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A HISTÓRIA DE DUAS CIDADES

Sippar está situada a cerca de 20 quílômetros ao sul de Bagdá, onde os


cursos do Eufrates e do Tigre estão mais próximos um do outro. Como
tantas outras cidades mesopotâmi:is, o seu destino dependia do compor-
tamento freqüentemcme errático desses rios, e a estreita proximidade e
interação das duas correntes resultaram cm peculiares efeitos hidráulicos.
De acordo com pesquisas geoarqueológicas, os rios estavam interligados
quando o local recebeu os seus primeiros habitantes, durante o período
Uruque. 1 Depósitos de limo deixados pelo Eufrates formaram bancos
para criar uma elevação habitável acima das planícies alagadiças. A cidade
estava situada ao longo das margens do Eufrates. O elevado cooteC1do de
sedimentos transportados por esse rio tinha o efeito gradual de enterrar
os mais antigos canais do Tigre, empurrando esse rio para o leste. Ao
mesmo tempo, a elevação do leito <lo rio causou uma 11111danç 1 do Eufra-
tes ainda mais para oeste, o que resultou numa separaçi.io permanente dos
rios g2meos, deixando entre eles uma área de terra qll(; po<lia ser culti-
vada.
A localização de Sippar não só assegurava um abasrc:cimento de água
relativamente estável, mas também teve imponantes implicações em ter-
mos de infra-cstrutura. A principal forma de comunicação era ao longo
dos rios, em barcos. Sippar tinha acesso a ambas as corrcnres principais e
a seus afluentes, se bem que, durante os períodos históricos, o Eufrates
fosse muito mais importanre do que o T igre como curso de água navegá-

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MESül'OTAIIIJJ\ ü Sl'l"IO E SEUS lêSCJ\V,\l) O RES

vcl. Sippar também ocupou uma posição fundamental no contexto meso- Era um documento de fundação escrito pelo rei babílônio Nabuapla-idina
potâmio mais amplo, por estar próxima do planalto assírio, de Jezirah e (e. 870) e continha uma clara inscrição em relevo que dizia tratar-se de
da região do médio Eufrates que controlava o acesso aos vales sírios. Não uma representação do deus-sol Chamash em seu santuário chamado Eba-
surpreende, portanto, que Sippar tivesse sido sempre um importante cen- bar em Sippar. De uma assentada era possível identificar o sítio e a parte
tro de atividade comercial. Por causa do seu papel mercantil, era também da construção onde a caixa tinha sido encontrada. Rassam associou de
mais cosmopolita do que a maioria das cidades mesopotâmias. imediato o nome Sippar com o Sefarvaim citado na Bíblia (2 Reis 17:24,
Sippar era ainda um importante centro religioso. Duas deidades prin- 31), uma passagem registrando q ue o rei da Assíria tinha levado gente daí
cipais eram aí cultuadas em gra11des templos sep:irados: o deus-sol Cha- para tomar posse da Samária e habitar suas cidades, no lugar dos habitan-
mash e Annunitu, uma deusa com características semelhantes às de lshtar. tes locais deportados. 3 Muito encorajado, Rassam prosseguiu com suas
Como o deus-sol era considerado um árbitro da justiça na M esopotâmia, explorações durante três meses. Fez uma planta preliminar do Ebabar e
Sippar adquiriu prestígio como cidade que primava pela honestidade. avaliou que o santuário continha cerca de 300 salas e pátios, dos quais
O sítio arqueológico produziu duas camadas de provas, compreen- desobstruiu cerca de 170. Seus esforços fora m amplamente recompensa-
dendo, por um lado, documentos do período Babilônio Antigo, desde dos, pois não só achou o que deviam ter sido as câmaras do tesouro do
aproximadamente 1800 até 1600, e, outro, registros de meados do pri- templo, repletas d e preciosos objetos votivos, mas também desenterrou
meiro milênio, a última fase de prosperidade de Sippar. A arqueologia foi milhares de plaquetas cuneiformes.
complicada pelo fato de suas ruínas estarem disseminadas por dois sítios Ao contrário das que ele antes desenterrara nos palácios assírios,
distintos, sendo um deles o cômoro hoje conhecido como Abu Habbah, e essas plaquetas não tinham sido cozidas na antigüidade e "o barro torna-
4
o outro denominado ed-Der. ra-se tão friável que esboroava assim q ue elas eram expostas ao ar". A sua
solução foi cozê-las in sittt, e em conseqüência muitas delas se amalgama-
ram. Não obstante, ele calculou ter podido embarcar cerca de 50.000 pla-
O SÍTIO E SEUS ESCAVADORES quetas para Londres antes de deixar abruptamente Sippar quando sua
licença foi cancelada pelo sultão. O conteúdo dos numerosos engradados
Em 18 8O, Hormuzd Rassam, um natural de Mossul que tinha trabalhado remetidos para o Museu Britânico não só contribuiu com alguns dos mais
com Austen Layard e obtivera do sultão otomano uma abrangente licença interessantes objetos para a coleção do museu, independentemente do
de escavação, foi incumbido de obter antigüidades para o Museu Britâ- rico material epigráfico, mas também proporcionou uma visão da história
nico. Quando se deparou com o cômoro de Abu Habbah, conveniente- de Sippar, para a qual faltava detalhada informação arqueológica.
mente elevado acima dos campos cultivados ao redor, o xeque local con-
cedeu-lhe sem reservas permissão para explorar as rnínas. Com uma sorte
O objeto mais antigo era um vaso d e pedra do período Jemdet-Nasr
(e. 3000) . Havia um grande número de outros objetos e vasos do Primeiro
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que se tornou proverbial, Rassam tinha encontrado um sítio sumamente Dinástico, entre eles uma estátua dedicada por um rei de Mari chamado
notável. Considerara preferível começar cavando no ponto mais elevado, Iku-shumugan, a qual forneceu o mais antigo documento histórico de
que se parecia muito com as ruínas de um zigurate, e de fato, quando os Sippar conhecido até hoje (e. 2500). Os reis acádios Manishtusu, Rimush
operários limparam o entulho superficial, descobriram uma câmara com e Charcali-charri contribuíram com cabeças de maças (com inscrições) e
o piso revestido de betume. outros objetos de pedra, veneráveis artefatos que foram preservados no
templo a par de outras doações régias, uma estela de Hamurábi (1792-
Sem perda de tempo, mandei quebrar e examinar o pavimento de asfalco, e, 17 50), pedras de fronteira dos governantes cassitas e a plaqueta do deus-
para surpresa dos trabalhadores e grande satisfação minha, foi descoberto no sol de Nabuapla-idina (e. 870). O objeto datável mais recente era um vaso
canto sudoeste da câmara, uns 90 centímetros abaixo da superfície, uma ces- de aragonita com um cartouche egípcio, doado ao templo durante o pe-
ta de barro com rampa e inscrição. Dentro dela encontramos uma pl:lqueta de
ríodo Aquemênida. Cerâmica e vidro que devem ter provindo de casas ou
pedra, de cerca de 30 centímetros de comprimento por 18 centímetros de
largura, minuciosamente inscrita em ambos os lados e com um pequeno bai- tumbas particulares mostraram que o sítio ainda estava ocupado durante
5
xo-relevo no topo. 2 as épocas parta e sassânida.

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ME S O P O T A 1\1 ! A

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A intuição de Rassam para descobrir o mais rico filão de um sítio ar- J
queológico contribuiu assim, em grande medid:i, para o nosso conheci -
mento atual de Sippar. Seu sucesso e brusca saída, entretanto, também
tiveram um efeito adverso para a arqueologia, porque encorajaram os
árabes locais a fazerem suas próprias escavações, sobretudo à procura de
plaquetas. Quantidades substanciais de plaquetas desapareceram, sem
dúvida, em conscqii2ncia do inábil manuseio, mas, apesar do precário
estado de preservação, muitas chegaram aos mercados de antigüidades e
acabaram nas coleções do Louvre e dos museus de Berlim e Fibdélfia,
entre várias outras instituições. Wallis Budge, do Museu Britânico, tam-
bém pôde comprar cm Bagdá numerosas plaquetas exumadas cm segredo
do cômoro de ed-Der.r.
Em 1894, os franceses enviaram uma equipe chefiada por Vincent
Scheil para continuar as escavações. Scheil tampouco pôde passar mais de
alguns meses em Sippar. Os seus registros são hoje suplementados por l. (Acima, à esquerda) Pote <lc terracota no estilo Habf, mo<lcb<lo e pintado~ mão.
e. 4500 a.C. (Louvre, Paris)
relatórios mais recentes de autoria de arqueólogos iraquianos. Ele tam- 2. (Acima, ,i dircit,1) Estatueta feminina do pcrío<lo Ubaid, mostrando claramente o
bém publicou as inscrições de cerca de setenta plaquetas.7 Na década de tri:ingnlo pnbiano e os seios nus. O rosto assemelha-se mais ao de um réptil
1930, os escavadores alemães de Assur passaram algum tempo cm Sippar, <lo que ao de um ser humano. tah·cz par.1 sni;crir uma ligação com o domínio dos mortos.
De Ur. (Museu Britânico, Lon<lrcs)
efetuando "rápidas triangulações" a fim de estabelecerem a prova prática 3 . (Emú,úxo) Eri,h1 . Este desenho csqucm:ítico mostra os rcma11csccJ1tcs arquitetônicos
dos limi tes da área do templo neobabilônio. s Depois da Segunda Guerra sobrepostos d os "templos" de Eridu. Desde o período pré-histórico (ruínas dos níveis
Mundial, a Direção de Antigüidades iraquiana realizou um breve levanta- XVI-V) até os períodos Primeiro Dinc\srico e Ur 111 (ruínas dos níveis V-1).

mento arq11eol6gico cm cd-Der. 9 Continua sendo um enigma, porém, por


que um sítio tiio impo rtante nunca foi sistematicamente escavado.
A maior parte da literatura erudita a rcspciro de Sippar baseia-se nas fon-
tes escritas descobertas por Rassam ou nos relatos de escavadores " ilíci-
tos", sem qualquer apoio arqueológico. Mais informações começaram a
vir à luz na década de 1970, quando uma expedição belga, bem suprida
de verbas e de equipamento técnico, foi enviada a cd-Der para realizar
um extenso levantamento da área e empreender pesquisas geofísicas que
se concentraram nos fatores ambientais. Essa equipe também realizou 111·.111-1
escavações mais convencionais na área do Eulmash e nos bairros residen-
cia is da cidade, e procedeu a sondagens em Abu Habbah. 10
O cômoro de Abu Habbah tinha sido identificado no começo como a
antiga Sippar, com base na p laqueta da fundaç5o com a representação do
deus-sol. Mas a situação em ed-Der tinha provado ser mais complexa.
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Alguns estudiosos chegaram até a pensar que se tratava de Ad.dia, a capi- ~ 'f lt~~•:
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tal de Sargão no terceiro milênio. Só quando as plaquetas adquiridas por
Budge para o Museu Britânico foram examinadas é que ficou csclan:cido
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tratar-se da Sippar de /\nnuniru. . ......... ~~; ~


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li. (Esquerd.i) Cilindro de pedra caldri:1 com cena gravada de caça e pasroreio.
(Direit.1) Texto administrati,·o numa plaqueta de barro que mos-cra os numer.,i~ como
impressões de formato redondo ou de 111eiJ-lua feiras pelo instrumenro de escrita e
os signos picrogr:\ficos para várias mercadorias, como peixe e alguma subst:tncia líquida,
representada por um jarro (canto inferior esquerdo). A111b:1s as peças provcnicnrcs de Utuquc.
(Museu de Pc:ri::11110, Berlim)

7. Mosaico cônico de argila recobrindo os pilares redondos na fachad;i J c um edifício público


no bairro de Eanna, cm Uruquc. Os padrões sugerem csrciras de junco ou cortinas de rcci<lo.
(Museu de P<'rpnw, llcrlim)

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4. Vaso de alab.1stro de Uruyuc, encontrado no nivcl Ili do recinto de bnna. 92cm.


(Museu do Iraque, lbgcLí)

5. (lnscrçâo) De-calhe do relevo da faixa superior (do vaso) mostrando um:1 figura
feminina que recebe um cesro com oferendas. Atrás dda est:io feixes vcrricai.~ de juncos,
os quais estavam associados, n:1s épocas históricas,~ deusa lnanna. (Museu do Iraque,
lt1gd:í)
11. Cabeça de bronze de
rei addio que usa uma
peruca cerimonial unida
por um diadema e barba
cuidadosamente
penteada. Foi
encontrada cm Nínivc.
30cm. (Museu do
Iraque, Bag<l:í)

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12. Impressão num sinete cilín<lrico addio que, de acordo com a inscrição no painel do lado
esquer<lo, pertencia a ''Adda, o escriba", sem dúvi<la uma pessoa rica que po<lia dar-se ao luxo
de mandar fazer um artefato esculpido com tamanho requinte. Mostra cerco número de
deidades mcsopotâmias, como o deus-sol Chamash erguendo-se entre duas montanhas no
centro. À sua direita está o deus-água Ea, com peixes fluindo dos ombros, enquanto, no lado
8. (Ao alto) Estatueta de pedra de um escriba
oposto, vemos uma deusa alada e armada, representando talvez lnanna/lshtar. Ao lado da
identificado por uma çuna inscrição
deusa est:í postado um guerreiro barbudo empunhando um poderoso arco. A cenn
n:ts costas como "Dudu". 45cm (Museu do
Iraque, Bagdá) completa-se à direita com uma deidade de duas faces e um leão. (Museu _Brité\nico, Londres)

9. (Em cima, à direila) Texto com


assentamentos cont:íbeis numa plaqueta de
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barro de Churupaque, a qual trata da venda ~l ' ., ~ -., lJ 1 _--..
de um campo e de uma casa. Um bom
exemplo da es.rita esmerada e compacta que , ,V .
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caracteriza as plaquetas de fora. 8,5 cm x 2cm. },' "KI


(Louvre, Paris) .•U
1O. (À direita) Outro contrato de venda
proveniente de Churupaquc. O estilo de
cscritn desta pbqueca é acentuadamente mais
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arcaico do que o da plaqueta acima. ·,-, 'f~/ ~ • - -·1/, ,.. r 1.,


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10,8cm x I 0,4cm. (Louvre, Paris) , :,~ - ~'


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14. O zir,uratc de Ur-Na1nmu cm Ur, ,nires ,b rcstauraç:i<>.

15. O mesmo zigurate apó~ a restauração.

13. Estela de nrcnito csculpitla para comemorar a virória do rciacád io Naram-Sin sobre os
lulubis. O rei, 0s1cn1ando uma coroa bicorne, símbolo de divin,fodc, recebe a rendição do 16. Depósitos de fundaç:io que comemoram as
inimit:o. De modo m:1gisrralmc111c condcnsndo, o artista descreve a implacável escalada dos al'ivi,bJes de conscruç~o de Ur-Nammu. ,\ figura
sold,idos :i~ad ianos no terreno monranhoso habitado por seus inimigos, qu e são jogados no t sc ulpid a mostra o rei carregando a cesta para a
precipício 011 simplesmente ab.11idos e espczinh:idos. O rei é representado m1 i:randcza e múlcbgcm r imai do primei ro t ijolo. Os d cp6siros de
isolamento sobrc-hum:inos, protegid o pelos deuses celestiais cujos símbolos marc:im o 5picc fumbção inclufJm cipicamcnre pbquctas mol,bdas
,b cm·la. Dcscobcrt:i cm Susa. 200cm x 105cm. (Lounc, Pari s) ~otn metais nohres, assim como ,·:irias comas, pérolas
e oferendas menos perm:mcntcs. Orige m: Ur.
(O riental lns1it111c, Chicar:o)
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20. Detalhe do ch:11nado Padr:\o de Ur, na realidade a caixa de ressonância de um instrnmenro


de cordas; a faixa de cima representa um banquete real e a de baixo mostra o recebimento de
um tributo animal. Origem: os "Túmulos Reais" cm Ur. Incrustações com lápis-lazúli e
conchas. (Museu Britânico, Londres)

17. (Ao alto) Tabuleiro de jogo sumério,


descoberto nos· "Túmulos Reais" em Ur.
O corpo é de madeira com incrustações
de madrepérola e lápis-lazúli. (Museu
Britânico, Londres)
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18. (Em cima, à direita) Lira reconstruída
com cabeça de touro dourada e cenas ~!
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pictóricas embutidas. Origem: os
"Túmulos Reais" cm Ur. (Museu
Britânico, Londrcs)J

19. (À direita) Toucado de ouro e jóias


descoberto na sepultura da rainha Pu-abi,
·tal como foi restaurado pela Sra. L.
Woollcy, que usou parn esse fim um
crânio feminino encontrado nos túmulos.
(Museu Britânico, Londres) 21. Estatueta de gipsita de um
casal afetuoso, encontrada no
interior do templo de l nanna em
Nipur. (Museu do Iraque, llagd:í)
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!2. (Em cima, ,1 esquerda) Rosto de dcmônio cm tcrr;icota como se consriru!<lo de vísceras ·ft•}► ),;,}
p:tra augúrios. Período llabilõnio Ami1;0. O rigem: Sippar. (Museu Brit'1ni,o, Londres)
1.3. (E111 cima, à direita) Plaqueta neobabilõnia (século Vil) com um mapa imlicando Babilónia 26. (Em ci111,1, ,i csquenlir) Est.itua de alabastro de um :idorador, encomrada nos níveis
no centro, situad., às n1argc11s do Eufrates, a Assíria e as fro nteiras mo ntanhosas :10 norte e o., inferio res do templo de Isht:ir clll Assur. 46cm. Período Primeiro Din:ístirn, e. 2400 a.C.
limites meridionais de ll:ibilõnia. Origem: Sippar. (Museu llritânko, Londres) (/\ luseu de Pérg:11110 , Berlim)
24. (E111b11ixo. ti esquerda) Cobertura de barro feita para :1 cena crculpida nn " Plaqueta do 27. (Em ci111o1, à dircit,1) l'eanha de culto cm abbastro do templo de lshtar cm Assu r. Mmrra o
Deus-Sol", a qual est:\\'J dentro de uma caix:i de barro cozido descoberta por H. )lassam cm rei assírio Tnkulti-Ninurta I, primeiro cm pi, depois :ijoclhado diante d o emblema d i,•ino.
Aba Habb:ih. Mostra o cul ro do deus-sol no templo cm Sippat. O deus csd scmado num 60cm x 57cm. e. 1220 a.C. (Museu de l'érg:11110, Berlim)
trono , no interior do seu samu:irio. Acim:1 de sua cabeça cst~o o s símbolos par:i o Sol, :1 Lua e 28. (E111/Jaixo. à ,·sq11erd11) Prisma octogonal cm barro cozido com uma inscrição votiv:i por
V.:nus. Na freme do sanm5rio vê-se um altar o nde se apóia o dh·ino emblema do Sol (ou Tigbth-Pilescr I da Assíria (e. 1109 a.C.). Esse fonnato permitia que inscrições muito extensas
Iuri1111u), o qual é mantido cm sua pmiçfo por meio de conbs pu,~acl.1s por duas deitladc.s q ue fossem transcrirns num único objeto. 5(,cm de .iltura. 17,Scn: Jc largura. Origem : 1\ ssur
fotcm parte da abóbada celeste. Três figuras se acercam do emblema; a primeira é o sumo (Museu de Pérgamo, Berlim)
s.,ccrclore, condu1.indo o rei pela mão; a última é um:1 dcma do s1:quito. O s:mndrio tio deus 2'.!. (Em/Jai.,·o, à direita) Detalhe do friso de Assurnasirpal li proven iente do palácio noroeste
35Senta no O ceano Celestial. O texto que acompanha o relevo descreve a rcstaur.,ç:io de um cm Nimrnd. Acima de uma :irl'orc d.i "iJa cstiliza,b aparece uma J cidade alot!a e de barba
templo por Nabuapla-id ina cm meados do século IX. O relevo poJc datar de um período 1111111 d isco que se acredita,·a representar o deus Assur. 8!13-859 a.C. (Museu llrit5nico,
muito ma is amigo. (Museu Arqueológico, lsmnbul) Lu ndrc,)
25. (Embaixo, 1) direitt1} Pbqueca de argila cm forma de tambor rq:imando a rcstauraç.io do
templo cio deus-sol em Sippar por Nabucodonosor li (605-562). (Museu Oriental,
Univer-idade de Durh:1111)
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hcbra'ic.1 de Lach.i chc. Mostra um
aríete assírio cm plena ação, a
muralhn da fortaleza prestes a
desmoronar e os habitantes da cilbde
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/. "i , :J ~'./::·ir 'r'1~
, I à<, "4 i 4' , ,. • • •
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, }, ll sendo levados para o cativeiro ou o
exílio. e. 701 a.C. (Museu Britânico,
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34 . (Emú.,ixo, â esquerda) Plaqueta
de barro prove niente tb biblioteca de
1• ,.'!!i:'Ca;..:..; ,._ ~ '" Assurbnnipal cm Ní.nivc. Forma parte
J.1 épica de Gili;amesh e contém o
episódio do dilú,·io. Século VII.
J 1. Rclc,·o pro.,cniencc ,lo palácio sudocsrc cm
(Museu !lritânico, Londres)
N/nive. Esrc dcr:1lhe m osrr:i doi s escribas. O <la
freme. glabro, provavelmente u m eunuco,
segura uma pfagucr;i de b.1rro, c11 quamo o seu 35. (Emúaixo, d direita) Estátua de
colega se prcpJr:t para t omar notas num rolo de pedra de nu feminino, d cscobcrt:l no
pergaminho, presumivelmente para escrever em templo de lshtar e m Nínive. Uma
:ira1.naico, que csrava sendo muito úS..t<lo nesse.: inscriç'io na parte posterior indica
período. e. 640 a.C. (i\-luscu Brit:inico, que eb foi cri!;itb para '' deleite d:i
Londres) populaça". e. 680 a.C. (Museu
llritfinico, Londres)

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I' ·--- , ... , (


32. Relevo pro,eniemc do palácio de
Senaqueribe em Nínive, Um harpist,:i e uma
se rviçal que agit:t um abano caminham nos
jardins <lo pal:kio real, fnmoso por suas :írvorcs
cxóricas. Um -dera lhe significati\'o é a cabeça
decapitada pendente dos i;a lhos da árvore no
centro. Século VII. (Museu Brit,inko, Londres)

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.19. Estela de arenito do rei
babilônio
)\brduk-aph-idina li, que
é mostrado recebendo as
saudaçôes de um
subordinado. Acima elas
figuras csr:10 altares com
emblemas divinos, o
estilete de Nabu à direita,
36. (li esquerda) Estátna de brom.e e ouro que mostra o rei b.1bil61110 l·famur.ibi or.11u!o. o dragão 11111f/mssu de
e. 1750 a.C. (Louvre, P:iris) 1' brduk à esquerda e dois
símbolos menos
37. (,\ dirrita) Plaquer.1 mostrando o rei assírio Assurb:inip:1I c.1rreg.1ndo uma cesta de terra claramente idcmifidvcis
para simbolizar seus esforços na rcsrauração do templo de M:1rduk cm lhbilônia, o qual tinha no centro. A inscrição diz
sofrido as conscqüêncbs da de\'ast,1ção imposta à cidade p:>r s::u pai Scruqucribc. e. 660 .1.C. respeito a doações de terra
(Museu Britjnico, Londres) a determinados indivíduos.
.38. (Eml1.1i:w) Relevo cm lndrilho vitrificado da l'orra de l;lnar cm lbbilônia. Mom.1 o Século VIII, (Museu de
11111J/111U11, animal scmclhnme a 11m dragão consagrado ao ,lcns Mard11k. A criatura tem l'érgamo, llcrlim)
,:ihep de \'{horn, corpo de réptil, patas dianteiras de leão e patas rr.1stir.1s de :íguia.
(Museu de l'êrgumo, Llcrlim)

-~
t m
.......
.;.;i1
' ~ 1'T7!! .
....
40. hnprcss5o de um sinete
,ilíndrico l,:ibilônio
mci.strando um 1.iguratc
,om cinco terraços

,.
..,• .:i·, f sobrepostos. e. l 000 a.C.
. . .j
; '..
- _,.-~
"· .. (Museu de l'érgamo,
lk:rlim)
1-1 1S T Ú Ili A D E S I I' I' A 11.

O quadro foi também complicado pelo fato de na :111tigüidade a ci-

. ';.~ \. i,lade ter sido conhecida por muitos nomes diferentes. Isso deu origem à
suposição de que Sippar estava cercada de povoações-satélites, todas com

~. .
- ) ~ '

-~ . ~ . ', t.~ -- . ' ..,.;


,• r nomes compostos com "Sippar", tais como a Grande Sippar, a Sippar
~ ~ Amuralhada, a Yahrurum Sippar ou a Amnamum Sippar (sendo ambos
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nomes de tribos), a Sippar da Estepe ou a Sippar de Annunitu. 11 Mas
wmo não existem outros tells adicionais na área, e como uma análise cui-
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.. .: · Ja<losa do contexto no qual os vários nomes eram usados deixou claro
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..:, .~, ... que os escribas estavam usando termos diferentes de acordo com o uso
local, 12 foi afinal reconhecido que Sippar deve ter sido uma cidade-
gêmea. Abu Habbah era o lugar com o Ebabbar, o templo do deus-sol, ao
4 L Plaquet;1 ~unciformc bJbilünic,1 m m observações astror,úmicas; a linha inici.,I diz:
"Noite do 18", última parrc da nni1c, a Lna estava atr;ís de llcta Gcminorum", ,\ dat:1 pode
passo que ed-Der tinha o Eulmash, o templo de Annunim, estes conheci-
ser deduzida de tais informações astronómicas como 6 J a.C., quando Babilónia cstal':1 sob dos, respectivamente, como a Grande Sippar e a Sippar Amnamum.
domínio parta. (Museu Britânico, Londres)
Embora os dois santuários determinassem a identidade de cada t1ma das
dt1as partes, estas passaram a ser considerad:is, :i partir de meados do ter-
t:eiro milênio, componentes de uma só unidade política.

HISTÓRIA DE SIPPAR

42. Estatueta pan., de nu rtdinado. A figura mostra urna interessante combinaç:io de As sondagens e os levantamentos de superfície das expedições mais recen·
sensibilidades estilísticas gregas e mcsopotâmias. As cun•as íluidas e sensuais do corpo
contrastam com :1 pose rígida d o braço e o tratamc1110 .s umário da cabeça. Enrrc o tes tornaram finalmente possível reunir e pôr cm ordem os elementos até
sfrnlo I a.C. e o sécu lo I[ d.C. (Museu dt• Pérgamo, Berlim) .agora dispersos da história da ocupação de Sippar. Pelos achados de
superfície, parece que Abu Habbah era a povoação mais antiga, estabele-
cida durante o período Uruque, ao passo que as sondagens mais recentes
.atingiram níveis do Primeiro Dinástico. 13 Como mostrou a coleção de
Rassam de objetos votivos do templo, o santuário do deus-sol era suficien-
temente importante no terceiro milênio para receber presentes de grande
valia tanto dos reis quando dos senhores locais. O sítio esteve, com o seu
templo, em ocupação quase contínua durante todo o período Neobabilô-
nio e mesmo depois, durante o período Sassânida. A ocupação do se-
gundo tel1, cd-Der, pode remontar ao período Acádio; sã.o claramente
comprovados os níveis Ur lll. Daí cm diante, continuou a ser habitado
e.nquanto existiu a outra Sippar.
A maioria das fontes escritas sobre Sippar que datam do período
Babilônio Antigo oferecem uma imagem clara do que era então a vida da
cidade. Muitos desses documentos foram encontrados em residências
particulares e nos chamados gagum, 14 em geral traduzido como "claus·
tro". Outro e considerável corpus de textos data sobretudo do século VI e
deriva basicamente dos arquivos dos templos. Outras épocas históricas

193
M 11~0 11 1)'1' ,\ M 1,\
H 1~ T Ô ll 1/\ D E S I I' I' /\ ll

estão mal representadas por documentos escritos e, assim, para uma importantes reformas administrativas. Mostrou grande interesse em asse-
reconstituição em linhas gerais da história ele Sippar, precisamos confiar gurar o bem-estar de Sippar e intitulou-se ~o renovador de Ebabar para
nas fontes fornecidas-por outras cidades mesopotãmias. Chamash", 16 uma referência à sua obra de restauração no templo do
O status de Sippar como uma das três cidades privilegiadas, junto deus-sol. Também reparou e reforçou as muralhas da cidade, uma precau-
com Nipur e Babilônia, implica a sua freqüente menção em inscrições ção necessária contra as irrequietas tribos que ameaçavam seu reino. Sua
reais e cm anais. Sua posição geográfica fez dela, repetidas vezes, um política benevolente foi mantida por seus sucessores d.inásticos, mas,
lugar-chave nas lutas políticas pela supremacia da Babílônia e nos confli- pouco a pouco, a situação política deteriorou-se e a autoridade dos reis
tos entre a Assíria e a Babilônia, assim como entre a Mesopotâmia e seus babilônios enfraqueceu quando perderam o controle das cidades do sul e
vizinhos a leste, como Elam e, mais tarde, a Pérsia. se envolvei;am em conflitos com os pequenos reinos circunvizinhos.
Na lista de reis sumérios, Sippar é citada como tendo sido a sede de Em 1595, o rei hitita, Murchili 1, desceu o Eufrates num ataque-re-
uma dinastia antediluviana, até anterior a Churupaque, com um sobera- lâmpago e saqueou Babilônia. Não se sabe como Sippz.r se aveio nesse
no, Enmeduranna, reinando por 21.000 anos. Em alguns compêndios momento, mas uma mensagem urgente do governador da cidade para o
cosmogônicos, Sippar, como Eridu, é citada como uma das mais antigas rei babilônio avisa-o do perigo iminente e de que o inimigo está a postos
cidades da cerra. De fato, como vimos, pouco se sabe sobre Sippar no para desencadear o ataque. Tudo leva a crer que algum desastre vitimou a
período anteri_or ao segundo milênio. O culto de Chamash parece ter sido cidade, porque só séculos mais tarde é que vieram a existir outros docu-
importante o suficiente pura o templo ter recebido caras oferendas dos mentos. É provável que a cidade tenha revivido durante a dinastia cassita
reis acádios e de outros governantes locais. Durante Ur III e os subseqüen- (e. 1600-1155), que governou a Mesopotâmia desde a vizinha Dur-Kuri-
tes períodos Isin-Larsa (e. 2150-1800), o santuário sulista do sol em Larsa galzu. Os cassitas eram um povo do Cáucaso que tinha começado a colo-
eclipsou o templo de Sippar. nizar a região a leste do Tigre no início do segundo milênio. Esses reis es-
As coisas começaram a mudar a favor de Sippar com a mudança de trangeiros estavam inteiramente aculturacios na tradição babilônica e
poder do sul para o norte em virtude da crescente influência do povo mostraram-se muito interessados em proteger os antigos centros religio-
conhecido como os amoritas, que tinham começado a penetrar na Meso- sos, o que os levou a investirem substancialmente na restauração de tem-
potâmia, vindos dos desertos ocidentais, no final do terceiro milênio. plos. Embora não exista prova documental de suas atividades de constru-
Foram vãos os esforços dos governantes de Isin e Larsa para deter a ção em Sippar, o templo Chamash escava em plena atividade quando a
migração amorita rumo à baixa Mesopotâmia. Sippar, como a cidade Segunda Dinastia de lsin assumiu o controle da Babilônia. Nabucodonor I
mais setentrional da planície, tornou-se então de extrema importância (1126-1105) restaurou templos por todo o país e sua obra em Sippar está
p ara os novos senhores amoritas, que queriam ampliar sua área de documentada pela inscrição na pedra de um marco de fronteira (kudurm
influência na direção sul. Os primeiros reis da dinastia que governou o em babilônio).
país desde a cidade de Babilônia, aparentemente uma fw1dação recente, Tempos difíceis escavam, não obstarite, por chegar. Um texto datando
tentaram exercer o controle de Sippar com êxito descontínuo. A conquis- do reinado de Adadapla-idina (1069-1048) relata que tribos aramaicas e
ta ocorreu finalmente no vigésimo nono ano de Sumu-laila, em 1838 a.C. sutianas devastaram a região e destruíram tão completamente Sippar que
Atribuiu-se um nome a cada ano para regiscrar a reconstrução da muralha o culto cessou aí por um período de cerca de cem anos.17 A recuperação
da cidade de Sippar, que pode ter sido destruída durante os combates. 15 da cidade ou, pelo menos, do seu recinto religioso, ocorreu no século X.
Os reis da Babilônia empenharam-se muito em promover Sippar até A paz voltou quando a Babilônia se fortaleceu de novo e um tratado de
fazer dela um importante centro religioso em paralelo com Nipur no sul. paz com a Assíria garantiu uma estabilidade política que durou 150 anos.
A cidade floresceu sob o seu patrocínio, e o templo e o claustro, em espe- A plaqueta do deus-sol de Rassam na caixa de barro data dessa época,
cial, tornaram-se prósperos. O auge do crescimento em Sippar foi atin- quando o rei Nabuapla-idina (e. 870) criou novas dotações para Ebabar.
gido durante o reinado de Hamurábi (1792-1750), e a maioria das pla- Quando as relações entre a Assíria e a Babilônia voltaram a piorar,
quetas de Sippar durante o Babilônio Antigo datam do seu tempo. O lon- Sippar, situada na fronteira entre os dois estados, ficou bem na linha do
go período de Hamurábi no trono permitiu-lhe implementar numerosas e conflito. Durante as guerras de Senaqueribe contra seu arquiinimigo, o

194 195
/li P. .'> O l' O T ,\ ,\1 l A A A N Tl (; A S I l' I' A 1\ li ,\ ti I L U N I C t\

chefe tribal do sul Marduk-apla-idina (e. 700-690), o rei 110111eoL1 o prín- continuou a funcionar sob domínio aquemênida. A cidade continuou
cipe herdeiro assírio como regente na Babilónia. Ele também estava em habitada, provavelmente numa escala muito reduzida, durante a dinastia
guerra com Elam (então um poderoso estado no Irá ocidental) e os cl::imi- sclêuci<la e as dinastias persas sassânidas que se lhe seguiram, até que, já
t::is, ::iproveitando-se do fato de Sen::iqueribe est::ir combatendo nas pro- perto do final da era pré-cristã, foi abandonada para sempre.
víncias do sul, tomaram Sippar (e. 694). Nesse meio tempo, uma facçii.o
anti::issíri::i n::i B::ibilónia capturou o príncipe herdeiro assírio e entregou-o
nas mãos do rei elamita, que tinha agora o seu quartel-general cm Sippar, A ANT IGA SIPPAR BABILÔNICA
onde parece que o príncipe morreu como refém. Esses acontecimentos
ainda ::iprofundaram mais o rancor de Senaqueribe contra a Babilônia, A principal fonte publicada sobre a antiga Sippar babilônica, simples-
contra a qual desencadeou toda a sua fúria num ataque brutal. Nem Sip- mente chamada Ancient Sipf1ar, foi escrita pela estudiosa americana
par escapou à sua ira. O rei assírio destruiu o templo de Annunitu e apreen- Rivkab Harris, 20 que fez uso de abundantes documentos administrativos
dt:u a estfltua do culto de Chamash, bem como de outras deidades babi- e legais e tinha particular interesse em apurar como a cidade funcionava no
lónias. plano econômico e como os trabalhadores estavam organizados, desde a
Esse scqíiestro de estátuas divinas era prática comum, pois a perda do mão-de-obra para a lavoura até os burocratas e o pessoal do templo. Infe-
dcll!'i dt: uma cidade era vista como uma grande calamidade. Como se para lizmente, a grande maioria dessas prancheras provinha de uma instituição
prov:ir que o infortúnio sobrevém inexoravelmente à ausência do seu particular, o "claustro" ou "recinto cercado" (gagum), o que ofereceu
21
deus de uma cidade, Sippar sofreu um ataque devastador e um massacre uma perspcctiva algo distorcida sobre a cidade como um todo. Apesar
sistemático nas mãos dos elamitas quando o sucessor de Scnaqucribe rei- disso, como gag11m estava envolvido muito de perto em toda uma ampla
niciou a guerra contra Elarn. Mas Esarhaddon (680-669) tinha consciên- gama de atividades econômicas, foi possível formular alguns pressupos-
cia do sacrilégio que seu pai havia cometido contra as cidades santas da tos gerais sobre o funcionamento da cidade.22 Algum material adicional
llabilônia e estava disposto a corrigi-lo. Iniciou um programa de reconstru- veio também à luz, como cartas e contratos legais, mas não temos os
ção dos santuários destruídos, política continuada por seu filho Assurbani- arquivos do próprio templo nem os da administração central. Tampouco
pal, que cm 669 devolveu os deuses exilados a Sippar e outras cida~les. temos os registros da aparentemente bem estabelecida comunidade mer-
A cidade começou a reviver e desfrutou outra idade de ouro durante cantil de Sippar. As conclusões de Harris sobre o contexto social dos tex-
o século VI, após a queda da Assíria. Nabucodonosor II e seus sucessores tos provenientes dogagum são, portanto, especulativas ao extremo. Além
foram pródigos em doações aos témplos e reconstruíram fortificações disso, ficaram por responder questões básicas, tais como qual pode ter
seriamente danificadas. Nabônido, o último rei babilónio (555-539), sido a população da cidade, calculada por Scheil em modestos 5 .000
relatou que tinha restaurado o templo de Ebabar e assinalou a descoberta habitantes.
de velhos documentos de fundação depositados pelos seus predecessores Os textos ilustram, porém, como Sippar foi ficando cada vez mais sob
régios de eras passadas, entre eles Hamurábi. A reconstrução do Ebabnr o controle direto do governo central babilónio. Hamurábi instalou uma
por Nabónido constituiu a última atividade de construção no recinto do guarnição na cidade e as principais instituições foram submetidas à auto-
templo, cujas ruínas ainda estavam cm relativamente bom estado de pre- ridade real, com os representantes do governo mantendo o rei informado
servação quando Rassam e outros escavadores investigaram o sítio 11a através de correspondência. Por outro lado, a cidade beneficiou-se de in-
década de 1890. 18 vestimentos reais, especialmente nas instalações de defesa e na manuten-
A última grande coleção de textos provém de Ebabar durante o reina- ção de seus canais de irrigação, assim como na construção do templo.
do de Nabônido, 19 mas a queda da Babilônia estava próxima e o rei persa A cidade fora administrada antes por t1m conselho de "anciãos", presidi-
Ciro II derrotou o exército babilónio cm Opis. Tendo aceito a rend ição do por um prefeito, mas na época do sucessor de Hamurábi, Samsu-iluna
de Sippar em 539, entrou na cidade para aguardar a capitulação ele Nabó- (1749-1712), o corpo governamental de Sippar era constituído pelo
niclo, que foi levado para exílio persa. A mudança de governo parece ter representante do Porto, como era chamado o bairro dos mercadores, e
feito pouca diferença para a cidade, e os textos mostram que o templo por um funcionário nomeado pelo rei. Durante os primeiros períodos

1 96 1 97
MES O l' OTA ~IIA A A NTJ(: J\ !, IPP A R 111\III LÔ Nl t . A

cobertos pelos arquivos, esses órgãos e,;am responsáveis perante os cida- t:do po liciamento. O distrito podia funcionar também como órgão judi-
dãos, mas, em anos posteriores, passaram a ter que prestar contas ao cial. Cada distrito era representado por um funcionário (hazmmu), mas
governo central. Essa fiscalização cerrada foi posta cm prática através de também existia uma municipalidade, chamada simplesmente "a cidade",
pessoal a serviço direto da coroa. A presença militar, estabelecida por que funcionava como entidade legal e proprietária dos bens imóveis cita-
Hamurábi, esteve sempre sob o comando direto do rei, e o oficial desta- dinos intramuros. O prefeito (rabianum) era hierarquicamente superior
cado para chefinr a guarnição nunca era um nntural de Sippar. As ques- ao hazamm. Os prefeitos eram nomeados por um período limitado, usual-
tões legais eram <lecidid:1s por juízes locais, embora os litigantes pudes- mente de um ano. Por alguma razão, eles amiúde aparecem como teste-
sem apcbr para um veredicto real se não estivessem satisfeitos com o des- munhas em transações de propricdnde.
fecho dado ao caso.
O setor comercial de Sippar era representadc peb administração do
Como ocorria com freqüência durante períodos· de forte centrnliza- porto (kanmz), que parece ter sido primordialmente um órgão do judiciá-
ção, o governo tentou obter o controle sobre as atividades dos templos. rio parn solucionar disputas dentro da comunidade mercantil. Na época
Em Sippar, pôde-se ver que isso aconteceu em meados do reinado de de Samsu-iluna, tornara-se o principal órgão administrativo, rcspons:ivel
Hamurábi. Daí em diante, os funcionários do templo passaram a intitu- pela coleta de impostos e fiscalização dos.celeiros reais. O status do "Su-
lar-se "servos do rei" cm vez de "servos do Ebabar" (ou do deus). AtravGs pervisor dos Mercadores" aumentou com a crescente importância do
de nomeações parn posições de destaque nessas instituições administrati- kamm. O cargo ern exercido pelo período de um ano, com a exceção de
vas, o rei pôde consolidar sua influência sobre a cidade. A principal ques- certo indivíduo que conservou o mandato por um prazo recorde de vinte
tão ligavn-se à coleta de impostos, os qunis eram de todn espécie. Profissio- e dois anos. Aparentemente, todos os supervisores eram cidndãos abasta-
nais, como escribas, médicos, jufaes ou estabjadeiros, pagavam frcqüen- dos, e não há provas de que eles próprios fossem mercadores. Havia, é
temente seus tributos em prata, m as o mais comum era o imposto agdcob claro, muitos outros postos e cargos administrativos na cidade - desde o
que incidia sobre campos cultivados ser liquidado cm mt::rcadorias, prin- exército ao judiciário - independentemente da "administração pública",
cipalmente cevadn, mas também nnimais. subordinada à autoridade local ou no estado. 23
Um grande contingente de funcion.frios era responsável pelos cálcu- Que os domínios do templo eram fatores importantes na economia
los e cobrança desses impostos, emborn nfo esteja claro até que pomo o <la cidade é demonstrado pelos arquivos <lo próprio templo. Havia gran-
sistema era de fato eficaz. As mercadorias eram armazenadas nos celeiros des latifúndios trabalhados principalmente pelo pessoal do templo, in-
reais e usadas como mantimentos para trabalhadores e soldados, ao passo cluindo os escravos, bem como por pessoas sujeitas à obdgação de reali-
que o emprego dos animais estava relacionado com projetos reais. zar trabalho de corvéia. O produto era usado para sustentar o templo e
Os cereais também podiam ser usados para pagamento de um emprés- seu pessoal, e qualquer excedente era armazenado. Po dia ser distribuído
timo, conforme documentado pelo escritório de contabilidade do celeiro em pequenas quantidades como empréstimos aos necessitados ou inves-
real. Oficinas reais, em especial para o processamento da lã em materiais tido em empréstimos para a realização de negócios.
t2xteis, faziam parte da economia ccntrnl. Os produtos e ns matérias- De acordo com as provas disponíveis, o santuário de Ebabar era, de
primas também podiam ser convertidos cm prata, a qual era então inves- longe, o templo mais rico de Sippar durante o período Babilônio Anti-
tida na concessão de empréstimos a cidadãos que necessitavam de dinhei- go.24 A importância do deus-sol nessa época também pode ser depreen-
ro para várias transações comerciais. A manutenção de importantes insta- dida do grande número de pessoas que tinham nomes compostos com
lações públicas era uma responsabilidade compartilhada peln autoridade Chamash. 25 Outras deidades também estavam representadas cm Sippar.
local e pelo estado, em especial a dragagem dos cursos de água que atrn- Havia templos menores para o deus-lua Sin e o deus do tempo Adad -de
vessavam a cidade e a conservação das fortificações. grande importância para os habitantes da Mesopotâmia setentrional
A auto ridade local atuava num nível diferente dos escritórios admi- como o portador das chuvas-, para o recém-introduzido deus babilônio
nistrativos que tratavam com o governo central e ocupavn-se dos serviços Marduk,26 assim como para Ea, Enlil, Nergal e o deus an'!orita Arnurru.
da própria cidade. Sippar estava dividida cm distritos (babtum), cuja Anunim era a mais importante das deidades femininas em Sippar, cujo
administrnção tinha como principais encargos cuidar do sistema sanit;Írio culto cresceu cm importância durante o reinado de Samsu-iluna. J\ya,

19 8 19 9
i.t tL\ e) t• u T A M li\ A~ M li 1, li I ll H ~ N AI) 1 ( li S ll t! (~11 AMA S li H M \ 1 I' I' /\ ll

"noiva de Chamash", est:iva alojad;i numa capela no interior do Ebah:u. tos, foi imerpretada como uma indicação de que pesava um tabu sobre a
lshtar, como Inana era agora chamada, tinha o seu próprio tt'.mplo, tal sexuali<lade dessas mulheres.
como Gula, a deusa purificadora. Os arquivos do Ebabar e outros textos Embora existam casos isolados de nadit11s procurando uma ama-de-
legais e administrativos contêm os nomes e títulos de muitos funcioná- leite, é evidente que as mulheres no claustro não tiveram filhos. Isso
rios, sacerdotes e trabalhadores empregados pelos santuários, desde o aumentava muito as suas chances de sobrevivência, uma vez que lhes
mais alto funcionário, o sanga, chefe de todo o pessoal, passando pelos eram poupados os riscos da gravidez e os cfeit0s debilitantes de terem
gerentes, pessoal do cu lto, escribas, intérpretes de sonhos e adivinhos, até dado à luz durante seus anos férteis, como a maioria das outras mulheres
os escravos do templo. 27 nessa época. Como resultado de sua esterilidade e de sua segregação
social dentro do gagum, o que as protegeu de várias epidemias não inco-
muns nas cidades mcsopotâmias, as 11adit11s podiam atingir uma idade
AS MULHERES NADITUS DE CHAMASH EM SIPPAR relativamente avançada; são conhecidos os casos de algumas que viveram
no gagum por quarenta anos e mais. 33
Examinaremos agora de forma mais detalhada o gagum e seus habitantes, O outro significativo desvio da conduta normal para o gênero femi-
as mulheres 11adit11s. 2ij Outras cidades tinham instituições semelhantes, nino foi o controle que a nadittt tinha sobre a sua parte nas propriedades
cm particular Babilônia, Nipur e Quich, mas esses recintos eram caracte- paternas. Enquanto outras mulheres desse tempo passavam suas heranças
rísticos do período Babilónio Antigo e, talvez por causa de sua estreita li- para os maridos após o casamento, a 11adit1, podia administrar seus bens
gação com os reis babilônios, não sobreviveram ao fim da dinastia. O mais à vontade. Presumia-se que ela os devolveria (acrescidos de dividendos) à
antigo registro data do reinado de lmmerum (1880-1845), que governou sua família paterna, mas os documentos deixam claro que tais convenções
cm Sippar antes dos reis da Babilônia assumirem o poder no final do podiam ser subvertidas pela adoção <lc uma menina para suceder-lhe
século XIX.2 ~ como naditu e cuidar dela na velhice. Toda naditu provinha de família
rica, sendo algumas delas filhas de reis e governantes locais; e as naditus
O gagum não deve ser confundido com o gipam, encontrado em Ur,-1°
não tinham que ser naturais de Sippar. Parece que era visto como suma-
que era a residência e o lugar de culto de uma única sacerdotisa, a entu, e mente prestigioso ter uma filha servindo os deuses numgag11m, e as famí-
seu séquiro. O gag11m era habitado por muitas mulheres, usualmente das lias decidiam frcqüentemente, ao nascer-JJ1es uma menina, que ela seria
famílias ma·is ricas da cidade, incluindo pelo menos uma princesa. Essas uma 11adit11. 34 Viviam numa época em que o status legal feminino tinha
mulheres, conhecidas como naditus, tinham que se sustentar com a renda mudado a favor do controle masculino sobre as mulheres. Portanto, as
de suas propriedades privadas. Elas participavam ativamente na econo- filhas mal tinham o direito de escolher se deviam casar-se ou se deviam
mia da cidade, investindo em grandes e pequenos negócios. A palavra tornar-se servas de deuses. 35 Uma 11adit11, ao recriminar sua madrasta por
11adit11m significa ".terreno estéril" ou "tabu" e designa assim sua identi- não levar em conta as necessidades dela, declara isso muito claramente:
dade especial no âmbito do sexo feminino. Tais mulheres eram vistas
como separadas dos habituais papéis femininos, mas o modo como essa Sou filha de um rei! Sois esposa de um rei! Mesmo não levando em conta as
distinção se manifestava parece ter variado de acordo com o tempo e o plaquetas com que vó.s e o vosso marido me fizeram ingressar no gagum -
lugar. Em Sippar, as naditus não podiam casar, ao passo que as dedicadas eles [os reis] rrarnm bem os ~oldados tomados corno presas de guerra! Cui-
a Marduk em Babilônia podiam.31 As de Ninurta em Nipur também eram dai, pois, de me rratar bcm!·16
solteiras, mas, ao que tudo indica, não viviam num gagum ..12 Uma caracte-
rística importante era a imposição de que a nadit11, como outras mulheres Uma 11adit11 ingressava provavelmente no gag11m durante a puber-
vinculadas ao culto, não devia ter filhos. Em que medida isso também dade. A cerimônia de iniciação incluía oferendas a Chamash e Aya, um
implicou virgindade e castidade durante a vida inteira é outra questão. banquete em memória das nadit11s fa lecidas e a apresentação formal da
A ameaça de pena de morte no Código de Hamurábi contra uma naditu neófira às dcidades. 37 Para mulheres das classes sociais mais elevadas, era
freqüentadora de tavernas, o local habitual para encontros sexuais forrui- efetuado um augúrio para confirmar a aprovação do deus. A administra-

200 2 O1
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~,,w-;,i \-0'100:t (1~ C~ cias Sociais o 1·lumantc1a61lS
M (:SO l'OTA I-IIA
1\ ~ .'111 Ll-1 E R E S N 1\ l> I 'r U S p E C H A ~IA S 1-1 E M S I I' I' AI\

çáo do gagum pagava um "presente de noivado" que, de fato, cobria as <.:ontratou seis pastores para cuidarem das 1.085 cabeças de gado de que
despesas da iniciação. A família era obrigada a firmar um acordo sobre a e ra dona.' 12
forma como a nadit1,, seria sustentada. O Código de Hamurábi distingue O envolvimento ativo de Iltani e outras naditus nos assuntos econô-
rr2s possibilidades: sua parte na herança podia ser administrada por seus l'tticos e.la cidade está bem documentado. Fica-se com a impressão de que
irmãos para lhe garantir um suprimento vitalício de vestuário e meios de ;1s 11aditus eram mulheres de negócios argut::is e empreendedoras, baten-
subsistência, ou, se eles não cumprissem tal compromisso, seria nomeada ,do-se sempre com os homens da fomíli:1 por suas heranças e realizando
uma pessoa por ela escolhida para tal encargo. Ou, em vez disso, ela negócios lucr:1tivos. As cartas de Ercshti-Aya, a princesa de Mari, lem-
podia decidir administrar seus bens e deixá-los para quem decidisse, se bram-nos, entretanto, que isso fornece um:1 impressão muito unilatcral.'n
seu pai consentisse nisso por escrito. Caso ela não recebesse sun parte, Embora se queixe muito da negligência de sua família em fornecer-lhe
J1erdaria em termos iguais com seus irmãos:1K As plaquetas legais mostram provisões, ela deixa muito cl:1ro que :1 sua principal função é religiosa. Diz
que tais disposições nem sempre eram levadas a efeito como previsto e os repetidas vezes a seu p::ii que está desempenhando um serviço vital ao orar
tribunais tinham, às vezes, que decidir sobre a validade de reivindicações c:ontinuamente por ele perante Chamash . e Aya. Em retribuição, espera
feitas por nadit11s ou suas famílias. ser abastecid:1 de forma condign:1:
O gagum em Sippar estava no interior do recinto do Ebabar, mas cer-
cado de muros e com seu próprio portão. Contavam-se em várias cente- Agora as filhas de vossa casa... csrão recebendo suns rações de cereais, ves-
nas as casas das naditus e de seus servidores dentro do recinto. Elas também ruário e boa cerveja. Mas, embora cu seja a única mulher que ora por vó,,
possuíam seu próprio celeiro, um edifício administrativo e talvez oficinas, não escou sendo aprovisionada!
bem como uma pequena nesga de terra arável. Como a instituição se tor-
nou popular e atraiu um número cada vez maior de novas titulares, e por- Menciona repetidas vezes que é o "emblema" (suri111111111):
que as mulheres tinham uma longa expectativa de vida, o gag11m estava
superlotado no tempo de Hamurábi. 39 O cargo <le supervisor das 11aditus Não sou o vosso emblema <lc oração, aquela que consranrememe intercede
era originalmente exercido por uma delas. Mais tarde, em conformidade por vossa vida?
Não sou o vosso emblema de oração, que de vossa pessoa fornece um
com os esforços do estado para secularizar os estabelecimentos religiosos,
rclaco favorável no Ebabar?
um homem, provavelmente nomeado pelo rei, era colocado nessa influen-
te posição, apenas inferior ao sanga na hierarquia funcional do Ebabar.
Ela se compara :10 famoso emblem:1 do deus-sol, que se pensava represen-
Numerosas naditus eram instruídas e atuavam corno escribas. 40 Uma certa
tar a deidade em vários contextos, como a prestação de juramentos ou a
Amat-Mamu, por exemplo, serviu nessa capacidade durante quarenta
ação de oração perpétua (karibtum). Vê-se como se ela própria fosse uma
;mos.
anim:1da estátua votiva doada ao templo para est:1r na presença da dei-
Em alguns casos, as famílias faziam empenho em perpetuar uma tra- dade "para sempre" no lug:1r do doador. Ela define como seu principal
dição de mandar as filhas para o claustro de Sippar. É interessante ver dever o de orar pela vida de seu pai. Não se sabe cm que medida outras
como algumas das naditus lograram aumentar seu patrimônio original naditus estariam igualmente e mpenhadas cm t:11 obrig:1ção para com os
através de várias iniciativas comerciais. Uma delas comprava e vendia pais. Todas tinham que fazer oferend:1s duas vezes por dia no templo,
estanho através de um intermediário. Outras faziam empréstimos de ce- assim como uma oferend:1 especial no vigésimo dia de cada mês, conhe-
vada, prata ou outras mercadorias, ou eram donas de um estabelecimento cida como piqittttm/4 que constava de carne, pão e cerveja. Nos casos em
comercial, corno uma taverna - arriscado demais para freqüentar, mas que elas não administravam seus próprios bens, suas famíli;is ou procura-
aceitável como investimento. Também cooperavam entre si cm empreen- dores eram obrigados a fornecer as oferendas. Segundo parece, esperava-se
dimentos em comum, comprando !eiras adjacentes para exploração con- também q ue as 11aditus comparecessem a festas religiosas, participando tal-
junta ou repartindo um campo.'11 A princesa Ilta1:i, filha de Sin-mubalit e vez de procissôes, 45 e cumprissem certas obrigações para com os deuses.
irmã de Hamurábi, era de longe a mais rica das nadit11s. Não só possuía Considerava-se que o gagum tinha uma finalidade primordialmente
vastas áreas de terra arável, mas também investia em gado e cerra vez religios:1, embora fosse claramente distinta de outras funções femininn,;

202 203
OllTltA S l' tS \0/\~ NA ~ ll'l',\ll 1)() l'l'; td n nu 11/\llll,Ú N I O AN 'rt (;u
MESOl'OTAMIA

Há uma passagem na histó ria de Atra-hasis, a épica d.o dilúvio do pe-


relacionadas com o culco. Embora as naditus não fizessem pane do pes-
ríodo Babilônio Antigo/º que assinala a finalidade ecológica de mulheres
soal do templo, elas estavam submetidas à autoridade do mais alto funcio-
C()tnO as naditus. Quando o deus Ea povoou a terra de novo, procedeu a
nário. Seus processos eram julgados nos tribunais do templo, tendo por
:1lguns ajustes a fim de atenuar o excessivo barulho e azáfama da espécie
testemunhas o próprio pessoal religioso . Não existem provas de que elas
htunana que levara Enlil a mandar o dilúvio. Ea determina que devem
realizassem ali quaisquer rituais, e suas contribuições para as oferendas existir mulheres "que dão à luz mas não dão à luz com êxito" e que exis-
diárias eram adicionais às providenciadas pelo templo. As oferendas eram tem demônios ''para arrebatar o bebê do regaço da mãe", e ele <leclara
prm·avelmente consumidas pelas 11aditus e outros devotos, cal como ainda que algumas mulheres "serão tabu e controlarão assim o ato de dar
ocorria com o piqittwn.46 à luz".51 Embora o texto não mencione especificamente as 11adit11s, elas
As relações de uma naditu com Chamash ernm expressas como as de estavam é óbvio que na mesma categori::i, mulheres "inférteis" que não
kalJatttm, termo com uma ampla gama de significados relacionados com contribuíam para o crescimento da população, o que já então era clara-
o status dt: "noiva".'17 A referência a noivas não envolve necessariamente mente percebido como problemático.
a presença ou ausência de atividade sexual. Também pode ser a caracteri- Os arquivos das naditus de Sippar nos permitem não só perceber
zação Je um status feminino marginal e transitório entre a infância e a algumas das instituições e atitudes predominantes, mas são também úni-
idade aduha, entre a família patrilincar paterna e a integração na família cos na representação de uma perspectiva feminina nesse período. Trata-
do m:1rido. As nadit11s i:1111 passar a vida inteira nesse limbo social, adult::is va-se, sem dúvida, de um grupo anómalo e muito privilegiado de mulhe-
urns sem filhos, dissociad:is da família paterna mas só vagamente integradas res, porém as provas das contribuições que elas puderam dar à sociedade
11:1 casa do deus. Portanto, a naditu está colocada numa categoria especial urbana de seu tempo são abundantes.
do gCni.:ro feminino sem ter implicações teológicas.
A ênfase de Eresbti-Aya sobre seus deveres como karibtum, traduzida
como "ornção perpétua", revela a finalidade religiosa da instituição. OUTRAS PESSOAS NA SIPPAR DO
A contribuição econômica da naditu recebeu muito mais atenção apenas PERÍODO BABILÔNlO ANTIGO
por causa da grande quantidade de material documental. Foi sugerido
que a dedicação de uma filha ao gagum serviu para preservar a integri- Os textos administrativos e legais recuperados do gagum contêm os
dade dos bens da família e impedir a difusão da propriedade:'8 Entre- nomes de cerca de 18.000 pessoas. Muitas eram trabalhadores agrícolas,
tanto, uma vez que muitas nadittts não repassam sua parte nos bens her- mão-de-obra contratada e escravos, outr:is parecem ter sido o que hoje
dados de volta para a família, mas preferem legá-los a pessoas em quem designaríamos como profissionais liberais.52 Assim, as plaquetas reve-
confiam mais para cuidar delas na velhice, tal consideração não pode ser a lam-nos algo ela complexidade social da cidade. Havia moleiros traba-
de maior peso. lhando para casas reais ou guarnições, curtidores de couro, pisoeiros, im-
portante profissão numa cidade com florescente economia têxtil - eles
Não há a menor dúvida de que suas diversas formas de envolvimento
estavam organizados numa espécie de associação profissional. Os tecelões
na economia local, basicamente através da exploração agrícola de terras,
eram sobretudo empregados pelas grandes organizações pertencentes ao
m::is também em operações de crédito, imprimiram um significativo
estado ou aos templos e, ao invés do que ocorria no período Ur lll, homens
impulso à economia da cidade. Ter um ou até vários membros femininos
e mulheres participavam de todos os aspeccos da manufatura têxtil.
no "claustro" aumentava o prestígio social de uma família, para o que
Outras atividades artesanais podiam ser conduzidas numa base inde-
concorria muito o fato de o gagum alojar mulheres do topo da hierarquia
pendente, como era o caso dos ourives, que tinham suas lojas nas ruas
social. Governantes que ambicionavam legitimar seu poder consideravam
principais a fim de atraírem os fregueses do campo. Os padeiras trabalha-
politicamente útil consagrar suas filhas e estabelecer uma ligação indirern
vam como autônomos, medi.ante licença, ou eram empregados pelo claus-
mas duradoura com deuses importantes e seus santuários.'19 Uma vez
tro ou pelo templo. Os esralajadeiros e donos de tavernas, alguns dos
mais, a metáfora de Ereshti-Aya d::is estátuas votivas com vida parece ser
quais fabricavam a sua própria cerveja, parece que pagavam uma raxa ou
mais do que :ipropriada.
205
204
M I ',(1rn 'tA-~tl1\ (l \ 11'1'011\ S() C li\t. D E S ll' l'/\ R

licença cspe.ci:11 parn explorar o negócio, que devia ser lucrativo o bas- passagem.5 9 Os mercadores tambfm usavam burros para transportar suas
tante para que abastadas mulheres naditus gost:issem Jc investir nclt:. merc:-tdorias, sobretudo nas viagens mais para leste. Em épocas prósperas
Havia também numerosos escribas, se bem que durante o período cober- e politicamente est:íveis, como durante a maior parte do período Babilô-
to pelos arquivos, pelo menos, não haja indicação de instituiçõe::s ou famí- nio Antigo, era grande a demanda de artigos de luxo e o investimento no
lias eruditas como as que conhecemos cm Nipur. 1 1 As principais obrig:1- comércio do ramo fazia sentido, como as senhoras naditus perceberam.
çóes ernm servir à administração e ao judiei.frio, e registrar as transações
Em períodos de instabilidade geral, quando a segurança das caravanas ou
cconômicas. Sippar não é conhecida por ter interesse na literatura ou nas
dos barcos não podia ser garantida pelo controle governamental de acor-
ciências. O fato de muitos escribas terem nomes sumérios mostra, porém,
dos, as iniciativas comerciais expunham-se a riscos demais para conti-
cerco orgulho na tradição intelectual da profissáo que excrciam.H
nuarem sendo lucrativas.

COM J°:RCIO EXTERNO


O SISTEMA SOCIAL DE SIPPAR
O comércio externo era em geral de grande importância para a prosperi-
d ade Jc Sippar e do reino babilônio antigo. 55 Não se dispôc de urna colc- A estrutura social da cid:-tde era um sistema complexo e interligado que se
çiio coerente de plaquetas do Porto, mas, como algumas das mulheres 1111- baseava em obrigações e deveres individuais para com as várias institui-
t!itus se dedicavam ao comércio, existem referências nos textos do claustro ções cm troca de contribuições par:, a subsistência, proteção militar e
que nos permitem ter uma visão dos negócios de importação e exporta- outros serviços, inclusive o judicial e o ritual. O Código de Hamurábi faz
ção da cidade. Sippar estava especialmente bem situ:-tda, do ponto de vista uma distinção legal entre pessoas com base cm sua condição social como
geográfico, para o comércio com o norte e o leste, ao longo do Eufrates e livre, não-livre (escravo) ou semilivre. As punições por delitos contra um
do Tigre. As mercadorias arroladas nas plaquetas 1wdit11s eram artigos de awi/1-1111 (literalmente "homem", a pessoa na plena posse de direitos) eram
luxo, como óleo de zimbro, óleo de murta e perfumes ("Procure boa qua- mais pesadas do que contra um nmskemmz (que tinha menos direitos), ao
lidade e compre!") 56 para serem vendidos n:-ts regiões orientais em troca passo que o escravo (ward1m1) não era considerado uma pessoa jurídica e
de prata, e "esplêndidos escravos gútis" (também do leste do Tigre) p:-tra a compensação por qualquer dano cometido tinha que ser paga ao seu
serem trocados por óleo e prata na Mesopotâmia. Os óleos e essências de proprietário. O significado da palavra m11skemm1 ainda não está claro;
árvores eram, por sua vez, imponados, provavelmente das regiôcs mon- ela aparece principalmente em compilações legais como o famoso Código
tanhosas do Líbano. de Hamurábi.60 Nos textos de Sippar, o termo ocorre raríssimas vezes e
Sippar também embarcou produtos têxteis para Assur, onde eram pode ser que tenha uma conotação topográfica, referindo-se a pessoas
trocados por prata, ouro e cobre da Anatólia. 57 A presenç:-t de mercadores que vivem em determinado lugar. 61
assírios na própria Sippar pode ser vista pehs plaquetas escritas em assí- As primeiras tentativas para caracterizar a sociedade do período Babi-
rio, assim como pelos nomes das pessoas a quem cr:-tm concedidos em- lônio Antigo como tendo uma estrutura de classes composta d e três cama-
préstimos em prata. 58 O vinho era envi:-tdo de barco pelo Eufrates desde das - nobres (awilum) , burgueses (muskemmz) e escravos - nunca
Carchemiche, no Norte da Síria, assim como toras de madeira e mobiliá- foram comprovadas, ao passo que a validade dos chamados códigos de
río. Essa cidade era também um centro de comércio de cavalos, também leis como reflexo fiel de uma realidade social tem sido igualmente questio-
mencionado nos textos, embora não fique claro se eram usados p,u-a nada. De modo geral, as categorias de "livre" e "não-livre" não eram
transporte ou vendidos. fixas, uma vez que um indivíduo podia passar de um estado para o outro
Outros entrepostos importantes eram Haleb (a atual Alepo) e Emar, no transcorrcr de sua vida. Os adultos podiam incorrer voluntariamente
nas margens do Eufrates. O tráfego fluvial estava sujeito a controle gover- cm escravatura por dívida por um prazo fixo, cm vez de efetuar pagamen-
namental e as embarcações eram retidas em postos aduaneiros para paga- tos, ou, mais freqüentcmcntc, :-ttravis da venda de dependentes legais,
mento de quaisquer taxas devid:-ts e apresentação de uma licença régia de crianças e mulheres.

206 207
l>IES Ol'U T i\M I i\ 1\ ~ ll'l'AI\ NI.OIIAl\ 11. Ô N ll'. i\

Qualquer mudança de status era assinalada por um penteado cara~tt.'- ,idgum o utro infortúnio, as pessoas recorriam a um empréstimo a uma wxa
rístico. Um anel de cabelo era removido com a alforria, quando um in-iposta pelo emprestador (os templos parecem ter concedido cmprésti•
ex-escravo readquiria o status de awilum. Os prisioneiros de guerra e os mos sem juros a clientes pobres). Em alguns casos, a dívida tornava-se j11ad-
escravos estrangeiros tinham muito menos probabilidades de mudar de mi11istrável e a escravatura por dívida era a única saída para o dilema.
status. Com a expansão da empresa econômica centralizada pela coroa e Os vários problemas políticos do estado, em particular a perda de
pelos templos, foram "importados" mais escravos estrangeiros, em espe- c:ontrole sobre a baixa Mesopotâmia e a movimentação de populações rri-
cial de Subartu (mais tarde Assíria), para mão-de-obra nas oficinas têxteis bais no norte, como a imigração de grupos cassitas, tinham repercussões
e noutras empresas. Uma mudança geral ocorre entre os períodos iniciais em todos os demais recantos do reino. A correspondência entre o rei e os
cobertos pelos textos e a parte final do século XVIIl. No início, os escra- funcionários da cidade de Sippar, do tempo de Abi-esuh (1711-1684) em
vos não constituíam um fator significativo na economia, sendo encontra- dfante, revela a preocupação de todos eles com as defesas militares.63
dos sobretudo como trabalhadores domésticos em grandes casas de famí- Dificuldades econômicas que podiam estar relacionadas com o cresci-
lia, e os casamentos entre antigas escravas e cidadãos livres não eram mento populacional e a e:x:ploração intensificada da terra podem ter con-
incomuns. A estrutura paternalista que caracterizava as relações entre tribuído também para a agitação social. O penúltimo rei_ da Primeira
senhores e escravos também se revela nos nomes pessoais dos escravos, Dinastia da Babilônia, Amissaduca (1646-1626), promulgou um decreto
que usam a terminologia de parentesco para expressar o rclaciona- que tentou aliviar alguns desses sintomas. Sancionou a remissão de dívi-
mento.62 Com uma crescente centralização da economia, os escravos das particulares cm centeio e prata, cancelou pagamentos pendentes de
começaram então a preencher lacunas nos mercados de trabalho. Os reis impostos devidos à coroa e várias outras dívidas que paralisavam a ativi-
doavam muitos escravos capturados em surtidas e guerras às fazendas do dade econômica de bairros inteiros. Ao mesmo tempo, reduziu os paga-
templo, as quais podiam então ser mais intensamente trabalhadas para mentos sobre terras alugadas e arrendadas, e liberou pessoas da escrava-
produzir maiores excedentes, alguns dos quais tinham que ser pagos em tura por dívida. 64
impostos à coroa. A demanda de crescente produtividade afetou não só as Sippar não é explicitamente mencionada como tendo sido afetada
lavouras do templo, mas todos os latifúndios, e o número de escravos de por esse edito. Não se sabe se as condições da cidade eram melhores do
propriedade de grandes casas de família e domínios da coroa cresceu pro- que as enfrentadas em outras áreas do reino ou se o rei procurava consoli-
porcionalmente. Por conseguinte, a estratificação social também aumen- dar sua autoridade alhures. Durante o reinado do seu sucessor, Samsudi-
tou e o abismo entre ci.dadãos livres e não-livres ampliou-se. tana (1625-1595), Sippar foi provavelmente destruída, pois é quando
A rede de obrigações também passou a ser controlada com mais rigor cessam abruptamente os documentos escritos.
pelo regime centralizado do estado durante o período Babilônio Antigo.
Do mesmo modo, requeria-se aos cidadãos livres que prestassem serviços
ao rei, sobretudo deveres militares e trabalho de corvéia em projetos do A SIPPAR NEOBABILÔNICA
estado, como a dragagem de canais ou a manutenção de edifícios públi-
cos, independentemente da taxação dos latifúndios ou dos alvarás para o O segundo grupo de textos de Sippar data de mais de mil anos depois dos
exercício de atividades profissionais. provenientes do gagum do período Babilônio Antigo. A maioria desses
O meio de vida de muitos dependia de seus serviços para as grandes textos foi adquirida de S. Rassam no início do século XX por vários
lavouras, quer de propriedade do templo, quer particulares. Cultivavam museus. Provinham de Abu Habbah e constituíam os arquivos do templo
pedaços de terra por uma participação no produto da safra ou em outras neobabilônio de Chamash. Os santuários de Sippar tinham sido substan-
funções a troco de rações. Nem mesmo pessoas economicamente auto-su- cialmente renovados pelo último rei da Babilônia, Nabônido (555-539),
ficientes como os mercadores e os artesãos do nível dos ourives de Sippar que, tendo algumas dificuldades tom os sacerdotes de Marduk na capital,
estavam isentas de obrigações para com as autoridades da cidade ou para concentrou seus esforços na restauração de antigos cultos em alguns dos
com a coroa, em termos de trabalho e impostos. Se as obrigações não pu- centros provinciais do reino. Empenhou-se ainda em reanimar institui-
dessem ser cumpridas, talvez por motivo de doença, safra insuficiente ou ções passadas, como mostrou, por exemplo, o restabelecimento do cargo

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ML~()l'OTA.\111\ l; 11 J\ !11 AS li, DEUS O 1. ~ 1 PP A 1\

65
de entu em Ur. Também tentou revitalizar o cargo de naditu, que tinha µlos serem chamados Ebabar, que significa a "brilhante casa (branca)".
desaparecido após o fim da Primeira Dinastia da Babilônia. Com o O de Utu estava localizado na cidade meridional de Larsa. No panteão su-
avanço das obras nos antigos santuários, os trabalhadores defrontaram-se mério, o deus-sol é o filho do deus-lua e, em algumas composições, é des-
com documentos da antiga fundação que seus régios predecessores crito como o irmão de InannaY Um texto curioso explica que Utu estava
tinham depositado sob as p:iredes de tijolo. A mesma plaquet:1 que Ras- relacionado com a fabricação de cerveja e acompanha a deusa Inanna à
sam viria a descobrir milênios depois também tinha sido manuseada pelo Montanha dos Cedros, onde se encontram resinas aromáticas, prata, sal e
último rei da Babilônia, que, de acordo com o costume mesopotârnio, lápis-lazúli. Ela quer ir a esse lugar porque "o que interessa às mulheres, (a
repôs a plaqueta cm seu devido lugar. saber), homens, eu ignoro, o que interessa às mulheres, (a saber) fazer
O templo e a cidade renasceram, como as plaquetas claramente mos- amor, eu ignoro, o que interessa às mulheres, (a saber) beijar, cu ignoro". 70
tram. Estas ocupam-se sobretudo das fazendas do santuário de Ebabar, Para obter essa experiência, ela tem que comer "o que há na mont:;mha" -
onde, como em eras anteriores, eram cultivados o trigo e a cevada, embo- talvez de uma ârvore? É interessante encontrar referências a óleos de árvo-
ra bosquctcs de tamareiras fossem também plantados, assim como poma- res nesse texto, escrito em sumfrio durante o período Babi.lônio Antigo,
res com romãs e figueiras, e até alguns vinhedos. 66 A cidade pode ter rido pois sabemos como o comércio de essências aromáticas era importante
uma população muito menor do que a anterior, e as propriedades do tem- em Sippar. Perfumes e ungüentos eram usados no culto, mas também
plo tiver::im que arrendar ou sublocar dois terços de suas rerr::is ::i fazendei- desempenhavam um papel nos preparativos das mulheres para o aro de
ros partic ulares. Isso estav::i em nítido conrr::isre com o período Babilônio amor, o que poderia explicar a ligação etiológica com a viagem de Inanna.
Amigo, quando 67 por cento das terras agrícolas do templo eram lavra- Chamash é também a deidade que protege o herói. Gilgamesh. Com
das por dependentes do próprio templo.67 Os novos empresários agríco- sua ajuda, Gi lgamesh e seu amigo Enkidu subjugam o demoníaco guar-
las não só tinham que fornecer a mão-de-obra, mas também precisavam dião da Floresta de Cedros, o monstruoso Huwawa, que Enlil tinha no-
investir seu próprio dinheiro nos meios de produção, adquirir sementes, meado para impedir a entrada de quem quer que fosse na floresta. Du-
providenciar tração e irrigação etc. Os métodos de lavoura não tinham rante todas as subseqüentes andanças de Gilgamesh, este· se encontra sob
mudado. Pequenos proprietários rurais também podiam tomar por arren- a divina proteção de Chamasb e por fim regressa são e salvo a Uruque.
damento parcelas das terras do templo e fornecer mrmas com três ou
Um dos mais belos hinos mesopotâmios é o dedicado ao deus-sol. 71
quatro arados para cultivarem as terras em conjunto.
Tem exatamente 200 versos, formando 100 dísticos, e data provavel-
O arquivo fornece alguma indicação da administração Jo templo e mente do per íodo Neobabilônio mas incorporando material mais antigo.
das estreitas ligações entre os cidadãos e o templo através de centenas de A maioria dos exemplares existentes são neo-assírios, mas uma peça pro·
postos, cargos e obrigações. Mas, como ::is últimas plaquetas de Sippar só veio de Sippar. É muito provável que essa composição fosse recitada no
foram publicadas em data relativamente recente e ainda estão sendo exa- templo, porquanto constitui o mais completo sumário da teologia solar
minadas, os arquivos do templo de Uruque, mais volumosos e também mesopotâmia. Chamash é louvado sobretudo como o provedor da luz
dessa época, têm sido uma fonte melhor para investigações dessa esp(L que oferece o seu esplendor ao universo inteiro sem fazer d istinções entre
68
cie. Que as artes dos escribas também tinham voltado a ser praticadas as criaturas. A seus olhos onividcntes são revelados segredos, e ele pode
em Sippar é provado pelas numerosas plaque tas de exercícios com excer- comunicar o oculto em oráculos oníricos. Como o sol era visto como se
tos de listas lexicais e vários tcxros literários. Uma biblioteca escavada em estivesse cm constante movimento, Chamash tornou-se o patrono dos
1986 continha muitos exemplos bem-conservados. viajantes e dos mercadores e o protetor de todos os que vi::ijam por estra-
das perigosas e águas traiçoeiras. 72

CHAMASH, DEUS DE SIPPAR


Iluminador, dissipador da cscuridáo na abóbada dos céus,
Que csbraseias a barba de luz, os trigais, a vida da terra.
A personalidade de Chamash, o deus-sol babilônio, assemelha-se cm mui- Teu esplendor cobre as vastas montanhas que o mundo sobranceia,
tos aspectos :i de Uru, a deidade solar suméria, Era freqüenre os seus tem- tu suspendes dos céus o círculo das terras.

21O 211
Ml!\OPOTÁMIA
C HA.\-IASM, Or-US [)E S!l'l'AR

(... )
Pastoreias sem éxçeção tudo o que respira, Chamash protege os que estão longe dos confortos da civilização, pessoas
És o guardião das regiões superiores é inferiores. como os caçadores, os viajantes, até os salteadores de estrada:
Regular e incansavelmente cruzas os céus,
Percorres dia após dia a terra imensa. Aquele cuja fam ília está distante, cuja tidade está longe,
( ... ) O pasror que [cm luta com o] terror da estepe contigo se depara,
No inferno cuidas dos conselheiros de Kusu, os Anunnaki, O boiadeiro cm guerra, o pcgureiro entre os inimigos.
Do alto conduzes todos os assuntos dos homens. ( ... )
Pastor do que está embaixo, guardião do que cst,í em cima, O ladrão furtivo, o inimigo de Chamash,
Tu, Chamash, és a luz que tudo dirige. O saqueador de tocaia nas trilhas do deserro,
(... ) O morto que vagueia, a alma erranre,
A humanidade inteira re reverencia, Deparam-se comigo, Chamash, e a todos escutas.
Chamash, o universo por tua luz anseia. Não estorves o caminho daqueles que te encontram.
Tu iluminas os áugures e interpretas sonhos. Pelo amor que me tens, Chamash, não os. amaldiçoes.
(...)
Mandas (para o inferno) o patife que está cercado ... O hino descreve depois as festividades do vigésimo dia - vinte era o
Do rio infernal resgatas aquele que num processo se debate. número consagrado ao sol-, quando se füe oferece cerveja e se realizam
O que dizes é uma sentença justa, Chamash ... os desejos dos devocos.n
Tuas declarações não podem ser, nem são, mudadas ...
Estás ao larlo do viajante para quem o caminho é difícil, No vigésimo dia exultas de alegria e regozijo,
Ao navegante que teme as ondas tu lhe dás .... Comes e bebes a pura cerveja do vendeiro no mercado,
.
( .. ) Eles te servem a cerveja do vendeiro, e tu a aceitas.
Salvas da tempestade o mercador que leva consigo seu capital. Libertas as pessoas cercadas por ondas poderosas, cm troca recebes
O ... que penetra no oceano tu provês de asas. suas claras e puras libações,
Assinalas lugares de moradia para refugiados e fugitivos, Bebes de sua leve e suave cerveja
Aos cativos apontas os caminhos que (só) Chamash conhece. E satisfazes depois os desejos que eles concebem.

O deus-sol é também o juiz supremo e o hino enumera uma série de deli- O resto do hino repete certo número de tópicos anteriores, sendo Cha-
tos contra Chamash, especialmente os maus procedimentos e as prevari- mash louvado também, por exemplo, como aquele que regula o clima e as
cações na justiça e nos negócios. estações do ano. O hino termina com uma nota de conforto doméstico:
"Possa [Aya, tlla esposa] dizer-te na alcova: ['Saciado sejas']", passagem
Dás ao juiz inescrupuloso a experiência dos grilhões, que o tradmor não considerou ser "uma conclusão condigna para o ele-
Punes o que aceita um presente e deixa que a justiça falhe. vado pensamento do todo. " 74
Aquele que declina um presente, mas não obstante apóia o fraco,
Agrada a Chamash e terá sua vida prolongada. Essa composição revela que Chamash, mais do que qualquer outro
Um juiz circunspecto que pronuncia veredictos justos deus mesopotâmio, simbolizou os valores de justiça social, de proteção
Controla o p;:lácio e vive entre príncipes. dos fracos e os princípios da honestidade e eqüidade nos negócios. As
( ...)
provas fornecidas pelas plaquetas econômicas nos tentam a retratar a
O mercador que [pratica] trapaç:ts quando segura a balança, gente de Sippar como obstinados e sagazes homens e mulheres de negó-
Que usa dois jogos de pesos, baixando assim ...
cios, para quem o lucro era o motivo primordial. Também somos prope n-
Ele está desapontado com os lucros e perde [seu capital].
sos a ver os templos como, principalmente, centros de produção, sendo a
O mercador honesto que segura a balança [e dá] bom peso -
Tudo se lhe apresenta na medida cc.-,ra ... nossa perspectiva proveniente da enorme quantidade de documentos
administrativos a respeito de trabalhadores, cálculos de safras e juntas d,:
2 12
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MESOPOTAMIA

bois. O hino de Chamash fornece um balanço corretivo, lembrando-nos


que os rituais nos templos também serviam parn inculcar valores morais e
padrões éticos.
A título de epílogo, gostaria de citar uma decisão legal sobre um caso
de divórcio julgado na Sippar do período Babilônio Antigo. É a respeito
de uma mulher comum e oferece um vislumbre dos problemas perenes de
relacionamento conjugal. Também mostra o comportamento compassivo
de um júri que protege a mulher de uma rejeição premeditada pelo
marido e lhe assegura que, pelo menos, não ficará pior do que no dia em
que casou com ele:

Na presença dessas testemunhas, eles perguntaram a Aham-nirshu: "É esra


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mulher a tua esposa?"
Ele declarou: "Podem moer-me de pancada, sim, podem até retalhar-me, (mns)
não ficarei casado com ela de jeito nenhum!", assim declarou ele.
Então eles perguntaram à mulher e ela respondeu: "Eu ainda amo o meu
marido". Ele, porém, não a aceirou. Deu um nó na franja do vestido dela e As duas cidades seguintes, Assur neste capítulo e Nínive no Capítulo 9,
cortou-o.7.1
Os cavalheiros perguntaram-lhe (de novo): "Uma mulher que veio viver com a
eram cidades assírias, localizadas no altiplano de pedra calcária da Meso-
tua família, e cuja posição e prestígio como mulher casada sáo conhecidos potâmia setentrional. Tanto a geografia quanto, em certa medida, o sis-
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em (todo o) reu distrito, vai partir assim, como se fosse uma estranha? Para a tema social dessa região diferem das cidades da planície meridional; con-
despedir (ru deves) provê-la exatamente como (ela estava) quando foi morar tudo, a cultura urbana do norte devia ainda muito aos progressos promo-
contigo. " 76
vidos no sul. Isso ficou sobremodo patente, graças aos documentos
escritos descobertos em sítios arqueológicos assírios. Assur e Nínive tive-
ran, histórias particularmenrc longas de ocupação, ao passo que a maioria
das outras capitais, como N imrud ou Cal:í, provedoras de alguns dos
melhores exemplos de escultura assíria, foram habitadas pelo rei por ape-
nas breves períodos de menos de um século.
Assur e Nínive foram m:1is do que capitais cfêmeras construídas por
reis poderosos para satisfazer um capricho momentâneo; ambas eram
lugares sagr:1c.los - sendo a primeira a sede do deus epônimo Assur e a
segunda dedicada à deusa do amor e da guerra, Ishtar. O papel dessas
duas cidades antes e depois que a Assíria afirmou o seu poderio, e o modo
como se conduziram no contexto do estado assírio, merecem especial
atenção. As provas arqueológicas revelaram a complexidade de seqüên-
cias arquitctônicas, enquanto as coleções de plaquetas de ambas as cida-
des nos falam de seus primeiros empreendimentos comerciais, das carrei-
ras de seus reis e do desvelo com que eles cuidaram das cidades e algo
sobre as pdticas e rituais religiosos dos antigos templos.

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