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Resumo

Suplementação com Vitamina A:


impacto na morbidade e efeitos Este artigo apresenta uma síntese de dois
estudos previamente publicados e que ava-
adversos* liaram diferentes aspectos dos efeitos da
suplementação com mega-doses (100.000 ou
200.000 UI) de vitamina A em crianças pré-
escolares. O primeiro é um ensaio comuni-
Vitamin A supplementation: impact tário, aleatório, duplo cego e placebo con-

on morbidity and adverse effects trolado, que demonstrou o efeito positivo


da suplementação na redução da severida-
de dos episódios de diarréia. O segundo in-
vestigou os potenciais efeitos adversos da
suplementação com mega-doses de vitami-
na A, oferecida conjuntamente com a vaci-
nação em massa, utilizando um desenho de
intervenção controlado e não randomizado.
Seus resultados indicaram que a suple-
mentação associada com as vacinas rotinei-
ramente utilizadas na infância não elevou as
taxas de efeitos adversos (diarréia, febre e
vômito). São ainda discutidas as implicações
dos resultados destes estudos, que contri-
buíram não somente para o avanço do co-
nhecimento científico do campo em ques-
tão, como também têm fornecido evidênci-
as para justificar a implementação de políti-
cas e ações específicas no campo da saúde e
da nutrição, que por sua vez têm contribuí-
do para gerar condições mais auspiciosas de
sobrevivência na infância. Discute-se tam-
bém a pertinência e a utilidade de desenhos
de estudo com diferentes níveis de rigor
metodológico na avaliação de intervenção
em saúde.
Ana Marlúcia O. Assis
Escola de Nutrição Palavras-chave: Estudos de intervenção.
Universidade Federal da Bahia Suplementação com vitamina A. Pré-esco-
Escola de Nutrição lares. Avaliação de programas. Planejamen-
Rua Araújo Pinho, 32 - Canela to de políticas públicas.
40110-150 Salvador- BA
amos@ufba.br

Mauricio Lima Barreto


Instituto de Saúde Coletiva
Universidade Federal da Bahia
Professor Titular em Epidemiologia

(*) Trabalho apresentado no Seminário Nacional da ABRASCO: Avaliações de Impacto de


Serviços e Programas de Saúde. Pelotas, 6 a 8 de novembro de 2001, Rio Grande do Sul –
Brasil.

Rev. Bras. Epidemiol.


Vol. 5, Nº 1, 2002
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Abstract Introdução

This paper is a synthesis of two previously O estudo clínico realizado na primeira


published studies, which evaluated different metade do século XX envolvendo casos gra-
aspects of the effects of massive doses of ves de sarampo forneceu a base para a com-
vitamin A (100,000 or 200,000 IU) in pre- preensão do efeito da suplementação com
school children. The first consisted of a vitamina A na redução da mortalidade na
randomized, double blind, placebo-control- infância1. Os achados deste estudo foram
led community trial, which demonstrated comprovados anos mais tarde por ensaios
the effect of supplementation on the reduc- clínicos controlados2,3. Essas descobertas le-
tion of the severity of episodes of diarrhea. varam à inclusão da vitamina A no tratamen-
The second investigated the potential adverse to de rotina para os portadores de sarampo,
effects of supplementation with massive embora o interesse do estudo da vitamina A
doses of vitamin A when given during mass por muito tempo permanecesse voltado
vaccination, using a controlled but not para o sistema ocular.
randomized intervention design. The results Somente em 1986, com a publicação do
of this study showed that supplementation estudo de Sommer et al . 4, realizado na
did not increase the rates of adverse effects Indonésia, em uma área de prevalência ele-
(diarrhea, fever and vomiting) associated with vada das formas clínicas da deficiência de vi-
the vaccines routinely used in infancy. In tamina A, foi retomada a discussão sobre a
conclusion, we discuss the implications of relação entre a deficiência de vitamina A e o
the results of these studies, which contrib- aumento da taxa da mortalidade na infância.
uted not only towards the advance of scien- Ainda que essa investigação não tivesse sido
tific knowledge in the field in question but planejada para avaliar o impacto da suple-
also provided evidence to justify the imple- mentação com vitamina A sobre a mortali-
mentation of policies and specific actions in dade, os autores detectaram a surpreenden-
the field of health and nutrition which have te redução de 34% na mortalidade por todas
contributed towards creating better condi- as causas, no grupo de crianças residentes
tions for infant survival. We also discuss the em povoados em que ocorreu a suplemen-
pertinence and usefulness of study designs tação, quando comparada com a taxa da
with different levels of methodological ro- mortalidade observada nas crianças residen-
bustness in evaluations in health. tes nos povoados não suplementados.
Em que pese as criticas formuladas ao
Keywords: Intervention studies. Vitamin A estudo de Sommer et al., particularmente pelo
supplementation. Pre-school children. desenho não aleatório, não cego e a ausência
Evaluation of programs. Public policy plan- de um grupo controle5-7, a redução expressi-
ning. va na mortalidade face à suplementação com
vitamina A detectada nesse estudo entusias-
mou pesquisadores e estimulou organismos
internacionais de saúde e nutrição a fomen-
tar, a partir do final da década de 1980, o de-
senvolvimento de estudos de intervenção
com desenhos metodológicos mais consis-
tentes, não somente para validar esses acha-
dos, mas também para buscar explicação so-
bre os possíveis mecanismos envolvidos na
redução da mortalidade. Ressalta-se que, nes-
te ínterim, as suspeitas concentravam-se na
redução da ocorrência das diarréias e das in-
fecções respiratórias, reconhecidas como as

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principais responsáveis pela alta mortalidade nho reconhecidamente capaz de permitir
de crianças nos países em desenvolvimento. inferência confiável entre eventos dessa na-
Além disso, diversos estudos observacionais tureza19.
até então realizados sugeriam forte associa- Este estudo, cuja questão central foi ava-
ção entre o déficit de retinol sérico e a ocor- liar o impacto da suplementação com vita-
rência de diarréia8,9 e infecções respiratóri- mina A na redução da taxa da morbidade por
as10. diarréia e infecção respiratória, teve uma du-
Os resultados do estudo de Sommer et ração de 12 meses e envolveu uma amostra
al. são ratificados pela grande maioria dos de 1.240 crianças pré-escolares residentes em
ensaios clínicos comunitários controlados11- uma área do Nordeste brasileiro. A amostra
14
e por algumas meta-análises15,16. Os resul- assim constituída tinha um poder de 90% e
tados dessas meta-análises são consistentes um de 5% para observar uma redução de 15%
e comprovam que a suplementação com vi- na taxa de incidência da diarréia.
tamina A reduz a taxa de mortalidade por Crianças de seis a 48 meses foram alea-
todas as causas em 23 a 34% em pré-escola- toriamente alocadas nos grupos de trata-
res, quando comparada com aquela do gru- mento. Uma cápsula de 200.000 UI de vita-
po placebo. Para os portadores de sarampo mina A (100.000 UI para as menores de 12
a redução situa-se em torno de 54 a 65%15-18. meses de idade) ou uma cápsula de placebo
Assim, os resultados dos ensaios clínicos foram oferecidas às crianças a cada quatro
e comunitários e das meta-análises, torna- meses, durante um ano. Informações sobre
ram consensual, no início da década de 1990, a morbidade, especialmente diarréia e in-
que a suplementação com vitamina A atua fecção respiratória, foram coletadas em dias
na redução das taxas da mortalidade na in- alternados da semana, durante todo o perí-
fância, sobretudo onde a deficiência dessa odo de seguimento do estudo. A diarréia foi
vitamina é elevada. No entanto, os resulta- definida como 3 ou mais dejeções líquidas
dos desses estudos não esclareciam os me- ou semilíquidas em um período de 24 horas,
canismos através dos quais a Vitamina A um episódio de diarréia foi considerado fi-
reduzia a taxa da mortalidade e tampouco nalizado quando a criança passava 72 horas
seus efeitos sobre as diferentes morbidades. ou mais sem diarréia, e o diagnóstico de
pneumonia foi firmado pelo pediatra após
Suplementação com vitamina A e os exames radiológicos necessários. Aspec-
morbidade na infância tos metodológicos e éticos do estudo já fo-
ram detalhadamente descritos19.
No decorrer da primeira metade de dé- Os resultados deste estudo indicaram que,
cada de 1990, vários ensaios comunitários à medida que aumentava o número de
foram desenvolvidos, em várias partes do dejeções/dia, as crianças suplementadas com
mundo sub-desenvolvido, com o objetivo de vitamina A tiveram taxas de prevalência mé-
avaliar o impacto da suplementação da vita- dia diária respectivamente 8%, 10%, 20% e
mina A na redução da morbidade na infân- 23% mais baixas do que as taxas observadas
cia e, desta forma, aprofundar a compreen- nas crianças do grupo placebo (Tabela 1).
são do mecanismo que possa explicar o im- Notou-se também que a incidência de
pacto expressivo na redução da mortalida- diarréia no grupo suplementado foi mais
de. No Brasil, coube ao nosso grupo desen- baixa (18,42 x10-3 criança/dia) do que a taxa
volver um estudo que buscasse responder a observada no grupo placebo (19,58 x10-3 cri-
questão formulada pela comunidade inter- ança/dia), com uma incidência total 6% mais
nacional sobre a causalidade entre a baixa no grupo suplementado com vitamina
suplementação com vitamina A e a redução A. Não foi observada diferença na incidên-
da morbidade na infância18. Neste sentido, cia de episódio leve de diarréia entre os gru-
adotou-se o ensaio clinico de base comuni- pos, mas a incidência moderada e grave foi
tária, aleatório e placebo controlado, dese- significantemente mais baixa no grupo

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Tabela 1 – Prevalência média diária de diarréia segundo o número de dejeções no período*
Table 1 – Daily average prevalence of diarrhea by number of dejections during the period*

N°de dejeções /dia Vitamina A Placebo RP P


≥3 0,0478 0,0517 0,92 0,074
≥4 0,0232 0,0259 0,90 0,049
≥5 0,0099 0,0123 0,80 0,005
≥6 0,0043 0,0056 0,77 0,006
Fonte/Source: Barreto et al., (1994)

suplementado com vitamina A (Tabela 2). suplementação com vitamina A. As meta-aná-


Neste estudo não foram observadas di- lises também não observaram indícios de que
ferenças estatisticamente significantes entre a suplementação com vitamina A tenha re-
os grupos para as taxas de incidência de in- duzido a incidência da infecção respirató-
fecção respiratória e especialmente de pneu- ria15,17. A relação entre o efeito protetor da
monia (Tabela 3). vitamina A na diminuição da ocorrência da
Assim, a partir dos resultados do nosso infecção respiratória só tem sido detectada
estudo, pode-se concluir que a suple- quando essas análises restringiram-se à re-
mentação com vitamina A exerce impacto dução da mortalidade envolvendo portado-
positivo na redução da incidência da diar- res de sarampo. Nesse último caso, a redu-
réia e mostra claramente o efeito protetor ção observada é de 70%16 e se dá basicamen-
da vitamina A na redução da severidade da te pela diminuição da gravidade da infecção
diarréia em pré-escolares, e estes resultados respiratória. Para Beaton et al.15, os resulta-
somam-se àqueles que também detectaram dos dos estudos desenvolvidos até o momen-
diminuição da severidade da diarréia nas to permitem concluir que o principal efeito
crianças suplementadas14,21, e com algumas da suplementação da vitamina A reside na
meta-análises, que reportam a redução de redução da severidade e das complicações
29 a 39% na incidência da diarréia quando da diarréia — refletindo no declínio da mor-
comparada com a identificada nas crianças talidade detectado em várias investigações.
do grupo placebo15-17. A maioria dos estudos planejados para
Quando a causa específica é a infecção avaliar a morbidade e aqueles que buscam
respiratória, nossos resultados indicam que a detectar as causas específicas da mortalidade
sua incidência não foi reduzida em face da não haviam explorado o efeito sobre a seve-

Tabela 2 – Incidência de episódios de diarréia de acordo com a severidade no período*


Table 2 – Incidence of episodes of diarrhea according to severity during the period*

Episódio † Vitamina A Placebo RR (95% IC)


N Incidência N Incidência
Leve 2131 10,48 2179 10,80 0,97 (0,91-1,03)
Moderada 1614 7,94 1770 8,77 0,91 (0,85-0,98)
Grave 165 0,81 1,01 1,01 0,80 (0,65-0,98)
Total 3745 18,42 3949 19,58 0,94 (0,90-0,98)
Fonte/Source: Barreto et al., (1994)

*
x10-3 criança dia / * x10-3 child day

Episódio de diarréia leve, 1 a 2 dias de duração; moderado 3 ou mais dias de duração com uma média de 4 ou mais dejeções
líquidas e/ou semi-líquidas nas 24 horas. Episódio grave foi caracterizado por 4 ou mais dias de duração, com uma média de 5
ou mais dejeções líquidas e/ou semi-líquidas nas 24 horas;

Episode of mild diarrhea, 1 to 2 days duration; moderate 3 or more days of duration with an average of 4 or more liquid and/or
semi-liquid dejections in 24 hours. Severe episode was characterized by 4 or more days of duration, with an average of 5 or more
liquid and/or semi-liquid dejections in 24 hours

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Tabela 3 – Incidência de episódios de IRA de acordo com diferentes definições*
Table 3 – Incidence of episodes of ARI according to different definitions*

Episódio Vitamina A Placebo RR (95% IC)


N Incidência N Incidência
ARI-1† 546 26.86 556 27,57 0,97 (0,86-1,09)
ARI-2† 147 7,23 143 7,09 1,02 (0,81-1,28)
Pneumonia§ 17 0,84 18 0,94 0,94 (0,48-1,82)
Fonte/Source: Barreto et al., (1994)

*
x10-4 criança dia / * x10-4 child day

ARI-1=taxa respiratória ³40/mim para crianças menores de 12 meses de idade, ou ³ 50 para crianças maiores, ARI-2=taxa
respiratória ³50/mim para quaisquer idades

ARI-1=respiratory rate³40/min for children under 12 months of age, or ³ 50 for older children, ARI-2= respiratory rate³50/min
for any age
§
definida pela pediatra com base em estudo radiológico ou avaliação clínica
§
defined by pediatrician based on x-ray study or clinical assessment

ridade das doenças. Neste sentido pode-se senvolveu-se a idéia de que a suplementação
compreender a ausência de impacto relatada com a vitamina A poderia ocorrer nas campa-
em vários estudos que observaram efeito pro- nhas massivas de vacinação26.
tetor da vitamina A sobre a redução da mor- Entretanto, poucos são os estudos que
talidade4,11,22,23. Assim, ao se adotar os indica- abordam a potencialização do efeito adver-
dores da severidade das doenças para avaliar so da vitamina A oferecida juntamente com
o efeito do suplemento da vitamina A sobre a vacinas, e, quando o fazem, têm como obje-
morbidade pode-se então compreender os to o enfoque sobre o sistema nervoso27-29.
caminhos por que passava a redução da mor- A expressão dos efeitos adversos da as-
talidade entre as crianças suplementadas. sociação da suplementação com a vacina em
outros órgãos e sistemas tem sido abordada
Efeitos adversos da em poucos estudos e tampouco os resulta-
suplementação com vitamina A dos desses estudos são consensuais. O pri-
oferecida conjuntamente com a meiro relato da complicação do oferecimen-
vacinação em massa to de 200.000 UI de vitamina A conjuntamen-
te com a vacina DPT (febre e vômito) foi
Após o reconhecimento da importância realizado por Ray et al.30 em um estudo que
da vitamina A na salvaguarda da sobrevivência não comtemplava o grupo controle e com
na infância, o Fundo das Nações Unidas para a uma amostra pequena (24 de crianças me-
Infância (UNICEF); a Organização Mundial de nores de cinco anos de idade). Essas condi-
Saúde (OMS) e a Organização das Nações Uni- ções tornam os resultados de relevância li-
das para a Agricultura e a Alimentação (FAO), mitada.
propuseram a distribuição de megadoses de No entanto ausência de associação esta-
vitamina A para eliminar a deficiência deste tisticamente significante entre febre e o ofe-
micronutriente em áreas endêmicas24. No Bra- recimento de vitamina A conjuntamente
sil, através da Portaria N° 2.160 de 29 de de- com as vacinas anti-pólio oral e DPT são
zembro de 1994 do Ministério da Saúde, foi registrados por Francisco et al.31, em crian-
instituído o Programa de Combate à Deficiên- ças de um a três meses e meio de vida, que
cia de Vitamina A25 e, a partir de então, inten- receberam 15 mg (50.000 UI) de vitamina A
sificou-se a distribuição de megadoses a pré- juntamente com a vacinação em massa.
escolares. Considerando que um dos momen- Assim, ainda na linha da investigação da
tos de contato das crianças com os serviços de suplementação com vitamina A, o nosso gru-
saúde que poderia levar a uma alta cobertura po desenvolveu um estudo para avaliar os
seria aquele representado pela vacinação, de- efeitos adversos da vitamina A oferecida em

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conjunto com a vacinação em massa32. ou nos mais próximos possíveis.
O desenho metodológico adotado nesta As crianças de seis a 12 meses e as maio-
investigação a caracteriza como um estudo res de um ano de idade receberam, respecti-
de intervenção baseado em comunidade. A vamente, 100.000 e 200.000 UI de vitamina A
questão central deste estudo desloca-se do oleosa na forma de xarope. Ao final do segui-
enfoque da causalidade, como aquela regis- mento foi distribuída vitamina A às crianças
trada na investigação comentada anterior- da cidade que funcionou como controle nes-
mente, e se centra no enfoque da efetividade te estudo. Maiores informações sobre os as-
de um programa de saúde. Neste sentido, pectos metodológicos e éticos do estudo po-
buscou-se avaliar o impacto dos efeitos ad- dem ser encontradas em Assis et al.32.
versos da vitamina A oferecida em conjunto No inicio do estudo, as crianças das duas
com a vacinação em massa na realidade da comunidades eram similares para todas as
estrutura de um programa operacionalizado variáveis estudadas, feita exceção à ocorrên-
por um serviço de saúde. cia da anorexia. Notou-se uma maior fre-
Assim, buscou-se desenvolver este estu- qüência de relato de anorexia entre as mães
do durante a campanha de vacinação em das crianças da comunidade que funcionou
massa ocorrida em outubro de 1995. Foram como controle externo, este efeito foi relata-
envolvidas 416 crianças residentes na cidade do ao baseline e perdurou por todo o follow-
de Teofilândia e 436 em Santa Bárbara, loca- up, indicando assim que o evento não estava
lizadas no estado da Bahia, na região Nor- associado ao oferecimento da vitamina A em
deste do Brasil. Às crianças da cidade de conjunto com a vacinação. Foi possível ex-
Teofilândia foi oferecida a suplementação de trair essa conclusão particularmente porque
vitamina A, conjuntamente com as vacinas o estudo foi desenhado para obter as infor-
do Programa Nacional de Imunização (gru- mações antes e depois da intervenção32.
po intervenção), enquanto aquelas da cida- Assim, os resultados deste estudo indi-
de de Santa Bárbara receberam somente as cam que o oferecimento da vitamina A as-
vacinas (grupo controle). As visitas para co- sociado ao esquema de imunização em mas-
leta de informação foram realizadas 24 ho- sa não eleva a taxa de efeitos adversos, em
ras antes da distribuição da vitamina A e da especial a diarréia, febre e vômito, em crian-
vacinação e repetidas 24, 48 e 72 horas após ças de seis meses a cinco anos de idade (Ta-
a vacinação, sempre nos mesmos horários bela 4), indicando não haver potencialização

Tabela 4 – Prevalência diária de diarréia, febre, vômito e anorexia no período de 24, 48 e 72 horas de seguimento
entre as crianças dos grupos que tomaram as vacinas associadas à vitamina A e aquelas que receberam somente as
vacinas
Table 4 – Daily prevalence of diarrhea, fever, vomiting, anorexia in the 24, 48 and 72 hour follow-up period among children in the
groups that received vaccines and vitamin A, and those that received only vaccines

24 horas após a intervenção 48 horas após a intervenção 72 horas após a intervenção


Vacina+Vit. A Vacina Vacina+Vit. A Vacina Vacina+Vit. A Vacina

n=416 % n=436 % p n=416 % n=436 % p n=416 % n=436 % p

Todas as vacinas (852)


Diarréia 11 2,6 22 5,0 0,07 20 4,8 23 5,3 0,75 16 3,8 18 4,1 0,83
Febre 31 7,5 55 12,6 0,01 a 26 6,3 24 5,5 0,64 12 2,9 12 2,8 0,90
Vômito 16 3,8 9 2,1 0,12 3 0,7 4 0,9 1,0* 5 1,2 2 0,5 0,27*
Anorexia 75 18,0 45 10,3 0,00 73 17,5 41 9,4 0,00 66 15,9 29 6,7 0,00

Somente antipólio oral** (698)


Diarréia 8 2,3 14 3,9 0,22 15 4,4 17 4,8 0,79 14 4,1 15 4,2 0,92
Febre 11 3,2 18 5,1 0,21 15 4,4 12 3,4 0,49 9 2,6 7 2,0 0,56
Vômito 9 2,6 6 1,7 0,39 - - 4 1,1 0,12* 3 0,9 1 0,3 0,36*
Anorexia 63 18,4 30 8,5 0,00 54 15,7 29 8,2 0,00 54 15,7 21 5,9 0,00
Fonte/Source: Assis et al., (2000)

Suplementação com vitamina A Rev. Bras. Epidemiol.


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do efeito adverso da vitamina A quando esta tanto representa um esforço para se inferir
é oferecida em conjunto com as vacinas anti- sobre a efetividade de programa ou de ações
pólio oral, DPT e anti-sarampo. no campo da saúde na infância, com base na
Apesar de se desconhecer o estado estratégia da adequação, conforme propõem
nutricional de vitamina A no início deste es- Habicht et al.33. Neste sentido, os resultados
tudo, há evidências de que as crianças dessa deste estudo permitem a tomada de decisão
região apresentam altas prevalências de sobre a pertinência da vinculação de duas
inadequação dos níveis de retinol sérico. Sa- ações desenvolvidas por programas oficiais
lienta-se ainda que o oferecimento da vita- de saúde.
mina A em massa foi realizado pela primeira Os resultados originados a partir destes
vez para essa população no momento da estudos e de outros similares que lhes são
realização desta investigação. Nessas circuns- contemporâneos têm não somente permiti-
tâncias, a administração concomitante de do o avanço do conhecimento científico da
vitamina A e vacinas não produziu efeitos questão, mas também fornecido a base para
adversos nesse grupo de crianças. a implementação de ações especificas de
Embora a ausência de procedimentos política pública no campo da saúde e da nu-
metodológicos, a exemplo da aleatorização, trição em todo o mundo, particularmente
limite a inferência causal clássica a partir dos nos países subdesenvolvidos, gerando como
resultados deste estudo, o desenho meto- retorno condições mais auspiciosas para a
dológico adotado permite a elaboração de sobrevivência na infância.
inferência com base na estratégia da adequa- Deve-se enfatizar ainda que, no campo
ção, conforme propõem Habicht et al.33. Nes- da epidemiologia nutricional, a pesquisa de
te sentido, os resultados deste estudo permi- avaliação de impacto em muitos momentos
tem a tomada de decisão sobre a pertinência assume também o papel de investigação para
da vinculação de duas ações desenvolvidas esclarecimento dos fatores de riscos
por programas oficiais de saúde. nutricionais. No caso aqui abordado, en-
quanto a deficiência da vitamina A constitui
Conclusão um “fator de risco” por aumentar a carga de
morbidade na infância e, por conseguinte,
Os estudos aqui relatados têm contribu- comprometer a sobrevivência infantil, o seu
ído para aprimorar o conhecimento neces- inverso, a “suplementação”, funciona com
sário para a implementação de políticas des- um fator de proteção. Cria-se assim a
tinadas ao controle da deficiência de vitami- oportunidade de combinar os propósitos
na A. Estes estudos diferem pelo grau de dos estudos que identificam os mecanismos
robustez dos seus desenhos. O primeiro ava- causais através da correção dos fatores de
lia o impacto da suplementação com vita- risco a aqueles estudos que avaliam o im-
mina A na redução da morbidade na infân- pacto da intervenção.
cia e destina-se a resolver uma questão em Por fim, a partir dos efeitos benéficos
um estágio especifico do conhecimento apontados pela suplementação com vitami-
cientifico, necessitando de um desenho ri- na A, pode-se defender a idéia de que o im-
goroso que permita uma resposta incontes- portante para a eliminação virtual dessa de-
tável sobre a relação causal entre a suple- ficiência é a correção desta deficiência atra-
mentação com vitamina A e a redução da vés da melhoria das condições de vida da
morbidade na infância. O segundo destina- população marginalizada e que a suple-
se a avaliar os efeitos adversos relacionados mentação deve ser vista somente como um
com a suplementação desta vitamina, asso- mecanismo imediato para assegurar a saú-
ciada aos programas de imunização, e por- de e a sobrevivência na infância.

Rev. Bras. Epidemiol. Suplementação com vitamina A


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90 Assis, A. M. O. & Barreto, M. L.
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Recebido em 04/01/02; aprovado em 15/08/02

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