Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Nascimento Do Outro - Lefort
Nascimento Do Outro - Lefort
facebook.com/lacanempdf
DUAS PSICANÁLISES
Nadia, 13 meses
Marie-Françoise, 30 meses
FATOR
Titulo do Original Francês
Naissance de l'Autre
Deux Psychana/yses
Nadia (13 mois)
ie-Françoise (30 mois)
l Ed. Seui/, 1980
Direitos Reseivados
à
1
EDITORA FATOR LIVRARIA
Rua Medeiros Neto, 25 - Brotas
Salvador - 40.000 - Bahia
Te!.: (071) 244-<i824
. � '
.V
/
Lefort, Rosine,
L523 Nascimento do Outro: duas psicanálises/Rosine
Lefort e Robert Lefort; tradução de Angela Jesuíno.
- Salvador: Ed. Fator Livraria; 1984.
CDD: 616.8917
616.09
155.4
CDU: 615.851
Rosine Lefort
Os relatos das sessões, que estão neste livro de forma reduzida e marca-
dos por vinhetas quadradas, são aqueles que eu escrevi a cada noite após as
sessões, nos anos 1950-52.
Como, por um lado, acompanhei estes tratamentos antes de qualquer
formação teórica, quer psicológica quer analítica, e como por outro, escrevi
estes relatos antes de Lacan dispensar seu ensino nos seus seminários, os ter-
mos e as formulações que emprego sa:o aqueles que estavam então à minha
disposição e devem ter tomados como tal, nestas condições.
Rosine Le,fort
PREFACIO DA EDIÇÃO BRASILEIRA
Este livro é uma etapa em nosso trajeto em que toma forma a inelutável
referência aos dois pilares da transmissão da análise: à lingüística da qual La-
can fez materna e ao espaço, o espaço do corpo onde a anatomia não serve de
nada e do qual somente a topologia do universo tórico pode dar conta. Eis aí
a que nos empenhamos na escritura deste livro para fazer a leitura destas duas
análises de criança, onde a teoria inerente à prática de Rosine Lefort só encon-
trou seu alicerce nesta contribuição fundamental de Lacan, materna e topolo-
gia, matéria de um discurso, daquele que Lacan diz que prefere, "um discurso
sem palavras", lá onde o pré-verbal não é menos discurso.
8-15 outubro
tJ D Nádia chega à instituição com a idade de 13 meses e meio. Ela não co4
nheceu aliás outro gênero de estabelecimento já que foi separada de sua ma:el
tuberculosa desde seu nascimento. \
Como acontece freqüentemente, nestes casos, as repetidas afecções ri-\
nofaríngeas impedem toda alocaçã'o de aleitamento: Nádia vai das creches aos 1
hospitais e vice-versa. Pelo prontuário médico que a acompanha, sabemos que \
ela sofreu adenoidectomia com a idade de 2 meses. Estas afecções prossegui- f
ram, acompanhadas de otites e de diarréias, culminando em uma dupla mas-
toidite grave aos 5 meses, necessitando de antrotomia bilateral. Nádia perma-
neceu no hospital durante 3 meses, em razão de um abcesso sobre a cicatriz j
da antrotomia.
No momento de sua entrada na instituição Parent de Rosan, Q..Mpecto.
de_ Nádia .é .miserável e o agravamento de seu estado geral se acentua em pou-
cos dias, em razão de otorréia e de. diarréia permanentes.
Estou, nesta época, no serviço de Jenny Aubry encarregada da observa-
ção de oito a <ki ç_rianças dÊ--ugi a três anos. El.~ Joramreagrupadas, sua. ~ª-
chegada, num isolamento por um lapso de tein_po de quinze dias, visando a
prevenção de doenças contagiosas infantis., Nádia'ifaz parte deste grupo e, se
ela._ chall!a minha atençãQ, ela nã"o é de forma·áTguma, o seu único objeto no
meio das outras crianças. É preciso pois levar em conta nas notas que tomei a
seu respeito, no início estas çondições..da..relaç.ã'o_que_tenmHl9m-dá..: nada a
ver com uma psicoterapia individual ao menos num primeiro tempo.
·- Nádia é muito magra, de uma tez amarelada. Seu rosto é_ ~acilentq; o ·1\
que impressiona, &!2..~J!S grandes olhos negros.. com. olheiras~.no se:u rosto~
só .seu_<_?~har está vivo, e II1uitQ presente ao que se passa a seu redor.
O atraso na estatura e peso é importante: Nádia pesa apenas 8kg500, e
mede 71cm, isto é, acreditaríamos estar diante de uma criança de 8 meses.
QYillldo. a percebemos em seu quarto, impressiona sua imobilidade.~-
int~.ros. ela pe_rman,~ce _stlntada eII1 cima de .seu travesseiro, as duas mãos agar-
radas às bº!,'.das dqJeito._ Ela nã'o faz nenhum gesto para pegar um doce que
lhe é oferecido. Se é carregada e posta no chão, ela nã"o se move, seu olhar se
apaga e ela se balança violentamente. Sentada-no-meio..d~t@.Wll\PÇ~eh1·
·: ·--·: :-"'""'••·····•'!'
..:; .
:· J~\. t~ . •._:, , :.: 1,ç•,
8 Nadia ou o Espelho
tt!o faz também nenhum gesto para tentar pegar um brinquedo. Mas se uma
criança perto deta · o faz, ela grita e se joga violentamente para trás, depois
torna a sentar-se e retoma seu balanceio.
Esta reação ao aparecimento de uma outra criança no seu campo, agora
como depois, vai nos colocar sobre a via da natureza de sua relação com o pe· .
queno o~tro.
Sua preensão dos objetos é muito particular. Se ela aproxima a mllo,
magra de longos dedos que se movem como uma aranha, ela apenas roça os
objetos com a ponta dos dedos; se ela chega a agarrar o objeto, quase imedia·
tamente sua mllo se abre, como se um destravador automático desencadeasse
o gesto de largá-lo. Todos estes movimentos não se acompanham de nenhuma
manifestação de emoção.
Nádia nã'o tem contato espontaneo com o adulto. A equipe de pessoal
atribui este fato ao medo, mas isso não dá para vê.
A 12 de outubro quando volto para vê-la, ela está no leito de seu dormi-
tório. A possibilidade de um contato comigo se precisa: ela sorri e parece ra-
diante quando lhe falo. Ela vai sentar em cima de seu travesseiro, ainda mais
sorridente.
/ Eu lhe estendo um marinheiro (bonequinho) de borracha; ela o agarra,
segura-o com as duas mã'os, mas com movimentos desajeitados e com gestos
parasitas, segundo o tipo de preensão já descrito. Este marinheiro, ela nina,
\ abraça, lambe, joga fora, torna a pegar e me devolve, depois toma de volta.
Neste momento, a enfermeira começa a dar de comer aos outros._ C;t_da
~Lqy_ç___Ná<llª-ª-"-f ~ _<>c_up~r de outra cri311:ça, bate no marinheiro e o atira
longe, mas sem que U!"fl:a ~arga afetiva seja realmente perceptível.
Quando a enfermeira aproxima-se para alimentá-la, ela parece feliz, mas
fecha a boca com um movimento de recuo quando sente a colher em seus
lábios. Em seguida, ela se deixa alimentar passivamente. "É sempre assim, diz
a enfermeira, mas Nádia acaba comendo tudo".
O Pequeno outro 9
o
Na época, recém chegada ao serviço de Jenny Aubry, não estava em co-
~itação que "eu me autorizasse" a tomar o lugar de analista. Entretanto, o
10 'Nadia ou o Espelho
(1) - Séminafre, livre XI, Les q_uatre concepts Jondo'!'e.ntaux de laJ.sychanalyse -Ed.
du Seu1l, pg. 105 - 106. Pg. 112, da 11ersao bnu1le1ra, Zahar E •
O Pequeno outro 13
16 outubro - 7 novembro
n [1 Nos dias seguintes, sozinha diante de mim, ela está siderada, com um re-
traimento considerável. Seu odor mesmo evoca qualquer coisa da morte, devi-
do a otorréia e diarréia permanentes.
Ela é trazida, entretanto. ao jardim de infância. Ela está sentada no
chão como os outros, se balança com um aspecto doentio. Eu me aproximo
dela, mas ela parece ignorar minha presença. Seu olhar está apagado.
Sento-me atrás dela. Ela reage como de costume quando uma outra
criança quer pegar um cubo que coloquei perto dela: dá um grito choroso,
joga-se para trás contra as minhas pernas. vira-se para mim e me estende um
braço, um só. É sua primeira demanda verdadeira para mim, mas é preciso no-
tar que esta demanda foi desencadeada pela surpresa da agressão do outro.
Em 23 de outubro, cu me sento no chão perto dela. Ela não faz nada;
um cubo está perto dela. Seu olhar está apagado, ela tem um aspecto muito
ruim. Eu lhe sorrio mas não toco nela. Ela não responde e me olha sem que
nenhum sentimento se reflita cm seu rosto. Parece indiferente.
Urna outra criança aproxima-se de mim. Então, ela me estende os bra-
ços. de início com hesitação. depois deixa os braços estendidos; mas suas
mãos estão viradas para trás, palmas ao ar.
Eu a tomo cm meu colo. Ela me olha longamente. esboça um sorriso.
depois começa a explorar minha boca com um dedo. Ao cabo de um tempo.
ela sorri de verdade.
De novo, uma outra criança aproxima-se de mim e me toca. Ela se joga
para trás, manifestando uma grande repugnância pelo contato com esta crian-
ça. fica crispada , rosto fechado. Assim que a criança se afasta. ela se descon-
trai e retoma sorrindo a exploração de minha boca.
Mais tarde, na hora do jantar. ela está instalada numa cadeirinha. Balan-
ça-se violentamente segurando-se com as duas mãos na beira da mesa. Tennina
por se deixar escorregar para baixo da mesa, sem tocar o pedacinho de gru-
ycrc (*)que tem diante dela. C'omo cu me aproximei, ela não tirou os olhos de
mim.
( •) ()udjo dl' kitl' tk vaca fahril',1do l'nl Gruy~rc (Sui~·a) depois no Jura francês e em
Vosgcs. ( N. da T. l
O Grande Outro 15
No dia seguinte, 24 de outubro, quando ela pediu para vir para os meus
braços e explora minha boca, ela balbucia um pouco pela primeira vez. Eu lhe
estendo um cubo, que ela segura. Guarda-o, mas para largá-lo assim que uma
outra criança se agarra ao meu avental, com o mesmo movimento de recuo de
antes. Neste momento, ela é presa de um repetido piscar de olhos, como um
tique, que não terá conseqüências. Se eu anoto, é que constitui uma preciosa
indicação; a cada instante, na sua relação comigo ou com qualquer outro adul-
to, ela tem uma viva reação de violência contra si própria logo que aparece no
seu campo uma outra criança, que apanhe um objeto ou se aproxime de mim:
ela não pode suportar vê-la.
A partir de 25 de outubro, não a trazem mais para o jardim de infân-
cia, primeiro porque ela está doente e depois porque a coletividade só lhe traz
stress, como testemunha seu olhar mortiço e seu balanceio.
A 27 de outubro, a sessão se passa como todas as precedentes, no dor-
mitório onde existem oito leitos. Nádia sorri logo que eu entro, e me reconhe-
ce muito bem. Quando me vê pegar a cadeira para me sentar perto dela, ela ri
e balbucia. Ela vai se instalar confortavelmente em cima de seu travesseiro e,
após hesitações, inclina-se e mete seu dedo em minha boca.
Ela quer que eu a tome em meu colo. Mas de repente, seu rosto se fecha
e se contrai quando, sem pensar, eu coloco a mão na beira do leito do vizinho,
que está vazio, posto das outras crianças estão no jardim de infância. Eu ve-
rifico que se trata mesmo disso quando eu a vejo sorrir logo que eu retiro mi-
nha mão. Quando compreendo o que se passa e não coloco mais minha mão
na beira do leito do outro, Nádia se toma de novo muito ativa e me dá aten-
1rão.
Ela pega o lápis que sai do bolso de minha bata e joga-o no chão, viran-
do seu olhar na direção deste lápis para que eu o apanhe, e ri às gargalhadas;
mas ao mesmo tempo ela tem a diarréia. Uma enfermeira vem trocá-la; ela
chora procurando-me com o olhar. Ela pára assim que estou de novo junto de-
la e recomeça seu jogo com o lápis, rindo às gargalhadas.
No dia seguinte, 28 de outubro, seu contato comigo prossegue. Assim
que me ponho junto dela, ela se agita, mete seu dedo na minha boca, o suga e
o recoloca, depois ela passa para minhas mãos que ela roça com seus longos
dedos. Ela segura então um de meus dedos, sacode, e pára broscamente, como
se ela estivesse perturbada por não poder fazer com o dedo o que fez com o
Jdpis: separá-lo e jogá-Ío para que eu o apanhe. Ela não sabe mais em que pon-
to está. Ela faz movimentos que parecem pedir que eu a carregue, mas como
eu lhe estendo os braços, seu rosto se retrai, e ela se desvia colocando seus bra-
ços para trás. Eu cesso meu convite e ela pode voltar a explorar meu corpo
cm tomo de minha boca, me olhando longa e ansiosamente.
O médico que faz a visita chega e chama sua atenção. Muito rapidamen-
te ela se retrai, coloca seu polegar na boca e a outra mão contra sua face,
como se perdesse o contato éomigo na presença de um terceiro.
A l'? de novembro, ela está no seu leito, com febre; ela olha minhas
mãos mas não pode decidir-se a tocá-las. Em vez delas, pode-se dizer, ela pega
16 Nadia ou o Espelho
,,, mão com seus dentes, não consegue e, muito crispada, com um ar enjôado,
hute na boneca que ela toma a jogar no fundo do leito.
Depois ela quer voltar para meu colo e me bate na boca, esta boca à
qual ela retorna sempre e que é, nós o vimos tanto a minha como a sua.
Nos dias seguintes, ela prosseguiu na elaboração de sua relação comigo,
por intermédio de um pintinho de pelúcia, mas é semprepara interrogar su-
ressivamente, minha boca e a sua, encostando com força aí o objeto.
É preciso acreditar que este jogo faz do pintinho um objeto manejável:
11ao somente Nádia não o larga mais com seu destrave habitual de abertura da
111;10 e cumpre firmemente seu desejo de me fazer beijá-lo, como é ainda capaz
ti,· separar-se dele e de jogá-lo ativamente para que eu o apanhe. Presa a seu
1ogo, ela é mesmo capaz, quando eu apanho o brinquedo e tenho a cabeça bai-
\a, de tocar em llleus cabelos, de me colocar o dedo na orelha e em seguida,
de acariciar-me a face com sua mão, assaz longamente. Mas neste momento
"'ª se contraí e se toma ansiosa.
A 7 de novembro, num jogo com este mesmo pintinho, ela poderá tocar
11 ünhas mãos guiando o brinquedo até ela, e isto sem ansiedade: ela ri, alegre-
dedo só pode excitar sua boca se ele está no lugar do objeto que ela me to-
mou, que ela me fez perder: isto é, a outra criança ou meu lápis.
Na mesma sessão confirma-se que é o caráter separável do objeto que é
procurado enquanto tal, quando ela puxa um de meus dedos, o sacode, fica
desapontada de não poder fazer como com o meu lápis. É a mesma "separa-
hilidade" ( * ) que ela procura, a 19 de novembro, quando, explorando minha
hoca, ela puxa meus dentes, em vão. Então ela me bate na boca.
O objeto só é erótico ou auto-erótico se ele é separável, caduco; e isto
nos diferentes níveis pulsionais salvo nível escópico, onde o caráter sepa-
rável não aparece. Ser "separável de meu corpo", é o que é exigível para fazer
de um objeto um objeto de desejo: para causar o desejo.
Este não é o caso do alimento para Nádia. Ela mostra isso a 3 de novem-
bro, em sessão, quando recusa o mingau que uma enfermeira quer lhe dar: é o
que ela manifesta fechando obstinadamente a boca, mas sem deixar de me
olhar; ela só pode aceitar este objeto com o olhar ausente e os olhos baixo,
sem mais me olhar, e passivamente. Só retoma sua atividade após a partida da
enfermeira, quando tenta arrancar com seus dentes, uma mão da boneca;
ela representa sobre a boneca o que falta ao alimento para ser objeto de dese-
jo e de satisfação: ser um objeto separável do corpo do Outro. O objeto visado
não é o alimento, mas a mão que alimenta.
Sua relação comigo veio para o primeiro plano; eia gira em tomo de mi-
nha boca, como um lugar, uma hiância encontrada no meu corpo;mesmo se
Nádia tenta criar outras ela mesma, puxando meu dedo ou meus dentes. Mas
não é preciso que esta boca, esta hiância não seja preenchida; e quando, na
noite de 7 de novembro, eu como um pedaço de biscoito, que ela colocou na
minha boca, é ela que - no transitivismo em jogo entre ela e mim - vomita:
como se ela não pudesse tolerar que o mínimo objeto venha preencher este
vazio da minha boca. Este objeto que eu comi, é ainda a irrupção de um Real
entre ela e mim e que a leva ao ponto precedente, ao momento em que eu ti-
nha posto minha mãe.. sobre a beirada do leito do vizinho. Eu sou preenchida
aqui realmente, não pelo pequeno outro, mas pelo objeto em causa entre o
adulto e a criança na invidia. É como um efeito de desvelamento do objeto
em causa entre ela e mim. Se é ela que vomita, é que ela não pode me fazer
vomitar, evidentemente; mas o transitivismo diz bastante que a identificação
está operando entre se corpo e o meu, uma primeira forma de identificação
antes de toda pesquisa de objeto sobre o corpo do Outro. É a exigência do
furo sobre o corpo do Outro que surge e que, pelo transitivismo, Nádia resta-
belece.
Ela não vomita aliás sem que a perda de meu olhar, tomado então por
uma outra criança, demonstre o nexo estreito entre o olho e a boca. Mas esta
ligação não pode ainda se fazer para ela, ou só se faz numa relação de exlu-
são: ou ehi. me olha e não pode absorver o alimento, ou ela só absorve este,
retirando seu olhar de mim e do mundo exterior. Não há ainda para ela intri-
cação - talvez haja desintrincação? - entre pulsão escópica e pulsão oral.
O objeto pulsiona1 não é revelado no olhar. O alimento o revela mas in-
terdita o olhar, quando Nádia come o mingau; e quando ela me alimenta com
um pedaço de biscoito, meu olhar que se retira revela este objeto pulsional no
alimento e interdita o oral.
Um duplo mandamento surge aí: "Tu não verás o "a" e tampouco o
consumirás". Poder-se-ia acrescentar: "Tu comerás o alimento, sem saber que,
em teu olhar, trazes o "a", causa de teu desejo".
CAPITUW III
A PULSÃO ESCôPICA
"Mostrar-se"
9, 10 e 12 novembro
D
A Pulsão Escópica 23
introduz em seu jogo, será sempre a eles que ela será rcrn111h11.ida. l\1as eles
são significantes também, na medida em que a impossihilidad1· dl' aka1urá-los
afeta-os com uma barra, o que os faz passar do estatuto do l{1•al ao l'statuto
de significante: "A barra é um dos meios mais seguros e 111ais c111 tos dl' eleva-
ção do Real à dignidade de significante" ( 1 ).
Não podendo anda ter acesso a estes objetos separ:ívds s11hw 111cu cor-
po, Nádia volta ao objeto precedente, "boneca-pequeno outro" qtll' ela me
estende e toma para lamber, depois jogar, antes de retomar mais 11111a vez seu
lugar sobre meu colo, isto é, sempre o lugar da criança sobre o colo do adulto,
onde os dois corpos estilo ligados. Mas um novo elemento aparece a propósito
da boneca: ela a lambeu após ter-me feito beijá-Ia, isto é, fez dela um objeto
oral.
A partir de então ela torna-se ativa: tenta saltar sobre meu colo eu a
faço saltar e ela ri às gargalhadas. Veremos depois toda a import:incia do
domínio motor. A motricidade ativa se associa já aqui à busca do ohjeto em
meu corpo, que Nádia persegue, apoiando repetidamente e mais demorada-
mente a cada vez, sua cabeça em meu peito.
Ela insiste muito sobre o fato de que eu devo fazê-la saltar. Mas ela vigia
a posição de minhas mãos, que não devem tocá-la, assim como ela 11:ro deve
tocar-me quando eu a reconduzo ao quarto ( ela conserva as palmas para o ar,
reviradas): não é como uma denegação disto que ela procura pegar em meu
corpo e que eu não devo saber'!
É na sessão de 10 de novembro que Nádia conclui, diante de outra
criança, a passagem da inviclia à pulsão escópica propriamente dita. Esta ou-
tra criança entre fortuitamente na sala onde estou com ela; Nádia, sohre meu
colo, se interessa imediatamente: mas na condição que eu a faça saltar. Então,
saltando, ela olha a outra pode tocá-la acariciá-la. dirigindo seu olhar para
mim a cada um de seus gestos. Ela faz ao mesmo tempo, com seus lábios.
um barulho de beijo.
O outro cessa de ser então um puro objeto escópico, objeto de invidia
sobre o colo do adulto. Ele é agora não somente objeto para tocar e manipu-
lar sob meu olhar, mas ainda objeto ligado à excitação oral, como testemu-
nha o barulho do beijo. Enfim, a ligação com a atividade muscular é evidente
já que Nádia durante toda a cena, se atém a fazer-se saltar sobre meu colo. Do
puro escópico à intricação das pulsões tal como ela aparece aqui, o caminho
passou, como vimos, pela boneca e o , pequeno outro. f todo o quadro da
invidía que Nadia retomou ativamente.
O caráter ativo das pulsões, à medida que se manifestan1 cm Na<lia, se
opõem assim ao caráter passivo em causa no escópico, enquanto fascinação
do "ver", gerador da invidia e da catatonia. De uma situação onde Nádia es-
tava sozinha e passiva diante de sua visão, ela passa a uma atividade que con-
cerne não somente o objeto mas o Outro que eu sou. É como se ela dissesse
à outra criança: "olha para mim quando me fâzem saltar ( dar a ver), como eu
estou feliz no colo do Outro (ver-se), então eu posso te olhar (ver)".
É um artifício dizer que ela diz isso a outra criança, pois seu discurso se
dirige evidentemente a mim: o outro tornou-se o suporte de seu discurso ao
Outro. Tal é a diferença fund~ental da inviqia e da pulsão: o objeto não é
mais um elemento de fascinação, mas um elemento de discurso que implica
necessariamente o Outro, enquanto lugar de referência, mesmo de inscrição,
isto é de significância.
Uma outra diferença é a colocação em jogo de novas· pulsões. Testemu-
nha o barulho de beijar que ela faz com sua boca olhando o outro, mas o
circuito pulsional oral não comporta aqui ainda os seus três tempos. O baru-
lho de beijar ela·o dirige à outra criança ou a si mesmo, visto que ela não beija
o outro realmente? Estes dois tempos, beijar e beijar-se, estão juntos implica-
dos no barulho de beijar; mas o que Nádia não pode suportar, é ser beijada
por mim: ela toma-se desde então agitada e ansiosa.
Ela acaba de mostrar a mesma reticência quanto ao tocar. Embora tocar
o outro e tocar-se estejam combinados nas carícias que ela faz à outras crian-
ças sob meu olhar, ela vigia como vimos, para que minhas mãos não a toque.
Ser beijada, ser tocada, implicam o Outro. Ela acaba de aceitá-lo plena-
mente no "ser visto", ela não pode ainda fazê-los nos outros níveis, e eis por-
que, quando eu parto, ela se balança: ela me perde realmente pelo fato de não
poder ainda me aceitar enquanto Outro em seus "circuitos" - pulsionais.
Que ela não tenha podido me aceitar deve ser aproximado da dialética escó-
pica da invidia que ela até aqui conheceu,isto é,a de um puro olhar sem retor-
no, sem a possibilidade de ser olhada.
Na presença da outra criança, ela aceitou ser vista porque eu não me
ocupei desta, mas somente de si mesma sobre meusjoeipos.
Ela não parou de olhá-la, e mais ainda de me olhar: ela olhou-a a partir
tio "ver~se sendo vista" no meu olhar.
Não é o caso do tocar, pois ela não lhe pode achar a parte ativa visto
que ela não pode alcançar o objeto do qual sou portadora; e também não é
o caso do oral, já que, pela mesma razão, ela.não pode consumir o objeto do
Outro. Também ela não pode suportar ser beijada - comida antes dela mesma
comer. O que falta aí, é a parte ativa da pulsão: que ela é levada a estabelecer,
a 12 de novembro pela manhã, reclamando seu desjejum na mamadeira. Que
ela a reclame fora da sessão não é sem relaç!lo, de um lado, com o impossível
objeto do corpo do qual sou portadora e, de outro lado, com a ausência da
mamadeira na sessão. Eis porque vou introduzí-la, desde o dia seguinte no
material de sessão, como objeto dialético na relação de Nádia comigo.
Que ela tenha podido, ativamente consumir este objeto lhe faz dar um
passo decisivo no circuito pulsional já que, desde 12 de novembro, após ter
tomado a mamadeira, é ela que pede que eu a beije, enquanto a faço saltar
sobre meu colo. Nesta mesma sessão, ela faz circular os objetos - brinquedos
e biscoitos - de seu lugar - o leite que ela deixou para vir ao meu colo - para
meu lugar: a cadeira que eu deixei. Para Nádia na sua relação comigo, não é
26 Nadia ou o Espelho
dos objetos enquanto tal que se trata, mas de sua dimcnsào sig11itka11lc, sim-
bólica. Ela acha-se tão bem liberada da cadeia real que era o ll'ito para ela, que
eu mesma perco, no lugar do Outro onde eu estou, uma prcscn~a 11111ito real.
A sessão culmina então numa cena onde Nádia, feliz por l'~1ar sentada
no chã'o, está radiante e chega ao gozo de fazer-se ver: batcmlo os pi;s, t!ngati- ·
nhando, muito em contato comigo. Ela passou agora defi11itiva1111·11 l1· da rela-
ção do outro ao Outro;e - isto vale ser observado -adquiriuaí1111111a1dsismo.
Sua atividade, a mobilidade de seu jogo dizem suficicnk da rlarcira que
ela acaba de abrir em direção a uma outra ordem que nã'o a do R,·al. Tudo se
ordena aqui, numa sucessão em função do espaço, a um nível simhúlico de
presença e de ausência, com a ajuda de objetos (os brinquedos) a1111lados no
que eles são e, enquanto tais, promovidos à função de significanll's: é hem de
um dizer que se trata.
No. curso destas três sessões, deve-se notar que minhas intcrVl'11,·1íes fo.
ram muito ativas, em oposição a uma posição de espectador. Para 11·s11111ir esta
ação, posso dizer que eu a sigo de perto ou a precedo de pouco. q11a11do nino
a boneca que ela me estende ou que ela coloca sobre meu colo, q11a11d11 como·
um pedaço do biscoito que ela colocou na minha boca, apesar da l' xpc riência
precedente que a fez vomitar. O importante é que por meus aios, pnmane-
cendo atenta a suas reações, eu não seja passiva, pois é bem cviilc111!• que mi-
nha passividade, tanto quanto uma atividade muito grande, iria rontr a a sua
busca ao nível pulsional; nível onde os fins - e não o impulso cst :111 longe
de ser unívocos, ativos ou passivos.
Senti que a mobilidade de minha atitude podia responder à sua própria
mobilidade quando, a 12 de novembro por exemplo, eu acreditei dcvi·r deixar
minha cadeira para ir sentar-me ao chão ao lado dela.
É hem evidente que não fico passiva nem tampouco silenciosa. sem en·-
tretanto interpretar seu comportamento; e veremos a import:i11da deste
"ouvir" minha voz para Nádia.
CAPITULO IV
A PRIMEIRA IDENTIFICAÇÃO
A relação transitivista ao Outro
13 novembro - 8 dezembro
que lhe proporciona alegria; com ele, ela afasta violentamente o carro e a bo-
neca em relaçã'o à qual parece ter grande animosidade.
Ela olha freqüentemente para a mamadeira mas n[o a quer. Ela quer vir
para meu colo, mas nele fica tensa e inquieta; ela sorri brevemente quando se
faz beijar. Ela quer que eu a faça saltar sobre meu colo mas contrai-se depressa.
Eu a reconduzo então a seu quarto e permaneço cinco minutos junto
de seu leito: ela parece encontrar um pouco de apaziguamento em minha pre-
sença. Ela isola-se comigo, balbucia e chilreia.
A 16 de novembro, eu a encontro no chã'o com as outras crianças, um
· brinquedo na mlfo. Assim que me vê, sorri, radiante, e pela primeira vez, tenta
arrastar-se em minha direção; mas desloca-se pouco. Estende-me os braços,
as mãos viradas para mim; eu a carrego, a cabeça encostada em minha face.
Desde o início da sessã'o, eu a sinto ansiosa; entretanto ela me demanda
diferentes contatos: vir para meu colo e pela primeira vez, que eu a tome em
meus braços; ela encosta sua cabeça em minha face, uma mão sobre meu om- .
bro e um braço em tomo de meu pescoço. Ela olha-me sorrindo, se faz beijar
e dá pancadinhas em meu ombro.
Sua fisionomia crispa-se, ela quer voltar para meu colo; os braços no ar,
palmas reviradas, ela vigia a posição de minhas mãos, batendo com um brin-
quedo naquela que está muito perto; eu retiro minha mão, ela olha-me então
e sorri.
Sua ansiedade, sempre subjacente assoma de vez cm quando. Ela a ex-
prime um pouco diferentemente desta vez: ela olha para todo lugar na sala,
atrás dela também, voltando em intervalos a meu rosto. Então eu a recondu-
zo, recoloco-a no chã'o, onde quase imediatamente ela se interessa pelas outras ·
crianças.
A propósito de sua ansiedade, a sessão de hoje me fez pensar que ela se
manifesta por duas atitudes diferentes, segundo seja de origem interna ou cau-
sada por mim mais diretamente. No primeiro caso, Nádia me olha intensamen-
te, o rosto crispado; no segundo caso, ela foge de meu olhar, pousando o seu
sem descanso sobre pontos diferentes da sala, o corpo rígido e o rosto inex-
pressivo.
Eu estive infelizmente ausente durante dez dias. A 27 de novembro, Ná-
dia reconhece-me. Está com péssimo aspecto; fico sabendo que ela sofreu
mas uma paracêntese durante minha ausência. Encontro-a muito menos sorri-
dente e a posição - tic de seus braços voltou com mais força. Ela inclina-se
para mim quando quero carregá-la, mas com braços e palmas para trás.
· A tonalidade da sessão é triste e inquieta; Nádia não demanda nada. Ela
pega o pintinho e refaz longamente seu jogo, isto· é, o vai-e-vem en trc sua boca
e a minha. Em seguida ela nota a mamadeira; cada vez mais freqüentemente,
seu olhar dirige-se para ela, e Nádia estende seus braços na sua direção. Eu
aproximo a mamadeira, mas ela vira-se e começa a sugar o pintinho olhando
para mim. Eu seguro a mamadeira perto dela mas ela vira-se de novo e suga
A Primeira Identificação 29
mais ativamente o pintinho olhando-me. Eu sento então Nádia sobre meu co-
lo, seguro a mamadeira! Ela hesita longamente antes de aproximar sua boca,
com um vai-e-vem da mão e ruídos de sucção. Ela coloca o bico na boca e o
repele com a língua olhando-me ansiosamente. Eu beijo-a cantarolando, ela
toma a mamadeira gulosamente. Ela repousa em seguida sua cabeça em mim
olhando-me bastante inquieta; olhando também ansiosamente a mamadeira
vazia.
Quando eu a devolvo a seu leito, ela quer que eu a tome novamente em
meus braços por um momento. Ao longo desta sessão, ela só se relaxa toman-
do a mamadeira ainda que seus braços estejam contraídos e virados para trás.
A 28 de novembro, quando eu venho buscá-la, Nádia acaba de sotrer
uma paracentese bilateral. A cabeça está enfaixada, seu rosto está contraído.
Sorriso relâmpado ao me ver; em seguida o rosto contrai-se novamente. Quan-
do me aproximo de seu leito, ela levanta os braços, mas suas palmas estão re-
viradas; e, quando eu estendo-lhe os braços para carregá-la, ela não inclina
seu corpo para mim, como fazia antes de minha ausência.
Carrego-a. Sentada no chão, como de hábito, ela está tão contraída,
tensa, os braços sempre no ar, imóvel, olhando-me fixamente, que a coloco
no meu colo. Seu olhar torna-se então menos tenso, mas ela retoma rapida-
mente sua expressão inicial e seus braços ficam no ar. Como ela parece sofrer
fisicamente, eu a nino docemente cantarolando e falando-lhe de sua dor. Pou-
co a pouco ela se descontrai, apoia sua cabeça em mim, abaixa os braços, mas
suas mãos e seu corpo permanecem contraídos. Durante um breve momento,
seu corpo abandona-se; Nádia quase deita-se ~m meus braços e olha-me com
intensidade, fazendo ruídos de sucção. Várias vezes ela aproxima sua mll'o de
meu rosto. Mas só depois de algumas tentativas ela coloca sua mão contra
minha boca, sem me olhar. Eu beijo sua mão; ela não a retira. Ela puxa meu
nariz e meus óculos, termina por reeguer-se. Ela remexe então longamente o
botão de minha blusa branca e sorri francamente.
Ponho o pintinho perto dela; ela ri, segura-o, diverte-se em jogá-lo e
apanhá-lo estirando-se muito longe. Ela ri às gargalhadas cada vez mais; entre
cada repetição do jogo, ela me olha, mais descontraída a cada vez; e mesmo
calorosamente.
Quando eu a devolvo, ela mantém os braços para trás, mas seu rosto e
seus olhos me sorriem. Recolocada no leito, ela não pede que eu pegue;
olha-me ansiosamente, em seguida descontrai-se. Ela não retoma sua expres-
sãq inicial; ela me sorri.
A 30 de novembro, Nádia, bem sentada em seu travesseiro, me sorri
quando entro no quarto. Fico surpreendida com seu aspecto tão ruim e com
suas olheiras; no entanto seus ouvidos não escorrem mais. Quando estou a
ponto de carregá-la, ela torna-se séria e, não faz nenhum gesto em minha di-
reção; se ela dá um gritinho de alegria, assim que ela está em meus braços, os
seus ficam no ar.
Como de costume, eu a ponho sentada. Ela fica estática, até que eu es-
teja sentada; olha-me com um olhar lastimoso e começa a sugar meu polegar.
30 Nadia ou o Espelho
Durante wn quarto de hora ela fica inquieta, tensa, apavorada. Seu olhar aflo-
ra de vez em quando os brinquedos sem mudar de expressão; cada ruído lá
fora lhe mete medo. Nenhwn sorriso, nenhum som de voz, nem mesmo wna
descontração passageira no olhar. Decido então, reconduzí-la a seu leito e fi-
car perto dela. Mas apenas a tomo em meus braços, sua atitude muda: ela agar-
ra-se a mim e me sorri um pouco. Quando chego diante da porta de seu quar-
to, ela vira-se violentamente e agarra-se ainda mais em minha blusa. Eu a re-
conduzo então à sala de sessão; lá, ela deixa seus braços repousarem em meu
ombro balbuciando um pouco.
Ela olha muito os brinquedos habituais; Torno a sentar-me no chão
conservando-a por isso, no meu colo. Ela ri de contentamento e seu rosto des-
contraí-se realmente. Ela brinca um pouco com o botão de minha hlusa, em
seguida se abaixa para pegar o pintinho. Ela brinca de jogá-lo, apanhá-lo, rin-
do e olhando para mim: ela o suga cada vez mais longamente,jogando olhares
furtivos sobre a mamadeira que aproximo dela; ela abandona o pintinho, ri,
abre a boca e começa a beber apoiando sua cabeça contra mim. Ela absorve
apenas alguns goles e repele o bico da mamadeira com a língua, único movi-
mento que faz para exprimir que não quer mais. Retiro a mamadeira; ela he-
sita, quer novamente, bebe apenas um gole, repele-a. Ela apanha então o carri-
nho verde.
Ela senta-se, muito reta, e brinca longamente, alegremente, de faz.er
barul!'!o batendo o carro em minha cadeira. Ela se encanta com o barulho e
me olha freqüentemente dando gritinhos de alegria. Em seguida, seu rosto
tona-se sério; ela fica estática e, por duas vezes, bate o carro em seu crâneo.
Durante dois minutos, ela dá alternadamente golpes sobre a cadeira, rindo,
e sobre seu crâneo, mas aí com um ar concentrado e algwna hesitação. Eu
pensei primeiramente que era um jogo onde ela procurava a diferença de ruí-
do, mas quando ela bate no seu crâneo, seu rosto fica muito tenso: ela parece
se perguntar o que isto lhe faz e, entre o primeiro e o segundo golpe, ela mar-
ca wn tempo de hesitação.
De volta a seu leito, ela sorri, mas seu rosto imobiliza-se no momento
em que eu deixo a sala.
A l? de dezembro, assim que entro em seu quarto, ela me sorri e come-
ça a saracotear. Em meus braços, ela tem um segundo de hesitação, cm segui-
da coloca um braço em meu ombro, guardando o outro no ar, mas sem virar a
palma da miro.
Sento-a em meu colo, o que ela parece preferir à posição sentada no
chão ao meu lado. Ela me olha um minuto, ansiosamente, os dois braços no
ar, em seguida sorri, ri e se abaixa para apanhar o carro verde; ela dá dois gol-
pes na cadeirinha, encantada com o barulho. Ela percebe os biscoitos, pega
um leva-o a minha boca faz.endo um barulho de sucção, em seguida coloca-o
no chão - sem destrave nem gesto de jogar; ela olha-o um segundo, e com o
carro verde, empurra o outro biscoito para a extremidade da cadeira, fora de
seu alcance. ·
... -· ·' .·:~.
A Primeira Identificação 31
Durante dez minutos, ela brinca de fazer ruído com o carro, batendo-o
na cadeira. Ela olha-me continuamente, rindo, saracoteando e agitando as
pernas. Ao longo deste jogo, ela bate por duas vezes na minha perna com o
carro, rindo, e uma vez, ela bate com a mão na sua cabeça com wn ar grave.
Ela apoia então sua cabeça em mim e mete o carro na minha boca. Er-
gue-se, vê a mamadeira, joga o carro, pega o pintinho e, tentando tocar a ma-
madeira com ele, faz um ruído de •sucção; ela larga o pintinho olhando para
mim, estende a mão na direção da mamadeira, alongando-se em meus braços e
ahrindo a boca. Ela toma a mamadeira toda com um ar sério, olhando para
mim, o corpo bastante descontraído. Isto dura mais ou menos dez minutos,
a quantidade de leite não parecendo satisfazer-lhe.
Senta-se e, até o fim da sessão, salta sobre meu colo, muito excitada,
hatendo alegremente na mesa. Em intervalos regulares, ela se alonga quase
inteiramente em meus braços, olha-me; e eu a beijo. É o que ela quer; mas eu
sinto que são apenas tentativas, que ela nã'o poderia suportar que eu acentuas-
se seu alongamento, nem sua duração.
Recoloco-a em seu leito, radiante.
A 3 de dezembro, ela ri e saracoteia desde minha entrada no comparti-
mento. Seus ouvidos não escorrem mais, ela tem melhor aspecto. Em meus
hraços, ela tem um primeiro movimento de recuo dos seus, mas ela ri.
Durante a primeira parte da sessão, ela faz ruído batendo o carro na
cadeira. Com o carro, ela empurra os biscoitos para afastá-los e se faz beijar,
muito descontraída, mas brevemente.
Em seguida ela torna-se agressiva comigo: bate em minhas mlfos com o
carro, e com a mão bate no meu rosto com uma expressão bastante hostil.
Fia me repele, a menos que queira fazer-se beijar. Depois ela tenta fazer pene-
trar todo o carro em minha boca com uma mímica de sucção.
No fim da sessão, ela toma a mamadeira; não tem nenhuma hesitação
t•m tocá-la, mas nlfo ousa fechar sua mão sobre ela. Ela toma a mamadeira in-
tt·ira, bastante rápido, olhando para mim gravemente. Sua cabeça está apoiada
em mim, mas seu corpo não se descontrai; ela permanece sentada muito tesa.
Ela parece então querer tentar ficar de pé.
Em seu quarto, antes que eu a coloque em seu leito, ela enfia seu dedo
,.,,, minha boca, fazendo um ruído curioso: suspiro de contentamento de de
d,·scontração, mas bastante articulado.
A 4 de dezembro quando eu chego, Nádia está no chão com as outras
n ianças. Ela me sorri, radiante, e inclina-se para mim. Enquanto eu a tomo
r111 meus braços, a enfermeira me diz que ela está surpresa com o ar alegre e o
,,pctite de Nádia.
Enquanto eu a levanto, ela passa sua mão em meu rosto balbuciando; é
l,rcve; ela recoloca seus braços para trás, mas sorrindo.
Não a sento em meu colo como de hábito, mas no chã'o como a encon-
111'i na chegada Olha-me gravemente, sorri e vê os biscoitos sobre a cadeira
1111:ls dela. Chega a virar-se para pegar um biscoito. Com este, ela empurra o
1111tro para que ele caia no ch[o, em seguida diverte-se, por um momento,
32 Nadia ou o Espelho
fazendo ruído batendo o biscoito que ela tem na mão sobre a cadeira, olhan-
do-me, risonha e descontraída. Este olhar parece querer dizer pela primeira
vez: "Estou feliz por fazer ruído, porque estás perto de mim".
De súbito ela inclina-se para mim, muito forte, sorrindo, com ar de
quem espera alguma coisa: eu a coloco então em meu joelho, ela dá um gran-
de suspiro de contentamento. Ela está muito descontraída.
Várias vezes, ela leva o biscoito à minha boca, para em seguida bater
com ele na cabeça, com cuidado (ela está novamente tensa mas não angustia-
da). Ela se acalma inspecionando meus botões e esfregando bem forte sua
mão em minha blusa - sobre o peito-, o que lhe dá ansiedade. Ela troca en-
tão o biscoito pelo carro com o qual ela me bate bastante forte com uma acen-
tuada nuance agressiva; mas não está angustiada.
Neste momento ela escuta uma criança chorar no quarto vizinho. Ela se
endireita, seu corpo enrijece, seu olhar erra muito ansiosamente pela sala, em
seguida, por duas vezes, ela puxa-me para ela pela minha blusa e me repele
violentamente. Ela traz para si a cadeirinha e faz com ela um vai-e-vem que
a acalma; pouco a pouco, ela me sorri, ela quer que eu a faça saltar sobre meu
colo, ri às gargalhadas. Várias vezes, entre os saltos, ela descontraí-se comple-
tamente em meus braços, sorrindo gravemente quando a beijo.
Retoma alegremente seu jogo com a cadeira, percebe a mamadeira, re-
pele a cadeira para tentar agarrá-la. Coloco a mamadeira sobre a cadeira. Ela
me olha, bastante tensa, toca várias vezes na mamadeira e a empurra cada vez
mais forte; ela cessa de repelí-la assim, mas novamente brinca de sacudir a
cadeira até que a mamadeira caia no chão. Então ela estende o corpo, mas não
os braços, na direção da mamadeira, fazendo um ruído de sucção. Dou-lhe a
mamadeira e ele bebe, quase deitada em meus braços, sorrindo-me gravemen-
te; seus pés mexem-se de contentamento; seus dois braços abandonam-se, mas
a mã'o esquerda está fechada bem forte. Depois que terminou, ela tem um mi-
nuto de espera ansiosa; em seguida, muito alegre, ela balbucia de uma maneira
já articulada.
' Eu a devolvo, sorridente e descontraída.
Quando a carrego a 5 de dezembro, ela está muito sorridente e coloca
seus braços em meus ombros.
'
A sessão é quase idêntica a da véspera na sua primeira parte: fazer ruí-
do, balbuciar, um jogo de vai-e-vem com a cadeira, para terminar na mamadei-
ra que Nádia pega e aproxima de minha mão. Ela toma-a, muito descontraí-
da. Assim que ela fica vazia, ela olha-a longamente, depois toma-se agressiva
comigo, bate em minha coxa, o rosto crispado, os olhos hostis, depois me ba-
te uma vez na boca; e sua agressividade cai.
Em seguida, ela inova: olha para mim, coloca suas duas mãos em meu
peito, mãos bastante contraídas, e balbucia "mama-mama". Rindo, ela reto-
ma então seu jogo de vai-e-vem com a cadeira, depois quer, mas eu não a com-
preendo logo, que eu a sente em meu braço, como se carrega um bebê. Eu o
faço: ela sorri, alegre, balbuciando "ma-ma-ma", acaricia meu rosto, olha-me
A Primeira Identificação 33
apaziguada, coloca seus braços em redor de meu pescoço, apoia sua cabeça
fortemente em minha face.
Ela pega o biscoito, pressiona-o contra minha boca, depois contra a sua;
ela não pode decidir-se a comê-lo, olha a mamadeira vazia, fazendo ruído e
mímica de sucção.
Ela não fica contente quando a reconduzo; momento de contração con-
tra mim quando estou a ponto de abrir a porta de seu quarto.
A sessão de 7 de dez.embro começd' mal, porque Nádia me viu uma pri·
meira vez quando vim a seu quarto pegar uma cadeira. Ela sorriu-me, saraco-
teou; falei com ela. Quando eu retorno, eu a encontro dura, com a expressão
que ela tinha tomado ao ver afastar-me; seu rosto não se ilumina e ela não
saracoteia. Quando eu a tomo nos braços, ela joga os seus para trás, palmas re-
viradas.; ela sorri palidamente e retoma logo a sua expressão paralizada.
Eu-a sento no chão perto de mim. D~ante longos minutos, ela não tira
os olhos de mim, com muita ansiedade e, suga seu polegar sem olhar para a
sala, nem para os brinquedos: mamadeira, doces, cadeira.
Eu a tomo então sobre meu colo; nenhuma reação, nem mesmo na ex-
pressão de seu rosto. Ela coloca um dedo em minha boca, enquanto continua
a sugar o polegar de sua outra mão; seu rosto anima-se um pouco por uma mí·
mica de sucção; mas seu olhar permanece tenso.
Ela encosta sua cabeça em mim para que eu a beije, mas seu olhar é in-
finitamente triste, seus braços estão estendidos para frente, punhos fechados.
E entretanto, seu corpo está mais abandonado do que nunca. Ela não pode
suportar que minha afeição se exprima. de outra forma senão pelos beijos,
que se lhe tornam mesmo insuportáveis se eles são mais longos do que ela
quer. Neste caso, ela se endireita, a tensão de seus braços aumenta e ela dobra
ainda mais violentamente para o exterior o braço que está ao lado de meu
corpo.
Neste momento chamam-me ao telefone. Não ouso deixar Nádia sozi-
nha .na sala, e devolvo-a ao leito de seu quarto, onde a deixo assombrada,
perdida. Quando venho buscá-la alguns minutos mais tarde, ela não mudou de
posição, como que estática. Eu a reconduzo muito tensa, e ela faz pipi em
meus braços durante o trajeto de volta. Nà sala de sessões, sentada, olhar ten-
so, ela suga seu polegar, depois pega um pedaço de biscoito que tinha caído
de meu bolso. Ela o mete em minha boca, retira-o, olha para ele, leva-o à sua
boca; então com um ar de desagrado, ela parte o biscoito e joga-o. Algumas
migalhas ficam coladas em sua mão: seu asco torna-se intenso, e sua mão tem
destrave sobre destrave para livrar-se delas ... A sessão acabou. Ela lança um
olhar para a mamadeira, depois olha a porta.
Enquanto eu a devolvo, seus braços crispam-se ao redor de meu pesco-
ço, ela apoia sua cabeça em minha face diante da porta do seu quarto.
A 8 de dezembro, Nádia está menos contraída que na véspera. Ela me
sorri, mas seus braços estão estendidos para trás. Esta sessão será a melhor
desde o início do tratamento, e Nádia vai mostrar nela muita atividade sem
.mgústia.
34 _ Nadía ou o Espelho
Ela quer vir para meu colo. Seu olhar é vivo e alegre. Ela coloca um bis-
coito em meus lábios; eu como um pedaço, o que parece embriagá-la de _feli-
cidade; ela recomeça várias vezes, e no fim da sessão, ela colocará um biscoi-
to em minha boca, para em seguida lambê-lo mas sem comê-lo; é notável que o
gesto pelo qual ela leva este biscoito à sua boca nã"o seja hesitante e seja livre
de ansiedade.
Ao longo desta sessão, ela tenta se arrastar para alcançar o que quer.
Ela gira sobre ela mesma, levanta-se sobre um joelho e avança assim por sola-
vancos por uma distância de quase um metro, até a mamadeira. Ela pega a ma-
madeira, levanta-a e vira-se para mim, mas não consegue me alcançar carre-
gando-a. Eu a ajudo e coloco-a em meu colo, a mamadeira no chão a seu al-
cance. Ela inclina-se e agarra-a.
Ela bebe alguns goles, deitada em meus braços, o corpo muito descon-
traído, inclusive os braços e as mãos. Ela repele com a língua o bico da mama-
deira, retoma a mamadeira várias vezes seguidas sem beber.
Em seguida permanece alguns minutos deitada em meus braços, sorrin-
do-me e balbuciando com um ar feliz. Depois ela vai fazer ruído com um brin-
quedo. Durante todo o tempo desta sessão, onde ela esteve ativa e indepen-
dente em relação a mim, permaneceu grudada em meu olhar. Eu sinto-a di-
nâmica. Eu a reconduzo agarrada a meu pescoço com os dois braços.
( *) Cf. nota 3, Seminário 1 e nota 14, Seminário 11, (de Jac.ques Lacan), Versão bra·
sileira, Zahar, RJ, 1979 (n. da T.)
36 Nadia ou o Espelho
de de que não sejamos separadas para reencontrar em seu olhar sua fantasia
hmdamental, uma imagem totalizante do adulto e da criança, que vai fasci-
ná-la a 1Ode dezembro, antes que ela a recalque.
Tal era a exigência de seu trajeto analítico no quadro da transferência,
combinando dois movimentos, como em toda análise: de um lado, na relação
ao Outro, a instituição sobre o corpo do Outro do objeto de desejo, isto é da
dimensão significante que implica uma perda; de outro lado, a manutenção do
1ransitivismo, isto é, a inclusão por acolamento escópico do grande Outro ne-
la: uma manutenção que se depura até o ponto nodal de sua fantasia funda-
mental no campo escópico.
CAPÍTULO V
-A FANTASIA FUNDAMENTAL
O recalque originário
10 de dezembro
o
Esta cena de uma intensidade excepcional, é a realização lógica e aluci-
natória do desejo de Nádia.
Lógica, após o debate do período precedente, onde vimos os dois movi-
mentos que animavam Nádia: de um lado, sua relação transitivista ao Outro
que eu sou; de outro lado, sua relação ao Outro como portador do significan-
te, por antecipação.
Na cena de 10 de dezembro, são estas duas estruturas do Outro, entre as
quais Nádia oscilou desde o início do tratamento, que estão em causa sucessi-
vamente.
A Fantasia Fundamental 41
sobre o qual o Outro está colado. O sujeito, isto é, toda a superfície de sua pe-
le, se resume nesse ponto privilegiado.
Nesta forma primeira do Outro, não se trata ainda de uma perda: o su-
jeito produz seu próprio objeto em seu olho, colado a seu olho, sem mais
necessidade de um Outro real; este Outro real seria com efeito separado e foi
o que Nádia recusou agressivamente várias vezes ao longo do período prece-
dente. Na imagem que a fascina, eu estou realmente ausente, nâ'o sem que eu
aí esteja incluída na medida em que eu fui para Nádia, ao longo de todo o tra-
tamento até agora, a causa de uma exacerbação da questão do Outro. É na
transferência, pois, que ela me coloca neste lugar de objeto incluso;inclusão
de superfície - poderíamos dizer de envoltório, se a metáfora nã'o corresse o
risco de sugerir a noção de wn saco de três dimensões, quando se trata, como
veremos, de uma pura estrutura de superfície.
O Outro está incluído na superfície do sujeito; tal é a primeira fonna de
identificação pelo qual o sujeito começa a constituir-se enquanto tal, uma for-
ma que não podemos deixar de dizer de incorporação, com a condição de su-
blinharmos o modo lógico, isto é, topológico de superfície.
Os movimentos de sucção durante a cena estão aí para dizer do sucesso
de Nádia quanto à realização alucinatória - e que só pode ser alucinatória -
de seu desejo primordial. Os movimentos de sucção colam tanto o Outro so-
bre a superfície do corpo, quanto o olhar cola a imagem no olho. Eles partici-
pam a um outro nível pulsional de satisfação (que não é da fascinação), sem
que seja necessário para tanto implicar mais precisamente a presença de um
objeto, visto que supor um objeto seria supôr separado (foi o que Nádia en-
controu sob a forma da mamadeira a 13 de novembro) e que esta separação
estaria em contradição lógica com a relação por acolamento de que se trata.
Na realidade, o pequeno outro, sobre o colo da mulher faz parte de seu corpo:
ele é seu seio.
Em resumo, a fantasia fundamental que Nádia reencontra aí, é aquela
do próprio sujeito enquanto envoltório do Outro e de todos os objetos por
acolamen to com ausência completa de separação. Ela só pôde atingir este ·
ponto de regressão última pela transferência.
O que acontece quando a chamo várias vezes pelo seu nome, "Nádia"?
Ela não pode evidentemente renunciar de imediato ao que a fascina, mas ela
não está entretanto captada ao ponto de não ser sensível à escuta de seu no-
me, de não se virar enfim e sorrir-me brevemente; isto quer dizer que ela me
reconhece. Por mais breve que seja, este sorriso é o sinal da brecha feita pelo
meu chamado. Nádia é sensível à minha presença e esta presença é introduzi-
da pelo significante de meu chamado. A sensibilidade que ela demonstra aí é
sinal de que ela não está irremediavelmente fechada no que a fascina, mesmo
se lhe custa renunciar à cena. Este sorriso endereçado a mim mostra que Ná-
dia não é psicótica.
Da satisfação alucinatória de seu desejo à minha presença de Outro, ela
deu um salto pelo meu chamado nominal. É demais no entanto quando lhe es-
..
.. ,. P:· ,
Á::;.f: ·'-- ·' · ···A ·Fantasia Fundamental 43
tendo os braços para levá-la à sessão, e eu não poderia aliás levá-la: diante de
minha cartada, ela se joga violentamente para trás em seu leito, os braços no
ar e os punhos fechados.
O sentido do salto que ela acaba de fazer aparece: do Outro acolado a
ela ã irrupçlro do Outro real separado. A identificação que colava o Outro
sobre ela muda de sentido; e numa reviravolta, passa a identificaçã'o por aco-
plagem dela sobre o Outro. É o que ela encontra num lampejo, e contra o que
ela vai debater-se: o que faria dela o objeto real que preenche o Outro. A in-
clusão do Outro tinha na transferência uma intensidade tal que a exclusão·que
a segue dá a minha nomeaçlfo o peso de uma demanda, a minha, ã qual ela de-
veria responder realmente.
É esta reviravolta que Nádia vai enfrentar, tanto no fim da sessão quan-
to depois, na análise.
Ela tenta primeiro estender-me um pedaço de seu corpo, o pé, no lugar
do corpo todo, numa iniciativa metonímica. Se ela ri um pouco, é que existe
aí uma conquista, contrariamente ã tentação metafórica que provoca a angús-
tia e a recusa de vir para meus braços ou de sentar-se em seu leito, de medo de
estar próxima demais de mim, isto é no caminho de preencher-me. Depois, no
fun, ela opera uma reviravolta: ela passa de seu corpo ao meu; ela não me es-
tende mais um pedaço de seu corpo, ela mexe em meu anel, isto é, um objeto
chapeado em meu corpo e separável, mas ela bate em minha mão que não é
separável. Nesta virada, ela descobre, sobre meu corpo e sobre o seu, o objeto
metonímico, e ela termina a sessão com um significante "ma-ma-ma", como
um eco ã minha nomeação. Do perigo do real do corpo, ela passou à via
significante, mais ainda ã conexão significante, isto é, à metonímia.
Esta via metonímica, ela a conhece, como mostrou a 5 de dezembro,
quando, as mãos contraídas sobre meu peito, ela lançou seu chamado "mama";
como ela o lança hoje pela via nova de seu desejo. Entre minha nomeação e
seu "mama", a metonímia tomou lugar, mas será preciso um longo desvio na
metáfora - nós o veremos - antes que ela constitua aí seu desejo; quando do
primeiro espelho.
O que é essencial nesta sessão, é o surgimento em Nádia da condição
para que haja metáfora e metonímia.
Esta condição é a mutaçlro do Real, sua promoção a significante ao ní-
vel da imagem: de fascinante que era, ela toma-se significante no mesmo mo-
vimento de recalque que sofreu por minha nomeação. É bem a significância
que funda as estruturas metafóricas e· metonímicas: ela é por elas tecida.
Nesta sessão, a precesslfo em Nádia, da metonímia sobre a metáfora se
atém ã resistência ao retorno do recaldo, retorno (o da imagem significante
que ela acaba de recalcar) do qual a metáfora se acompanharia, enquanto
que a metonímia de seu chamado "mama", se esta em conexão com a imagem
recalcada, não a revela.
Para esclarecer ainda o que é desta imagem e de sua função, precisamos
retomar os efeitos de estrutura da intervenção em que chamo-a pelo seu no-
me, três vezes seguidas antes que ela se volte.
44 Nadia ou o Espelho
Grifo nosso para marcar a tradução convencional do ça, tradução francesa do ID.
(N. da T.)
46 Nadia ou o Espelho
1omo-me para ela o A maiúsculo, portador de objetos "a" que ela não pode pe-
1:ar; donde seus punhos fechados. Minha intervenção na cena teve wr...efeito
de separação de A e de "a".
Num primeiro tempo, minha nomeação aprisionava-a em seu S1 , sig-
nificante de seu corpo, na espera do significante do corpo do Outro. Em um
segundo tempo, seu "mama", que dirige-se para além de mim, para além dela
1ambém, além de todo o saber entre ela e mim, funda o S2 , isto é o signifi-
,·ante do corpo do Outro, na colocação em suspenso do que se liga entre
"'mama" e o Outro S1 pode ligar-se então com o para além deste significante,
,·om o S2 inacessível a todo o saber, do quai eu torno-me o suporte 1 • É aí que
..ia inaugura sua relação de sujeito na análise e realiza a concisão da fórmula
l:icaniana: "um sujeito é representado por um significante para um outro sig-
nificante".
11 de dezembro - 3 de janeiro
DO A 11 de dezembro, não pude levá-la à sessão pela manhã porque ela dor-
mia. A tarde, ela está vestida e de pé; assim que me vê, ela sorri, mas de uma
maneira fugidia, e parece ansiosa.
Durante o trajeto até a sala das sessões, em meus braços, ela mantém
um braço para trás e o outro sobre meu ombro.
Assim que está sentada, ela pega um biscoito e coloca-o em minha boca.
Eu como um pedaço, ela ri às gargalhadas e recomeça várias vezes; em seguida,
empurra o biscoito para longe dela.
Ela tenta brincar com a cadeira, desiste, olha-me e suga seu polegares-
condendo inteiramente a boca com a outra mão. De vez em quando, ela pára
alguns segundos para balbuciar e sacudir sua mão, como se quisesse me bater,
mas o faz no vazio; ao mesmo tempo, ela vira a cabeça da direita para a es-
querda, como se fizesse "não · n!Io - n!Io".
Seu olhar é tão ansioso e ela tão tensa em relaç!Io aos ruídos que che-
gam do corredor que eu a reconduzo passeando um pouco com ela. Seus bra-
ços estão descontraídos, mas ela coloca-os para trás quando entro em seu
quarto.
Sentada no ch!Io em meio aos outros, seu interesse ansioso divide-se
entre mim e a enfermeira.
Quando chego a 12 de dezembro, a babá me diz de Nádia: "Ela inteira
é uma língua, aliás ela lambe tudo".
Encontro Nádia, vestida e fora da cama, com um brinquedo na m!Io.
Assim que me abaixo para pegá-la, ela não inclina seu corpo para mim, mas
também não coloca seus braços para trás; pela primeira vez, ela estende-os
para mim na posição normal de uma criança que espera ser carregada nos
braços. Como sempre, entretanto, seu rosto crispa-se ,en_!re o momento em
que ela sente meus braços em tomo dela e aquele em que ela está sentada em
meus braços; então ela sorri balbuciando.
Na sessão, ela leva o biscoito até minha boca, mas nã'o o como; aliás,
Nádia somente toca minha boca com o biscoito e retira-o rápido dando risa-
da. Ela não insiste e, com a ajuda deste primeiro biscoito, dcrruha aquele que
está sobre a cadeira com um ar radiante. Ela desloca-se para apanhar o que es-
tá no chão e recomeça seu jogo. Em seguida ela joga o hiscoito que tem na
O Pré-Especular 49
mente só tendo sossego, com pés e mãos, quando joga-a embaixo do aquece-
dor. Faz o mesmo com os brinquedos. Agressividade sempre sem angústil!,.
É para mim que ela volta-se em seguida, agitando seus braços por cima
de minha perna. Depois ela manipula os botões de minha blusa, se faz beijar,
saltar, balbuciando alegremene "ma-ma-ma", "da-da-da". Seu olhar é neste
momento cheio de vida e de malícia.
Saltando sobre meu colo, ela começa a soprar curiosamente pelo nariz,
que ela franze, o rosto contraído, a boca torcida por uma careta; tudo isto
olhando-me lagamente. Eu não compreendo.
Mostra-se agressiva no fim da sessão. Pega um papel no bolso do peito
de minha blusa: faz barulho com ele, sacode-o, rasga-o, excita-se, e de vez em
quando coloca-o em sua boca olhando a mamadeira sob o aquecedor, e faz o
gesto de dar um pontapé nele. Retira violentamente o papel da boca, coloca-o
na minha, retira-o ainda com mais violência e o rasga completamente, tudo is-
to sem angústia.
Reconduzo-a; está muito bem, mas tem para com o brinquedo que colo-
co em seu leito, o mesmo comportamento negativo da sessão:joga-o no chão
olhando para mim.
Constatei uma grande mudança motora ao longo das duas últimas ses-
sões; não em quantidade, mas em qualidade: os movimentos foram os mesmos
das sessões da semana precedente, mas sem inibição; ela traduz imediatamente
em ato suas emoções, o que contrasta com os gestos desajeitados e automáti-
cos do início da análise, há dois meses. Ela não faz mais tentativas com suas
pernas; seu movimento é espontâneo. Para exprimir sua agressividade para co-
migo, ela tem necessidade de um intermediário, o papel; assim como em suas
tentativas de contato comigo ao longo das primeiras sessões ela servia-se do
pintinho.
A 15 de dezembro, encontro-o diante de uma cadeira sobre a qual ela
tenta sentar uma boneca bastante grande. Chamo-a, ela vira-se, sorri, tenta
ainda sentar sua boneca, depois estende-a para mim. Tomo-a em meus braços
junto com a boneca.
Assim que estamos sentadas, ela sobre meu colo, Nádia retoma a mesma
atividade da véspera: agressividade contra biscoitos e brinquedos que ela afas-
ta violentamente; olhares furtivos para a mamadeira que ela nã'o irá tocar.
Mesma ausência de inibição motora; balbucio bem articulado, sobretudo
"ma-ma-ma" olhando para mim ou mexendo nos botões da minha blusa.
Ela está claramente agressiva comigo, visto que bate com sua mão em minha
perna, sem intermédio do papel. Ela o toma por um momento, para manipu-
lá-lo com alegria e recolocá-lo em meu bolso. Não noto nenhuma contração
em seu rosto quando ela me bate; ela não está inibida; está feliz.
Por duas vezes, ela me afasta com seus braços, fazendo "não-não"
com a cabeça quase falando.
A fase ativa da sessão termina.
Dois novos acontecimentos se sucedem.
O pré-Especular 51
Primeiramente, ela contempla por muito tempo meu rosto: olhos, cabe-
lo, nariz, boca, apoiando de vez em quando sua cabeça em mim. Uma vez
mesmo, ela vira sua cabeça para trás e olha-me assim de través. Ela endireita-se,
intrigada, para olhar-me corretamente, ri e, cbm um ar maroto recoloca sua
cabeça às avessas para olhar-me longamente.
Ela endireita-se, seu rosto torna-se grave e ela tem uma dian-éia. Deita-se
então em meus braços, suga seu polegar, olhando-me gravemente, está muito
tranqüila. Mimo-a, depois sinto-a pouco à vontade e levo-a para trocar-se:
troca ao longo da qual seu olhar não me deixa; mas ela continua alegre.
De volta à sessão, ela quer sentar-se em meus braços, depois nos meu
colo para apanhar um brinquedo. Ela está de novo ativa. Mas, neste momento,
uma criança berra na sala ao lado. Então ela pára, olha-me inquieta,
aninha sua cabeça em mim, suga seu polegar após ter-se deitado em meus bra-
ços, e tapa um ouvido com a mão para não ouvir o choro. Reconduzo-a a seu
quarto.
A 17 de dezembro, sentada em seu leito, ela me sorri mas não se inclina
para mim. Entretanto, uma vez em meus braços, ela coloca os seus em meu
ombro.
Interessa-se primeiro pelo biscoito: sacode-o faz ruído com ele, coloca-o
cm minha boca, em seguida na sua, bate violentamente com ele na mesa, de-
pois na base de meu pescoço. Após um jogo de vai-e-vem entre sua boca e a
minha, ela se irrita com este biscoito e manda-o longe. Volta-se então para
mim para inspecionar longamente os botões de minha blusa, balbuciando
"mama" e não "ma-ma-ma"; depois ela bate com sua mão em meu peito.
Então ela se faz acariciar, sentada em meus braços.
Após a agressividade com o biscoito, é a vez da mamadeira: ela sacode-a
e bate tllo violentamente com ela no chão que ela racha; o leite esguicha: ela
está radiante. Termina por jogar a mamadeira embaixo do aquecedor. Ela pe-
ga o papel em meu bolso, agita-o, mela-o com o leite derramado, de tal ma-
neira que sobram apenas alguns pedaços muito sujos. Ela volta para meus bra-
ços e pega meus óculos;joga-os atrás dela, inclina-se bem para trás para apa-
nhá-los e consegue.
A enfermeira me diz que Nádia mantém-se de pé em seu leito e que está
muito viva. Ela quer inclusive mostrar-me isso no fim da sessão e não tive tem-
po de dizer-lhe para não o fazer. Sob meu olhar, com efeito, Nádia opõe uma
recusa total em ficar de pé, e me lança um olhar angustiado.
A 18 de dezembro, a sessão é uma explosão de atividade alegre. Nádia
primeiro permanece cinco minutos em meu colo, faz barulho com o biscoito,
ri, balbucia, bate suas mãos na cadeira. Em seguida, quer sentar-se no chão,
mas com ela olha-me um pouco ansiosa, sento•a junto a mim. Ela me dá um
sorriso radioso.
Ela lança-se então a uma grande atividade, cheia de alegria e excitação
i:om a descoberta do que podem fazer seus braços e pernas. Para pegar de no-
vo os objetos que ela jogou longe dela, usa dois meios de locomoção: ou ela
se arrasta sobre o ventre avançando por recuos, voltando-se de vez em quando
52 Nadia ou o Espelho
para ver seu alvo, ou com a perna direita dobrada, ela fica quase de pé e cai
sentada, apoiada sobre a esquerda, o braço direito esticado em direção ao ob-
jeto; ela consegue também rodar. Cada movimento novo desencadeia uma
gargalhada, uma grande excitação dos braços e pernas. Ela parece gozar in-
tensamente do uso de seus membros e olha-me alegremente após cada nova
iniciativa.
Fora desta explosiio de atividade que a absorve, os traços salientes da
sessão são: 1. a agressividade contra a mamadeira que ela pega, sacode, bate
no chão, bate com um brinquedo e afasta para bem longe dela com mãos e
pés; 2. a manipulaçiio dos botões de minha blusa, motivo pelo qual ela quis
voltar para meu colo, manipulação acompanhada de "mama" freqüentes, de
golpes de mão em meu peito e perna; 3. o recorrer a mim sem ambivalência
qundo ela tem medo: assustada pelo ruído da cadeira que ela jogou no chão,
ela desloca-se, agarra-se a meu avental e tenta subir em meu colo; coloca-a
aí; ela se faz beijar e desce de novo para suas atividades.
Noto que pela primeira vez, a entrada de uma pessoa na sala não a absor-
ve inteiramente: ela olha, depois me olha e retoma quase imediatamente sua
atividade, ainda que a enfermeira permaneça na sala.
Quando reconduzo Nádia, a enfermeira me diz que ela reclama mais
comida. Nádia não parece estar contente com o fim da sessão.
A 19 de dezembro encontro 'Nadia de pê, sustentada por uma enfer-
meira. Carrego-a radiante.
Toda a sessão é consagrada à alegria do movimento. Ela faz ruído com
o biscoito, com o papel e os joga longe assim como o carro, a boneca e o pin-
rinho. Arrasta-se para pegar de novo os objetos e jogá-los ainda mais longe.
Ela vai de meu colo à janela arrastando-se e volta para meu colo onde ela ten-
ta subir para ser beijada. Vai então até o aquecedor, com o qual faz barulho
com uma alegria intensa. Quando ela se arrasta, é sobre um joelho e dois bra-
ços: isto é, quase engatinhando.
Quando a reconduzo, ela aperta contra si um brinquedo trazido da ses-
são e, quando uma outra criança quer pegá-lo, ela se arrasta até seu leito.
Notar que neste dia esqueci meus óculos. Nádia repara e vem tatear
meus olhos intrigada. Arranha a raiz de meu nariz, lá onde de hábito ela colo-
ca meus óculos para retirá-los.
A 21 de dezembro, assim que é colocada no chão, ela mostra grande
atividade, agita-se com uma agressividade mesclada de violência para comigo.
Bate-me várias vezes, com uma mão ou com um brinquedo, mas após ter bati-
do bem forte em sua cabeça com o mesmo. Durante dez minutos, ela fica
assim realmente violenta, agitada e tensa. Acalma-se batendo na mamadeira,
entornando-a, derramando o leite no chão e espalhando as manchas com a
mão; no fim, lança a mamadeira sob o aquecedor. Sua agressividade, já menor,
volta-se contra meus óculos. Ela não pode ver-me com eles, arranca-os e os
atira longe.
Ela se arrasta muito, mas só se lança após meu sorriso. Quando retorna,
é para ser mimada em meus braços. Agarra-se a meu avental, depois estende-me
O Pré-Especular 53
os braços sorrindo. Sentada em meus braços, ela acaricia meu rosto com um
ar de adoração, para em seguida partir quase imediatamente em exploração.
No fim da sessão, ela se arrasta para pegar a mamadeira sob o aquece-
dor; bate com ela neste e atira-a bem longe na sala; espalha todos os brinque-
dos. Tenta. colocar-se de pé agarrando-se no parapeito da janela e retoma a
meus braços.
Recolocada em seu leito, ela anda nele de uma ponta a outra, sob meus
,ilhas - o jantar começou e ela parece ter muita fome. Agressiva comigo, ela
hate em meu peito: na alegria de vê-la andar, eu a tinha tomado em meus bra-
.,:os. Em seguida ela toma-se meiga, apoia bem sua boca em minha face sem
beijar, e aperta seus braços bem forte em tomo de meu pescoço.
A 22 de dezembro, Nádia levanta-se quando venho buscá-la.
Assim que a coloco no chão, cena de violência: ela afasta muito violen-
1amente os biscoitos, quebra um jogando-o no chão, bate uma vez em sua ca-
beça com a boneca, bate em minha perna e arranca-me os óculos que joga lon-
ge. Não se interessa pela mamadeira.
Em seguida, durante vinte e cinco minutos, ela explora a sala. Do outro
lado, ela percebe no chão um suéter e vai até lá quase engatinhando, parando
no meio do caminho para me olhar e balbuciar de uma maneira articulada e
modulada: ela parece explicar-me qualquer coisa. Torna a partir, apanha o
suéter que ela vai agora arrastar para todo lugar com ela. Começa por esfre-
gá-lo em seu rosto com risos e balbucias de delícia; sacode-o saracoteando,
arrasta-o atrás de si até a porta para apanhar um pedaço de biscoito, que ela
torna a jogar, volta a meus braços para ser acariciada e arranca meus óculos:
Sempre arrastando seu suéter, ela parte para o canto da sala onde o ti-
nha apanhado; ela percebe aí um brinquedo quebrado: três rodas, uma pran-
cha e um cordão. Ela pega, manipula, sacode-o, inspeciona as rodas, e sobre-
tudo o buraco da roda que falta. Depois lança o brinquedo longe dela, mas agar-
ra-o de novo puxando o cordão.
Recolocada em seu leito, coloca-se de pé e anda em minha direção
para agarrar-se a meu avental.
A 24 de dezembro, quando venho buscá-la de manhã, ela está ansiosa;
não faz nenhum movimento em minha direção, não me sorri, mas nã'o coloca
:-;eus braços para trás. Ela teve diarréia ontem. Descontrai-se um pouco em
meus braços e sorri-me durante o trajeto.
Esta sessão é diferente das precedentes pela: 1. ansiedade de Nádia; 2.
diminuição de sua atividade; 3. sua demanda constante de estar em meus
hraços, onde ela mostra-se vtolenta contra minha boca.
Começa por jogar para longe dela biscoitos, boneca, carro e fixa-se em
meus óculos que eu não vou poder recolocar o resto da sessão. Após ter entor·
nado a mamadeira, sem mais ocupar-se dela, ela vai embora com meus óculos,
joga-os cada vez mais longe, bate neles com o carro, e com este mesmo carro
hate em sua cabeça, depois em minha boca. Ela está tensa e violenta.
Olha em redor de si na sala, percebe aí o suéter e a prancha de três
rodas da véspera, mas não vai até ela e vem para que eu a carregue, sentada,
54 Nadia ou o Espelho
em meus braços. Ela desce alguns instantes para ir sacudir a boneca sobre a
cadeira, depois volta a meus braços e, neles, sorri com wna expressão feliz e
acaricia meu rosto: é o único minuto de alegria da sessão de hoje; todo ores-
to é marcado pela violência.
Em seguida ela mexe nos botões de minha blusa e toca em minha pele
por acaso: se detém imediatamente, muito ansiosa e quer retomar ao chll'o,
embora permanecendo junto a mim. Ela deixa em pedaços um biscoito e
quer voltar para meus braços. Neles, recomeça a manipulação dos botões de
minha blusa, tomando cuidado para n!fo tocar em minha pele. Ela está com
soluço o que a intriga por um instante, depois não lhe dá mais atenção. Ela
fixa-se então em minha boca, o rosto contra í<lo, hositl: ela bate com sua mão
em minha boca, arranha-a, puxa meus lábios. Em seguida ela empurra violen-
tamente minha cabeça para trás, com sua mão em minha boca e mantém-se
assim. Se eu faço menção de endireitar-me, ela acentua sua pressão, ainda
mais hostil. Com a outra mão ela arranha meu pescoço, encrava os dedos em
núnha pele e puxa-a. Ela está verdadeiramente tomada por uma emoção de
uma rara intensidade - o soluço não a deixou -, a ponto de eu levá-la para
perto da janela a fim de acalmá-la um pouco. Sua atenção é distraída 'pela
chegada de uma turma de crianças, que ela quer ficar olhando, mais inquieta
do que tensa.
Durante o retorno ela me sorri, bastante calma; em seu leito, ela me ba-
te com sua mã'o, sem ansiedade, e sorri um pouco, o olhar maroto. Neste
momento, chegam duas enfcnneiras; Nádia volta-se para mim, sorridente,
sapateando de alegria dando-me palmadinhas, como se ela fizesse de mim uma
coisa sua sob o olhar dos outros.
Mas a violência da cena deixa-a inquieta; e cu tomarei conhecimento
que após minha partida ela teve uma evacuação intestinal, lambuzou-se com
ela até a cara e chegou a comé-la.
A 25 de dezembro, dia de Natal, ouve-se muito choro na casa: tem me-
nos enfermeiras e os grandes nllo desceram para o jardim de infância. Nádia
se balança em seu leito, mas pára assim que me vê, levanta-se e anda em mi-
nha direção até a extremidade do leito.
Ela está ainda bastante violenta hoje. A primeira coisa que faz é arran-
car meus óculos: ela ocupa-se deles com teimosia e faz tudo que pode para
quebrá-los. Não poderei recolocá-los durante toda a sessão. Depois é a vez da
mamadeira que ela entorna, esvazia metade no chão e atira embaixo da jane-
la. Ela espalha a poça de leite com o pintinho, e joga-0 fora. Torna a pegar a
mamadeira para atirá-la embaixo do aquecedor; isso a faz rir.
Ela quer vir para meus braços e eu devo fazê-la saltar. Depois ela escon-
de um minuto sua cabeça em meu pescoço, me aperta forte com seus dois
braços, e levanta-se, radiante, olhando ternamente para mim.
Se a ponho sentada no chão, ela toma-se agressiva e violenta contra ela
mesma. Ou ela vai para longe de mim ou quer ficar sentada em meus braços.
No conjunto, a sessão foi a expressão de uma grande violência para com:
1. os objetos, contra os quais entretanto ela se moderou, explodindo brutal-
O Pré-Especular 55
seu dedo. Uma terceira vez, eu mordo um pedaço <flll~ l'la rei ira de minha bo-
ca, ela olha para ele, baba muito, depois joga-o com 11111 ar e11oj11du.
Tenta então pegar um papel em meu bolso. Como da 11,io consegue é
está a ponto de chorar, eu lhe dou o papel. Ela joga-o, toma a pegar e coloca-o
em sua boca, babando muito.
Volta para meu colo para ser ninada, mas ela está tensa, muda de posi-
ção sem parar, olhando-me ansiosamente. Deita-se um mi11ulo em meus bra-
ços, depois quer ir para o chão, junto a mim e apoia sua cabeça cm meu cor-
po. Ajudando-se com as barras do leito, ela levanta-se três vezes e fica em pé,
reta. Cada vez, ela olha para mim timidamente e senta-se alguns segundos em
meu colo antes de recomeçar (continuo sentada no chão).
Senta-se de novo junto a mim, mas ela está tão ansiosa, como mostram
seus olhos marcados, que ela parece não saber o que é mais doloroso, calar-se
ou exprimir sua violência. Reconduzo-a a seu leito.
Nele, ela bate em um brinquedo e olha para mim, mas enquanto me sor-
ri, ela faz pipi.
A 29 de dezembro, encontro Nádia em pé na extremidade de seu Jeito,
muito animada mas com um pobre aspecto. A enfermeira diz que ela nunca
está saciada e que ela se mexe muito.
Durante o trajeto, ela arranca meus óculos e, na sessão, com obstinação,
mas, uma novidade aparece: por duas vezes ela estende-os contra meus olhos,
esperando que eu os recoloque para ter o prazer de arrancá-los. Joga os biscoi-
tos longe dela; um deles se parte em dois: Nádia fica desconcertada, depois
furiosa. Olha a mamadeira que está longe, mas ela não quer arrastar-se até ela;
há duas sessões, ela não se desloca muito na sala, e quer ficar em meu colo ou
bem junto, tocando-me.
Ela fixa-se de novo em um pedaço de biscoito, leva-o até minha boca,
mas somente seus dedos entram nela. Retira-os depressa e dá uma golfada
grande de mingau. Toma um ar de desagrado: um pouco de mingau regurgita-
do caiu em seu pé que ela sacode. Mas espelha voluptuosamente com seu dedo
o que caiu sobre o encerrado, e leva em seguida este dedo à boca.
Ela quer vir para meu colo, mas como na sessão precedente, ela muda
de posição sem cessar, passando da posição sentada à posição de pé e está
agressiva com minha boca; às vezes deita-se descontraída por um momento e
fica então tão abandonada que eu cantarolo docemente. Olha para mim inten-
samente e, quando termino, me responde: não há outra expressão para defmir
seu balbucio neste momento; muito articulado, lento, modulado, carregado
de sentido como a linguagem.
Por alguns momentos, ela explora um parafuso do leito com seu dedo.
No fim da sessão, enquanto ela chupa o papel que pegou em meu bol-
so, rasga-o, lançando os pedaços longe dela, dá uma nova golfada de mingau e
faz pipi.
Ela suga também constantemente as hastes de meus óculos, e conserva
sem cessar a mímica de sucção.
O Pré-Especular 57
Ela está contraída durante o trajeto de volta, quer ser recolocada ime-
diatamente em seu leito, onde ela ri e me bate.
A 30 de dezembro, assim que me vê, ela saracoteia e fica muito intri-
gada porque coloco-lhe suas meias; ela bate os pés de alegria. No conjunto, a
sessão será sorrident_e. A ansiedade só aparece quando Nádia senta-se no
chão. Tudo se passa pois em meu colo, com a exceção da cena dos óculos no
início, e a agressividade contra a mamadeira nó fim.
Nádia arranca meus óculos, não .se fixa neles, e quer vir para meu colo.
De onde apanha um biscoito; após tê-lo jogado e apanhado várias vezes, ela
coloca-o em minha boca e deixa-o aí. Uma grande parte deste biscoito ultra-
passa miliha boca: ela lhe dá um tapa para fazê-lo cair, o que a faz rir às gar-
galhadas. Ela recomeça assim por duas vezes seguidas e é sempre com uma cer-
ta violênciá que colo~a o biscoito em minha boca; seu rosto está contraído.
Depois joga longe dela os biscoitos, com desagrado e furor.
1
Ela quer pegar o papel em meu bolso, mas não consegue, o que a torna
furiosa: ela bate em meu peito. Ao fazer isto, ela toca em minha pele e pára
imediatamente; arranha-me um pouco a pele, depois afasta minha blusa bran-
ca e mergulha sua cabeça para olhar dentro durante alguns segundos. Ela er-
gue-se furiosa e me bate em cheio no peito, com suas duas mãos.
Nadia desce de meu colo para entornar a mamadeira, persegue-a sob o
radiador, bate com ela neste último, (jerrama o leite e a empurra para longe.
Ela acalma-se, fica descontraída e sorridente; ela quer vir para meus braços e,
deles, brinca com as barras do leito: ajudada pelas barras ela fica de pé, depois
de ter posto minha mão sobre uma barra. Em seguida deita-se em meus bra-
ços para ser beijada. Parece que ela não gosta que eu cantarole.
Durante a sessão, ela fez pipi nas fraldas; recolocada em seu leito, ela
sorrido me bate um pouco.
A 31 de dezembro, encontro Nádia sentada no chão, segurando uma bo-
neca de borracha com o olhar muito animado. Assim que vem para meus bra-
ços, ela arranca meus óculos e joga-os fora.
Pela primeira vez, ela está de sapatos e será para ela wna grande alegria
descobrir na sessão o barulho que ela pode faz.er sapateando, graças a ele.
Ela o fará muito freqüentemente ao longo da sessão, rindo às gargalhadas, lan-
çando olhares para seus sapatos depois para os meus.
Não estamos na sala habitual que está ocupada. Ela olha tudo em volta,
depois olha para mim, joga fora os biscoitos, vira a mamadeira, sacode meus
óculos, coloca-os em seus olhos, depois nos meus, e enfim joga-os fora de al-
cance e ·vem para meu colo.
Ela pega o papel em meu bolso; virando-se, percebe uma bola grande de
borracha sob o leito. Ela desce, vai buscá-la, deslocando-se sobre suas nádegas
com uma perna dobrada. Retoma a meu colo com a bola; chupa-a babando
enormemente apanhaildo-a cada vez que ela cai. Ela abandona a bola para se
fazer beijar, escondendo o rosto em meu peito.
58 Nadia ou o Espelho
Nádia perdeu a imagem da totalidade "A + a" que acaba de ser deslo-
,·ada de seu olho para meu chamado nominal. Pela preponderância da pulsão
<'scópica funcionando em duas dimensões, ela pôde conseguir metaforicamen-
le a negação de toda perda por acoplagem de seu olho à imagem do Outro e
,lo outro; o outro era o objeto "a" para Nádia, pelo fato de que o Outro, a
mulher, era portadora deste objeto em seu corpo, causa do desejo de Nádia.
hte outro, objeto "a" do corpo do Outro, como vimos, era o seio.
A 10 de dezembro, minha nomeação te~e um efeito separador: ela per-
,li,u aí a inclusão pelo olho, achou meu corpo real, e aí encontrou as duas ver-
Ir II tes de sua própria relação comigo: ou ela aí toma o lugar do objeto metafó-.
11ro, isto é, do objeto que daí caiu, ou ela coloca este corpo a uma distância
·,ignificante por reviramento da nomeação de Nádia à "mama". Concretamen-
l<' a metáfora é o horror de estar colada a mim, de fazer parte de meu corpo,
60 Nadia ou o Espelho
de ser meu seio; a metonímia é a distância significante, é seu pé que ela me es-
tende, é minha mão que ela pega, e é seu "mama" que ela lança em eco a mi-
nha nomeação.
Desde então, o corpo do Outro que eu sou vai estar no centro desta fa.
se pré-especular sob dois aspectos. Ao mesmo tempo objeto de contemplação
e portador dos objetos "a". Ela procura nele ao mesmo tempo o amor e o ob-
jeto da pulsão. Oscila sem cessar entre a demanda incondicional de amor e a
agressividade que visa recolher o objeto de meu corpo. Esta oscilação, é a
ambivalência; sua procura de amor coloca-a em posição de fazer-se meu obje-
to, posição metafórica, e sua busca do objeto orienta-a em direção ao próprio
registro deste objeto de meu corpo, o significante, posição metonímica.
A oscilação permanece ainda completamente exterior à Nádia antes que
numa última passagem, a 16 de janeiro, como veremos, ela se faça ela própria
meu objeto metafórico, caído aos meus pés, posição insustentável que a leva-
rá a procurar a metonímia, a da imagem de seu próprio corpo no espelho. Ela
havia aliás antecipado desde 10 de dezembro a via e o trajeto para escapar à.
metáfora.
Neste debate de sua relação ao corpo do Outro persiste evidentemente o
que já estava presente em sua relação à imagem colada no olho, isto é uma es-
trutura topológica de superfície: a de pele, quer seja a do Outro onde Nádia
procura o furo, ou a sua, cujo furo o Outro deve tampar por acolamento.
A sessão de 12 de dezembro é uma sessão exemplar quanto à entrada de
Nádia neste debate. A ambivalência é aí patente: após ter colocado normal·
mente os braços para que eu a carregue (ela os colocará em seguida ao redori
de meu pescoço), ela finge bater-me, não sem movimentos de denegação com:
a cabeça e, negligenciando todos os objetos da sessão, ela procura um objeto,
em meu corpo manipulando os botões de minha blusa.
Tem lugar então, pela primeira e única vez, quando ela toma a mama•
deira deitada em meus braços, seu olhar no desejo que ela tinha realizado por
via alucinatória, ela o realiza aqui em um contato real de corpo comigo, aí
encontrando seu prazer senão o seu gozo: um olhar pleno, seus olhos nos
meus, e mesmo seu auto-erotismo quando ela suga seu polegar em meus bra·
ços após ter tomado a mamadeira.
Da realização alucinatória de sua fantasia primordial (10 de dezembro),
ela passou à realização de seu desejo em função do Real do corpo do Outro:
como se fosse preciso enraizar seu debate no Real, o que ela provavelmente
nunca tinha conhecido antes. Foi uma alicerçar que não se renovará em sua
plenitude, que ela não reencontrará e que ela procurará sem descanso: esta vez
participa assim do recalque primordial, completando-o de qualquer maneira
com raízes reais da relação ao Outro.
No fim da cena, não aparece nenhuma angústia, que poderia ter surgido
se meu gozo de Outro, na transferência, de ter-lhe dado a mamadeira tivesse
feito dela meu objeto metafórico. Como a 10 de dezembro, Nádia não pode
tolerar, com efeito, um tal lugar, e ela faz uma abertura metonímica, toman-
do de uma outra criança um pedaço de cartolina que ela me mostra com um:
O Pré-Especular 61
11ha pele, deixa-a inquieta, e tomarei conhecimento que após minha partida
11Jo somente ela teve uma diarréia como também se lambuzou de cocô até o
1osto, chegando mesmo a comê-lo.
De minha pele que ela não podia suportar enquanto superfície fechada,
11iío furado, ela passa à sua e besuntando-a de cocô, até e inclusive a boca, ela
diz que é sua pele que deve ser uma superfície sem falha nem furo, sem des-
nmtinuidade, sem exterior, nem interior. É a versão em sua pele da imagem
de 10 de dezembro. Lá onde o olho falhou em razão de minha intervenção
\ignificante pela nomeação, é a pele que vai responder pela totalidade. A+ a. E
1~to acontece imediatamente depois de minha partida, isto é, quando não es-
lou mais lá; do meso modo como eu não estava a 10 de dezembro.
Alguma coisa do que deve ser meu corpo e o seu mutuamente ligados,
aparece aqui em plena luz: meu corpo deve ser uma superfície furada em ra-
1.To dos objetos que ela quer retirar dele, para que os furos da superfície de
seu corpo sejam preenchidos. Ela desgovernou-se também quando encontrou
minha pele, que era o Real da ausência de furo. Quis também, manifestamen-
1e, abrir uma brecha nesta superfície sem furo, cravando seu dedo em meu
pescoço. O furo na superfície de meu corpo é a caução para que o bojeto de
meu corpo faça parte do seu.
Assim mesmo, quando parto, ela substitui metaforicamente minha pre-
sença e o objeto de meu corpo por este objeto de seu próprio corpo, tanto em
sua pele quanto em sua boca. Ela mostra que o exterior e o interior de seu
corpo tem continuidade, isto é, que seu corpo é somente uma superfície de
11m lado só. É após minha partida que ela o faz: minha ausência como Outro
faz com que o significante seja substituído pelo Real.
Foi a primeira vez que ela lambuzou-se assim de cocô, ao longo do tra-
1amen to; isto vai ainda lhe acontecer por duas ou três vezes, sempre na mi-
nha ausência, fora da sessão.
Se chegamos a uma tal estrutura de superfície do corpo em Nádia, uma
rstrutura que topologicamente corresponde a uma banda de Moebius, foi por-
'fUe a relaçllo de corpo entre ela e mim enquanto Outro, ela a procurou como
que levada inevitavelmente para uma relação de inclusão, primeiramente por
:1wlamento sobre o olho e em seguida na pele toda.
A contrario, o obstáculo, e mesmo a impossibilidade, que ela encontra
.-m atingir uma tal relação de corpo pela inclusão, provoca nela uma agressivi-
dade que se desenvolve em dois tempos: desde que ela tocou em minha pele,
,, em minha boca que ela se assanha, ou melhor em meus lábios, antes de ob-
1urar esta boca com sua mllo e de dirigir-se, num segundo tempo, a meu pes-
,·,>ço para tentar fazer aí um furo com seu dedo.
Encontramos aqui o transitivismo entre seu corpo e o meu; pois o que
ria exprime, não é alguma ausência do furo de minha boca, que ela teria que
1âazer, ela para que, entretanto, desde o início, a exploração de meu corpo
1inha começado pelo furo desta boca? O sentido de sua recusa desta boca em
111cu corpo teria que ser interpretado como recusa a nível de seu próprio cor-
64_ Nadia ou o Espelho
po: ela não tem boca; sua boca não existe, enquanto não pode ser preenchida
pelo acolamento do Outro ou pelo objeto do qual ele é portador. E o que faz
com que, nesta dimensão transitivista, seu cocô passa, na minha ausência, vir
por acolamento preencher não somente sua pele, mas sua hoca.
Reencontramos este duplo movimento transitivista a 25 de dezembro
quando, após ter escondido sua cabeça em meu pescoço e 111c apertado forte
em seus braços, com um olhar terno, torna-se difícil decidir quem, ela ou eu,
preenche a outra. Em todo o caso, o que ela não pode supor! ar neste dia, é
estar separada fisicamente de mim, o que a violenta e que ela confinna tor-
nando-se agressiva consigo mesma. De volta a meus braços, ela retoma a agres-
sividade contra meu pescoço. Esta violência contra mim prossc!-\ue durante as
sessões seguintes até 30 de dezembro; contra si mesmo tamtx:111; e por várias
vezes, na minha ausência, ela lambuza-se de cocÍl. como na primeira vez.
O transitivismo em torno da hoca retoma a iuh'nsidadc que tinha no
início, quando eu comi um pedaço do biscoito l' que foi l'la que vomitou.
Num primeiro tempo, a 28 de dezembro, da colora 11111 hisrnito em minha
boca, retira-o e inspeciona-o, depois raspa minha Iíny,ua t·11111 sua unha. Se ela
recoloca-o em minha e eu mordisco um pedaço, é pai a ,r111 :í lo mm seu dedo
e jogá-lo com um ar de desagrado. Na sessão segui11!l'. ria lillha 11a própria in-
trodução de um pedaço de biscoito em minha boca, so111r1111' Sl'US dedos en-
t,am nela e ela os retira rápido, ao mesmo tempo cm q11r d:i 11111a grande gol-
fada de mingau. Então, mostra-se repugnada comu 11a v,',prra; mas desta vez
não pode causar do objeto que sai de minha boca 011 da sua. mas porque um
pouco de mingau regurgitado ficou em seu pé, que ela san1dr para fazê-lo cair.
Uma outra vez por fim, ela terá este ar de desagradu (a.\ 1 de dezembro)
ocupando-se com minha boca: neste dia, não é do furo llt· minha boca que se
trata, mas de minha língua. Num primeiro tempo, ela t•111p11rra-a fecha sime-
tricamente sua própria boca. Em um segundo tempo, } sua prúpria lfugua que
ela bota pra fora, procurando a minha. Todo um jogo se rslahrlcce entre sua
língua e a minha; seu nojo surge desta descoberta metafórico tio órgão que re-
vela, sempre transitivamente, uma fantasia oral no rcenw11tro com um Real.
Se este reencontro do órgão real provoca o desagrado, 15 que ele está em con-
tradição com o efeito de interdito, ligado estruturalmt•nk ao significante.
Toda a cena só se resolve quando Nadia passa a 111:Jo l' 111 ~cu nariz, que
escorre bastante, e enfia-a inteiramente em minha boca mm viok·nLia, retira-a
sorrindo e não se ocupa mais com minha boca. Corno se da tivesse restabele-
cido o furo em sua integridade.
A partir destes episódios onde ela encontra o rcp11p.11a11da pode-se pre-
cisar a articulação da metáfora e da metonímia. A metáfora, mais perto do
Real, num efeito substitutivo reforçado pelo transitivis11111, ti aqui reveladora
do que foi recalcado. A metonímia, mais próxima do sig11ilicante, por seu
efeito próprio, liberta Nadia deste transitivismo e de uma aproximação
demasiada do Real do corpo. Tudo já estava assim colocatla par a ela. como vi-
mos, desde a segunda parte da sessão de 10 de dc1.cmhm. A passagem da
-O Pré-Especular 65
de, não podendo recolher, pelo seu olhar, o objeto metonímico e velado, isto
é, o seio, sobre meu corpo, ela se faz meu objeto em meus braços, colada em
mim, não sem tenura. ·
Um outro objeto vem no primeiro plano de cena na sua relação comigo:
os pés. fl. o primeiro objeto do corpo que ela me estendeu quando ela saiu de
sua fascinação a 10 de dezembro. A 30 de dezembro, o que a regozija muito
vivamente, não é que eu me ocupe de seus pés, mas que eu lhe coloque as
meias, isto é, que eu os vele. Ela vai agora ser calçada para ir à sessão, e, a
partir do dia seguinte, ela calça sapatos pela primeira vez em sua vida. É uma
grande alegria; o que faz com que ela me olhe rindo às gargalhadas, não é
mais somente o objeto velado, mas o barulho que ela faz sapateando, o "fa.
zer-se escutar" por este objeto que ela não vê, nem eu; objeto cuja presença
está situada ao nível do ouvido, para o qual sabemos o quanto Nádia está
aberta. Cada sessão, doravante, começará sob o signo das meias:e sapatos as-
sim que ela me vê apanhá-los, seu rosto, fechado quando chego, se iluminará
com um sorriso de alegria, e ela até sapateará.
A 31 de dezembro, os sapatos aparecem plenamente em sua função
dialética. Não somente eles são metonímicos pelo fato de não revelarem sua
relação à fantasia fundamental de desejo de acolamento ao Outro, mas eles
adquirem a dimensão para além de todo saber quando Nádia manifesta a
maior alegria ao olhar alternadamente, na sessão, seus sapatos e os meus. Sua
função de "traço-unário" evidentemente lhe faz atingir o nível de identifica-
ção, numa antecipação bem sucedida em relação a seu debate atual, ainda
mais ligada à primeira forma de identificação por acolamento, que a deixa em
um transitivismo sem saída.
Se os furos na superfície dos corpos revelam-se pelo que são: sempre a
obturar, pela primeira vez, com os sapatos, um furo pode metonimicamente
ser assumido como além da superfície, sem revelar perda minha ou dela, isto
é, sem que o Outro, saiba da perda; isto a faz antecipar-se sobre a existência
do interior de um evoltório. Este além do furo do envolucro explica a alegria
de Nádia e abre uma brecha na sua inquietude de me ver chegar para a sessão:
a metáfora de minha presença encontra-se ultrapassada pela metonímia dos
sapatos, que prefigura a estrutura do corpo que ela encontrará pelo espelho: a
estrutura tórica.
CAPÍTULO VII
O PEQUENO outro: A BONECA
O lugar metafórico do sujeito
4-16 de janeiro
rante, permanecendo em contato comigo, mas ela se afasta quando uma outra
criança agarra-se a mim.
Ensaiou engatinhar na sessão.
A-5 de janeiro, acabaram de trocá-la e de lavar seu rosto quando chego;
ela parece apavorada. Sua expressão de medo transformou-se em angústia ao
me ver e ela esboça um movimento de recuo. Falo um pouco com ela para
acalmá-la, mas sua expressão não muda. Para saber se ela quer ainda assim vir
para a sessão, mostro-lhe meias e sapatos; antes mesmo que eu os apanhe sob
o colchão, ela sapateia de alegria, ri olhando para mim e tenta arrancar meus
óculos.
Na sessão, ela arranca-os, parte e joga os biscoitos e suga energicamente
meus óculos. Ela coloca por várias vezes seguidas wn biscoito em minha boca:
eu mordo wn pedacinho a cada vez; ela j_gga e tira da minha boca com seu de-
do o que resta do biscoito em minha língua, com ar repugnado.
Com o rosto tenso, ela atira longe brinquedos, boneca e biscoito com
braços e pernas. Hesita diante da mamadeira, dá-lhe um pequeno empurrão
para derrubá-la, mas sendo este tímido demais, ela permanece de pé. Vem en-
tã:o para meus braços e me sorri. Torna a partir e, como na sessão da véspera,
derruba a mamadeira sem querer. Ela fica então furiosa com a mamadeira,
bate nela, esguicha leite por toda parte. Detém-se para lamber wn pouco o bi-
co da mamadeira, antes de atirá-la longe e não mais se ocupar dela.
Ela vem em seguida para perto de mim e lamb.e minha manga; tenho a
impressão de que ela queria me comer; digo-lhe isso. Ela bate em mim uma
vez com sua miro e fico ansiosa. Quer voltar para meus braços onde ela se
descontrai e ri.
Reconduzo-a, recoloco-a no chão: ela desloca-se agachada, pela sala to-
da, olhando para mim frequentemente e rindo.
Durante toda esta sessão, afora os breves momentos em que esteve sen-
tada em meus braços, ela esteve ansiosa e inibida em sua motricidade e em seu
balbucio. No fim de sessão, ela tocou várias vezes a fralda entre as pernas.
A 6 de janeiro, encontro-a tensa ainda: ela não me sorri de imediato;
mas como na véspera, assim que ela me vê procurar meias e sapatos, ela sapa-.
teia e ri; ela está contente, mas violenta. Tomo conhecimento q üe ela tem diar-
réia desde a véspera.
A grande inovação da sessão é que ela começa a andar; mas seu andar é
mesclado de agressividade contra mim.
Ela começa a sessão com a cena habitual dos biscoitos: ela joga um, ele
se parte, não se ocupa mais dele, mas o segundo não se parte e ela fixa-se nele
com meus óculos que ela joga, furiosa por não ter conseguido partir o biscoi-
to. Ela toma então a pegar o biscoito e violentamente enfia-o inteiro em mi-
nha boca com dedos e tudo. Retira-o daí, olha para ele furiosa por encon-
trá-lo intacto; com desagrado atirá-lo longe dela, dando um pum sonoro.
Ela vai derrubar a mamadeira, esguichar o leite por toda parte e tornar
a jogá-lJ. Suga o polegar que ela mergulhou nwna poça de leite; passeia sua
mão inteira nesta poça, sempre bastante contraída.
O Pequeno outro: A Boneca 69
Volta para meus braços por um segundo, não quer mais ficar e vai apa-
11 har o biscoito recalcirante, que ela lambe, depois atira com toda força na po-
,,,1 de leite; finalmente ele se parte, mas ela só fica realmente satisfeita depois
d,· ter dispersado todos os pedaços.
Ela vem então para meu colo e sorri, pela primeira vez um pouco des-
', ,11traída.
Torna a descer para buscar meus óculos que ela me devolve para logo
,111ancá-los e sugá-los. Pega o papel em meu bolso e parte com ele para bem
I, •r1Ke; de lá, ela olha para mim e coloca o papel na boca; volta depressa em
111i11ha direção, o cenho franzido, com uma expressão que me faz pensar que
ria quer me comer. Mas antes de chegar até mim, ela muda de idéia e apoia-se
11;1s barras do leito para colocar-se de pé, após ter jogado o papel.
Durante os dez últimos minutos da sessão, ela anda por todo o leito,
,,poiando-se nas barras, indo e vindo de onde eu estava até o ângulo oposto
"" leito, balbuciando com violência durante todo esse tempo: "ga-ga-da-da".
~~·u rosto está tenso: ela tem o ar furioso, comigo e com ela.
Quando a tomo nos braços para reconduzí-la, ela dá uma gargalhada
lrliz, e aperta meu pescoço, mas é rápido, e no corredor ela me repele.
No quarto, ela quer ser colocada no chão imediatamente; apanha um
1,, inquedo que faz barulho e agita-o com força rodando-o por cima de sua ca-
lwça. Assim que atravesso o quarto para sair, ela me segue, rápido,engatinhan-
do; como eu me volto, ela torna a buscar o brinquedo, pede para vir para
111eus braços e bate com o brinquedo na minha cabeça rindo. Ela tinha aliás
li;1tido a cabeça contra o leito ao se levantar, e descontente com isso, batera
1wle.
Nádia soluçou durante toda a sessão; isto só parou durante o retomo a
·.rn quarto.
A 8 de janeiro, encontro Nádia com a mesma expressão de medo; seu
111sto só muda, como das outras vezes, quando ela me vê pegar mefase sapatos;
1·11 tão ela sapateia de alegria e balbucia.
No início da sessão, ela n!i'o está contente, porque um médico e uma en-
tnmeira estão na sala. Ela pode pegar os biscoitos na presença deles, mas só
1•11derá jogá-los quando eles tiverem saído.
Durante toda a primeira parte da sessa:o, ela se mostra encolerizada mas
11:lo ansiosa. Ela manda tudo pro ar, tenta por duas vezes derrubar a mamadei-
' ,1 com a míro, mas não conseguindo, dá-lhe um forte golpe com o pintinho.
•Juando a mamadeira está virada, ela não se concentra nela; não a toca e per-
111anece um tempo bastante longo em muda contemplação diante dela, o ros-
111 contraído.
Após ter alargado a poça de leite, ela assanha-se na boneca, cuja cabeça
da bate violentamente, antes de fazer grandes molinetes com ela. Arranca-me
, ,s óculos, e é junto com a boneca que ela atira-os o mais longe possível.
Ela abandona a boneca após ter machucado a mão nela no decurso de
·.,·us molinetes. Ela bate então uma vez com a mão na cabeça, depois vem
para meus braços, sorri de felicidade e se faz beijar longamente.
70 Nadia ou o Espelho
pé apoiando-se no leito, dá dois passos apc.·nas e· v11ltn p111n 111,•11s braços para
se fazer mimar. Beijo-a, ela se ergue e se ass.111ha r1n 1nl11lrn hoca, puxando
meus lábios, jogando minha cabeça para tr,ís, 111a111r111I" n ni " apalpando meu
pescoço; se mostro intenção de erguer minha c.·ah,·\·a. ,•la jnp.a a para trás com
um ar furioso.
Ela desce para ir na direção da porta e k11h11 a it11p1r•,•;:Jo1 de que quer
andar, mas não na sala de sessões. Carrego-a e ah111 a l'"tla p:11;1 vn o que ela
quer: ela estica-se para o corredor balbuciando. h1I :111 ,·11 ,1 ,rrnlllluzo a seu
quarto; ela quer primeiramente ficar no chão cor1111 oo; 11111111,; Fia bate em
uma outra criança que queria tomar-lhe o carro que.• le111 na,, 111!\ns desde a ses-
são, volta-se para mim e estende-me os braços. O qtu- ria q11,•1 ,; andar com
meu apoio. Como sua fralda escorregou e entrava St'II :111,la,. ,·11 a confio a
uma enfermeira para que ela seja trocada; N,ídia rltm a. 11111111 a tomá-la em
meus braços, ela recusa que eu a coloque no eh.lo, mas q11r1 q11l' l'II a leve até
o corredor, depois até a sala vizinha; lá, ela quer a11da1 l' vai alt' 11111a caixa de
brinquedos onde ela pega wn marinheiro de borracha.
A 12 de janeiro, ela anda muito pouco e que, s11h1l'l 1td11 ,·star em meus
braços onde ela agride minha boca; ela é de nm•o 11/r,11,/11 1•l'it1I hotões de
minha blusa.
De volta a seu quarto, ela está agressiva com as 1111tias ni:mças e quer
andar.
A 13 de janeiro, ela me estende seu pé direito pata q11r 1·11 a calce, mas
recusa que cu coloque o pé esquerdo do sapato; ela loma 1, ,Ir mim e joga-o.
A enfermeira o coloca sem a menor dificuldade.
Durante toda a sesssão, ela estará muito violenl a. s11 l111'111do após ela
ter batido o carro no penico. Em seguida, ela não ousa 111.11s ap111 x imar-se des-
te e começa a rodar em volta, lançando agressivamente o cai111 diante dela pa-
ra apanhá-lo de novo e tornar a jogá-lo.
Numerosos intervalos em meus braços, onde ela se mosl Ia violenta com
minha boca na qual ela bate muito forte com o carro uma ve,.
,lt:pois que eu
lhe disse, quando ela puxava agressivamente meus lábios, qm• ria odiava a bo-
ca porque ela não teve dela tudo o que queria. Ela fica ent.io parada um minu-
to diante de minha blusa na altura de meu peito, e começa a jogar atrás dela,
por cima de seu ombro, os brinquedos e o carro com o qual ela se golpeia na
passagem.
Ela desce e começa a andar de um leito a outro halhuciando como se
dissesse injúrias.
Em seu quarto, ela quer andar para ir arrancar dos outros o que eles
têm, mas dá sobretudo a impressão de não saber o que quer. A chegada do pai
de uma outra criança a amedronta e ela se refugia em meus hraços, olhando
intensamente para o desconhecido.
Ela recusa ainda a 14 de janeiro, que eu lhe coloque o pé esquerdo do
sapato, que a enfermeira coloca facilmente, como da primeira vez.
Uma certa recusa das sessões acentua-se hoje e ela manifesta uma prefe-
rênda pelo andar, em seu quarto em um primeiro tempo.
O Pequeno outro: A Boneca 73
p;1ra trás: numerosos vai-e-vens para encontrar uma solução de passagem sem
,Incubar a mamadeita; ela não evita entretanto derrubar e repelir a mamadei-
' a que se imobiliza em meu pé; Nádia a repele ainda mais longe para baixo de
,una cadeira e não se ocupa mais dela.
Então ela apanha o biscoito com o qual vai tocar o cano da calefação.
:\handona-o em seguida para tocar no cano com a mão, intrigada com o calor
i' sacudindo a mão enquanto olha sua palma.
Em meus braços, ela arranca meus óculos, devolve-os rindo, depois co-
loca-os em meus olhos. Eu os recoloco, ato que ela espera com um olhar tra-
vesso; ela toma a arrancá-los. Ela desce para buscar seu biscoito com o qual
,·la vai bater na beirada do penico, depois de ter girado em volta dele;em se-
guida ela bate dentro do penico.
Volta-se para mim, me faz comer um pedaço de biscoito que ela mesa
ietira de minha boca com seu dedo; eu digo-lhe isto, ela me sorri, continua,
depois joga o biscoito fora.
A partir deste momento, ela fica tensa e agressiva. Ela queria aproximar-se
do penico, mas gira em volta e afasta-se. Retoma para junto de mim, esconde
sua cabeça em meu peito e me olha temamente. Ela vai maltratar um pouco a
honeca, depois toma a tomar de mim o papel que ela joga por cima da cabeça.
De novo ela coloca ternamente sua cabeça em meu peito; depois fica de
pé com o apoio das barras do leito, me faz admirá-lo, se faz beijar e recomeça.
No fim da sessão, ela não sabe mais em que ponto está, nem o que quer:
.ficar longe de mim ou vir para meus braços, fazendo os dois atos alternada-
mente; ambos mal feitos, apenas esboçados, ela ahandona um pelo outro,
com um balbucio bem modulado, ou violento como uma injúria, ou terno e
musical.
Eu a reconduzo. No quarto, ela queria andar para mim sem apoio mas
como ela não consegue, vem se fazer acariciar em meus braços; depois quer
que eu a recoloque no chão para arrastar-se até o quarto vizinho onde ela ou-
ve outras crianças brincando. Se uma criança chora, ela para imediatamente,
inquieta, e volta a meus braços para reencontrar a segurança antes de tomar a
partir.
A 16 de janeiro, eu a encontro deitada na mesa, chorando porque a
babá acabara de limpar seus ouvidos; ela tinha um corrimento espontâneo. Ela
deve ter chorado muito, seus olhos estão muito vermelhos.
Quando ela me vê, pára de chorar, mas não me estende os braços. Eu a
carrego, ela dá um breve soluço e aperta meu pescoço entre seus braços, sapa·
teia discretamente, se afasta um pouco mas wlicamente para olhar meu rosto
intensamente; ela sorri e seus dois braços estão apoiados em meu ombro.
Ela fica contente em entrar na sala de sessões. Estira o braço na direção
de novos brinquedos: uma arca de Noé com diferentes animais em madeira
74 Nadia ou o Espelho
frente. Quando ela se vê neste dia, ela quer que eu a coloque de pé sobre a
mesa defronte do espelho. Ela tem um rosto estático, quase angustiado, e ter-
mina por desviar violentamente a cabeça.
Deixo-a em pé diante de uma poltroninha. Ela segura sempre o seu ma-
rinheiro.
Alguns instantes mais tarde, escuto um choro e encontro Nádia em lá-
grimas, sem o marinheiro, sentada perto de um leito. Ela agarra-se a meu
avental; carrego-a, ela se acalma em meus braços, mas sem que eu lhe devolva o,
marinheiro. Recoloco-a em seu leito; ela se afunda de costas no colchtro e
quando fecho de novo a porta, ela começa a chorar silenciosamente, dolorosa-
mente, como eu nunca a tinha visto fazer antes.
Da metáfora à metonímia
17 - 31 de janeiro
i 11 J No dia seguinte, 17 <le janeiro, Nádia está bem melhor. Desde a sessão
da véspera, ela não teve mais diarréia, pela primeira vez em quinze dias. En-
contro-a sentada em seu leito, sugando o polegar, sorridente, como não estava
já há muito tempo. Agarra-se ao meu avental para que eu a tome em meus bra-
\'.OS. Peço a uma enfermeira para lhe por os sapatos; enquanto isso, Nádia es-
tende-me os braços sacudindo-se de impaciência.
Todo mundo constatará desde o dia seguinte deste primeiro espelho --
se bem que na época eu não tenha feito a relação - que ela mudou de aspec·
lo: perdeu seu ar de velha precoce, seu rosto tornou-se infantil, ela tem o ros-
10 de uma criança de sua idade.
Levo-a para a sessão radiante. Sento-me na cadeira baixa: Nádia verifica
11únha posição em relação à sua com um ar inquieto. Tranquiliza-se, vai tirar
os brinquedos da arca, um após outro. Hoje seus gestos são menos desajeita·
dos, mais diretos e ela não tem destravamen to. Ela está interessada em uma
pequena xícara de brinquedo em torno da qual vai girar toda a sessão: após
16-la jogado, ela a apanha e inspeciona. Digo-lhe que é uma xícara para beber,
ramo eu tinha nomeado cada brinquedo que ela tirava da arca.
Ela leva a xícara até a boca, suga-a, mas seu olhar é para a mamadeira;
ela joga a xícara, tenta derrubar a mamadeira com a mão, não ousa fazê-lo
,. procura atingí-la com um bastão de madeira que ela pegou na arca e que su-
ga antes de aproximá-lo da mamadeira. Ela não ousa ainda tocáfa e joga o
hastão cada vez mais perto, sem entretanto atingi-la. Ela só consegue derru-
há-la fazendo a arca girar bruscamente. Pega então a mamadeira e lança vio-
lentamente contra a parede; ela recocheteia e vem esbarrar cm minha perna.
Fia olha para isso um segundo, vai buscar de novo a xícara e vem para meus
braços com esta. Neles se faz beijar, joga a xícara, vai apanhá-la mas retorna a
meus braços sem ela. Novamente ela se faz beijar, coloca temamente seus bra·
,·os ao redor de meu pescoço, sua cabeça contra minha face e aperta-se cm
111im com um balbuciosinho terno. É a primeira vez que ela exprime sua ter-
11ura como uma criança de sua idade.
80 Nadia ou o Espelho
antes de afastá-lo dela; e o prato que ela manipula e larga antes de afastá-lo,
como o pano. Este prato desencadeia uma agressividade contra a mamadeira
que ela não ousa exprimir; ela se vira então para mim para que a coloque em
seu Jeito. Ela se instala aí confortavelmente, olha-me com um ar radiante, bal-
buciando alegremente. Vem, diante de mim, lamber uma barra do leito, de-
pois o meu braço. Após algumas tentativas ela consegue ficar de pé sozinha,
se faz admirar, de frente para mim apoiando-se em meus ombros, e coloca du-
rante muito tempo sua boca aberta sobre um deles babando muito. Quer re-
tornar a meu colo, onde me olha nos olhos com um ar alegre, antes de voltar
para o chão. Aí ela vai brincar com um biscoito que ela coloca em minha
mão para em seguida ª"ancá-lo vivamente e me olhar somndo e sapateando
várias vezes seguidas. Digo-lhe à medida em que vai acontecendo que ela faz
comigo o que fizeram com ela; e que comendo se aprende a amar, ser amada e
amar a vida. Ela quer então que eu a recoloque no leito; ela se deita, o rosto
virado para mim com uma expressão de felicidade. Mas ela só pode abando-
nar-me por um breve instante; senta-se e coloca uma mão em meu ombro.
Quando a reconduzo, ela me pede para ajudá-la a andar. Ela se dirige
para um outro quarto onde ela está muito interessada pela varredura. A noite,
ela não tem mais febre e seu dedo está curado.
A 22 de ja9eiro, ela tem um curativo em torno da cabeça por causa de
seu gânglio, mas não está com febre e parece em forma. Ela tem sempre a
mesma reação de excitação quando me aproximo de seu leito.
A enfermeira calça-lhe os sapatos sobre a mesinha diante do espelho.
Após ter-se assegurado que eu estou bem perto dela, ela fica muito interessada
pela sua imagem, depois pela minha quando eu me arranjo para entrar no
campo. Seu olhar vai de sua imagem à minha e da minha ao meu rosto real.
Como na véspera, ela começa a sessão ficando alguns minutos em meu
colo, bem descontraída. Pega o papel em meu bolso e joga fora; tenta pegar
o lápis, mas, não conseguindo da primeira vez, ela abandona e quer ser posta
no chão.
Ela tira alguns objetos da arca, entre os quais o prato. Em seguida, pela
primeira vez, ela recoloca alguns objetos na arca. Segurando o prato com uma
mão, ela entorna decididamente com a outra, a mamadeira; ela a toma, saco·
de, depois joga longe, olha onde ela vai parar, vira-lhe as costas, apanha opa-
pel e o suga. Digo-lhe enta:o que ela não quer a mamadeira, que ela lhe lembra
coisas más, e que ela suga o papel que vem de meu bolso.
Sobe em meus braços e, ternamente coloca sua boca em meu ombro,
arranca-me os óculos, joga-os, lambe as barras do Jeito e quer ir para dentro
dele. Como na véspera, ela se deita olhando-me, emocionada e sorridente. Sen-
ta-se e coloca o seu rosto bem perto do meu coin um ar descontraído; ela se
inclina ainda mais para abraçar meu pescoço com seus braços e, após ter lam-
bido meu ombro, volta para meu colo, abandona-se aí um momento e vai para
o chão.
De forma bastante agressiv.a, ela joga fora da arca os objetos que ela aí
tinha colocado, depois atira longe a própria arca. Do mesmo modo, ela coloca
84 Nadia ou o Espelho
em minha mato um biscoito que ela me arranca por duas vezes seguidas. Ela
percebe do outro lado do leito o papel que ela sugou ainda agora e jogou; ela
dirige-se depressa em sua direção, mas pára no caminho para apanhar um bis-
coito que ela joga atrás dela, depois o prato, que ela guarda. Deita-se então
no chão, agitando suas pernas com alegria olhando para mim.
Lança então o prato e vai a seu encontro rolando sobre si mesma. Para
pegá-lo ela fica de quatro, depois se senta: todos estes movimentos sem aju-
da, mas lhe é necessário obstinação para chegar até aí, como testemunham os
gritinhos que ela dá em seus esforços.
Volta a meus pés, hesita em me dar o prato, não o faz e vem para meu
colo para ir ao leito. Aí ela torna a deitar, muito descontraída, a cabeça virada
para mim. Ela quer que eu aproxime meu rosto, rosto que ela acaricia com as
duas mãos, rindo e dando gritinhos de felicidade. Depois ela quer que eu a
levante e tire do leito carregando-a pelos braços, enquanto ela ainda está dei-
tada: ela estreita todo o seu corpo contra o meu, coloca seus braços ao redor
de meu pescoço coloca sua boca aberta, babando, em minha fase e deriva até
minha boca. Nenhum esboço de mordedura ou de sucção. Ela emite gritinhos
sufocados de felicidade e seu rosto é fulgurante quando em seguida ela me
olha de bem perto, uma mão posta em minha face.
Após· esta grande ternura, rtenho a impressão de que ela renasce e di·
go-lhe isto; ela passeia grave e lentamente, em torno da sala, reencontrando
seu interesse pelo mundo exterior.
Quando a reconduzo a seu quarto, o compartimento está em grande de·
sordem: um monte de pó está no meio e os leitos estão em toda direção.
Nenhuma enfermeira. Hesito um pouco, mas estando apressada eu a coloco
em seu leito. Ela toma porém uma expressão tal, indefinível, que eu penso
que quando se renasce nestas condições não se pode ser colocada em um lei-
to, símbolo para ela do lugar deste abandono que tornou necessário seu re·
nascimento. Eu volto a tomá-la em meus braços;ela abraça meu pescoço, de-
pois quer andar e vai buscar dentro do monte de pó um pedaço de pão velho
qu ela suga e estende para uma outra criança.
Então chega uma enfermeira. Coloco Nadia em seus braços; ela encon-
tra em Nadia um ar radiante que a surpreende. Nadia olha para ela, sorridente,
e estende-r.1e os braços inclinando-se para que eu a carregue. Ela coloca ainda
su face contra a minha, com uma grande ternura. Sabendo muito bem que eu
não me ocupo dela todo o tempo, e aceitando isto sem ansiedade, nem medo,
ela estende os braços para a enfermeira eu parto.
A 23 de janeiro, Nadia está de pé com as outras crianças. Assim que ela
me vê, toma-se agressiva com elas. Agarra-se a meu avental; eu a conduzo, en-
cantada, segurando uma boneca que lhe servia de arma contra os outros. De-
ve-se observar que faz duas semanas que quando eu venho buscar Nadia e que
ela deve esperar para ser vestida ou calçada, ela bate em sua boca e puxa seus
lábios como por brincadeira.
Ela começa a sessão em meu colo, sempre segurando sua boneca. Olha
se o papel está em meu bolso, mas não pega nele. Ela joga a boneca e quer ser
O Espelho I: Nossa Imagem 85
colocada no leito. Olha para mim radiante, acaricia meu rosto e fica agitada;
acaba de defecar nas fraldas, mas não é urna diarréia; ela quer que eu a colo-
que no chão. Após ter sacudido a arca com violência e atirado o prato longe,
da se senta com um biscoito na mão, depois o joga e levanta seu avental, colo-
cando a mã'o em sua fralda suja, olhando para mim. Ela fica contente que eu
a leve para trocar-se. Assim que sua fralda suja é retirada, Nadia me olha sa-
pateando e balbuciando.
De volta à sala de sessões, ela vai para o leito e lambe meu ombro. Em
seguida toma-se violenta. Quer descer, pisoteia o prato e atira-o longe com um
pontapé. Ela quer apanhar o prato apoiando-se em meu braço que ela morde,
de passagem. Depois ela pega um biscoito do qual ela come um pedaço pela
primeira vez; estende-me o biscoito, toma a pega-lo com vivacidade, morde
novamente um pedaço, joga fora o resto e vem para meus braços. Retorna ao
leito, arranca e joga meus óculos. Deita-se em seguida sobre meus joelhos,
com a cabeça no vazio para que eu a levante várias vezes seguidas. Retorna ao
leito, volta para meus braços, depois me bate na boca e me morde o queixo
violentamente. Acalma-se.
Reconduzo-a ainda agressiva, mas não tensa; eu a coloco nos braços da
enfermeira.
A 24 de janeiro, eu passo várias vezes diante de seu quarto antes de ir
buscar Nadia. Eu a encontro batendo cow força seu traseiro numa das bordas
de seu leito, apoiando-se na outra borda. Ela só se alegra aos poucos e ri em
meus braços.
Na sessão, ela fica muito agressiva. Arranca meus óculos e joga-os lon-
ge, joga o que tem na arca e entorna a mamadeira puxando o pano com o qual,
ela a tinha recoberto. Olha para a mamadeira, e, apanhando a haste de meus
óculos, vem sugá-la virando-se para mim.
Volta a meus braços para fazer o mesmo exercício da véspera, o que a
descontrai. Ao descer de novo, ela morde meu braço; no chão, ela fica de pé,
quase sem ajuda, e me faz admirá-la.
Quando eu a reconduzo, o jantar já começou e Nadia se afunda em seu
travesseiro com um rosto hostil. Após minha partida, eu a escuto chorar por-
que a enfermeira demora de lhe dar um segundo prato de mingau.
A 25 de janeiro, encontro Nadia quase chorando, defendendo avida-
mento um biscoito que uma outra criança quer lhe tomar. Assim que me vê,
ela lhe dá um bom golpe e eu a conduzo sorridente.
A sessão é bem mais descontraída que a anterior. Embora ela comece
indo para o leito, ela desce logo para se ocupar da arca. Ela permanecerá de
pé quase toda a sessã'o; de minha cadeira eu ajudo-a a sustentar-se. Se ela se
afasta e eu me levanto para que ela possa continuar a andar, ela volta para
mim e sobe em meu colo ou no leito: ela não quer que eu deixe a cadeira. Se
ela insiste absolutamente em ir para longe, ela o fará sentada.
Ela tira tudo da arca sem violência, e quando a arca está vazia, ela não a
atira longe. Ela retira meus óculos e joga-os, apanha-os e quer ser colocada de
VMa ao leito; segura ainda mais óculos e, com a outra mão acaricia meu rosto,
86 Nadia ou o Espelho
em seguida baba em minha face. Ela torna a descer, sacode meus óculos; uma
haste se quebra. Ela olha intrigada: para mim e para as duas partes de meus
óculos; depois colocando a haste na arca por um segundo, ela volta a pegá-la e
não se separará mais dela. (A enfermeira vai devolvê-la após a sessão). Ela des-
ce, joga os biscoitos e suga a haste dos óculos, depois morde docemente meu
pulso.
Eu a reconduzo então a seu quarto e peço a enfermeira para guardar a
segunda parte de seu jantar, para que eu mesma possa alimentá-la. Eu senti
que era preciso a junção entre, de um lado, o que se passava na sessão quando
ela agredia e rejeitava todos os objetos-alimentos habituais (prato, mamadei-
ra ... ) e ela se dirigia a meu corpo, quer seja para bater em minha boca, morder
meu queixo ou meu punho, lamber meu ombro ou minha face, e, de outro la-
do, este alimento das refeições que ela reclama muito e do qual eu a privei
na véspera porque o retorno da sessão aconteceu no meio da refeição, pelo
que ela me fez uma censura angustiada.
Volto pois uma hora mais tarde. Encontro Nadia sentada em seu leito;
ela suga seu polegar, choraminga um pouco ao ver uma enfermeira dar pe
comer a uma outra criança. Pego seu prato, sento-me na beira do leito vizinho
e começo a lhe dar seu purê de colherzinha. Primeiro ela fica intrigada: ela
me olha, olha a enfermeira, depois o prato e começa a comer; em seguida ela
fica toda emocionada porque sou eu que a alimento; ela se joga de bruço, a
cab!lça virada para o lado para me ver. Ela sorri, feliz, cheia de vida e sapatean-
do um pouco. Por duas vezes ela se deita de costas, esperando nesta posição
algumas colheradas, com uma grande alegria.
Depois ela quer comer a sobremesa, sentada em meu colo; mas após ter
comido algumas colheradas,de frente para mim, na-o me tirando os olhos, ela
começa a comer a sobremesa com os dedos.
Quando ela acaba, eu coloco o prato e a colher sobre o travesseiro do
leito vizinho, e seu objetivo então, é apanhar a colher; é como ganhar um
combate. De fato, lhe são precisos três tentativas seguidas de três destrava-
men tos para pegar verdadeiramente a colher. A enfermeira quer fazê-la tomar
sua infusão de t11ia o que ela recusa entornando-a em seu prato, pegando a
caneca e jogando no chão. Ela retorna à colher com a qual ela bate no prato.
Em seguida ela passa uma mão no prato, depois em meu rosto, e lambe o fun-
do do prato. E'is aí Nadia segurando triunfalmente a colher. Ela me mostra a
colher, entusiasmada; não vai mais largá-la: ela parte para explorar todo o
pavimento segurando vitoriosamente sua colher. Encontrando o médico, ela
bate nele com a colher, depois vai tocar com ela todos os objetos que encon-
tra no caminho.
Retorna a seu Jeito andando. Quando a coloco de volta ao leito, sempre
segurando sua colher, ela quer que eu a tome imediatamente em meus braços.
O médico entra e se aproxima dela; ela lhe dá golpes com a colher se ele se
aproxima demais.
ó'{;,;êihÕJ:ivossa Imagem 87
olnruba a colher de minha mão e, na terceira vez, ela a toma, lambe-a com um
,11 de grande contentamento e me estende os braços.
Em meu colo, ela aperta sua face conra a minha, depois tenta fazer a
n1lher penetrar na abertura de minha blusa, para em seguida lamber meu
q11eixo. Digo-lhe que seu maior desejo é um alimento que venha de mim, uma
111corporação de mim nela, e reciprocamente dela em mim.
Reconduzo-a satisfeita, mas o retomo a seu quarto é difícil. Devo to-
má-la uma vez mais em meus braços, porque ela chorava ao me ver partir.
Fia quer sair de novo: conduzo-a por um instante apenas, dizendo-lhe que eu
,ctomarei amanhã, como todos os dias.
A 31 de janeiro, de manhã', ela se agarra em meu dedo enquanto que
uma enfermeira limpa-lhe o rosto, os ouvidos e o nariz; depois ela é trocada:
da detesta estar com a fralda suja e ela está de novo há três dias com diarréia.
Assim que ela está em sessã'o, vai até a arca, tira a xícara e o pratinho,
,. os joga antes de vir para meu colo. Aí ela fica de pé, bate em meu cabelo
,: em minha testa com duas colheres, mas sem violência. Estas duas colheres,
da as apanhou da mesa onde a enfermeira a trocou.
Depois ela suga a ponta de meu nariz mordiscando-o um pouco e ba-
hando muito, como se quisesse me absorver. Digo-lhe isto, acrescentando que
da se dá conta de que não pode fazê-lo, porque seu corpo e o meu sã'o dois;
digo também que se ela nã'o está contente com a xícara e o prato, isto é, com
11m alimento exterior que não sou ele, ela pode, como eu estou todos os dias
11a sessã'o com ela, achar como ontem, que o mingau é bom e que é bom en-
d1er-se dele junto de mim. Enquanto eu falo, ela vai até a arca, coloca aí o
pratinho, depois fica parada um segundo de pé diante do prato de mingau.
Senta-se; ela está também perto da mamadeira mas não se interessa mais por
da.
Mergulha uma colher no mingau, Iam be-a longamente, com um ar de
quem se pergunta se é bastante bom para ser comido e renunciar ao resto.
Ela recomeça e decide achá-lo muito bom, depois de ter se lambuzado toda
cm volta da boca; olha para mim balbuciando e lambendo os beiços. Então
da come com a colher um pouco mais da metade do mingau, olhando sempre
f}{Jra mim sorrindo.
No fim, ela sacode a colher no chão, quer visivelmente fazer numerosas
manchas de mingau que ela espalha com sua mão. Depois ela vira o prato e o
puxa para fazer um longo rastro; bate então nas costas do prato com suas
duas colheres, encantada, sapateando olhando para mim, balbuciando.
Neste momento ela está mais excitada que agressiva. Quer voltar para
meus braços, muito descontraída, coloca seus braços em volta de meu pesco-
~:o, esfrega sua face na minha; fico tão lambuzada quanto ela.
1
Como ela quer tornar a descer, eu a reconduzo a seu quarto. Ela não fi-
ra contente com isso. Anda um pouco, dirige-se para a mesa diante do espelho
,: quer subir nela. Coloca-se de pé em frente ao espelho, sorridente, olha mi-
11/za imagem no espelho e seu rosto perde o sorriso.
92 Nadia ou o Espelho
Isto tem relação com o que eu lhe disse na sessão, que nós éramos duas?
Só pensei nisso depois, mas parece que se trata disso, pois ela tem o rosto de
alguém que acaba de constatar uma realidade que não lhe dá prazer e da qual
se desvia.
Volta a meus braços e não quer mais deixá-los. Falo-lhe docemente, di·
zendo-lhe que estou lá, que ela está em meus braços, que ela estará aí de novo
amanhã para a sessão. Deixo-a lutando contra as lágrimas.
Tenho a impressão de que ela saiu da confusão anterior, que lhe fazia
procurar em minha boca o que ela tinha comido. Esta tomada de consciência
de sermos duas pessoas distintas - ela não está cm mim, nem eu nela -
trouxe de volta uma crise de diarréia.
Renascer é difícil, inquietante e cheio <le inseguranças, dada a sua pri-
meira experiência.
o
A 16 de janeiro, foi Nadia quem, de volta a scssào, pediu, que eu a colo-
casse de pé diante do espelho. Ela própria deu aí o salto de meu objeto meta-
fórico caído a meus pés, a seu objeto meton único: sua imagem especular. Mas
retornemos às circunstâncias concretas para Nadia e para mim, do encontro
com esta imagem.
Para Nadia, este espelho já era conhecido. Ela não pode deixar de ter
tido experiência dela, não só pelo lugar do espelho, cm cima de uma mesa <le
vestir como por outro lado, pelo que fazem as enfermeiras muito freqüente-
mente, ou seja convidar o bebê a se olhar nele ao mesmo tempo que elas.
A este propósito, pode-se muito bem dizer que o espelho privilegia o
adulto com um momento de prazer que ele de bom grado faz a criança par-
tilhar, considerando aí a imagem desta, com um olho mais etemecido do que
a própria realidade da criança que está a seu cargo. Este prazer do adulto é
o que permanece ligado para cada um à imagem especular, reforçado ainda pe·
lo traço invertido da experiência primordial do espelho que o adulto em ques-
tão conheceu e que é reavivada quando ao lado de sua imagem, aparece, no
espelho, a de uma criança - não importa qual pequeno outro que lhe faz as
vezes de completude narcísica.
Se a criança não é ainda sensível à dimensão propriamente especular de
tais experiências, ela não deixa entretanto de ser interpelada por aquilo que,
na fase pré-especular, prefigura o especular: isto é, a imagem do Outro.
Vimos em Nadia, como ela se mirava narcisicamente na imagem fasci-
nante de 10 de dezembro. Seria um retorno a esta imagem, enquanto recal-
dada, o qual tenta a 16 de janeiro, quando ela pede que eu a coloque em pé
frente ao espelho? Talvez, mas em todo caso, fracassou, como testemunha sua
imediata expressão de angústia. Ela logo desvia a cabeça e refugia-se em meus
braços. O que ela vê no espelho não tem nenhuma ligação com a totalidade
da imagem fascinante; pois no momento em que, ativamente, ela pede que eu
a coloque diante do espelho, ela se vê nele sozinha, sem um olhar para minha
O Espelho I: Nossa Imagem 93
imagem, nem para a do marinheiro que ela segura sempre nas mãos. Retoma-
remos ao papel deste marinheiro.
Em relação a mim, é preciso dizer que, no momento desta virada de Na-
dia, eu faço apenas seguí-la. Se tomo o resumo da sessão de 16 de janeiro ao
pé da letra, devo frisar que realmente escrevi isto no fim da sessão: "Esque.ci
de dizer que Nadia me pediu para colocá-la em pé diante do espelho ... " Isto
quer dizer que para mim, este espelho não se referia na época a nenhum co-
nhecimento teórico: conhecimento do qual eu não tinha nem a sombra, como
já frisei. O que estava em causa era muito mais minha própria relação ao es-
pelho e ã minha imagem especular, relação questionável; e é nisto que posso
dizer, no sentido próprio do termo, que o tratamento de Nadia faz parte de
minha análise, visto que é com ela, e por ela que eu vou abordar minha pró-
pria imagem especular, ou melhor suas relações com o Outro. Ilustração exem-
plar do lugar de ensinado do analista pelo analisante por um lado; porém mais
ainda do que o ensino, é do trajeto inconsciente essencial, que este bebê ana-
lisante vai me levar a fazer, que se trata. Depois do tratamento de Nadia não
ficarei mais diante do espelho, como antes.
Para Nadia, tudo acontece na passagem da metáfora ã metonímia no
quadro estruturado pelo significante, significante saído por mutação, da re-
laçã'o do Real dos corpos.
Pela primeira vez, a 16 de janeiro, Nadia ela mesma se faz, de corpo in-
teiro, meu objeto metafórico caído a meus pés, e pela primeira vez também,
diante do espelho, ela mesma se fez objeto metonímico. A passagem da metá-
fora ã metonímia só se radicaliza quando ela coloca em jogo seu próprio cor-
po como objeto metafórico e metonímico.
A metáfora, é o objeto parcial que ela quis recolher de meu corpo,
agora é a relaçã'o do Outro sob a forma de acolamento de superfície, é a in-
terrogação do furo do corpo do Outro que pode figurar o desejo deste sob a
forma de uma falta que já é significante - é o que funda e instaura o desejo
do Outro, ao qual Nadia deve responder para obter seu amor: o amor de trans-
ferência está inteiramente na metáfora. Mas a metáfora guarda ainda suas liga-
ções com o Real; desde então, o amor de transferência visa a inclusão do Ou-
' ro por acolamento. Não conseguindo alcançar isso por causa da resistência do
Real dos corpos, o próprio sujeito se propõe ã inclusão no Outro. É a este
ponto último que Nadia chega a 16 de janeiro, a meus pés.
Esta ação faz participar ao mesmo tempo o Real dos corpos - oh quan-
lol - e o que, deste Real, foi transposto em significante. O sintoma se desen-
volve neste campo da metáfora. Ele tem ligação como tal com o Real, isto é,
.:om a tentativa de inclusão do Outro, e com o significante que coloca nele a
interdição. A verdade que aí está ligada, é este mirada de inclusão que aparece
nn Nadia pela via do Real do corpo; e a contradição explode aí, visto que a
ordem do significante coloca a sua realização, o Real, como impossível. O
,ccalque ligado a meu chamado nominal, a 10 de dezembro, fez ao mesmo
rcmpo o Real da imagem fascinante sofrer um movimento de báscula:e colo-
rnu a interdição no significante.
94 Nadia ou o Espelho
muito, quer seja a mãe ou um terapeuta, do que de wna relação mais neutra,
que pode deixá-la na espera, não sem entretanto provocar estragos irreversí-
veis, se esta espera se prolonga.
A isto remete a diferença em Nadia, entre o objeto alucinado e o mari-
nheiro: o primeiro pode funcionar como corte e defesa contra um Outro in-
diferente ou quase - Nadia não colocava, em suas relações com as enfermei-
ras, muito pouco investidas e não privilegiadas, a questão da muda do objeto
pelo olhar do Outro; o segundo coloca em suspenso a interdição da morte do
Outro, na medida em que este Outro já está lá.
Eu estava lá antes de 10 de dezembro e neste dia minha morte era o ris-
w. Foi pelo viés de minha morte que ela me introduziu em sua vida, ao longo
de todo o seu debate, na fase pré-especular.
Somente esta última hipótese dá conta do que existe de mais profundo
neste debate, isto é a relação ao Outro, onde o sujeito corre o risco da psicose.
Nos outros casos, neurose ou perversão, o Outro está lá e não está radicalmen-
te em questão.
O objeto ou o Outro, wn dos dois deve ser perdido. Nadia tinha mostra-
do que, o que era para perder, era o objeto, quando ela o largava com seu des-
1rave automático de abertura da mão; destrave que ela tinha reencontrado
como um obstáculo justamente entre o 19 espelho. Veremos que Marie-Fran-
coise permaneceu, fixada neste objeto, com a última defesa contra sua perda
que ela tinha encontrado na fascinação escópica e o fenômeno do duplo; mas
ao preço da: anulação do Outro, isto é a psicose.
Qual foi então a conseqüência do fato de eu nã'o ter devolvido este ma·
rinheiro a Nadia? Eu institui para ela uma perda irremediável no plano real; e,
seguindo sua ati.tude angustiada diante do espelho, eu confirmei o fracasso
11ue ela aí encontrou na tentativa de preencher esta petda.
l>leste encontro com o espelho, nesta primeira vez, wna via essencial foi
aberta. E isto só foi possível pelo que aconteceu entre mim e Nadia com o
marinheiro. Nadia perdeu este objeto, mas soube que eu não o tinha. Então
se deu a viragem, da procura do objeto real em meu corpo, apesar do impossí-
vel que ela aí encontrava, ao questionamento da falta.
Desde então, nã'o é mais o Real que está em causa, mas o Imaginário e o
Simbólico que abrem a relação com a falta de objeto e que vã'o encontrar seu
campo privilegiado no espelho.
O marinheiro, enquanto que objeto da perda de Nadia, e .enquanto não
lhe foi devolvido por mim, é seu "a". Eu o confirmei neste lugar, pois, desde
o encontro de Nadia com o espelho, a imagem do marinheiro ''i (a)", que ela
1cm nas mã'os, n!o aparece: ele não é especularizável.
O Real do marinheiro, excluído do espelho, vai dar, para Nadia, consis-
tcncia ao Imaginário.
Ao lado dos registros implicados, um certo modelo aritmético é de na-
1ureza e dar conta da clínica.
98 Nadia ou o Espelho
eu aceito sua violência; ou ainda que ela atira longe a boneca após ter rachado
a mamadeira.
Todas estas cenas se inscrevem bem evidentemente em sua relação comi-
go. Não é mais certamente a relação metafórica de antes do espelho, quando
ela se bloqueava diante de seu desejo de tomar qualquer coisa sobre meu cor-
po, ou que ela se oferecia ela mesma para preencher este corpo. A experiência
do espelho, onde ela encontrou sua imagem unitária de corpo ao preço de
urna perda, a faz querer submeter meu corpo à mesma privação. Uma tal agres-
sividade que ela desenvolve, não somente contra os objetos, mas também con-
tra mim - o que dá no mesmo, pois os objetos são somente aqueles dos quais
ela me priva -, diz bastante da mudança· que sobreveio depois que ela adqui-
riu sua imagem: uma mudança que, como vimos, se inscreveu em seu rosto.
Agora, ao preço de uma perda, ela é realmente Nadia, mas ela é levada inelu-
tavehnente a me colocar neste mesmo lugar marcado por uma perda, a colocar
a "barra" sobre o "A" (~) e não mais se fazer meu objeto. A metáfora tinha
relação com a completude do Outro que vinha da imagem geradora da invidia.
A metonímia, nascida do encontro de Nadia com sua imagem, tem relação
com a unidade de seu corpo; mas, em sua busca, ela só pode assegurá-la seu eu
passo pela mesma via, a de uma perda que poderia fazer esta unidade para
mim como fez para ela.
Antes do 2<;> espelho, a busca de Nadia tropeça na apreensão do registro
real de minha perda, gerador de violência e de explosões de destruição, que
colocam eia mesma em perigo; pois se eu não sou marcada por esta perda, é
que eu conservo em meu olho a imagem que ela perdeu a 10 de dezembro; e
é aí que ela quer ainda procurá-la; como se a imagem significante para ela no
momento em que ela a perdeu guardasse seu vestígio de Real sobre a superfí-
cie de meu olho.
A metáfora só deixará plenamente lugar à metonímia pelo valor exclu-
sivamente significante da imagem em meu olho: apagamento de seu vestígio
e recalcamento. Esta perda que deve me afetar, nestas condições, é uma ne-
cessidade para que se estabeça uma relação metonímica verdadeira entre Na-
di e eu.
Podemos sacar de passagem, aqui, o que está em causa nos pequenos
sujeitos que bem encontram sua imagem no espelho, mas nâ'o puderam en-
contrar a do Outro, o que os deixa presos a uma destrutividade psicótica.
Um outro perigo é aquele que a conduta de Nadia demonstra, a 20 de
janeiro, quando, de pé, ela vem para mim e docemente tenta comer as maçãs
do meu rosto, me absorver: como se, por não encontrar minha unidade meto-
nimicamente, ela fizesse de mim seu objeto metafórico, invertendo a situação
de 16 de janeiro. Mas ela encontra aí o impossível, aquele do Real; então sua
violência desencadeia-se e, segurando-me pelos cabelos, ela abaixa minha ca-
beça, me mantém nesta posição e me bate com a outra mão. Sua violência cul-
mina quando ela quer enfiar seu dedo em meu olho: isto é, ir procurar nele ou
destruir em mim a imagem de 10 de dezembro.
O Espelho I: Nossa Imagem 101
Quando lhe dou a segunda parte de seu jantar, o que eu tinha previsto
acontece: isto é, que o ritual da refeição a salve de inibições anteriores. Ape-
nas intrigada no início, ela sorri bem depressa e manifesta sua alegria de ser
alimentada por mim no contexto e no tempo de sua refeição no meio dos ou-
tros. :É verdade que o descalomento da imagem metafórica já aconteceu, mes-
mo se Nadia custa a aceitá-lo. Neste dia, a metáfora do acolamento dos corpos
pode ceder lugar à colher cuja definição temos agora de delimitar.
1. Quando eu chego, encontro Nadia sentada em seu leito, sugando
seu polegar, choramingando, diante do quadro de uma enfermeira que alimen-
ta uma outra criança com a colher. Com certeza não é mais a imagem fasci-
nante, que foi recalcada; mas resta o auto-erotismo oral, que ainda há pouco
tempo diante da cena, comandava movimentos de sucção; era então sua l ín-
gua que lhe dava prazer, hoje é seu polegar. O objeto estava então colado, in-
cluído em seu olho; hoje ele está no exterior: o prazer não é mais ta:o primá-
rio como era e ela choraminga diante desta nova realidade. A realidade para
ela é que existe um Outro, um Outro que dá ao pequeno semelhante um obje-
to supostamente satisfatório: o alimento. Este objeto que ela espera do
Outro tem agora mais peso na realidade do que a satisfação auto-erótica, que
ela só utiliza na falta de coisa melhor para alcançar seu objetivo.
2. Também, como vimos, ela aceita ser alimentada por mim no contex-
to habitual da satisfação de sua necessidade; o prazer que ela manifesta en-
quanto eu a alimento, testemunha que se trata de outra coisa que da ne-
cessidade, e que ao seu auto-erotismo faltava o Outro. Também, neste lugar
do Outro que eu sou, a questão de sua relação comigo não pode senão logo
aparecer; e sua necessidade satisfeita deixa inteiro o problema de seu desejo,
um desejo que ainda permanece entravado quanto ao objeto-alimento: aliás,
não é uma demanda de ter mais alimento que ela me dirige, e ela vai buscar o
objeto ligado ao mesmo tempo a meu corpo e ao seu. A colher responde bem
particulanncnte a esta definição, na medida em que ela concerne para Na-
dia, não somente o oral mas também a pulsão escópica, referência à cena pre-
cedente diante da qual ela choramingava sugando seu polegar.
Esta colher é o prolongamento de meu corpo; cu a coloco junto com o
prato sobre o travesseiro do leito vizinho e lá Nadia quer logo pegá-la, ou me-
lhor deve conquistá-la.
3. Com efeito, o que então se passa demonstra que para ela não se
trata somente de pegar um objeto, mas de dar-lhe um lugar essencial e lógico
cm sua relação de corpo comigo. Também, quando ela a quer pegar, lhe
é preciso não menos que três ensaios, seguidos de três destraves para largar
antes que ela o pegue realmente: é a prova de que a colher permanece ainda in-
111trada de seu estatuto de objeto de corpo, este objeto que ela queria tomar
de mim em todas as fases anteriores e cuja característica por demais marcada
pelo real inibe sua iniciativa.
4. Quando ela pegou de verdade a colher, é a influsão de tt1ia que ela
recusa; no momento em que a enfermeira quer lhe fazer beber na caneca, ela
a entorna em seu prato e joga-ó no chão, depois bate no prato com a colher.
104 Nadia ou o Espelho
mas sim o objeto que ela pôde promover, a 25 de janeiro, estatuto de Vorstel-
lungsreprasen tanz.
A colher só pode, entretanto, reconduzí-la inelutavelmente à sua rela-
ção ao objeto-alimento, sob a forma do mingau. É, o que domina todo o de-
bate das quatro sessões seguintes, entre 28 e 31 de janeiro, que culmina no
39 espelho.
Após a antecipação explosiva do papel metonímico da colher a 25 de
janeiro, é todo um circuito que Nadia faz nestas quatro sessões, para interro-
gar sua própria relação ao objeto-alimento. Ela é ajudada aí, certamente, pelo
papel de instrumento, e mesmo de mediador, da colher, tanto em sua relação
com o alimento propriamente dito, quanto em sua relação de corpo comigo.
Mas a importância que ela confere a este objeto testemunha que ela se lembra
da dimensão metonímica que ele teve de saída. Com efeito, a colher lhe ser-
ve, mais do que para comer, para impor uma marca tanto ao alimento quanto
a meu corpo, e mesmo à sala de sessão.
Em relação ao alimento com o qual Nadia mantém uma relação tão di-
fícil, a colher serve de recurso. A 29 de janeiro, com a colher numa mão, é
sua outra mão que ela mergulha no mingau, antes de lambê-la e de desenca-
dear sua agressividade contra tudo que é alimento: a mamadeira que ela afasta
com um gesto lento, consciente e voluntário, o prato que ela vira e sobre o
fundo do qual bate com a colher, depois os biscoitos. Ela repete em seguida
a imposição desta marca com sua colher, batendo no chão, na parede, no
leito, não sem satisfação. Retornando ao meu colo é em minha boca que ela
bate. Ela continua assim o que eu chamei de "batismo do mundo exterior",
mas desta vez, não é mais sem ambiguidade e vitoriosamente, como antes:
a imposição da marca da colher guarda o vestígio do conflito que liga Nadia a
estes objetos que ela "batiza". A energia que ela gasta aí, sua tensão, dizem
bastante da resistência do Real que ela deve forçar.
Este Real, é sobretudo aquele de sua relação de corpo comigo, no qual a
colher representa um papel de pivô. Num primeiro tempo, a 27 de janeiro,
como vimos, ela quis colocá-la em minha boca, após tê-la lambido, ela mesma,
no início da sessão: ela reencontrava aí a dimensão transitivista do início do
tratamento, sua boca e a minha confundidas.
A 30 de janeiro, ela tenta colocar a colher, na abertura de minha blu-
sa, reencontrando sua busca da fase pré-especular que visava o objeto de meu
corpo. Mas, desta vez, não é mais sua cabeça que ela mergulha em minha blu-
sa. É, aliás, a última vez que ela indica uma buscado seio:a colher adesrealizou.
Desde então, a colher vai lhe servir para retomar o que era, na fase pré-es-
pecular, da topologia da superfície de nosso!) corpos. Se ela se serve um pouco
dela para comer serve-se dela sobretudo para espalhar o mingau, de início no
chão, onde ela procura mesmo apagar as manchas que ela faz aí, mas sobretu-
do em mim quando, a 30 de janeiro, ela sacode a colher de mingau em minha
lace e meu cabelo. A 29 de janeiro, ela arrancou meus óculos e tateou a super-
l'ície de meus olhos, num retorno ao escópico pelo órgão do olho, que define
:1 relação dos corpos em duas dimensões: relação topológica de superfície.
108 Nadia ou o Espelho
19 -- 8 de fevereiro
Retoma à arca, verifica que meus óculos continuam lá. Logo, ela vai
1irocurar sua colher que ela coloca ao lado de meus óculos, depois levanta a
arca, estreita-se contra si, olha dentro dela, a recoloca no cha'o, e vai para per-
f o da parede brincar com o pratinho. Retorna à arca, retira dela meus óculos
e sua colher, tateia o fundo vazio e recoloca aí os dois objetos. Tudo isso bal-
buciando muito, e vindo de tempos em tempos apoiar-se em mim.
No fim, ela torna a subir em meus braços para ir depois, muito feliz,
explorar a sala.
Reconduzo-a a seu quarto. Ela anda um pouco. É preciso muito tempo
para que ela aceite ir para os braços de uma enfermeira; falo com ela doce-
mente, até que ela aceita.
Peço que a coloquem em contacto com dois ou três maiores que brin-
cam na sala vizinha. Mas, na ausência de qualqur enfermeira, a experiência dá
errado: mais tarde eu a escuto chorar, deprimida, e chamar "mama-mama".
No dia seguinte, 7 de fevereiro, chego infelizmente tarde demais para
que ela tenha uma verdadeira sessão. Eu a conduzo entretanto por um curto
momento à sala de sessão onde ela se mostra muito dinâmica, balbuciando
ininterruptamente explorando a parede e a janela: tudo a interessa.
O jantar já começou quando eu a reconduzo. Recoloco-a em seu leito,
mas ela não pode tolerar esperar sua vez e logo começa a chorar estendendo-me
os braços. Só a recoloco em seu leito quando chega sua vez; a enfermeira,
sentada na beira do leito vizinho, a alimenta: Nadia come rápido e bem; mas,
como ela me olha e eu sinto que ela quer que eu fique perto dela, eu o faço
falando com ela com a enfermeira. Ela não pede que eu a alimente, mas ter-
mina seu jantar com o pedacinho de chocolate que ela tinha trazido da sessão.
A 8 de fevereiro, eu conduzo Nadia, pela primeira vez, até a sala de ses-
sões onde eu tenho hábito de fazer os tratamentos, sala que se situa em outro
prédio.
Ela fica bastante tensa durante o trajeto e, na sala, eu a mantenho sen-
tada em meu colo. Embora permaneça contraída, ela olha tudo que tem na
sala e não se absorve com os objetos tomados de meu bolso, como ela tinha
feito quando eu a levei para ver a árvore de Natal. Decide pegar os biscoitos,
que ela joga, e o chocolate que ela guarda e lambe. Entretanto, sua expressão
permanece estática. Ela quer ser colocada no chão, dá dois passos e estende
os braços olhando para a porta.
Reconduzo-a pois a seu quarto. Seu ar estático desaparece. Ela perce-
be sob um leito uma caneca, que uma criança acaba de deixar cair. Ela pega a
caneca, senta-se e faz como se quizesse beber.
Conduz-me a um patamar, e percebe outra caneca sobre uma mesa.
Quer que eu a coloque de pé sobre esta mesa de onde ela pega a caneca.
Assim, ela tem duas: com uma delas, ela bate cada vez mais forte em um pra-
to, e com a outra bate na parede. Sinto uma violência que tem necessidade
de se exteriorizar; e penso que seria bom tomá-la em sessão, cinco minutos,
na sala habitual, para que ela possa se exprimir, pois a nova experiência foi
dura.
116 Nadia ou o Espelho
pelho, onde ela repete a mesma cena do 49 espelho, um quarto de hora antes.
Ela está menos tensa e mais sorridente -- é verdade que deixo meu braço em
torno dela -- para seguir no espelho, seu movimento de procura do estatuto
de sua imagem. O que está em causa, é o que corresponde à existência desta
imagem, como se esta só pudesse persistir sobre o fundo da consistência do
mundo exterior; como se o significante só pudesse se articular nestas condi-
ções metonímicas, sobre a consistência de um mundo de objetos reais, cuja a
única qualidade é consistir.
A colher lhe permitiu, pelo seu papel de significante metonímico, eli-
minar um excesso de consistência dos objetos; o espelho a leva a restahelecer
uma consistência dos ohjctos, que a ex-sistência de sua imagem e da minha
arriscava de contaminar. e mesmo anular.
A 2 de fevereiro, Nadia recomeça o mesmo circuito da véspera, entre a
superfície de meus olhos que ela toca longamente e a superfície da pele: a
minha e a sua, unidas pela lamhuzeira. Do mesmo modo, ela explora a parede
da sala até o furo da jenela. Pela primeira vez, ela se dirige a mim não mais
num "ma-ma-ma" invocante, mas num "mama" que me designa.
O 7V espelho concerne sobretudo esta imagem de nós duas que ela ti-
nha apenas olhado quando do 4V e 5<.> espelhos. Se ela sorri, descontrafrla, ela
ainda interroga entretanto a superfície do espelho hatendo nela com um
cubo, o ar excitado, como ela fizesse sobre a superfície do espelho. estames-
ma tcn ta tiva de descolar a imagem que o t ransitivismo lhe havia imposto: o
que estava cm seu olho forçosamente estava tamhém no meu.
No momento do H~' espelho, momento que inicia a sessão de 8 de fc.
vereiro, Nadia faz a prova inversa, concernente à importância do Real de meu
corpo e a de minha imagem: como cu realmente tive que me ausentar por duas
vezes enquanto a preparavam, ela se desvia francamente do espelho quando
passamos diante dele. O que ela perdeu quando cu me ausentei a impede de
refazer a mesma experiência de perda diante do espelho.
O que se segue, durante a sessão. é um retrocesso quando Nadia volta à
mamadeira. Colll certeza. seu interesse por ela não é mais o mesmo de quando
ela era um objeto consum ívcl ou não; a mamadeira é aqui apenas o objeto de
uma dcst ruição. Durante todo este tempo, Nadia halhucia imperiosamente e,
por duas vezes, vem e esconder cm meu colo dizendo "mama-mama". Decor-
rente do fato de minhas ausências iniciais. que ela suportou tão mal. a mama-
deira tomou-se um objeto logrador e enganador; é enquanto tal que ela a re-
jeita ativamente e que ela lhe suprime o acesso oral. enfiando o bico da mama-
deira no interior do gargalo. Fora de questão sugar o que engana.
Sua afliç:ro tomou-se violência contra o objeto que me representa: repe-
tição de uma violência que não está tão distante e que ela conheceu entre o
l~l e o 2~l espelhos. quando sua destrutividade era a conscqiiência de minha
ausência de imagem no espelho. Esta violência era ela própria aliás, a repetição
da violência pré~spccular que apareceu depois que Nadia tomou a mamadei-
ra. a 12 de de:,.embro. Não é pois surpreendente que este mesmo ohjeto seja
sustituição e metáfora do Outro cm sua insuficiência. No dinamismo que ani-
O Espelho li: A Virada 119
111:1 Nadia neste momento está fora de questão que ela faça deste objeto subs-
111 utivoo cent~o de um pesar onde ela se refugiaria, fixando-se nele; ela ape-
11:1s exprime aí sua violência bem compreensível contra mim e eis porque o
oll'slocamento para a mamadeira é aqui somente a ocasião de uma peripécia
·1.·m nenhuma forrnaação de sintomas. Aliás, a substituição deste objeto meta-
lorico, substituição não sucessiva mas simultânea é ocupada como vimos, pela
q1U1er: Nadia não deixa, com efeito, de comer de mãos cheias o mingau, lam-
liuzando-se copiosamente, reservando-me a colher vazia que ela coloca em mi-
nha boca - um lôgro para mim, desta vez - antes de colocá-la em abrigo, para
11111 uso futuro, na arca.
Depois do que, novamente, como entre o 49 e o 59 espelho, ela quer
i,xplorar a casa e tatear a consistência de todos os objetos; e ela reconhece a
hanheira. A cada vez que ela toca um objeto, ela ri olhando para mim;isto é,
da se assegura em mim de uma outra ordem, não aquela dos objetos, mas a
significantes no Outro que eu sou.
Estas são as premissas do que ela procurar no momento do 99 espelho.
Ela aceita então plenamente nossa 'imagem encontrando-se em meus braços
e faz aí a experiência de acolamento de sua face contra a minha, sem esque-
cer no fim, entretanto, uma relação de corpo mais direta onde ela esconde
sua cabeça em meu pescoço.
É verdade que resta alguma coi~a desta ordem a articular, visto que ela
cm seguida me leva até a janela para olhar lá fora. Será que se trata do reliquat
desta violência que a tinha impedido, quando do 8<? espelho, de aceitar a ima-
gem especular e a tinha forçado a retornar aos objetos?
Ela agora não mais pedirâ o espelho até 9 de fevereiro. O que domina
as cinco sessões seguintes - talvez tenha relação com a fragilidade, para Na-
dia, da imagem especular, sobretudo a minha com a qual ela fez a experiência
de 31 de janeiro, quando do 3<? espelho-, é um certo retomo à colher e à sua
função metonímica. ·
Num primeiro tempo, a colher, enquanto significante que a representa,
emparelha-se com a boneca, representação muito mais figurativa dela mesma.
Esta boneca, a 4 de fevereirio, deveria substituir a colher no fundo da arca,
mas como Nadia não consegue fazê-la entrar aí, recoloca a colher.
Esta substituição, mesmo que ela não tenha sucesso, indica bem, entre-
tanto, a passagem sempre possível de um representante metonímico a um re-
presentante metafórico, e mesmo a possibilidade para um sujeito de afetar um
representante metonímico com uma dimensão metafórica. O resto da sessão
indica aliás que se trata realmente de uma tentativa desta ordem. De fato, Na-
dia volta à mamadeira por um instante, levando-a mesmo muito brevemente à
boca antes de jogá-la. Em seguida ela se faz saltar em meu colo, reencontran-
do o prazer do corpo do início de sua análise. Passa em seguida à exploração
da parede, depois da janela de onde ela olha o exterior - o que ela vai fazer vá-
rias vezes ao longo destas sessões: isto é, ela retorna ao que fez, a 19 de feve-
reiro, antes do 49 espelho, antes pois do momento onde o buraco se integra
120 Nadia ou o Espelho
1 1IJ A 9 de fevereiro, encontro Nadia de pé, apoiada num leito. Assim que
me vê, ela se sacode violentamente, depois sacode o leito. Sinto-a violenta.
Venho para junto dela, ela continua a se sacudir e me olha furiosa: ela está
zangada comigo, tanto por ontem, como porque ela acaba de me ouvir falar
no corredor com uma outra criança que tenho em tratamento.
Eu havia escutado a enfermeira dizer: "sai, não!" tomando a fechar a
porta. Quando eu entro, uma criança chora:é Nadia. Digo-lhe que ela me ou-
viu falar, mas que a porta estava fechada, e que eu compreendo que ela esteja
decepcionada.
Ela continua a sacudir o leito por um breve momento, depois esten-
de-me os braços, mas mantém sua expressão furiosa.
Durante toda a sessão ela se mostra violenta. Não é a violência deum mês
atrás, dirigida para os objetos e para o mundo exterior; então, ela ficava des-
contraída quando somente eu estava em causa, e se mostrava de um negativis-
mo violento em relação a tudo que não era eu: ela fará liquidação do passado
graças à relação estabelecida. A violência hoje é dirigida contra mim, eu sou a
sua causa. Se ela ainda a exprime através dos objetos, não é mais com ames-
ma tonalidade, esta violência se dirige particularmente a mim, pelo rosto e pe-
las atitudes. Eu a fiz nascer: ela tem novamente emoções; e eu a faço sofrer.
Ela pega na arca, um peniquinho de plástico. Joga-o uma vez, depois
não se separa mais dele até o fim da sessão. Ela o suga, mordisca, faz de conta
que bebe nele e mergulha sua mão aí várias vezes. Tira da arca o pratinho e a
xícara, mas joga-os e não se ocupa mais deles.
Vem para meu colo, desce, sapateia, lambe a colher do prato de mingau,
joga o chocolate, volta para meu colo com um biscoito. Como um pedacinho,
me faz comer também, torna a comer, desce de novo segurando-o sempre.
Pega o marinheiro dentro da arca, volta a colocá-lo aí e joga os cubos.
Ela se senta com seu peniquinho de plástico e depois de ter aí mergulhado sua
mão, faz de conta que bebe nele; ela não está contente. Digo-lhe que ele está
vazio, assim como o pratinho e a xicrinha, mas que tem leite na mamadeira e
mingau no prato. Como única resposta, ela pega a mamadeira e, segurando-a
com o bico para baixo, sacode-a para que o leite esguiche no chão, depois a
coloca direito segurando-a pelo bico.
122 Nadia ou o Espelho
Volta para meus braços, deita-se neles, sempre furiosa, toma a descer
perto da arca paa pegar aí um carrinho que ela quer botar no peniquinho:
ela o coloca bem dentro, mas retira sua mão derrubando o penico, o que faz
com que o carro caia; duas vezes, entretanto, ela deixa o penico na boa posi-
ção e o agita, encantanda, com o carro dentro que ela toma a pegar então
coma mão.
Ela quer ir para o leito; joga o peniquinho, coloca seus braços em volta
de meu pescoço, bem apertado, para que eu a tire do leito, e permanece em
meus braços.
Reconduzo-a a seu quarto: ela está em meus braços e quer que eu para
diante do espelho. Ela coloca sua face em minha boca e segue intensamente
no espelho os beijos que eu lhe dou. Ela volta então a cabeça, coloca sua boca
em minha face, lenta e demoradamente como ela me tinha visto fazer no espe-
lho ao mesmo tempo em que sentia o beijo. Cena surpreendente, sobretudo
pela emoção profunda, tão presente na expressão.
A separação em seguida é muito difícil, tanto mais que Nadia viu uma
criança chorar no colo de uma enfermeira e que ela desviou muito violenta-
mente a cabeça deste espetáculo, apertando bem forte meu pescoço com um
braço e me mostrando a porta com o outro. Eu a acalmo um pouco, mas ela
chora ainda quando eu me vou.
A 1O de fevereiro, eu calço Nadia: não há enfermeira. Ela não joga seus
sapatos e me estende os pés, balbuciando muito.
Na sessão, ela joga para fora da arca o pano, para pegar o peniquinho;
ela vai com ele para perto do prato de creme, lambe-o e mordisca-o, seu olhar
no creme; balbucia. Ela leva sua outra mão à boca e vejo que ela trouxe de
seu quarto uma casquinha de pão que ela come.
Ela mergulha sua ma:o no penico e balbucia imperiosamente ao consta-
tar o vazio. Digo-lhe que ele está vazio, sim, mas que tem leite, creme, biscoi-
tos e chocolate. Ela lambe ainda o peniquinho, fazendo seu olhar ir de mim
ao prato. Oigo-lhe que talvez ela queira o creme no seu penico: ela estende-o
então, eu o encho um pouco e devolvo-lhe. Ela o pega com um rápido balbu-
cio imperioso, olha para o interior e esvazia-o sobre o chão: um ar de intensa
satisfação.
Ela vem para meu colo, e deita-se, muito abandonada, rindo e dando
gritinhos. Brinca um pouco com seus pés e torna a descer.
Joga fora da arca o pratinho e a xícara, pega uma esfera transparente
contendo água e três patos. Volta para meu colo com esta esfera; sacode-a,
olha para ela, tenta uma vez agarrar um pato e me faz participar muito deste
jogo. No fim, ela brinca com esta esfera, quase deitada em meus braços.
Ela a lança no chão, desce, empurra-a diante dela com uma bola, indo
explorar a parede, o vidro, e retomando por várias vezes para deitar-se um mi-
nuto em meu colo.
Ao reconduzí-la, devo colocá-la de pé diante do espelho. Ela retoma o
jogo do beijo da véspera, com a mesma intensidade, bate no elpelho, o ar ex-
ciado, mas não agressivo. E1a percebe nele uma enfenneira que ela conhece;
O Espelho Ili: O Terceiro Termo 123
ela olha muito interessada esta imagem, e sem a menor hesitação, nem tatea-
mento, volta.a cabeça para ver a realidade da enfermeira. Ela ri desta desco-
herta, envolve meu pescoço em seus braços para colocar sua face contra a mi-
nha. Eu não senti desta vez que ela se refugiava em mim, mas que ela me fazia
participar da alegria desta descoberta, deste progresso para a vida.
Ela estava muito feliz, e este foi o grande acontecimento da sessão.
A 12 de fevereiro, Nadia foi recolocada em seu antigo quarto. Eu a en-
contro balançando-se muito forte, batendo suas costas contra a beirra do lei-
to. Ela não tem um bom a.specto, seus olhos têm olheiras como quando ela
está a ponto de ter otite.
Na sessão, ela tira o pano da arca, balbuciando "pa-pa-pa ". É a primeira
vez que escuto dela este balbucio, entretanto o primeiro da criança, em geral.
Ela diz muitas outras palavras de sua linguagem infantil, palavras que têm
sempre a mesma estrutura começando sempre com um "a": "a-ga, a-pum,
a-da, a-co", além de "ma-ma-ma" e "mama".
Ela coloca um pedaço do pano na boca, depois joga-o para pegar o peni-
quinho, que ela vem lamber no meu colo. Ela desce daí para ir derrubar tudo
qu está em cima da mesinha: prato de mingau, chocolate e biscoitos; ela der-
rama uma parte do mingau na mesa, o resto no chão. Ela segura a colher, es-
palha largamente a poça de mingau sobre a mesa com a mão, mão que ela
lambe apenas uma única vez. Ela anda um pouco em volta do leito, depois vai
recolocar o pano na arca, de onde ela tira o marinheiro e a esfera com os pa-
tos. Prepara-se para brincar com ela no meu colo quando a esfera lhe escapa;
ela balbucia com um tom furioso. Ela desce para apanhá-la, recoloca-a na ar-
.ca, esvaziando esta última de todo o resto, e colocando sua colher ao lado da
esfera.
Ela quer ir para o leito, mas nele, ela não se sente à vontade, como aliás
em todo lugar hoje. Ela coloca seus braços em volta do meu pescoço, sua face
contra a minha; eu a tiro do leito assim e ela mantém esta posição durante al-
guns minutos. Depois ela vai procurar sua colher na arca, mas a recoloca aí
tão rápido quanto a colocou: ela acaba de perceber uma prancheta com folhas
de temperatura sobre o aquecedor, e quer que eu lhe dê isso. Eu a coloco no
chão, e ela inspeciona esta prancheta em todos os sentidos, diverte-se em abrir
e fechar a tampa móvel, colocando seu pé no interior. Ela termina por sentar-se
porque escorrega com seus chineleos; ela tenta retirá-los, mas sou eu que te-
nho de fazê-lo; ela mesma retira suas meias com um intenso balbucio. Ela pe-
ga uma meia em cada mão saconde-as em todos os sentidos balbuciando, de-
pois bate os chinelos no chiro. Ela quer colocá-las na arca junto a esfera com
os patos. Em seguida levanta a arca e aperta-a contra si, encantada. Recolo-
ca-a no chão devagarinho para bater, com as meias, na poça de creme, balbu-
ciando, excitada e descontente.
Reconduzo-a a seu quarto e deixo-a com uma enfenneira. Tomo-a mais
urna vez porque ela chora, e parto. Mas escutando-a chorar com uma tristeza
monótona, eu retomo e a tomo ainda uma vez. Ela chora um pouco apertan-
do meu pescoür~'~t~r~:.~es~~,momento'. a,estagiári~r~i~a i~~fets·
... -.:·'\!,-_..., ...
124 Nadia ou o Espelho
Após esta cena, ela vai até a mesa, lambe a colher, serve-se dela para
,krrubar o chocolate e um biscoito, depois vai colocá-la na arca. Volta a
1wgá-Ia para retornar ao meu colo, derrubando a mamadeira na passagem;
depois ela lambe e me faz lamber a colher. Volta para o chão e se diverte, du-
1ante alguns minutos, lançando a colher do outro lado da arca, inclinando-se
por cima dela para apanhá-Ia e recomeça balbuciando alegremente, com um
111sto sorridente e traquina: "co-da, a-pum-co-da!".
Ela retorna à mesinha, para colocar a colher no prato; vira-se apontando
"l'U traseiro para mim, olhando meus joelhos e espera. Eu a sento em meu co-
lu, ela tenta puxar a mesa para aproximá-Ia; ajudo-a a fazer isso, ela me olha,
,adiante. Ela se instala confortavelmente, apoia sua cabeça alguns segundos
,·m meu peito, olhando para mim ternamente, depois senta-se à mesa. Aproxi-
111ando o prato com um mão, ela enche a colher de banana amassada com um
,·sto desajeitado e come. Ela parece se perguntar se é bom; depois deixando a
nilher sobre a mesa, ela come e me faz comer a maior parte do conteúdo do
prato. No início, seu rosto está tenso, por causo do que cai de banana no
meio do caminho, em sua fralda, suas pernas ou em meu avental; depois ela
se descontrai e acha isso divertido. No fim, ela vira lentamente sobre a mesa
" que resta no prato e joga este último no chão.E/a desce e sobe com os dois
11és no prato emborcado. Depois ela bate alternadamente com cada pé no fun-
do do prato, com a atitude, a expressão e o balbucio de alguém que toma pos-
se de alguma coisa cobiçada. Em seguida ela vira para mim um rosto radiante
e triunfante.
Ela volta para meu colo para daí espalhar com a mão, a banana em cima
da mesa e comer um pouco de vez em quando.
Reconduzo-a bem em forma. Ela retomou a expressão que tinha antes
da otite.
Ela quer ir para diante do espelho. Olha-nos a( e, sem tirar esta imagem
dos olhos, coloca sua cabeça em minha face, depois em meus lábios. Eu a bei-
jo, ela me so"i no espelho, depois volta-se para beijar-me, após ter colocado
seus braços em volta do meu pescoço.
Ela aceita mais facilmente ir para os braços de uma enfermeira, quando
cu me vou.
No dia seguinte, 17 de fevereiro, encontro Nadia de pé, apoiando-se
com uma mão nos joelhos e uma enfermeira, e com a outra batendo na crian-
ça que está sobre o colo desta última, que lhe diz rindo, que ela está se tor-
nando ciwnenta demais.
Na sala, ela anda muito, com uma alegria enfusiante, derruba o prato
de compota, mas fica com a colher.
Ela quer sair, e explora toda a casa, inclusive a cozinha, onde ela pede
geléia, o que ela tem entretanto, o hábito de recusar. Mas hoje ela come da
geléia numa colher, pede mais e guarda a colher que ela lambe enquanto eu
subo com ela de volta a seu quarto.
Sobre o patamar, nós encontramos Robert, o "menino do lobo", que
nos segue. Ele estende-lhe uma pequena decoração da árvore de Natal, ela pe-
128 Nadia ou o Espelho
ga, encantada e olha para mim agitando as penras de alegria. Após a partida
de Robert, um outro menininho estende-lhe um biscoito, e o rosto de Nadia
resplandece enquanto ela agita ainda mais as pernas.
Minha partida será difícil.
A 18 de fevereiro, encontro Nadia em seu leito, leito que sacudindo, ela
avançou até diante da janela, para olhar lá fora. Tento - novamente, como a
8 de fevereiro - levá-la até a sala onde eu faço habitualmente os tratamentos,
diante do fato de que ela gosta de mudar de ambiente e de fazer descobertas.
Sua respiração é mais forte durante o trajeto, mas ela nlío está estática; ela
tem um pouco dr medo e seu reflexo é apertar-se mais contra mim, sobretudo
durante o curto instante em que passamos de um prédio à outro; então ela
apoia sua testa cm minha face, como se ela quisesse entrar aí.
Sentada em meu colo como sempre, ela olha tudo o que tem na nova sa-
la. Agarra com a mão o arroz recoberto de chocolate e suga-a. Percebendo en-
tão uma caixa na qual eu coloquei areia - caixa que estará mais a seu alcan-
ce do que a caixa grande de areia -, ela balbucia "co-da" e desce para mergu-
lhar a mão na areia. Em seguida ela leva sua mão à boca; a areia gruda em sua
boa pegajosa, ela faz uma careta, começa a chorar e vem para meu colo. Lim-
po-lhe a boca e ela desce de novo para andar balbuciando "co-da" Ela olha
para a arca e seus brinquedos habituais, mas não toca neles.
Ela toma a subir cm meu colo, traz para si o prato. Abre a boca e olha
alternadamente para o arroz e para mim, inclinando-se para o arroz e espe-
rando. "Você quer'!". Ela sorri e aproxima seu prato de minha mão. Dou-lhe
uma colherada de arroz; ela quer que eu lhe dê a metade do arroz; no fim,
ela come sozinha, inicialmente com a colher, depois com a mão.
Enquanto eu lhe dou de comer ou enquanto ela come sozinha, ela sapa-
teia de alegria, seu rosto se ilumina e ela me olha, radiante.
Ela desce de meu colo para inspecionar o conteúdo da arca; embora não
jogue nada da louça de brinquedo fora, ela guarda para si uma xicrinha.
Retorna à mesa onde, com a colher, ela joga no chão chocolate e bis-
coitos e depois dirige-se para a porta.
Reconduzo-a a seu quarto, de onde ela quer sair de novo para que eu
a leve para passear. Fico ainda com ela por um quarto de hora, e custo a dei-
xá-la.
Até l Çl de março, quando eu venho buscá-la, ela faz comigo o que eu
faço com ela: eu venho, eu parto; pois ela começa por partir para voltar em
seguida para meus braços. Nestas sessões, ela me exprime seu ressentimento
por eu não estar lá todo o tempo, e paralelamente ela se liga a uma enfermei-
ra que se tomou de amores por ela, ou melhor que ela seduziu, pois esta en-
fermeira nunca teve gosto por ela, e era até bastante dura: agora, ela ensina
muitas coisas a Nadia.
Nadia queria muito de mim. Ela está ávida, mas ela é capaz de explorar
esta avidez fora de mim e tanto mais que ela tem ressentimento para comigo.
A 22 de fevereiro, ela queria ir para a nova sala de sessões, mas não ou-
so passar de um prédio a outro porque faz muito frio.
O Espelho Ili: O Terceiro Termo 129
Ela vai assim de cômodo em cômodo com seu penico, como ela tinha
feito na primeira vez em que ela tinha pegado triunfante, sua colher. Ela
balbucia enormemente; de tempos em tempos se faz carregar, sem largar seu
penico. Ela me olha, repetidas vezes, de uma maneira terna e um pouco brin-
calhona.
Quando ela deixa o penico momentaneamente, ou ela anda ao redor de-
le balbuciando intensamente, ou ela vai para outro cômodo, unicamente para
retornar depressa, encontrar e pegar de novo seu penico.
Ela volta da sessão andando, sempre segurando seu penico. Vem para os
meus braços e quer ser colocada de pé diante do espelho. Obviamente, ela
quer se ver nele, segurando o penico com as duas mãos. Ela ri encantada e sa-
code um pouco o espelho, excitada; ela apoia aí o penico um segundo para
apertá-lo ainda mais forte contra o peito.
Retorna a meus braços com seu penico, e avista uma chave no armário.
Ela quer pegá-la para colocá-lo dentro do penico. Ela me faz sentar para brin-
car com a chave dentro do penico. Ela quer que eu a ajude a defender seu pe-
nico se uma outra criança procura tomá-lo.
Neste dia, ela quase fala.
o
Esta terceira fase comporta sete espelhos, entre 9 e 16 de fevereiro; ain-
da mais um a 1'? de março, que será a última referência explícita de Nadia ao
espelho.
De pronto, a 9 de fevereiro, Nadia introduz na sua relação comigo, o
ciúme propriamente dito. Não é mais a invidia do início, inteiramente voltada
para o outro suposto satisfazer-se com o que lhe traz o Outro. Agora a censu-
ra violenta e agressiva dirige-se a mim, ao menos aparentemente.
É para dizer que a passagem da invidia ao ciúme seria a passagem da re-
lação a outro. à relação do Outro? A questão só pode ter resposta se retomar-
mos os pontos de estrutura inerentes às situações de invidia e de ciúme; o
que nos levará diretamente, como veremos, à introdução do terceiro termo no
espelho.
A invidia, no início do tratamento, só se manifestava (exclusivamente)
em minha presença. Logo eu era necessária como presença real e única; não
me parece que em minha ausência Nadia tenha dado provas disso, a julgar
pelo testemunho das enfermeiras que falam de seu estado de retraimento
amorfo. Estão pois presentes, neste primeiro quadro, um Outro único, não
passível de troca, presente no Real, e um outro, qualquer que seja ela, pas-
sível de troca: é preciso e é suficiente que o outro aproxime-se ou chame a
atenção do Outro.
O quadro do ciúme, é completamente diferente quanto à sua estrutura.
O outro aí não é mais único; não tenho mais necessidade de estar realmente
presente. As enfermeiras testemunham isso quando dizem que Nadia se toma
"verdadeiramente ciumenta demais". O Outro tornou-se passível de ser troca-
O Espelho Ili: O Terceiro Termo 131
do, mesmo se, na transferência, é para mim que Nadiaexprime mais particular-
mente sua intolerância ao me ver ou me escutar dando atenção a uma outra
criança. Da invidia ao ciúme, o estatuto do Outro mudou: ele adquiriu sua
imagem especular para Nadia, mas mais ainda ele está em vias de - e é o que
vai acontecer ao longo dos últimos espelhos - tomar um lugar que, longe de
ser único, entra em conexão com outros Outros. Isto não quer dizer evidente-
mente que eles tomariam um lugar de Outro do Outro - o que remeteria Na-
dia a esta multiplicidade de Outros que ela sempre conheceu, sem nenhuma
relação possível com um dentre eles. Se existe relação possível para ela, é
que o Outro adquiriu sua dimensão significante, metonúnica de seu próprio
desejo, e que ele pode assim entrar em conexão com outros significantes - é o
caso de meus óculos e de sua colher. O Outro perdeu sua dimensão exclusiva
de Real, exterior a ela, e ganhou aí a possibilidade de ser representado por
outros adultos.
Somente, o outro não seguiu o mesmo caminho; ele permaneceu ainda
no estado de objeto marcado demais de Real e, a este título, atrai a agressivi-
dade e a violência destrutiva de Nadia - aquela que ela mostrou, por exem-
plo, a 19 de fevereiro, quando eu a encontrei batendo a golpes redobrados em
duas crianças, só me olhando então para ver como eu aceitava sua violência:
era o mesmo destino que ela reservava então à boneca. Por certo, esta di-
mensão de Real do outro se atenua no jogo da relaça-o com o Outro, para ad-
quirir uma marca significante sob a forma do lugar de objeto metafórico que
ele pode ter para o Outro. Mas o que ele não vai adquirir, é uma imagem espe-
cuar - nunca ela o vai olhar no espelho; ele conserva assim uma característi-
ca não especularizavel que o coloca na categoria de objeto "a": o pequeno
outro sempre teve para Nadia, desde o começo do tratamento, este papel
de objeto "a" do Outro.
Assim, o ciúme concerne principalmente o Outro, e a interrogação do
sujeito à falta do Outro, o que Nadia começou a fazer, lembramos, desde o
27 de outubro, por antecipação, quando retirei a mão do leito do vizinho.
O ciúme, é a pergunta que o sujeito faz ao Outro, do que ele é, ele
mesmo, para este Outro; e não mais, como a invidia, a pergunta do objeto
do Outro que satisfaz o outro.
O lugar do Outro vai evoluir, quando dos espelhos seguintes. A 9 de fe-
vereiro, após ter expressado seu ciúme no início da sessão, e em seguida, sua
agressividade contra mim, é ao espelho, em fim da sessão, que Nadia pede a
confirmação de ser ela de fato meu objeto, quando põe sua face contra a mi-
nha boca e segue intensamente no espelho os beijos que lhe dou. Ser meu
objeto, mas qual, é o que importa: meu objeto oral, e com a condição de que
antes ela o tenha desembaraçado de toda dimensão de devoração pelo viés
mais radical, isto é, fingindo beber no penico vazio, confirmando mesmo o
vazio aí enfiando a mão antes de jogá-lo, e dele não mais se ocupar. O objeto
oral do qual se trata, é um "nada": todo Real dele foi afastado, dele resta
apenas o significante e é então o objeto metafórico propriamente dito: desco-
132 Nadia ou o Espelho
lado do Real. Nlfo resta mais que a profunda emoção que Nadia demonstra
frente ao espelho, para tomar o lugar de um tal objeto para mim.
É o mesmo jogo que ela refaz no dia seguinte quando esvazia no chão
com satisfação, o pouco de creme que ela me pediu para verter no peniqui-
nho, isto antes de ir para diante do espelho representar a mesma cena da vés-
pera. No momento deste 119 espelho, ela bate em sua superfície com um ar
excitado, mas não agressivo, como se ela tateasse mesmo esta superfície, su-
perfície que tem também relação com um espaço. De fato, ela acaba de fazer,
ao longo da sessão, a experiência do espaço, quando encontrou na arca a es-
fera transparente metade cheia d'água com os patos. Ela não deixou, certa-
mente, de explorar a superfície desta esfera, nem também dde tentar agarrar
um pato, em vão, e aliás sem insistir, antes de brincar com a esfera como com
uma bola fazendo-a rolar no chão. Como sua experiência do espaço da arca,
onde ela tinha colocado meus óculos e sua colher, a 6 de fevereiro, a tinha
incitado a explorar o cômodo em que estamos, com prazer, ela vai da mesma
forma, após seu jogo com a esfera com os patos, tatear a parede, porém mais
ainda o vidro da janela, isto é, o que a separa do mundo exterior. A sala de
sessão transformar-se na esfera; em seu jogo ela tanto se coloca no exterior
em relação à esfera, quanto no interior de um continente comigo, em relação
à sala; exatamente como ela nos havia colocado metonimicamente na arca.
Mas aqui, os patos estão fora de todo alcance, exatamente como o que ela vê
no espelho. O fundo da arca que ela tateava manipulando aí meus óculos,
que ainda guardavam uma densidade real, é substituído pela superfície does-
pelho, na frente dos objetos que ela vê nele.
Acontece o passo decisivo que ela faz, neste 119 espelho, quando ela
percebe a imagem de uma enfermeua que ela conhece. Ela estanca diante des-
ta imagem e volta-se em hesitaça:o para a enfermeira, rindo e pressionando sua
face na minha. Um passo decisivo, certamente, e que vai lhe demandar ainda
algum trajeto, visto que o espelho se separa radicalmente da vidraça e do fun-
do da arca, e que aí se instaura realmente o mundo das imagens; muito par-
ticularmente, aquela do Outro, que perde aí seu caráter de ser único, com o
apagamento do Real de seu corpo pelo especular; é entretanto uma caracterís-
tica do Outro que Nadia não vai facilmente aceitar perder, embora, como
sempre, por antecipação - e esta não é a primeira - ela só tenha mostrado,
neste primeiro encontro do terceiro tempo no espelho, a alegria de sua des-
coberta. Uma alegria que está longe de compensar a perda que ela sofre visto
que, desde o dia seguinte, ela tem um péssimo aspecto como quando ela está
a ponto de ter uma otite, uma otite que ela terminará por fazer a 14 de feve-
reiro.
A perda que ela sofre com este encontro com o terceiro termo no es-
pelho, é o que ela não conheceu ainda em meus braços diante deste espelho,
visto que, a perda incluída na imagem especular, ela podia tão logo compen-
sá-la refugiando-se no Real da consistência de meu corpo, e mesmo só indo
para diante do espelho, com sua face colada na minha. A imagem da enfer-
meira, qualquer que seja a alegria de Nadia na descoberta desta imagem na
O Espelho Ili: O Terceiro Termo 133
procura é o espelho: ela me diz isso conduzindo-me até ele. O que ela aí re-
presenta, não sem prazer pois que ela ri, é a persistência de nossas imagens:
ela se faz beijar, sacode o espelho, beija-me olhando-me no espelho. Noto
neste momento que ela nunca tentou beijar no espelho uma imagem nem a
sua nem a minha, fazendo bem a separação entre o especular e o Real.
É então que ela percebe a estagiária no espelho, sorri para sua imagem
e volta-se para a estagiária, mas só aceita realmente ir para os braços desta
última quando eu lhe falo: isto é, que eu lhe dou minha palavra para que ela
aceite este Outro que é a estagiária. Em seguida Nadia vai empenhar-se ativa-
mente em aceitar esta última, não de uma maneira passiva colando-se nela,
mas de uma maneira ativa andando pela sala segurando a estagiária apenas
com uma mão.
É preciso crer que, no fundo, sua alegria não é sem mistura visto que, a
14 de fevereiro, ela tem uma otite e muita febre e que, no dia seguinte, não
somente ela tem diarréia como também perdeu um quilo.
Agora ela se interessa muito por continentes, quer seja uma gaveta que
ela esvazia cm seu leito, ou, na sessão, uma caixinha russa que ela encontra na
arca. Ela mergulha seu dedo indicador na caixinha dizendo "co-co-co", anteci-
pando aí o que ela dirá quinze dias mais tarde, ao reclamar o penico na sessão.
Em seguida ela mergulha aí sua língua, depois quer colocar a caixinha em mi-
nha boca, indicando pela primeira vez a estrutura do corpo, como uma estru-
tura continente da boca ao ânus. O primeiro de todos os continentes foi a ar-
ca, com os objetos mcton únicos; ela quer fazer a mesma coisa com a caixa
russa quando ela tenta aí colocar meus óculos, mas, como não consegue, ela
retorna à arca, coloca meus óculos nela, depois sucessivamente o marinheiro
e a esfera com os patos. A arca mantém assim seu papel de reserva de signifi-
cate, antes que o leito de sessão. tome o seu posto: é ela mesma, desta vez,
que soube aí com a caixinha e o pano que ela agita como um lenço.'
Ela se serve do pano na volta, para velar a estagiária; depois ela esten-
de-lhe os braços e recusa-se rindo às gargalhadas. No espelho que se segue, o
149, ela aceita melhor a imagem da estagiária, confrontando-a à realidade des-
ta, como ela havia feito comigo, no início, diante do espelho. Mas, se então
meu corpo real era seu refúgio contra a imagem, aqui o Real da estagiária só
provoca recusa em Nadia. Entre minha imagem e meu corpo, ela escolhia meu
corpo; entre a imagem e o corpo da estagiária, pode-se dizer que ela escolhe a
imagem. É corno se, na dimensão do Real do Outro, só pudesse existir um - a
invidia do início - e que a presença de um outro Outro só pudesse passar
através da imagem, esperando a dimensão última do significante. 1: esta di-
mensão que Nadia encontra justamente depois do 159 espelho.
Este espelho, ela o reclamou depois que eu retornei na hora do jantar,
porque eu a ouvi chorar de impaciência e sobretudo porque pensei que ela
tinha me escutado falar com uma enfermeira. Ela estende-me os braços, eu a
tomo, ela se acalma, não porque o alimento, mas porque, em meus braços,
O Espelho Ili: O Terceiro Termo 135
esquecendo o alimento que ela parecia esperar, ela olha pela janela o jardim
sob a neve. Se em seguida ela quer ir para dentro do espelho, é para aí recon-
fortar-se, fazendo-se abraçar e abraçando-me, olhando nossa imagem.
Ora, o que não havia podido tomar lugar neste espelho, o terceiro ter-
mo, não é mais a estagiária, mas a colher. Esta colher não é mais simplesmente
a sua, mas também a minha, visto que ela a coloca em minha boca; e, mais
ainda, ela apanha uma segunda colher, uma para ela, outra para mim. é pro-
vável que este jogo de colheres só possa perfazer-se num sentido sigrúficante
porque, na hora de seu jantar, não fui eu que a alimentei e por que, durante
este tempo, eu falei. Esta separação da comida e da colher, ela a demonstrou
por sua vez quando, após ter apanhado a segunda colher, ela come de mão o
que sobra num prato. ela volta a meus braços com as duas colheres e, lá,
repete a palavra "colher", muito orgulhosa, dando a este significante a reali-
:zação de uma nomeação articulada.
O circuito do terceiro termo se fez entre o "pa-pa-pa" de 12 de feve-
reiro e a "colher" de 15 de fevereiro. O que nós percebíamos deste terceiro
termo no "pa-pa-pa" ficou ilustrado e demonstrado entre o 119 e o 159 es-
pelho: da articulação da imagem ao Real do corpo do Outro - como terceiro
e como lugar metafórico da falta na imagem especular - à nomeação da co-
lher como significante desta falta, anulando ao mesmo tempo o Real embara-
çante deste terceiro termo. Após a interrogação da imagem especular, a no-
meação libera Nadia, exatamente como minha nomeação a havia feito sair da
fascinação, a 10 de dezembro; ela tinha então encontrado aí o significante
que a representava (S 1 ): ela refez um circuito que a conduziu ao significante
metonímico do Outro (S 2 ), que é também aquele do pai mítico.
Desde o dia seguinte, a colher caiu deste lugar de significante que reme-
teu Nadia ao significante primordial do Outro; ela é apenas um objeto com va-
lor de uso. Nadia também a coloca no prato de mingau, pede para sentar à
mesa e começa a comer de colher.
Quanto ao 169 encontro com o espelho, que é o último desta série -
visto que o 179 espelho só acontecerá quinze dias mais tarde - Nadia conclui
aí sobre o estatuto da imagem, que ela experimenta sorrindo, antes de aceitar,
desta vez, ir para os braços de uma enfermeira quando eu vou embora, como
se o terceiro termo não colocasse mais problema.
O trajeto de Nadia desde o início aparece agora claramente como uma
colocação sucessiva de significantes primordiais: "Nadia", "mama", "pa-pa-pa ".
A colher, enquanto Nadia não a nomeou, veio tomar o lugar do objeto da fal-
ta., isto é, um lugar no campo do significante, o que Nadia não podia dizer,
atravancada que estava pelo Real de meu corpo que ela sabia dever perder e
ao mesmo tempo não aceitava. A nomeação da colher devolveu a falta ao
"pa-pa-pa" cuja existência ela tinha inicialmente colocado através do signifi-
cante, e a colher a Nadia para que realmente se servisse dela. Seria preciso, de
algum modo, que ela colocasse o lugar da falta para lhe dar um representante
metonímico, o que o espelho não podia lhe traz.er na oscilação que ela fazia aí
entre a imagem e o corpo Real. E esta dimensão de apaziguamento que apa-
136 Nadia ou o Espelho
rece em filigrana no 16Q espelho; é por isso que ele é praticamente o último,
como um ponto final.
Nos quinze dias que se seguem, Nadia muda muito; estas mudanças não
são senão os efeitos do que ela conquistou em um mês, quanto à sua estrutura.
Suas relações com o mundo exterior dos objetos estão impregnadas da
maior curiosidade. É possível tentar novamente uma mudança da sala de ses-
sões. Longe de ficar perdida, como da primeira vez, neste novo ambiente, ela
descobre novas coisas, particularmente a areia. Nesta época também, ela gosta
de passear pela casa; na cozinha ela se mete a provar a geléia que até então
recusava em seu quarto.
Em relação aos adultos, por volta do fim de fevereiro, ela amarra laços
sociais mais ricos, particularmente com uma enfermeira que se tomou de amo-
res por ela, ou antes que ela seduziu, o que tempera muito a avidez que ela
tem por mim. Aliás, ela faz comigo o que eu faço com ela, na minha alter-
nância de presença e ausência: quando chego, ela começa por partir, para re-
tornar em seguida a meus braços.
Em relação às outras crianças, ela está atonnentada por um certo ciúme
que faz com que ela lhes bata sem inibição, mas ela é também capaz de brin-
car com elas, e mesmo deles receber alguns presentes.
A sessão de 1~ de março é uma sessão-pivô pela aparição em primeiro
plano, de chôfre, dos significantes "co-co-co" e "pi-pi-pi".
Se não é a primeira vez que ela se depara com o penico na sessão, visto
que ela já tinha se interessado por ele entre 9 e 14 de janeiro, ela hoje se inte-
ressa por ele sem inibição nenhuma; o que não era o caso no início de janeiro.
A I o de fevereiro, ela tinha também evocado o penico mergulhando seu dedo
na caixinha russa e dizendo "co-co-co".
Quando ela pega o penico, ela parece muito particulannente encantada
em constatar que este recipiente tem bordas, um interior: descobre bem para-
doxal para um bebê que, desde há muito tempo, conhece este objeto pelo me-
nos duas vezes por dia. Mas se trata mesmo de uma descoberta, como se o pe-
nico até então não tivesse tido existência própria e que ele tivesse feito parte
de seu corpo nos moldes do seio, parte do corpo do pequeno sujeito, e que
obtura, no início, o orifício da boca. O penico tapava seu orifício anal, e fazia
parte de sua pele.
É o espelho, onde ela demanda explicitamente para ver-se segurando o
penico com as duas mãos, que dá a este objeto, como a todo objeto, um brevê
de existência, e que dá a ela, Nadia, um outro orifício a seu corpo. Então, ela
ri, encantada, sacudindo o espelho como que para fazer ainda a prova da per-
sistência da imagem. Ela apoia também o penico no espelho, este limite do es-
paço que marca todos os objetos humanos reais com um além do virtual.
Como em seu corpo, o espelho cria para o penico um interior, um exterior,
bordas, um fundo, uma falta também: é a chave do armário que ela coloca
detro que simboliza este objeto da falta.
E a última vez que Nadia se refere explicitamente ao espelho.
Neste dia, ela está no limite da palavra. Ela tem 19 meses.
CAPITULO XI
O CORPO FURADO, TÔRICO
4 de março - 23 de abril
Ela joga os bombons, me faz lamber a colher, pega um biscoito que co-
me andando; retorna, pega o outro, que ela deixa ao ver o penico. Agarra este
último com alegria dizendo: "cocô". Coloca-o perto da caixa de areia que ela
contempla antes de partir para explorar o patamar, balbuciando e rindo.
Ela retoma à sala, joga os brinquedos que estiro sobre uma bancada e
torna a partir com uma boneca de borracha que ela suga. Enquanto ela suga
sua boneca como se fosse comida, olhando para o prato, digo-lhe que ela não
quer comer, porque ela acredita que eu a abandonei, e logo, que eu nã'o quero
que ela coma; acrescento que a comida está na sal para ela fazer dela o que
quiser. Como única reposta, ela vira-se rindo na direção de minha cadeira, da
qual toma posse como de uma mesa, com suas duas mã'os bem na horizontal;
ela quer que eu coloque o prato em cima da cadeira e me pede que eu lhe dê
de comer com a colher; uma vez, ela me toma a colher para me dar de comer.
No fim, ela me olha devolvendo-me a colher rindo docemente e balbuciando,
exprimindo no conjunto: "Não é que estava bom?". Digo-lhe entã'o que ela
achou bom o que ela me pediu para lhe dar de comer, como, eu achei bom o
que ela me deu de comer. Ela quer beber na colher o leito da mamadeira que
ela me fez botar no prato.
Ela apanha a boneca, coloca-a na caixa de areia, depois volta a pegá-la
para jogá-la. Ela mergulha sua mã'o numa caixa com areia; eu devo limpá-la
quando a reconduzo, ela está radiante.
Eu agora a vejo em média quatro vezes por semana e não mais todos os
dias como antes.
A 11 de março, por uma razã'o que desconheço, Nadia tem o rosto está-
tico e eu não a sinto à vontade.
Ela volta-se bruscamente para a mamadeira que ela bebe inteira em
meus braços. Então ela tem uma expressão muito confiante; ela se descontrai
e em seguida reencontra seu dinamismo e sua atividade.
A 12 de março, ela anda um pouco sem apoio, e fica muito alegre com
isso. Na primeira parte da sessão, ela come o mingau de tapioca e toma a ma-
madeira. Na segunda parte, ela faz jogos agressivos e dinâmicos com o penico,
e quer comer o mingau com a ajuda de meus óculos.
Ela manifesta interesse pela areia e pela água, e anda muito com ou sem
minha ajuda.
A 14 e 15 de março, eu devo vê-la em seu quarto, porque ela tem muita
febre; mas ela não está abatida e não compreende que eu não posso levá-la
para a sessão. Ela não aceita, me bate, mas sem angústia; logo ela é capaz de
um comportamento muito terno.
A 17 de março, eu a encontro num quarto do fundo, sozinha com uma
criança cega. Colocaram seu leito aí, porque ela passa para o leito dos outros,
sobretudo para o de um menininho. Ela está de pé perto de seu leito, sapa-
teando; ela tem um aspecto ruim, e seu ouvido apresenta corrimento.
Ela começa .a sessão sentada em meu colo. Suga a colher que ela mergu-
lhou no mingau de tapioca e me faz sugá-la; joga-a para pegar um biscoito.
Parte entã'o em exploração, balbuciando.
140 Nadia ou o Espelho
Ela retorna para pegar uma pequena locomotiva que ela suga olhando
para o prato. Eu lhe interpreto seu desejo de comida e sua inibição;digo-lhe
que ela acredita que sou eu que lhe retiro a comida porque não a levei para a
sessão as duas últimas vezes. Acrescento que ela sofria dos ouvidos e que eu
não quero que ela fique doente.
Então ela larga a locomotiva, me dá a colher e abre a boca. Dou-lhe três
colheradas, depois ela pega a colher e joga-a para comer com a mão. Ela co-
meu com satisfação, balbuciando, as colheradas que eu lhe dei; e, nesta medi-
da, ela pode ser agressiva sem angústia. Agora ela está extremamente dinâ-
mica.
Elit desce de meu colo e, durante um quarto de hora ela vai e vem entre
o patamar e a sala de sessões, dizendo: "cocô ... pi... pi ... mamã... mamã!". No
começo ela ignora o penico, que está, como sempre, num canto da sala. Depois
ela pára diante dele, dá alguns puns sonoros e parte novamente. No fim, ela se
acocora a alguma distância do penico, mas não senta nele.
Digo-lhe que ela tem o desejo de me dar este presente, mas que também
hoje ela nã'o está contente comigo. Acrescento que só podemos dar aquilo
de que estamos certos de possuir como propriedade, e que o jogo com o peni-
co a assegura que eu admito sua propriedade e sua independência. Penso ao
dizer-lhe isto que ela sempre foi colocada duas vezes por dia no penico.
Reconduzo-a a seu quarto muito melhor que antes.
A 19 de março, ela tem um bom aspecto. Toda a sessão é denominada
pela sua alegria de andar sem ajuda e sem apoio, jogo que ela recomeça inde-
finidamente, vindo enroscar-se em meu pescoço entre as suas tentativas.
Ela come, me faz comer, e ignora o penico. Mas ela parece notar a pri·
meira vez o bebê no berço: ela olha para ele, imóvel, depois torna a partir,
muito dinâmica. Ela olha a areia, mas contenta-se em olhar.
Quando eu a reconduzo, ela quer sair de novo porque a enfermeira nã'o
se ocupa dela imediatamente; ela está bastante agressiva olhando-me, mas eu
não lhe abro a porta.
A 21 de março, ela me ajuda pela primeira vez a vestí-la.
Ela começa a sessão em meu colo, come um pedaço de cada biscoito an-
tes de jogá-la. O novo ritmo das sessões desencadeia sua agressividade.
1
Ela pega a colher, me faz lambê-la, preenche-a uma vez para ela, come e
joga-a. Ela desce de meu colo, leva a caneca à sua boca, faz o gesto de beber
como se aí tivesse alguma coisa. Ela estende-a na direção da mamadeira e es-
pera. Coloco aí um pouco de leite; ela olha este leite e derrama-o consciente·
mente no chão com um ar maravilhado.
1
Uma vez de volta a meu colo, ela começa a comer e a me dar de comer
pegando o mingau de tapioca com a mão. Ela parece experimentar um prazer
profundo em me dar de comer assim, logo a me fazer lamber seus dedos, que
ela lambe logo depois. Em seguida ela me faz mergulhar me dedo no mingau
para sugá-lo voluptuosamente e digo-lhe que isto é uma outra maneira de
mamar.
O Corpo Furado, Tórico 141
papel retorcido que forra a caixa e brinca com ele: ela dobra-o, sacode-o, co-
locando um objeto dentro deste papel e retirando-o.
Ela não está de forma alguma contente quando eu a reconduzo.
A 8 de abril, dizem-me que Nadia está muito chorosa hoje. Encontro-a
deitada no chão, em lágrimas. Ela tem azul de metileneo no nariz e acaba de
sofrer o tratamento dos ouvidos; estes escorrem ainda.
Assim que está em meus braços, ela me sorri e inclina seu corpo na dire-
ção da porta.
Ela vai fazer uma excelente sessão. Ela mostra que ela conquistou de
verdade a sala; ela sente-se aí tão à vontade quanto no quarto que servia de
sala de sessões há ainda três semanas. Durante o trajeto, ela sabe onde vai: ela
babucia de alegria e agita suas pernas.
Ela começa por lamber a colher, me fazer lambê-la, e ela me pede para
llie dar um pouco de compota. Ela joga o coelho e o passarinho balbuciando e
rindo. Ela percebe neste momento, no leito, a mamadeira que eu esqueci de
tirar após a sessão de uma outra criança. Antes de pegá-la, ela brinca com o
hico, puxando-o e enfiando-o alternadamente; depois ela senta-se no chão
com a mamadeira, sacode-a para fazer esguichar um pouco de leite, e aban-
dona-a.
Após ter me pedido duas collheres de mingau e ter observado que eu
coloquei seus biscoitos e seus bombons na caixa da sessão anterior, ela vai co-
locar no leito uma pequena cesta de verduras. Ela come um pedaço de biscoi-
to, vira a caixa, torna a pegar a cesta de verduras, para sentar-se com ela junto
da caixa. Aí, ela tenta tirar da cesta dois animaizinhos de madeira; ela conse-
gue, recoloca-os, retira-os, depois coloca-os definitivamente dentro da cesta
após tê-los colocado por um breve momento na caixa.
Com um balbucio de prazer, ela chupa um bombom e me faz chupar
um outro segurando-o. Ela continua a chupar todos dois sentada em meu
colo.
Ela toma a descer para me pedir um pouco de mingau, derruba a cane-
ca de leite e, após ter posto todos os brinquedos no chão, senta-se no meio de-
les. Ela brinca demoradamente de mudar o conteúdo das caixas de encaixe,
de revirá-las em todos os sentidos. Ela encontra cubos que ela bate um contra
o outro, alegremente; inspeciona um caminhão fazendo bravo com as mãos
e olhando para mim. Ela volta de pé para a mesa para me pedir o resto da
compota.
Depois ela vai a areia e defeca, rindo: aliás ela tinha dito "cocô"
dois minutos antes. Eu a sinto pouco à vontade; reconduzo-a a seu quarto,
onde eu troco suas fraldas pela primeira vez, ela tem uma expressão de grande
felicidade. Em seguida recoloco-a no chão e durante dez minutos, ela anda de
um cômodo a outro; eu só faço seguí-la.
Ela coloca dois brinquedos no leito de uma outra criança, mas não é
uma doação porque, assim que a crainça segura-os, Nadia puxa os brinquedos
t' é o mais forte que ganha, alternadamente a criança e ela. Este jogo me é di-
que eu esperei você muito tempo; eu posso brincar e você arreliar com a ma·
madeira, porque sei que eu a encontrarei de novo e que será bom".
Ela faz, em seguida, o mesmo jogo com a compota. Reconduzo-a bem
em forma, e ela estende os braços para a enfermeira olhando para mim com
um ar malicioso.
A 15 de abril, quando eu chego, as crianças brincam no chão e Nadia fo.
ge de mim como a cada vez que eu deixo de vê-la por vários dias. Depois ela
via-se, sorri e estende-me os braços. Assim que estamos fora de seu quarto,
seu rosto se ilumina; e ela entra radiante na sala de sessões.
A característica desta sessão será o abandono de Nadia em relação a
mim. Durante longas seqüências, ela ficará deitada em meus braços, seu corpo
em relaxamento total, brincando com os cubos e com peças da louça de brin-
quedo.
Não trocarei suas fraldas. Ela comerá todo o prato de compota com os
dedos, dando-me um pouco de vez em quando, e eu dando-lhe da mesma ma-
neira, ou seja com a mão. Ela olhará repetidas vezes para a areia, mas não to-
cará nela.
A 17 de abril, quando chego, Nadia suga seu polegar. Ela estende-me os
braços muito sorridente, e se faz beijar várias vezes durante todo o trajeto.
Ela começa a sessão sentada em meu colo e olha sorrindo para o prato
de compota. Entretanto, ela parece esperar alguma coisa antes de poder apro-
ximar-se do prato. Eu a levei para a sessão com a fralda molhada e pergun-
to-lhe se ela quer que a troque. Ela estende a mão para a fralda e eu a troco
no leito. Enquanto faço isso, ela balbucia sem parar, agita as pernas e brinca
com um coelho que ela apanhou em cima da mesa.
Assim que está no chão, ela come uma colherada, estende-me a colher,
joga a caixa e o passarinho, e sobe em meu colo; é aí que ela quer que eu a ali-
mente, deitada ou sentada, sorridente. Ela come apenas a metade do prato
desta primeira vez; o resto ela comerá mais tarde.
Ela vai buscar uns bombons na caixa não fica contente com o fato de
eles não estarem desembrulhados e só me pedirá para fazê-lo após dez minu-
tos consagrados a exprimir seu descontentamento: ela joga os briquedos, sobe
em meu colo, pede compota para recusá-la, balbucia como se ela me invecti-
vasse, bate os cubos um contra o outro. Depois ela finalmente decide me dar
um bombom para eu tirar o papel, e assim que ela tem os dois bombons, um
em cada mão, ela, radiante suga-os alternadamente. Imediatamente depois ela
retorna ao meu colo para me fazer sugá-los. Como eu não possC\ lhe dar de
mamar, sugar o que eu suguei é o único substituto que lhe dá a impressão de
me absorver como alimento.
Reconduzo-a, ela está muito bem, mas ela lastima dei'Xar a sessão. Seus
ouvidos estão curados, ela não tem mais diarréia.
A 18 de abril, quando venho buscá-la, primeiro ela anda afastando-se
de mim, depois tendo chegado até a parede, volta-se para mim e vem em meu
encontro estendendo-me os braços. Sua fralda está muito suja, mas eu a con-
duzo assim mesmo e a trocarei na sessão.
O Corpo Furado, Tóríco 147
É interessante constatar que Nadia não sente - como ela fazia anterior-
mente - como uma frustração de minha parte que eu só a reconduza depois
do início do jantar. Recoloco-a em seu leito, sorridente, e tiro-lhe eu mesma a
roupa para não fazé-la esperar mais tempo. Nada disso parece causar-lhe pro-
blema, mas somente a sessão de amanhã dirá o que é.
A 23 de abril, as crianças ainda não levantaram e a atmosfera do quarto
é morna. O rosto de Nadia ilumina-se quando ela me vê. Ela me ajuda muito
quando eu a visto: ela estende-me os pés um após o outro para colocar as
meias e os sapatos, sorrindo. Ela toca em meus óculos mas não os arranca.
Sentada em meu colo ela começa pedindo duas colheradas de pudim,
depois ela pega a fralda limpa - que agora faz parte do material desde que ela
pediu para que eu a trocasse na sessão - e espera. Troco-a no leito; não volto
a colocar-lhe o macacão, porque ela não faz questão.
Em seguida, ela fica um momento deitada em meus braços, feliz, me pe-
de de novo um pouco de pudim, mas eu largo a colher quando ela diz "não".
Então ela leva seu polegar à boca, mas abaixa sua mão antes de atingi-la, pare-
cedo ter-se dado conta de que, visto que estou lá, e que tem todos os tipos
de comida que ela pode desejar, isso não é necessário. Digo-lhe isto. Ela ri, to-
ca em minha face e vai pegar os bombons para sugá-los no meu colo e fazer-me
sugá-los alternadamente. Ela está muito contente durante todo este jogo,
como se agora ela tivesse aceitado um substituto para o alimento do seio; o
que será confirmado pelo jogo substitutivo em torno do cocô, que se segue
imediatamente.
Ela descobre sobre a bancada uma caneca contendo contas. Durante um
quarto de hora, Nadia brinca com elas dizendo "co-co-co" e rindo. Ao longo
deste jogo, ela pega um livro de imagens, coloca-o em meu colo e ri, muito in-
teressada, olhando e acariciando a imagem do gato. Ela parece reconhecê-
lo: é o único animal que ela teve a possibilidade de ver na instituição. Ela não
tem nenhuma reação diante da imagem do cachorro que está em simetria com
a do gato.
Ela retoma seu jogo com as contas; jogo que consiste em fazê-las sair
da caneca recolocá-las, espalhá-las no chão, para que eu as apanhe, ficando
completamente encantada quando eu as recoloco na caneca.
No fim, ela pega uma das contas entre dois dedos, me faz estender a
mão e finge me entregar, depois recoloca-a rindo na caneca. Todo este jogo é
alegre, excitante e escandido de "cocô" enérgicos. Reconduzo-a em ótima
forma.
o
Este período que segue o último espelho é bastante longo: cobre quase
dois meses, de 4 de março a 23 de abril. Durante a segunda parte do período
sobretudo, não faço mais sessões com Nadia todos os dias como antes, mas
três vezes por semana.
O Corpo Furado, Tórico 149
ca após ter tomado a ml)llladeira em meus braços. Não resta dúvida que isto
é sintomático de uma demanda que se dirige a meu corpo e que permanece
metafórico do objeto de sua falta.
Entre 21 e 29 de março, se ela prossegue com sua demanda da mama-
deira, ela diz bem que esta mamadeira não tem mais valor de objeto de corpo,
porque outros objetos devem vir tomar este posto: seus dedos e um dos meus,
cujo efeito de sigrúficação metafórica é perfeitamente claro. É como se a ma•
madeira só lhe houvesse dado de novo o prazer de sugar e tivesse falhado, do
ponto de vista do corpo, em seu efeito metafórico. Não tornou-se ela um sim•
pies continente de leite, puro alimento do qual Nadia diz que não é disto que
se trata quando ela esvazia no chão o pouco de leite que ela me pediu para
verter na caneca? Em contrapartida, logo depois, ela mergulha sua mão no
mingau de tapioca, lambe-a e me faz lambê-la, lambendo seus dedos tão logo
cu os lambi, e sobretudo me fazendo molhar meu dedo no mingau para sugá-lo
com volúpia: outra maneira de mamar, digo-lhe eu.
É este mesmo jogo que ela recomeça no dia seguinte, a 22 de março, e
a propósito do qual eu interpreto, dizendo-lhe que eu não sou sua mire, que
é apenas meu dedo, que ela sabe disso, e que é por isso que ela às vezes quer
jogar tudo fora. Então, ela se encoleriza com o representante do outro, o be-
bê no berço -- este bebê e este berço são objetos novos na nova sala de ses-
sões, onde ela constata que outras crianças vêm comigo.
Ela não aceita este limite que eu lhe imponho, visto que, no dia se-
guinte, ela recomeça a sugar e a me fazer sugar seus dedos, depois um dos
meus após ter me feito mergulhá-lo no mingau.
Que ela insiste na metáfora recusando minha interpretação, é o que ela
confirma ainda a 25 de março onde, durante o jogo de sucção dos dedos, ela
faz pipi duas vezes. O pipi esclarece do que é que se trata em relação ao obje-
to de sua boca em meu corpo: eu lhe disse que meu dedo não era o seio ma-
terno; ela me responde aqui que sua procura do seio, é também aquela do falo
imaginário; o objeto-dedo que ela quer simetricamente encontrar nela e em
mim equivale a uma denegação da falta. O que eu lhe recusei, foi deixar que
ela acreditasse que poderia possuir metaforicamente o objeto de seu desejo
oral sob a forma substitutiva de um pedaço de meu corpo; e mais ainda, no
campo da metáfora, deixar que ela acreditasse na montagem simétrica que ela
opera: que bastasse me fazer sugar seus dedos para satisfazer-se sugando o
meu, novo transitivismo que passa pela inscrição metafórica visando anular
a perda que ela encontrou no espelho.
Tudo o que precede pode ser considerado como o esboço da vertente
perversa enquanto que denegação da castração; esboço ao qual minha inter·
pretação de meu próprio limite e de minha falta colocou um ponto final,
através da minha recusa a este retorno à metáfora.
Quando Nadia, a 29 de março, retoma ao espelho uma única vez, ela
conclui. Que ela acaricie aí sua imagem, se faça beijar e se volte para me bei-
jar, mesmo se se trata de um reconforto narcísico - após quatro dias sem ses-
são - é também um retomo à imagem especular, à sua implicação metoními-
O Corpo Furado, Tórico 151
gundo espelho. Tínhamos então podido evocar o retorno do Real de seu cor-
po, sendo esta evacuação uma parte de seu corpo. Estava pois excluído, nes-
tas condições, que eu pudesse de meu lugar de Outro ocupar-me disso, e en-
cerrar no Real o que só podia para dele sair.
A 8 de abril, é num contexto completamente outro que Nadia evacua
nas fraldas. Não se trata mais de uma parte de seu corpo; trata-se de continen-
tes, caixas, e de conteúdos, do cambiável. Trata-se do interior do corpo, do
corpo como continente, não destrutível pela perda do conteúdo.
Enfim, quando eu a troco, ela fica muito feliz e em seguida anda duran-
te dez minutos de um cômodo a outro, de um continente a outro, podería-
mos dizer. Seu contentamento, seu dinamismo permitem concluir, retroativa-
mente, sua demanda de ser trocada por mim. Agora eu sou para ela o Outro
deste objeto anal.
Nas sessões seguintes, sua demanda torna-se perfeitamente clara: ela
quer que eu a troque, primeiramente no leito de sessões, e manifesta uma gran·
de alegria. Enquanto eu a troco, ela ri, agita as pernas e em seguida me mostra
sua ternura. No início, ela pede que eu troque sua fralda suja; mas, logo pede
para que eu troque sua fralda simplesmente porque ela está molhada. A 19 de
abril inclusive, ela quer que lhe troque uma fralda limpa, por "nada", por
prazer. Enfim, a 23 de abril, ela pega.sua fralda limpa que eu coloquei na sala
e me dá para ser trocada.
Quanto ao sentido desta troca, é na sessão de 3 de abril que ela o articu-
la, ao mesmo tempo no oral com a ajuda de um bombom e no anal com o pe·
nico. O bombom, como ela, deve ser "trocado", isto é desembrulhado antes
que ela o coloque numa caixa que ela agita para fazer barulho. Antes porém,
ela o sugou e me fez sugá-lo com um prazer evidente. Aí está para o oral. Eu
devo retirar o papel de um segundo bombom que estava na caixa e ela torna a
colocar o bombom e o papel dentro desta, tirando-os e racolocando-0s várias
vezes aí dizendo "cocô". Ela termina por colocar o bombom no penico, para
tomar a pegá-lo e sugá-lo mandando o penico longe. O objeto oral tomou-se o
objeto anal, sem perder por isso sua primeira natureza. Nesta dupla possessão,
ele faz a l!gação entre: os dois orifícios do furo do corpo, a boca e o ânus.
Mais que do objeto mesmo, trata-se com efeito, dos orifícios do corpo, exa-
tamente como no começo tratava-se do furo da boca e não do objeto oral. Se
não se trata aí do orifício inferior real do corpo, o furo do penico faz às vezes
deste orifício e o desembrulhar do bombom faz às vezes do desvelamento des-
te furo, como a troca que ela me pede e que a regozija - desvelamento, mas
também obturação do furo pela fralda. Ele só pode evidentemente regozi-
já-la no Outro que eu sou, além do Real de seu corpo e do meu, numa meto-
nímia estruturante.
A sessão final deste período, a de 23 de abril, é uma sessã'o articulante
não tanto entre o oral e o anal quanto, de um ponto de vista estrutural, da
relação ao Outro.
Na véspera, como que para quase concluir, numa sessão curta, Nadia
passou seu tempo em meus braços fazendo-se ser alimentada com prazer. Na-
154 'Nadia ou o Espelho
28 de abril - 8 de maio
colheres de sêmola, depois vai até a bancada, hoje muito menos por causa das
contas (ela mexe um pouco nelas, me dá wna e não se interessa mais por elas)
do que pela locomotiva: Nadia senta-se e faz um movimento de vai-e-vem com
a locomotiva, sem largá-la; seu corpo inteiro acompanha este movimento
que evoca o balanceio. O rosto de Nadia está sorridente e muito presente no que
ela faz. Ela faz a locomotiva rolar até mim; eu a devolvo e ela ri às gargalhadas.
Em seguida ela vem para junto de mim comer a sêmola, depois me traz
o livro; ela procura nele a imagem que ela prefere, a do gato porque ela are-
conhece. Ela recoloca o livro sobre a bancada, fazendo um barulho de sucção
-- é um barulho que ela faz freqüentemente quando eu venho buscá-la antes
do jantar.
Ela pega um pratinho da louça de brinqtfedo rosa e segura-o na boca
com os dentes como um botóculo. Ela vem em minha direção dessa maneira.
os olhos faiscantes. Como seu olhar vai de mim à caixa de biscoitos, eu coloco
um no pratinho. Ela retira-o daí, joga o prato, pega o biscoito, come a metade
e joga o resto.
Ela quer então que cu lhe dê o resto da sêmola. Acontecem curtos inter-
médios durante os quais ela empurra os objetos para a beira da mesa para que
eles caiam, e vai apanhá-los. Não somente ela os apanha, como coloca-os na
caixa de encaixe, olhando para mim triunfante.
O jantar já começou quando eu a reconduzo, mas ela se afetou.
A 29 de abril, quando chego na instituição tomo conhccimcn to das fa-
çanhas de Nadia: ela sai do seu leito sem ccss'ar, seja para ir para o leito dos
outros, seja para sair para o corredor. De fato, quando venho buscá-la, encon-
tro-a no balcão: a janela está toda aberta e ela olha com um imenso interesse
para as crianças que brincam no jardim. Eu conduzo Nadia radiante; ela me
ajudou muito enquanto cu a vestia, balbuciando e cantarolando.
Na sessão, ela primeiro me fez sugar os bombons, mas ela própria não os
suga. Depois de ter comido cm meu colo um pouco de arroz doce, ela desce
para derrubar a locomotiva da mesa e a caixa de encaixe, me pedindo ainda
algumas colheradas. Ela apanha a locomotiva e a caixa, depois vai buscar o
livro que ela deixa em meu colo; mas hoje, se ela ainda me mostra especial-
mente o gato, ela interessa-se pela imagem de um bizerrinho perto de um bal-
de de leite. Em seguida ela volta a deixar o livro sobre a bancada.
Então, ela quer que eu lhe troque a fralda molhada; mas desta vez, ela
quer ser trocada sobre meu colo e não no leito.
Assim que eu a coloquei de volta no chão, ela reclama o arroz doce,
depois vai buscar as contas. A partir deste momento, até o fim da sessão, isto
é, durante vinte e cinco minutos -· porque ela recusa terminar a sessão-, ela
vai brincar com as contas e fazer prova de um dinamismo, de uma liberdade e
de uma variedade de emoções surpreendentes. O jogo é ora alegre, ora coléri-
co. Ou as contas me são dadas, ou ela as espalha para que eu as apanhe, ou
ainda ela apropria-se delas e brinca fazendo malabarismos. Ela troca as contas
de recipiente: recoloca-as no caminhão e não na caneca. Assim que acaba de
,·spalhar as contas ela vai apanhá-las, seja em pé ou engatinhando, balbuciando
apaixonadamente: "côco ... cu... cocô ... cu".
No meio deste jogo, ela tem um breve instante de cólera: depois de ter
espalhado as contas bem longe, ela faz pipi em pé. Troco-a de novo e ela re-
1ona a suas contas.
Ela faz algumas paradas curtas ao longo do jogo, quer seja para que eu
lhe dê um pouco de arroz-doce, quer seja para enroscarse em meu colo balbu-
ciando ternamente.
Quando consigo conduzi-la após quarenta e cinco minutos de sessão, ela
estende-se em direção à sala como que para retomar. Recoloco-a em ótima
forma em seu leito.
A 30 de abril, Nadia mostra uma grande alegria quando venho buscá-la,
fazendo cabriolas no leito, balbuciando e tentando descer do leito para andar
mais rápido. Ela estende-se rindo para a sala de sessões cuja porta está aberta.
Ela desce de meu colo para sugar um bombom, depois, em pé diante
da mesa, ela me pede para lhe dar um pouco de mingau. Enquanto come qua-
se a metade do prato, ela joga no chão a caixa, apanha os objetos e, rindo, re-
coloca-os na caixa. Ela remexe por um momento nas contas que estão dentro
da caneca, depois derruba a caneca rindo às gargalhadas do espalhar das contas.
Colocando o livro em meu colo, ela vira as páginas, rindo diante das
imagem e acariciando-as.
Após ter pedido um pouco de mingau, ela retorna às contas. Ela brinca
de apanhar uma ou duas e em jogá-las dizendo: "cocô ... cu"; ela está muito di-
nâmica e diverte-se de verdade. No meio deste jogo, ela faz pipi; eu não a tro-
co porque eu observei que ela não pede para ser trocada quando se trata de pi-
pi, contrariamente do que ela faz para o cocô: diferenciação do pipi agressivo
c o cocô presente. Entretanto não se trata ainda para ela do dom anal; aliás,
digo-lhe isto acrescentando o quanto é divertido espalhar as contas diantes de
mim dizendo "cocô", digo-lhe que ela não quer dar porque eu n[o estou sem-
pre lá, e que ela me odeia como ela odiava sua mãe por não estar junto dela
para alimentá-la e para que ela pudesse encher-se dela. Nadia retoma seu jogo
com as contas e dá um pum sonoro que a faz rir. Depois ela se senta no chão
com a locomotiva, faz com que ela faça um jogo de vai-e-vem sem largá-la, em
seguida larga-a e a locomotiva termina perto de mim: devolvo-a a Nadia, que ri
:ls gargalhadas e recomeça este jogo várias vezes.
Ela vem ainda me pedir algumas colheradas de mingau derrubando a
caneca de leite. Se ela se deleita em ver o leite cair no chão, gota a gota, ela
não gosta que sua mão se molhe e estende-a para que eu a enxugue.
Balbuciando imperiosamente, ela vai colocar a locomotiva dentro dope-
nico; ela coloca-a aí, retira-a, depois faz com que ela role até mim para que eu
a devolva como ainda agora. Grande alegria.
Ela toma a comer e, entre cada colherada, ela faz adoráveis mímicas de
tenura: inclinando a cabeça sorrindo e vindo fazer-se acarinhar. Ela vaga pela
sala, retomando várias vezes para enroscar-se em meu colo, mas fica em pé,
livre para partir de novo.
160 Nadia ou o Espelho
ela tem necessidade para em seguida poder dar. Falo-lhe de tudo isto enquan-
to eu a alimento.
Ela vai espalhar as contas e volta para que suas fraldas sejam trocadas
mas ela fará pipi ainda duas vezes em suas fraldas limpas. Esta agressividade
provém, eu penso, do fato de que ela não queria que eu lhe colocasse uma
fralda limpa. Para ela, isto significaria sem dúvida uma recusa minha de que
ela me dê seu cocô e ela fica .. gressiva. Eu penso isso porque ela está agitada
quando eu coloco a fralda limpa, fazendo tudo que ela pode para me dificul-
tar a tarefa; e também porque entre estas trocas de fraldas ela obstina-se em
atirar para longe as contas. Depois ela acha doloroso andar sobre as con-
ta. Eu verei amanhã.
Reconduzo-a.
A 7 de maio, eu venho vê-la pela manhã, pela primeira vez desde há
muito tempo. Encontro-a sentada no penico, assim como quatro outras
crianças. Todos chora, salvo Nadia que olha para os outros, muito interessada,
na espreita também do que ela poderia agarrar como brinquedo.
Como ela está de costas para a porta, ela não me vê e eu peço a enfer-
meira para vesti-la: não está em cogitação que seja eu a tirá-la do penico na
fase atual.
Quando volto, ela está pronta. A enfermeira me diz que ela está muito
desembaraçada e cheia de vida. Sente-se aliás em todo seu comportamento
uma adaptação o menos mutilante possível à vida cotidiana da instituição.
Na sessão, depois de ter comido algumas colheradas, ela quer que eu lhe
tire sua fralda. Mas hoje, ela me mostra muito claramente que não quer que eu
lhe recoloque uma fralda limpa, porque então seria recusar seu dom. Sem
fraldas, seu cocó tomará todo o valor do dom de um ser distinto e livre de dar
ou de recu!V.lr, visto que ela nã'o terá que me pedir para retirar sua fralda.
Como eu coloco-lhe uma, ela faz pipi duas vezes por ressentimento e indica
este sentido espalhando as contas e pisando em cima.
Toda a sessão é apenas isso. Mas Nadia faz alguma coisa de novo: num
momento, ela bate na mesa, e um coelho cai deitado sobre a mesa;com muita
precisão em seus gestos, Nadia recoloca-o de pé segurando-o por uma orelha
como ela me viu fazer várias vezes. Ela está consciente disso, porque ela vúa-se
para mim radiante e vem enroscar-se ternamente em meu colo.
A 8 de maio, eu chego no momento do jantar. Sento-me para esperar
que Nadia acabe de comer, o que nã'o lhe traz nenhum problema. Conduzo-a
em ótima forma.
Primeiro, ela começa a sessã'o fazendo-se alimentar em meus braços para
em seguida, depois de ter derrubado as contas, me fazer retirar sua fralda. Nã'o
coloco-lhe nada, mostrando ao mesmo tempo que uma fralda limpa está sobre
meu colo: à sua disposição, segundo seu desejo, e nã'o para obedecer às regras
da vida cotidiana que eu representaria se eu lhe colocasse por dever de ofício,
uma fralda limpa; o que ela interpretaria segundo o sentido já colocado na
sessão precedente. Ela borboleteia um pouco pela sala, encantada por ter
o traseiro nú diante de mim.
162 Nadia ou o Espelho
Então ela pede que eu lhe faça comer a metade do mingau. Ela volta
para perto de mim e olha a fralda sobre meu colo e, não contente, vai espalhar
as contas e fazer pipi no chão, o que ela me mostra com satisfação. Eu inter-
preto.
Ela vai brincar com as contas, dizendo "cocô,cocô" depois "pi-cocô".
Repito o que ela diz. Ela vem colocar-se frente a mim, olha para o penico,
depois para mim, e espera repetindo "cocô-cocô, pi-cocô". Ela quer que eu a
sente no penico e assim que está instalada, ela me dirige um sorriso radiante e
terno. Ela se desloca sentada no penico, para ir brincar com as contas. Ela
apanha uma e me dá justamente no momento em que ela faz cocó. Ela vem
para que eu a levante do penico, radiante.
Então, sentada aos meus pés, ela recomeça rindo o jogo com a locomo-
tiva, interrompendo-se para fazer mímicas variadas de ternura ou para que eu
lhe dê algumas colheradas.
Quando ela se levanta para me trazer o livro, eu coloco-lhe uma fralda
para que ela sinta bem que eu compreendi que ela me deu um presente e que
portanto, a fralda não é mais sinal de uma recusa de minha parte.
Ela está além disso muito alegre e eu a reconduzo.
D
Maio - setembro
to de mim. Embora a sala de sessões não esteja preparada para ela, eu a con-
duzo visto que ela andou até mim.
Ela vem comigo pegar seus apetrechos e depois instalá-los na sala de ses-
sões. Deixo-a por um breve instante, por que eu esqueci qualquer coisa, e na
volta encontro-a comendo mingau em pé diante da mesa. Ela senta-se em meu
colo e me pede algumas colheradas, depois vai brincar com as contas, sacu-
dindo a caneca até que elas estejam todas espalhadas. Ela diverte-se em apa-
nhá-las para recolocá-las na caneca, mas também no caminha-o.
De pé diante da mesa, ela come algumas colheres, depois, sentando-se
cm meu colo, me dá a colher para que eu lhe dê de comer, mas, rapidamente,
ela desce e, de pé junto a mim, come e me faz comer alternadamente, com
uma carinha adorável. Quando o prato está vazio, ela estende-me os braços.
Como está na hora do jantar, eu a levo ao refeitório e sua alegria é grande em
jantar pela primeira vez com os maiores.
A 18 de maio, pela janela, eu vejo Nadia no jardim brincando com sua
sombra e batendo palma de alegria para as mudanças de forma que ela impri-
me à sua sombra mudando de posição.
Eu constato por outro lado seu espírito de iniciativa, sua curiosidade,
sua faculdade de interesse, seu dinamismo. Nem o menor vestígio de angústia
ou de medo: ela gosta de descobrir. Ela chega a entrar e sair do cercado de
areia sem ajuda. Sentada na areia, ela se diverte em pegar punhados de areia
que ela deixa em seguida, escorrer lentamente entre os dedos.
Ela parece verdadeiramente feliz no jardim, com os maiores dos quais
ela procura a companhia, abandonando os menores ou seus companheiros de
quarto.
Na noite de 20 de maio, venho buscá-la para a sessão no fim do jantar,
no refeitório. Ela está rodeada de uma quinzena de crianças menores; uma
dorme na mesa, três outras choram, mas ela, sorridente, come uma maçã'.
A sessão é c_urta e se passa quase unicamente em meus braços. Neles,
ela se faz beijar e rindo, abandona-se a exercícios motores. No chã'o, ela se di-
verte engatinhando ou ficando de joelhos, sempre i;ifldo.
Nos dias 25 e 26 de maio, as crianças de seu quarto não descem para o
jardim e Nadia que gosta muito de ir para já me responsabiliza por isso na
sessão. Ela bate no livro, depois bate o livro em meu colo com bastante força;
rindo entretanto quando eu interpreto o que ela faz.
A 27 de maio, encontro Nadia no jardim porque eu pedi para que ale-
vassem aí. Ela está no meio da escada da escorregadeira; eu a conduzo, mas
11a sessão ela exprime sua raiva por eu tê-la privado de suas atividades de ex-
ploração.
Eu não escrevi um certo número de sessões que foram caracterizadas pe-
lll vazio, pois elas eram a reação de Nadia ao esforço inevitável exigido dela
para sua inserção na vida do jardim de infância. Ela vive aí no mesmo ritmo
que os outros, tem sua refeições no refeitório e só retorna a seu quarto para a
o;cxta e à noite. Ela é a única de seu quarto a levar esta vida.
166 Nadia ou o Espelho
prazer e que me faz viver, mas eu não quero dar; é você que tem que dar sem-
pre!".
Ela vai se acocorar diante da casinha para divertir-se abrindo-a e fechan-
do-a um certo número de vezes; em seguida ela brinca encaixando e desencai-
xado as caixas de armar.
Depois ela passa do meu colo para o leito e quer que eu abra a janela.
Até o fim da sessão, ela vai encantar-se com o espetáculo da rna. O que mais
retém sua atenção a faz voltar-se para mim e dizer: "Olhe!·: São as árvores,
um avião que passa no céu, pedestres na rua, e acima de tudo o canário da vi-
zinha cuja gaiola está pendurada na aba do telhado apenas a dois metros de
nós. O canto deste pássaro enche-a de felicidade e, de tempos em tempos, ela
vem esconder por um segundo sua cabeça em meu pescoço, como se ela esti-
vesse muito feliz.
Reconduzo-a radiante, mas seu rosto se contrai quando ela vê que eu a
deixo.
A 25 de junho, o que acontece primeiro é a cena habitual com os bom-
bons, depois Nadia sobe no leito para olhar a rua. O pássaro está lá em sua
gaiola. Ela interessa-se pelos carros, pelos pedestres, pelas árvores e pelo passá-
ro, com a mesma alegria da sessão precedente, mas isto dura apenas cinco mi-
nutos e ela passa para outra coisa.
Ela volta a sentar-se no leito, deita-se para que eu he acarinhe um pou-
co; depois quer que eu a levante e a tire do leito. Sentada em meu colo, ela
me faz lhe dar duas colheradas de seu mingau, depois ela come sozinha uma
boa metade, bebendo ao mesmo tempo leite da caneca. Ela fica encantada em
espalhar urna quantidade de mingau em seu avental.
Ela traz para meu colo uma marmitinha. Levantando a tampa, ela en-
contra um bombom que ela me faz desembrulhar antes de colocá-lo, encanta-
da, em sua boca. Depois ela institui um jogo com a tampa, jogo do qual eu de-
vo participar: eu boto a tampa e ela retira; eu tomo a botar, ela coloca-a ao
contrário, para no fim me mostrar que ela sabe muito bem colocá-la direito,
após tê-la retirado ainda uma vez.
Em seguida ela me faz participar do mesmo jogo com a casinha:eu abro
a porta e ela fecha.
Ela traz para meu colo as caixas encastradas dentro da outra e diverte-se
separando-as e tomando colocá-las urna vez; depois ela separa-as definitiva-
mente e faz com que elas rolem no chão, rindo.
Ela retorna ao meu colo para acabar de tomar o mingau e o leite, mas
derruba involuntariamente a caneca. Ela fica desolada e olha com desejo para
a outra caneca de leite, que está em cima da bancada: coloco pois este sobre a
mesa;Nadia pega-a com as duas mãos e bebe tudo.
Conduzo Nadia para o jantar, em ótima forma.
A 27 de junho, levo-a para a sessão antes do lanche. Ela está silenciosa e
eu não escuto nem mesmo o som de sua voz. Embora ela coma todo o mingau
sozinha, ela me exprime através de seu silêncio, sua interpretação dos fatos:
levando-a para a sessão exatamente antes do lanche, eu a privo de alimento,
168 _Nadia ou o Espelho
tiro-lhe o pão da boca, como ela fez tantas vezes comigo na sessão há mais ou
menos três meses.
Só volto a "encontrá-la" no seu comportamento com os bombons,
bombons que ela me traz para desembrulhar sempre com a mesma alegria.
Em seguida, ela joga violentamente no chão tudo que rodeia o prato e a
caneca na mesa: caixas de encaixar, coelho e colher. Ela vai apanhar esta últi-
ma para terminar de comer o mingau.
A partir daqui eu só relatarei as sessões importantes. Não aviso a Nadia,
a 3 de julho, sobre minhas férias, como eu fiz para as férias maiores. Avisá-la
uma semana antes será suficiente e até lá será mantido o seu ritmo de sessões,
o que não será feito com os outros.
Ela vem para a sessão vestida somente com um pequeno calção e parece
radiante. Durante o trajeto, ela está risonha, sapateia de alegria, mas aparece
notar qualquer coisa de anormal em meu rosto: penso então que uso óculos
escuros e vou mudá-los com ela.
Ela começa a sessão com os bombons e come a compota quer seja com
a colher, quer seja com os bombons que ela aí mergulha e lambe.
Ela desce de meu colo, vai olhar o bebê no berço e, olhando bem para
meu rosto, der,uba o bebê.
Mais calma, retorna a meu colo para comer a compota, mas ainda não é
o que ela quer. Ela olha demoradamente para a mamadeira e mostra-se impe-
rativamente olhando para mim. Coloco a mamadeira em cima da mesinha e
espero, falando com ela. Ela vem para meus braços, deita-se e abre a boca:
dou-lhe a mamadeira. No início, seu rosto está feliz, depois vejo que ele se
contrai e ela repele a mamadeira. Constato então que trata-se de um bico novo
qu esqueceram de furar: eu faço isso, mas quando volto a dar a mamadeira a
Nadia, ela a joga no chão furiosa. Eu interpreto. Então ela vai apanhar a ma-
madeira, toma dois goles, mas se ela quer o leite ela não quer mais a mama-
deira. Então ela bebe o leite da caneca, dentro da qual ela me faz verter o
leite da mamadeira; agora ela bebe com prazer. Interpreto seu rancor com a
mamadeira: ela pensa que eu queria privá-la.
Ela vai abir a caxinha de boneca, tira os leitos de dentro dela, joga-os
num canto, depois abre e fecha várias vezes a portinha da casa. Em seguida,
ela brinca de encaixar e reencaixar as caixas de encastrar. Na primeira vez ela
se engana com o tamanho da caixa e o encaixe torna-se impossível; furiosa,
ela sacode tudo com irritação, depois ensaia de novo. Nas tentativas seguintes,
ela parece ter compreendido: ela não fica com raiva e procura a caixa que
.convém.
Notando neste momento o bebê no chão, ela vai apanhá-lo, olha para
ele com um olhar dubitativo depois, segurando-o pela fralda, manda-o longe,
e, rindo à$ gargalhadas, quer subir no leito; ela deita-se para que eu a levante.
Em seguida ela quer olhar a janela, sentada em meus braços.
Reconduzo-a muito alegre, sobretudo depois desta cena final pela qual
ela me exprimiu que ela não queria que eu me ocupasse de outras crianças
A Vida 169
além dela. Passando pelo jardim, ela percebe um gato e quer correr atrás dele;
assim que ela tenta acariciá.J.o, ele parte, mas ela não desiste.
A 8 de julho, a sessão é mais ou menos :parecida. com a precedente. Mas,
depois de ter comido um pouco de mingau com um biscoito, Nadia pega de
sua boca a mistura de biscoito e mingau e coloca na minha, muito feliz.
Ela derruba no chão as contas e vem me dar uma. Depois ela senta-se no
chão, apanha e coloca de novo as contas na caixa. Quando elas estão todas aí,
ela agita a caixa e manda-a longe. Ela olha para mim, e começa a reunir as con-
tas espalhadas ao redor dela, pedindo minha ajuda; somente algumas contas
são recolocadas dentro da caixa. Ela vem então para meu colo farer ginásti-
ca; ela está perturbada.
Falo-lhe do alimento que ela me deu e da cena das contas, e recondu-
zo-a, em ótima forma.
A 9 de julho a sessão começa como as precedentes: com bombons e
mingau.
Depois Nadia coloca as contas no penico e joga fora a caixa vazia. Ela
apanha uma outra caixa onde ela derrama as contas. Ela vai para o leito, olha
para fora e volta para meu colo para beber o leite da caneca segurando-a com
as duas mãos. Depois ela me diz "cocô" e vai buscar o penico. Ela me faz reti-
rar sua calça - há uma semana que ela não usa mais fraldas mas sim calcão -
e senta-se no penico, com as costas apoiadas em minhas pernas. Ela me faz
brincar com seus pés estendendo-os um após o outro, rindo, depois ela sele-
vanta. Ela não fez nada e torna a sentar para fazer pipi.
Então ela trepa em meu colo onde ela se abandona à alegria dos peque-
nos jogos ternos comigo, passando sua mão em meu rosto, inclinando sua ca-
beça para me ver em todas as direções, escondendo sua cabeça em meu pesco-
ço rindo ternamente.
A 11 de julho, duas cenas ocupam toda a sessão. Permanecendo sentada
no penico, Nadia olha o interior da casinha, brincando de abrir e fechar a por-
ta. Se_gunda cena: em meus braços, ela olha demoradamente o passarinho da vi-
zinha, encantando-se com seu canto.
A 15 de julho, a enfermeira está trocando a fralda de Nadia - porque?
Fico ao seu lado e tudo vai muito bem até que Robert aproxima-se de mim e
eu lhe respondo. Então Nadia começa a soluçar. Ela só se consola em rrreus
braços e depois de termos ultrapassado a porta do jardim de infância.
Também, na sessão, depois de desembrulhar os bombons, ela fica muito
tempo em meu colo, comendo ou abandonada em meus braços. Quando ela
está bem segura de que estou lá à sua disposição e que eu não vou abando-
ná-la, ela desce de meu colo para ah-reagir, sem angústia mas com raiva, aqui-
lo que ela acreditou ser meu abandono. Ela joga no chão tudo que está sobre
a mesa, salvo a caneca de leite que ela bebe. Ela faz com que eu retire sua fral-
da, pega o penico e mostra-me bem que ela recusa-se a sentar aí em represá-
lia. Em seguida, após um jogo breve e violento com a porta da caxinha, ela
pega o bebê e tenta durante dez minutos desarticulá-lo.
170 Nadia ou o Espelho
No dia seguinte, ela me dá uma conta, sem ter diarréia e, depois de ter
ido olhar lá pra fora, me diz: "até logo".
Foi assim que Nadia pôs fim ao tratamento, em acordo comigo, inves-
tindo tudo o que ela fazia em sua vida no jardim de infância, ligando-se espe-
cialmente a uma enfermeira e deixando de ter necessidade de exprimir suas
questões dentro do quadro da transferência.
Posteriormente, ela me encontrará freqüentemente na instituição. Toda
sorridente, ela virá para meus braços se fazer beijar e depois retornará às suas
ocupações.
eia, e para sempre descobrir coisas novas. Não são forçosamente aliás, novos
nhjetos, mas bem mais freqüentemente - e isto é mais demonstrativo do tra-
1eto que ela fez - objetos velhos dos quais ela se serve enfim sem inibição.
Assim, se objetos-alimento, foram, no início de junho, um pouco abandona-
dos, por retração da demanda, quando eles retomam para a boca de cena, Na-
.lia reencontra-os com alegria, quer seja os bombons que ela suga ou o mingau
que ela come todo, me dizendo inclusive "mais" e "espere". Quando ela bebe
o leite, agora, é sem mais nenhuma preocupação de derramá-lo em seu aven-
tal. Se ela derruba a caneca é por inadvertência; ela mostra-se desolada e pede
outra. A famosa colher não é mais que um simples utensílio e perdeu todo o
seu antigo valor.
O que é mais surpreendente, é que ela ama rir e que ela não se priva
mais disto. Seu riso é comunicativo, verdadeiro, e eu mesma rio freqüente-
111ente com ela. O tipo de sua gargalhada, é aquele de 20 de junho, quando ela
hota nç_l caneca pedrinhas que ela selecionou da areia, e coloca esta caneca na
minha mão, para logo derrubá-la: só tem aí a forma do que ela havia feito an-
tes no penico, mas agora é para rir, e além disso, é de brincadeira. O incons-
ciente, o pulsional está aí, apenas presente na piscada de olho que ela me dá,
que me faz rir como ela, sem que eu tenha evidentemente necessidade de
acrescentar o que quer que seja em palavras. Nossa cumplicidade no humor,
e mesmo o chiste, é suficiente para nosso júbilo. Trata-se mesmo de um júbi-
lo, que só podia vir a partir do que ela conheceu no espelho, isto é, a partir
da separação e da alienação constitutivas do sujeito do inconsciente: o in-
consciente que só emerge agora em pontos previlegiados na relação ao Outro:
aqueles que são marcados pelo riso.
Mesmo quando, a 3 de julho, ela reencontra o representante do peque-
no outro do início, o bebê no berço, ela pode, olhando bem para mim, sem
hesitar, derrubar o berço por um lado, e depois, recolhendo o bebê e olhan-
do-o com um olhar dubitativo, como para lembrar, segurando-o pela fralda,
mandá-lo longe por outro lado, rindo às gargalhadas, e subir no leito como
que para tomar seu lugar por um instante. Seu riso e seu desembaraço dizem
bastante que ela não está mais tocada pela imagem do pequeno outro que a
fascinava; pois agora, ela tem sua imagem, seu "eu". Esquematicamente, po-
de-se dizer que a libido que prendia-se ao outro antes do espelho e que a de-
sesperava foi drenada para o "eu" depois do espelho; o "eu" que só pode ser
especular e que, como diz Freud, sendo não pulsional, dessexualiza a realida-
de exterior.
Foi aí que Nadia chegou, a este ponto, onde aparece o esgotamento da
transferência. A transferência, para ela, não foi somente a atuação do in-
consciente, foi também o lugar do surgimento deste inconsciente, lugar do
surgimento do sujeito "Nadia" pela minha nomeação, que fundou o recalque
originário.
O que se demonstra aqui, é a necessidade de que exista um inconscien-
te para que o sujeito deixe de ser presa do Real. Todo o trajeto, em seguida,
foi a continuação desta relação ao Outro que eu era, primeiramente maciço
174 Nadia ou o Espelho
demais em sua presença, embora fosse wna garantia necessária para o debate,
Em seguida, eu terminei por ser o lugar da falta, o lugar da castração do qual
o Simbólico libertou Nadia da pura privação. Se a identificação funcionou ao
longo de todo o trajeto de Nadia, ela não culminou em mim, mas na falta com
a qual ela me afetou.
Seu "eu", como construção especular, podia não mais me incluir en•
quanto seu espelho, porque ela encontrou o espelho real. Então ela pôde des•
prender-se de mim, ou melhor me deixar de lado, pode-se dizer, lá onde seu
narcisismo especular não podia me incluir, isto é, no lugar mesmo do objeto
da perda: o "a" não especularizável, o "a" separador. Eu disse na época:
"Não temos mais nada para fazermos juntas".
MARIE-FRANÇOISE OU O AUTISMO
177
.... ·-.J
Olhar vago. Linguagem mal articulada. Movimentos do corpo incoerentes, mal coordena-
dor. Manipulação dos objetos, desajeitada. A criança esquizofrênica parece desorientada,
confusa e angustiada. Na maioria das vezes mostra-se interessada por seu ambiente
(Rimland 1964). Pode utilizar um objeto transicional e permanecer muito apegada a ele.
Comparando estes dois quadros, o estado de Marie-Françoise parece situar-se intei-
ramente na vertente do autismo, particularmente quanto a suas crises de gritos e cólera,
sua rigidez e a evitação de toda forma de contato com os outros, mesmo pelo olhar.
Nós devemos fazer referência ao hospitalismo dado o abandono de Marie-Françoise
com a idade de dois meses e a longa série de hospitalizações. O hospitalismo no entanto
é apenas um pano de fundo, a julgar pelas diferenças dos quadros clínicos apresentados
por Na dia ou pelo "menino do lobo", que não tiveram, nem um nem outro, a mesma pa-
tologia. O diagnóstico de autismo para Marie-Françoise pode pois, ser colocado como es-
pecificando bem seu estado, além das condições de vida que ela conheceu.
CAPITULO I
A LOUCURA: nem "a", nem "A"
As convulsões diante do alimento
30 de setembro - 4 de outubro
Ela se levanta, pega um bombom, suga-o uma vez, mostra-o. Ela pega
o outro, suga-o, estende-me, depois deposita-o sobre o colchão e pega a colher
do mingau, que ela joga. Ela vem pegar meus óculos, joga-os e volta para'
junto de mim para me olhar bem de perto.
Ela hesita sem cessar em me pedir para colocá-la no chão, mas não pcide~
decidir-se. Ela nota a caneca levanta-se, inclina-se para conseguir pegá-la,
olha o que tem dentro, depois, enojada e furiosa, joga-a para fora do leito
assim como os doces e os bombons, após ter tomado a sugar um deles,
r Ela parece satisfeita em ter jogado tudo fora, fica de é, sustenta-se sem
apoio, olha para mim, mas se seu rosto se ilumina, seu olhar permanece o
mesmo. Ela vem para perto de mim, puxa meus cabelos, depois pega meus
óculos que ela se apressa em jogar na poça de leite. Várias vezes, ao longo da
sessão, ela se inclinará para admirar esta poça, na qual nadam bombons, bis-
coitos, óculos, olhando-me com bravata, tomando-me como testemunha de
sua exploração. Mas se esta poça é o centro de seu interesse, ela a impede de
absorver-se com qualquer outra coisa. Sinto-a inquieta, tentando encontrar
uma porta de saída para seu caos interior; ela não consegue. Também isto
desencadeia rapidamente um balanceio violento, acompanhado de gritos
guturais, enquanto ela tem as pálpebras fechadas.
Eu não insisto e peço à enfermeira para vir buscá-la., Sessão d~. dez]
minutos. · · ..
A 3 de outubro, na 3~ sessão, quando eu chego, Marie-Françoise olha
para mim rindo. A enfern1eira lhe pede rindo também, a bola que ela tem nas
mãos, mas ela a defende da enfermeira, vira-lhe as costas, joga os brinquedos
a sua volta, e olhando para mim com um ar excitado, lança a bola na sala
vizinha, aquela da sessão.
Em seguida, ela estende-me os braços, depois de ter se aproximado dos
dois degraus, para que cu lhe faça descer, mas somente isto. Ela me lança em
seguida um olhar irritado. Volta a ficar de pé sem ajuda, mas, ao se aproximar
da mesa cai e olha para mim, nada contente. Termina o trajeto arrastando-se
sobre seu traseiro. Então ela quer que eu coloque no chão, perto dela, tudo
o que está em cima da mesinha.
Ela joga violentamente o carro em minha perna, suga os bombons, fica
de pé sem apoio. Ao se levantar, ela baba e vem tocar este suco de bombom
no chão com seu dedo indicador, com um gesto franco, sem estas palmadi-
nhas habituais que ela dá quando toca os objetos.
Lentamente seu interesse volta-se para o prato de arroz-doce, que está
no chão. Ela joga os bombons para olhar sucessivamente para o prato, depois
para minl, mas, novamente, ela se furta de sua emoção-desejo: ela pe_ga _o_
marinheiro, pressiona-o contra seu nariz por alguns segundos, depois joga-o.
Ela fica de pé, e, apoiando-se com as duas mãos na beira da mesinha,
inclina a cabeça entre seus braços afastados, o mais baixo possível na direção
do prato, fazendo barulho com os lábios.
Ela procura ainda um derivativo: percebendo os doces, ela se acocorl1,,
é,ijllillha-0s, vira-me as costas para mordiscar um pedaço, depois joga-os para
A Loucura:nem "a", nem "A" 181
longe dela violentamente. Volta-se então para a mesa, fica de pé, e me faz
1'.ntender que eú devo colocar o prato diante dela sobre a mesa.
Então, começa uma cena extremamente penoso., que depressa se tornará
insustentável. Ela que é .~l!Hmica e que morre de vontade de comer este
arro~-doc~-ºªº-Po.cle.J~~:.l<>, e s.ua angústia aumenta rapidame11te. Ela não
compreende nada desta sua reação tão nova para ela. Ela fica de pé diante do
prato, devora-o com os olhos. ~la chega a aproximar seu rosto bem perto.
Seus olhos estão dilatados pelo desejo, suas mãos contraídas na beira da mesa.
e ela faz barulhos de sucção muito sonoros. De tempos em tempos, ela vira
seu rostq para mim, com um olhar perdido e um grito de socorro, mas volta
em contemplação para frente do prato.
Sua tensão é tamanha que ela começa a tremer violentamente, os bra-
ços contraídos. Ela se afasta, apanha os bombons, ergue-se, e sempre diante
do prato, mas longe da mesa, aperta os bombons, um em cada mão, e seus
hraços têm quase uma crise convulsiva. Esta crise toma seu rosto inteiro,
ro~!<> que ela vira para o teto, as pálpebras fechadas, a boca aberta num grito
11ue não sai.
~u faço ouvir o som de minha voz para romper esta tensão insuportável.
Ela se deixa cair sentada, vira-me as costas e, sempre segurando seus bombons,
co"'!eça a se balançar.
Eu vou então à procura da enfermeira, para que ele deixe Marie-Fran-
çoise com as outras crianças. Demora muito e eu volto duas vezes para lhe
dizer que procuro a enfermeira. Mas isto ç duro para ela e, na segunda vez,
set,L rosto se contrai: lágrimas que não escorrem. A enfermeira chega e eu
parto.
A sessão durou quinze minutos.
Todo mundo acha que ela está mais viva e muito mais presente.
A 4 de outubro, quando venho buscar Marie-Françoise, estão trocan-
do-lhe as fraldas. Eu deixo a sala para ir buscar o material da sessão. Quando
eu volto cinco minutos mais tarde, Marie-Françoise tenta sair pela mesma
porta que eu tinha saído.
Assim que ela me vê instalar o material, ela não tenta mais sair para o
corredor. Ela me olhar fazer isto balançando-se; e, quando eu me sento, ela
começa a cuspir violentamente, o queixo virado para o teto, mas o olhar/
fixo no material.
Eu tiro o papel dos bombons. Ela pega-os imediatamente, leva um à
boca, suga-o apenas, dobra-se para frente, o rosto baixo, os braços rígidos,
um bombom que ultrapassa cada um de seu punhos fechados. Nesta posição,
ela puxa uma salmódúi gutural e sufocada.
Ela ergue-se novamente, troca os bombons pelos biscoitos, pressiona
um contra seu nariz; em seguida ela se balança. Imobiliza-se, o corpo dobrado
para a direita, a cabeça inclinada sobre o ombro e o olhar pousado em mim,
mas vazio, não revelando nenhuma vida, nem mesmo em seu mundo interior.
Ela fica assim durante mais de um minuto.
182 Marie-Françoise ou o Autismo
r
comportamento na sessão, e a evolução deste desde o início, resume-se nisto:
ela estabeleceu um contato pouco profundo comigo, mas adquiriu a certeza
bem sólida de minha passividade; e os dois reunidos lhe permitem viver seu
\ mundo in tcrior, tanto tranquilizada pela minha não intervenção, quanto um
\Pouco protegida pela minha presença.
Uma meia hora mais tarde, Marie-Françoise me vê e faz "até logo"
com a mão sorrindo, quando eu atravesso a sala.
que eles não têm nenhuma relação com meu corpo. Esta relação a meu corpo
era, para Nadia, a fonte de inibição.
Num segundo tempo, entretanto, ela me distingue dos outros objetos,
dirigindo-se a mim de uma maneira privilegiada: o privilégio que tenho, é o
de receber uma série de bofetadas magistrais. Mas, exatamente como para os
outros objetos, ela não manifesta o menor traço de inibição em sua agressão
a meu corpo. Ela parece mesmo estar inteiramente satisfeita, tanto quanto
posso julgar na ausência de expressividade do olhar que não se acende por
isso.
Tal é o primeiro contato que Marie-Françoise tem comigo, a 30 de
setembro; um contato que passa mais pelo muscular que pelo escópico,
que visa, neste sentido, mais me destruir do que me ver. Finalmente, se
existe inibição, é no muscular que ela irá se dar; e com efeito, neste dia como
nos seguintes durante muito tempo ainda, sua atividade volta-se contra ela:
cai sentada, dobrada sobre si mesma, e, após alguns balanceios, termina por
imobilizar a cabeça no chão entre suas duas pernas afastadas.
Quando a comparamos com Nadia, como seremos levados a fazê-lo
bem frequentemente, para esclarecer a diferença de estrutura - veremos
inclusive que a noção de estrutura será posta em questão no caso de Marie-
Françoise -, de cara somos impressionados por esta dupla ausência do Outro
e do outro. Esas duas ausências, entretanto, vão ter destinos diferentes ao
longo das sessões.
Para o que é do Outro (que é, de cara, marcado em sua ausência),
talvez eu não tenha suficientemente insistido no relato das sessões sobre o
aspecto profundamente patológico de Marie-Françoise, cuja ausência
completa de olhar tanto se opõe ao olhar vivo e patético de Nadia; ausência
de olhar da qual ela só vai sair, por curtos instantes, para ter um olhar perdido
de demente. A este propósito eu falei de caos.
Uma vez entretanto, após ter arrancado meus óculos, ela vem plantar
seus olhos nos meus, a um centímetro de distância, durante um momento
do qual veremos a significação.
Certamente seu olhar, embora seja o sinal da gravidade de seu estado,
vai voltar-se suficientemente para mim para que eu possa dizer, desde a ter-
ceira sessão, a 3 de outubro, que ela me olha rindo, quando eu chego. Mas
este olhar não se desperta. O muscular, sob a forma da mímica do rosto, é
o único que traduz sua reação, e mesmo sua demanda: de que eu lhe faça
descer os degraus, por exemplo. Mas logo, o olhar exprime a recusa, e ela
tem um ar irritado.
Numa primeira abordagem, a diferença com Nadia é flagrante. Nadia
lança, sem cessar, ao seu redor, e sobretudo para mim, olhares patéticos que
são - ao contrário da recusa de Marie-Françoise - apelo ao Outro. Se Nadia
fica em estado de stress, em meio aos outros no jardim de infância, seu olhar
se apaga e seu corpo se mobiliza no limite da catatonia: Marie-Françoise,
na mesma situação, absorve-se num tamborilar sem fim em qualquer objeto.
784 Marie-Françoise ou o Autismo
7 e 8 de outubro
dir alguma coisa a alguém que não está lá, mas fora, invisível, e que ela não
pede nada a mim que estou presente na sala.
Ela senta-6e no chão, suga uma vez seu bombom, olha para mim, volta-
se para a janela, fica de pé, e pela primeira vez, anda sem o menor apoio até
o leito, depois retorna para a mesa diante da janela. Ele repete a cena uma
segunda fez diante da janela. Uma maçã está lá, no chão; ela a apanha, dá uma
mordida olhando para mim, joga-a e, sentada, desloca-se em minha direção.
Mas, no meio do caminho; ela volta-me as costas, fica de novo em pé, para ir
para diante da janela à qual ela novamente dirige seu balbucio de apelo..
Ela vai em direção à saída: tem necessidade de fugir de mim.
Permaneço um momento na entrada da outra peça. Vejo-a brincando
rindo às gargalhadas com uma outra criança: rindo, ela vai refugiar-se sob a
mesa, de onde ela sai um instante para me olhar sorrindo, e retornar para
debaixo da mesa.
A 8 de outubro, a porta de comunicação está aberta enquanto eu pre-
paro o material de sessão e Marie-Françoise manifesta seu descontentamento
de forma muito viva resmungando quando uma outra criança aproxima-se
para ver o que eu faço. Ela estende-me os braços para que eu a coloque no
fim dos degraus.
Ela pega os dois bombons, suga apenas um e fica de pé para dar alguns
passos que a separam da mesa, logo, do prato. Ela olha para ele, depois para
o bebê, depois para o prato, e finalmente para mim. Em seguida o circuito
se restringe ao prato e a mim, seu olhar acompanha-se de movimentos do
maxilar como se ela comesse, o que lhe digo. Seu comportamento então
muda, isto é, se seu olhar vai sempre de mim ao prato, assim que está sobre
este 11ltimo ela mantém a boca aberta, como se ela esperasse que aí se colo-
casse a colher. Nesta posição ela olha para mim com um olhar de apelo que
rapidamente volta ao prato.
Para lhe facilitar a compreensão do que vou lhe dizer, isto é que eu
estou pronta para dar, mas que é preciso que ela peça, senão isto faz mal,
eu mexo a colher no arroz-doce e deixo-a, cheia, do lado do prato próximo
à sua mão. Ela seguiu tudo atentamente e parece per.plexa. Muito rápido, ela
desvia o rosto para a janela, sem o grito de apelo da véspera e dirige-se para
ela.
Neste momento, ~la ouve a voz do médico que faz a visita no quarto \
ao lado. Então ela senta-se em frente à porta de comunicação, e vira-se para ;·,~
mim para me dizer "papai", com o rosto excitado. Depois ela começa a se '
balançar olhando para a porta. Abro pois a porta e o médico entra a meu / ·
convite. Assim que o vê, Marie-Françoise fica de pé e anda em sua direção /
balbuciando e rindo. Ela senta-se no chão e seu riso será endereçado alterna-/
damente a ela e a mim. Ela parece muito contente e lhe diz ..até logo" corry
mão quando ele parte.
Em seguida, ela parece hesitar sobre o que vai fazer, mas parece querer
prosseguir na abertura que ela fez entre nós duas. Com efeito, é como se ela
188 Marie-Françoise ou o Autismo
quisesse retomar para junto das outras crianças, mas que eu também esteja
lá. Coloco-a pois no alto dos degraus, no outro cômodo. A enfermeira lhe
pede um dos bombons que ela tem na mão: Marie-Françoise lhe diz um
"não" peremptório e vira-lhe as costas. Mesma cena com um menininho.
Ela volta então para mim, verifica que meus óculos estão exatamente aí
onde ela os deixou. Então ela olha para mim encantada, estende-me os
braços e fecha a porta de conrunicação da sala de sessões. Digo-lhe: "até
logo". ,
r Tomo conhecimento que há dois dias Marie-Françoise diz "não"
muito energicamente, que ela não se balança mais e está muito presente
com as outras crianças. As palmadinhas que ela dava o tempo todo, em todos
, os objetos, desapareceram. Só persiste na borda do leito para adormecer.
É sua única fonte de prazer auto-erótico, na ausência da sucção do polegar de,
que ela é, evidentemente, incapaz psicologicamente. /
Mas Marie-Françoise não está pronta para fazer a relação deste outro ao
A, visto que a dimensão do corpo do Outro não existe: ele é apenas ausência
ilcsrealizada, invisível além da janela. Poderia dizer-se que ele não tem imagem
,.specular, isto é, que ele está inteiramente no lugar do objeto "A" enquanto
<JUe não especularizável, no lugar do objeto do qual ele é portador; é preciso
ainda que ele tenha alguma realidade.
Que não exista nenhuma realidade simbolizável, é o que aparece na
dimensão de um Real alucinatório, que não está longe quando Marie-Fran-
~:oise dirige seu apelo -à janela. Contrariamente a Nadia, não é o objeto que
,·la está em posição de alucinar, mas o próprio Outro, e isto em minha pre-
sença.
Dito de outra forma, Marie-Françoise é confrontada ao Outro ausente,
que faz retomo no Real, por falta de ter sido simbolizado e ao Real do Outro
que eu sou, duplicação do primeiro Real. O Real do Outro teria podido persis-
tir no lugar do primeiro Real por pouco que eu tivesse faltado em suspender
a existência dele. Teria sido suficiente, com efeito, a menor precipitação em
direção a uma boca aberta por cima de um prato, ou a facilidade da materna-
gcm na repetição do que Marie-Françoise conhecia: se preenchessemos sua
necessidade seria ao preço de desembarçar-se dela como sujeito, para que
da mesma persistisse em sua passividade. Como vimos e como veremos, é
a uma passividade que ela me intima, como que para me anular e me privar
de minha dimensão de Real.
A sessão de 8 de outubro termina com a irrupção de uma significante
que cria problemas na boca de Marie-Françoise: "papai". É o primeiro que ela
pronuncia.
Ela não pegou a colher que eu depositei a seu alcance no prato de
arroz-doce, após um verdadeiro olhar de apelo que ela me lançou, a boca
aberta, diante deste prato que a paraliza.
Quando eu introduzo esta colher no que eu lhe disse, a 7 de outubro,
espontaneamente, eu coloco esta colher como terceiro termo. No dia seguin-
te, 8 de outubro, eu encho esta colher e coloco-a à sua disposição para lhe
fazer compreender o que lhe digo, que visa suscitar a sua demanda. O único
resultado é sua perplexidade: isto não lhe diz nada. Nós estamos longe da
colher de Nadia. Entretanto, se Marie-Françoise volta-se para a janela, ela não
lança seu grito de apelo da véspera, como se o que ela percebesse, no limite,
fosse que seu apelo, sua demanda, pudesse se fazer do lado da colher e não
mais do lado da janela.
No silêncio, que se segue surge a voz do médico que faz a visita no
quarto ao lado. Marie-Françoise desvia-se da janela da ausência, e volta-se
para a porta do "escutado", sinal de uma presença. Que ela se volte para mim
para me dizer "papai" com um rosto excitado, é bem aí que surge uma ques-
t!l'o inesperada quanto à origem deste "papai".
Duas reações seguem então seu chamado. Primeiro ela se balança
olhando para a porta. Depois, quando eu abri a porta e convidei o médico
192 Marie-Françoise ou o Autismo
9 e 1O de outubro
13 e 14 de outubro
o
Diante do pouco contato que Marie-Françoise teve comigo ao longo das
sessões precedentes e do pouco caso que ela fez de minha presença, eu fui
levada, a 13 de outubro, a tomar uma posição de recuo, isto é, a interrogar
sua demanda de sessão. Ela prova, mais além de sua ausência de contato, que
ela está entretanto à procura de alguma coisa, visto que ela vem sem hesita-
ção. Não é pois uma recusa de sua parte, mas antes a impossibilidade de
colocar sua demanda, por falta de meios, o que faz seu drama. Sua recusa
teria sido o sinal de uma ambivalência, à qual nós tinhamas visto que ela não
tinha acesso. Resta-lhe somente um apelo a mim que não é certamente unívo-
co e que se coloca melhor no quadro de sua impossível relação ao objeto,
excluindo a verdadeira presença de um Outro.
Aliás, se ela brinca com meus óculos, não é que, como para Nadia,
estes óculos sejam uma parte de meu corpo que lhe serve para questionar o
objeto separável, prefigurando à metáfora. O objeto, para ela, tem alguma
coisa de maciço: estes óculos são meu corpo inteiro, o que ela exprime
Tapar Realmente o Furo de Seu Corpo 203
rstendendo para mim uma mão que ela abre e fecha, com um gritinho de
,1pelo, como se ela quisesse me agarrar na totalidade.
Na cena seguinte, aliás, eu não sou nada mais que um objeto que faz
11bstáculo entre ela e outros objetos. Como são estes que ela quer, ela está
tensa; mas ela não dirige nenhuma demanda para mim, nem mesmo um olhar:
11 que confirma que para ela eu estou lá ou não, isto é, eu sou um objeto real,
chora por ter fracassado em fazer ouvir este apelo que não passa nela, não
mais do que o grito que lhe fica preso na garganta? É também a questão quo
coh:a o sentido de sua crise de desespero no dia seguinte, antes da sessão:
crise que a enfermeira me descreve como imotivada, e além de toda consola-
ção com o que quer que fosse.
r
Entretanto, a 14 de outubro, enquanto eu preparo o material da sessão,
ouço os gritinhos de apelo de Marie-Françoise, que reconheceu minha voz.
Isto não a impede de chorar no início da sessão, quando a enfermeira senta-a
numa cadeirinha, em vez de colocá-lo no chão. Ela se acalma, aliás, assim que
eu a sento em seu lugar habitual: como se, em sua relação a mim, tão proble·
mãtica, só lhe r.estasse estas referências no espaço.
Então ela dá um passo que poderia parecer decisivo em sua relação
comigo como foi o de Nadia quando ela emitiu o significante "mama", a 5
de dezembro, o que abriu a via à passagem do Real ao significante na relação
de corpo. Marie-Françoise, aqui, sugando um bombom, estende-o para mim
com um largo sorriso, unicamente para me dizer "não" e rir disso. Mas sua
relação de corpo permanece muito aquém do que Na dia colocava em jogo, e,
aliás, ela retoma logo à sua manipulação de objetos na cesta, que a afasta de
mim Não é indiferente, entretanto, que ela escolha aí uma marmitinha com
uma tampa, tampa que chama sua atenção e da qual veremos o uso que ela
fará.
O afastamento de mim acentua-se quando ela retorna ao prato, onde
ela retoma sua única relação ao objeto: colar seu rosto bem perto do arroz.
doce. Ela tenta com o bebê uma relação à distância, tentando dar de comer
ao bebê um biscoito do qual ela comeu um pedaço. Mas ela pára seu gesto a
alguns centímetros da boca do bebê, e ela se deixa cair sentada, como de
hábito diante do impossível. Enfün, pegando o marinheiro, ela apoia-o quase
sobre seu olho, para fazer dele o seu duplo, como eu disse, e isto durante
quase cinco minutos. Veremos a função central deste duplo no desvio pato-
lógico de Marie-Françoise. O gesto mal sucedido que ela faz em direção
à caneca, fazendo o bebê cair no arroz-doce, deixa-a inicialmente petrificada;
mas, rapidamente, deixando a imagem deste bebê lambuzado - a lambuzeira
a impede de fazer dele seu duplo -, ela faz dele um objeto que tapa o ori-
fício de sua boca; a diferença com Nadia é ainda evidente aqui quanto ao
lambuzamento da pele, quer seja com o cocô ou com o mingau.
Em seguida Marie-Françoise se serve do bebê como intermediário para
comer um pouco de arroz, mergulhando um pé do bebê no prato para depois
sugá-lo três vezes seguidas. É uma via que evita qualquer demanda em minha
direção. É também um impasse e ela se deixa cair sentada. Ela segue aí a
via inversa da de Nadia, que inscreveu o oral na conta do escópico; enquanto
que Marie-Françoise, faz passar o objeto escópico, o bebê lambuzado, por
conta da oralidade, onde sua demanda ao outro empaca.
O que empaca, é a possibilidade para Marie-Françoise de inscrever, ao
nível do corpo do Outro, o objeto separável que ,ela poderia encontrar aí
Tapar Realmente o Furo de Seu Corpo 205
para obturar o furo de seu próprio corpo deixando o corpo do Outro furado
pelo que ela poderia tomar dele Nadia pôde fazer isso, no debate que ela
:;ustentou desde o corpo real, onde seu empecilho era evidente, até a inscri-
~ão significante do objeto de corpo, que abria a via à sua demanda. Ela só
pôde fazê-lo porque de saída o Outro que eu era não estava excluído; ou, o
que dá no mesmo, porque o significante pré-existia para ela, .antecipava a
experiência que ela podia ter dele.
Este significante que pré-existe a todos os outros, é aquele que Lacan
diquetou de "Nome-do-Pai", que Freud afirmou, no Eu e o Isso, ser o "Pai
Primitivo", base da identificação primária; aquele que torna toda mutação
tio Real possível quando ele não está foracluído. Foracluído, ele estava para
Marie-Françoise: ela procura a mesma coisa que Nadia, isto é, obturar o furo de
seu corpo, mas apenas aparentemente, porque ela fica na muralha real inicial,
110 impossível da mutação do Real em significante, única via da demanda ao
<lutro. Resta-lhe apenas retornar sempre a esta demonstração do impossível;
,. ela fixa-se aí em vão, porque a cavilha do significante-mestre inicial está
lloracluído. A cabeça do bebê lambuzada só vem obturar realmente sua
coba, mesmo desenhando seus lábios, para deixar de ser a imagem substitu-
1iva do objeto que ela poderia me mostrar e que estava na vida de sua deman-
da a mim. Nenhuma substituição metafórica se revela; o Real se fecha sobre
si mesmo e a desesperança faz, como sempre, Marie-Françoise cair sentada.
Uma última cena, ainda na ausência do Outro, vai representar uma
iHtima tentativa para mostrar que, do que se trata, é de tapar o furo, o furo
,lo corpo, que vai da boca ao ânus: após ter tentado obturar sua boca, Marie-
hançoise quer botar no traseiro do bebê a tampa da marmita. Mas ela não faz
isso, e o c,11e ela faz no lugar pode dar alguma vertigem: ela pega o pato, faz
com que ele grite apertando-o, mergulha a ponta de seu rabo no arroz, suga-o,
recomeça, e, virando-me as costas, com o rabo do pato na boca, ela aperta-o
para fazê-lo gritar.
Vertigem, certamente, em ver este objeto, hahilualmente representati-
vo, em sua relação com a água, de estadios embrio11ürios - Nadia serviu-se
1lele, no mês de fevereiro, para exprimir uma rela~flo de exterior e de interior,
tanto aquela do pato dentro da esfera, quanto a sua dentro da sala, com o
furo da janela - em ver este objeto tapar o furo dL· sua boca, e tornar-se uma
espécie de apêndice que a alimenta. Visto que ele e111itc o grito que ela não
pode emitir. Este grito ela só poderia emiti-lo pelo Outro que eu sou; mas
ela vira-nie as costas porque, ainda aqui, sua demanda que é também o grito,
não pode ser dirigida; e ela fica reduzida a apenas rnostrar no Real o vão pro-
longamento de seu corpo, como um pênis, que ela faz gritar, talvez, mas que
é somente o inverso do silêncio irremediável entre ela e cu.
Ao extremo, entretanto, este pato a conduz aos confins do significan-
te tanto o Real &e ordena e se infiltra do que não pode se dizer. No fim da
sessão, eu a escutarei dizer à enfem1eira que a recoloca no leito : "pipi".
Este "pipi" vem no lugar do grito impossível, COlllo a demanda que ela não
pôde 111e dirigir na sessão. O pipi de Nadia na sessão, repetidas vezes, tinha
206 Marie-Françoise ou o Autismo ~
a ver com o que não podia ser dito no período de violência dos últimos dl
de dezembro, mas ele tinha, contrariamente ao de Marie-Françoise, um
função representativa, e tomava simplesmente o lugar de uma dificuldadli
temporária de seu discurso, pois era na sessão que ela me dirigia este pipi,
Enquanto tal, este pipi tinha relação com uma falta. O de Marie-Françoise,
na ordem do Real, tem relação com um pênis; mas ela só pode mostrá-lo
em minha ausência.
É uma sequência capital esta da sessão de 14 de outubro, onde Marie•
Françoise demonstra que todo seu problema de corpo, é tapar o furo, um
furo real a tapar realmente:
1 - Justamente antes da sessão, tomaram sua temperatura retal, isto é,
lhe "fizeram" o furo do corpo; e isto justamente depois de uma cólera imotl,
vada e inconsolável.
2 - Um pouco mais tarde, ela faz do marinheiro o seu duplo: colan-
do-o em seu olho, deslocando o tapamento do furo de sua boca para o revesti-
mento da superfície de seu olho.
3 - Ela tapa o furo de sua boca com o crâneo do bebê que caiu no
arroz.
4 Após ter tapado sua boca com o bebê, ela tapa o traseiro deste com
a tampa da marmita.
5 -- Enfim, ela obtura ainda sua boca com o pato, que ela faz emitir
o grito que ela não pode dar.
O furo do corpo é uma questão apenas para seu corpo: sua boca ou seu
olho. O furo de meu corpo, nada.
CAPITULO V
U REAL E O SIGNIFICANTE SEPARADOS
Psicose e estrutura
15, 17 e 18 de outubro
! 11 J A 15 de outubro Marie-Françoise está sentada numa mesa e uma enfer-
meira a está calçando quando eu chego. Ela estende a mão para mim, abrin-
do-a e fechando-a, gesto de apelo acompanhado de um gritinho. Posta no
chão, imediatamente, ela engatinha para a sala de sessões.
Ela fica de pé diante da mesa, começa a sugar os bombons olhando-me
e por isto volta a sentar-se. Seu olhar está muito vivo, muito em contato
comigo. Por duas vezes ela me estende um bombom para mostrá-lo. Ela torna
a ficar de pé diante do prato e, durante cinco minutos, seu olhar, vai do prato
a mim e à janela. Somente no fim seu olhar incluirá o bebê 11ocircuito;e neste
momento, ela excluirá a janela.
Muito rapidamente, ela aproxima seu rosto da beira do prato. Volta a
ergue-se e dá um gritinho para mim, sorrindo. Eu não senti um tom de apelo
neste gritinho, proferido sem muita energia; o rosto está sorridente, e não
com o maxilar projetado para frente como de hábito. É 11111 griti11ho para 111e
fazer partilhar um interesse, bem mais do que para me jàzer participar de
uma ação. Ela sabe muito bem que eu não terei nenhuma iniciativa: o que
toma sua emoção diante do alimento muito menos conflituosa. Aliás, na
segunda vez, no lugar do gritinho, que não era nem mesmo um fonema,
ela diz; "mamãe", que ela pronuncia claramente. A partir deste momento,
seu olhar dirige-se para a janela e não mais para min1; além disso ela fica
silenciosa. Digo-lhe isto.
Então, ela não se dirige mais ao vazio, mas ao bebê. Seu olhar vai do
bebê a mim e vice-versa, sem repassar pelo prato. Em seguida ela pega o
bebê e olha-o ã distância, sem dizer nada, sobretudo sem dizer: "bebê".
Com o bebê, ela coloca o prato e a janela entre parêntesis e pode me olhar
sorrindo;grande descontração de todo seu rosto.
Relembro-lhe a cena da véspera. Ela volta a sentar-se, segurando o
bebê, e, indecisa, olha para ele a uma distância normal, como que hesitando
em fazer dele o seu duplo como antes. Ela não sabe onde colocá-lo, depois ,. ·-.~
larga-o para comer um biscoito e absorver-se em seguida na manipulação de
peças da louça de brinquedo. Ela vai bisbilhotar a cesta, tira daí uma marmita,,
·:· •• 'I"_ ••
um bule de chá e uma tampa. Segura a tampa com os dentes, enquanto pro-·
cura que! é a posição a adotar para a marmita e o bule de chá para que fiquem
um dentro do 01 :ro. Furiosa por não chegar imediatamente a um resultado,
208 Marie-Francoise ou o Autismo J
ela as joga longe dela, depois brinca com a tampa, lançando-a no ar, batenJ
com ela no chão e fazendo-o rolar. Ela está satisfeita, pára, observa. Levanta-Mi
para ir pegar a marmita, esfrega-a rindo no chão, recoloca-a na posição cont'I•
e coloca-lhe sua tampa. Ela está tão radiante por ter encontrado que se volt•
e me faz admirar.
De pé, ela vai buscar o bule de chá, e de novo procura encastrá-la 1111
marmita. Após várias tentativas, ela consegue colocar a marmita sobre o hulf
de chá, fazendo uma torre. Ela admira;mas quando quer acrescentar a tampll
à marmita, ludo desmorona. Ela recomeça a torre, sapateia <le impaciência,
fica furiosa porque os objetos não lhe obc<lcccm melhor, volta a ficar de pd
para passar seu Jitror para a tampa que ela bate no chão halhuciando violc11•
(a/lle/1 tC.
Ela termina por dispersar os três objetos cm cantos diferentes da saiu
e dirige-se para a porta de saída. No caminho, ela dá pontapés no bule de ch:I,
assim como na tampa que ela empurra diante dela. Chegando diante da port;1,
ela abre e me olha com um ar de dúvida. Digo-lhe que ela fez uma boa sessão
e que isto é sulicicnte, com efeito, por hoje. Parecendo alivitla, ela joga de
brincadeira a tampa para uma criança llll quarto, para facilitar sua partida.
Ajudo-a nos degraus e deixo-a cm ótima forma.
A 17 de outubro, tomo conhecimento de que na véspera, dia em qm•
11ào a atendi, quando ela tinha perdido toda espcrarn,:a cm me ver (provavel-
mente linha escutado minha voz na casa), ela la111h11zou-.1·c roda de coni
1u•go em .,·1111 frali/11, encheu as sombrancclhas, os olhos, e em volta dos lábios.
l:1a me acolhe hoje co111 seus gestos estereotipados de hraç:os e pernas,
1· seu aspecto rtd111; e qu:111do estamos ós, um halanceio l'iolc11to. Ela pára
assim que lhe digo que ela cslá ressentida conúgo por causa de minha ausên-
cia de ontem, e vem pegar os bombons cm cima da mesa. Ela começa a sugar
um, apoia-1, na ponta ele seu 1111ri:: e estende-o para mim, sem me dar.
Ela abandona-o para pegar v m11ri11heiro, que ela aproxima e mantém
a um centi'metro de seu olho direito, depois encostado 110 seu nariz, e de 11ovo
110 seu olho direito. Digo-lhe que, como eu não vim ontem, ela tenta ignorar-
mc, incorporando o marinheiro, do qual ela faz seu duplo para me excluir.
O que ela compreende? Seja lá o que for, ela pára seu jogo, me olha
direto nos olhos, de início com uma ex pressão hostil, depois sorrindo, dando
um gritinho de apelo rcconhecime11to, que insiste, como se ela quiseSSl'
que cu a imitasse. Eu faço isso cm eco; encantada, ela recomeça por duas
vezes.
A partir deste momento, há muito mais contato comigo: minha presen-
ça vai representar um papel no que ela fará. Ela vai bisbilhotar a cesta, tira
daí a leiteira, a marmita e sua tampa. De frente para mim, ela coloca a marmi-
ta emborcada no chão e a leiteira em cima. Ela me toma como testemunha
de seu sucesso. Ela coloca por um segundo a tampa na hvca antes de colocá-la
sobre a leiteira: tudo desmorona. Furiosa com a tampa, ela a apanha, bate
com ela no chão, depois coloca-a sobre o fundo da marmita, após ter atirado
a leiteira na direção da janela.
O Real e o Signficante Separados 209
Ela anda até a mesa, volta a sentar-se com os biscoitos, sem ter olhado
111·111 para o prato, nem para o bebê. Ela joga um biscoito após ter mordito
,1111 pedaço, pega a marmita para fazer que bebe, em seguida pesca uma peça
,11· madeira cm fom1a de ponte para sugá-la o Ui ando-me. Faço-a notar que ela
1.11. que bebe lá onde ela sabe que está vazio, que ela nunca quer beber na
, .111eca, que ela joga os doces que são para comer, e que ela suga a peça de
111.1deira olllando para mim. Então, ela anda até a janela, dizendo: "mamãe",
, 1ogando diante dela a marmita.
Ela olha para fora querendo me ignorar, até o momento em que lhe
,ligo que ela chama "mamãe" na direção da janela, para me dizer que esta
11ao estando lá, o alimento é vazio; e que ela não me quer porque cu a aban-
,1,mei ontem. Ela se volta e começa a andar para mim, empurrando a marmi-
1.1 diante dela. Mas ela ouve um avião, cai sentada dando um grito, o maxilar
hem para frente apontado !)ara mim, e levanta a cabeça para o céu. Falo-lhe
.i,_. seu medo de todos os ruídos que vem do exterior, e, tranqüilizada, ela reco-
l, 11.:a-se de pé; mas ao fazer isto ela bate a cabeça na vidraça. Eia cai sentada
,. me olha com uma expressão hostil, acusando-me deste machucado.
Ela se levanta e persegue a marmita com furor, esta termina em meu
pé, onde, sem hesitação, ela vem apanhá-la. Ela pemianecc um momento
·.,·ntada cm meus pés, não sabendo mais o que fazer; seu furor contra a mar-
11Iita me era destinado, e este furor a levou pela primeira vez a meus pés.
J-;to é novo, e é evidente que a novidade de sua iniciativa desencaJeia uma
perturbação ainda mais forte que seu furor. Como de hábito, ela foge de sua
,·moção afastando-se de mim da melhor maneira para ela, isto é, comendo
, , biscoito de costas para mim.
Mais calma, ela torna a ficar de pé, pega o bebê sem um olhar para o
prato. Ela coloca-o no chão para vir pegar meus óculos, e, senta da, ex piora-os
rom um dedo, sem pancadinhas, depois abandona-se com eles no mesmo
1ogo da tampa, sacudindo-os, jogand0-os no chão e apanhand0-os. Ela joga-os
para pegar de novo o bebê, do qual ela olha a fralda, depois o rosto - como
11ma lembrança do que ela fez com ela mesma na véspera e isto a uma
distância nonnal. Em seguida, ela apoia-o em seu 0U10, e termina pondo sua
lioca sobre a do bebê. Ela recoloca-o então a uma boa distância, toca-lhe
11 nariz, a boca, depois os dois olhos... e isto a faz procurar meus óculos com
o olhar. Ela aproxima-os dela, toca a fralda do bebê, depois começa a sugá-los,
,ilhando o bebê que ela continua segurando.
A emoção é forte demais. Sinto que ela procura fugir de si mesmo, e,
após ter lhe resumido a cena precedente, digo:lhe: "até amanhã". Quando
\aio de seu quarto, ela me diz até logo com a mão.
Ela levou o bebê, e :neus óculos ficaram no chão.
Um pouco mais tarde, tomo conhecimento de que Marie-Françoise res-
ponde com animação aos fonemas de chamado da enfermeira mesmo quando
,~stes não lhe são dirigidos.
Na sessão de hoje eu constato: l. que ela me responsabilizou pela panca-
1la que ela tomou ao se levantar; 2. que ela utiliza objetos intermediários para
210 Marie-Françoise ou o Autismo
1
exprimir sua agressividade contra mim, furor que a leva a aproximar-se dtl
mim pela primeira vez. Ela pôde descarregar sua cólera num pedaço de mhn,
isto é em meus óculos, depois de ter me feito compreender que, a mãe não fli
tan<lo lá, não se come, não se bebe. Tendo sacudido os óculos, ela decide su,
gá-los; mas somente após ter colocado sua boca sobre seu duplo, o bebê qlll
tinha tido o rosto cheio de mingau, outro dia.
Quando chego a 18 de outubro, uma enfermeira está dando a merenda ll
Marie-Françoise, que, de pé, segura-se no colo do adulto. Quando ela me v~,
me sorri e começa imediatamente a fazer manha para comer. Digo-lhe que voy
voltar.
Quando retorno, ela se deixa cair sentada e se balança. Minha vinda du,
rante a merenda a perturba muito; ela vai exprimir seu ressentimento altem1111;
do a recusa mluntária e a supressão de contato comigo.
Ela exprime a recusa voluntária indo sentar-se de costas e de frente para
a janela. Ela começa balançando-se e, assim que lhe falo, agita violentamentf
braços e pernas, como se ela me batesse e me afastasse empurrando-me com
os pés. Ela havia sido atraída para a janela por um chamado <lo menino do
loho do jardim: "mamãe". Falo-lhe da sua reação, associando-a com este cha·
ma<lo de Robert e com sua significação para ela. Ela precisa então sua vontade
permanecendo ao menos cinco minutos sentada, bem imóvel, bem empertiga,
da, frente à janela, sem um som, sem um gesto, mas com as costas ca"egada.,
e/e> toda sua hostilidade.
Ao cabo deste longo momento, ela gira sobre si mesma para ficar de
l"rcntc para mim, e me olha sorrindo com um rosto que surpreende pelo seu
poder expressivo. Isto é o mesmo que me dizer: "Eu sei muito bem que vocé
está aí; esteja perto de mim, porque, mamãe tendo me recusado, eu posso
agora lhe recusar!". E ela torna a girar para a janela.
Sua recusa se exprime também pela sua tentativa de beber pelo exterior,
pelo fundo da marmita e da leiteira, atirando-as em seguida para longe de si
com violência. Ela tenta também comer a tampa, agressivame~te contra mim:
comer o que não é comestível e recusar o que é.
Depois. olhando a cesta, ela cospe intensamente em sua direção durank
dez minutos. Apesar de ter dessa fonna exprimido bem sua recusa ela pega
na cesta um cachorro branco do qual ela coloca as duas patas na boca. Ela se-
gura-o assim com seus dentes enquanto ela olha-o e explora-o com o dedo. No-
tado o pedaço de barbante terminado por um nó, que serve de olho ao cachor-
ro, e que pende um pouco, ela tenta comê-lo. Quando eu verbalizo a cena do
olho, lembrando-lhe que ela coloca os objetos bem perto de seu olho quando
ela quer "tomá-los ela mesma" para perder o contato com tudo, ela joga o
cacho"º a seus pés e bate nele com a palma de sua mãe.
Todas estas cenas são entrecortadas de verdadeiras rupturas de contato
comigo, quando ela incorpora os objetos, para que eles entrem em seu mundo
interior, e não contenham mais nem uma única parcela de mim.
Ao cabo. de uma meia hora de sessão, ela se balança olhando a porta.
Ela olha para mim antes de estender os braços para a enfermeira, muito sor-
O Real e o Significante Separados 211
que resiste, como acabamos de ver, a ser transposto em significante, por falt•
da presença do Outro.
Certamente a tentativa não é sem efeito pois, com este bebê, este pt•
queno outro, Marie-Françoise coloca o prato e a janela entre parêntesis, e po,
de me olhar sorrindo, com uma grande descontração de todo o rosto. Se ela não
pode nomear o bebê, como escrevi, como se o fracasso precedente do "mamtrc' 1
a impedisse de fazê-lo, ela olha-o entretanto a uma distância normal, Sl'lll
colocá-lo bem junto ao olho para fazer dele seu duplo, como tinha feito com
o marinheiro. Só que agora ela não sabe o que fazer, e larga-o. Novo fracassso1
ela não pode levar o bebê à dimensão de uma imagem onde ela se reconhece,
ria. Isto nos leva a pensar que a dimensão imaginária não pode existir sem •
possibilidade de promover o Real ao significante, isto é, ao lugar do Outro,
Nadia nos disse, desde o começo, o quanto a imagem do outro estava
ligadao ao Outro, a ponto dela ter feito uma soma no objeto de sua fascina,
ção de 10 de dezembro: "a+ A". Marie-hançoise mostra que, sem o A, mio
pode existir "a".
A cena que se segue é um jogo de encaixe de uma marmita com um bulo
que poderia passar por um jogo de continente e conteúdo. Na realidade, o ob·
jeto principal é a tampa, de uma ponta a outra da cena; e trata-se bem, como
a cada vez com a tampa, de tapar o furo. Aliás, após ter renunciado a encaixar
a chaleira na marmita, ela faz uma torre, e sobretudo, no alto desta torre, cl11
quer acrescentar a tampa, o que derruba tudo: é para a tampa que ela inicial·
mente passa seu furor, empurrando-a depois diante de si dirigindo-se para a
porta de saída. Ela termina por jogá-la, de brincadeira, para uma outra criança
ao partir.
Ela liga esta tampa como tapa furo, cm último lugar e de maneira evi·
dente, ao outro: um pequeno outro do qual ela não pode, como Nadia, fazer
um objeto separável de meu corpo, logo, um objeto que taparia o furo. Mas
isto é mal sucedido visto que cu não estou na cena. Ainda aí, a articulação do
Outro e do outro não se faz, por falta de que o Real se articule ao significan•
te.
Eu apareço, entretanto, em negativo, pode-se dizer, a 16 de outubro,
quando eu não pude levar Marie-Françoise para a sessão, mas quando prova·
velmente ela ouviu minha voz na casa. De noite, tendo perdido toda a espe·
rança em me ver, ela se lambuzou toda de cocô, pego em sua fralda, enchendo
as sobrancelhas, os olhos, e em volta dos lábios -- a enfermeira insistiu espon-
taneamente sobre o fenômeno de bordas desta lambuzcira.
Estas bordas não estão aí sem colocar várias questões, porque o que foi
descrito no caso de Na dia difere sensivclmen te: ela 1am buzou de cocô o corpo
e o rosto e mesmo comeu dele. Dito de outra forma, tratava-se para Nadia, da
superfície fechada, não furada, inteira; pode-se dizer que é sua pele que devia
ser uma superfície sem falha nem furo, de um só lado, sem exterior nem ink·
rior. Versão sobre sua pele da imagem de 10 de dezembro: sua pele respondia
aí pela totalidade "a + A". Fora a minha ausência que havia acarretado uma
tal reação, que colocava em contra ponto a existên eia de "a" e de A.
OLl\ U"i'. ~:-~ ·:<)C ·f_:.',UJ FÍS1C.l.
Bit :~iot:.:<-3.
O Real e o Significante Separados 273
21, 22 e 23 de outubro
,·sperei dela uma demanda ativa e sem ambiguidade para lhe dar de comer; eu
não me contentei com sua boca aberta e com seus olhos fascinados em cima
do prato: porque isto só teria a ver com a repetição da bulimia, lá onde não
"xiste nem Outro, nem desejo do sujeito; o desejo não pode passar senão por
uma demanda, mesmo se a conclusão, como ela o dirá após ter comido todo o
prato de arroz, for que "isso não é isso".
Se sua demanda só passou através de gestos, ela encontra o uso da boca
para me dizer que "isso não é isso", cuspindo perdigotos em meu rosto, com
o maxilar agressivamente para a frente, toda uma seqüência de fenômenos. :É
verdade que "isso" era o objeto escópico durante todo o tempo em que ela
,:omeu o arroz; pois seu olhar era atraído sem cessar para a mamadeira, para
logo desviar-se, ou ainda para mim, e de tão perto que eu pude dizer que ela
me comia com os olhos. Dito de outra forma, sua atividade oral tem muito a
ver com o escópico, isto é uma atividade de superfície; este foi o caso desde o
início, não somente na fascinação pelo prato de arroz que Marie-Françoise
mais de uma vez comeu com os olhos, colando seu rosto contra ele, mas
ainda quando ela pressionou um objeto, o marinheiro ou o bebê, contra seu
olho como que para fazer dele seu duplo. O próprio bebê lhe serviu para tapar
o furo de sua boca.
Toda a questão oscila pois, entre o furo do corpo e a superfície. Só
existe furo do corpo através do Outro: é este que deve ser afetado dele. Num
primeiro tempo, ele deve ser o único a ter o corpo furado. Foi o que Nadia
demonstrou explorando, desde o início, minha boca com insistência. O
pequeno sujeito não se viu de início, em seu corpo, como furado, porque o
turo de seu corpo é desde logo tapado pelos objetos do corpo do Outro.
Somente secundariamente, ao nível oral, o furo de seu corpo surge, com a
perda que ele experimenta, e que vai fazer emergir sua demanda ao Outro;
com a condição primordial que o debate, então, inscreva-se no significante.
O objeto enquanto que anulado em sua dimensão de Real pela mutação
significante, não vem preencher realmente o furo, mas deve passar pela
demanda ao Outro. Esta demanda permanecerá, após a anulação do Real,
obrigatoriamente insatisfeita - como seria ela satisfeita se, no Real nenhuma
demanda pode surgir, e que, no significante, via obrigatória da demanda,
nenhum Real pode vir preencher o furo?
Nem porque Marie-Françoise, após ter comido o prato de arroz, disse
que isso não é isso por todos os fonemas que ela me cospe, ela segue menos o
sentido inverso da demanda; isto é, ela me fez compreender que ela queria o
arroz por seus gestos sem articular sua demanda propriamente dita; e que
articulando seus fonemas ela só diz de sua recusa.
O essencial da cena não está no fato de que ela coma o arroz, mas em
seu olhar, sem cessar atraído pela mamadeira ou por mim. Dito de outra
maneira, o que exprime a situação para ela se situa não no oral, mas no
escópico: ter o objeto realmente, grudado em seu olho para colmatar a perda
que a atividade oral de comer lhe demonstra ao nível do furo de sua boca.
222 Marie-Françoise ou o Autismo
•,ua boca. Por enquanto, ela me olha de forma interrogativa, olha o bebê,
perplexa, e, retornando ao furo da boca deste, coloca aí demoradamente sua
própria boca.
A cena termina com uma explosão significante, como se uma pressão
11mito grande, que tivesse aumentado, não permitisse mais reter os significan-
1,.:s que brotavam da boca de Marie-Françoise num rasgo e faziam sentido:
11lhando para mim, ela lança, o maxilar para a frente: "bebê, bibi, pipi, teta",
,. dizendo '"teta" olha a mamadeira, fica de pé, diz com um tom violento:
"·saiu, saiu". Neste rasgo, o real da ausência foi transposto em significante; a
lúgica do significante arrasta Marie-Françoise e ela me dirige sua demanda.
Infelizmente, sua boca se refecha sobre o significante. E é somente
dirigindo meus gestos que ela me faz pegar a colher e enchê-la no prato. Se
,·la come assim todo o conteúdo do prato, como da primeira vez, ela mostra
,,ue não é isso, a julgar pela tensão que toma conta dela quando seu olhar pára
11a mamadeira, ou ainda pelos movimentos de tosse que a sacodem quando ela
,·orne; como se ela quisesse recusar este alimento; mesma recusa que ela
,,xprimiu na ante-véspera cuspindo e lançando-me fonemas no rosto.
O passo que se anunciava tão claramente nos significantes, antes que ela
comesse, dá uma reviravolta,já que, durante a sessão mesmo, ela se senta com
,1 marinheiro, pressionando-o bem forte contra seu olho, sempre segurando o
hebê com a outra mão;este alimento decididamente não é "isso", ele não é de
,neu corpo, o Outro não está implicado aí, e Marie-Françoise fica reduzida a
tapar o furo de seu corpo com o marinheiro, este duplo, não sobre sua boca,
mas, deslizando para o escópico, colando-o sobre seu olho.
A cena seguinte é uma nova tentativa, sempre em relação com a mama-
deira que ela olha mas não pode tocar, e na direção da qual ela cospe limpan-
<lo a garganta, antes de me fazer pegar a caneca e de conduzir minha mão a
lim de colocar sua boca na beira desta caneca.
"Conduzir minha mão" é bastante específico da relação do autista com
o corpo do Outro: ele manipula-o, em seu corpo todo, como um objeto. Eis
aí a assinatura de uma relação ao Real do corpo do Outro, que fracasse ao
recortar aí objetos: parciais, diz-se classicamente, significantes pode-se dizer
mais justamente, na medida em que, somente a dialética significante permite
este recorte do corpo do Outro. Nadia nos demonstrou isso longamente na
impossibilidade que ela tinha em me tocar, como em tocar qualquer objeto -
eu penso em seu destrave para largar, e também em suas palmas das mãos para
o ar quando eu a carregava -, antes que seu trajeto tenha podido levá-la a
articular sua demanda do objeto do qual eu era portadora, pela via do signi-
ncante.
Retornemos a Marie-Françoise: ela quer beber toda a caneca em reali-
dade ela não bebe, ela mama, olhar fixo na mamadeira; quer dizer que ela
chega aí, com a caneca, ao objeto substitutivo da mamadeira, na"o sem antes
tropeçar numa impossibilidade, visto que, evidentemente, a maior parte do
leite, nestas condições, encontra-se derramado sobre a mesa. Este leite derra-
mado, ela vai ao ponto extremo do que ela pode atingir para absorvê-lo, por
226 Marie-Françoise ou o Autismo
ausência real na janela à uma presença não menos real quando ela se dirige a
mim. Assim ela fracassa, a despeito das aparências, na verdadeira dimensão de
1oda a palavra articulada que é a metáfora; a fortiori fracassa também na
outra estrutura significante que é a metonímia. O discurso psicótico, nos
1.:nsina Marie-Françoise, pode operar uma mudança, mas a substituição só
se sustenta aí pelo Real dos objetos, sem que se produza a significância no
Outro, absolutamente indispensável para que se possa falar em metáfora. Este
comportamento é constitutivo da exclusão da castração, da qual o psicótico,
nestas condições, não quer, ou não pode, nada saber.
CAPÍTULO VII
O DUPLO E O REAL
A perda revelada no escópico e a
auséncia do olliar
25, 27 e 29 de outubro
arroz doce e suga-os, depois ela se deixa cair sentada novamente, olhando
para mim furiosa. Ela me mostra meus óculos, bate neles, lança-os sorrindo e
,,handona-os para substituUos pelo marinheiro que ela gruda em seu olho
para incorporá-lo. Ela começa a rugir, mas ela não está afastada de mim; o
, 11gido agressivo me está dirigido; em seguida ela pára, me olha.
Ela própria termina a sessão; e eu a ouço rir com os outros enquanto
,·u errumo o material.
A 27 de outubro, ela tenta ser alimentada como da última vez. Como
da olha o prato dando gritos de apelo, eu lhe falo da colher que ela sabe me
dar quando ela quer. Ela olha para a colher, hesita e seu olhar desliza para
meus óculos. Relembro-lhe que ela serviu-se deles como de uma colher.
1·:ntão ela aproxima-se bem de mim, coloca sua mão em meu colo e olha-me
demoradamente, abrindo e fechando a boca, como se ela me comesse; o que
"u digo a ela. .
Pennanecendo apoiada em meu colo, ela olha a mamadeira, o bebê,
depois diz: "bebê, teta, levando de novo seu olhar para meus óculos. Ela
;1vança lentamente a mão para pegá-los. Ela faz com que eles deslizem pelo
meu nariz, devagarinho, até que ela possa fechar de novo sua boca sobre a
11arte redonda da armação, cuidando para que a extremidade de uma haste
,·steja em meus lábios. Como ela desvia um pouco de minha boca, ela levanta
:1 haste para que ela venha bem contra minha boca e fica assim por uma
dezena de segundos, olhando-me intensamente.
Então ela se deixa cair a meus pés, sacode um pouco meus óculos, fica
de pé diante do prato onde ela refaz a mesma cena ambivalente de demanda;é
1,em claro que ela deseja minha passividade.
Ela esperneia, pega um doce do qual ela come um pedacinho, depois,
,ilhando para mim,joga-o violentamente em minha direção.
Novamente, ela olha o prato, a mamadeira, a caneca, o bebê. Diz de
novo "bebê, teta" esticando a cabeça em minha direção, mas com o olhar na
mamadeira, numa atitude muito contraída; ela se deixa cair, numa mlío o
l1ebê, cuja fralda ela olha com grande interesse, e na outra mão meus óculos;
,,la paraliza-se assim numa atitude hierática.
Lembro-lhe a cena de ainda há pouco com meus óculos, as cenas em
que ela colocava sua boca sobre a do bebê, seu medo de minha boca no início
rio tratamento, e sua vontade de me comer correspondente.
Então ela sai de sua contemplação, olha para mim, joga o bebê num
eanto, meus óculos em outro, a leiteirinha que ela acaba de pegar ainda em
tmtra direção. Torna-se então hiperativa, pegando peças da louça de brinque-
do, encastrando-as e desencastrando-as bem depressa e jogando-as longe.
Atividade de fuga, pois ela se dirige imediatamente depois para a porta de
saída.
Eu espero um pouco, depois me aproximo. Ela me olha bem no rosto,
me diz "não", e a toda velocidade vem para a mesa, e pega a colher. Ao
passar, ela notou o penico pela primeira vez.
230 Marie-Françoise ou o Autismo
Ela tem uma maneira muito curiosa de encher a colher, bem comparável
à sua maneira de deglutir quando ela bebe na caneca. Ela arrasta a colher n1
superfície da sêmola de trás para frente, o fundo da colher sobre a sêmola. Ao
cabo de três vezes, a colher se enche. Então ela come, e recomeça várias vezes,
até que a colher arraste um pedaço de nata: ela olha-a pender, recoloca-a den,
tro, tenta tirá-la; mas a angústia cresce e ela se deixa cair sentada, olhando
para mim com uma expressão muito dolorosa. Eu recoloco a nata no prato
Marie-Françoise pega de novo a colher e sem a menor hesitação, tira a nata,
que ela derruba do outro lado do prato. Então ela me olha encantada, come
duas ou três colheres, depois começa a jogar, com a colher, a sêmola na mesa
ou no chão, cada vez mais violentamente.
Como sua expressão de dor enquanto ela mesma se alimentava me
impressionou, digo-lhe o quanto é doloroso chegar ao ponto de se alimentar
sozinha, na idade onde o alimento é ainda a ma'.e, sua presença, seu calor.
Alime!ltando-se sozinha diante de mim na sessão, ela pôde realizar pela
primeira vez quanto ela teve, porque sua mãe n!ío estava lá, de despojar o
alimento de seu verdadeiro sentido - de dom a receber -, para chegar à
bulimia. Assim ela pode em seguida, furiosa com este alimento desprovido de
sentido, porque dado a ela por ela mesma, colocá-lo em todo lugar: é que eu
não sou ainda "uma outra".
Ela senta-se para contemplar as pequenas massas de sêmola dissemina-
das, e isto acarreta uma cena extremamente penosa. Ela pega o marinheiro,
senta-se de costas para mim, começa a trepidar segurando o marinheiro numa
mão, e a colher na outra. Colocando o marinheiro entre suas pernas abertas, e
bem perto de sua fralda, ela bate nele com a colher. E ela aproxima a boca
deste marinheiro, o que a faz colocar-se acorada sobre o ventre, trepidando
duas ou três vezes, por cima do marinheiro, sempre contra sua fralda. Depois
ela fica de pé para vir espalhar com violência as massas de sêmola, rugindo.
Ela dirige-se finalmente à porta de saída. Como eu abro a porta, ela vai
em direção à bacia d'água que ela ignorou até agora, inclina-se para ela como
inclinava-se para o prato; em seguida ela sai.
A 29 de outubro, Marie-Françoise vai debater-se com seus sentimentos
para com o prato de arroz, sentimentos que mudaram um pouco desde a
última experiência. Na sessão precedente, alimentando-se sozinha, ela se deu
conta do vazio afetivo deste alimento com o qual ela se preenchia; de onde
suas fugidias expressões dolorosas, que testemunharam sua tomada de cons-
ciência desta realidade. Hoje, ela vai tentar insuflar um sentido afetivo ao
alimento, antes de encher-se dele. É mais ou menos o sentimento que me deu
toda a sessão.
Diante da mesa, ela começa contemplando o arroz, depois seu olhar
pousa sucessivamente em cada objeto da mesa, antes de pousar em mim. Ela
dá um breve grito de apelo, para que eu a alimente, mas que não é acompa-
nhado de nenhum gesto em direção da colher. Aliás, esta meia-demanda é
mais um rito do que uma realidade. Ela aproxima-se de mim, apoia-se em meu
O Duplo e o Real 231
joelho e olha-me demoradamente, seu olhar bem perto do meu, como se ela
me incorporasse, com o mesmo mecanismo que ela usa com os objetos dos
quais ela quer fazer seu duplo. Seu olhar sai da órbita um instante, depois
toma-se muito doce, sem tonalidade devorante.
Ela não toca em meus óculos, com exceção da extremidade das hastes,
mas é unicamente para retirá-los, para que eles não representem mais o papel
de tela entre seu olhar e o meu. Ela volta para diante do prato, contempla-o,
apanha meus óculos para mergulhar uma haste no ª"ºz e sugá-la. Isto tam-
bém não é o que ela procura e ela os deixa cair. Ela chega a subir em cima
deles e, todo o resto da sessão, ela vai manter um pé sobre uma das hastes de
meus óculos.
Durante um momento muito longo, ela vai falar com o arroz doce. Ela
lança para ele uma série de fonemas variados, alguns compreensíveis como:
"saiu, teta, bebê, não mamãe, quero não", e outros que parecem a fusão de
dois verbos: "demandar e comer"~ Estes fonemas, ela os pronuncia quer seja
violentamente, o maxilar para frente, quer seja muito docemente, bem baixi-
nho. De tempos em tempos, eles são dirigidos a mim, o que me dá verdadeira-
mente a impressão de que ela está buscando dar um sentido afetivo ao alimen-
to. Isto toma-se tão evidente para mim que eu lhe dígo;e ela entende, pois ela
pára, olha demoradamente para a mamadeira e diz: "mamãe, saiu", deixan-
do-se cair sentada, como que transpassada, esmagada pelo que lhe acontece.
Ela interrompe então por cinco minutos a emoção da cena interessan-
do-se pelas peças da louça de brinquedo, encastrando e desencastrando-as,
sempre com lógica, dando-se conta imediatamente das impossibilidades. Ela
experimenta alegria no seu sucesso e em mostra-me.
Ela lança alguns olhares para a bacia d'água; uma vez, debruça-se em
cima dela; então, tensa, ela atira longe as peças da louça de brinquedo, e vem
em seguida colocar-se de pé diante do prato.
Ela olha o arroz, ao mesmo tempo em que aproxima-se de mim, termi-
nando por apoiar-se em meu colo. Bruscamente, ela toma uma decisão: rea-
proximando-se do prato, ela pega a colher e, manobrando-a da mesma manei-
ra que na sessão precedente, começa a comer, mas só come três colheradas.
Ela me olha como se procurasse o papel que ela deseja me fazer representar;
é exato; pois, voltando a mergulhar a colher flo arroz, ela lambuza minha face
e minha testa três vezes seguidas.
Esta lambuzeira, feita a primeira vez bastante agressivamente, e depois
muito docemente, quase com amor, me faz pensar que ela me lambuza para
preparar o que vai seguir, isto é, lamber minha face, logo a iI:Jcorporação de
um alimento que terá reencontrado seu sentido mais primitivo 1 , o que eu digo
a ela relembrando-lhe a cena semelhante com a cabeça do bebê.
Esgotada, ela se deixa cair sentada, atira longe um brinquedo agressiva-
mente, depois fica de pé, pega o marinheiro e começa a mesma cena da última
sessão, mas interrompe para retornar ao alimento, desta vez a caneca. Ela
tenta em vão beber nele, porque ela morde a borda da caneca, e o leite
escorre. Furiosa, ela atira-o longe dela e toma a cair sentada.
Falo-lhe do fim de sessão e vou abrir a porta. Ela não está contente e
vai depressa na direção da bacúz para tentar mergulhar aí uma leiteirinha. Mas
ela não pode decidir-se, joga-a e dirige-se para a porta.
nheiro, grudá-lo em seu olho e começa a rugir para mim: é como se ela tivesse
percebido, por um curto instante, que ela me fez perder qualquer coisa pelos
meus óculos, perda que vale também para ela e da qual ela me imputaria a
1esponsabilidade, ao mesmo tempo em que ela a recusaria radicalmente
colmatando-a com o marinheiro sobre seu olho. O marinheiro, é o Real, é
seu duplo que a defende do significante do objeto de meu corpo.
Na sessão seguinte, a 27 de outubro, ela esboça uma aproximação
corporal comigo quando ela coloca sua mão em meu joelho, ao mesmo tempo
em que ela me olha demoradamente e faz movimentos com a boca. Então ela
1:ntende bem seu desejo de me comer, que eu lhe digo, visto que, olhando a
mamadeira e o bebê ela diz: "bebê, "teta". Mas seu movimento em direção
ao objeto oral logo acaba entroncada como ela está sobre o Real do objeto,
da só pode retornar ao registro escópico. Ao contrário de Nadia, que se refu-
1•,iou ne~te registro, porque ele é, por natureza o que menos revela a perda do
sujeito, Marie-Françoise pega meus óculos para obturar sua boca e se ligar em
meus lábios, como se, por este meio, ela revelasse o menos possível, não sua
perda, mas a minha. Quando em seguida ela retorna ao o~eto-alimento e que
da não pode me fazer sua demanda, eu noto que ela deseja minha passividade
,.· percebo então que ela não poderia tolerar que eu lhe desse o alimento, o
'lue me privaria dele.
Mesmo transitivismo ao contrário, quando ela come um pedaço de doce
,, joga-o violentamente em minha direção. É um impasse: sua demanda, por
falta de significante, não pode se exprimir e Marie-Françoise passa apenas pela
via dos objetos reais; ela pode conduzir, não tanto a uma satisfação, mas sim-
plesmente à expressão deste impasse: o bebê numa mão, e meus óculos em
,iutra, ela fica estática no limite, o bebê, é ela que fica separada do objetivo
de meu corpo.
Porque este impossível? Ela o diz quando sai de sua atitude imóvel, para
1,m vão encastrar e desencastrar as peças da louça: "as pequenas cavilhas nos
pequenos buracos", atividade da qual ela diz a inutilidade desesperadora
atirando tudo longe. O Real não responde.
Após uma falsa saída, ela retorna ao prato de sêmola; talvez ela tente,
passeando a colher na superfície do prato e rechaçando, não sem angústia, a
11ata do leite, mostrar que uma superfície sem furo é um muro; que é por um
furo nesta superfície que se poderia alcançar o objeto: a nata do leite, é a pele
do Outro, que se interpõe entre ela e a sêmola. É o que Marie-Françoise diz
quando, indo derrubar a nata fora do prato, ela pode comer duas ou três
,,olheradas de sêmola; mas ela não pode suportá-lo por muito tempo e dis-
persa a sêmola com violência. Ela fez da pela vazia do Outro um obstáculo,
visto que ela não pode tolerar fazer nele um furo. O Outro, é a mke que ela
perdeu. É o que lhe digo; e acrescento o quanto é doloroso, na sua idade,
alimentar-se sozinha e despojar o alimento de seu verdadeiro sentido, pelo
!'ato de que eu ainda não sou um Outro.
234 Marie-Françoise ou o Autismo
Na cena que segue, por mais penosa que seja, Marie-Françoise não
mostra menos que o alimento fracassa para ela em obturar o furo de seu
corpo, seja a boca ou o orifício inferior deste furo. O alimento fracassou no
tapar e ela termina por espalhá-lo completamente, rugindo. Ela se volta para o
marinheiro, seu duplo real, que ela aplica não mais sobre seu olho ou sobre
seu nariz, mas contra sua fralda, pronta a se colocar de cócoras para que ele
esteja também perto de sua boca e que ele sirva assim de tampa para os dois
orifícios. A relação deste marinheiro com o alimento fica evidente pela pri·
meira vez: visto que, sempre segurando a colher numa mão, ela bate nele
como bateu na comida. Tudo isto se inscreve contra toda interpretação indo
num sentido auto-erótico da cena: não mais masturbação aqui do que na
sucção do polegar. Após sua tentativa de tapar o furo de seu corpo, ela só
pode fugir, fugir de mim, após ter confirmado o que eu lhe disse, que não
existe Outro para ela no alimento. Visto que não existe Outro para ela no
alimento que ela coloca em sua boca, ela faz significar imediatamente que isso
não existe no outro orifício do furo de seu corpo: eis porque ela tenta obtu-
rá-lo com seu duplo real.
A 29 de outubro, após ter encontrado o mesmo impasse com o alimento
para encontrar seu Outro, ela retoma o caminho do escópico: ela aproxima
seus olhos tão perto dos meus que ela parece querer me incorporar, como faz
com seu duplo, o marinheiro. É preciso crer que ela encontra nele algum
esboço do Outro visto que seu olhar, primeiro fora da órbita como diante do
prato de arroz no início, toma-se muito doce, sem tonalidade devorante.
Ela tenta então fazer a aproximação entre o olhar e o alimento, mergu•
lhando no arroz e sugando a haste dos óculos que ela me tomou. Mas esta
tentativa de ligar a mim o objeto oral com a ajuda de meus óculos logo acaba.
Nadia fez isso com freqüência e seu balbucio dirigia-se a mim, isto é, ao Outro
que eu era para ela. Marie-Françoise também fala neste momento, mas não é
a mim que ela se dirige primeiramente, é ao arroz-doce;entretanto não é um
simples balbucio, é quase uma frase que resume sua história: "saiu, teta, bebê,
não mamã, qué não!". Sem muitas conjecturas, pode-se compreender que ela
fala da perda de sua mãe quando ela era ainda um bebê que mamava e que,
sem sua mãe, "ela não quer". O que é que ela não quer? Ficamos tentados a
responder com os dois verbos condensados que eu acredito escutar no que ela
diz: "demandar" e "comer". "Demandar" a um Outro que não é sua mãe, no
lugar da qual existe uma ausência real, isto é, não dialetizável, ela não o quer;
e "comer", ela não quer também visto que o Real do que ela pode comer não
contém sua mãe perdida. Isto se torna tão evidente para mim que eu digo a
ela. Com certeza, ela compreende, mas é olhando ainda para o objeto, para a
mamadeira, que ela diz: "mamãe, saiu" e se deixa cair sentada, esmagada por
este Real.
Nosso propósito deve ser interrompido aqui um instante, para interro-
gar tais palavras numa criança qualificada de autista, não sem razão; não
somente por causa do quadro inicial que ela apresentava, mas também, como
vimos repetidas vezes, pelo que a afasta de mim radicalmente, a despeito da
O Duplo e o Real 235
31 de outubro, 3 e 5 de novembro
ela quisesse que eu a carregasse, mas ao mesmo tempo curva cada vez mais 1~
l
cabeça na direção de meu peito. Ela permanece alguns segundos nesta puU.
ção, endireita-se, afasta minha bata com suas mãos, e enfia sua cabeça ,MI
abertura. Ela olha e gostaria de abandonar-se, mas não pode.
Ela endireita-se, olha o prato, depois, inclinando-se de novo em minlld
direção, me diz baixinho: "quero não", como uma confidência dolorosa, l' llf
deixa cair sentada, acabrunhada, seu olhar no meu perturbado.
Ela se diverte num jogo agressivo com a colher, depois pega um doce f
joga-o violentamente na água da hacia, olhando para mim, batendo o pé 1
dando um grito. Ela acentua mesmo sua expressão agressiva contra mini
voltando-me as costas, botando as mãos no chão e levantando o calcanlt~
em minha direção.
Marie-Françoise senta-se e desloca-se até a bacia d'água, mas não 01111
tocá-la. Então, ela contenta-se com o encastramento das peças da louça df
brinquedo, que ela consegue muito habilmente em ordem decrescente. EII
me toma como testemunha de seu sucesso e parece ater-se aí particularmente,
Eu me pergunto porque, após ter me olhado de uma maneira agressiva 1
ela tenta, de propósito, fazer encastramentos impossíveis com a mesma lóg.,·a,
invertendo com exatidão a ordem dos três recipientes. Ela chega a fazer u1111
torre instável, em sua vontade de recusar o encaixe. Penso que o sentido
e.leste desejo é e.lado pela pausa que ela vai de novo fazer diante da bacia,
halhuciando agressivamente. Ela retorna então às peças da louça de brinquedo
para escondê-las sob seu leito.
Vou abrir a porta de comunicação: ela esperneia, furiosa, depois estendo
os braços para a enfermeira.
o A 3 de novembro, Marie-Françoise me faz esperar perto de um quarto
de hora antes de vir para a sessão: uma outra terapeuta veio buscar uma outrl
menininha, e ela ficou perturbada novamente com este quadro de um adulto o
de uma cdança. Por um tempo, eia me ignora e se balança; depois ela mostra
muito interesse pela caixinha de pó de arroz de uma enfermeira, da qual ela
tenta abrir o fecho-éclair. Ela olha para mim rindo de tempos em tempos,
depois retorna ao pó de arroz. Ela deve aliás defendê-lo contra duas outral
crianças, e ela sabe muito bem afastar os inoportunos. A enfermeira abre o pó
de arroz para lhe mostrar sua imagem no espelhinho. Marie-Françoise fica de
pé, olha no espelho, o maxilar projetado para frente, emitindo fonemas agres-
sivos. Não penso que ela identifica o que ela vê como sua imagem, seu duplo,
o que seria particularmente problemático para eia. Mas olhando-se, ela toca
atrás do espelho, como que para constatar se é um vidro ou não.
A sessão, em seguida, vai concernir, em todo o seu curso, o problema do
alimento.
Marie-Françoise come primeiro os bombons, um a um, pela primeira
vez; em seguida ela se interessa muito de perto pelo prato, e, endireitando-se,
faz alguns "nham-nham". Ela vira-se para mim e repete seus "nham-nham",
como diante do prato. Então se produz alguma coisa de muito importante,
concernindo o papel da palavra nas sessões: eu verbalizo o sentido destes
A Tentação do Outro Portador do Objeto 239
ela me vê sentada para esperar sua decisão, ela leva à boca o brinquedo que
ela tiP..ha na mão, uma espécie de rã, depois se balança. Eu não manifesto
nenhuma reação. Por isso ela pára emitindo alguns fonemas agressivos, e
estendendo a mão para mim, abraindo-a e fechando-a, como para arrancar.
Diante de minha passividade, ela se levanta e vem para mim estendendo os
braços.
Deposito-a na sala de sessões; pela primeira vez, não tenho a impressão,
enquanto a carrego, de que ela tenha pressa de ser recolocada no chão. E, pela
primeira vez também, no momento em que eu a tomo em meus braços, seu
rosto toma uma expressão de doçura.
A atmosfera da sessão vai ser muito nova,. Eu não ouvirei um só fonema
agressivo. Ela vai permanecer surpreendentemente silenciosa e eu sinto um
contato profundo entre ela e mim. Tudo o que ela fará será lento e com
emoção.
De pé diante da mesa como de hábito, ela come os bombons lenta-
mente; mas seu interesse é dirigido para a mamadeira, e seu olhar vai dela ao
hehê, depois pousa em mim. Ela contempla a mamadeira demoradamente,
depois começa a trepidar diante dela; e quando ela não pode mais suportar
isso, ela me olha como se me pedisse ajuda.
Para lhe mostrar que compreendi, eu levanto a mamadeira e recoloco-a
imediatamente no mesmo lugar, dizendo-lhe que compreendo sua emoção.
Ela olha novamente a mamadeira, mas com um olhar mais vivo, e fazendo um
barulho de sucção. Em seguida ela começa a trepidar e me pede de novo
ajuda. Eu faço a mesma coisa que fiz ainda há pouco.
Então, ela pega a colher para tocar a mamadeira, depois seu bico. Ela
faz isso com uma certa reserva, sem dar palmadinhas; dessa maneira ela tem
coragem de tocar todo o comprimento da mamadeira e do bico. Ela parece
feliz com a gota de mingau que a colher depositou sobre o bico.
Mas isto é suficiente com a mamadeira, e ela não vai mais ocupar-se dela
por hoje.
A novidade é que, para abstrair-se deste interesse que ela prefere ignorar
agora, ela não tem necessidade de se deixar cair sentada para entregar-se a um
jogo mais ou menos estereotipado de diversão. Esta diversão, ela obtém sugan-
do uma série de substitutos da mamadeira e comendo o mingau. Os substitu-
tos da mamadeira serão:
1 - A colher que ela tem na mão e com a qual ela come um pouquinho.
Ela come bem lentamente e derrama o mingau na mesa, espalhando-o em
seguida com a mão com satisfação.
2 - O traseiro do coelho que ela mergulha e suga: outro pólo do corpo,
fechando o circuito de maneira autista.
3 - Meus óculos que ela começa a untar de mingau com a colher, como
se ela lhe desse de comer, logo a mim por seu intermédio. Em seguida, ela
mergulha-os inteiramente no prato, lambuzando-os com a mão. Em seguida,
ou ela suga-os ou serve-se deles para besuntar meu rosto. Na primeira vez,
colocar o mingau em meu rosto dá no mesmo que me bater; mas nas outras
A Tentação do Outro Portador do Objeto 241
duas vezes, ela o faz com muita emoção, como se quisesse me fazer absorver o
alimento por todos os poros de minha pele, e wn alimento que não seria mau.
Esta absorção de alimento por toda a superfície do corpo, é o ato real, que ela
tinha transposto psicoticamente para a absorção dos objetos, apoiando-os em
seu olho e face, para fazer deles seu duplo. Ela está em via de me fazer seu
duplo.
Ela deve evidentemente fazer o mesmo com ela própria, com:
4 - Sua mão, que ela mergulha inteiramente no mingau; ela suga-o em
seguida, come-a quase, lambuzando sua face.
Agora que fui identificada a ela por seus ritos, ela vai procurar avançar
na incorporação que ela quer fazer de mim; ela me toma; por isso:
5 - Meu relógi.o, isto é, que ela puxa até que eu lhe dê. Ela olha para
ele, leva-o à seu ouvido, olhando para mim. Depois ela mergulha-o no mingau,
suga e mordisca a pulseira de couro, sempre olhando para mim. Ela recomeça
uma vez, depois coloca o relógio no fundo do prato onde ela besunta-o copio-
samente de mingau com sua mão.
Agora ela se deixa cair senlllda, mas é de uma maneira nova. Há aí
evidentemente corte da emoção, mas, enquanto que até aqui este corte era
provocado por uma emoção que torturava, hoje ela apenas me dá a impressão
de que ela não pode ir mais longe no que ela acaba de viver.
Esta emoção entretanto, a deixa desorientada o bastante para ser tenta-
da a retomar ao marinheiro: ela pega-o e vira-me as costas.
Esta sessão tão rica não durou mais de vinte minutos. Marie-Françoise
retorna após o fim da sessão e chora ao me ver levar o material.
o
A 31 de outubro, observo que a grande inovação da sessão é um olhar
muito presente e muito profundo, humano, que Marie-Françoise despeja
sobre mim. Este olhar - novo para ela - presentifica a perda possível, na
medida em que o olhar é sempre portador da perda sem o sujeito sabê-lo.
Esta ignorância da perda, é o Inconsciente, e toda a questão do recalque
primordial.
Esta já era a questão que eu me fiz na primeira vez que ela colocou o
marinheiro contra seu olho: perguntando-me se, de tão perto, ela podia vê-lo,
vê-lo assim mesmo. Vê-lo, era para ela desconhecer ou melhor preencher a
perda, apagar o olhar em proveito da superfície o olho.
Na cena seguinte, nós não podemos deixar de pensar em Nadia, quando
Marie-Françoise pega um lápis em meu bolso, serve-se dele como de uma
colher, seja para ela ou para mim, finalmente toca em meus dentes com o
lápis e faz como se quisesse arrancar alguma coisa de minha boca: o que Nadia
conseguiu, após ter puxado meus dentes a 1o de novembro, e querido separar
um dos meus dedos a 28 de outubro, isto é, que meu corpo fosse marcado do
furo necessário a meu estatuto de Outro.
242 Marie-Françoise ou o Autismo
real que Marie-Francoise conheceu aos 2 meses. Nadia tinha conhecido esta
perda, mas ao nascer, muito cedo para que o jogo da presença e da ausência,
no registro simbólico, cessasse e se detivesse no "tudo ou nada" do Real e do
super-eu arcaico. Nadia, insatisfeita, não hesitava em me fazer tomar conheci-
mento disto, batendo em meu peito, antes de, a cada vez, se fazer beijar terna-
mente. A ambivalência de Nadia salvaguardava o Outro que eu era, que não se
encontrava destruído por sua agressividade, e lhe permitia prosseguir na busca
do objeto "a" em meu corpo: ela assegura-se disto dirigindo-se ao furo de
minha boca, o qual a remetia a seu próprio corpo não furado.
Marie-Françoise ultrapassa seu esmagamento na cena seguinte, tornan-
do-se agressiva. Primeiramente com os objetos, e ainda não diretamente
contra mim: ela ataca a colher, depois joga violentamente um doce na água da
bacia. Entíío, ela olha para mim batendo o pé e dando um grito, mas só pode
prosseguir contra mim virando-me as costas e dando uma pancada de calca-
nhar em minha direção: agressividade ao mesmo tempo muscular e anal pela
sua posição, mas que níío se define.
Ela volta, com efeito, para o encastramento das peças da louça de
brinquedo. E pela primeira vez, neste jogo, ela me mostra o impossível inver-
tendo a ordem dos três recipientes que ela tinha de início encastrado: recusa
do encaixe que tem a ver com a recusa, ou melhor a impossibilidade, do
encaixe dos corpos, do seu e do meu, na indecisão onde ela ainda está quanto
ao que é dos furos destes corpos.
Talvez, também, possamos evocar a recusa de Nadia (após minha nome-
açíío a 10 de dezembro) de ser em seu corpo como um todo a cavilha do furo
de meu próprio corpo, quando ela só me estende metonimicamente apenas
um pedaço do seu corpo, o pé.
Marie-Françoise não pode atingir esta metonímia de seu próprio corpo,
que seria propriamente significante. Ela pode apenas representar meu corpo
pela bacia d'água, cuja existência para si Marie-Françoise já indicou várias
vezes nas sessões precedentes, fazendo diante dela uma pausa rápida com um
olhar interrogativo. Nesta sessão, ela pode até jogar aí, pela primeira vez, um
doce. Ela pára aí novamente, após seus encastres, balbuciando agressivamente.
E não é dentro da bacia que ela coloca as peças de seus encastres. Indo escon-
dê-los sob seu leito, ela diz que estas peças têm a ver com seu próprio corpo,
cujo despedaçamento ( como o de Nadia, a 10 de dezembro) participa da meto-
n íÍ:nia e poderia fazer esperar a busca da unidade na imagem especular.
Ao contrário de Nadia que tinha pedido, ela mesma, o espelho, Maria-
Françoise encontra-o fortuitamente a 3 de novembro: uma enfermeira lhe
oferece sua imagem no espelho de uma caixinha de pó de arroz, com a qual
ela está brincando. Então, Marie-Françoise fica de pé, olha no espelho, o
maxilar projetado para frente, emitindo fonemas agressivos. Eu disse que ela
não identifica o que vê como sua imagem. O fato é que ela vai procurar no
verso do espelho o objeto que ela vê nele, como se o espelho fosse apenas um
vidro.
244 Marie-Françoise ou o Autismo
O que ela vê não é nem uma imagem, como Nadia fez quando do pri-
meiro espelho, para desviar-se dela bem rápido; nem seu duplo, do qual sabe-
mos que aquele que lhe faz as vezes, o marinheiro, ela o cola em seu olho. Elo
não fica pois particularmente perturbada com este encontro que não entra em
nenhuma categoria que pudesse interpelá-la quanto a seu corpo. Para Marie-
Françoise, o especular não existe.
A sessão vai concernir sua relação aos objetos que fazem às vezes de
espelho, de alimento, assim como o lugar que aí tem a palavra.
Primeiramente ela cola seu rosto contra o prato de arroz, como ela fez
freqüentemente. A experiência do espelho, da qual ela acaba de demonstrar
que ela está ainda na espera, permite avançar que o prato de arroz está mais
perto de representar uma espécie de espelho que o próprio espelho: na medida
em que o que ela encontra aí está no lugar da imagem daquilo que lhe falta.
Se, até então, este prato era apenas um Real impossível, ela dá agora o
passo que Nadia deu, a 5 de dezembro, onde a aproximação do objeto, velado,
é bem verdade, que era meu peito, resolveu-se no surgimento do significante
"mama", seguido de sua ternura para comigo. Marie-Françoise, como Nadia,
pode se referir ao significante, diante do objeto que é o prato de arroz, profe-
rindo alguns "nham-nham". Ela pode até virar-se para mim e repetir seus
"nham-nham", como diante do prato. Mas aí cessa o paralelo; pois assim que
eu aproximo seus "nham-nham" da expressão de uma demanda a mim e que
cu lhe digo isto, não é ternura que ela manifesta, é a anulação de sua deman-
da, sob a forma de uma chuva de fonemas agressivos e incompreensíveis.
O primeiro tempo de sua recusa, é de que aí tenha um sentido, o segun-
do tempo, é de que exista aí até significante: ela faz com que eu me cale, ela
não quer que eu fale. Ela reproduz assim a ausência de sentido do alimento
absorvido por bulimia.
Desamparada então por esta repetição, ela retoma, embora enroscan-
do-se em mhn, a denegação dolorosa da sessão precedente: "qué não, mamã",
onde o "qué não" acompanha-se aqui do significante "mamã", embora ela
diga estas palavras olhando para o prato. Este apelo, aliás, é para a sêmola que
ela o faz com muita docura, alguns instantes mais tarde, após ter tentado
comer dela tão desajeitadamente que nada chegou até sua boca. Mesmo se,
como Nadia, Marie-Françoise chegou a pronunciar "mamã", isto é a fazer
referência ao Outro, referência onde, antes do espelho, já pode ter um papel a
miragem da identificação narcísica primária - o que foi o caso para Nadia -,
Marie-Françoise só pode mirar-se no objeto, a sêmola, à qual ela dirige o signi-
ficante.
Mas a sêmola não é um espelho;ela não lhe remete nenhuma imagem;e
também não lhe mascara a perda como o espelho. É o inverso que se produz;
e quando ela esvazia a colher cheia junto da mamadeira, se não podemos falar
propriamente que é o objeto da perda que se revela, ao menos trata-se do
objeto dolorosamente impossível. Dolorosa também torna-se esta colher que
ela deixa cair e que ela só pode apanhar gemendo, para derramar o resto da
A Tentação do Outro Portador do Objeto 245
Isto não a impede (tã'o grande é a audácia que ela mostrou), de poder ir
mais longe.
Um pouco mais tarde, ela chora ao me ver levar o material da sessão:
que é, desde a véspera em que ela o escondeu sob seu leito, verdadeiramente
seu; o que diz bem da divisão, que ela vive ainda, entre seu debate comigo e a
antiga via do duplo.
CAPITULO IX
O ESPELHO NO REAL
A inversão topológica na psicose
10-19 de novembro
D
, 1 Não pude levar Marie-Françoise para a sessão durante cinco dias, e
0videntemente, a 10 de novembro, ela vai reagir à minha ausência, sobretudo
depois da sessão importante do dia 5.
Encontro-a sozinha em cima dos degraus, e ela consegue descer sozinha.
Ela vem pegar e comer os bombons; mas, após um olhar para a mama-
deira, para o bebê e o prato, ela retoma ao cômodo de onde ela veio, levando
uma marmita .
. A 12 de novembro, infelizmente, a sala de sessões habitual está ocupada
e eu preparo uma outra sala no mesmo andar. Uma enfermeira traz Marie·
Françoise em lágrimas, desde o jardim de infância onde ela já chorava.
Assim que me vê nesta sala nova, ela pára de chorar e quer ser posta no
chão. Ela anda até a mesa e começa a comer os bombons como de hábito.
A sessão vai ser bastante longa visto que por duas vezes ela recusará
veementemente o final da sessão. Sessão de recusa, que ela exprimirá pela
primeira vez de uma maneira mais nonnal, sem estereotipia nem tentativa de
afastar-se de mim através da absorção de objetos. Ela será silenciosa, passiva,
com um olhar voluntariamente distante e frio; mas nenhuma só vez ela terá
um olhar de demente.
Ela olha para mim intensamente enquanto come os bombons, e eu lhe
explico por que estamos numa nova sala. Ela inspeciona a sala com o olhar,
fixando mais demoradamente sua atenção num pavão colado na parede,
depois num pedaço de céu e no alto das árvores que ela percebe por cima da
parte translúcida da janela.
O olhar que ela pousa em todos os objetos é presente, interessado, e eu
não sinto nele nenhuma inquietação. Assim que ele retoma a mim, ele é
voluntariamente distante, mas não ausente. Ela não se afasta de minha
presença, mas me exprime seu ressentimento.
Os bombons acabados e sua inspeção terminada, seu olhar vai para a
mamadeira, o bebê e o prato. Após ter contemplado demorada e silenciosa-
mente abandona a colher; sobretudo, ela colocou mingau sobre toda a mesa;
ela pega meus óculos, mergulha-os inteiramente no prato, suga-os e me 'bate
com eles. Ela deixa-os no prato, toma a pegar a colher para bater em meu
rosto com força, e tentar cravá-la em meu olho, com um olhar furioso: sempre
os olhos como substitutos da boca. Ela termina o que há no prato com a mão,
248 Marie-Françoise ou o Autismo
lambendo-a com deleite. De vez em quando ela vem puxar meus cabelos con,
sua mão cheia de mingau, e termina por me dar uma bofetada.
Eu ·p,enso em encerrar a sessão, mas, assim que chego na porta, ela
vira-se, olha-me profundamente e me diz com violência: "não, quero não'',
Então, volto a sentar-me. Ao constatar que eu estou reinstalada, durante
cinco minutos, ostensivamente, ela só se interessa por aquilo que ela percebe
por cima do vidro da janela. Mas, se eu faço o mesmo, ela olha para mim
furiosa, e se reabsorve nesta contemplação quando meu olhar retorna para ela.
Ela termina a sessão encastrando peças da louça de brinquedo, depot,
de ter me dito um outro: "não, qué não", mas num tom mais satisfeito.
É uma enfermeira à qual ela estendeu os braços que a reconduz ao
jardim de infância. Lá, ela começa a andar com agressividade quando uma
outra criança agarra-se em meu avental e brinca de se esconder embaixo dele.
'·-. A 13 de novembro, eu preparo a mesma sala que na véspera, e decido cu
mesma tentar conduzir, Marie-Françoise do jardim de infância até a sala de
sessões.
Encontro-a sentada embaixo da mesa com um brinquedo. Ela balbucia
quando eu entro no cômodo, começa a agitar agressivamente seus braços e
pernas, depois, percebendo uma outra criança, a mesma da véspera, que se
desloca em minha direção, ela quer ficar de pé para vir para mim, mas bate a
cabeça com força na mesa e cai de novo sentada. Ela me olha furiosa e come-
ça a chorar. Eu venho em sua direção, ela pára de chorar e estende-me os
braços; cu a conduzo. Durante o trajeto de alguns instantes, pelo corredor, ela
está calma e lança olhares para os quartos.
Ela arranca meus óculos e eu a coloco no chão ao entrar na sala. Pela
primeira vez, ela se faz ser colocada de pé, e ela anda bastante rápido para a
mesa. Ela pega os bombons e começa a comê-los enquanto eu fecho a porta e
sento-me. Ela olha para mim, e em seguida, ostensivamente, olha para a copa
das árvores. Assim como ontem, se eu faço como ela, ela me olha e não olha
mais para fora. Isto dura cinco minutos. Eu interpreto e ela ri.
Ela explora com a mão a mamadeira e o bico desta, mas apenas com
dois dedos. Se ela dá provas de reticências, um real interesse por esta explora·
ção lhe permite transigir com seu medo. Em seguida ela pega a colher, enche-a
e lambe-a uma vez, depois enche-a novamente para derramá-la sobre o bico da
mamadeira, com alegria, como se ela lhe desse de comer; o que digo a ela.
Então ela abandona a colher para pegar meus óculos e servir-se deles para
comer por duas vezes. Ela deixa-os no prato para me dar uma bofetada retum-
bante.
Ela volta-se para o bebê que ela pega, e senta-se para olhá-lo intensa-
mente. Ela levanta-se deixando-o no chão.
Ela volta para a mesa e faz pastas de mingau que ela espalha com sua
mão; depois pega um doce e começa a comê-lo. Mas então ela me olha e joga
os doces agressivamente um após o outro, em direção da bacia, com um ar
triunfante.
O Espelho no Real 249
Ela apanha o bebê e mete sua cara no prato corno para fazê-lo comer.
Ela deixa-o assim para pegar um doce e começar a comê-lo.
Eu verbalizo o que ela faz. Ela me olha intensamente, e joga agressiva-
lllente os dois doces na direção da bacia. De novo, ela vira-se triunfante para
mim, torna a pegar o bebê, suga-lhe as duas mãos, joga-o e come o que resta
do mingau com sua mão, depois de ter puxado meus cabelos com força.
Ela prefere permanecer em seu circuito autista, isto é, comer a si mes-
ma, a investir o alimento de uma realidade afetiva em relação a mim. Ela
,:ompõe seus meios de defesa e eu não os interpreto, mas ela parece surpreen-
dentemente consciente do que ela quer exprimir.
Ela senta-se no chão, pega duas peças da louça de brinquedo que ela
,:ncaixa e desencaixa.
Ela deixa cair a leiteirinha na bacia. Todos os brinquedos da cesta vão
segui-la nesta bacia, e ela coloca-os ai deliberadamente.
Depois ela fica de pé e interessa-se pela cadeirinha azul que ela sacode.
Reconduzo-a ao jardim de infância com meus óculos, que a enfenneira
tomará dela alguns minutos mais tarde.
A 15 de novembro, assim que ela me vê, ela se levanta e anda até a sala
vizinha, antiga sala de sessões. Constatando que o material não está aí, ela
volta-se para mim e estende-me os braços.
Quando coloco-a de pé na entrada da nova sala, ela anda rápido até a
rnesa e pega os bombons que ela come olhando, por cima dos vidros, a copa
das árvores. Ela estende um bombom quase até meus lábios, recoloca-o em
sua boca, e comendo-o, olha-me demorada e profundamente nos olhos, mas
com um olhar que ela torna voluntariamente frio e distante tendo ao mesmo
tempo necessidade deste contato a mínima. Como ela me olha comendo após
ter aproximado o bombom de minha boca, existe nesta associação olhar-
comer como que uma tentativa de dar ao alimento seu peso afetivo, ten'/lltiva
feita na defensiva.
Em seguida ela explora por um instante a mamadeira, come uma colhe-
rada de mingau. Com a colher, ela me dá sucessivamente golpes no nariz,
depois me faz wna carícia na face. Ela se deixa cair, pega meus óculos, mergu-
lha-os uma vez no mingau, mas não o suga e abandona-os sobre a mesa, para
pegar o bebê.
Senta-se com o bebê e explora-o, tocando e sacudindo um pouco cada
a
mão e cada pé. Ela suga u mão brevemente, e olhando para a mamadeira, faz
intensos barulhos de sucção, mas dois ou três apenas. Ela retorna ao bebê que
ela continua a explorar, desta vez ao nível do rosto. Ela pressiona um pouco
ci,Ja olho, tenta enfiar seu dedo na boca.
Então ela volta-se para mim, olha-me e joga o bebê em meu colo, com
bastante violência. Ele escorrega, cai no chão; ela olha para ele, depois não
se importa mais. Ela fica de pé, pega a colher e joga-a violentamente do lado
oposto a mim. Depois é a vez dos doces, que ela joga um a meus pés, e o
outro na direção da bacia.
250 Marie-Françoise ou o Autismo
articulados, separados uns dos outros, pouco numerosos a cada vez. A elocu-
ção não tem nada de comparável àquela de uma comporta que se abriu. Mas
eles me são apenas fracamente endereçados; ela olha para frente, emitindo-os
na direção do alto das vidraças.
Ela sai da cesta, e aproxima-se da mamadeira que ela toca e olha, com
um olhar voltado para dentro. Percebendo o bebê, ela apanha-o, e com um ar
furioso, joga-o a meus pés, diz.endo: "bebê" violentamente. Depois ela vai até
a janela que ela consegue abrir, e olha para fora durante cinco minutos; mas
:ieu interesse não está voltado para o que ela vê, ele está voltado para mim
enquanto que resultado de toda cena precedente, à qual ela colocará um
ponto final ainda dentro em pouco, retornando à sala, para sacudir agressiva-
mente um leito.
Tudo isto evoca o nascimento como rejeição maternal primária: função
da proximidade do abandono real de Marie-Françoise, com a idade de dois
meses, idade da mamadeira.
Enquanto ela olha o exterior pela janela, ela tenta por três vezes fechar
sobre si o batente, procurando assim isolar-se de mim, como se ela quisesse
se afastar voluntariammte, em razão da rejeição sofrida no passado.
Ela entra na sala e vai sacudir o leito. Sua fralda começa a cair a ponto
de entravar quase totalmente seu andar.
Ela aproxima-se do balde e fica de quatro diante dele, inclinando-o para
si. Ele cai e a areia se espalha. Ela recua precipitadamente, tomada de pânico,
fica de pé com dificuldade e vem para mim, puxar meus cabelos.
Ela está cada vez mais entravada por sua fralda que caiu até seus pés, e
,~u retiro-a. Mas ela não parece à vontade, e eu vou buscar uma fralda seca.
Coloco-a a seu alcance, para saber se ela deseja que eu a coloque. Ela pega a
fralda, estende-a para mim e espera. Coloco-lhe a fralda, e fico surpresa com t.
,1.iegria que isso lhe dá. Ela tem um breve momento de liberdade alegre que eu
não esperava.
Ela joga mingau no chão, depois se põe de quatro para olhar a areia
espalhada; mas ela é novamente tomada de pânico, e levanta-se para ir
:<acudir a cad(iirinha.
Eu abro a porta e ela volta a seu quarto, fazendo em sua passagem uma
incursão em cada quarto.
elisão nem a perda inerentes a este encontro do espelho. O que ela faz,
exigindo meu olhar sobre ela, é assegurar-se de sua existência em meu olho.
Reencontramos aí o esboço do que Nadia realizou na fase pre-especular,
pela imagem do pequeno outro colada em meu olho: que, não somente lhe
indicava seu próprio lugar em meu olho, mas me colocava como seu Outro.
Marie-Françoise esboça uma certa sensibilidade ao outro, na volta da sessão,
quando uma outra criança agarra-se a meu avental: ela começa a andar na sala
com agressividade - obseIVe-se que ela não me bate como na sessão.
A 13 de novembro, ela repete ostensivamente a cena diante da janela,
seu olhar na copa das áIVores, e exigindo meu olhar sobre ela; mas, aí, eu
posso interpretar, dizer-lhe que ela quer me fazer ver sua recusa em me olhar;
seu riso diz bastante que eu toquei no ponto certo, ao ponto de ser esta a últi-
ma vez que, exigindo meu olhar, ela olha para a copa das áIVores.
Três cenas sucessivas vão então definir o que eu chamei de seu circuito
autista e que não podem fazer sentido por si próprias, mas exclusivamente
pela dll'erença que se demonstra aí com o que Nadia tinha ilustrado em sua
relação ao Outro e ao outro.
A primeira é uma réplica da cena de 7 de novembro onde eu pude
acreditar que uma abertura se fazia na direção de uma instauração do Outro
para Marie Marie-Françoise, quando ela pôde absorver o mingau com diferen-
tes substitutos da mamadeira, dos quais dois deles, meus óculos e meu relógio,
foram tomados de mim. Mas o que ela realiza a 13 de novembro infirma o
que me apareceu como uma abertura; porque, em fez de dar o passo dos obje-
tos em direção ao corpo do Outro, ela fecha-se completamente nesta relação
aos objetos: o que não deixa de ter consequências quanto à sua relação comi-
go. Ela termina esta primeira cena dando-me uma bofetada retumbante.
O lambuzamento não concerne aqui nem seu corpo nem o meu, mas
somente aos objetos; pode-se mesmo dizer que é a mamadeira que ela ali-
menta - ela já tinha fe~to isso com meus óculos e meu relógo, a 7 de novem-
bro, mas ela parecia então pronta a passar ao lambuzamento do corpo, se bem
que, ao contrário de Nadia, fosse primeiro o meu e em seguida o seu.
Não se trata mais disso hoje; os corpos estão excluídos, e ela transporta
para os objetos a consistência de superfície que Nadia atribuía aos corpos
pelo lambuzamento; é o objeto bom ou mau que toma o lugar do corpo e do
que pode inscrever-se aí em termos de relação. Também ela conclui esta
cena pelo gesto destrutivo que se dirige ao paredão de puro Real de meu
corpo. Este já é provavelmente, o sentido da série de bofetadas da primeira
sessão: é exatamente a meu corpo que ela se dirige, apontando, no horizonte
do "tudo ou nada" de seu debate, o intolerável de minha presença no Real,
da qual não pode salvá-la a ausência real que a priva de tudo - a de sua mãe
que a abandonou.
A segunda cena confirma que sua relação só se faz com um objeto real.
Que ela apanhe o bebê e mergulhe seu rosto no prato como para fazê-lo
comer poderia impor-se como a expressão de seu próprio desejo de comer que
passaria pela imagem do bebê. Assim, Nadia, tanto com a mamadeira, a 4 de
256 Marie-Françoise ou o Autismo
janeiro, quanto coma colher, a 27 de janeiro, mostrará seu desejo oral esbo-
çando o movimento de dar de comer -a boneca; isso foi apenas uma tentativa,
que desembocou numa grande violência com a boneca, acoplada com a
violência contra a mamadeira e a colher. Mas o que Nadia não deixava de
exprimir em seguida, era que tudo isto dirigia-se ao Outro que eu era, isto é,
não tinha valor de impossível, mas de interdição. Marie-Françoise, mesmo
se ela me olha e joga por duas vezes os doces na direção da bacia, e mesmo
começa a comer um deles, isto é, a pegar um alimento que está em relação
comigo, pára logo e só triunfa numa recusa radical que ela me dirige: tornan-
do a pegar o bebê, ela suga-lhe as duas mãos, joga-o e come com a mão o que
resta de mingau, depois de ter puxado com muita força os meus cabelos. O
bebê implicado na sua recusa ao Outro não é uma imagem ligada a mim; é
um refúgio real contra mim, isto é, um "duplo" que ela encontra ao nível
oral, como ela tinha feito ao nível escópico.
Esta segunda cena esclarece a primeira: a mamadeira tinha aí o mesmo
lugar de duplo real que o bebê, acompanhada do mesmo mecanismo de recusa
de meu corpo. Nada de um interdito em tudo isto; nada além do Real sucessi-
vamente posto e recusado de um objeto que não se inscreve no Outro, sem
nenhum feito de significância.
As consequências desta ausência de inscrição do objeto no Outro, e
da redução do Outro ao objeto real, são que:
.}. Não se pode falar de substituição de objeto no sentido metafórico.
2. Com efeito, o Outro para Marie-Françoise não é portador de objetos
causas do desejo; ele é o próprio objeto; o que dá conta ao mesmo tempo da
necessidade que ela tem de mim e do impasse no qual ela fica em minha pre-
sença, que ela pode apenas recusar num "tudo ou nada".
A ambivalência de Nadia não pode, nestas condições, encontrar-se
em Marie-Françoise, visto que, esta ambivalência, é a oscilação entre o amor
do ()utro e a procura agressiva do objeto do qual ele é portador. Marie-
·Frans:oise está presa apenas numa alternância de uma presença real minha,
que ela esvera e que ela busca, e de sua recusa radical, na sessão, que corres-
ponde à ausência real de sua mã'e à qual ela se dirigia voltando-se para o vazio
da janela.
A terceira cena confirma primeiramente seu fracasso de toda dimensão
imaginária e especular, quer seja entre ela e o bebê ou entre ela e mim duas
peças de louça de brin4uedo que ela encaixa e desencaixa dizem de que rela-
ção real trata-se ali. Que ela coloque em seguida uma leiteirinha na bacia cheia
d'água, e que todos os brinquedos da cesta tenham o mesmo destino, pode
fazer pensar em algum decalque real de um Outro, sob a forma desta bacia,
que poderia conter os objetos. Trata-se aí de um movimento regressivo em
direçã'o a algum habitat pré-natal? Nós retornaremos a isso.
Toda a primeira parte da sessão de 1 S de novembro me concerne, assim
como ao bebê.
Para o que me diz respeito, seu ponto de partida é sempre a ausência
real: ela come os bombons olhando a copa das árvores por cima da janela.
O Espelho no Real 257
Mas ela não se demora aí. Pelo contrário, hoje, ela volta-se para mim e, esten-
dendo um bombom quase até meus lábios, pousa em meus olhos um longo e
profundo olhar, embora eu a sinta fria e distante. Ela tenta ligar novamente
alimento e olhar, mas termina apenas fazendo da mamadeira o seu duplo, e
servindo-se da colher para sucessivamente me bater e me acariciar. Pensaría-
mos então na ambivalência que sua impossibilidade de sugar os óculos que
ela me tomou e mergulhou no mingau, desenganaria.
Ela volta para o bebê, seu duplo, que ela emparelha com seu outro
duplo que é a mamadeira: levando à sua boca uma mão do bebê, ela olha para
este fazendo intensos ruídos de sucção. Hoje, entretanto, ela vai mais longe
com o bebê, quando ela explora o rosto dele pressionando um pouco cada
olho e tentando enfiar-lhe seu dedo na boca. Esta exploração do furo da boca
do bebê o faz sair de seu papel de duplo - papel que ele não teve sempre. Ela
confirma isso ali.is, não se·tapando com ele, mas voltando-se para mim para
jogá-lo violentamente em meu colo. Ele cai no chão? ela não se ocupa mais
dele. De meu lado, cu não o apanho assim como não apanhei o marinheiro
de Nadia após o primeiro espelho; visto que nem este bebê, nem este mari-
nheiro são representantes. Para- Nadia esta foi a chance de efetuar uma
perda da qual vimos a fecundidade através dos espelhos que se seguiram;
para Marie-Françoise, podemos dizer também que foi uma sorte eu não apa-
nhar o bebê, porque ele não é um representante dela, mas um objeto real no
meio de todos os outros dos quais ela se separa. Infelizmente para ela, o espe-
lho não está .1 sua disposição como lugar onde significar esta perda. No lu-
gar do espelho, ela encontra a cesta e a bacia d'água; isto é, no lugar da
superfície <lo espelho, continentes - volumes. É o que eu lhe digo. Resta
ainda que, a bacia <l'água e a cesta, são a mesma coisa.
1
A bacia <l'água, é a bacia mais a água, isto é, dois tennos; e quando ela
coloca aí todos os objetos que ela pega na cesta não são mais somente os
objetos que ela sempre conheceu pelo que eles são, isto é reais, mas objetos
que se juntam aos dois primeiros: a bacia + a água+ os objetos, numa situação
onde existem "três", a água sendo o intermediário e tendo a função estrutural
de desrealizar os objetos.
A questão <lo habitat pré-natal, tão frequentemente evocado tão logo
exista um continente e água, só refere a uma situação imaginária a dois. Na
realidade é uma estrutura a três, por pouco que, para o sujeito, os elementos
sejam significantes; o que é necessário para fazer estrutura. Nós não podemos
ainda resolver para Marie-Françoise. J
Aliás, ela própria não resolve, visto que após ter depositado com precau-i ,
ção um doce e lançado um olhar em tudo o que a bacia continha, ela desin-t:;
teressa-se e passa à cesta vazia, que continha os objetos que agora estão na
bacia. Aí, ela chega muito depressa a seus fins; ver o exterior do fundo da
cesta sobre a superfície do qual ela passa a palma da mão. É a primeira vez
que ela não é aqui um continente: mas uma superfície. Há aí um passo capital
que não sabemos ainda se será decisivo, mas é preciso notar que é a primeira
258 Marie-Françoise ou o Autismo
vez que ela coloca a superfície como elemento de um objeto a explorar. re"'
tamente, ela aproximou-se da superfície de meu corpo num começo dtl
lambuzamento; mas a exclusão de seu próprio corpo, não lambuzado, a havll
feito mergulhar novamente em seu circuito autista, ao longo das sessões H•
guintes. Talvez ela possa nesta sessão interrogar de novo a superfície porqtlf
ela primeiramente reservou e abrigou os objetos e um doce na bacia? Esta
bacia seria alguma representação do Outro?
A exploração da superfície da cesta, inteiramente demonstrada num
primeiro tempo, visto que se trata do exterior do fundo da cesta, segue-sé
da exploração do interior. Uma tal exploração poderia impor-se como a busca
de um continente; Marie-Françoise, aliás, inclina-se tanto para apoiar a palma
de suas mãos sobre o fundo, no interior, que poderíamos pensar que ela te11t11
fazer de si mesma o conteúdo da cesta. Na realidade, nesta sessão, após esfor-
ços e uma excitação cada vez maiores, ela se deixa cair sentada, como quan-
do, no início, ela estava desesperada; ao mesmo tempo, seu olhar torna-se
vazio. Que ela vá, retomando da sessão, explorar um armário da rouparia não
permite concluir o que ela procura.
A 17 de novembro, meus óculos, a bacia e a cesta são os objetos-pivôs
da sessão:
1. Meus óculos, ela os toma de mim, quando eu a carrego durante o
trajeto até a sala de sessões; e ela faz ruídos de sucção. É A primeira vez
que um objeto de meu corpo é tão claramente ligado a um auto-erotismo que
não é frequente em Marie-Françoise.
O lugar de meus óculos como objeto na fronteira de seu desejo se
confirma quando, tendo colocado os bombons em sua boca, ela me olha e
vê que eu recoloquei os óculos; então ela joga um dos bombons que ela tem.
Do mesmo modo, ela come uma colherada, me dá um golpe sobre os óculos
com sua colher e joga-a. Tudo isto como que para dizer da ligação necessária
entre um objeto de meu corpo e o alimento, para que ela possa comer e que
isto faça sentido.
2. Na bacia, ela coloca não somente o pato, que ela contempla, mas
também os doces e a colher. Então, sucessivamente, ela come com as mãos
puxa meus cabelos, me dá urna bofetada e vai contemplar a bacia. O luga;
desta bacia se precisa: quando eu tornei a colocar meus óculos, ela não podia
mais cc,mer; ela pôde comer novamente quando ela recolocou em reserva
seus objetos na bacia; o que coloca a própria bacia como um Outro em
reserva e permite me agredir violentamente. Agredindo-me, aliás, por oposi-
ção à relação de contemplação para com a bacia, ela me coloca no lugar da-
quela que a abandonou, sua mãe, e que privou o alimento de sentido; o pro-
gresso de Marie-Françoise, nesta cena, se faz pela oposição que ela instaura en-
tre a bacia e eu. Início de articulação, este par de oposição.
Ela continua em seguida quando pega o bebê, mergulha-O no mingau,
lambe-0 e joga-0 na bacia, antes de me agredir novamente.
Ela chega então a estabelecer uma situação ternária entre ela, meus
óculos e o marinheiro, pressionando este último contra sua face intercalando
O Espelho no Real 259
111eus óculos. Seu "duplo" é deslocado dela por um objeto de meu corpo
cujo estatuto não é entretanto aquele de um objeto causa de desejo. Aliás,
da logo volta ao marinheiro após ter jogado os óculos, pressionando-o bem
forte contra sua boca pela primeira vez: ela faz dele um objeto que obtura
,, furo de sua boca corno ela havia feito dele um objeto obturando o orifício
mferior de seu corpo. Ela relembra isso, de qualquer sorte, quando, pegando
o coelho, ela olha o furo inferior antes de puxar ainda urna vez os meus
cabelos. Sua agressão termina por tornar por sua insistência, o valor de urna
,cprirnenda: a de que ela tem um corpo aberto, furado, do qual eu teria fa-
lhado na transferência em obturar o furo; com um objeto como meus óculos.
3. 1 então na cesta vazia que ela coloca o bebê, após tê-lo tirado da
bacia. Ela não terá sossego, sacudindo a cesta cada vez com mais força, até
derrubar o bebê e, não conseguindo, tirá-lo daí com a mão. Sua agressividade
contra a cesta acentua-se e o sentido emana quando, tendo se machucado
~om a alça, ela vira-se para mim para me exprimir seu furor.
A sequência da primeira parte da sessão seguinte, dia 19, é uma repeti-
ção da do dia 17, o que nos leva a concluir que existe em Marie-Françoise,
agora, um significante e não puro Real, que não faria repetição. É o que
confirma o valor significante do par de oposição que nós assinalamos entre
a bacia e mim entre a bacia, reserva ternária de seus objetos, e eu que me
torno portadora também de objeto mas que ela agride sem cessar, visto que,
na transferência, eu lhe recuso estes objetos. O estádio do início, onde eu era
a presença real de urna ausência não menos real, sem que nenhum objeto de
meu corpo pudesse adquirir a qualidade de objeto separável, foi ultrapassado.
Ela prova isto quando pega meus óculos, mergulha urna haste no mingau e
suga-a, ou ainda quando, batendo-me com a colher com a ajuda da qual ela
come o mingau, ela gostaria de retornar com esta última o rastro de mingau
que ela deixou em minha mão. Mas não podemos nos impedir de pensar
no que ela fez com a mamadeira, a 13 de novembro, quando ela havia deposi-
tado o mingau sobre o bico, isto é, corno a mamadeira, eu só posso lhe ofe-
recer o que ela bota sobre mim. Inversão dos papéis que pode cortar toda
demanda.
Ela retorna nesta sessão, o jogo com o bebê e a cesta; mas desta vez,
tendo tirado o bebê, é ela que, após muitas hesitações, quer tomar seu lugar
na cesta. Não certamente para confortar-se a(; ao contrário, ela dá a impressão
de encontrar aí um grande vazio. Aliás, se ela emite alguns fonemas bem arti-
culados, ela dirige-os à ausência, sempre no mesmo lugar, em cima da janela
que ela vai ao sair da cesta, após ter jogado, a meus pés, o bebê, dizendo vio-
~entamente "bebê", como uma censura.
Na janela, que ela consegue abrir, ela primeiro olha demoradamente
para fora, na direção deste lugar na ausência, mas ao mesmo tempo em
minha direção, atrás dela, a quem sua censura se dirige. No final, ela quer
mesmo tomar a fechar o batente da janela, para estar verdadeiramente do
outro lado do vidro, isto é sempre cada vez mais do lado da ausência Real
260 Marie-Françoise ou o Autismo
do Outro. Mas, desta vez, ela está em via de se identificar diante de mim, com
esta ausência.
Diante de tal repetição e tal progressão, como não falar de um discurso'/
Certamente, um discurso que não existia no início, quando somente algun•
elementos de defesa apareciam, como o "duplo". Aqui, não é mais do duplo
que se trata, mas dela e de mim numa certa relação. Qual? Eu sou para ela
um Outro do qual ela tem necessidade, que ela procura, mas a quem ela nilu
pode dirigir nenhuma demanda porque ele não é portador de nenhum objeto
separável. Na primeira forma de identificação que é o transitivismo, Marie·
Françoise só encontra este Outro na ausência real atrás da janela; não é sur•
preendente que ela não possa lhe demandar nada. Eis porque quando muito,
ela pode tomar seu lugar; ela toma-se assim o "ente da ausência".
Esta posição está na base de uma inversão em Marie-Françoise: quando,
no deserto estrutural do início, sucede nela um começo de estruturação, ela
não toma o lugar de um pequeno outro em relação a um grande Outro, como
Nadia, mas sim o lugar do Outro. Sua estruturação encontra-se invertida, n
ponto de topologicamente mesmo, ela ter o corpo furado do Outro e que eu
não sou como o pequeno sujeito em face do grande Outro. Também a relação
se define mais prematuramente em relação a conteúdos e a continentes de
três dimensões do que em relação a uma superfície de corpo onde ela procu-
raria tapar os furos com objetos retirados do corpo do Outro, como fêz
Nadia. Se ela lambuza a superfície de seu corpo, os furos desta superfície
persistem. Ela tem um corpo tórico sem ter o corpo estruturado em fita
de Mocbius.
A saída da psicose só poderia se fazer estabelecendo a ordem topológi-
ca dos corpos entre o Outro e outro'! O caso do "menino no lobo" nos tranl
respostas sobre isso.
Para Marie-Françoise, uma tal estrutura não está entretanto fixada;
sua evolução prova isso, do mesmo modo que a alegria que ela mostra quan•
do, no fim desta sessão, eu lhe coloco uma fralda; eu tapo e veio o orifício do
seu corpo. Uma liberdade alegre toma conta dela.
CAPÍTULO X
A EMERG~NCIA DE UM APELO AO OUTRO
22 e 24 de novembro
Ela faz algumas tímidas tentativas para entrar toda no armário, mas
desiste. Ela fica na ponta dos pés para tentar alcançar uma prateleira mais
alta.
Uma enfermeira que ela conhece bem, passa. Ela olha para ela balbu-
ciando. ú,as assim que coloco Marie-Françoise nos braços ela enfenneira, no
fim da sessão, ela começa a soluçar e a empurrar a enfenneira salmodiando
"mamãe, mamãe". A enfenneira não poderá consolá-la eny_uanto eu estiver lá.
Estas duas Glti.mas sessões não são, loll!,rc disso, o fim do tratamenk,
<le .Marie-Françoise. Seu sentido não pode dar lugar a muitos comentários,
porque falta seu desenvolvimento 4ue teria talvez revelado o porque da
recusa da sala de sessões. Ela só vai até aí por alguns instantes, o suficiente
para colocar todos os objetos da cesta na bacia que se confirma ainda como
continente de todos estes objetos. Esta bacia seria wn representante em
primeiro grau do Outro -·- Aeprasãntanz e não Vorstellungsreprásantanz?
i">iatla a ver, em touo o caso, com a arca de I,adia que continha representantes
metonímicos ciela e de mim isto é Vorstellungsrepriinsantanz, porque nos
representantes, o significante a implica, ela Nadia, ao mesmo título que a
mim
O interesse de Marie-Françoise é pela deambulação de cômodo em
cômodo. Eu disse, porque senti assim na época, que seu interesse pelo mundo
exterior era um refúgio contra mim, outra diferença em relação à Nadia.
É verdade que o espelho para Marie-Françoise concerne apenas um
registro paralelo, onde ela não se constitu~ como Nadia, no lugar do Outro
que eu sou, do mesmo lado que eu do espelho. Ela permanece radicalmente
do outro lado de um espelho que é apenas um vidro, e que só pode fazer
de mim o seu duplo no Real. Ela perdeu o Outro.
Quanto ao pequeno outro, as lágrimas deste não são uma tristeza para
ela como para Nadia, que se emocionava em eco, porque o pequeno outro
para Nadia, existia desde o início: não somente como um próximo desespera-
dor, lugar de um gozo impossível, mas em relação ao Outro também, do
qual ele estava para ser separado.
Para Marie-Françoise, na cena de 24 de novembro, ele não tem nenhu-
ma dessas dimensões. Ele não a interpela nem como objeto do Outro. Ele
é apenas um puro Real e, como tal, submisso à sua pulsão de destruição, o
que provoca a coloração sádica da cena, onde ela sacode o leito da criança,
vigiando suas lágrimas que ela quer provocar.
Uma questão entretanto se coloca, da escolha que ela faz de agredir
os meninos: sua curiosidade atenta, seu interesse escópico se centram mani-
A Emergência de um Apelo ao Outro 263
Não era nosso propósito, no início deste trabalho, nem nossa ambição,
nos referirmos à topologia. Esta referência impôs-se por si mesma: eis como.
Nós tínhamos ficado durante muito tempo inteiramente hesitantes
quanto ao sentido de dois acontecimentos concernentes a Nadia: de um lado,
que ela tinha se lambuzado de cocô e tenha mesmo comido dele; de outro
1:1.do, que ela tenha se lambuzado de mingau para ir para diante do espelho,
,·omigo lambuzada da mesma maneira.
É preciso dizer que eu tinha tido alguma intuição, como eu escrevi
na época, sobre esta lambuzeira e sua importância, quando eu coloquei
nn sessão, a 27 de janeiro, um prato de mingau e uma colher. A aproxima-
,·ão das duas lambuzeiras, cocô e mingau, nos dava a chave do que se tratava:
, 1 que concernia o interior do corpo, cocô ou mingau, ela espalhava sobre a
:;nperfície exterior, sobre sua pele. Nadia nos dizia assim que as superfícies
,l.e seu corpo, interior e exterior, se juntavam, estruturando seu corpo en-
.;.nanto superfície, e de jeito nenhum enquanto volume com um interior e um
,.::ü:rior separados.
Como então poderíamos não nos referirmos à topologia, e não definir-
"ws a qual tipo de superfície o corpo da criança pertence, nem fonnular
::s relações de corpo entre o pequeno sujeito e o Outro em termos de superfí-
cie e correlativamente de furos?
A fecundidade de nossa iniciativa iria nos aparecer muito rapidamente
, ;n Nadia, assim como em Marie-Françoise, enquanto que, como dissemos,
,:ontra-prova. E mesmo em seguida nas nossas análises de adultos.
Topologicamente, a estrutura do corpo de Nadia, isto é a do pequeno
::ujeito na aurora da vida, parece ser uma fita de Moebins, torcida sobre ela
mesma, superfície de um s6 lado, sem exterior, nem interior, e mais ainda
,,ma superfície topologicamente não furada. Isto cria problemas em rela-
. :ão aos orifícios reais do corpo da criança.
Para Nadia, o que é furado, é o corpo do Outro, e ela logo explora aí
q furo da boca. Seu corpo não é furado, porque o furo é tapado pelo objeto
;e meu corpo. Isto começa com a obturação de sua boca por seu dedo que
:1:1e serviu para explorar a minha boca.
O corpo do pequeno sujeito é inicialmente tapado, não por um objeto-
,:/imento real, mas por um objeto tomado do Outro, no campo do Outro,
;sto é um objeto significante: esta estrutura do corpo de que /ai.amos é uma
,·strutura significante, e só pode existir enquanto tal. Pelo viés dessa estrutu-
270 Conclusões
ra, entre a criança e seu Outro, se estabelece uma dialética que Nadia, por
exemplo, coloca rapidamente como aquela do objeto separável de meu corpo,
do Outro que eu sou; objeto separável que é ao mesmo tempo o que faz furo
em mim e não-furo nela. Tão logo exista Outro, com seu estatuto significante
de Outro, existe uma perda real, que o pequeno sujeito inscreve na conta
deste Outro; mediante o que, escapa a esta perda e não é furado em seu
corpo, num primeiro tempo.
Como isso pode acontecer, visto que no Real fisiológico, o bebê funcio-
na essencialmente ao nível digestivo, isto é pelo único furo do corpo defini-
do topologicamente, aquele que vai da boca ao ânus? Todas as outras cavi-
dades do corpo, órgãos sensoriais, urinários, genitais femininos, ou pênis,
são apenas stricto semu deformações de superfície, isto é, têm relação com
a superfície exterior: a pele. Os órgãos sensoriais são aliás formações espe-
cializadas desta pele. Mas para que a criança nada saiba - em compreensão
- do furo de seu corpo, é preciso que ela esteja inteiramente fora do Real
quanto a seu saber sobre seu corpo: ela é apenas - ela só nasce - no campo
do Outro; ainda é preciso que o Outro esteja, isto é, que para este pequeno
sujeito, o significante pré-exista.
Vemos bem, com efeito, o que acontece com Marie-Françoise, para
quem o Outro não está, e, por consegüinte, a falência da estrutura. Ela não
pode em nenhum momento, como Nadia, explorar o furo de minha boca;
ela não pode obturar o furo de seu próprio corpo com objetos significantes
tomados do Outro; não podendo obturar este furo, ela nega até a existên-
cia dele.
Produz-se para ela uma etapa inteiramente exemplar desta problemá·
tica do furo do corpo quando, ignorando sua boca, ela volta-se para seu
olho, contra o qual ela cola o objeto (o marinheiro) do qual ela faz seu
duplo, para tentar ignorar absolutamente o furo de seu corpo. Ela demons-
tra desde então, diante do prato de arroz que a fascina e tortura, que o
objeto-alimento no Real não pode preencher este furo.
Aí ainda, a estrutura demonstra-se como significante, e o psicótico,
no seu fracasso, testemunha ainda esta verdade de que fora do significante
não há estrutura. Trata-se para ele de uma anti-estrutura.
O deslocamento do furo da boca para a superífice do olho, tanto no
caso de Nadia ·em relação à imagem de 10 de dezembro, quanto no caso de
Marie-Françoise bloqueada diante do alimento e colando seu duplo em
seu olho, vem ainda sublinhar que a superfície do corpo é o lugar da
estrutura do começo da vida. O que não deixa de ter consequências, depois,
para todo sujeito; quanto ao ser-no-mundo da histérica, por exemplo, toda
entroncada na superfície do corpo; ou ainda, na relação mãe-criança, quanto
ao surgimento da psicose, quando a criança é chamada pela mãe a este lugar
de objeto tapando o furo de seu corpo.
Uma tal estrutura de superfície não furada, acoplada com o corpo fu.
rado do Outro, explica a importância considerável do paredão da pulsão oral,
Clínica e Topologia 271
lha a cabeça em minha bata, um objeto além do véu, inatingível enquanto tal,
o que a deixa furiosa, mas do qual ela sabe a verdade, visto que é ela mesma
que velará a mamadeira. Quanto à minha voz, sabemos da sensibilidade que
ela mostrou deste o início a seu respeito.
O seio velado, a voz, quer Nadia escute ou comece a falar, fundam uma
distância em sua relação ao Outro. O olhar, era a imagem colada sobre seu
olho; as fezes, era o cocô colado em sua pele. O seio e a voz são para descolar
de meu corpo, não sem violência, para juntar-se em seu próprio corpo aos dois
primeiros objetos, e realizar, quase sob um modo alucinatório, a imagem
primitiva da primeira estrutura do corpo em fita de Moebius, não furada. Mas
esta estrutura é significativa e, nesta medida, sua procura não afasta Nadia de
mim: ela a faz oscilar entre sua procura em meu corpo e minha imagem, que
existe para ela enquanto imagem, e na qual ela se mira narcisicamente com
prazer.
Para Marie-Françoise, quanto à sua relação com os outros objetos
exteriores, eu estou lá apenas como testemunha, sem que ela me chame a
participar de seu debate. Certamente, ela quer também colar os objetos sobre
seu corpo, seja que ela os cole sobre seu olho, seja que ela não saiba o que
fazer com o bebê, por exemplo, quando ela o põe à distância. Mas isto não
basta para fundar o que nós encontramos em Nadia: a estrutura de uma fita
de Moebius. Ela só pode, com efeito, permanecer ao ponto de constatar o
furo real de seu corpo, sem passar, como Nadia, pelo significante dos objetos
do Outro, para ter um corpo não furado. Seu corpo permanece furado, de
qualquer jeito, sem que por isso possamos falar de estrutura tórica, não mais
do que a de Moebius, pela mesma razão de registro: o Real; e na falta de
significante, trata-se de uma anti-estrutura, como dissemos.
Entretanto ainda, mesmo neste Real onde ela evolui, existe como que
um esboço de uma sucessão, que assinala uma atitude análoga àquela de
Nadia, e que testemunha, com certeza, sua procura do Outro, senão, mesmo
daquilo que ela teria podido conhecer no passado, quer seja durante seus dois
primeiros meses com sua mãe, quer seja na amamentação: a presença de um
verdaJeiro Uutro.
2. Para Nadia, a experiência do espelho vai introduzir alguma coisa que
irá radicalmente além da colagem de nossos corpos.
Entretanto poderíamos fazer uma objeção: é que se a distância, no Real
dos corpos, de um mesmo lado do espelho, pode ser reduzida a zero e respon-
der ao desejo de colagem primordial, de outro lado, pennanece a mediação
cativante da imagem, e desta à distância. O Outro é aí ao mesmo tempo real e
outro-que-o-real: o olhar de Nadia testemunha isso, ao mesmo tempo em que
os beijos reais que ela me dá são também para a imagem.
A superfície de nossos corpos é então ao mesmo tempo superfície de
contato real, e superfície além de todo alcance na imagem, visto que se inter-
põe à superfície do espelho; urna interposição, aliás, que deixa em Nadia co-
C/ ínica e Topologia 275
à parte de Real que ela arrasta com ele. Se o destino deste Real é de ser pro-
movido a significante, é por um longo desvio, cujas peripécias fazem com
que Nadia nem sempre saiba sobre qual vertente se encontra, do significante
ou do Real, pela sua constante alternância, e mesmo pelo surgimento sempre
possível do Real de meu corpo que a surpreende e a faz fugir. É um lento
trabalho que ela deve concluir para moderar este Real, isto é, fazer com que
ele não surja mais de maneira inesperada e isolada, mas com que ele seja
preso num nó do mesmo modo que o Simbólico e o Imaginário! .
Antes do espelho, o transitivismo faz com que, se ela tapa o furo de seu
corpo com um objeto que ela recebe do meu - processo que, como vimos,
só pode ser significante -, ela pode muito bem se propor, por inversão, a
obturar o furo de meu corpo. Por quanto que o mecanismo seja aqui meta-
fórico, o Real dos corpos rapidamente faz retorno e provoca, sob o modelo
oral da devoração particularmente, a maior inibição ou fuga, e mesmo reação
psicossomática do sujeito pela fusão dos significantes primordiais represen-
tando o sujeito e o Outro.
Esta função de tapa-furo real do Outro, é o limite que Marie-FrW._ç_qise
encontra: o Real sozinho preside isso, a metáfora não tem mais nenhum lugar
ou se dissolveu... ao menos para o pequeno sujeito. Mas para a mãe da
criança psicótica, que não é, ela, psicótica, o pequeno sujeito vem tomar
realmente o lugar daquilo que falta na metáfora materna.
A diferença fundamental entre Nadia e Marie-Françoise, a propósito
da lambuzeira de cocô, decide do que se passa do jogo do Real na metáfora:
a lambuzeira de Nadia visa a recobrir toda a sua pele até tapar o furo de seu
corpo, para fazer dele uma superfície não furada, pelo cocô que me represen-
ta, e para realizar sobre ela o que ela acaba de viver na sessão, isto é a impos-
1 Esta via dos tres registros, Real, Imaginário e Simb6Iico, não nos pareceu a mais
apta para especificar a diferença entre Nadia e Marie-Françoise.
É que ao abordar o problema pelo viés das categorias registráveis, arriscamo-nos a
nos perdermos aí como a prova a abundante literatura Schreberiana. Nós nos atemos pois
na questão do estatuto do Outro, pois ela tem a vantagem de estar na fonte da existência
dos três registros e ela permite abordá-lo de um ponto de vista crítico, além de todas as
aparências.
Que o Outro, com efeito, não seja mais o fiador de um significante e este signifi-
cante só irá alterar com o Real, sem por-tante promover outra coisa senão senão o Real,
mesmo se o desencadeamento do significante pode fazer crer em um reflexo simbólico
ou imaginário do mundo exterior.
Este mundo exterior· começa no Outro, lá onde o Real e o significante se encon-
tram no corpo dele, lá sobretudo onde o significante nasce da mutação do Real o Oulro
fala, mas também porque o pequeno sujeito, escutando sua palavra, devolve-a para ele,
como Nádia fez a 10 de dezembro, depois de minha nomeação.
Metáfora e Metonímia 279
samos resolver o que vem primeiro: o abandono pelo Outro e sua ausencia
real, ou a ausência do significante no Outro que faria esta ausência real.
Os significantes e os objetos permanecem assim separados; eles são
apenas, ao longo das sessões, a ocasião de circuitos sucessivos, malgrado
minha palavra que tende a trazer uma articulação entre estes objetos e a
demanda ou o desejo. Na falta de que ela possa dirigir-se a mim, o isolamento
persiste para os objetos, entre o significante de sua nomeação e a ex-sistência
de seu Real.
Como, nestas condições, poderia aí haver metáfora? Muito menos
metonímia.
Mas antes de abordar a metonímia, a metáfora permanece ainda
interrogável sobre um plano lógico, e isto, não a partir de Nadia que chega
lã, mas a partir de Mªrie-Fra~çojK. que só demonstra o fracasso disto per-
manecendo no Real da lingugagem.
A psicose, com efeito, isso fala - Schreber está aí para nos dizer, e
quanto! -, mas isso se perde na linguagem que não cessa de remeter o psicó-
tico os pares de oposiça:0 1 ; alto-baixo, interior-exterior ... Marie-F~~e não
está nesse ponto mas talvez, nesta medida, ela chegue mais rápido ao essen-
cial: presença-ausência. O outro não furado que eu sou é uma "toda-presença"
que não pode receber seu apelo, que ela só lança para a "toda-ausência" da
janela.
Aliás, ela define esta "toda-ausência" do Outro quando ela lança seu
apelo "mamãe" ao objeto, ao prato de arroz, chave de um mundo real em que
a "toda-presença" só tem como corolário a "toda-ausência" do Outro, sem
que nenhum sujeito tenha chance de advir nesta alternativa de exclusão.
Marie-Frimçoisc e seu prato de arroz, é como Schreber e o mundo: ou o mun-
cÍo ..e~tá para acabar e só está povoando de "homens apressadamente improvi-
sados" e el_e, Schreber é o único sobrevivente; ou, por pura oposição, o ttm do
mundo é diferido, mas é o próprio Schreber que lê o anúncio de sua morte
na epígrafe necrológica de um jornal.
"A inversão da posição de indignação que levantava de início na pessoa
do sujeito a idéia de ~masculação, é que muito precisamente no intervalo
o sujeito estava morto". 2
Marie-Françoise,. diante de mim é como Schreber diante do mundo:
eu sou toda presença ou toda-ausência. Seu sujeito teve necessidade de
morrer? Nós não sabemos com certeza; mas, o que é certo, é que ela não é um
sujeito. Ela não é senão o "ser" antes do sujeito, um ser que representa a
alternativa de exclusão "ser ou não ser", em espelho mortal de minha "toda
que vai repercutir de espelho em espelho, série onde eu vou ser, ao mesmo
tempo que ela, marcada por esta falta quando tivennos todas duas nossa
imagem
Resta que isto ainda não é suficiente.
Se lhe falta, se me faltou, falta-nos a nós duas um terceiro termo; o
significante da falta será este terceiro tenno e sabemos que se trata do falo.
O jogo metonímico vai se manter a um nível extensivo, ao longo
de todo o período dos espelhos, e mesmo depois, visto que a via está agora
aberta para Nadia fazer passar todo novo objeto neste campo da metonímia,
depois que ela e eu fomos aí c;onfirmadas repetidas vezes sob a fonna para ela
de sua colher, e para mim de meus óculos, reunidos no espaço fechado da
arca.
Tal é o segundo tempo da entrada de Nadia no significante, que só
encontrou seu verdadeiro impulso na relação entre dois objetos tornados às
vezes depois de muitas peripécias (assim como meus óculos), significantes
que representam os sujeitos que nós somos, ela e eu, entre eles enquanto
que significantes e para outros significantes.
Pode-se dizer então que a introdução do terceiro tenno é um retorno
à metáfora? Nós acreditamos que sim, a julgar somente pelas dificuldades e
~bições d~ quais Nadia de~ prova diante da imagem deste terceiro tenno_,
sob a fonna da estagiária. Ela só poderá aceitá-la depois de tê-la velado,
da mesma forma que o véu mascarava os objetos que ela procurava em meu
corpo. Certamente, o jogo significante das metonímias prossegue paralela-
mente e é preciso não esquecer que ela só aceitará verdadeiramente a estagiá-
ria pelo intermédio da imagem desta, lá onde a metáfora do terceiro termo se
sustenta na metonímia.
Este terceiro termo, sabemos, ela o tinha anunciado a 12 de fevereiro
pronunciando a palavra mais comum que um bebê de sua idade diz há muito
tempo - mas ela o dizia claramente, pela primeira vez: "papa".
Seria uma inauguração? Seguramente não no fundo, tanto como o en-
contro entre Nadia e eu não inaugurou o Outro em sua posição fundamental
de lugar de significantes. Nós dissemos, esta abertura sobre o significante
implica uma etapa anterior, original, uma relação de Nadia ao "Pai Mítico"
de Freud, ao "Nome-do-Pai" de Lacan, isto é, uma metáfora original que
faltava radicalmente ou foi dissovida em Marie-Françoise.
Mas o que fazia Nadia desta metáfora presente nela antes de sua análise,
senão ficar em espera numa fixação escópica? Nestas condições, sua análise
é um trajeto cujo debate culmina com <;> encontro da metonímia, necessária
para que um sujeito se encarne no significante: is.to é, como o encontro de
sua imagem especular.
Da metáfora à metonímia, tal nos aparece todo o trajeto analítico.
Ainda é preciso que a metáfora paterna esteja presente na saída, e que o
desejo do analista - que faça ou não, como eu, um trajeto com seu anali-
sando - seja ele mesmo portador desta metáfora. Diante do sujeito psicó-
tico, ele é mesmo o único a ser portador dela.
CAPITULO Ili
ELEMENTOS DE TOPOLOGIA
Figura 1
1 Nós fazemos questão de agradecer aqui, pela ajuda que eles nos deram nesta ten-
tativa de elaboração, ao Sr. Jean Petitot e ao Sr. Michel Demazure.
Elementos de Topologia 285
Figura 2
Elementos de Topo/og;a 287
úu..---D
R3, I R3. li
@··---])
------- ~------;ID
Figura 3
Figura 4
Figura 5
Elementos de Topologia 293
Não podemos nos impedir, tendo sido conduzidos, por este bebê que
Nadia era, à uma aproximação topológica necessária - se bem que ainda
insuficiente, mas que nós levaremos mais longe com outros casos-, de pensar
que nós só fizemos seguir a clínica; e de ter a impressão de aí sermos sempre
ultrapassados, como pode ser o arqueólogo diante de uma escrita desconheci-
da, que, enquanto ele interroga sem cessar, não cessa de se escrever para ele,
como um espelho que lhe remeteria uma imagem a decriptar, porque ela seria,
esta imagem, não simples reflexo, mas significante gravado sobre o Real de
algum granito.
fN DICE
Prefácio
Prefácio da Edição Brasileira
Prefácio dos autores para a Edição Brasileira
NADIA
OU O ESPELHO
Capítulo VI O pré-especular 48
(11 de dezembro - 3 de janeiro)
MARIE-FRANÇOISE
OU O AUTISMO
CONCLUSÕES