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ARTIGO Literatura Afro-Brasileira - A Marginalização
ARTIGO Literatura Afro-Brasileira - A Marginalização
Uma pergunta: quantos romances, contos ou poesias escritos por autores negros você
leu, digamos, nos últimos cinco anos? Destes, quantos eram de autores brasileiros?
Sim, há literatura negra e de qualidade escrita neste país. E, não, não estou me
referindo a Machado de Assis, o maior nome de nossa prosa contista e romanesca,
que, embora sabidamente mulato, vestia-se como branco, expressava-se como branco,
vivia rodeado de brancos, casou-se com uma branca e escrevia principalmente sobre
personagens brancos, adotando o estilo de autores brancos. É fato: considerando-se
desde a estética de sua obra até a invejável criatividade do escritor, não há dúvidas de
que Machado foi um talento ímpar em nossa literatura. Isso é incontestável. Sem
exageros, ele bem poderia estar entre os primeiros oito escritores a receber um Nobel
nessa categoria. Porém, entendo como um tanto forçoso querer enxergá-lo como um
escritor de literatura afro-brasileira. E o certo é que temos escritores bem mais
apropriados para essa corrente de produção literária, dos quais eu gostaria de
destacar sobretudo algumas mulheres (já que, se a voz dos autores negros brasileiros
parece ter sido sufocada, mais inaudível ainda se faz a literatura ao mesmo tempo
negra e feminina ou feminista). Gostaria de começar citando, por exemplo, o romance
Úrsula, de 1859 anos antes de Machado haver publicado seu primeiro livro de
poemas, Crisálidas (1864), seu primeiro livro de contos, Contos fluminenses (1870), e
muito antes de seu primeiro romance, Ressurreição (1872). A autora de Úrsula, Maria
Firmina dos Reis, foi uma mulata de São Luís (MA), filha bastarda numa época em que
isso era uma sina terrível de se carregar, e que, com muita luta, tornou-se professora
primária aprovada em concurso público, escreveu para jornais de literatura e ainda
fundou uma escola que oferecia ensino gratuito para turmas mistas de meninos e
meninas algo inapropriado para a mentalidade da época e que foi motivo de
escândalo na provinciana comunidade de Maçaricó, onde ficava a escola, do que
resultou à ordem para seu fechamento. O romance Úrsula foi escrito sob o
pseudônimo de “Uma Maranhense”, e a obra passou por praticamente invisível aos
críticos literários até meados da década de 1970, cerca de 115 anos mais tarde,
quando os estudiosos tomaram contanto com uma edição fac-similar do livro. Além
disso, convém destacar que, fora de um restrito círculo de acadêmicos e outros
particularmente interessados na produção literária de afrodescendentes no Brasil,
poucos já ouviram falar de Maria Firmina e de seu romance Úrsula. E, de uma
perspectiva mais geral, é quase como se não houvesse negros e outros brasileiros de
ancestralidade africana produzindo literatura neste país.
Capa de uma edição moderna de "Úrsula", de Maria Firmina dos Reis. O romance-mãe
da literatura afro-brasileira, escrito em pleno Brasil imperial.
Mas basta pegar qualquer edição dos Cadernos Negros, série de livros atualmente
organizados e editados pelo grupo Quilombhoje nos quais se vem divulgado a
literatura afro-brasileira desde 1978, especialmente com a publicação de poemas e
contos , para nos darmos conta de que existem muitos, em vários casos autores de
admirável talento, produzindo versos e prosa de indiscutível qualidade. Infelizmente,
tais poetas e escritores o fazem à margem de uma sociedade, que aparentemente
não se interessa por ler histórias escritas e protagonizadas por negros. E não pense
que é um exagero essa leitura que faço da notável aversão ou desinteresse pela
literatura negra no Brasil.
Quem já ouviu falar de Conceição Evaristo, por exemplo? A grande maioria, não. Pois
se trata de uma escritora afro-brasileira, autora de poemas, contos e romances, que já
teve textos traduzidos e publicados em outros países, incluindo a tradução para o
inglês de seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio (publicado no Brasil em 2003, lançado
em inglês em 2007, pela Host Publications). Já existem estudos sobre a obra de
Conceição Evaristo no Brasil e no exterior, em português e em outros idiomas; todavia,
ela continua uma ilustre desconhecida dos leitores deste país e mesmo de grande
parte dos alunos e professores dos cursos de Letras de norte a sul. Seus dois
romances escritos até o momento, Ponciá Vicêncio e Becos da memória (2006) foram
publicados na última década por uma pequena editora voltada para obras afro-
brasileiras. Ambos os títulos certamente tiveram uma primeira tiragem modesta, pois
o número de livros impressos numa possível segunda edição depende do sucesso
comercial da primeira. Houve uma segunda edição de Ponciá Vicêncio, em 2005, mas
também deve ter sido uma tiragem relativamente tímida. Alguns estudiosos que
tiveram acesso a uma (rara) cópia dos romances publicaram artigos, analisando-os e
exaltando suas qualidades estéticas, a engenhosidade narrativa e a construção
esmerada de personagens nem um pouco rasos. Assim foi, dentro e fora do país. No
entanto, uma pergunta: em que livraria encontro hoje esses romances para comprar?
Se você nunca pensou nisso, pense. Muitos já viram o vídeo famoso de um estudo
feito com crianças negras que são colocadas diante de bonecas, uma branca e outra
negra, enquanto respondem a questões feitas pelos pesquisadores. A essas crianças
são perguntadas coisas como “Qual boneca é a bonita?” (a criança aponta a branca),
“Qual é a feia?” (a criança aponta a negra), e a pergunta mais avassaladora: “Com que
boneca você se parece?” (a criança, os olhinhos sem alegria, a expressão contida,
inocente, mas já marcada pela dor de viver sob um sistema de valoração estética que
elege seu tipo como o avesso do ideal e desejável, aponta para a boneca negra). O
interessante é que, bem antes dessa pesquisa, bem antes dessas imagens comoventes
serem gravadas, uma romancista já havia pintado todo esse retrato sofrido numa
história que ainda hoje é tida como uma das obras-primas da literatura afro-
americana: O olho mais azul, romance de estreia da premiadíssima Toni Morrison,
publicado em 1970 (no Brasil, a tradução foi lançada pela Companhia das Letras, mas
também já se encontra esgotada). Nele, uma criança negra, a menina Pecola, já
vitimada pelas desgraças em sua vida, vai desenvolvendo uma obsessão gradativa por
ficar branca e ter olhos azuis. O livro destaca o forte impacto psicológico do racismo (e
do abuso sexual) sobre uma vulnerável menina negra numa sociedade
segregacionista.
O menino negro “nunca foi além daquele saber” porque o menino branco teve receio
das consequências de se educar um negro. Um negro “com o saber de branco”? O que
poderia fazer? Melhor não! Na verdade, o que o negro letrado poderia fazer (e muitos
o fizeram) foi expressar, fazer ouvida, ou melhor, lida, a sua voz, a voz que, já de fora
das senzalas, ainda ecoava lá de dentro, de suas prisões frias, sujas e escuras. Ao
longo de todo o século XX e nestas primeiras décadas do terceiro milênio, vários
autores têm surgido, publicando poemas, contos e romances em que a negritude é
resgatada, revigorada e reafirmada com orgulho. Um orgulho que se justifica por se
contrapor aos séculos de dor, de tortura e vazio existencial em que penaram seus
antepassados. Nesse sentido, muitos se esforçaram por resgatar essa memória
perdida, enterrada sob o cinismo da história dos que a contam, enquanto tentam
fingir que o passado não foi. Ou que não foi como foi.
Hoje, é lamentável ter de admitir que tantos de nós jamais tivemos contato com um
sem-número de obras contemporâneas dessa admirável literatura. Obras de
reconhecível valor literário, mas que são ignoradas até mesmo pelos cursos de Letras
do país, que dirá pelas livrarias, mais interessadas em potenciais sucessos de venda. É
vergonhoso que obras recém-lançadas já estejam esgotadas, inacessíveis, sem
previsão de novas edições numa tiragem maior. É ainda mais triste saber que, se
literatura negra já não faz sucesso, tanto pior se for negra e feminista, com um
enfoque maior na condição da mulher de pele escura no miscigenado “Brasil de todas
as raças”, do falso “preconceito inexistente”. É uma pena que nomes como Conceição
Evaristo, Geni Guimarães (autora de A cor da ternura, FTD, 1994) ou Ana Maria
Gonçalves (e seu elogiadíssimo e volumoso romance histórico Um defeito de cor, Ed.
Record, 2009), para citar apenas alguns poucos nomes, não estejam em destaques nas
prateleiras das livrarias de todo o país. No caso da última, consola saber que ao
menos está tendo um modesto sucesso comercial que lhe garantiu cinco edições da
obra. Mas, ainda assim, é preciso bem mais. O Brasil precisa aprender com o exemplo
de outros países que hoje se orgulham de uma linha vigorosa de literatura
afrodescendente. E precisa também dar a devida atenção à produção das mulheres
negras, que enfrentam a dupla condição de vítimas históricas de uma absurda
discriminação para com a cor de sua pele e para com o gênero a que pertencem.
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Camilo Jr.