palavra para tentar retomar wn
ponto de que lhe falei nestes dias, do qual devo
dizer de imediato que, pessoalmente, não faço
a articulação com aquilo de que ele nos tem fa-
lado presentemente. Sinto-a talvez confusa-
mente, mas não esperem que eu tente articular
o que vou dizer com os problemas de topologia
sobre os quais o Dr. Lacan fala atualmente.

86
ALAIN DIDIER-WEILL

O problema que tentei articular foi o de


tentar articular, a partir do problema do cir-
cuito da pulsão e de maneira um pouco con-
seqüente com o que o Dr. Lacan trouxe sobre
a montagem da pulsão, as diferentes torções
que me parecem localizáveis entre o Sujeito e
o Outro, os diferentes tempos nos quais se ar-
ticulam duas ou três torções.

Isso permanece bastante hipotético para


mim, mas, enfim, vou tentar lhes retraçar
como as coisas podem, assim, colocar-se no
lugar. A pulsão, o circuito pulsional de onde
partirei para tentar avançar, seria algo bastan-
te enigmático, seria algo da ordem da pulsão
invocante e de seu reviramento em pulsão de
escuta. Quero dizer que a expressão pulsão de
escuta não existe - eu creio - em parte algu-
ma como tal, isso permanece completamente
problemático. Quando falei dessas idéias com
o Dr. Lacan, devo dizer que foi mais precisa-
mente a respeito do problema da música, de
tentar localizar, de localizar para um ouvinte
que escuta uma música que o toque, que nele
faça efeito, os diferentes tempos pelos quais
se produzem efeitos no ouvinte e nos dife-
rentes percursos que vou tentar entregar-lhes

87
O CIRCUITO PULSIONAL

agora bem sucintamente porque não prepa-


rei texto nem notas. Então desculpem-me por
ser wn pouco improvisado.

Parto da idéia de que, se escutamos uma


música - estou falando de uma música que
nos fala ou que nos "musica" - é como ou-
vintes que primeiramente funcionamos, que
consideramos essa música. Isso parece evi-
dente, mas, enfim, não é tão simples. Quero
dizer que se a música, num primeiro tempo
- os tempos que vou tentar desmembrar para
a comodidade da exposição não são natural-
mente para serem considerados como tempos
cronológicos, mas como tempos que seriam
lógicos, e que desarticulo necessariamente
para a comodidade da exposição-, faz efei-
to em nós corno ouvintes, penso que se pode
dizer que é porque em algum lugar, como ou-
vintes, tudo se passa como se ela nos trouxes-
se urna resposta. Agora o problema começa
com o fato de que essa resposta faz surgir em
nós a antecedência de uma questão que nos
habitava como Outro, como ouvinte que nos
habitava sem que o soubéssemos. Descobri-
mos, portanto, que há aí em algum lugar um
Sujeito que teria ouvido uma questão que está

88
ALAJN DlDIER-WEILL

em nós e que não apenas a teria ouvido, mas


teria sido inspirado por ela, uma vez que a
música, a produção do sujeito "musícante",
se vocês quiserem, seria a resposta a essa per-
gunta que nos habitaria.

Já vemos então como se poderia articular


isso com o desejo do Outro: se há em mim,
como Outro, um desejo, uma falta inconsci-
ente, tenho o testemunho de que o sujeito que
recebe essa falta não é paralisado por ela, não
está em fading, por baixo, como o sujeito que
está sob a injunção do "che vuoi?", mas, ao
contrário, é inspirado por ela e a música é o
testemunho de sua inspiração. Bem, isso é o
ponto de partida dessa constatação. O outro
ponto é considerar que, como Outro, não sei
que falta é esta que me habita, mas sobre a
qual o próprio sujeito nada me diz, uma vez
que ele diz essa falta diretamente. O próprio
sujeito dessa falta nada sabe e dela nada diz,
uma vez que é dito por essa falta; mas, como
Outro, eu diria que estou numa perspectiva
topológica em que me aparece o ponto no qual
o Sujeito é dividido uma vez que é dito por essa
falta. Isto significa que descubro que esta falta
que me habita é a dele próprio, ele mesmo
O CIRCUITO PULSIONAL

nada sabe do que diz, mas eu sei que ele sabe


sem saber. Vocês vêem que o que eu lhes disse
poderia se escrever um pouco como o que o Dr.
Lacan articula do processo da separação. Vou
então articular os diferentes tempos da pulsão
com diferentes articulações da separação.

Embaixo à direita, pus o processo da se-


paração com uma seta que vai do grande
Outro barrado (1.) a esta falta posta em co-
mum entre o grande Outro e o Sujeito, o ob-
jeto pequeno a. Esta seta pretende significar
que, como Outro, nada sei dessa falta, mas
alguma coisa dela a mim retoma do sujeito
que dela lhe diz alguma coisa. É por isso que
eu a articulo com a pulsão, porque tudo acon-
tece como se eu quisesse chegar a articular
essa falta, esse nada, a agarrar alguma coisa
dela, saber algo sobre ela. Confio, então, no
Sujeito; digamos que deixo-me puxar por ele:
trata-se, aliás, da pulsão. Deixo-me puxar por
ele e espero dele que me dê este objeto peque-
no a. Mas à medida que avanço, que espero
do sujeito, se assim posso dizer, o que descu-
bro é que, ao seguir o sujeito, ambos não fa-
zemos senão çontornar o peq\leno a. Ele está
efetivamente no interior do anel e asseguro-

90
ALAIN DIDIER-WEILL

me efetivamente de que esse pequeno a é ina-


tingível. Eu poderia dizer que é um primeiro
percurso e que, quando me assegurei como
Outro de que ele tem efetivamente este cará-
ter de objeto perdido, a idéia que proponho é
que se pode compreender nesse momento o
reviramento pulsíonal de que fala Freud e que
Lacan retoma, o reviramento pulsional que
vou colocar no alto do gráfico, como a passa-
gem a um segundo modo de separação, como
uma segunda tentativa de aproximação do
objeto perdido, mas desta vez a partir de uma
outra perspectiiva: a perspectiva do Sujeito.

Explico-me. No primeiro tempo, coloquei


que eu era ouvinte: ouço a música. Nesse
segundo tempo que postulo, eu diria que,
enquanto eu me reconhecia como ouvinte,
o ponto de báscula que chega, que faz com
que agora eu vá passar para o outro lado,
pode ser articulado assim: se então eu me
reconhecia como ouvinte, poderíamos di-
zer que, desta vez, sou eu que sou reconhe-
cido como ouvinte pela música que a mim
chega, isto é, pela música que era uma res-
posta e que havia feito surgir uma questão
em mim. As coisas se invertem, isto é, a

91
O CIRCUITO PULSIONAI.

2° tempo

4~ tempo 1 2 tempo

92
ALAIN DIDIER·WEILL

música torna-se uma questão que me convo-


ca como sujeito a respondê-la.

Vocês vêem que a música se constitui como


que me ouvindo, como sujeito finalmente -
chamemo-lo por seu nome-, como sujeito
suposto ouvir. Assim, a música, a produção,
o que era a resposta inaugural torna-se a ques-
tão, e a produção do sujeito músico, ao consti-
tuir-se como sujeito suposto ouvir, consigna-me
nesta posição de sujeito, à qual vou responder
por um amor de transferência. Por isso não se
pode não articular o fato de que a música efeti-
vamente produz o tempo todo efeitos de amor.

Retorno ainda a esta noção de objeto per-


dido pelo seguinte viés: vocês certamente no-
taram que o próprio do efeito da música so-
bre nós é que ela tem este poder de metamor-
fose, de transmutação, que se poderia rapi-
damente resumir dizendo, por exemplo, que
ela transmuta em nostalgia a tristeza que há
em nós. Quero dizer com isso que se estamos
tristes ou deprimidos, podemos designar o ob-
jeto que nos falta, cuja falta nos falta, nos faz
sofrer, e estar triste é triste, quero dizer, não é
a fonte de nenhum gozo. O paradoxo da

93
O CIRCUITO PULSIONAL

nostalgia -como dizia Victor Hugo, a nos-


talgia é a felicidade de estar triste - é que
precisamente o que nos falta na nostalgia é
de uma natureza que não podemos designar,
e que amamos essa falta. Vocês estão vendo
que, nessa transmutação, tudo se passa como
se o objeto que faltava se houvesse verdadei-
ramente evaporado. E o que eu lhes propo-
nho é compreender efetivamente o gozo, uma
das articulações do gozo musical, como ten-
do o poder de evaporar o objeto. Vejo que
podemos tomar a palavra "evaporar" quase
no sentido físico do termo . A física definiu
assim a sublimação: na sublimação, trata-se
efetivamente de fazer passar um sólido ao
estado de vapor, de gás; e a sublimação é
esta via paradoxal pela qual Freud nos en-
sinou - e Lacan articula isso de maneira bem
mais rigorosa - , é precisamente a via pela
qual podemos ter acesso, justamente pela via
da dessexualização, ao gozo.

Vocês vêem, portanto, neste segundo tempo


- que marco no alto do circuito (reviramento da
pulsão) -,uma primeira torção: talvez tenha
sido a partir dessa noção de torção que o Dr.
Lacan pensou em inserir este pequeno discurso

94
ALAIN OlDIER-WEill

topológico• no ponto em que se encontra


em seus avanços. Assim, neste segundo
tempo, aparece uma primeira torção em
que há aparição de um novo sujeito e de
um novo objeto. O novo sujeito, sou pre-
cisamente eu que, de ouvinte, me torno ...
- não posso dizer falador, falante,
musicante... - , seria preciso dizer que é o
ponto na música em que tudo se passa como
se- insisto sobre o se-, tudo se passa como
se nós mesmos produzíssemos as notas que
nos atravessam. Insisti sobre o se e sobre o
condicional que está ligado a esse se - não
estamos delirando-, mas tudo se passa en-
tretanto como se, ainda que não sejamos nós
que as produzamos, fôssemos nós mesmos
que as produzíssemos: somos nós os auto-
res dessa música.

I. N. do T. O autor utiliza o termo topo, abreviação de


topographie. Termo restrito ao registro familiar, tem usu-
almente o sentido de plano, esboço ou discurso, exposi-
ção. Aopção pela expressão "discurso topológico" justi-
fica-se pela evidente alusão do autor aos problemas de
topologia abordados por J.acan.

95
O CIRCUITO PULSIONAL

Pus, assim, uma seta que vai do sujeito ao


pequeno a separador, querendo indicar com
isso que, nesta segunda perspectiva da sepa-
ração, é do ponto de vista do Sujeito que te-
nho uma perspectiva sobre a falta no Outro.
Mas que falta é essa? Como situá-la em rela-
ção ao amor de transferência? Bem, quando
escutamos uma música que nos emociona, a
p rimeira impressão é de ouvir o tempo todo
que essa música lida o tempo todo com o amor:
parece que a música canta o amor. Mas se
levarmos a sério este pequeno esquema e ten-
tarmos compreender como funciona o amor,
sentiremos, neste movimento de torção na
música, que não é tanto o sujeito que fala de
seu amor ao Outro: ele responde antes de tudo
ao Outro, sua mensagem é esta resposta em
que ele é convocado por este sujeito suposto
ouvir, sua música de amor impossível é na
verdade uma resposta que ele dá ao Outro e
é ao Outro que ele supõe o fato de amá-lo e
de amá-lo com um amor impossível.

Se vocês quiserem, poderíamos fazer su-


mariamente um paralelo com certas posições
místicas, uma vez que o místico é aquele que
não nos diz que ama o Outro, mas que só faz

96
ALAIN OIDIEll-WEill

responder ao Outro que o ama que está posto


nesta posição, que não tem escolha, que só
faz responder a isso. Neste segundo tempo
da música, pode-se fazer esse paralelo, já que
o sujeito efetivamente postula o amor do Ou-
tro por ele, mas o amor do Outro como radi-
calmente impossível. É por isso que pus esta
seta, porque o Sujeito tem, por esse segundo
ponto de vista, urna perspectiva sobre a falta
que habita o Outro. Vocês vêem que, depois
destes dois tempos, poderíamos dizer que se
confirma através desse segundo tempo que o
objeto evaporado, na segunda posição, per-
manece tão evaporado quanto na primeira
posição. Estamos nos aproximando, como
vocês estão vendo, do fim do anel. A transfe-
rência, é possível notar, corresponde muito
precisamente à maneira como Lacan intro-
duz o amor de transferência no seminário Le
Transfert: o Sujeito postula que é o Outro que
o ama; ele coloca, port anto, um amado e um
amante. Há, pois, passagem nesse amor de
transferência, do amado ao amante.

O que eu lhes disse aí, de todo modo, não é


exato porque esse segundo tempo não pode arti-
cular-se como tal, ele se articula sincronicamente

97
O CIRCUITO PULSIONAL

com um terceiro tempo que existe, eu diria,


sincronícamente com ele da seguinte manei-
ra: sendo ele mesmo músico, sendo então pro-
dutor da música, o sujeito dirige-se, desta vez,
a um novo outro, que chamei de sujeito supos-
to ouvir, que não é mais totalmente o Outro do
ponto de partida, é um novo 'outro. Esse novo
outro, precisamente, não é mais o "vel", não é
mais "ou um ou outro". Com esse novo outro
ele vai também identificar-se, ou seja, há, a partir
do alto do anel, uma dupla disposição em que
o sujeito é ao mesmo tempo aquele que é falan-
te e aquele que é ouvinte2 •

Há algo que talvez possa ilustrar para vocês


essa divisão: é aquela que é posta em evidência
pelo mito de Ulisses e das Sereias. Vocês sabem
que Ulisses, para escutar o canto das Sereias,
havia tapado com cera os ouvidos de seus ma-
rinheiros. Como devemos compreender isso?
lflisses expõe-se a ouvir, a ouvir a pulsão invocante,
a ouvir, enfim, o canto das Sereias; pois quando
ele vai ouvir o canto das Sereias, vocês sabem que
a história nos conta que ele berra para os mari-
nheiros, que lhes diz: "Parem,. vamos ficar''.

2. N. do T. No original, enfendant.

98
ALAIN DIDIER-WEILL

Mas ele tomou suas precauções: sabe que


não será ouvido. Em minha opinião, o que
esse mito ilustra é meu segundo tempo. Ulisses
pôs-se em posição de poder ouvir, visto que
se havia assegurado de que não haveria este
reviramento da pulsão, isto é, o segundo e o
terceiro tempos; em que se havia assegurado
de que não haveria um sujeito suposto ouvir
por causa dos tampões de cera. Vocês estão ven-
do que o primeiro tempo - ouvir- é uma coi-
sa, mas isso coloca para nós o problema da éti-
ca do analista. Será que precisamente um ana-
lista, que é alguém de quem se pode esperar
que ouça certas coisas, será que, num momen-
to dado, ele não está necessariamente, pela pró-
pria estrutura do circuito pulsional, em posi-
ção de ter que se fazer falante? De não fazer
como Ulisses, digamos, que já havia corrido um
primeiro risco de ouvir certas coisas.

Depois desses segundo e terceiro tempos


em que o Sujeito e o Outro continuam seus
caminhos lado a lado sempre separados pelo
pequeno a separador, imagino qual seja nos-
sa posição, onde nos encontramos em rela-
ção a nosso ponto de partida. Bem, podería-
mos dizer a respeito do ponto em que o sujei-

99
O CIRCUITO PUl.SJONAl

to desemboca que, depois desses segundo e


terceiro tempos, ele encontrou a segurança de
que era efetivamente impossível encontrar o pe-
queno a separador, uma vez que ele só conse-
guiu girar a seu redor. Mas foram-lhe necessá-
rios vários movimentos dialéticos para ter, eu
diria -não sei se a palavra é boa - , como que
wna forma de certeza que vai lhe penniti.r fa-
zer wn novo salto, que será meu quarto tempo,
um novo salto que vai lhe permitir naquele
momento passar para uma nova forma de gozo,
correr esse risco. Eu disse correr esse risco por-
que não é dado que se consiga atingir o que
chamo de quarto tempo e que vou, de qualquer
modo, marcar. Digo-lhes que podemos imagi-
nar um último tempo que seria o ponto tenni-
nal, o ponto não de retomo, urna vez que a
pulsão não retoma ao ponto de partida, mas o
ponto possível, derradeiro da pulsão. Marquei
o gozo do Outro, e o pequeno esquema, o novo
esquema de separação, o terceiro que inscrevo,
representa o esquema da separação não mais
com o objeto pequeno a na lúnula, mas com o
significante S de grande Outro barrado, S(~), e
o significante 5 2, significante que Lacan nos
ensina a situar como sendo o do Urverdriingung,
do recalcamento originário.

100
ALAlN DIDIER·WEILL

Por que marco isso? Direi que, uma vez


feito todo o percurso, seja do ponto de vi sta
do Sujeito, do Outro ou do segundo outro,
fica confirmado que o objeto é verdadeiramen-
te volatilizado. Pode-se imaginar que, nesse
momento, o Sujeito vai fazer um salto, não
vai mais contentar-se em estar separado do
Outro pelo objeto pequeno a, mas vai proce-
der verdadeiramente a uma ten tativa de tra-
vessia da fantasia; há uma passagem no se-
minário Les quatre concepts fondamentaux de
la psychanalyse em que o Dr. Lacan, muito
antes de falar do problema do gozo do Outro,
coloca uma questão a propósito da pulsão e da
sublimação: ele se pergunta como a pulsão pode
ser vivida depois do que seria a travessia da fan-
tasia. E acrescenta: "Isso não é mais do domí-
nio da análise, mas é do mais-além da análise".

Recordemos, então, que o objeto pequeno a


não é unicamente, como se ouve dizer com
tanta freqüência, essencialmente caracteriza-
do pelo fato de que é o objeto faltoso; se é certo
que ele é o objeto faltoso, sua função de ser o
obje to faltoso é apontada muito especiahnen-
te no fenômeno da angústia. Mas, além dessa
função, poderíamos dizer que sua função

101
O CIRCUITO PULSIONAL

fundamental é antes de mais nada a de vedar


esta hiância radical que toma tão imperiosa a
necessidade da demanda. Se há verdadeiramen-
te algo de faltoso no ser falante não é o objeto
pequeno a, é esta hiância no Outro que se arti-
cula com o S de grande Outro barrado: S (~). É
por essa razão que, no fim do circuito pulsional,
para dar conta da experiência do ouvinte, emi-
to esta idéia de que a natureza do gozo a que se
pode ter acesso no fim do percurso não está de
modo algwn próxima d e um "mais-gozar", mas
precisamente ao lado desta experiência de um
gozo que poderíamos talvez chamar de
"extático", gozo da própria existência. Aliás, a
propósito do termo "gozo extático", fiquei im-
pressionado ao localizar num número de
Musique en jeu mn trabalho em que Lévi-Strauss
põe muito precisamente em perspectiva a na-
tureza não do gozo, mas da experiência da mú-
sica e da que lhe parece ser a da experiência
rrústica. O próprio Freud, numa carta a Romam
Rolland, articula espontaneamente que resistia
ao gozo musical, e que esse gozo musical lhe
parecia tão estranho quanto o que Romain
Rolland lhe dizia sobre os gozos de ordem mís-
tica. Enfim foi ele mesmo que articulou os dois,
que teve a idéia de introduzir a música nisso.

102
ALAJN DIDIER-WEILL

Último tempo, portanto, em que o sujeito


fará o salto- não sei se se pode dizer para "além"
ou para "atrás" do objeto pequeno a - , chegará
a atravessar e a adv ir a este lugar, p ode-se
dizer, de comemoração do ser inconsciente
como tal, is to é, da partilha das fa ltas mais
radicais que são aquelas que constituem a
hiâncfu do sujeito do inconsciente e a do in-
consciente. Poderíamos d izer, se vocês quise-
rem, que, no ú ltimo tempo, o Real como im-
poss ível é posto em brasa, é leva do à
incandescência; n esse momento, indicarei que
a pulsão p ára, no sentido em que os músicos
e os ouvintes de música sabem que em certos
momentos de perturbação pela música, como
se diz, o tempo pára. Efetivamente h á uma
suspensão do tempo nesse nível. E nessa s us-
pensão d o tempo, pode-se fazer a hipótese de
que o que se passa é uma espécie de comemo-
ração do ato fundador do inconsciente na se-
paração mais primordial, a hiância mais primor-
dial que foi arrancada do Real e introduzida
no sujeito, que é a do 5 do grande Outro
b arrado, S (~), do significante 5 2• Creio que o
último ponto que se pode avançar é fazer notar
que este ponto de gozo, que me parece ser o que o
Dr. Lacan articula ser do gozo do Outro, é

103
O CIRCUITO PULSIONAL

precisamente o ponto de dessexualização


máximo, eu diria total, superior, sublime,
sublime no sentido de sublimação. E é exata-
mente através desse ponto que a sublimação
lida com a dessexualização e com o gozo.

Então, as duas ou três torções de que eu


lhes falava no começo são aquelas que são
localizáveis entre a passagem do primeiro
para o segundo tempo, do segundo para o
terceiro; para dizer a verdade, não sei se po-
demos falar de torção para a topologia do que
eu chamaria de quarto tempo. Isso fica para
pensar. Agradeço a atenção de vocês.

• Transcrição da intervenção de Alain Didier-Weíll em


21 de dezembro de 1976 no Semínárío L'insu que sait de
l'une bévue s'aile à mourre de jacques Lacan.

104
CLARICE LISPECTOR E O PODER DA PALAVRA

Marco Antonio Coutinho Jorge

Para Eliane, Samuel,


f.lisa, Crislac.

DO PLURAL AO UM ...

Num artigo anterior sobre Clarice


Lispector, situei seu texto como uma mani-
festação exemplar do discurso místico, o qual
Lacan insere no campo do gozo feminino
por excelência, urna vez que este se pro-
duz para além da referência fática, mas-
culina, de todo e qualquer sujeito falante 1 •

1. Coutinho Jorge, M A "A iniciada sem seita", em &xv e


~emlreudc.Laam.RiodeJaneiro,J~eZahar, 1988,
p.97-104.
105
CLARICE LISPECTOR E O PODER DA PALAVRA

Posteriormente, num ensaio subseqüente, tra-


tei de sua escrita como sendo um exercício
reiterado da experiência do despertar, a qual se
inscreve, para Lacan, precisamente no âma-
go da experiência psicanalítica2 •

Aqui, valorizando algumas colocações fei-


tas por Paul-Laurent Assoun em seu livro
Freud e a Mul!Jer3, volto ao texto de Clarice para
indagar sobre aquilo que constituiria, em essên-
cia, o objeto do discurso feminino. Abordando a
relação da menina com a mãe, Assoun sugere
a vigência para cada sujeito de uma oposição
entre duas formas de linguagem bastante di-
versas: a linguagem paterna, edipiana, e a ma-
terna, pré-edipiana. Sua diferença reside no fato
de que a primeira vem ordenar e organizar
aquilo que na segunda é informe e caótico.

Dito de outro modo, a linguagem edipiana


representaria o cais no qual o sujeito se ancora
para fazer face ao caos do período pré-

2. CoutinhoJorge, M. A. "Clarice Lispector e a Experiên-


cia do Despertar'', em Anuário Brasileiro de FsiC811álise.
Rio de Janeiro, Relume Dumará, I 991, p. I 66-170.
3. Assoun, P. -I.. Freud c a Mulher. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1993.

106
MARCO ANTONIO COUTINHO JORGE

edípiano: cais paterno, representado pelo


surgimento do Outro paterno. Este advém
como o terceiro no qual o sujeito se ancora
para fazer face ao caos intrínseco à relação
com o Outro matemo em que a dualidade da
relação com a criança é fechada, sufocante e
pode ser mortífera, pois seu caráter funda-
mental é o do entredevoramento. Em outros
termos, se com o advento do Édipo a lingua-
gem atinge sua plena potência recalcante, isso
se dá porque o que ela recalca primordialmen-
te são as vivências corporais da criança em
sua relação tão íntima e indiferenciada com
o Outro materno.

Proponho que se reflita se no discurso que


se pode denominar de feminino o que emer-
ge não é justamente a produção de uma con-
tinuidade, uma ponte que liga esse passado
(pré-edipiano) ao presente (edipiano): o dis-
curso feminino evocaria mais facilmente as
lembranças de experiências originárias e, acos-
sado constantemente por elas, as colocaria em
palavras da língua materna. O fato mesmo de
nomeá-la de lingua materna já não revela, por
si só, a inerência que se dá entre a entrada da
criança na linguagem e o Outro matemo?

107
CLARICE LISPECTOR E O PODER DA PALAVRA

A questão que se coloca diz respeito a qual


seria o objeto de um discurso que se ativesse
permanente e predominantemente a tais ex-
periências pré-edipianas. Um esboço de res-
posta, que pretendo ilustrar com o texto de
Clarice Lispector, seria: tal discurso trataria
de forma privilegiada das experiências cor-
porais mais remotas e das sensações e dos sen-
tidos de uma forma geral. Trataria esse dis-
curso também dos animais e, mais do que isso,
da vída em toda e qualquer de suas manifes-
tações. Trataria, ainda, da música, da pintu-
ra e de todas as produções humanas não
linguageiras, ditas não-verbais.

Tal discurso pretenderia trazer para o cam-


po do sentido, isto é, das articulações simbólico-
imaginárias, aquelas experiências que perten-
ce m ao âmbito dos sentidos , do real das
vívências, daquilo que resta inefável. O sentido
viria unificar o que, nos sentidos, se acha pul-
verizado: da pluralidade dos sentidos almeja-
se obter a unidade que o sentido propicia.

Observo que a própria desordenação pre-


sente no ato mesmo da ~scrita de Clarice -
ela escrevia em qualquer lugar, numa conta

108
MARCO ANTONIO COUTINHO JORGE

de gás, num pedacinho de papel -, sugere a


ocorrência, nela, de um estilo caótico que pa-
rece obedecer a orientações pulsionais
acéfalas. Clarice escreve como quem grita,
como quem chora, ou mesmo apenas (mas será
isso apenas?) como quem vive: por movimen-
tos de fluxos, espasmos, contrações ... Estilo
de desordenação e de desordanação.

... E DO UM AO PLURAL

Centralizo minha leitura em Água Viva 4 ,


texto que condensa a mais fundamental óti-
ca clariceana, embora ao longo de toda a sua
obra se possa encontrar conclusões semelhan-
tes. Nele, trata-se da língua como Ungua ma- ,
terna, língua visceral que quer dar voz ao ter-
rível desamparo do bebê, com suas vivências
parciais e evas~vas à linguagem de um corpo
ainda despedaçado que almeja obter um tra~
ço de unidade. Tal língua, prolongamento do

4. Todas as cítações de Clarice tispcctor são de Agua


Víva.. Rio de janeiro, Nova Fronteira, 1980.

109
CLARlCE USPECTOR E O PODER DA PALAVRA

grito e do choro, se atém a falar das experiên-


cias mais embrionárias dos sentidos; ela des-
creve a novidade inerente às imagens, aos
sons, aos perfumes, ao batimento respira-
tório, aos sabores.

Tal língua longínqua quer dar palavras às


formas mais simples da vida; trata-se, nela,
de uma celebração contínua da vida, e, mais do
que isso, de um texto que deseja dizer a vida:
um texto que pretende reduzir a zero a dis-
tância que separa real e simbólico. Mas um
texto que quer dizer p real, dizer o impossível
de ser dito, acaba paradoxalmente p or desta-
car esse impossível, esse real a partir do sim-
bólico, pois para Lacan o real está fora do sim-
bólico, ele ex-siste ao simbólico.

É de se supor que o poder da palavra seja


tão maior quanto mais proximamente ela con-
siga se situar em relação à vivência real. Se
todo escrito poético apresenta em grau mais
ou menos elevado esse poder, que é por defi-
nição a ele inerente, o discurso feminino é
aquele que parece se caracterizar por tomar
onipresente wna tendência a dizer o real.

110
MARCO ANTONIO COUTINHO JORGE
t
Uma das formas mais ·simples de aproxi-
mar-se d o impossível é dizer que é impossível
dizer o impossível. Diz Clarice: "Ouve-me,
ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que te
falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que
me escapa e no entanto vivo dela e estou à
tona de brilhante escuridão". Outra forma de
dizer o impossível é frisar a separação radi-
cal que há entre real e simbólico, ou seja, en-
tre o viver e o dizer: "Estou consciente de que
tudo o que sei não posso dizer, só sei pintan-
do ou pronunciando, sílabas cegas de senti-
do. E se tenho aqui que usar-te palavras, elas
têm que fazer um sentido quase que só
corpóreo, estou em luta com a vibração últi-
ma". Mas seja como for, o projeto que insiste
é sempre esse, o de dizer o impossível de dizer:
"Ao escrever n ão p osso fabricar como na
pintura, quando fabrico artesanalmente
uma cor. Mas estou tentando escrever-te
com o corpo todo, enviando uma seta que
se fin ca n o ponto tenso e nevrálgico da pa-
lavra". E ainda: "Sim, quero a palavra últi-
ma que também é tão primeira que já se con-
funde com a parte 'i ntangível do real".

111
CLAJUCE LISPECfOR E O PODER DA PALAVRA

Nessa intrincação entre simbólico e real,


emerge com dareza em seu texto a relação
entre corpo e palaura: "A palavra mais impor-
tante da lingua tem uma única letra: é". Se·as
experiências com o Outro matemo são aque-
las em que o corpo ainda carecia de palavras,
o feminino fala do pré-edipiano, da "lingua-
gem corporal", materna, sem a ordem instau-
rada pela linguagem paterna: "Deixa-me fa-
lar puramente em amamentar".

Nesse sentido, pode-se observar que orde-


nar o corpo, como cada vez mais é proposto
atualmente em nossa cultura através da ên-
fase nas terapias corporais e nas academias
de ginástica, nos métodos de emagrecimento
e de controle corporal, talvez consista numa
tentativa de resposta fática, masculina, à de-
sordem e ao mal-estar que os sujeitos carre-
gam do período pré-edipiano.

TRADUZIR A VlDA ESPANTOSA

Em Água Viva, Clarice tematiza uma


perplexidade constante em relação à vida:
"Quero morrer com vida. {...} Queria tanto

112
MARCO ANTONIO COUTINHO JORGE

morrer de saúde. Corno quem explode." Des-


se modo, as mais estranhas formas de vida
merecem sua atenção: as mais tênues, como
a própria água viva, nome que une num só
termo os pares opositivos orgânico/
inorgânico, vegetal/mineral, animado/ inani-
mado. Também as mais perturbadoras, como
a ostra: "Será que a ostra quando arrancada
de sua raiz sente ansiedade? Fica inquieta na
sua vida sem olhos." Assim, Clarice fala da
gata, da galinha, do cavalo, do protozoário,
da lesma, dos dinossauros, das corujas, das
tartarugas, das abelhas, das formigas. E
também dos ratos, das aranhas, dos caran-
guejos, dos escorpiões ...

A vida é constante fonte de espanto e seu


discurso quer se aproximar precisamente des-
sas vivências animais, sejam estas as mais ru-
dimentares. Uma intuição quase inconfessável
parece lhe indicar uma região de transiência
entre o humano e todas essas formas vivas:
"Não ter nascido bicho é uma núnha secreta
nostalgia. Eles às vezes clamam do longe mui- .
tas gerações e eu não posso responder senão
ficando inquieta. É o chamado".

113
CLARICE LISPECTOR E O PODER DA PALAVRA

Pode-se supor que se as mulheres amam


tanto os animais, é porque adotam-nos como
eternos bebês que jamais passarão, como es-
tes o fazem, ao registro da linguagem, criatu-
ras vivas que contudo não participam, como
o homem, do universo simbólico. Trata-se de
uma espécie de relação amorosa, sagrada,
rrústica, com o nústério da vida, essa vida que
as mulheres dão quando dão à luz.

Um chisfe, para levar ao riso- esse é seu


' poder - , não pode ser explicado: a explica-
ção mata a graça. Igualmente, a escrita de
Joyce ou de outros autores que explodem as
palavras precisa ser decifrada e não comove:
ela fica mais do lado do discurso psicótioo, no qual
Lacan isolou corno uma das principais caracte-
rísticas a ocorrência de pelo menos um neolv-
gismo, que ocupa na psicose um lugar nuclear
semelhante ao que é ocupado pela fantasia na
neurose. O texto de Joyce, cheio de neologis-
mos, dificilmente poderia comover, ele exige
um trabalho cerebral, lógico, de decifração.
Já o texto de Clarice Uspector não é um texto
de experiências formais; é, antes disso, um
texto de experiência em que a palavra apresenta
a mais íntima aderência aos sentidos. Ele

114
MARCO ANTONIO COUTINHO JORGE

tangencia a borda do ininteligível, mas não


cede à tentação delirante: ele fala do impossí-
vel e não da impossibilidade de dizer.

O discurso feminino de Clarice traduz, traz


para o regime das palavras o mais fielmente
possível aquilo que de outro modo permane-
ceria para sempre situado aquém (ou além)
destas. Ainda aqui, a congruência entre a es-
crita feminina de Clarice e a experiência psi-
canalítica é impressionante: em ambas, tra-
ta-se da tarefa, impossível de ser totalizada,
de colocar palavras nos sentimentos e, assim,
dar a estas seu mais pleno poder.

115
SOBRE OS AUTORES:

Alain Didier-Weill - psiquiatra e psicanalista, foi


membro da École Freudíerme de Paris e é um dos fundado-
res do Mouvemen t du Cout Freu.di.en e do lnterassocmtif de
Psyd111ruúyse. Autor de Inconscimte freudumo e transmissão
da psicanálise Oorge Zahar, 1988), Fim de uma análise. finali-
dade da psicanálise (org.) Oorge Zahar, 1993), Os três tempos
da lei Oorge Zahar, no prelo). É autor de peças de teatro
entre as quais ús troís cases blanches e Pol.

Chawki Azouri -psiquiatra e psicanalista. Autor


de f ai reussi lii ou le paranoí"aque écho ue: la théoric a-t-elle
un pere? (Denõel, 1991) e 1...a Psycltanalyse à l'écOllte de
I'ínconscient {Marabout, 1993).

Oaude Rabant - filósofo e psicanalista, foi membro


da École Freudienne de Paris e é um dos fundadores do
Ore/e Freud.íeu. Criou as revistas Palio e lo. Autor de Délire et
théorie {Aubier, 1978), Clins (Aubier, 1984) e Inventer /e réel:
déni entre perversion et psyclwse (Denõel, 1992).

Marco Antonio Coutinho Jorge -psiquiatra e psi·


cana lista, foi membro do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro
até 1990. Coordenador-geral do Corpo Fmulúmo - Pesquisa e
Transmíssiio da Psiet~nálise, RJ. Autor de Sexo e disasrso em
Freud e Laam Oorge Zahar, 1988) e Oito aulas sobre Lacan
(org.) Oorge Zahar, no prelo).

SOBRE OS TRADUTORES:

Cristina Lacerda - poeta e jornalista. Autora de Pele


da palma (Siciliano,l993).

Marcelo Jacques de Moraes · professor-adjunto


d e Língua e Literatura Francesa na Universidade Federal
do Rio de Janeiro.
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ISBN 85-86011-04-5

L. 7

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