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Má-rotação intestinal no adulto: relato de caso e achados de imagem / Carvalho TN et al.

Relato de Caso

Má-rotação intestinal no adulto: relato


de caso e achados de imagem
Tarcisio Nunes Carvalho1, Cyrillo Rodrigues de Araújo Júnior1, Marlos Augusto Bittencourt
Costa1, Sérgio Roberto Fraguas Filho1, Kim-Ir-Sen Santos Teixeira2, Carlos Alberto Ximenes3

Resumo
A má-rotação intestinal é um espectro de anomalias de posição congênitas do intestino que fre-
qüentemente se apresenta nos primeiros meses de vida. A total incidência, contudo, é desconhe-
cida porque alguns pacientes apresentarão sintomas somente após alguns anos ou permanecerão
assintomáticos durante a vida. O diagnóstico clínico geralmente não é considerado em adultos
Descritores: numa avaliação inicial. Neste artigo relatamos um caso de má-rotação intestinal em um adulto.
Intestino; Má-rotação; Radiologia. São enfatizados os achados clínico-radiológicos e realizada revisão da literatura.

) má-rotação intestinal (MRI) é um espectro de anomalias de posição congênitas


do intestino e resulta de uma inadequada rotação da alça intestinal primitiva em volta
do eixo da artéria mesentérica superior durante a vida fetal[1]. Estima-se ocorrer em
aproximadamente um em cada 500 nascidos vivos[2].
Esta enfermidade pode ocorrer em adultos e deve ser suspeitada e reconhecida,
visto que é encontrada em vários contextos clínicos.
Relatamos o caso de uma mulher com MRI, cujo diagnóstico foi realizado por
meio da radiologia convencional. A alteração na relação entre a posição da artéria e
da veia mesentérica superior estava ausente neste caso. Esta alteração é um impor-
tante sinal de MRI evidenciado através da ultra-sonografia e da tomografia computa-
dorizada, porém pode não estar presente numa minoria dos pacientes, tornando a
radiologia convencional o método de eleição no diagnóstico desta enfermidade[2]. A
tomografia computadorizada é um importante método no diagnóstico das complica-
ções decorrentes da MRI.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino, 30 anos de idade, foi encaminhada ao nosso Serviço


Recebido para publicação em 17/3/2003. Aceito, com quadro clínico de dor abdominal difusa pós-prandial, que iniciara há vários
após revisão, em 1/7/2003.
anos, com caráter intermitente e períodos de remissão dos sintomas. Ao exame clí-
Trabalho realizado no Serviço de Diagnóstico por
Imagem do Hospital das Clínicas da Faculdade de nico não se evidenciou nenhuma alteração.
Medicina da Universidade Federal de Goiás (HC-
FMUFG), Goiânia, GO. A ultra-sonografia e a endoscopia digestiva alta foram previamente realizadas e
1
Médicos Residentes do Departamento de Diagnós- não mostraram alterações. Solicitou-se o enema opaco para investigar a hipótese diag-
tico por Imagem do HC-FMUFG.
2
Professor Adjunto Doutor do Departamento de Diag- nóstica de síndrome do cólon irritável.
nóstico por Imagem do HC-FMUFG.
3
A radiografia convencional evidenciou gás no interior de alças colônicas posicio-
Professor Adjunto do Serviço de Diagnóstico por
Imagem do HC-FMUFG. nadas à esquerda e ausência de cólon à direita (Fig. 1). Apesar dessas alterações, este
Correspondência: Dr. Tarcisio Nunes Carvalho. Rua exame foi considerado inconclusivo, havendo necessidade de complementação com
C-167, nº 130, Setor Nova Suíça. Goiânia, GO,
74255-100. E-mail: tarcisionunes@hotmail.com exames contrastados.

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A paciente submeteu-se, num primeiro momento, ao Realizou-se então estudo contrastado complementar
enema opaco, que demonstrou incompetência da válvula do trato gastrointestinal superior, que mostrou a locali-
ileocecal, cólon ascendente localizado à esquerda e o íleo zação anômala do intestino delgado à direita, com a tran-
à direita unindo-se ao ceco posicionado à sua esquerda sição duodeno-jejunal não atravessando a linha media-
(Fig. 2). Este aspecto foi conclusivo para o diagnóstico na e permanecendo num nível abaixo do bulbo duode-
de MRI. nal (Fig. 3).

ž Fig. 1 – Radiografia simples


do abdome. Gás no interior
de alças colônicas na meta-
ž de esquerda do abdome (se-
tas), não evidenciado à di-
reita.

Fig. 2 – Enema opaco. Có-
ž lon ascendente e ceco posi-
cionados no lado esquerdo
do abdome (setas) e o íleo
terminal à direita (ponta de
1 2 seta).

ž 3


A B
Fig. 3 – Estudo contrastado do trato gastrointestinal superior após a realização do enema opaco. O intestino delgado está na metade direita
do abdome (seta) e o cólon, à esquerda (seta tracejada). A transição duodeno-jejunal não atravessa a linha mediana para formar o ângulo
de Treitz e está num nível inferior ao bulbo duodenal (ponta de seta).

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vólvulo do intestino médio. Outra complicação que pode


ocorrer no adulto é a hérnia interna relacionada a uma
banda peritoneal fibrosa fixada ao cólon direito (banda
de Ladd)[2].
O diagnóstico desta enfermidade ocorre em 64% a
80% dos casos em pacientes no primeiro mês de vida. Em
crianças maiores e adultos a má-rotação raramente é sus-
• ¡
peitada, sendo evidenciada em estudos de imagem ou em
laparotomia[2]. O radiologista pode encontrar esta doença
em vários contextos clínicos como um achado inciden-
tal, causando sintomas abdominais agudos ou associada
a outras condições em locais anômalos no abdome, como
uma apendicite aguda na fossa ilíaca esquerda.
•¡ A detecção de uma má-rotação sem complicações não
deveria ser considerada insignificante porque não há
Fig. 4 – Ultra-sonografia. Posição relativa normal dos vasos mesen-
téricos superiores, com a veia localizada à direita da artéria.
como prever se o paciente terá futuras complicações.
Além disso, numa má-rotação aparentemente assintomá-
tica podem, de fato, ocorrer episódios de dor abdomi-
Foi realizado, posteriormente, outro exame ultra- nal, como no caso relatado. Apesar da recomendação ser
sonográfico, que revelou que a posição relativa entre a controversa, muitos autores preconizam correção cirúr-
veia e a artéria mesentérica superior estava normal, ao gica (procedimento de Ladd) para todos os pacientes com
contrário da maioria dos pacientes com MRI (Fig. 4). MRI, independentemente da idade[7].
A radiografia convencional não é sensível e nem es-
DISCUSSÃO pecífica desta enfermidade, apesar dos sinais sugestivos
como alças jejunais à direita e colônicas à esquerda[8]. O
Na idade gestacional de seis semanas o trato intesti- estudo baritado do trato gastrointestinal superior per-
nal é uma estrutura tubular contínua, dividida em intes- manece acurado na detecção da MRI, sendo o método
tino anterior (suprido pela artéria celíaca), médio (su- de eleição, por evidenciar uma junção duodenojejunal
prido pela artéria mesentérica superior) e posterior (su- que não atravessa a linha mediana e posiciona-se na me-
prido principalmente pela artéria mesentérica inferior). tade direita do abdome, num nível inferior ao bulbo duo-
Durante o desenvolvimento embriológico o intestino po- denal[8]. O enema opaco geralmente mostra a posição anô-
siciona-se no interior do abdome e os segmentos duode- mala do cólon direito, porém os achados neste exame
nojejunal e ileocólico do tubo digestivo primitivo giram podem não ser específicos porque o ceco pode ter loca-
180° e 270° em sentido horário sobre os vasos onfalome- lização variável sem MRI[7].
sentéricos, que originarão os vasos mesentéricos supe- Muitos casos desta doença em adultos podem ser de-
riores, para se fixar na sua posição normal[3,4]. tectados por meio de cortes axiais de tomografia compu-
A MRI pode ser amplamente definida como qualquer tadorizada ou ultra-sonografia, que mostram o desvio da
desvio do giro normal do intestino médio durante o relação normal entre a veia e a artéria mesentérica supe-
desenvolvimento embriológico. A classificação deste es- rior como um indicador de MRI. O posicionamento da
pectro de anormalidades em vários subtipos, baseada no veia mesentérica superior é anormal quando está ventral
estágio de desenvolvimento do intestino médio, é possí- ou à esquerda da artéria mesentérica superior[9]. Porém,
vel[5,6], contudo, do ponto de vista prático, é útil simpli- este aspecto não é inteiramente diagnóstico, visto que esta
ficá-la nas categorias de “rotação incompleta” e “não-ro- relação pode estar normal num paciente com MRI, como
tação”[7]. “Rotação incompleta” refere-se ao espectro de no caso relatado, ou alterada, na ausência de MRI[6].
rotação parcial, com posição anômala do duodeno ou do Zissin e cols. [6] estudaram 18 pacientes com MRI, sendo
cólon direito. Rotação reversa pode ocorrer, mas é rara[5]. encontrada relação normal dos vasos mesentéricos supe-
A “não-rotação intestinal” representa a maioria dos ca- riores em quatro destes.
sos em pacientes mais velhos[6]. O presente relato de caso tem o objetivo de enfatizar
A má-rotação resulta também em má-fixação mesen- a necessidade de se investigar a MRI em pacientes adul-
térica. A raiz do mesentério normalmente é curta, além tos, discutindo sobre os métodos de imagem, além de mos-
de um pedículo estreito que predispõe à complicação de trar um caso num adulto sintomático.

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