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1 José Murilo de Carvalho e Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves

(organizadores)

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José Murilo de Carvalho
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves
(organizadores)

Repensando o Brasil
do Oitocentos:
Cidadania» política e liberdade

CIViUZAÇÃO BRASILEIRA

Rio de Janeiro
2009
COPYRIGHT © José Murilo de Carvalho e Lúcia Maria Bastos Pereira, 2009

CAPA
Gabinete de Artes/Axel Sande

FOTO DE CAPA
Augusto Elias, Festejos no Rio de Janeiro por ocasião da abolição da escravidão,
13 de maio de 1888.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

R336 Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política


e liberdade/José Murilo de Carvalho &C Lúcia Maria
Bastos Pereira das Neves (organizadores). - Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-200-0917-8

1. BraiiL- História - Século XIX. 2. Cidadania -


Brail - História - Século XIX. 3. Estado Nacional. I.
Carvalho, José Murilo de, 1939-. 11. Neves, Lúcia
Maria Bastos Pereira das, 1952-.
09-1833 CDD-981.04
CDU-94(81)"18"

Texto revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Todos os direitos reseervados. Proibida a reprodução, armazenamento óu
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Impresso no Brasil
2009
A Sandra Jatahy Pesavento — in memoriam

/'
APRESENTAÇÃO 11

PARTE I

Cidadania, idéias e espaço público 17

Radicalismo e republicanismo 19
José Murilo de Carvalho

Do secreto ao público: espaços de sociabilidade na Província


de Minas Gerais (1822-1840) 49
Alexandre Mansur Barata

Clientelismo, ordem privada e Estado no Brasil oitocentista:


notas para um debate 71
Ivan de Andrade Vellasco

Teatro e cidade no Rio de Janeiro dos anos 1920 101


Marcos Luiz Bretas

Entre palcos e músicas: caminhos de cidadania no início


da República 121
Martha Campos Abreu
Andréa Barbosa Marzano
REPENSANDO O BRASIL DO OITOCENTOS

PARTE II

Cidadania, política e impressos 151

Henrique Fleiüss: a função cívica e pedagógica da caricatura


nas páginas da Semana Illustrada (1860-1876) 153
Lúcia Maria Paschoal Guimarães

Constituição: usos antigos e novos de um conceito no


Império do Brasil (1821-1860) 181
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves

Nação e cidadania nos jornais cariocas da época da


Independência: o Correio do Rio de Janeiro como estudo de caso 207
Gladys Sabina Ribeiro

Estado, nação e escrita da História: propostas para debate 239


Cecília Helena de Salles Oliveira

Do litoral para o interior: Capistrano de Abreu e a escrita


da história oitocentista 267
Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães

A política progressista: Parlamento, sistema representativo


e partidos nos anos 1860 293
Silvana Mota Barbosa

As origens da resenha no Brasil: as experiências de O Patriota 325


Tania Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira
SUMÁRIO

parte III
Cidadania, liberdade e escravidão 347

Racialização e cidadania no Império do Brasil 349


Hebe Mattos

Ad Benedictionem: casamento de escravos no Brasil e


nos Estados Unidos 393
Adriana Pereira Campos

Senhores sem escravos: a propósito das ações de escravidão


no Brasil imperial 415
Keila Grinberg

Vassouras — 1830-1850: poder local e rebeldia escrava 437


Ricardo Salles
Magno Fonseca Borges

PARTE IV
Cidadania, nação e política 461

Partidos políticos e nação na América hispânica:


uma história ou uma historiografia comum? 463
Annick Lampèriere

Guerra, nação e civilização: uma aproximação do discurso


nacionalista chileno durante a Guerra do Pacífico, 1879-1884 485
Carmen Mc Evoy

O Comitê de 1808 e a defesa na Corte dos interesses ingleses


no Brasil 511
Carlos Gabriel Guimarães
REPENSANDO O BRASIL DO OITOCENTOS

O vaivém da memória: Marcílio Dias e João Cândido na história 531


Álvaro Pereira do Nascimento

COMENTANDO os TEXTOS 561

o século XIX no Brasil: identidades conflituosas 563


Regina Horta Duarte

Quando a nação é, sobretudo, uma questão de sensibilidade 571


Sandra Jatahy Pesavento

O século XIX brasileiro, a nova história política e os esquemas


teleológicos 581'
Elias José Palti

10
Apresentação

Em 16 de fevereiro de 1822, nas Cortes de Lisboa, o deputado baiano


Cipriano Barata, ao participar de uma discussão sobre o antigo uso das
palavras — clero, nobreza e povo — argumentava que, doravante, nin
guém deveria usar outro nome,senão o de cidadão. Alguns anos antes,
no entanto, os insurgentes pernambucanos de 1817 chamavam-se de
"patriotas", e não de "cidadãos",como ocorria em outros movimentos
políticos do mundo ocidental, indicando que, no Brasil, o início do
Oitocentos ainda era marcado por uma profunda ausência de discus
sões públicas que trouxessem em seu bojo o sentido moderno de cida
dania. Daquele momento em diante, à medida que os traços de uma
nova cultura política inspirada nas idéias liberais instauravam-se no
Império do Brasil, os diversos sentidos de cidadania começaram a se
esboçar e ganharam um espaço inédito no vocabulário político. Con-
vertiam-se, ainda que paulatinamente, no cerne das questões que envol
viam o relacionamento e os vínculos dos indivíduos com o governo e as
instituições do Estado, bem como os valores e as práticas sociais defini
dores da esfera pública.
Hoje em dia, à medida que se consolida o pleno direito do cidadão
em suas práticas políticas, civis e sociais; que se tenta reconstruir a idéia
de democracia;e que,especialmente, a questão das políticas afirmativas
tornou-se ponto obrigatório nos debates, a palavra cidadania é termo
recorrente em ambientes diferenciados da discussão pública.
Os temas da cidadania e da nação,entendidos de forma ampla,têm
merecido um tratamento múltiplo por parte dos historiadores, que não
deixam também de ser cidadãos, por meio de novas abordagens, que

11
REPENSANDO O BRASIL DO OITOCENTOS

ampliam horizontes e multiplicam fontes de pesquisa em relação a um


assunto que ainda se encontra longe de estar esgotado em sua análise.
Nesse sentido, torna-se necessário rever fontes e interpretações que tra
dicionalmente balizaram os estudos sobre a cidadania e a nação.
Não mais é possível entender tais conceitos políticos exclusivamen
te circunscritos ao âmbito do Estado e suas instituições, ou à legislação
e às formas tradicionais de se conceber a participação e a cidadania. Em
uma palavra, o Estado cessou de funcionar como uma categoria a prio-
ri, sob a qual a política era apreendida, para se tornar tanto um proble
ma quanto o produto de uma elaboração social. Nessa perspectiva, o
desafio deste livro foi buscar ótica distinta de análise, a partir do levan
tamento de questões inéditas, à luz de referências teórico-metodo-
lógicas e indagações coletivas que preocupam o grupo envolvido neste
projeto, que conta com o apoio financeiro do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico e da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. Pretendeu-se, portanto, refletir
acerca da construção do conceito de nação e cidadania, ao longo do
peculiar percurso descrito pelo processo da sua conquista no Brasil,
incluindo as lutas e conflitos sociais que envolveram essa trajetória.
O livro que agora se publica foi pensado a partir de tais pressupos
tos, sendo resultado dos estudos de um grupo de historiadores, oriun
dos de diversas universidades dos estados do Rio de Janeiro, de Minas
Gerais e do Espírito Santo, que, há mais de cinco anos,congregam seus
esforços para encontrar encaminhamentos que permitam identificar e
analisar a construção do conceito de cidadania e nação no Brasil, ao
longo do século XIX. Além disso, procuram vislumbrar a complexida
de do problema, a fim de melhor apreender o difícil caminho da cons
tituição do processo de democracia no Brasil. Para tal, procuram muito
mais sugerir do que demonstrar, esforçando-se por captar as vozes de
uma época e tentar traduzi-las para outra, identificando especificidades
de um período, de outras vidas, que, no entanto, não se deixam ver
senão pelas lentes emprestadas pelo presente, segundo a perspectiva
que a nossa própria inserção no mundo delimita.

12
APRESENTAÇÃO

Dando continuidade ao primeiro trabalho do grupo — "Nação e


cidadania no Império: novos horizontes" — o livro atual aprofundou a
discussão, privilegiando a problemática da cidadania no âmbito da for
mação do Estado nacional, da construção da nação, das formas assumi
das pelas práticas políticas e sociais e da constituição de conceitos,
como política e liberdade, no vocabulário daquela época. Resultado de
encontros diversos realizados pelos pesquisadores, ao longo dos três
últimos anos, a consolidação do livro foi alcançada, particularmente, a
partir do Seminário Internacional Nação e Cidadania no Oitocentos
(2005), para o qual foram convidados pesquisadores externos, cujos
trabalhos também foram incorporados; e do seminário interno no fim
de 2006,contando com a participação de dois observadores — o histo
riador argentino Elias Palti (Universidade Nacional de Quilmes)e a his
toriadora Regina Horta Duarte (UFMG) — convidados para tecer
comentários sobre o trabalho que estava sendo desenvolvido pelo
grupo. Essa experiência possibilitou maior coerência temática e concei
tuai ao trabalho que cada pesquisador desenvolvia. Doravante, todos
procuraram falar linguagem semelhante e estavam em condições
melhores de dialogar.
Ao pretender trazer contribuições para o estudo da nação e da cida
dania — seja pela novidade das fontes que traz à tona, seja pelas abor
dagens múltiplas e distintas, mas sempre inovadoras, ligadas aos estu
dos recentes da questão do político, do econômico, do cultural e do
social — a obra procurou mostrar que os conceitos de cidadania e de
nação estão em permanente mutação, devendo ser constantemente
repensados, problematizados e imaginados. Diante da abrangência e da
riqueza temática do campo de investigação aqui delineado, o livro foi
dividido em cinco partes, que atendem tanto aos objetivos da proposta
mais ampla quanto aos interesses dos pesquisadores envolvidos.
A primeira parte volta-se para estudos que apontam para a questão
da cidadania, o mundo das idéias políticas e a formação dos espaços
públicos e sua relação com a vida política. Revela a existência dos pri
meiros debates políticos, ocorridos no início do Oitocentos, até a pro-

13
REPENSANDO O BRASIL DO OITOCENTOS

gressiva radicalização dessas discussões, nas últimas décadas do


Império, assim como a relação entre as redes clientelistas e a formação
da ordem privada no Brasil. Além disso, os estudos demonstram que o
político não deve ser visto apenas como o jogo no qual se elaboram as
táticas de ascensão ao poder, mas também como um espaço em que o
cultural e o simbólico são capazes de se manifestar por meio da arte,
evidenciando as identidades nacionais e étnicas.
A segunda parte inclui estudos sobre cidadania, política e impres
sos, indicando o papel da imprensa enquanto agente que intervém nos
processos e episódios que construíram o Império do Brasil como
História, incluindo-se ainda o próprio estudo da escrita da história
enquanto instrumento para a concretização da nação brasileira. Os tex
tos demonstram também a existência de mecanismos para a formação
da cidadania política, por meio das representações que os intelectuais
construíram de si próprios, elaborando um discurso político capaz de
expressar identidades políticas e sociais distintas, presentes naquela
conjuntura histórica.
A terceira parte engloba os estudos sobre a escravidão e as relações
entre a construção e o exercício da cidadania, a idéia de liberdade, a
configuração de práticas sociais no mundo dos cativos, a persistência
do regime de trabalho escravo no Brasil independente e o papel de um
circuito de informações entre senhores e escravos como elemento pri
mordial da organização social da época.
A quarta parte concentra-se em estudos que dialogam por meio do
eixo da formação da identidade e da memória nacional e da construção
da cidadania, em vários momentos do Oitocentos e em realidades
socioeconômicas distintas, permitindo que se estabeleça uma compara
ção entre o processo no Brasil e na América hispânica. A análise toma
como elemento, de um lado,os partidos políticos, enquanto partes inte
grantes da vida pública e elementos capazes de auxiliar a pôr em práti
ca os princípios fundamentais de uma política nacional; de outro, a
guerra enquanto um instrumento usado pelo poder político para o
engrandecimento da nação; e o papel do herói como elemento forma-

14
APRESENTAÇÃO

dor da construção da memória nacional. Os dois primeiros trabalhos


incluídos nessa parte não se relacionam ao Brasil, mas a casos das
nações latino-americanas, estudados pelas pesquisadoras colaborado-
ras estrangeiras que se incorporaram ao grupo, permitindo ampliar as
experiências acadêmicas e esboçar uma comparação de processos histó
ricos distintos, entretanto muito próximos, em sua essência, no tocante
à formação da identidade nacional e à construção das práticas da cida
dania.
Por fim, encontram-se os textos daqueles que foram convidados
para elaborar uma apreciação do grupo, seja em seu todo, seja em
parte. Para além das avaliações e comentários, os autores indicam as
controvérsias que agitaram o século XIX em torno de conceitos tais
como os de nação, cidadania, liberdade e soberania, entre outros.
Levantam ainda um questionamento sobre o uso de modelos que domi
naram, por longo tempo, as interpretações historiográficas do século
XIX latino-americano, procurando, em contrapartida, encontrar cha
ves interpretativas próprias que apontem novos caminhos da escrita da
história sobre o estudo do político no século XIX,indicando a impor
tância deste livro para alcançar tal objetivo.
Desse modo, o livro em tela oferece contribuições para o estudo
sobre nação e cidadania no Brasil do Oitocentos, por intermédio do
diálogo que apresenta entre esses dois conceitos fundamentais para a
compreensão da história do país e, ainda, da novidade de trazer outras
experiências históricas de países latino-americanos, que também busca
ram sua identidade nacional por meio de mecanismos diversos, trilhan
do um longo caminho para a consolidação das práticas efetivas da cida
dania e da democracia.
Cabe, doravante, ao público leitor apreciá-lo.

José Murilo de Carvalho


Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves

15
REPENSANDO O BRASIL DO OITOCENTOS

período das regências (1831-1840), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 9.
Sobre a idéia de uma república inconclusa, ver José Murilo de Carvalho, A formação
das almas — O imaginário da República no Brasil, São Paulo, Companhia das
Letras, 1990, pp. 141-142.
2.João Antonio de Paula, "As cidades", in Carlos Antonio Leite Brandão (org.). As
cidades da cidade. Belo Horizonte, Editora UFMG/leat, 2006, pp. 21-34. Sobre a
ameaça atual da destruição do sentido político das cidades, ver Carlos Antonio Leite
Brandão,"A natureza da cidade e a natureza humana",in As cidades da cidade, op.
cit., p. 73.
3. José Murilo de Carvalho,"O historiador às vésperas do terceiro milênio", in Pontos
e bordados, escritos de história e política. Belo Horizonte, UFMG, 1998, pp. 441-
457; José Murilo de Carvalho, "Cidadania na encruzilhada", in Newton Bignoto
(org.). Pensara República, Belo Horizonte, UFMG,2000, pp. 105-130.
4. Tais considerações foram despertadas, sobretudo, a partir das apresentações, no
referido seminário, de trabalhos de Gladys Sabina Ribeiro, Keila Grinberg, Ivan
Vellasco e Ricardo Salles.
5. Pesquisa feita pelo CNT/Sçnsus em junho de 2007,com consulta a 2 mil pessoas em
24 estados brasileiros. Curiosamente, entre os motivos de orgulho predominam as
riquezas naturais (25,7%), a ausência de guerras (18,4%), as praias e paisagens
naturais (10,2%). A solidariedade é motivo de orgulho para 19,5%. S te
http://www.sensus.com.br/doc/Pesquisa%20Nacionar/o20CNT%20Sensus.doc,
acessado em 27 de junho de 2007.

570
Quando a nação é, sobretudo,
uma questão de sensibilidade
Sandra Jatahy Pesavento*

*■ Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


Uma nação é uma comunidade imaginária de sentido, bem o sabemos.
Assim, é uma construção simbólica que elabora elos de pertencimento,
forja laços, permite a existência do sentimento de identidade e propicia
coesão social. Forjar a nação é, pois, captar a realidade segundo uma
percepção muito específica, é enxergar o mundo segundo um viés sim
bólico que se estrutura em torno de categorias de identificação bem pre
cisas: nós e os outros.
Sabemos ainda que esse processo de percepção e classificação do
real tem momentos também precisos de nascimento, estando associa
dos ao surgimento dos Estados-nação, que, dentro dos marcos da cha
mada civilização europeia ocidental cristã,se deu entre os séculos XVIII
eXIX.
Trata-se, pois, de um processo de "reinvenção do mundo",e enten
demos que, contextualizações históricas e específicas à parte, há um
traço comum a unir as distintas construções da nação:o fato de cons
tituírem como uma forma de conhecimento sensível do mundo.
Ou seja, a nação é um fenômeno que passa pelas sensações, pelos
sentidos, pela emoção e que toca as pessoas, mobilizando reações e sen
timentos muito além e aquém das elaborações mentais, mais sofistica
das, do intelecto. Entretanto,tal apreensão sensível do mundo se des o
bra também em tradução mais organizada,quando se articulam concei
tos e se delimitam as noções dos sentimentos associados a tais i eias e
comportamentos. Tais razões e sensibilidades são por sua vez transmiti
das, ensinadas, repetidas, divulgadas e consideradas em seu processo e

573
REPENSANDO O BRASIL DO OITOCENTOS

transmissão mais acabadas como inerentes a um povo, como herdadas


e como tendo existido sempre, desde um tempo mais recuado do que
aquele de sua construção.
É por esse viés que analiso os trabalhos apresentados nesta mesa-
redonda articulada em torno do tema ''''Cidadania, política e cultura'''':*
trata-se de abordagens do fenômeno que partem de distintas formas de
conhecimento sensível do mundo e propiciam a construção de determi
nados significados de pertencimento — nação, cidadania — que pas
sam a integrar o imaginário social de um povo. No caso específico, tais
conceitos, que em uma concepção mais restrita pertenceriam à esfera
do político, se integram de forma indissolúvel ao universo da cultura,
no qual se difundem e partilham significados.
Os participantes desta mesa-redonda trabalharam com a caricatu
ra,com o teatro,com a música e com o livro e a imprensa, ou seja,com
os mundos da escrita e da leitura. Assim, partiram de diferentes vieses
de abordagem que tanto lidam com os sentidos, as sensações e emoções
que marcam o contato do homem com o mundo quanto com a tradu
ção objetiva dessa experiência, exteriorizada em práticas culturais.
Todo esse processo se realiza em um espaço e em uma temporalidade
também precisas: trata-se do Brasil, do tempo do Império e da cidade
do Rio de Janeiro, sede da Corte.
A proposta é ambiciosa e fascinante. Desse Rio imperial, se cons
trói, a partir de instâncias culturais diversas, o imaginário de sentido da
nação. Como invenção de um pertencimento, o delineamento identitá-
rio toca por vezes a exacerbação, definindo estereótipos, o que, contu
do, vem aar uma cor mais acentuada à percepção dos traços distintivos,
de forma cômica e dotada de profunda ironia... Mas quem disse que
seriedade tem algo a ver com sisudez? Essas foram, a meu ver, aborda
gens que, sob diferentes ângulos, nos mostram a laboriosa construção
da nação e da cidadania, que levam à reflexão.
Lúcia Maria Paschoal Guimarães, com seu trabalho "Henrique
Fleiüss: a função cívica e pedagógica da caricatura nas páginas da

574
QUANDO A NAÇÃO É, SOBRETUDO. UMA QUESTÃO DE SENSIBILIDADE

Semana Ilustrada (18S9-1873y\ nos faz mergulhar no mundo da cari


catura. Logo, sua abordagem se situa no âmbito do ver^ fazendo uma
análise da produção de imagens que, para além da mera dimensão
visual, dão também a ler.
A idéia de que a imagem suporta uma mensagem discursiva contém
uma trama e permite a leitura de uma narrativa é bastante difundida,
assim como a de que os textos remetem a imagens mentais, do nosso
"arquivo de memória", que armazena tais registros. Assim, os proces
sos de "dar a ler" e "dar a ver" trocam sinais, permitindo afirmar que
a imagem está para o espaço tal como a narrativa está para o tempo,
mas que tais correlações são intercambiáveis.
Entretanto, a caricatura é uma forma especial de imagem. Em pri
meiro lugar, enquanto imagem figurativa, lida com as evidências que se
destacam, a explorar os defeitos físicos ou detalhes marcantes de uma
fisionomia que permitam a identificação do caricaturado. Mas essa dis
posição realista de representação da realidade busca também os des
vios, de caráter e procedimento, os ridículos das ações e dos caracteres,
que dão a ler e ver sentidos a apreciações. Há,pois, na caricatura, uma
tensão entre a mímesis e o simbólico, que permite a identificação e o
reconhecimento do personagem e cena representados, mas que aponta
para uma história sobre eles, implícita ou explícita.
Mais do que isso, a caricatura, em princípio, visa a despertar o riso
— esse "diabo escondido" de que falava Baudelaire com o seu
potencial corrosivo e de irreverência mordaz.ÍSÍesse sentido, a caricatu
ra faz a crítica de costumes, social e política, pelo viés do cômico, des
nudando defeitos e mazelas, expondo ridículos. Assim, a caricatura e
uma forma bem-humorada de leitura da realidade, mas que pressupõe
uma chave de leitura. A piada não se explica, por certo, pois a graça
deve ser descoberta pela exposição gráfica dos traços do caricatunsta e,
sobretudo, pelas associações cabíveis e possíveis de serem feitas, reve
lando o cômico e a crítica. Seu objetivo será atingido,enquanto leitura,
pelo explodir do riso, que traduz o entendimento da mensagem propos
ta na caricatura.

575
REPENSANDO O BRASIL DO OITOCENTOS

Entendida como uma forma de conhecimento do mundo, sua


chave de leitura é proposta por um autor muito especial: um estrangei
ro que se incumbe de mostrar, "dizer" e explicar o Brasil aos brasilei
ros. Em função cívica e pedagógica, Fleiüss é portador desse olhar
"desde fora" que explica a realidade nacional. Nesse sentido, seria esse
outro um construtor coadjuvante de uma identidade nacional. Sim,
pois a maneira como somos é também produto da forma como os
outros nos veem.

Fleiüss é dotado de um estranhamento, uma distância e um recuo


com relação àquilo que vê e que vive, e que traz no seu olhar outras
referências que dão sentido ao observado. Mesmo que no Brasil se radi
que, pode revelar aos brasileiros coisas e significados que esses são inca
pazes de detectar. Dotado de uma virtualidade técnica especial — tra
duzir imagens visuais em imagens simbólicas — traz a idéia da correção
dos costumes.
Ou seja, o que fazer quando esse estranho Rio, essa Corte tropical,
essa monarquia bizarra se situam na contramão das expectativas espe
radas? Qual a lógica desse funcionamento social e político, como
"melhorar" essa nação que surgia e como enquadrá-la em padrões con
venientes e desejados? Talvez a regeneração se desse pela modificação
dos costumes, das formas de proceder desses atores da cena imperial e
citadina! Tudo a ser dito de forma visual, bem-humorada e, sobretudo,
ao alcance do público, que devia ter as chaves de leitura para rir e
entender a crítica.
O texto de Lúcia Guimarães, portanto, no faz mergulhar na obra
desse autor que, com suas caricaturas, situa-se nesse momento-chave de
nascimento da nacionalidade que tem o seu epicentro no Rio de Janeiro.
Marcos Bretas, com seu artigo "O teatro carioca e as representa
ções do nacional" escolheu uma outra forma sensível de construir a
nação: aquela do teatro popular,com tanto sucesso na época.
Diz o autor que se propõe a resgatar o irresgatável! Ora, essa afir
mação procede: teatro é texto, por certo, é trama e enredo que pressu
põem uma narrativa escrita. Mas é, sobretudo, performance^ gesto.

576
QUANDO A NAÇÃO É, SOBRETUDO, UMA QUESTÃO DE SENSIBILIDADE

palavra, entonação de voz. É texto que se dá a ouvir, pela voz que o


interpreta, e que se dá a ver, pelo jogo de encenação dos atores. E espe
táculo visual, imagem que se desenvolve diante do público e que, ao
contrário do cinema, que deixa um registro da ação, recuperável para
ser revisto, constitui-se em uma temporalidade transcorrida, não-
recuperável.
Assim, o autor se propõe a fazer uma espécie de história social da
experiência de ir ao teatro. Como, no caso, essas obras eram vistas
pelos espectadores de um Rio de Janeiro de outrora? Ou seja, os popu
lares, essa massa crescente de habitantes das camadas médias e baixas
urbanas que buscam avidamente diversão?
Chegaram até nós os textos, mas e as gestualidades, as entonações
de voz, os olhares resultantes da mise en scène teatral? Um censor que
proibisse as palavras se defrontaria ainda com a realidade dos gestos, a
imprimir os mesmos significados do texto supostamente proibido, a
partir das inúmeras estratégias empregadas para burlar a censura.
Entenderia o censor o significado do que assistia, em que nada de aten
tatório à moral e aos bons costumes era dito? Deixaria passar? Como
proibir o gesto que se renovava a cada encenação?
Pois do texto ao visual se introduz o movimento do corpo que fala,
em eloqüência sem palavras. Como exercer a vigilância total ou a inter
dição dos gestos que se substituíam aos textos para a transmissão das
mensagens desejadas? Cabia patrulhar, assistindo a todos os espetácu
los? Descobrir tais sentidos torna-se tarefa por demais fascinante para
o historiador.
Ora, o teatro popular traduz essa tensão presente nas artes cênicas
entre a mímesis — a exposição realista da realidade vivida e a forma
caricata de apresentar esse real, a lidar com a inversão e a analogia da
linguagem, dos gestos e das cenas representadas. Assim,o teatro popu
lar carioca lida com o verso e o reverso da cidadania, apresentando
uma brasilidade caricatural carregada de denúncia social. A pertinência
da encenação se realiza na afluência do público e na captação do
humor.

577
REPENSANDO O BRASIL DO OITOCENTOS

Temos aqui o retorno da chave de leitura antes aludida com relação


à caricatura como expressão gráfica, medida agora na base da captação
de sentido pelos populares que assistem às peças teatrais. Era oferecido
um Brasil, um Rio de Janeiro e uma nação escrachados. Essa visão do
nacional se apresenta nos palcos, pela performance de personagens que
invocam personalidades do mundo da política e das finanças, de cenas
cômicas que expõem o ridículo das práticas sociais e dos valores ou
pela encenação de tipos populares que lidam na contramão da ordem
instituída.
Do teatro à música, outros registros sensíveis do Brasil se revelam
pelo olhar de Martha Abreu,com seu trabalho "Música popular e polí
tica nas histórias de um famoso 'Crioulo' - Eduardo das Neves:!874-
1919".
Ora,a música leva a palma de ser a mais sensível das comunicações,
a que mais toca à emoção e ao sentimento. A possível leitura do mundo
que contém,a ser feita pelos historiadores, se defronta com o desafio de
um certo plus.
A música pode vir acompanhada de texto, em que a palavra, em
narrativa musical, nos conta uma história, uma trama e um drama.
Sobre esse aspecto, o historiador se sente firme no terreno de leitura da
escrita, pois está acostumado ao texto, seu tradicional domínio.
Mas a música é, sobretudo, som, melodia, ritmo, timbre. Música
nos toca profundamente nos sentidos, pois é, especialmente, um ouvir.
O som contagia, emociona, permite a evasão. Ao ritmo responde o
corpo,em movimento que se descontrai. A música, de uma certa forma,
envolve e liberta a imaginação, impulsionando o devaneio.
Como ler essa expressão sensível do mundo, eis o grande impasse e
desafio de uma história cultural, caminho pelo qual os historiadores
avançam, seduzidos por esse universo.
Dudu das Neves teve sucesso, teve boa recepção a sua obra. Sua
música comunicava, era escutada, apreciada, partilhada. Ora séria, ora
irreverente, tocava fundo na população. Dudu falava — ou melhor.

578
QUANDO A NAÇÃO É. SOBRETUDO, UMA QUESTÃO DE SENSIBILIDADE

cantava — sobre malandros e capoeiras, sobre mulatos e crioulos, mas


também sobre a política e os hábitos da terra, incorporando até os
heróis celebrados,com apelos sentimentais à emoção da conquista e da
formação do Brasil. Seu repertório era vasto e, por que não dizer, dis
pare, tal como foi variado o seu público, indo dos populares às elites.
Escutada desde hoje, sua produção musical — melodia e voz, além
da temática — soa por vezes estranhas. Mas seu sucesso revela um aces
so às sensibilidades de um outro tempo, em que tal música falava aos
sentimentos e à percepção do mundo. Talvez mesmo à uma coesão
social presente aos processos simbólicos e complexos da formação de
uma identidade.
Talvez se pudesse arriscar uma apreciação de sua obra, dizendo que
Dudu das Neves teve sucesso porque conseguiu atingir redutos sensíveis
de pertencimento, tanto no nível das distintas subjetividades e trajetó
rias de vida quanto de uma construção mais vasta de identificação, a
que se poderia dar o nome de povo brasileiro. Assim, esse cantor de
sucesso junto ao público tangenciava, de maneira muito próxima, a
laboriosa e múltipla feitura da nação, erguida por muitas outras vozes.
O texto de Tânia Maria Bessone da Cruz Ferreira "Livros em rese
nha: imprensa brasileira no século XIX" nos remete aos territórios da
escrita e da leitura. Mas não se trata de, desde hoje, analisar e dissecar
a narrativa de autores de outra época. Trata-se antes de enfocar aque
les que, desde o Brasil de um outro século, se arvoravam em elaborar,
para o potencial público, a decifração de sentidos das obras escritas,
fornecendo como que um código de leitura prévio.
A questão que a autora se propõe a abordar reside, nada mais nada
menos,em aprofundar-se no território daqueles que,armados com a au
toridade da fala, produziam a resenha e a crítica das obras produzidas.
Tais autores orientavam a leitura, pois. Mais do que isso, modela
vam a fixação dela, forjando o gosto, definindo e enquadrando estilos,
atribuindo valor. O crítico literário detém um grande poder e autorida
de da fala junto ao público leitor, consagrado ainda pelo veículo em que
transmite sua análise crítica. E a imprensa, bem o sabemos,exerce essa

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REPENSANDO O BRASIL DO OITOCENTOS

tarefa de formar a opinião. Esse poder de influenciar o leitor é funda


mental, pois tanto se avança no julgamento, a celebrar ou a demolir
autores e obras, detectando a novidade ou reforçando a tradição, quan
to se modula o horizonte de expectativas. A crítica literária destaca as
tendências de uma época, estabelece os padrões da estética, balizando a
escrita e qualificando o texto. A rigor, o crítico literário se incumbe da
difusão cultural de um texto, induzindo a sua boa ou má recepção. No
limite, o crítico pode destruir uma obra ou consagrá-la.
Ao estabelecer os parâmetros do que vale ou não vale a pena ler,
exerce uma espécie de pedagogia civilizacional. A grande questão que se
introduz nesse campo da crítica é a de divisar o que seria considerado
compatível como uma definição do nacional e testemunho de um padrão
estético refinado. Que autores e obras representariam o Brasil ou, em
Outras palavras, que literatura melhor definiria o Brasil desejado?
Tratando de críticos que tinham sua base no Rio de Janeiro, atuan
do como personagens centrais da vida literária que circulava entre
cafés, livrarias, confeitarias, bibliotecas, tendo ainda ligações com as
casas editoriais de então, caberia a pergunta: como o Rio de janeiro se
articulava, no plano da apreciação literária, com a idéia de nação?
Como se produziriam as relações nacional/regional e, particularmente,
como o Rio, por meio de seus críticos, veria o restante do Brasil?
Dessa forma,a apreciação estética, modulando a leitura, desdobra-
se em questões de ordem político-social e também das redes de poder,
presentes nessa comunidade simbólica e imaginária de sentido a que se
dá o nome de nação.
Que Brasil, pois, era esse, construído e desejado, por meio de dife
rentes representações que veiculavam sensibilidades, emoções, juízos e
afetos, pautando condutas. Essa é uma questão, ainda em aberto, que
percorre todos esses textos acima referidos, mas que se revela instigan-
te para novas questões e perguntas, dilatando o campo da pesquisa.

580
s temas da cidadania e da nação, entendidos de forma
ampla, têm merecido um tratamento múltiplo por parte
dos historiadores, que não deixam também de ser cida
dãos, por meio de novas abordagens, que ampliam horizontes
e multiplicam fontes de pesquisa em relação a um assunto cuja
análise ainda está longe de se esgotar. Nesse sentido,torna-se
necessário rever fontes e interpretações que tradicionalmente
balizaram os estudos sobre a cidadania e a nação.(...) O desafio
deste livro foi buscar ótica distinta de análise, a partir do
levantamento de questões inéditas, à luz de referências teórico-
metodológicas e indagações coletivas que preocupam o grupo
envolvido neste projeto, que conta com o apoio financeiro do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro. Pretendeu-se, portanto, refletir acerca da construção
do conceito de nação e cidadania, ao longo do peculiar percurso
descrito pelo processo da sua conquista no Brasil, incluindo as
lutas e os conflitos sociais que envolveram essa trajetória.

Ettirtio* r y"
^CNPq
Conselho Nacional Oe D—enmMmttto
FAPERJ
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do Oitoccntos Ci^nHfíco e Tacnotóglco

78-85-200-0917..

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