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A .
· Jovem ·
Rosa Maria Gouvêa Abras
(Organizadora)

A JOVEM HOMOSSEXUAL
FICÇÃO PSICANALÍTICA
No infcio do século, uma
bela jovem coloca sua
reputação e seu
relacionamento familiar em
risco ao se apaixonar por
uma mulher de má fama,
uma conhecida
deml-mondaine da
sociedade vienense.
Esta estória se tomou
conhecida no meio
psicanalltlco como ·o caso
jovem homossexual.
da jovem homossexual".
Para isto, convidamos
Sua leitura nos leva a
alguns psicanalistas que
perguntar: o que teria
acontecido à jovem após a estivessem dispostos,
dentro do seu estilo pessoal
tentativa fracassada de
e por su~ pr~pria conta, a
tratamento com Freud?
correr o ·risca de e.ncarnar
Teria·se casado à força
os vários personagens
como era o desejo de seu
desta estória.
pai? Ao imaginá-la dez
Como o leitor vai. ver' .
anos depois, por exemplo,
não se trata de um livro d e
como teria sido afetada
teoria psicanalítica. Trata-se
pelo episódio da sua paixão
de pura ficção. E o
pela dama?
resúltado, surpreendeF)te.
O leitor já deve estar
Agora só resta ao leitor com
percebendo que estas
sua fantasia participar da
perguntas são pura
trama e a nós só resta a
fantasia. Provavelmente efe
expectativa de que. ele
já se pegou muitas vezes
tenha tanto prazer·em ler
fantasiando outros destinos
para os personagens de um esse livro como nós
tivemos em produzi-lo
livro que tenninou de ler ou
e editá-lo.
ao sair de um filme que lhe
tocou a sensibilidade.
Foi então com a intenção
de fantasiar que nos
propusemos a recriar em
estilo flcclonal o caso da

PASSOS
A Jovem Homossexual
Ficção Psicanalítica
Copyright ©:
Rosa Maria Gouvêa Abras
(Organizadora)

Copyright © desta edição:


AS. Passos Editora Ltda.

Capa:
Heliana Brandão

Revisão:
Berenicy Raelmy Silva

Composição:
Lourdes- Editoração Gráfica - Fone.: 485-10ó7

Produção Gráfica e Acabamento:


Editora Santa Edwiges - Fone.: (031) 442-7088

1996

A.S. PASSOS
EDITORA LTDA.
Av. Contorno, 4.640- Sala 701
30 IJ0-090 - Belo Horizonte - MG
Telefax.: (03 1) 281-2477
Sumário

I. Apresentação ......... ...... 00 00 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 00 . . . . . . . . . . . . . . . oo.. . 7


Mareio Peter de Souza Leite
2. Um breve resumo .................. 00 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
O caso da jovem homossexual
3. O pai ............................... 0 0 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . 31
A versão do pai
Oscar Cesarotto
4. A mãe ........................................................................ 43
Fim de tarde: reflexões de Alma
José Domíngues de O liveira
5. O irmão ..................................................................... 51
Seis cartas de Friedrich von Kleist
para seu amigo Karl Schiller
Renato Mezari
6. A dama ...................................................................... 69
Maria Klein, demi-mondaine
Ângela Maria de Araújo Porto Furtado
7. A jovem ..................................................................... 77
Aos olhos dele
Mmia Rita Kehl
8. Diál"io clínico- 10 anos depois ................................ 87
Anotações sobre a análise de uma mulher
Eliana Schueler Reis
9. Referências ....................................................... ......... 99
tO. Sobre os autores ................ ........ .................. ............. 105
Apresentação

7
Apresentação

Cara colega,

Finalmente chegaram os textos que você havia me dito


ter conseguido. Apenas não entendi direito o que seriam aque-
las fotocópias de um velho manuscrito em alemão, com uma
letra horrível, e que me chegou separado dos outros, sem o
nome e endereço do remeteme. Mas apesar da sua insistência
em falar comigo que não foi você quem me havia enviadlo
este misterioso envelope, não imagino outra pessoa que o
pudesse ter feito.
Bem que estou gostando da proposta de escrever um
texto de apresentação à sua investigação. Como foi que você
conseguiu reunir estes documentos nem consigo imaginar, e
pelo visto, nunca vou saber. De qualquer maneira, a idéia de
reunir num livro os depoimenws de todos os envolvidos neste
episódio, que acabou sendo apresentado como sustenração
clínica à re-elaboração da teoria do Édipo. digamos que é, no
mínimo, genial.
Pois, de fato, a opinião de Freud sobre aqueles aconte-
cimentos foi demasiadamente parcial. Mas como poderia ser
de outra maneira? Com estes novos documentos a história se
relativiza e, como num tribunal, se quisermos julgar o que
aconteceu, é imprescindível ouvir todas as partes.
Esta história, conhecida carinhosamente entre nous como
..0 caso da jovem homossexual" (talve7. para com isso ame-
nizar a caretice do Herr Professor, que colocou no seu relato

9
o pomposo título "A psicogêoese de um caso de
homossexualismo numa mulher"), fica ainda mais intrigante
e enigmática depois dos depoimentos acrescentados.
É claro que você sempre soube do meu interesse por
este texto, e da curiosidade que tenho pelos seus mistérios. E
também já lhe contei que acho o máximo ne~la história que
Freud mande a paciente embora. É incrível não? Depois de
pouquinho tempo de análise, dois meses, ele dá um chega pra
lá em Leonora, sugere que vá se tratar com uma mulher e ...
tchau!
Eu sempre me perguntei o que teria acontecido com o
velho, nesta época um analista calejado, já nos seus sessenta
e três anos, que em meio a uma enorme crise econômica (sen-
do que, pouco antes, até mesmo emprestava dinheiro de seu
amigo Max Eitingon!) se desse ao luxo de dispensar uma pa-
ciente que, além de falar na sua língua (dando um descanso às
suas dificuldades de atender em inglês, a língua da maioria de
seus pacientes na época), também lhe pagava em moeda es-
trangeira, única forma de o dinheiro não desaparecer comido
pela inflação. (Já passamos por isto, mesmo sem guerra, não
é colega?)
Por isso era preciso que Leonora, e as outras pessoas
envolvidas, tivessem uma oportunidade de dizer o que acon-
teceu.
Até agora só se conhecia o ponto de vista freudiano,
contado daquele jeito dele, com seu estilo arrumadinho, dis-
tante, neutro.
Pois é, colega, o que é a verdade? Não é certo que o
homem que está tentando vender um cavalo cego elogia-lhe
os pés? O que foi de fato que aconteceu, naquele ano de 1919,
com a fanu1ia von Kleist, em Viena? O que aconteceu com
Freud?
Pelo seu relato, desde sua perspectiva profissional, sem-
pre discreta e muito adequada, aparentemente ele não se dei-
xou envolver pela versão de Leonora, e muito menos teria o
que dizer dos dissabores da mãe dela, Alma, ou de Anton e
seu sofrimento de pai.

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Como cientista que era (apesar da sua declarada inveja por
Schnitzler), procurou se centrar na problemática da gênese da
homossexualidade feminina, mas. como sempre acabava fa-
zendo, terminou por inovar outras questões, que de uma ma-
neira ou de outra se ligam ao caso estudado.
Os detetives que investigam as origens do pensamento
freudiano chegam a situar este ano de 1919 como o início das
grandes mudanças que tomariam, se me pemúte o chiste, Freud
freudiano. E não era também que. em meio de tudo o que
acontecia nestes fatídicos anos, ele gestava, entre outras coi-
sas, o sombrio "Além do princípio do prazer"!
Mas Leonora talvez tenha conquistado seu lugar no
panteão psicanalítico, também porque abriu os olhos do mes-
tre para um erro que há muito o incomodava. Aconteceu que,
dezenove anos antes, outra jovem, então com os mesmos de-
zoito anos de Leonora, c nas palavras de seu analista, também
bonita e inteligente, começou uma análise com ele e, como
Leonora. ficou pouquíssimo tempo. Só que daquela vez não
foi o analista quem a mandou embora, digamos que foi Dora
(era esse o nome da outra "muchacha ") quem o dispensou. O
fato é que o tratamento de Leonora precipitou para Freud a
decisão de rever suas posições sobre a fem inilidade, o que
acabaria por produzir, nos anos que se seguiram, uma mudan-
ça definitiva nesta questão.
Antes, Freud achava (e foi por isso que fracassou com
Dora) que a menina tomava como modelo amoroso unica-
mente a figura do pai. Após a análise de Leonora se impôs
uma outra concepção da feminilidade, oposta às suas idéias
anteriores.
Não foi só esta vicissitude o que teria produzido tais
. mudanças. A opinião de Freud sobre o Édipo feminino vinha
amadurecendo à medida que sua experiência como analista
aumentava. Pouco antes de conhecer a jovem em questão,
Freud, tendo constatado a frequência com que a idéia de apa-
nhar aparecia no relato de suas pacientes, se propôs investi-
gar a construção desta fantasia, e a relatou no texto "Bate-se
uma criança".

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Nele, observou que esta fantasia só aparece depois da
idade de quatro ou cinco anos, fato que o levou a supor que
ela tivesse uma história anterior, e desembocasse no resulta-
do final somente depois de uma longa elaboração. Freud con-
cluiu que ela se daria em três fases: na primeira aparece com
o pai batendo numa outra criança (detestada pelo infantil su-
jeito); na segunda ela é batida pelo pai; e finalmente produz-
se o terceiro desenvolvimento da fantasia, o qual é formulado
como "bate-se numa criança''.
O que mais chamou sua atenção foi que. no último está-
gio desta fantasia nas meninas, a criança que apanha é sem-
pre do sexo masculino. Para Herr Professor era justamente aí
que estava o enigma, e para resolvê-lo se empenhou no exa-
me do complexo parenta! da menina no período que vai dos
dois aos cinco anos de idade, época em que ela constrói essa
fantasia.
Foi nesse momento da elaboração teórica freudiana que
nossa jovem entrou em cena, e contribuiu para a posteridade,
na medida em que seu problema serviu para tentar esclarecer
o que quer uma mulher de outra mulher.
E mesmo depois, Freud continuaria procurando respos-
tas. Suas idéias sobre a feminilidade não iriam parar de se
reciclar continuamente, e logo nos próximos anos ele redigi-
ria o texto "Algumas consequências psíquicas da diferença
sexual anatômica'' (preste-se aqui homenagem a Friedrich,
irmão de Leonora, que contribuiu com o material necessário
para a existência da diferença anatômica).
Enfim, estas considerações desembocariam ainda nos
famosos títulos sobre o tema, como: " Sobre a sexualidade fe-
minina" , e o radical "A feminilidade".
Assim foi, card colega, que, se Freud achava que a ques-
tão feminina decorria da fixação amorosa da menina pelo pai,
ele pôde deduzir, como através de Leonora, que a menina tem
urna fixação anterior com a mãe, o que ele chamaria de "pré-
história" do Édipo.
Por outro lado, pode-se tomar este relato também, e mui-
tos o fazem, como paradigma para tentar entender certas si tu-

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ações dramáticas, infelizmente não tão infrequentes na clíni-
ca, que. para disfarçar o mal-estar que produzem, nomeamos
com tecnicismos como acting-out, ou para diferir dele, o que
Lacan nos ensinou a chamar de "passagem ao ato". No caso
de Leonora, este acontecimento foi sua tentativa de suicídio,
que para Freud teria a significação de ser ao mesmo tempo
um autocastigo e uma realização de desejo. E teria sido tam-
bém a realização de um desejo o que a impulsionou para a
homossexualidade, desejo que, segundo Freud, seria o de ter
um filho de seu pai.
Na leitura desta tentativa de suicídio, ele deduziu esse
desejo de ter um filho do pai a partir da homofonia entre ''cair"
e "parir", possível em alemão, como uma dupla significação
de "sie kam nieder". Este lacanismo avant-coup (ou seria
Lacan freudiano apres-coup?) onde a distinção de
"niederkommen" e "ausweichen" implica a moça numa po-
sição subjetiva onde "cair" e ''parir" ao mesmo tempo a colo-
cam quase no limite do delírio, realizado através da sua pas-
sagem ao ato suicida.
Sempre é bom não esquecer que Dora também fez sua
passagem ao ato quando deu um tapa no Sr. K. na hora em
que ele disse a respeito de sua mulher: "ela não é nada para
mim".
Ah ! se o seu analista soubesse naquela época que não
era o pai que Dora queria. mas sim a Sra. K! E quem saiu
perdendo, mais do que o ingênuo Sr. K., foi Freud, que não
pôde perceber que Dora não o queria.
Mas, na história de Leonora, sua passagem ao .ato é o
pivô que esclarece, segundo Freud, a sua inclinação homos-
sexuaL A cena central é esta: Leonora caminhando romanti-
camente numa tarde acompanhada de Maria Klein (uma dama
''aus der Gesellschaft" no dizer freudi ano, mundana em bom
português, "cocotte" no entender do pai, o que, claro, não era
a opinião da própria Maria, como pude ler no seu depoimen-
to), num lugar e em uma hora fácil de encontrar Anton, o que
de fato ocorre, e este, ao cruzar com elas, lhes dirigiu um
"olhar colérico''. E fulminada por este olhai:', Leonora se ati-

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rou (niederkommen) no fosso onde passava o bonde (sem
maiores consequências, senão o caso teria sido outro ...).
Se tem um vilão na história (toda história tem que ter
um vilão), pode-se dizer que foi o olhar que o pai dirigiu ao
casal. Mais que um olhar, foi um golpe. uma porrada, pois
bate-se com o olho também, e este tipo de agressão pode as
vezes doer mais que um tapa, pois o olhar é muito mais que
só o olho, e entre eles dois, todo sujeito desliza infinitamente
como desejante.
Há sempre, para usar uma expressão de Lacan, um tri-
unfo do olhar sobre o olho, fato que transforma o olhar em
algo maior, mais poderoso que o olho, pois sua força vem do
desejo, e como sabemos, é o olhar e não o olho o que consti-
tui o mundo.
E não é isso mesmo, cara colega, a pequena revolução
que você pretende ao divulgar estes documentos? Ao torná-
los públicos você não estaria tentando mudar o "ponto de vis-
ta", até então único, de Freud, e mostrar que em "cada cabeça
uma s.entença" e conseguir assim subverter a "verdade histó-
rica" do caso da jovem homossexual? Você não .estaria intro-
duzindo novos olhares sobre a mesma questão, produzindo
assim outros "pontos de vista?"
Mas ainda permanece o que para mim é o maior misté-
rio da análise de Leonora, e o que também foi o menos ex-
plorado por nossos colegas: a questão, muito estranha, dos
sonhos mentirosos! (mentirosos no entender de Freud, nada
menos!)
Freud, velho de guerra, acostumado a manejar a trans-
ferência positiva para com o pai como a essência da posição
feminina, deve ter sentido muito desconforto em relação à
rejeição ao homem, que Leonora estaria lhe transferindo.
Teria sido por isto que ele preferiu interromper a análi-
se dessa paciente? Por que o teria feito em vez de tentar ma-
nejar este tipo de transferência que, diga-se de passagem,
embora se manifestasse como rejeição, assim mesmo conti-
nuava sendo transferência?
Argumentando a seu favor, claro, o velho mestre reivin-

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dicou que durante esta curta análise uma única vez produziu-
se algo que poderia se conceber como transferência positiva,
e que seria a transferência do amor apaixonado que Leonora
nutrira antes por seu pai. Freud chegou a esta conclusão pe-
los sonhos que ela lhe contou, nos quais se curava da sua
homossexualidade pelo tratamento analítico, se casava e ti-
nha filhos. Porém não tardou em ser percebido que estes so-
nhos eram "mentirosos", pois ela não escondia dele que não
pensava em se casar, mas queria apenas se livrar do pai.
Ou seja, para Freud, Leonora queria enganá-lo como
engnou o pai! Pode o inconsciente mentir? Hum ...
Por que será que ele não pôde perceber que a vontade
de enganar era a manifestação transferencial de Leonora? Por
que não pôde ocupar o lugar transferencial do enganado?
Talvez as reflexões que você desêobriu no diário clíni-
co de Ferenczi indiquem uma resposta a estas perguntas, e
lembre-se que ainda não havia, na época, a noção de
contratransferência!
Pois é, não é difícil imaginar que tem o lado da pessoa
de Sigmund nesta questão, lado que o analista Freud não se
permitiu, ou não quis, aprofundar. (Parece que ele ainda não
se havia curado de todo de Dora e, claro, além do que quer
uma mulher, também tinha o que quer Freud !)
Chegado neste ponto, sinto até mesmo uma certa pena
do sábio vienense. Sinto orgulho também (afinal devemos a
ele nossa profissão). pois o que mais poderia ele dizer publi-
camente em 1920 a não ser o que se esperava que ele disses-
se?
Mas, cara colega, não seria justo que, tal qual os demais
personagens, ele também pudesse ter uma outra chance de
dizer como foram estes acontecimentos? Não como um chefe
de Escola, precursor de um novo e revolucionário método de
tratamento, mas como uma pessoa que conta a alguém muito
íntimo seus pensamentos mais secretos, independentemente
do julgamento que este possa fazer?
É aqui que eu acho que alguém quer me pregar uma
peça. Pois não é que as fotocópias, do velho manuscrito, pa-

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recem ser de uma carta do Freud!
De fato. efetuada a tradução c uma pequena pesquisa,
constatei que .a primeira página é ipsis litteris a carta que ele
mandou à sua mãe, em 22 de janeiro de 1920. O que se co-
nhece dela é um relato curto, onde ele, secamente, comunica
a Amalie Freud más notícias:

....~.4"~/ _,_,,,o~

~c- ú:,.h.o-?'~.e, /A-e, d'a~ .1-Nd.s- .~~.oúéeo.x&;,.ú,n·


~ck· -'-",a,,./Íà-~lá-e~,. n0dd4· ?''~/e- tfela· (?',y"

iffn- ç.o-n~~u;,,_c:Úü e/e.- '~'-"YP,?~hJ'Jítf7~~ e-
.
~,u;..-e,n.O.I'-i'a' .•
"
O resto da primeira folha continua tal qual a que conhe-
cemos nos epistolários de Freud. Porém há neste manuscrito
que me enviaram, uma continuação que não está e~ nenhu-
ma das publicações que consultei. Pode ser que seJa ~ res~
da mesma carta de 22 de janeiro, e que o autor prefen u nao
enviá-la completa, ou porque não teve coragem, ou porque
quis poupar sua velha mãe, ou mesmo porque esta carta nun-
ca existiu e você está brincando comigo.
Seu teor é mais ou menos o seguinte:

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t/t?;f" .uf- ~ /NYH' ;.~UJ<Y;zo:••

Bom , cara colega, onde termina a ficção e começa a


realidade? Já sei, nunca faça esta pergunta a um analista!

Atenciosamente

Mareio Peter de Souza Leite

21
Um breve resumo

23
O caso da jovem homossexual

Em 1920 Freud publicou o artigo "A psicogênese de


um caso de homossexualismo numa mulher". Esta história
clínica tomou-se conhecida no meio psicanalítico como "O
caso da jovem homossexual".
Freud foi procurado pelos pais de uma jovem de 18 anos,
bela e inteligente, seis meses após uma tentativa de suicídio.
Ela estava em companhia de uma certa senhora da sociedade
quando foi surpreendida por seu pai. Ele pas.~ou por elas com
um olhar irado, sendo este o motivo que fez a jovem brusca-
mente sair correndo. arremeter a um muro e pular imediata-
mente na linha do trem. Isto lhe custou alguns dias de cama,
embora não tivesse outras consequências mais graves. Já há
algum tempo a jovem vinha despertando em seus pais grande
desprazer e preocupação devido à devotada adoração com que
perseguia "certa dama da sociedade", cerca de dez anos mais
velha. Na opíní.ão dos país, a despeito do seu nome eminente,
tal senhora não era mais que uma "coquete". Diziam que ela
vivia com uma amiga casada e que ao mesmo tempo tinha
relações íntimas com certo número de homens. Mesmo sa-
bendo da fama de aventureira da tal senhora, e apesar das
proibições paternas, a paciente de Freud não se importava de
ser vista em sua companhia. Não perdia oportunidade de en-
contrar-se com sua amada, esperava por ela diante de sua porta,
enviava-lhe flores e presentes. Perdera todos os interesses pró-
prios de sua idade e só se relacionava com amigas que servis-
sem de confidentes ou lhe facilitassem o acesso à dama.
Os pais da jovem não sabiam até que ponto a filha tinha
avançado neste relacionamento. Percebiam que ela não tinha
interesse por rapazes e que sua admiração pela demi-mondaine
era apenas a continuação de uma atração que já havia mani-

25
fe stado antes pelo próprio sexo, causando ao pai grande
irritação. Como foi dito, a jovem não se preocupava em apa-
recer em público com o objeto da sua adoração. Chegava mes-
mo a usar qualquer tipo de desculpas ou mentiras desde que
estas facilitassem seus encontros.
A tentativa de suicídio teve como consequências um
afrouxamento da vigilância partema e ao mesmo tempo uma
mudança de atitude da dama em relação a ela. A senhora que
antes a evitava, depois de tal ato inequívoco de paixão, passou
a tratá-la de forma amistosa.
Os pais, vendo-se impotentes em suas medidas discipli-
nares e temerosos após a tentativa de suicídio, resolveram en-
viar a filha para tratamento psicanalítico. Esperavam que a
orientação médica fosse suficiente para reconduzi-la ao esta-
do natural de espírito. Caso esta tentativa fracassasse, pensa-
vam em casá-la rapidamente pois, na opinião deles, o casa-
mento deveria despertar seus instintos naturais.
Fr~ud observou que o pai era um homem sério e concei-
tuado. Embora temo no fundo do coração, sua rigidez era
motivo de certo afastamento por parte dos filhos. As tendên-
cias homossexuais da filha causavam-lhe grande amargura.
Estava clisposto a combater o problema - que ele atribuía a
uma conduta degenerada, vício ou mesmo a certa perturbação
mental. Por outro lado, a atitude da mãe não era tão fácil de
entender. Ela era uma mulher jovem e pouco disposta a aban-
donar seus próprios direitos à atração. Não via de forma tão
trágica como o pai o relacionamento da filha com a tal senho-
ra. Sua oposição tinha mais a ver com a falta de cuidado da
filha, sua exposição pública e a opinião da sociedade. Por cer-
to tempo havia sido confidente da jovem, agora temia pela
sua reputação. Era muito áspera com a filha e excessivamente
indulgente com os três filhos. O mais novo nascera após um
longo intervalo e tinha ainda três anos. Ela teve problemas
neuróticos durante alguns anos, e gozava de grande conside-
ração por parte do marido.
Freud, por sua vez, encontrou sérias dificulades na con-
dução desse tratamento. Os principais interessados eram os

26
pais e não a sua paciente. Esta apenas queria cooperar por:que
sabia que o seu comportamento era motivo de sofrimento para
sua família. Em momento algum sentia necessidade de liber-
tar-se do seu homossexualismo.
Freud constatou que a jovem era bela e atraente. Tinha
a figura alta do pai e suas feições eram mais agudas que sua-
ves e femininas. Intelectualmente, era arguta e objetiva desde
que não se achasse dominada pela sua paixão. Em relação à
dama, mostrava a humildade e a supervalorização do objeto
sexual, tão característicos do amante masculino, a renúncia a
toda satisfação narcisista e a preferência de ser o amante e
não o amado. A história do desenvolvimento sexual da paci-
ente mostrou que na infância a jovem passou pela atitude nor-
mal característica do Édipo feminino e posteriormente come-
çou substituir o pai por um irmão ligeiramente mais velho
que ela. A comparação entre os órgãos genitais dos irmãos e
os seus deixara-lhe forte impressão. Na idade de 13 a 14 anos
afeiçoara-se a um menino de 3 anos, inferindo-se que, naque-
la época, achava-se possuída de forte desejo de ser mãe e ter
um filho. Uma nova gravidez da mãe e o nascimento de um
terceiro irmão, quando tinha dezesseis anos, provocou uma
mudança na jovem, que agora passa a interessar-se por mu-
lheres maduras, embora de aparência jovem. Inicialmente, a
maternidade era uma condição para sua eleição amorosa. Pos-
teriormente abandonou essa condição. A análise da jovem re-
velou depois que a amada era uma substituta de sua mãe, ao
mesmo tempo que a figura esbelta, a beleza severa e a postura
ereta de sua dama faziam-na lembrar-se do irmão que era um
pouco mais velho que ela. A sua escolha satisfazia ao mesmo
tempo a tendência homossexual e a tendência heterossexuaL
Segundo Freud, a gravidez da mãe, no momento em que
a jovem experimentava a revivescência de seu complexo de
Édipo na puberdade, foi um grande desapontamento. Foi sua
rival edípica, inconscientemente odiada, quem teve um filho.
Seu desejo de ter um filho- um filho do pai - foi recalcado.
Furiosamente ressentida e amargurada, afastou-se completa-
mente do pai e dos homens e repudiou o papel feminino em

27
geral. "Ela se transformou em homem e tomou a mãe em lu-
gar do pai, como objeto de seu amor." A difícil relação com a
mãe facili tou essa mudança. A jovem, tornando-se homosse-
xual e deixando os homens para a mãe (em outras palavras,
"se se retirasse em benefício dela"), poderia afastar algo que
até então fora parcialmente responsável pela antipatia da mãe.
Essa posição libidinal foi grandemente reforçada quan-
do percebeu o desagrado do pai. Desafiar o pai e vingar-se
dele passa a ser seu desejo mais intenso. O reforço fin al para
a sua inversão veio com a descoberta de que sua dama prome-
tia satisfazer tanto as suas inclinações homossexuais, como
também aquela parte da sua libido que ainda se achava ligada
ao irmão.
Freud observou que a jovem apresentava o mesmo "com-
plexo" que ele havia identificado no texto "Um tipo especial
de escolha de objeto feita pelos homens" (texto de 19 I0) e
cujas características especiais remetem à ligação com a mãe.
Para ela a má reputação de sua dama era positivamente uma
condição necessária para o amor. No caso do tipo masculino
de escolha de objeto derivado da mãe, é condição necessária
que o objeto amado seja. de uma maneira ou outra, sexual-
mente de má reputação. Quando a jovem descobre que sua
dama vivia de oferecer seus favores corporais, sua reação as-
sumiu a forma de uma grande compaixão e de fantasias e
planos para "resgatar" sua querida dessas condições indig-
nas.
As razões imediatas que determinaram sua decisão na
tentativa de suicídio foram as seguintes: dissera à dama que o
homem que lhes dirigira o olhar enfurecido era seu pai, e que
ele proibira por completo a amizade entre elas. A dama enco-
lerizara-se com isso e ordenara à jovem que a deixasse ali
mesmo e que nunca mais a esperasse ou a ela se dirigisse: o
caso tinha de terminar ali. Desesperada por haver perdido para
sempre sua bem-amada, quis pôr termo à própria vida.
A análise revela dois outros motivos para a tentativa de
suicídio:- a realização de uma punição (autopunição) e are-
alização de um desejo. Esse último significava a realização

28
do próprio desejo que, quando frustrado, a impelira ao
homossexualismo: o desejo de ter um filho do pai, pois agora
ela "caíra" por cu lpa do pai. [Em alem ão o verbo
níederkommen significa tanto cair quanto "dar à luz".) O fato
de a dama haver-lhe falado nos mesmos termos que o pai e
profer1do a mesma proibição, forma o elo entre essa interpre-
tação profunda e a superficial, dada pela jovem. Do ponto de
vista da autopunição, a ação da jovem nos mostra que desen-
volvera no inconsciente intensos desejos de morte contra um
ou outro de seus genitores, talvez contra o pai, como vingan-
ça por impedir seu amor, porém, mais provavelmente contra a
mãe, quando grávida do irmão. "É provável que ninguém en-
contre a energia mental para matar-se , a menos que, em pri-
meiro lugar, agindo assim, esteja ao mesmo tempo matando
um objeto com quem se identificou e, em segundo lugar, vol-
tando contra si próprio um desejo de morte dirigido a ou-
trem."
"Uma vez que a jovem se identificava com a mãe, que
deveria ter morri do no nascimento do filho, a ela negado, essa
realização de punição constituía mais uma vez uma realiza-
ção de desejo."
Embora em seus relatos o pai não tenha figurado, por
trás de sua pretensa consideração pelos seus genitores, por
amor dos quais dispusera-se a efetuar a tentativa de transfor-
mação, jazia escondida sua atitude de desafio e vingança contra
o pai, .atitude que a fizera aferrar-se ao homossexualismo.
O decorrer da análise da jovem homossexual é bastante
interessante. Cooperadora no início, ela não se envolve emo-
cionalmente. Freud percebe que por trás dessa atitude conti-
nuam as mesmas tendências de antes. Há um desafio a Freud,
assim como ao pai. Ela relata o desejo de casar-se para ficar
livre da tirania paterna.
Provavelmente o leitor lucrará mais lendo o texto origi-
nal.
R.A.

29
··.
O pai

31
A versão do pai

Oscar Cesarotto

Viena, 27 de dezembro de 1919

Prezado Oskar,

Grande amigo, antes de mais nada, receba um abraço e


um voto sincero de feliz Natal. Tanto tempo sem lhe escrever
nem dar notícias, espero que você não se sinta chatet~dn ~la
minha ausência. Só agora percebo que mais um ano foi em-
bora, r.ípido como nunca. nos deixando cada vez mais velhos
e alquebrados. Sim, e desta vez, não foi esquecimento nem
preguiça, pois razões até sobraram para me tirar do sério e
negligenciar minha correspondência.
Tubo bem com você? Nesta época difícil para todos,
tomara que o peso da história tenha sido, dentro das circuns-
tâncias, o mais leve possível. Sua saúde melhorou? Confio
que o tratamento de eletroterapia possa curar sua gota ou, no
mínimo, acalmar as dores e permitir um dia-a-dia normal.
A família vai bem? Espero que Frau Norah tenha supe-
rado todos os seus achaques definitivamente, e voltado a ser a
mulher que sempre foi, alegre, simpática e bem-humorada,
enfim, a rainha do lar. Suas filhas Romin e Terezin, como é
que elas estão? Continuam peraltas, sapecas e travessas? Lem-
bro da última vez que as vi, elas eram tão engraçadinhas, mas
não paravam quietas! Imagino que devem estar enormes, cres-

33
cendo sem parar. e deixando os pais em polvorosa. Afinal,
gêmeas podem ser uma bênção, porém, dão trabalho em do-
bro, e haja paciência.
E o herdeiro? Como está indo o varão da casa, o plccolo
Iuripop, assim costumávamos chamá-lo, quando ainda era pe-
queno, isto é, faz bastante tempo. Acredi 1.0 que agora tenha
virado um verdadeiro homem, já tem a idade suficiente para
começar a pensar na vida, muito mais depois das manobras
prévias ao armistício. Pelo menos para ele, foi uma sorte que
a guerra acabasse sem ter que entrar em combate. Suponho
que esteja ajudando na loja, pois vocação nunca lhe faltou
para os negócios. Tenho quase cert.eza que ele é capaz .de se
sair muito bem em tudo o que fizer, dedicando o esforço ne-
cessário. Um bom rapaz, correto e aplicado, poderá ter o mun-
do nas mãos, se estiver a fim. Dias melhores virão, e ele terá
sua própria família. mulher, filhos. patrimônio, e um bom nome
na praça.
O mmivo da presente tem a ver com isto, embora de
uma maneira talvez paradoxal. Para poder entender do que
estou falando, vou ter que lhe contar alguns fatos acontecidos
ultimamente, e que têm me tirado o sossego e a serenidade.
Não vai ser simples narrar o que vem ocorrendo nestes me-
ses, um calvário e tanto. Às vezes, nem eu mesmo acredito na
veracidade de tudo isto. Parece um pesadelo, mas trata-se da
cruel realidade, para além do que eu possa querer ou deixar
de querer.
O problema é a minha filha Leonora. Lembra dela?
Quando você a viu pela última vez, naquelas férias em
Dresden, ela era ainda uma menininha, tímida e meiga. e tudo
levava a pensar que sempre seria assim, do mesmo jeito ou
parecido. Agora ela está com 18 anos, é uma moça linda e
vigorosa, praticamente uma mulher pronta para a vida adulta.
Aliás, na flor da idade, está mais do que na hora de ela casar,
para tirar a cabeça das nuvens, tomar conta de uma casa, fa-
zer o marido feliz e cuidar de uma penca de filhinhos.
Pois é, mas como há um problema com o seu jeito de
ser, a melhor solução que me surge é providenciar um bom

34
casamento pam ela, e incentivá-la a entrar no ·e ixo de uma
forma natural. Por ora, não tem sido fácil fazê-la acertar o
passo, mas nem tudo está perdido, e é por isso que estou aqui
escrevendo para você e propondo - nada mais, nada menos -
que a gente concretize aquilo que alguma vez pensamos os
dois, muitos anos atrás, quando os nossos filhos eram crian-
ças, e nos parecia óbvio que, num futuro distante, eles casari-
am, confirmando assim uma aliança de amizade e interesses
mútuos. Não tenho dúvidas que Iuripop seria o genro ideal,
aquele que mereceria total aprovação para receber, junto com
a mão de minha filha, um cargo de confiança na minha em-
presa, augurando prosperidade no comércio. e na prole tam-
bém.
Gostou da idéia? Nunca esqueci o que fantaseamos em
alguma oportunidade, depois de uma dúzia de cervejas. Só-
cios na vida e nos negócios! Avôs simultâneos de netinhos e
netinhas! Parceiros em grandes empreendimentos, para o que
der e vier! Bem, mas acho que estou me antecipando um pou-
co demais, e nenhuma perspectiva é tão tranquila ou previsí-
vel ou cor-de-rosa...
Cor-de-rosa: chegou o triste momento de dizer clara-
mente e com todas. as letras o que se passou com Leonora, o
que me tira o sono, o empecilho destes planos, o fado que me
assola. Meu caro amigo, para ser honesto nesta sina amarga, .
não lhe posso omitir o drama que me atormenta: contrariando
as expectativas e o bom senso, minha filha tem gostado de
mulher, pelo menos por enquanto.
Leio o que e.<;erevi acima e me resulta duro de aceitar. O
que foi que eu fiz para merecer isto, und der konchen auf das
Lora! Não consigo crer que ela esteja mais J'róxi·ma de Lesbos
que de Atenas, mas é a verdade insofismável. Gostaria, tão-
só, que não fosse imutável, apenas uma fase passageira, um
capricho adolescente, uma metamorfose da puberdade, e que,
logo, logo, a anatomia possa ser o seu destino.
Mas deixe eu Lhe contar como foi que tudo começou.
Quatro anos atrás nasceu nosso caçulinha. Naque le periodo,
Leo ficou muito atenta com o que se passava com a mãe, e

35
tudo indicava que se identificava com ela, e quando o menino
foi crescendo, parecia que a mãe era ela própria, tamanha a
dedicação com o bebezinho. Bem, isto foi apenas o princípio.
Em seguida. foi se interessando por outras mães, quase sem-
pre mulheres jovens que encontrava no parque e de quem ia
ficando amiga. Eu brincava com ela e dizia que poderia ga-
nhar a vida tabalhando com baby-sirter, unindo o útil ao agra-
dável, por ser tão vidrada em nenês. Mas não, eram as mães
que chamavam a sua atenção.
Devo admitir que, já então, havia algo de esquisito nes-
ses relacionamentos, embora não fosse imaginável o que vi-
ria depois. Realmente, não era sequer cogitável que, de re-
pente, se ligasse a uma mulher que não tinha em absoluto
nada de maternal.
Um dia, fiquei sabendo através de uma empregada que
Leo visitava. de maneira sistemática, uma rapariga egressa da
Maison de lA Licorne, ora bolas! (Aposto que você ainda
guarda na memória os nossos tempos de estudantes, quando
descobrimos ali mesmo que a felicidade tinha preço, e que
valia a pena trocar um punhado de notas por noitadas ines-
quecíveis.) Uma putana, pois não. Demorei até entender a
questão. Inclusive, porque era mais complexa do que parecia
no início. De fato, rratava-se de uma demi-m ondaine, sim mas
retirada da profissão. Na atualidade, ela só exercia a
horizontalidade de forma amadora, por assim dizer. E nem
sequer unicamente com homens. Como se tudo isso fosse
pouco, era a preferida de Wanda von Pistor, conhecida dama
da nossa sociedade, notória libertina e esposa infiel de Sacher-
Masoch, o escritor.
O céu caiu na minha cabeça. Minha filha estava se per-
dendo, devotada a amores ilícitos e condenáveis. Pouco se
importava de estar sendo malfalada, na decorrência da repu-
tação daquela sirigaita, que fazia dela gato e sapato. Para com-
pletar a confusão, recebi um bilhete de Wanda que, chateada
com o andamento daquela relação, exigia que eu tomasse uma
atitude. (Aqui um parêntese: faz alguns anos, num réveillon
nos bosques de Viena. completamente bêbado e cambaleante

36
depois de muitas valsas, acabei tendo um rápido entrevero
com Wanda. Como isto veio a acontecer, até hoje não sei ao
certo, mas suspeito que a iniciativa partiu dela. Naquela épo-
ca, ela não podia ver uma calça masculina sem ir atrás, mes-
mo se estivesse pendurada num varal.)
No entanto, parece que hoje seus gostos são mais diver-
sificados. Morrendo de ciúmes da minha filha pelo assédio à
sua protegida, me ameaçou de contar nosso affair para a mi-
nha mulher, se não colocasse um ponto final na situação. Como
você poderá perceber, meu amigo, as coisas estavam bastante
ruins para mim, em todos os sentidos. E ainda por cima, ia
ficando raivoso e com vontade de dar uma surra em todas
elas, na Leonora, na coco/te, e na Wanda. Enfim, como não
tenho sangue latino, decidi parlamentar. Primeiro falei com
ntinha esposa, omitindo alguns detalhes, mas ela já sabia de
tudo e pouco estava se lixando. Me deu até a impressão de
q4e estava gostando do assunto, como se tudo não passasse
de uma homenagem filial à sua pessoa. Obviamente, também
fiquei prestes a lhe d~r um cacete, mas sublimei.
lnconti nenti, fui ter com a Leo, chamando ela na chincha,
e sem meias-palavras. Primeiro tentou dissimular, a seguir ad-
~itiu , e por último, me desafiou , a mim, ao seu próprio pai ,
dizendo que não abriria mão do seu desejo. Afirmou, inclusi-
ve, que seria capaz de sair de casa e cair na vida, se não fosse
reconhecido o seu direito de escolha. Me contive para evitar
um gesto violento, mas · proibi que continuasse vendo a
moçoila. Também cortei a sua mesada, para mostrar que esta-
va falando sério:
Dois dias mais tarde, o pior aconteceu. Após o expedi-
ente, eu ia caminhando pelo passeio público, como de costu-
me, num crepúsculo primavera!, quando, subitamente, depa-
rei-me com as duas, Leo e aquela vagabunda, andando de
braços dados. Agora, apre.ç-coup, penso na cena e acho que
era inevitável; mais tarde ou mais cedo tal encontro seria fa-
tal. Para mim foi uma surpresa total, embora nem tanto para
Leo, que talvez estivesse ali de propósito, ou sem querer, que-
.rendo. Entretanto, levou ttm susto. Vi as duas juntas, vi a cara

37
de Leo, espantada, e vi o rosto da putinha, angelícal. Ora,
nunca imaginei que fosse tão bonita, tão gostosa e tão sem-
vergonha. Me foi impossível tirar os olhos dela, fascinado
como estava por aquela mulher de má fama e moral dissoluta.
porém bela.
Perdi a noção do tempo, não dava para pensar em coisa
alguma. nada mais existiu para mim na eternidade daquele
instante, mas Leo, minha querida filhinha, achou por bem se
jogar no fosso do bonde, e o encanto foi rompido pelos gritos
das pessoas que tentaram impedir, sem nenhum sucesso. Por
que ela fez isso'! Sei lá, creio que por ter ficado de lado en-
quanto contemplava a sua amiga, e não a ela. Sempre gostou
de chamar a atenção, e, desta vez, com certeza conseguiu.
Nem vale a pena contar os detalhes do resgate, o rebuliço, a
ida para o hospital e a angústia que se seguiu. Por sorte, ela
caiu sobre um dos trilhos mas sem encostar no outro, e por
isso não levou choque. O bonde já tinha passado um pouco
antes, portanto, não teve risco de ser abalroada. A queda foi
de uma altura considerável, uns três metros talvez, e ela se
amassou toda.
Bom, meu caro, como você pode ver, desgraça pouca é
bobagem. Depois de tudo isto, Leonora passou um par de se-
manas na cama até se restabelecer. Acabou, por alguma razão
que não entendi, na posição de vítima, como se o que ela
própria fez consigo não fosse de sua responsabilidade. As-
sim, todo mundo, sua mãe, seus irmãos, ficaram paparicando
ela, no maior benefício secundário. A moça também, mesmo
distante, fez chegar um mimo, como se tudo aquilo evidenci-
asse uma prova de amor. E eu, claro, morto de culpa, torcen-
do para que ela se recuperasse logo, apesar de saber muito
bem o que poderia continuar acontecendo mais tarde.
Me desculpe se estiver torrando a sua benevolência, mas
agora que comecei a soltar o verbo, quero ir em frente e com-
pletar o relato. Nesta altura do campeonato, e sem saber mui-
to bem o que fazer, me ocorreu conversar com Wanda von
Pistor. Ela já tinha sido informada dos acontecimentos e, de
certa forma, não parecia mais preocupada com seu ciúme

38
possessivo. Teve até um lampejo de generosidade quando me
disse para não me preocupar. pois nunca comentaria com nin-
guém a nossa história no bosque de Viena. (No entanto, en
passant, acabou confidenciando que já tinha abordado o fato
com o marido, e ele, aparentemente. apreciara sua falta de
pudor.) Todavia, o mais importante foi que Wanda, profunda
conhecedora da condição feminina, disse que achava a minha
filha bastante desequilibrada ou, em outras palavras, histéri-
ca, e me sugeriu que a levasse para ser tratada da maneira
apropriada, quanto antes melhor, para evitar futuras passa-
gens ao ato.
A pessoa que me recomendou merece um capítulo à
parte. É um sujeito esquisito, controverso e fora .do comum,
um dos mais curiosos habitantes da cidade. Seu nome é
Sigmund Freud, e sua especialidade são as doenças nervosas
que, segundo Wanda, consegue curar aplicando um método
de sua invenção, chamado psico-análise, ou coisa parecida.
Foi assim que marquei um horário com ele e, pontual, com
pareci. Ele trabalha na própria casa, num bairro central. O
dito-cujo não me provocou nenhuma grande impressão, mas
devo conceder que escutou com atenção, e fez alguns comen-
tários inteligentes.
· A consulta durou quase uma hora. Por último, ele me
perguntou, na lata, o que era mesmo que eu queria. Disse-lhe
que, como todo pai; ansiava que a minha filha fosse nonnal e
tivesse os gostos comuns de todas as garotas da sua classe
social e, se possível, que tivesse a chance de ficar satisfeita
com um homem. Herr Professor foi logo avisando que o
tratamento por ele ministrado não garantia nada disso, mas
que provavelmente permitiria que ela pudesse escolher sem
repetir "fixações infantis". De nada adiantou eu falar que Leo-
nora, quando criança, era completamente igual a qualquer
outra menina, brincava de boneca e não tinha nenhuma tara
visível, pois ele parecia já ter algumas idéias preconcebidas,
e achava que todas as criancinhas eram "polimorfas.., e che-
gadas numas "aberrações sexuais".·
Sei muito bem o que você deve estar pensando, que aque-

39
le médico era um degenerado e que não merecia a mínima
confiança. Muito pelo contrário, algo nele me fez acreditar
que não era um charlatão. e que sabia do que estava falando.
Me disse que topava analisar a Leonora, desde que ela con-
sentisse. Em outras palavras, não adiantaria forçá-la, pois o
sucesso da empreitada depeudia, em primeira instância, da
disposição dela para encarar suas opções e tentar mudá-las.
De volta para ca-;a, expliquei a ela a proposta, que em
seguida foi aceita. Naqueles dias, ainda convalescente do tom-
bo. estava muito dócil, e aparentemente disposta a fazer boa
letra. Quando levantou, na semana seguinte, começou a fre-
quentar o doutor, tendo sessões diárias de análise desde en-
tão. Os honorários são um pouco salgados, mas o que custa
vale, e eu não meço esforços para que ela recupere a saúde e
a alegria.
Agora, passados já alguns meses desses tristes episó-
dios, tudo parece se encaminhar para um bom termo. Leo está
contente de novo, e age como um modelo de jovem bem-com-
portada. Às vezes, fala do tratamento. e comenta coisas que
ninguém entende. Ontem, por exemplo, chegou dizendo que
tinha atravessado a fantasia(?), e que só restava, portanto, se
identificar com o próprio sintoma.
Pois bem, assim caminha a humanidade. Trazemos fi -
lhos para este mundo e, a partir daí, nos tornamos eternos
reféns. Eles são o que queremos que sejam, mesmo que nem
sempre nos obedeçam. Leonorà é hoje, outra vez, uma garota
casadoura e, como você sabe, um excelente partido. Foi ali
que me lembrei do seu filho, e me ocorreu que poderia dar
certo uma união entre ambos, tal para qual. Mais, ainda: até
pensei que seria muito bom se as bodas fossem logo, para
incentivar nela o autêntico amor. aproveitando que está numa
ótima, longe daquelas más companhias.
Lógico que toda noiva merece um dote, dignamente à
altura. Também acho que seria uma oportunidade única para
acertar entre nós aquele empréstimo que data antes da guerra,
e que você, suponho, já deveria estar em condições de hon-
rar. O ditoso casal poderá ter, destarte, um patrimônio sufici-

40
ente para montar uma casa, e tocar em frente uma vida ventu-
rosa.
Ora, meu futuro consogco, fico torcendo para que você
possa entusiasmar luripop, que muito tem a ganhar desta fei-
ta. Não é qualquer dia que se consegue, quase sem batalhar, a
mão de uma moça formosa, prendada, e ainda por cima, ana-
lisada_ Vai ser um grande prazer tê-lo na nossa família, juntos
serão felizes e comerão perdizes!
Termino por aqui estas maltraçadas, e fico esperando
em breve boas-novas do seu lado. Desejo para você e os seus
um bom final de ano, e um porvir promissor_ Aleluia!

Atencioso e fraterno,

Anton von Kleist

P.S_Estimo que Turipop não precisaria saber das agru-


ras da Leonora e suas afinidades prévias_ No final das contas,
o passado é apenas uma página virada de um livro fechado de
alguma obra completa inacabada...

41
A mãe

43
Fim de tarde: reflexões de Alma

José Domingues de Oliveira

O ambiente era de consternação. O desalento, o ânimo


abatido pairavam no ar, misturando-se a um dolorimento ex-
tenuante. Tanto se pedia falar da dor de uma fadiga; quanto
da fagida de uma dor! As lâmpadas tremulavam dando a im-
pressão de que seus filamentos ígneos titubeavam na
luminosidade esmaecida de suas ondas vibratórias. Melhor
dizendo, uma luz tímida e recatada sugeria uma visão não
muito clara, imprecisa dos presentes. Consequentememe, as
sombras não se delineavam e nem buscavam contornos capa-
zes de algum contraste. Não se podia falar de bordas, pois as
figuras se perdiam no pano de fundo.
E Já, no fundo do pano, o acolhimento se fazia sem
maiores percalços. As sombras, como que engolidas pela pe-
numbra, dela se destacavam de súbito, como num 'salto ou
ressalto de um afã iluminário. Parecia a sucessão de um cair-
se descaindo, num entregar-se rebelando. Sem dúvida, movi-
mentos contraditórios, pontuando um sumiço e uma sumidura
intennitemes, rastreadores de uma espontaneidade que pare-·
cia extinta.
Fixando o olhar mais acuradamente, as pessoas presen-
tes se destavavam como recém-saídas das coxias do sofrimen-
to, aguardando a deixa certa para a encenação proposta. Na
focalização núlimétrica -um homem e uma mulher. Se fazi-
am um par, não era claro. Em suas faces estava ausente aque-
la cumplicidade mímica reveladora dos laços eróticos. Se es-
tavam juntos, nada sugeria que ainda fossem comparsas no

45
amor. Estavam mais lado a lado do que um com o outro.
Outros lugares disponíveis davam mostras de ter sido
ocupados recentemente. Um batom caído ao lado de uma das
poltronas evidenciava que dos outros ocupantes, pelo menos
um era mulher. Os vestígios de um retoque apressado da
maquiagem assim testemunhavam.
A mulher. aparentando meia-idade, ainda conservava a
beleza e o viço de quem palpita pela vida. Postura elegante,
absorta no seu olhar, como quem desejasse ver o infinito, ti-
nha os ares de quem repassa o passado, querendo compreen-
der os acontecimentos já idos. Em sua cabeça, os pensamen-
tos buscavam na lógica dos fatos uma ficção extrema para se
situar no imbricado problema da filha. Não censurava.
Tampouco reticências fazia. Apenas repassava em sua memó-
ria as questões de Leonora, buscando achar o ponto onde a
meada se perdera. Evidentemente, nessa tessitura algum fio
fora puxado.
É verdade que ainda se sentia bela e aprazível aos olha-
res masculinos e tampouco era indiferente aos galanteios e
mesuras a ela dirigidos. Mesmo porque ao espelho ainda po-
dia constatar uma certa formosura, o frescor de uma certa
malícia, testemunhas inequívocas de uma jovialidade preser-
vada, pronta a acolher as manifestações ardorosas de quem se
atrevesse.
A última gravidez, longe de ser o canto dos cisnes, fun-
cionara mais como a revoada de pássaros migratórios, com o
vigor para cobrir longa.~ distâncias na busca do acasalamento
incontinente. Verdadeira água da juventude, remoçara bas-
tante numa reintegração plena no circuito libidinal. O último
rebento era o gaJardão inconteste de que continuava apetecí-
vel e desejada.
Apegada a seus filhos ao extremo, principalmente a
Johann, o mais novo, involuntariamente poderia muito bem
ter-se descuidado da filha. Verdade é que o seu comporta-
mento para com os filhos poderia encontrar eco e guarida na
profunda relação afetiva que mantivera com seu pai. Talvez
visse nos netos daquele a continuação devotada de seu amor

46
filiaL É como se algo estivesse passando de uma geração para
outra.
Será que o devotamento aos filhos, de um fado, sopesa-
va a pouca atenção à filha, de outro? Problemas emocionais
tamhém os tivera, submetendo-se a algum tratamentos. Ou
teria visto na filha uma competidora indesejável? ! O fato é
que não abdicava de seus anseios femininos e do seu direito
de ser atraente.
O excesso de rigor com que tratava a filha, não seria
resquício das relações não muito amistosas com a mãe? E
nesses restolhos não estaria aplicando uma forte taxa de mora
com altíssimos dividendos sobre o que recebera e agora pas-
sava adiante? O seu papel de mãe estaria assim configurado
como o pontífice de uma geração a outra, de modo quase
incoercível. Ou seja, nada de novo na dedicação a sua prole,
herdeira integral dos sentimentos e afeições de uma geração a
outra? Às vezes passava-lhe pela cabeça a idéia de se medir
com Maria Klein, a Dama. Sentia-se tão bela quanto e com-
preendia prefeitamente a peja de promíscua a ela atribuída.
Nessa comparação, assegurava-se de que também não partira
para a poliandria como a Dama somente por princípios ou
comodismo. Mas uma certa admiração por Klein e ra guarda-
da, pois seria desastroso se viesse a público. Mas jamais per-
. deria o senso e a decência.
Rejeitara veementemente a possibilidade de ligação ho-
mossexual de sua filha com Maria Klein, sobretudo levando
em conta sua má fama Fundame ntava-se nas poucas confi-
dências feitas pela filha e também na incompatibilidade entre
uma cortesã vitoriosa e uma moça iniciante nas coisas do amor.
Pensava mais na adolescente carente, a buscar simulacros
maternais infantis. Além do fato de ser Leonora uma noviça
ante os exuberantes dotes daquela que elegera como conquis-
tadora. Acreditava que as duas nunca passassem do beija-mão.
Nada de lascivo teria existido entre as duas. Acreditava que
Maria Klein nutrisse um amor maternal por Leonora. Senão
por que procurava manter Leonora à dist§ncia?
Punha-se a discutir enérgica e calorosamente quando o

47
marido vinha com a lamúria de sua sina porque diziam que
sua fi lha era homossexual. Nestes momentos, ligeiramente
enfurecida, dizia: Anton von Kleist, você está mais preocupa-
do com o seu nome e a sua pessoa do que com sua fi lha.
Deixe de ser trágico, abandone a ira e o orgulho ferido. Os
Kleisrnunca souberam aceitar as adversidades. Você está com
a vaidade ferida e o brio ofuscado na sua petulância de querer
filhos perfeitos. E por isso o seu abatimento quando as viu na
rua, juntas e inquestionavelmente juntas. Como negar aos olhos
aquilo que o coração pressente. O suicídio de Leonora não o
abateria tanto quanto abatido você ficou com a presença
inquestionável da•; duas à sua frente. Pense mais no seu
distanciamento dos filhos, provocado pelo modo severo com
que sempre os tratou. Deixe as ameaças de Leonora.
Não vê que considerar sua filha como uma degenerada,
tarada ou viciada, são apenas apelos de isenção participativa
na sua responsabilidade de educador? No mesmo caminho
perambulam suas idéias de um casamento rápido e interessei -
ro. Essa solução mágica, mais cedo ou mais tarde, revelar-se-
ia um simples truque de ilusionista. Lembra-se do episódio
da atriz naquele veraneio. Você, com sua conduta e sua inter-
venção desastrada, talvez tenha posto tudo a perder.
Já lhe ocorreu pergumar a Leonora se ela realmente de-
seja procurar esse médico? Nessas coisas não adianta fazer
de conta. Você deveria se lembrar de quando, aos treze anos,
ela se interessava por aquele guri de três anos. Você pode não
ter enxergado, mas era uma forma como brotavam os vestí-
gios de um sentimento de matemização incipiente. Como era
tema e meiga, gentilíssima com os pais do garoto.
Alma se continha l}as dicussões para não prolongar a
pendenga. Sabia que a filh a não lhe dizia tudo, mas também
não ignorava que nem tudo pode ser dito. Defendia a idéia de
que a filha, com esse relacionamento, tentava dirimir algo.
Tentava resolver o enigma comum na imaginação infantil ou
mesmo no adolescente. lntufa uma relação longínqua entre
Klein, Leonora e sua última gravidez. O nascimento de seu
último filho mexeu bastante com Leonora.

48
Como se algo do mais recôndito de si ti vesse vindo à
luz, tivesse vindo a público. Quem sabe, taml:>ém ela esti ves-
se pensando em ter um filho, sonho de toda donzela. Quem
seria o pai'!
Ora, o primeiro namorado de toda menina é sempre o
pai. E como perdoar um pai que no momento mais caloroso
da paixão infantil vai engravidar justamente a mãe? Talvez
Leonora o tenha odiado por isso, recorrendo aos braços de
Maria. O homossexualismo talvez esteja aí, uma maneira de
agredir o pai. Uma vingança ou um desafio, quem sabe? A
verdade é que, panindo para os braços da dama, uma certeza
se evidenciava: nunca haveria filhos.
E Alma tinha que se haver ainda com a pertinácia do
marido. Dele discordava frontalmente quando o via apegar-
se aos preceitos médicos, apegando-se desesperadamente à
idéia de uma doença. Era uma posição cômoda porque pode-
ria ser extirpada e, como consequência, uma esperança deres-
tituição integral. É como se os médicos, os discípulos de Apolo,
pudessem lhe devolver a filha saudável, pura, angelical. Em-
bora empostasse uma compreensão e altivez exemplares, Alma
sabia que o subjacente era um puro e cristalino preconceito
contra o homossexualismo.
Na sua benevolência arrogante, a esposa enxergava um
pouco mais além. Via o pai irretocável em luta com a falibili-
dade humana. Assim, postas as questões, não havia o que con-
versar, pois a voz implica uma certa distância para que as
palavras possam circular e fazer a sua tarefa medianeira.
Alma, na sua condição de mãe, no seu lugar de genitora,
nunca pusera muita fé na rápida busca de ajuda junto a um
médico famoso. Reconhecia que o facultativo era considera-
do como homem sério e de coração temo. Nada dogmativo
ou pessoal, mas apenas a certeza de que sua filha não era
doente. Tampouco acreditava que um homem pudesse com-
preender um momento tão delicado e que diz respeito exclu-
sivamente à alma feminina. Coisa de mulheres para mulhe-
res. Como um macho iria compreender tudo isso?
E para não falar naquela citação que se imputava ao

49
médico famoso, quando se dizia que teria dito ou escrito que
o casamento é como um guarda-chuvas. mais cedo ou mais
tarde se toma um táxi.
Alma não acreditava nas soluções propostas. Não cria
no tratamento. c tampouco acreditava no casamento da filha
com uma panacéia miraculosa. Anuía com as soluções pro-
postas, mas no fundo intuía uma outra saída a ser encontrada,
mas que fosse algo onde a participação da tilha fosse impres-
cindível e fundamental.
Naquela sala, naquele silêncio que reinava entre ela c o
marido. meditava sobre a solução proposta pelo médico. Acon-
selhava a filha a procurar uma médica. Interrogava-se sobre o
papel do sexo do médico e o êxito terapêutico. Apesar da pas-
sividade de Anton em acatar a recomendação feita, Alma se
questionava. Não estari a em jogo uma espécie de remendo
para uma falha materna? E que falha teria cometido de ma-
neira tão sibilina e sutil que não percebera?
Enquanto o pai se abatia. a mãe rebatia, como querendo
tranquilizar-se sobre o ocorrido, e uma idéia apaziguadora lhe
perpassava a mente: o fio da meada, O FIO DE ARIADNE,
ainda não fora encontrado. Essa era a grande questão de
ALMA, naquele fim de tarde.

50
O irmão

51
Seis cartas de Friedrich von Kleist
para seu amigo Karl Shiller

Renato Mezan

1. Viena, 17 junho d e 1919

Querido Karl,

Enfim! Com todos estes transtornos nas comunicações,


só ontem recebi a carta que você me enviou; ela levou mais
de um mês para vir de Berlim até aqui. Assim, pude me intei-
rar do que você anda fazendo e dos seus novos interesses;
Berlim deve ser realmente fascinante, apesar de todas as com-
plicações e das consequência·s terrfveis da derrota, desses
exércitos de famintos e desabrigados que você encontra pe-
las ruas e que tanto o assustam. Sim, precisamos nos pôr em
dia, conversar por cartas - mesmo sem saber quanto tempo o
correio levará para entregá-las - pois, assim como você, eu
também dou muito valor a nossa amizade. Afinal, no tempo
em que sua fa míl ia morou em Viena, fomos quase
inseparáveis, e uma relação desta intensidade precisa ser pre-
servada. Pelo menos, é o que penso! E por aqui há muitas
novidades; nem sei por onde começar, se pelo mais recente
ou pelo mais antigo.
Bem, houve anteontem o incidente com os comunistas,
que faziam uma manifestação; em algum momento, come-
çou uma briga com a polícia, e soube que morreram vários
trabalhadores. O clima po lítico está quente, assim como em
Berlim; não tínhamos líderes vermelhos como os da Alema-
nha, que de qualquer modo foram mortos - estou me referin-

53
do a Rosa Luxemburgo e a Liebknecht, cujo assassinato em
janeiro causou aqui certa comoção -, mas também aqui vive-
mos o fim de uma era, e tudo está muito confuso. Papai -que,
é claro, vota com os social-cristãos -comentou que os comu-
nistas precisam ser detidos, e houver mais uma discussão azeda
ontem no jantar. Falou-se do que está acontecendo na Hungria,
com os Sovietes de Béla Kun no poder, e naturalmente papai
se opõe a tudo o que cheire a socialismo. Em Munique vocês
também tiveram uma República dos Conselhos, mas teve vida
curta, apenas algumas semanas. Eu sou mais pelos social-de-
mocratas, que aliás ganharam por pouco as eleições de feve-
reiro - três cadeiras de diferença frente aos social-cristãos -e
têm uma série de projetos para melhorar a vida da classe tra-
balhadora. Karl Seitz, o prefeito, propôs uma refonna fiscal
que deixou a burguesia horrorizada e obviamente papai o
detesta.
Por que me inclinei para os social-democratas? Entre
outras coisas, porque desde que entrei para a Faculdade de
Medicina, há um ano mais ou menos, tenho visto de perto a
miséria e a doença. A gripe espanhola fez aqui estragos terrí-
veis, talvez a pior calamidade em matéria de saúde pública
desde a grande peste de 1679 - a que deu origem à Coluna da
Peste no Graben, como você bem sabe. Mesmo os alunos do
primeiro ano foram mobilizados nas enfermarias, e vi gente
morrendo como moscas, debilitados, esfomeados - um hor-
ror. Suponho que em Berlim não tenha sido muito diferente.
Aliás, este pequeno treinamento de enfermagem me foi
útil por outro motivo, bem mais grave para nossa família.
Leonora tentou se matar há cerca de dois mese~. jogando-se
no fosso do bonde em circunstâncias que logo vou descrever.
Não sofreu nada mais grave do que uma perna e umas coste-
las quebradas, mas teve de ficar em repouso por várias sema-
nas, e eu lhe servi de enfermeiro durante as primeiras noites.
Conversamos muito e acabamos por nos aproximar bastante;
ela é muito inteligente, com você bem se lembra, mas vem
sendo fonte de desgostos familiares já há um bom tempo. O
fato é que ela nunca foi muito amiga de homenagens mascu-

54
li nas - você mesmo tentou namorar com ela, c sabe como ela
o rejeitou -e, para dizê-lo logo, parece ter fortes inclinações
para pessoas do seu próprio sexo. Sim, meu amigo. minha
irmã gosta de estar em companhia de mulheres! Papai ficou
horrorizado ao saber disso, há coisa de uns dois anos. Foi nas
férias de verão de 1917. logo depois que nasceu nosso
innãozinho Johann. Ela teve uma reação muito estranha, bem
diferente da que vimos quando mamãe teve o Franz; naquela
época, pouco antes de começar a guerra, Leonora ficou toda
maternal, fez amizade com aquele garotinho que encontrou
no Volksgarten e não parava de falar no assunto. Você se lem-
bra, ela tinha na época treze anos, e pedia o tempo todo para
que Fraulein Gunda, nossa governanta, a levasse até a estátua
de Strauss naquele parque, porque sabia que ali encontraria o
menino. Tanto fez que os pais dele acabaram vindo jantar aqui
em casa, e mamãe vê até hoje aquela senhora, que se tomou
sua amiga.
Pois bem: quando nasceu o pequeno Johann, Leonora
ficou muito transtornada. Começou a procurar a companhia
de mulheres, jovens mães como a do garotinho - só que agora
o interesse era por elas, não pelos seus fi lhos. Em Bad Gastein,
houve aquela cena horrível em que papai quase bateu nela, ao
saber que estava atrás de uma atriz - ninguém menos que
Pola Negri, que ainda não era tão famosa. mas já despontava
como uma mulher notável (você deve tê-la visto em Carmen
e naquele delicioso filme egípcio, Os Olhos da Múmia Ma).
Mamãe não se preocupou muito, mas papai ficou furioso, gri-
tou com ela na rua, humiihou-a, só faltou chamá-la de prosti-
tuta. Dali para a frente, Leonora o desafia a cada momento, e,
tendo fracassado com a Negri -que voltou a Berlin e que eu
saiba não veio mais à Áustria - enrabichou-se com uma se-
nhora Klein, ou pelo menos assim conhecida. M~~a, Klein é
bonita, tem uns 28 a 30 anos, e ouvi Leonora dizer·que é de
família nobre; mas sua reputação não é das melhores, vive
com uma amante, e até à tentativa de suicídio de Leonora,
não lhe dava a menor bola. Já minha irmã, apaixonada por
ela, ficava horas esperando-a à saída de casa ou do teatro, e

55
no dia em que tentou se matar, estava passeando com Frau
Klein quando cruzou com papai, que saía do escritório. Pare-
ce que o velho deu-lhe um daqueles olhares furibundos, ela
disse à amiga que ele não queria mais vê-las juntas, e Frau
Klein decidiu terminar ali mesmo aquela relação, que de qual-
quer modo não lhe agradava. Leonora ficou desesperada e se
jogou no fosso do bonde; por sorte, não vinha nenhuma com-
posição, e os passantes a acudiram. Papai chamou um táxi e a
levou para casa. Foi um susto e tanto, mas o Dr. Bauer logo
chegou e viu que o caso não era dos piores; como lhe disse,
algumas fraturas e nada mais.
Desde então, papai parou de criticá-la tanto e ao que
parece ela ficou mais calma; porém continua vendo Frau Klein,
a qual, comovida pelo gesto de Leonora, está lhe dando um
pouco mais de atenção. Não sei com isto vai terminar, mac;
estou preocupado, pois Leonora está totalmente tomada por
sua paixão: não q uer continuar os estudos. ela que sempre
falou em ser advogada e lutar pelos direitos das mulheres;
não sai mais, só para ir à ópera ou ao cinema, e tem muito
poucas amigas. Enfim, um problema sério.
Bem, de resto as coisas vão como podem ir. Falta tudo
na cidade, o inverno deste ano foi horroroso - sem aqueci-
mento - e ao que tudo indica o próximo será pior ainda. O
curso de medicina é interessante, temos bons professores -
você sabe que Viena era, antes da guerra, um dos melhores
centros médicos, e continua a sê-lo - e eu realmente gosto do
que estou estudando. Mamãe vai bem. sempre um pouco
coquete, mas isto faz parte da sua natureza. Franz está cresci-
do, já tem cinco anos e em breve começará a ir ao jardim de
infância. Os negócios de papai vão como podem ir. nesta at-
mosfera confusa dos nossos tempos; boa parte dos seus for-
necedores está agora em países estrangeiros, desde que as
províncias se separaram para formar estes novos países,
Hungria, Tchecoslováquia e Iugoslávia; tudo é difícil, os trens
são raros e funcionam mal, e só a Ópera vai bem- Richard
Strauss foi nomeado diretor há pouco e promete uma tempo-
rada brilhante a partir de setembro.

56
Escreva-me quando puder, e conte um pouco do que
vai por Berlim, como você está, e como vão as garotas.
Um forte abraço do seu amigo

Friedrich von Kleist.

2. Viena, 20 de setembro de 1919

Prezado Karl,

Ao voltannos das féri as, esperava-me a sua carta, que


foi muito bem-vinda. Já imaginava que você fosse admirar-se
com o que lhe contei sobre Leonora, e tenho novidades a res-
peito. Mas tanta coisa aconteceu desde junho, que peço a você
licença para pôr minhas idéias em ordem e contar uma coisa
de cada vez. Antes, deixe-me expressar minha inveja por você
estar em Berlim; 1i ontem na Neue Freie Presse sobre a es-
t.réia do último fi lme de Lubitsch, Madame DuBarry, que se-
gundo o jornal foi um sucesso aí. Você já foi vê-lo? Dizem
que Emil Jannings está ótimo como Lufs XV, e Leonora vi-
brou quando soube que Pola Negri está excelente no papel da
DuBany. Ela continua gostando de cinema, especialmente
destas titas da UFA dirigidas por Lubitsch. Papai não aprova
esta inclinação, e diz que Leonora gosta mesmo é de ver a
espevitada. Ossi Oswalda em papéis como o da Princesa das
Ostras - este você deve ter visto, é uma comédia muito en-
graçada. Mas papai nunca aprova nada do que nós, seus fi-
lhos, fazemos, de modo que já não nos admiramos com suas
recriminações. Em todo caso, o cinema tem sido um ponto
em comum entre Leonora e mim, e sempre discutimos os fil-
mes que vemos juntos. Quanto às desaprovações de papai, a
última foi hoje, quando falamos à mesa sobre política: você
sabe que nosso chance1er, Karl Renner, é social-democrata, e
que acaba de assinar em Paris o tratado que a Áustria firmou
com os Aliados. Para papai este tratado é uma vergonha, e ele

57
diz que o nome Saint-Germain- o subúrbio de Paris onde foi
celebrada a cerimônia - ficará sempre sendo o símbolo de
uma humilhação para nossa jovem República. Mas o que mais
se podia fa1.er? Fala-se muito aqui na proibição que o tratado
impõe de a Áustria se unir à Alemanha, coisa a que os social-
cristãos, tão caros a papai, são absolutamente favoráveis. Ele
mesmo, como muitos outros, acha que a Áustria amputada de
suas províncias não é um país economicamente viável, e se
queixa de que os negócios vão mal. Contudo, ainda temos a
possibilidade de passar o verão nas montanhas ... Não sei; pen-
so que a situação dele é menos precária do que ele diz ser.
Já que você quer saber sobre Leonora, vou lhe contar
como ela está. Temos conversado bastante, e criamos o hábi-
to de ir ao cinema com frequência. Vimos entre outras fitas a
Cannen de Lubitsch, novamente com a dupla EmH Jannings-
Pola Negri; mas falta a música, e a versão para ópera é sem
dúvida melhor. Já a Prince.w das Ostras e A Boneca são ex-
celentes; aguardamos ansiosos a chegada aViena daDuEarry,
e temos visto outros filmes, principalmente alemães, já que
os estrangeiros ainda não são distribuídos aqui. Veremos ago-
ra, depois do tratado, como ficam as coisas; espero que che-
guem Jogo, pois ouvi di7..er que há excelentes comédias ame-
ricanas. que Leonora e eu temos muita curiosidade em assis-
tir. E há este novo filme de Griffith, O Na.çcimento de uma
Nação. o qual os jornais dizem ser esplêndido, mas que até
agora não pôde ser exibido em Viena.
Bem, com Leonora as coisas vão como estavam indo.
Continua loucamente apaixonada por Frau Klein, mesmo esta
tendo lhe aconselhado a desistir das mulheres e a procurar
um rapaz a quem possa amar. A reputação de Frau Klein está
em baixa aqui em Viena; nobre ou não, ela é simplesmente
uma cortesã. e vive do que arrecada com diversos homens.
Sim, porque ela sai com oficiais, empresários e juízes; e con-
tinua a ter sua amante, ao que parece atirando dos dois lados
da trincheira. Agora Leonora cismou que irá salvá-la da ruí-
na, regenerá-la, etc., tudo dependendo apenas de Frau Klein
ceder aos seus apelos e se tomar sua amante oficial. Mas. até

58
onde sei, entre elas as coisas não passaram de alguns abraços
e beijos na mão, de modo que às ve7...es Leonora a-;sume o
papel de Diotima no Banquete e faz belos discursos sobre o
amor sem sexo, sobre a pureza do vínculo entre ela e Frau
Klein, e assim por diante. Mamãe, que até pouco tempo atrás
não parecia tão escandalizada com oajfaire, agora a trata muito
mal; é papai quem se preocupa mais, pois no fundo é um ho-
mem carinhoso, apesar de sua rudeza e de suas idéias politi-
camente reacionárias. Pensa que Leonora está doente, e, como
estudante de medicina, incumbiu-me de averiguar se existe
algum tratamento para a homossexualidade.
Pois bem: existe e se chama Psicanálise. Aqui em Vie-
na vive um certo Dr. Freud, que também não goza de boa
reputação no meio médico. Outro dia, visitando o Josephinum
- o museu de anatomia com aquelas figuras de cera que o
Imperador José mandou fazer em J781, para que os estudan-
tes de medicina pudessem aprender como é o corpo humano
- encontrei-me com Raimann, o assistente de Wagner-Jauregg.
Talvez você tenha ouvido fa lar do cas<> dos neuróticos de guer-
ra; eram soldados que ficavam em pânie<>, não podiam com-
bater, e corriam o risco de ser fuzilados por traição ou deser-
ção. Wagner-Jauregg, como psiquiatra mais eminente da Fa-
culdade, declarou durante a guerra que estes soldados não
eram covardes, mas doentes, e recomendou um tratamento à
base de pequenos choques elétricos. Fala-se agora numa in-
vestigação, porque teriam ocorrido excessos de crueldade com
estes choques; e Raimann m~ disse que será formada uma
comissão para averiguar o que houve. Também me disse que
os psicanalistas, adeptos de Freud, eram contrários a este tra-
tamento, e que propunham uma espécie de psicoterapia, con-
versando com os soldados. Ao que parece, saíram-se muito
bem; dessa conversa com Raimann participou também um
colega meu, húngaro, que mencionou ter servido na guarni-
ção de Pápa com um certo capitão Ferenczi. Este Ferenczi, ao
que parece o principal freudiano da Hungria, fazia este tipo
de tratamento com os soldados do hospital de Pápa, e obteve
resultados apreciáveis. Wagner-Jauregg detesta Freud e os psi-

59
canalistas, mas as autoridades militares ficaram impressiona-
das com o desempenho dos médicos que usaram a Psicanáli-
se e, segundo Raimann, estão pensando em pedir ao Dr. Freud
que participe desta comissão.
Assim fiquei sabendo sobre este método. e falei dele a
papai. Quando soube que Freud tem teorias muito estranhas
sobre a sexualidade e que estas não são aprovadas pela Uni-
versidade, papai não gostou da sugestão: para ele, a respeita-
bilidade vem acima de tudo. Mas eu estou insistindo, pois
encontrei na biblioteca da faculdade diversas obras de Freud
e as estou lendo. Uma delas é um volume de conferências
que ele fez aqui na Universidade durante a guerra, Liçües de
Introdução à Psicanálise; achei-as magníficas, e nem um pou-
co pornográficas, como dizem os rumores a seu respeito. Pelo
contrário, são muito bem escritas e ponderadas, com muitos
exemplos, e bem mais interessantes que as classificações des-
critivas de Kraepelin, que é o texto adotado aqui como manu-
al básico de Psiquiatria.
Enftm, estou em campanha para que papai e mamãe con-
sultem Freud, e vejam se ele pode fazer algo por Leonora; por
enquanto, ainda não falei com ela, pois de nada adiantará sem
a permissão dos dois. Em breve, poderei dizer o que resultou
dos meus esforços ; até lá, receba um forte e cordial abraço do
seu amigo

Friedrich von Kleist.

3. Viena, 4 de outubro de 1919

Estimado Karl,

Uma breve nota para lhe dizer que papai e mamãe fo-
ram ver Freud e que decidiram permitir que Leonora faça uma

60
"psicanálise". Gostaram dele, ou pdo menos o respeitam; ele
lhes disse que é difícil curar a homossexualidade, especial-
mente num caso como este, em que Leonora não quer mudar
seu comportamento nem sofre de modo algum por ele, mas
concordou em vê-la por um ou dois meses, para "estudar o
caso", e então tomar uma decisão. Quanto a minha irmã, aceita
se tratar, não tanto porque pense em mudar de vida, mas por-
que - assim me disse ela - lhe causa pena o sofrimento de
papai; com mamãe, suas relações estão meio estremecidas, e
francamente acho que Leonora a detesta. Fiz Leonora me pro-
meter que me contará todos os deta.lhes do tratamento; ardo
de curiosidade por saber como é uma psicanálise, e venho
estudando os livros de Freud, que cada vez me parece mais
inteligente e saga:t. Li recentemente a história de "Dora", uma
moça de dezoito anos como Leonora, que sofria de histeria;
nem tudo o que ele escreve me parece lógico, mas sem dúvi-
da é brilhante, e s6 espero que nossa amiga não o deixe plan-
tado depois de quatro meses. como fez a outra jovem.
Por aqui as coisas vão como podem ir: agitação política
depois do tratado, discussões sobre os projetos dos social-
democratas para Viena - querem transformá-la numa vitrhe
do socialismo, com idéias sobre educação popu lar, habitação,
saúde, etc. - e uma movimentada temporada no teatro e na
ópera. Nenhum Max Reinhardt por aqui, infelizmente, e ne-
nhuma UFA para produzir filmes; mas as orquestras vão se
recompondo, e outro dia Richard Strauss apresentou sua pri-
me:ira montagem como diretor, A Mulher sem Sombra, uma
nova ópera cujo libreto foi escrito por Hu go von
Hoffmannsthal. Foi aplaudido de pé por nossa exigente pla-
téia vienense. Na faculdade, começo meu segundo an,, na sala
de anatomia, e já aprendi a dissecar alguns membros. Viena
está cheia de refugiados políticos da Hungria, após a entrada
dos romenos em Budapeste e a queda do regime dos sovietes,
·em agosto. Ao que parece, não teremos gripe espanhola neste

61
inverno, mas tampouco gás suficiente para o aquecimento,
nem outros combustíveis. Brrr!
Um forte e cordial abraço do seu amigo

Friedrich von Kleist.

4. Viena, 13 de novembro de 1919

Prezado Karl,

Novidades! Estou apaixonado - e ela me deu esperan-


ças! Chama-se Hilde, é minha colega da Faculdade de Medi-
cina- entrou no primeiro ano agora com a nova turma- tem
olhos verdes e lindos cabelos escuros. Conheci-a na cantina
da faculdade, conversamos, marcamos um passeio no Prater,
andamos na roda gigante e fomos tomar o vinho novo num
dos Heurigen próximos ao parque. Ela é inteligente, culta,
aprecia música e literatura, e, o que é mais importante, gosta
de mim! Temos nos encontrado diariamente, à saida das au-
las, e lhe emprestei meus cadernos do ano passado. Enfim ,
meu amigo, estou nas nuvens! Ela dança muito bem, e no
próximo domingo iremos a um baile -estou treinando meus
passos de valsa, para desenferrujar as pemali...
Leonora começou há algumas semanas sua análise com
o Dr. Freud. Ele mora na Berggasse, próximo à Votivkirche, a
poucas quadras da parte da Ringstrasse conhecida como
Schottenring. É um homem de uns sessenta e poucos anos,
com barba e meio calvo; Leonora ficou impressionada como
seus olhos. que. diz ela, são os mais penetrantes que já viu.
Fala baixo, com um alemão impecável, e a voz inspira confi-
ança. A análise ocorre todos os dias, de segunda a sábado, às
quatro da tarde. Ela se deita num divã, e, como já está come-
çando a esfriar, há uma manta para que os pacientes se cu-
bram, porque o aquecimento ainda é mÚito fal ho e irregular.

62
Há vários estrangeiros, americanos e ingleses, com que ela se
encontra ao entrar ou ao sair do apartamento; a razão disso,
me parece, é que assim o Dr. Freud recebe seus honorários
em moeda forte , pois nossa coroa austríaca vai de mal a pior,
por causa da inflação que se seguiu à guerra. Aliás, papai me
disse que está pagando a análise dela com sua reserva de li-
bras esterlinas, o que mostra como está desejoso de que este
tratamento dê certo; se não der, disse ele outro dia, procurará
arranjar logo um casamento para Leonom Assim, àcredita
ele. os seus " instintos naturais" despe1tarão, ·e ela voltará a
ser uma mulher no sentido pleno da palavra. Leonora, por sua
vez, me confidenciou que não repele a idéia, mas não porque
pense em abandonar Frau Klein, e sim porque, com o marido,
poderia escapar ao que chama a "tirania'· de papai. E, um
tanto cinicamente, acrescentou que saberá se arranjar com o
infeliz marido para poder fazer tudo o que quiser- e ele que
se dane. Contanto que não se depare com um Pctrucchio, como
na Megera Domada de Shakespeare ...
Você me pergunta o que penso da homossexualidade
dela. Devo di7.er que estou dividido. Intelectualmente, não
vejo problema nenhum nisto; a psicanálise diz que a homos-
sexualidade não é uma doença, mas um tipo de escolha sexu-
al que tem como causa uma parada no desenvolvimento das
pulsões. Moralmente, não vejo como condenar quem prefere
companheiros do seu próprio sexo - são muitas vezes pesso-
as nobres e inteligentes, como Oscar Wilde e tantos outros.
Na Grécia antiga, Safo escreveu odes tão belas quanto as dos
melhores poetas líricos. e sua paixão era dirigida às sensuais
jovens da ilha de Lesbos. Tenho acompanhado a campanha
do Dr. Magnus Hirschfeld para retirar do código penal ale-
mão o artigo que considera cri me a homossexualidade, e seus
argumentos me soam bastante convincentes. Mas afetivamente,
preferiria que Leonora fosse como as outras moças, que usas-
se sua beleza inegável e todos os seus dotes para fazer a feli-
cidade de um homem - você, por exemplo, que gostava tanto
dela quando vivia em Viem~. Não sei; estou confuso. Em todo
caso, com ela evito falar de minhas dúvidas, porque ganhei

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sua contiança e não quero perdê-la.
Ela continua apaixonada por Frau Klein, que outro dia
tive oportunidade de conhecer. Antes eu já tinha ouvido falar
sobre ela e, certa vez, a vi passar pe la rua. É uma mulher
bonita, elegante, magra e de feições regulares, embora um
pouco duras. A ligação de Leonora com ela é muito mais for-
te do que a dela com Leonora; para você ter uma idéia, há
poucas semanas, Grete (uma amiga sua francam ente homos-
sexual) lhe fez propostas, e minha irmã as recusou com o maior
desprezo. Você vê que conversamos sobre coisas muito ínti-
mas; mas, por outro lado, se Leonord quer mesmo conviver
com mulheres, por que não aceitou a solicitação da sua ami-
ga? Não entendo. Talvez ela não esteja tão segura assim do
que quer- quem sabe?
Perguntei-lhe do que fala na sua análise. Ela diz que
fala de tudo, de nossa famrlia, de Frau Klein, do que pensa,
etc. Também conta seus sonhos, e Freud os interpreta. Ela o
admira muito pela sua inteligência e pela sua atitude caloro-
sa, mas por outro lado fica um tanto incrédula com as coisas
que ele lhe diz. Dou a você um exemplo, que ela contou ante-
ontem, para que possa julgar por si próprio.
Ela sonhou que estava grávida e feliz com isso; seu
marido lhe dava um anel de ouro para comemomr a concep-
ção deste primeiro filho . Você deve saber que o método do
Dr. Freud consiste em dividir o sonho em partes e solicitar
"associações" para cada elemento do sonho; depoi s, junta tudo
e faz a sua interpretação. Pois bem, o anel lembrava a Leono-
ra o anel dos Nibelungos, e justamente tínhamos visto, há
poucos dias, a nova versão do Crepúsculo dos Deuses monta-
da por Strauss, que está fantástica. Na saga dos Nibelungos,
há um personagem, Siegmund, que o Dr. Freud interprelOu
como se referindo a ele, que também se chama Siegmund.
Leonora foi associando, e de Sigmund passou a Siegfried,
que é o herói do Crepúsculo. Você se lembra que, nesta ópera,
Siegfried recebe. uma poção mágica fabricada por Hagen, o
traidor; esta poção deve fazer com que ele se esqueça de sua
esposa, a valquíria Brunhi Ide, e se apaixone por Gutrune, irmã

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de Gunther, o rei dos Gibichungen; Siegfried, bebendo a po-
ção, esquece que já é casado com Brunhilde e a traz para se
casar com Gunther. Tudo isto foi mencionado por Leonora,
que conhece bem a Tetralogia de Wagner.
Freud lhe disse que esta trama se liga à história da pró-
pria Leonora; Brunhilde- pela semelhança dos nomes - pres-
ta-se bem a representar Hi Ide, minha namorada, o que faz
com que Gunther represente a mim e Gutrune a própria Leo-
nora, irmã do rei. Mas Gutrune não quer se casar, pelo menos
não antes de conhecer Siegfried; há um momento, no início
do primeiro ato, em que ela diz que se se casar ficará grávida
e perderá sua beleza por causa das deformações que o parto
pode produzir. Ora, esta é a opinião de Leonora, que no mo-
mento não pode nem ver uma mulher grávida - e há muitas
em Viena, com o regressso dos soldados...
Assim, segundo Freud, se confirma que Gutrune repre-
senta a própria Leonora, mas com o sinal trocado, por assim
dizer, já que no sonho ela aparece grávida e fe liz.
Mas o melhor vem agora. Gutrune, na ópera, muda de
idéia ao ver Siegfried, e é ela quem lhe dá a poção mágica
para beber. Freud tirou partido disso e deduziu que Leonora
queria "dar-lhe uma poção mágica", capaz de o confundir e
fazê-lo "perder a memória" . O sonho seria esta poção, por
assim di:ler. Portanto, concluiu, não há desejo algum de gra-
videz, Leonora não tem a menor intenção de romper com Frau
Klein, e o que o sonho significa é que ela quer enganar
Sicgfried/Sigmund, fazendo-o crer que a análise vai "curá-
la" e que ele poderá incluir este caso entre os seus "troféus de
combate". Mais ainda, é o que ela estaria fazendo com papai,
enganando-o quanto ao sucesso da análise e fazendo-o espe-
rar que todo este esforço dê o resultado que ele espera.
O que você me diz disso? Fiquei impressionado, e Leo-
nora também; se non e vero. e ben trovato, como dizem os
italianos. Freud chama esta atitude de "resistência", e esta
substituição de personagens uns pelos outros de "transferên-
cia". Leonora me contou que e le falou um bom tempo sobre
estas noções; ela escutou, achou tudo muito interessante, saiu

65
da consulta e foi encontrar Frau Klein no café da esquina da
Berggasse com a Wahringer Strasse...
Bom, eis o que queria contar a você. De resto, nada de
muito novo; ontem festejou-se o primeiro aniversário da nos-
sa jovem República, o Dr. Karl Renner fez um discurso no
Parlamento, e houve todas as cerimônias de praxe. Mas o povo
não está muito entusiasmado, e a meu ver teremos dia<> difí-
ceis pela frente; a lembrança da velha Ásustria, do velho Im-
perador José e de toda a pompa da corte dos Habsburgo ajnda
está muito viva. As cicatrizes da guerra vão demorar a se fe-
char, se é que se fecharão alguma vez....
Mas deixemos de Jado a melancolia. Nossa cozinheira
fez uma Sac:hertone para a sobremesa de hoje à noite, tenho
um lindo cadáver me esperando amanhã na sala de anatomia,
Hilde me mandou um bilhete delicioso, e o mundo deve ter
tons mais alegres de que se poderia adivinhar somente pela
leitura dos jornais!
Um forte abraço do seu amigo, hoje muito feliz.

Friedrich von Kleist.

5. Viena, 16 d e dezembro de 1919

Estimado K.arl,

Hoje, depois de exatos dois meses, Leonora anunciou


que o Dr. Freud decidiu interromper o tratamento, visto que
nada vai mudar no seu comportamento sexual . Aconselhou-a
a procurar uma analista mulher - sim, elas existem - uma
médica cham ada Helene Deutsch, discípula dele. Deixou en-
tender que. com uma analista mulher, talvez a Psicanálise te-
nha mais êxito. Não compreendi bem por quê, mas suspeito
que o motivo tenha a ver com colocar na vida e nos interesses
de Leonora uma outra mulher. Se ele pensa que com isso ela

66
vai desistir de Frau Klein, temo que esteja muito enganado...
Papai ficou muito aborrecido com o desfecho da histó-
ria e se recolheu ao seu escritório, provavelmente para ver
quantas libras nos restam depois de pagar os honorários do
Dr. Freud. Mamãe não demonstrou grandes sentimentos, mas
acredito que ela já não tinha mui tas expectativas, desde o iní-
cio. Eu mesmo fiquei triste, porque venho me interessando
muito pela Psicanálise e gostaria que esta tentativa tivesse dado
melhores resultados.
Devo sair para procurar um presente de N atai para Hilde,
que está cada vez mais bonita - ou pelo menos eu a vejo as-
sim. O frio já chegou, a neve começou a cair, e nada de aque-
cimento; o inverno será ainda pior que o do ano passado. O
dinheiro anda curto, e penso em procurar, nas lojas da Kã.rtner
Strasse, algo feito de boa lã para aquecer minha amada; só
palavras e abraços não vão dar conta do recado ...
Saudações natalinas e um feliz 1920 para você e para os
seus, é o que deseja o seu amigo

Friedrich von Kleist.

6. Viena, 8 de abril de 1920

Querido Karl,

Estou enviando, junto com esta carta, um exemplar da


lnternationale Zeitschrift fiir Psychoanalyse, cujo número 6:1
acaba de sai r. Mal acreditei quando vi na capa o título do
artigo de Freud: "Sobre a Psicogênese de um Caso de Ho-
mossexualidade Feminina". É a história de Leonora, sem ti-
rar nem pôr; ele diz que é um caso recente - "e in frisches
Fali"- e é "fresco" mesmo, pois o tratamento acabou pouco
antes do Natal. Corno em Hamlet, podemos dizer que a carne
servida no jantar do enterro ainda não esfriou, e já a apresen-

67
tam no banquete de casamento...
Você acha mórbida esta minha "associação"? Não sei o
que pensar, ainda estou sob o impacto da leitura. Como sem-
pre, a prosa é magnífica, a história se lê como uma novela, e
não como um destes aborrecidos "casos'' da literatura psiqui-
átrica. O raciocínio é claro e límpido, desde que você concor-
de com as premissas da teoria psicanalítica. Mas, caramba, é
a história da minha irmã, e mal posso aceitar que esta seja a
"psicogêncse" do seu comportamento. Aliás, eu também apa-
reço - de leve - no relato, mas num ponto decisivo: Freud
escreve que Frau Klein se parece comigo, e que, ao escolhê-
Ia, Leonora realizou de modo disfarçado seus desejos inces-
tuosos. pois, como naquelas bonecas russas, "demro" da ima-
gem de Frau Klein está a minha, e dentro da minha a de pa-
pai . Gelei ao ler isto, e certamente não vou mostrar ao bom
Dr. Anton o que Freud escreveu sobre nós... Ele também diz
que Leonora tem inveja de mim por eu ser homem - "inveja
do pênis", chama-se isto-, mas nunca notei nada disso nela.
Será que sou tão cego assim?
Não quero discorrer muito; você lerá o relato e me dirá
suas impressões. Leonora ainda não viu o texto, e hesito se
devo ou não mostrá-lo a ela. Eu mesmo só por acaso me de-
parei com a revista, na vitrina de uma livraria à qual vou pou-
co, porque é demasiado cara para meus recursos de estudan-
te; mas estava por perto, já que havia ido à Kartner Strasse
comprar um presente de aniversário para Hilde. Mas esta é
uma outra história. Sabe o quê? Vou ler mais uma vez o arti-
go; e, se me convencer de que a lógica de Freud é boa, apesar
das ·'resistências" que o conteúdo desperta em mim, irei
procurá-lo. Quem sabe o que pode sair de uma conversa com
este homem?
Fico por aqui. Um forte abraço de seu amigo, de cujo
espanto. corno di zia Aristóteles, talvez nasça alguma filoso-
fia.

Friedrich von Kleist.

68
A dama

69
Maria Klein, demi-mondaine

Ângela Maria A. Porto Furtado

Não saberia dizer, até agora, em que exatamente, em


que ponto dado, além das roupagens com que me vesti tanto
tempo, aquele olhar brilhante e furioso me tocou.
Não consigo, enlretanto, esquecê-lo.
Parecia não se dirigir nem a mim, nem a ela, Leonora,
que, como em tantas tardes, caminhava a meu lado levemente
apoiada na manga de meu vestido. O Sr. von Kleist, andar
resoluto e modos refinados, embora firmes, parecia fixar agu-
damente um ponto vago entre mim e ela. Talvez tenha sido
esse o meu maior incômodo!
Não sei se enquadraria o Sr. Anton von .Kleist entre os
moralista sombrios, os cínicos sofisticados ou, simplesmente,
entre os pais devotados à sua fu nção regimentar.
Amor conupto ou inocente, vício ou doença. é ceno
que o ideal burguês exigente não lhe permitia conceder qual-
quer discussão sobre um amor que não lhe parecesse respei-
tável. Nem mesmo, acho, ele lhe daria o mereci mento deste
nome: amor.
Talvez ele até pudesse concordar que a natureza huma-
na conhecesse, na paixão, suas imperfeições, mas, ostentá-las
·assim, com espalhafato, como Leonora o fazia?
Se ela, pelo menos, lhe facultasse a negação tão vigente
nesses nossos tempos, ou a permissividade cúmplice comum
àqueles que desconsideram essa variedade de amor!... Ah ! se
assim fosse ... talvez ele não precisasse gastar indignação com
mulheres que amam mulheres!

71
Pois. já de há muito, tenho eu cá minhas razões no pas-
sado, as mulheres despertavam meu interesse, embora os ho-
mens me acorda-;sem muito mais.
Com elas podia experimentar a profundidade da pele,
enquanto deles fruía a medida de uma outra profundidade, a
dos meus limites de mulher.
Talvez incomodasse a tantos porque, para uma socieda-
de em que a cuidadosa preservação das aparências significa-
va a possibilidade constante de triunfo da hipocrisia, eu não
vinha sendo muito prudente!
Tinha para mim que o sexo eJLigia um certo conheci-
mento e nunca me havia furtado a ele.
Também já havia observado que esperavam de mim, mu-
lher de predileções sexuais discutiveis, que me apresentasse
decaída, que me dissesse vítima impotente do destino Uá que
o destino não é um vício) ou que me fizesse absolvida ao
confessar minhas inclinações e práticas, pelo menos, choran-
do c rasgando as vestes publicamente.
Não era assim.
A mim também se apresentavam enigmáticas e cons-
trangedoras muitas das minhas emoções e impulsos apaixo-
nados, a tal ponto penosos que preferiria não os experimen-
tar, caso tivesse deles o controle da razão!
Ainda assim, desde as perdas que marcavam a decadên-
cia financeira e social de minha família e que me fizeram agu-
çar a inteligência de sobreviver, eu tentava sustentar ao me-
nos a dignidade de uma tisionomia franca, de um corpo agra-
dável, de uma mente viva e de um sorriso aberto.
A este meu modo de ser os homens se apresentavam
com frequência e entusiasmo. Afora a impropriedade incô-
moda de ser grosseiramente considerada umademi-mondaine,
o que os tomava reservados, por vezes embar~çados, não po-
dia me queixar das atenções e do conforto com que sempre
pude me ver cercada por eles.
Quanto às mulheres, das armadilhas eróticas oferecidas
por elas ao corpo fustigado de calor, sangue e fantasia, não
consegui me livrar. Em um colégio interno, num tempo de

72
puberdade e lassidão. a amizade era sagrada e intacta e por
mais calorosa que fosse, conservava a característica, aos olhos
da culturd, de inocência e impunidade. Pois dela, então, fiz
bom uso.
Eu era só e viva.
Wanda, amiga daquele tempo jovem, no colégio, que,
muitos anos depois, vim reencontrar em Viena, foi o repouso.
o refúgio, o comovente espaço onde a revolta do meu desam-
paro e a rebelião contra o meu destino solitário puderam se
transformar num amor imperecível e restaurador. Hoje coabi-
távamos uma esperança desesperançada, a de viver felizes,
numa mesma casa, eventualmente, numa mesma cama, à mar-
gem do descaso de um marido conveniente e tolerante, de
cuja generosidade eu dependia em parte.
De qualquer modo, não sabia de Anton von Kleist a não
ser por llrn pálido retrato esfumado que sua filha me deixara
entrever nas suas palavras e atitudes. Não o conhecia e ele
não me conhecia, a não ser, talvez, de um retrato similar.
Que espécie de suposição havia se instalado em Leono-
ra quando insistentemente passou a me perseguir nos lugares
e ocasiões mais inesperados? O que eu havia, sem o notar,
referido a ela?
Afinal, o repertório do amor proverbialmente impreci-
so, ambíguo e elástico poderia abarcar qualquer movimento
apaixonado, qualquer gesto aparentemente inocente e, repen-
tinament.e, capturar o desavisado olhar de uma jovem!
Não havia sido assim comigo mesma?
Talvez, hoje, eu compreenda a minha condescendência
amável com os sentimentos c cortejos dela e, quem sabe, re-
conheça a curiosidade desafortunada que se apossou de mim.
Ao dar-lhe trela, ou dar-me rédeas, deveria adivinhar que re-
passaria, da minha história, as histórias de amor benditas,
malditas e interditas.
Ah! ... Leonora se me afigurava tão rija, amarga e de-
samparada! O seu andar, subitamente desnorteado, fazia-a
oscilar de um tropeçar nos próprios pés a um pisotear a terra
como quem a queria possuir.

73
Tropeçando foi que ela se aproximou, através de uma
amiga em comum, para se apresentar quando, num café, fazí-
amos um grupo tagarela sobre a música, seu ritmo pulsante,
seus "crescendos" ofegantes e clímax emocionantes. Enfim,
discutíamos animadamente como a música podia ser uma es-
tratégia de migração da sensualidade e de escamoteamento
do desejo sexual.
Leonora olhou-me atônita, ato contínuo, voltou-se e,
dando-me as costas, atravessou o salão até uma bela mulher
que, postada ao fundo , olhava-nos com um misto de questão
e enfado. Alma, soube depois, era sua mãe.
Pensei, emão, tê-la aterrorizado nos seus dezoito anos.
Pensei tê-la feito correr e se abrigar no ninho macio dos sei-
os da mãe. Pensei nunca mais vê-la me rodeando e me diverti
imaginando ter esfregado em sua ingenuidade o sinal perigo-
so da minha intolerância à inexperiência.
Terrível engano! Não houve um dia em que ela não se
insinuasse com bilhetes, flores, recados, súbitas aparições sus-
tentadas por fúteis propósitos de conversa ou desculpas esfar-
rapadas para companhar-me. Às vezes me divertia, outras me
entediava, outras tantas preocupava-me pelo rumo que este
caso poderia tomar, já que sua determinação era a de, até as
últimas consequências, experimentar o que, sem mais aviso,
eu lhe havia sugerido do que eu era ou aparentava ser e do
que vivia nas minhas relações amorosas.
Não era indiferente para mim, ademais, que tamanho
desejo e ardor apaixonado me alimentassem a vaidade.
Momento houve então que, incomodado, suponho, pela
regurgitante reivindicação de sua filha de viver seu amores-
tranho a qualquer preço, mesmo ao preço de mentiras sub- e
terfúgios, o Sr. von Kleist resolveu apelar para o expediente
mais controvertido, conquanto cada vez mais propalado de
nosso tempo: a psicanálise, pelas mãos de seu criador, Dr.
Freud. Leonora me fez, agastada, ciente da iniciativa do pai,
garantindo-me, porém, que a única fidelidade à qual se via
obrigada era aquela dos seus propósitos, propósitos de liber-
dade para amar a quem desejasse. Seria difícil para ela sub-

74
meter-se de bom grado à mise en scêne do compromisso que
o pai lhe exigia. Só o faria para se livrar de sua vigilância e ter
trânsito mais flexível para estar com sua "adorada dama" .
A mim também me intrigava sua escolha, assim como,
em alguns momentos entristecidos, ocorria perguntar-me a
mim por que me enlevava uma dor destas, que só e apenas
doía.
Também me estranhava que, tão sôfrega. Leonora ten-
tasse se jogar nos meus braços ou aceitasse meus beijos afe-
tuosos, quão rápida se confessava à mãe de seus sonhos e
paixão. Ainda assim. dela jamais ouvia admoestação mais
severa ou conselho radical. Estranho.
Seria a mãe, Alma, tão bela, alma do jogo que a jogava,
Leonora, tão jovem, para mim, Maria Klein, mulher da vida,
demi·mondaine, meio mudana, meio? Seria eu só meio?
O ruído monótono e repetitivo do trem, de tão repetitivo
que se fez silêncio: de tão monótono que parecia introduzir o
inexorável..., de repente, se interrompe e me interrompe no
contínuo de meus pensamentos.
Afasto-me de Viena em direção a Paris- "Sont les temps
modemes" , 19'20. Busco a direção da vida, entre amigos
poetas e a música.
Aquele olhar, o do pai, assim hoje me parece, cortou o
fio que ainda tentei sustentar na trama que, a pretexto de me
fazer amada, me fez trilhar de novo os descaminhos de minha
própria história.
Não sei o que me levou, enraivecida, exposta, não sei,
num átimo daquele momento, a dizer a Leonora o "nunca
mais" que a fez balançar titubeante e, entre a minha voz e o
olhar do pai, saltar de um golpe nos trilhos do trem.
Decaída, decaídas ambas, ainda a vi algumas vezes, após
a recuperação do grave acidente.
Ela se valia agora da ameaça que fizera aos pais de sua
morte, para insistir no seu desafio.
Eu, eu desfio o fio que me fia e tece.

75
Afasto-me dela, de Viena, em direção a Paris.
Sou Maria Klein, dita demi-mondaine.
"Sou Maria, sou demi, sou mulher."
O ruído do trem, monótono e repetitivo, parece gritar,
inexorável e cruel, esse refrão.

76
A jovem

77
Aos olhos dele

Maria Rita Kebl

Foi o olhar dele que me atirou nos trilhos. Percebi de


imediato o que dizia: prefiro te ver morta a saber disso. Em
seguida eu caí. Não me atirei, como dizem. Caí. O olhar dele
me empurr.ou; por um segundo ele quis me ver morta para
não saber. Depois se assustou com o que fez.. Quer que eu vá
conversar com um médico especial. Eu !... mas se foi ele quem
me fez cair! Meu pobre pai - há quanto tempo eu não o amo
mais? e no entanto seu poder se confirmou mais uma vez.
É que eu sou quase nada aos olhos dele. Se ele mostras-
se querer alguma coisa, qualquer coisa de mim, seria eu, não
ele, a poderosa. Mas tudo que ele quer de mim é que eu não
faça algumas coisas. Se eu desaparecer, se eu nada for, para
.ele está bem. Desde que eu não ultraje a sua família, o seu
nome, nome que não depende de mim para se perpetuar. Ma-
ria não é companhia para mim. Quando ele me viu, seu olhar
disse: prefiro te ver morta. Obedeci.
O que ele não quer saber, não estou bem certa; eu mes-
ma sei bem pouco de mim. Mas ele, :;empre foi desse tipo que
prefere não saber. De nada. Basta ver o jeito que minha mãe
vai levando como quer. ou melhor, como não quer. Ele acre-
dita. o bobo. Hoje é a dor de cabeça, ontem as palpitações. na
semana pa!isada ficou cinco dias sem sair do quarto a pretexto
de náuseas, amanhã serão cólicas, tonturas, dispnéia. Minha
mãe é um compêndio médico, mas no últi mo capítulo o prog-
nóstico é desalentador: todas essas doenças têm cura. mas a

79
paciente não. A cura depende da vontade da doente, e esta
aqui, meus senhores, está bem melhor assim. Cuidados, aten-
ções, chazinhos - nenhuma exigência, nenhum aborrecimen-
to - e toda aquela circulação silenciosa à volta dela, a meia
voz, na pontinha dos pés, as cortinas abaixadas, e os beijos
suaves dos meus irmãos, beijos secos. levíssimos- respeito-
sos? Respeitosos eu já não garanto. Vista de um outro ângulo
esta mesma cena, o qu.e parece? Cortinas abaixadas, sussur·
ros, atenções carinhosas. toques delicados ... ela sabe viver
com seus três rapazes- quatro, se contar com meu pai. Sabe
sim. Só não me peçam pra explicar como foi que no meio de
tantãs enxaquecas ela engravidou do caçulinha, seu
bonequinho, seu "consolo", ela diz quando está melancólica,
como se os outros dois não lhe valessem nada. E eu'! Desde
pequena mamãe me chamou de Nora. É um jeito de diminuir
meu nome mas também de me fazer mais dela, uma tilha de
verdade que ela nomeou e agora chama como quer. Eu gosto
de ser Nora, gostei mais ainda quando li a história daquela
que deixou a casa. os filhos. o marido e foi viver a vida dela.
O marido, coitado, ficou esperando "o maior dos milagres ...
um casamento perfeito", e ela partiu. Mas para que eu pudes-
se ser Nora, seria preciso que meu pai quisesse algo de mim -
então eu o abandonaria, à espera da minha volta, "o maior
dos milagres". Mas meu pai tem mamãe, minha mãe tem os
meninos. E eu?
Eu sou , na melhor das hipóteses, uma espécie de pou-
pança para o futuro dela. "É bom ter uma filha, Alma", ouvi
uma amiga dela dizer: ··os meninos vão embora, mas uma
filha sempre nos fará companhia na velhice." A frase que me
propõe um futuro tão interessante não inclui meu pai, certo?
Ou seja, de duas uma: ou ele já está marcado para morrer
antes dela, o que é bem provável já que ele é mais velho e
trabalha duro desde que me entendo por gente; ou ele não
serve de companhia para minha mãe, não servirá na velhice
dela porque nunca serviu. "Anton não entende nada", eu ouço
ela se queixando às tias, às amigas, até ao Friedrich eu já a
ouvi se queixar, como se fosse decente uma senhora desaba-

80
far desse jeito com seu filho. Comigo não, é claro. Eu faço
parte dos que nada sabem. como meu pai. Só que no caso
dele, é porque não quer saber. No meu, é porque "não con-
vém". "Não convém a uma mocinha ouvir essas conversas."
"Não convém a você saber de certas coisas." "Não convém se
apressar, tudo vem a seu tempo." Eu sou um caso de inconve-
niência radical nessa família. Mas no futuro, quando me cou-
ber ser boa companhia na velhice de minha mãe, deverei me-
recer suas confidências- ou as mulheres idosas se esquecem
daquilo que tanto precisaram confidenciar na juventude? Se
ela não se esquecer, terá a mim, única filha, como confidente.
Portanto, só no futuro estarei a par de tudo o que hoje não me
convém.
Nunca pensei em enganar minha mãe sobre meus co-
nhecimentos. Se hoje ela se engana a meu respeito, não é por-
que eu minta a ela, mas porque ela me proíba, com seu sim-
ples silêncio, de dizer a ela o que toda moça como eu já teve
ocaisão de aprender. Sei o sentido das regras de que sofro
todos os meses, há anos. Ela sabe das regras, não teve como
ignorá-las, mas pensa que minha curiosidade parou onde ela
me deixou: "acontecem a todas as moças nessa idade". Então
ela não sabe que desde menina alcanço a estante dos livros
científicos? Pensa que nunca conversei com Friedrich, que
nunca escutei conversas das criadas, que estive horas a fio
escutando Maria falar com sua amiga sobre o sexo dos anjos?
Eu sei muito mais do que ela pensa, muito mais do que ela
julga conveniente para minha idade, muitíssimo mais do que
meu pai sisudo quer saber.
E no entanto ainda me sinto longe do conhecimento ver-
dadeiro sobre as coisas da vida. Quando Maria conversa com
suas amigas, sinto que alguma coisa soa muito distante de
mim. Mesmo que eu conheça o sentido de cada palavra, pare-
ce que eu não alcanço o lugar de onde elas nascem, o sentido
especial que dá graça ao que dizem.
Um dia, quando Maria era só uma figura atraente que
passava sob nosso balcão, Friedrich teve a imprudência de
comentar com alguém, perto de mim: - Esta sabe das coisas.

81
O sentido da frase estava no sorriso dele. Atrevido, perigoso.
O sorriso dizia:- Ah, se eu te pego! ... dizia isto a ela, sem que
ela soubesse - mas cu vi, Friedrich. Gostei tanto de brincar
com ele - ah, se eu te pego! Eu era o caçador, antigamente -
ele a presa. Fui bem maior que ele nos primeiros anos, então
adorava a caçada, pular sobre ele de um canto escondido da
sala, ele gritava de medo, de prazer também. Adorava dominá-
lo com meu peso, fingir que mordia, comia, estraçalhava. Ele
não me chamava Nora ou Leonora. me chamava de Leo. seu
leão ou leoa - nunca mais fui forte como uma leoa depois que
Friedrich deixou de me chamar de Leo. Depois ele cresceu e
inverteu a brincadeira, era o tigre feroz, eu a corça assustada.
Dos dois jeitos era bom. Um dia a criada ouviu a correria no
quarto e disse que ia contar a mamãe. Não entendi -contar o
quê? Não estamos brigando, eu expliquei, e ela riu: "por isso
mesmo" ... Friedrich entendeu alguma coisa porque teve tanto
medo que nunca mais aceitou meu convite. Sofri como uma
noiva abandonada, só hoje sei que nossa brincadeira era uma
coisa proibida, a criada tinha razão. Se Friedrich me recusa-
va, não me interessava brincar com mais ninguém. Ele ainda
é meu irmão, meu amigo querido - mas até hoje temos um
segredo, e quando ele não sustenta o meu olhar, fico tão triste
como se ele tivesse partido para o outro lado do mundo levan-
do a senha dos meus segredos de infância na sua bagagem:
ah, se eu te pego.
Friedrich entendeu antes de mim o que a criada sabia.
Friedrich não se interessa pelas moças bobinhas, ignorantes.
Ele não admite, mas seus olhos brilham por Maria - ela sabe
das coisas. Vou atrás de Maria até o fim do mundo, até o
inferno, que Deus me perdoe - mas quero saber. Maria não
tem dores como minha mãe. Maria ri. Maria tem um cheiro
muito diferente do de minha mãe. Minha mãe cheira bem, um
cheiro de quarto de criança, cheiro que eu adorava; respirava
fundo ao abraçar mamãe. Afundava o rosto nas roupas dela
até ela me afastar - está bem, Nora, já chega, menina. Um
cheiro de lençóis limpos, de banho, um cheiro diurno tinha,
ainda deve ter, minha mãe. Maria tem um perfume doce. exa-

82
gerado até- não gostaria de usar um tal perfume. Mas ele se
mistura a um cheiro de pele, cheiro da pessoa dela, tão carac-
terístico quanto impressões digitais. Amargo, um tiquinho
salgado: Maria tem um cheiro de pessoa. Nem preciso abraçá-
la, afundar o rosto no seu colo (nunca pude abraçá-la, só uma
vez beijei de leve sua mão como quem reverencia um bispo,
um cardeal, algo assim) pra saber o cheiro que ela tem. O
cheiro de Maria anda ao redor dela. Minha mãe tem prefume
de quê? De mãe, ora. Sempre foi assim. Maria me faz saber o
perfume que tem uma mulher que não é mãe, que não cheira
a bebês, a talquinhos, a lencóis. Será que Friedrich percebe o
cheiro de Maria?
Maria não é exatamente uma mulher honrada, dizem -
mas o que faz a honra de uma mulher? Eu também tenho a
honra em meu nome, mas não me interesso por ela. Honore.
Uma mulher honrada é como minha mãe, tão linda e inútil,
tão jovem e cheirando a quarto de bebê, afastada dos amores
verdadeiros, pagando sua honra à custa de enxaquecas, agar-
rada ao consolo do seu bebezinho estúpido. Uma mulher hon-
rada não tem uma história dela. Maria, cheia de histórias que
não me deixa saber, não é tida como honrada, mas a honra
feminina não me importa: a honra dos homens é que faz he-
róis. Em defesa da honra eles guerreiam, se aventuram, con-
quistam bandeiras, fazem nomes. Pretiro ser Leonora deson-
rada como Alienor, a rainha adúltera, mãe de Ricardo Cora-
ção de Leão, que deixou Luís de França por Henrique da In-
glaterra e ainda traiu os dois muitas vezes, até se rebelar jo-
gando os filhos contra o pai em benefício próprio. Gostaria
de ser Alienor desonrada, que se fez poderosa e comprou sua
honra de volta, como os homens fazem. Compraria a honra
de Maria, també m, como um herói salva sua dama.
Ela não gosta muito de mim. Um dia me magoou dizen-
do que eu "grudo". Não sei por que essa menina grudou em
mim, disse à amiga, bem alto para que eu pudesse ouvir. Tal-
vez minha mãe também se incomodasse quando eu grudava
em suas roupas, e ela me dizia - chega, Nora. Talvez Friedrich
se incomodasse quando eu insistia em brincar de pegar, quando

83
ele não queria mais - mas não queria mesmo? Maria disse
que eu grudo e eu tentei mudar a tática, não é assim que se
faz? uma proximação sutil, disfarçada. Pretextos inventados.
Com os homens fu nciona melhor - se eu fosse um rapaz já
teria sido convidada aos aposentos de Maria, quantas coisas
ela me faria saber! que injustiça não podermos mudar de sexo
quando nos convém, como quando eu brincava com meu ir-
mão: num dia a caça, no outro o caçador. Poderia ser como a
outra Leonora, a gue se fez de homem e entrou como Fidélio
onde era vetado às mulheres entrar. Como a outra guerreira,
Joana. Mas Joana se fez homem para lutar IJQf amor a Deus. e
eu seria Fidélio para ter acesso à intimidade de Maria por
amor a quem? A Friedrich. Para saber como é a mulher do
desejo dele, a que toma seu olhar atrevido e perigoso como
eu vi naquela tarde.
Tentei inventar pretextos. Pedi um livro emprestado, ela
cedeu. Pedi que me explicasse algumas coisas , sou jovem ain-
da, há termos que não entendo. E la foi cortês. Disse que eu
deveria fazer certas perguntas a meus pais. Um dia eu a vi
passando e fingi um encontro casual -que coincidência. tam-
bém vou naquela direção! Andamos juntas alguns quarteirões
e a amiga veio se juntar a nós. Então meu fingimento falhou e
eu supliquei - Maria. quero saber tantas coisas sobre você,
por favor, peça.a Wanda que não venha, diga a ela que nossa
conversa é particular! Pouco depois papai nos viu juntas e e u
caí. Mas ames, tive que ouvir a resposta de Maria.
Quem você pensa que é, ela disse. Debochada, rindo de
lado para a amiga ver como ela é superior, me rejeitando.
Quem você pensa que é? irritada também, mas achando di-
vertida a minha reação, ou melhor- minha falta total de rea-
ção. Pois então você não sabe, eu lhe disse, que eu só consigo
pensar em quem você é? Você não percebeu que eu preciso
saber quem você é? Por quem você me toma - ela já havia
dito uma vez em particular, quando a amiga não estava perto
para partilhar o olhar cúmplice, o riso disfarçado com a mi-
nha humilhação. Também daquela vez não pude responder.
Se eu soubesse por quem tomo você, Maria, não teria que

84
segui-la até o inferno, até o fim do mundo, aceitando humi-
lhações, sentindo o olhar de meu pai me exterminar, sofrendo
a crítica discreta de Friedrich e de mamãe. Quem eu penso
que sou depende de quem é você. Como posso saber o que é
uma mulher que não é mãe?
Sou Leonora. Isto eu sei. Leonora, Nora, Leo, Honore,
Alienar, posso ser muitas outras ainda, mas até agora quase
nada eu vivi. Sou todas estas e não sou ninguém. Não posso
responder à pergunta de Maria pois não tenho uma história
pra contar. Que troca impossível esta entre duas mulheres;
uma a quem não posso responder quem sou, porque preciso
tanto saber como ela é. E se eu não posso responder quem
sou, e]a não se interessa por mim.
Mas Maria se interessou por minha queda. Ficou aces-
sível por uns dias, carinhosa até. Talvez pense que eu me ati-
rei num gesto romanesco, como os que tentam suicídio por
amor. Então ela pensaria que eu sou alguém'?
Me u pai se interessou por minha queda. Esteve preocu-
pado. Quis saber. imaginem, se eu sofro! Dizem que em Vie-
na existe um médico a quem posso falar de minha queda, por
recomendação de meu pai. Todos querem saber do que me-
nos me interessa. Minha história começou no dia em que eu
caf, mas o que posso dizer sobre isto? Foi o olhar dele que me
atirou nos trilhos. E também a resposta debochada de Maria -
mas quem você pensa que é? Não me atirei, como dizem. Caí.
Minha história começou no dia em que eu cai.

85
Diário clínico· 10 anos depois

87
Anotações sobre a análise de uma mulher

Eliana Schueler Reis

20 de maio de 1930

O que busca a mulher em outra mulher? Venho pen-


sando a propósito da paciente K, que comecei a ver no final
de março, cujo tratamento pode me ajudar a compreender me-
lhor a homossexualidade feminina, que é muito menos estu-
dada pela psicanálise do que as manifestações homoer6t1cas
masculinas. Como eu já escrevi há muito tempo, classificar
uma sexualidade com homo ou hetero, a meu ver, não se jus-
tifica, pois a sexualidade é uma conjunção de fatores libidinais
que se organiiam sob o regime da anfimix.ia, e portanto não
se resume às direções que tomam as escolhas de objeto. Isto
diz respeito ao modo como os erotismos se organizam em
determinadas direções. Ou seja, a sexualidade não é nem homo
nem hetero, ela é múltipla. Os destinos eróticos de cada indi-
víduo são a consequência conjuntural da sua história pessoal.
A homossexualidade feminina expressa as primeiras sen-
sações eróticas ligadas a um objeto, o primeiro amor, que tan-
to para a menina quanto para o menino é à mãe. Talvez por
isto a sociedade não julgue tão severamente a mulher quanto
julga os homens homossexuais. As manifestações de carinho
e afeto que as mulheres fazem umas as outras, em geral, são
toleradas e encaradas como normais, enquanto que aos ho-
mens não é permitido o menor toque a não ser em lutas e
disputas esportivas.

89
A paciente em questão tem uma história curiosa de uma
análise com Freud, quando ainda era bem jovem. Ela foi le-
vada a ele por seu pai para curá-la de suas inclinações amoro-
sas, que não eram consideradas adequadas. Parece que o Prof.
Freud não conseguiu muita coisa, já que ela não estava pesso-
almente interessada em se analisar e sim em escapar de uma
situação familiar quase insustentável.
A jovem na época estava intensamente apaixonada por
uma certa dama da sociedade, de reputação duvidosa, e o con-
llito entre seus sentimentos e as convicções paternas levou-a
ao extremo de uma séria tentativa de suicídio. Ela procura
tratamento análitico agora, por sua conta, devido a sua difi-
culdade em aceitar as imposições de um casamento de conve-
niência e principalmente às dificuldades que encontra na ma-
ternidade. Foi obrigada pela família a se casar com um ho-
mem que mal conhecia, para que se curasse de suas "manias"
através da obrigação da prática heterossexual no matrimônio
e para abafar o escfindalo que ameaçava o bom nome da famí-
lia.
Não é difícil imaginar que este casamento, com todas
as suas implicações, lhe foi extremamente desagradável, eu
diria que lhe trouxe muito sofrimento e provocou o endureci-
mento de seu caráter, que já tinha características marcantes e
mesmo um pouco masculinas. K. sofre atualmente, não só
pela obrigação de estar casada com um homem que não ama
nem deseja, mas, principalmente, por ver que está repetindo
com sua filha pequena as mesmas coisas que enfrentou quan-
do criança em seu relacionamento com sua mãe, que sempre
deu mais atenção e amor ao filho homem. K. diz que se sentia
jogada fora, desvalorizada por sua mãe em tudo que fizesse.
Observação: A falta de amor e a desvalorização por par-
te da mãe, dificultam a construção de um sentido corporal e
identitário próprios, pois tem a ver com os processos de
introjeção primária e com as mais primitivas formas de inves-
timentos. K. queixa-se de sensações de desrealizaç.ão e rle
ameaça à totalidade da existência; tem sonhos com ondas enor-
mes no mar nas quais está prestes a se afogar e dos quais

90
acorda gritando e chorando. Estes sonhos revelam o desejo
de retomar este contato com a mãe primitiva e o temor de
submergir neste retorno. Medo da perda total de contornos e
da identidade. Vamos ver como esta história pôde caminhar,
já que K tem uma enorme dificuldade (correspondente ao
enorme desejo) de se entregar a uma transferência analítica.
Ela é muito desconfiada e muito arguta, usando a ironia e o
humor mordaz como forma de defesa contra o analista.
K. tem sobre seus familiares a estranha vantagem de ter
experimentado em sua vida sentimentos e amores considera-
dos impróprios e ter-se visto constrangida a escondê-los, mas
não a esquecê-los e recalcá-los. De uma certa forma, esta jo-
vem senhora mantém-se tiel a suas escolhas juvenis e não se
deixou cair na hipocrisia estagnante que a sociedade quis lhe
impingir. Talvez se o fizesse, tivesse desenvolvido uma neu-
rose que a tomasse incapaz de sentir o seu desconforto, mer-
gulhada na miséria dos seus sintomas. Veremos até que ponto
essas marcas de caráter vão lhe pennitir, desta vez, a aproxi-
mação com o analista e o aprofundamento do trabalho de aná-
lise para que se possa tocar em feridas profundas e muito an-
tigas.

20 de junho de 1930

A propósito do uso da teoria corno defesa do analis-


ta na contratransferência : Pensando sobre a
contratransferência a propósito da primeira análise de K. : Ela
relatou que Freud, no último dia que estiveram juntos, acon-
selhou-a a procurar uma analista mulher, para que os comple-
xos referentes à relação com sua mãe pudessem ser tratados.
Como se um paciente não pudesse viver na relação com um
analista homem a transferência maternaL O problema de Freud
é que ele passou a acreditar mais na sua teoria do que na rea-
lidade das sessões. Eu sei que Freud, com certeza, não podia
estabelecer uma relação transferencial com esta jovem, isto
lhe exigiria mergulhar em seu universo infantil e feminino e

91
ter um pouco mais de interesse pelas pessoas. Acredito que
ele, no início, acreditava na análise, mas depois se desencan-
tou com seus pacientes, já que os sucessos não eram tantos e
principalmente pelo problema da contratransferência, que se
abria diante dele como um abismo. Além disso. Freud aban-
donou os interesses das mulheres (que foram tão importantes
para ele no início de seu trabalho), em prol dos pacientes
masculinos. como consequência da orientação andrófila de
sua teoria da sexualidade.

29 de agosto de 1920

O bebê sábio é o louco que não perde a razão. Vol-


tando a K., ela é dotada de uma inteligência aguda, que não
foi embotada pela submissão cega que se instala, em geral
desde a infância, pela dependência da criança e até da própria
diferença de tamanho e força entre uma criança e os adultos.
Se pelo menos estes não abusassem de sua vantagem, as cri-
anças poderiam crescer sem serem tão marcadas pelo temor e
pelo terror. Mas a criança inteligente e que se vê compelida a
se desenvolver precocemente toma difícil a instalaçã-o desta
submissão. A falta de amor e a incompreensão dos adultos (a
distância da mãe, no caso de K.) exigem da criança que se
tome o bebê sábio e dê coma de suas próprias dores. Posso
pensar que a indiferença e até a hostilidade materna signifi-
cam uma violência e têm o efeito de um trauma para o eu
infantil.
Na primeira infância a criança encontra-se mais próxi-
ma de um estado de "dissolução", em que está em "ressonân-
cia" com o mundo à sua volta, captando os sinais que vêm do
meio ambiente e que são principalmente sinais afetivos. Para
integrar esta dissolução ela precisa do amor e da compreen-
são dos adultos.
K. nunca se sentiu amada e sua mãe a tratava com dis-
tância e até com hostilidade, principalmente quando come-
çou a ficar púbere e a se tornar outra mulher dentro de casa;

92
nunca a elogiou nem ficou feliz em ver a fi lha se tomar uma
bela jovem. Ao contrário, só lhe fazia críticas pela feminili-
dade. Sua mãe era uma mulher muito jovem e bela e não que-
ria rivais.
As crianças que sofreram alguma perturbação maior em
sua estruturação, resultante numa clivagem, tendem a penna-
necer, quando adultos, mais próximas do estado de dissolu-
ção, o que pode resllltar numa psicose, mas também numa
sensibilidade especial para as sensações. Se não se tornam
loucas, podem ser capazes de se identificar com a dor do ou-
tro por conhecerem, elas próprias, a natureza da dor. Tornam-
se crianças sábias que são obrigadas a resolver sozinhas os
seus enigmas e procurar suas próprias respostas.

17 de setembro de J930

O que é ser homossexual? K. é até hoje como uma


menina que não abriu mão de sua atividade e curiosidade se-
xuais. Como se o quinhão de amor oferecido a ela por sua
mãe fosse insuficiente para que ela pudesse se tornar mulher
e mãe. Sente que hostiliza a filha , não tem prazer com sua
presença, o que faz com que sofra muito, com muita culpa
por não dar à fi lha o que sempre quis de sua mãe. As mulhe-
res sabem, e ela também, que existem desejos que só a mãe
pode aplacar. Muitos dos sentimentos homossexuais das mu-
lheres vêm da saudade que elas sentem da mãe e não têm
nada a ver com a inveja do pênis, ou com uma negação da
feminilidade. No caso de K. o desejo de agradar à mãe, fez
com que ela quisesse ter um corpo de homem, ser homem
para evitar as críticas maternas quanto ao seu corpo de meni-
na. K. foi-se afastando de seus pendores femininos, para não
se submeter às humilhações maternas. Deixava de ser uma
concorrente ao mesmo tempo que tentava agradar à mãe bus-
cando parecer-se com o irmão.
Como consequência disso, K. tornou-se uma pessoa es-

93
quiva e desconfiada, cujos impulsos sádicos não encontraram
vazão de nenhuma forma criativa, somente no ódio mesclado
às ironias e sarcasmos dirigidos às pessoas próximas e princi-
palmente à filha. K. foi endurecendo ao sentir que sua mãe
não sentia nenhum prazer em observá-la crescer e se desen-
volver, tornando-se uma nova mulher. Mas. parece que lhe
resta ainda generosidade e integridade, pois ela consegue sentir
o mal que faz à pequena e lembrar do mal que lhe fizeram, de
como esperava que sua mãe a amasse, acariciasse e tivesse
orgulho dela e só recebia reprimendas duras e ironias. Tanto
anseio de amor sendo negado, poderia tê-la tomado tão dura
que o sadismo se fizesse preponderante em seu caráter.
Por outro lado seu pai sempre foi , segundo ela, um ho-
mem fraco e nervoso, dominado por sua mulher, principal-
mente pelo amor que lhe dedicava. Ele nunca a protegeu des-
ta aridez de sentimentos. Na verdade, acredita que ele só pas-
sou a se preocupar com ela quando começou a demonstrar
sua preferência por mulheres. Nesse momento ele se mani-
festou, mas K. acha que era por causa das convenções sociais
e aparências, e que na verdade ele não sentia nada muito ver-
dadeiro. Só queria evitar os comentários da sociedade.

25 de setembro de 1930

Ser analista é ser analista mulhét é homem. O que K.


pode esperar de mim, do analista, senão .a repetição daquilo
que ela já conhece: indiferença, hostilidade, hipocrisia e
incompreensão? Tenho tentado me manter numa distância óti-
ma, nem muito perto (solícito demais) nem muito distante
(hipocrisia profissional). Sinto que para se estabelecer algu-
ma confiança é preciso muita paciência, pois ela nunca pôde
confiar em ninguém que fosse próximo e nunca teve direito à
escolha de suas relações fora da fanu1ia. K. nunca rompeu
com as convenções sociais a ponto de ser posta no ostracis-
mo, mas também nunca conseguiu encontrar uma amiga em

94
quem pudesse confiar, já que suas amizades estavam sempre
sob suspeita.
Discordo inteiramente da indicação de Freud de que ela
deveria tentar análise com uma mulher, pois o que está em
questão não é o sexo do analista. mas a possibilidade de ele
vir a circular por vários papéis. Numa análise, a transferência
não gira só em torno da figura paterna. Aliás, acho que sem
que possa haver um retorno às experiências que envolvem os
primeiros contatos com a figura da mãe, não se pode mergu-
lhar numa verdadeira análise do caráter.
K. viveu a relação com a mãe como algo ameaçador e
transformou o seu medo e seu anseio pelo amor de sua mãe
numa tentativa sem fim de conquista das mulheres, mas nun-
ca pôde construir uma representação de mãe que pudesse su-
pri-Ia internamente. Com isto, tinha que ser sempre submissa
às mulheres e hostil para com os homens. para que ficassem
afastados. já que eles poderiam ameaçar sua aproximação da
figura feminina.
Minha presença como analista homem coloca para ela :
. este dilema: quer se aproximar e entregar-se à transferência, ·
o que para ela significa deixar-se mergulhar no mar de seus
primeiros anseios de amor sem limites; porém. toda sua vida
foi construída sobre a reserva e a desconfiança, principalmente
para com os homens (acredito que como uma derivação, um
segundo tempo. Na verdade, a desconfiança é com relação à
mãe tão fugidia). Devo me deixar conduzir por ela nesta
flutu ação, pois se forçar uma intensificação transferencial ela
s~ distancia, toma-se fria e sarcástica para não entrar em pâ-
ruco. Ao mesmo tempo, se fico no distanciamento técnico,
ela se torna indiferente e o trabalho não avança.
·.Se interpreto sua resistência, isto não tem o menor efei-
to, pelo contrário, ela se toma cáustica e lança selvagemente
todo o seu desprezo sobre mim. A análise não pode poupar 0
analista nem a teoria aoalfrica; temos de estar atentos às pala-
vras dos pacientes e tr~balhar em cima dos indícios que eles
nos dão: As provocações dos pacientes são dirigidas àquilo
que no analista repete situações vividas em sua história. Cabe

95
ao analista, portanto, mudar o rumo da repetição e produzir a
possibilidade de novas experiências. A tarefa da análise é de
reconstrução através da repetição que introduza diferenças
onde até então só havia identidades.

30 de ourubro de 1930

Compaixão e perdão mútuo como possibilidade de


atingir certas regiões da mente. Começam a surgir alguns
sinais de que K. está se deixando tocar pena análise. Relatou
pela primeira vez um sonho que não é de angústia e de amea-
ça de morte. Continua sonhando com as águas, mas desta vez
a água não aterroriza como nos sonhos anteriores. Sonha que
mergulha no mar em busca de um tesouro. Da superfície pode
ver o brillio dourado das moedas de ouro misturadas com o
lodo lá no fundo. Quando se aproxima do fundo e vai tocar as
moedas, percebe que não são de ouro, são de alguma outra
coisa que brilha muito, meio escondida no meio das algas e
do lodo. Seu primeiro sentimento é de decepção, mas em se-
guida fica curiosa para pegar aquelas coisas brilhantes, que
não deixam de ser um tesouro, e diz para si mesma: não são
ouro, mas valem também porque são belas.
K. acordou deste sonho com um sentimento misto de
tristeza e alívio, porque não foi .em vão a sua busca, mesmo
que o tesouro não fosse o esperado. Percebe, então, que sem-
pre espera o tesouro de ouro e não aceita quando encontra
outras coisas, não conseguindo dar valor a nada que não seja
aquilo que idealizou. Acha que colocou sua filha como subs-
tituto da mãe, vingando-se na menina de suas mágoas infan-
tis.· Disse, então, que pela primeira vez conseguiu se aproxi-
mar da filha com carinho, sem aquele gosto amargo de decep-
rrãu e rancor. Yoho a pensar que o caminho ua análise não
pode passar ao largo dos primeiros traumas infantis ligados à
perda da figura maten'la. De uma certa forma este trauma pas-
sa sempre por um desmentido, já que os adultos se esquecem

96
da dor que eles próprios experimentaram e negam à criança o
sentido para suas desilusões. K. está fazendo o percurso de
volta. podendo compartilhar com sua filha sua dor e talvez
ajudá-la, e a si própria, a encontrar o seu tesouro.

97
Referências

99
Todos os artigos têm como rerferência o texto:

FREUD, S. A Psicogênese de um caso de homossexualidade


numa mulher (1920)./n Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1975, v.
XVIII.

Seis cartas de Friedrich von Kleist para seu amigo Karl


SchiJler de RENATO MEZAN:

Os fatos da vida política e artística mencionados nas


cartas correspondem ao que efetivamente se passou em Viç-
na entre junho de 1919 e abril de 1920. As pessoas públicas
mencionadas também existiram efetivamente e ocuparam as
funções referidas. Para a documentação, consultaram-se as
seguintes obras;

BAPTISTA FILHO , Z A ópera. Rio de Janeiro : Nova


Fronteira, 1987, verbete O anel dos Nibelungos, p. 616-
640.
Benét 's Reader's Encyclopaedia. New York: Harper and
Row, 19S7, verbete Kriem!Jild.

BOURGET, E. e L J. Lubitsch oulasatire romanesque. Paris:


Stock , 1987 (coll. Champs Contre-Champs), espe-
cialmente p. 14-34.
COCHE DE LA FERTÉ. E. Hugo von Hoffmannsthal . Paris:
Seghers, 1973 (coll. Monographies), especialmente p. 55
e seg.
FREUD, S.Über die Psychogenese eines Falies von weiblicher
H omosexualitiit.

101
Edição da Studienausgabe, Frankfurt am Main, v. VII,
p. 255-281. A nota introduté>ri a de J. Strachey esclarece que o
texto foi redigido em dcztrnbrl>de 1919 c janeiro de 1920, e
publicado na lnternationale Zeitschrift for Psychoanalyse em
março de I920, pennitindo assim reconstituir a cronologia
dos eventos.

_ __ . Sobre Ja.psicognénesis de un caso de homosexualidad


femenina. Tradução de Lopez Ballesteros. Madrid: Biblioteca
Nueva, v. 111, p. 2545-2561. Dois erros de tradução podem
aqui induzir em e ngano o )eitor incauto: à p. 2549, Ballesteros
diz que a dama não dava atenção à paciente ''hasta después
de su tentati va de suicídio " (cf. Fre ud , "b i.r zum
Selbstmordversuch " , até a tentativa de s uicídio,
Studienausgabe VH, p. 263 ); e à p. 2550, lemos que a paciente
tem um irmão "un poco menor que ella" (cf. Freud, "den
wenig iilteren Bruder", um irmão um pouco mais velho,
Studienausgabe VII, p. 265)

JONES, E . A vida e a obra de Sigrmmd Freud. Rio de J aoeiro:


lmago, 1989, v.U,p. 281-284(refere-seaotextodeFreud,
dando data de composição e tecendo outros comentários).
e v. Jll, p. 38 seg., sobre o episódio envolvendo Wagner-
Jauregg e o tratamento dos neuróticos de guerra.
KRACÀUER , S . De Calligari a H itl er: une hi s toire
psychologique du cinéma allemand. Lausanne: L' Age
d' Homme, 1977, especia)mente cap. 4, p. 45-63.
KREISSLER, F.Histoire de l 'Autriche. Paris: PUF. 1977 (coll.
Que sa.is-je?), especialmente p. 8 1-92.
Vienne de A à Z: une ville se présente. Viena, Wiener
Fremdverkehrsverband (Comissão de Turismo da Cidade de
Viena), 1986.
WEILLET, J. Art and politics - Weimar Period (The New
Sobriety, 1917- 1933). NewYork: Pantheon Books, 1978,
espec ialmente o capítulo " Revolution and t he arts :
Germany, 1918-1920".

102
"Anotações sóbre a análise de uma mulher" de ELIANA
SCHUELER REIS .

FERENCZI, S. "Masculino e feminino" (1929). In Psicaná-


lise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1922, p. 37-46.

_ _. "A criança mal- acolhida e sua pulsão de morte" ( 1929).


In Psicanálise IV. São Paulo: Marti ns Fontes, 1992, p.47-52.
_ _ . Diário clínico ( 1932). São Paulo: Martins Fontes,
1990.

103
Sobre os autores

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Ângela Maria de Araújo Porto Furtado, psicóloga,
psicanalista. Membro do Instituto de Estudos Psicanalíticos-
IEPSI. Tem vários artigos publicados nas revistas Grfphos e
Estudos de Psicanálise.

Eliana Schueler Reis, psicanalista, mestre em Teoria


Psicanalítica pela UFRJ, tendo defendido, em 1992, a disser-
tação " Trauma e Repetição no Processo Psicanalítico- Uma
Abordagem Ferencziana". Professora e supervisara de clí-
nica da Livre Associação Psicanalítica RJ - Clínica Escola.
Membro do Instituto Sandor Ferenczi do Brasil.

José Domingues de Oliveira, psiquiatra, psicanalista.


Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG e
seu atual presidente (gestão 95/97). Tem vários artigos publi-
cados na revista Reverso.

Mareio Peter de Souza Leite,-psiquiatra, psicanalista.


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise. Autor de O deus
odioso, o diabo amoroso (Escuta); A negação da falta
(Relume-Dumará).

Maria Rita Kehl, psicóloga, psicanalista, ensaísta. Au-


tora de Processos primários- poesia (Estação Liberdade) e A
mínima diferença- ensaio (Imago), inéditos.

Oscar Cesarotto, psicanalista. Membro da Escola Bra-

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síleira de Psicanálise. Autor de No olho do Outro; Um affair
freudiano; Jacques Lacem · uma biografia intelectual (com
M. P. de Souza Leite); Idéias de Lacan (organizador), todos
da Iluminuras.

Renato Mezan, psicanalista, professor titular no Curso


de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC/SP. Mem-
bro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes
Sapientiae, onde coordena a Revista Percurso. Autor de di-
versos livros, entre os quais Freud, pensador da cultura
(Brasiliense); Psicanálise, judaísmo: ressonâncias (Imago);
A vingança da esfinge (Brasiliense); Freud- a trama dos
conceitos (Perspectiva); e Figuras da teoria psicanalitica
(Edusp/Escuta).

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