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UNIVERSIDADE SAVE
Maxixe
2020
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UNIVERSIDADE SAVE
FACULDADE DE LETRAS E CIÊNCIAS SOCIAIS
Maxixe
2020
ii
Índice
Declaração.................................................................................................................................iv
Dedicatória..................................................................................................................................v
Agradecimentos.........................................................................................................................vi
Resumo.....................................................................................................................................vii
Introdução...................................................................................................................................8
CAPITULO I: GÉNESE E INFLUÊNCIAS DO PENSAMENTO DE LUDWIG
WITTGENSTEIN.....................................................................................................................10
1.1.Contexto Familiar e Académico do Autor..........................................................................10
1.2.Influências do Ambiente Austríaco sobre o Pensamento de Wittgenstein.........................12
1.3.Influências do Ambiente Analítico da Inglaterra sobre o Pensamento de Wittgenstein.....13
1.4.Produção Literário - Filosófica...........................................................................................15
CAPÍTULO II: A ANÁLISE LÓGICA DA LINGUAGEM COMO MÉTODO DE
COMPREENSÃO DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS........................................................17
2.1. Noção de Análise Lógica...................................................................................................17
2.2. A Filosofia Analítica: O Cerne da Problemática sobre Análise Lógica da Linguagem....18
2.2.1. A Análise Lógica da Linguagem como Separação do Sentido e Referência no Projecto
Logicista de Gottlob Frege........................................................................................................20
2.2.2. Bertrand Russell e a Análise Lógica da Linguagem como Elucidação dos Problemas
Semânticos acerca das Descrições Definidas...........................................................................22
2.2.3.Ludwig Wittgenstein do Tractatus: Um Herdeiro Antagónico das Concepções Fregeanas
e Russellianas de Análise Lógica da Linguagem......................................................................24
CAPÍTULO III: A FORMA LÓGICA COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE DE
REPRESENTAÇÃO DO MUNDO PELA LINGUAGEM......................................................26
3.1. Noção de Mundo em Wittgenstein: O Mundo como Totalidade dos Factos.....................26
3.2. Da concepção de Linguagem a Teoria de Figuração lógica dos Factos............................27
3.3. A Forma Lógica como Determinante do Limite da Linguagem........................................31
3.3.1. A Filosofia como Critica da Linguagem.........................................................................35
CAPITULO IV: APRECIAÇÕES CRÍTICAS DA TEORIA TRACTATIANA DE
LINGUAGEM COMO REPRESENTAÇÃO DO MUNDO....................................................38
iii
Declaração
Declaro que esta Monografia científica é resultado da minha investigação pessoal e das
orientações do supervisor. O seu conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão
devidamente mencionadas no texto, nas notas e na bibliográfica final.
Declaro ainda que este trabalho nunca foi apresentado em nenhuma outra instituição para a
obtenção de qualquer grau académico.
________________________________
Dedicatória
Agradecimentos
Em primeiro lugar, ao meu supervisor Ma. Alcido Moniz Nhumaio pela afeição e prontidão
que teve para acolher-me e orientar-me na elaboração deste trabalho. Também pela sugestão e
desafio que colocou-me para escrever sobre o Tractatus Logico-Philosophicus, ao invés das
Investigações Filosóficas, como anteriormente pretendia.
À minha família, em especial aos meus pais e irmãos por estarem sempre presentes nos
momentos angustiosos do meu percurso estudantil, sobretudo pelo incansável apoio financeiro
e confiança que depositaram no meu potencial.
Aos meus amigos e colegas da turma, especialmente ao Ailton, Elídio, Elsa, Erica, Francisco,
Héldio, Jorge, Joel, Matusse, Nelson, Rego e Valdimiro, pelo companheirismo, convivência e
troca de experiência que contribuíram na minha formação humana e académica.
Sobretudo, ao Bom Deus pelo dom gratuito da vida, protecção e forças para encarar cada
dificuldade e obstáculo enfrentados ao longo do meu percurso académico como uma
oportunidade de aprendizado.
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Resumo
Introdução
O nosso estudo baseia-se na obra Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Esta obra é escrita
em aforismos, portanto, a sua chamada de texto no presente trabalho aparece
convencionalmente pelo símbolo “§” que significa aforismo, seguido da respectiva numeração
textual. Tratamos também, as ideias do prefácio escrito pelo autor como secção da obra e nas
chamadas de texto apenas indicamos pelo respectivo subtítulo, suprimindo o nome do autor.
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Por outro lado, apesar de abastada, a família Wittgenstein apresentava traços de muita
depressão e de tendências suicidas. Três dos irmãos do autor cometeram suicídio, dois deles
por não serem deixados prosseguir as suas vocações artísticas pelo seu pai e outro durante a
guerra. Além dos seus irmãos, várias vezes o filósofo também pensou na possibilidade de se
suicidar.
Até aos 14 anos de idade, pelas condições financeiras da sua família, Wittgenstein recebeu
uma educação domiciliar. Em 1904 ingressou numa escola técnica em Linz e em 1906 iniciou
seus estudos de engenharia mecânica na Technische Hochschule de Berlim. Dois anos depois
foi para Universidade de Manchester estudar engenharia aeronáutica, tendo se destacado por
construir um motor de jato. E o seu interesse pela Filosofia da Matemática pura e da Lógica o
levou a Gottlob Frege (cf. Stanford Ecyclopedia of Philosophy. Acessado em 05 de Fevereiro
de 2020). E, “seguindo o conselho de Frege, em 1911, Wittgenstein foi para Cambridge
estudar com Bertrand Russell” (MARCONDES, 2010: 272).
Durante a sua estadia em Cambridge, entre os anos de 1911 a 1913, Wittgenstein estudou
filosofia e os fundamentos da lógica com Russell. Entretanto, apesar de estar extremamente
envolvido nos estudos e nas discussões com seu mestre, Wittgenstein sentia que não podia
chegar à raiz dos problemas que o preocupavam enquanto estivesse em Cambridge. Portanto,
decidiu partir para Noruega, em busca de isolamento para reflectir sobre os problemas
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filosóficos herdados de Russell e Frege, e descobrir suas soluções (cf. Stanford Ecyclopedia
of Philosophy. Acessado em 05 de Fevereiro de 2020).
Em 1913, o autor voltou a Áustria e começou a escrever as notas e rascunhos da sua primeira
obra, o Tractatus Logico-Philosophicus, publicado em alemão e traduzido para Inglês em
1921 (ROVIGHI, 2011: 481). Após a publicação do Tractatus, Wittgenstein achou que não
tinha mais nada a dizer em filosofia, retirou-se, ofereceu sua herança aos irmãos e perseguiu
várias profissões, tais como jardineiro, professor, arquitecto, etc.
Divorciado da filosofia, porque achava ter resolvido todos os problemas filosóficos. Como
salienta o próprio autor no prefácio do seu livro, “[…] a verdade dos pensamentos
comunicados aqui me parece intocável e definitiva, de modo que penso ter resolvido os
problemas no que é essencial” (PREFÁCIO, 1968: 54). Somente em 1929, “Wittgenstein
voltou a Cambridge para retomar a sua vocação filosófica, depois de ter sido exposto as
discussões sobre a filosofia da matemática e da ciência com os membros do Circulo de Viena,
cuja concepção de empirismo lógico era derivada do seu Tractatus” (cf. LÊ LIVROS, 2014:
s/p). E por outro lado, influenciado pela sua experiência como professor escolar e da sua
reflexão sobre como as crianças adquirem e usam a linguagem. Em Junho desse mesmo ano,
“o filósofo obteve o grau de doutoramento, tendo usado o Tractatus Logico-Philosophicus,
como sua tese; e no ano seguinte, sucedeu Moore na cátedra de filosofia” (ABBAGNANO,
2000: 146).
Alguns anos depois, Wittgenstein continuou o seu trabalho filosófico, e viajou para os Estados
Unidos e Islândia, e retornou a Cambridge, onde foi diagnosticado com câncer e morreu a 29
de Abril de 1951.
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A guerra trouxe profundas sequelas para o nosso autor, devido às suas consequências aliadas a
morte do seu amigo e colega de estudos David Pinsent, no campo de batalha, a quem o
filósofo dedica o seu Tractatus. De acordo com Silva (2011: 285), “durante a guerra,
Wittgenstein experimentou situações-limite que contribuíram para que a reflexão sobre o
sentido da vida esteja presente na sua filosofia, ainda que ele não faça dela uma filosofia da
existência”. Portanto, é a partir dessa experiência que a última parte do Tractatus, que versa
sobre ética, estética, Deus e o sentido da vida, é escrita.
No âmbito linguístico, o filósofo austríaco viveu envolta de um ambiente marcado por uma
crise radical da linguagem. Conforme nos é ilustrado por Ouriques (2014: 9), nos finais do
século XIX e no início do século XX, Viena tornou-se um centro gerador de profundas
transformações em diversos domínios da cultura, caracterizada de modo geral por uma crítica
radical à linguagem, com objectivo de denunciar e superar o esvaziamento do discurso, isto é,
a perda de força da expressão da linguagem.
Na mesma linha de pensamento Silva (2008: 85), afirma que “a crise da linguagem que
caracteriza Viena fin-de-siecle1, revela-nos um profundo estado de dúvida em relação a
efectiva contribuição da linguagem em nossas vidas”. Com efeito, alguns intelectuais
vienenses começaram a denunciar a crescente perda de limites efectivos no uso da linguagem
e de signos nos mais variados contextos. Como nos elucida Ouriques (loc. cit.), “[…] as várias
reflexões e questionamentos sobre o significado da linguagem foram demarcados pelas
seguintes dicotomias: pode a linguagem verdadeiramente nos comunicar algo? O que é
linguagem? Qual é a sua essência?”.
Wittgenstein, de certa forma, transfere para a sua obra essa preocupação presente na
atmosfera de Viena, na medida em que ele percebe esse esvaziamento do discurso e faz do
estudo da linguagem seu interesse filosófico principal.
1
Finais do século XIX e inicio do século XX.
13
Além disso, ambos os sistemas defendem que todo modelo deve estar em conformidade com
aquilo que descreve, neste sentido, ambos concebem a noção de isomorfismo como um
postulado das suas respectivas teorias. Portanto, inspirado pela tarefa crítica empreendida por
Hertz de determinar os requisitos indispensáveis a todo modelo científico, Wittgenstein
realiza no Tractatus uma critica da linguagem que visa dissolver as perplexidades linguísticas
(SILVA, 2009: 134).
Por outro lado, o Tractatus de Wittgenstein apresenta grandes traços da influência da teoria
das descrições definidas proposta por Bertrand Russell. Pois, como afirma Ouriques (2014:
63), “a tarefa primitiva wittgensteiniana de expulsar da filosofia tudo o que representa mero
contra-senso ganhou força com a teoria das descrições definidas”. Por sua vez, Alencar (2006:
240), defende a tese de que a noção de mundo tractatiana está directamente relacionada á
teoria das descrições definidas de Russell, uma vez que ao contrário da perspectiva de Frege
que defendia uma ontologia de conceitos e objectos que se resume a uma análise gramatical
superficial, Wittgenstein, a semelhança de Russell vai se valer da análise da forma lógica
profunda da proposição até aos designados objectos simples. Por seu turno, Ribeiro (2005:
84) “sustenta que Wittgenstein compartilha com Russell a ideia de que o significado de um
nome é seu portador”.
Entretanto, além das questões técnicas de análise lógica da linguagem, “o principal mérito de
Russel para o Tractatus, foi efectivamente a teoria das descrições definidas, que se mostrou
como um exemplo de uma teoria de clarificação que Wittgenstein admirava e buscava quando
escreveu o Tractatus” (LÊ LIVROS, 2014: s/p). A teoria russelliana das descrições definidas
possibilitou Wittgenstein romper a forma gramatical e especificar a essência da linguagem, o
que implica especificar a essência do mundo. Como é expresso no § 5.4711, “especificar a
essência da proposição significa especificar a essência de toda descrição e, portanto, a
essência do mundo”.
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Durante o seu percurso intelectual, Wittgenstein produziu vários escritos, desde livros, cartas,
artigos, entre outros; embora muitas das suas produções literárias tenha uma publicação
póstuma. Entretanto, neste item, nosso objectivo não consiste em fazer um inventário
completo dos escritos do nosso autor, pelo que, destacaremos as suas duas principais
produções, da qual achamos que representam a síntese das ideias expostas nos restantes
escritos.
dos chamados jogos de linguagem, no qual o significado de uma palavra é dado pelo seu uso
na linguagem de acordo com contexto em que ela está inserida.
A ruptura radical que caracteriza as duas principais obras de Wittgenstein que expomos
acima, fez com que na interpretação de Cordón & Martinez (1995: 129), “muitos estudiosos
das obras filosóficas de Wittgenstein o dividissem em dois períodos. O do primeiro
Wittgenstein, que corresponde ao seu Tractatus; e o segundo Wittgenstein, cuja síntese do seu
pensamento encontramos nas Investigações Filosóficas”. Porém, em estudos mais recentes,
essa divisão foi questionada. Alguns intérpretes reivindicaram uma unidade entre todos os
estágios do seu pensamento, outros falam de uma divisão mais subtil, enquanto outros ainda
acrescentam estágios como Wittgenstein do meio e o terceiro Wittgenstein (cf. Stanford
Ecyclopedia of Philosophy, Acessado em 05 de Fevereiro de 2020).
Perante essa dicotomia em torno das fases do pensamento do nosso autor, doravante
designaremos por Wittgenstein do Tractatus, quando nos referirmos ao autor do Tractatus
Logico-Philosophicus; e Wittgenstein das Investigações, quando nos referirmos ao autor das
Investigações Filosóficas.
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Procura-se com o capítulo em causa, desenvolver a análise lógica da linguagem como método
de compreensão dos problemas filosóficos. Para o efeito, apresenta-se a noção de análise
lógica; seguido do debate em torno da problemática de análise lógica da linguagem no âmbito
da filosofia analítica, enfatizando os contributos de Gottlob Frege e Bertrand Russell e,
posteriormente a ruptura e continuidade do autor do Tractatus com as concepções fregeanas e
russellianas de análise lógica da linguagem.
Para apresentarmos a noção de análise lógica é necessário perceber o que significa análise. A
palavra “análise” vem do grego “analyein”, que significa desligar, dissolver ou decompor.
Segundo Japiassú & Marcondes (2001: s/p), “a análise lógica é um processo de decomposição
de uma substância ou conteúdo complexo em seus diversos elementos constituintes, a fim de
se obter uma melhor compreensão”. Em consonância, Marcondes (2004: 8), afirma que
“análise lógica significa compreender minuciosamente certos conceitos básicos para depois
defini-los, ou seja, significa estabelecer o significado dos conceitos fundamentais, como ponto
de partida para compreender os demais”. Já para D'Agostini (2003: 281), “a análise lógica
consiste em esmiuçar o que se dispõe, isto é, o pensamento”. Na mesma perspectiva,
Abbagnano (2007: 629), sustenta que “a análise lógica consiste em quebrar ou romper um
conceito em suas partes mais simples, de modo a alcançar sua estrutura primordial”.
Numa visão geral a questão de análise faz parte da investigação filosófica desde os primórdios
da tradição filosófica. Para falarmos dos primórdios do uso do método analítico temos que nos
reportar à época de Platão e Aristóteles. O primeiro empreende uma “análise conceitual em
sua busca da definição de ʻSofistaʼ no diálogo homónimo, quando pela divisão, separação e
decomposição, busca os vários elementos que entram na definição de um conceito e as várias
distinções que podem ser feitas a partir da consideração de um conceito geral”
(MARCONDES, 2004: 10). Quanto a Aristóteles, “a sua distinção de causalidade que mostra
que o conceito de ʻcausaʼ pode ser entendido de quatro modos diferentes (formal, material,
eficiente e final), constitui uma análise do conceito de causa, da qual resultam essas
distinções, permitindo uma definição mais precisa e desfazendo equívocos” (Idem).
Por sua vez, Descartes, ao estabelecer as regras do método, propõe a análise como a única
regra que pode levar à evidência de tudo aquilo que pode-se conhecer, através da
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Entretanto, foi justamente no século XIX, com a filosofia analítica que a análise lógica passou
a ser utilizada como um método de compreensão da linguagem para a resolução dos
problemas filosóficos. Inaugurando a chamada “virada linguística da filosofia”, movimento
que introduz a análise lógica da linguagem no âmbito filosófico, passando a conceber a
filosofia como uma pesquisa sobre a linguagem, ou seja, como uma ciência que trata da
análise do significado de enunciados linguísticos.
A Filosofia analítica pode ser entendida como um movimento cujo interesse está voltado
essencialmente para a análise lógica da linguagem como procedimento de resolução dos
dilemas filosóficos. Como atesta Medina (2007: 55),
A filosofia analítica define sua tarefa como a análise lógica dos conceitos,
visando desse modo elucidar os problemas filosóficos [...]. A análise do
conceito como parte da tentativa de solução de um problema filosófico não
depende de uma compreensão da história do conceito, de suas origens e
evolução, mas sim, na concepção tipicamente analítica, apenas de
determinação da definição desse conceito da forma mais clara e precisa
possível.
Em termos gerais, a filosofia analítica pode ser caracterizada por ter como ideia principal a
concepção de que a filosofia deve realizar-se pela análise lógica da linguagem. Sua questão
principal consiste em, ʻcomo uma proposição tem significado?ʼ (D'AGOSTINI, op. cit: 285).
Portanto, a filosofia analítica pondera que o tratamento e a solução de problemas filosóficos
devem ser por meio da análise lógica da linguagem. Entretanto, “não se trata de uma língua
empírica (português, inglês, francês, etc.), mas da linguagem como estrutura lógica subjacente
a todas as formas de representação linguísticas e mentais” (cf. DOUTRA, 2018: 508).
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Entretanto, de acordo com Medina (2007: 49), a filosofia analítica não teve um
desenvolvimento linear e homogéneo, ao contrário, deu-se de forma dispersa no tempo e no
espaço, comportando uma heterogeneidade de concepções, que se podem resumir em duas
grandes orientações. A primeira chama-se semântica clássica ou filosofia da linguagem ideal,
que congrega a filosofia de Frege, Russell e Wittgenstein do Tractatus. O seu traço comum é
a preocupação com a fundamentação da ciência, utilizando a análise lógica da linguagem
como método fundamental.
Nesta perspectiva, será feito a seguir um estudo crítico das contribuições de Gottlob Frege e
Bertrand Russell que exerceram grande impacto sobre Tractatus. Pois, partimos do
pressuposto de que a concepção da linguagem defendida nesta magna obra que conduz a
nossa pesquisa surge como ruptura da concepção de análise lógica da linguagem dos seus
mestres. Como assevera Mafredo (apud SIVA, 2010: 9), “as teses fundamentais do Tractatus
são inteligível somente se entendido como uma radicalização das doutrinas de Gottlob Frege e
Bertrand Russell”.
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Porém, na efectivação desse projecto, Frege percebe a inadequação da linguagem natural para
tais fins, isso é, o autor percebe que a linguagem natural está repleta de ambiguidades e
imperfeições para expressar as relações lógicas complexas. Com base nisso, Frege constrói
uma nova lógica, o qual ele apresenta de modo detalhado na sua obra Begriffsschrift3, de
1879, chamada na tradução portuguesa, “Conceitografia”, ou ainda “Escrita Conceitual”, na
qual constrói uma linguagem logicamente perfeita e transparente, capaz de expressar o
pensamento puro e científico.
O projecto fregeano de construção de uma linguagem formal e logicamente perfeita, faz surgir
uma teoria da linguagem, exposta em seu famoso artigo “Sobre Sentido e Referência”, de
1892, no qual o filósofo usa a análise lógica para distinguir o sentido e a referência dos nomes
próprios e sentenças assertivas completas, com objectivo de deixar de fora aquilo que não tem
referência no mundo. Essa distinção ocorre à volta de identidade ou de igualdade aritmética
(cf. LASTRA, 2013: s/p). Isto é, “Frege vai concentrar-se no problema do significado das
proposições a partir da relação entre a linguagem e o mundo. Para isso estabelece uma
distinção fundamental entre o sentido e a referência, nos indicando como isso ocorre nos
nomes próprios e nas proposições” (MARCONDES, 2004: 21).
2
Gottlob Frege (1948-1925), foi um matemático, lógico e filosofo alemão que fez contribuições significativas à
lógica e aos estudos da linguagem. Sendo considerado fundador da lógica moderna e da filosofia analítica
contemporânea.
3
Esta obra representa o mais importante desenvolvimento de lógica desde Aristóteles.
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Nos nomes próprios, a distinção fregeana acerca de sentido e referência é formulada nas
seguintes teses: 1) a referência de um nome próprio é o objecto que por seu intermédio
designamos. 2) O sentido é um modo de representação do objecto designado. Como dá a
entender Souza (2007: 33), “a referência é o objecto denominado pela expressão; já o sentido,
é o modo de apresentação do objecto, ou seja, o modo pelo qual o objecto se dá para nós,
fornecendo seu significado”. Em paralelo, Moreira (2011: 120), sustenta que “em Frege a
referência é o objecto designado por intermédio de um nome próprio; ao passo que, o sentido
equivale a um intermediário entre a expressão linguística e seu referente”. Nas palavras de
Frege,
Através de análise lógica Frege reduz a linguagem em seus componentes lógicos essenciais,
traçando uma distinção entre sentido e referência na linguagem. Para o filósofo, um estudo
preciso da linguagem começa com uma compreensão da diferença entre referência (o objecto
ao qual a linguagem se refere) e seu sentido (o modo como uma expressão se refere ao
objecto).
No seu artigo On Denoting, de 1905, Russell apresenta a sua concepção de análise lógica da
linguagem, “com objectivo de propor uma solução alternativa para o mecanismo referencial
das descrições definidas em posição de sujeito” (PINTO apud MAIA, 2006: 32).
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Os problemas semânticos das descrições definidas surge quando Russell se questiona sobre o
significado que convêm dar as expressões denotativas que nada denotam, tais como “o actual
rei da França é careca”. Para Frege, enunciados deste tipo não são nem verdadeiros e nem
falsos; já para Russell, é possível desenvolver esse género de enunciados, de modo que
manifeste a sua verdade ou falsidade.
Nesta perspectiva, de acordo com Medina (2007: 64), Russell vai criticar a abordagem
restritiva de Frege acerca do sentido, que liga o domínio do que é significativo ao domínio do
que realmente existe e nega significado completo a expressão sem denotação. Como Frege,
Russell defende uma concepção realista segundo o qual, há somente um mundo, uma
realidade objectiva, ao qual nossos termos podem referir e que podem fazer nossas afirmações
verdadeiras ou falsas. No entanto, ele procura defender o seu realismo sem impor fortes
restrições ontológicas no domínio do significativo, pois o domínio do discurso significativo
excede o domínio do que existe. Para Russell, as afirmações sobre as coisas não existentes
podem ser semanticamente avaliadas, elas têm um valor de verdade.
Russell parte da concepção de que a forma gramatical das sentenças não representam sua
forma lógica, sendo necessária por isso submeter essas sentenças a uma análise lógica que
revele e torne explicita essa forma lógica, visto que, as Descrições Definidas são expressões
que, apesar de se assemelharem a nomes próprios, designando indivíduos não são realmente
nomes próprios (DA SILVA, 2007: 29).
4
Bertrand Russell (1872-1970), foi um filósofo e lógico britânico, pensador influente em lógica matemática e
um dos responsáveis pelo desenvolvimento da escola analítica de filosofia.
5
Descrições definidas são expressões formadas pelo artigo definido singular e por pelo menos um substantivo. A
análise dessas expressões preocupou vários filósofos, tanto que, boa parte da filosofia da linguagem do século
XX é o resultado do debate acerca da correcta interpretação de descrições definidas (DA SILVA, 2007: 9).
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A análise lógica da linguagem deve trazer à tona as funções proposicionais mediante as quais
as descrições referem. Nesse sentido, as descrições definidas são uma tentativa de referir a
algo em particular ou a um indivíduo em particular, que se enquadra no perfil delineados pela
descrição. Diferentemente das descrições indefinidas, que somente fazem afirmação de
existência, as descrições definidas fazem uma demanda de unicidade (que há exactamente
uma coisa da qual a descrição é verdadeira). Assim, a função proposicional contida numa
descrição definida consiste na combinação de duas afirmativas distintas, uma afirmativa de
existência e outra afirmativa de unicidade. Esta função proposicional complexa pode ter uma
referência definitiva, isto é, pode denotar um particular (cf. CITRA, 2007: 65).
Desta forma, de acordo com Marcondes (2004: 29), Russell sustenta que a aplicação da
análise lógica da sentença denotativa que nada denotam como ʻo actual rei da França é
carecaʼ, aparentemente violam o princípio lógico do terceiro excluído, que estabelece que
uma sentença só pode ser verdadeira ou falsa, não havendo uma terceira possibilidade. No
entanto, essas sentenças, por não se referirem a nenhum objecto existente na realidade, não
seriam nem verdadeiras e nem falsas. Uma vez que não existe um actual rei de França, a
sentença não pode ser considerada verdadeira. Porém, tampouco é falsa, pois não podemos
dizer que o actual rei da França não é careca. Mas também, não podemos considerá-la sem
sentido, uma vez que pode facilmente ser compreendida. Em consonância, Medina, assevera
que,
Com a teoria das descrições definidas, Russell mostra que as sentenças que
contem descrições definidas sem denotação não violam a lei do terceiro
excluído (ou qualquer outra lei lógica que regulamenta as relações inferenciais
entre a verdade e a falsidade). Uma vez que uma frase pode somente ser
verdadeira ou falsa, e nada mais, quando uma frase é falsa, sua negação deve
ser verdadeira e vice-versa. No entanto, seria errado concluir a partir da
falsidade de ʻ O actual rei da França é carecaʼ, que ʻ O actual rei da França
não é carecaʼ seja verdadeira. Esta inferência seria errada porque o que faz a
primeira frase falsa não é o cabelo na cabeça do rei da França; mas o que a
torna falsa é sim, que não há rei na França hoje (MEDINA, 2007: 66).
através da qual seus elementos são identificados, estabelecendo-se a relação destes com os
elementos correspondentes em um facto na realidade, descrito pela sentença.
Foi precisamente por esta razão que Russell atribuiu ao Tractatus, na introdução, o objectivo
de construção de uma linguagem logicamente perfeita, que obviamente Wittgenstein não
poderia subscrever, visto que, para o autor do Tractatus a linguagem ordinária está em ordem,
tal como está, e não carece de qualquer correcção lógica especial. Ao contrário do que
defendia Frege e Russell, na sua concepção de análise Wittgenstein nunca admitiu qualquer
imperfeição lógica na linguagem ordinária, pois ele acredita que não existe uma linguagem
humana ilógica ou irracional. Como o autor esclarece no § 5.463, “todas as proposições de
nossa linguagem corrente são, de facto, tais como são, perfeitamente ordenadas de um ponto
de vista lógico. […]”.
Desta forma, o Tractatus propõe-se a demonstrar que todos os problemas filosóficos podem
ser resolvidos quando se compreende adequadamente o correcto funcionamento da lógica da
linguagem. Como o próprio autor anuncia no prefácio da obra, “o livro trata dos problemas
filosóficos, mostrando que a origem desses problemas repousa sobre o mau entendimento da
lógica na nossa linguagem” (PREFÁCIO, 1968:54).
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O autor do Tractatus concebe o mundo sob égide da factualidade, e não sob uma
objectividade, como a tradição filosófica fazia. Para ele, “o mundo é totalidade dos factos e
não das coisas” (§ 1.1). Esse mundo composto de factos é demarcado pelo espaço lógico, que
constitui a unidade lógica de todos os mundos possíveis. Nesta perspectiva, cada ocorrência
factual é demarcada pelo filósofo como um estado de coisas, conforme é ilustrado no § 2, “o
que ocorre, o facto, é o subsistir do estado de coisas”. Esses por sua vez são uma ligação de
objectos, de acordo como o § 2.031, “no estado de coisas os objectos se ligam uns aos outros
como elos de uma cadeia”.
Porém, Moreira apresenta uma distinção mais subtil, quando afirma que no Tractatus as
relações entre os objectos são por um lado, contingentes; e, por outro, necessárias. “São
contingentes porque cada um dos objectos pode aparecer em qualquer estado de coisas que
neles estejam inseridos; e a sua forma é que determinará em que estados de coisa ele poderá
aparecer” (MOREIRA, 2011: 48). Entretanto, “são necessárias, à medida que é essencial que
cada um dos objectos esteja sempre numa relação com outros e, qualquer que seja a
vinculação entre eles, ela sempre estará delimitada pelas possibilidades estabelecidas pelo
espaço lógico” (Idem).
Com base nos aforismos supra-citados, pode-se perceber que a proposição é um conjunto de
nomes ordenados por uma certa lógica. Porém, esses nomes por si só não têm sentido, eles só
têm sentido quando inseridos no contexto da proposição. De acordo com o autor do Tractatus,
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“só a proposição tem sentido; somente em conexão com a proposição um nome tem
denotação” (§ 3.3). Portanto, “os nomes dependem das proposições, visto que eles só podem
designar objectos no interior das proposições, ou seja, os nomes só têm sentido dentro de uma
proposição” (GOMES, 2011: 22).
Assim, de acordo com o autor do Tractatus “a proposição é uma figuração 6 da realidade. Uma
figuração é um modelo da realidade tal qual a pensamos” (§ 4.01). Na teoria de figuração, o
autor do Tractatus explica como a linguagem está essencialmente ligada ao mundo através do
método de projecção que justifica a linguagem a capacidade de correlacionar os seus
elementos constituintes, com os elementos constituintes do mundo. Nas palavras de
Wittgenstein “a proposição é figuração da realidade, pois, conheço a situação representada
por ela quando entendo a proposição. E entendo a proposição sem que o sentido me seja
explicado” (§ 4.021). Portanto, no Tractatus, “Wittgenstein concebe a figuração como a
perfeita correspondência entre a estrutura do mundo e estrutura da linguagem, pois existe uma
relação isomórfica entre os elementos da proposição e os elementos realidade (ARAÚJO &
TANNÚS, s/a: 5).
6
É Importante referir que em consonância com Araújo e Tannús, a “figuração” é aqui entendida como
representação, pois, refere-se a uma relação que espelha a realidade.
29
Wittgenstein assevera que “a figuração tem em comum com o figurado a forma lógica da
figuração” (§ 2.2). Desta forma, no Tractatus as proposições lógicas manifestam a estrutura
da linguagem, que por sua vez, revelam a estrutura do mundo. Para sustentar essa teoria,
Wittgenstein defende que existe um elemento em comum entre a linguagem e mundo, que
possibilita a capacidade de pensar e falar sobre o mundo. Esse elemento em comum é a forma
lógica.
Entretanto, como adverte Moreira (2011: 51), apesar de existir no Tractatus uma exigência de
correspondência biunívoca entre os elementos da linguagem e os elementos do mundo, não
devemos compreender essa correspondência como de semelhança de imagens entre esses
elementos, mas como uma correspondência de formas similares, isto é, de estruturas
semelhantes.
Por meio da proposição a realidade deve ser fixada enquanto sim ou enquanto
não. Por isso, deve ser completamente representada por ela. A proposição é a
representação de um estado de coisas. Assim como a representação de um
objecto se dá segundo suas propriedades externas, a proposição representa a
realidade segundo suas propriedades internas. A proposição constrói o mundo
com a ajuda de andaimes lógicos, e por isso é possível, na proposição, também
se ver, caso ela for verdadeira, como tudo que é lógico está. […].
Para Wittgenstein, a figuração não descreve apenas uma realidade existente (estado de coisas
formados pela cominação de objectos), mas também uma realidade possível (aquelas que não
subsistem, mas que podem vir a existir devido à possibilidade de combinação dos objectos).
Portanto, “somente podemos aferir se uma figuração descreve um estado de coisas quando a
confrontamos com a realidade, residindo aí seu critério de verdade” (SPICA, 2009: 9).
No § 4.2, Wittgenstein sustenta que, “o sentido da proposição é o seu acordo e desacordo com
a possibilidade de subsistência e não subsistência dos estados de coisas”. Neste sentido, não
se pode chegar ao valor de verdade de uma figuração apenas pela análise da proposição, pois
somente pela confrontação com a realidade, ela pode ser considerada verdadeira ou falsa, ou
seja, “nenhuma figuração pode ser verdadeira a priori, mas somente a posteriori, uma vez que
obtemos o valor de verdade de uma proposição aferindo o facto por ela representado e, se o
facto representado subsiste, ela é verdadeira, do contrário, ainda que tenha sentido, ela é
falsa” (ARAÚJO & TANNÚS, s/a: 6).
Assim, a análise lógica da linguagem mostra-nos que a linguagem é formada por proposições,
cuja legitimação reside em sua estreita relação com o domínio dos estados de coisas. Neste
sentido, “tanto a possibilidade do sentido linguístico quanto o mecanismo que determina o
valor de verdade daquilo que expressamos através da linguagem, sedimenta-se sobre o facto
de a linguagem estar directamente conectada ao mundo; e é essa conexão que permite que ela
reproduza de modo exacto a estrutura lógica do mundo” (SILVA, 2008: 120).
Segundo o autor do Tractatus, na sua função descritiva a linguagem possui limites, cujas
demarcações estão definidas na doutrina de distinção do dizível e do indizível. De acordo com
o autor, “o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e daquilo sobre o que não se
pode falar, deve se calar” (PREFÁCIO, 1968: 53).
Segundo Ouriques, em uma carta dirigida a Bertrand Russell, Wittgenstein chegou a afirmar
que essa diferença entre o dizível e o indizível constitui o ponto essencial do livro e o
problema central da filosofia. Nas palavras de Wittgenstein,
O ponto principal do meu livro é a teoria do que pode ser ʻditoʼ pelas
proposições, isto é, pela linguagem (o que equivale ao que pode ser pensado),
e o que não se dizer por proposições, mas apenas pode ser ʻmostradoʼ; creio
que este é o problema cardial da filosofia. (WITTGENSTEIN apud
OURIQUES, 2014, p. 30).
Estabelecida a sua função descritiva, a linguagem não pode dizer nada além dos factos
figurados pelo pensamento e delimitado pelo espaço lógico. Portanto, não podemos pensar
nada que esteja fora das combinações lógicas dos objectos que constituem o mundo, pois não
pode existir um mundo ilógico e nem podemos pensar nada de ilógico. Na perspectiva do
32
Neste sentido, da mesma forma que o mundo e o pensamento, a linguagem, por ser a
descrição desses factos figurados pelo pensamento, também está delimitada por essas
fronteiras lógicas, pois os nomes que a compõem e que substituem os objectos na proposição
são necessariamente registados pelas determinações lógicas da sintaxe que partilham a sua
forma com o espaço lógico.
Todavia, segundo o autor do Tractatus, nem tudo pode ser dito, além da estrutura lógica
comum entre a linguagem e o mundo, existe uma série de coisas que sobre as quais não
podem ser ditas, mas mostradas, é o místico. Nas palavras do filósofo, “existe com certeza o
indizível. Isto se mostra, é o que é místico” (§ 6.521). “O místico não é como o mundo é, mas
o que o mundo é” (§ 6.44). Os factos no mundo descrevem apenas como as coisas estão e
apontam o carácter contingente das figurações variáveis e instáveis dos objectos; mas não
descreve o que elas são, ou seja, aquilo que determina as condições essenciais da existência
das coisas e, portanto, da sua representação linguística, pois trata-se do místico e, só pode ser
mostrada.
Quanto á Ética e a Estética, segundo o autor do Tractatus, elas são uma só, pois ambas
pertencem a esfera de valor e não se deixam exprimir pela linguagem (cf. § 6.421). De acordo
com Ouriques (2014: 32), “para Wittgenstein, não existem proposições dotadas de sentido que
33
Para o autor do Tractatus, Deus, a ética, estética, metafísica e o sentido da vida, não podem
estar no mundo figurado lógico e linguisticamente porque a figuração dá-se através das
proposições simples que encontram sua verdade quando o objecto representado encontra-se de
facto no mundo.
domínios da lógica, ultrapassando assim os limites da linguagem, ou seja, daquilo que pode
ser dito. Na mesma linha de pensamento, Zilles (2008: 97) sustenta que,
Na mesma linha de pensamento, Júnior (2008: 22), sustenta que a análise lógica da linguagem
realizada pelo autor do Tractatus reflecte e ressalta a herança da tradição crítica de origem
Kantiana que procura estabelecer as condições transcendentais de possibilidade do
conhecimento humano, visto que da mesma forma que Kant, o carácter crítico
wittgensteiniano também procura estabelecer limites. Entretanto, esses limites não são mais
limites epistemológicos, mas linguísticos. Em paralelo, Stenius sustenta que,
discurso metafísico que trata sobre a vida, a ética, o belo, assim como sobre Deus, visto que
tais discursos estão fora das fronteiras do mundo e da linguagem. Portanto, são impensáveis e
indizíveis.
Com base no exposto acima, percebe-se que a distinção entre o que pode ser dito e o que
apenas pode ser mostrado (o místico), se constitui fundamento para estabelecer o limite da
linguagem e, consequentemente, a condição para a compreensão de toda a filosofia de
Wittgenstein do Tractatus, visto que só se pode dizer os factos do mundo; e o que não se
constitui como facto no mundo é o místico, isto é, aquilo sobre o qual nada podemos falar.
Nesta perspectiva, diante do místico, o autor do Tractatus propõe o silêncio como a melhor
atitude, “o que não se pode falar, deve-se calar” (§ 7). Essa remissão ao silêncio obrigatório é
necessária simplesmente porque qualquer tentativa de dizer algo sobre aquilo de que não se
pode falar, nos levaria além dos limites da linguagem enquanto descrição dos factos no
mundo, ou seja, além da própria capacidade descritiva da linguagem, constituindo-se um
contra-senso, pois ultrapassaria os limites da linguagem e da estrutura lógica do mundo.
Segundo o autor do Tractatus, a filosofia não é uma ciência ao lado das outras ciências; bem
como, não é um conjunto de doutrinas acerca da realidade e nem conjunto de proposições
explicativas sobre a realidade. Ela é uma actividade que tem como objecto a linguagem; a sua
tarefa consiste em analisar e esclarecer o significado das proposições. Na perspectiva do
filósofo,
De acordo com Gomes (2011: 33), no Tractatus, Wittgenstein dissolve a filosofia concebida
como teoria e passa a defender como actividade. Segundo essa nova visão, os filósofos que se
preocuparam em construir seus sistemas filosóficos, não prestaram atenção no uso que se faz
da linguagem e com isso, produziram conceitos, expressões e significados que aparentemente
podem ser encarados como verosímeis, mas com uma análise mais detalhada, percebe-se
varias proposições indevidas.
36
Na mesma linha de pensamento, Silva (2009: 136), sustenta que existe uma esterilidade nas
proposições filosóficas, que conduz o autor do Tractatus a caracterizá-la como formulações
sem sentido. Com elas os filósofos procuram falar sobre ʻDeusʼ, ʻo Bemʼ, ʻa Justiçaʼ, ʻo
Beloʼ, entretanto nenhum desses alvos alude ao mundo ou são factos que o constituem. Neste
sentido, Wittgenstein observa que questões similares a essas não expressam questões
genuínas, pois o que questionam não remete a factos na realidade.
Da constatação da filosofia não se ocupar com objectos que possuam referência factual,
decorre que ela não pode dizer o que quer que seja sobre o mundo e seus constituintes, ou
mesmo sobre como as diversas situações da realidade estão arranjadas. É um erro imaginar-se
que ela expresse qualquer doutrina ou teoria capaz de explicar algo a cerca da realidade.
Dessa forma, cabe ao filósofo, ao invés de formular teorias, analisar e elucidar a utilização da
linguagem, torna-lo claro, livrando-nos da ilusão provocada pela falta de compreensão do
funcionamento da sua lógica de modo que os problemas sejam dissolvidos. Pois, várias
concepções filosóficas obscurecem o entendimento acerca da linguagem, e consequentemente
das coisas do mundo (GOMES, 2011: 34). Em consonância, Júnior (2008, p. 19), sustenta que
na concepção Tractatiana, “a filosofia não é uma teoria, como sempre foi concebida; mas é
uma actividade, que tem como finalidade a elucidação do pensamento através de um processo
de clarificação do conteúdo das proposições.” Assim, enquanto as ciências realizam a tarefa
de descrever o mundo, a filosofia realiza a sua fundamental tarefa de descrever as condições
de possibilidade da descrição do mundo.
Diante disso, o autor do Tractatus define a filosofia como crítica da linguagem. Na visão do
filósofo, “toda a filosofia é crítica da linguagem. […]” (§ 4.0031). Essa definição tem como
característica principal a utilização da análise lógica da linguagem como ferramenta para o
exame das questões filosóficas.
impensável”. Porém essa delimitação só pode ocorrer a partir da determinação das dimensões
do espaço lógico.
O método correcto em filosofia seria propriamente: nada dizer a não ser o que
pode ser dito, isto é, proposições das ciências naturais, algo, portanto, que
nada tem a ver com a filosofia; e sempre que alguém quisesse dizer algo a
respeito da metafísica, demonstrar-lhe que não conferiu denotação a certos
signos de suas proposições. Para outrem esse método não seria satisfatório, ele
não teria o sentimento de que lhe estaríamos ensinando filosofia, mas seria o
único método estritamente correcto (§ 6.53).
Para Wittgenstein somente as ciências naturais possuem sentido, já que estas actuam sobre os
factos verificáveis na realidade. Assim, “ao filósofo impõe-se a tarefa de examinar os
conceitos e as proposições que o homem emprega, por seu conteúdo e sua compreensibilidade
diante da ambiguidade da linguagem, com objectivo de descobrir critérios para distinguir
proposições com sentido das absurdas” (SILVA, 2010: 13). Pois, segundo § 4.116, “tudo o
que pode ser pensado, pode ser pensado de forma clara. Tudo o que se pode dizer, pode ser
dito de forma claramente”. Desta forma, cabe á filosofia clarear e preocupar-se com princípios
e não com a verdade, pois esta é da competência das ciências.
38
Segundo Silva (2012: 254), a influência do Tractatus sobre o critério de significado de uma
proposição, adoptado pelo Circulo de Viena, parte de uma interpretação epistemológica dos
conceitos de função de verdade e figuração presentes no Tractatus. Da qual os membros do
Circulo de Viena incumbiram-se, a partir da estrutura lógica da linguagem sistematizada pelo
Tractatus, a acrescentar um conteúdo empírico as proposições lógicas. Na mesma linha de
pensamento, Mondin (op. cit: 243), sustenta que o critério de significado dos positivistas
lógicos do Círculo de Viena esta baseado na ideia do Tractatus que diz respeito a função de
verdade de uma proposição, segundo o qual as proposições só se tornam verdadeiras se os
nomes que a compõem estiverem substituídos por objectos que se propõe a figurar. Assim,
quando uma proposição não é traduzível em proposições de carácter empírico, ela não é, de
forma alguma, proposição e não diz nada, a não ser palavras vazias, ou seja, ela é
simplesmente sem sentido.
Entretanto, embora haja de certa forma, uma exacerbação de interpretação do Tractatus por
parte dos membros do Circulo de Viena, como vimos, grande parte das suas ideias assentam-
se sobre as teses linguísticas defendidas no Tractatus Logicos-philosophicus.
[…], há quatro anos, tive ocasião de ler novamente o meu primeiro livro (o
Tractatus Logicos-Philosophicus) e de esclarecer os seus pensamentos.
Pareceu-me, de repente, que eu deveria publicar aqueles antigos pensamentos
junto com os novos: estes poderiam receber sua recta iluminação somente pelo
confronto com os meus pensamentos mais antigos e tendo-os como pano de
fundo (WITTGENSTEIN, 2009: 12).
Segundo Segatto (2011: 81), o autor das Investigações contesta a concepção tractatiana que
atribui como função principal da linguagem a representatividade, onde as palavras servem
para designar os objectos no mundo, por entender que o exercício de aprendizagem da
linguagem não ocorre na relação entre o significado da palavra e o objecto, e sim, através da
conexão conceitual entre o significado da palavra e o seu uso em um determinado contexto.
Nas Investigações filosóficas, o significado linguístico passa a ser visto, de acordo com
Marcondes (2010: 275), como algo “indeterminado, podendo somente ser compreendido
através da consideração dos jogos de linguagem, o que envolve muito mais do que a simples
análise lógica da expressão linguística como tal”. Pois, trata-se de um conjunto de linguagem
e de actividades com as quais as expressões estão interligadas. Nas palavras do autor das
Investigações, “o jogo de linguagem é uma totalidade, formada de linguagem e das
actividades com as quais ela vem entrelaçada” (WITTGENSTEIN, 2009: 19).
O conceito de jogo de linguagem procura sublinhar que, nos diversos contextos, seguem-se
diferentes regras, podendo-se, a partir dai, determinar o sentido das expressões linguísticas.
“A noção de regra de linguagem ou de uso de uma palavra no seio de uma linguagem não
remete a qualquer comparação representacional entre a linguagem e o mundo, como é
defendida no Tractatus, mas sim, as diferentes formas de vida na qual a linguagem esta
inserida” (SEGATTO, 2011: 98). Neste sentido, para o autor das Investigações é preciso
pensar no estudo da linguagem em partes contextualizadas pelos seus respectivos jogos de
linguagem, cuja regra é dada na gramática e, onde os problemas de comunicação ocasionados
pelos confrontos de diferentes jogos de linguagem podem ser diluídos. Essa postura filosófica
41
somente é adquirida quando o significado das palavras é entendido a partir do uso social, nos
diferentes modos de ser e de viver na qual a palavra está inserida; e não a partir de uma
reflexão semântica referencial.
Assim, de acordo com Gomes (2011: 44), “nas Investigações Filosóficas, o objectivo do
exercício filosófico é libertar-nos das armadilhas da linguagem quando este encontra-se
enfeitiçado pela gramática superficial das palavras que procuram definir um modelo
figurativo do mundo”.
42
Considerações Finais
mundo. Portanto, ao insurgir-se contra a forma lógica da linguagem, o autor das Investigações
rompe com o modelo sintáctico tractatiano, que concebia a linguagem essencialmente na sua
referência ao mundo, para adoptar uma perspectiva pragmática, onde ela é concebida na sua
multiplicidade de uso presente nos diferentes jogos de linguagem.
Apesar do autor do Tractatus ter feito uma brilhante análise lógica da linguagem em busca da
sua essência, de modo a estabelecer as fronteiras lógicas do que se pode claramente dizer e,
assim resolver os problemas filosóficos, ele peca por ser tão radical ao fixar uma linguagem
universal aos seres humanos, cuja função resume-se essencialmente em descrever o mundo,
fechando-se a uma variedade de funções que ela desempenha em diferentes contextos das
nossas vidas. Desta forma, achamos a concepção de linguagem tractatiana de certa forma
dogmática por prender-se exclusivamente numa correspondência biunívoca entre a linguagem
e o mundo como critério de legitimação de uma proposição.
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