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NASCIMENTO DO OUTRO

facebook.com/lacanempdf

DUAS PSICANÁLISES
Nadia, 13 meses
Marie-Françoise, 30 meses

\ !l ��E LEFORT em colaboração com ROBERT LEFORT /,


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FATOR
Titulo do Original Francês

Naissance de l'Autre
Deux Psychana/yses
Nadia (13 mois)
ie-Françoise (30 mois)
l Ed. Seui/, 1980

Direitos Reseivados
à

1
EDITORA FATOR LIVRARIA
Rua Medeiros Neto, 25 - Brotas
Salvador - 40.000 - Bahia
Te!.: (071) 244-<i824

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/
Lefort, Rosine,
L523 Nascimento do Outro: duas psicanálises/Rosine
Lefort e Robert Lefort; tradução de Angela Jesuíno.
- Salvador: Ed. Fator Livraria; 1984.

305 p. (Biblioteca Freudiana Brasileira, 3).

Título do original em francês: Naissance de


l' Autre: deux psycanalyses.

1. Psicanálise. 2. Psicanálise - Casos, histórias


estatísticas. 3. Crianças - Psicologia.
1. Lefort, Robert, colab.11. Jesuíno, Angela, trad.
111. Titulo IV. Série.

CDD: 616.8917
616.09
155.4
CDU: 615.851

Tradução - Angela Jesuino


1 � Revisã'o Técnica - Jairo Gerbase
2�Revisão Técnica - Luis de Souza Dantas Forbes
Capa - Helson Ramos
. Impresso no Brasil
PREFACIO

Os dois tratamentos que constituem a matéria deste livro, assim como


dois outros, o de Roberto, o "menino do lobo", e o de Maryse - que serão
objeto de dois outros livros -,.foram acompanhados por mim entre setembro
_de 1951 e novembro de 1952 na Fundação Parent de Rosan, que fazia parte
do serviço de Jenny Aubry ( 1 ).
Era uma instituição de internamento temporário de crianças dependen­
tes de Assistência pública, como ainda existem muitas para crianças de pouca
idade, esperando colocação, ou "internadas" lá temporariamente durante a
doença de suas mã'es, o que acontecia com mais freqüência.
Estes tratamentos, eu os conduzi antes de qualquer fonnação teórica
e eles têm uma relação muito estreita com minha própria análise.
O de Nadia foi o primeiro cronologicamente. Veremos como fui levada
a empreendê-lo. µJe__ tratamento durou cerca de dez meses, de outubro de
.1951 à julho de 1952.
Em outubro de 1951, eu estava há dezoito meses em análise, wna aná­
lise que me tinha sido imposta pela necessidade de sair de um sofrimento neu­
rótico e que, por isso mesmo, era difícil. Difícil a ponto de, ao longo do trata­
mento de Nadia, eu ter me sentido na impossibilidade de seguir regularmente
as sessões de minha própria análise durante vários meses.
O tratamento de Nadia, assim como o das outras crianças, que eu come­
cei sucessivamente nos três meses seguintes, asseguraram pois, de qualquer sor­
te, a continuidade do meu trajeto analítico, no interior do qual eles se inscre­
veram.

Rosine Lefort

Estes tratamentos se inscreveram no quadro de uma pesquisa sobre as condições


( t )-
e as conseqüências da hospitalização de longa duração de crianças de pouca idade
(hospitalismo), pesquisa desenvolvida no serviço de Jenny Aubry, de 1948 à 1953,
e subvencionada de início pelo Instituto Nacional de Higiene, depois a partir de
fins de 1950 até 1953, pelo Centro Internacional da Criança (Pr. Robert Debré),
acoplada neste segundo período com a pesquisa da equipe inglesa da Tavistock,
Sob a direção de John Bowlby.
Os resultados foram relatados no livro de Jenny Aubry e coll., Carence de Soins
maternels, PUF, 1953, reeditado na Editions de la Parole em 1964 (esgotado).
ADVERTÍNCIA

Os relatos das sessões, que estão neste livro de forma reduzida e marca-
dos por vinhetas quadradas, são aqueles que eu escrevi a cada noite após as
sessões, nos anos 1950-52.
Como, por um lado, acompanhei estes tratamentos antes de qualquer
formação teórica, quer psicológica quer analítica, e como por outro, escrevi
estes relatos antes de Lacan dispensar seu ensino nos seus seminários, os ter-
mos e as formulações que emprego sa:o aqueles que estavam então à minha
disposição e devem ter tomados como tal, nestas condições.

Rosine Le,fort
PREFACIO DA EDIÇÃO BRASILEIRA

Emergência da condição de Sujeito, é o que acompanhamos no trabalho


de Rosine-Lefort, em colaboração com Robert Lefort, através do seu relato
d ínico-teórico de duas psicanálises de crianças.
Nessa leitura freud-lacaniana, a comunicação corpo-a-copo dirige-se à
linguagem articulada do analisante infantil, denotando, por várias formas, o
surgimento e a confrontação do Outro com o outro, o seu caráter estruturan-
te. A metáfora especular surge em momentos estruturais evidentes.
O trabalho posiciona o analista, supprte da transferência, nas suas fun-
ções de "provocar o surgimento do Inconsciente, oferecendo-se como o Outro
e situando-se no lugar da falta, da castração".
Os que lidan1 com psicanálise de adultos, particularmente pskcíticos, en-
contram neste livro excelente contribuição para reflexões fecundas com pos-
sibilidades de aproveitamento.
Trata-se de um trabalho que abre perspectivas para a psicanálise de hoje.

Dulce Campos Dantas


Recife -- Julho 1983

PREFÃCIO DOO AUTORES PARA A EDIÇÃO BRASILEIRA

Este livro é uma etapa em nosso trajeto em que toma forma a inelutável
referência aos dois pilares da transmissão da análise: à lingüística da qual La-
can fez materna e ao espaço, o espaço do corpo onde a anatomia não serve de
nada e do qual somente a topologia do universo tórico pode dar conta. Eis aí
a que nos empenhamos na escritura deste livro para fazer a leitura destas duas
análises de criança, onde a teoria inerente à prática de Rosine Lefort só encon-
trou seu alicerce nesta contribuição fundamental de Lacan, materna e topolo-
gia, matéria de um discurso, daquele que Lacan diz que prefere, "um discurso
sem palavras", lá onde o pré-verbal não é menos discurso.

Rosine e Robert Lefort


NADIA OU O ESPELHO
CAPITULO I
O PEQUENO outro
A invídia

8-15 outubro

tJ D Nádia chega à instituição com a idade de 13 meses e meio. Ela não co4
nheceu aliás outro gênero de estabelecimento já que foi separada de sua ma:el
tuberculosa desde seu nascimento. \
Como acontece freqüentemente, nestes casos, as repetidas afecções ri-\
nofaríngeas impedem toda alocaçã'o de aleitamento: Nádia vai das creches aos 1
hospitais e vice-versa. Pelo prontuário médico que a acompanha, sabemos que \
ela sofreu adenoidectomia com a idade de 2 meses. Estas afecções prossegui- f
ram, acompanhadas de otites e de diarréias, culminando em uma dupla mas-
toidite grave aos 5 meses, necessitando de antrotomia bilateral. Nádia perma-
neceu no hospital durante 3 meses, em razão de um abcesso sobre a cicatriz j
da antrotomia.
No momento de sua entrada na instituição Parent de Rosan, Q..Mpecto.
de_ Nádia .é .miserável e o agravamento de seu estado geral se acentua em pou-
cos dias, em razão de otorréia e de. diarréia permanentes.
Estou, nesta época, no serviço de Jenny Aubry encarregada da observa-
ção de oito a <ki ç_rianças dÊ--ugi a três anos. El.~ Joramreagrupadas, sua. ~ª-
chegada, num isolamento por um lapso de tein_po de quinze dias, visando a
prevenção de doenças contagiosas infantis., Nádia'ifaz parte deste grupo e, se
ela._ chall!a minha atençãQ, ela nã"o é de forma·áTguma, o seu único objeto no
meio das outras crianças. É preciso pois levar em conta nas notas que tomei a
seu respeito, no início estas çondições..da..relaç.ã'o_que_tenmHl9m-dá..: nada a
ver com uma psicoterapia individual ao menos num primeiro tempo.
·- Nádia é muito magra, de uma tez amarelada. Seu rosto é_ ~acilentq; o ·1\
que impressiona, &!2..~J!S grandes olhos negros.. com. olheiras~.no se:u rosto~
só .seu_<_?~har está vivo, e II1uitQ presente ao que se passa a seu redor.
O atraso na estatura e peso é importante: Nádia pesa apenas 8kg500, e
mede 71cm, isto é, acreditaríamos estar diante de uma criança de 8 meses.
QYillldo. a percebemos em seu quarto, impressiona sua imobilidade.~-
int~.ros. ela pe_rman,~ce _stlntada eII1 cima de .seu travesseiro, as duas mãos agar-
radas às bº!,'.das dqJeito._ Ela nã'o faz nenhum gesto para pegar um doce que
lhe é oferecido. Se é carregada e posta no chão, ela nã"o se move, seu olhar se
apaga e ela se balança violentamente. Sentada-no-meio..d~t@.Wll\PÇ~eh1·
·: ·--·: :-"'""'••·····•'!'
..:; .
:· J~\. t~ . •._:, , :.: 1,ç•,
8 Nadia ou o Espelho

tt!o faz também nenhum gesto para tentar pegar um brinquedo. Mas se uma
criança perto deta · o faz, ela grita e se joga violentamente para trás, depois
torna a sentar-se e retoma seu balanceio.
Esta reação ao aparecimento de uma outra criança no seu campo, agora
como depois, vai nos colocar sobre a via da natureza de sua relação com o pe· .
queno o~tro.
Sua preensão dos objetos é muito particular. Se ela aproxima a mllo,
magra de longos dedos que se movem como uma aranha, ela apenas roça os
objetos com a ponta dos dedos; se ela chega a agarrar o objeto, quase imedia·
tamente sua mllo se abre, como se um destravador automático desencadeasse
o gesto de largá-lo. Todos estes movimentos não se acompanham de nenhuma
manifestação de emoção.
Nádia nã'o tem contato espontaneo com o adulto. A equipe de pessoal
atribui este fato ao medo, mas isso não dá para vê.

Por ocasião de uma discussão a seu respeito, não se formula realmente o


diagnóstico porque a falta de contato não é tanta que permita evocar alguma
grande síndrome patolç,gica; seu retraimento está longe de ser completp <;orno
testf;lmunha seµ olhar vivo, muito presente.
A possibilidade de um contato é mesmo o que eu percebo à 8 de outu-
bro, na primeira vez em que a vejo. Mas ela não o manifesta francamente. ·
Ela está sentada no seu leito, em sua atitude habitual, as duas mãos cris-
( padas sobre as bordas do leito, e seu corpo é de uma imobilidade total. Os
poucos gestos que ela faz mostram uma tendência à perseveração; a inflexibili-
1, dade de todas as suas atitudes chega ao ponto de traçar a imagem de um esta-
\ do catatônico.

A 12 de outubro quando volto para vê-la, ela está no leito de seu dormi-
tório. A possibilidade de um contato comigo se precisa: ela sorri e parece ra-
diante quando lhe falo. Ela vai sentar em cima de seu travesseiro, ainda mais
sorridente.
/ Eu lhe estendo um marinheiro (bonequinho) de borracha; ela o agarra,
segura-o com as duas mã'os, mas com movimentos desajeitados e com gestos
parasitas, segundo o tipo de preensão já descrito. Este marinheiro, ela nina,
\ abraça, lambe, joga fora, torna a pegar e me devolve, depois toma de volta.
Neste momento, a enfermeira começa a dar de comer aos outros._ C;t_da
~Lqy_ç___Ná<llª-ª-"-f ~ _<>c_up~r de outra cri311:ça, bate no marinheiro e o atira
longe, mas sem que U!"fl:a ~arga afetiva seja realmente perceptível.
Quando a enfermeira aproxima-se para alimentá-la, ela parece feliz, mas
fecha a boca com um movimento de recuo quando sente a colher em seus
lábios. Em seguida, ela se deixa alimentar passivamente. "É sempre assim, diz
a enfermeira, mas Nádia acaba comendo tudo".
O Pequeno outro 9

A 13 de outubro, quando chego, ela está sentada em seu leito e muito


presente a tudo que se passa em seu redor. pl.a .tem o polegar na boca,.mas
não o suga. Eu fico impressionada com esta ausência de movimentos de suc-
o
çãÕ: · polegar está bem colocado na boca, mas não há prazer auto-erótico.
· l.Dgo que me aproximo· dela, um sorriso ilumina seu pobre rosto cheio
de olheiras: ela tem muita febre hoje. Ela entra em contato físico comigo brin-
cando com minha mão posta sobre a borda do leito, puxando meus dedos,
chegando até a me lamber.
Quando ela se inclina muitp em minha direção, eu acredito poder to-
má-la em meus braços; mas seu ro~t9. se. focha. Passado um tempo, ela ensaiit
iimsõ"rriso; mãs pãiã lõgo se virar, e olhar o jardim através da janela. Ela tem
n(?._çp...wúQ_ __ ym;:t__f~foD:Q_mia contraída quando a coloco de volta ao leit.o.
Deixo-lhe o marinheiro e me afasto; e como me aproximo de outra
criança, ela nos olha e joga fora o marinheiro. Eu tomo a entregar-lhe; ela me
dá as costas para brincar com ele, virando-se de vez em quando, e tentanto
por todos os meios, suspiros, gritos, risos, chamar minha atenção.
Sua demanda, ela a dirige novamente a mim a 15 de outubro. Ela sorri
quando me aproximo dela, depois dá pequenos gritos na minha direção quan-
do me aproximo de outra criança do isolamento da qual também me ocupo, e
finalmente começa a chorar. Então ela desiste, me dá as costas, coloca o pole-
gar na boca, sem o sugar, cruzando a outra mão sobre a primeira. Ela faz
com suas mãos um movimento de balanceio e se nina.
Quando volto para junto dela, ela desenlaça suas mãos, me olha, sorri,
larga o polegar e vai sentar-se sobre seu travesseiro; ela brinca com uma de
suas mãos. Eu lhe estendo um marinheiro de borracha; ela aproxima várias
vezes a mão para apanhá-lo, depois recua; ela decide-se a pegá-lo mas para
largar imediatamente, assim procedendo por duas vez.es seguidas, para na ter-
ceira vez lança-lo aos pés da cama.
Ela recusa pegar o biscoito que lhe estende a enfermeira, esta coloca o
biscoito no leito, Nádia não tocará nele.
Sua atitude, no conjunto, está menos ativa.
Após este início que se apresentava para mim apenas como uma obser-
vação, pois o projeto de um tratamento não tinha ainda si ousado com uma
criança tão pequena, ela faz um verdadeiro retrocesso. Nos dias seguintes seu
estado se agrava. Ela está cada vez mais pálida, completamente retraída, mui-
to triste, recusa pegar todo objeto que lhe é oferecido, brinquedo ou biscoi-
to, e se balança sem parar. No seu rosto de velha precoce, não resta mais que
um olhar desolado, patético, que ela me lança quando eu a deixo.
É este olhar que me trará de volta, que começará uma aventura analítica
para ela e para mim e que me tornará analista.

o
Na época, recém chegada ao serviço de Jenny Aubry, não estava em co-
~itação que "eu me autorizasse" a tomar o lugar de analista. Entretanto, o
10 'Nadia ou o Espelho

que se passa entre Nádia e eu é irredutível e uma simples peripécia de contato


entre um adulto encarregado de uma observação - que observação? a de la-
boratório? eu felizmente não estava preparada de modo algum para isso - e
um bebé em aflição.
A degringolada de Nádia é no momento, o que mais me interroga quan-
to à relação que se instaurou entre ela e mim: uma relação completamente
diferente de uma relação de maternagem, por exemplo. É verdade que eu não
me ofereço a ela sob a forma d.e qualquer substituto matemo que visaria re-
confortá-la e satisfazê-la. Eu apareço para ela completamente diferente dos
outros adultos que ela conheceu na sua vida de instituição:

I - Eu me mantenho muito afastada em relação às manipulações do


corpo que ela sofre por parte das enfermeiras.
2- Muito menos eu me meto a alimentá-la, a satisfazer sua necessidade
oral.
3- A relação entre ela e mim se estabelece somente a nível do olho e
da voz: lá onde alguma coisa de sua demanda de amor é suportável para ela.

1 Ela mesma diz, a 13 de outubro, o que ela recusa, quando eu acreditei
· dever tomá-la em meus braços porque ela se inclinava na minha direção: seu
, rosto se fecha e ela se vira. É pois Nádia que coloca os limites da relação entre
ela e mim: o Real puro do corpo toma toda relação impossível; ora, é o que
ela conheceu até então: ser manipulada sem ser "falada".
· Esta noção de "Real do corpo" deve de chofre ser situada no contexto,
e na dialética que vai seguir Nádia ao longo de seu tratamento. O Real aqui
só se coloca como registro, em relação aos dois outros - o Simbólico e o
Imaginário -, e muito particularmente em relaçã'o ao Simbólico ao qual Ná-
dia mostra ter acesso desde o início de seu tratamento: ainda que só pela de-
manda que ela me dirige. O que existe de Real para ela, é o que falta ser sim-
bolizado na sua relação comigo ou antes, com meu corpo. É neste sentido
que o Real, como registro, toma todo seu valor de impossível.
O Simbólico funda-se sobre o acesso ao significante: e a articulaçã'o do
Real está, bem aí, na espera de ser transmutado em significante pela palavra
do Outro, articulação essencial, como veremos. f'. este Outro que, apesar dela
o ter conhecido em sua multiplicidade de existência, deixou de dar a Nádia
seu estatuto de sujeito pela palavra: estatuto que ela vai encontrar no trata-
mento, onde eu me encontro neste lugar do Outro.
Eu tenho enta:o que ser sensível aos limites que ela me impõe, pois o so-
frimento neurótico que eu mesma conheci, foi no meu próprio corpo que eu
o vivi intensamente; um corpo com o qual, como sempre nestes casos, eu não
sabia o que fazer, a na:o ser torná-lo objeto de cuidados. Nádia por sua vez,
só tem corpo como objeto de cuidados. Quer seja em família ou em ambiente
institucional, a solicitude ambígua das pessoas próximas pode deixar o sujeito
no abandono total de um corpo realmente manipulado sem que uma palavra
venha responder de seu lugar de sujeito. Isto indica quanto a partir desta ex-
periência dolorosa, eu estou pouco inclinada à matemagem, isto é, a dar um
suplemento de cuidados e a colocar em jogo, inconsideradamente o Real dos
corpos, o da criança e o meu.
Embora a maternagem esteja excluída, não tenho entretanto naquela
época nenhuma idéia pré-concebida sobre o que estou susceptível de oferecer
a Nádia, salvo minha atenção e minha disponibilidade para o que ela pode me
demandar, ou antes começar a me demandar, com todas as suas reticências
quando se trata do contato de corpo.
Eu estou longe de qualquer saber teórico, não tenho nem sombra disso.
Se eu tenho um saber no que concerne a articulação da demanda e do corpo,
é um saber que se pode qualificar de inconsciente.
É na relação que Nádia estabelece comigo que ela reintroduz progressi-
vamente os corpos, o seu e o meu, pelo viés do que ela me exprime e me en-
dereça, quer sejam suas demandas ou suas recusas. Na relação analítica que se
instaura, Nádia me coloca num lugar onde ela me demonstra o caráter real de
meu corpo, ao mesmo tempo que me impõe renunciar a ele. É deste lugar que
eu vou me deixar interpelar por ela, escutar o que ela tem a dizer, dizer a mor-
te para poder viver; é a partir daí que ela me força a abandonar toda idéia de
buscar o seu bem, a me despojar de toda intenção de ajudá-la, a me colocar no
diapasão de seu drama, a lhe permitir ba'lcular em minha direção como em di-
reção a um lugar onde seu drama pode se dizer e ser ouvido.
Eu sou com efeito o lugar onde ela pode dizer que o que lhe é dado de
cuidados e de satisfação de suas necessidades é apenas uma sustentação que a
exclui e a deixa vazia, morta. Ela não tem mais relação de objeto: a não ser
através de seu olhar sobre a outra criança com o adulto.
É o que ela mostra no dia 12 de outubro, quando vê a enfermeira dando
a refeição às outras crianças: Nádia bate no marinheiro e o atira longe. Mesmo
se seu gesto não se acompanha de uma carga afetiva perceptível, nem por isso
ele expõe menos sua reação quando outra criança é objeto de cuidados de um
adulto na sua frente. Fora desta situação, a outra criança parece inexistente
para ela. E mesmo a discrição de sua reação, que se reduz a atirar o objeto que
ela segura ou a largá-lo com seu destrave habitual, faz com que ela passe desa-
percebida aos olhos de todos. É preciso que eu esteja presente e que eu enca-
reça o seu gesto pelo que eu lhe digo, para que um sentido comece .a emergir.
Pode-se evocar aqui o ciúme, que seria o desejo de ter para si o que o
outro obtém do adulto? É pocuo sustentável, pois o que a enfermeira dispen-
1
sa aos outros é alimento, e Nádia na sua vez de ser alimentada, recusa primei-
ramente e depois engole sem prazer. Não mais prazer, aliás, do que sente em _;
estar no colo do adulto, onde eu a vi algumas vezes como objeto sem vida.;
~~- '
Somos pois obrigados a concluir que é o "ver" que está em jogo para
Nádia: ver um adulto se ocupar de uma criança. É a visão mais comum para
12 Nadia ou o Espelho

ela em sua vida na instituição. Na cena precedente, embora se trate de alimen-


to, o objeto de Nádia nã'o é oral; é um objeto escópico, o da inveja. Não se
pode deixar de evocar aqui a passagem que Lacan ,consagra à invidia ( 1 ).
"lnvidia vem de videre. A invidia mais exemplar, para nós analistas, é
aquela que há muito tempo destaquei em Agostinho para lhe dar todo seu
curso, a saber da criança olhando seu irmão pendurado ao seio de sua mã'e,
olhando-o amare conspectu, com um olhar amargo, que o decompõe e tem
nele mesmo o efeito de um veneno. ·
"Para compreender o que é a invidia em sua função de olhar, é preciso
não confudí-la com o ciúme. O que a criança, ou alguém, inveja, não é de
modo algum, necessariamente, algo de que ela poderia ter vontade, como im-
propriamente se exprime. A criança que olha seu irmãozinho, quem nos diz
que ela ainda precisa do seio? Cada um sabe que a inveja é comumente provo-
cada pelo possessão de bens que não seriam para o invejoso de nenhum uso, e
dos quais ele nem mesmo suspeita a verdadeira natureza. Tal é a verdadeira
inveja.
"Ela faz empalidecer o sujeito diante do que? Diante da imagem de uma
completude que se refecha, e do fato de que o "a" separado ao qual ele se sus-
pende, pode ser para um outro a possessão com que. ele se satisfaz, a Be[riedi-
gung'~
Certamente, para Nádia, não se trata de wn objeto tão específico como
o seio matemo - isto será questão mais tarde; por enquanto trata-se desta
comida de aparencia banal e distribuída na hora de cada refeição, a todas as
crianças, cada uma na sua vez, para alimentá-las e satisfazer suas necessidades.
Ora, a,reação de Nádia instaura este alimento em wn registro bem diverso da·
quele do Real do preenchimento. Não mais do que a criança diante de seu ir·
mãozinha ao seio poderia aceitar que a mãe, num ímpeto qualquer de ternura
diante do seu desespero, lhe faça dom deste seio, Nádia pode aceitar este ali-
mento que vem esmagar seu movimento de inveja diante do que aparece como
a imagem de uma completude do outro e de sua satisfação, mais do que como
o objeto - alimento enquanto tal. Neste afastamento entre o objeto e a ima-
gem que excita sua inveja aparece claramente que Nádia salvaguardou, apesar
do esmagamento permanente até então de sua demanda reduzida à satisfação
de necessidades, uma dimensão de sua relação ao objeto-alimento que implica
não somente o adulto, mas a outra criança, com a colocação entre parentesis
do Real do objeto.
É o que define propriamente a invidia, que só pode manifestar-se no
campo escópico e que marca a persistência do desejo de Nádia. Seu desejo es-
tá nesta relação particular a um objeto que só excita sua cobiça se ele é o ob-
jeto, da outra criança, e que em nenhum caso, pode satisfazê-la. Este objeto
em relação com o outro e que ela deve manter à distância não é já o objeto
"a", o do desejo, de que fala Lacan?

(1) - Séminafre, livre XI, Les q_uatre concepts Jondo'!'e.ntaux de laJ.sychanalyse -Ed.
du Seu1l, pg. 105 - 106. Pg. 112, da 11ersao bnu1le1ra, Zahar E •
O Pequeno outro 13

Este distanciamento do objeto aparece muito claramente em Nádia,


desde o quadro inicial, com um tipo de preensão hesitante, seguida do destra-
ve de largar. Ela não mostra aí que o objeto pelo qual ela está, apesar de tudo,
atraída permanece para ela completamente inadequado a uma satisfação: dis-
to ela não conheceu jamais senão a dimensão da necessidade, isto é, do Real,
da "coisa", "das Ding" que falta ser inscrita numa relação ao Outro inexisten-
te para ela, para que aí encontre uma satisfação? Ela está reduzida a um retrai-
mento total de sua demanda e a só poder manter seu desejo no vazio do ob-
jeto que ela.larga; ou na invidia.
É o mesmo processo que está em causa na relação de corpo. Escapa-lhe
algumas vezes um movimento de demanda, quando ela me estende um braço,
até mesmo os dois; mas ela não pode suportar que eu a tome em meus braços
ou que eu a toque, assim como não suporta sua relação ao objeto, como se o
perigo fosse o de seu responder a seus esboços de demanda: a manipulação
1eal de seu corpo, que ela conhece tão bem, lhe faria perder seu desejo.
Este é o sentido do limite que ela me impõe e que eu respeito nas rela-
1,'.ões com o corpo; este é também o sentido da degringolada que ela teve du-
rante este primeiro mês: o impasse no qual ela está, de não poder dirigir sua
demanda sem encontrar o Real dos corpos que apagaria seu desejo; desejo que
ela salvaguarda, apesar de tudo, dramaticamente, no último trunfo que lhe
resta: a pulsão escópica onde se manifesta a invidia.
Fora destas situações, o olhar que Nádia passeia ao redor dela é marca-
do por uma curiosidade sem manifestação de um sentimento de perda, como
se este olhar a protegesse e trouxesse em si mesmo todos os objetos que ela
v(i. "O que especifica o campo escópico, diz Lacan, é que a queda do sujeito
lica aí despercebida, pois ela se recuz a zero". Nádia refugiou-se no escópico
1 1ue a protege de uma perda irremediável e da morte: só o seu olhar está vivo.
CAPITULO II
O GRANDE OUTRO
O objeto separável

16 outubro - 7 novembro

n [1 Nos dias seguintes, sozinha diante de mim, ela está siderada, com um re-
traimento considerável. Seu odor mesmo evoca qualquer coisa da morte, devi-
do a otorréia e diarréia permanentes.
Ela é trazida, entretanto. ao jardim de infância. Ela está sentada no
chão como os outros, se balança com um aspecto doentio. Eu me aproximo
dela, mas ela parece ignorar minha presença. Seu olhar está apagado.
Sento-me atrás dela. Ela reage como de costume quando uma outra
criança quer pegar um cubo que coloquei perto dela: dá um grito choroso,
joga-se para trás contra as minhas pernas. vira-se para mim e me estende um
braço, um só. É sua primeira demanda verdadeira para mim, mas é preciso no-
tar que esta demanda foi desencadeada pela surpresa da agressão do outro.
Em 23 de outubro, cu me sento no chão perto dela. Ela não faz nada;
um cubo está perto dela. Seu olhar está apagado, ela tem um aspecto muito
ruim. Eu lhe sorrio mas não toco nela. Ela não responde e me olha sem que
nenhum sentimento se reflita cm seu rosto. Parece indiferente.
Urna outra criança aproxima-se de mim. Então, ela me estende os bra-
ços. de início com hesitação. depois deixa os braços estendidos; mas suas
mãos estão viradas para trás, palmas ao ar.
Eu a tomo cm meu colo. Ela me olha longamente. esboça um sorriso.
depois começa a explorar minha boca com um dedo. Ao cabo de um tempo.
ela sorri de verdade.
De novo, uma outra criança aproxima-se de mim e me toca. Ela se joga
para trás, manifestando uma grande repugnância pelo contato com esta crian-
ça. fica crispada , rosto fechado. Assim que a criança se afasta. ela se descon-
trai e retoma sorrindo a exploração de minha boca.
Mais tarde, na hora do jantar. ela está instalada numa cadeirinha. Balan-
ça-se violentamente segurando-se com as duas mãos na beira da mesa. Tennina
por se deixar escorregar para baixo da mesa, sem tocar o pedacinho de gru-
ycrc (*)que tem diante dela. C'omo cu me aproximei, ela não tirou os olhos de
mim.

( •) ()udjo dl' kitl' tk vaca fahril',1do l'nl Gruy~rc (Sui~·a) depois no Jura francês e em
Vosgcs. ( N. da T. l
O Grande Outro 15

No dia seguinte, 24 de outubro, quando ela pediu para vir para os meus
braços e explora minha boca, ela balbucia um pouco pela primeira vez. Eu lhe
estendo um cubo, que ela segura. Guarda-o, mas para largá-lo assim que uma
outra criança se agarra ao meu avental, com o mesmo movimento de recuo de
antes. Neste momento, ela é presa de um repetido piscar de olhos, como um
tique, que não terá conseqüências. Se eu anoto, é que constitui uma preciosa
indicação; a cada instante, na sua relação comigo ou com qualquer outro adul-
to, ela tem uma viva reação de violência contra si própria logo que aparece no
seu campo uma outra criança, que apanhe um objeto ou se aproxime de mim:
ela não pode suportar vê-la.
A partir de 25 de outubro, não a trazem mais para o jardim de infân-
cia, primeiro porque ela está doente e depois porque a coletividade só lhe traz
stress, como testemunha seu olhar mortiço e seu balanceio.
A 27 de outubro, a sessão se passa como todas as precedentes, no dor-
mitório onde existem oito leitos. Nádia sorri logo que eu entro, e me reconhe-
ce muito bem. Quando me vê pegar a cadeira para me sentar perto dela, ela ri
e balbucia. Ela vai se instalar confortavelmente em cima de seu travesseiro e,
após hesitações, inclina-se e mete seu dedo em minha boca.
Ela quer que eu a tome em meu colo. Mas de repente, seu rosto se fecha
e se contrai quando, sem pensar, eu coloco a mão na beira do leito do vizinho,
que está vazio, posto das outras crianças estão no jardim de infância. Eu ve-
rifico que se trata mesmo disso quando eu a vejo sorrir logo que eu retiro mi-
nha mão. Quando compreendo o que se passa e não coloco mais minha mão
na beira do leito do outro, Nádia se toma de novo muito ativa e me dá aten-
1rão.
Ela pega o lápis que sai do bolso de minha bata e joga-o no chão, viran-
do seu olhar na direção deste lápis para que eu o apanhe, e ri às gargalhadas;
mas ao mesmo tempo ela tem a diarréia. Uma enfermeira vem trocá-la; ela
chora procurando-me com o olhar. Ela pára assim que estou de novo junto de-
la e recomeça seu jogo com o lápis, rindo às gargalhadas.
No dia seguinte, 28 de outubro, seu contato comigo prossegue. Assim
que me ponho junto dela, ela se agita, mete seu dedo na minha boca, o suga e
o recoloca, depois ela passa para minhas mãos que ela roça com seus longos
dedos. Ela segura então um de meus dedos, sacode, e pára broscamente, como
se ela estivesse perturbada por não poder fazer com o dedo o que fez com o
Jdpis: separá-lo e jogá-Ío para que eu o apanhe. Ela não sabe mais em que pon-
to está. Ela faz movimentos que parecem pedir que eu a carregue, mas como
eu lhe estendo os braços, seu rosto se retrai, e ela se desvia colocando seus bra-
ços para trás. Eu cesso meu convite e ela pode voltar a explorar meu corpo
cm tomo de minha boca, me olhando longa e ansiosamente.
O médico que faz a visita chega e chama sua atenção. Muito rapidamen-
te ela se retrai, coloca seu polegar na boca e a outra mão contra sua face,
como se perdesse o contato éomigo na presença de um terceiro.
A l'? de novembro, ela está no seu leito, com febre; ela olha minhas
mãos mas não pode decidir-se a tocá-las. Em vez delas, pode-se dizer, ela pega
16 Nadia ou o Espelho

um brinquedo, um elefante de borracha, joga-o para que eu o apanhe, ri. Em


dado momento, ela se machuca sem querer e chora. Ela me estende os braços,
eu a tomo no colo; logo, muito ansiosamente, ela explora minha boca. Como
ela tinha feito com meu dedo, puxa meus dentes; e como não chegasse ao
que procura, ela bate com violência em minha boca, com um rosto tenso e
contraído. Cai então numa grande tristeza e coloca sua cabeça me meu om-
bro, agarrada com as duas mãos em meu guarda-pó.
Bruscamente ela retoma à minha boca, coloca nela um dedo, depois
sua mão inteira, olhando para o outro lado: isto é demais, ela fica petrificada.
A 3 de novembro, pela manhã, ela trocou de quarto. Eu a encontro bas-
tante mal; ela tem um aspecto muito ruim, um ar ansioso. Ela me estende os
braços, mas revira suas mãos. Está sentada em cima do seu travesseiro, uma
perna cruzada sobre a outra, segurando o pé com a mão. Ela recusa todo con-
tato.
Quando eu chego, à tarde, ela me sorri. Estendo-lhe os braços e ela se
inclina em minha direça:o.
Levo-a pela primeira vez a uma outra sala, que não seu dormitório - a
sala vizinha - em seguida a uma decisão tomada a 31 de outubro pela equipe
de cuidados: confiá-la a mim para a seqüência do que aparece como os preli-
minares de wn tratamento analítico, e não mais com uma simples observação.
Certas reações de Nádia certamente foram reforçadas pelas condições da ob-
servação. Mas a despeito destas circunstâncias desfavoráveis, se instaurou en-
tre ela e eu, ao logo do més de outubro, uma relação que lhe pennite aceitar
vir sozinha comigo a esta nova sala, para a verdadeira primeira sesão individual
de seu tratamento. Ela mostra entretanto certa reticência como provam seus
braços no ar e as palmas da mão viradas quando eu a carrego.
Eu a coloco em um Jeito com uma boneca de pano e um bichinho de
oleado. Sento-me ao lado do leito e aproximo os brinquedos dela. Deixo a
porta aberta para o corredor.
Ela pega o bichinho, larga, torna a pegar, coloca-o contra minha hoca,
depois contra a sua, balbuciando um pouco. Ela entretanto, permanece tensa.
Na segunda vez que ela coloca o brinquedo contra minha boca, eu o beijo;
ela parece espantada, coloca o animal na sua boca, lambe-o depois recoloca-o
na minha boca, tentando primeiramente fazé-lo entrar, depois deixando-o
contra meus lábios: eu o beijo. A mão de Nádia está tão próxima que o heijo
é metade sobre o brinquedo, metade sobre ma mão. Ela coloca o bichinho
na sua boca, me olhando ansiosamente de início, depois sorrindo. Ela faz este
jogo várias vezes seguidas.
Neste momento, chega uma enfermeira que traz seu lanche: é um
mingau. Nádia fecha obstinadamente a boca diante da colher e me olha. Em
seguida, diante da insistência da enfermeira, ela se deixa alimentar, o olhar
ausente e baixo.
Com a partida da enfenneira, Nádia pega a boneca que está a seu alca11-
ce, sacode-a bastante, coloca a mão da boneca na sua boca. Tenta arrancares-
O Grande Outro 17

,,, mão com seus dentes, não consegue e, muito crispada, com um ar enjôado,
hute na boneca que ela toma a jogar no fundo do leito.
Depois ela quer voltar para meu colo e me bate na boca, esta boca à
qual ela retorna sempre e que é, nós o vimos tanto a minha como a sua.
Nos dias seguintes, ela prosseguiu na elaboração de sua relação comigo,
por intermédio de um pintinho de pelúcia, mas é semprepara interrogar su-
ressivamente, minha boca e a sua, encostando com força aí o objeto.
É preciso acreditar que este jogo faz do pintinho um objeto manejável:
11ao somente Nádia não o larga mais com seu destrave habitual de abertura da
111;10 e cumpre firmemente seu desejo de me fazer beijá-lo, como é ainda capaz
ti,· separar-se dele e de jogá-lo ativamente para que eu o apanhe. Presa a seu
1ogo, ela é mesmo capaz, quando eu apanho o brinquedo e tenho a cabeça bai-
\a, de tocar em llleus cabelos, de me colocar o dedo na orelha e em seguida,
de acariciar-me a face com sua mão, assaz longamente. Mas neste momento
"'ª se contraí e se toma ansiosa.
A 7 de novembro, num jogo com este mesmo pintinho, ela poderá tocar
11 ünhas mãos guiando o brinquedo até ela, e isto sem ansiedade: ela ri, alegre-

mente emocionada, o olhar brilhante e as pernas em rebuliço. O brinquedo é


1wdadeiramente o intermediário necessário paru aceitar meu contato e gozar
d de.
Ela joga o pintinho no chão e pega o carro verde com o qual ela bate na
minha boca, balbuciando, tenta fazê-lo entrar na minha boca, em vão, e faz
11111 jogo de vai-e-vem com o carro, entre sua boca e a minha.
Ela joga o carro, depois se interessa por uma boneca que ela pega e colo-
,·,, no meu colo. Eu ac.:aricio e nino a boneca. Nádia durante este tempo ri e
:;aracoteia. Depois ela me toma a boneca e lhe inspeciona sucessivamente os
dois braços, como se ela devesse verificar se eles continuam lá. Após um tem-
po, ela reproduz sobre a boneca, com um ar concentrado, o que eu acabo de
fazer: a acaricia, a beija e nina. Em seguida ela pára, rosto tenso, puxa a saia
da ooneca para abaixá-la e a joga fora. E está neste momento muito emocio-
11ada, e coloca um dedo na minha boca, como de costume.
A cena seguinte se passa na noite do mesmo dia, depois do jantar, quan-
do eu passo de novo no quarto. Nádia me sorri, eu lhe estendo o biscoito que
é a sua sobremesa. Ela segura, depois larga imediatamente, duas vezes seguidas.
1-:ta me estende o braço, eu a tomo. Ela pode então segurar o biscoito e levá-lo
;i minha boca. Eu como um pedaço.
Eu a recoloco no leito: lá, ela vomita. Mas devo acrescentar que ela vo-
111ita enquanto eu lhe viro as costas para partir, e sobretudo que eu dirijo al-
J'.llmas palavras a uma outra criança que conheço.
Viro-me, ela sorri ligeiramente, se deixa trocar pela enfenneira, sempre
,;orridente, e, quando eu me aproximo para dizer-lhe até logo, ela coloca seu
dedo ein minha boca, após ter passado furtivamente sua mão em minha face.
18 Nadia ou o Espelha

Ao longo deste período, em um primeiro tempo, cn 1n· 111 r .'1 de outu-


r.
bro, é pelo pequeno outro que eu começo a existir para ela. s11lh'11·11tc com
efeito, que uma outra criança apareça em seu campo e pcgul' o i:uho q111· cu ti-
nha colocado à sua disposição sem lhe dar, para que ela s1\ volt r p111 a mim e
me estenda um braço, primeiramente. Ou ainda que uma oul ra e, lilrt\·a 111c to-
que: ela que parecia indiferente à minha presença um inslantr antrs. 111c es-
tende os braços, os dois desta vez. Inversamente, quando ela 1•s1;·1 ,·111 meus
braços e explora minha boca, ela se joga para trás e se desvia dl' 1111111 \I.' outra
criança se aproxima e me toca. Ou ainda, ela rejeita o cubo que Ili,· dr,, assim
que uma criança se agrra no meu avental.
É pois a outra criança que a conduz até o adulto que eu sou; ,1 o peque-
no outro que a leva ao grande Outro: na medida em que. o ohjl'to deste
grande Outro, o pequeno outro pode sempre vir tomá-lo 1•111 111im, em
meu corpo e satislazer-se; o que a exclui: como quando a cnfcrnll'i1a alimen-
ta uma outra criança cm sua presença, uma cena que, a cada inst an h'. l'lll sua
vida de instituição, pode aparecer diante de seus olhos. Seu rqwtulo piscar de
olhos, a 24 de outubro, diz suficientemente o que ela ,~ão podt· suportar ver.
A cena <lc 27 de outubro - quando eu retiro minha 111,)11 da hl'lla do lei-
to <lo vizinho, quando este não se encontrava aí - vai ser rcs11l11liva qnanto·a
esta presença embaraçante e fascinante da outra criança. A prova é rn1111'.leito
conclusiva pois ela sorri de novo assim que cu retiro minha 111;10, ist 111; que eu
me separo do outro. E este pequeno outro não estando em seu leito,,: de seu
traço que se trata, um traço que eu anulo quando retiro minha 111:111
Se se aproxima esta cena da precedente em que o adulto alli11c11ta a
criança, e onde não era o alimento que excitava a cobiça de N,ídia 111as a rela-
ção da criança ao adulto, sua satisfação aqui vem de que cu 1111· sq1aro não
realmente de uma criança, mas de seu traço. Isto coloca a outra rriança no
mesmo registro do alimento: este registro dos objetos para Nádia j:í ,. simbóli-
co, tal é sua exigência.
Neste quadro, retirar minha mão <lo leito do vizinho tem val111 d1· inter-
pretação e me coloco no primeiro plano, enquanto Outro podendo st' separar
de um objeto, isto é marcado com a falta. Pela primeira vez, Nádia 1•11contra
um adulto ao qual pode faltar o pequeno outro. O outro e o 011110 que, até
então para ela, estavam escopicamente colados, se separam.
É a última vez que Nádia se sente destruída e anulada diante de uma
outra criança. Ela não perderá mais o contato comigo em presença dt• 11111 ou-
tro (com exceção da cena de 10 de dezembro).
Logo que retoma sua atividade, após eu ter retirado minha 111:lo do leito
vizinho, ela renova esta operação de separação sobre meu corpo. Ela pega meu
lápis do bolso de minha blusa e o joga para que eu apanhe, o que a füz rir.
Desde 28 de outubro, o efeito desta experiência é radical sobre o redes-
cobrimento de seu auto-erotismo oral. Ela mete seu dedo em minha boca,
suga-o, recomeça, como se o objeto erótico tomado de seu próprio corpo, só
pudesse ter esta função em relação ao vazio de minha própria boca. O objeto
O Grande Outro 19

dedo só pode excitar sua boca se ele está no lugar do objeto que ela me to-
mou, que ela me fez perder: isto é, a outra criança ou meu lápis.
Na mesma sessão confirma-se que é o caráter separável do objeto que é
procurado enquanto tal, quando ela puxa um de meus dedos, o sacode, fica
desapontada de não poder fazer como com o meu lápis. É a mesma "separa-
hilidade" ( * ) que ela procura, a 19 de novembro, quando, explorando minha
hoca, ela puxa meus dentes, em vão. Então ela me bate na boca.
O objeto só é erótico ou auto-erótico se ele é separável, caduco; e isto
nos diferentes níveis pulsionais salvo nível escópico, onde o caráter sepa-
rável não aparece. Ser "separável de meu corpo", é o que é exigível para fazer
de um objeto um objeto de desejo: para causar o desejo.
Este não é o caso do alimento para Nádia. Ela mostra isso a 3 de novem-
bro, em sessão, quando recusa o mingau que uma enfermeira quer lhe dar: é o
que ela manifesta fechando obstinadamente a boca, mas sem deixar de me
olhar; ela só pode aceitar este objeto com o olhar ausente e os olhos baixo,
sem mais me olhar, e passivamente. Só retoma sua atividade após a partida da
enfermeira, quando tenta arrancar com seus dentes, uma mão da boneca;
ela representa sobre a boneca o que falta ao alimento para ser objeto de dese-
jo e de satisfação: ser um objeto separável do corpo do Outro. O objeto visado
não é o alimento, mas a mão que alimenta.
Sua relação comigo veio para o primeiro plano; eia gira em tomo de mi-
nha boca, como um lugar, uma hiância encontrada no meu corpo;mesmo se
Nádia tenta criar outras ela mesma, puxando meu dedo ou meus dentes. Mas
não é preciso que esta boca, esta hiância não seja preenchida; e quando, na
noite de 7 de novembro, eu como um pedaço de biscoito, que ela colocou na
minha boca, é ela que - no transitivismo em jogo entre ela e mim - vomita:
como se ela não pudesse tolerar que o mínimo objeto venha preencher este
vazio da minha boca. Este objeto que eu comi, é ainda a irrupção de um Real
entre ela e mim e que a leva ao ponto precedente, ao momento em que eu ti-
nha posto minha mãe.. sobre a beirada do leito do vizinho. Eu sou preenchida
aqui realmente, não pelo pequeno outro, mas pelo objeto em causa entre o
adulto e a criança na invidia. É como um efeito de desvelamento do objeto
em causa entre ela e mim. Se é ela que vomita, é que ela não pode me fazer
vomitar, evidentemente; mas o transitivismo diz bastante que a identificação
está operando entre se corpo e o meu, uma primeira forma de identificação
antes de toda pesquisa de objeto sobre o corpo do Outro. É a exigência do
furo sobre o corpo do Outro que surge e que, pelo transitivismo, Nádia resta-
belece.
Ela não vomita aliás sem que a perda de meu olhar, tomado então por
uma outra criança, demonstre o nexo estreito entre o olho e a boca. Mas esta
ligação não pode ainda se fazer para ela, ou só se faz numa relação de exlu-
são: ou ehi. me olha e não pode absorver o alimento, ou ela só absorve este,

( *) Acompanhando o neologi~mo "separabilité", entre aspas no original (N. da T,).


20 'Nadia ou o Espelho

retirando seu olhar de mim e do mundo exterior. Não há ainda para ela intri-
cação - talvez haja desintrincação? - entre pulsão escópica e pulsão oral.
O objeto pulsiona1 não é revelado no olhar. O alimento o revela mas in-
terdita o olhar, quando Nádia come o mingau; e quando ela me alimenta com
um pedaço de biscoito, meu olhar que se retira revela este objeto pulsional no
alimento e interdita o oral.
Um duplo mandamento surge aí: "Tu não verás o "a" e tampouco o
consumirás". Poder-se-ia acrescentar: "Tu comerás o alimento, sem saber que,
em teu olhar, trazes o "a", causa de teu desejo".
CAPITUW III
A PULSÃO ESCôPICA
"Mostrar-se"

9, 10 e 12 novembro

1 1f 1 No quarto onde se passam as sessões, coloquei uma cama diante da im-


portância deste objeto para Nádia. Era na sua carna, com efeito, que no início
ela tinha seu olhar mais vivo. Ao mesmo tempo, ela pode encontrar apoio nas
próprias bordas deste leito onde ela se agarra com as mãos.
A 9 de novembro, quando chego ao dormitório, de manhã, ela está dor-
mindo. Está deitada, os braços por cima da cabeça, as mãos abertas, as palmas
viradas para o alto. Sua pobre carinha de olhos fechados, ainda mais cheios de
olheiras no sono, me impressionam muito, tanto ela me faz pensar na morte.
Volto à tarde.
Assim que eu a coloco no leito de sessões, ela pega wn carrinho verde;
mas larga-o com seu destrave de mãos, várias vezes seguidas. Termina por pe-
gar o carrinho e guardá-lo rindo às gargalhadas; coloco-o em sua boca, depois
11a minha, batendo-me com ele, muito forte, sempre rindo. Depois ela joga o
carro para pegar o pintinho e faz o mesmo jogo, colocando-o na sua boca, em
seguida na minha, pressionando também sua mão contra minha boca, balbu-
ciando alegremente.
Ela toma em seguida a boneca e estende-a para mim. Eu coloco abone-
ca nos joelhos embalando-a. Então Nádia toma a boneca de volta, olha-a, ati-
ra-a em seu leito e quer vir para meu colo. Ela está um pouco ansiosa, depois
balbucia; pela primeira vez ela tem um olhar vivo e muito expressivo. Ela co-
loca seu dedo na minha boca, inspeciona minhas blusas afastando um pouco a
gola para arranhar embaixo do meu pescoço com um ar grave e tenso. Ela
quer retomar ao seu leito, nela retoma a boneca e a estende para mim. Eu a
nino; ela retoma ainda a boneca depois de ter me feito beijá-la, e quer retor-
nar com ela para meu colo. Ela dá um pouco de atenção à boneca,'lambe-a,
me faz niná-la outra vez antes de atirá-la fora. Ela me olha então, e tenta sal-
tar, como se eu a fizesse saltar sobre meu colo, rindo às gargalhadas. Eu a faço
então saltar, ela está ainda mais contente, inclina-se para mim e eu a beijo no
momento em que está com a cabeça apoiada em meu peito. Ela faz isso várias
vezes, ficando aí cada vez wn pouco mais longamente. Ela entretanto, vigia
sempre a posição de minhas mãos em tomo de seu corpo: elas não devem to-
cá-la, eu faço apenas o estritamente necessário para manter seu equihbrio.
22 Nadia ou o Espelho

Quando eu a devolvo ao seu leito, ela, sorrindo timidamente, me esten-


de os braços, palmas das ma:os para o ar, como de costume. Ela está inquieta e
cu tenho a impressão de um choque quando a deixo, tão evidente parece que
ela não obteve o que desejava ao longo desta sessão.
A I O de novembro, enquanto a enfermeira a troca, ela sorrindo, me es-
tende sua mão incessantemente, mas não consegue segurar a minha que lhe
estendo.
Na sessão, assim que ela está no seu leito, ela se vira para mim, salta
rindo e olhando para mim. Eu a coloco sobre meu colo: e ela quer que eu a
faça saltar enquanto ela manipula um pintinho de pelúcia.
Eu lhe estendo um biscoito; ela o toma após muitas hesitações, depois,
muito rápido, larga-o com seu destrave habitual. Eu o apanho e finjo dá-lo à
honeca. Nádia retoma o biscoito; coloca-o na minha boca;como um pedaço,
ela o olha, depois larga-o de novo com seu destrave. Eu o recoloco sobre meu
colo mas ela na:o lhe dará mais atenção. Eu a sinto tensa e ansiosa; ela retoma
o pintinho sorrindo um pouco, enroscando-se bem forte em mim, durante al-
guns instantes.
Neste momento uma outra criança entra na sala, e Nádia se interessa
muito por ela, pedindo que eu a faça saltar em meu colo. Ela não tem nenhu-
ma hesitação em tocar a outra criança: ela lhe puxa um pouco os cabelos,
passa-lhe a mão na face. Entre cada gesto ela me olha, tudo isso enquanto
cu a faço sal lar. Ao mesmo tempo, ela faz com sua boca o barulho de beijar; eu a
heijo uma vez, mas ela me repele. Ela se toma desde então agitada e ansiosa.
Eu a reconduzo a seu quarto, onde ela se balança quando parto.
A 12 <lc novembro, cu tomo conhecimento que Nádia, espontaneamen-
te, pela manhã, só quiz tomar seu desjejum na mamadeira.
Ela começa a sessão em seu leito. Olha os brinquedos e pula de alegria
olhando-me. Ela joga no chão o carrinho, depois o biscoito e me estende os
braços para vir para meu colo. Aí ela quer que eu a faça saltar e que cu a beije:
depois ela se inclina e pega um a um os brinquedos no leito para jogá-los no
chão.
J:.:/a quer então que eu a sente, pela primeira vez, no chaõ, onde estão os
brinquedos e o biscoito. Mostra-se radiante, agitando suas pernas enquanto
me olha. Está muito ativa, junta os brinquedos, coloca-os sobre a cadeira bai-
xa que eu deixei para ir sentar-me no chão ao lado <leia. Ela tenta até arrastar-se
para apanhar os hrinqucdos que estão um pouco longe. Ela está ao mesmo
tempo em contato comigo e contente de estar sentada no chão.
Peço à enfermeira. no fim da sessão, para tirar Nádia da cama para hrin-
car um pouco, com as outras crianças, vigiando se ela aguenta, e nao insistin-
do, se ela ficar ansiosa.

D
A Pulsão Escópica 23

Estas três sessões concernem a passagem da invidia à pulsão escópica


propriamente dita: "mostrar-se"; elas não deixam de demonstrar as implica-
ções estruturais de uma tal passagem.
Num primeiro tempo, Nádia utiliza, em sua sucessão, dois objetos que
ela aborda muito diferente1nente e cujo futuro não será menos diferente:
um carrinho verde e um pinto de pelúcia.
Na sessão de 9 de novembro, o carro aparece como um objeto impossí-
vel, a julgar pelo fato dela não poder pegá-lo sem ser forçada a largá-lo com
seu destrave habitual; é somente confrontando-o à sua boca e depois à minha
que ela pode guardá-lo, rindo às gargalhadas. Então, imediatamente ela me ba-
te na boca, sempre rindo: do impossível ao riso, o carro tornou-se um outro
objeto, e ela pode recusar se a dá-lo para mim por brincadeira.
O pintinho, esse, é menos estranho visto que, apertando-o contra meu
rosto, ela se substitui a ele, apertando aí também sua mão, e então, não me
bate mais na boca, mas balbucia alegremente.
A diferença entre estes dois objetos prosseguirá depois: o carro servirá
sempre, veremos, para bater, para fazer barulho e se fazer ouvir, enquanto
que o pintinho guardará seu caráter de mediação, para abordar ou afastar ou-
tros objetos como a mamadeira.
O passo seguinte, Nádia dá com a boneca, quando ela a toma e me es-
tende ainda em seu leito. Eu respondo: coloco a boneca sobre meu colo e a
nino. Nádia então toma este mesmo lugar sobre meu colo tornando a jogar
a boneca no leito que acaba de deixar. Ela balbucia.
De fato, ela toma aí o lugar do vazio que ela instaura em meu corpo,
da falta que ela provoca em mim e ao privar-me de alguma coisa: a boneca, ou
seja o outro minúsculo que ela separou de mim a 27 de outubro, ou melhor do
qual eu me separei segundo seu desejo, retirando minha mão da beira do leito.
Uma característica destes objetos - carro, pintinho, boneca - se dese-
nha: eles nada têm a ver com uma necessidade, mas com a demanda de Ná-
dia. Sua função de mediação lhes confere uma dimensão significante, que se
demonstra ainda na repetição à qual eles dão lugar na relação de Nádia comigo.
Esta relação não se resume a uma entrada em jogo de significantes. Ná-
dia é levada, no sentido pulsional, a dirigir-se mais diretamente a meu corpo
por uma necessidade estrutural, que faz o objeto participar ao mesmo tempo
do significante e do corpo do Outro: inspecionando minha blusa, ela afasta
um pouco a gola para arranhar embaixo do meu pescoço. Ela não ri nem bal-
bucia neste momento, e ela precisa fugir. De que ela foge, senão do Real de
meu corpo? O que ela procura em meu corpo é um objeto do qual ele fosse
portador e que fosse dele separável,pequeno outro minúsculo e o lápis que ela
separou dele. As tentativas que ela fez com meu dedo e meus dentes sublinha-
ram este caráter separável do objeto que ela procura aí.
Pode-se adiantar, desde agora, que tais objetos constituem um paredão
contra o qual Nádia não terminou de chocar-se. Qual é seu estatuto? Estes
objetos são reais porque eles estão aí sobre meu corpo e ela sabe. Eles ficam
sempre no mesmo lugar, e quaisquer que sejam os objetos substitutos que ela
24 Nadia ou o Espelho

introduz em seu jogo, será sempre a eles que ela será rcrn111h11.ida. l\1as eles
são significantes também, na medida em que a impossihilidad1· dl' aka1urá-los
afeta-os com uma barra, o que os faz passar do estatuto do l{1•al ao l'statuto
de significante: "A barra é um dos meios mais seguros e 111ais c111 tos dl' eleva-
ção do Real à dignidade de significante" ( 1 ).
Não podendo anda ter acesso a estes objetos separ:ívds s11hw 111cu cor-
po, Nádia volta ao objeto precedente, "boneca-pequeno outro" qtll' ela me
estende e toma para lamber, depois jogar, antes de retomar mais 11111a vez seu
lugar sobre meu colo, isto é, sempre o lugar da criança sobre o colo do adulto,
onde os dois corpos estilo ligados. Mas um novo elemento aparece a propósito
da boneca: ela a lambeu após ter-me feito beijá-Ia, isto é, fez dela um objeto
oral.
A partir de então ela torna-se ativa: tenta saltar sobre meu colo eu a
faço saltar e ela ri às gargalhadas. Veremos depois toda a import:incia do
domínio motor. A motricidade ativa se associa já aqui à busca do ohjeto em
meu corpo, que Nádia persegue, apoiando repetidamente e mais demorada-
mente a cada vez, sua cabeça em meu peito.
Ela insiste muito sobre o fato de que eu devo fazê-la saltar. Mas ela vigia
a posição de minhas mãos, que não devem tocá-la, assim como ela 11:ro deve
tocar-me quando eu a reconduzo ao quarto ( ela conserva as palmas para o ar,
reviradas): não é como uma denegação disto que ela procura pegar em meu
corpo e que eu não devo saber'!
É na sessão de 10 de novembro que Nádia conclui, diante de outra
criança, a passagem da inviclia à pulsão escópica propriamente dita. Esta ou-
tra criança entre fortuitamente na sala onde estou com ela; Nádia, sohre meu
colo, se interessa imediatamente: mas na condição que eu a faça saltar. Então,
saltando, ela olha a outra pode tocá-la acariciá-la. dirigindo seu olhar para
mim a cada um de seus gestos. Ela faz ao mesmo tempo, com seus lábios.
um barulho de beijo.
O outro cessa de ser então um puro objeto escópico, objeto de invidia
sobre o colo do adulto. Ele é agora não somente objeto para tocar e manipu-
lar sob meu olhar, mas ainda objeto ligado à excitação oral, como testemu-
nha o barulho do beijo. Enfim, a ligação com a atividade muscular é evidente
já que Nádia durante toda a cena, se atém a fazer-se saltar sobre meu colo. Do
puro escópico à intricação das pulsões tal como ela aparece aqui, o caminho
passou, como vimos, pela boneca e o , pequeno outro. f todo o quadro da
invidía que Nadia retomou ativamente.
O caráter ativo das pulsões, à medida que se manifestan1 cm Na<lia, se
opõem assim ao caráter passivo em causa no escópico, enquanto fascinação
do "ver", gerador da invidia e da catatonia. De uma situação onde Nádia es-
tava sozinha e passiva diante de sua visão, ela passa a uma atividade que con-
cerne não somente o objeto mas o Outro que eu sou. É como se ela dissesse

(1) J. Lacan, Seminário de 23 de abril de 1958 (inédito), "L.!s furmations de I'


inconscicn t".
A Pulsão Escópica 25

à outra criança: "olha para mim quando me fâzem saltar ( dar a ver), como eu
estou feliz no colo do Outro (ver-se), então eu posso te olhar (ver)".
É um artifício dizer que ela diz isso a outra criança, pois seu discurso se
dirige evidentemente a mim: o outro tornou-se o suporte de seu discurso ao
Outro. Tal é a diferença fund~ental da inviqia e da pulsão: o objeto não é
mais um elemento de fascinação, mas um elemento de discurso que implica
necessariamente o Outro, enquanto lugar de referência, mesmo de inscrição,
isto é de significância.
Uma outra diferença é a colocação em jogo de novas· pulsões. Testemu-
nha o barulho de beijar que ela faz com sua boca olhando o outro, mas o
circuito pulsional oral não comporta aqui ainda os seus três tempos. O baru-
lho de beijar ela·o dirige à outra criança ou a si mesmo, visto que ela não beija
o outro realmente? Estes dois tempos, beijar e beijar-se, estão juntos implica-
dos no barulho de beijar; mas o que Nádia não pode suportar, é ser beijada
por mim: ela toma-se desde então agitada e ansiosa.
Ela acaba de mostrar a mesma reticência quanto ao tocar. Embora tocar
o outro e tocar-se estejam combinados nas carícias que ela faz à outras crian-
ças sob meu olhar, ela vigia como vimos, para que minhas mãos não a toque.
Ser beijada, ser tocada, implicam o Outro. Ela acaba de aceitá-lo plena-
mente no "ser visto", ela não pode ainda fazê-los nos outros níveis, e eis por-
que, quando eu parto, ela se balança: ela me perde realmente pelo fato de não
poder ainda me aceitar enquanto Outro em seus "circuitos" - pulsionais.
Que ela não tenha podido me aceitar deve ser aproximado da dialética escó-
pica da invidia que ela até aqui conheceu,isto é,a de um puro olhar sem retor-
no, sem a possibilidade de ser olhada.
Na presença da outra criança, ela aceitou ser vista porque eu não me
ocupei desta, mas somente de si mesma sobre meusjoeipos.
Ela não parou de olhá-la, e mais ainda de me olhar: ela olhou-a a partir
tio "ver~se sendo vista" no meu olhar.
Não é o caso do tocar, pois ela não lhe pode achar a parte ativa visto
que ela não pode alcançar o objeto do qual sou portadora; e também não é
o caso do oral, já que, pela mesma razão, ela.não pode consumir o objeto do
Outro. Também ela não pode suportar ser beijada - comida antes dela mesma
comer. O que falta aí, é a parte ativa da pulsão: que ela é levada a estabelecer,
a 12 de novembro pela manhã, reclamando seu desjejum na mamadeira. Que
ela a reclame fora da sessão não é sem relaç!lo, de um lado, com o impossível
objeto do corpo do qual sou portadora e, de outro lado, com a ausência da
mamadeira na sessão. Eis porque vou introduzí-la, desde o dia seguinte no
material de sessão, como objeto dialético na relação de Nádia comigo.
Que ela tenha podido, ativamente consumir este objeto lhe faz dar um
passo decisivo no circuito pulsional já que, desde 12 de novembro, após ter
tomado a mamadeira, é ela que pede que eu a beije, enquanto a faço saltar
sobre meu colo. Nesta mesma sessão, ela faz circular os objetos - brinquedos
e biscoitos - de seu lugar - o leite que ela deixou para vir ao meu colo - para
meu lugar: a cadeira que eu deixei. Para Nádia na sua relação comigo, não é
26 Nadia ou o Espelho

dos objetos enquanto tal que se trata, mas de sua dimcnsào sig11itka11lc, sim-
bólica. Ela acha-se tão bem liberada da cadeia real que era o ll'ito para ela, que
eu mesma perco, no lugar do Outro onde eu estou, uma prcscn~a 11111ito real.
A sessão culmina então numa cena onde Nádia, feliz por l'~1ar sentada
no chã'o, está radiante e chega ao gozo de fazer-se ver: batcmlo os pi;s, t!ngati- ·
nhando, muito em contato comigo. Ela passou agora defi11itiva1111·11 l1· da rela-
ção do outro ao Outro;e - isto vale ser observado -adquiriuaí1111111a1dsismo.
Sua atividade, a mobilidade de seu jogo dizem suficicnk da rlarcira que
ela acaba de abrir em direção a uma outra ordem que nã'o a do R,·al. Tudo se
ordena aqui, numa sucessão em função do espaço, a um nível simhúlico de
presença e de ausência, com a ajuda de objetos (os brinquedos) a1111lados no
que eles são e, enquanto tais, promovidos à função de significanll's: é hem de
um dizer que se trata.
No. curso destas três sessões, deve-se notar que minhas intcrVl'11,·1íes fo.
ram muito ativas, em oposição a uma posição de espectador. Para 11·s11111ir esta
ação, posso dizer que eu a sigo de perto ou a precedo de pouco. q11a11do nino
a boneca que ela me estende ou que ela coloca sobre meu colo, q11a11d11 como·
um pedaço do biscoito que ela colocou na minha boca, apesar da l' xpc riência
precedente que a fez vomitar. O importante é que por meus aios, pnmane-
cendo atenta a suas reações, eu não seja passiva, pois é bem cviilc111!• que mi-
nha passividade, tanto quanto uma atividade muito grande, iria rontr a a sua
busca ao nível pulsional; nível onde os fins - e não o impulso cst :111 longe
de ser unívocos, ativos ou passivos.
Senti que a mobilidade de minha atitude podia responder à sua própria
mobilidade quando, a 12 de novembro por exemplo, eu acreditei dcvi·r deixar
minha cadeira para ir sentar-me ao chão ao lado dela.
É hem evidente que não fico passiva nem tampouco silenciosa. sem en·-
tretanto interpretar seu comportamento; e veremos a import:i11da deste
"ouvir" minha voz para Nádia.
CAPITULO IV
A PRIMEIRA IDENTIFICAÇÃO
A relação transitivista ao Outro

13 novembro - 8 dezembro

1 1D A 13 de novembro, o pedido da mamadeira por Nádia no desejejum da


véspera me fez introduzir uma mamadeira de leite na sessão.
Eu encontro Nádia de melhor aspecto. Instalo-a imediatamente no chão,
o que a deixa radiante.
A primeira parte da sessão é centrada na mamadeira. Sua atenção retor-
na a ela muitas vezes. Com o pintinho, ela a derruba duas vezes, depois vira-lhe
as costas. Em seguida ela brinca de apertar o pintinho contra minha boca e
se faz beijar.
Ela tenta então ficar de pé apoiando-se na cadeira, mas recusa minha
ajuda, colocando suas pernas em ângulo reto se eu o faço. Ela tenta também
arrastar-se.
Ela vem para meu colo, se faz beijar, pega o biscoito, hesita, em seguida
joga-o fora para interessar-se pela mamadeira - que ela tenta agarrar fazendo,
com a boca, movimentos intensos e ruidosos de sucção. Eu apresento-lhe a
mamadeira. Assim que o bico da mamadeira está a vinte centímetros de sua
boca, ela a abre esticando seu rosto. Ela toma a mamadeira gulosamente,
como se enchesse um buraco, sentada e111 meu colo, o corpo muito rígido e
sem me olhar. -·
A segunda parte da sessão é consagrada à tentativa de colocar-se em pé,
com a ajuda do pé da cama. Ela está radiante e balbucia olliando-me, sem ves-
tígio de ansiedade. Em seguida ela quer que eu a faça saltar; se eu paro, ela
não fica contente, e até ansiosa.
Quando a devolvo, como as outras crianças estão no chão, aí coloco
Nádia. Ela se agarra um minuto a mim, depois aceita. Após ter verificado que
eu continuo lá, ela se interessa vivamente pelos outros, com um ar maroto;
ela me ollia de vez em quando, vira-se em todas as direções, e chega mesmo a
tomar um brinquedo da mão de uma outra criança, para me oferecer com um
ar radiante.
A enfermeira encontra nela uma expressão completamente mudada.
A 14 de novembro, ela teve durante a noite uma otite aguda que neces-
sitou de uma paracentese bilateral.
Ela fica alegre quando eu a tomo. Colocada no chão, ela balbucia, con-
tente. Entretanto, eu a sinto tensa e irritadiça. O pinto é o único brinquedo
28 Nadia ou o Espelho

que lhe proporciona alegria; com ele, ela afasta violentamente o carro e a bo-
neca em relaçã'o à qual parece ter grande animosidade.
Ela olha freqüentemente para a mamadeira mas n[o a quer. Ela quer vir
para meu colo, mas nele fica tensa e inquieta; ela sorri brevemente quando se
faz beijar. Ela quer que eu a faça saltar sobre meu colo mas contrai-se depressa.
Eu a reconduzo então a seu quarto e permaneço cinco minutos junto
de seu leito: ela parece encontrar um pouco de apaziguamento em minha pre-
sença. Ela isola-se comigo, balbucia e chilreia.
A 16 de novembro, eu a encontro no chã'o com as outras crianças, um
· brinquedo na mlfo. Assim que me vê, sorri, radiante, e pela primeira vez, tenta
arrastar-se em minha direção; mas desloca-se pouco. Estende-me os braços,
as mãos viradas para mim; eu a carrego, a cabeça encostada em minha face.
Desde o início da sessã'o, eu a sinto ansiosa; entretanto ela me demanda
diferentes contatos: vir para meu colo e pela primeira vez, que eu a tome em
meus braços; ela encosta sua cabeça em minha face, uma mão sobre meu om- .
bro e um braço em tomo de meu pescoço. Ela olha-me sorrindo, se faz beijar
e dá pancadinhas em meu ombro.
Sua fisionomia crispa-se, ela quer voltar para meu colo; os braços no ar,
palmas reviradas, ela vigia a posição de minhas mãos, batendo com um brin-
quedo naquela que está muito perto; eu retiro minha mão, ela olha-me então
e sorri.
Sua ansiedade, sempre subjacente assoma de vez cm quando. Ela a ex-
prime um pouco diferentemente desta vez: ela olha para todo lugar na sala,
atrás dela também, voltando em intervalos a meu rosto. Então eu a recondu-
zo, recoloco-a no chã'o, onde quase imediatamente ela se interessa pelas outras ·
crianças.
A propósito de sua ansiedade, a sessão de hoje me fez pensar que ela se
manifesta por duas atitudes diferentes, segundo seja de origem interna ou cau-
sada por mim mais diretamente. No primeiro caso, Nádia me olha intensamen-
te, o rosto crispado; no segundo caso, ela foge de meu olhar, pousando o seu
sem descanso sobre pontos diferentes da sala, o corpo rígido e o rosto inex-
pressivo.
Eu estive infelizmente ausente durante dez dias. A 27 de novembro, Ná-
dia reconhece-me. Está com péssimo aspecto; fico sabendo que ela sofreu
mas uma paracêntese durante minha ausência. Encontro-a muito menos sorri-
dente e a posição - tic de seus braços voltou com mais força. Ela inclina-se
para mim quando quero carregá-la, mas com braços e palmas para trás.
· A tonalidade da sessão é triste e inquieta; Nádia não demanda nada. Ela
pega o pintinho e refaz longamente seu jogo, isto· é, o vai-e-vem en trc sua boca
e a minha. Em seguida ela nota a mamadeira; cada vez mais freqüentemente,
seu olhar dirige-se para ela, e Nádia estende seus braços na sua direção. Eu
aproximo a mamadeira, mas ela vira-se e começa a sugar o pintinho olhando
para mim. Eu seguro a mamadeira perto dela mas ela vira-se de novo e suga
A Primeira Identificação 29

mais ativamente o pintinho olhando-me. Eu sento então Nádia sobre meu co-
lo, seguro a mamadeira! Ela hesita longamente antes de aproximar sua boca,
com um vai-e-vem da mão e ruídos de sucção. Ela coloca o bico na boca e o
repele com a língua olhando-me ansiosamente. Eu beijo-a cantarolando, ela
toma a mamadeira gulosamente. Ela repousa em seguida sua cabeça em mim
olhando-me bastante inquieta; olhando também ansiosamente a mamadeira
vazia.
Quando eu a devolvo a seu leito, ela quer que eu a tome novamente em
meus braços por um momento. Ao longo desta sessão, ela só se relaxa toman-
do a mamadeira ainda que seus braços estejam contraídos e virados para trás.
A 28 de novembro, quando eu venho buscá-la, Nádia acaba de sotrer
uma paracentese bilateral. A cabeça está enfaixada, seu rosto está contraído.
Sorriso relâmpado ao me ver; em seguida o rosto contrai-se novamente. Quan-
do me aproximo de seu leito, ela levanta os braços, mas suas palmas estão re-
viradas; e, quando eu estendo-lhe os braços para carregá-la, ela não inclina
seu corpo para mim, como fazia antes de minha ausência.
Carrego-a. Sentada no chão, como de hábito, ela está tão contraída,
tensa, os braços sempre no ar, imóvel, olhando-me fixamente, que a coloco
no meu colo. Seu olhar torna-se então menos tenso, mas ela retoma rapida-
mente sua expressão inicial e seus braços ficam no ar. Como ela parece sofrer
fisicamente, eu a nino docemente cantarolando e falando-lhe de sua dor. Pou-
co a pouco ela se descontrai, apoia sua cabeça em mim, abaixa os braços, mas
suas mãos e seu corpo permanecem contraídos. Durante um breve momento,
seu corpo abandona-se; Nádia quase deita-se ~m meus braços e olha-me com
intensidade, fazendo ruídos de sucção. Várias vezes ela aproxima sua mll'o de
meu rosto. Mas só depois de algumas tentativas ela coloca sua mão contra
minha boca, sem me olhar. Eu beijo sua mão; ela não a retira. Ela puxa meu
nariz e meus óculos, termina por reeguer-se. Ela remexe então longamente o
botão de minha blusa branca e sorri francamente.
Ponho o pintinho perto dela; ela ri, segura-o, diverte-se em jogá-lo e
apanhá-lo estirando-se muito longe. Ela ri às gargalhadas cada vez mais; entre
cada repetição do jogo, ela me olha, mais descontraída a cada vez; e mesmo
calorosamente.
Quando eu a devolvo, ela mantém os braços para trás, mas seu rosto e
seus olhos me sorriem. Recolocada no leito, ela não pede que eu pegue;
olha-me ansiosamente, em seguida descontrai-se. Ela não retoma sua expres-
sãq inicial; ela me sorri.
A 30 de novembro, Nádia, bem sentada em seu travesseiro, me sorri
quando entro no quarto. Fico surpreendida com seu aspecto tão ruim e com
suas olheiras; no entanto seus ouvidos não escorrem mais. Quando estou a
ponto de carregá-la, ela torna-se séria e, não faz nenhum gesto em minha di-
reção; se ela dá um gritinho de alegria, assim que ela está em meus braços, os
seus ficam no ar.
Como de costume, eu a ponho sentada. Ela fica estática, até que eu es-
teja sentada; olha-me com um olhar lastimoso e começa a sugar meu polegar.
30 Nadia ou o Espelho

Durante wn quarto de hora ela fica inquieta, tensa, apavorada. Seu olhar aflo-
ra de vez em quando os brinquedos sem mudar de expressão; cada ruído lá
fora lhe mete medo. Nenhwn sorriso, nenhum som de voz, nem mesmo wna
descontração passageira no olhar. Decido então, reconduzí-la a seu leito e fi-
car perto dela. Mas apenas a tomo em meus braços, sua atitude muda: ela agar-
ra-se a mim e me sorri um pouco. Quando chego diante da porta de seu quar-
to, ela vira-se violentamente e agarra-se ainda mais em minha blusa. Eu a re-
conduzo então à sala de sessão; lá, ela deixa seus braços repousarem em meu
ombro balbuciando um pouco.
Ela olha muito os brinquedos habituais; Torno a sentar-me no chão
conservando-a por isso, no meu colo. Ela ri de contentamento e seu rosto des-
contraí-se realmente. Ela brinca um pouco com o botão de minha hlusa, em
seguida se abaixa para pegar o pintinho. Ela brinca de jogá-lo, apanhá-lo, rin-
do e olhando para mim: ela o suga cada vez mais longamente,jogando olhares
furtivos sobre a mamadeira que aproximo dela; ela abandona o pintinho, ri,
abre a boca e começa a beber apoiando sua cabeça contra mim. Ela absorve
apenas alguns goles e repele o bico da mamadeira com a língua, único movi-
mento que faz para exprimir que não quer mais. Retiro a mamadeira; ela he-
sita, quer novamente, bebe apenas um gole, repele-a. Ela apanha então o carri-
nho verde.
Ela senta-se, muito reta, e brinca longamente, alegremente, de faz.er
barul!'!o batendo o carro em minha cadeira. Ela se encanta com o barulho e
me olha freqüentemente dando gritinhos de alegria. Em seguida, seu rosto
tona-se sério; ela fica estática e, por duas vezes, bate o carro em seu crâneo.
Durante dois minutos, ela dá alternadamente golpes sobre a cadeira, rindo,
e sobre seu crâneo, mas aí com um ar concentrado e algwna hesitação. Eu
pensei primeiramente que era um jogo onde ela procurava a diferença de ruí-
do, mas quando ela bate no seu crâneo, seu rosto fica muito tenso: ela parece
se perguntar o que isto lhe faz e, entre o primeiro e o segundo golpe, ela mar-
ca wn tempo de hesitação.
De volta a seu leito, ela sorri, mas seu rosto imobiliza-se no momento
em que eu deixo a sala.
A l? de dezembro, assim que entro em seu quarto, ela me sorri e come-
ça a saracotear. Em meus braços, ela tem um segundo de hesitação, cm segui-
da coloca um braço em meu ombro, guardando o outro no ar, mas sem virar a
palma da miro.
Sento-a em meu colo, o que ela parece preferir à posição sentada no
chão ao meu lado. Ela me olha um minuto, ansiosamente, os dois braços no
ar, em seguida sorri, ri e se abaixa para apanhar o carro verde; ela dá dois gol-
pes na cadeirinha, encantada com o barulho. Ela percebe os biscoitos, pega
um leva-o a minha boca faz.endo um barulho de sucção, em seguida coloca-o
no chão - sem destrave nem gesto de jogar; ela olha-o um segundo, e com o
carro verde, empurra o outro biscoito para a extremidade da cadeira, fora de
seu alcance. ·
... -· ·' .·:~.

A Primeira Identificação 31

Durante dez minutos, ela brinca de fazer ruído com o carro, batendo-o
na cadeira. Ela olha-me continuamente, rindo, saracoteando e agitando as
pernas. Ao longo deste jogo, ela bate por duas vezes na minha perna com o
carro, rindo, e uma vez, ela bate com a mão na sua cabeça com wn ar grave.
Ela apoia então sua cabeça em mim e mete o carro na minha boca. Er-
gue-se, vê a mamadeira, joga o carro, pega o pintinho e, tentando tocar a ma-
madeira com ele, faz um ruído de •sucção; ela larga o pintinho olhando para
mim, estende a mão na direção da mamadeira, alongando-se em meus braços e
ahrindo a boca. Ela toma a mamadeira toda com um ar sério, olhando para
mim, o corpo bastante descontraído. Isto dura mais ou menos dez minutos,
a quantidade de leite não parecendo satisfazer-lhe.
Senta-se e, até o fim da sessão, salta sobre meu colo, muito excitada,
hatendo alegremente na mesa. Em intervalos regulares, ela se alonga quase
inteiramente em meus braços, olha-me; e eu a beijo. É o que ela quer; mas eu
sinto que são apenas tentativas, que ela nã'o poderia suportar que eu acentuas-
se seu alongamento, nem sua duração.
Recoloco-a em seu leito, radiante.
A 3 de dezembro, ela ri e saracoteia desde minha entrada no comparti-
mento. Seus ouvidos não escorrem mais, ela tem melhor aspecto. Em meus
hraços, ela tem um primeiro movimento de recuo dos seus, mas ela ri.
Durante a primeira parte da sessão, ela faz ruído batendo o carro na
cadeira. Com o carro, ela empurra os biscoitos para afastá-los e se faz beijar,
muito descontraída, mas brevemente.
Em seguida ela torna-se agressiva comigo: bate em minhas mlfos com o
carro, e com a mão bate no meu rosto com uma expressão bastante hostil.
Fia me repele, a menos que queira fazer-se beijar. Depois ela tenta fazer pene-
trar todo o carro em minha boca com uma mímica de sucção.
No fim da sessão, ela toma a mamadeira; não tem nenhuma hesitação
t•m tocá-la, mas nlfo ousa fechar sua mão sobre ela. Ela toma a mamadeira in-
tt·ira, bastante rápido, olhando para mim gravemente. Sua cabeça está apoiada
em mim, mas seu corpo não se descontrai; ela permanece sentada muito tesa.
Ela parece então querer tentar ficar de pé.
Em seu quarto, antes que eu a coloque em seu leito, ela enfia seu dedo
,.,,, minha boca, fazendo um ruído curioso: suspiro de contentamento de de
d,·scontração, mas bastante articulado.
A 4 de dezembro quando eu chego, Nádia está no chão com as outras
n ianças. Ela me sorri, radiante, e inclina-se para mim. Enquanto eu a tomo
r111 meus braços, a enfermeira me diz que ela está surpresa com o ar alegre e o
,,pctite de Nádia.
Enquanto eu a levanto, ela passa sua mão em meu rosto balbuciando; é
l,rcve; ela recoloca seus braços para trás, mas sorrindo.
Não a sento em meu colo como de hábito, mas no chã'o como a encon-
111'i na chegada Olha-me gravemente, sorri e vê os biscoitos sobre a cadeira
1111:ls dela. Chega a virar-se para pegar um biscoito. Com este, ela empurra o
1111tro para que ele caia no ch[o, em seguida diverte-se, por um momento,
32 Nadia ou o Espelho

fazendo ruído batendo o biscoito que ela tem na mão sobre a cadeira, olhan-
do-me, risonha e descontraída. Este olhar parece querer dizer pela primeira
vez: "Estou feliz por fazer ruído, porque estás perto de mim".
De súbito ela inclina-se para mim, muito forte, sorrindo, com ar de
quem espera alguma coisa: eu a coloco então em meu joelho, ela dá um gran-
de suspiro de contentamento. Ela está muito descontraída.
Várias vezes, ela leva o biscoito à minha boca, para em seguida bater
com ele na cabeça, com cuidado (ela está novamente tensa mas não angustia-
da). Ela se acalma inspecionando meus botões e esfregando bem forte sua
mão em minha blusa - sobre o peito-, o que lhe dá ansiedade. Ela troca en-
tão o biscoito pelo carro com o qual ela me bate bastante forte com uma acen-
tuada nuance agressiva; mas não está angustiada.
Neste momento ela escuta uma criança chorar no quarto vizinho. Ela se
endireita, seu corpo enrijece, seu olhar erra muito ansiosamente pela sala, em
seguida, por duas vezes, ela puxa-me para ela pela minha blusa e me repele
violentamente. Ela traz para si a cadeirinha e faz com ela um vai-e-vem que
a acalma; pouco a pouco, ela me sorri, ela quer que eu a faça saltar sobre meu
colo, ri às gargalhadas. Várias vezes, entre os saltos, ela descontraí-se comple-
tamente em meus braços, sorrindo gravemente quando a beijo.
Retoma alegremente seu jogo com a cadeira, percebe a mamadeira, re-
pele a cadeira para tentar agarrá-la. Coloco a mamadeira sobre a cadeira. Ela
me olha, bastante tensa, toca várias vezes na mamadeira e a empurra cada vez
mais forte; ela cessa de repelí-la assim, mas novamente brinca de sacudir a
cadeira até que a mamadeira caia no chão. Então ela estende o corpo, mas não
os braços, na direção da mamadeira, fazendo um ruído de sucção. Dou-lhe a
mamadeira e ele bebe, quase deitada em meus braços, sorrindo-me gravemen-
te; seus pés mexem-se de contentamento; seus dois braços abandonam-se, mas
a mã'o esquerda está fechada bem forte. Depois que terminou, ela tem um mi-
nuto de espera ansiosa; em seguida, muito alegre, ela balbucia de uma maneira
já articulada.
' Eu a devolvo, sorridente e descontraída.
Quando a carrego a 5 de dezembro, ela está muito sorridente e coloca
seus braços em meus ombros.
'
A sessão é quase idêntica a da véspera na sua primeira parte: fazer ruí-
do, balbuciar, um jogo de vai-e-vem com a cadeira, para terminar na mamadei-
ra que Nádia pega e aproxima de minha mão. Ela toma-a, muito descontraí-
da. Assim que ela fica vazia, ela olha-a longamente, depois toma-se agressiva
comigo, bate em minha coxa, o rosto crispado, os olhos hostis, depois me ba-
te uma vez na boca; e sua agressividade cai.
Em seguida, ela inova: olha para mim, coloca suas duas mãos em meu
peito, mãos bastante contraídas, e balbucia "mama-mama". Rindo, ela reto-
ma então seu jogo de vai-e-vem com a cadeira, depois quer, mas eu não a com-
preendo logo, que eu a sente em meu braço, como se carrega um bebê. Eu o
faço: ela sorri, alegre, balbuciando "ma-ma-ma", acaricia meu rosto, olha-me
A Primeira Identificação 33

apaziguada, coloca seus braços em redor de meu pescoço, apoia sua cabeça
fortemente em minha face.
Ela pega o biscoito, pressiona-o contra minha boca, depois contra a sua;
ela não pode decidir-se a comê-lo, olha a mamadeira vazia, fazendo ruído e
mímica de sucção.
Ela não fica contente quando a reconduzo; momento de contração con-
tra mim quando estou a ponto de abrir a porta de seu quarto.
A sessão de 7 de dez.embro começd' mal, porque Nádia me viu uma pri·
meira vez quando vim a seu quarto pegar uma cadeira. Ela sorriu-me, saraco-
teou; falei com ela. Quando eu retorno, eu a encontro dura, com a expressão
que ela tinha tomado ao ver afastar-me; seu rosto não se ilumina e ela não
saracoteia. Quando eu a tomo nos braços, ela joga os seus para trás, palmas re-
viradas.; ela sorri palidamente e retoma logo a sua expressão paralizada.
Eu-a sento no chão perto de mim. D~ante longos minutos, ela não tira
os olhos de mim, com muita ansiedade e, suga seu polegar sem olhar para a
sala, nem para os brinquedos: mamadeira, doces, cadeira.
Eu a tomo então sobre meu colo; nenhuma reação, nem mesmo na ex-
pressão de seu rosto. Ela coloca um dedo em minha boca, enquanto continua
a sugar o polegar de sua outra mão; seu rosto anima-se um pouco por uma mí·
mica de sucção; mas seu olhar permanece tenso.
Ela encosta sua cabeça em mim para que eu a beije, mas seu olhar é in-
finitamente triste, seus braços estão estendidos para frente, punhos fechados.
E entretanto, seu corpo está mais abandonado do que nunca. Ela não pode
suportar que minha afeição se exprima. de outra forma senão pelos beijos,
que se lhe tornam mesmo insuportáveis se eles são mais longos do que ela
quer. Neste caso, ela se endireita, a tensão de seus braços aumenta e ela dobra
ainda mais violentamente para o exterior o braço que está ao lado de meu
corpo.
Neste momento chamam-me ao telefone. Não ouso deixar Nádia sozi-
nha .na sala, e devolvo-a ao leito de seu quarto, onde a deixo assombrada,
perdida. Quando venho buscá-la alguns minutos mais tarde, ela não mudou de
posição, como que estática. Eu a reconduzo muito tensa, e ela faz pipi em
meus braços durante o trajeto de volta. Nà sala de sessões, sentada, olhar ten-
so, ela suga seu polegar, depois pega um pedaço de biscoito que tinha caído
de meu bolso. Ela o mete em minha boca, retira-o, olha para ele, leva-o à sua
boca; então com um ar de desagrado, ela parte o biscoito e joga-o. Algumas
migalhas ficam coladas em sua mão: seu asco torna-se intenso, e sua mão tem
destrave sobre destrave para livrar-se delas ... A sessão acabou. Ela lança um
olhar para a mamadeira, depois olha a porta.
Enquanto eu a devolvo, seus braços crispam-se ao redor de meu pesco-
ço, ela apoia sua cabeça em minha face diante da porta do seu quarto.
A 8 de dezembro, Nádia está menos contraída que na véspera. Ela me
sorri, mas seus braços estão estendidos para trás. Esta sessão será a melhor
desde o início do tratamento, e Nádia vai mostrar nela muita atividade sem
.mgústia.
34 _ Nadía ou o Espelho

Ela quer vir para meu colo. Seu olhar é vivo e alegre. Ela coloca um bis-
coito em meus lábios; eu como um pedaço, o que parece embriagá-la de _feli-
cidade; ela recomeça várias vezes, e no fim da sessão, ela colocará um biscoi-
to em minha boca, para em seguida lambê-lo mas sem comê-lo; é notável que o
gesto pelo qual ela leva este biscoito à sua boca nã"o seja hesitante e seja livre
de ansiedade.
Ao longo desta sessão, ela tenta se arrastar para alcançar o que quer.
Ela gira sobre ela mesma, levanta-se sobre um joelho e avança assim por sola-
vancos por uma distância de quase um metro, até a mamadeira. Ela pega a ma-
madeira, levanta-a e vira-se para mim, mas não consegue me alcançar carre-
gando-a. Eu a ajudo e coloco-a em meu colo, a mamadeira no chão a seu al-
cance. Ela inclina-se e agarra-a.
Ela bebe alguns goles, deitada em meus braços, o corpo muito descon-
traído, inclusive os braços e as mãos. Ela repele com a língua o bico da mama-
deira, retoma a mamadeira várias vezes seguidas sem beber.
Em seguida permanece alguns minutos deitada em meus braços, sorrin-
do-me e balbuciando com um ar feliz. Depois ela vai fazer ruído com um brin-
quedo. Durante todo o tempo desta sessão, onde ela esteve ativa e indepen-
dente em relação a mim, permaneceu grudada em meu olhar. Eu sinto-a di-
nâmica. Eu a reconduzo agarrada a meu pescoço com os dois braços.

Se eu introduzo a mamadeira na sessão de 13 de novembro, após Nádia


a ter, na véspera, ela mesmo reclamado fora da sessão, não é certamente, mi-
nha intenção fornecer-lhe um objeto de consumação e de satisfação.
Existem dois aspectos desta mamadeira. De um lado, a dimensão de
objeto de satisfação de necessidade para a subsistência: é a função de preen-
chimento que Nádia conhece cada dia e que faz parte da ordem institucional
na qual ela viveu até agora. De outro lado, a mamadeira é o objeto da deman-
da de Nádia. É propriamente esta demanda que ela interroga e que está em
causa em sua análise e na transferência, visto que é aí, sem que eu tivesse disso
uma clara consciência na época - mas eu tinha a intenção mais profunda -,
que pode entrar em jogo aquilo que é com efeito o motor da transferência: a
irredutível repetição desta demanda. É este segundo aspecto, o da demanda
da mamadeira, que torna-se para Nádia uma abertura; pois o que poderíamos
dizer da outra dimensão, a do Real, por pouco que ela seja isolável? Marie
Françoise nos mostrará o impossível de seu paredão.
A demanda, ao contrário, implica ao mesmo tempo a significância e a
repetição. Esta demanda, a quem ela a dirige senão a um Outro que não res-
ponde porque ele· não fala de fato? Para Nádia e em seu olhar, este Outro está
sempre fantasiado de um outro; não lhe falta nada, ela não tem desejo - foi o
que ela procurou dissociar a 27 de outubro. Ao significante implicado em sua
A Primeira Identificação 35

demanda não respondia o significante do Outro; o que respondia era o leite da


mamadeira que llie era administrado e que ela bebia. O significante do Outro,
cm última análise, era o leite; este leite era o Outro. Não existia por conse-
guinte nenhuma diferença entre Nádia e o Outro quando ela bebia este leite.
Deve-se dizer que para ela não existia Outro? Seguramente que não.
Restava aquele à demanda do qual ela devia responder bebendo o leite, ou
deixando-se manipular nos cuidados cotidianos. Somente a sua sensibilidade
ao ver o pequeno semelliante alimentado e cuidado pelo Outro desencadeava
nela como vimos, a invidia, testen~unhando seu próprio desejo que se inscre-
via no intervalo entre ela e este semelhante. O Outro aqui era apenas o agente
da completude deste pequeno outro; e inversamente, aos olhos de Nádia, es-
te pequeno outro imajava (*)o objeto da completude do Outro.
Onde pode ela estar, nestas condições, sozinha com sua demanda, quan-
do a resposta do Outro se confunde com o leite que ela bebe? Quer ela estar
neste lugar o pequeno outro que preenche o Outro? Vimos seguramente que
não; é mesmo o que ela mais teme, a julgar pela maneira pela qual ela toma a
mamadeira, a 13 de novembro, gulosamente, como se enchesse um buraco, o
corpo teso e rígido, sem um olhar para mim. Fora de cogitação ser o objeto
metafórico global respondendo a uma demanda suposta do Outro que seria
separado dela. O Outro não fala, não tem existência separada: ela o bebe com
o leite.
Trata-se então desta identificação primária que Freud diz no Eu e o Isso
estar em relação com a fase oral primitiva do indivíduo, ''via direta e imedia-
ta", anterior a qualquer investimento de objeto? Isto não é de modo algum
sustentável aqui, já que a dialética da demanda implica o significante e a repe-
tição.-De fato,. o que Nádia repete, o que ela é levada a repetir quando ela
bebe o leite, é a denegação da minha presença enquanto Outro. Se ela recusa
ser o objeto metafórico que preenche o Outro, ela faz do leite o objeto meta-
fórico que me representa. Eu não estou mais aí por sua ação, em resultado do
que ela repete, e estou aí entretanto. Ela está presa na armadilha de seu pas-
sado que fez com que, para defender-se, ela precisou inscrever o Outro no lei-
te que ela bebe e envolvê-lo. Mas minha presença denuncia a singificação me-
tafórica deste leite, e revela a falta radical do Outro, de um Outro ao qual fal-
ta a palavra. Está aí por Nádia a dor da falta de escutar e o lugar de chamada
desta dor, a otite com que ela paga o preço de ter tomado a mamadeira. Esta
dor física e também o que ela conhece deste muito tempo por suas múltiplas
otites e pela dupla antrotomia que sofreu aos 5 meses.
Sabe-se a freqüência extrema de otite nas creches; a noção epidemioló-
gica evocada em pediatria encontra aqui seu questionamento e revela sua insu-
ficiência, por elisão do elemento relacional: o Outro incluído no objeto pelo
pequeno sujeito, por não ser um referencial exterior pela palavra.

( *) Cf. nota 3, Seminário 1 e nota 14, Seminário 11, (de Jac.ques Lacan), Versão bra·
sileira, Zahar, RJ, 1979 (n. da T.)
36 Nadia ou o Espelho

É o que Lacan exprime pela coalescência, a holófrase, do S 1 e do S2 ,


respectivamente o significante que representa o sujeito e o significante pri-
mordial do Outro, como condição de toda reação psico-somática.
Nas sessões seguintes, Nádia vai tentar articular a mamadeira, que ela
tomará por várias veus, com meu corpo, com o Outro que eu sou. Eis porque
ela não fará mais otite: dirigindo-se a meu corpo, ela vai dissociar da mama-
deira que ela toma, esta outra ordem de objeto do qual eu sou portadora,
colocando-me desta forma verdadeiramente como Outro: portadora de obje-
tos significantes.
Cada nova demanda que ela vai esboçar ou dirigir-me vai colocar em evi-
dência a diferença entre o objeto e o Outro. Ela retoma à mamadeira, somen-
te após ter-se dirigido a objetos dos quais eu sou portadora, como por exem-
plo, a 28 de novembro, quando ela puxa meu nariz e meus óculos; e remexe
num botão de minha blusa, o que a regozija. Ela ajuda-se assim substituindo o
seio, ou o que toma seu lugar, à mamadeira.
O Outro não se instaura como separado sem que Nádia procure preen-
chê-lo, preencher minha boca, com um biscoito ou com o carro. Esta imagem
do Outro que ela quer preencher, é também a sua: testemunham isso os ruí-
dos de sucção que ela faz quando leva algum objeto até minha boca. Preen-
cher-me para preencher-se, eis aí um transitivismo cm ação que funda a forma
mais arcaica de identificação, na qual não se trata somente de consumir o ob-
jeto para ser preenchido, mas também de que o Outro não sofra e nada perca
aí: recusa de que o Outro seja barrado.
Nádia o exprime por uma outra via em sua aflição diante da mamadeira
vazia que representa o furo que ela poderia ter feito em mim; ou ainda por
um outro efeito do transitivismo, como se ela me reprovasse ter eu mesma es-
vaziado esta mamadeira, de tê-la tomado sem nada deixar para ela; por isso
ela me bate na boca. Em suma, esta separação que aparece entre ela e o Outro,
é o que ela recusa. Tomar a mamadeira, é recusar num mesmo lance que ela
esteja vazia e reprovar-me por isso; às vezes ainda, é um biscoito que ela pres-
siona contra minha boca, depois contra a sua; ou um dedo que ela mete em
minha boca, enquanto suga seu polegar.
Mas não tem jeito. De sessão em sessão, desde 13 de novembro, a dife-
rença entre ela e o Outro que eu sou se lhe impõe. Pode-se mesmo diur que
ela impõe-se por uma certa reviravolta de seu desejo de que nada me falte: tor-
no-me em conseqüência a portadora do objeto de seu desejo.
Primeiramente, são os botões de minha blusa: a 4 de dezembro, ela es-
frega sua mão em meu peito, não sem ansiedade; enfün, a 5 de dezembro,
sempre contra meu peito, ela contraí suas mãos em minha blusa. Então, jor-
rou de sua boca o significante "mama", que sela a diferença entre ela e eu. O
que não quer dizer que ela não recolocará em pauta esta diferença. Ela sabe
entretanto que o aparecimento deste "mama" institui uma coisa completa-
mente nova em sua relação comigo, e ela o demonstra na sua alegria em vir
para meus braços para olhar meu rosto, colocar seus braços em volta de meu
pescoço e sua cabeça em minha face, repetindo seu "mama".
A Primeira Identificação 37

Sua motricidade depois que ela tomou a mamadeira, a 12 de novembro,


tomou um in:ipulso considerável. Neste dia ela se deixou ver por mim em sua
atividade motora e regozijou-se com isso. Não é o caso a 13 de novembro, vis-
to que, mostrando em seus ensaios motores mais audácia, procurando mesmo
ficar de pé, ela afasta-me recusando minha ajuda; talvez a presença da mama-
deira na qual eu estou incluída, como vimos, enquanto Outro, funda este mo-
vimento de recusa para comigo, durante um primeiro tempo.
Acontece de forma diferente nas sessões onde ela não toma a mamadei-
ra; sua atividade é então ligada à minha presença, seja que ela me peça que eu
a faça saltar sobre meu colo, seja que ela tente arrastar-se em minha direção.
Uma ligação se estabelece entre minha presença e a atividade motora por várias
vezes, quando ela faz um jogo de vai~-vem com a cadeira, da qual me ausentei; é
inclusive sacundindo-a que ela derruba uma vez a mamadeira, antes de pedir
para tomá-la, deitada em meus braços.
Enfim, a 8 de dezembro, a qualidade da sessão que eu assinalei, provém
também da grande atividade motora; em particular Nádia chega a estabelecer
uma ligaçlro entre a mamadeira que ela vai buscar deslocando-se sobre um joe-
lho e minha presença; ela permanece todo o tempo presa a meu olhar.
A mesma atividade aparece, a partir de 30 de novembro, no "fazer-se
ouvir". Nádia de início mostrava-se inquieta e assustada com cada ruído vindo
de fora da sala de sessão. Logo depois de ter tomado alguns goles da mamadei-
ra, passou do medo passivo do escutado ao "fazer-se ouvir" ativo, batendo o
carrinho na minha cadeira, dando gritinhos de alegria e olhando-me com fre-
qüência. Visivelmente, o ruído que ela fazia dirigia-se a mim, como testemu-
nham seus freqüentes olhares. A nuance agressiva não estava ausente: era so-
bre minha cadeira que ela batia, mesmo se ela me batia aí onde eu nã'o estava.
Um tal comportamento inclui nele mesmo uma possibilidade de retor-
no: é o que ela explora golpeando na cabeça com o carrinho. Trata-se de uma
exploração a fim de "ouvir a si mesma" - como um terceiro tempo de pul-
são auditiva -, e não de uma conduta auto-punitiva, masoquista, pois ela nã'o
visa provocar uma dor. "Fazer-se ouvir" e "ouvir-se" comportam um ele-
mento ativo que exclui o medo, o temor, a espera ligados ao "escutado".
O "escutado", tem uma relação certa com minha presença-ausência: é
completamente claro a 4 de dezembro, quando, ouvindo chorar uma criança,
ela me agarra por minha blusa para puxar-me para ela e repelir-me alternada-
mente com violência e reproduzir o mesmo jogo com minha cadeira. O "escu-
tado" participa também da espera da sessão; é a espera do "escutar" meus
passos e minha voz no corredor quando eu a venho buscar.
. . O "fazer-se ouvir" ~~ma assi1!! todo o seu valor pulsional de passagem à
atividade, em relação ao escutado passivo, t ao impulso paralelo da ativida-
de muscular de Nádia. O "fazer-se ouvir", por natureza, dirige-se ao Outro
que e~ sou. O carro que é disso o instrumento serve também a Nádia para me
agredu batendo-me ou obturando-me a boca, aliás sem me olhar· o carro liga
assim várias pulsões. '
38 Nadia ou o Espelho

Enfim a pulsão escópica, neste período, vai ainda demonstrar, muito


particularmente, sua primazia. Após as sessões de 9 a 13 de novembro, onde o
circuito pulsional escópico pôde se completar, a introduçao da mamadeira
recoloca em questão o lugar do objeto.
Com efeito, quando Nádia toma, a 13 de novembro, a mamadeira, é
sem me olhar; vimos que, a mamadeira, neste momento, inclui o Outro e o
outro, como no quadro da invidia. Se Nádia pode em seguida me olhar e pro-
curar o contacto com meu corpo, é porque ela não está mais tomando mama-
deira. Mas este olhar sobre mim a deixa inquieta, e a 16 de novembro, por
exemplo, sentada em meu colo, ela olha tudo em volta, mesmo atrás dela, so-
mente retomando a meu rosto por intervalos, como quando de início, sentada
sobre seu travesseiro, seu olhar errava; só existia então de vivo nela este olhar.
De outra vez, foi como se ela devesse desviar-se da mamadeira para sugar o
pintinho; então ela pode olhar-me. Ou ainda, o bico da mamadeira na boca,
ela o repele com sua língua, olhando-me ansiosmncnte. É que, para ela, minha
presença e a da mamadeira estão ligadas numa relaç3o de cxclus,To.
Mas Nádia não pára aí: passando progressivamente da mamadeira aos
objetos dos quais sou portadora, ela liga a mainadl'ira ,\ minha presença e a
toma olhando para mim. Então, de uma rclaçao de cxdus:lli, l'la passa, por
este olhar sobre mim, a uma relação de indus,Io: a 111a111,11ll'i1a que me excluía
incluindo-me, eu a incluo.
Esta inclusão n[o acontece sem que ela ãs ve,.cs cncontn• obstáculo que
poderiam fazer com que eu adviesse ao exterior de Nádia e que cessasse o tran-
sitivismo entre ela e mim;isto a torna agressiva, quite a lúer como se a inclu-
são do objeto em mim tivesse duplo sentido: ela bate-me na hoca após ter
olhado longamente a mamadeira vazia que ela tomou, como se fosst• cu que a
tivesse bebido, como seu eu não estivesse mais incluída na mamadeira pelo
seu olhar, mas a mamadeira incluída em mim.
Tudo, nesse período, vai em direção de um único alvo: reencontrar uma
imagem, a de sua fantasia fundamental, unidade do A e do "a", musa de seu
desejo. Será a fascinação de 10 de dezembro.
Antes de chegar aí, não podemos deixar de apontar ao mL'l10s dois ele·
mentas que, pelo seu caráter de antecipação, dão uma preciosa índkaçao da
abertura que eles representam para Nádia: precessão da via que ela vai encon-
trar, e que será, como vai se ver, resolutiva para esta fascinação. J:i se conhece
o primeiro ponto: é o surgimento do "mama, mama" quando suas mãos
contraem-se sobre meu peito e que ela olha-me em seguida, para desta vez
manifestar-me ternura com gestos novos. O segundo ponto é também uma
brecha aberta no transitivismo: a 7 de dezembro ela mantém 11111 pedaço de
biscoito em minha boca, tira-o, olha-o, coloca-o na sua, mas sú experimenta
asco a ponto de ela ter destrave sobre destrave para derrubar as rnif(alhas cola-
das em sua mão. Ela não deixa de saber que seu asco implica uma diferença
entre ela e mim visto que, após um olhar sobre a mamadeira. ela olha a
porta, para dar fim à sessão, para fugir a esta triste realidade de que existem
duas bocas, a sua e a minha, e de que nós somos duas. Ora, ela tem necessida·
A Primeira Identificação 39

de de que não sejamos separadas para reencontrar em seu olhar sua fantasia
hmdamental, uma imagem totalizante do adulto e da criança, que vai fasci-
ná-la a 1Ode dezembro, antes que ela a recalque.
Tal era a exigência de seu trajeto analítico no quadro da transferência,
combinando dois movimentos, como em toda análise: de um lado, na relação
ao Outro, a instituição sobre o corpo do Outro do objeto de desejo, isto é da
dimensão significante que implica uma perda; de outro lado, a manutenção do
1ransitivismo, isto é, a inclusão por acolamento escópico do grande Outro ne-
la: uma manutenção que se depura até o ponto nodal de sua fantasia funda-
mental no campo escópico.
CAPÍTULO V
-A FANTASIA FUNDAMENTAL
O recalque originário

10 de dezembro

OO Quando chego, a 10 de dezembro, encontro Nádia sentada em seu leito,


completamente fascinada pelo espetáculo de uma enfermeira com uma outra
criança saltando sobre seu colo.
Esta fascinação é acompanhada de ruidosos movimentos de sucção. O
corpo está estático e rígido, na atitude que Nádia tinha no início do tratti-
mento. Entretanto, não é somente o seu olhar que está vivo como no início:
fato novo, sua boca está muito ativa.
Sento-me atrás dela e chamo-a várias vezes pelo nome antes que ela se
volte. Ela sorri brevemente, mas quando estendo-lhe os braços, ela se joga vio-
lentamente para trás, os braços no ar e os punhos bem fechados.
Ela está tão angustiada que nã'o posso levá-la à sessão.
Permaneço entretanto um certo tempo junto dela. Ela me faz brincar
com seus pés e ri um pouco; mas a angústia logo assoma. Ela tenta por duas
vezes sentar-se, mas renuncia como se tivesse medo de estar próxima demais
de mim. Ela mexe em meu anel e, por um momento, bate na minha mão com
um rosto contraído, balbuciando uma vez "ma-ma-ma"; ela faz, de vez em
quando, uma mímica de sucção.
Deixo-a. Quando estou na porta de seu quarto, ela senta-se e volta para
mim um rosto parado, com um olhar tenso.

o
Esta cena de uma intensidade excepcional, é a realização lógica e aluci-
natória do desejo de Nádia.
Lógica, após o debate do período precedente, onde vimos os dois movi-
mentos que animavam Nádia: de um lado, sua relação transitivista ao Outro
que eu sou; de outro lado, sua relação ao Outro como portador do significan-
te, por antecipação.
Na cena de 10 de dezembro, são estas duas estruturas do Outro, entre as
quais Nádia oscilou desde o início do tratamento, que estão em causa sucessi-
vamente.
A Fantasia Fundamental 41

1 - Em um primeiro tempo, como hoje, em sua vida institucional, Ná-


dia só conheceu e conhece a imagem do Outro e do outro acopladas: A + a.
:É o que ela sempre vê, é o que a olha, quando, na hora das mamadeiras, ela
deve esperar a vez para ter a sua. Esta imagem é tão indissociável em seus dois
elementos; e é a ela que Nádia retoma na cena de fascinaçã'o, que esclarece do
que se trata: uma relação puramente escópica, uma imagem onde ela se encon-
tra incluída. ·
2 - O início da análise teve como efeito quase imediato a dissociação
desta totalidade A +.a, e acarreta a degringolada e a aflição de Nádia.
Eu apareço como Outro separado, prematuramente; eu me dissocio e
nasço do pequeno outro . No mesmo movimento, o pequeno outro toma-se
aquele que priva Nádia do Outro. Ela fica desesperada e encontra a invidia. O
outro, quando satisfaz-se de uma maneira qualquer perto do Outro, toma de
Nádia seu objeto, isto é, o que faz parte do corpo dela.
3 - Ela se inclina em um movimento que gera no mesmo tempo sua de-
manda ao Outro e a interrogação do desejo deste A pelo outro. É a cena de 27
de outubro, na qual eu retirei minha mão do leito vizinho. Eu provei sob seus
olhos que posso separar-me do pequeno outro , ou de meu o~jeto ;9.ue eu posso
ter um furo. Ela confirmou pegando meu lápis, querendo separar um de meus
dedos, explorando cada vez mais minha boca.
Mas neste comecinho, ela nã'o está ainda suficientemente separada de
mim, ao ponto de, pelo transitivismo, minha perda não ser também a sua, a
menos que ela recuse vomitando, o que preenche o furo de minha boca.
A verdadeira separaçã'o de A e de "a" parece e'\tidente quando Nádia
pode interessar-se por uma outra criança, tocá-la e acariciá-la, a 10 de de-
zembro, assegurando contudo sua ligação com meu corpo fazendo-se saltar
sob meu colo: ao mesmo tempo aliás em que ela se assegura de que não me in-
teresso pelo pequeno outro , mais sim por ela ..
Então, ela pode por si mesma reencontrar sua busca de objeto : ela pede
a mamadeira, a 12 de novembro. Ela o faz entretanto fora da sessão;no lugar
onde esta mamadeira não é senão um objeto divisível ao infmito, ainda nã'o
ligada especificamente ao grande Outro, lá onde este grande Outro é ele mes-
mo inconsistente em sua multiplicidade.
4 - Sobrevém, entre 13 de novembro e 8 de dezembro, todo o debate
quanto ao lugar do objeto em relação ao grande Outro, com os dois aspectos
deste. Se, com efeito, Nádia indica em alguns momentos que o Outro é porta-
dor do objeto de desejo até atingir por antecipação sua primeira enunciação
de "mama" a 5 de dezembro, ela permanece muito mais agarrada, no conjun-
to, à imagem primordial, ou ã forma primitiva do Outro, à qual ela está ligada
pelo transitivismo. É este último que funda a irrupçã'o lógica da imagem de 10
de dezembro. Ela está fascinada e "o olhar fascinado, é o próprio sujeito"
(Lacan).
O outro nã'o tem mais para Nádia nesta fascinação nenhum ser em outro
lugar senão em seu olho: seu olho, como ponto privilegiado de seu envoltório
42 Nadia ou o Espelho

sobre o qual o Outro está colado. O sujeito, isto é, toda a superfície de sua pe-
le, se resume nesse ponto privilegiado.
Nesta forma primeira do Outro, não se trata ainda de uma perda: o su-
jeito produz seu próprio objeto em seu olho, colado a seu olho, sem mais
necessidade de um Outro real; este Outro real seria com efeito separado e foi
o que Nádia recusou agressivamente várias vezes ao longo do período prece-
dente. Na imagem que a fascina, eu estou realmente ausente, nâ'o sem que eu
aí esteja incluída na medida em que eu fui para Nádia, ao longo de todo o tra-
tamento até agora, a causa de uma exacerbação da questão do Outro. É na
transferência, pois, que ela me coloca neste lugar de objeto incluso;inclusão
de superfície - poderíamos dizer de envoltório, se a metáfora nã'o corresse o
risco de sugerir a noção de wn saco de três dimensões, quando se trata, como
veremos, de uma pura estrutura de superfície.
O Outro está incluído na superfície do sujeito; tal é a primeira fonna de
identificação pelo qual o sujeito começa a constituir-se enquanto tal, uma for-
ma que não podemos deixar de dizer de incorporação, com a condição de su-
blinharmos o modo lógico, isto é, topológico de superfície.
Os movimentos de sucção durante a cena estão aí para dizer do sucesso
de Nádia quanto à realização alucinatória - e que só pode ser alucinatória -
de seu desejo primordial. Os movimentos de sucção colam tanto o Outro so-
bre a superfície do corpo, quanto o olhar cola a imagem no olho. Eles partici-
pam a um outro nível pulsional de satisfação (que não é da fascinação), sem
que seja necessário para tanto implicar mais precisamente a presença de um
objeto, visto que supor um objeto seria supôr separado (foi o que Nádia en-
controu sob a forma da mamadeira a 13 de novembro) e que esta separação
estaria em contradição lógica com a relação por acolamento de que se trata.
Na realidade, o pequeno outro, sobre o colo da mulher faz parte de seu corpo:
ele é seu seio.
Em resumo, a fantasia fundamental que Nádia reencontra aí, é aquela
do próprio sujeito enquanto envoltório do Outro e de todos os objetos por
acolamen to com ausência completa de separação. Ela só pôde atingir este ·
ponto de regressão última pela transferência.
O que acontece quando a chamo várias vezes pelo seu nome, "Nádia"?
Ela não pode evidentemente renunciar de imediato ao que a fascina, mas ela
não está entretanto captada ao ponto de não ser sensível à escuta de seu no-
me, de não se virar enfim e sorrir-me brevemente; isto quer dizer que ela me
reconhece. Por mais breve que seja, este sorriso é o sinal da brecha feita pelo
meu chamado. Nádia é sensível à minha presença e esta presença é introduzi-
da pelo significante de meu chamado. A sensibilidade que ela demonstra aí é
sinal de que ela não está irremediavelmente fechada no que a fascina, mesmo
se lhe custa renunciar à cena. Este sorriso endereçado a mim mostra que Ná-
dia não é psicótica.
Da satisfação alucinatória de seu desejo à minha presença de Outro, ela
deu um salto pelo meu chamado nominal. É demais no entanto quando lhe es-
..
.. ,. P:· ,
Á::;.f: ·'-- ·' · ···A ·Fantasia Fundamental 43

tendo os braços para levá-la à sessão, e eu não poderia aliás levá-la: diante de
minha cartada, ela se joga violentamente para trás em seu leito, os braços no
ar e os punhos fechados.
O sentido do salto que ela acaba de fazer aparece: do Outro acolado a
ela ã irrupçlro do Outro real separado. A identificação que colava o Outro
sobre ela muda de sentido; e numa reviravolta, passa a identificaçã'o por aco-
plagem dela sobre o Outro. É o que ela encontra num lampejo, e contra o que
ela vai debater-se: o que faria dela o objeto real que preenche o Outro. A in-
clusão do Outro tinha na transferência uma intensidade tal que a exclusão·que
a segue dá a minha nomeaçlfo o peso de uma demanda, a minha, ã qual ela de-
veria responder realmente.
É esta reviravolta que Nádia vai enfrentar, tanto no fim da sessão quan-
to depois, na análise.
Ela tenta primeiro estender-me um pedaço de seu corpo, o pé, no lugar
do corpo todo, numa iniciativa metonímica. Se ela ri um pouco, é que existe
aí uma conquista, contrariamente ã tentação metafórica que provoca a angús-
tia e a recusa de vir para meus braços ou de sentar-se em seu leito, de medo de
estar próxima demais de mim, isto é no caminho de preencher-me. Depois, no
fun, ela opera uma reviravolta: ela passa de seu corpo ao meu; ela não me es-
tende mais um pedaço de seu corpo, ela mexe em meu anel, isto é, um objeto
chapeado em meu corpo e separável, mas ela bate em minha mão que não é
separável. Nesta virada, ela descobre, sobre meu corpo e sobre o seu, o objeto
metonímico, e ela termina a sessão com um significante "ma-ma-ma", como
um eco ã minha nomeação. Do perigo do real do corpo, ela passou à via
significante, mais ainda ã conexão significante, isto é, à metonímia.
Esta via metonímica, ela a conhece, como mostrou a 5 de dezembro,
quando, as mãos contraídas sobre meu peito, ela lançou seu chamado "mama";
como ela o lança hoje pela via nova de seu desejo. Entre minha nomeação e
seu "mama", a metonímia tomou lugar, mas será preciso um longo desvio na
metáfora - nós o veremos - antes que ela constitua aí seu desejo; quando do
primeiro espelho.
O que é essencial nesta sessão, é o surgimento em Nádia da condição
para que haja metáfora e metonímia.
Esta condição é a mutaçlro do Real, sua promoção a significante ao ní-
vel da imagem: de fascinante que era, ela toma-se significante no mesmo mo-
vimento de recalque que sofreu por minha nomeação. É bem a significância
que funda as estruturas metafóricas e· metonímicas: ela é por elas tecida.
Nesta sessão, a precesslfo em Nádia, da metonímia sobre a metáfora se
atém ã resistência ao retorno do recaldo, retorno (o da imagem significante
que ela acaba de recalcar) do qual a metáfora se acompanharia, enquanto
que a metonímia de seu chamado "mama", se esta em conexão com a imagem
recalcada, não a revela.
Para esclarecer ainda o que é desta imagem e de sua função, precisamos
retomar os efeitos de estrutura da intervenção em que chamo-a pelo seu no-
me, três vezes seguidas antes que ela se volte.
44 Nadia ou o Espelho

Eu tiro-a da fascinação, afetando-a com seu nome: com um significante.


Precisamente neste ponto, ela afasta de si a imagem e não a reencontrará ja-
mais. Minha nomeação tem valor de "intimação que o Outro faz ao sujeito
pelo seu discurso", segundo a fórmula de Lacan; e de uma intimação que im-
plica para Nadia, numa perda que destrói a certeza da imagem; como se eu lhe
dissesse que o Outro nã'o está aí - onde ela quer vé-lo, nesta imagem, mas lá
de onde eu falo; e, por aí, eu digo-lhe meu desejo. Eu não sou nem por isso o
agente da perda. O agente, é o significante de seu nome, por minha voz; e eu
sou, do meu lugar de analista, apenas a testemunha da perda. Quando eu lan-
ço o significante "Nádia", eu dirijo-me a ela enquanto sujeito, e reconheço-a
como tal ao nível do significante que a representa. Eu faço desaparecer a ima-
gem, anulo-a e faço com que ela a recalque.
É neste momento, se já nã'o foi antes, que a imagem é promovida à ca-
tegoria de significante. Mas era realmente uma imagem, o que, como diz Freud
a propósito do material do sonho, já era de fato um significante? Ou era qual-
quer coisa antes de toda signiicância, e que só toma-se significante uma vez re-
calcado? É o Real então, que sofre a mutação em significante? Que significan-
te?
É bem evidente que Nádia não podia esperar nenhum reconhecimento
desta imagem que ela produzia quase de forma alucinatória; mas, mais ainda
que, pela minha ausência necessária à sua produção, eu não podia aí reconhe-
cê-la.
Esta imagem, tomando função de significante da mulher e da criança
a partir de um Real anulado não está submetida, entretanto, a uma ligação
com um outro significante. É o que a coloca no lugar do não-reconhecido, do
"impossível de reconhecer" que Lacan propõe referenciar como recalque pri-
mário: "O recalcado primordial é um significante. 1 "
Pode-se fazer a aproximação de um tal significante, com aqueles que
Fredu diz suportar a hiância umbilical do sonho: são significantes não ligados,
inacessíveis ao processo secundário: além do princípio de prazer. Este além
é articulável na própria noção de recalque originário 2 : "Os traços (mnênicos)
recalcados das experiências vividas dos tempos originários não estão presentes
para o sujeito no estado ligado, e, são de fato, de uma certa maneira, inaptos ao
processo secundário. É também a esta ausência de ligação que elas devem sua
capacidade de formar uma fantasia de desejo".

1 - J. Lacan, Les quatre concepts fondamentaux dela J>~lchanl!lyse,~p. cit.,,~minário


de 13 de maio de 1964 e de 17 de junho de 1964: ... a necessidade log1ca deste
momento onde o sujeito com X so se constitui ~lo Urye~drângung., pe~ queda
necessária desse significante primeiro". Na versao brastleua, op. c1t., pag. 237.
2 - Nós nos referimos neste comentário, em vários pontos, à comunicação de Alai~
Didier - Weill no Congresso sobre a transmissão da psicanálise (Paris, julho de
1978), do qual ele nos comunicou amigavelmente o texto. Nós tomamos em parti-
cular em seu texto, a fórmula de Lacan sobre o recalQue originário, e a citação de
Freud, tirada de uma tradução inédita de Além do Princípio do Pra1.er.
A Fantasia Fundamental 45

É neste sentido que A. Didier-Weill vê numa ordem, como meu chama-


do nominal a Nádia, o surgimento de um "super-eu arcaico" cujo efeito cor-
responderia aqui a um "tu és Nádia, tu és somente Nádia e tu nã'o és a imagem
que te fascina e que me incluiria fazendo a soma de A+ a".
Meu chamado introduz então pela minha voz a castração que Nádia evi-
tava pela imagem, e ao mesmo tempo o recalque desta. Nádia deve recalcá.fa
porque eu me presentifico na ausência onde ela me mantinha durante sua fas-
cinação. Ela não é mais o "olhador", mas toma-se olhada por mim; não mais
fascinada pela imagem, mas olhada pelo que me impõe a ela no Real, o signi-
ficante Nadia.
Trata-se aí uma charneira na relação do sujeito ao Outro, articulação
que pode realizar em todo sujeito um "momento fecundo", da entrada na psi-
cose, por pouco que o sujeito fique fascinado por uma imagem que faça com
que para ele nã'o exista o Outro. O Outro permanece aí no estado de signifi-
cante não ligado; ele nlro advém ao ponto em que deve ser o lugar de todos os
outros significantes, afetaclo enquanto tal de uma dimensão real de ser, a úni-
ca que pode fundar a significância. Esta dimensão só funda a significância em
função do recalque de um significante primordial originário que inaugura o
inconsciente e faz este último participar ao mesmo tempo da significância,
por todos os recalques ulteriores, e da dimensão do Real do Outro em seu
corpo.
Veremos com Marie-Françoise a ilustração de uma tal fixação ao nível
escópico e suas conseqüências; Nádia, esta, a 10 de dezembro, volta-se a meu
mamado e sorri.

Embora ela se mirasse com prazer nesta totalidade da imagem, perspec-


tiva da qual eu a privo, ela se recusa ser para o Outro apenas um objeto mani-
pulável, à disposição no Real, o que ela sempre foi nas instituições, excluindo
toda representação significante.
~ o lugar dos pequenos sujeitos em instituições e que só conhecem esta
via: nenhum Outro vem aí responder de maneira permanente com um signifi-
cante que os representaria. Felizmente qualquer coisa que se faça, isso ~ ape-
sar de tudo,fala, mesmo nas instituições, e o pequeno sujeito tem aí sempre
relação com o significante, nem que seja apenas seu nome que ele não pode
deixar de ouvir de numerosas bocas, bocas onde seria preciso talvez buscar
como Nádia o fez várias vezes, o sentido desta nomeação. Vá procurar onde o
:unor, apenas esboçado, remeteu Nádia ao gôzo de um real que era apenas um

Grifo nosso para marcar a tradução convencional do ça, tradução francesa do ID.
(N. da T.)
46 Nadia ou o Espelho

sigrúficante latente, e que só se torna ~igruficante na transferéncia, no mo-


mento em que a imagem cai por terra. ( 1 )
Este significante que ela profere tem wna função essencial, fundadora
da passagem que ela faz agora e que vai ser a fonte de seu debate até o espe-
lho. Ele é, de fato, o sinal de que ela passou, em um instante, do medo de
ser retomada pelo Outro em uma relação que ela sempre conheceu na institui-
ção hospitalar e que a teria inevitavelmente levado a de novo promover sua
imagem protetora, à sua demanda ao Outro no campo do sigruficante, adven-
to mesmo do sujeito.
Este significante tem uma outra implicação que não aparece de imedia-
to, e que tem a ver com um além. Seria suficiente, de fato, que o "mama" vies-
se acalar o desejo que eu tivesse tido de colado à sigruficação que aí surgia,
para que o "mama" viesse acalar a algum desejo que eu tivesse tido de colar à
sigrúficaçã"o que aí surgia, para falhar o corte do sigruficante, e reduzir a análi-
se à maternagem, devolvendo Nádia à sua imagem totalizante, e mesmo à psi-
cose. Ela mesmo aliás disse isso, wn pouco antes, quando recusou tão viva-
mente vir para meus braços: ela mostrou que não era de mim que se tratava,
sob a forma de qualquer substituto maternal, mas sim de mais além. Dito de
outra maneira, além da significação de "mama", existe uma função significan-
te irredutível. Não podemos nos impedir de pensar na funçlfo do significante
"trimetilamina" que desfaz o nó da culpabilidade de Freud no sonho da inje-
ção de Irma, depois que ele viu a imagem insustentável desta garganta infecta-
da. O bebê que Nádia era não tinha outro sigruficante a sua disposição a não
ser "mama", que poderia ter sido logro se eu o tivesse ~ntendido ao pé da letra.
Poderia ter sido também o significante "papa", aquele que todas as
crianças do mundo dizem primeiro e diante de quem? Diante de sua mãe.
Assim como Nádia, mas eles o dizem claramente; eles dizem que seu chamado
se dirige para além da mãe, além de seu corpo real, do qual o significante em
questão os liberta, assim como o "mama" inaugurou a libertação de Nádia.
Além da demanda que passa pelo significante, instaura-se na insatisfa-
ção, o desejo do que caiu para Nádia a 10 de dezembro e que sempre perma·
necerá recalcado: a imagem da mulher e da criança, A + a. Ao mesmo tempo

J. Lacan Les q uatre ooncepts fondamentaux de la psychanalyse, op. cit., Seminário


de 12 d; fevereiro de 1964, pág. 57 :"Estes pontos radicais no real que eu chamo de
"encontros", que nos fazem conceber a realidade como ª. suportar, como souf
franoc: • que aí está, que espera, e o "Zwq", o constrangimento, qu~ Fre~d de·
fine par "Wiederholung", comanda ~s _voltas pro.pensas do processo pr1m~10. Ele
não e outra coisa senão o que eu defm1 para voces sob a forma do ~consc1ent~~ E
é preciso aprendê-lo, em sua experiência de ruptura, entre percepçao e conscien-
cia, neste lugar intemporal q_ue nos co.l!str~fe a colocar o que Freud chama de
"outra cena", "entre percepçao e consc1enc1a .
Souffrance: mantido em francês conforme nota 11. da y~rsão brasileira de MD
Magno para os Quatro Conceitos Fundamentais da Ps1canalise.
A Fantasia Fundamental 47

1omo-me para ela o A maiúsculo, portador de objetos "a" que ela não pode pe-
1:ar; donde seus punhos fechados. Minha intervenção na cena teve wr...efeito
de separação de A e de "a".
Num primeiro tempo, minha nomeação aprisionava-a em seu S1 , sig-
nificante de seu corpo, na espera do significante do corpo do Outro. Em um
segundo tempo, seu "mama", que dirige-se para além de mim, para além dela
1ambém, além de todo o saber entre ela e mim, funda o S2 , isto é o signifi-
,·ante do corpo do Outro, na colocação em suspenso do que se liga entre
"'mama" e o Outro S1 pode ligar-se então com o para além deste significante,
,·om o S2 inacessível a todo o saber, do quai eu torno-me o suporte 1 • É aí que
..ia inaugura sua relação de sujeito na análise e realiza a concisão da fórmula
l:icaniana: "um sujeito é representado por um significante para um outro sig-
nificante".

J. Lacan, l.es quatre concepts fondarnentaux de la psychanalyse, op. cit., (referência


ao Seminário de 19 de fevereiro de 1964 ).
Lacan definiu em relação a um primeiro campo, o do Ich, as articulações em rela-
ção a um outro campo, o do Outro, como sendo â alienação e a separação. Ele de-
fine a{ a separação como a interseç4'0 entre dois conjuntos em que um representa
o sujeito e o outro o grande Outro onde se produz o sentido. O recobrimento
lenticular dos dois círculos representa a cobertura de duas faltas e é o lugar do
-não-senso onde se realiza o sujeito do Inconsciente.
A alienação é representada pelo "vel" que, no caso de Nádia, poder-se-ia dizer:
"a imagem da mulher e da criança ou a morte". A interpretação, só apreendendo-a
em todo o movimento da sessão, não visa tanto o sentido, mas a redução dos signi-
ficantes ao não-senso, que permitu resumir, em um momento privilegiado, os de-
terminantes da estrutura de Nádia.
Meu desejo, enquanto analista, aparece aqui como uma função ,·ss,·m·ial 1111111;1 1t·
lação com o desejo de Nádia onde "qualquer coisa <la ali,·naçi1111' n•n~r,vniln. 111í11
com o S1 e o S2 , do primeiro par de signifkanh·s 111111,lt· .,.. ,l,•,1111 11 111111111)11 ,Ir
alienação do sujeito - mas, de uma parll', cnm 11 11111·"" 11111\lilulu a p1ulh ,tu'"
ealque originário, da queda do sii:nifirn111<· hh1111lu. ,. ,)r 11111111 lldtl>' 111111 11 tjlli!
aparece primeiramente comn folln. 1111 q11r il 'llf!11llii a,111 l'''" Jllll 111> !ll1111lfh'l!nt11,,
no intervalo qm• os 11111·, 11 'lllh,., 11 ,lrw•j" ,!11 1 ll11t,1"
CAPfTULO VI
O PRl:-ESPECULAR
A ambivalência

11 de dezembro - 3 de janeiro

DO A 11 de dezembro, não pude levá-la à sessão pela manhã porque ela dor-
mia. A tarde, ela está vestida e de pé; assim que me vê, ela sorri, mas de uma
maneira fugidia, e parece ansiosa.
Durante o trajeto até a sala das sessões, em meus braços, ela mantém
um braço para trás e o outro sobre meu ombro.
Assim que está sentada, ela pega um biscoito e coloca-o em minha boca.
Eu como um pedaço, ela ri às gargalhadas e recomeça várias vezes; em seguida,
empurra o biscoito para longe dela.
Ela tenta brincar com a cadeira, desiste, olha-me e suga seu polegares-
condendo inteiramente a boca com a outra mão. De vez em quando, ela pára
alguns segundos para balbuciar e sacudir sua mão, como se quisesse me bater,
mas o faz no vazio; ao mesmo tempo, ela vira a cabeça da direita para a es-
querda, como se fizesse "não · n!Io - n!Io".
Seu olhar é tão ansioso e ela tão tensa em relaç!Io aos ruídos que che-
gam do corredor que eu a reconduzo passeando um pouco com ela. Seus bra-
ços estão descontraídos, mas ela coloca-os para trás quando entro em seu
quarto.
Sentada no ch!Io em meio aos outros, seu interesse ansioso divide-se
entre mim e a enfermeira.
Quando chego a 12 de dezembro, a babá me diz de Nádia: "Ela inteira
é uma língua, aliás ela lambe tudo".
Encontro Nádia, vestida e fora da cama, com um brinquedo na m!Io.
Assim que me abaixo para pegá-la, ela não inclina seu corpo para mim, mas
também não coloca seus braços para trás; pela primeira vez, ela estende-os
para mim na posição normal de uma criança que espera ser carregada nos
braços. Como sempre, entretanto, seu rosto crispa-se ,en_!re o momento em
que ela sente meus braços em tomo dela e aquele em que ela está sentada em
meus braços; então ela sorri balbuciando.
Na sessão, ela leva o biscoito até minha boca, mas nã'o o como; aliás,
Nádia somente toca minha boca com o biscoito e retira-o rápido dando risa-
da. Ela não insiste e, com a ajuda deste primeiro biscoito, dcrruha aquele que
está sobre a cadeira com um ar radiante. Ela desloca-se para apanhar o que es-
tá no chão e recomeça seu jogo. Em seguida ela joga o hiscoito que tem na
O Pré-Especular 49

mão e faz várias vezes, no vazio, o gesto de me bater balbuciando de maneira


witural e fazendo movimentos de denegação com a cabeça. Ela olhá-me in-
tensamente mas sem angústia.
Pela primeira vez, ela agarra-se ao meu avental para que eu a coloque no
meu colo. Lá, ela olha os brinquedos, mas. sua atenção está voltada para si
mesma, para saber o que ela deseja. Olha-me fixamente alguns segundos, mexe
no botão de minha blusa, depois puxa esta para sentar-se em meu braço. Faço
o que ela quer; ela me sorri; se seu rosto está tenso, seu çorpo não é mais um
pacote em meus braços, ele está presente. Tentativa de contato mais estreito;
mas um breve tempo é suficiente: ela quer ir apanhar um brinquedo no chão;
ao fazer isso, ela nota a mamadeira, para com a qual ela dá os passos de apro-
ximação hesitante de sempre. Ela me dá a mamadeira, volta para meu colo e,
pela primeira vez, toma-a completamene dei(ada em meus braços, seu olhar
no meu. Quando ela acaba de tomar a mamadeira, permanece na mesma po-
sição e suga seu polegar olhando-me profundamente, muito grave e descontrai:
da. Pela primeira vez eu a sinto gozar realmente deste contato que ela desejou.
Eu a reconduzo toda balbuciante em meus braços, com os seus ao redor
de meu pescoço.
Recolocada no chão com os outros, olha para mim, ignora o brinquedo
que eu coloquei perto dela, e vai até uma outra criança para tomar um pedaço
de cartolina com o qual esta divertia-se. Malgrado seus gritos, Nádia consegue
arrancar-lhe o pedaço de cartolina, e me lança um olhar triunfante.
A 14 de dezembro, Nádia dirigi-me um sorriso radiante e saracoteia
desde que entro em seu quarto. Tomo-a nos braços e ela dá um suspiro de
contentamento, seguido de um balbucio alegre; pela primeira vez, ela coloca
imediatamente seus braços em meus ombros e apoia sua cabeça em minha fa-
ce. Durante o trajeto, ela balbucia e sorri sem parar, mas eu me apercebo de
que suas fraldas estavam sujas antes que eu a tomasse: eu a confio a uma en-
fermeira para ser trocada. Durante estâ troca de fraldas, ela não chora como
antes, mas não pára de me olhar e estende um braço para mim agitando-o.
Grande suspiro de contentamento assim que eu a retomo em meus braços.
Quando quero colocá-la no chão, ela agarra-se a mim, não me larga
quando me sento, e me contempla durante alguns minutos, sorridente, passi-
va, mas muito descontraída.
Esta sessão tem várias características marcantes:
1 - Nádia está muito ativa sem vestígio de inibição.
2 - Várias vezes, deita-se em meu colo, lançando-me um olhar terno, e
retoma sua atividade; ela não quer mais nada.
3 - Ela desenvolve uma grande agressividade para com a ·mamadeira é
os brinquedos que empu"a para longe dela, sem angústia.
Começa com os biscoitos: ela faz ruído com eles, agita-os e termina por
empurrá-los, até mesmo com os pés. Nenhum vestígio de angústia.
Depois é a vez da mamadeira que ela aproxima de si. Deita-se em meus
braços para tomar dois goles e, após ter inspecionado o bico, empurra-a. Que
ela esteja no chão não lhe é suficiente, ela a suspende para jogá-la violenta-
50 Nadia ou o Espelho

mente só tendo sossego, com pés e mãos, quando joga-a embaixo do aquece-
dor. Faz o mesmo com os brinquedos. Agressividade sempre sem angústil!,.
É para mim que ela volta-se em seguida, agitando seus braços por cima
de minha perna. Depois ela manipula os botões de minha blusa, se faz beijar,
saltar, balbuciando alegremene "ma-ma-ma", "da-da-da". Seu olhar é neste
momento cheio de vida e de malícia.
Saltando sobre meu colo, ela começa a soprar curiosamente pelo nariz,
que ela franze, o rosto contraído, a boca torcida por uma careta; tudo isto
olhando-me lagamente. Eu não compreendo.
Mostra-se agressiva no fim da sessão. Pega um papel no bolso do peito
de minha blusa: faz barulho com ele, sacode-o, rasga-o, excita-se, e de vez em
quando coloca-o em sua boca olhando a mamadeira sob o aquecedor, e faz o
gesto de dar um pontapé nele. Retira violentamente o papel da boca, coloca-o
na minha, retira-o ainda com mais violência e o rasga completamente, tudo is-
to sem angústia.
Reconduzo-a; está muito bem, mas tem para com o brinquedo que colo-
co em seu leito, o mesmo comportamento negativo da sessão:joga-o no chão
olhando para mim.
Constatei uma grande mudança motora ao longo das duas últimas ses-
sões; não em quantidade, mas em qualidade: os movimentos foram os mesmos
das sessões da semana precedente, mas sem inibição; ela traduz imediatamente
em ato suas emoções, o que contrasta com os gestos desajeitados e automáti-
cos do início da análise, há dois meses. Ela não faz mais tentativas com suas
pernas; seu movimento é espontâneo. Para exprimir sua agressividade para co-
migo, ela tem necessidade de um intermediário, o papel; assim como em suas
tentativas de contato comigo ao longo das primeiras sessões ela servia-se do
pintinho.
A 15 de dezembro, encontro-o diante de uma cadeira sobre a qual ela
tenta sentar uma boneca bastante grande. Chamo-a, ela vira-se, sorri, tenta
ainda sentar sua boneca, depois estende-a para mim. Tomo-a em meus braços
junto com a boneca.
Assim que estamos sentadas, ela sobre meu colo, Nádia retoma a mesma
atividade da véspera: agressividade contra biscoitos e brinquedos que ela afas-
ta violentamente; olhares furtivos para a mamadeira que ela nã'o irá tocar.
Mesma ausência de inibição motora; balbucio bem articulado, sobretudo
"ma-ma-ma" olhando para mim ou mexendo nos botões da minha blusa.
Ela está claramente agressiva comigo, visto que bate com sua mão em minha
perna, sem intermédio do papel. Ela o toma por um momento, para manipu-
lá-lo com alegria e recolocá-lo em meu bolso. Não noto nenhuma contração
em seu rosto quando ela me bate; ela não está inibida; está feliz.

Por duas vezes, ela me afasta com seus braços, fazendo "não-não"
com a cabeça quase falando.
A fase ativa da sessão termina.
Dois novos acontecimentos se sucedem.
O pré-Especular 51

Primeiramente, ela contempla por muito tempo meu rosto: olhos, cabe-
lo, nariz, boca, apoiando de vez em quando sua cabeça em mim. Uma vez
mesmo, ela vira sua cabeça para trás e olha-me assim de través. Ela endireita-se,
intrigada, para olhar-me corretamente, ri e, cbm um ar maroto recoloca sua
cabeça às avessas para olhar-me longamente.
Ela endireita-se, seu rosto torna-se grave e ela tem uma dian-éia. Deita-se
então em meus braços, suga seu polegar, olhando-me gravemente, está muito
tranqüila. Mimo-a, depois sinto-a pouco à vontade e levo-a para trocar-se:
troca ao longo da qual seu olhar não me deixa; mas ela continua alegre.
De volta à sessão, ela quer sentar-se em meus braços, depois nos meu
colo para apanhar um brinquedo. Ela está de novo ativa. Mas, neste momento,
uma criança berra na sala ao lado. Então ela pára, olha-me inquieta,
aninha sua cabeça em mim, suga seu polegar após ter-se deitado em meus bra-
ços, e tapa um ouvido com a mão para não ouvir o choro. Reconduzo-a a seu
quarto.
A 17 de dezembro, sentada em seu leito, ela me sorri mas não se inclina
para mim. Entretanto, uma vez em meus braços, ela coloca os seus em meu
ombro.
Interessa-se primeiro pelo biscoito: sacode-o faz ruído com ele, coloca-o
cm minha boca, em seguida na sua, bate violentamente com ele na mesa, de-
pois na base de meu pescoço. Após um jogo de vai-e-vem entre sua boca e a
minha, ela se irrita com este biscoito e manda-o longe. Volta-se então para
mim para inspecionar longamente os botões de minha blusa, balbuciando
"mama" e não "ma-ma-ma"; depois ela bate com sua mão em meu peito.
Então ela se faz acariciar, sentada em meus braços.
Após a agressividade com o biscoito, é a vez da mamadeira: ela sacode-a
e bate tllo violentamente com ela no chão que ela racha; o leite esguicha: ela
está radiante. Termina por jogar a mamadeira embaixo do aquecedor. Ela pe-
ga o papel em meu bolso, agita-o, mela-o com o leite derramado, de tal ma-
neira que sobram apenas alguns pedaços muito sujos. Ela volta para meus bra-
ços e pega meus óculos;joga-os atrás dela, inclina-se bem para trás para apa-
nhá-los e consegue.
A enfermeira me diz que Nádia mantém-se de pé em seu leito e que está
muito viva. Ela quer inclusive mostrar-me isso no fim da sessão e não tive tem-
po de dizer-lhe para não o fazer. Sob meu olhar, com efeito, Nádia opõe uma
recusa total em ficar de pé, e me lança um olhar angustiado.
A 18 de dezembro, a sessão é uma explosão de atividade alegre. Nádia
primeiro permanece cinco minutos em meu colo, faz barulho com o biscoito,
ri, balbucia, bate suas mãos na cadeira. Em seguida, quer sentar-se no chão,
mas com ela olha-me um pouco ansiosa, sento•a junto a mim. Ela me dá um
sorriso radioso.
Ela lança-se então a uma grande atividade, cheia de alegria e excitação
i:om a descoberta do que podem fazer seus braços e pernas. Para pegar de no-
vo os objetos que ela jogou longe dela, usa dois meios de locomoção: ou ela
se arrasta sobre o ventre avançando por recuos, voltando-se de vez em quando
52 Nadia ou o Espelho

para ver seu alvo, ou com a perna direita dobrada, ela fica quase de pé e cai
sentada, apoiada sobre a esquerda, o braço direito esticado em direção ao ob-
jeto; ela consegue também rodar. Cada movimento novo desencadeia uma
gargalhada, uma grande excitação dos braços e pernas. Ela parece gozar in-
tensamente do uso de seus membros e olha-me alegremente após cada nova
iniciativa.
Fora desta explosiio de atividade que a absorve, os traços salientes da
sessão são: 1. a agressividade contra a mamadeira que ela pega, sacode, bate
no chão, bate com um brinquedo e afasta para bem longe dela com mãos e
pés; 2. a manipulaçiio dos botões de minha blusa, motivo pelo qual ela quis
voltar para meu colo, manipulação acompanhada de "mama" freqüentes, de
golpes de mão em meu peito e perna; 3. o recorrer a mim sem ambivalência
qundo ela tem medo: assustada pelo ruído da cadeira que ela jogou no chão,
ela desloca-se, agarra-se a meu avental e tenta subir em meu colo; coloca-a
aí; ela se faz beijar e desce de novo para suas atividades.
Noto que pela primeira vez, a entrada de uma pessoa na sala não a absor-
ve inteiramente: ela olha, depois me olha e retoma quase imediatamente sua
atividade, ainda que a enfermeira permaneça na sala.
Quando reconduzo Nádia, a enfermeira me diz que ela reclama mais
comida. Nádia não parece estar contente com o fim da sessão.
A 19 de dezembro encontro 'Nadia de pê, sustentada por uma enfer-
meira. Carrego-a radiante.
Toda a sessão é consagrada à alegria do movimento. Ela faz ruído com
o biscoito, com o papel e os joga longe assim como o carro, a boneca e o pin-
rinho. Arrasta-se para pegar de novo os objetos e jogá-los ainda mais longe.
Ela vai de meu colo à janela arrastando-se e volta para meu colo onde ela ten-
ta subir para ser beijada. Vai então até o aquecedor, com o qual faz barulho
com uma alegria intensa. Quando ela se arrasta, é sobre um joelho e dois bra-
ços: isto é, quase engatinhando.
Quando a reconduzo, ela aperta contra si um brinquedo trazido da ses-
são e, quando uma outra criança quer pegá-lo, ela se arrasta até seu leito.
Notar que neste dia esqueci meus óculos. Nádia repara e vem tatear
meus olhos intrigada. Arranha a raiz de meu nariz, lá onde de hábito ela colo-
ca meus óculos para retirá-los.
A 21 de dezembro, assim que é colocada no chão, ela mostra grande
atividade, agita-se com uma agressividade mesclada de violência para comigo.
Bate-me várias vezes, com uma mão ou com um brinquedo, mas após ter bati-
do bem forte em sua cabeça com o mesmo. Durante dez minutos, ela fica
assim realmente violenta, agitada e tensa. Acalma-se batendo na mamadeira,
entornando-a, derramando o leite no chão e espalhando as manchas com a
mão; no fim, lança a mamadeira sob o aquecedor. Sua agressividade, já menor,
volta-se contra meus óculos. Ela não pode ver-me com eles, arranca-os e os
atira longe.
Ela se arrasta muito, mas só se lança após meu sorriso. Quando retorna,
é para ser mimada em meus braços. Agarra-se a meu avental, depois estende-me
O Pré-Especular 53

os braços sorrindo. Sentada em meus braços, ela acaricia meu rosto com um
ar de adoração, para em seguida partir quase imediatamente em exploração.
No fim da sessão, ela se arrasta para pegar a mamadeira sob o aquece-
dor; bate com ela neste e atira-a bem longe na sala; espalha todos os brinque-
dos. Tenta. colocar-se de pé agarrando-se no parapeito da janela e retoma a
meus braços.
Recolocada em seu leito, ela anda nele de uma ponta a outra, sob meus
,ilhas - o jantar começou e ela parece ter muita fome. Agressiva comigo, ela
hate em meu peito: na alegria de vê-la andar, eu a tinha tomado em meus bra-
.,:os. Em seguida ela toma-se meiga, apoia bem sua boca em minha face sem
beijar, e aperta seus braços bem forte em tomo de meu pescoço.
A 22 de dezembro, Nádia levanta-se quando venho buscá-la.
Assim que a coloco no chão, cena de violência: ela afasta muito violen-
1amente os biscoitos, quebra um jogando-o no chão, bate uma vez em sua ca-
beça com a boneca, bate em minha perna e arranca-me os óculos que joga lon-
ge. Não se interessa pela mamadeira.
Em seguida, durante vinte e cinco minutos, ela explora a sala. Do outro
lado, ela percebe no chão um suéter e vai até lá quase engatinhando, parando
no meio do caminho para me olhar e balbuciar de uma maneira articulada e
modulada: ela parece explicar-me qualquer coisa. Torna a partir, apanha o
suéter que ela vai agora arrastar para todo lugar com ela. Começa por esfre-
gá-lo em seu rosto com risos e balbucias de delícia; sacode-o saracoteando,
arrasta-o atrás de si até a porta para apanhar um pedaço de biscoito, que ela
torna a jogar, volta a meus braços para ser acariciada e arranca meus óculos:
Sempre arrastando seu suéter, ela parte para o canto da sala onde o ti-
nha apanhado; ela percebe aí um brinquedo quebrado: três rodas, uma pran-
cha e um cordão. Ela pega, manipula, sacode-o, inspeciona as rodas, e sobre-
tudo o buraco da roda que falta. Depois lança o brinquedo longe dela, mas agar-
ra-o de novo puxando o cordão.
Recolocada em seu leito, coloca-se de pé e anda em minha direção
para agarrar-se a meu avental.
A 24 de dezembro, quando venho buscá-la de manhã, ela está ansiosa;
não faz nenhum movimento em minha direção, não me sorri, mas nã'o coloca
:-;eus braços para trás. Ela teve diarréia ontem. Descontrai-se um pouco em
meus braços e sorri-me durante o trajeto.
Esta sessão é diferente das precedentes pela: 1. ansiedade de Nádia; 2.
diminuição de sua atividade; 3. sua demanda constante de estar em meus
hraços, onde ela mostra-se vtolenta contra minha boca.
Começa por jogar para longe dela biscoitos, boneca, carro e fixa-se em
meus óculos que eu não vou poder recolocar o resto da sessão. Após ter entor·
nado a mamadeira, sem mais ocupar-se dela, ela vai embora com meus óculos,
joga-os cada vez mais longe, bate neles com o carro, e com este mesmo carro
hate em sua cabeça, depois em minha boca. Ela está tensa e violenta.
Olha em redor de si na sala, percebe aí o suéter e a prancha de três
rodas da véspera, mas não vai até ela e vem para que eu a carregue, sentada,
54 Nadia ou o Espelho

em meus braços. Ela desce alguns instantes para ir sacudir a boneca sobre a
cadeira, depois volta a meus braços e, neles, sorri com wna expressão feliz e
acaricia meu rosto: é o único minuto de alegria da sessão de hoje; todo ores-
to é marcado pela violência.
Em seguida ela mexe nos botões de minha blusa e toca em minha pele
por acaso: se detém imediatamente, muito ansiosa e quer retomar ao chll'o,
embora permanecendo junto a mim. Ela deixa em pedaços um biscoito e
quer voltar para meus braços. Neles, recomeça a manipulação dos botões de
minha blusa, tomando cuidado para n!fo tocar em minha pele. Ela está com
soluço o que a intriga por um instante, depois não lhe dá mais atenção. Ela
fixa-se então em minha boca, o rosto contra í<lo, hositl: ela bate com sua mão
em minha boca, arranha-a, puxa meus lábios. Em seguida ela empurra violen-
tamente minha cabeça para trás, com sua mão em minha boca e mantém-se
assim. Se eu faço menção de endireitar-me, ela acentua sua pressão, ainda
mais hostil. Com a outra mão ela arranha meu pescoço, encrava os dedos em
núnha pele e puxa-a. Ela está verdadeiramente tomada por uma emoção de
uma rara intensidade - o soluço não a deixou -, a ponto de eu levá-la para
perto da janela a fim de acalmá-la um pouco. Sua atenção é distraída 'pela
chegada de uma turma de crianças, que ela quer ficar olhando, mais inquieta
do que tensa.
Durante o retorno ela me sorri, bastante calma; em seu leito, ela me ba-
te com sua mã'o, sem ansiedade, e sorri um pouco, o olhar maroto. Neste
momento, chegam duas enfcnneiras; Nádia volta-se para mim, sorridente,
sapateando de alegria dando-me palmadinhas, como se ela fizesse de mim uma
coisa sua sob o olhar dos outros.
Mas a violência da cena deixa-a inquieta; e cu tomarei conhecimento
que após minha partida ela teve uma evacuação intestinal, lambuzou-se com
ela até a cara e chegou a comé-la.
A 25 de dezembro, dia de Natal, ouve-se muito choro na casa: tem me-
nos enfermeiras e os grandes nllo desceram para o jardim de infância. Nádia
se balança em seu leito, mas pára assim que me vê, levanta-se e anda em mi-
nha direção até a extremidade do leito.
Ela está ainda bastante violenta hoje. A primeira coisa que faz é arran-
car meus óculos: ela ocupa-se deles com teimosia e faz tudo que pode para
quebrá-los. Não poderei recolocá-los durante toda a sessão. Depois é a vez da
mamadeira que ela entorna, esvazia metade no chão e atira embaixo da jane-
la. Ela espalha a poça de leite com o pintinho, e joga-0 fora. Torna a pegar a
mamadeira para atirá-la embaixo do aquecedor; isso a faz rir.
Ela quer vir para meus braços e eu devo fazê-la saltar. Depois ela escon-
de um minuto sua cabeça em meu pescoço, me aperta forte com seus dois
braços, e levanta-se, radiante, olhando ternamente para mim.
Se a ponho sentada no chão, ela toma-se agressiva e violenta contra ela
mesma. Ou ela vai para longe de mim ou quer ficar sentada em meus braços.
No conjunto, a sessão foi a expressão de uma grande violência para com:
1. os objetos, contra os quais entretanto ela se moderou, explodindo brutal-
O Pré-Especular 55

mente e acalmando-se. 2. mim mesma, através de meus óculos, mas também,


diretamente, através de minha boca, ccomo na sessão precedente. 3. si mesma,
batendo em sua própria cabeça.
Recolocada em seu leito, ela fica inquieta com a atmosfera do quarto
e pede para voltar para meus braços por um breve instante.
A 26 de dezembro, encontro-a de pé na extremidade de seu leito, o
olhar muito vivo. Levo-a sorridente.
Ela começa por arrancar-me os óculos, e durante cinco minutos, joga-os,
hate neles, com agressividade. Com violência se enraivece com os biscoitos
que ela espalha longe de si, depois sobre a· mamadeira que ela vira, depois es-
vazia em parte sobre o chão. Ao atirá-la longe dela por cima de sua perna,
um pouco de leite cal em seu pé; ela pára seu gesto e fica furiosa. Ela bate
com a mamadeira na minha perna, bate na mamadeira com meus óculos, toca
no leite derramado em seu pé, depois nas manchas de leite no châ'o. Ela suga
uma vez seu dedo molhado de leite, bate violentamente na poça de leite com
sua mão. Um pouco mais calma, ela pega a mamadeira que ficou junto da mi-
nha perna, tenta levar o bico até sua boca, mas não consegue, não fica conten-
te e joga defmitivamente a mamadeira longe dela.
Pega um papel em meu bolso, agita-o e suga-o muito. Quer sentar-se em
meus braços, mas a violência e a cólera são tais que penso dever recolocá-la
cm seu leito de sessâ'o. Ela não se acalma, bate em mim, e joga de novo mi-
nha cabeça para trás, apoiando sua mão em minha boca. Ela está tão ansiosa
que a reconduzo a seu quarto. Quando recoloco-a em seu leito, mais uma vez,
ela arranca meus óculos e vai para a outra ponta de seu leito.
Maryse, uma outra criança que eu tenho em tratamento, e que tem seu
leito no mesmo dormitório, está refriada. Ela me chama: vejo o rosto de Ná-
dia ficar tenso e o contorno de seus olhos acentuar-se. A enfermeira toma-a
para trocá-la e deixa-a um instante com o traseiro nu. Nádia arrasta-se para
seu leito, muito rápido, e faz que nâ'o me ouve quando eu a chamo.
A 28 de dezembro, tomo conhecimento que no dia seguinte à última
sessão, ela lambuzou-se de cocô que ela pegou de sua fralda com as duas
mãos, e que colocou em seus cabelos, suas orelhas, em toda a cara e em suas
pernas, enchendo também a boca.
Esta manhã, quando chego, ela está em pé na extremidade de seu leito
e saracoteia sorrindo. Ela estará entretanto inquieta e ansiosa durante toda a
sessão. De chofre, ela arranca meus óculos e joga os biscoitos. Por duas vezes,
1•la quer agredir a mamadeira e desiste. Ela quer vir para meus braços, bem junto
:1 mim. Muito instável, ela é dilacerada pelas emoções, passando sem cessar
dos atos agressivos contra minha boca, meu pescoço e minha blusa, aos mes-
111os gestos contra as barras do leite no qual eu estou apoiada.
Ela apanha um biscoito e coloca-o em minha boca. Fecho simplesmente
11s lábios durante um segundo; então ela retira-o, olha-o e vai arra11h11r mí11h11
lrúgua com sua unha, verificando se tem alguma coisa. Ela 1ccol11r11 11 hl•l'11I
111 em minha boca, e aí eu vou morder um pcdadnho 1111r 1'111 Vdl 1l'llr111 1'11111
56 Nadia ou o Espelho

seu dedo. Uma terceira vez, eu mordo um pedaço <flll~ l'la rei ira de minha bo-
ca, ela olha para ele, baba muito, depois joga-o com 11111 ar e11oj11du.
Tenta então pegar um papel em meu bolso. Como da 11,io consegue é
está a ponto de chorar, eu lhe dou o papel. Ela joga-o, toma a pegar e coloca-o
em sua boca, babando muito.
Volta para meu colo para ser ninada, mas ela está tensa, muda de posi-
ção sem parar, olhando-me ansiosamente. Deita-se um mi11ulo em meus bra-
ços, depois quer ir para o chão, junto a mim e apoia sua cabeça cm meu cor-
po. Ajudando-se com as barras do leito, ela levanta-se três vezes e fica em pé,
reta. Cada vez, ela olha para mim timidamente e senta-se alguns segundos em
meu colo antes de recomeçar (continuo sentada no chão).
Senta-se de novo junto a mim, mas ela está tão ansiosa, como mostram
seus olhos marcados, que ela parece não saber o que é mais doloroso, calar-se
ou exprimir sua violência. Reconduzo-a a seu leito.
Nele, ela bate em um brinquedo e olha para mim, mas enquanto me sor-
ri, ela faz pipi.
A 29 de dezembro, encontro Nádia em pé na extremidade de seu Jeito,
muito animada mas com um pobre aspecto. A enfermeira diz que ela nunca
está saciada e que ela se mexe muito.
Durante o trajeto, ela arranca meus óculos e, na sessão, com obstinação,
mas, uma novidade aparece: por duas vezes ela estende-os contra meus olhos,
esperando que eu os recoloque para ter o prazer de arrancá-los. Joga os biscoi-
tos longe dela; um deles se parte em dois: Nádia fica desconcertada, depois
furiosa. Olha a mamadeira que está longe, mas ela não quer arrastar-se até ela;
há duas sessões, ela não se desloca muito na sala, e quer ficar em meu colo ou
bem junto, tocando-me.
Ela fixa-se de novo em um pedaço de biscoito, leva-o até minha boca,
mas somente seus dedos entram nela. Retira-os depressa e dá uma golfada
grande de mingau. Toma um ar de desagrado: um pouco de mingau regurgita-
do caiu em seu pé que ela sacode. Mas espelha voluptuosamente com seu dedo
o que caiu sobre o encerrado, e leva em seguida este dedo à boca.
Ela quer vir para meu colo, mas como na sessão precedente, ela muda
de posição sem cessar, passando da posição sentada à posição de pé e está
agressiva com minha boca; às vezes deita-se descontraída por um momento e
fica então tão abandonada que eu cantarolo docemente. Olha para mim inten-
samente e, quando termino, me responde: não há outra expressão para defmir
seu balbucio neste momento; muito articulado, lento, modulado, carregado
de sentido como a linguagem.
Por alguns momentos, ela explora um parafuso do leito com seu dedo.
No fim da sessão, enquanto ela chupa o papel que pegou em meu bol-
so, rasga-o, lançando os pedaços longe dela, dá uma nova golfada de mingau e
faz pipi.
Ela suga também constantemente as hastes de meus óculos, e conserva
sem cessar a mímica de sucção.
O Pré-Especular 57

Ela está contraída durante o trajeto de volta, quer ser recolocada ime-
diatamente em seu leito, onde ela ri e me bate.
A 30 de dezembro, assim que me vê, ela saracoteia e fica muito intri-
gada porque coloco-lhe suas meias; ela bate os pés de alegria. No conjunto, a
sessão será sorrident_e. A ansiedade só aparece quando Nádia senta-se no
chão. Tudo se passa pois em meu colo, com a exceção da cena dos óculos no
início, e a agressividade contra a mamadeira nó fim.
Nádia arranca meus óculos, não .se fixa neles, e quer vir para meu colo.
De onde apanha um biscoito; após tê-lo jogado e apanhado várias vezes, ela
coloca-o em minha boca e deixa-o aí. Uma grande parte deste biscoito ultra-
passa miliha boca: ela lhe dá um tapa para fazê-lo cair, o que a faz rir às gar-
galhadas. Ela recomeça assim por duas vezes seguidas e é sempre com uma cer-
ta violênciá que colo~a o biscoito em minha boca; seu rosto está contraído.
Depois joga longe dela os biscoitos, com desagrado e furor.
1
Ela quer pegar o papel em meu bolso, mas não consegue, o que a torna
furiosa: ela bate em meu peito. Ao fazer isto, ela toca em minha pele e pára
imediatamente; arranha-me um pouco a pele, depois afasta minha blusa bran-
ca e mergulha sua cabeça para olhar dentro durante alguns segundos. Ela er-
gue-se furiosa e me bate em cheio no peito, com suas duas mãos.
Nadia desce de meu colo para entornar a mamadeira, persegue-a sob o
radiador, bate com ela neste último, (jerrama o leite e a empurra para longe.
Ela acalma-se, fica descontraída e sorridente; ela quer vir para meus braços e,
deles, brinca com as barras do leito: ajudada pelas barras ela fica de pé, depois
de ter posto minha mão sobre uma barra. Em seguida deita-se em meus bra-
ços para ser beijada. Parece que ela não gosta que eu cantarole.
Durante a sessão, ela fez pipi nas fraldas; recolocada em seu leito, ela
sorrido me bate um pouco.
A 31 de dezembro, encontro Nádia sentada no chão, segurando uma bo-
neca de borracha com o olhar muito animado. Assim que vem para meus bra-
ços, ela arranca meus óculos e joga-os fora.
Pela primeira vez, ela está de sapatos e será para ela wna grande alegria
descobrir na sessão o barulho que ela pode faz.er sapateando, graças a ele.
Ela o fará muito freqüentemente ao longo da sessão, rindo às gargalhadas, lan-
çando olhares para seus sapatos depois para os meus.
Não estamos na sala habitual que está ocupada. Ela olha tudo em volta,
depois olha para mim, joga fora os biscoitos, vira a mamadeira, sacode meus
óculos, coloca-os em seus olhos, depois nos meus, e enfim joga-os fora de al-
cance e ·vem para meu colo.
Ela pega o papel em meu bolso; virando-se, percebe uma bola grande de
borracha sob o leito. Ela desce, vai buscá-la, deslocando-se sobre suas nádegas
com uma perna dobrada. Retoma a meu colo com a bola; chupa-a babando
enormemente apanhaildo-a cada vez que ela cai. Ela abandona a bola para se
fazer beijar, escondendo o rosto em meu peito.
58 Nadia ou o Espelho

Ao reerguer-se, ela puxa meus lábios ao mesmo tempo em que mostra


a língua. Procura a minha com o dedo, e quando a encontra, ela empurra-a
para dentro com um ar de desagrado, fechando sua própria boca. Ela mostra a
língua de novo e procura ainda a minha, que ela arranha com uma unha fa-
zendo numerosos movimentos em sua boca e sua língua. Finalmente, com o
nariz escorrendo muito, ela esfrega sua mão nele longamente e a mergulha em
seguida em minha boca com violência. Retira sua mão sorrindo e não se ocupa
mais de minha boca.
Desce de meu colo para empurrar a mamadeira ainda mais longe; mas
não bate nele e volta imediatamente para meus braços, onde ela fica de pé vá-
rias vezes seguidas, apoiando-se no leito e olhando-me encantada, fazendo-se
beijar com um ar terno.
Durante toda esta sessão, ela esteve alegre, descontraída. O intermédio
da boca, embora importante, foi menos violento e bastante breve.
Reconduzo-a e sento-a no chão com as outras crianças. Ela apanha um
brinquedo e coloca-se defronte de mim; mas vendo uma criança estender-me
um brinquedo que recebo, ela prepara um movimento arrastando-se em minha
direção, desiste, foge para longe e senta-se virando-me as costas. Ela reconsi-
dera, retoma em minha direção estendendo-me os braços, mas para abaixá-los
tão rápido quanto levantou; tomo-a em meu colo, ela arranca-me os óculos.
A enfermeira me assinala ainda que Nádia voltou a comer cocó, mas que
ela não come nunca o que escorre de seu nariz.
A 1~> de janeiro, encontro Nádia vestida, mas de pés nus. Então colo-
co-lhe meias e sapatos; ela sorrindo sapateia de alegria.
Como de hábito, ela arranca meus óculos, bate com eles na cadeira e jo-
ga fora; faz o mesmo com os biscoitos. Ela quer fazer com a mamadeira ames-
ma coisa, mas não consegue e fica desconcertada, tanto que ao longo da ses-
são, ela terá veleidades de recomeçar, mas não o fará; olhará para ela com um
ar intrigado.
Ela vem para meu colo fazer-se beijar e torna a partir para procurar
meus óculos. Ela estende-os contra meus olhos; coloco-os; ri às gargalhadas e
arranca-os. Assim faz por três vezes seguidas, mas na terceira vez, ela não tor-
na a dar-me os óculos e joga-os depois de ter batido em meu peito. Toca em
seguida em um bota:o de minha blusa e enfia, durante alguns segundos, sua ca-
beça entre a minha blusa e o meu chemister. Depois coloca violentamente um
pedaço de biscoito em minha boca, retira-o rápido e joga-o.
Ela quer então sentar-se em meus braços, esconde sua cabeça em meu
pescoço, depois desce, vai em direção da porta; e retoma estendendo-me os
braços com um ar maroto, terno e sem ansiedade.
A 2 de janeiro, ela sapateia de alegria enquanto eu lhe ponho os sapatos.
Sessão de grande atividade na sala; ela não vem por cima de mim, vai até
meus joelhos e toma a partir em direção oposta, rindo e dizendo uma vez
"não-não·:' . Ela balbucia todo o tempo, de uma maneira tão articulada que
eu penso que ela vai seguramente começar a falar em breve.
O Pré-Especular 59

Ela arranca meus óculos, entorna a mamadeira, espalha poças de leite.


Coloca um biscoito em minha boca e com seu dedo derruba de minha lfugua
o pedaço que aí ficou colado. Em seguida ela suga seu dedo. Bate em meu pei-
to e bate muito em si mesma com os brinquedos. Ela não está ansiosa.
A 3 de janeiro, encontro Nádia de pé em seu leito; segura-se numa bor-
da e bate seu traseiro na borda oposta. Pára quando me vê, sorri; sento-a para
\;alçá-la; o que a deixa alegre. Durante o trajeto, ela pressiona sua face contra
a minha.
Como na véspera, ela desloca-se muito, tenta realmente engatinhar, e, se
não consegue, fica de joelhos para alcançar qualquer coisa.
Arranca meus óculos, joga fora; faz a mesma coisa com os biscottos;he-
sita em relação à mamadeira e desiste.
Percebendo, no fundo da sala, restos de papel e cartolina, ela vai nessa
direção contornando minhas pernas. Ela suga um pedaço de papel, bate várias
vezes a cartolina no chão sem agressividade e, por duas vezes tenta voltar para
mim mas, no meio-do-caminho, retorna para a cartolina. Sempre contornando
minhas pernas, ela volta a sentar-se perto de mim e derruba a mamadeira com
a boneca. Termina embaixo da janela. Atira longe dela todos os brinquedos.
Aproxima-se então de mim e enfia sua cabeça ternamente em meu peito.
Ela coloca um biscoito em minha boca; eu como um pedaço; joga o
biscoito e, com o dedo, derruba os pedacinhos arranhando minha língua
wmo para assegurar-se de que aí não tem mais nada. Ela não tem o ar de en-
1ôo da véspera. Vem então para meus braços se fazer beijar, olha-me terna-
mente e torna a partir. Balbucia enormemente até o fim da sessão.
Sacode violentamente o pintinho, me bate por duas vezes na perna, de-
pois senta-se defronte de mim; dirige-me longamente um beicinho e volta-se
{Iara a mamadeira, para sacudí-la, bater nela, atirá-la longe e alargar as poças
de leite com a mão.
Eu a reconduzo: ela está muito bem.

Nádia perdeu a imagem da totalidade "A + a" que acaba de ser deslo-
,·ada de seu olho para meu chamado nominal. Pela preponderância da pulsão
<'scópica funcionando em duas dimensões, ela pôde conseguir metaforicamen-
le a negação de toda perda por acoplagem de seu olho à imagem do Outro e
,lo outro; o outro era o objeto "a" para Nádia, pelo fato de que o Outro, a
mulher, era portadora deste objeto em seu corpo, causa do desejo de Nádia.
hte outro, objeto "a" do corpo do Outro, como vimos, era o seio.
A 10 de dezembro, minha nomeação te~e um efeito separador: ela per-
,li,u aí a inclusão pelo olho, achou meu corpo real, e aí encontrou as duas ver-
Ir II tes de sua própria relação comigo: ou ela aí toma o lugar do objeto metafó-.
11ro, isto é, do objeto que daí caiu, ou ela coloca este corpo a uma distância
·,ignificante por reviramento da nomeação de Nádia à "mama". Concretamen-
l<' a metáfora é o horror de estar colada a mim, de fazer parte de meu corpo,
60 Nadia ou o Espelho

de ser meu seio; a metonímia é a distância significante, é seu pé que ela me es-
tende, é minha mão que ela pega, e é seu "mama" que ela lança em eco a mi-
nha nomeação.
Desde então, o corpo do Outro que eu sou vai estar no centro desta fa.
se pré-especular sob dois aspectos. Ao mesmo tempo objeto de contemplação
e portador dos objetos "a". Ela procura nele ao mesmo tempo o amor e o ob-
jeto da pulsão. Oscila sem cessar entre a demanda incondicional de amor e a
agressividade que visa recolher o objeto de meu corpo. Esta oscilação, é a
ambivalência; sua procura de amor coloca-a em posição de fazer-se meu obje-
to, posição metafórica, e sua busca do objeto orienta-a em direção ao próprio
registro deste objeto de meu corpo, o significante, posição metonímica.
A oscilação permanece ainda completamente exterior à Nádia antes que
numa última passagem, a 16 de janeiro, como veremos, ela se faça ela própria
meu objeto metafórico, caído aos meus pés, posição insustentável que a leva-
rá a procurar a metonímia, a da imagem de seu próprio corpo no espelho. Ela
havia aliás antecipado desde 10 de dezembro a via e o trajeto para escapar à.
metáfora.
Neste debate de sua relação ao corpo do Outro persiste evidentemente o
que já estava presente em sua relação à imagem colada no olho, isto é uma es-
trutura topológica de superfície: a de pele, quer seja a do Outro onde Nádia
procura o furo, ou a sua, cujo furo o Outro deve tampar por acolamento.
A sessão de 12 de dezembro é uma sessão exemplar quanto à entrada de
Nádia neste debate. A ambivalência é aí patente: após ter colocado normal·
mente os braços para que eu a carregue (ela os colocará em seguida ao redori
de meu pescoço), ela finge bater-me, não sem movimentos de denegação com:
a cabeça e, negligenciando todos os objetos da sessão, ela procura um objeto,
em meu corpo manipulando os botões de minha blusa.
Tem lugar então, pela primeira e única vez, quando ela toma a mama•
deira deitada em meus braços, seu olhar no desejo que ela tinha realizado por
via alucinatória, ela o realiza aqui em um contato real de corpo comigo, aí
encontrando seu prazer senão o seu gozo: um olhar pleno, seus olhos nos
meus, e mesmo seu auto-erotismo quando ela suga seu polegar em meus bra·
ços após ter tomado a mamadeira.
Da realização alucinatória de sua fantasia primordial (10 de dezembro),
ela passou à realização de seu desejo em função do Real do corpo do Outro:
como se fosse preciso enraizar seu debate no Real, o que ela provavelmente
nunca tinha conhecido antes. Foi uma alicerçar que não se renovará em sua
plenitude, que ela não reencontrará e que ela procurará sem descanso: esta vez
participa assim do recalque primordial, completando-o de qualquer maneira
com raízes reais da relação ao Outro.
No fim da cena, não aparece nenhuma angústia, que poderia ter surgido
se meu gozo de Outro, na transferência, de ter-lhe dado a mamadeira tivesse
feito dela meu objeto metafórico. Como a 10 de dezembro, Nádia não pode
tolerar, com efeito, um tal lugar, e ela faz uma abertura metonímica, toman-
do de uma outra criança um pedaço de cartolina que ela me mostra com um:
O Pré-Especular 61

ar triunfante. É verdade que, espontaneamente, eu a recoloquei no meio dos


111rtros e não em seu leito, o que poderia ter o sentido de um fechamento
numa relação dual entre ela e mim: relação contra a qual ela se defendeu, não
,;em angústia, na segunda parte da sessão de 10 de dezembro, refugiando-se, se
podemos f~ar assim, na metonímia.
Ela confirma ao longo das duas sessões seguintes, esta rejeição da metá-
lora e este acesso à metonímia precisando o sentido desta ao demonstrar suas
1dações ao significante e à perda.
A 14 de dezembro, por exemplo, se ela se deixa levar por um instante
a tomar a mamadeira em meus braços, é para rejeitá-la após ter bebido dois
goles. Pela primeira vez, ela a lança com grande violência, empurrando-a com
111ãos e pés ao outro extremo da sala embaixo do aquecedor. Em contraparti-
da, quando volta-se quase imediatamente para os botões de minha blusa, é
,·om um balbucio alegre "ma-ma-ma, da-da-da", e o olhar cheio de vida e ma-
lícia. Do objeto metafórico ao objeto metonímico, ela mostra assim que o pri-
111ciro está ligado à violência e à destruição, e o segundo ao discurso; sua osci-
lação entre estes dois tipos de objeto vai prosseguir até o espelho.
Esta oposição entre dois tipos de objeto aparece ainda no fim da ses-
s;Io de 14 de dezembro, não sem que Nádia tente resolvê-la:em meu bolso do
peito, ela vai procurar um papel que lhe servirá durante quase um mês, até a
véspera do espelho, para exprimir não somente as características do objeto,
111as as relações deste com meu corpo.
O papel é um objeto metonímico, separável, que ela pega como pegou
" pedaço de cartolina da outra criança; ela participa, em um primeiro tempo,
1111 lugar do biscoito, da mamadeira e da palavra. Com o biscoito, ela coloca-o
,·m minha boca, retira-o e o destrói para privar-me dele. Como a mamadeira,
ria coloca-o em sua boca (olhando justamente a mamadeira). Como a pala-
vrn, ela faz com que ele seja ouvido quando ela o amarrota e o rasga; tudo isto
o.;cm angústia, pois o papel não se revela pelo que representa, contrariamente
1u1 objeto metafórico.

Este último tem ligação, ao contrário, com uma representação claramen-


te substitutiva de meu corpo. Tal como a boneca grande que ela tenta sentar
•a 1hre uma cadeira assim que eu chego a 15 de dezembro; ela leva-a para a ses-
•;/lü, mas troca-a imediatamente pelos objetos metonímicos colados em meu
nirpo: os botões de minha blusa que ela manipula balbuciando e o papel que
ria torna a pegar em meu bolso. Ela não pode entretanto impedir-se de retor-
nar a meu corpo e dele experimentar a ambivalência; oscilando então entre a
ternura e a hostilidade ela me bate ludicamente e empurra-me com movimen-
111s de denegação da cabeça, quase dizendo ''não-não".
O retorno à ternura leva-a em seguida à contemplaçã"o detalhada do meu
111sto. Ela vira inclusive a cabeça para olhar-me às avessas, rindo, justamente
,·orno ela me via quando tomava a mamadeira deitada em meus braços. Mas
11•1ui a mamadeira está ausente e sua contemplação aproxima-se muito da de
IO de dezembro onde a imagem estava colada em seu olho. Desde então, o
62 Nadia ou o Espelho

Real de minha presença representa plenamente o papel de uma ordem: ela


não pode incluir-me nela por acolamento; eu estou irremediavelmente no ex-
terior; o recalcado primordial (o de 10 de dezembro) lhe intima esta perda,
que logo se manifesta em seu corpo: ela ergue-se com um rosto grave e tem
uma diarréia. O cocô aparece aqui pela primeira vez em sua ligação com o
Outro: enquanto objeto que representa uma perda, o descolamento do Outro.
Desde o dia seguinte, Nádia me inflinge esta perda, que era a da imagem
primordial: ela arranca-me os óculos e continuará a fazê-lo quase a cada ses-
são, às vezes repetidamente, até depois da primeira fase do espelho. Ela se
assanhará neles a ponto de quebrá-los. Nesta fase pré~specular, o transitivis-
mo que ainda liga Nádia ao Outro que eu sou, dá a estes óculos o papel re-
presentativo da imagem descolada de seu olho: como se esta imagem se tives-
se colado ao meu, e que ela devesse descolá-la absolutamente e destruí-la.
Existe, na iniciativa de Nádia, um lado completamente ativo, como testemu-
nham seus rápidos progressos motores; ela não se contenta, por exemplo, em
constatar, a 19 de dezembro, que eu não uso meus óculos, por uma razão qual-
quer; ela fica intrigada e raspa com seu dedo a raiz de meu nariz, lá onde ela
coloca meus óculos para arrancá-los. Bcomo se o que valesse não fosse a falta
dos óculos em mim, mas que arrancando-os ela descole uma imagem que seria
negativada e presente, se assim podemos dizer, sob esta forma. llm afastamen-
to entre os óculos e a imagem se desenha e situa os óculos a um nível metoní-
mico que coloca Nádia completamente à vontade quando ela os arranca, ao
mesmo tempo em que ele confirma a imagem a descolar em seu estatuto de
significante.
Assim, até 24 de dezembro, ela passa de um objeto metafórico como a
mamadeira a objetos metonímicos como o papel, meus óculos e mesmo, a 22
de dezembro, um velho suéter com o qual da esfrega o rosto balbuciando e
sapateando de alegria.
O objeto metafórico, como a mamadeira, ela deve destruí-lo, nem que
para isso bata com ela no chão a ponto de rachá-la e que o leite esguiche, ou
ainda que ela a entorne e a esvazie de seu leite, espalhando as poças com a
mão. Aparece aí o fenômeno de espalhamento, que vai retomar várias vezes,
seja com o leite, seja com outros objetos em relação com as estruturas de su-
perfície. Esta superfície, é a do corpo, seu e meu; ela predomina em toda a
sessão de 24 de dezembro.
Neste dia, Nádia tem um encontro prenhe de conseqüências. Interessan-
do-se pelos botões de minha blusa, toca a minha pele sob esta: ela se detém
e foge. No chão, ela despedaço um biscoito. Após um momento, ela pede para
voltar a meus braços para de novo manipular os botões de minha blusa, mas
com precaução, para nlro tocar em minha pele. Assanha-se cm seguida em
minha boca, me bate, puxa meus lábios, arranha-me, com um rosto hostil; de-
pois ela empurra violentamente minha cabeça para trás com uma mão, e com
a outra arranha-me o pescoço, crava seus dedos em minha pele que ela belisca
e puxa. Está tão violenta que eu a tomo e levo-a até a janela para distraí-la.
Acalma-se um pouco. Mas a violência da cena, consecutiva ao encontro de mi-
O Pré-Especular 63

11ha pele, deixa-a inquieta, e tomarei conhecimento que após minha partida
11Jo somente ela teve uma diarréia como também se lambuzou de cocô até o
1osto, chegando mesmo a comê-lo.

De minha pele que ela não podia suportar enquanto superfície fechada,
11iío furado, ela passa à sua e besuntando-a de cocô, até e inclusive a boca, ela
diz que é sua pele que deve ser uma superfície sem falha nem furo, sem des-
nmtinuidade, sem exterior, nem interior. É a versão em sua pele da imagem
de 10 de dezembro. Lá onde o olho falhou em razão de minha intervenção
\ignificante pela nomeação, é a pele que vai responder pela totalidade. A+ a. E
1~to acontece imediatamente depois de minha partida, isto é, quando não es-
lou mais lá; do meso modo como eu não estava a 10 de dezembro.
Alguma coisa do que deve ser meu corpo e o seu mutuamente ligados,
aparece aqui em plena luz: meu corpo deve ser uma superfície furada em ra-
1.To dos objetos que ela quer retirar dele, para que os furos da superfície de
seu corpo sejam preenchidos. Ela desgovernou-se também quando encontrou
minha pele, que era o Real da ausência de furo. Quis também, manifestamen-
1e, abrir uma brecha nesta superfície sem furo, cravando seu dedo em meu
pescoço. O furo na superfície de meu corpo é a caução para que o bojeto de
meu corpo faça parte do seu.
Assim mesmo, quando parto, ela substitui metaforicamente minha pre-
sença e o objeto de meu corpo por este objeto de seu próprio corpo, tanto em
sua pele quanto em sua boca. Ela mostra que o exterior e o interior de seu
corpo tem continuidade, isto é, que seu corpo é somente uma superfície de
11m lado só. É após minha partida que ela o faz: minha ausência como Outro
faz com que o significante seja substituído pelo Real.
Foi a primeira vez que ela lambuzou-se assim de cocô, ao longo do tra-
1amen to; isto vai ainda lhe acontecer por duas ou três vezes, sempre na mi-
nha ausência, fora da sessão.
Se chegamos a uma tal estrutura de superfície do corpo em Nádia, uma
rstrutura que topologicamente corresponde a uma banda de Moebius, foi por-
'fUe a relaçllo de corpo entre ela e mim enquanto Outro, ela a procurou como
que levada inevitavelmente para uma relação de inclusão, primeiramente por
:1wlamento sobre o olho e em seguida na pele toda.
A contrario, o obstáculo, e mesmo a impossibilidade, que ela encontra
.-m atingir uma tal relação de corpo pela inclusão, provoca nela uma agressivi-
dade que se desenvolve em dois tempos: desde que ela tocou em minha pele,
,, em minha boca que ela se assanha, ou melhor em meus lábios, antes de ob-
1urar esta boca com sua mllo e de dirigir-se, num segundo tempo, a meu pes-
,·,>ço para tentar fazer aí um furo com seu dedo.
Encontramos aqui o transitivismo entre seu corpo e o meu; pois o que
ria exprime, não é alguma ausência do furo de minha boca, que ela teria que
1âazer, ela para que, entretanto, desde o início, a exploração de meu corpo
1inha começado pelo furo desta boca? O sentido de sua recusa desta boca em
111cu corpo teria que ser interpretado como recusa a nível de seu próprio cor-
64_ Nadia ou o Espelho

po: ela não tem boca; sua boca não existe, enquanto não pode ser preenchida
pelo acolamento do Outro ou pelo objeto do qual ele é portador. E o que faz
com que, nesta dimensão transitivista, seu cocô passa, na minha ausência, vir
por acolamento preencher não somente sua pele, mas sua hoca.
Reencontramos este duplo movimento transitivista a 25 de dezembro
quando, após ter escondido sua cabeça em meu pescoço e 111c apertado forte
em seus braços, com um olhar terno, torna-se difícil decidir quem, ela ou eu,
preenche a outra. Em todo o caso, o que ela não pode supor! ar neste dia, é
estar separada fisicamente de mim, o que a violenta e que ela confinna tor-
nando-se agressiva consigo mesma. De volta a meus braços, ela retoma a agres-
sividade contra meu pescoço. Esta violência contra mim prossc!-\ue durante as
sessões seguintes até 30 de dezembro; contra si mesmo tamtx:111; e por várias
vezes, na minha ausência, ela lambuza-se de cocÍl. como na primeira vez.
O transitivismo em torno da hoca retoma a iuh'nsidadc que tinha no
início, quando eu comi um pedaço do biscoito l' que foi l'la que vomitou.
Num primeiro tempo, a 28 de dezembro, da colora 11111 hisrnito em minha
boca, retira-o e inspeciona-o, depois raspa minha Iíny,ua t·11111 sua unha. Se ela
recoloca-o em minha e eu mordisco um pedaço, é pai a ,r111 :í lo mm seu dedo
e jogá-lo com um ar de desagrado. Na sessão segui11!l'. ria lillha 11a própria in-
trodução de um pedaço de biscoito em minha boca, so111r1111' Sl'US dedos en-
t,am nela e ela os retira rápido, ao mesmo tempo cm q11r d:i 11111a grande gol-
fada de mingau. Então, mostra-se repugnada comu 11a v,',prra; mas desta vez
não pode causar do objeto que sai de minha boca 011 da sua. mas porque um
pouco de mingau regurgitado ficou em seu pé, que ela san1dr para fazê-lo cair.
Uma outra vez por fim, ela terá este ar de desagradu (a.\ 1 de dezembro)
ocupando-se com minha boca: neste dia, não é do furo llt· minha boca que se
trata, mas de minha língua. Num primeiro tempo, ela t•111p11rra-a fecha sime-
tricamente sua própria boca. Em um segundo tempo, } sua prúpria lfugua que
ela bota pra fora, procurando a minha. Todo um jogo se rslahrlcce entre sua
língua e a minha; seu nojo surge desta descoberta metafórico tio órgão que re-
vela, sempre transitivamente, uma fantasia oral no rcenw11tro com um Real.
Se este reencontro do órgão real provoca o desagrado, 15 que ele está em con-
tradição com o efeito de interdito, ligado estruturalmt•nk ao significante.
Toda a cena só se resolve quando Nadia passa a 111:Jo l' 111 ~cu nariz, que
escorre bastante, e enfia-a inteiramente em minha boca mm viok·nLia, retira-a
sorrindo e não se ocupa mais com minha boca. Corno se da tivesse restabele-
cido o furo em sua integridade.
A partir destes episódios onde ela encontra o rcp11p.11a11da pode-se pre-
cisar a articulação da metáfora e da metonímia. A metáfora, mais perto do
Real, num efeito substitutivo reforçado pelo transitivis11111, ti aqui reveladora
do que foi recalcado. A metonímia, mais próxima do sig11ilicante, por seu
efeito próprio, liberta Nadia deste transitivismo e de uma aproximação
demasiada do Real do corpo. Tudo já estava assim colocatla par a ela. como vi-
mos, desde a segunda parte da sessão de 10 de dc1.cmhm. A passagem da
-O Pré-Especular 65

11wtáfora â metonímia já estava lá no medo que ela manifestava de estar pró-


~i11ia demais, e mesmo colada a mim, razão pela qual ela só me estendia me-
11111icamente um pé, antes de me dirigir seu "mama".
Todo seu debate, nesta fase pré-especular, atêm-se a que ela é impelida
para a inclusão do Outro por acolamento, e que ela não pode suportar, reve-
1:ílo a mim, que sou o agente da interdição porque isso a nomeio e porque falo.
Ela tem dois caminhos para sair deste impasse: a inversão e o véu.
A invers!Io, é o que ela faz após ter encontrado minha língua e não so-
111ente, esconde a sua, como empurra a minha com sua m!Io besuntada do que
r•;corre de seu nariz! como se ao colocar o que escorre sobre sua pele em mim
,·Ia ré-inscrevesse o que estava sobre sua pele (o cocô) à minha conta; aliás, de-
pois disso ela não mais se lambuzará de cocõ. Após ter enfiado em minha gar-
11.a11ta minha língua-objeto metafórico, não in,verteu ela própria a metáfora,
a ponto de passar de um "colar-me sobre ela" à um "colar-se sobre mim", em
111inha boca? O arrancar os óculos dá lugar à uma mesma inversão quando, por
,·xemplo, a 29 de dezembro, após assanhado neles, ela coloca-os por duas ve-
res nos meus olhos, esperando que eu os recoloque para arrancá-los novamen-
1e: isto é, transformando em jogo o arrancamento e atenuando o sentido de
deslocamento da imagem que ele tinha. No fim desta sessão onde ela deu uma
golfada de mingau, mingau que ela espalhou com seu dedo antes de sugá.J.o,
ria suga muitas vezes as hastes de meus óculos, estabelecendo uma equação
,·ntre o que ela perdeu e o que ela me faz perder: do que se trata é de apagar
todo furo que aparece na superfície, tanto na sua quanto na minha.
Quanto ao véu, ela o encontra mais do que lhe dá função, a 30 de de-
1.cmbro. Nesta sessão, ela colocou um biscoito em minha boca e, batendo, que-
brou o pedaço que ficara de fora, o que a fez rir muito. Em contrapartida, ela
não consegue pegar o papel e bate em meu peito; faz~ndo isto ela toca em mi-
nha pele e se detém imediatamente, como a 24 de dezembro; mas desta vez
ela volta, arranha minha pele com o dedo, depois, impulsivamente, afasta mi-
nha blusa e mergulha sua cabeça para olhar o interior durante alguns segun-
dos: ela ergue-se furiosa e bate em meu peito. Que viu ela? Nada senão, sob
minha blusa, o meu chemisier. Porque sua cólera brusca? Porque o objeto que
ela procura permanece-lhe velado, o véu confirmando-lhe a interdição â qual
ela tem ligação, isto é, a de incluir o objeto do Outro em seu olho, pelo seu
olhar. Então ela opera uma inversã'o: deita-se em meus braços, colando-se a
mim para se fazer beijar, como se mais uma vez, não podendo incluir o que é
do Outro, ela própria se fizesse o objeto do Outro: numa iniciativa metafóri-
<.'a que culminará, como veremos, a 16 de janeiro.
A procura do objeto sobre meu corpo não é sem prolongamento, pois
durante esta cena, Nádia faz pipi na fralda, sob o véu de sua fralda, introdu-
1.indo por uma micção, isto é, o Real de seu corpo, em outro objeto faltante:
reação agressiva depois de sua decepç!Io, como já aconteceu nas duas sessões
precedentes.
Ela recomeçará por 3 vezes, até 3 de janeiro, a enfiar sua cabeça durante
alguns segundos em minha blusa, sempre com este resultado metafórico on-
66 Nadla ou o Espelho

de, não podendo recolher, pelo seu olhar, o objeto metonímico e velado, isto
é, o seio, sobre meu corpo, ela se faz meu objeto em meus braços, colada em
mim, não sem tenura. ·
Um outro objeto vem no primeiro plano de cena na sua relação comigo:
os pés. fl. o primeiro objeto do corpo que ela me estendeu quando ela saiu de
sua fascinação a 10 de dezembro. A 30 de dezembro, o que a regozija muito
vivamente, não é que eu me ocupe de seus pés, mas que eu lhe coloque as
meias, isto é, que eu os vele. Ela vai agora ser calçada para ir à sessão, e, a
partir do dia seguinte, ela calça sapatos pela primeira vez em sua vida. É uma
grande alegria; o que faz com que ela me olhe rindo às gargalhadas, não é
mais somente o objeto velado, mas o barulho que ela faz sapateando, o "fa.
zer-se escutar" por este objeto que ela não vê, nem eu; objeto cuja presença
está situada ao nível do ouvido, para o qual sabemos o quanto Nádia está
aberta. Cada sessão, doravante, começará sob o signo das meias:e sapatos as-
sim que ela me vê apanhá-los, seu rosto, fechado quando chego, se iluminará
com um sorriso de alegria, e ela até sapateará.
A 31 de dezembro, os sapatos aparecem plenamente em sua função
dialética. Não somente eles são metonímicos pelo fato de não revelarem sua
relação à fantasia fundamental de desejo de acolamento ao Outro, mas eles
adquirem a dimensão para além de todo saber quando Nádia manifesta a
maior alegria ao olhar alternadamente, na sessão, seus sapatos e os meus. Sua
função de "traço-unário" evidentemente lhe faz atingir o nível de identifica-
ção, numa antecipação bem sucedida em relação a seu debate atual, ainda
mais ligada à primeira forma de identificação por acolamento, que a deixa em
um transitivismo sem saída.
Se os furos na superfície dos corpos revelam-se pelo que são: sempre a
obturar, pela primeira vez, com os sapatos, um furo pode metonimicamente
ser assumido como além da superfície, sem revelar perda minha ou dela, isto
é, sem que o Outro, saiba da perda; isto a faz antecipar-se sobre a existência
do interior de um evoltório. Este além do furo do envolucro explica a alegria
de Nádia e abre uma brecha na sua inquietude de me ver chegar para a sessão:
a metáfora de minha presença encontra-se ultrapassada pela metonímia dos
sapatos, que prefigura a estrutura do corpo que ela encontrará pelo espelho: a
estrutura tórica.
CAPÍTULO VII
O PEQUENO outro: A BONECA
O lugar metafórico do sujeito

4-16 de janeiro

i 11 J A 4 de janeiro, é festa de Natal na instituição. Resta-me alguma ilusão


pois levo Nádia até lá quando ainda não há ninguém. Tive que enrorá-la em
um cobertor pois ela está muito emocionada, oprimida e tensa. Ela olha pou-
co para a árvore de Natal interessando-se muito mais pelo que tenho no bolso.
Reconduzo-a a seu quarto.
Quando benho buscá-la à tarde para a sessão, ela está muito bem e traz
consigo a bola que recebeu de presente de Natal.
Sentada no chão, ela suga e morde a bola, depois deixa-a por um ins-
tante para jogar os biscoitos com violência. Vem para meu colo, e torna a
morder e sugar a bola; percebe uma bola velha e vazia no fundo da sala e vem
huscá-la para sugar como faz com a sua, depois volta para mim empurrando-a
diante dela. Ela rola e ao perseguí-la Nádia derruba involuntariamente a ma-
madeira com o pé. Ela pára imediatamente, olha a mamadeira que ficou equi-
librada em seu sapato, pega-a, sacode-a violentamente, bate com ela no chão,
faz grandes semi-círculos esfregando-a no assoalho. O leite esguicha por todo
lado e os brinquedos vão esbarrar longe dela. Depois ela atira a própria mama-
deira bem longe. Toda esta cena é violenta e seu rosto está tenso.
Assim que a mamadeira está longe dela, ela olha para mim às gargalha-
das, batendo com seus sapatos no chão, e volta para meu colo, encantada;
quer que eu a faça saltar, mas isto é breve porque ela está muito excitada.
Toma a descer e é somente neste momento que ela arranca meus ócu-
los; ela os devolve uma vez para poder arrancá-los novamente.
Pega o papel em meu bolso, esfrega-o nas poças de leite e depois em
meu rosto so"indo. Depois apanha um biscoito mergulhado numa poça de
leite, lambe-o várias vezes, atira-o longe violentamente e se apodera da boneca
que ela borrifa de leite com a mamadeira; arranca-lhe o chapéu, bate-lhe bem
forte a cabeça no chão, faz grandes semi-círcµlos com ela no assoalho e final-
mente atira-a longe. Ela bateu em mim uma vez, não sem antes ter batido com
o carro em sua própria cabeça. Tudo isto balbuciando de maneira bem articu-
lada e travéssa.
Quando a recoloco no chão, em meio aos outros, o que a interessa é
arrancar-lhes os brinquedos e ·ela desloca-se muito para isso. Continua exube-
68 Nadia ou o Espelho

rante, permanecendo em contato comigo, mas ela se afasta quando uma outra
criança agarra-se a mim.
Ensaiou engatinhar na sessão.
A-5 de janeiro, acabaram de trocá-la e de lavar seu rosto quando chego;
ela parece apavorada. Sua expressão de medo transformou-se em angústia ao
me ver e ela esboça um movimento de recuo. Falo um pouco com ela para
acalmá-la, mas sua expressão não muda. Para saber se ela quer ainda assim vir
para a sessão, mostro-lhe meias e sapatos; antes mesmo que eu os apanhe sob
o colchão, ela sapateia de alegria, ri olhando para mim e tenta arrancar meus
óculos.
Na sessão, ela arranca-os, parte e joga os biscoitos e suga energicamente
meus óculos. Ela coloca por várias vezes seguidas wn biscoito em minha boca:
eu mordo wn pedacinho a cada vez; ela j_gga e tira da minha boca com seu de-
do o que resta do biscoito em minha língua, com ar repugnado.
Com o rosto tenso, ela atira longe brinquedos, boneca e biscoito com
braços e pernas. Hesita diante da mamadeira, dá-lhe um pequeno empurrão
para derrubá-la, mas sendo este tímido demais, ela permanece de pé. Vem en-
tã:o para meus braços e me sorri. Torna a partir e, como na sessão da véspera,
derruba a mamadeira sem querer. Ela fica então furiosa com a mamadeira,
bate nela, esguicha leite por toda parte. Detém-se para lamber wn pouco o bi-
co da mamadeira, antes de atirá-la longe e não mais se ocupar dela.
Ela vem em seguida para perto de mim e lamb.e minha manga; tenho a
impressão de que ela queria me comer; digo-lhe isso. Ela bate em mim uma
vez com sua miro e fico ansiosa. Quer voltar para meus braços onde ela se
descontrai e ri.
Reconduzo-a, recoloco-a no chão: ela desloca-se agachada, pela sala to-
da, olhando para mim frequentemente e rindo.
Durante toda esta sessão, afora os breves momentos em que esteve sen-
tada em meus braços, ela esteve ansiosa e inibida em sua motricidade e em seu
balbucio. No fim de sessão, ela tocou várias vezes a fralda entre as pernas.
A 6 de janeiro, encontro-a tensa ainda: ela não me sorri de imediato;
mas como na véspera, assim que ela me vê procurar meias e sapatos, ela sapa-.
teia e ri; ela está contente, mas violenta. Tomo conhecimento q üe ela tem diar-
réia desde a véspera.
A grande inovação da sessão é que ela começa a andar; mas seu andar é
mesclado de agressividade contra mim.
Ela começa a sessão com a cena habitual dos biscoitos: ela joga um, ele
se parte, não se ocupa mais dele, mas o segundo não se parte e ela fixa-se nele
com meus óculos que ela joga, furiosa por não ter conseguido partir o biscoi-
to. Ela toma então a pegar o biscoito e violentamente enfia-o inteiro em mi-
nha boca com dedos e tudo. Retira-o daí, olha para ele furiosa por encon-
trá-lo intacto; com desagrado atirá-lo longe dela, dando um pum sonoro.
Ela vai derrubar a mamadeira, esguichar o leite por toda parte e tornar
a jogá-lJ. Suga o polegar que ela mergulhou nwna poça de leite; passeia sua
mão inteira nesta poça, sempre bastante contraída.
O Pequeno outro: A Boneca 69

Volta para meus braços por um segundo, não quer mais ficar e vai apa-
11 har o biscoito recalcirante, que ela lambe, depois atira com toda força na po-
,,,1 de leite; finalmente ele se parte, mas ela só fica realmente satisfeita depois
d,· ter dispersado todos os pedaços.
Ela vem então para meu colo e sorri, pela primeira vez um pouco des-
', ,11traída.
Torna a descer para buscar meus óculos que ela me devolve para logo
,111ancá-los e sugá-los. Pega o papel em meu bolso e parte com ele para bem
I, •r1Ke; de lá, ela olha para mim e coloca o papel na boca; volta depressa em
111i11ha direção, o cenho franzido, com uma expressão que me faz pensar que
ria quer me comer. Mas antes de chegar até mim, ela muda de idéia e apoia-se
11;1s barras do leito para colocar-se de pé, após ter jogado o papel.
Durante os dez últimos minutos da sessão, ela anda por todo o leito,
,,poiando-se nas barras, indo e vindo de onde eu estava até o ângulo oposto
"" leito, balbuciando com violência durante todo esse tempo: "ga-ga-da-da".
~~·u rosto está tenso: ela tem o ar furioso, comigo e com ela.
Quando a tomo nos braços para reconduzí-la, ela dá uma gargalhada
lrliz, e aperta meu pescoço, mas é rápido, e no corredor ela me repele.
No quarto, ela quer ser colocada no chão imediatamente; apanha um
1,, inquedo que faz barulho e agita-o com força rodando-o por cima de sua ca-
lwça. Assim que atravesso o quarto para sair, ela me segue, rápido,engatinhan-
do; como eu me volto, ela torna a buscar o brinquedo, pede para vir para
111eus braços e bate com o brinquedo na minha cabeça rindo. Ela tinha aliás
li;1tido a cabeça contra o leito ao se levantar, e descontente com isso, batera
1wle.
Nádia soluçou durante toda a sessão; isto só parou durante o retomo a
·.rn quarto.
A 8 de janeiro, encontro Nádia com a mesma expressão de medo; seu
111sto só muda, como das outras vezes, quando ela me vê pegar mefase sapatos;
1·11 tão ela sapateia de alegria e balbucia.
No início da sessão, ela n!i'o está contente, porque um médico e uma en-
tnmeira estão na sala. Ela pode pegar os biscoitos na presença deles, mas só
1•11derá jogá-los quando eles tiverem saído.
Durante toda a primeira parte da sessa:o, ela se mostra encolerizada mas
11:lo ansiosa. Ela manda tudo pro ar, tenta por duas vezes derrubar a mamadei-
' ,1 com a míro, mas não conseguindo, dá-lhe um forte golpe com o pintinho.
•Juando a mamadeira está virada, ela não se concentra nela; não a toca e per-
111anece um tempo bastante longo em muda contemplação diante dela, o ros-
111 contraído.
Após ter alargado a poça de leite, ela assanha-se na boneca, cuja cabeça
da bate violentamente, antes de fazer grandes molinetes com ela. Arranca-me
, ,s óculos, e é junto com a boneca que ela atira-os o mais longe possível.
Ela abandona a boneca após ter machucado a mão nela no decurso de
·.,·us molinetes. Ela bate então uma vez com a mão na cabeça, depois vem
para meus braços, sorri de felicidade e se faz beijar longamente.
70 Nadia ou o Espelho

Como na sessão precedente, ela tem prazer em awlar ao longo do leito


balbuciando muito e olhando-me sem cessar, como para me fazer participar
de sua alegria.
Percebe entao uma vassoura perto da porta; ela hem que queria alcan-
çá-la. Sacode violentamente o leito de tal sorte que ele se desloca lentamente
em direção à vassoura; mas ela recusa minha ajuda quando tcn ta deixar o leito
para chegar até a vassoura. Não podendo alcançá-la, desislc de seu projeto,
e vem em minha direção para abandonar-se a uma grande demonstração de
carinho: ela me acaricia o ombro, olha-me de muito perto, depois lambe mi-
nha face balbuciando de alegria.
Torna a partir para apanhar o papel que ela tinha pegado e jogado an-
terionnente: retornando, ela bate em minhas costas com o papel rindo demais,
largando-o, bate-me com a mão. Ela ri. Pega de novo o papel, coloca-0 em sua
boca e engatinha, com o rosto tenso. Volta para mim, acontece de eu estar
com a mão sobre o pintinho: ela levanta minha mão e a coloca um pouco mais
adiante para pegá-lo. Quando a reconduzo a seu quarto, ela se agita para ser
colocada no chão. Apressa-se em arrancar um brinquedo de mna outra criança;
não conseguindo, ela me olha descontente e desloca-se rápido para pegar um
sapato que está por lá jogado.
A 9 de janeiro, encontro Nádia chorando, sentada no chão em meio aos
outros. Ela levanta os braços quando me vê, mas o faz num gesto inacabado,
em expectativa. Só se descontrai em meus braços. A enfermeira diz que Nádia
está chorando porque ela é ciumenta e não pode suportar vê-la ninar uma ou-
tra criança.
Na sessão, ela arranca meus óculos, fixa-se neles, coloca-0s em minha
mão; toma-os de volta, depois devolve-os, assim faz várias vezes seguidas, com
um gesto normal, sem destravamento. No fim, ela os deixa cm minha mão
para ir apanhar um biscoito que coloca em sua boca; tenho a impressão de
que ela mordeu um pedacinho, mas não vejo vestígio disso no biscoito que ela
examina atentamente após tê-lo retirado de sua boca sem precipitação, nem
desagrado; lambe-o, antes de atirá-lo longe. Ela derrama a mamadeira, mas
não toca nela.
Então, ela balbucia de alegria em meus braços, lambe meu ombro, apal-
pa meus braços; ela fica de pé no chão para andar um pouco em volta do lei-
to. Ela n!ío chega a afastar-se muito de mim e retorna sempre ou para sentar-se
em meu colo ou ficar de pé diante de mim, apoiando-se em meus ombros.
Grande ternura em seu rosto.
Após muitas hesitações, ela vai espalhar as poças de leite, ao mesmo
tempo em que olha a mamadeira na qual ela não vai tocar.
Torna-se extremamente violenta com a boneca, depois bate em sua pró-
pria cabeça e bate em mim rindo. Coloca-se de novo em pé, encantada.
Reconduzo-a alegre, segurando um pedaço de biscoito
Como me assinalam, de à tarde, que ela suporta mal o intervalo entre as
sessões, e que ela se volta sobre si mesma sem que se possa distraí-la, decido
fazer uma segunda sessão neste mesmo dia.
O Pequeno outro: A Boneca 71

Volto a encontrá-la com o rosto bastante imóvel.


Na sessão, ela coloca os biscoitos no chão, vem pegar o lápis em meu
l,olso, coloca-o em minha boca, depois na sua, em seguida olha para ele longa-
11wnte, depois joga-o, e vem se fazer acariciar de pé contra mim, sorrindo ter-
11:11nente, com um balbucio quase musical.
Ela coloca por um momento sua boca aberta sobre a minha, babando e
, ,Jln um movimento de sucção, sorridente e feliz; em seguida ela me dá terna-
,,,cnte palmadinhas no pescoço.
Percebe o penico, elemento novo em seu interesse. Dirige-se para ele,
111as volta para apanhar o lápis, e senta-se a alguma distância do penico. Lam-
ht~ o lápis e, engatinhando, vai olhar dentro do penico. Então, ela volta para
l111scar o lápis com o qual ela tatia o penico antes de mergulhar o lápis az" lon-
g,unente e por várias vezes seguidas. Ela balbucia de alegria e volta para meus
t, raços.
Reconduzo-a a seu leito.
Passando mais tarde em seu quarto, percebo Nádia no leito, deitada de
lado, o rosto inerte, sugando o polegar.
A l O de janeiro, como é mais tarde do que de costume, encontro Nádia
deitada. Ela suga o polegar, quase adormecida, mas desperta depressa quando
pego seus sapatos. Eu a sinto tensa.
Na sessão ela parte os biscoitos, pega meus óculos, devolve-os, depois
atirá-os longe dela. Empurra muito ligeiramente a mamadeira que não cai, ela
11 ão insiste.
Vem para meus braços, apalpa minha pele, lambe minha face, aproxima
-;ua boca da minha, sem mais nada fazer. Vê o penico e em seguida olha para
mim sorrindo.
Eu devo levá-la de volta ao leito para o jantar.
Desde 6 de janeiro ela tem diarréia.
Fico espantada em encontrar Nádia deitada no chão, a 11 de janeiro; a
enfermeira a colocou aí para trocar-lhe. Ela está contraída e só irá descontrair-se
em meus braços.
Na sessão, ela pega um biscoito, morde um pedaço pequenininho, inspe-
ciona de novo o biscoito e atira-o longe. Ela enfia então seu dedo em minha
boca e raspa-me a lingua como se fosse eu que tivesse comido o pedaço de
hiscoito.
Ela bem que gostaria em seguida, de derramar a mamadeira, mas não
ousa fazé-lo, nem com a mão, nem com o pintinho. Ela vai apanhar sob um
leito uma bola, mas, lembrando-se de ter batido a cabeça neste leito numa ses-
~ão precedente, bate nele duas vezes antes de aventurar-se embaixo dele. Ela
suga a bola e volta a apanhá-la cada vez que ela rola mais longe; ao fazer isso,
~u pé engancha-se na mamadeira que cai. Ela esquece então a bola, apanha a
mamadeira, sacode-a no chão para derramar o leite e depois a atira longe, ten-
sa e agressiva.
Apanha a boneca para, da mesma forma, jogá-la longe dela, depois bate
em sua própria cabeça e volta para meus braços. Lambe-me os ombros, fica de
72 Nadia ou o Espelho

pé apoiando-se no leito, dá dois passos apc.·nas e· v11ltn p111n 111,•11s braços para
se fazer mimar. Beijo-a, ela se ergue e se ass.111ha r1n 1nl11lrn hoca, puxando
meus lábios, jogando minha cabeça para tr,ís, 111a111r111I" n ni " apalpando meu
pescoço; se mostro intenção de erguer minha c.·ah,·\·a. ,•la jnp.a a para trás com
um ar furioso.
Ela desce para ir na direção da porta e k11h11 a it11p1r•,•;:Jo1 de que quer
andar, mas não na sala de sessões. Carrego-a e ah111 a l'"tla p:11;1 vn o que ela
quer: ela estica-se para o corredor balbuciando. h1I :111 ,·11 ,1 ,rrnlllluzo a seu
quarto; ela quer primeiramente ficar no chão cor1111 oo; 11111111,; Fia bate em
uma outra criança que queria tomar-lhe o carro que.• le111 na,, 111!\ns desde a ses-
são, volta-se para mim e estende-me os braços. O qtu- ria q11,•1 ,; andar com
meu apoio. Como sua fralda escorregou e entrava St'II :111,la,. ,·11 a confio a
uma enfermeira para que ela seja trocada; N,ídia rltm a. 11111111 a tomá-la em
meus braços, ela recusa que eu a coloque no eh.lo, mas q11r1 q11l' l'II a leve até
o corredor, depois até a sala vizinha; lá, ela quer a11da1 l' vai alt' 11111a caixa de
brinquedos onde ela pega wn marinheiro de borracha.
A 12 de janeiro, ela anda muito pouco e que, s11h1l'l 1td11 ,·star em meus
braços onde ela agride minha boca; ela é de nm•o 11/r,11,/11 1•l'it1I hotões de
minha blusa.
De volta a seu quarto, ela está agressiva com as 1111tias ni:mças e quer
andar.
A 13 de janeiro, ela me estende seu pé direito pata q11r 1·11 a calce, mas
recusa que cu coloque o pé esquerdo do sapato; ela loma 1, ,Ir mim e joga-o.
A enfermeira o coloca sem a menor dificuldade.
Durante toda a sesssão, ela estará muito violenl a. s11 l111'111do após ela
ter batido o carro no penico. Em seguida, ela não ousa 111.11s ap111 x imar-se des-
te e começa a rodar em volta, lançando agressivamente o cai111 diante dela pa-
ra apanhá-lo de novo e tornar a jogá-lo.
Numerosos intervalos em meus braços, onde ela se mosl Ia violenta com
minha boca na qual ela bate muito forte com o carro uma ve,.
,lt:pois que eu
lhe disse, quando ela puxava agressivamente meus lábios, qm• ria odiava a bo-
ca porque ela não teve dela tudo o que queria. Ela fica ent.io parada um minu-
to diante de minha blusa na altura de meu peito, e começa a jogar atrás dela,
por cima de seu ombro, os brinquedos e o carro com o qual ela se golpeia na
passagem.
Ela desce e começa a andar de um leito a outro halhuciando como se
dissesse injúrias.
Em seu quarto, ela quer andar para ir arrancar dos outros o que eles
têm, mas dá sobretudo a impressão de não saber o que quer. A chegada do pai
de uma outra criança a amedronta e ela se refugia em meus hraços, olhando
intensamente para o desconhecido.
Ela recusa ainda a 14 de janeiro, que eu lhe coloque o pé esquerdo do
sapato, que a enfermeira coloca facilmente, como da primeira vez.
Uma certa recusa das sessões acentua-se hoje e ela manifesta uma prefe-
rênda pelo andar, em seu quarto em um primeiro tempo.
O Pequeno outro: A Boneca 73

Quando fecho a porta da sala de sessões, Nádia bate nela e interessa-se


pl'lo interruptor elétrico. Se ela joga ainda os biscoitos, sua agressividade con-
1,a eles diminiu muito. Ela vai buscar um deles caído atrás da poltroninha, mas
,1 111amadeira barra o caminho; ela toca na mamadeira com precaução e volta

p;1ra trás: numerosos vai-e-vens para encontrar uma solução de passagem sem
,Incubar a mamadeita; ela não evita entretanto derrubar e repelir a mamadei-
' a que se imobiliza em meu pé; Nádia a repele ainda mais longe para baixo de
,una cadeira e não se ocupa mais dela.
Então ela apanha o biscoito com o qual vai tocar o cano da calefação.
:\handona-o em seguida para tocar no cano com a mão, intrigada com o calor
i' sacudindo a mão enquanto olha sua palma.

Em meus braços, ela arranca meus óculos, devolve-os rindo, depois co-
loca-os em meus olhos. Eu os recoloco, ato que ela espera com um olhar tra-
vesso; ela toma a arrancá-los. Ela desce para buscar seu biscoito com o qual
,·la vai bater na beirada do penico, depois de ter girado em volta dele;em se-
guida ela bate dentro do penico.
Volta-se para mim, me faz comer um pedaço de biscoito que ela mesa
ietira de minha boca com seu dedo; eu digo-lhe isto, ela me sorri, continua,
depois joga o biscoito fora.
A partir deste momento, ela fica tensa e agressiva. Ela queria aproximar-se
do penico, mas gira em volta e afasta-se. Retoma para junto de mim, esconde
sua cabeça em meu peito e me olha temamente. Ela vai maltratar um pouco a
honeca, depois toma a tomar de mim o papel que ela joga por cima da cabeça.
De novo ela coloca ternamente sua cabeça em meu peito; depois fica de
pé com o apoio das barras do leito, me faz admirá-lo, se faz beijar e recomeça.
No fim da sessão, ela não sabe mais em que ponto está, nem o que quer:
.ficar longe de mim ou vir para meus braços, fazendo os dois atos alternada-
mente; ambos mal feitos, apenas esboçados, ela ahandona um pelo outro,
com um balbucio bem modulado, ou violento como uma injúria, ou terno e
musical.
Eu a reconduzo. No quarto, ela queria andar para mim sem apoio mas
como ela não consegue, vem se fazer acariciar em meus braços; depois quer
que eu a recoloque no chão para arrastar-se até o quarto vizinho onde ela ou-
ve outras crianças brincando. Se uma criança chora, ela para imediatamente,
inquieta, e volta a meus braços para reencontrar a segurança antes de tomar a
partir.
A 16 de janeiro, eu a encontro deitada na mesa, chorando porque a
babá acabara de limpar seus ouvidos; ela tinha um corrimento espontâneo. Ela
deve ter chorado muito, seus olhos estão muito vermelhos.
Quando ela me vê, pára de chorar, mas não me estende os braços. Eu a
carrego, ela dá um breve soluço e aperta meu pescoço entre seus braços, sapa·
teia discretamente, se afasta um pouco mas wlicamente para olhar meu rosto
intensamente; ela sorri e seus dois braços estão apoiados em meu ombro.
Ela fica contente em entrar na sala de sessões. Estira o braço na direção
de novos brinquedos: uma arca de Noé com diferentes animais em madeira
74 Nadia ou o Espelho

e um marinheiro de borracha. Decidi não mais sentar-me no chão, mas em


uma cadeira baixa, agora que, apoiando-se aí ela pode lcvan tar-se; mas seu es-
tado esta manhã me obrigará a recolocar-me por duas vezes ao seu nível.
Todo o tom emocional desta sessão é dominado por 11111 ardente desejo
de se fazer acariciar e por um negativismo violento que obriga Nádia a me re-
pelir, apenas se tenha abandonado um pouco. Nenhum balbucio.
Imediatamente, ela vai até a arca e começa a lirar os brinquedos.
Seus gestos são novamente muito desajeitados e ela retomou seu movimento
de destrave automático de abertura da mão, quando ela la'l:a um brinquedo;
este destrave é diferente entretanto do inicial, pois quando ela larga o brin-
quedo, ela olha para ele, inerte, mais conserva sua mão de dedos contraídos
em cima do brinquedo.
Recoloca na arca o que ela daí tirou e interessa-se apenas por um bar-
quinho em celulose e por um marinheiro de borracha; mais tarde por um sol-
dado de chumbo. Ela pega o marinheiro e tem vários desl raves antes de atirá-lo
longe dela; a partir deste momento não haverá mais destraves. Com o pé, ela
chuta um cubo para baixo de uma cama. Joga várias vezes o barco no chão e
abandona-o para vir em minha direção. Por duas vezes agarra-se bem forte em
meu peito, mas suas mãos estão contraídas e ela ergue-se nípido afastando-me
com seus braços.
Descobre que pode andar empurrando a poltroninha diante de si;e/a é in-
terrompida em seu movimento, e começa a chorar, refugia-se cm meus braços,
agarra-se a mim. Por duas vezes, ela quer voltar ao chão; mas após um breve
soluço, ela volta a agarrar-se em mim, antes de finalmente se decidir.
A partir deste momento, ela faz barnlhos de sucçãú. Ela vai apanhar o
soldado de chumbo, suga o fuzil olhando para a mamadeira, depois colo-
ca-o em diferentes lugares perto da mamadeira, que ela não ousa tocar; ela
torna a pegar o soldado e sugá-lo novamente olhando a mamadeira. Digo-lhe
que ela o pode sugar no lugar da mamadeira; então ela o abandona, faz baru-
lhos de sucção, apanha o barco para sugá-lo uma vez e o atira violentamente
longe dela, depois começa a sugar o marinheiro. Ela o deixa para vir para
meus braços e sobretudo ficar em pé contra mim, apoiando-se em meus om-
bros. É a única vez na sessão que ela me olha ternamente;cm seguida, ela morde
meu queixo, bem perto da boca, sem agressividade, e com um movimento de
sucção levemente esboçado.
Depois, sentada em meus braços, ela retira meus óculos, joga-0s e vai
apanhar o marinheiro que ela suga energicamente. Ela não o largará mais.
Ela volta para mim, com o marinheiro na mão e deita-se no chão a meus pés,
rindo, brincando com seus pés, girando sobre si mesma, feliz.
A cena dura cinco minutos. Nádia tenta se levantar e não pode; pede
minha ajuda, o rosto contraído.
Quando a reconduzo a seu quarto, sempre segurando o marinheiro, ela
se vê num espelho quando eu a carrego em meus braços. É preciso dizer que
passávamos diante deste espelho todos os dias quando eu a levava para a sessão.
Era um espelho grande em cima de uma chaminé com urna mesa de vestir na
O Pequeno outro: A Boneca 75

frente. Quando ela se vê neste dia, ela quer que eu a coloque de pé sobre a
mesa defronte do espelho. Ela tem um rosto estático, quase angustiado, e ter-
mina por desviar violentamente a cabeça.
Deixo-a em pé diante de uma poltroninha. Ela segura sempre o seu ma-
rinheiro.
Alguns instantes mais tarde, escuto um choro e encontro Nádia em lá-
grimas, sem o marinheiro, sentada perto de um leito. Ela agarra-se a meu
avental; carrego-a, ela se acalma em meus braços, mas sem que eu lhe devolva o,
marinheiro. Recoloco-a em seu leito; ela se afunda de costas no colchtro e
quando fecho de novo a porta, ela começa a chorar silenciosamente, dolorosa-
mente, como eu nunca a tinha visto fazer antes.

Este período de 4 a 16 de janeiro merece ser isolado, embora faça parte


da fase pré-especular, visto que Nádia reintroduz aí um elemento de sua fan-
tasia escópica, que ela tinha abandonado desde 9 de dezembro:a boneca. Esta
boneca dá lugar a uma tal acentuação da relaç[o metafórica ao Outro que Ná-
dia termina por ser bloqueada, no fim, a 16 de janeiro, exatamente antes do
espelho. A boneca é o pequeno outro no colo do grande outro: como,
um retomo do recalcado da imagem de 10 de dezembro. Porém, o caminho
percorrido na relação comigo, permite que Nádia se mostre muito ativa e
agressiva, seja contra a boneca, contra a boneca comigo, a ponto de que a fan-
tasia sádica de destruição subjacente a esta agressividade lhe meta medo.
A partir de 5 de janeiro, com efeito, quando chego, encontro-a apavora-·
da e ela só se acalma quando me vê apanhar seus sapatos e meias, cujo caráter
metonímico tão importante, nós vimos: únicos objetos que garantem sua
não-dissoluç[o em meu corpo e no outro. Não mais do que na sessão, ela su-
porta na vida cotidiana sua tensão interna e ela chora facilmente - por
exemplo, quando ela vé uma outra criança no colo da enfermeira. Na sessão
aliás, Nádia volta contra si mesma toda a violência contra a boneca, batendo
em sua própria cabeça, ficando quite quando depois me bate, o que não adian-
ta de nada. Por isso ela normalmente depois destas cenas, quer ser beijada em
meus braços: mas este acolamen to a faz cair de-Caribdis em Cila. Eis porque
no fim deste período, eu noto que ela não sabe mais em que ponto está, nem
o que quer. Ao mesmo tempo, ela suporta mal o intervalo entre as sessões
e se retrai.
A despeito do impasse que encontra na vida metafórica, ela afunda-se
nela inelutavelmente, em razão do caráter de sua relação ao Outro, relação
submetida ao recalque e por isso mesmo ao r!)torno do recalcado. Ela recusa
inclusive, a 13 de janeiro, o recurso metonímico do sapato.
Uma relação particular comigo quanto à sua boca, se define. Num pri-
meiro tempo, não podendo alcançar um comportamento oral propriamente
dito, seja tomando a mamadeira, seja comendo o biscoito, ela se restringe a
um jogo de lambidas: ela só faz lamber o bico da mamadeira sem bebê-la, Iam-
76 Nadia ou o Espelho

be a manga de minha blusa ou lambe minha face. Se leva um biscoito à boca,


ela o retira daí, examina-o como para assegurar-se de que ela não deixou lá ne-
nhum vestígio, lambe-o - como me lambe - uma vez e joga-o.
A 9 de janeiro, durante a segunda sessão do dia, ela inclusive coloca sua
boca aberta sobre a minha, babando muito e fazendo alguns movimentos de
sucção. Com isto ela mostra-se muito feliz e terna, como se ela atingisse aí a
relação exemplar de superfície, onde o furo seria ohfurado, para ela e para
mim: uma relaçã'o perfeitamente desembaraçada de todo dc~jo e devoramen-
to entre ela e eu. Nos dias precedentes, ela havia manitcstado algum esboço de
um tal desejo; mas ela tinha renunciado a ele, como se fos~ preciso que eu
nada soubesse. Esta necessidade de um nã'o-saher do Outro, que aparece como
tal nesta fase pré-especular, está ligada por um lado ;1 111an11tenc,:rro do desejo
sádico do pequeno sujeito,, mas é ao mesmo tempo o que recalca este desejo
(a estrutura metafórica, reforçada pelo transit ivis1110. rnrno vimos, representà
neste recalque um papel preponderante). Também, quando 11111a vez lhe revelo
seu desejo de me comer quando ela me lamhe, ela haie 1·111 mim com a mão e
mostra-se ansiosa. Em seguida, quer voltar para 111c11s hrn\'.os, isto é, colar-se a
mim para anular este desejo, para que cu 11ada saiba d rir.
No mesmo dia em que ela coloca sua boca ah,·, ta snh11• a minha, um ou-
tro furo da superfície de seu corpo lhe faz sinal sob a 101111a do penico: ele-
mento novo em seu interesse, notei, mas ele é novo apr11as na sessão, pois sa-
be-se que em instituição a cerimônia coletiva do penico acontece várias vezes
por dia. Mas, como para a mamadeira, que pode ela rnnfll,cer disto lá onde a
deixaram no nível estrito da necessidade? Mais do qul' dr 11111a demanda do
Outro que se inscreveria em uma verdadeira relac,::lo rn111 cll', trata-se da obtu-
ração de um orifício: o da boca na cena que :111tccedc; aqm, o que obtura o
orifício anal, furo na superfície de seu corpo, é o penirn. A inscrição deste
fenômeno de superfície se confirma ainda no <lia seguinte, quando ela apalpa
minha pele, lambe minha face, aproxima ainda sua hoca da minha, sem aco-
plá-la, vê o penico e vira-se para me olhar sorrindo.
Certamente, o que ela faz a 9 de janeiro com meu l:ípis quando ela ex-
plora este penico mergulhando-o aí longamente, poderia impor-se como
exploração de um continente, se todo o contexto da estrutura corporal nlfo
viesse infirmar esta interpretaçlfo. Aliás, o penico foi primeiramente objeto de
seu olhar, isto é de uma exploração de superfície, secundariamente é que ela
vai buscar o lápis que ela tinha tomado para tatear o penico, antes de mergu-
lhá-lo aí como se fosse preciso que um objeto tomado de meu corpo viesse
obturar o buraco deste penico que é também o orifício <lc seu corpo. Não po-
demos negligenciar, aliás, uma aproximação deste lápis e do tennômetro que
ela conhece duas vezes por dia desde seu nascimento.
O penico que ela explora é eyjdentemente, enquanto objeto ligado à su-
perfície do corpo, por deslocamento, idêntico a outro orifício do furo do cor-
po, a boca ( esta e o ânus sendo apenas os orifícios de um mesmo furo do cor-
po). Ela colou sua boca na minha: ela se ocupa do penico como de qualquer
coisa que se cola na superfície de sua pele. Esta identidade, ela demonstrou a
O Pequeno outro: A Boneca 77_

14 de janeiro quando, pegando um biscoito, ela vai bater na beirada do peni-


co, após ter girado em volta, depois bate dentro dele antes de me fazer mor-
der um pedacinho de biscoito que ela retira de minha boca com seu dedo.
Digo-lhe isto; ela sorri, mas torna-se tensa e agressiva, queria aproximar-se de
novo do penico, não consegue, volta a colar seu corpo no meu e confirma seu
fracasso pegando o papel ém meu bolso pela última vez, e jogando-o por cima
de sua cabeça. O que existia de metonímico neste papel deixa aqui todo lugar
à acolamento dos corpos, da qual nós vimos o caráter metafórico {é uma dé·
marche que ela tinha esboçado na véspera, jogando agressivamente os brinque-
dos atrás de si.)
Esta escolha do metafórico, é um retomo do recalcado, que a leva ainda
mais longe visto que, no fim da sessão de 14 de janeiro, se ela descola-se de
mim, é para colocar-se de pé, frente a mim, e se fazer admirar, démarche que
prefigura o que ela fará diante do espelho para aí encontrar o recorte unitá-
rio de seu corpo. Mas, se eu estou no lugar do espelho como um espelho real,
eu só posso lhe remeter seu lugar de objeto metafórico.
É neste momento que eu noto, ainda uma vez, que ela não sabe mais em
que ponto está, nem o que quer: ir para longe de mim ou vir para meus bra -
ços, esboçando alternadamente os dois movimentos, com um balbucio terno
ou violento como uma injúria.
A 16 de janeiro é a últma sessão desta fase pré-especular que termina
com o primeiro espelho.
Nádia não suporta mais. Ela retoma maciçamente a este lugar metafóri-
co que foi levada a procurar, como para reencontrar o recalcado da imagem, e
que ela tinha entretanto recusado de chofre a 10 de dezembro (na segunda
parte da sessão, logo após o recalque da imagem). Ela reencontra seu compor-
tamento e seus sintomas do início, notadamente seus destravamentos de aber-
tura da mão que lhe fazem largar o objeto que ela acaba de pegar.
Sua ambivalência também acentua-se, entre o desejo de ser acariciada e
um negativismo violento. Se ela contrai suas mãos em meu peito neste dia,
não é para culminar com um chamado: "mama", que ela não diz há quase um
mês; ela deve ao contrário me repelir. Aliás, durante esta .sessão, nenhum som
articulado sai de sua boca. Ela tenta reencontrar qualquer coisa da satisfação
muscular do movimento, mas o coração não está aí e, no primeiro obstáculo,
ela começa a chorar.
O marinheiro de borracha, que apareceu a 11 de janeiro, está aí numa
posição privilegiada. Este marinheiro, ela o reencontra na arca no dia 16 de ja-
neiro, e ele suscita seu mais vivo interesse; mas ela não pode pegá-lo sem ter
seu destravamento. Então, após várias tentativas, ela termina para atirá-lo para
longe dela: não terá mais movimentos de destrave durante todo o resto da
sessão, como se o automatismo estivesse ligado à interdição de pegar o objeto,
um objeto que ela deve perder.
Ela vai poder entretanto pegar de novo o marinheiro, mas antes ela su-
gará o fuzil do soldado de chumbo, fazendo ruídos de sucção, e olhando a
mamadeira. Quando ele digo que ela o suga no lugar da mamadeira sua respos-
78 Nadia ou o Espelho

ta é imediata: ela abandona o soldado, desvia seu olhar da mamadeira, pega o


marinheiro e suga-o olhando para mim. Ela mostra, cm suas rápidas mudanças
de objeto, a indecisão na qual se encontra. O verdadeiro objeto metonímico,
o fuzil do soldado de chumbo, não durou muito e a enviou de volta ao objeto
substituto, a mamadeira. Ela abandona inclusive o marinheiro, objeto metafó-
rico, para vir para meus braços. Novamente, como na scss.io de 14 de janeiro,
ela quer ficar de pé de frente para mim e bem junto, apoiando-se em meus
ombros e olhando-me ternamente, como se ela se mirasse durante um breve
instante cm meus olhos, fazendo-se meu objeto, erguida cm meu colo. Mas
contrariamente ao 14 de janeiro, a proximidade de nossos corpos a precipita
numa inclusão por acolamcnto a meu corpo: ela morde meu queixo junto da
boca e eshoça um leve movimento de sucção.
Desde então, ela vai tentar o impossível desenlancc no campo metafó-
rico, tomando cuidado primeiramente de retirar meus t'irnlos isto é, de desco-
lar qualquer coisa de meu olho, para que cu não veja o que ela faz imediata-
mente: ela vai apanahr o marinheiro e o suga energira111l·111l'. Mas ela volta
para mim. Mesmo que o marinheiro tivesse, como o fuzil do soldado, um as-
pecto metonímico, na saída, Nádia o abandona para vir miar-se a mim, mor-
der-me e sugar-me, efetuar com ele e por ele o mergulho 11a 111etáfora. 1: com
um tal ohjeto que ela torna, após ter-me privado simholira111m te de meu olhar,
a fazer-se meu objeto. caído a meus pés. Ela diz o que quer quando pede mi-
nha ajuda com um ar tenso para levantar-se: que eu aparll11· o ohjeto metafóri-
co que ela se fez para mim, para o Outro, guardando ao 111es1110 tempo para ela
o seu próprio objeto metafórico. o marinheiro.
Nesta cena, ela recusa tanto sua própria perda qua11to a minha, ficando
no fundo completamente grudada na imagem de 10 dl' dl'1.l'mbro. Entram em
jogo aí ao mesmo tempo seu desejo e estar no lugar do outro, e meu suposto
desejo, por retorno, de apanhá-la para colocá-la solJre mim, última realização
de sua fantasia fundamental; mas esta realização não tl'lll 111ais as virtudes da
imagem onde o cscópico mascarava toda a perda, cssc11ctalrnente em núnha
presença. Pois lá, como quando cu a chamei a I O de dc1.rn1hro. eu estou pre-
scn tc; e não se trata mais para ela de perder-se no ..ver" o objeto, mas em té~o
e sugá-lo. Não podendo fazer com que cu não saiba, ela paga o preço de sua
posse fazendo-se meu objeto a meus pés, objeto que cu devo apanhar como ela
apanhou o seu. Se ela está entretanto feliz, ela o é de ma11cira tão punctiforme
como era seu gozo de ter hebido a mamadeira em meus hraços a 12 de dez.em-
bro; exatamente como neste dia, sua felicidade diz aqui qualquer coisa de um
enraizamento de sua relação ao Outro no Real. Ela saira dessa relação esten-
dendo-me um pedaço de cartolina, objeto metonímico, recolhido de uma ou-
tra criança; aqui, ela está inteiramente no lugar do objeto metafórico que ela
me dá. Ela só vai sair daí, no fim da sessão, pela promoção do objeto metoní-
mico por excelência: a imagem da totalidade de seu corpo no espelho ( 1).

( 1) ('f. o comentário dcs!l' primeiro encontro com o espelho p. 92


CAPITULO VIII
O ESPELHO 1: NOSSA IMAGEM

Da metáfora à metonímia

17 - 31 de janeiro

i 11 J No dia seguinte, 17 <le janeiro, Nádia está bem melhor. Desde a sessão
da véspera, ela não teve mais diarréia, pela primeira vez em quinze dias. En-
contro-a sentada em seu leito, sugando o polegar, sorridente, como não estava
já há muito tempo. Agarra-se ao meu avental para que eu a tome em meus bra-
\'.OS. Peço a uma enfermeira para lhe por os sapatos; enquanto isso, Nádia es-
tende-me os braços sacudindo-se de impaciência.
Todo mundo constatará desde o dia seguinte deste primeiro espelho --
se bem que na época eu não tenha feito a relação - que ela mudou de aspec·
lo: perdeu seu ar de velha precoce, seu rosto tornou-se infantil, ela tem o ros-
10 de uma criança de sua idade.
Levo-a para a sessão radiante. Sento-me na cadeira baixa: Nádia verifica
11únha posição em relação à sua com um ar inquieto. Tranquiliza-se, vai tirar
os brinquedos da arca, um após outro. Hoje seus gestos são menos desajeita·
dos, mais diretos e ela não tem destravamen to. Ela está interessada em uma
pequena xícara de brinquedo em torno da qual vai girar toda a sessão: após
16-la jogado, ela a apanha e inspeciona. Digo-lhe que é uma xícara para beber,
ramo eu tinha nomeado cada brinquedo que ela tirava da arca.
Ela leva a xícara até a boca, suga-a, mas seu olhar é para a mamadeira;
ela joga a xícara, tenta derrubar a mamadeira com a mão, não ousa fazê-lo
,. procura atingí-la com um bastão de madeira que ela pegou na arca e que su-
ga antes de aproximá-lo da mamadeira. Ela não ousa ainda tocáfa e joga o
hastão cada vez mais perto, sem entretanto atingi-la. Ela só consegue derru-
há-la fazendo a arca girar bruscamente. Pega então a mamadeira e lança vio-
lentamente contra a parede; ela recocheteia e vem esbarrar cm minha perna.
Fia olha para isso um segundo, vai buscar de novo a xícara e vem para meus
braços com esta. Neles se faz beijar, joga a xícara, vai apanhá-la mas retorna a
meus braços sem ela. Novamente ela se faz beijar, coloca temamente seus bra·
,·os ao redor de meu pescoço, sua cabeça contra minha face e aperta-se cm
111im com um balbuciosinho terno. É a primeira vez que ela exprime sua ter-
11ura como uma criança de sua idade.
80 Nadia ou o Espelho

Ela institiui o jogo de jogar a xícara, ir apanhá-la e tomar a subir em


meu colo. A partir da terceira ou quarta vez, ela a joga no leito; sentada em
meu colo, ela só tem que se inclinar para apanhá-la; antes de pegar a xícara,
ela suga e lambe com deleite a barra do leito. No fim ela joga a xícara no chã'o
e quer descer para pegar a mamadeira, que ela lança violentamente num canto
da sala como se fosse uma hola pela primeira vez ela levantou-a - após ter
batido nela várias vezes com a xícara balbuciando "a-pa, a-pa".
Uma enfermeira entreabre a porta para colocar umas palhas de ação no
chão perto da porta e vai embora. Imediatamente Nádia se lança a todo vapor
para ver o que é; ela respeira curiosidade; mas quase ao atingir seu alvo, ela
pára, coloca-se de pé, olha para mim ternamente e volta para meu colo.
Reconduzo-a a seu quarto. Ela não quer que eu a deixe logo, e, bem
sentada em meu braço, uma mão sobre meu ombro. ela olha o que acon-
tece, a fisionomia desperta, com a pontinha da I íngua do lado de fora. Assim
que eu a recoloco cm seu leito, a estagiária se aproxima estendendo-lhe os
braços, quando ainda estou perto do leito. Nádia afünda-sc cm seu traves-
seiro, os braços para trás como antes; sua expressão porém não é mais a mes-
ma: ela tem uma atitude de recusa diante do desconhecido porque eu estou
lá, mas não tem angústia; seu olhar vai da estagiária para mim. Eu a tomo por
um momento em meus braços;ela se agarra neles, depois retoma bem rápido sua
atitude descontraída e interessada de antes. /\o partir acredito poder deixá-la
nos braços da estagiária; mas é uma prova muito dura para Nádia, como teste-
munham seu olhar angustiado e seu rosto que se cava; ela retomou seu ar de
velhinha precoce.
A 18 de janeiro quando eu chego, Nádia dorme de barriga para baixo,
na posição de rã e ronca. A enfermeira a desperta. O primeiro olhar de Ná-
dia recai sobre ela, e Nádia torna a colocar a cabeça cm seu travesseiro para
donnir de novo. Eu a chamo, ela vira a cabeça, me vê. sorri. se sacode, senta e
levanta para 4ue cu a tome cm meus braços, ainda um pouco adormecida.
Ourante todo o tempo cm que a enfermeira lhe veste e calça os sapatos, ela
estende-me os braços. Termina por se impacientar e bate cm meu peito mos-
! rando a I íngua.
Ela não tem mais diarréia, ganha peso, come muito e mexe sem parar.
Quando eu a levo para a sessão, ela tem um ar travesso, sorridente, mostrando
uma pontinha da Iíngua.
Começa a sessão tirando da arca uma boneca de borracha que não é o
marinheiro e que ela joga. Mesmo jogo com os cubos, que ela se diverte tiran-
do e botando na arca, com a fisionomia interessada de uma criança livre, que
se sente em segurança. A arca vira. arrastando a mamadeira que rola para bai-
xo da janela; Nádia olha para ela depois se desinteressa, não sem antes bater
cm sua cabeça com um brinquedo.
Estando a arca virada de lado, ela tenta primeiro agarrar os. brinquedos
através das barras que formam um dos lados; ela se zanga e. furiosa, sacode a
arca. üepois, muito rápido, ela se dá conta de que pode pegá-los pela tampa,
sobre o lado.
O Espelho I: Nossa Imagem 81

Encontra.aí um pratinho de brinquedo que ela inspeciona longamente.


Digo-lhe que é um prato; ela recoloca-o na arca. Olha para mim e vem arran-
car-me os óculos para devolvé-los quase imediatamente, sorrindo. Ela retoma
para pegar o prato na arca; mas o prato está imprensado e Nádia dá um peque-
no gemido; consegue pegá-lo, suga-o, joga-o, depois toma a pegá-lo e estende
para mim. Quando avanço a mão, ela retira o prato, suga-o, joga-o e quer vir
para meus braços. Daí, como na véspera com a xícara, ela brinca por duas ve-
zes de jogá-lo e de descer para apanhá-lo.
Repelindo os biscoitos, ela pega um tablete de açúcar que coloca no
prato para daí jogá-lo por duas vezes seguidas. Ela retoma a meus braços com
o prato e recomeça o jogo precedente: jogar, apanhar, com um balbucio va-
riado e articul~dó: 'fa-pa, a-pa, a-té, a-da, a-ca", olhando para mim ternamente.
Ao longo deste jogo, Nádia, assim como no dia 16, deita-se no chão,
sapateando, brincando com seus pés, fazendo-me admirar seus movimentos.
Hoje, ela chega a levantar-se sozinha. Se seu rosto está contraído durante o
esforço, assim que ela está sentada, vua-se para mim triunfante .
.Eu a reconduzo, sorridente, segurando ainda o prato. Ela não quer que
eu a coloque no chão imediatamente e, de meus braços, ela olha o que se pas-
sa, expressã'o marota, a pontinha da língua saindo. Ela joga o prato num leito,
quer ser colocada em pé contra o leito para voltar a pegá-lo e depois voltar
para meus braços.
Eu a recoloco nos braços da estagiária. Ela está menos angustiada do
que na véspera.
Quando chego, a 19 de janeiro, encontro Nádia, batendo com uma bo-
neca de madeira a golpes redobrado em suas crianças que ela encurralou con-
tra a janela, com a ajuda do leito e que estão com muito medo. Quando ela
me vê, aumenta sua violência, violência repartida entre as crianças, a vidraça e
o leito. Eu a conduzo, ainda segurando a boneca de madeira. Seu rosto está
tenso, sua respiração arfante.
Durante a primeira parte· da sessão, ela vira-se para mim para olhar
como aceito esta violência - contra a qual eu sinto em seguida que devo pro-
tegê-la. Ela tenta quebrar tudo, batendo os brinquedos no chão; ela faz assim
muito barulho. Ela persegue os brinquedos com obstinçaão e atira-os o mais
longe possível, como se eles lhe tivessem machucado. Primeiro ela se ocupa da
arca e do seu conteúdo, depois do prato após tê-lo sugado, em seguida de um
pedaço de pano após tê-lo entregue a mim e ter vindo para meu colo se fazer
acariciar; então, apoiada, em mim, ela tenta rasgar o pano.
Tudo isto tem uma tal tonalidade de auto-destru~ção por falta, que di-
go-lhe isto.O que ela compreendeu, não posso saber, mas ela pára e me olha
balbuciando ..a-ga, a-pum" (como quando cai qualquer coisa).
Ela vai imediatamente apanahr a mamadeira e começa a bater tão for-
te com ela no chão, o bico para baixo, que ela se racha; então, ela empurra a
mamadeira com os pés e faz o mesmo à boneca.
Ela está mais calma quando eu a reconduzo; ela quer andar, em seguida
cu a coloco nos braços de uma enfermeira.
82 Nadia ou o Espelho

Depois desta sessão explosiva, no dia seguinte 20 de janeiro, Nadia tem


febre, dôr de ouvido e a unha de um dedo supurada. Encontro-a em seu leito;
ela não parece sofrer. Olha com muito interesse o que se passa no quarto. Le-
vanta-se e estende-me os braços. Ela está encantada com seu curativo. En-
quanto eu me ausento para ir buscar seus sapatos, ela recusa seu lanche.
Na sessão, ela está violenta e exprime uma verdadeira agressividade con-
tra mim. Ela começa por jogar longe dela tudo o que está na arca e até a pró-
pria arca. Olha o prato e me arrelia com um ar maroto: ela me estende o pra-
to, depois se estica em minha direção, como se quisesse que eu a carregasse,
mas recusa sorrindo.
Ela joga os biscoitos, sobe em meu colo para arrancar meus óculos, bal-
buciando muito. Do meu colo, ela joga a boneca no leito cada vez mais longe,
depois quer por sua vez ser colocada no leito. Com uma expressão de conten-
tamento, ela toma posse do leito como de um campo de batalha conquistado
e olha para mim triunfante.
Ela joga para fora do leito a boneca assim como uma manta de lã. Satis-
feita, ela fica de pé, vem para mim e, docemente, com a hoca a herta, tenta co-
mer as maçãs de meu rosto. Ela torna a sentar-se, mostra-se excitada, depois
agressiva comigo, escandindo os golpes que me dá com exclamações do gêne-
ro: "olha aí! toma!". Segurando-me pelos cabelos, cla a/,aixa minha cabeça e,
mantendo-me assim, me hate com a outra mão. Depois, t•rguenclo de novo mi-
nha cabeça sempre puxando meus cabeços, com as duas miios, ela me bate na
face e na hoca. Sua violência culmina quando ela quer enfiar seu dedo em
meu olho. Toda esta curta cena de violência é e11trecorlada de algumas carí-
cias breves, escondidas por gritos: "ma-ma".
Reconduzo-a e ela quer andar.
Soube, que de noite, ela estava em ótima forma. tinha jantado muito
bem e não parecia ter dôr.
Chegando a 21 de janeiro, tomo conhecimento que Nadia sofre muito
de seu ouvido. Ela me sorri e coloca-se de pé assim que eu me aproximo. Não
encontro seus sapatos e, esperando que uma enfermeira os traga, sento-me per-
to dela. Sua decepção é grande: ela volta a sen lar-se. olha para mim com um
rosto parado, estica seus braços para trás e tem um olhar angustiado. Esten-
do-lhe os braços; ela acentua brevemente a posição dos seus braços para trás,
depois ergue-se e se inclina para mim, sorrindo primciramcn te com os olhos,
depois francamente, quando eu a carrego. Ela fica muito excitada enquanto
a enfermeira lhe veste a calça, mas eu constato que se me afasto, ela cai na
imobilidade.
Tomo conhecimento que o exame ORL revelou que é um gânglio e não
o ouvido que a faz sofrer; mas nada na sessão manifestou, nem manifesta que
tenha dôr.
Na sessão, ela fica um momento em meu colo, todo seu corpo abando-
nado, olhando o que há no chão; depois ela pede para ser colocada ali.
Ela tira os brinquedos da arca com violência, com exceção de dois ob-
jetos: o pedaço ele pano que ela manipula, larga e torna a pegar várias vezes
O Espelho I: Nossa Imagem 83

antes de afastá-lo dela; e o prato que ela manipula e larga antes de afastá-lo,
como o pano. Este prato desencadeia uma agressividade contra a mamadeira
que ela não ousa exprimir; ela se vira então para mim para que a coloque em
seu Jeito. Ela se instala aí confortavelmente, olha-me com um ar radiante, bal-
buciando alegremente. Vem, diante de mim, lamber uma barra do leito, de-
pois o meu braço. Após algumas tentativas ela consegue ficar de pé sozinha,
se faz admirar, de frente para mim apoiando-se em meus ombros, e coloca du-
rante muito tempo sua boca aberta sobre um deles babando muito. Quer re-
tornar a meu colo, onde me olha nos olhos com um ar alegre, antes de voltar
para o chão. Aí ela vai brincar com um biscoito que ela coloca em minha
mão para em seguida ª"ancá-lo vivamente e me olhar somndo e sapateando
várias vezes seguidas. Digo-lhe à medida em que vai acontecendo que ela faz
comigo o que fizeram com ela; e que comendo se aprende a amar, ser amada e
amar a vida. Ela quer então que eu a recoloque no leito; ela se deita, o rosto
virado para mim com uma expressão de felicidade. Mas ela só pode abando-
nar-me por um breve instante; senta-se e coloca uma mão em meu ombro.
Quando a reconduzo, ela me pede para ajudá-la a andar. Ela se dirige
para um outro quarto onde ela está muito interessada pela varredura. A noite,
ela não tem mais febre e seu dedo está curado.
A 22 de ja9eiro, ela tem um curativo em torno da cabeça por causa de
seu gânglio, mas não está com febre e parece em forma. Ela tem sempre a
mesma reação de excitação quando me aproximo de seu leito.
A enfermeira calça-lhe os sapatos sobre a mesinha diante do espelho.
Após ter-se assegurado que eu estou bem perto dela, ela fica muito interessada
pela sua imagem, depois pela minha quando eu me arranjo para entrar no
campo. Seu olhar vai de sua imagem à minha e da minha ao meu rosto real.
Como na véspera, ela começa a sessão ficando alguns minutos em meu
colo, bem descontraída. Pega o papel em meu bolso e joga fora; tenta pegar
o lápis, mas, não conseguindo da primeira vez, ela abandona e quer ser posta
no chão.
Ela tira alguns objetos da arca, entre os quais o prato. Em seguida, pela
primeira vez, ela recoloca alguns objetos na arca. Segurando o prato com uma
mão, ela entorna decididamente com a outra, a mamadeira; ela a toma, saco·
de, depois joga longe, olha onde ela vai parar, vira-lhe as costas, apanha opa-
pel e o suga. Digo-lhe enta:o que ela não quer a mamadeira, que ela lhe lembra
coisas más, e que ela suga o papel que vem de meu bolso.
Sobe em meus braços e, ternamente coloca sua boca em meu ombro,
arranca-me os óculos, joga-os, lambe as barras do Jeito e quer ir para dentro
dele. Como na véspera, ela se deita olhando-me, emocionada e sorridente. Sen-
ta-se e coloca o seu rosto bem perto do meu coin um ar descontraído; ela se
inclina ainda mais para abraçar meu pescoço com seus braços e, após ter lam-
bido meu ombro, volta para meu colo, abandona-se aí um momento e vai para
o chão.
De forma bastante agressiv.a, ela joga fora da arca os objetos que ela aí
tinha colocado, depois atira longe a própria arca. Do mesmo modo, ela coloca
84 Nadia ou o Espelho

em minha mato um biscoito que ela me arranca por duas vezes seguidas. Ela
percebe do outro lado do leito o papel que ela sugou ainda agora e jogou; ela
dirige-se depressa em sua direção, mas pára no caminho para apanhar um bis-
coito que ela joga atrás dela, depois o prato, que ela guarda. Deita-se então
no chão, agitando suas pernas com alegria olhando para mim.
Lança então o prato e vai a seu encontro rolando sobre si mesma. Para
pegá-lo ela fica de quatro, depois se senta: todos estes movimentos sem aju-
da, mas lhe é necessário obstinação para chegar até aí, como testemunham os
gritinhos que ela dá em seus esforços.
Volta a meus pés, hesita em me dar o prato, não o faz e vem para meu
colo para ir ao leito. Aí ela torna a deitar, muito descontraída, a cabeça virada
para mim. Ela quer que eu aproxime meu rosto, rosto que ela acaricia com as
duas mãos, rindo e dando gritinhos de felicidade. Depois ela quer que eu a
levante e tire do leito carregando-a pelos braços, enquanto ela ainda está dei-
tada: ela estreita todo o seu corpo contra o meu, coloca seus braços ao redor
de meu pescoço coloca sua boca aberta, babando, em minha fase e deriva até
minha boca. Nenhum esboço de mordedura ou de sucção. Ela emite gritinhos
sufocados de felicidade e seu rosto é fulgurante quando em seguida ela me
olha de bem perto, uma mão posta em minha face.
Após· esta grande ternura, rtenho a impressão de que ela renasce e di·
go-lhe isto; ela passeia grave e lentamente, em torno da sala, reencontrando
seu interesse pelo mundo exterior.
Quando a reconduzo a seu quarto, o compartimento está em grande de·
sordem: um monte de pó está no meio e os leitos estão em toda direção.
Nenhuma enfermeira. Hesito um pouco, mas estando apressada eu a coloco
em seu leito. Ela toma porém uma expressão tal, indefinível, que eu penso
que quando se renasce nestas condições não se pode ser colocada em um lei-
to, símbolo para ela do lugar deste abandono que tornou necessário seu re·
nascimento. Eu volto a tomá-la em meus braços;ela abraça meu pescoço, de-
pois quer andar e vai buscar dentro do monte de pó um pedaço de pão velho
qu ela suga e estende para uma outra criança.
Então chega uma enfermeira. Coloco Nadia em seus braços; ela encon-
tra em Nadia um ar radiante que a surpreende. Nadia olha para ela, sorridente,
e estende-r.1e os braços inclinando-se para que eu a carregue. Ela coloca ainda
su face contra a minha, com uma grande ternura. Sabendo muito bem que eu
não me ocupo dela todo o tempo, e aceitando isto sem ansiedade, nem medo,
ela estende os braços para a enfermeira eu parto.
A 23 de janeiro, Nadia está de pé com as outras crianças. Assim que ela
me vê, toma-se agressiva com elas. Agarra-se a meu avental; eu a conduzo, en-
cantada, segurando uma boneca que lhe servia de arma contra os outros. De-
ve-se observar que faz duas semanas que quando eu venho buscar Nadia e que
ela deve esperar para ser vestida ou calçada, ela bate em sua boca e puxa seus
lábios como por brincadeira.
Ela começa a sessão em meu colo, sempre segurando sua boneca. Olha
se o papel está em meu bolso, mas não pega nele. Ela joga a boneca e quer ser
O Espelho I: Nossa Imagem 85

colocada no leito. Olha para mim radiante, acaricia meu rosto e fica agitada;
acaba de defecar nas fraldas, mas não é urna diarréia; ela quer que eu a colo-
que no chão. Após ter sacudido a arca com violência e atirado o prato longe,
da se senta com um biscoito na mão, depois o joga e levanta seu avental, colo-
cando a mã'o em sua fralda suja, olhando para mim. Ela fica contente que eu
a leve para trocar-se. Assim que sua fralda suja é retirada, Nadia me olha sa-
pateando e balbuciando.
De volta à sala de sessões, ela vai para o leito e lambe meu ombro. Em
seguida toma-se violenta. Quer descer, pisoteia o prato e atira-o longe com um
pontapé. Ela quer apanhar o prato apoiando-se em meu braço que ela morde,
de passagem. Depois ela pega um biscoito do qual ela come um pedaço pela
primeira vez; estende-me o biscoito, toma a pega-lo com vivacidade, morde
novamente um pedaço, joga fora o resto e vem para meus braços. Retorna ao
leito, arranca e joga meus óculos. Deita-se em seguida sobre meus joelhos,
com a cabeça no vazio para que eu a levante várias vezes seguidas. Retorna ao
leito, volta para meus braços, depois me bate na boca e me morde o queixo
violentamente. Acalma-se.
Reconduzo-a ainda agressiva, mas não tensa; eu a coloco nos braços da
enfermeira.
A 24 de janeiro, eu passo várias vezes diante de seu quarto antes de ir
buscar Nadia. Eu a encontro batendo cow força seu traseiro numa das bordas
de seu leito, apoiando-se na outra borda. Ela só se alegra aos poucos e ri em
meus braços.
Na sessão, ela fica muito agressiva. Arranca meus óculos e joga-os lon-
ge, joga o que tem na arca e entorna a mamadeira puxando o pano com o qual,
ela a tinha recoberto. Olha para a mamadeira, e, apanhando a haste de meus
óculos, vem sugá-la virando-se para mim.
Volta a meus braços para fazer o mesmo exercício da véspera, o que a
descontrai. Ao descer de novo, ela morde meu braço; no chão, ela fica de pé,
quase sem ajuda, e me faz admirá-la.
Quando eu a reconduzo, o jantar já começou e Nadia se afunda em seu
travesseiro com um rosto hostil. Após minha partida, eu a escuto chorar por-
que a enfermeira demora de lhe dar um segundo prato de mingau.
A 25 de janeiro, encontro Nadia quase chorando, defendendo avida-
mento um biscoito que uma outra criança quer lhe tomar. Assim que me vê,
ela lhe dá um bom golpe e eu a conduzo sorridente.
A sessão é bem mais descontraída que a anterior. Embora ela comece
indo para o leito, ela desce logo para se ocupar da arca. Ela permanecerá de
pé quase toda a sessã'o; de minha cadeira eu ajudo-a a sustentar-se. Se ela se
afasta e eu me levanto para que ela possa continuar a andar, ela volta para
mim e sobe em meu colo ou no leito: ela não quer que eu deixe a cadeira. Se
ela insiste absolutamente em ir para longe, ela o fará sentada.
Ela tira tudo da arca sem violência, e quando a arca está vazia, ela não a
atira longe. Ela retira meus óculos e joga-os, apanha-os e quer ser colocada de
VMa ao leito; segura ainda mais óculos e, com a outra mão acaricia meu rosto,
86 Nadia ou o Espelho

em seguida baba em minha face. Ela torna a descer, sacode meus óculos; uma
haste se quebra. Ela olha intrigada: para mim e para as duas partes de meus
óculos; depois colocando a haste na arca por um segundo, ela volta a pegá-la e
não se separará mais dela. (A enfermeira vai devolvê-la após a sessão). Ela des-
ce, joga os biscoitos e suga a haste dos óculos, depois morde docemente meu
pulso.
Eu a reconduzo então a seu quarto e peço a enfermeira para guardar a
segunda parte de seu jantar, para que eu mesma possa alimentá-la. Eu senti
que era preciso a junção entre, de um lado, o que se passava na sessão quando
ela agredia e rejeitava todos os objetos-alimentos habituais (prato, mamadei-
ra ... ) e ela se dirigia a meu corpo, quer seja para bater em minha boca, morder
meu queixo ou meu punho, lamber meu ombro ou minha face, e, de outro la-
do, este alimento das refeições que ela reclama muito e do qual eu a privei
na véspera porque o retorno da sessão aconteceu no meio da refeição, pelo
que ela me fez uma censura angustiada.
Volto pois uma hora mais tarde. Encontro Nadia sentada em seu leito;
ela suga seu polegar, choraminga um pouco ao ver uma enfermeira dar pe
comer a uma outra criança. Pego seu prato, sento-me na beira do leito vizinho
e começo a lhe dar seu purê de colherzinha. Primeiro ela fica intrigada: ela
me olha, olha a enfermeira, depois o prato e começa a comer; em seguida ela
fica toda emocionada porque sou eu que a alimento; ela se joga de bruço, a
cab!lça virada para o lado para me ver. Ela sorri, feliz, cheia de vida e sapatean-
do um pouco. Por duas vezes ela se deita de costas, esperando nesta posição
algumas colheradas, com uma grande alegria.
Depois ela quer comer a sobremesa, sentada em meu colo; mas após ter
comido algumas colheradas,de frente para mim, na-o me tirando os olhos, ela
começa a comer a sobremesa com os dedos.
Quando ela acaba, eu coloco o prato e a colher sobre o travesseiro do
leito vizinho, e seu objetivo então, é apanhar a colher; é como ganhar um
combate. De fato, lhe são precisos três tentativas seguidas de três destrava-
men tos para pegar verdadeiramente a colher. A enfermeira quer fazê-la tomar
sua infusão de t11ia o que ela recusa entornando-a em seu prato, pegando a
caneca e jogando no chão. Ela retorna à colher com a qual ela bate no prato.
Em seguida ela passa uma mão no prato, depois em meu rosto, e lambe o fun-
do do prato. E'is aí Nadia segurando triunfalmente a colher. Ela me mostra a
colher, entusiasmada; não vai mais largá-la: ela parte para explorar todo o
pavimento segurando vitoriosamente sua colher. Encontrando o médico, ela
bate nele com a colher, depois vai tocar com ela todos os objetos que encon-
tra no caminho.
Retorna a seu Jeito andando. Quando a coloco de volta ao leito, sempre
segurando sua colher, ela quer que eu a tome imediatamente em meus braços.
O médico entra e se aproxima dela; ela lhe dá golpes com a colher se ele se
aproxima demais.
ó'{;,;êihÕJ:ivossa Imagem 87

A 26 de janeiro, encontro Nadia andando pelo corredor, em exploração.


Como na véspera, ela quer fazer tudo de pé durante a sessão e não quer que
cu me levante da cadeira.
Vai até a arca, tira o pano, mas vê a mamadeira e vai derrubá-la com a
mão sem hesitação, volta-se em seguida para mim, com um ar satisfeito.
Vem para meus braços, hesita em pegar o papel, renuncia a ele e volta à
arca; tira dela uma xícara e um prato de brinquedo. Joga a xícara, é sobretu-
do o prato que a interessa; eu nomeio o prato, pois ela conhece bem a palavra.
Ela ª"anha o fundo com o dedo e quer ir para o leito onde ela brinca com o
prato, sem deixar de ter numerosos destravamentos para largá-lo. Termina por
jogá-lo e por voltar-se para mim para pegar meus óculos. Novamente ela agita
tanto os óculos, balbuciando, que quebra uma haste. Ao descer para apanhá-la,
ela morde meu pulso na passagem. Repele os óculos, suga a haste. Enfim ela
vai bater com ela na beira do penico, depois no interior e troca a haste dos
óculos pelo prato.
Ela recomeça seu jogo com o prato, jogando-se e apanhando-o quatro
vezes seguidas, mas, numa das vezes, o prato se encontra virado para o chão
e Nadia tem muita dificuldade em apanhá-lo. Ao se esforçar ela faz o prato
deslizar contra sua fralda e levanta bem alto seu avental para vê-lo. Resmun-
gando, ela gira sobre si mesma e consegue apanhá-lo. Este prato ela não o su-
ga mais, raspa-lhe várias vezes o fundo, estende-o para mim por duas vezes,
mas não o entrega; ela só o fará um pouco mais tarde.
Em um momento, ela percebe um pirulito sob um leito, vai buscá-lo, su-
ga-o e joga-o, depois o dá definitivamente para mim.
No fim da sessão, decido incluir na sala a partir do dia seguinte um pra-
to de mingau e uma colher: eu penso que Nadia tem necessidade de descarre-
gar muito negativismo violento no alimento. Prevejo que ela se lambuzará e
me lambuzará também.
A 27 de janeiro, na sessão, ela fica um momento sentada em meu colo
para olhar os brinquedos e objetos que estão no chão; só depois de alguns se-
gundos ela percebe o prato de mingau. Ela desce de meu colo, pára um segun-
do diante da arca mas isto não a interessa, e vai sentar-se diante do prato. Pe-
ga a colher, lambe-a um pouco e joga. Mergulha sua mão no mingau, lambe-a
uma primeira vez completamente, toma a mergulhá-la no mingau, lambe-a só
um pouco e, visivelmente descontente, tenta enxugá-la no chão.
Entorna então o prato,. vai buscar a colher, segura-a após alguns destra-
ves e vem para meu colo de onde ela a joga, assim como o meu lápis que pe-
gou em meu bolso, e meus óculos. Tomando a pegar a colher, ela vai para o
leito, brinca com ela sorrindo ;joga-o de novo, me mostra seu sapato e toma a
descer.
Ela vai buscar a colher, pega a boneca, olha para ela intensamente e
aproxima-lhe a colher da boca, mas logo, bate violentamente a boneca no
<'hão, depois estende-a para mim. Ela olha para a boneca com um olhar encan-
tado quando eu a coloco em meu colo, mas ela volta a pegá-la para bater ne-
la, depois quer vir com ela para meu colo, por fim quer ir para o leito, abone-
88 Nadia ou o Espelho

ca em uma mão e a colher em outra. Em seguida, ela joga a boneca e torna-se


agressiva com a colher: fica de pé para pisoteá-la. Ela pega a colher, atira lon-
ge, torna apegar, deita-se com ela, coloca-a em minha boca, o que aumenta
sua agressividade contra a colher.
Ela se faz retirar um sapato e uma meia que ela atira fora do leito, de-
pois continua a manipular a colher. Ela o faz com tanta agilidade que po-
der-se-ia pensar num gatinho brincando com um novelo de lã. Ela tem um ros-
to bem animado e me olha de vez em quando com a mesma expressão emo-
cionada que ela mostrou quando eu lhe dei seu jantar.
Ao longo desta cena, digo-lhe que ela quer dar de comer: a ela mesma, à
boneca ou a mim. Mas eu não posso lhe dar de comer na sessão, ela não o su-
portaria, pois ela quer ao mesmo tempo que eu lhe dé e que eu não lhe dê,
e isto com violência e agressividade, porque isto lhe fez falta.
Então ela se levanta, agarra-se em meu ombro e bate cm meu rosto com
a colher, em minha boca com a ma:o, morde meu ombro. Depois ela retorna a
seu jogo com a colher, balbuciante e descontraída.
O retorno a seu quarto, com a colher na mao, desencadeia vivas reações.
Uma criança a toma de suas ma-os toda contente, enquanto ela grita. Uma en-
fermeira que a vé limita-se a manifestar outra criança o seu contentamento
por ela ter pegado a colher. Alguns minutos mais tarde, em minha ausência,
Nadia foi fortemente atacado por Robert, "o menino do lobo", e chora fre-
neticamente. Eu volto e a acalmo em meus braços; mas ela berra de novo as-
sim que preciso ir-me.
A 28 de janeiro, encontro Nadia sorridente, mas sua roupa deve ser
trocada: ela sujou a fralda. Chora enquanto a trocam e porque a enfermeira
lhe repreende por não ter querido "fazer" no penico de manhã. Deve-se reti-
rar também sua camisa, ela resiste, chorando.
Na sessão, ela vai imediatamente para a arca tirar o pano, que ela pega,
joga, torna a pegar e me estende; ela arranca-o de mim antes de colocá-lo em
meu colo balbuciando muito. Ela vai para perto do prato, pega a colher, lam-
be-a e joga-a sem destrave; para mergulhar sua mao no mingau e lambê-la;
tudo isto com bastante agressividade. Ela vai buscar a colher, bate nos biscoi-
to com ela.
Como nas sessões precedentes, ela vigia para que cu não saia de minha
cadeira para ajudá-la quando ela quer ir ao outro ex tremo da sala apanhar o
papel. Não podendo ir até lá andando sozinha e não querendo ir sobre o seu
trazeiro, ela sapateia de impaciência, depois desiste e vem para meu colo fazer
exercícios de ginástica que a fazem rir. Em seguida, ela se faz ser colocada no
chão onde, deitada de costas, ela agita suas pernas com alegria, brincando com
sua colher.
Volta para meus braços para ir para o leito; nele, fica de pé, o sacode,
vai tocar a parede e volta para meu colo onde ela fica também de pé, apoian-
do-se em meus ombros; ela baba em um deles e mete um dedo em minha
boca. No fim, ela desde para bater a colher na parede, balbuciando. Quando
a deixo, ela brinca com a colher em seu leito.
O Espelho I: Nossa Imagem 89

A 29 de janeiro, a atmosfera do quarto é muito tensa; muitas crianças


choram t: a enrerrneira não dá atenção. Conduzo Nadia: seu rosto se ilumina
assim que ela sai do quarto.
Ela sapateia de alegria ao entrar na sala de sessões e vai tirar o pano da
arca. Ela quer colocá-lo sobre meu colo, mas não acerta e ele cai. Então ela o
pisoteia, depois enrrega-o a mim para logo ª"ancá-lo e não se ocupar mais
dele.
Vai em direção do prato; mas antes de pegar a colher, derruba a mama-
deira com um gesto lento, consciente e voluntário, sem violência - ela está
sustentada por mim; quando a mamadeira cai, não toca nela e volta ao prato.
Pega a colher, lambe-a e lambe também sua mão após tê-la mergulhado
no mingau. Sua agressividade desencadeia-se logo contra tudo que tem relação
com alimenti;>: vira o prato para baixo, bate nele com a colher, balbucia com
furor, depois com um tom de queixa quando elanão consegue recolocar o prato
direito. Ela bate também com a ajuda da colher, nos biscoitos, no chão, na
parede, no leito; de início ela tem um grande sorriso de satisfação; depois ela
volta para meu colo para bater em minha boca com a colher, arrancar meus
óculos e tocar em meus olhos. Em seguida ela faz ginástica em meu colo, a
cabeça virada para trás, corno na sessão precedente.
Ela vai até a arca de onde ela tira e joga o cachorro e um cubo; pega
também a xícara que ela suga agressivamente, olhando para o prato. Digo-lhe
que ela gostaria que eu lhe desse de corp.er, mas que este desejo a toma vio-
lenta, porque ela sempre se decepcionou com a comida, visto que a pessoa
por quem queria ter sido. alimentada não estava lá. Ela não queria então co-
mer e foi forçada. Ela sabe bem que eu não a obrigo; e ela queria que eu a
obrigasse mas isto lhe faria mal. Eu só darei de comer se ela puder me pedir
isso: então seria bom para ela.
Ao mesmo tempo, Nadia representa exatamente, na ordem, o que eu lhe
digo. Volta a pegar a xícara e me estende esperando ansiosamente. Coloco
aí um pouco de mingau. Ela vem para meu colo com um ar tenso e uma respi-
ração arfante. Eu seguro a xícara diante dela sem levá-la à sua boca - boca
aliás que ela não abre -, falando com ela. Ela-mergulha os dedos, lambe-os: o
que a torna ainda mais ansiosa.
Quer ir para o leito, toma a xícara e a entorna em minha mão; torna a
pegar a colher e, ansiosamente, agarra-se em meus ombros para vir para meu
colo, onde seu rosto se ilumina enquanto lhe digo que ela vê porque eu não
lhe dou de comer; ela não pode ainda aceitar, pois ela quer ser violenta com
esta comida que ela foi obrigada a comer sem que ela tivesS<;l alguém para
amar. Ela me sorri radiante, lambe meu queixo: volto a.dizer-lhe ainda que é a
mim que ela quer comer.
Eu a reconduzo, segurando sua colher na mão, mas será preciso ficar
com ela por muito tempo antes de poder deixá-la. Ela anda, desvia-se da en-
fermeira, vai tocar na porta olhando-me, como que em expectativa. Abro a
porta, ela sai imediatamente e anda um pouco por toda parte no pavimento,
mas desvia-se quando passa na porta de seu próprio quarto.
90 Nadia ou o Espelho

No fim, ela fica ansiosa, e eu a coloco nos braços de uma enfermeira


que ela conhece bem, pois ela não quer que eu a coloque no chão em meio
aos outros.
A 30 de janeiro, encontro Nadia no leito porque ela foi vacinada. Ela
fica muito ansiosa enquanto é preparada para a sessão por uma enfermeira
de quem ela não gosta.
Ela entra na sala de sessões com um ar encantado e vai tirar os brin-
quedos da arca e colocá-los ao seu lado sem jogá-los, e isto para poder pegar o
prato e a xícara. Já notei que ela se mostra agressiva apenas para com tudo
que tem relação com alimentos, e para com a boneca. Há várias sessões que
ela não mais joga fora todo o conteúdo da arca, sistematicamente, e é mesmc
capaz de recolocar ai objetos que ela pegou, inclusive meus óculos.
De pé diante do prato de mingau, ela lambe sua colher, depois sua mão
que ela mergulhou no mingau; ela acha isso bom e recomeça por duas vezes.
Mas, achar bom este alimento, desencadeia visivelmente, sua violência. Ela
torna a mergulhar a colher no mingau, sacode-a violentamente no chão, es-
palhando e fazendo desaparecer com a outra mão, as manchas de mingau.
Torna a mergulhar a colher e lambendo-a, sobe em meu colo. De pé e agarran-
do-se em um de meus ombros, ela sacode bem forte a colher sobre minha fa-
ce e meu cabelo, sem me bater de verdade. Ela vai para o leito, senta-se dian-
te <le mim, coloca a colher em minha boca deixando-a aí com um ar de expec-
tativa: eu lambo um pouco a colher; ela me sorri, radiante, coloca seus braços
em volta do meu pescoço, e retorna ao chão.
Mas a violência retorna - Nadia segura ainda a colher, pega a xicrinha,
sacode e lança longe, assim como o prato. Arranca meus óculos e atirá-os
sob o leito. Apanha o prato, lambe-o e, olhando para mim,joga-o furiosa.
Explico-lhe a cena à medida que vai acontecendo, em relação a mim,
dizendo-lhe a mesma coisa que na sessão precedente.
Volta então a subir em meu colo, com a colher. Ela vai logo para o lei-
to, se instala aí: confortavelmente sentada, ela me dá a colher, me mostra o
prato de mingau e espera.
Encho a colher e coloco a mão que segura esta sobre o leito perto dela,
diz.endo-lhe que ela fará o que ela quer e que ela sabe que eu compreendo.
Absolutamente radiante, ela pega a colher, lambe-a embevecida, achando isso
muito bom. Ainda uma vez me estende a colher, para lambê-la do mesmo mo-
do. Ela me estende uma terceira vez; mas desta vez, ela derruba a colher de ·
minha mão no chão, e olha para mim, bastante contente. Ela não a derrubou
agressivamente nem com ansiedade. Percebe-se muito bem que ela tem neces-
sidade de exprimir seu velho rancor do alimento. Vendo sua expressão de con-
tentamento, digo-lhe que é bom poder exprimir tudo isto em segurança; sa-
bendo que eu compreendo o quanto é importante se encher de coisas boas e
doces, junto de alguém que lhe faz achar isso bom pela sua presença, em vista
de que isto lhe faltou. Este alimento que a obrigavam a comer a desgostou de
todo o mundo. Ela escuta muito bem, me faz apanhar e encher a colher três
vezes: numa ordem inversa da vez precedente, nas duas primeiras vezes, ela
O Espelho I: Nossa Imagem 91

olnruba a colher de minha mão e, na terceira vez, ela a toma, lambe-a com um
,11 de grande contentamento e me estende os braços.
Em meu colo, ela aperta sua face conra a minha, depois tenta fazer a
n1lher penetrar na abertura de minha blusa, para em seguida lamber meu
q11eixo. Digo-lhe que seu maior desejo é um alimento que venha de mim, uma
111corporação de mim nela, e reciprocamente dela em mim.
Reconduzo-a satisfeita, mas o retomo a seu quarto é difícil. Devo to-
má-la uma vez mais em meus braços, porque ela chorava ao me ver partir.
Fia quer sair de novo: conduzo-a por um instante apenas, dizendo-lhe que eu
,ctomarei amanhã, como todos os dias.
A 31 de janeiro, de manhã', ela se agarra em meu dedo enquanto que
uma enfermeira limpa-lhe o rosto, os ouvidos e o nariz; depois ela é trocada:
da detesta estar com a fralda suja e ela está de novo há três dias com diarréia.
Assim que ela está em sessã'o, vai até a arca, tira a xícara e o pratinho,
,. os joga antes de vir para meu colo. Aí ela fica de pé, bate em meu cabelo
,: em minha testa com duas colheres, mas sem violência. Estas duas colheres,
da as apanhou da mesa onde a enfermeira a trocou.
Depois ela suga a ponta de meu nariz mordiscando-o um pouco e ba-
hando muito, como se quisesse me absorver. Digo-lhe isto, acrescentando que
da se dá conta de que não pode fazê-lo, porque seu corpo e o meu sã'o dois;
digo também que se ela nã'o está contente com a xícara e o prato, isto é, com
11m alimento exterior que não sou ele, ela pode, como eu estou todos os dias
11a sessã'o com ela, achar como ontem, que o mingau é bom e que é bom en-
d1er-se dele junto de mim. Enquanto eu falo, ela vai até a arca, coloca aí o
pratinho, depois fica parada um segundo de pé diante do prato de mingau.
Senta-se; ela está também perto da mamadeira mas não se interessa mais por
da.
Mergulha uma colher no mingau, Iam be-a longamente, com um ar de
quem se pergunta se é bastante bom para ser comido e renunciar ao resto.
Ela recomeça e decide achá-lo muito bom, depois de ter se lambuzado toda
cm volta da boca; olha para mim balbuciando e lambendo os beiços. Então
da come com a colher um pouco mais da metade do mingau, olhando sempre
f}{Jra mim sorrindo.
No fim, ela sacode a colher no chão, quer visivelmente fazer numerosas
manchas de mingau que ela espalha com sua mão. Depois ela vira o prato e o
puxa para fazer um longo rastro; bate então nas costas do prato com suas
duas colheres, encantada, sapateando olhando para mim, balbuciando.
Neste momento ela está mais excitada que agressiva. Quer voltar para
meus braços, muito descontraída, coloca seus braços em volta de meu pesco-
~:o, esfrega sua face na minha; fico tão lambuzada quanto ela.
1

Como ela quer tornar a descer, eu a reconduzo a seu quarto. Ela não fi-
ra contente com isso. Anda um pouco, dirige-se para a mesa diante do espelho
,: quer subir nela. Coloca-se de pé em frente ao espelho, sorridente, olha mi-
11/za imagem no espelho e seu rosto perde o sorriso.
92 Nadia ou o Espelho

Isto tem relação com o que eu lhe disse na sessão, que nós éramos duas?
Só pensei nisso depois, mas parece que se trata disso, pois ela tem o rosto de
alguém que acaba de constatar uma realidade que não lhe dá prazer e da qual
se desvia.
Volta a meus braços e não quer mais deixá-los. Falo-lhe docemente, di·
zendo-lhe que estou lá, que ela está em meus braços, que ela estará aí de novo
amanhã para a sessão. Deixo-a lutando contra as lágrimas.
Tenho a impressão de que ela saiu da confusão anterior, que lhe fazia
procurar em minha boca o que ela tinha comido. Esta tomada de consciência
de sermos duas pessoas distintas - ela não está cm mim, nem eu nela -
trouxe de volta uma crise de diarréia.
Renascer é difícil, inquietante e cheio <le inseguranças, dada a sua pri-
meira experiência.

o
A 16 de janeiro, foi Nadia quem, de volta a scssào, pediu, que eu a colo-
casse de pé diante do espelho. Ela própria deu aí o salto de meu objeto meta-
fórico caído a meus pés, a seu objeto meton único: sua imagem especular. Mas
retornemos às circunstâncias concretas para Nadia e para mim, do encontro
com esta imagem.
Para Nadia, este espelho já era conhecido. Ela não pode deixar de ter
tido experiência dela, não só pelo lugar do espelho, cm cima de uma mesa <le
vestir como por outro lado, pelo que fazem as enfermeiras muito freqüente-
mente, ou seja convidar o bebê a se olhar nele ao mesmo tempo que elas.
A este propósito, pode-se muito bem dizer que o espelho privilegia o
adulto com um momento de prazer que ele de bom grado faz a criança par-
tilhar, considerando aí a imagem desta, com um olho mais etemecido do que
a própria realidade da criança que está a seu cargo. Este prazer do adulto é
o que permanece ligado para cada um à imagem especular, reforçado ainda pe·
lo traço invertido da experiência primordial do espelho que o adulto em ques-
tão conheceu e que é reavivada quando ao lado de sua imagem, aparece, no
espelho, a de uma criança - não importa qual pequeno outro que lhe faz as
vezes de completude narcísica.
Se a criança não é ainda sensível à dimensão propriamente especular de
tais experiências, ela não deixa entretanto de ser interpelada por aquilo que,
na fase pré-especular, prefigura o especular: isto é, a imagem do Outro.
Vimos em Nadia, como ela se mirava narcisicamente na imagem fasci-
nante de 10 de dezembro. Seria um retorno a esta imagem, enquanto recal-
dada, o qual tenta a 16 de janeiro, quando ela pede que eu a coloque em pé
frente ao espelho? Talvez, mas em todo caso, fracassou, como testemunha sua
imediata expressão de angústia. Ela logo desvia a cabeça e refugia-se em meus
braços. O que ela vê no espelho não tem nenhuma ligação com a totalidade
da imagem fascinante; pois no momento em que, ativamente, ela pede que eu
a coloque diante do espelho, ela se vê nele sozinha, sem um olhar para minha
O Espelho I: Nossa Imagem 93

imagem, nem para a do marinheiro que ela segura sempre nas mãos. Retoma-
remos ao papel deste marinheiro.
Em relação a mim, é preciso dizer que, no momento desta virada de Na-
dia, eu faço apenas seguí-la. Se tomo o resumo da sessão de 16 de janeiro ao
pé da letra, devo frisar que realmente escrevi isto no fim da sessão: "Esque.ci
de dizer que Nadia me pediu para colocá-la em pé diante do espelho ... " Isto
quer dizer que para mim, este espelho não se referia na época a nenhum co-
nhecimento teórico: conhecimento do qual eu não tinha nem a sombra, como
já frisei. O que estava em causa era muito mais minha própria relação ao es-
pelho e ã minha imagem especular, relação questionável; e é nisto que posso
dizer, no sentido próprio do termo, que o tratamento de Nadia faz parte de
minha análise, visto que é com ela, e por ela que eu vou abordar minha pró-
pria imagem especular, ou melhor suas relações com o Outro. Ilustração exem-
plar do lugar de ensinado do analista pelo analisante por um lado; porém mais
ainda do que o ensino, é do trajeto inconsciente essencial, que este bebê ana-
lisante vai me levar a fazer, que se trata. Depois do tratamento de Nadia não
ficarei mais diante do espelho, como antes.
Para Nadia, tudo acontece na passagem da metáfora ã metonímia no
quadro estruturado pelo significante, significante saído por mutação, da re-
laçã'o do Real dos corpos.
Pela primeira vez, a 16 de janeiro, Nadia ela mesma se faz, de corpo in-
teiro, meu objeto metafórico caído a meus pés, e pela primeira vez também,
diante do espelho, ela mesma se fez objeto metonímico. A passagem da metá-
fora ã metonímia só se radicaliza quando ela coloca em jogo seu próprio cor-
po como objeto metafórico e metonímico.
A metáfora, é o objeto parcial que ela quis recolher de meu corpo,
agora é a relaçã'o do Outro sob a forma de acolamento de superfície, é a in-
terrogação do furo do corpo do Outro que pode figurar o desejo deste sob a
forma de uma falta que já é significante - é o que funda e instaura o desejo
do Outro, ao qual Nadia deve responder para obter seu amor: o amor de trans-
ferência está inteiramente na metáfora. Mas a metáfora guarda ainda suas liga-
ções com o Real; desde então, o amor de transferência visa a inclusão do Ou-
' ro por acolamento. Não conseguindo alcançar isso por causa da resistência do
Real dos corpos, o próprio sujeito se propõe ã inclusão no Outro. É a este
ponto último que Nadia chega a 16 de janeiro, a meus pés.
Esta ação faz participar ao mesmo tempo o Real dos corpos - oh quan-
lol - e o que, deste Real, foi transposto em significante. O sintoma se desen-
volve neste campo da metáfora. Ele tem ligação como tal com o Real, isto é,
.:om a tentativa de inclusão do Outro, e com o significante que coloca nele a
interdição. A verdade que aí está ligada, é este mirada de inclusão que aparece
nn Nadia pela via do Real do corpo; e a contradição explode aí, visto que a
ordem do significante coloca a sua realização, o Real, como impossível. O
,ccalque ligado a meu chamado nominal, a 10 de dezembro, fez ao mesmo
rcmpo o Real da imagem fascinante sofrer um movimento de báscula:e colo-
rnu a interdição no significante.
94 Nadia ou o Espelho

Nesta experiência fundamental, podemos descobrir o que faz a passa-


gem da metáfora à metonímia, em relaçao ao Outro: a imagem do outro
estava incluída, por acolamento no olho de Nadia, e guardava urna dimensão
de Real, antes de meu chamado nominal; a inter<liçrro que este coloca faz cair
a imagem e exclui para Nadia todo acolamento do Outro, que eu sou em seu
corpo. A metonímia surge antecipando-se ao que será a exclus!ío do Outro
quando do primeiro espelho: neste momento, com efeito, eu sou completa-
mente excluída enquanto imagem. A articulação nesse momento crucial do
fim da sessão de 16 de janeiro, se dá entre o corpo incluído no Outro metafo-
ricamente, e a exclusão do Outro pela relação do sujeito a uma outra imagem,
a sua própria no espelho.
A metáfora aparece assim como uma estrutura de inclusão, na linha de
visão de corpo, onde o significante lembra-se do Real que o promoveu. A
metonímia, como Nadia demonstra, excuí a imagem do Outro com lugar de
acolamento. O que o Outro era transitivamente como imagem real, cai; sua
função de espelho real torna-se caduca no encontro do sujeito com sua pró-
pria imagem; é a perda que se torna real por causa da impossibilidade de l!CO·
lamento em uma imagem virtual, por um lado, e ao nível do marinheiro, por
outro lado, o qual simbolizava esta perda quando ela, sob minhas vistas, o
sugava e ela já apreendia a impossível inclusão do Outro, que eu era. 1! certo
que o achado deste marinheiro a 11 de janeiro, fora da sala de sessões, já in-
dicava a exterioridade deste objeto em relaçao ao Outro; é este marinheiro
que representa a perda conjugada do Outro e do objeto, quando do primeiro
espelho.
Se digo agora, que Nadia não lançou nenhum olhar para o marinheiro
no espelho, é só depois, pois nesse momento, eu também nlfo o vejo. Tam-
bém não noto sua existência quando, ao retomar após a sessão porque Nadia
chora, eu a tomo, ela sozinha, para recolocá-la em seu leito, constatando en-
tretanto, neste momento, que ela chora porque lhe tomaram o marinheiro.1!
pois ainda, só depois, que posso dizer agora que se eu registrei a perda do ma-
rinheiro por Nadia, esta perda era também a minha, visto que espontaneamen-
te eu não fazia caso dele. Ao menos neste momento, se ela sofre com esta
perda, eu a precedo novamente em seu trajeto por um certo saber inconscien-
te: saber que nlfo tenho de protegê-lo de sua perda.
Seguindo-a deste modo, será que não tomo esta perda para mim? Não
é também a minha perda? Feliz ignorância que, colocando o marinheiro entre
parênteses, o reduz a ser somente o objeto de uma perda.
Surge aí a profunda diferença entre a metáfora, que nlfo apaga o objeto,
mesmo se ela o substitui por outro, e a metonímia que desenlaça esta relação
apagando o objeto e afetando-o com um signo ( - ). Minha ignorância estava
aí precedente, condicionava a parte que eu tinha que representar nesta passa-
gem, talvez tomando aí o lugar de Nadia. Nada nos diz, só depois, que não era
um amor de contra-transferência o que me guiava quando eu só via Nadia no
espelho. Mistério da análise, visto que podemos bem dizer que teria sido sufi-
ciente que eu estivesse menos implicada pessoalmente e mais disponível para
O Espelho I: Nossa Imagem

apreender objetivamente a relação de Nadia com o marinheiro, para que eu


fosse tentada a devolver-lhe o marinheiro e protegê-la de uma perda. Quais
teriam sido então as conseqüências?
Se o marinheiro não tivessse sido cambém para mim o representante da
perda, eu poderia estar sensível à importância deste objeto para ela e tê-lo
devolvido para reconfortá-la. Mas, nesse caso, sob a luz de tudo o que pre-
cede sobre a relação de Nadia com o objeto, será que eu não teria feito o que
cu jamais fiz, isto é, impor-lhe um objeto para que a ela nada falte? Por inter-
médio deste objeto, como a mamadeira por exemplo, eu me teria proposto
pois, como substituto do objeto que lhe havia realmente faltado. É uma atitu-
lle que não é rara nos tratamentos de crianças de pouca idade, por menos que
D analista, em vez de estar sensível ao registro da falta no qual se desenvolve
a relação de objeto, se volte para o preconceito do bom ou do mau objeto.
Nadia tinha me preparado de longa data a conceber que o bom objeto
não é aquele da necessidade, mostrando-me toda sua inibição diante do objeto
oral: que este seja a mamadeira ou o objeto do qual eu era portadora; a notar
que a relação de objeto, comporta muito mais elementos no circuito da pulsão
que uma simples adequação do objeto ã satisfação de uma necessidade.
O marinheiro, pela intensidade da reação que ela mostra diante dele,
pela distância que ele tem como um objeto propriamente oral, por seu lugar
cm dois níveis escópico e oral, e finalmente pela relação com a cena de 10 de
dezembro, implica num debate completamente diferente: o de um objeto
preenchendo realmente a falta, a sua e a minha.
Preencher minha falta, é o que ela tinha interrogado ao se deitar a meus
pés e ao se fazer recolher, isto é tomando, por retomo, ela mesma em relação
a mim, o lugar de que ela tinha investido o marinheiro em relação a ela. Mas
este lugar é ambíguo, pois ele se prende ao objeto real que Nadia queria me
tomar. É um tal objeto que ela já encontrou, quando da cena de 10 de de-
1,embro: como testemunham seus movimentos de sucção; mas eu estava radi-
calmente excluída e ela tropeçava na interdição de minha morte.
É então sua mutação que ela procura, quando ela vai para o espelho pa-
ra aí encontrar a imagem especular do marinheiro que seria um objeto com-
pletamente diferente de um objeto real: um objeto simbólico, um objeto fá-
lico, como o que o obsessivo pode construir, ao preço de tomar impossível
seu desejo, tomando ele mesmo o lugar do falo preenchendo simbolicamente
o desejo da mlíe?
Este lugar de objeto fálico não é sem relação com dois outros objetos
que apareceram recentemente: de uma parte, o lápis da sessão de 9 de ja-
neiro, com o qual Nadia explorou minha boca e que ela sugou antes de explo-
1ar com ele o penico; de outra parte, a 12 e 14 de janeiro, o sapato do pé
l'squerdo, que ela recusa que eu coloque nela no início da sessão.
Uma outra hipótese nos faria dar um passo adiante, desta vez no cami-
nho onde a falta de Nadia seria preenchida por identificação, isto é no cami-
nho das perversão. Com efeito, qualquer interesse q~e eu tivesse manifestado
pelo marinheiro poderia levá-la nlío a tomar o lugar do marinheiro, como no
96 Nadia ou o Espelho

caso procedente, mas a se conceder um lugar retirado do modelo que eu lhe


teria fornecido - por eu tê-lo também: isto é, de me apresentar a ela como
uma mulher fálica realmente.
Este caso também não é raro, se o analista não toma cuidado, confun-
dindo a fantasia da m[e fálica, necessário para a criança, com o deixar acredi-
tar na existência real deste falo. Freud, no caso do Pequeno Hans, marca bem
sobre este assunto a fronteira entre a fantasia e o real, quando ele faz o pai di-
zer, sem nenhuma ambiguidade, que a ma:e não tem este falo. É o que vai sal-
var Hans da perversão: não fazê-lo tomar as calcinhas da mãe pelo objeto co-
biçado, mas quando muito, interessar-se por elas somente quando ela as usa,
isto é, reduzí-las a um véu atrás do qual a fantasia fálica poderá guardar seu
papel dialético, sem nenhum efeito de fechamento por denegação da falta.
Uma terceira hipótese só toma lugar aqui como uma lembrança, é aque-
la em que o marinheiro poderia ser um objeto transicional: quer dizer que ele
não seria nem de Nadia, nem meu. Mas vemos perfeitamente que esta hipóte-
se não se sustenta; pois se eu tivesse me interessado por ele como um adulto
se interessa por um tal objeto para a criança, cuidando de devolver a ela para
reconfortá-la, nós nos remeteríamos obrigatoriamente a um dos dois casos
precedentes.
Uma outra hipótese quanto ao que acontece à bascula na psicose, é
de uma importância bem mais considerável.
Imaginemos com efeito que no momento em que Nadia se desvia vio-
lentamente diante de sua in1agem no espelho, para se esconder em meus bra-
ços, eu não estivesse mais lá realmente, que meu lugar estivesse vazio. O que
lhe restaria então? Não seria mais o objeto alucinado a 10 de dezembro, seria
um objeto real, o marinheiro que ela tem nas mãos. Ela o ligou tão intima-
mente a mim pelo olhar e pela boca que seria impensável que ela pudesse de-
positá-lo novamente ao nível dos objetos intercambiáveis e indiferentes. Ela
seria então fixada, pregada neste marinheiro, e ela o re-incorporaria pelo olhar
e pela boca, ao infinito, sem cessar, para preencher o vazio causado pelo meu
desaparecimento.
É, como veremos em Marie-Françoise, o caso do objeto psicótico, que
é o que resta como testemunha real do Outro perdido radicalmente.
O que Nadia mostra claramente no fracasso de sua tentativa de ir buscar
a imagem de sua completude pelo viés do marinheiro, é que o espelho não a
remete a ele e ela se desvia angustiada em minha direção.
Na transferência, lá onde ela chegou comigo em seu projeto, ela está
neste ponto de articulação da procura do objeto e da presença do Outro. Nes-
te ponto, está por um fio que o pequeno sujeito se volte para o Outro, ou seja
reenviado em impasse para a parede de um objeto que pode cortá-lo para sem-
pre da presença do outro, Outro que terá deixado o seu lugar vazio neste
preciso momento em que ele é interpelado; momento fecundo, se existe tal,
da entrada na psicose, seja por que o Outro não responde, seja porque ele não
se oferece. Assim a psicose paradoxalmente, pode surgir mais provavelmente
de uma ruptura de relaçã'o com um Outro do qual a criança espera e obtém
O Espelho I: Nossa Imagem 97

muito, quer seja a mãe ou um terapeuta, do que de wna relação mais neutra,
que pode deixá-la na espera, não sem entretanto provocar estragos irreversí-
veis, se esta espera se prolonga.
A isto remete a diferença em Nadia, entre o objeto alucinado e o mari-
nheiro: o primeiro pode funcionar como corte e defesa contra um Outro in-
diferente ou quase - Nadia não colocava, em suas relações com as enfermei-
ras, muito pouco investidas e não privilegiadas, a questão da muda do objeto
pelo olhar do Outro; o segundo coloca em suspenso a interdição da morte do
Outro, na medida em que este Outro já está lá.
Eu estava lá antes de 10 de dezembro e neste dia minha morte era o ris-
w. Foi pelo viés de minha morte que ela me introduziu em sua vida, ao longo
de todo o seu debate, na fase pré-especular.
Somente esta última hipótese dá conta do que existe de mais profundo
neste debate, isto é a relação ao Outro, onde o sujeito corre o risco da psicose.
Nos outros casos, neurose ou perversão, o Outro está lá e não está radicalmen-
te em questão.
O objeto ou o Outro, wn dos dois deve ser perdido. Nadia tinha mostra-
do que, o que era para perder, era o objeto, quando ela o largava com seu des-
1rave automático de abertura da mão; destrave que ela tinha reencontrado
como um obstáculo justamente entre o 19 espelho. Veremos que Marie-Fran-
coise permaneceu, fixada neste objeto, com a última defesa contra sua perda
que ela tinha encontrado na fascinação escópica e o fenômeno do duplo; mas
ao preço da: anulação do Outro, isto é a psicose.
Qual foi então a conseqüência do fato de eu nã'o ter devolvido este ma·
rinheiro a Nadia? Eu institui para ela uma perda irremediável no plano real; e,
seguindo sua ati.tude angustiada diante do espelho, eu confirmei o fracasso
11ue ela aí encontrou na tentativa de preencher esta petda.
l>leste encontro com o espelho, nesta primeira vez, wna via essencial foi
aberta. E isto só foi possível pelo que aconteceu entre mim e Nadia com o
marinheiro. Nadia perdeu este objeto, mas soube que eu não o tinha. Então
se deu a viragem, da procura do objeto real em meu corpo, apesar do impossí-
vel que ela aí encontrava, ao questionamento da falta.
Desde então, nã'o é mais o Real que está em causa, mas o Imaginário e o
Simbólico que abrem a relação com a falta de objeto e que vã'o encontrar seu
campo privilegiado no espelho.
O marinheiro, enquanto que objeto da perda de Nadia, e .enquanto não
lhe foi devolvido por mim, é seu "a". Eu o confirmei neste lugar, pois, desde
o encontro de Nadia com o espelho, a imagem do marinheiro ''i (a)", que ela
1cm nas mã'os, n!o aparece: ele não é especularizável.
O Real do marinheiro, excluído do espelho, vai dar, para Nadia, consis-
tcncia ao Imaginário.
Ao lado dos registros implicados, um certo modelo aritmético é de na-
1ureza e dar conta da clínica.
98 Nadia ou o Espelho

Se nós partimos da sessão de 16 de janeiro, exatamente antes do espe-


lho, nós encontramos - primeiro tempo - Nadia em meu colo,.sua boca co-
lada em meu rosto, tentando me absorver: tentativa do wn: 1 + 1 = 1.
Depois - segundo tempo - ela desce e diante de mim, retomando seu
marinheiro, ela o suga energicamente: de wn lado eu e meu olho =2; do ou-
tro, ela e seu marinheiro = 2. A situação pára de evoluir como se 2 + 2 = O,
isto é, que em cada um dos dois membros da equação, falta wn terceiro ter-
mo: o Simbólico.
A situação seguinte faz aparecer a possibilidade de wna perda quando
Nadia se apresenta caída a meus pés: ela se deixa ver por mim como objeto
de minha perda = - 1. Eu era ;, 2 - 1 = 3, na medida em que esta perda po-
de se contabilizar como terceiro elemento com os dois outros: minha ima-
gem + meu olho. É preciso marcar que minha imagem não é aqui wna imagem
especular, que só advirá quando do 39 espelho, mas aquela que Nadia conhe-
ce desde o início, na qual ela pôde mirar-se: pré-especular e narcísica primária.
Este terceiro tempo, comportando pois wna tal imagem, wn elemento
real, meu olho, e uma perda, abre a via ao quarto tempo, o do espelho.
Após 2 + 2 = O, 2 - 1 = 3, Nadia tenta a seu próprio nível no espelho,
2 + 1 = 3. Mas, no espelho, ela não vê nem minha imagem, nem a do mari-
nheiro, visto que o encontro com sua própria imagem a faz logo desviar-se.
No lugar de 2 + 1, ela só encontra 2 - 2, ela e sua imagem de um lado, eu e
o marinheiro do outro.
Devemos admitir nesta seqüência, que o movimento lógico do fun da
sessão de 16 de janeiro, que leva Nadia até o espelho, de uma certa maneira
inelutável, é a busca que visa reencontrar o que ela viveu a meus pés de onde
eu a recolhi, isto é o 2 - 1 = 3, que daria o 2 + 1 por simetria no espelho.
Eu havia recolhido meu objeto "a" a meus pés. Ela vai buscar, no espelho,
o seu. Mas a simetria não acontece, porque nada é ainda especularizável, so-
bretudo o objeto n[o o é, nem eu tampouco. Ela não pode pois me promover
ao nível de outrem, de "novo sujeito", porque ela elimina, não o meu olhar,
mas meu olho, enquanto que portador do objeto "a". Ela elimina também o
marinheiro, que ela nem mesmo olha. Ela vai sentir a perda real quando eu
não o devolvo a ela; ele toma-se para sempre não especularizável. Ao mes-
mo tempo, eu a reconforto, carregando-a por wna segunda vez para colocá-la
em seu leito. Mas, eu vou me embora em seguida. Ela me perde lá onde eu po·
dia ainda pertencer ã imagem de 10 de dezembro, que seu olho continha.
Caem de seus olhos as viseiras: o (marinheiro - outro) e (eu - Outro real (não
barrado)). Ela não está mais cega: é um olhar que ela me dirige quando trans;
ponho a porta, wn olhar patético, mas que existe enquanto olhar, um olhar
que vai em seguida ter o seu papel, no campo mesmo do especular; mesmo
que seu olho esteja ainda, neste momento, desesperado.
Desde o dia seguinte, o efeito é patente: ela tem afinal o rosto de uma
criança de sua idade.
Nadia só voltará ao espelho a 22 de janeiro. Entre 17 e 22 de janeiro, se
persiste em seu rosto o efeito espetacular, do encontro de sua imagem no es-
O Espelho/: Nossa Imagem 99

pelho, acompanhada da perda do marinheiro, isso é somente o primeiro tem-


po do estádio do esplho: aquele onde o pequeno sujeito encontrou sua pró-
pria imagem, mas não encontrou ainda a do Outro. E, durante as cinco ses-
sões seguintes, Nadia vai demonstrar, na violência e na somatização, a insufi-
ciência radical deste primeiro tempo do espelho. Trés aspectos revelam-se: na
sua relação com o objeto, na sua relação com meu corpo, na sua relaçã'o com
seu próprio corpo.
Na relação de Nadia com o objeto, o efeito de seu encontro com sua
própria imagem é patente, quanto à possibilidade de separação. Ela nio tem
mais necessidade do destrave de soltar para se separar do objeto; é muito ativa
,: voluntariamente que, desde 17 de janeiro, ela pega a mamadeira, por exem-
plo, e bate nela antes de atirá-la longe, escandindo sua ação com um signifi-
1:ante completamente claro, pela primeira vez: "a-pa, a-pa". Nos dias seguin-
les, entretanto, o significante lhe falta diante da mamadeira e sua violência so-
he. Ela consegue entretanto exprimir seu desejo de destruir esta mamadeira
ativamente no dia seguinte, quando ela bate com ela tão forte no chão que ela
se racha; ela a empurra então com seus pés, como ela já fazia na fase pré-es-
pecular (a 17 de dezembro, por exemplo).
Quando ela se dirige a mim, ela pode fazer um jogo mais cheio de nuan-
ces, com o biscoito que ela coloca e retira sucessivamente de um prato, balbu-
ciando "a-pa, a-pu, a-té, a-ca", tudo isto olhando para mim. O significante se
enriquece aí pela primeira vez, da dimensão do significado;é suficiente, com
deito, redobrar as quatro süabas finais para ter "papa", "tété", e "caca";
"pu" tem relação com "pum" que para ela quer dizer "cair". O "a" que pode-
mos dizer privativo, e que precede as sílabas, é representativo do que está no
<>utro que eu sou, e a quem ela se dirige.
Este outro, depois da perda do marinheiro para Nadia, é o agente da pri-
vação e, ao mesmo tempo, o lugar, de uma significância onde pode se inscre-
ver o desaparecimento e o aparecimento do objeto, em um processo simbólico
,iuanto ao registro, e metafórico, quanto ao significante. logo depois, aliás,
nesta mesma sessão, ela se faz meu objeto caído a meus pés, como a 16 de ja-
neiro, mas desta vez de brincadeira, e ela se levanta sozinha. Ela acentua ainda
L~sta dimensão de jogo metafórico a 20 de janeiro, quando ela me estende o
prato e me arrelia retomando-o, antes de estender todo o seu corpo para mim,
como se quisesse que eu a tomasse, mas para sorrindo, se recusar.
De outras vezes, durante este período, ela mesma toma o papel de agen -
le da privação, que é o meu: ela me estende um biscoito para logo arrancá:lo
de mim, sorrindo.
Todos estes elementos certamente testem~nham um domínio bem maior
do objetos, que ela os destrua ou recuse-os a mim; mas tudo continua ainda
1·m uma relação por demais marcada de Real, gerador de violência, e mesmo
de explosão destrutiva. Isto é ainda mais claro na relação de Nadia com as ou-
1ras crianças ou com a boneca. É assim que eu a encontro, a 19 de janeiro, ba-
1cndo a golpes redobrados em duas crianças e que ela me olha para ver como
100 Nadia ou o Espelho

eu aceito sua violência; ou ainda que ela atira longe a boneca após ter rachado
a mamadeira.
Todas estas cenas se inscrevem bem evidentemente em sua relação comi-
go. Não é mais certamente a relação metafórica de antes do espelho, quando
ela se bloqueava diante de seu desejo de tomar qualquer coisa sobre meu cor-
po, ou que ela se oferecia ela mesma para preencher este corpo. A experiência
do espelho, onde ela encontrou sua imagem unitária de corpo ao preço de
urna perda, a faz querer submeter meu corpo à mesma privação. Uma tal agres-
sividade que ela desenvolve, não somente contra os objetos, mas também con-
tra mim - o que dá no mesmo, pois os objetos são somente aqueles dos quais
ela me priva -, diz bastante da mudança· que sobreveio depois que ela adqui-
riu sua imagem: uma mudança que, como vimos, se inscreveu em seu rosto.
Agora, ao preço de uma perda, ela é realmente Nadia, mas ela é levada inelu-
tavehnente a me colocar neste mesmo lugar marcado por uma perda, a colocar
a "barra" sobre o "A" (~) e não mais se fazer meu objeto. A metáfora tinha
relação com a completude do Outro que vinha da imagem geradora da invidia.
A metonímia, nascida do encontro de Nadia com sua imagem, tem relação
com a unidade de seu corpo; mas, em sua busca, ela só pode assegurá-la seu eu
passo pela mesma via, a de uma perda que poderia fazer esta unidade para
mim como fez para ela.
Antes do 2<;> espelho, a busca de Nadia tropeça na apreensão do registro
real de minha perda, gerador de violência e de explosões de destruição, que
colocam eia mesma em perigo; pois se eu não sou marcada por esta perda, é
que eu conservo em meu olho a imagem que ela perdeu a 10 de dezembro; e
é aí que ela quer ainda procurá-la; como se a imagem significante para ela no
momento em que ela a perdeu guardasse seu vestígio de Real sobre a superfí-
cie de meu olho.
A metáfora só deixará plenamente lugar à metonímia pelo valor exclu-
sivamente significante da imagem em meu olho: apagamento de seu vestígio
e recalcamento. Esta perda que deve me afetar, nestas condições, é uma ne-
cessidade para que se estabeça uma relação metonímica verdadeira entre Na-
di e eu.
Podemos sacar de passagem, aqui, o que está em causa nos pequenos
sujeitos que bem encontram sua imagem no espelho, mas nâ'o puderam en-
contrar a do Outro, o que os deixa presos a uma destrutividade psicótica.
Um outro perigo é aquele que a conduta de Nadia demonstra, a 20 de
janeiro, quando, de pé, ela vem para mim e docemente tenta comer as maçãs
do meu rosto, me absorver: como se, por não encontrar minha unidade meto-
nimicamente, ela fizesse de mim seu objeto metafórico, invertendo a situação
de 16 de janeiro. Mas ela encontra aí o impossível, aquele do Real; então sua
violência desencadeia-se e, segurando-me pelos cabelos, ela abaixa minha ca-
beça, me mantém nesta posição e me bate com a outra mão. Sua violência cul-
mina quando ela quer enfiar seu dedo em meu olho: isto é, ir procurar nele ou
destruir em mim a imagem de 10 de dezembro.
O Espelho I: Nossa Imagem 101

É uma cena da qual nós teremos um outro exemplo desde a primeira


sessão do tratamento de Marie-Françoise, onde ela confirma esta necessidade
ele abrir uma brecha no Outro, o que Nadia vai conseguir quando do 29 espe·
lho, mas no que Marie-Françoise fracasso\J, o que a deixou psicótica. É ver-
dade que Nadia, numa ambivalência que ainda não está longe, entrecorta sua
violência de carinhos que ela escande com "ma-ma-ma", isto é com o signifi-
rante do lugar metonímico (a vir) do Outro.
Entretanto, exatamente como na fase pré-especular, a aproximação
que Nadia faz de meu corpo, em sua busca, não é bastante assegurada quanto
:'t separação de seu corpo e do meu; ela paga o preço disso somaticamente com
11m ouvido doloroso e um panarício que supura. Esta reação em seu corpo tes-
lemunha o seu mal estar, mas diz também o camp·o no qual seu drama se de-
senrola: é aquele do significante, aquele onde o seu corpo e o meu estão em
jogo, não unicamente no Real, mas no par primordial de significantes (S 1 e
S2 ) que os representam respectivamente. Nós podemos dizê-lo a julgar somen-
te pela ausência praticamente· constante de tais reações somáticas espontâneas
110 drama similar no pequeno psícótico: justamente porque ele não evolui no
campo do significante.
Nadia, corre atrás de meu S2 : ela vai encontrá-lo em minha imagem es-
pecular no 29 espelho, me fazendo passar de um lugar de objeto metafórico
a um lugar metonímico, lugar necessário à relação dos significantes; iniciativa
lógica, inelutável, mas velada. Um véu que ela própria introduziu pela primei-
ra vez, sob a forma do pedaço de pano, a 19 de janeiro.
A 22 de janeiro, é o 29 encontro de Nadia com o espelho, no início da
sessão, enquanto que uma enfermeira a calça sobre a mesinha, justamente ao
pé do espelho. Lá, ela mostra um pleno interesse pelas imagens, a sua e a mi-
11ha; a sua que ela pode neste dia olhar de verdade, quando eu estou junto de-
la, e a minha, que ela confronta com meu c&rpo real.
Toda a sessão que se segue é matizada de efusões corporais de ternura;
da acaricia meu rosto, cola todo seu corpo ho meu, verticalmente, os bra·
ços em volta de meu pescoço, sua boca aberta contra minha face, dando griti-
11hos de felicidade, colocando seus olhos nos meus. Tenho a impressão que ela
"renasce" e digo-lhe isto; isto é, que ela realiza entre seu corpo e o meu a pa·
lavra que eu lhe disse na véspera: "Comendo, aprende-se a amar, ser amado e
;11nar a vida".
Neste momento, ela está longe do amor conflitual da transferência, to-
do marcado pela metáfora, onde, na fase pré-especular, seu corpo devia estar
para mim e onde, desde o primeiro espelho, meu corpo devia estar para ela.
Seu ar radiante, no retorno, surpreende a enfermeira a quem ela estende
os braços, pela primeira vez; e ela dá um pedaço de pão a uma outra criança:
diante da mulher, diante da criança, alguma coisa, por um instante, se desen-
laçou desta ligação metafórica que a entravava; a metonímia a faz aceder a
liberdade significante, através de minha palavra.
Mas, desde o dia seguinte, o que de seu eu e do amor tinha ligação com
" nã'o-pulsional se apaga diante de um retorno massivo do Real do corpo, nã'o
111ais, desta vez, ao nível escópico, mas a nível digestivo: abrindo a via à repri-
102 Nadia ou o Espelho

se do debate oral que permanecerá, como veremos, sem solução verdadeira,


intrínseca, até o fim da análise de Nadia.
A 23 de janeiro, com efeito, enquanto ela me acaricia o rosto, com to-
da a efusão a que ela queria dar continuidade nos moldes da véspera, ela defe-
ca nas fraldas. Logo ela me morde o braço, o queixo, bate em minha boca:o
Real de seu corpo retomou, com o pulsional. O amor que ela acaba de encon-
trar e o pulsional, não são parecidos como o diz Freud.
O pulsional tal como ele vai aparecer agora, é o devorar ou o tomar um
objeto de mim: meus óculos, de que ela quebra várias vezes uma haste antes
de sugá-la, fazendo a ligação do cscópico e do oral. Esta ligação vai ainda per-
manecer por muito tempo, visto que o cscópico substituiu, para Nadia, o oral,
cuja obstinação reaparece agora cada vez mais. Esta obstinaçlfo, é provável
que seja aquela que ela conhecia antes de seu refúgio no escópico; ela a encon-
tra muito rápido depois do 2~) espelho, sob a forma do desejo de me absorver,
ao mesmo tempo que ela se mostra cada vez mais faminta na mesa. O retorno
da oralidade ao primeiro plano torna a mergulhá-la em sua busca anterior ao
espelho, isto é, a da inclusão do Outro, busca de que a realidade, é bem eviden-
temente o protótipo ao nível da pulsão.
Então, ela vai refazer um circuito que vai durar, perto de dez dias e que
resultará na verdadeira separação entre ela e mim, entre ela e o Outro. Mas,
naquele momento, tenho a impressão de que, por este viés da oralidade, ore-
torno maciço do Real dos corpos, ou melhor, da metáfora, arrisca fixar Nadia
em um tal impasse que a metonímia do especular sofra aí um eclipse. Na
época, intuitivamente, eu procurava ré-inscrever esta oralidade cm qualquer
coisa de mais vivo, isto é, menos diretamente pendurada em meu corpo. Foi
o que me determinou, a 25 de janeiro, a retornar uma hora após a sessão para
lhe dar o fim de seu jantar fora da sessão e fora do espaço analítico. Em meu
espírito, tratava-se de temperar o rigor da obstinação oral, inelutável quando
ela se dirigia a meu corpo ao longo das sessões, por meio do alargamento desta
relação oral pelo ritual da refciç[o que Nadia conhecia e pelos instrumentos
que a ele estão ligados: prato, colher, caneca. Teria sido eu conduzida aí pelo
que Nadia já me havia indicado quanto à importância do fora da sessão, do
fora espaço analítico, indo buscar a 11 de janeiro, o marinheiro de borracha
em uma outra sala, para fazer dele, a 16 de janeiro, ao mesmo tempo um ob-
jeto oral que ela suga olhando para mim e o objeto de sua perda quando do
1<? espeU10, logo depois? O que eu não podia prever, neste 25 de janeiro, quan-
do eu lhe dava o resto de seu jantar, era a promoção ao primeiro plano de um
objeto, a coU1er, da qual ela iria se servir como de um mediador em seu debate
oral comigo.
Relembramos que esta colher tinha aparecido no tratamento desde o
começo, uma primeira vez a 12 de outubro, e uma segunda vez a 3 de novem-
bro quando uma enfermeira, na minha presença quis dar o lanche de Nadia
de colher. Mas neste momento a colher não tinha nada de um objeto de pri-
meiro plano e a recusa de alimentos de Nadia concernia a sua relação ao Ou-
tro sob meu olhar; a colher não podia ainda servir de mediador.
O Espelho /:Nossa Imagem 103

Quando lhe dou a segunda parte de seu jantar, o que eu tinha previsto
acontece: isto é, que o ritual da refeição a salve de inibições anteriores. Ape-
nas intrigada no início, ela sorri bem depressa e manifesta sua alegria de ser
alimentada por mim no contexto e no tempo de sua refeição no meio dos ou-
tros. :É verdade que o descalomento da imagem metafórica já aconteceu, mes-
mo se Nadia custa a aceitá-lo. Neste dia, a metáfora do acolamento dos corpos
pode ceder lugar à colher cuja definição temos agora de delimitar.
1. Quando eu chego, encontro Nadia sentada em seu leito, sugando
seu polegar, choramingando, diante do quadro de uma enfermeira que alimen-
ta uma outra criança com a colher. Com certeza não é mais a imagem fasci-
nante, que foi recalcada; mas resta o auto-erotismo oral, que ainda há pouco
tempo diante da cena, comandava movimentos de sucção; era então sua l ín-
gua que lhe dava prazer, hoje é seu polegar. O objeto estava então colado, in-
cluído em seu olho; hoje ele está no exterior: o prazer não é mais ta:o primá-
rio como era e ela choraminga diante desta nova realidade. A realidade para
ela é que existe um Outro, um Outro que dá ao pequeno semelhante um obje-
to supostamente satisfatório: o alimento. Este objeto que ela espera do
Outro tem agora mais peso na realidade do que a satisfação auto-erótica, que
ela só utiliza na falta de coisa melhor para alcançar seu objetivo.
2. Também, como vimos, ela aceita ser alimentada por mim no contex-
to habitual da satisfação de sua necessidade; o prazer que ela manifesta en-
quanto eu a alimento, testemunha que se trata de outra coisa que da ne-
cessidade, e que ao seu auto-erotismo faltava o Outro. Também, neste lugar
do Outro que eu sou, a questão de sua relação comigo não pode senão logo
aparecer; e sua necessidade satisfeita deixa inteiro o problema de seu desejo,
um desejo que ainda permanece entravado quanto ao objeto-alimento: aliás,
não é uma demanda de ter mais alimento que ela me dirige, e ela vai buscar o
objeto ligado ao mesmo tempo a meu corpo e ao seu. A colher responde bem
particulanncnte a esta definição, na medida em que ela concerne para Na-
dia, não somente o oral mas também a pulsão escópica, referência à cena pre-
cedente diante da qual ela choramingava sugando seu polegar.
Esta colher é o prolongamento de meu corpo; cu a coloco junto com o
prato sobre o travesseiro do leito vizinho e lá Nadia quer logo pegá-la, ou me-
lhor deve conquistá-la.
3. Com efeito, o que então se passa demonstra que para ela não se
trata somente de pegar um objeto, mas de dar-lhe um lugar essencial e lógico
cm sua relação de corpo comigo. Também, quando ela a quer pegar, lhe
é preciso não menos que três ensaios, seguidos de três destraves para largar
antes que ela o pegue realmente: é a prova de que a colher permanece ainda in-
111trada de seu estatuto de objeto de corpo, este objeto que ela queria tomar
de mim em todas as fases anteriores e cuja característica por demais marcada
pelo real inibe sua iniciativa.
4. Quando ela pegou de verdade a colher, é a influsão de tt1ia que ela
recusa; no momento em que a enfermeira quer lhe fazer beber na caneca, ela
a entorna em seu prato e joga-ó no chão, depois bate no prato com a colher.
104 Nadia ou o Espelho

O lugar do prato vem aliás fazer contraponto ao da colher, quanto à relação


a meu corpo; nós retornaremos a isto a propósito da se são de 26 de janeiro.
5. Todo o final da sessão de 25 de janeiro demonstra a mutação à qual
Nadia acaba de submeter a colher. Não é mais um objeto real: ela se apodera dela.
Não é mais um objeto metafórico ligado a meu corpo: o vestígio desta ligação
é a tal ponto apagado que ela pode ser o prolongamento de seu corpo, como
era do meu; seu ar triunfante quando ela a brande, seu entusiasmo quando ela
me mostra a colher, seu transbordar de atividade quando ela vai embora vito·
riosamente e que troca com ela em todos os objetos demonstram bastante o
novo lugar que a colher acaba de tomar. Que lugar?
O apagamento do caráter metafórico, faz dela um puro objeto signifi-
cante, separãdo· de sua· dimensão substitutiva de um objeto de corpo que ela me
teria tomado. Como tal, ela pode privar-me dele sem que se revele a falta da
qual ela me afeta, não mais do que se revela para ela, seu desejo de "ter qual-
quer coisa de meu corpo". Minha falta e o seu ter - marcado pela sua pró-
pria falta, como veremos ··- permanecem desconhecidos ao nível da colher,
pela promoção significante, metonímica, deste objeto; promoção que é o se-
gredo da explosão de seu poder sobre o mundo exterior. Podemos dizer que
a colher tomou-se o significante da falta: isto é estruturalmente o falo do qual
ela me priva, sem que para Nadia eu saiba que ele me falta, e do qual ela mes-
ma ignora o estatuto de objeto para fazer dele apenas o instrumento de uma
marca que ela impõe a todos os outros objetos, inclusive ao m~dico que dela
se aproxima. Tanto quanto eu não devo saber o que ela me tomou, ela não
quer saber o que ela temJ inteiramente voltada que está para o mundo exte-
rior: tal é a dimensão de sua própria falta. A colher lhe serve para batizar o
mundo, que perde aí sua demasia de Real. O Batismo é "em nome de ... ", em
nome do Outro, bem além de mim que o represento: o pai mítico.
Como se passa freqüentemente em análise, Nadia antecipou largamente
o caráter metonímicc da colher. Não é a primeira vez que ela se antecipa des-
ta maneira ao ponto aonde ela deve chegar; vimos no momento em que ela
me estendeu o pé, depois de minha nomeação, a 10 de dezembro, antes de
entrar no longo debate da fase pré-especular.
No dia seguinte, 26 de janeiro, não é mais a colher que a interpela, mas
sim o prato, sob a forma de um pratinho de brinquedo que ela pega na arca.
Ela retorna ao prato como se retornasse ao questionamento de meu corpo.
E, aliás, quase imediatamente, deixando o prato, ela me arranca os óculos e
balbuciando agita-os tanto que dele quebra uma haste. É esta haste dos óculos
que ela vai sugar, não sem antes ter mordido meu pulso, sublinhando assim
seu retorno à relação de corpo ligada a oralidade; não somente isso, aliás, vis-
to que com a haste dos óculos, ela vai bater na beira do penico, depois no in-
terior dele. Aqui não é mais o objeto metonímico que está em causa, mas sim
o objeto da perda: quer seja a imagem que ela quer tomar de mim ou a eva-
cuação que ela teve em meus braços, a 23 de janeiro.
Tomando a pegar o prato e deixando a haste dos óculos, ela brinca en-
tão, sentada no chão, de jogar e apanhar, alternadamente, o primeiro, em um
O Espelho I: Nossa Imagem 105

jogo simbólico de perda e de redescobrimento, no qual o objeto aparece em


filigrana quando o prato escorrega entre suas pernas contra suas fraldas e que
da briga levantando seu avental para reavê-lo, dando sinal aqui de um outro
lugar da falta em seu corpo. O que ela confirma no momento em que, abando-
nando o prato, ela vai procurar um pirulito que ela percebeu sob um leito;
ela o suga, quer dá-lo a mim; não sem antes ter hesitado, visto que ela o jogou
e tomou a pegá-lo.
O objeto, ao longo desta cena, retomou pois ao debate imaginário: não
se trata mais da colher como significante metonímico da falta, levando Nadia
a ação no entusiasmo de um não-sabido, mas novamente de um saber: questão
insolúvel, de saber quem, se ela ou eu, deve ser afetada pela falta. Se é ela, ela
só pode ser agressiva comigo, e se sou eu,. e que ela sabe que eu sei, ela só po-
de renunciar.
Se eu decido ao fim desta sessão colocar, no dia seguinte, um prato com
um pouco de· mingau e uma colher no material da sessão, foi porque eu me
surpreendi com o retorno maciço da oralidade em impasse, o mesmo retomo
de antes que lhe deu o seu jantar; penso que deixei de colocar à sua disposi-
ção o que ela acaba de conquistar de meu corpo, sob a forma da colher; pen-
so também, e eu o noto na época, que o mingau, na sessão, poderia adquirir
uma outra dimensão que não aquela de um puro alimento: explicitamente a
de uma lambuzada de Nadia e de mim, o que não deixará de acontecer.
Diante da colher· e do prato de mingau, Nadia não hesita: lambe a co-
lher uma vez e come o mingau com a mão. Mas bem depressa ela volta à co-
lher que não tem mais para ela este caráter triunfante que tinha a 25 de ja-
neiro.
Num primeiro tempo, ela vem significar o objeto da perda, de início
seu objeto visto que ela a joga; mas ela joga também meu lápis que ela pegou
em meus bolso e os óculos, emparelhando neste momento sua perda e a mi-
nha.
Em contrapartida, quando, logo depois, ela torna a pegar a colher e
pra começar brinca com ela sorrindo, se ela a joga novamente é para me mos-
trar seu sapato, um só. É para negar sua própria perda diante de mim? Sabe-se
qual foi a importância dos sapatos para Nadia, quando, durante toda a fase
pré-especular, fase tão difícil, seu rosto se iluminava, não ao me ver, mas sim
quando eu trazia seus sapatos no início da sessão. Seria então o representante
do objeto que ela queria tomar de mim? B pouco provável, dada a sua inibi-
(ão diante de um objeto de meu corpo, ou seu puro representante.
Encontramos antes aí o caráter mascarado, ignorado, tanto dela quanto
111eu, que faz com que um objeto como a colher, neste dia, possa preencher
:;eu papel metonímico.
Novamente alguma coisa se precisa a propósito destes objetos quanto à
profunda diferença entre a metáfora e a metonímia.
Na metáfora, o representante psíquico do objeto, se ele já está na via da
.,,gnificância, pode reenviar o sujeito, apesar do sentido que surge nele, e
111esmo por causa deste sentido que se revela nele, para um retomo do Real
106 Nadia ou o Espelho

dos corpos - pela travessia da barra que separa os significantes presentes na


substituição metafórica. Estes retornos do Real dos corpos, é o retomo à si·
tuação dual.
A metonímia introduz uma dimensão suplementar da qual Freud to-
mou a responsabilidade no termo, que traz tantos problemas quanto à sua tra·
dução para o francês de Vorstellungsreprase11td11z: redobramento de algum
modo do mecanismo em causa, onde a Vorsll'l/1111K, enquanto "representa·
ção", não define um fenômeno único concernente a um objeto dado, mas um
campo; este campo da representação, é o sig11ilka11tc; é neste campo que o
"representante" do objeto, o reprasentanz, pode se i11scrcver como significan·
te e, enquanto tal, segundo a lógica do significa11tc, entrar cm conexão com os
outros significantes da cadeia. É o que exclui aqui a possibilidade do retorno
imaginário, e mesmo real, dos corpos. O nlío-sahido apaga aí toda tomada di·
reta sobre a significação e, para retomar os ter111os de Freud, liga aí a energia,
cujo quantum é o do afeto. Daí o caráter lihcrador l' triunfante da colher.
O caráter metonímico do objeto-colher wnti11ua entretanto transitório.
Será isso pobreza nonnal, na idade de Nadia, da ra,kia significante, logo de
conexões pouco numerosas? ou ainda um retorno sc111pre possível à metáfora
pelo viés da perda de objeto, que ela não o tenha mais, que o tomem dela, ou
de que ela mesma se prive?
A dificuldade própria à oralidade pode, por sua natureza, levar o sujei-
to de volta ao impasse da consumação de corpo. /\ssim Nadia dá a colher seu
caráter de puro representante do objeto mal quando ela a aproxima da boca
da boneca; mas é somente para logo pun í-la, batendo com ela violentamente
contra o chão, em explicitação da intcrdi~:,fn ligada ao significante desde 10
de dezembro.
A interdição passa em seguida, da honcca para a colher, após Nadia
ter ido para o leito com a boneca numa 111:io l~ a rnllier em outra: é a vez da
colher sofrer sua agressividade e ela a pisoteia. ('01110 Nadia, como a boneca,.
não tenho direito à colher visto que. qua11d11 1~la a coloca em minha boca,
ela se descontrola ainda mais com a colher. (; preciso dizer que não é comigo
que ela está agressiva, mas sim contra csll' 11hjl'111-rnll1cr que a traiu ao vir re-
presen"tar o objeto da perda. E ela própria realiza t·sta perda fazendo-se retirar
um sapato e uma meia que ela atira longl'. ht l' p1t·~·o pago, ela pode reencon-
trar a colher por um breve instante. 110 seu lugar anterior, e brinca com ela
balbuciando, com um ar descontraído. h1l 1d anto, assim que eu interpreto
para ela a dificuldade que ela teria de suportar que eu a alimentasse na sessão,
ela me agride com a colher e morde meu omhrn.
Nesta época, ela não larga mais a colher quando volto da sessão; o risco
porém, de que uma outra criança lhe to111c a colher é grande, o que a faz ber-
rar. Nestes casos, eu lhe devolvo a colher, cont rariamcnte ao marinheiro, mar·
cando, é por demais evidente, que da n:To é o objeto da perda, mesmo se,
como vimos, ela pode às vezes tomar dele as aparências no debate de Nadia
comigo. O que lhe devolvo, não é um objeto para protegê-la de uma perda,
V,õ"fspelhci'Í:Nossa Imagem 107

mas sim o objeto que ela pôde promover, a 25 de janeiro, estatuto de Vorstel-
lungsreprasen tanz.
A colher só pode, entretanto, reconduzí-la inelutavelmente à sua rela-
ção ao objeto-alimento, sob a forma do mingau. É, o que domina todo o de-
bate das quatro sessões seguintes, entre 28 e 31 de janeiro, que culmina no
39 espelho.
Após a antecipação explosiva do papel metonímico da colher a 25 de
janeiro, é todo um circuito que Nadia faz nestas quatro sessões, para interro-
gar sua própria relação ao objeto-alimento. Ela é ajudada aí, certamente, pelo
papel de instrumento, e mesmo de mediador, da colher, tanto em sua relação
com o alimento propriamente dito, quanto em sua relação de corpo comigo.
Mas a importância que ela confere a este objeto testemunha que ela se lembra
da dimensão metonímica que ele teve de saída. Com efeito, a colher lhe ser-
ve, mais do que para comer, para impor uma marca tanto ao alimento quanto
a meu corpo, e mesmo à sala de sessão.
Em relação ao alimento com o qual Nadia mantém uma relação tão di-
fícil, a colher serve de recurso. A 29 de janeiro, com a colher numa mão, é
sua outra mão que ela mergulha no mingau, antes de lambê-la e de desenca-
dear sua agressividade contra tudo que é alimento: a mamadeira que ela afasta
com um gesto lento, consciente e voluntário, o prato que ela vira e sobre o
fundo do qual bate com a colher, depois os biscoitos. Ela repete em seguida
a imposição desta marca com sua colher, batendo no chão, na parede, no
leito, não sem satisfação. Retornando ao meu colo é em minha boca que ela
bate. Ela continua assim o que eu chamei de "batismo do mundo exterior",
mas desta vez, não é mais sem ambiguidade e vitoriosamente, como antes:
a imposição da marca da colher guarda o vestígio do conflito que liga Nadia a
estes objetos que ela "batiza". A energia que ela gasta aí, sua tensão, dizem
bastante da resistência do Real que ela deve forçar.
Este Real, é sobretudo aquele de sua relação de corpo comigo, no qual a
colher representa um papel de pivô. Num primeiro tempo, a 27 de janeiro,
como vimos, ela quis colocá-la em minha boca, após tê-la lambido, ela mesma,
no início da sessão: ela reencontrava aí a dimensão transitivista do início do
tratamento, sua boca e a minha confundidas.
A 30 de janeiro, ela tenta colocar a colher, na abertura de minha blu-
sa, reencontrando sua busca da fase pré-especular que visava o objeto de meu
corpo. Mas, desta vez, não é mais sua cabeça que ela mergulha em minha blu-
sa. É, aliás, a última vez que ela indica uma buscado seio:a colher adesrealizou.
Desde então, a colher vai lhe servir para retomar o que era, na fase pré-es-
pecular, da topologia da superfície de nosso!) corpos. Se ela se serve um pouco
dela para comer serve-se dela sobretudo para espalhar o mingau, de início no
chão, onde ela procura mesmo apagar as manchas que ela faz aí, mas sobretu-
do em mim quando, a 30 de janeiro, ela sacode a colher de mingau em minha
lace e meu cabelo. A 29 de janeiro, ela arrancou meus óculos e tateou a super-
l'ície de meus olhos, num retorno ao escópico pelo órgão do olho, que define
:1 relação dos corpos em duas dimensões: relação topológica de superfície.
108 Nadia ou o Espelho

A 31 de janeiro, mesma preocupação com a superfície do corpo. Di-


go-lhe, no início desta sessao quando ela me suga a ponta do nariz e me mor-
disca babando muito, que ela quer me absorver, mas que é impossível porque
seu corpo e o meu são dois; acrescento que ela não fica contente com nenhum
alimento exterior que não seja eu, mas que ela pode achar bom o mingau,
como lhe aconteceu, porque ela pode preencher-se dele junto de mim. Como
resposta, ela come a metade de seu mingau com a colher, olhando para mim,
balbuciando e lambendo os beiços, dando assim ao mingau um papel de me-
táfora de meu corpo, em oposição ao meu corpo real que é o impossível que
eu acabo de lhe dizer. Ela espalha em seguida o resto do mingau no chão,
primeiro com a colher, depois com a mão e, enfim, virando o prato que ela
puxa para fazer um longo rastro. Não é de ingestão que se trata, mas de espa·
lhamento; um espalhamento sobre a pele, a sua e a minha, quando toda lam-
buzada de mingau, ela quer vir para meus braços e esfrega sua face na minha
com um ar descontraído.
Este espalhamento, ela já conheceu em análise, a 24 de dezembro, após
ter tocado em minha pele; ela lambuzou então, a sua, com seu próprio cocô.
Hoje, ela não está mais a me representar como objeto sobre sua pele, por um
objeto de seu corpo, pois a colher representa agora seu papel de mediador,
significante representante dos corpos, a ponto inclusive, dela ter se desdobra-
do no início da sessão - quero dizer que Nadia veio com duas colheres apa-
nhadas da mesa de vestir, uma para ela, uma pra mim. Sua colher~ a minha,
objetos metomímicos, tornam possível nossa mútua lambuzada e abrem a via
à metonímia de nossos corpos; é assim que Nadia reclama o espelho pela ter-
ceira vez.
O que ela unicamente olha aí desta vez, é minha imagem; ela perde aí
o sorriso e retorna a meus braços que ela não quer mais deixar. O espelho re-
velou-lhe minha própria perda, aquela que ela experimenta ao ver minha ima-
gem à distância, sem se ver ela mesma? Dito de outra maneira, a metáfora,
ativa no acolamento de nossas faces, cessa para dar lugàr à imagem metoní-
mica de meu corpo, aquela que ela procurava em saber. É a experiência simé-
trica a do 1o espelho, onde ela se viu sozinha, sem ver nem minha imagem,
nem a do marinheiro, mas cujas conseqüências foram decisivas para ela.
Como a primeira experiência do espelho, a terceira será decisiva: a se-
qüência vai mostrar isso ao longo dos três dias que virão, onde não existirão
menos que seis espelhos.
Concluindo os três primeiros espelhos aparecem, só depois, como a li-
quidação do passado para Nadia e a destruição de sua patologia, através da
criação de uma estrutura pela análise.
Após o recalque pela minha nomeação da imagem "A + a" que ela tra-
zia em seu olho, o que a institui como sujeito, ela tende a tomar o lugar meta-
fórico de meu objeto "a", ao longo da fase pré-especular. É a imagem metoní·
mica de seu corpo que ela encontra quando do 1<? espelho, que a libera e a
transforma.
O Espelho I: Nossa Imagem 109

Mas ela não pode me encontrar no momento deste 19 espelho, pois,


'lue em sua patologia, ou bem eu faço parte da imagem, ou bem eu sou porta-
dora dela na superfície de meu olho ( como ela também o era) e ela a procura
wpetidas vezes arrancando meus óculos e tateando meus olhos. Nos dois ca-
·.11s, enquanto Outro, eu não sou afetada de nenhuma perda.
Esta imagem que a fascinava, ela faz passar pelo espelho no momento
dt· seu 2o encontro com ele. É propriamente o retomo do recalcado, visto que
,·11tramos aí uma e outra, numa perspectiva que visa excluir toda perda: per-
da não simbolizada que ressurge no Real no dia seguinte ao 2o espelho. É o
ll'liquat da patologia de antes da análise, centrada no transitivismo, embora
Nadia tenha, como vimos, abordado a estrutura metafórica no debate pré-es-
1•~cular. Só há mesmo este significante que permita falar de estrutura neste
111omento.
O que se revela da posição de Nadia como "a" na metáfora cede lugar à
J11ctonímia; de início em seu proveito, quando do encontro de sua imagem
1111 espelho; depois, em minha conta, quando do encontro de minha imagem
110 30 espelho, como veremos.
Da metáfora que reproduzia no campo significante a imagem "A + a",
Nadia ao fazer-se meu "a" caído a meus pés, logo, estando uma e o Outro
.-icntes passa à metonímia, como criação da significância, sem estar o sujeito
,·iente, por conexão entre signficante; o não sabido reversando o recalcado,
1slo é, do que da imagem se tomara inconsciente e que, a cada instante, ope-
1ava um impulso para fazer retorno.
Se a promoção significante, nestes três primeiros espelhos, é decisiva
para a evolução de Nadia, paradoxalmente, cada espelho revela uma perda,
que ela acusa e que ela percebe de início no imediato de seu encontro. É o
que corta rente, nós o concebemos, todo júbilo. Estas perdas: o marinheiro do
19 espelho, a evacuação no dia seguinte ao 29 espelho, e eu enquanto corpo
real quando do 39 espellio, revelam o caráter patológico das construções que
Nadia tinha feito, nas fronteiras, talvez, da psicose.
Mas também só podemos medir o ganho considerável que ela pôde fa-
1.cr a partir do encontro com o espelho, e que foi aqui ainda mais demonstra-
i ivo do que se pode observar habitualmente numa criança. Pela análise ela criou
sua estrutura no campo do significante e o espelho é a peça mestra de uma
passagem decisiva da metáfora à metonímia, da metáfora de inclusão de su-
perfície à sublimação metonímica da superfície de corpo pela superfície
1nesma do espelho. Aí ela encontra o paradigma do papel do espelho para
lodo sujeito.
CAPÍTULO IX
O ESPELHO li: A VIRADA
Da superfície ao espaço

19 -- 8 de fevereiro

nD A primeiro de fevereiro, Nadia começa a sessão em meu colo, olhando


intensamente meu rosto e halhuciando "ma-ma-ma"; depois ela pega meus
óculos, devolve-os e torna a pegá-los para jogá-los sob o leito. Ela joga o pano
da arca, pega a xicrinha que ela suga antes de jogá-la, faz o mesmo com o pra-
tinho. Ela retorna ao meu colo e toca longamente cm meus dois olhos, depois
coloca seu.1· hraços ao redor de meu pescoço e mordisca meu queixo ha l:wulo
muito. Volto a dizer-lhe a mesma coisa que na sessão precedente.
Então, ela vai cm direção ao prato de mingau, começa por mergulhar
nele sua colher, lambe-a, depois mergulha sua mão, lamhe-a Iam huzando seu
rosto de mingau, e se volta para mim para mostrá-lo, o que parece regozijá-la.
Sempre segurando sua colher, ela se![11Ya a horda do prato, derrama o mingau
puxando para ela o prato para alongar o rastro e coloca o prato de 1101•0 direi-
to. Em seguida, deixa a colher, esfrega suas duas mãos no rastro de mingau,
suga-as uma de cada vez, torna a pegar a colher e vem em minha direção.
Coloca-se de pés com a ajuda de meus joelhos, toca cm meus olhos,
procura meus óculos com o olhar. Pcrcche-os perto da porta e dirige-se para
eles. Pára no caminho, halhucia muito como faz desde o início da sessão -,
retorna a meus braços e daí para o leito. Aí. de pé, frente a mim, ela aperta
fote meu pescoço em seus dois braços, coloca sua boca cm meu ombro ba-
bando muito, e quer que cu a tire do leito nesta posição que ela conserva em
meu colo por um momento bastante longo.
Ela desce, 11ai explorar a parede, balbuciando initcrruptamente, chega
à janela de onde ela olha para fora, e retorna a meus braços.
De volta a seu quarto, ela não quer que cu a recoloque cm seu leito,
mas me leva, andando, até a mesa que fica diante do espelho e pede para ser
colocada aí cm cima. Ela se olha, olha minha imagem e minha realidade, re-
tona à sua imagem que ela toca sapateando; ela sacode o espelho, toca com
precaução em minha imagem e imediatamente se l'O!ta para meus hraços;
aperta bem forte meu pescoço, como que para estar bem segura de minha
presença e lança um rápido olhar para o espelho para ver esta imagem dife-
rente.
Hla quer então explorar toda a casa, inclusive a cozinha 110 andar tér-
reo, onde o miado de um gato a petrifica. Ela toca com curiosidade em todos
O Espelho li: A Virada 111

.. ., objetos: interruptores, maçanetas, extintor ... Ela os toca de verdade, pro-


, 11rando sentí-los bem.
Quando retornamos a seu quarto, ela quer voltar para diante do espelho.
1'la representa aí a mesma cena de antes, mais curta e menos tensa; ela fica /í-
.,:dramen te sorridente quando deixo um braço em tomo dela.
Deixo-a com uma enfermeira, repetindo-lhe que estarei de volta ama-
,iliff. Ela estende-me de novo os braços; tomo a tomá-la por um minuto para
,h,er-lhe outra vez a mesma coisa e ela aceita, com resignação, o inevitável.
Esta sessão, composta de duas partes tão diferentes, me deu a impres-
',ao de que Nadia tomava consciência de que nós somos duas. Embora seja
dn:epcionante e cheio de riscos de insegurança, riscos contra os quais ela po-
,k lutar através do despertar de seu interesse pelo mundo exterior, ela ousa
·,,· lançar visto que eu estou lá apesar de tudo. Será menos decepcionante do
,111c querer me comer, como provou-lhe a última cena diante do espelho,
"11de Nadia mostrou-se até sorridente.
A 2 de fevereiro, assim que Nadia me vê, ela se levanta e sapateia. Uma
,·11 fermeira a troca e veste para ir para a sessão. Nadia não me tira dos olhos.
l·la balbucia, agita suas pernas, tenta agarrar o espelho diante do qual ela é
l rocada, depois agarra um dedo meu que ela nã9 larga mais. Antes de partir,
.. la quer ficar alguns segundos diante do espelho; mas isto não lhe dá prazer.
Durante toda a sessão, Nadia estará bem descontraída e excitada, sem
;111gústia nem violência. Ela utiliza um balbucio variado e articulado, reser-
vando para mim o "ma-ma-ma" que toma-se "mama-mama".
Ela começa por jogar o pano fora da arca, para poder pegar e jogar o
l',atinho e a xícara, esta última após tê-la lambido. Retoma aos meus braços
,.. de pé em meu colo, arranca meus óculos, toca longamente em meus olhos .
..\ perta meu pescoço em seus braços, morde-suga meu queixo, sem agressivi-
dade nem sucção verdadeira: é dentro da tonalidade do beijo.
Ela desce para sentar-se diante do prato de mingau - hoje é de tapioca.
Fia pega, mergulha, lambe e me faz lamber a colher. Depois é a vez de sua
1n:ío; ela se lambuza muito. Ela vira o conteúdo do prato no chão, recoloca o
prato direito, pega com mãos cheias a tapioca espalhada, e come lambuzan-
,lo-se ainda mais. Torna a pegar a colher, retoma para meu colo onde ela fica
de pé para colocar seus braços em volta de meu pescoço e esfregar seu rosto
L11nbuzando no meu, balbuciando "mama-mama" com um ar descontraído.
Ela toma a descer, explora a parede, excita, com um balbucio ininter~
,11pto; chega até a janela, olha para fora, encantada; vai jogar os biscoitos, de-
1~1is apanha um deles do qual ela come um pedacinho; ela faz com que eu
L1111bém coma um pouco.
Reconduzo-a bem em forma. Ela quer voltar para diante do espelho;
, •Ilia sua imagem, a minha, depois olha para mim e, colocando ternamente sua
, ,1/Jeça contra a minha e, sem mudar de posição, olha esta nova imagem de
,;, ,,1· duas. Ela son-i, descontraída, depois bate na superfície do espelho com
11111 cabo, com um ar excitado, mas não violento.
772 Nadia ou o Espelho

A 3 de fevereiro, enquanto que a enfermeira a troca e veste, eu sou obri-


gado a deixar por duas vezes a sala durante um breve inomen to. A cada vez,
reencontro Nadia chorando com tristeza; ela se acalma assim que me vê. Quan-
do passamos diante do espelho, ela se desvia dele.
Na sessão, ela começa por jogar fora da área o que a impede de alcançar
a xícara e o pratinho. Ela pega-os e joga-os. Ela não esvazia inteiramente a
arca, mas a sacode muito, balbuciando imperiosamente. Ela está bastante vio-
lenta, mas sem angú,stia e sem inibição. Retorna ao meu colo para arrancar e
jogar meus óculos; ela se enrosca um segundo em mim, coloca a colher na
minha boca, depois desce para sentar-se diante do prato de mingau.
Ela prova a tapioca, lambuza-se dela com a mão, mas é breve pois ela
entorna a mamadeira que vai ser o centro de seu interesse, salvo por três in-
termédios bastante curtos durante os quais, sucessivamente, ela joga os brin-
quedos fora da arca e coloca aí a colher, depois come o mingau de mão cheia
e lambuza a cara toda, enfim vem para meu colo e no leito, mostra-se terna,
balbuciando: "mama-mama". Quanto à mamadeira, ela a manipula com agres-
sividade: a faz rolar, sacode-a para que o leite esguiche no chão, esmaga o bico
da mamadeira entre os dedos, encantada quando o leite esguicha, ou o enfia
no gargalo ela mamadeira. Ela goza intensamente desta manipulação agres-
siva; ela faz isso por muito tempo, balbuciando imperiosamente, e, por duas
vezes, vem se esconder em meu colo dizendo: "mama-mama". Ela olha para
mim de vez cm quando;cu a sinto livre.
No fim da sessão, ela suga os brinquedos que caíram no mingau,joga os
biscoitos e explora a parede, interessando-se pelos papéis que estão colados
aí e pelo interruptor.
Quando eu a reconduzo a seu quarto, ela não quer ficar aí, quer de no-
vo explorar todo o andar, manifestando muito interesse por todo tipo de coi-
sas, em particular pela banheira onde ela é lavada todas as manhãs. Ao longo
desta exploração ela quer pegar em tudo; de tempos cm tempos, ela coloca
sua face lambuzada contra a minha.
Quando retornamos, ela se vira para o espelho, quando passamos diante
dele. Ela fica em meus braços, nos olha, a uma e a outra, aperta meu pescoço,
coloca sua face contra a minha sorrindo emocionada e seguindo toda cena no
espelho. Depois ela torna a virar-se e esconde sua cabeça em meu pescoço.
Ela me leva até a janela para olhar lá fora. Deixo-a com a enfermeira;
ela aceita, mas seu rosto é triste no momento em que fecho a porta ao partir.
A 4 de fevereiro, Nadia está radiante e balbucia assim que vem para
meus braços, ainda no quarto, enquanto que até então o balbucio só começa-
va na sala de sessões.
Na sala, ela me diz "mama-mama", sua face contra a minha e quer des-
cer para ir até a arca, de onde ela tira o pano e um pequeno marinheiro que
ela reencontra com alegria, reconhecendo-o: não é aquele de 16 de janeiro e:
do primeiro espelho, mas um outro que eu trazia bem no comecinho quandoj
eu vinha vê-la. l
O Espelho li: A Virada 113

Sobre a poltroninha, ela nota imediatamente um pedaço de chocolate


além dos biscoitos. Ela só consegue pegá-lo e levá-lo à boca depois de dois des-
traves para largar, depois ela vem com!êlo em meu colo, apoiando temamente
sua cabeça em mim e dando a impressão de que ela conhece então a sensação
de plenitude de um bebê alimentado na mamadeira ou ao seio, nos braços.
Ela tem um ar extasiado que ela vai guardar até o fim da sessão.
Se ela interessa-se pelo mingau, é bem pouco hoje, só lambendo sua co-
lher, e depois sua mão, uma única vez.
Vem para meus braços, arranca e joga meus óculos, toca longamente
num só olho, depois vai para o leito, unicamente para que eu a retira daí,
e para ficar então alguns segundos colada a mim. Isto por várias vezes.
Após ter jogado os biscoitos com a colher, ela retoma a arca, a esvazia
completamente, tateia o fundo, e aí coloca a colher. Olha então para abone-
ca, segura-a, parece hesitar, depois tenta deitá-la na arca, após ter retirado a
colher. Como a boneca não entra na arca na primeira tentativa, ela a deita de
través e a deixa alguns segundo para vir apoiar-se em meu colo. Em seguida
ela vai retirá-la daí e no lugar recoloca a colher na arca.
Pega então a mamadeira, a entorna, pressiona uma vez o bico entre seus
dedos balbuciando, leva-a muito brevemente à boca, joga-a e não se interessa
mais por ela.
Após um carinho de cinco minutos, onde ela se faz saltar e beijar em
meu colo, ela inicia com alegria uma exploração da parede e da janela.
Ela não fica contente que eu a reconduza a seu quarto.
No dia seguinte, 5 de fevereiro, quando chego, o médico está ao pé de
seu feito. Ela olha para mim, depois para ele, depois para mim e começa a sara-
cotear, fica de barriga pra cima, agitando seus pés, olha para mim rindo, mui-
lo emocionada, fica de pé e agarra-se a meu avental para que eu a tome em
meus braços. Ela se abandona a grandes manifestações de ternura, abraçando
meu pescoço com os dois braços, colocando sua boca em meu nariz, depois
em minha face, longamente. Ela é trocada e calçada. Há dois dias, ela não tem
111ais diarréia.
Na sala de sessões, por caso, num canto, uma mesa de criança; ela a nota
de imediato e só se interessa por ela. Ela toma possessão desta mesa com gran·
de alegria, batendo em cima dela com um abaixa-língua que ela tinha pegado
,·11quanto a trocavam; ela o faz com deleite, balbuciando imperiosamente, ale-
~·.remente.
Eu arrasto a mesa para junto dos outros brinquedos. Ela continua de pé
diante dela, raspando com o abaixa-língua, os pedacinhos de biscoitos rechea-
dos que estão colados aí; ela os lambe também, depois parece querer sentar-se
11a poltroninha: eu a aproximo e ela empina seu traseiro para sentar-se. Sen-
tar-se e, após um segundo de inspeção de sua nova posição, me olha, encanta-
.la, depois bate de novo na mesa.
Ela quer vir para meus braços, onde ela se estreita contra mim dizendo
"111ama-mama"; depois ela vai para o leito onde ela brinca e me faz brincar
114 Nadia ou o Espelho

com o abaixa-lingua, que ela chega em um momento a me estender, dizendo:


"tome!" ..
Quer de novo que eu a sente diante da mesa, encontrada, depois vai em-
boa explorar a parede e a janela balbuciando. Aí, ela quer ficar em meus bra-·
ços para olhar lá fora; ela está extremamente interessada pelos carvoeiros
que levam seus sacos para a cave. Este espetáculo a absorve por cinco minutos.
De volta a seu quarto, ela recusou ir para os braços de uma enfermeira
que ela não conhece. Ela se estreita pateticamente em meus braços, sua face
em minha face. Eu a tranqililizo e a coloco nos braços de uma enfermeira que
ela conhece: ela fica triste com minha partida, mas aceita, como se, com esta
última, ela soubesse que eu retomaria.
A 6 de fevereiro, Nadia balbucia desde que me vê. É a primeira vez que
ela faz isso antes de estar em meus braços. A enfermeira que a troca se queixa
que ela se mexe sem parar e ralha; entretanto, ela diz, olhando Nadia estender
os braços para mim, que depois de sua ausência de um mês ela não reconhece
esta Nadia que passava desapercebida, em razão de sua imobilidade e de seu
silêncio.
Na sessão, Nadia permanece ainda alguns segundos em meus braços,
abraçando meu pescoço, pressionando sua face contra a minha dizendo:
"mama-mama".
Ela vai até a arca; tira o pano, o recoloca; sinto que ela pensa cm outra
cosa. De fato, ela procura a mesinha da véspera, que eu não encontrei esta
manhã. Ela a procura com os olhos por todos os cantos e parece decepcionada.
Ela vai jogar os biscoitos, retorna para mim com o chocolate. Ela o suga
um pouco, depois larga. Vai para perto do prato, lambe várias vezes a colher,
enorna um pouco de mingau. Depois, volta-se para a mantadeira que ela en-
torna com um "a-ga" imperioso, e se apoia na vidraça, no qual ela fica conten-
te em bater com a colher.
Volta para meu colo arranca meus óculos e jogá-os, depois volta para a
arca. Ela joga o pano e o marinheiro de borracha, retoma o pano, hesita em
levá-lo à boca após tê-lo olhado longamente, depois tenta rasgá-lo com os den-
te.1~ Ela o joga e não se ocupará mais dele, mas tenho a impressão de que ele
representa alguma coisa precisa para ela.
Então, ela esvazia a arca completamente jogando fora todos os brinque-
dos, retomando na passagem, de forma agressiva, a xícara e o pratinho./\ ar·
ca está agora vazia e levantando-a com uma mção, ela verifica com a outra
que ela está bem vazia. Ela a recoloca no chão e procura alguma coisa com o
olhar: são os meus óculos que ela apanha e coloca na arca. Ela levanta de novo
a arca; com sua mão livre, ela manipula meus óculos que estão no fundo, de·
pois recoloca a arca no chão.
Interessa-se pela boneca, olha para ela por bastante tempo, sacode-a de-
vagarinho com um braço, sem agressividade; não sei o que ela quer, mas tenho
a impressão de que ela muito menos, como se ela não soubesse o que fazer
com esta boneca. Entã'o, ela passa para a mamadeira que ela vai entornar bem
devagarinho.
O Espelho li: A Virada 115

Retoma à arca, verifica que meus óculos continuam lá. Logo, ela vai
1irocurar sua colher que ela coloca ao lado de meus óculos, depois levanta a
arca, estreita-se contra si, olha dentro dela, a recoloca no cha'o, e vai para per-
f o da parede brincar com o pratinho. Retorna à arca, retira dela meus óculos
e sua colher, tateia o fundo vazio e recoloca aí os dois objetos. Tudo isso bal-
buciando muito, e vindo de tempos em tempos apoiar-se em mim.
No fim, ela torna a subir em meus braços para ir depois, muito feliz,
explorar a sala.
Reconduzo-a a seu quarto. Ela anda um pouco. É preciso muito tempo
para que ela aceite ir para os braços de uma enfermeira; falo com ela doce-
mente, até que ela aceita.
Peço que a coloquem em contacto com dois ou três maiores que brin-
cam na sala vizinha. Mas, na ausência de qualqur enfermeira, a experiência dá
errado: mais tarde eu a escuto chorar, deprimida, e chamar "mama-mama".
No dia seguinte, 7 de fevereiro, chego infelizmente tarde demais para
que ela tenha uma verdadeira sessão. Eu a conduzo entretanto por um curto
momento à sala de sessão onde ela se mostra muito dinâmica, balbuciando
ininterruptamente explorando a parede e a janela: tudo a interessa.
O jantar já começou quando eu a reconduzo. Recoloco-a em seu leito,
mas ela não pode tolerar esperar sua vez e logo começa a chorar estendendo-me
os braços. Só a recoloco em seu leito quando chega sua vez; a enfermeira,
sentada na beira do leito vizinho, a alimenta: Nadia come rápido e bem; mas,
como ela me olha e eu sinto que ela quer que eu fique perto dela, eu o faço
falando com ela com a enfermeira. Ela não pede que eu a alimente, mas ter-
mina seu jantar com o pedacinho de chocolate que ela tinha trazido da sessão.
A 8 de fevereiro, eu conduzo Nadia, pela primeira vez, até a sala de ses-
sões onde eu tenho hábito de fazer os tratamentos, sala que se situa em outro
prédio.
Ela fica bastante tensa durante o trajeto e, na sala, eu a mantenho sen-
tada em meu colo. Embora permaneça contraída, ela olha tudo que tem na
sala e não se absorve com os objetos tomados de meu bolso, como ela tinha
feito quando eu a levei para ver a árvore de Natal. Decide pegar os biscoitos,
que ela joga, e o chocolate que ela guarda e lambe. Entretanto, sua expressão
permanece estática. Ela quer ser colocada no chão, dá dois passos e estende
os braços olhando para a porta.
Reconduzo-a pois a seu quarto. Seu ar estático desaparece. Ela perce-
be sob um leito uma caneca, que uma criança acaba de deixar cair. Ela pega a
caneca, senta-se e faz como se quizesse beber.
Conduz-me a um patamar, e percebe outra caneca sobre uma mesa.
Quer que eu a coloque de pé sobre esta mesa de onde ela pega a caneca.
Assim, ela tem duas: com uma delas, ela bate cada vez mais forte em um pra-
to, e com a outra bate na parede. Sinto uma violência que tem necessidade
de se exteriorizar; e penso que seria bom tomá-la em sessão, cinco minutos,
na sala habitual, para que ela possa se exprimir, pois a nova experiência foi
dura.
116 Nadia ou o Espelho

Coloco-a então nos braços de uma enfermeira para ir preparar a sala de


sessões. Embora eu lhe diga que volto em seguida, ela começa a soluçar. Quan-
do eu retomo cinco minutos mais tarde, ela ainda chora e me estende os bra-
ços assim que me avista de longe.
Conduzo-a até a sala habitual; lá, imediatamente, ela exprime a violên-
cia que a angústia desencadeou: ela joga tudo, sacode a arca, balbuciando e
andando.
Ao cabo de dez minutos, sentindo-a descontraída, eu a reconduzo, mas
ela custa a me deixar partir.

Havíamos dito que o que existia de decisivo no 3? espelho quanto ao


encontro de minha imagem, mesmo que naquele momento não estivesse mais
patente do que no momento do 19 espelho, iria tomar toda sua dimensão ao
longo dos três dias seguintes, 19, 2 e 3 de fevereiro. É exatamente o que acon-
tece para o papel metonímico da imagem especular, a de Nadia e a minha, nos
registros do oral e do escópico.
Atendo-se apenas aos fatos dominantes da sessão de 19 de fevereirio,
que precede o4~ e o 5<? espelho, pode-se observar:
I - O olhar intenso de Nadia para o meu rosto, acompanhado do balbu-
cio "ma-ma-ma": isto é o emparelhamento do escópico com o significante.
2 - O retorno ao objeto escópico do qual eu seria portadora, quando,
tendo arrancado meus óculos, ela toca longamente em meus dois olhos.
3 - A passagem à oralidade quando, de novo, ela mordisca meu queixo,
babando. Volto a dizer-lhe então que ela não pode absorver-me e que nós
somos duas.
4 - Sua resposta é aliás a mesma da véspera, ao menos pela lambuzeira
que ela faz em seu rosto com sua mão mergulhada no mingau.
5 --- De novo, ela toca em meus olhos e procura meus óculos com o
olhar, como se ela me quisesse devolvê-los, um movimento que ela esboça,
mas que pára no meio do caminho, enquanto ela balbucia intensamente.
Nestes cinco pontos, Nadia demonstra, se é ainda preciso fazê-lo, a re-
lação persistente entre a imagem inclusa, se podemos dizer assim, na superfí-
cie de meus olhos e o equivalente substitutivo que ela faz do mingau com
o qual se lambuza. O objeto oral é assim apenas um objeto de superfície
e que só lhe traz satisfação, como ela mostra quando está lambuzada, sobre
o plano do "ser visto" ou "mostrar-se" a mim, neste dia.
Do mesmo modo que ela tinha feito na véspera antes de ir para diante
do espelho, ela estreita meu pescoço em seus dois braços, o que a faz encos-
ta sua face lambuzada contra a minha, e mais ainda, colocar babando sua boca
em meu ombro. Assim, nosso relacionamento de corpo não é só de superfí-
cie; participa aí bem ativamente, o furo de sua boca, o que faz a síntese entre
os dois pontos precedentes, o do mordiscar e o do lambuzar.
O Espelho li: A Virada 117

É a mesma estrutura que Nadia projeta em sua relação com a sala de


sessão quando, balbuciando sem parar, ela vai explorar a superfície opaca da
parede até o buraco da janela por onde seu olhar se dirige para o exterior:
introduzindo pela primeira vez, de uma maneira tão nítida, um além da pura
superfície, isto é, uma terceira dimensão, que funda um exterior e um inte-
rior, não somente da sala, mas de seu corpo. É como o olhar que só pode sur-
gir da superfície do olho se ele pode passar pelo que representa um furo nesta
superfície.
Na volta, ela me leva até a mesa diante do espelho: é o 49 espelho. Toda
inibição desapareceu quanto ao olhar que ela lança sobre sua imagem e a mi-
nha, antes de se voltar para mim; para minha presença real de corpo. Pela pri-
meira vez, o teto vai concernir a imagem especular como ele concernia até en-
uro a superfície de meus olhos. É verdade que se trata também aí de uma su-
perfície, aquela do espelho.
Se Nadia sapteia o sacode o espelho tocando em sua imagem, é que ela
acaba de dar um salto considerável em relação à experiência precedente da
sucessão da parede e da janela: aqui, a superfície e o furo se conjuminam; o
furo perdeu aí seu caráter de Real, visto que ele corresponde à superfície do
espelho. Eis porque ela o sacode, como que para colocar à prova o desapareci-
mento do furo real e o aparecimento de sua imagem num furo que não é um,
o que situa a imagem num plano do real, onde sua significância unitária - sua
função de ajuntamento - leva Nadia à verd;ideira conclusão do que é seu tra-
jeto desde o primeiro espelho: a função metonímica, de sua imagem; isto é,
não uma função substitutiva, mas uma função de conexão entre esta imagem
e ela.
Se fosse preciso uma prova de sua ação em relação à sua própria imagem,
seria sua atitude em relação à minha que nos daria esta prova. Com efeito, a
precaução com a qual ela vai tocar em minha imagem assinala o temor que ela
tem de que minha imagem seja meu substituto, meu duplo, cuja dimensão de
Real a privaria de mim. Logo, ela se enrosca em meus braços; para escapar a
esta substituição metafórica que conjumina ainda, como vel)los, a imagem
com um certo Real. Fortalecida entretanto pela sua própria experiência da
relação de seu corpo real e de sua imagem, fortalecida pelos espelhos anterio-
res, notadamente o segundo, ela pode me fazer entrar no espelho e dele tingir
o real de meu corpo, quando ela lança para o dito espelho um olhar, por mais
rápido que seja, para ver nele a nossa imagem.
Que a dialética do Real e do significante esteja em causa quando Nadia
quer ainda explorar toda a casa e tatear a consistência de todos os objetos que
ela encontra, decorre e que nã"o se trata mais desta desrealidade dos objetos
que ela batizava com a colher, porque o Real destes objetos a atravancava e
que ela podia, com a ajuda do objeto metonímico, diminuir a consistência de-
les. Aqui se trata do movimento inverso; isto é, a partir da ex-sistência da ima-
gem, Nadia quer reencontrar a consistência da imagem, não acontece, quando
Nadia sacode o espelho, sem a necessidade de controlar sua per-sistência.
Ea verifica esta, aliás, quando pede para retomar pela quinta vez diante does-
118 Nadia ou o Espelho

pelho, onde ela repete a mesma cena do 49 espelho, um quarto de hora antes.
Ela está menos tensa e mais sorridente -- é verdade que deixo meu braço em
torno dela -- para seguir no espelho, seu movimento de procura do estatuto
de sua imagem. O que está em causa, é o que corresponde à existência desta
imagem, como se esta só pudesse persistir sobre o fundo da consistência do
mundo exterior; como se o significante só pudesse se articular nestas condi-
ções metonímicas, sobre a consistência de um mundo de objetos reais, cuja a
única qualidade é consistir.
A colher lhe permitiu, pelo seu papel de significante metonímico, eli-
minar um excesso de consistência dos objetos; o espelho a leva a restahelecer
uma consistência dos ohjctos, que a ex-sistência de sua imagem e da minha
arriscava de contaminar. e mesmo anular.
A 2 de fevereiro, Nadia recomeça o mesmo circuito da véspera, entre a
superfície de meus olhos que ela toca longamente e a superfície da pele: a
minha e a sua, unidas pela lamhuzeira. Do mesmo modo, ela explora a parede
da sala até o furo da jenela. Pela primeira vez, ela se dirige a mim não mais
num "ma-ma-ma" invocante, mas num "mama" que me designa.
O 7V espelho concerne sobretudo esta imagem de nós duas que ela ti-
nha apenas olhado quando do 4V e 5<.> espelhos. Se ela sorri, descontrafrla, ela
ainda interroga entretanto a superfície do espelho hatendo nela com um
cubo, o ar excitado, como ela fizesse sobre a superfície do espelho. estames-
ma tcn ta tiva de descolar a imagem que o t ransitivismo lhe havia imposto: o
que estava cm seu olho forçosamente estava tamhém no meu.
No momento do H~' espelho, momento que inicia a sessão de 8 de fc.
vereiro, Nadia faz a prova inversa, concernente à importância do Real de meu
corpo e a de minha imagem: como cu realmente tive que me ausentar por duas
vezes enquanto a preparavam, ela se desvia francamente do espelho quando
passamos diante dele. O que ela perdeu quando cu me ausentei a impede de
refazer a mesma experiência de perda diante do espelho.
O que se segue, durante a sessão. é um retrocesso quando Nadia volta à
mamadeira. Colll certeza. seu interesse por ela não é mais o mesmo de quando
ela era um objeto consum ívcl ou não; a mamadeira é aqui apenas o objeto de
uma dcst ruição. Durante todo este tempo, Nadia halhucia imperiosamente e,
por duas vezes, vem e esconder cm meu colo dizendo "mama-mama". Decor-
rente do fato de minhas ausências iniciais. que ela suportou tão mal. a mama-
deira tomou-se um objeto logrador e enganador; é enquanto tal que ela a re-
jeita ativamente e que ela lhe suprime o acesso oral. enfiando o bico da mama-
deira no interior do gargalo. Fora de questão sugar o que engana.
Sua afliç:ro tomou-se violência contra o objeto que me representa: repe-
tição de uma violência que não está tão distante e que ela conheceu entre o
l~l e o 2~l espelhos. quando sua destrutividade era a conscqiiência de minha
ausência de imagem no espelho. Esta violência era ela própria aliás, a repetição
da violência pré~spccular que apareceu depois que Nadia tomou a mamadei-
ra. a 12 de de:,.embro. Não é pois surpreendente que este mesmo ohjeto seja
sustituição e metáfora do Outro cm sua insuficiência. No dinamismo que ani-
O Espelho li: A Virada 119

111:1 Nadia neste momento está fora de questão que ela faça deste objeto subs-
111 utivoo cent~o de um pesar onde ela se refugiaria, fixando-se nele; ela ape-
11:1s exprime aí sua violência bem compreensível contra mim e eis porque o
oll'slocamento para a mamadeira é aqui somente a ocasião de uma peripécia
·1.·m nenhuma forrnaação de sintomas. Aliás, a substituição deste objeto meta-
lorico, substituição não sucessiva mas simultânea é ocupada como vimos, pela
q1U1er: Nadia não deixa, com efeito, de comer de mãos cheias o mingau, lam-
liuzando-se copiosamente, reservando-me a colher vazia que ela coloca em mi-
nha boca - um lôgro para mim, desta vez - antes de colocá-la em abrigo, para
11111 uso futuro, na arca.
Depois do que, novamente, como entre o 49 e o 59 espelho, ela quer
i,xplorar a casa e tatear a consistência de todos os objetos; e ela reconhece a
hanheira. A cada vez que ela toca um objeto, ela ri olhando para mim;isto é,
da se assegura em mim de uma outra ordem, não aquela dos objetos, mas a
significantes no Outro que eu sou.
Estas são as premissas do que ela procurar no momento do 99 espelho.
Ela aceita então plenamente nossa 'imagem encontrando-se em meus braços
e faz aí a experiência de acolamento de sua face contra a minha, sem esque-
cer no fim, entretanto, uma relação de corpo mais direta onde ela esconde
sua cabeça em meu pescoço.
É verdade que resta alguma coi~a desta ordem a articular, visto que ela
cm seguida me leva até a janela para olhar lá fora. Será que se trata do reliquat
desta violência que a tinha impedido, quando do 8<? espelho, de aceitar a ima-
gem especular e a tinha forçado a retornar aos objetos?
Ela agora não mais pedirâ o espelho até 9 de fevereiro. O que domina
as cinco sessões seguintes - talvez tenha relação com a fragilidade, para Na-
dia, da imagem especular, sobretudo a minha com a qual ela fez a experiência
de 31 de janeiro, quando do 3<? espelho-, é um certo retomo à colher e à sua
função metonímica. ·
Num primeiro tempo, a colher, enquanto significante que a representa,
emparelha-se com a boneca, representação muito mais figurativa dela mesma.
Esta boneca, a 4 de fevereirio, deveria substituir a colher no fundo da arca,
mas como Nadia não consegue fazê-la entrar aí, recoloca a colher.
Esta substituição, mesmo que ela não tenha sucesso, indica bem, entre-
tanto, a passagem sempre possível de um representante metonímico a um re-
presentante metafórico, e mesmo a possibilidade para um sujeito de afetar um
representante metonímico com uma dimensão metafórica. O resto da sessão
indica aliás que se trata realmente de uma tentativa desta ordem. De fato, Na-
dia volta à mamadeira por um instante, levando-a mesmo muito brevemente à
boca antes de jogá-la. Em seguida ela se faz saltar em meu colo, reencontran-
do o prazer do corpo do início de sua análise. Passa em seguida à exploração
da parede, depois da janela de onde ela olha o exterior - o que ela vai fazer vá-
rias vezes ao longo destas sessões: isto é, ela retorna ao que fez, a 19 de feve-
reiro, antes do 49 espelho, antes pois do momento onde o buraco se integra
120 Nadia ou o Espelho

no plano do espelho, como se ela quisesse encontrar atrás de vidraça o Real


dos objetos. O que é então a vidraça em relação ao espelho? :É uma questão
que tomará toda a sua amplitude na análise de Marie-Françoise.
Mas o dinamismo de Nadia e sua liberdade de ação já testemunham que
se trata mais de uma interrogação que de uma regressão .. Ela aliás o diz, a 6 de
fevereiro, quando após ter virado a mamadeira lançando um "a-ga" imperioso,
ela se apoia na vidrança e fica contente em bater nela com a colher. O prosse-
guimento de seu balbucio, seus "mama" acompanhados de ternura em meus
braços, ou como apelo de aflição quando ela tem medo dos maiores, após a
sessão de 6 de fevereiro, dizem que seu trajeto prossegue e prepara outros
espelhos.
Outros espelhos, pois o espelho torna-se o único lugar de sua imagem:
pela última vez, a 4 de fevereiro, ela arranca meus óculos, e desta última vez,
ela toca longamente em um só olho. A questão já está colocada para Nadia -
a propósito do pé que ela me estendeu a 10 de dezembro, e em seguida o sa-
pato - do sentido deste desdobramento, ou antes da redução à unidade de
um objeto de corpo ou dobro quando ele entra no discurso enquanto signi-
ficante, e que ele perde seu caráter de atributo dos corpos, do corpo portador
de objetos ou de imagens. É pois a última vez que ela toca na superfície de
meus olhos, ou melhor de meu olho: referência à linguagem este singular.
No mais, meus óculos vão agora mudar de estatuto e tornar-se um signi-
ficante representando-me. É, com efeito, a 6 de fevereiro que ela faz uma de-
monstração inteiramente clara, quando ela dispõe lado a lado, na arca que ela
esvaziou, meus óculos e sua colher, reencontrando o que ela já havia atingido
por antecipação no fim da sessão de 10 de dezembro, isto é, um significante
representando um sujeito para um outro significante. É tan1bém, para ela, esta
arca que contém meus óculos e sua colher, um tesouro que ela estreita contra
seu coração.
Esta realização significante instaura o espaço no qual ela se situa, isto é,
um espaço fechado de três dimensões, com um fundo do qual ela se certifica
tateando-o. Se estes objetos perderam todo caráter (identificável) do que
eles representam metonímicamente enquanto que significantes (o campo da
Vorstellung), permanece en trctanto a ligação entre eles e o que eles são como
representantes (reprtise11ta11z}, por intermédio desta dimensão espacial, pois
é também aquela da sala onde nós nos encontramos as duas, e que ela quer em
seguida explocar com uma felicidade evidente.
CAPÍTULO X
O ESPELHO Ili: O TERCEIRO TERMO
O Nome-do-Pai; o ideal do eu

9 de fevereiro - 1<? de março

1 1IJ A 9 de fevereiro, encontro Nadia de pé, apoiada num leito. Assim que
me vê, ela se sacode violentamente, depois sacode o leito. Sinto-a violenta.
Venho para junto dela, ela continua a se sacudir e me olha furiosa: ela está
zangada comigo, tanto por ontem, como porque ela acaba de me ouvir falar
no corredor com uma outra criança que tenho em tratamento.
Eu havia escutado a enfermeira dizer: "sai, não!" tomando a fechar a
porta. Quando eu entro, uma criança chora:é Nadia. Digo-lhe que ela me ou-
viu falar, mas que a porta estava fechada, e que eu compreendo que ela esteja
decepcionada.
Ela continua a sacudir o leito por um breve momento, depois esten-
de-me os braços, mas mantém sua expressão furiosa.
Durante toda a sessão ela se mostra violenta. Não é a violência deum mês
atrás, dirigida para os objetos e para o mundo exterior; então, ela ficava des-
contraída quando somente eu estava em causa, e se mostrava de um negativis-
mo violento em relação a tudo que não era eu: ela fará liquidação do passado
graças à relação estabelecida. A violência hoje é dirigida contra mim, eu sou a
sua causa. Se ela ainda a exprime através dos objetos, não é mais com ames-
ma tonalidade, esta violência se dirige particularmente a mim, pelo rosto e pe-
las atitudes. Eu a fiz nascer: ela tem novamente emoções; e eu a faço sofrer.
Ela pega na arca, um peniquinho de plástico. Joga-o uma vez, depois
não se separa mais dele até o fim da sessão. Ela o suga, mordisca, faz de conta
que bebe nele e mergulha sua mão aí várias vezes. Tira da arca o pratinho e a
xícara, mas joga-os e não se ocupa mais deles.
Vem para meu colo, desce, sapateia, lambe a colher do prato de mingau,
joga o chocolate, volta para meu colo com um biscoito. Como um pedacinho,
me faz comer também, torna a comer, desce de novo segurando-o sempre.
Pega o marinheiro dentro da arca, volta a colocá-lo aí e joga os cubos.
Ela se senta com seu peniquinho de plástico e depois de ter aí mergulhado sua
mão, faz de conta que bebe nele; ela não está contente. Digo-lhe que ele está
vazio, assim como o pratinho e a xicrinha, mas que tem leite na mamadeira e
mingau no prato. Como única resposta, ela pega a mamadeira e, segurando-a
com o bico para baixo, sacode-a para que o leite esguiche no chão, depois a
coloca direito segurando-a pelo bico.
122 Nadia ou o Espelho

Volta para meus braços, deita-se neles, sempre furiosa, toma a descer
perto da arca paa pegar aí um carrinho que ela quer botar no peniquinho:
ela o coloca bem dentro, mas retira sua mão derrubando o penico, o que faz
com que o carro caia; duas vezes, entretanto, ela deixa o penico na boa posi-
ção e o agita, encantanda, com o carro dentro que ela toma a pegar então
coma mão.
Ela quer ir para o leito; joga o peniquinho, coloca seus braços em volta
de meu pescoço, bem apertado, para que eu a tire do leito, e permanece em
meus braços.
Reconduzo-a a seu quarto: ela está em meus braços e quer que eu para
diante do espelho. Ela coloca sua face em minha boca e segue intensamente
no espelho os beijos que eu lhe dou. Ela volta então a cabeça, coloca sua boca
em minha face, lenta e demoradamente como ela me tinha visto fazer no espe-
lho ao mesmo tempo em que sentia o beijo. Cena surpreendente, sobretudo
pela emoção profunda, tão presente na expressão.
A separação em seguida é muito difícil, tanto mais que Nadia viu uma
criança chorar no colo de uma enfermeira e que ela desviou muito violenta-
mente a cabeça deste espetáculo, apertando bem forte meu pescoço com um
braço e me mostrando a porta com o outro. Eu a acalmo um pouco, mas ela
chora ainda quando eu me vou.
A 1O de fevereiro, eu calço Nadia: não há enfermeira. Ela não joga seus
sapatos e me estende os pés, balbuciando muito.
Na sessão, ela joga para fora da arca o pano, para pegar o peniquinho;
ela vai com ele para perto do prato de creme, lambe-o e mordisca-o, seu olhar
no creme; balbucia. Ela leva sua outra mão à boca e vejo que ela trouxe de
seu quarto uma casquinha de pão que ela come.
Ela mergulha sua ma:o no penico e balbucia imperiosamente ao consta-
tar o vazio. Digo-lhe que ele está vazio, sim, mas que tem leite, creme, biscoi-
tos e chocolate. Ela lambe ainda o peniquinho, fazendo seu olhar ir de mim
ao prato. Oigo-lhe que talvez ela queira o creme no seu penico: ela estende-o
então, eu o encho um pouco e devolvo-lhe. Ela o pega com um rápido balbu-
cio imperioso, olha para o interior e esvazia-o sobre o chão: um ar de intensa
satisfação.
Ela vem para meu colo, e deita-se, muito abandonada, rindo e dando
gritinhos. Brinca um pouco com seus pés e torna a descer.
Joga fora da arca o pratinho e a xícara, pega uma esfera transparente
contendo água e três patos. Volta para meu colo com esta esfera; sacode-a,
olha para ela, tenta uma vez agarrar um pato e me faz participar muito deste
jogo. No fim, ela brinca com esta esfera, quase deitada em meus braços.
Ela a lança no chão, desce, empurra-a diante dela com uma bola, indo
explorar a parede, o vidro, e retomando por várias vezes para deitar-se um mi-
nuto em meu colo.
Ao reconduzí-la, devo colocá-la de pé diante do espelho. Ela retoma o
jogo do beijo da véspera, com a mesma intensidade, bate no elpelho, o ar ex-
ciado, mas não agressivo. E1a percebe nele uma enfenneira que ela conhece;
O Espelho Ili: O Terceiro Termo 123

ela olha muito interessada esta imagem, e sem a menor hesitação, nem tatea-
mento, volta.a cabeça para ver a realidade da enfermeira. Ela ri desta desco-
herta, envolve meu pescoço em seus braços para colocar sua face contra a mi-
nha. Eu não senti desta vez que ela se refugiava em mim, mas que ela me fazia
participar da alegria desta descoberta, deste progresso para a vida.
Ela estava muito feliz, e este foi o grande acontecimento da sessão.
A 12 de fevereiro, Nadia foi recolocada em seu antigo quarto. Eu a en-
contro balançando-se muito forte, batendo suas costas contra a beirra do lei-
to. Ela não tem um bom a.specto, seus olhos têm olheiras como quando ela
está a ponto de ter otite.
Na sessão, ela tira o pano da arca, balbuciando "pa-pa-pa ". É a primeira
vez que escuto dela este balbucio, entretanto o primeiro da criança, em geral.
Ela diz muitas outras palavras de sua linguagem infantil, palavras que têm
sempre a mesma estrutura começando sempre com um "a": "a-ga, a-pum,
a-da, a-co", além de "ma-ma-ma" e "mama".
Ela coloca um pedaço do pano na boca, depois joga-o para pegar o peni-
quinho, que ela vem lamber no meu colo. Ela desce daí para ir derrubar tudo
qu está em cima da mesinha: prato de mingau, chocolate e biscoitos; ela der-
rama uma parte do mingau na mesa, o resto no chão. Ela segura a colher, es-
palha largamente a poça de mingau sobre a mesa com a mão, mão que ela
lambe apenas uma única vez. Ela anda um pouco em volta do leito, depois vai
recolocar o pano na arca, de onde ela tira o marinheiro e a esfera com os pa-
tos. Prepara-se para brincar com ela no meu colo quando a esfera lhe escapa;
ela balbucia com um tom furioso. Ela desce para apanhá-la, recoloca-a na ar-
.ca, esvaziando esta última de todo o resto, e colocando sua colher ao lado da
esfera.
Ela quer ir para o leito, mas nele, ela não se sente à vontade, como aliás
em todo lugar hoje. Ela coloca seus braços em volta do meu pescoço, sua face
contra a minha; eu a tiro do leito assim e ela mantém esta posição durante al-
guns minutos. Depois ela vai procurar sua colher na arca, mas a recoloca aí
tão rápido quanto a colocou: ela acaba de perceber uma prancheta com folhas
de temperatura sobre o aquecedor, e quer que eu lhe dê isso. Eu a coloco no
chão, e ela inspeciona esta prancheta em todos os sentidos, diverte-se em abrir
e fechar a tampa móvel, colocando seu pé no interior. Ela termina por sentar-se
porque escorrega com seus chineleos; ela tenta retirá-los, mas sou eu que te-
nho de fazê-lo; ela mesma retira suas meias com um intenso balbucio. Ela pe-
ga uma meia em cada mão saconde-as em todos os sentidos balbuciando, de-
pois bate os chinelos no chiro. Ela quer colocá-las na arca junto a esfera com
os patos. Em seguida levanta a arca e aperta-a contra si, encantada. Recolo-
ca-a no chão devagarinho para bater, com as meias, na poça de creme, balbu-
ciando, excitada e descontente.
Reconduzo-a a seu quarto e deixo-a com uma enfenneira. Tomo-a mais
urna vez porque ela chora, e parto. Mas escutando-a chorar com uma tristeza
monótona, eu retomo e a tomo ainda uma vez. Ela chora um pouco apertan-
do meu pescoür~'~t~r~:.~es~~,momento'. a,estagiári~r~i~a i~~fets·
... -.:·'\!,-_..., ...
124 Nadia ou o Espelho

tende-lhe os braços; mas se a estagiária faz menção de tomá-la, ela logo se


agarra em mim. Depois ela quer ir para diante do espelho.
Ela nos olha aí todas três, ela, eu e a estagiária. Desvia-se como que diante
de qualquer coisa desprazeirosa, beija minha face e morde meu queixo.
Termina por aceitar que eu a deixe nos braços da estagiária.
A 13 de fevereiro, ela está ainda abalada com urna oitite moderada e
muito irritada.
Na sessão, ela não vai tocar nem no prato do mingau nem no chocola-
te. Somente os recipientes de comida vazios excitarão passageiramente sua
violência. Como ontem, ela não está à vontade.
Ela começa por inspecionar um coelho de pano. Tira da arca o mari-
nheiro, deposita-o em minha mão olha-o aí e recoloca-o na arca. Tira a esfera
com os patos e lambe-a; deixa-a para tirar o pano. Embaixo deste pano ela
descobre uma louça de brinquedo rosa, que ela pega, joga no chão; persegue-a
pisoteando-a e batendo nela com um cubo.
Ela vem abandonar-se em meu colo. Anda um pouco em volta do leito
e vem sentar-se a meus pés para recolocar o marinheiro e alguns animais de
madeira na arca. Ela o faz várias vezes seguidas, unicamente pela alegria de
tirar e botar, ou colocar fora e depois dentro. Ela balbucia muito.
Ela continua irritada e só se acalma um pouco em meus braços. Quer
brincar com a prancheta com folhas de registro de temperatura, depois sinto
que ela procura alguma coisa que não está lá.
Reconduzo-a a seu quarto e era o espelho que ela procurava. Ela quer
qu a coloque de pé diante dele. Ela nos olha, ri, se faz beijar, sacode o espe-
lho, se faz beijar novamente, olhando bem dentro do espelho, e se volta para
me beijar. Ela não tentou beijar a imagem no espelho.
Então, ela percebe a estagiária no espelho, so"i para sua imagem re-
conhecendo-a, depois volta-se para ela. A estagiária estende-lhe os braços,
mas Nadia agarra-se em meu pescoço. Falo com ela docemente e passo-a para
a estagiária; mas assim que chego na porta, ela reconsidera e estende-me os
braços.
Eu entretanto, me ausento alguns minutos; quando retomo encontro
Nadia radiante, andando, segurando a estagiária pela mão. Diante de mim ela
faz duas idas e vindas, olhando-me e balbuciando. Ela agarra-se a mim, abraça
meu pescoço, me lambe, me beija, esconde sua cabeça em meu pescoço. Eu
passeio com ela por um minuto, depois digo-lhe que ela vai continuar com a
estagiária. Ela me olha enquanto lhe falo, depois inclina-se para a estagiária
que lhe estende os braços; mas ela tem um rosto triste. Eu parto.
Uma enfermeira me diz que Nadia está cheia de vida e afetuosa. Ela me
conta que sacodindo seu leito. Nadia pôde alcançar a gaveta de uma mesa,
abriu-a e tirou dela todo o seu conteúdo para colocá-lo em seu leito; ela ins-
pecionou com interesse uma lâmina de vidro.
No dia seguinte, 14 de fevereiro, Nadia tem muita febre e sofre uma pa-
racentese de um lado só. Fico um pouco ao lado dela mas não posso levá-la
à sessão.
O Espelho Ili: O Terceiro Termo 125

A 15 de fevereiro, ela está bem melhor, mas perdeu perto de um quilo e


1em diarréia.
Na sessão, ela começa por pegar o pano na arca; me faz admirá-lo, apal-
pa-o muito, coloca-o em meu colo, sem largá-lo, e volta a colocá-lo na arca.
t\o fazer isto, ela descobre aí uma caixinha russa, que ela pega. Joga-a, depois
mloca-a direito no chão, parece encantada com o equilfürio da caixa. Anda
11m pouco segurando-a, balbucia muito, um balbucio de várias s11abas, sobre-
' udo "a-pum-ca-da", articuladas juntas como se fosse uma palavra. Ela volta
., sentar-se em meu colo; manipula aí a caixinha, mergulha e vira seu dedo in-
dicador dentro dela dizendo:"co-co-co"; ela mergulha ai também sua lingua.
nepois coloca esta caixa em minha boca, mas sem largá-la. Ela tenta até co-
locar aí meus óculos, mas como ela vê que não é possível, ela joga-os violenta-
mente.
Ela tira quase tudo que está na arca, particularmente a louça de brin-
,1uedo, mas não se interessa por ela; depois tira o marinheiro; ela coloca en-
lão meus óculos na arca e torna a colocar aí o marinheiro. Volta para meu
1:olo onda ela se abandona completamente; encosta em mim, ela manipula
sua caixinha durante um longo momento, depois desce de novo até a arca
para tirar e tornar a botar a esfera com os patos. Neste momento, ela perde
um sapato e o atira longe. Depois ela joga pro ar, bem alto contra a parede, a
l:aixinha que ela bai buscar andando. ·
Agora, ela quer ir para o leito com a caixa e o pano tirado da arca na
passagem. Balbucia muito, agitando o pano em todas as direções, sem vio-
lência, como quem agita um lenço, e olha sorrindo para mim. Ela joa-o uma
vez e me faz apanhá-lo, depois agita-o novamente. No fim, ela se levanta, vem
para meus braços e coloca os seus em volta do meu pescoço.
Eu a reconduzo, ela desvia-se diante da porta de seu quarto e me dá um
tapa em meu ombro, com um balbucio descontente quando eu abro a porta.
Mas quando ela vê a estagiária no quarto, dá-lhe um bonito sorriso e esten-
de-lhe os braços; assim que a estagiária se aproxima de verdade, ela recua rin-
do às gargalhadas e agitando seu pano. Como a estagiária insiste, Nadia aperta
meu pescoço, aninha aí sua cabeça, e me beija com um esboço de sucção. Ela
aprecia muito este jogo: fazer de conta que vai para os braços da estagiária e
em seguida se aninhar em mim: isto a faz rir às gargalhadas.
Depois ela vira-se par.a o espelho e coloca-se de pé diante dele. Além de
nossas duas imagens, ela vê a da estagiária; ela ri desta nova imagem e vira-se
rápido para rir da realidade da pessoa. A estagiária estende-lhe os braços, mas
Nadia volta a estreitar-se em mim sorrindo. Ela nos olha por longo tempo - a
estagiária e eu - no espelho e volta para meus braços para beijar-me, sem suc-
ção.
Volta a ficar de pé sobre a mesa para pegar uma colher, depois mais
uma, após ter retornado a meus braços. Eu a preparo para minha partida. A
estagiária estende-lhe os braços. Nadia vai para ela sem chorar, mas permanece
voltada para mim: todo seu corpo rejeita a estagiária.
126 Nadia ou o Espelho

Na hora do jantar, escuto uma criança que chora de aflição. Parece-me


ser Nadia; uma enfermeira confirma-me. Como ela não pode ter deixado de
ine ouvir, eu vou vê-la. A enfermeira começou o jantar num sentido tal que
Nadia acaba sendo a última. Ela chora com uma mão bem enfiada em sua bo-
ca. Assim que ela me vê, levanta-se e estende-me um braço, de uma maneira
suplicante. Ela se enrosca vivamente em meu pescoço e imediatamente pára
de chorar. Em alguns minutos ela reencontra seu sorriso e seu interesse por
outra coisa que não a comida. Ela olha com interesse o jardim sob a neve,
balbuciando. Ela queria sair do quarto, mas chega sua vez de ser alimentada.
Como não posso deixá-la nem alimentá-la. mantenho-a sobre meu colo,
sentada na beira de seu leito, enquanto que a cn fermeira lhe enfia rapidamen-
te a comida. Todo este tempo, ela mantém sua cabeça apoiada cm mim, me-
xendo os pés e as pernas e olhando várias vezes para mim.
Quando seu jantar termina, el quer sentar em meu colo novamente, de-
pois ir para perto do espelho. Diante dele, ela se jàz heijar, me heija por sua
vez, me sorri com heatitude olhando minha imagem. Ela se abaixa para pegar
uma colher, que coloca cm minha boca. Antes de pegar uma segunda colher,
ela apanha com a mão o que sobrou cm um prato e come. Retorna a meus
braços com duas colheres. Como eu verbalisei, ela repete a palavra "colher"
pela primeira vez, e olha para mim, muito orgulhosa.
Neste momento uma criança chora e Nadia se enrosca cm mim, inquie-
ta como toda vez que ela escuta um choro.
Eu a acalmo e a confio a uma enfermeira.
Quando chego a 16 de janeiro, Nadia por força de se sacudir em seu Jei-
to empurra-o para bem junto do leito vizinho. Seu rosto está ainda franzido,
mas ela tem um aspecto melhor e não tem mais febre. Eu a conduzo de pés
nús porque ela jogou mcis e sapatos e não há enfermeira para calçá-la; ela re-
cusa visivelmente que cu mesma o faça.
Ela vê imediatamente que a arca tem alguma coisa nova: são duas cai-
xas de encaixar. Ela as toma e durante dez minutos não se separará delas.
Quandd ela as tira da arca, as caixas separam-se; ela as toma também uma em
cada mão. Tateia o inter.ior, lambe um pouco a menorzinha, e anda, sempre
segurando-as, através da sala, balbuciando. Ela recoloca uma dentro da outra
mas não consegue mais retirar a menor da maior. Ela se irrita, bate com o pé,
seu balbucio torna-se furioso e violentamente, ela as lança no chão, o que as
separa: ela olha para elas um segundo, petrificada, depois vira-lhe as costas
rapidamente, anda até detrás do leito e se abaixa para olhar embaixo; ela re-
vê assim as caixas: isto a faz balbuciar alegremente e olhar para mim, muito
feliz. Ela torna a partir depressa para novamente pegar uma caixa em cada
mão. É um pouco um jogo de esconde-escomle, que ela volta a fazer uma se-
gunda vez. Antcriom1e11te, ela tirou o marinheiro da arca, recolocou-o aí e
veio para meus braços esconder a cabeça em meu pescoço. Ao descer de novo,
ela tateou minhas meias sobre meu colo, colocou aí sua boca aberta, fechan-
do-a um pocuo, lentamente.
O Espelho Ili: O Terceiro Termo 127

Após esta cena, ela vai até a mesa, lambe a colher, serve-se dela para
,krrubar o chocolate e um biscoito, depois vai colocá-la na arca. Volta a
1wgá-Ia para retornar ao meu colo, derrubando a mamadeira na passagem;
depois ela lambe e me faz lamber a colher. Volta para o chão e se diverte, du-
1ante alguns minutos, lançando a colher do outro lado da arca, inclinando-se
por cima dela para apanhá-Ia e recomeça balbuciando alegremente, com um
111sto sorridente e traquina: "co-da, a-pum-co-da!".
Ela retorna à mesinha, para colocar a colher no prato; vira-se apontando
"l'U traseiro para mim, olhando meus joelhos e espera. Eu a sento em meu co-
lu, ela tenta puxar a mesa para aproximá-Ia; ajudo-a a fazer isso, ela me olha,
,adiante. Ela se instala confortavelmente, apoia sua cabeça alguns segundos
,·m meu peito, olhando para mim ternamente, depois senta-se à mesa. Aproxi-
111ando o prato com um mão, ela enche a colher de banana amassada com um
,·sto desajeitado e come. Ela parece se perguntar se é bom; depois deixando a
nilher sobre a mesa, ela come e me faz comer a maior parte do conteúdo do
prato. No início, seu rosto está tenso, por causo do que cai de banana no
meio do caminho, em sua fralda, suas pernas ou em meu avental; depois ela
se descontrai e acha isso divertido. No fim, ela vira lentamente sobre a mesa
" que resta no prato e joga este último no chão.E/a desce e sobe com os dois
11és no prato emborcado. Depois ela bate alternadamente com cada pé no fun-
do do prato, com a atitude, a expressão e o balbucio de alguém que toma pos-
se de alguma coisa cobiçada. Em seguida ela vira para mim um rosto radiante
e triunfante.
Ela volta para meu colo para daí espalhar com a mão, a banana em cima
da mesa e comer um pouco de vez em quando.
Reconduzo-a bem em forma. Ela retomou a expressão que tinha antes
da otite.
Ela quer ir para diante do espelho. Olha-nos a( e, sem tirar esta imagem
dos olhos, coloca sua cabeça em minha face, depois em meus lábios. Eu a bei-
jo, ela me so"i no espelho, depois volta-se para beijar-me, após ter colocado
seus braços em volta do meu pescoço.
Ela aceita mais facilmente ir para os braços de uma enfermeira, quando
cu me vou.
No dia seguinte, 17 de fevereiro, encontro Nadia de pé, apoiando-se
com uma mão nos joelhos e uma enfermeira, e com a outra batendo na crian-
ça que está sobre o colo desta última, que lhe diz rindo, que ela está se tor-
nando ciwnenta demais.
Na sala, ela anda muito, com uma alegria enfusiante, derruba o prato
de compota, mas fica com a colher.
Ela quer sair, e explora toda a casa, inclusive a cozinha, onde ela pede
geléia, o que ela tem entretanto, o hábito de recusar. Mas hoje ela come da
geléia numa colher, pede mais e guarda a colher que ela lambe enquanto eu
subo com ela de volta a seu quarto.
Sobre o patamar, nós encontramos Robert, o "menino do lobo", que
nos segue. Ele estende-lhe uma pequena decoração da árvore de Natal, ela pe-
128 Nadia ou o Espelho

ga, encantada e olha para mim agitando as penras de alegria. Após a partida
de Robert, um outro menininho estende-lhe um biscoito, e o rosto de Nadia
resplandece enquanto ela agita ainda mais as pernas.
Minha partida será difícil.
A 18 de fevereiro, encontro Nadia em seu leito, leito que sacudindo, ela
avançou até diante da janela, para olhar lá fora. Tento - novamente, como a
8 de fevereiro - levá-la até a sala onde eu faço habitualmente os tratamentos,
diante do fato de que ela gosta de mudar de ambiente e de fazer descobertas.
Sua respiração é mais forte durante o trajeto, mas ela nlío está estática; ela
tem um pouco dr medo e seu reflexo é apertar-se mais contra mim, sobretudo
durante o curto instante em que passamos de um prédio à outro; então ela
apoia sua testa cm minha face, como se ela quisesse entrar aí.
Sentada em meu colo como sempre, ela olha tudo o que tem na nova sa-
la. Agarra com a mão o arroz recoberto de chocolate e suga-a. Percebendo en-
tão uma caixa na qual eu coloquei areia - caixa que estará mais a seu alcan-
ce do que a caixa grande de areia -, ela balbucia "co-da" e desce para mergu-
lhar a mão na areia. Em seguida ela leva sua mão à boca; a areia gruda em sua
boa pegajosa, ela faz uma careta, começa a chorar e vem para meu colo. Lim-
po-lhe a boca e ela desce de novo para andar balbuciando "co-da" Ela olha
para a arca e seus brinquedos habituais, mas não toca neles.
Ela toma a subir cm meu colo, traz para si o prato. Abre a boca e olha
alternadamente para o arroz e para mim, inclinando-se para o arroz e espe-
rando. "Você quer'!". Ela sorri e aproxima seu prato de minha mão. Dou-lhe
uma colherada de arroz; ela quer que eu lhe dê a metade do arroz; no fim,
ela come sozinha, inicialmente com a colher, depois com a mão.
Enquanto eu lhe dou de comer ou enquanto ela come sozinha, ela sapa-
teia de alegria, seu rosto se ilumina e ela me olha, radiante.
Ela desce de meu colo para inspecionar o conteúdo da arca; embora não
jogue nada da louça de brinquedo fora, ela guarda para si uma xicrinha.
Retorna à mesa onde, com a colher, ela joga no chão chocolate e bis-
coitos e depois dirige-se para a porta.
Reconduzo-a a seu quarto, de onde ela quer sair de novo para que eu
a leve para passear. Fico ainda com ela por um quarto de hora, e custo a dei-
xá-la.
Até l Çl de março, quando eu venho buscá-la, ela faz comigo o que eu
faço com ela: eu venho, eu parto; pois ela começa por partir para voltar em
seguida para meus braços. Nestas sessões, ela me exprime seu ressentimento
por eu não estar lá todo o tempo, e paralelamente ela se liga a uma enfermei-
ra que se tomou de amores por ela, ou melhor que ela seduziu, pois esta en-
fermeira nunca teve gosto por ela, e era até bastante dura: agora, ela ensina
muitas coisas a Nadia.
Nadia queria muito de mim. Ela está ávida, mas ela é capaz de explorar
esta avidez fora de mim e tanto mais que ela tem ressentimento para comigo.
A 22 de fevereiro, ela queria ir para a nova sala de sessões, mas não ou-
so passar de um prédio a outro porque faz muito frio.
O Espelho Ili: O Terceiro Termo 129

Ela permanece em meus braços perto da janela, olha o jardim e as pes-


soas que passeiam nele. Balbucia de uma maneira especial; ela se concentra
antes de se lançar: não é mais um batbucio, está no limite da palavra.
Ela me leva para o corredor e para um outro quarto. Examina tudo, in-
clusive as crianças, mas isto referendando-se em mim. Ela me conduz de volta
:) sala para comer o creme. Come a metade e derrama o resto, repelindo minha
hoca.
Não quer entrar em seu quarto e me leva para o banheiro.
A 23 de fevereiro, ainda na antiga sala de sessões, após ter jogado as
caixas de encaixe, Nadia anda, fazendo ruídos de sucção. Pega brinquedos na
arca, balbuciando muito, o rosto cheio de vida.
Por duas vezes seguidas, ela me leva até a porta, volta-se, dá três passos
no interior da sala e quer vir para meus braços. Ela desce para derrubar a ma-
madeira, depois senta-se em meu colo, traz para si o prato de banana amassa-
da, come uma parte, derruba-o no chão, assim como os biscoitos e os chocola-.
les que ela empurra do mesmo modo com a colher.
Em seguida ela me conduz até os outros quartos o banheiro, mas desta
vez, não é mais uma simples exploração; é para me introduzir em seu ambien-
te cotidiano.
A 27 de fevereiro, o tempo permite que nós passeamos ao outro pré-
dio e à nova sala de sessão. Encontro Nadia brincando com outra criança; ao
me ver, ela joga seu brinquedo e estende-me os braços. Ela tem novamente o
ouvido direito que escorre e os dentes despontam.
Na sessão ela olha tudo, toca na areia, joga os biscoitos e o chocolate.
Ela vem para meu colo pegar a colher e comer apenas um pouco, pois para
ela, o que está em causa é sugar a colher.
A 1~ de março, encontro Nadia de pé tendo encurralado num canto um
menininho que ela quer impedir de partir. Quando ela me vê, ela balbucia um
"heug-gheul" profundo e sonoro. Ela dá um tapa na outra criança e vem se
instalar em meus braços com um sorriso radiante.
Assim que está na nova sala de sessões, ela olha tudo em volta rindo,
exatamente como na sessão passada e anda para a porta balbuciando "co-co-co ",
"pi-pi-pi': Como eu sei que a colocam no penico duas vezes por dia, onde ela
faz sem dificuldade, digo-lhe que talvez ela queira ir buscar um penico. Ela
anda até a escada. Eu a tomo nos braços para ir buscar este penico e nós re-
tornamos à sala onde eu coloco o penico perto do leito.
Sento-me, Nadia desce para pegar o penico. Ela está quase delirante de
alegria com este penico, apalpa-o, deixa-o, toma a pegar, apertando-o contra
si. Digo-lhe o quanto ela está contente em ter este penico, em dispor dele
como quiser, porque ela sabe que eu não vou pedí-lo; ela faz o que quer e isto
lhe dá prazer.
Ela coloca sua mão dentro do penico, apalpa as bordas. Depois ela pega
meus óculos para colocá-los aí dentro e vai até a porta para sair e andar triun-
fante pelo corredor, sempre segurando seu penico, de onde meus óculos afinal
caem.
130 Nadia ou o Espelho

Ela vai assim de cômodo em cômodo com seu penico, como ela tinha
feito na primeira vez em que ela tinha pegado triunfante, sua colher. Ela
balbucia enormemente; de tempos em tempos se faz carregar, sem largar seu
penico. Ela me olha, repetidas vezes, de uma maneira terna e um pouco brin-
calhona.
Quando ela deixa o penico momentaneamente, ou ela anda ao redor de-
le balbuciando intensamente, ou ela vai para outro cômodo, unicamente para
retornar depressa, encontrar e pegar de novo seu penico.
Ela volta da sessão andando, sempre segurando seu penico. Vem para os
meus braços e quer ser colocada de pé diante do espelho. Obviamente, ela
quer se ver nele, segurando o penico com as duas mãos. Ela ri encantada e sa-
code um pouco o espelho, excitada; ela apoia aí o penico um segundo para
apertá-lo ainda mais forte contra o peito.
Retorna a meus braços com seu penico, e avista uma chave no armário.
Ela quer pegá-la para colocá-lo dentro do penico. Ela me faz sentar para brin-
car com a chave dentro do penico. Ela quer que eu a ajude a defender seu pe-
nico se uma outra criança procura tomá-lo.
Neste dia, ela quase fala.

o
Esta terceira fase comporta sete espelhos, entre 9 e 16 de fevereiro; ain-
da mais um a 1'? de março, que será a última referência explícita de Nadia ao
espelho.
De pronto, a 9 de fevereiro, Nadia introduz na sua relação comigo, o
ciúme propriamente dito. Não é mais a invidia do início, inteiramente voltada
para o outro suposto satisfazer-se com o que lhe traz o Outro. Agora a censu-
ra violenta e agressiva dirige-se a mim, ao menos aparentemente.
É para dizer que a passagem da invidia ao ciúme seria a passagem da re-
lação a outro. à relação do Outro? A questão só pode ter resposta se retomar-
mos os pontos de estrutura inerentes às situações de invidia e de ciúme; o
que nos levará diretamente, como veremos, à introdução do terceiro termo no
espelho.
A invidia, no início do tratamento, só se manifestava (exclusivamente)
em minha presença. Logo eu era necessária como presença real e única; não
me parece que em minha ausência Nadia tenha dado provas disso, a julgar
pelo testemunho das enfermeiras que falam de seu estado de retraimento
amorfo. Estão pois presentes, neste primeiro quadro, um Outro único, não
passível de troca, presente no Real, e um outro, qualquer que seja ela, pas-
sível de troca: é preciso e é suficiente que o outro aproxime-se ou chame a
atenção do Outro.
O quadro do ciúme, é completamente diferente quanto à sua estrutura.
O outro aí não é mais único; não tenho mais necessidade de estar realmente
presente. As enfermeiras testemunham isso quando dizem que Nadia se toma
"verdadeiramente ciumenta demais". O Outro tornou-se passível de ser troca-
O Espelho Ili: O Terceiro Termo 131

do, mesmo se, na transferência, é para mim que Nadiaexprime mais particular-
mente sua intolerância ao me ver ou me escutar dando atenção a uma outra
criança. Da invidia ao ciúme, o estatuto do Outro mudou: ele adquiriu sua
imagem especular para Nadia, mas mais ainda ele está em vias de - e é o que
vai acontecer ao longo dos últimos espelhos - tomar um lugar que, longe de
ser único, entra em conexão com outros Outros. Isto não quer dizer evidente-
mente que eles tomariam um lugar de Outro do Outro - o que remeteria Na-
dia a esta multiplicidade de Outros que ela sempre conheceu, sem nenhuma
relação possível com um dentre eles. Se existe relação possível para ela, é
que o Outro adquiriu sua dimensão significante, metonúnica de seu próprio
desejo, e que ele pode assim entrar em conexão com outros significantes - é o
caso de meus óculos e de sua colher. O Outro perdeu sua dimensão exclusiva
de Real, exterior a ela, e ganhou aí a possibilidade de ser representado por
outros adultos.
Somente, o outro não seguiu o mesmo caminho; ele permaneceu ainda
no estado de objeto marcado demais de Real e, a este título, atrai a agressivi-
dade e a violência destrutiva de Nadia - aquela que ela mostrou, por exem-
plo, a 19 de fevereiro, quando eu a encontrei batendo a golpes redobrados em
duas crianças, só me olhando então para ver como eu aceitava sua violência:
era o mesmo destino que ela reservava então à boneca. Por certo, esta di-
mensão de Real do outro se atenua no jogo da relaça-o com o Outro, para ad-
quirir uma marca significante sob a forma do lugar de objeto metafórico que
ele pode ter para o Outro. Mas o que ele não vai adquirir, é uma imagem espe-
cuar - nunca ela o vai olhar no espelho; ele conserva assim uma característi-
ca não especularizavel que o coloca na categoria de objeto "a": o pequeno
outro sempre teve para Nadia, desde o começo do tratamento, este papel
de objeto "a" do Outro.
Assim, o ciúme concerne principalmente o Outro, e a interrogação do
sujeito à falta do Outro, o que Nadia começou a fazer, lembramos, desde o
27 de outubro, por antecipação, quando retirei a mão do leito do vizinho.
O ciúme, é a pergunta que o sujeito faz ao Outro, do que ele é, ele
mesmo, para este Outro; e não mais, como a invidia, a pergunta do objeto
do Outro que satisfaz o outro.
O lugar do Outro vai evoluir, quando dos espelhos seguintes. A 9 de fe-
vereiro, após ter expressado seu ciúme no início da sessão, e em seguida, sua
agressividade contra mim, é ao espelho, em fim da sessão, que Nadia pede a
confirmação de ser ela de fato meu objeto, quando põe sua face contra a mi-
nha boca e segue intensamente no espelho os beijos que lhe dou. Ser meu
objeto, mas qual, é o que importa: meu objeto oral, e com a condição de que
antes ela o tenha desembaraçado de toda dimensão de devoração pelo viés
mais radical, isto é, fingindo beber no penico vazio, confirmando mesmo o
vazio aí enfiando a mão antes de jogá-lo, e dele não mais se ocupar. O objeto
oral do qual se trata, é um "nada": todo Real dele foi afastado, dele resta
apenas o significante e é então o objeto metafórico propriamente dito: desco-
132 Nadia ou o Espelho

lado do Real. Nlfo resta mais que a profunda emoção que Nadia demonstra
frente ao espelho, para tomar o lugar de um tal objeto para mim.
É o mesmo jogo que ela refaz no dia seguinte quando esvazia no chão
com satisfação, o pouco de creme que ela me pediu para verter no peniqui-
nho, isto antes de ir para diante do espelho representar a mesma cena da vés-
pera. No momento deste 119 espelho, ela bate em sua superfície com um ar
excitado, mas não agressivo, como se ela tateasse mesmo esta superfície, su-
perfície que tem também relação com um espaço. De fato, ela acaba de fazer,
ao longo da sessão, a experiência do espaço, quando encontrou na arca a es-
fera transparente metade cheia d'água com os patos. Ela não deixou, certa-
mente, de explorar a superfície desta esfera, nem também dde tentar agarrar
um pato, em vão, e aliás sem insistir, antes de brincar com a esfera como com
uma bola fazendo-a rolar no chão. Como sua experiência do espaço da arca,
onde ela tinha colocado meus óculos e sua colher, a 6 de fevereiro, a tinha
incitado a explorar o cômodo em que estamos, com prazer, ela vai da mesma
forma, após seu jogo com a esfera com os patos, tatear a parede, porém mais
ainda o vidro da janela, isto é, o que a separa do mundo exterior. A sala de
sessão transformar-se na esfera; em seu jogo ela tanto se coloca no exterior
em relação à esfera, quanto no interior de um continente comigo, em relação
à sala; exatamente como ela nos havia colocado metonimicamente na arca.
Mas aqui, os patos estão fora de todo alcance, exatamente como o que ela vê
no espelho. O fundo da arca que ela tateava manipulando aí meus óculos,
que ainda guardavam uma densidade real, é substituído pela superfície does-
pelho, na frente dos objetos que ela vê nele.
Acontece o passo decisivo que ela faz, neste 119 espelho, quando ela
percebe a imagem de uma enfermeua que ela conhece. Ela estanca diante des-
ta imagem e volta-se em hesitaça:o para a enfermeira, rindo e pressionando sua
face na minha. Um passo decisivo, certamente, e que vai lhe demandar ainda
algum trajeto, visto que o espelho se separa radicalmente da vidraça e do fun-
do da arca, e que aí se instaura realmente o mundo das imagens; muito par-
ticularmente, aquela do Outro, que perde aí seu caráter de ser único, com o
apagamento do Real de seu corpo pelo especular; é entretanto uma caracterís-
tica do Outro que Nadia não vai facilmente aceitar perder, embora, como
sempre, por antecipação - e esta não é a primeira - ela só tenha mostrado,
neste primeiro encontro do terceiro tempo no espelho, a alegria de sua des-
coberta. Uma alegria que está longe de compensar a perda que ela sofre visto
que, desde o dia seguinte, ela tem um péssimo aspecto como quando ela está
a ponto de ter uma otite, uma otite que ela terminará por fazer a 14 de feve-
reiro.
A perda que ela sofre com este encontro com o terceiro termo no es-
pelho, é o que ela não conheceu ainda em meus braços diante deste espelho,
visto que, a perda incluída na imagem especular, ela podia tão logo compen-
sá-la refugiando-se no Real da consistência de meu corpo, e mesmo só indo
para diante do espelho, com sua face colada na minha. A imagem da enfer-
meira, qualquer que seja a alegria de Nadia na descoberta desta imagem na
O Espelho Ili: O Terceiro Termo 133

i<·alidade, a deixa sem recurso, pela impossibilidade de colar-se ao corpo deste


11ovo Outro. Seu ollhar, aqui realmente, "desespera seu olho".
Então, entre 12 e 16 de fevereiro, é um verdadeiro trabalho de elabora-
\'ªº que Nadia faz para chegar a situar o Outro enquanto que terceiro termo.
( l primeiro destes meios é um significante que ela diz pela primeira vez, que
designa para toda criança o terceiro termo: "pa-pa-pa". Até então, todos es-
ks fonemas começavam por um "a" privativo: "a-pa, a-ga, a pum, a-da, a-co"
<'l>m exceção de "ma-ma-ma". Este significante "pa-pa", as crianças que não
,·onheceram a miséria de Nadia o lançam à sua mãe, antes mesmo do espelho,
,:orno um eco do desejo da mãe. Para Nadia, é o ponto onde ela vai chegar na
seqüência e que ela coloca aqui em primeiro lugar. Ela o liga diretamente
com o pano, que ela tira da arca ao mesmo tempo em que ela pronuncia
"pa-pa-pa". ,
Este pano não é um elemento novo e nós vimos a dimensão de véu que
Nadia lhe conferiu a 24 de janeiro quando ela derrubou a mamadeira que ela
linha velado, com o pano, puxando-o sem tocar na mamadeira. Da mesma for·
ma ela ligou este pano, em sua função de véu, à fralda que vela seu corpo, e a
meu corpo que ela vela depositando o pano sobre meu colo e deixando-o aí.
/\ 29 de janeiro, se ela o coloca ainda sobre meu colo, é para logo arrancá-lo,
como se ela não soubesse se queria que ele representasse seu papel de véu ou
que ele nã'o estivesse lá. A 6 de fevereiro, ela tenta rasgá-lo com os dentes.
O fato de, a 12 de fevereiro, Nadia retirar o pano da arca balbuciando
"pa-pa-pa", liga este pano ao significante enquanto véu. Ela o recoloca na
arca para tirar dela o marinheiro e a esfera com os patos, objetos metonímicos
dos quais a arca tomou-se o lugar. O que ela confinna esvaziando em seguida
a arca de todos os brinquedos que contém, para aí recolocar a esfera com os
patos e sua colher, além de terminar pondo aí seus sapatos, antes de apertar a
arca contra si com um ar radiante: é o tesouro reconstituído destes significan-
tes (a arca da aliança!).
De volta da sessão, ela instaura um jogo de esconde-esconde com a es-
tagiária a quem ela estende os braços para logo refugiar-se em mim se a esta-
giária quer carregá-la. Ela é confrontada às nossas três imagens no momento
do 129 espelho. Aí, seu jogo logo cessa; pois se ela tentava conquistar a ima-
gem do terceiro tenno, através de seu jogo de esconde-esconde, no Real, ela
só pode desviar-se desta imagem no espelho para colar-se em mim, sua face
contra a minha, e me morder o queixo. Exatamente como ela fez, a 23 de ja-
neiro, quando, ao longo de uma cena de ternura, ela defecou e sua ternura
transfonnou-se em agressividade contra mim. Agressividade devida então à
perda que ela sofria em seu corpo, como hoje ela sofre uma perda em seu
olhar diante da imagem da estagiária. Renovação da perda da imagem de 10
de dezembro, colada em seu olho.
No dia seguinte, 13 de fevereiro, a otite moderada continua e o mal
estar persisite. Se Nadia levanta o pano e desvele uma louça rosa de brinque·
do, ela persegue este objeto desvelado batendo nele com um cubo. No fim
desta curta sessão, ela parece procurar alguma coisa que não está lá. O que ela
134 Nadia ou o Espelho

procura é o espelho: ela me diz isso conduzindo-me até ele. O que ela aí re-
presenta, não sem prazer pois que ela ri, é a persistência de nossas imagens:
ela se faz beijar, sacode o espelho, beija-me olhando-me no espelho. Noto
neste momento que ela nunca tentou beijar no espelho uma imagem nem a
sua nem a minha, fazendo bem a separação entre o especular e o Real.
É então que ela percebe a estagiária no espelho, sorri para sua imagem
e volta-se para a estagiária, mas só aceita realmente ir para os braços desta
última quando eu lhe falo: isto é, que eu lhe dou minha palavra para que ela
aceite este Outro que é a estagiária. Em seguida Nadia vai empenhar-se ativa-
mente em aceitar esta última, não de uma maneira passiva colando-se nela,
mas de uma maneira ativa andando pela sala segurando a estagiária apenas
com uma mão.
É preciso crer que, no fundo, sua alegria não é sem mistura visto que, a
14 de fevereiro, ela tem uma otite e muita febre e que, no dia seguinte, não
somente ela tem diarréia como também perdeu um quilo.
Agora ela se interessa muito por continentes, quer seja uma gaveta que
ela esvazia cm seu leito, ou, na sessão, uma caixinha russa que ela encontra na
arca. Ela mergulha seu dedo indicador na caixinha dizendo "co-co-co", anteci-
pando aí o que ela dirá quinze dias mais tarde, ao reclamar o penico na sessão.
Em seguida ela mergulha aí sua língua, depois quer colocar a caixinha em mi-
nha boca, indicando pela primeira vez a estrutura do corpo, como uma estru-
tura continente da boca ao ânus. O primeiro de todos os continentes foi a ar-
ca, com os objetos mcton únicos; ela quer fazer a mesma coisa com a caixa
russa quando ela tenta aí colocar meus óculos, mas, como não consegue, ela
retorna à arca, coloca meus óculos nela, depois sucessivamente o marinheiro
e a esfera com os patos. A arca mantém assim seu papel de reserva de signifi-
cate, antes que o leito de sessão. tome o seu posto: é ela mesma, desta vez,
que soube aí com a caixinha e o pano que ela agita como um lenço.'
Ela se serve do pano na volta, para velar a estagiária; depois ela esten-
de-lhe os braços e recusa-se rindo às gargalhadas. No espelho que se segue, o
149, ela aceita melhor a imagem da estagiária, confrontando-a à realidade des-
ta, como ela havia feito comigo, no início, diante do espelho. Mas, se então
meu corpo real era seu refúgio contra a imagem, aqui o Real da estagiária só
provoca recusa em Nadia. Entre minha imagem e meu corpo, ela escolhia meu
corpo; entre a imagem e o corpo da estagiária, pode-se dizer que ela escolhe a
imagem. É corno se, na dimensão do Real do Outro, só pudesse existir um - a
invidia do início - e que a presença de um outro Outro só pudesse passar
através da imagem, esperando a dimensão última do significante. 1: esta di-
mensão que Nadia encontra justamente depois do 159 espelho.
Este espelho, ela o reclamou depois que eu retornei na hora do jantar,
porque eu a ouvi chorar de impaciência e sobretudo porque pensei que ela
tinha me escutado falar com uma enfermeira. Ela estende-me os braços, eu a
tomo, ela se acalma, não porque o alimento, mas porque, em meus braços,
O Espelho Ili: O Terceiro Termo 135

esquecendo o alimento que ela parecia esperar, ela olha pela janela o jardim
sob a neve. Se em seguida ela quer ir para dentro do espelho, é para aí recon-
fortar-se, fazendo-se abraçar e abraçando-me, olhando nossa imagem.
Ora, o que não havia podido tomar lugar neste espelho, o terceiro ter-
mo, não é mais a estagiária, mas a colher. Esta colher não é mais simplesmente
a sua, mas também a minha, visto que ela a coloca em minha boca; e, mais
ainda, ela apanha uma segunda colher, uma para ela, outra para mim. é pro-
vável que este jogo de colheres só possa perfazer-se num sentido sigrúficante
porque, na hora de seu jantar, não fui eu que a alimentei e por que, durante
este tempo, eu falei. Esta separação da comida e da colher, ela a demonstrou
por sua vez quando, após ter apanhado a segunda colher, ela come de mão o
que sobra num prato. ela volta a meus braços com as duas colheres e, lá,
repete a palavra "colher", muito orgulhosa, dando a este significante a reali-
:zação de uma nomeação articulada.
O circuito do terceiro termo se fez entre o "pa-pa-pa" de 12 de feve-
reiro e a "colher" de 15 de fevereiro. O que nós percebíamos deste terceiro
termo no "pa-pa-pa" ficou ilustrado e demonstrado entre o 119 e o 159 es-
pelho: da articulação da imagem ao Real do corpo do Outro - como terceiro
e como lugar metafórico da falta na imagem especular - à nomeação da co-
lher como significante desta falta, anulando ao mesmo tempo o Real embara-
çante deste terceiro termo. Após a interrogação da imagem especular, a no-
meação libera Nadia, exatamente como minha nomeação a havia feito sair da
fascinação, a 10 de dezembro; ela tinha então encontrado aí o significante
que a representava (S 1 ): ela refez um circuito que a conduziu ao significante
metonímico do Outro (S 2 ), que é também aquele do pai mítico.
Desde o dia seguinte, a colher caiu deste lugar de significante que reme-
teu Nadia ao significante primordial do Outro; ela é apenas um objeto com va-
lor de uso. Nadia também a coloca no prato de mingau, pede para sentar à
mesa e começa a comer de colher.
Quanto ao 169 encontro com o espelho, que é o último desta série -
visto que o 179 espelho só acontecerá quinze dias mais tarde - Nadia conclui
aí sobre o estatuto da imagem, que ela experimenta sorrindo, antes de aceitar,
desta vez, ir para os braços de uma enfermeira quando eu vou embora, como
se o terceiro termo não colocasse mais problema.
O trajeto de Nadia desde o início aparece agora claramente como uma
colocação sucessiva de significantes primordiais: "Nadia", "mama", "pa-pa-pa ".
A colher, enquanto Nadia não a nomeou, veio tomar o lugar do objeto da fal-
ta., isto é, um lugar no campo do significante, o que Nadia não podia dizer,
atravancada que estava pelo Real de meu corpo que ela sabia dever perder e
ao mesmo tempo não aceitava. A nomeação da colher devolveu a falta ao
"pa-pa-pa" cuja existência ela tinha inicialmente colocado através do signifi-
cante, e a colher a Nadia para que realmente se servisse dela. Seria preciso, de
algum modo, que ela colocasse o lugar da falta para lhe dar um representante
metonímico, o que o espelho não podia lhe traz.er na oscilação que ela fazia aí
entre a imagem e o corpo Real. E esta dimensão de apaziguamento que apa-
136 Nadia ou o Espelho

rece em filigrana no 16Q espelho; é por isso que ele é praticamente o último,
como um ponto final.
Nos quinze dias que se seguem, Nadia muda muito; estas mudanças não
são senão os efeitos do que ela conquistou em um mês, quanto à sua estrutura.
Suas relações com o mundo exterior dos objetos estão impregnadas da
maior curiosidade. É possível tentar novamente uma mudança da sala de ses-
sões. Longe de ficar perdida, como da primeira vez, neste novo ambiente, ela
descobre novas coisas, particularmente a areia. Nesta época também, ela gosta
de passear pela casa; na cozinha ela se mete a provar a geléia que até então
recusava em seu quarto.
Em relação aos adultos, por volta do fim de fevereiro, ela amarra laços
sociais mais ricos, particularmente com uma enfermeira que se tomou de amo-
res por ela, ou antes que ela seduziu, o que tempera muito a avidez que ela
tem por mim. Aliás, ela faz comigo o que eu faço com ela, na minha alter-
nância de presença e ausência: quando chego, ela começa por partir, para re-
tornar em seguida a meus braços.
Em relação às outras crianças, ela está atonnentada por um certo ciúme
que faz com que ela lhes bata sem inibição, mas ela é também capaz de brin-
car com elas, e mesmo deles receber alguns presentes.
A sessão de 1~ de março é uma sessão-pivô pela aparição em primeiro
plano, de chôfre, dos significantes "co-co-co" e "pi-pi-pi".
Se não é a primeira vez que ela se depara com o penico na sessão, visto
que ela já tinha se interessado por ele entre 9 e 14 de janeiro, ela hoje se inte-
ressa por ele sem inibição nenhuma; o que não era o caso no início de janeiro.
A I o de fevereiro, ela tinha também evocado o penico mergulhando seu dedo
na caixinha russa e dizendo "co-co-co".
Quando ela pega o penico, ela parece muito particulannente encantada
em constatar que este recipiente tem bordas, um interior: descobre bem para-
doxal para um bebê que, desde há muito tempo, conhece este objeto pelo me-
nos duas vezes por dia. Mas se trata mesmo de uma descoberta, como se o pe-
nico até então não tivesse tido existência própria e que ele tivesse feito parte
de seu corpo nos moldes do seio, parte do corpo do pequeno sujeito, e que
obtura, no início, o orifício da boca. O penico tapava seu orifício anal, e fazia
parte de sua pele.
É o espelho, onde ela demanda explicitamente para ver-se segurando o
penico com as duas mãos, que dá a este objeto, como a todo objeto, um brevê
de existência, e que dá a ela, Nadia, um outro orifício a seu corpo. Então, ela
ri, encantada, sacudindo o espelho como que para fazer ainda a prova da per-
sistência da imagem. Ela apoia também o penico no espelho, este limite do es-
paço que marca todos os objetos humanos reais com um além do virtual.
Como em seu corpo, o espelho cria para o penico um interior, um exterior,
bordas, um fundo, uma falta também: é a chave do armário que ela coloca
detro que simboliza este objeto da falta.
E a última vez que Nadia se refere explicitamente ao espelho.
Neste dia, ela está no limite da palavra. Ela tem 19 meses.
CAPITULO XI
O CORPO FURADO, TÔRICO

4 de março - 23 de abril

! 11 J A 4 de março, quar: lo chego, Nadia está de pé perto de um leito, mas


ela nlfo apoia-se nele de jeito algum. Ela balbucia ao me ver, anda em minha
1lireção, depois fica furiosa porque não a carrego logo; eu preciso primeiro pe-
gar um cobertor para levá-la. Então ela recua balbuciando e, em meus braços,
arranca meus óculos e joga-os: digo-lhe porque ela faz isso.
Assim que ela está lá em cima, na nova sala de sessões, ela pega e joga o
renico por três vezes, balbuciando energicamente.
Ela pára petrificada diante da caixa de areia: ela não balbucia nem se
mexe, parte sem fazer nada.
Então, ela vai explorar fora da sala. Quando volta, ela come o creme
uma vez, me faz comer também, me dá a colher, abre a boca e espera. Ela
quer que eu a faça comer o creme todo.
Quando ela termina, ela pega a caneca, mergulha sua ma:o nele e nlfo pa-
rece contente em achá-lo vazio. Ela pega a mamadeira, coloca-a em sua boca,
recoloca-a na mesa, o tempo de subir em meu colo, e volta a pegá-la para me
entregar. Ela apalpa longamente o bico da mamadeira balbuciando "ga-ga-ga"
e coloca-o na boca, mas não parà beber. Ela me toma de volta a mamadeira
segurando-a pelo bico, desce e deixa-a segurando-a sempre da mesma
A mamadeira cai quando ela quer pegar a esgera com os patos; então, ela a
atira longe. Ela brinca um pouco com a esfera como se fosse uma bola. De-
pois, ela vai para o corredor com uma caneca na mão. Ela só volta a sala para
trocar a caneca por dois biscoitos e torna a partir, segurando um biscoito em
cada mão.
Digo-lhe que a sessão terminou; descontente, ela joga um biscoito, mas
gurda o outro que ela começa a comer descendo a escada.
Reconduzida a seu quarto, ela quer sair de novo e voltar para a sala de
sessões. Permaneço pois, dez minutos junto dela para prepar-ala para a separa-
ção difícil hoje, e ainda agravada pelo choro de uma criança da qual tratam os
ouvidos. A enfermeira aproxima-se de Nadia, que continua em meus braços,
para examinar seus ouvidos; Nadia agarra-se ainda mais a mim e começa acho-
rar. mas ela não recusa cuidados dos ouvidos; eu a acalmo, coloco-a nos braços
desta enfermeira que a põe em seu leito, para que Nadia fique bem certa de
que. ela não terá estes cuidados tão temidos .
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138 Nadia ou o Espelho

A 5 de março, como não há enfermeira, eu mesma devo vestí-la e cal-


çá-la. Ela fica contente de verdade, e estende-me os pés para que a calce.
Deixo a porta da sala de sessões aberta, visto que Nadia gosta de pas-
sear, ir e vir, bisbilhotar em todo lugar. Ela começa por jogar uns bombons,
depois ela come quase um biscoito inteiro, andando, alegre, do patamar à sa-
la. Ela me pede para carregá-la nos braços, para continuar a bisbilhotar tudo,
balbuciando intensamente, sobretudo a cada novo objeto que ela descobre.
Rindo, ela retorna à sala para pegar a colher e me dar, por duas vezes, compo-
ta para comer. Ela ri quando termina, vê a areia, toca um pouco nela e vai der-
rubar o penico com uma certa agressividade: ela joga-a várias vezes seguidas
batendo os pés e balbuciando "heugh-gheu!" enérgicos.
Ela vem instalar-se em meu colo e pede que eu lhe dê a compota, muito
descontraída, agitando os pés de contentamento, a cabeça encostada em mim
e olhando-me. Ela no fim quer até que eu raspe o prato.
Em seguida ela desce de novo do meu colo para pegar a colher e, en-
cantada, anda para fora brandindo-a. Ela retorna para mergulhar a colher na
areia, derramar um pouco fora da caixa; mas ela lembra-se de sua primeira ex-
periência e não leva a colher até a boca.
Digo que a sessão terminou e ela parte em meus braços, tendo trocado a
colher pelo biscoito; mas ela gostaria de voltar; no quarto, assim que chega-
mos, ela quer sair de novo e me leva até a escada.
A 7 de março é tarde demais para que eu faça uma sessão; o jantar já co-
meçou. Ela já tomou a sopa mas deve esperar pelo purê. Quando chego, eu a
vejo passando de seu leito para o do vizinho. Eu não me teria mostrado se,
após a enfermeira ter lhe dito para voltar para seu leito, eu não a tivesse escu-
tado chorar. Eu venho; ela estende-me os braços, pára de chorar e começa a
rir. Ela quer que eu a leve para passear e esquece seu jantar por um quarto de
hora. Eu a reconduzo para terminar o jantar.
Nadia come o puré, que a enfermeira lhe dá, olhando para mim e balbu-
ciando entre cada colherada. Ela sorri também para a enfermeira com a qual
ela estabeleceu agora um laço, o que vai tomar o corte dos fins de sessões me-
nos dramático. Observo, enretanto, ao longo desta cena, que, se me aproximo
de uma outra criança, ela fica furiosa e joga a colher que ela tem na ma-o.
No fim; ela ainda quer passear, mas volta sem dificuldades para o braço
da enfermeira que lhe dá uma banana.
A 9 de março, quando venho buscar Nadia, ela me faz sentir que ela
não tem sessões de verdade desde 5 de março. Quando ela me vê, ela faz uma
cena: balbucio furioso, olhares furibundos e ela bate no chão. Digo-lhe rindo
que ela não está contente comigo, porque ela não me vê há vários dias e que
ela pensa que eu a abandonei. Eu falo rindo, porque se ela está agressiva, é
sem angústia. Então ela ri e estende-me os braços; aninhada em meu pescoço,
el dá gritinhos de prazer, balbucia e ri durante todo o trajeto até a sala de ses-
sões, no segundo andar do outro prédio.
Ela anda até a porta da sala, mas vem para meus braços para abrí-la.
O Corpo Furado, Tórico 139

Ela joga os bombons, me faz lamber a colher, pega um biscoito que co-
me andando; retorna, pega o outro, que ela deixa ao ver o penico. Agarra este
último com alegria dizendo: "cocô". Coloca-o perto da caixa de areia que ela
contempla antes de partir para explorar o patamar, balbuciando e rindo.
Ela retoma à sala, joga os brinquedos que estiro sobre uma bancada e
torna a partir com uma boneca de borracha que ela suga. Enquanto ela suga
sua boneca como se fosse comida, olhando para o prato, digo-lhe que ela não
quer comer, porque ela acredita que eu a abandonei, e logo, que eu nã'o quero
que ela coma; acrescento que a comida está na sal para ela fazer dela o que
quiser. Como única reposta, ela vira-se rindo na direção de minha cadeira, da
qual toma posse como de uma mesa, com suas duas mã'os bem na horizontal;
ela quer que eu coloque o prato em cima da cadeira e me pede que eu lhe dê
de comer com a colher; uma vez, ela me toma a colher para me dar de comer.
No fim, ela me olha devolvendo-me a colher rindo docemente e balbuciando,
exprimindo no conjunto: "Não é que estava bom?". Digo-lhe entã'o que ela
achou bom o que ela me pediu para lhe dar de comer, como, eu achei bom o
que ela me deu de comer. Ela quer beber na colher o leito da mamadeira que
ela me fez botar no prato.
Ela apanha a boneca, coloca-a na caixa de areia, depois volta a pegá-la
para jogá-la. Ela mergulha sua mã'o numa caixa com areia; eu devo limpá-la
quando a reconduzo, ela está radiante.
Eu agora a vejo em média quatro vezes por semana e não mais todos os
dias como antes.
A 11 de março, por uma razã'o que desconheço, Nadia tem o rosto está-
tico e eu não a sinto à vontade.
Ela volta-se bruscamente para a mamadeira que ela bebe inteira em
meus braços. Então ela tem uma expressão muito confiante; ela se descontrai
e em seguida reencontra seu dinamismo e sua atividade.
A 12 de março, ela anda um pouco sem apoio, e fica muito alegre com
isso. Na primeira parte da sessão, ela come o mingau de tapioca e toma a ma-
madeira. Na segunda parte, ela faz jogos agressivos e dinâmicos com o penico,
e quer comer o mingau com a ajuda de meus óculos.
Ela manifesta interesse pela areia e pela água, e anda muito com ou sem
minha ajuda.
A 14 e 15 de março, eu devo vê-la em seu quarto, porque ela tem muita
febre; mas ela não está abatida e não compreende que eu não posso levá-la
para a sessão. Ela não aceita, me bate, mas sem angústia; logo ela é capaz de
um comportamento muito terno.
A 17 de março, eu a encontro num quarto do fundo, sozinha com uma
criança cega. Colocaram seu leito aí, porque ela passa para o leito dos outros,
sobretudo para o de um menininho. Ela está de pé perto de seu leito, sapa-
teando; ela tem um aspecto ruim, e seu ouvido apresenta corrimento.
Ela começa .a sessão sentada em meu colo. Suga a colher que ela mergu-
lhou no mingau de tapioca e me faz sugá-la; joga-a para pegar um biscoito.
Parte entã'o em exploração, balbuciando.
140 Nadia ou o Espelho

Ela retorna para pegar uma pequena locomotiva que ela suga olhando
para o prato. Eu lhe interpreto seu desejo de comida e sua inibição;digo-lhe
que ela acredita que sou eu que lhe retiro a comida porque não a levei para a
sessão as duas últimas vezes. Acrescento que ela sofria dos ouvidos e que eu
não quero que ela fique doente.
Então ela larga a locomotiva, me dá a colher e abre a boca. Dou-lhe três
colheradas, depois ela pega a colher e joga-a para comer com a mão. Ela co-
meu com satisfação, balbuciando, as colheradas que eu lhe dei; e, nesta medi-
da, ela pode ser agressiva sem angústia. Agora ela está extremamente dinâ-
mica.
Elit desce de meu colo e, durante um quarto de hora ela vai e vem entre
o patamar e a sala de sessões, dizendo: "cocô ... pi... pi ... mamã... mamã!". No
começo ela ignora o penico, que está, como sempre, num canto da sala. Depois
ela pára diante dele, dá alguns puns sonoros e parte novamente. No fim, ela se
acocora a alguma distância do penico, mas não senta nele.
Digo-lhe que ela tem o desejo de me dar este presente, mas que também
hoje ela nã'o está contente comigo. Acrescento que só podemos dar aquilo
de que estamos certos de possuir como propriedade, e que o jogo com o peni-
co a assegura que eu admito sua propriedade e sua independência. Penso ao
dizer-lhe isto que ela sempre foi colocada duas vezes por dia no penico.
Reconduzo-a a seu quarto muito melhor que antes.
A 19 de março, ela tem um bom aspecto. Toda a sessão é denominada
pela sua alegria de andar sem ajuda e sem apoio, jogo que ela recomeça inde-
finidamente, vindo enroscar-se em meu pescoço entre as suas tentativas.
Ela come, me faz comer, e ignora o penico. Mas ela parece notar a pri·
meira vez o bebê no berço: ela olha para ele, imóvel, depois torna a partir,
muito dinâmica. Ela olha a areia, mas contenta-se em olhar.
Quando eu a reconduzo, ela quer sair de novo porque a enfermeira nã'o
se ocupa dela imediatamente; ela está bastante agressiva olhando-me, mas eu
não lhe abro a porta.
A 21 de março, ela me ajuda pela primeira vez a vestí-la.
Ela começa a sessão em meu colo, come um pedaço de cada biscoito an-
tes de jogá-la. O novo ritmo das sessões desencadeia sua agressividade.
1
Ela pega a colher, me faz lambê-la, preenche-a uma vez para ela, come e
joga-a. Ela desce de meu colo, leva a caneca à sua boca, faz o gesto de beber
como se aí tivesse alguma coisa. Ela estende-a na direção da mamadeira e es-
pera. Coloco aí um pouco de leite; ela olha este leite e derrama-o consciente·
mente no chão com um ar maravilhado.
1
Uma vez de volta a meu colo, ela começa a comer e a me dar de comer
pegando o mingau de tapioca com a mão. Ela parece experimentar um prazer
profundo em me dar de comer assim, logo a me fazer lamber seus dedos, que
ela lambe logo depois. Em seguida ela me faz mergulhar me dedo no mingau
para sugá-lo voluptuosamente e digo-lhe que isto é uma outra maneira de
mamar.
O Corpo Furado, Tórico 141

Ela vai, muito dinâmica, explorar o recanto das enfermeiras, parando


para olhar as pessoas que passam. Ela retorna, pega a caneca que serve de pá
na areia. Ela esvazia uma caixa que contém areia, e em seguida apalpa esta
última.
Ela então torna a pegar um biscoito, que quer jogar no leito onde ela
procura subir.
Reconduzo-a a seu quarto para deitá-la. Ela agarra-se a mim, depois
estende os braços para a enfermeira que começa a tirar-lhe a roupa.
A 22 de março, encontro Nadia acocorada em cima da balança, rodeada
Je fraldas sujas ( cocô ). Ela estende-me os braços e abraça meu pescoço.
Ela começa a sessão em meu colo, mete a colher em minha boca para
me jàzer comer três colheradas, depois ela joga a colher. Ela mergulha seu de-
do no mingau, me faz sugá-lo e espera que eu mergulhe meu dedo para fazê-lo
sugar. Digo-lhe que ela não está contente com a colher porque é o seio que ela
quer, é o que a preencheria. Ela balbucia e eu acrescento que não sou sua
mamãe e que isto é apenas meu dedo, que ela sabe disso, e que é por causa
disso que ela quer às vezes jogar tudo.
Então, ela desce de meu colo e toma-se muito violenta contra o bebê,
o colchão, o travesseiro. Depois ela vai andar fora da sala.
Após retornar aos meus braços e enroscar-se ternamente sugando seu
polegar, ela pega a mamadeira, toma-a inteira e vai brincar com o penico e
servir-se da caneca como de uma pá na areia.
Reconduzo-a a seu quarto.
A 23 de março, quando venho buscá-la, ela nos olha, a enfermeira e a
mim, com um certo bem-estar.
Na sessão, sentada em meu colo, ela me faz sugar a colher que está na
compota, suga-a ela mesma, mas prefere comer com a mão pedacinhos de ba-
nana.
Ela pega um animal em madeira, cuja a cabeça é separável. Ela apanha a
cavilha de mamadeira que ligava a cabeça ao corpo, mergulha-a no prato de
compota e suga-a; mas ela não fica satisfeita. Então é seu dedo que ela mergu-
lha e suga, depois é a vez de meu dedo, que ela me faz mergulhar e que ela su-
ga. Faço isso uma vez, dizendo-lhe que não é isso que ela quer, que sugar o de-
do não substitui o seio materno. Ela atira o brinquedo para longe dela.
O tom emocional da sessão muda: Nadia torna-se dinâmica, balbucia sua
agressividade e parece aceitar muito ativamente a frustração que ela acaba de
sofrer. Ela fica de pé sozinha, para ir jogar fora do berço, o bebê, o colchão e
o travesseiro.
Ela volta para junto de mim para comer um pedaço de biscoito, depois
vai pegar o penico que ela sacode e joga várias vezes na areia; sou eu que devo,
a cada vez, apanhar o penico e devolvê-lo a Nadia.
Excitada, ela vai andar no patamar e retoma para precipitar-se em meu
colo com um balbucio de ternura.
Reconduzo-a a seu quarto onde tomo conhecimento que ainda pela
manhã, ela atravessou todo o comprimento da sala, andando sem ajuda.
142 Nadia ou o Espelho

A 25 de março, ela está jantando quando eu chego. Tomo-a por um mo-


mento em meus braços e deixo-a para ir preparar a sala de sessões. Quando eu
retorno, pouco depois, ela está encantada, e pela primeira vez, não manifesta
nenhuma aflição nem agressividade, embora ela tenha me visto e eu tenha
diferido o início da sessão. Ela está cm ótima forma e balbucia em abundância.
Ela passa esta sessão inteira de pé, diante da mesinha. Ela come o creme
todo, em várias etapas e de várias formas: ela me faz comer na colher e eu de-
vo fazer o mesmo com ela; em seguida ela joga a colher, come com a mão e
me faz mergulhar meu dedo no creme para sugá-lo nos intervalos. Ela anda até
o leito e de lá até a cadeira, joga uns brinquedos que ela recolhe, senta-se para
manipular o marinheiro, e vai pegar sobre a bancada a caneca que clajoga;es-
ta cai na bacia; Nadia fica desconcertada.
Então ela vai buscar uma cadeira e quer que eu a coloque de pé, em ci-
ma desta cadeira, para acionar o interruptor: ela consegue acender e apagar a
luz.
A propósito do alimento, ela fez pipi nas fraldas duas vezes. Recondu-
zo-a bem cm forma; e, pela primeira vez, desde a sessão de 22 de janeiro, on-
de eu disse que ela renascia, eu posso colocá-la cm seu leito.
A 29 de março ·· ela não tem sessão há quatro dias - é tarde: Nadia es-
tá sentada, sorridente, em seu leito; ela se levanta e sapateia olhando para
mim e seu rosto se ilumina quando eu estendo-lhe os braços. Ela esfrega-se
cm meu pescoço, arrulha, me dá tapinhas nos ombros e na face, não sem me
fazer sentir a reprovação de ter deixado passar tanto tempo sem vê-la.
Visto-a com um macacãozinho de lã. Ela fica muito intrigada.
A sessão é curta porque Nadia me parece angustiada. Ela come, derruba
a mamadeira, depois brinca com o penico.
Na volta, ela pede para ir ··· pela primeira vez depois de tanto tempo -
diante elo espelho: ela acaricia sua imagem, se faz heijar e volta-se para beijar-me.
A 5 de abril, o jantar está atrasado; encontro-a deitada de lado, sugando
seu polegar, parecendo donnir. Eu a conduzo mas me engano: ela esperava o
jantar e não está contente.
Ela me mostra isso na sala de sessões. jogando tudo no chão. Recondu-
zo-a depressa a seu quarto e fico junto dela até que a enfermeira comece a lhe
dar o seu jantar.
A 6 de abril, hesito em levá-la para a sessão porque ela está de novo com
otitc, mas é ela que me puxa cm direção ã porta.
Ela olha para mim, bastante interessada. recoloca em ordem a sala que
está muito suja após a sessão de uma outra criança. Robert, o "menino do
lobo".
A sessão é curta. Nadia mostra-se muito dinâmica, balbuciante e tra-
vêssa. Ela derruba a mamadeira e brinca de me pedir compota para dizer
"não-não" com a cabeça, com um balbucio gutural cômico.
Ela descobre uma caixa de biscoitos, esvazia-a e apalpa o fundo com
muito in tcressc. Ela coloca aí um passarinho de borracha, depois ela retira o
O Corpo Furado, Tóríco 143

papel retorcido que forra a caixa e brinca com ele: ela dobra-o, sacode-o, co-
locando um objeto dentro deste papel e retirando-o.
Ela não está de forma alguma contente quando eu a reconduzo.
A 8 de abril, dizem-me que Nadia está muito chorosa hoje. Encontro-a
deitada no chão, em lágrimas. Ela tem azul de metileneo no nariz e acaba de
sofrer o tratamento dos ouvidos; estes escorrem ainda.
Assim que está em meus braços, ela me sorri e inclina seu corpo na dire-
ção da porta.
Ela vai fazer uma excelente sessão. Ela mostra que ela conquistou de
verdade a sala; ela sente-se aí tão à vontade quanto no quarto que servia de
sala de sessões há ainda três semanas. Durante o trajeto, ela sabe onde vai: ela
babucia de alegria e agita suas pernas.
Ela começa por lamber a colher, me fazer lambê-la, e ela me pede para
llie dar um pouco de compota. Ela joga o coelho e o passarinho balbuciando e
rindo. Ela percebe neste momento, no leito, a mamadeira que eu esqueci de
tirar após a sessão de uma outra criança. Antes de pegá-la, ela brinca com o
hico, puxando-o e enfiando-o alternadamente; depois ela senta-se no chão
com a mamadeira, sacode-a para fazer esguichar um pouco de leite, e aban-
dona-a.
Após ter me pedido duas collheres de mingau e ter observado que eu
coloquei seus biscoitos e seus bombons na caixa da sessão anterior, ela vai co-
locar no leito uma pequena cesta de verduras. Ela come um pedaço de biscoi-
to, vira a caixa, torna a pegar a cesta de verduras, para sentar-se com ela junto
da caixa. Aí, ela tenta tirar da cesta dois animaizinhos de madeira; ela conse-
gue, recoloca-os, retira-os, depois coloca-os definitivamente dentro da cesta
após tê-los colocado por um breve momento na caixa.
Com um balbucio de prazer, ela chupa um bombom e me faz chupar
um outro segurando-o. Ela continua a chupar todos dois sentada em meu
colo.
Ela toma a descer para me pedir um pouco de mingau, derruba a cane-
ca de leite e, após ter posto todos os brinquedos no chão, senta-se no meio de-
les. Ela brinca demoradamente de mudar o conteúdo das caixas de encaixe,
de revirá-las em todos os sentidos. Ela encontra cubos que ela bate um contra
o outro, alegremente; inspeciona um caminhão fazendo bravo com as mãos
e olhando para mim. Ela volta de pé para a mesa para me pedir o resto da
compota.
Depois ela vai a areia e defeca, rindo: aliás ela tinha dito "cocô"
dois minutos antes. Eu a sinto pouco à vontade; reconduzo-a a seu quarto,
onde eu troco suas fraldas pela primeira vez, ela tem uma expressão de grande
felicidade. Em seguida recoloco-a no chão e durante dez minutos, ela anda de
um cômodo a outro; eu só faço seguí-la.
Ela coloca dois brinquedos no leito de uma outra criança, mas não é
uma doação porque, assim que a crainça segura-os, Nadia puxa os brinquedos
t' é o mais forte que ganha, alternadamente a criança e ela. Este jogo me é di-

rigido e ela está extremamente a vontade.


144 Nadia ou o Espelho

A 9 de abril, encontro Nadia engatinhando e observo que, desde que ela


sabe andar, ela engatinha cada vez melhor. Explosão de balbucios e de esper·
neios assim que ela chega adiante da porta da sala de sessões.
Ela começl! lambendo e me fazendo lamber a colher, depois ela me en-
trega a colher para que eu lhe dê de comer. Ela percebe os biscoitos na caixa,
que está no chão; ela vai retirá-los daí e recolocá-los e se levanta com um ar
um pouco constrangido. Constato que sua fralda está suja. Diante de sua ale-
gria de ontem quando eu a troquei, digo-lhe que vou buscar uma fralda e
volto. Deixo a porta aberta; ela não parece inquieta o que prova que ela me
compreendeu. Ela balbucia alegremente quando ela me vê voltar com uma
fralda na mão. Troco-lhe as fraldas no leito. Enquanto isso, ela ri e agita as
pernas, e quando eu volto a deixá-la no chão, ela está profundamente feliz;
ela me olha com uma expressão ao mesmo tempo de alegria, reconhecimento
e ternura. Ela se apoia em meu colo para dizer-me isso e retoma suas ativida-
des na sala com um balbucio alegre.
Após ter olhado para a mamadeira, ela pega o marinheiro e suga-o vi·
rado as costas para a mamadeira. Assim que digo a ela que ela o suga no lu-
gar da mamadeira, ela joga os brinquedos que estão na bancada e se agacha para
colocar os cubos em duas caixas.
Ela coloca um bombom numa caixa de estanho e tenta em vão retirar o
papel do outro bombom. Faço isso para ela e devolvo-lhe o bombom. Ela vai
sentar-se com seus tesouros ao pé da bancada, chupa e me faz chupar o bom-
bom antes de colocá-lo na caixa que ela agita para fazer barulho, encantada.
Ela toma a pegar na caixa o bombom enrolado no papel e estende-o para que
o desembrulhe; ela coloca bombom e papel dentro da caixa. Ela se diverte de·
moradamente fazendo-os entrar e sair desta caixa, pedindo ajuda se eles se
colam em sua mão. De vez em quando ela diz "cocô" com um ar descontraí-
do, e termina colocando um bombom dentro do penico. /:,'/a retira-o da,:
chupa-o e joga o penico fora. Então, ela come o outro bombom.
Ela anda pela sala, indo com freqüência apoiar suas costas no leito para
me olhar, com a mesma expressão feliz de há pouco quando eu troquei suas
fraldas. Sempre segurando sua caixa, ela aproxima-se da caixa de areia, den-
tro da qual ela vê uma velha caneca que serve de balde; seu olhar vai desta
caneca, a mim, depois ela decide pegar a caneca para jogá-la no chão e colo-
car a caixa em seu lugar. Ela não se ocupará mais dela.
Ela bota na boca uma pedra que eu a impeço de comer. Ela brinca com
o interruptor. Retoma para junto da mesa para derrubar alegremente a cane-
ca de leite, bebe a gota que resta e vem para meu colo para que eu lhe dê três
colheres de compota. Ela desce para apanhar um biscoito com o qual cu are-
conduzo a seu quarto.
A l l de abril, encontro Nadia deitada na mesa recebendo cuidados
(aliás vai-se constatar que nenhum dos dois ouvidos escorreu) Nadia chora e se
debate; permaneço junto dela, alando, para acalmá-la. Eu fiquei para que ela
possa em seguida exprimir em relação a mim a agressividade que a dor desen-
cadeou. Uma agressividade que se exprimirá a partir do momento em que ela
O Corpo Furado, Tórico 145

está em segurança em meus braços, fora de seu quarto, até o momento em


,,ue eu trocarei suas fraldas.
Estendo-lhe os braços assim que termina; ela enrosca-se neles como num
refúgio até sairmos do quarto. A partir deste momento, ela desvia ostensiva-
mente a cabeça, mas enrosca-se novamente em mim assim que cruzamos com
alguém; se eu quero beijá-la, ela recua a cabeça, mas não seu corpo. Falo-lhe
de tudo isto.
Na sessão, ela começa por lamber a colher e fazer-me lambê-la, depois
pede que lhe dé algumas colheradas. Mas, ainda descontente com a minha
não-intervenção em seu tratamento dos ouvidos, ela joga o passarinho e a
caixa, encastra e desencastra as caixas de encaixe e coloca um bombom em
sua b0.::a sem tê-lo desembrulhado, com o que ela se mostra descontente.
Então, eu tiro o papel; ela morde e chupa o bombom parecendo achá-lo
ótimo.
Eu a levei para a sesão com as fraldas sujas e ela parece realmente inco-
modada. Coloco-a no leito para trocá-la, o que lhe proporciona a mesma ale-
gria das vezes anteriores; mas hoje, além disso, a troca desfaz seu ressentimen-
to com o tratamento do ouvido e eu mesmo fico surpresa com a felicidade
que isto lhe traz; ela é uma outra criança: livre, feliz, travessa, sem o menor
traço de angústia.
De volta ao chão, ela pede algumas colheradas, e vem para meu colo
para ser rúnada; ela se abandona completamente e acompanha o meu canta-
rolar. Após um instante, ela toma a descer para inspecionar os cubos e bater
um contra o outro, balbuciando energicamente. Ela pega o bebê no berço,
larga-o, senta-se no chão e quer deitar o bebê no caminhão. Ela não consegue
fazer isso e furiosa, manda os dois embora. Então ela pega o marinheiro e su-
ga-o olhando-me e agitando os pés. Ela retoma aos cubos; eu construo uma
torre com três deles, o que a deixa furiosa; ela derruba a torre e joga os cubos
balbuciando energicamente, sem angústia.
Em seguida ela diverte-se lançando e apanhando para sugar, a xícara
e o pires; depois, avistando um rolo de esparadrapo vazio, ela o toma para su-
gá-lo olhando a mamadeira; digo-lhe isto, ela sobe em meu colo e continua.
Digo-lhe então que ela talvez queira que eu lhe dê a mamadeira, mas que é
preciso que ela a entregue a mim para que eu tenha certeza de que ela deseja
realmente tomar a mamadeira; senão isto faria mais mal do que bem. Imedia-
tamente ela vai sentar-se no chão, descontente, virando-me as costas, exci-
tado-se sozinha com um cubo, na verdadeira atitude de uma criança que
emburra.
Falo com ela devagarinho e rindo, porque é um pouco cômico e nada
desagradável. Então ela estende-me os braços e, deitada nos meus, estende a
mão para a mamadeira. Dou-lhe a mamadeira; ela só bebe um pouquinho, mas
com um real prazer. Ela está radiante de verdade e agita seus pés devagarinho.
Em seguida, ela institui um jogo: ela quer que eu lhe dê a mamadeira;
mas desvia a cabeça rindo. Esta travessura a regozija bastante. Isto parece vir
me dizer: "eu estou feliz, foi bom graças a você, mas hoje não quero mais por-
r.< c-r-AT A n,7 f;'.,...,-;'::1 ,··:ia F!SICR
146 Nadia ou o Espelho

que eu esperei você muito tempo; eu posso brincar e você arreliar com a ma·
madeira, porque sei que eu a encontrarei de novo e que será bom".
Ela faz, em seguida, o mesmo jogo com a compota. Reconduzo-a bem
em forma, e ela estende os braços para a enfermeira olhando para mim com
um ar malicioso.
A 15 de abril, quando eu chego, as crianças brincam no chão e Nadia fo.
ge de mim como a cada vez que eu deixo de vê-la por vários dias. Depois ela
via-se, sorri e estende-me os braços. Assim que estamos fora de seu quarto,
seu rosto se ilumina; e ela entra radiante na sala de sessões.
A característica desta sessão será o abandono de Nadia em relação a
mim. Durante longas seqüências, ela ficará deitada em meus braços, seu corpo
em relaxamento total, brincando com os cubos e com peças da louça de brin-
quedo.
Não trocarei suas fraldas. Ela comerá todo o prato de compota com os
dedos, dando-me um pouco de vez em quando, e eu dando-lhe da mesma ma-
neira, ou seja com a mão. Ela olhará repetidas vezes para a areia, mas não to-
cará nela.
A 17 de abril, quando chego, Nadia suga seu polegar. Ela estende-me os
braços muito sorridente, e se faz beijar várias vezes durante todo o trajeto.
Ela começa a sessão sentada em meu colo e olha sorrindo para o prato
de compota. Entretanto, ela parece esperar alguma coisa antes de poder apro-
ximar-se do prato. Eu a levei para a sessão com a fralda molhada e pergun-
to-lhe se ela quer que a troque. Ela estende a mão para a fralda e eu a troco
no leito. Enquanto faço isso, ela balbucia sem parar, agita as pernas e brinca
com um coelho que ela apanhou em cima da mesa.
Assim que está no chão, ela come uma colherada, estende-me a colher,
joga a caixa e o passarinho, e sobe em meu colo; é aí que ela quer que eu a ali-
mente, deitada ou sentada, sorridente. Ela come apenas a metade do prato
desta primeira vez; o resto ela comerá mais tarde.
Ela vai buscar uns bombons na caixa não fica contente com o fato de
eles não estarem desembrulhados e só me pedirá para fazê-lo após dez minu-
tos consagrados a exprimir seu descontentamento: ela joga os briquedos, sobe
em meu colo, pede compota para recusá-la, balbucia como se ela me invecti-
vasse, bate os cubos um contra o outro. Depois ela finalmente decide me dar
um bombom para eu tirar o papel, e assim que ela tem os dois bombons, um
em cada mão, ela, radiante suga-os alternadamente. Imediatamente depois ela
retorna ao meu colo para me fazer sugá-los. Como eu não possC\ lhe dar de
mamar, sugar o que eu suguei é o único substituto que lhe dá a impressão de
me absorver como alimento.
Reconduzo-a, ela está muito bem, mas ela lastima dei'Xar a sessão. Seus
ouvidos estão curados, ela não tem mais diarréia.
A 18 de abril, quando venho buscá-la, primeiro ela anda afastando-se
de mim, depois tendo chegado até a parede, volta-se para mim e vem em meu
encontro estendendo-me os braços. Sua fralda está muito suja, mas eu a con-
duzo assim mesmo e a trocarei na sessão.
O Corpo Furado, Tóríco 147

Começo pois, trocando-lhe as fraldas no leito, o que lhe proporciona a


mesma alegria de sempre. Em seguida, ela vem para meu colo para que eu lhe
dê o mingau. Ela só come um pouquinho e desce para pegar os bombons; ela
suga-os um após o outro, em seguida torna a sugá-los depois de tê-los mergulha-
do no mingau. Ela parece apreciar bastante esta maneira de comer o mingau;
ela também me faz comer da mesma maneira, lambuzando-me muito. No fi-
na, ela vem instalar-se em meu colo pra ser mimada: seu corpo está completa-
mente abandonado, seu rosto tem uma expressão de felicidade tranqüila; de
tempos em tempos, ela suga seu bombom e me faz sugá-lo imediatamente
depois.
Ela vira-se diante do prato; mas não é para este que ela olha, e sim para
a caneca. Antes de decidir fazer qualquer coisa, ela solta um pum sonoro que
parece intrigá-la porque ela me olha desconcertada. Depois seu olhar vai de
mim a caneca com um sapatear impaciente: ela acha que eu não compreendo
rápido o seu desejo. Então eu seguro esta caneca com a mã'o;imediatamente,
ela inclina-se para ela com a boca aberta: ela bebe assim a metade do leite.
Devo largar de novo a caneca porque Nadia quer subir em meu colo, onde ela
se abandona por alguns minutos, antes de tornar a descer para pegar a caneca
com as duas mãos e beber quase tudo que resta do leite; ela estende-o para que
eu lhe faça beber os últimos goles.
Ela termina a sessão manipulando caixas e cubos, apoiando-se em meu
colo; ela vem inclusive para meus braços continuar seu jogo.
A 19 de abril, encontro Nadia sentada na extremidade de seu leito, sor-
ridente. É a primeira vez que eu a encontro em seu quarto com uma expressão
viva e alegre que ela tem já antes de minha chegada. Ela observa o casaquinho
branco que eu visto nela, e que é novo para ela; ela olha para ele com interes-
se, parecendo gostar dele.
A sessão é curta em função do adiantado da hora, mas também porque
Nadia abandona-se e torna-se muito dependente de mim.
Ela come o mingau todo e, o resto do tempo, se faz mimar em meus
braços, alimentando-se visivelmente não só de mingau, mas de ternura e de
confiança, seu corpo abandonado em meus braços. Ela pode, enfim, receber
plenamente, mas eu penso que é bom não prolongar a experiêncúz para evitar
uma reação de angústia o que tornaria esta possibilidade de receber ainda mais
penosa nas sessões seguintes; ora, ela tem uma grande necessidade de receber.
Embora limpa, ela quer que eu a troque pela alegria de ser manipulada
por mim; e o resto do tempo, deitada em meus braços, ela brinca com suas
mãos e acaricia meu rosto com wn balbucio temo.
A 22 de abril, me pediram para só vir buscar Nadia às quinze para as
sete quando o jantar tenha terminado. Mas, quando chego, ele ainda não co-
meu. Nadia suga seu polegar e, quando me vê, estende os braços para mim.
Visto-a e a conduzo, mas a sessão será curta, ainda por causa deste jantar.
Ela passa o tempo deitada em meus braços; ela se faz alimentar com
beatitude. Ela não procura andar e eu a reconduzo quando o jantar coil_leça.,._
LI J• /~\. \. • -·"' ·;:. -~---, ;-· . J --·'"' "' .ia.,J..·...:,.,
148 Nadia ou o Espelho

É interessante constatar que Nadia não sente - como ela fazia anterior-
mente - como uma frustração de minha parte que eu só a reconduza depois
do início do jantar. Recoloco-a em seu leito, sorridente, e tiro-lhe eu mesma a
roupa para não fazé-la esperar mais tempo. Nada disso parece causar-lhe pro-
blema, mas somente a sessão de amanhã dirá o que é.
A 23 de abril, as crianças ainda não levantaram e a atmosfera do quarto
é morna. O rosto de Nadia ilumina-se quando ela me vê. Ela me ajuda muito
quando eu a visto: ela estende-me os pés um após o outro para colocar as
meias e os sapatos, sorrindo. Ela toca em meus óculos mas não os arranca.
Sentada em meu colo ela começa pedindo duas colheradas de pudim,
depois ela pega a fralda limpa - que agora faz parte do material desde que ela
pediu para que eu a trocasse na sessão - e espera. Troco-a no leito; não volto
a colocar-lhe o macacão, porque ela não faz questão.
Em seguida, ela fica um momento deitada em meus braços, feliz, me pe-
de de novo um pouco de pudim, mas eu largo a colher quando ela diz "não".
Então ela leva seu polegar à boca, mas abaixa sua mão antes de atingi-la, pare-
cedo ter-se dado conta de que, visto que estou lá, e que tem todos os tipos
de comida que ela pode desejar, isso não é necessário. Digo-lhe isto. Ela ri, to-
ca em minha face e vai pegar os bombons para sugá-los no meu colo e fazer-me
sugá-los alternadamente. Ela está muito contente durante todo este jogo,
como se agora ela tivesse aceitado um substituto para o alimento do seio; o
que será confirmado pelo jogo substitutivo em torno do cocô, que se segue
imediatamente.
Ela descobre sobre a bancada uma caneca contendo contas. Durante um
quarto de hora, Nadia brinca com elas dizendo "co-co-co" e rindo. Ao longo
deste jogo, ela pega um livro de imagens, coloca-o em meu colo e ri, muito in-
teressada, olhando e acariciando a imagem do gato. Ela parece reconhecê-
lo: é o único animal que ela teve a possibilidade de ver na instituição. Ela não
tem nenhuma reação diante da imagem do cachorro que está em simetria com
a do gato.
Ela retoma seu jogo com as contas; jogo que consiste em fazê-las sair
da caneca recolocá-las, espalhá-las no chão, para que eu as apanhe, ficando
completamente encantada quando eu as recoloco na caneca.
No fim, ela pega uma das contas entre dois dedos, me faz estender a
mão e finge me entregar, depois recoloca-a rindo na caneca. Todo este jogo é
alegre, excitante e escandido de "cocô" enérgicos. Reconduzo-a em ótima
forma.

o
Este período que segue o último espelho é bastante longo: cobre quase
dois meses, de 4 de março a 23 de abril. Durante a segunda parte do período
sobretudo, não faço mais sessões com Nadia todos os dias como antes, mas
três vezes por semana.
O Corpo Furado, Tórico 149

A dominância é ainda oral,, mas a oralidade que Nadia encontra aí não


tem mais nada a ver com a obstinação anterior. Ao longo destas sessões, a orali-
dade só se manifesta na espera de alguma outra coisa, na relação comigo: o
que só vai se concluir na sessão de 23 de abril. O que está na espera é o anal,
embora ele já transpareça a cada instante nos interesses de Nadia. O que ela
espera é minha demanda, a passagem de sua demanda a mim à minha deman-
da a ela, isto é o entrocamento do anal sobre o Outro. Um entroncamento tal
só pode se fazer se:
1 - O pequeno sujeito apreende seu corpo como comportando um ex-
terior e um interior, com a inscrição no campo do Outro do orifício inferior
do furo do corpo - estando entendido que o furo do corpo vai da boca ao
ânus.
2 -- Ele vive seu corpo como autônomo do ponto de vista motor. A ora-
liade, ao longo deste período que se segue ao espelho, tem a ver com o corpo
de três dimensões, com um interior e um exterior. O alimento não causa mais
problema, quer se trate da absorção; ou da doa5ão que Nadia pode me fazer
desta comida, já numa perspectiva de troca. E que no espelho, meu corpo,
tanto quanto o seu, comporta um interior.
A 5 de março, por exemplo ela diverte-se fazendo-me provar o mingau
na colher para depois me dar esta colher para que eu lhe faça comer todo o
prato de compota, e no fim ela insiste inclusive para que eu raspe bem o pra-
to. Nesta cena, a atmosfera é bem diferente da que se passava anteriormente,
de um lado, a colher é desinvestida de sua função puramente significante ou
representativa, e isto desde que ela a nomeou no momento do 15? espelho, a
15 de fevereiro; a colher está agora reduzida a seu valor de uso. É o que faz
com que eu note que Nadia "se diverte"; aquilo que concerne ao alimento
perde suficientemente a dramaticidade para poder comportar uma dimensão
de jogo, isto é, que Nadia agora mostre-se alegre, e ria muito. Isto na melhor
das hipóteses, isto é, naquela onde o alimento tem valor de objeto metoní-
mico entre ela e eu.
Entretanto não é sempre assim e durante um mês, a partir de 3 de mar-
ço, Nadia vai oscilar entre este valor metonímico do alimento e a tentação de
aí reencontrar um objeto metafórico de corpo. Aqui entra meu trabalho de
interpretação com os limites que eu devo lhe impor.
A 9 de março, por exemplo, Nadia suga uma boneca de borracha olhan-;
do para o prato. Como ela não tem sessão já há vários dias, digo-lhe que cli
acredita que a abandonei, logo que eu não quero que ela coma. Ela compreen,'
de muito bem, visto que então ela pode me pedir para lhe dar de comer na
colher, e ainda me dá de comer uma vez com esta colher.
Entretanto, nas sessões que se seguem, esta troca de alimento entre ela
e mim modifica-se; ela se abate com a demanda de alimento que ela me di-
rige, verdadeira regressão visto que é a mamadeira que ela me pede para lhe
dar várias vezes. Certamente não existe mais o caráter que havia no mês de de-
zembro, pelo fato de que a relação de Nadia comigo passou pelo espelho; é o
que permite que ela se encontre, como a 11 de março, descontraída e dinâmi-
150 Nadia ou o Espelho

ca após ter tomado a ml)llladeira em meus braços. Não resta dúvida que isto
é sintomático de uma demanda que se dirige a meu corpo e que permanece
metafórico do objeto de sua falta.
Entre 21 e 29 de março, se ela prossegue com sua demanda da mama-
deira, ela diz bem que esta mamadeira não tem mais valor de objeto de corpo,
porque outros objetos devem vir tomar este posto: seus dedos e um dos meus,
cujo efeito de sigrúficação metafórica é perfeitamente claro. É como se a ma•
madeira só lhe houvesse dado de novo o prazer de sugar e tivesse falhado, do
ponto de vista do corpo, em seu efeito metafórico. Não tornou-se ela um sim•
pies continente de leite, puro alimento do qual Nadia diz que não é disto que
se trata quando ela esvazia no chão o pouco de leite que ela me pediu para
verter na caneca? Em contrapartida, logo depois, ela mergulha sua mão no
mingau de tapioca, lambe-a e me faz lambê-la, lambendo seus dedos tão logo
cu os lambi, e sobretudo me fazendo molhar meu dedo no mingau para sugá-lo
com volúpia: outra maneira de mamar, digo-lhe eu.
É este mesmo jogo que ela recomeça no dia seguinte, a 22 de março, e
a propósito do qual eu interpreto, dizendo-lhe que eu não sou sua mire, que
é apenas meu dedo, que ela sabe disso, e que é por isso que ela às vezes quer
jogar tudo fora. Então, ela se encoleriza com o representante do outro, o be-
bê no berço -- este bebê e este berço são objetos novos na nova sala de ses-
sões, onde ela constata que outras crianças vêm comigo.
Ela não aceita este limite que eu lhe imponho, visto que, no dia se-
guinte, ela recomeça a sugar e a me fazer sugar seus dedos, depois um dos
meus após ter me feito mergulhá-lo no mingau.
Que ela insiste na metáfora recusando minha interpretação, é o que ela
confirma ainda a 25 de março onde, durante o jogo de sucção dos dedos, ela
faz pipi duas vezes. O pipi esclarece do que é que se trata em relação ao obje-
to de sua boca em meu corpo: eu lhe disse que meu dedo não era o seio ma-
terno; ela me responde aqui que sua procura do seio, é também aquela do falo
imaginário; o objeto-dedo que ela quer simetricamente encontrar nela e em
mim equivale a uma denegação da falta. O que eu lhe recusei, foi deixar que
ela acreditasse que poderia possuir metaforicamente o objeto de seu desejo
oral sob a forma substitutiva de um pedaço de meu corpo; e mais ainda, no
campo da metáfora, deixar que ela acreditasse na montagem simétrica que ela
opera: que bastasse me fazer sugar seus dedos para satisfazer-se sugando o
meu, novo transitivismo que passa pela inscrição metafórica visando anular
a perda que ela encontrou no espelho.
Tudo o que precede pode ser considerado como o esboço da vertente
perversa enquanto que denegação da castração; esboço ao qual minha inter·
pretação de meu próprio limite e de minha falta colocou um ponto final,
através da minha recusa a este retorno à metáfora.
Quando Nadia, a 29 de março, retoma ao espelho uma única vez, ela
conclui. Que ela acaricie aí sua imagem, se faça beijar e se volte para me bei-
jar, mesmo se se trata de um reconforto narcísico - após quatro dias sem ses-
são - é também um retomo à imagem especular, à sua implicação metoními-
O Corpo Furado, Tórico 151

ca que se acompanha da renúncia ao objeto metafórico precedente. Esta re-


núncia não acontece sem tensão visto que, nos dias seguintes, Nadia faz uma
otite e que lhe será necessário uns quinze dias para encontrar um objeto me-
tonímico, sob a fonna dos bombons que ela suga e me faz sugar, e que não
concernem a relação de corpo do ponto de vista oral.
No início de abril, depois do fracasso em preencher sua falta com um
objeto de corpo ral e metafórico, ela é levada a abordar mais francamente um
outro campo, aquele do polo anal de seu corpo. Duas razões para isso: de um
lado, a estrutura de três dimensões que ela adquiriu de seu corpo e a possibili-
dade para ela de interrogar o objeto que ela dele expulsa; de outro lado, sua
crescente autonomia motora.
Como sempre, Nadia tinha introduzido a interrogação deste novo polo
de seu corpo por antecipação, a 19 de março, sob a forma do penico no espe-
lho, o que havia destacado este objeto da superfície de sua pele; mas ela não
estava ainda colocando em relação ao Outro que eu sou, o orifício inferior
do furo de seu corpo.
Durante todas as sessões do mês de março, ela fica apenas numa interro-
gaão dúbitativa e muito inibida dos objetos metafóricos classicamente ligados
ao polo anal: o penico, a areia, as caixas. No tocante à relação propriamente
dita a seu corpo, só existe, neste momento, uma importância cada vez maior
do exercício da motricidade e dos progressos que ela faz aí. Isto lhe permite
experimentar seu corpo não só como independente, autônomo, e enquanto
tal, fonte de prazer, mas também a sala de sessões como um interior em rela-
ção a um exterior. Ela não se priva de sair da sala, de andar no corredor ou de
cômodo cm cômodo, de bisbilhotar cm todo lugar, de ir e vir entre a sala e o
patamar, de querer passear segurando-me pela ma-o, tudo isto balbuciando,
rindo, regozijando-se de seus progressos motores; quer seja que ela ande cada
vez mais sem apoio, ou que ela inaugure o verdadeiro engatinhar. Esta ativida-
dé tão grande a cada sessão constitui o fundo e o meio de seu debate que ela
prossegue passando sem cessar do alimento ao penico e à areia.
Diante desta última, Nadia mostra-se, a maior parte do tempo, muito
inibida. Sua primeira experiência foi infeliz. Quando, a 18 de fevereiro, ela
encontrou a areia na nova sala de sessões - sem saber o que era já que ela
nunca tinha ido a um jardim em toda sua vida - ela mergulhou aí sua mão pe-
gajosa e sugou-a, o que a fez chorar. Por isso, diante da areia, ela mobiliza-se,
não a toca ou apenas a toca. No início de março se ela mergulha sua mão aí,
é para me fazer limpá-la imediatamente.
Quanto ao penico, ela começou a agre d í-lo em sessão no início de mar-
ço. No dia 17, ela coloca o problema nestes termos: indo e vindo da sala ao
patamar, ela balbucia "cocô ...pipi...mamã, mamã", passando diante do
penico e ignorando-o. Em seguida ela pára diante dele somente para soltar
alguns puns, indo para longe acocorar-se no chão, mas não cm cima do peni-
co. No d:a 19, ela come e me faz comer, mas ignora o penico. No dia 23, ela
pega o penico e joga-o trés vezes na areia para que eu o apanhe. No dia 29,
elafaz uma ligação perfeitamente clara entre a mamadeira que ela derruba,
152 Nadia ou o Espelho

depois de ter tomado wn pouco de mingau, e o penico contra o qual ela se


mostra agressiva, logo depois. Nem a mamadeira nem o penico.
Esta oscilação entre o alimento e o penico demonstra o quanto, diante
deste último, Nadia encontra os mesmos problemas que diante do alimento,
e muito particularmente diante da mamadeira. Tudo que ela pôde debater,
deslocar, e mesmo resolver, ao longo da análise concernindo a mamadeira, é
aqui como que reativado pelo debate concernente ao penico.
Existem duas razões para isto. De um lado, o problema oral não se re-
solve nwna relação que se tomaria boa, por causa de uma mamadeira que se
tornaria boa. Ao longo de seu trajeto Nadia provou, ao contrário, que em re-
lação ao objeto, nâ'o era dele mesmo que se tratava, mas de sua falta, falta
central, única condição da mutação do Real em significante, onde o sujeito
deve se constituir. Assim, cada vez que Nadia encontra um objeto tão impor-
tante, na relação do pequeno sujeito ao mundo, quer seja a mamadeira ou o
penico, o mesmo debate é despertado e encontra sempre seu campo privile-
giado não nwna relação qualquer com o objeto, mas na relação ao Outro.
Por outro lado, pode-se dizer que existirá sempre, para o sujeito, um ob-
jeto que lhe assinalará sua relação à falta, mesmo quando os objetos primor-
diais do início da vida terão cessado de ser estes objetos pulsionais segundo os
quais pudemos dividir o desenvolvimento do sujeito em estadios muito bem
separados, enquanto que corre, de um objeto a outro, um fio tão precoce-
mente referenciável: o fio da castraçâ'o, da relação à falta.
É assim que se intrincam, como no caso de Nadia, o que concerne ao
orá! e o que concerne ao anal, mas também, como vimos, o falo como signifi-
cante da falta. Nadia, a 6 de abril, evoca o. falo nwn jogo com uma caixa de
biscoitos que ela entorna, depois, apalpando o fundo desta caixa vazia com in-
teresse, ela depoista aí um passarinho de borracha. Então ela brinca de fazer
barulho esfregando e sacudindo o papel retorcido que forrava a caixa: é o
"escutar" o passarinho, esperando seu canto que virá depois.
Ao longo deste período, Nadia interessa-se muito pelas caixas, nâ'o só
para apalpar as três dimensões: exterior, interior, fundo e bordas, mas sobre·
tudo para transvazar objetos; para fazer deles continentes com wn conteúdo
e passar este conteúdo de uma caixa à outra, o que a regozija muito. Ainda a
8 de abril ela bate as mãos, fazendo "bravo" e olhando para mim.
Neste dia, no fim da sessão, ela vai em direção à areia, faz cocô nas fral-
das, ri, mas não fica à vontade. Reconduzo-a a seu quarto e eu mesma tro-
co-lhe as fraldas pela primeira vez. Primeira de toda uma série de troca a meus
cuidados, quase a cada sessão, durante um mês.
Mais de uma questão se coloca a propósito desta fralda, e para começar:
porque neste dia e não antes?
Evidentemente não era a primeira vez que ela defecava na sessão. Re-
lembrarei apenas a de 23 de janeiro, para marcar a total diferença de sentido
entre as duas evacuações.
A 23 de janeiro, lembro-nos de que ela tinha tido uma evacuação en-
quanto ela me acariciava, o rosto com muita ternura, no dia seguinte ao se-
O Corpo Furado, Tórico 153

gundo espelho. Tínhamos então podido evocar o retorno do Real de seu cor-
po, sendo esta evacuação uma parte de seu corpo. Estava pois excluído, nes-
tas condições, que eu pudesse de meu lugar de Outro ocupar-me disso, e en-
cerrar no Real o que só podia para dele sair.
A 8 de abril, é num contexto completamente outro que Nadia evacua
nas fraldas. Não se trata mais de uma parte de seu corpo; trata-se de continen-
tes, caixas, e de conteúdos, do cambiável. Trata-se do interior do corpo, do
corpo como continente, não destrutível pela perda do conteúdo.
Enfim, quando eu a troco, ela fica muito feliz e em seguida anda duran-
te dez minutos de um cômodo a outro, de um continente a outro, podería-
mos dizer. Seu contentamento, seu dinamismo permitem concluir, retroativa-
mente, sua demanda de ser trocada por mim. Agora eu sou para ela o Outro
deste objeto anal.
Nas sessões seguintes, sua demanda torna-se perfeitamente clara: ela
quer que eu a troque, primeiramente no leito de sessões, e manifesta uma gran·
de alegria. Enquanto eu a troco, ela ri, agita as pernas e em seguida me mostra
sua ternura. No início, ela pede que eu troque sua fralda suja; mas, logo pede
para que eu troque sua fralda simplesmente porque ela está molhada. A 19 de
abril inclusive, ela quer que lhe troque uma fralda limpa, por "nada", por
prazer. Enfim, a 23 de abril, ela pega.sua fralda limpa que eu coloquei na sala
e me dá para ser trocada.
Quanto ao sentido desta troca, é na sessão de 3 de abril que ela o articu-
la, ao mesmo tempo no oral com a ajuda de um bombom e no anal com o pe·
nico. O bombom, como ela, deve ser "trocado", isto é desembrulhado antes
que ela o coloque numa caixa que ela agita para fazer barulho. Antes porém,
ela o sugou e me fez sugá-lo com um prazer evidente. Aí está para o oral. Eu
devo retirar o papel de um segundo bombom que estava na caixa e ela torna a
colocar o bombom e o papel dentro desta, tirando-os e racolocando-0s várias
vezes aí dizendo "cocô". Ela termina por colocar o bombom no penico, para
tomar a pegá-lo e sugá-lo mandando o penico longe. O objeto oral tomou-se o
objeto anal, sem perder por isso sua primeira natureza. Nesta dupla possessão,
ele faz a l!gação entre: os dois orifícios do furo do corpo, a boca e o ânus.
Mais que do objeto mesmo, trata-se com efeito, dos orifícios do corpo, exa-
tamente como no começo tratava-se do furo da boca e não do objeto oral. Se
não se trata aí do orifício inferior real do corpo, o furo do penico faz às vezes
deste orifício e o desembrulhar do bombom faz às vezes do desvelamento des-
te furo, como a troca que ela me pede e que a regozija - desvelamento, mas
também obturação do furo pela fralda. Ele só pode evidentemente regozi-
já-la no Outro que eu sou, além do Real de seu corpo e do meu, numa meto-
nímia estruturante.
A sessão final deste período, a de 23 de abril, é uma sessã'o articulante
não tanto entre o oral e o anal quanto, de um ponto de vista estrutural, da
relação ao Outro.
Na véspera, como que para quase concluir, numa sessão curta, Nadia
passou seu tempo em meus braços fazendo-se ser alimentada com prazer. Na-
154 'Nadia ou o Espelho

da causou problema em relação a este alimento nem em relação à espera de


seu jantar na volta; o sorriso não a abandonou quando ela deixou que eu lhe
tirasse a roupa antes do jantar, como se este ato tivesse ligação com a trocadas,
fraldas; isto· é, que ela agora pode mostrar-se sem medo de perder uma parte
de seu corpo, sob o olhar do Outro, e mesmo pelas mãos do Outro.
No dia 23, ela começa a sessão estendendo-me os pés - evocação da
sessão de 10 de dezembro - para que eu coloque meias e sapatos, rindo. Es·
tá longe de ser a primeira vez, mas, hoje, ,ela o faz sem medo nem tensão;
ela indica a relação com meu olho quando eu velo os seus pés: ela toca em
meus óculos mas não os arranca.
Na sessão, ela come duas colheradas de pudim, depois estende-me a
fralda limpa, espera que eu a troque, e fica deitada em meus braços com um
ar feliz. Se ela come ainda algumas colheres de pudim, ela larga rápido a co·
lher dizendo-me "não". Então toma lugar uma cena de jogo alegre onde o
objeto oral entra numa troca entre ela e eu. Tendo largado de novo a colher,
ela esboça um movimento: coloca seu polegar na boca, mas abaixa a mão an-
tes de atingí-la. Digo-lhe que ela se dá conta de que eu estou lá, assim como o
alimento, e que é por isso que ela renuncia ao polegar. Então ela ri, toca em
minha face e vai pegar os bombons. Ela retorna a meu colo para sugá-los e me
fazer sugá-los alternadamente.
Não se trata mais aqui de substituto metafórico do objeto do corpo,
não se trata mais de sucção do <ledo, nem mesmo de seu próprio polegar, mas
de um objeto metonímico entre ela e eu. Um tal objeto, o bombom, consti-
tui mesmo um traço unário, que não é o primeiro para Nadia -· os sapatos
são um exemplo: a 31 de dezembro, a primeira vez que ela teve um, ela olhou
alternadamente para os meus e os seus; entretanto, é a primeira vez aqui que
se trata da interrogação de meu desejo oral, que seria análogo ao seu. Ela res-
ponde a isso com uma identificação biunívoca, onde ela me faz deixar o lugar
de Outro portador do objeto e me afeta com a falta. Troca de objeto, troca
de falta.
Esta dialética da falta de objeto, vai prosseguir com as contas logo de-
pois. Ela vai até a bancada e descobre, ou melhor vai pegar lá onde ela sabe
que estão, as contas dentro de uma caneca. Seu jogo com as contas vai durar
um quarto de hora: ela retira-as da caneca, recoloca-as aí, espalha-as no chão
e quer que cu as apanhe para recolocá-las na caneca, o que a deixa encantada.
Todo este jogo é alegre, excitado e cscandido por "cocô" enérgicos. No fim,
ela pega uma conta entre dois dedos, me faz estender a mão, finge me dar a
conta e, rindo, recoloca-a na caneca. O que ela verifica aí, fazendo-me estender
a mão, é, como para o bombom, que cu lhe peça a conta; mas o que a regozi-
ja, é recusar-me esta conta -- que ela me falte'?
Evidentemente não é mais a mesma coisa que o biscoito que ela me ha-
via dado tantas vezes para comer, para ir buscar com seu dedo o pedaço em
minha língua, às vezes até com uma reação de nojo que assinalava sua dimen-
são de Real. Tratava-se então de uma falta do corpo, do seu corpo procurando
o objeto no meu, do meu que devia sofrer a falta do objeto.
O Corpo Furado, Tórico. 155

Aqui, é o riso que brota, porque trata-se do campo do chiste, depois do


espelho, espelho que me fez perder minha dimensão de corpo real e me afetou
com a minha barra, enquanto A maiúsculo que sou. É reconhecê-lo, agarrá-lo aí
vitoriosamente, e poder reconhecer-se aí ela mesma, como no espelho, além
de uma perda real, para mim como para ela, que a faz rir.
1

É a mesma interrogação metonímica que surge quando, no meio deste


jogo, ela pegou um livro de imagens, colocou-o em meu joelho, e parou dian-
te da imagem do gato, o único animal que ela realmente conhece, para acari-
ciar a imagem rindo. Seu riso diz que o Real do gato, do qual ela tem experiên-
cia, tomou-se uma imagem, que existiu, como no espelho, em alguma parte,
uma perda, mas que o que existe a ser comunicado a mim sobre o gato está
nesta imagem.
O que conta é a articulação do Real, da imagem, e a falta que pode ins-
crever-se aí em filigrana. Esta falta não se inscreve se um dos dois termos fa-
lha: a imagem do cachorro não a interessa já que ela jamais viu um cachorro
real.
Isto não é dizer tudo, no tocante à imagem e à representação do objeto,
visto que existem objetos não especularizáveis, cuja perda não pode se inscre-
ver entre o Real e a imagem, visto que eles não têm imagem: eles devem per-
manecer velados.
Em resumo, entre 4 de março e 23 de abril, Nadia estabelece estrutural-
mente o furo de seu corpo; o resultado é a estrutura tórica deste corpo. ·
Para que o furo advenha, é preciso que o orifício inferior deste furo, se
estabeleça e parece que só há aí uma única via: a inscrição do orifício no cam-
po do Outro. Ela só tem, para fazer isto, a referência que precede, a do orifí-
cio superior, a boca. Este primeiro orifício teve, para estabelecer-se, que pas-
sar por todas as vicissitudes do transitivismo, de início, na busca do objeto
de corpo para ser obturado, em seguida, na ambivalência. Ele só encontrou
seu estatuto no espelho, pela metonímia da troca de beijos e o surgimento do
terceiro termo articulado no "pa-pa-pa".
O orifício inferior do furo do corpo só pode estabelecer-se sobre estas
bases já adquiridas pela confrontação das imagens no espelho, a sua e a mi-
nha. Do furo, o Real já foi dispensado. Para tentar obturá-lo, não resta mais
que um objeto metafórico, aquele de meu dedo como falo imaginário; pers-
pectiva neurótica, e mesmo perversa, à qual minha interpretação dá um ponto
final, o que permite que Nadia retome a dialética da inscrição do orifício no
campo do Outro. Ela faz isso reintroduzindo um objeto metonímico, o bom-
bom, que pode fazer a ligação entre o orifício superior oral e o orifício menos
metonímicamente, ao penico, com seu buraco e suas bordas. Não mais oral-
mente que analmente o objeto agora deixa de ser preenchente; o que se ins-
creve além do objeto, metonimicamente, são os orifícios superior e inferior
do furo de seu corpo.
A imagem especular é a via desta inscrição, via única, necessária e sufi-
ciente. Única e necessária porque a imagem do Outro, fora do espelho, só é
156. Nadia ou o Espelho

fascinação e transitivismo, ou melhor, metáfora tendo como horizonte o gozo


do Outro onde fracassa o Simbólico; suficiente, visto que o espelho remete o
sujeito à falta do Outro, velada por sua imagem, e de onde responde um outro
objeto, fora do espelho, o terceiro termo, o significante do Nome-do-Pai.
CAPITULO XII
A TROCA

28 de abril - 8 de maio

! 1O A 25 de abril eu chego depois do jantar: encontro Nadia descendo do


leito. É a grande inovação destes últimos dias, me diz a enfermeira, que acres-
centa: "Basta darmos as costas para que Nadia desça".
Ela "ajuda" muito enquanto eu a visto, mas ela não gosta que eu lhe
ponha um macaca:o.
Ela começa a sessão pegando os bombons, me faz desembrulhar, e só
suga-os após ter me feito sugá-los. Ela monta em meus joelhos, suga e me faz
sugar novamente os bombons, e quer algumas colheradas de creme.
Desce de meu colo, vai até a bancada com um objetivo preciso: as con-
tas. Com a mão mergulhada na caneca cheia de contas, ela vira-se para mim
sorri balbuciando e recomeça o mesmo jogo da sessão precedente; mas hoje
ela me dá uma conta para inaugurar o jogo. Ela excita-se depressa, balbucia
sem parar "cocô-cocô", derruba as contas, apanha-as e recoloca-as na caneca
que ela põe provisoriamente sobre a bancada. Então ela pega a locomotivazi-
nha e coloca-a dentro do penico. Por várias vezes seguidas, ela coloca este
brinquedo no penico que ela derruba em seguida para fazer o brinquedo cair
balbuciando muito. No fim, ela bate no penico, manda-o longe e retoma às
contas.
Constato neste momento que ela fez coêo nas fraldas e digo-lhe isso.
Até que ela me peça para trocá-la, ela ficará bastante violenta: ela espalha as
contas dizendo "cocô" e virando-me as costas. Depois vai colocar a locomotiva
no berço, de onde ela tira o bebê segurando-o pela fralda, mas ela tem medo e
quer que eu o tire do chão onde ela o deixou. Então vem para meus joelhos
com os biscoitos. Ela come e me faz comer os biscoitos, desce para colocá-los
na caixa, pega a fralda e estende-a para mim. Então eu a troco; ela exprime
sempre a mesma alegria; não lhe coloco o macacão.
Reconduzo-a, tiro-lhe a roupa e recoloco-a no leito, o que ela agora gos-
ta muito.
A 26 de abril, encontro Nadia com uma carinha deplorável; seu nariz
sangra porque lhe tiraram a crosta; em seguida colocaram azul de metileno.
Esta lambuzeira de vermelho e azul a desfigura. Ela ajuda muito quando eu a
visto. Não lhe coloco o macacão.
Assim que estamos na sala de sessão, ela pega os bombons, e suga-o após
ter-me feito sugá-los. Ela retoma ao meu colo para que eu lhe dê algumas
158 Nadia ou o Espelho

colheres de sêmola, depois vai até a bancada, hoje muito menos por causa das
contas (ela mexe um pouco nelas, me dá wna e não se interessa mais por elas)
do que pela locomotiva: Nadia senta-se e faz um movimento de vai-e-vem com
a locomotiva, sem largá-la; seu corpo inteiro acompanha este movimento
que evoca o balanceio. O rosto de Nadia está sorridente e muito presente no que
ela faz. Ela faz a locomotiva rolar até mim; eu a devolvo e ela ri às gargalhadas.
Em seguida ela vem para junto de mim comer a sêmola, depois me traz
o livro; ela procura nele a imagem que ela prefere, a do gato porque ela are-
conhece. Ela recoloca o livro sobre a bancada, fazendo um barulho de sucção
-- é um barulho que ela faz freqüentemente quando eu venho buscá-la antes
do jantar.
Ela pega um pratinho da louça de brinqtfedo rosa e segura-o na boca
com os dentes como um botóculo. Ela vem em minha direção dessa maneira.
os olhos faiscantes. Como seu olhar vai de mim à caixa de biscoitos, eu coloco
um no pratinho. Ela retira-o daí, joga o prato, pega o biscoito, come a metade
e joga o resto.
Ela quer então que cu lhe dê o resto da sêmola. Acontecem curtos inter-
médios durante os quais ela empurra os objetos para a beira da mesa para que
eles caiam, e vai apanhá-los. Não somente ela os apanha, como coloca-os na
caixa de encaixe, olhando para mim triunfante.
O jantar já começou quando eu a reconduzo, mas ela se afetou.
A 29 de abril, quando chego na instituição tomo conhccimcn to das fa-
çanhas de Nadia: ela sai do seu leito sem ccss'ar, seja para ir para o leito dos
outros, seja para sair para o corredor. De fato, quando venho buscá-la, encon-
tro-a no balcão: a janela está toda aberta e ela olha com um imenso interesse
para as crianças que brincam no jardim. Eu conduzo Nadia radiante; ela me
ajudou muito enquanto cu a vestia, balbuciando e cantarolando.
Na sessão, ela primeiro me fez sugar os bombons, mas ela própria não os
suga. Depois de ter comido cm meu colo um pouco de arroz doce, ela desce
para derrubar a locomotiva da mesa e a caixa de encaixe, me pedindo ainda
algumas colheradas. Ela apanha a locomotiva e a caixa, depois vai buscar o
livro que ela deixa em meu colo; mas hoje, se ela ainda me mostra especial-
mente o gato, ela interessa-se pela imagem de um bizerrinho perto de um bal-
de de leite. Em seguida ela volta a deixar o livro sobre a bancada.
Então, ela quer que eu lhe troque a fralda molhada; mas desta vez, ela
quer ser trocada sobre meu colo e não no leito.
Assim que eu a coloquei de volta no chão, ela reclama o arroz doce,
depois vai buscar as contas. A partir deste momento, até o fim da sessão, isto
é, durante vinte e cinco minutos -· porque ela recusa terminar a sessão-, ela
vai brincar com as contas e fazer prova de um dinamismo, de uma liberdade e
de uma variedade de emoções surpreendentes. O jogo é ora alegre, ora coléri-
co. Ou as contas me são dadas, ou ela as espalha para que eu as apanhe, ou
ainda ela apropria-se delas e brinca fazendo malabarismos. Ela troca as contas
de recipiente: recoloca-as no caminhão e não na caneca. Assim que acaba de
,·spalhar as contas ela vai apanhá-las, seja em pé ou engatinhando, balbuciando
apaixonadamente: "côco ... cu... cocô ... cu".
No meio deste jogo, ela tem um breve instante de cólera: depois de ter
espalhado as contas bem longe, ela faz pipi em pé. Troco-a de novo e ela re-
1ona a suas contas.
Ela faz algumas paradas curtas ao longo do jogo, quer seja para que eu
lhe dê um pouco de arroz-doce, quer seja para enroscarse em meu colo balbu-
ciando ternamente.
Quando consigo conduzi-la após quarenta e cinco minutos de sessão, ela
estende-se em direção à sala como que para retomar. Recoloco-a em ótima
forma em seu leito.
A 30 de abril, Nadia mostra uma grande alegria quando venho buscá-la,
fazendo cabriolas no leito, balbuciando e tentando descer do leito para andar
mais rápido. Ela estende-se rindo para a sala de sessões cuja porta está aberta.
Ela desce de meu colo para sugar um bombom, depois, em pé diante
da mesa, ela me pede para lhe dar um pouco de mingau. Enquanto come qua-
se a metade do prato, ela joga no chão a caixa, apanha os objetos e, rindo, re-
coloca-os na caixa. Ela remexe por um momento nas contas que estão dentro
da caneca, depois derruba a caneca rindo às gargalhadas do espalhar das contas.
Colocando o livro em meu colo, ela vira as páginas, rindo diante das
imagem e acariciando-as.
Após ter pedido um pouco de mingau, ela retorna às contas. Ela brinca
de apanhar uma ou duas e em jogá-las dizendo: "cocô ... cu"; ela está muito di-
nâmica e diverte-se de verdade. No meio deste jogo, ela faz pipi; eu não a tro-
co porque eu observei que ela não pede para ser trocada quando se trata de pi-
pi, contrariamente do que ela faz para o cocô: diferenciação do pipi agressivo
c o cocô presente. Entretanto não se trata ainda para ela do dom anal; aliás,
digo-lhe isto acrescentando o quanto é divertido espalhar as contas diantes de
mim dizendo "cocô", digo-lhe que ela não quer dar porque eu n[o estou sem-
pre lá, e que ela me odeia como ela odiava sua mãe por não estar junto dela
para alimentá-la e para que ela pudesse encher-se dela. Nadia retoma seu jogo
com as contas e dá um pum sonoro que a faz rir. Depois ela se senta no chão
com a locomotiva, faz com que ela faça um jogo de vai-e-vem sem largá-la, em
seguida larga-a e a locomotiva termina perto de mim: devolvo-a a Nadia, que ri
:ls gargalhadas e recomeça este jogo várias vezes.
Ela vem ainda me pedir algumas colheradas de mingau derrubando a
caneca de leite. Se ela se deleita em ver o leite cair no chão, gota a gota, ela
não gosta que sua mão se molhe e estende-a para que eu a enxugue.
Balbuciando imperiosamente, ela vai colocar a locomotiva dentro dope-
nico; ela coloca-a aí, retira-a, depois faz com que ela role até mim para que eu
a devolva como ainda agora. Grande alegria.
Ela toma a comer e, entre cada colherada, ela faz adoráveis mímicas de
tenura: inclinando a cabeça sorrindo e vindo fazer-se acarinhar. Ela vaga pela
sala, retomando várias vezes para enroscar-se em meu colo, mas fica em pé,
livre para partir de novo.
160 Nadia ou o Espelho

Reconduzo-a em ótima fonna. Ela agarra-se a minha bata, não querendo


me deixar sair. Ela não está angustiada, mas ela queria que eu a levasse de vol-
ta lá para cima.
A 19 de maio, enquanto procura os sapatos de Nadia, a enfermeira faz
absoluta questão de trocar sua fralda, porque ela está molhada. Nadia tolera
muito mal que não seja eu que a troque visto que estou lá, e chora. Assim que
temina, ela se joga em meus braços e eu a visto. Não somente ela ajuda, como
chega ao ponto de estender-me um pé do sapato ao mesmo tempo que me es-
tendia o seu pé.
1
Entretanto a sessão vai ressentir-se do fato de que ela foi trocada diante
de mim e não por mim. Não há vestígio de angústia. Ela come tudo como de
costume, mas interessa-se quase que exclusivamente pelas contas que ela espa-
lha com raiva. Ela se faz acarinhar mais do que de costume, mas sobretudo,
deita-se no chão para que eu a levante; então, ela ri ternamente.
Reconduzo-a no início do jantar, seu rosto se contrai, mas ela não chora.
A 3 de maio, Nadia está de pé; coloquei-lhe seu casaco e vejo em seu
prontuário que ela finalmente atingiu o peso de 1O quilos para uma altura de
80cm.
Na sessão, ela come de início algumas colheradas de mingau, deitada em
meus braços. Ele desce para pegar um doce e quer ter as fraldas trocadas; ela
tinha feito cocô.
A tonalidade emocional da sessão muda então e eu tenho a impressão
que esta mudança é provocada pela correspondência de cor entre o cocô na
fralda, que eu acabo de lhe retirar, e a cor do mingau -- feito de biscoitos
esmigalhados e de leite concentrado - que além do mais tem uma consistên-
cia parecida. Tudo o que se segue me dá a impressã"o de que ela acredita que
cu lhe fiz ré-ingurgitar seu cocô porque ela mesmo já o fez em um momento
<lo tratamento. Por isso ela quer apenas mais uma colher de mingau, unica-
mente para cuspí-la e depois mergulhar seu <ledo no que ela acaba de cuspir;
mas ela não o suga.
Então, ela vai brincar com o penico; ela termina botando o bombom
dentro dele, bombom que ela pega de volta para sugá-lo, jogando violenta-
mente o penico para longe dela.
Reconduzo-a dcscontra ída, mas foi preciso que a sessã"o fosse curta.
Ao longo desta sessão, ela fez, por duas vezes, uma torre com três cubos.
Até aqui ela jogava os cubos ou não interessava-se por eles.
A 6 de maio, chego durante o jantar, que Nadia termina sem problemas,
enquanto eu preparo suas coisas. Não lhe coloco seus sapatos porque a enfer-
meira me diz que ela tem uma bolha no pé. O fato de que ela está só com as
meias eucurtará a sessão; andar sem sapatos sobre as contas espalhadas vai ma-
chucá-la.
Na sessão, ela quer comer compota, nã'o de colher, mas com seus pró-
prios dedos que ela enfia profundamente em sua boca para sugá-los, mesmo
depois de absorver a compota. Ela cria assim a ilusão ele me absorver, do que
A Troca 161

ela tem necessidade para em seguida poder dar. Falo-lhe de tudo isto enquan-
to eu a alimento.
Ela vai espalhar as contas e volta para que suas fraldas sejam trocadas
mas ela fará pipi ainda duas vezes em suas fraldas limpas. Esta agressividade
provém, eu penso, do fato de que ela não queria que eu lhe colocasse uma
fralda limpa. Para ela, isto significaria sem dúvida uma recusa minha de que
ela me dê seu cocô e ela fica .. gressiva. Eu penso isso porque ela está agitada
quando eu coloco a fralda limpa, fazendo tudo que ela pode para me dificul-
tar a tarefa; e também porque entre estas trocas de fraldas ela obstina-se em
atirar para longe as contas. Depois ela acha doloroso andar sobre as con-
ta. Eu verei amanhã.
Reconduzo-a.
A 7 de maio, eu venho vê-la pela manhã, pela primeira vez desde há
muito tempo. Encontro-a sentada no penico, assim como quatro outras
crianças. Todos chora, salvo Nadia que olha para os outros, muito interessada,
na espreita também do que ela poderia agarrar como brinquedo.
Como ela está de costas para a porta, ela não me vê e eu peço a enfer-
meira para vesti-la: não está em cogitação que seja eu a tirá-la do penico na
fase atual.
Quando volto, ela está pronta. A enfermeira me diz que ela está muito
desembaraçada e cheia de vida. Sente-se aliás em todo seu comportamento
uma adaptação o menos mutilante possível à vida cotidiana da instituição.
Na sessão, depois de ter comido algumas colheradas, ela quer que eu lhe
tire sua fralda. Mas hoje, ela me mostra muito claramente que não quer que eu
lhe recoloque uma fralda limpa, porque então seria recusar seu dom. Sem
fraldas, seu cocó tomará todo o valor do dom de um ser distinto e livre de dar
ou de recu!V.lr, visto que ela nã'o terá que me pedir para retirar sua fralda.
Como eu coloco-lhe uma, ela faz pipi duas vezes por ressentimento e indica
este sentido espalhando as contas e pisando em cima.
Toda a sessão é apenas isso. Mas Nadia faz alguma coisa de novo: num
momento, ela bate na mesa, e um coelho cai deitado sobre a mesa;com muita
precisão em seus gestos, Nadia recoloca-o de pé segurando-o por uma orelha
como ela me viu fazer várias vezes. Ela está consciente disso, porque ela vúa-se
para mim radiante e vem enroscar-se ternamente em meu colo.
A 8 de maio, eu chego no momento do jantar. Sento-me para esperar
que Nadia acabe de comer, o que nã'o lhe traz nenhum problema. Conduzo-a
em ótima forma.
Primeiro, ela começa a sessã'o fazendo-se alimentar em meus braços para
em seguida, depois de ter derrubado as contas, me fazer retirar sua fralda. Nã'o
coloco-lhe nada, mostrando ao mesmo tempo que uma fralda limpa está sobre
meu colo: à sua disposição, segundo seu desejo, e nã'o para obedecer às regras
da vida cotidiana que eu representaria se eu lhe colocasse por dever de ofício,
uma fralda limpa; o que ela interpretaria segundo o sentido já colocado na
sessão precedente. Ela borboleteia um pouco pela sala, encantada por ter
o traseiro nú diante de mim.
162 Nadia ou o Espelho

Então ela pede que eu lhe faça comer a metade do mingau. Ela volta
para perto de mim e olha a fralda sobre meu colo e, não contente, vai espalhar
as contas e fazer pipi no chão, o que ela me mostra com satisfação. Eu inter-
preto.
Ela vai brincar com as contas, dizendo "cocô,cocô" depois "pi-cocô".
Repito o que ela diz. Ela vem colocar-se frente a mim, olha para o penico,
depois para mim, e espera repetindo "cocô-cocô, pi-cocô". Ela quer que eu a
sente no penico e assim que está instalada, ela me dirige um sorriso radiante e
terno. Ela se desloca sentada no penico, para ir brincar com as contas. Ela
apanha uma e me dá justamente no momento em que ela faz cocó. Ela vem
para que eu a levante do penico, radiante.
Então, sentada aos meus pés, ela recomeça rindo o jogo com a locomo-
tiva, interrompendo-se para fazer mímicas variadas de ternura ou para que eu
lhe dê algumas colheradas.
Quando ela se levanta para me trazer o livro, eu coloco-lhe uma fralda
para que ela sinta bem que eu compreendi que ela me deu um presente e que
portanto, a fralda não é mais sinal de uma recusa de minha parte.
Ela está além disso muito alegre e eu a reconduzo.
D

Após o período precedente, onde ela estruturou seu corpo e os orifícios


deste corpo, de 25 de abril a 8 de maio, o problema do objeto enquanto valor
de troca entre ela e eu, volta a se colocar para Nadia. Trata-se agora do estatu-
to do objeto anal.
O cstabelecimeno de um tal estatuto passa primeiramente por uma tro-
ca oral. Como vimos, trata-se dos bombons que ela suga após me fazer sugá-los,
e que participam da troca pelo desembrulhar do papel que os envolve. Então,
ela pode passar ao objeto anal que ela vai, alternadamente, representar pelas
contas e por uma locomotívazinha que ela coloca dentro do penico. Quanto às
contas, ela pode, a 25 de abril, me dar uma balbuciando "cocô..:o_cô" com um ar
excitado; mas se ela derruba estas contas, ela as recolhe e recoloca-as na cane-
ca, isto é, não no penico, mas num recipiente oral. A locomotivazinha, se ela
a coloca dentro do penico, é unicamente para fazê-la cair várias vezes seguidas
entornando o penico.
Todo este jogo, por mais simbólico que seja, não está menos entrocado
demais a seu corpo neste momento, visto que ela faz cocô em sua fralda ao
mesmo tempo em que ela se torna violenta e espalha as contas virando-me as
costas, só me pedindo para trocá-la no fim da sessão. Acontece aí um fracasso
momentâneo da troca, que ela confirma indo colocar a locomotiva dentro do
berço de onde ela tira o bebê segurando-o pela fralda; mas com medo. No lu-
gar de uma troca comigo através de um objeto destacado da dimensão de ob-
jeto de corpo como as contas, ela se entroncou numa sucessão de equivalentes
metafóricos: cocô, locomotiva, bebê. O que lhe faz sinal, o que lhe mete me-
do então, é provavelmente o retorno do recalcado, o Unheimlich: a~ contas fa.
A Troca 163

ziam do cocô um objeto metonímico, o cocô na fralda remetia à sua dimen-


são de lambuzamento do corpo, como antes do espelho, no momento onde o
corpo era apenas uma superfície.
Não podemos deixar de evocar aqui o lugar da criança anal na estrutura:
um espalhamento sobre a pele; e mesmo evocar o lugar da criança autista para
sua mãe: sobre a pele desta última, enquanto superfície não furada.
Ao longo das sessões seguintes, Nadia encontra a via da troca comigo,
primeiramente através dos bombons ou da comida, que induz em seguida a via
da troca através da locomotiva: Nadia faz com que ela role até mim e ri às
gargalhadas quando eu a devolvo.
Quanto às contas, até a conclusão da troca anal, a 8 de maio, se Nadia
brinca muito com elas, espalhando-as, transvazando-as, balbuciando "cocô-cu,
cocô-cu", ela recusa dar-me as contas, fazer delas um objeto de troca. Seu jogo
com els se ele é sempre variado e constantemente acompanhado de balbucias,
dá também lugar a movimentos de cólera onde ela as espalha e faz, de pé, pipi
nas fraldas. Se ela aceita que eu lhe tire a fralda, ela não se presta, mas muito
pelo contrário, a que eu lhe coloque uma limpa; escrevi que ela parecia tomar
a fralda limpa que eu colocava nela como uma recusa de minha parte a que
ela me desse seu cocô, o que a tomava agressiva. Terminei por compreender; a
7 de maio, eu retiro sua fralda e não lhe coloco outra; a 8 de maio, com o
traseiro nú, ela faz para começar pipi no chão com satisfação de espalhar as
contas dizendo "cocô" e "cu-cocô". É então que ela conclui com uma síntese
surpreendente: ela me dá uma conta no momento em que faz cocô no penico,
com um ar radiante. Ela me deu o objeto metonímico do objeto real do corpo.
Qual o sentido deste pipi na sessão - que aliás não se repetirá nunca
mais -- senão aquele de um protesto fálico imaginário diante do que ela consi-
derava como minha recusa de lhe pedir o seu cocô quando eu recolocava a
fralda? Talvez eu tenha demorado um pouco em compreender o que ela ter-
minou por me fazer compreender. Mas não seria melhor, no fim das contas,
que minha demanda fosse nessas condições, a mínima, a fim de separá-la de
todo compromisso com este Real sem Outro que Nadia sempre conheceu?
O longo trabalho de renúncia ao objeto do corpo, do ponto de vista oral, me
tomou prudente. É graças a este trabalho bem sucedido do ponto de vista oral
que Nadia pôde, de chofre, ter sucesso na consumação metonímica do dom
anal, casando o Real e o significante.
CAPITULO XIII
AVIDA

Maio - setembro

DD A 14 de maio, o jantar ainda não terminou quando eu chego e Robert,


"o menino do lobo", segurando-me pela mão, entra comigo no quarto de Na-
di - ela tinha me encontrado no corredor. Ele diz "bom-dia" à Nadia sacudin-
do-lhe a mão com bastante força: ela olha para ele com interesse e lhe sorri
apesar deste gesto um pouco brutal. A enfermeira chega com o prato de Na-
dia e expulsa Robert. O ambiente está bastante tenso. Devo pois, deixar o
quarto para levar Robert, mas Nadia não fica inquieta por isso! Ela está co-
mendo e ainda por cima eu coloquei em seu leito o casaquinho branco. Ela
sabe pois que eu vou voltar. Conduzo-a um pouco mais tarde, radiante.
Na sessão, ela fica um momento deitada em meus braços, me pede uma
colherada de compota, depois me pede uma segunda colherada para poder
desviar a cabeça. É divertido poder constatar o comportamento de Nadia,
que arranja um jeito de me colocar na situação de uma mãe a quem se pede
para poder recusar, quer seja o alimento ou o penico.
Quanto ao penico, na primeira vez que ela sentou nele, ela tinha me pe-
dido ajuda e tinha feito cocô. Nesta sessão, ela senta-se sozinha, fica aí todo o
tempo da sessão, e vaga pela sala propulsando-se sobre o penico; mas ela não
faz nada. Não somente ela não faz nada, como também não quer mais que eu
troque sua fralda.
A 16 de maio, encontro Nadia no jardim, do lado de fora pela primeira
vez em sua vida, e ela parecia muito contente.
Na sessão, ela nota um brinquedo novo: o pato. Ela toma-o e encontra-se
com seu "quém-quém" quando ela aperta-o. Sentada no chão, ela se diverte
em massacrá-lo em todos os sentidos para ouvir este "quém-quém".
Em seguida, ela me pede que eu lhe dê de comer quase o prato todo de
compota. Depois, sacudindo a caneca de contas, ela as espalha no <;hão; Na-
dia senta-se para apanhá-las e recolocá-las na caneca. Ela retorna para junto da
mesa para que eu llie dê a outra caneca, a de leite, para beber. Eu deixo a ca-
neca vazia mas Nadia parece esperar: em duas vezes, eu esvazio o leite da ma-
madeira na caneca e ela bebe. Em seguida ela apanha com a caneca o que res-
ta da compota e devo fazê-la beber isso também.
Reconduzo-a ao jardim, muito bem.
A 17 de maio, levando Maryse para o jardim depois de sua sessão, só
percebo a presença de Nadia ao cabo de cinco minutos. Ela veio para bem per-
A Troca 165

to de mim. Embora a sala de sessões não esteja preparada para ela, eu a con-
duzo visto que ela andou até mim.
Ela vem comigo pegar seus apetrechos e depois instalá-los na sala de ses-
sões. Deixo-a por um breve instante, por que eu esqueci qualquer coisa, e na
volta encontro-a comendo mingau em pé diante da mesa. Ela senta-se em meu
colo e me pede algumas colheradas, depois vai brincar com as contas, sacu-
dindo a caneca até que elas estejam todas espalhadas. Ela diverte-se em apa-
nhá-las para recolocá-las na caneca, mas também no caminha-o.
De pé diante da mesa, ela come algumas colheres, depois, sentando-se
cm meu colo, me dá a colher para que eu lhe dê de comer, mas, rapidamente,
ela desce e, de pé junto a mim, come e me faz comer alternadamente, com
uma carinha adorável. Quando o prato está vazio, ela estende-me os braços.
Como está na hora do jantar, eu a levo ao refeitório e sua alegria é grande em
jantar pela primeira vez com os maiores.
A 18 de maio, pela janela, eu vejo Nadia no jardim brincando com sua
sombra e batendo palma de alegria para as mudanças de forma que ela impri-
me à sua sombra mudando de posição.
Eu constato por outro lado seu espírito de iniciativa, sua curiosidade,
sua faculdade de interesse, seu dinamismo. Nem o menor vestígio de angústia
ou de medo: ela gosta de descobrir. Ela chega a entrar e sair do cercado de
areia sem ajuda. Sentada na areia, ela se diverte em pegar punhados de areia
que ela deixa em seguida, escorrer lentamente entre os dedos.
Ela parece verdadeiramente feliz no jardim, com os maiores dos quais
ela procura a companhia, abandonando os menores ou seus companheiros de
quarto.
Na noite de 20 de maio, venho buscá-la para a sessão no fim do jantar,
no refeitório. Ela está rodeada de uma quinzena de crianças menores; uma
dorme na mesa, três outras choram, mas ela, sorridente, come uma maçã'.
A sessão é c_urta e se passa quase unicamente em meus braços. Neles,
ela se faz beijar e rindo, abandona-se a exercícios motores. No chã'o, ela se di-
verte engatinhando ou ficando de joelhos, sempre i;ifldo.
Nos dias 25 e 26 de maio, as crianças de seu quarto não descem para o
jardim e Nadia que gosta muito de ir para já me responsabiliza por isso na
sessão. Ela bate no livro, depois bate o livro em meu colo com bastante força;
rindo entretanto quando eu interpreto o que ela faz.
A 27 de maio, encontro Nadia no jardim porque eu pedi para que ale-
vassem aí. Ela está no meio da escada da escorregadeira; eu a conduzo, mas
11a sessão ela exprime sua raiva por eu tê-la privado de suas atividades de ex-
ploração.
Eu não escrevi um certo número de sessões que foram caracterizadas pe-
lll vazio, pois elas eram a reação de Nadia ao esforço inevitável exigido dela
para sua inserção na vida do jardim de infância. Ela vive aí no mesmo ritmo
que os outros, tem sua refeições no refeitório e só retorna a seu quarto para a
o;cxta e à noite. Ela é a única de seu quarto a levar esta vida.
166 Nadia ou o Espelho

Ela teve pois que se adaptar a:


- um ritmo de vida diferente, comportando númerosas mudanças de
sala e de adultos num mesmo dia;
- crianças em sua grande maioria com mais idade que ela, de comporta-
mento várias vezes agressivo e violento. Atraída por elas, como ela sempre foi
pelas outras crianças, inteligente e querendo fazer as mesmas coisas que elas,
ela encontrou-se em inferioridade diante de seu andar ainda instável.
Ela investia muita energia e vitalidade neste trabalho de adaptação e,
durante uns quinze dias, as sessões foram vazias. Em primeiro lugar, porque
cu a levava para a sessão por último. muito tarde, e que ela estava morta de
fadiga, com uma ansiedade subjacente; cm seguida porque ela interpretava o
esforço que lhe era demandado com uma rejeição de minha parte, tanto mais
que era a primeira vez que ela me via levar e trazer outras crianças para a ses-
são. De onde sua recusa de expressão e sua incapacidade de me demandar uma
compensação no alimento. Somente quando ela pôde fazer isso, ela saiu deste
vazio e deu um grande salto adiante.
Com efeito, a 20 de junho, Nadia reencontra sua alegria. Como antes
deste período tão difícil, ela balbucia cm meus braços e sacode suas pernas
alcgremen te.
Na sala de sessões. assim que ela está no chão, vai pegar os bombons e
me traz para que cu os desembrulhe, com um riso feliz, e coloca sua cabeça
cm meu colo. Em seguida ela 111011 ta neles para sugar os bom bons e para que
cu lhe dê o mingau todo.
Ela vai buscar o livro, deixa-o em cima úo meu colo com o único obje-·
tivo dt• me pedir para virar as páginas recusando entretanto olhar para as ima-
gens, com uma agressividade alegre.
Retorna a meu colo e nota uma casinha de boneca que se encontra ago-
ra na sala. Ela vai acocorar-se diante da casinha e termina, mexendo um pouco
cm tudo, encontrando a porta que se abre. Ela tira os leitos da casinha, mani-
pula-os um pouco, recoloca-os no interior e fecha a porta para interessar-se
pela areia.
Ela coloca uma caneca perto da caixa de areia e coloca dentro dela uma
dezena de pedrinhas que ela selecionou da areia. Ela vem me dar esta caneca
e, assim que eu a tenho em m:ros, ela o entorna com uma grande gargalhada
Depois ela volta ao prato, e termina de comer sozinha o pouco que resta.
Quando o prato fica vazio, ela me diz "mais" e espera. Eu vou buscar um pou-
co de mingau que ela vem comer instalada cm meu colo; primeiro ela come
sozinha, depois ela me pede para lhe dar o resto.
Reconduzo-a em ótima forma.
A 21 de junho, grande demonstração e" alegria quando coloco Nadia na
sala de sessões. Ela me faz desembrulhar os bombons, suga-os sentada em meu
colo e pede para que eu lhe dê um pouco de mingau. Ela pega e sacode a caixa
de contas até que todas elas caiam. Mas isto não é suficiente. Ela se senta no
chão para espalhá-las com a m[o pelos quatro cantos da sala, olhando para
mim e rindo, o que parece me dizer: "Você me deu um alimento que me deu
A Vida 167

prazer e que me faz viver, mas eu não quero dar; é você que tem que dar sem-
pre!".
Ela vai se acocorar diante da casinha para divertir-se abrindo-a e fechan-
do-a um certo número de vezes; em seguida ela brinca encaixando e desencai-
xado as caixas de armar.
Depois ela passa do meu colo para o leito e quer que eu abra a janela.
Até o fim da sessão, ela vai encantar-se com o espetáculo da rna. O que mais
retém sua atenção a faz voltar-se para mim e dizer: "Olhe!·: São as árvores,
um avião que passa no céu, pedestres na rua, e acima de tudo o canário da vi-
zinha cuja gaiola está pendurada na aba do telhado apenas a dois metros de
nós. O canto deste pássaro enche-a de felicidade e, de tempos em tempos, ela
vem esconder por um segundo sua cabeça em meu pescoço, como se ela esti-
vesse muito feliz.
Reconduzo-a radiante, mas seu rosto se contrai quando ela vê que eu a
deixo.
A 25 de junho, o que acontece primeiro é a cena habitual com os bom-
bons, depois Nadia sobe no leito para olhar a rua. O pássaro está lá em sua
gaiola. Ela interessa-se pelos carros, pelos pedestres, pelas árvores e pelo passá-
ro, com a mesma alegria da sessão precedente, mas isto dura apenas cinco mi-
nutos e ela passa para outra coisa.
Ela volta a sentar-se no leito, deita-se para que eu he acarinhe um pou-
co; depois quer que eu a levante e a tire do leito. Sentada em meu colo, ela
me faz lhe dar duas colheradas de seu mingau, depois ela come sozinha uma
boa metade, bebendo ao mesmo tempo leite da caneca. Ela fica encantada em
espalhar urna quantidade de mingau em seu avental.
Ela traz para meu colo uma marmitinha. Levantando a tampa, ela en-
contra um bombom que ela me faz desembrulhar antes de colocá-lo, encanta-
da, em sua boca. Depois ela institui um jogo com a tampa, jogo do qual eu de-
vo participar: eu boto a tampa e ela retira; eu tomo a botar, ela coloca-a ao
contrário, para no fim me mostrar que ela sabe muito bem colocá-la direito,
após tê-la retirado ainda uma vez.
Em seguida ela me faz participar do mesmo jogo com a casinha:eu abro
a porta e ela fecha.
Ela traz para meu colo as caixas encastradas dentro da outra e diverte-se
separando-as e tomando colocá-las urna vez; depois ela separa-as definitiva-
mente e faz com que elas rolem no chão, rindo.
Ela retorna ao meu colo para acabar de tomar o mingau e o leite, mas
derruba involuntariamente a caneca. Ela fica desolada e olha com desejo para
a outra caneca de leite, que está em cima da bancada: coloco pois este sobre a
mesa;Nadia pega-a com as duas mãos e bebe tudo.
Conduzo Nadia para o jantar, em ótima forma.
A 27 de junho, levo-a para a sessão antes do lanche. Ela está silenciosa e
eu não escuto nem mesmo o som de sua voz. Embora ela coma todo o mingau
sozinha, ela me exprime através de seu silêncio, sua interpretação dos fatos:
levando-a para a sessão exatamente antes do lanche, eu a privo de alimento,
168 _Nadia ou o Espelho

tiro-lhe o pão da boca, como ela fez tantas vezes comigo na sessão há mais ou
menos três meses.
Só volto a "encontrá-la" no seu comportamento com os bombons,
bombons que ela me traz para desembrulhar sempre com a mesma alegria.
Em seguida, ela joga violentamente no chão tudo que rodeia o prato e a
caneca na mesa: caixas de encaixar, coelho e colher. Ela vai apanhar esta últi-
ma para terminar de comer o mingau.
A partir daqui eu só relatarei as sessões importantes. Não aviso a Nadia,
a 3 de julho, sobre minhas férias, como eu fiz para as férias maiores. Avisá-la
uma semana antes será suficiente e até lá será mantido o seu ritmo de sessões,
o que não será feito com os outros.
Ela vem para a sessão vestida somente com um pequeno calção e parece
radiante. Durante o trajeto, ela está risonha, sapateia de alegria, mas aparece
notar qualquer coisa de anormal em meu rosto: penso então que uso óculos
escuros e vou mudá-los com ela.
Ela começa a sessão com os bombons e come a compota quer seja com
a colher, quer seja com os bombons que ela aí mergulha e lambe.
Ela desce de meu colo, vai olhar o bebê no berço e, olhando bem para
meu rosto, der,uba o bebê.
Mais calma, retorna a meu colo para comer a compota, mas ainda não é
o que ela quer. Ela olha demoradamente para a mamadeira e mostra-se impe-
rativamente olhando para mim. Coloco a mamadeira em cima da mesinha e
espero, falando com ela. Ela vem para meus braços, deita-se e abre a boca:
dou-lhe a mamadeira. No início, seu rosto está feliz, depois vejo que ele se
contrai e ela repele a mamadeira. Constato então que trata-se de um bico novo
qu esqueceram de furar: eu faço isso, mas quando volto a dar a mamadeira a
Nadia, ela a joga no chão furiosa. Eu interpreto. Então ela vai apanhar a ma-
madeira, toma dois goles, mas se ela quer o leite ela não quer mais a mama-
deira. Então ela bebe o leite da caneca, dentro da qual ela me faz verter o
leite da mamadeira; agora ela bebe com prazer. Interpreto seu rancor com a
mamadeira: ela pensa que eu queria privá-la.
Ela vai abir a caxinha de boneca, tira os leitos de dentro dela, joga-os
num canto, depois abre e fecha várias vezes a portinha da casa. Em seguida,
ela brinca de encaixar e reencaixar as caixas de encastrar. Na primeira vez ela
se engana com o tamanho da caixa e o encaixe torna-se impossível; furiosa,
ela sacode tudo com irritação, depois ensaia de novo. Nas tentativas seguintes,
ela parece ter compreendido: ela não fica com raiva e procura a caixa que
.convém.
Notando neste momento o bebê no chão, ela vai apanhá-lo, olha para
ele com um olhar dubitativo depois, segurando-o pela fralda, manda-o longe,
e, rindo à$ gargalhadas, quer subir no leito; ela deita-se para que eu a levante.
Em seguida ela quer olhar a janela, sentada em meus braços.
Reconduzo-a muito alegre, sobretudo depois desta cena final pela qual
ela me exprimiu que ela não queria que eu me ocupasse de outras crianças
A Vida 169

além dela. Passando pelo jardim, ela percebe um gato e quer correr atrás dele;
assim que ela tenta acariciá.J.o, ele parte, mas ela não desiste.
A 8 de julho, a sessão é mais ou menos :parecida. com a precedente. Mas,
depois de ter comido um pouco de mingau com um biscoito, Nadia pega de
sua boca a mistura de biscoito e mingau e coloca na minha, muito feliz.
Ela derruba no chão as contas e vem me dar uma. Depois ela senta-se no
chão, apanha e coloca de novo as contas na caixa. Quando elas estão todas aí,
ela agita a caixa e manda-a longe. Ela olha para mim, e começa a reunir as con-
tas espalhadas ao redor dela, pedindo minha ajuda; somente algumas contas
são recolocadas dentro da caixa. Ela vem então para meu colo farer ginásti-
ca; ela está perturbada.
Falo-lhe do alimento que ela me deu e da cena das contas, e recondu-
zo-a, em ótima forma.
A 9 de julho a sessão começa como as precedentes: com bombons e
mingau.
Depois Nadia coloca as contas no penico e joga fora a caixa vazia. Ela
apanha uma outra caixa onde ela derrama as contas. Ela vai para o leito, olha
para fora e volta para meu colo para beber o leite da caneca segurando-a com
as duas mãos. Depois ela me diz "cocô" e vai buscar o penico. Ela me faz reti-
rar sua calça - há uma semana que ela não usa mais fraldas mas sim calcão -
e senta-se no penico, com as costas apoiadas em minhas pernas. Ela me faz
brincar com seus pés estendendo-os um após o outro, rindo, depois ela sele-
vanta. Ela não fez nada e torna a sentar para fazer pipi.
Então ela trepa em meu colo onde ela se abandona à alegria dos peque-
nos jogos ternos comigo, passando sua mão em meu rosto, inclinando sua ca-
beça para me ver em todas as direções, escondendo sua cabeça em meu pesco-
ço rindo ternamente.
A 11 de julho, duas cenas ocupam toda a sessão. Permanecendo sentada
no penico, Nadia olha o interior da casinha, brincando de abrir e fechar a por-
ta. Se_gunda cena: em meus braços, ela olha demoradamente o passarinho da vi-
zinha, encantando-se com seu canto.
A 15 de julho, a enfermeira está trocando a fralda de Nadia - porque?
Fico ao seu lado e tudo vai muito bem até que Robert aproxima-se de mim e
eu lhe respondo. Então Nadia começa a soluçar. Ela só se consola em rrreus
braços e depois de termos ultrapassado a porta do jardim de infância.
Também, na sessão, depois de desembrulhar os bombons, ela fica muito
tempo em meu colo, comendo ou abandonada em meus braços. Quando ela
está bem segura de que estou lá à sua disposição e que eu não vou abando-
ná-la, ela desce de meu colo para ah-reagir, sem angústia mas com raiva, aqui-
lo que ela acreditou ser meu abandono. Ela joga no chão tudo que está sobre
a mesa, salvo a caneca de leite que ela bebe. Ela faz com que eu retire sua fral-
da, pega o penico e mostra-me bem que ela recusa-se a sentar aí em represá-
lia. Em seguida, após um jogo breve e violento com a porta da caxinha, ela
pega o bebê e tenta durante dez minutos desarticulá-lo.
170 Nadia ou o Espelho

Reconduzo-a mais calma e sorridente.


Na última semana as sessões são bastante parecidas, embora o aviso de
meu próximo afastamento a faça procurar bem mais meu colo e meus braços.
Constata-se em sua vida em coletividade que ela deu um grande salto
adiante.
Durante o més de agosto, me disseram que no jardim de infância ela é
dócil e afetuosa. Ela tem uma atividade magnífica, corre, cabriola, trepa nas
cadeiras, faz farsas com os outros, das quais ela ri às gargalhadas. Ela fala cada
vez mais e procura repetir palavras novas. Não fica jamais com raiva.
Para com as crianças menorzinhas ela toma iniciativas: toma-as pela
mão, ajuda-as a andar e faz esforços desesperados para levantá-las se elas caem.
Ela tem de si uma ótima opinião em relação a um meninozinho, com o qual
ela sempre se diverte colocando-lhe um laço de fita no cabelo. Ela sabe dizer
"bom-dia, até logo, saiu" e nomear as pessoas que se ocupam dela.
Nem diarréia, nem otite. Ela come bem, sem bulimia.
Ao voltar das férias, vejo-a em sessão algumas vezes. Ela cresceu muito e
acho-a muito mudada na medida em que sua estatura, sua marcha estável,
seus gestos finos e precisos, sua carne refletem o que ela se tornou: uma moci-
nha de dois anos ( ela os completou no mês de agosto).
A 5 de setembro, embora todo mundo me tenha assinalado a transfor-
mação de Nadia, me será difícil julgá-la, pois não vou ouvir um som e não ve-
rei nenhum movimento, além daquele de sugar os bombons que ela segurava
ao sair do jardim de infância.
Fico com ela dez minutos, durante os quais, ela fica em meus braços,
sugando seus bombons, sem, no início, me olhar. Falo com ela devagarinho;
enão seu olhar não deixa meu rosto, olhar profundo mas no qual não há vo-
luntariamente nenhum brilho, como se ela não me reconhecesse. Ela está
descontraída e sem ansiedade.
Reconduzo-a ao jardim de infância. Ela não mostrou nenhum interesse
pelos objetos da sala de sessões; mas pelo seu abandono em meus braços, eu
sei que ela me exprimiu não sua recusa, mas sua confiança. Em contrapartida,
pelo seu olhar, ela exprimia mais ou menos isto: "Você me abandonou, pois
bem, eu não lhe manifestarei nenhuma alegria. Você agiu como se eu não exis-
tisse; agora eu lhe recuso meus progressos, eu sou passiva!"
A 6 de setembro, Nadia estende-me os braços para que eu a leve para a
sessão, mas ela toma a mesma atitude da véspera. Os bombons que ela suga,
deitada em meus braços durante dez minutos, são entretanto os da sala de ses-
sões e não os do jardim de infância, como na véspera. Como eu interpreto
seu comportamento, ela desvia a cabeça um segundo para sorrir, em seguida,
após ter me lançado um olhar de través, esmaga o pato com a mao olhando
para mim, encantada com o barulho; então ela pega o coelho dizendo: "Ro-
bert", e começa a sugar energicamente as duas orelhas do coelho. Ela olha pa-
ra a porta e eu a reconduzo. Eu não ouvi nem um som de sua parte, salvo esta
única palavra: "Robert".
A Vida 171

A 8 de setembro, Nadia sorri e sapateia de alegria quando venho buscá-la.


Deitada em meus braços ela me diz: "bombons", e suga-os com um ros-
to sério. Ao cabo de um instante, ela dá ponta-pés no vazio. Evidentemente,
eles me são destinados e falo demoradamente com ela de seu ressentimento
devido à minha ausência. Minha explicação é escandida com pontapés ainda
mais violentos quando eu lhe digo que ela acreditou que eu a havia abandona-
do porque no passado ...
Pela primeira vez desde o meu retorno, reconduzo-a descontraída.
A 10 de setembro, Nadia ri, em meus braços, enquanto subimos as esca-
das. A sessão de hoje, niro é em nada comparável com as três precedentes;
Nadia vai mostrar-se muito ativa, balbuciante, descontraída e, no final, vai
abrir caminho para a expressão direta de sua agressividade. Esta grande mu-
dança foi de fato provocada por uma diarréia terrível desde esta manhã, que
é a porta da saída da angústia desencadeada pelo meu retorno, isto é, por sen-
timentos violentos para comigo, sentimentos que ela não pode exprimir. Ora
ela não teve diarréia nenhuma vez durante minha ausência. É paradoxal, pois
esta diarréia não a impede de engordar desde o meu retomo, enquanto que
sem diarréia, ela não tinha engordado durante minha ausência;mas ela cresceu.
Como antes das férias, a sessão começa pelo desembrulhar dos bombons,
durante o qual ela se suspende entre meus joelhos. Depois ela vem sugar os
bombons, deitada em meus braços.
Em seguida ela vai olhar dentro de cada caixa de encaixar até encontrar
a que contém as contas. Ela encontra a caixa como de hábito em cima da ban-
cada. Ela pega uma conta e quer comê-la. Ora, alguns minutos antes da sessão,
no jardim de infância, ela viu Maryse retomar da sessão com uma caixa con-
tendo contas que Roberto comeu. Digo-lhe isto e ela recoloca a conta na cai-
xa. Ela se diverte por um longo instante em me dar contas para que eu recolo-
que na caixa. Ela coloca algumas em meu avental com o mesmo objetivo. De-
pois ela coloca as contas no chão e as apanha. No final, olhando bem para
mim, ela espalha as contas por todo lugar e deixa-as.
Ela vai até a bancada, faz pipi nas fraldas e joga os brinquedos, éom ex-
ceção da marmita de leite e da mamadeira. Ela volta para junto de mim para
dizer: "beber" e eu lhe estendo a caneca cujo leite ela bebe.
Ela quer então ir para o leito para olhar lá para fora. Ela me mostra o
pilar sobre o qual ela via os gatos antes das férias, e ela me diz "olhe" porque
eles não estão aí. Ela deita-se, estende-me os braços e eu a reconduzo descon-
traída e balbuciando muito.
Na sua maneira de beber o leite e de pedir mais, existia uma nota de bu-
lirnia que eu interpretei no sentido de uma tentativa de preencher o vazio que
a minha ausência lhe deixou.
Seus olhos têm uma grande sutileza de expressão e traduzem uma gran-
de intensidade emocional, quer seja humor ou gravidade! alegria ou recusa.
Numa outra sessão, ela tem diarréia enquanto está comigo, e eu lhe falo
da significação desta diarréia em relação à minha ausência. Esta será a última
vez que ela terá uma diarréia.
172 Nadia ou o Espelho

No dia seguinte, ela me dá uma conta, sem ter diarréia e, depois de ter
ido olhar lá pra fora, me diz: "até logo".
Foi assim que Nadia pôs fim ao tratamento, em acordo comigo, inves-
tindo tudo o que ela fazia em sua vida no jardim de infância, ligando-se espe-
cialmente a uma enfermeira e deixando de ter necessidade de exprimir suas
questões dentro do quadro da transferência.
Posteriormente, ela me encontrará freqüentemente na instituição. Toda
sorridente, ela virá para meus braços se fazer beijar e depois retornará às suas
ocupações.

Após isto que eu chamei de "conclusão" a 8 de maio, para Nadia, quan-


to a seu estatuto de sujeito, o que na transferência era a "atuação do incons-
ciente", não tem mais razão de ser: de resto, o debate da sua perda do "a"
chegou a termo, visto que eu garanto esta perda pela minha própria e que ela
sabe disso.
Ela sabe de minha falta de duas maneiras; pelo significante de sua de-
manda, que retorna de "forma invertida"; e pelo símbolo que ela pode me
<lar, uma conta, como objeto de meu desejo, ou mais verdadeiramente causa
de meu desejo. Com esta conta que ela me dá, ela funda a certeza do desejo
<lo Outro; e isto é provavelmente muito mais essencial que a clássica dimensão
do "presente" destinada a assegurar o amor do Outro, de um Outro que espe-
rava alguma coisa para ser preenchido? Seria preciso interrogar aqui as estru-
turas obsessivas.
Em todo caso, Nadia está tão pouco ligada nesta perspectiva de presen-
te, que ela especula, na sessão de 14 de maio, a demanda e o desejo: se ela de-
manda compota é para logo desviar a cabeça; uma demanda para poder recu-
sar. Em seguida ela representa a mesma coisa com o penico. Desta vez ela vai
para aí sozinha, passeia pela sala sentada no penico, mas não faz nada, um
"nada" do peniquinho de leite, no qual ela fingiu que bebia.
A 20 de maio, ela dá a imagem mais poética de si mesma: pela janela,
vejo-a no jardim, brincando com sua sombra e aplaudindo com alegria as mu-
danças de fora desta sombra. A morte está lá e ela não sabe, é a vida que ela
aplaude.
Em seguida ela desinveste mais ou menos completamente o tratamento
porque ela freqüenta agora o jardim de infância e ela se aplica muito. A 27
de maio, por exemplo, entregue a seu jogo ou entregue à sua alegria na escor-
regadeira do jardim ela fica menos contente em vir para a sessão. Na sessão
aliás, ela manifesta muito mais interesse pelo exterior, e encanta-se com o es-
petáculo da rua. Este interesse pelo exterior é paralelo à descoberta que ela
fez, em sua vida cotidiana, com 20 meses agora, de tudo o que ela não conhe-
cia antes. ,. . . ;
Desde o início de maio, pode-se dizer que ela esta mteuamente d1spon1-
vel para esta nova vida, em meio aos outros, que ela tem no jardim de infân-
A Vida 173

eia, e para sempre descobrir coisas novas. Não são forçosamente aliás, novos
nhjetos, mas bem mais freqüentemente - e isto é mais demonstrativo do tra-
1eto que ela fez - objetos velhos dos quais ela se serve enfim sem inibição.
Assim, se objetos-alimento, foram, no início de junho, um pouco abandona-
dos, por retração da demanda, quando eles retomam para a boca de cena, Na-
.lia reencontra-os com alegria, quer seja os bombons que ela suga ou o mingau
que ela come todo, me dizendo inclusive "mais" e "espere". Quando ela bebe
o leite, agora, é sem mais nenhuma preocupação de derramá-lo em seu aven-
tal. Se ela derruba a caneca é por inadvertência; ela mostra-se desolada e pede
outra. A famosa colher não é mais que um simples utensílio e perdeu todo o
seu antigo valor.
O que é mais surpreendente, é que ela ama rir e que ela não se priva
mais disto. Seu riso é comunicativo, verdadeiro, e eu mesma rio freqüente-
111ente com ela. O tipo de sua gargalhada, é aquele de 20 de junho, quando ela
hota nç_l caneca pedrinhas que ela selecionou da areia, e coloca esta caneca na
minha mão, para logo derrubá-la: só tem aí a forma do que ela havia feito an-
tes no penico, mas agora é para rir, e além disso, é de brincadeira. O incons-
ciente, o pulsional está aí, apenas presente na piscada de olho que ela me dá,
que me faz rir como ela, sem que eu tenha evidentemente necessidade de
acrescentar o que quer que seja em palavras. Nossa cumplicidade no humor,
e mesmo o chiste, é suficiente para nosso júbilo. Trata-se mesmo de um júbi-
lo, que só podia vir a partir do que ela conheceu no espelho, isto é, a partir
da separação e da alienação constitutivas do sujeito do inconsciente: o in-
consciente que só emerge agora em pontos previlegiados na relação ao Outro:
aqueles que são marcados pelo riso.
Mesmo quando, a 3 de julho, ela reencontra o representante do peque-
no outro do início, o bebê no berço, ela pode, olhando bem para mim, sem
hesitar, derrubar o berço por um lado, e depois, recolhendo o bebê e olhan-
do-o com um olhar dubitativo, como para lembrar, segurando-o pela fralda,
mandá-lo longe por outro lado, rindo às gargalhadas, e subir no leito como
que para tomar seu lugar por um instante. Seu riso e seu desembaraço dizem
bastante que ela não está mais tocada pela imagem do pequeno outro que a
fascinava; pois agora, ela tem sua imagem, seu "eu". Esquematicamente, po-
de-se dizer que a libido que prendia-se ao outro antes do espelho e que a de-
sesperava foi drenada para o "eu" depois do espelho; o "eu" que só pode ser
especular e que, como diz Freud, sendo não pulsional, dessexualiza a realida-
de exterior.
Foi aí que Nadia chegou, a este ponto, onde aparece o esgotamento da
transferência. A transferência, para ela, não foi somente a atuação do in-
consciente, foi também o lugar do surgimento deste inconsciente, lugar do
surgimento do sujeito "Nadia" pela minha nomeação, que fundou o recalque
originário.
O que se demonstra aqui, é a necessidade de que exista um inconscien-
te para que o sujeito deixe de ser presa do Real. Todo o trajeto, em seguida,
foi a continuação desta relação ao Outro que eu era, primeiramente maciço
174 Nadia ou o Espelho

demais em sua presença, embora fosse wna garantia necessária para o debate,
Em seguida, eu terminei por ser o lugar da falta, o lugar da castração do qual
o Simbólico libertou Nadia da pura privação. Se a identificação funcionou ao
longo de todo o trajeto de Nadia, ela não culminou em mim, mas na falta com
a qual ela me afetou.
Seu "eu", como construção especular, podia não mais me incluir en•
quanto seu espelho, porque ela encontrou o espelho real. Então ela pôde des•
prender-se de mim, ou melhor me deixar de lado, pode-se dizer, lá onde seu
narcisismo especular não podia me incluir, isto é, no lugar mesmo do objeto
da perda: o "a" não especularizável, o "a" separador. Eu disse na época:
"Não temos mais nada para fazermos juntas".
MARIE-FRANÇOISE OU O AUTISMO
177

.... ·-.J

A história de Marie-Françoise, é a de uma longa sequência de mudanças


desde o dia em que sua_plãe a abandonou à Assistência pública, com a idade
de_2.meses.
Ela _pennaneceu em creches até dez meses, mas sua saúde deve ter dado
muita preocupação, a julgar pelas hospitalizações sucessivas que ela sofreu,
após um curto período de alocação fanúliar para a amamentação entre dez
e doze meses. Cada uma dessas hospitalizações se prolongou, às vezes até três
ou quatro meses. Nós sabemos pouca coisa, a não ser que ela ficou no hospi-
tal Claude-Bernard por causa de escarlatina.
Com dois anos, ela chega ao instituto Parent de Rosan onde estava
Nadia e onde eu a vou tomar em tratamento; a medida de seu quociente
de desenvolvimento dá a cifra muito baixa de 40.
Ela tem 30 meses quando a vejo pela primeira vez, após terem tomado
a decisão de colocá-la em tratamento comigo; decisão esta resultante de uma
discussão que terminou por evocar os diagnósticos de esquizofrenia infantil
ou autismo1.
Ela realiza com efeito, o seguinte quadro:
1 - O que impressiona na presença do adulto, é seu olhar que erra no
vazio, perdido; ele está norto e dá a impressão de um muro.
2 - Ela não tem nenhum contato nem com os adultos, nem com as
crianças ao seu redor. Na sua relação com os objetos, ela tem problemas de
preensão: só pode tocá-los com a ponta do dedo indicador e com o nariz,
servindo-se deste último como de um substituto de sua boca.
3 - Ela não fala coisa alguma.

1 Frances Tustin, em Au•isme et Psychose de l'enfant, editado na Inglaterra em


1972 e na França em 1977 (Ed. du Seuil; traduzido para o francês para Mireillc Davido-
vici), dá no quadro III (p. 140) as características diferenciando o autismo infantil preco-
ce da esquizofrenia infantil. Nós retomamos aqui os traços mais significativos.
No autismo o retraimento remonta à primeira infância. Pode acontecer crises de
gritos e de cólera. A saúde física é boa desde o nascimento. O corpo é rígido, insensível;
ele permanece rígido quando é carregado. Evita toda forma de contato com os outros. O
olhar evita os outros, Mutismo ou ecolalia. Manipulação dos objetos com destreza. Deso-
rientação, desprendimento: os sujeitos parecem se desinteressar por tudo que se passa ao
redor deles; ou, retirados e abstraídos de seu ambiente. Órgãos sensoriais hipersensíveis.
São fascinados por ubjetos mecânicos. Perseveram na •Jtilização dos objetos autisticos.
Na esquizofrenia, os sintomas graves intervêm após um período de normalidade. A
criança pré-esquizofrênica é muito dócil, educa-se depressa, torna-se limpa muito cedo;
em resumo, é um bebê perfeito (Rirnland 1964 ). Sua saúde física é muitas vezes, precá-
ria: problemas respiratórios, metabólicos. Quando é carregada, ela se dobra como uma
"matéria plástica ou como uma pasta", grudando-se. Contato patologicamente invasor.
178 Marie-Françoise ou o Autismo

4 - Do ponto de vista motor, ela não anda sózinha, mas desloca-se


sobre seu traseiro. Sustentada, ela consegue andar; mas na maioria das vezes,
ela recusa.
5 - Ela apresenta um sintoma muito característico: µm balanceia._qyg,
;ifeta todp _o seu corpo,na maioria das vezes, ou mais parcialmente sua cabeça
ou seus braços.
6 - Sobre este fundo de retraimento, ela é capaz de explosões de cólera
violentas, onde ela bate sua cabeça no chão, dando gritos estridentes.
7 - Ela tem também crises noturnas, com ranger de dentes, um rosto
contraído, gritos, um escorrer de saliva, os olhos revirados. Mas o eletro•
encefalograma é normal.
8 - Ela tem bulimia após ter tido anorexia.

Olhar vago. Linguagem mal articulada. Movimentos do corpo incoerentes, mal coordena-
dor. Manipulação dos objetos, desajeitada. A criança esquizofrênica parece desorientada,
confusa e angustiada. Na maioria das vezes mostra-se interessada por seu ambiente
(Rimland 1964). Pode utilizar um objeto transicional e permanecer muito apegada a ele.
Comparando estes dois quadros, o estado de Marie-Françoise parece situar-se intei-
ramente na vertente do autismo, particularmente quanto a suas crises de gritos e cólera,
sua rigidez e a evitação de toda forma de contato com os outros, mesmo pelo olhar.
Nós devemos fazer referência ao hospitalismo dado o abandono de Marie-Françoise
com a idade de dois meses e a longa série de hospitalizações. O hospitalismo no entanto
é apenas um pano de fundo, a julgar pelas diferenças dos quadros clínicos apresentados
por Na dia ou pelo "menino do lobo", que não tiveram, nem um nem outro, a mesma pa-
tologia. O diagnóstico de autismo para Marie-Françoise pode pois, ser colocado como es-
pecificando bem seu estado, além das condições de vida que ela conheceu.
CAPITULO I
A LOUCURA: nem "a", nem "A"
As convulsões diante do alimento

30 de setembro - 4 de outubro

i I IJ A primeira sessão, a 30 de setembro, se passa perto do leito. Depositei


11m material em cima de urna mesinha, contra o leito, com uma cadeirinha.
Em cima da mesa, há dois doces, dois bombons, um cachorro e um bebê dt1 ·
borracha, um prato de mingau com uma colher. Este foi o material que
escolhi para um primeiro contato; mas logo ele será muito mais variado, em
função do conteúdo das sessões.
Marie-Françoise olha para mim, começa a se balançar, balanceio que
pára logo que ela nota a mesa. Ela pega os dois bombons, prova um que
deposita em seguida sobre o colchão, come um pedaço de um biscoito, depois
come os dois biscoitos um atrás do outro. Em seguida come os dois bombons.
Quando ela termina, olha para mim um instante e absorve-se por um
minuto na exploração de um carrinho verde que estava em seu leito; mas eu
sinto que esta ocupação é de espera e de diversão.
Bruscamente, ela atira o carro, levantava-se sem apoiar-se nas bordas\
do leito, tamanha é a agressividade dinâmica que a empurra para mim. Ela '
bate em minha cabeça uma vez rindo, em seguida, erguendo de novo minha
cabeça, me dá uma bofetada magistral, o braço bem tenso, sem o menor traço
inibição. Ela olha para mim com um rosto alegre e radiante que contrasta
com o aspecto momo precedente, embora seu olhar não tenha mudado ..
Tendo constatado meu sorriso de compreensão, ela me dá em seguida cinco /
bofetadas, todas tão magistrais e bem aplicadas quanto a primeira. Ela está/
de pé diante de mim, apoiando-se apenas com uma mão que ela colocou em'
meu ombro. 1

Satisfeita, ela volta a sentar-se e olha o cachorro; mas, notando o min- ·


gau, ela pega a colher do prato para atirá-la sob o leito. Ela olha de novo o
cachorro, começa a se balançar e termina por se imobilizar, a cabeça para
frente, sobre o colchão; ela permanece assim.
No dia seguinte, 1? de outubro, a enfermeira traz Marie-Françoise para
o leito da sala onde eu faço as sessões, antes que o material esteja pronto.
Eu os instalo e sento-me perto do leito.
Ela começa balançando-se, primeiro sem me olhar, depois olhando
para mim.
180 Marie-Françoise ou o Autismo

Ela se levanta, pega um bombom, suga-o uma vez, mostra-o. Ela pega
o outro, suga-o, estende-me, depois deposita-o sobre o colchão e pega a colher
do mingau, que ela joga. Ela vem pegar meus óculos, joga-os e volta para'
junto de mim para me olhar bem de perto.
Ela hesita sem cessar em me pedir para colocá-la no chão, mas não pcide~
decidir-se. Ela nota a caneca levanta-se, inclina-se para conseguir pegá-la,
olha o que tem dentro, depois, enojada e furiosa, joga-a para fora do leito
assim como os doces e os bombons, após ter tomado a sugar um deles,
r Ela parece satisfeita em ter jogado tudo fora, fica de é, sustenta-se sem
apoio, olha para mim, mas se seu rosto se ilumina, seu olhar permanece o
mesmo. Ela vem para perto de mim, puxa meus cabelos, depois pega meus
óculos que ela se apressa em jogar na poça de leite. Várias vezes, ao longo da
sessão, ela se inclinará para admirar esta poça, na qual nadam bombons, bis-
coitos, óculos, olhando-me com bravata, tomando-me como testemunha de
sua exploração. Mas se esta poça é o centro de seu interesse, ela a impede de
absorver-se com qualquer outra coisa. Sinto-a inquieta, tentando encontrar
uma porta de saída para seu caos interior; ela não consegue. Também isto
desencadeia rapidamente um balanceio violento, acompanhado de gritos
guturais, enquanto ela tem as pálpebras fechadas.
Eu não insisto e peço à enfermeira para vir buscá-la., Sessão d~. dez]
minutos. · · ..
A 3 de outubro, na 3~ sessão, quando eu chego, Marie-Françoise olha
para mim rindo. A enfern1eira lhe pede rindo também, a bola que ela tem nas
mãos, mas ela a defende da enfermeira, vira-lhe as costas, joga os brinquedos
a sua volta, e olhando para mim com um ar excitado, lança a bola na sala
vizinha, aquela da sessão.
Em seguida, ela estende-me os braços, depois de ter se aproximado dos
dois degraus, para que cu lhe faça descer, mas somente isto. Ela me lança em
seguida um olhar irritado. Volta a ficar de pé sem ajuda, mas, ao se aproximar
da mesa cai e olha para mim, nada contente. Termina o trajeto arrastando-se
sobre seu traseiro. Então ela quer que eu coloque no chão, perto dela, tudo
o que está em cima da mesinha.
Ela joga violentamente o carro em minha perna, suga os bombons, fica
de pé sem apoio. Ao se levantar, ela baba e vem tocar este suco de bombom
no chão com seu dedo indicador, com um gesto franco, sem estas palmadi-
nhas habituais que ela dá quando toca os objetos.
Lentamente seu interesse volta-se para o prato de arroz-doce, que está
no chão. Ela joga os bombons para olhar sucessivamente para o prato, depois
para minl, mas, novamente, ela se furta de sua emoção-desejo: ela pe_ga _o_
marinheiro, pressiona-o contra seu nariz por alguns segundos, depois joga-o.
Ela fica de pé, e, apoiando-se com as duas mãos na beira da mesinha,
inclina a cabeça entre seus braços afastados, o mais baixo possível na direção
do prato, fazendo barulho com os lábios.
Ela procura ainda um derivativo: percebendo os doces, ela se acocorl1,,
é,ijllillha-0s, vira-me as costas para mordiscar um pedaço, depois joga-os para
A Loucura:nem "a", nem "A" 181

longe dela violentamente. Volta-se então para a mesa, fica de pé, e me faz
1'.ntender que eú devo colocar o prato diante dela sobre a mesa.
Então, começa uma cena extremamente penoso., que depressa se tornará
insustentável. Ela que é .~l!Hmica e que morre de vontade de comer este
arro~-doc~-ºªº-Po.cle.J~~:.l<>, e s.ua angústia aumenta rapidame11te. Ela não
compreende nada desta sua reação tão nova para ela. Ela fica de pé diante do
prato, devora-o com os olhos. ~la chega a aproximar seu rosto bem perto.
Seus olhos estão dilatados pelo desejo, suas mãos contraídas na beira da mesa.
e ela faz barulhos de sucção muito sonoros. De tempos em tempos, ela vira
seu rostq para mim, com um olhar perdido e um grito de socorro, mas volta
em contemplação para frente do prato.
Sua tensão é tamanha que ela começa a tremer violentamente, os bra-
ços contraídos. Ela se afasta, apanha os bombons, ergue-se, e sempre diante
do prato, mas longe da mesa, aperta os bombons, um em cada mão, e seus
hraços têm quase uma crise convulsiva. Esta crise toma seu rosto inteiro,
ro~!<> que ela vira para o teto, as pálpebras fechadas, a boca aberta num grito
11ue não sai.
~u faço ouvir o som de minha voz para romper esta tensão insuportável.
Ela se deixa cair sentada, vira-me as costas e, sempre segurando seus bombons,
co"'!eça a se balançar.
Eu vou então à procura da enfermeira, para que ele deixe Marie-Fran-
çoise com as outras crianças. Demora muito e eu volto duas vezes para lhe
dizer que procuro a enfermeira. Mas isto ç duro para ela e, na segunda vez,
set,L rosto se contrai: lágrimas que não escorrem. A enfermeira chega e eu
parto.
A sessão durou quinze minutos.
Todo mundo acha que ela está mais viva e muito mais presente.
A 4 de outubro, quando venho buscar Marie-Françoise, estão trocan-
do-lhe as fraldas. Eu deixo a sala para ir buscar o material da sessão. Quando
eu volto cinco minutos mais tarde, Marie-Françoise tenta sair pela mesma
porta que eu tinha saído.
Assim que ela me vê instalar o material, ela não tenta mais sair para o
corredor. Ela me olhar fazer isto balançando-se; e, quando eu me sento, ela
começa a cuspir violentamente, o queixo virado para o teto, mas o olhar/
fixo no material.
Eu tiro o papel dos bombons. Ela pega-os imediatamente, leva um à
boca, suga-o apenas, dobra-se para frente, o rosto baixo, os braços rígidos,
um bombom que ultrapassa cada um de seu punhos fechados. Nesta posição,
ela puxa uma salmódúi gutural e sufocada.
Ela ergue-se novamente, troca os bombons pelos biscoitos, pressiona
um contra seu nariz; em seguida ela se balança. Imobiliza-se, o corpo dobrado
para a direita, a cabeça inclinada sobre o ombro e o olhar pousado em mim,
mas vazio, não revelando nenhuma vida, nem mesmo em seu mundo interior.
Ela fica assim durante mais de um minuto.
182 Marie-Françoise ou o Autismo

Novamente ela troca bombons e doces, para numa mão segurar um


bombom, e na outra um doce, troca ao longo da qual ela lança um olhar exor-
bitado para o prato de arroz-doce; mas ela desvia-se dele violentamente, fe,
chando voluntariamente a porta ao transtorno emocional que este prato
havia desencadeado na véspera. Ela tenta esquecer sugando um pouco o
bombom, depois estende-o para mim, assim como o doce, com um olhar
presente neste momento: este será o único reconhecimento que ela manifes-
tará de minha presença junto a ela hoje.
Mas o prato a obseda, e ela usa de subterfúgios para aproximar-se dele
balançando-se transversalmente. Ela tennina por imobilizar-se, o rosto a quin-
ze centímetros do prato, mas não pode sequer lhe lançar um olhar, levanta-se
yivamente e pressiona o bombom contra seu nariz. Então ela começa a tre··
rner com o corpo todo, e seus braços, como na véspera, estão contraldos com
pgi.tações incontroláveis. Ela tenta gritar para aliviar-se, mas seu grito pára na
.)garganta. Ela vira o rosto para o teto, as pálpebras fechadas, com uma expres-
!são de sofrimento intolerável. Ela pára bruscamente, olha para mim e começa
.a se balançar.
· Peço à enfermeira p_ara reconduzi-la a seu quarto onde o jantar vai
começar- Sessão de ) 5 minuteis.
A sessão de hoje me deu uma forte impressão de um comportamento
esquizofrênico. Salvo um breve instante, ela não estava em contato comigo.
Diante da mudança observada pelas enfermeiras e pelo médico que
acham que ela está muito mais presente e mais dinâmica, me parece que seu

r
comportamento na sessão, e a evolução deste desde o início, resume-se nisto:
ela estabeleceu um contato pouco profundo comigo, mas adquiriu a certeza
bem sólida de minha passividade; e os dois reunidos lhe permitem viver seu
\ mundo in tcrior, tanto tranquilizada pela minha não intervenção, quanto um
\Pouco protegida pela minha presença.
Uma meia hora mais tarde, Marie-Françoise me vê e faz "até logo"
com a mão sorrindo, quando eu atravesso a sala.

Se nos referendamos em Nadia, tenho que me espantar, como disse,


com a violência de Marie-Françoise em seu contato de corpo comigo. Com
efeito, para Marie-Françoise, não é a exploração do furo de minha boca -
de meu corpo furado - que está em causa, tanto quanto ela não é interpelada
pela presença de um pequeno outro, como Nadia era. O que cara_cteriz--ª·-·ª
elação de objeto de Marie-Françoise, é que não existe Outro - e muit9 menos
pequeno outro-, e que para ela eu sou UIII. obj_~to d~q:yY.Q.S-
lsto não quer dizer que eu não seja, de umacerta maneira, privilegiada.
Num primeiro tempo, ela interessa-se pelo alimento: come os dois
doces, depois os bombons, sem nenhuma inibição, na medida em que estes
objetos-alimentos estão completamente cortados de toda relação comigo,
A Locura:nem "a",nem "A" 183

que eles não têm nenhuma relação com meu corpo. Esta relação a meu corpo
era, para Nadia, a fonte de inibição.
Num segundo tempo, entretanto, ela me distingue dos outros objetos,
dirigindo-se a mim de uma maneira privilegiada: o privilégio que tenho, é o
de receber uma série de bofetadas magistrais. Mas, exatamente como para os
outros objetos, ela não manifesta o menor traço de inibição em sua agressão
a meu corpo. Ela parece mesmo estar inteiramente satisfeita, tanto quanto
posso julgar na ausência de expressividade do olhar que não se acende por
isso.
Tal é o primeiro contato que Marie-Françoise tem comigo, a 30 de
setembro; um contato que passa mais pelo muscular que pelo escópico,
que visa, neste sentido, mais me destruir do que me ver. Finalmente, se
existe inibição, é no muscular que ela irá se dar; e com efeito, neste dia como
nos seguintes durante muito tempo ainda, sua atividade volta-se contra ela:
cai sentada, dobrada sobre si mesma, e, após alguns balanceios, termina por
imobilizar a cabeça no chão entre suas duas pernas afastadas.
Quando a comparamos com Nadia, como seremos levados a fazê-lo
bem frequentemente, para esclarecer a diferença de estrutura - veremos
inclusive que a noção de estrutura será posta em questão no caso de Marie-
Françoise -, de cara somos impressionados por esta dupla ausência do Outro
e do outro. Esas duas ausências, entretanto, vão ter destinos diferentes ao
longo das sessões.
Para o que é do Outro (que é, de cara, marcado em sua ausência),
talvez eu não tenha suficientemente insistido no relato das sessões sobre o
aspecto profundamente patológico de Marie-Françoise, cuja ausência
completa de olhar tanto se opõe ao olhar vivo e patético de Nadia; ausência
de olhar da qual ela só vai sair, por curtos instantes, para ter um olhar perdido
de demente. A este propósito eu falei de caos.
Uma vez entretanto, após ter arrancado meus óculos, ela vem plantar
seus olhos nos meus, a um centímetro de distância, durante um momento
do qual veremos a significação.
Certamente seu olhar, embora seja o sinal da gravidade de seu estado,
vai voltar-se suficientemente para mim para que eu possa dizer, desde a ter-
ceira sessão, a 3 de outubro, que ela me olha rindo, quando eu chego. Mas
este olhar não se desperta. O muscular, sob a forma da mímica do rosto, é
o único que traduz sua reação, e mesmo sua demanda: de que eu lhe faça
descer os degraus, por exemplo. Mas logo, o olhar exprime a recusa, e ela
tem um ar irritado.
Numa primeira abordagem, a diferença com Nadia é flagrante. Nadia
lança, sem cessar, ao seu redor, e sobretudo para mim, olhares patéticos que
são - ao contrário da recusa de Marie-Françoise - apelo ao Outro. Se Nadia
fica em estado de stress, em meio aos outros no jardim de infância, seu olhar
se apaga e seu corpo se mobiliza no limite da catatonia: Marie-Françoise,
na mesma situação, absorve-se num tamborilar sem fim em qualquer objeto.
784 Marie-Françoise ou o Autismo

Para Marie-Françoise, o mundo é para ser destruído ou destruí-la; para Nadia,


o mundo é para ser visto ou para olhá-la.
Vimos a importância do escópico, quando ele é predominante como no
caso de Nadia, na relação ao mundo: mesmo sem o sujeito saber qualquer
perda pode inscrever-se aí e prefigurar o que Nadia vai encontrar a 10 de
dezembro, sob a forma do recalque primordial. Para Nadia, o muscular
seguirá, sem jamais suplantar, entretanto, o que o escópico tem de profunda-
mente estruturante através da experiência do espelho.
Para Marie-Françoise, a predominância do muscular na-o deixa a mesma
abertura para uma perda possível e ignorada ao mesmo tempo; no mais, ela
só desemboca na exaltação do caráter destrutivo da pulsão, pois o pulsional
tem sempre ligação com a pulsão de morte. Marie-Françoise vai encontrar a
pulsão escópica e seu impasse desde a 3~ sessão, numa cena que logo torna-se
insustentável.
Nesta cena que se passa diante do prato de arroz, três vias pulsionais
estão implicadas. Simultaneamente, em primeiro lugar, os olhos e a boca:
seus olhos estão exorbitados pela fascinação ao mesmo tempo em que ela faz
barulhos de sucção muito sonoros. Se seus olhos desviam-se do prato por um
instante e voltam-se para mim, é com um olhar perdido, ao mesmo tempo em
que ela emite um grito de apelo. Então, num terceiro tempo, um outro nível
tão predominante em Marie-Françoise, toma a cena: o muscular. Ela começa a
tremer violentamente e chega quase a uma crise consulsiva. Seus braços e seu
rosto estão implicados; seu rosto que ela vira para o teto, pálpebras fechadas,
boca aberta num grito que não sai. O som de minha voz interrompe esta
tensão insustentável: Marie-Françoise deixa-se cair sentada, volta-me as costas
e começa a se balançar com o rosto em lágrimas que não caem.
A mesma cena se reproduz no dia seguinte, sempre diante do prato,
quando ela imobiliza seu rosto a quinze centímetros deste. Mas a cena é
diferente, no sentido em que embora seu corpo comece a tremer e seus braços
a se agitarem de maneira incontrolável, ela não pode sequer lançar um olhar
para o prato. Em vez disto, ela pressiona um bombom contra o nariz. Da
:. mesma forma que na véspera, ela vira seu rosto para o teto, as pálpebras fe-
chadas, com uma expressão de sofrimento intolerável, e um grito que fica
preso na garganta. Ela termina por se balançar.
Jamais no caso de Na dia apareceu uma tal intensidade de sofrimento
diante do objeto. A 13 de novembro, na primeira vez que ela encontra a
mamadeira na sessão, se Nadia hesita, ela chega rápido ao fim de sua inibição:
vira-se para mim e, contrariamente a Marie-Françoise, ela pode me pedir a
mim que estou presente para ela, que lhe dê a mamadeira. .
· Para Marie-Françoise, ao contrário, eu não estou lá. Não existe OutroJ,·.
seu grito de socorro é apenas um esboço que não pode se sustentar, porque
Marie-Françoise dirige-se à ausência; e após ter emitido o grito uma vez, el
não pode mais fazê-lo sair, ela não pode mais fazer-se ouvir. Enfim, seu olhar
desaparece atrás de suas pálpebras fechadas; sua tensão muscular incontro-
A Loucura:nem "a", nem "A" 185

1.ível, voltada para um objetivo impossível, desemboca em movimentos con-


vulsivos e se resolve no balanceio.
A sequência das sessões vai nos mostrar que tqdo º_Q_roblema de Marie-
l·rançrnse está, dt:_fa~o,_s;entrado na ausência do Outro. -- --
Deve-se notar, no entanto, a -oposição entre o que ela diz na sessão,
isto é, esta ausência do Outro tão dolorosa, e seu despertar que todo o mundo
constata na vida cotidiana. Certamente, ela está mais viva, me dizem, e mais
11a realidade. Mas qual "realidade" quando se sabe que ela é sempre presa de
uma bulimia, que tem apenas o mérito de tranquilizar o adulto que lhe enfia
:, comida? A julgar só pelo que se passa na sessão, a enorme muralha que ela
encontra no alimento, concebemos facilmente que a bulimia é apenas o inver-
:;o desta muralha; e que sua intensidade em Marie-Françoise é proporcional à
inibição absoluta em relação com a ausência do Outro para ela.
Para o que é da diferença entre Nadia e Marie-Françoise ao nível muscu-
lar, Nadia situa-se na vertente catatônica, Marie-Françoise na vertente convul-
siva. Mas é difícil separar o que é respectivamente da estrutura e da diferença
de idade: Nadia tem com efeito 13 meses e Marie-Françoise 30 meses. Tratar-
se-ia então de dois momentos de desenvolvimento diferentes? Marie-Fran-
çoise teria atingido um nível de expressão muscular, com um componente
predominante da pulsão sádica. É muito provável; mas inteiramente insufi-
ciente para dar conta da diferença essencial entre estas duas crianças.
Nadia sairá de sua passividade muscular, notadamente entre 10 de
dezembro e 16 de janeiro. E, se ela manifesta toda uma violência muscular
contra mim, existe um outro nível, o da ternura: o pulsional destrutivo, im-
plicando o objeto "a", é constantemente contrabalançado pelo amor que ela
me tem, que ela tem pelo Outro que eu sou. Na relação de Nadia comigo, a
ambivalência se desenvolve.
Para Marie-Françoise, com mais idade, muscularmente mais avançada,
o que nll'o está aí, é a ambivalência. É verdade que sua fascinação está intei-
ramente centrada num objeto que, embora seja oral em sua aparência, é bem
mais um objeto real escópico, a despeito do muro de seu olhar diante do
mundo exterior - quer sejam os objetos ou o Outro.
O que fascina Nadia, ao contrário, é uma imagem, a imagem que presen-
tifica ao mesmo tempo o outro e o Outro "a + A"; o que Marie-Françoise
ignora absolutamente, o que a afasta pois de toda identificação possível por
um lado, mas, mais ainda, de toda perda, objeto do recalque primordial a
partir do qual, e do qual somente, Nadia desenvolve sua ambivalência para
comigo, num além da imagem que a conduzirá ao espelho.
Marie-Françoise ficou no objeto real, que produziu um efeito de fecha-
mento desta divisão do sujeito que Nadia encontrou após o recalque de 10
de dezembro.
CAPfTULO II
O OUTRO: UMA AUSl:NCIA REAL
O apelo à janela

7 e 8 de outubro

DD Quando o material da sessão está instalado, a 7 de outubro, vou sentar-


me sobre os degraus de comunicação entre o quarto e a sala de sessões, e falo
com Marie-Françoise. Ela me dá um grande sorriso e estende os bra.nços para
pegar meus óculos; mas vendo que eu não me meixo, ela me vira as costas,
furiosa por um minuto. Em seguida, depressa, ela desloca-se em minha direção
e estende-me os braços para que eu a coloque no fim dos degraus.
Vou sentar-me; ela olha as crianças no quarto que acaba de deixar,
depois olha o material da sessão. Ela desloca-se depressa em direção à mesa,
pega os bombons, fica de pé sem apoio para olhar o prato de arroz-doce.
Durante dez minutos seu olhar vai do prato a caneca, desta ao bebê
sentado sobre a mesa. para retornar ao prato. Cada vez que seu olhar retorna
ao prato e durante todo o tempo em que está fixado nele, ela faz movimen-
tos maxilares como se mastigasse, e não mais movimentos transversais como
antes, às vezes com ruídos de sucção.
Dá-se uma grande mudança emocional em seu comportamento diante
do prato. Ela não tem mais trepidações quase convulsivas, nem balanceio,
nem gritos guturais, nem este rosto de sofrimento com as pálpebras fechadas
voltadas para o teto. Ao contrário, ela está muito presente, e eu estou tam-
bém presente em seu olhar, quando ela o dirige para mim com um sorriso
radiante.
Ela me olha, depois olha o prato como se desejasse que eu lhe desse
de comer; ma1s .. eu não faço um único gesto neste sentido. Relembro-lhe seu
comportamento em relação a este prato, nas vezes precedentes, o quanto é
atroz ter vontade de comer e não poder fazê-lo sem saber porque. Como ela
mesmo não sabe, eu só lhe daria de comer se ela fizer o gesto de me dar a
colher, pois faz mal receber alimento do outro sem que o queiramos real-
mente.
A partir deste momento, a cena, agora que ela está sempre de pé dian-
te da mesa e em relação com o alimento, toma uma significação mais pro-
funda: seu olhar vai do prato à janela aberta, e ela balbucia para esta última,
balbucio de apelo e de demanda. Depois ela olha de novo o prato diante do
qual ela fica silenciosa. Isto parece mesmo ser o chamado a um ser ausente,
ao qual ela queria justamente pedir ser alimentada. Digo-lhe que ela parece pe-
O Outro: Uma Ausência Real 187

dir alguma coisa a alguém que não está lá, mas fora, invisível, e que ela não
pede nada a mim que estou presente na sala.
Ela senta-6e no chão, suga uma vez seu bombom, olha para mim, volta-
se para a janela, fica de pé, e pela primeira vez, anda sem o menor apoio até
o leito, depois retorna para a mesa diante da janela. Ele repete a cena uma
segunda fez diante da janela. Uma maçã está lá, no chão; ela a apanha, dá uma
mordida olhando para mim, joga-a e, sentada, desloca-se em minha direção.
Mas, no meio do caminho; ela volta-me as costas, fica de novo em pé, para ir
para diante da janela à qual ela novamente dirige seu balbucio de apelo..
Ela vai em direção à saída: tem necessidade de fugir de mim.
Permaneço um momento na entrada da outra peça. Vejo-a brincando
rindo às gargalhadas com uma outra criança: rindo, ela vai refugiar-se sob a
mesa, de onde ela sai um instante para me olhar sorrindo, e retornar para
debaixo da mesa.
A 8 de outubro, a porta de comunicação está aberta enquanto eu pre-
paro o material de sessão e Marie-Françoise manifesta seu descontentamento
de forma muito viva resmungando quando uma outra criança aproxima-se
para ver o que eu faço. Ela estende-me os braços para que eu a coloque no
fim dos degraus.
Ela pega os dois bombons, suga apenas um e fica de pé para dar alguns
passos que a separam da mesa, logo, do prato. Ela olha para ele, depois para
o bebê, depois para o prato, e finalmente para mim. Em seguida o circuito
se restringe ao prato e a mim, seu olhar acompanha-se de movimentos do
maxilar como se ela comesse, o que lhe digo. Seu comportamento então
muda, isto é, se seu olhar vai sempre de mim ao prato, assim que está sobre
este 11ltimo ela mantém a boca aberta, como se ela esperasse que aí se colo-
casse a colher. Nesta posição ela olha para mim com um olhar de apelo que
rapidamente volta ao prato.
Para lhe facilitar a compreensão do que vou lhe dizer, isto é que eu
estou pronta para dar, mas que é preciso que ela peça, senão isto faz mal,
eu mexo a colher no arroz-doce e deixo-a, cheia, do lado do prato próximo
à sua mão. Ela seguiu tudo atentamente e parece per.plexa. Muito rápido, ela
desvia o rosto para a janela, sem o grito de apelo da véspera e dirige-se para
ela.
Neste momento, ~la ouve a voz do médico que faz a visita no quarto \
ao lado. Então ela senta-se em frente à porta de comunicação, e vira-se para ;·,~
mim para me dizer "papai", com o rosto excitado. Depois ela começa a se '
balançar olhando para a porta. Abro pois a porta e o médico entra a meu / ·
convite. Assim que o vê, Marie-Françoise fica de pé e anda em sua direção /
balbuciando e rindo. Ela senta-se no chão e seu riso será endereçado alterna-/
damente a ela e a mim. Ela parece muito contente e lhe diz ..até logo" corry
mão quando ele parte.
Em seguida, ela parece hesitar sobre o que vai fazer, mas parece querer
prosseguir na abertura que ela fez entre nós duas. Com efeito, é como se ela
188 Marie-Françoise ou o Autismo

quisesse retomar para junto das outras crianças, mas que eu também esteja
lá. Coloco-a pois no alto dos degraus, no outro cômodo. A enfermeira lhe
pede um dos bombons que ela tem na mão: Marie-Françoise lhe diz um
"não" peremptório e vira-lhe as costas. Mesma cena com um menininho.
Ela volta então para mim, verifica que meus óculos estão exatamente aí
onde ela os deixou. Então ela olha para mim encantada, estende-me os
braços e fecha a porta de conrunicação da sala de sessões. Digo-lhe: "até
logo". ,
r Tomo conhecimento que há dois dias Marie-Françoise diz "não"
muito energicamente, que ela não se balança mais e está muito presente
com as outras crianças. As palmadinhas que ela dava o tempo todo, em todos
, os objetos, desapareceram. Só persiste na borda do leito para adormecer.
É sua única fonte de prazer auto-erótico, na ausência da sucção do polegar de,
que ela é, evidentemente, incapaz psicologicamente. /

Nestas duas sessões de 7 e de 8 de outubro, Marie-Françoise dá um sal-


to. Mas ela só pôde fazê-lo porque eu recusei esta armadilha: tomar de novo
o lugar do adulto que lhe enfia a comida sem que ela o demande verdadeira-
mente, o que a deixava afundada num desinvestimento total do aliment_!J:
o que é, em realidade, a bulimia.. ,
,· Bulímica, foi no que ela se tomou após ter sido anoréxica, e sabemos )
o caráter profundamente manifesto da afirmação do desejo próprio do sujei-
to na,ifuorexia;-.Longe de ser uma simples inércia, é uma recusa perfeitamente
ativa e que liga o 9c~sejo da cria11ça à morte, o que coloca tanto ela própria
quanto o Outro, o adulto, diante dela, na condição de desejantes.
A b·ulimiai em oposição - que vem frequentemente após a anorexia,
nas crianças entrando em hospitalismo -, é o desmoronamento do desejo pró-
prio do sujeito, desmoronamento do sujeito enquanto desejante, isto acarre-
tando o desaparecimento do Outro enquanto pólo relacional. De ativo que
era em sua recusa anoréxica, o pequeno sujeito toma-se passivo deixando-se
preencher pelo adulto: o que não é mais manifestação pulsional com fim
passivo, mas pura passividade.
Alí se coloca a questão do estatuto deste Outro e de seu registro.
Na anorexia, o que está em vista, é a angústia do Outro, logo, seu
desejo. Na bulimia, não se trata mais do desejo do Outro, visto que o Outro
não está mais aí enquanto tal. O adulto preenche sua função de nutrição
realmente, para escapar à sua própria angústia de morte. Isto é, que aí, por
uma relação narcísica primária, o adulto mira-se no pequeno sujeito, que ele
preenche no Real, numa confissão de impotência em interrogar na verdade
o que esta nutrição quer dizer, tanto do lado do adulto, quanto do lado da
criança: é preciso que isto seja preenchido para que isso não cesse de se calar.
O Outro: Uma Ausência Real 189

As condições institucionais de vida podem chegar a eliminar toda rela-


~ão verdadeira, na medida em que o adulto solicitado por todas as bocas a
alimentar só pode responder, em meio aos gritos, desembaraçando-se delas.
Nada, neste preenchimento, pode fazer sinal à criança daquilo que está
verdadeiramente em questão: uma relação de corpo, onde o corpo do Outro
~ portador do objeto causa do desejo, de que a criança tem de privá-lo.
Na anorexia, o Outro é ainda portador deste objeto. Na bulirnia, ele
não é mais, e o objeto oral caí no Real perdendo seu sentido de objeto de
corpo.
O que Marie-Françoise queria, era reproduzir comigo esta situação de
alimentação onde ela seria completamente passiva comigo, como com a
enfermeira. Ela apenas esboça, nestas primeiras sessões, alguns sinais de uma
tal reprodução. São estes sinais, aliás, que provocam minha recusa explícita
cm alimentá-la, se ela não pedir. O que me arúma é este saber e esta certeza
de que eu não devo tomar o lugar do outro que alimenta, para que ela possa
sair de sua passividade. É preciso que eu esteja lá, e que eu não intervenha
com gestos de meu corpo no Real.
Que eu tenha conduzido estes tratamentos ao longo de minha própria
análise, no surgimento de minha própria relação e falta, isto é, à falta de obje-
to, e não ao engodo de um bom objeto a encontrar, não teve certamente a
menor consequência para a centramento destas crianças na falta em suas rela-
ções de objeto. Eu não podia evidentemente me enganar e acreditar no papel
de uma frustração oral qualquer para estas crianças que estavam fartas. Mas,
mais ainda, minha posição de analisante se encontrava de tal forma que eu
só podia estar sensível a uma hiânica que se abri para elas como se abria para
mim. Acontece que além de toda confrontação maternal, eu pude manter e
sustentar minha interpretação a este nível de falta, e jamais ao nível do objeto.
A interpretação ao nível do objeto enquanto tal pode muito bem colo-
car o pequeno analisante na situação de tapa-buraco e acarretar inclusive
a depressão do analista; enquanto que o nível de interpretação no registro
simbólico da falta alivia a criança, pelo fato de que o analista não lhe impõe
um objeto real para uma satisfação, num contrasenso evidente. O objeto
real imposto dessa maneira torna-se forçosamente persecutório, e, se se
tratar de um objeto oral, por exemplo, dá lugar ao surgimento de um objeto
anal a expulsar contra o próprio analista.
Assim, devo estar presente e não fazer nada. De uma certa maneira
é Marie-Françoise que me intima a agir assim, virando-me as costas e fugindo
de mim, por um lado como se ela me abandonasse e retomasse por conta
própria o que lhe haviam feito, quando ela foi abandonada por sua mãe com
2 meses; por outro lado, como se ela pudesse novamente dizer "não" ao que
ela conheceu em seguida, isto é, o real das pessoas e do alimento.
Esta recusa, que ela reintroduz como entrada de jogo na sessão, lhe faz
reencontrar uma certa dimensão da anorexia. Mas o alimento está há muito
190 Marie-Françoise ou o Autismo

tempo ligado à passividade, e a bulimia relegou o oral ao impossível, pof


causa de sua impossível articulação com o Outro.
O campo escópico, pela via de consequência, veio para o primeiro
plano, como campo onde a relação ao outro e ao corpo próprio é predomt,
nante. Se ela tem, no início, um olhar parado e morto, é pelo olhar que el•
prepara seu retomo à atividade no tratamento. Ela me reduz aí ao ponto de
não me ver, no momento em que ela tem os olhos apontados em minha dire,
ção; , por cima do prato de arroz, ela experimenta a perda de seus olhos,
órgãos, exorbitados.
Do lado de minha pessoa, aparece mais claramente um novo aspecto
desta redução ao nada do outro, na presença que tenho: ter um corpo e não
existir, isto aponta uma nova dimensão - a do Outro - diz Lacan - lá ondt
o outro real do psicótico se apaga sem que o sujeito se encontre destruído,
:É que ele advém alhures, mas ele está longe de advir para Marie-Françoise,
Resta ainda minha palavra com a qual eu lhe digo, tanto quanto possí•
vel, e isto é dizer pela metade, a verdade de minha recusa em lhe dar de comer
sem que ela peça. Sua resposta, quase imediata, é a outra metade desta verda,
de que eu não disse: ela vai falar para a janela, para a ausência. E aí, é ela que
dirige seu apelo, um apelo que não pode ir para o Outro, mas para a ausência
real.
Se o Outro não está presente para ela, o outro muito menos. Nadia nos
mostrou que estas duas presenças ou ausências estão ligadas, partindo primei,
ramente da ligação "a + A", para chegar rapidamente, no início do trata,
mento, pela sua transferência comigo, como Outro, a "A +a".
Não é fácil saber porque Nadia, sem jamais ter conhecido sua mãe -
ela foi separada dela ao nascer - pôde entretanto ter em si a imagem desta
completude "a + A" - da qual ela diz, a 16 de janeiro, que ela pode ser a
criança - "a" caída a meus pés-, enquanto que Marie-Françoise, quç conhe-
ceu sua mãe até 2 meses, e que diz dela o vazio na ausência real, não mostra
nenhum traço da imagem do outro em relação com o Outro.
O que podemos dizer, entretanto, é que esta imagem do outro, combi-
natória do Real e da imagem, da placenta e do recém-nascido, parece ser a
via obrigatória para que advenha o Outro, na ordem significante, pela anteci-
pação mesma da perda que deve afetá-lo, e que pode se inscrever no algoritmo
do A para o pequeno sujeito.
Coloca supor o outro e fazê-lo entrar em seu campo, é o que Marie-
Françoise faz pela primeira vez, a 7 de outubro, quando no início da sessão,
ela se volta para olhar as crianças no quarto que ela acaba de deixar, antes de
se interessar pelos objetos em cima da mesa. É a mesma presença do outro
que ela encontra no fim, quando ela vai brincar com uma outra criança rindo
às gargalhadas. Ao longo da sessão, aliás, a representação do outro chama sua
atenção sob a forma do bebê de borracha, que ela incluiu no circuito de seu
olhar entre o prato e eu, no momento de sua interrogacão do prato, ainda
tal ponto em impasse.
O Outro: Uma Ausência Real 191

Mas Marie-Françoise não está pronta para fazer a relação deste outro ao
A, visto que a dimensão do corpo do Outro não existe: ele é apenas ausência
ilcsrealizada, invisível além da janela. Poderia dizer-se que ele não tem imagem
,.specular, isto é, que ele está inteiramente no lugar do objeto "A" enquanto
<JUe não especularizável, no lugar do objeto do qual ele é portador; é preciso
ainda que ele tenha alguma realidade.
Que não exista nenhuma realidade simbolizável, é o que aparece na
dimensão de um Real alucinatório, que não está longe quando Marie-Fran-
~:oise dirige seu apelo -à janela. Contrariamente a Nadia, não é o objeto que
,·la está em posição de alucinar, mas o próprio Outro, e isto em minha pre-
sença.
Dito de outra forma, Marie-Françoise é confrontada ao Outro ausente,
que faz retomo no Real, por falta de ter sido simbolizado e ao Real do Outro
que eu sou, duplicação do primeiro Real. O Real do Outro teria podido persis-
tir no lugar do primeiro Real por pouco que eu tivesse faltado em suspender
a existência dele. Teria sido suficiente, com efeito, a menor precipitação em
direção a uma boca aberta por cima de um prato, ou a facilidade da materna-
gcm na repetição do que Marie-Françoise conhecia: se preenchessemos sua
necessidade seria ao preço de desembarçar-se dela como sujeito, para que
da mesma persistisse em sua passividade. Como vimos e como veremos, é
a uma passividade que ela me intima, como que para me anular e me privar
de minha dimensão de Real.
A sessão de 8 de outubro termina com a irrupção de uma significante
que cria problemas na boca de Marie-Françoise: "papai". É o primeiro que ela
pronuncia.
Ela não pegou a colher que eu depositei a seu alcance no prato de
arroz-doce, após um verdadeiro olhar de apelo que ela me lançou, a boca
aberta, diante deste prato que a paraliza.
Quando eu introduzo esta colher no que eu lhe disse, a 7 de outubro,
espontaneamente, eu coloco esta colher como terceiro termo. No dia seguin-
te, 8 de outubro, eu encho esta colher e coloco-a à sua disposição para lhe
fazer compreender o que lhe digo, que visa suscitar a sua demanda. O único
resultado é sua perplexidade: isto não lhe diz nada. Nós estamos longe da
colher de Nadia. Entretanto, se Marie-Françoise volta-se para a janela, ela não
lança seu grito de apelo da véspera, como se o que ela percebesse, no limite,
fosse que seu apelo, sua demanda, pudesse se fazer do lado da colher e não
mais do lado da janela.
No silêncio, que se segue surge a voz do médico que faz a visita no
quarto ao lado. Marie-Françoise desvia-se da janela da ausência, e volta-se
para a porta do "escutado", sinal de uma presença. Que ela se volte para mim
para me dizer "papai" com um rosto excitado, é bem aí que surge uma ques-
t!l'o inesperada quanto à origem deste "papai".
Duas reações seguem então seu chamado. Primeiro ela se balança
olhando para a porta. Depois, quando eu abri a porta e convidei o médico
192 Marie-Françoise ou o Autismo

para entrar, Marie-Françoise levanta-se e anda até ele, balbuciando e rindo.


Sentando-se no chão, ela dirige seu sorriso alternadamente a ele e a mim,
depois, muito contente, lhe diz, "até logo" com a mão e vai embora.
1Jigamos primeiro que estamos longe da primeira reação de Na.dia nas
mesmas circunstâncias, a 28 de outubro. Na.dia, então, tinha olhado o mé-
dico e, certamente, tinha dividido sua atenção entre ele e eu, mas, rapi-
úamente, ela se retraiu, sugando seu polegar, escondendo-se com a outra mão.
Será preciso esperar até bem mais tarde, até a sessão de 5 de fevereiro, para
que Nadia se entregue à demonstração de que ela me possui sob o olhar do
médico. Para !~adia, a presença de um terceiro se refere a mim, quer seja que
esta a separe de mim, quer seja que Nadia demonstre o que eu sou para ela,
isto é, que eu estou exatamente no lugar do Outro.
Para Marie-Françoise, o Outro é o médico. Será porque eu estou, por
enquanto, no lugar da ausência diante da qual seu grito de apelo pode parar,
como se ele estivesse parado na garganta diante do impossível do prato de
arroz'! Mas isto não nos diz de imediato porque, sem hesitação, ela reconhece
no médico este Outro que falta.
É verdade que esta presença se manifesta num outro registro que não
o escópico onde se manifestava a ausência: aqui, é o escutado que acarreta a
irrupção de uma presença e leva Marie-Françoise a responder dizendo:
"papai". A 1iresença Jo Outro induz a presença de Marie-Françoise; mas, sua
presença, é para mim que ela a manifesta, visto que é voltando-se para mim
que ela lança seu significante, como se eu estivesse no lugar do significante
da ausência e que ela nomeasse o Uutrn além de mim.
Lugar normativo do pai, como vimos com Na<lia: mas que me engloba,
poJeria-se dizer, numa ausência que persiste. Trata-se bem de um além pois,
mesmo cm sua alegria, y_uando o médico entrou, ela não repete um "papai"
4uc se teria pmiido escutar se se tratasse de uma pessoa real. Trata-se em
realidade, Je um além Ja ausência e de uma abertura para mim enquanto que
pura ausência.
Pode-se falar, a respeito deste surgimento de "papai", desta identifica-
ção primária ao pai mítico, da qual fala rreud? É provável, mas pouco con-
vicente quanto ao que é Marie-Françoise e quanto às consequências nas
sessões seguintes.
Seja lá o que for, logo depois, ela quer continuar a experiência deste
além de mim. Ela quer voltar para junto das outras crianças, mas eu também
tenho que estar lá, levada de qualquer sorte a introdt:zir este pequeno outro-
objeto "a" em minha presença, e tentar o que Nadia conhecia: ··a+ A", como
condição do A, por emparelhamento do pequeno outro e do A que eu sou.
E, aí, acontece uma cena onde não é mais o escutar, mas o tocar que faz a
abertura em relação a mim. Após ter colocado entre parêntesis o escópico
ligado à ausência, tirando-se os óculos, ela vai·· em direção a um menininho
de quem ela acaricia o rosto.
O Outro: Uma Ausência Real 193

Esta segunda cena introduz a questão do nível estrutural onde se deve


inscrever o "papai" paradoxal. Se tivessemas tentado, como fizemos, a logo
111screvê-lo na conta da promoção do Outro numa certa plenitude de efeito,
.1 carícia ao pequeno outro deve situar alhures eu alcance; e nos obrigar a

fazer a aproximação com o que nós tinhamas encontrado em Nadia, quanto


.10 lugar do Outro antes do espelho, Outro que participava muito da existên-
cia do outro e de seu gozo ameaçador.
CAPÍTULO III
O REAL E O FURO DO CORPO
O meu e o seu

9 e 1O de outubro

DD A 9 de outubro, cu instalo o material e vou me sentar nos degraus, na


porta de comunicação. Escuto uma criança gritar porque lhe colocam sali-
cilato na cabeça, contrai os piolhos. Marie-Françoise me vê, joga o brinquedo
que ela segura e aproxima-se para trocar um cubo pelos meus óculos. Justa-
mente neste momento, depositam no chão, berrando, a criança que acaba de
ser tratada; e é a vez de Marie-Françoise que mantém meus óculos na mão.
Fico onde estou e espero. Marie-Françoise berra sem parar durante todo o
tempo que dura esta operação não dolorosa, cuja cadeira e manipulações
lhe lembram o eletroencefalograma. Sente-se que ela tem muito medo. Não
digo nada; e ela não pode me ver pois que estou nos degraus, no interior do
segundo cômodo. A operação tennina, recolocam-na lá onde a tinham toma-
do, isto é, diante de mim, tem pertinho. Ela tem ainda uma mão contraída
sobre meus óculos e berra. Ela vai berrar desta maneira, perto de dez minu-
tos; entretanto, assim que eu falo, ela pára imediatamente, seu rosto perde a
contração, seus braços a trepidação, seu olhar bem dentro do meu; em segui-
da recomeça. Ela quer visivelmente, dessa forma, me exprimir que ela me
acusa.
Por duas vezes digo-lhe algumas palavras que giram cm torno do ele-
troencefalograma e de que eu não fiz nada, nem para impedir, nem para
protegê-la. Quando ela pára de gritar, ela começa a dar pancadinhas em meus
óculos, com seu gesto esterotipado de agressividade. Digo-lhe que ela fz como
antes, para não exprimir seu rancor, mas que isto não a alivia. De súbito ela
aproxima-se de mim, joga violentamente meus óculos na sala de sessões e,
rindo, me dá uma bofetada magistral. Ela espera o efeito, depois puxa viole11-
tamente meus cabelos; e, assim que ela consegue arrancar alguns, mostra-os
triunfante. Depois toca num sinal em minha face, pressionando bem forte;
isto se transforma em arranhar, como se ela quisesse arrancar o sinal. Este
arranhar-arrancar estende-se ao meu nariz, às maçãs do rosto e ao meu olho.
Ela se descontrai durante esta cena, ab-reagrindo seu medo: eu lhe digo
isto. Quando sinto-a realmente acalmada, anuncio que retornarei amanhã.
Levanto-me para arrumar o material; mas enquanto faço isso, Marie-Fra11-
çoise desce um degrau sentada em seu traseiro e resmunga para que eu a faça
descer o outro: porque, agora, ela quer uma sessão.
O Real e o Furn do Corpo 195

Eu reinstalo o material e me sento. Marie-Françoise vem pegar os bom-


hons e deixa-os sem tê-los sugado, em seguida ela fica de pé para olhar o pra-
10. Breve olhar de demanda para mim, muito breve contração dos braços;
depois, voltando-se para a janela, ela demanda à ausência: dirigindo-se a ela,
dá seu grito de apelo, olha para mim e volta-se para o outro cômodo onde eu
a deixo. Eu parto.
Toda essa violência sofrida por ela - é lembrança do eletroencefalogra-
ma? - trouxe de volta: as pancadinhas estereotipadas agressivas, a crispação-
1repidação diante do alimento, e os gritos acompanhados de tremores sem
lágrimas. Mas a exteriorização da agressividade contra mim não acarretou rea-
~:ão de angústia, e mesmo aliviou de verdade Marie-Françoise.
A 10 de outubro, ela me ouviu entrar na sala de sessão pare preparar
o material. Ouço-a resmungar enquanto que ela já desceu um degrau sentada
,~m seu traseiro. Ela estende-me os braços para que eu a coloque na sala.
Ela pega os bombons, começa a sugá-los e fica de pé diante da mesa.
Seu olhar vai do prato ao bebê, do bebê ao prato e deste para mim. Depois
da aproxima seu rosto cada vez mais perto do prato e, quando seu nariz
quase toca a beira deste prazo, seu olhar deixa o prato para chegar de través
ao bebê que ela contempla. Então seus braços começam a trepidar, seu olhar
a sair das órbitas; ela recua e se deixa cair sentada no chão, para fugir de sua
perturbação. Ela come a metade de um doce e interessa-se pelos brinquedos
l[Ue estão ao redor dela. Ela pega o marinheiro de borracha e pressiona-o
contra seu nariz. Afastando-o por um instante, ela recoloca-o contra seu nariz
e depois me dá o marinheiro: ela não quer mais vê-lo. Ela pega as duas caixas
que se encastram, tenta separá-las, enerva-se, e estende-as para que eu o faça.
Mas quando eu as devolvo ela quase não olha para elas, somente o tempo
necessário para pegar, na menorzinha, um cubo que ela bota na boca, e depois
joga violentamente em minha direção.
Após ter feito a carroça andar por um instante, ela pega a marmita
l\rande da louça de brinquedo. Olha dentro dela, mergulha aí sua mão e,
,lecepcionada por não encontrar-:nada, hesita em colocar aí um de seus bom-
bons; mas ela não pode se resolver e me olha com um gritinho de apelo.
Coloco aí um bombom que tenho no bolso e ela fica radiante. Ela pega o
hombom, olha para ele, mas não o suga, comendo enquanto isso um dos seus.
Então ela fica de pé e volta para diante do prato. Aí, com as pernas bem
afastadas, ela se curva bastante, a testa quase no chão, numa atitude que
parece corresponder a um ato de adoração e ao mesmo tempo a uma fuga
diante do prato,
Ela se ergue para de início só olhar o bebê, depois a janela e, sem ter
lançado um olhar para o prato, ela se acocora diante da marmita. É diante
dela que Marie-Françoise absorve-se; ela revirou-a, aproximando seu rosto
<leia, para logo afastar-se e bater nela; e recomeça. Ela acompanha todo este
jogo com barulhos variados:
1 - barulhos de sucção bastante fracos, para terminar com sua boca
bem aberta, como ela tinha feito diante do prato.
796 Marie-Françoise ou o Autismo

2 - ruídos surdos, acompanhados de movimentos de seu traseiro,


como se ela fizesse esforços sobre o penico.
Ao cabo de um longo momento, ela torna a ficar de pé e volta para
diante do prato; mas ela é mais explícita e pode enfrentá-lo mais facilmente.
Ela olha para ele, a boca aberta, depois me olha. Não é um olhar de apelo,
mas um olhar destinado a aumentar sua segurança com a minha presença;
aproximando sua boca bem perto do prato, ela olha o bebê, depois ajanela,
e de novo o prato, diante do qual ela diz: "mamãe-bebê". Volta-se para mim,
repete as mesmas palavras. Então se enerva: ela queria conseguir comer este
mingau, mas não pode. Ela da pontapés nos doces assim como nas caixas,
com gritinhos de cólera. Esperando ainda, ela retorna ao prato; mas continua
impossível; e ela renuncia definitivamente ao atrativo direto deste para se
distrair com o bebê.
Então, ela pega o bebê e se deixa cair sentada segurando-o. Olha para
ele, apoia-o cm seu rosto, afasta-o e olha para ele, com a boca aberta, como
ela acaba de fazer diante do mingau. Em seguida, ela começa a sugar seu dedo
indicador, mantendo ao mesmo tempo a extremidade de seu dedo mindinho
da mesma mão 11a hoca do hebê, prestando hem atenção para que seja bem
em sua hoca. Ela olha para mim durante um breve momento, depois começa
a se balançar, sempre com a mesma atitude para com o bebê, durante cinco
minutos. No fim ela se levanta e se dirige para a porta com o bebê.
Recoloco-a junto aos outros.
É a primeira vez que ela fica tanto tempo na sessão, quase meia hora.
Com excessão do finalzinho, ela não teve períodos de vazio. Seu comporta-
mento comigo continua muito esquizofrênico, apesar de seu pedido para que
eu a ajudasse com as caixas e da frase que ela pronunciou. Entretanto, em
seu próprio mundo, ela evoluiu com mais liberdade e se mostrou mais explí-
cita.

A julgar pelo seu comportamento e a relação de objeto que se desenha


cada vez mais nitidamente ao longo destas duas sessões, já poderíamos presu-
mir uma verdadeira saída da psicose, a partir do único fato de que tudo deixa
pensar que agora existe um Outro para Marie-Françoise. Entretanto, como eu
notei, a impressão que ela me dá, é que ela está ainda muito afastada e muito
esquizofrênica no aspecto.
Feita esta reserva, resta retomar a linha dominante de seu trajeto.
A 9 de outubro, no início da sessão, enquanto ela berra por causa do
tratamento na cabeça, mesmo seus braços estando agitados com movimentos
quase convulsivos, ela guarda na mão os meus óculos. É também uma forma
de contato que me acusa pelo que lhe acontece: mas ela se afasta de mim
começando a dar pancadinhas em meus óculos: o que eu lhe digo. E, desde
cnt.ro, ela joga meus óculos para tomar a mim como objeto de agressividade.
O Real e o Furo do Corpo 197

Tomar-me como objeto, Nadia o tinha feito a 15 de dezembro, quando,


após ter afastado todos os objetos, ela também voltou-se para um objeto de
meu corpo, os botões de minha bata; a diferença entre uma e outra não é
menos sensível. Com efeito, Na<lia evolui no quadro da ambivalência, que lhe
facilita o uso de um significante <le ternura; ela diz manipulando os botões:
''ma-ma-ma"; ou ainda ela contempla meu rosto detalhando-o, logo depois de
ter me repelido balbuciando "não-não" e ter batido em minha perna com a
mll'o. Não existe nenhuma divisão desta espécie em Marie-Françoise, nenhuma
ternura que venha temperar o movimento radical para fazer um furo em meu
corpo; um movimento que perde seu sentido e ficar apenas num puro Real
que não pode se anular num significante; ela não promove o significante em
momento algum.
Este Real de meu corpo que ela encontra, ela não o privilegia de jeito
algum dentre os outros objetos; ela volta-se também, logo depois, para o Real
do prato de arroz, cujo impossível a deixa a beira de uma convulsão.
É o mesmo objeto que vai buscar na janela, com a conotação de um
Real da ausência; lá ao menos, seu grito de apelo pode fazer esperar um além
a este Real.
A 10 de outubro, um tal além aparece quando ela aproxima seu rosto
cada vez mais perto do prato, no momento cm que seu nariz quase toca a
beira deste prato, mas que seu olhar toma-se tangencial ao objeto e fixa-se
no bebê. A julgar por seus braços que trepidam, seu olhar que sai da órbita,
toda sua perturbação, esta tentativa de escapar ao objeto real falha, e só a
remete a um outro objeto da mesma ordem, que nada tem a ver com uma
imagem.
Então, após ter se acalmado, ela inaugura um outro objeto -- ao menos
nesta sessão, porque ele não é novo para ela, a partir do que se sabe de seu
comportamento frente aos objetos . ela pega o marinheiro de borracha e
coloca-o em seu nariz. Veremos, cm seguida, o lugar fundamental de um tal
objeto de superfície•olado em seu nariz.
A cena que se segue concerne de u111a outra rorma à relação ao objeto.
Tendo pego uma grande marmita da low;a de brinquedo, Marie-Françoise
olha para dentro dela, mergulha aí sua 111:io, explora o furo que ela mesma
hesita em preencher com um <le seus bombons. Ela volta-se para mim com um
gritinho de apelo, sinal <le minha existénda para ela. Então, eu respondo e
tapo o furo com um bombom que tenho no bolso. Mas minha existência foi
efêmera e minha resposta não l'at. com que ela sugue o bombom que eu colo-
quei; ela suga um dos seus. Ela fica sozinha; sempre sozinha; e ela mostra isso
ainda retornando para diante do prato, diante do qual ela se prostra.
!
Isso não é por falta de pesquisa de sua parte para tentar achar alguma
outra articulação que não a fuga. Eut:io, ela olha o bchê, depois a janela e,
sem olhar para o prato, <listrai-se diante <la marmita que ela emborcou, isto
é, que não apresenta mais furo, e sobre o fundo da qual ela bate.
798 Marie-Françoise ou o Autismo

Tal é a representação sem furo do Outro à qual ela retorna, escolhendo


emborcar a marmita. Que, durante este tempo, ela faça ruídos de sucção e
termine com a boca toda aberta, ou que ela emita grunhidos surdos com
movimentos de seu traseiro como se ela estivesse sentada no penico, eis aí o
que diz suficientemente que se o furo não está no Outro, é seu corpo que estd
furado radicalmente, é aí que se revela o único furo do corpo, hiância real
que vai da boca ao ânus. Seu corpo está durado, mas o meu falta sê-lo;
inclusive ela tentou fazer aí um furo como na véspera em minha face, por
exemplo. Contentemo-nos por enquanto em constatá-lo.
Esta questão do furo, Nadia também a havia encontrado no fim de
dezembro. Ela pôde duvidar de que meu corpo fosse furado quando mani-
pulando os botões de minha bata a 24 de dezembro, ela tocou cm minha
pele; ela ficou siderada; e se ela em seguida manipulou novamente os botões,
foi evitando minha pele. Os botões, era o objeto separável do qual cu era
portadora; minha pele er·1 o sinal de que meu corpo não era furado. Então,
ela se encarniça em minha boca, empurrando minha cabeça para trás e enfian-
<lo seus dedos na pele de meu pescoço, como que para fazer um furo, como se
fosse preciso fazer aí a outra cxtrcnúdade do furo de meu corpo, para assegu-
rar-se bem de que ele era furado. Foi no fim desta sessão, lembramos, que
ela se lambuzou de cocô, pela primeira vez, com o sentido que ligava-se aí
da integridade de seu corpo enquanto que estruturado como uma fita de
Mocbius, uma superfície de um só lado, não furada.
Marie-Françoise fará a mesma experiência de se lambuzar de cocô, e
veremos a diferença de senti<lo. Já aqui, quanto à violência que a levou a
ten lar lazer um furo em minha face --· violência que pode aproximar-se,
certamente, da de Nadia , uma diferença explode: é que, mesmo ao longo
dos momentos mais intensos, Nadia conserva sempre o contato comigo,
sustenta sua interrogação e sua demanda num discurso consistente. Marie-
Françoise, por sua vez está sempre pronta a voltar-se para outro objeto que
não cu; como se todos os objetos, inclusive eu, fossem indiferenciadas, e que
a questão do furo do corpo se representasse tão bem em meu corpo como
sobre a marmita, sem que nada indicasse que se tratava aí de substitutos meta-
fóricos, mas antes, a cada vez, de um Real.
Esta cena da marmita não lhe faz esquecer o prato, que ela tenta mais
uma vez ligar ao bebê e à janela. É a janela da ausência que dá, com efeito,
seu sentido ao bebê; visto que ela exclama diante do prato: "mamãe-bebê",
e que voltando-se para mim, ela repete: "mamãe-bebê". O que se passa então
que faz com que o prato permaneça sempre tão impossível? Senão porque
a janela, enquanto que a ausência real, não permite presentificar o Outro
numa alternância simbólica de presença e ausência; e que o Outro está encer-
rado no Real de sua ausência, um Real que contamina o prato e o torna
mortífero. Mesmo se o bebê pode começar a ter estatuto de imagem: ao
menos se poderia pensar isso se Marie-Françoise não terminasse a sessão com
uma cena onde o bebê está longe de ser uma imagem.
O Real e o Furo do Corpo 199

Exausta diante do impossível do prato, ela se deixa cair sentada (como


da faz sempre nas situações sem saída) segurando o bebê. Como fez com o
marinheiro, ela apoia o bebê contra seu rosto; como fez com o mingau,
ela olha para ele, com a boca toda aberta. E nesse momento ela faz uma
incursão no auto-erotismo com este duplo, núrando-se narcisicamente no
hebê: ela suga seu dedo indicador e dá ao bebê como para que sugar o dedo
mindinho da mesma mão.
Mas o encanto é quebrado quando ela olha para mim, e ela retrai-se
completamente sobre si mesma balançando-se durante cinco minutos, sempre
com a mesma atitude com o bebê. É como se eu não lhe servisse para nada,
ou ainda como se meu olhar trouxesse a interdição: ela se levanta e se dirige
para a porta com o bebê.
CAPITULO IV
TAPAR REALMENTE O FURO DE SEU CORPO

13 e 14 de outubro

OO A 13 de outubro, quando entro em seu quarto, Marie-Françoise me


estende os braços e não tenho necessidade de esperar que a enfem1eira che·
gue. Coloco-a no chão ao pé do leito, ajudo-a a descer os degraus a seu
pedido, e vou me sentar, deixando-a pois livre para fazer o que ela quer, de
guardar o contato com seu quarto, se o contato comigo só lhe é parciahnente
suportável.
Enquanto eu a tirava do leito, ela pegou meus óculos; brinca de atirá-los
e apanhá-los por cinco minutos, olhando para mim e dando gritinhos de vez
em quando. Isto não dá uma impressão desagradável: isto resulta em fazer
com que meus óculos, uma parte de mim, sofram a sorte a que ela gostaria
Je me submeter; ela precisa esta intenção estendendo-me uma mão que ela
abre e fecha, com um gritinho de apelo, como se quisesse me agarrar. Imedia-
tamente depois, ela joga meus óculos mais violentamente.
Diante de seu apelo, eu me aproximo discretamente, e sento-me numa
cadeira mais próxima de Marie-Françoise; mas, ao cabo de alguns minutos,
devo retomar a meu lugar, porque, nesta segunda cadeira, eu faço barreira
entre ela e os objetos que estão em cima da mesa. Ir em direção deles a obri-
garia a passar diante de mim; ela não pode decidir-se a fazê-lo; seus gestos
tornam-se mais violentos, ao mesmo tempo em que ela lança olhares para a
mesa, ela tem uma vontade de não me olhar. Apenas me sento no meu lugar
precedente, ela se decide.
Ela fica de pé e anda até a mesa: caminhada dificultada pela ausência
de sapatos; levanto-me, eu os tinha posto perto dela; mas, em vez de entre-
gar-me para que eu os coloque, elas os jogou no quarto.
Ela pega o bombom que está dentro da marmita, suga-o, não ousa olhar
·para o prato e absorve-se num jogo convencional com a marmita, para escapar
à atração do prato. Este jogo consiste em mergulhar sua mão na mamlita,
como se ela quisesse constatar seu vazio, e em emborcar a marmita para bater
em cima dela. Ela fica de novo em pé e vai sentar-se em diferentes lugares
da sala para refazer o mesmo jogo.
Ao longo desta cena, seu andar toma-se cada vez mais difícil, entra-
vado pela fralda que cai. A enfermeira, passando pela sala, instala Marie-
Françoise em seu colo para prender de novo a fralda. Recolocada no chão,
Marie-Françoise fica furiosa comigo, e representa uma cena em dois tempos:
Tapar Realmente o Furo de Seu Corpo 201

primeiramente, sentada frente a mim, ela sacode os braços e as pernas


11/hando-me, como se ela me batesse com os braços e me empurasse com as
pernas (e a emoção está presente pela primeira vez em seus movimentos agres-
~:ivos contra mim). Em seguida, ela gira sobre si mesma sentada, como um
catavento que um tornado impede de se fixar cm uma direção. Ela termina
por se imobilizar de novo frente a mim, para recomeçar seu sapateio.
Ela quer voltar para seu quarto. dando fim à sessão, como a qualquer
i:oisa de insuportável. Mas, quando ela me vê, alguns instantes mais tarde,
começa a chorar.
A 14 de outubro, ela está um pouco fchril, como todas as crianças de
seu quarto. Ela teve, me disse a enfcrcmcira. uma acesso de cólera imotivado
e recusou todo consolo qualquer que fosse ele. Foi uma crise de desespero,
,: não uma crise convulsiva, porque ela nào tinha nem agitação nem rigidez.
Enquanto eu preparo a sala, º"\"º 1•.riti11hos de apelo de Marie-Fran-
,:oise, que reconheceu minha vo1..
A enfenneira a conduz e senta-a na cadeirinha. Marie-Françoise não
diz nada, pega um bombom e su1\a o; mas ela começa a chorar assim que
a enfermeira vai embora. Ela Sl' acalma ii11ediata111ente quando eu a sento
110 chão como de hábito. 1-:la suga seu homhom, e estende-o para mim de
vez em quando, com um largo sorriso, unicamente para me dizer "não";
o que a faz rir.
Seu interesse JiriKc-.~I' 1111m 11 ,·,·.1·ta que contém alguns dos brinquedos
habituais; mas ela demora l:111 satisfazer sua curiosidade. Ela se lança, gira
sobre si mesma para encontrar-se dia111l' da n:sta, inclina-a lentamente em sua
direção e, mantendo-a nesta posi~·ao, tira daí 11111a leiteirinha, em seguida uma
marmita bem menor que a p1n·,·d,·nt,·, ,. qul' ll'111 uma tampa. Mas ela não
pode interessar-se por um ohjl'lo do 11111111111 1·x tl:rior por muito tempo, e
após ter se ocupado um i11sta111l' l',1111 <'sla tampa, ela fica de pé e vai em dire-
ção à mesa.
É para olhar o prato. 1-:la drv111a o r11111 os olhos por um segundo, quase
colando seu rosto no a1101.-drn.:e. 1':111 s,·,•.uida .-la olha o bebê; ela aproxima
de sua boca um doce, do qual l'la n1111,·1111111 pedaço, mas ela pára seu gesto e
alguns centímetros da hui:a do hl'hé. hla 11111v;1\:;lo a perturba, ela foge dei-
xando-se cair sentada 110 d1a11, ,. ahs111v<' ~,· 11a co11 lcmplação do marinheiro.
Não é contemplaç;iu 1k 11111 ohwtu ,·x h'1im a ela: de fato, ela apoia este
marinheiro quase sobre 11111 1111111. depois soh1t· "outro olho. Tenho a impres-
são de que ela incor,1om ,·str· 01>1,·111 cJII(' toma.,·,· assim uma projeção dela
mesma, seu duplo, t/lll' 111111 tc111 mais 1w11/111111t111111'/'c/a de existência fora dela
nem vinda do mundo c.,·t,·n'11; 1\ sua 111.111L·i1;1 de fugir de uma emoção. Ao
cabo de cinco minutos ela o .ͺJ'.a pa1a 111111•.c dela cinco minutos que lhe
serviram para refazer seu 1·1p11li1,110 inll'rior. l·:la torna a ficar de pé diante
ua mesa.
Ato falho ou 11:lo, qm·11·111lo p1·1•.a1 a caneca ela derruba o bebê, que cai
com a cabeça 110 urro;: ri,,,·,·. l·'.la fii:a petrificada, depois pega o bebê pelas
fraldas, olha seu rosto la111h111.ad11 l' rai sentada no chão, ainda segurando-o.
202 Marie-Françoise ou o Autismo J
Ela aproxima-o de seu rosto, como fez com o marinheiro há pouco; mas _
muito breve: a presença do arroz-doce a impede de fazer do bebê o seu dupl
Segurando-o então à uma distância normal, precavidamente, ela aproxima urt
dedo de seu rosto lambuzado, depois olha, intrigada, seu dedo sujo. Ela recOI
meça, depois, olhando para mim, aproxima lentamente o crâneo do bebê dl
sua boca, que ela abre e onde ela en[lll o crâneo lambuzado. Nenhum movle
menta de sucção. Poderia-se dizer que ela morde para absorver. Somente ao
cabo de um minuto, quando ela retira-o que ela percebe o gosto que o arrot
deixou em seus lábios - que estão como desenhados de arroz - e faz OI
movimentos de boca de um degustador.
Ela achou isso bom; ela vai também tomar o bebê como intermediário
para satisfazer o desejo que ela tem deste arroz. Ela torna a ficar de p41
mergulha um pé do bebê no prato e suga-0; por três vezes seguidas. Ela mi
olha quando lhe falo do papel de intermediário que ela dá ao bebê, e que lht
evita toda demanda em relação a mim. A tensão é forte demais; ela se deixa
cair sentada.
Ela apanha a tampa da marmita que ela quer colocar no traseiro da
bebê. Mas ela não o faz, bate no bebê com a tampa, e joga esta última para
pegar o pato, que ela faz gritar com prazer. Em seguida ela mergulha a ponto
do rabo do pato no arroz, suga-o e recomeça. Ela então vira-me as costas e,
mantendo o rabo do pato na boca, ela o aperta para fazê-lo gritar.
Mas a sessão durou o bastante. Ela joga o pato, apanha a marmita,
dentro da qual ela coloca a leiteirinha, joga-a longe. Indo apanhá-la, ela arrasta
sob si o pato agarrado à sua fralda. Em seguida ela pára, sentada diante da
porta de comunicação, e dirige-se para ela.
Ouço-a dizer "pipi" à enfermeira que a recoloca no leito. Saberei
depois que cansada, ela adormeceu antes do jantar.

o
Diante do pouco contato que Marie-Françoise teve comigo ao longo das
sessões precedentes e do pouco caso que ela fez de minha presença, eu fui
levada, a 13 de outubro, a tomar uma posição de recuo, isto é, a interrogar
sua demanda de sessão. Ela prova, mais além de sua ausência de contato, que
ela está entretanto à procura de alguma coisa, visto que ela vem sem hesita-
ção. Não é pois uma recusa de sua parte, mas antes a impossibilidade de
colocar sua demanda, por falta de meios, o que faz seu drama. Sua recusa
teria sido o sinal de uma ambivalência, à qual nós tinhamas visto que ela não
tinha acesso. Resta-lhe somente um apelo a mim que não é certamente unívo-
co e que se coloca melhor no quadro de sua impossível relação ao objeto,
excluindo a verdadeira presença de um Outro.
Aliás, se ela brinca com meus óculos, não é que, como para Nadia,
estes óculos sejam uma parte de meu corpo que lhe serve para questionar o
objeto separável, prefigurando à metáfora. O objeto, para ela, tem alguma
coisa de maciço: estes óculos são meu corpo inteiro, o que ela exprime
Tapar Realmente o Furo de Seu Corpo 203

rstendendo para mim uma mão que ela abre e fecha, com um gritinho de
,1pelo, como se ela quisesse me agarrar na totalidade.
Na cena seguinte, aliás, eu não sou nada mais que um objeto que faz
11bstáculo entre ela e outros objetos. Como são estes que ela quer, ela está
tensa; mas ela não dirige nenhuma demanda para mim, nem mesmo um olhar:
11 que confirma que para ela eu estou lá ou não, isto é, eu sou um objeto real,

ru não adquiri para ela a dimensão de uma representação.


Ela não me olha assim como não pode olhar o prato um pouco mais
tarde. Então, ela retoma um jogo que ela já fez com a marmita, da qual ela
,sola o vazio, de um lado, e, por inversão, a plenitude, batendo no fundo. Que
l'la faça este jogo em diferentes lugares da sala merece uma aproximação
com a maneira pela qual Nadia descobriu, depois do espelho, não só o caráter
tridimensional, de continente, da sala, como também o furo deste continen-
lc que era a janela. Certamente a janela é também inteiramente capital para
Marie-Françoise; mas tem ela este mesmo caráter de furo que regozijava
Nadia, em função da estrutura do corpo que ela tinha adquirido? Certamente
que não. Marie-Françoise encontra a( não uma abertura para um além, mas o
lugar de um apelo para uma ausência real que, ao mesmo tempo, faz da
janela um furo real, e do objeto de seu apelo, enquanto que ausente reahnen-
te, um objeto maciço, sem 4ualidades, e ainda menos portador de objetos
separáveis.
Acontece então, no fim desta sessão, uma cena que desencadeia a
violência de Marie-Françoise contra mim com uma emoção muito visível pela
primeira vez. Os movimentos podem ser confrontados com a crise convulsiva
de 3 de outubro, diante do alimento. Mas a descarga mscular, nesta crise,
assinalava a ausência de outrem, no lugar onde cu estava, e onde ela não podia
me ver. No quadro da sessâ'o, cu faltava, exatamente como faltava o outro
nas crises noturas que ela fazia há 111ui10 tempo. Nesta sessão, existe uma
tentativa quase bem sucedida de me dirigir os movimentos bruscos de braços
e pernas: Marie-Françoise não tem uma crise convulsiva, mas age como se me
batesse e empurrasse, o que faz sentido.
Resta saber porque isto acontece a propósito desta fralda que uma en-
fenneira lhe recoloca diante de mim. NàO scd pela mesma razão que Nadia,
110 fim da sessão de 26 de dezembro, não tolerou que a enfermeira a deixasse
com o traseiro nu diante de mim e arrastou-se rápido para perto de seu leito,
sem me olhar nem me ouvir, e 110 uia seguinte, se lambuzou de cocô? O pólo
inferior do corpo tem relação com um furo. Nadia, antes do espelho, colo-
cava a questão; Marie-Françoise também: ela acabara de fazê-lo com a
marmita. Do que é deste furo, sob meu olhar: tem relação com a hiância
real de seu corpo furado, como ela demonstrou a 10 de outubro. Era também
um medo de Nadia: que meu olhar a fizesse furada.
Para Marie-Françoise, que meu olhar me tenha posto, apesar de tudo,
no limite do surgimento <lo Outro, é o que é evidente quando, percebendo-me
alguns instantes depois do fim da sessão,. ela começa a chorar. Ela chora
como uma criança diante de um adulto, para lhe dirigir seu apelo, ou ela
204 Marie-Françoise ou o Autismo

chora por ter fracassado em fazer ouvir este apelo que não passa nela, não
mais do que o grito que lhe fica preso na garganta? É também a questão quo
coh:a o sentido de sua crise de desespero no dia seguinte, antes da sessão:
crise que a enfermeira me descreve como imotivada, e além de toda consola-
ção com o que quer que fosse.
r
Entretanto, a 14 de outubro, enquanto eu preparo o material da sessão,
ouço os gritinhos de apelo de Marie-Françoise, que reconheceu minha voz.
Isto não a impede de chorar no início da sessão, quando a enfermeira senta-a
numa cadeirinha, em vez de colocá-lo no chão. Ela se acalma, aliás, assim que
eu a sento em seu lugar habitual: como se, em sua relação a mim, tão proble·
mãtica, só lhe r.estasse estas referências no espaço.
Então ela dá um passo que poderia parecer decisivo em sua relação
comigo como foi o de Nadia quando ela emitiu o significante "mama", a 5
de dezembro, o que abriu a via à passagem do Real ao significante na relação
de corpo. Marie-Françoise, aqui, sugando um bombom, estende-o para mim
com um largo sorriso, unicamente para me dizer "não" e rir disso. Mas sua
relação de corpo permanece muito aquém do que Na dia colocava em jogo, e,
aliás, ela retoma logo à sua manipulação de objetos na cesta, que a afasta de
mim Não é indiferente, entretanto, que ela escolha aí uma marmitinha com
uma tampa, tampa que chama sua atenção e da qual veremos o uso que ela
fará.
O afastamento de mim acentua-se quando ela retorna ao prato, onde
ela retoma sua única relação ao objeto: colar seu rosto bem perto do arroz.
doce. Ela tenta com o bebê uma relação à distância, tentando dar de comer
ao bebê um biscoito do qual ela comeu um pedaço. Mas ela pára seu gesto a
alguns centímetros da boca do bebê, e ela se deixa cair sentada, como de
hábito diante do impossível. Enfün, pegando o marinheiro, ela apoia-o quase
sobre seu olho, para fazer dele o seu duplo, como eu disse, e isto durante
quase cinco minutos. Veremos a função central deste duplo no desvio pato-
lógico de Marie-Françoise. O gesto mal sucedido que ela faz em direção
à caneca, fazendo o bebê cair no arroz-doce, deixa-a inicialmente petrificada;
mas, rapidamente, deixando a imagem deste bebê lambuzado - a lambuzeira
a impede de fazer dele seu duplo -, ela faz dele um objeto que tapa o ori-
fício de sua boca; a diferença com Nadia é ainda evidente aqui quanto ao
lambuzamento da pele, quer seja com o cocô ou com o mingau.
Em seguida Marie-Françoise se serve do bebê como intermediário para
comer um pouco de arroz, mergulhando um pé do bebê no prato para depois
sugá-lo três vezes seguidas. É uma via que evita qualquer demanda em minha
direção. É também um impasse e ela se deixa cair sentada. Ela segue aí a
via inversa da de Nadia, que inscreveu o oral na conta do escópico; enquanto
que Marie-Françoise, faz passar o objeto escópico, o bebê lambuzado, por
conta da oralidade, onde sua demanda ao outro empaca.
O que empaca, é a possibilidade para Marie-Françoise de inscrever, ao
nível do corpo do Outro, o objeto separável que ,ela poderia encontrar aí
Tapar Realmente o Furo de Seu Corpo 205

para obturar o furo de seu próprio corpo deixando o corpo do Outro furado
pelo que ela poderia tomar dele Nadia pôde fazer isso, no debate que ela
:;ustentou desde o corpo real, onde seu empecilho era evidente, até a inscri-
~ão significante do objeto de corpo, que abria a via à sua demanda. Ela só
pôde fazê-lo porque de saída o Outro que eu era não estava excluído; ou, o
que dá no mesmo, porque o significante pré-existia para ela, .antecipava a
experiência que ela podia ter dele.
Este significante que pré-existe a todos os outros, é aquele que Lacan
diquetou de "Nome-do-Pai", que Freud afirmou, no Eu e o Isso, ser o "Pai
Primitivo", base da identificação primária; aquele que torna toda mutação
tio Real possível quando ele não está foracluído. Foracluído, ele estava para
Marie-Françoise: ela procura a mesma coisa que Nadia, isto é, obturar o furo de
seu corpo, mas apenas aparentemente, porque ela fica na muralha real inicial,
110 impossível da mutação do Real em significante, única via da demanda ao
<lutro. Resta-lhe apenas retornar sempre a esta demonstração do impossível;
,. ela fixa-se aí em vão, porque a cavilha do significante-mestre inicial está
lloracluído. A cabeça do bebê lambuzada só vem obturar realmente sua
coba, mesmo desenhando seus lábios, para deixar de ser a imagem substitu-
1iva do objeto que ela poderia me mostrar e que estava na vida de sua deman-
da a mim. Nenhuma substituição metafórica se revela; o Real se fecha sobre
si mesmo e a desesperança faz, como sempre, Marie-Françoise cair sentada.
Uma última cena, ainda na ausência do Outro, vai representar uma
iHtima tentativa para mostrar que, do que se trata, é de tapar o furo, o furo
,lo corpo, que vai da boca ao ânus: após ter tentado obturar sua boca, Marie-
hançoise quer botar no traseiro do bebê a tampa da marmita. Mas ela não faz
isso, e o c,11e ela faz no lugar pode dar alguma vertigem: ela pega o pato, faz
com que ele grite apertando-o, mergulha a ponta de seu rabo no arroz, suga-o,
recomeça, e, virando-me as costas, com o rabo do pato na boca, ela aperta-o
para fazê-lo gritar.
Vertigem, certamente, em ver este objeto, hahilualmente representati-
vo, em sua relação com a água, de estadios embrio11ürios - Nadia serviu-se
1lele, no mês de fevereiro, para exprimir uma rela~flo de exterior e de interior,
tanto aquela do pato dentro da esfera, quanto a sua dentro da sala, com o
furo da janela - em ver este objeto tapar o furo dL· sua boca, e tornar-se uma
espécie de apêndice que a alimenta. Visto que ele e111itc o grito que ela não
pode emitir. Este grito ela só poderia emiti-lo pelo Outro que eu sou; mas
ela vira-nie as costas porque, ainda aqui, sua demanda que é também o grito,
não pode ser dirigida; e ela fica reduzida a apenas rnostrar no Real o vão pro-
longamento de seu corpo, como um pênis, que ela faz gritar, talvez, mas que
é somente o inverso do silêncio irremediável entre ela e cu.
Ao extremo, entretanto, este pato a conduz aos confins do significan-
te tanto o Real &e ordena e se infiltra do que não pode se dizer. No fim da
sessão, eu a escutarei dizer à enfem1eira que a recoloca no leito : "pipi".
Este "pipi" vem no lugar do grito impossível, COlllo a demanda que ela não
pôde 111e dirigir na sessão. O pipi de Nadia na sessão, repetidas vezes, tinha
206 Marie-Françoise ou o Autismo ~

a ver com o que não podia ser dito no período de violência dos últimos dl
de dezembro, mas ele tinha, contrariamente ao de Marie-Françoise, um
função representativa, e tomava simplesmente o lugar de uma dificuldadli
temporária de seu discurso, pois era na sessão que ela me dirigia este pipi,
Enquanto tal, este pipi tinha relação com uma falta. O de Marie-Françoise,
na ordem do Real, tem relação com um pênis; mas ela só pode mostrá-lo
em minha ausência.
É uma sequência capital esta da sessão de 14 de outubro, onde Marie•
Françoise demonstra que todo seu problema de corpo, é tapar o furo, um
furo real a tapar realmente:
1 - Justamente antes da sessão, tomaram sua temperatura retal, isto é,
lhe "fizeram" o furo do corpo; e isto justamente depois de uma cólera imotl,
vada e inconsolável.
2 - Um pouco mais tarde, ela faz do marinheiro o seu duplo: colan-
do-o em seu olho, deslocando o tapamento do furo de sua boca para o revesti-
mento da superfície de seu olho.
3 - Ela tapa o furo de sua boca com o crâneo do bebê que caiu no
arroz.
4 Após ter tapado sua boca com o bebê, ela tapa o traseiro deste com
a tampa da marmita.
5 -- Enfim, ela obtura ainda sua boca com o pato, que ela faz emitir
o grito que ela não pode dar.
O furo do corpo é uma questão apenas para seu corpo: sua boca ou seu
olho. O furo de meu corpo, nada.
CAPITULO V
U REAL E O SIGNIFICANTE SEPARADOS
Psicose e estrutura

15, 17 e 18 de outubro
! 11 J A 15 de outubro Marie-Françoise está sentada numa mesa e uma enfer-
meira a está calçando quando eu chego. Ela estende a mão para mim, abrin-
do-a e fechando-a, gesto de apelo acompanhado de um gritinho. Posta no
chão, imediatamente, ela engatinha para a sala de sessões.
Ela fica de pé diante da mesa, começa a sugar os bombons olhando-me
e por isto volta a sentar-se. Seu olhar está muito vivo, muito em contato
comigo. Por duas vezes ela me estende um bombom para mostrá-lo. Ela torna
a ficar de pé diante do prato e, durante cinco minutos, seu olhar, vai do prato
a mim e à janela. Somente no fim seu olhar incluirá o bebê 11ocircuito;e neste
momento, ela excluirá a janela.
Muito rapidamente, ela aproxima seu rosto da beira do prato. Volta a
ergue-se e dá um gritinho para mim, sorrindo. Eu não senti um tom de apelo
neste gritinho, proferido sem muita energia; o rosto está sorridente, e não
com o maxilar projetado para frente como de hábito. É 11111 griti11ho para 111e
fazer partilhar um interesse, bem mais do que para me jàzer participar de
uma ação. Ela sabe muito bem que eu não terei nenhuma iniciativa: o que
toma sua emoção diante do alimento muito menos conflituosa. Aliás, na
segunda vez, no lugar do gritinho, que não era nem mesmo um fonema,
ela diz; "mamãe", que ela pronuncia claramente. A partir deste momento,
seu olhar dirige-se para a janela e não mais para min1; além disso ela fica
silenciosa. Digo-lhe isto.
Então, ela não se dirige mais ao vazio, mas ao bebê. Seu olhar vai do
bebê a mim e vice-versa, sem repassar pelo prato. Em seguida ela pega o
bebê e olha-o ã distância, sem dizer nada, sobretudo sem dizer: "bebê".
Com o bebê, ela coloca o prato e a janela entre parêntesis e pode me olhar
sorrindo;grande descontração de todo seu rosto.
Relembro-lhe a cena da véspera. Ela volta a sentar-se, segurando o
bebê, e, indecisa, olha para ele a uma distância normal, como que hesitando
em fazer dele o seu duplo como antes. Ela não sabe onde colocá-lo, depois ,. ·-.~
larga-o para comer um biscoito e absorver-se em seguida na manipulação de
peças da louça de brinquedo. Ela vai bisbilhotar a cesta, tira daí uma marmita,,
·:· •• 'I"_ ••
um bule de chá e uma tampa. Segura a tampa com os dentes, enquanto pro-·
cura que! é a posição a adotar para a marmita e o bule de chá para que fiquem
um dentro do 01 :ro. Furiosa por não chegar imediatamente a um resultado,
208 Marie-Francoise ou o Autismo J
ela as joga longe dela, depois brinca com a tampa, lançando-a no ar, batenJ
com ela no chão e fazendo-o rolar. Ela está satisfeita, pára, observa. Levanta-Mi
para ir pegar a marmita, esfrega-a rindo no chão, recoloca-a na posição cont'I•
e coloca-lhe sua tampa. Ela está tão radiante por ter encontrado que se volt•
e me faz admirar.
De pé, ela vai buscar o bule de chá, e de novo procura encastrá-la 1111
marmita. Após várias tentativas, ela consegue colocar a marmita sobre o hulf
de chá, fazendo uma torre. Ela admira;mas quando quer acrescentar a tampll
à marmita, ludo desmorona. Ela recomeça a torre, sapateia <le impaciência,
fica furiosa porque os objetos não lhe obc<lcccm melhor, volta a ficar de pd
para passar seu Jitror para a tampa que ela bate no chão halhuciando violc11•
(a/lle/1 tC.
Ela termina por dispersar os três objetos cm cantos diferentes da saiu
e dirige-se para a porta de saída. No caminho, ela dá pontapés no bule de ch:I,
assim como na tampa que ela empurra diante dela. Chegando diante da port;1,
ela abre e me olha com um ar de dúvida. Digo-lhe que ela fez uma boa sessão
e que isto é sulicicnte, com efeito, por hoje. Parecendo alivitla, ela joga de
brincadeira a tampa para uma criança llll quarto, para facilitar sua partida.
Ajudo-a nos degraus e deixo-a cm ótima forma.
A 17 de outubro, tomo conhecimento de que na véspera, dia em qm•
11ào a atendi, quando ela tinha perdido toda espcrarn,:a cm me ver (provavel-
mente linha escutado minha voz na casa), ela la111h11zou-.1·c roda de coni
1u•go em .,·1111 frali/11, encheu as sombrancclhas, os olhos, e em volta dos lábios.
l:1a me acolhe hoje co111 seus gestos estereotipados de hraç:os e pernas,
1· seu aspecto rtd111; e qu:111do estamos ós, um halanceio l'iolc11to. Ela pára
assim que lhe digo que ela cslá ressentida conúgo por causa de minha ausên-
cia de ontem, e vem pegar os bombons cm cima da mesa. Ela começa a sugar
um, apoia-1, na ponta ele seu 1111ri:: e estende-o para mim, sem me dar.
Ela abandona-o para pegar v m11ri11heiro, que ela aproxima e mantém
a um centi'metro de seu olho direito, depois encostado 110 seu nariz, e de 11ovo
110 seu olho direito. Digo-lhe que, como eu não vim ontem, ela tenta ignorar-
mc, incorporando o marinheiro, do qual ela faz seu duplo para me excluir.
O que ela compreende? Seja lá o que for, ela pára seu jogo, me olha
direto nos olhos, de início com uma ex pressão hostil, depois sorrindo, dando
um gritinho de apelo rcconhecime11to, que insiste, como se ela quiseSSl'
que cu a imitasse. Eu faço isso cm eco; encantada, ela recomeça por duas
vezes.
A partir deste momento, há muito mais contato comigo: minha presen-
ça vai representar um papel no que ela fará. Ela vai bisbilhotar a cesta, tira
daí a leiteira, a marmita e sua tampa. De frente para mim, ela coloca a marmi-
ta emborcada no chão e a leiteira em cima. Ela me toma como testemunha
de seu sucesso. Ela coloca por um segundo a tampa na hvca antes de colocá-la
sobre a leiteira: tudo desmorona. Furiosa com a tampa, ela a apanha, bate
com ela no chão, depois coloca-a sobre o fundo da marmita, após ter atirado
a leiteira na direção da janela.
O Real e o Signficante Separados 209

Ela anda até a mesa, volta a sentar-se com os biscoitos, sem ter olhado
111·111 para o prato, nem para o bebê. Ela joga um biscoito após ter mordito
,1111 pedaço, pega a marmita para fazer que bebe, em seguida pesca uma peça
,11· madeira cm fom1a de ponte para sugá-la o Ui ando-me. Faço-a notar que ela
1.11. que bebe lá onde ela sabe que está vazio, que ela nunca quer beber na
, .111eca, que ela joga os doces que são para comer, e que ela suga a peça de
111.1deira olllando para mim. Então, ela anda até a janela, dizendo: "mamãe",
, 1ogando diante dela a marmita.
Ela olha para fora querendo me ignorar, até o momento em que lhe
,ligo que ela chama "mamãe" na direção da janela, para me dizer que esta
11ao estando lá, o alimento é vazio; e que ela não me quer porque cu a aban-
,1,mei ontem. Ela se volta e começa a andar para mim, empurrando a marmi-
1.1 diante dela. Mas ela ouve um avião, cai sentada dando um grito, o maxilar
hem para frente apontado !)ara mim, e levanta a cabeça para o céu. Falo-lhe
.i,_. seu medo de todos os ruídos que vem do exterior, e, tranqüilizada, ela reco-
l, 11.:a-se de pé; mas ao fazer isto ela bate a cabeça na vidraça. Eia cai sentada
,. me olha com uma expressão hostil, acusando-me deste machucado.
Ela se levanta e persegue a marmita com furor, esta termina em meu
pé, onde, sem hesitação, ela vem apanhá-la. Ela pemianecc um momento
·.,·ntada cm meus pés, não sabendo mais o que fazer; seu furor contra a mar-
11Iita me era destinado, e este furor a levou pela primeira vez a meus pés.
J-;to é novo, e é evidente que a novidade de sua iniciativa desencaJeia uma
perturbação ainda mais forte que seu furor. Como de hábito, ela foge de sua
,·moção afastando-se de mim da melhor maneira para ela, isto é, comendo
, , biscoito de costas para mim.
Mais calma, ela torna a ficar de pé, pega o bebê sem um olhar para o
prato. Ela coloca-o no chão para vir pegar meus óculos, e, senta da, ex piora-os
rom um dedo, sem pancadinhas, depois abandona-se com eles no mesmo
1ogo da tampa, sacudindo-os, jogand0-os no chão e apanhand0-os. Ela joga-os
para pegar de novo o bebê, do qual ela olha a fralda, depois o rosto - como
11ma lembrança do que ela fez com ela mesma na véspera e isto a uma
distância nonnal. Em seguida, ela apoia-o em seu 0U10, e termina pondo sua
lioca sobre a do bebê. Ela recoloca-o então a uma boa distância, toca-lhe
11 nariz, a boca, depois os dois olhos... e isto a faz procurar meus óculos com

o olhar. Ela aproxima-os dela, toca a fralda do bebê, depois começa a sugá-los,
,ilhando o bebê que ela continua segurando.
A emoção é forte demais. Sinto que ela procura fugir de si mesmo, e,
após ter lhe resumido a cena precedente, digo:lhe: "até amanhã". Quando
\aio de seu quarto, ela me diz até logo com a mão.
Ela levou o bebê, e :neus óculos ficaram no chão.
Um pouco mais tarde, tomo conhecimento de que Marie-Françoise res-
ponde com animação aos fonemas de chamado da enfermeira mesmo quando
,~stes não lhe são dirigidos.
Na sessão de hoje eu constato: l. que ela me responsabilizou pela panca-
1la que ela tomou ao se levantar; 2. que ela utiliza objetos intermediários para
210 Marie-Françoise ou o Autismo
1
exprimir sua agressividade contra mim, furor que a leva a aproximar-se dtl
mim pela primeira vez. Ela pôde descarregar sua cólera num pedaço de mhn,
isto é em meus óculos, depois de ter me feito compreender que, a mãe não fli
tan<lo lá, não se come, não se bebe. Tendo sacudido os óculos, ela decide su,
gá-los; mas somente após ter colocado sua boca sobre seu duplo, o bebê qlll
tinha tido o rosto cheio de mingau, outro dia.
Quando chego a 18 de outubro, uma enfermeira está dando a merenda ll
Marie-Françoise, que, de pé, segura-se no colo do adulto. Quando ela me v~,
me sorri e começa imediatamente a fazer manha para comer. Digo-lhe que voy
voltar.
Quando retorno, ela se deixa cair sentada e se balança. Minha vinda du,
rante a merenda a perturba muito; ela vai exprimir seu ressentimento altem1111;
do a recusa mluntária e a supressão de contato comigo.
Ela exprime a recusa voluntária indo sentar-se de costas e de frente para
a janela. Ela começa balançando-se e, assim que lhe falo, agita violentamentf
braços e pernas, como se ela me batesse e me afastasse empurrando-me com
os pés. Ela havia sido atraída para a janela por um chamado <lo menino do
loho do jardim: "mamãe". Falo-lhe da sua reação, associando-a com este cha·
ma<lo de Robert e com sua significação para ela. Ela precisa então sua vontade
permanecendo ao menos cinco minutos sentada, bem imóvel, bem empertiga,
da, frente à janela, sem um som, sem um gesto, mas com as costas ca"egada.,
e/e> toda sua hostilidade.
Ao cabo deste longo momento, ela gira sobre si mesma para ficar de
l"rcntc para mim, e me olha sorrindo com um rosto que surpreende pelo seu
poder expressivo. Isto é o mesmo que me dizer: "Eu sei muito bem que vocé
está aí; esteja perto de mim, porque, mamãe tendo me recusado, eu posso
agora lhe recusar!". E ela torna a girar para a janela.
Sua recusa se exprime também pela sua tentativa de beber pelo exterior,
pelo fundo da marmita e da leiteira, atirando-as em seguida para longe de si
com violência. Ela tenta também comer a tampa, agressivame~te contra mim:
comer o que não é comestível e recusar o que é.
Depois. olhando a cesta, ela cospe intensamente em sua direção durank
dez minutos. Apesar de ter dessa fonna exprimido bem sua recusa ela pega
na cesta um cachorro branco do qual ela coloca as duas patas na boca. Ela se-
gura-o assim com seus dentes enquanto ela olha-o e explora-o com o dedo. No-
tado o pedaço de barbante terminado por um nó, que serve de olho ao cachor-
ro, e que pende um pouco, ela tenta comê-lo. Quando eu verbalizo a cena do
olho, lembrando-lhe que ela coloca os objetos bem perto de seu olho quando
ela quer "tomá-los ela mesma" para perder o contato com tudo, ela joga o
cacho"º a seus pés e bate nele com a palma de sua mãe.
Todas estas cenas são entrecortadas de verdadeiras rupturas de contato
comigo, quando ela incorpora os objetos, para que eles entrem em seu mundo
interior, e não contenham mais nem uma única parcela de mim.
Ao cabo. de uma meia hora de sessão, ela se balança olhando a porta.
Ela olha para mim antes de estender os braços para a enfermeira, muito sor-
O Real e o Significante Separados 211

i 1dente e emocionada. Embora tenha sugado os bombons, ela ignorou os do-


' ,·s, os bombons, o prato e a caneca.

A 15 de outubro, ela estende a mão para mim, abrindo-a e fechando-a,


,· seu gesto de apelo se acompanha de um gritinho, como a 13 de outubro.
1 ste gritinho em minha direção, ela o renova, um pouco mais tarde, diante do
I'' ato de arroz, quando, tendo aproximado o rosto da beira, ela levanta-se e
vira-se para mim sorrindo.
Certamente, o grito é fraco, e eu escrevi que não tinha sentido o tom de
11111 apelo, mas que ele tinha o sentido de me fazer partilhar um interesse.
1 'orno se tratava do prato, eu creio poder dizer que este grito não me parecia
, omo uma demanda de que eu a alimentasse, isto é, não visava me fazer parti-
, ,par de uma ação. O Real do prato permanecia excluído, impossível;isto não
1111pedia Marie-Françoise de dar o salto para o significante "mamae,-que ela
pronuncia claramente. Então seu olhar dirige-se para a janela, e não mais para
111im, e ela fica silenciosa, o que eu digo a ela.
Ela não faz mais do que retornar aí ao que precedeu, quando, após uma
1rnca de bombons em que ela teve um olhar bem vivo e bem em contato comi-
1·:> pela primeira vez, ela imobilizou-se diante do prato, durante cinco mínu-
lo, seu olhar indo ao prato a mim, e de mim à janela. Neste momento, seu
olhar inclui o bebê no circuito, e ela exclui a janela.
Antes de vermos o papel deste bebê, podemos examinar e esclarecer
,·sta primeira seqüência pela sessão em que Nadia, a 5 de dezembro, disse pela
primeira vez "mama". O "mama" de Nadia só havia brotado no auge da cena
onde a violência de seu desejo a havia levado a se apoderar do objeto de meu
corpo, visto que foi contraindo as mãos sobre meu peito que tudo se resolveu
paa ela neste apelo a mim. Tudo se resolveu nesta passagem do objeto real de
corpo ao significante. Ora, para Marie-Françoise, nada se resolve, porque seu
1'.rio "mamãe" não anula o objeto, que permanece radicalmente separado, ex-
cluído deste último. O Real e o significante permanecem autônomos; e a au-
~;ência de toda mutação de um em outro deixa Marie-Françoise diante do vazio.
Ú o que ela diz quando ela dirige seu olhar para a janela e não mais para mim.
O vazio que ela encontra aí, é a ausência não do Real, mas do signifi-
cate - o que faz um vazio bem real -, isto é, que não existe nenhum signifi-
cante nesta janela que possa lhe remeter, sob uma forma invertida, a demanda
que ela emite.
Que significante falta aí, senão o primeiro de todos, aquele do recalque
originário, aquele que Nadia encontrou a 10 de dezembro e que fundou em
seguida todos os significantes para ela no lugar do Outro, caução necessária
do "ser" do sujeito?
Na cena seguinte, Marie-Françoise não se dirige mais ao vazio, mas ao
hebê. Precedentemente, o bebê tinha excluído a janela do circuito do olhar;
aqui, ela exclui o prato. É como se fosse uma nova tentativa de excluir o Real
212 Marie-Françoise ou o Autismo

que resiste, como acabamos de ver, a ser transposto em significante, por falt•
da presença do Outro.
Certamente a tentativa não é sem efeito pois, com este bebê, este pt•
queno outro, Marie-Françoise coloca o prato e a janela entre parêntesis, e po,
de me olhar sorrindo, com uma grande descontração de todo o rosto. Se ela não
pode nomear o bebê, como escrevi, como se o fracasso precedente do "mamtrc' 1
a impedisse de fazê-lo, ela olha-o entretanto a uma distância normal, Sl'lll
colocá-lo bem junto ao olho para fazer dele seu duplo, como tinha feito com
o marinheiro. Só que agora ela não sabe o que fazer, e larga-o. Novo fracassso1
ela não pode levar o bebê à dimensão de uma imagem onde ela se reconhece,
ria. Isto nos leva a pensar que a dimensão imaginária não pode existir sem •
possibilidade de promover o Real ao significante, isto é, ao lugar do Outro,
Nadia nos disse, desde o começo, o quanto a imagem do outro estava
ligadao ao Outro, a ponto dela ter feito uma soma no objeto de sua fascina,
ção de 10 de dezembro: "a+ A". Marie-hançoise mostra que, sem o A, mio
pode existir "a".
A cena que se segue é um jogo de encaixe de uma marmita com um bulo
que poderia passar por um jogo de continente e conteúdo. Na realidade, o ob·
jeto principal é a tampa, de uma ponta a outra da cena; e trata-se bem, como
a cada vez com a tampa, de tapar o furo. Aliás, após ter renunciado a encaixar
a chaleira na marmita, ela faz uma torre, e sobretudo, no alto desta torre, cl11
quer acrescentar a tampa, o que derruba tudo: é para a tampa que ela inicial·
mente passa seu furor, empurrando-a depois diante de si dirigindo-se para a
porta de saída. Ela termina por jogá-la, de brincadeira, para uma outra criança
ao partir.
Ela liga esta tampa como tapa furo, cm último lugar e de maneira evi·
dente, ao outro: um pequeno outro do qual ela não pode, como Nadia, fazer
um objeto separável de meu corpo, logo, um objeto que taparia o furo. Mas
isto é mal sucedido visto que cu não estou na cena. Ainda aí, a articulação do
Outro e do outro não se faz, por falta de que o Real se articule ao significan•
te.
Eu apareço, entretanto, em negativo, pode-se dizer, a 16 de outubro,
quando eu não pude levar Marie-Françoise para a sessão, mas quando prova·
velmente ela ouviu minha voz na casa. De noite, tendo perdido toda a espe·
rança em me ver, ela se lambuzou toda de cocô, pego em sua fralda, enchendo
as sobrancelhas, os olhos, e em volta dos lábios -- a enfermeira insistiu espon-
taneamente sobre o fenômeno de bordas desta lambuzcira.
Estas bordas não estão aí sem colocar várias questões, porque o que foi
descrito no caso de Na dia difere sensivclmen te: ela 1am buzou de cocô o corpo
e o rosto e mesmo comeu dele. Dito de outra forma, tratava-se para Nadia, da
superfície fechada, não furada, inteira; pode-se dizer que é sua pele que devia
ser uma superfície sem falha nem furo, de um só lado, sem exterior nem ink·
rior. Versão sobre sua pele da imagem de 10 de dezembro: sua pele respondia
aí pela totalidade "a + A". Fora a minha ausência que havia acarretado uma
tal reação, que colocava em contra ponto a existên eia de "a" e de A.
OLl\ U"i'. ~:-~ ·:<)C ·f_:.',UJ FÍS1C.l.
Bit :~iot:.:<-3.
O Real e o Significante Separados 273

Para Marie-Françoise, não existe nem A nem "a": nem A substituído


11..Ja ausência real, além da janela, nem pequeno outro que, na ausência de A
,111de inscrevê-lo, não pode ter imagem. Assim o seu lambuzar-se não é o mes-
1110 de Nadia. Ele apenas cerca a superfície lá onde ela faz furo real. O que
Nadia afirmava era que a superfície da pele devia ser sem furo e que, somente
111inha superfície de A devia ser furada. Marie-Fra!1çoise não pode dizer o mes-
1110 quanto a superfície de meu corpo, visto que eu não existo para ela no lu-
i•.;1 de A; e é preciso crer que existe uma dimensão simbólica desta exigência
"ªra que o corpo do Outro seja furado, visto que, como Marie-Françoise não
11ode encontrar o furo simbolicamente em meu corpo, este furo reaparece
1111 real do seu.

Seriamos tentados a dicernir aí um aspecto essencial da psicose do su-


l'·ito injàns: a ausência do Outro faz com que não exista furo. Não podería-
llH)S mesmo dizer que não é o Outro, mas seu furo, furo de acolhida, único
li1gar onde o sujeito pode advir alhures que no Real, que faz com que ele seja
l mado, no lugar do Outro?
A 17 de outubro, após este lambuzamento que teve como único efeito
oll'senhar os furos de seu corpo ·· da mesma forma que a cabeça do bebê caí-
''º no arroz desenhou seus lábios, isto é, a borda do furo de sua boca-, ela
111c acolhe com uma cara má, balançando-se violentamente. Como dissemos,
,·,;le balanceio está tão ligado ao Outro que é suficiente que eu a interprete
,·111 função de minha ausência na véspera para que ela pare.
Então ela começa a provar um bombom, apoia-o na ponta de seu nariz,
,·stende-se sem me dar: tentativa de fazer passar o furo de seu corpo para o
111cu, com o bombom. Mas ela logo abandona-o para pegar o marinheiro que
,·la aproxima e mantém a um centímetro de seu olho. Eu interpreto o sentido
,kste duplo e, aí também, ela pára seu jogo, para me dar um gritinho de ape-
lo-reconhecimento, que eu imito; encantada, ela recomeça duas vezes.
Toda esta seqüência entre o bombom e o grito nos impõe o sentimento
,k limites de Marie-Françoise: ela entende muito bem o que cu he digo, mas
·.11a resposta permanece sempre dentro de um contexto que ela não pode fazer
,·\plodir. Se, com efeito, após a tentativa de questionar o furo em mim, recu-
·.:ido-me o bombom que ela tinha colocado na ponta do nariz, ela pega o ma-
1111heiro para colá-lo em seu olho, nariz, e de novo no olho, é que ela procura,
.ilém do furo sobre mim, a imagem do outro que faria ponto de encoragem
!'ara ela, que ela possa se orientar frente a mim.
Não podemos deixar de evocar aqui a atitude de Nadia face a imagem
,lc a + A. Mas, para Nadia, o A era a referência da existência do outro que po-
dia inscrever-se na imagem. Ora, para Marie-Françoise, o outro não tem exis-
lt:ncia im~ginária porque não existe Outro para ela; e o que lhe resta então do
, nttro não é uma imagem, mas um objeto real, o marinheiro.
Para não perder esta imagem, Nadia a havia colado na superfície de seu
, 11110. Embora o marinheiro não seja uma imagem mas um objeto real, Marie-
hançoise cola-o também em seu olho. Minha nomeação, a 10 de dezembro,
descolou a imagem do olho de Nadia, fez desta imagem um significante recal-
214 Marie-Françoise ou o Autismo

cado, significante primordial de seu recalque originário. Minha interpreta9


para Marie-Françoise - que do marinheiro faz seu duplo para me exluir - n
é nada mais do que um ponto de parada; e, quase imediatamente, ela faz
salto, através de seu grito de apelo, ao significante, mas deixando uma hiân
real, entre o Keal do marinheiro, de uma parte, e o significante de seu ap11
de outra, sem mutação do primeiro no segundo; exatamente como ela tio
feito, a 15 de outubro, entre o prato e "mamãe". Daí que, se para Nadia
imagem de 10 de dezembro não retornará nunca, porque ela foi recalcada e
quanto significante, o marinheiro não pode ser recalcado. mas manterá 11
papel de duplo, colado em seu olho.
Ter escutado minha intervenção permanece pois, para Maric-Françoi!II
isolada e não acarreta, como para Nadia, o remanejamento do escópico; e
este ouvir pode conduzí-la ao limite de "ser ouvida" em seu gritinho de apelo
este não visa em nada, como em Nadia, o Outro, mas a imediatismo de se
eco. 1

Marie-Françoise retoma seu jogo de fazer uma torre com as peças d~


louça de brinquedo; mas se ela me toma como testemunha, é que ela visa alérnt
é sempre a tampa, o que tapa o furo; e como ela fracassou cm colocá-la no ai•
to de sua torre. está furiosa com ela: bate com ela no chão depois coloca-a SO•
bre o fundo da marmita.
É nesta mamüta que ela finge que bebe um pouco mais tarde e, redo,
brando seu fingimento.joga os biscoitos e pega um cubo para sugá-lo olhando
para mim. Este gênero de fingimento foi uma vitória para Nadia, na sua rela,
ção ao ··nada", isto é, ao significante. Para Marie-Françoise, ao contrário,
quando lhe digo o que ela faz, ela me responde, pode-se dizer, que para ela
não é do "nada" que se trata, mas do real da ausência: ela vai até a janela O
diz: "mamãe". Este real da ausência toma de repente um aspecto insólito,
senão aterrorizador, quando, desta mesma janela, vem o barulho de um avião
que passa: Marie-Françoise cai sentada dando um grito, eco do barulho que
ela acaba de ouvir, e pelo qual ela me repreende virando a cabeça em minha
direção.
A cena seguinte é a primeira tentativa verdadeira de articular um objeto
de meu corpo. meus óculos. com o bebê. Meus óculos, entretanto, níío têm
e não terão o mesmo valor polimorfo que tiveram para Nadia.
De saída, é com a tampa que Marie-Françoise os associa: após ter pego
os óculos, ela explora-os com um dedo, sacode-os, joga-os e recolhe-os. Pode-
mos dizer então que ela evoca suficientemente a questão do furo em meu
corpo para poder tomar o bebê, após ter jogado os óculos? O que ela faz com
o bebê permanece indeciso. Sucessivamente, ela olha sua fralda, depois seu
rosto - lembrança, escrevi, do que ela havia feito com ela mesmo na véspera,
quando de sua lambuzeira - isto é, que ela coloca a questão dos furos deste
bebê, logo os de seu próprio corpo, a julgar pelo fato de que ela apoia-o
imediatamente em seu olho, e que ela termina por colocar sua boca sobre a do
bebê.
O Real e o Significante Separados 215

Tudo parece assim ter retornado ao ponto habitual do encontro do


·'duplo" tapa-buraco, quando ela volta no sentido inverso ao precedente:
11~colocando o bebê a uma boa distância, ela toca em seu nariz e em sua boca,
,lcpois nos dois olhos, e isto lhe faz procurar meus óculos com o olhar. Ela
aproxima-os de si, toca na fralda do bebê, depois começa a sugá-los olhando o
licbê que ela segura ainda. E aí sua emoção toma-se forte demais, como se ela
1ivesse se aproximado demais de um passo decisivo que ela não pode dar: que
" bebê se torne sua imagem a meus olhos, lá onde ela fez o furo retirando-me
os óculos.
No circuito entre ela e o bebê, de um lado, e eu que ela furou, de outro
lado tomando meus óculos, o bebê impõe-se a ela com força demais para vir
1apar o furo que ela fez em meu corpo. Só lhe resta fugir, e é o que ela faz:
tugir do risco de ser meu tapa-buraco real. Ela carrega o bebê e deixa meus
oculos.
Nadia conheceu, a 10 de dezembro, esta alternativa: ter seu corpo
llbturado pela imagem, ou vir, depois que eu a chamei, tomar este lugar de
lapa-buraco. Mas isto para ela se passava num outro registro, o do significante,
llnde o perigo inscrevia-se na metáfora, e onde a metonímia lhe permitia, por
um lado, recusar seu corpo inteiro para estender-me apenas um pé, e por
outro, poder inverter a situação e procurar em mim um objeto, enfim proferir
o significante "mama" em resposta ao meu "Nadia", significantes que me
colocavam tão bem como outro quanto a ela como sujeito. Marie-Françoise
11ão está evidentemente neste ponto, ainda inteiramente presa do Real, sem
metáfora nem metonímia.
A 18 de outubro, quando chego, uma enfermeira está alimentando-a, e
Marie-Françoise não pode suportar ser alimentada sob meu olhar. Nadia
também não podia suportar comer na sessão o lanche que a enfermeira lhe
dava; ou ao me nos ela só o tomava com o olhar ausente e baixo. O que
apareceu, foi que para Nadia o alimento tem que ser recusado se ele não
concerne o outro: para ela o objetivo visado não é o alimento, mas a mão que
alimenta; e a recusa do alimento remetia-lhe ao outro que já tinha para ela,
seu estatuto. Para Marie-Françoise, do que se trata é do mesmo vazio do outro
cm relação ao alimento, isto é, que o outro não está lá, e ela é remetida ao
vazio. Aliás, quando eu retomo, após seu lanche, ela se deixa cair sentada e se
balança.
Esta experiência no início da sessão, vai colorir toda a continuação de
um obstáculo vazio para onde meu olhar a remeteu enquanto que a enfer-
meira a alimentava. Ela se balança porque, para ela, não existe outro. Desde
então, logo que lhe falo ela não pode aceitar, e agita braços e pernas como se
me batesse. Ela vira-se para a janela; tanto mais que, no jardim, ela ouviu
Robert chamar "mamãe". Que eu lhe diga a atração que isto tem sobre ela
não põe fim em sua vontade de ficar por um longo momento de frente para a
janela, sem um som, sem um gesto, de costas para mim.
Esta hostilidade, aliás, é importante na medida em que ela me coloca
com outro, e quem ela tem tantas repreensões a fazer. Ao menos é o esboço
216 Marie-Françoise ou o Autismo ~

de um movimento do qual Nadia não se privou, e do qual posso dizer que 1


meu desejo, visto que eu sabia que era sua chance. Mas Marie-Françoise, a
ter me sorrido um instante, retorna para a janela, colocando um fim em 11
apelo ao outro. i
Em sua dimensão de Real, podemos bem dizer que a janela é um mura
- um muro onde ela tenta beber, como no exterior da marmita e da leiteira -1
isto é, que ela não faz furo: o que barra o caminho do Outro, é que o Outro•,
para Marie-Françoise sem nenhum furo. Talvez, ao menos, ela tentará fazof
este furo quando, diante de mim, agressivamente, ela tenta comer a tampa,
destruí-la? Retornando em seguida a cesta, onde ela pega um cachorro
branco, é o olho deste cachorro que ela tenta comer. Relaciono, para ela, esta
tentativa de comer o olho do cachorro com o que ela exprime quando ela
gruda os objetos contra seu próprio olho. Mas podemos acrescentar que
diante da estrutura escópica, onde o olhar pode apagar a dimensão de perda
de objetivo, é a única via que lhe resta para escapar, mais do que de uma
perda, de uma mutilação. :É preciso ainda que meu olhar não venha lhe arran•
car o objeto que ela chapeia contra seu olho-órgão.
Esta sessão foi marcada de várias separações de mim, e de uma espécie
de precipitação de seu olho sobre os objetos. Ela termina esta precipitação no
balanceio, olhando para a porta de saída. E entretanto, na volta, ela estende
sorrindo, os braços para a enfermeira.
CAPITULO VI
O REAL, A DEMANDA E O SIGNIFICANTE
Relações de superfície e relações de distância

21, 22 e 23 de outubro

, 11 J A 21 de outubro, em razão da diversidade de objetos que Marie-Fran-


(Oise sugou ao longo das sessões precedentes, enquanto que não podia tocar
110 prato de arroz, eu introduzi uma mamadeira de leite no material de sessão.
Quando eu chego, ela seguramente me ouve arrumar os apetrechos da
·;cssão; encontro-a dando tapinhas num pano com seu dedo indicador: ela faz
de conta que me ignora. ! uma reação à minha presença, porque este não é
mais de forma alguma seu comportamento habitual fora da sessão. Para todos,
,:om efeito, ela mudou muito, mesmo fisicamente. O que me faz pensar que é
~uficiente que ela me ouça, sem mesmo me ver, para que tome seu comporta-
mento de defesa esquizofrênica, visando a redução de minha pessoa a um
llutrem suportável; o que ela tenta em vão por um afastamento-sintoma.
Ela manteve a mesma atitude depois que entrei no quarto; em seguida
ela renuncia a esse afastamento e olha para mim. Então ela ri e, bem depressa;
propulsa-se sobre seu traseiro na direção dos degraus.
Na sala, ela vai diretamente para a mesa onde, inicialmente não vê a
mamadeira, como se se dela Marie-Franpoise não tem nenhuma reação. Ela
só presta atenção à mamadeira, secundariamente, quando quer pegar os doces
que se encontram ao lado. Ela apanha-os e come, lançando olhares furtivos
para a mamadeira. Sinto uma certa excitação crescer nela. Ela abandona os
doces-substitutos, e vai tentar distrair-se encaixando diferentes peças da louça
de brinquedo. Mas isto não pode verdadeiramente desviá-la de seu centro de
atração, e ela retorna a ele ficando de pé, para olhá-lo intensamente. Ela
começa a sapatear, olhando para mim de vez em quando, furiosa comigo que
não a ajudo a decidir-se; mas não de uma maneira desagradável. Isto a leva a
encontrar uma porta de saída para seu desejo, na parte que representa: absor-
ver alguma coisa. Mas ela não está aí ainda.
Ela volta a cair sentada, parte de novo para a cesta e, futucando, ter-
mina por encontrar aí uma colher. Ela agarra esta colher, volta para junto de
mim, e brinca por um momento de jogá-la para o ar, sacudi-la, apalhá-la nova-
mente - um pouco o mesmo jogo que fez com os óculos. Ela termina por
colocar a colher em minha mão, fica de pé, e olha para o prato, com a boca
aberta, depois para mim, fazendo movimentos de comer. Ela vai dessa forma
comer tudo. Mas ela dá muito bem a entender que é um substituto, pois seu
218 Marie-Françoise ou o Autismo

olhar é atraído sem cessar para a mamadeira e desviado também rapidamente.


Senão, ela me olha de bem perto, sorrindo: ela me come um pouco com oi
olhos.
Em seguida, ela permanece por um longo momento frente a mim,
quase apoiada em mim, e começa a me jogar na cara, fonemas, salpicando-me
de perdigotos muito e com o maxilar bem para frente, como se ela me cus·
pisse a comida ria cara; a carga emocional não é penosa, mas sim lúdica.
Recoloco-a junto às outras crianças.
A 22 de outubro, quando chego à instituição, percebo Marie-Françoise
na janela; ela me olha com muito interesse, mas eu sou incapaz de desvendar,
levando em conta a distância, se ela percebe verdadeiramente que sou eu 1
tanto mais que não uso minha bata.
Instalo o material enquanto a ouço balbuciar intensamente no cômodo
vizinho; mas eu ainda devo fazê-la esperar.
Assim que abro a porta, ela se desloca em minha direção, se faz ser
posta nos degraus inferiores e dirige-se para a mesa para pegar os bombons.
Ela se deixa cair novamente sentada e coloca todos os bombons em sua boca.
Sugando-os, ela apanha o coelho, que ela olha com grande interesse, sem
aproximá-lo perto demais do rosto.
Ela o abandona para ficar de pé diante do prato. Ela devora-o com os
olhos, trepida brevemente, aproxima o rosto bem perto, depois seu olhar vai
ele mim ao prato, dando um grito de apelo para mim, o maxilar bem para a
frente. Ela faz isto durante vários minutos, dando pontapés no vazio, furiosa
por eu não obedecer a seu desejo.
De fato, este desejo é ambivalente; pois, se seu olhar vai do prato a
mim, ela é agressivo e devorador quando está sobre mim. Além disso, ontem,
ela soube me dar a colher, enquanto que hoje, ela não esboça nem um gesto
em sua direção. Se seu furor cresce, não é um furor cuja carga seja desagradá-
vel; o que ela deseja é pedir de uma maneira suficientemente ambivalen te para
que eu não lhe dê apesar de sua demanda, e para poder ficar ressentida
comigo. Aliás, ela precisa esta intenção deixando-se cair novamente sentada,
com um ar de grande alívio e de alegria que me é dedicado. Aliviada porque
eu nã'o cedi. Eu a defendi pois contra o mal que ela demandava que eu lhe
fizesse.
Explico-lhe tudo isto. Ela vem arrancar meus óculos rindo. Ela saco-
de-os, bate neles, lança-os, volta a recolhê-los. Ela se sente então disponível
para seu jogo habitual de encaixe de peças da louça de brinquedo; mas o jogo
dura pouco e ela vai até a porta, colocando ela mesma um fim na sessão,
como que para fugir.
Resumo para ela a sessão de hoje, relembro-lhe a de ontem, e interpre-
to seu desejo de fugir de mim. Recolo-a junto às outras crianças.
Depois da sessão, relataram-me que ela suportou muito mal, nesta
mesma manhã, a presença de um adulto perto de uma outra criança em seu
quarto, para uma observação. Ela começou a se balançar, e foi preciso que
uma enfermeira a conduzisse a um outro quarto porque ela começou a gritar.
O Real, a Demanda e o Significante 219

A 23 de outubro, encontro Marie-Françoise deitada em seu leito, a


expressão cansada. Quando me vê, ela senta-se e começa a balbuciar com
impaciência. Quase toda a sessão, ela fica de pé diante da mesma, com uma
desenvoltura corporal que eu ainda não tinha visto nela.
Ela suga um bombom, a cabeça baixa entre seus braços, e baba no
chão em vez de engulir; faço-lhe notar isto. Então ela come o bombom.
Lentamente, seu olhar passa do prato à mamadeira, da mamadeira ao
coelho, em seguida à caneca e por fim ao bebê. Ela me olha, com a mesma
atenção que ela acaba de dar a cada um desses objetos, como se eu fosse um
deles. Depois ela se senta com o bebê, dizendo-me: "bebê", e querendo olhar
o que está sob a fralda, desejo do qual tem muito medo. Ela aproxima-se
desta fralda com grandes reticências, olha para ela demoradamente, aproxima
o dedo, depois dá três ou quatro pancadinhas na fenda, antes de tentar intro-
duzir o dedo aí... Ela me olha interrogativamente, e retorna ao bebê que ela
olha perplexa. Ela coloca demoradamente sua boca sobre a boca do bebê.
Olhando para mim novamente, ela me lança uma série de palavras, o maxilar
bem para a frente: ''Bebê, bibi, pipi, tem': Dizendo teta ela olha a mama-
deira, fica de pé e diz "saiu, saiu", num tom violento.
Com seu olhar novamente na mamadeira, ela abre e fecha a boca como
se comesse, sem movimentos de sucção. Digo-lhe isto, o que reconduz seu
interesse para o prato. Então ela pega meu braço para aproximar minha mão
da colher. Quando esta está cheia, ela aproxima sua boca bem aberta, e vai
comer todo o conteúdo do prato desta forma.
Ela me come com os olhos enquanto eu a alimento, não sem uma
certa violência latente, quando seu olhar pousa sobre a mamadeira; o que me
faz pensar que o que eu dou é o substituto da mamadeira que ela não pode
pedir.
Enquanto ela come, tosse várias vezes; e como eu lhe digo isto, ela ri e
limpa a garganta. Digo-lhe que ela faz como se quisesse jogar fora esta comida
que ela pediu para lhe dar.
Ao longo desta cena, ela senta-se com o marinheiro que ela pressiona
bem forte contra seu olho, segurando sempre o bebê com a outra mão, mas
sem incorporá-lo.
Ela não fica contente quando o prato fica vazio. Ela esperneia, incli-
na-se cada vez mais para a caneca. Como ainda há pouco com a colher, ela
pega meu braço para que eu o aproxime dela. Eu deposito a caneca a seu
alcance e espero. Ela coloca aí um dedo tímido e inclina a caneca para ver o
que tem dentro. Constatando que é leite, ela levanta-se e com o olhar faz o
circuito caneca, mamadeira e eu, cuspindo perdigotos. Ela se decide, depois
de uma enérgica limpeza da garganfll, a me fazer pegar a caneca, depois de
ter aberto a boca sobre a beira desta. Ela vai querer beber tudo.
O termo "beber" não é exato: constato pela primeira vez distúrbios da
deglutição quando se trata de beber na caneca. De fato, ela mama; e bebendo
na caneca, seu olhar paira sem cessar sobre a mamadeira. Penso que sua recusa
em beber na caneca, enquanto que ela bebe de colherzinha e apresenta
220 Marie-Françoise ou o AÚtismo j
bulimia, tem por origem seu desejo não saciado de mamar, como ela balb
ciava ainda há pouco. i
Ela vai confirmar esta origem na cena seguinte, onde ela absorve todo •
leite da caneca derramado sobre a mesa por três intermediários sucessivolj
- Seus dedos, depois toda a palma da mão, que ela suga com deleite
olhando para mim. Faço-lhe notar que ela suga o leite de suas mãos, enquanto
me diz "saiu" para bebê ou mamãe.
- Um doce, que ela come por pedaços embebendo-o a cada vez no leitt1
- Os óculos, que ela suga após tê-los mergulhado na poça. Aí, ela nl'O
me olha mais, como se fosse demais sugar o leite por um pedaço de meu
corpo. Ela lambe o resto da poça de leite e se deixa cair sentada ainda segu,
rando os meus óculos.
Ela pega de novo o marinheiro e olha-o através dos ócu.los; isto é, ell
coloca uma lente contra o rosto do marinheiro, e aproxima o conjunto de seu
olho, a lente em contato com este último. Isto me pareceu um mecanismo
interessante de incorporação simbólica de uma parte de mim, uma parte qut
ela estima ter lhe sido tomada quando da separação de sua mãe na idade dl
amamentação.
Mas ela se furta assim desta maneira de um contato comigo. Penso que
a sessão de hoje já durou o suficiente. Entretanto ela não fica contente em
ser devolvida ao leito: ela retira seus sapatos e joga-os do outro lado do
quarto.

Eu disse que tinha introduzido a 21 de outubro a mamadeira porque ela


havia mostrado desde o início. uma atividade de sucção que me fazia pensar
que seria preciso fazê-la retornar a este estádio oral primário, bloqueada como
ela estava, diante do prato de arroz.
O fato é que, desde a primeira sessão, ela não teve nenhuma inibição
em sugar os bombons - é verdade que ela também comeu doces, logo, comeu
toda a comida, antes de me dar suas bofetadas. Nas sessões seguintes, ela
continuou esta sucção dos bombons que se opunha radicalmente à sua impos-
sibilidade de tocar no prato de arroz.
De início, ela ignora a mamadeira - seria voluntariamente, dado seu
olhar inexpressivo? - e lança-lhe em seguida apenas alguns olhares furtivos.
Mas sua excitação cresce. Na continuação da sessão, a presença da mama-
deira não é estranha, após alguns jogos de distração, ao intuito bem firmado
de futucar a cesta para pegar aí wna colher.
Após um jogo que consiste em jogá-la pro ar, recolhê-la, sacudi-la - o
mesmo jogo que ela tinha feito com meus óculos -, ela realiza o que eu havia
lhe dito: que eu só lhe daria de comer se ela me pedisse; isto é, ela coloca a
colher em minha mão olhando para o prato, a boca aberta, depois olhando
para mim com movimentos de mastigação. É preciso sublinhar aqui que eu
O Real, a Demanda e o Significante 221

,·sperei dela uma demanda ativa e sem ambiguidade para lhe dar de comer; eu
não me contentei com sua boca aberta e com seus olhos fascinados em cima
do prato: porque isto só teria a ver com a repetição da bulimia, lá onde não
"xiste nem Outro, nem desejo do sujeito; o desejo não pode passar senão por
uma demanda, mesmo se a conclusão, como ela o dirá após ter comido todo o
prato de arroz, for que "isso não é isso".
Se sua demanda só passou através de gestos, ela encontra o uso da boca
para me dizer que "isso não é isso", cuspindo perdigotos em meu rosto, com
o maxilar agressivamente para a frente, toda uma seqüência de fenômenos. :É
verdade que "isso" era o objeto escópico durante todo o tempo em que ela
,:omeu o arroz; pois seu olhar era atraído sem cessar para a mamadeira, para
logo desviar-se, ou ainda para mim, e de tão perto que eu pude dizer que ela
me comia com os olhos. Dito de outra forma, sua atividade oral tem muito a
ver com o escópico, isto é uma atividade de superfície; este foi o caso desde o
início, não somente na fascinação pelo prato de arroz que Marie-Françoise
mais de uma vez comeu com os olhos, colando seu rosto contra ele, mas
ainda quando ela pressionou um objeto, o marinheiro ou o bebê, contra seu
olho como que para fazer dele seu duplo. O próprio bebê lhe serviu para tapar
o furo de sua boca.
Toda a questão oscila pois, entre o furo do corpo e a superfície. Só
existe furo do corpo através do Outro: é este que deve ser afetado dele. Num
primeiro tempo, ele deve ser o único a ter o corpo furado. Foi o que Nadia
demonstrou explorando, desde o início, minha boca com insistência. O
pequeno sujeito não se viu de início, em seu corpo, como furado, porque o
turo de seu corpo é desde logo tapado pelos objetos do corpo do Outro.
Somente secundariamente, ao nível oral, o furo de seu corpo surge, com a
perda que ele experimenta, e que vai fazer emergir sua demanda ao Outro;
com a condição primordial que o debate, então, inscreva-se no significante.
O objeto enquanto que anulado em sua dimensão de Real pela mutação
significante, não vem preencher realmente o furo, mas deve passar pela
demanda ao Outro. Esta demanda permanecerá, após a anulação do Real,
obrigatoriamente insatisfeita - como seria ela satisfeita se, no Real nenhuma
demanda pode surgir, e que, no significante, via obrigatória da demanda,
nenhum Real pode vir preencher o furo?
Nem porque Marie-Françoise, após ter comido o prato de arroz, disse
que isso não é isso por todos os fonemas que ela me cospe, ela segue menos o
sentido inverso da demanda; isto é, ela me fez compreender que ela queria o
arroz por seus gestos sem articular sua demanda propriamente dita; e que
articulando seus fonemas ela só diz de sua recusa.
O essencial da cena não está no fato de que ela coma o arroz, mas em
seu olhar, sem cessar atraído pela mamadeira ou por mim. Dito de outra
maneira, o que exprime a situação para ela se situa não no oral, mas no
escópico: ter o objeto realmente, grudado em seu olho para colmatar a perda
que a atividade oral de comer lhe demonstra ao nível do furo de sua boca.
222 Marie-Françoise ou o Autismo

Nadia também, no início, só tinha o seu olhar para entrar em contato


com o que a cercava. Comentamos demoradamente a seu respeito este traço
essencial da função escópica, de ser, ao máximo, redutora de toda perda. Mat,
se podemos concluir por esta característica para Marie-Françoise, é preciso
ainda dar conta de uma diferença sensível entre ela e Nadia. Nadia impressio,
nava não só pelo seu olhar, mas pelo patético deste olhar, que podemos me1,
mo qualificar de vivo. O olhar de Marie-Françoise, é a morte; ele está vazio de
toda expressão e de toda emoção quando eu a vejo nas primeiras vezes, e
mesmo quando suas sessões são aparentemente ricas do que ela traz aí, como
a 4 de outubro, eu concluo um comportamento e um olhar de todo contato
comigo; como se ela quisesse apenas se assegurar de minha passividade,
No caso de Nadia, o escópico emparelhou-se rapidamente com a expio,
ração de minha boca que iria continuar quase até 10 de dezembro. Esta
exploração de minha boca era a maneira de Nadia dizer imediatamente que
eu era um Outro furado. Podemos mesmo adiantar que na cena de transiti,
vismo de 7 de novembro, quando ela vomitou no momento em que eu comi
o pedaço do biscoito, o que ela temia mais, era que este furo fosse preenchi,
do; ela se assegurou em seguida que ele não o foi, colocando seu dedo em
minha boca, antes que eu a deixasse. A partir deste furo em minha boca, ela
fundava a existência de objetos separáveis de meu corpo, ligados a outros
furos deste corpo, que tornavam possível sua satisfação. Mas por qual via?
Certamente não pela via do objeto real que ela poderia ter me tomado, ma,
pelo objeto velado que ela pôde me demandar quando, a 5 de dezembro, suai
mãos se crispavam em meu peito, tudo se resolveu no significante "mama"
que ela me lançou. Para ela, o Real dos objetos tinha sido promovido 4
significância e, se eu era portadora de objetos, era de objetos significantes,
Que, a 10 dezembro, ela tenha feito um retorno maciço ao escópico em sua
fascinação por "A + a.. , e que o Real tenha aí transparecido nos movimentos
de sucção, a dimensão então significante não era menos possível quando ela
ouviu, mesmo depois de ter resistido, o chamado de seu nome; o que acarre,
tou o recalque primordial, recalque fundado no fato de que existe significan-
te.e preciso ainda notar que a fascinação tinha a ver com a imagem e não
com o Real. Após este recalque, a predominância tão marcada do escópico
terminou, mesmo se, depois, ao longo mesmo da fase do espelho, ela quis
explorar a superfície de meus olhos.
Para Marie-Françoise, se seu olhar está morto, é que eu não tenho furos,
nada de furos para explorar, nada de objetos separáveis de meu corpo, ao
menos simbolicamente: como foi o pequeno outro para Nadia, quando eu
retirei minha mão do leito de seu vizinho, mesmo na ausência deste. Que eu
não tenha furo, para Marie-Françoise, resulta em que não tenha nenhum lugar
para ela em meu corpo onde a mutação dos objetos reais em significantes
possa se fazer. Ela está pois inteiramente abandonada ao Real dos objetos, e
a perda· que ela conhece só pode ser preenchida por objetos reais. Estes
objetos correspondem também ao preenchimento da ausência real, à qual ela
é confrontada na janela.
O Real, a Demanda e o Significante 223

Assim, a ausência de furos em meu corpo é correlativa da foraclusão do


registro significante dos objetos, de todos os objetos, e não somente dos
objetos-alimento. Nadia, como testemunhou o seu debate com a mamadeira,
leve que associar diferentes níveis pulsionais: escópico, oral, auditivo, para
tentar vencer o conflito que a oralidade levou ao máximo entre o objeto da
necessidade e o do desejo, entre o Real e o significante, entre o tudo e o nada.
Marie-Françoise tenta ligar a oralidade e seus escolhos ao escópico; mas no seu
caso, o objeto não deixa por isso o registro do Real. Se ele tropeça no objeto
oral, sua fascinação escópica não lhe socorre em nada; da mesma forma que
nada se resolve quando ela chega à crise convulsiva. Marie-Françoise fracassa
ao incluir o objeto .em seu olhar; ou, ainda, ela é privada de seu olhar, por
falta de poder incluir aí um objeto que permaneça real. Ela demonstra, entre-
' anto, que é bem na direção deste alvo que ela se dirige, ao mesmo tempo que
da encontra aí o impossível. Desde o início, com efeito, ela não cessa de colar
11 obj~to real em seu nariz; mais tarde, após o início do tratamento, sucessiva-
mente em seu nariz e em seu olho. Em seu nariz, é assim que é descrito sua
1clação com os objetos no quadro inicial: em vez de levá-los à boca como toda
criança de sua idade, ela pressiona-os em seu nariz, isto é, ela faz do nariz o
xubstituto do furo de sua boca, como se ela denegasse a própria existência
deste furo em seu corpo.
Desde a 2ª sessão, por certo, ela vem pegar meus óculos, joga-os e cola
seu rosto contra meu rosto, seus olhos a um centímetro do meu. Teria ela
leito um furo em mim, tomando meus óculos? Não penso; antes ela procurava
aí um contato de superfície dos olhos-órgãos, superfície sem furo, para ela e
para mim, que reuniam-se somente num acoplamento orgânico, que me
l:oloca como Outro, nem é de natureza a colocar o espaço do olhar. Eu sou
um dos objetos reais, que só foi privilegiado por ela muscularmente, pelas
hofetadas.
Pode-se dizer, em todo caso, que é o que aparece nas sessões; deve haver
entretanto um além para que, de um lado, ela preze tanto vir para a sessão
'lue ela chega a manifestar às vezes uma precipitação e uma certa alegria, com
uma mímica mais viva, e que, de outro lado, os efeitos das sessões, quanto à
,ua vida na instituição, me sejam relatados como uma mudança muito sensível
l:m relação aos outros, adultos e crianças.
A 22 de outubro, ela reencontra o prato, mas a experiência da véspera,
,mde ela comeu tudo depois de tê-lo demandado ativamente, não se repete:
Comer o prato, "isso não era isso"; "isso" é colar o objeto em seu olho; e é o
,1ue ela faz aproximando seu rosto bem junto do prato, deixando deslizar um
, ,Ihar para mim, dando mesmo um grito de apelo. Furiosa porque eu não
obedeço a este chamado, ela fica entretanto muito aliviada por eu não lhe dar
este arroz; isto teria sido forçá-la.
Quando eu lhe explico tudo isto, ela fica bem descontraída. Ela pega
meus óculos rindo, sacode-os, bate neles, lança-os, como ela já tinha feito com
a colher na sessão precedente. Não é sem espanto que encontramos, como no
l:aso de Nadia, este emparelhamento da colher com meus óculos. No caso de
224 Marie-Françoise ou o Autismo

Nadia, a ligação se fez em pleno período especular, a 6 de fevereiro, e tinha


um caráter bem representativo: meus óculos eram objeto de meu corpo, e 1
colher objeto do seu, ao mesmo tempo em que ela experimentava - colocan•
do-os e retirando-os na arca - sua aquisição da noção de conteúdo e de conti•
nente. Foi um passo decisivo que ela fez com o espelho. Evidentemente nA'o
acontece o mesmo com Marie-Françoise: tal qual a colher, meus óculos n(o
foram promovidos a outra coisa senão ao que eles são, isto é, um objeto dt
meu corpo, certamente, mas que não remete e não remeterá de fonna alguma
à exploração de meu corpo. Esta falta de articulação leva Marie-Françoise a
se contentar com seu jogo de encaixe habitual; mesmo este jogo dura pouco,
e ela se dirige para a porta como se ela não tivesse meios para dizer mais nada.
Que me relatem que após a sessão ela suportou muito mal a presença de
um adulto perto de uma outra criança, em seu quarto, não deixa de evocar a
imagem de Nadia "A+ a";ou melhor, o que Nadia não podia suportar ver, no
início do tratamento: a presença de uma outra criança perto de um adulto,
perto de mim particularmente. Como Nadia então, Marie-Françoise começou
a se balançar, e mesmo a gritar. É exatamente ao mesmo quadro que elas sã'o
confrontadas de maneira intolerável, e elas reagem a ele da mesma forma: n61
tínhamos notado no caso de Nadia o caráter de impossível e de Real da
presença do pequeno outro perto de mim; mas ressaltando que só foi preciso
quinze dias para que Nadia saísse desta impossibilidade real, interrogando
meu corpo e o furo que o outro podia deixar aí ao faltar, não só realmente,
mas simbolicamente.
A 23 de outubro, Marie-Françoise está esgotada; e, entretanto, ela vai
dar provas na sessão, de uma desenvoltura corporal muito maior. Ela começa
por sugar um bombom e, pela primeira vez, em vez de engulir a saliva, baixan-
do a cabeça entre seus dois braços apoiados na beira da mesa, ela deixa
escorrer a saliva no chão; o que vai sempre mais no sentido inverso de toda
satisfação oral, ou antes de toda ingestão, como que para afetar o furo de sua
boca de uma denegação.
Ela liga rapidamente, na cena seguinte, o furo de sua boca com a outra
extremidade do furo do corpo, que ela só pode explorar no bebê, dado o
componente escópico de sua exploração. O bebê tendo uma fralda, o olhar de
Marie-Françoise encontra rapidamente um obstáculo, isso por um lado; mas
por outro, ela tem medo de ver este furo. Este medo parece se acalmar pelo
olhar demorado que ela pousa sobre a fralda do bebê. Reencontramos aí a
função do véu, cuja importância Nadia mostrou muito precocemente; ou seja;
a necessidade deste véu diante do objeto para a articulação do Real com o
significante. Para Marie-Françoise, ela vai mostrar logo depois, sua exploração
visa primeiramente a existência ou não do furo. Por falta de uma abordagem
direta deste furo, após este longo olhar, ela aproxima seu dedo e tenta intro-
duzi-lo na fenda da fralda, mas é vão; ela não consegue mais do que que dar
três ou quatro palmadinhas na fenda da fralda, segundo seu modo de defesa
habitual diante dos objetos, defesa que, dissemos, substitui mesmo a sucção
do polegar quando ela adonnece, isto é, que ela evita realmente aí o furo de
O Real, a Demanda e o Significante 225

•,ua boca. Por enquanto, ela me olha de forma interrogativa, olha o bebê,
perplexa, e, retornando ao furo da boca deste, coloca aí demoradamente sua
própria boca.
A cena termina com uma explosão significante, como se uma pressão
11mito grande, que tivesse aumentado, não permitisse mais reter os significan-
1,.:s que brotavam da boca de Marie-Françoise num rasgo e faziam sentido:
11lhando para mim, ela lança, o maxilar para a frente: "bebê, bibi, pipi, teta",
,. dizendo '"teta" olha a mamadeira, fica de pé, diz com um tom violento:
"·saiu, saiu". Neste rasgo, o real da ausência foi transposto em significante; a
lúgica do significante arrasta Marie-Françoise e ela me dirige sua demanda.
Infelizmente, sua boca se refecha sobre o significante. E é somente
dirigindo meus gestos que ela me faz pegar a colher e enchê-la no prato. Se
,·la come assim todo o conteúdo do prato, como da primeira vez, ela mostra
,,ue não é isso, a julgar pela tensão que toma conta dela quando seu olhar pára
11a mamadeira, ou ainda pelos movimentos de tosse que a sacodem quando ela
,·orne; como se ela quisesse recusar este alimento; mesma recusa que ela
,,xprimiu na ante-véspera cuspindo e lançando-me fonemas no rosto.
O passo que se anunciava tão claramente nos significantes, antes que ela
comesse, dá uma reviravolta,já que, durante a sessão mesmo, ela se senta com
,1 marinheiro, pressionando-o bem forte contra seu olho, sempre segurando o

hebê com a outra mão;este alimento decididamente não é "isso", ele não é de
,neu corpo, o Outro não está implicado aí, e Marie-Françoise fica reduzida a
tapar o furo de seu corpo com o marinheiro, este duplo, não sobre sua boca,
mas, deslizando para o escópico, colando-o sobre seu olho.
A cena seguinte é uma nova tentativa, sempre em relação com a mama-
deira que ela olha mas não pode tocar, e na direção da qual ela cospe limpan-
<lo a garganta, antes de me fazer pegar a caneca e de conduzir minha mão a
lim de colocar sua boca na beira desta caneca.
"Conduzir minha mão" é bastante específico da relação do autista com
o corpo do Outro: ele manipula-o, em seu corpo todo, como um objeto. Eis
aí a assinatura de uma relação ao Real do corpo do Outro, que fracasse ao
recortar aí objetos: parciais, diz-se classicamente, significantes pode-se dizer
mais justamente, na medida em que, somente a dialética significante permite
este recorte do corpo do Outro. Nadia nos demonstrou isso longamente na
impossibilidade que ela tinha em me tocar, como em tocar qualquer objeto -
eu penso em seu destrave para largar, e também em suas palmas das mãos para
o ar quando eu a carregava -, antes que seu trajeto tenha podido levá-la a
articular sua demanda do objeto do qual eu era portadora, pela via do signi-
ncante.
Retornemos a Marie-Françoise: ela quer beber toda a caneca em reali-
dade ela não bebe, ela mama, olhar fixo na mamadeira; quer dizer que ela
chega aí, com a caneca, ao objeto substitutivo da mamadeira, na"o sem antes
tropeçar numa impossibilidade, visto que, evidentemente, a maior parte do
leite, nestas condições, encontra-se derramado sobre a mesa. Este leite derra-
mado, ela vai ao ponto extremo do que ela pode atingir para absorvê-lo, por
226 Marie-Françoise ou o Autismo

três intennediários sucessivos. Existe aí uma tentativa última de mediatizar


sua relação oral ao leite, num contexto onde ela tem tanto a dizer: a sucção,
relação primitiva ao corpo do Outro, mas que falha ainda, na medida em que,
após ter passado pelo seu próprio corpo e em seguida pelo doce, é demais
para ela utilizar meus óculos para absorver o leite. Então, ela não me olha
mais e retorna ao Real de seu corpo, lambendo o fim da poça, sem ter podido,
em nenhum momento, estabelecer sua demanda e dirigi-la a mim.
No entanto, ela segura ainda meus óculos em sua mão, quando ela se
deixa cair sentada no final. Então, como sempre, o que do oral não é senão
um puro fracasso faz com que ela se contente com o escópico e com o cha-
peamento sobre seu olho. Mas, pela primeira vez, alguma coisa de mim partici-
pa deste revestimento: ela coloca uma lente contra o rosto do marinheiro,
como se meu olho também estivesse interessado, e ela aproxima o conjunto
de seu olho, a lente de meus óculos estando em contato com este último.
Nós reencontramos aqui o que Nadia conheceu, quanto a seu olho e a
meu olho: após o deslocamento da imagem de seu olho, a 10 de dezembro, ela
tinha transposto esta imagem para a superfície de meu próprio olho, depois
que eu a nomeei, e depois u,1 recalque. Foi aí que em seguida ela foi procu-
rá-la sem cessar, até o espelho decolar enfim esta imagem do olho, do seu e do
meu, ao estabelecer uma distância, um espaço tridimensional onde a superfí-
cie deixou de ser a única dimensão de sua relação de objeto. Foi isto que
Marie-Françoise não pôde atingir.
O que ela não pode atingir, exatamente, se a cada instante as substitui-
ções de objeto estouram manifestamente em todas as cenas sucessivas? Em
particular, todos os objetos-alimento vieram tomar o lugar da mamadeira,
como testemunham os olhares furtivos que ela lança em sua direção enquanto
ela come estes objetos. Esta atitude substitutiva não está no princípio da
metáfora? A cada instante, aliás, a atitude de Marie-Françoise nesta ordem
nos faz pensar em um puro decalque da atitude de Nadia; tudo está aí, mesmo
o significante, do qual certas sucessões são bem mais ricas que os fonemas
empregados por Nadia - isto evidentemente em relação com a diferença de
idade.
Qual é pois a diferença fundamental entre Nadia e Marie-Françoise? e
uma diferença inteiramente situada na relação ao Outro. No caso de Nadia, a
relação ao objeto passa pelo Outro, que ela interroga sem cessar; o objeto
perde aí sua dimensão de Real, muta-se em significante, no lugar mesmo do
Outro que eu sou. Sua relação ao Outro torna-se tão prevalente que toda
relação de objeto passa por este Outro, ao mesmo tempo que aí se produz a
significância. Daí, este caráter essencial da relação de objeto, de ser uma rela-
ção à falta de objeto que funda o desejo em Nadia. Nada parecido no caso de
Marie-Françoise onde encontra-se também o Real - oh! quanto - e o signifi-
cante ; mas eles permanecem separados, por motivo de que o significante não
possa se inscrever no outro, inexistente enquanto tal, para ela, e que ela
manipula como não importa qual outro objeto real, fazendo-o passar de uma
O Real, a Demanda e o Signficante 227

ausência real na janela à uma presença não menos real quando ela se dirige a
mim. Assim ela fracassa, a despeito das aparências, na verdadeira dimensão de
1oda a palavra articulada que é a metáfora; a fortiori fracassa também na
outra estrutura significante que é a metonímia. O discurso psicótico, nos
1.:nsina Marie-Françoise, pode operar uma mudança, mas a substituição só
se sustenta aí pelo Real dos objetos, sem que se produza a significância no
Outro, absolutamente indispensável para que se possa falar em metáfora. Este
comportamento é constitutivo da exclusão da castração, da qual o psicótico,
nestas condições, não quer, ou não pode, nada saber.
CAPÍTULO VII
O DUPLO E O REAL
A perda revelada no escópico e a
auséncia do olliar

25, 27 e 29 de outubro

DD A 25 de outubro, as crianças de seu quarto me ouvem arrumar a sala e


vêm se amontoar no alto dos degraus. Marie-Françoise, que não se encontra
na primeira fila, balbucia, furiosa. Assim que me aproximo, ela me estende os
braços por cima da cabeça dos outros.
Colocada de volta ao chão na sala de sessões, ela lança um olhar provo-
cador para as outras crianças, e desloca-se bem rápido, sobre seu traseiro,
para a mesa. Ela fica de pé, pega os bombons e começa a sugá-los.
A sessão de hc~e é uma reação muito importante à precedente. Como
ela tinha dado um passo adiante, hoje ela dá um passo para trás. A sessão que
tinha seguido aquela em que ela havia demandado e recebido pela primeira
vez alimento tinha trazido de volta trepidações, balanceio, comportamento
autista, tiques e recusa a mim. Vai acontecer o mesmo nesta sessão, mas de
maneira atenuada: certos comportamentos adquiridos são utilizados, assim
como certos objetos intermediários, embora vindos de mim; o contato é
menos autista. Mas, ao cabo de dez minutos, ela vai querer voltar para junto
das outras crianças.
Ela gira a sessão inteira em volta do desejo de que eu a alimente sem
que ela o peça ativamente. Ora, se eu obedecesse a este desejo ambivalente,
isto equivaleria a que fosse eu que cortasse o contato entre ela e eu: dado
o caráter autista da bulimia.
Ela consegue entretanto me demandar ativamente o alimento colocando
a colher em minha mão e abrindo a boca, ou pegando a caneca. Sua participa·
ção gestual é wna tentativa de fazer com que o alimento perca este caráter
autista. A cena se resume assim: ela aproxima bem seu rosto do prato, os
olhos fora das órbitas, fazendo seu olhar ir do prato a mim, dando wn grito
de apelo, o maxilar para a frente, e ela começa a trepidar olhando de novo
para o prato. Ela recomeça a mesma cena com a caneca. Ela começa a esper-
near com um breve olhar para a mamadeira. Lembro-lhe que ela sabe pedir
de verdade, quando ela não está cãvidida em seu desejo.
Ela pega o bebê e senta-se com ela a meus pés. Ela não sabe o que fazer
com ele; olha-o com um olhar ausente, depois coloca-o perto dela para logo se
levantar e pegar meus óculos. Por duas vezes seguidas, ela mergulha-os no
.. ·- ...,,,· ...
O Duplo e o Real 229

arroz doce e suga-os, depois ela se deixa cair sentada novamente, olhando
para mim furiosa. Ela me mostra meus óculos, bate neles, lança-os sorrindo e
,,handona-os para substituUos pelo marinheiro que ela gruda em seu olho
para incorporá-lo. Ela começa a rugir, mas ela não está afastada de mim; o
, 11gido agressivo me está dirigido; em seguida ela pára, me olha.
Ela própria termina a sessão; e eu a ouço rir com os outros enquanto
,·u errumo o material.
A 27 de outubro, ela tenta ser alimentada como da última vez. Como
da olha o prato dando gritos de apelo, eu lhe falo da colher que ela sabe me
dar quando ela quer. Ela olha para a colher, hesita e seu olhar desliza para
meus óculos. Relembro-lhe que ela serviu-se deles como de uma colher.
1·:ntão ela aproxima-se bem de mim, coloca sua mão em meu colo e olha-me
demoradamente, abrindo e fechando a boca, como se ela me comesse; o que
"u digo a ela. .
Pennanecendo apoiada em meu colo, ela olha a mamadeira, o bebê,
depois diz: "bebê, teta, levando de novo seu olhar para meus óculos. Ela
;1vança lentamente a mão para pegá-los. Ela faz com que eles deslizem pelo
meu nariz, devagarinho, até que ela possa fechar de novo sua boca sobre a
11arte redonda da armação, cuidando para que a extremidade de uma haste
,·steja em meus lábios. Como ela desvia um pouco de minha boca, ela levanta
:1 haste para que ela venha bem contra minha boca e fica assim por uma
dezena de segundos, olhando-me intensamente.
Então ela se deixa cair a meus pés, sacode um pouco meus óculos, fica
de pé diante do prato onde ela refaz a mesma cena ambivalente de demanda;é
1,em claro que ela deseja minha passividade.
Ela esperneia, pega um doce do qual ela come um pedacinho, depois,
,ilhando para mim,joga-o violentamente em minha direção.
Novamente, ela olha o prato, a mamadeira, a caneca, o bebê. Diz de
novo "bebê, teta" esticando a cabeça em minha direção, mas com o olhar na
mamadeira, numa atitude muito contraída; ela se deixa cair, numa mlío o
l1ebê, cuja fralda ela olha com grande interesse, e na outra mão meus óculos;
,,la paraliza-se assim numa atitude hierática.
Lembro-lhe a cena de ainda há pouco com meus óculos, as cenas em
que ela colocava sua boca sobre a do bebê, seu medo de minha boca no início
rio tratamento, e sua vontade de me comer correspondente.
Então ela sai de sua contemplação, olha para mim, joga o bebê num
eanto, meus óculos em outro, a leiteirinha que ela acaba de pegar ainda em
tmtra direção. Torna-se então hiperativa, pegando peças da louça de brinque-
do, encastrando-as e desencastrando-as bem depressa e jogando-as longe.
Atividade de fuga, pois ela se dirige imediatamente depois para a porta de
saída.
Eu espero um pouco, depois me aproximo. Ela me olha bem no rosto,
me diz "não", e a toda velocidade vem para a mesa, e pega a colher. Ao
passar, ela notou o penico pela primeira vez.
230 Marie-Françoise ou o Autismo

Ela tem uma maneira muito curiosa de encher a colher, bem comparável
à sua maneira de deglutir quando ela bebe na caneca. Ela arrasta a colher n1
superfície da sêmola de trás para frente, o fundo da colher sobre a sêmola. Ao
cabo de três vezes, a colher se enche. Então ela come, e recomeça várias vezes,
até que a colher arraste um pedaço de nata: ela olha-a pender, recoloca-a den,
tro, tenta tirá-la; mas a angústia cresce e ela se deixa cair sentada, olhando
para mim com uma expressão muito dolorosa. Eu recoloco a nata no prato
Marie-Françoise pega de novo a colher e sem a menor hesitação, tira a nata,
que ela derruba do outro lado do prato. Então ela me olha encantada, come
duas ou três colheres, depois começa a jogar, com a colher, a sêmola na mesa
ou no chão, cada vez mais violentamente.
Como sua expressão de dor enquanto ela mesma se alimentava me
impressionou, digo-lhe o quanto é doloroso chegar ao ponto de se alimentar
sozinha, na idade onde o alimento é ainda a ma'.e, sua presença, seu calor.
Alime!ltando-se sozinha diante de mim na sessão, ela pôde realizar pela
primeira vez quanto ela teve, porque sua mãe n!ío estava lá, de despojar o
alimento de seu verdadeiro sentido - de dom a receber -, para chegar à
bulimia. Assim ela pode em seguida, furiosa com este alimento desprovido de
sentido, porque dado a ela por ela mesma, colocá-lo em todo lugar: é que eu
não sou ainda "uma outra".
Ela senta-se para contemplar as pequenas massas de sêmola dissemina-
das, e isto acarreta uma cena extremamente penosa. Ela pega o marinheiro,
senta-se de costas para mim, começa a trepidar segurando o marinheiro numa
mão, e a colher na outra. Colocando o marinheiro entre suas pernas abertas, e
bem perto de sua fralda, ela bate nele com a colher. E ela aproxima a boca
deste marinheiro, o que a faz colocar-se acorada sobre o ventre, trepidando
duas ou três vezes, por cima do marinheiro, sempre contra sua fralda. Depois
ela fica de pé para vir espalhar com violência as massas de sêmola, rugindo.
Ela dirige-se finalmente à porta de saída. Como eu abro a porta, ela vai
em direção à bacia d'água que ela ignorou até agora, inclina-se para ela como
inclinava-se para o prato; em seguida ela sai.
A 29 de outubro, Marie-Françoise vai debater-se com seus sentimentos
para com o prato de arroz, sentimentos que mudaram um pouco desde a
última experiência. Na sessão precedente, alimentando-se sozinha, ela se deu
conta do vazio afetivo deste alimento com o qual ela se preenchia; de onde
suas fugidias expressões dolorosas, que testemunharam sua tomada de cons-
ciência desta realidade. Hoje, ela vai tentar insuflar um sentido afetivo ao
alimento, antes de encher-se dele. É mais ou menos o sentimento que me deu
toda a sessão.
Diante da mesa, ela começa contemplando o arroz, depois seu olhar
pousa sucessivamente em cada objeto da mesa, antes de pousar em mim. Ela
dá um breve grito de apelo, para que eu a alimente, mas que não é acompa-
nhado de nenhum gesto em direção da colher. Aliás, esta meia-demanda é
mais um rito do que uma realidade. Ela aproxima-se de mim, apoia-se em meu
O Duplo e o Real 231

joelho e olha-me demoradamente, seu olhar bem perto do meu, como se ela
me incorporasse, com o mesmo mecanismo que ela usa com os objetos dos
quais ela quer fazer seu duplo. Seu olhar sai da órbita um instante, depois
toma-se muito doce, sem tonalidade devorante.
Ela não toca em meus óculos, com exceção da extremidade das hastes,
mas é unicamente para retirá-los, para que eles não representem mais o papel
de tela entre seu olhar e o meu. Ela volta para diante do prato, contempla-o,
apanha meus óculos para mergulhar uma haste no ª"ºz e sugá-la. Isto tam-
bém não é o que ela procura e ela os deixa cair. Ela chega a subir em cima
deles e, todo o resto da sessão, ela vai manter um pé sobre uma das hastes de
meus óculos.
Durante um momento muito longo, ela vai falar com o arroz doce. Ela
lança para ele uma série de fonemas variados, alguns compreensíveis como:
"saiu, teta, bebê, não mamãe, quero não", e outros que parecem a fusão de
dois verbos: "demandar e comer"~ Estes fonemas, ela os pronuncia quer seja
violentamente, o maxilar para frente, quer seja muito docemente, bem baixi-
nho. De tempos em tempos, eles são dirigidos a mim, o que me dá verdadeira-
mente a impressão de que ela está buscando dar um sentido afetivo ao alimen-
to. Isto toma-se tão evidente para mim que eu lhe dígo;e ela entende, pois ela
pára, olha demoradamente para a mamadeira e diz: "mamãe, saiu", deixan-
do-se cair sentada, como que transpassada, esmagada pelo que lhe acontece.
Ela interrompe então por cinco minutos a emoção da cena interessan-
do-se pelas peças da louça de brinquedo, encastrando e desencastrando-as,
sempre com lógica, dando-se conta imediatamente das impossibilidades. Ela
experimenta alegria no seu sucesso e em mostra-me.
Ela lança alguns olhares para a bacia d'água; uma vez, debruça-se em
cima dela; então, tensa, ela atira longe as peças da louça de brinquedo, e vem
em seguida colocar-se de pé diante do prato.
Ela olha o arroz, ao mesmo tempo em que aproxima-se de mim, termi-
nando por apoiar-se em meu colo. Bruscamente, ela toma uma decisão: rea-
proximando-se do prato, ela pega a colher e, manobrando-a da mesma manei-
ra que na sessão precedente, começa a comer, mas só come três colheradas.
Ela me olha como se procurasse o papel que ela deseja me fazer representar;
é exato; pois, voltando a mergulhar a colher flo arroz, ela lambuza minha face
e minha testa três vezes seguidas.
Esta lambuzeira, feita a primeira vez bastante agressivamente, e depois
muito docemente, quase com amor, me faz pensar que ela me lambuza para
preparar o que vai seguir, isto é, lamber minha face, logo a iI:Jcorporação de

* Mais compreensível em francês onde os verbos se prestam a esta combinação:


"demanaer et manger". N. da T.
232 Marie-Françoise ou o Autismo

um alimento que terá reencontrado seu sentido mais primitivo 1 , o que eu digo
a ela relembrando-lhe a cena semelhante com a cabeça do bebê.
Esgotada, ela se deixa cair sentada, atira longe um brinquedo agressiva-
mente, depois fica de pé, pega o marinheiro e começa a mesma cena da última
sessão, mas interrompe para retornar ao alimento, desta vez a caneca. Ela
tenta em vão beber nele, porque ela morde a borda da caneca, e o leite
escorre. Furiosa, ela atira-o longe dela e toma a cair sentada.
Falo-lhe do fim de sessão e vou abrir a porta. Ela não está contente e
vai depressa na direção da bacúz para tentar mergulhar aí uma leiteirinha. Mas
ela não pode decidir-se, joga-a e dirige-se para a porta.

A sessão de 25 de outubro só merece comentário para confirmar o que


precedeu:
1 -- A cena do início, com a vitória fácil que Marie-Françoise tem sobre
as outras crianças que vêm se amontoar no alto dos degraus da sala, não tem
nada a ver com a questão dos pequenos outros em relação a mim. São puros
objetos que ela elimina, sem colocar de jeito algum uma tal questão (como
Nadia tinha feito no início de seu tratamento: o lugar que ela supunha a este
último para mim a inibia ou a desesperava porque existia um Outro para
ela). Para Marie-Françoise, estas outras crianças são apenas obstáculos reais
entre ela e os objetos da sessão que estão sobre a mesa, mas eu estou pratica-
mente ausente; salvo talvez a título de instrumento.
2 - A sessão prossegue nesta perspectiva e toda relação aos objetos de
alimento não vai me implicar enquanto Outro. Chega a um ponto tal que eu
lhe recuso, apesar de seu apelo, este alimento que ela não me demanda verda·
deiramente, mas diante do qual ela está pronta para retomar sua atitude do
início: afastada de mim, ela começa a trepidar olhando para o prato.
3 - Minha recusa leva Marie-Françoise a tentar reintroduzir o outro
entre ela e mim, sob a forma do ôebê. Mas não é uma imagem; é somente um
objeto real sobre o qual ela pousa um olhar ausente.
4 - Este fracasso a conduz enfim a dirigir-se a meus óculos que pode-
riam representar, no limite, o papel de um objeto que ela gostaria de recolher
de mim, o que faria deste objeto um objeto significante. É este provavelmente
todo o esforço que ela faz para me seguir no que eu lhe digo e que ela com-
preende muito bem, se se pode dizer, como é clássico observar que os peque-
nos psicóticos "compreendem" tudo o que lhe dizem. De qual compreensão
por aparente que seja se trata pois? Marie-Françoise nos diz quando ela me
mostra meus óculos, bate neles, lança-os e abandona-os para pegar o mari-

1 Era o que pensava no momento referendando-me inconscientemente em Nadia.


Veremos que não foi nada disso.
O Duplo e o Real 233

nheiro, grudá-lo em seu olho e começa a rugir para mim: é como se ela tivesse
percebido, por um curto instante, que ela me fez perder qualquer coisa pelos
meus óculos, perda que vale também para ela e da qual ela me imputaria a
1esponsabilidade, ao mesmo tempo em que ela a recusaria radicalmente
colmatando-a com o marinheiro sobre seu olho. O marinheiro, é o Real, é
seu duplo que a defende do significante do objeto de meu corpo.
Na sessão seguinte, a 27 de outubro, ela esboça uma aproximação
corporal comigo quando ela coloca sua mão em meu joelho, ao mesmo tempo
em que ela me olha demoradamente e faz movimentos com a boca. Então ela
1:ntende bem seu desejo de me comer, que eu lhe digo, visto que, olhando a
mamadeira e o bebê ela diz: "bebê, "teta". Mas seu movimento em direção
ao objeto oral logo acaba entroncada como ela está sobre o Real do objeto,
da só pode retornar ao registro escópico. Ao contrário de Nadia, que se refu-
1•,iou ne~te registro, porque ele é, por natureza o que menos revela a perda do
sujeito, Marie-Françoise pega meus óculos para obturar sua boca e se ligar em
meus lábios, como se, por este meio, ela revelasse o menos possível, não sua
perda, mas a minha. Quando em seguida ela retorna ao o~eto-alimento e que
da não pode me fazer sua demanda, eu noto que ela deseja minha passividade
,.· percebo então que ela não poderia tolerar que eu lhe desse o alimento, o
'lue me privaria dele.
Mesmo transitivismo ao contrário, quando ela come um pedaço de doce
,, joga-o violentamente em minha direção. É um impasse: sua demanda, por
falta de significante, não pode se exprimir e Marie-Françoise passa apenas pela
via dos objetos reais; ela pode conduzir, não tanto a uma satisfação, mas sim-
plesmente à expressão deste impasse: o bebê numa mão, e meus óculos em
,iutra, ela fica estática no limite, o bebê, é ela que fica separada do objetivo
de meu corpo.
Porque este impossível? Ela o diz quando sai de sua atitude imóvel, para
1,m vão encastrar e desencastrar as peças da louça: "as pequenas cavilhas nos
pequenos buracos", atividade da qual ela diz a inutilidade desesperadora
atirando tudo longe. O Real não responde.
Após uma falsa saída, ela retorna ao prato de sêmola; talvez ela tente,
passeando a colher na superfície do prato e rechaçando, não sem angústia, a
11ata do leite, mostrar que uma superfície sem furo é um muro; que é por um
furo nesta superfície que se poderia alcançar o objeto: a nata do leite, é a pele
do Outro, que se interpõe entre ela e a sêmola. É o que Marie-Françoise diz
quando, indo derrubar a nata fora do prato, ela pode comer duas ou três
,,olheradas de sêmola; mas ela não pode suportá-lo por muito tempo e dis-
persa a sêmola com violência. Ela fez da pela vazia do Outro um obstáculo,
visto que ela não pode tolerar fazer nele um furo. O Outro, é a mke que ela
perdeu. É o que lhe digo; e acrescento o quanto é doloroso, na sua idade,
alimentar-se sozinha e despojar o alimento de seu verdadeiro sentido, pelo
!'ato de que eu ainda não sou um Outro.
234 Marie-Françoise ou o Autismo

Na cena que segue, por mais penosa que seja, Marie-Françoise não
mostra menos que o alimento fracassa para ela em obturar o furo de seu
corpo, seja a boca ou o orifício inferior deste furo. O alimento fracassou no
tapar e ela termina por espalhá-lo completamente, rugindo. Ela se volta para o
marinheiro, seu duplo real, que ela aplica não mais sobre seu olho ou sobre
seu nariz, mas contra sua fralda, pronta a se colocar de cócoras para que ele
esteja também perto de sua boca e que ele sirva assim de tampa para os dois
orifícios. A relação deste marinheiro com o alimento fica evidente pela pri·
meira vez: visto que, sempre segurando a colher numa mão, ela bate nele
como bateu na comida. Tudo isto se inscreve contra toda interpretação indo
num sentido auto-erótico da cena: não mais masturbação aqui do que na
sucção do polegar. Após sua tentativa de tapar o furo de seu corpo, ela só
pode fugir, fugir de mim, após ter confirmado o que eu lhe disse, que não
existe Outro para ela no alimento. Visto que não existe Outro para ela no
alimento que ela coloca em sua boca, ela faz significar imediatamente que isso
não existe no outro orifício do furo de seu corpo: eis porque ela tenta obtu-
rá-lo com seu duplo real.
A 29 de outubro, após ter encontrado o mesmo impasse com o alimento
para encontrar seu Outro, ela retoma o caminho do escópico: ela aproxima
seus olhos tão perto dos meus que ela parece querer me incorporar, como faz
com seu duplo, o marinheiro. É preciso crer que ela encontra nele algum
esboço do Outro visto que seu olhar, primeiro fora da órbita como diante do
prato de arroz no início, toma-se muito doce, sem tonalidade devorante.
Ela tenta então fazer a aproximação entre o olhar e o alimento, mergu•
lhando no arroz e sugando a haste dos óculos que ela me tomou. Mas esta
tentativa de ligar a mim o objeto oral com a ajuda de meus óculos logo acaba.
Nadia fez isso com freqüência e seu balbucio dirigia-se a mim, isto é, ao Outro
que eu era para ela. Marie-Françoise também fala neste momento, mas não é
a mim que ela se dirige primeiramente, é ao arroz-doce;entretanto não é um
simples balbucio, é quase uma frase que resume sua história: "saiu, teta, bebê,
não mamã, qué não!". Sem muitas conjecturas, pode-se compreender que ela
fala da perda de sua mãe quando ela era ainda um bebê que mamava e que,
sem sua mãe, "ela não quer". O que é que ela não quer? Ficamos tentados a
responder com os dois verbos condensados que eu acredito escutar no que ela
diz: "demandar" e "comer". "Demandar" a um Outro que não é sua mãe, no
lugar da qual existe uma ausência real, isto é, não dialetizável, ela não o quer;
e "comer", ela não quer também visto que o Real do que ela pode comer não
contém sua mãe perdida. Isto se torna tão evidente para mim que eu digo a
ela. Com certeza, ela compreende, mas é olhando ainda para o objeto, para a
mamadeira, que ela diz: "mamãe, saiu" e se deixa cair sentada, esmagada por
este Real.
Nosso propósito deve ser interrompido aqui um instante, para interro-
gar tais palavras numa criança qualificada de autista, não sem razão; não
somente por causa do quadro inicial que ela apresentava, mas também, como
vimos repetidas vezes, pelo que a afasta de mim radicalmente, a despeito da
O Duplo e o Real 235

espera do Outro - na qual dá mostras que se encontra a cada instante. Suas


palavras são cheias de significação e de "consciência", poder-se-ia dizer. Mas
a consciência seria possível para ela, já que suas palavras não me colocam
como Outro junto ao qual, por regressão, ela poderia reviver e rememorar o
traumatismo do seu abandono? Ela me faz apenas de testemunha, testemunha
de uma ausência real, mas não de uma perda. Pois, stricto sensu, é a inscrição
da perda no Outro que provoca a demanda, significante, pelo sujeito, do
objeto de corpo a este Outro. Ora, Marie-Françoise promoveu um objeto que
não é significante ( o marinheiro) ao papel de duplo real para responder à
au!iência real do corpo do Outro.
Ela realiza o caso que tínhamos evocado para Nadia, quando do primei-
ro espelho, caso onde, após ter perdido seu marinheiro, ela teria se voltado e
não teria visto ninguém; o risco teria sido grande da báscula na psicose. O
confronto ao Real de sua perda teria tomado o lugar de sua imagem metoní-
mica.
O que está em causa aqui é toda a questão da transferência e do lugar
do analista: seja como meio da restituição ad integrum do corpo no Real -
primeira parte do processo de cura da psicose -, seja como testemunha de
uma perda - processo significante, como foi para Nadia, a 10 de dezembro,
quando eu me torno o lugar da perda que desemboca na metonímia do corpo.
É preciso pois que a perda não seja somente a do sujeito, caso em que estare-
mos no Real; é preciso que ela passe pelo Outro que, num mesmo movimento,
a inscreve enquanto que lugar do significante e, enquanto tal, é por ele afeta-
1!0. A ausência Real do Outro para Marie-Françoise a impede de afetar o
Outro de uma perda, que é o efeito da inscrição do Real no significante no
lugar do Outro. O Outro ausente realmente não pode advir a este lugar. Qual-
1iuer que seja o primum movens - sempre a questão do ovo e da galinha: a
recusa do significante que implica uma perda no Outro, ou a recusa do Outro,
porque ele não é para Marie-Françoise o Outro realmente perdido.
Após esta cena, Marie-Françoise apenas refugia-se nos encastramentos
reais, como na sessão precedente. Mas ela tenta novamente uma abertura
aproximando-se de mim; depois de pegar a colher e arrastá-la pela superfície
do arroz, ela vira-se para mim como se procurasse o papel que ela deseja me
fazer representar: da superfície do arroz ã superfície de minha pele, ela me
lambuza a face e a testa.
Auguro muito esta lambuzeira quanto à incorporação de um alimento
1!0 corpo que poderia reencontrar seu sentido mais primitivo, com a condição
de que ela a faça passar pelo meu corpo. Não posso me impedir então de fazer
para ela a ligação entre esta lambuzeira e aquela da cabeça do bebê caído den-
tro do prato de arroz. É a mesma lambuzeira, aparentemente, que Nadia utili-
1.ou ao longo do período fecundo do espelho, lambuzeira que ela começava
cm sua pele, para vir colar-se à minha antes de nos confrontarmos no espelho.
Mas Marie-Françoise não se lambuzou para vir me lambuzar. É somente a
mim que ela 1am buza.
236 Marie-Françoise ou o Autismo

Se esta lambuzeira tem o mesmo sentido que para Nadia, isto é, dt


presentificar a superfície de um corpo não furado, não é pois, como para
Nadia, de seu corpo que se trata, mas do meu. Ora, somente um corpo furado
pode fundar o Outro em sua presença em face do corpo do pequeno sujeito,
que, originalmente, não deve ser furado. Se ela me lambuza, não é o Outrn
que ela atinge. Tanto quanto, em sua lambuzeira de cocô, o Outro não estd
presente e ela perde também o outro, por falta de poder inscrevê-lo no Outrn,
como uma imagem.
Então, esgotada, ela se deixa cair sentada e, pegando o marinheiro,
esboça a mesma cena que na sessão precedente: ela confirma assim que meu
lambuzamento fez de meu corpo um corpo não furado; só lhe resta tapar com
o marinheiro o furo de seu próprio corpo. No registro do Real, lhe é impossf•
vel recolher de meu corpo um objeto que taparia o furo do seu, como Nadin
fazia no registro dos objetos significantes. Entretanto, a abertura que ela fez
deixa um rastro; pois ela apenas esboça a cena com o marinheiro para retornar
ao alimento, à caneca. Indicação última do que ela procura: tapar o furo de
sua boca bebendo leite. Mas sua tentativa é vã; ela não pode beber o leite quc
escorre pelo lado de sua boca e é o objeto real, a caneca, que ela morde antes
de lançá-lo longe dela, furiosa, e de cair de novo sentada. Nadia teria mordido
meu corpo. Marie-Françoise é sempre remetida à sua própria perda real, que
ela procura preencher realmente. Ela não pode atingir a perda do Outro, que
o instauraria enquanto tal.
CAPITULO VIII
A TENTAÇÃO DO OUTRO PORTADOR DO OBJETO

31 de outubro, 3 e 5 de novembro

IJ A 31 de outubro, enquanto eu arrumo o material, ela consegue descer


sentada um degrau, depois dá um grito de apelo para descer o segundo degrau.
Eu a faço descer; ela aproxima-se depressa da mesa sobre a qual eu ainda não
coloquei nada, e espera.
Ela me olha desembrulhar os bombons com muito interesse. Constato
que ela compreendeu muito bem que ela só pode comê-los se eu tiro o papel.
Ela pega os bombons e coloca-os todos de vez na boca. Eu a faço notar que,
colocando de vez na boca todos os bombons, ela não pode nem prová-los nem
comê-los, e ela só faz babar. Ela retira-os de sua boca e coloca-os sobre a me-
sa, depois olha os novos doces que têm uma forma diferente e, pegando um
deles deixa-o cair dentro do prato. Então, ela olha para mim e aproxima-se,
apoiando-se com uma mão em meu colo.
Ao longo desta sessão, por três vezes, ela vai vir para perto de mim,
procurando meu contato e meu calor. A cada vez aliás, ela dá um passo a mais
110 estabelecimento deste contato. Sinto uma emoção real e uma confiança
que descontraem seu olhar, até torná-lo muito presente e muito profundo. É a
grande inovação desta sessão.
Ela retorna para junto do prato, emite um breve grito de apelo para que
w a faça comer. Depois vem pegar meus óculos, mergulha uma haste no
arroz, suga-a, e deixa-os cair. Ela volta para junto de mim, e pega um lápis que
da notou em meu bolso. Ela serve-se dele primeiro como uma colher para ela,
cm seguida para mim. Mas para mim, ela primeiramente lambe-o por comple-
to, e ela tenta fazê-lo e11 Irar em minha boca, toc:ar meus dentes, e arrancar
alguma coisa de minha hoca. Ela o faz tão violentamente que cai sentada no
chão, desconcertada. Ela levanta-se para pegar a colher e comer, colocando
muito arroz sobre a mesa, e vindo lambuzar minha face.
Em seguida ela se deixa cair sentada e abandona-se a um jogo agressivo
com os três objetos que lhe serviram para pegar o alimento: meus óculos, o
lápis e a colher. Ela lança-os, torna a pegá-los, sacode-os, e então, depois de
ter olhado para mim, termina por espalhá-los pelos quatro cantos da sala.
Ela fica de pé, olha demoradamente a mamadeira, o prato, com ressen-
timento, depois a caneca que ela inclina em sua direção para saber se está
cheia. Todo estes olhares carregados de emoção terminam em mim. Ela apro-
xima-se, coloca uma mão sobre cada joelho meu, levanta os ombros como se
Marie-Françoise ou o Autismo
238

ela quisesse que eu a carregasse, mas ao mesmo tempo curva cada vez mais 1~
l
cabeça na direção de meu peito. Ela permanece alguns segundos nesta puU.
ção, endireita-se, afasta minha bata com suas mãos, e enfia sua cabeça ,MI
abertura. Ela olha e gostaria de abandonar-se, mas não pode.
Ela endireita-se, olha o prato, depois, inclinando-se de novo em minlld
direção, me diz baixinho: "quero não", como uma confidência dolorosa, l' llf
deixa cair sentada, acabrunhada, seu olhar no meu perturbado.
Ela se diverte num jogo agressivo com a colher, depois pega um doce f
joga-o violentamente na água da hacia, olhando para mim, batendo o pé 1
dando um grito. Ela acentua mesmo sua expressão agressiva contra mini
voltando-me as costas, botando as mãos no chão e levantando o calcanlt~
em minha direção.
Marie-Françoise senta-se e desloca-se até a bacia d'água, mas não 01111
tocá-la. Então, ela contenta-se com o encastramento das peças da louça df
brinquedo, que ela consegue muito habilmente em ordem decrescente. EII
me toma como testemunha de seu sucesso e parece ater-se aí particularmente,
Eu me pergunto porque, após ter me olhado de uma maneira agressiva 1
ela tenta, de propósito, fazer encastramentos impossíveis com a mesma lóg.,·a,
invertendo com exatidão a ordem dos três recipientes. Ela chega a fazer u1111
torre instável, em sua vontade de recusar o encaixe. Penso que o sentido
e.leste desejo é e.lado pela pausa que ela vai de novo fazer diante da bacia,
halhuciando agressivamente. Ela retorna então às peças da louça de brinquedo
para escondê-las sob seu leito.
Vou abrir a porta de comunicação: ela esperneia, furiosa, depois estendo
os braços para a enfermeira.
o A 3 de novembro, Marie-Françoise me faz esperar perto de um quarto
de hora antes de vir para a sessão: uma outra terapeuta veio buscar uma outrl
menininha, e ela ficou perturbada novamente com este quadro de um adulto o
de uma cdança. Por um tempo, eia me ignora e se balança; depois ela mostra
muito interesse pela caixinha de pó de arroz de uma enfermeira, da qual ela
tenta abrir o fecho-éclair. Ela olha para mim rindo de tempos em tempos,
depois retorna ao pó de arroz. Ela deve aliás defendê-lo contra duas outral
crianças, e ela sabe muito bem afastar os inoportunos. A enfermeira abre o pó
de arroz para lhe mostrar sua imagem no espelhinho. Marie-Françoise fica de
pé, olha no espelho, o maxilar projetado para frente, emitindo fonemas agres-
sivos. Não penso que ela identifica o que ela vê como sua imagem, seu duplo,
o que seria particularmente problemático para eia. Mas olhando-se, ela toca
atrás do espelho, como que para constatar se é um vidro ou não.
A sessão, em seguida, vai concernir, em todo o seu curso, o problema do
alimento.
Marie-Françoise come primeiro os bombons, um a um, pela primeira
vez; em seguida ela se interessa muito de perto pelo prato, e, endireitando-se,
faz alguns "nham-nham". Ela vira-se para mim e repete seus "nham-nham",
como diante do prato. Então se produz alguma coisa de muito importante,
concernindo o papel da palavra nas sessões: eu verbalizo o sentido destes
A Tentação do Outro Portador do Objeto 239

''nham-nham" sucessivos em direção ao prato, depois em minha direção. Ela


retoma para diante do prato e expectora uma chuva de fonemas agressivos,
incompreensíveis; eu tenho a impressão de serem voluntariamente incompre-
,msíveis. Eu noto depois, no prosseguimento da cena, que há uma recrudes-
cência destes fonemas cada vez que eu falo, como se ela quisesse me fazer
calar. Lentamente, meu silêncio acarreta o seu. Eu adoto então a política do
silêncio total, e este silêncio cria o vazio que lhe é indispensável para obrigá-la
a projetar.
Eu associei esta cena dos fonemas ao problema da bulimia, julgando que
uma e outra tivessem o mesmo caráter de vazio emocional. Não existe mais
significação nos fonemas do que no alimento absorvido por bulimia, e esta
ausência de signHicação se defme em relação a mim.
Ela ainda não pode me absorver pelo alimento - aí está o problema
que, transposto para o plano verbal, faz com que ela não possa tampouco
absorver minhas palavras que ela percebe vazias de sentido, o que ela reproduz
nestes fonemas incoerentes, enquanto que ela sabe muito bem pronunciar
palavras inteligíveis e compreensíveis para todos.
Meu silêncio mergulha-a no vazio, confronta-a com a ausência de
sentido, e ela vem então apoiar-se em meu colo, quase enroscar-se em mim,
com um rosto desamparado, para me dizer, olhando para o prato: "quero não,
mamãe!", num tom bem baixo e patético, como uma confidência. Ela retoma
para diante do prato, olha-me; respondo-lhe apenas com um olhar caloroso.
Ela volta a quase enroscar-se e retorna ao prato.
Ela pega a colher, serve-se dela de sua maneira habitual e mesmo ainda
mais desajeitadamente, de sorte que nada chega até sua boca, o que nã'o
parece lhe perturbar. Ao cabo de três vezes, ela se inclina, diz à sêmola:
"mamãe", muito docemente e ergue-se novamente.
Ela olha a mamadeira e o bebê e começa a empurrar a sêmola sobre a
mesa com a colher. Ela faz três massas. Depois ela consegue comer um pouco
de sêmola com a colher.
Uma vez, a colher cheia é esvaziada ao pé da mamadeira; a partir deste
momento, a cena vai se tomar visivelmente dolorosa. Marie-Françoise deixa
cair a colher e tem grandes dificuldades para tornar a pegá-la, apresentando
então os distúrbios de preensão do início, que a fazem gemer e quase chorar.
Ela termina por conseguir, e serve-se da colher para derramar o resto da
sêmola sobre a mesa. Constatando que não há mais nada no prato, ela
recomeça a gemer e deixa a colher cair novamente. Ela tem os mesmos
distúrbios de preensão que contraem seu rosto de dor. Ela termina por
abandonar, quer dizer que ela se deixa cair sentada, e tenta se acalmar com o
marinheiro como anteriormente, e com as imagens sobre as caixas de encaixar.
A 5 de novembro, o início da sessão é todo impregnado de uma hesita-
ção de Marie-Françoise entre a agressividade e a vontade de vir para mim, que,
por fim, triunfará claramente.
Sentada sobre os degraus de comunicação esperando Marie-Françoise,
eu ouço-a soprar como uma foca ao aproximar-se a hora da sessão. Quando
240 Marie-Françoise ou o Autismo

ela me vê sentada para esperar sua decisão, ela leva à boca o brinquedo que
ela tiP..ha na mão, uma espécie de rã, depois se balança. Eu não manifesto
nenhuma reação. Por isso ela pára emitindo alguns fonemas agressivos, e
estendendo a mão para mim, abraindo-a e fechando-a, como para arrancar.
Diante de minha passividade, ela se levanta e vem para mim estendendo os
braços.
Deposito-a na sala de sessões; pela primeira vez, não tenho a impressão,
enquanto a carrego, de que ela tenha pressa de ser recolocada no chão. E, pela
primeira vez também, no momento em que eu a tomo em meus braços, seu
rosto toma uma expressão de doçura.
A atmosfera da sessão vai ser muito nova,. Eu não ouvirei um só fonema
agressivo. Ela vai permanecer surpreendentemente silenciosa e eu sinto um
contato profundo entre ela e mim. Tudo o que ela fará será lento e com
emoção.
De pé diante da mesa como de hábito, ela come os bombons lenta-
mente; mas seu interesse é dirigido para a mamadeira, e seu olhar vai dela ao
hehê, depois pousa em mim. Ela contempla a mamadeira demoradamente,
depois começa a trepidar diante dela; e quando ela não pode mais suportar
isso, ela me olha como se me pedisse ajuda.
Para lhe mostrar que compreendi, eu levanto a mamadeira e recoloco-a
imediatamente no mesmo lugar, dizendo-lhe que compreendo sua emoção.
Ela olha novamente a mamadeira, mas com um olhar mais vivo, e fazendo um
barulho de sucção. Em seguida ela começa a trepidar e me pede de novo
ajuda. Eu faço a mesma coisa que fiz ainda há pouco.
Então, ela pega a colher para tocar a mamadeira, depois seu bico. Ela
faz isso com uma certa reserva, sem dar palmadinhas; dessa maneira ela tem
coragem de tocar todo o comprimento da mamadeira e do bico. Ela parece
feliz com a gota de mingau que a colher depositou sobre o bico.
Mas isto é suficiente com a mamadeira, e ela não vai mais ocupar-se dela
por hoje.
A novidade é que, para abstrair-se deste interesse que ela prefere ignorar
agora, ela não tem necessidade de se deixar cair sentada para entregar-se a um
jogo mais ou menos estereotipado de diversão. Esta diversão, ela obtém sugan-
do uma série de substitutos da mamadeira e comendo o mingau. Os substitu-
tos da mamadeira serão:
1 - A colher que ela tem na mão e com a qual ela come um pouquinho.
Ela come bem lentamente e derrama o mingau na mesa, espalhando-o em
seguida com a mão com satisfação.
2 - O traseiro do coelho que ela mergulha e suga: outro pólo do corpo,
fechando o circuito de maneira autista.
3 - Meus óculos que ela começa a untar de mingau com a colher, como
se ela lhe desse de comer, logo a mim por seu intermédio. Em seguida, ela
mergulha-os inteiramente no prato, lambuzando-os com a mão. Em seguida,
ou ela suga-os ou serve-se deles para besuntar meu rosto. Na primeira vez,
colocar o mingau em meu rosto dá no mesmo que me bater; mas nas outras
A Tentação do Outro Portador do Objeto 241

duas vezes, ela o faz com muita emoção, como se quisesse me fazer absorver o
alimento por todos os poros de minha pele, e wn alimento que não seria mau.
Esta absorção de alimento por toda a superfície do corpo, é o ato real, que ela
tinha transposto psicoticamente para a absorção dos objetos, apoiando-os em
seu olho e face, para fazer deles seu duplo. Ela está em via de me fazer seu
duplo.
Ela deve evidentemente fazer o mesmo com ela própria, com:
4 - Sua mão, que ela mergulha inteiramente no mingau; ela suga-o em
seguida, come-a quase, lambuzando sua face.
Agora que fui identificada a ela por seus ritos, ela vai procurar avançar
na incorporação que ela quer fazer de mim; ela me toma; por isso:
5 - Meu relógi.o, isto é, que ela puxa até que eu lhe dê. Ela olha para
ele, leva-o à seu ouvido, olhando para mim. Depois ela mergulha-o no mingau,
suga e mordisca a pulseira de couro, sempre olhando para mim. Ela recomeça
uma vez, depois coloca o relógio no fundo do prato onde ela besunta-o copio-
samente de mingau com sua mão.
Agora ela se deixa cair senlllda, mas é de uma maneira nova. Há aí
evidentemente corte da emoção, mas, enquanto que até aqui este corte era
provocado por uma emoção que torturava, hoje ela apenas me dá a impressão
de que ela não pode ir mais longe no que ela acaba de viver.
Esta emoção entretanto, a deixa desorientada o bastante para ser tenta-
da a retomar ao marinheiro: ela pega-o e vira-me as costas.
Esta sessão tão rica não durou mais de vinte minutos. Marie-Françoise
retorna após o fim da sessão e chora ao me ver levar o material.

o
A 31 de outubro, observo que a grande inovação da sessão é um olhar
muito presente e muito profundo, humano, que Marie-Françoise despeja
sobre mim. Este olhar - novo para ela - presentifica a perda possível, na
medida em que o olhar é sempre portador da perda sem o sujeito sabê-lo.
Esta ignorância da perda, é o Inconsciente, e toda a questão do recalque
primordial.
Esta já era a questão que eu me fiz na primeira vez que ela colocou o
marinheiro contra seu olho: perguntando-me se, de tão perto, ela podia vê-lo,
vê-lo assim mesmo. Vê-lo, era para ela desconhecer ou melhor preencher a
perda, apagar o olhar em proveito da superfície o olho.
Na cena seguinte, nós não podemos deixar de pensar em Nadia, quando
Marie-Françoise pega um lápis em meu bolso, serve-se dele como de uma
colher, seja para ela ou para mim, finalmente toca em meus dentes com o
lápis e faz como se quisesse arrancar alguma coisa de minha boca: o que Nadia
conseguiu, após ter puxado meus dentes a 1o de novembro, e querido separar
um dos meus dedos a 28 de outubro, isto é, que meu corpo fosse marcado do
furo necessário a meu estatuto de Outro.
242 Marie-Françoise ou o Autismo

Parece que Marie-Françoise dá um passo totalmente em acordo com o


advento de seu olhar, quando, num primeiro tempo, ela se abandona a um
jogo agressivo com os três objetos que lhe serviram para pegar o alimento no
início da sessão: meus óculos e meu lápis por um lado, e sua collier por outro.
Ela evoca, novamente, o caminho de Nadia associando meus óculos e sua
colher no fundo da arca. Marie-Françoise não chega ainda aí e contenta-se em
brincar com estes objetos, antes de espalhá-los pela sala.
Mas sobretudo, num segundo tempo, os objetos-alimentos, mamadeira,
prato, caneca, não captam mais seu olhar II ponto de afastá-la de mim. Ao
contrário, seu olhar termina em mim e sua emoção é visível. Então, ela pode
aproximar-se e colocar uma mão sobre meu colo, levantando os ombros como
se ela me pedisse para carregá-la e inclinando sua cabeça cada vez mais perto
de meu peito. Depois de permanecer alguns instantes nesta posição, ela
endireita-se, afasta minha bata com as mãos e enfia sua cabeça na abertura.
Mas ela só pode ficar assim por um curto instante, levanta-se, olha o prato e,
inclinando-se novamente para mim, diz baixinho: "quero não".
Não podemos saber se este "qué não" doloroso dirige-se ao caráter de
impossível do prato, ou, o que é muito mais provável, ao objeto de meu corpo
do qual, pela primeira vez, ela pôde se aproximar de maneira decisiva. Seu
"quero não", não é mais o Real e o impossível que a afastavam de mim;é a
denegação do que ela quer, isto é claro demais: é o inter-dito. O impossível do
Real desemboca aqui no super-eu mais arcaico e mais tirânico, que a esmaga e
faz com que ela se deixe cair sentada, seu olhar no meu, perturbado.
Com certeza, sua expressão significante, pode lhe fazer levar em conta,
sob uma forma invertida, sua demanda, que a coloca como sujeito. Mas o Real
aí transparece ainda no que lhe impõe de denegação de sua demanda funda-
mental ao Outro.
Uma via de entrada na psicose não se indica aí, quando o Real, o da au-
sência da mãe por exemplo, é metabolizado no pequeno sujeito sob a forma
do interdito feroz do super-eu arcaico, deixando-a esmagada, esgotada no pa-
redão impossível?
Aprendemos aí a articulação do Real e do significante, articulação onde
o super-eu se enraíza na necessidade que o sujeito tem de se constituir pelo
significante anulando o Real: processo de simbolização, no qual o Real está
lá no fundamento do que ele poderia não estar aí.
A perda real de sua mãe aos 2 meses remeteu Marie-Francoise ao Real
absoluto da ausência, bloqueando toda simbolização, o Real não cessando de
ser real. Se o significante reencontra sua via, como Marie-Francoise a reencon-
tra nesta cena, o caráter absoluto do interdito no significante responde ao
caráter absoluto do impossível no Real. O que falta ã simbolização, reaparece
no Real, mas com esta possibilidade de significância que se inscreve no super-
eu arcaico.
Afastar minha blusa e mergulhar aí sua cabeça, foi exatamente o que
Nadia fez quatro vezes, entre 30 de dezembro e 4 de janeiro. Mas a demanda
insastifeita de Nadia estava longe de remetê-la ao esmagamento de uma perda
A Tentação do Outro Portador do Objeto 243

real que Marie-Francoise conheceu aos 2 meses. Nadia tinha conhecido esta
perda, mas ao nascer, muito cedo para que o jogo da presença e da ausência,
no registro simbólico, cessasse e se detivesse no "tudo ou nada" do Real e do
super-eu arcaico. Nadia, insatisfeita, não hesitava em me fazer tomar conheci-
mento disto, batendo em meu peito, antes de, a cada vez, se fazer beijar terna-
mente. A ambivalência de Nadia salvaguardava o Outro que eu era, que não se
encontrava destruído por sua agressividade, e lhe permitia prosseguir na busca
do objeto "a" em meu corpo: ela assegura-se disto dirigindo-se ao furo de
minha boca, o qual a remetia a seu próprio corpo não furado.
Marie-Françoise ultrapassa seu esmagamento na cena seguinte, tornan-
do-se agressiva. Primeiramente com os objetos, e ainda não diretamente
contra mim: ela ataca a colher, depois joga violentamente um doce na água da
bacia. Entíío, ela olha para mim batendo o pé e dando um grito, mas só pode
prosseguir contra mim virando-me as costas e dando uma pancada de calca-
nhar em minha direção: agressividade ao mesmo tempo muscular e anal pela
sua posição, mas que níío se define.
Ela volta, com efeito, para o encastramento das peças da louça de
brinquedo. E pela primeira vez, neste jogo, ela me mostra o impossível inver-
tendo a ordem dos três recipientes que ela tinha de início encastrado: recusa
do encaixe que tem a ver com a recusa, ou melhor a impossibilidade, do
encaixe dos corpos, do seu e do meu, na indecisão onde ela ainda está quanto
ao que é dos furos destes corpos.
Talvez, também, possamos evocar a recusa de Nadia (após minha nome-
açíío a 10 de dezembro) de ser em seu corpo como um todo a cavilha do furo
de meu próprio corpo, quando ela só me estende metonimicamente apenas
um pedaço do seu corpo, o pé.
Marie-Françoise não pode atingir esta metonímia de seu próprio corpo,
que seria propriamente significante. Ela pode apenas representar meu corpo
pela bacia d'água, cuja existência para si Marie-Françoise já indicou várias
vezes nas sessões precedentes, fazendo diante dela uma pausa rápida com um
olhar interrogativo. Nesta sessão, ela pode até jogar aí, pela primeira vez, um
doce. Ela pára aí novamente, após seus encastres, balbuciando agressivamente.
E não é dentro da bacia que ela coloca as peças de seus encastres. Indo escon-
dê-los sob seu leito, ela diz que estas peças têm a ver com seu próprio corpo,
cujo despedaçamento ( como o de Nadia, a 10 de dezembro) participa da meto-
n íÍ:nia e poderia fazer esperar a busca da unidade na imagem especular.
Ao contrário de Nadia que tinha pedido, ela mesma, o espelho, Maria-
Françoise encontra-o fortuitamente a 3 de novembro: uma enfermeira lhe
oferece sua imagem no espelho de uma caixinha de pó de arroz, com a qual
ela está brincando. Então, Marie-Françoise fica de pé, olha no espelho, o
maxilar projetado para frente, emitindo fonemas agressivos. Eu disse que ela
não identifica o que vê como sua imagem. O fato é que ela vai procurar no
verso do espelho o objeto que ela vê nele, como se o espelho fosse apenas um
vidro.
244 Marie-Françoise ou o Autismo

O que ela vê não é nem uma imagem, como Nadia fez quando do pri-
meiro espelho, para desviar-se dela bem rápido; nem seu duplo, do qual sabe-
mos que aquele que lhe faz as vezes, o marinheiro, ela o cola em seu olho. Elo
não fica pois particularmente perturbada com este encontro que não entra em
nenhuma categoria que pudesse interpelá-la quanto a seu corpo. Para Marie-
Françoise, o especular não existe.
A sessão vai concernir sua relação aos objetos que fazem às vezes de
espelho, de alimento, assim como o lugar que aí tem a palavra.
Primeiramente ela cola seu rosto contra o prato de arroz, como ela fez
freqüentemente. A experiência do espelho, da qual ela acaba de demonstrar
que ela está ainda na espera, permite avançar que o prato de arroz está mais
perto de representar uma espécie de espelho que o próprio espelho: na medida
em que o que ela encontra aí está no lugar da imagem daquilo que lhe falta.
Se, até então, este prato era apenas um Real impossível, ela dá agora o
passo que Nadia deu, a 5 de dezembro, onde a aproximação do objeto, velado,
é bem verdade, que era meu peito, resolveu-se no surgimento do significante
"mama", seguido de sua ternura para comigo. Marie-Françoise, como Nadia,
pode se referir ao significante, diante do objeto que é o prato de arroz, profe-
rindo alguns "nham-nham". Ela pode até virar-se para mim e repetir seus
"nham-nham", como diante do prato. Mas aí cessa o paralelo; pois assim que
eu aproximo seus "nham-nham" da expressão de uma demanda a mim e que
cu lhe digo isto, não é ternura que ela manifesta, é a anulação de sua deman-
da, sob a forma de uma chuva de fonemas agressivos e incompreensíveis.
O primeiro tempo de sua recusa, é de que aí tenha um sentido, o segun-
do tempo, é de que exista aí até significante: ela faz com que eu me cale, ela
não quer que eu fale. Ela reproduz assim a ausência de sentido do alimento
absorvido por bulimia.
Desamparada então por esta repetição, ela retoma, embora enroscan-
do-se em mhn, a denegação dolorosa da sessão precedente: "qué não, mamã",
onde o "qué não" acompanha-se aqui do significante "mamã", embora ela
diga estas palavras olhando para o prato. Este apelo, aliás, é para a sêmola que
ela o faz com muita docura, alguns instantes mais tarde, após ter tentado
comer dela tão desajeitadamente que nada chegou até sua boca. Mesmo se,
como Nadia, Marie-Françoise chegou a pronunciar "mamã", isto é a fazer
referência ao Outro, referência onde, antes do espelho, já pode ter um papel a
miragem da identificação narcísica primária - o que foi o caso para Nadia -,
Marie-Françoise só pode mirar-se no objeto, a sêmola, à qual ela dirige o signi-
ficante.
Mas a sêmola não é um espelho;ela não lhe remete nenhuma imagem;e
também não lhe mascara a perda como o espelho. É o inverso que se produz;
e quando ela esvazia a colher cheia junto da mamadeira, se não podemos falar
propriamente que é o objeto da perda que se revela, ao menos trata-se do
objeto dolorosamente impossível. Dolorosa também torna-se esta colher que
ela deixa cair e que ela só pode apanhar gemendo, para derramar o resto da
A Tentação do Outro Portador do Objeto 245

sêmola sobre a mesa; diante do vazio do prato onde se encontrava o "mingau-


mamã", ela deixa cair a colher e suas tentativas de apanhá-la contraem seu
rosto com uma dor patética.
Esta cena é o oposto da conquista da colher que Nadia tinha alcançado
sobre mim, para fazer dela o objeto metonímico - não sem que o início ela
lenha conhecido as mesmas difculdades de preensão que Marie-Francoise,
com seus destraves para largar. Se Nadia desembocou, com a colher, na con-
quista do mundo exterior, Marie-Francoise, por sua vez, permanece colada ao
Real do objeto perdido. É o que a remete a seu duplo, o marinheiro, mas
também a alguma coisa nova: pela primeira vez, ela se interessa pelas imagens
sobre as caixas de encaixar .
. , A 5 de novembro, observo que o contato corporal comigo é muito me-
nos conflitante, e sinto Marie-Françoise muito mais confiante em mim.
Se ela encontra o obstáculo habitual de tensão diante da mamadeira, ela
é capaz, no momento em que ela trepida, diante dele, de me pedir ajuda. Visi-
velmente, minha presença junto a ela é muito mais clara que antes. Ela reco-
meça este pedido de ajuda uma segunda vez; e para lhe mostrar que eu com-
preendi, eu levanto a mamadeira e recoloco-a no mesmo lugar falando com
Marie-Francoise. Então, ela pode tocar na mamadeira com a colher, não sem
inbição, mas feliz no final porque a colher deixou uma gota de mingau sobre
o bico da mamadeira, como um rastro.
Ela deixa a mamadeira e vai comer o mingau, com a ajuda de cinco objetos
sucessivos: a colher, o traseiro de um coelho de pelúcia, meus óculos, sua
mão, meu relógio. Ao longo desta cena, a lambuzeira e o espalhamento do
mingau dominam. Primeiramente ela espalha-o sobre a mesa, após tê-lo der-
ramado aí com sua mão. Em seguida, são meus óculos que ela besunta, bem
cônscia e do qual ela se serve para me lambuzar.
Toda a cena repete aquela, não tão antiga, de 27 de outubro; quer dizer
que aqui ainda contrariamente ao que se passa com Nadia, ela não se lambuza
antes de me lambuzar, mas lambuza a mim somente.
Alguma coisa, entretanto, percebi, do que ela fazia aí sobre meu corpo:
ela está fazendo de mim o seu duplo, eu escrevi. Lambuzando-me, Marie-Fran-
çoise faz de mim um além do duplo: sem furo talvez, mas onde ela poderia se
mirar narcisicamente - como Nadia, após ter se lambuzado, não me lambuza-
va menos ao precionar seu corpo lambuzado contra o meu, além mesmo da
busca do furo de meu corpo. _
Na ordem inversa da de Nadia, Marie-Françoise, logo depois, não vai
deixar de, comendo o mingau com sua mã'o, lambuzar sua face pela primeira
vez. Lambuzadas todas duas, como estávamos Nadia e eu, antes do espelho;
nós não estamos neste ponto, mas uma perda surge em meu corpo, sob a
forma de um objeto que Marie-Françoise pode colher dele, meu relógio - já
será um objeto na via do significante? - que ela escuta olhando para mim,
mergulha no mingau e suga, sempre olhando-me. Não anularia ela a perda que
ela me fez sofrer, besuntando-o copiosamente de mingau logo depois? Ao
menos isto já é totalmente simbólico.
246 Marie-Françoise ou o Autismo

Isto não a impede (tã'o grande é a audácia que ela mostrou), de poder ir
mais longe.
Um pouco mais tarde, ela chora ao me ver levar o material da sessão:
que é, desde a véspera em que ela o escondeu sob seu leito, verdadeiramente
seu; o que diz bem da divisão, que ela vive ainda, entre seu debate comigo e a
antiga via do duplo.
CAPITULO IX
O ESPELHO NO REAL
A inversão topológica na psicose

10-19 de novembro

D
, 1 Não pude levar Marie-Françoise para a sessão durante cinco dias, e
0videntemente, a 10 de novembro, ela vai reagir à minha ausência, sobretudo
depois da sessão importante do dia 5.
Encontro-a sozinha em cima dos degraus, e ela consegue descer sozinha.
Ela vem pegar e comer os bombons; mas, após um olhar para a mama-
deira, para o bebê e o prato, ela retoma ao cômodo de onde ela veio, levando
uma marmita .
. A 12 de novembro, infelizmente, a sala de sessões habitual está ocupada
e eu preparo uma outra sala no mesmo andar. Uma enfermeira traz Marie·
Françoise em lágrimas, desde o jardim de infância onde ela já chorava.
Assim que me vê nesta sala nova, ela pára de chorar e quer ser posta no
chão. Ela anda até a mesa e começa a comer os bombons como de hábito.
A sessão vai ser bastante longa visto que por duas vezes ela recusará
veementemente o final da sessão. Sessão de recusa, que ela exprimirá pela
primeira vez de uma maneira mais nonnal, sem estereotipia nem tentativa de
afastar-se de mim através da absorção de objetos. Ela será silenciosa, passiva,
com um olhar voluntariamente distante e frio; mas nenhuma só vez ela terá
um olhar de demente.
Ela olha para mim intensamente enquanto come os bombons, e eu lhe
explico por que estamos numa nova sala. Ela inspeciona a sala com o olhar,
fixando mais demoradamente sua atenção num pavão colado na parede,
depois num pedaço de céu e no alto das árvores que ela percebe por cima da
parte translúcida da janela.
O olhar que ela pousa em todos os objetos é presente, interessado, e eu
não sinto nele nenhuma inquietação. Assim que ele retoma a mim, ele é
voluntariamente distante, mas não ausente. Ela não se afasta de minha
presença, mas me exprime seu ressentimento.
Os bombons acabados e sua inspeção terminada, seu olhar vai para a
mamadeira, o bebê e o prato. Após ter contemplado demorada e silenciosa-
mente abandona a colher; sobretudo, ela colocou mingau sobre toda a mesa;
ela pega meus óculos, mergulha-os inteiramente no prato, suga-os e me 'bate
com eles. Ela deixa-os no prato, toma a pegar a colher para bater em meu
rosto com força, e tentar cravá-la em meu olho, com um olhar furioso: sempre
os olhos como substitutos da boca. Ela termina o que há no prato com a mão,
248 Marie-Françoise ou o Autismo

lambendo-a com deleite. De vez em quando ela vem puxar meus cabelos con,
sua mão cheia de mingau, e termina por me dar uma bofetada.
Eu ·p,enso em encerrar a sessão, mas, assim que chego na porta, ela
vira-se, olha-me profundamente e me diz com violência: "não, quero não'',
Então, volto a sentar-me. Ao constatar que eu estou reinstalada, durante
cinco minutos, ostensivamente, ela só se interessa por aquilo que ela percebe
por cima do vidro da janela. Mas, se eu faço o mesmo, ela olha para mim
furiosa, e se reabsorve nesta contemplação quando meu olhar retorna para ela.
Ela termina a sessão encastrando peças da louça de brinquedo, depot,
de ter me dito um outro: "não, qué não", mas num tom mais satisfeito.
É uma enfermeira à qual ela estendeu os braços que a reconduz ao
jardim de infância. Lá, ela começa a andar com agressividade quando uma
outra criança agarra-se em meu avental e brinca de se esconder embaixo dele.
'·-. A 13 de novembro, eu preparo a mesma sala que na véspera, e decido cu
mesma tentar conduzir, Marie-Françoise do jardim de infância até a sala de
sessões.
Encontro-a sentada embaixo da mesa com um brinquedo. Ela balbucia
quando eu entro no cômodo, começa a agitar agressivamente seus braços e
pernas, depois, percebendo uma outra criança, a mesma da véspera, que se
desloca em minha direção, ela quer ficar de pé para vir para mim, mas bate a
cabeça com força na mesa e cai de novo sentada. Ela me olha furiosa e come-
ça a chorar. Eu venho em sua direção, ela pára de chorar e estende-me os
braços; cu a conduzo. Durante o trajeto de alguns instantes, pelo corredor, ela
está calma e lança olhares para os quartos.
Ela arranca meus óculos e eu a coloco no chão ao entrar na sala. Pela
primeira vez, ela se faz ser colocada de pé, e ela anda bastante rápido para a
mesa. Ela pega os bombons e começa a comê-los enquanto eu fecho a porta e
sento-me. Ela olha para mim, e em seguida, ostensivamente, olha para a copa
das árvores. Assim como ontem, se eu faço como ela, ela me olha e não olha
mais para fora. Isto dura cinco minutos. Eu interpreto e ela ri.
Ela explora com a mão a mamadeira e o bico desta, mas apenas com
dois dedos. Se ela dá provas de reticências, um real interesse por esta explora·
ção lhe permite transigir com seu medo. Em seguida ela pega a colher, enche-a
e lambe-a uma vez, depois enche-a novamente para derramá-la sobre o bico da
mamadeira, com alegria, como se ela lhe desse de comer; o que digo a ela.
Então ela abandona a colher para pegar meus óculos e servir-se deles para
comer por duas vezes. Ela deixa-os no prato para me dar uma bofetada retum-
bante.
Ela volta-se para o bebê que ela pega, e senta-se para olhá-lo intensa-
mente. Ela levanta-se deixando-o no chão.
Ela volta para a mesa e faz pastas de mingau que ela espalha com sua
mão; depois pega um doce e começa a comê-lo. Mas então ela me olha e joga
os doces agressivamente um após o outro, em direção da bacia, com um ar
triunfante.
O Espelho no Real 249

Ela apanha o bebê e mete sua cara no prato corno para fazê-lo comer.
Ela deixa-o assim para pegar um doce e começar a comê-lo.
Eu verbalizo o que ela faz. Ela me olha intensamente, e joga agressiva-
lllente os dois doces na direção da bacia. De novo, ela vira-se triunfante para
mim, torna a pegar o bebê, suga-lhe as duas mãos, joga-o e come o que resta
do mingau com sua mão, depois de ter puxado meus cabelos com força.
Ela prefere permanecer em seu circuito autista, isto é, comer a si mes-
ma, a investir o alimento de uma realidade afetiva em relação a mim. Ela
,:ompõe seus meios de defesa e eu não os interpreto, mas ela parece surpreen-
dentemente consciente do que ela quer exprimir.
Ela senta-se no chão, pega duas peças da louça de brinquedo que ela
,:ncaixa e desencaixa.
Ela deixa cair a leiteirinha na bacia. Todos os brinquedos da cesta vão
segui-la nesta bacia, e ela coloca-os ai deliberadamente.
Depois ela fica de pé e interessa-se pela cadeirinha azul que ela sacode.
Reconduzo-a ao jardim de infância com meus óculos, que a enfenneira
tomará dela alguns minutos mais tarde.

A 15 de novembro, assim que ela me vê, ela se levanta e anda até a sala
vizinha, antiga sala de sessões. Constatando que o material não está aí, ela
volta-se para mim e estende-me os braços.
Quando coloco-a de pé na entrada da nova sala, ela anda rápido até a
rnesa e pega os bombons que ela come olhando, por cima dos vidros, a copa
das árvores. Ela estende um bombom quase até meus lábios, recoloca-o em
sua boca, e comendo-o, olha-me demorada e profundamente nos olhos, mas
com um olhar que ela torna voluntariamente frio e distante tendo ao mesmo
tempo necessidade deste contato a mínima. Como ela me olha comendo após
ter aproximado o bombom de minha boca, existe nesta associação olhar-
comer como que uma tentativa de dar ao alimento seu peso afetivo, ten'/lltiva
feita na defensiva.
Em seguida ela explora por um instante a mamadeira, come uma colhe-
rada de mingau. Com a colher, ela me dá sucessivamente golpes no nariz,
depois me faz wna carícia na face. Ela se deixa cair, pega meus óculos, mergu-
lha-os uma vez no mingau, mas não o suga e abandona-os sobre a mesa, para
pegar o bebê.
Senta-se com o bebê e explora-o, tocando e sacudindo um pouco cada
a
mão e cada pé. Ela suga u mão brevemente, e olhando para a mamadeira, faz
intensos barulhos de sucção, mas dois ou três apenas. Ela retorna ao bebê que
ela continua a explorar, desta vez ao nível do rosto. Ela pressiona um pouco
ci,Ja olho, tenta enfiar seu dedo na boca.
Então ela volta-se para mim, olha-me e joga o bebê em meu colo, com
bastante violência. Ele escorrega, cai no chão; ela olha para ele, depois não
se importa mais. Ela fica de pé, pega a colher e joga-a violentamente do lado
oposto a mim. Depois é a vez dos doces, que ela joga um a meus pés, e o
outro na direção da bacia.
250 Marie-Françoise ou o Autismo

Resumo-lhe a cena: exploração do bebê terminando, pela boca, lança-


mento agressivo em meu colo, agressividade contra a colher que serve para
comer, depois contra os doces que se come, como se ela estivesse furiosa
contra tudo o ·que tem ligação com o alimento em sua relação a mim.
Ela vai pegar os objetos na cesta e deposita-os na bacia. Primeiramente
ela coloca a leiteirinha, depois me olha e continua a botar todos os outros
objetos que são peças da louça de brinquedo, isto é continentes, o que digo a
ela. Ela coloca também o pato. C.om muita precaução, enfim, ela coloca aí o
doce que ela tinha jogado ainda há pouco nesta direção. Ela lança um olhar
em tudo que a bacia contém, e desinteressa-se.
Seu interesse dirige-se então para a cesta vazia, e isto pela primeira vez.
Pra começar ela a esvazia completamente, jogando um brinquedinho de
plástico que ela tinha trazido na última sessão, que ela morde com dois
"nham-nham" sonoros. Depois ela explora demoradamente o interior desta
cesta de vime:: a alça, um pedaço de fita que aí ficou preso e o desenho do
entrançamento. Em seguida, ela lxzlança a cesta puxando a alça para si e
largando-a. Na primeira vez ela ri às gargalhadas, nas vezes seguintes, seu rosto
se contrai e tenho mesmo a impresslfo de que este balanceio lhe é desagradá-
vel, mas que ao fazê-lo, ela tem um objetivo muito preciso, que ela quer
atingir. Ela quer ver o exterior do fundo da cesta, e termina por conseguir
fazendo-a cair de lado. Então ela passa a palma de sua mão sobre este fundo.
Ela fica de pé, anda até sua cadeira e volta a sentar-se no chão, mas
longe da cesta; seu olhar vai do bebê à cesta, mas ela hesita. Ela termiina por
levantar-se, pega a cesta pela alça, e arrasta-o por um metro antes de sentar-se
perto dela.
Ela passa então à exploração do interior da cesta, exploração seguida de
uma espécie de possessão deste interior, pressionando fortemente o fundo da
cesta com as duas mãos. Para poder pressionar ainda com mais força, ela fica
de pé e, com as pernas rígidas, o corpo mergulhando na cesta, coloca as
palmas das mãos sobre o fundo e pressiona cada vez mais forte. Ela faz movi-
mentos com seu traseiro que traduzem seus esforços e ela esperneia um
pouco. Sua excitação aumenta, ela emite alguns fonemas violentos; mas, no
fmal, ela se deixa cair novamente diante desta cesta, com o olhar vazio.
Pensando que isso foi o suficiente por hoje, eu vou abrir a porta. Ime-
diatamente, ela fica de pé e sai da sala.
No caminho ela entra em um quarto, olha com interesse as crianças que
estão deitadas. Percebe um baldinho entre dois leitos. Ela apanha-o, olha o
interior, depois deixa-o num canto.
Ela volta para o corredor andando bastante rápido, com um equihbrio
bem melhor, indo em direção ao jardim de infância. No fim, entretanto, ela
cai e termina o caminho engatinhando bem depressa. Mas ela não entra no
jardim de infância: sua atenção é atraída pelo armário da rouparia, que ela vai
abrir e explorar no interior com muito interesse. Sua enfermeira vem buscá-la.
O Espelho no Real 251

:; A 17 de novembro, encontro-a de pé no jardim de infância, o rosto


animado. Assim que me vê, ela dirige-se aos degraus, mas deixa-se cair sen-
la.da, não vendo o material dentro da sala. Entlío ela volta-se para mim e
estende-me os braços.
Durante o trajeto, ela pega meus óculos, depois fai ruídos de sucção.
Assim que ela percebe a sala, ela estica todo seu corpo em sua direção. Depo-
sitada na entrada, ela anda depressa até a mesa e come os bombons.
Quando ela acabou de comê-los, ela me olha e vê que eu recoloquei
meus óculos. Então ela joga wn bombom na direção oposta a minha, e ele cai
,!entro da cesta. Ela pega a colher, come uma colherada, me dá um golpe
sobre os óculos e joga-a. Ela vai buscar o pato na cesta e quer jogá-lo na bacia.
Ela nlío acerta, e então ela pega de novo o pato para jogá-lo violentamente na
bacia. Ela contempla-o aí com alegria. Volta à mesa, pega os doces e a colher
e vai jogá-los também na bacia. Retorna à mesa para comer com a mão, e em
seguida puxar meus cabelos e me dar uma boa bofetada. Ela volta a contem-
plar a bacia.
Ao fazer isto, ela nota o balde que contém um pouco de areia. Ela fica
1le quatro diante dele e olha demoradamente para a areia. Mas ela não toca
nem na areia. nem no balde.
Ela volta à cesta, pega aí todos os pequenos recipientes e coloca-os na
bacia, assim como um carro e a carroça da qual ela faz girar a roda com seu
,ledo. Ela retoma para junto da mesa, pega o bebê, mergulha o seu traseiro
revestido de sua fralda no mingau, lambe-o e vai em seguida jogá-lo na bacia.
Ela volta para acabar de comer o mingau com as mãos, depois arranca meus
óculos e puxa meus cabelos.
Ela senta-se com meus óculos e pega o marinheiro. Pressiona-o primei-
rnmente direto sobre sua face, depois intercalando meus óculos contra seu
olho. Ela joga então meus óculos e pressiona com muita força o marinheiro
contra sua boca. Ela fica de novo em pé, abandonando marinheiro e óculos
para pegar o coelho cujas duas orelhas ela mergulha no que resta de mingau:
ela suga-as. Depois de olhar o furo do apito no traseiro do coelho, ela joga-o
e vem puxar ainda uma vez os meus cahelos.
Ela retorna â bacia para tirar daí o bebê, que ela coloca na cesta vazia,
após muitas hesitações.
Ela desinteressa-se rápido pelo bebê e vai de novo contemplar a areia
engatinhando. Voltando na direção da mesa, ela pisa no coelho que grita. Ela
apanha-o, diverte-se fazendo-o gritar pressionando-o no ventre e isto a faz rir
às gargalhadas, um verdadeiro riso de alegria do qual ela me toma como teste-
munha. Ela faz isso várias vezes antes de dar, com o coelho, um bom golpe
em minha cabeça.
Ela vai em seguida sacudir a cesta cada vez mais forte, para tentar derru-
bar o bebê; mas ela não ousa sacudi-la forte o bastante para ter sucesso. Então
ela renuncia e tira o bebê com a mão. Agora que a cesta está vazia, ela vai
experimentar uma certa agressividade contra ela, agressividade que torna-se
252 Marie-Françoise ou o Autismo

progressivamente manifesta. Ela sacode a cesta, bate nela, emborca-a durante


dez minutos. Num momento, a alça, vindo em sua direção, bate em seu
nariz. Ela ficou um minuto desconcertada e virou-se para me olhar com furor
como se eu fosse responsável; o que é verdade simbolicamente.
A cesta vazia, após ter contido o bebê é incontestavelmente a mãe que
a conteve e depois a abandonou.
Como ontem, ela volta ora andando, ora engatinhando.
~ . A 19 de novembro, quando vou buscá-la, ela olha o cômodo. vizinho e,
vendo que o material não está aí, lança-me um fonema interrogativo. Respon-
do-lhe ao mesmo tempo em que abro a porta que dá para o corredor; ela vem
em minha direção engatinhando, fica de pé e estende-me os braços. Ela leva a
galinha de borracha que tinha nas mãos.
Como de hábito, ela começa com os bombons, mas come apenas um e
deixa o outro perto do prato.
Ela joga a galinha na bacia, depois todos os recipientes, inclusive as
caixas de encaixar de madeira, quase que exclusivamente continentes por
enquanto.
Ela avança na direção do balde de areia, olha dentro dele, e pós muitas
hesitações, mergulha aí sua mão e pega um punhadinho de areia que ela deixa
cair de lado do balde. Isto lhe dá medo e ela retoma rapidamente para junto
da mesa.
Ela pega a colher e come uma colherada de mingau. Ela me dá uma
colherada no nariz, pega meus óculos, mergulha uma haste no mingau e
suga-a; depois ela deixa-os cair. Ela pega de novo a colher para hater nas
costas de minha mão e depois na palma. Entre cada seqüência de golpes, ela
come uma colherada. Como fica sempre um pouco de mingau na colher, este
deposita-se na palma de minha mão. Ela nota e faz como se quisesse encher a
colher para comer. Esta cena durou pelo menos cinco minutos.
Ela pega o bebê, inspeciona-o, deixa-se cair sentada com ele. Ela aproxi-
ma-se da cesta e aí abandona o bebê. Ela toma a fazer o mesmo jogo da
última vez, balançando e sacudindo a cesta, como para derrubar o bebê.
Ela parece hesitar, depois, como se tivesse tomado uma decisão heróica,
mete um pé na cesta, o outro pé ficando no chão, e segura-se com as mãos no
leito. Por três vezes seguidas, ela tira e bota este pé, depois ela hesita em
colocar o outro, levanta-o, aproxima-o da beira da cesta, avança e recua num
movimento de grande hesitação, que torna-se um sapatear. Ela parece furiosa
por não poder subir nesta cesta sozinha. Entretanto, ela termina conseguindo,
e fica mais ou menos cinco minutos com os dois pés dentro da cesta, agarrada
com as duas mãos nas ba"as de um leito.
No início ela parece desconcertada, como num estado de grande vazio
afetivo. No final, ela sai sacudindo o leito; gesto estereotipado de agressivi,
dade que faz nascer a emoção e a toma de si sensivelmente consciente. Pouco
a pouco, ela acompanha o gesto de alguns fonemas expectorados em minha
direção; mas aqui ainda, é muito diferente das vezes precedentes. O maxilar
não está projetado para a frente. Os fonemas não são gritados. Eles são bem
O Espelho no Real 253

articulados, separados uns dos outros, pouco numerosos a cada vez. A elocu-
ção não tem nada de comparável àquela de uma comporta que se abriu. Mas
eles me são apenas fracamente endereçados; ela olha para frente, emitindo-os
na direção do alto das vidraças.
Ela sai da cesta, e aproxima-se da mamadeira que ela toca e olha, com
um olhar voltado para dentro. Percebendo o bebê, ela apanha-o, e com um ar
furioso, joga-o a meus pés, diz.endo: "bebê" violentamente. Depois ela vai até
a janela que ela consegue abrir, e olha para fora durante cinco minutos; mas
:ieu interesse não está voltado para o que ela vê, ele está voltado para mim
enquanto que resultado de toda cena precedente, à qual ela colocará um
ponto final ainda dentro em pouco, retornando à sala, para sacudir agressiva-
mente um leito.
Tudo isto evoca o nascimento como rejeição maternal primária: função
da proximidade do abandono real de Marie-Françoise, com a idade de dois
meses, idade da mamadeira.
Enquanto ela olha o exterior pela janela, ela tenta por três vezes fechar
sobre si o batente, procurando assim isolar-se de mim, como se ela quisesse
se afastar voluntariammte, em razão da rejeição sofrida no passado.
Ela entra na sala e vai sacudir o leito. Sua fralda começa a cair a ponto
de entravar quase totalmente seu andar.
Ela aproxima-se do balde e fica de quatro diante dele, inclinando-o para
si. Ele cai e a areia se espalha. Ela recua precipitadamente, tomada de pânico,
fica de pé com dificuldade e vem para mim, puxar meus cabelos.
Ela está cada vez mais entravada por sua fralda que caiu até seus pés, e
,~u retiro-a. Mas ela não parece à vontade, e eu vou buscar uma fralda seca.
Coloco-a a seu alcance, para saber se ela deseja que eu a coloque. Ela pega a
fralda, estende-a para mim e espera. Coloco-lhe a fralda, e fico surpresa com t.
,1.iegria que isso lhe dá. Ela tem um breve momento de liberdade alegre que eu
não esperava.
Ela joga mingau no chão, depois se põe de quatro para olhar a areia
espalhada; mas ela é novamente tomada de pânico, e levanta-se para ir
:<acudir a cad(iirinha.
Eu abro a porta e ela volta a seu quarto, fazendo em sua passagem uma
incursão em cada quarto.

A sessão de 1O de novembro é uma sessão muito curta, em reação à


minha ·ausência, mas marcada, entretanto por um fato que tem muita liga-
ção com o fim da sessão precedente: se Marie-Françoise parte mal chega na
sessão, ela leva uma marmita. Os objetos da sessão podem agora estar à sua
ilisposição, como vimos; mas também ela pode tomá-los de mim.
254 Marie-Françoise ou o Autismo

A 12 de novembro, a tonalidade da sessão está centrada sobre sua


presença, que ela afirma em face da minha, e isto numa nova sala. Ela me diz
"não" para afinnar-se aí; nenhuma única vez ela terá um olhar de demente.
Ela repete por duas vezes uma cena durante a qual ela fixa demorada-
mente seu olhar, primeiramente na parede da sala onde está colada a imagem
de um pavão, depois no céu e na copa das árvores que ela vê pelo alto da
janela. Na primeira vez que ela faz isso, eu noto que ela não se afasta de
minha presença, mas me exprime seu ressentimento por um olhar distante
e frio que ela desvia de mim; isto é que, muito claramente, ela me toma
ausente através de seu olhar, em minha presença.
Tornar-me ausente acompanha-se em seguida de uma agressividade mar-
cada contra o alimento que ela espalha sobre toda a mesa, depois contra meus
óculos que ela mergulha no prato inteiramente, enfim diretamente contra
mim. Ela bate primeiro no rosto com meus óculos, que ela sugou, depois com
a colher que ela tenta enfiar em meu olho;: isto é, ela tenta fazer aí um furo.
Sempre os olhos com substitutos da boca, escrevi. Que ela possa então ter
prazer lambendo sua mão com a qual ela terminou o que tinha no prato
acompanha-se sempre de agressão contra mim; ela puxa meus cabelos com sua
mão cheia de mingau e termina por me dar uma bofetada.
Esta bofetada nos remete à primeira sessão. Mas enquanto que no início
tratava-se de uma agressividade muscular pura, sem que ela se dirija verdadei-
ramente a mim, hoje ela agride meu corpo com a mão que lhe serviu para
comer. A grande diferença em relação a Nadia continua sendo a ausência de
ambivalência em Marie-Françoise. Entretanto, alguma coisa se desenha, muit,-
particularmente desde o início da sessão de 12 de novembro: uma interroga-
ção de meu corpo e daquilo que eu sou portadora sobre o meu olho.
Quando em seguida eu penso em interromper a sessão, ela me diz
violentamente: "não, quero não"; mas seu "quero não", desta vez ela m~ diz
olhando para mim profundamente: é para mim que ela o dirige. Seus dois
primeiros "quero não", ela os tinha dirigido, um a 27 de outubro, ao arroz,
e o outro, a 29 de outubro, ao objeto de meu corpo, após ter mergulhado
sua cabeça em meu peito.
A segunda cena diante da janela acontece quando ela retoma à sala
e eu estou sentada novamente: esta cena dura quase cinco minutos. Ela só
olha por cima da vidraça, para a copa das árvores, se eu a olho; mas ela não
tolera que eu olhe, como ela, por cima da vidraça. É preciso que eu a veja
olhar. Não se trataria aí desta cena típica do espelho, que encontramos em
Nadia, onde a criança olha sua imagem, que vai fundar o exterior de seu cor-
po, sob o olhar do Outro, que ela exige para poder efetuar a passagem pro-
priamente dita ao especular : aprender aí a perda implícita ao Outro para
tolerar a sua, em sua própria imagem virtual? Somente se, para Marie-Fran-
çoise, meu olhar é tão exigido quanto, o espelho é substituído pela janela;
o espaço virtual permanece, atrás da janela, um Real mesmo se não é mais 1~
o lugar de ~u Mapel~ Fa um~ ausêalin~ia real, mas adcopa dlhas árvoreRs.alDito de _ ·
outra maneira, ane- rançoISe ré za uma cena e espe o no e , sem a
O Espelho no Real 255

elisão nem a perda inerentes a este encontro do espelho. O que ela faz,
exigindo meu olhar sobre ela, é assegurar-se de sua existência em meu olho.
Reencontramos aí o esboço do que Nadia realizou na fase pre-especular,
pela imagem do pequeno outro colada em meu olho: que, não somente lhe
indicava seu próprio lugar em meu olho, mas me colocava como seu Outro.
Marie-Françoise esboça uma certa sensibilidade ao outro, na volta da sessão,
quando uma outra criança agarra-se a meu avental: ela começa a andar na sala
com agressividade - obseIVe-se que ela não me bate como na sessão.
A 13 de novembro, ela repete ostensivamente a cena diante da janela,
seu olhar na copa das áIVores, e exigindo meu olhar sobre ela; mas, aí, eu
posso interpretar, dizer-lhe que ela quer me fazer ver sua recusa em me olhar;
seu riso diz bastante que eu toquei no ponto certo, ao ponto de ser esta a últi-
ma vez que, exigindo meu olhar, ela olha para a copa das áIVores.
Três cenas sucessivas vão então definir o que eu chamei de seu circuito
autista e que não podem fazer sentido por si próprias, mas exclusivamente
pela dll'erença que se demonstra aí com o que Nadia tinha ilustrado em sua
relação ao Outro e ao outro.
A primeira é uma réplica da cena de 7 de novembro onde eu pude
acreditar que uma abertura se fazia na direção de uma instauração do Outro
para Marie Marie-Françoise, quando ela pôde absorver o mingau com diferen-
tes substitutos da mamadeira, dos quais dois deles, meus óculos e meu relógio,
foram tomados de mim. Mas o que ela realiza a 13 de novembro infirma o
que me apareceu como uma abertura; porque, em fez de dar o passo dos obje-
tos em direção ao corpo do Outro, ela fecha-se completamente nesta relação
aos objetos: o que não deixa de ter consequências quanto à sua relação comi-
go. Ela termina esta primeira cena dando-me uma bofetada retumbante.
O lambuzamento não concerne aqui nem seu corpo nem o meu, mas
somente aos objetos; pode-se mesmo dizer que é a mamadeira que ela ali-
menta - ela já tinha fe~to isso com meus óculos e meu relógo, a 7 de novem-
bro, mas ela parecia então pronta a passar ao lambuzamento do corpo, se bem
que, ao contrário de Nadia, fosse primeiro o meu e em seguida o seu.
Não se trata mais disso hoje; os corpos estão excluídos, e ela transporta
para os objetos a consistência de superfície que Nadia atribuía aos corpos
pelo lambuzamento; é o objeto bom ou mau que toma o lugar do corpo e do
que pode inscrever-se aí em termos de relação. Também ela conclui esta
cena pelo gesto destrutivo que se dirige ao paredão de puro Real de meu
corpo. Este já é provavelmente, o sentido da série de bofetadas da primeira
sessão: é exatamente a meu corpo que ela se dirige, apontando, no horizonte
do "tudo ou nada" de seu debate, o intolerável de minha presença no Real,
da qual não pode salvá-la a ausência real que a priva de tudo - a de sua mãe
que a abandonou.
A segunda cena confirma que sua relação só se faz com um objeto real.
Que ela apanhe o bebê e mergulhe seu rosto no prato como para fazê-lo
comer poderia impor-se como a expressão de seu próprio desejo de comer que
passaria pela imagem do bebê. Assim, Nadia, tanto com a mamadeira, a 4 de
256 Marie-Françoise ou o Autismo

janeiro, quanto coma colher, a 27 de janeiro, mostrará seu desejo oral esbo-
çando o movimento de dar de comer -a boneca; isso foi apenas uma tentativa,
que desembocou numa grande violência com a boneca, acoplada com a
violência contra a mamadeira e a colher. Mas o que Nadia não deixava de
exprimir em seguida, era que tudo isto dirigia-se ao Outro que eu era, isto é,
não tinha valor de impossível, mas de interdição. Marie-Françoise, mesmo
se ela me olha e joga por duas vezes os doces na direção da bacia, e mesmo
começa a comer um deles, isto é, a pegar um alimento que está em relação
comigo, pára logo e só triunfa numa recusa radical que ela me dirige: tornan-
do a pegar o bebê, ela suga-lhe as duas mãos, joga-o e come com a mão o que
resta de mingau, depois de ter puxado com muita força os meus cabelos. O
bebê implicado na sua recusa ao Outro não é uma imagem ligada a mim; é
um refúgio real contra mim, isto é, um "duplo" que ela encontra ao nível
oral, como ela tinha feito ao nível escópico.
Esta segunda cena esclarece a primeira: a mamadeira tinha aí o mesmo
lugar de duplo real que o bebê, acompanhada do mesmo mecanismo de recusa
de meu corpo. Nada de um interdito em tudo isto; nada além do Real sucessi-
vamente posto e recusado de um objeto que não se inscreve no Outro, sem
nenhum feito de significância.
As consequências desta ausência de inscrição do objeto no Outro, e
da redução do Outro ao objeto real, são que:
.}. Não se pode falar de substituição de objeto no sentido metafórico.
2. Com efeito, o Outro para Marie-Françoise não é portador de objetos
causas do desejo; ele é o próprio objeto; o que dá conta ao mesmo tempo da
necessidade que ela tem de mim e do impasse no qual ela fica em minha pre-
sença, que ela pode apenas recusar num "tudo ou nada".
A ambivalência de Nadia não pode, nestas condições, encontrar-se
em Marie-Françoise, visto que, esta ambivalência, é a oscilação entre o amor
do ()utro e a procura agressiva do objeto do qual ele é portador. Marie-
·Frans:oise está presa apenas numa alternância de uma presença real minha,
que ela esvera e que ela busca, e de sua recusa radical, na sessão, que corres-
ponde à ausência real de sua mã'e à qual ela se dirigia voltando-se para o vazio
da janela.
A terceira cena confirma primeiramente seu fracasso de toda dimensão
imaginária e especular, quer seja entre ela e o bebê ou entre ela e mim duas
peças de louça de brin4uedo que ela encaixa e desencaixa dizem de que rela-
ção real trata-se ali. Que ela coloque em seguida uma leiteirinha na bacia cheia
d'água, e que todos os brinquedos da cesta tenham o mesmo destino, pode
fazer pensar em algum decalque real de um Outro, sob a forma desta bacia,
que poderia conter os objetos. Trata-se aí de um movimento regressivo em
direçã'o a algum habitat pré-natal? Nós retornaremos a isso.
Toda a primeira parte da sessão de 1 S de novembro me concerne, assim
como ao bebê.
Para o que me diz respeito, seu ponto de partida é sempre a ausência
real: ela come os bombons olhando a copa das árvores por cima da janela.
O Espelho no Real 257

Mas ela não se demora aí. Pelo contrário, hoje, ela volta-se para mim e, esten-
dendo um bombom quase até meus lábios, pousa em meus olhos um longo e
profundo olhar, embora eu a sinta fria e distante. Ela tenta ligar novamente
alimento e olhar, mas termina apenas fazendo da mamadeira o seu duplo, e
servindo-se da colher para sucessivamente me bater e me acariciar. Pensaría-
mos então na ambivalência que sua impossibilidade de sugar os óculos que
ela me tomou e mergulhou no mingau, desenganaria.
Ela volta para o bebê, seu duplo, que ela emparelha com seu outro
duplo que é a mamadeira: levando à sua boca uma mão do bebê, ela olha para
este fazendo intensos ruídos de sucção. Hoje, entretanto, ela vai mais longe
com o bebê, quando ela explora o rosto dele pressionando um pouco cada
olho e tentando enfiar-lhe seu dedo na boca. Esta exploração do furo da boca
do bebê o faz sair de seu papel de duplo - papel que ele não teve sempre. Ela
confirma isso ali.is, não se·tapando com ele, mas voltando-se para mim para
jogá-lo violentamente em meu colo. Ele cai no chão? ela não se ocupa mais
dele. De meu lado, cu não o apanho assim como não apanhei o marinheiro
de Nadia após o primeiro espelho; visto que nem este bebê, nem este mari-
nheiro são representantes. Para- Nadia esta foi a chance de efetuar uma
perda da qual vimos a fecundidade através dos espelhos que se seguiram;
para Marie-Françoise, podemos dizer também que foi uma sorte eu não apa-
nhar o bebê, porque ele não é um representante dela, mas um objeto real no
meio de todos os outros dos quais ela se separa. Infelizmente para ela, o espe-
lho não está .1 sua disposição como lugar onde significar esta perda. No lu-
gar do espelho, ela encontra a cesta e a bacia d'água; isto é, no lugar da
superfície <lo espelho, continentes - volumes. É o que eu lhe digo. Resta
ainda que, a bacia <l'água e a cesta, são a mesma coisa.
1
A bacia <l'água, é a bacia mais a água, isto é, dois tennos; e quando ela
coloca aí todos os objetos que ela pega na cesta não são mais somente os
objetos que ela sempre conheceu pelo que eles são, isto é reais, mas objetos
que se juntam aos dois primeiros: a bacia + a água+ os objetos, numa situação
onde existem "três", a água sendo o intermediário e tendo a função estrutural
de desrealizar os objetos.
A questão <lo habitat pré-natal, tão frequentemente evocado tão logo
exista um continente e água, só refere a uma situação imaginária a dois. Na
realidade é uma estrutura a três, por pouco que, para o sujeito, os elementos
sejam significantes; o que é necessário para fazer estrutura. Nós não podemos
ainda resolver para Marie-Françoise. J
Aliás, ela própria não resolve, visto que após ter depositado com precau-i ,
ção um doce e lançado um olhar em tudo o que a bacia continha, ela desin-t:;
teressa-se e passa à cesta vazia, que continha os objetos que agora estão na
bacia. Aí, ela chega muito depressa a seus fins; ver o exterior do fundo da
cesta sobre a superfície do qual ela passa a palma da mão. É a primeira vez
que ela não é aqui um continente: mas uma superfície. Há aí um passo capital
que não sabemos ainda se será decisivo, mas é preciso notar que é a primeira
258 Marie-Françoise ou o Autismo

vez que ela coloca a superfície como elemento de um objeto a explorar. re"'
tamente, ela aproximou-se da superfície de meu corpo num começo dtl
lambuzamento; mas a exclusão de seu próprio corpo, não lambuzado, a havll
feito mergulhar novamente em seu circuito autista, ao longo das sessões H•
guintes. Talvez ela possa nesta sessão interrogar de novo a superfície porqtlf
ela primeiramente reservou e abrigou os objetos e um doce na bacia? Esta
bacia seria alguma representação do Outro?
A exploração da superfície da cesta, inteiramente demonstrada num
primeiro tempo, visto que se trata do exterior do fundo da cesta, segue-sé
da exploração do interior. Uma tal exploração poderia impor-se como a busca
de um continente; Marie-Françoise, aliás, inclina-se tanto para apoiar a palma
de suas mãos sobre o fundo, no interior, que poderíamos pensar que ela te11t11
fazer de si mesma o conteúdo da cesta. Na realidade, nesta sessão, após esfor-
ços e uma excitação cada vez maiores, ela se deixa cair sentada, como quan-
do, no início, ela estava desesperada; ao mesmo tempo, seu olhar torna-se
vazio. Que ela vá, retomando da sessão, explorar um armário da rouparia não
permite concluir o que ela procura.
A 17 de novembro, meus óculos, a bacia e a cesta são os objetos-pivôs
da sessão:
1. Meus óculos, ela os toma de mim, quando eu a carrego durante o
trajeto até a sala de sessões; e ela faz ruídos de sucção. É A primeira vez
que um objeto de meu corpo é tão claramente ligado a um auto-erotismo que
não é frequente em Marie-Françoise.
O lugar de meus óculos como objeto na fronteira de seu desejo se
confirma quando, tendo colocado os bombons em sua boca, ela me olha e
vê que eu recoloquei os óculos; então ela joga um dos bombons que ela tem.
Do mesmo modo, ela come uma colherada, me dá um golpe sobre os óculos
com sua colher e joga-a. Tudo isto como que para dizer da ligação necessária
entre um objeto de meu corpo e o alimento, para que ela possa comer e que
isto faça sentido.
2. Na bacia, ela coloca não somente o pato, que ela contempla, mas
também os doces e a colher. Então, sucessivamente, ela come com as mãos
puxa meus cabelos, me dá urna bofetada e vai contemplar a bacia. O luga;
desta bacia se precisa: quando eu tornei a colocar meus óculos, ela não podia
mais cc,mer; ela pôde comer novamente quando ela recolocou em reserva
seus objetos na bacia; o que coloca a própria bacia como um Outro em
reserva e permite me agredir violentamente. Agredindo-me, aliás, por oposi-
ção à relação de contemplação para com a bacia, ela me coloca no lugar da-
quela que a abandonou, sua mãe, e que privou o alimento de sentido; o pro-
gresso de Marie-Françoise, nesta cena, se faz pela oposição que ela instaura en-
tre a bacia e eu. Início de articulação, este par de oposição.
Ela continua em seguida quando pega o bebê, mergulha-O no mingau,
lambe-0 e joga-0 na bacia, antes de me agredir novamente.
Ela chega então a estabelecer uma situação ternária entre ela, meus
óculos e o marinheiro, pressionando este último contra sua face intercalando
O Espelho no Real 259

111eus óculos. Seu "duplo" é deslocado dela por um objeto de meu corpo
cujo estatuto não é entretanto aquele de um objeto causa de desejo. Aliás,
da logo volta ao marinheiro após ter jogado os óculos, pressionando-o bem
forte contra sua boca pela primeira vez: ela faz dele um objeto que obtura
,, furo de sua boca corno ela havia feito dele um objeto obturando o orifício
mferior de seu corpo. Ela relembra isso, de qualquer sorte, quando, pegando
o coelho, ela olha o furo inferior antes de puxar ainda urna vez os meus
cabelos. Sua agressão termina por tornar por sua insistência, o valor de urna
,cprirnenda: a de que ela tem um corpo aberto, furado, do qual eu teria fa-
lhado na transferência em obturar o furo; com um objeto como meus óculos.
3. 1 então na cesta vazia que ela coloca o bebê, após tê-lo tirado da
bacia. Ela não terá sossego, sacudindo a cesta cada vez com mais força, até
derrubar o bebê e, não conseguindo, tirá-lo daí com a mão. Sua agressividade
contra a cesta acentua-se e o sentido emana quando, tendo se machucado
~om a alça, ela vira-se para mim para me exprimir seu furor.
A sequência da primeira parte da sessão seguinte, dia 19, é uma repeti-
ção da do dia 17, o que nos leva a concluir que existe em Marie-Françoise,
agora, um significante e não puro Real, que não faria repetição. É o que
confirma o valor significante do par de oposição que nós assinalamos entre
a bacia e mim entre a bacia, reserva ternária de seus objetos, e eu que me
torno portadora também de objeto mas que ela agride sem cessar, visto que,
na transferência, eu lhe recuso estes objetos. O estádio do início, onde eu era
a presença real de urna ausência não menos real, sem que nenhum objeto de
meu corpo pudesse adquirir a qualidade de objeto separável, foi ultrapassado.
Ela prova isto quando pega meus óculos, mergulha urna haste no mingau e
suga-a, ou ainda quando, batendo-me com a colher com a ajuda da qual ela
come o mingau, ela gostaria de retornar com esta última o rastro de mingau
que ela deixou em minha mão. Mas não podemos nos impedir de pensar
no que ela fez com a mamadeira, a 13 de novembro, quando ela havia deposi-
tado o mingau sobre o bico, isto é, corno a mamadeira, eu só posso lhe ofe-
recer o que ela bota sobre mim. Inversão dos papéis que pode cortar toda
demanda.
Ela retorna nesta sessão, o jogo com o bebê e a cesta; mas desta vez,
tendo tirado o bebê, é ela que, após muitas hesitações, quer tomar seu lugar
na cesta. Não certamente para confortar-se a(; ao contrário, ela dá a impressão
de encontrar aí um grande vazio. Aliás, se ela emite alguns fonemas bem arti-
culados, ela dirige-os à ausência, sempre no mesmo lugar, em cima da janela
que ela vai ao sair da cesta, após ter jogado, a meus pés, o bebê, dizendo vio-
~entamente "bebê", como uma censura.
Na janela, que ela consegue abrir, ela primeiro olha demoradamente
para fora, na direção deste lugar na ausência, mas ao mesmo tempo em
minha direção, atrás dela, a quem sua censura se dirige. No final, ela quer
mesmo tomar a fechar o batente da janela, para estar verdadeiramente do
outro lado do vidro, isto é sempre cada vez mais do lado da ausência Real
260 Marie-Françoise ou o Autismo

do Outro. Mas, desta vez, ela está em via de se identificar diante de mim, com
esta ausência.
Diante de tal repetição e tal progressão, como não falar de um discurso'/
Certamente, um discurso que não existia no início, quando somente algun•
elementos de defesa apareciam, como o "duplo". Aqui, não é mais do duplo
que se trata, mas dela e de mim numa certa relação. Qual? Eu sou para ela
um Outro do qual ela tem necessidade, que ela procura, mas a quem ela nilu
pode dirigir nenhuma demanda porque ele não é portador de nenhum objeto
separável. Na primeira forma de identificação que é o transitivismo, Marie·
Françoise só encontra este Outro na ausência real atrás da janela; não é sur•
preendente que ela não possa lhe demandar nada. Eis porque quando muito,
ela pode tomar seu lugar; ela toma-se assim o "ente da ausência".
Esta posição está na base de uma inversão em Marie-Françoise: quando,
no deserto estrutural do início, sucede nela um começo de estruturação, ela
não toma o lugar de um pequeno outro em relação a um grande Outro, como
Nadia, mas sim o lugar do Outro. Sua estruturação encontra-se invertida, n
ponto de topologicamente mesmo, ela ter o corpo furado do Outro e que eu
não sou como o pequeno sujeito em face do grande Outro. Também a relação
se define mais prematuramente em relação a conteúdos e a continentes de
três dimensões do que em relação a uma superfície de corpo onde ela procu-
raria tapar os furos com objetos retirados do corpo do Outro, como fêz
Nadia. Se ela lambuza a superfície de seu corpo, os furos desta superfície
persistem. Ela tem um corpo tórico sem ter o corpo estruturado em fita
de Mocbius.
A saída da psicose só poderia se fazer estabelecendo a ordem topológi-
ca dos corpos entre o Outro e outro'! O caso do "menino no lobo" nos tranl
respostas sobre isso.
Para Marie-Françoise, uma tal estrutura não está entretanto fixada;
sua evolução prova isso, do mesmo modo que a alegria que ela mostra quan•
do, no fim desta sessão, eu lhe coloco uma fralda; eu tapo e veio o orifício do
seu corpo. Uma liberdade alegre toma conta dela.
CAPÍTULO X
A EMERG~NCIA DE UM APELO AO OUTRO

22 e 24 de novembro

1 1D A 22 de novembro, Marie-Françoise recusa a sessão na sala habitual,


e me leva em todos os quartos.
Ela só volta à sala para colocar tudo dentro da bacia, inclusive doces e
bombons, e para tentar derrubar caneca e mamadeira, sacudindo forte a
caneca. Ela termina por derrubar a mamadeira: ela fica siderada um segundo,
depois não se interessa mais.
A 24 de novembro, ela me estende os braços quando me vê no jardim
de infância. Uma enfermeira troca-lhe suas fraldas mas, se eu não fico perto
dela, no seu campo de visão, ela começa a chorar.
A sessão de hoje é uma sessão ambulante na qual ela exprime que seu
interesse pelo mundo exterior é um refúgio contra mim. Não há angústia per-
ceptível, mas ela procura por todos os meios fazer chorar as outras crianças
pelas quais ela se interessa, sempre menininhos.
Ela fica apenas cinco minutos na sala de sessões, o tempo de colocar
o conteúdo da cesta na bacia, assim como os meus óculos. Ela puxa meus
cabelos e me bate com a colher. Ela tem medo de lançar um olhar para o
balde. Em seguida ela se levanta e vai bater na porta até que eu a abra.
Ela me conduz a um primeiro quarto onde ela avista um menininho
no leito, que brinca com bolsa. Ela contempla-o longamente, depois tenta
arrancar-lhe a bolsa.
No momento em que ela vai conseguir isto, ela ouve uma criança cho-
rar num outro quarto e parte a toda velocidade. É uma menininho do qual
se está trocando a fralda. Ele tem o traseiro nu, e Marie-Françoise contem-
pla-o com muito interesse, grudada no canto da mesa de troca. Recolocada
no leito, a criança continua a chorar 1 Marie-Françoise olha depois desinteres-
sa-se, para ir inspecionar um brinqueào que ela encontra no chão. Ao cabo de
um momento, ela observa que o menino não chora mais. Então ela fica de pé
e vai sacudir seu leito observando de perto seu rosto, vigiando suas lágrimas
que se desencadeiam novamente. Como se estivesse satisfeita, ela deixa o
quarto.
' Sobre o patamar, ela avista o armário da rouparia que está aberto. Ela
precipita-se em sua direção e pega em cada prateleira, colocando as duas mãos
sobre as pilhas de roupa, e virando-se para me olhar.
262 Marie-Françoise ou o Autismo

Ela faz algumas tímidas tentativas para entrar toda no armário, mas
desiste. Ela fica na ponta dos pés para tentar alcançar uma prateleira mais
alta.
Uma enfermeira que ela conhece bem, passa. Ela olha para ela balbu-
ciando. ú,as assim que coloco Marie-Françoise nos braços ela enfenneira, no
fim da sessão, ela começa a soluçar e a empurrar a enfenneira salmodiando
"mamãe, mamãe". A enfenneira não poderá consolá-la eny_uanto eu estiver lá.

Estas duas Glti.mas sessões não são, loll!,rc disso, o fim do tratamenk,
<le .Marie-Françoise. Seu sentido não pode dar lugar a muitos comentários,
porque falta seu desenvolvimento 4ue teria talvez revelado o porque da
recusa da sala de sessões. Ela só vai até aí por alguns instantes, o suficiente
para colocar todos os objetos da cesta na bacia que se confirma ainda como
continente de todos estes objetos. Esta bacia seria wn representante em
primeiro grau do Outro -·- Aeprasãntanz e não Vorstellungsreprásantanz?
i">iatla a ver, em touo o caso, com a arca de I,adia que continha representantes
metonímicos ciela e de mim isto é Vorstellungsrepriinsantanz, porque nos
representantes, o significante a implica, ela Nadia, ao mesmo título que a
mim
O interesse de Marie-Françoise é pela deambulação de cômodo em
cômodo. Eu disse, porque senti assim na época, que seu interesse pelo mundo
exterior era um refúgio contra mim, outra diferença em relação à Nadia.
É verdade que o espelho para Marie-Françoise concerne apenas um
registro paralelo, onde ela não se constitu~ como Nadia, no lugar do Outro
que eu sou, do mesmo lado que eu do espelho. Ela permanece radicalmente
do outro lado de um espelho que é apenas um vidro, e que só pode fazer
de mim o seu duplo no Real. Ela perdeu o Outro.
Quanto ao pequeno outro, as lágrimas deste não são uma tristeza para
ela como para Nadia, que se emocionava em eco, porque o pequeno outro
para Nadia, existia desde o início: não somente como um próximo desespera-
dor, lugar de um gozo impossível, mas em relação ao Outro também, do
qual ele estava para ser separado.
Para Marie-Françoise, na cena de 24 de novembro, ele não tem nenhu-
ma dessas dimensões. Ele não a interpela nem como objeto do Outro. Ele
é apenas um puro Real e, como tal, submisso à sua pulsão de destruição, o
que provoca a coloração sádica da cena, onde ela sacode o leito da criança,
vigiando suas lágrimas que ela quer provocar.
Uma questão entretanto se coloca, da escolha que ela faz de agredir
os meninos: sua curiosidade atenta, seu interesse escópico se centram mani-
A Emergência de um Apelo ao Outro 263

festamente sobre o sexo do pequeno outro, e a visão do pênis no outro só


atiça sua pulsão de destruição, na falta de remetê-la ao Outro, onde esta di-
ferença pode se inscrever no registro da falta. Sem Outro, não há nem
invidia, nem ciúme, mas somente pulsão sádica isolada: no limite, é Marie-
Françoise que poderia aparecer no lugar do "a" para o observador, como
"o fetiche negro" diz Lacan.
Mas é um limite. Porque seus soluços, no final quando eu me vou dei-
xando-a nos braços de uma enfem1eira que ela conhece bem, e que ela
estende-se para mim chamando "mamãe, mamãe!", pela prin1eira vez, deixam
pensar que o Out.ro que eu sou pode advir no lugar de um apelo, apelo que faz
úela, neste nw111c11 to, sujeito de urna falta.
lnfelizmcn te, após esta primeira abertura, eu tive que interromper
este tratamento, por causa de uma viagem ao estrangeiro, e depois de uma
curta preparaç:io de Marie-Françoise para esta partida. Qual foi o alcance
disso? Eu não sei.
CONCLUSÕES
267

Como conclusão, eu gostaria de reafirmar que conduzi estes tratamen-


tos antes de toda formação teórica, e que a situação analítica é por isso mes-
mo exemplar: na medida em que não é de um conhecimento que se trata,
mas antes de u111 saber inconsciente, daquele que se cria no lugar do analista
diante do an.~isantc; saber que coloca pois em jogo a descoberta princeps
da análise: a t ranslcrência. O analisante está no lugar de docente - o que
foi inteiramente evidente para Freud no início; e esta evidência não foi
menor para 111i111 quando Nadia me levou, por exemplo, para os meandros
do estádio do espelho, enquanto que em meu trajeto eu estava ainda bem
aquém disso. Só se pode concluir que, como eu disse, estes tratamentos fa-
zem parte de minha análise.
Mas o que teria sido dele sem a escritura? Eu escrevia, longamente, cada
noite após as sessões, os relatos detalhados - aqueles que pudemos ler -,
com o sentimento de ser guiada como por uma necessidade. Necessidade de
que? senão de responder ao que me traziam de interpelações estas crianças,
tomando-as para mim e descarregando-me delas pela escrita, que tomava
o lugar do Real de meu corpo e me tornava disponível novamente para
escutar o que elas tinham a dizer. Escritura ou apagamento para mim de
um Real de corpo que lhes tinha servido na sessão, mas do qual a mutação
em significante f"icava a meu cargo, para que os pequenos analisandos pudes-
sem prosseguir seus caminhos: a escritura aprece aí como lugar da mutação
do Real em significante, significante que se lembra do Real como, veremos,
na metáfora.
:e ao texto saído desta escritura que nós fomos confrontados e foi ele
que nos demandou um trabalho lento e laborioso para ultrapassar o conteú-
do e atingir a estrutura. Esta estrutura, é a mutação essencial do Real em
significante, ao longo do desenrolar das sessões, quer esta mutação se cum-
pra ou não.
Eis porque também nós só poderíamos ser guiados pela oposição fun-
damental dos dois tratamentos expostos: um onde a mutação se cumpre,
Nadia, o outro onde ela não se cumpre, Marie-Françoise, e que faz contra-
prova - embora a maior lástima que possamos ter é uma interrupção pre-
matura, e em muito, do tratamento: a mutação não estaria a ponto de se
fazer?
Duas abordagens podem dar conta desta mutação: uma aproximação
topológica e uma aproximação das estruturas do gignificante, metáfora e
metonímia que nós abordaremos para sermos mais claros, sucessivamente,
com o risco de fazermos algumas repetições. Nós terminaremos com elementos
mais propriamente topológicos.
CAPÍTULO!
CLfNICA E TOPOLOGIA

Não era nosso propósito, no início deste trabalho, nem nossa ambição,
nos referirmos à topologia. Esta referência impôs-se por si mesma: eis como.
Nós tínhamos ficado durante muito tempo inteiramente hesitantes
quanto ao sentido de dois acontecimentos concernentes a Nadia: de um lado,
que ela tinha se lambuzado de cocô e tenha mesmo comido dele; de outro
1:1.do, que ela tenha se lambuzado de mingau para ir para diante do espelho,
,·omigo lambuzada da mesma maneira.
É preciso dizer que eu tinha tido alguma intuição, como eu escrevi
na época, sobre esta lambuzeira e sua importância, quando eu coloquei
nn sessão, a 27 de janeiro, um prato de mingau e uma colher. A aproxima-
,·ão das duas lambuzeiras, cocô e mingau, nos dava a chave do que se tratava:
, 1 que concernia o interior do corpo, cocô ou mingau, ela espalhava sobre a
:;nperfície exterior, sobre sua pele. Nadia nos dizia assim que as superfícies
,l.e seu corpo, interior e exterior, se juntavam, estruturando seu corpo en-
.;.nanto superfície, e de jeito nenhum enquanto volume com um interior e um
,.::ü:rior separados.
Como então poderíamos não nos referirmos à topologia, e não definir-
"ws a qual tipo de superfície o corpo da criança pertence, nem fonnular
::s relações de corpo entre o pequeno sujeito e o Outro em termos de superfí-
cie e correlativamente de furos?
A fecundidade de nossa iniciativa iria nos aparecer muito rapidamente
, ;n Nadia, assim como em Marie-Françoise, enquanto que, como dissemos,
,:ontra-prova. E mesmo em seguida nas nossas análises de adultos.
Topologicamente, a estrutura do corpo de Nadia, isto é a do pequeno
::ujeito na aurora da vida, parece ser uma fita de Moebins, torcida sobre ela
mesma, superfície de um s6 lado, sem exterior, nem interior, e mais ainda
,,ma superfície topologicamente não furada. Isto cria problemas em rela-
. :ão aos orifícios reais do corpo da criança.
Para Nadia, o que é furado, é o corpo do Outro, e ela logo explora aí
q furo da boca. Seu corpo não é furado, porque o furo é tapado pelo objeto
;e meu corpo. Isto começa com a obturação de sua boca por seu dedo que
:1:1e serviu para explorar a minha boca.
O corpo do pequeno sujeito é inicialmente tapado, não por um objeto-
,:/imento real, mas por um objeto tomado do Outro, no campo do Outro,
;sto é um objeto significante: esta estrutura do corpo de que /ai.amos é uma
,·strutura significante, e só pode existir enquanto tal. Pelo viés dessa estrutu-
270 Conclusões

ra, entre a criança e seu Outro, se estabelece uma dialética que Nadia, por
exemplo, coloca rapidamente como aquela do objeto separável de meu corpo,
do Outro que eu sou; objeto separável que é ao mesmo tempo o que faz furo
em mim e não-furo nela. Tão logo exista Outro, com seu estatuto significante
de Outro, existe uma perda real, que o pequeno sujeito inscreve na conta
deste Outro; mediante o que, escapa a esta perda e não é furado em seu
corpo, num primeiro tempo.
Como isso pode acontecer, visto que no Real fisiológico, o bebê funcio-
na essencialmente ao nível digestivo, isto é pelo único furo do corpo defini-
do topologicamente, aquele que vai da boca ao ânus? Todas as outras cavi-
dades do corpo, órgãos sensoriais, urinários, genitais femininos, ou pênis,
são apenas stricto semu deformações de superfície, isto é, têm relação com
a superfície exterior: a pele. Os órgãos sensoriais são aliás formações espe-
cializadas desta pele. Mas para que a criança nada saiba - em compreensão
- do furo de seu corpo, é preciso que ela esteja inteiramente fora do Real
quanto a seu saber sobre seu corpo: ela é apenas - ela só nasce - no campo
do Outro; ainda é preciso que o Outro esteja, isto é, que para este pequeno
sujeito, o significante pré-exista.
Vemos bem, com efeito, o que acontece com Marie-Françoise, para
quem o Outro não está, e, por consegüinte, a falência da estrutura. Ela não
pode em nenhum momento, como Nadia, explorar o furo de minha boca;
ela não pode obturar o furo de seu próprio corpo com objetos significantes
tomados do Outro; não podendo obturar este furo, ela nega até a existên-
cia dele.
Produz-se para ela uma etapa inteiramente exemplar desta problemá·
tica do furo do corpo quando, ignorando sua boca, ela volta-se para seu
olho, contra o qual ela cola o objeto (o marinheiro) do qual ela faz seu
duplo, para tentar ignorar absolutamente o furo de seu corpo. Ela demons-
tra desde então, diante do prato de arroz que a fascina e tortura, que o
objeto-alimento no Real não pode preencher este furo.
Aí ainda, a estrutura demonstra-se como significante, e o psicótico,
no seu fracasso, testemunha ainda esta verdade de que fora do significante
não há estrutura. Trata-se para ele de uma anti-estrutura.
O deslocamento do furo da boca para a superífice do olho, tanto no
caso de Nadia ·em relação à imagem de 10 de dezembro, quanto no caso de
Marie-Françoise bloqueada diante do alimento e colando seu duplo em
seu olho, vem ainda sublinhar que a superfície do corpo é o lugar da
estrutura do começo da vida. O que não deixa de ter consequências, depois,
para todo sujeito; quanto ao ser-no-mundo da histérica, por exemplo, toda
entroncada na superfície do corpo; ou ainda, na relação mãe-criança, quanto
ao surgimento da psicose, quando a criança é chamada pela mãe a este lugar
de objeto tapando o furo de seu corpo.
Uma tal estrutura de superfície não furada, acoplada com o corpo fu.
rado do Outro, explica a importância considerável do paredão da pulsão oral,
Clínica e Topologia 271

e mesmo sua inibição mais completa. O sujeito aí está ligado à necessidade de


satisfazer sua necessidade de um lado, e de outro, manter seu desejo no
Outro. Sabemos que a anorexia é a escolha do sujeito para salvar seu desejo
sem respeitar sua necessidade, e mesmo sua vida; e que a bulimia, é o inverso:
não (mais) Outro, não (mais) desejo.
Se a oralidade é tão facilmente inibida, é que ela implica a relação ao
Outro e a mutação do Real do objeto-alimento em significante. O objeto
oral, é o que o sujeito recolhe do Outro furado, e que faz com que ele,
o sujeito, não seja furado. A dialética, que é significante, situa este objeto
oral ao nível do "nada", incluindo aí uma perda, aquela que a psicanálise
;1pontou como central sob a denominação do conceito de castração,
e isto desde o início, desde a fase oral.
Somos assim levados a revisar completamente as noções de "objeto
bom" e "objeto mau" oral, noções que poderiam deixar crer que existe
um objeto bom em si, testemunha real do amor do Outro; o que seria per-
feitamente contraditório com a dialética significante da qual se trata. Se
o Outro não é furado, com efeito, o sujeito, como Marie-Françoise, nada
pode recolher dele, e o objeto oral permanece no Real.
Só existe objeto enquanto que pulsional, objeto que toma lugar numa
montagem, o circuito pulsional, o qual implica absolutamente o Outro, e
destitui o objeto de sua dimensão de Real marcando-0 por uma perda. Eis
porque a oralidade não desembocará numa satisfação intrínseca, mas numa
estrutura constitutiva do sujeito no significante, como todas as outras pul-
:;ões.
A pulsão escópica entretanto, é uma pulsão muito particular que é
privilegiada na medida em que ela reduz ao máximo esta dimensão da perda
do objeto.
Em Nadia, ela está, no início, como numa posição de espera; mas em
Marie-Françoise, ela demonstra ser a única pulsão privilegiada, a ponto de
não se articular, numa certa co-existência, com a pulsão oral, mas sim quase
substituí-la completamente.
~ que, para Nadia, esta espera é aquela do Outro; e se, para evitar a
oerda, ela promove, a 1O de dezembro, a imagem da totalidade "a + A", sua
sensibilidade à minha presença, enquanto Outro, a mantêm no significante
e a conduz ao recalque. O que ela nos mostra, é como o objeto escópico
funciona para proteger o sujeito de toda perda: ele funciona por colagem do
objeto sobre a superfície do olho, isto é, sobre seu olho, é uma imagem, isto
é um representante do objeto. O descolamento da imagem se faz desde então
,:,ela via do significante que eu introduzo pela minha nomeação, a 10 de
dezembro.
~-aiie:.Françoise, negando o furo de sua boca, que ela só pode obturar
com o objeto do Outro que eu não sou para ela, mostra que se trata mesmo
de colar o objeto sobre a superfície, aplicando-o contra seu olho, o órgão
no Real. O significante, não mais que o Outro, não é aí promovido, mas
rnmente um duplo que não pode, enquanto que Real, ser recalcado.
272 Conclusões

Resta a identidade do comportamento de Nadia e Marie-Françoise, isto


é no significante e no Real, ou ainda na relação ao Outro e na ausência do
Outro. Certamente, a evolução, nos dois casos, será totalmente diferente
quanto a fase que se segue ao espelho, como vimos: espelho para Nadia,
janda-vidro para Marie-Francoise. Mas esta identidade primeira nos leva a por
a questão da relação do Real e do significante.
No início, na criança normal e no psicótico, fenômenologicamente,
existe a mesma procura de colar o objeto sobre a superfície do corpo a fim de
preencher o furo. Esta similitude seria perfeitamente problemática na aproxi-
mação que nós tentamos fazer, se nós nos ativessémos a uma separação radical
do Real e do significante, reservando a vertente do significante ao desenvolvi-
mento normal, com inscrição do debate no campo do outro como lugar de
significantes e instauração da estrutura do corpo como significante, e reser-
vando a vertente do Real à psicose com ausência completa do Outro.
Ora, esta separação é totalmenw impensável para Nadia, ao nível mes-
mo do Outro que eu sou para ela, do qual, a cada instante ela explora o corpo
realmente; mais ainda, são objetos reais que ela separa de meu corpo. Esta
separação chega muito cedo nc debate de Nadia; são objetos correlativos do
furo real de meu corpo (minha boca, que ela explora), e eles mesmos, reais
enquanto que separáveis, constituem objetos "a" que causam seu desejo.
Quando ela me priva deles, eles são reais; quando ela procura-os em meu
corpo, quando ela deseja-os, eles são velados; eles sofreram a mutação do Real
ao significante. O Outro participa pois dos dois registros do Real e do signifi-
cante. Mas os objetos dos quais ele é portador não podem se revelar, em
nenhum caso, como reais no significante: de onde o véu ou a predominância
do escópico.
Uma tal passagem entre o objeto separável, embora velado, acontece
para Nadia, na cena de 5 de dezembro, como vimos: passagem do "a" real,
despedaçando meu corpo, ao significante que me sintetiza no lugar de
"mama".
Para Marie-Françoise, e no caso da psicose, a vertente do Real não é
mais isolada do que a vertente do significante não o era no caso de Nadia.
Para ela também, o significante surge, como para Nadia, em face do Real. Ela
também diz "mamã", com a diferença que é diante do Real do prato de arroz,
e não diante do objeto de meu corpo que ela não procura separar. Seu
"mamã'' não tem para ela nenhum efeito quanto ao meu lugar; ele não me
designa, e aliás Marie-Françoise vira-se logo para a janela, lugar da ausência
real. Dito de outra forma, o que falta, não é, para Marie-Françoise, o signifi-
cante, é a relação deste significante ao Real de meu corpo, aquele do Outro.
O Real e o significante ficam cada um por sua conta, com ausência de
mutação de um ao outro, o que a deixa diante do vazio, um vazio que se situa
tanto na ausência real detrás da janela quanto naquele onde ela me mete
quando está às voltas com o Real insustentável do prato, quando das primei-
ras sessões.
CI ínica e Tupulogia 273

Que ci;t.a artirnla~,;iu nao se faça, demonstra-o ainda o fato de que


de-Françoise pode pegar objetos em meu corpo, meus óculos, meu lápis,
,.,_;; fracassa 11a interrogação, que só pode ser significante, uma interrogação a
, : ;:tir do Real. destes objetos, quanto ao vazio que eles deixam em meu corpo
1ue indica o lugar do sujeito.
O Real para Marie-Françoise, permanece sempre opaco e não pode
! : sar em nada. Meu corpo não pode, neste caso, ser afetado de um furo; e em
1· 'rticular, ele não pode faltar de um "a", pequeno outro tanto quanto
., ., objeto "a".
Mas então, se o Outro não é furado para Marie-Françoise, ela o é, o
Hmdo o é, a sala de sessões, com o furo da janela, os objetos, a cesta, a mar-
! ,;ita, o coelho. Tudo é furado realmente; em comparação, nenhum significan-
,. vem lhe responder de seu lugar, porque somente o Outro furado pode ser
':e lugar. Tudo está ao contrá1io.
' A fase seguinte é o advento para o sujeito de uma nova estrutura, a
··,.rutura especular.
1 Para Nadia, o primeiro passo em direção ao espelho, que acarretará a
, iudança de sua estrutura de corpo, é que a imagem se descola da superfície
, : · seu olho.
1. O primeiro ponto sensível na passagem de uma estrutura à outra, é a
. ;•:,tância.
~ preciso primeiramente observar que, entre os quatro objetos "a", - o
,jo, a voz, o olhar, as fezes - os dois primeiros são do Outro e os dois últi-
1,·r)s são do própiio sujeito. Vimos o quanto estes dois últimos se encontram
. ·;\1.dos sobre o corpo. O corpo aparece aí na sua t:struiura de um lado único.
1 ,_,anta ao seio e a voz, eles só intervêm na aparição do Outro, como objetos

.;nráveis do corpo do Outro, causa do desejo do sujeito. E já, em todos os


, ::sos, para o seio que é chapeado sobre o corpo do Outro, uma distância
:, parece entre o sujeito e o objeto de sua busca. Quanto à voz, se não podemos
, j.zer, stric to sensu, que ela é revestida sobre o corpo do Outro, ela introduz
l ,em evidentemente a noção de distância, mas tem também a ver com o furo
ia boca.
Podemos medir a importância da diferença entre estes dois tipos de
'lbjetos, quando ao estabelecimento de uma distância, assinalando o que
:,.contece de um lado com Nadia e de outro lado com Marie-Françoise.
Para Nadia, eu fui instaurada em minha posição de Outro muito rápido.
•.Mdentemente que só podemos falar de uma instauração na transferência, e
ião de uma inauguração de um Outro que já não estivesse lá, que não tivesse
-Jrecedido a cena. O significante que pré-existe funda o Outro em seu ser, e
;1ós pudemos evocar a seu propósito a identificação primária ao Pai Mítico de
/reud, ao Nome-do-Pai.
A distância para Nadia, inscreve-se na separação que ela exige, entre o
'a" e o corpo do Outro, "a" separável de meu corpo. Neste ínterim, a distân-
da ao objeto se concretiza no véu: existe apenas para ela, quando ela mergu-
274 Conclusões

lha a cabeça em minha bata, um objeto além do véu, inatingível enquanto tal,
o que a deixa furiosa, mas do qual ela sabe a verdade, visto que é ela mesma
que velará a mamadeira. Quanto à minha voz, sabemos da sensibilidade que
ela mostrou deste o início a seu respeito.
O seio velado, a voz, quer Nadia escute ou comece a falar, fundam uma
distância em sua relação ao Outro. O olhar, era a imagem colada sobre seu
olho; as fezes, era o cocô colado em sua pele. O seio e a voz são para descolar
de meu corpo, não sem violência, para juntar-se em seu próprio corpo aos dois
primeiros objetos, e realizar, quase sob um modo alucinatório, a imagem
primitiva da primeira estrutura do corpo em fita de Moebius, não furada. Mas
esta estrutura é significativa e, nesta medida, sua procura não afasta Nadia de
mim: ela a faz oscilar entre sua procura em meu corpo e minha imagem, que
existe para ela enquanto imagem, e na qual ela se mira narcisicamente com
prazer.
Para Marie-Françoise, quanto à sua relação com os outros objetos
exteriores, eu estou lá apenas como testemunha, sem que ela me chame a
participar de seu debate. Certamente, ela quer também colar os objetos sobre
seu corpo, seja que ela os cole sobre seu olho, seja que ela não saiba o que
fazer com o bebê, por exemplo, quando ela o põe à distância. Mas isto não
basta para fundar o que nós encontramos em Nadia: a estrutura de uma fita
de Moebius. Ela só pode, com efeito, permanecer ao ponto de constatar o
furo real de seu corpo, sem passar, como Nadia, pelo significante dos objetos
do Outro, para ter um corpo não furado. Seu corpo permanece furado, de
qualquer jeito, sem que por isso possamos falar de estrutura tórica, não mais
do que a de Moebius, pela mesma razão de registro: o Real; e na falta de
significante, trata-se de uma anti-estrutura, como dissemos.
Entretanto ainda, mesmo neste Real onde ela evolui, existe como que
um esboço de uma sucessão, que assinala uma atitude análoga àquela de
Nadia, e que testemunha, com certeza, sua procura do Outro, senão, mesmo
daquilo que ela teria podido conhecer no passado, quer seja durante seus dois
primeiros meses com sua mãe, quer seja na amamentação: a presença de um
verdaJeiro Uutro.
2. Para Nadia, a experiência do espelho vai introduzir alguma coisa que
irá radicalmente além da colagem de nossos corpos.
Entretanto poderíamos fazer uma objeção: é que se a distância, no Real
dos corpos, de um mesmo lado do espelho, pode ser reduzida a zero e respon-
der ao desejo de colagem primordial, de outro lado, pennanece a mediação
cativante da imagem, e desta à distância. O Outro é aí ao mesmo tempo real e
outro-que-o-real: o olhar de Nadia testemunha isso, ao mesmo tempo em que
os beijos reais que ela me dá são também para a imagem.
A superfície de nossos corpos é então ao mesmo tempo superfície de
contato real, e superfície além de todo alcance na imagem, visto que se inter-
põe à superfície do espelho; urna interposição, aliás, que deixa em Nadia co-
C/ ínica e Topologia 275

mo que a sombra de um pesar, quando ela bate nesta superfície do espelho


com um cubo, excitada.
Ainda mais, é esta superfície que separa dois espaços, redobrando o es-
paço real num espaço virtual, que a conduz a apreender verdadeiramente o
primeiro espaço como limitado pelo espelho, com um além que é o espaço
virtual.
Este além, é também o fora pois, dia após dia, neste período tão curto e
tão intenso dos espelhos, ela faz a experiência da sala de sessões como limtada
por uma parede, com um interior e um furo (a janela) definindo um exterior.
Aí também, eu estou do mesmo lado dela, dentro da sala. Ela se regozijará
muito aliás, depois em ir para meus braços, como diante do espelho, interessar-
se, diante da janela, pelo espetáculo do exterior.
3. A partir do redobramento do espaço pelo espelho, assim como ore-
dobramento da distância dos corpos à imagem, Nadia encontra quase logo as
noções de dentro e de fora e de furo.
Sobre seu corpo, alguma coisa aparece da ordem do furado, isto é, o fu-
ro real de seu corpo, da boca ao ânus, vai poder ser inscrito mo Outro, logo,
na estrutura. Sua boca, no espelho, lhe serve para me dar beijos; o peniquinho
vazio, no qual ela bebe, é também um furo. Enfim, o outro orifício do furo
de seu corpo, o orifício anal, que estava até então tapado pelo penico, não o
está mais quando ela apresenta o penico separado diante do espelho, e que ela
explora sua borda e seu fundo.
Ela inscreveu, pelo espelho, na conta do Outro, o orifício superior e o
orifício inferior do furo de seu corpo. Sua estrutura de corpo é agora tórica,
com um interior, um exterio~, e um furo central.
Seria este o efeito mais fecundo, quanto à estrutura de corpo, do encon-
tro do pequeno sujeito com o espelho, mas somente na presença de seu
Outro. Ele passaria aí da estrutura inicial de fita de um só lado, bi-dimensio-
nal, a uma estrutura tórica, tridimensional, tendo um dentro e um fora.
Como é possível? E que, como vimos, o Real, Nadia mostrou que ele é
totalmente insuportável nas relações de corpo, a 16 de janeiro; ela teve que
recalcar de outra parte a imagem de 10 de dezembro. Ora, o espelho une o
Real de 16 de janeiro e o imaginário de 10 de dezembro (ou ao menos seu
traço) e torna tudo, novamente, possível. Uma nova dimensão vem aí ao
primeiro plano, o Simbólico, que ela logo põe em ação na sala de sessões, de
um lado, e na sua relação ao objeto-alimento, de outro lado, fingindo beber
no peniquinho vazio, bebendo o "nada".
Marie-Françoise pode mostrar o que acontece quando a interrogação do
corpo não se acompanha de uma articulação possív.el entre o Real e o signifi-
cante, no campo do Outro, mas fica no Real, só.
Ê preciso dizer aliás, que este Real não é unívoco e maciço, mas que
antes, ele obedece ao "tudo ou nada". Marie-Françoise mostra-o em sua rela-
ção comigo: ela não me anula, para em seguida poder me dizer do sofrimento
que é para ela a perda de sua mãe; ela opõe o "tudo" de minha presença real
ao "tudo" de uma ausência, não menos real, de sua mãe.
276 Conclusões

O espelho, nestas condições, na única vez que ela o encontra no estojo


de pó de arroz de uma enfermeira, fortuitamente, lhe remete apenas o Real
que ela procura arranhando detrás do espelho.
Também, não é surpreendente que não seja ao espelho que ela se dirija,
mas à janela; ela não pode se ver aí, é ela que é elidida. Entretanto ela exige
meu olhar, enquanto ela olha não sua imagem, mas a copa das árvores: ela me
demanda lhe remeter sua imagem. Meus olhos são seu espelho, meus olhos-
órgãos; mas ela não pode ver-se aí, ela não pode senão ser meu duplo. Ela
toma, em relação a meus olhos, o lugar que o marinheiro tinha para os seus.
!\ia ausência de relação ao Outro - a interrupção prematura do trata-
mento infelizmente nos priva de saber o que esta relação se tornaria -, seu
corpo é realmente furado, e ela só pôde negar este furo, procurando no
campo escópico o duplo que o taparia. Que eu não seja furada para ela, ou
que eu o seja realmente, não lhe pem1ite, em todo caso, articular uma estru-
tura no campo significante.
O mundo para ela, é furado realmente, e o espelho é apenas um vidro
onde, ela e eu, num espaço real, permanecemos irremediavelmente separadas,
embora este vidro, entre ela e eu, presentifique no horizonte algum espelho.
CAPITULO II
METAFORA E METONfMIA
A abordagem topológica é aquela que nos apareceu primeiro; mas neste
primeiro tempo, nós ainda não tirávamos daí todas as conseqüências, por
falta de colocar radicalmente, além da formulação em termos de superfícies e
de furos, que, a topologia, é também o corpo que desliza no significante, e
que é este último que lhe faz a estrutura.
Não seríamos nós forçados, a partir daí, a interrogar as estruturas deste
significante: ,a metáfora e a metonímia? Foi o que fizemos num segundo
tempo, retomando passo a passo o comentário do texto das sessões.
Nós retomávamos então às próprias fontes da análise, isto é, às estru-
turas do discurso psicanalítico, tal como Freud, antes mesmo da linguística,
as descobria na Traumdeutung, sob a forma da Verdichtung (condensação) e
da Verschiebung (deslocamento). Esta descoberta, ele a fazia formulando a
relação do discurso latente ao discurso manifesto nesta mesma Traumdeu-
tung. Será preciso esperar trinta e cinco anos para que Roman Jakobson faça
da metáfora e da metonímia, que correspondem respectivamente, no discurso
analítico, à condensação e ao deslocamento, as combinações que organizam
toda forma de palavra articulada. Se a linguística nascente tomava em sua
conta a descoberta freudiana que a antecipava como apontou Lacan, ela
permanecia de sua parte uma questão de texto - embora que Roman Jakob-
son fundasse sua formulação sobre dois tipos clínicos de afasia, concernindo
um a decodificação, a seleção dos significantes, o outro a codificação, sua
combinação; isto é respectivamente a metâfora e a metonímia.
Nós não lidamos aqui com textos constituídos mas com a emergência
da palavra articulada - e mesmo com a compreensão da linguagem antes até
desta palavra articulada, dada a idade das crianças-, através da mutação do
Real dos corpos em significante (quer ela se cumpra ou não). Esta dimensão
do corpo e da relação ao Outro, é o que concerne mais especificamente ao
discurso psicanalítico; não é tanto então de linguística que se trata, mas de
"linguisteria", como diz Lacan. A clínica nos impõe a impo~ibilidade de
isolar o texto, que é aliás bem magro, do corpo; isto é, de isolar o significante
do Real do corpo.
Sabemos que a metáfora é substituição do significante ao significante -
uma palavra por outra - e que a metonímia é conexão do significante ao
significante - uma palavra a palavra.
Ora, com Nadia, de quem nós reconhecemos ao longo do tratamento o
acesso ao significante, nós sorna1 constantemente confrontados ao corpo e
278 Conclusões

à parte de Real que ela arrasta com ele. Se o destino deste Real é de ser pro-
movido a significante, é por um longo desvio, cujas peripécias fazem com
que Nadia nem sempre saiba sobre qual vertente se encontra, do significante
ou do Real, pela sua constante alternância, e mesmo pelo surgimento sempre
possível do Real de meu corpo que a surpreende e a faz fugir. É um lento
trabalho que ela deve concluir para moderar este Real, isto é, fazer com que
ele não surja mais de maneira inesperada e isolada, mas com que ele seja
preso num nó do mesmo modo que o Simbólico e o Imaginário! .
Antes do espelho, o transitivismo faz com que, se ela tapa o furo de seu
corpo com um objeto que ela recebe do meu - processo que, como vimos,
só pode ser significante -, ela pode muito bem se propor, por inversão, a
obturar o furo de meu corpo. Por quanto que o mecanismo seja aqui meta-
fórico, o Real dos corpos rapidamente faz retorno e provoca, sob o modelo
oral da devoração particularmente, a maior inibição ou fuga, e mesmo reação
psicossomática do sujeito pela fusão dos significantes primordiais represen-
tando o sujeito e o Outro.
Esta função de tapa-furo real do Outro, é o limite que Marie-FrW._ç_qise
encontra: o Real sozinho preside isso, a metáfora não tem mais nenhum lugar
ou se dissolveu... ao menos para o pequeno sujeito. Mas para a mãe da
criança psicótica, que não é, ela, psicótica, o pequeno sujeito vem tomar
realmente o lugar daquilo que falta na metáfora materna.
A diferença fundamental entre Nadia e Marie-Françoise, a propósito
da lambuzeira de cocô, decide do que se passa do jogo do Real na metáfora:
a lambuzeira de Nadia visa a recobrir toda a sua pele até tapar o furo de seu
corpo, para fazer dele uma superfície não furada, pelo cocô que me represen-
ta, e para realizar sobre ela o que ela acaba de viver na sessão, isto é a impos-

1 Esta via dos tres registros, Real, Imaginário e Simb6Iico, não nos pareceu a mais
apta para especificar a diferença entre Nadia e Marie-Françoise.
É que ao abordar o problema pelo viés das categorias registráveis, arriscamo-nos a
nos perdermos aí como a prova a abundante literatura Schreberiana. Nós nos atemos pois
na questão do estatuto do Outro, pois ela tem a vantagem de estar na fonte da existência
dos três registros e ela permite abordá-lo de um ponto de vista crítico, além de todas as
aparências.
Que o Outro, com efeito, não seja mais o fiador de um significante e este signifi-
cante só irá alterar com o Real, sem por-tante promover outra coisa senão senão o Real,
mesmo se o desencadeamento do significante pode fazer crer em um reflexo simbólico
ou imaginário do mundo exterior.
Este mundo exterior· começa no Outro, lá onde o Real e o significante se encon-
tram no corpo dele, lá sobretudo onde o significante nasce da mutação do Real o Oulro
fala, mas também porque o pequeno sujeito, escutando sua palavra, devolve-a para ele,
como Nádia fez a 10 de dezembro, depois de minha nomeação.
Metáfora e Metonímia 279

sibilidade de fazer um furo em minha pele; Marie-Françoise, ao contrário,


desenha os bordos do furo de seu corpo com este cocô," isto é este furo que eu
falhei em tapar. No primeiro caso, o sentido só surge metaforicamente pela
mutação do cocô real em minha representação como ausência realmente.
No segundo caso, o desenho do furo de seu corpo por Marie-Françoise me
situa como ausente realmente.
Qual é a diferença entre estes dois tipos de representação? Que, para
Nadia, existe substituto possível de minha ausência pelo cocô que restabelece
a continuidade de sua .superfície de corpo, e que, para Marie-Françoise só
há constatação de seu corpo furado visto que eu falho radicalmente em
obturar o furo. Se eu obturo o furo do corpo de Nadia, é porque ela
promove o cocô à dignidade de significante e que, neste campo, ele pode me
representar simbolicamente como obturador. O cocô é aqui verdadeiramente
um Vorstellungs reprasentllnz, com seus dois tempos: 1. representante; 2.
no campo da representação (significante). Para Marie-Françoise, se o cocô
me representa, a eficácia deste representante é nula para obturar o furo de
seu corpo que permanece Real ; ele só faz delimitá-lo.
Embora não se trate de uma palavra, para Nadia, pode-se dizer que o
cocô é o substituto metafórico de minha presença sobre sua pele, estrutural-
mente; enquanto que para Marie-Françoise, esta dimensão de substituição
metafórica não se efetua, na falta de que ela tenha acesso ao significante
pelo viés do Real do corpo. Ela é reduzida ao par de oposição do "tudo ou
nada" de minha presença ou de minha ausência.
Se passamos de um nível tão material como lambuzamento para o apelo
significante, a mesma oposição se encontra em Nadia e Marie-Françoise, com
a condição que se interrogue a estrutura.
Quando, a 15 de outubro, Marie-Françoise lança seu apelo "mamã",
seu olhar dirige-se para a janela e nlfo-mais para mim. Dito de outra fonna,
este significante só a remete à uma ausência real diante da qual ela fica
silenciosa. Não é com certeza o "mamà" de Nadia, que vem tomar o lugar
do objeto de corpo ,que ela gostaria de tomar de mim.
Para Marie-Françoise, um significante não pode tomar o lugar do objeto
que eu sou, na falta de que eu seja para ela um significante ou portadora de
tais objetos. Ela é apenas remetida ao Real da ausência, isto é a este par de
oposição presença-ausência que, nela. deixa o significante e o Real cada um
por sua conta. Nenhuma substituição ao objeto promovido ao posto de
significante de um outro significante demanda ou apelo que Nadia me dirige)
vem fazer aqui efeito de metáfora.
Deste modo, se, fenomenologicamente, o comportamento de Marie-
Françoise pode nos aparecer como o decalque do de Nadia, a ausêíidãdo·
Outro enquanto que significante a faz fracassar em toda substituição meta-
fórica. Certamente, os significantes estão presentes, no lugar quanto aos
objetos; mas ela pennanece impotente em colocá-los no Outro que eu não
sou para ela. No meu lugar, existe uma ausência Real. Talvez, aliás, não pos-
280 Conclusões

samos resolver o que vem primeiro: o abandono pelo Outro e sua ausencia
real, ou a ausência do significante no Outro que faria esta ausência real.
Os significantes e os objetos permanecem assim separados; eles são
apenas, ao longo das sessões, a ocasião de circuitos sucessivos, malgrado
minha palavra que tende a trazer uma articulação entre estes objetos e a
demanda ou o desejo. Na falta de que ela possa dirigir-se a mim, o isolamento
persiste para os objetos, entre o significante de sua nomeação e a ex-sistência
de seu Real.
Como, nestas condições, poderia aí haver metáfora? Muito menos
metonímia.
Mas antes de abordar a metonímia, a metáfora permanece ainda
interrogável sobre um plano lógico, e isto, não a partir de Nadia que chega
lã, mas a partir de Mªrie-Fra~çojK. que só demonstra o fracasso disto per-
manecendo no Real da lingugagem.
A psicose, com efeito, isso fala - Schreber está aí para nos dizer, e
quanto! -, mas isso se perde na linguagem que não cessa de remeter o psicó-
tico os pares de oposiça:0 1 ; alto-baixo, interior-exterior ... Marie-F~~e não
está nesse ponto mas talvez, nesta medida, ela chegue mais rápido ao essen-
cial: presença-ausência. O outro não furado que eu sou é uma "toda-presença"
que não pode receber seu apelo, que ela só lança para a "toda-ausência" da
janela.
Aliás, ela define esta "toda-ausência" do Outro quando ela lança seu
apelo "mamãe" ao objeto, ao prato de arroz, chave de um mundo real em que
a "toda-presença" só tem como corolário a "toda-ausência" do Outro, sem
que nenhum sujeito tenha chance de advir nesta alternativa de exclusão.
Marie-Frimçoisc e seu prato de arroz, é como Schreber e o mundo: ou o mun-
cÍo ..e~tá para acabar e só está povoando de "homens apressadamente improvi-
sados" e el_e, Schreber é o único sobrevivente; ou, por pura oposição, o ttm do
mundo é diferido, mas é o próprio Schreber que lê o anúncio de sua morte
na epígrafe necrológica de um jornal.
"A inversão da posição de indignação que levantava de início na pessoa
do sujeito a idéia de ~masculação, é que muito precisamente no intervalo
o sujeito estava morto". 2
Marie-Françoise,. diante de mim é como Schreber diante do mundo:
eu sou toda presença ou toda-ausência. Seu sujeito teve necessidade de
morrer? Nós não sabemos com certeza; mas, o que é certo, é que ela não é um
sujeito. Ela não é senão o "ser" antes do sujeito, um ser que representa a
alternativa de exclusão "ser ou não ser", em espelho mortal de minha "toda

1 Cf. Ch, Melman, "L'aventure paranoiaque: le cas Schreber", Analytica, n~ 18.


2 Lacan, l:crits, p. 567: "D'une question prélirninaire à tout traitement possib!e
de la pyschose".
Metáfora e Metonímia 281

presença ou toda ausência". Se, para Mari~-.Françoise, eu sou "toda", ainda


uma vez, ela traça o quadro sem esperança, em seu absoluto, daquilo que
Nadia pode interrogar na metáfora; é o que Nadia faz entre o Real e o
significante, entre o Real que me faz "toda" e de que ela foge, e o signifi-
cante, que nos cria "não todas". Assim, a metáfora, num primeiro tempo, não
se impõe a ela pelo fato de que o Real do corpo é ainda próximo demais:
ao mesmo tempo, é um escolho e é a condição para que o Real e o signi-
ficante não sejam completamente separados como na psicose.
Resta explorar como Nadia vai articular os significantes com o Real
do corpo no plano metafórico.
A 10 de dezembro, o recalque da imagem. significante a deixa por um
instante presa ao Real dos corpos. Então sua resposta é do lado do "não
toda"; "não toda" para mim por colagem de seu corpo ao meu, pois ela só
me estende um fragmento, um pedaço de seu corpo, e só se dirige a um
pedaço do meu; eu não sou "toda" também. A elisão desta totalidade real,
para ela e para mim, é a condição de seu "mania" em eco ao meu "Nadia".
Certamente, o trajeto em seguida é demorado, ao longo da fase pré-
especular durante a qual ela tenta agarrar-se ao engodo de uma totalidade:
um objeto que ela poderia tomar de mim, que a preencheria e que a faria
"toda". Seu apelo "mama" desapareceu durante todo este período, e nada
impede de pensar que se o meu chamado que se dirige a ela, "Nadia", não a
mantivesse no significante, o risco seria grande para ela de soçobrar na oposi-
ção das "todas" que Marie-Françoise conhece. Mas por causa de meu
"Nadia", da qual eu sou a guardiã, ela não pode fazer com que o objeto
real tome todo o lugar, enquanto que ela suprime entre o objeto e ela - para
que ele a faça "toda" - o significante "mama".
Seu mal estar vai ao ponto de lhe fazer tomar o' lugar do objeto para
mim: não podendo fazer com que o objeto a faça "toda", ela se faz o objeto
caído a meus pe~ que me faria "toda", no horror de uma realização meta-
fórica - que o amor de transferência disfarça quando ela me demanda carre-
gá-la.
Todo este primeiro tempo da metáfora está centrado na completude,
na sua sobretudo, na minha por transitivismo; completude do corpo, certa-
mente, mas onde o canto do significante mantém uma brecha. A metáfora,
nestas condições, permanece, neste primeiro tempo, toda marcada pelo Real
dos corpos, como o significante que dele se promove. Não está em questão
ainda, num tal afrontamento, que para N'.'dia, eu não seja suposto saber tudo
· o que ela me demanda; mesmo se, seja pelo Real que não se estabelece, seja
pelo significante marcado por uma perda, eu não posso satisfazê-la.
O que ela tinha conseguido, fazendo-se globalmente meu objeto, a
sequência disto, isto é sua demanda do espelho, diz bem que tal não era s_eu·
objetivo: me preencher, ou fazer apenas um comigo em al~?'1ª pe:5pectiva
fusional; era só uma maneira de pagar o preço de sua própria mtençao de ser
282 Conclusões

preenchida. Neste instante, o Real dos corpos é ainda prepondenrante; ma•


quando ela está diante do espelho, o Real cai. A imagem que ela vê a da qual
ela se desvia logo, é uma imagem significante, como aquela que ela conhece
desde 10 de dezembro. :É aqui que está o verdadeiro passo na direção do
instauração da falta, entre a metáfora onde ela se faz meu objeto, toda
marcada pelo Real, e a metonímia onde este Real cai sob a forma du
marinheiro, mas onde também ela entrevê o recorte unitário de seu corpo;
sem o meu talvez, mas onde ela ganha em ser Nadia, isto é "uma" no "U111
de significante" de seu nome que ela escuta desde o início por minha boca.
A queda do Real - o marinheiro e meu corpo - coloca-a na presença
daquilo que funda a metonímia: um "palavra a palavra" de seu nome "Nadia"
à sua própria imagem.
Este "palavra a palavra" só é possível para Nadia porque toda uma se-
quência metafórica precedeu: isto é as permutações significantes de objetos
entre ela e eu, permutações que eram apenas a expressão de uma falta que
insistia. Esta falta se conslui diante do espelho e se compensa pela unidade
de seu corpo.
~arie-Françoise e os psicóticos só podem encontrar no espelho um
duplo real, e este duplo é "todo" como eles, sem perda, sem unidade tam-
bém, que só se conta no significante.
Agora, sabemos, a metonímia vai tomar a cena, com a colher. Antes
que Nadia pronuncie "colher" como primeira palavra reconhecível, esta
colher já é um significante, com o qual ela soletra o mundo num palavra
a palavra onde os objetos são de qualquer sorte transformados por esta colher
com a qual Nadia os batiza.
Com este objeto metonímico, ela não conhece mais os entraves que
lhe impunha o objeto metafórico quando ela se dirigia a meu corpo. Certa-
mente, a colher, ela a conquistou em mim, mas contrariamente ao objeto
metafórico o qual eu era suposto saber que ela procurava, a colher fica a uma
distância significante, desembaraçada do Real do corpo, perdido no momento
da entrada de Nadia na metonímia especular; esta distância é tal que Naida
pode dispor da colher livremente para exercer seu poder sobre o mundo exte-
rior, e sem medo sobretudo que este objeto revele aquilo de que ela me
priva.
Se a perda inerente a passagem à metonímia tem ligação com o recal-
cado, é pois sem seu conhecimento que a colher representa aquilo de que
ela me priva; mas julgando, pela sua jubilação e sua liberadade de ação, é
sem meu conhecimento também que ela dispõe daquilo que esta colher
representa para ela e que ela me tomou. Neste sentido, a metonímia, em
seu processo de significância, frustra a censura e abre a via do desejo do qual
o objeto metonímico tomou toda sua distância com o Real do corpo. A
colher que Nadia brande vitoriosamente torna-se assim o significante puri-
ficado de uma falta que vem no lugar do objeto, na condição que nem ela
nem eu saibamos qual é este objeto perdido. :É como um segredo entre nós,
Metáfora e Metonímia 283

que vai repercutir de espelho em espelho, série onde eu vou ser, ao mesmo
tempo que ela, marcada por esta falta quando tivennos todas duas nossa
imagem
Resta que isto ainda não é suficiente.
Se lhe falta, se me faltou, falta-nos a nós duas um terceiro termo; o
significante da falta será este terceiro tenno e sabemos que se trata do falo.
O jogo metonímico vai se manter a um nível extensivo, ao longo
de todo o período dos espelhos, e mesmo depois, visto que a via está agora
aberta para Nadia fazer passar todo novo objeto neste campo da metonímia,
depois que ela e eu fomos aí c;onfirmadas repetidas vezes sob a fonna para ela
de sua colher, e para mim de meus óculos, reunidos no espaço fechado da
arca.
Tal é o segundo tempo da entrada de Nadia no significante, que só
encontrou seu verdadeiro impulso na relação entre dois objetos tornados às
vezes depois de muitas peripécias (assim como meus óculos), significantes
que representam os sujeitos que nós somos, ela e eu, entre eles enquanto
que significantes e para outros significantes.
Pode-se dizer então que a introdução do terceiro tenno é um retorno
à metáfora? Nós acreditamos que sim, a julgar somente pelas dificuldades e
~bições d~ quais Nadia de~ prova diante da imagem deste terceiro tenno_,
sob a fonna da estagiária. Ela só poderá aceitá-la depois de tê-la velado,
da mesma forma que o véu mascarava os objetos que ela procurava em meu
corpo. Certamente, o jogo significante das metonímias prossegue paralela-
mente e é preciso não esquecer que ela só aceitará verdadeiramente a estagiá-
ria pelo intermédio da imagem desta, lá onde a metáfora do terceiro termo se
sustenta na metonímia.
Este terceiro termo, sabemos, ela o tinha anunciado a 12 de fevereiro
pronunciando a palavra mais comum que um bebê de sua idade diz há muito
tempo - mas ela o dizia claramente, pela primeira vez: "papa".
Seria uma inauguração? Seguramente não no fundo, tanto como o en-
contro entre Nadia e eu não inaugurou o Outro em sua posição fundamental
de lugar de significantes. Nós dissemos, esta abertura sobre o significante
implica uma etapa anterior, original, uma relação de Nadia ao "Pai Mítico"
de Freud, ao "Nome-do-Pai" de Lacan, isto é, uma metáfora original que
faltava radicalmente ou foi dissovida em Marie-Françoise.
Mas o que fazia Nadia desta metáfora presente nela antes de sua análise,
senão ficar em espera numa fixação escópica? Nestas condições, sua análise
é um trajeto cujo debate culmina com <;> encontro da metonímia, necessária
para que um sujeito se encarne no significante: is.to é, como o encontro de
sua imagem especular.
Da metáfora à metonímia, tal nos aparece todo o trajeto analítico.
Ainda é preciso que a metáfora paterna esteja presente na saída, e que o
desejo do analista - que faça ou não, como eu, um trajeto com seu anali-
sando - seja ele mesmo portador desta metáfora. Diante do sujeito psicó-
tico, ele é mesmo o único a ser portador dela.
CAPITULO Ili
ELEMENTOS DE TOPOLOGIA

Nós vamos terminar com uma referência mais específica à topologia,


tentando ilustrar com figuras o que a clínica nos -impôs 1 • O que ela nos im-
pôs pode se formular da seguinte forma:
1. A estrutura com que o sujeito afeta seu corpo é apenas um efeito
do significante que se articula com o Real do corpo próprio. Sem articula-
ção do significante e do Real, como o mostra Marie-Françoise, cada um dos
dois, isolado, por sua conta, não pode fazer estrutura. A psicose é a a-estru-
tura.
2. Nós pudemos distinguir dois estadios desta estrutura:
- uma estrutura de superfície não orientável, ilustrada pela tira de
Moebius;
- a passagem, pelo espelho, a uma estrutura de superfície orientável,
ilustrada pelo toro (figura 1)

Banda de Moebius Toro

Figura 1

1 Nós fazemos questão de agradecer aqui, pela ajuda que eles nos deram nesta ten-
tativa de elaboração, ao Sr. Jean Petitot e ao Sr. Michel Demazure.
Elementos de Topologia 285

A maior dificuldade reside nisto: dar conta topologicamente desta


passagem de uma superfície não orientável a uma superfície orientável.
Ue uma à outra, existe, a mais, passagem de uma estrutura bi-dirnen-
sional, implicando relações por acofamentos e· deslocamentos 1- como" a ima-
gem de 10 de dezembro sobre a superfície do ollio de Nadia ou o recobri-
mento de seu corpo sobre o meu, a 24 de janeiro - a uma estrutura tri-dimen-
sional, que divide o espaço do c?rl!o em um exterior e um interior.

Primeira etapa: a estrutura de .Moebius e o toro do úutro

Vimos como ela se impôs a nós a partir das lambuzeiras no caso de


Nadia, e da diferença fundamental que existe a este respeito entre ela e
Marie-Françoise.
Nesta primeira etapa, o pequeno sujeito se estrutura como uma fita
de Moebius, à condição que o Outro seja estruturado como um toro.
Se a relação ao Outro não permite a inscrição significante do sujeito
sobre o corpo tórico deste Outro, o sujeito fica furado: é a psicose. Sua perda
é revelada no keal e nada é promovido no Outro como um objeto que pre-
encheria o sujeito. "Preencher" é um termo ambíguo e, enquanto tal, deu
lugar às ilusões <lo imaginário do observador, por falta desta articulação que
tentamos fazer: a do Keal e do significante.
Chegan10s a isso:
1. Quando o Real não se articula, o pequeno sujeito é furado e o Outro
não é, o que pode prefigurar que a castração do sujeito presiste irremediavel-
mente no Real.
2. Quando o Real e o significante se articulam, o corpo do pequeno
sujeito se encontra preenchido pelos significantes do corpo do Outro, e o
Outro é furado realmente.
Neste último caso, aquele de Nadia, a dialética entre Moebius e toro vai
continuar.
Oe início, nesta dialética de colamento e descolamento de seu corpo
em relação à superfície do toro que eu sou, ela chega a 16 de janeiro, quando
ela cai aos meus pés, ao descolamento.
Quando em seguida ela vai para diante do espelho pela primeira vez,
ela mergulha, por um curto instante, a fita de Moebius que ela é no espaço.

1 Não desconhecemos a diferença etimológica destas duas palavras: accolement (ad


collum: pescoço *) e décollement(de colla: cola), o que elimina uma simetria no en tan-
to exigível; mas não encontramos, à parte o emprego do verbo "cola{' tão frequente
quanto possível, melhor representante daquilo de que se trata aqui. E verdade que a
Iíngua não é sem ambigüidade também, visto que a "décollation" (em português -
degolamento ou degolação - N. da T.) tem a ver com o pescoço!
\ •) Pescoço - cou em francês - N. da T.
286 Conclusões

Ela encontra aí o impossível, topologicamente; pois uma superfície não orien-


tável, fechada, sem borda, não pode ser mergulhada no espaço de três dimen-
sões; ou se ela mergulhasse no espaço de três dimensões, esta superfície com-
pacta, sem borda, tornar-se-ia orientável (teorema).
Topamos aí a dificuldade maior da abordagem do espelho para Nadia
e, entretanto, sabemos que, no dia seguinte, ela se transformou com isso.
A clínica está sempre aí para nos dizer que, em todo o processo deste
encontro no espelho, Nadia efetuou uma perda sobre dois planos:
1. Um plano real, com o marinheiro ao qual ela renuncia no espelho
de uma parte, e secundariamente do qual eu a privo.
2. Um plano especular: ela não pode ver minha imagem de corpo, da
qual ela acaba de se descolar.
É ex tretamente difícil dar conta da 'transformação de seu aspecto,
desde o dia seguinte, se não supomos que ela antecipou, percebendo-o um
curto instante no espelho, o recorte unitário de seu corpo como uma curva
que o cerca, e que já coloca, como toda curva que não se recorta, duas regiões
sobre um plano: uma região exterior e uma região interior, tendo em conta
que ela eliminou a relação ao objeto e à meu corpo.
É uma antecipação, pois, que prefigura o que vai ser a separação de seu
corpo reunido numa imagem unitária, na estrutura seguinte onde Nadia será
tórica, com um exterior e um interior, mas, desta vez, no espaço.
Neste primeiro tempo, é como se ela tivesse percebido sua silhueta,
unicamente sobre o plano do espelho, isto é um novo acolamento de seu
corpo em sua imagem-plana, pode-se dizer (figu,ra 2).

Imagem-plana do primeiro espelho;


não há ainda espaço virtual.

Figura 2
Elementos de Topo/og;a 287

Walter von Dyck, introduzindo, no final do século passado, a topologia


dos espaços de três dimensões, escrevia: pode-se construir superfícies fecha-
<las que têm um ou dois lados, segundo o espaço no qual elas estão mergulha-
das (figura 3).
Neste encontro do primeiro espelho, tudo se passa como se Nadia esti-
vesse ainda mergulhada num espaço aquém do espelho, e Real, sem inversão
onde pode substituir sua estrutura de fita de Moebius. '
Ela faz ainda a demonstração disso logo depois do segundo espelho
onde, tendo apreendido sua imagem colada em meu corpo, ela confirma 0
caráter real e consistente de meu corpo, acolando-se aí de novo completa-
mente.
Vimos que no dia seguinte, quando ela quer recomeçar a coJar-se em
min1, surge uma perda real de seu corpo, sob a fomia de uma evacuação nas
fraldas, quando ela está junto a mim. Então, ela me bate, violenta, como se

úu..---D
R3, I R3. li

@··---])
------- ~------;ID
Figura 3

R 3 ,I, é um espaço ordinário limitado por um anel.


~ 3 ,II, é um espaço duplo (de indicador que não pode virar-se,) limitado por Uma superfí-
cie dupla.
Colocamos a fita ABCD em R3,l, depois em R3,ll, de tal maneira que AB venha em CD
Obtemos então, no caso de R 3 ,II, a superfície cilíndrica ordinária que tem dojg lados· n~
caso de R 3 ,li, a superfície só tem um unico lado. '
Se refazemos a mesma construção com a tira de Moebius, nos dois casos, chegamos a
uma superfície de indicador que não pode virar-se, aquela situada em R 3 ,I, sendo de um
só lado, e aquela situada em R 3 ,II, de dois lados.
De uma maneira análoga, podemos construir superfícies fechadas que têm um ou dois la-
dos, segundo o espaço no qual elas estão mergulhadas!.

1 ln Jean-Claude Pont, La Topologie algébrique des origines à Poincaré, PUF', 1974.


288 Conclusões
i
surgisse aí uma estrutura tórica de seu corpo que não estava no programll.
Alguma coisa indica aqui uma similitude com o que encontra Marie-Fran. '
i.
çoise, cujo corpo furado responde pela ausência do furo de meu corpo. Mna J
Nadia recupera a perda real na conta do significante que são meus óculos t'
sua colher.
Não é, por isso, que as coisas vão ficar aí para ela: isto é, que ela tenha
um corpo não furado e que o meu o seja, mediante o que a estrutura do pat
dela e meu poderia se manter sob a forma de fita de Moebius colada sobre u111
toro.

Segunda etapa: nossas Moebius

Nesta etapa, alguma coisa vai acontecer, de decisivo, no momento <lo


terceiro espelho: a transformação do corpo do Outro em Moebius. Para isto,
existem várias razões e várias condições.
A razão mais imediata é que eu acabo de lhe dizer, a 31 de janeiro,
enquanto ela suga a ponta do meu nariz e a mordisca como se quisesse me
absorver, que nós somos duas, e que ela não pode mais ser em mim do que cu
nela. Sua resposta, é comer o mingau lambuzando-se antes de vir para meus
braços, colocando os seus ao redor do meu pescoço e colocando sua face
lambuzada contra a minha, antes de reclamar o espelho.
A condição para que ela tenha entendido tão bem o que eu lhe disse, é
que este impossível significado para mim quando eu ponho o significante
de que nós somos duas, articula corno toda lei o Real e o significante: ela só
pode escutar o significante de minha interdição sobre o fundo de uma con-
sistência real e tórica de meu corpo, que ela experimentou ainda no mo-
mento do segundo espelho. Dito de outra maneira, eu só vou ser apreen-
úida por Nadia numa estrutura de superfície, por uma transformação ativa
de sua parte que vem sobre o fundo da experiência que ela tem de meu cor-
po como tórico.
lsto se demonstra da relação impossível do pequeno sujeito com um
Real não articulado - desta vez, é do impossível do Real que se trata - , quan-
úo o Outro, diante dele, por uma razão de desvio psicótico ou neurótico, se
apresenta com uma estrutura não furada, como uma fita de Moebius: então
é ele que é furado, como Marie-Françoise mostra; e, no pior dos casos, ele
não pode chegar a furar o corpo do Outro, a retirar daí seus objetos signifi-
cantes que fariam com que ele não fosse furado. Mas sobretudo, o que nos
ocupa agora, a transformação do Outro em Moebius para assim chegar ao
espelho, transformação ativamente levada pelo pequeno sujeito, fica impos-
sível. A seu corpo furado só pode responder, detrás d.. vidraça, o corpo de
um Outro cujo furo não adveio.
ü espelho só é possível na combinatória do Real e do significante, fun-
úamento da estrutura, onde o acolamento do Real dos corpos remete ao des-
locamento da imagem significante à distância.
Elementos de Topologia 289

l)ois tempos são, nesta sgunda fase em Nadia, a considerar:


1. O acolamento do Real dos corpos é inseparável da imagem signifi-
cante da estrutura: ela e eu nos tornamos, por causa disso, duas tiras de
Moebius acoladas. (fig. 4)
2. Nós estamos todas duas, mergulhadas no espaço. Este espaço é divi-
dido entre um espaço real e um espaço virtual pelo espelho.

Figura 4

O importante para o pequeno sujeito, para que ele prossiga na articu-


lação, é que ele tenha à sua disposição, ao mesmo tempo, o Real do corpo
do Outro, nos braços uo qual ele está e ao qual ele está acolado, e a imagem
deste corpo uo Outro no espelho ao mesmo tempo que a sua
Ele e o Outro devem estar do mesmo lado: é o que se passa com o
espelho, onde a relação no Real dos corpos só se faz em relação à imagem. É
o que não se passa com a vidraça onde o pequeno sujeito e o Outro estão
cada um de um lado, e ficam todos dois no Real sem referência à imagem.
E, ainda a demonstração que faz Marie-Fr_apçoise, na busca de um plano que
corte o espaço em dois, como faz o espelho. Mas está perdido, pois a vidraça
só está mergulhada no espaço real. Ela nos separa, mas, na falta de significan-
te, ela não tem nenhuma ação sobre a estrutura: no lugar do recorte unitário
de seu corpo que Nadia encontra no espelho, Marie-Françoise só é referenda-
da na vidraça à consistência real do corpo do Outro.
A função do espelho é não somente a de cortar o espaço em dois - o
pequeno sujeito e seu Outro, repetimos, estando do mesmo lado - mas a de
introduzir entre o Real e sua imagem um novo parâmetro: a orientação
esquerda-direita. Ora, a olhar de perto, esta orientação é puramente signifi-
cante, como o prova o fato de que o espelho não tem nenhuma ação sobre o
Real do alto e do baixo da figura que ele reflete. Sabemos da precocidade
desta aprendizagem da lateralidade, aprendizagem que passa pela palavra do
290 Conclusões

Outro. Nisto, pois, a imagem, na estrutura direita-esquerda, encontra·•


orientada, como o significante da qual ela é o suporte.
Mas nós devemos retornar ao acolamento feito por Nadia das duas tir111
de Moebius, que são seu corpo e o meu. Seu acolamento, no entanto, não u1
orienta. Existe, neste momento, entre o pequeno sujeito e seu Outro, umn
identificação topológica, pode-se dizer, que Nadia nos demonstra em seu
comportamento, não sem uma segurança surpreendente, como inelutável, isto
é como lógica: poderíamos dizer que a lógica é aí a parte de Real que preside
a operação significante.
Este acolamento, se não está orientado no Real, vai sê-lo no significante
da imagem.
Nós iremos nos referir em seguida a um artigo sobre a inversão du
esfera 1. Neste artigo, está demonstrado que a junção entre duas tiras de
Moebius tem ligação com uma suoerfície unilateral: a garrafa de Klein.
Não está em nosso propósito - e nós remetemos aqui às figuras ilustra·
tivas, no artigo supra-citado, da inversão do toro - demonstrar com a garrafa
de Klein de duas folhas é uma deformação do toro ao longo de sua inversão:
isto é, estabelece-se aí urna ponte entre uma superfície unilateral não-0rienta-
da e o toro, superfície orientada.
O toro, no curso de sua inversão - um dos múltiplos casos de inversão
do toro, porque existe uma infinidade de maneiras de inverter o toro em
topologia - "pode ser deformado em uma reversão de duas folhas da garrafa
de Klein (imersão de uma superfície que se obtém ajustando duas fitas de
Moebius). Pode-se então permutar as folhas do revestimento e chegar, percor-
rendo no sentido inverso a deformação precedente, a um toro invertido2". Se
ao contrário se colasse as faces em frente das duas folhas, voltava-se à garrafa
de Klein, isto é, se ficaria no domínio da superfície unilateral.
Em todas as transformações do toro ao longo de sua inversão - ou de
toda outra superfície -, duas noções essenciais têm que ser colocadas: a do
mergulho de superfície e a da imersão de superfície.
No mergulho, urna membrana elástica pode ser deformada ao infinito
sem ser rasgada nem dobrada, nem entrar jamais em contato com ela mesma.
As deformações de imersão permitem, ao contrário, aos pontos de
superfície de se encontrarem e acarretar a travessia destas superfícies urnas
pelas outras e seu livre deslizamento umas em relação às outras.
Todas estas transformações têm o caráter de uma sucessão, o que é a
marca também do significante. Esta sucessão de transformações no espaço

1 Bernard Morin e Jean-Pierre Petit, "Le retournement de la sphére", in Pour la science,


janeiro 1979.
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Elementos de Topologia 291

forma uma seqüência, introduzindo a noção de tempo. A seqüência das trans-


formações pode ser percorrida num sentido, ou no outro, o que introduz no
espaço a noção de inversão e, no tempo, à uma inversão de sentido de tempo,
noção que merece toda nossa atenção quanto à sua importância no processo
analítico.
Nós aqui retomamos aliás neste ponto com o acolamento que Nadia
realiza entre ela e eu primeiramente, depois no jogo que ela faz diante do
espelho com a reciprocidade dos beijos que vêm ilustrar a permutação das
folhas. Então, remontando na ordem inversa as deformações que o toro sofre
em uma de suas inversões, ela termina em uma estrutura tórica, sem que se
possa dizer, a este respeito, que ela tenha percorrido ela mesma a seqüência
das transformações do toro em direção à garrafa de Klein (de duas folhas),
visto que ela inaugura, ao contrário, uma estrutura tórica a partir desta super-
fície unilateral que ela compôs com duas folhas, a sua e a do Outro.
Uma questão permanece aberta, aqui, a respeito da estrutura do Outro.
Que ele seja furado para Nadia, é certo, como vimos; mas que ele seja tórico
desde o início, isto está em questão, a menos que não se reconheça, ainda aí,
uma certa antecipação, antecipação que deixa lugar a um retorno mais fácil
em direção a uma estrutura de superfície, desde que, como Nadia mostrou, o
impacto relacional se desloque do objeto significante buscando no corpo do
Outro para a imagem identificatória, a qual é evidente demais que ela domina
toda a entrada no espelho: ela me faz "superfície" de sua imagem, antes de ir
nos confrontar ao espelho.

Terceira etapa:os corpos tóricos

Desde então duas etapas estruturais entram em jogo: de uma parte,


como vimos, a elisão, isto é o que há de perda quando, do Real de nossos
corpos, Nadia passa à significância da imagem, e, de outra parte, uma nova
estrutura tórica dos corpos: a cisão do espaço em duas regiões reúne-se aí
com uma espécie de cisão do tempo, combinando o passado da superfície e
dos acolamentos com o presente da distância e da separação, aberto para um
futuro.
Este futuro se sela na inversão do toro, necessário para o cumprimento
da estrutura tórica, com o furo do corpo da boca ao ânus. A topologia, no
esquema seguinte ( fig. 5 ), formado do artigo supra-citado, nos dá conta ...
não sem que o dedo, útil à demonstração, nos remeta a este dedo de Nadia
com o qual ela explorava o furo de minha boca, pronta a querer me privar de
um dedo, lembramos disso, como para se assegurar ativamente do furo de
meu corpo, garantia de seu próprio corpo não furado 1•

1. Marie-Françoise, inteiramente centrada em meus olhos, não se dirige ao furo de


minha boca mas tenta fazer um furo na superfície de meu olho com uma colher.
As duas folhas em Se elas não estão coladas, elas . formam
forma de garrafa de Klein um toro (a: círculo meridiano do toro; h:
círculo da garganta do toro).

A inversão do toro decorre simplesmente da inversão da esfera. Partimos do toro


que transformamos em esfera munida de uma pequena alça. Viramos a esfera (que
torna~e branca) e a pequena alça está agora no interior: basta extrair esta alça enfiando
aí o dedo para obter um toro virado.
O círculo meridiano encontra-se em volta do dedo e torna-se o círculo da gargan-
ta do toro virado, isto é o que ele é: o furo do corpo do sujeito.

Figura 5
Elementos de Topologia 293

Não podemos nos impedir, tendo sido conduzidos, por este bebê que
Nadia era, à uma aproximação topológica necessária - se bem que ainda
insuficiente, mas que nós levaremos mais longe com outros casos-, de pensar
que nós só fizemos seguir a clínica; e de ter a impressão de aí sermos sempre
ultrapassados, como pode ser o arqueólogo diante de uma escrita desconheci-
da, que, enquanto ele interroga sem cessar, não cessa de se escrever para ele,
como um espelho que lhe remeteria uma imagem a decriptar, porque ela seria,
esta imagem, não simples reflexo, mas significante gravado sobre o Real de
algum granito.
fN DICE
Prefácio
Prefácio da Edição Brasileira
Prefácio dos autores para a Edição Brasileira

NADIA
OU O ESPELHO

Capítulo l O pequeno outro 7


(8 - 15 de outubro)

Capítulo li O grande Outro 14


(16deoutubro - 7 de novembro)

Capítulo lII - A pulsão escópica 21


(9, 10 e 12 de novembro)

Capítulo IV A primeira identificação 27


( 13 de novembro - 8 de dezembro)

Capítulo V A fantasia fundamental 40


(1 O de dezembro)

Capítulo VI O pré-especular 48
(11 de dezembro - 3 de janeiro)

Capítulo VII - O pequeno outro: a boneca 67


(4 - 16 de janeiro)

Capítulo VIII - O espelho I: nossa imagem 79


(17 - 31 de janeiro)

Capítulo IX O espelho II: a virada 110


( 1<? - 8 de fevereiro)
Capítulo X - O espelho III: o terceiro termo 121
(9 de fevereiro - 19 de março)

Capítulo XI - O corpo furado, tórico 137


( 4 de março - 23 de abril)

Capítulo XII - A troca 157


(25 de abril - 8 de maio)

Capítulo XIII - A ·vida 164


(maio - setembro)

MARIE-FRANÇOISE
OU O AUTISMO

Capítulo I - A loucura: nem "a", nem "A" 179


(30 de setembro - 4 de outubro)

Capítulo II O outro: uma ausência real 186


(7 e 8 de outubro)

Capítulo lII - O Real e o furo do corpo 194


(9 e 10 de outubro)

Capítulo N - Tapar realmente o furo de seu corpo 200


(13 e 14 de outubro)

Capítulo V - O Real e o significante separados 207


(15, 17 e 18 de outubro)

Capítulo VI - O Real, a demanda e o significante 217


(21, 22 e 23 de outubro)

Capítulo VII - O duplo e o Real 228


(25, 27 e 29 de outubro)

Capítulo VIII - A tentação do Outro portador do objeto 237


(31 de outubro, 3 e 5 de novembro)
Capítulo IX O espelho no Real 247
(10- 19 de novembro)

Capítulo X A emergência de um apelo ao Outro 261


(22 e 24 de novembro)

CONCLUSÕES

Capítulo 1 - Clínica e topologia 269

Capítulo II Metáfora e metonímia 277

Capítulo III Elementos de topologia 284

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