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19/10/2019 Xeque-Mate: um Torneio de Xadrez na Corte do Rei Felipe II

Xeque-Mate: um Torneio de Xadrez na


Corte do Rei Felipe II
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História em Rede
Jul 13 · 7 min read

Madri, 1575. Capital de um dos maiores impérios da História. Sob o


domínio dos Habsburgos, a Coroa espanhola estendia seu poder aos quatro
cantos do mundo. Do México às Filipinas, arquipélago asiático que foi assim
denominado em homenagem ao rei Felipe II, a Espanha fazia justiça ao
título de “Império onde o Sol não se põe”. Na Corte madrilenha, que vivia
dias de opulência em virtude das riquezas extraídas dos territórios
ultramarinos, os nobres disputavam a preferência do monarca em busca de
favores e mercês. A atenção do soberano, porém, passava longe das intrigas
cortesãs. Felipe II estava mais interessado no torneio de xadrez organizado
por ele e que acontecia justamente em sua Corte.

O rei da Espanha era um entusiasta do jogo, mas é bem verdade que o


xadrez já possuía uma longa história na região antes do torneio de 1575. Os
primórdios remetem à invasão árabe na Península Ibérica, quando os
recém-chegados introduziram o Xatranje, um dos precursores do xadrez. O
Xatranje, derivado de um jogo indiano, popularizou-se rapidamente no
mundo islâmico. O tabuleiro e as regras eram muito semelhantes aos do
xadrez, embora houvessem algumas variações quanto à disposição das
peças e aos movimentos que elas faziam. Além disso, as representações das
peças eram diferentes: no lugar do bispo, elefantes, ao invés da dama, o firz
ou conselheiro.

Xatranje, precursor do xadrez moderno

O Xatranje difundiu-se pela Península Ibérica ao longo da Idade Média e


contribuiu decisivamente para o surgimento do xadrez, servindo como base
para o desenvolvimento do jogo. Não por acaso, as peças de xadrez mais
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antigas encontradas na Europa foram localizadas em uma cidade


espanhola. As “Peças de Áger”, produzidas em cristal, pertenceram ao
conde Arnau Mir de Tost e foram legadas à Igreja de Santo Egídio, da cidade
de Áger, em 1058 por meio de um testamento. As peças evidenciam a
influência árabe em seu formato, contando ainda com o firz, que anos
depois seria substituído pela dama ou rainha. O material utilizado,
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possivelmente de origem egípcia, também sugere a influência estrangeira.
Apesar disso, as “Peças de Áger” indicam a relevância que o jogo adquiriu na
Península Ibérica, sobretudo nos círculos da nobreza.

Templários disputando uma partida de Xadrez — Iluminura do “Libro de los Juegos”

A difusão do xadrez na região pode ser atestada ainda por um livro. O


“Libro de los Juegos”, de 1283, foi o primeiro a descrever vários jogos
praticados entre os ibéricos, dentre eles o xadrez. E a predileção
monárquica pelo jogo mais uma vez é notável. Isso porque o livro foi
encomendado pelo rei Afonso X, de Leão e Castela. O livro de 98 páginas,
que atualmente encontra-se na biblioteca San Lorenzo del Escorial, é um
dos documentos mais importantes para se estudar a História dos jogos de
tabuleiro.

O xadrez continuou a avançar nos séculos seguintes entre os ibéricos,


mantendo-se como alvo de estudos. E foi na Espanha, em 1497, que foi
publicado o primeiro tratado impresso sobre o jogo: “Repetición de amores
y arte de ajedrez”. O autor, Luis Ramírez de Lucena, estudou na
Universidade de Salamanca, apresentando diferentes jogadas e análises em
seu ensaio.

Iluminura medieval representando uma partida de xadrez

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Diante dessa rica trajetória, não surpreende, portanto, o interesse do rei


Felipe II pelo xadrez. O jogo já era uma prática consolidada na Espanha. A
grande novidade, porém, era a realização de um torneio. Este foi o primeiro
do tipo a ser documentado. É provável que outras competições tenham sido
realizadas anteriormente, mas nenhuma teve a dimensão do torneio de
1575. O rei reuniu os melhores jogadores de sua época e decidiu premiar o
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campeão. Quatro jogadores famosos foram convidados: os espanhóis Ruy
López de Segura e Alfonso Cerón; e os italianos Paolo Boi e Geovanni
Leonardo di Bona. Mas, afinal, quem eram eles?

Paolo Boi nasceu no ano de 1528 em Siracusa, atual Itália, e era proveniente
de uma família abastada. Um talento do xadrez desde a mocidade, Boi
despertou a admiração do Papa Pio V e de diversos duques da Itália por suas
jogadas. Durante alguns anos, ele esteve entre os favoritos do Duque de
Urbino, recebendo honorários de 300 escudos anuais. A sua trajetória é um
bom exemplo de que ser um notável enxadrista era um caminho possível
para alcançar uma posição favorável no contexto do Antigo Regime.

Alfonso Cerón era outro jogador afamado em sua época. Ele nasceu na
região de Granada, em 1535, e era parte do clero católico. Frequentando o
círculo cortesão espanhol em virtude de suas habilidades como enxadrista,
Cerón era tido como um dos melhores da Espanha. Era também um
estudioso do jogo, tendo escrito uma obra sobre xadrez chamada De
latrunculorum ludo o Del juego del Ajedrez.

De Cutro, cidade localizada na região da Calábria, veio Giovanni Leonardo


di Bona (ou da Cutri, como também é mencionado), outro mestre do
xadrez. O mais jovem dos competidores, contando 23 anos na data do
torneio, Leonardo di Bona havia estudado direito em Roma. Embora não
tivesse tanta experiência quanto os demais, ele passou dois anos praticando
e aprendendo xadrez com Paulo Boi. Um caso curioso envolvendo suas
habilidades de xadrez deu-se quando o seu irmão foi capturado por piratas
sarracenos. Segundo se sabe, Leonardo jogou uma partida de xadrez com o
líder dos piratas valendo a liberdade de seu familiar. Ele teria não só
vencido e resgatado o irmão, como também ganhou 200 ducados apostados
pelo pirata.

A ideia do jogo de xadrez valendo a vida, a exemplo do caso de Giovanni Leonardo, foi recorrente na Idade
Média. É o que foi retratado na obra “Jogo de xadrez com a morte” (1480), de autoria de Albertus Pictor
(1440–1507). A pintura encontra-se no mural de uma Igreja em Täby, Suécia

O grande favorito a vencer o torneio, porém, era o espanhol Ruy López de


Segura. Natural de Zafra, na região espanhola de Badajoz, Segura era
considerado o melhor jogador de xadrez da Europa. Ele possuía 35 anos de
idade quando participou do torneio do rei Felipe II, mas sua experiência de
vida parecia muito mais vasta. Oriundo de uma família de mercadores,
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Segura foi ordenado padre e atuou durante um tempo na paróquia de Zafra.


Logo passou à Corte de Felipe II, tornando-se confessor e conselheiro régio.
Mas a sua grande paixão era o xadrez. Praticante do jogo desde a juventude,
Ruy López de Segura rapidamente se destacou no xadrez. Sua fama como
melhor jogador de sua época se deveu em grande parte às vitórias
acumuladas contra jogadores italianos, grandes referências do jogo no
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século XVI. Em 1560 e 1573, quando esteve em Roma em virtude de suas
funções religiosas, Segura derrotou os melhores enxadristas italianos,
consolidando sua reputação. Ele, inclusive, venceu as duas partidas que
disputou com Leonardo di Bona. Segura destacou-se ainda como intelectual
e humanista, escrevendo uma obra sobre gramática. Foi ainda um
importante teórico do estudo sobre o xadrez, publicando em 1561 o tratado
intitulado Libro de la invención liberal y arte del juego del ajedrez, muy útil y
provechosa para los que de nuevo quisieren aprender a jugarlo, como para los
que ya lo saben jugar. Descrevendo estratégias e analisando o jogo, Segura
difundiu uma jogada que acabaria recebendo o seu nome muitos anos
depois: a Abertura Ruy López, também conhecida como Abertura
Espanhola. Foi ainda um praticante notável do xadrez às cegas, variação na
qual os jogadores não podem ver o tabuleiro. Com uma trajetória tão
impressionante no xadrez, Segura era bem quisto pelo rei Felipe II,
recebendo honrarias por seu talento.

Ruy López de Segura representado com sua famosa jogada em um selo cubano

Reunidos os competidores, o torneio foi finalmente realizado em 1575.


Acompanhado de perto pela Corte, o resultado final foi surpreendente,
contrariando os prognósticos. O grande favorito, Ruy López, acabou
derrotado por Giovanni di Bona, que se sagraria campeão do torneio. A
derrota não abalou o renome de Ruy López, mas alçou di Bonna à posição
de melhor jogador da Europa. E a conquista não trouxe apenas fama.
Giovanni Leonardo foi agraciado por Felipe II com prêmios e honrarias. Ele
recebeu 1000 ducados, uma capa de arminho e sua cidade natal, Cutro,
então parte do Império espanhol, ficou isenta de impostos por 20 anos. A
localidade celebrizou-se como a “cidade do xadrez”, confirmando o sucesso
de Giovanni.

Quadro de Luigi Mussini de 1885, retratando a partida de Ruy López e Giovanni Leonardo

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Enfim, o torneio de xadrez realizado em 1575 é um caso emblemático que


aponta para a popularidade do jogo entre os europeus no início da Idade
Moderna. Tendo se desenvolvido ao longo da Idade Média, o xadrez, mais
do que um jogo, configurou-se como um meio de ascensão social para os
jogadores mais notáveis. Graças ao apreço que o jogo tinha no meio régio e
aristocrático, era possível alcançar concessões, favores ou cargos. Até por
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isso, o xadrez constitui uma relevante prática lúdica a partir da qual é
possível compreender a sociedade do Antigo Regime. Centrada na figura do
rei, que possuía grande autoridade sobre a vida pública, tal sociedade
estava ordenada em uma estrutura hierárquica baseada em privilégios.
Quanto mais próximo do monarca, mais favorecido era o grupo social ou o
indivíduo. E, neste sentido, o xadrez foi um caminho importante para que
vários de seus praticantes se aproximassem tanto do rei, quanto de sua
corte. Como em um tabuleiro de xadrez, a sociedade do Antigo Regime era
dependente do rei, sendo ele a peça mais importante em jogo.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor do Colégio Pedro II e Doutor em


História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de
artigos e livros sobre História, como a obra Feitiço Caboclo: um índio
mandingueiro condenado pela Inquisição.

História Xadrez Idade Moderna Idade Média Espanha

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