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ANAIS ELETRÔNICOS III ENILL

Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura. 1


29 a 31 de agosto de 2012, Itabaiana/SE: Vol.03, ISSN: 2237-9908

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA:


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Francieli Motta da Silva Barbosa Nogueira


(Mestranda em Língua e Cultura – UFBA/CAPES)

INTRODUÇÃO

A variação linguística é um fenômeno natural; a língua portuguesa, como


todas as línguas, apresenta inúmeras variações e passa por mudanças no tempo –
historicamente – e no espaço – geograficamente. Entretanto, tal fato não é
compreendido pela grande maioria da população brasileira, que ainda acredita que a
língua é um objeto homogêneo, uniforme. Essa ideia de uniformidade vem sendo
propagada há muito tempo por professores que pautam o ensino da língua apenas nas
gramáticas normativas, ignorando a diversidade linguística no meio escolar, talvez por
falta de preparo para lidar com as variações linguísticas.
As novas propostas de educação em língua materna têm adotado como
objeto e como objetivo justamente a questão da variação linguística. Os PCN, por
exemplo, apresentam como objetivos do ensino de língua portuguesa o domínio da
língua em seus diversos contextos. Todavia, não apenas na escola, mas na sociedade de
forma geral, o tratamento dado a esse tema muito tem deixado a desejar, pois lhes
faltam reflexões com embasamento teórico, pautado na Sociolinguística.
A Sociolinguística, subárea da Linguística, lida com o fenômeno da variação
linguística e suas consequências sociais, culturais, políticas e pedagógicas. Para a
Sociolinguística a língua existe enquanto interação social, criando-se e transformando-
se em função do contexto sócio histórico. A língua é, portanto, “uma atividade social,
um trabalho coletivo, empreendido por todos os seus falantes, cada vez que eles se
põem a interagir por meio da fala ou da escrita” (BAGNO, 2010, p. 36). Sendo assim,
não há que se falar em equivalência entre língua e gramática. Um dos maiores
equívocos no ensino de língua materna consiste exatamente em se acreditar e propagar
que “o conhecimento da gramática é suficiente para se conseguir ler e escrever com
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sucesso os mais diferentes gêneros de texto, conforme as exigências da escrita formal


e socialmente privilegiada” (ANTUNES, 2009, p. 53).
Neste texto, objetivamos tecer algumas considerações acerca do papel do
professor enquanto professor de língua na contemporaneidade, uma vez que
entendemos que o ensino desta deve ser pautado em um ensino crítico-reflexivo, de
modo a garantir uma educação linguística para além da gramática. Buscamos
apresentar também as contribuições que a teoria da variação – Sociolinguística – traz
para o ensino de língua materna. Em tempos em que tanto se fala e se discute acerca
da inclusão social, o professor deve valer-se das contribuições dessa teoria a fim de
formar cidadãos críticos e conscientes combatendo, sobretudo, o preconceito
linguístico.

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA: ASPECTOS TEÓRICOS

A Sociolinguística – também chamada de teoria da variação – surgiu no


final da década de 1960 rompendo com os modelos teóricos que entendiam a língua
como um sistema homogêneo, invariável. Essa teoria firmou seu lugar ao provar que a
variação é inerente ao sistema linguístico. Propôs então a heterogeneidade linguística,
postulando que não há como estudar a língua sem estudar, ao mesmo tempo, a
sociedade em que esta é falada, evidenciando dessa forma a inter-relação entre língua
e sociedade. Segundo Mattos e Silva (2004, p. 299):

O grande avanço da sociolinguística se funda basicamente na sua


conceituação de língua como sistema intrinsecamente heterogêneo, em que se
entrecruzam e são correlacionáveis fatores intra e extralinguísticos, ou seja,
fatores estruturais e fatores sociais (como classe, sexo, idade, etnia,
escolaridade, estilo).

A grande mudança introduzida pela Sociolinguística segundo Bagno (2010,


p. 39) foi a concepção de língua “como um ‘substantivo coletivo’: debaixo do guarda-
chuva chamado LÍNGUA, no singular, se abrigam diversos conjuntos de realizações
possíveis dos recursos expressivos que estão à disposição dos falantes”. Esses
conjuntos de realizações possíveis correspondem justamente às variações linguísticas.
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Uma variedade linguística é, portanto, uma das muitas formas de falar uma língua e
essas formas se correlacionam com fatores sociais como idade, sexo, grau de instrução,
lugar de origem, dentre outros.
Outra questão fundamental postulada pela teoria da variação é que a
variação linguística não ocorre de forma aleatória, mas de forma ordenada. Se um
falante quisesse, por exemplo, perguntar ao seu interlocutor: Você sabe onde fica a
prefeitura? teria como opções de escolha para se dirigir ao interlocutor os pronomes
tu, senhor(a), e a forma reduzida de você: cê . Podemos perceber então que há certa
regularidade entre as formas, segundo uma lógica linguística. Se fizéssemos uma
correlação entre os fatores extralinguísticos – sociais, poderíamos dizer ainda que a
forma a ser utilizada poderia variar de acordo com o grau de intimidade entre eles, de
acordo com o gênero e com idade do interlocutor, por exemplo.
Em textos especializados, a variação linguística é classificada da seguinte
forma: variação diatópica – ou variação regional, verificada através da comparação
entre os modos de falar de lugares diferentes, variação diastrática – a que se verifica
através da comparação entre os modos de falar de diferentes classes sociais, variação
diafásica – a que se verifica entre os modos de falar de um indivíduo de acordo com o
grau de monitoramento mediante a interação verbal, variação diagenérica – a que se
verifica entre os gêneros diferentes, variação diacrônica – a que se investiga ao se
comparar uma língua em diferentes etapas da história. Através do entrecruzamento
desses diversos fatores sociais, podemos compreender o que afirma Callou & Leite
(2003, p. 07):

“a fala tem um caráter emblemático, que indica se o falante é brasileiro ou


português, francês ou italiano, alemão ou holandês, americano ou inglês, e,
mais ainda, sendo brasileiro, se é nordestino, sulista ou carioca. Dizem ainda
que a linguagem oferece pistas que permitem dizer se o locutor é homem ou
mulher, se é jovem ou idoso, se tem curso primário, universitário ou se é
iletrado.”

Importante destacar também que além de ser condicionada pelos fatores de


ordem social apontados acima, a variação linguística recobre todos os níveis da língua
(fonético-fonológico, morfológico, sintático, semântico, lexical, estilístico-pragmático).
Não iremos exemplificar cada um deles, mas entendemos que uma das formas de
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variação mais conhecida pelos alunos se insere no nível fonético-fonológico, estando


diretamente ligada também à variação diatópica/regional – o sotaque.
As pesquisas sociolinguísticas atestam ainda que existem variedades
prestigiadas – as utilizadas pelas camadas privilegiadas da população, em oposição às
variedades estigmatizadas – utilizadas geralmente por falantes com pouca ou
nenhuma instrução formal. A Sociolinguística nos diz que onde houver variação
(linguística) sempre haverá avaliação (social), ou seja, as formas linguísticas utilizadas
serão sempre julgadas e analisadas não pelas características propriamente linguísticas,
mas conforme os juízos de valores sociais conferidos a quem as utiliza. O que para a
Teoria da Variação representa simplesmente “diferença” no uso da língua.
Diante de tantas variedades, há que se refletir também acerca da noção de
erro. Em se tratando de língua, o que seria de fato considerado erro? Ainda hoje
subsiste uma noção bastante equivocada acerca desse assunto, fundada em outro
equívoco: o de confundir a língua, com escrita, com a ortografia. Segundo Cegalla
(2008, p. 52) ortografia “é a parte da gramática que trata do emprego correto das letras
e dos sinais gráficos na língua escrita”. Embora corresponda apenas à língua escrita, há
uma tendência no ensino de língua de querer obrigar o aluno a falar do jeito que
escreve. Ora, a língua falada é a língua aprendida pelo falante em seu convívio com a
família e com a comunidade, onde ocorrem as mudanças e as variações que vão
transformando a língua, não há como equivaler à escrita.
Sendo assim, o que muitos costumam chamar de “erro de português” é, na
verdade, apenas desvio da ortografia oficial. Bagno (2011, p. 147) defende que
“ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna”, segundo ele, “só se erra
naquilo que é aprendido, naquilo que constitui um saber secundário, aprendido por
meio de treinamento, prática e memorização”. Para ele, a língua materna não está
incluída nesses saberes, pois a criança a adquire desde cedo, chegando a dominar a
gramática da língua entre os 4 e 5 anos de idade. Bagno chega a afirmar que existem
“erros de português”, mas explica que nenhum falante nativo da língua os comete.
Caso um falante utilizasse, por exemplo, a construção A fica você onde
sabe prefeitura?, poderíamos dizer que, neste exemplo, ele estaria cometendo um erro
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e, mais precisamente, morfossintático, pois, na construção, há irregularidade, equívoco


não previsto no sistema da língua. Seria até possível encontrar essa construção na fala,
mas certamente na de um estrangeiro que está iniciando os estudos de língua
portuguesa. Todavia, configura uma construção agramatical, ou seja, não respeita as
regras de funcionamento de nossa língua.

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E ENSINO

"Nenhuma língua permanece a mesma em todo o seu domínio e, ainda num


só local, apresenta um sem-número de diferenciações. (...) Mas essas
variedades de ordem geográfica, de ordem social e até individual, pois cada
um procura utilizar o sistema idiomático da forma que melhor lhe exprime o
gosto e o pensamento, não prejudicam a unidade superior da língua, nem a
consciência que têm os que a falam diversamente de se servirem de um
mesmo instrumento de comunicação, de manifestação e de emoção."
(CUNHA, 1975, p. 38)

Embora a Sociolinguística tenha trazido noções fundamentais como o de


língua como um sistema heterogêneo, ainda não há uma prática eficaz no sentido de
romper com a tradição gramatical que embala as práticas pedagógicas. O que
percebemos ainda hoje é que “a escola é norteada para ensinar a língua da cultura
dominante; tudo que se afasta desse código é defeituoso e deve ser eliminado”
(BORTONI-RICARDO, 2006, p. 14). Como também afirma Possenti (1998, p.17) “o
objetivo da escola é ensinar o português padrão”. O ensino continua voltado apenas
para o que é prescrito pelas gramáticas normativas, ao ensino da norma padrão.
Propagando, portanto, o mito de que é preciso saber gramática para falar e escrever
bem, como se a língua fosse equivalente à gramática.
A gramática normativa, apresenta a norma padrão, só que esse padrão
equivale ao modelo idealizado de língua “certa”, não corresponde ao uso real.
Defendemos que o professor de língua materna precisa estar ciente disso e não ignorar
as diferenças linguísticas em detrimento desse padrão normativo. É necessário que o
professor conscientize os alunos de que existem duas ou mais maneiras de dizer a
mesma coisa e que cada forma alternativa vai servir a propósitos distintos, sendo
também recebidos de forma diferenciada pela sociedade. Algumas formas vão
imprimir prestígio ao falante, garantindo maior credibilidade, enquanto outras vão
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contribuir para a formação de uma imagem negativa, privando o falante de


determinadas oportunidades.
Concordamos com Faraco (2004, p. 02) quando afirma que:

cabe ao ensino ampliar a mobilidade sociolingüística do falante (garantir-lhe


um trânsito amplo e autônomo pela heterogeneidade lingüística em que vive)
e não concentrar-se apenas no estudo de um objeto autônomo e despregado
das práticas socioverbais (o estrutural em si).

Ao eliminar a noção de erro, muitas pessoas poderiam pensar que em


termos de língua vale tudo. Acontece que, em termos de língua, como afirma Bagno
(2011, p.154), “tudo vale alguma coisa, mas esse valor vai depender de uma série de
fatores”. Tudo vai depender de “quem diz o quê, a quem, como, quando, onde, por que
e visando que efeito”. Em cada situação comunicativa o aluno precisa encontrar uma
forma que seja ao mesmo tempo mais adequada e aceitável, isso tanto na modalidade
oral como na escrita. Concordamos com Bagno (2011, p. 154) quando diz que nas duas
modalidades deve haver um equilíbrio entre os eixos de adequação e aceitação. Se o
aluno está em uma situação formal, precisa utilizar uma linguagem formal, seria
inaceitável, por exemplo, o uso de gírias em uma entrevista de emprego.
É inegável que o preconceito linguístico ainda exista e atue com muita força
na sociedade de forma geral, contudo, na sala de aula o professor, como formador de
opinião que é, pode trabalhar de modo a não alimentá-lo. Um passo importante a ser
tomado é o de refletir juntamente com os alunos acerca da variação linguística,
reflexão essa despojada de preconceitos. Para que o ensino mude, é preciso
compreender antes de qualquer coisa que a língua é um instrumento de comunicação
social diversificado em todos os seus aspectos, é o meio de expressão de indivíduos
que vivem em uma sociedade também diversificada social, cultural e geograficamente.
Conforme Bortoni-Ricardo (2006, p. 130) que faz-se necessário o
desenvolvimento de uma pedagogia sensível às diferenças sociolinguísticas e culturais
dos alunos e isto requer uma mudança de postura da escola – de professores e alunos
– e da sociedade em geral. O professor precisa valer-se dos fundamentos teóricos
claros propostos pela Sociolinguística para suas atuações práticas. Com esta atitude
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demonstra o compromisso com a formação plena do cidadão, contra toda forma de


exclusão social pela linguagem.
Sendo assim, o professor de língua materna na contemporaneidade precisa
romper definitivamente com os equívocos que recobrem a noção de erro,
conscientizar-se de que língua e gramática não são sinônimos e, sobretudo, combater o
preconceito linguístico ainda tão arraigado na sociedade. Não propomos aqui que não
é para ensinar gramática, e sim, que o ensino não deve se pautado apenas na
gramática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em tempos em que tanto se fala em inclusão social, entre tantas outras, está
mais do que na hora de os educadores repensarem suas práticas acerca do ensino de
língua materna. Cabe ao professor utilizar as bases teóricas da Sociolinguística para o
tratamento da questão da variação linguística com os alunos a fim de conscientizá-los
acerca dessa temática. É muito clara a noção de heterogeneidade linguística, mas ainda
há muito que se refletir acerca das atitudes que os falantes têm em relação às formas
variantes que não são imbuídas de prestígio social, pois quem as utiliza continua a
padecer estigmatização.
Acreditamos que o professor tem um papel fundamental na formação do
aluno, sendo capaz de fornecer subsídios para que este possa pesquisar e pensar
criticamente sobre sua própria língua. Fundamental quando tem o compromisso com
uma educação transformadora, quando compreende e faz compreender que não há
hierarquia entre os usos variados da língua, assim como não há uso linguisticamente
melhor que outro. Em uma mesma comunidade linguística coexistem usos diferentes,
não existindo um padrão de linguagem que possa ser considerado superior. O que deve
determinar a escolha de uma variedade em detrimento de outra é a situação concreta
de comunicação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras
no caminho. 4. ed. São Paulo: Parábola, 2009.

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação
linguística. São Paulo: Parábola, 2010.

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 54. ed. São Paulo:
Edições Loyola, 2011.

BAGNO, Marcos.(Org.). Linguística da norma. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora? 2. ed. São Paulo:
Parábola, 2006.

CALLOU, Dinah & LEITE, Yonne. Como falam os brasileiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2002.

CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 48ª ed.


São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008.

CUNHA, Celso. A política do idioma. São Paulo: Tempo Brasileiro, 1975.

FARACO, Carlos Alberto. Por uma pedagogia da variação linguística. Disponível em:
<http://variacaolinguistica.files.wordpress.com/2011/06/faraco-_por_uma_pedagogia
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MATTOS & SILVA, Rosa Virgínia. Variação, mudança e norma. In: BAGNO, Marcos
(Org.). Linguística da norma. 2. ed. São Paulo, Edições Loyola: 2004.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de
Letras: ABL, 1998.

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