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ANTIGAS LEITURAS

VISÕES DA CHINA ANTIGA

Organização
André Bueno

José Maria Neto


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ANTIGAS LEITURAS

VISÕES DA CHINA ANTIGA

Organização
André Bueno

Universidade Estadual do Paraná

José Maria Neto


Universidade de Pernambuco

UNIÃO DA VITÓRIA
2014
ANTIGAS LEITURAS:

VISÕES DA CHINA ANTIGA

UNESPAR

Reitor

Prof. Antônio Carlos Aleixo

Vice-reitor

Prof. Antônio Rodrigues Varela Neto


Chefe de Gabinete

Profa. Aurea Andrade Viana de Andrade

Campus de União da Vitória


Direção
Bel. Valderlei Garcias Sanches

Vice-diretor

Prof. Armindo José Longhi

ORGANIZAÇÃO DO VOLUME
André Bueno

Universidade Estadual do Paraná

JOSé Maria Neto


Universidade de Pernambuco

ORGANIZAÇÃO DA SÉRIE
LEITORADO ANTIGUO

Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão


Universidade de Pernambuco

ORGANIZAÇÃO DO LIVRO
Projeto ORIENTALISMO
LAPHIS - Laboratório de Aprendizagem Histórica
Universidade Estadual do Paraná — Campus União da Vitória

BUENO, A. e NETO, J. [org.] Antigas Leituras: Visões da China Antiga.


União da Vitória: UNESPAR, 2014.
ISBN 978-85-65996-25-9 [Ebook]
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isões da
hina
(II,II90

UN PARANÁ
Universidade Estadual do Paraná
GOVERNO DO ESTADO

HCURSO DE HISTÓRIA

#FAFIUV * UNESPAR - UNIÃO DA VITÓRIA

mºmínimam…"
UNESPAR-FAHU-UNIA|A WITORIA

UNIVERSIDADE
DE FERNAMBUCO LEITORADOANTIGUO
ÍNDICE

INTRODUÇÃO
José Maria Neto, 9
SOBRE O HUMANISMO NA CHINA; OU, DE
COMO A POESIA ORIENTOU O CÉU
Alicia Relinque Eleta, 20
O CULTO DA MULHER NO NEOLÍTICO CHINÊS
Ana Maria Amaro, 41
SINOLOGIA E CONFUCIONISMO: A
IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS
CONFUCIONISTAS PARA A COMPREENSÃO DA
CIVILIZAÇÃO CHINESA
André Bueno, 56
LAO ZI E O TAOISMO
António Graça de Abreu, 74
O “RITO DE PASSAGEM DO ESCRITO AMARELO
DA CLARIDADE SUPERIOR': RELIGIÃO E
SEXUALIDADE NA CHINA ANTIGA
Bony Schachter, 98
ZHUANGZIE ARISTÓTELES: SOBRE SER UMA
COISA
Chenyang Li, 118
A RELAÇÃO ENTRELINGUAGEM E
PENSAMENTO NA ANTIGA E PISTEMOLOGIA
CHINESA
Jana S. Rosker, 142
REFLEXOES GENEALÓGICAS E CIRCULARES
SOBRE A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO
CHINÊS ANTIGO
Jesualdo Correia, 156
O PENSAMENTO CHINÊS DURANTE A
DINASTIA HAN
André Bueno, 178
O CAVALO NA ANTIGUIDADE CHINESA: ENTRE
O INSTITUCIONAL E O NATURAL
Márcia Schmaltz, 201
OS QUATRO ANIMAIS COSMOLÓGICOS EM
TÚMULOS HAN COM MURAIS
Natasa Vampeli Suhadolnik, 219
A REDESCOBERTA DA UNIDADE CÉU-HOMEM
Wang Keping, 251
O MESSIANISMO DO PRIMEIRO IMPERADOR
Yuri Pines, 277
BIOS, 312
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INTRODUÇÃO
“Homens do passado, homens de hoje — torrente que flui”

Como idealizador e organizador da série Antigas Leituras (cujo


primeiro volume foi lançado em 2012 e o terceiro está previsto para 2015), é
um imenso prazer dar as boas vindas ao segundo volume, dedicado
inteiramente à China e tornado possível graças ao esforço e à competência
do professor André Bueno, grande colega e amigo querido.
A proposta dessa série está expressa desde o seu título, a um só tempo
trocadilho e provocação: novos olhares sobre antigas fontes literárias que
infundem vida nova nessas leituras antigas através da elaboração de novas
perguntas. Desta feita, de antigas leituras são construídas novas leituras, e os 9
trabalhos reunidos neste volume respondem à perfeição a estra provocação.
Antigas
Este livro e seu conteúdo, porém, não deixarão de suscitar uma Leituras
VISOES DA
pergunta cuja pequenez só é comparável às sua inconveniência e ubiquidade, CHINA
ANTIGA
pois parece brotar do nada a cada vez em que tal temática é mencionada: pra
que estudar a China? Como uma anti-matrioshka (porque antipática,
diferentemente das queridas bonecas russas), o livro trará à tona,
igualmente, um outro questionamento de equivalente impertinência: por
que estudar a Antiguidade? Tantas e tantas vezes tais indagações de asinina
natureza foram proferidas, que vem a calhar a resposta da mula de Balaão:
fustigado, o animal abriu a boca para seu dono e perguntou-lhe “o que eu te
fiz para que tu me batesse já 3 vezes?” Não obstante, sendo a paciência a
virtude que é, estimulemo-la.
O questionamento sobre a relevância do estudo da Antiguidade a
muitos pode parecer meramente retórica, mas não se iludam: longe dos
grandes centros (ou mesmo em suas periferias), ele permanece vivo e
pulsante; sem entrar no mérito das questões econômicas (mais que nunca
pertinentes), atentemos a um dos motivos de tal segregação: a maneira como
o conhecimento historiográfico nacional se constituiu. Discriminamos os

Li Po: Com a taça na mão, interrogo a lua. In LI Po, TUFu. Poemas


chineses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 37.
"Num, 22:27, Bíblia Hebraica. São Paulo: Sêfer, 2006.
locais de produção de nossa disciplina em, grosso modo, dois grupos: os
centros mais importantes (destacadamente o Rio de Janeiro e São Paulo)
produzem historiografia nacional, trabalham com questões nacionais,
enquanto os polos secundários versam sobre as histórias regionais. Neste
sistema de coisas, não se imagina que alguém em Pernambuco deseje (ou
possa) trabalhar fora dos temas característicos ao Estado — tais como o
açúcar, a escravidão, as revoltas políticas; da mesma forma, pareceria
estranho a alguém do Paraná não pesquisar algo que fugisse ao Paranismo e
ao tropeirismo. Não obstante a relevância dessas temáticas — dentre muitas
outras que poderíamos elencar —, nada poderia ser mais errôneo que tal
segregação. Parceira de tal antolho, ocorre certa indolência, a ser presenciada
em determinados centros de pesquisa, que se exibe em todo seu beócio
esplendor quando vincula a análise da História Antiga a mero
“desempoeirar múmias”, e estimula os alunos da graduação a se ater a
assuntos mais relevantes e atuais.

| () Não há, ou pelo menos não deveria haver, histórias restritas a


determinados grupos e proibidas a outros. Existem, isso sim, histórias bem e
Antigas
Leituras
VISOES DA
mal contadas; aquelas aguçam o senso crítico, dialogam com o tempo vivido
CHINA e ampliam a percepção de mundo, enquanto estas carecem de análise e
ANTIGA
escoram-se em velhos bordões decorados e repetidos, aparentados à coaxaria
anfíbia:

Urra o sapo-boi:
— “Meu pai foi rei” – “Foi I»
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”

Esse tipo particular de História não nos interessa. Não é História


Antiga, e sim história velha. “O saber histórico”, nos ensinou Marc Ferro, “é
um campo de disputas”, e nesse espaço de embates a Antiguidade se insere
inteiramente, elemento constituinte da “nossa identidade como pessoas e

* BANDEIRA, Manuel. Os sapos. In Antologia Poética. Porto Alegre: Editora


do Autor, 1961, p. 29.
"Apud CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. Repensando a História Antiga:
Debates e Questionamentos. In BAKOS, Margaret M., SILVEIRA, Eliana
Ávila (org.). Vida, cotidiano e morte: Estudos sobre o Oriente Antigo e a Idade
Média. Porto Alegre: Letra e Vida, 2012, p. 13.
como nação. Pensar sobre História Antiga é uma maneira de pensarmos e
repensarmos nosso lugar em um mundo em rápida transformação”. As
questões prementes à nossa realidade — o gênero, a sexualidade, a economia,
as relações internacionais, os direitos humanos, só pra citar alguns —
encontram fértil campo analítico nas fontes antigas, receptivas, que são, aos
questionamentos e às inquietações hodiernos.
Outrossim, o conhecimento e a análise da Antiguidade,
indiscutivelmente, compõem a formação do profissional de História de
nosso tempo, rep resentando

“parte essencial e mesmo basilar do estudo do


passado. (...) Disciplinas modernas, como a
sociologia de Max Weber, fundaram-se na
erudição da Altertum wissenschaft [o saber
| 1
antigo], assim como numa pletora de modelos
interpretativos, como no caso notável das Antigas
Leituras
raízes aristotélicas do habitus de Pierre VISOES DA
CHINA
Bourdieu”. ANTIGA

E quanto à China? Por que (ou para quê) estudar uma civilização
espacial e temporalmente tão diversa da nossa? Em 1942, o célebre literato
chinês Lin Yutang escrevia:

Hoje em dia o Oriente e o Ocidente não


podem deixar de encontrar-se. Causa espanto
ler nos jornais da manhã que Wendell Willkie
esteve em Chungking uma sexta-feira e voltou
aos Estados Unidos na segunda-feira seguinte,
como se tivesse ido passar o fim da semana.
Foi quase uma mágica. Seja qual for a espécie

º GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013,


p. 8.
"FUNARI, P. P. A.; SILVA, G.J.; MARTINS, A. L. História Antiga:
contribuições brasileiras. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2008, p. 8.
"Político norte-americano, que concorreu à presidência pelo Partido
Republicano em 1940, contra Franklin Roosevelt, Democrata, que logrou a
vitória.
de cooperação que o mundo adote depois da
guerra, estamos certos de que Oriente e
Ocidente terão de viver intimamente unidos e

reciprocamente dependentes."

Passados mais de setenta anos, as palavras do prof. Lin revelaram-se


proféticas, pois não se passa único dia em que os acontecimentos que
envolvem as lideranças do imenso país leste asiático não venham à tona:
encontros de cúpula, por exemplo, seja com a (ainda) superpotência norte
americana, com os países europeus, ou com os BRICs, a união das
economias emergentes de Brasil, Rússia, Índia, África do Sul, além da
própria China, que tão recentemente quanto 15 de julho de 2014, e em local
tão próximo quanto Fortaleza, capital do Ceará, decidiram a criação do
Novo Banco de Desenvolvimento (#JF}{RÍT), uma instituição
multilateral que funcionará como alternativa ao Banco Mundial e ao FMI.
12 Talvez tão importante quanto, ainda que a China ainda esteja
Antigas
fisicamente distante dos brasileiros, o mesmo não ocorre com os chineses:
Leituras
VISOES DA que grande cidade não conta, hoje, com ruas repletas de cidadãos de olhos
CHINA
ANTIGA puxados e língua incompreensível, vendendo produtos genérica e
pejorativamente alcunhados de xing ling? Em Atenas, nomes tipicamente
chineses são grafados em alfabeto helênico nas marquises das lojas; em
Lisboa, os produtos do dia a dia mais em conta são vendidos pelos “chinas”,
e o mesmo ocorre no Rio de Janeiro, em Curitiba, no Recife... para onde se
olha, encontra-se a China. Uma exceção a essa ubiquidade talvez seja, por
mais irônico que possa parecer, a academia.
Em 1984, na introdução ao Atlas of China, o catedrático de História
Chinesa de Oxford. Mark Elwin, escreveu:

No momento presente, os estudos chineses (...)


estão quase completamente negligenciados,
mesmo nas nossas maiores universidades.

Ficaremos mais do que satisfeitos (...) se estas

"LINYutang. A sabedoria da India e da China: uma antologia dos tesouros


das duas grandes literaturas orientais, coligida, anotada e prefaciada por Lin
Yutang. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1945, p.505.
páginas ajudarem a compreender até que
ponto uma cultura geral, pessoal, quer artística
quer histórica, ou uma prática política realista
requerem uma profunda compreensão de uma
das maiores civilizações da Antiguidade e da
Idade Média, e que é também uma das grandes
A • • • • • 9
potências internacionais dos nossos dias

Trinta anos nos separam dessa descrição um tanto sombria, e nas


grandes universidades mundiais as cátedras de sinologia estão mais
concorridas que nunca, e as diversas disciplinas exploram, cada qual em sua
respectiva área, o universo China; semelhantemente, no Brasil não está
excluído desse processo, e paulatinamente (amiúde com o incentivo dos
Institutos Confúcio") os estudos sínicos firmam-se nos centros de excelência |3
do país. Cabe, pois, aos cursos e pesquisadores de História, inserirmo-nos no
debate, contribuindo com nosso olhar e nossa reflexão para o esforço de Antigas
Leituras
compreender este novo e importante parceiro. E nossa contribuição não é VISOES DA
• • • CHINA
pequena, pois como bem o explicou Mark Elwin: ANTIGA

(...) antigos textos chineses, perpetuamente


reinterpretados, tem sido compreendidos, com
demasiada facilidade, de acordo com os termos

usuais no presente. (...) Talvez seja aqui que o


estudioso ocidental tenha um papel útil a
representar. Como não está tão bem

"BLUNDEN, Caroline; ELVIN, Mark. China: gigante milenário. Madri: Del


Prado, 1997, p. 12.
"Como exemplo, temos o convênio firmado este ano com a Universidade
de Pernambuco: O Instituto Confúcio chega ao Recife como resultado de
um convênio entre a UPE e a Sede Central do Instituto Confúcio (Hanban),
em parceria com a Universidade Central de Finanças e Economia, em
Beijing. O Instituto Confúcio vai ensinar a língua chinesa, formar
professores de língua chinesa, oferecer livros e material de ensino, realizar o
exame HSK, bem como os exames para certificação de professores dessa
língua, oferecer serviço de consulta sobre a educação e cultura chinesas,
organizar atividades festivas e culturais chinesas e realizar o intercâmbio
linguístico e cultural entre a China e o Brasil.
http://www.upe.br/portal/institucional/orgaos-suplementares/instituto
confucio/Visualizado em 30 de outubro de 2014.
sintonizado com as sutilezas de significados
como seus colegas chineses, está muito mais
livre dos tabus, inibições e pressupostos dos
atuais chineses. De certo modo, é-lhe

psicologicamente mais fácil responder à


estranheza do passado da China, pois uma
continuidade histórica não significa que —
cumulativamente — não se tenham verificado

grandes transformações."

Como os sinólogos salientam com frequência, a China é a civilização


contínua mais antiga ainda existente; e mais do que isso, os chineses
possuem um notável senso de continuidade, representado pela sua escrita,
legível para um cidadão moderno como o fora para um intelectual milhares
de anos atrás. Logo, uma das chaves de compreensão mais importantes para
14 a China atual é a China Antiga, e os vestígios que ela legou.
Diante de tudo o que foi visto, talvez as perguntas mais apropriadas
Antigas
Leituras
VISOES DA
fossem: por quê não estudar a China? E por quê não estudar a Antiguidade?
CHINA Esse estudo, essa análise, não pode estar limitado a determinados centros
ANTIGA
escolhidos; antes, precisa ser disseminado pelo país, “entre moringas e
cenouras/ emolduradas de vassouras”, parafraseando Otto Lara de Resende e
seu poema, “Vinícius, poeta do encontro”. É esta a tarefa à qual a presente
obra se lança alegremente.
Tome-se, por exemplo, o capítulo da professora Alicia Relinque Eleta:
Sobre o humanismo na China; ou, de como a poesia orientou o Céu. Ora, logo
de início estamos em terreno inaudito a muitos de nós, acostumados a situar

o Humanismo nos limites da Renascença italiana e, por influência desta, na


chamada Antiguidade Clássica greco-romana; a professora Eleta amplia o
horizonte deste conceito, levando-o para as mais remotas cronologias e
geografias, situando-o e às suas origens na dinastia Zhou, milhares de anos
antes de nossa era, quando então se pensou no Ser humano como um ente
“dotado de certas qualidades, mas que deve ser transformado, educado,
cultivado, para ser capaz, em última instância, de governar os outros”.

"BLUNDEN, Caroline; ELVIN, Mark. China: gigante milenário. Madri: Del


Prado, 1997, p. 12.
No texto que se segue, a professora Ana Maria Amaro transita entre a
solidez do achado arqueológico e a textura evanescente, diáfana, do mito e
da memória para entender O culto da mulher no neolítico chinês. Nessa
busca, vagamos por muitos tempos, e partindo de nosso ensolarado
hodierno, vamos até a madrugada da civilização chinesa, sob cujo lusco
fusco exaltou-se à mulher como “criadora de todos os homens” e à Mãe

Terra “fecunda e boa, que a todos alimenta e finalmente recolhe no seu seio,
renovando, em cada primavera, o ciclo da vida”.
Para quem conhece o trabalho do prof. André Bueno, o tema do
primeiro dos seus capítulos, Sinologia e Confucionismo: a importância dos
estudos confucionistas para a compreensão da civilização chinesa não
surpreende: é o tour de force deste jovem acadêmico carioca, que advoga em
seus escritos (alguns impressos, outros publicados em seu site) a relevância
do conhecimento da cultura chinesa, suas particularidades, e a significação
15
de Confúcio como eixo central dessa história, ontem como hoje, pois, como
bem nos ensina, “praticamente impossível apreender a China de hoje sem Antigas
Leituras

investigar seu passado”. VISOES DA


CHINA
Sua contribuição seguinte, O pensamento chinês durante a Dinastia ANTIGA

Han, dá seguimento indireto] ao capítulo anterior: se lá ele visitou a fonte


de onde brotou a mais relevante filosofia sínica, aqui ele observa o rio
fluindo e engordando com seus afluentes durante a dinastia Han,
“fundamentais para a compreensão do posterior desenvolvimento do
pensamento chinês”.
No capítulo Lao Zi e o Taoísmo, o professor português António Graça
de Abreu nos brinda com erudita apresentação do pensamento taoísta, desde
a análise precisa do significado dos ideogramas às influências e repercussões.
Uma descrição apaixonante, que passeia por entre autores, do severo
historiador Sima Qian ao não menos austero religioso Padre António Vieira,
numa análise que cruza tempos, oceanos e continentes.
Em seguida, o professor Bony Schachter descreve em O rito de
passagem do escrito amarelo da Claridade Superior: religião e sexualidade na
China Antiga, a prática do sexo ritual entre os daoístas, a que reconhece
como a “estetização do sexo praticado num ambiente onde o uso do corpo e
a mobilização de seu potencial erótico não pertencem à privacidade do
indivíduo, mas sim ao bem-estar geral de toda a comunidade”.
O ato de comparar situa-se dentre os mais importantes do trabalho
intelectual; é “confrontar sob ângulos variados, analisar diferentes
sociedades de usos e costumes”, como bem nos ensinou Marcel Detienne.
Este importante labor analítico é encampado pelo professor Chenyang Li em
seu texto Zhuangzi e Aristóteles: sobre ser uma coisa, no qual realiza um
“estudo comparativo desses dois importantes pensadores [e] nos ajuda a
entender algumas diferenças fundamentais sobre Ontologia”. O esforço de
compreensão do pensamento chinês tem continuidade n' A relação entre
Linguagem e Pensamento na antiga Epistemologia chinesa, da professora Jana
S. Rosker, o qual explora as “visões específicas e detalhadas de linguagem, e
sua conexão com a percepção e interpretação do mundo humano”.
Uma sólida contextualização histórico-social abre o capítulo Reflexões
genealógicas e circulares sobre a formação do pensamento chinês antigo, de
Jesualdo Correia, opção que faz todo sentido vis-a-vis a proposta do autor: a
situação de uma “genealogia de alguns dos fundamentos e vertentes daquilo
16 que constitui os fundamentos do pensamento chinês”. Se, como afirma o
ensaísta, após o marco inicial de formação da visão de mundo chinesa (por
Antigas
Leituras
VISOES DA
volta do século VI antes de nossa era), a segunda grande mudança foi a
CHINA inserção do Comunismo no século XX, não há, de fato, outra maneira para
ANTIGA
estabelecer essa genealogia que não a localização de suas mudanças e
permanências no decorrer dessa longa História.
O capítulo O cavalo na Antiguidade chinesa: entre o institucional e o
natural, da professora Márcia Schmaltz, cumpre um papel lamentavelmente
ainda raro em nossa produção nacional: a história das espécies que
acompanham o ser humano em suas realizações. A perspectiva que a autora
escolheu, uma arqueologia da presença física do animal e dos significados
que assumiu nas artes e na literatura, é modelar para estudos dessa natureza.
No capítulo Os Quatro Animais cosmológicos em túmulos Han com
murais, a professora Natasa Vampelj Suhadolnik analisa a iconografia das
tumbas Han, identificando as representações dos Quatro Animais
mitológicos, os quais não apenas encarnavam “o tempo e espaço, mas
também o papel de orientar e proteger a alma do falecido”.

"DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. São Paulo: Ideias e Letras,


2004, p. 22.
A temática da “História Ético-ecológica é continuada pelo professor
Wang Keping, que no capítulo A redescoberta da unidade Céu-Homem,
analisa os “suportes essenciais e relevância da unidade céu-humanidade
traçando um retorno à sua linha histórica do pensamento, com referência a
reinterpretações atualizadas”.
O livro se encerra com a discussão sobre uma das figuras mais
controversas da história mundial: o imperador Qin Huangdi. Atualmente,
espera-se de qualquer profissional de história minimamente informado que
possua, ao menos, referências básicas dessa personagem e seu período, dados
a sua relevância. O messianismo do Primeiro Imperador, do professor Yuri
Pines, vem dissecar este monarca notável, compreendendo e questionando o
lugar excepcional que ocupa na historiografia do seu país, e buscando uma
“melhor compreensão do papel dos monarcas na Política imperial da China
e nas relações dialéticas entre a Dinastia Qin e seu sucessores Han”.
17
Verá, pois, o leitor que este livro cruza espaços largos. Seus autores
trabalham em locais tão diversos quanto as Universidades Hebraica de Antigas
Leituras

Jerusalém, em Israel, Ljubljana, na Eslovênia, a Estadual do Paraná, no VISOES DA


CHINA
Brasil, Granada, na Espanha e do Aveiro, em Portugal; cabendo salientar, ANTIGA

igualmente, a reunião de estudiosos chineses, tanto da mainland China


(Beijing International Studies University, Universidade de Macau, Fudan
University de Shanghai), quanto da diáspora (Universidade Tecnológica de
Nanyang, Singapura), muitos dos quais tem trabalhos seus publicados em
português pela primeira vez, um dado que certamente alegra estes
organizadores. Trabalhando em três continentes, conseguimos construir um
volume coerente.

Ao finalizar esta apresentação, gostaria de acrescentar dois momentos


em que a História da China e minha vida intelectual cruzaram caminhos —
optando, inclusive, pela primeira pessoa para redigir esse pequeno trecho.
Ingressei no ensino superior em 1993, e era, então, um jovem acadêmico
interessado na cultura dessa civilização; não raro, tal interesse tornou-se
motivo de chacota, não apenas de colegas, mas também de professores. Se tal
ambiente, possivelmente, me desviou de um possível caminho de pesquisa,
jamais abalou minha paixão e interesse pelo pensamento chinês.
Em 1999, aos 24 anos, fui contratado para ministrar a disciplina de
Filosofia para as turmas do Primeiro Ano do Ensino Médio, um programa
que era, basicamente, História da Filosofia, mas que excluía Confúcio. Ao
arrepio do programa, iniciei justamente com ele minhas aulas, antes mesmo
dos gregos, usando a tradução disponível então, reeditada sem quaisquer
mudanças desde 1968. Não obstante tais limitações, os alunos e eu pudemos
apreciar um pouco (uma gota, que fosse) do pensamento do velho Mestre
Kung. Certa feita, um dos meninos veio comentar comigo: meu pai
perguntou por que o senhor começou sua disciplina com alguém de quem
não se sabe nada, uma figura exótica como essa. Jamais tive tanta certeza a
respeito do que fazia quanto ao ouvir este comentário.

Que o príncipe cumpra seus deveres de


príncipe; o súdito, os deveres de súdito; o pai,
os deveres de pai; o filho, os deveres de filho".

Alguns anos antes, por volta de 1996, chegou até mim um dos livros
18 mais importantes à minha formação: Poemas chineses, tradução de Cecília
Meireles da poesia de Li Po e Tu Fu (sic). Em que pese serem traduções de
Antigas
Leituras
VISOES DA
terceira mão — Cecília não conhecia o chinês, como tampouco Manuel
CHINA
Bandeira lia o persa, e para verter o Rubayat de Omar Khayyan, partiu da
ANTIGA
versão francesa —, esta obra me jogou nos braços do magnífico ébrio Li Bo,
uma paixão que atravessa os anos sem demonstrar arrefecimento. Encantou
me, particularmente, a singeleza como a poetisa das Gerais descreveu os
versos de seu colega oriental:

Seus delicados poemas são feitos de quase


nada: são como miniaturas do excelente

desenho e escolhidas cores com luares, rios,

flores palácios, vultos que assomam com um


pouco de tristeza, de saudade, de amor e de
• 14

alegria.

"CONFUCIO. Os Analectos, XII:11. Tradução de Múcio Porphyrio Ferreira.


São Paulo: Pensamento, 1997, p. 92.
"MEIRELES, Cecília. Homenagem a LiPo. In LI Po e TUFu. Poemas
chineses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 21.
Não raro, deixei-me envolver por suas cortinas de gaze, flores
desabrochando, tardes modorrentas, macacos gritando sobre as copas das
árvores, e pela melancolia que agrega tudo isso. Sobretudo, encantei-me com
aquele pequeno pedaço de existencialismo precocemente surgido no século
VIII, Bebendo sozinho ao luar (HEHEH):

Uma taça de vinho, sob árvores floridas


bebo só, nenhum amigo por perto
levanto minha taça, convido a lua
com ela e minha sombra seremos três.

A lua não aprecia o vinho


a sombra se arrasta ao meu lado

ainda assim, tendo a lua como amiga e a 19


sombra como escrava
Antigas
terei alegria até o fim da primavera. Leituras
VISOES DA
CHINA

Para as canções que canto brilha a lua ANTIGA

na dança, a sombra me acompanha


sóbrios, nós três apreciamos a mútua
companhia
bêbados, agora cada um segue seu caminho
talvez nunca mais nos reunamos em nossa

estranha festa

e nos encontremos, por fim, no nebuloso


rio do céu”.

Oxalá a leitura deste volume de Antigas Leituras estimule o debate


intelectual, e instigue mais e mais lusófonos a se apaixonar pelo Império do
Meio e sua história.

Prof. Dr. José Maria Gomes de Souza Neto

Professor de História Antiga (Universidade de Pernambuco)


SOBRE O HUMANISMO NA CHINA;
OU, DE COMO A POESIA ORIENTOU O CÉU
Alicia Relinque Eleta

Diz um poema:

Entre flores, uma garrafa de vinho.


Bebo sozinho, sem companhia alguma.
Eu levanto o meu copo, convido a lua brilhante.
Com a minha sombra, nós somos três.

Mas a lua não é capaz de beber;


e minha sombra, apenas segue-me.
20 Companheiros fugazes, lua sombra,
aproveitam enquanto é primavera.
Antigas
Leituras
VISOES DA
Quando eu canto, a lua passeia;
CHINA
quando eu danço, minha sombra se alvoroça.
ANTIGA
Eu, sereno, e nós nos divertimos juntos;
já bêbado, cada um para o seu lado.
Minhas eternas amigas insensíveis,
• • 1

Dou-lhas em compromisso ao Rio das Nuvens.

Provavelmente, para falar sobre o humanismo na China, poucos


selecionariam esta composição de um dos autores mais excêntricos e
heterodoxos da tradição poética chinesa, Li Bai (701-762). A voz poética
aqui expressa seu próprio abandono aos eflúvios do álcool e a busca de uma
companhia que desaparece assim que o homem é derrotado pelo vinho. Por
que o poeta evita outros seres humanos? Por que prefere essa companhia
efêmera, ingrata, carente de vontade e até mesmo aborrecida? Talvez
nenhum poema como este expresse tão claramente o que é a verdadeira
medida do universo - do tempo e do espaço. O homem, de fato um homem
frágil e abandonado, se apresenta diante de nossos olhos como dono e
senhor de tudo à sua volta; da lua, que o segue enquanto ele cambaleia
bêbado, e ele só precisa dela para projetar sua sombra; e essa, obedecendo ao
vai-e-vem do licor, se alvoroça.

Um Dom para os Homens, o Mandato do Céu

Em seu capítulo sobre a China na Enciclopedia, Voltaire disse: "Os


chineses, ao contrário, [dos gregos] juntaram à História do Céu e da Terra, e
justificaram, assim, uma para a outra", e isso é precisamente o que muitos
historiadores consideram o ponto fundamental do pensamento chinês, que
pode ser resumido na afirmação de W.T. Chan: "Se há uma palavra que pode
caracterizar toda a história da filosofia chinesa, essa palavra seria
Humanismo - não o humanismo que nega ou menospreza um Poder
Supremo, mas que professa a unidade do homem e do céu. Neste sentido, o
humanismo tem dominado o pensamento chinês, desde o alvorecer da
2|
história".

A posição central do homem no pensamento chinês é Antigas


Leituras

frequentemente identificada com o surgimento da dinastia Zhou (1111-249 VISOES DA


CHINA
AEC). Durante a anterior, os Yin-Shang (1751-1112 AEC), o controle de ANTIGA

homens por seres divinos dominava o mundo, e as fontes arqueológicas e os


poucos textos que sobreviveram deste período atestam essa relação, e a
profusão de diferentes cerimônias e sacrifícios a eles destinados.
A queda da dinastia Shang determina a necessidade de justificar a
mudança dinástica, e começará então a gestação de um novo conceito
legitimador de governo dos homens, o Mandato do Céu (Tianming). Este
mandato celeste vai se tornar o ponto de referência que funcionará, durante
todo o período pré-imperial e os subseqüentes vinte séculos do império
chinês, para justificar qualquer alteração na, suposta, sucessão natural de
gobernantes. E por mais paradoxal que possa parecer, este novo conceito de
céu que reivindica a autorização para um homem, ou uma dinastia, para
governar sobre os outros (isto é, em suma, o que significa Tianming),
incidirá precisamente sobre a Figura do homem - um homem, melhor
dizendo - dotado de certas qualidades, mas que deve ser transformado,
educado, cultivado, para ser capaz, em última instância, de governar os
OutrOS.
O "mandato do Céu" aparece em alguns dos poemas da primeira
antologia da tradição literária chinesa, o Clássico da Poesia (Shijing, ss. XI
VII AEC?)" — concedido a Wen Wang, o grande sábio responsável pela ruína
da dinastia Shang:

Ah, o Mandato do Céu!


Glorioso e inefável.

Ah, quão resplandecente,


A pura virtude de Wen Wang!

Se sentir compaixão por mim


e se me conceder recebê-la,

cavalgarei honrado junto a Wen Wang


e os meus descendentes o seguirão fielmente. (267)

22 O mandato dos céus é outorgado a quem é digno dele;


Antigas conseqüentemente, não recebe nenhuma data de validade, e apenas na
V # A medida em que um governante ou uma dinastia siga sendo digna de ostentá
#A lo, o Mandato do Céu a legitimará para governar "tudo-debaixo-do-Céu":

Glorioso, glorioso, Wen Wang,


diligente, cumpre a tarefa recebida.
Grande é o Mandato do Céu.

Aí estã os descendentes de Shang.


Os descendentes de Shang
são inúmeros,

e por ordem do Senhor das Alturas


se submeteram a Zhou.

Eles foram submetidos à Zhou.

O Mandato do Céu não é eterno.

Os nobres ilustres de Yin [Shang]


oferecem libações em nossa capital. [...]

Não pensa em seus ancestrais?


Cultiva a florescente virtude,

Que sua voz sempre se adéqüe ao Mandato


e dele virão muitos presentes.
Antes de Yin perder seu povo
[ele] acompanhavam o Senhor das Alturas.
Mire-se no espelho de Yin.

O Mandato não é fácil [de manter]. (235)

Essa dificuldade para manter o Mandato, ou melhor, encontrar


meios que permitam retê-lo — a saber, preencher de significado a "virtude"
que o Céu requere para fazê-lo -, será o objetivo final de diferentes
pensadores da Dinastia Zhou. Esta busca, e os esforços dos interessados (que
tentam legitimar-se) é, justamente, o ponto determinante para que se
23
produza o deslocamento de uma graça divina concedida sem mais, à uma
necessidade por parte daqueles, sempre seres humanos, em aperfeiçoar-se Antigas
Leituras

para alcançar a virtude. VISOES DA


CHINA
Como afirma Chan, praticamente todas as abordagens filosóficas na ANTIGA

China, ou, o que dá no mesmo, todas as receitas possíveis para o governo,


vão centrar-se no desenvolvimento das relações entre os homens e em
apresentar as qualidades que aqueles que estão destinados a governar devem
possuir". Mas, sem dúvida, quem exercerá a maior influência no pensamento
filosófico, ético e político da China, será o Mestre Kong (551-479 AEC).
O Mestre, mais conhecido como Confúcio pela latinização que os
missionários chegados à China realizaram com os caracteres de seu
sobrenome (Kong) e o próprio termo "mestre" (fuzi), é o fundador do
Confucionismo, uma filosofia que se impôs como ideologia do Estado
durante todo o período imperial, e um dos filósofos fundamentais do
período antigo. Sua doutrina tem sido geralmente considerada como a
essência do humanismo, isenta de qualquer relação com os seres divinos. Os
loci classici mencionados como referência aparecem no texto que contém
algumas de suas conversas com os seus discípulos, os Analectos (Lunyu):

Fan Chi perguntou sobre a sabedoria. O Mestre


disse: "Ocupar-se com a justiça para o povo, e
respeitar as almas e espíritos, mas mantendo-os a
distância, é o que pode ser chamado de sabedoria.
(6.20)

O Mestre não falava de fenômenos estranhos,

violência, desordem e espíritos. (7.20)

Jilu perguntou como ele deveria servir as almas e


espíritos. O Mestre disse: "Se você não sabe servir aos
homens, acaso saberia como servir as almas?". "E eu

poderia perguntar sobre os mortos?"[O Mestre|


disse: "Se você não sabe sobre os vivos, o que pode
saber sobre os mortos?" (11.11)

Nestas três citações Confúcio, sem negar o mundo espiritual, declara


24 de forma inequívoca, seu interesse em aspectos propriamente humanos.
Porque, na verdade, é o homem que vai dar a medida de como o mundo
Antigas
Leituras
VISOES DA
funciona - "O Mestre disse: "É o homem que engrandece o Dao, e não o Dao
CHINA
que engrandece o homem" (15.28) -. E o homem, como tal, é essencialmente
ANTIGA
social e não sabe existir, senão em relação com os demais: "O Mestre disse:"
Eu não posso formar um rebanho junto com pássaros e animais. Se não me
junto com outros homens, com quem eu poderia fazê-lo? "(18,6)

Entre Homens: da Humanidade aos Ritos

A arquitetura das abordagens políticas e filosóficas de Confúcio,


girará em torno da figura do "homem de virtude" (junzi), e as qualidades
que devem adorná-lo para ser capaz de governar o mundo. Neste sentido,
ele desenvolverá o conceito de "humanidade" (ren), "virtude das virtudes,
uma vez que inclui todas as outras", que irá determinar se alguém vai ser,
afinal, o digno recebedor desse Mandato do Céu e que é tão essencial que "o
homem de virtude que abandona a humanidade, acaso pode levar esse
nome?" (4.5)
Como já dissemos em outro lugar, a "humanidade" (ren) pode ser
identificado com o sentido ético do termo em espanhol: ele é composto, à
esquerda, pela natureza do "homem" na sua forma comprimida, e à direita
pelo numeral "dois" (er). Traduzido como "benevolência", "bondade" ou
"humanidade", representa precisamente a relação entre dois homens, e
também joga com a homofonia deste ideograma com a palavra "homem"
(também pronunciado ren, mas representado como um indivíduo que
caminha). Do significado original, que parece ter possuído a noção do
sentido de amor e de condescendência do soberano para com seus súditos, a
interpretação que Confúcio lhe dará será matizada". E, embora nos vinte
capítulos dos Analectos, quase dez por cento das histórias ou diálogos
referem-se a noção de "humanidade" não encontramos em qualquer lugar
uma definição clara e delimitadora do que ela é. Em vez disso, o Mestre joga
conosco a deambular em torno da noção oferecendo diferentes aspectos
sobre como interpretar o conceito. As duas vezes que parece definir mais
claramente o conceito são:
25
Zhonggong perguntou o que é a humanidade. O Antigas
Leituras

Mestre disse: "Da porta pra fora, aja como se VISOES DA


CHINA
estivesse ante o convidado principal; aborda as ANTIGA

pessoas como se estivesse celebrando um grande


sacrifício; Não faça aos outros o que não gostaria que
fizessem a você. Portanto, não haverá rancor no

Estado, e não haverá amargura em casa". (12,2)

Fan Chi perguntou o que é a humanidade. O Mestre


disse: "Amar os homens." "E a sabedoria?" O Mestre

disse: "Conhecer os homens."

Fan Chi não entendeu. O Mestre disse: "Se você

colocar os retos acima dos infames, esses retificarão

aqueles."

Fan Chi foi e se encontrou com Zixia, e disse-lhe:

"Faz pouco eu encontrei com o Mestre, e perguntei o


que é a sabedoria, e o Mestre respondeu: "Se você
colocar os retos acima dos infames, esses retificarão

aqueles." O que significa isso?"

Zixia exclamou: "Que palavras tão fecundas!"


Quando Shun tinha tudo debaixo do céu, no meio
da multidão ele escolheu Gao Yao, e a falta de

humanidade se afastou. Quando Tang tinha tudo


debaixo do céu, no meio da multidão escolheu Yi
Yin, e a desumanidade foi embora". (12.22)

O primeiro caso formula uma atitude de total respeito aos homens e


assinala, sem hesitações, a identificação de um ser humano com todos os
outros. Em seguida, afirma a identidade entre a humanidade e o amor. Mas,
tanto em um como no outro, o objetivo final é o governo dos homens. A dor
e o ressentimento que poderiam levar ao caos no Estado (e em seu referente,
26 a família) são evitados; por outro, unindo a humanidade/amor com a
sabedoria, alude-se a dois modelos de governos virtuosos, o lendário
Antigas
Leituras
VISOES DA
imperador Shun (2255-2207 AEC) e o fundador da dinastia Shang, Cheng
CHINA Tang (século XVII AEC), que escolheu como sucessores homens devotados,
ANTIGA
apesar de sua origem plebéia. O amor referido no segundo fragmento não
significa um amor universal; a matização imposta pela sabedoria ao amor
universal, a inclui, de certa forma, submissa dentro do mesmo conceito de

humanidade, a ponto da Humanidade determinar o que deve ser amado ou


odiado: "O Mestre disse:" Apenas aqueles que possuem a humanidade
podem amar aos homens, e podem odiar os homens "(4.3). Apenas amar
aqueles que são dignos de tal Amor, e odiar aqueles que não são.
Esta qualidade, que parece essencial e latente em todos os indivíduos,
não necessariamente está sempre ativa, porque ao longo dos Analectos são
mencionados caos em que tanto homens dignos quanto os plebeus a exibem
ou, pelo contrário, demonstram a sua ausência. Portanto, o Mestre diz: "Se a
vontade tende para a humanidade, não haverá mal" (4.4).
É óbvio, então, que a "humanidade" implica este sentimento ou
entendimento dos homens; que se tem de desenvolvê-la para adquirir, pelo
menos eticamente, o grau de "homem de virtude" que, no fundo, é
qualificado para liderar outros. É quando descobrimos qual é o segredo para
pôr em prática esta qualidade:

Yan Yuan perguntou o que era a humanidade. O


Mestre disse: "superar a si mesmo e voltar ao ritual,
isso é a humanidade. Quando se vence a si mesmo e
retorna para os ritos, tudo sob o céu vai virar a sua
humanidade. A humanidade nasce de si mesmo,

acaso poderia ser tomada a de outros?".

Yan Yuan disse: "Eu te imploro que me indiqueis


como." O Mestre disse: "Não observe nada contrário

aos ritos; não ouça nada contrário aos ritos; não diga
nada contrário aos ritos, não faça nada contrário aos
27
ritos."

Antigas
Leituras

Yan Yuan disse: "Posso não ser muito perspicaz, mas VISOES DA
CHINA
tentarei colocar em prática estas palavras" (12,1) ANTIGA

A humanidade está intimamente ligada aos ritos (li) e, ainda que


brevemente, devemos mencioná-los". Neste sentido, devemos compreender
bem o que se esconde sob esta denominação de "rito". O ideograma é
formado pelo radical de "sacrifício" e pelos recipientes utilizados para esses
eventos. É claro, portanto, que, em princípio, aludem exclusivamente as
cerimônias oferecidas em ocasiões especiais. No entanto, já em tempos
antigos se amplia e alarga o âmbito do seu conteúdo a todos os eventos que
destacam as relações entre os homens. Nos Analectos, além de inúmeros
rituais genéricos utilizados em diferentes épocas e lugares referências,
expande-se claramente seu alcance para se referir a um conjunto de atitudes
que mostram modos de comportamento social. Especialmente instrutivo a
esse respeito é o livro 10 dos Analectos, onde se enumeram as atitudes de
Confúcio em aspectos tanto públicos como privados de relacionamento com
os outros: como falar com um governante (10,2), o tipo de saudação que se
faz ao entrar no palácio (10,4), a forma de levar objetos rituais (10,5), a
vestimenta em situações cotidianas ou períodos especiais, como no luto
• • Aº * --> • • 12

(10,6), o tipo de alimento também para ocasiões especiais (10,8), etc.". Na


verdade, há um vasto repertório que exemplifica em cada situação o que
deve ser a atitude e a compostura correta.
Assim, como assinala Du, os ritos "podem ser vistos como uma
externalização de ren [humanidade] em um contexto social específico" ou,
que é mesmo "um princípio de particularismo que significa como o processo
de auto-realização de ren tem lugar"; o que para ele significa que "um
• • • • • 1113
confucionista sempre exibe sua auto-formação moral no contexto social". E
• / • 11 •

parecem confirmar este ponto as palavras de Confúcio: "Se um homem não


tem a humanidade, de que servem os ritos?” (3.3). No entanto, deve ser
notado que esta atualização do que a princípio se apresentava como uma
atitude e um sentimento, ao manifestar-se, mostra sempre uma posição
determinante na hierarquia. Cada indivíduo dentro da sociedade, não só se
relaciona com outros seres humanos, mas se relaciona em função de sua
posição dentro dela. Neste sentido, em comparação com as duas definições
28 opostas que em um momento Merleau-Ponty nos oferece sobre o que é o
humanismo, primeiro definido como a "filosofia do homem interior que
Antigas
Leituras
VISOES DA
não encontra nenhuma dificuldade, em princípio, nas suas relações com os
CHINA outros, nenhuma opacidade no funcionamento da sociedade, e que substitui
ANTIGA / , º • II II • •

a cultura política pela exortação moral"; e frente a essa como "uma filosofia
que enfrenta como problema a relação do homem com o homem, e do
estabelecimento entre eles de uma situação e uma história que são lhes
comuns", poderíamos identificar a primeira posição com o conceito de ren
II • II • =\ •

humanidade", em que parece que a harmonia que rege as relações humanas.


No entanto, o conceito de "ritual" (li) confronta-nos com o problema da
posição desigual dos indivíduos na sociedade, que deve ser resolvido em
favor de um lado ou do outro na luta por posições de privilégio.

A Transmissão da Virtude

Até agora, vimos que é o Mandato do Céu que determina quem deve
governar sobre os outros, mas para recebermos tal Dom é necessário um
"homem de virtude", e o que o qualifica como tal é determinado
fundamentalmente por sua humanidade, manifestada através dos ritos. O
que é realmente importante neste ponto de vista é que a qualidade pode ser
aprendida, pode ser praticada e pode ser ensinada.
Provavelmente, um dos mecanismos mais revolucionários do

pensamento confucionista é precisamente essa qualidade, supostamente de


qualquer indivíduo, para se tornar um "homem de virtude." A posição
hierárquica que os ritos reproduzem, e ao mesmo tempo produzem, não é,
no entanto, uma posição fixada por uma norma celeste. Não é pertencer a
um clã, em particular, que fixa a posição na sociedade, no governo. Como
mostram os exemplos de Tang e Shun, escolhendo homens de sangue menos
nobre, mas mais dignos (veja acima), a humanidade será a pedra de toque
que pode elevá-los, em uma situação supostamente ideal, para a maior das
dignidades.
E, novamente, Confúcio oferecerá o mecanismo que permite a
qualquer um aumentar a sua virtude: a imitação de modelos de conduta. Em
29
primeiro lugar, os modelos que a história têm oferecido, cujo exemplo
paradigmático é Wen Wang, como exaltado no Clássico da Poesia. Mas Antigas
Leituras

também, da mesma maneira que todo o ser humano é capaz de aprender, é VISOES DA
CHINA
também capaz de ensinar com seu exemplo; e aprender é o que levará a ANTIGA

aperfeiçoar-se, e a ter a possibilidade de converter-se em um junziº.

Zigong disse: "Se alguém derrama bênçãos ao povo, e


consegue proveito para todos, o que você acha?
Pode-se dizer que tem a humanidade?” O Mestre
disse: "Alguém assim está para além da humanidade,
ele chega a santidade. Nem Yao e Shun poderiam
criticá-lo. Aquele que possui a humanidade,
querendo formar-se a si mesmo, forma aos demais;
que queira triunfar sobre si mesmo, faz os outros
triunfarem. Tomar o exemplo em si mesmo pode ser
dito como a direção para a humanidade. "(6,28)

O Mestre disse: "Se os de cima gostarem dos ritos, os


de baixo se deixarão governar" (14.44)
O recurso da imitação serve para atitudes como a humanidade, e
para manifestações mais públicas, como os ritos. Em qualquer caso, a
virtude atrai a virtude - "A virtude não está sozinha, sabe que atrai
companhia" (4,25) -. E para governar, a coerção se mostra inútil:

O Mestre disse: "guia-o com ordens, mantém com


ordens e com castigos, e o povo se irritará e perderá
O respeito; guia-o com a virtude, mantém a ordem
com os ritos, e ele terá respeito, e virá a ti."(2.3)

Mestre Ji Kang perguntou a Confúcio sobre o


governo: "Que tal executar aqueles que não têm
moral para beneficiar aqueles que têm?". Confúcio
respondeu: "Se vais governar, por que executar
alguém? Se buscas o bem, o povo será melhor. A
30 virtude do junzi é como o vento; a dos homens
menores, como a grama. Quando o vento sopra, a
Antigas
Leituras
VISOES DA
grama se curva diante dele." (12.19)
CHINA
ANTIGA
A influência benéfica dos modelos pode ser estendida ao longo do
tempo, e as ferramentas para conhecer o passado são os textos. Mesmo
Confúcio apresenta-se como alguém que quer conhecer o passado e precisa
estudar: "Eu não nasci sabendo; Admiro o antigo, por isso me aplico para
investigá-lo "(7,19); por ele se pode apreciar as qualidades de seu
conhecimento, como complemento para a formação de homens de virtude:
"Se ampliamos o conhecimento com textos, e o submetemos ao ritual,
poderemos evitar de cruzar os limites" (6,25)
Mesmo sem fazer com que isso se convertesse no foco da formação, o
respeito inquestionável que ele sente por alguns textos - o Clássico das
Mutações (Yi) dos Documentos (Shu) e Poesia (Shi) — aparece refletido em
suas citações. Especialmente este último encontra um lugar de preferência
entre os seus comentários.
A Poesia e o Governo dos Homens"

O Clássico da Poesia (Shijing) é uma antologia de 305 poemas


selecionados, de acordo com a tradição, por Confúcio entre mais de 2.000,
procedentes de diferentes territórios, e compostos entre os séculos VII-XI
aC. Segundo o Clássico dos Documentos (Shujing): “O shi e, por extensão, a
poesia] diz as intenções" (shi yan zhi).
Etimologicamente, o termo "poesia" é composto pelo radical
"palavra" (yan) mais os elementos de "pé" (chi) e "pulso, cadência, ritmo"
(cun), ou seja, a poesia é um pé que se move em intervalos rítmicos. Seria
difícil encontrar uma definição física mais específica: a poesia aparece quase
como a personificação pura (voz/boca pé; pulso/coração) do homem.
No próprio Shijing, a palavra Shi aparece apenas três vezes para nos
dizer qual o seu objetivo último, na pequena ode n.200, e nas grandes odes,
31
252 e 259". Nos três casos, aparece no trecho final, como uma declaração
sobre a intenção que persegue o poema que a encerra: Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
Uma flor aqui, um adorno lá, ANTIGA

molda este precioso brocado.


Assim, esses que caluniam
Exageram mais e mais.

Uma grande boca,


Grande, forma a rede do Sul

Esses que caluniam


Com quem tecem suas intrigas?

Murmurando,
sussurrando,

tramais a traição.
Mas guarde suas palavras,
Pois nada as garantirão.

Rumores, murmurando
Tramais a mentira
Quem sabe se vocês
sofrerão as traições
que vocês tramam.

Os soberbos desfrutam

e sofrer os esforçados.
Céu azul!, Céu azul!

Vigia ao soberbo,
Se compadece dos esforçados.

Esses que caluniam


Com quem tecem suas intrigas?
Pegue aqueles que caluniam,
joguem-os aos lobos e tigres.
Se leões e tigres não os comerem,
32 jogue-os no Setentrião.
Se o Setentrião os rejeitar,
Antigas
Leituras jogue-os nas alturas.
VISOES DA
CHINA
ANTIGA
A estrada para o jardim de salgueiros,
desemboca na colina semeada.

O assistente Mengzi
compôs este poema (zuo Wei ci shif=#K+),
para que tantos homens de virtude
O escutem com atenção.

A clara crítica que supõe este poema se opõe, como no outro lado da
mesma moeda, aos outros dois poemas que pertencem as grandes odes.
Nelas, os "poemas compostos" estão em um claro tom de exaltação às
virtudes dos grandes homens. O primeiro, n.252, supostamente feito pelo
Senhor de Shao para o jovem governante Cheng (1115-1078 AEC), se
encontra a meio caminho entre a loa e aconselhamento:
Na curva da colina

Uma rajada de vento do sul.


soberano feliz

vens passear, vens cantar, vens lançar sua voz


passeio tranqüilo, alegria confortável.
Feliz soberano, encham-se os dias de sua vida

como fizeram antes os grandes senhores.

O seu reino é vasto e esplêndido, e tu o ampliaste.


Soberano feliz,
Encham-se os dias de sua vida

Senhor de cem espíritos.

33
Seu mandato será longo, felicidade e riqueza o
fortalecerão. Soberano feliz, Antigas
Leituras
Encham-se os dias de sua vida, e as bênçãos o VISOES DA
CHINA
cubram ANTIGA

Gozais de sustento, de alas, da piedade filial, gozais


da virtude, que as sirvam de alas
Soberano feliz,

modelo dos quatro cantos. [...]

Os carros de meu senhor,

são muitos e bem providos; os corcéis de meu


senhor, são bem treinados e rápidos.
Lanço estes versos, poucos, (shi Shibu duo) para
alguém cantar.

Finalmente, a ode 259 descreve a entrega que o soberano Zhou fez do


território de Xie ao Senhor de Shen, um modelo de virtude entre os homens:

Excelso, o cume

Sagrado erguido
atinge o céu.
O cume enviou um espírito
que deu origem a Fu e Shen.

Fu e Shen são as alas de Zhou,

Que protegem os quatro Estados,


que defendem as quatro direções.

Incansável Senhor de Shen

Ao serviço dos herdeiros reais.


Ele estabeleceu seu domínio em Xie

Para ser modelo dos reinos do sul. [...]

São as virtudes do Senhor de Shen

sua gentileza, generosidade e justiça.


34 Organiza os dez mil territórios
e seu nome é ouvido nos reinos ao redor.
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA Jifu compôs esta canção,
ANTIGA
De versos soberbos (qi shi kong shuo),
de melodia delicada

um presente ao Senhor de Shen.

Sem dúvida, essas duas grandes odes se aproximam bastante da


poesia proposta por Platão em sua República ideal (que jamais existiu)". Na
primeira, pode-se duvidar se ela entraria nessa, porque o que ela realmente
contém é uma crítica contra traidores e maledicentes, e o risco para o reino
em acolhê-los.

Este tipo de fórmula final não utiliza com exclusividade o termo shi.
Em alguns outros poemas, distribuídos nas quatro seções, aparecem
expressões semelhantes em que se define explicitamente o objetivo final de
toda a composição:

É somente por seu coração mesquinho


por ele que eu escrevi este comentário (wei ci) (107)
Você não é bom,

te canto como um aviso (ge yi xun zhi).


Se não escutas minha advertência

lembrará quando caíres. (142)

Jiafu compôs esta canção (zuo Song), para revelar os


Vícios do governo,
Ele tenta transformar suas entranhas

para acalmar os 10.000 territórios. (191)

O povo não está em paz,


E tão somente te ocupas de roubar e saquear
Dizes em voz alta: “é intolerável!”
35
E as escondidas, sabes intrigar
Você diz: "Não sou eu" Antigas
Leituras

Mas eu compus esta canção sobre você (jizuo erge) VISOES DA


CHINA
(257) ANTIGA

Existem também muitos outros poemas que, sem incluir este tipo de
fórmula, expressam uma queixa clara contra os comportamentos abusivos
daqueles que possuem algum tipo de poder".
Provavelmente, reduzir todos os poemas da antologia à crítica ou
exaltação distorce o seu amplo conteúdo". Mas o que nos interessa aqui é a
posição privilegiada que Confúcio concede a essa antologia na formação do
homem de virtude, o aspirante ao governo do mundo:

O Mestre disse: "Os trezentos [poemas] Shi podem


ser resumidas em uma expressão: que em sua mente
não exista o mal" (2.2)

O Mestre disse: “Desperta com o Shi, levante-se com


os ritos e complete [sua educação] com a
música"(8,8)..
Nan Rong repetiu três vezes [o verso do "tablete de
jade branco"". O Mestre deu-lhe em casamento a
filha de seu irmão (11.5)

A leitura dos poemas incentiva a quem lê-lo, a ponto de seduzir o


próprio Mestre a convidar um discípulo, Nan Rong, seu leitor fervoroso,
para se juntar a sua família. Mas, sem dúvida, a expressão mais completa do
que significa a antologia, e que vai influenciar toda a concepção posterior da
poesia encontra-se em 17,9, onde Confúcio desenvolve aquela expressão
concisa que "a poesia diz as intenções" para assinalar com precisão o papel
do Shijing: observar, agrupar e ordenar — hierarquicamente —as relações
entre os seres humanos, reclamar quando não funcionarem corretamente, e
igualmente, aprender a nomear o mundo: "Discípulos, por que vocês não
estudam o Shijing? Com ele vocês podem despertar (xing), observar (guan),
juntar os homens (qun) expressar a dor (yuan). Ajuda a servir o pai em casa,
36 e ao soberano, fora. E, além disso, aprendem-se muitos nomes de pássaros e
animais, de árvores e ervas. "(17,9).
Antigas
Leituras
VISOES DA
No entanto, para ler os poemas, para que sirvam ao seu objetivo
CHINA final, faz falta a capacidade de interpretá-lo corretamente, e há uma maneira
ANTIGA
específica de leitura:

Zixia perguntou: "O que significa [o verso]: "belo


rosto sorridente, olhos lindos observam. Toma a

seda branca e lhe ponha cor'?"

O Mestre disse: "A pintura vem depois de seda


branca."

Ele perguntou: "Os ritos vem depois [da


humanidade]?".
O Mestre disse: "Shang me estimula. Agora eu posso
começar a falar com ele sobre Shi". (3.8)

A interpretação alegórica do Shijing estabelecerá para sempre o


padrão para leitura de textos. De fato, diversas fontes mostram que o uso
extensivo de versos do Shijing se fazia tanto em conversas privadas e
públicas, e especialmente em reuniões diplomáticas, em que a ambigüidade
do verso poderia ser lida como uma suave advertência, uma ameaça, uma
súplica ou na exposição do verdadeiro caráter de quem o declamava.
Exemplo paradigmático é recolhido no Zuozhuan (século IV aC), no qual o
Senhor de Zheng pede ao Duque de Lu que interceda por seu território ante
o Duque de Jin. Para comover o Duque de Lu, um dos oficiais de Zheng,
Wenzi, entoa o poema "Gansos gigantes" (181) "gansos gigantes voam,
batendo suas asas; nossos filhos partiram para a guerra, sofrem mil privações
mil em terras inóspitas, quanta compaixão despertam, pobres viúvos, pobres
viúvas [...]). Um conselheiro Lu, Zijia, desconsidera o seu pedido com o
poema "Quarto mês" (204), que narra as tristezas de um oficial solitário.
Insiste Wenzi com o poema "Caminho rápido" (54) sobre uma garota que se
lança sozinha pelas estradas, determinada a consolar seu irmão pela morte
de seus pais. Finalmente, ele obtém obter o consentimento de Zijia
37
confirmando seu apoio com "Recolhendo brotos" (167, "O carro do meu
Senhor, um carro bem preparado, com quatro cavalos fortes [...]")". Antigas
Leituras

A Poesia se mostrará como a ferramenta ideal para formar e VISOES DA


CHINA
reconhecer o homem de virtude, e quando, a partir da dinastia Han (202 ANTIGA

AEC - 221 EC), o Confucionismo for construído como uma doutrina


fechada e coerente, e se instituir como ideologia de poder, a poesia terá um
lugar proeminente nela.

Notas

1. Li Bai, “Um ponto de partida”. 100 poemas de Li Bai, trans. A-H. Suárez
Girard, Madrid, Buenos Aires, Valencia, Pré-Textos, 2005, p. 151.
2. W. T. Chan, A Source Book in Chinese Philosophy, Princeton, Princeton
University Press, 1973, p. Três.
3. Todavia, em três estudos recentes se utiliza a retórica do "mandato do

céu" em referência a questões políticas contemporâneas. Vid por exemplo,


X. Lu, "The influence of Classical Chinese Rhetoric on Contemporary
Chinese Political" em D.R. Heisey ed., Chinese Perspectives in Rhetoric
and Communication, Westport, Greenwood, 2000, p. 3-23 e O. Schell,
Mandate of Heaven: The Legacy of Tiananmen Square and the Next
Generation of China’s Leaders, New York, Simon & Schuster, 1995.
4. Para o Clássico da Poesia, ver última epígrafe. Há uma versão em espanhol,
cujo título Romancero Chino, distorce, em alguma medida, a consideração
sacra que, ao longo da história chinesa, tem marcado esta antologia. (Vid.
Romancero Chino, trad. C. Elorduy, Madrid, Editora Nacional, 1984). O
número no final do poema corresponde à organização tradicional da
antologia.
5. O termo "tudo-debaixo-do-céu" (Tianxia) é usado nos textos clássicos
para se referir ao mundo, pois o governante o será em todo o mundo
(conhecido).
6. W. T. Chan, “Chinese Theory and Practice, with Special Reference to
Humanism”, pp. 13-14 (en Ch. A. Moore, ed., The Chinese Mind: Essentials
of Chinese Philosophy and Culture, Honolulu, University of Hawaii Press,
1968, pp. 11-30).
7. Confúcio não deixou nada escrito. Toda a doutrina atribuída a ele deve

ser rastreada entre os textos que ele supostamente editou, o Clássico da


38 História (Shujing), Primavera e Outono (Chunqiu) e o Clássico da Poesia
(Shijing), ou na compilação destas anedotas, que contém fragmentos dos
Antigas
Leituras
VISOES DA
diálogos entre Confúcio e seus discípulos, agrupados sob o título de
CHINA
Analectos (Lunyu). A autoria e data de composição deste trabalho estão
ANTIGA
ainda para serem determinadas, embora provavelmente tenham sido escritas
por autores diferentes em momentos distintos, em torno dos séculos IV-III
AEC Em espanhol há duas versões: Confúcio, Lunyu. Reflexiones y
enseñanzas, trad. A. H. Suarez, Barcelona, Kairos de 1997, e contendo

Confúcio e Mêncio, Los cuatro libros, trad. J. Pérez Arroyo, Madrid,


Alfaguara, 1982, pp 3-143.
8. Originalmente junzi significa "filho de um nobre" e, portanto, a tradução
de A.H. Suárez como "gentleman". No entanto, nos Analectos, o significado
original é claramente transformado em alguém que é digno de liderar os
OUtrOS.

9. A. H. Suarez, em Confúcio, Lunyu, p. 21. Para uma apresentação


completa sobre Confúcio e suas idéias, ver A. Cheng, Historia del
pensamiento chino, Barcelona, Bellaterra de 2002, especialmente p. 55-82.
10. Embora óbvio, é importante assinalar que o conceito de "humanidade", o
ideograma ren, sofreu mudanças significativas no conteúdo ao longo dos
séculos, e foi profundamente modificado pelas correntes neo-confucionistas
da Dinastia Song (960-1279). Sobre a origem e evolução do conceito de
"humanidade", W. T. Chan, “The Evolution of the Confucian Concept of
Jen”, Philosophy East and West, vol. 4, nº 4, (Jan, 1955), pp. 295-319; sobre
sua interpretação nos Analectos, vid. W.M. Du, “Jen as a Living Metaphorin
the Confucian Analects”, Philosophy East and West, vol.31, nº 1, (Jan, 1981),
pp.45-54; e sobre suas implicações filosóficas em um contexto comparativo,
também é interessante artigo de H. Y. Jung, “Jen: An Existential and
Phenomenological Problem of Intersubjectivity”, Philosophy East and West,
vol. 16, nº 3/4, (Jul-Oct, 1966), pp. 169-188.
11. Sobre a relação entre a "humanidade" e "ritual", vid. M. Roberts, “Li, Yi,
and Jen in the Lun Yü: Three Philosophical Definitions”, Journal of the
American Oriental Society, vol. 88, nº 4 (Oct-Dec. 1968), pp. 765-771; W.M.
Du, “The Creative Tension between Jen and Li”, Philosophy East and West,
vol 18, nº 1/2 (Jan-Apr, 1968), pp. 29-39; y K.L. Shun, “Jen and Li in the
39
“Analects”, Philosophy East and West, vol 43, nº 3 (Jul, 1993), pp. 457-479.
12. S. Van Zoeren resume a formação dos Analectos em quatro momentos Antigas
Leituras

diferentes. O Livro 10 pertenceria ao penúltimo período, ou seja, quando o VISOES DA


CHINA
conceito de "ritual" (li) já tinha estendido o seu significado para todas as ANTIGA

atitudes ali descritas. Vid. S. Van Zoeren, Poetry and Personality.


Reading, Exegesis, and Hermeneutics in Traditional China, Stanford, Stanford
University Press, 1991, p. 26.
13. W.M. Du, “Creative tension...”, pp. 34, 36 y 36, respectivamente.
14. M. Merleau-Ponty, Éloge de la philosophie, Paris, Gallimard, 1989, pp.
375-376.

15. É significativo que o ideograma que designa a idéia de "aprender",


"estudar" (Xue) - elaborado a partir da imagem de uma criança com a
fontanela ainda aberta e sobre a qual se exerce influência — significa,
também, “imitar”.

16. Esta seção é baseada, em parte, no capítulo “La gran tarea del Estado. La
literatura en China” publicado em J. Beltrán Antolín ed., Perspectivas chinas,
Barcelona, Bellaterra, 2006, pp. 43-61.
17. Pequenas e grandes odes (Xiaoya e Daya, respectivamente) são duas das
quatro seções em que os 305 poemas são divididos, sendo as outras O Vento
dos reinos (Guofeng) e os hinos (músicas).
18. Embora esteja além do escopo deste artigo, é interessante notar que o
que está subjacente na expulsão dos poetas da República de Platão são dois
conflitos que também surgem na China pré-Imperial: em primeiro lugar, a
oposição entre poetas e filósofos em seu papel de educadores; em segundo
lugar, a capacidade de linguagem (a escrita) para "representar" corretamente
o mundo das idéias e das realidades e, como pano de fundo em ambos os
casos, a interpretação alegórica dos textos.
19. Wang Ching-Hsien destaca a importância das fórmulas na composição
dos poemas de Shijing, fornecendo perspectivas interessantes sobre a sua
estrutura e possível autoria. Vid. Wang C.H. The Bell and the Drum: Shih
Ching as Formulaic Poetry in an Oral Tradition, Berkeley, University of
California Press, 1974.

20. Dois exemplos notáveis de análise antropológica e cultural dos poemas


do Clássico da poesia são M. Granet, Fêtes et chansons anciennes de la Chine,
París, Albin Michel, 1982; e A. Waley, The Book of Songs, Nueva York,
40 Grove, 1978.

21. O versículo a que se refere o "tablete de jade branco" aparece no poema


Antigas
Leituras
VISOES DA
256 do Shijing. A interpretação tradicional explica o poema como uma
CHINA
crítica de Wen Wang para o último imperador da dinastia Shang. O
ANTIGA
versículo em questão diz: "Uma mancha em um tablete de jade branco, pode
ser polido; uma mancha em suas palavras, não se pode voltar atrás."
22. Os dois primeiros versos aparecem no poema 57, este último não aparece
em toda a antologia.
23. Zuozhuan, duque Wen, ano 13. Vid Yang Bojun, Chunqiu Zuozhuan
zhu, Pekín, Zhonghua, 1983, pp. 598-599.
O CULTO DA MULHER NO

NEOLÍTICO CHINÊS
Ana Maria Amaro

“O neandethaliano não era o único tipo de homem a


existir durante a última glaciação. Com efeito, o
Oriente já tinha, no Würm I, homens mais evoluídos
do que ele na Sibéria (Afontova) e na China
(Tseyang, Chilinshan, Liukiang).”
Ferreira, O. da Veiga & Leitão, Manuel, Portugal Pré
histórico. 2ed. Lisboa, Europa-América, s/d.

O letrado Yuan Tang (século I d. C.) considera quatro estádios


históricos na civilização chinesa: o primeiro caracterizado pela utilização de 41
armas de pedra, o segundo pela utilização do jade (polido), o terceiro pela Antigas
Leituras
utilização do cobre (bronze) e finalmente o quarto pela utilização do ferro. VISOES DA
CHINA
Esta ideia precedeu, em muitos séculos, a de C. J. Thomsen (1836) que
ANTIGA
considerava a pré-história humana dividida em três idades: pedra lascada,
pedra polida e idade dos metais. Quando Yuan Tang diferenciou a pedra
(shi) do jade (yu), incluía na segunda categoria as pedras polidas em geral,
de entre as quais sobressaía o jade como material de eleição. Segundo este
mesmo autor chinês, foi durante o lendário reinado de Huang Di — o
Imperador Amarelo, que apareceram as primeiras armas de jade na China.
O Imperador Amarelo (c. 3000 a. C.), cuja existência histórica se
perde no domínio da lenda, é o terceiro dos três Augustos ou imperadores
lendários, duma remota dinastia Xia da qual, até aos anos 70-80 do século
XX, não se tinham encontrado quaisquer vestígios históricos. Admite-se que
esta dinastia corresponderia a uma fase avançada do Neolítico chinês, uma
vez que foram recentemente exumados no Norte da China, em Liaunim,
vestígios arqueológicos duma antiga cidade com culto organizado e classes
sociais bem demarcadas. O Neolítico chinês é, porém, um período ainda
mal conhecido, por mal estudado, em resultado da escassez de dados
arqueológicos até hoje exumados em tão vasto território. Estabelecendo
comparações, no tempo, entre a pré-história ocidental e a do Oriente,
verifica-se que o período pós-glaciário de Würm, na Europa, é equivalente,
na China, ao período em que, ali, viveu o Homem de Dali, Homo Sapiens
arcaico chinês (c. 50000 aproximadamente).
Atualmente, por carência de estudos aprofundados de geologia, de
paleoclimatologia e de pólens fósseis, é muito difícil imaginar qual o
ambiente natural das áreas ocupadas pelos homens que viveram no
Pleistoceno Médio em tão vasto território como é o da China. Por essa altura

sabe-se que ventos do interior do continente asiático, carreando materiais


detríticos, deram origem aos atuais planaltos loéssicos e a vastas extensões
secas, que mudanças climáticas e a ação antrópica foram, a pouco e pouco,
tomando hostis à fixação do homem. Não é de estranhar, pois, que certas
áreas onde, hoje, a caça e a coleta nos parecem impossíveis para
sobrevivência humana, tivessem sido ocupadas, outrora, por bandos de
homens capazes de se fixarem e desenvolverem uma cultura neolítica cujos
vestígios são ainda muito mal conhecidos. Aliás, foi nos contrafortes dos
42 montes Qinling, em Banpo (Shaanxi), que foram exumados os mais antigos
restos de Hominóides e onde foi exumado, também, entre 1953 e 1957, o
Antigas
Leituras
VISOES DA
mais vasto conjunto neolítico hoje conhecido na China. Esses vestígios
CHINA
arqueológicos, datados de 5000-3000 a.C., oferecem-nos uma imagem viva
ANTIGA
da primeira das grandes sociedades agrárias que floresceram na China. A
povoação era constituída por abrigos semi-subterrâneos com coberturas
feitas de vegetais. Eram construções, circulares ou quadrangulares, com
cerca de 5 metros de diâmetro ou de lado. Admite-se que a vida comunitária
dessa aldeia se desenvolvia já nas chamadas "casas dos homens", construções
retangulares, maiores do que as demais habitações, com cerca de 14 X 21
metros cujos vestígios foram ali exumados. Esta aldeia era protegida por um
fosso de cerca de 100 x 200 metros, com uma profundidade de 5 a 6 metros,
fosso onde corria água e que, para além da função de defesa, tinha a
vantagem de irrigar os campos vizinhos. Para além deste fosso,
encontraram-se túmulos retangulares, repartidos por ditas zonas distintas,
uma destinada a mulheres e outra a homens, o que parece apontar para a
existência de algumas regras funerárias, a mais aparente das quais era a
separação dos sexos. As crianças, por seu turno, eram enterradas em vasilhas
de barro, no chão das próprias residências ou nas suas imediações.
Anteriormente a este período hoje bem conhecido registrou-se, na China,
um hiato de cerca de 100000 anos, o que leva a muitas interrogações sobre o
que se teria passado nos finais do Paleolítico, naquele tão vasto território até
ao aparecimento das primeiras populações neolíticas. Desde o Paleolítico
Inferior que as primeiras manifestações humanas apareceram extremamente
diversificadas na China. Contudo, as descobertas atuais atestam a existência

duma antiga rede humana, muito mais densa naquele território do que a
escassez de vestígios fazia até hoje supor. Desde o final do Pleistoceno Médio
e durante todo o Paleolítico Inferior (c. 500000 a 200000 anos
aproximadamente), o Homo Erectus Pekinensis habitou nos arredores da
atual capital da China, na bacia do Rio Amarelo. A sua utensilagem era
semelhante à acheulense sendo as suas armas simples, mas aperfeiçoadas ou
endurecidas pelo fogo. Considerado único na China durante muito tempo,
este grupo de Hominídeos, cujos primeiros restos fósseis foram exumados
nas grutas de Zougoudian nos anos 20, está hoje longe de ser assim
43
considerado, pois foram já exploradas numerosas outras jazidas, quer no
Norte, nomeadamente em Shaanxi, quer no Sul da China. Os achados Antigas
Leituras

multiplicaram-se a partir dos anos 60 e, atualmente, conhecem-se já vários VISOES DA


CHINA
testemunhos fósseis de antepassados do Homo Erectus Pekinensis. Segundo ANTIGA

alguns antropólogos, a humanidade paleochinesa instalada na bacia (senso


latum) do Rio Amarelo evoluiu lentamente do Paleolítico para o Neolítico,
sob influência de povoações situadas na China do Sul, região que se tornara
então quente e luminosa, e propícia à vida sob todas as formas, e muito em
especial à prática da agricultura dita "espontânea". Terá sido ali que o cito
"grupo mongolóide" terá adquirido as suas características específicas que
hoje lhe conhecemos. Para outros, a neolitização da China ter-se-ia
verificado no Norte, em Gehe-Dingun, derivada da cultura Emaokon dos
finais do Paleolítico Superior."
A verdade é que o Homo Sapiens do Paleolítico Superior chinês era
já conhecido desde os anos 20 deste século, tendo sido os seus restos
encontrados na Gruta Superior de Zougoudian. Mas posteriormente, nos
anos 50, foram encontrados vestígios duma distribuição desta espécie por
várias províncias chinesas. Estes homens, que parece terem evoluído mais ou
menos linearmente no território chinês, desapareceram sem se ter ainda
chegado a conclusões definitivas ao que teria sucedido até reaparecem sob a
forma de homens modernos, com características regionais mongólicas e, já
com uma cultura neolítica avançada, cerca de 3000-1000 a. C., deixando
atrás de si um grande hiato arqueológico. Não é possível, ainda, seguir-se na
China a lenta evolução de uma economia de caça e coleta para uma
economia de produção.
As aldeias neolíticas do Rio Amarelo e do vale do rio Wei surgiram
como que de repente, deixando um hiato de alguns milênios entre estes
grupos e os seus predecessores que usavam a pedra lascada. O centro de
dispersão do Neolítico chinês, segundo a Escola de Pequim, deve ter-se
situado numa grande planície da China do Norte, comparável às terras
férteis da Mesopotâmia e do Egito antigos.
No entanto, para além dos conhecimentos que a Ciência nos legou, e
que se mostram insuficientes para explicar a evolução biológica e cultural do
homem chinês da pedra lascada para a pedra polida, perdurou na tradição
chinesa a história lendária das suas primeiras Cidades-Estados bem como o
próprio mito da criação do mundo e da humanidade. Nos tempos da China
44 arcaica, alguns milhares de anos antes da nossa Era, foi o culto da mãe-terra
e da fecundidade que deram estabilidade à relação mãe/filhos, relação que
Antigas
Leituras
VISOES DA
assegurava a continuidade ao grupo, em detrimento das relações entre os
CHINA parceiros, e também da relação pai/filhos, tão cara à futura ética
ANTIGA
confucionista. A mulher era a mãe. O pai era incerto, e desconhecido foi
durante muito tempo o seu papel na criação. Daí, a mulher não receber,
naqueles antigos tempos, o nome da sua própria família. A Senhora Chang e
a Senhora Deng eram, por exemplo, as duas esposas do Senhor Liu que
viveu antes do século VI a.C. Nesses remotos tempos surgiram, na China,
numerosos contos nos quais a heroína é uma mulher. De fato era ela a mãe,
o símbolo da fertilidade e da continuidade da família, aquela que
representava o mais importante papel nas correntes espirituais da China
arcaica.

Tão forte parece ter sido o papel da mulher na antiga China, se China
se pode chamar aos antigos Estados dispersos pelo vasto território
posteriormente unificado, estados que, então, se digladiavam pela posse de
bens e de terras que, mesmo depois de se ter transformado a sociedade
chinesa numa sociedade de estrutura patriarcal por influência de Confúcio
(século VI a.C.), no século VII d.C. foi ainda celebrada e ficou na história
uma imperatriz" que dirigiu sabiamente um mundo de homens. Surgiram,
ainda nessa altura, numerosos poemas de poetas célebres, como Li Bai, que
exaltavam a mulher, ao tempo relegada a uma condição social de pura
inferioridade.

A crescente influência do confucionismo acabou, porém, por vencer


e colocar a mulher definitivamente na sombra e num lugar de absoluta
subserviência aonde se manteve teoricamente até a implantação da
República (1911), mas realmente até a bem poucas décadas. Desvalorizadas,
as raparigas passaram a não ser desejadas pelos pais. O infanticídio feminino
passou a ser corrente e sendo os casamentos contratados pelas famílias, a
mulher como objeto procriador passou a pertencer à família do marido sem
grandes benefícios para a sua família de geração. Todas as normas das
relações familiares faziam, na China, parte da ordem social sendo, por isso,
rigidamente estruturadas. De divindade, a mulher passou, em alguns
séculos, à condição de verdadeira escrava. Para além dos achados
45
arqueológicos que fizeram perdurar essa apagada imagem da mulher na
China arcaica, o mito legou-nos, também, a ideia do seu importante papel, Antigas
Leituras

como "mãe-criadora", razão, talvez, da preponderância feminina na VISOES DA


CHINA
sociedade de então. É de notar, porém, que pelo fato de ser bastante ANTIGA

moderna na China a noção de mito (conhecida por "descrição sobre os


espíritos" na literatura local), a Mitologia chinesa não pode ser estudada com
a mesma facilidade daquela que Gregos e Romanos nos legaram, pelo que
todas as interpretações têm de ser feitas com a maior prudência. A razão da
grande dificuldade que hoje os próprios Chineses têm em tirar conclusões
dos seus antigos mitos é principalmente o marcado desdém que os letrados
de formação essencialmente confucionista manifestaram, sempre, pelas
"descrições fantásticas", fazendo, por isso, com que essas histórias em que os
homens se confundiam com deuses, opostas aos valores ortodoxos
tradicionais, acabassem por chegar aos nossos dias desprovidas de um
conteúdo coerente e, por vezes, mesmo contraditório.
É certo que os contos da dinastia Tang (618-906), o teatro dos Yuan
(1280-1368) e os romances dos Ming (1368-1644) contêm elementos
lendários interessantes. Nesta altura, porém, já bastante tardia, as descrições
tinham perdido já a frescura dos primeiros tempos, e os empolamentos
literários terão, apenas, uma longínqua relação com as crenças antigas.
Como diz a sabedoria chinesa: "A cor, a força e o aspecto de um rio não são
os mesmos na sua nascente e na sua foz”.

Recentemente, vários autores têm feito tentativas para agrupar os


mitos chineses em ciclos, a fim de estudar a sua estrutura e, assim, procurar
tirar deles alguns dados sobre a mentalidade e a organização social da China
arcaica. Esta é, contudo, uma tarefa difícil e arriscada porquanto no decurso
de vários milênios muitas teriam sido as influências recebidas do exterior,

perdendo o pensamento antigo grande parte da sua originalidade. Dos


velhos mitos chineses que chegaram até nós, parece-nos, porém,
particularmente interessante o de Nu Wa, jovem divindade que, depois de
burilado o Mundo pelo transcendente Pan Gu, se divertiu a "criar à sua
semelhança" pequenas figurinhas de barro, que deram origem à
humanidade. Para os autores chineses contemporâneos, Nu Wa era uma
deusa. Para alguns deles, irmã do próprio Pan Gu, criador do Universo." E
contam: Era indescritível o regojizo que sentia Nu Wa pela beleza da criação;
46 do Céu maravilhoso onde brilhavam o Sol, a Lua e numerosas estrelas e da

Terra com as suas montanhas, rios, flores e árvores pujantes, onde pássaros e
Antigas
Leituras
VISOES DA
outros animais se multiplicavam. No entanto, parecia-lhe que havia algo que
CHINA faltava nesta obra monumental. Havia necessidade de um novo ser à
ANTIGA
semelhança dos deuses, mais inteligente do que os outros animais, e capaz de
se autobastar e governar "todas as criaturas que se encontravam debaixo do
Céu"."

"A não ser assim — pensava Nu Wa — o Mundo acabaria sendo


como antes, deserto e solitário, não obstante as paisagens pudessem tornar
se mais pitorescas e aumentasse o número de seres vivos". Depois de pensar
no assunto, Nu Wa apanhou do chão um punhado de argila e modelou-a à
sua imagem e semelhança, criando pequenas figuras que podiam manter-se
de pé, caminhar e falar. Entusiasmada, Nu Wa criava numerosos homens e
mulheres que "saltavam e gritavam em seu redor". A deusa batizou estas
novas criaturas com o nome de "gente", palavra que se representa por um
ideograma que reproduz a posição ereta e os "dois pés bem assentes no chão"
(/\).
Embora tivesse criado numerosos indivíduos, Nu Wa verificou que
estes não chegavam para povoar toda a Terra e, para apressar a sua criação,
pegou num pedaço de liana, atou as suas extremidades a uma grande pedra,
amontoou argila sobre aquela e começou a agitá-la sem cessar. A argila que
saltava convertia-se, como que por magia, em pequenas figuras que "gemiam
ao nascer". Assim se criaram "pessoas diferentes" e numerosas. Para que se
propagassem, Nu Wa "ensinou-lhes a contrair matrimônio" e a
"organizarem-se em famílias". Nu Wa tornou-se, assim, na criadora e mãe
bondosa dos seres humanos, e foi ela quem interveio, mais tarde, quando o
Deus do Fogo e o Deus da Água lutaram, desavindos, e uma das quatro
colunas que serviam de suporte ao Céu foi derrubada. Com o "impacto", a
Terra sofreu um grande abalo e as águas brotaram do seu centro, "invadindo
os campos e as florestas" que, entretanto, se incendiavam com as chispas
resultantes do atrito entre as pedras que rolavam.
O espetáculo era aterrador. Nu Wa, que vivia no interior da Terra,
comovida com tamanho cataclismo, restaurou então o Céu com pedras de
cinco cores, criando, assim, o arco-íris e devolvendo aos homens a paz que
47
haviam perdido. Em conseqüência do desequilíbrio sofrido pela Terra e pelo
Céu, o eixo sobre o qual girava o Universo inclinou-se e surgiram as Antigas
Leituras

diferentes estações do ano, tornando-se os campos mais prósperos e VISOES DA


CHINA
pitorescos. Por isso, as gerações seguintes dos seres humanos sobreviventes ANTIGA

do pavoroso Dilúvio manifestaram a sua gratidão à sua bondosa Mãe e


prestaram-lhe culto."
Em torno de Nu Wa as opiniões divergem. Em certas descrições
chinesas antigas, é confundida com Fu Xi, um dos três primeiros
imperadores lendários — os três Augustos —, muito embora se lhe atribua,
sempre, o sexo feminino. Para outros autores, esta personagem é
considerada irmã ou esposa deste lendário Rei. Durante os Han (séculos III
AEC- III EC Nu Wa foi representada com corpo de serpente e cabeça
humana, enrolada no corpo de Fu Xi, a quem os Chineses atribuem a
criação do primeiro Estado incipiente — que iniciou a dinastia Xia.
Os predicados da Deusa-Mãe são, porém, mais vastos: atribui-se-lhe,
igualmente, a invenção da flauta e a criação da água corrente dos rios." De
acordo com a tradição chinesa, apoiada em descrições antigas destes mitos,
teria sido com Fu Xi, cerca de 9000-6000 aproximadamente, que o Neolítico
começou na China. Mas... onde?
Conta, mais a lenda do que a História chinesa, que tendo o Neolítico
começado, na China, com o imperador Fu Xi, prosseguiu com o célebre
Shen Nong, que ensinou aos homens a cultivar a terra, e findou com Huang
Di, o Imperador Amarelo, altura em que teria aparecido a primeira Cidade
Estado organizada, aliás, aquilo a que os Chineses chamam a "sua
civilização", uma das "quatro grandes civilizações antigas", a par das da
Suméria, Egito e Vale do Indo. O Imperador Amarelo terá vivido há cerca de
5000 anos. Contudo, não havia, até há pouco tempo, dados arqueológicos
que provassem a existência, em território chinês, de urna tal cultura
contemporânea das que foram estudadas noutras grandes áreas da Terra. Os
dados mais antigos, testemunhos da existência de cidades organizadas com a
sua vida política, artística e religiosa, datavam, na China, apenas, do século
XII a.C., o que corresponde a uma época bastante tardia.
No início dos anos 80, foram descobertos, a ocidente de Liaunim,

próximo de Chifeng, na Mongólia Interior, vestígios de uma antiga cultura,


que ficou conhecida por Cultura de Hongshan (Montanha Vermelha), nome
da cordilheira onde foram exumados os primeiros testemunhos da mais
48 recuada comunidade chinesa organizada em Estado até hoje conhecida. A
datação pelo Carbono 14 atribuiu-lhes 5000-4500 anos. Ao que parece, pois,
Antigas
Leituras
VISOES DA
o lendário Imperador Amarelo e a dinastia Xia, de que apenas a tradição
CHINA conservou a memória, não são, apenas, um mito, pois a Montanha
ANTIGA
Vermelha em Liaunim é extremamente rica em vestígios do que teria sido
essa opulenta cultura. Encontraram-se ali, a par de objetos de cerâmica
vermelha, com decoração a negro, numerosos instrumentos agrícolas em
pedra lascada e polida, de grandes dimensões, e ainda ornamentos, também
polidos, em pedras semipreciosas, possivelmente usados pela classe
dirigente. Das peças recolhidas, são particularmente interessantes um arado
e uma enxada de pedra, de enormes dimensões, o que parece apontar para a
importância e para o elevado nível que havia atingido, já, a agricultura
naquela região.
Recentemente, foram descobertos no mesmo local cemitérios e

ruínas de um templo erigido em honra de uma deusa, que se admite estar


relacionada com o culto da fertilidade, além de um dragão em jade polido,
verde-negro, de cerca de 26 cm, de linhas extremamente harmoniosas. Esta
representação do dragão, exumado na aldeia de Sanxingatala, na Mongólia
Interior, é a mais antiga que se conhece na China, o que faz recuar a sua
origem emblemática cerca de 2 milênios em relação ao que, antes, se
admitia.

De todos os achados, porém, os mais interessantes consistem em


figurinhas de barro cozido, com dimensões compreendidas entre os 5 e os 8
cm, representando mulheres despidas, em estado adiantado de gravidez. É
flagrante o paralelismo entre estas figuras e as Vênus aurignacenses, tanto
européias como do Próximo Oriente, até hoje conhecidas. Simplesmente, as
únicas figuras deste tipo encontradas na China, datam de há 5000 anos, ao
passo que a mais antiga figura européia similar, talhada em Xisto esverdeado,
data de cerca de 37-29 mil anos. Para alguns autores, as Vênus européias
eram usadas como pendentes, desempenhando o papel de fetiches ou
talismãs, em virtude do poder de exorcismo e de proteção que, ao sexo
feminino, é atribuído por vários grupos do Mundo Mediterrânico e Africano
atuais. Alguns autores relacionam estas Vênus européias com uma prática de
49
magia protetora, embora a sua relação com o culto da fecundidade seja
atualmente a opinião bastante mais vulgarmente aceite. É natural que, na Antigas
Leituras
China, as estatuetas semelhantes às das Vênus do Ocidente se destinassem ao VISOES DA
CHINA
culto da fecundidade, mas também pode acontecer que a sua função se ANTIGA

relacionasse com práticas de magia protetora, com vista minorar os


acidentes de parto ou, eventualmente, contra a esterilidade, à semelhança do
que ainda hoje se verifica, por exemplo, entre os chineses conservadores de
Macau.

A apoiar esta hipótese, apareceu, no recinto do Santuário de


Hongshan, recentemente posto a descoberto em Liaunim, a figura de uma
deusa de grandes dimensões, também em barro cozido, bastante
fragmentada, da qual a cabeça é a pega que se conservou em melhor estado.
Apresenta olhos esféricos de jade polido e uma fisionomia que a aparenta
com as conhecidas figuras de divindades das velhas civilizações ameríndias.
Esta deusa, cuja cabeça mede 22,5 cm de altura, é a peça mais antiga, deste
tipo, descoberta na China, pois atribuem-se-lhe, aproximadamente, 5500
anos. O grande altar do templo que lhe era dedicado, voltado para sul, era
circular, com 2,5 m de diâmetro, rodeado por lages de pedra muito finas,
sendo a sua superfície revestida por uma camada de pequenos seixos. Em
redor do altar, descobriram-se mais de vinte fragmentos de corpos de
diferentes figuras humanas de barro, dos quais existem dois relativamente
completos, que são seguramente de mulheres — as ditas "Vênus chinesas" a
que, atrás, nos referimos. É de notar que as dimensões destas pequenas
figuras oscilam entre 6,8 cm e 5 cm (dimensões semelhantes à da maioria
das suas congêneres européias). Ambas estão desnudadas e encontram-se em
posição semierguida, com as pernas levemente fletidas, o abdômen saliente
em estado adiantado de gravidez, as nádegas evidentes mas não exageradas, e
O braço esquerdo curvado, com a mão apoiada sobre o ventre, em aparente
trabalho de parto. É pena que não se tenham encontrado as cabeças.
Contudo, são de notar particularidades somáticas, que ainda hoje são
características das mulheres orientais: esbelteza, ancas e nádegas pouco
volumosas e seios pequenos e cônicos.
Distinguem-se, do conjunto destas pequenas estatuetas, duas figuras
de mulheres sentadas, que, segundo se deduz da altura de uma peça
restaurada, teriam cerca de meio metro. Também de corpo nu, com as duas
mãos cruzadas sobre o ventre, apresentam as pernas cruzadas e os pés
50 apoiados nos joelhos. A cintura de uma delas está adornada com uma faixa.
Estas peças são muito preciosas, pois o seu estudo será um valioso
Antigas
Leituras
VISOES DA
contributo para o conhecimento da antiga cultura da "Montanha Vermelha",
CHINA relativamente afastada da bacia do Rio Amarelo, tradicionalmente
ANTIGA
considerada o berço da civilização chinesa. Por não se terem achado
artefatos metálicos em Liaunim, alguns autores chineses admitiram que esta
cultura se encontrava, ainda, numa fase neolítica tardia. No entanto, se esta

cultura detinha já o dragão como símbolo, e possuía um culto organizado,


deveria ter, já, uma estrutura social bastante desenvolvida. Reforçam esta
hipótese os estudos feitos nos cemitérios de pedras empilhadas, da mesma
data, situados próximo deste templo, em pontos elevados, dispersos pelas
cotas altas da "Montanha Vermelha" e dos seus contrafortes. Observando as

ruínas no seu conjunto, verifica-se que o templo da deusa fica no centro,


estando os cemitérios distribuídos por mais de vinte elevações dos arredores.
O templo e os cemitérios apresentam, aliás, uma visível correlação, sendo a
sua distribuição relativamente complexa, o que parece refletir a consciência
social e religiosa dos então habitantes da área.
O templo da deusa da "Montanha Vermelha" foi, ao que se crê,
construído em madeira e palha, sobre a qual se aplicou barro, apresentando
ainda vestígios de decorações murais com motivos geométricos muito belos,
pintados a vermelho e branco. O principal compartimento era uma sala
central, distribuindo-se em redor dela várias salas laterais, com construções
diversificadas e complexas. Não é difícil imaginar-se que se tratava de um
local de culto, um palácio alto e esplendoroso, onde se alinhavam estátuas de
divindades de várias dimensões.

Segundo fontes chinesas, os homens da "Cultura de Hongshan"


moldaram estátuas de deuses, para consubstanciarem neles os seus desejos
de boas colheitas e de fertilidade, pedindo, assim, por homeopatia, à Deusa
Mãe, à mãe-terra, a felicidade pela abundância. Acreditavam num grupo de
divindades, das quais existia uma principal uma deusa — que dirigia os
restantes à semelhança do que sucedia entre os homens. Daí, podermos ver
que o conceito religioso dos habitantes de Hongshan já ultrapassara o
estádio do culto da Natureza e do totem clássico, encontrando-se, talvez,

numa fase relativamente avançada do Culto dos Antepassados, característico


51
dos teísmos agrários. Quem seria esta Deusa-Mãe? Nu Wa? A título de
remate, ocorre perguntar: Que relação poderia haver entre as Vênus Antigas
Leituras

ocidentais e estas Vênus chinesas, já utilizadas, ao que parece, por uma VISOES DA
CHINA
cultura organizada em Estado que venerava uma Deusa-Mãe, única cabeça ANTIGA

que se encontrou no altar do templo que se crê ter sido levantado em sua
honra? A sociedade chinesa seria, nesta altura, matriarcal e/ou matrilinear?

É de notar que a deusa-mãe neolítica encontra-se na Europa Central


por influência do Próximo Oriente, representada sob a forma de numerosas
estatuetas em terra cozida. Interessante é de notar, porém, a diferença entre
as silhuetas das Vênus chinesas e as do Ocidente. No Ocidente, a ausência de

cabeça bem definida, ao que parece intencional, as ancas largas e os seios


volumosos contrapõem-se à esbelteza das Vênus da China, que lembram
mais a de Galgenberg e a de Sireuil, consideradas, aliás, figuras de
adolescente. Se as ancas, a esteatopigia e o volume dos seios eram realçados
no Ocidente, na China é dado, apenas, particular relevo ao ventre. Assim, a
inscrição no losango das figuras de Vênus ocidentais num dos modelos, que
Leroi-Gourhan propôs, parece não ser aplicável às Vênus chinesas, afastando
toda a relação simbólica desta forma geométrica, com a mulher, no Oriente.
A ausência dos pés das Vênus em pedra no Ocidente também se verifica nas
Vênus da "Montanha Vermelha", mas talvez devido a fratura, uma vez que
foram achados fragmentos isolados de pés pertencentes às figuras de maiores
dimensões.

Citando o exemplo da Vênus de Brassenpony, diferente das outras


Vênus européias porque foi a face que o seu autor esculpiu e não o corpo
que lhe falta, e comparando-a com a cabeça da deusa de olhos de jade de
Hongshan, podemos constatar que a boca daquela não está bem traçada; não
tem olhos e as orelhas estão escondidas por uma espécie de véu... É uma
mulher-mistério — "não pode ver, não pode falar, nem ouvir". Em
contraste, nota-se na Vênus-divindade chinesa uma boca grande, bem
desenhada, olhos esféricos de jade polido, pedra considerada incorruptível e
característica do Neolítico chinês, bem como orelhas e nariz bem evidentes.

É uma divindade que vê e está atenta.


Não se encontrou ainda o resto do corpo desta Vênus da China, nem
as cabeças das pequenas estátuas disseminadas em redor do seu altar.
Surpreende, aliás, que todas as pequenas figuras exumadas se apresentem
52 sem cabeça e sem membros completos. Resultado de algum antigo ritual?
Simples acaso?
Antigas
Leituras
VISOES DA
A posição das Vênus chinesas é também de assinalar. Posição de
CHINA parto? As pernas fletidas conferem-lhe o movimento que falta à maioria das
ANTIGA
Vênus ocidentais. Estas são, de fato, figuras imóveis, com a exceção da
Vênus “dançarina” de Galgenberg e da Vênus de Algarim.
Observando-se as figuras de barro de Hongshan, em Liaunim -
mulheres grávidas em posição de parto ao que supomos -, poderemos
aparentá-las, talvez, quanto à sua função, aos amuletos egípcios protetores
do nascimento e do recém-nascido, descritos por Jeanne Bulté em 1991,
principalmente com um que hoje se pode ver no Museu Real da Escócia."
Moldados em faiança egípcia, estes talismãs apresentam várias
formas, mas entre eles são muito freqüentes representações do Deus Bé,
relacionado com a maternidade, e também representações de mulheres nuas
e grávidas. Apareceram, ainda, no Egito, muitas cabeças femininas
decapitadas. Decapitadas apareceram também as pequenas Vênus da
Montanha Vermelha mas... O que se encontrou foram os corpos ao
contrário do que sucedeu no Egito.
Rituais semelhantes? A cabeça da divindade de olhos de jade
corresponderá à do Deus Bé dos egípcios," cujas formas esculpidas parece
datarem dos séculos IX-VIII a.C.? Ou será a estátua da Deusa-Mãe Nu Wa?

Aguardemos a descoberta de mais vestígios arqueológicos em


Liaunim e o estudo em curso dos que já foram exumados, para que seja
possível tirar conclusões mais consistentes.
Se considerarmos que o Templo do Céu, o Templo dos
Antepassados, e as Treze Tumbas dos Ming, de Pequim, são obras-primas da
nação chinesa, o altar, o templo da “Deusa de olhos de jade” e o conjunto de
cemitérios de pedras acumuladas de Hongshan poderão acrescentar-se-lhes
em importância, na medida em que constituem o mais belo vestígio da
madrugada da sua Civilização. E mais ainda: porque essa madrugada é uma
exaltação à Mulher, à criadora de todos os homens, à Mãe-terra fecunda e
boa, que todos alimenta e finalmente recolhe no seu seio, renovando, em
53
cada Primavera, o ciclo da vida, da vida que Pan Gu criou a partir do caos
quando, para todos os seres, fez, pela primeira vez, brilhar o Sol. Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
Notas ANTIGA

1. A escultura do jade é, sem dúvida, o traço mais marcante do Neolítico


chinês que, aliás, o ultrapassou, vencendo os milênios seguintes e merecendo
as atenções dos artistas das várias dinastias históricas do Grande Império do
Meio.

2. Em Liaunim foram, também, exumados restos fósseis de Homo Erectus

com cerca de 290000 anos, seguidos de grande hiato arqueológico.


3. ELISSEEFF, D. et V., La Civilization de la Chine Classique.
4. JIA Lianpo, Early Man in China.
5. Nos anos 80 foram encontrados, em Xinjiang, figuras humanas gravadas
numa elevada parede rochosa onde o ato sexual e os órgãos genitais
masculinos estão reproduzidos com grande destaque, o que parece apontar
para o valor que era já, então, dado ao papel do pai na geração dos filhos.
Admite-se que estas gravuras e as reproduções fálicas exumadas em terrenos
próximos datem de cerca de 1500 anos AEC WANG Binghua, Ritos da
Fertilidade.

6. WERSCHUUR-BASSE, Denyse, Paroles dês Femmes Chinoises.


7. Ainda até meados do século XX se registrou de forma significativa esta
prática na China.
8. MATHIEU, Remi, Anthologie des Mythes et Légendes de la Chine Ancienne.
9. CHU Binjie, Relatos Mitologicos de la Antigua China.
10. Nome antigo dado ao Imperador chinês.
11. CHU Binjie, op. cit.
12. MATHIEU, Remi, op. cit.
13. Por insuficiência de restos fósseis, não foi possível calcular, com relativo
rigor, a capacidade craniana do Homem de Dali.
14. BULTÉ, Jeanne, Talismans Egyptíens d'Heureuse Maternité.
* Imperatriz Wu Zetian [624 +705], da dinastia Tang

Bibliografia
Aux Origines d Homo Sapiens, direção de Jean-Jacques Hublin e Anne
Marie Tillier, Paris, PUF, 1991.
54 BULTÉ, Jeanne. Talismans Egyptiens d'Heureuse Maternité, Paris, C. N. R. S.,
1991.
Antigas
Leituras
VISOES DA
CASSIRER, Ernst, Antropologia Filosófica, São Paulo,Mestre Jou, 1972.
CHINA
CHEN, T., YUAN, S., GAO, S. Huy, “Uranium Series Dating of Fossil Bones
ANTIGA
from Hexian and Chaoxian Fossil Human”, in Acta Anthropological Sinica,
1987, vol. 6, pp. 249-54.
“China em Construção”, Pequim. (7) Dez. 1986. pp.3340.
CHU Binjie. Relatos Mitologicos de la Antigua China, 2° ed., Pequim, Fênix,
1989.

ELISSEEFF, D. et V., La Civilization de la Chine Classique, Paris, Arthaud,


1979 (Les Grands Civilizaitions).
FERREIRA. O. da Veiga, LEITÃO, Manuel, Portugal pré-histórico, 2° ed.,
Lisboa. Europa-América.
GOURAN, Lerhoi, Pré-histoire, Paris, PUF, 1981.

JIA Lianpo. Early man in China, 2a ed. Beijing, Foreign Languages Press,
1989.

LÉVI-STRAUSS. Claude, Anthropologie Structurale, Paris, Plon, 1974, 2 vols.


MATHIEU, Rémi, Anthologie des myhtes et legends de la China ancienne,
Paris, Gallimard, 1989.

PELLIOT, P., Jades Archaiques de la Collection C. T. Loo, Paris, 1921.


“Revista de Arqueologia Chinesa”, (8) 1981, pp. 25-30.
WANG Binghua, Ritos da Fertilidade: Imagens Gravadas sobre Rochas
Descobertas no Xinjiang, “China Hoje", Pequim, 12 (6) 1991.
WERSCHUURBASSE, Denyse, Paroles des Femmes Chinoises, Paris,
L'Harmathan, 1993.

WILLETS, William, L'Art de la Chine, Paris, La Bibliothèque des Arts, 1965.

55
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA
SINOLOGIA E CONFUCIONISMO:

A IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS


CONFUCIONISTAS PARA A COMPREENSÃO DA

CIVILIZAÇÃO CHINESA
André Bueno

Introdução

Em se tratando de China, nossos métodos e técnicas de pesquisa


precisam adaptar-se. A China é uma das poucas civilizações milenárias que
continuam a existir. Tal fenômeno é desconhecido no Ocidente, e mais

56 especificamente no Brasil: somos heranças dos gregos, romanos, índios,


portugueses e africanos, compartilhamos fragmentos de suas formas de
Antigas
Leituras pensar e agir, e nossa língua descende dessas matrizes. Contudo, há essa
VISOES DA
CHINA distância no tempo e no espaço que nos separa dos antigos. Não falamos
ANTIGA
latim, grego, tupi ou ioruba. Nosso português é bem diferente daquele que
veio com as caravelas. Conhecemos a filosofia, mas não praticamos o
platonismo. Mesmo no plano religioso, nos ressentimos da diferença entre
os antigos modelos e os desafios da vida moderna. Nossa cultura é “nova”,
por assim dizer.
Já a China continua a se desenvolver, sem interrupção, há mais de
cinco mil anos — isso se tomarmos como referência apenas os núcleos
urbanos e a primeira dinastia, Xia XI. Sua escrita é praticamente a mesma
desde o século -3, e o chinês há séculos é a língua mais falada do mundo. A
história da cultura chinesa é calcada num longo processo de assentamento,
cujas sucessivas camadas acumulam o passado e o re-significam perante o
contexto histórico. Um chinês de hoje acha plausível colocar em pé de
igualdade, numa discussão sobre política moderna, Confúcio e Maozedong
(Mao Tsé Tung ###R). A mente chinesa trafega num espaço em que
passado e presente se alternam, se tocam e se engendram mutuamente,
gerando indistinções difíceis de serem traduzidas para o pensamento
ocidental. Talvez não se trate, portanto, de tentar enquadrar a China em
nossas categorias epistemológicas; por outro lado, não podemos abandonar
nossos referenciais ao estudá-la, sem o que nos dissolvemos de maneira
acrítica nesse monumento cultural. A civilização chinesa merece um exame
pelo que ela é, e se torna necessário que estabeleçamos formas de
compreendê-la. Tais métodos devem escapar do fascínio esotérico ou do
preconceito acadêmico; devem deixar a China falar por si, exibindo as
fraturas de seu discurso — e os equívocos dos nossos próprios discursos — de
tal modo que possamos criticá-los, reformá-los e estabelecermos um
verdadeiro diálogo intercultural.
Para isso, pois, é preciso compreender a figura de Confúcio e do
Confucionismo para a sociedade chinesa. Veremos que o confucionismo
escapa de nossas classificações usuais, e nos apresenta a complexidade da
cultura chinesa. Por outro, o seu entendimento nos permite acessar as
57
nuances do pensamento chinês, de sua estrutura de vida, de seu modo de
olhar o mundo. O que pretendo nesse breve ensaio é deixar-lhes uma breve Antigas
Leituras

apresentação acerca da necessidade de entender Confúcio para compreender VISOES DA


CHINA
a China. Ambos são indissociáveis. É praticamente impossível apreender a ANTIGA

China de hoje sem investigar seu passado. É o que proporei aqui.

O Modelo do Sábio

O confucionismo é um movimento intelectual, e sua denominação


original é “Rujia fi#, que pode ser traduzido como “Escola Acadêmica',
dos “estudiosos ou dos “letrados”. Ela denota um grupo que se formou em
torno da figura de Confúcio (fLJëfº, -551 a -479), antigo professor da
China antiga cuja doutrina filosófica analisaremos aqui. Não há em chinês o
termo “confucionismo”, e essa é uma criação ocidental, feita pelos primeiros
missionários cristãos que foram para a China no século 16. Utilizaremos o
termo por conveniência: contudo, desde já somos obrigados a notar que não
houve entre os chineses essa associação particular entre o mestre fundador e
o nome de sua doutrina. Esse detalhe lingüístico é importante para
percebermos o primeiro problema que se interpõe quando estudamos a
história da China.
Possuímos basicamente dois modelos para investigar os grandes
nomes do passado: o dos filósofos e o dos sábios-religiosos. Os filósofos, tais
como Platão e Aristóteles, legaram um razoável material escrito,
organizaram os princípios de suas doutrinas e as transformaram em escolas.
Já os “sábios-religiosos”, como o filósofo Karl Jaspers [1951] propôs, são
figuras que não deixaram praticamente nada escrito, extrapolaram suas
fronteiras e ganharam uma dimensão religiosa. Suas doutrinas, porém,
sobreviveram ao longo dos séculos, transformando-se em movimentos de
forte cunho social. Nessa categoria, entre muitos outros, Jaspers incluía
Jeremias, Buda, alguns pensadores gregos e Confúcio.
Poderíamos, a partir dessa breve classificação, nos perguntar por qual
razão Jaspers transformou Confúcio numa figura religiosa se ele, na verdade,
estava muito mais próximo de um filósofo. Confúcio foi, provavelmente, o
primeiro editor de livros da civilização chinesa, reconstituindo um conjunto
de clássicos que seriam a base educacional de sua escola. Além disso, ele
58 próprio teria escrito um livro, o “Chunqiu #%, pelo qual esperava ser
Antigas conhecido. Os livros posteriores a Confúcio foram compilados por seus
Leituras
VISOES DA discípulos, e naturalmente somos atraídos pela idéia de que esse seria um
CHINA
ANTIGA
processo similar ao que a tradição cristã afirma sobre a escrita dos
evangelhos. No entanto, as obras de Aristóteles também foram editadas por
um de seus discípulos, Teofrasto, e essa prática não era incomum na época.
Confúcio, portanto, deixou muita coisa escrita. Do mesmo modo, ele nunca
fez qualquer milagre, nem mesmo operou eventos fantásticos. Na verdade,
ele é conhecido por alguns trechos absolutamente “não religiosos” (do nosso
ponto de vista), presente em suas Conversas (Lunyu, #):

Fanchi perguntou o que é sabedoria.


O Mestre disse: cuide do povo, respeite os deuses e
espíritos, mas sem se envolver com eles. Isso é
sabedoria.

[...]
Zilu perguntou: como se serve aos deuses e espíritos?
O Mestre disse: aprenda a servir às pessoas, depois
pense em servir aos deuses.
Zilu perguntou sobre a morte.
O Mestre disse: aprenda antes a viver, depois
aprenda sobre a morte.

Visto assim, Confúcio poderia ser perfeitamente enquadrado na


categoria dos filósofos. A questão, porém, é que Platão não conseguiu
convencer os Dionísos de Siracusa a transformarem-se em bons

governantes. Nenhum filósofo foi invocado como o modelador de uma


sociedade, embora alguns pretendessem sê-lo. As inspirações morais das
sociedades européias vinham de suas religiões. Com o advento do
cristianismo, isso ficou ainda mais evidente, e foi a religião que converteu os
filósofos à sua causa. Na China, porém, foi diferente. Confúcio foi o artífice
de uma profunda revolução ética na sociedade. Nos dias de hoje, em que o
comunismo não é mais capaz de convencer os chineses, estes afirmam sem
sombra de dúvida que Confúcio é o grande articulador de sua cultura. Daí,
59
podemos entender o ponto de vista de Jaspers: afinal, como Confúcio
conseguiu ser o modelo ético de sua sociedade sem apelar para o elemento Antigas
Leituras

religioso? Confúcio não invocou o poder dos deuses para fazer funcionar a VISOES DA
CHINA
sua doutrina. Na verdade, ele nada impôs: apenas informou que a ANTIGA

degeneração social criaria os seus próprios tormentos, num cálculo


absolutamente racional da questão.
A capacidade de rearticular a sociedade num novo sistema, sem
requisitar a interferência de potências celestiais ou infernais, distingue
Confúcio de todos os seus contemporâneos. No entanto, se ele conseguiu o
que nenhum filósofo grego ou romano alcançou, a amplitude e
profundidade de suas reformas só possuem equivalência, justamente, com
aquelas feitas pelos grandes sábios-religiosos. Como então definir Confúcio?
Um filósofo bem sucedido, ou um profeta sem religião?
Para os chineses, Confúcio representa a essência daquilo que eles
chamaram de “sábio (Shengren, *)\). O sábio chinês possui a sabedoria
devido a sua capacidade em enxergar para além das aparências, de conceber
O mundo em seu sistema, alcançando sua lógica de funcionamento. Sua
interferência, porém, não é metafísica: o sábio só é tido como sábio, na
verdade, por realizar coisas absolutamente factíveis e concretas, alterando a
conformação da sociedade. Nesse caso, pois, Confúcio foi sábio por legar
uma herança realizável; se fizesse milagres, seria um mero feiticeiro
(Fangshi, JJ E). Por essa razão, também, não existe uma doutrina dos
seguidores de Confúcio. O que existiu foi uma escola, que depois se
transformou num movimento intelectual de profundas implicações sociais.

Os Estudos Acadêmicos

Em linhas gerais, o que propunha Confúcio? Uma reforma social,


baseada na Educação (Jiao, #). A China de sua época passava por uma
terrível crise social. O império Zhou fil (-1027 a -220) encontrava-se
dividido em reinos que guerreavam incessantemente entre si. Um declínio
generalizado da moral estimulava a corrupção, a astúcia, a violência e a
desigualdade. Esse momento, conhecido na história chinesa como “Época
das Cem Escolas marcaria o surgimento de diversas doutrinas, cada uma
propondo um tipo diferente de solução para esses problemas. Cada uma
60 delas apresentava o seu próprio “Dao (ou Tao, jÉí), um caminho ou método
para recuperar a Harmonia (He, fil) do mundo. Confúcio entendia que as
Antigas
Leituras
VISOES DA causas da crise estavam num empobrecimento generalizado da cultura. Sem
CHINA
conhecer a moral, as pessoas não podiam ser corretas. Só se poderia
ANTIGA
conhecer a moral pela educação. Assim, pois, a solução para os problemas da
sociedade era criar um programa completo de educação, que resgatasse na
Natureza humana (Xin, "E) o verdadeiro humanismo, Ren f_, o desejo de
viver harmoniosamente em sociedade.

Visto assim, parece uma simplificação ou uma visão modernizada de


Confúcio, mas sua atualidade é chocante justamente por isso. Confúcio
propunha que os problemas sociais eram gerados pela ignorância. Não
haviam deuses envolvidos na questão: a degradação humana era causada
pela própria humanidade. Confúcio defendia que estávamos integrados num
sistema ecológico natural (que ele chamava de Céu, Tian X), em que as
agressões e desregramentos geravam os efeitos negativos que assolavam a
sociedade. O primeiro capítulo do livro A Justa Medida (Zhong Yong, H/Hi)
define bem isso:
O que o céu concedeu ao ser é chamado Natureza
humana "E; seguir esta Natureza é o que se chama
Caminho jÉí; seguir o Caminho é o que se chama
Educação #. O caminho não pode ser abandonado
por um só instante; se pudesse, não seria o caminho.
Por isso, o ser superior espreita o que seus olhos não
podem ver e atenta-se ao que os ouvidos não podem
ouvir. Não há nada mais visível do que o que não se
busca ver, nada mais palpável que o não-tocado. Por
isso o ser superior presta atenção diligentemente a si
mesmo. Enquanto o contentamento ou a raiva, a
tristeza ou a alegria ainda não despertaram, temos a
centralidade H. Quando estas paixões despertam de
61
forma equilibrada e medida, temos a Harmonia
fl (Medida). A Centralidade é o grande fundamento Antigas
Leituras
do mundo; a Harmonia, o caminho VISOES DA
• • • CHINA
universal. Quando a centralidade e a harmonia ANTIGA

forem levadas ao seu ponto supremo, céu e terra


estarão em seus lugares, e todos os seres
prosperarão.

Para resgatar a compreensão desse sistema, Confúcio defendia que o


estudo era a via fundamental. O estudo das tradições era designado como
“Xue #, e o estudo da ação prática como “Zhi'%II. Ambos eram
complementares, e formavam a base da Educação (Jiao, #). Essa é a razão
pelo qual o Caminho proposto por Confúcio acabou sendo conhecido como
“escola acadêmica”. Um seguidor de Confúcio era, antes de tudo, um
estudante. E no fundo, ele não se entendia seguindo Confúcio, mas sim, as
tradições. O prestígio de Confúcio residia em ter demonstrando o quão
óbvio seria a causa dos problemas chineses, e de como se poderia resolvê-los.
A redenção pelos Estudos e pela História

A elaboração do método Confucionista consistia no estudo de seis


artes e no domínio de seis livros. As seis artes eram; o estudo da cultura

(“ritos"), Música, Caligrafia, Matemática, Arqueria e Cavalaria. Essas áreas


contemplavam o conjunto dos saberes básicos da época, que eram
desenvolvidos depois nos estudos superiores em uma determinada área
específica. A formação humanística era dada por seis livros que Confúcio
selecionara como os fundamentos da cultura chinesa:

* Yijing ###, ou Tratado das Mutações, livro que guardava os antigos


conhecimentos sobre as teorias científicas chinesas, e servia também como
oráculo;

* Shujing ##, ou Tratado dos Livros, continha as principais passagens


históricas das primeiras dinastias;
62
- Shijing ##, ou Tratado das Poesias, uma recolha de poemas e canções
Antigas
Leituras tradicionais que apresentavam um quadro do cotidiano dessa civilização;
VISOES DA
CHINA - Liji #E, ou Recordações Culturais, é uma vasta compilação dos costumes,
ANTIGA
ritos, hábitos, leis e visões sociológicas da época Zhou fil:
/

* Chunqiu #K, ou Primaveras e Outonos, é uma crônica histórica escrita


pelo próprio Confúcio sobre sua época, apresentando diversas passagens
históricas para serem analisadas pelo seu caráter moralizante;
- Yuejing ##, ou Tratado da Música; esse último texto foi perdido, e se
supõe que ele contivesse músicas e teorias músicas da China Antiga,
fundamentais para a Educação, na visão de Confúcio. Uma possível parte
desse tratado sobreviveu no Liji ##

Devemos notar que entre esses livros, dois são especificamente de


história (o Shujing #e o Chunqiu #X). Confúcio acreditava que na
história (Shi, SE) estavam contidos os grandes exemplos morais, as
experiências de vida necessárias à descoberta da sabedoria, os eventos
elucidativos que explicariam as razões pelas quais somos hoje o que somos.
A história ensinaria a origem e as funções dos mecanismos sociais,
permitindo-nos aceitá-los, praticá-los ou mesmo modificá-los, segundo as
conveniências da época. Compreendendo as raízes da cultura,
compreendemos, por conseguinte, o desenvolvimento da moral e da justiça
(Yi, #). Foi isso que ele nos legou as Recordações Culturais (Liji, #E), uma
extensa compilação dos hábitos, costumes e crenças de sua época. No
passado podia ser encontrada a fonte da sabedoria. Eis porque ele afirmou,
nas Conversas #: “amo o passado, e o imito”, e também: “mestre é quem
sabe o antigo, e descobre o novo”.
Posteriormente, Zhuxi #$# (1130 a 1200), um dos mais destacados
continuadores da escola acadêmica, afirmaria que a doutrina poderia ser
condensada em quatro livros básicos: Conversas #, Justa-Medida Hºlli, O
Grande Estudo X"? e O Livro de Mêncio ff (Mengzi #f, -372 a -289,
discípulo do neto de Confúcio, Zisi f}}, e considerado o maior autor 63
“confucionista” depois do próprio Confúcio). Esses livros foram escritos
Antigas
pelos discípulos de Confúcio (a Justa-Medida HHH e O Grande Estudo X# Leituras
VISOES DA
CHINA
chegaram a ser incluídos nas Recordações Culturais #E posteriormente), e
ANTIGA
constituiriam o cerne do pensamento acadêmico, definindo seus temas
principais. Doravante, formar-se-ia um cânone da escola acadêmica,
utilizado como base, até nossos dias, para o aprendizado do Confucionismo
e da Educação em geral.

O Projeto Social

Mas como todos os sábios do passado, Confúcio tinha um problema:


como aplicar essa educação na sociedade, e transformá-la numa regra moral
incorporada a mentalidade popular? Seu modelo de cidadão era o “Educado”
(Junzi, #), a pessoa que havia alcançado o equilíbrio, a justa medida das
coisas, em meio à sociedade. O Educado não deveria apenas inspirar as
pessoas; ele deveria governar também. Para Confúcio, era necessário tornar
a China uma nação meritocrática, em que o valor do estudo fosse
reconhecido como forma de salvação e manutenção do bem estar social. Por
essa razão, ele sempre aconselhava seus discípulos mais preparados a
assumirem cargos na política, promovendo esse bem estar pelos exemplos de
justiça e educação. Gradualmente esse sistema evoluiu, ao longo dos séculos,
e se transformou no conhecido sistema de exames imperiais. Ele se
constituía num vasto concurso nacional, cujo objetivo era constituir os
quadros da administração pública imperial. Esse sistema foi capaz de
sustentar o país por mais de dois mil anos, e transformou a educação numa
obsessão nacional. Ele contrabalançou os desatinos dos déspotas, equilibrou
as relações sociais por meio da mobilidade, e apesar de todos os seus
defeitos, consolidou no país a idéia de que o estudo é a base do
desenvolvimento individual e social:

Para o Educado, a única maneira de civilizar o povo


e instituir bons costumes sociais é pela educação. Por
isso os antigos soberanos consideravam a educação
como o elemento mais importante, em seus esforços
por implantar a ordem no país. [...] Só por meio da
64 educação, pois, tornar-se-á alguém insatisfeito com o
que sabe; e só quando tem de ensinar a outrem é que
Antigas
Leituras
VISOES DA
a gente dá-se conta da incômoda insuficiência dos
CHINA próprios conhecimentos. Insatisfeita com o que sabe,
ANTIGA
a pessoa então percebe que é seu o mal, e dando-se
conta da incômoda insuficiência de seus

conhecimentos sentir-se-á impelida a aprimorar


se. (Recordações Culturais, #E)

Uma Ética Não-Religiosa

Já que a base da harmonia social era o estudo, a doutrina de


Confúcio nunca se preocupou diretamente com a questão da crença no
além. Os confucionistas sempre tiveram receio de investir na metafísica,
deixando isso para o campo das opções pessoais. De fato, pode-se ser um
confucionista e acreditar em qualquer outra coisa — budismo, daoísmo ou
cristianismo — contanto que não se quebrem as regras do trato social.
Esse era o ponto de vista fundamental de Confúcio: não se tratava de
negar a existência das divindades, mas de pôr em primeiro lugar os negócios
da terra. A ética proposta por Confúcio era materialista e racional, como
-*-

aparece nas Conversas # H#f.

Zigong perguntou: existe uma única palavra que


possa guiar nossa vida? O Mestre disse:
reciprocidade". Não faça aos outros o que não quer
para você. [*# shu: palavra que pode ser traduzida e
empregada como reciprocidade, cortesia ou
tolerância]

Outra passagem é bastante elucidativa nesse sentido:

O Humanismo (Ren, f) se resume em cultivar a si


mesmo e cultivar a cultura. Faça isso por apenas um 65
dia e todos vão seguir o Humanismo. A prática do Antigas
Leituras
Humanismo tem origem em si mesmo e não nos VISOES DA
CHINA
outros [...] cuide da cultura da seguinte maneira: não
ANTIGA
olhe, não escute, não diga e não faça o que for
inapropriado. [...] fora de casa, aja como se todos
fossem convidados importantes. Cuide do povo
como se fosse um evento importante. Não imponha
a ninguém o que não gosta pra si mesmo. Não deixe
o ressentimento pessoal se intrometer nas coisas
públicas ou nos assuntos particulares.

A doutrina confucionista não era, portanto, religiosa tal como


entendemos. Confúcio defendia a existência de um sistema ecológico,
denominado “Céu” (Tian, JK), que governava a natureza por meio de leis —
tais como hoje entendemos como “leis da natureza'. Mesmo deuses e
espíritos estavam inseridos nesse sistema. Por isso, a função da política
humana era interpretar os sinais da natureza, e convertê-las em políticas
públicas adequadas. Uma importância fundamental era dada, por exemplo,
ao calendário anual - atributo do imperador - que regulavas as estações do
ano, a época de plantio e colheita, e as demais atividades cotidianas. Definir
o calendário era adequar-se ao curso do Celeste; contrariá-lo era investir no
erro e atrair sobre o império a calamidade. Isso fica bem claro no Tratado
dos Livros ###.

Tianjº (Céu) inspeciona o povo cá em baixo,


tomando nota da sua retidão, e regulando
conseqüentemente o seu arco da vida. Não é
Tianjčque destrói os homens. Estes, pelas suas más
ações, encurtam as suas próprias vidas.

Se o “Céu JK era uma entidade inteligente, era também


absolutamente impessoal. Na visão de Confúcio, uma conduta de vida
adequada era o mesmo que uma vida harmônica com a natureza. A
interferência do divino era relativizada na vida comum, como vemos nesse

66 trecho das Conversas #:

Antigas
Leituras
VISOES DA O Mestre estava doente. Zilu queria rezar por ele. O
CHINA Mestre disse: e como é isso? Zilu disse: invocamos os
ANTIGA
espíritos de cima e de baixo. O Mestre disse: já faço
isso há muito tempo, não vai dar certo.

A base Familiar

Confúcio deslocou o problema da crença religiosa no além para a


estruturação da sociedade. O equilíbrio social existiria em função de uma
delicada teia de relações, cujo núcleo central era a família. Assim, a
fraternidade familiar (Xiao, #), tornara-se o elemento fundamental do
sistema de organização dos indivíduos e de sua relação com o governo.
Confúcio pretendia a existência de um conjunto de cinco relações sociais
básicas, postas em ordem hierárquica, que seriam as seguintes:

Cinco são os deveres da obrigação universal, e três


são as qualidades morais através das quais eles são
cumpridos. Os deveres são entre governante e
governado, entre pais e filhos, entre marido e
mulher, entre parentes mais velhos e mais jovens, e
entre amigos. Estes são os cinco deveres da obrigação
universal. Sabedoria, compaixão e coragem — estas
são as três qualidades morais dos seres humanos
reconhecidos universalmente. Não importa de que
maneira as pessoas exercitam essas qualidades
morais, o resultado é o mesmo. (Justa Medida, HJI)

A partir delas, a sociedade poderia ser estruturada dentro de uma


cadeia de relações pré-determinadas, que definiam obrigações, direitos e
deveres dos indivíduos, evitando a maior parte dos dilemas morais. Essas
obrigações eram compreendidas por meio da educação, tanto na escola
quanto no lar. Era o papel da fraternidade familiar, aqui descrito no Tratado 67
da Fraternidade Familiar (Xiaojing, #):
Antigas
Leituras
VISOES DA
O Mestre disse: a Fraternidade é o fundamento da CHINA
ANTIGA
virtude. Aprenda e viverá. Eu vou te ensinar. Corpo,
membros, cabelo e pele, cada pedacinho, são nossos
pais que nos deram. Tenha o cuidado de não os
envergonhar ou machucar. Essa é a primeira
obrigação da Fraternidade. Quem legar seu nome na
vida, no trabalho, e para as gerações futuras, esse
alguém atingiu a Fraternidade perfeita.
A Fraternidade começa servindo aos pais, depois ao
governante, por fim no cultivo de si mesmo.
O Tratado das Poesias diz: pense nos antigos, cultive
sua virtude.

O Mestre disse: quem ama os pais não faz mal a


ninguém. Quem respeita os pais, respeita os outros.
Amor e respeito são a base da Fraternidade com os
pais: quem dá o exemplo serve de modelo nos quatro
cantos da Terra. Por isso, mesmo o filho do Céu é

fraterno. O Tratado dos Livros diz: o Céu abençoa o


soberano fraterno, e todos são abençoados juntos.
O GOverno

Se Confúcio pretendia que a família estabelecesse o equilíbrio social,


formando pessoas justas (Junzi, #), qual o papel do governo na
sociedade? O governo, na visão confucionista, recebia o “Mandato do Céu”
(Tianming, Kí#) para administrar a vida dos seres, e manter a continuidade
da harmonia no mundo. Esse Mandato não era um atributo místico, e sim

um dever moral e cósmico. Implicava que alguém havia recebido o poder


para conciliar as diferenças e corrigir os erros. Nas histórias confucionistas,
os governantes mais sábios tinham sempre um receio tremendo de assumir o
poder, e quando podiam, transferiam-no antes mesmo de morrer para um
sucessor designado, de modo a poderem aproveitar a velhice com sossego. O
Mandato, pois, não era uma benção celeste: ele deveria ser encarado como
uma dura tarefa, da qual o imperador só poderia se beneficiar se cumprisse
bem seus deveres. Do contrário, ele poderia ser derrubado — ou, perderia o
68
“mandato celeste”, pelo qual foi investido para trazer ordem e harmonia ao
Antigas mundo:
Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA Cumpre-nos, certamente, analisar as dinastias de Xia
}Le Yin H%. Eu não presumo que saiba, nem digo: "A
dinastia de Xia devia gozar do favorecedor decreto
do Céu, durante tantos anos”; não presumo que
saiba, nem digo: "Ela já não poderia perdurar". O
fato, simplesmente, foi o seguinte: carecendo a
mesma da virtude da reverência, o decreto

prematuramente caiu por terra, com o seu favor.


Analogamente, não presumo que saiba nem digo: "A
dinastia de Yin devia gozar do favorecedor decreto
do Céu precisamente durante tantos anos”; não
presumo que saiba nem digo: "Ela já não poderia
perdurar". O fato, simplesmente, foi o seguinte:
carecendo a mesma da virtude da reverência, o
decreto prematuramente caiu por terra, com o seu

favor. O imperador Zhou fil ora herdou esse decreto


- o mesmo decreto, eu presumo, que pertenceu
àquelas duas dinastias. Que ele procure herdar as
virtudes dos seus meritórios soberanos; que o faça
especialmente no início das suas atribuições. [...]
Que ele não ouse, como imperador e em virtude dos
excessos do povo na transgressão das leis, governar
com a violenta imposição da morte; - quando o povo
é dirigido com brandura, o mérito do governo se
torna patente. Compete-lhe, na qualidade de
imperador, exceder a todos em virtude. Assim o
povo o imitará por todo o império e ele será ainda
mais ilustre. (Tratado dos Livros, #)

Nas Recordações Culturais (Liji, #E), Confúcio também informa 69


como deve proceder um bom soberano, reforçando o sistema por ele
Antigas
proposto: Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA
A arte do governo consiste simplesmente em fazer
bem as coisas, ou seja, pôr as coisas em seus devidos
lugares. Quando o próprio governante procede
(( 11 • •

bem", o povo imita-o naturalmente no bom


procedimento. O povo apenas segue o que o
governante faz - pois se o governante não o faz,
como há o de povo saber o que, e como, fazer?

Com exceção do imperador Qinshi Huangdi #####(-220 -206), e


do regime comunista de Maozedong, todos os imperadores chineses recém
empossados buscavam sempre apresentar-se como restituidores da ordem
celeste e representantes dignos da escola acadêmica. Não restava dúvida, aos
chineses, que todas as crises derivavam do colapso da Educação e da
Família; e que a sobrevivência e os momentos áureos da civilização chinesa
deviam a sua existência à boa consecução desses dois elementos.
Confucionismo e Sinologia

Todas as questões aqui apresentadas continuaram a ser discutidas e


aprofundadas, dentro da China, ao longo dos séculos. A escola acadêmica —
ou “confucionista” — teve brilhantes continuadores, que mantiveram a
postura crítica e questionadora da doutrina de Confúcio. Devemos atentar
ao fato de que nenhum desses estudiosos — nem mesmo Confúcio — se
tornou um santo ou um deus. Autores como Hanyu # É, (768 a 824) e
Zhuxi # (1130 a 1200) fizeram questão de afastar qualquer tentativa de
sacralizar a doutrina acadêmica, mantendo o aspecto fundamental do estudo
e de uma ética laica como base do desenvolvimento humano e científico.

Foram criados “templos confucionistas que, na verdade, eram salões


acadêmicos com bibliotecas e áreas de estudo. Os confucionistas nunca

criaram qualquer tipo de panteão espiritual: ao invés disso, eles


desenvolveram aprofundadas teorias de cosmologia e de filosofia da mente
70
que hoje fascinam o Ocidente.
Antigas Embora sejamos atraídos pela China mística de budistas e daoístas,
Leituras
VISOES DA
foi o confucionismo que criou a argamassa com a qual a sociedade chinesa
CHINA
ANTIGA foi articulada. Ao estudarmos a história da China, lemos os livros escritos

pela laboriosa produção historiográfica confucionista. Foram os acadêmicos


que recolheram e preservaram as grandes bibliotecas de textos que nos
permitem acessar o passado chinês — ainda que muito desses escritos fossem
de escolas rivais a eles. Essa paixão pelo saber, pela ordem social, pelo valor
da família e aos costumes foi definitivamente assentada no coração dos
chineses pelo profundo sistema educacional proposto por Confúcio. A
educação humanística criou uma China sempre preocupada em preservar
se, em manter-se viva ao longo da história. E na China de agora, é o
movimento do “Novo Confucionismo' (Xin Rujia, #ff3) que vêm
crescendo como alternativa política e social a um comunismo cada vez mais
enfraquecido e distante. No passado, os chineses buscam alternativas para ao
futuro, usando uma fórmula consagrada: educar-se, aprimorar-se e tornar
se um bom cidadão. Há milênio é isso que torna alguém, idealmente,
“chinês — mas não será, também, um bom modelo para a humanidade em
geral?
O trabalho da sinologia — o estudo da China pelos ocidentais — deve
muito, portanto, a herança confucionista. O modelo criado por Confúcio
instou os chineses a preservarem seu passado de tal forma que hoje podemos
acessá-lo e compreendê-lo, por meio de todo o legado material e cultural
que sobreviveu ao longo dos séculos. Mas não se trata apenas disso. Se o
confucionismo nos permite estudar a China, tanto no aspecto histórico,
quanto filosófico ou antropológico, há que se pensar se seu modelo não
deveria nos inspirar também. Devemos passar além da mera herança
histórica. Compreender o confucionismo não serve apenas para
compreender a China. A mentalidade chinesa é traduzida, pelo
confucionismo, num meio acessível de compreensão ao exercício da
sinologia. Contudo, há mais: o modelo proposto por Confúcio prova, de
certa maneira, a importância da Educação na continuidade de uma
civilização. No atual contexto, em que a Educação é banalizada e
71
corrompida, o exemplo do confucionismo na China demonstra tacitamente
que a Educação serve à perpetuação de uma sociedade. Sem Educação, uma Antigas
Leituras

sociedade está sujeita a crises violentas e destruidoras, como foram as VISOES DA


CHINA
revoluções que ocorreram na China. Devemos dedicar nossa atenção a ANTIGA

experiência chinesa: esse país milenário passou por percalços históricos aos
quais podemos evitar, se deles pudermos extrair lições históricas que evitem
nossos possíveis erros. O estudo da sinologia, pois, não é um mero exercício
diletante de investigar o outro; mas é, fundamentalmente, buscar no outro
uma via de re-significação de si mesmo. O modelo da Educação, tão bem
sucedido entre eles, mostra que essa pode ser uma aposta correta: mas
depende de uma vontade social, ligada ao desejo de auto-aprimoramento,
que alicerça o desejo de continuidade — e ao mesmo tempo, de mudança —
dentro da sociedade.

Confúcio disse, nas Conversas #: “olhem os jovens, eles são o


futuro. Mas se eles não se preocuparem com isso, ficarão velhos e não serão
nada'. Foi justamente essa minha preocupação, como educador, em
proporcionar essa breve apresentação sobre o confucionismo para vocês.
Não pretendo com isso defender que todos devam tornar-se sinólogos,
porque acredito firmemente que as pessoas devem seguir suas paixões e
predileções intelectuais. Contudo, não podemos mais ignorar a realidade das
civilizações asiáticas, se nos entendemos como historiadores e especialistas
em ciências humanas. Nosso país, nossa sociedade, nossa cultura, tudo isso
será construído pelo que soubermos fazer de nós mesmos. Nesse ponto,
pois, a China — assim como muitas civilizações antigas — nos serve de aviso.
Nelas vislumbraremos a longa cadeia de acontecimentos que fizeram povos
desaparecerem, sobreviverem e se reinventarem. Termino, novamente, com
uma recomendação do velho mestre sobre o caminho dos acadêmicos:

Pode-se alcançar o poder pelo conhecimento, mas


ele se mantém pela bondade. Sem bondade, o poder
se perde. Poder com conhecimento e bondade é
bom, mas se perderá se não for digno com o povo.
Poder que se alcança com conhecimento, se mantém
pela bondade e se exerce com dignidade é bom, mas
ainda não é o suficiente se não houver Cultura.

(Conversas #)
72
Notas
Antigas
Leituras
VISOES DA 1.De fato, a classificação de Jaspers é abrangente, e possui uma série de
CHINA
ANTIGA contradições na escolha e definição dos grandes nomes da antiguidade.
Usamo-la aqui apenas como referência para discussão.
2. Liji'#Etem sido tradicionalmente traduzido como “Livro dos Ritos, mas
julgo inadequada e reducionista a tradução do termo “Li apenas como
“ritual”. Um exame breve dessa fonte nos permite constatar que Confúcio
abordava a cultura no geral, razão pela qual optei por “cultura no lugar de
“rito”.

3. A relação entre Educação e Família é tão forte na cultura chinesa que o


ideograma “Jia'# pode ser usado tanto para designar “casa como “escola. A
escola, pois, é a segunda casa de todo o chinês.

Bibliografia
De minha autoria:

Mirações do Celeste, 2009; uma introdução a história e a cultura da China


numa visão tradicional, baseada nas fontes chinesas. Disponível em:
http://miracoes.blogspot.com
Cem Textos de História Chinesa, 2009; coletânea de fontes chinesas, cobrindo

da Antiguidade até os dias de hoje, apresentando a mentalidade dessa


civilização sobre os seus mais diversos aspectos, tais como história,
economia, política, etc. Disponível em: http://chinologia.blogspot.com
Minhas traduções de Confúcio (Conversas #, Justa-Medida HHHi, O
Grande Estudo JN? e o Tratado da Fraternidade Familia rÉ#) podem ser
vistas em:

http://andrebueno-sinologia.blogspot.com.br
Uma história das traduções de Confúcio, bem como dos estudos
confucionistas no Brasil pode ser vista no meu artigo: “Confúcio no Brasil:
um problema epistemológico”, disponível em:
http://orientalismo.blogspot.com.br/2014/01/confucio-no-brasil-um
problema.html
Os clássicos chineses, coligidos por Confúcio, podem ser vistos em: 73
http://chines-classico.blogspot.com
Antigas
Leituras
VISOES DA
Outros autores: CHINA
ANTIGA
Boff, L. (org.) China é Cristianismo. Petrópolis: Vozes, 1979.
Cheng, A. História do pensamento chinês. Petrópolis: Vozes, 2010. Jaspers,
Karl Way to Wisdom: An Introduction to Philosophy. Yale: Yale University
Press, 1951.

de Bary, William Theodore. The Trouble with Confucianism. Cambridge:


Harvard University Press, 1991
Hall, David L., and Ames, Roger T. Thinking Through Confucius. Albany:
State University of New York Press, 1987.
Hershock, Peter D. and Roger T. Ames, eds. Confucian Cultures of Authority
Albany: State University of New York Press, 2006.
Ivanhoe, Philip J. Ethics in the Confucian Tradition: The Thought of Mencius
and Wang Yang-ming. Atlanta: Scholars Press, 1990.
Jensen, Lionel M. Manufacturing Confucianism: Chinese Traditions &
Universal Civilization. Durham: Duke University Press, 1997.
Jullien, F. Um sábio não tem idéia. SP: Martins Fontes, 2000.

Miribel, J. & Vandermeersch, L. Sabedorias chinesas. Lisboa: Piaget, 2010.


Scarpari, M. China Antiga. São Paulo: Folio, 2009
Xin Z.Y. El Confucianismo. Madrid: Cambridge University press, 2002
LAO ZI E O TAOISMO

António Graça de Abreu

A tradição historiográfica e cultural, o pensamento filosófico chinês —


com algumas excepções -, pretende que Lao Zi é f (ou Lao Tsé, Lao Tzu,
Láucio) Confúcio fl#fe Buda tenham sido contemporâneos, habitado
terras da China e da Índia nos séculos VI e V antes de Cristo.

Ao longo de muitas dinastias, incontáveis letrados chineses têm feito


balançar as datas do nascimento e morte de Lao Zi, ou Li Er #H, o mítico
fundador do taoísmo, entre os anos 600 AEC e 500 AEC Alguma Sinologia
ocidental e também alguns estudos chineses costumam colocar Lao Zi a
viver também em tempos recuados, mas mais próximo de nós, terá talvez
74
nascido em 460 a.C. e falecido por volta de 380 AEC Certo, certo é não
Antigas sabermos ao certo quando Lao Zi viveu, ou mesmo se esta singular figura
Leituras
VISOES DA terá algum dia existido. De origem popular, sobrevivem no entanto muitas
CHINA
ANTIGA histórias e lendas a seu respeito. Terá nascido depois de sua mãe, de nome Li
Shi, ter engravidado ao engolir uma pérola de cinco cores caída do céu. O
menino experimentou então uma longuíssima estada na barriga materna, a
gestação prolongou-se por oitenta e um anos. Por isso, o mestre nasceu já
com cabelos brancos, velho e sábio. É f*Lao Zi significa exactamente
“Velho Criança”, e as crianças são sábias.
O Tao Te Ching jÉí{# É, a obra que lhe é atribuída, será anónima,
posterior à sua existência real, redigida provavelmente no início da dinastia
Han X (206 a.C.-220 d.C.), talvez até da autoria de diferentes letrados.
Considera-se que, fruto da utilização no governo dos ensinamentos de Lao
Zi e também de Confúcio, o grande imperador Han Wendi governou a
China (de 197 AEC e 157 AEC) com sabedoria e simplicidade. E foi o filho
Han Jingdi, que lhe sucedeu no trono, quem deu finalmente ao livro o nome
de Tao Te Ching.
Sima Qian H]R5# (145 AEC-86 AEC), o maior historiador da

China Antiga, nas suas Shi Ji [E HE, as “Memórias Históricas”, escreveu


uma pequena biografia do presumível autor do Tao Te Ching ou Dao De Jing
onde se lê:

“Lao Zi era natural da aldeia de Qurenli, na comuna


de Lixiang, distrito de Kuxian, no reino de Zhou.
Seu nome de família era Li, o apelido Er e o nome de
cortesia era Dan. Ocupou funções de bibliotecário
nos arquivos do reino de Zhou.
Um dia Confúcio (551 AEC-479 AEC) visitou a
capital do reino de Zhou e encontrou-se com Lao Zi
para o questionar sobre os homens e os ritos a
cumprir na vida em sociedade.
Lao Zi disse:

“Os homens de que falais não existem. O tempo 75


consumiu seus corpos e ossos. Deles restam apenas
umas tantas frases. Antigas
• • A • • Leituras
Quando o sábio encontra circunstâncias favoráveis, VISOES DA
CHINA
sobe a um carro com cavalos, quando a situação lhe ANTIGA

é adversa, vagueia ao acaso. Ouvi dizer que o


mercador astuto guarda cuidadosamente as suas
riquezas e parece nada possuir. O sábio, de excelente
virtude mostra-se, rosto e a aparência exterior, como
se fosse um pobre diabo.
Digo-vos, renunciai ao orgulho, aos infindáveis
desejos, lançai fora tanta ambição e vaidade. Isso não
vos serve para nada. Eis tudo o que tenho para vos
dizer.”

Encontramos aqui, além de dados sobre existência de Lao Zi, um


crítica implacável ao pensamento e moral de Confúcio que será retomada
em outros textos taoistas posteriores.
E Sima Qian continua:

Lao Zi praticava o Tao (jÉíDao, a Via ou Caminho) e


o Te (#De, a Virtude ou o Poder através da
Virtude) e a sua doutrina conduzia à quietação e ao
indefinível. Residiu durante muitos anos na capital e
observou o declínio das instituições do reino.
Decidiu então resignar do cargo que ocupava e viajar
para o Ocidente. Ao chegar à passagem de Hangu,
foi muito bem recebido pelo comandante militar Yin
Xi que lhe pediu:
“Antes de se retirar do mundo, escreva um livro
sobre a arte de viver.”

Lao Zi compôs então uma obra com pouco mais de


cinco mil caracteres sobre o significado do Tao e do
Te. Depois partiu, montou um búfalo e desapareceu
por detrás das montanhas. Ninguém mais soube
dele."

76 São estes os únicos dados conhecidos sobre a vida de Lao Zi que, livre
das paixões do mundo, desapareceu em direcção às regiões do Ocidente (a
Antigas
Leituras
VISOES DA
India? o Tibete?) e esfumou-se na brima e no espaço.
CHINA
O historiador Sima Qian nas suas biografias recorria largamente às
ANTIGA
narrativas da tradição oral - daí as suas frequentes palavras “ouvi contar”,
“ouvi dizer” —, mas trabalhava com grande rigor e os seus textos costumam
ser precisos e fiáveis. Apesar destes considerandos, a brevíssima biografia de
Lao Zi escrita por Sima Qian não esclarece muito sobre a mítica figura do
fundador do taoísmo. São inúmeras as controvérsias e debates que duram
até hoje sobre Lao Zi, o texto do mestre e a natureza do Tao entre os mais
diversos estudiosos do taoismo, chineses e ocidentais.

Sabemos que o letrado He Shanggong (179 AEC - 159 AEC)


compilou a obra única de Lao Zi, distribuindo o texto do Tao Te Ching pelos
oitenta e um capítulos que continuam hoje a dar forma a quase todas as
edições. Três séculos mais tarde, o letrado Wang Bi (220-244) fixou,
comentou e anotou todo o texto, também com oitenta e um capítulos e
algumas variações relacionadas com a inserção de uns tantos caracteres que
ainda hoje são objecto de discussão. Esta divisão corresponde aos cuidados
simbolistas e numerológicos da dinastia Han (206 a.C.-220). O número 81 é
9 elevado ao quadrado e 9 equivale a três ao quadrado. O número 3 está
associado ao Céu, à Terra e ao Homem, o 9 organiza o disperso, o 81 tem
tudo a ver com a unidade da diversidade.

A primeira parte do livro, o Tao Ching, mais associada ao Tao


distribui-se por 37 capítulos, a segunda parte, o Te Ching, destaca mais o Te
e engloba os restantes 44 capítulos.
Com o decorrer dos séculos, têm aparecido pequenas variantes ao
texto inicial do Tao Te Ching devidas sobretudo às sucessivas cópias e à
natureza dos materiais utilizados na escrita dos textos clássicos antigos. Os
chamados wen fang si bao X} VII?", ou seja os “quatro tesouros do letrado”,
o papel, o pincel, a tinta da China e o tinteiro, só foram inventados na
dinastia Han (206 a.C-220) por isso se considera que muita da literatura da
China mais antiga só assume plenamente a sua importância a partir desse
período. Nos séculos anteriores, com o império ainda dividido em reinos
não unificados, com os ideogramas ou caracteres ainda em fase de 77
desenvolvimento e consolidação, a produção poética, filosófica, histórica era
Antigas
já significativa mas a escrita, os caracteres gravavam-se em pedra, lamelas de Leituras
VISOES DA
bambu ou em seda.
CHINA

Nos primeiros anos do século XX, o explorador e sinólogo francês ANTIGA

Paul Pelliot descobriu na cave 17, - uma das fabulosas grutas de Dunhuang,
na província de Gansu -, um manuscrito datado provavelmente do início da
era cristã, com o Tao Te Ching em exactamente 4.999 caracteres. Com
alterações pouco significativas, as diferentes versões da obra costumam
rondar os 5000 caracteres chineses.

Em 1973 foram encontrados num túmulo fechado no ano de 168

AEC, em Mawangdui, perto da actual cidade de Changsha, capital da


província de Hunan, duas versões do texto do Tao Te Ching pintadas sobre
seda e datadas da dinastia Han. Objecto de imediato estudo por parte de
letrados chineses e de outros países, comprovaram-se leves variantes em
relação ao texto tradicional.
Em 1993 foram descobertos em Goudian, próximo da hoje cidade de
Jingmen, na província de Hubei, mais dezasseis textos gravados em lamelas
de bambu que correspondem a três versões que seguem muito de perto os
capítulos clássicos do Tao Te Ching, datadas provavelmente do século III
AEC Mas a ordenação dos capítulos é diferente, iniciando-se a obra com a
parte referente ao Te ou De fé, a Virtude ou o Poder, e só depois vem o Tao
ou Dao ií, a Via ou o Caminho.

DO Tao

O que é o Tao?
No texto tradicional do Tao Te Ching, o carácter taoi#í aparece 76
vezes. O ideograma jí é composto por dois elementos. Um significa “cabeça
ou chefe”, o outro “caminhar, concluir uma viagem.” O Tao é pois o
caminho a percorrer, é fazer o caminho, chegar ao fim e iniciar sempre um
novo caminho.

O Tao é também a força natural que existe por toda a parte, o fluir e
a harmonia da Natureza, uma espécie de poder omnipotente que
acompanha a nossa vida. O homem assume-se como uma pequeníssima
78 parte do mundo natural.
Lao Zi, no capítulo 25 do Tao Te Ching, fala da natureza do Tao:
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA Misteriosamente formado,
ANTIGA
nascido antes do Céu e da terra,

permanece solitário, imutável,


no silêncio do vazio,

sempre presente, sempre em movimento,


talvez a mãe de tudo debaixo do céu.

Não sei o seu nome,


vou chamar-lhe Tao.

Não será este Tao, também o Deus criador?


De resto, Jesus Cristo também disse: “Eu sou o caminho, a verdade e
a vida”, (João, XIV, 6.)
Ouçamos o bom do padre António Vieira (1608-1697), acreditando
naturalmente, porque estamos no século XVII português, que o Tao não
chegou ao seu conhecimento. Mas o nosso jesuíta entendia quase tudo das
coisas do mundo e escrevia assim em Salvador da Baía, no Sermão de Nossa
Senhora do Ó, no ano de 1640:
“Está a imensidade de Deus no mundo e fora do

mundo, está em todo o lugar e onde não há lugar,


está dentro sem se encerrar e está fora sem sair,

porque está em si mesmo. O sensível e o imaginário,


o existente e o possível, o finito e o infinito, tudo
enche, tudo inunda. Por onde se estende e até onde?
Até onde não há onde: sem termo, sem limite, sem
horizonte, sem fim.”

Na Pequim do século XVII, o jesuíta flamengo Ferdinand Verbiest


(1623-1688), nitidamente influenciado pelo seu estudo e conhecimento dos
textos taoistas, procurava explicar aos chineses a natureza do Deus cristão e
escrevia:
79
“A essência do senhor do Céu é um espírito puro, Antigas
Leituras

sem forma nem imagem que não pode ser visto, nem VISOES DA
CHINA
ouvido. Possui em si as dez mil virtudes e felicidades. ANTIGA

Existe para sempre, reina para sempre, não tem fim


nem princípio. É omnipotente, omnipresente e
omnisciente.”"

Zhuangzi HE-fº (369 AEC-?), o mais importante filósofo do taoísmo


e um escritor genial — infelizmente quase desconhecido em Portugal —
explicava, com absoluta modernidade há vinte e dois séculos atrás, no
capítulo 12 do seu livro:

“No início, era o nada e dentro desse nada estava o

Tao que deu origem a tudo quanto existe. Assim


surgiu o universo ainda sem forma. Depois,
gradualmente, os seres começaram a ter existência. A
massa amorfa foi-se dividindo e surgiu uma cadeia
ininterrupta de processos que vieram a constituir o
que chamamos vida. Criaram-se então todos os seres
pela harmonia entre as forças da estabilidade (Terra)
e do movimento (Céu.)
(...) O universo como tal é a expressão do absoluto.
Tudo muda ao longo do tempo, no decurso da
evolução, de acordo com o que começa e o que
acaba. O conhecimento ensina que as coisas mudam
de aspecto e que o absoluto transforma-se em
relativo. Esbate-se, por isso, a distância entre o
grande e o pequeno, entre o que vem antes e o que
33 11
vem depois, numa cadeia que não tem fim.

O padre Joaquim de Jesus Guerra (1908-1993), que ainda tive o gosto


e prazer de conhecer em Macau e depois em Lisboa, na sua estranha
tradução do Tao Te Ching que intitula Prática da Perfeição/Daow-Tc Keq dá
nos uma definição abrangente e religiosa das múltiplas faces do Tao. Diz:
80
“A palavra Daow significa vulgarmente caminho,
Antigas
Leituras
VISOES DA
andar, comportamento, virtude, moral, sabedoria,
CHINA falar, verbo, verdade, doutrina, vida, carreira de vida,
ANTIGA
governo, política, providência, administração,
Senhor, sítio, lugar, sede, morada.” E neste livro tem
muitas vezes o sentido forte de DEUS, SER
ABSOLUTO, EXCELSO, ALTÍSSIMO, SENHOR E
RAZÃO, ou CRIADOR DE TUDO, LUZ."

DO Te

Qualquer dicionário de chinês dá-nos para este carácter te ou de {5,


significados aparentemente diferentes como “a virtude, a força do espírito
ou do coração, a energia, a influência, o poder”. O Te será a virtude, ou o
poder, a emanência metafísica, não com um sentido moral mas como
perfeição interior. É a integridade do ser humano. O carácter é composto
por três elementos chi 4 que significa “passo” mais zhi # de “justo, direito”
e xin Tº de “coração”. No chinês moderno te está sobretudo associado à
virtude como poder inteligente para a consecução de objectivos justos.
O nosso padre António Vieira, tão longe e tão próximo do taoismo,
explica:
“Quem quer quanto pode, não pode mais; quem quer menos do que
pode, sempre lhe sobeja poder.” É este também o Te do Tao Te Ching.
E Lao Zi esclarece o poder da virtude, do poder no capítulo 51 do
Tao Te Ching:

O Tao tudo engendra,


a Virtude nutre, faz crescer,

conserva, amadurece e protege.


Produz sem se apropriar,
age sem nada pedir, 8|
orienta sem dominar.
Antigas
Eis a Virtude original. Leituras
VISOES DA
CHINA

Se o Tao é a transcendência que tudo cria, o Te é a imanência que ANTIGA

tudo alimenta.

Do Taoísmo Filosófico, do Taoísmo Religioso

Só a partir da dinastia Han, o taoísmo, Dao Jia ií#, como escola de


pensamento e filosofia de vida, ganha verdadeiramente força e difusão pelo
império. Os imperadores da dinastia Tang (618-907) consideravam Lao Zi
ou Li Er um dos seus antepassados, seriam da mesma família Li. No ano de
731, o imperador Xuan Zong ou Li Longji decretou que todos os mandarins
deviam possuir uma cópia do Tao Te Ching e que a obra passaria a fazer
parte dos textos clássicos a estudar pelos candidatos a letrados nos exames
imperiais.
No entanto, o taoismo filosófico, um permanente manancial de
desentendimentos entendidos, de brilhante sabedoria, de genial
compreensão das sinuosidades da vida e da natureza, foi gradualmente, a
partir do século II desvirtuado e adoptado como religião ao assumir novos
contornos, associado à busca da imortalidade, incorporando um sem
número de tradições populares, crenças ancestrais, a adoração do céu e dos
antepassados, a prática da alquimia, à mistura com alguma ética
confucionista e budista, e incontáveis superstições. Temos um vastíssimo
corpo de ideias que se reivindicam do Tao mas que passam a incluir temas e
matérias alheias ao pensamento de Lao Zi. Falamos do Dao Jiao jÉí#, ou
/ • • 14

taoísmo religioso.
Consideremos, por exemplo, a compreensão da imortalidade para o
taoismo mágico-religioso. A imortalidade será o resultado de práticas
ascéticas combinadas com a frugalidade e o tomar de certos pós e ervas que
• • --, • • Axº • •

contribuirão para o desenvolvimento e fortalecimento do"U qi, a energia ou


força vital, o que faz com que a pessoa se torne independente do corpo
material. Assim a morte é uma espécie de metaformose, o mortal torna-se
imortal. Ao morrer abandona o seu corpo mas agora viaja pelo mundo a seu
bel-prazer, goza de uma saúde perfeita e nada lhe falta para ser feliz. Onde é
que Lao Zi nos fala de tamanhos sortilégios e assombros?
82
Os templos taoistas que encontramos hoje um pouco por toda a
Antigas China estão cheios de pequenos e grandes deuses, o Supremo Imperador
Leituras
VISOES DA Celestial, a Rainha Mãe do Ocidente, etc., a reverenciar conforme as
CHINA
ANTIGA circunstâncias," capazes de, por acaso, pré destinação ou sorte, trazer mais
felicidade e benesses aos homens. E o taoismo mágico-religioso também
com deuses menores e espíritos da mais variegada espécie que engloba o
fengshui HUK, a geomância tão importante no dia a dia dos chineses e, com
avanços inquestionáveis, alguma medicina tradicional chinesa.
Não seria esse o desígnio dos primeiros taoistas, mais abertos à
doutrina filosófica, às complexidades do mundo, à estranheza dos dias, ao
retorcido inefável da espécie humana, ao caminhar sereno ou sobressaltado
por planícies ou montanhas, ao fluir da existência de todos nós num mundo
onde a revelação divina estará no coração de cada um, onde tudo é natural,
límpido e escuro como a sucessão dos dias e das noites.
Muito próximo do taoismo filosófico, o grande poeta Li Bai ou Li Po
(701-762), amigo do vinho e dos sublimes prazeres da vida, completamente
genial, escreveu por volta do ano 750 um curioso poema sobre o conhecido
calígrafo Wang Yuchun (321-379) e o seu modo original de, depois de
caligrafar os cinco mil caracteres do Tao Te Ching, não se ocupar mais das
míseras formalidades do relacionamento entre os homens. Diz Li Bai:

Wang Yuchun não se importava com as coisas do


mundo,

mas gostava de patos.


Um dia encontrou um velho taoista

que o convidou para sua casa.


Entregou-lhe um rolo de papel branco
e pediu-lhe que caligrafasse o Tao Te Ching.
O mestre utilizou o pincel com o talento dos
imortais,

acabou, recebeu uns patos como recompensa,


meteu-os no seu cesto e foi-se embora.
83
Esqueceu-se de dizer adeus."
Antigas
Leituras

O taoismo filosófico é sempre motivo de inspiração para calígrafos, VISOES DA


CHINA
pintores, músicos e poetas. Na grande arte chinesa, a imanência e ANTIGA

permanência do Tao irradia montanhas de luz e lagos de sabedoria. E


estende-se ao budismo chan #ou zen, em japonês, (do sânscrito dhyāna,
que significa “meditação) a entender como um penetrante diluir dos
ensinamentos de Buda no pensamento taoista. O chan ou zen só chegará ao
Japão no século XII mas começou a ter mestres e vida própria na China a
partir do sec. VI."

DO NOme

Tao Te Ching, Dao De Jing ou ainda Tao Te King? Qual o nome


correcto da obra de Lao Zi? Em que ficamos quanto à transliteração para
alfabeto romanizado dos três caracteres jÉí{# é ?
Em 1979, uma decisão do Burô Político do Comité Central do

Partido Comunista da China institucionalizou em definitivo a adopção do


sistema de transliteração dos caracteres conhecido por hanyu pinyin
YXi#####. Eu vivia na altura em Pequim, trabalhava nas Edições de Pequim
em Línguas Estrangeiras e o pinyin levantou sérios problemas de utilização
nas publicações que ajudávamos a traduzir e a editar. O sistema pinyin,
criado em meados de anos cinquenta do século passado por linguistas
chineses e soviéticos, evidencia inequestionavelmente algumas virtudes e
tem, desde então, sido empregue na maioria dos estudos de Sinologia, um
pouco por todo o mundo. Enferma porém de uns tantos defeitos, sobretudo
no que diz respeito à leitura das consoantes. É o caso do título da obra, o
Dao De Jing na grafia do pinyin. Segundo o sistema mais antigo de
transliteração em língua inglesa Wade-Giles vamos encontrar a leitura Tao
Te Ching. É frequente também sugir o título da obra como Tao Te King. Ora
este jing éou ching ou king que significa “livro canónico” ou “obra
clássica”, pronuncia-se king nos dialectos das vastas regiões a sul do rio
Yangtsé, que englobam, por exemplo, Xangai e keng na zona de Cantão. Daí
O Tao Te King muito usado em traduções francesas que seguem o sistema de
transliteração dos caracteres segundo a denominada “Escola Francesa do
84 Extremo Oriente”.

Antigas Regressemos ao Dao De Jing oficial na transliteração pinyin. Em


Leituras
VISOES DA chinês mandarim, a língua uniformizada, ensinada e falada em todas as
CHINA
ANTIGA
escolas da China não existe o som d, não se encontram os fonemas de dedo
ou dado, como em português, mas apenas o de t de tacto ou tecto. Na
pronúncia, em chinês mandarim usam-se dois tês. Um igual ao nosso t, o
outro é o som aspirado de t. Nenhum cidadão chinês ao falar mandarim lê
#{{# como dao de, mas sim tao te, com os dois tês não aspirados. Também
# jing, na transliteração pinyin se lê como ching. No caso do livro de Laozi,
é o sistema de transliteração Wade-Giles que nos dá a leitura mais
aproximada dos três caracteres, de acordo com o mandarim, a língua padrão
da grande China e de Taiwan.
Na minha humilde opinião, Tao Te Ching - e não Dao De Jing -, será
a romanização dos três caracteres mais equivalente aos fonemas utilizados
em chinês e na nossa língua. Não induzirá o leitor em erros de leitura e
pronúncia, falaremos do Tao e não do Dao, do Te e não do De, de taoismo e
não de daoismo.

Os fundamentalistas do uso pinyin não concordarão. Mas sinólogos


de todo o mundo e mesmo muitos letrados chineses em obras recentes
editadas na China, (ver bibliografia) já usam Tao Te Ching e taoism,
abandonando Dao De Jing e daoism. Limito-me a expor o entendimento que
tenho sobre esta questão e a tentar ser coorente e consequente com o que
acabo de enunciar. Por isso, escrevo Tao Te Ching e taoismo.

Lao Zi e Confúcio

Lao Zi seria uns bons anos mais velho que Confúcio que nasceu em
551 AEC Ter-se-ão encontrado uma ou duas vezes, como de resto narra o

historiador Sima Qian no texto traduzido no início deste prefácio.


Confúcio estabeleceu um excelente sistema de valores, uma moral,

regras e ética que constituiram um molde e orientação aceite e assumida mas


raramente cumprida pela sociedade chinesa nestes últimos dois milénios. O
confucionismo pretende, pela educação, pelos bons princípios, aperfeiçoar o
85
homem, melhorar a natureza humana. Todos nascemos bons e pela
formação moral, pela correcção dos erros, pelo respeito pelos valores e pelas Antigas
Leituras
VISOES DA
hierarquias, tenderemos para o bem, para o Da Tong KH e o Da He}\ fil, as CHINA
ANTIGA
utópicas “grande unidade” e “grande harmonia” entre todos os homens.
A filisofia Taoista e os taoistas nunca aceitaram tão boas intenções,
nunca acreditaram nos homens naturalmente bons, na benevolência, na

justiça, na confiança, no respeito pleno pelos ritos e pelas hierarquias.


Consideravam a moral confuciana como uma espécie de purga que servia
para aliviar os sintomas da doença, era um paliativo para enganar os homens
bem intencionados, mas não combatia a origem, a raiz da doença.
De resto Lao Zi, tal como Confúcio, viveu numa China ainda não

unificada, dividida em feudos, em reinos governados por príncipes e


senhores de guerra que combatiam entre si, e onde imperava o despotismo.
O próprio Confúcio lamentava o facto de os homens amarem mais a beleza
feminina do que a virtude e reconhecia que os príncipes não o ouviam.
Para os taoistas tudo é relativo, tudo assume um duplo aspecto, o
bom e o mau interpenetram-se, o yin e o yang são duas partes de um mesmo
todo. Daí a solidez, agilidade e inovação permanente do pensamento taoista
comparado com o conservadorismo
e os impraticáveis — por causa dos defeitos inerentes a toda a espécie humana
• A • • 18

-, princípios da moral confuciana.


No capítulo 13 do seu Livro, Zhuang Zi, o brilhante filósofo do
taoismo, fala de uma conversa entre os mestres Lao Zi e Confúcio. Deste

Lao Zi perguntou a Confúcio:


-Diz-me, em que consiste a benevolência e o dever
moral para com o nosso semelhante?
Confúcio respondeu:
-Consiste na capacidade de se encontrar a alegria em
todas as coisas, no amor universal, sem egoísmos.
São estas as características da benevolência e do

dever moral para com o nosso semelhante.


Lao Zi exclamou:

-Que disparate!... Será que o amor universal não está


em contradição consigo próprio? Não será a vossa
86 eliminação do egoísmo uma manifestação desse
mesmo egoísmo? Temos de considerar que o
Antigas
Leituras
VISOES DA
império não pode perder a sua fonte de alimento.
CHINA Existe o universo regular e contínuo, existem o sol e
ANTIGA
a lua que seguem o seu curso e as estrelas que têm
posição fixa nos céu, existem os animais, as aves
vivendo invariavelmente em conjunto, existem os
arbustos e as árvores sempre a crescer. Deves ser
como eles e seguir o Tao. Esse é o caminho da
perfeição.

No capítulo 14, Zhuang Zi descreve outro hipotético encontro entre


o velho Lao Zi e o jovem Confúcio. Nos seguintes termos:

“Confúcio foi ver Lao Zi e falou-lhe em benevolência

e rectidão: Lao Zi disse-lhe:

Se te entrar um grão de mostarda num olho ao


debulhar o trigo, nesse momento o lugar do Céu e da
Terra e as quatro direcções tudo se alterará no teu
espírito. Se um mosquito ou uma vespa te picar,
podes passar toda a noite acordado. Quando
forçadas, a benevolência e a rectidão perturbam o
coração e provocam a maior confusão. Tu, senhor,
se queres que os homens não percam a sua
simplicidade natural, se queres imitar o movimento
do vento, se queres permanecer com os atributos
naturais que são teus para quê usar tanta energia? É
como rufar num grande tambor quando se busca
uma criança perdida. O ganso da neve não necessita
de tomar banho todos os dias para permanecer
branco, nem o corvo precisa de se pintar para ficar
preto. O branco e o preto vêm com a simplicidade
natural, não se questionam. A fama e os louvores
procurados por muitos homens não os fazem 87
maiores do que eles realmente são. Quando secam as
águas dos charcos, os peixes procuram ainda uma Antigas
Leituras
poça para salvar a vida, salpicando-se, VISOES DA
… , º • • CHINA
humedecendo-se com lama. Não teria sido muito ANTIGA

melhor se, na altura própria, se tivessem dispersado


por lagos e rios ?
Depois de ver Lao Zi, Confúcio regressou a casa e
durante três dias não pronunciou uma palavra. Um
dos seus discípulos perguntou-lhe:
-Mestre, conheceste agora Lao Zi. Como é que
argumentaste, como é que o corrigiste?
Confúcio respondeu:
-Acabei de ver um dragão. Um dragão enrosca-se e
mostra a sua forma, distende-se e evidencia o seu

poder, voa para as nuvens e respira, alimenta-se do


yin e do yang. Eu mantive-me de boca aberta, não
fui capaz de a fechar. Como podia argumentar,
como podia corrigir Lao Zi?"

No Livro V, capítulo VIII do Lie Zi, outra obra taoista que terá sido
escrita no sec. III AEC, talvez também da autoria de Zhuang Zi,
encontramos uma interessantíssima crítica a Confúcio feita por dois
meninos. Assim:

Confúcio viajava um dia pelo leste do Império


quando encontrou duas crianças que discutiam uma
com a outra. Perguntou-lhes o porquê da querela.
Um dos rapazes disse:"Eu penso que quando o sol
nasce está mais perto dos homens. Ao meio dia está
mais afastado” O outro rapaz era de opinião
contrária. Para ele, o sol ao nascer estava mais longe
e ao meio dia, mais perto.
Disse o primeiro: “Quando o sol se levanta é grande
como a roda de um carro, ao meio dia não é maior

do que um prato. O que está mais longe, parece mais


pequeno, O que está perto parece maior. Não será
88 assim?”

O outro rapaz argumentou: “Quando o sol se levanta


Antigas
Leituras
VISOES DA
é pálido e frio, mas ao meio dia é quente como água
CHINA a ferver. É frio o que está mais longe, é quente o que
ANTIGA
está mais perto. Não será assim?”
Confúcio foi incapaz de dar uma resposta à questão.
Então as duas crianças desataram a rir e exclamaram:
(( / • A • h / I • ?»20
Quem é que disse que vós sois um homem sábio?

Ora se até as crianças não confiavam na sabedoria de Confúcio,


como é que os mais crescidos e experimentados no caminhar pelos
múltiplos atalhos, estradas, alamedas e avenidas da vida iam, nos séculos
vindouros, acreditar nas “verdades” do Mestre?

Conclusão

Os oitenta e um capítulos do Tao Te Ching de Lao Zi são um extenso


poema, prodigioso, fascinante de relevância, modernidade e sabedoria
fluindo ao encontro do tudo e do nada, a precisão sem contornos, os
conceitos poderosos e frágeis, obscuros como a noite e límpidos como a
claridade do dia. Uma obra aberta a diferentes interpretações. A magia da
simplicidade e da transcendente profundidade do texto.
O Tao é o caminho para a meta mesmo quando não há meta, nem
caminho. Caminante, no hay camino,/se hace el camino al andar, escreveu o
grande poeta sevilhano António Machado (1875-1939).
Leão Tolstoi leu o Tao Te Ching numa das primeiras traduções
franceses, experimentou traduzi-lo do francês para russo e, influenciado
pelo pensamento do mestre chinês, escreveu no seu Diário a 10 de Março de
1884: “As pessoas deviam-se conduzir como a água de que fala Lao Zi. A
água corre quando não encontra obstáculos. Quando encontra um dique
pára. Quando aparece uma fenda no dique, a água continua o seu caminho.
Fechada num quadrado, assume-se como um quadrado. Se o espaço é
arredondado, a água é redonda. Por isso, a água é a mais importante e a mais
forte de todas as coisas.”
89
Tao Qian ou Tao Yuanming (375-427) um dos grandes poetas da
China Clássica escreveu um poema sobre arte de viver segundo a “verdade Antigas
Leituras

essencial”, ou seja, o Tao. Assim: VISOES DA


CHINA
ANTIGA

A minha cabana junto ao caminho dos homens,


mas não oiço o chiar de carroças e cavalos.
Como é possível?
Um coração liberto faz o silêncio à sua volta.
A leste, entre a folhagem, vou colher crisântemos,
na distância, meus olhos deslizam pelas colinas do
sul.

Ao entardecer, o ar fresco da montanha,

o regresso das aves voando aos pares.


Em tudo isto existe a verdade essencial,

sim, mas onde as palavras para explicar e definir?

Como explicar o Tao?


E como entender a China sem conhecer o taoísmo, um dos pilares do
pensamento chinês?
Em frases sibilinas, o livro de Lao Zi diz e desdiz, afirma e nega,
constrói e destrói, faz e desfaz. Para desentendendo entender o impossível
possível, a ambiguidade das coisas do mundo, a energia e a ausência de
força, o positivo e o negativo, o calor e o frio, a seca e a inundação, o alto e o
baixo, a vida e a morte, o amor e o ódio, o céu e a terra, o belo e o feio, a

esquerda e a direita, o anterior e o posterior, o duro e o mole, o húmido e o


seco, o leve e o pesado, o interior e o exterior, a virtude e o vício, a ordem e a
desordem, o prémio e o castigo, a alegria e a tristeza, a riqueza e a pobreza,
O crescimento e a decadência, a paz e a guerra, o amor e o ódio, o masculino
e tudo o que se refere ao homem e o feminino e tudo o que tem a ver com a
mulher.

Ainda a força em movimento ou em repouso, o ar exalado e o ar


inspirado, o que emite, semeia e fecunda e o que recebe, engendra e
transforma. Simplesmente o yin e o yang que regem a nossa vida natural,
opostos mas não contraditórios, entrando um por dentro do outro, as duas
partes de um mesmo todo.
O homem do Tao passa ao lado da guerra, da opressão, da inveja, das
90 pequenas e grandes misérias do mundo. Assume-se como uma pessoa
tolerante, humilde, em paz consigo próprio e com tudo o que o rodeia.
Antigas
Leituras Reconcilia-se com a vida e com o mundo.
VISOES DA
CHINA Embora num contexto diferente, recordo mais palavras do nosso
ANTIGA
padre António Vieira:

“Oh, se nós homens entendêssemos esta política


natural e doméstica, e nos persuadíssemos a ela,
quão descansada seria esta vida que nós, pelo
desgoverno da nossa vontade, e pelos excessos da
nossa vontade, fazemos tão cansada e trabalhosa p22

Notas

1.Wang Keping, The Classic of Dao, Pequim, Foreign Languages Press, 1998,
introdução, pag. i.
2.Entre outros, por exemplo, Patrick Carré, Lao Zi, em Dictionaire de la
Literatture Chinoise, Paris, PUF, 2000, pag.157. Também Fung Yu-lan, A
History of Chinese Philosophy, Peiping, Henri Vetch, 1937, pag. 170 e sgs. E
Anne Cheng, Histoire de la Pensée Chinoise, Paris, Ed. du Seuil, 1997, pag.
176 e segs.
3.As “Memórias Históricas” englobam cento e trinta capítulos com
biografias de personalidades famosas e incursões no modo de governar, nas
realidades quotidianas, desde a alta antiguidade chinesa até ao reinado do
imperador Han Wudi (140 AEC — 87 AEC). A obra foi começada por Sima
Tan (? — 110 AEC) e concluída pelo seu filho Sima Qian.
4.No actual distrito de Luyi, na província de Henan.
5.A actual cidade de Luoyang, na província de Henan.
6.Citado por Jean Grenier, em L’esprit du Tao, Paris, Falmmarion, 1973, pgs.
29 e 30, que segue a velha tradução das “Memórias Históricas” de Sima
Qian, que data de 1842 feita por Stanislau Julien (1797-1873), um dos
primeiros grandes sinólogos franceses. Ver também a tradução de Luís
Gonzaga Gomes em O Livro da Via e da Virtude de Láucio, Macau, Separata
da Revista Mosaico, 1952, pag. 7 e 8.
7.Não por acaso, o chinês Gao Xingjian #fffÉ, prémio Nobel da Literatura 91
2000, também divide #III Lingshan #III, “A Montanha da Alma”, o seu
Antigas
mais famoso romance, por oitenta e um capítulos. O poeta Casimiro de Leituras
VISOES DA
Brito no seu Na Via do Mestre, Guimarães, Ed. Pedra Formosa, 2000, escreve CHINA
ANTIGA
também oitenta e um poemas que confessa terem nascido quase de um
diálogo continuado com Lao Zi.
Apenas uma curiosidade: o número 81 é tão importante para o taoismo
mágico-religioso que vários textos posteriores ao Tao Te Ching consideram
que uma boa relação sexual deve ter em conta, o vai-e-vem do falo do
homem no sexo da mulher repetido oitenta e uma vezes. Assim se alcançará
o êxtase, um bem sucedido orgasmo.
8.Os deuses da Rota da Seda concederam ao autor deste estudo e texto, o

privilégio de entrar e de conhecer a maravilha, por duas vezes, do espaço


mágico da cave 17 de Dunhuang, nos anos 2004 e 2010.
9.Ver uma tradução francesa deste texto Lao Tseu, Le Véritable Tao Te King,
(trad. Eulalie Steens), Monaco, Ed. du Rocher, 2002.
10.Ver a minha introdução e a tradução completa deste texto Jiaoyao Xulun
###### Princípios da Doutrina Cristã, xilografado em caracteres chineses
que se encontra na Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa,
manuscritos, série vermelha, nº 950 A, em Sinica Lusitana, (trad. Roderich
Ptak, António Graça de Abreu e Zhang Weimin), Lisboa, Fundação Oriente,
2000, pags. 56 a 61.
11.Pode-se encontrar na tradução inglesa em The Book of Chuang Tzu, (trad.
Martin Palmer), Londres, Penguin Arkana, 1996, pag. 97. Em francês, o
mesmo texto em L'oeuvre complète de Tchouang-tseu (trad. Liou Kia-hway),
Paris, Gallimard, 1969, pag. 104.
12. Prática da Perfeição/Daow-td Keq, Macau, Jesuítas Portugueses, 1987,
pags. 50 e 60.
13.Padre António Vieira, Sermão do Terceiro Domingo depois da Epifania,
1641.

14. Para uma análise de conjunto das práticas e rituais do taoísmo religioso
na China, ver Taoism, (vários autores) Pequim, Foreign Languages Press,
2002.

15.São os templos dedicados aos Deuses da Cidade, da Riqueza, da Cozinha,


da Terra, dos Infernos, etc.
92 16.Poemas de Li Bai, trad. António Graça de Abreu, Macau, ICMacau, 1991,
pag. 86.
Antigas
Leituras
17.Para uma síntese breve, mas conhecedora e bem elaborada de Lao Zi e do
VISOES DA
CHINA Taoismo, ver Ana Cristina Alves, A Sabedoria Chinesa, Cruz Quebrada, Casa
ANTIGA
das Letras, 2005, pags. 25 a 33.
18. “Compared with Confucianism preached by Confucius and Mencius, Lao
Zi's Taoism is more systematic, more prudent and more coherent.” Gu
Zhengkun, Lao Zi: The book of Tao and Teh, Pequim, Peking University
Press, 1995, pag. 25.
O grande Lu Xun (1881-1936), talvez o maior escritor do século XX chinês,
vai mais longe e num ensaio de 1925 intitulado Apontamentos à Luz da
Lâmpada, diz: “O confucionismo come pessoas, para além disso este
banquete de carne humana persiste ainda hoje, e há muita gente que deseja
que ele prossiga.”, citado por Liu Xiaobo, Prémio Nobel da Paz 2010, em
Não tenho Inimigos, não conheço o Ódio, Alfragide, Casa das Letras, 2011,
pag.371.
19. A partir da tradução inglesa de A. C. Graham, Chuang-tzu, The Inner
Chapters, a Classic of Tao, Londres, Mandala, 1986, pgs. 128 e 129.
20.A partir da tradução francesa de Benedykt Grynpas, Lie Tseu, Le vrai
classique du vide parfait, Paris, Gallimard, 1961, pag. 161.
21.Citado por Xu Yuanxiang e Yin Yongjian, Lao Tzu, The Eternal Tao Te
Ching, Pequim, China Intercontinental Press, 2007, pag. 72.
22.Padre António Vieira, Sermão dos Bons Anos, 1641. Todas as citações do
nosso grande jesuíta provêm de António Vieira, Sermões, Porto, Lello &
Irmãos, 1959.

Bibliografia
Em chinês

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Minorias de Liaoning), 1996.
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China) 1999.
Tao Te Ching, comentário e modernização do texto, Changchun, Jilin
Wenshe Chubanshe, (Editora de Cultura e História de Jilin), 1999. 93
Zhonguo Gutai Wenxu Yinhua, “Vultos da Literatura Clássica Chinesa”,
Xangai, Jiayu Chubanshe (Editora de Educação), 1984, dois volumes. Antigas
Zhongguo Shenghua Gushi, “Histórias Mitológicas da China”, Taipé, v#A
Zhongjia Chubanshe (Imprensa Nacional), s/d. #A

Em português
Alp. Sair, A Filosofia de Lao-tseu e as suas Relações com o Orientalismo
Hermético, Lisboa, Livraria Clássica, 1921.
Ana Cristina Alves, A Sabedoria Chinesa, Cruz Quebrada, Casa das Letras,
2005.

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Netografia
São tantas e tão diversas as referências ao Tao Te Ching no mundo da net,
quase sempre de desiquilibrado estudo e nada confiável rigor, que cito aqui
apenas algumas hipóteses sérias de busca e trabalho. Consultar:

“Departement of Religion, University of Florida, com “useful links to


Internet resources on Daiosm and Chineses Philosophy”.
*Taoist Culture and Information Center, Hong Kong.
*Taoist Studies in the World Wide Web, maintained by Fabrizio Pregadio.
"The China WWW Virtual Library, Internet Guide for Chinese Studies,
Heidelberg University.

97
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA
O “RITO DE PASSAGEM DO ESCRITO AMARELO DA

CLARIDADE SUPERIOR': RELIGIÃO E


SEXUALIDADE NA CHINA ANTIGA

Bony Schachter

Introdução

O rito sexual daoísta — do qual nos chegaram poucos, porém,


importantes documentos — é o último expoente de uma forma cultural da
alta antiguidade já não mais aceita pelo mores chinês no período entre a
dissolução da dinastia Han e a fundação da dinastia Sui, isto é, os anos 220
589. A não aceitação dos ritos daoístas que envolviam o ato sexual terá seu
98
auge com as críticas budistas e as reformas litúrgicas promovidas tanto pela
Antigas linhagem da Claridade Superior quanto por Kou Qianzhi, no século V. Este
Leituras
VISOES DA processo culminará com a proibição do ritos daoístas de natureza sexual e a
CHINA
ANTIGA sua completa extinção durante o século X. O ritos eram praticados pelos
daoístas no contexto de sua vida comunal e com fins preponderantemente
religiosos. Por este motivo, o rito sexual era uma expressão da religiosidade
chinesa antiga e não pode ser confundido com outras abordagens do sexo no
contexto daquela cultura, tal como a perspectiva médica, a terapêutica, a
voltada para a procriação e, ainda, aquela relativa ao amor “livre” e ao
entretenimento. As abordagens médica e terapêutica são bem
documentadas. Se alinham a esta categoria as fontes primárias que discutem
ou mencionam a medicina chinesa em sua relação com as artes do
quarto}} HHºffi, isto é, as práticas de higiene sexual voltadas para o
prolongamento da vida."
A ideologia apresentada em textos como o Clássico das Mutações
poderia explicar a suposta “naturalidade” do matrimônio e a função do ato
sexual por meio das noções básica de Yin 2 e Yang kä, os princípios sexuais
masculino e feminino determinantes das noções de “homem” e “mulher”. O
par Yin-Yang, isto é, os opostos que descrevem as alternâncias do mundo
natural, tais como o dia, a noite, o calor, o frio etc, quando aplicadas ao
plano social e político, geram a ideia de que há algo como “o homem”, e algo
como “a mulher”. Assim, Yin e Yang deixam de ser apenas descrições dos
padrões de comportamento do mundo natural e passam a ser princípios
normativos e definidores dos gêneros masculino e feminino. Mais
importante ainda, pela associação das noções de Yin e Yang enquanto
princípios do funcionamento da natureza com a sua dimensão definidora de
gênero tem-se como resultado um sistema capaz de definir não apenas quem
é o “homem” e quem é a “mulher” como, também, os papéis a serem
executados pelos mesmos no contexto da vida social. Assim também ocorre
no rito de passagem, onde os participantes do rito são definidos não apenas
pela sua relação com o Dao como também pela sua situação enquanto
membros de uma comunidade onde são vistos em termos de “homem” e

“mulher”. Em outras instâncias da cultura antiga chinesa, a questão do


99
gênero não é tão bem delimitada. Estas duas noções assumem contornos
nítidos quando se referem ao matrimônio e ao papel de subordinação da Antigas
Leituras

mulher em relação ao homem. VISOES DA


CHINA
O matrimônio previa a formação da unidade básica da vida política e ANTIGA

social chinesa, isto é, a família (jia).? De acordo com textos como o Grande
Ensinamento X#, a família 3 é o cerne da vida pública e privada: o
soberano ideal é aquele que regula o reino como faria com a sua própria vida
doméstica." De qualquer modo, durante a antiguidade chinesa, a existência
do matrimônio enquanto instituição não tornava o indivíduo do gênero
masculino automaticamente subordinado a práticas estritamente
heterossexuais, posto que há registros históricos de práticas homossexuais
realizadas antes com o fim do amor, do entretenimento e da admiração
mútua entre homens do que por qualquer outro vínculo legitimador." Em
outras circunstâncias, pode ocorrer de o “homem” definir a si mesmo como
a “mulher”, ou vice-versa. Este é o caso do poeta Quyuan, que ao discursar
sobre o seu rei fala acerca de si mesmo como sendo a sua “beldade”#/\,
numa alusão às relações de amor entre ambos, onde ele assumia um papel
que não lhe estava necessariamente nem reservado nem negado pela cultura
antiga. Neste sentido, o rito de passagem sexual é uma manifestação do que
há de mais convencional no mores chinês, pois os participantes do mesmo
tem a sua relação de gênero definida, ao fim e ao cabo, pela mesma lógica do
matrimônio, segundo a qual o coito legítimo é aquele executado entre o
macho e a fêmea. Nem o sexo oral, nem o coito anal ou relações entre
indivíduos do mesmo gênero ou a livre iniciativa são pressupostos pelo rito
sexual daoísta. Do mesmo modo, nem a modalidade médica, nem a

terapêutica, a relativa ao amor livre e ao entretenimento poderiam explicar o


fenômeno da prática sexual no contexto do rito daoísta. Este estava imbuído
de noções de natureza abstrata que precisam ser exploradas de modo a que
se possa entender as finalidades do coito no âmbito de tal religião. Assim
sendo, deve-se considerar tal atividade pensando-se o espaço em que era
executada. O problema do espaço nos leva à questão do estabelecimento da
primeira instituição religiosa daoísta, em fins da dinastia Han (202 a.E.C. a
220).

O Caminho do Mestre Celestial

| ()() Em fins do século II, o império chinês já não era mais capaz de exercer
a sua autoridade por todo o seu extenso território. Rebeliões populares
Antigas
Leituras
VISOES DA
começaram a eclodir, muitas vezes tendo como fundo temas religiosos. Este
CHINA
ANTIGA
é o caso da Rebelião dos Turbantes Amarelos # [[##, liderada por Zhang
Jue #ff. Não se sabe quando o líder dos Turbantes Amarelos nasceu, mas a
data da sua morte, o ano de 184, é certa, e foi neste ano que a sua
impressionante rebelião foi reprimida com sucesso. O pano ideológico da
revolução liderada por Zhang Jue era, provavelmente, o Tratado da Suprema
Paz K**Á. Por este motivo, a Rebelião dos Turbantes Amarelos também

ficou conhecida como Caminho da Suprema Paz K*ifí. Tal livro propunha
a visão de uma sociedade ideal onde os princípios confucionistas aliados a
uma leitura esotérica da história chinesa substituiriam os sofrimentos

enfrentados pelo povo chinês durante a dinastia Han.


A luta contra as forças mobilizadas por Zhang Jue exauriram mais
ainda o poder imperial, já abalado por disputas políticas internas. O
enfraquecimento do poder central foi um dos eventos que tornaram possível
a fundação do daoismo como uma teocracia. É no contexto de rebeliões que
varriam a China no final da dinastia Han que surgiu o assim chamado
Caminho do Mestre Celestial KHijÉí, movimento que guarda semelhança
com a Revolução dos Turbantes Amarelos. Segundo relatos tradicionais, no
ano de 142, Taishang Laojun K_E é# apareceu numa revelação feita a
Zhang Daoling BRjÉíÉ no monte Heming #IW, em Sichuan. O objetivo de
tal aparição seria o estabelecimento de uma nova aliança entre os deuses do
daoismo e o povo. O Caminho da Grande Paz e o Caminho do Mestre
Celestial compartilhavam certas práticas religiosas e uma motivação política
comum, qual seja, o fim da dinastia Han e o estabelecimento de uma
teocracia daoísta. Um elemento fundamental desta nova religião de feições
teocráticas seria a abolição dos sacrifícios animais realizados no âmbito do
culto estatal. O estado daoísta deveria substituir o governo decadente do
império Han, realizando o ideal da Grande Paz que era justamente o tema
principal da rebelião liderada por Zhang Jue. Um elemento interessante é
que a era de Grande Paz seria precedida por eventos apocalípticos, dos quais
apenas aqueles que seguissem o Mestre Celestial poderiam se salvar. Este | ()]
conjunto de pessoas salvo pelos ensinamentos de Laojun e destinado a viver
Antigas
a era da Grande Paz era chamado, nos documentos da religião, por Povo Leituras
VISOES DA
Semente #R. Assim sendo, o Caminho do Mestre Celestial e a Revolução CHINA
ANTIGA
dos Turbantes Amarelos se configuram como dois importantes movimentos
político-religiosos do fim da dinastia Han. O primeiro, se afirmará como o
início do daoismo histórico, enquanto o segundo será suprimido pelas forças
imperiais no curso de violentas batalhas.
Não é possível afirmar com certeza a existência de uma figura histórica
chamada Zhang Daoling. Pesquisadores contemporâneos acreditam que
Zhang Daoling não foi mais do que uma lenda inventada por Zhang Lu
GR$, o seu suposto neto e, provavelmente, o verdadeiro fundador do
Caminho do Mestre Celestial. Zhang Lu, mesmo sem jamais ter declarado
independência formalmente, governou seu estado teocrático de modo
independente durante os anos 180. No entanto, esta situação chegará ao fim
quando Cao Cao H+ afirmar sua hegemonia no norte da China. Sem um
exército capaz de lutar com as forças de Cao Cao de maneira equilibrada, e
sem o talento militar do mesmo, Zhang Lu se renderá no ano de 215, de
maneira pacífica. Tão pacífica que ele receberá títulos de nobreza e verá
membros de sua família casando com o poderoso clã de Cao Cao.
Historiadores contemporâneos veem em Zhang Lu o principal
organizador do movimento em comunidades divididas pela China em vinte
A • / : - Sé» / líd =\ - 4-4 *-* -> a

e quatro paróquias. Cada paróquia?ífi possuía líderes comunitários


conhecidos por Libadores #H, e o mais importantes dentre os libadores era
chamado por Grande Libador J@MI. O termo libador indica a própria
função de tais membros durante os rituais, quando eram empregadas
quantidades moderadas de bebidas alcoólicas nos serviços sagrados. A classe
dos libadores irá evoluir para uma linhagem de sacordotes cujo ofício é
passado de pai para filho. Não apenas chineses Han como, também, outras
etnias vivendo na China, estrangeiros e mulheres eram aceitos como
membros da nova religião, dotada de propósitos universalizantes. As
comunidades contavam, também, com Casas de Caridade ##, onde os
passantes e os indigentes poderiam se alimentar e se hospedar de graça,
constituindo um excelente atrativo para o aumento de seguidores em
tempos de instabilidade econômica e política. Parte das provisões era
| 02 mantida com a contribuição anual de cinco sacas (PF, aproximadamente

Antigas
nove litros) de arroz por ano para a instituição por parte dos seus membros.
Leituras
VISOES DA A Ordem Ortodoxa Unitária IE…)É contemporânea clama uma ligação
CHINA
ANTIGA direta com o movimento religioso do Mestre Celestial Zhang Daoling,
embora a legitimidade e a validade histórica de tal ancestralidade seja
questionada por historiadores da religião, que muitas vezes, e felizmente,
não possuem compromisso com qualquer programa de ordem religiosa.
Em termos doutrinários, além da proibição de sacrifícios animais
/

mencionada anteriormente, é importante destacar, ainda, alguns outros


aspectos. Segundo a Aliança da Pureza #1: “Os deuses não comem nem
bebem. O mestre não recebe dinheiro. Wºlf HAS#Hi/ÍSIX#” A aliança entre
seres humanos e deuses deveria se dar fora das trocas pressupostas pelos
alimentos e pelo dinheiro. Os documentos remanescentes mostram que para
os membros das comunidades do Caminho do Mestre Celestial, cada

atividade cotidiana e não apenas a execução dos ritos, tinha conotação


religiosa. Este fervor religioso, no entanto, não pode ser considerado um
elemento normativo da sociedade chinesa antiga. Nem todos os chineses do
período Han viam o mundo como um lugar habitado por deuses e
demônios. Na verdade, certos eruditos confucionistas consideravam as
práticas daoístas e dos fangshi como devaneios, quimeras. Confucionistas
não necessariamente negavam a existência dos deuses e espíritos cultuados
pelas massas. Mas eles mesmos possuíam o seu próprio programa de ritos,
cujo objeto de culto não envolvia os mesmos deuses.
Ao mesmo tempo, ao contrário do que pensa o senso-comum, na
China antiga havia a noção de pecado (em chinês: # ou jù). Nas
comunidades daoístas, a doença e a morte eram explicadas como sendo
causadas pelos pecados e pelas ações demoníacas engendradas pelos
mesmos. Obviamente, o referencial para o pecado conforme descrito nos
documentos daoístas não possui relação com o Deus judaico-cristão,
representando antes uma combinação do mores chinês com os códigos
religiosos do Mestre Celestial. O pecado, contudo, poderia ser expiado por
meio da entoação ritual do Tratado do Caminho e da Virtude e por meio de
rituais dirigidos aos Três Oficiais = #, isto é, o Oficial do Céu Jºff, o | 03
Oficial da Terra filf e o Oficial da Água /k/H. Estas três divindades seriam
Antigas
Leituras
também responsáveis pelo estado de saúde das partes superior, média e VISOES DA
CHINA
inferior do corpo, respectivamente. Enfatize-se também que os primeiros
ANTIGA
usos do Tratado do Caminho e da Virtude parecem ter sido destinados à
recitação ritual, e não à leitura.
Taishang Laojun e os Três Oficiais não eram os únicos deuses dos
daoístas antigos. Todo homem e toda mulher recebiam, a cada iniciação, um
documento chamado registro $#. A cada registro correspondiam
determinados talismãs ff e divindades fil, cujos nomes por si mesmos
seriam capazes de evocar a sua presença. Pronunciando o nome de um deus
se poderia expulsar a presença indesejada de um demônio ou começar um
processo de cura, pois na comunidade do Mestre Celestial a suspeição de
doença era um elemento constante pairando sobre todos os indivíduos.
A noção de pneuma #U, um conceito universal em todos os âmbitos do
pensamento chinês, assumirá características peculiares em tal movimento.
Aqui, pneuma indicará uma espécie de poder que transcende todos os
fenômenos ao mesmo tempo em que os cria e neles se transforma. Os ritos
• • • • • • / —) - Á=
Imperiais seriam representativos dos pneumas dos SCIS CGUIS 7°N45, que

deveriam ser combatidos para que dessem lugar aos três pneumas =#{
puros do Caminho, chamados por pneuma do Início fi, do Princípio JL e
do Mistério 2, e aos quais corresponderiam três cores, a saber, branco, azul
e amarelo, visualizadas por ocasião dos rituais. Outro aspecto importante da
teologia do daoismo nesta fase será a personificação dos pneumas e a sua
burocratização. Os pneumas não apenas assumem a forma de deuses nos
quais os seres humanos podem identificar a si mesmos como, também, a sua
estrutura de organização nos documentos daoístas irá se comportar como
uma imagem espelhada da burocracia estatal. Assim, os deuses são
representados como soberanos, generais, oficiais, soldados, conselheiros.
Registros, talismãs, espadas, selos, carimbos, água consagrada, invocações e
rituais eram as armas usadas pelos daoístas na batalha diária contra os
demônios que lhes traziam doenças, sofrimentos e, em última instância,
sustentavam o governo Han.
Em um ambiente marcado por tão densa atmosfera religiosa, a prática
sexual certamente seria de alguma maneira ressignificada. Os registros que
104
nos chegaram do Caminho do Mestre Celestial indicam que também o sexo
Antigas era entendido como um elemento da vida comunal, e não apenas do âmbito
Leituras
VISOES DA
do privado, um conceito cuja própria existência no contexto referido nós
CHINA
ANTIGA temos razões significativas para questionar. É um consenso entre os scholars
que a prática ritual do sexo era realizada com o objetivo de regular os ciclos
de alteração cósmica, de criar proximidade entre os membros e de promover
iniciações. O termo “ciclos de alteração cósmica” não apenas parece místico
demais para o contexto acadêmico, ele de fato exige explicações.
Determinados documentos mostram que os daoístas do Caminho do Mestre
Celestial entendiam que o sexo ritual deveria ser praticado em determinadas
datas, em dias “auspiciosos” tais como indicados por meio de determinados
cálculos calêndricos. De qualquer modo, o ato sexual praticado durante o
rito não se resumia à penetração e não era realizado necessariamente com o
objetivo da longevidade ou da procriação. Na verdade, a penetração era
apenas uma das etapas de um complexo programa que envolvia visualizações
E, estímulos sonoros, exercícios respiratórios, massagens, toques.
O corpo, no âmbito deste ritual, não era o corpo moderno, mas sim
um corpo comunal, onde a experiência do sexo é esvaziada de elementos
recreativos para revestir-se com a importância de um ato capaz de alterar os
ciclos do tempo, as estações do ano, sendo representado tanto como a
origem de bençãos quanto de desgraças para toda a comunidade. Não era
tanto o encontro de um corpo com o outro, mas sim a atualização dos laços
de toda a comunidade com o âmbito divino por meio de recursos
simbólicos, imaginativos e físicos. Neste sentido, não havia espaço para a
iniciativa individual. Segundo Robinet, tanto a escolha dos parceiros quanto
o próprio modo como o ato ritual era executado eram minuciosamente
coordenados pelo sacerdote responsável, que acompanhava todo o processo.
Há razões para supor que tal rito tenha suas origens nas práticas orgiásticas
chinesas descritas por Maspero, embora não se possa tirar conclusões
precipitadas sem as provas arqueológicas que ainda faltariam para tal. O rito
sexual tal como descrito nos documentos do Mestre Celestial não envolve o

uso da possessão. Na verdade, nos documentos que chegaram aos dias de


hoje, o rito sexual é apresentado como uma arte que envolve paciência e
| 05
atenção aos detalhes e à memorização de várias etapas que, pode-se
presumir, não poderiam ser ignoradas ou ter sua ordem alterada. Tal rito Antigas
Leituras

prima pela simetria e pela estetização do sexo praticado num ambiente onde VISOES DA
CHINA
O uso do corpo e a mobilização de seu potencial erótico não pertencem à ANTIGA

privacidade do indivíduo, mas sim ao bem-estar geral de toda a comunidade


dos daoístas.

Etapas do rito

Não há consenso entre os pesquisadores no que se refere ao número


de etapas exato do rito. O próprio documento não é muito claro, pois há
divisões paragráficas que trazem consigo o número ordinal logo após o
título que lhes corresponde enquanto outras passagens trazem apenas o
título paragráfico, mas não o número ordinal que corresponderia à etapa
referida pelo título. Caso se concorde com o uso do numeral ordinal tal
como apresentado no texto, o rito poderá ser dividido em vinte etapas.
Entretanto, esta divisão excluiria outras etapas igualmente importantes. No
documento em si ocorre ainda o fenômeno de divisão de uma mesma etapa
em diversas sub-etapas. O meu objetivo não é fornecer uma leitura
extremamente detalhada do documento, mas sim uma visão geral dos
elementos que o compõem. O texto envolve a repetição intercalada de um
determinado número de recursos litúrgicos. Deste modo, uma descrição
extremamente minuciosa tornaria a leitura enfadonha e, de certo modo,

confusa. Algumas das etapas terão o texto correspondente traduzido,


enquanto a maioria, não.

A. Entrar no oratório X##. Depois de entrar no oratório, o homem e a


mulher assumem as posições Yin e Shen relativa aos doze ramos terrestres.
Se ajoelham e recitam um texto pedindo a participação no rito de passagem.
O Mestre concorda, afirmando que o dia é propício para a realização do
IT] e SIT] O !

X #5 W. H. H. É NE EH EXRjùjá ###### D) }}

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Antigas
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Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA Entrar no oratório. O homem [yang] fica de pé
sobre a posição Yin. A mulher yin] fica de pé
sobre a posição Shen. Aquele que pede a
participação no rito de passagem se ajoelha,
dizendo: “O iniciado Fulano teve a sorte que só
se encontra uma vez em mil anos de ser

transformado pelo ensinamento do Caminho.


No momento de pedir a escritura ritual, não
tendo passado ainda pelo rito de passagem,
inclino-me em reverência e refúgio, implorando
pela vida.”, quando então deverá reverenciar de
novo. O Mestre responde dizendo: “O dia de hoje
é auspicioso e, portanto, propício a servir para o
prósito da Ponte. As solenes palavras daquele que
pede [mostram] que deseja ir de encontro à
realização.” A resposta diz: “Pelo propósito da
anunciação, o discípulo recebe a benção
humildemente.” Então, reverencia de novo,

quando então se pegará sua mão conduzindo-o


para a direção leste.

B. Visualizar Oficiais e Soldados ###. Nesta etapa os participantes


visualizam os deuses presentes em seus respectivos registros, isto é, o
documento que comprova sua iniciação e adesão à comunidade do
Caminho do Mestre Celestial. O objetivo desta etapa é convocar as deidades
marciais do daoismo para que eliminem os desastres:

[...]{{I}+ _]H44 H}}{{# EJH{#####


EEJI: #######5|{T^{ff#EH => Rjí 4% /E/I = %

H = {{WL}J/E#######
| 07
[...] Cada um toca o tambor doze vezes. Cada um Antigas
Leituras
visualiza os Emissários do Mérito Superior, os VISOES DA
CHINA
Generais, Oficiais e Soldados com suas coroas e ANTIGA

vestimentas. Dispostos em formação, eles


protegem o servo e a serva à frente, atrás, à
esquerda e à direita. Eles irão expandir o pneuma
das quatro direções, eliminar desastres e
dispersar calamidades pelo servo e pela serva.

C. Visualizar o pneuma branco BÉ1#. Esta etapa consiste na visualização


do pneuma branco, que deverá banhar todos os órgãos internos, tendões e
canais de circulação do pneuma:

44. H. F} HH H4EUKIIIXN]-[[$# HH #EF}}}H EH H]}}

JK36 HHH{{#2 HH E F# É REj########7°N)ff

JL H + I = VL|YEH #fffff|}|{{L########
— UJ}{XSP}{R}IIIHE-jù IE

Cada um visualiza o pneuma branco do campo


do elixir do tamanho de um espelho de seis cun
saindo do espaço entre as duas sombrancelhas, a
sua luz aumenta gradualmente, iluminando o
topo da cabeça. Abaixo ela banha o corpo,
vendo-se completamente os cinco órgãos, as seis
vísceras, os nove palácios, as doze câmaras, os
quatro membros, os cinco corpos, as juntas, os
tendões, os meridianos, os orifícios, as funções
dos pneumas Ying e Wei. Dentro e fora, não
haverá nada que não esteja claro e iluminado.
Assim se faz uma vez,

D. Visualizar o pneuma régio E=E$R. O pneuma régio é aquele relacionado


a uma determinada estação do ano. Cada pneuma régio possui a sua própria
cor. Esta etapa demonstra que o rito sexual exigia visualizações diferentes de
| 08 acordo com a estação do ano em que era praticado:
Antigas
Leituras
VISOES DA 44 H =E4F{# H KUJ H ##########H> }
CHINA
ANTIGA E F# JJ #R####HX_{K} DE JJ H4E{ } {{#H>

4=}}|}J #4}{} #H>LVI]== H EH J. H. H. H4E{

fH> {{IHHD) } {{##{{{HHIF|2. S é#FFEH EH EH.


H 9s.
BB #
#

Cada um visualiza o pneuma régio. Durante a


primavera se visualiza o pneuma verde da direção
leste banhando o corpo, sendo complementado
pelo pneuma vermelho. Durante o verão se
visualiza o pneuma vermelho da direção sul,
sendo complementado pelo pneuma amarelo.
Durante o outono se visualiza o pneuma branco
da direção oeste, sendo complementado pelo
pneuma negro. Durante o inverno se visualiza o
pneuma negro da direção norte, sendo
complementado pelo pneuma verde. Durante as
quatro estações se visualiza o pneuma amarelo do
centro, sendo complementado pelo pneuma
branco. Erguendo a cabeça, o pneuma é recebido
pelo nariz. Descendo a cabeça ele é absorvido até
o campo do elixir, subindo pelo centro até o
Kunlun.

E. Absorver os Três Palácios WEB. Os Três Palácios correspondem a três


tipos de pneuma, que são o pneuma do Céu, da Terra e da Água. É possível
que tais pneumas possuam relação com o culto aos Três Oficiais, deuses que
no Caminho do Mestre Celestial estão associados a ritos de confissão e

expiação dos pecados. Esta etapa envolve a visualização dos pneumas, sua
absorção pelos canais de circulação dos mesmos e o uso de invocações:

| 09
44 H = JL4E4EU TE H2S E J#|TH # É ER] [[]]HHD), H.
Antigas
#4E4F{ # JR-#4E4F{#2K4E#{{HHHH2_4## Leituras
VISOES DA
CHINA
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ANTIGA

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HHIH2 + #FFFEH EH EH ME}LE#4E4F{##


%RTEH ##########7NJRF + _X=F}|[[I]H.

—} IE

Cada um visualiza o pneuma da vida plenamente


branco dos três princípios descendo, circulando e
cobrindo todo o corpo, quando se ergue a cabeça
para captar o pneuma de vida com o nariz,
dizendo: “Pneuma de vida do primeiro palácio
celeste, venha me vivificar”. Desce-se a cabeça,
absorvendo-o, fazendo com que preencha o
campo do elixir abaixo e com que suba pelo
centro até a pílula de lama. As invocações da terra
e da água são tal qual o método do céu. Depois de
absorver-se Itais pneumas], levanta-se a cabeça
para captar o pneuma da vida com o nariz. O
pneuma da vida dos três palácios do céu, da terra
e da água deverá vir vivificar o nosso corpo.
Descendo a cabeça, absorve-se [tais pneumas],
fazendo com que preencham o campo do elixir
abaixo e com que subam pelo centro até a pílula
de lama. O pneuma da vida dos três palácios é
vasto e completamente branco. Ele cobre o corpo,
alcançando o espaço entre os cinco órgãos, as seis
vísceras e os doze ramos e troncos. Assim se faz uma
1/622.

F. Anunciar o serviço ###. O texto correspondente a esta etapa é


relativamente extenso e envolve a invocaçao de inúmeros deuses, bem como
o uso de textos no formato de petições, que devem ser lidos pelos
| | () participantes do ritual de modo a comunicar às deidades as suas intenções e
Antigas pedidos. Esta parte faz uma espécie de sinopse do ritual, anunciando o seu
Leituras
VISOES DA início, as divindades a serem invocadas, os objetivos do rito (por exemplo,
CHINA
ANTIGA curar as doenças##e alcançar a condição de Povo
Semente######R: #FF), os métodos empregados (o Rito da Grande
Passagem das Oito Gerações/\*EUKE####) e o seu desfecho por meio do
anúncio do mérito.

G. Pular a rede terrestre ###. Esta etapa ainda inclui a liberação da rede
celeste###. Os participantes realizam uma invocação com o objetivo de
excluir a si mesmos do livro da morte e serem inscritos no registro da
vida#####_E#E$#. A referência aos livros da vida e da morte será

ainda mais acentuada nas escrituras das linhagens da Claridade Superior e


do Tesouro Numinoso, onde o fato de se ter ou não o próprio nome inscrito
nos registros divinos é determinado pela conduta do devoto, pelo fato de ter
recebido iniciação ou não e pela sua participação nos ritos daoístas.

H. Reverenciar os Quatro Senhores #HV]*#. Como explicado no tópico


anterior, os Quatro Senhores são deuses criados a partir da personificação
do conceito de doze ramos terrestres. Os envolvidos imploram novamente
pela participação no rito de passagem, além de pedirem pela eliminação dos
desastres.

I. Visualização ###. Os pneumas azul, amarelo e branco são visualizados,


presumivelmente são os pneumas de mesma cor chamados por Mistério,
Princípio e Início. Segundo o trecho, estes três pneumas se unem, tendo
((

um aspecto túrbido, parecido com o ovo de uma


galinha”- #E#Rí!)!}=f. A referência ao ovo de galinha remete a um dos
mitos de criação chineses segundo o qual no início dos tempos o universo
era um todo indiferenciado onde repousava Panguf H.

J. Dez Deuses +3+, combinar os nomes dos Vinte Veneráveis #E=Fiº#44, |]]
visualizar os Cinco Deuses BH3+. Esta etapa repete procedimentos já Antigas
Leituras
VISOES DA
executados em etapas anteriores (implorar para participar do rito, pedir pela CHINA
exclusão do nome nos livros da morte, eliminação dos desastres e ANTIGA

participação no Povo-Semente), só que desta vez invocando a presença dos


Dez Deuses já mencionados acima.

K. Oito Gerações /\*E. Nesta etapa começa o intercurso sexual


propriamente dito. Consiste em oito sub-partes. Os participantes devem
desfazer a posição de mãos dadas É Fe executar as Oito Gerações, cujos
nomes sugerem a movimentação realizada no coito sexual sem, no entanto,
fornecer detalhes das ações executadas. A cada sub-etapa corresponde a
visualização de determinados deuses.

L. Ingerir a vida e expelir a morte ÉréÉRE5E. Nesta etapa o Mestre ajuda os


• /* =H= 2

discípulos a “remover as vestes” ##e a “prender os cabelos soltos” ###.


O homem se posiciona à esquerda e a mulher à direita. De mãos dadas, eles
(( º • • • • >> (( •

inspiram o pneuma da vida delicadamente com o nariz” e “expiram o


pneuma da morte delicadamente com a boca”P), Llf}{#EE5E5.
M. Distribuir os Nove Palácios fi JL5. Esta etapa envolve uma complexa
coreografia que faz uso de vários gestos feitos com as mãos de ambos os
participantes, toques e invocações. O corpo humano e as posições que o
mesmo ocupa são associados aos conceitos de troncos, ramos e oito
trigramas. Budistas criticaram duramente esta etapa do ritual, dizendo que
“com os quatro olhos e as duas línguas de frente um pro outro, praticavam o
Dao no campo do elixir” VIH WHIEXfffié{{E}^FFHH. Esta sentença
sugere uma crítica à proximidade física entre o homem e a mulher bem
como ao coito, uma vez que o campo do elixir se encontra no baixo-ventre,
na região próxima aos genitais. As etapas seguintes continuam executando
coreografias e técnicas correlatas àquelas descritas até agora.

N. Retornar os deuses ###. Nesta fase começa o desfecho do ritual. A hoste


de deuses é visualizada. Os pneumas de diversas cores são levados de volta
| 12 para os respectivos órgãos e partes do corpo tanto do homem quanto da
mulher. A esta etapa se seguem outras fases, incluindo visualizações do assim
Antigas
Leituras chamado pneuma régio, massagens, pedidos similares aos realizados nas
VISOES DA
CHINA etapas anteriores. Nota-se, portanto, que o rito se desfecha de modo
ANTIGA
semelhante ao processo do início, reforçando a sua estrutura simétrica e
repetitiva.

O. Anunciar o mérito #1h. Esta é a última parte do rito. Como no


princípio, os participantes se voltam para o leste, de mãos dadas. Ajoelham
se por um longo tempo, tocando o tambor por doze vezes. Mais uma vez
reforçam seu compromisso com a comunidade, fazendo pedidos na forma
de petições e agradecendo pela benção da participação no rito de junção dos
pneumas.

Além do Rito de Passagem ele mesmo, outros documentos citam o rito


acima descrito. A maioria das fontes que citam o Rito de Passagem — sejam
elas budistas ou não — apresentam fortes críticas ao mesmo, pois o fato de
seus participantes empregarem o ato sexual como um recurso litúrgico é
considerado uma violação do mores chinês. Escandalizados, os budistas
deixaram diversos registros de sua consternação diante do rito sexual.
Mesmo fontes daoístas o reprovam, num processo que se tornará cada vez
—à-

mais grave a partir do século V. Nas Declarações dos Autênticos Hí# — uma
coletânea de revelações feitas pelos deuses daoístas a Yang Xi #, coletânea
esta fortemente ligada ao estabelecimento da linhagem da Claridade
Superior — há comentários relativos os ritos de natureza sexual praticados no
âmbito do movimento do Mestre Celestial. Para o Homem Perfeito do Puro

Vazio # H. W., o “caminho do amarelo e do vermelho” #RZiá, isto é, a


prática do rito sexual — amarelo e vermelho são cores representativas dos
pneumas do homem e da mulher — “não é ocupação dos Seres
Perfeitos”HEH. W.Z.Httl. Já a Senhora Ziwei #f{ER}\ entende que embora
o rito sexual seja um “segredo essencial do prolongamento da vida”
F#4EZE}}, ao mesmo tempo, “não é o caminho superior” HF Eifítil. Os
Seres Perfeitos H \, “são chamados por marido e mulher, mas não | 13
praticam as obras dos mesmos” #42 ###MSÍVER#2_B}th. Tais registros
Antigas
Leituras
são característicos do processo de internalização das práticas sexuais do
VISOES DA
Caminho do Mestre Celestial, que na linhagem da Claridade Superior CHINA
ANTIGA
assumirão cada vez mais uma dimensão metafórica, ao invés de literal. Isto

é, os trechos acima demonstram que quando da formação da linhagem da


Claridade Superior, o rito daoísta começava a passar por reformas, entre elas
a crescente exclusão do rito sexual.

Fundamental para a repressão dos ritos sexuais daoístas será a reforma


litúrgica proposta por Kou Qianzhi (365-448). Por meio de uma série de
manobras políticas, Kou Qianzhi terá grande influência no reino de Wei do
Norte dú5}, governado pelo clã Tuoba f{i}, da etnia Xianbei ## (uma
etnia proto-mongol). Em seu Preceitos do novo código entoado nas nuvens
# Hºfff|2. BY, Kou Qianzhi afirma que no ano de 415 se deparou com
uma comitiva divina liderada por Taishang Laojun, que lhe teria ordenado
“retificar o daoismo, excluindo os ritos falsos dos três Zhang, o aluguel em
arroz e os impostos em dinheiro bem como a arte da junção dos pneumas
do homem e da mulher.” ##############H}<####X # {

##{Zíff. Os “três Zhang” são Zhang Daoling, Zhang Heng e Zhang Lu.
Kou Qianzhi, com a autoridade conferida pela suposta revelação de Laojun,
declarou a si mesmo como o novo Mestre Celestial, começando não apenas
a eliminação do rito de junção dos pneumas como, também, dos ritos de
auto-imolação e dos banquetes comunais praticados no contexto daquela
comunidade.

Considerações finais

A descrição do rito sexual daoísta no contexto do Caminho do Mestre


Celestial nos proporciona uma outra história do daoismo já bem conhecida
pelos sinólogos em âmbito internacional mas praticamente ignorada pela
nova geração de pesquisadores brasileiros e portugueses voltados para o
tema “China”. Aqui, me esforcei para apresentar não o daoismo “filosófico”
de Laozi e Zhuangzi — uma construção póstuma bastante diferente do que
nos dizem as fontes primárias pertinentes — mas sim o daoismo histórico,
com ênfase na comunidade de grande fervor religioso formada na China
durante o período final da dinastia Han. Curiosamente, é justamente desta
114 comunidade que se origina o primeiro comentário conhecido ao Tratado do
Caminho e da Virtude, bem como as primeiras informações do uso que se fazia
Antigas
Leituras
VISOES DA
do documento no contexto da religião antiga: este não era lido como objeto
CHINA de estímulo à reflexão, mas sim como uma das fontes das diretrizes morais
ANTIGA
do Caminho do Mestre Celestial, ao mesmo tempo em que era recitado
durante ritos para a dissolução dos pecados. Embora não se possa dizer que
o texto atribuído a Laozi tenha sido produzido com tal finalidade, por outro
lado, não se pode negar que foram estes foram os primeiros usos dados ao
texto. O rito sexual, por sua vez, atendia a funções religiosas similares
àquelas da recitação de escrituras sagradas, já que se destinava a absolver os
devotos dos pecados, evitar desastres, obtendo-se a cura não por meio de
uma prática higiênica, mas sim através da ação dos deuses daoístas que, de
acordo com a visão de mundo dos daoístas antigos, seriam capazes de
expulsar demônios e suas influências nocivas. Por fim, cabe reforçar que o
rito sexual era realizado no contexto de expectativas escatológicas, de modo
que a junção dos pneumas realizada de modo correto seria capaz de garantir
aos membros da comunidade religiosa um lugar entre os componentes do
povo escolhido daoísta.
Notas

1.Diversas fontes primárias discutem a atividade sexual em termos médicos.


De modo geral, a atividade do sexo era vista como uma espécie de
comunhão dos pneumas Yink? e Yang% inerentes ao homem e à mulher.
Determinadas fontes são escritas tendo em consideração principalmente a
saúde do homem, e não da mulher. Por exemplo, a recomendação contra a
ejaculação visava proteger o homem contra o desgaste de essência# causado
pela mesma. Ge Hong, por sua vez, considerava que a ausência de atividade
sexual poderia causar transtornos à saúde física e psicológica de um
indivíduo. Para uma introdução acerca das concepções do sexo na alta
antiguidade chinesa, vide Paul Rakita Goldin, The culture of Sex in ancient
China, University of Hawai Press, Honolulu, 2002.
2.Neste sentido, vale recorrer a fontes primárias tais como o Clássico dos
Ritos#C, onde há um capítulo dedicado ao Significado do Matrimônio#. 1 15
Antigos clássicos confucionistas, tais como os Analetos###, o Clássico dos Antigas
Leituras

Ritos#U, o Clássico das Mutações}}# etc já foram objeto de várias VISOES DA


CHINA
traduções para diversas línguas ocidentais, tais como o francês, o inglês, o ANTIGA

espanhol, o italiano, o latim, o português. A sinologia enquanto disciplina


teve seu fundamento justo no estudo de tais textos. A abertura do Significado
do Matrimônio é assim traduzida por Legge em Sacred Books of the East,
vol.28, part 4, 1885.
3.Refiro-me a uma conhecida passagem do Grande Ensinamento X"?, obra
incorporada no cânone chinês através do Clássico dos Ritos#E. A passagem
segundo a qual o soberano deve administrar o reino como quem administra
sua própria família é assim traduzida por Legge em Sacred Books of the East,
vol.28, part 4, 1885.
4.Para uma discussão da homossexualidade na antiguidade chinesa, vide
Bret Hinsch, Passions of the Cut Sleeve, University of California Press, 1990.
5.Cabe aqui, uma pequena digressão: para que se tenha uma noção da
importância da dinastia Han no contexto da história chinesa, podemos
apontar para o fato de que tudo o que senso-comum no Ocidente entende
por “chinês” não é outra coisa senão uma imagem mais ou menos vaga da
cultura da nação Hank, o grupo étnico majoritário da China
contemporânea, figurando não apenas como o mais numeroso como,
também, como o elemento regulador das políticas destinadas a definir e
proteger as outras cinquenta e cinco etnias que compõem o mosaico cultural
chinês.

6.Zhang Jue era natural de JuluíHME, Hebei?IdE. Baseando-se na sua


interpretação particular da cosmologia chinesa, Zhang Jue entendia que o
fim da dinastia Han era eminente, e que o Céu Azul H. Kdeveria ser
substituído pelo Céu Amarelo#Kdos Turbantes Amerelos. Para Zhang Jue,
a dinastia Han era a era da madeira, e esta deveria ser seguida pela era da
terra. Zhang Jue denominava a si mesmo o General do Céu R2\###í,
enquanto que seus irmãos seriam o General da Terra#L2\###H e o General
do Homem)\ 2\###í, em uma referência ao conceito de Três Potências=74.:
Céu, HOmem e Terra.

7.Pangu era uma figura mítica da China. Diz-se que ele nasceu dentro do
116
“caos”. Após milhares de anos de indiferenciação, o caos começou a tomar
Antigas forma. O pneuma puro subiu e se tornou o céu, o pneuma túrbido desceu e
Leituras
VISOES DA se transformou na terra. O céu se tornava cada vez “mais alto”, enquanto a
CHINA
ANTIGA terra se tornava cada vez “mais funda”. Pangu sustentava o céu sobre a terra e
crescia à medida em que ambos se separavam. Depois que o gigante morreu,
seu pneuma se transformou no vento vento e nas nuvens. Sua voz se
transformou no trovão. O olho esquerdo se transformou no sol. O olho
direito, na lua. Seus membros se transformaram em montanhas. Seu sangue,
nos rios e ravinas. Seus tendões compuseram a textura terrestre. Seus
músculos, a terra ela mesma. Seus cabelos formaram as estrelas. Sua pele, a
grama. Seus dentes, ouro e pedras preciosas.

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Stanford University Press, Stanford, California, 2000.
ZHUANGZIE ARISTÓTELES:
SOBRE SER UMA COISA

Chenyang Li

A questão de ser pode ser entendida como a questão da natureza das


coisas, e do que e como elas estão no mundo; nossa compreensão do ser tem
profundas implicações para a nossa forma de entender o mundo como um
todo. Neste sentido, o filósofo daoísta chinês Zhuangzi (Chuang Tzu, ca.
375-300 AEC) e Aristóteles têm perspectivas bastante diferentes. Um estudo
comparativo desses dois importantes pensadores nos ajuda a entender
algumas diferenças fundamentais sobre Ontologia.

| 18 Ser como Identidade

Antigas
Leituras
VISOES DA
A mesa que estou usando para escrever este artigo pode ser vista de
CHINA duas maneiras. Primeiro, é uma mesa do senso-comum que tem extensão,
ANTIGA
ocupa um pedaço de espaço, e é substancial. Em segundo lugar, é realmente
uma massa de elétrons com um amplo espaço vazio neles. Presumivelmente,
há apenas uma mesa aqui. Agora, qual delas é a coisa? Algumas pessoas
dizem que só há uma coisa que é auto-idêntica, e tem atributos ou
propriedades. Então a questão é, o que é isso? No caso acima, é a mesa uma
propriedade da massa de elétrons, ou é a massa de elétrons uma propriedade
da mesa? Outros podem insistir que há realmente duas coisas que coincidem
no espaço. Então, há apenas dois delas, ou há mais? Qual é a relação entre
elas, além de sua coincidência espacial? Geralmente estas perguntas são
investigadas através dos conceitos de ser e identidade.
A questão do ser é de extrema importância, pois, se estamos
conscientes disso ou não, muitos dos pontos de vista de uma pessoa sobre
outros aspectos do mundo são dependentes de seus pontos de vista sobre
esta questão. Por uma questão de fato, todas as pessoas, filósofa ou não, da
mesma forma, tem alguma opinião sobre isso, embora a maioria das pessoas
tenha suas opiniões tacitamente. As implicações de diferentes pontos de vista
sobre esta questão fundamental são profundas. As pessoas que têm
perspectivas diferentes sobre esta questão mantém, fundamentalmente,
diferentes visões de mundo . Suas visões de mundo pode ser tão
radicalmente diferente que dificilmente compartilham uma base comum,
suficiente para transmitir um ao outro, suas posições sobre questões
relacionadas.

Meu foco é sobre a questão de ser como "identidade”, ou seja, a


questão do que um existente pode estar dizendo para ser. Acredito que as
visões dominantes sobre esta questão, no Oriente e no Ocidente, são muito
diferentes, e que muitos outros pontos de vista diferentes são conseqüências
desta diferença fundamental. Por esta razão, é fundamental que nós
entendamos suas diferenças, se quisermos compreender os dois lados, e suas
perspectivas em muitas outras questões.
Grosso modo, a visão dominante no Ocidente tende a ver o mundo
1 19
como um conjunto de elementos básicos ou "tijolos" (por exemplo, átomos)
que são estendidos no espaço e formam o mundo em grande parte através da Antigas
Leituras

organização espacial. A partir desta perspectiva , a mudança é apenas nas VISOES DA


CHINA
aparências, e o mundo é estático em um nível fundamental. O foco ANTIGA

filosófico, dentro deste pressuposto, é geralmente o de identificar os


elementos básicos ou tijolos fundamentais e, em seguida, explicar como a
mudança é possível em um mundo no qual a maioria dos elementos são
estáticos (i.e., Descartes). Em contraste, muitos filósofos orientais acreditam
que o elemento fundamental, ou elementos, do mundo são mais sutis e sem
forma. Para esses filósofos, a natureza fundamental do mundo é a mudança.
A estática é encontrado apenas no aparecimento de um mundo que é
essencialmente dinâmico. Um de seus desafios aqui é explicar a constância
aparente na mudança.
Na tradição chinesa, o chamado "cinco elementos (wu xing)",
nomeados como metal, madeira, água, fogo e terra, são entendidos não
como cinco "tijolos", estáticos, mas princípios dinâmicos que são os próprios
agentes. Os cinco elementos podem ser comparados aos “quatro elementos”
do antigo filósofo grego Empédocles, ou seja, água, ar, fogo e terra. Eles são,
no entanto, muito diferentes na verdade, já que os "cinco elementos"
chineses não são matéria inerte que tem de ser ativada a partir do exterior
por alguns princípios externos como os "quatro elementos" de Empédocles
são. Um Confucionista do período Han, Dong Zhongshu, disse: "xing Zhe
xing ye", isto é , "xing" significa "agir" ou "se comportar" (Chunqiufanlu,
“Wuxing Xiangsheng”). Portanto, “wu xing" pode ser melhor traduzido
como "cinco agentes" ou "cinco processos".
Os "cinco elementos", se acredita, são cinco tipos de qi (chi). Os
chineses acreditam que o elemento fundamental ou material do mundo é qi,
o que foi devidamente traduzido para o Inglês como "força-energia". Ao
contrário de átomos, na filosofia chinesa qi é intangível, dinâmico, e ainda
constitui a infinidade de coisas no mundo. Este conceito de algo intangível
como fundamento da realidade pode parecer incompreensível para muitos
ocidentais. Felizmente, a física moderna tem proporcionado um
instrumento útil para dar sentido a este conceito. Qi não é exatamente a
“energia” na física moderna, mas se pode compreender como, no nível
fundamental do mundo, a energia, que é intangível e dinâmica, é
equivalente ou conversível para a matéria, e temos uma boa analogia para
120 trabalhar com a compreensão do qi chinês.
Enquanto o "qi" denota a realidade no nível fundamental, a nossa
Antigas
Leituras
VISOES DA
vida cotidiana, no entanto, lida principalmente com as chamadas entidades
CHINA
de "médio porte", tais como cadeiras , cavalos e árvores. A maioria das
ANTIGA
pessoas, tanto no Ocidente como no Oriente, parecem concordar que há de
fato essas entidades. Isso não significa, porém, que eles concordam com a
forma como o mundo é, neste nível. O entendimento chinês dominante
sobre o mundo é fundamentalmente fluido, como extensões de Qi nos mais
variados níveis do mundo, incluindo o nível dos objetos de "médio porte".
Neste capítulo, vou comparar o ponto de vista de Zhuangzi, um filósofo
daoísta chinês, com a visão de entidade, bastante influente no Ocidente, e

derivada de Aristóteles. Eu vou mostrar que eles não são apenas diferentes,
mas também, como a ontologia de Zhuangzi é uma alternativa viável para a
ontologia aristotélica.

O Ser do boi

Uma visão comum do ser no Ocidente é assim: uma entidade cai em

uma determinada substância sortal [categorial] de categoria “S” e é um 's'; há


outras coisas que podem ser ditas dos “s”, mas aquelas são apenas qualidades
ou propriedades; ser “s” é seu ser primário, e determina a identidade da
entidade. Por exemplo, a entidade é um boi, que se enquadra na categoria
sortal substância “boi”. Ser um indivíduo boi determina a identidade da

entidade; ser marrom, ter sete pés de comprimento, composto de massa m,


etc, são as suas propriedades. Esta é uma opinião defendida, explícita ou
implicitamente, por muitos filósofos ocidentais.
A origem deste ponto de vista pode ser rastreada até a doutrina de
Aristóteles de ousia, ou seja, o ser primário ou substância, como é
geralmente interpretado. Aristóteles discute o problema da ousia em
Metafísica, principalmente nos "livros centrais". Suas discussões são longas,
meticulosas, e às vezes inconsistentes. Os comentadores estão, muitas vezes,

amplamente divididos em relação sobre qual é realmente a posição de


Aristóteles sobre essas questões. Aqui, eu apresento Aristóteles em uma
interpretação mais ou menos padrão. Aristóteles propõe que a filosofia é a
|| 2 |
ciência do ser enquanto ser. Ele afirma:
Antigas
Leituras

O ser tem muitos significados, como estabelecemos VISOES DA


CHINA
anteriormente, no livro ddicado aos diversos ANTIGA

significados dos termos. De fato, o ser significa, de


um lado, essência e algo determinado, de outro,
qualidade ou quantidade e cada uma das outras
categorias. Mesmo sendo dito em tantos significados,
é evidente que o primeiro dos significados do ser é a
essência, que indica a substância [de fato, quando
perguntamos a qualidade de alguma coisa, dizemos
que é boa ou má, mas não que tem três côvados ou
que é homem; ao contrário, quando perguntamos
qual é sua essência, não dizemos que é branca ou
quente, mas que é um homem ou que é um deus]
(Metafísica, 1028a 10-17)

Assim, há muitas maneiras em que se pode falar da qualidade


essencial de uma entidade individual, mas apenas uma maneira refere-se a
substância primária ("a que" ou "alguma coisa"), as outras são predicados
(ou propriedades). É a este ser primário que o "o que é ser" ou essência (to ti
en einai) pertence. Assim, Aristóteles reduz a pergunta "o que é ser?" para a
pergunta "o que é substância?". A maneira pela qual Aristóteles fala sobre
essência e ser primário indica claramente que ele acredita que para cada
entidade individual (ou, pelo menos, uma entidade natural) só há uma
essência e um ser primário. Pois a essência de uma entidade é (determinado
por) sua forma; presumivelmente, uma entidade tem apenas uma forma,
portanto uma entidade só pode ter uma essência. Uma entidade pode ter um
ser secundário, mas apenas um ser primário.
Disso seguem várias reivindicações aristotélicas interlacionadas no
que diz respeito à identidade de uma entidade. Primeiro de tudo, a
visualização de uma entidade como uma coleção de suas partes constituintes
não revela a realidade da entidade. A essência pertence à entidade como um
todo, e não às suas partes constituintes. Desde que o ser primário de uma
entidade é determinado pela sua essência cujas partes constituintes não
possuem, o ser primordial de uma entidade não pode ser revelado por uma
122 análise de suas partes. Em outras palavras, uma entidade é um particular
isto, mas não somente um isto, mas também é um definitivo aquilo, isto é, o
Antigas
Leituras
VISOES DA
isto-desse modo. Ele não pode ser um isto, sem ser também de um certo
CHINA
modo. Em segundo lugar, para Aristóteles, porque só há uma essência em
ANTIGA
uma entidade, só há apenas um ser primário na mesma, e, portanto, não há
uma única resposta objetiva direita para a questão do que uma entidade é
primariamente. A resposta certa é aquela que revela a essência da entidade e
substância primária. Em terceiro lugar, Aristóteles afirma que a essência de
uma entidade está ligada a sua espécie, e da espécie a que pertence a entidade
mantém a entidade primária do ser. Assim, a retirada dos membros das
espécies significa a perda da entidade primária do ser e, portanto, a sua
destruição. Estes pontos de vista representam uma parte substancial dos
metafísica aristotélica; muitas observações filosóficas são baseados neles.
A metafísica da Zhuangzi, um quase contemporâneo de Aristóteles,
pode ser vista em dois níveis. No nível fundamental, cada coisa pertence ao
Dao, ou o Caminho. O Dao é a verdade última do universo. Cada coisa no

mundo tem sua raiz no Dao. Neste sentido, todos são um, e as diferenças
entre as coisas são insignificantes do ponto de vista do Dao. No nível da
entidade, cada pessoa física pode ser tanto um "isto" e um "aquilo". Ser "isto"
não exclui a sua também ser um "aquilo". Os dois níveis estão ligados entre
si, e um indivíduo ser “isto” e ser “aquilo” são formas de o Dao de se
apresentar. A seguir vou me concentrar no segundo nível, sobre a questão
da identidade de uma entidade.

Para Aristóteles, ser uma substância primária é ser um membro do


tipo mais baixo de substância, por exemplo, o ser boi é um ser primário."
Assim, deixar de ser um boi significa perder seu ser primário, e nosso
reconhecimento da entidade como o boi indivíduo é o único caminho certo

para nós reconhecermos seu ser primário. Curiosamente, Zhuangzi também


usou o boi fazer seu ponto. Mas ele tem uma percepção diferente do que um
boi é. Em sua história sobre o “Cozinheiro Ding”, o cozinheiro diz:

Quando comecei a retalhar bois, via diante de mim


bois inteiros. Após três anos de prática, não mais via
os animais inteiros. [...] Recaindo nos princípios
123
eternos, vou resvalando pelas grandes juntas, ou
cavidades, como se apresentam, obedecendo à Antigas
Leituras

constituição do animal. Nem chego a tocar nas VISOES DA


CHINA
ligações do músculo e do tendão e muito menos ANTIGA

tento cortar os grandes ossos. Um bom cozinheiro


substitui o facão uma vez por ano - porque sabe
cortar. Um cozinheiro ordinário, uma vez por mês -
porque só sabe picar. Mas tenho usado esse facão
durante dezenove anos e embora tenha retalhado

milhares de bois, o fio se mantém tão aguçado como


se tivesse sido amolado agora mesmo.

Ele explica ainda,

Pois nas juntas sempre existem espaços e o fio de um


facão, quase sem espessura, basta inseri-lo nos
espaços. Na verdade, há muito onde usar a lâmina.
Foi assim que consegui conservar meu facão durante
dezenove anos com o fio igual ao dos que acabam de
passar pela pedra de amolar.
(Zhuangzi, “Yangshengzhu”).
O objetivo principal da história de Zhuangzi é de nos dizer como
encontrar o nosso caminho no mundo. Ele sugere que isto pode ser feito
através de conhecer e usar, de forma adequada, as coisas no mundo. Depois
de três anos de treino apurado, o cozinheiro Ding não mais via o boi como
uma coisa inteira, mas um pacote de carne e ossos. Para Zhuangzi, o
cozinheiro Ding não estava enganado. O que o cozinheiro viu foi real. A
entidade foi certamente também um boi. O que isto mostra é que um boi
pode ser reconhecido não só como um boi individual, mas também como
um pacote de carne e ossos. Assim, ao contar a história Zhuangzi sugere que,
como um ser, a entidade é tanto um boi e um pacote de carne e ossos.
Isso é diferente de Aristóteles, que escreve:

Assim a matéria é parte também da estátua,


considerada como composto concreto do bronze;
124 mas não é parte da estátua considerada como pura
forma. De fato, deve-se designar a forma e cada coisa
Antigas
Leituras
VISOES DA
naquilo que tem de forma e não se deve nunca
CHINA exprimir o aspecto material da coisa em si e por si.
ANTIGA
(Metafísica, 1035a 5-10)

Em certo sentido, o bronze é uma parte da estátua como uma


entidade, e carne e ossos são partes de um boi (Metafísica, 1035a 2-5). Mas
essas peças não são os elementos de forma da entidade. A partir de
Aristóteles, por vezes, parece-se acreditar que o ser primário de uma
entidade é a sua forma, em certo sentido essas partes não são partes
constitutivas do ser primário da entidade. Um boi como um todo tem a
essência de ser um boi, enquanto que as partes não possuem esta essência.
Aristóteles trata da relação entre um pacote de carne e ossos de um lado e
um boi no outro como a relação entre potência e ato. O pacote de carne e
ossos é a matéria em que existe o potencial para ser um boi. É a forma que
dá a realidade da entidade e faz com que seja um boi real. O ser primário da
substância é exclusivamente o boi.

Zhuangzi, no entanto, acredita que a análise de suas partes


constituintes é uma abordagem legítima para a realidade de uma entidade.
Por um lado, o seu ser boi não esgota toda a sua existência. É um boi, mas
também é um pacote de carne e ossos. A entidade de ser um pacote de carne
e ossos não é apenas uma potencialidade. O pacote de carne e ossos é tão real
como o boi. Aos olhos de Cozinheiro Ding, não é o caso de que o pacote de
carne e ossos se realizam sendo um boi, nem é a entidade potencialmente
um pacote de carne e ossos que irá se realizar após o boi ser morto. A seus
olhos, a entidade é um pacote de carne e ossos. Por outro lado, Zhuangzi
não reconhece essência ou ser primário. Ele não acredita que não há tal coisa
como a essência que determina exclusivamente o ser da entidade. Portanto,
a entidade ser um agregado de peças não é menos real do que ser um boi.
Assim, conceitualmente, Zhuangzi vê a entidade em um nível
diferente do fato de ser um boi ou um pacote de carne e ossos. Apesar de ser
um boi, e ser um pacote de carne e ossos, não são o mesmo modo de ser, eles
são a mesma entidade que tem ambas as maneiras de ser. Ao contrário da
125
visão aristotélica de que cada particular é um isto-aquilo, Zhuangzi coloca:
Antigas
Leituras

Não há nada que não seja "isto"; não há nada que VISOES DA
CHINA
não seja "aquilo". O que não pode ser visto por ANTIGA

"aquilo", (a outra pessoa) pode ser compreendido


por mim. Daí eu digo, "isto" emana "daquilo";
"aquilo" também deriva "disto". [...] Assim, o sábio
não se preocupa com estas distinções, mas vê todas
as coisas da maneira que são. “Isto” é também
“aquilo”, e “aquilo” também é “isto”. [...] Quando
não há mais separação entre "isto" e "aquilo", isso é
chamado de pivô do Tao. No pivô no centro do
círculo pode-se ver o infinito em todas as coisas
(Zhuangzi — “Qiwulun”).

Para Zhuangzi, nós sempre olhamos para as coisas a partir de um


certo ponto de vista. Se eu começar a partir de onde estou e ver uma coisa
como um "isto", então isso também torna possível para mim ver o que um
outro vê como um "aquilo". Por isso, ver como um "isto" e ver como um
"aquilo" dependem uns dos outros e se complementam. Isso nos mostra a
sua própria maneira que, além de ser um "isto" (ou seja, um boi), a entidade
é também um "aquilo" (ou seja, um pacote de carne e ossos). Apesar do ser
da entidade não se limitar a ser um boi e ser um pacote de carne e ossos (que
também é um agregado de moléculas, etc.), estas são maneiras para que ele
seja um isto e um aquilo. Porque ser um boi e ser um pacote de carne e ossos
são dois modos de ser da mesma entidade, um boi individualmente é um

pacote de carne e ossos, e um agregado particular de partes é um boi.


Somente quando não vemos apenas como um boi, mas também como uma
entidade que é ao mesmo tempo um "isto" e um "aquilo" é que podemos
chegar ao pivô do Dao.
Aos olhos de Zhuangzi, o fato de que o boi dura mais tempo do que
O pacote de carne e ossos não significa necessariamente fazer a entidade mais
que um boi. Para ele, medidas quantitativas são sempre relativas. Pode-se
dizer que a ponta de um cabelo macio é pesado, o Monte Tai é pequeno,
uma criança que morre na infância tem uma vida longa, e (longevo)
Progenitor Peng morre jovem (Zhuangzi-“Qiwulun”). Tudo depende do
126 contexto. Mesmo que o pacote de carne e ossos não dure tanto quanto o boi,
dura o tempo suficiente para torná-lo uma entidade. Se chamarmos o boi
Antigas
Leituras
VISOES DA
um "isto", então o pacote de carne e ossos é um "aquilo"A entidade pode ser
CHINA tanto um "isto" e um "aquilo".
ANTIGA
Pode-se objetar: talvez em vez de uma entidade, o que temos aqui são
realmente duas entidades, um boi e um pacote de carne e ossos; embora
espacialmente coincidentes, eles não são a mesma entidade. Aristóteles, no
entanto, não parecem favorecer essa visão . Ele esforça-se para a unidade de
uma entidade. Quando ele fala da estátua e do bronze, ele parece ter tratado
O bronze apenas como matéria. Em vez de sugerir que existem duas
entidades, uma estátua e um pedaço de bronze , ele a trata como uma
entidade. Aristóteles escreve:

[...] como dissemos, a matéria próxima e a forma são


a mesma realidade; uma é a coisa em potência e
outra é a coisa em ato. Portanto, buscar a causa de

sua unidade é o mesmo que buscar a causa pela qual


O que é um é um: de fato, cada ser é unidade, e o que
é em potência e o que é em ato, sob certo aspecto, é
uma unidade. (Metafísica 1045b 17-21)
Ele rejeita explícitamente a sugestão de que um indivíduo pode ser
dois. Ele acredita que a matéria e a forma são a mesma unidade, mas não é o
caso em que há uma estátua e um pedaço de bronze:

Algumas coisas, depois de serem geradas, são


denominadas por aquilo de que se geram, isto é, por
sua matéria, não com o mesmo nome da matéria,

mas com um adjetivo extraído dele: a estátua, por


exemplo, não é dita mármore, mas marmórea; [...]
Por isso, de quem é curado não se diz que é enfermo,
mas que é homem e homem sadio. [...] como
naquele caso, o objeto não é denominado por aquilo
de que provém, também nesse caso a estátua não é
127
chamada madeira, mas designada com o adjetivo
derivado: isto é, lenhosa e não lenho, ou, ainda, Antigas
Leituras
brônzea e não bronze, marmórea e não mármore. De VISOES DA
CHINA
fato, considerando tudo isso mais profundamente, ANTIGA

não se pode dizer em sentido absoluto nem que a


estátua derive de madeira, nem que a casa derive do
mármore, porque a matéria da qual algo deriva deve
transformar-se e não permanecer como era. Por isso
nos exprimimos desse modo. (Metafísica, 1033a 6
23)

Assim, depois de tornar-se os tijolos de uma casa, os tijolos (como


tijolos) não existem mais, após o bronze se tornar uma estátua, o bronze
(como bronze) não existe mais. Depois de tornar-se uma casa ou uma
estátua, eles só existem como as propriedades de outra coisa. Assim, quando
alguém aponta para a estátua e pergunta "quantas entidades existem?" A
resposta para Aristóteles é definitivamente “uma”.
Uma das razões para concordar com Aristóteles a este respeito é que
a abordagem das duas entidades infla o número de entidades no mundo.
Não é o caso em que há um boi mais um pacote de carne e ossos, há apenas
uma coisa que é tanto um boi e um agregado de partes. Suponha que duas
pessoas disputassem sobre se a entidade é um boi ou um pacote de carne e
ossos. Se houvesse duas entidades, não haveria disputa, porque eles estariam
falando sobre duas entidades diferentes, um boi e um agregado de partes:
enquanto se poderia sustentar que um boi é um boi, o outro iria considerar
que um pacote de carne e ossos é um pacote de carne e ossos. Mas sabemos
que a disputa é sobre a mesma entidade. Podemos querer dizer aos
disputantes que sim, é um boi, mas também é um pacote de carne e ossos.
Aqui os dois "seres" devem referir-se à mesma entidade ou a sentença não
faria sentido. Na história de Cozinheiro Ding, o cozinheiro vê um agregado
de partes da mesma entidade no que os outros vêem um boi. A entidade só
pode ser aquilo que é, ao mesmo tempo, um boi e um pacote de carne e
ossos. Em um certo momento, o boi “t” e o pacote de carne e osso “p” são
uma e a mesma entidade.

Conhecendo o que existe


128
Porque Aristóteles acreditava que uma entidade só tem uma essência
Antigas
Leituras
VISOES DA
e um ser primário, segue-se que, para Aristóteles, não há uma única resposta
CHINA
objetiva direita para a questão do que uma entidade é primriamente. Ele
ANTIGA
sustenta que a questão do que uma coisa é refere-se essencialmente ao ser
primário (Metafísica, 1030a 23-24). Em outras palavras, o "o que é" de uma
entidade pertence ao ser primário, e para outras categorias meramente
potenciais e derivadas, é meramente como uma qualidade ou quantidade.
Por exemplo, uma entidade “o” é um membro da espécie boi, e que “um boi"
é a resposta certa para a pergunta "o que é?". Zhuangzi nega que haja ser
primário e que não há uma única resposta objetiva direito de a questão do
que uma entidade é. Ele acredita que dizer que a entidade é um boi não é a
única maneira correta de responder à pergunta sobre o que a entidade é, e
que a entidade é um pacote de carne e ossos também é uma forma adequada
de responder a pergunta.
Zhuangzi não achava que, como Aristóteles aparentemente fazia, há
uma maneira "objetiva" de conhecer. Ele escreve:

Conhecer o que o Céu faz, e o que homem faz, não


seria o máximo de conhecimento [...] No entanto, há
um problema. Conhecer depende de condições que
só são combinadas mais tarde. E essas condições não
são fixas. Como podemos saber (com certeza) o que
se deve ao Céu, mas não se deve ao homem, ou vice

versa? (Zhuangzi -“Dazongshi”)

A palavra chinesa para "Céu", "Tian", também pode ser traduzida


como "natureza" neste contexto. Não é difícil descobrir aqui a intenção de
Zhuangzi. Para ele, conhecer não é como o espelhamento de uma realidade
objetiva (ou seja, o que o Céu ou natureza faz). É sempre inevitável situar-se
sob algumas circunstâncias. Estas circunstâncias não são fixas e não podem
ser separadas da entidade ("o que é devido para o Céu") e do conhecedor ("o
que é devido ao homem"). O caminho do Dao, por Zhuangzi, não é colocar
os dois em oposição, mas para vê-los em unidade.
129
Este modo de pensar pode ser chamada de "pensamento interativo".
As coisas são sempre relacionais e situacionais, e devem ser vistas como tal. Antigas
Leituras

Ver as coisas dentro das relações e situações é ver as coisas numa rede em VISOES DA
CHINA
que vários fatores interagem uns com os outros, é ver as coisas em contexto, ANTIGA

em perspectiva.
Então, como é que a entidade é um boi e que a entidade é um pacote
de carne e ossos e ambos estão corretos? Zhuangzi acredita que "um
caminho começa a existir através das pessoas que passam por ele; uma coisa
é assim porque as pessoas dizem que é" (Zhuangzi-“Qiwulun”).
Originalmente não havia caminhos no mundo. Um caminho emerge
somente após andarmos nele. "Dizer" (wei), que também pode ser traduzido
como "nomear" aqui, pode ser entendido como o reconhecimento. Uma
coisa é (disse) assim porque nós a reconhecemos desta forma. A entidade
individual é um boi quando a reconhecemos assim, e é um pacote de carne e
ossos quando a reconhecemos assim. Isto pode soar um pouco subjetivista.
Mas não deve ser tomado no sentido de que podemos ver uma entidade de
forma arbitrária. Zhuangzi continua o comentário dizendo: "Por que isso?
Por ser assim. Por que não? Por não ser assim”. É inerente a uma coisa que
ela seja de algum lugar que é dela, de algum lugar que é permitido a ela. Não
é arbitrário para alguém reconhecer uma entidade como “alguma coisa”,
pois a entidade tem a sua própria natureza e sua própria função. A partir
disso, pode-se dizer que uma coisa ser em si não é uma pura invenção nossa.
O Dao tem seus meios. Temos a visão de que um boi é mais um boi do que
um pacote de carne e ossos, ou vice-versa, porque chegamos a reconhecê-lo
dessa forma. Podemos fazer isso por causa de seu "ser assim". No entanto,
não é verdade que só existe uma maneira certa de reconhecer as coisas.
A visão de Zhuangzi parece ainda mais atraente quando olhamos
para entidades artificiais. Em analogia ao exemplo da estátua de bronze de
Aristóteles, eu posso fazer uma pergunta semelhante: é o meu anel de uma
substância primária, que tem uma propriedade de ser ouro, ou é este pedaço
de ouro a principal substância que tem a propriedade de ser um anel? Por
um lado, esta peça de ouro é uma substância primária, se alguma coisa é
uma substância primária, no sentido aristotélico; por outro lado, não há
nenhuma razão para que o meu anel não deva ser uma substância primária
quando outras entidades individuais, tais como tijolos e estátuas, são
substâncias primárias. Se houver apenas uma substância primordial nesta
130 entidade, o que é isso? Zhuangzi não teria nenhum problema em dizer que
ele é ao mesmo tempo ambas, com nenhum ser mais primário do que o
Antigas
Leituras
VISOES DA
outro sem um contexto. Neste ponto, um aristotélico pode querer recuar e
CHINA afirmar que apenas entidades naturais são substâncias. Se assim for, pelo
ANTIGA
menos, a ontologia de Zhuangzi teria a vantagem de cobrir ambas as
entidades naturais e entidades artificiais. Zhuangzi se opõe ao pensamento
dogmático. Ele afirma:

O Dao nunca teve fronteiras, afirmações nunca


devem ser constantes. É por um "é isto" que
demarcações são feitas. Deixe-me dizer algo sobre
demarcações. Esquerda e direita, a ordem e o
decoro, dividir e discriminar entre alternativas,

competir mais e brigar mais: estes eu chamo de


nossos oito poderes... Para "dividir", então, é preciso
deixar algo indivisível, para "discriminar entre
alternativas" é preciso deixar algo que não é uma
alternativa. "Como pode ser isso?", você pode
perguntar. O sábio mantém isso em seu peito, os
homens comuns discutem alternativas para mostrá
lo para o outro. Por isso eu digo: para "discriminar
entre alternativas" é falhar em ver alguma coisa
(Zhuangzi —“Qiwulun”).

Os oito poderes são maneiras de definir os limites das coisas no


mundo. Algumas pessoas usam as quatro primeiras potências para delimitar
o "é isto" e "não é isto" nas relações humanas; alguns outros usam os últimos
quatro poderes para delimitar a "é isto" e "não é isto" em nosso
conhecimento geral do mundo. Para Zhuangzi, todos eles estão
fundamentalmente equivocados. Ele sustenta que o Dao não tem fronteiras e
o ser de uma entidade tem alternativas. Quando as pessoas comuns
perguntam "O que é isso?" elas usam os oito poderes para desenhar
fronteiras, dividir as coisas, e discriminar entre as alternativas, a fim de
mostrar um definitivo "é isto" ou "não é isto" das coisas. Mas a mesma coisa
131
é tanto "Isto aí é" e "Isto não é". Aderir obstinadamente ao "é isto" de uma

entidade é discriminar alternativas. Ao fazê-lo , a pessoa é impedida de ver a Antigas


Leituras
realidade do Dao. VISOES DA
CHINA
O que Zhuangzi aqui diz sobre os "Oito Poderes" é similar a doutrina ANTIGA

das coisas na Metafísica e Categorias de Aristóteles. Aristóteles faz uma


distinção entre substância e qualidades, geração e alteração, fazer e ser feito,
etc. Por exemplo, ele afirma que, entre muitas coisas que podem ser ditas de
uma entidade "o que é", só há uma maneira de falar dela como uma
substância, sendo o resto qualidades. Para Zhuangzi, ficarmos
profundamente envolvidos em tais disputas como se um boi ou um pacote
de carne e ossos fosse uma substância é ficar longe do Dao, porque não
conseguimos ver o outro lado da realidade. Por exemplo, na distinção entre
um boi como substância e um pacote de carne e ossos como uma
potencialidade da substância, não conseguimos ver que o que pode ser dito
de um boi como uma substância, e também pode ser dito sobre o pacote de
carne e ossos. O agregado de partes, como o boi, pode ser tratado como uma
"substância" que tem certas propriedades. Conhecer o Dao não é discriminar
alternativas, mas estar aberto a elas. Portanto, sustentar obstinadamente que
a entidade é apenas um boi ou um pacote de carne e ossos é totalmente
unilateral. Zhuangzi observa:
Mas cansar o intelecto numa ligação obstinada com
a individualidade das coisas, não reconhecer o fato

de que todas as coisas são uma Única - chama-se a


isso "Três pela Manhã". O que é "Três pela Manhã?"
Um tratador de macacos disse a respeito das rações
de nozes, que cada macaco devia comer três nozes
pela manhã e quatro à noite. Desse modo os macacos
ficavam com muita fome. Então o tratador resolveu

que eles poderiam ter quatro nozes pela manhã e três


à noite e com esse arranjo todos ficaram satisfeitos.
O numero de nozes continuou a ser o mesmo,

porém havia uma diferença devida aos gostos e


aversões [“é isto”]. Por isso, o verdadeiro Sábio
suaviza as coisas com seu “é isso, não é isso” e

descansa no natural Equilíbrio do Céu. A isto se


132 chama “deixar duas escolhas acontecerem”.

(Zhuangzi-“Qiwulun”).
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
Aqui Zhuangzi defende a ideia de que tudo pertence ao Dao. Ele
ANTIGA
critica aqueles que não conseguem perceber isso como "três pela manhã
(macacos)". A crítica de Zhuangzi também se aplica aos aristotélicos que
sustentam que uma entidade individual tem apenas um ser primário. Os
aristotélicos estão presos em uma forma hierárquica de pensar. Para eles, é
preciso dar um definitivo "um/outro" tipo de resposta entre coisas como
"três todas as manhãs e quatro todas as noites" e "quatro todas as manhãs e
três todas as noites", e apenas uma resposta pode estar certa.
Zhuangzi não nega que existe alguma diferença entre "três a cada
manhã e quatro todas as noites", de um lado, e "quatro todas as manhãs e
três todas as noites", por outro. Mas ele acredita que a diferença não é
significativa o suficiente para que se mantenha uma adesão obstinada de um
contra o outro. Do ponto de vista do Dao os dois estão enraizados na
mesma. Os macacos não conseguem ver que "três todas as manhãs e quatro
todas as noites" e "quatro todas as manhãs e três todas as noites" são o
mesmo em quantidade. Aristotélicos também são "três a cada manhã",
porque eles afirmam que apenas uma resposta é em última análise correta, e
eles não conseguem ver que, do ponto de vista do Dao, “ser um boi com a
propriedade de ter o pacote de carne e ossos" e "ser um agregado de partes e
ter a propriedade de ser um boi" são o mesmo em quantidade. Estas são duas
formas diferentes de ser a mesma coisa. Disputar quem tem a primazia
absoluta é como os macacos brigando se eles têm três nozes todas as manhãs
e quatro todas as noites, ou quatro todas as manhãs e três todas as noites.O
sábio, compreendendo o pivô do Dao, veria a Unidade dos dois lados e
permaneceria flexível.
Reconhecendo que uma entidade pode ser tanto um “isto" e um
"aquilo”, Zhuangzi está disposto a julgar como melhor ou pior visões do que
uma entidade seria com base na prática. Isto é o que ele quer dizer ao
afirmar que o "o que isto é" das coisas "vai pela circunstância".
Em Zhuangzi, encontramos uma conversa entre Nie Que e seu
mestre Wang Ni:
133
"Você sabe alguma coisa sobre a qual todas as coisas Antigas
Leituras
concordam "É isto?" VISOES DA
CHINA
"Como eu poderia saber isso?" ANTIGA
II II

Se um homem dorme num lugar úmido, fica com


lumbago e morre. Mas o que me diz de uma enguia?
Viver no cimo das árvores é vida precária e mexe
com os nervos. Mas o que me diz dos macacos? Qual
o "habitat" indicado para a enguia, o macaco e o
homem? Qual o perfeitamente certo? Os seres
humanos se nutrem de carne, os veados de ervas, as

centopéias de pequenas cobras, as corujas e os corvos


de camundongos. Desses quatro, qual o que tem,
absolutamente, o gosto perfeito? O macaco une-se
com a fêmea que tem cabeça parecida com a do cão,
O gamo com a gazela, a enguia com os peixes,
enquanto os homens admiram Mao Qiang e Xishi, à
vista de quem os peixes mergulham profundamente
n'água, os pássaros alçam vôo alto no ar e os veados
fogem correndo. Contudo, quem diria qual o
perfeito padrão de beleza? Em minha opinião, os
princípios da boa vontade de do dever, os caminhos
do certo e do errado são confusos: como eu poderia
escolher entre eles? (Zhuangzi-“Qiwulun”)

Aqui pela boca de Wang Ni, Zhuangzi expressa seu próprio ponto de
vista. Ele tem como alvo a questão de um universal "É isto", em um sentido
mais amplo, estendendo-se a ética bem como para a estética. Ele certamente
inclui a metafísica. Para ele, não há um consenso sobre um universal "É
isto", o que mostra não só que não podemos chegar a tal estado, devido ao
fato de que cada um de nós está sempre situado em circunstâncias, mas
também que não existe tal realidade. Uma entidade tem o seu ser e funções.
Como nos aproximamos e avaliamos, isso realmente depende da prática em
que estamos envolvidos. Dizer que a entidade é um boi e dizer que é um
pacote de carne e ossos são duas formas de abordar a mesma entidade.
134 Quanto ao caminho que é certo, ele realmente depende do contexto em que
a entidade é reconhecida. A maneira apropriada de reconhecer uma entidade
Antigas
Leituras
VISOES DA
depende do propósito que temos para ela, e o propósito varia ao longo do
CHINA tempo e de lugar para lugar. Por exemplo, se usarmos a entidade como
ANTIGA
animal de fazenda, é melhor reconhecê-la como um boi; para o Cozinheiro
Ding, não ver somente um boi mostra que ele encontrou o seu caminho no
mundo. É muito importante para o cozinheiro Ding que um boi não seja
apenas um animal inteiro, mas também um agregado de partes. Por apenas
não ser como um todo, mas um pacote de carne e ossos, é possível ao
Cozinheiro Ding encontrar "muito espaço" no meio para passar sua lâmina.
Para ele, a entidade como um pacote de carne e ossos não é uma forma
meramente potencial como Aristóteles sustentava. É um ser real para se
lidar. Desta forma, a metafísica relativista de Zhuangzi e sua ênfase na
prática estão ligadas.
Um aristotélico talvez não negasse diretamente que às vezes faz mais
sentido tratar a entidade como um pacote de carne e ossos, ao invés de como
um boi inteiro. Ele pode tentar, de duas maneiras, evitar uma flagrante
contradição em sua visão metafísica que a entidade é principalmente um
boi. Primeiro, ele pode sustentar que há duas entidades, um boi e um
agregado de partes, enquanto o boi é principalmente um boi, o pacote de
carne e ossos é principalmente um agregado de partes. Como já apontado
anteriormente, desta forma, o aristotélico não só vai contra o próprio
Aristóteles, mas também infla o número de entidades em todo o mundo

através da duplicação de entidades. Em segundo lugar, ele pode optar por


dizer que há apenas uma substância primária; enquanto a substância
primária é o boi, às vezes é útil se concentrar em suas potencialidades, e não
na substância primária; o caso do Cozinheiro Ding é um exemplo.
Esta última visão tem duas desvantagens em comparação com a visão
de Zhuangzi. Em primeiro lugar, para Aristóteles, a matéria não pode existir
sem forma, e potencialidade não pode existir sem a realidade. Se o pacote de
carne e ossos é apenas uma potencialidade, não pode existir realmente. Isto é
obviamente falso. Não é o caso de que o pacote de carne e ossos só existe
como carne e ossos depois que o boi está morto. É um pacote de carne e
ossos, mesmo quando o boi ainda está vivo. Nós diríamos que depois o boi
135
está morto, é o mesmo pacote de carne e ossos que resta. Para Cozinheiro
Ding, o conjunto de peças é um ser real, que não depende de qualquer outra Antigas
Leituras

coisa. O relato de Zhuangzi, por isso, funciona melhor aqui. Em segundo VISOES DA
CHINA
lugar, e mais importante, tratando o pacote de carne e ossos apenas como ANTIGA

potencialidade, nas contas aristotélicas, só podemos abordar o conjunto de


partes através do boi. É uma abordagem indireta. Em contrapartida, o caso
de Zhuangzi nos permite abordar diretamente a entidade como o agregado
das peças. Dado que a entidade é realmente um pacote de carne e ossos, em
vez de tomar a entidade como um pacote de carne e ossos por conveniência,
tomamos a entidade como a entidade em seu ser real. Em outras palavras,
nós o tratamos como um pacote de carne e ossos, porque ele próprio é um
agregado de partes. Assim, a metafísica de Zhuangzi fornece uma base
adequada para a sua filosofia prática, e este último reforça a plausibilidade
de sua metafísica.

Transformação da Borboleta

O terceiro contraste entre Aristóteles e Zhuangzi sobre a questão do


"ser" é encontrada em seus pontos de vista sobre se a mesma entidade pode
sobreviver a uma mudança no conceito de substância sortal. Os Conceitos
de substâncias sortais são conceitos como "boi" ou "cavalo". Tais conceitos
designam substâncias aristotélicas. Passar por uma mudança no conceito de
substância sortal significaria tornar-se um tipo diferente de substância. A
questão aqui é saber se uma entidade pode manter a sua identidade através
de uma tal mudança.
Aristóteles une a essência de uma entidade para sua espécie. Ele
escreve: "portanto, não poderá haver essência de nenhuma das coisas que
não sejam espécies últimas de um gênero, mas só daquelas" (Metafísica
1030a 12-13). Para entidade, manter-se o que é, possuir sua essência, é
pertencer à espécie a que realmente pertence. Portanto, deixar de pertencer a
Sua espécie equivale a deixar de possuir a sua essência, O que equivale à
destruição da entidade. Isso significa que nenhuma entidade pode sobreviver
a uma mudança no conceito de substância sortal.
Essa visão aristotélica é muito influente nos debates contemporâneos
sobre a questão da identidade. Por exemplo, David Wiggins, um aristotélico
contemporâneo, sustenta que a substância sortal ou a categoria de conceito
136 na qual uma entidade cai é essencial para a identidade da entidade.
Nomeadamente, "para um X e qualquer categoria de f, se f é uma categoria
Antigas
Leituras
VISOES DA
de substâncias, então, se x pertence à f, x pertence sempre fº, em outras
CHINA palavras, "para ser, uma coisa só precisa apenas cumprir este último, ou estar
ANTIGA
próxima ao conceito último de f'. Por exemplo, a entidade é um boi. É a
mesma entidade, desde que ele seja um boi e, assim, se enquadra no mesmo
conceito de substância sortal de "boi". Assim, quando uma entidade não cai
sob o mesmo conceito de substância sortal, a entidade não é mais a mesma

entidade. Desta forma, os conceitos de substância primária, essência e


necessidade estão ligados. A entidade é primariamente um boi, é
essencialmente um boi, e é, necessariamente, um boi. Como uma substância

primária, a entidade não pode ser a mesma entidade, sem ser um boi.
Zhuangzi novamente discorda. Em Zhuangzi temos a famosa história
de seu sonho de borboleta:

Certa vez eu, Zhuang Zhou, sonhei que era uma


borboleta, adejando daqui para acolá, com todos os
fins e propósitos de uma borboleta. Só tinha
consciência de minha felicidade como borboleta sem

saber que eu era Zhou. Depressa acordei e ali estava


eu, eu mesmo, na verdade. Agora não sei se eu era
um homem sonhando ser borboleta, ou se eu sou
uma borboleta sonhando ser um homem. Entre um

homem e uma borboleta há, naturalmente, uma

distinção. A transição é chamada transformação de


coisas materiais (Zhuangzi-“Qiwulun”).

Aqui Zhuangzi sugere que ele pode ser Zhuangzi (Zhou), que sonha
que é uma borboleta, ou que ele é uma borboleta que sonha que é Zhuangzi.
Ele nunca poderia saber, mas, em qualquer caso, ele seria o mesmo
indivíduo. Perder o seu status como um espécime humano não significa
destruição, mas uma forma diferente de ser do mesmo indivíduo. Isto é, não
é necessário que ele seja um homem, mas não uma borboleta. Ele pode ser
uma borboleta e ainda manter sua identidade como o mesmo indivíduo.
137
Se uma entidade pode sobreviver a uma mudança de categoria de
substância sortal categoria e continuar a ser a mesma pessoa como Zhuangzi Antigas
Leituras

acredita, pode-se querer pressionar ainda mais, pedindo "a mesma coisa?". A VISOES DA
CHINA
esta questão nem ao menos "o mesmo homem", nem "a mesma borboleta" ANTIGA

pode ser a resposta certa. Mesmo "o mesmo animal" não faria isso, porque
nós normalmente não consideramos um homem e uma borboleta como o

mesmo animal. Zhuangzi, no entanto, não segue esta maneira de pensar. Ele
não nega que há alguma diferença entre um ser humano e ser uma
borboleta. Mas ele acredita que, do ponto de vista do Dao, a diferença só
mostra "as transformações das coisas". Em Zhuangzi, as transformações das
coisas acontecem quando a fronteira entre "isto" e "aquilo" é dissolvida, e a
Unidade do mundo é revelada. Em tal estado, se ele é um ser humano ou

uma borboleta não importa muito, não só porque do ponto de vista do Dao,
cada coisa no mundo pertence à Unidade do Dao, mas também porque isso
poderiam ser duas maneiras de ser a mesma coisa. A noção das
transformações das coisas torna-se mais plausível à luz da visão de Zhuangzi
na unidade do “aquilo" e "isto" da mesma entidade. Ele nega que há essência
e que a identidade de uma entidade é determinada por qualquer coisa como
essência. Assim, dizer que uma entidade é essencialmente ou primariamente
um homem ou uma borboleta já é estar enganado. Para ele, uma entidade
pode ser tanto um "isto" e um "aquilo"; pode continuar a ser a mesma
entidade ao transformar-se de uma categoria para outra.
Este ponto de vista é provavelmente o mais difícil de aceitar para
aqueles que estão acostumados à maneira aristotélica de pensar. É, no
entanto, uma extensão da dimensão temporal ou cronológica do que
Zhuangzi disse sobre a coincidência simultânea de diferentes modos de ser
de uma entidade. A visão de que uma coisa pode sobreviver a uma mudança
de categoria substancial é baseada em tradições do pensamento chinês. Na
mitologia clássica chinesa, nos é dito repetidas vezes que um indivíduo
mantém a sua identidade depois de passar por mudança categorial de
substância. Por exemplo, sobre o Rei Macaco da Jornada do Oeste, se diz que
nasceu de uma ágata, e que era capaz de se transformar de setenta e duas
formas variadas. Ele poderia ser um peixe ou um templo, um velho ou uma
jovem. No entanto, é o mesmo do Rei Macaco. Sua identidade como pessoa
física transcende qualquer categoria particular com a qual a entidade está
138 associada. Sobre o herói de O Sonho do Quarto Vermelho, Jia Baoyu, é dito
que foi transformado a partir de um pedaço de jade. A heroína do Romance
Antigas
Leituras
VISOES DA
da Cobra Branca teria vindo do processo de transformação de uma cobra
CHINA branca em uma linda mulher. Isto não é um argumento real para Zhuangzi e
ANTIGA
contra Aristóteles. Ele sugere, no entanto, que nesta cultura não é
inconcebível para uma entidade manter a sua identidade através de uma
mudança de categoria. Pelo contrário, esse tipo de transformabilidade é
profundamente enraizado no pensamento das pessoas.
Suponha que no tempo t1 uma entidade é um membro de uma
espécie S, e no tempo t2 ele deixa de ser um S e torna-se um A. Após t2,
podemos apontar para a entidade e dizer "que costumava ser (ou era) um S
em t1, mas agora ele não é mais um S, mas uma A". Esta frase faz todo o
sentido. Para que a sentença faça sentido para os dois "é isso", ela deve
referir-se a mesma coisa. O que é "isso?”. Zhuangzi diria que não pode ser
um/outro, e tem que ser os dois. Por exemplo, no caso do boi, que é tanto
um boi e um pacote de carne e ossos. Esta intuição apoiaria Zhuangzi
quando ele contou a sua história do sonho, embora ele não tenha ido mais
longe para dar um argumento para isso.
Em Zhuangzi, a questão como "isto" (substância) e "aquilo"
(substância) são idênticos não se coloca. Se for perguntado como "isto"
modo de ser e "aquilo" modo de ser são idênticos, a resposta é simplesmente
que eles não são idênticos. Mas a entidade que tem dois modos de ser é
idêntica em si. É a mesma entidade. Este ponto de vista do ser se encaixa
bem na cena descrita pela física contemporânea. No nível micro do mundo,
não há um tijolo “substância última do mundo”. As partículas são também
energia. Indagar sobre a substância ou o ser primário do mundo é inútil.
Não são as partículas mais do que pacotes de energia, nem pacotes de
energia mais do que as partículas. Elas são o mesmo. O fato de que estamos
mais confortáveis com a idéia de que é partículas não é uma razão legítima
para que possamos tomar as partículas como substâncias primárias e pacotes
de energia como secundários.
A partir da discussão acima, podemos ver que, apesar de Zhuangzi
não fornecer uma teoria metafísica sistemática como Aristóteles fez, no

entanto, indicou uma metafísica alternativa. Talvez a maior diferença entre


139
Zhuangzi e Aristóteles sobre o ser é que, enquanto Aristóteles vê as coisas
como ser primário ou substâncias, Zhuangzi não aceita a noção. Para Antigas
Leituras

Zhuangzi, as coisas têm suas maneiras de ser. Uma coisa pode ser um "isto" e VISOES DA
CHINA
um "aquilo". Apesar de "isto" ser uma maneira para que se seja, ser um ANTIGA

"aquilo" é uma outra maneira de ser. No entanto, eles são maneiras


diferentes para uma mesma entidade ser. Assim, a partir desse ponto de
vista, não é só o mundo um mundo de diversidade, mas também o ser de

uma entidade é a diversidade. Uma coisa que podemos aprender com


Zhuangzi é abrir nossa mente para a diversidade do ser das entidades, e
permitir que uma entidade tenha tanto "isto" e "aquilo", e, possivelmente, de
várias maneiras, como seu ser real.

“Um-Só contra a identidade “Um-muitos”

A Ontologia de objetos de médio porte de Zhuangzi, portanto, pode


ser chamado de uma ontologia aspectiva/perspectiva. É a visão de que a
identidade de uma entidade consiste em seus aspectos, ou seja, suas formas
de estar no mundo, e cada um desses modos de ser é contextualmente

situado e só pode ser apresentado em perspectiva quando nos aproximamos


dele. Por conseguinte, a identidade de uma entidade consiste sempre em
uma síntese de suas diversas formas de ser. Esta ontologia é compartilhada
por filósofos chineses de várias escolas.
Mesmo os confucionistas, principalmente preocupados com uma
filosofia ético-política, manifestaram pouco interesse em discutir a
metafísica de entidades de médio porte, e concordaram com Zhuangzi.
Confúcio foi citado no Livro das Mutações (Yijing) para dizer que "diferentes
caminhos levam ao mesmo destino" (Yijing-“Xici” B). Wing-tsit Chan
COImentOU1:

A idéia de uma centena de caminhos para o mesmo


destino é uma expressão direta do espírito de síntese,
que é extremamente forte na filosofia chinesa. É a
versão confucionista da doutrina de Chuang Tzu
[Zhuangzil de seguir dois cursos ao mesmo tempo.

140 "Dois cursos" aqui, claro, não significa literalmente apenas "dois".
Podem ser mais de dois. Embora Confúcio não tenha elaborado sua
Antigas
Leituras
VISOES DA
ontologia, a partir dessa afirmação, podemos dizer que, no espírito, ele está
CHINA
de acordo com a ontologia de Zhuangzi. Por exemplo, para os
ANTIGA
confucionistas, uma pessoa é um filho, um pai, um marido, um professor,
etc. Ser um filho ou pai não é meramente uma propriedade em adição ao seu
ser; eles são partes de suas identidades; eles são seus modos de ser. Sem esta
ontologia, a teoria sócio-ética confucionista estaria sem base. Esta ontologia
estabelece uma base metafísica para as visões de mundo de confucionistas,
bem como para daoístas, e afeta diretamente seus modos de vida.

Notas

1.Como já foi apontado por diversos estudiosos, "substância" é uma


tradução enganosa para ousia. "Ser primário" parece ter algumas vantagens
em relação a "substância", mas como "substância" tornou-se o padrão
convencional (de tradução) de ousia de Aristóteles, eu a uso de forma
intercambiável.

2.Aristóteles usou o exemplo do boi nas Categorias (2b 22 28,).


3. Às vezes, Aristóteles parece acreditar que os objetos naturais têm uma
ontologia diferente de objetos artificiais (por exemplo, Metafísica, 1043b 19
23). Mas quando ele fala sobre a relação entre o indivíduo, a sua forma e sua
matéria, ele não mantém a distinção tão clara. A estátua, o bronze, e a forma
são seus exemplos favoritos para investigar a ousia. No seguir, eu também
uso exemplos semelhantes, embora o meu argumento não dependa deles.
4.De acordo com a interpretação de Loux, Aristóteles afirma que, além de
ser um boi um pacote de carne e ossos, ele também tem uma essência; é
também um ousia primário. Esta interpretação traria Aristóteles muito mais
perto de Zhuangzi. Mas parece que muitos comentaristas de Aristóteles
discordariam de Loux a este respeito. Ver Michael Loux (1991), Primary
Ousia: an Essay on Aristotle's Metaphysics Z and H, Ithaca and London:
Cornell University Press, Chapter 7.
5.Wiggins, David (1980). Sameness and Substance, Cambridge, MA: Harvard
University Press, 146.
6.Wing-tsit Chan (1963). A Source Book in Chinese Philosophy, Princeton,
141
New Jersey: Princeton University Press, 268.
7. Sob o título de "What-being: Chuang Tzu versus Aristotle"Uma versão Antigas
Leituras

anterior deste artigo foi publicada em Internacional Philosophical Quarterly VISOES DA


CHINA
(33,3), 1993: 341-353. ANTIGA
A RELAÇÃO ENTRE LINGUAGEM E PENSAMENTO
NA ANTIGA EPISTEMOLOGIA CHINESA

Jana S. Rosker

Na pesquisa atual, o debate sobre as dimensões epistemológicas dos textos


chineses e seu papel no contexto do pensamento chinês tem se desenvolvido
com sucesso cada vez maior, sob a égide da redescoberta e aplicação das
abordagens metodológicas e categoriais específicas da tradição chinesa. Este
artigo irá fornecer uma visão sistemática das características especiais que
definem os discursos epistemológicos clássicos chineses, os quais presumiam
que a percepção humana e compreensão da realidade estaria enraizada em
uma estreita ligação entre as estruturas linguísticas e cognitivas.
142
Introdução
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
No período pré-Qin , a padronização da linguagem (e, portanto, da
ANTIGA
percepção refletida cognitivamente) pertencia às tarefas cruciais da filosofia
clássica chinesa. A linguagem teve que ser unificada de acordo com as
normas sociais. Portanto, não é de estranhar que a categorização elementar
que define os pressupostos essenciais e formais da epistemologia clássica
chinesa era intimamente ligados à questões relativas a regulação da relação
entre linguagem, pensamento e realidade.
Assim, de acordo com Chad Hansen (1989: 107-120), a teoria
clássica chinesa da linguagem oferece novos insights e uma perspectiva
distinta sobre a evolução dos discursos centrais neste domínio.

Os paradigmas lingüísticos de Compreensão

Os debates sobre o papel da linguagem na percepção e na


compreensão do mundo foram determinadas pelo conflito entre o
confucionismo clássico e o moísmo ortodoxo, os primeiros representando a
defesa das antigas posições tradicionais, enquanto os segundos defendiam
abordagens mais utilitárias (ibid., p. 108). Em contraste com a posição de
Confúcio clássica, que foi formulada na Teoria de nomes apropriados (IE4á
iê) e que segue a concepção de que os nomes estão implicados com a
essência da realidade, a posição utilitarista derivava da consciência sobre a
relatividade da compreensão. Assim como nós nunca podemos saber se as
coisas que percebemos são idênticas à realidade, também podemos nunca ter
a certeza se os significados que expressamos são realmente entendidos da
mesma forma a como eles foram destinados:

4) X ETD), # Hj Éff DJ KII > Ej Éff D], {{E}\ {II >.

Z[S]/ H].

As coisas como elas são, a compreensão destas coisas,


143
e a transmissão desta compreensão não são
necessários idênticas umas aos outros. Antigas
Leituras
(Mozi 2014, Jingxia: 110) VISOES DA
CHINA
ANTIGA

A reação a essas posições tradicionalistas e utilitárias dentro antiga


epistemologia chinesa expressou-se em dois pontos de vista epistemológicos
diferentes, mas que podem ambos serem denominados como
“uniformistas". Os fundamentos teóricos da primeira abordagem foram
estabelecidos pelo confucionista Xunzi#if(cerca de 230-310 AEC), e a
segunda por seu discípulo e fundador da escola legalista, Han Fei### (280
233 AEC).
Embora Xunzi nunca tenha se distanciado abertamente da escola de

Confúcio, as posições que ele defendia não eram os de um tradicionalista


puro. E enquanto ele via sua epistemologia como uma elaboração da teoria
confucionista tradicional do conhecimento, em termos qualitativos ela pode
ser considerada como uma nova reação às abordagens tradicionais. A este
respeito, Xunzi pode ser colocado entre os precursores da teoria Legalista de
conhecimento, que defendia posições universalistas. A própria teoria de
Xunzi, no entanto, foi baseado em abordagens relativistas . Porque a
linguagem dependia de convenções sociais, ele sabia o quanto era difícil
escolher os critérios para a seleção de nomes. No entanto, apesar destes
pontos de vista, mesmo assim ele bruscamente condenou o reformismo
moísta, argumentando que o sistema confucionista de padronização ainda
era a melhor maneira possível para garantir uma sociedade bem regulada e
harmoniosa. Ao contrário de Confúcio, ele não acreditava na missão

primária de uma linguagem ideal que incorporasse a essência das realidades


existentes, mas considerou nomes e conceitos lingüísticos como meios
meramente arbitrários para expressar concretamente (objetivamente)
realidades sociais.

Apesar desta diferença fundamental, por razões puramente


pragmáticas, ele continuou a defender a teoria confucionista de nomes
apropriados, convencido como estava de que os nomes (ming #4) também
transmitiam valores, servindo, assim, a ordem social e, portanto, tinham de
ser devidamente padronizados. Xunzi também argumentou que a
classificação e categorização dos nomes não eram necessariamente tão
difíceis como parecem de primeira, os sentidos humanos perceberiam
144 diferentes realidades de uma forma estruturalmente muito similar; portanto,
Antigas essa semelhança fisiologicamente condicionada serviria de base para a
Leituras
VISOES DA formação de convenções lingüísticas comuns.
CHINA
ANTIGA

JL H]>$ H]##í, H. R. H > # 4%) E H];# tb. JJ #


{D} [] #1, # F# D), Jt H, 2) 44 DJ #H }}| tl1.

Todos os seres da mesma espécie, que possuem os


mesmos sentimentos, naturalmente, também

possuem os mesmos órgãos dos sentidos pelos quais


eles percebem as coisas da mesma maneira. Assim,
podemos nos comunicar através de comparações e
descrições. Isso também explica por que somos
capazes de estabelecer acordos universalmente
válidos e comuns sobre (a classificação dos) nomes
(Xunzi 2014, Zheng Ming: 5).

Esses contratos padronizados criam uma coordenação social


funcional - inclusive a conexão entre os atos humanos e postulados morais
possíveis. Nomes, portanto, tinham que ser regulados de tal forma que eles
poderiam servir as classes dominantes como um instrumento formal para
restaurar e preservar seu poder político: foram precisamente estes
argumentos que, nas obras de seus seguidores, viriam a formar a base para a
epistemologia legalista que moldou a doutrina do um dos governos mais
totalitários da história chinesa.

O discípulo de Xunzi, Han Fei #E, um dos principais


representantes da escola legalista, desenvolveu uma filosofia que combinava
conceitos básicos das abordagens tradicionalistas e utilitárias. Sua
epistemologia , que foi baseado nos conceitos de autoridade (wei HY) e
vantagem (li fl), representava um sistema unificado fundado na idéia do
absolutismo político. (Ver Han Fei 2014, Gui Shi: 1)

Posições opostas: contra a presunção de que a linguagem é a base da | 45


compreensão
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
A segunda abordagem básica negou as funções positivistas da
ANTIGA
linguagem. Esta abordagem também implicou em duas correntes
epistemológicas diferentes: a primeira foi pré-linguística, e teve seu principal
representante no taoísta Lao Zi é f (século 6 AEC), enquanto que a
segunda corrente encontrou o seu mais famoso expoente na confucionista
Mengzi #f(c. 372-289 AEC), que argumentou que as estruturas
lingüísticas não eram inatas (Hansen , 1989: 110-111). Sua epistemologia
moral foi igualmente baseada somente na introspecção. No entanto,
enquanto Laozi representou uma corrente que pode ser definida como pré
lingüística, e embora a escola taoísta diferisse de muitas das premissas
básicas dos ensinamentos de Mengzi, a negação da linguagem de Laozi se
assemelha a de Mengzi. Ambos sugerem que o comportamento natural
gerada por nossa constituição natural exige o abandono da linguagem.
Ambos aceitam a ação natural, ou o comportamento gerado pela
constituição natural humana. Embora eles discordassem sobre a forma
como estas disposições naturais eram ricas e extensas, os dois estudiosos
compartilhavam a crença comum de que o comportamento deve ser guiado
principalmente pelo seu uso. (ibid.)
O Dao jÉ de Laozi não foi restristo a qualquer tipo de estrutura
lingüística, e ainda representa o princípio cósmico básico e também moral
de tudo o que existe:

XX #í...AS # [] # Ry.

O cósmico (Celestial) Dao não tem palavras e ainda


assim nos responde com bondade. (Laozi, 2014,/73/,
p.62)

Ele via o conhecimento (no sentido de virtudes de aprendizagem)


como uma espécie de pressão social que impedia nossa espontaneidade
natural. Na visão de Laozi, cada conceito lingüístico é determinado pelo
tempo e espaço, e pode, portanto, representar apenas uma expressão parcial,
incompleta da realidade, que ele via como integral, dinâmica e estruturada
146
de forma holística. Consequentemente, a fim de preservar a naturalidade da
Antigas nossa existência, devemos retirar todas as convenções, inclusive a da própria
Leituras
VISOES DA
linguagem. Laozi procurou, assim, um processo radicalmente diferente da
CHINA
ANTIGA compreensão: uma introspecção não-linguística.
Para Mengzi, as qualidades inatas dos seres humanos (xing #E) são
naturalmente eliminadas para o bem. Assim, para ele, não há necessidade de
uma transformação da ignorância à iluminação. Se um ser humano está em
contato com nossa verdadeira natureza, ele inevitavelmente vai agir para o
bem. (Allinson, 1989:17) Neste sentido, ele formulou a primeira versão anti
linguística da epistemologia confucionista. Com sua teoria, ele queria tanto
refutar um dos princípios centrais da teoria moísta, além de resolver (ou
evitar) o problema central da epistemologia de Confúcio, ou seja, a inserção
de princípios morais em padrões de comportamento através de
interpretações lingüísticas (Hansen, 1989: 110). Mengzi argumentou que a
linguagem não representava um sistema inato, e que continha a essência das
normas sociais adequadas que permitram as pessoas viverem em uma
sociedade harmônica (Mengzi, 2014 Gongsun chou shang: 2), pois ele
acreditava que todas as convenções tradicionais do confucionismo estão
“inseridas” no coração-mente humana. (ibid.: 111)
Análises lingüísticas

A próxima posição que influenciou decisivamente o


desenvolvimento de debates epistemológicos derivada das abordagens
analíticas baseadas em suposições isomórficas, como defendido pelos
representantes da escola Nominalista (Ming jia fá#, especialmente
Gongsun long 2\{0\}, c. 284-259 AEC), ou sobre o relativismo linguístico.
Este último foi elaborado por seguidores da chamada escola Neo-moísta
(Houqi Mojia J##H #25) através de um método de análise puramente
formal. No entanto, dois dos mais importantes representantes da abordagem
Nominalista de análise lingüística, Gongsun long 2\{\}(c. 325-250 AEC) e
Hui Shi #if (c. 370-310 AEC), sustentaram visões fundamentalmente
divergentes sobre a relação entre nomes e realidades, com Gongsun long
147
argumentando que a construção ideal de uma linguagem realizada ainda era
de crucial importância, e que a linguagem e a realidade social estavam Antigas
Leituras
VISOES DA
inseparavelmente ligados e eram semanticamente equivalentes, (Xiang CHINA
Shiling, 2000:52), enquanto Hui Shi acreditava que os nomes (ming) ANTIGA

serviram de base para categorizar a realidade (ibid.: 51), uma posição que o
colocou em oposição direta às teorias moístas.
Os argumentos de Gongsun Long foram fundados em cima da
premissa de Confúcio, de que a aplicação ideal da linguagem foi baseada em
uma congruência mútua completa do nome e do objeto ao qual ela se refere.
Apesar de sua postura idealista, ele acreditava que a função crucial da
linguagem permanecia a de denominar a realidade. Esta é a hipótese que
sustenta seus principais argumentos sobre o tema, intitulado A disputa nos
Nomes e Atualidades (Ming shilun #ff#).Com relação à situação concreta
em que a linguagem seria aplicada, cada coisa única só poderia ter um
significado único:

(BE)El: >RR5, #, E# F## HJ#[..>RÉIRj,


#,F#,F#ASHIJAÉ... [E HF5.J. Rjt1, # 5/f>R= t1.
Éf>R=#í, Hjá ZÍS E F##1. Éf>RASH, lIH, #4 F#,
É HJ #7íSTIJ, f|t|1? H|HZÍSTIJ, H. HHHHH. ##,
R#F5 — tb, III III D) }{h_{{F5, TÍjZÍSTIJ D) }{h_{H HF5,
# HF52 HER#5, # 5ê!

Gongsun disse: Se queremos um cavalo, isso inclui


cavalos marrons ou pretos. Mas se queremos um
cavalo branco, isso não inclui um cavalo marrom ou

preto. Suponha-se que um cavalo branco seja um


cavalo. Então, o que se quer (nos dois casos) seria o
mesmo. Se o que se quer for o mesmo, em seguida,
um branco (cavalo) não difere de um cavalo. Se o que
se quer não é diferente, então como é que um cavalo
amarelo ou preto às vezes é aceitável e, por vezes,
inaceitável? É claro que aceitável e inaceitável são
mutuamente contrários. Assim, cavalos amarelos e

pretos são o mesmo (na medida em que, se existem


148
cavalos amarelos ou pretos), podemos responder que
Antigas existem cavalos, mas não se pode responder que
Leituras
VISOES DA existem cavalos brancos. Assim, é evidente que um
CHINA
ANTIGA cavalo branco não é um cavalo. (Gongsun Longzi
2014:6)

Tal projecção é, evidentemente, um contraste com a aplicação


habitual de língua, para qual as pessoas tendem a usar nomes diferentes para
os mesmos objetos. Na linguagem cotidiana, os significados das palavras
geralmente se sobrepõem. Gongsun Long tentou eliminar a sobreposição
semântica, ou pelo menos reduzi-la a um nível em que a linguagem ainda
poderia ser supervisionada e controlada.
Para os filósofos neo-moístas, no entanto, a sobreposição semântica
de termos diferentes era uma qualidade natural da linguagem humana e,
portanto, eles não viam necessidade de eliminá-la. Eles estavam mais
interessados na questão da linguagem como um meio para categorizar a
sociedade.

No entanto, dado que a complexidade variada da língua não pode ser


moldada em quaisquer estruturas reguladoras confiáveis dentro de
convenções lingüísticas, eles reconheceram de facto a irrealidade da
linguagem, concluindo que uma padronização geral e válida da linguagem
era impossível. Em sua opinião, o indefinabilidade formal da língua era, até
certo ponto, uma parte de sua estrutura intrínseca (Mozi, 2014 Jing Shuo
xia: 103-140). Em vez da busca incessante por definições das extensões
semânticas de termos, os Neo-moístas preferiam lidar com perguntas sobre
conexões causais. Eles não estavam interessados na construção de uma
linguagem ideal, conforme expresso na teoria dos nomes; em vez disso,
focaram em análises lingüísticas, o que os levou a conclusões
diametralmente opostas às idéias de Gongsun long e aos antigos pontos de
vista de Confúcio sobre a relação entre nomes e realidades. Estas análises
levaram a concluir que as conexões entre certos nomes individuais (ming
44), eram simplesmente entendidas como entidades arbitrárias de
linguagem, de multiplas camadas e incoerentes. Enquanto alguns termos
compostos poderiam abraçar escopos semânticos que se estendiam para 149
além de todos os significados parciais dos mings individuais (ou seja, as
Antigas
entidades linguísticas de que foram compostos), em outros casos, o oposto Leituras
VISOES DA
era verdade (ibid). CHINA
ANTIGA
No entanto, os fragmentos de suas análises que sobreviveram não
contêm qualquer descoberta significativa que vai além do reconhecimento
ou o reconhecimento da natureza inconsistente de estruturas lingüísticas .
Assim, ao contrário de Gongsun Long, as investigações não foram destinadas
a estabelecer alguma forma de teoria lingüística universal que poderia
unificar modelos divergentes de aplicação da linguagem. A premissa
fundamental de seu trabalho foi a de que as formas formais de nomeação
não poderiam abraçar a integridade complexa da existência, como se refletia
na realidade. A linguagem nunca poderia alcançar, e muito menos ir além da
existência real; conseqüentemente, as características objetivas da realidade
automaticamente determinavam e limitavam as estruturas da linguagem, e,
portanto, a nossa aplicação de construções e expressões lingüísticas:

## DJ #4E, DJ HE F#, DJ #4T.

Expressões surgem devido a algumas razões. Elas se


desenvolvem (crescem), de acordo com as regras
(leis) e são aplicadas de acordo com as categorias
(tipos). (ibid., Daqu:25)

No entanto, isso não significa que a linguagem era exclusivamente


um produto de convenções sociais arbitrárias. Apesar de sua importância
fundamental, a única tentativa Neo-moísta para estabelecer uma base formal
linguística para essa noção pode ser encontrada em sua análise da distinção
clássica entre identidade e diferença (tong yi H]}, ibid, Jing Shuo shang:
88, 89).
A questão aqui é o problema da relatividade essencial desta distinção
no que diz respeito a diferentes contextos: a diferença entre dois antípodas
não é de modo algum mais constante do que, por exemplo, a diferença entre
as noções de grandeza e pequenez, ou comprido e curto. De um ponto de
vista realista, isso pode aparecer paradoxal, e esse paradoxo seria formulado
e analisado por Hui Shi, um filósofo Nominalista que era o mais próximo
150 dos discursos taoístas. Os escritos de Hui Shi, que segundo a tradição eram
Antigas tão volumosos que eles poderiam "encher mais de cinco carros", (Zhuangzi,
Leituras
VISOES DA 2104 Tianxia: 7), foram totalmente perdidos, e hoje ele é conhecido apenas
CHINA
ANTIGA
por seus "Dez Postulados", que são citados na famosa obra taoísta de
Zhuangzi. Estes postulados, que foram complementadas por uma série de
paradoxos, têm atraído muito interesse nos tempos modernos por causa de
sua semelhança com acontecimentos simultâneos na filosofia ocidental,
especialmente os famosos paradoxos do filósofo grego Zenão de Eléia (cerca
de 495-425 AEC). Por meio dessas suposições aparentemente paradoxais,
Hui Shi tentou situar o problema da identidade e da diferença no contexto
da relatividade holística. Através de sua exposição de contradições, pelas
quais ele mostrou os limites das extensões semânticas de certos atributos, ele
quis demonstrar a relatividade do tempo e do espaço, expresso nos nomes
(ming), aplicados em diferentes contextos.
Uma de suas contribuições mais significativas para a epistemologia
clássica da análise linguística é o seu comentário sobre o problema geral da
identidade e da diferença, que os representantes da escola neo-moísta não
foram capazes de desenvolver a uma conclusão concisa (ibid.). Ele alegou
que quaisquer duas coisas eram sempre diferentes em alguma coisa, não
importa o quanto eles eram equivalentes em todos os outros aspectos (caso
contrário, não poderia representar duas entidades separadas). No entanto,
mesmo duas coisas que pareciam completamente diferentes eram
igualmente idênticas em pelo menos uma qualidade, uma vez que eram as
duas partes de uma estrutura unificada (caso contrário, não seria possível
expressar, ou até mesmo considerá-las no âmbito da língua). O relativismo
“constante de Hui Shi foi, naturalmente, uma resposta ao realismo Neo
moísta, que foi fundado em cima de distinções formais como uma pré
condição necessária para a compreensão. Como seu 11º paradoxo indica, a
obsessão Neo-moísta com definições também era redundante (ibid). Sua
categorização de identidade e de diferença, ou da relatividade absoluta de
objetos, portanto, baseava-se na impossibilidade de definições conceituais da
realidade, uma vez que cada compreensão linguística foi necessariamente
limitada a um sentido contextualmente determinado que era incapaz de
abarcar todas as dimensões do objeto de compreensão.
151
A relatividade da Compreensão Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
Hui Shi, contemporâneo de Zhuangzi (século 4 AEC), encontrou ANTIGA

claramente em suas opiniões radicais um importante estímulo para o seu


próprio pensamento, e foi, sem dúvida, influenciado por ele a elaborar seu
próprio sistema epistemológico. Para Zhuangzi, porque o conhecimento é
infinito, a capacidade humana de compreensão era muito limitada para nos
permitir ganhar qualquer conhecimento real:

#/EtL_{j}É, Íj%IIt|11|}É. D], {{######, # E.

Minha vida tem um limite, mas o conhecimento não


tem nenhum.

É perigoso usar o que limita para buscar o que não


tem limites.

(Zhuangzi 2014, Yang sheng Zhu: 1).

Assim, para ele, a compreensão é sempre algo relativo (ibid., Jiwu


lun: 11). Como resultado, estamos perdidos em um labirinto de
reconhecimentos reais e falsos. Mas esta situação aparentemente trágica é
atenuada pelo fato de que não temos de enfrentá-la sozinha, pois todas as
pessoas estão ocupadas lidando com questões sobre dominar a nossa
realidade e, portanto, com questões de natureza indefinida da nossa
existência:

/\>L*EtL, H]}}###? H#####,


[[j]\]\{j AS###? ###. EV CNTÍjÉ[i>,

## H.#####?

Tem sido a vida humana sempre uma confusão


como essa? Como eu poderia ser a único confuso, e
outros homens não estarem confusos? Se um

homem segue seu próprio espírito e faz com que seja


seu professor, então o que ele poderá sersem um
152 professor? (ibid. Jiwi lun; 3)

Antigas
Leituras E já que são determinadas pelas limitações dos nossos sentidos, nós
VISOES DA
CHINA naturalmente tendemos a reconhecer a verdade naqueles tipos de
ANTIGA
reconhecimentos que acontecem para coincidir com os nossos próprios
sistemas de valores (ibid, Yu Yan: 1). Assim, em última análise, é a
subjetividade humana que determina o que deve ser considerado como o
verdadeiro conhecimento. A aparente objetividade e independência da
mente humana tem sido repetidamente provada como sendo falsa, uma
quimera ilusória, que só leva ao auto-engano. A qualidade, as características
e a extensão de nossa percepção são sempre determinadas pelas condições
reais de nossa existência. Por isso, nossas percepções - e as ações delas
decorrentes — são sempre dependentes de fatores externos, mesmo que, em
última análise, toda forma de dependência é, na verdade, uma forma de
auto-dependência. Tal dependência e determinação estão ligadas a nossa
incapacidade de reconhecer a essência do ser (ibid., Jiwulun, 13).
Esta posição relativista foi comum a Hui Shi e Zhuangzi. Mas
seguindo a tradição do taoísmo clássico, Zhuangzi também acreditava na
inexpressibilidade inerente à essência holística de todo ser. Isso o levou a
abraçar o método taoísta clássico de compreensão, ou seja, a introspecção
(ibid.: 5). Deste ponto de vista, ele tentou criar uma nova abordagem para o
problema complexo de interações humanas (ibid.: 9). Para ele, a
interiorização da linguagem é um processo inerente à natureza humana,
assim como comer, beber e respirar, como qualquer outra condição de nossa
sobrevivência (ibid.: 4). No entanto, a conexão incerta entre linguagem e
pensamento não é uma via de sentido único (Allinson, 1989: 11) e , de fato,
O potencial comunicativo da linguagem foi preso na estreita ponte entre o
transmissor e o receptor. Portanto, Zhuangzi vê a linguagem como
inseparavelmente ligada à compreensão; em essência, as suas qualidades são
as mesmas (Zhuangzi, 2014 Jiwu lun: 2). Assim como o Dao em sua função
de fundamento original, a abrangente essência de todos os seres, assim como
o nosso reconhecimento a este caminho original, a própria linguagem
também é absoluta no sentido de unidade de todas as contradições de que a
compõem (ibid: 12).
153
Zhuangzi mostrou pouco interesse pelos problemas que ocuparam a
maioria dos filósofos do seu tempo, isto é, os problemas de conexão Antigas
Leituras

diferentes, as mentes individuais em uma unidade compreensível. Ele, VISOES DA


CHINA
evidentemente, acreditava que os problemas de intersubjetividade não foram ANTIGA

impostos sobre nós a partir do exterior; ao contrário, ele viu-os como


resultado de nosso ser preso em padrões de ambições socialmente
determinados. Nós nunca poderíamos dominar nossos destinos por
intervenções contundentes na integridade de tudo que existe, nem por
distinções artificiais e falsas, nem por avaliações absolutas; a existência
humana não estava subordinada a poderes externos, os poderes superiores
poderiam ser controlados por meio de compreensão (ibid.:3).

Conclusão

Como vimos, os antigos filósofos chineses elaboraram visões


específicas e detalhadas de linguagem, e sua conexão com a percepção e
interpretação do mundo humano. Eles souberam principalmente lidar com
O design, implementação, análise, caracterização e classificação de nomes
(ou conceitos) e sua relação com realidades. Na China antiga, esta atenção
ao conteúdo semântico levou a peculiaridades fundamentais no
desenvolvimento de inferências que também teve um grande impacto sobre
O desenvolvimento da lógica clássica chinesa. O fato de que os antigos
pensadores chineses focaram no conteúdo ao invés de forma, é a principal
característica que define a especificidade de tais discursos chineses.
Fragmentos de tal raciocínio também podem ser encontrados na lógica do
grego antigo, especialmente nas obras de Aristóteles, embora eles não fossem
ser desenvolvidos dentro da tradição européia de lógica até o início do
século 20, com o surgimento de novas teorias na filosofia da linguagem.
Assim, a relação estreita entre estruturas linguísticas e padrões de
pensamento pertence às características centrais que definem a natureza
específica da teoria tradicional chinesa de compreensão.

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Robert E. (ed.), Understanding the Chinese Mind — The Philosophical Roots,


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155
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA
REFLEXÕES GENEALÓGICAS E CIRCULARES SOBRE

A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CHINÊS ANTIGO


Jesualdo Correia

JR #17ÍSA , DJ #4/]}{4}} {}
Céu e Terra não são bondosos, as dez mil coisas lhes

são como cães de palha!


Lao Zi, Daodejing, III.

JNi#íJ#, {{{ #

Perdido o Grande Dao, surgem a benevolência e a


justiça!
156
Lao Zi, Daodejing, XVIII.
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA O período anterior ao da passagem da dinastia Shang (##H), ou Era
Yi (H}{\), para a Zhou (HEH) - cerca de 1056-50 AEC- é visto por alguns
sinólogos como aquele durante o qual se consolidam os alicerces
civilizacionais do Império do Meio, e será em meados dessa nova dinastia, a
partir do período conhecido como Primavera/Outono (##KH f\, 771-476
AEC) que se edificará, com a emergência de um logos em expansão, a
codificação da visão de mundo da China clássica e o essencial daquilo que
conhecemos hoje de seu pensamento. Tal período representa também, no
plano político, o início do multisecular processo de desmantelamento,
gradual e inexorável, daquela ordem dinástica. Quando esse período atinge
os primórdios de seu futuro apogeu epistêmico, na era de Lao Zi (##) e
Confúcio (Kung Zi, fLif), a época que se segue, a dos Estados Combatentes
(Zhangguo), testemunhará a proliferação de inúmeras escolas de
pensamento (“As Cem Escolas” — #f H2R, Zhuzi baijia) consolidando e
codificando assim uma ampla representação de mundo, um Weltanschauung
sínico, com uma sedimentada visão filosófica, ontológica, jurídica e de
statemanship, provida de rico repertório de matizes. Tal arcabouço
epistêmico resistirá ao sobe e desce das dinastias e só será de fato
transmutado, como uma completa nouvelle ordre pelo renversement
ocasionado pela Revolução Comunista liderada por Mao Ze Dong, quando
ocorre então uma mutação de paradigma nunca vista antes na história
chinesa. A época que se prolonga a partir do período Primavera/Outono até
a emergência da China unificada, com o colapso total dos Zhou, presencia,
por conseguinte, a irradiação de um vasto espectro de idéias, num perímetro
de excepcional magnitude, e cujos pressupostos - é importante que se
enfatize -, provinham da visão matricial de mundo, arcaica e antiga, em
curso desde pelo menos os Shang. Os mitos inaugurais da China, que são
poucos, a saber aqueles que constituirão o alicerce de seu Weltanschauung,
emergem a partir da convergência de alguns poucos aspectos fundamentais
157
das propensões inatas ao ethos daquelas comunidades que por fim haviam se
unido sob a égide de uma ordem dinástica cuja historigrafia mítica situa à Antigas
Leituras

altura do começo do terceiro milênio anterior à Era Cristã, na dinastia VISOES DA


CHINA
denominada Xia. Contudo, de credibilidade histórica, há de ser nos bronze ANTIGA

datados o mais recuadamente dos séculos XVI e ou XV AEC, e nas inscrições


em cascos de tartaruga (HfX), que haveremos de extrair um bom número
de informações sobre as práticas sociais. Trata-se de um legado puramente
oral que há de se presupor, sem que contudo se possa asseverar. Asseverados
são, portanto, os monumentos literários do período Primavera/Outono em
diante, quando terá sido consolidada a feitura de uma série de textos-fontes
- em particular o Shi Ji (# Á), Anais Poéticos, o Shu Ji (##), Anais
Históricos, o Zuo Zhuang (/E#), Crônicas da Margem Esquerda, e, não
menos, as várias descrições de códigos dos Cerimoniais e Etiquetas, o Li Jing
(#) entre elas -, do arcabouço dos quais muito da construção filosófico
moral confuciana e, de resto, da China como um todo, será erigida.
Confucio, em prol de sua campanha filosófica pelo soerguimento moral de
uma dinastia que lentamente se esfacela, portanto num período de
decadência dinástica e de guerras contínuas, usará os fundamentos desses
textos para edificar sua visão ética dos assuntos do mundo, idealizando
míticos períodos pretéritos da história antiga chinesa como modelos ideais
de conduta. De certo que o grande historiador da China, Sima Qian, cerca
de 700 anos depois, haveria de se referir e compilar muito de quase todos
esses registros em sua monumental Memórias Históricas, Shiji (SE BE). Lao
Zi, tornar-se-á o protagonista emblemático de um logos filosófico a ser
designado como Daoismo, tendo em Zhuang Zi seu coadjuvante maior,
seguido de Li Zi, com menor grau de originalidade, e um considerável
número de outros pensadores. Confúcio, o outro expoente filosófico maior
daquela época, o pensador por excelência do Estado e da família, o
restaurador de uma sabedoria antiga vista por ele como exemplar e em
decadência, representa com sua obra e seus discípulos a outra vertente, o
outro pé vetorial do tripé-fundamento do pensamento chinês, a terceira
sendo aquela que lhes antecede e em parte norteia: o Yi Jing.
O Yi Jing, ou Zhou Yi, é sem dúvida a referência-fonte, sobre a qual
se apóia a dimensão mágica, metafísico-filosofal chinesa, seja por seu aspecto
Oracular, pela riqueza de suas metáforas e exemplos de sabedoria, seja ainda,
158 mais especificamente, pela dialética subjacente às suas démarches
Antigas expositivas. A partir dessa visão que lhe é própria, e em torno da sua
Leituras
VISOES DA periferia, oscilará praticamente toda o trimilenar percurso da mente chinesa.
CHINA
ANTIGA O arranjo dos 64 hexagramas atribuido ao rei Wang no início da dinastia
Zhou, a partir dos 8 Trigramas originais, constitui talvez o evento intelectual
mais marcante dessa transição, um aggiornamento epistêmico que abrirá
caminho para um logos sínico vindouro. Ocorrera então uma mudança
dinástica na plena acepção do conceito clássico chinês de revolução (ge
ming), a extirpação, a retirada, destituição do Mandato Celestial (tianming)
do regime anterior para ser reenvestida em outro soberano, acompanahada
por todo um espectro de substituições, desde os jargões oficiais, no linguajar
político, nos cerimoniais, datas de ritos e rituais, nos simbolismos, nas cores
imperiais... O logos chinês, essa rationale emergente, irá paulatinamente
sendo ordenado ao longo dos próximos séculos, tipicamente em
concomitância com a proverbial paciência chinesa, tanto estigmatizada no
Ocidente sob o moto da letargia do “Império Imutável”. Mas será sobretudo
no século VIII AEC, como vimos, quando das primeiras rachaduras da
hegemonia dinástica, em meio a bélica hybris de vários Estados que buscam
soberania, que se consolidariam os feitios dos vários registros que se tornam
canônicos. Terá início então o Período conhecido como Primavera/Outono
e a capital da dinastia se vê compelida a mudar para parte ocidental, cada vez
mais ameaçada a leste. A rigor, embora em termos formais só venha a
colapsar em 221, a dinastia Zhou já se encontra seccionada a altura de 722
a.C, e deixará praticamente de existir em 249. Passada a época e Lao Zi e
Confúcio, a profileração das escolas filosóficas — paralela à exacerbação da
realidade política do lento declínio da dinastia Zhou -, provocará o
surgimento igualmente de um pensamento normatizador, de uma escola de
tendência legisferante, que embora venha a hostilizar o caráter conservador
do Confucionismo, preserverá muito do Daoismo: a escola legalista, cujo
expoente é maior Han Fei e que se tornará doutrina de Estado quando da
grande unificação que ocorre em 221 AEC

A visão inaugural

159
O propósito desta reflexão é o de situar a genealogia e alguns dos
fundamentos e vertentes daquilo que constitui os fundamentos do Antigas
Leituras

pensamento chinês, determinar seus pressupostos e evolução até a altura do VISOES DA


CHINA
colapso da dinastia Zhou e emergência da China Imperial, num primeiro ANTIGA

momento com os Qin e logo a seguir, plenamente dinástica, com os Han.


Este pensamento, cujos elementos genéricos e particulares dizem respeito a
um conjunto de traços-procedimentais cognitivos, axiais, de vários modi
deductandi com recorrência aos paradigmas ancestrais (o conceito Dao, jÉí, a
visão cosmogônica inaugural da criação transposta para a polaridade
geométrica das linhas yi e yang, inteiras e partidas, relação do não-ser com o
ser e as “dez mil coisas” (Wang wu) daí decorrentes, a visão tripartite — céu,
homem, terra — entre outros, o recurso ao modelo de trânsito mão-dupla
dos universais aos particulares (visão micro e macro que se
intercorrespondem ) e certa tendência prudente ao nominalismo. Assim, se
no caso da India a forte pegada metafísica, absolutista ou nihilista, impregna
tal postura existencial de maneira radical, no Império do Centro ela tendeu a
estabelecer um compromisso entre a bonheur ôntica com os imperativos
cívicos que a visão cosmológico-filosófico-social das injunções de suas duas
correntes tidas como maiores — Daoismo e Confucianismo -, proporcionam,
outorgando idealmente ao Rei-sábio, sob a outorga do Mandato Celeste, ou
Junzi (o “homem superior”, no período clássico tardio ) o duplo papel de
sábio na esfera dos negócios do mundo (tianxia) e harmônico em relação a
si e a natureza, respeitador da ordem cósmica, tanto por parte do
Confucionismo como, por outro lado, no Daoismo o telos esotérico do xian
(“imortal”) ou do zhen ren (“homem verdadeiro”), a partir das prescrições
do inventário de práticas psicosomáticas da alquimia interna (nei dan). Esta
ordem institucional que mais tarde emergirá, dotada cada vez mais de uma
“burocracia celestial” (Étienne Balazs), do lado exotérico, confucionista ou
legalista, se proporá a servir de modelo referencial para a história
subsequente do país, tendo como pano de fundo o arcabouço emblemático
de uma sabedoria contida naquele tripé ao qual me referi mais acima. Esta
sabedoria será lembrada e citada a partir de um repertório de máximas,
exemplos históricos ou míticos, receitas do agir e farta ritualidade nos
cerimoniais e procedimentos. Através do refinamento que o domínio dos
clássicos é suposto de propiciar — verificado pelos exames imperiais —
haveriam de ser aperfeiçoados os “funcionários e magistrados”, ou seja, essa
160 dupla situação de gestores exemplares das coisas do reino e de sábios
praticantes de diversos misteres, o ru Shi que o ideal confucionismo haveria
Antigas
Leituras
VISOES DA
de sedimentar. A visão inaugural, própria do gênio da civilização chinesa,
CHINA
endógena e sui generis até que a história ou a antropologia cultural possam
ANTIGA
provar o contrário, é alegoricamente ilustrada pelo mito do proto-sábio
Fuxi, segunda o qual ele, num momento de inspiração e insight, olhou para
o céu (ou seja, considerou os fatores de anterioridade e perenidade das leis
cósmicas atuantes sobre a condição humana e a natureza), olhou a seguir
para a própria natureza em suas transformações e apreciou então a condição
humana. Dessa visão, ternária, haveria ele de conceber uma representação
geométrica de linhas inteiras e partidas; o revezamento criativo entre dois
princípios antagônicos e complementares, yin/yang. Para a mente
pragmática do gênio chinês, a anterioridade é situada num momento zero,
no Não-Ser, a partir do yin evolui o yang e que, acoplando ao seu oposto yin
(mas não inteiramente oposto) faz surgir o fruto, o terceiro elemento e a
partir daí as dez mil coisas (wang wu). Sobretudo o Daoismo beberá
proficuamente desse esquema e o Daodejing o explora abundantemente em
várias direções. Havendo sido forjado, por conseguinte, desde os
primórdios, esse Weltanschauung de tamanha simplicidade, coerência e
eficácia, pouco espaço seria ensejado para a eventual multiplicação de
fabulações cosmogônicas, de politeismos ou dogmáticos monoteísmos,
ganhando com isso o processo de sedimentação de sua rationale
precocemente. É bem verdade que o Daoismo popular geraria um bom
número de variantes mitológicas e a penetração posteriormente do budismo,
igualmente em sua variante popular, um pequeno panteão de divindades,
embora nada de nuclearmente tão significativo em termos de permanência
como substrato histórico hegemônico. Tout court: tal disposição cognitiva
original, e a eficácia com que tais princípios opera sobre a mente do homo
sinicus, contribuirá significativamente para consolidar a visão de mundo e
os fundamentos de seu pensamento.
Hu Shi, em sua seminal, embora algo precariamente elaborada obra
sobre o desenvolvimento da lógica na China antiga (The Development of the
Logical Method in Ancient China, 1922), usa como ponto de partida de sua
démarche expositiva um episódio da história da filosofia chinesa que talvez
161
caiba aqui ilustrar. Assim é que Zhu Xi, (1 129-1200) da extraordinária
dinastia Sung, afirmava, nas pegadas do Confucionismo, que em tudo existe Antigas
Leituras

uma razão e que se a mente se projetar continuamente sobre as razões das VISOES DA
CHINA
coisas ela poderá ampliar a consciência cognitiva infinitamente. Séculos mais ANTIGA

tarde, o importante pensador Wang Yangming (1472-1529) irá se rebelar


contra esse dispostivo lógico. Para Wang esse acúmulo cognitivo progressivo
é prolixamente pernicioso e dispersivo, o importante sendo retormar o
esvaziamente que retorne a uma espécie de mente original, a um
conhecimento intuitivo inato ao ser, e não à mente como construção das
representações. Trata-se de despertar esse potencial. Quando Zhi Xi e Wang
Yang Ming decidem, a uma distância de mais de 300 anos, que discordam
quanto a modalidade do tipo de razão neoconfucionista que advogam, eles
estão concordando com algo que é, uma vez mais, bastante peculiar à mente
chinesa, a saber, o caráter psicológico, e por assim dizer humanistico, de suas
posturas e objetivos filosóficos. Wu (coisa) que é o termo do
Neoconfucionismo e shi (objeto, pragma, na acepção latina ) constituem a
centralidade de suas preocupações, e não os procedimentos lógico
epistemológicos a rigor, ou a observação da natureza na mesma modalidade
científica em que nós a conhecemos. Uma vez mais atuou ali o caráter
pragmático da mente chinesa. Essa digressão foi feita aqui de modo a ilustrar
certa tendência recorrente no pensamento chinês, o que enseja não menos a
que recoloquemos a famosa pergunta de Jacob Needherland, o sinólogo e
editor da monumental History of Science and Technology in China: por quê a
China não continuou avançando em seu pensamento científico de modo a
seguir ultrapassando o Ocidente, ela que, em em tantas áreas, fora
precursora? O que fez com que em certos períodos de sua história
epistemológica ou tecnologica uma restauração filosofal ou paradigmática
freasse um avanço que certamente teria ultrapassado o Ocidente mesmo na
Renascença, se apenas plenamente estimulado e açulado, tal como ocorre na
China atual? Portanto, esse comprometimento, com um escopo bem
definido e que buscava como eterno ideal uma sabedoria operativa ao nível
ôntico e institucional, profundamente conservador em certos aspectos, fez
da China um país recorrentemente daoista e Confucianista à la fois, “mesmo
que nunca houvesse existido um Lao Zi ou Confúcio”, parodiando aqui a
máxima de Nietzsche em relação a Hegel. Tal índole, inclinada à
manutenção piramidal de poder de sua classe dirigente, não poderia
162 propiciar àquela inquisitiva mente um deslocamento contínuo em direção à
ciência - apesar de seu imenso potencial cognitivo, ainda que
Antigas
Leituras
VISOES DA
paradigmaticamente coibido para tal -, avanço tecnologicamente inovador,
CHINA mas perturbador em suas consequências, o que responde aqui talvez à
ANTIGA
pergunta clássica do Needham. De certo que os paradigmas cognitivos, tais
como uma obstinada tendência a criar uma hermética, embora ampla,
correspondência entre o micro e o macro a partir de um esquema rígido de
conjuntos mais numerológicos do que factuais: os cinco elementos, os cinco
sons, os aromas etc., etc. E então, esse extraordinário potencial que não
precisou tolher ou sacrificar pensadores por força de dogmas ou nas
fogueiras da Inquisição, teve em si mesmo o freio que o conteve rumo a
ciência tecnológica. Embora bem mais solidamente provido de registros
históricos, razoavelmente bem confirmados, e herdeiro de uma herança de
anais, a China partilha com a Índia o penoso dilema filológico da atribuição
de autoria e, de resto, eo ipso, de toda a problemática dos estemas, para
sequer falar de edições princeps, pois seria aqui um fantasia. De tal forma
temos pouca certeza quanto à integralidade e veracidade das autorias dos
textos, desde a mais alta antiguidade, passando por aqueles atribuídos a
Confúcio, ou quanto aos capítulos seja de um Lao Zi, de um Zhuang Zi ou
Han Fei, que os chineses, à exemplo das cópias em arte, passaram a fazer
espírito de bom gré mal gré ao seu legado. Em parte tal postura se dá em
função da própria precariedade filológica a ser encontrada nessa área, de
certo, mas também trata-se de algo próprio ao pensamento e metalidade
chinesas, a saber, a individualidade não possui a mesma conotação de
absoluta exclusividade, importante sendo sobretudo o conteúdo que tende
sempre a ser visto como um acúmulo de conhecimentos e interpolações que
são emblematicamente referidos a este ou aquele autor. Assim sendo,
sempre subsitiram as problemáticas filológicas de autoria, seja em relação ao
Yi Jing ou Shu Jing e correlatos, seja ainda aos “clássicos” atribuídos a
Confúcio e até mesmo ao textos mais recentes, já na dinastia Ming. Por
outro lado, quando aqueles registros se asseveram como legados, de maneira
a se tornarem posteriormente incontestes, a saber, a partir dos séculos IX
VIII AEC, tornar-se-á possivel observar (histórica, e mesmo
filologicamente), que os mesmos procedimentos de avaliação das questões
163
de Estado, dos assuntos da guerra e das funções inter-classes giram em torno
da mesma mindset que haveria de predominar até a grande passagem da Antigas
Leituras

queda do regime feudal e a unificação da China em 221 AEC E tal eixo VISOES DA
CHINA
modus de percepção de mundo permanecerá vigente por cerca de 30 ANTIGA

séculos, incluindo os dois grandes períodos de dominação externa, seja a dos


mongóis, na dinastia Yuan, seja dos manchus, na Qin, até por fim desabar
sob o impacto de uma nova ordem, a saber a da Revolução Comunista, que
se estende ainda mais em sua radicalidade no período atual da história
chinesa guiada pelo choque profundo das formas do saber científico
recnológico ocidentais do capitalismo com suas tecnologias de ponta. Mas se
as relações sociais e a estrutura do Estado, sofreram transformações
mutacionais, seguidas da absorção de novos paradigmas cognitivos nos
modida pesquisa científica, onde métodos cognitivos ocidentais passaram a
substituir quase (eu disse quase) que por completo, o imperativo das
correspondências holisticas do macro com o micro da visão tradicional, em
áreas que vão da física à astronomia, da química às taxonomias das ciências
naturais, entre outras — o esquema mais profundo chinês de visão holístico
intuitiva de mundo não abriu mão de seu legado ancestral, conseguindo
preservar enfoques bifurcados em várias áreas, da geopolítica e da medicina.
A passagem do século VIII ao VII na China antiga corresponde, grosso
modo, à passagem da Grécia heróica e mítica para a Grécia pré-clássica, na
virada do século VI para o V, quando começa a emergir um logos ordenado
por crescente despojamento das impregnações míticas, em favor de uma
rationale filosófica e político-estatal. De certo que a derrocada dos Zhou
orientais em (725 AEC) acarretou um primeiro choque geopolítico de
Vatícinicas proporções, o qual se manifestou já na própria mudança da
capital tradicional dos Zhou, até o reordenamento das funções públicas,
recomposição de alianças e urgentes adaptações à nova realidade política e
econômica que emergia. A partir desse momento as sementes de uma
espécie de proto-iluminismo à la chinoise já poderiam ser cada vez mais
visíveis. Trata-se do início de um longo período de amplíssima reflexão
sobre o Ser, o indivíduo e o Estado que se extenderá por séculos,
radicalizando-se sobremaneira com os tumultuosos confrontos do período
dos Estados Combatentes, que tem início por volta da morte de Confúcio.
Neste período formativo de um pensamento chinês propriamente dito, que
situo aqui a partir do início do período Primavera/Outono, é sobretudo do
164 Yi Jing, com seu farto material de condensação de saber, com seu enfoque
mágico-pragmático e lógico-metafórico - mais do que dos exemplos e
Antigas
Leituras
VISOES DA
receitas contidas nos vários cânones da época-, que os grandes princípios
CHINA filosóficos — provindos desde lá de trás pela tradição oral milienar - de
ANTIGA
aplicabilidade seja à vida pessoal, seja ao comportamento nos negócios do
Estado, serão doravante extraídos. As próprias imagens dos trigramas
superpostos, evocando imagens da natureza e seus atributos, deverão servir
de fios condutores para a práxis por metáforas de princípios, as regras e
receitas para práxis ôntica e social. Ora, se uma rationale dessa natureza
tornar-se-á canonizada por um expoente-pilar do pensamento chinês,
Confúcio, em sua expressão mais apolínea e rational do status quo,
retificando nomes (zhen ming) de modo a edificar um padrão de civismo
cujas relações interfamiliares sejam axiais, então estará sendo consolidada
uma recorrência epistemológica fundamental com implicações por toda a
história da China, até que tal modelo entre em crise, mais de mil anos
depois, vítima de suas contradições e em relação à realidade circundante. Tal
será o caso, em particular, com o colapso da dinastia Sung face aos mongóis
e depois de novo, com a Ming, face aos manchus, quando não apenas o
enfraquecimento da virtude dinástica é progressivo e sua força bélica diante
do inimigo externo reduzida. No caso da queda da dinastia Ming, não se
haveria de negligenciar a crise epistêmica que se instala face a superioridade
tecnológica que a empresa mercantil colonialista gera através dos
conhecimentos científicos levados pelos missionários jesuítas. A consciência
da inevitabilidade de adaptação aos novos saberes tornar-se-á uma urgência,
mas haverá a princípio uma multisecular morosidade para se adaptar a ela,
problema cuja solução seria resolvida pelo Japão da Era Meiji, em meados
do século XIX, antecipando-se assim à China do vindouro movimento social
de Sun Yat Sen e da revolução Mao Zedong no século subsequente.

Representação, forma, idéia-xiang/xing

Dentre os conceitos nucleares provindos da matriz do Yi Jing,


inicialmente apenas como um esquema dicotômico de percepção da
realidade, mas já altamente filosófico em seu potencial, o da “imagem”,
165
Xiang, posteriormente em alternância com xing, “forma”, merece especial
destaque. A idéia central da metáfora, a ser extraída das imagens, das Antigas
Leituras

analogias, e dos paralelismos é reflexo dos conteúdos visualizados, VISOES DA


CHINA
absorvidos empiricamente pelos “rudimentares” procedimenti cognoscenti. ANTIGA

A metáfora que é trazida à tona, curta e direta, arcaica, seja nas imagens
abstratas toscas, seja naquelas provinda dos fenômenos da natureza e
extraídas das profundezas da experiência da vida no campo, constitue o
arcabouço epistêmico desse livro inaugural. A imagem da água reprezada em
algum lugar, sem se escoar ou evaporar, propicia uma cesta de informações
sobre aquilo que é contrário ao fluir da vida e representa um momento de
estagnação nos assuntos do império ou na vida pessoal do consulente. O
pássaro que voa, instiga a que se considere a possibilidade de criar um
dispositivo semelhante ao de suas asas, a folha que flutua, uma embarcação,
a pedra que adquire velocidade cada vez maior ao rolar montanha abaixo
enseja uma compreensão das leis da física, mas também a criação de um
caracter que evoca a idéia de empuxo crescente, momentum, e
preponderância — shi, título do quinto capítulo do Sun Zi Bingfa. Esses
procedimentos de apreensão e representação da realidade serão pouco a
pouco fundamentados em variantes cognitivas aprofundadas e explicitadas
nos moldes do gênio e idiossincrasia da lingua. A altura de Mozi (Mo Tzu ou
Modi), contemporâneo e contestador de Confucio, já existe em curso a
construção de um sistema lógico, do qual procedimentos de inferência serão
desenvolvidos pelo Mohismo posterior. Banidos em parte pelos Qin, mas
retomados a partir dos Han e mais plenamente resgatado quando da
penetração da do Budismo, essa corrente ainda é tida por emblemática das
origens do pensamento lógico chinês na primeira fase do período
plenamente clássico. De certo que o impacto causado mais tarde pela
epistemologia budista, através seja da radical dialética negativa do
Madhyamika, seja sobretudo pela lógica-epistemológico do Yogacara (cuja
vertente mais psicológica foi adaptada ao espírito chinês pelas bravas e
idiosincráticas traduções feitas por Xiang Zang), haveria de produzir uma
marcante influência sobre aquilo que poderíamos chamar de um sistema
epistemologico chinês mais amplo. Mas tal influência budista só haveria de
ocorrer a partir do século III da Era Cristã (e sobretudo nos séculos VI e
VII), não sobrevivendo muito além da dinastia Tang, ainda que residual e
subrepticiamente presente nas dinastias posteriores e algo ecoante até hoje.
166 O peso sui generis das idiosincrasias e das limitações sintáticas da lingua
desempenhou sempre um intergiversável e insofismável papel na construção
Antigas
Leituras
VISOES DA
das idéias e das tendências aos modi cognoscendi, mas também certa
CHINA
barreira à absorção de idéias exógenas, sendo a famosa querelle filológica dos
ANTIGA
Ge Yi (“equiparação dos sentidos”) em torno dos problemas de tradução dos
textos budistas, provenientes do sânscrito, testemunha eloquente dessa
dificuldade nos primódios do período medieval. Mas tal assertiva de
intransponibilidade de sentidos não pode ser de modo algum mantida como
absoluta, visto que na era atual ocorreu uma transposição desobstruída das
idéias ocidentais em chinês moderno, agora já plenamente provido do
recurso de dois ou mais caracteres para traduzir conceitos e uma expandida
sintaxe, se aqui e ali artificial ao gênio da lingua. Muitos conceitos científicos
adquirem mesmo maior expressividade quando de suas traduções em chinês
moderno. A tradução do Finnegans Wake, de James Joyce, constituiu uma
temerária mas respeitável prova disso. Assim sendo, a crítica que Marcel
Granet faz, de maneira a meu juizo excessivamente radical, quanto a
inadaptabilidade conceitual da lingua, foi de fato precipitada para um
sinólogo da sua envergadura (La Pensé Chinoise, 1934). A propensão à
exegese, à ortodoxia e, por conseguinte, à escolástica à la chinoise, passou a
cristalizar-se como outro traço marcante do pensamento chinês, latente no
auge do período clássico e adquirindo plena eclosão a partir da dinastia Han
em diante. Para tal haveria sobremaneira de contribuir aquela imutável e
conservadora classe de “buracratas celestiais”, os mandarins. Cronicar,

repertoriar, classificar, dispor, organizar hieraquicamente a partir de


taxonomias heterodoxas... tudo isso constitui formas de exegese, maneiras
de ordenar o mundo, a partir sobretudo de suas próprias realidades, de suas
“coisas em si, de seus vários dao(s). A mente chinesa e o pensamento
decorrente de seus vários topoi cognitivos estiveram sempre inclinados, por
outro lado, a certo pragmatismo, o que implicava uma tendência a um
reducionismo, ao circunscrever os conhecimentos do universo das

representações à sua pragmaticidade, ôntica ou institucional, a um


dexterous modus operandi, optando-se essa ou aquela fórmula que o
hegemon do Zeitgeist ou da corrente de pensamento predominante
considerasse como a que melhor impacto teria, a se tornar emblemática da
167
eficácia operacional visada. O universo das representações, em seu vasto
espectro, tenderá portanto à minimização, às máximas de saber — Antigas
Leituras

prescrições, adágios dos cânones ou da sabedoria popular, conceitualização, VISOES DA


CHINA
enfim, imagens operacionais de sentidos, de tudo que genericamente seja ANTIGA

representável pela imagem — xiang ou pelo conceito nomeado, ming Da


ampla visão de mundo proporcionada pelo Yi Jing, um dado modus
cognoscendi haverá de exercer radical influência sobre a formação do
pensamento chinês, conferindo-lhe certo senso de medida (metron), de
harmonia entre as partes constitutivas, sintonia da dinâmica das sutis
passagens, dos eternos fluxos e mutações. Esse pragmatismo sábio advém em
parte do imperativo da decisão a ser tomada, postura a ser assumida de
acordo com as indicações metafórico-guias, assim como do julgamento por
extensão dos mesmos, do aconselhamento hieraquizado quanto a qual
decisão deve ser tomada — ainda que nenhuma -. e é interessante aqui não
menos notar, que o caracter que mormente é traduzido como
Julgamento/juízo, duan (Hf) evoca em seu étimo á idéia de cortar, romper e,
como bem nos lembra Hu Shi, decidir vem do latim de-cidere (cidere,
cortar). Um ato de decisão, de resolução quanto ao um direcionamento
implica em cortar entre as opções de um recorte da “realidade “oferecido
pela imagem (xiang, #) do trigrama/hexagrama (gua), uma de-cisão. Tão
profundamente haveria esta noção de princípios-guias (li) de se alojar nos
arquétipos dos modi cognoscendi e da visão de mundo do chinês, que tal
ensejou no ethos uma incômoda contradição: por um lado, a mente chinesa
tenderia à não-ação por força inerente de sua postura de ascendência daoista
do Wei-wu-wei (deixar que se faça algo sem que se faça algo, laisser-faire) o
que evoca e constrói a imagem de um chinês irresoluto, que se encaixaria na
perspectiva temporal da China Milenar e Imutável; por outro, a mente
chinesa estará sempre tendente à opção que se afirma em função do Dao da
situação. Portanto, e cabe aqui enfatizar que essa opção maior, oferecida
hierarquicamente pelo hexagrama e por sua imagem, o é por força da
emergência preponderante de uma linha em ascensão no interior da
situação, uma linha que prepondera, que está em status crescendi — shi! Este
é o Dao da situação e o consulente deverá se adaptar a ele, ao Dao que o
hexagrama e a sabedoria de seu julgamento descreve e presceve, e não aos
ditames de suas propensões de ego. Assim sendo, a matriz cognitiva
provinda e pervinda desse cânone inaugural, incorpora e encapsula,
168 convergentemente, vários outros elementos do pensamento chinês: imagem
original/arquetipal, força emergente preponderante, a opção pela decisão
Antigas
Leituras
VISOES DA
maior, hierarquizada, e a sintonia com o dao das coisas na situação em
CHINA
particular. Tudo isto está girando em torno, e gravitando sobre, um mundo
ANTIGA
de situações em curso, em movimento (dong). Como um todo, toda essa
operação oracular-cognitiva envolve um tipo de percepção, de natureza
intuitiva e paulatina a um só tempo. Interessante notar que o percurso
semântico do caracter zhi - saber e sabedoria, composto (hui yi) construído
com o yue de “dizer” subposto a zhi “conhecer”, “saber”: o saber superior
que advém de um insight, que passa semanticamente a ter esse sentido em
Lao Zi e Confúcio, deslocando-se assim de sua acepção antiga e arcaica que
implicava a idéia de habilidade. Uma vez mais aqui, numa sutil passagem
semântica, a indicação de que o “saber-fazer", a habilidade do
conhecimento, sempre foi de crucial importância para a mente pragmática
chinesa. Não caberia aqui, por restrições de espaço adentrar os labirintos do
universo de correspondências entre os planos do macro e do micro, das
interrelações complementares entre os elementos e os astros, entre as cores e
os numeros, entre os sons e os odores, tal como tão fartamente ocorre com o

modus complementarista dessa visão de mundo, prescritivamente pré


dispostas, típicas das peculiaridades cognitivas do pensamento chinês. Essa
visão estrutural — e não menos aqui e ali estrturalista - de mundo receberá,
sobretudo em sua paideia, um choque de oitava, um renversement de la base,
um aggiornamento de paradigma exatamente à altura do colapso da era dos
Estados Combatentes, quando da implantação de uma nova ordem imperial
com a dinastia Qin, num curto primeiro momento, e a seguir,
consolidadamente, com os Han. Os resíduos adjacentes da antiga religião
agrária, com sua plêiade de deuses e divindades da natureza, de oferendas e
invocações a serem buscadas de modo a atingir um summum bonum
harmônico, visando à manutenção da ordem própria aquela visão de
mundo, o Dao maior, será agora gradativamente substituída por um novo
paradigma de práticas religioso-populares, por um novo panteão de
divindades preponderantemente daoistas. Trata-se de uma passagem
semelhante em importância política e institucional àquela dos Shang para os
Zhou. O hegemon Qin uma vez consolidado permite emergir um novo
1 69
hegemon em termos de filosofia política e política de estado.
Respaldado em parte pelas variantes do daoismo dito filosófico Antigas
Leituras

(daojia) e refutando ferozmente o conservadorismo confucionista dos VISOES DA


CHINA
letrados, a sabedoria popular poderá agora, com o colapso da ordem feudal ANTIGA

senhorial, fazer emergir uma sabedoria popular religiosa descrita


genericamente como daojiao, O Daoismo religioso! Se o legismo radicalizará
um pensamento jurídico e institucional fazendo com que a realidade social
seja definida e prescrita, a ontologia daoista se aprofundará cada vez mais no
conhecimento do corpo como a realidade do microcosmo, dotado de uma
imensa topografia, campos de força, reservas energéticas, canais, palácios,
centros de gravidade. E este amplo universo interior será agora povoado por
um novo conjunto mitológico de entidades e divindades, a serem nutridas,
cultivadas e reverenciadas. As novas práticas, num plano mais elevado,
visam ao retorno do Status embrionarius da respiração, à implementação de
dietas alimentares regeneradoras e à imortalidade do yogin daoista, um
daoshi que almeja se tornar não apenas um zhenren (um ser inteiro e
verdadeiro) mas também um xian (o imortal), "ideograma" composto de
montanha e homem, para esse deverá seguir, tal como o sanyasin hindu na
última fase de vida (puruSArtha) — de modo a se abrigar da banalidade do
mundo. Essa emergência do daoismo será agora irreversível, mesmo se o
confucionismo também retornará a cena política e institucional de maneira
não menos profunda e irreversível. A escola dos legistas (fajia, #3)
emergirá no século IV AEC e já se amplia como ideologia dos Qin ao longo
da segunda metade do século III AEC. Han Fei, que originariamente
representava uma corrente depurada do confucionismo, contra o qual ele se
rebelará, for a não menos profundamente influenciado pelo daoismo e
constitui a figura emblemática dessa corrente. Do estoicismo de Mo Zi, ele
retirará também seus elementos de lógica e mesmo de sofística e passa a
incarnar, às vesperas da unificação sob os Qin, o profundo desideratum do
inconsciente coletivo político chinês no sentido de resgatar uma ordem
jurídica nos nos negócios de uma China que se autoflagelava cada vez mais
turbulenta e esquizofronicamente. Han Zi, apenas mais tarde conhecido
como Han Fei Zi, cairia contudo em desgraça, por intrigas de Li Si, o futuro
poderoso ministro do imperador Qin, Shi Huang Di (lí ###) e viria a se
suicidar na prisão em cerca de 233, sem haver por conseguinte ter visto sua
visão de mundo tornar-se a ideologia dominante da nova China. O
170
pensamento de Han Fei (#HF) era bem mais profundo e rico do que aquilo
Antigas
Leituras que dele foi feito como ideologia de estado, um legalismo seco e despótico,
VISOES DA
CHINA caracterização que em parte correspondente a visão cristalizada por um
ANTIGA
confucionismo ressentido. De certo que se poderia genericamente falar de
um tripé axial, a saber o ordenamento jurídico Fa GR), portanto leis e
princípios, um método de articulação dos assuntos de estado, ou uma
filosofia administrativa shu (ff) e a legitimidade terrena e celestial, shi #3)
do imperador. O Confucianismo, com sua visão conservadora representará
um obstáculo, retrógrado e nostálgico de um passado idealizado, para a nova
raison d'état do futuro novo regime. Urgia depurar o Estado dessas forças
que preservariam o espírito da ordem feudal, desfechar um golpe sobre elas,
O que seria feito com decretos de banimento e perseguição, assim como com
a apreensão e queima de seus escritos. Desde cima, o Imperador/governante
precisa “ser visto” como aquele que rege de acordo com os princípios mais
elevados e sublimes da sabedoria e em concordância com um conjunto de
leis “imparciais”, investido que é pelo Mandato Celestial e provido de sua
virtude (De, #), que ele emana de si como soberano, atributos que devem
servir ao Estado e para todos os súditos. Tais princípios legais deveriam
portanto passar a disciplinar a vida do estado e dos súditos. Não haveria
mais o sistema feudal, constituído de leis extremamente severas para os
crimes do povo, e um código de regras e de ritos particulares para as classes
superiores. Mantinha-se contudo à concepção de um Imperador absoluto,
quase divinizado e para tal Qin Shi adoptaria o título duplo de Augusto
(huang) Imperador (di). Esse novo ordenamento jurídico baseia-se em sua
necessidade e fundamentação no conceito legalista de eficácia (kong-yong).
As leis passam a ser o parâmetro regulador, do mesmo modo que os ritos o
eram antes para Confúcio. O momento de unificação político-territorial da
China, em 221 AEC, representa a consolidação de uma passagem, uma
revolução plena na qual os alicerces da antiga ordem feudal dos Zhou
haveria de ter seu mandato celeste extirpado (gen) e uma nova ordem
imposta. Mas se a antiga civilização chinesa havia acumulado, já à altura dos
Estados Combatentes, um imenso saber em várias áreas, em algumas outras
esse pensamento permanecia ainda muito incipiente, fosse em geografia,
171
astronomia ou em matemática avançada. A penetração de novos
conhecimentos vindos do exterior através das rotas comerciais, da Antigas
Leituras

civilização iraniana, da hindu, grega ou mediterrânea, haveria de dar um VISOES DA


CHINA
pouco mais de concretude a alguns desses saberes, embora muito ANTIGA

cursoriamente ao que se saiba. Da influência indiana teve lugar uma


ampliação das noções de matemática e de astronomia, a qual se encontra
hoje razoavelmente bem atestada pelas pesquisas que o orientalismo
produziu e, mais especificamente, pela monumental obra de Jacob
Needham. O pensamento chinês que se estrutura multiplamente a partir do
período Primavera/Outono, e que se estenderá por todo o período clássico,
esvazia e reduz muito da original visão de conjunto, holística, monadica e
asincronicamente hieraquizada, das estruturas mais antigas transmitidas
pela tradição oral. Certamente que tal ocorre por força do logos
normatizador que se afirma. De certo que a formulação do conceito de Dao,
que ocorre em Lao Zi, já é uma perda do verdadeiro sentido estrutural
original, e nisso concordam vários sinólogos contemporâneos. As
taxonomias típicas da China antiga, bizarríssimas em termos dos arranjos
das categorias— se pensarmos em Aristóteles ou Lineu como paradigma- e
propensas a esquemas hierárquicos de correspondências micro/macro, têm
por referencial um universo de mônadas percebidas em função dos
elementos internos de suas eficácias e devem ser aqui referidas
emblematicamente como um dos traços marcantes do modo chinês de
pensar.

Céus anterior e posterior e a dicotomia das almas

Portanto, a passagem do céu anterior dos Shang para o posterior na


dinastia Zhou, concomitante com suas gradações cada vez mais
individualizantes, ou seja, com o logos chinês depurando-se de uma
dimensão preponderantemente mítica, metafífica, holística e normatizando
as cada vez mais em abordagens filosóficas (as “Cem Escolas”) faz com que o
próprio conceito do Dao sofra, em sua acepção mais cosmogônica, um
aggiornamiento filosófico, perdendo em plenitude.,como já aludimos mais
acima. O mesmo se dá com a noção do Qi, que de sua plena expressão de
pneuma cósmico, passará a ser explorada pelas várias abordagens
psicosomáticas, e não menos pela medicina. Haverá agora uma segmentação
172 cada vez maior dos qi(s), um orgânico, próprio ao ato sexual da concepção,
do acoplamento do esperma com o óvulo, ligada a alma bo; um do
Antigas
Leituras
VISOES DA
momento do nascimento, um qi astral ligado a alma superior, huan. A alma
CHINA
bo é pressuposta de retornar à terra quando da morte, ao passo que a huan,
ANTIGA
astral, perdurará por mais tempo, dependendo de seu teor de cristalização,
sob a forma de gui (poltergeist, por vezes ) até que se dissolva de novo no
espaço cósmico. Mas em tudo isso, daquela visão original, advinda dos
tempos arcaicos e depois cada vez mais adaptada e investida de novos nomes
e às novas formas das representações (ming, Xiang/xing) ocorria uma
subsequência, respeitando a noção polivalente e multipolar de vários planos
hierarquizados. É deste arcabouço mais profundo que advém a visão chinesa
de multipolaridade, hoje vigente na geopolítica chinesa. É fácil para o chinês
ter essa visão, fortemente arquetipal, porquanto seu pensamento nunca
tendeu a estratificar-se em monoteismos rígidos e tampouco em politeísmos.
E existe, em tal visão de mundo, um extraordinário senso de liberdade de

consciência, no qual as restrições episódicas que sistemas como o legalista


possa ter pontualmente constrangido. Na visão do céu anterior que vai
sendo modificada pela emergência do logos no período dito clássico, o
mundo e o seu gerador precípuo, o cosmo, possui uma gramática própria e
cabe aos homens seguir, hierarquicamente, seus protocolos de
correspondências, através de procedimentos ritualísticos, cerimoniais e
outros tantos, da vida campestre à social. Esse substrato de ritos/rituais e
convenções apropriadas permanece ainda hoje, ainda que transubstanciados
e sublimados, De novo, em suas modalidades anteriores ou atuais, tais

procedimentos e práticas visam à eficácia. Como o pensamento chinês, em


suas linhas mais intrínsecas, não previlegiava a supremacia dos planos da
epistemologia, ainda que precaria e secundariamente tenha imanentemente
formulado variantes (com a dialética daoista e em Mo Zi, particularmente),
ocorreu algo como um certo senso instintivo em relação às discontinuiades
epistêmicas, uma desconfiança inata de que epístemes vigentes no Zeitgeist
eram apenas aquelas que tornaram-se hegemônicas, não sendo definitivas,
tendo lugar portanto um contínuo processo de descontinuidades. Os
chineses antecipavam-se a Foucault em mais de dois milênios, ainda que
apenas pregnantemente. Portanto, a visão de conjunto, holística do céu
173
anterior, transforma-se, adapta-se, transubstancia-se pela afirmação
múltipla do logos, quase da mesma forma em que tal passagem ocorrera na Antigas
Leituras

Grécia dos pré-clássicos para os clássicos. De fato, o “Meio Constante” VISOES DA


CHINA
(zhong yong), um dos textos atribuídos a Confúcio, constitui uma eloquente ANTIGA

expressão desta característica maior entre os chineses, e encontramos


expressões desta consciência em praticamente todas as escolas e em todos os
pensadores. Para o chinês, o ideal como telos não deve ser buscado, ultima
ratio, nos planos metafísicos, como se inclinam os hindus, nem tampouco
na glorificação da condição central do anthropos, como o faziam os gregos.
É na integração com o mundo e as leis da natureza que este equilíbrio
mental, físico e mesmo mágico, deve ser alcançado.
O posicionar-se no centro significa um oscilar contínuo, de maneira
espiral, uma espécie de tênue dialética de absorção dos elementos do
contrário que prepondera, num dado corte sincrônico (pessoal ou
histórico), asseverar as correspondências mais inequívocas — ou supostas de
o serem. Este processo cognitivo que ocorre por absorção circular, através de
um tênue jogo dialetico cujo sujeito (ou o sujeito do discurso que representa
qualquer formulação de conhecimento) evoca a intergiversibilidade das
imagens de uma circularidade interrompida (evocada pela caligrafia
daoista), solicita uma linguagem psicológica e gestual de neutralidade, de
impessoalidade, um observador neutro profundo que sonda oscilante nos
interstícios e não através dos espelhamentos de superfície. Enseja também
enfoques lúdicos, tais como o Weiqi, o “xadrêz” chinês, mais conhecido
como Go, termo japonês. Conclusão Sem dúvida alguma, mais do que
qualquer outra civilização, a chinesa tem mantido nuclearmente intacto, ao
longo de vários milênios, o eixo epistêmico de sua visão de mundo não
obstante as influências e incorporações provindas de várias fontes exógenas.
Essa visão primordial, esse esquema-paradigma de percepção de si mesmo e
do mundo exterior, cristalizou na mente do homo sinicus um espaço de
manobra cognitiva incomparável e fez com que, a diferença de outros povos,
não se tornasse ele submisso a dogmas e fundamentalismos que o teriam
sujeitado a um bitolamento existencial, talvez beyond any help.
Quando um filósofo moderno diz que toda palavra é já um pré
conceito e toda definição uma limitação, ele está fazendo eco a uma
passagem emblemática inicial do Daodejing: (“aquele”) Dao que for definido
como Dao não é o verdadeiro Dao”. Tão ampla e lúcida é a consciência
174 filosófica chinesa antiga quanto as limitações das palavras, das definições...
tão plena sua consciência dos vários universos cognitivos (e dos princípios
Antigas
Leituras
VISOES DA
de incerteza) que se adjacenciam como mônadas em descontinuidades de
CHINA
hegemonia epistêmica (talvez Foucault tenha bebido aqui) que o eixo de se
ANTIGA
pensamento estará desde sempre irremediavelmente liberado dessa aflição.
O Dao, são muitos dao(s), pois infinitas são várias “coisas em si” que estão
para além e para aquém das imposições do problemático, ilimitado e
limitante pensar humano, de suas projeções e intencionalidades subjetivas e
não menos de suas circunstanciais assertivas científicas. Nomear para o
chinês, ou seja outorgar com um caracter pleno de carga semântica e
semiótica alguma coisa é ato de temerária importância e por isso o
pensamento chinês se abstém tanto quanto possível de fazê-lo. Aqui
prevalesce a máxima do oráculo de Delphos: oute legei, oute criptei, 'alla
semanei... “não diz, não oculta, mas (apenas) significa...” Quanto mais se
nomeia tanto mais será prescrito, formatado, outorgado e mesmo
Vaticinado. As camadas subterrâneas, os labirintos interligados dos processos
cognitivos do pensamento chinês escapam ao domínio do visível e podem
apenas ser “captados” nos interstícios dessas démarches de apreensão de si
mesmo e do real, quase que por Osmose. A visão inaugural tríplice, mítica e
emblematicamente descrita em torno do personagem Fuxi, estabeleceu um
paradigma que tudo abrange, o mundo sendo visto como o resultado da
interpenetração de três planos: o céu (leia-se : a procedência cósmica, assim
como as leis que influenciam a vida orgânica, estações do ano, cristalizações
dos tipos psicológicos, etc), a terra e sua vida orgânica, seus ciclos, suas leis
de contínuas recorrências e transformações, e o homem, cingido entre essas
duas influências maiores e por aquelas que sua prática social vai nele
incorporando através de idéias e ideologias. O Dao que será explicitado,
aludido e metaforizado pelo logos do pensamento filosófico, muito
particularmente pelo empuxo do Daoismo como escola de pensamento,
estará em verdade restringindo aquela visão inaugural, amplíssima,
recolhendo dela pelo pensar e a pela linguagem que o permite, um quantum
explanável ou alusível, que é de resto o que o étimo de logos, procedendo de
legei, evoca. Ming, substantivo e verbo, denota aquilo que tornou-se
nomeado, restringido por um significado, em meio a vários outros
175
significados possíveis ou mesmo contrários. As palavras chinesas articulam
seus significados dentro de contextos semânticos, mônadas de adjacências Antigas
Leituras

semióticas. Tal fato propicia e exige que se as compreenda por modulações e VISOES DA
CHINA
recorrer ao dicionário e pinçar essa ou aquela definição da primeira entrada ANTIGA

do verbete é, em chinês clássico sobretudo, extremamente falacioso.

Contexto, instância e circunstância constituem a condição prévia para a


compreensão do que quer que esteja sendo dito ou descrito. Portanto, para o
pensameno chinês antigo, o território do não-nomeado, o daquelas áreas da
percepção intuída e visualizada, mas não ainda formulada, é de importância
primordial e não era e não deveria ser suplantada pela limitação das
formulações. Assim era a visão primordial do Dao e quando as escolas
filosóficas que o descrevem, analisam e esmiuçam sua natureza surgem e se
multiplicam, muito de sua imanência já está se esvaindo. Enfaticamente
emblemática é portanto a primeiríssima passagem do Dao Dejing, tal como
canonicamente passou a posteridade: Dao ke dao fei chang dao, “o Dao que
puder (ser descrito, definido, analisado, etc ) como Dao não é o Dao
constante!. É como se Laozi estivesse alertando que, a partir daquele
momento de formatação da comprensão desse conceito antigo - daquela
visão ampla e simples das coisas do universo e do mundo -, haveria agora
uma impossibilidade em definí-lo, tema principal de seu livro. Paradoxo
extraordinário, axial e típico do pensamento chinês.
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France et de l’étranger. 1930.
O PENSAMENTO CHINÊS DURANTE
A DINASTIA HAN

André Bueno

Geralmente desconsiderado no tocante a evolução do pensamento chinês, o


período da dinastia Han # (-206 +221) mostra-se, na verdade,
incrivelmente fértil e fundamental para a estruturação da filosofia chinesa.
Alguns fatores são importantes para este tipo de construção errônea: uma
tendência, por exemplo, é dos autores focarem somente o processo das
transformações políticas ou espirituais da época como algo importante,
desconectando-as da evolução de um pensar crítico. Kaltenmark afirmou:

178 A Dinastia Han não se distinguiu pela originalidade


Antigas dos seus filósofos, mas é um período importante
Leituras
VISOES DA porque o confucionismo se torna então a doutrina
CHINA
ANTIGA
oficial do Estado Imperial, e assim permanecerá até o
fim do século 19. As outras escolas filosóficas

desapareceram, a exceção do daoísmo, que ficou a


ser praticamente a única rival da escola dos letrados
(Filosofia Chinesa, 1979, p.52)

POis

efetivamente, o confucionismo ortodoxo dos Han já


não era o mesmo dos tempos dos Qin: tinha sido
contaminado pela teoria do Yin e Yang e dos Cinco
Elementos e mais ainda pelas teorias de Zouyan”
(idem, p.53).

J. Gernet, igualmente, insiste em que “A época dos Han assiste ao


triunfo de um tipo de pensamento que parece ter sido aplicado sobretudo à
interpretação dos presságios e às ciências ocultas” (Mundo Chinês, 1974,
p.151), e “Aos olhos dos homens desta época, os clássicos, obras veneráveis
de uma alta antiguidade, obras de sábios eminentes, parecem conter uma
sabedoria secreta e a sua interpretação só pode ser feita por escolas de
especialistas que transmitem de geração em geração o seu sentido oculto”
(p.154).
A análise destes dois grandes sinólogos, tomados como exemplo,
poderia justificar uma leitura superficial sobre a produção intelectual deste
período, mas devemos proceder com cuidado. Inicialmente, podemos
detectar um primeiro problema nestas duas críticas, que se constitui na
contraposição teórica entre o período Zhou fil(quando surgem as grandes
linhas do pensamento chinês) e Han. Os autores tendem a imaginar uma
descontinuidade entre o momento em que surge a filosofia ética chinesa
(com Confúcio fl_f, Laozi #f, Mozi #f, etc, a partir do século -6) e o
período dos Han, posto que não se preservam (ou ao menos, assim parece) 179
as diretivas fundamentais das escolas antigas. Ora, sabemos que estas
Antigas
classificações foram criadas pelo historiador Sima Qian, no século -1, com Leituras
VISOES DA
fins de preservar determinadas linhagens sucessórias de mestres e idéias, mas CHINA
ANTIGA
em absoluto tais categorias eram totalmente fechadas. Prova disso é o fato de
2is
dois dos maiores autores legistas, Hanfeizi #HF e Lisi ###, terem sido
discípulos do confucionista Xunzi #ff, antes de migrarem para a corrente
de Shang Yang #R e Shen Buhai HHAS#. Esta possibilidade de diálogo e
transição quebra, automaticamente, um segundo ponto nas análises usuais
sobre o pensamento na época Han: a questão da sua evolução.
Os autores ocidentais têm uma forte tendência a projetar, sobre a
história asiática, contextos ou problemas específicos de sua própria tradição.
Podemos tomar como exemplo a contínua tentativa de caracterizar o
pensamento da antiguidade tardia romana como uma “decadência” do
pensamento ocidental, em relação aos tempos gregos ou ao auge do império
romano. Somente aqueles que estudam este período de perto conseguem
compreender os aspectos de mudança e transição que eles englobam (como
a adoção de elementos germânicos, a fusão com o pensamento cristão, etc),
adquirindo uma visão diferenciada sobre as condições especiais em que se
deram tais transformações. O mesmo pode ser dito sobre os sinólogos que se
debruçam sobre o período Han: sua primeira tentativa é de aplicar uma
grade interpretativa que não visualiza, de imediato, as tendências próprias
do modo de pensar chinês. A filosofia chinesa tende naturalmente a um
processo sincrético, posto que nasceu a partir de uma série de discussões
relativas ao mesmo corpo de conceitos (o que seria o Dao ií, ou Via,
método? e Sheng **, sabedoria?, etc.), e a atitude dos pensadores Han em
manter as linhas de debate principais não escapava a isso. Como bem
afirmou W. Morton, “Os chineses jamais pensaram que, para manter uma
crença, é necessário excluir outras, e o período Han foi marcado por grande
ecletismo” (China: História e Cultura, 1986). Em segundo lugar, negar estas
transformações ocorridas na filosofia chinesa seria negar, igualmente, a
capacidade de evoluir e adaptar-se as novas exigências intelectuais e sociais
da época, contrariando a própria atitude crítica da interpretação histórica.
Logo, a dinastia Han deve ser vista mais apropriadamente como um
momento em que a retomada dos debates intelectuais e científicos enseja a
formação de uma nova mentalidade filosófica, que buscaremos apresentar,
180
em linhas gerais, no seguir do texto. Marcado por um processo inovador de
Antigas fusões múltiplas, o pensamento chinês ganharia contornos inéditos em sua
Leituras
VISOES DA própria forma, alentando de modo inequívoco sua vitalidade criativa.
CHINA
ANTIGA

O Panorama Geral

Mas há que se compreender as razões pelas quais tanto Kaltenmark,


Gernet e muitos outros autores desenvolveram suas visões sobre o

pensamento Han. Notadamente, a dinastia Han passou por um surto de


desenvolvimento técnico e científico, exemplificados na difusão do papel, da
bússola, na invenção do sismógrafo e da esfera armilar (estas duas últimas,
criações de Zhang Heng #{{I, morto em +132, que ainda adaptou sua esfera
com representações do cosmo a um mecanismo hidráulico, que lhe
proporcionava movimento contínuo, regulado por uma clepsidra). Tais
criações não se devem apenas ao gênio inventivo ou a curiosidade dos
pesquisadores, mas a uma bem estruturada teoria científica que, desde a
época dos Zhou, articulava a produção e a pesquisa dos intelectuais chineses.
Esta teoria articulava as concepções do sistema Yin-Yang com a regra dos
Cinco Agentes (Wuxing Tiff, que na cosmologia chinesa seriam terra, fogo,
água, metal e madeira) cujo conjunto de relações determinava o processo
investigativo da natureza.
Obviamente que os autores ocidentais preferem negar o valor destas
teorias enquanto algo real, e por conta disso assentam-lhe a pecha de
“esotérico”. Daí a razão pela qual um autor como Gernet se presta a uma
análise desfavorável do período, entendendo o que poderia ser uma legítima
“ciência chinesa” como pura prática mística. Do mesmo modo, a associação
destas teorias com as outras escolas (o que aponta novamente para um
processo de diálogo, e não de exclusão entre elas) demonstra uma tentativa
válida de co-relacionar as recentes descobertas naturalistas com o pensar
ético e sociológico da sociedade. Sua relação com a política, portanto, tal
como analisada em Dong Zhongshu (que veremos adiante) é um
desdobramento, e não a causa central. Determinar de outra maneira uma

análise do pensamento Han seria fatalmente incorrer no erro dos


18 |
maniqueísmos históricos. Quando os autores Han estavam falando de
política, tinham uma clara consciência do que estavam fazendo. Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
As iniciativas intelectuais ANTIGA

Um dos primeiros autores a se destacar neste panorama intelectual


dos Han foi Lujia #H, autor de um livro chamado Xinyu # (Novos
Diálogos). Lujia era um dos principais conselheiros do primeiro imperador
Han, Liu Bang #]}}, depois chamado de Gaozu #H. Uma certa ousadia lhe
granjeou este posto junto ao imperador: quando questionado sobre como
deveria se governar um império, ele teria respondido com uma frase que se
transformou em um dos mais famosos epítetos confucionistas: “pode-se
conquistar um império na sela de um cavalo, mas não se pode governá-lo
em cima dela”. Lujia preocupava-se antes de tudo em compreender
historicamente os motivos que levaram os Qin # a derrota, e de que modo
os Han poderiam construir uma nova sociedade a partir disso. Suas teorias
centram-se numa conjunção de elementos confucionistas e daoístas,
apresentando os primeiros indícios do que seria o ecletismo Han. Neste
trecho, por exemplo, Lujia argumenta sobre uma das razões da queda de
Qin:
[Quando] Qin Shi Huangdi estabeleceu punições e
pôs em prática todo o tipo de penalidade para os
mais diversos tipos de crimes [...] também construiu
a grande muralha ao longo da fronteira com os
bárbaros com a ordem de preparar-se contra o povo
Hu. Ele enviou expedições punitivas contra grandes
Estados, e anexou os pequenos Estados. Sua
autoridade sobre o povo alcançava todo o mundo, e
seus generais despachavam tropas em todas as
direções para trazer os Estados estrangeiros a sua
submissão. Meng Tian atacava os desordeiros, Lisi
administrava as leis. E assim mesmo, mais ações
atingiram o império, mais problemas surgiram, mais
leis foram feitas, um numero maior de maldades
182 foram produzidas [...] A Dinastia Qin falhou porque
não atingiu o meio apropriado de governar,
Antigas
Leituras
VISOES DA
baseando-se exclusivamente em leis e punições
CHINA duras. No entanto, o Ser superior põe ênfase na
ANTIGA
prática da generosidade sob sua proteção, e age de
acordo com o Caminho do Meio para angariar o
apoio do povo. Assim, o povo o respeitará por sua
autoridade, e será influenciado pelo seu exemplo.
Eles aceitarão a virtude como o guia por toda a terra,
ajudarão a administrá-la e nunca se oporão ao
governo (cap. 4).

Lujia entende, aqui, que uma conduta moral, pacífica e virtuosa é


necessária para a ordenação do território, mas que tal deve se dar sem uma
interferência atuante por parte do Estado. Fica claro que seu ideal de
sociedade era um tanto confucionista (pela necessidade de manter uma
hierarquia e uma estrutura administrativa, bem como de dar o exemplo
moral), mas as condições para sua execução deveriam aceitar o preceito
daoísta de uma “não ação” (wu wei ##) consciente, sem forçar os limites
do povo (o que constituiria o erro fundamental dos legistas de Qin).
Em torno de -150 -160, outro autor iria reforçar os pontos de vista de
Lujia. Jiayi HH, autor do livro Xinshu # (Novas Recomendações)
debruçou-se também sobre as questões políticas, buscando compreender a
melhor maneira de administrar o império e evitar uma crise generalizada, tal
como a que afetou a China no final do período Qin. Jia yi enfatizou a
obrigação que o governo tinha em promover o maior número de benefícios
possíveis ao povo:

Quando um Estado está estável ou instável, isso


depende do povo: quando uma lei é seguida ou não,
isso depende do povo; a nobreza dos oficiais e a
honestidade das pessoas depende do povo; [...]
somente um governo devotado ao povo e um povo
devotado ao governo podem obter sucesso”. 183
(Xinshu, 9)
Antigas
Leituras
VISOES DA
A retomada confucionista
CHINA
ANTIGA

Um dos resultados práticos da idéia de Lujia consignou-se numa


retomada do confucionismo como doutrina ética oficial, mas com uma

abertura de pensamento inovadora. Em -136, por exemplo, irá se fundar um


conselho de letrados cujo número (inicialmente em 50) irá aumentar
gradualmente ao longo dos reinados seguintes. Tal corpo era formado por
uma grande variedade de pensadores — quiçá possivelmente classificáveis
como de “todas as escolas” — que serão o cerne da Academia imperial Han,
responsável pela administração de exames, formação do corpo burocrático e
conselho educacional do governo. Estas iniciativas visavam desenvolver os
aspectos morais e intelectuais - tanto do povo quanto dos funcionários
públicos - através de uma política de governo voltada para a educação e o
bem-estar social. Embora pareçam chavões hoje, estas práticas eram
inovadoras na época, e em longo prazo parecem ter surtido um efeito
positivo sobre a sociedade.
A formação de um grupo ativo de letrados na corte Han iria
colaborar, no entanto, na criação de uma das mais importantes polêmicas da
filosofia chinesa: a construção do Cânone confucionista. Devido à queima de
livros promovida pelo imperador Qinshi Huangdi #!/fi##, os intelectuais
Han viram-se envolvidos na necessidade de reconstituir uma versão oficial

dos livros confucionistas que poderiam ter sido, virtualmente, perdidos


nesta época. Através de uma grande exegese, em que se recorreu tanto a
cópias esparsas como a memória dos sábios, chegou-se a um texto final,
recomposto, conhecido como “Jinwen” & X. Porém, durante o reinado de
Jingdi # (entre -156 -140), encontraram-se cópias antigas de alguns
textos na parede de uma casa velha que teria pertencido a Confúcio. Estes
textos seriam versões do Shujing # (Tratado dos Livros), Liji #E
(Recordações Culturais), Lunyu # (Conversas) e Xiaojing ## (Tratado
da Fraternidade Familiar), escritos em caracteres de estilo antigo (Zhou),
anteriores a síntese gramatical ordenada por Qinshi Huangdi, e se
constituiriam, pois, numa fonte original de consulta, doravante
denominados de “Guwen” HDC(“Textos Antigos').
184
A polêmica entre os letrados se instalou, já que estes textos
Antigas apresentavam substanciais discordâncias para com os reconstituídos, e
Leituras
VISOES DA possuíam a suposta autoridade de serem mais antigos e veneráveis. As
CHINA
ANTIGA acusações sobre possíveis falsificações e contradições não faltaram, e
nenhum possível acordo foi obtido na época. As diferenças fundamentais
dos textos parecem surgir no foco pelo qual foram empreendidas suas
reconstruções: enquanto o texto Jinwen privilegiava uma textualidade
científica, investigativa e ética, o texto Guwen parecia poder ser traduzido
como um guia de redenção moral, cujas sutilezas apontavam para o sentido
maior de um humanismo confucionista. Se num primeiro momento a linha
Jinwen parece ter se firmado, graças à ação do maior sábio confucionista da
época, Dong Zhongshu, a retomada Han a partir do século + 1 parece ter
sido mais favorável à linha Guwen, que permaneceu fortemente enraizada
no pensamento chinês até o século +19, quando buscou-se recuperar os
elementos críticos e interpretativos propostos pelos escolares Jinwen. Os
comentadores mais famosos dos textos confucionistas desta época (ou,
melhor dito, aqueles que foram salvos pelo tempo) são justamente da linha
Guwen: Kong Anguo fl?KEY, Liu Xin #K, Ma Rong # e Zheng Xuan
}28, cujas contribuições foram inequívocas para o debate confucionista.
Cai Yong ## (+133 +192) estabeleceu, por fim, o que seria uma “versão
final” dos textos confucionistas, açambarcando contribuições de ambas as
correntes, mas hoje é grande a dificuldade em estabelecer os limites de cada
uma nos escritos. O que se vê, pois, é como tal polêmica extrapolou por
completo o período de existência dos Han, tornando-se um dos centros de
atenção da filosofia chinesa.

A síntese de Dong Zhongshu

Mas a figura de Dong Zhongshu #ffff (-175-105) domina o


panorama intelectual dos Han anteriores (-206 - 12), sendo a sua primazia
alcançável apenas pelo texto concorrente do Huainanzi. Dong realizou a
façanha notável de sintetizar o confucionismo com a doutrina dos 5 agentes
(Wuxing), transformado a questão da ética numa visão ecológica de mundo. 185
Sua concepção entendia a necessidade de demonstrar a associação desta
Antigas
teoria de relações entre os elementos universais com o corpo humano, suas Leituras
VISOES DA
ações, dinâmicas, criando uma interpretação macro-cósmica que poderia ser CHINA
ANTIGA
aplicável a qualquer campo do saber, desde a medicina até sociologia,
história, ciências, etc. Em seu livro Chunqiu Fanlu #%*# (Orvalho
Precioso das Primaveras e Outonos), ele afirma que:

“Dentro do universo existem as energias (qi) de Yin


e de Yang. Os homens estão constantemente imersos
nelas, tal como o peixe está constantemente imerso
na água” (Cap.80); “Juntos, as energias (qi) do
universo constituem uma unidade; divididas

constituem Yin e Yang; divididas em quatro,


constituem as quatro estações; (ainda mais)
divididas, constituem os cinco elementos. Estes

elementos representam movimento. O movimento


deles não é idêntico. Por isso chamamos os cinco

motores (Wuxing). Esses motores constituem cinco


poderes oficiantes. Cada um, por sua vez, dá origem
ao seguinte e é submetido pelo que se lhe segue”
(Cap. 13); “O céu tem cinco elementos: o primeiro é
a madeira, o segundo o fogo, o terceiro a terra, o
quarto o metal, e o quinto a água. A madeira é o
ponto de partida de (o ciclo de) os cinco elementos,
a água é a sua conclusão, e a terra é o seu centro. Esta
a sua seqüência celestial... Cada um dos cinco
elementos circula conforme a sua seqüência; cada
um deles exercita as suas próprias capacidades na
realização dos seus deveres oficiais” (Cap. 42); e por
fim, “Nada é mais perfeito do que os éteres (Yin e
Yang), mais ricos do que a terra, ou mais espirituais
do que o céu. Das criaturas nascidas da essência
refinada do céu e da terra, nenhuma é mais nobre do

que o homem. O homem recebe o Decreto (Ming)


do céu, e por isso é mais sublime (do que as outras)
186 criaturas. (As outras) criaturas sofrem vexames e
miséria, e são incapazes de praticar o amor (ren) e a
Antigas
Leituras
VISOES DA
retidão (yi): só o homem é capaz de as praticar. (As
CHINA outras) criaturas sofrem vexames e miséria e são
ANTIGA
incapazes de se equiparar com o céu e a terra; só o
homem é capaz disso” (cap.56).

O que Dong faz aqui é afirmar, primeiramente, a primazia do ser


humano na natureza e sua conseqüente autoridade moral. No seguir, a
identificação dos agentes e sua correlação com os seres humanos demonstra,
se bem empregada, suas propensões, deficiências, virtudes e capacidades.
Embora muito tenha sido dito sobre sua tentativa de legitimar o poder do
imperador tal como uma circunstância da natureza (ou seja, o imperador o é
porque recebe o mandato do céu, o que seria uma visão determinista), Dong
buscava, na verdade, tentar entender as múltiplas diferenças que percorrem
a construção da identidade do ser humano; e se sua explicação parece tanger
a questão biológica, sua conclusão, porém, aponta para a possibilidade
otimista de que todo ser humano pode alcançar a sabedoria, posto que sua
identidade como espécie é muito maior do que o conjunto de suas
singularidades:
“O que produz o homem não pode (ele próprio) ser
homem, porque o criador do homem é o céu. O fato
dos homens serem homens deriva do céu. O céu é

naturalmente o supremo antepassado do homem. É


por isso que o homem deve ser associado com o céu”
(cap. 11).

Dong teria como seguidor a mente brilhante do historiador Sima


Qian H]R# (-135-93), o grande escritor da história chinesa. Re
interpretando a metodologia confucionista do fazer histórico à luz das
teorias pensadas por Dong Zhongshu, Sima propôs, no seu Shiji EiE
(Recordações Históricas) um jeito inovador de compreender o passado e
recuperá-lo através de uma estrutura científica de pesquisa. Ainda que hoje 187
alguns aspectos do método de Sima possam ser criticados (como o uso da
Antigas
astronomia, a concepção cíclica de dinastias ou a interpretação moral das Leituras
VISOES DA
fontes), sua reconstrução histórica demonstrou-se extremamente lúcida, CHINA
ANTIGA
coerente e aprofundada em questões de cronologia, biografia, referências,
etc. A estrutura do Shiji estabeleceu-se, igualmente, como o modelo padrão
das Histórias Oficiais da China, embora tenha sofrido certas alterações ao
longo do tempo. A concepção de legar o saber histórico à posteridade, como
um caminho para redenção moral e exemplo ético, fica bem clara numa
carta que Sima envia a um colega seu, indicando o que ele julgava ser a
importância de sua obra:

“Aqueles que fossem cegos, como Zuo Qiu, ou


aleijados como Sunzi, que não tinha pés, não
poderiam nunca receber cargos; por isso se retiravam
para escrever livros a fim de expor seus pensamentos
e sua indignação, e transmitir seus escritos teóricos à
posteridade, para que esta soubesse quem eles eram.
Eu também me atrevi a não ser modesto, mas

dediquei-me a meus escritos inúteis. Reuni e


compilei as velhas tradições do mundo, que estavam
dispersas e perdidas. Examinei os feitos e os
acontecimentos do passado e investiguei as razões
que havia por trás do sucesso e do fracasso, da
ascensão e do declínio, em 130 capítulos. Desejei
examinar tudo o que diz respeito ao céu e ao
homem, penetrar nas mudanças do passado e do
presente, completando tudo como o trabalho de
uma família [...]. Quando houver acabado realmente
este trabalho, irei depositá-lo na Montanha Famosa.
Se ele puder chegar às mãos de homens que o
apreciem e penetrar em vilas e grandes cidades,
então, mesmo que eu sofra mil mutilações, que
arrependimento teria? Tais assuntos podem ser
discutidos com um sábio, mas é difícil explicá-los ao
vulgo”.

188 O Huainanzi

Antigas
Leituras
VISOES DA No mesmo período, um livro intitulado Huainanzi #F##(ou
CHINA
ANTIGA
“Sábios de Huainan”) corrobora a idéia de um ecletismo filosófico pelos
intelectuais Han, marcado igualmente pela influência da escola cosmológica
do wuxing, mas influenciado de forma mais profunda pelo daoísmo. A
produção do texto teria sido feita por um príncipe, Liuan #|<(? -139), que
teria caído em desgraça após colocar-se contra o poder imperial. As atas de
suas discussões com um grupo de mestres daoístas preservou-se, porém, e
nos trouxe a luz um conjunto de escritos variados que abordam desde
estratégia, cosmologia até política e reflexão sobre a vida. O Huainanzi
parecia se tratar, antes de tudo, de uma reação à preeminência política dos
confucionistas neste período, elaborando uma proposta que buscava unir as
perspectivas dos antigos daoístas ao ambiente social do império Han.
Suas contribuições para entender o raciocínio científico da época são
importantes, como podemos ver neste verso, por exemplo:

“O fogo vai pra cima; A água vai pra baixo; Assim é


também o vôo dos pássaros, pra cima e o nado dos
peixes, pra baixo; As coisas que pertencem a uma
mesma classe movem-se simultaneamente; A raiz e o

tal respondem um pelo outro; Portanto, Quando o


espelho candente (=lente) vê o sol, incendeia a erva e
produz o fogo; Quando o espelho quadrado
(=espelho) vê a lua, umedece e produz água
(=Orvalho)”.

Embora fique patente a anuência da visão Wuxing e da teoria yin


yang em tais concepções, não devemos negar-lhes a originalidade. Este
processo rico de fusões delineou, em muitos sentidos, a estrutura posterior
do conjunto do pensamento chinês.
Na mesma época, outro texto começa a desenhar uma alternativa
para o daoísmo filosófico, lançando-o numa vertente que poderíamos
considerar de cunho religioso. Conhecido como Wenzi X#, ele apresenta 189
uma nova interpretação para as obras dos antigos mestres Laozi e Zhuangzi
Antigas
Ef, e desconhece-se corretamente sua origem. Um extrato pode ilustrar Leituras
VISOES DA
bem esta colocação: CHINA
ANTIGA

“Sendo assim a mente é o mestre da forma, o espírito


a jóia da mente. Quando o corpo é trabalhado sem
descanso, ele entra em colapso; quando a vitalidade é
usada sem repouso, ela é exaurida. Portanto, os
sábios que estão atentos a isso não ousam ser
excessivos. Eles usam o não-ser para responder ao
ser, e estão certos de que encontrarão a razão; eles
usam o vazio para receber a plenitude, e estão certos
de que encontrarão a medida das coisas. Eles passam
a vida em pacífica serenidade e numa aberta calma,
não alienando quem quer que seja nem se apegando
a ninguém. Ao abraçarem a virtude, são calorosos e
harmoniosos, seguindo deste modo a natureza e
encontrarão o caminho, e estando perto da virtude.
Eles não começam nada procurando lucro ou algo
que possa causar mal. A morte e a Vida não causam
mudanças no ser (eu), eis o espiritual. Com espírito,
qualquer coisa que se busca pode ser encontrada, e
tudo que é feito pode ser realizado”.

Devemos lembrar, ainda, que nesta mesma época surge o texto do


Liezi 5]=f, tradicionalmente associado à linhagem daoísta como mestre de
Zhuangzi. Os indícios de sua contemporaneidade Han são evidentes:
estrutura profusa, associando textos de cosmologia, ética, política e reflexão
moral. Algumas passagens buscam contemplar a associação intima desses
elementos, tal como na pequena historieta a seguir:

“Era uma vez um homem do país de Qi que se


inquietava que o céu um dia caísse, e ele não sabia
onde esconder-se. Isso o perturbava tanto que ele
não podia comer nem dormir. Havia outro que se
afligia com a aflição desse homem, e foi dar-lhe uma
190 explicação, falando assim: - O céu é formado
Antigas somente de ar acumulado. Não há lugar onde não
Leituras
VISOES DA haja ar. Sempre que te moves ou respiras, vives
CHINA
ANTIGA justamente neste céu. Por que precisas então
preocupar-te que o céu venha abaixo? Disse o outro
homem: - Se o céu não fosse realmente nada mais

que o ar, não cairíam o sol, a lua e as estrelas? E o


homem que explicava disse: - Mas o sol, a lua e as
estrelas também não são mais que ar (gases)
acumulado que se tornou brilhante. Ainda que eles
caíssem, não poderiam machucar ninguém. - Mas
que seria se a terra fosse destruída? E o outro
respondeu: - A terra é somente formada de sólidos
acumulados, que enchem todo o espaço. Não há
lugar onde não haja sólidos. Quando andas e pisas
no chão, tu te moves o dia inteiro nesta terra. Por

que, pois precisas temer que ela seja destruída? Então


aquele homem pareceu compreender e ficou muito
contente, e o que lhe explicara tudo sentiu que ele
entendera e também ficou muito satisfeito. Quando
Zhangluzi soube disso, riu e disse: - O arco-íris, as
nuvens e os nevoeiros, os ventos e as chuvas e as

quatro estações... Não são todos eles formados de ar


acumulado no céu? As montanhas e os picos, os rios
e os mares, o metal e a pedra, a água e o fogo... Não
são todos formados de sólidos acumulados na terra?

Uma vez que sabemos que são formados de ar


acumulado e de sólidos acumulados, como podemos
dizer que são indestrutíveis? O infinitamente grande
o infinitesimalmente pequeno não se podem saber,
explorar ou conjeturar exaustivamente.... É matéria
que se deve admitir sem prova. Os que se inquietam
com a destruição do universo, pensam naturalmente
com excessiva antecipação, mas os que afirmam que |9|
ele não pode ser destruído também estão enganados.
Uma vez que o céu e a terra devem ser destruídos, Antigas
eles acabarão finalmente pela destruição. E quando v#A
forem destruídos, por que nos haveríamos de afligir #A
com isso? Liezi soube do que Zhangluzi falara, e riu
dizendo: - Os que afirmam que o céu e a terra
podem ser destruídos não têm razão, e os que
asseguram que são indestrutíveis também estão em
erro. A destruição e a indestrubilidade são coisas de
que nada podemos saber. Contudo, são ambas o
mesmo. Portanto, um homem vive e nada sabe da

morte; morre e nada conhece da vida; chega e não


sabe da partida; e parte sem saber da chegada. Por
que a questão de haver ou não haver destruição deve
importunar os nossos espíritos?”

Por fim, o ilustrado comentário do Yijing # (o Tratado das


Mutações) feito por Yang Xiong # dá a nota final a este período.
Buscando uma “essência subjacente a formação das coisas e dos
acontecimentos”, Yang faz a interpretação daoísta do texto, até então
analisado sistematicamente pelos confucionistas. O Taixuanjing K2. É
(Tratado do Mistério do Grande Supremo) tornou-se uma interpretação ora
religiosa, ora científica do Yijing, tendo se tornado famoso na época. A
escrita relativamente inacessível aos iniciados impediu, no entanto, sua
difusão em maior escala, como mostra este pequeno trecho:

“O supremo mistério profundo permite [a


existência] de todas as espécies de coisas, mas sua
forma física não pode ser vista. Ela alimenta-se da
vacuidade e do vazio, e deriva sua vida da natureza.

Isso correlaciona as matrizes da inteligência


espiritual e determina o curso natural dos eventos”.
(cap. 9)

Os Han posteriores
192
Antigas Perto do interregno promovido pela efêmera dinastia Xin # (+12
Leituras
VISOES DA +23), a produção literária e intelectual dos Han continuava bastante ativa.
CHINA
ANTIGA Liu Xiang #|fl (morto em -5) foi um destes autores prolixos, que legou
uma obra vasta e diversificada para a literatura chinesa. Ele teria sido autor
de uma obra historiográfica chamada Xinxu # (Novas Introduções), uma
obra de cunho político, o Shuoyan #35 (Jardim das Persuasões) e uma
inédita biografia de mulheres exemplares, o Lienu Zhuan 5]{{#. Ainda
teria produzido uma biografia sobre os “imortais” (Liexian Zhuan 5]íl{}),
recolhido e editado também as histórias que compõe duas fontes
fundamentais da história chinesa, o Zhanguoce #REV|ff (Discursos dos
Estados Combatentes) e o Guoyu EViñ(Ditos dos Estados). Liu Xiang
apresenta-nos suas histórias num tom anedótico, porém baseadas em fontes
que considerava fidedignas:

“O Rei Xuan de Zhu perguntou aos seus ministros: -


Ouvi dizer que o povo do norte teme Zhao Xisi. É
verdade isso? Os ministros não deram resposta, mas
Shiang Yi disse ao Rei: - Era uma vez um tigre que
procurava animais para comer e apanhou uma
raposa. E a raposa disse: “Como ousas comer-me? O
Deus do Céu me fez chefe do reino animal. Se me

comeres, estarás pecando contra Deus. Se não crês


no que digo, acompanha-me. Marcharei na frente e
tu me seguirás”. O tigre foi, pois, com a raposa, e os
animais fugiram ao se aproximarem os dois. O tigre
não percebeu que os animais não tinham medo da
raposa, mas dele. Ora, Vossa Alteza Real tem um
território de cinco mil li quadrados e um exército de
um milhão de soldados, e deu todo o poder a Zhao
Xisi. Portanto o povo do norte teme o seu poder,
mas na realidade o que receia é o exército do Rei,
193
como os animais tinham medo do tigre”.
Antigas
Leituras

Tal como Sima Qian, Liu Xiang estava preocupado em resgatar a VISOES DA
CHINA
história como uma narrativa de cunho moral e intelectual, fornecendo as ANTIGA

bases para a consolidação de uma ética confucionista. As biografias por ele


propostas são um vasto conjunto de exemplos — bons ou ruins — de
comportamento, atitude, postura e sabedoria. Neste aspecto, outros dois
textos irão juntar-se a produção confucionista deste gênero: o Kungzi Jiayu
fL f** # (Uma recolha de histórias curtas relacionadas a Confúcio e seus
discípulos) e o Xiaojing (ou Tratado da Fraternidade Familiar) — este último
adquiriu um grande renome entre os chineses por tratar especificamente as
questões de relacionamento familiar, um dos pilares fundamentais das
teorias confucionistas:

“Pois bem, a piedade filial é a raiz de toda virtude e o


tronco do qual nasce todo ensinamento moral. [...]
Nossos corpos — cada fio de cabelo, cada fragmento
de pele — nós herdamos de nossos pais e não
devemos atrever-nos a danificá-los ou feri-los. Este é

o começo da piedade filial. Quando formamos nosso


caráter mediante a prática da conduta filial, para
tornar famoso nosso nome nas idades futuras e

glorificar com isso nossos pais, este é o fim da


piedade filial. Começa com o serviço de nossos pais,
continua com o serviço do governante, e se completa
pela formação do caráter”. Pois bem, a piedade filial
é a raiz de toda virtude e o tronco do qual nasce todo
ensinamento moral. Senta-te de novo e te explicarei
a questão. Nossos corpos — cada fio de cabelo, cada
fragmento de pele — nós herdamos de nossos pais e
não devemos atrever-nos a danificá-los ou feri-los.

Este é o começo da piedade filial. Quando formamos


nosso caráter mediante a prática da conduta filial,
para tornar famoso nosso nome nas idades futuras e
glorificar com isso nossos pais, este é o fim da
piedade filial. Começa com o serviço de nossos pais,
194 continua com o serviço do governante, e se completa
pela formação do caráter”. (cap. 1)
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
O Confucionismo seria a nota dominante deste segundo período
ANTIGA
Han. O historiador Bangu JEH(morto em +79) continuaria também o
caminho aberto por Sima Qian escrevendo o Hanshu ##(Anais de Han) e
o Baihutong ÉIDE#(Discussões do Palácio do Tigre Branco); o primeiro trata
se de uma história dinástica nos mesmos moldes do Shiji; o segundo
constitui-se num tratado de orientação política e histórica cujo alicerce é,
novamente, a teoria cosmológica de universo. Uma profunda diferença na
análise de Bangu e Dong Zhongshu deve ser notada, porém: as relações
realizadas por Ban diferem bastante da tradicional teoria dos cinco agentes,
mostrando que a ciência chinesa não passou por evolução única e linear,
como insistem os tradicionalistas e esotéricos. O período Han é justamente o
momento em que estas teorias estão sendo discutidas, avaliadas e postas à
prova. Não devemos esperar, pois, a continuidade plena e absoluta do
pensar chinês sem um processo de crítica e contraposição fértil.
Banzhao PERH, irmã de Bangu, é também uma das pensadoras dignas
de nota deste período; ela termina a obra do Hanshu (Bangu morreu antes
de poder finalizá-la) e escreve um interessante tratado, chamado de Nujing
## (ou Nujie ##, Tratado Feminino) onde explana suas concepções
sobre a relação homem-mulher, sexualidade e ética baseada numa fusão de
confucionismo e teoria Yin-Yang. Muito se têm discutido se seu trabalho é
uma apologia à subserviência das mulheres ou uma interessante análise
sobre a questão da igualdade sexual baseado nas noções culturais da época:

“Um marido indigno não pode controlar sua esposa;


uma esposa indigna não pode exigir nada de seu
marido. Somente o equilíbrio dos dois princípios
pode harmonizar uma relação (...) Isso se inicia pela
educação: conforme o Liji (Livro dos Rituais), a
regra é começar a ensinar uma criança a ler aos oito
anos, e perto dos quinze elas estão aptas ao estudo da 195
cultura. Apenas porque isso se refere aos meninos,
Antigas
não pode e deve ser igualmente outorgado às Leituras
VISOES DA
meninas? Esta é a base do equilíbrio”. CHINA
ANTIGA

Uma discussão aprofundada sobre este conjunto de trabalhos


filosóficos Han viria através de Wang Chong HE5E(+27+ 97?), um crítico
ferrenho da ciência, pensamento e política da época. Seu ceticismo constante
formulou uma possibilidade de análise até então pouco conhecida na época,
mas Wang aparentemente falhou por não formular respostas para suas
próprias dúvidas — ponto fatal para o pensamento chinês, ávido sempre de
soluções pragmáticas e aplicáveis. Seus questionamentos serviram, contudo,
para que não só confucionistas — como também estudiosos das outras
• • / • =A-Z##
escolas — aprimorassem seus discursos e sua retórica. O Luheng ##
(Discursos Pensados) é uma obra prima de crítica, como podemos ver neste
singelo trecho em que se discute a questão da crença no espírito e o
problema dos fantasmas:

“Diz o povo que o fantasma de um morto tem


consciência: pode causar dano às pessoas. Pela
analogia geral com os animais, um homem morto
não se torna fantasma e é incapaz de causar dano aos
vivos. O homem é um animal, e um animal é
também um animal. Se um animal não se torna

fantasma quando morre, como iria tornar-se


fantasma um homem?... A vida do homem depende
de seu espírito e esse espírito se extingue quando ele
morre. O espírito do homem (qi, ou energia) vem de
seu sangue e quando o sangue do homem, após sua
morte, lhe sai do corpo, o espírito, ou energia, se
exaure. A seguir, o corpo se decompõe e torna-se pó.
A que se apegaria o espírito para tornar-se fantasma?
Às vezes, comparamos um cego, ou um surdo, à
vegetação comum, que não pode ver nem ouvir. Ora,
quando o espírito deixa um homem, isso é algo mais
sério do que a mera perda da visão ou da audição...
196 Desde que teve começo o universo, milhões de
pessoas têm morrido, em tempos diferentes. O
Antigas
Leituras
VISOES DA
número dos que hoje vivem é muito menor que o
CHINA dos que morreram no passado. Se, portanto, os
ANTIGA
mortos se tornassem fantasmas, deveríamos

encontrar um fantasma a cada passo. Se alguém vê


fantasmas junto a seu leito de morte, deveria vê-los
aos milhões, enchendo todas as ruas, os becos, os

vestíbulos e os pátios, e não apenas ver um ou dois


fantasmas... Diz o povo que o fantasma de um morto
tem consciência: pode causar dano às pessoas. Pela
analogia geral com os animais, um homem morto
não se torna fantasma e é incapaz de causar dano aos
vivos. O homem é um animal, e um animal é
também um animal. Se um animal não se torna

fantasma quando morre, como iria tornar-se


fantasma um homem?...”

Mas a paulatina desagregação da dinastia Han permeou uma


mudança de foco em relação às questões políticas e sociais da época.
Pensadores como Cuishi ##(+135+170) voltam a pregar uma
radicalização política, como a que surge no Zhenglun # — um tratado de
política calcado em teorias legistas, do qual só sobraram fragmentos, mas
cujo conteúdo foi amplamente discutido naquele momento. Xunyue ##
(morto em 209) foi um destes autores que, preocupados com a crise
premente, defendiam um fortalecimento da instituição política Han. No
Shenjian H53 (Espelho das Apelações), Xunyue propunha uma combinação
das teorias confucionistas e legistas num novo sistema que pudesse
recuperar a estrutura administrativa, moral e econômica da Dinastia, como
transparece nesta breve seleção:

“Honra e desonra são a essência da recompensa e da


punição. No entanto, ritos e educação, honra e
desonra podem ser o meios pelos quais um homem
197
nobre aperfeiçoa seu caráter. [...] Recompensa e Antigas
Leituras
punição são as duas garras do governo. A lei que VISOES DA
CHINA
recompensa os ilustrados, mas que também pune, ANTIGA

prova a lealdade e traz a ordem. A recompensa pode


ser usada para encorajar o bom povo, mas a punição
deve ser utilizada para controlar o mal”.

Mas o clima final da Dinastia Han pode ser compreendido


precisamente nos escritos pessimistas de Wang Fu E{f(90 +175), escritor
cuja carreira começou tarde e cujo livro Qianfu Lun ### (Diálogos de um
Eremita) deixa transparecer a desilusão com a situação moral de seu
contexto. Embora confucionista, Wang não acreditava mais no sistema
vigente, e percebia a iminência de uma crise destruidora para a dinastia Han.

“O maior médico é o que trata do Estado, enquanto


um bom médico (normal) trata da doença. Uma
pessoa que pensa em governar um Estado deve tratá
lo como quem cuida do corpo. A fraqueza é a doença
do corpo: a desordem a doença do Estado. Para
tratar uma doença, apelamos para a medicina; para
tratar um Estado, apelamos para a busca de uma
ordem. A doença do corpo pode ser tratada pelo
Tratado do Imperador Amarelo; para trazer ordem
ao mundo, temos os clássicos de Confúcio. [...] Mas
quem busca hoje trazer ordem ao mundo?”

Conclusões

Esta breve introdução ao pensamento da Dinastia Han teve por


objetivo, portanto, apresentar um pouco da diversidade de propostas e
formas de entender o mundo que se desenvolveram neste período. A
perspectiva de que as correntes filosóficas do contexto apresentam são
fundamentais para a compreensão do posterior desenvolvimento do
pensamento chinês, e não devem ser tidas como menores diante do período
de alvorece do pensar chinês durante a época Zhou. Como vimos, a projeção
198 de um passado ilustrado para a China de Confúcio é muito mais um anseio
da sinologia ocidental do que, propriamente, uma realidade para a história
Antigas
Leituras
VISOES DA
dos pensadores chineses.
CHINA Atualmente, a estrutura do pensar chinês encontra-se calcada nas
ANTIGA
investigações e sínteses criadas na época Han, que consolidaram modo
básico da civilização chinesa de investigar a realidade. Torna-se
indispensável, assim, considerar a produção deste período como uma fase
significativa de sua história, sem o que tornam-se impossíveis ou
inoperantes quaisquer formas de conectar o pensamento chinês atual com o
seu passado fundador.

Bibliografia
Os manuais citados são:

Gernet, J. O Mundo Chinês: Lisboa: Cosmos, 1974

Kaltenmark, M. Filosofia Chinesa. Lisboa: ed.70, 1979.


Morton, W. China: Historia e Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

Fontes:

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Bueno, A. Cem textos de história asidtica. Ed. Escritos Sínicos, 2011.

Disponſvel em: www.asiantiga.blogspot.com

Sobre o periodo Han:


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Cullen, Christopher. Astronomy and Mathematics in Ancient China: The


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1999.

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Antigas
Leituras
VISOES DA
Xu, Gan. Balanced Discourses. A Bilingual Edition. (trans. Makeham, John;
C H IN A
intro. Shengyuan, Dan and Makeham, John). New Haven, CT Yale
ANTIGA
University Press, 2003.
O CAVALO NA ANTIGUIDADE CHINESA:

ENTRE O INSTITUCIONAL E O NATURAL

Márcia Schmaltz

Introdução

O Ano Lunar de 2014 corresponde ao cavalo, sétimo animal na ordem


do zodíaco chinês. O signo é representado pelo ramo terrestre "F [wü,
encilho]", período compreendido entre as onze e treze horas, e regente do
quinto mês lunar. A presença do equino na astrologia chinesa não é por
/

acaso, já que nessa cultura é considerado o primeiro dos seis animais 20 1


domésticos desde a dinastia Xia 5 (22.100 — 1.600 AEC).
Antigas
Leituras
Este ensaio discute a representação simbólica do cavalo na cultura VISOES DA
CHINA
chinesa da pré-história até a dinastia Han Ocidental VHYX (206 AEC — 24 ANTIGA

EC). Inicia-se com a descrição da presença do cavalo na região antes da pré


história. Na segunda seção, arrolam-se mitos sobre cavalos. Na terceira seção,
descreve a introdução e desenvolvimento do cavalo como elemento militar.
Na quarta seção, descreve-se o termo cavalo nos primeiros registros escritos
e a respectiva simbologia no que concerne aos ritos e à educação. Depois de
discutir o status do cavalo sob a égide confuciana ortodoxa e da escola das
leis, na quinta seção, analisa-se a alegoria do animal para o daoísmo jÉí e a
respectiva crítica às escolas filosóficas hegemônicas levadas a cabo em
Zhuangzi EE-fº. Ao final, a partir da revisão bibliográfica conclui-se a
importância do cavalo dentro do sistema cultural chinês sob uma
abordagem filosófica até ao período dos Reinos Combatentes (475-221
AEC).

O cavalo nos primórdios da história

As escavações paleontológicas revelam a presença de ancestrais do


cavalo há cerca de 55 milhões anos da província de Xinjiang até
Heilongjiang, cobrindo toda a região do Noroeste a Nordeste da China (XIE,
1991, p. 4-16). Ossos de cavalo, entre 400 e 800 mil anos A.P., também foram
encontrados nas cavernas junto do Homem de Beijing e do Homem de
Lantian, na província de Shaanxi. Em tumbas de 6.000 A.P., foram
encontrados restos mortais de cavalos, período em que também há registros
da domesticação do equídeo. Segundo a lenda, seria um legado de Huangdi
##, o Imperador Amarelo mítico (SONG, 2008, p. 2-18). Pinturas em
cavernas nas províncias de Xinjiang, Ninxia e Mongólia Interior mostram
desenhos de cavalos selvagens, atividade pastoril, montaria, caça e, em outras
regiões da China, o equino figura como um utensílio de trabalho no arado
(Ibidem).
O cavalo presente desde tempos remotos seja como alimento, seja
como utensílio de transporte, tornou o equino como um dos elementos
constituintes do modelo cultural chinês. Com o aprimoramento das técnicas
de criação e manejo, o animal ganhará uma nova dimensão de importância.
202 É o que se mostrará nas seções seguintes, antes, porém, vide algumas
Antigas representações do cavalo na mitologia chinesa.
Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA O cavalo na mitologia

Como dito acima, desde antes da pré-história, o cavalo já fazia parte do


cotidiano chinês, principalmente na região Norte. Em Shanhai jing III####
[O livro da natureza]" narra uma lenda ao norte do rio Amarelo, que
relaciona o cavalo à origem do bicho-da-seda" e ainda consta, segundo o
nosso levantamento, vinte e cinco animais míticos relacionados com o

cavalo. Neste ensaio, destaco a título ilustrativo: o Lushu Bºi, descrito com
o porte físico similar a de um cavalo, cuja cabeça seria branca com crina
vermelha, pelagem de fundo alaranjada e listras pretas como a de um tigre. O
som de seu relinchar soava tão agradável como uma música, e quem se
cobrisse com seu couro encher-se-ia de descendentes, por isso era caçado
(Shanhaijing, 2007, p. 29, 529). O taotu 5# é descrito “com a aparência
como a de um cavalo, sendo garboso e indomável. O Taotu apenas surge na
Planície Central"H)# quando da boa governança de um imperador” (Idem,
p. 375 e 558). O bo # seria “um cambraia com dentes de serra e que come
tigre e onça” (Ibidem) e, no livro ainda consta que quem conseguisse montar
um jiliang #H, uma cambraia com crina vermelha e olhos amarelos, viveria
por mil anos (Idem, p. 420, 560). O filósofo Zhang refere-se à lenda do
cavalo-dragão}}. H, que entregou o Quadro do rio IIKlao mítico herói Yu
X# para minimizar as cheias do rio Amarelo. A unificação do dragão com
o cavalo, confere força e velocidade inigualável ao mítico animal; por isso, o
provérbio longma jingshen Jè Biff é empregado como desejo que reine a
Grande Virtude J# sobre a Terra (2003, p. 42-43).

O cavalo como elemento multiplicador de poderio militar

Como referimos resumidamente na primeira seção, a presença do


cavalo na Ásia é anterior ao surgimento do homem. Inicialmente servindo 203
como alimento, mais tarde no trabalho agrícola, o cavalo eleva a sua
importância na Antiguidade chinesa ao ser introduzido na guerra. A revisão Antigas
Leituras
VISOES DA
bibliográfica indica que o número e a organização dos carros puxados a CHINA
cavalo e da cavalaria eram fatores determinantes de ascensão e queda de um ANTIGA

reinado.

O historiador Yang (2008, p.8) afirma que os achados nas escavações


arqueológicas em Anyang #H, Hunan #FÉ, revelam que dois cavalos eram
utilizados para puxar os carros de combate na dinastia Shang #1 (1.600
1.100 AEC). O carro transportava três guerreiros com armadura: um
condutor ao centro, um lanceiro à direita e um arqueiro à esquerda.
No século XII AEC, surge a noroeste do império Shang, o estado de
Zhou Jil, povo hábil na criação de cavalos. Zhou possuía uma potente frota
com cerca de 3.000 carros puxados por quatro cavalos acabaria por dizimar
Shang e inaugurar a dinastia Zhou (1.100-770 AEC). Na dinastia Zhou
houve grandes avanços na arte de criação equestre. Inclusive um dos grandes
tratadores de cavalos real Zaofu #32 foi reconhecido pelo imperador Xiao
# (891-886 AEC), que lhe concedeu o sobrenome Yin # e mais um
condado a noroeste de Xi'an, que se tornaria séculos depois a primeira
dinastia a unificar a China, isto é, a dinastia Qin # (221-206 AEC).
A idade de ouro dos carros de combate perdurou até ao período da
Primavera e do Outono ##% (770-476 AEC), quando se mostrariam
obsoletos ao se deparar com as tropas invasoras dos hunos, ao Norte do
Império do Meio. O rei Wulin RJR do estado de Zhao BX em 307 AEC, a
• A • - 5 •

partir do contato com os nômades, aprendeu a equitação e arregimentou a


primeira cavalaria montada, que lhe conferiu maior poderio militar, prática
seguida por outros reinos. Entretanto, os carros a cavalos ainda
prevaleceriam; pois, como comenta o historiador Sima Qian, no Registros
históricos EiE: “os cavalos de combate dos Qin eram superiores em número,
força e velocidade”. Com a desintegração do império Qin (206 AEC), a
cavalaria se tornou gradativamente a força mais poderosa nas guerras a
partir da introdução de raças da Ásia Central pela dinastia Han X.
A dinastia Han iniciou sua administração do império chinês em 206
AEC e houve uma grande expansão do território até ao Sul da Manchúria
(Nordeste da China), Norte da Coreia, Sul e Sudeste da China e Norte do
204 Vietnã. A situação permanecia instável apenas nas fronteiras Norte e
Noroeste, devido aos saques constantes da confederação tribal dos hunos,
Antigas
Leituras que possuíam superioridade equestre (SONG, 2008 e YANG et al., 2008). De
VISOES DA
CHINA acordo com a “História de Fergana” no Registros Históricos
ANTIGA
[EiE: X%E3]{#], a guerra entre os hunos e os chineses era constante e, na
batalha de 119 AEC, ambos tiveram grandes baixas, sendo que a parte
chinesa perdeu mais de 80% de sua cavalaria. Nesta conjuntura, o porte e o
número de cavalos tornaram-se estratégicos para a manutenção e expansão
militar dos chineses. Desta forma, o imperador Marcial Han Wudi RXIR#
(157 - 83 AEC), por um lado, delimitou áreas abertas para a criação de
cavalos, por outro lado, a fim de aprimorar a raça chinesa, enviou emissários
para a compra dos célebres cavalos de Fergana X%E, região da Ásia Central,
em 113 AEC. Porém, a oferta dos Han foi recusada e o seu embaixador,

executado. Em retribuição à afronta, em 104 AEC, o imperador Marcial


arregimentou uma campanha com 40.000 homens, que foi derrotada graças
à união dos reinos bárbaros, aliados do reino de Fergana. Entretanto, o
imperador chinês estava determinado em levar a cabo o seu plano. Assim, no
ano seguinte, outro exército com 60.000 homens foi enviado para o Oeste.
Desta vez o império tratou de subornar os reinos vizinhos de Fergana,
estabeleceu uma boa logística para o envio de suprimentos e sitiou a capital
de Fergana. Dessa forma, em 101 AEC, conseguiu a rendição do reino
rebelde e obteve 3.000 cavalos da raça (embora apenas algumas dezenas de
qualidade superior e somente 1.000 chegaram à capital) e sementes de alfafa.
Segundo Yang (2008, p. 8) foi à custa de dez vidas humanas por um cavalo.
Com a introdução da raça Fergana, a atividade de criação de cavalos passou
a prosperar na China por certo período, mas a exígua disponibilidade de
campos para a pastagem e o costume de alimentar animais com cereais, fez
com que a raça perdesse as vantagens originais (XIE, 1991).
Em resumo, a partir da domesticação do cavalo na pré-história e o
domínio da equitação na Antiguidade, o animal adquire status de poderio
militar e político, formando um sistema de governo centralizado e
hierárquico conhecido como HIX#|B mazhengzhidu, baseado no número
de cavalos dos reinos e estados (SONG, 2008, p. 126). Sobre isto, trataremos 205
abaixo, sob uma perspectiva da escrita.
Antigas
Leituras
VISOES DA
Registros escritos sobre o cavalo CHINA
ANTIGA

Devido ao poderio da força militar advindo da introdução do cavalo


nos carros de combate a partir da dinastia Shang descrito anteriormente, o
cavalo se torna distintivo de status social. Os registros da escrita mais antiga
chinesa, encontrados em inscrições em ossos escapulares e carapaças de
tartaruga HR H X dos séculos XV a XIII AEC, possuem mais de 80
ideogramas com o radical H [cavalo] para designar as diferentes raças,
cores, idade e temperamento de cavalos, bem como funções de tratadores,
treinadores, arqueiros, entre outros (SONG, 2008, p. 127). No Dicionário
analítico de Caracteres i#X## de Xu Shen da dinastia Han Oriental (25 —
220), o número de ideogramas sob o radical de cavalo ultrapassa 120
caracteres adicionando novas designações relacionados ao equídeo,
fornecendo evidências do domínio equestre pelos chineses."
Em cânones como Shijing i## [O livro dos cantares], datado do
período da dinastia Zhou, há o maior número de poemas dedicados ao
equino, ora exaltado pela sua beleza e velocidade, ora como companheiro
das viagens solitárias de literatos (YANG et al., 2008, p. 113):
>####H • AS#Hjffé e Dá-HRAS)\, = {}}|{j - |};

{### s # Ly)[## e #####J{###s # DJ ZíS7k}{

e 95{## PK , HēE; 2 H - Hºlli}}{} }f} , é# DJ MS

7k{ij e 9}{##H5ês #1, # 5ês Hà ÍS$##ês zºfIIIHF

5è.

Eu recolhia flores, que não enchiam a minha cesta


I'd Sal.

Suspirei pelo meu amado, deixando a sua lembrança


na estrada.

Eu subia uma montanha íngreme, mas meus cavalos


adoeceram.

Brindei com o vaso dourado aos céus, esperando


206 logo o esquecer.
Eu subia um cume elevado, mas os meus cavalos
Antigas
Leituras
amarelaram.
VISOES DA
CHINA
Brindei com o copo de chifre de rinoceronte,
ANTIGA
esperando logo passar a tristeza.
Eu subia a um platô, mas os meus cavalos ficaram
sem forças,
os meus servos caíram pelo caminho.
Oh! Quão grande é a minha dor!
(Orelhas-de-rato, Zhou Meridional, Shijing)

Há ao longo da história chinesa, belas passagens de companheirismo


entre o cavalo e o homem narradas em Shiji Hit [Registros históricos]. Na
biografia de Xiang Yu WP (232 - 202 AEC), um dos generais responsáveis
pela derrocada do império Qin, que autoproclamou-se rei do Chu Ocidental
e disputou a hegemonia do império com Liu Bang X|}} (256 — 195 AEC), rei
de Han (que acabaria por fundar a dinastia Han). Ao ser cercado pelas tropas
de Liu, Xiang Yu liberta o seu cavalo e lamenta não corresponder à lealdade
do animal, tendo que o abandonar a própria sorte.
No capítulo Xia Guan Sima 52 HHH [Ministro da guerra] de Zhou
Li Hil [O livro dos ritos de Zhoul" há inúmeras referências à prática da
etiqueta: A permissão do número de carros e cavalos, bem como o uso do
transporte em cerimônias, ritos e sacrifícios de acordo com a posição social.
Em outro capítulo, Di guan Eff, registra as Seis Artes" [7N 2, liu yil, que
incluía aprender equitação e as regras de condução de carros, apenas
permitida às classes aristocráticas e militares. Assim, o cavalo é relacionado
ao status de nobreza e às práticas de civilidade.
O mais célebre conhecedor de cavalos na Antiguidade foi Sun Yang
f\|}| (?680 -?610 AEC), conhecido como Bole (HVR, nome da constelação
do Tratador de cavalo celestial. O perito em cavalos foi vassalo do estado de
Qin #e escreveu Xiang Ma Jing fB Há [Tratado sobre cavalos], obra que se
perdeu. É no provérbio “Bole avalia cavalos” [{H'RfHH Bolexiangma] que 207
talvez se encontre a primeira analogia do cavalo com o homem, pois, o dito é
Antigas
uma alusão a descoberta de pessoas talentosas por um experto. Yang et al. Leituras
VISOES DA
(2008, p. 114) observam que Bole seria uma alusão ao rei e do desejo de CHINA
ANTIGA
reconhecimento de um súdito pelo rei. Esses súditos talentosos seriam
cavalheiros eruditos, que atuavam como o que conhecemos hoje por
“consultores”, aconselhando os soberanos dos Reinos Combatentes num

período de disputa pela hegemonia do Império do Meio.


É nesse período que surge o gênero fabular, empregado como recurso
retórico para o fortalecimento da argumentação e persuadir o interlocutor
em relação a alguma verdade, de maneira implícita, sem expor uma
conclusão como na versão Ocidental. “Em Busca do Corcel” [SK=f H. Hil, em

Estratégias dos Reinos Combatentes [#EElff), é narrada a parábola de um


súdito, que para persuadir o rei de Yan # a cooptar literatos à serviço do
reino, sugere-lhe a compra de uma cabeça de um corcel morto à peso de
ouro, como uma demonstração sincera de valorização pessoal “ao mundo”.
Em “Apresentando Yan ao Reino de Qi” [}}}#i##] no mesmo livro, conta
se que um vendedor de bons cavalos apenas conseguiu comercializá-los a
bom preço, depois de convidar Bole a visitar o seu estábulo. Sugerindo que é
melhor ter uma recomendação do que fazer a autopromoção. Assim como
para se comprar um cavalo não se pode furtar da assessoria de entendedores
de cavalos (Bole) como sugerido em “A Visita ao Rei Zhao” [# Wl#x=E].
Todavia, a consolidação da metáfora de tomar o corcel como o homem
virtuoso e o Bole como o bom governante ocorre em “A Visita de Hanming
ao Chunshenjun”[#FBH Wlf H+] no mesmo livro. Depois de três meses de
espera, o virtuoso, mas pobre Hanming consegue finalmente uma audiência
com o ministro Chunshenjun. Durante a reunião, os dois descobrem ter
afinidades e compreensão tácita, de forma que o ministro decide conceder
lhe uma audiência a cada cinco dias. Hanming emocionado, conta-lhe a
história de um corcel que puxava carro de sal numa montanha, que foi
reconhecido e socorrido por Bole. O relinchar estridente do corcel estreme
os céus, emocionado por ser reconhecido e liberto pelo avaliador. A
referência a essa parábola é encontrada inúmeras vezes na literatura chinesa,
como uma alegoria da busca ou da falta de reconhecimento dos talentosos
no mundo.

208 Em outra historieta narrada por Han Feizi #HE-f (?280 — 233 AEC),
o filósofo da Escola das Leis [### Fajia], propõe “um certo savoir-faire que
Antigas
Leituras correspondia ao melhor saber-ser, um modo de governar a si mesmo que
VISOES DA
CHINA constituía uma receita de governar” (GRANET, 1997, p. 254). Conta o Han
ANTIGA
Feizi que o rei Xiang do reino de Zhao aprendeu a arte de conduzir carros a
cavalo com Wang Yuqi. Depois de algum tempo, o rei apostou uma corrida
com Wang e, mesmo tendo o rei trocado os cavalos por três vezes, perdeu a
corrida para o Wang. O rei irritado acusou treinador de não lhe ensinar tudo
O que sabia. Wang refuta a acusação, alegando que o rei não usou
corretamente as habilidades aprendidas e complementa:

JLíHIX. Éff #, E# {\#F4E, NADNiñ=F II, III JH HJ

DJ ####UTI • &#JH |{{#EEI, E ||##*#* EH -

######É, HE4EJUJE tb º TÍj4EJEI DA É #EFEI,

EfID), if=Jº Hy, H. Ef>}}| DJFí tb e

“Mais importante ao dirigir uma carruagem é que os


corpos dos cavalos sintam-se confortáveis em relação
à carruagem e que a mente do condutor esteja em
harmonia com os cavalos. Só assim pode conseguir
grande velocidade e percorrer grandes distâncias”
(CAPPARELLI e SCHMALTZ, 2007, p. 88-89).

Xunzi [##] (?313-238 AEC) do reino de Zhao era um confucionista


ortodoxo. O filósofo defendia que “a natureza humana é má; o que ela tem
de bom provem do artificial” e “desde a Antiguidade, o bom cavalo se torna
um corcel devido ao controle do freio, da intimidação do relho e da doma de
Zaofu”." Para o confucionismo, Bole e Zaofu são alegorias da civilização para
a harmonia social. Xunzi enfatizava a influência positiva dos ritos sobre o
indivíduo e esses permitiriam fazer com que os homens aceitassem uma
divisão convencional das ocupações e dos recursos, o filósofo inclusive
adverte que “um pulo do corcel é inferior a dez passos e se esse leva um dia
para percorrer 600 quilômetros, um cavalo ordinário, se tiver determinação, 209
33 13
pode muito bem cumpri-lo em dez dias”.
Antigas
Leituras
VISOES DA
O cavalo para o daoísmo CHINA
ANTIGA
• • ---- / /=>

Se para o confucionismo ortodoxo fi#, o moísmo #3 e a escola


das leis #3 a domesticação do cavalo adquire uma extensão de sentido do
refreio do homem sobre os seus instintos representando um ato de civilidade
para o bom convívio social; para a visão cosmológica naturalista daoísta
jÉí#, defensora de um estado de laissez-faire, a civilização representa a
destruição da ordem natural do universo.
Zhuangzi (369-286 AEC), um dos maiores filósofos daoístas, era do
reino Song #, período dos Estados Combatentes. Ele é considerado o
fundador da ficção — xiaoshuo lei% [ditos insignificantes, conto
(ZHUANG, 2008, p. 145) e Zhiguai # [registros de eventos sobrenaturais]
(ZHUANG, 2008, p. 2), que se tornaram termos literários a partir de sua
obra homônima." Entretanto, Zhuangzi tencionava com o estilo fabular e
linguagem metafórica arguir a favor da metafísica daoísta, num período de
efervescência filosófica entre diferentes escolas [H34##], que se
utilizavam de uma linguagem rebuscada, em busca da hegemonia
doutrinária dos príncipes (SCHMALTZ, 2011a., p. 174).
Quando na seleção das traduções que deram origem a 50 fábulas da
China Fabulosa (Capparelli e Schmaltz, 2007) e Contos sobrenaturais chineses
(Schmaltz e Capparelli, 2010) já se havia observado certa recorrência do
3) ({

termo “cavalo” ma B em Zhuangzi: “cavalo selvagem # Hi', “todas as coisas


são um cavalo JJ4%)- Hitl”, “a natureza primordial do cavalo H > H1'E” e
“do cavalo surge o homem H*E/\" e ainda a distinção entre “o cavalo
institucionalEEE;" e do “cavalo natural JK FH", apenas para citar algumas
referências.

No capítulo “O prazer da liberdade i####, Zhuangzi (2008, p. 2-3)


inicia a narrativa contando que no mar do norte existia um peixe gigantesco
chamado kun #, que um dia se transformou num pássaro enorme
conhecido por peng H Iroca], que sai a voar pelo mundo. A fábula apresenta
através do olhar da roca, uma imagem de harmonia primordial, em que o
21 ()
cavalo selvagem é parte integrante da natureza, plena de energia vital:
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
Bj II; til, "B.J5ê tb!, &E4%J> DJ H HIW#1 e
ANTIGA

Durante a viagem ao mar do sul, a roca viu uma


tropa de cavalos selvagens a galopar pelos prados, à
poeira levantada juntava-se a energia emanada pelos
seres na primavera, evidenciando a vitalidade de
todas as coisas. (ZHUANG, 2008, p.1).

No capítulo Casco de cavalo Hf, Zhuangzi revela-se conhecedor da


natureza primordial do cavalo H > H1'E:

Hy, Hä III D) }* #, =É III D) f|JX[3*, #H4X7K,

}}|}ET[j]ili, H. Hj >_H}+th e Hºff Y É ###, JE}}|

HZ e

Os cavalos podem com seus cascos andar sobre a


geada e a neve, e com o seu pelo resistir ao vento e
frio; eles se alimentam de pasto e bebem água,
empinam as pernas e saltam: Esta é a verdadeira
natureza dos cavalos. Eles são indiferentes perante
púlpitos ou mansões. (ZHUANG, 2008, p. 91).

No mesmo capítulo, Zhuangzi ainda versa sobre a epistemologia


equina:

# Iy, # H || É #4X7K, # |>###HE#, &|4}

*##H} , I, II E IHÉ #ê e Hy}{4|IEIHÉ5ê e

Quando vivem em campo aberto, os cavalos pastam


e bebem água, entrelaçam e esfregam seus pescoços 211
um no outro para demonstrar alegria e dão-se coices
Antigas
para demonstrar a sua ira. Isto é tudo o que sabem. Leituras
VISOES DA
(ZHUANG, 2008, p. 94). CHINA
ANTIGA

As colocações de Zhuangzi denotam simplicidade e modéstia #fb


[supu] de uma perspectiva dialética em defesa de sua visão naturalista.
Importante notar que o filósofo aponta no capítulo O ajuste das
controvérsias #4%|iê:

DJ #Ilí##X_HE#, AS# DJ HE#Ilí##>=E#tL: DJ

HyIlí II, 2. HEI, AS#D) HEI, lí II, 2. HEI, tb º JR HE

— já tb, JJ4%J— Ij tb, e

É preferível empregar um não conceito para


descrever que um conceito não é conceito do que
utilizar um conceito para descrever que um conceito
não é um conceito; é preferível usar um não cavalo
branco para explicar que um cavalo branco não é um
cavalo do que utilizar um cavalo branco para
descrever que um cavalo branco não é cavalo. O Céu
e O Firmamento são apenas conceitos e as coisas são
apenas símbolos (ZHUANG, 2008, p. 20).

E no final do capítulo Felicidade suprema #R, Zhuangzi dá-nos


pistas de que o cavalo é uma analogia ao ser humano, parte integrante da
ontologia do Dao, já que todas as coisas surgiriam deste (LAOZI, 2013, p.
110). Zhuangzi diz “Todas as espécies vêm de sementes. Certas sementes,
caindo na água, tornam-se lentilhas-d'água (...) tornam-se liquens (...) que
produzem o cavalo, que produzem o Homem. Quando o Homem envelhece,
torna-se semente outra vez” (ZHUANG, 2008, p. 122-123, tradução de
BUENO, 2009). Desta forma, os regramentos sociais (simbolizado pela
domesticação e pela cultura, em lato sensu), impostos pela vida em sociedade
(personificado em Bole, o oleiro, o carpinteiro e, em última instância, os
governantes) teriam efeitos nocivos ao homem, confira:
212
Antigas X, AB (H}R, El: “##### Hj e */}#X_}}|2, 2]>ff
Leituras
VISOES DA
>, já X DJ H #, &#> D), H. Hº, Hy>}EÃ -- r =
CHINA
ANTIGA
5è: {|...}. }}>, jib -> Há 2, # > >>, Hí ff}}{{#i

> #, [[]]#####JJ2. E}, [[Dj >LXE5° E.js|.*É 5ê e

##E|: “######, E# H}}, JJ # HH4E e ”II.

J\ El: “###7k, H# HH4%J, H# N745 e º jě#

, ZR2L}+, HfXIEI EM H4%J##? # H. H. H.#2. E

: “{H}R## Iy, [[#] , Jī É ###. ”IHE WR###

R = X_]sit[1 e

Quando surgiu [no mundo] Bole dizendo: “eu


entendo de cavalos”, tudo mudou. Os cavalos

passaram a ser marcados, a ter seus pelos tosados,


seus cascos aparados e terem de andar a cabresto e
adornados. [os homens] Colocaram-no freio e
amarraram-no próximo ao cocho no estábulo. Dessa
forma, morreram dois a três de cada dez. Depois,
deixaram o cavalo passar fome e sede, fixaram-lhe a
canga para puxar carro, açoitaram-no para galopar
sob o comando da rédea, resultando na morte de

mais da metade. O primeiro] oleiro disse: “Eu sei


muito bem como lidar com a argila, moldo-a em
esferas tão perfeitas como se fossem feitas pelo
compasso, e em cubos tão exatos como se fossem
medidos pelo esquadro”. O primeiro] carpinteiro
disse: “Eu sei muito bem como lidar com a madeira,

envergo-a na forma de um gancho, e deixo-a reta,


com o uso de um prumo”. Mas será que a natureza
da argila e da madeira tem que se adequar ao padrão
do compasso, do esquadro, do gancho e do prumo?
Entretanto, geração após geração, homens gabam-se
2 13
de Bole como o bom entendedor de cavalos, o oleiro

e o carpinteiro como bons em lidar com a argila e a Antigas


Leituras

madeira. Este é o mesmo erro cometido pelos VISOES DA


CHINA
governantes do mundo. (ZHUANG, 2008, p. 91). ANTIGA

O excerto acima sugere que Zhuangzi condena o altruísmo, a


benevolência [ " e a equidade, retidão X, considerados pelo filósofo
daoísta como comportamentos artificiais adquiridos: tudo aquilo mediante
O que a civilização deturpa e falseia a natureza. Toda invenção, todo
pretenso aperfeiçoamento (personificado em Bole, oleiro e carpinteiro) não
vale mais do que uma excrescência incômoda: os cavalos domesticados
morrem prematuramente e o mesmo acontece com os homens, a quem as
convenções sociais proíbem de obedecer espontaneamente ao ritmo da vida
universal (cf. LU, 1994, p. 381-385 e 397-399; GRANET, 1997, p. 310;
ZHANG, 2003, p. 39). No excerto abaixo, Zhuangzi demonstra o efeito
maléfico da civilidade e encerra a sua arguição condenando o Sábio:

#JIX. D], {{j}E, # > DJ H #1, TÍjE; }|fº|{ji , H]}E

s # 5 , ifí{f} , {ijÉ º #{D} > RIIIIII;#####, fÉ

}R_>. HE tb º jě#### EV 2. Hºf, R. H ZÍS FI|}}f}}, {TAS


%II}}f>, É IHTÍj}, 5k}TÍjjf, R. ÉÉ DJ, Ill: 5ê e X.

ÉÊ=É N, JEE } }L}R D), EEX E X #2, #4 X D) }}

JR R >LPN, TÍjRJ5 lí#######II, #}==F7F], /ÍSTI]

IEtb º lt.UN+)\2.jsítiº e

Quando colocaram o jugo e a cabeçada sobre o


cavalo, o animal aprendeu a se colocar de lado, a
curvar o pescoço, a cuspir o freio e arrebentar as
rédeas com os dentes em sinal de resistência. A

inteligência do cavalo se tornou pérfida como a de


um bandido. Este foi o erro de Bole.

No tempo [mítico] de Hexu, as pessoas viviam, sem


saber o que estavam fazendo, e saíam, sem saber o
seu destino. Elas se divertiam enquanto comiam, e
214 depois passeavam. Isso era tudo o que faziam. Mas
quando surgiu o Sábio, com a sua ritualística e
Antigas
Leituras música enquadrando a tudo e a todos, doutrinando
VISOES DA
CHINA sobre o altruísmo e equidade para consolar o povo,
ANTIGA
as pessoas, a partir de então, começaram a exaltar a
sabedoria e as disputas de interesses existem desde
então. Este foi o erro do Sábio. (ZHUANG, 2008, p.
94).

No capítulo Xu Wugui (###, Zhuangzi divide os cavalos na classe


dos cavalos naturais K F H e dos cavalos do reino HEH, este último

classificado segundo o padrão estético humano, que para o filósofo seria


inferior às qualidades naturais do cavalo selvagem, nem sempre reconhecidas
pelos homens. No mesmo capítulo, Zhuangzi apresenta a solução de boa
governança sob o axioma naturalista Dao, através de um suposto encontro
do Imperador Amarelo # com um menino pastor. Huangdi pergunta ao
menino como o mundo deveria ser governado. O menino responde que não
se interessa por esse assunto, mas como Huangdi insiste em saber a sua
resposta, o jovem pastor replica: “não vejo grande diferença entre guardar
um rebanho e governar um reino. Apenas é necessário eliminar aquilo que
faz mal aos cavalos” (LU, 1994, p. 537-539). Se entendermos que o cavalo é
uma analogia ao homem e à liberdade primordial, os males que atinge a
humanidade seriam os instrumentos de controle dos governantes, como
sugere Zhang (2003, p. 39-40)

Conclusão

Neste ensaio descreveu-se a presença do cavalo na China antes da


pré-história até a dinastia Han Ocidental, à luz dos achados paleontológico e
arqueológicos, perpassando a história e a literatura, com o objetivo de
discutir a simbologia do equino neste modelo cultural. O cavalo adquire
importância como meio de transporte que alavanca força militar nas guerras
e sua simbologia desenvolve-se a partir da domesticação do animal.
215
Finalmente, discutiu-se as dicotomias filosófico-simbólicas confuciana

(entre outras escolas) e daoísta, particularmente de Zhuangzi. Ambas as Antigas


Leituras

escolas partem de uma visão dialética, a primeira consta o cavalo como o VISOES DA
CHINA
domínio do homem sobre si e exalta a ordem social, enquanto a segunda ANTIGA

apresenta o cavalo como um axioma da ascese naturalista em oposição aos


regramentos impostos pela vida em sociedade. De um ponto de vista
contemporâneo, porém, o filósofo Zhang (2003, p. 74) adverte-nos que a
exaltação de regresso ao natural do daoísmo tem de ser analisada em maior
profundidade, já que ocorreu assimilação mútua entre as escolas no decurso
da história. O pensamento confuciano atual propaga o engajamento social à
luz do espírito daoísta. Sobre isto, pretendo tratar em outro artigo.

Notas

1. Sobre o sistema astronômico chinês refira-se a Schmaltz (2011b).


2. Os ideogramas são escritos em chinês simplificado e as transliterações
fonéticas do chinês para o português estão em pinyin, de acordo com a
norma GBT 16159 (2012). Todas as traduções são de responsabilidade da
autora, salvo indicação em contrário. As acepções ou traduções livres do
chinês para o português estão sinalizadas entre parênteses angulares.
3. Obra de autoria anônima, que reúne registros de geografia, hábitos,
costumes, lendas e mitos chineses ainda antes do período dos Reinos
Combatentes (475-221 AEC).
4. Remetemos o leitor à tradução de Schmaltz e Capparelli (2010, p. 93-94).
5. Diferentes de outros povos indo-europeus, os chineses usavam os cavalos
apenas como utensílio de transporte.
6. [# Hyż Fl, JYJ #> {}, "RÊÍ#RJ###H]=####, ASH]}E}{2 |
7. O elemento do ideograma que denota a sua significação e que serve para
indexar os caracteres com esse mesmo elemento em um grupo.
8. Já no Dicionário Kangxi ER### organizado na dinastia Qing (1644
1911), ultrapassa 500 ideogramas com o radical de cavalo. Nos dias de hoje,
apesar das estimas dos três a quatro mil empregados na comunicação
cotidiana, o Grande dicionário da língua chinesa?Xi###Ji Hanyu Da
Zidian com 56.000 ideogramas, registra 620 ideogramas relacionados ao
cavalo.

9. Edição remanescente da dinastia Han Ocidental VHYX (206 AEC — 24), é


216 considerado um dos clássicos da Antiguidade, sendo exaltada pelas escolas
confuciana, moísta e das leis, entre outras.
Antigas
Leituras 10.As seis aprendizagens em ordem de importância eram: Ritos (política,
VISOES DA
CHINA moral e etiqueta), Música (música, poesia e dança), Arco e flecha, Condução,
ANTIGA
Letras, Matemática e ciências naturais. À plebe era apenas concedida a
alfabetização e a instrução de matemática, consideradas como uma
aprendizagem menor (YANG et al. 2008, p. 66-67).
11. [ NX_{+}\$, H. É #{}} tb º
12.

[HIX. F. L; th: #[j]/ #fffff #2 fil], J######>LEY, WIIX. Pli#42X_1}


, $JH = H |#=F. E tb .
13. []}{#=HK, MSÉÉ+ }};; # Iy-E PE, J{EAS#.

14. Isto é, Zhuangzi HE-fº. Também intitulado de Nanhuajing F#####.


15.

[#### JL, #7kJ\|}]*}}, {#7K_EXER|}]HE#X #, &E F# IEJUJ.J}}= 5;


, 25 # {{####|}]É }E, É JEX_{R}]]|}}|, H IH }}}}]]|}. }}|{{#ti! {},

TÍj}} HH....... H. 44}}{## e ##-F. H}] Egy, H, 44}}##### e ###">}R

}J}{##R, #%R}} Ériñº HW4#4E Y Érif, #4E É JL#R, # Pºj/E#J###


, #####AS#, XMT/E#*#*, #*#*/E#, #4: I, II, "E)\, \ XX

X-FEI - JJ4/J# H + HL, º X-F}}| < |


16.Para Granet, há diversas definições em Analectos Lunyu de Confúcio sobre
o ren f. Essas podem ser indicadas como “o respeito próprio, a
magnanimidade, a boa-fé, a diligência e a benevolência” (1997, p. 294). Para
a escola confucionista, o princípio do saber era a vida em Sociedade (Idem, p.
295)
17. [#}JJR Fá, JR # DJ #*#*# D##?)R### D#III E Éê.

Referências bibliográficas:
BUENO, André. Cem textos da história chinesa. Disponível em:
http://escritosinicos.blogspot.com/2011/06/cem-textos-de-historia
chinesa.html. Acessado em 08/05/2014.
217
CAPPARELLI, Sérgio; SCHMALTZ, Márcia. 50 Fábulas da China Fabulosa.
Porto Alegre: L&PM, 2007. Antigas
Leituras
GRANET, Marcel. O Pensamento Chinês, tradução de Vera Ribeiro. Rio de v### A
• CHINA
Janeiro: Contraponto, 1997. ANTIGA

LAOZI. Tao te ching: livro da via e da virtude, tradução, prefácio e notas de


António Graça de Abreu. Lisboa: Vega, 2014.
LU, Qin. Zhuangzi Tongyi [Compêndio de Zhuangzi). Changchun: Editora
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SCHMALTZ, Márcia. “Os três reis: a anatomia de um conto não publicado”.
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----- . “O tigre no ano do dragão”. In Aletria, v.21, n. 2, pp. 157-170, 2011b.
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Zhou Li [Ritos de Zhou]. Disponível em: http://ctext.org/rites-of-zhou/zhs,
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ZHANG, Jiacheng. “Shixima zai Zhuangzi” Análise preliminar do cavalo


em Zhuangzi), Investigações filosóficas, 1, pp. 38-43, 2003.
ZHUANG, Zhou. Zhuangzi, glosa de Yi Li, Xi'an: Sanqin, 2008.

2 18
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA
OS QUATRO ANIMAIS COSMOLÓGICOS EM
TÚMULOS HAN COM MURAIS

Natasa Vampeli Suhadolnik

Introdução

As escavações de túmulos com murais da dinastia Han # (206AEC —


220EC), que foram realizadas principalmente na segunda metade do século
XX, e ainda continuam hoje, trouxeram à luz uma grande quantidade de um
rico material arqueológico que tem contribuído consideravelmente para o
nosso conhecimento de como o povo Han viam a vida após a morte e seu 2 19
lugar no cosmos, e como essa visão se refletiu em sua póstuma morada
Antigas
subterrânea. O chamado túmulo poço horizontal, que apareceu pela Leituras
VISOES DA
primeira vez no período de meados de Han Ocidental, marcou uma CHINA
ANTIGA
mudança da forma até então vigente da sepultura poço vertical. Esta nova
forma permitiu o desenvolvimento de várias câmaras com funções distintas,
e culminou em túmulos de grande porte com várias câmaras dispostas ao
longo de um eixo central, salas e corredores laterais. Uma outra
característica que distingue os túmulos Han dos de períodos anteriores é o
uso de tijolos e pedras para a construção de câmaras sepulturas (Wang 1982,
175)". As novas sepulturas poço horizontais, feitas de tijolo e pedra,
provinham uma superfície ideal para uma variedade de decorações
(estampadas, esculpidas ou pintadas). Estes enfeites, que começaram a
aparecer com a nova forma de construção nos meados dos Han Ocidentais,
conseguiu sua difusão máxima durante a dinastia Han Oriental (25 -
220EC). O presente artigo focará sobre as representações dos quatro animais
cosmológicos no chamado mushi bihua X###H, ou túmulos com murais e
imagens pintadas diretamente sobre as paredes. Enquanto estudos
anteriores sobre os murais das tumbas Han discutiram brevemente a duas

forças cósmicas e cinco fases, até o momento não houve nenhum


tratamento prolongado do conteúdo do mural e dos Quatro animais com
respeito a teoria yin yang wuxing Kºki Tiff, que fornece uma linha temática
básica para esses murais. Com base no layout arquitetônico completo e no
conteúdo pictórico de túmulos com murais, o presente artigo, assim, irá
reinterpretar a representação dos quatro animais cosmológicos, tanto em
geral quanto sobre o seu papel específico na teoria yin yang wuxing, como é
elaborada no túmulos.

1.1 Túmulos Han com murais

Atualmente (2012), um total de cerca de 70 túmulos Han com


murais foram escavados. A maioria destes túmulos foram encontrados na

província de Henan YHIPH (21 tumbas), especialmente nos arredores da


capital da dinastia Han Oriental, a cidade de Luoyang #%. Mais 24
túmulos foram escavados nas áreas perto da província de Henan (nove em
220 Shaanxi Skyli, quatro em Shanxi LLIVH, três em Shandong IIIZR, três em
Hebei YHit, um em Jiangsu YI.j, dois em Anhui ###e dois na província de
Antigas
Leituras
VISOES DA Sichuan VII/II), enquanto que concentrações também foram encontradas em
CHINA
ANTIGA certas regiões fronteiriças: Liaoyang #%, no Nordeste (13), Gansu HHH (6)
e Mongólia Interior W33 (6). A maioria destes túmulos estavam situados
nos principais centros políticos, guarnições militares estratégicas ou nas
cidades economicamente e culturalmente florescentes da época. Devido à
falta de provas materiais, o estado exato e a posição dos ocupantes dos
túmulos são muito difíceis de determinar. No entanto, com base nos

achados arqueológicos e outras pesquisas analíticas, a maioria das tumbas


foram para os funcionários importantes, intelectuais e ricos proprietários de
terras (Huang 2008, 140-156).
O conteúdo pictórico dentro dos túmulos é bastante rico e variado, e
geralmente retrata a vida oficial e privada do falecido, bem como uma ampla
gama de seres celestiais que ocupam o reino celestial ou estão de alguma
forma ligados aos costumes funerários que prevaleciam naquele tempo. Esta
profusão de imagens confirma uma crença generalizada na vida após a
morte. As imagens celestiais também incluem vários corpos celestes, como o
sol, a lua e as estrelas, que são na sua maioria desenhadas a partir dos 28
casas lunares ou região do Pólo Norte, bem como os quatro animais.

1.2 A cosmologia yin yang wuxing

Embora os túmulos não tenham um esquema iconográfico padrão, e


revelam uma variação considerável em termos de temas específicos e na
organização de motivos em uma representação conceitual uniforme,
dependendo da sua localização e datação específica dentro do período da
dinastia Han, todos esses motivos parecem estar imbuídos do conceito
de yin yang wuxing Kºki Tiff. De fato, como Cheng Te-kun já observara
(Cheng 1957, 180), a união das forças yin e yang, conforme expresso na
circulação constante dos cinco xings (cinco fases), constitui um fio condutor
básico nas pinturas murais Han. 221
A cosmologia yin-yang wuxing vê o universo em termos da interação
Antigas
de duas forças cósmicas com naturezas opostas, mas complementares, e Leituras
VISOES DA
manifesta ela mesma na paridade ilimitada de idéias universais, abstratas, e CHINA

outras noções mais concretas. Acreditava-se que ambas as forças estariam ANTIGA

presentes em todo o universo, enquanto que a sua interação, crescimento e


declínio representavam a força motriz da natureza cósmica e todas as suas
criaturas. Esta força motriz, que gera continuamente o ciclo ininterrupto de
nascimento-morte-renascimento, manifesta-se na circulação dos cinco,
interagindo dinamicamente nas fases cósmicas (wuxing), através do qual
toda a matéria na natureza passa. A cosmologia yin-yang wuxing era uma
parte integrante do pensamento Han, e influenciou todas as áreas da
sociedade e da cultura Han, especialmente a vida espiritual e os costumes
funerários.

Para representar essa dinâmica cósmica dentro de um túmulo e


alcançar um equilíbrio cósmico que poderia superar a natureza transitória
da vida humana, as duas forças foram retratadas ou incorporadas em
diferentes formas. As imagens simbólicas mais comuns usadas para
representar essas duas forças cósmicas, com base na tradição literária e da
posição das próprias imagens, eram o sol ea lua, as duas divindades
lendárias Nüwa # e Fuxi {R# (que foram muitas vezes associados
estreitamente com o Sol e a Lua), a Mãe do Reino Ocidental (Xiwangmu
VHFERÊ) e seu parceiro complementar, o Pai do Reino do Leste
(Dongwanggong R=E2), e o motivo de duas criaturas entrelaçadas,
geralmente de sexos opostos. As cinco fases Hífforam geralmente descritas
como os Cinco Palácios em que o Céu foi dividido, juntamente com os seus
habitantes, na forma de divindades, assistentes e espíritos planetários, bem
como uma série de animais divinos que tinham a função de guardar os
palácios. A construção de tumbas também foi usada para transformar um
objeto religioso em um microcosmo do universo. Na verdade, câmaras
sepulturas eram geralmente construídas com tetos redondos e muros de
suporte baseado em quadrados, de acordo com a teoria Gaitian ####, e o
conceito amplamente difundido de um céu redondo e de uma terra
quadrada. No entanto, a fim de confirmar esse aspecto do design do túmulo,
temos de contextualizar as cenas individuais no âmbito de toda a

composição, e estabelecer as relações entre os conteúdos pictóricos e os


222 elementos arquitetônicos. Em outras palavras, devemos interpretar as cenas
pintadas dentro do contexto de seu arranjo arquitetônico original.
Antigas
Leituras Os Quatro animais cosmológicos ou Espíritos Animais (dragão
VISOES DA
CHINA verde-azul, tigre branco, pássaro vermelho e o guerreiro Preto) são
ANTIGA
particularmente importantes a este respeito. Conhecido como si xiang VH5.
("quatro imagens"), si ling WU5 ("quatro espíritos") ou si shen Wllii
("quatro divindades"), eles desempenharam um papel fundamental no
estabelecimento dos aspectos temporais/espaciais das representações
cósmicas, ou seja, as quatro estações e os quatro pontos cardeais, que
aperfeiçoaram a presença do cosmos externos dentro do complexo do
túmulo.

2. Os Quatro animais cosmológicos


2.1. Direções Relativas e Absolutas

O papel dos Quatro animais no esquema cosmológico do yin-yang e


dos cinco xing's está claramente indicado no terceiro capítulo
do Huainanzi (Liu An, Huainanzi, Tianwen Xun, 183-188). Neste
capítulo, as quatro imagens simbólicas são representadas como quatro dos
cinco animais divinos, cada um dos quais guarda seu próprio palácio e
contribui para a circulação criativa das cinco fases (Tabela 1). Em termos
cosmológicos, o dragão verde-azul guarda o palácio oriental, e simboliza o
auge da primavera e a ascensão do yang. No sul, o seu papel é assumido pelo
Pássaro vermelho, que ajuda as divindades do sul a equilibrar e controlar a
fase de fogo, o culminar das atividades de Verão e do yang. O Tigre branco
continua esse papel no quadrante ocidental, que está ligado a decadência
gradual do ano, as atividades do outono e o início da ascensão do yin. No
norte, no zênite de yin e o ponto culminante da temporada de inverno, as
divindades do norte são ajudados e protegidos pelo Guerreiro Negro.
O papel destas figuras como tutores ou reguladores dos quatro
pontos cardeais também é indicado no trabalho geográfico, Sanfu Huangtu"
=####H:

»## , HJ# , 4ê # , 2, R, RZWL45, 223


DJ, TEWU JJ «
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
O dragão verde-azul, o tigre branco, o pássaro
ANTIGA
vermelho, e o guerreiro Preto são quatro espíritos do
céu que regulam as quatro direções. (Wang 1995, 38)
Palácio do Norte Palácio Palácio do Sul Palácio Palácio
Oriental Ocidental Central

Xing-ff Água Madeira Fogo Metal Terra

Quatro
Temporada InVerno Primavera Verão OutOno direções
(quatro
estações)

Divindade Zhuan Xu Tai Hao Yandi Shao Hao Huangdi


# Hjf X# #### 2]># ##

Assistentes Xuan Ming Gou Mang Zhu Ming Ru Shou Hou Tu


Divinos 2 K fIJ # 4èH} J# | { JH =E

Chen Xing Sui Xing Ying Huo Tai bai Zhen Xing
Espíritos JEHE '# H. ### XH {H H
planetários (Estrela (Estrela do (Vagar (Grande (Estrela Calma
Cronográfica- Ano-Júpiter) brilhante — branca-Vênus) - Saturno)
Mercúrio) Marte)

Animal Guerreiro Negro | Dragão Verde- Pássaro Tigre Branco Dragão


Azul Vermelho Amarelo
224
Tabela 1: Os cinco palácios celestes e suas correlações como representados
Antigas no Huainanzi
Leituras
VISOES DA
CHINA No Livro dos Ritos, suas direções não estão ligadas às quatro direções
ANTIGA
"absolutas", mas sim com as quatro direções "relativas", que SãO

determinadas pela posição de um objeto em relação a outro objeto.

»ff, #4ê #TÍj)= 2, R, ME H JETÍj/ HJ#«

»Na marcha, o pássaro vermelho na frente, guerreiro


negro atrás, o dragão verde-azul para a esquerda e
para a direita o tigre branco.« (Liji, Quli shang, 74)

O Huainanzi descreve o mesmo arranjo: "O dragão verde-azul do lado


esquerdo, o tigre branco à direita, o pássaro vermelho na frente e atrás o
guerreiro negro" (Liu An, Huainanzi, Binglüe Xun, 1084). Em sua biografia
de Wang Mang, incluída em sua coleção de "vidas notáveis" no Han shu #,
Ban Gu (32-92EC) menciona um arranjo semelhante dos Quatro animais
quando descreve Wang Mang encomendando suas carruagens, a serem
decoradas com o dragão verde-azul à esquerda, o tigre branco à direita, o
pássaro vermelho na frente e atrás o guerreiro negro (Ban Gu, Han Shu,
4153). Estes arranjos são consistentes entre si: se estamos diante de sul, então
temos o pássaro vermelho na frente (sul), o guerreiro negro atrás (norte), o
dragão verde-azul à esquerda (leste) e o tigre branco à direita (oeste). Se
projetarmos esse arranjo sobre uma superfície plana, o pássaro vermelho
está no topo (sul), o guerreiro negro abaixo (norte), o dragão verde-azul à
esquerda (leste) e o tigre branco à direita (oeste). Esta situação corresponde
com a disposição de outras noções e elementos do sistema wuxing. Dong
Zhongshu #{###(179 - 104 AEC), no Chunqiu Fanlu #%$#%, explica
que "a madeira está à esquerda, metal à direita, o fogo na frente, e atrás a
água" (Dong Zhongshu, Chunqiu Fanlu, capítulo Wuxing Zhiyi Tiff2.5%,
321). O Baihu Tongyi HEiHă acrescenta que "a água está no norte... a
madeira no leste... o fogo no sul... o metal no oeste" (Baihutong,
capítulo Wuxing Tiff, 167-168).
225
A mesma disposição de direções e posições incorporadas por Antigas
Leituras
diferentes símbolos podem também ser encontradas na disposição das cinco VISOES DA
CHINA
virtudes, cinco tons, cinco divindades, etc. Este arranjo tornou-se, assim, ANTIGA

um formato padronizado do sistema cósmico, em que uma determinada


seqüência de circulação foi claramente definida, e todos os domínios do
universo conectado dentro de um sistema coerente. A disposição espacial
do pássaro vermelho como frontal, superior e sul, o guerreiro negro atrás,
abaixo e ao norte, o dragão verde-azul à esquerda e leste e o tigre branco à
direita e oeste tornou-se uma representação padronizada dos Quatro
animais, e foi amplamente usada na arte Han. A aparência dos Quatro
animais simbolizado assim as indicações absolutas ou relativas, e a sua
circulação indica o ciclo sazonal.

2.2. Base astronômica

A associação destes animais com as quatro direções e o aparecimento


de um animal específico para cada direção originou o sistema astronômico
das chamadas 28 casas lunares (= H /\{#). Os antigos chineses dividiram o
céu em 28 segmentos, ou xiu fã, composto por grupos de estrelas, que
serviram como um sistema de referência para determinar os movimentos do
sol, da lua, dos cinco planetas e várias estrelas. As 28 casas foram em seguida
divididas em quatro palácios, que foram atribuídos aos quatro animais. Os
sete xius do Leste foram associados com o dragão verde-azul, os sete
constelações do oeste com o tigre branco, as constelações do sul com o
pássaro vermelho e o grupo norte de estrelas com o guerreiro negro. Sima
Qian (145-90AEC). H]Rijić, no capítulo "O Livro das Casas
Celestiais (Tianguan shu KFYH) de sua famosa história, Shiji Hill, dá
uma descrição detalhada de como o povo Han via o céu. Assim, aprendemos
que os quatro palácios foram dispostos ao longo do equador celeste nas
quatro direções cardeais, enquanto o quinto e central palácio estava situado
no pólo celeste. A tendência para associar os seres humanos com o Céu, ou a
chamada "ressonância cósmica" entre o Céu eo homem

(Tianrenganying X)\}}), levou o reino celestial a se tornar um reflexo


do sistema social imperial na terra. O palácio Central com o Pólo Norte se
226 tornou a corte imperial celestial, que, com o auxílio da Concha do
Norte, beidou it, SL, supervisionava OS OUtrOS quatro
Antigas
Leituras palácios. Beidou tornou-se assim um símbolo da carruagem do imperador, e
VISOES DA
CHINA sua circulação em torno do Pólo Norte governava todo o reino celestial,
ANTIGA
assim como o imperador supervisionava todas as províncias. Sima Qian
fornece o seguinte comentário:

» SE É # H, jÉj$ EH UR, #|VLá#. 4} {2}, # VIHF,


JáJEH {T, #%ffi Bi, TE#áU, PH #}^>].<

»Beidou serve como carruagem do


imperador. Circulando em torno do centro celestial,
ele controla as quatro direções, separa o yin e yang,
indica as quatro estações e equilibra a harmonia dos
cinco xings. Ele organiza os graus dos setores solares
e define todas as unidades do ano civil. Tudo isso se

refere a “dou”. «(Shiji, Tianguan shu, 1291)

O palácio Central, por meio de Beidou, controlava os quatro palácios,


para que as 28 casas lunares tivessem suas atribuições e fossem regidas pelas
quatro animais. Enquanto Sima Qian explica por que os palácios do Sul e
Oriental foram associados com o pássaro vermelho e o dragão verde-azul,
ele não atribui explicitamente o tigre branco ao palácio ocidental. No
entanto, ele vincula a imagem do tigre com duas casas: Shen # e Zi#í, o
que poderia, em conexão com quatro estrelas maiores em torno de três
estrelas em uma linha reta se parecer com o ombro, a coxa e a cabeça de um
tigre (Shiji, Tianguan shu, 1306). Ele também atribui o palácio do Norte
para o guerreiro negro ("O palácio do Norte é o guerreiro negro, Xu e Wei",
Shiji, Tianguan shu, 1308), mas não nos dá nenhuma razão para esta
associação.
De acordo com Sima Qian, a imagem do pássaro estava ligada ao
palácio do sul, quatro de suas casas configuram claramente a imagem de um
pássaro: casa Liu #1 era o bico do pássaro, Xing # é sua nuca, Zhang # sua
barriga e Yi X as asas (Shiji, Tianguan shu, 1303) (Fig.1). 227
As casas Liu, Xing, Zhang e Yi formam, assim, a imagem de um Antigas
Leituras
grande pássaro com as asas estendidas, enquanto os nomes de algumas das VISOES DA
CHINA
casas indicam as partes de um pássaro.
ANTIGA

.::

Fig. 1: Casas Liu, Xing, Zhang e Yi no sul (Feng 2001, 313)

Enquanto a imagem da ave está presente em quatro das sete casas, a


imagem do dragão é ainda mais completa, e pode ser identificada em todas
as sete casas. Além disso, todas as casas, exceto uma, são nomeadas como

partes do corpo do dragão: Jiao fi Chifre, Gang JL pescoço, Di IV, raiz


(peito do dragão), fang Vi quarto (barriga), Xin Dº coração e Wei
EÉ cauda. Embora a nomeação da sétima casa Ji # peneira, não reflete
qualquer parte do corpo do dragão, a sua forma longa e retorcida já havia
sido identificada com a cauda do dragão, e, portanto, com o próprio dragão,
nos períodos Shang (1600-1050 AEC) e Zhou (1050-256
AEC). Uma evidência mais explícita de que a imagem do dragão foi
associada a todas as sete casas do palácio do Leste pode ser encontrada
através da comparação do antigo personagem long #E(dragão) com as
figuras das sete casas (Fig. 2).

* ** * *--

228
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA

l
** ||
".

11

Fig. 2: Comparação de caráter long #E com as sete casas no palácio do Leste


(1-7: Dragão em inscrições de ossos oraculares Shang; 8-9: Dragão nas
inscrições em bronze dos Zhou Ocidentais; 10-12: As configurações das sete
casas no palácio do Leste (Feng 2001, 307)

Feng Shi comparou a imagem do dragão tal como ela aparece nos
caracteres antigos encontrados ossos oraculares Shang e nas inscrições em
bronze dos Zhou Ocidental com as sete casas do palácio do leste. (Feng,
2011, 306-307). As configurações das estrelas nas casas individuais, bem
como a ligação de casas individuais por meio da estrela determinante
(FHE juxing) da casa do Quarto (fang), revelam uma imagem fascinante que
é idêntica aos antigos pictogramas do drgaão encontrados nos ossos
Oraculares e inscrições de bronze. Esta semelhança indica que o pictograma
do dragão nas inscrições antigas deriva das estrelas e da observação
astronômica. Também pode indicar que a imagem do dragão tem sua base
nas estrelas ou, o que é mais provável, que a imagem do dragão, que
desempenhou um papel tão importante na vida dos povos Shang e Zhou, foi
projetada no céu.
Ainda mais explícita, uma associação antiga entre o dragão com as
estrelas do leste é encontrada no hexagrama qian #3 no Livro das
Mutações. O hexagrama qian é composto de seis linhas inteiras, enquanto os
comentários para cada linha revelam as diferentes posições do dragão da
primavera ao outono, como Shaughnessy (1997, 197-219) apontou. Por
exemplo, a parte inferior linha, chamada dragão submerso #, mostra a
constelação do dragão no inverno, quando ela não é visível acima do
horizonte leste. A segunda linha, ver o dragão no campo #fÉH indica a
aparência do chifre do dragão (casa lunar Chifre) acima do horizonte no
início de março. As linhas, agora pulando na profundidade ER##### e
229
dragão voando nos céus #fÉJK descreve a aparição gradual da
constelação do dragão no céu, enquanto as duas últimas linhas, pescoço do Antigas
Leituras
VISOES DA
dragão JLíE e ver o bando de dragões sem cabeça #####í, indicam o seu CHINA
ANTIGA
mergulho e desaparecimento de vista.

3. Representação dos Quatro Animais cosmológicos em túmulos com


murais

A associação dos quatro animais com constelações nos quatro


quadrantes do céu também está claramente representada nos murais dos
túmulos. Depois de criar a estrutura do cosmos na forma de um teto
redondo sobre o cômodo quadrado, o próximo passo era retratar os corpos
celestes no teto.

Em um túmulo descoberto pela Universidade Jiaotong #JS*,


Xi'an, na província de Shaanxi", em 1987, e datado do final do século IAEC,
um sistema de 28 casas lunares aparece dentro de dois anéis concêntricos no
teto (Fig. 3). A divisão das 28 casas em quatro palácios simbolizadas pelos
quatro animais também é claramente evidente. O dragão verde-azul
representa seis casas no leste. O corpo do dragão é longo e ondulado, e ele
possui quatro estrelas em suas garras, tem uma na ponta de sua cauda e oito
estrelas conectados em seu chifre, que, além da Casa Chifre (Jiao),
representam as estrelas vizinhas. No Sul podemos ver a imagem do pássaro
vermelho, que também incorpora estrelas individuais para representar as
casas do sul. O oeste revela a imagem do tigre branco e, portanto, da
casa Shen (Tríade), enquanto a casa Zi (Bico) é descrita como uma coruja. O
domínio norte é representado pelo guerreiro negro na forma de uma cobra,
que está contido ou encerrado dentro de um grupo de estrelas
interligadas. De acordo com Tseng (2011, 317), os artesãos do túmulo
inseriram uma cobra dentro da casa norte Xu (HE), enquanto Feng (2001,
315-320) por sua vez argumenta que essas estrelas representavam duas casas
do norte, Xu e Wei (ÍÉ), que a imagem do guerreiro negro deriva destas
duas casas do norte, e que as estrelas podem ser configuradas como uma
tartaruga. Ele explica ainda que a ligação entre a tartaruga e cobra deriva da
constelação de 22 estrelas (chamado Tengshe Hälä, cobra voadora) ao norte
230 das casas Xu e Wei, que se assemelha a uma serpente voadora.
Uma imagem semelhante é encontrada em um túmulo descoberto
Antigas
Leituras perto de Luoyang" (Yintun Xinmang bihuamu HTE######) em 2003,
VISOES DA
CHINA
e datado do período Xin Mang # (9-23 EC). A câmara central contém
ANTIGA
uma imagem celestial com base no sistema de 28 casas lunares, juntamente
com a Concha do Norte." O sol e a lua ocupam o centro do teto, com os
cinco palácios celestes distribuídos ao redor deles, e com a orientação
adequada (Fig. 4). Grossas linhas marrom-avermelhadas definem
claramente o Cinco palácios, que refletem e reforçam as cinco fases. Dentro
dos cinco palácios, casas individuais e outras constelações estão relacionados
com figuras humanas e animais, fornecendo uma imagem muito completa
do universo.
23 |
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA

Fig. 4: Câmara Central de Yintun Xinmang bihuamu (Luoyangshi di er


wenwu gongzuodui de 2005, ilustração (Willy) 7.2)
Fig. 5: Guerreiro negro na encosta norte em Yintun Xinmang bihuamu
(Luoyang shi di er wenwu gongzuodui 2005: ilustração (Willy) 19)

Descritas na encosta norte estão cinco estrelas, com duas serpentes


232 sinuosas entre elas (Fig. 5). A posição, as duas cobras e o número de estrelas
indicam que esta é uma imagem do guerreiro negro", que é mais uma vez
Antigas
Leituras representado em termos nas casas Xu e Wei. A imagem é praticamente
VISOES DA
CHINA idêntica a da pintura em Xi'an, exceto pela representação das cobras, pois no
ANTIGA
túmulo Yintun, as duas cobras se entrelaçam ao redor da tartaruga,
enquanto em Xi'an a cobra aparece dentro da imagem da tartaruga (ver
também Feng, 2005, 74). De ambos os exemplos, podemos concluir que as
cinco estrelas com a serpente representam o guerreiro negro (na imagem
esquemática da tartaruga com a cobra torcida em torno dela), e referem-se a
duas casas do norte, que para este povo antigo evocavam a imagem de uma
tartaruga. Sima Qian também observa que o "o palácio do norte é o
guerreiro negro, Xu Wei" (Shiji, Tianguan shu, 1308), embora sem oferecer
qualquer explicação para esta ligação. O fato dele não fornecer uma
descrição detalhada de outro animal do norte, ou do guerreiro negro, indica
que a associação do guerreiro negro com o palácio do norte ainda não havia
sido universalmente adotada e padronizada no momento da sua escrita. Em
um túmulo pintado de Yongcheng 7kJ}}, em Henan IIH, datado do
período de Han Wudi #R#, cerca de 136 AEC (Yan 2001, 236-238), e,
portanto, quando Sima Qian ainda era um jovem, o animal do norte não é
retratado como uma tartaruga, mas tem uma escama, como um corpo de
peixe. A pintura no teto da câmara principal mostra um dragão grande e
ondulado, com chifres em um fundo vermelho, um pássaro de pescoço
longo, um tigre branco e uma estranha criatura com uma cabeça de pato e o
corpo de um peixe (Fig. 6).

233
Fig. 6: Pintura no teto da tumba Henan Yongcheng com murais
(Yan 2001, 363) Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
Este fenômeno também pode ser observado em outras tumbas e
ANTIGA
pinturas da Dinastia Han anterior. Um espelho de bronze do túmulo
n. 1612, no Estado de Guo #EX, nos cemitérios em Sanmenxia EF"|%,
Henan, e que data do nono ao sétimo séculos AEC", fornece uma imagem
ainda mais nítida de um antigo protótipo do animal do norte. Os Quatro
animais são representados nos quatro lados do espelho (Fig. 7), mas em
frente ao pássaro sul, encontramos uma criatura que se parece com um
cervo. De acordo com Feng (2001, 315), as decorações pintadas em uma
caixa laqueada escavado no túmulo de Zeng Hou Yi #fé Z, na província de
Hubei #lt", de 433 AEC, também apresentam a imagem de um cervo, que
aparece ao lado das casas Wei e Xu do norte, igualmente no lado norte da
caixa (Fig.8).
Fig. 7: Espelho de bronze dos cemitérios em Sanmenxia, no estado de Guo,
Henan (Zhongguo kexueyuan kaoguyanjiusuo 1959, 27)

234
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA

Fig. 8: O esquema de uma caixa laqueada do túmulo de Zeng Hou Yi #fé Z,


(Feng2001: 277)

Outro exemplo é encontrado na tumba Bu Qianqiu B fºfK, em


Luoyang, Henan," que data do final da dinastia Han ocidental, durante o
período dos imperadores Zhaodi HH# e Xuandi # (86-49 AEC). A
tumba consiste em uma passagem, uma câmara principal (construída de
tijolos furados) e salas laterais (construído de tijolos pequenos). O teto da
câmara principal, que é composto de vinte tijolos pintados, mostra as
imagens a seguir, de oeste para leste (ou seja, a partir da parede traseira para
a porta) (Fig. 9): um ser estranho na forma de um peixe ou serpente, o sol
com um corvo, Fuxi, um homem e uma mulher que montam uma serpente,
e um pássaro de três cabeças", Xiwangmu acompanhado por um sapo, uma
lebre e uma raposa com nove caudas, o tigre branco, o pássaro vermelho,
duas criaturas como unicórnios, o dragão verde-azul, uma figura humana
alada, a lua com um sapo, Nüwa e nuvens auspiciosas.

###### # ·
*

235
Fig. 9: Pintura no teto da tumba Bu Qianqiu
(He 2001, 29) Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
Tem havido um debate entre os estudiosos quanto ao que as duas ANTIGA

criaturas estranhas entre o pássaro vermelho e o dragão verde-azul


representam. Sun Zuoyun caracteriza essas criaturas como xiaoyang
# É (coruja-ovelha), um híbrido que combina as características de ambos
os animais (Sun 1977b, 129). Sua identificação é baseada principalmente em
descrições literárias desse animal, e sobre o papel que
O xiaoyang desempenhava em representações da entrada para o reino
celestial. Outro estudioso chinês, He Xilin, afirma que a imagem representa
uma espécie de divindade do vento ou um animal divino, feilian #}
(##) (He 2002, 32-33). Embora essas interpretações sejam geralmente
confirmadas por fontes literárias", não devemos ignorar a composição
integral da pintura do teto, que além de entrada da alma para o céu, também
mostra claramente os quatro animais cosmológicos. Entre o sol e a lua, há
quatro animais, com o tigre branco, o pássaro vermelho e dragão verde-azul
claramente distinguíveis. A criatura estranha no teto, portanto, só pode se
referir ao animal do norte, a fim de completar o esquema dos quatro
animais. No entanto, neste túmulo o agrupamento dos Quatro Animais
segue exemplos anteriores, com o animal do norte na forma de um
unicórnio, que derivou originalmente a partir da imagem de um
veado." Estes exemplos confirmam que, antes de ser padronizado como
uma tartaruga preta, o animal do Norte foi muitas vezes representado em
uma forma um tanto vaga, ou como um unicórnio, cobra ou peixe.
Um dos primeiros exemplos do motivo “tartaruga e cobra” é
encontrado nos tijolos decorados no mausoléu do Imperador Wu
#Rifi (156-87 AEC) (Tseng 2011, 255), que data aproximadamente do
mesmo período que Sima Qian associou o palácio do norte com o guerreiro
negro. No entanto, a transformação de um cervo ou um corpo de peixe em
uma tartaruga provavelmente não se tornou uma característica padronizada
nos murais dos túmulo antes do período Xin Mang (9-23 AEC). Com
exceção da tumba acima mencionada, da Universidade Jiaotong em Xi'an,
todas as outras tumbas do período Han Ocidental seguem, mais ou menos, a
tradição anterior de um animal parecido com um veado, ou retratam apenas
236 dois dos quatro animais. Como observamos, o túmulo de Xi'an com 28 casas
Antigas lunares em dois círculos concêntricos no teto, mostra uma imagem
Leituras
VISOES DA esquemática de uma tartaruga nas duas casas do norte, sendo mais
CHINA
ANTIGA consistente com a descrição de Sima Qian do palácio do norte. Mas dois
outros túmulos do mesmo local e período ignoram o estilo contemporâneo
e mais elegante da composição, e retratam apenas dois dos animais - ou um
pássaro e dragão ou um dragão e tigre - evitando assim a questão intrigante
do animal do norte."

Na província de Henan, perto da cidade de Luoyang, e, portanto, a


alguma distância de Xi'an, a antiga tradição é mantida, e um animal veado
aparece. Já mencionamos o túmulo em Yongcheng, na província de Henan,
com o animal do norte representado com escamas, corpo do peixe, e o
túmulo Bu Qianqiu de Luoyang, onde ele aparece como um
unicórnio. Outro exemplo é encontrado em Shaogou #; túmulo n. 61,
em Luoyang." Este túmulo é composto por uma passagem, câmara principal
e duas salas laterais. A câmara principal é dividida por uma parede divisória,
com o dragão verde-azul, tigre branco e o pássaro vermelho retratado em
torno de uma criatura grande e incomum. No canto superior direito,
podemos ver uma criatura rastejante com pintas ao redor do corpo (Fig. 10).
#
*>

- - - - Li_ |-

Fig. 10: Pintura na parede divisória em Shaogou, túmulo n. 61, de Luoyang


(Detalhe da parede divisória)
(Huang 1996, 96)
237
Antigas
Leituras
Sun Zuoyun (1977a, 1986) interpretou esta cena como uma VISOES DA
CHINA
cerimônia de exorcismo e identificou a principal criatura ANTIGA

como Fangxiangshija JJ filº. Para Guo Moruo (1964, 4), a cena tem
um significado cosmológico, com o entrelaçamento de duas forças cósmicas
que são assistidos pelo divino, por animais simbólicos. Ele identificou as
duas figuras próximas aos dois objetos redondos como um homem e uma
mulher, que encarnam yin e yang, enquanto os objetos redondos poderiam
simbolizar o sol e a lua. He Xilin (2001, 21-22) desenvolveu essa
interpretação, e identificou as duas figuras como Fuxi e Nüwa, que detêm o
sol e a lua em suas mãos. As duas imagens com o sol e a lua refletem, assim,
o entrelaçamento de duas forças cósmicas, enquanto os outros animais
encarnam o espaço cósmico e o tempo. Enquanto He Xilin reconhece a
presença do dragão, do pássaro e do tigre, ele não faz nenhuma menção do
animal do norte, e identifica o animal misterioso no canto superior direito,
como o híbrido coruja-ovelha, xiaoyang (He 2001, 21). No entanto, dada a
presença dos outros três animais e o significado cosmológico de toda a cena,
o animal no canto superior direito só pode representar o animal norte na
forma de um unicórnio. Esta criatura se assemelha ao encontrado nas
proximidades do túmulo Bu Qianqiu, completando assim o esquema dos
quatro animais e as conotações de espaço/tempo da composição completa.
Com base nesses exemplos, podemos concluir que a representação
do animal do norte, nas tumbas do final dos Han Ocidentais, segue a
tradição anterior. Um dos primeiros exemplos de a imagem da tartaruga é
encontrado nos túmulos do período Xin Mang. Os murais da câmara dos
fundos da tumba em Jinguyuan ###], de Luoyang, são datados do
período Xin Mang, ocupando o centro, a linha longitudinal do teto e as
porções superiores das paredes do leste, oeste e norte. Estes murais retratam
os assistentes divinos e tutores de animais de todos os cinco palácios
celestiais", enquanto a tartaruga preta e uma cobra aparecem na parede
norte (Fig. 11). A tartaruga preta também aparece no túmulo Pinglu *k+,
em Shanxi LIVH, que data da primeira metade do século I", e entre as
estrelas no teto do túmulo Yintun acima mencionado. Em túmulos

238 posteriores do período Han Oriental, ela é encontrada frequentemente em


conjunto com os outros três animais", indicando que o guerreiro negro já
Antigas
Leituras havia se tornado um padrão representação do animal do norte durante este
VISOES DA
CHINA período.
ANTIGA

Fig. 11: Tartaruga preta na parte superior da parede norte no túmulo


Jinguyuan (Huang 1996, 120)

4. Papel dos animais de quatro em túmulos com murais

Os ricos conteúdos das cenas pintadas dentro dos túmulos só podem


ser interpretados corretamente dentro do contexto de seu arranjo
arquitetônico original, e tendo em conta todo o programa pictórico. Com
base nesta abordagem, o conteúdo das pinturas pode ser reduzido a dois
grupos básicos de cenas: as do céu e do mundo celestial, retratados no teto
ou nas partes superior das paredes, e cenas do mundo terrestre, que cobrem
as grandes superfícies das paredes. Os Quatro animais pertencem ao
primeiro grupo, geralmente aparecendo na parte superior das paredes ou no
teto, e de acordo com as suas indicações absolutas ou relativas. Eles muitas
vezes aparecem com estrelas, em deferência às suas origens astronômicas e a
associação com o Céu e suas 28 casas lunares. Essa conotação celestial
significava que eles encontravam-se frequentemente na companhia do sol
com um corvo, a lua com um sapo, com outras grandes estrelas, pessoas
aladas, divindades e várias criaturas celestiais estranhas, que forneciam os
componentes-padrão de cenas celestiais. Com base nessas características, os
Quatro animais foram assim incorporados às vezes no motivo da Entrada no
Céu, onde tinham um papel importante na condução da alma para o seu
239
paraíso celestial. Como descrevemos acima, as imagens de um homem e
uma mulher que montam uma serpente, e um pássaro de três cabeças Antigas
Leituras

caminhando para o reino imortal de Xiwangmu, com Fuxi e Nüwa no final VISOES DA
CHINA
da seqüência pictórica, é encontrada no teto da tumba Bu Qianqiu (Fig. ANTIGA

9). O casal falecido é precedido por um tigre, um pássaro, um animal do


norte na forma de um unicórnio e um dragão, que estão levando o casal para
a lua com Nüwa. Como Tseng indicou (2011, 293-294), embora
Xiwangmu apareça por trás das nuvens, parece que o seu domínio imortal
não é o destino final, pois a procissão continua a se mover em diante. A cena
pintada provavelmente tenta recriar toda a dinâmica cósmica, encarnando as
forças yin e yang nas imagens de Fuxi com o sol e Nüwa com a lua, e no qual
o paraíso Xiwangmu é apenas uma parte do todo. As pinturas do teto às
vezes misturam os dois reinos do Céu, ou seja, o próprio céu, com o sol, a
lua e outros corpos celestes observáveis, e o reino de um paraíso eterno, sem
qualquer distinção clara ou demarcação entre eles. As pinturas poderiam,
assim, concentrar-se em um aspecto específico qualquer, ou combiná-los em
uma representação dinâmica do cosmos, onde a alma iria encontrar sua
eterna morada ou lugar de descanso. Os quatro animais tinham, assim, o
papel de conduzir a alma para o cosmos perpétuo, dando-lhe uma
orientação precisa sobre a sua viagem para a eternidade. Um papel similar de
orientação também é descrito no poema Xishi fºi (“Dor da traição'),
no Chuci # (Elegias de Chuci) (Hong Xingzu ###H, ed. Chu ci
buzhu #####E, 228; Hawkes, 1985, 115):

Ai de mim! Eu envelheço e, declino cada dia mais;


Os anos passam rapidamente, e não vão voltar.
Eu montei no céu azul e subi a suas alturas;

Cruzando as miríades de picos abaixo, cada vez mais


longe e longe eu voei.

Eu olhei pra baixo, e vi os meandros de todos os rios,

E veio, onde os quatro mares me encharcam com sua


espuma.

Subi até a Estrela Polar e descansei ali algum tempo,


Sugando o vapor úmido para preencher meu vazio.
240
Eu incitei o pássaro escarlate a voar diante de mim;
Antigas Eu andei na Grande carruagem de marfim.
Leituras
VISOES DA
O Dragão Verde retorcido desenhou seus rastros à
CHINA
ANTIGA esquerda;
O Tigre Branco corria como um corcel a minha
direita;

Devido aos Quatro animais originarem-se da observação dos


fenômenos celestes, o seu papel como mensageiros entre o Céu e a Terra,
assim como de escoltas para os falecidos no Céu em seu caminho rumo à
eternidade, aparecem como um desenvolvimento natural. Como emblemas
dos céus ou do firmamento, e como escolta da alma que partiu, eles também
tinham um papel protetor, com a função de exorcizar os maus espíritos e
ajudar a alma a chegar ao seu destino. Ao mesmo tempo, sua aparência de
animais ferozes pretendia assustar qualquer intruso com a intenção de
prejudicar o falecido. Por este motivo, eles foram por vezes representados
por cima da porta, ou na porta atual das sepulturas com pedras pictóricas."
Os Quatro animais aparecem, assim, em três contextos diferentes e
com papéis multifuncionais: no seu papel de uma das quatro direções, como
símbolos das estrelas e do próprio Céu, como escoltas da alma que partiu, e,
finalmente, como protetores da tumba e de seus ocupantes. No entanto,
como a sobreposição constante de diversas noções, sem demarcações
distintas ou relações claramente definidas, é uma característica comum na
arte funerária chinesa, seus papéis eram intimamente relacionados e
determinados pelo arranjo real do túmulo, a fim de criar um espaço
cosmológico em que a alma poderia encontrar o seu lugar de descanso
eterno. Os murais e os quatro animais devem, portanto,
ser compreendidos nos termos da cosmologia yin yang wuxing, que aparece
como o principal segmento na arte funerária Han.
Uma vez que o quadro do cosmos tinha sido reforçado pelo teto
abobadado, que incorporava explicitamente a noção de gai tian #X
("cúpula do céu”), e, portanto, de um céu redondo e de uma terra
quadrada, tianyuan difang KINHEUI, o próximo passo foi o de apresentar, e 241
de alguma forma capturar ou resumir, a essência de todos os fenômenos
Antigas
naturais. Isso foi feito através da representação das estrelas no teto, do sol e Leituras
VISOES DA
da lua, Fuxi e Nuwa, Xiwangmu, e Dongwanggong, figuras que encarnam as CHINA
ANTIGA
duas forças cósmicas, e sua interação que constantemente tece a urdidura e a
trama do cosmos."Tendo estabelecido o equilíbrio harmonioso das forças
cósmicas, o próximo passo foi incluir as quatro direções e as quatro estações,
a fim de fornecer as forças cósmicas uma orientação mais específica no
espaço e no tempo. Isso, na verdade, foi o papel dos quatro
animais. Finalmente, com os representantes individuais dos cinco palácios
celestiais, que encarnavam o conceito dos cinco xings, todo o cosmos foi
recriado, e o túmulo fornecia uma imagem completa do universo externo.
Um exemplo desta forma de interpretação aparece no projeto
pictórico da câmara traseira do túmulo Jinguyuan, em Luoyang. As paredes
superiores são pintadas com os assistentes divinos e os animais guardiões de
todos os cinco palácios celestiais (Fig. 11) (Luoyang bowuguan 1985; He
2001, 50). No centro do teto da câmara, encontramos o palácio central com
os seus próprios símbolos e divindades que regem as quatro direções. Esta
posição central é ainda reforçada pela sua posição sobre o teto, com as
outras direções descritas abaixo, nas partes superiores das paredes. Além do
palácio central e das imagens a ele relacionadas, o teto também mostra o sol
e corvo (sul), e a lua e o sapo (norte). Como He aponta (2001, 55-56), todo
O sistema pictórico reflete a teoria yin yang wuxing. As forças
cósmicas yin e yang são indicados pelo sol e pela lua, pássaro e sapo, que são
corretamente posicionados nos lados sul e norte da tumba, enquanto que a
/

circulação das cinco fases é representada pelos cinco assistentes dos cinco
palácios (Hou Tu JH E, Gou Mang f]*, Zhu Rong #1, Ru Shou
}}, Xuan Ming 2: #), e os cinco animais divinos (dragão amarelo, dragão
verde-azul, pássaro vermelho, tigre branco e guerreiro negro),
[representados] entre os quatro animais, também reforçam as conotações
espaciais e temporais. Esta circulação temporal é ainda mais evidente na
pintura do teto de um túmulo descoberto pela Universidade Jiaotong, em
Xi'an. Aqui, os segmentos zoomórficos e antropomórficos estão
representados dentro de dois círculos concêntricos, cujo centro coincide
com o centro do teto redondo (fig. 3). Nesta configuração, os Quatro
animais são especialmente proeminentes, e seu arranjo específico define a
orientação espacial. Como Wu Hung mostrou (2010, 154-155), seus
242
movimentos geram progressões lineares que, por meio de movimentos yin e
Antigas Xang no ciclo dinâmico das cinco fases, reforçam uma sensação de
Leituras
VISOES DA movimento contínuo, circular. Toda a composição pictórica reflete muito
CHINA
ANTIGA claramente a cosmologia desse período. O posicionamento do sol com o
pássaro no sul (yang), a lua com o sapo e lebre no norte (yin) e os animais
que representam as 28 casas (e, portanto, os palácios celestiais), distribuídos
entre os quatro pontos cardeais, refletem a integralidade da percepção do
componente espaço-tempo do universo e do entrelaçamento
de yin e yang. Os Quatro animais não simbolizam apenas o conceito
espacial, mas por meio da progressão temporal, também simbolizam as
quatro estações do ano e uma concepção cíclica do tempo. O movimento
temporal também é corroborado pela representação gráfica de dois círculos
concêntricos, os quais, de acordo com a teoria Gai tian, aludem a um céu
circular.

5. Conclusão

Os Quatro animais constituem um dos motivos mais comuns no


programa pictórico dos túmulos Han com murais. Ocupando posições
precisamente determinadas dentro de todo o projeto arquitetônico e de
composição pictórica, eles encarnam as quatro direções e as quatro estações,
que determinam a estrutura espacial e temporal da tumba. Eles asseguram,
assim, uma orientação correta para a alma do falecido, situando-a dentro de
um espaço cósmico, enquanto sua disposição correta garante um equilíbrio
cósmico e a interação harmoniosa das forças cósmicas no círculo das cinco
fases. Dadas estas características, eles também tinham, muitas vezes, a tarefa

de guiar a alma com segurança ao seu destino final, seja a terra imortal ou
outra morada dentro do cosmos eterno. Como esta viagem era repleta de
perigos, eles também funcionavam como protetores, que defendiam a alma
dos maus espíritos e traziam sorte. O seu papel multifuncional (como
símbolos das direções e estações, guias e protetores) cresceu, portanto, para
além de sua associação com grupos de estrelas específicas nos quatro
quadrantes do céu, e sua circulação ao redor céu.
O povo Han recriou a estrutura cósmica na forma de um teto 243
redondo sobre a forma quadrada da câmara, enquanto que com os códigos
simbólicos da teoria yin yang wuxing, eles representavam a dinâmica de todo Antigas
o universo. Dentro deste contexto ideal, a representação dos Quatro animais v#A
não só encarnava o tempo e espaço, mas também - como eles eram #A
particularmente adequados para o papel de orientar e proteger a alma do
falecido — situava-os em um contexto cósmico eterno.

Notas

1. Alguns exemplos bem conhecidos incluem o túmulo


Helingeer HIV+fá####na Mongólia Interior, com seis quartos, o
túmulo Wangdu Hák}{### com cinco salas principais ao longo do eixo
central, e o túmulo Anping Lujiazhuang #*##EEE#IHÉ com 10
quartOS.
2. Para a evolução da construção dos túmulos Han, ver Wang 1982, 175-231.
3. Além de túmulos com murais (mushi bihua X###H ou bihua

u #H}), os túmulos com pedras pictóricas (huaxiangshi mu H{{{1})


e tijolos (huaxiangzhuan mu Hif{{##) também foram descobertos,
enquanto decorações também aparecem na sarcófagos e outros objetos
funerários enterrados dentro da tumba.
4. Ver Huang 1996, He 2001, Huang 2008, Wu 2010, Tseng 2011, Wang
2012, Cheng 2012.
5. He Xilin (2001) lista 56 túmulos que haviam sido escavados até o final do
século 20. Huang Peixian (2008) acrescentou mais nove túmulos,
principalmente novas escavações desde 2000, enquanto Vampelj Suhadolnik
(2014) inclui um adicional de cinco túmulos.
6. Sanfu Huangtu é uma das fontes mais importantes para textuais
Chang'an F###. Ele teria sido compilado, originalmente, no terceiro século
EC, mas, mais recentemente, ele foi datado entre o sexto e oitavo séculos EC,

e, provavelmente, incorpora passagens compostas em diferentes períodos


(ver Hsing 2010, 190, nota 19; 211, nota 90). Embora fora do contexto
histórico visto neste artigo, o conceito dos Quatro Animais como
reguladores das quatro direções foi transmitido aos séculos posteriores,
como pode ser visto nas representações das Quatro animais em túmulos
mais recentes.
244 7. Ver também Cheng 2012, 175.
Antigas 8. Para as 28 casas lunares, consulte Sun 1997, 113-119; Feng 2001, 302
Leituras
VISOES DA 320; Tseng2011, 238-249.
CHINA
ANTIGA 9. Ver também Tseng 2011, 247.
10. Para mais detalhes, consulte Shaanxi sheng kaogu yanjiusuo 1991.
11. Ver Luoyang shi di er Wenwu gongzuodui 2005.
12. Para uma discussão aprofundada sobre a base astronômica do túmulo
Yintun, consulte Feng 2005.
13. Além da imagem do guerreiro negro, os murais também retratam um
dragão no lado oriental e um tigre branco correndo na parede oeste. Em
contraste com os outros animais, o pássaro vermelho não aparece como
uma imagem, mas está incorporada nas estrelas de quatro casas do Sul,
que configuram o pássaro.
14. Para um relatório sobre este cemitério, consulte Zhongguo kexueyuan
kaoguyanjiusuo 1959.
15. Para um relatório, consulte Hubei shengbowuguan 1989.
16. Para um relatório, consulte Luoyang Bowuguan 1977.
17. Acredita-se que, no geral, essas figuras eram das almas das pessoas
enterradas dentro do túmulo. Eles estão caminhando para a eternidade e o
reino imortal, o que é claramente simbolizado por Xiwangmu, que aparece
por trás das nuvens em ondas.
18. Para uma discussão detalhada sobre a imagem e sua comparação com as
fontes literárias, consulte Vampelj Suhadolnik 2009.
19. Para uma discussão detalhada, ver também Feng2001, 317 e Vampelj
Suhadolnik 2009.

20. Ver a tumba Ligong daxue n. 1 HELIX# (Xi'an shiwenwu baohu kaogu
suo 2006) e a tumba Cuizhuyuan #4TH (Xi'an shiwenwu baohu kaogu
suo, 2010). Além disso, a tumba Qujiangchi n. 1 HYLYE omite a
representação dos quatro animais por completo, no entanto, este túmulo
está seriamente danificado. Dado que nenhum objeto de sepultamento foi
encontrado, e o estilo da pintura difere de outros túmulos, a datação
permanece discutível (Xu, 1987).
21. Para um relatório, consulte Henan sheng wenhuaju Wenwu gongzuodui 245
1964. Antigas
22. Para mais detalhes, consulte Luoyang Bowuguan 1985 e He 2001, 50. v#A
23. Ver também Shanxi sheng wenwu guanli weiyuanhui 1959. CHINA
ANTIGA
24. Por exemplo, o túmulo Helingeer na Mongólia Interior (Nei menggu
Zizhiqu wenwu gongzuo dui, ed. 1978), tumba Haotan no.1 túmulo,
de Dingbian County, Shaanxi (KRWITE#####1}f}) (Shaanxi sheng kaogu
yanjiusuo 2004), tumba Minyue Baguaying n.1 (R$/\###1}f}) (Shi,
1993), e outros.

25. Por exemplo, o túmulo em Dangjiagou 3###J, em Mizhi XH, Shaanxi


(Li 1995, 25), ou o túmulo em Housijiagou {##### em Suide ####,
Shaanxi (Li 1995, 68). Para mais uma menção destes túmulos ver Tseng
2011, 261-263.

26. Para uma discussão sobre Fuxi e Nüwa e seu papel simbólico de yin e
yang ver Vampelj Suhadolnik 2011; ver também Feng 2001, 13-38; Tseng
2011, 277-297.
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Shangcunling Guoguo mudi Eff######L. Bejing, kexue chuban she.

250
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA
A REDESCOBERTA DA UNIDADE CÉU-HOMEM

Wang Keping

O Homem está caindo; sua natureza é ereta, e serve


como um termômetro diferencial, detectando a
presença ou a ausência do sentimento divino no
homem. (Ralph Waldo Emerson)

É principalmente devido à pressão eco-ambiental que as pessoas


tendem a se preocupar mais com a interação entre a natureza e a
humanidade. A história da inteligência chinesa testemunhou uma constante
sondagem nos encontros quiasmáticos entre o céu (tian) e humanos (ren),
favorável a uma concepção nuclear de unicidade céu-humano (tian ren heyi) 251
como o ethos geral da filosofia chinesa. A polissemia do conceito é estendida
Antigas
junto com a passagem do tempo de acordo com o contexto sócio-cultural. Leituras
VISOES DA
Na fase atual, a tendência para redescobrir a relevância da unidade céu CHINA
ANTIGA
humanidade é conduzida pela leitura de mensagens novas e mesmo
modernas, tal como em velhas concepções. Por conseguinte, torna-se uma
atividade aberta, convidando a uma segunda reflexão sobre essa
universalidade oculta para o bem comum.
Este trabalho pretende analisar os suportes essenciais e relevância da
unidade céu-humanidade traçando um retorno à sua linha histórica do
pensamento, com referência a reinterpretações atualizadas. Toda a
argumentação é destinada a cobrir estes três sub-temas da seguinte forma: o
significado tríplice, a orientação bidimensional e uma alternativa
pragmática.

O Significado Tríplice

A Cultura chinesa se originou a partir de uma tradição nômade


seguido por uma contraparte agrícola. Sendo este o caso, o céu era adorado
porque foi visto como sendo tanto uma força dominante como um meio do
qual se dependia em termos de produção de alimentos e sobrevivência
humana. De acordo com as antiguidades, o céu está acima, e a terra está
abaixo, tornando-se o universo ou a Natureza como um todo no qual todas
as coisas ou seres são gerados e conservados. Daí, essa interação tripartida
tem sido o foco de consideração no pensamento chinês desde a antiguidade
até o presente. O Confucionismo, por exemplo, está preocupada com San cai
como as "três substâncias básicas", que envolvem tian como o céu, di como
terra, e ren como humano; e o Taoísmo está preocupado com Sida, como as
"quatro grandes partes" que compõem tian, di, ren e Tao (dao).
É devido à herança xamânica ou mágica que tian é considerado como
personificação de um mandato divino e, portanto, concebido como o
Senhor do Céu. No entanto, o Senhor do Céu permanece e se comunica com
os seres humanos, as coisas, tribos ou sociedades através da força mágica. Ele
não está além do domínio empírico, nem é personificado em um poder
transcendental como o Deus cristão. É por isso que tian como o céu
e ren como humano interagem um com o outro tão intimamente que a
concepção de unidade entre os dois veio a formar-se no período pré-Qin.
252 Falando em geral, a própria concepção pode ser datada de Mêncio (c.
372-289 AEC) e Zhuangzi (c. 369-286 AEC), desenvolvida por Dong
Antigas
Leituras
VISOES DA
Zhongshu (179-104 AEC), e metafísicamente moralizada pelo Neo
CHINA Confucionismo na Dinastia Song, especialmente a partir dos séculos 11-13
ANTIGA
EC. Com o passar do tempo, a idéia de tian foi estendida em um conjunto
de conceitos como Tiandi (céu e terra), Tianming (o Mandato do Céu),
Tianyi (a vontade do Céu), Tiandao (o caminho do Céu), Xianxia (a terra
debaixo do Céu), entre muitos outros. Eu aprofundo meu olhar em três
deles que eu acho que são os mais importantes e relevantes para o interesse
geral da humanidade hoje em dia. Eles são tiandi como Natureza,
Xiandao como o Caminho Celestial e Tianxia como a terra sob o céu ou

mundo, consistindo, portanto, o significado tríplice na noção chinesa


de Tianren heyi como Unidade céu-humanidade.

Tiandi e seus aspectos naturalistas

A tradução literal de tiandi é o céu e a terra que compõem o universo


ou a natureza como um todo. O uso do termo é muito freqüente em muitos
clássicos chineses, e quase sempre definido em um contexto onde a natureza
e a humanidade estão interligados.
No Clássico taoísta Chuang-tzu (Zhuangzi), por exemplo, lemos o
seguinte: "O céu e a Terra vieram a existir juntos, e as inúmeras coisas
comigo são um". "O céu e a Terra têm grande beleza, mas permanecem em
silêncio... A miríade de coisas têm princípios perfeitos, mas não dizem nada
deles. O sábio é uma pessoa que está em busca da grande beleza e dos
princípios perfeitos." Céu e Terra (tiandi) são os produtores das inúmeras
coisas (wanwu). A miríade de coisas se abriga no Céu e na Terra. Todos eles
se reúnem para formar a totalidade da Natureza, que depois é sintetizada
com a humanidade na unidade. Por tal unidade, Chuang-tzu tenta equalizar
todas as coisas e justificar seu princípio de não fazer distinção. Ele acreditava
que a ordem cósmica ou harmonia não poderia ser atingida de outra
maneira que não essa. Em muitos casos, ele aconselhava aqueles que
tentavam seguir o Dao sobre a absoluta liberdade e a personalidade
independente para seguir o curso da natureza. Isto não é simplesmente
253
porque a natureza opera caracteristicamente em espontaneidade ou
naturalidade (zi ran er ran), mas porque a natureza também tem grande Antigas
Leituras
beleza e um silêncio virtuoso. Sob tais circunstâncias, a natureza não é só o VISOES DA
CHINA
lugar para se viver e agir, mas também um objeto de apreciação ANTIGA

estética. Assim, a personalidade idealizada do sábio no taoísmo não é apenas


parte da natureza, mas também, descobridora da beleza natural. Como é
discernido em A excursão feliz e em outros capítulos, Chuang-tzu dava
muito crédito ao valor estético de beleza natural, pois ela nutriria a liberdade
espiritual. Ele estava, de fato, pronto para abraçar o natural, mas rejeitava o
artificial. Assim, em muitas ocasiões, ele dava um alegre charme ao natural,
enquanto via o artificial como uma malévola distorção, como por exemplo,
o touro domesticado pelo homem para lavrar a terra. Tudo isso leva o seu
filosofar a um naturalismo estético.

Quando se trata de Dong Zhongshu em seu Rico Orvalho nas


Primaveras e Outonos (Chun Qiu fan lu), a beleza natural é dita para
encarnar a harmonia do Céu e da Terra, e qualquer pessoa que tenha uma
mente pacífica e conduta correta é capaz de nutrir seu corpo por meio dessa
beleza. Em um tom bastante carinhoso, Dong assume que a natureza é o
"avô do homem", tornando o homem como homem, uma vez que ela possui
a virtude de bondade ou benevolência (ren). Conclui-se que Natureza e
homem compartilham uma forte semelhança. Por exemplo, a natureza tem
o sol e a lua, o homem tem o olho esquerdo e direito; A natureza tem quatro
estações, e o homem tem quatro membros; A natureza tem quatro tipos de
poder emocional, como a alegria revelada na primavera, no verão a
felicidade, a raiva no Outono, a tristeza no inverno, e assim faz o

homem. Natureza e homem são Um, portanto, num sentido


classificatório. Assim, surge a ordem harmoniosa, quando o homem se
identifica com a natureza. Surge uma desordem terrível quando o homem se
separa da natureza. A comparação acima é ostensivamente rebuscada e
logicamente ridícula. Mas tem como objetivo lembrar a humanidade de sua
posição dependente, e sua conexão inata com a Natureza. A ênfase na forte
semelhança entre a Natureza e o homem não tem sentido, pois que serve ao
menos para deixar o homem atender a Natureza tanto quanto ele atende a si
mesmo. Isso é esperançosamente propício para um necessário respeito e
cuidado emocional para com a Natureza.
Historicamente, Dong é o primeiro a cunhar o conceito de unidade
254 céu-humanidade, que é visto como um marco a respeito das relações entre a
natureza e a humanidade no pensamento chinês. Um pouco como Chuang
Antigas
Leituras
VISOES DA
tzu, Dong reconheceu a beleza natural realçada pelo princípio da harmonia
CHINA adequada. Mas ele encontra esta beleza benéfica de numerosas maneiras. Ela
ANTIGA
não é apenas esteticamente satisfatória, mas fisicamente gratificante, e
moralmente regenerante. Em outras palavras, ela satisfaz as necessidades
estéticas, alimenta o corpo, e facilita o devir do homem como homem por
seus ricos recursos e funções variadas. No entanto, a preocupação de Dong
com isso representa um naturalismo místico. Sua abordagem para a unidade
baseia-se essencialmente na escola de Yin e Yang, sua personificação do Céu
exemplifica um tipo de mistificação em vez de adivinhação, e da mesma
forma, a sua contemplação da beleza natural revela algum êxtase místico.
Mêncio é um dos primeiros pensadores chineses que promovem a
noção de unicidade céu-homem. Ele percebeu a noção acima,
principalmente na visão do confucionismo. Ele, portanto, procurou manter
um equilíbrio expondo a interação recíproca entre os dois lados. Do ponto
de vista cognitivo, Mêncio afirmava que "Aquele que esgotou xin como sua
constituição mental conhece xing como sua própria natureza. Conhecendo
sua própria natureza, ele sabe tian como o céu. Preservar a sua constituição
/

mental, e nutrir sua própria natureza, esse é o caminho para servir o


Céu". Este argumento mostra como homem e céu interagem uns com os
outros. Por parte do homem em particular, exige um sentido de missão e de
mais iniciativa não só para desenvolver seu poder cognitivo e cultivar o
caráter da pessoa, mas também, para fazer unificar-se com o céu. Como é
detectado neste contexto, Céu (tian) implica abstratamente um destino
inato (Tianming), e substancialmente na miríade das coisas (wanwu). O que
se entende por "servir ao Céu" está relacionado com o cumprimento de um
destino inato e observar a miríade das coisas. Então, a partir de um ponto de
vista pragmático, Mêncio propõe o ideal de "amar as pessoas e valorizar as
coisas" (ren min er ai wu). "Amar as pessoas" (Ren Min) é o resultado de
estender carinho de seus pais para os outros em geral. "Valorizar as coisas"
(ai Wu) significa o cuidado de tomar todas as coisas ou seres de acordo com
a lei da reciprocidade. Por exemplo: "Se as estações de cultivo não forem
interferidas, o grão será mais do que pode ser comido. Se redes estreitas não
255
forem autorizadas a entrar nos tanques e lagoas, os peixes e as tartarugas
serão mais do que podemos consumir. Se os machados e serras entrarem nas Antigas
Leituras

colinas e florestas apenas no momento adequado, a madeira e madeira serão VISOES DA


CHINA
mais do que podemos usar". Consequentemente, as coisas ficarão ANTIGA

protegidas e multiplicar-se-ão; ao mesmo tempo, as pessoas estarão, por sua


vez, prontas para desfrutar de meios suficientes e viver uma vida
razoavelmente boa. Caso contrário, isso traria um resultado negativo, com o
abuso dos recursos naturais e a privação da capacidade geradora da
Natureza. Isso é muitas vezes metaforicamente descrito, em chinês, como

um agricultor ganancioso, que mata a galinha poedeira de seus ovos.


Entre os três pensadores supramencionados, a Natureza é percebida
como boa e bela a priori. Distinguida da preocupação de Zhuangzi com o
naturalismo estético e da preocupação de Dong Zhongshu com o
naturalismo místico, Mêncio parece ser a favor de um naturalismo
pragmático. Relativamente, o naturalismo estético tende a exagerar na beleza
perfeita da natureza, ignorando o papel ativo da humanidade; o naturalismo
místico tende a reforçar a semelhança céu-homem, a fim de projetar a
afeição humana na Natureza; e o naturalismo pragmático tende a sublinhar
a independência mútua e interação recíproca entre a natureza e a
humanidade, de modo a garantir um desenvolvimento equilibrado em prol
da existência humana como seu último telos.
Os anos 90 testemunharam o renascimento da lógica da unicidade
céu-humano. Ela ocorreu no contexto de pressão eco-ambiental na China e
em todo o mundo. Muitos pensadores reexaminaram essa lógica, a fim de
construir um conhecimento de alto nível sobre das relações problemáticas
entre o ser humano e a Natureza. Eles consideram a natureza como um todo

orgânico do esquema cósmico, e propõe uma nova operação da unidade


céu-humano para a proteção eco-ambiental em termos de "desenvolvimento
sustentável". Em sua mente, o todo orgânico deve ser cuidado, porque
nenhuma parte dele é uma ilha separada, e todos são responsáveis por sua
proteção. Quanto ao objetivo geral de desenvolvimento sustentável, não é
baseado apenas na economia, mas baseada em moralidade, porque ele
também é destinado ao bem-estar das gerações posteriores de raça humana
em sua totalidade.

Tiandao e suas expectativas moralistas


256
A concepção chinesa de Tiandao significa que o Caminho Celestial
Antigas
Leituras
VISOES DA
concretiza-se através de sua contraparte Rendao, o Caminho Humano. O
CHINA primeiro apresenta um quadro maior de referência para o último, como
ANTIGA
uma direção para o desenvolvimento moral. Esta idéia pode ser rastreada
até o Livro das Mutações (Yi Jing ou I Ching) na seguinte declaração: "O
grande homem é alguém cuja virtude é constante com o Céu e a Terra, o seu
brilho como o sol e a lua, o seu procedimento ordenado como as quatro
estações... Quando ele precede o Céu, o Céu não vai agir em oposição a ele; e
quando ele segue o céu, ele obedece ao tempo de seu movimento". O que é
enfatizado aqui parece ser a unidade interativa entre o Céu e a
Humanidade. Na realidade, a mensagem chave está escondida na virtude
humana e na coerência com o Céu e a Terra. Como se percebe no
comentário sobre os dois primeiros hexagramas de Qian (símbolo do Céu)
e Kun (símbolo da Terra), a virtude humana é preparada para assimilar a
contrapartida do Céu e da Terra. Diz-se no Grande simbolismo, "A ação do
Céu é forte e dinâmica. Da mesma forma, o homem nobre nunca deixa de

fortalecer a si mesmo".""A disposição da Terra tem poder de sustentação. O


homem nobre, de acordo com esta, suporta todos os seres com sua generosa
virtude"." A observável ação dinâmica do Céu é demonstrada através do
ciclo incessante das quatro estações, e o poder de sustentação da Terra
através da capacidade de carregar as montanhas, águas e todos os outros
seres. Tais atos sugerem tiandi Zhide como respectivas virtudes do Céu e da
Terra. Estas virtudes então se juntam para formar tiandi Zhidao como o
Caminho do Céu e da Terra, que é reduzido em Tiandao como o Caminho
Celestial. O homem nobre, como uma personalidade idealizada, torna-se o
que ele está aprendendo com o Caminho Celestial. Ele se esforça para
desenvolver-se persistentemente como o céu, e da mesma forma como a
Terra, ele tenta alcançar a generosa virtude para ajudar a todos os outros
seres a crescerem adequadamente. Suas ações trabalham para
estabelecer Rendao como o Caminho Humano para realização moral.
Esta linha de pensamento foi estendida ao longo da história das
idéias chinesas. Mêncio, por exemplo, a empurraria ainda mais como uma
exigência moral na formação de caráter. "Onde quer que o homem nobre
257
passe", como ele diz, "a transformação de outros segue; onde quer que ele
habite, sua influência instrutiva é muito sutil e grande demais para ser Antigas
Leituras

medida; sua realização virtuosa flui acima e abaixo, como o de Céu e da VISOES DA
CHINA
Terra"." O Caminho Humano está incorporado em tudo que o homem ANTIGA

nobre faz, e o Caminho Celestial é representado pelo que é "do Céu e da


Terra". O primeiro, supostamente, é para atingir o nível correspondente do
último. É neste ponto que a união céu-humano é feita, e assim é a
personalidade idealizada do homem nobre. A idéia semelhante também é

encontrada em A Doutrina do Meio (Zhong Yong). O homem nobre é

assumido como sendo uma pessoa com a sinceridade mais completa que
existe debaixo do céu. Quando ele alcança o pleno desenvolvimento de sua
própria natureza, ele pode fazer o mesmo com a natureza dos outros
homens. Quando ele alcança o seu pleno desenvolvimento com a natureza
dos outros homens, ele pode desenvolver por completo a natureza dos
animais e coisas. Quando ele pode fazer este trabalho, ele pode ajudar a
transformar e nutrir os poderes do Céu e da Terra. Quando ele pode ajudar
desta maneira, ele pode com o Céu e a Terra formar uma trindade
[ternion]." O processo demonstra uma seqüência hipotética sobre como o
Caminho Humano se mistura com o Caminho Celestial. Ele começa com a
virtude da sinceridade, que é capaz de transformar a si mesmo e aos outros
para melhor; ele passa por uma série de etapas, em virtude da aplicação do
altruísmo para outros homens, animais e coisas, etc. Finalmente chega ao
estado mais elevado possível de formar um termion. O ternion neste
contexto envolve a união entre os três componentes, incluindo Céu, Terra e
Humanidade. Na verdade, indica mais uma vez a união céu-humano, e um

sentido de missão por parte do humano como humano. Para cumprir esta
unidade e missão, ele chama para uma transcendência gradual e o auto
desenvolvimento de baixo para cima.
O Confucionismo presta mais atenção à interação recíproca entre
o Caminho Celestial e a Caminho Humano. Esta tradição foi levada avante
por confucionistas do passado para o presente. Entre os neo-confucionistas
na Dinastia Song, há um acordo geral sobre anular a distinção entre o
Caminho Celestial e a Caminho Humano. Isto quer dizer, que eles tendem a
identificar a primeira com a segunda e verificar a unidade entre os dois. Por
exemplo, Zhang Zai (1020-1077 EC), argumenta que o Caminho Celestial e
o Caminho Humano parecem ser diferentes em tamanho, mas permanecem
258 os mesmos na sua essência, pois é através do humano que se pode conhecer
e experimentar o céu." Cheng Hao (1032-1085 EC), simplesmente se
Antigas
Leituras
VISOES DA
recusou a distinguir um do outro. Por que ele achava que o céu e a
CHINA
humanidade não eram originalmente dois, mas um, seria, portanto,
ANTIGA
desnecessário ponderar sobre a sua síntese de todo." Cheng Yi (1033-1107
EC) foi ainda mais longe para definir a relação em termos tão concisos como
se segue: O Caminho (dao) é livre de qualquer distinção entre o Céu e a
humanidade. No entanto, ele é chamado de Caminho Celestial quando é
com o Céu, e Caminho da Terra quando é com a Terra, e o Caminho
Humano quando é com humano. O caminho é um só. Ele é compartilhado
pelo Céu, a Terra e a humanidade por completo."
Nas últimas décadas, confucionistas modernos tentaram reviver o

Caminho-pensamento do Neo-Confucionismo em prol da reconstrução


moral. Mou Zongsan (1909-1995), por exemplo, fez esforços enormes para
reinterpretar a expectativa moral da unidade céu-humano. Ele coloca muita
ênfase na integração da virtude do Céu com o seu homólogo humano. Em
sua mente, a vida individual deve ser completamente conciliada com a vida
cósmica. Assim, ele afirma que a realização desta conciliação leva à
realização não apenas de ser moral, mas também para dentro da
sabedoria. Para cumprir este telos, deve-se seguir o Caminho Celestial, e o
modelo de sua própria natureza acima dele. Como isso é possível, então? A
ilustração de Mou dá origem a um círculo de desenvolvimento. O círculo é
composto de quatro componentes. Lá embaixo é o devir da vida individual
cheio de possibilidades. Bem acima é o trabalho do Caminho Celestial que é
tanto religiosamente "transcendente" (Chaoyue) como moralmente
"imanente" (neizai). No lado direito está o processo das práxis morais
relativas às virtudes do ser humano de coração (ren) e verdade (dao). No
lado esquerdo encontra-se o mandato do Céu, em constante
movimento. Calcula-se que o processo de práxis moral e o movimento do
mandato viabilizam a interação transformadora entre a vida individual e o
Caminho Celestial. Neste momento, a vontade de vida individual sobe para
combinar-se com o Caminho Celestial como resultado da práxis das virtudes
do ser humano do coração e da verdade. Ele alimentou uma mente moral e
transformou-se em uma "vida real" (zhenshi de Shengming), "sujeito real"
259
(zhenshi de zhuti) ou "verdadeiro eu" (zhen wo). Enquanto isso, o Caminho
Celestial transformou-se em uma "substância metafísica" (xingershang de Antigas
Leituras

Shiti) e penetrou na natureza humana, quebrando assim o estranhamento e VISOES DA


CHINA
causando a conciliação entre a vida individual e o Caminho Celestial." Em ANTIGA

linguagem simples, a vida individual da humanidade abaixo subirá para


atender o Caminho Celestial através da práxis moral, ao passo que
o Caminho Celestial descerá para atender a vida individual do ser humano
através do movimento constante. Eles criam a conciliação ou a unidade céu
humano em que o Caminho Celestial vai se transformar em uma "realidade
metafísica", enquanto a vida individual se transformará em um ser moral ou
"verdadeiro eu". A chave para este resultado idealizado encontra-se na práxis
sincera e persistente de virtudes como a do bondade e da verdade. Caso
contrário, não há nenhuma chance para o Caminho Celestial se tornar uma
"realidade metafísica", mas manter-se-á como uma visão abstrata pairando
no ar, e da mesma forma, a vida individual não será capaz de tornar-se uma
pessoa moral, mas se manterá como um ser físico para a terra.
Em última análise, os confucionistas geralmente usam termos como
o Caminho Celestial (Tiandao) e o Caminho Humano (Rendao) no
discurso. Mas muitas vezes eles identificam uns com os outros, ilustrando o

Caminho Celestial a luz do Caminho Humano para um propósito


moral. Por uma questão de fato, essa linha de pensamento é derivado de
uma estratégia de aprendizagem recomendado por Confúcio. Ao falar sobre
si mesmo com Zi Gong, Confúcio confessa: "Eu não me queixo contra o
Céu, nem resmungo contra o homem. Meu aprendizado começa com o que
está lá embaixo e passa para o que está lá em cima. Se eu entender de tudo,
talvez seja pelo céu." Esta confissão reflete atitude de aprendizagem, a
estratégia e os plenos objetivos de Confúcio. Ele se concentra no que ele está
aprendendo e no que ele está fazendo progresso, desconsiderando o que os
outros possam dizer sobre ele. A mensagem mais importante da observação
é xiaxue er Shangda er, digamos, "Meu aprendizado começa com o que está lá
embaixo e passa para o que está lá em cima." Aqui, "o que está embaixo" são
os assuntos humanos ou compromissos sociais, e "o que está acima" significa
as virtudes da bondade e retidão (Renyi). De acordo com Confúcio, a
aprendizagem é tanto um processo cognitivo quanto prático. Ela começa
com o conhecimento dos assuntos humanos e ações sociais, mas sua
penetração deve subir alto; assim, ela continua a facilitar a realização e
260 prática do "que está acima" nos termos das virtudes acima
mencionadas. Eventualmente, o processo de aprendizagem surge com uma
Antigas
Leituras
VISOES DA
transformação do que é aprendido nas virtudes esperadas (zhuan zhi wei
CHINA de). Tais virtudes, como a bondade e a retidão são todas simbolizadas no
ANTIGA
Caminho Celestial, e exercidas na prática pelos seres humanos. A síntese a
ser feita a este respeito exemplifica a mais alta forma de realização das quais
o humano como humano é capaz em um sentido, e no outro, ela aconselha
as pessoas a serem realistas na aprendizagem pragmática, mas idealistas no
cultivo moral. Isso, é claro, exige uma busca por transcendência moral como
uma parte fundamental da formação do caráter.

Tianxia e seu ideal Cosmopolita

Tanto o taoísmo como o confucionismo mostraram preocupação


com Tianxia como sendo um conceito político, e não geográfico. Sua
tradução literal poderia ser "a terra sob o céu ou o espaço sideral". Na
verdade, em um sentido estrito, refere-se que a China, uma vez, já foi
dividida em muitos estados; e em sentido amplo, significa o mundo na sua
totalidade. A concepção de Tianxia entre os literatos chineses é mais do que
necessária, pois ela está profundamente enraizada na mentalidade como a
meta cosmopolita ideal e definitiva de uma missão de vida. A missão em si é
composta por quatro segmentos, abreviados como xiu qi zhi ping, o que
significa quatro tarefas importantes, como o cultivo da personalidade, regrar
a família, bem governar o Estado, e manter o mundo em paz. A idéia é
elaborada em um clássico confucionista de O Grande Aprendizado (Da Xue):

O Grande Estudo é o caminho que ensina como


alcançar a virtude, amar o povo e atingir a perfeição.
[...] Os antigos, para manifestar a virtude no reino,
começavam por arrumar o governo. Para arrumar o
governo, ordenavam suas famílias. Para ordenar suas
famílias, cuidavam das pessoas. Para cuidar das
pessoas, corrigiam antes seus corações (mentes).
Para corrigir seus corações, buscavam pensar de
261
modo esclarecido. E para pensarem de forma sincera
e esclarecida, buscavam ampliar ao máximo o seu Antigas
Leituras
conhecimento. A busca do conhecimento é a VISOES DA
CHINA
investigação das coisas. Quando as coisas foram ANTIGA

investigadas, o conhecimento tornou-se completo. O


conhecimento completo leva ao pensamento
esclarecido. O pensamento esclarecido corrige os
corações. Corações corrigidos tornam as pessoas
bem cuidadas. Bem cuidadas, as pessoas cultivam
suas famílias. Cultivadas as famílias, o governo fica
organizado. Quando o governo está organizado,
todo o reino está feliz e tranqüilo. Do Filho-do-Céu
(imperador) até o povo, o cultivo pessoal é a raiz de
tudo."

Como se observa neste quadro do Grande Aprendizado, existem oito


grandes passos de perto e de longe ou subindo de baixo para cima, em uma
seqüência lógica. O primeiro passo é a investigação de coisas (Gewu); o
segundo é a extensão do conhecimento (Zhizhi); o terceiro é a sinceridade
dos pensamentos (Chengyi); a quarta é a retificação da mente (Zhengxin); O
quinto é o cultivo da personalidade (Xiushen); o sexto é a regulação da
família (Qijia); o sétimo é o bom governo do Estado (Zhiguo); e o oitavo é
manter o mundo em paz (Ping Tianxia). Todas estas oito etapas formam um
processo progressivo, sustentado pela lei de causa e efeito. Entre eles, o
primeiro passo é que o processo de aprendizagem começa com um estímulo
cognitivo como a causa, e, em seguida, leva-se à segunda fase como
efeito. De maneira similar, o restante das outras etapas acaba antes de
alcançar o objetivo último. Isso significa que todas as outras sete etapas ou
tarefas servem como premissas para "manter o mundo em paz". A fim de
manter o mundo em paz, a mais determinante de todas as premissas é "o
cultivo da personalidade" (xiushen) como a raiz de tudo mais. Para essa
personalidade ser cultivada, não basta apenas o estudo e a capacidade
pessoal, mas a moral e retificação devem ser um Bem. Sem esse tipo de
personalidade, a família não pode ser regulada, o Estado não pode ser bem
governado, e, consequentemente, o mundo não pode ser posto em paz. Na
prática, todo o processo de grande aprendizado também demonstra o
262 esquema confucionista de sabedoria interna e realeza externa (neisheng
Waiwang Zhi dao). Comparativamente, as cinco primeiras etapas contribuir
Antigas
Leituras
VISOES DA
para a criação da sabedoria interna (neisheng) que encarna a personalidade
CHINA caracterizada como tendo a maior excelência da bondade humana e da
ANTIGA
justiça; e os três últimos passos contribuem para o desenvolvimento de
realeza externa (waiwang) que é verificada por meio de um tratamento
adequado da família, do Estado e de todos os assuntos do mundo.
Supõe-se que podemos ler o texto antigo e entender a situação atual
melhor. Isso só é possível por meio de estender as implicações do texto
tendo em vista o status quo. Sobre o que é discutido acima, o mais atraente
de todos não é o processo de aprendizagem em si, mas o ideal convencional
de Ping Tianxia como "manter o mundo em paz". Olhando para o extenso
significado de Tianxia como o mundo, estamos inclinados a compará-la
com a difundida e supervalorizada noção de Estado na política
moderna. Geograficamente e ideologicamente, a noção de Estado é, via-de
regra e em grande parte, confinada a fronteira ou território nacional. Se por
acaso ela não produziu o nacionalismo radical, ou fez menos danos a outras
nações por causa da identidade nacional, ela seria utilizada para justificar, ao
menos, uma espécie de patriotismo egoísta. É geralmente em nome dos
interesses do Estado, da força de vontade nacional e do patriotismo cego que
alguma destruição irracional e até mesmo crimes de guerra são cometidos,
juntamente com o custo desnecessário de vidas humanas e de outros
recursos. Em contrapartida, o ideal de Tianxia é, por princípio, voltado para
o mundo e, portanto, apresenta um horizonte cosmopolita. Por ser idealista,
parece mais construtivo e recíproco por excelência no campo das relações
internacionais. Afinal de contas, pode ser utilizado para incentivar uma
visão de mundo e uma alta consciência de cosmopolitismo.
No que respeita aos três aspectos derivados da unidade céu-homem
explicados acima, a teoria da tiandi como Natureza tem a conotação de um
esquema cósmico da práxis apropriada para a humanidade agir de acordo
com a lei da reciprocidade; a doutrina da Tiandao como o Caminho
Celestial implica um esquema de cultivo espiritual para a humanidade
buscar seu auto-aperfeiçoamento; a concepção de Tianxia do mundo como
um todo indica um esquema político de consciência cosmopolita, para a
263
humanidade desenvolver uma visão mais ampla. Essa linha de pensamento
foi feita para funcionar como uma pedra fundamental na formação da Antigas
Leituras

mentalidade cultural entre os letrados em particular. Ela sempre fica aberta, VISOES DA
CHINA
a ser redescoberta e reinterpretada com o passar do tempo, no entanto. ANTIGA

A Orientação Bidimensional

Vale ressaltar que após a fundação em 1949 da Nova China, como foi
chamada, a lógica da unidade céu-humano foi atacada pela ideologia
oficial. O Maoísmo foi longe, a ponto de declarar uma espécie de "guerra
civil" contra o Céu ou a Natureza. Isso normalmente é evidenciado em um

dos decretos de Mao, como segue: Inspira-se um tremendo prazer na batalha


contra o Céu, e assim o faz a partir da luta de classes entre a humanidade
(yu tian dou, qi le wuqiong; yu ren dou, qi le wuqiong). Como conseqüência,
a separação do céu e dos homens foi politicamente imposta e reforçada
desenfreadamente. Esta situação perdurou por uma década ou mais, quando
a China pagou um alto preço durante o período de erupção do Grande Salto
Adiante no final dos anos 1950, e sofreu uma grande fome em todo o país,
resultado de "desastres naturais provocados pelo homem", no início dos
anos 1960. Não antes dos anos 1980 que os acadêmicos na China
reconsideraram retomar a unidade céu-humano. Mas desta vez a
metodologia manifesta uma orientação bidimensional, por meio da "razão
pragmática" (Shiyong Lixing), e neste sentido a observação de Li Zehou se
destaca por suas idéias filosóficas. A orientação bidimensional envolve ziram
renhua como a humanização da Natureza, e ren ziranhua como a
naturalização da humanidade.

Ziran Renhua como a humanização da natureza

De acordo com Li Zehou, a Natureza poderia ser classificada


conceitualmente em dois modos: o externo e o interno. A natureza externa é

o ambiente de vida da humanidade, enquanto a natureza interna são as


faculdades físicas da humanidade. Em 1999, ele faz um uso metafórico de

termos binários como "hardware" e "software" para ilustrar a humanização,


tanto da natureza externa e interna.

Em relação à humanização da natureza externa, a analogia de


264 "hardware" refere-se à recriação ou reforma do ambiente natural no qual a
humanidade vive. Reflete-se, por exemplo, nos reservatórios, canais, lagos
Antigas
Leituras
VISOES DA
artificiais, pecuária e agricultura, etc. feito pelo homem. Hoje em dia este
CHINA tipo de prática continua, por exemplo, no campo da transformação dos
ANTIGA
genes biológicos de plantas e vegetais, com a ajuda da tecnologia
moderna. Então, a analogia de "software" aponta para as mudanças cruciais
que ocorreram na inter-relação entre a natureza e a humanidade. Como
resultado do desenvolvimento do "hardware" acima mencionado, o medo e

o culto humanos para com os elementos naturais, coisas e fenômenos


gradualmente desapareceu no curso da civilização, e foi substituído por uma
afinidade estética e outras expectativas utilitárias. Daí a beleza da paisagem
natural foi descoberta e apreciada. É neste ponto que fundamenta Li Zehou
seu argumento em uma ontologia histórica (lishi bentilun). Como ele
destaca, é o desenvolvimento histórico que alterou as relações céu-humano e
também tornou possível a humanização da Natureza. Neste sentido,
"humanização" não é algo meramente conceitual ou subjetivo, mas
essencialmente antropo-ontológico. Diga-se, a relação objetiva entre a
natureza e a humanidade foi mudada historicamente, tornando assim a

natureza como parte da existência humana. Eventualmente, a Natureza foi


transformada de um objeto temerário em si para um objeto em si mesmo
acessível com a afinidade humana. Tudo isso é a base fundamental e objetiva
da humanização da Natureza na consciência subjetiva da
Humanidade." Como se lê em As Quatro Palestras sobre Estética (Meixue
Sijiang), Li Zehou utiliza uma visão ampla e estreita para formular a sua
observação, como segue:

A "humanização da natureza" em seu sentido amplo,


é um conceito filosófico. O céu, oceanos, desertos,

florestas selvagens e assim por diante não são


diretamente reformada pela humanidade, mas
percebida como o resultado da "humanização da
natureza". Para tal humanização, indica a medida
histórica da conquista humana da natureza, e do
estágio de desenvolvimento de toda a
265
sociedade. Com efeito, surge uma mudança
fundamental na inter-relação entre a humanidade e a Antigas
Leituras

natureza. Este abandona a pura concepção da VISOES DA


CHINA
natureza em seu sentido estreito, e se recusa a tomá ANTIGA

lo como um objeto reformado apenas através do


trabalho. Em seguida, a "humanização da natureza"
em sentido estrito é evidenciado nos objetos naturais
recriados pela humanidade, por exemplo, as flores
cultivadas e grama que parecem formosos, de
fato. No entanto, como o desenvolvimento social vai
mais à frente, os seres humanos tornam-se cada vez

mais interessados em contemplar essas paisagens,


como tempestades e desertos selvagens, que
permanecem intocadas pelas mãos humanas... Para
essas coisas já libertas de qualquer conteúdo
prejudicial ou hostil, suas formas sensuais
transformam-se, por serem mais atraentes para a
atenção humana. Durante a contemplação dessas
formas naturais, que parecem se revoltar contra a
humanidade na aparência, é que provavelmente
experimentaremos um prazer estético de um tipo
sublime."

A humanização da natureza é por princípio um processo que


caminha lado a lado com a progressão da civilização ou cultura humana. Ela
envolve a relação histórica entre práxis humana e a Natureza, e transforma,
direta ou indiretamente, as coisas naturais em objetos estéticos. A este
respeito, a humanização da natureza em seu sentido estrito é operada através
do trabalho humano, e a recriação tecnológica fornece a base (senão a base
direta) para a humanização da natureza em seu sentido amplo, isto é, é a
causa básica da mudança as relações Natureza e humanos. Em outras
palavras, "a humanização da natureza, em seu sentido amplo, poderia ter
lugar apenas quando a humanização da natureza em seu sentido estrito tem
se desenvolvido em uma determinada fase histórica"." Os primitivos, por
exemplo, dificilmente poderia apreciar essas cenas naturais como
montanhas, águas, flores e pássaros, simplesmente porque eles viviam sob o
266 temor de Natureza que não fora humanizada, quer no seu sentido amplo ou
restrito.
Antigas
Leituras
VISOES DA
No caso de a humanização da natureza interna, Li Zehou novamente
CHINA oferece uma análise analógica. Pela analogia de "hardware", ele explica a
ANTIGA
transformação das faculdades físicas e estruturas de DNA, etc. Trata-se de
um controle humano deliberado e recriação das faculdades naturais e suas
funções (ganguan de renhua). Como resultado, as cinco faculdades ou
sentidos, por exemplo, são humanizados ou aculturados, e nós seres
humanos, portanto, podemos desfrutar de um ouvido musical para a
música, um lado artístico para a pintura, um olhar literário para a poesia,
etc. Isto sugere que o instintivo e sentido utilitário das faculdades, ou as
faculdades, estão gradualmente diminuído, e por sua vez sendo modificados
para funções não utilitárias, incluindo a sensibilidade estética e gosto. A
analogia de software neste contexto refere-se principalmente à humanização
dos desejos e do eros (qingyu de renhua). O processo histórico da
aculturação diferencia os humanos dos animais, mesmo que eles
compartilham algo em comum. Especificamente falando, a longa história de
fabricar e usar ferramentas, juntamente com a organização do grupo social,
têm ajudado os organismos e funções psíquicas se tornarem diferentes da
dos animais. A diferença está principalmente na mistura de animalidade
com culturalidade. Isto leva à formação cultural-psicológico (wenhua xinli
jiegou), em que a mentalidade de animais e a realização cultural são
sedimentados (jidian), e por isso são a sociabilidade (racionalidade e
culturalidade) e a individualidade (sensibilidade e animalidade). Entre
muitos outros, um exemplo improvisado poderia ser a virtude do amor
humano se originar do puro sexo. Isto mostra o fato de que a humanização
do Natura interna fez o humano como humano a partir de uma perspectiva
moral.

Sobre este ponto, a ética humana ou razão prática é identificada


como a semente da "humanização da natureza interna", e conectada com o
que é o gosto humano ou a nova sensibilidade, do ponto de vista
estético." Isto porque "Ambos, a humanização da natureza externa e da
natureza interna, são os produtos históricos da sociedade humana como um
todo. Esteticamente, o anterior transforma o mundo objetivo em uma bela
267
realidade, e traz a causa essencial do belo, enquanto que o último ajuda na
experiência subjetiva mental do sentimento estético, e revela a causa Antigas
Leituras

essencial do sentimento estético. Todos eles são atingidos através de toda a VISOES DA
CHINA
história da práxis social"." Com outros argumentos similares, isso exprime o ANTIGA

aspecto principal da hipótese de Li, de uma sedimentação histórica (jidian


lun), que é desafiada e reexaminada por outros filósofos chineses e
estrangeiros em décadas recentes. As limitações de tamanho deste artigo só
nos permitem uma breve descrição, ao invés de uma análise crítica.

Ren Ziranhua como a naturalização da Humanidade

Se o termo Ziran Renhua como "humanização da natureza" foi


emprestado de Karl Marx, e ampliado a partir de um ponto de vista
histórico e antropo-ontológico, ren ziranhua como naturalização da
humanidade é principalmente inspirada no pensamento chinês do caminho
da unidade céu-humano. De acordo com Li Zehou, a naturalização da
humanidade serve como a contrapartida da humanização da Natureza, que
representam duas dimensões do processo histórico da cultura
humana. Acima de tudo, a naturalização da humanidade tem como objetivo
a realização humana ou a totalidade da natureza humana. Ele é pré
condicionado historicamente pela humanização da Natureza, e aponta para
o desenvolvimento individual, em particular.
Do mesmo modo, a naturalização da humanidade é concebida para
conter pelo menos dois aspectos. Um deles é composto por três tipos de
atividades, da seguinte forma: em primeiro lugar, estabelecer uma interação
co-existente e harmonizada entre a humanidade e a natureza, e perceber a
natureza como um abrigo para viver e descansar; em segundo lugar, retornar
à Natureza para a contemplação estética de suas belas paisagens, e ajudar as
coisas a crescerem adequadamente pelo cuidado da flora e da fauna; em
terceiro lugar, aprender a respirar naturalmente (por exemplo, através da
prática adequada de exercícios qigong ou yoga), a fim de conciliar o ritmo do
corpo humano e do coração com o da Natureza, e alcançar a unidade céu
humano."Todos eles estão associados com um certo tipo de sentimento ou
estado de espírito estético, em que o racional se funde com o emocional, o
sujeito identifica-se com o objeto, e a consciência social acompanha a
liberdade individual. Em uma palavra, em virtude de naturalização da
268 humanidade, se poderia voltar à Natureza para "habitar poeticamente" no
mundo, em que ele pode libertar-se do controle da racionalidade
Antigas
Leituras
VISOES DA
instrumental, da alienação pelo fetichismo material, e da escravidão pela
CHINA sistema de poder, conhecimento e linguagem, etc.
ANTIGA
O outro dos dois aspectos encontra-se em um problema
estético. Pode ser encontrada no gozo livre (Ziyou Xiangshou), que é
originado a partir da formação psicológica cultural da pessoa, que retorna à
natureza com um ser humanizado, e com uma mentalidade

socializada. Comparado com o trabalho das faculdades humanizadas e


emoções, a naturalização da humanidade permite ao homem habitar
poeticamente no mundo, e expõe-no a libertar o gozo em um sentido
estético e espiritual. É por isso que Li Zehou afirma a superioridade da
estética sobre o cognitivo e o ético. Para a estética, não é nem a
internalização da razão (o cognitivo), nem a condensação da razão (a ética),
mas a sedimentação de razão e sentido. Sendo este o caso, ele trabalha para
facilitar "a retificação de sete emoções humanas, incluindo alegria, raiva,
tristeza, medo, amor, ódio e desejo" (Qiqing Zheng) e "a alegria na unidade
céu-humano" (Tianren le). Em outras palavras, a estética do "livre exercício"
não é nem a ética, na qual a racionalidade domina a sensibilidade, nem o
cognitivo, em que a racionalidade molda a sensibilidade. É a criatividade
totalmente aberta e individual, em que a racionalidade e uma variedade de
fatores psíquicos (por exemplo, percepção, imaginação, desejo, emoção e
inconsciente) estão penetrando e se entrelaçando uns com os outros. Esta
criatividade é importante tanto para o cognitivo quanto para o ético, porque
serve para "iluminar a verdade com o belo" (Yimei Qizhen) e "melhorar o
bem através do belo" (Yimei Chusan)." Neste contexto, os verdadeiros guias
para a descoberta do conhecimento real e da sabedoria, e do Bom para o
cultivo da personalidade moral.
Metaforicamente, a humanização da Natureza e da naturalização da
humanidade parecem ser duas rodas de um simbólico movimento do carro
do desenvolvimento histórico da cultura humana. O indivíduo humano é

posto lá em cima do carro, em direção a um destino de auto-realização ou


complitude. Durante este processo, a humanidade, como uma espécie super
biológica, desperta não apenas a "humanização da Natureza externa" (Waizai
269
ziram de renhua), mas também a "humanização da natureza interna" (neizai
ziram de renhua), que, em seguida, abre-se tanto para a esfera cognitiva Antigas
Leituras

(intuição livre) quanto para o reino ético (livre arbítrio). Tudo isso é VISOES DA
CHINA
estendido e misturado com a "naturalização da humanidade" (ren ziranhua), ANTIGA

subjacente, assim, ao domínio estético (livre fruição). Como resultado, surge


a formação psicológica e cultural, com a ajuda de sedimentação histórica, e é
a partir dessa perspectiva da ontologia histórica e da psicologia filosófica,
que as novas implicações da unidade céu-humano são propostas"."
Eu, pessoalmente, acho que mais implicações podem ser propostas
de acordo com o que é necessário. Como sabemos, a expressão humana de
idéias e sentimentos na arte pode ser classificada em três gêneros básicos no
curso da história. No início não havia imagens e palavras. As pessoas,
portanto, expressavam-se através de sons e gestos. Surgiu então a expressão
de áudio, no gênero de música de dança. Mais tarde, as pessoas começaram a
aprender a desenhar imagens e símbolos, a fim de manter registros ou se
expressarem. Surgiu então a expressão visual, no gênero do desenho ou
pintura em particular. Eventualmente, palavras foram inventadas e entraram
em uso. Surgiu então a expressão verbal no gênero de literatura e poesia, por
exemplo. Nos últimos séculos, a humanidade tende a estar verbalmente
presa ou subjugada por qualquer tipo concebível de linguagem. A situação é
agravada na medida em que uma pessoa não fala palavras, mas as palavras
falam a pessoa. Este é, freqüentemente, o caso daqueles que são relutantes
em pensar por conta própria, mas estão prontas para papagaiar de volta o
que é dito por outros. Além disso, a situação, como tal, é propício para o
retrocesso das capacidades audiovisuais. Algumas pessoas atribuem isso à
sobre-humanização das faculdades e sentidos, como no caso dos moradores
das cidades modernas, que estão presos nos arranha-céus, e cujo contato
com a Natureza é um mero espiar da lua ou do sol no céu através das
janelas, por exemplo. Sob tais circunstâncias, a "naturalização da
humanidade" torna-se indispensável, na medida em que ela estará apta a
reavivar a sensibilidade humana em um sentido estético. Ou seja, a
sensibilidade audiovisual será reforçada tanto quanto alguém for exposto a
sons e cenas naturais, em seu retorno à Natureza. Tudo isto pode ser visto
como um efeito favorável da unidade céu-humano, em certa medida.

Uma alternativa pragmática


270
Como explicamos antes, o significado tríplice e a orientação
Antigas
Leituras
VISOES DA
bidimensional estão coligados com a lógica da unidade céu-humano. A
CHINA Hipótese de tudo isso é a mais elevada forma de realização que o ser
ANTIGA
humano, como humano, persegue. Ela é chamada tiandi jingjie. Sua
tradução literal poderia ser "reino do céu e da terra", e sua tradução livre
poderia ser "reino cósmico de ser", simbolizando o cultivo de uma
personalidade superior com visão universal e mente cosmopolita. Por
princípio, "o reino cósmico de ser" está preocupado principalmente com a
excelência da unicidade céu-humano. Assim, a personalidade cósmica é
capaz de servir não só a sociedade e a humanidade, mas também, ao
universo e todas as coisas. Ele está, portanto, disposto a fazer o que for
possível para manter todos os seres ou coisas em suas posições mais
adequadas. O que ele busca é, nos termos de Mêncio, o devir do "cidadão
celeste" (tianmin)." Essa cidadania é esperada para transcender os limites
convencionais de raça étnica, nacionalidade, território do Estado ou
fronteiras políticas, completamente.
Em resumo, tiandi jingjie como o reino cósmico do ser é baseado em
um senso de missão de "servir ao céu" (shi tian), fazendo o máximo para
ajudar todas as coisas a crescerem adequadamente no universo. Aqueles que
são a favor deste reino do ser, ver-se-ão não apenas como seres sociais, mas
também como seres universais, clamando um compromisso pessoal com a
sociedade e o universo ao mesmo tempo. Neste caso, eles desfrutarão de
uma profunda compreensão da natureza humana, e da inter-relação entre o
homem e o universo. E em um sentido espiritual, eles parecem ter mudado
um “i” no finito para o “i” de infinito, e, assim, viver em liberdade, em vez de
necessidade.

Como é percebido, o reino cósmico do ser soa tanto idealista como


abstrato. Mas ele pode tornar-se um pouco mais acessível quando
especificado em termos de renmin er aiwu, ou, amar as pessoas e valorizar as
coisas. Se for devidamente aplicado a este respeito, o que virá em favor de
ambos é a consciência cosmopolita e a proteção eco-ambiental para
determinado grau. Por esta razão, ele pode ser recomendado como uma
alternativa pragmática para enfrentar os problemas ecos-ambientais, de
271
acordo com a lei da reciprocidade entre a natureza e a humanidade.
Na minha percepção, a aplicabilidade desta alternativa é pré Antigas
Leituras

condicionada pela motivação do saber tianli como leis naturais, e VISOES DA


CHINA
desenvolver renxin como a mente humana. Aqui tianli também representa o ANTIGA

princípio universal enquanto, renxin é o amor altruísta. O conhecimento


do tianli ajuda a tomar ações racionais, ao fazer uso dos recursos naturais, e
O desenvolvimento de renxin orienta alguém a tratar as pessoas e coisas com
igual afinidade. Relativamente falando, o primeiro exige grande abertura de
espírito e perspicácia para os princípios de todas as coisas através de
investigação, enquanto o segundo requer bondade humana e a adesão à
virtude da sinceridade. Ambos envolvem um sentido de missão e uma

consciência da relação recíproca. Isto porque nós, os seres humanos, somos


parte da natureza. Somos suscetíveis ao impacto de outras espécies e coisas
do mundo, e em troca temos impacto sobre elas, pelo bem que fazemos em
geral.
Principalmente a mente é concebida a desempenhar um papel vital
na condução da virtude de amar as pessoas e valorizar as coisas, tanto para
empreitadas sócio-culturais ou eco-ambientais. Imaginem, se a mente se
limitasse apenas ao bem-estar humano adequado, ela seria muito estreita e
egoísta em consideração o bem-estar daqueles que não fossem homo
sapiens. Tal mentalidade estreita ou antropocêntrica está inclinada a
satisfazer as necessidades humanas por super-exploração das outras coisas
como os recursos naturais e marítimos. Em seguida, a eco-desenvolvimento
seria jogado para fora do equilíbrio, e o eco-ambiente seria colocado em
perigo. Um caso desse gênero, no Norte da China, é a relativa crise
ambiental, tanto para a desertificação das pastagens devido à criação
excessiva", quanto do aumento de tempestades de areia, devido à
desertificação em ampla expansão. Diante deste ciclo vicioso, prevemos um
avanço decisivo a ser feita no olhar para o cultivo da mente por si só.
Então, surge a pergunta sobre como cultivar a mente em toda a
extensão, como é esperado. Tanto quanto eu possa ver, trata-se de um
processo de que existem pelo menos três fases essenciais. Em primeiro lugar,
espera-se a fazer o que Zhang Zai aconselhou: "da qi xin, yi ti tianxia zhi
wu". Isto implica uma atitude básica. De acordo com o meu entendimento,
"da" significa "largo ou grande", em frente ao seu homólogo binário "xiao",
que significa "pequeno"; "xin" se refere a "ren xin" como a mente
272 humana. Aqui, "da qi xin" sugere que os seres humanos fazem o máximo
para "fazer a mente abrir". Hipoteticamente, a mente pode ser tão ampla que
Antigas
Leituras
VISOES DA
pode acomodar todo o universo (renxin zhida, keyi nangkuo yuzhou). Esta
CHINA relação mente-universo é naturalmente mais criativa e espiritual do que
ANTIGA
física ou espacial. Sua busca transcendente pode tornar a mente muito mais
ampla ou maior do que qualquer outra coisa. Então, porque ela faz isso? É
para permitir à raça humana a "experiência e compreender a real condição
de todas as coisas sob o céu ou em todo o universo" (yi ti tianxia zhi wu). "A
condição real", como tal, incorpora a vida e condição ambiental que afeta a
condição humana, direta ou indiretamente. "Experimentar e compreender a
condição real" não é possível a menos que tenhamos um relevante
conhecimento e empatia, pelo menos. Neste caso, o conhecimento vem de
investigar as conexões entre todas as coisas, e a empatia, de projetar
sentimentos para o ambiente. Com este estado de mente, os seres humanos
estarão prontos para transposição deles mesmos em "todas as coisas em todo
o universo" e, naturalmente, desenvolver uma consciência de valorização em
tudo. Vale ressaltar que a noção de Zhang Zai também implica algo
negativo. Ele convida as pessoas a ampliar a mente simplesmente porque
geralmente permanece pequenas, limitando-se somente ao domínio estreito
de ganhos e perdas pessoais. Tal mesquinhez é propícia tanto para o egoísmo
ou antropocentrismo; por exemplo, o privilégio de auto-afirmar que o
homem é a medida de todas as coisas. Por isso, o cultivo de mente aberta é

indispensável a este respeito.


Posteriormente, os esforços devem ser redobrados para exercer a
segunda estratégia. Isto é, "xu qi xin, yi shou tianxia zhi Shan". Por "xu xin qi”,
entendemos "esvaziar a mente", como tão seria traduzido literalmente. Seu

significado real é duplo: um é esvaziar a mente do ser auto-opinativo e


egoísta, e a outra é a de manter a mente aberta e modesta. Quando as
pessoas alcançam esta fase, elas estarão prontos para "receber e apreciar todo
o bem no mundo" (yi shou tianxia zhi Shan). O bom disso deriva não só de
seres humanos e de eventos sociais, mas também de outros seres e coisas

naturais. É preciso, portanto, aprender os méritos e as lições de outros, a fim


de fazer um bom trabalho para todos. Enquanto isso, ele precisa apreciar os
benefícios oferecidos por outros e, em seguida, fazer-lhes um favor em
273
troca. A idéia parece ser que uma mão lava a outra a partir de uma
perspectiva de reciprocidade. É senso comum, por exemplo, que ninguém Antigas
Leituras

pode sobreviver sem respirar o oxigênio em grande parte produzido pelas VISOES DA
CHINA
plantas.Por isso, é o mesmo que cuidar das plantas, como cuidar dos ANTIGA

próprios respiradores. Caso contrário, isso seria tão prejudicial quanto


levantar uma pedra e, em seguida, soltá-la sobre os seus próprios dedos.
Por último, mas não menos importante, é o valor prático de seguir a
terceira estratégia. Essa é a "jin qi xin, yi mou tianxia zhi Shi". Em "jin qi xin"
estão implícitas duas mensagens: uma é a de "completar a mente",
recuperando a mente original (benxin) ou a boa mente (liangxin), enquanto
a outra é a de "fazer o máximo através da mente" (jinxin), tomando ações
corretas. O Confucionismo acredita que a mente é originalmente boa, mas
poderia ser coberta pelos desejos humanos; sua bondade original pode ser
recuperada, se os desejos são reduzidos e eliminados. Isso pede um processo
de cultivo pela sinceridade moral. O que deve ser enfatizado neste ponto é
um olhar bilateral sobre o serviço da mente. O serviço, como tal, deve ser
bem-humorado e melhor implantado para "planejar e conduzir todos os
assuntos mundiais" (yi mou tianxia zhi shi). Para cumprir esta missão, é
necessário não apenas aproveitar ao máximo a mente, mas seguir uma
ordem lógica, tornando a mente aberta para experimentar e compreender
todas as coisas no universo, fazendo a mente vazia para receber e apreciar
todo o bem do mundo, e acima de tudo, fazendo a mente humana amar as

pessoas e valorizar todas as coisas.


Em Suma, tiandi jingjie, Como o reino Cósmico de ser, se caracteriza
em amar as pessoas e valorizar as coisas tendo em vista tianren heyi, a
unicidade cáu-humano. Como hipótese, isso pode ser criativamente
desenvolvido Como uma alternativa pragmática para realização humana e a
proteção eco-ambiental. Finalmente, na prática, ela se destina a melhorar a
qualidade de vida para a humanidade Como um todo, desde que nés os Seres
humanos tornemo-nos mais cosmopolitas e mais conscientes de tian Como o
Céu ou a Natureza, Como parte de nosso próprio ser, por assim dizer.

Notas

1. Cf. Chuang-tzu, “On the Equality of Things,” in A Taoist Classic: Chuang


tzu (trans. Fung Yu-lan, Beijing: Foreign Languages Press, 1989), 49.
2. Cf. Chuang-tzu, Zhi bei you killbif (intelligence traveling northward), in
274
Chen Guying (ed.), Zhuangzi jinzhu jinyi #f $#&# (The book of
Antigas Chuang-tzu newly annotated and paraphrased, Beijing: Zhonghua Shuju,
Leituras
VISOES DA 1983), p. 563.
C H IN A
ANTIGA 3. Cf. Dong Zhongshu, Xun tian zhi dao ſijºji (act upon the dao of
heaven), in Chunqiu fanlu ###Kºśń (The book of Dong Zhongshu or “Rich
dews in spring and autumn”, Shanghai: Shanghai Classics Press, 1989), pp.
91–93.

4. Ibid., Wei ren zhe tian #)\# 7 (heaven serves man), p. 64; Wangdao
tong San EjäjäE(the kingly way), p. 67.
5. Ibid., Yin Yang yi (?&# (the meaning of Yin and Yang),” p. 71.
6. Cf. Méncio, The Works of Mencius (trans. James Legge), 13.1.
7. Ibid., 13.45.
8. Ibid., 1.4.

9. Cf. The Book of Changes (trans. James Legge), Hexagram 1: Qian £(34.).
Ver também The Classic of Changes (Trans. Richard John Lynn, New York:
Columbia University Press, 1994), p. 138.
10. Cf. The Book of Changes (trans. James Legge), Qian # (the creative). Ver
também The Classic of Changes (trans. Richard John Lynn), Hexagram 1:
Qian, p. 130.
11. Ibid., The Book of Changes, Kun #(the receptive). Ver também The
Classic of Changes, Hexagram 2; Kun, p. 144.
12. Cf. Méncio, The Works of Mencius (trans. James Legge), 13.12.
13. Cf. The Doctrine of the Mean (trans. James Legge), 22.
14. Cf. Zhang Zai, Zhangzi zhengmeng ##IE * (The just enlightenment,
ed. Wang Fuzhi, Beijing: Zhonghua Shuju, 1975), p. 94.
15. Cf. Cheng Hao & Cheng Yi, Yulu äääk (collected sayings), vol.s 2, 11.
Ver também Chinese Philosophy Section under Chinese Academy of Social
Sciences, ed., Zhongguo zhexueshi ziliao xuanji Hylº flººkišā (Fontes
selecionadas para a história da Filosofia chinesa, Beijing: Zhonghua Shuju,
1982), parte 1 das dinastias Song, Yuan e Ming, p. 220.
16. Ibid., vol.s 2, 18.
275
17. Cf. Mou Zongsan, Zhongguo zhexuede tezhi Hyliſſ ºff Jºjº'ſ
(Shanghai: Shanghai guji chubanshe, 1997), pp. 20-32, 74-81, 114-117. A.
€11111 (IS

18. Cf. Confucius, The Analects (trans. D. C. Lau, London: Penguin Books, Yº
1979), Book XIV, 35. Ver também Confucius, The Confucian Analects (trans. ANTIGA

James Legge), 14.35.


19. Cf. The Great Learning (trans. James Legge), 1. A versäo em Inglés que
aqui of reco traz algumas pequenas modificaçòes de acordo com o texto
original. Por exemplo, James Legge traduziu Tianxia como "império", e eu
mudei para "o mundo". Ele traduziu Tianxia ping em "todo o império fez-se
tranquilo e feliz", e eu revisei-o como "o mundo foi mantido em
paz." Alguns tradutores preferem dizer "o mundo inteiro foi trazido para a
paZ .

20. Cf. Li Zehou, Shuoziran renhua ñº H&S)\{{. (On the humanization of


nature), in Li Zehou, Lishi bentilun/Jimao wushuo Héfi Ağä/E.9, Tiš.
(Beijing: Sanlian shudian, 2003), pp. 242-243.
21. Cf. Li Zehou, Meixue sijiang ##||# (Four lectures on aesthetics,
Beijing: Sanlian shudian, 1989), pp. 88-89.
22. Ibid., p.91.
23. Cf. Li Zehou, Shuoziran renhua ñº H&S)\{{. (On the humanization of
nature), in Li Zehou, Lishi bentilun/Jimao wushuo Héfi Ağä/E.9, Tiš,
pp. 248-259.
24. Cf. Li Zehou, Meixue Sijiang (Four Lectures on Aesthetics), pp. 110-125.
25. Ibid., pp. 112-113.
26. Ibid., pp. 95-96.
27. Cf. Li Zehou, Shuo ziram renhuań. É # /\{{ (On the humanization of
nature), in Li Zehou, Lishi bentilun/limao wushuo #EEAS###/E WUTiñ,
pp. 263-264.
28. Ibid., pp. 266-267.
29. Hierarquicamente, de acordo com a comparação de Fung Yu-lan, "o
reino cósmico de ser" está acima das outras três categorias, incluindo "o
reino moral do ser" (daodejingjie jÉí{###) preocupado com os valores de
humanidade e justiça, o “reino utilitarista do ser” (gongli jinngjie Jilli##)
preocupado com a obtenção de vantagens e lucros, e "o reino instintivo do
ser" (ziran jingjie H%85##) preocupado com a satisfação de desejos e
276 vontades. Cf. Fung Yu-lan, Xin yuan ren# /\(Sobre o significado da vida
Antigas
Leituras
humana), em Fung Yu-lan, Zhenyuan Liushu JUL/NE(Shanghai: East
VISOES DA
CHINA
China Normal University Press, 1996), vol. 2, pp.568-649.
ANTIGA 30. De acordo com as estatísticas oficiais, a proporção de criação de animais
em excesso na China é de até 36,1% da área total, incluindo Mongólia
Interior, Ningxia, Gansu, Tibete, regiões de Xinjiang e Qinghai província.
O MESSIANISMO DO PRIMEIRO IMPERADOR

Yuri Pines

Entre as muitas controvérsias a respeito da curta dinastia Qin, poucas


parecem tão dificeis para resolver como a espinhosa questão do lugar de Qin
no curso geral da história chinesa. Gerações de estudiosos, tradicionais e
modernos, começando com Dong Zhongshufffff(-195-115) tendem a vê
lo como uma ruptura ou uma aberração: um “anti-Confúcio", uma entidade
anti-tradicionalista, que se comportou de forma violenta e errática, e foi
devidamente eliminado da paisagem histórica da China. Outros, a maioria
de notáveis estudiosos da história institucional da China, por outro lado,
277
tendem a enfatizar o papel de Qin como uma parte inseparável de um
continuum histórico; Cai Yong ##(+133+192) resumiu sucintamente: Antigas
Leituras
VISOES DA
"Qin herdou [o sistema] dos últimos anos de Zhou, e foi o precursor de CHINA

Han"(#####R, ######)." ANTIGA

Embora a pesquisa atual tenda a confirmar a justeza da segunda


abordagem, e as continuidades entre o Qin e suas predecessoras e sucessoras
parecem ser evidentes por si mesmas, eu acho que a idéia da
excepcionalidade de Qin não pode ser inteiramente descartada. Enquanto
esta noção não reflete os preconceitos ideológicos de Han e dos “Ru” tardios
(fi, "Confucionistas"), ela também pode estar relacionada com algumas
peculiaridades do regime de Qin e sua auto-imagem. A seguir, mostro que
em meio a continuidades gerais, Qin adotou uma peculiar postura
ideológica — que eu chamo aqui de "postura messiânica", que
fundamentalmente o distingue de seu período (453-221) antecessor dos
Reinos Combatentes (-453-221) e de seus sucessores Han (-206 +220). Para
ilustrar este ponto, vou me concentrar na noção Qin de Imperialismo que se
reflete na auto-imagem do Primeiro Imperador ##### (Qinshi Huangdi,
246 a -221/210). A minha escolha não é incidental. A instituição e conceito
de Imperialismo foi a única inovação mais importante de Qin, e sua
contribuição mais significativa para dinastias posteriores; como tal, serve
como um prisma ideal através do qual o lugar de Qin, na história chinesa,
pode ser analisado. Além disso, como nós possuímos fontes primárias para a
auto-imagem do imperador Qin, ou seja, inscrições da estela do Primeiro
Imperador, nós podemos discutir esta tema, sem sermos demasiado
dependentes das potencialmentes tendenciosas apresentações em fontes
históricas posteriores."
Na discussão a seguir, eu demonstro que a visão de governo do
primeiro imperador está enraizada no discurso monárquico no período
anterior dos Reinos Combatentes, do qual ele se apropriou com sucesso, e
que teve um impacto duradouro sobre seus sucessores Han.
Simultaneamente, no entanto, defendo que a apresentação do Primeiro
Imperador de seu governo como "o fim da história" distingue-o criticamente
de monarcas anteriores e posteriores, e pode fornecer uma explicação para a
noção de excepcionalidade de Qin no plano histórico da China. Além disso,
espero que a minha discussão contribua para uma melhor compreensão do
278 papel dos monarcas na Política imperial da China e nas relações dialéticas
entre a Dinastia Qin e seu sucessores Han.
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
Antecedentes: a busca pelo Verdadeiro Monarca
ANTIGA

A eliminação dos Estados Guerreiros rivais de Qin, em -221, foi o


resultado de uma série de campanhas militares brilhantes, mas o império
estabelecido na sua sequência não era uma criatura puramente militar. Em
vez disso, a unificação do mundo sub-celestial era uma idéia vislumbrada e
elaborada por gerações de pensadores e estadistas, muito antes dela se
materializar sob o governo Qin. Dois conceitos fundamentais, que surgiram
em meio à efervescência ideológica dos Reinos Combatentes, foram
particularmente propícios para a futura empresa imperial: a saber, que a paz
em Tudo-abaixo-do-céu não prevaleceria até que o mundo fosse unificado, e
que a ordem política em um único estado e no futuro reino unificado só
seria possível, apenas, sob a égide de um poderoso monarca. Essas idéias
tornaram-se o alicerce sobre o qual a noção de Imperialismo Qin foi
erguido, e, mais amplamente, a base da empreendimento imperial em geral.
Em outro lugar, eu discuti detalhadamente a ideologia do
monarquismo, e como ele surgiu no período pré-imperial (Pines 2009, cf
Liu Zehua, 1991; 2000); aqui, eu esboço apenas brevemente os seus
componentes essenciais. No discurso monárquico do período dos Reinos
Combatentes, podemos identificar três principais tópicos: primeiro, a idéia
da política universal centrada no governante, como a única forma viável de
garantir a paz e a estabilidade; em segundo lugar, o conceito do Verdadeiro
Monarca sagaz como a única pessoa capaz de trazer perfeito a ordem em
Tudo-abaixo-do-Céu; e terceiro, uma sutil, porém palpável bifurcação entre
o futuro governante ideal e atuais, soberanos medíocres, que mantinham o
poder nominal, mas foram convencido a delegar muitos de suas tarefas
ordinárias para assessores com méritos. Destes três segmentos, o mais
significativo em termos de seu impacto sobre o Primeiro Imperador foi o
segundo, ou seja, o ideal do Verdadeiro Monarca, e no que se segue, me
concentro principalmente neste ideal.
A ideologia da monarquia no período dos Reinos Combatentes foi
279
formada como uma reação à fraqueza perene de poder dos governantes
durante o aristocrático período das Primaveras e Outonos (770-453), que os Antigas
Leituras

antecedeu. Tendo identificdo o declínio da posição do soberano com a VISOES DA


CHINA
deterioração geral da ordem sócio-política, pensadores de várias inclinações ANTIGA

intelectuais propuseram vários argumentos em favor da restauração do


poder monárquico.
Alguns promoveram a idéia da exclusividade da posição do
governante como cabeça dos ritos e — mutatis mutandis — da pirâmide sócio
política; outros providenciaram as condições morais, políticas e metafísicas
para a elevação do monarca. Enquanto os pensadores divergiam em como o
governante deveria conduzir sua vida privada e pública, houve um consenso
de que o regime Monarárquico era o único arranjo político adequado e
viável: um único governante deve servir como o único tomador de decisão
final, e não deveria haver limitações institucionais — distintas da Moral -
para seu poder.
O governante poderia - e, aos olhos de muitos, deveria - ser
admoestado e criticado, se necessário, mas nem os ministros, e nem os

conselheiros, tinham o direito de derrubar suas decisões; nenhum grupo era


independente da sua vontade, e nele estava a única fonte de autoridade
política (e religiosa). Essas idéias serviram como a fundação do sistema
monárquico da China nos milênios seguintes (ver Pines 2009: 25-53 e Pines,
2012a: 44-75 para mais detalhes).
O monarquismo ferrenho dos ideólogos pré-imperiais não significa,
no entanto, de que eles eram insensíveis aos perigos de um perverso ou
inepto governante, ou para a possibilidade de o monarca abusar de seu
enorme poder.
Pelo contrário, os pensadores rivais esmagadoramente se
consideravam intelectual e moralmente superiores aos soberanos
contemporâneos, a quem eles implacavelmente criticaram, e cuja
mediocridade eles lamentavam. Foi em oposição a essas mediocridades que
os pensadores propuseram o ideal da Verdadeira Monarca. O Verdadeiro
Monarca (geralmente identificado como "aquele que age como um
monarca" Eifí, um "monarca sábio" *=E, ou "monarca Celestial" KEE)
deveria ser um líder moral e intelectualmente impecável, que seria capaz de
cumprir os séculos de longas aspirações das multidões, e trazer a unidade
280 política e a ordem perfeita.
Antigas Várias características principais distinguiam crucialmente o
Leituras
VISOES DA Verdadeiro Monarca de soberanos medíocres contemporâneos. Primeiro, ele
CHINA
ANTIGA foi identificado como um sábio - Uma personalidade excepcional, cuja
moralidade e sabedoria elevou-o acima do resto da humanidade e, aos olhos

de muitos pensadores, transformou-o em uma personagem semidivina (ou


totalmente divina) (veja mais em Puett, 2002). Como tal, o Verdadeiro
Monarca deveria estar, moral e intelectualmente — e não apenas sócio
politicamente — no ápice da pirâmide. Em segundo lugar, o Verdadeiro
Monarca tinha que presidir um reino unificado, e não mais de um único
estado regional. Em terceiro lugar, o seu governo deveria ser marcado por
uma ordem sociopolítica perfeita, e por uma submissão universal. Estes
foram, aos olhos da maioria dos pensadores, as realizações dos exemplos do
passado, como os lendários Cinco Soberanos (wudi Tiff) ou os Três Reis
(san wang ==E), isto é, os fundadores das dinastias Xia, Shang e Zhou. No
entanto, a maioria das discussões sobre o Verdadeiro Monarca não eram

dirigidas para o passado, mas para o futuro: ele era visto como uma figura
salvadora - aquele que surge “uma vez em quinhentos anos", e cuja chegada
está muito atrasada.
Essas expectativas quase messiânicas do Verdadeiro Monarca foram
devidamente enfatizadas por representações utópicas difundidas de paz
universal, prosperidade, à boa ordem e conformidade, todos geradas por seu
governo.

Para ilustrar a visão do Verdadeiro Monarca no pensamento político


do período dos Reinos Combatentes, eu brevemente me concentrarei, aqui,
em Xunzi #f(-310-230), sem dúvida o único pensador mais profundo, e
influente, de sua época."
Xunzi explica o essencial da regra do Verdadeiro Monarca da
seguinte forma:

Para preservar o Caminho e a virtude completa, para


ser a maior e o mais estimado, para melhorar os
princípios da cultura refinada, para unificar Tudo 28 |
abaixo-do-Céu, para colocar em ordem até mesmo
Antigas
as coisas mais pequenas, para fazer com que todo o Leituras
VISOES DA
mundo debaixo do Céu obedeça-o e siga-o - esta é a CHINA
tarefa do Monarca Celestial.... Se Tudo-abaixo-do ANTIGA

Céu não for unificado, e os senhores regionais


continuarem rebeldes, então o Filho do Céu não é o

homem apropriado]."

A unidade política, a ordem perfeita e a submissão universal são os


primeiro conjunto de características que distinguem o Verdadeiro Monarca
dos regentes ordinários. A segunda peculiaridade da verdadeira monarca é
sua capacidade de imbuir seus súditos com uma soberba moralidade, e pôr
fim aos desvios morais e políticos:

Quando o monarca sábio está acima, ele distribui

ações deveres de obediência abaixo. Então, shift:


[cavalheiros] e os nobres não se comportam
irresponsavelmente, os cem oficiais não são
insolentes em seus assuntos; as multidões e os cem
clãs ficam sem hábitos estranhos e licenciosos, não
há crimes de furto e roubo, e ninguém ousa se opor a
• 6

seus superiores.

Esta perfeita ordem em que cada grupo social - de elite aos plebeus -
se uniformemente regulada pelo Verdadeiro Monarca, deriva
exclusivamente das qualidades morais e intelectuais soberbas deste último.
Esta superioridade moral e intelectual é a terceira característica que
distingue o Verdadeiro Monarca de outros soberanos:

O [Verdadeiro] Filho do Céu é o mais respeitável em


termos de poder e posição, e não tem rivais debaixo
do céu... Sua moralidade é pura, o seu conhecimento
e bondade são extremamente claros. Ele enacara o

sul, e torna obediente Tudo-abaixo-do-Céu. Entre

todas as pessoas, não há ninguém que segure tão


282 educadamente suas mãos, fazendo-o seguir, e assim
o transforme tão complacentemente. Não há
Antigas
Leituras
VISOES DA
reclusos debaixo do Céu, a bondade de ninguém é
CHINA
negligenciada, aquele que une-se com ele está
ANTIGA
correto, o que difere dele está errado.

A noção de obediência unânime, e absoluta conformidade com a


vontade do monarca verdadeiro, permeia os escritos de Xunzi e de muitos
de seus contemporâneos. Às vezes, estes panegíricos ao Verdadeiro Monarca
são erroneamente interpretados como exemplos da inclinação "autoritária"
de Xunzi - mas este não é necessariamente o caso (Pines 2009: 82-97).
Xunzi, como a maioria dos pensadores contemporâneos, distingue
claramente entre o Verdadeiro Monarca e um soberano mediano. Este

último deve gozar de absoluta autoridade política e ritual, mas em termos de


moralidade e inteligência, ele é tacitamente entendido como sendo inferior a
seus assessores. É a tarefa dos assessores, especialmente um “Ru' [letrado]
meritório como Xunzi, para instruir o governante e ajudá-lo na realização
de tarefas cotidianas. Em contrapartida, o Verdadeiro Monarca é percebido
como moral e intelectualmente superior a seus súditos, e consequentemente
não precisa de consultas, mas sim, ele simplesmente “distribui deveres de
obediência" e, assim, dá as ordens para todas as camadas da sociedade.
Notavelmente, mesmo os intelectuais, o shi, cujas habilidades Xunzi elogia
freqüentemente como sendo semelhantes ou mesmo superiores aos dos
governantes, espera-se que sucumbam à vontade do monarca sábio. Na
medida em que a opinião do monarca é o único critério de bondade e
maldade, a autonomia moral dos intelectuais aparece significativamente
prejudicada.
Estas observações levam-nos ao último ponto. Enquanto a
divinização do Verdadeiro Monarca eventualmente contribuiu para reforçar
a autoridade imperial, a curto prazo, ela serviu a um objetivo diferente.
Muitos pensadores, incluso Xunzi, empregaram de forma consistente a
imagem do Verdadeiro Monarca em oposição aos governantes
contemporâneos. Inflando as características positivas do Verdadeiro
Monarca, os pensadores enfatizaram sua excepcionalidade.
283
Enquanto reinassem governantes muito aquém desse herói
superhumano, eles não poderiam esperar o mesmo grau de obediência e Antigas
Leituras

submissão que o Verdadeiro Monarca pode esperar. Além disso, como as VISOES DA
CHINA
suas capacidades não poderiam se comparar com as de um sábio no trono, ANTIGA

os governantes dos Reinos Combatentes foram fortemente aconselhados a


limitar seu envolvimento em assuntos políticos cotidianos, e delegar o seu
poder a meritórios assessores (Pines 2009: 82-107).
Partindo dessa perspectiva, podemos entender por que, novamente,
Xunzi mostra sua vontade de produzir uma postura orgulhosa e autônoma
para o Verdadeiro Monarca. Embora prometendo obediência inabalável
para um futuro impecável governante, os pensadores preservariam o direito
de criticar e, ocasionalmente, desafiar, soberanos inadequados
contemporâneos, cuja mediocridade fosse evidente na comparação com o
idealizado sábio unificador. O que Xunzi não poderia antecipar é que um de
seus contemporâneos mais jovens, o rei Zheng de Qin, seria capaz não só de
apropriar-se do discurso do Verdadeiro Monarca, mas também, utilizá-lo
para um ataque sem precedentes contra o poder político e autonomia
intelectual da elite educada.
O primeiro imperador como o Verdadeiro Monarca

Em -221, depois de ter concluído com sucesso uma série de brilhante


campanhas militares que varreram os concorrentes dos Reinos
Combatentes, o Rei Zheng de Qin proclamou-se imperador (Huangdi ##,
literalmente, "Augusto Soberano"; daqui em diante usarei os dois títulos de
forma intercambiável ), inaugurando, assim, uma nova Era na história
chinesa. Sua participação numa década extremamente agitada, no ofício de
imperador, cheia tanto de grandes realizações como atrocidades terríveis,
fizeram dele uma das figuras mais controversas da história da China. A
complexidade desta figura, e da confiabilidade questionável de muitas partes
dos "Anais Básicos do Primeiro Imperador" nos Registros Históricos (Shiji
EiE), nossa principal fonte para a história Qin (ver Van Ess, capítulo 7),
torna o estudo do Primeiro Imperador uma tarefa particularmente
desafiadora. Felizmente, os Registros Históricos e outras fontes preservaram
284
os textos inscritos em sete estelas imperiais, que, como foi brilhantemente
Antigas mostrado por Martin Kern, pode servir como uma fonte confiável para a
Leituras
VISOES DA
auto-imagem do Primeiro Imperador, e suas atividades de propaganda.
CHINA
ANTIGA Essas inscrições, além de algumas outras fontes históricas e
paleográficas, permitem-nos reconstruir a ideologia do Primeiro Imperador
com precisão considerável (ver Kern 2000; Liu Zehua 2000: 128-137).
Nossa discussão do Primeiro Imperador pode convenientemente
começar com o seguinte pronunciamento feito por seu séquito, e inscrito na
estela erigida no Monte Yi Héll, logo após a unificação ser alcançada (Figura
8.1):
285
Antigas
Leituras
VISOES DA
CHINA
ANTIGA

}É ##LiH,4} + #%, DJ H ###.J{H} H{E, # [I]*#,


É # HT lín.ittff #}{,}b }} FI f, # ÉÉ# LE.jpH 42 H, f,
*###RTF, H, AS4##H.#####, #$# F# TE, # F# K.

Eles [os ministros Qin] recordaram e contemplaram


os tempos de caos: Quando [os senhores regionais]
repartiram a terra, estabeleceram seus Estados,
E, assim, desenrolou-se um novo tipo de conflito.
Ataques e campanhas diárias foram travadas;
Eles derramaram seu sangue no campo aberto
Isso havia começado na mais remota antiguidade.
Através de inúmeras gerações,
Uma única [regra] era seguida depois dos Cinco
Soberanos,

E ninguém podia proibi-la ou detê-la.

Agora, hoje, o Augusto Soberano


Unificou Tudo-abaixo-do-Céu em uma única

família -

A guerra não surgirá de novo!


Desastres e danos foram exterminados e apagados,
O povo de cabeça preta vive em paz e estabilidade,
Os Benefícios e bênçãos foram duradouras e
8

permanentes.
286
Esta inscrição é um excelente testemunho da mentalidade dos líderes
Antigas
Leituras
VISOES DA
de Qin no final da unificação imperial. Em primeiro lugar, identificam o
CHINA passado, incluindo a idade dos Cinco Soberanos, como uma persistente e
ANTIGA
debilitante guerra. Em segundo lugar, vem o Primeiro Imperador para trazer
unidade, paz e estabilidade, superando as realizações de seus predecessores.
Em terceiro lugar, promete que as conquistas do imperador serão
"duradouras e permanentes", e "a guerra não surgirá de novo". Em algumas
frases da inscrição enquadramos a visão de passado, presente e futuro de
Qin.
Analiso este conceito particular de história expressa na inscrição do
Monte Yi, na próxima seção; aqui me concentro em uma única
conseqüência da Proclamação ousada dos oficiais de Qin, de que as
realizações de seu imperador diminuíam a dos Cinco Soberanos. Na medida
em que esses sábios governantes lendários eram rotineiramente identificados
como "Verdadeiros Monarcas" do passado, proclamando sua superioridade
sobre eles, o Imperador Qin claramente se identificou como o Verdadeiro
Monarca do presente. Esta noção está devidamente apresentada através das
inscrições na estela. Eles sempre associam o reinado do Primeiro Imperador
com cada uma das principais características do Verdadeiro Monarca: a
universalidade das leis, a sua capacidade para atingir ordem sociopolítica
perfeita, a superioridade moral e intelectual do imperador, e, finalmente,
suas qualidades super-humanas. Agora, eu examinarei brevemente estes
topoi que são onipresentes em cada uma das sete inscrições.
O primeiro e mais importante tema que permeia as inscrições é a
noção de universalidade do regime imperial, da paz e da estabilidade que
resultam da mesma. Assim, na inscrição Langye #21 (-219), o Augusto
Soberano proclama orgulhosamente:

7°N # >LPN, H.#X__E.ULij};}f}}, Eji#JLH. HºffHR#,


:|}|}|}. }\#}}###, #/SH #í.J###,}} + F5.

Dentro das seis direções] combinadas,


Esta é a terra do Augusto Soberano: 287
Para o oeste, ele alcança as areias fluidas,
Antigas
Leituras
Para o sul, ele tomou por completo onde as portas VISOES DA
em Caram O InOrte. CHINA
ANTIGA
Para o leste, ele envolveu o Mar do Leste,
Para o norte, ele vai além de Daxia.

Onde quer que existam traços humanos,


Não há nada, nem niguém, que não seja assunto seu
[do Soberano].
Seus méritos superam os dos Cinco Soberanos,
• 9
Seu favor se estende a bois e cavalos.

Esta declaração é inequívoca: o governo do imperador é

verdadeiramente universal.

Embora muitos dos termos geográficos utilizados acima sejam


emprestados a partir de textos anteriores, mais especificamente a partir do
capítulo "Yu Gong" # H dos Documentos Veneráveis fí#[Shang shu], o
imperador estava ansioso para salientar que suas conquistas territoriais
ofuscavam a dos Cinco Soberanos. Suas realizações são amparadas por uma
retórica da inclusão absoluta e abrangente do governo imperial, que se refere
repetidamente a posse do imperador de "Tudo-abaixo-do-Céu", "As seis
direções" (Nf), as "Quatro extremidades " (VIIfÉ), entre outros (Kern
2000: 151-152).
A Expansão territorial está intimamente associada, nas inscrições,
com o motivo da paz universal. Este topos foi excepcionalmente importante
para o imperador, que propagou, ainda, em todos os mercados. Um
pronunciamento idêntico, inscrito em uma série de recém- padronizados
pesos e medidas, começa com as seguintes palavras: "Em seu vigésimo sexto
ano, o imperador anexou completamente todos os senhores regionais sob O
Céu, as pessoas de cabelos negros estão em grande paz"."
Esta afirmação é aprofundada em outras inscrições estelares. O
imperador lembra repetidamente seus súditos que "a guerra acontecerá de
novo", que ele "trouxe Paz a Tudo-abaixo-do-Céu", e que o "povo de cabeça
preta está em paz, sem a necessidade de pegar em armas". “Ele dizimou o
poderoso e o indisciplinado, resgatando o povo de cabeça preta, trazendo
estabilidade ao quatro cantos do império "; por "unir Tudo-abaixo-do-Céu”,
288 ele colocou um ponto final nas perdas e nos desastres, e, em seguida, deixou
Antigas seus braços de lado para sempre", resultando no que seria a "Grande Paz"
Leituras 11
VISOES DA (Tai Ping Kºº, um termo que eu discutirei separadamente a seguir)
CHINA
ANTIGA Por "unificar Tudo-abaixo-do-céu em uma família", o imperador
tinha cumprido o imperativo dos pensadores do período dos Reinos
Combatentes, como foi resumido por Mengzi (#f, -380-304): "A
estabilidade é a unidade"." O segundo grande topos das inscrições é a ordem
social e política que o Augusto Soberano trouxe. "As distinções entre nobre e
medianos foram esclarecidas, os homens e as mulheres personificam a
submissão", o Augusto Soberano "uniu, e levou concórdia para pais e filhos",
e de agora em diante "os honrados e humildes, o nobre e a mediano nunca
excederão sua posição e grau". Esta estabilidade social é acompanhada pela
segurança pessoal: "Seis parentes protegem uns aos outros, de modo que, em
II 13
última análise não há bandidos nem ladrões ".

A Ordem política sob as "leis claras" (mingfa BHBR) de Qin


se seguem: "os oficiais mantém o respeito em suas divisões, e cada um sabe o
que deve fazer"; "todos respeitam as medidas e as regras". A noção de
submissão universal, que seria tão essencial para o Verdadeiro Monarca aos
olhos de Xunzi, é devidamente enfatizada: “não há ninguém que não seja
respeitoso e submisso”, "O coração de todas as multidões tornou-se
submisso" e "toda a gente está de acordo com as ordens"."A paz universal e
a estabilidade trazem a prosperidade universal. Esta última não chega
automaticamente, mas devido aos esforços incansáveis do Augusto
Soberano, que emula o soberano-sábio, Yu H, ordenando o reino terrestre:
ele "derrubou e destruiu muros internos e externos das cidades; rompeu e
abriu diques fluviais, nivelou e removeu obstáculos perigosos, de modo que
a topografia foi corrigida"."
Estes esforços resultam numa afluência sem precedentes: "Homens
encontram alegria em seus campos, as mulheres cultivam o seu trabalho". O
Soberano "enriquece as pessoas de cabeça preta", de modo que "todos vivem
a sua vida plenamente, e não há ninguém que não alcance suas ambições"."
Como é observado na já referida inscrição Langye, mesmo "Cavalos e bois"
recebem o favor do imperador. 289
Isso é útil para fazer uma pausa aqui por um momento, e
Antigas
contextualizar todos esses pronunciamentos orgulhosos dentro do discurso Leituras
VISOES DA
intelectual do período dos Reinos Combatentes. O imperador indica CHINA

inequivocamente que as visões de um futuro utópico, tal como apresentado ANTIGA

em numerosos textos dos Reinos Combatentes, foram finalmente realizadas.

Sendo assim, a própria magnitude do do méritos do Primeiro Imperador o


qualifica como o Verdadeiro Monarca. Além disso, em função da suas
realizações, o imperador se justifica para proclamar-se um sábio. Foi Xunzi,
novamente, que explicou a ligação intrínseca entre a sagacidade do monarca
e o alcance do seu sucesso:

O Filho do Céu é somente aquele que é [uma


verdadeira apropriada] pessoa.
Tudo-abaixo-do-Céu é extremamente pesado: só os
mais fortes podem suportá-lo; Ele é extremamente
grande: apenas o mais inteligente pode dividi-lo; Ele
é extremamente populoso: apenas o mais sábio pode
harmonizá-lo. Assim, aquele que não é o sábio não
pode se tornar um [verdadeiro] Monarca. Quando
um sábio tem o Caminho internalizado, realizando
sua beleza, ele vai assegurar as escalas e os pesos de
Tudo-abaixo-do-Céu."

Xunzi implica aqui que só um governante auto-cultivado poderia


adquirir o governo universal. O Primeiro Imperador justificadamente
inverte esta ordem: é a realização da regra universal que atesta a excepcional
qualidades pessoais do governante. Essa compreensão está devidamente
presente nas inscrições que louvam repetidamente a virtude do imperador,
sua sagacidade, e seu papel como líder moral da sociedade. O Augusto
Soberano orgulhosamente proclama -se como "sábio, experiente,
benevolente e justo", declarando que ele "irradia e glorifica os seus
ensinamentos e instruções, de modo que os seus preceitos e princípios
alcançam todos, e "proíbem e pararam o lascivo e o licencioso"."As pessoas
foram transformadas de acordo:

290 "Não há quem não esteja comprometido com a


honestidade e a bondade", "homens e mulheres são
Antigas
Leituras
VISOES DA
puros e sinceros". A grande ordem do governo
CHINA imperial "purificou os costumes, e Tudo-abaixo-do
ANTIGA II 19
céu recebeu sua influência".

O imperador não deixa dúvidas de que ele não apenas encabeça a


pirâmide sócio-política, mas também, a pirâmide moral e intelectual. Após
Xunzi, e mesmo excedendo a sua exaltação do Verdadeiro Monarca, o
Primeiro Imperador audaciosamente proclama-se como imensuravelmente
superior a outros seres humanos, como um monarca semidivino. Sua "auto
divinização" (Puett, 2002) é expressa em um novo título, adotado
imediatamente após a unificação, o Augusto Soberano, com a sua ostensiva
conotação sagrada. A sua segunda manifestação, construída com as opiniões
antes citadas de Xunzi, é a sua auto-proclamação como um sábio, um título
que tinha sido aplicada nos discurso dos Reinos Combatentes aos antigos
monarcas, mas nunca a um governante vivo."
Assim, o imperador claramente declara que "encarna sabedoria"
(gongsheng HAE)," e ele aprecia tanto seu novo título, que o menciona não
• * --> • • • 22 • • •

menos que dez vezes em sete Inscriçoes Imperiais. Como O primeiro rei
sábio, ele adota uma série de medidas para reforçar seu status de super
humano: de remodelar a terra de "Tudo-abaixo-do- Céu", como fez o sábio

demiúrgo Yu, para algo radical — e aparentemente sem precedentes - a


reformulação do panteão imperial, e ainda a construção de projetos
megalomaníacos, alguns dos quais são discutidos por Shelach (2014, cap.3).
Tudo isso distinguia drasticamente o monarca de outros mortais. Mesmo as
afrontas feitas pelo imperador contra divindades locais, como no caso do
Monte Xiang fil, mencionada nos Registros Históricos, pode ser um
indicativo de sua auto-percepção como um personagem semidivino."
Embora nenhuma delas forneça uma prova inequívoca no sentido de
que o Augusto Soberano realmente se considerava verdadeiramente divino,
está claro que, no mínimo, ele adotou uma status público sobre-humano (cf.
Yakobson, cap.9, 2014).
Uma observação final no que diz respeito a posição divina do 291
Primeiro Imperador deve ser feita aqui. Parece mais notável que nenhuma
Antigas
das inscrições imperiais, a maioria das quais foram feitas em locais sagrados Leituras
VISOES DA
dos Estados conquistados, muitas vezes depois de realizar sacrifícios a CHINA

divindades locais, faça qualquer referência sobre o apoio divino para o ANTIGA

empreendimento político do Primeiro Imperador. Numa marcante


distinção em relação a todos os governantes conhecidos da China, pré
imperiais ou imperiais, o Primeiro Imperador parecia indiferente com o
Céu, o [Supremo] Soberano (Di#), ou outras divindades, salvo os espíritos
dos ex-reis de Qin, cujo apoio é devidamente reconhecido na primeira
inscrição, no Monte Yi - e numa declaração imperial aproximadamente
simultânea, registrado nos Registros Históricos."
O primeiro imperador omitir o título de Filho do Céu (Tianzi Kºfº)
é mais uma indicação de sua indiferença para com o Céu. É possível que o
imperador acreditasse - como suas inscrições repetidamente testemunham -
que suas realizações foram devido a seus méritos individuais, e não tinham
nada a ver com o apoio divino? Será que ele temia que, ao reconhecer a
existência de uma divindade politicamente superior, ele colocaria em risco a
sua posição - ou a de seus descendentes - no futuro? Ou será que ele
acreditava que, como um Verdadeiro Monarca sábio, ele simplesmente
estava em pé de igualdade (ou acima?) com as forças divinas e, portanto, não
lhes devia gratidão? Provavelmente, nós nunca teremos uma resposta para
estas perguntas. Em qualquer caso, é claro que a posição do Primeiro
Imperador vis-à -vis os poderes divinos não era de subserviência, mas, no
mínimo, da igualdade, se não de superioridade. Um homem que salvou a
humanidade de séculos de guerra e tumulto não seria o segundo de
ninguém, tanto no mundo mundano ou celestial.

Um Monarca Messiânico

Na discussão acima, juntamos evidências suficientes para mostrar


que o Primeiro Imperador havia firmemente se apropriado da postura do
Verdadeiro Monarca, desenvolvida pelos pensadores do período dos Reinos
Combatentes.

A seguir, analiso algumas das peculiaridades dessa audaciosa


apropriação de um sonho centenário para mostrar, inicialmente, que o
292 Primeiro Imperador pode bem ser identificado como primeiro e único
governante quase messiânico da China (antes de Mao Zedong, é claro); e,
Antigas
Leituras
VISOES DA
segundo, que a sua postura messiânica, e a redefinição posterior da noção de
CHINA
governo, tornou-se um dos principais fonte de tensão entre ele e a elite
ANTIGA
intelectual, uma tensão que continuou bem depois da morte do Primeiro
Imperador. Descrever Qin como um "regime messiânico" pode soar errado:
afinal, há distinções claras entre a atmosfera intelectual na China durante os
períodos dos Reinos Combatentes, de Qin, e do Messiânico Oriente Médio e
Europa. A China pré-imperial não testemunhou nem movimentos
milenaristas nem profecias sobre um salvador vindouro, e ela não tinha
tanto uma literatura apocalíptica quanto a idéia de redenção transcendente.
No entanto, um breve olhar sobre a definição de messianismo, por exemplo,
no Blackwell Dictionary of Modern Social Thought nos mostra inúmeras
características que se encaixam surpreendentemente bem com o caso chinês.
Entre elas, podemos notar a percepção da situação atual como insuportável,
uma atitude ativa, em vez da atitude contemplativa, uma visão linear da
história (do sofrimento atual para a redenção futura), e uma visível e
coletiva natureza de redenção, e seus objetivos universais."
Algumas destas características estão evidentes na discussão prévia
(por exemplo, o ativismo, a natureza coletiva e universal da salvação), e não
vou abordá-los aqui de novo. O que eu me concentro em vez disso é a idéia
de uma história linear que vai da idade de sofrimento para a redenção final e
irreversível, uma ideia que é exemplificado na ideologia Qin,e que é
importante para a compreensão tanto do messianismo percebdio do
Primeiro Imperador quanto do lugar de Qin na história chinesa em geral. A
inscrição do Monte Yi, citada no início da secção precedente, representa a
visão de Qin de seu papel histórico como um salvador da humanidade de
sua guerra sem fim. Os propagandistas de Qin não inventaram a idéia de que
a Era dos Estados Guerreiros causou um sofrimento insuportável para a
população: isso era visto parte integrante do discurso concorrente. Por
exemplo, uma passagem do Lushi Chunqiu H |\##X, composta no estado
de Qin duas décadas antes da unificação final, afirma:

“Nossa geração é extremamente corrompida, nada 293


pode ser adicionado à miséria do povo de cabeça
Antigas
preta. A linhagem dos Filhos do Céu tem sido Leituras
VISOES DA
exterminada, os dignitários são lançados ao chão; CHINA
ANTIGA
líderes de idade comportam-se com indulgência, e se
afastaram do povo. O povo da cabeça preta não têm
ninguém a quem possa reclamar”."

Que a violência do Reinos Combatentes foi considerada intolerável, é


um ponto comum; o que distingue as declarações de Qin, no entanto, é que
essa visão negativa do passado foi radicalmente ampliada para trás, inclusive
para a época dos exemplares Cinco Soberanos. Este desprezo persistente
com os ex-governantes sábio é intrigante: afinal, seria muito mais fácil
legitimar o Império Qin, dizendo que seus líderes haviam simplesmente
restaurado o estado ideal de coisas da idade dos Cinco Soberanos e de outros

modelos antigos; mas os líderes Qin optaram por não fazê-lo. Eu acredito
que esta rejeição de um antigo dispositivo de legitimação mostrasse uma
aposta bem calculada: isso permitiria ao Primeiro Imperador e sua corte
apresentar o império como uma entidade inteiramente nova, a redenção
final da humanidade e "o fim da história".

Os líderes Qin estavam extremamente ansiosos para destacar as


novidades de seu regime. Muitos dos passos simbólicos que assumiram no
momento imediatamente posterior ao da unificação, tais como a festa da
grandeza imperial, a melhoria das classificações por mérito para todos, e,
mais espetacularmente, a coleta de armas de bronze para refundi-las em
sinos e enormes estátuas humanas — transmitia o forte sentimento de uma

ruptura com o passado, e o início de uma nova Era (cf. Sanft, no prelo).
Nenhum regime na longa história da China, antes da Revolução Comunista,
escarnecia tão conscientemente do passado (gu H), afirmando-o
infinitamente inferior ao "presente" (jin 3)." A própria linguagem das
inscrições imperiais, que está repleta de termos como zuo (ff, “criar”, cinco
vezes), chu (})], pela primeira vez”, quatro vezes) e shi (lí, a princípio',
quatro vezes), enfatiza a determinação do regime de traçar uma linha clara
entre o que foi e o que será.
Os líderes Qin não só rejeitaram o passado, mas também, com
firmeza, se apropriaram do futuro, corajosamente declarando que a história
294 tinha terminado. Sua propaganda não deixava qualquer referência à
possibilidade de perder seu poder, no futuro, um topos que figura tão
Antigas
Leituras proeminente nos supostamente antigos documentos Zhou do Shangshu e
VISOES DA
CHINA
algumas odes do Shi jing ###." Os líderes Qin percebiam a história não
ANTIGA
como uma alteração cíclica de ordem e desordem como assumido por
Mengzi (Teng Wen Gong #X2\, xia, 6.9: 154), mas, ao invés disso, como
uma longa época de desordem sob várias dinastias, que termina com uma
nova e eterna Era Qin (Pines, 2012c). Este desejo de conquistar o futuro foi
expresso logo após a unificação, quando o imperador decidiu abolir a
tradição de dar nomes póstumos ao últimos monarcas que, doravante,
seriam numerados, na posteridade, de acordo com a sua geração: "A segunda
geração [Imperador], A terceira geração [Imperador] e assim por diante
para as gerações inumeráveis, herdando-as indefinidamente" (Shiji, 6: 236).
Este infinitude, eternidade, e longevidade são repetidamente mencionadas
nas inscrições Qin, e vão muito mais longe do que o tradicional esperanças
de longevidade de uma linhagem expressa nos textos dos bronzes Zhou."
Para os líderes de Qin, não poderia haver retorno ao passado, com a sua
fragmentação e desordem.
Alguns colegas podem contradizer minha afirmação sobre a auto
imagem histórica de Qin, apontando para a adesão do Qin à noção cíclica do
desenvolvimento histórico, como exemplificado pela adoção da água como
seu elemento cósmico, de acordo com as chamados Cinco fases (wu xing
Tiff), teoria associada com Zou Yan #ff(-305-240) e seus seguidores (ver
mais em Van Ess, 2014, cap. 7). Esta opção, no entanto, não significa que
Qin deverá ser substituído por um futuro ("terra") regime.
A aceitação de água por Qin, deve ser considera no contexto dos
"Cinco Ciclos", teoria apresentada no "Ying tong" #F], capítulo do Lushi
Chunqiu. O esquema histórico do "Ying tong" pode ter sido deliberadamente
construído de modo a permitir uma explicação duplamente cíclica e linear:
pela eliminação de Yao # e Shun # da lista dos governantes do passado, os
autores construiram alterações no passado dos ciclos, de tal forma que
deixaram que o elemento futuro, a água, se tornasse o último dos cinco,
deixando a possibilidade de que todo o ciclo terminaria de uma vez e para
sempre. Michael Puett (2001:143-144 ) pode estar bem correto, então, de 295
que adoção da água líderes Qin implicava que a dinastia nunca seria Antigas
Leituras
substituída.
VISOES DA
CHINA
Finalmente, é importante notar os claros motivos utópicos na auto
ANTIGA
representação de Qin, que buscava mais uma vez associar o regime com o
conceito de salvação final e completa.
Como observado anteriormente, Qin incorporou firmemente as
expectativas utópicas dos pensadores Reinos Combatentes em sua auto
imagem, apresentando-se como o regime que permitiria a cada indivíduo "a
viver a sua vida plena, e alcançar suas ambições", que estende a sua
generosidade para "Bois e cavalos", e que conquista a submissão universal e
absoluta.

Qin foi o primeiro regime na história da China que transformou a


tão esperada utopia (literalmente: “não-lugar") de pensadores pré-imperiais
naquilo que Alexander Martynov apropriadamente chamou de “entopia”
dos imperadores (literalmente: "neste-lugar")."
É especialmente digno de nota que em sua última inscrição, o
imperador identificou o seu reinado como uma manifestação da Grande
Paz/Grande Uniformidade (taiping KºF). Este termo foi marginal (ou
inexistente) no período dos Reinos Combatentes, mas tornou-se onipresente
• • • • • 32 • /

da dinastia Han como terminus classicus para utopia na terra." Não é


impossível que a associação deste termo com absoluta serenidade e perfeita
ordem começou com o Primeiro Imperador e, nesse caso, pode ser um dos
seus mais curiosos, e até então negligenciados, legados intelectuais. O
discurso quase messiânico adotado pelo Primeiro Imperador, com o seu
menosprezo aberto do passado, a ênfase em seu novo regime, e suas
características "entópicas" podem ter contribuído decisivamente para a
posterior identificação do Qin como uma "aberração", ou "ruptura" na
História chinesa. No final deste capítulo, voltaremos a este ponto, mas
primeiro, eu queria explorar por que o imperador adotou sua peculiar
postura "messiânica".
Uma resposta imediata seria a de que a arrogância do imperador
refletia um certo grau de magnitude real, de seu sucesso verdadeiramente
sem precedentes. Eu acredito, ainda, que havia também sérias considerações
políticas por trás da peculiar auto-representação de Qin. Politicamente,
apresentar o regime Qin como algo completamente novo, poderia ser
296 propício para a integração, bem sucedida, da população recém-conquistada.
Lembremos que os ocupantes mudaram radicalmente a vida de seus novos
Antigas
Leituras
VISOES DA
súditos, impondo-lhes as leis e os regulamentos administrativos de Qin, seus
CHINA pesos e medidas, escrita e moedas, ritos e leis, e até mesmo seu vocabulário
ANTIGA
administrativo específico. Qin alterou o sistema social dos estados ocupados
pela decapitação das elites locais, e impondo o sistema de Qin de vinte níveis
de mérito.” Poderia ter sido mais conveniente apresentar estas medidas não
como subjugação a regra de Qin, mas como uma renovação radical, em nova
medida, da vida, uma renovação que traria paz, tranqüilidade e regime
ordenado sob o Sábio Augusto Soberano.
Além disso, e o mais importante, em termos de história política da
China, a "auto-Messianização" do Imperador (em vez de mera auto
divinização) teve consequências radicais imediatas para o seu papel político.
Em qualquer cultura, o Messias é um líder carismático, e Qin não foi
excepção. Sendo um salvador, um personagem que praticamente mudou a
história sozinho, o Primeiro Imperador reforçou sua posição como o
Verdadeiro Monarca, que tinha o direito para governar, e não apenas para
reinar. Na prática, isso significou a introdução de novas regras para o jogo
político, o que reforçou a autoridade do imperador vis-à-vis seus assessores
e da elite intelectual em geral.
Como discutido acima, inflando a imagem do Verdadeiro Monarca,
os pensadores do período dos Reinos Combatentes não tinham a intenção
de ceder a sua autonomia intelectual, ou de prejudicar de alguma forma a
sua liberdade de ação política, que gozavam na época de divisão política.
Pelo contrário, com a promessa de concordar com o futuro governante
sábio, eles ganhariam um poder adicional contra o reinando de soberanos de
capacidade mediana, que haviam sido fortemente encorajados a não se
intrometerem em tarefas administrativas de rotina, delegando suas tarefas
cotidianas para assessores meritórios, e se satisfazendo com o seu inigualável
prestígio ritual e posição de árbitros supremos em questões
intraburocráticas. Este acordo permitiria que os pensadores concentrassem
mais tarefas de governo nas mãos dos membros qualificados do seu estrato,
preservando a aparência de onipotência do governante. Esta situação deveria
mudar apenas em um futuro indeterminado, sob o sábio Verdadeiro
297
Monarca que governaria ativamente, enquanto os oficiais só "se
submeteriam, e o seguiriam". Agora, o Primeiro Imperador havia Antigas
Leituras

proclamado, com toda clareza, que a nova Era do Sábio Monarca tinha VISOES DA
CHINA
finalmente chegado. ANTIGA

Tendo se afirmado como o sábio reinante, o Primeiro Imperador


exigiu — e adquiriu - um poder administrativo, eficaz, que ia muito além do
que a maioria dos estadistas tiveram, e muito provelmente, queriam
conceder. Enquanto não devemos aceitar, de forma acrítica, as acusações
sobre o despotismo sem sentido do Augusto Soberano, conforme indicado
nos Registros Históricos, há pouca dúvida de que ele não aceitou a posição de
uma figura ritual, a que muitos pensadores pré imperiais teriam
ansiosamente relegado os seus soberanos. Assim, suas inscrições
proclamavam que o Augusto Soberano "Não é omisso na regência,
levantando no início da manhã, e descansando tarde da noite", que ele
“regula e ordena de tudo no universo, não é ocioso em fiscalizar e ouvir, e
que ele “uniformemente ouve a miríade de assuntos internos"."
Não sabemos se o imperador realmente examinava os documentos
com que ele tratava diariamente, que não descansava até que o peso do
cansaço o atingisse, mas as proclamações imperiais, e passeios constantes de
inspeção para todos os cantos mais remotos do novo reino, apresentam uma
imagem de um governante extraordinariamente ativo.” Por habilmente se
apropriar do discurso do sábio monarca, o "grande sábio" de Qin criou uma
situação política inteiramente nova, aplicando as fórmulas das "Cem
Escolas" que, provavelmente, nunca foram implementadas, de fato, em seu
tempo. A nova posição de um imperador, como a personificação do
Verdadeiro Monarca, tornou-se a contribuição mais importante do Augusto
Soberano de Qin para a posteridade. No entanto, a tentativa radical do
Primeiro Imperador para concretizar um ideal secular reuniu um
ressentimento considerável. Enquanto a história do Qin é também marcada
por interpretações tendenciosas, e acusações que mais tarde nos permitiriam
reconstruir, de modo coniável, uma atmosfera contemporânea de tribunal
(Kern 2000: 155-163; Van Ess, cap.7, 2014), as evidências existentes apontam
para uma esmagadora oposição dos intelectuais contra a política do
imperador. Esta oposição pode ter provocado o mais notório dos atos do
Primeiro Imperador: o "biblioclasmo" de 213 (para a discussão do que ver
Kern, 2000:188-191; cf Pines, 2009: 172-184), e que não foi debelado depois.
298 Em particular , a decisão de alguns eminentes “Ru' - incluindo Kong Jia

Antigas
fLER, um descendente de Confúcio da oitava geração, de juntar-se ao
Leituras
VISOES DA camponês rebelde Chen She ER#5(-208), tornando Chen um erudito (Shiji
CHINA
ANTIGA 121: 3116), é digno de nota. Os membros da elite educada estavam
claramente insatisfeitos com o regime do "Sábio de Qin".
A postura ativa do Primeiro Imperador se tornou uma de suas
principais falhas aos olhos das gerações futuras. Jia Yi #(-200-168), o
único crítico mais influente de Qin, identificou o excesso de confiança do
imperador em suas habilidades, e a desconfiança nos ministros meritórios,
como uma das principais razões para o mau funcionamento de sua
dinastia." Jia Yi e outros pensadores interpretaram o colapso desastroso do
império em alguns meses, sob a inaptidão e o destempero do Segundo
Imperador, como uma prova do erro da hiperatividade monárquica. Em
retrospecto, a criatividade do imperador Qin foi longe demais. Os
governantes de Han, confrontados com esmagadora críticas de seu
antecessor, tiveram que modificar o modelo de Qin para atender as
expectativas de seus cortesãos para uma forma mais colegiada de tomadas de
decisão.
Epílogo: Os “verdadeiros Monarcas sob os Han

O colapso de Qin ameaçou por um curto período a empresa imperial


em si. Na esteira da desintegração da autoridade central, a maioria dos
extintos Estados Guerreiros foram restaurados , e muitas outras

organizações políticas apareceram no mapa. O mais poderoso dos


potentados rivais, Xiang Yu JH2P}(-202), mesmo que brevemente, aboliu a
instituição imperial, preferindo governar sob o nome de "senhor-rei" (ba
vang #EE). No entanto, se ele pretendia, assim, descartar o modelo de Qin,
O resultado foi exatamente o oposto de suas expectativas. O aumento de uma
lamentável turbulência, devido ao vazio de autoridade legítima, pode ter
convencido os principais atores políticos das vantagens do sistema imperial
para garantir a estabilidade política. Assim, quando Xiang Yu foi derrotado
em -202, seu conquistador Liu Bang #}} (morto em 195) retomou o título 299
de Augusto Soberano, que se manteve como a designação dos governantes Antigas
Leituras
da China para os próximos 2114 anos. VISOES DA
CHINA
Como é sabido, os Han não adotaram apenas o título imperial de
ANTIGA
Qin, mas também, a maior parte dos arranjos institucionais e rituais da
dinastia anterior, seu vocabulário e nomenclatura específica, e muitos
aspectos da sua ideologia imperial e auto-imagem (por exemplo, Loewe
1994: 124ess). Certos topoi, características das inscrições imperiais Qin,
tornaram-se partes essenciais de proclamações dos monarcas desde o antigos
Han e ao longo dos milênios imperiais. Assim, a maioria dos imperadores, a
não ser sob extrema coação, continuaram a saudar a paz, estabilidade e
prosperidade que eles presumivelmente trouxeram para seus súditos; eles
pretendiam governar todo o reino "dentro dos mares", e também afirmavam
sua posição de líderes morais da humanidade (ver, por exemplo, Kern 2000:
175-182). Há também continuidades óbvias em termos de santidade e
sagacidade do imperador, embora estas sejam menos simples, como eu
explico a seguir. Em geral, a dívida de Han para com Qin é inegável.
Apesar destas continuidades, um olhar mais atento para a retórica
imperial Han indica desvios significativos em relação ao modelo Qin. Mais
notavelmente, o fervor messiânico desapareceu. Tendo internalizado as
lições do colapso surpreendente dos seus antecessores, os imperadores Han
não se atreveram a afirmar que tinham criado um admirável mundo novo e
que a história acabara (embora essas noções ocasionalmente ressurgissem as
margens do discurso político Han). Esta "desmessianização" dos
imperadores teve profundas consequências sobre o funcionamento da
instituição imperial. Mais notavelmente, ela permitiu uma bifurcação entre a
instituição como tal, que se manteve absolutamente inviolável, e o
imperador reinante, cuja sagacidade não era necessariamente dada como
certa. Como resultado, em um desenvolvimento mais curioso , os

imperadores Han tornaram-se mais sagrados, mas menos sagaz que seu
orgulhoso antecessor Qin (cf. Loewe, 1994: 85-111; 121-122).
O status sagrado dos imperadores Han (e dos subsequentes) foi
construído sobre uma reafirmação das ligações entre o imperador com a
divindade suprema, o Céu. A idéia do Decreto do Céu (ou Mandato,
Tianming Kífi) ressuscitou sob Liu Bang, cujo hinos rituais agradeciam
repetidamente ao Céu e ao [supremo] soberano (#) por apoiar o esforço
300
Han (Kern, 1996); e, eventualmente, essa idéia se tornou a pedra angular da
Antigas legitimidade dinástica ao longo dos milênios imperiais. Em sua capacidade
Leituras
VISOES DA
renovada como "Filhos do Céu", os imperadores agiam como mediadores
CHINA
ANTIGA únicos entre a divindade suprema e o reino mundano, presidindo questões
humanas e divinas, remodelando repetidamente o panteão, e gerenciando as
múltiplas atividades sacrificiais.
Além disso, os imperadores eram percebidos como ligados ao Céu
por uma forma adicional: através de um sistema de ressonância, O que
significa que o Céu enviava presságios e portentos para aprovar ou
desaprovar sua conduta "do filho" (Loewe, 1994: 121-141). Esta noção de
acrescentar uma dimensão sacra adicional ao regime imperial, tornou o
corpo do imperador, e, mutatis mutandis, seus parentes, assessores,
utensílios rituais, selos e outros apetrechos, sagrados. Este estatuto sagrado
foi enfatizado pelo crescente uso das cláusulas de lesa-majestade no direito
penal: qualquer crime contra a pessoa do imperador foi posteriormente
tratado com o máximo rigor (Pines 2012a: 44-75).
Sendo firmemente incorporado a ideologia do Estado e da prática
ritual, o conceito de status divino do imperador tornou-se parte integrante
da cultura política imperial. No entanto, as suas implicações foram bastante
equivocadas. Rearmar a existência da divindade suprema acima do
imperador, e a crença de que esta divindade pode expressar o
descontentamento com o seu homólogo humano e até mesmo substituí-lo,
serviu como um poderoso freio contra as atrocidades dos monarcas. Não
por acaso, os imperadores Han, desde o imperador Wen #X # (r. 180
157), emitiam repetidamente "Éditos de Mea Culpa" (# EifI),
responsabilizando-se por desastres naturais ou presságios desfavoráveis, e
prometendo melhorar suas condutas, especialmente promovendo a ascensão
de funcionários (Liu Zehua, 1996: 239-247). Parece , então, que a
redefinição do status divino do imperador sob o Han reforçou o prestígio do
imperialismo em geral, mas de certa forma reduziu o poder dos monarcas
individuais. A mesma bifurcação entre os aspectos institucionais e
individuais do imperialismo fica evidente no conceito de sagacidade
imperial sob Han. Aparentemente, os imperadores Han rejeitaram a
arrogância do Primeiro Imperador, e repetidamente, afirmaram sua 301
fraqueza e inadequação. Esta mudança é mais evidente em sua postura vis-à
Antigas
-vis os governantes sábios do passado , especialmente os Cinco Soberanos. Leituras
VISOES DA
Nos Han , esses modelos foram descritos em termos sobre-humanos, como CHINA
ANTIGA
geradores de uma ordem cósmica, e não apenas de uma harmonia social e
política, enquanto os monarcas reinantes modestamente reconheciam sua
incapacidade de corresponder a esse ideal. Esta modéstia está viva , por
exemplo, em um edital de jovem imperador Wu #R# (r. 141-87), no
qual ele chamou "os notáveis" para irem até a corte e ajudá-lo na condução
dos assuntos do governo:

Ouvi dizer que durante os tempos de Tang [H, ou


seja, Yao#] e Yu [Ei, ou seja, Shun #],
desenharam imagens [nas vestes das pessoas, como a
punição], e as pessoas não transgrediam; onde sol e
lua brilhava, todo mundo se comportava com
humildade. Nos tempos dos Reis Cheng Eye Kang ER
de Zhou, castigos mutilantes não foram empregados,
a virtude atingia pássaros e bestas, as instruções
penetraram tudo dentro] dos quatro mares. Além
do mar, eles se expandiram para Sujuan #; ao
norte, desenvolveram Jusou ##; Di IV e Qiang #
|tribos] se submeteram. Não havia nem
deslocamento de estrelas e constelações, nem eclipses
do sol e da lua; cadeias de montanhas não entravam

em colapso, rios e vales não foram bloqueados;


unicórnios e fênix viviam em pântanos próximos, o
Rio Amarelo e Rio Luo propiciaram mapas e
documentos. Wuhu, o que devo fazer para me
aproximar disso [desse estado de coisas]?
Agora, como se tornou o meu dever proteger os
templos ancestrais, eu buscarei isso quando me
levantar ao nascer do sol, e contemplarei isso na
minha cama à noite. [Estou temeroso], como se
passasse por cima do abismo e não soubesse como
302
atravessar. Como é magnífico! Como é grande! O
Antigas que devo fazer para manifestar a esplêndida empresa
Leituras
VISOES DA
e a virtude generosa dos antigos imperadores,
CHINA
ANTIGA sobretudo para ficar em trindade com Yao e Shun, e
assim me equiparar com as três dinastias? Me falta
perspicácia, e não posso sustentar a virtude por
muito tempo.
(Hanshu 6: 160-161)

O Édito do imperador Wu contrasta com as declarações do Primeiro


Imperador (e mais possivelmente, foi conscientemente projetado para ser
/

assim). O passado é excelente, o atual governante não pode igualar suas


conquistas, que só é com a ajuda de assessores dignos que ele pode se
aproximar do esplendor do passado. No entanto, não devemos ser
enganados pela retórica humilde do imperador Han: as regras do jogo na era
Han eram diferentes, e foi a tarefa dos ministros embelezar seu governante, e
exaltar sua suposta sagacidade . Assim, enquanto o Imperador Wu não
pretendia ser um sábio, e usou esse epíteto exclusivamente para seus
ancestrais, seus ministros, por outro lado, rotineiramente identificaram-no
como um sábio. Um novo bom ton da corte era o imperador proclamar
humildemente sua inadequação, e até mesmo culpar a si mesmo por vários
defeitos, enquanto cabia aos ministros saudar o soberano. Eventualmente, a
voz ministerial prevaleceia, e o termo "sábio" (sheng "B) tornou-se
firmemente incorporado a imagem dos imperadores , tornando-se um
sinônimo do adjetivo "imperial" (Hsing, 1988; Liu Zehua, 1998).
Então, isso significa que qualquer imperador Han poderia ser um
sábio como o Primeiro Imperador Qin? Não necessariamente. Ao olhar mais
de perto, podemos notar que em Han, a sagacidade tornou-se mais uma
característica do escritório imperial do que de seu ocupante. Tecnicamente,
o imperador tinha de ser considerado um sábio, muito parecido com ele
tinha que ser considerado sagrado: afinal, na sua qualidade de administrador
supremo ele teve que tomar decisões, entre outras, sobre questões
puramente ideológicas, por exemplo, aprovar ou rejeitar uma certa tradição
exegética ou trabalho canônico como digno de incorporação ao sistema 303
educacional da corte. Desde que os seus juízos seriam finais e supostamente
Antigas
infalíveis, assumiu-se, para preservar o perfil da dinastia, que o monarca era Leituras
VISOES DA
intelectualmente superior a seus súditos. Simultaneamente, no entanto, era CHINA

bem conhecido que o trono não era ocupado, com frequência, por pessoas ANTIGA

medíocres, e até mesmo os imperadores-criança foram manipulados por


seus parentes ou, mais notoriamente, por eunucos da corte. Acreditar na
sagacidade desses indivíduos exigira um grande salto de fé para a maioria
dos literatos.

Se minha análise estiver correta, o principal impacto da "revolução


messiânica" de Qin foi transformar o imperador em uma pessoa divina e
sábia, então, novamente, repetindo Martynov (1987: 29), podemos notar
que Han manteve o "padrão" da utopia, e não seu conteúdo. A posição
imperial foi continuamente considerada divina e sagaz; seu ocupante — um
pouco menos. Eventualmente, esta dicotomia entre a imagem e a realidade
provou ser um padrão muito mais viável do que o modelo Qin de um
carismático monarca "messiânico". Este último era insustentável,

especialmente devido à inevitável acsensão eventual de um monarca incapaz


sob o princípio da sucessão linear, como o caso do famoso Segundo
Imperador prova."
O sistema Han foi muito mais flexível. A posição sagrada da
instituição imperial como tal permitiu-lhe manter a função principal como
o símbolo da unidade universal e de ordem política com o "único estimado"
no topo. Simultaneamente, a reafirmação sutil da possibilidade de que um
monarca individualmente poderia ser medíocre e inepto incentivou a
formação de sistema burocrático de "controles e equilíbrios", que permitiu a
preservação do império intacto, mesmo sob governantes inadequados,
incluindo, mais notavelmente, em uma seqüência de criança monarcas no
período Han tardio. Embora poucos imperadores Han, e alguns
imperadores posteriores, tenham tomado sua sagacidade literalmente, e
tentado impor sua vontade sobre todas as esferas da atividade humana que
se possa imaginar (Wang Mang =E# [45-23 AEC] imediatamente vem à
mente), a maioria foi treinada para entender suas limitações pessoais e
consultar seus assessores, adotando uma forma muito mais colegiada de
governo do que a idéia de Qin de sagacidade imperial permitiria (ver Pines
2012a: 63-69, para mais detalhes). Finalmente, permitam-me duas
observações finais. Em primeiro lugar, eu acredito que a adição do ângulo
304 "messiânica" para uma análise do Qin fornece uma possível solução para o
Antigas enigma de seu lugar histórico. A posição excepcional de Qin na história
Leituras
VISOES DA chinesa deriva não de sua cultura nem de suas instituições, mas a partir da
CHINA
ANTIGA mentalidade muito peculiar de seus líderes, com destaque para o Primeiro
Imperador, que reivindicou o fim da história e exigiu a realização literal de
sua onipotência teórica. Essa mentalidade, que não é atestada tanto no
período pré imperial, ou no período imperial tardio, distingue
significativamente o Qin dos seus antecessores e sucessores. A
excepcionalidade de Qin foi, afinal de contas, uma questão de sua auto
apresentação, e esta auto-apresentação, ao invés da manipulação pós-factum
dos inimigos de Qin, é em grande parte responsável pela visão depois de Qin
como uma "aberração" histórica.
Em segundo lugar, acredito que a minha interpretação lança uma luz
adicional sobre o problema do colapso das Qin, discutido por Shelach (2014,
cap. 3). Como é sabido, Jia Yi, em sua discussão seminal sobre as razões para
o colapso do Qin, notou a sua incapacidade de alterar e modificar seus
caminhos como a principal doença de seu governo (Shiji 6: 283) . No
entanto, este é exatamente o mal comum de regimes messiânicos em todo o
mundo, mais notavelmente o regime comunista na URSS e na China de
Mao, entre outros. Tendo prometido trazer utopia aqui e agora e acabar
com a história, estes regimes tinham dificuldades em desviar-se dos padrões
estabelecidos no momento de sua fundação, e foram geralmente muito
rígidos em termos estruturais.
Diante da dificuldade de cumprir as suas promessas, muitas vezes
eles radicalizaram escala de sua retórica "messiânica" para esconder a
crescente divergência entre imagem e realidade, e sobrecarregar a sociedade
com vários projetos irracionais. Isto, aparentemente, foi o caso dos Qin que,
como mostra Shelach, entraram em uma espiral de projetos sempre
crescentes que visavam, entre outras coisas, projetar o seu poder
incomparável em meio as tensões crescentes de seu regime. Embora não seja
impossível que Qin poderia ter continuado por um período mais longo se
tivesse adaptado-se a um modelo de conduta mais “normal”, acredito que a
mentalidade quase messiânica de seus governantes prejudicou
substancialmente essa possibilidade. Foi somente após a utopia ter sido
305
abandonada, o que Shelach apropriadamente chama de império "indistinto",
que, modelado após Han, adquiriu-se a verdadeira imortalidade ou, pelo Antigas
Leituras

menos, a mais notável longevidade na história política da humanidade. VISOES DA


CHINA
ANTIGA

Notas

Esta pesquisa foi apoiada pela Fundação para a Ciência de Israel (Grant
1217/07) e pela Cadeira Michael William Lipson em Estudos Chineses da
Universidade Hebraica de Jerusalém.

1. O expurgo de Qin por Dong Zhongshu da linhagem das dinastias


legítimas pode ser deduzida a partir de sua construção peculiar dos ciclos
dinásticos do passado, para isso ver Arbuckle, 1995; para a visão de Cai
Yong, consultar Du duan, 1. Para um breve resumo dos pontos de vista
divergentes sobre o lugar de Qin na história, ver, por exemplo, Wang Yundu
e Zhang Liwen 1997,263-277.
2. Veja uma excelente discussão sobre as inscrições das estelas Qin em Kern,
2000. O estudo de Kern serviu de inspiração para a minha pesquisa. Hans
van Ess (2014, cap. 7] adverte que a reprodução das inscrições estelares por
Sima Qian podem não ser confiáveis. Estou convencido: como Kern
(2000:6) mostra, nem uma única fração das estelas apresenta uma imagem
que seja "fundamentalmente diferente" da reprodução de Sima Qian; além
disso, a primeira das inscrições da Estela no Monte Yi, que não foi
reproduzida por Sima Qian, não difere ideologicamente das outras seis
estelas.

3. Mengzi,”Gongsun Chou"4.13: 109.


4. Para os estudos de Xunzi, ver, por exemplo, Goldin 1999; Sato 2003, cf.
Pines 2009, passim.
5. Xunzi,”Wang Zhi”, V.9: 171.
6. Xunzi,”Junzi", XVII.24: 450.
7. Xunzi, “Zhenglun” XII.18: 331.
8. Citado com pequenas modificações de Kern 2000: 13-14.
9. Shyi 6: 245; Kern 2000:32-33. Aqueles ”cujas portas enfrentam o norte”
são moradores das áreas ao sul do Trópico de Câncer, onde as pessoas
supostamente “abrem a porta ao norte para enfrentar o sol” (Kern 2000:
33n76), ver as notas de Kern para outras identificações geográficas.
10. Veja Wang e Cheng 1999: 63-69; estas inscrições foram discutidas por
306 Charles Sanft em um paper apresentado numa oficina em Jerusalém; ver
também Sanft, no prelo.
Antigas
Leituras
VISOES DA
11. Os citações são de, respectivamente, inscrição do Mt. Yi (221), inscrição
CHINA
Taishan (219), inscrição Langye (219), a vista ocidental e oriental da
ANTIGA
inscrição Zhifu (218); e a inscrição Kuaiji (c. 211). Veja Shiji 6:243, 245, 249
, 250, 261; Kern 2000: 14, 21, 32, 36, 39, 49.

12. Veja a inscrição do Mt. Yi (Kern 2000: 13), para “a estabilidade na


unidade” ver Mengzi, ”Lang Hui Wang” 1.6: 17-18; cf Pines 2000.
13. Citado nas inscrições Taishan e Langye (Shiji 6:243, 245; Kern 2000:22,
26,30,32).
14. Ver Taishan, Jieshi (215), e as inscrições Kuaiji (Shiji 6: 243, 249, 262;
Kern 2000:18, 36, 49).
15. Ver a inscrição Jieshi (Shiji 6: 252; Kern 2000:43).
16. Ver, respectivamente, as inscrições Jieshi e Langye (Shiji 6: 252, 245,
Kern 2000:43, 28).
17. Xunzi, “Zhenglun”, XII.18: 324-325.
18. Ver, respectivamente, as inscrições Langye, Taishan e Kuaiji (Shiji 6: 245,
243, 261; Kern 2000:26, 22-23, 48).
19. Ver, respectivamente, as inscrições Langye e Kuaiji (Shiji 6: 245, 261;
Kern 2000:31, 48).
20. Para a importância dos títulos apropriados pelo Augusto Soberano, ver
Liu Zehua 2000: 131-136.

21. Inscrição Taishan (Shiji 6: 243; Kern 2000: 21).


22. Mais precisamente, o epíteto de “sábio” aparece em apenas cinco
inscrições: é notavelmente ausente na primeira, a inscrição do Mt. Yi, que é
um pouco mais modesta em seu tom do que as últimas, e é ausente da
inscrição Jieshi incompleta (sobre incompletude desta, veja a discussão em
Kern, 2000: 41m 117).
23. Para a modificação radical do panteão imperial sob o Qin, consulte Shiji
28: 1366-1367; para o castigo das Divindades do Mt. Xiang, consulte Shiji
6:248.

24. Ver Kern 2000: 12-13 para a primeira; Shiji 6: 236 para a segunda.
Enquanto o imperador realizava devidamente sacrifícios múltiplos, ele
poderia ter focado na busca de ganhos pessoais das divindades (por
307
exemplo, a imortalidade, ver Poo, capítulo 5 deste volume), em vez de apoio
a seu esforço político. Antigas
Leituras

25. Deve-se lembrar que as religiões escatológicas e o fenômeno relacionado VISOES DA


CHINA
do messianismo religioso pode ter existido na China desde a virada da Era ANTIGA

Comum (ver, por exemplo, Zurcher 1982), e alguns imperadores,


principalmente Zhu Yuanzhang (1328-1398 CE, r. 1368-1398), adotaram o
que pode ser apelidado de uma postura messiânica; não houve um único
governante entre o primeiro Imperador e Mao Zedong que estivesse tão
ansioso para apresentar o seu governo não como uma restauração da glória
do passado, mas como um novo começo.
26. Minha adoção do termo "messiânico” na política dentro do contexto
religioso é influenciada pelo conceito J. L. Talmon de "messianismo
político” (ver, por exemplo, Talmon 1960).
27. Lushi Chunqiu, ”Zhen Luan”, 7.3:393-394.
28. Ver, por exemplo, a inscrição do Mt. Yi citada no texto, ou a inscrição da
vista leste Zhifu, que resume: "visto contra o velho, nossos tempos] são
definitivamente superiores" (Shiji 6:250; Kern, 2000:39). Veja também
memorial de Li Si, que iniciou a queima dos livros de 213, em que Li Si
acusou seus adversários de "falar sobre o passado para prejudicar o
presente” (Shiji 6: 255).
29. O medo da perda potencial do mandato é evidente em muitos textos
supostamente antigos dos Zhou Ocidentais, como o ”Kang gao" e o “Duo
fang” e a “ode Wen Wang”.
30. Veja termos como "por um longo tempo” (chang, 5 vezes) e “para
sempre" (yong, 3 vezes); referências análogas a longevidade de "gerações
inumeráveis" (Wanshi) estão espalhadas nos discursos citados nos "Anais
básicas do Primeiro Imperador”. Para a busca da linhagem longeva nas
inscrições de bronze Zhou, ver Xu Zhongshu 1936.
31. Martynov (1987: 25-30) discute textos antigos Han, mas a sua
observação pode ser facilmente aplicado às estelas Qin também.
32. O termo “Taiping” aparece nos textos pré-Qin apenas duas vezes: no
Lushi Chunqiu e Han Feizi, os quais mencionam apenas de passagem. A
única referência significativa para Taiping em um texto pré-imperial aparece
no polêmico (em termos de datação e autoria) "Tian Dao”, capítulo do
Zhuangzi onde este termo é explicitamente associado com ”a regra máxima
308 da ordem” atingido pelos "iluminados” (ming) governantes da Antiguidade.
Para o seu uso em Han, consulte Loewe 1995: 313-314. Um possível
Antigas
Leituras
VISOES DA
antecessor do termo Taiping é o composto "extrema paz/uniformidade” (Zhi
CHINA
ping), empregado por Xunzi (Xunzi, “Jun dao” VIII. 12: 232).
ANTIGA
33. Para as medidas de unificação Qin, consulte Shiji 6: 239-241; para uma
análise destas medidas como imposição das instituições de Qin sobre a
população conquistada, ver a introdução à parte 2 deste volume; para a
imposição do novo vocabulário, consulte Hu Pingsheng 2009 e a introdução
para a parte 2 deste volume; para a imposição dos níveis Qin, consultar
Hsing, capítulo 4 deste volume.
34. Taishan, Zhifu leste, e as inscrições Kuaiji (Shiji 6: 243, 250, 261; Kern
2000:21, 39, 47, modificado).
35. No exame de documentos pelo imperador, o pedido teria sido feito por
”especialistas técnicos” (Fang Shi], da corte de Qin, como uma desculpa
para o seu fracasso em ensinar ao imperador a arte da imortalidade. Veja
Shiji 6:258. De acordo com Li Rui e Wu Hongqi 2003: 132, o primeiro
Imperador visitou trinta e oito das quarenta e seis comanderias de Qin, isso
além de seus embarques para o mar. Somente muito poucos governantes, ao
longo da história imperial da China, puderam dar escopo as suas visitações.
Para a conexão entre peregrinações do imperador e a atividade imperial em
geral, consulte Pines, [no prelo] (b).
36. ”Sábio de Qin” (que provavelmente deve ser lido como ”o Grande
Sábio”) é a auto-denominação do Primeiro Imperador na estela Kuaiji (Shiji
6: 261; Kern 2000:45). As atividades de Kong Jia na corte de Chen she e suas
razões para se juntar a rebelião estão resumidas nos capítulos 19-21 de Kong
congzi (Kong congzi, 409-435). Embora o livro em si seja quase certamente
falso (Ariel, 1989), é provável que tenha incorporado materiais anteriores,
que podem muito bem ser confiáveis na medida em que as atividades de
Kong Jia (a.k.a Kong Fu) estão em questão.
37. Veja Shiji 6: 283, para o impacto de Jia Yi em avaliações posteriores de
Qin, consultar Shelach, [2014, cap. 3]. Para um argumento um pouco
semelhante contra o domínio hiperativo de Qin como a fonte de sua
desgraça, ver Lu Jia (c. 240-170 AEC) Xin Yu, ”Wu wei” 4: 62. 3 09
38. Huhai, o segundo imperador Qin, foi denegrido além da imaginação nos
registros históricos, a nossa única fonte significativa de seu governo. No Antigas
entanto, mesmo se muitas anedotas sobre ele estiverem erradas, o próprio v#A
fato de que em dois anos de seu governo o enorme império entrou em #A
colapso, em grande medida devido à deserção de seu principal exército,
prova sua inadequação além de qualquer dúvida.

Bibliografia
O presente artigo está presente no livro:
PINES, Yuri; FALKENHAUSEN, Lothar Von; SHELACH, Gideon; YATES,

Robin (orgs.] Birth of an Empire — The State of Qin Revisited. Berkeley:


University of California Press, 2014.
Os capítulos abaixo fazem parte da coletânea citada acima:
Shelach, Gideon, 2014. Collapse or Transformation? Anthropological and
Archaeological Perspectives on the Fall of Qin. 113-140
Vas Ess, Hans, 2014. Emperor Wu of the Han and the First August Emperor
of Qin in Sima Qian's Shiji. 239-257
Yakobson, Alexander, 2014. The First Emperors: Image and Memory 280
300
Outras referências

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Zürcher, Erik. 1982. “Prince Moonlight: Messianism and Eschatology in


Early Medieval Chinese Buddhism.” T'oung Pao 68.1–3: 1–75.
BIOS

Alicia Relinque Eleta, Phd. é professora da Universidade de Granada. Seus


principais campos de atuação são Literatura Chinesa antiga e estudos de
gênero na China. Prof. Alicia é, com certeza, uma das maiores sinólogas do
mundo Hispano-americano, com um vasto número de publicações e
traduções únicas na área. Entre elas, encontram-se El corazón de La literatura
y el cincelado de dragones [1995], Relación de las cosas del mundo [2001], De
las manos negras al sol rojo. Los carteles de la Revolución Cultural china
[2005] e La Construcción del Poder en la China Antigua [2009]. O texto aqui
presente nessa coletânea foi retirado de Pedro Aullón de Haro ed., Teoría del
Humanismo (Vol I), Verbum: Madrid (pp. 251-269).

Ana Maria Amaro, Phd., é professora catedrática jubilada da ISCSP


Universidade Técnica de Lisboa, fundadora e atual presidente do Instituto
312
Português de Sinologia. Há quase cinqüenta anos estudando a China, com
Antigas ênfase em Macau, é provavelmente a maior sinóloga portuguesa em
Leituras
VISOES DA atividade, tendo vivido na China durante anos, e possuindo uma vasta
CHINA
ANTIGA produção acadêmica. Destacam-se os livros Jogos, brinquedos e outras
diversões populares de Macau [1972], O mundo chinês [dois volumes, J e
Estudos sobre a China [1998], entre dezenas de textos e volumes. É uma ativa
colaboradora da Revista do Instituto Cultural de Macau, e promotora dos
fóruns internacionais de Sinologia em Portugal, um dos mais destacados
eventos da área no mundo lusófono. O artigo aqui presente foi retirado da
Revista de Cultura de Macau, 1997.

André Bueno, Phd. é professor de História na Universidade Estadual do


Paraná. Há mais de duas décadas atua no campo da divulgação dos estudos
sinológicos no Brasil, possuindo várias publicações relativas ao tema. Desde
O à Il() 2000, promove O Projeto Orientalismo

[www.orientalismo.blogspot.com], que disponibiliza fontes e textos sobre as


civilizações de China e Índia. As principais áreas de pesquisa do Prof. André
são Confucionismo e Diálogos interculturais no pensamento e na arte. Suas
produções [livros e traduções] podem ser vistas em
www.escritosinicos.blogspot.com
António Graça Abreu, Phd. é professor na Universidade do Aveiro, sendo
reputado como um dos sinólogos portugueses que melhor já conheceram a
China. Além dos estudos sinológicos, chegou a lecionar em Beijing entre
1977-83, e realizou um vasto trabalho de tradução de obras chinesas para o
português. Entre elas, destacam-se O Pavilhão do Ocidente (1985), Poemas de
Li Bai (1990), Poemas de Bai Juyi (1991), Poemas de Wang Wei (1993),
Poemas de Han-Shan (2009) e co-autor de Sínica Lusitana Vol. I e II (2000 e
2003). Laureado com diversos prêmios, foi ainda autor de obras próprias,
tais como Terra de Musgo e Alegria (2005), China de Lótus (2006), Cálice de
Neblinas e Silêncios (2008), A Cor das Cerejeiras (2010) e Toda a China
(2014). Uma biografia mais extensa sobre o autor pode ser vista em
http://pontofinalmacau.wordpress.com/2010/01/19/o-portugues-que
melhor-conhece-a-china/
3 13
Bony Schachter é doutorando do Instituto Nacional de Estudos Antigas
Leituras
VISOES DA
Humanísticos Avançados (wenshiyanjiuyuan X SE###) da Fudan CHINA
ANTIGA
University4 HJK*, Shanghai. A tese que agora desenvolve em tal
instituição se concentra na Escritura do Soberano de Jade (CT 10 gaoshang
yuhuang benxing jijing), por meio da qual investiga a história intelectual
relacionada a tal deus e o problema da autoridade escritural na China.

Chenyang Li, Phd. é o fundador do Programa de Filosofia da Universidade


Tecnológica de Nanyang, Singapura, onde atua. Lecionou na Universidade
Central de Washington, tendo recebido várias distinções. Seus interesses
principais de pesquisa são a Filosofia Chinesa e Filosofia comparada, tendo
publicado nove livros nesse campo, dos quais destacam-se The Confucian
Philosophy of Harmony (2013), The Tao Encounters the West: Explorations in
Comparative Philosophy (1999) e The Sage and the Second Sex (ed. 2000).
Publicou ainda mais de cem textos e artigos em livros e revistas
especializadas, tais como Philosophy East and West e Journal of Chinese
Philosophy. Atualmente é vice presidente da International Society for
Chinese Philosophy. O artigo aqui presente nessa coletânea foi retirado do
livro The Tao Encounters the West: Explorations in Comparative
Philosophy (1999).
Jana S. Rosker, Phd. é professora de História e Pensamento Chinês no
Departamento de estudos asiáticos da Universidade de Ljubljana, Eslovênia.
Possuindo uma sólida formação em Sinologia, tendo passagens em diversas
universidades chinesas e européias, a Prof. Rosker é especializada em
Filosofia, Lógica e Epistemologia do pensamento Chinês, e possui uma vasta
publicação de livros e artigos em inglês e chinês. Entre seus muitos
trabalhos, destacam-se Searching for the Way: Theory of Knowledge in Pre
modern and Modern China [2008], The Yields of Transition: Literature, Art
and Philosophy in Early Medieval China [2011], Traditional Chinese
Philosophy and the Paradigm of Structure (Li) [2012] e Modernisation of
Chinese Culture: Continuity and Change [2013]. É ainda uma ativa
promotora da Associação Européia de Estudos Chineses, divulgando a
Sinologia no âmbito europeu.

3 14 Jesualdo Correia Jesualdo Correia é orientalista, linguista e pesquisador


independente. Estudou linguas e orientalismo na Stockholms Universitet
Antigas
Leituras
VISOES DA
(indologia e sinologia), na École Practique des Hautes Études, Banaras
CHINA
Hindu University e na Guoli Yangming Daxue (Taiwan). Principais áreas de
ANTIGA
interesse: gramatologia e estética comparadas, paradigmas cognitivos do
pensamento oriental e geopolítica dos BRICS. Escreveu vários ensaios, livros
e artigos dentro os quais The Paninean PrAdipa of Shrl GopAla ShAstri
(1976), PAnini e a Estrutura do Ashta.AdhyAyI (Rev. Bras. Lingua e Lit., 1982;
2013), A Tradição Gramatical na India como Disciplina Espiritual
(RBLL, 1982; 2013), A Descoberta do Sânscrito pelo Ocidente (RBLL, 1982;
2013), Teoria da Arte na China (Correio Braziliense, 1985), O Sopro
Primordial (CB, 1986), Yijing, o Sustentáculo Metafísico (CB, 1986), O
Orientalismo (Rev. Humanidades, 1986), Pelas Trilhas do Oriente
(Topbooks, 1998/99; 2. ed. inteiramente refundida, online: 2013), Estética
Comparada... (Ed. Alphomega 2001; 2. ed. 2013), Paideia, Hegemonia e
Momentum (Rev. Assoc. Planej. 2012), O Método Militar de Sun Zi (OIKOS,
2013). Uma visão mais ampla de suas produções pode ser vista em:
www.jesualdocorreia.blogspot.com.br
Márcia Schmaltz é brasileira, mas cresceu em Taiwan. Tradutora-intérprete e
professora de chinês. Formou-se em Língua e Literaturas Portuguesas
(FAPA), Mestre em Estudos da Linguagem (UFRGS), pesquisadora sênior
na Universidade de Língua e Cultura de Beijing (BLCU), foi leitora na
Universidade de Pequim e professora de chinês na Universidade de Caxias
do Sul. Doutoranda em Linguística na Universidade de Macau (UM), onde
leciona desde 2008. Em 1999, ganhou o prêmio Xerox/Livro Aberto e, em
2001, o Prêmio Açorianos de Literatura, categoria tradução.
Traduziu Viver de Yu Hua (Companhia das Letras, 2008), Dicionários
Temáticos e Visuais Bilíngues (UNESP), Contos Completos de Lu Xun (L&PM,
no prelo), entre outros.Junto com Sérgio Capparelli publicou pela L&PM 50
Fábulas da China Fabulosa (2007) e Contos Sobrenaturais Chineses (2010). É
editora da coleção Tradução de Clássicos Brasileiros para o Chinês (UM).
Colabora com a Revista Macau.
3 15
Natasa Vampeli Suhadolnik, Phd. é professora de História da Arte Chinesa Antigas
Leituras

no Departamento de estudos asiáticos da Universidade de Ljubljana, VISOES DA


CHINA
Eslovênia. Pesquisadora de arte chinesa antiga, com ênfase na arte budista, a ANTIGA

Prof. Suhadolnik angariou uma ampla experiência com o tema, tendo feito
estudos de aperfeiçoamento em várias universidades chinesas e européias.
Entre seus mais diversos artigos e livros, podemos destacar The Yields of
Transition: Literature, Art and Philosophy in Early Medieval China [2011], e
Modernisation of Chinese Culture: Continuity and Change [2013], realizados
em parceria com a prof. Rosker.

Wang Keping, Phd. é professor de Filosofia da Beijing International Studies


University [BISU], e diretor da Academia de Ciências Sociais da Chinesa
[CASS], sendo reconhecido como uma dos maiores especialistas chineses
atuais em diálogos interculturais, filosofia comparada e estética. Possui
formação em universidades da Europa e no Canadá. Tendo já viajado por
diversos países, o prof. Wang tem uma obra ampla, várias vezes premiada
tanto em chinês quanto em inglês, cujo valor inestimável tem sido
reconhecido internacionalmente. Entre seus trabalhos, podemos destacar,
em inglês, The Classic of the Dao: A New Investigation. [1998], Chinese
Philosophy on Life. [2005], Ethos of Chinese Culture. [2007], Spirit of Chinese
Poetics. [2008], Chinese Way of Thinking. [2009, no qual está presente o
ensaio de nossa coletânea] e Reading the Dao: A Thematic Inquiry. [2011].
Para uma visão mais completa de sua ampla produção, pode-se cosultar o
sítio: http://philosophy.cass.cn/Subject.aspx?n=20090716102333933227 [em
chinês]

Yuri Pines, Phd. é professor da Universidade Hebraica de Jerusalém. Seus


principais campos de atuação são história, historiografia e pensamento na
China Antiga. Com uma vasta produção acadêmica de qualidade, e tendo
recebido diversos prêmio por suas obras e pesquisas, o Prof. Pines é um
reputado especialista no campo da Sinologia. Já publicou dezenas de artigos
em revistas especializadas, além de alguns destacados livros, tais como
Foundations of Confucian Thought: Intellectual Life in the Chunqiu Period,
722-453 B.C.E. [2002], Envisioning Eternal Empire: Chinese Political Thought
of the Warring States Era [2009], The Everlasting Empire [2012] e Birth of an
31 6 Empire: The State of Qin revisited (2014], do qual reproduzimos um capítulo
presente nessa coletânea. Uma visão completa do trabalho do Prof. Pines
Antigas
Leituras
VISOES DA
pode ser vista em: http://www.eacenter.huji.ac.il/?id=1182
CHINA
ANTIGA

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