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A VIDA DE ALEGRIA

A VIDA DE ALEGRIA
Comentário sobre Filipenses
volume 1, capítulos 1 e 2

Dr. Martyn Llo^fd-Jones

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS


Caixa Postal 1287 - 01059-970 - São Paulo, SP
www.editorapes.com.br
Título Originai:
The Life of Joy

Editora:
Hodder & Stoughton

Primeira edição em inglês:


1989

Copyright:
© Mrs, Bethan Lloyd-Jones
1989

Tradução do inglês:
Odayr Olivetti

Cooperador:
Silas Roberto Nogueira

Capa:
Wirley dos Santos Corrêa

Primeira edição em português:


2008

Impressão:
Imprensa da Fé
índice
Introdução....................................................................... 7
1. Alegria no Senhor........................................................... 9
2. Santos em Cristo Jesus..................................................22
3. A obra de Deus.............................................................. 36
4. Amor, conhecimento e juízo....................................... 50
5. A defesa e a confirmação do evangelho..................... 65
6. Mais do que vencedores............................................... 79
7. Ele e somente Ele.......................................................... 95
8. “Para habitar com Ele para sempre”........................108
9. Cidadãos do céu........................................................... 122
10. Lutando firmes pela verdade..................................... 136
11.0 único caminho da paz........................................... 150
12. Jesus, 0 Senhor............................................................. 164
13. A iniciativa de Deus................................................... 177
14. Desenvolvendo a nossa própria salvação................ 191
15. O interesse especial de Deus por Seu povo............. 202
16. Essencialmente diferentes......................................... 218
17. A palavra da vida......................................................... 232
18. Até a morte.................................................................. 246
INTRODUÇÃO

Embora estes sermões tenham sido pregados na Capela


de Westminster entre novembro de 1947 e fevereiro de 1948,
eles são tão poderosamente relevantes hoje como o foram há
quarenta anos (a contar de 1988). Primeiro, no fundo não
somos diferentes dos que os ouviram naquele tempo. O âmago
da mensagem do “Doutor” é que os seres humanos sempre
foram e são iguais — seja há dois mil anos em Filipos, seja
atualmente, no Ocidente do século vinte. Ele proclamava, ele
próprio o dizia, não as suas idéias pessoais, mas as verdades
eternas expostas na infalível Palavra de Deus. Um judeu,
aguardando provável execução numa prisão romana do
século primeiro, pôde falar dessa maneira aos combalidos e
perplexos londrinos dois milênios mais tarde. O segredo de
Paulo - a alegria e a paz interior que ele tinha graças à
presença de Cristo em sua vida - está aberto para todos os
que buscam tal bênção atualmente.
Esta série de sermões foi pregada dois anos após a guerra
mais terrível que o mundo tinha visto. Todos os que ouviram
esses sermões tinham passado pelo conflito, e a própria Capela
de Westminster tinha sido danificada pelo bombardeio. Por
volta de 1947, a Guerra Fria já havia começado, e de fato “o
Doutor” se refere à possibilidade de uma✓ Terceira Guerra
Mundial em seu capítulo intitulado O Unico Caminho da
Paz. Com 0 desenvolvimento da tecnologia nuclear, ainda
vivemos tempos incertos. Talvez a détente' resolva - ou quem
sabe não. As pessoas de todas as idades estão agudamente
cientes do que acontecerá, se essa política falhar. Resoluções
de boa vontade não podem dar resultados permanentes. Uma
vez mais, “o Doutor” aponta para a nossa única esperança
real, o nosso evangelho cristão. Somente se os pecadores
nascerem de novo em Cristo poderá prevalecer a paz real.

Christopher Catherwood (Editor)


Balsham, outubro de 1988

• Palavra francesa que significa distensão, relaxamento, descontração. O


termo designa a política de abrandamento das tensões entre os Estados
Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Essa política teve
seu auge no período do Presidente Nixon (1969-1974) e seu consultor,
Henry Kissinger. Culminou com um importante tratado entre os dois
países em 1972. Nota do tradutor.

8
1
Alegria no Senhor
“Paulo e Timóteo, servos de Jesus Cristo, a todos os santos em
Cristo Jesus, que estão em Filipos, com os bispos e diáconos.”
- Filipenses 1:1
Chamo a atenção de vocês para este particular versículo
como um meio de introduzir a mensagem desta grande
Epístola. Em geral se concorda que, de todas as cartas de
Paulo que foram preservadas, há algumas qualidades per­
tencentes a esta particular Epístola que a tomam singular. E
a carta mais lírica, a mais alegre, das que o apóstolo escreveu,
ao menos das que foram preservadas. Há nela uma nota de
felicidade e alegria - não que a alegria esteja ausente das outras
cartas de Paulo, mas aqui a alegria presente é particularmente
notável. Embora lhes faça algumas advertências, quando
escreveu esta carta parece que Paulo não tinha nenhum motivo
para repreender a igreja. A relação entre Paulo e os filipenses
era muito cordial; das coisas desafortunadas e desagradáveis
que tinham ocorrido, por e.\emplo, em Corinto, nenhuma tinha
acontecido em Filipos, nem tampouco teve ele que escrever
aos filipenses como escreveu aos colossenses. Portanto, a
situação era particularmente feliz e harmoniosa, e o apóstolo
escreveu movido por um coração satisfeito e alegre.
Mas agora vamos considerar esta Epístola, não só por
causa do seu mérito intrínseco, mas, antes, para vermos como
o seu conteúdo nos fala na atualidade. Essa é, naturalmente.
uma das coisas mais extraordinárias, e singular quanto às
Escrituras. Uma Epístola que pode ter sido escrita por
motivos mais ou menos pessoais, tem aplicação universal.
Assim é, naturalmente, não só porque a verdade é imutável,
mas também porque as leis da vida espiritual tampouco
mudam, jamais. Existem variações em determinadas mani­
festações da mesma condição, mas a condição mesma nunca
muda, razão pela qual os conselhos dados nestas Epístolas
do Novo Testamento são tão pertinentes e aplicáveis hoje
como 0 foi quando elas foram escritas originalmente. E por
isso que a Bíblia é de tão vital importância na vida do
cristão: toda experiência concebível que o cristão possa ter
que enfrentar já foi enfrentada e tratada nalguma parte das
Escrituras. Isso de uma nova experiência na esfera do Espírito
é coisa que não existe; vocês verão tudo bem suprido aqui.
Estas leis são duradouras, são permanentes. Portanto, o que o
apóstolo teve que dizer à igreja de Filipos há muito tempo,
tem urgente e relevante mensagem para nós no presente.
Consideremos, pois, em primeiro lugar, algo sobre os
antecedentes desta Epístola. Filipos foi a primeira cidade do
continente europeu em que o evangelho de Jesus Cristo foi
pregado. Vocês verão em Atos, capítulo 16, a interessante e
admirável narrativa da visão que Paulo teve durante a noite.
Ele viu um homem da Macedônia que o chamava dizendo
que passasse para lá e ajudasse a levar o evangelho para a
Macedônia, na Europa. Depois lemos que Paulo e Silas foram
e chegaram a Filipos, onde encontraram um pequeno grupo
de mulheres que se haviam reunido para orar à beira do rio.
Vemos que eles se deram conta de que esse era o lugar onde
deveriam parar; ali já havia um grupo de pessoas devotas
orando a Deus. Então expuseram e pregaram o evangelho
àquelas mulheres. Então o Senhor abriu o coração de Lídia,
vendedora de púrpura, que era uma delas, e Lídia aceitou o
evangelho, e com ela as outras também o aceitaram. Elas

10
constituíram o núcleo da igreja de Filipos, e Paulo e Silas
saíam e voltavam a esse grupo.
A seguir vem o relato da pobre jovem endemoninhada
que os seguia clamando: “Estes homens, que nos anunciam o
caminho da salvação, são servos do Deus altíssimo”. E o texto
nos informa que um dia Paulo, vendo que essa moça era
usada por homens cruéis para ganhar dinheiro, ficou tão
perturbado que se voltou, repreendeu o espírito que estava
nela e o expulsou. Isso levou à prisão de Paulo e Silas, e
nessa noite houve um forte terremoto.Todos os prisioneiros
viram-se soltos de suas correntes, e o carcereiro, temendo que
tivessem fugido, sacara sua espada para matar-se, quando
Paulo bradou: “Não te faças nenhum mal...”. Então o homem
prostrou-se aos pés de Paulo e Silas e disse: “Senhores, que
é necessário que eu faça para ser salvo?”, e Paulo deu a
imortal resposta: “Crê no Senhor Jesus Cristo, e serás salvo,
tu e a tua casa”. O homem creu, sua família também, e eles
foram batizados, e se alegraram no Senhor. Posteriormente
Paulo e Silas, depois de conferenciarem com os magistrados,
saíram da cidade.
Foi assim, pois, que a igreja de Filipos, para a qual Paulo
escreveu esta carta, veio a ser formada.Também é de vital
importância lembrar que, quando Paulo escreveu esta carta,
ele era outra vez um prisioneiro. Estava numa prisão em Roma,
o que significava que provavelmente estava num calabouço,
manietado e acorrentado a um soldado. Lemos em Atos como
ele chegou ali - como tinha sido preso e fizera aquela viagem
extraordinária para Roma, sofrendo inclusive um naufrágio
no percurso. Mas, afinal, aqui está ele em Roma, um prisio­
neiro em cadeias escrevendo a esta igreja que tinha vindo à
existência - talvez dez anos antes - como fruto da sua prega­
ção do evangelho. Ele tinha um motivo especial para escrever
esta carta. A igreja de Filipos lhe tinha enviado uma doação,
e a tinham enviado por meio de um homem chamado

11
Epafrodito, mencionado no capítulo dois. Durante sua
permanência em Roma, este homem ficara doente e, na ver­
dade, parecia que ia morrer, mas se recuperou e agora ia
voltar à igreja de Filipos levando consigo a carta de Paulo.
Bem, esse é o contexto desta Epístola, e, na verdade, ela
é, sob todos os pontos de vista, uma Epístola maravihosa e
extraordinária. Seu tema pode ser expresso assim; “Alegria no
Senhor”, ou, para dizê-lo de outro modo; “Como alegrar-se no
Senhor”. Quando vocês percorrerem a carta, observarão que
Paulo fica repetindo isso. Por exemplo, no começo do capí­
tulo três ele diz; “...regozijai-vos no Senhor”, e mais adiante,
no capítulo 4, ele exorta; “Regozijai-vos sempre no Senhor,
outra vez digo, regozijai-vos”, verbo que se vê na Epístola
toda. Ou, se vocês preferirem, podem examiná-la de um
outro ângulo e dizer que esta Epístola, talvez mais explici­
tamente do que qualquer outra, demonstra para nós o poder
do evangelho de Jesus Cristo. Ela nos mostra, de maneira
muito concreta e prática, o que o evangelho de Jesus Cristo
pode fazer realmente numa vida. A carta não é bem um
tratado teórico, é mais uma exposição prática do evangelho.
De certo modo, Paulo é mais pessoal nesta carta, do começo
ao fim, do que o é em qualquer outra, e, embora escrevendo
sobre si mesmo, faz uma admirável exposição do que o
evangelho pode fazer na vida de um homem.
Não somente isso, ele mostra claramente, ao mesmo tempo,
0 que 0 evangelho pode fazer na vida de uma comunidade,
pois, lendo-a, vocês vêem que o apóstolo não está apenas
descrevendo sua pessoa, mas também está descrevendo algo
do estado em que se encontrava a igreja de Filipos. Ele amava
aquela igreja por seu estado e condição, por seu caráter
harmonioso, pela felicidade que havia na vida das pessoas
que a compunham - e tudo isso devido ao evangelho. Pensem
em Paulo antes de sua conversão. Procurem imaginar aquele
Saulo de Tarso perseguidor e enfurecido, aquele homem

12
muito inteligente, bom e religioso. Basta que pensem nele
“respirando ainda ameaças e mortes”; pensem no espírito de
ódio que o animava, e contraste-o com o homem que escreveu
esta carta, e aí vocês verão o que o evangelho pode fazer. Depois
pensem na igreja de Filipos. Observem o carcereiro de Filipos,
homem do tipo violento, mas agora ele, e outros provavelmente
piores do que ele, são todos membros desta igreja. Examinem
também como Paulo os ama e as coisas que ele pode dizer
a respeito deles - tudo isso é tão-somente uma manifestação
do que o evangelho de Jesus Cristo pode fazer.
E isso, penso eu, explica muito bem por que é importante
considerarmos juntos esta carta. O nosso mundo está ficando
cada vez mais parecido com aquela sociedade antiga na qual
viviam estas pessoas. E a grande questão que preocupa muito
as pessoas que pensam atualmente é: como podemos introdu­
zir harmonia e paz em nossas relações? Haveria algum modo
de resolver todas as animosidades e rivalidades individuais?
Haveria no mundo algo que possa descartar os problemas e as
perplexidades que trituram a vida da sociedade, causam tanta
miséria no mundo e ameaçam trazer ainda mais calamidades?
É essa solução que o mundo está procurando no presente. E
por isso que ele mantém as suas conferências e tem as suas
reuniões políticas, econômicas e sociais.
Pois bem, a Igreja Cristã anuncia, entre outras coisas, que
só há um meio pelo qual se pode produzir uma tal sociedade
harmoniosa. Sua alegação é que nada senão o poder do
evangelho de Jesus Cristo nas vidas individuais pode produ­
zir esse estado, quer individualmente, quer na vida coletiva
dos homens e das mulheres. A mim me parece que, ao
considerarmos a situação geral do mundo de hoje, nada nos
é de maior valor do que examinar a vida desta comunidade
cristã em Filipos e ver essas dificuldades resolvidas e as
desavenças banidas. Para expressá-lo de outra forma, podemos
dizer que esses são os temas desta Epístola: como podemos

13
triunfar sobre as circunstâncias e como podemos viver feliz
e harmoniosamente juntos.
Vocês notarão, bastando uma breve porção do capítulo
primeiro, que triunfar sobre as circunstâncias é inevitavel­
mente 0 tema central. O escritor está na prisão; num sentido,
tudo está contra ele, e, todavia, apesar disso, ele escreve esta
carta lírica. E puro triunfo sobre as circunstâncias e sobre tudo
0 que o cerca. Agora, há alguns que não gostam de repetição
e que falam zombeteiramente da tautologia. Mas, se alguma
vez houve um homem que sempre foi culpado de tautologia,
esse homem foi o apóstolo Paulo: “Regozijai-vos sempre no
Senhor”, diz ele; “outra vez digo, regozijai-vos”. No capítulo
primeiro ele nos diz como pode triunfar sobre as circunstân­
cias, depois segue repetindo isso e, finalmente, no capítulo
quatro, ele conclui dizendo: “Posso todas as coisas em Cristo
que me fortalece” (VA). Alguém, penso que muito pertinente
e acertadamente, descreveu isso como “tautologia do ardor”.
Quem quer que creia no evangelho é forçado a repetir-se; quem
quer que realmente tenha zelo por estas coisas, quem quer
que enxergue o estado do mundo e saiba que esta verdade - do
evangelho - é a única verdade, terá que repeti-la e reiterá-la
mais e mais. “Não me aborreço de escrever-vos”, diz o apóstolo
no capítulo 3, “e é segurança para vós”, e os outros apóstolos
fazem a mesma coisa. Em certo sentido, Pedro quase se des­
culpa por dizer as mesmas coisas, mas, diz ele, “E tenho por
justo, enquanto estiver neste tabernáculo” - enquanto eu viver
- “despertar-vos com admoestações” (2 Pedro 1:13). Por quê?
Porque é fácil esquecê-las. Se fosse o caso de anunciar a
verdade do evangelho a um homem, e ele a aprendesse para
sempre, não haveria necessidade de repetição, mas, lamentavel­
mente, conhecemo-nos suficientemente bem para perceber
que podemos ouvir uma coisa mil vezes e ainda esquecê-la.
Por isso 0 apóstolo a vai repetindo, porque sabe que triunfar
sobre as circunstâncias é muito urgente e prático.

14
Eu não preciso lembrar a vocês as condições em que nos
encontramos; estamos dolorosamente cientes delas. Não
sabemos o que vai acontecer, mas, em nome do evangelho de
Cristo, eu sei que, se o fogo que ardia em Paulo e na igreja
filipense ardesse em nós, poderiamos enfrentar o que viesse.
Isso não é bravata, nada mais é que experiência cristã; é
conhecer e experimentar o poder do Senhor na vida pessoal
de cada um de nós. Isso não é mera pintura de um belo
quadro, é a experiência de um homem na prisão. Eu o sei,
disse este homem, eu o experimentei, e não há dúvida sobre
isso. Ele havia triunfado, sabia que muitos deles, em Filipos,
haviam triunfado também, e então queria animá-los e ajudá-
-los a ir avante com este triunfo em Cristo e no evangelho.
Por isso ele procurou mostrar-lhes como poderiam viver
juntos, felizes e em harmonia.
Agora, o que realmente explica muitos dos problemas
entre homem e homem é que há problema dentro do próprio
homem. O homem que discute consigo mesmo, geralmente
quer discutir com todo o mundo; o homem que é infeliz por
dentro, em sua vida interior sente-se mal e, por conseguinte,
mostra-se melindroso, e, por isso, tudo em seu ambiente se
torna errado e se perde. O segredo é estar de bem com Deus,
e então, o resto é decorrência. E, pois, importante que con­
sideremos este assunto que fala da vitória em Cristo, de todos
os pontos de vista que se possa conceber. Também devemos
fazê-lo individualmente. Mais cedo ou mais tarde na vida,
todos nós topamos com circunstâncias adversas, e nos vemos
nalgum tipo de prisão. Pode ser um leito de enfermidade, ou
um hospital; pode ser um acidente; pode ser uma aflição ou
uma tristeza. Alguma coisa nos colocou ali: estamos nessa
prisão e não podemos evitá-la. Para nós, o importante é saber,
antes de chegarmos lá, o segredo de como vencer tal prova,
de como podemos ter esta alegria no Senhor, apesar das
circunstâncias, como superá-las todas, como derrotá-las; como

15
podemos ter suprema superioridade sobre elas. Precisamos
saber isso, ainda que só para a nossa paz e alegria pessoal.
No entanto, há uma razão ainda mais urgente. Não quero
diminuir a importância do primeiro ponto, mas ele não é
suficiente. Ainda mais importante é o fato de que somos salvos
para servir - num certo sentido, somos salvos para agir como
evangelistas. Paulo deixa isso claro no capítulo dois, quando
salienta a importância desta perfeita harmonia da igreja:
“Para que sejais irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus
inculpáveis no meio duma geração corrompida e perversa,
entre a qual resplandeceis como astros no mundo (“luzeiros”,
ARA) - esse é o ponto. Se houve tempo em que o mundo
teve necessidade do depoimento e do testemunho do povo
cristão, esse tempo é o presente. O mundo vive infeliz, está
desorientado, apavorado, e o que ele necessita é ver astros ou
luzeiros esplendentes nos céus e expedindo raios de luz em
meio às trevas, atraindo o mundo por sua repreensão dessas
trevas e por propiciar-lhe luz, mostrando que ele também
pode ter essa qualidade de vida. Portanto, independentemente
da nossa felicidade e gozo pessoal, é de vital importância
que entendamos esta Epístola e sua doutrina, e que a vivamos
e a pratiquemos por amor ao mundo em que vivemos;
devemos isso ao mundo.
Mas, acima e além disso. Deus nos chama para essa forma
de vida. Ele se dispõe a colocar-nos como constelações e
luzeiros nos céus, e vocês não poderão brilhar como constelações
se houver alguma coisa obscurecendo a luz e impedindo que
ela brilhe. Se, por assim dizer, uma vidraça não estiver limpa
e clara, ou se o reflexo do espelho não for como deveria, não se
poderá ver a luz. Por isso convém que consideremos isto juntos.
Esse é, pois, o tema e propósito da carta. Vamos agora
examinar brevemente o método pelo qual o apóstolo faz
isso tudo. Segundo algumas autoridades, seu método aqui
é diferente do que se vê na maioria das suas Epístolas. Até

16
certo ponto me disponho a concordar com isso. Quase
invariavelmente, o método do apóstolo consiste em começar
pela doutrina e pela teologia, e então, depois de desenvolver
a doutrina, ele mostra como vai aplicá-la. A maioria das
suas Epístolas pode ser dividida desse modo, mas Filipenses
não pode ser dividida exatamente dessa maneira. Há alguns
que vão tão longe que chegam ao ponto de dizer que não há
nada de teologia nesta Epístola, mas certamente isso é um
erro total e completo. Ele aqui prefere começar fazendo uma
exposição prática, mas não pode fazer isso senão em termos
da sua teologia. Noutras palavras, todo conforto que o apóstolo
dá é baseado em sua doutrina, e sem essa doutrina ele real­
mente não teria conforto para dar. Mas, embora normalmente
ele dê primeiro sua doutrina e depois a prática, aqui o seu
método consiste em mesclar teologia e aplicação prática;
ambas percorrem toda a Epístola, como agora vou tentar
mostrar a vocês.
A outra coisa que eu desejo salientar é o realismo desta
Epístola. Ele não esconde nada; encara tudo; é sincero. Por
isso cada vez mais eu dou graças a Deus pelo Novo Testamento
- pelo puro realismo do livro. Pressuponho que, a esta altura,
todos nós estamos suficientemente desiludidos e não quere­
mos continuar ouvindo homens que pintam róseos quadros
que, todos eles, dão em nada. Mas o perigo de quem se toma
realista é se tornar cínico. Só uma coisa pode salvar o homem
do cinismo, a saber, o glorioso evangelho exposto nestes
magníficos termos.
Como é, então, que o apóstolo trata do tema? Aqui também
é fascinante observar como diferentes pessoas dividem esta
Epístola. Há, por exemplo, aqueles que dizem que todo o
capítulo três, onde Paulo faz um exame da sua vida e expe­
riência pregressa, é uma digressão. Vejo-me em completo
desacordo com essa particular opinião. Há certamente ali
algumas divisões óbvias, quase naturais, que correspondem

17
ao capítulo primeiro. O tema principal, permitam que eu
lembre a vocês, é alegria em Cristo - como regozijar-nos no
Senhor, como regozijar-nos nas tribulações e viver esta vida
alegre e feliz em Cristo. Essa é a razão pela qual Paulo quer
falar-lhes, e o faz desta maneira: primeiramente, ele mostra
que isso é possível, apesar das circunstâncias adversas, e
continua esse tema imediatamente no capítulo primeiro,
onde fala sobre si mesmo como prisioneiro. Estes amorosos
membros da igreja de Filipos estavam muito preocupados
com o fato de Paulo estar na prisão, pelo que, no versículo
12 ele trata disso e diz: “Eu quero, irmãos, que saibais que
as coisas que me aconteceram contribuíram para maior
proveito do evangelho”. Você pode triunfar, diz Paulo, e
regozijar-se, e desfrutar esta vida cristã, a despeito das
circunstâncias adversas, a despeito de ser um prisioneiro.
Em acréscimo, ele se refere a algumas pessoas que
pregavam Cristo por inveja, esperando acrescentar aflição
às suas inquietações, mas, a despeito disso também, Paulo
continua sustentando que esta vida de alegria é possível; este
é 0 grande e glorioso fato que devemos manter em mente
logo de início. O que este evangelho nos oferece não é algo
contingente, é uma oferta absoluta. O evangelho de Jesus
Cristo promete ao homem que verdadeiramente crê nele e o
ama que, sejam quais forem suas circunstâncias e condições,
e seja o que for que esta ou aquela pessoa faça, sua alegria
pode permanecer, e permanece. Esse é o grande tema do
capítulo primeiro.
Depois, penso eu, ele mostra no capítulo dois como tudo
isso é possível, mesmo apesar do que eu chamaria “fraqueza
da carne”. Com isso não me refiro a algo puramente físico,
mas, antes, a dificuldades e fraquezas de caráter - coisas que
nos pertencem como seres naturais. Vocês não podem ler
esse capítulo dois sem ver que havia, mesmo na igreja de
Filipos, elementos tendentes a produzir alguma discórdia.

18
“Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada
qual também para o que é dos outros” (2:4). Sempre há essa
tendência, embora sejamos cristãos e estejamos em Cristo.
Somos tentados a ceder ao egoísmo, a não nos preocuparmos
com nada e com ninguém a não ser com nós mesmos e com
nossa felicidade e prosperidade. Nós nos preocupamos tanto
com nós mesmos que nos esquecemos dos outros e, com isso,
talvez nos tornemos indelicados para com eles; esse é um
elemento com o qual sempre temos que lidar. Bem, o evan­
gelho cristão não promete que, se crermos, seremos levados
de repente a um mundo mágico onde não há ninguém que
nos cause transtorno. Antes, ele nos diz que talvez sejamos
cercados por pessoas difíceis, talvez hajam críticas ou invejas,
e, contudo, este é o ponto: esta alegria do Senhor pode
sobreviver a isso. Apesar dessas debilidades e fraquezas, para
não dizer pecados, que nos cerquem e nos aflijam, ainda
assim nos é possível triunfar em tudo isso e sobre todos esses
males; não há por que sermos derrotados por eles. A despeito
da sua presença, a alegria e a harmonia devem prosseguir.
Isso também é algo de vital importância para nós. Jamais
pensemos que estes cristãos do tempo do Novo Testamento
levavam vida isolada. Provavelmente, muitos deles eram
escravos, ou pessoas comuns que tinham que trabalhar
arduamente. Como nós, eles sabiam o que era ter cansaço
físico, sabiam o que era ter os nervos em frangalhos, e,
todavia, diz Paulo, se você tiver em seu ser esta verdade, se
você tiver Cristo em seu ser, poderá regozijar-se, apesar de
tudo, poderá passar por cima disso; no meio disso tudo a
harmonia poderá aumentar, e de fato aumentará.
Passamos a seguir ao capítulo 3 e às outras coisas que
podem privar-nos da alegria e felicidade. Destas coisas o
apóstolo tinha tido longa e profunda experiência. Paulo tinha
saído pelo mundo para pregar o evangelho e havia fundado
igrejas, mas elas estavam ficando transtornadas, e a fé dos

19
convertidos estava sendo abalada por ensino falso. Os assim
chamados judaizantes iam após Paulo e diziam a estes cristãos
recém-convertidos que estava bem crerem em Cristo até
certo ponto, mas que, se quisessem ser cristãos verdadeiros,
tinham que conformar-se a certos ritos e cerimônias judaicos.
Eles acrescentavam ao evangelho este artigo extra. Eles eram
perturbadores da igreja e da vida dos cristãos, enchendo
de perplexidade a mente deles. Esses lamentáveis erros e
problemas na Igreja Primitiva estavam invadindo a igreja
de Filipos. Paulo viu isso e, no capítulo três, antecipou-se
aos membros, respondendo aos referidos argumentos uma
vez por todas, mostrando como se deve lidar com esse falso
ensino relacionado com a prática do cristianismo. A falsa
doutrina impossibilita a alegria no Senhor. Se a nossa fé
não for certa e verdadeira, nunca poderemos experimentar
as bênçãos da salvação, e por isso temos necessidade de
entender o ensino da Bíblia relativo à doutrina e à prática.
E depois, no último capítulo, ele mostra como esta bem-
aventurança e alegria pode ser mantida e aumentada, mesmo
no meio das tensões naturais da vida e do viver, e apesar disso
tudo. Paulo estava muito agradecido à igreja de Filipos por
ter-lhe enviado suprimentos de alimento e roupa, e contudo
lhe diz que sabe viver em qualquer estado ou condição. Ele
sabe 0 que é passar necessidade tanto como o que é ter fartura.
Diz ele mais: “Já aprendi a contentar-me com o que tenho”.
Não haveria algo curiosamente contemporâneo nisso tudo?
Sabemos muitíssimo bem dos problemas causados pela fadiga,
por má saúde, pela velhice, pela necessidade de comida e de
roupa, e de abrigo e proteção. Todavia Paulo, mesmo aqui,
na prisão, provavelmente sofrendo grande desconforto físico,
envelhecendo antes do tempo devido às suas incessantes
labutas no evangelho de Cristo, sobe muito acima disso tudo e
brada, nesta maravilhosa irrupção de eloqüência, que isso não
importa, nada importa, porque, em toda e qualquer condição.

20
ele sabe estar contente. Ele tem tudo porque tem Cristo.
A tensão da vida é coisa muito séria. Não é amigo da
humanidade quem tenta fazer pouco dela. E aí onde, em
última análise, os psicólogos superficiais são, em fim, nossos
inimigos, e não amigos - eles apenas nos ajudam a esquecer
os fatos. Mas aqui está um homem que, em meio a grandes
tribulações, gloria-se, triunfa e se regozija. Não somente
isso; ele pode infundir algo dessa alegria e desse triunfo,
não somente nos que estão diretamente ao redor dele, mas
até mesmo em nós hoje, quase dois mil anos depois de
haver escrito esta lírica Epístola.
Esse é o tema, e, quando passarmos a considerar esta
epístola, estas são algumas das perguntas com que nos
defrontaremos: perguntaremos, que é a vida? Perguntaremos
também, que é a morte? Veremos o que aconteceu na
encarnação; consideraremos o sentido da justificação pela fé.
Consideraremos a doutrina da ressurreição, e perguntaremos
o que significa o cristão ser glorificado. Vamos considerar o
que significa oração real. Esses são alguns dos temas. Vocês
vêem que nesta Epístola proliferam doutrinas cristãs centrais
e, todavia, tudo nela é prático; ela nos fala hoje, e se dirige a
nós em nossa crítica situação atual. Graças a Deus que, quando
nos vemos enfrentar a presente situação, uma situação que
talvez também tenhamos que enfrentar nos anos que estão
adiante de nós - vivemos numa época em que os próprios
fundamentos parecem estar sendo abalados - graças a Deus
que temos uma mensagem que pode garantir-nos que existe
algo que, não somente nos mantém firmes e resolutos, algo
que não somente pode dar força e energia à nossa vontade
e impedir-nos de desvanecer e cair à beira do caminho, mas
que nos capacitará a triunfar em toda essa situação e a
regozijar-nos com alegria inefável e cheia de glória.
E, como Paulo diz neste versículo primeiro, o segredo
disso tudo é que somos santos em Cristo.

21
2
Santos em Cristo Jesus
“Paulo e Timóteo, servos de Jesus Cristo, a todos os santos em
Cristo Jesus, que estão em Filipos, com os bispos e diáconos; graça a
vós, e paz da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo.
Dou graças ao meu Deus todas as vezes que me lembro de vós,
fazendo sempre com alegria oração por vós em todas as minhas
súplicas, pela vossa cooperação no evangelho desde o primeiro dia
até agora. Tendo por certo isto mesmo, que aquele que em vós começou
a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo; como tenho por
justo sentir isto de vós todos, porque vos retenho em meu coração,
pois todos vós fostes participantes da minha graça, tanto nas minhas
prisões como na minha defesa e confirmação do evangelho.”
- Filipenses 1:1-7

Já notamos em nosso primeiro estudo que a situação


confrontada por estes cristãos primitivos era estranhamente
similar à nossa situação atual. Naquele tempo o mundo era
um lugar difícil, exatamente como agora, e, portanto, esta
Epístola tem muita coisa para nos ensinar. Seu grande tema é
alegria no Senhor, ou alegria em Cristo, e a nossa vocação especial
como cristãos é para que manifestemos a qualidade de vida
aqui descrita pelo apóstolo. Essa é, parece-me, a prioridade da
vocação de todo cristão na época atual. Em contraste com o
mundo moderno, z devemos mostrar aos outros como triunfar
e como vencer. E desse modo que podemos persuadir as
pessoas do erro dos seus caminhos e atraí-los para o Senhor
Jesus Cristo.

22
Para mim, este é o primeiro passo, a estrada real. O mundo
hoje, como todos nós sabemos, não está muito pronto a ouvir-
-nos ou a ouvir a nossa pregação. Ele nos diz que não se interessa
por teologia e dogma, e pode haver alguma coisa certa nisso; o
mundo tornou-se psicológico, para não dizer cínico, e não se
dispõe a ouvir o que as pessoas dizem. Mas quando o mundo
vê uma vida triunfante, uma personalidade claramente
vitoriosa, então começa a prestar atenção. Os primeiros cristãos
venceram o mundo antigo simplesmente sendo cristãos. Foi o
seu amor uns pelos outros, e seu tipo de vida, que fizeram tão
grande impacto naquele mundo pagão, e não há como ques­
tionar que esta é a maior necessidade da nossa hora - a
qualidade da vida cristã demonstrada entre os homens e as
mulheres. Para isso fomos chamados, e isso todos nós pode­
mos fazer. E aqui o apóstolo nos diz como podemos fazê-lo,
conquanto trate da doutrina ao mesmo tempo. Esta carta nos
dá incomparável consolação e fortalecimento. Ela nos diz
como podemos manter paz e alegria e, ao mesmo tempo,
exercer este grande impacto e influência no mundo que nos
cerca. Esse é o grande tema desta Epístola, e o apóstolo trata
dele, como já vimos, mostrando-nos as diversas dificuldades
que o confrontavam e confrontavam a igreja de Filipos, e depois
nos mostrando como o evangelho nos habilita a vencê-las.
Num sentido, ele começa a fazer isso no versículo 12 deste
capítulo primeiro, e devemos perguntar-nos por que não o faz
logo no princípio. Por que será que, em vez da sua saudação
preliminar de graça e paz, ele não inicia com a grande
consolação que tem para nos dar? Pois bem, para mim isso
é de real significação, e a resposta pode ser expressa desta
maneira: o que o apóstolo tem para oferecer aqui, como em
todas as suas demais Epístolas, é algo que só nos é possível
com base em certas pressuposições. E vital que entendamos
isso. O fato admirável que o apóstolo nos expõe nesta carta,
fato que é verdadeiro quanto a ele e aos filipenses, e que é

23
verdadeiro e é possível a todos os cristãos, só pode acontecer
se estivermos em absoluto acordo com o que ele tem para nos
dizer nestes primeiros onze versículos. Noutras palavras, esta
não é uma verdade ampla, para o mundo em geral; é uma
porção muito especial de ensino. O que o apóstolo diz nesta
carta só pode ser entendido por determinadas pessoas. Para o
mundo em geral ela não tem sentido; é um conforto e consolo
que só opera dentro de certos limites, e, se não tivermos o cui­
dado de observar esses limites, tudo o que o apóstolo nos diz
ficará fora de lugar e acabará sendo completamente inútil. Em
todas estas Epístolas vocês verão que o auxílio e o encoraja­
mento práticos dados, sempre estão baseados em doutrina.
Paulo sempre dá conforto e consolação deduzindo verdades
práticas de certos princípios já por ele estabelecidos.
Ora, é evidente que isso é, necessariamente, algo básico e
final, e nesse ponto vemos, certamente, a explicação de muita
coisa que, lamentavelmente, é verdade acerca da Igreja em
geral hoje em dia, e também acerca do mundo fora dela.
Podemos comparar-nos com cristãos que viveram em tempos
passados; podemos comparar-nos, por exemplo, com os cris­
tãos que viveram durante o despertamento evangélico do século
dezoito; podemos ler alguma coisa das obras dos puritanos,
ou podemos voltar-nos para os reformadores protestantes e ler
sobre eles; ou podemos considerar a Igreja entre certos irmãos
do continente europeu, até anteriores à Reforma Protestante;
e podemos voltar a estes cristãos primitivos, e entre todos
estes santos, de eras passadas, sempre vemos esta nota lírica,
esta nota de vitória e de alegria. Temo-la em muitos dos
nossos hinos, e quando nos comparamos com essa espécie
de experiência cristão, logo tomamos ciência do chocante
contraste. Por que será? Que é que a Igreja perdeu? Por que a
ausência dessa qualidade? Por que há tão pouca segurança,
tão pouco regozijo, tão pouco deste espírito de triunfo? Para
mim há somente uma resposta a essas perguntas: olvidamos

24
a doutrina, nem sempre tivemos o cuidado de basear tudo
em determinadas considerações preliminares, sem as quais
não existe conforto real.
A dificuldade que há com muitos de nós é que deseja­
mos obter as bênçãos do evangelho, mas não temos igualmente
o cuidado de observar as condições. Naturalmente, todo o
mundo quer as bênçãos; em certo sentido, o mundo atual
passa a maior parte do seu tempo procurando felicidade e
alegria, porque ninguém quer sentir-se miserável e infeliz. Se
fosse feito o anúncio de uma teoria ou doutrina capaz de tomar
as pessoas felizes apesar de tudo, o mundo inteiro desejaria
ouvi-la. Queremos o conforto e a felicidade, mas os queremos
em nossos próprios termos, queremo-los facilmente, queremo-
-los simplesmente, queremo-los apenas por tè-los, e nada mais.
Pois bem, permitam-me esclarecer, antes de passarmos à con­
sideração detalhada desta grande Epístola, que o que Paulo
expõe aqui jamais poderá ser obtido nesses termos. A menos
que aceitemos o seu alicerce, nunca seremos capazes de erigir
o edifício que ele construiu; a menos que comecemos por suas
pressuposições, nunca deduziremos as conclusões certas. Na
verdade, a menos que observemos as condições anexadas a
cada promessa feita em qualquer parte da Bíblia, nunca
experimentaremos as bênçãos presentes nas promessas. E
por isso que Paulo, necessariamente, como sábio mestre, é
forçado a tomar todo este tempo, com os primeiros onze
versículos, antes de começar a lidar com os detalhes da situação.
Permitam-me dizer o seguinte: esta Epístola não foi escrita
para o mundo em geral, mas para “todos os santos em Cristo
Jesus, que estão em Filipos, com os bispos e diáconos”. O Novo
Testamento não tem nada para dizer em geral ao mundo que
não crê em nosso Senhor Jesus Cristo; não lhe oferece nenhum
conforto, nenhuma consolação, nenhum encorajamento. Ele
sempre começa pelo evangelho, e é só quando as pessoas
encaram isso que podem experimentar estas outras coisas.

25
Paulo não escreveu uma carta geral para todo o Império
Romano, anunciando o caminho da felicidade e da paz. Nada
disso! É uma carta especial para algumas pessoas especiais, e
ela baseia o seu argumento nalguns princípios fundamentais
e primários.
Portanto, o primeiro ponto que nos cabe considerar é o
seguinte: a quem Paulo oferece a maravilhosa espécie de vida
que retrata aqui? Quem é que pode ser feliz em todos os tipos
de estados e condições? Quem é o homem que pode dizer:
“Para mim o viver e Cristo”? Quem pode dizer: “Aprendi a
estar contente em toda e qualquer situação”? (VA). Quem pode
falar dessa maneira? A resposta é que somente podem faze-lo
os que se conformam a um padrão particular. O apóstolo está
escrevendo a cristãos, de modo que, se não tivermos perfei­
tamente claro em nossas mentes o que constitui um cristão,
jamais poderemos auferir o benefício ✓ que deveriamos obter
da consideração desta grande carta. E isso que devemos fazer
primeiro. O próprio apóstolo faz isso; ele se esforça muito
para definir exatamente o que estas pessoas são e o que devem
continuar a ser, sabendo que, se não continuarem, nunca
experimentarão os benefícios que ele deseja ansiosamente
que eles tenham. Portanto, a primeira coisa que devemos
fazer quando passamos a estudar esta Epístola é perguntar:
que é um cristão? Devemos fazer constantemente essa per­
gunta, porque, se errarmos aí, erraremos em todos os outros
pontos. Muitos perguntam: “Por que não sou feliz desse
jeito? Que devo fazer para obter essa felicidade?” E a respos­
ta é que temos que ser cristãos, temos que conformar-nos
à definição dada, e, se e quando fizermos isso, todas estas
coisas se seguirão como a noite segue-se ao dia.
Quais são, então, as características do cristão verdadeiro?
Como podemos saber se somos cristãos ou não? O apóstolo
nos diz aqui três coisas sobre o cristão, e a primeira é que o
cristão éparticipante da graça de Deus. “Todos sois participantes

26
da minha graça” (VA) - é como ele se expressa a respeito no
versículo 7. Outras traduções dizem “participantes da graça
comigo”, ou, “todos vós sois participantes comigo da graça e
do favor de Deus”, e é esse o seu sentido. Bem, essa é uma das
coisas mais maravilhosas e extraordinárias que se pode dizer
sobre o cristão, e é sempre essa a definição básica, essencial
dada pelo Novo Testamento - o cristão é alguém que está sob a
graça e o favor de Deus. E que é graça? Bem, num sentido,
graça é uma palavra tão maravilhosa que não se pode definir;
mas não há melhor definição do que descrevê-la como favor
imerecido, favor do qual não somos dignos. Paulo, escrevendo
acerca destes membros da igreja de Filipos, diz: vocês com­
partilham comigo esta graça, este favor que Deus concedeu
a todos nós.
E que é que isso nos diz acerca do cristão? Diz-nos que
Deus, supervisionando esta terra, este mundo, com todas as
suas numerosas multidões de homens e mulheres, todos
nascidos em pecado e formados em iniqüidade, vê com um
olhar de especial favor os que são conhecidos pelo nome de
cristãos. Significa que Deus nos vê diferentemente e se inte-
ressa por nós de maneira diferente. As vezes o Velho Testamento
diz isso de outro modo - lembrem-se de que Deus, falando à
nação de Israel por meio do profeta Amós, emprega estas
palavras: “De todas as famílias da terra a vós somente conheci”
(Amós 3:2). Mas isso não significa que Ele não sabia da
existência dos outros, ou que Ele não tinha real conhecimento
dos outros, pois Deus é onisciente, conhece e vê tudo e todos;
Significa que Ele tinha tomado especial interesse pela nação
de Israel; Ele fora incomumente favorável aos filhos de Israel
e tinha interesse por eles e por seu bem-estar. Ele os olhava
com olhos paternos e fazia chover bênçãos especiais sobre eles.
E sobre o cristão Paulo diz que ele é alguém que participa, ou
compartilha, deste imerecido favor e benevolência de Deus,
favor de que ele não é digno.

27
Este, digo e reitero, é um pensamento tão tremendo que a
mente humana quase se perde em confusão diante dele, quase
firustra a imaginação - mas que conforto e que consolação ele
propicia! Antes de entrar nos detalhes de tudo o que está
dizendo, Paulo diz a mim e a vocês que o Deus todo-poderoso,
absoluto, 0 eterno e sempiterno, o governador de céus e terra,
0 Pai, olha por nós, tem especial interesse e cuidado por nós
e derrama abundantemente Seus favores e Sua misericórdia
sobre nós. Diz o salmista no Salmo 34: “O anjo do Senhor
acampa-se ao redor dos que o temem” (versículo 7), e não seria
esse 0 ensino de tantos destes Salmos que o homem que está
em correta relação com Deus está sendo vigiado e guardado
e que Deus tem Seus olhos postos nele e que o cerca com o
Seu amor?
De fato, toda a doutrina da Bíblia relativa aos anjos é
pertinente aqui. Há um ensino bastante claro e específico,
segundo o qual existem verdadeiramente anjos da guarda.
Lembram-se das palavras de Mateus 18:10 - “Os seus anjos
nos céus sempre vêem a face de meu Pai que está nos céus”?
E 0 autor da Epístola aos Hebreus nos diz que todos eles são
espíritos ministradores, “enviados para servir a favor daque-

les que hão de herdar a salvação” (Hebreus 1:14). E uma
doutrina admirável e estupenda, que Deus no céu, devido a
Seu interesse, por causa deste cuidado especial, peculiar, tem
estes Seus servos que velam por nós, nos protegem e nos
advertem. Se tão-somente pudéssemos ver estas coisas como
alguns dos pais as viram, isso transformaria toda a nossa
maneira de ver a vida. Como aconteceu com Jacó, na anti-
güidade, perceberiamos que estamos rodeados das hostes
celestiais, destes invisíveis ministros de Deus.
Mas isso não é tudo. O nosso Senhor o expressa de outra
maneira. Ao oferecer consolo a Seus seguidores, Ele lhes diz
que até os cabelos da cabeça deles estão todos contados. Não se
preocupem, nem se assustem, diz Ele, e não fiquem perplexos;

28
se tão-somente vocês soubessem do interesse que Deus o Pai
tem por vocês! Até os cabelos da cabeça de vocês estão todos
numerados! Assim, intimamente, Deus os conhece. Ele se
preocupa pessoalmente com vocês. O nosso Senhor argu­
mentou dessa forma em muitas ocasiões, e então, não seria
uma tragédia que nós, como cristãos, não nos damos conta disso
e não subimos a estas grandes e prodigiosas alturas? Se tão-
-somente compreendéssemos como deveriamos que estamos
sob o favor de Deus de maneira especial! E não por sermos
melhores que os outros, pois a graça é favor imerecido, é
favor do qual não somos dignos. Quando não merecemos
nada senão punição e inferno, quando não merecemos nada
senão colher o fruto do que semeamos, quando não éramos
nada senão filhos da ira. Deus, por Seu amor eterno e
sempiterno, e de acordo com o Seu conhecimento e com a
Sua sabedoria, olhou para nós com Seu olhar de favor, de
modo que agora estamos peculiarmente sob Sua graça.
Bem, não preciso entrar em mais detalhes aqui. Quando
formos considerar a definição que Paulo faz do cristão, vere­
mos que ele desenvolve esta questão, e talvez faríamos bem
em protelar os detalhes até chegarmos a eles em seu locus
próprio. Mas as perguntas eu devo fazer neste ponto: você
sabe que desfruta o favor e a graça de Deus? Você se dá conta,
como deveria, de que está numa posição privilegiada, espe­
cial? Você tem conhecimento de que, como o profeta diz no
Velho Testamento, “quanto ao Senhor, seus olhos passam por
toda a terra” (2 Crônicas 16:9) procurando oportunidades
para abençoar Seu povo? Bem, se não começarmos por esta
percepção preliminar, não conseguiremos seguir o argumento
detalhado do apóstolo - se eu estou nesta posição peculiar de
estar sob o favor de Deus, se tudo o que estive considerando
é verdade, a única dedução possível é que o que quer que
me aconteça, vá eu aonde for, sejam quais forem as minhas
circunstâncias, estou seguro. “Se Deus é por nós, quem será

29
contra nós?” (Romanos 8:31). Se eu estou nesta posição especial
como filho de Deus, se sou um participante com Paulo da
graça e do favor de Deus, sei então, ou deveria saber, que, venha
0 que vier, estou protegido, estou guardado, estou a salvo.
Mas permitam que eu prossiga, passando ao segundo
ponto, qual seja, que sobre o cristão o apóstolo nos diz que ele
é santo, “Paulo e Timóteo, servos de Jesus Cristo, a todos os
santos em Cristo Jesus, que estão em Filipos, com os bispos e
diáconos.” Pois bem, temos aqui,novamente, uma palavra que
faz com que muitos tropecem. Aí estão bênçãos oferecidas aos
santos, e, se é isso que devo ser antes de desfrutar estas bên­
çãos, então é óbvio que devo ter claro em minha mente o que
é um santo, e se eu sou um deles ou não. Antes de tudo, deixem
que eu lhes diga o que o santo não é. O termo não se refere a
algumas pessoas especiais entre os cristãos. Esse erro foi e
continua sendo popularizado pelo catolicismo romano. Seus
mestres falam em “canonizar” certas pessoas, e desse modo os
declaram santos. Eles decidem chamar santos certos homens
e mulheres - pessoas que podem ter vivido séculos antes - e
aplicam certos testes à vida deles para decidirem se devem ser
chamados santos ou não. Por conseguinte, para eles, algumas
pessoas são santas, e o resto dos cristãos não - e isso é claramente
antibíblico. Notem como Paulo expressa o ponto aqui - “Paulo
e Timóteo, servos de Jesus Cristo, a todos os santos em Cristo
Jesus, que estão em Filipos, com os bispos e diáconos”; e de
novo no versículo sete - “todos vós sois participantes da minha
graça, tanto nas minhas prisões como na minha defesa e
confirmação do evangelho”. O apóstolo não se coloca sobre
um pedestal e diz: eu sou santo. Ele diz que todos nós,
juntos, somos santos; todos nós somos participantes da graça
de Deus.
Não quero desperdiçar tempo com esta idéia, mas eu me
sinto constrangido a fazer de passagem esta observação: acaso
não seria realmente triste que muitos continuem dedicando

30
tempo e muita atenção a essas trívialidades e ainda discutam
se é essencial à igreja que você seja investido em certas
ordens? Para mim há um sarcasmo divino neste versículo
primeiro - “a todos os santos em Cristo Jesus, que estão em
Filipos, com os bispos e diáconos”. Paulo não começa pelos
bispos, com os grandes e poderosos, absolutamente não!
Começa pelos santos, e depois acrescenta: “com os bispos e
diáconos”, com os supervisores. Há certamente aqueles a quem
são dadas determinadas posições, mas é uma tragédia, quando
o mundo está como está hoje e este testemunho cristão se faz
tão necessário - é uma tragédia que os homens ainda estejam
tentando provar que o bispo é do próprio esse,'^ do próprio ser,
da igreja, e que sem bispo não há igreja.^ Afinal de contas, o
que constitui a Igreja é a reunião dos santos, o povo na graça
e no favor de Deus, a fim de prestar culto a Deus. Portanto,
o santo não é um cristão excepcional, mas qualquer cristão,
todo cristão.
Vocês vêem a mesma coisa em todas as Epístolas de Paulo;
vocês lêem, por exemplo, “à igreja de Deus, que está em
Corinto, com todos os santos” (2 Coríntios 1:1), e aos santos de
todas as igrejas. Esse é, então, o lado negativo, mas agora
deixem-me expor a questão positivamente. O termo “santos”
realmente se refere ao povo chamado para fora, o povo que é
separado, o povo formado daqueles que são postos à parte.
Pode-se traduzir a palavra santos por “os que são santificados”
(ver 1 Coríntios 1:2), pois quando Deus se apodera de algo e
o separa para o Seu propósito, isso se toma santo. No Velho
Testamento, quando Moisés é comissionado, a referência

* Infinitivo do verbo ser, em latim. Nota do tradutor.


O processo de evolução ao revés do conceito do que é fundamental
na Igreja foi, em resumo, o seguinte: “Onde está Cristo, aí está a Igreja”;
“Onde está o Espírito, aí está a Igreja”; “Onde está o bispo, aí está a
Igreja” (Ubi Chrístus, id ecclesia; Ubi Spiritus, id ecclesia; Ubi episcopus, id
ecclesia”). Nota do tradutor.

31
feita a ele é como a um homem santo. Pode-se ler também
acerca dos “vasos santos” do Templo. Homens e mulheres são
tratados de igual maneira, de acordo com a Bíblia: os santos
são as pessoas das quais o Espírito de Deus tomou posse
neste mundo limitado pelo tempo e no qual vivemos, e Deus
as separou e as fez diferentes. Ainda estão no mundo, e,
contudo, são diferentes, são homens e mulheres marcados,
postos numa categoria própria deles, e pertencem a um
particular grupo de pessoas que estão sob a graça e o favor
especial de Deus, como já vimos. Por isso, em primeira
instância, não devemos pensar nos santos nem mesmo em
termos da espécie de vida que eles vivem, porque essa vida
é algo que decorre disto: o que é essencial acerca dos santos
é que eles foram chamados e separados por Deus.
Pois bem, isso é básico para a idéia neotestamentária do
que é 0 cristão. Quando Paulo estava escrevendo aos gálatas,
deu graças a Deus por Sua maravilhosa graça demonstrada
ao enviar Seu Filho para morrer por nós, e depois Paulo diz -
e esta é a sua descrição do cristão - “para nos livrar do presente
século mau” (Gálatas 1:4). Muito embora ainda no mundo,
eles foram libertados do mundo e postos à parte. Obviamente
ele se dá conta de que essa verdade diz respeito a ele, porque
na seqüência ele aplica a lógica, que é: bem, se Deus me
separou, então, eu devo separar-me. Ele me separou para a
salvação; o mundo ao redor de mim vai ser julgado e destru­
ído, porém Deus, por Seu favor imerecido, olhou para mim e
me chamou para me salvar da destruição, para me salvar
dessa ordem de vida, e para me salvar para o Seu reino. Se eu
compreendo isso, devo então compreender que é meu dever
separar-me do homem mundano, e do comportamento, da
conduta e das práticas do mundo. Deus me chamou para o
Seu serviço, e então devo dedicar-me a esse serviço. Portanto,
ambas estas coisas constituem uma parte essencial do que
significa sermos santos. Há maravilhoso fortalecimento e

32
consolação nesta Epístola, sim, mas é para os santos, para as
pessoas que estão cônscias de que foram separadas e que, elas
próprias, desejam ser separadas mais completamente; não é
para ninguém mais, senão unicamente para os santos, os
santificados.
Volto a perguntar: não seria isso uma parte do nosso
problema? Somos todos como aquele falso profeta, Balaão;
todos nós dizemos que gostaríamos de ter “a morte dos
justos” (Números 23:10), mas, se desejarmos ter a morte dos
justos, melhor será que queiramos viver a vida dos justos. O
problema é que queremos morrer assim mas não queremos
viver assim. Vivamos como pessoas santificadas, como santos,
e então experimentaremos a consolação e o fortalecimento
destinados aos santos. Por essa razão gozamos tão pouco
destas bênçãos; é porque não observamos as condições.
Entretanto, permitam que eu acrescente uma palavra ao
último item. Notem que o versículo não diz, “a todos os santos
que estão em Filipos”, mas sim “a todos os santos em Cristo
Jesus, que estão em Filipos”, e quão vital é isso! Uma vez
alguém disse que achava que toda a doutrina do apóstolo Paulo
poderia ser resumida na firase “em Cristo” ou “em Cristo Jesus”.
Acaso vocês sabem que ele emprega a expressão “em Cristo”
quarenta e oito vezes em suas Epístolas, fala sobre estar “em
Cristo Jesus” trinta e quatro vezes e “no Senhor” cinqüenta
vezes? Mas, por que isso é vital? Bem, Paulo está escrevendo
aos “santos em Cristo Jesus”, mas vocês sabem que havia
pessoas que se haviam separado antes de Paulo ir a Filipos.
Quando vocês lêem a história registrada em Atos, capítulo 16,
vocês vêem um pequeno grupo de mulheres que, lideradas
por Lídia, estavam orando à beira do rio. Num sentido elas já
eram santas, eram santas antes de Paulo lhes pregar o evan­
gelho, porém não eram “santas em Cristo Jesus”. Qualquer
pessoa pode ser santa, encontram-se santos em todos os tipos
de povos. Mas não é disso que o apóstolo fala. Ele diz, “santos

33
em Cristo Jesus”, e com isso ele quer dizer que agora somos
membros de Cristo. Em tudo o que Paulo diz. Cristo é
essencial. Será que vocês notaram o número de vezes que ele
menciona o nome de Cristo nestes sete versículos? Paulo não
tem nenhum evangelho à parte de Jesus Cristo. O evangelho
não é uma oferta geral e vaga, tampouco é meramente uma
exortação às pessoas para que vivam uma vida moralmente
boa; antes, o evangelho fala das coisas que aconteceram e
acontecem em Cristo, porque sem Cristo não há salvação. E,
se em sua posição. Cristo não é essencial, significa que,
segundo o ensino de Paulo, você não é cristão. Você pode
ser muito bondoso, e até religioso, mas não pode ser cristão.
Se Cristo não constitui absolutamente o cerne e o centro,
sua religião pode ser o que for, mas cristianismo não é.
Em que outro sentido somos santos? Permitam-me fazer
uso de um grande termo teológico. A frase “santos em Cristo
Jesus” significa que estamos em Cristo federal ou repre­
sentativamente. No princípio, Adão representava a raça
humana, e, quando Adão caiu, toda a humanidade foi posta
sob 0 poder e o domínio de satanás. Todavia, graças a Deus, há
outro lado. Cristo é o nosso representante, e, se eu estou em
Cristo, sei com toda a certeza que quando Cristo morreu na
cruz, estava me representando, estava recebendo o castigo
devido a meus pecados, morreu por mim e também ressusci­
tou por mim. Se estou em Cristo, já estou morto para a lei,
meu Representante morreu por mim, e, portanto, eu morri e
ressuscitei com Ele em novidade de vida, e estou justificado
na presença de Deus. Eu estou em Cristo. Ele é meu Repre­
sentante - é uma união federal,^ é uma união representativa.
Contudo, a explicação não pára nesse ponto, o termo
significa ainda algo mais. Estar em Cristo significa, não

Palavra oriunda do latim foedus^ que significa, entre outras coisas, união,
aliança, concerto, relações estreitas. Nota do tradutor.

34
somente uma união federal, mas também uma união vital.
João, capítulo 15, mostra isso claramente; significa uma
união mística. Significa que a vida de Cristo está em mim e
eu estou em Cristo, e algo do poder de Cristo flui em mim
numa união mística. Significa, num sentido, que a minha
vida está escondida nEle. O apóstolo pergunta: que é a
Igreja?, e responde: a Igreja é “o corpo de Cristo, e seus
membros em particular” (1 Coríntios 12:27) - Cristo é a
Cabeça, nós somos o corpo, com o sangue que flui por todo
o corpo, nesta união orgânica e vital. Somos os ramos da
videira, e a vida do tronco flui em nós; é uma união mística
e vital com Cristo - santos em Cristo Jesus.
Apenas lhes ofereci alguns títulos neste estudo. Cada
uma destas definições poderia ter um capítulo inteiramente
dedicado a si, tão vitais são estas coisas. Vemo-nos, todos nós -
pergunto-me - dessa maneira? Compreendemos todos nós
que estamos neste maravilhoso favor de Deus? Sabemos que
somos santos? Não devemos ter medo de dizer que somos
santos, não deve haver nenhuma falsa modéstia neste ponto.
Somos santos se cremos neste evangelho, se fomos separados.
Sabemos que estamos em Cristo? Sabemos que morremos
com Ele e que ressuscitamos com Ele? Nesse sentido, estamos
reinando com Ele? Porventura a vida de Cristo está em nós,
e nós estamos nEle? E para os santos em Cristo Jesus, para
os que são participantes desta graça e favor de Deus, que
estas maravilhosas promessas são feitas. Se ocupamos essa
posição, e a conhecemos e a sustentamos, então, tudo o que
Paulo diz aqui sobre os filipenses será igualmente verdade
a nosso respeito.

35
3
A Obra de Deus
^'Tendo por certo isto inesmo^ que aquele que eni vós começou
a boa obra a aperfeiçoará até o dia de Jesus Cristo.”
- Filipenses 1:6

Temos aqui o que muito bem se pode descrever como o


versículo chave da Epístola inteira. E neste único versículo
que 0 apóstolo nos apresenta desde logo o fundamento da sua
confiança concernente a si mesmo e a seu futuro pessoal, bem
como ao futuro da igreja de Filipos. Penso que todos concor­
damos que este é um dos grandes pronunciamentos que
tanto caracterizam os escritos de Paulo. Há pessoas que falam
em ter versículos ou textos favoritos; nunca fiquei muito
contente com a teologia dessa declaração, mas, se existe tal
coisa, devo confessar
✓ que, indubitavelmente, este versículo
é um dos meus. E uma das declarações magníficas, funda­
mentais e profundas e que nos leva às reais profundezas da
doutrina cristã e da teologia cristã.
Sem dúvida, é um fato extraordinário que um homem, na
situação em que Paulo estava quando escreveu esta carta,
pôde publicar estas palavras. Ele estava sofrendo na prisão,
vocês se lembram, estava sendo perseguido e atacado por
inimigos, por pessoas que faziam tudo para desacreditá-lo e
para desfazer a obra realizada por ele nas igrejas delas. Assim,
ele tem algum conhecimento das dificuldades que cercavam
a igreja de Filipos e, todavia, apesar disso, tem esta profunda
confiança, tanto com respeito a si próprio como com respeito

36
aos membros daquela igreja. E ele nos diz logo aqui, não
somente neste versículo mas também nos que estão a seu
redor, que existem duas coisas principais que produzem
nele este sentimento de confianca.
A primeira é que ele sabe da obra que está sendo levada
adiante nos membros da igreja de Filipos e entre eles. Ele
está confiante por causa do caráter da obra e porque sabe que
é uma obra que nada nem ninguém pode sustar. Segundo, ele
sabe que há muitos membros da igreja de Filipos, na verdade,
senão todos, dos quais se pode dizer que esta obra continua
sendo realizada neles. Os dois pontos são importantes. A
confiança de Paulo não é tanto nos membros da igreja de
Filipos como na obra de Deus que vai operando neles e entre
eles, ou, para dizê-lo de outro modo, o que explica realmente
a confiança do apóstolo é sua clara compreensão da natureza
da vida cristã, seu entendimento do que acontece quando
um homem se torna cristão, e do poder e da vida que
z

constituem a Igreja Cristã. E seu profundo conhecimento e


entendimento do plano divino de salvação que realmente
leva a esta sua confiança. Penso que todos nós devemos
admitir que é nossa evidente incapacidade de entender e
captar essa verdade central e extraordinária que explica muito
da nossa aflição e dos nossos maus presságios, muito da nossa
infelicidade e da nossa preocupação. Somente a pessoa que
compreende o plano de salvação, seu significado, seu caráter
e seu poder é que pode chegar a sentir o que o apóstolo
sentia, e que pode partilhar a experiência dele.
Ora, certamente é porque muitos de nós falhamos
justamente aí é que nos afligimos, por exemplo, acerca de
nós mesmos e da nossa posição e condição. Quando exami­
namos a nós mesmos e tomamos o nosso pulso espiritual,
ficamos sabendo de algumas lacunas que há dentro de nós, e
isso nos causa tormento e nos leva à introspecção, e talvez até
a certa morbidez e a muita infelicidade, e nos inclinamos

37
instintivamente a pensar que a vida cristã é muito difícil.
Mas eu me disponho a dizer que esses abalos no temperamento
e esses estados ou condições são, em imensa medida, devidos
à nossa incapacidade de compreender esta realidade extra­
ordinária que o apóstolo coloca diante de nós aqui.
Não seria igualmente certo que muitos dos nossos
presságios concernentes ao futuro da Igreja Cristã provêm
da mesma fonte? E lamentável, mas quase veio a ser uma
característica do povo cristão falar em tons de queixume,
pesar e tristeza - “Que será que vai acontecer? Vejam o povo,
que indiferença!” Eles pintam esse quadro melancólico do
mundo, e até da Igreja, e depois clamam: “Haverá algo como
um cristianismo organizado dentro de vinte ou trinta anos?
Que é que o futuro nos reserva?” Há também aqueles que
profetizam o fim das grandes reuniões cristãs e falam sobre
a possibilidade de pequenos grupos. Bem, não me cabe dizer
que eles estão totalmente errados, mas o que me preocupa
quanto a isso é que em sua prosa e em suas conversas detecta-
-se uma nota de profundo pessimismo concernente ao futuro
geral da Igreja Cristã e do evangelho. E isso se deve unica­
mente a uma coisa, a saber, a incapacidade de compreender
a natureza da vida cristã, a incapacidade de captar esta
doutrina com a qual nos defrontamos aqui, nesta magnífica
declaração do apóstolo.
Portanto, para nós não há nada que seja mais importante
do que entender de maneira absolutamente clara estas coisas.
Como temos visto, Paulo tem um maravilhoso consolo e
encorajamento para oferecer nesta carta, mas de nada nos
valerá isso, não significará nada para nós, se não concordar­
mos com a declaração do versículo seis. Pois se ela não é
verdadeira, então nada do resto da Epístola será verdadeiro,
tudo não passará de mera aspiração; mas se é verdadeira, tudo
mais na carta é verdadeiro. Não se pode edificar sem alicerce,
e aqui mais uma vez voltamos a ele. Noutras palavras, neste

38
versículo o apóstolo torna a descrever para nós a natureza
do homem cristão, e ele descreve também a real essência
do processo cristão de salvação. Ele o faz desta maneira:
ele afirma que o cristão é alguém em quem está sendo
realizada uma boa obra. Por isso devemos considerar algo
do que o apóstolo nos diz aqui acerca desta boa obra, e o
assunto se divide naturalmente nos seguintes aspectos:
Primeiramente e antes de tudo, há o autor da obra: “Tendo
por certo isto mesmo, que aquele que em vós começou a boa
obra a aperfeiçoará (completará) até o dia de Jesus Cristo”.
Quem é Ele? Quem foi que começou esta boa obra nos
membros da igreja de Filipos? Bem, certo é que há somente
uma resposta a essas perguntas: outro não é senão o próprio
Deus. Esse é o primeiro e fundamental postulado. Este, penso
eu, ajuda a examinar o assunto negativamente. Paulo não se
refere à boa obra que ele própria tinha realizado em Filipos.
Vocês se lembram de que Paulo tinha atravessado o mar para
a Macedônia e tinha pregado a algumas mulheres reunidas à
beira do rio; então pregou a outros e depois que foi posto na
prisão, pegou ao carcereiro de Filipos. Paulo realizou grande
obra nessa cidade. Foi um grande trabalho de evangelização;
ele estabeleceu uma igreja lá, e a edificou. Todavia, quando
escreve esta carta, de modo algum se refere à obra que tinha
realizado. Não, foi obra de Deus mediante Paulo. Natural­
mente o método era sempre o de Paulo. Há uma declaração
muito interessante no fim de Atos, capítulo 14, onde nos e
feito um relato sobre a volta de Paulo e Barnabé à igreja
de Antioquia depois da sua primeira viagem missionária.
Somos informados ali de que eles reuniram a igreja e
apresentaram um relatório de “tudo o que Detis tinha feito
por meio deles” (Atos 14:27, NVI). “Aquele que em vós
começou a boa obra” - não foi Paulo que a iniciou, mas
Deus.
Ou permitam que eu expresse o ponto com outra negativa.

39
Paulo não diz que os íilipenses tinham começado alguma coisa.
A origem de uma igreja não é como a de uma sociedade. Ás
vezes homens se reúnem e dizem: “Não acham que seria uma
boa coisa ter uma sociedade assim e assim?” Londres está
repleta de tais sociedades, a Igreja Cristã está repleta delas, o
povo está sempre começando novas organizações. Um grupo
se reúne, forma a sociedade, elabora suas regras e seus regula­
mentos - é 0 que vão fazer. Mas Paulo não diz que os filipenses
começaram a igreja filipense - não foi outra senão obra de
Deus. Pois bem, a Bíblia não argumenta sobre isso - ah,
nós muitas vezes fazemos isso - ela simplesmente o declara!
A Bíblia simplesmente nos diz que a salvação é inteira e
completamente obra de Deus. Ela nos diz que o homem, em
seu estado pecaminoso, é contra Deus, não deseja Deus e
jamais voltaria para Deus. Nunca existiría uma igreja, nem
tampouco haveria salvação, se Deus não tivesse começado
a agir. “Aquele que em vós começou a boa obra” - é tudo
de Deus.
Claro está que não é de admirar que Paulo, acima de todos
os demais, ensine isso. Ele jamais esqueceu o que ele próprio
tinha sido; ele se via na lembrança como um blasfemo e um
perseguidor da Igreja, e sabia perfeitamente bem que teria
continuado nesse estado se naquela ocasião, ao meio-dia,
enquanto viajava para Damasco onde tencionava perseguir
um grupo de cristãos, o Senhor não lhe aparecesse de repente.
Paulo nunca decidiu ser cristão, nunca pensou nisso, ele não
iniciou a obra em si mesmo. Foi Deus que o fez, e por isso
Paulo sempre atribuía a obra a Ele.
E naturalmente isso não somente era verdade a respeito
de Paulo, mas também o era, patentemente, no caso da igreja
de Filipos. A fim de demonstrar isso, basta ler a história
registrada em Atos, capítulo 16. Nos versículos 6 e 7 somos
informados de que Paulo queria ir para outro lugar, mas o
Espírito não lhe permitiu que o fizesse. Esse é o primeiro

40
passo - ele queria pregar nalgum lugar da Asia, o que lhe
parecia ser o que era certo fazer, “mas o Espírito de Jesus não
Iho permitiu” (Atos 16:7). E depois, a próxima coisa que
sucedeu foi que Paulo teve uma visão durante a noite. Ele
não criou, não produziu a visão, não a gerou; ele estava
dormindo, e a visão lhe foi dada. Quem lha deu? Deus. Um
homem da Macedônia lhe apareceu e disse: “Passa à Mace-
dônia, e ajuda-nos”. E Paulo, vocês se lembram, cruzou o
mar e desembarcou pela primeira vez na Europa, como
fruto daquela visão.
Depois, tendo chegado a este lugar chamado Filipos, o
apóstolo foi induzido a falar àquelas mulheres que se reuniam
regularmente à beira do rio para oração. O texto nos diz que o
Senhor abriu o coração de Lídia; não nos é dito que Lídia
estava muito impressionada com a mensagem e que decidiu
experimentá-la e abraçá-la. Não, o Senhor que trouxera Paulo
para pregar, abriu o coração de Lídia e o dos membros da sua
família, e Paulo passou a pregar sediado na casa dela. Depois
há 0 caso da jovem possessa de um espírito de adivinhação;
ela foi libertada pelo poder de Deus, o que produziu mudança
em sua vida e ocasionou a prisão de Paulo e Silas. Houve depois
0 terremoto - certamente Paulo não o produziu - e a conversão
do carcereiro de Filipos. Foi assim que a igreja de Filipos veio
à existência. A Bíblia não argumenta sobre isso, ela expõe sua
doutrina, a qual declara que não é nada nem ninguém, exceto
unicamente Deus, que pode erguer o homem das profun­
dezas do pecado. “Somos feitura sua”, diz Paulo, “criados em
Cristo Jesus” (Efésios 2:10); Ele é o Mestre, o Artífice, o
Modelador, foi Ele, e somente Ele, que nos trouxe à luz.
Além disso, Paulo não somente nos diz aqui que esta
obra é de Deus, mas também que é obra de Deus levada a
efeito do princípio ao fim. “Aquele que em vós começou a
boa obra a aperfeiçoara** - Ele continuará a efetuá-la até havê-
-la completado e havê-la aperfeiçoado, até à consumação final.

41
Deus não inicia meramente a obra e depois a deixa; Ele a
continua; Ele a leva adiante, dirigindo, manipulando as nossas
circunstâncias, ora nos restringindo, ora nos impulsionando.
A concepção geral de Paulo sobre a Igreja é que é um lugar
onde Deus age no coração dos homens e das mulheres. Isso
é básico e fundamental. O cristianismo é fruto da ação de
Deus e da atividade de Deus. Não é idéia do homem, nem
teoria do homem; não é elevação moral, não é nada que o
homem possa fazer - é Deus, verdadeiramente do princípio
ao fim. “Somente a Ele seja a glória” - a grande senha da
Reforma Protestante.^
E, naturalmente, a Bíblia nos mostra que nesta obra
maravilhosa as três Pessoas da Trindade santa e bendita estão
envolvidas. Deus o Pai inicia a obra. Deus o Filho a realiza
concretamente e torna tudo possível; Deus o Espírito a aplica
e a realiza no íntimo de nossas almas. “Aquele que em vós
começou a boa obra” - Deus, o bendito Deus triúno, é o
autor desta boa obra.
Mas, permitam-me passar ao segundo princípio, que é a
natureza da obra^ e me parece que a chave para entender esse
princípio é a palavra em - “aquele que” - não entre vós mas
“em vós” - “começou a boa obra”. Ora, isso também é vital e
central. A obra à qual Paulo se refere aqui é a que o Novo
Testamento noutras partes descreve como o novo nascimento,
ou a nova criação, ou a regeneração - vocês estão familiariza­
dos com essas expressões. O que acontece com o cristão não
é mera reforma ou melhoramento da superfície. O evangelho
não é algo que muda o homem no sentido de torná-lo um
pouco melhor, não realiza uma obra de reforma ou
melhoramento moral, no sentido cultural. Não, é uma obra
vital realizada por Deus na alma e sobre a alma, no centro
mesmo e nos órgãos vitais da vida e da existência do homem.

SoliDeo Gloria. Nota do tradutor.

42
Pois bem, está claro que isso constitui a quintessência do
evangelho cristão. A definição de cristianismo favorita de
João Wesley era a do escocês Henry Scougal, que a definiu
como “a vida de Deus na alma do homem”,e é isso que,
virtualmente, Paulo está dizendo neste ponto. Se o Novo
Testamento é verdadeiro, o cristianismo é a mudança mais
profunda e vital que a pessoa humana já experimentou.
Permitam-me agora fazer um sumário deste ponto. A
primeira coisa que Deus faz é despertar-nos para o nosso
estado e condição. Deus o Espírito Santo age em nós e nos
faz ver que somos culpados diante de Deus; que estamos
perdidos. Ele nos faz ver que até o nosso interesse por Deus
é pecaminoso, porque consideramos Deus apenas como
um vocábulo, e não hesitamos em criticá-10. O Espírito
Santo nos desperta para a nossa necessidade. Há uma vivifi-
cação que nos sobrevêm, começamos a ver-nos como somos
realmente, e isso, por sua vez, leva-nos a um estado de
arrependimento e de tristeza pelo pecado.
Depois o Espírito Santo cria dentro de nós um desejo de
Deus, o desejo de uma diferente ordem de vida, de uma vida
melhor. De repente compreendemos que estamos vivendo
uma pequena vida egocêntrica e alheia a Deus; enxergamos
o perigo disso, as terríveis possibilidades que decorrem de tal
vida, e começamos a anelar por conhecer Deus. Ansiamos
pela nossa libertação deste pecado que agora vemos que
nos acorrenta e nos prende. Tentamos encontrar Deus, mas
descobrimos que não podemos. E então o Espírito Santo
realiza a bendita obra de revelar-nos Cristo em toda a perfei­
ção de Sua obra. Subitamente Ele abre os nossos olhos
para vermos o real significado de Cristo e Sua cruz; Ele
nos mostra a obra objetiva que Cristo realizou uma vez por

" Título de um livro de Scougal traduzido por Odayr Olivetti e lançado por
Publicações Evangélicas Selecionadas em 2007. Nota do tradutor.

43
todas, e aplica tudo isso a nós. Ele nos faz compreender
que isso não é algo teórico, mas sim algo de momentoso
interesse para nós.
E depois Ele realiza um feito que, num sentido, é ainda
mais maravilhoso. Ele nos perdoa os nossos pecados.^ Ele
introduz uma nova vida em nós; tomamos consciência de um
novo homem, uma nova natureza. Ele faz com que nos
examinemos e que perguntemos: “Sou mesmo ainda a mesma
pessoa?” - como Paulo disse: “Vivo, não mais eu...” (Gálatas
2:20). Ficamos cientes de que há evidência de um novo ser,
uma nova natureza, dentro de nós, e já não gostamos das
coisas das quais gostávamos. Começamos a gostar da Bíblia,
começamos a orar e a freqüentar as reuniões de oração, e é o
Espírito Santo que realiza isso tudo. Ele nos cria de novo
segundo o modelo e o estilo de Cristo. Essa é a boa obra
que Deus começa em nós e continua em nós.
Depois Ele prossegue e vai aperfeiçoando “o novo ho­
mem”, por meio de Sua Palavra, por meio de outras pessoas,
por meio das circunstâncias, ou do que freqüentemente
consideramos acaso. Ele nos modela amaciando as nossas
arestas, cinzelando uma ponta aqui, outra ali - essa é a
concepção que Paulo tem do que é ser cristão, membro da
Igreja Cristã. Paulo usa uma analogia estranha em 1 Coríntios,
capítulo 4, onde ele diz que somos um teatro de Deus, o
lugar onde Deus atua e realiza certas coisas. Ou tomemos
outra analogia: a Igreja é uma fábrica de Deus, e os cristãos
são artigos que Deus está formando e modelando. Ele opera
em nós; a obra de Deus não é algo que acontece uma vez
por todas quando somos convertidos. Deus continua Sua
obra em nós, e tudo o que acontece faz parte deste grande

A repetição “nos... nossos” salienta a realidade do nosso pecado pessoal^


e 0 alcance do perdão: Deus não simplesmente perdoa os pecados
impessoalmente; perdoa os nossos pecados. Nota do tradutor.

44
processo. Talvez haja um desapontamento, perdemos dinheiro
ou o emprego; podemos não ver isso agora, mas no futuro
0 veremos como parte do grande processo de Deus em
andamento com a boa obra que Ele já começou em nós.
Pois bem, meus amigos, ser cristão não é menos que isso;
é experimentar esta boa obra de Deus sendo efetuada dentro
de nós; é estar ciente do fato de que isso está ocorrendo. Se
você tiver consciência de que está sendo manipulado, de que
estão lidando com você, diga então a si mesmo: isto é Deus,
Ele está realizando algo em mim. Não entendo isso, mas sei
que é Deus, e Lhe dou graças, muito embora não possa
examinar a fundo este fato neste momento. A boa obra é,
noutras palavras, aquela poderosa obra de Deus, mediante o
Espírito Santo, na qual a vida, a morte e a ressurreição de
Cristo se tornam reais para nós e são aplicados a nós, e nós
somos criados de novo à Sua imagem, “um novo homem”
em Cristo Jesus.
Passemos agora ao terceiro princípio. Já vimos que é
obra de Deus, e que é uma boa obra, e então, qual é o propósito
da obra? Paulo dá a resposta: “Tendo por certo isto mesmo,
que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará
até ao dia de Jesus Cristo”. Esse é o grande objetivo, o fim
disso tudo. Estamos sendo modelados e preparados para
0 dia de Jesus Cristo. Notem que Paulo não diz que nós
estamos preparados para o dia da nossa morte; não, nós
estamos sendo preparados para o grande dia que aguardamos,
o dia de Jesus Cristo. Em certo sentido, esta é uma das
coisas mais maravilhosas e estupendas da Bíblia, e é devido
à sua clara concepção deste “dia de Jesus Cristo” que Paulo
pode fazer todas as coisas que nos conta.
Que é, então, este dia? E o dia da grande consumação, a
finalização da obra de salvação. Permitam-me explicar este
ponto nestes termos: assim que o homem pecou e caiu da
comunhão com Deus, Ele começou o grande processo.

45
Lembram-se da promessa feita com relação à “semente da
mulher”? Começou ali, Deus continuou Sua obra: separou
um homem chamado Abraão e fez dele uma nação; e através
da Bíblia toda vemos a continuidade da obra. Mas a quê
essa obra está sendo levada? Bem, o objetivo final é que
este mundo, que foi amaldiçoado por causa do pecado do
homem, será restaurado e será feito absolutamente perfeito -
haverá “novos céus e nova terra, em que habita a justiça”
(2 Pedro 3:13), e o Filho de Deus voltará para governar
como Rei. Esse é o dia do Senhor. Os “espíritos dos justos
aperfeiçoados” receberão seus corpos glorificados, tendo
ressuscitado dos mortos, e habitarão nesta nova terra, sob o
novo céu, com Cristo, para todo o sempre; é o dia glorioso
da emancipação final, a redenção suprema por vir.
E 0 que Paulo diz aos membros da igreja de Filipos neste
ponto é que está tudo bem, e que eles irão avante, com Deus
operando neles, até torná-los absolutamente perfeitos naquele
grande dia. Seja o que for que aconteça comigo ou com vocês,
diz Paulo, está tudo certo. Deus está continuando Sua obra, e
quando Cristo voltar, vocês estarão diante dEle e receberão
sua recompensa. Vocês entrarão em sua herança, naquela
magnífica e maravilhosa consumação, o dia de Jesus Cristo, o
dia do Seu glorioso retorno para reinar. Vocês estarão
prontos e não perderão nada do que vai ocorrer. Esse é o fim
e 0 propósito da grande e boa obra que Deus tinha começado
(1 Pedro 1:4). São essas as coisas que os ladrões não podem
arrombar e roubar, nem a traça e a ferrugem podem estragar;
estão seguras com Deus no céu, fora do alcance do homem e
de todos os seus esforços e maquinações. Se você é cristão,
está sendo preparado para aquele dia, e está sendo preparado
para isso por Deus.
Permitam-me só dizer uma palavra sobre a certeza desta
obra. Não há dúvida sobre isso, diz Paulo: “Tendo por certo
isto mesmo, que aquele que em vós começou a boa obra a

46
aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo”. Minha garantia é nada
menos que o caráter do próprio Deus. Minha confiança está
baseada na santidade, na justiça e no poder de Deus. Deus
jamais começa uma obra e a deixa inacabada; seria uma
contradição do Seu caráter. Deus é diferente do homem:
começamos coisas e não as continuamos. Nosso entusiasmo
dura uma semana ou duas. Fazemos o propósito de realizar
algo, começamos a fazê-la, mas não há continuidade. Graças a
Deus, a minha esperança do dia de Jesus Cristo e Sua glória
não está firmada no poder da minha vontade, nem em meu
desejo, nem em meu entendimento. Firma-se neste fato: Ele
nunca teria começado a obra, se não estivesse decidido a
terminá-la. Como sobre isso fala Paulo, dizendo a Timóteo,
“O firme fundamento de Deus permanece” (2 Timóteo 2:19,
ARA); e quando escreve aos coríntios ele diz: “Porque nin­
guém pode pôr outro fundamento, além do que já está posto,
o qual é Jesus Cristo” (1 Coríntios 3:11). Deus lançou esta pedra
fundamental firme e segura. São-nos dadas duas explicações
disto: “O Senhor conhece os que são seus” (2 Timóteo 2:19), e,
em segundo lugar, este versículo de Filipenses, que nos garante
que, quando Deus começa uma obra numa alma, Ele “a
aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo”. Paulo, novamente,
escrevendo aos romanos, diz - esta é a lógica - “Se nós, sendo
inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu
Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos
pela sua vida” (Romanos 5:10). Paulo quer dizer o seguinte: se
Cristo morreu por você quando você era um inimigo e um
rebelde, e O odiava, se Ele morreu por você quando você
estava nessa condição, quanto mais, então. Deus manterá e
sustentará você e o manterá seguro, e terminará a obra pelo
amor de Cristo - é lógica incontestável. O caráter de Deus
garante a completação da obra.
Concluamos agora com uma aplicação prática. Quanto a
nós, penso que todos concordaremos, a questão vital é que

47
saibamos, com certeza, que esta obra está acontecendo em nós.
Teria Ele começado esta boa obra em mim? Será que sei que
Ele vai dando continuidade a ela e que eu vou ser perfeito no
dia de Jesus Cristo? Como posso sabê-lo? Paulo, num sentido,
dá-nos a resposta neste texto, quando dá graças a Deus pelo
companheirismo destes filipenses no evangelho. Que signi­
fica isso? Significa que eles estavam interessados nestas coisas.
Estas pessoas de Filipos preferiam reunir-se como igreja para
dialogar sobre estas coisas, antes que qualquer outra. Os
filipenses eram cidadãos romanos. Eram cultos, mas uma vez
que tinham visto isso, tiveram ciência de que era o que há de
importante. Assim eles se reuniam e trabalhavam juntos - esta
era sua comunhão, sua participação no evangelho. Isso é um
sinal muito bom. Se estas verdades constituem o seu primeiro
e maior interesse, penso que você pode dar-se por feliz por
ter sido iniciada em você a boa obra. No versículo sete Paulo
diz: “Como tenho por justo sentir isto de vós todos, porque
vos retenho em meu coração, pois todos vós fostes participan­
tes da minha graça, tanto nas minhas prisões como na minha
defesa e confirmação do evangelho” Ele quer dizer que toda
vez que você ouve alguém ridicularizar o evangelho, você
lhe replica e o defende, e se você ouve falar indignamente
de Cristo, você defende o nome - a defesa do evangelho. Claro
está que todos estes pontos merecem um sermão; estou
simplesmente traçando uma vista abrangente, oferecendo
uma visão panorâmica. Se você defende o evangelho, pode
sentir-se feliz porque a boa obra começou em seu ser. E
quando Paulo se refere à “confirmação do evangelho”, refere-
-se à propagação do evangelho. Temos que defendê-lo e
proclamá-lo.
Que outros testes haveria aqui? Eis alguns: se cada vez
mais você odeia o pecado, certamente significa que a boa
obra de Deus está sendo efetuada em você - ninguém mais
pode dar-lhe isso. Se cada vez mais você deseja a santidade

48
em sua vida, se tem um crescente interesse em agradar a
Deus e em ser bem visto por Ele, é sinal que a obra vai
tendo prosseguimento. Você tem um crescente sentimento
de amor e gratidão a Deus? Estaria você mais e mais dis­
posto a dizer: “Graças a Deus pelo seu dom inefável”, e,
“Pela graça de Deus sou o que sou”? São estes os testes e os
sinais. Se estas coisas verdadeiramente podem ser ditas de
nós, há somente uma explicação: não é o homem natural,
porque o homem natural não deseja nenhuma destas coisas.
Quem quer que tenha tais desejos os tem porque Deus
comecou
o e continua Sua boa obra nele.
Portanto, queira Deus conceder-nos que possamos
juntar-nos ao grande apóstolo e dizer: “Tendo por certo isto
mesmo, que aquele que em vós começou a boa obra a
aperfeiçoará até o dia de Jesus Cristo”. Amém.

49
4
Amor, Conhecimento e Juízo
"£* peço isto: que o vosso amor abunde mais e mais em ciência
e em todo o conhecimento. Para que aproveis as coisas excelentes,
para que sejais sinceros, e sem escândalo algum até ao dia de Cristo;
cheios de frutos de justiça, que são por Jesus Cristo, para glória e
louvor de Deus. ” - Filipenses 1:9-11

Nestes versículos temos a oração especial do apóstolo em


favor dos membros da igreja de Filipos. Quem quer que esteja
familiarizado com as Epístolas de Paulo perceberão que as
suas orações sempre merecem a mais cuidadosa consideração.
Não são algo acrescentado de maneira perfnntória; ele não as
menciona meramente como algo natural, ou como uma espécie
de acréscimo. Muitos acham que, na verdade, estas orações
são algumas das declarações mais significativas dos escritos
de Paulo, e bem que poderiamos dedicar um estudo completo
à consideração das características delas todas. Mas agora
devemos ir adiante e examinar em detalhe esta particular
oração, e assim, a única observação geral que desejo fazer é
que as orações de Paulo sempre são caracterizadas por algo
que pode ser mais bem descrito como inteligência ou reflexão.
O apóstolo não ora meramente em função dos seus sentimen­
tos. Suas orações são sempre ordenadas e sempre feitas em
termos da condição em que se encontram as pessoas pelas quais
ele ora. Noutras palavras, ele ora com a mente, como também
com 0 coração. Certamente ele sempre eleva o seu louvor e a
sua ação de graças a Deus por pessoas como estes filipenses, e.

50
permitam-me reiterar, o que caracteriza as suas orações são a
sua sabedoria, a sua sanidade e a sua habilidade como pastor
e mestre do seu rebanho - veremos isso quando considerarmos
esta particular oração.
Bem, esta oração, como todas as demais, é muito signi­
ficativa, e não podemos examiná-la e analisá-la sem que
aprendamos muito sobre a natureza geral da vida cristã. As
orações de Paulo, como o seu ensino, na verdade como tudo
0 que ele fez, sempre estão baseadas em alguns grandes
princípios. Suas orações são tão teológicas como todos os seus
argumentos e discussões. Elas estão repletas de ensino, de
teologia e doutrina; ele não sabe o que é fazer orações mera­
mente movido por emoções e sentimentos. Suas orações
sempre estão baseadas em algo fundamental; sempre são
feitas à luz de antecedentes ou substratos básicos, e deles
procedem.
Agora, quando chegamos a esta oração particular, pode
ser que à primeira vista de olhos fiquemos surpresos. Pode
ocorrer-nos que há uma contradição aqui, entre o que o
apóstolo pede na oração em favor da igreja de Filipos, e o
que ele já disse sobre os seus membros. Em nosso anterior
estudo estivemos considerando este versículo: “Tende por
certo isto mesmo, que aquele que em vós começou a boa
obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo”. Essa é uma
declaração que muitos interpretam mal, dizendo: “Muito
bem, se isso é verdade, se isso é obra de Deus, e se é certo
que será completada por ser obra de Deus, por que orar
por essas pessoas? Por que escrever-lhes uma carta? Por que
exortá-las a alguma coisa? Por que não dizer apenas que é
obra de Deus, que Ele a começou e que vai concluí-la porque
está baseada em Seu caráter e, portanto, nunca pode falhar?
Relaxemos e deixemos que a obra prossiga. Está tudo bem”.
Mas aqui se vê que o apóstolo ora no sentido de que os
filipenses façam alguma coisa. Ele quer que eles cresçam

51
no conhecimento; ele quer que o amor deles abunde em
ciência e em vários outros aspectos. Depois ora pedindo que
eles sejam levados a fazer, eles próprios, algumas coisas. E
por isso parece, na superfície, que há uma espécie de contradi­
ção. Na verdade, dentro da própria oração há uma contradição
aparente - “cheios de frutos de justiça, que são por Jesus
Cristo, para glória e louvor de Deus”. Paulo os exorta, em
certo ponto, a produzir frutos da justiça, mas imediatamente
acrescenta: “que são por Jesus Cristo”.
Isso é uma coisa que vocês verão constantemente, não só
nos escritos de Paulo, mas em toda a Bíblia, do princípio ao
fim. Vemos outro exemplo nesta Epístola, no capítulo 2,
versículos 12 e 13, onde o apóstolo diz: “Operai a vossa salvação
com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto
0 querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade”. Ao
mesmo tempo em que se vê que ele pede que façamos algo,
Ele diz que é Deus que o faz. Essa posição tem levado,
através dos séculos, não somente a muita discussão, mas
também a muito entendimento errôneo. Sempre há facções
rivais que salientam um lado ou o outro, e, todavia, as
Escrituras apresentam os dois simultaneamente.
Naturalmente, a explicação é que a contradição é aparente,
não real. Esta questão se resolve quando se entende que este
é um dos métodos pelo qual Deus trabalha em nós para sus­
citar ação pessoal de nós. Tendo Deus tornado possível a nós
a realização de alguma coisa, chama-nos para efetuá-la.
Deus, agindo em nós, faz-nos agir; Deus, tendo iniciado o
movimento, decreta e ordena que o movimento tenha con­
tinuidade, em parte, em todo caso, por nosso esforço e por
nossa atividade. Dessa forma descobrimos que o que na
superfície pode parecer contraditório, realmente não o é.
Num sentido fundamental, este é um grande mistério que
não podemos entender, e me parece que nada é mais tolo e
falaz do que tentar ir além da obra de Deus e cruzar a

52
fronteira que separa o que é revelado claramente, das nossas
pressuposições e deduções originais. Estas são as coisas das
quais podemos ter certeza: foi Deus quem iniciou esta boa
obra em nós - a salvação é inteiramente de graça - mas, uma
vez que a tenhamos recebido, Ele nos chama como novos
homens em Cristo Jesus, pessoalmente responsáveis pela
realização de algumas coisas. E aqui somos levados a lembrar-
-nos de algumas dessas coisas para as quais Ele nos chama. O
apóstolo expõe o assunto desta maneira: de um coração
transbordante, Ele dá graças a Deus por estes filipenses, e
lhes agradece pelo grande amor que eles têm por ele e uns
pelos outros. Já vimos que há nesta Epístola uma qualidade
lírica que, num sentido, não se vê em nenhuma das outras. A
relação entre Paulo e esta igreja era peculiarmente feliz, e esta
verdade aplica-se igualmente à vida da própria Igreja. Mas
Paulo não se dá por satisfeito; isso não basta. Ele ora porque
deseja que eles se desenvolvam e progridam. Paulo nunca ficou
satisfeito consigo mesmo. Quando lerem o capítulo três desta
epístola, vocês o verão dizer: “...esquecendo-me das coisas que
atrás ficam... prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana
vocação de Deus em Cristo Jesus”. Ele está sempre
ambicionando mais, e o que ambiciona, ambiciona-o para o
seu povo exatamente da mesma maneira. Ele está desejoso
de que eles progridam e cresçam na graça e no conhecimento
de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. E aqui ele mostra
exatamente quanto ele deseja que eles o façam.
Então, ao passarmos a examinar os detalhes desta petição,
seremos movidos a lembrar-nos, mais uma vez, da natureza
profunda do ensino do apóstolo. Vemos aqui, amplamente
exposta, a grandeza do seu entendimento da vida e da natu­
reza humana, e das pessoas com as quais ele se preocupa.
Penso que é importante recordar de novo o contexto desta
oração. Paulo quer que estes filipenses tenham na vida as
mesmas bênçãos que ele usufruía. Ele está na prisão, mas é

53
feliz; ele aprendeu a contentar-se em todo e qualquer estado
ou condição. Diz ele que sabe “estar abatido” e “também ter
abundância”, e quer que eles também desfrutem as mesmas
coisas. Ele sabe também que é difícil, que existem forças
contrárias a isso tudo. Ao contrário, o evangelho cristão nunca
nos diz meramente que nos alegremos porque está tudo bem.
Ao contrário, o evangelho encara a vida como a vida é e
depois nos habilita a sobrepor-nos às dificuldades. Pois
bem, 0 apóstolo tem tudo isso no escrínio da sua mente
quando eleva a Deus esta petição. Como pode alguém então,
num mundo e numa vida como esta, chegar à altura da
experiência do grande apóstolo? Ele já nos disse algumas
coisas básicas das quais, como cristãos, devemos estar seguros,
mas, em acréscimo a isso, algumas outras coisas são necessá­
rias, e deveremos considerar em que consistem.
Podemos dividir o assunto em dois títulos perfeitamente
simples e diretos - tudo o que eu posso fazer com tão gran­
diosa declaração é observar as palavras e os seus sentidos, e
depois deixar com vocês que ponderem pessoalmente os
detalhes. Há, depois, duas perguntas óbvias. A primeira é:
que petição Paulo fez em favor da igreja de Filipos? E a
segunda pergunta é: por que ele orou?
Em primeiro lugar, então, o que ele pede é que o amor
deles “abunde mais e mais em ciência e em todo o conhe­
cimento” (ou, VA: “mais e mais em conhecimento e em todo
0 juízo”). Essa é a petição. Contudo, pode haver alguns que
achem que eu deveria continuar e incluir o próximo versí­
culo, porém esse eu considero como uma das razões que
explicam por que ele fez a oração. Não o considero parte da
petição, mas algo a que a petição leva e na qual ela resulta.
Em sua oração ele pede que o amor deles abunde mais
em conhecimento e em todo o juízo e aí somos levados a
lembrar-nos de uma das características notáveis de Paulo.
Seu equilíbrio, seu bom senso, seu modo perfeito de

54
salvaguardar o seu ensino contra todo excesso e entendimento
errôneo. Notem que ele não roga meramente que o amor
deles abunde mais e mais; não, ele quer que seu amor
transborde de conhecimento e de todo o juízo. Tampouco
pede simplesmente que o amor deles aumente - vejam seu
equilíbrio - antes, ele roga que o amor deles abunde mais e
mais em conhecimento...
Seguramente temos aqui algo que deve fazer com que
façamos uma pausa por alguns minutos. A falta de observa­
ção desse equilíbrio não é uma das reais dificuldades da vida
atual? E as filosofias rivais não se baseiam justamente nessa
falha? Existem aqueles que gostariam de fazer-nos acreditar
que todo o problema atual das pessoas é que elas sabem demais,
ou pensam demais, ou raciocinam demais. Vocês conhecem
bem a escola de pensamento que nos diz que devemos “voltar
à natureza” e aqueles filósofos modernos que sustentam que
o problema do homem é que ele insiste em viver puramente
em função dos centros mais altos da sua personalidade, em
vez de em função do seu cérebro intermediário, do seu senso
comum. A causa da sua condição miserável e da sua infelici­
dade, dizem eles, é que ele se tornou inteligente demais,
quando deveria viver mais na área dos seus instintos. Dizem
eles que o homem não deveria deixar-se guiar pelo cérebro,
pela lógica, pela razão. Deveria viver no nível mais baixo, onde
as coisas mais primárias estão no controle. Há depois outra
escola, que diz exatamente o oposto e que ainda acredita no
poder do conhecimento e da informação.
Pois bem, o apóstolo estabelece que religião é algo que
não se pode ensinar; isso é um postulado fundamental. Ele
não ora meramente no sentido de que o meu conhecimento
aumente. Num sentido, não se deve falar sobre o lugar da
religião na educação. Ela não tem lugar ali, porque independe
da educação; pode-se falar em educação no mundo e, todavia,
ignorar completamente a verdadeira religião, pois essa é

55
algo que não se pode ensinar, como uma matéria. Também
nunca se deve ensinar a Bíblia como um livro-texto comum;
não se pode abordar as Escrituras como se aborda Shakespeare,
e quem fizer isso estará pervertendo o ensino geral da Bíblia.
A Bíblia é diferente, pertence a uma área inteiramente diversa.
Na verdade, a palavra primária, fundamental, diz Paulo, é
amor, e onde não há amor não há vida, e é preciso haver
amor antes de se poder infundir conhecimento. Paulo teme
o conhecimento não baseado no amor, e teme igualmente
o amor que não possa ser controlado e checado pelo conhe­
cimento. Ele deseja que o amor dos filipenses cresça e
abunde em conhecimento e em todo o juízo, e as duas
coisas sempre devem vir juntas.
Há duas tentações que nos confrontam constantemente,
mesmo na vida cristã. Uma é o perigo de vivermos baseados
meramente em nossas experiências e em nossos sentimentos.
Muitos são os que não gostam de ensino, doutrina e dogma;
não entendem isso de maneira nenhuma. “Vamos cantar”,
dizem eles quando dirigem uma reunião. “Vamos nos alegrar
juntos!” E desenvolvem a reunião baseados meramente nos
sentimentos. Querem apresentar suas experiências e dar seu
testemunho, querem falar sobre si mesmos, e ficam nisso, nunca
se dispõem a ir além desse ponto. Essa é a sua atmosfera de
amor; é o que aquece os seus corações e os mantém juntos.
Tudo bem, desde que não vivamos só baseados nisso.
Mas, naturalmente, o outro perigo é exatamente o oposto:
o perigo de nos interessarmos por doutrina de maneira
puramente teórica, abstrata e acadêmica, de nos preocupar­
mos com 0 que alguém com justiça descreveu como “a
múltipla aridez da logomaquia da teologia”. Significa que
você se interessa apenas por palavras e transforma este glo­
rioso evangelho de amor em mera filosofia ou em muitas
filosofias. Você demonstra um interesse puramente intelectual
pela Bíblia e pela verdade cristã - tudo fica na cabeça e nunca

56
afeta o coração. Você pode pelejar com os homens por
causa da Bíblia e da fé cristã, mas pode estar negando o
evangelho em suas discussões.
Bem, o modo de evitar ambas essas tentações é observar
o que o apóstolo diz: o nosso amor deve aumentar e abundar
em conhecimento e em todo o juízo. Por “conhecimento”, aqui,
Paulo quer dizerz conhecimento espiritual em seu sentido
mais completo. E uma palavra forte; nada pode ser mais
completo do que este conhecimento. E, como já sugeri, este
conhecimento é mormente intelectual, embora não
inteiramente. O apóstolo ora no sentido de que estes filipenses
tenham um crescente conhecimento de Deus e do conteúdo
geral da verdade cristã, da sua natureza e da sua revelação.
Em certo sentido, Pedro sustenta o mesmo ponto quando
diz que os que erram e que ficam transtornados pela vida
são os “indoutos e inconstantes” (2 Pedro 3:16). E certamente
isso é verdade na experiência de todos nós. Os que mais
freqüentemente perdem o equilíbrio em sua vida cristã são
os que mais carentes são de conhecimento. Eles se deixam
transtornar por outros, e se transtornam face às condições
gerais do mundo no presente. E, de acordo com Paulo, a
maneira de evitar essas coisas é ter maior conhecimento da
verdade e maior conhecimento de Deus. Diz ele praticamente
a mesma coisa em 1 Coríntios 2:12, onde escreve: “Mas nós
não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que
provém de Deus, para que pudéssemos conhecer o que nos
é dado gratuitamente por Deus”. E isso significa todo o
plano e método da salvação.
Noutras Palavras, Paulo deseja ansiosamente que os
cristãos conheçam os decretos eternos de Deus e como esses
estão sendo efetuados. Ele quer que entendamos a natureza
da morte do nosso Senhor na cruz, o poder da Sua ressurrei­
ção e a aplicação que o Espírito Santo faz de tudo isso em nossas
vidas. Ele quer que vejamos que Deus, desde o princípio, tem

57
este plano que, certa e seguramente, Ele está levando a efeito.
Depois, tendo nós compreendido isso mais plenamente, este
conhecimento aumentará o nosso amor a Deus, e, conforme
temos esta crescente segurança da nossa grande salvação, assim
também o nosso amor abundará mais e mais. Acresce,
naturalmente, que, quanto mais conhecermos esse amor,
mais capazes seremos de enfrentar as contradições, as decep­
ções e os problemas que vêm de encontro a nós na vida. Se eu
conhecer apenas um amor que provém dos meus sentimentos
e emoções, vou me abater e não terei nada a que recorrer;
mas, se eu crer na doutrina que ensina que o que me salva
definitivamente não são os meus sentimentos, e sim a obra
consumada por Cristo na cruz, então, sinta-me eu como me
sentir, sei onde estou e posso ir avante. Se eu crer que até
os cabelos da minha cabeça estão contados, se eu crer que
todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles
que amam a Deus, se eu crer que Deus me colocou num
processo que finalmente será completado e tornado perfeito;
se eu crer nisso tudo, verei as coisas de uma nova maneira
e verei em toda e qualquer circunstância adversa uma parte
desta obra de “cinzelamento” realizada por Ele. O grande
feito consiste em compreender esta verdade, e, na medida em
que 0 fizer, maior será o meu amor a Deus e aos que estão
comigo neste grande e glorioso processo.
Mas permitam que eu passe ao próximo ponto no estudo
da oração de Paulo - “em conhecimento e em todo o juízo”.
Temos aí o entendimento, ou, como talvez se possa traduzir, a
percepção - “que o vosso amor abunde mais e mais em toda a
percepção”. Provavelmente seja melhor traduzir o termo por
“discernimento” ou “discriminação”. Vemos aqui a profunda
psicologia do apóstolo, como ele traça uma distinção entre
conhecimento e discriminação, ou conhecimento e discer­
nimento, ou conhecimento e juízo, ou conhecimento e
percepção. E que distinção vital é essa! Teríamos nós, pela

58
experiência ou no contacto com outros, descoberto a diferença
entre estas duas coisas? O fato de um homem ter grande
conhecimento não significa necessariamente que ele tem
sabedoria; ele pode ser um prócer do conhecimento, mas
isso nem sempre significa que ele tem discernimento ou
discriminação ou percepção. Estas palavras não são colhidas
pelo apóstolo sem pensar; há um significado muito especial
ligado a cada uma delas. Quero que vocês tenham conhe­
cimento da verdade, diz ele, mas, se não tiverem esta faculdade
peculiar que os capacite a amar em todas as condições e
circunstâncias, esse conhecimento de nada lhes valerá. Há
homens que são instruídos em assuntos particulares, mas
essa instrução é de pouca utilidade, e falham na prática. Há
homens que podem ser muito entendidos na lei, no sentido
abstrato e teórico, porém que são incapazes de conduzir uma
causa no tribunal. Um homem pode conhecer medicina
completamente, pode ser capaz de responder perguntas no
papel, mas quando confrontado por um paciente, não consegue
aplicar o seu conhecimento. Que diferença há entre conhecer
algo e saber aplicar esse conhecimento! E o anseio de Paulo
é que estes filipenses não apenas se tomem peritos em teolo­
gia, mas também ora no sentido de que se desenvolvam
altamente na faculdade que os habilite a discriminar entre
o bem e o mal, entre o que é espúrio e o que realmente
pertence à verdade.
Essa faculdade era necessária à Igreja Primitiva; falácias
e falsos mestres surgiram quase de imediato por obra dos
judaizantes e das religiões gregas. Em sua infância, a Igreja
estava cercada destas coisas, e, em sua maioria, as heresias
apareceram na primeira ocasião nos primeiros dois ou três
séculos. Não há nada que necessitemos mais do que do ✓ espí-
rito de discriminação, do espírito de discernimento. E muito
difícil descrever essa qualidade; é algo quase intelectual,
mas é também algo quase instintivo Você pode ensinar

59
conhecimento a um homem, pode infundir-lhe informação,
mas não pode torná-lo sábio. Uma das coisas mais difíceis é
defrontar-nos com um mestre, mas, graças a Deus, é algo
pelo que podemos orar. É algo que o Espírito Santo pode
dar-nos, e é por isso que o apóstolo o pede em oração. Ele
deseja que os membros da igreja de Filipos tenham essa
percepção que os capacite a diferenciar entre o certo e o
errado, entre o bem e o mal na prática, e em seus departa­
mentos comuns na vida.
E, povo cristão, se alguma vez tivemos necessidade desta
faculdade, necessitamos dela hoje, não somente na prática, mas
também em nossa apresentação da verdade; há tantos erros e
seitas; há tantos que professam a fé cristã! Pergunto-me se a
maior necessidade que a Igreja de Deus tem no presente não
seria deste espírito de discernimento da verdade. Muitos são
os que ainda pensam que, porque são membros de igreja,
estão certos. Há alguns que não hesitariam em dizer que tal
ou qual homem é cristão porque, afinal, é um bom homem
e tem uma vida moralmente boa. Não temos discernimento
e discrição, não somos capazes de distinguir entre certo e
errado, entre o que é verdadeiro e o que é falso, na doutrina
como também na prática. Paulo roga em oração que os
filipenses tenham essa faculdade porque, se aceitarem a
doutrina falsa, não poderão enfrentar os problemas e
dificuldades da vida em termos da sua fé básica - por isso
é importante. Ele está considerando a felicidade dos fili­
penses num sentido fundamental, razão pela qual essas são
as duas coisas pelas quais ele ora.
Depois, em segundo lugar, por que Paulo ora por estas
coisas em favor deles? Sua resposta a essa pergunta é que, se
os filipenses tivessem este conhecimento, este juízo e este
discernimento, então, diz ele, eles seriam capazes de aprovar
“as coisas excelentes”. Aqui também “excelentes” é uma
palavra interessante. Permitam-me oferecer-lhes traduções
alternativas - para que aproveis “as coisas que diferem”, ou,
talvez az melhor de todas, que “tenhais percepção do que é
vital”. E isso que Paulo deseja que eles tenham; ele quer que
o conhecimento e o juízo deles cresçam porque esse é o úni­
co meio pelo qual poderão desenvolver o seu senso do que é
vital. A dificuldade da vida está em saber no que devemos
concentrar-nos. A arte geral da vida, às vezes penso, é a arte
de saber o que abandonar, o que ignorar, o que pôr de lado.
Quão propensos somos para dissipar as nossas energias e de
desperdiçar o nosso tempo esquecendo o que é vital e dedi­
cando-nos a questões de segunda e terceira categorias. Pois
bem, diz Paulo, aí estão vocês na vida cristã, preocupados
com as dificuldades,
z
com as oposições e com as contradições
da vida. E disto que vocês precisam: poder para concentrar-
-se no que é vital, deixar fora tudo mais e manter-se fixos,
perseverantemente, na única coisa que importa.
E, que seria isso? Penso que Paulo responde essa
pergunta no capítulo três, onde ele declara que tem um
grande e consumidor desejo e paixão: que possa “conhecê-lo,
e o poder da sua ressurreição, e a comunhão de suas aflições,
sendo feito conforme à sua morte”. Essa era a necessidade
por excelência do apóstolo, o que ele considerava vital -
conhecer o Senhor. Agora, diz Paulo nesta oração, é nisso que
vocês devem concentrar-se. Haverá muitas outras coisas em
sua vida, mas certifiquem-se de que esta esteja sempre no
centro, pois, se O conhecerem, “e o poder da sua ressurreição,
e a comunhão de suas aflições”, seja o que for que lhes sobre­
venha, ou o que quer que lhes aconteça, estarão seguros.
Estas são as coisas vitais e da maior importância, e que
tragédia é perder tanto tempo com organizações e instituições,
e com todas as coisas pertencentes à periferia da vida cristã.
Volto a perguntar, não seria esse, talvez, um dos problemas
centrais da Igreja moderna, afinal? Ficamos ocupados com
tantas coisas que esquecemos a única que realmente importa;

61
somos tão parecidos com Marta que esquecemos Maria e a
única coisa “necessária” (Lucas 10:42). Oh, queia Deus que
tenhamos essa percepção do que é vital e nos dediquemos a
isso com renovada concentração!
Seu outro desejo quanto a eles era que fossem puros:
“sinceros, e sem escândalo algum até ao dia de Cristo”. Eu
oro no sentido de que o seu amor se torne cada vez mais
abundante no conhecimento e em todo o juízo (VA), diz
Paulo, porque eu os estou preparando para o dia vindouro,
0 dia de Cristo, o dia em que todos serão julgados e em que
aqueles que estão fora de Cristo serão condenados e aqueles
que estão em Cristo também serão julgados e, de acordo com
seus frutos, receberão seus galardões correspondentes. O nosso
Senhor fala disso em Lucas, capítulo 12; e em 1 Coríntios 3:11-
15, Paulo escreve: “Porque ninguém pode pôr outro funda­
mento, além do que já está posto, o qual é Jesus Cristo. E, se
alguém sobre este fundamento formar um edifício de ouro,
prata, pedras preciosas, madeira, feno, palha, a obra de cada
um se manifestará; na verdade o dia a declarará, porque pelo
fogo será descoberta, e o fogo provará qual seja a obra de cada
um. Se a obra que alguém edificou nessa parte permanecer,
esse receberá galardão. Se a obra de alguém se queimar,
sofrerá detrimento; mas o tal será salvo, todavia, como pelo
fogo”. Vai ser um grande julgamento da obra de cada homem,
e a que for aprovada será recompensada, mas a que não for
aprovada será queimada. O homem propriamente dito esca­
pará, ele será salvo - “todavia, como pelo fogo” - suas obras
serão destruídas.
O dia de Cristo vem, e nós estaremos diante dEle, e
eu desejo ansiosamente, diz Paulo, que naquele dia vocês
estejam sem escândalo, estejam puros, que não haja ne­
nhuma pedra de tropeço em seu caminho para que possam
correr a carreira e não fiquem pisando em falso, tropeçando
e caindo pelo caminho. Oro no sentido de que o seu amor

62
seja abundante em conhecimento e em todo o juízo, a fim de
que, enxergando a diferença entre estas coisas, vocês se
purifiquem e vivam a vida como devem vivê-la; de modo que,
quando comparecerem diante dEle, vocês não fiquem
envergonhados, e Ele diga: “Muito bem, servo bom e fiel...
entra no gozo do teu Senhor”. O dia de Cristo vem, e temos
que estar preparados para ele. Sim, mas mesmo antes de
chegarmos a isso, o nosso amor deve crescer e abundar em
conhecimento e em juízo, a fim de que, diz Paulo, estejamos
“cheios de frutos de justiça, que são por Jesus Cristo, para
glória✓ e louvor de Deus”.
E realmente quase um insulto a uma verdade tão gran­
diosa tratá-la assim tão resumidamente, desta maneira, no
fím de um estudo, mas eu quero apenas dar-lhes um quadro
da oração bem composto. Vejam vocês, o que Paulo diz aos
filipenses é, com efeito, o seguinte: “Mesmo antes de vocês
chegarem ao juízo e ao dia de Cristo, faço esta oração por
vocês a fim de que vocês vivam a plena vida cristã enquanto
seguem sua jornada; quero que suas vidas transbordem de
frutos. Vocês vêem a figura da vida cristã retratada pessoal­
mente por Cristo; Ele nos compara com uma árvore: Cristo
é a seiva. Cristo é a vida. Sem Ele não temos vida, não temos
real existência, não podemos frutificar. Damos estes frutos
de justiça em Cristo Jesus; Ele é a vida, a energia, a seiva;
nós somos a árvore. E que produzimos nós? Produzimos
frutos de justiça. Mas, por que desejamos tanto produzir
tais frutos? Para a glória e o louvor de Deus”.
Essa é a espécie de vida que Paulo deseja que todos os
cristãos vivam. Devemos viver de tal modo nesta existência
que as pessoas que entrem em contato conosco vejam estes
frutos do Espírito, amor, alegria, paz, longanimidade, bondade,
mansidão, temperança, fé. Elas verão as nossas boas obras, as
nossas boas ações; verão que somos totalmente diferentes;
verão estes frutos, mas, por vê-los, glorificarão a Deus. Diz o

63
nosso Senhor no Sermão do Monte: “Assim resplandeça a
vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas
obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus” (Mateus
5:16). E 0 modo como viver esta vida plena, abundante, com
seus frutos de justiça, é certificar-nos de que o nosso amor
abunde mais e mais em conhecimento e em todo o juízo.
Como se faz isso? Lendo a Bíblia, estudando-a, meditando
nela; pela oração, meditando sobre a alma e a vida, sobre
Deus e sobre todas estas coisas; procurando compreender
esta doutrina, lendo-a de joelhos, isto é, não de maneira teó­
rica, mas de molde a apresentarmos os frutos de justiça para
a glória de Deus, e a atribuir todo louvor ao nosso Senhor
Jesus Cristo.
Essa é a receita de Paulo, esse é o seu método de preparar
as pessoas para os problemas e as dificuldades da vida, e
qualquer homem cujo amor abunde dessa forma, e cada vez
mais, em conhecimento e em todo o juízo, saberá no que
deve concentrar-se; ele saberá o que é vital e, à medida que
se concentrar nisso, não tropeçará enquanto prossegue, mas
dará estes fintos gloriosos, estes magníficos frutos de justiça
para a glória de Deus.

64
5
A Defesa e a Confirmação
do Evangelho
^^Mas que importa? Contanto que Cristo seja anunciado de
toda maneira, ou com fingimento ou em verdade, nisto me regozijo,
e me regozijarei ainda.''- Filipenses 1:18

Chegamos agora à parte que se inicia com o versículo


doze, e, num sentido, vai quase até o fim do capítulo, certa­
mente até 0 fim do versículo vinte e seis. O apóstolo, depois
dessas suas palavras de introdução e de saudação, depois da
expressão de sua terna solicitude pelos membros da igreja
de Filipos, agora passa a tratar de vários problemas que ele
sabia estarem confrontando aquela igreja. Seu grande desejo
era que a felicidade que aquelas pessoas já gozavam con­
tinuasse, que na verdade aumentasse, para que entrassem
num estado no qual, como o próprio apóstolo, pudessem
regozijar-se no Senhor, fossem quais fossem as suas circun­
stâncias ou condicões.
o verbo “regozijar-se” vemos percorrer a Epístola inteira,
é seu principal tema e motivo, e aqui, no versículo 12, Paulo
começa a considerar uma das coisas que poderiam militar
contra esse estado de felicidade e alegria. Ele sabia que os
membros da igreja de Filipos estavam preocupados com o
fato de que ele estava na prisão, e lhes ministra consolação.
Contudo, não é esse o nosso principal tema no momento,
porque precisamos considerar um tema subsidiário dele
advindo. O apóstolo, ao tratar de toda a questão levantada por

65
sua estada na prisão e por seus sofrimentos ali, tem que falar
de uma coisa que estava agravando os seus sofrimentos no
cativeiro, qual seja, a atitude de alguns falsos mestres. Esses
homens estavam na igreja, num sentido, e, todavia, Paulo nos
diz que eles pregavam o evangelho por inveja e contenção.
Bem, esta passagem, em si e por si, é interessante, mas o caso
fica muito mais importante quando compreendemos que
aqui 0 apóstolo está estabelecendo um grande princípio
aplicável, não somente ao estado dos filipenses, mas também
ao estado da Igreja Cristã em todas as épocas e em todos os
lugares. Na verdade, como veremos, isso também nos diz
muito, justamente nesta presente hora. Ao tratar deste pro­
blema particular, o apóstolo acrescenta outro toque ao quadro
geral que ele nos vem pincelando sobre uma igreja cristã
e sobre como essa igreja deve ser.
Bem, estivemos considerando, nos primeiros onze
versículos, que o apóstolo nos diz muita coisa sobre os
cristãos individuais e como eles crescem na graça e na sabedoria
em Cristo Jesus. Ele nos lembra que somos o que somos
unicamente pela graça de Deus; que foi Deus que começou
esta boa obra e que Ele continua a realizá-la até completá-la.
Vimos também que Paulo estava orando por estes filipenses,
no sentido de que se tornassem mais e mais abundantes em
conhecimento e em todo o juízo, que aprovassem e aprecias­
sem as coisas vitais e que fossem sinceros. Vimo-lo comparar
0 cristão com uma árvore cuja vida, a seiva, nada é senão a
vida do próprio Cristo, e assim cabe ao cristão produzir fruto.
Obviamente, devido a essa seiva e a essa vida, o fruto que ele
der redundará na glória e no louvor de Deus. Foi uma descrição
maravilhosa, não só do cristão individual, mas também da
Igreja Cristã em geral. A Igreja realmente consiste da reunião
de pessoas desse tipo, uma espécie de pomar espiritual onde
várias pessoas são vistas dando este mesmo fruto como resul­
tado da vida e da atividade de Cristo em seu ser interior.

66
para glória e louvor de Deus. E vimos como tal sociedade
tem que ser feliz, necessariamente; só pode ser uma socie­
dade harmoniosa por causa das coisas de que seus membros
compartilham uns com os outros.
No entanto, aqui o apóstolo dá mais um passo. Até certo
ponto ele antecipou esse passo no versículo sete, onde ele
diz: “Todos vós fostes participantes da minha graça, tanto
nas minhas prisões como na minha defesa e confirmação do
evangelho”. Bem, nesse versículo ele já nos disse algo sobre
a função da Igreja Cristã. Todos os filipenses, diz ele, tinham
sido participantes com ele como parceiros nessa obra. Então
aqui, nesta parte, ele volta a essa idéia e a desenvolve. Ele
assinala que é dever de todos os membros da Igreja Cristã
tomar parte no grande empreendimento que é a pregação
do evangelho. No versículo 16, por exemplo, ele declara que
alguns pregam o evangelho “por amor, sabendo que fui posto
para defesa do evangelho”. E depois, no versículo 27, eis o que
ele diz: “Somente deveis portar-vos dignamente conforme o
evangelho de Cristo... estais num mesmo espírito, combatendo
juntamente com o mesmo ânimo pela fé do evangelho”. Ali
ele também expressa exatamente a mesma coisa, e então, aqui
temos mais um elemento descritivo da função da Igreja.
Permitam-me dizê-lo nestes termos: de acordo com o
apóstolo, a Igreja vem à existência porque algumas pessoas
ouviram a mesma mensagem, a mesma verdade, z e creram nela.
Aceitaram a mesma fé, e é isso que as une. E, pois, um grupo
muito especial, e não simplesmente uma reunião indiscrimi­
nada de toda laia de gente do mundo. Não é formada com base
em nacionalidade nem em continentes nem em generalidades
desse tipo; o que faz uma igreja é que todos os que pertencem
a ela aceitaram a mesma fé. Foi isso que trouxe cada um de
nós para a Igreja, foi isso que nos fez cristãos; a essência e a
existência de uma igreja dependem desse fato. Nós nos
reunimos por causa dessa comum salvação, dessa fé comum.

67
Esse é 0 retrato que Paulo faz da Igreja, e de cada igreja
individual, e, naturalmente, essa é também a característica da
figura neotestamentária. A igreja é um grupo de pessoas que
se reúnem para considerar juntas estas coisas que elas susten­
tam em comum, e para dar graças a Deus por elas.
Bem, isso é bom dentro dos seus limites, mas desafor-
tunadamente a história não pára aqui. E pena, mas essa
comunidade, essa igreja, acha-se num mundo e num ambiente
que de muitas maneiras podem ser inimigos da sua existência
e da sua função, e essa era a situação em que se encontrava
a Igreja Primitiva. Há um sentido em que muitas destas
Epístolas do Novo Testamento foram escritas por causa desse
fato. Não deixavam os cristãos primitivos reunir-se tranquila­
mente e desfrutar em comum estas coisas. Estavam sendo
atacados, não tanto pelo que eles eram como pessoas, como
pelo que criam e reivindicavam pregar. Nas Epístolas de
Paulo vocês verão referência ao fato de que, quando fazia sua
ronda seguindo o circuito de igrejas, era seguido por judai­
zantes, gente que com efeito dizia: “Vocês crêem no evangelho,
tudo bem; mas, se quiserem ser cristãos de verdade, terão
que ser circuncidados”.
Depois verão também, nas outras Epístolas, que algumas
das chamadas religiões de mistérios, tão comuns no Império
Romano naquele tempo, evidentemente tentavam insinuar-se
na Igreja. O mundo estava cheio de religiões. Vejamos a des­
crição que temos de Atenas em Atos, capítulo 17; num sentido,
era uma cidade “muito religiososa” (cf. ARA). Em toda parte
havia templos dedicados a diversos deuses. Ora, essas outras
religiões estavam sempre fazendo investidas contra a fé
cristã. Viviam questionando os próprios fundamentos do
cristianismo, ou sugerindo que lhes fossem acrescentadas
outras coisas. A Igreja Cristã estava sendo atacada por falsas
idéias e teorias, e dentro da Igreja muitos adotaram essas
sugestões, resultando em que, como Paulo nos mostra aqui.

68
a fé genuína dos crentes estava sendo atacada não só de
fora mas também de dentro. Entraram na Igreja uma idéia
errônea e um falso motivo, e isso até na pregação do evan­
gelho, e, por conseguinte, desde o início a Igreja Cristã teve
que lutar
✓ por sua fé.
E muito importante compreender que isso faz parte da
própria essência da vida da Igreja Cristã neste mundo. Não
se pode ler nem uma só Epístola do Novo Testamento sem
encontrar nela esse elemento. Como temos visto, todas essas
cartas são polêmicas, discutem, debatem e procuram proteger
destas coisas os membros da igreja e, se tivéssemos tempo de
fazer um repasso da grande história da era cristã, seria muito
simples mostrar que esse processo continuou. As idéias dos
filósofos gregos sempre foram aplicadas a qualquer novo
ensino do evangelho; sempre houve a tendência de lhe acres­
centar certas coisas, até que por fim fica tão corrompido e
contaminado que, de acordo com o apóstolo, não é mais o
evangelho de Cristo. Isso tem acontecido através dos séculos,
e, desafortunadamente, continua sendo essa a situação no
presente. Portanto, diz o apóstolo, vocês, cristãos, são chamados
para fazer duas coisa importantes: é-lhes dado o dever de fazer
a defesa e a confirmação do evangelho (1:7). Então Paulo dá
graças a Deus pelos membros da igreja de Filipos porque eles
tinham feito isso. Eles o tinham ajudado, tinham-se juntado
a ele, tinham ficado resolutamente do seu lado, e no versículo
TI ele apela a que estejam “num mesmo espírito, combatendo
juntamente com o mesmo ânimo pela fé do evangelho”.
Por certo eu mal preciso salientar o fato de que eu e vocês
somos chamados hoje para essa mesmíssima tarefa. E vocês
vêem como são contemporâneas as Escrituras; os inimigos
não são só de fora, há dentro também. Fora há muitos que
falam sobre a fé cristã, questionando sua base e seu fundamento.
Ataques provenientes da ciência, da filosofia, da psicologia,
ataques vindos das seitas, estão todos aqui conosco, e todos

69
movem investidas contra o próprio alicerce do cristianismo.
E parte da nossa função como cristãos é labutar pela defesa do
evangelho. Pois bem, a palavra grega traduzida por “defesa”
do evangelho significa literalmente o que ela diz. Parece que
a idéia original era a de um homem defendendo-se numa ação
legal; alguém faz uma acusação contra ele, e o homem assume
a sua defesa e responde ao juiz. E isso que Paulo quer dizer
com a defesa do evangelho, e emprega outra vez a mesma frase
no versículo 16: “...sabendo que fui posto para defesa do
evangelho”. Noutras palavras, numa época como esta, somos
chamados para dar “a razão da esperança que há em nós”
(1 Pedro 3:15). Devemos estar em condições tais que, quando
estes assaltos ao evangelho vierem de várias direções, possa­
mos combatê-los. Há uma argumentação intelectual na luta
pelo evangelho, a apologética é uma parte válida da teologia
e, diz 0 apóstolo, todo cristão deve ser ativo nisso. Por essa
razão, quando os homens atacam o evangelho sobre essas
diversas bases, devemos estar habilitados a rebater suas obje­
ções e dar-lhes a nossa réplica. Isto significa atividade da
nossa parte, significa estudar e conhecer bem os fatos. Em
parte alguma vejo no Novo Testamento uma descrição da
Igreja como um corpo de pessoas que passam o tempo todo
cantando ou apenas relatando as suas experiências e tendo um
bom tempo espiritual, assim chamado. Nada disso! Eles são
chamados para a defesa do evangelho; o ataque está aí, e nós
temos que dizer algo em resposta.
Depois, em acréscimo a isso, somos encarregados de fazer
a confirmação do evangelho, o que significa uma exposição
positiva, uma explicação, uma apresentação da verdade e,
acima de tudo mais, significa que temos que dar a prova que
podemos fornecer por nossas vidas e por nosso viver diário.
Todavia, isso tudo leva a esta conclusão: não seria perfei­
tamente claro e óbvio que, se fizermos tudo isso, o fator simples
e essencial é que devemos saber, com absoluta clareza e certeza.

70
era que consiste esta mensagem? Que é este evangelho? Que
é que eu devo defender? Que é que devo dizer quando, no
presente, leio os ataques? Vejo os homens atacando a deidade
de Cristo, os milagres, vejo-os atacando o nascimento virginal,
atacando o fato literal da ressurreição. Devo simplesmente
dizer, “Bem, essa é a opinião dele; ele é um homem decente.
Está tudo bem. Todo homem tem o direito de ter sua opinião,
não há necessidade de acalorar-me por isso ou de dizer que
ele está errado. Procuremos ter uma grande organização
central e juntar todo o mundo, independentemente do que
creiam. Afinal, estas pessoas são perfeitamente honestas e
sinceras. Importa, realmente, o que elas crêem?”
Mas, seguramente, quando lemos estas Epístolas do
Novo Testamento, temos que confessar que o que foi dito
acima é uma total perversão da descrição que o Novo Testa­
mento faz da Igreja Cristã! Não permita Deus que algum de
nós tenha prazer na controvérsia por amor da controvérsia, ou
que nos tornemos mesquinhos e intolerantes; mas a maneira
de evitar isso não é ficando indiferentes, ou dizendo que não
importa o que a pessoa crê. Antes, compete-nos estar certos,
firmes. Se somos chamados a contender pela fé, temos que
saber o que é a fé, e isso tem que ser algo claro e definido.
A seguir o apóstolo nos diz exatamente o que é a fé, e deve­
mos observar atentamente o que ele diz: “Eu quero, irmãos,
que saibais que as coisas que me aconteceram contribuíram
para maior proveito do evangelho. De maneira que as minhas
prisões em Cristo foram manifestas por toda a guarda pre­
toriana, e por todos os demais lugares; e muitos dos irmãos no
Senhor, tomando ânimo com as minhas prisões, ousam falar
a palavra mais confiadamente, sem temor. Verdade é que
também alguns pregam a Cristo por inveja e porfia, mas
outros de boa mente; uns por amor, sabendo que fui posto
para defesa do evangelho. Mas outros, na verdade, anunciam a
Cristo por contenção, não puramente, julgando acrescentar

71
aflição às minhas prisões. Mas que importa? Contanto que
Cristo seja anunciado de toda a maneira, ou com fingimento
ou em verdade, nisto me regozijo, e me regozijarei ainda”.
Agora podemos fazer um sumário disso colocando-o na
forma de duas importantes proposições. Primeira: o evangelho
consiste em pregar Cristo, Vocês notaram que Paulo menciona
isso três vezes: “pregam a Cristo”, no versículo 15; “anunciam
a Cristo”, no versículo 17; e “que Cristo seja anunciado”, no
versículo 18? Ele fala também em “falar a palavra”, mas
estas são apenas outras palavras empregadas para descrever
a mesma coisa - o evangelho, a Palavra, pregar Cristo. Certa­
mente é muito estranho que no século vinte ainda seja
necessário dizer estas coisas, e, todavia, a situação contem­
porânea é tal que exige que demos esta ênfase particular.
Que pregavam estes cristãos primitivos? Afinal de contas,
esse é o nosso teste e o nosso padrão. A Igreja Cristã vem
direta e historicamente dos apóstolos, que foram os pri­
meiros pregadores; portanto, se quisermos conhecer bem o
evangelho que deve ser pregado, temos que descobrir o
que eles fizeram. Sobre que base a Igreja foi formada e
estabelecida? Qual foi a mensagem original?
E não pode haver nenhuma dúvida quanto à resposta a
essas perguntas. Voltem-se para o livro de Atos, e verão os
mesmos termos aqui empregados pelo apóstolo. Leiam, por
exemplo, a história de Filipe e o eunuco etíope, no capítulo 8.
Esse homem viajava para casa, voltando da festa religiosa
celebrada em Jerusalém. Durante o percurso ele estava lendo
Isaías, capítulo 53, e tentava entendê-lo, quando Filipe se
aproximou dele e perguntou: “Entendes tu o que lês?” Então
Filipe começou a explicar-lhe as Escrituras, e lemos que ele
“lhe anunciou a Jesus” (versículos 30,35). Também somos
informados de que quase imediatamente após a conversão de
Paulo, ele começou a pregar Cristo às mesmas pessoas que
antes desejava perseguir. Há, igualmente, a história do

72
carcereiro de Filipos, que clamou: “Senhores, que é necessário
que eu faça para ser salvo?” (Atos 16:30). Paulo e Silas deram
sua resposta: “Crê no Senhor Jesus Cristo”, e depois lemos
que eles passaram a pregar a palavra do Senhor a ele e a
todos os da sua casa. Mas o incidente mais notável acha-se
em Atos 17:2,3: “E Paulo, como tinha por costume, foi ter
com eles (na sinagoga); e por três sábados disputou com eles
sobre as Escrituras, expondo e demonstrando que convinha
que 0 Cristo padecesse e ressuscitasse dos mortos. E este
Jesus, que vos anuncio”, dizia ele, “é o Cristo”.
Eu poderia continuar e mostrar que a pregação z do
evangelho consiste essencialmente em pregar Cristo. E o
que os apóstolos fizeram, e é o que Paulo tinha feito previa­
mente ali em Filipos; e por isso ele os fica lembrando
justamente desse fato.
Noutras palavras, a mensagem da Igreja e do evangelho é
definida; não é uma vaga mensagem de boa vontade, nem
tampouco uma exortação às pessoas para que tenham uma
vida melhor. Não é um mero apelo em prol da moralidade, ou
palavras brandas a uma nação que está experimentando difi­
culdades econômicas. Nem é uma espécie de tentativa geral
de levantar o moral do povo e de conseguir maior produção, e
coisas do gênero. Tudo isso pode vir no futuro como fruto do
evangelho, mas não é esse o fator que confirma a verdade; é
pregar Cristo. Por conseguinte, o teste da mensagem deve ser:
estaria Cristo no centro? Seria Cristo essencial? A mensagem
emana dEle? Tudo gira ao redor dEle? Haveria alguma men­
sagem se Cristo nunca tivesse vivido na terra? Esse é o teste, e
penso que todos nós temos que concordar que muita coisa que
passa por cristianismo, julgada por este teste simplesmente
não é cristianismo; poderia existir sem Cristo. Há muito idea­
lismo nas filosofias gregas e no islamismo. Existe muita coisa
que promove elevação da virtude e da moralidade inteiramente
à parte de Cristo, mas isso não é o evangelho, não é a Palavra.

73
Aquilo pelo que eu anseio, disse Paulo, é Cristo. Eu prego
Cristo. O que me compete fazer é a defesa do evangelho.
E ele diz isso desta forma extraordinariamente extrema:
ele nos diz que se regozija até na pregação daqueles que
“pregam a Cristo por inveja e porfia”. Bem, jamais vocês
poderiam encontrar uma declaração mais forte que essa.
Paulo está dizendo, com efeito: “Há algumas pessoas que,
porque eu estou na prisão, aproveitam-se da minha situação
e pregam o evangelho de Cristo em grande parte para me
aborrecer. Eles desejam atrair um partido para si, e estão
fezendo isso aproveitando-se do fato de que não posso replicar-
-Ihes daqui. Mas, saibam vocês, uma coisa extraordinária é
que, embora estejam pregando o evangelho, o evangelho de
Cristo, por um motivo completamente errado, por um
motivo infame, não obstante eu me regozijo, e me regozijarei
ainda. Por quê? Porque Cristo é anunciado”. Num sentido o
apóstolo quer dizer que ele está pronto até a perdoar o homem
cujo motivo para pregar o evangelho é todo errôneo, contanto
que pregue Cristo.
Agora, se vocês lerem as outras Epístolas, ou mesmo o
capítulo três desta, verão que há certas pessoas que o apóstolo
não está disposto a perdoar ou a escusar. São os homens
que estão errados na doutrina, os judaizantes; para estes ele
nada tem senão condenação. Na verdade, lembrem-se da sua
linguagem forte em sua Epístola aos Gálatas: “Mas, ainda
que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro
evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema”
(Gálatas 1:8). E ele diz a mesma coisa quando escreve à
igreja de Corinto: “Se alguém não ama ao Senhor Jesus
Cristo, seja anátema; maranata” (1 Coríntios 16:22). Certa­
mente essa é a distinção que percorre todo o Novo Testamento.
Não pode haver discussões sobre doutrina, diz Paulo. Essa
tem que ser absolutamente correta. Mas quanto a estas
outras pessoas, apesar dos seus motivos. Cristo está sendo

74
anunciado, e essa é a única coisa que importa.
Por sua vez, isso nos leva à segunda pergunta: que
queremos dizer com pregar Cristo? Aqui, de novo, a resposta
é dada fartamente no Novo Testamento. Voltemos a Atos dos
Apóstolos, ao capítulo treze, onde se relata Paulo pregando;
ou ao capítulo dois, ao sermão de Pedro em Jerusalém, no
dia de Pentecoste. Ou ainda ao sermão pregado por Pedro
a Cornélio, em Atos, capítulo 10; segundo todos esses relatos,
que é que os apóstolos pregavam? Bem - e esta é realmente a
essência da pregação apostólica - primeiro eles davam infor­
mação sobre os fatos, e depois davam o significado desses
fatos. Noutras palavras, eles faziam mais ou menos o seguinte:
saíam pregando “Jesus e a ressurreição”, proclamando Cristo
ao povo. Eles diziam: “Não somos pregadores de estranhos
deuses” (ver Atos 17:18), não somos como os seus filósofos
gregos. Estamos aqui para contar-lhes algo que aconteceu. E
então se punham a narrar a história de Jesus de Nazaré.
Narravam a história que temos nos quatro Evangelhos, que
naquele tempo não estava escrita; falavam do fato do nasci­
mento deste bebê em Belém, e das coisas extraordinárias que
ocorreram por ocasião daquele nascimento. Falavam sobre
alguns sábios ou magos e de alguns pastores que foram ver
o bebê; falavam das coisas que aconteceram com Maria, e
depois passavam a descrever como Ele tinha passado aqueles
doze anos como carpinteiro na Galiléia. Reportavam que,
aos trinta anos de idade, Ele deu início a Seu ministério
público e falavam sobre o que aconteceu quando Ele foi
batizado por João no Jordão. Eles descreviam Sua pregação,
Sua mensagem estranha, durante aqueles breves três anos, e
falavam dos milagres que Ele tinha operado.
Ora, os mesmos Evangelhos que temos foram escritos por
tais homens, os homens que tinham ouvido estas informações,
e é por isso que me parece algo por demais extraordinário
quando ouço dizerem: “Ora, não creia na teologia da Igreja,

75
mas volte e leia os seus Evangelhos e as palavras de Jesus.
Ouça 0 que Ele diz”. Nada sabemos sobre Jesus exceto o que
temos nos Evangelhos; dependemos absolutamente dos
informes dos apóstolos e dos cristãos primitivos, e eles são
as mesmas pessoas que nos dizem que Aquele que disse estas
palavras, que somos exortados a ler, também operou milagres.
Então, se não cremos na narrativa dos milagres, por que
haveriamos de crer nas informações e nas palavras que se
supõe que Ele proferiu? Não é certo que os evangelhos são
produto da própria Igreja Cristã? Sob a inspiração do Espírito
Santo, estes homens fizeram um relato dos milagres operados
por Jesus Cristo e das coisas estupendas que Ele fez.
Depois narravam Sua morte, a crucificação, e diziam que
isso lhes parecia estar em completa contradição com o fato de
que Aquele que podia ressuscitar mortos fosse crucificado e
morresse em total desamparo. Contavam que o corpo foi
baixado da cruz e foi posto num sepulcro, e diziam que
pensaram que isso era o fim de tudo. Então, de repente, viram
que Ele estava vivo, e contavam que O tinham visto e des­
creviam como Ele entrou num aposento trancado. E tudo isso
eles reportaram aos crentes. Claro está que Paulo não podia
dizer que tinha visto essas coisas, porém podia dizer que tinha
visto Jesus no caminho de Damasco, e que a mensagem que
lhe fora dada então correspondia absolutamente à mensagem
dos outros apóstolos. Isso, diziam eles, é algo do que aconteceu
- “somos testemunhas acerca destas palavras” (Atos 5:32).
Passavam depois à explicação, e era isto que ensinavam:
antes de tudo, “Este Jesus, que vos anunciamos, diziam eles, é
0 Cristo” (ver Atos 17:3). Provam-no Suas obras, Seus milagres,
e Sua morte e Sua ressurreição o provam definitivamente, além
de toda dúvida. Mas, ainda mais importante, num sentido, é
a maneira pela qual Ele cumpre plenamente toda profecia.
Então citavam os Salmos e os Profetas, arrazoavam e provavam
completamente que “ele é o Cristo, o Filho de Deus”. Depois

76
passavam a mostrar que Ele é o Salvador. Num sentido, diziam
eles, o problema é o seguinte: se Ele é o Filho de Deus, por
que sofreu aquela estranha morte, em aparente fraqueza, na
cruz? Isso os levava ao coração do evangelho que pregavam.
Ele veio, eles ensinavam, a fim de morrer dessa forma porque
era preciso que a lei fosse satisfeita antes de Deus poder
perdoar. O homem transgrediu a lei, está sob condenação
dessa lei de Deus, e, nem com todos os seus esforços, o
homem pode apagar o seu passado ou desfazer a sua culpa.
E assim Cristo, o Filho de Deus, veio para levar sobre Si
o pecado, e foi para aquela cruz levando sobre Si os pe­
cados do homem; Deus puniu o pecado naquele “que não
conheceu pecado” (2 Coríntios 5:21).
Então os apóstolos se dirigiam ao povo (aos ouvintes) e
diziam: essa é a boa nova que temos para dar-lhes. Se vocês
crerem neste Cristo, se vocês disserem que o Filho de Deus
morreu por seus pecados. Deus os perdoará; sua maior culpa
será varrida para longe, seus pecados serão removidos, vocês
serão aceitos por Deus e vocês se tomarão Seus filhos. Essa
é a boa notícia. Pregamos Cristo Jesus como o Salvador das
suas almas.
Depois pregavam-nO como o Senhor, como Aquele que,
tendo feito tudo isso, retornou ao céu, onde está assentado à
destra de Deus, esperando até que os Seus inimigos sejam
feitos o estrado de Seus pés. Eles pregavam que viria o dia em
que Ele voltaria, desta vez não como um humilde servo, mas
como o Rei dos reis e o Senhor dos senhores que julgaria
o mundo com justiça. Haverá novo céu e nova terra, diziam
ele s, e os que crêem nEle com Ele reinarão. Leiam qualquer
das Epístolas e verão tudo isso ali, como, por exemplo, em
1 Tessalonicenses, capítulo 1 - Cristo como o Filho de Deus,
Cristo
✓ como o Salvador e Senhor, e finalmente como Juiz.
E isso que significa pregar Cristo! Nós O anunciamos e
depois dizemos que os Evangelhos são fatos, que Ele nasceu

77
da virgem, Maria, que realizou os milagres ali narrados, que
Ele foi crucificado e que ressuscitou no corpo, deixando vazio
0 sepulcro. Pregamos Cristo em toda a Sua plenitude como
Salvador e como Senhor; contendemos por essa fé; argumen­
tamos; debatemos; arrazoamos; respondemos às objeções;
dizemos que Ele é plenitude e que todas as partes se ajustam
perfeitamente.
Acima de tudo, porém, segundo Paulo, se somos ver­
dadeiramente cristãos, regozijamo-nos na pregação desse
evangelho. “Nisto me regozijo, e me regozijarei ainda.” Pode
ser que haja alguns que crêem nisso tudo e que pregam isso
tudo, às vezes por motivo duvidoso e indigno, mas, diz Paulo,
que importa? Cristo está sendo pregado. Eles podem estar
errados em seu motivo, mas, graças a Deus, Cristo é anunciado,
e Paulo se regozija por causa disso, por causa da glória da
pessoa de Cristo, por causa da magnificência da verdade,
por causa do que tudo isso significa para ele. É pelo que
Cristo fez que sou cristão, diz Paulo. Não fora isso, eu ainda
estaria blasfemando e perseguindo.
Essa é, então, a descrição que o apóstolo faz da Igreja
Cristã: um corpo de homens e mulheres que crêem e que,
portanto, defendem a pregação de Cristo e a incentivam; um
corpo de pessoas que se regozijam, que são sensíveis para as
críticas e para os ataques feitos contra o evangelho, mas que
têm em seus corações um sentimento grandemente caridoso
para com todos os que realmente crêem, apesar das suas
imperfeições. Esse, parece-me, é o grande chamamento feito
a nós hoje. Ocorrem ataques de fora e de dentro; batalhemos
zelosamente pela fé, por esta gloriosa fé, e, individualmente,
preguemos Cristo. Oremos no sentido de que toda a Igreja
pregue Cristo, e, acima de tudo, pleiteemos com Deus rogando-
-Lhe que envie Seu Espírito num poderoso avivamento e
despertamento, para que Cristo seja pregado, glorificado e
engrandecido entre as nações.

78
6
Mais que Vencedores
“E quero, irmãos, que saibais que as coisas que me aconteceram
contribuíram para maior progresso do evangelho. "-Filipenses 1:12

Neste estudo vamos considerar o que Paulo tem para


dizer nos versículos 12, 13, 14, 19 e 20, mas a chave real da
passagem é esta declaração do versículo 12. Aqui o apóstolo
passa a lidar com um dos problemas particulares que atraem
a sua atenção no curso desta grande carta. Ele estava escre­
vendo na prisão, e queria fazer saber a estas pessoas que,
apesar de estar no cativeiro, sentia-se triunfante e se regozijava;
sentia-se feliz e queria que eles tivessem a mesma experiência.
Quando escreveu esta carta, ele ainda não estava seguro
quanto a se seria posto em liberdade. Havia muitas indicações
que pareciam apontar para o fato de que provavelmente
seria executado, pelo que ele estava particularmente desejoso
de que, antes de acontecer isso, os filipenses tivessem tão
firme compreensão da verdade que, acontecesse que aconte­
cesse e qual fosse o fim e destino deles no futuro, eles, tendo a
mesma fé que ele tinha, pudessem triunfar como ele estava
triunfando.
Por isso aqui ele se ocupa deste ponto. Ele sabia que os
membros da igreja de Filipos estavam inquietos por ele estar
na prisão. Eles o amavam, preocupavam-se com ele, e tinham
expressado tudo isso nas mensagens que lhe tinham enviado
por meio de Epafrodito. Agora, aqui, o apóstolo lhes responde,
e 0 faz nestes termos: “Quero, irmãos, que saibais que as coisas

79
que me aconteceram contribuíram para maior progresso do
evangelho”. Vocês parecem pensar, diz ele, que isso é uma
tragédia, que o evangelho está sendo estraçalhado, e que eu
estou aflito e infeliz, mas não é nada disso. E, na verdade,
bem 0 contrário, e o meu anseio é que vocês tenham uma
visão correta de toda esta questão.
Quando passarmos a considerar o que o apóstolo tem
para dizer, é realmente importante que recordemos as pre­
cisas condições nas quais ele se achava quando escreveu estas
palavras. Como temos visto, ele não somente estava na prisão,
mas, conforme o costume daquele tempo, estava acorrentado
a soldados, possivelmente a um de cada lado. Noutras palavras,
ele não estava só confinado numa cela ou num quarto
particular, mas a sua liberdade era invadida dessa maneira.
Ele nunca ficava por conta de si, nunca era deixado a sós,
nem por um segundo. Havia uma constante troca de solda­
dos, que faziam seu plantão acorrentados a ele, um após
outro, quando cada período de serviço terminava. Ele não
podia viver com privacidade em nenhum sentido do termo.
Havia uma completa ausência de tudo quanto torna a vida
agradável, e uma completa negação de todas as amenidades
costumeiras. Ora, para nós é difícil imaginar quão inquietante
e mortificante deve ter sido isso, especialmente em visa do
que alguns desses soldados poderiam ser - rudes e grosseiros,
provavelmente a exata antítese de Paulo, com sua mente
refinada, culta, sensível e espiritual. Pode-se imaginar tais
homens com sua mania de rogar pragas, suas blasfêmias e
suas maldições, e lá estava Paulo, constantemente na presença
deles. Esse era o tipo de provação pela qual ele estava
passando. E aqui, nesta frase em foco, temos realmente o que
vocês poderiam chamar, a filosofia cristã concernente à
adversidade. Esta é uma das passagens clássicas do Novo
Testamento quanto a toda esta questão.
Muitos países do mundo têm um dia que eles observam

80
como um Dia de Rememoração.’ É um dia que, inevita­
velmente, deve lembrar, e lembra, ao povo as tribulações da
vida. Não podemos usar o termo “Rememoração” sem lembrar
isso tudo. Gostemos ou não, lembramo-nos do fato de que o
mundo sofreu e suportou duas grandes guerras dentro de um
quarto de século. Lembramo-nos do horrível período entre
as guerras, um período de completa futilidade e de “fazer
acreditar” que terminou desastrosamente em 1939. Lembra­
mo-nos do estado geral do mundo, das dificuldades, dos
problemas, da inquietação; são esses os pensamentos que
nos vêm de volta. O mundo é um lugar de tribulação e de
inquietação; há guerras em andamento, pessoas queridas são
mortas e levadas de nós, e há tristeza e tribulação.
Claro está que, inevitavelmente, tudo isso nos faz lembrar
outra coisa. A questão geral das aflições e tribulações da vida
freqüentemente leva muitos a tropeçarem. Vocês sabem qual
é 0 tipo de declaração que muitas vezes as pessoas fazem. Elas
dizem que não podem conciliar um mundo como este com
um Deus de amor. “Como Deus permite estas coisas?”, tais
pessoas perguntam. “Por que devem acontecer estas coisas?”
Muitos ficara confusos; seus entes queridos foram mortos ou
feridos ou ✓ perdidos, e eles não conseguem entender essas
coisas. E pena, mas muitos se tornam amargos e azedos;
durante a primeira guerra mundial, muitos deram as costas
à igreja e ao cristianismo organizado. Achavam-se justificados
por fazê-lo, e esse problema continua conosco. Como lidar
com essas coisas? Por que acontecem? Que é que vamos
fazer a respeito? Qual é a resposta do evangelho cristão ao
mundo como ele está hoje?
Bem, esse é o tema do qual o apóstolo trata nesta firase
que estamos considerando juntos. Permitam-me expressá-lo

* Esle sermão Ibi pregado no Domingo da Rememoração, 9 de novembro de


1947.

81
da seguinte maneira: a Bíblia não responde estas nossas
perguntas diretamente. Não devemos pensar que ela é o
tipo de livro que tem uma resposta simples para todos os
problemas e que, quando alguém faz uma pergunta, você
simplesmente vai ao índice e encontra a página pertinente,
e ali está a solução imediata que procura. A Bíblia não nos
considera nem nos trata como crianças. Ela nos dá princípios;
ela estabelece postulados e depois nos diz: “Aí está a verdade,
aplique-a”. Esse é o método. Nenhuma resposta direta,
imediata, nada de sim ou não. A questão toda é grande demais
para isso, e o problema é por demais complicado. Posso de
fato ir mais longe e dizer que nesta vida e neste mundo há
algumas perguntas que ficam sem ser respondidas, se bem
que, graças a Deus, Ele nos dá o suficiente para habilitar-
-nos a ir em frente. Todavia, há alguns problemas que não
conseguiremos resolver: Deus, em Sua sabedoria, decidiu
que nós temos que passar pela vida com incerteza sobre
algumas coisas.
Eu mesmo não duvido que a coisa é assim por causa do
nosso pecado e da nossa indignidade. Faz parte da nossa
disciplina sermos mantidos, às vezes, na ignorância e levados
a ver que somos finitos, e levados a lembrar-nos de que não
somos deuses. Não podemos entender tudo e, embora tenha­
mos certo conhecimento do bem e do mal, não sabemos tudo.
Afinal, nesse sentido, estas coisas nos são enviadas para
provar-nos e humilhar-nos, e para fazer-nos lembrar que somos
criaturas na mão do nosso todo-poderoso
z Criador. Mas, graças
a Deus, a questão não pára aí. E-nos dada uma doutrina que
é mais que suficiente; e a doutrina que nos é dada, se vocês
quiserem vê-la enfeixada num só princípio, pode ser expressa
desta maneira: o que é vital na vida não é tanto o que nos
acontece como a nossa atitude face ao que nos acontece. E
essa, penso eu, é a resposta à situação em geral. Estas coisas
acontecerão na vida, são inevitáveis, mas o ensino da Bíblia

82
é que as coisas mesmas não importam; o que importa é
como eu e vocês as vemos.
Bem, não devemos demorar-nos neste ponto preliminar,
mas ele é importante. Há um ditado freqüentemente citado
e que, contudo, contém a essência da verdade:

Dois homens olham através da mesma grade;


Um vê a lama, o outro vê as estrelas.
- F. Langbridge

Mais um: beleza está nos olhos do espectador”.

Existe um tipo de homem a respeito do qual se pode dizer:

Uma prímula à beira do rio,


Foi para ele uma flor amarela,
E nada mais.
- W. Wordsworth

Isso é tudo que ele vê. Mas outro homem pode dizer:

Para mim a mais singela flor pode inspirar


Pensamentos que profundo vão, além das lágrimas.
- W. Wordsworth
z
E a nossa atitude que conta, e a Bíblia ensina esse princípio.
E 0 próximo princípio da Bíblia é que a única atitude
certa e verdadeira para com estas coisas é a que ela ensina.
Noutras palavras, é a nossa atitude para com o evangelho.
Isso, naturalmente, é algo que sobressai em quase todas e cada
uma das declarações feitas por Paulo: “Eu quero, irmãos, que
saibais que as coisas que me aconteceram” - as correntes, os
soldados, os insultos, a blasfêmia, e todas estas coisas que
estão acontecendo - “contribuíram para maior progresso

83
do evangelho. De maneira que as minhas prisões em Cristo
foram manifestas por toda a guarda pretoriana, e por todos
os demais lugares; e muitos dos irmãos no Senhor, tomando
ânimo com as minhas prisões, ousam falar a palavra mais
confiadamente, sem temor”. Ele está pensando em tudo isso
em termos do evangelho, ou da Palavra, ou da pregação de
Cristo. Esse é o princípio. A maneira certa de examinar
todas estas coisas difíceis é em termos do evangelho e do
seu ensino.
Digamos assim: as únicas pessoas deste mundo que
podem enfrentar “as pedras e as setas de ultrajante quinhão”,
como Paulo pôde, são as que crêem no que o apóstolo cria. O
evangelho de Jesus Cristo não tem nenhum conforto para dar
aos que não crêem nele. Ele não tem nada para dizer a todos
os homens e mulheres que não estão em Cristo, exceto que
eles estão perdidos e que, portanto, tudo só pode dar errado
para eles. Todo o segredo está em começar do lugar certo, que
tenhamos a idéia e a perspectiva corretas, e que observemos as
coisas com olhos iluminados pelo Espírito Santo. Portanto,
podemos prosseguir e dizer que talvez não exista nenhum
teste mais completo da nossa profissão de fé do que este
mesmo teste da nossa reação às circunstâncias. Imaginem
que, em última análise, é isso que nos diz se somos cristos
verdadeiros ou não. Qual é a nossa reação às coisas que nos
acontecem nesta vida e neste mundo? Você fica desolado?
Fica pesaroso? Aconteceu alguma coisa com você que o
afetou nalgum ponto vital da sua vida? Como você está
reagindo
z
a isso? Esse é o teste. Você é como Paulo, ou não?
E uma coisa ou outra.
Consideremos, então, como isso funcionava em detalhe
na vida do apóstolo. Ali estava um homem na situação que
descrevi. Você não pode imaginar coisa pior; um homem que
era tão ativo, que tinha tanto prazer em viajar e pregar o
evangelho, agora na prisão, acorrentado a soldados, sofrendo

84
as indignidades e todos s horrores daquele tipo de vida na
prisão. E, todavia, é isso que ele diz. Qual é o seu segredo?
Permitam-me dizê-lo de maneira ainda mais geral. Que é
que deve caracterizar sempre a reação do cristão a um
período de adversidade? E acerca disso que estamos ansiosos
no presente, e nesta passagem a questão se divide muito
convenientemente em duas partes. Em primeiro lugar, há
um aspecto negativo. Observemos Paulo na prisão e tiremos
as seguintes lições do que ele diz: a primeira coisa que vemos
é que Paulo não murmura nem se queixa, nem expressa
questionamento nenhum com relação a Deus e a Seus
caminhos. Há uma total ausência disso. Vocês podem ler
esta Epístola de ponta a ponta, pesquisá-la e examiná-la
microscopicamente, e não encontrarão nenhuma insinuação
de que ele tenha feito isso uma vez sequer. Ora, isso é muito
significativo. Criem outra vez na mente um quadro do que
ele estava suportando e, apesar disso, nem uma palavra de
queixa. Como explicar isso?
Bem, Paulo nos introduz no segredo. A primeira resposta
é que sua atitude para com Deus era correta. A importância
disso é primária e fundamental. Paulo estava tão completa­
mente certo em seu conceito de Deus, em sua reação a Deus e
em sua relação com Deus que, num sentido, era-lhe impossível
murmurar ou queixar-se. Uma coisa absolutamente certa a
respeito de Paulo era seu amor a Deus. Ele simplesmente
firma isso como algo seguro, absoluto e inalterável. Quando se
vê em dificuldade ou suportando tribulação, sem dúvida o
diabo 0 tenta a fazer perguntas sobre Deus e Seu amor, mas
Paulo efetivamente diz: “Não, eu estou certo de uma coisa,
e com essa me agüento”. Ele não admite tal pensamento
porque está firmemente seguro do amor de Deus. Por isso
ele raciocina e argumenta assim: “Seja qual for”, diz Paulo a
si mesmo, “a explicação de todas as coisas que me estão
acontecendo, de modo algum são explicadas porque Deus

85
não me ama, ou porque Deus está agindo de maneira incoe­
rente com esse amor. E é isso que importa”.
E aí, é realmente o que penso, vocês têm a filosofia cristã
geral da vida. É isso que determina se nos mantemos de pé,
face a estas coisas e emergimos como vencedores, ou não.
Uma vez que seja que vocês questionem o amor de Deus,
andarão mal; é uma coisa que o cristão jamais deve fazer.
Eis como Paulo argumentava sobre isso (e quão valiosa é a
lógica deste cristão!): “Aquele que nem mesmo a seu próprio
Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como nos não
dará também com ele todas as coisas?” (Romanos 8:32). Bem
isso é lógica e, contudo, é uma verdade cristã essencial. Este
é seu argumento: Seria possível que Deus enviasse o Seu
Filho unigênito do céu à terra, e até O enviasse à morte na
cruz para que eu pudesse ser salvo, redimido e feito um
herdeiro de Deus, seria possível que Deus não me amasse,
não se preocupasse comigo e permitisse que eu fosse mani-
-pulado de algum modo pela vida? Não, isso é impossível,
é inimaginável, e, portanto, excluo isso.
Ele usa o mesmo argumento também em Romanos 5:10:
“Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus
pela morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados,
seremos salvos pela sua vida”. Se, quando éramos inimigos,
0 Filho de Deus deu Sua vida e morreu por nós para nos
resgatar e nos redimir, então, seguramente, por Sua vida
atual no céu Ele continua a sustentar-nos ✓ e a aperfeiçoar a
Sua obra. Isso, obviamente, é inevitável. E isso que eu quero
dizer quando afirmo que Paulo estava absolutamente certo
e seguro acerca de Deus; sua atitude para com Deus era
correta, nem por um segundo ele podia admitir qualquer
dúvida, era impossível, seria uma negação completa do seu
evangelho.
Povo cristão, pergunto: nós temos aplicado esta lógica?
Pergunto se sempre raciocinamos dessa maneira. Ou damos

86
ouvidos àquele pensamento pusilânime que tende a vir deste
modo: “Sou um cristão que tenta viver a vida cristã, no entanto,
vejam o que está acontecendo comigo! Mas vejam aquele
incrédulo, vejam como ele goza a vida”. Mas no momento
em que você se firmar ante este postulado extraordinário —
“Deus me amou tanto que enviou Seu Filho unigênito para
a morte naquela cruz por mim e por minha salvação” - você
será corrigido acerca do amor de Deus. Paulo não murmura
e não questiona a vontade de Deus nem Seu método, porque
está absolutamente certo desse amor, ele sabe que “nem a
morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as
potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem
a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá
separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso
Senhor!” (Romanos 8:38,39). Vejam vocês, Paulo não se escora
no seu amor a Deus, mas no amor de Deus por ele; ele se
apoia nisso, e está seguro.
Mas há uma segunda resposta. Paulo não murmura nem
se queixa, não somente porque sua atitude para com Deus é
correta, mas também porque a sua atitude para consigo mesmo
é correta, e esse ponto só é inferior em relação ao primeiro.
Aqui, naturalmente, Paulo mostra que atitude era essa. Ele
não pensava em si por si, não se interessava por si mesmo,
como tal. Houve tempo em que o fazia, e ele tem todo o
cuidado de guardar memória de tudo o que ele fazia. Podia
dizer exatamente tudo o que tinha feito - registrava tudo em
seu diário - mas, assim que se tornou cristão, parou de fazer
isso. Eis como ele expressa o ponto: “Segundo a minha intensa
expectativa e esperança, de que em nada serei confundido;
antes, com toda a confiança. Cristo será, tanto agora como
sempre, engrandecido no meu corpo, seja pela vida, seja pela
morte”. Não quero dar por terminado isso agora, porque devo
retomá-lo em detalhe mais adiante, mas essas palavras nos
dizem que o segredo de Paulo é que ele amava Cristo em tal

87
medida que se esquecia de si completamente. Paulo, na
prisão, não pergunta; por que está acontecendo isso comigo?
Mas pergunta: como isso afeta o evangelho?
Por certo todos nós sabemos exatamente o que eu estou
querendo dizer. Até os psicólogos têm consciência deste fato
e, na verdade, isso faz parte do seu acervo em uso. O objetivo
geral do tratamento psicológico é fazer com que os homens
e as mulheres se esqueçam de si mesmos e se interessem por
alguma outra coisa, que transfiram
z
este interesse por si mesmos
para alguma outra coisa. E esse interesse mórbido e patético
pelo nosso ego que nos torna miseráveis. Por isso a vida nos
derruba; por isso caímos quando vem a tribulação - a auto-
comiseração. “Por que isso tem que acontecer comigo?’^ eu
pergunto. Fico olhando para mim o tempo todo e então tudo
assume proporções exageradas. Bem, Paulo não faz isso porque
olha para Cristo e para a glória de Cristo, e sua preocupação
é com 0 evangelho. Não é: “Por que devo ficar acorrentado
a estes homens?”, ou, “Quanto estou sofrendo, quanto estou
suportando!” Sua única preocupação é: “...com toda a
confiança. Cristo será, tanto agora como sempre, engrandecido
no meu corpo, seja pela vida, seja pela morte”.
Evidentemente, o homem desapareceu, e, portanto, não
pode haver autocomiseração, compaixão por si mesmo, nem
sentimento de pena de si mesmo e afundar no desespero
diante disso tudo. Não, ele tem uma atitude saudável para
consigo mesmo. Diz ele: estou em Cristo, sou um cidadão do
reino, e não é o meu ego que importa, é o reino, é o Rei. Ele
se interessa tanto por isso que fica emancipado de todo
esta voragem de morbidez e de infelicidade que constitui
uma tão grande maldição na presente vida.
Meu dileto amigo, posso fazer de novo aquela pergunta
simples? Você já sofreu alguma dessas tribulações? Como
passou por aquilo tudo? Você sabe o que lhe aconteceu - o
coração conhece o seu próprio amargor - mas eu lhe pergunto:

88
você é como Paulo? Você está livre deste queixume e destes
questionamentos quanto ao amor de Deus? Você está seguro
de Deus e de que está certo em sua atitude para consigo
mesmo? Você se deixou perder em Cristo, sendo que esse é
0 segredo disso tudo?
Passemos agora ao lado positivo desse quadro. Aqui
vemos as coisas que Paulo fez em sua tribulação e em sua
dificuldade, e que todos nós devemos fazer. Primeiro, ele
busca sinais e indicações do governo de Deus sobre as cir­
cunstâncias em que se encontra - isso está no versículo 12. O
velho comentarista, Matthew Henry, emprega uma excelente
expressão sobre este ponto. “Meditem nisto”, diz ele, “temos
aqui uma explicação da química divina, que por pouco não
descrevo como alquimia divina.” É como se um elemento
ruim fosse colocado no cadinho, e você se pergunta o que vai
acontecer com ele, e, graças a esta alquimia divina, o elemento
ruim se torna muito bom; Deus exerceu o Seu domínio
sobre isso. Paulo diz aos filipenses: não pensem que a minha
pregação chegou ao fim porque estou na prisão; nem que,
porque sou um prisioneiro, não posso pregar o evangelho;
porque a minha permanência na prisão transformou-se de
maneira extraordinária, e algumas coisas maravilhosas estão
acontecendo. “De maneira que”, diz Paulo, “as minhas
prisões em Cristo foram manifestas em todo o palácio” - ou,
como vocês poderão ver na Versão Revista (inglesa) e noutras
versões (como em Almeida) - “por toda a guarda pretoriana” -
“e em todos os demais lugares”.
Vocês não sabem, diz ele, que o principal resultado do
meu aprisionamento foi que isto se tornou um meio pelo
qual posso falar do evangelho a pessoas que, provavelmente,
de outro modo nunca o teriam ouvido? Os soldados en­
carregados dele eram membros da Guarda Pretoriana, e
Paulo, acorrentado a eles, passava suas horas com eles.
Praticamente ele diz: “Estes homens descobriram que eu não

89
sou criminoso, não sou um preso comum; viram que estou
aqui por causa de Cristo; perguntaram o que é isso, e eu tive
a oportunidade de lhes dizer. Provavelmente, estes soldados
nunca ouviriam nada do evangelho se eu não tivesse sido
feito prisioneiro, mas agora, quando terminam o seu plantão
e vão para casa, o evangelho de Jesus Cristo tornou-se um
dos mais importantes tópicos de conversação em todos os
recantos do palácio”. A princípio se pensaria que a prisão
de Paulo era o fim de tudo, mas Deus, com Sua química,
transformou-a num meio de promoção do evangelho.
Pois bem, vocês verão que esse é um tema bastante comum
na Bíblia. Em Gênesis, capítulo 50, lemos o que José disse a
seus irmãos, depois que Jacó tinha morrido no Egito. Eles
temiam que agora José fosse vingar-se deles pela crueldade
com que o tinham tratado, mas ele lhes disse; “Vós bem
intentastes mal contra mim, porém Deus o tornou em bem”.
Vocês fizeram isso porque tinham inveja de mim, mas Deus
me enviou adiante de vocês para tomar providências para a
fome e para livrar vocês da morte. O que vocês fizeram foi
com um objetivo, mas o objetivo de Deus era outro - Deus
entrou em cena e assumiu o controle das circunstâncias todas,
a fim de nos preparar.
Depois vocês verão que o salmista, no Salmo 119, fala sobre
isso nestes termos: “Antes de ser afligido (eu) andava errado;
mas agora guardo a tua palavra”. Diz ele também: “Foi-me
bom ter sido afligido, para que aprendesse os teus estatutos”
(versículos 67, 71). Eu não pude ver claramente o que estava
acontecendo, diz o salmista, nem pude ver o propósito
destas circunstâncias adversas, mas Deus entrou em ação e
fez uso delas; Deus exerceu o domínio.
Bem, essa é a certeza cristã. Quando, então, nos vemos
enfrentando esta adversidade, esta provação ou esta tribula-
ção na vida, tendo-nos primeiro colocado na atitude certa
sobre o amor de Deus, a próxima pergunta que devemos

90
fazer é: que será que Deus está fazendo neste caso? Qual será
o Seu propósito? Como Deus vai fazer uso disto? Qual será
0 predeterminado propósito do Alquimista Divino por trás
disso tudo? Agora vou observar esta experiência maravilhosa,
e vou ver o que o Alquimista Divino vai produzir nesta
situação; Deus vai fazer sair alguma coisa disto. E no mo­
mento em que você examinar isso desse modo, você já
venceu; já derrubou a tentação. Você está vendo algo que
Deus vai usar para fomentar o Seu evangelho e o Seu reino.
A segunda coisa é que o cristão, nesta situação, sempre
agarra a oportunidade dada para testemunhar. E o que Paulo
está fazendo aqui. Como já vimos, ele nos diz que o principal
efeito da sua prisão foi que a Guarda Pretoriana e outros tinham
ouvido algo sobre o evangelho. Não somente isso, ele nos diz
também que muitos dos irmãos no Senhor, “ousam falar a
palavra mais confiadamente, sem temor”. Portanto, estas foram
duas coisas importantes que aconteceram como resultado da
conduta pessoal de Paulo na prisão. Lá estava ele, sofrendo
agudamente no corpo, sofrendo estas indignidades, sofrendo
como só um homem culto e sensível como Paulo poderia sofrer
em tais condições, e, todavia, ele suportou tudo de tal maneira
que os soldados começaram a observá-lo e a falar sobre ele
com palavras como estas: nunca vimos nenhum homem
portar-se como este antes. Que será que o capacita a sobre-
levar os insultos sem nem um segundo de impaciência?
Que significam esta sua calma e essa sua equanimidade?
E lhe disseram: “Parece que você está gostando disto. Você
não está se portanto como um prisioneiro comum”. Então
Paulo lhes deu o evangelho. Ele estava vivendo na prisão,
mas o tempo todo estava testemunhando de Cristo para
a guarda da prisão e para outros do palácio.
Não somente isso, porém; também havia na igreja da
cidade de Roma irmãos mais fracos que estavam igualmente
sendo aíetados por ele. Era muito difícil ser cristão naquele

91
tempo. Os cristãos eram perseguidos por causa da sua fé, e
eram ameaçados com coisas ainda piores, de modo que alguns
dos cristãos mais fracos estavam começando a esquecer “a
esperança da sua vocação”. Mas quando souberam que Paulo
estava na prisão e como aquele verdadeiro homem de Deus
estava se conduzindo, e como permanecia firme por Cristo
em face da morte, a coragem deles começou a reviver. Foi isso
que aconteceu - eles estavam desfalecendo, mas Paulo estava
começando a pregar e a testificar. Ah, meu caro amigo, nin­
guém vive para si neste mundo. O que eu e vocês fizermos no
tempo da adversidade e da aflição vai afetar muitos outros.
Não é esse o único modo de enfrentar a vida e seus pro­
blemas e tribulações - ver nisso uma oportunidade para dar
testemunho de Cristo? Quando baixa o golpe, diga a si
mesmo: Aqui há uma grande oportunidade. Haverá alguém
que vai me observar, alguém que sabe que sou membro de
uma igreja e que me intitulo cristão, e assim eles vão olhar e
dizer: “Vejamos como ele faz frente a isso, observemos essa
mulher, ouçamos as palavras dele ou dela”. E ali está a sua
oportunidade de dar testemunho do evangelho.
E depois, diz Paulo, lembre-se daqueles que são mais
fracos que você: cristãos que se tornaram um tanto hesitantes
e dominados pela dúvida. Você deve viver de tal modo
que, depois de o terem visto, digam: “Sim, é a pura verdade
afinal, ele sobrepujou aquilo, ela resistiu àquilo, sem sofrer
nenhuma mudança, sem se abater, sem arranjar desculpas”.
Dessa forma o cristão mais fraco verá que o evangelho é
verdadeiro e que as promessas são seguras. Vêem nisso
uma oportunidade para testemunhar, e se você encarar o
problema dessa maneira, seja ele o que for, você o vencerá.
Mas permitam que eu faça um breve comentário sobre o
último aspecto. Paulo viu nisso tudo nada mais nada menos
que uma parte do processo de aperfeiçoamento efetuado
por Deus. É o que se vê no versículo dezenove: “Porque sei

92
que disto me resultará salvação, pela vossa oração e pelo
socorro do Espírito de Jesus Cristo”. Salvação aí não significa
livramento da prisão, porque no próximo versículo ele diz
que não sabe se vai viver ou morrer. É salvação no sentido
mais completo. Paulo está dizendo, com efeito, o seguinte:
“Há aspectos desta minha provação que não entendo bem,
mas disto estou perfeitamente certo: ela faz parte da minha
santificação, é parte integrante do processo pelo qual Deus
me está aperfeiçoando. Ainda sou muito imperfeito, e Deus
me está aperfeiçoando por meio dessa provação. Ele aqui
está me fazendo algumas coisas que, em certo sentido, não
poderíam ser feitas em nenhum outro lugar, e estou saindo
disso tudo um homem melhor do que eu era”.
Portanto, o processo funciona mais ou menos assim: estas
provações e tribulações vêm para nos dar uma visão correta
da vida. Algumas pessoas param de pensar quando as coisas
vão bem. Às vezes, tudo o que nos preocupa é fazer dinheiro.
Então nos sobrevêm alguma calamidade e perdemos o nosso
negócio, e isso nos faz começar a pensar seriamente na vida.
Tais coisas são boas para nós; qualquer coisa que nos faça
refletir realmente sobre a vida é boa para nós. Faz com que
pensemos mais no mundo futuro e nos leva a preparar o ter­
reno para ele. Quão propensos somos a esquecer isso e a
viver só para o presente!
Depois, tais experiências nos fazem compreender a nossa
pecaminosidade e indignidade pessoal, e nos lembram a nossa
fraqueza e a nossa incapacidade. Mas, acima de tudo, elas nos
enviam de volta ao Senhor, e qualquer coisa que nos faça
apoiar-nos confiantemente nEle e desejar conhecê-10 melhor
é uma excelente coisa. Faz parte do processo de aperfei­
çoamento, de santificação. Meus prezados amigos, na economia
e sabedoria de Deus, muitas dessas coisas nos acontecem na
vida porque Deus nos ama. “O Senhor corrige o que (ele)
ama” (Hebreus 12:6) - é isso. E parte do processo de levar

93
Seus filhos à perfeição final e suprema. Estou certo, diz
Paulo, de que isso vai resultar em minha plena, final e
completa salvação em Jesus Cristo.
Vimos, então, acima, a prescrição ou receita do apóstolo
para a maneira de encararmos as provações e tribulações da
vida. Lembre-se do aspecto negativo, a completa ausência
de murmuração e queixa, baseada na reta visão de Deus e
na reta visão do ego e da vida. Lembre-se, depois, das coisas
positivas; busque a química divina, agarre a oportunidade
para testemunhar, submeta-se ao processo de aperfeiçoamento,
de santificação, e procure compreender que nessas coisas a
amorosa mão de Deus está levando Sua obra à consumação
final. Graças a Deus por um evangelho que pode enfrentar
vitoriosamente a vida em suas piores condições e habilitar-
-nos a emergir como mais que vencedores por meio daquele
que nos amou.

94
7
Ele e Somente Ele
“Para mim o viver é Cristo. ” - Filipenses 1:21

Defrontamo-nos aqui com uma das mais sublimes e mais


grandiosas declarações jamais feitas, mesmo por este extra­
ordinário apóstolo de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Há um sentido em que todo aquele que encarar este versículo
só poderá sentir que pisa em solo sagrado. Na verdade, estou
pronto a admitir que eu consideraria quase um sacrilégio
abordar um versículo como este de maneira indigna. Temos
aqui não somente a declaração de uma experiência, o que
é verdade, o que foi um fato e uma realidade, mas, ao mesmo
tempo, e por essa razão, também nos defrontamos com um
padrão de julgamento. Qualquer experiência dada por Deus
é sagrada, e nada está mais distante do espírito do Novo
Testamento do que abordar uma declaração como esta de
maneira puramente objetiva, manuseá-la com nossas rudes
mãos, trazendo o nosso aparato crítico ou o nosso instrumen­
tal próprio para dissecar a fim de aplicar isso nela. Há em torno
desta declaração algo tão sublime, algo tão delicado e puro,
que nos vemos - como sempre acontece com tais passagens -
confrontados com uma espécie de dilema. De um lado, dá
medo manuseá-la de forma desligada, de forma científica, assim
chamada, e, contudo, de outro lado, naturalmente, se não a
analisarmos até certo ponto, há também o perigo de não
compreendermos o seu significado interior e o seu verdadeiro
propósito. O impulso que nos vem é para fazer as duas coisas -

95
analisá-la e tentar entendê-la, embora sempre lembrando
que é uma experiência vivida e uma declaração de um fato
que nos põe sob juízo.
Pois bem, Paulo estava confortando os filipenses, que
estavam aflitos e preocupados com ele. Ele lhes disse que a
sua prisão contribuira “para maior proveito do evangelho”, e
acrescentou, vocês se lembram, que a sua maior expectativa
e esperança era que em nada seria confundido; “antes”, diz
ele, “com toda a confiança. Cristo será, tanto agora como
sempre, engrandecido no meu corpo, seja pela vida, seja pela
morte”. Esse é o substrato da declaração. Paulo quer dizer
que, longe de estar preocupado, é secundário se ele vai ser
morto ou se vai continuar vivendo. Existem as duas possi­
bilidades, e ele não sabe o que vai acontecer, mas, diz ele, está
tudo bem. Ele não está preocupado, e eles também não devem
preocupar-se, pois, “para mim o viver é Cristo, e o morrer é
ganho”. E depois ele passa a desenvolver esse ponto um
pouco mais, porquanto diz que, se devesse expressar a sua
preferência pessoal, esta seria partir, se bem que, por amor
deles, seria melhor permanecer aqui. Contudo, nesta altura
estamos interessados nesta particular declaração que o apóstolo
faz com respeito à vida e ao sentido da vida.
Nestas palavras certamente estamos face às perguntas
mais importantes com que podemos defrontar-nos - Que é a
vida? Que significa ela para nós? Que dizer sobre ela? Não
seria uma das grandes tragédias da vida, na verdade não seria
a maior de todas as tragédias que, no meio de todas as nossas
preocupações com a vida, de toda a nossa atividade intelectual,
de todas as nossas discussões, a única coisa que os homens e as
mulheres nunca se preocupam em encarar é a primeira e a
mais óbvia de todas, qual seja, a vida propriamente dita, e o
viver? Não somente essa questão é muito importante em si
mesma, mas quero ir mais longe e assinalar (e de fato é isso
que pesa neste estudo) que aqui nos deparamos com o teste

96
mais completo que jamais podemos encontrar da nossa
profissão da fé cristã. Porque, naturalmente, esta é uma
palavra que é mais ou menos sem sentido para quem não
é cristão. Ela fala especialmente àqueles que se declaram
cristãos, e é por isso que eu desejo tanto tratar deste assunto
de maneira não objetiva.
Naturalmente, neste ponto a tentação está em examiná-lo
apenas como a experiência de Paulo, mas, meus diletos amigos,

estamos falando sobre nós, não somente sobre Paulo. E certo
que primeiro e antes de tudo é sobre Paulo, mas o que é certo
sobre Paulo também há de ser certo sobre todos os demais
cristãos. O último homem a ver qualquer diferença essencial
entre si e todos os demais cristãos foi o apóstolo Paulo. Ele
nunca disse que havia uma espécie de cristianismo para ele e
outra para todos os outros. Para mim, um dos perigos mais
sutis que confrontam a maioria de nós é que, por alguma
razão extraordinária, apesar de sermos protestantes e de nos
regozijarmos no protestantismo por mais de 400 anos, parece
que ainda nos apropriamos de algumas das falsas distinções
católico-romanas. Temos visto que eles traçam uma diferença
essencial entre os santos e os cristãos comuns. Os santos,
dizem eles, são pessoas especiais, ou “cristãos espirituais”, em
contraste com os “cristãos do mundo”, e é por isso que eles
pedem a estes cristãos do mundo que dirijam orações aos
santos. Mas essa é uma distinção jamais reconhecida no
Novo Testamento; na verdade é uma distinção denunciada
pelo Novo Testamento.
Claro está que reconhecemos que há diferenças em dons e
em ofícios; vê-se isso em 1 Coríntios, capítulo 12, em Efésios,
capítulo 4 e noutras passagens das Escrituras. Mas, conquanto
haja diferenças nos ministérios dados pelo Espírito Santo
aos cristãos como filhos de Deus, por meio de Jesus Cristo,
somos todos iguais, e todas as nossas vidas devem mostrar
isso. Por isso 0 apóstolo fala tão constantemente sobre “nós”.

97
0 que é verdade sobre ele é verdade sobre outros, e aqui,
nesta declaração, deparamos com o teste mais penetrante e
mais completo que podemos aplicar a nós mesmos. Podemos
dizer honestamente com este homem que para nós o viver
significa Cristo? Isso é verdade quanto a nós? Não tenho
nenhuma dúvida de que o que há de mais grandioso na
Igreja e, portanto, no mundo atual é que os cristãos possam
dizer isso. É quando eles fazem essa declaração que signifi­
cam algo neste mundo; é quando eles se consomem de paixão
por seu Senhor que suas vidas são radiosas e o mundo inteiro
fica sabendo que algo aconteceu com eles.
Examinemos, pois, estas palavras, primeiro em termos da
experiência pessoal do apóstolo, e depois aplicando-as a nós.
Lá está Paulo, na prisão, e ele levanta este problema. “Posso
viver mais vinte anos”, diz praticamente ele, “ou posso ser
executado amanhã. Saibam, porém”, continua ele, “que me
vejo em tal estado e condição que realmente isso me é secun­
dário, porque, se eu viver mais vinte anos, esse viver significa
Cristo, e se eu for logo executado, isso ainda significa Cristo;
seja 0 que for que aconteça, dá no mesmo. Cristo significa
viver, viver significa Cristo”. Reitero que a questão vital
para nós é se podemos dizer a mesma coisa. Paulo faz aqui
uma distinção fundamental entre os cristãos e os incrédulos,
e 0 que caracteriza o cristão é que, para ele, o viver é Cristo.
Que é, então, a vida? Que é viver? Talvez a melhor manei­
ra de abordar este assunto é considerar algumas das respostas
que têm sido dadas a essa questão. Bem, certamente há um
grande número de pessoas que nunca sequer pensam no sentido
da vida. Para elas a vida é mera existência, uma espécie de
condição animal, ou um estado como o de uma planta ou de
uma flor. Muitos são os que não têm nenhum tipo de filosofia
de vida. Aqui estão eles em meio a esta maravilhosa realidade
chamada vida, gozam este assombroso dom da existência
pessoal, e, todavia, vão passando pela vida sem meditar nela.

98
Nunca param para perguntar o que ela significa, simplesmente
continuam sua existência dia após dia, comendo e bebendo,
sem abrigar nenhum pensamento a respeito dela.
Há depois o que poderiamos chamar de conceito epicu-
rista, que pode ser mais bem resumido pela frase: “Comamos,
bebamos e alegremo-nos”. A atitude epicurista face à vida era
muito comum no tempo de Paulo, como na verdade o é
atualmente. Centraliza-se no viver, ou em como viver, antes
que na vida propriamente dita; significa prazer: comer,
beber, dançar, ou lá o que seja. Pois bem, existe uma filosofia
muito definida que dá cobertura a esse tipo de vida, e há
aqueles que realmente acreditam nela. Não quero demorar-
-me nestas considerações preliminares, mas é espantoso o
número de pessoas que, se respondessem honestamente,
teriam que dizer que para elas a vida é isso - essa ronda de um
z

prazer para outro. E trágico, mas é verdade. Quantas vezes


ouvimos falar de homens e mulheres que abandonam as
áreas rurais e vão viver nos grandes centros porque querem
ver “a vida”. Ficam com dó das pessoas que eles deixam
para trás porque, para eles, a vida significa uma oportuni­
dade para desfirutar de prazer.
Mas há outro conceito, que podemos descrever como a
z

visão estóica da vida. E um conceito mais inteligente que o


epicurista, e se expressa em termos como estes: a vida é algo
que temos que suportar. O estóico não mantém um perpétuo
sorriso escancarado e não fica dizendo: “Não é tudo tão mara­
vilhoso?” Ele é suficientemente inteligente para ver que isso
está longe de ser verdade. Ele chegou a dar-se conta de que
este mundo muitas vezes pode estar coberto de lágrimas; ele
vê a dureza e a infelicidade, o sofrimento e os tormentos, e
decide que viver significa sobrepor-se a isso tudo, perseverar
enfrentando tudo, assumir pessoalmente o que quer que se
lhe depare e prosseguir, venha o que vier. Sua atitude face à
vida e a como viver significa aguentar dureza, a determinação

99
de segurar a barra e ir em frente. E, lamentavelmente, é grande
0 número de pessoas que, se lhes perguntássemos qual o
significado de tudo o que a vida envolve, teriam que dizer
que é uma batalha contra as circunstâncias e contra o acaso;
resistir às “pedras e às flechas da ultrajante sorte”; uma luta
eterna e sem fim.
Há também atualmente, e sempre houve em tempos
como estes, em que a vida é particularmente difícil, o conceito
cínico da vida. Talvez uma das melhores expressões dessa
forma de pensar é a fala que Shakespeare coloca nos lábios
de Macbeth:

Fora, fora, vela fugaz!


A vida é sombra que passa; é um pobre ator
Que se pavoneia e se agita em sua parte no palco,
E depois cai no esquecimento; é um conto
Narrado por um idiota, estrondando em fúria,
Mas sem nenhum sentido.’
/
E isso que eu quero dizer com a expressão, conceito cínico
da vida, e quantos há que adotam esse conceito hoje em
dia! Adotá-lo é, talvez, uma tentação num tempo como este,
quando tanto idealismo só tem causado decepção e tantas
esperanças têm sido arrojadas ao chão! O comentário típico
dos homens hoje é: que adianta isto ou aquilo? Nada.
Depois, subindo a escada, há o conceito
z
que se pode
descrever como a visão mística da vida. E importante entendê-
-lo, porque às vezes confundem o conceito cristão com o que
aqui descrevo como o conceito do místico. Existe, claro, um
misticismo cristão, e é importante sempre qualificá-lo pela

’ Outj out briefcandle! ILife's hut a walking shadow; a poorplayer, / That siruts
andfrets his hour upon the stage,!And then is heard no more; it is a tale / Told by
an idioí, full of sound and fury^ / Signifying nothing.

100
palavra “cristão” para que fique claro. A idéia típica do mís­
tico é que a vida e todos os seus males têm como causa
suprema a carne, e que a salvação se acha em ele sair da
carne e em não se identificar com ela. Conseqüentemente, o
místico passa o tempo mortificando a carne; ele tenta viver de
maneira passiva, não permitindo que o mundo o influencie
ou o afete. Essa é a sua perspectiva, algo como morrer para
o mundo e adotar uma atitude puramente passiva.
Mas permitam que agora eu passe a comentar o que eu
descreveria como o conceito do homem comum da vida, e é
neste ponto que a palavra do apóstolo nos prova tão profun­
damente. Povo cristão, membros de igrejas cristãs, se nos
perguntassem, “Que é viver para você? Que é que realmente
constitui a vida para você? Qual é a coisa das coisas à qual
você se apega?”, não é verdade que muitos de nós teríamos
que admitir e confessar que a vida significa nossas famílias,
nossos lares, nosso trabalho, nossas ocupações, nossas atividades
no viver diário? Para muitos de nós, viver significa o com­
panheirismo e o amor dos nossos queridos, a vida no lar e o
círculo familiar. Quão preciosas estas coisas são, sim, mas
muitas vezes elas se tornam o valor da vida, e quando são
tiradas de nós, a nossa vida no mundo entra em colapso e
ficamos sem nada. Sempre achei uma das tarefas mais difíceis
das que temos que fazer é escrever uma carta mostrando
simpatia quando um ente querido foi tirado de uma família
que sabemos que não é cristã. São, talvez, boas pessoas, levam
uma vida moralmente boa e perfeitamente feliz, mas quando
um deles é levado deste mundo, vocês sabem que a base
inteira e completa da vida deles se foi.
Mas permitam que eu prossiga. Há o conceito do huma­
nista. Para o humanista, viver significa uma oportunidade
de fazer o bem, de melhorar o mundo e de promover a
elevação do estado da sociedade. Bem, há grande número
de pessoas que têm essa visão idealista da vida, e se vocês

101
lhe perguntarem o que elas querem dizer quando falam sobre
a vida ou sobre o viver, elas dizem: “E uma oportunidade
de mudar e melhorar a vida da humanidade, e de elevá-la”.
Passemos agora a considerar o que podemos denominar
0 conceito religioso da vida, e vou falar sobre isso de molde
a diferenciá-lo do conceito cristão. Há algumas pessoas que,
se vocês lhes perguntarem, “Que é a vida?”, são impelidas
a dizer que é ser religioso e cumprir os deveres religiosos.
Examinemos a nós mesmos, caros amigos. Um dos maiores
perigos com que os pregadores se defrontam é o de viverem
de sua própria atividade: falar, pregar, envolver-se na obra da
igreja, serem muito ativos no que diz respeito à sua religião.
Há 0 perigo de a pessoa viver disso tudo, até que, de repente,
quando a atividade se vai, a pessoa fica de mãos vazias. Vocês
ainda não viram isso? Para mim, essa é uma das grandes
tragédias da vida. As vezes eu tenho que falar com homens e
mulheres que levavam uma vida muito ativa nos círculos da
igreja e que, quando ficaram doentes, parece que não lhes
restou coisa alguma. Estiveram vivendo de sua atividade e
dos seus interesses, e existe o perigo de substituir aquilo de
que Paulo fala por essas coisas.
Devo prosseguir e dizer: para o cristão o viver não é nem
mesmo Deus. Será isto ser irreverente, ou extremista? E ir
longe de mais? Opino que não. Um judeu ou um muçulmano
pode dizer sinceramente que para ele a vida significa Deus,
e há no mundo muita gente que pode dizer que Deus cons­
titui 0 centro de sua vida. Assim é que nesta declaração de
Paulo está a linguagem cristã específica, que é a marca
distintiva do cristão. “Para mim o viver é” - o quê? - “Cristo.”
Nem mesmo Deus, não Deus o Pai, mas Cristo, o Filho; não
os meus interesses religiosos, não as minhas atividades
religiosas, nenhuma das coisas que mencionei: para mim,
diz Paulo, 0 viver é Cristo.
Que será, então, que ele quer dizer com vida? Num sentido

102
já a defini - é amor. Ele se refere ao supremo valor da vida,
àquilo para o que e pelo que ele vive, àquilo sem o que a vida,
para ele, seria sem objetivo e sem sentido. Ele se refere àquilo
que controla tudo o que compõe a sua vida. Talvez a melhor
maneira de o expressar seja dizendo o seguinte: o que Paulo
está realmente dizendo sobre si próprio é que ele ama Cristo.
Ele O ama e, como sempre se pode dizer do amor, seu amor
a Cristo domina e controla a sua vida. E para isso que eu vivo,
diz ele, nisso consiste a natureza e o objetivo disso tudo.
Agora permitam que eu analise um pouco mais esta
questão para esclarecer para nós simplesmente o que Paulo
quer dizer quando declara que Cristo controla toda a sua
vida. Que é a vida? Uma boa classificação é que a vida con­
siste do que fazemos. Digamos assim: na prisão o apóstolo
diz a si mesmo: pode ser que eu viva mais vinte anos; mas, se
eu viver, que é que tem? Que significará? Que devo fazer
durante esses vinte anos? Para nós pode significar dez, vinte,
trinta ou quarenta anos, talvez, adiante de nós, e que é que
vamos fazer com eles? Que será que a vida vai significar
para nós? Esse é o primeiro ponto.
E esse ponto também é algo que pode ser subdividido.
A vida consiste do que eu penso e da esfera dos meus inte­
resses. A vida não significa apenas comer, beber, dormir,
levantar-me e fazer o meu trabalho ou cumprir o meu
dever no emprego nesta existência. Não é isso que Paulo
quer dizer quando fala em vida. Ele se refere a um propósito
da vida, às coisas que lhe dão real sentido. Ele se refere a
como eu passo a maior parte do meu tempo quando tenho
o meu lazer, o que leio e no que penso. Esse é um teste muito
bom. Naturalmente, uma característica do amor é que está
sempre pensando em seu objeto, e, gostemos ou não, isso é
verdade a respeito de cada um de nós. E por isso que este
texto vem como um teste deste calibre: “Onde estiver o
vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (Mateus 6:21).

103
Que pensamos nós sobre isso? Quais são os nossos reais
interesses? Que é que anelamos cada vez mais? Bem, para o,
apóstolo Paulo era Cristo: era sempre Cristo no centro.
E mais: o amor consiste disto - expressar os nossos sen­
timentos, expressar as nossas emoções e dar azo aos desejos
que temos dentro de nós. E por certo vocês se lembram de
que Paulo nos diz claramente que o seu único desejo era
conhecer Cristo melhor e amá-lo mais. Isso, diz-nos ele no
capítulo 3, é 0 que ele deseja ansiosamente. “Para conhecê-lo,
e à virtude da sua ressurreição, e à comunicação de suas
aflições”; isso, acima de tudo mais. Ele tem este sentir, este
impulso, esta emoção, e tudo isso centrado em Cristo. “Para
mim 0 viver”, no que diz respeito ao sentimento e à emoção,
“é Cristo.”
Depois, significa atividade, ação. E aqui, de novo, o
apóstolo nos diz o que isso significa para ele. Ele passara o
seu tempo propagando a glória de Cristo, para que Cristo
fosse pregado, por ele ou por outrem. Por isso ele quer
demorar-se com os filipenses - para poder falar-lhes mais
sobre Cristo. Se eu permanecer vivo mais vinte anos, diz ele,
que vou fazer? Bem, no que se refere a mim, vou simples­
mente pregar o evangelho. Vou falar às pessoas sobre Ele e
procurar conseguir que creiam nEle; vou fazer tudo para
engrandecer o Seu nome e torná-lo grandioso e glorioso.
Viver é atividade, nesse sentido.
Mas a outra verdade sobre o que é viver é que nos acon­
tecem coisas na vida. Se eu viver mais vinte anos, vou fazer
algumas coisas, e me acontecerão algumas coisas; isso faz
parte da vida. E aqui Paulo também diz que, com respeito
a isso, para ele a vida significa Cristo. Ele já não disse isso?
Não foi 0 que ele disse nos versículos 12-30? Essa gente está
tentando “acrescentar aflição às minhas prisões”, quando
prega Cristo por inveja, mas está tudo bem. Cristo cobre
isso também. Até uma coisa como essa Paulo vê em termos e

104
à luz de Cristo. O que ele quer dizer é que em Cristo ele
foi libertado da escravidão das coisas que acontecem. Ele já
não é uma vítima das circunstâncias e do acaso. No último
capítulo ele dá continuidade a isso e diz; “Aprendi a estar
contente em qualquer estado em que me encontre” (VA).
Cristo me libertou da tirania do que quer que lhe aconteça.
E, naturalmente, a outra coisa acerca do amor e da vida é
que todos nós desejamos satisfação. Há certas exigências que
eu faço da vida, há certas coisas que procuro. Procuro paz e
alegria, procuro felicidade, e Cristo satisfaz Paulo comple­
tamente, em todos os aspectos. Eu tenho intelecto: Cristo o
satisfaz, diz Paulo; tenho sentimentos e desejos que requerem
satisfação: Cristo é meu tudo em tudo. Toda e qualquer
exigência que eu faço da vida é mais que plenamente satis­
feita em Cristo. E isso que ele quer dizer quando declara que
para ele o viver é Cristo. A ação, ou, se vocês preferirem, a
reação às coisas que acontecem, e todas as exigências da sua
natureza e da sua personalidade são plenamente satisfeitas e
preenchidas. Meu caro amigo, você pode dizer a mesma coisa?
Estou fortemente tentado a parar neste ponto e continuar a
questioná-lo. Esta, para mim, é a real essência da posição
cristã. O que faz de alguém um cristão é Cristo. Cristo é
sempre central, ele é tudo para mim. “O viver”, para o apóstolo
Paulo, era Cristo em toda essa plenitude de significação.
Perraita-me fazer outra pergunta: que foi que levou Paulo
a sentir isso? Penso que ele nos dá a resposta nas diversas
epístolas que escreveu. Estou inteiramente seguro de que a
primeira coisa foi a glória da Pessoa. Em Atos, capítulo 9,
lemos a narrativa da sua viagem para Damasco, respirando
ameaças e mortes. Paulo dizia dentro de si mesmo: é meu
dever fazer muitas coisas contrárias ao nome de Jesus de Nazaré.
Ele não O conhecia, mas então O viu, e, se me é permitido
empregar uma expressão como esta, Paulo se enamorou por
Ele, e nunca esqueceu Seu rosto ou a visão que teve. Assim

105
que O viu, todas as demais coisas recuaram. Todas as outras
coisas empalideceram, tornando-se pura insignificância, ao
lado do semblante de Cristo, a glória da pessoa santa e bendita.
Ah, se O virmos, ainda que com os olhos da fé, e por um só
segundo, esta visão nos levará necessariamente a esta paixão
consumidora! Paulo O tinha visto e, portanto, inevitavelmente
O amou. Tomé O viu, vocês certamente se lembram, mas
lembrem-se do que o nosso Senhor lhe disse: “Porque me
viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e
creram” (João 20:29). Talvez você diga a si mesmo: “Se eu tivesse
a visão que Paulo teve no caminho de Damasco, eu seria
capaz de dizer que O amo exatamente da mesma maneira,
mas eu jamais O vi”. Mas isso é uma estultice - “Ao qual, não
0 havendo visto, amais”, diz Pedro em 1 Pedro 1:8. Leia alguns
dos grandes hinos, leia as vidas dos santos, eles O amavam.
Eles O viram com os olhos da fé, e nós temos os testemunhos
que eles nos deixaram disso. A glória da pessoa de Jesus é o
maior motivo para o amor. A tragédia é que nos detemos
demais nos benefícios da vida cristã. Desejamos tanto receber
bênçãos que nos esquecemos daquele que no-las dá. Paulo
não agiu assim; ele viu que o seu bendito Senhor tinha de
fato dado Sua vida e tinha ido à cruz por seus pecados - “O
Filho de Deus, o qual me amou” - a mim! - “e se entregou a
si mesmo por mim” (Gálatas 2:20). Essa é a glória e a mara­
vilha da cruz. Cristo derramou todo o sangue da Sua vida
por um tão miserável pecador!
A seguir, Paulo chegou a ver e a saber que, à parte de
Cristo, vida verdadeira é coisa que não existe. No capítulo três
ele emprega aquela forte expressão, “e as considero como
esterco”, refugo, lixo indigno. Sem Cristo ninguém vive,
meramente existe. Como vimos, a vida destina-se a ser
plenamente global: o intelecto satisfeito, os sentimentos
satisfeitos, toda a vida envolvida, o homem integral tomado
por esta vida completa e arrematada em todos os pontos.

106
E, por último, ele sentia e dizia isso devido à nova visão
da vida que dessa forma obtivera. Agora fora dado a Paulo ver
que a vida neste mundo é realmente apenas uma preparação
para a grandiosa vida por vir. Isso não equivale a depreciar
este mundo, nem significa ceticismo ou misticismo. Se houve
alguém que teve vida ativa, esse alguém foi Paulo: não, ele
não morreu passivamente para o mundo nesse sentido, mas,
sim, para o pecado do mundo. Pois Paulo tinha chegado a
ver que o mundo se encontra num grande estado de conflito
entre o reino do céu e o mal. Ele sabia que um dia o Rei
voltaria, destroçaria as forças do mal e estabelecería Seu reino.
Pois bem, Paulo dizia, eu fui destinado a esse reino; vou estar
lá. Posso passar mais vinte anos neste mundo, mas penso na
glória que me espera, penso na vida vindoura, na vida real,
quando o Rei reinará e eu estarei com Ele! E isso também o
fazia viver por Cristo.
Termino então fazendo minha última pergunta: a vida
para nós é Cristo? Pergunto se podemos fazer aquela declara­
ção feita pelo Conde Zinzendorf, o líder morávio que ajudou
João Wesley tanto antes como depois da sua conversão. Ele
nunca teve a visão que Paulo teve no caminho de Damasco,
mas, para ele também. Cristo estava no centro. Podemos fazer
do seu moto o nosso moto? “Tenho uma só paixão: Ele, e
somente Ele.” “Para mim o viver é Cristo.” Oh, se todos nós
tivéssemos esta paixão! Acredito que poderiamos num só dia
transformar a nossa terra, acredito que nos viria um grande
avivamento, se tão-somente tivéssemos esta paixão. Ele, e
somente Ele! Demoremo-nos sobre Ele; meditemos nEle;
roguemos ao Espírito Santo que O revele para nós. Oremos
por esta bênção; passemos tempo com isto; deixemo-nos
absorver por esta verdade; deixemos que ela ocupe o lugar
central; façamos tudo o que pudermos para conhecer Cristo
melhor, pois conhecê-10 é amá-10.
Tenho uma só paixão - Ele, e somente Ele.

107
“Para habitar com ele para sempre”
''Porque para mim o viver é Cristo, e o morrer é ganho. Mas, se
0 viver na carne me der fruto da minha obra, não sei então o que
deva escolher. Mas de ambos os lados estou em aperto, tendo desejo
de partir, e estar com Cristo, porque isto é ainda muito melhor.
Mas julgo mais necessário, por amor de vós, ficar na came.
- Filipenses 1:21-24

Chegamos agora à segunda declaração do versículo vinte


e um: “o morrer é ganho”. Em nosso estudo anterior acom­
panhamos Paulo enquanto ele considerava a possibilidade
de permanecer vivo, e vimos que ele disse magnificamente
que para ele “o viver é Cristo”. Mas agora o observamos
quando ele encara outra possibilidade, a morte. E imedia­
tamente, antes de apresentar quaisquer razões, ele afirma
que para ele morrer é ganho. Assim aqui, novamente, ele
faz uma daquelas declarações desafiadoras e emocionantes
tão características das suas cartas.
Dessa forma o apóstolo nos coloca face a face com o que
eu chamaria a segunda grande interrogação da vida, inter­
rogação na qual toda pessoa que sabe pensar e refletir teria
que, necessariamente, ponderar constantemente. A primeira
pergunta que consideramos no estudo anterior é: que é a
vida? E 0 homem que não encara esse problema é, no
sentido filosófico da palavra, um louco. Mas agora chegamos
a esta segunda pergunta: que é a morte? Que é que ela vai
significar para nós? Qual a nossa atitude para com ela? Pois

108
bem, aqui de novo me sinto constrangido a dizer que
certamente não há nada que seja tão extraordinário acerca
dos homens e das mulheres como a maneira pela qual não
somente se evadem dessa pergunta, mas também não gostam
dela. Não há necessidade de procurar provar isso. Você
começa a falar com alguém sobre a morte, e imediatamente
você é acusado de morbidez. O argumento é que, de qualquer
forma, ela virá suficientemente logo, e você não precisa ir
ao encontro dela. Falar sobre a morte não é popular; como
igualmente é impopular pregar sobre esse tema - raramente
se faz isso nos dias atuais. A preocupação geral da vida parece
que é a de ajudar as pessoas a esquecerem o fato da morte e a
posporem sua ocorrência quanto possível. Naturalmente,
essa atitude é muito diferente da dos nossos antepassados
na fé, principalmente dos puritanos do século dezessete, com
a sua grande tradição; época em que, permitam que lhes
lembre, os reais alicerces da grandeza deste país foram lançados.
Aqueles homens pensavam perpetuamente na vida em
termos da morte, mas isso se tomou incomum e estranho. As
pessoas não gostam dessa forma de pensar e a consideram
doentia.
Entretanto, recusar-se a pensar na morte é uma atitude
que, além de ser ridícula e insensata, é completamente
incoerente com o que fazemos em muitos outros aspectos.
Nunca nos aborrecemos com o homem que nos persuade a
subscrevermos um plano ou convênio de saúde, ou a adqui­
rimos uma apólice de seguro de vida, o que se admite que é
da mais alta sabedoria. “Certamente”, um homem diz, “você
não vai correr estes riscos, sua casa pode ser incendiada.” Ou
outro diz: “Você não vê que é prudente fazer provisão para
essas possibilidades?” O grande motivo de orgulho para o
homem moderno é que ele faz provisão e recorre a coberturas
em todos os aspectos. E, todavia, quando chegamos ao fato da
morte, o mais certo, o mais vital e o mais importante fato e

109
evento de todos, ele inverte completamente o processo e até
se aborrece com quem insta com ele sobre o dever e a impor­
tância de encarar a morte e de fazer provisão quanto
z
a ela.
Bem, para mim é interessante essa atitude. E tão incoe­
rente que parece confirmar o ensino bíblico a respeito do
homem e da sua atitude para com a morte. Há só um modo
de explicar essa reação moderna ao assunto, qual seja: o
homem moderno, apesar da sua atitude de aparente tédio
para com a morte, está simplesmente na situação descrita em
Hebreus 2:15, onde nos é dito que os homens em pecado, “com
medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à servidão”.
Essa é a causa desse aborrecimento e dessa aversão por
encarar e considerar o assunto. Por isso os homens acham que
você os está insultando quando lhes pergunta se estão
preparados para morrer; se isto não fosse verdade, eles não
reagiríam tão fortemente.
Mas aqui temos uma declaração que imediatamente nos
faz ver que existe uma atitude inteiramente diferente para
com a morte. Paulo diz: estou encarando a morte. Eu penso
nela e digo a respeito dela: “o morrer é ganho”. Ora, de todas
as realizações do evangelho não há nenhuma, talvez, que seja
tão extraordinária como a maneira pela qual ele mudou inteira­
mente a atitude da humanidade para com a morte. Se vocês
considerarem a morte à parte do evangelho do Novo Testa­
mento, verão logo o que estou querendo dizer. Examinem
mesmo o Velho Testamento. Em sua maneira de ver a morte o
Velho Testamento sobe acima de qualquer filosofia ou ensino
pagão. Contudo, quando vocês o lêem, ainda encontram nele
um elemento de incerteza. As vezes consta nele uma esperança,
0 escritor de um Salmo parece subir a um nível mais elevado
e quase alcança o fato da ressurreição, mas com alguma
sombra e incerteza. Vocês encontram Salmos nos quais o
salmista até se queixa de que, quando morre alguém, morre
completamente - “No sepulcro quem te louvará?” (Salmo 6:5).

110
E somente com o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo
que vemos a nova atitude para com a questão da morte.
Como Paulo diz a Timóteo, foi Cristo que trouxe à luz a
vida e a incorrupção, ou a imortalidade, pelo evangelho.
No momento em que vocês vêm ao Novo Testamento, e
especialmente quando lêem os Evangelhos, encontram uma
perspectiva da morte inteiramente nova, algo novo e
estranho, que o mundo nunca havia conhecido. Naturalmente,
em última análise, deve-se esse fato à ressurreição; foi ali que
foi dada a prova final de que a morte seria vencida, e foi.
Ao ressuscitar dentre os mortos, o nosso Senhor deixou
perfeitamente claro para os Seus discípulos que Ele tinha
vencido a morte e o sepulcro. E foi graças a esse grande e
glorioso fato que Pedroe os demais apóstolos, e todos os
cristãos primitivos, tinham esta visão completamente nova da
morte, podiam enfrentá-la sorrindo e podiam dizer: “morrer
é ganho”.
E também, naturalmente, à luz da ressurreição, eles eram
movidos a lembrar-se de muitas promessas que tinham sido
feitas pessoalmente pelo nosso Senhor nos dias da Sua carne.
Eles se lembravam de que Ele dissera: “Não se turbe o vosso
coração; crede em Deus, crede também em mim. Na casa de
meu Pai há muitas moradas... Vou preparar-vos lugar. E, se
eu for, e vos preparar lugar, virei outra vez e vos levarei
para mim mesmo, para que onde eu estiver estejais vós
também” (João 14:1-3). E, à luz da ressurreição, essa vem a
ser a gloriosa possibilidade. Por conseguinte, foi devido ao
ensino do nosso Senhor, e especialmente devido à ressurreição,
que o apóstolo pôde escrever esta inflamada, desafiadora e
magnífica declaração para a igreja de Filipos.
Contudo, mais uma vez, quando examinamos isso, não
estamos meramente examinando uma declaração objetiva;
estamos realmente examinando a nós mesmos. Essa declara­
ção visa ser verdadeira, não somente para o apóstolo Paulo,

111
mas para todo cristão. Como já assinalei, Paulo nunca
reivindicou singularidade para si mesmo nesse aspecto; em
nossa experiência cristã, todos fomos destinados a ser iguais,
e, se Paulo pôde encarar a morte dessa maneira, eu também
devo poder fazê-lo. Mas, será que realmente posso? Estaria
eu encarando a morte dessa particular maneira? Penso que
devemos concordar que aqui também temos uma daquelas
profundas, completas e penetrantes análises da nossa profis­
são de fé cristã. Se lhes perguntassem qual é o teste mais
difícil e mais profundo - dizer, “para mim o viver é Cristo”,
ou dizer, “o morrer é ganho” - qual seria a sua resposta? Quanto
a mim, não hesito em dizer que o primeiro teste é o mais difícil.
Não acho que fazer a segunda declaração seja tão difícil de
fazer quanto a primeira, e lhes vou dizer por quê. O fato e a
questão da minha morte e do meu destino eterno estão,
graças a Deus, determinados por Cristo. Se eu creio em Jesus
de Nazaré como o Filho de Deus, em Sua morte no Calvário
e em Sua ressurreição, aconteça o que me acontecer “morrer
é ganho”. Sei que isso é certo, e que só pode ser certo. Mas
quando me pedem para dizer, “para mim o viver é Cristo”, já
não se trata tanto de algo que Ele faz por mim, como de
algo que eu tenho que fazer e, nesse sentido, viver é mais
difícil que morrer.
Talvez adiante pouco comparar as duas declarações, mas
eu penso que é importante. Poder dizer, “morrer é ganho”, é
resolver um teste e tanto! Pode não ser tão difícil e tão pene­
trante como 0 outro, e, todavia, como é vital! Noutras palavras,
0 teste vem desta maneira: será que, ao encarar o fato da morte,
eu sinto que vai ser um ganho para mim? Posso vê-la como o
apóstolo a via? Agora, para ajudar-nos neste auto-exame, per­
mitam-me lembrar-lhes algumas das maneiras pelas quais as
pessoas vêem a morte, para descobrirmos a qual destes grupos
pertencemos. Muitas vezes, quando chegamos a um teste como
este, parece que pertencemos a outras categorias que não a

112
cristã. Quais são, então, alguns dos conceitos característicos
sobre a morte que se vêem adotados no presente? Primeiro há
um medo ou um ódio da morte. A morte é o último inimigo,
aquele ser descarnado que vai chegando cada vez mais
perto, e ficamos horrorizados. Outra atitude é a de resignação.
Ela tem que vir, e eu tenho que encará-la, de modo que
não adianta eu me preocupar ou me aborrecer. Depois,
um terceiro conceito, que muitos tentaram popularizar nos
últimos cem anos, mais ou menos, é que devemos ter coragem,
devemos resistir a ela e recusar-nos a ficar apavorados; não
resignação, mas uma espécie de desafio.
E depois, finalmente, há a atitude cristã.
Penso que o melhor modo de expressar esses diferentes
conceitos é colocá-los na forma de três citações de poesias que
encontrei uma vez num livro, citações que me parece que
expõem muito bem a questão toda. Certamente elas expressam
0 medo, a coragem desafiadora e o conceito cristão sobre a
morte. Mas antes de fazer as citações deixem-me dar-lhes o
que eu considero a melhor descrição de resignação; é dada
por Walter Savage Landor.

Não lutei com ninguém nem com nada,


Pois nada nem ninguém merece minha luta;
A natureza amei, e, segundo, amei a arte;
Aqueci minhas mãos ante a chama da vida;
Ela se extingue, e pronto estou para partir.

Resignação. O fogo passa através da grelha; ele se extingue, e


estou pronto para partir.
Mas agora, tendo isso em mente, permitam-me lembrar-
-Ihes as outras três atitudes que aqui são colocadas juntas de
maneira muito interessante. Uma idéia que está por trás
destas três citações é da morte como sendo beber “a taça de
um cordial”. Havia antigamente o costume de que, quando

113
os cavaleiros saíam em suas explorações, bebiam da taça
de um estimulante, e essa idéia se reflete aqui, como também
no símbolo apocalíptico de Apocalipse, capítulo 6, que
representa a morte como um cavalo amarelo.
Houve outrora um homem chamado o Honorável John
Hay, que em certo período foi Secretário de Estado nos
Estados Unidos, e a seguir vemos como ele expressa o medo e
0 horror que a morte lhe causava.

Meu breve dia feliz é findo,


A longa e solitária noite vem,
E à minha porta o pálido corcel está pronto
Para levar-me para ignotas plagas.

Seus fortes relinchos e o bater dos cascos


Soam terríveis qual tonante temporal,
E vou ter que deixar o abrigo deste teto
E os cálidos e temos prazeres da vida?

Oh, os prazeres tão cálidos e temos.


Bons amigos, tão leais e fiéis,
Meus róseos filhos e minha esposa,
Que é tão doce beijar e um encanto ver.

Tão doce beijar e um encanto ver,


A noite vem, a luz esmaece,
E à minha porta o pálido corcel está pronto
Para levar-me para ignotas plagas,

Quando o General Alexander leu essa poesia, achou que


só expressava o medo da morte: uma estranha aventura,
terrificante e hórrida, mas inevitável. Ele não achou o poema
sufícientemente bom e quis expressar com uma lingua­
gem intrépida e resoluta o modo como ele queria enfrentar

114
a morte, e então escreveu estes versos à luz daquele primeiro
poema:

Mas 0 temporal, as trevas e o mistério


Só vão revigorar minha coragem;
Quem nos cenários da vida fez sua parte
Pode encarar seu fim com sereno coração.
Não trêmulas mãos pegarão as rédeas,
Não tive esta minha vida em vão;
Em ignotas plagas meu lugar buscarei,
A taça tragarei, e com ousadia vou encarar
A herança da humana raça.
Cujo direito de primogenitura é penetrar as trevas
E resolver o mistério da tumba.
Vou seguir alguns, e outros vou deixar atrás,
Dos quais minh’ alma jamais dividiría
O destino único de todos.
Para onde se move a grande procissão,
Que ali eu fique.

Bem, esses dois poemas caíram nas mãos de James Powis


Smith, ilustre ministro procedente do Estado da Virgínia,
homem que tinha combatido junto com Stonewall Jackson
e que tinha cavalgado com ele através de muitos vales da
sombra da morte. Ele achou que o temor da morte da
maneira como foi expresso pelo Honorável John Hay não
era suficientemente bom e que o General Alexander também
tinha falhado em sua tentativa relacionada com a coragem;
por isso, como cristão, escreveu o seguinte:

O pálido corcel ali postado, muito tempo esperar não vai;


A noite já chegou e devo cavalgar;
Mas não irei sozinho para ignotas plagas,
Meu Amigo, segurando minhas mãos, vai comigo.

115
Combatí o combate; acabei a carreira,
E agora vou ver de perto, face a face,
Aquele que há muito tempo me chamou para Si,
Mandou-me confiar e me ordenou segui-lO.
As alegrias da vida são Suas dádivas,
Meus amigos verei quando se dissiparem as nuvens,
E deixarei meu lar e todo o bem que nele se acumula
Para habitar com Ele para sempre.
Que me dá este Amigo? Sua taça de amor,
Até quando com Ele no alto eu repousar.
Vou montar e cavalgar, não mais vagando a esmo;
0 pálido corcel para o meu lar me leva.

Vocês vêem a diferença - não medo, não mera resignação, não


uma tentativa de mostrar ousadia e coragem, mas triunfo;
ele sorri ante a morte; está confiante, está certo e seguro. Ora,
essa é a expressão característica da atitude do cristão para
com a morte, e é isso que Paulo diz com uma só frase nesta
magnífica declaração - “o morrer é ganho”.
Bem, aqui Paulo não está falando tanto do ato de morrer
como do estado no qual o cristão se vê depois da morte; embora,
de certo modo, ele nos dá um indício de como morrer nos
versículos circundantes, e é por isso que devemos lê-los junto
com a frase em foco. No versículo 23 ele emprega o verbopamr.
As autoridades não estão muito de acordo quanto ao sentido
desse verbo. Existem duas traduções possíveis, mas ninguém
pode provar qual é realmente a certa; em certo sentido, ambas
dizem a mesma coisa. A primeira é a idéia de levantar âncora.
Lá está 0 navio no porto, a âncora é içada e o navio dá início
à viagem. Daí, a morte é sair desta terra, passar por um mar
estreito e entrar noutro porto, ou cruzar o mar estreito deste
mundo ao próximo e depois viver na terra de puras delícias.
Essa é a primeira opinião: partir significa embarcar, cruzar
0 mar e chegar a seu destino final.

116
o outro sentido atribuído a esse verbo é o de desmontar
a tendaj pôr fim ao acampamento e seguir viagem. Bem,
vocês podem escolher o que preferirem, porém, quanto a
mim, aceito sem hesitar o segundo, porque me parece ser esse
0 conceito caracteristicamente judaico da vida. E 2 Coríntios
5:1 Paulo escreve: “Porque sabemos que, se a nossa casa terrestre
deste tabernáculo se desfizer...”. A idéia é essa. Pedro também,
em sua Segunda Epístola, diz aos cristãos que, enquanto esti­
ver “neste tabernáculo” ou tenda, continuará a lembrá-los de
certas coisas, “sabendo que brevemente hei de deixar este
tabernáculo, como também nosso Senhor Jesus Cristo já mo
tem revelado” (2 Pedro 1:13,14). Esse era o conceito judaico
típico. A idéia era que este é um mundo temporário, no qual
vivemos em tendas; não há aqui edifícios permanentes. A
morte significa dar cabo do acampamento, desarmar a tenda
e mudar-se para a residência permanente que está à sua
espera. É assim que Paulo vê o ato da morte - uma simples
mudança deste mundo para o próximo.
Mas, lembrem-se, e certamente devemos notar, ao
tratarmos deste assunto, a bela declaração sobre o medo da
morte que o nosso Senhor nos fez em sua história de Lázaro
e Dives: “E aconteceu que o mendigo morreu, e foi levado
pelos anjos, para o seio de Abraão”. Que gloriosa declaração!
Meus amigos, vocês sabem que não entendemos estas coisas,
mas cremos nesta com base na autoridade do Filho de
Deus. Se eu e vocês estamos em Cristo, quando o último ato
chegar, a travessia final, seremos levados por anjos. Para o
cristão a morte é isso.

’ Como tenho anotado alhures, Dives, estriiamente, não é nome, é um adjetivo


latino (dives, iíis) que significa “rico”. Esse adjetivo ocorre na Vulgala. Na
literatura, desde o tempo de Chaucer (c. 1340-1400), como se pode ver em
suas obras Soiiipsnoiires Tale e Piers PIowhuih, Dives aparece popularmenie
como o nome do rico da parábola (Lc 16.19-31). Nicoll, em seu comentário
do Novo Testamento grego, cita Dives. Nota do tradutor.

117
Entretanto, como eu disse, Paulo estava realmente pre­
ocupado aqui, não com o ato, mas com o estado e condição
do cristão após a morte. “É ganho”, diz ele, e, por isso ele
acrescenta no versículo 23: “Mas de ambos os lados estou em
aperto, tendo desejo de partir, e estar com Cristo, porque
isto é ainda muito melhor”. E que mais ele poderia dizer
além disso?
Assim pois, a questão para nós é, por que é muito melhor
morrer e estar com Cristo? Permitam-me sugerir algumas
respostas: o autor da Epístola aos Hebreus nos ajuda dizendo
0 seguinte: “Porque, os que isto dizem, claramente mostram
que buscam uma pátria. E se, na verdade, se lembrassem
daquela donde haviam saído, teriam oportunidade de tornar.
Mas agora desejam uma melhor, isto é, a celestial...” (Hebreus
11:14-16). Pouco antes ele tinha dito que o que acima de tudo
buscavam era “a cidade que tem fundamentos”, não uma tenda
ou um acampamento, mas uma cidade inamovível, inabalável,
“da qual o artífice e construtor é Deus”. É “muito melhor”
porque é um lugar permanente. Para dizê-lo de forma ligeira­
mente diferente, significa ir para uma vida não transitória,
uma vida sem fim. De novo, o autor de Hebreus diz, no capítulo
✓ temos aqui cidade permanente,
13, versículo 14: “Porque não
mas buscamos a futura”. E uma condição perpétua, eterna,
imutável, uma vida permanente, que é muito melhor por
esta razão: não é contingente e transitória como a vida
presente.
A seguir, devo mencionar esta outra idéia, a idéia da
morte como um simples ir para casa. Paulo o expressa, com
efeito, do seguinte modo: “Se eu levasse em conta o meu anseio,
gostaria de dissolver este tabernáculo terreno e ir para casa,
para estar com Cristo”. Vocês conseguem pensar em alguma
coisa mais bela do que ir para casa para estar com Cristo?
Estou certo de que foi isso que Paulo quis dizer. Notem que
no fím do capítulo três de Filipenses as palavras da Versão

118
Autorizada (inglesa) são: “a nossa conversação (cidadania) esta
no céu”. Uma vez alguém descreveu os cristãos como “uma
colônia do céu ansiosa pela terra natal”. Fomos enviados
para cá para colonizarmos este particular lugar, mas real­
mente não somos daqui; lá está a terra natal, o lugar a que
pertencemos. E é isso que Paulo parece pensar. Sou um
estranho aqui, um peregrino, um viajante, o céu é o meu lar;
a morte significa ir para casa: é muito melhor.
Permitam-me sugerir a vocês outra razão por que morrer
é ganho. Em Cristo e em Sua ressurreição ficarei livre do
“corpo desta morte”, dos desejos, das cobiças, das coisas que
permanecem no velho homem e que são pecaminosas e
imperfeitas. Cristo me garante uma glorificação suprema,
quando ficarei inteiramente livre do pecado, não somente da
sua culpa e do seu poder, mas também da sua corrupção. Vem
o dia em que nenhum dos elementos do pecado restará em
nós, ficaremos completa e absolutamente livres disso tudo.
Que mais? Bem, entenderemos plena e definitivamente,
e entenderemos e veremos as coisas como realmente são. Em
1 Coríntios, capítulo 13, Paulo escreve: “Agora vemos por
espelho em enigma”; graças a Deus pelo pouco que vemos na
vida; a vida seria impossível se não víssemos esse tanto, mas,
mesmo em sua melhor condição, é ver somente “por espelho,
em enigma”, “obscuramente”, mas então veremos “face a face”.
Então veremos as coisas claramente, todo o desenrolar do
grande plano de salvação. Oh, ver Deus e a maravilha e a
glória dessa visão, conhecer e entender sem limites nem
empecilho!
Devemos, porém, concluir desta maneira: o que real­
mente faz com que a morte seja um ganho, diz Paulo, é que
significa estar com Cristo. Essa é a grande e positiva realidade;z
as outras coisas que mencionei, num sentido são negativas. E
isso que leva Paulo a dizer: se eu tivesse o poder de escolher,
escolhería a morte, por esta razão - para vê-10 como Ele é.

119
Expresso isso como fiz anteriormente: Paulo tinha tido um
vislumbre de Cristo no caminho de Damasco. Tinha visto o
semblante do Senhor e nunca mais o esquecera, e é isso que
morrer significava para Paulo - ir e vê-10 sempre, passar a
eternidade a contemplá-10. Estar com Cristo, contemplar
Seu rosto, isso é céu, isso é bem-aventurança eterna, esse era
0 anelo de Paulo e por esta bênção ele vivia; e depois gozar
perfeita comunhão com Ele, para sempre, sem nenhum
impedimento, sem nenhuma interferência, sem nenhuma
intromissão.
Graças a Deus pelas experiências que de tempos em tem­
pos nós temos neste mundo, quando sentimos que Cristo está
conosco e fala conosco, mas, lamentavelmente, esta não é uma
condição permanente. Há dias em que a alma parece estar
sem vida e que Cristo parece estar longe demais, e a comu­
nhão é rompida, mas, como diz o apóstolo Paulo, andamos
por fé e não por vista; apesar dos nossos sentimentos e
de todas as coisas que parecem militar contra nós, sim­
plesmente vamos em frente pela fé. Mas ali a comunhão
não é interrompida, nunca ocorre intromissão alguma, e
desfhitaremos Seu companheirismo para todo o sempre.
Bem, essas são algumas das coisas que certamente levam
Paulo a dizer que morrer é ganho. Permitam-me acrescentar
apenas uma espécie de nota de rodapé: as pessoas às vezes me
perguntam por que o Novo Testamento não nos fala mais
a respeito da vida além-túmulo. Tenho duas respostas para
oferecer: a primeira é a seguinte, e estou certo de que é correta:
não nos fala mais porque, num sentido, não temos capacidade
de ouvir mais. Tudo neste mundo é pecaminoso, até a nossa
linguagem. Portanto, não hesito em asseverar que, se o Novo
Testamento nos desse uma descrição detalhada do céu e do
que é estar com Cristo, a nossa linguagem faria uma falsa
representação disso. A nossa linguagem não é bastante pura, a
realidade do céu é tão maravilhosa que os vocabulários do

120
universo não são adequados para descrevê-la. É tão gloriosa
e maravilhosa que precisamos ser qualificados e aperfeiçoados,
antes de podermos receber a descrição ou de podermos
entendê-la. Estou certo de que essa é a primeira resposta.
A outra é que deliberadamente não nos é dito mais para
que pensemos no céu unicamente como Paulo pensava. Paulo
só o expôs de um modo. Não é só para livrar-nos das coisas
que mencioneij elas existem para o nosso aperfeiçoamento.
A única razão para querer ir ao céu é para poder estar com
Cristo, para vê-10. Por isso a pequena palavra e é tão impor­
tante - “para mim o viver é Cristo e o morrer é ganho”. O
único homem realmente feliz acerca da morte, o único que
pode dizer confíantemente, “morrer é ganho”, é o homem
que diz: “Para mim o viver é Cristo”. Certamente vocês se
lembram do profeta Balaão, que disse: “A minha alma
morra a morte dos justos” (Números 23:10). Mas ele se
esqueceu de que, se você quer morrer a morte dos justos,
tem que viver a vida dos justos. Se eu quero poder dizer
com certeza, “morrer é ganho”, devo poder dizer aqui e agora,
“para mim o viver é Cristo”. Foi isso que capacitou Paulo
a dizer, “o morrer é ganho”. Cristo era a paixão consumidora
da sua vida: conhecê-10, habitar com Ele, é o que vale, dizia
Paulo, isso é minha vida, e, portanto, morrer só pode ser um
ganho; ir para casa, ir estar com Cristo, é muito melhor.
Queira Deus, meus caros amigos, que, ao nos examinar­
mos à luz da vida e da morte, possamos juntar-nos ao
apóstolo em sua gloriosa afirmação.

121
9
Cidadãos do Céu
“Somente deveis portar-vos dignamente conforme o evangelho
de Cristo/'- Filipenses 1:27

Vemos aqui uma transição nesta carta, de uma descrição


do próprio Paulo e sua condição, para um apelo aos membros
da igreja de Filipos, mas, como acontece com todos estes
movimentos de pensamento, que são tão característicos dos
escritos deste grande apóstolo, não há uma ruptura repentina,
nenhuma diferença abrupta; tudo sempre se segue com uma
estranha e maravilhosa seqüência lógica. Mas aqui Paulo
passa a uma exortação prática, e é interessante observar
exatamente como ele faz isso.
Paulo, lembrem-se, está tranqüilizando os filipenses, que
estão preocupados e aflitos por ele estar na prisão. Ele mostra
que 0 que parecia tão ruim a princípio, veio a ser, sob a
bênção de Deus, algo maravilhoso. Seu aprisionamento en­
corajou a pregação de Cristo, e nisto ele se regozija. Depois
consideramos a sua filosofia da vida e da morte - “Para mim
0 viver é Cristo, e o morrer é ganho” - e vimos que ele real­
mente não sabe qual das duas coisas escolher. Se fosse
pressionado, sua preferência pessoal seria dizer que desejaria
partir e estar com Cristo, porque isso é “muito melhor”.
Contudo, ele sabe que pelo bem dos membros da igreja de
Filipos, é preferível permanecer, para ajudá-los a entender o
evangelho melhor ainda, e para dar maior vigor à sua alegria
e à sua fé: “Para que a vossa glória abunde por mim em

122
Cristo Jesus, pela minha nova ida a vós”.
E depois, à luz disso tudo, a próxima coisa, e num sentido
a coisa inevitável, que lhe cabe dizer é, com efeito, “Somente,
se me vou ou não, se vou ser executado ou se devo viver mais
uns tantos anos, seja qual for o meu futuro imediato, aconteça
comigo 0 que acontecer, aconteça o que acontecer com vocês,
somente uma coisa importa. Seja o que for que vocês lembrem
ou esqueçam, apeguem-se a isto, e vejam que isto sempre é
verdadeiro - “Somente deveis portar-vos dignamente con­
forme o evangelho de Cristo”.
Assim aqui chegamos à esfera dos aspectos práticos. Mas
nunca conseguiremos reiterar suficientemente que estas
exortações práticas dos escritos de Paulo sempre vêm depois
de um anúncio preliminar de doutrina. Ele nunca parte do
nível da conduta, há sempre uma introdução, uma saudação
preliminar. Ele insiste em começar pintando o cenário de
fundo, antes de chegar aos detalhes do seu quadro, e nunca faz
um apelo como este sem baseá-lo firme e solidamente na
verdade. E aqui temos algo muito característico deste após­
tolo. Ele não somente descreveu o seu conceito, mas também
sugeriu aos filipenses que esse deveria ser também o conceito
deles sobre a vida e a morte. Como temos visto, ele não alega
que só ele pode dizer: “Para mim o viver é Cristo, e o morrer
é ganho”; esse é o padrão normal do cristão, e deveria ser
uma verdade a respeito de todos nós. Depois, tendo dito isso,
ele continua: “Somente” - portanto, essa é a real força da
palavra, em vista disso tudo - “deveis portar-vos dignamente
conforme o evangelho de Cristo”. Tendo lhes dito qual deveria
ser o conceito deles sobre a vida e a morte, ele agora lhes diz
como se deve viver no ínterim. Como cristãos, não fomos
destinados a passar o nosso tempo contemplando estas vistas
exaltadas e gloriosas. Isso é essencial, e devemos fazê-lo, mas
não devemos parar aí. Compreendendo que, tendo feito isso,
agora vamos aplicá-lo na prática e na atividade diária.

123
Temos pois, aqui, uma perfeita ilustração do ensino do
Novo Testamento quanto à conduta, e da perspectiva geral do
Novo Testamento sobre o nosso comportamento neste mundo.
E sempre me parece que o aspecto vital desta questão é que
devemos entender bem o cenário e a ordem em que isso é
colocado. O interesse de Paulo continua sendo o evangelho.
Essa é a base do apelo que ele faz a estas pessoas, e, natural­
mente, sua razão para fazer isso é que ele sabe plenamente
bem que não há nada que recomende tanto o evangelho de
Jesus Cristo como a demonstração prática do viver cristão.
Isso era verdade nos primeiros dias, e continua sendo verdade
hoje. Não pode haver dúvida nenhuma de que a conduta e a
vida vivida por indivíduos cristãos foi grandemente respon­
sável pela propagação do cristianismo nos primeiros séculos.
Temos provas disso no livro de Atos. Ali somos informados
de que, em conseqüência de algumas perseguições, os cristãos
foram espalhados por toda parte, e de que por onde iam
espalhavam as boas novas do evangelho pelo testemunho de
suas vidas e de suas palavras. E até mesmo historiadores
seculares e pagãos dão eloqüente testemunho do fato de
que nada influenciou mais o mundo antigo do que a quali­
dade da vida vivida por estas pessoas. O que João Wesley
disse dos seus primeiros metodistas também pode ser dito
dos primeiros cristãos: eles não somente “morriam bem”,
mas também viviam bem; e outros, observando tudo isso,
ficavam impressionados e se sentiam constrangidos a fazer
perguntas. A fortitude dos cristãos primitivos frente à per­
seguição e à morte era algo que causava profunda impressão
naquele mundo antigo, e muitos perguntavam: “Que é que
essas pessoas têm? Que será que as capacita e viver e a
morrer dessa forma?” E, inquirindo assim, recebiam a res­
posta, e com isso o evangelho foi propagado.
Tem sido assim através dos séculos e, certamente, se isso
sempre foi verdade, é verdade na presente hora. Muitos nos
dizem constantemente que deixaram de interessar-se por
ensino abstrato, por mera teoria. Eles nos dizem que não têm
tempo para teologia e dogma e todas estas coisas, porém que
estão interessados na vida e em como viver. Eles estão
encarando problemas e aflições, e há no presente uma opor­
tunidade única para os cristãos propagarem e pregarem as
boas novas deste evangelho e de agir como testemunhas. E a
maneira mais eficaz de fazer isso é simplesmente viver a vida
cristã, porquanto é óbvioz que as outras idéias e filosofias estão
ruindo ao nosso redor. E mais que certo que os homens e as
mulheres são infelizes, e há quem queira fazer-nos acreditar
que na atualidade se vê que há um ansioso retomo à igreja e
ao exame do evangelho, por puro desespero. Muitos estão
perguntando se, afinal de contas, aquele velho evangelho não
tem algo para nos oferecer e se ele não é, talvez, a via de escape
dos nossos problemas. Bem, se isso é verdade, certamente não
há nada que seja mais importante do que apresentar o
evangelho de modo que ele seja atraente para outros e que
possamos ganhá-los, retirando-os da sua presente oposição; e
a maneira de fazer isso, acima de todas as outras, é obedecer
a esta exortação do apóstolo.
Vejamos então como ele aborda este ponto. Este é seu
método: primeiro, ele coloca a conduta em segundo lugar, em
relação à doutrina: a conduta é o fruto de certas coisas nas quais
a pessoa crê. Noutras palavras, o Novo Testamento nunca mostra
interesse pela conduta e pelo comportamento propriamente
ditos. Posso ir mais longe e dizer que o Novo Testamento não
faz apelo para boa conduta a ninguém senão a cristãos. O Novo
Testamento não está interessado na moralidade do mundo,
como tal. Ele nos diz clara e francamente que não se pode
esperar nada do mundo senão pecado, e que, em sua condição
decaída, ele é incapaz de qualquer outra coisa. Em Tito 3:3
Paulo nos diz que antes todos nós éramos assim: “Porque
também nós éramos noutro tempo insensatos, desobedientes,

125
extraviados, servindo a várias concupiscências e deleites,'
vivendo em malícia e inveja, odiosos, odiando-nos uns aos
outros”. Como diz o salmista, fomos formados em iniqüidade
(Salmo 51:5). Isso é verdade a respeito de toda pessoa natural.
Por conseguinte, de acordo com o evangelho não há nada
que seja tão fátuo e tão completamente fútil do que dirigir-
-nos a tais pessoas e dizer-lhes que vivam a vida cristã. Não
podem. A vida cristã é impossível para o incrédulo, e o Novo
Testamento proclama isso em toda parte. A verdade é que ele
só tem uma mensagem para tais pessoas - a mensagem do
arrependimento. O Novo Testamento aborda tais pessoas e
lhes mostra que elas estão sob a ira de Deus e as leva a ver-se
condenadas e numa condição totalmente desesperada. Depois
lhes oferece o evangelho de salvação e, quando elas crêem no
evangelho, indica-lhes a espécie de vida que elas devem viver.
Não adianta abordar um homem e dizer-lhe: “Somente deveis
portar-vos dignamente conforme o evangelho de Cristo”, a
não ser que esse homem creia no evangelho de Jesus Cristo;
por isso Paulo falou sobre a visão cristã da vida e da morte
antes de redigir essa exortação. Portanto, esse é o primeiro
princípio. A conduta e o comportamento cristãos só são
possíveis com base na doutrina cristã.
Permitam-me agora colocar isso na forma de algumas
outras negativas, a fim de esclarecer bem o que estou querendo
dizer. Não há nada que seja tão alheio ao ensino do Novo
Testamento, quanto ao apelo cristão para a ética e a conduta,
como um catálogo de proibições negativas. As vezes penso
que não há nada que cause tão grave dano ao evangelho como
as pessoas que dão a impressão de que a vida cristã é mera­
mente uma coleção de proibições, restrições e repressões. Essa
impressão tem sido causada muito freqüentemente, e nós
conhecemos pessoas que observaram a vida de certos cristãos
e então descreveram o cristianismo, e se referiram aos homens
e mulheres cristãos como gente que não faz certas coisas.

126
Bem, há um elemento de verdade nisso, porém, se dermos
a impressão de que somos meramente pessoas que nos refrea­
mos e não praticamos certos atos, estamos sendo falsos, traindo
esta exortação do apóstolo.
Permitam-me avançar um pouco mais e dizer que não é
meramente um código ou lei moral. O apelo para a ética e
para a conduta feito pelo Novo Testamento tem esse ponto
essencial de diferença dos Dez Mandamentos e das leis morais
dadas no Velho Testamento. Não me entendam mal. Não estou
dizendo que o Novo Testamento ab-rogou os Dez Manda­
mentos, mas que os expressa de modo diferente. Os Dez
Mandamentos eram uma lei, um código moral. Aos filhos
de Israel era dito: farás e não farás. Essa é a característica da
lei; não argumenta conosco, apenas nos diz o que fazer e o
que não fazer.
Mas o Novo Testamento coloca todo apelo moral no mais
alto plano. Se posso fazer uso de uma expressão, o apelo do
Novo Testamento para a conduta é “mais inteligente”. Toma
a conduta cristã inevitável, não meramente legisla e manda.
Ele faz uma série de declarações, estabelece a sua doutrina e
depois diz: “À luz disso...”. “Portanto...”; “Somente...”. Não
há nada, permitam salientar isto outra vez, que esteja mais
longe do método do Novo Testamento do que estar interessado
na conduta como algo vista em si e por si. O Novo Testa­
mento nunca isola a conduta e nunca se interessa por ela por
amor dela mesma. De acordo com o Novo Testamento, a
conduta é o resultado da vida, e nunca deve ser considerada
como algo que podemos separar da ação da vida.
Há, além disso, outra coisa que para mim é tremenda­
mente importante, especialmente num tempo como este. O
Novo Testamento em geral não nos dá uma lista detalhada de
regras e regulamentos. Antes, ele nos dá um grande princípio
e nos pede que o apliquemos e o vivamos. Pois bem, em certo
sentido é essa a diferença entre o Velho Testamento e o Novo.

127
“Contudo”, alguém talvez pergunte, “não há injunções
específicas estabelecidas nas Epístolas do Novo Testamento?
As Epístolas não dizem aos membros das igrejas que não
roubem, não furtem, e que evitem agir com inveja e ciúme?”
Sim, mas penso que é importante que observemos a maneira
pela qual o apóstolo faz isso. Ele nunca o faz na forma de
uma série de regras e regulamentos, que é o método do Velho
Testamento; o que o apóstolo faz é dar o seu princípio e
depois coloca toda a questão à luz da sua grande doutrina.
À luz disso tudo, ou, em vista disso tudo, diz ele, você não
consegue enxergar quão incompatível é você mentir, ou
roubar, ou assaltar. O que ele impõe é o princípio, e, tratando-
-nos como pessoas inteligentes, ele nos pede que captemos
isso e 0 ponhamos em prática.
E é precisamente isso que ele faz em nosso presente
texto. Volte eu a estar com vocês ou não, diz o apóstolo, seja
qual for o futuro imediato, esteja o que estiver à minha
frente, essa é a única coisa que eu peço que vocês recordem -
“Somente deveis portar-vos dignamente conforme o evangelho
de Cristo”. Pois bem, num sentido, todo o apelo do Novo
Testamento para a conduta e o comportamento está nessa
frase. E podemos expressá-lo assim: a nossa conduta deve ser
algo que seja digno do evangelho. Se eu quero saber o que
devo fazer como cristão, bem, não encaro uma lista de regras
e normas que possoz levar por onde ando e ticar uma após
outra. Nada disso! E antes um apelo geral para que eu seja
digno do evangelho, para que eu viva em conformidade com
0 evangelho, para que eu viva uma vida que seja condizente
com 0 evangelho.
Agora, em geral se concorda que a tradução da Versão
Autorizada (inglesa) não é a melhor, e, contudo, com relação
a esta palavra “becometh'^ (convém, que a vossa conduta seja
como convém ao evangelho), há algo que certamente nos
sugere uma verdade muito profunda. Costumava-se empregar

128
essa palavra com referência ao vestuário. No que se refere
ao vestuário, há coisas convenientes e coisas inconvenientes.
Há, por exemplo, coisas próprias para jovens e impróprias
para pessoas de mais idade. Esse é o tipo de idéia que o
apóstolo tem em mente. Há também coisas que não combinam
com outras, não são condizentes e, se quisermos vestir-nos
de maneira própria, devemos certificar-nos de que a nossa
roupa, além de ser boa e bonita, também se harmoniza com o
efeito geral. Num sentido é isso que o apóstolo quer dizer
aqui. Amados filipenses, diz ele àqueles crentes, vejam que
a conduta de vocês seja pertinente, seja condizente com o
caráter que vocês se arrogam como cristãos; que a sua conduta
combine com o que vocês alegam que são. Que se ajuste ao
designativo que vocês assumiram sobre vocês, que se conforme
ao tipo de pessoas que vocês dizem que são, e que as outras
pessoas pensam que vocês são.
Aí está, pois, o princípio geral. Todavia, o apóstolo divide
esse ponto em duas partes, e agora eu só quero dar-lhes os
respectivos títulos.
“Como, então, eu devo viver como cristão?”, alguém
pergunta. Bem, o apóstolo responde primeiramente dizendo
isto: portem-se como colonos, ou como cidadãos do céu.
Note-se que a tradução da Versão Autorizada, ''conversation'\
certamente não é a melhor aqui. Hoje empregamos essa pala­
vra no sentido de conversação ou conversa, e só, mas quando
a Versão Autorizada foi feita, no século dezessete, a palavra
significava conduta geral. Portanto, o apóstolo está realmente
dizendo: seja a vossa vida em geral e a vossa conduta como
convém ao evangelho de Jesus Cristo. Mas a palavra vai além
desse ponto, e aqui as autoridades estão de acordo em que,
talvez, a melhor maneira de traduzir a firase seria: “Portai-vos
dignamente como cidadãos do evangelho de Jesus Cristo”; ou,
alternativamente: “Desempenhai vossa parte como cidadãos
de maneira digna do evangelho de Jeus Cristo”; “Cumpri

129
vosso dever como cidadãos”. Não importa qual destas vocês
escolhem; certamente essa era a idéia que estava na mente do
apóstolo. Como cristãos temos que compreender que somos
cidadãos de um reino diferente. Suponho que era natural que
0 apóstolo usasse essa figura ao escrever aqui para os mem­
bros da igreja de Filipos. Filipos era uma colônia romana.
O centro e a sede do governo eram em Roma, a capital do
império. Mas o imperador tinha plantado um bom número
de colônias por todo aquele mundo antigo, e Filipos era
uma delas. Havia habitantes de Filipos que eram cidadãos
romanos, reivindicavam os privilégios de cidadãos romanos
e não estavam subordinados à lei local, mas à de Roma.
Em Atos, capítulo 16, lembrem-se, Paulo reivindica seu
direito de cidadão romano.
E assim ele faz esse apelo como uma base para a sua ética
quanto à conduta. Cristãos, diz ele, vocês devem considerar-se
neste mundo apenas como colonos. Vocês estão aqui, neste
mundo, é certo, mas são cidadãos do reino do céu, precisa­
mente como os romanos de Filipos vivem em Filipos mas
pertencem a Roma. O colono não pertence realmente à
colônia na qual vive, pertence à terra da qual saiu, essa é a
sua terra natal e o seu país. Ele apenas vive na colônia
por um tempo e está fazendo algumas coisas ali. Pois bem,
é assim que o apóstolo quer que vejamos toda a questão
da conduta neste mundo limitado pelo tempo. Devemos
considerar-nos como cidadãos de um reino celestial; não
pertencemos a este mundo e à sua ordem. A primeira coisa
que devemos lem-brar é que somos pessoas únicas, distintas
e separadas. Escrevendo a Tito, Paulo afirma que o nosso
Senhor morreu a fím de “purificar para si um povo seu
especial, zeloso de boas obras” (Tito 2:14). Purificar para Si,
trazer para Si, separar para Si; somos Seu povo especial.
Também escrevendo aos gálatas, Paulo se refere à morte
de Cristo como algo que nos libertou “do presente século mau”

130
(1:4). Essa idéia realmente percorre todo o Novo Testamento.
Ela pretende fazer-nos ver que tornar-nos cristãos significa
que fomos colocados numa posição separada e que agora
somos distintos do mundo que não crê em Cristo. Bem, essa
é seguramente a melhor definição da vida cristã. O cristão
não é um homem do mundo que apenas acrescenta algo à
sua vida ou que tenta tornar-se um pouco diferente. A
primeira coisa acerca dele, segundo esta doutrina, é que ele
é separado e essencialmente diferente. Ele é um colono numa
terra estranha, pertence a uma ordem particular e a uma
sociedade diferente. Na verdade, o cristão é um homem subor­
dinado a uma jurisdição inteiramente diferente.
Vejam agora o grande apelo que isso nos faz na questão
da conduta. Como cidadãos dos nossos países, certamente
sabemos alguma coisa sobre isso. Sabemos o que é ir para
outras terras, ter orgulho do nosso país e sentir que a honra
do nosso país talvez repouse sobre nós; e essa é a espécie de
apelo que o apóstolo está fazendo à igreja de Filipos. Por
certo vocês se lembram da grande palavra que foi enviada
por Lorde Nelson na manhã de Trafalgar^ - “A Inglaterra
espera que cada homem cumpra o seu dever”. Não se ocupou
tanto em dar regras e regulamentos detalhados como em
dizer, praticamente: “A única coisa que você tem que lembrar
durante o dia de hoje é que a Inglaterra espera algumas coisas
de você. Que isso guie e dirija você, e então você nunca
vacilará nem falhará, pois você vai fazer tudo pela honra do
seu país”. E é exatamente isso que o apóstolo diz nesta altura.
Seja a sua cidadania algo que o governe, o dirija, o controle.
Noutras palavras, devemos compreender, como cristãos,
que a honra da nossa terra natal está em nossas mãos, de modo

* Cabo situado na costa sul da Espanha e cenário da grande vitória naval da


frota inglesa, sob o comando de Lorde Nelson contra as frotas francesa
e espanhola, comandadas conjuntamente por Villeneuve, em 21 de
outubro de 1805. Nota do tradutor.

131
que, quando fazemos as perguntas, “Que devo fazer como
cristão? Como devo viver como cristão?”, não queiramos
receber uma lista de regras e regulamentos. O nome de Deus,
0 nome de Cristo, a reputação do próprio céu, por assim dizer,
estão em nossas mãos. Portanto, devemos viver uma vida
como cidadãos sempre conscientes desse fato. O apóstolo
Pedro diz isso ainda mais explicitamente. Em 1 Pedro 2:11,12
ele faz o mesmo apelo às pessoas para as quais escreveu:
“Amados, peço-vos, como a peregrinos e forasteiros, que vos
abstenbais das concupiscências carnais que combatem
contra a alma; tendo o vosso viver honesto entre os gentios;
para que, naquilo em que falam mal de vós, como de
malfeitores, glorifíquem a Deus no dia da visitação pelas
boas obras que em vós observem”.
z

E a mesma idéia, “peregrinos e forasteiros” - vocês não


pertencem a esta vida e a este mundo, agora vocês se tornaram
cristãos. Houve tempo em que vocês não eram povo de
Deus, mas é isso que são agora. Vocês eram uma espécie de
ralé, mas agora são cidadãos de um novo reino, e, portanto,
por causa disso, este mundo é um mundo estranho para
vocês. Vocês estão nele mas não são dele, pertencem àquele
outro domínio, e devem viver neste mundo como forasteiros
ou estrangeiros e peregrinos.
Portanto, diz Paulo nesta passagem, exerça a sua cidadania,
lembre-se de que pertence ao reino do céu. Não se considere
pertencente a este mundo, não se deixe governar pela
perspectiva deste mundo, não se deixe governar por seus gostos
e interesses. Claro está que essa é a coisa mais difícil de fazer
com os jornais, o rádio e os filmes, e com todas as coisas que
nos rodeiam. O mundo nos influencia por todos os lados, mas
eu e você fomos chamados para lembrar-nos cada dia das
nossas vidas disto: “Eu não pertenço a isto. Sou um estran­
geiro. Pertenço a outro reino, sou cidadão do reino de Deus”.
O segundo apelo de Paulo é que eu exerça a minha

132
cidadania de maneira digna do evangelho. “Somente deveis
portar-vos dignamente conforme o evangelho de Cristo.”
Significa que eu devo viver de um modo que faça com que
todos os que me virem saibam de quem é a doutrina que eu
sustento, e que doutrina é. E o evangelho que me habilita a
entender a pecaminosidade, a odiosidade e o mal do pecado.
Essa é a primeira diferença entre o cristão e o incrédulo. O
incrédulo não tem consciência de que há muita coisa errada
com ele. As vezes ele pode achar-se tolo quando faz algo que
lhe causa dor, mas não vê nada que seja essencialmente errado
na maneira de ser e de agir do mundo, e por essa razão gosta
do mundo. Entretanto, o homem que crê no evangelho vê que
z

“todo o mundo está no maligno” (1 João 5:19). E só o cristão


que vê que o mundo todo é desesperadamente ímpio, e que
está sob a ira e a condenação de Deus. Ele crê que Deus fez o
mundo perfeito, e por isso pergunta: “Por que o mundo está
como está?” E vê que a única resposta é que o pecado entrou
no mundo, e odeia essa coisa que arruinou a vida e o mundo, e
que insultou Deus - a gravidade do pecado. Como devo viver
neste mundo? Bem, primeiro devo fazê-lo compreendendo que
sou pecador, vendo a feiúra, a torpeza e a enormidade do pecado.
A próxima coisa em que os cristãos crêem é que, apesar
do pecado e da rebelião e indignidade do homem. Deus, com
seu amor grandioso e eterno, enviou Seu Filho unigênito a
este mundo. Eles crêem que o Filho veio e suportou muitís­
simo, na verdade até cambaleou com aquela cruz sobre Seus
santos ombros, foi cravado nela, sofreu agonias e morreu sob
opróbrio e ignomínia. E por que Ele fez tudo isso? A resposta
nos vem de mil e um lugares do Novo Testamento - foi para
que fôssemos perdoados, redimidos e resgatados. E não somente
para que fôssemos perdoados, mas também para que separasse
para Si “um povo especial (peculiar)”. Eu creio que Cristo
morreu para fazer expiação por meu pecado. Vejo que essa era
a única maneira de eu poder ser libertado da condenação na

133
qual este mundo está envolvido: o pecado é tão terrível que
nada senão a morte poderia libertar-me. Vejo que, para que
eu pudesse tomar-me cidadão do reino e filho de Deus, Ele
teve que sofrer. E, se eu creio nisso tudo, devo viver de tal
maneira que eu esteja proclamando essa verdade. Minha
conduta deve condizer com a doutrina da cruz e da expiação.
Que mais? O cristão crê também na doutrina do novo
nascimento e da nova natureza, doutrina que me diz que,
pelo poder de Deus, mediante o Espírito Santo, em Cristo
eu me tomei um “novo homem”; tenho uma nova vida; “as
coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo” (2 Coríntios
5:17). Se eu reivindico isso, devo então viver como alguém
que tem uma nova natureza, completamente diferente da outra,
com uma perspectiva diferente, gostos diferentes, diferentes
interesses e desejos. Portanto, “deveis portar-vos dignamente
conforme”, ou “como convém” à doutrina que prega a
regeneração e o novo nascimento.
Depois, os cristãos crêem também no poder e no ensino
do Espírito Santo. Paulo expressa este ponto nestes termos:
“Porque não me envergonho do evangelho de Cristo” - Por
quê? - “Pois é 0 poder de Deus para salvação” (Romanos 1:16).
Poder que não somente pode livrar-nos da culpa do pecado,
mas também pode livrar-nos do poder do pecado, de modo
que, como cristão, afirmo que tenho um poder que me
capacita a vencer o pecado, a viver acima dele e a desafiá-lo.
“Somente deveis portar-vos dignamente conforme”, ou “como
convém” a um cristão que prega uma doutrina como essa.
Pedro nos diz que nos são dadas todas a coisas que pertencem
à vida e à piedade (2 Pedro 1:3), e é nosso dever exemplificar
isso em nossas vidas.
Mas, por último, o evangelho me ensina sobre o reino
inamovível e inabalável. Como já vimos nestes estudos, o
evangelho mantém exposta diante de mim uma bendita
esperança. Ele me faz dizer: “Para mim o viver é Cristo, e o

134
morrer é ganho”. Isto significa estar com Ele, entrar naquele
reino; significa que há uma glória à minha espera. Se eu
digo que creio nisso tudo, como devo viver como cristão?
“Qualquer que nele tem esta esperança”, diz João, “purifica-se
a si mesmo, como também ele é puro” (1 João 3:3).
Pois bem, é dessa maneira que o Novo Testamento apela
para que vivamos a vida cristã. Ele não nos coloca sob regras
e regulamentos, nem meramente diz que devemos viver esta
espécie de vida porque é melhor do que qualquer outra.
Antes, ele vem com sua própria lógica e suas inevitáveis
razões. Você diz que é cristão, você diz que crê no evangelho
de Cristo, muito bem, tudo o que lhe peço é que viva a sua
vida como convém ao evangelho. Tudo o que eu digo é: se
você crê no fato do pecado, mostre que o odeia; se você crê na
morte de Cristo, demonstre isso. Se você crê no novo nasci­
mento e no poder do Espírito Santo, que fique evidente para
todos que isso é um fato; se você realmente diz que crê na
glória por vir, bem, será que você não acha simplesmente
razoável e lógico que fixe seu afeto lá e não aqui, e que
contemple as coisas de lá, e não as daqui? Acaso não deveria
empenhar-se com urgência por tal glória e fazer o máximo
para estar pronto para ela? Somente exercite a sua cidadania
de um modo que seja digno do evangelho de Cristo.
Meus diletos amigos, torno a dizer que temos uma
oportunidade única na presente hora. E essa realidade que
representamos num mundo tão amplamente incrédulo. A
maneira de convencer o mundo da veracidade do evangelho
é fazê-lo ver que ele faz diferença, que é um poder, que não
somos meros teóricos e filósofos, mas que pregamos o poder
de Deus. E provamos que há poder no evangelho de Cristo
mostrando o que somos no trabalho, nos negócios, na profis­
são que exercemos e no lar. Onde quer que estejamos, o que
quer que sejamos, somente façamos que a nossa cidadania
seja digna do evangelho de Jesus Cristo.

135
10
Firmes pela Verdade
^'Somente deveis portar-vos dignamente conforme o evangelho
de Cristo, para que, quer vá e vos veja, quer esteja ausente, ouça
acerca de vós que estais num mesmo espírito, combatendo pela fé do
evangelho. E em nada vos espanteis dos que resistem, o que para
eles, na verdade, é indício de perdição, mas para vós de salvação, e
isto de Deus. Porque a vós vos foi concedido, em relação a Cristo,
não somente crer nele, como também padecer por ele. Tendo o mesmo
combate que já em mim tendes visto e agora ouvis estar em mim/^
- Filipenses 1:27-30

Continuamos agora o nosso estudo da exortação prática


de Paulo nestes versículos. Quando consideramos a primeira
frase do versículo vinte e sete - “Somente deveis portar-vos
dignamente conforme o evangelho de Cristo” - vimos que
devemos compreender que somos cidadãos do reino do céu e
que toda a nossa conduta deve ser governada e determinada
pelo evangelho de Jesus Cristo. Mas o apóstolo não se contenta
em apenas deixar o assunto nesse pé, na forma de uma exortação
geral, e agora passa ao particular, como é seu costume. Sua
divisão da vida cristã é dupla. Vemos metade dela aqui, nesta
parte que estamos examinando agora, e a outra parte acha-se
nos primeiros versículos do próximo capítulo. A divisão dos
capítulos aqui é um tanto infeliz, porque tende a romper um
tema que claramente se destina a ser contínuo. O apóstolo trata
primeiramente do aspecto exterior da nossa vida cristã, e depois
do aspecto interior. De acordo com Paulo, como cristãos nesta

136
existência temos que travar guerra contra forças alheias a nós
e, também, temos uma luta contra forças que estão dentro de
nós. E aqui ele vai tratar desses dois aspectos.
Mas é muito importante que compreendamos a natureza
essencial desta subdivisão particular. O que o apóstolo diz é
verdade quanto à Igreja em geral, mas é igualmente verdade
quanto ao cristão individual. Aqui estamos nós, postos num
mundo como este, quer como indivíduos quer como um corpo
de cristãos, e, diz o apóstolo, inevitavelmente vamos ver que
temos que observar estas duas coisas; algumas acontecerão fora
e outras dentro. Pois bem, isso é verdade no que diz respeito à
Igreja, a qual tem que travar uma batalha contra os inimigos
de fora, e também tem que estar ciente de inimigos sutis que
estão dentro do corpo da própria Igreja. Ou vejam a questão
em termos do indivíduo cristão que de igual forma tem que
lutar contra forças que lhe são externas e, exatamente da mesma
maneira, tem que estar de sobreaviso quanto a estes inimigos
sutis que residem em seu ser interior. E aqui, tendo estabele­
cido o seu princípio geral que cobre tudo, o apóstolo passa a
tratar da vida do cristão neste duplo aspecto.
Tomar as duas coisas juntas ajuda-nos a ver algo da natu­
reza paradoxal da vida cristã. Na verdade, se a pessoa não fosse
cristã, não poderia escrever uma passagem como esta sem achar,
num sentido, que a coisa toda é contraditória porque, por um
lado se nos diz que sejamos muito fortes, e, contudo, por outro,
que sejamos humildes. Temos que lidar com estes dois aspectos
ao mesmo tempo; temos que adotar uma atitude ousada e
agressiva, e também esta admirável e estranha humildade.
Todavia, naturalmente, do ponto de vista cristão, não há a
mínima contradição entre ambas. Há toda a diferença do
mundo entre esta luta contra o inimigo exterior e a luta
contra o inimigo interior.
Assim, pois, esta é a posição com que o apóstolo nos
confronta, e neste ponto eu quero considerar só o primeiro

137
aspecto dessa luta. Estes versículos no fim do capítulo primeiro
dão-nos uma daquelas figuras extraordinárias que se vêem tão
freqüentemente nos escritos do apóstolo, figuras do cristão,
da Igreja e dos indivíduos dentro da Igreja, engajados numa
batalha. Paulo faz uso de bom número de diferentes figuras.
Há, por exemplo, uma no fim de Efésios, capítulo 6, onde a
exortação é para nos revestirmos “de toda a armadura de Deus”.
Ele encoraja os colossenses, exatamente da mesma maneira,
a se juntarem ombro a ombro. O apóstolo gostava muito de
extrair tais figuras do exército romano e de outros exércitos.
Aqui, em Filipenses, a figura é provavelmente tomada das
competições atléticas, uma imagem que o apóstolo usa
freqüentemente. No versículo TI ele nos diz que devemos
permanecer “firmes num só espírito, combatendo juntos, com
um só pensamento, pela fé do evangelho”. Noutra passagem
ele escreve sobre homens disputando uma corrida, ou lutando
como gladiadores numa competição. Naturalmente, a figura
propriamente dita não importa muito, o que é importante é
compreender a que o apóstolo nos está exortando.
Essa idéia é muito característica de todas as cartas de Paulo,
na verdade não se pode ler sequer uma Epístola do Novo
Testamento sem encontrar nela uma exortação a ter coragem,
vigor e fortitude; uma exortação a resistir e lutar. Ninguém
pode ler o Novo Testamento sem ficar com a impressão de que
a Igreja Cristã é uma espécie de exército, ou que está envolvida
numa grande competição, numa prova de resistência, numa
luta pela vitória sobre os inimigos; esta idéia de luta, de peleja,
de contenda é uma parte essencial do ensino geral. Seria fácil
apresentar-lhes citações de quase todas as Epístolas. Pensem,
por exemplo, em como Paulo fala sobre isso quando escreve
para a igreja de Corinto. É quase como o estalo de uma
chicotada: “Vigiai, estai firmes na fé: portai-vos varonilmente,
e fortalecei-vos” (ou, VA: “Vigiai, permanecei firmes na fé,
procedei como homens, sede fortes”). A isso segue-se: “Todas
as vossas coisas sejam feitas com caridade” (1 Coríntios
16:13,14). E a mesma idéia, e quando vocês percorrerem o
Novo Testamento e chegarem finalmente ao livro do Apoca­
lipse, verão a mesma coisa: esta exortação à firmeza.
Bem, certamente o que é importante para nós é que
compreendamos que o propósito não era que isto só fosse
verdade a respeito da Igreja Primitiva, mas também, de acordo
com o ensino do Novo Testamento, que seja, inevitavelmente,
uma parte integrante da vida cristã num mundo como o nosso
atualmente. O perigo que corremos é o de dizer que, natural­
mente, podemos entender que a Igreja Primitiva tinha
problemas. O cristianismo estava apenas começando, era uma
nova religião, e surgiu no mundo antigo em meio às religiões
de mistério e ao paganismo, causando bastante tumulto.
Causou escândalo ao judaísmo, e igualmente às diversas
religiões do Império Romano; mas, naturalmente, os tempos
mudaram. Essa é a nossa tendência, penso que todos nós temos
que concordar, e, todavia, o Novo Testamento nega essa forma
de entender e faz algumas declarações realmente notáveis e
explícitas. Disse o nosso Senhor que, assim como o mundo
O tinha odiado, assim também odiaria os Seus discípulos,
porque estes eram Seus seguidores. Ou, ainda, Paulo diz a
Timóteo: “E também todos os que piamente querem viver
em Cristo Jesus padecerão perseguições” (2 Timóteo 3:12) - é
o que vai acontecer, isso é firmado como uma regra universal,
e o Novo Testamento diz isso com toda essa força. O evangelho
é uma tão completa contradição de tudo quanto o mundo
defende que sua posição leva, necessariamente, a um conflito
com o mundo. Isso não pode deixar de acontecer, e esse é,
portanto, o inevitável resultado do verdadeiro viver cristão;
é forçoso que a Igreja experimente e suporte de um modo ou
de outro este conflito com o mundo, que é exterior.
Assim, pois, eu sugiro, mais uma vez, que um teste muito
bom da nossa posição geral é a nossa atitude para com uma

139
exortação como a que estamos analisando. Porventura isso não
nos parecería algo muito teórico e acadêmico, algo distante de
nós, apenas como uma coisa que no caso dos filipenses era
muito interessante considerarem, sendo que eles viveram há
uns dois mil anos, mas que, evidentemente, não é interessante
para nós, cristãos modernos? À luz do ensino do Novo Testa­
mento, isso vem a ser um teste profundo. Pois, se é certo dizer
que todos os que amam o nosso Senhor padecerão persegui­
ções de uma forma ou de outra, a questão é: sabemos algo dessas
perseguições? Acontecem conosco? O Novo Testamento ensina
que a Igreja Cristã, e os cristãos individuais, estão num mundo
que é oposto ao cristianismo, um mundo que é seu inimigo e
que peleja contra ele, e os cristãos têm o dever de manter seu
terreno, sua posição, e de permanecer firmes: “...para que, quer
vá e vos veja, quer esteja ausente, ouça acerca de vós que estais
(firmes) num mesmo espírito, combatendo juntamente com
0 mesmo ânimo pela fé do evangelho. E em nada vos espanteis
dos que resistem, o que para eles, na verdade, é indício de
perdição, mas para vós de salvação, e isto de Deus. Porque a
vós vos foi concedido, em relação a Cristo, não somente crer
nele, como também padecer por ele. Tendo o mesmo combate
que já em mim tendes visto e agora ouvis estar em mim”.
Consideremos, então, esta magnífica exortação, antes de
tudo em geral. Que é que ele quer dizer quando nos exorta a
manter a nossa posição, resistir e ficar firmes? Em termos gerais,
significa que devemos compreender que há uma luta, e que
devemos compreender também um pouco da natureza dessa
luta. Pois bem, estou pronto a afirmar que, num sentido, esta
mensagem nunca foi mais verdadeira do que no presente
momento. E eu duvido, mas bem pode ser que uma das maio­
res tragédias do mundo moderno sejaz que, em geral, a Igreja
não se dá conta da natureza da luta. E um combate que vem
sendo travado desde quando a Igreja foi fundada, e continua.
Não estou aqui para dedicar-me a fazer maus presságios; não

140
vou ser tolo a ponto de tentar prever o futuro, ou profetizar.
Mas desejo afirmar que bem podem vir dias em que vamos
conhecer de fato o que lemos no Novo Testamento num sentido
literal e num sentido físico. Pergunto-me se conhecemos
verdadeiramente a natureza do conflito que de fato está em
andamento.
Permitam-me lembrar-lhes algumas implicações desse
fato. Pensem nos ataques intelectuais ou filosóficos, ou nos
ataques científicos, assim chamados, feitos contra a Igreja,
contra o evangelho e contra toda esta visão da vida, de Deus e
da salvação. Pergunto-me se já houve algum ataque como
esses contra a Igreja e a verdade que ela defende, desde os
seus primeiros dias. Tentem considerar apenas os ataques e as
críticas que têm sido feitas nos últimos cem anos (a contar
de 1948). E até mesmo todos os domingos acontece esse ataque,
quando homens que supostamente são defensores do evan­
gelho o criticam e tentam solapar a sua autoridade. Tem sido
assim durante o século passado, pouco mais pouco menos - a
chamada Alta Crítica das Escrituras, movida por aquelas auto­
ridades que dizem que podem mostrar-nos o que é verdade
e o que não é; que dividem a Bíblia em seções e dizem:
“Creia nisto, e não creia naquilo”; que alegam que, se você
não é versado em grego e hebraico, não sabe o que é verdade,
e tem que se assentar aos pés dessas grandes autoridades e
ouvi-las, sendo que elas, apesar de nunca serem unânimes
entre si, estão minando os próprios fundamentos da verdade.
Há depois o ataque científico, assim chamado. Nunca esse
ataque foi mais feroz do que hoje; é feito há anos, e continua.
Não quero cansar vocês indevidamente com estas coisas,
mas devo tentar pintar um quadro completo.
A seguir, pensem no ataque que vem da posição do
mundanismo; essa é a história geral da vida humana; “a
concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a
soberba da vida”, e todas as coisas das quais o apóstolo

141
João feia em sua Primeira Epístola.
Tem havido também um ataque muito sutil, que ainda
continua, que consiste na maneira como pessoas polidas
zombam do evangelho, e dizem: “Isso tudo está bem até certo
ponto”. Considerem a maneira pela qual algumas das dou­
trinas centrais do Novo Testamento têm sido atacadas por esses
críticos. “Ah, sim”, eles dizem, “tudo bem, pregar a religião
em geral, mas você não deve falar em conversão e em novo
nascimento, em regeneração e em coisas como essas - isso é
quase indecente!” Esse é um ataque sutil que golpeia o alicerce
e os elementos essenciais de todo o evangelho e que o descarta.
Há depois a perseguição em suas várias formas. Acaso a
perseguição não é tão ativa e numerosa hoje como sempre foi?
Que acontece quando um homem é convertido? Que acontece
quando ele chega a seu escritório, ou, às vezes, a seu próprio
lar, ou talvez, a sua escola ou ao exercício da sua profissão? Há
aquela perseguição, o ostracismo, os olhares e as espiadelas
quando ele está em companhia deles, a insinuação de que ele
perdeu o controle da sua razão; às vezes, de fato, a perseguição
pode afetar até a subsistência da pessoa, ameaçando a sua
esperada promoção. Essas coisas estão acontecendo no mundo
moderno; há uma conspiração contra o evangelho. E depois
pensem na força do medo e na força do ridículo. Pensem em
como os homens e as mulheres em geral tentam até ame­
drontar-nos e levar-nos a romper a nossa lealdade a Cristo,
como estavam fazendo no caso dos filipenses, como aqui
Paulo nos leva a recordar.
Assim, pois, este grande conflito prossegue. A perspec­
tiva e a atitude geral do mundo, e a assim chamada erudição
do mundo, confirmam isso. Existem os argumentos intelec­
tuais, filosóficos e científicos - vocês estão familiarizados com
as discussões que se ouvem pelo rádio - esses ataques contra a
fé estão sendo feitos de maneira medonha e sutil. Portanto, a
primeira coisa que temos que fazer é aperceber-nos de que

142
esse ataque está acontecendo, temos que estar despertos e
em estado de alerta face à situação.
Mas isso nos leva ao segundo ponto, sob este título geral.
Conforme Paulo, não somente devemos compreender que a
luta continua, mas também devemos tomá-la nossa luta. Ele
expõe a questão desta maneira: “combatendo juntamente com
o mesmo ânimo pela fé do evangelho”. Paulo não diz: “Olhem
aqui, filipenses, desfrutem das suas reuniões, eu lutarei por
vocês. Deixem comigo, eu lutarei e contenderei pela fé, e
vocês desfrutem sua vida na igreja”. Nada disso! Ele exorta
cada um a tornar sua essa luta, e não devemos contender
apenas com fria aquiescência à fé cristã e à sua gloriosa
mensagem. Não, devemos exercitar-nos, levantar-nos e entrar
na luta. Lembrem-se da espécie de corrida na qual essas
pessoas estão engajadas - corrida de revezamento, diriamos -
um homem corria levando uma tocha e, quando ele cansava,
outro prosseguia em seu lugar levando a tocha e lutando
com verdadeira angústia, com todo o seu vigor e com a maior
velocidade. E eu e vocês somos chamados a uma competição
como essa na atualidade.
Permitam-me colocar isso na forma de perguntas. Penso
que em geral sabemos da importância que essa luta, que está
sendo travada, tem para nós. Sabemos como o mundo escar­
nece disso tudo e o descarta; sabemos desses vários ataques
que estão sendo feitos, e, portanto, as perguntas que nos ocor­
rem são: que é que vamos fazer sobre isso? Teríamos feito algo
a respeito? Porventura nos contentamos em sentar-nos, ouvir
e deixar que as pessoas blasfemem do nome de Cristo e de
Deus, e a seu modo sutil e jocoso despejem seu escárnio e seu
sarcasmo? Ficamos conformados? Rendemo-nos diante disso
tudo? Ficamos mais preocupados com a nossa reputação
pessoal do que com a reputação de Cristo e do evangelho?
Esse é o tipo de coisa que o apóstolo quer dizer com a ex­
pressão combater pela fé. Significa que não permitimos

143
estas coisas e que defendemos o evangelho, repelimos esses
ataques e resistimos como homens por esta gloriosa fé que
nos foi transmitida.
Dou mais um passo - de acordo com o apóstolo, devemos
estar prontos a sofrer qualquer coisa pelo evangelho. Vocês
sabem que os cristãos tinham que estar dispostos a isso nos
primeiros tempos? Essa era a prova que muitos daqueles
cristãos primitivos tinham que enfrentar. Eram levados aos
tribunais e lhes pediam que dissessem que César era Senhor,
e lhes diziam que, se não fizessem isso, seriam mortos. Essa
era a prova, e aqueles que criam que só Cristo é Senhor não
queriam dizer essas palavras. Sabiam que, se recusassem
dizê-las, seriam mortos, mas pronta e alegremente se recusavam
e iam para a morte. E Paulo nos diz que, se havemos de ser
cristãos dignos do nome, e se alguma vez tivermos que escolher,
devemos permanecer firmes pela causa do evangelho. Se a
escolha for entre a nossa lealdade a Cristo e ao nosso trabalho,
ou a nossa posição, ou a nosso emprego, ou a qualquer outra
coisa, não deve haver nenhuma hesitação. Se é questão de
resistir e ir para a prisão, vou para a prisão; se é questão de
resistir por todos os lados pelo evangelho, e de lhe ser leal, ou
até de dar a minha própria vida, devo morrer alegremente
por Cristo. Estas pessoas fizeram isso e, fazendo isso, venceram
0 mundo. Nossos pais agiram assim através dos séculos;
graças a Deus pelos reformadores, pelos puritanos e por
outros. E é a essa sucessão que pertencemos.
Esse é, pois, o chamado geral. Agora devemos examinar
abreviadamente os aspectos particulares disto. Paulo nos diz
que permaneçamos firmes e então, agora, preciso saber como
devo fazer isso. Permitam-me dar-lhes alguns títulos. A
primeira coisa que eu devo fazer, se devo permanecer neste
caminho, é compreender que existe uma coisa chamada
fé. “Quer vá e vos veja, quer esteja ausente, ouça acerca de
vós que estais (firmes) num mesmo espírito, combatendo

144
juntamente com o mesmo ânimo pela fé do evangelho.” Bem,
isso requer demonstração. Não poderei lutar zelosamente
pela fé, se não souber que existe tal coisa. Paulo não diz que
devemos combater firmes por uma fé, e sim pela fé do
evangelho. Existem aqueles que querem fazer-nos acreditar
que a religião não é algo que se ensina, mas que é algo que
se adquire. Mas a fé cristã é ensinada; é um corpo de
doutrina, uma substância na qual crer. E um espírito (uma
disposição) que entra no homem - a fé - uma coisa pela qual
eu posso contender, é algo que eu posso defender.
Ou, para dizê-lo de outro modo, há muitos que pensam
que ser cristão significa empreender uma grande busca da
verdade. Ou, ainda, alguns pensam que a fé cristã é apenas
uma entre muitas religiões. São muitos os que hoje falam dessa
maneira. Eles dizem: “Sabem, o problema com vocês, cristãos,
é que são muito estreitos; vocês dizem que sua fé é certa e que
todas as outras são erradas”. Muitos dizem: “Acredito que se
pode tirar o que é bom de todas as religiões, e acredito que se
pode extrair o que há de melhor no hinduísmo, no budismo,
no confucionismo e no maometismo, e, também, da fé cristã
e das vagas seitas como a Ciência Cristã, e depois juntar tudo
e dizer: “Pois bem, isto deve ser a Verdade”. Entretanto, não é
isso que o apóstolo diz; devemos contender zelosamente
pela fé, pelo depósito entesourado nestes documentos. Algo
como a fé é coisa que existe, e, se não nos dermos conta
disso, como poderemos permanecer firmes nela e defendê-la?
Isso me leva ao segundo ponto. Devo saber qual é
exatamente a natureza da verdade ensinada. Não deve haver
nenhuma dúvida sobre isso, e existe hoje um corpo de doutrina
que tem sido acordado pelos cristãos através dos séculos como
constituindo a fé cristã. Que é ele? Este não é o lugar para
uma definição compreensiva, mas há algumas verdades que
eu diria que formam o mínimo irredutível do que cremos. Eu
creio na deidade única do Senhor Jesus Cristo; se não cresse

145
nisso, não seria cristão. Poderia ser um bom homem, poderia
ter um maravilhoso espírito natural em mim, porém não seria
cristão. A deidade única de Cristo, o miraculoso e o sobrena­
tural, a expiação, a morte redentora de Cristo, a ressurreição
do Seu corpo no terceiro dia, a Sua ascensão ao céu, a personali­
dade do Espírito Santo, Sua descida no dia de Pentecoste: estes
artigos de fé constituem o mínimo. Sugiro-lhes que a exortação
do apóstolo é que eu contenda por essa fé, que me mantenha
firme por ela, que a defenda e que repila os ataques feitos contra
ela; e a exortação é também que eu não permita que ninguém
subtraia algo da glória do meu Senhor em nenhum sentido,
nem da maravilha da Sua obra redentora perfeita e consumada.
Devo lutar por esta verdade e estar seguro dela.
Outra boa maneira, penso eu, de lutar pela verdade é
examinar as alternativas, e pode ser que nós, como cristãos,
estejamos sendo um pouco negligentes neste aspecto. Ouçam
alguns dos cavalheiros que falam em termos científicos e que
se opõem à fé cristã; que dizem eles? Eles parecem inteligentes,
mas quando vocês perguntam a qualquer deles: “Em que você
crê? Qual é o seu conceito sobre a vida e a moralidade? Que
espécie de crença você delinearia para nós?” - e então exami­
nam 0 que tais cavalheiros dizem, vêem que todos eles são os
mais profundos pessimistas. Eles realmente não têm nada para
nos dizer, exceto muita crítica negativa; não têm nenhuma
filosofia positiva para nos oferecer. Examinem a vida de
alguns dos chamados intelectuais, examinem sua moralidade.
Quão fácil é falar inteligentemente, mas é a vida que conta.
Quando você observa aqueles que se opõem à fé cristã, isso
os fortalece e os capacita a resistir.
Depois, finalmente, sempre devemos recusar-nos a per­
mitir que os nossos adversários nos intimidem. Eles tentam
fazê-lo de várias maneiras, mas aqui, nas Escrituras, nos
apegamos justamente às palavras proferidas pelo nosso
Senhor, quando Ele disse: “Não temais os que matam o corpo.

146
e depois não têm mais que fazer. Mas eu vos mostrarei a
quem deveis temer; temei aquele que, depois de matar, tem
poder para lançar no inferno; sim, vos digo, a esse temei”
(Lucas 12:4,5). Que coisa maravilhosa é lembrar-nos disso!
Não sabemos o que nos espera, mas isto sabemos com certeza
- e para mim isso é maravilhoso - o homem pode destruir o
meu corpo, mas a minha alma está fora do seu alcance. Com
toda a sua energia atômica e tudo mais, ele não pode tocar
minha alma, faça o que fizer; há em mim algo imperecível
e que está fora do alcance de qualquer dano. “Em nada vos
espanteis dos que resistem”, diz Paulo aos filipenses; há um
limite para o que eles podem fazer. Eles podem derramar
seu veneno, seu sarcasmo e seu escárnio, podem arruinar sua
vida e sua carreira, talvez, mas deixam você sem nenhum
ferimento ou dano em tudo quanto é vital e eterno.
Temos aí, pois, uma breve indicação de como podemos
permanecer firmes. A próxima pergunta é: por que devemos
resistir? E a resposta é que devemos fazê-lo por causa da
natureza da verdade. Haveria alguma outra coisa que mereça
a nossa resistência? Observem o zelo e o entusiasmo dos
políticos quando lutam por seu partido, e vejam como eles
trabalham e argumentam com as pessoas; mas, que é que eles
têm para oferecer e pelo que lutar, em comparação com a
verdade do evangelho? Que gloriosa verdade! A verdade que
mostra que Deus deu Seu próprio filho. Seu Filho unigênito,
e que nEle há uma grande redenção possível a todos, uma
redenção suficiente para este mundo, para o próximo e para
toda a eternidade. Que verdade extraordinária e gloriosa! Que
alimento para a mente, que estímulo para o coração, que
magnífica verdade! Vocês precisariam receber alguma outra
exortação? A verdade mesma, seu próprio caráter e natureza,
é digna de que permaneçamos na defensiva.
Mas, além disso, devemos permanecer firmes nela
por amor de Cristo, por Sua honra e por Sua glória - sim,

147
permanecer firmes até mesmo por amor do pobre mundo
que nos agride. É isso que eu e vocês somos chamados para
fazer. O mundo está atacando a verdade, e, todavia, esta é a
única coisa que pode salvar os homens do mundo, e, até por
amor deles devemos permanecer firmes pela verdade do
evangelho, porque nenhuma outra coisa será suficiente para
a situação deles.
Mas devemos resistir e permanecer firmes pela verdade
por amor de nós mesmos. Já fiz uso da comparação com um
exército, e, se vocês não têm outra razão pela qual permanecer
firmes pela verdade, permitam que eu lhes recomende isto:
haverá um dia em que o Comandante em Chefe vai passar
em revista as tropas, e nós vamos estar lá, nas fileiras. Eu vejo
0 Filho de Deus andando para cima e para baixo, percor­
rendo as fileiras, examinando cada um de nós, um por um,
na grande e final revista, e, se você não quiser sentir-se um
canalha, se não quiser ficar terrivelmente envergonhado na
manhã daquela grande revista, seja homem agora, dê duro,
agüente firme, nunca permita que venha um ataque que
você não repila. Permaneça firme pela verdade e pela fé,
até mesmo por amor de você.
E, finalmente, deixem-me dar-lhes uma palavra de
encorajamento. Paulo diz aos filipenses: eu os exorto a não
fazerem nada senão o que eu mesmo faço - “tendo o mesmo
combate que já em mim tendes visto”, quando estive convosco,
“e agora ouvis estar em mim”. Na prisão, em Roma. Vocês
sabem que estamos numa sucessão maravilhosa? Se há alguém
que esteja enfrentando este combate por ser cristão, se há
alguém que está sendo perseguido ou mal compreendido,
permita-me lembrá-lo de que você está simplesmente sendo
submetido àquilo a que o próprio Paulo foi submetido - você
pertence a uma grande sucessão. Permita-me subir um pouco
mais e perguntar: você sabe que quando está sofrendo algo
assim por ser cristão, você está simplesmente suportando o

148
que Cristo teve que suportar? O mundo O odiou e O cnicif-
cou. Você sabe que está nessa grande companhia: Paulo, os
apóstolos, os mártires e o povo de Deus em toda parte, e, á
frente deles todos, o próprio Senhor Jesus Cristo? Que honra!
Mas há uma coisa mais maravilhosa ainda. Paulo diz: “...em
nada vos espanteis dos que resistem, o que para eles, na verdade,
é indício de perdição, mas para vós de salvação, e isto de Deus”.
Quer dizer que se você está sendo perseguido e agredido por
causa de Cristo, é prova de que você é cristão. Isso só acontece
com cristãos, e o simples fato de que você está sendo agredido,
para você é prova de salvação. Mas deixe que eu suba mais,
indo ao topo do monte. Haveria coisa mais maravilhosa que
esta: ‘‘A vós vos foi concedido, em relação a Cristo, não somente
crer nele, como também padecer por ele”? Permita-me inter­
pretar essas palavras. Significam que o sofrimento por causa
de Cristo é uma dádiva e uma bênção especial dada por
Cristo aos Seus. Você tinha pensado nisso? Quando você estiver
sofrendo por Cristo, deve voltar-se para Ele e dizer: “Obrigado,
Senhor, graças te dou por me teres considerado digno de
receber esta suprema bênção”. Você sabe, somos informados
a respeito daqueles cristãos primitivos em geral concordavam
entre si que a suprema bênção era a do martírio; e era por
isso que, quando eram lançados aos leões na arena, sempre
davam graças a Deus.✓ Eles diziam: “Afinal temos isto, a dádiva
e bênção suprema”. E dada; assim como a fé é um dom, assim
o sofrimento por causa de Cristo é igualmente um dom. Por
isso digo agora: vocês são abençoados, se estão sofrendo por
causa de Cristo; com isso Ele lhes dá a certeza de que vocês
pertencem a Ele. Como Tiago diz em sua Epístola: “Meus
irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias
provações” (Tiago 1:2, ARA). Queira Deus conceder-nos este
espírito, o espírito dos cristãos primitivos, dos mártires e dos
santos. Queira Deus conceder-nos que resistamos e lutemos
com todas as nossas forças pela fé do evangelho de Cristo.

149
11
o único Caminho da Paz
'Portanto, se há algum conforto em Cristo, se alguma consolação
no Espírito, se alguns entranháveis afetos e compaixões, completai
0 meu gozo,para que sintais o mesmo, tendo o mesmo amor, o
mesmo ânimo, sentindo uma mesma coisa. Nada façais por
contenda ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere
os outros superiores a si mesmo, Não atente cada um para o que é
propriamente seu mas cada qual também para o que é dos outros.
De modo que haja em vós o mesmo sentimento que houve também
em Cristo Jesus,'' - Filipenses 2:1-5

E essencial que tomemos estes versículos juntos porque,
obviamente, percorre todos eles um pensamento comum. Aqui
0 apóstolo está fazendo o seu grande apelo por unidade na
igreja de Filipos, e, seguramente, há acordo geral em que
estes versículos contêm, talvez, a declaração clássica do Novo
Testamento sobre o tema geral da concórdia e paz.
Paulo assegurou aos filipenses que nenhuma condição
externa pode privá-lo da sua alegria. “Portanto”, diz ele
praticamente aos membros da igreja, “se vocês realmente estão
desejosos de que eu continue feliz, e que na verdade a minha
alegria seja completa e transbordante, cabe a vocês providen­
ciarem para que isso aconteça. Quanto a mim, está tudo
bem; a única coisa que pode melhorar esta situação é que
tudo esteja bem com vocês.” E dessa forma ele introduz este
grande e importante tema da unidade entre os cristãos.
Bem, eu chamo a atenção de vocês para este assunto

150
porque me parece que este é um dos problemas mais urgentes
que se nos deparam na presente hora. Ao considerarmos a
situação em que nos encontramos, não somente como cristãos,
mas também como cidadãos do mundo, quando contemplamos
o trágico estado do mundo, certamente o que nos preocupa
acima de tudo é que haja um estado de paz, concórdia e
felicidade entre os homens. Mas, infelizmente, estamos vendo
uma situação que é a real antítese disso. E certo encarar os
fatos como eles são e, quando fazemos isso, vemos um mundo
feito em pedaços. Apesar das duas guerras mundiais num
quarto de século, apesar até mesmo da nossa esperança de que
essas guerras iam pôr fim à guerra, e iam unir a humanidade
como uma grande família, vemo-nos num estado de aguda
incerteza, com suspeita por toda parte, entre nação e nação.
Vemos a ameaça de um mundo dividido em duas partes,
totalmente armadas, ainda aumentando os seus armamentos e
se preparando para mais hostilidades. E, em acréscimo a isso,
existe a terrível questão da energia atômica e de todas as fatais
possibilidades existentes nessa direção. Vocês não podem
examinar o cenário internacional sem logo ficarem cientes do
fato de que existem discórdia, desunião, inquietação e suspeita,
com pensamentos de guerra e com rumores de guerra. Na
verdade se vêem guerras reais e concretas ainda acontecendo
em muitos países. Esse é o tipo de mundo que vemos quando
pensamos na situação internacional.^
Mas, desafortunadamente, quando passamos a examinar
essa questão, mesmo do ponto de vista das nações individuais,
vemos praticamente a mesma coisa. Dentro das nações há esta
mesmíssima discórdia: choques, brigas, desacordos, suspeita,
a tendência de divisão em segmentos e em grupos, cada um
preocupado consigo mesmo e com seus direitos e exigências.
Em todas as nações há essa mesma tendência de contenda e

Este sermão foi pregado em 28 de dezembro de 1947.

151
desunião, e, além disso, quando se desce às unidades ainda
menores, vê-se exatamente a mesma coisa. Nada é tão tragica­
mente verdadeiro sobre o mundo moderno como o fato do
rompimento de certas unidades fundamentais da vida, tais
como 0 lar, o estado matrimonial e a família, que costuma­
vam ser tão estáveis e sólidos; até ali entrou este espírito de
desunião e de discórdia.
Os homens e as mulheres tendem a um estado de confusão
e conflito. O mundo inteiro está em tumulto. Há uma trágica
e patética ausência de paz, e em toda parte há uma ausência
da concórdia e da unidade de que fala o apóstolo nesta parte.
E as perguntas que logo surgem são: que é que a Igreja Cristã
tem para dizer sobre isso? Qual é a mensagem da Igreja?
Qual é a mensagem do evangelho? Que é que nós, que nos
dizemos cristãos, temos para dizer nesta situação especial?
Há muitos que, neste ponto, dizem algo que precisamos
examinar cuidadosamente à luz do ensino do apóstolo. Ima­
gino que uma das idéias mais comuns que existem é que o
dever principal da Igreja, tendo diante de si tal situação,
consiste em fazer apelos completamente vagos e gerais em
prol da fraternidade, do entendimento e da concórdia. Muitos
que estão dentro da Igreja defendem essa idéia, como também
a defende a maioria dos de fora dela. A Igreja é concebida
como uma espécie de instituição ou organização cuja tarefa
é lembrar-nos de certas condições ideais; isso, parece-me, é
quase invariavelmente o que se espera dela. Muitos acham que
ela deve dar atenção à discórdia política e social, econômica
e internacional, e conclamar o povo à fraternidade e à paz, à
amizade, e a dar e receber. E eles acham que, se ela dirigir
este apelo geral ao mundo, provavelmente o mundo atenderá.
E por isso que há muitos, fora da Igreja, que tendem a culpá-
-la pelo presente estado de coisas. Eles consideram que a Igreja
não está fazendo esse apelo para entendimento e fraternidade
com suficiente força e poder. Também, de acordo com eles.

152
um importante dever da Igreja consiste em apelar ao mundo
para se desarmar, parar de contender e lutar, concitar todos
a serem irmãos, felizes e amigos uns dos outros. Muitas
vezes isso é colocado em termos de “Paternidade de Deus
e fraternidade do homem”, e, de acordo com essas pessoas,
a Igreja é a instituição, acima de todas as outras, destinada
a propagar esse ensino.
Agora eu desejo considerar a idéia geral à luz do que o
apóstolo nos diz nestes versículos de Filipenses. Antes de
passarmos à consideração detalhada do assunto, permitam-me
introduzi-lo apresentando a vocês três proposições gerais.
A primeira é que, certamente, é extraordinário que ainda
haja homens e mulheres capazes de falar desse modo, apesar
dos fatos com os quais eles se defrontam. Porventura não é
surpreendente que ainda exista no mundo alguém que
realmente acredita que tudo o que é necessário hoje é um apelo
geral para amizade, boa vontade e fraternidade? Faço essa
pergunta porque o certo é que esse apelo foi feito constante­
mente e por muitos anos no passado; de fato, podemos
retroceder mais no tempo e dizer que dificilmente houve
época da história do mundo em que esse apelo não tenha sido
feito. Foi feito pelos filósofos antes de Cristo nascer. Eles
ansiavam por paz, e essa era a idéia geral subjacente ao conceito
de utopia. Durante muitos anos esse apelo tem sido feito em
livros, jornais e sermões; também pelo rádio - este chamado
para que os homens parem de contender e se unam. E, todavia,
apesar disso tudo, o mundo está como está hoje. Para mim é
surpreendente que alguém ainda possa acreditar, a despeito
dos fatos tão-somente do presente século (vinte), que tudo
o que é preciso fazer é apelar aos homens e às mulheres
que vivam em união, pacificamente, e eles imediatamente
passarão a fazê-lo.
Todavia, isso me leva à segunda proposição, qual seja, que
esse fatal otimismo referente ao homem é desesperadamente

153
superficial. Só os que têm uma visão muito superficial da
causa da desunião é que podem acreditar que um apelo pela
unidade, em si e por si, vai ser suficiente. Noutras palavras, a
tragédia desse otimismo fatal e audaz que ainda satisfaz tanta
gente, é que os seus promotores não entenderam a doutrina
bíblica do pecado e a mensagem do Novo Testamento. É em
seu diagnóstico da causa dos nossos problemas que tais pessoas
erram; e, porque a sua visão da causa do problema é superficial,
a solução que elas propõem é igualmente superficial.
Bem, vivemos dias em que é necessário que sejamos
realistas, embora às vezes, quando o somos, as pessoas dizem
que somos pessoas depressivas. Todavia, o dever de quem
pretende explicar a mensagem do Novo Testamento ou pregá-
-la, é apresenta-la exatamente como essa mensagem é. E em
parte alguma o Novo Testamento nos diz que a natureza do
homem é tão boa que você só tem que mostrar-lhe o certo e o
verdadeiro, e ele se elevará a esse nível. Na verdade o Novo
Testamento diz claramente que este mundo jamais conhecerá
um estado de paz, enquanto não ocorrerem alguns eventos
extraordinários e dramáticos. Do ponto de vista do otimismo
do mundo, o Novo Testamento é um livro profundamente
pessimista; ele tem uma visão realista do homem e da sua
condição, e nos diz que, qualquer solução que seja meramente
superficial, nunca poderá resolver adequadamente a situação
com a qual nos defrontamos.
Portanto, tendo em mente essas proposições gerais, veja­
mos exatamente o que o apóstolo tem para nos dizer quanto à
questão da paz e da unidade. A questão se divide de maneira
simples. O primeiro ponto que temos que considerar é a
causa da desunião. Por que o mundo está como está hoje? O
apóstolo responde essa pergunta, num sentido, com duas
palavras. Diz ele: “Nada façais por contenda ou por vangló­
ria”. Ora, aí está a causa do problema. Observemos que o
problema é grande e profundo como o seguinte: há algo no

154
homem, diz o apóstolo, que é tão profimdamente mau, que
tende a resultar em inquietação e discórdia, e não só no mundo,
mas na própria Igreja também. Como temos visto, o apóstolo
tem um conceito muito alto da Igreja. Ela não é meramente
uma reunião de pessoas, não é simplesmente uma sociedade
de homens e mulheres. Paulo diz: “Aquele que em vós
começou a boa obra, a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo”
(1:6). A Igreja, Paulo nos diz, é algo formado por Deus: consiste
de novos homens e mulheres que foram regenerados. Contudo,
de acordo com o apóstolo, há algo tão radicalmente errado no
homem, que existe até o perigo desse mau princípio entrar
na vida da Igreja. Já concordamos que não há no Novo Testa­
mento nenhuma Epístola mais lírica do que esta Epístola aos
Filipenses. Paulo tem menos motivos para criticar essa igreja
do que para criticar qualquer outra igreja local. A única coisa
que parecia estar mal em Filipos, a única coisa que ameaçava
a vida daquela igreja, era a tendência de um espírito de desu­
nião entrar, e vocês verão que Paulo menciona isso em quase
todos os capítulos.
Que há, então, na natureza humana que tende a causar
divisão, suspeita e discórdia? De acordo com o apóstolo, a
questão pode ser posta sob estes dois títulos: o primeiro é
^^contenda'\ ou uma tradução melhor talvez seja “espírito
faccioso”. Receio que todos nós provavelmente estejamos
familiarizados com o sentido dessa frase. Está em grande
evidência no mundo na hora presente: uma espécie de espí­
rito de partidarismo, certa mentalidade de grupo, a tendência
de só pensar em termos de certos preconceitos. Vê-se isso entre
as nações. Não pode haver dúvida de que uma das maiores
causas da guerra é o espírito produzido pela idéia de soberaniaz
nacional. “Meu país”, diz um, mas, “Afei/ país”, diz outro. E
algo irracional e desarrazoado, não governado pela reflexão ou
pelo entendimento; é preconceituoso, algo que domina nosso
raciocínio. A pessoa não pergunta: “Será que meu país está

155
certo ou está errado?” Ela diz; “O meu país está certo”, e a
outra diz a mesma coisa - e daí surge a guerra.
Vê-se isso não somente em termos de países, vê-se em
quase todas as divisões da sociedade. Existem os chamados
agrupamentos e distinções sociais, com um grupo desprezando
outro, e um grupo invejando outro. Há uma tendência patética
de as pessoas se dividirem em grupos de acordo com o
nascimento, o nível social e a posição. Elas não param para
pensar; não é algo racional. Há uma espécie de lei e código
não escrito que governa a conduta delas; as pessoas perten­
cem a esses diferentes grupos e, por isso, fazem certas coisas.
Certamente temos que reconhecer
✓ que este é um dos grandes
perigos da atualidade. E o espírito de classe, e diz respeito
igualmente a qualquer classe a que acaso você pertença. Sempre
leva a discórdia, incompreensão e contenda. Na verdade, pode
muito bem ser que nos anos vindouros este mesmo espírito de
facção divida o mundo em grandes grupos e possa vir a ser a
gênese de outra terrível guerra mundial. Claro está que se
pode encontrar a mesma coisa até na indústria e no comércio;
vê-se isso no que se refere às questões de dinheiro. E, em
todas essas áreas, o que é importante para nossa consideração
é 0 espírito envolvido.
Talvez haja uma ilustração até melhor deste ponto na
Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios. Por certo vocês se
lembram da insensatez que dividiu aqueles crentes conforme
certas pessoas: “Eu sou de Paulo, e eu de Apoio, e eu de Cefas,
e eu de Cristo” (1 Coríntios 1:12). Toda a igreja de Corinto
estava dividida nesses segmentos e fatores, em função de
pessoas, e a tragédia era que os seus membros não se reuniam
para considerar a verdade e discutir sua maneira de entender
a verdade. Brigavam por estes respectivos homens; um dizia
que Paulo era o melhor, outro dizia que era Apoio, outro que
era Cefas, e lá estavam, todos governados unicamente pelo
preconceito. Ora, esse é o espírito que sempre leva a inquietação

156
e discórdia. Por isso é muito raro as pessoas manterem uma
discussão política sem perderem as estribeiras. Não são
governadas pela razão, mas por este espírito faccioso; em geral
a discussão não é conduzida em termos do que é certo, errado
ou benéfico, mas sim em termos do “meu grupo”, do “meu
partido”, a parte à qual sucede que eu pertenço.
Contudo, lamentavelmente, há uma coisa ainda mais
grave por trás do espírito faccioso z
e de contenda, um mal a
que Paulo chama “vanglória”. E simplesmente outro termo,
claro, para orgulho, convencimento, e, segundo a Bíblia, essa
é a suprema fonte de discórdia e de todos esses problemas.
A Bíblia expressa essa doutrina desta maneira: Deus criou o
homem, e o propósito era que a humanidade vivesse em
subserviência a Deus; enquanto o homem obedeceu a Deus
havia paz. Então, por que teve que haver discórdia? A resposta
bíblica é que o homem em pecado se coloca como sua
autoridade suprema. Ele declara que a sua vontade deve ser
suprema e que ele tem direito a tudo quanto quer e deseja.
Todo homem, em seu orgulho e arrogância, coloca-se dessa
forma como deus, e, obviamente, havendo tantos deuses
desses, só pode haver colisão, inevitavelmente, pois cada um
só pensa em si e só se preocupa consigo mesmo.
Não seria essa a causa trágica de todos os nossos problemas?
Haveria no mundo alguma coisa que seja tão patética como o
indescritível egoísmo e interesse próprio em tão grande
evidência? “Exijo meus direitos; por que não devoz ter a vida
que é da minha escolha?” - esse é o argumento. E o ego no
controle, examinando tudo do ponto de vista do que eu mereço,
do que me compete, dos meus direitos. Essa é a causa de toda
desunião e dificuldade do mundo: o espírito faccioso, os grupos
rivais, e então, dentro dos grupos, os indivíduos com seu
orgulho e vanglória.
Essa é, pois, de acordo com a Bíblia, a maneira de entender
a situação. O problema do mundo não é algo que está apenas

157
na superfície; não é que o homem não foi instruído sufici­
entemente ou que ele não tem a maneira certa de ver a vida.
Não, há dentro da sua natureza algo torcido, pervertido, algo
que colocou na direção errada todas as qualidades que Deus
introduzira no homem. Há esse cancro imundo em seus
elementos constituintes, em seus órgãos vitais; é o coração
do homem que é desesperadamente perverso e enganoso;
trata-se de algo radical e fundamental.
Se, então, essa é a causa do problema, podemos agora
encarar de modo mais realista a única maneira pela qual
podemos lidar com o problema. Paulo afirma que existem duas
coisas absolutamente essenciais, antes de se poder ter paz e
unidade verdadeiras. A primeira é que é preciso haver lealdade
comum: “Completai o meu gozo, para que sintais o mesmo,
tendo 0 mesmo amor, o mesmo ânimo, sentindo uma mesma
coisa”. De acordo com o apóstolo, a única maneira pela qual
os homens e as mulheres podem livrar-se deste espírito faccioso
e vanglória é estando ligados por um objeto ou interesse
comum, por uma lealdade comum. Pois bem, isso é uma coisa
que posso provar facilmente como um princípio psicológico
perfeitamente certo e sólido. Quantas vezes, durante a última
guerra, nos falavam sobre as cenas extraordinárias que se
viam nos abrigos antiaéreos; quantas pessoas pertencentes a
diferentes classes, ali, na necessidade comum de abrigar-se
das bombas e da morte, esqueciam todas as suas diferenças
que havia entre elas e se uniam como uma só pessoa. Isso
porque, por✓ seu interesse comum esqueciam as divisões e as
distinções. E por isso que existe a tendência de haver governo
de coalizão durante uma guerra; nos períodos de crise e de
necessidade comum, todas as distinções são esquecidas e de
repente nos unimos.
Ora, é justamente disso que o apóstolo está falando aqui.
Não adianta apenas pedir aos homens e às mulheres que
esqueçam suas diferenças e distinções e sejam bondosos e

158
amigáveis; não é esse o ensino do Novo Testamento. O Novo
Testamento sabe que isso é desesperadamente inadequado. O
mundo acredita nesse tipo de coisa, e tem seus motivos para
isso. Drogando-se de várias maneiras, pode mostrar um
animado espírito de amizade e de entendimento, porém isso
nada mais é do que um resultado das drogas. Diz o Novo
Testamento que, antes de você poder conseguir essa real
unidade e concórdia, essa paz e amizade entre os homens, é
preciso haver lealdade comum, e ela tem que ser lealdade
comum a Deus e ao nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A
única esperança de paz entre os homens é que os homens
sejam tirados do seu trono, que se humilhem e dobrem os
seus joelhos diante de Deus. Um só toque da natureza, nesse
sentido, faz do mundo inteiro uma família. Só quando todos
nós, juntos, compreendermos que pertencemos a Deus e não
a nós mesmos, é que seremos um, devido à nossa lealdade
a Ele.
Todavia, vocês devem ir mais longe ainda, diz o apóstolo
Paulo. Em acréscimo a esta lealdade comum-pois eles tinham
isso na igreja de Filipos - há necessariamente outro princí­
pio, qual seja, o da humildade. “Não atente cada um para o
que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é
dos outros”. Se tão-somente todos e cada um dos homens e
mulheres pusessem em prática esse versículo, que mundo
diferente nós teríamos! “...por humildade; cada um considere
os outros superiores a si mesmo.” Esse é o segredo, diz o
apóstolo. Esta “humildade” é o essencial absoluto, e se expressa
desta forma: todo homem considere os outros melhores que
ele próprio. “Mas isso significa”, alguém pergunta, “que o
evangelho cristão pede que cada indivíduo pense em cada
outro indivíduo antes de pensar em si mesmo? Toda pessoa
deveria considerar o beberrão caído na sarjeta como melhor
que ela?” Não, não é isso que o apóstolo está ensinando;
isso é extremismo. O que ele está dizendo é que, à parte

159
de distinções maiores como essa, nas quais há, na prática,
uma clara diferença entre homem e homem, à parte disso, todos
nós devemos ter uma tal opinião sobre nós mesmos e sobre a
nossa condição, que consideremos os outros melhores do que
nós. Essa é a maneira de o apóstolo dizer que, se tão-somente
nos conhecéssemos como realmente somos, inevitavelmente
nos portaríamos desse modo.
E, além disso, não devo pensar só no que é propriamente
meu, mas também no que “é dos outros”. Não devo apenas
perguntar: “Quais são os meus direitos? Que exigências posso
fazer? Que é que eu mereço?” Mas, antes: “Que será melhor
para todos? Que posso fazer pela outra pessoa?” Em vez de
sempre começar por mim e terminar em mim, devo dar aten­
ção ao outro. Quando digo que estou sofrendo e passando por
um período difícil, devo pensar no povo de outros países e
que se acha em piores condições. Nós, neste país, não devemos
pensar só em nossos problemas, devemos pensar nas pessoas
que não têm lar, abrigo e vestes. De igual modo devemos apli­
car isso à nossa vida pessoal. Pensem em todos os conflitos,
discórdia e infelicidade em todas as áreas da vida; acaso tudo
isso não tende a surgir da negligência em não pormos em prática
este princípio? Se tão-somente parássemos para pensar nos
outros e na situação dos outros, em vez de asseverar nossos
direitos e de fazer nossas exigências, isso não abrandaria a vida
em todas as esferas e em todos os departamentos? O segredo é
esse, diz Paulo, a humildade que se manifesta dessa forma.
Esse é, pois, o programa. Permitam-me concluir com algo
que é, talvez, a questão mais vital. Que é que vai capacitar os
homens e as mulheres a fazerem isso? A luz de tudo o que
estive dizendo, alguém talvez pergunte: “Você não está fazendo
justamente o que denunciou no começo? Você não está só
nos dizendo que sejamos humildes e que pensemos nos
outros em suas necessidades e exigências, e em seus desejos?
Você não estaria fazendo um apelo geral mais uma vez.

160
mas desta vez do jeito que o apóstolo fez?”
Não, o que estou dizendo é que Paulo aqui nos diz que só
há um modo pelo qual se pode realizar essa obra: “Se há algum
conforto em Cristo, se alguma consolação de amor, se alguma
comunhão no Espírito, se alguns entranháveis afetos e com-
paixões...”? Permitam-me dizer de novo, com toda a franqueza:
o programa aqui delineado pelo apóstolo só é possível aos
cristãos; é inútil para o mundo à fora. Não há nada que seja tão
completamente idiota como pedir aos homens e às mulheres
espiritualmente mortas por causa do pecado, que sejam humil­
des e que pensem nos outros antes que em si. Eles são incapazes
de tal ação porque, antes de poderem praticar o ensino do
apóstolo, precisam nascer de novo. E dessa maneira que o
apóstolo faz o apelo e essa é a única base sobre a qual se pode
fazer tal apelo - “Portanto, se há algum conforto em Cristo...”.
Mas permitam que eu lhes ofereça uma tradução melhor: “Se
há alguma exortação em Cristo...”. Eis o que Paulo quer dizer:
“Filipenses”, diz ele com efeito, “vou fazer-lhes um apelo para
que vocês vivam de um certo modo. De que melhor maneira
posso fazê-lo? Vou colocá-lo nestes termos. Se a sua experiência
com Cristo contém alguma exortação para vocês, ou algum
argumento junto a vocês, vivam dessa maneira. Essa é a
posição. Se o amor, e o espírito de amor, que vocês receberam
de Cristo podem igualmente exortar, pleitear e argumentar
com vocês, considere, então, cada um os outros superiores a si
mesmo. Se há alguma comunhão e algum companheirismo
no Espírito Santo, bem, mostrem isso dessa forma. “Se”, diz
Paulo, “há alguns entranháveis afetos e compaixões; se algo
da própria vida de Deus foi implantado em vocês, bem,
passem então a viver essa vida. Isso é algo só possível aos
cristãos”.

2 Expressão traduzida na “NIV” por “ternura e compaixão” (NVI: “profunda


afeição e compaixão).

161
Permitam-me expressar o ponto desta maneira: é-me dito
que eu devo considerar os outros superiores a mim, e há
somente um fator que pode mover-me a fazer isso - e, graças a
Deus, esse fator me move a fazê-lo - qual seja: quando eu leio
a Bíblia, vejo a natureza pecaminosa que há em mim; vejo
meus firacassos, vejo meus defeitos. Mas, mesmo então há em
mim uma tendência de defendê-los. Só sei de uma coisa que
pode achatar-me no chão e humilhar-me até ao pó, a saber:
olhar para o Filho de Deus, e especialmente contemplá-lo
na cruz.

Quando a estupenda cruz vejo e contemplo,


Na qual morreu o Príncipe da Glória^
Meu maior lucro perda considero,
E desprezo despejo em meu orgulho.
- Isaac Watts

Nenhuma outra coisa pode fazer isso. Quando vejo que sou
pecador, ou quando me sinto perdido, ou condenado, ou sem
nenhuma esperança, e que nada senão o Filho de Deus na cruz
pode salvar-me, humilho-me até o pó. Digo que ninguém pode
ser pior do que eu; sou “o pior dos pecadores” (1 Tim. 1:15,
16, NVI), e qualquer um pode ser melhor que eu. Mas é só a
cruz que me faz sentir isso. Nada senão a cruz pode fazer com
que uma pessoa considere outra superior a si. Nada senão a
cruz de Cristo pode dar-nos este espírito de humildade. Temos
necessidade de enxergar esta verdade, temos necessidade de
receber o Espírito Santo. Somente quando o amor de Deus
é derramado em nossos corações é que somos capacitados
a amar e a ter ternura e compaixão para com os outros.
Certamente esse é o argumento geral do Novo Testamento.
Os homens e as mulheres precisam humilhar-se; eles têm que
ser reduzidos; seu ego tem que ser crucificado; e é somente
junto à cruz que isso acontece. Como Paulo escreve à igreja

162
de EfesOj somente ali é derrubada “a parede de separação que
estava no meio”, somente ali se pode criar dos dois um novo
homem, fazendo a paz. Essa é a única base da unidade, a
única esperança do mundo. Pois bem, Paulo coloca essa
idéia nesta frase: “De modo que haja em vós o mesmo
sentimento que houve também em Cristo Jesus...”, e então
prossegue, dizendo: “Que, sendo em forma de Deus, não teve
por usurpação ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo,
tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;
e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo
obediente até à morte, e morte de cruz”. Isso significa que Cristo
deixou as mansões celestiais e nasceu como um bebê na
manjedoura de Belém. Viveu aqui, na terra, e suportou a
contradição dos pecadores, e até morreu na cruz - por quê?
Porque Ele não considerou a Si mesmo; porque Ele não se
preocupou só com o Seu próprio gozo da glória que partilhara
com o Pai na eternidade; porque Ele olhou para mim e para
vocês; porque Ele atentou “para o que é dos outros”. Foi porque
pôs em prática isto que Ele veio e nos salvou, e o que o
apóstolo diz é que devemos ser assim também, e que só
poderemos ser assim quando recebermos a Sua natureza;
quando nascermos de novo, quando formos regenerados;
quando o Espírito Santo tiver operado esse milagre em nós
e nos tornarmos participantes da natureza divina. Essa é a
única esperança de unidade, paz e concórdia. E preciso
crucificar o ego e depo-lo para fora, e é preciso receber o
novo ego, a nova natureza dada pelo Filho de Deus. “Haja
em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo
Jesus”.

163
12
Jesus, o Senhor
“De modo que haja em vós o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve
por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo,
tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e,
achado naforma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente
até à morte, e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou
soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo nome; para
que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus,
e na terra, e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus
Cristo é 0 Senhor, para glória de Deus Pai. ” - Filipenses 2:5-11

Estou certo de que todos concordaremos que esta passa­


gem é uma das mais magníficas da Bíblia. Examinamos
um pouco os primeiros versículos em nosso estudo anterior,
e agora, nos versículos 9,10 e 11, vemos que o apóstolo leva a
um grande clímax este extraordinário repasso que aqui nos
dá do curso da vida terrena do nosso Senhor. Paulo começa no
céu e no céu termina, e com estas poucas palavras, breves e
densas, ele resume perfeitamente o que a vinda do nosso Senhor
envolveu, o que aconteceu quando Ele veio, e o que resultou
da Sua vinda. Devemos relembrar, se é que havemos de captar
a força total desta grande declaração, que o propósito do
apóstolo era exortar os membros da igreja de Filipos a per­
manecerem num estado de unidade, amizade e concórdia uns
com os outros. Assim ele introduziu esta grande passagem:
“Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas

164
cada qual também para o que é dos outros”. Depois, repentina­
mente, ele diz: “De modo que haja em vós o mesmo sentimento
que houve também em Cristo Jesus”, e segue-se então toda
esta tremenda declaração. Pois bem, aqui, noutras palavras,
somos levados a lembrar-nos de algo que é de suprema
importância para nós. E algo muito característico do método
do apóstolo, como na verdade o é do Novo Testamento em
geral, pois este, de um modo ou de outro, sempre chama a
nossa atenção para o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Estamos vivendo num mundo inseguro. Ninguém
conhece o futuro, nem mesmo o conhecem aqueles que estão
sempre prontos a expressar sua opinião (apesar do fato de que
as suas profecias estão sendo sempre desmentidas), pois o
futuro está cheio de incertezas e de estranhas possibilidades.
O Novo Testamento não nos diz muita coisa em detalhe
sobre o que está adiante de nós. Freqüentemente há os que
tentam identificar o futuro segundo os termos e declarações
da Bíblia, mas, lamentavelmente, como eu disse, eles se
mostram mais freqüentemente errados do que certos. Não
é esse o método do Novo Testamento; o método deste é,
antes, dizer-nos que, seja o que for que o futuro nos reserve,
seja o que for que nos aguarde nos dias e nos meses que estão
adiante de nós, se tudo estiver bem entre nós e Deus em
Cristo Jesus, há um sentido em que é certo dizer que não
importa o que aconteça ou não aconteça. Noutras palavras, o
Novo Testamento nos diz constantemente que o que é mais
importante na vida e neste mundo é a nossa relação com
Jesus Cristo, e esse é o tema elaborado aqui pelo apóstolo
nestes três versículos que ora estamos considerando.
A afirmação de Paulo é que o resultado da vinda de Cristo
do céu, como fruto da Sua encarnação e da humilhação a
_ Cristo tornou-Se o centro deX todas as
que Se sujeitou, Jesus
coisas, e, portanto, Ele é necessariamente central. E-nos dito
que, por causa do que Ele fez, “também Deus o exaltou

165
soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo
nome” com o propósito de que “ao nome de Jesus se dobre
todo joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da
terra...” (na VA: “se dobrem todas as coisas no céu...”). A
palavra apresentada aqui, na Versão Autorizada (inglesa)
como “coisas” é, provavelmente, um pouco enganosa. Antes,
a idéia do original é de “seres”, e inclui os seres angélicos de
toda ordem e classe. Paulo nos diz que os “seres” do céu e da
terra deverão inclinar-se, e que toda língua deverá confessar
“que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai”.
Não podemos fazer nada melhor do que lembrar-nos
disto. Jesus Cristo só pode estar no centro mesmo das nossas
vidas, e no centro mesmo dos nossos pensamentos. Não
entendamos mal tal declaração. Aqui se nos faz lembrar que
não é suficiente crer em Deus, ou ter uma tese, nem tampouco
é suficiente dizer que cremos num Ser supremo e que
reconhecemos a Pessoa de Deus. Não é esse o fator particular
que nos torna cristãos. Como resultado de tudo o que ocor­
reu, diz-nos Paulo, o próprio Deus designou Cristo para ser
0 centro, e, portanto, devemos dizer, com Martinho Lutero,
que não conhecemos outro Deus que não Jesus Cristo. Ele é
0 único meio pelo qual podemos conhecer Deus, e, por­
tanto, a Ele cabe ser central. E o nosso pensamento acerca
de Deus e toda a nossa relação com Deus têm que ser em
termos do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e a exortação
é que todos nós dobremos nossos joelhos diante dEle.
Como todas as doutas autoridades retamente assinalam,
nesta conexão, observemos que não há maior perversão das
Escrituras, em parte alguma, do que a maneira pela qual certos
segmentos da Igreja Cristã têm interpretado isto, dizendo que
toda vez que o nome de Jesus Cristo é mencionado, devemos
inclinar nossas cabeças, ato que eles consideram como sinal
de excepcional devoção. Mas, como isso fica aquém do que o
texto nos diz! Devemos dobrar os joelhos, não apenas a cabeça!

166
Paulo diz, com efeito, que devemos render-nos, prestar
reverência. Esse é um ato de reconhecimento, um ato pelo
qual nos doamos. Devemos dobrar os joelhos diante dEle
porque Ele é o Senhor, e, de acordo com o apóstolo nesta
passagem. Deus Lhe deu um nome tal que o universo inteiro,
os seres do céu, da terra e de debaixo da terra, são assim feitos
sujeitos a Ele, e hão de reconhecê-10, e toda língua, em toda
parte, confessará “que Jesus Cristo é o Senhor, para glória
de Deus Pai”.
Não há contradição aqui entre prestar culto a Deus e
prestar culto ao Senhor Jesus Cristo. Prestamos culto a Deus
prestando culto ao Senhor Jesus Cristo. Certamente vocês se
lembrarão de que em diversas ocasiões o nosso Senhor, em
Seu ministério terreno, defendeu exatamente a mesma tese.
Ele disse: “Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o
enviou” (João 5:23). Dessa forma, em Seu ensino isso é posto
às claras e fora de toda dúvida, precisamente
✓ como o temos
repetido aqui pelo apóstolo Paulo. E impossível adorar ver­
dadeiramente Deus, dobrar os joelhos diante dEle e viver a
vida que Ele quer que vivamos, a não ser por meio de nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo. Pois bem, aí está o grande
ponto de partida. Vejam vocês, Paulo aqui O coloca no centro
do universo; Cristo está no centro da vida, e, se não estiver
ali em nossa vida e em nossa experiência, então, de acordo
com o nosso evangelho, não somente não somos cristãos, mas
também o nosso culto não tem valor nenhum. Deus O desig­
nou, Deus O exaltou, e Deus nos convoca a todos para dobrar
os joelhos diante dEle e para render-nos a Ele, para reconhecê-
-lO e confessá-10 com tudo o que constitui a nossa vida.
Tentemos, pois, apenas resumidamente, analisar o que
esta confissão significa. Antes de tudo, examinemo-la com
vistas à Sua Pessoa - a confissão que somos chamados para
fazer acerca da Pessoa de Jesus Cristo. E aqui os termos pare-
cem realmente dizer tudo o que se pode dizer. E-nos dito

167
que “Jesus Cristo é o Senhor”. Essa é a confissão, e notem cora
que cuidado o apóstolo emprega os termos. Quando ele faz
esta grande descrição da encarnação nos versículos 6-8, ele
assinala para nós que esse homem, o homem que era chamado
Jesus, não era outro senão Deus em carne. Enquanto ainda
estava na forma de Deus, Ele tomou a forma de servo. Não
Se agarrou às Suas prerrogativas divinas, mas tomou em
consideração os outros, viu a necessidade deles e assim Se
humilhou, não deixando de ser Deus mas assumindo a natu­
reza humana e Se manifestando na semelhança de homem; e
“...achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo
obediente até à morte, e morte de cruz”. Jesus, Jesus de Nazaré.
Agora 0 apóstolo dirige a atenção a essa Pessoa, e fala a
Seu respeito desta maneira maravilhosa, no versículo dez. É
diante do nome de Jesus que todo joelho deve dobrar-se; é o
mesmo Jesus que esteve na terra e que agora está no estado
glorificado. Noutras palavras, Paulo aqui de novo salienta a
natureza gloriosa da Pessoa. Não nos esqueçamos de que o
Filho eterno de Deus tornou-Se homem, assumiu a humani­
dade e foi conhecido como Jesus. Sempre devemos lembrar
que 0 Senhor Jesus Cristo, que adoramos e confessamos, é
realmente a Pessoa que andou na face desta terra. Nunca O
percamos de vista, em Seu ensino; nunca o percamos de vista
em toda e qualquer filosofia que se possa elaborar com base
nEle e em Seu ensino. Não permita Deus que alguma vez O
transformemos numa mera coleção de idéias e pensamentos.
Não, Paulo nos mantém ligados à Pessoa introduzindo a
palavra Jesus; a Pessoa a respeito da qual podemos ler nas
páginas dos quatro Evangelhos.
Mas depois temos a próxima palavra, Cristo - Jesus Cristo
- 0 que significa, naturalmente, que Ele era peculiar e espe­
cialmente Aquele que foi ungido por Deus e separado para
realizar uma certa obra. Ele é o Messias, o que significa “o
ungido”. No Novo Testamento, sempre que alguém ou algo

168
era ungido, significava que era separado para algum propó­
sito particular. O sumo sacerdote e os demais sacerdotes
eram ungidos porque eram separados para desempenhar as
funções específicas do serviço a Deus da maneira indicada
por Ele. E aqui está Cristo, supremo, acima de todos os outros
seres, e que foi ungido ou separado para realizar esta obra
especial, acerca da qual Paulo já nos falou. Ele Se separou
pessoalmente, e foi separado por Deus para realizar a obra
que só Ele poderia realizar. Como já vimos, Ele Se humilhou
e assumiu a forma de servo; Ele foi além e foi obediente até
à morte, e morte de cruz. Para isso Ele foi separado.
Noutras palavras, Ele veio a este mundo, não meramente
para propiciar-nos ensino incomparável, nem apenas para
prover-nos um exemplo, muito embora perfeito e glorioso, mas
a obra que Ele veio realizar foi provar a morte por todos os
homens. Por isso Ele foi para a cruz, por isso houve a agonia
no Jardim do Getsêmani, antes de ir para a morte; foi para
fazer isso que, fundamentalmente. Deus O tinha chamado; esse
era o único meio pelo qual o homem poderia ser libertado -

'Não havia outro suficientemente bom


Para pagar o preço do pecado.
- C. F. Alexander

E na cruz Ele Se tornou uma oferta pelo pecado. Ao mesmo


tempo Ele foi o sacerdote e a oferta, pois Ele Se ofereceu e o
Seu sangue derramado a Deus o Pai como expiação pelo
pecado. Jesus Cristo. Não meramente o aldeão da Galiléia, ou
o Mestre e Instrutor, não meramente o Exemplo Modelar,
mas, acima de tudo isso, este Ungido, este Sacerdote, este tudo;
o Cristo, o Messias, o Libertador, Aquele que faz a expiação
e abre o caminho da salvação.
Assim, o que você, cristão, confessa, é que Jesus Cristo é
o Senhor, o que, como é natural, significa simplesmente que

169
Jesus Cristo é Deus. A palavra “Senhor” aqui empregada na
tradução é a palavra freqüentemente empregada por Deus
sobre Si próprio no Velho Testamento. Por certo vocês se
lembram de que os judeus evitavam pronunciar o nome
de Deus; consideravam-no tão santo e sagrado que rarissi-
mamente o usavam. Eles adotavam vários símbolos para
expressar a idéia, e uma das palavras comuns que eles
empregavam, em vez de empregarem o nome Jeová, era esta
palavra “Senhor”. Assim é que, quando falavam sobre “o
Senhor”, eles queriam dizer Deus, e quando Paulo diz que a
confissão cristã é que Jesus Cristo é o Senhor, ele quer dizer
Deus, o Supremo, um com o Pai, e que ocupa esta posição
de soberania na economia de Deus. Todo joelho deverá dobrar-
-se ao nome de Jesus, porque Ele é o Senhor, Ele é Deus. E
essa é a tremenda e impressionante declaração que o apóstolo
faz aqui em referência à Pessoa. E, naturalmente, é isso que
recordamos agora, antes de dar sequer um passo mais.
Talvez possamos considerar melhor este ponto exami-
nando-o na forma de perguntas. Que é Jesus Cristo para nós?
Onde Ele entra em nossos projetos? Que é que cremos
concernente a Ele? Acaso temos dobrado os nossos joelhos
diante dEle, temo-nos rendido a Ele, fazemos esta confissão
concernente a Ele? Dizemos que Jesus de Nazaré, aquele
homem que andou pela face desta terra, é o Senhor, o ungido
de Deus, Aquele que foi separado para levar sobre Si os
pecados do homem, os nossos inclusive? Dizemos que é
somente ali, nessa morte, que encontramos a salvação, com
tudo 0 que ela significa, e pela qual somos reconciliados
com Deus? Confessamos que para nós Ele é Deus e que O
adoramos para glória de Deus Pai? Essa é a confissão.
Estaria voltando a isso com exagerada freqüência? Per­
gunto se é possível exagerar nisso! Meu pleito é que vejo isso
em toda parte no Novo Testamento, e que certamente nunca
houve maior necessidade de insistir nesta ênfase do que no

170
presente. Como é fácil transformar o Novo Testamento numa
filosofia ou num conjunto de regras e regulamentos e num
esquema para a vida e para a forma de viver, numa perspectiva
geral. Não, o ponto central em toda parte, toda a ênfase aqui,
é que é a minha relação pessoal com Ele que importa. Não
aceito primariamente a filosofia cristã; aceito Cristo, Creio
nEle, dobro meus joelhos diante dEle, diante da Pessoa.
Faço uma declaração acerca do indivíduo: Jesus Cristo é o
Senhor, Ele é meu Senhor; é uma relação pessoal, e uma
confissão pessoal. E esse é o ponto primordial da posição cristã
- nossa relação com Cristo. Não há verdadeiro conhecimento
de Deus à parte dEle, e conhecê-10 é conhecer Deus. Disse
Jesus: “Quem me vê a mim vê o Pai” (João 14:9) - é isso. A
centralidade de Cristo.
Essa é, então, a Pessoa. Consideremos o que Paulo tem
para nos dizer acerca da Sua posição atual. Ele não dirige a sua
atenção só para a glória da Pessoa, mas também nos diz
algumas coisas admiráveis sobre a posição atual desta Pessoa,
e eu penso que todos nós concordaremos que em parte
alguma se encontrará maior consolação do que a que
encontramos aqui. Não há nada que seja tão bom e tão recon­
fortante, quando encaramos a vida, do que compreender qual
é a posição atual desta Pessoa gloriosa que confessamos ser
Deus. A primeira coisa que nos é dita sobre Ele é que Ele já
triunfou. Notem como Paulo o diz: Ele “esvaziou-se a si
mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante
aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a
si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz”.
Todavia isso não é o fim. A próxima expressão é: “Pelo que”
(VA: “Portanto”) - vocês não vêem a totalidade do evangelho
aí? Não vêem as coisas acontecendo? Não vêem o sol despon­
tando do meio da escuridão? Portanto! Sua declaração não
termina com a humilhação da cruz e com a vergonha e a ago­
nia daquilo tudo: “Portanto, Deus o exaltou soberanamente”.

171
Aqui somos levados a lembrar-nos de que Ele já triunfou.
Examinemos este aspecto desta maneira: Ele veio a este
mundo no qual eu e vocês vivemos, e este era exatamente igual
ao que é agora. O mundo é um lugar dominado pelo deus deste
mundo, satanás, ou o diabo. É um lugar marcado pelo pecado
e pelo mal, um lugar de torpeza e de tudo o que é antagônico
a Deus e oposto à Sua santa lei; um mundo pecaminoso,
regulado, controlado e governado pelo pecado; um mundo
que, por causa disso, é um lugar de tristeza, de aflição e de
infelicidade. Nada é tão característico deste mundo como a
morte e o sepulcro. Esse é o mundo ao qual Ele veio, um
mundo que o combateu e que lutou contra Ele, como faz
contra nós. Pois bem, o que Paulo assevera é que Ele Se
humilhou, veio ao mundo daquele tempo, e todas as forças
do mal, do pecado e do inferno se aprestaram contra Ele.
Certamente vocês se lembram de como o autor da Epístola
aos Hebreus se expressa a respeito - Ele “em tudo foi tentado,
mas sem pecado” (Hebreus 4:15). Quer dizer que nunca houve
alguém neste mundo que tenha sido tão tentado como o nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo foi. Satanás o enfrentou em
pessoa. O ensino da Bíblia mostra claramente que nem sempre
satanás nos enfrenta em pessoa. Ele tem seus subalternos, os
principados, as potestades, os magistrados das trevas deste
mundo, e todos os demais poderes dessa hierarquia espiritual
maligna, que são mais que suficientes para nos atacar. Mas, no
caso do Filho de Deus, satanás apareceu com todo o seu poder
e foi capaz de oferecer-Lhe os reinos deste mundo e todas as
suas legiões. Nunca ninguém foi experimentado e tentado
como Ele. Ele veio ao mundo, humilhou-se e enfrentou isso
tudo; o mundo fez o máximo em sua ação maligna contra Ele.
Entretanto, o que o apóstolo nos diz é que, embora o livramento
que fez a nosso favor tenha envolvido vergonha, a morte e
a cruz, mesmo ali Ele despojou os principados e as potestades,
e triunfou sobre eles. Paulo diz: “Portanto, Deus o exaltou

172
soberanamente”. Ele venceu o pecado, satanás, a morte e o
sepulcro; foi exaltado altissimamente, e Lhe foi dado um
nome que está acima de todo nome. Isso devido ao que Ele
fez, é conseqüência da Sua encarnação, da Sua humilhação,
e, especialmente, da Sua morte na cruz. Por ter feito isso, Ele
redimiu o universo e Deus O colocou no controle. Que glorioso
pensamento para mantermos em nossas mentes quando
encaramos a vida neste mundo! O pecado ainda aí está, e nós
seremos experimentados e tentados. Satanás, por seus vários
meios, nos atacará, mas, eu rogo a vocês: olhem para o alto,
para Aquele que lá está glorificado e exaltado porque venceu.
Ele é a Pessoa que confessamos, é aquele que já triunfou
sobre todos, o último inimigo inclusive; Ele já ressuscitou,
já subjugou a morte e o sepulcro. Tendo-O tentado ao
máximo, satanás foi repelido, foi privado do seu poder,
recebeu um ferimento mortal, e vem o dia em que ele será
destruído defínitivamente. Portanto, Deus também exaltou
soberanamente o Senhor - Ele triunfou.
A segunda coisa que nos é dita é que Ele está, por con­
seguinte, necessariamente, no controle. O ensino do Novo
Testamento, em muitas passagens, é que Deus Lhe passou o
controle e o governo
✓ do mundo. Uma vez Cristo disse a Seus
discípulos: “E-me dado todo o poder no céu e na terra” (Mateus
28:18), e, se vocês lerem 1 Coríntios, capítulo 15, verão que
Deus Lhe confiou o reino até que esse esteja absolutamente
perfeito, e então Cristo o devolverá a Deus o Pai. Quer dizer
que na atualidade o Senhor Jesus Cristo está no controle do
universo. Ora, meus amigos, poderia haver algo mais con­
solador e encorajador do que isso? Sabemos do estado do
mundo, sabemos do materialismo, da impiedade e da imora­
lidade dominantes, vemos toda a confusão e a ameaça de guerra,
e às vezes alguns perguntam se o cristianismo não vai ter fim.
“Será isso o fim?”, eles indagam. “O mal vai triunfar?” E esta
é a resposta: Cristo está no controle. Ele está assentado à direita

173
de Deus até que os Seus inimigos sejam postos como esca-
belo dos Seus pés. Ele é Aquele que está abrindo os selos do
Livro; Ele está por trás da história humana. E muito difícil
entender isso às vezes, e, todavia, se vocês tomarem a longa
visão da história, verão isso com a mais perfeita clareza. Não
devemos tomar a história partindo do dia a dia, nem mesmo
de ano a ano, nem de década a década; devemos, antes,
examiná-la através dos séculos passados. Quantas vezes houve
pessoas que pensaram que o cristianismo estava derrotado!
Quando vocês z
examinarem o passado, verão que houve quem
dissesse: “E o fim”. Depois veio um avivamento. Cristo está
controlando tudo, e a promessa do Novo Testamento é que
Ele vai continuar fazendo isso até quando Lhe chegar o tempo
de liquidar a história do mundo e todas as suas atividades.
Isso leva a um terceiro elemento da posição atual de Cristo,
qual seja: Ele será visivelmente triunfante sobre tudo e sobre
todos. Ele agora ocupa o lugar no qual todo joelho deveria
dobrar-se diante dEle e toda língua deveria confessá-10 como
0 Senhor, mas isso não está sendo feito. Que lástima! Há homens
que, em sua loucura, levantam-se e O desafiam arrogante­
mente. Riem-se dEle e O ridicularizam; recusam-se a dobrar
seus joelhos; não querem confessar com os lábios e com a
língua que Jesus Cristo é o Senhor. Negam-nO, sim, mas diz
0 Novo Testamento que Aquele que foi exaltado aparecerá,
não na forma de servo desta vez, não na semelhança de
homem, não na figura de homem. Ele virá com as nuvens
como Rei dos reis e Senhor dos senhores. Virá assistido pelas
hostes celestiais e derrotará definitivamente todos os Seus
inimigos. Nessa ocasião todo joelho se dobrará diante dEle,
enquanto que aqueles que o feriram O verão, e a vista dEle em
Sua glória, a vista da Sua santidade, os subjugará e os con­
signará ao castigo que lhes cabe. Então, relutantemente e com
vergonha, mas não obstante com pavor, eles terão que confessar
que Jesus Cristo é o Senhor; terão que confessar que aquele

174
humilde e desprezado Jesus não era outro senão o Filho de
Deus; que a morte na cruz da qual tinham zombado e que
tinham considerado como um sinal de fraqueza, era obra do
Messias, o ungido, que removeu a culpa do pecado daqueles
que nEle creram. Terão que confessar que Ele é o Filho eterno
de Deus. Lá está Ele, em Sua posição de autoridade e poder.
Ele já teve Sua vitória, e finalmente se manifestará, além de
toda dúvida ou contestação, à vista do mundo inteiro. Vejam
depois onde entram as imagens empregadas por Paulo; coisas
ou seres do céu, da terra, de debaixo da terra, anjos, espíritos,
seres caídos, todos, em toda parte, em todo o universo, vão
reconhecê-10. Leiam todo o livro do Apocalipse, principal­
mente os capítulos quatro e cinco, e verão que tudo terá sido
subjugado, e Cristo será confessado como o Deus que é.
Essa é, então, a confissão que fazemos. Permitam-me
dar-lhes algumas razões pelas quais devemos fazer essa
confissão. Em primeiro lugar, devemos confessar que Jesus
Cristo é o Senhor porque isso é um fato, e isso é suficiente
em si e por si. Gostemos ou não, o fato é que Jesus Cristo é
o Senhor, Ele é Deus. Jesus é Deus, e não conhecemos
nenhum Deus à parte dEle; Ele é também o Cristo.
A segunda razão para fazer essa confissão é que é uma
confissão de Deus, e ela O glorifica. Se vocês dizem que
crêem em Deus e querem glorificá-10, reconheçam o Filho.
E, certamente, devemos fazer essa confissão por causa das
consequências que decorrem de fazê-la, ou da recusa a fazê-la.
Fazer essa confissão significa que já passamos da morte para
a vida, do juízo para a segurança, significa que nos tornamos
filhos de Deus e cidadãos de um reino que jamais será des­
truído. Se fazemos essa confissão, isso significa que estamos
numa tal relação com Deus que jamais acontecerá coisa
alguma que possa separar-nos do Seu amor. Se você se recusa a
fazer essa confissão e esse reconhecimento, tal recusa significa
que você pertence àquelas pessoas que no fim O confessarão

175
final e definitivamente, contra a sua vontade, as quais terão
que reconhecê-10, declarar tal reconhecimento e fazer sua
confissão apesar deles próprios.
Contudo, por último, permitam indicar-lhes a consola­
ção da doutrina, e a primeira coisa que vejo aqui é a fidelidade
de Deus. Afinal de contas, o apóstolo está exortando estes
cristãos filipenses a humilhar-se e a obedecer a Deus, im­
plicitamente. Em sua Epístola, Tiago diz: “Humilhai-vos
perante o Senhor, e ele vos exaltará” (Tiago 4:10). Esse é o
argumento - Cristo humilhou-Se, e, “Portanto, também Deus
o exaltou soberanamente”. Se nos humilharmos. Deus, em
Sua fidelidade, também nos exaltará.
E depois, outra coisa, e talvez esta seja a suprema conso­
lação: é Jesus que adoramos, reconhecemos e a quem oramos.
Foi Ele que viveu nesta terra, como nós. E ao nome de Jesus
que todo joelho se dobrará. Lembrem-se de como o autor de
Hebreus se expressa a respeito - temos um Sumo Sacerdote
que foi tocado em Sua sensibilidade por nossas debilidades.
Ele conhece as nossas fraquezas, compadece-Se de nossa igno­
rância, de modo que, quando enfrentarmos o futuro incerto
e quando nos sentirmos fracos e pequenos neste grande e
difícil mundo,
✓ essa é a consolação. Jesus é o nosso Sumo
Sacerdote. E esta Pessoa de que sabemos estas coisas que está
Se dirigindo a nós. Jesus é o Cristo e o Senhor, e é ao nome de
Jesus que dobramos os joelhos. E a Ele que fazemos a nossa
confissão e é dEle que fazemos o nosso reconhecimento, e,
quando fazemos isso, lembramo-nos de que não há nada que
possa afligir-nos que Ele não tenha conhecido e experimentado
e, portanto, Ele pode compadecer-Se de nós. Que gloriosa
doutrina! Adiante de nós está o futuro desconhecido e in­
certo, porém não somos deixados sós, andamos com Jesus,
Aquele que passou por tudo isso e triunfou sobre isso tudo.
E olhamos para Ele, o Senhor glorificado, que tem todo o
poder e que pode segurar-nos com Sua poderosa mão.
13
A Iniciativa de Deus
jDe modo que, meus amados, assim como sempre obedecestes,
não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência,
assim também operai a vossa salvação com temor e tremor; porque
Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo
a sua boa vontade.” — Filipenses 2:12,13

Suponho que não há nenhuma declaração, nem sequer do


apóstolo Paulo, que tenha sido tantas vezes um campo de
batalha para discussão e disputa como estes dois versículos.
Só pode ser assim, dada a profundidade da declaração. Ela
não é importante e interessante só porque, historicamente, tem
provocado tanta discussão e disputa, mas também é uma
declaração grandiosa em si mesma porque, aventuro-me a dizê-
-lo a vocês, é um dos mais perfeitos sumários da vida cristã
que se pode encontrar em qualquer parte. E um daqueles
quadros perfeitos que freqüentemente costumamos encon­
trar nos escritos deste apóstolo. Ele gostava de expor todo o
assunto vez após vez; gostava de fazer um sumário da vida
cristã, e aqui está uma das declarações mais ricas que ele
mesmo já proferiu.
A declaração em foco merece o nosso estudo porque nos
coloca de frente a algumas das grandes questões práticas da
vida cristã. Mas, acima de tudo, a nossa razão para considerá-
-la é que, se a entendermos acertadamente, esta vigorosa
declaração certamente nos trará grande encorajamento e
consolação para a nossa vida e luta cristã. Entendo, pois, que

177
é simplesmente certo considerá-la, seguindo todas essas
diversas linhas.
Não estou sugerindo que a abordemos meramente porque
ela tem sido um famoso campo de batalha e porque gostamos
de discutir só pelo prazer de discutir. Mas eu acho que é bom
e certo que nos esforcemos para entender estas grandes
declarações que têm ocupado tanto a atenção e o pensamento
da Igreja durante a sua longa história. Eu confesso franca­
mente que, quanto a mim, abordo uma declaração como esta
com o que eu classificaria como um santo sentimento de
entusiástica antecipação. Há certamente nesta vida poucas
coisas que podem ser e deveriam ser tão emocionantes para
os cristãos como exercitar suas mentes com algumas destas
tremendas e ressonantes declarações. Não seria, pergunto eu, a
crítica suprema dizer, não só da nossa época em geral mas
também da Igreja Cristã em particular, que parece que ela
perdeu o gosto por estas coisas? Acaso não é uma tragédia que
nos tornamos tão desinteressados em encarar problemas
teológicos, e que passamos a considerar o dever da pregação
como algo cujo objetivo é meramente aliviar-nos e animar-
-nos, ou falar-nos de maneira material, psicológica? Nossos
pais, quando chegavam a versículos como estes, teriam sido
cheios de ardente entusiasmo; teriam discutido-os demorada-
mente, e teriam se alegrado com estas coisas. Mas há sempre o
perigo de as pessoas irem de um extremo a outro, e é uma
tristeza o fato de que hoje temos antes a tendência de evitar
estas grandes questões simplesmente porque há nelas,
necessariamente, um elemento controvertido.
Examinemos então, juntos, tão bem quanto pudermos,
esta grande declaração. Parece que há três principais maneiras
de abordá-la. Estes versículos podem ser abordados de forma
geral, teológica e prática. Bem, é impossível tratar destas três
abordagens num só estudo, e eu me senti compelido a dividir
a minha tentativa de expor estes versículos em duas partes

178
principais. Primeiro os examinaremos de modo geral e também
teologicamente, e depois, no próximo estudo, passaremos a
considerar a sua aplicação prática.
Passemos, pois, a examinar este assunto em termos gerais.
Podemos tomar uma espécie de visão sinótica da questão e
examiná-la como um todo, antes de fazer a nossa análise, e há
um sentido em que somos obrigados a isso, se quisermos
fazer a nossa exposição com honestidade. A própria palavra
“portanto” (VA), no início do versículo 12, compele-nos a tomar
esta declaração em seu contexto, porque ela liga o versículo
com o que vem antes. E isso nos lembra desde logo que,
quando o apóstolo escreveu estas palavras, realmente não
estava interessado primariamente em fazer uma definição
ou declaração teológica. Vou mostrar-lhes, espero, que elas
estão recheadas de teologia, mas, nesta altura, Paulo ainda
está fazendo um apelo prático aos filipenses para que vivam
a vida cristã como devem vivê-la.
Paulo realmente começa a sua exortação prática no fim
do capítulo anterior, e ele recomenda aos filipenses que nada
seja feito por contenda ou vanglória. Ele deseja que a igreja
de Filipos viva harmoniosamente, num estado de amizade
e concórdia, e lhe faz esse apelo especialmente em função
do glorioso exemplo pessoal do nosso Senhor, baseando-o
na doutrina da encarnação e da ressurreição. Aqui, nestes
versículos, ele ainda continua com isso, e seu apelo àqueles
crentes é que vivam esta vida cristã em toda a sua plenitude.
Paulo lembra aos filipenses que há uma relação pessoal
muito especial entre a igreja de Filipos e ele próprio. Ele os
ama e eles o amam, e ele sabe, como já vimos quando discu­
timos o capítulo primeiro, que eles estão muito abatidos por
ele estar na prisão. Alguns deles estão começando a pensar
que, sem Paulo, eles não conseguirão viver esta vida cristã, e
é particularmente em vista desse fato que o apóstolo faz o
seu apelo: “Portanto, meus amados, assim como sempre

179
obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais
agora na minha ausência, assim também operai a vossa salva­
ção com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós
tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade”.
O que Paulo está dizendo em geral é o seguinte: nem por
um momento imaginem que a minha presença ou a minha
liberdade é essencial para vocês viverem a vida cristã. Pela
misericórdia de Deus me foi dado o privilégio de ser o pri­
meiro a levar o evangelho a vocês, e eu pude ensiná-los,
firmá-los sobre seus pés e, num sentido, pude estabelecer o
seu andar. No entanto, vocês não devem pensar nesta nova
vida na qual foram introduzidos em termos da minha pessoa,
como se eu lhes fosse indispensável. Não devem sentir que
tudo vai acabar por que estou na prisão e não posso ir aí
para pregar para vocês. Tampouco devem pensar na vida
cristã como algo humano; não se trata de idéia minha, nem
de alguma teoria que eu elaborei. Não é como se fosse a
minha especial e peculiar idéia da vida e de como vivê-la à
qual, por isso, eu fosse essencial.
Absolutamente não, diz Paulo; cada um de vocês precisa
dar-se conta de que lhe foi dado o dom da salvação; você o
tem tanto quanto eu, e quero que você desenvolva esse dom
que agora possui, essa vida que você recebeu — “operai a vossa
salvação com temor e tremor”. Na verdade, diz Paulo, longe
de a minha presença ser essencial, gostaria de lembrar-lhes
que o único que é essencial está com vocês:
_ “Deus
✓ é o que
opera em vós”, não eu. Não é Paulo, mas Deus. E esse, então,
o sentido geral da declaração que estamos estudando: Paulo
lhes diz que não devem achar que tudo está perdido porque
ele não está lá. O que realmente importa é Deus, e Deus
está lá; é Deus que está operando neles “tanto o querer
como o efetuar”.
Pois bem, penso que aí há algo de primacial importância,
não somente para o nosso entendimento desta carta aplicada

180
à igreja de Filipos, mas também aplicada a todos nós, mesmo
na presente hora. O apóstolo fez uma declaração geral: os
mestres e pregadores podem ser úteis e valiosos, porém não
são essenciais. A vida cristã é uma posse que temos dentro
de nós, e, ainda que todos os mestres e pregadores fossem
silenciados e todos os instrutores fossem banidos, em última
análise isso não teria a mínima importância. Claro está que
isso tem sido uma verdade real e concreta muitas vezes, e, como
lhes tenho dado a entender, tem sido de fundamental impor­
tância na vida e na história da Igreja e do povo cristão: tem
havido dias de perseguição quando muitos mestres e prega­
dores foram silenciados, foram proibidos, mas, graças a Deus,
o evangelho cristão prosseguiu. Tem havido épocas em que
todos os líderes foram mortos ou anulados, porém, visto que
o cristianismo é o amor de Deus dentro da alma, visto que é
uma posse pessoal de todo crente verdadeiro, o cristianismo
prossegue. É Deus que opera e que, num sentido, pode fazê-lo
à parte dos Seus servos.
Queira Deus conceder que todos nós tenhamos este
entendimento dos elementos da vida cristã, que é uma posse
pessoal — a vossa salvação — e que, portanto, há um sentido em
que somos gloriosamente independentes de todos os homens,
até dos mestres que há na própria Igreja. Obviamente, isso
não é detratar o valor dos mestres, mas é dizer que não depen­
demos decisivamente deles. Não devo alongar-me sobre este
ponto, mas sinto-me constrangido a assinalar que com demais
freqüência se encontra entre o povo cristão quase exatamente
o oposto. Muitas vezes há uma espécie de dependência servil
dos homens, um tipo de ligação pessoal; e, naturalmente,
quando o mestre se vai, a pessoa dependente do mestre tende a
entrar em colapso. Quantas vezes, em nossa ignorância e em
nossa incapacidade de entender doutrina, nos tornamos muito
dependentes de pessoas, e com isso nos privamos de alguns
dos mais grandiosos benefícios da vida cristã!

181
Mudando de uma abordagem geral do assunto, passamos
a algo que é mais difícil, a saber, o aspecto teológico ou
doutrinário desta grande declaração. E aqui, óbvia e inevitavel­
mente, dividimos o nosso assunto em três partes importantes.
Eu apenas as anoto aqui.
Em primeiro lugar, vejamos o que Paulo diz sobre a
salvação propriamente dita; e aqui o ponto que devemos
destacar é que o apóstolo não estava exortando os membros
da igreja de Filipos a produzirem sua própria salvação, ou a
procurarem chegar a ela, mas, antes, a porem em ação a salva­
ção que já possuíam. Coloco a questão nessa forma negativa
porque até esta declaração tem sido mal interpretada dessa
maneira: há quem entenda que ela significa que, se você fizer
o melhor que puder para operar a sua salvação, e fizer tudo
o que puder, ser-lhe-á dado o dom da salvação. Mas é claro e
patente que isso é uma completa perversão e negação do que
o apóstolo está de fato ensinando. Ele já havia lembrado aos
filipenses, no capítulo primeiro, que eles tinham recebido o
dom da salvação, de modo que, certamente, ele não lhes está
dizendo aqui: ‘‘Agora, viva uma vida virtuosa, e depois você
se tomará um bom cristão e receberá este dom”. Não, ele está
escrevendo a pessoas que ele diz que já o receberam, e dá
graças a Deus por seu companheirismo no evangelho desde
o primeiro dia até agora; seu argumento é que eles são, não
que vão se tornar cristãos. Portanto, esta exortação não é para
que façam certas coisas a fim de alcançar uma dada posição;
antes, Paulo está dizendo: “Visto que vocês já começaram,
continuem agora”.
Permitam que eu me expresse sobre este ponto desta
maneira: em parte alguma o Novo Testamento apresenta a
vida cristã e a salvação como algo que adquirimos como
fruto dos nossos esforços e lutas e do nosso empenho pessoal.
Paulo diz isso claramente no versículo seis do capítulo primeiro,
onde declara: “...aquele que em vós começou a boa obra a

182
aperfeiçoará (a continuará) até ao dia de Jesus Cristo”. Esta
-é uma verdade básica e fundamental. O postulado geral do
Novo Testamento é que eu e vocês, por natureza, não podemos
fazer nada que nos dê o direito à salvação ou que nos capa­
cite a merecê-la, porque a salvação, segundo a Bíblia, é dom
de Deus. E algo que nos é dado e, enquanto não nos for
dado esse “algo”, não podemos fazer coisa alguma.
Talvez vejamos esta verdade mais claramente se nos lem­
brarmos das maneiras pelas quais o Novo Testamento fala da
salvação. O Novo Testamento fala acerca da justificação, da
santificação e da glorificação; essas palavras são divisões do
termo salvação. O Novo Testamento fala sobre as pessoas
serem justificadas diante de Deus, o que significa que Deus
considera estas pessoas em Cristo como isentas de culpa; Ele
as perdoa em Cristo; elas são justificadas pela fé. Contudo, a
santificação não é isso, é diferente. E aquele processo que se
dá dentro de nós e que nos vai aperfeiçoando. A santificação
é contínua, ao passo que a justificação é Deus nos conside­
rando como isentos de pecado, uma vez e para sempre; é
Deus revestindo-nos da justiça de Cristo e, graças a isso,
considerando-nos livres da culpa. A santificação é Cristo sendo
formado em nós, é a nossa natureza sendo expurgada,
purificada, lavada e aperfeiçoada. E, depois, o estado final, é
o de glorificação, o estado no qual eu e vocês, e todos os
cristãos, estaremos, quando, além desta vida, da morte e do
túmulo, vamos estar diante de Deus, com um corpo redivivo
e perfeito, inteiramente livres do pecado, do mal e da
corrupção. Glorificados!
Bem, a salvação realmente inclui esses três elementos.
Se vocês quiserem considerar este ponto por um aspecto
diferente, podemos examiná-lo assim: há um sentido em que
podemos dizer que, como cristãos, já estamos salvos; há
também um sentido em que estamos sendo salvos; e ainda
outro em que seremos salvos final e definitivamente. E

183
vitalmente importante que tenhamos esse tipo de classifica­
ção em nossas mentes, porque Paulo, aqui, não está falando
sobre a justificação, mas sim sobre a santificação; ele não está
exortando as pessoas a conquistarem a sua salvação — isto é,
para fazerem alguma coisa a fim de que os seus pecados sejam
perdoados e que Deus sorria para elas, ou a fim de serem
libertadas da culpa. Posto que vocês já foram justificados, diz
ele (aos filipenses), operem a sua salvação. Não é a permanência
deles na presença de Deus que ele está considerando aqui; é
este processo de limpeza, purificação e aperfeiçoamento, que
por fim vai levar à sua glorificação. E importante que com­
preendamos isso porque, se considerarmos este assunto como
uma questão de justificação, não somente estaremos falsifi­
cando o ensino do apóstolo, mas também estaremos sendo
desleais para com o ensino do Novo Testamento do começo ao
fim. O que interessa ao apóstolo aqui é o desenvolvimento
da vida que já recebemos, não a nossa chegada a ela. É sua
prática porque já nos foi dada.
E, naturalmente, o que é interessante observar é que a
palavra que o apóstolo emprega nesta conexão é a palavra
“operar”. Noutras palavras, a nossa santificação é algo em que
eu e vocês somos ativos. Aqui, vejam vocês, está envolvida
uma grande doutrina. Existem aqueles que acham que a
santificação é algo em que eu e vocês somos inteiramente
passivos. Há pessoas que ensinam que, assim como você foi
justificado simplesmente por crer e não fazer nada, assim
também você deve receber a santificação exatamente da
mesma maneira. Dizem eles que você é justificado pela fé, e
que o grande engano que muitos cristãos cometem é que
lutam e se esforçam para melhorar e aperfeiçoar-se. Isso é
um erro, dizem eles; você não tem que fazer nada senão
parar, render-se e receber esta santificação, e então você será
considerado perfeito. As vezes eles usam uma frase como esta
- “Deixe ir e deixe com Deus”, e baseiam sua idéia nesta

184
palavra que estamos considerando juntos. Você não precisa
fazer nada, mas deixe a coisa andar e espere em Deus, e
então você receberá a santificação. Todavia, a resposta se
acha aqui, nas palavras do apóstolo, palavras que constituem
um mandamento ativo: ‘^operaV\ fazei algo, ‘‘operai a vossa
salvação com temor e tremor”.
Pois bem, é aí que a confusão doutrinária entra. Com
todos os meus esforços, trabalho e luta, nunca poderei fazer-
-me cristão, mas, porque me tomei cristão, e isto somente
pela graça de Deus, devo agir com todo o meu vigor, com toda
a energia e com todos os esforços que eu possa comandar.
Uma vez tendo eu sido feito cristão, estou em condições de
agir, e por isso a exortação que me é feita é para que eu opere
a minha salvação. Paulo, então, nos exorta a operar, a trabalhar,
a lutar e a combater o bom combate da fé. Diz ele em
Romanos 6:11 que nos consideremos “como mortos para o
pecado, mas vivos para Deus”. Por isso me parece que é inteira­
mente contrário à doutrina do apóstolo ensinar que devemos
ser santificados de maneira passiva e que não devemos fazer
nada, mas devemos esperar que Deus faça tudo para nós.
O segundo ponto, naturalmente, é talvez o mais contro­
vertido, e, contudo, é um ponto que penso que posso mostrar
a vocês que está repleto de consolação, incentivo e exortação.
A segunda questão importante é a da parte de Deus e da nossa
parte em tudo isso — “Operai a vossa salvação com temor e
tremor; porque Deus é o que opera em vós...”. Aí está, de
imediato, o problema. Esse é o ponto no qual a argumenta­
ção sempre foi mais aguda, e penso que há razões para isso. O
perigo está em abordar o texto com espírito partidário — dizendo
que estamos neste campo, ou naquele. Em vez de abordarmos
o evangelho, e sua mensagem e suas declarações, com a mente
livre de preconceito, tão livre quanto possível, ficamos todos
preocupados em provar o nosso ponto de vista; não entramos
na discussão com o espírito que torna possível um verdadeiro

185
entendimento. O outro perigo é o de forçar a nossa lógica
indo além da precisa declaração das Escrituras. Noutras
palavras, o problema, creio eu, muitas vezes surge simples­
mente porque os homens não querem admitir que não
conseguem entender certas questões. Todavia, enquanto
estivermos nesta vida, há algumas coisas que não podemos
conciliar final e definitivamente.
Bem, eu acredito que isso é para o nosso bem e para a
nossa santificação final. Há no Novo Testamento algumas
declarações que parecem contraditórias, e, contudo, não são;
é que as nossas mentes finitas são incapazes de conciliá-las
logicamente. Aqui nós temos um exemplo justamente disso.
Vamos abordá-lo desta maneira: o nosso dever é submeter-
-nos à revelação do que as Escrituras nos ensinam. Ninguém
pode contestar que, no que se refere à salvação, a iniciativa
é sempre de Deus. “Dews é o que opera em vós tanto o
querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade.”
Podemos sumariar esta grande doutrina assim: segundo
a Bíblia, o homem, por natureza, está morto em delitos e
pecados. Se lermos Efésios, capítulo 2, veremos o pano de
fundo desta doutrina. De acordo com o ensino da Bíblia em
toda parte, o homem está por natureza espiritualmente
morto, e não pode fazer nada. Em Romanos 8:7, nos é dito que
a mente natural é “inimizade contra Deus, pois não é sujeita
à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser”. E não somente
o homem não pode fazer nada, mas também não quer
fazer coisa alguma. Ele, em sua mente, está alienado de
Deus e é contra Deus; não pode nem quer agradar a Deus.
Sendo assim, por que todos nós estamos agora interessados
nestas coisas? Por que não passamos o nosso tempo e não
vivemos toda a nossa vida completamente desinteressados
de Deus? Que aconteceu conosco? Que é que fez a diferença?
Eis a resposta da Bíblia: “Mas Deus... pelo seu muito amor
com que nos amou...” (Efésios 2:4). A nossa salvação foi

186
iniciada por Deus; foi Deus que fez algo.
Agora, meu amigo, permita que eu faça uma colocação
em termos da sua experiência. Examine sua própria vida,
encare-se com toda a honestidade e pergunte a si mesmo: “Por
que sou o que sou? Por que me interesso por estas questões
e me preocupo com elas? Por que não sou como tantas
pessoas, perfeitamente honestas e decentes, pessoas boas,
mas que simplesmente não estão interessadas nisto?” Tais
pessoas não se preocupam com estas coisas e, se você lhes
faz menção destas questões, elas sorriem bondosamente e
simplesmente as descartam. Que foi que fez a diferença? — e
você encontra a resposta na Palavra de Deus. Foi algo que
aconteceu com você e que o levou a encarar-se e a encarar sua
vida dessa forma. Foi Deus operando, foi Deus o Espírito
Santo que veio ter com você, apoderou-se de você, fê-lo parar,
pensar e fazer perguntas, deu-lhe certas percepções sobre si
mesmo e sua vida, e sobre Ele. Foi Deus que veio e que o
convenceu do seu pecado. E Deus que vivifica, que desperta;
é Deus que nos dá o dom da vida — permita-me relembrá-lo
de que Paulo fala sobre isso no capítulo primeiro desta
Epístola. Mesmo quando você estava despreocupado, Ele
começou a interferir em sua vida, Ele veio atrás de você e
o perturbou. A iniciativa de Deus!
Mas o apóstolo prossegue e diz algo ainda mais notável.
Deus não apenas dá início a isto, Ele prossegue e lhe dá
continuidade. A declaração que estamos considerando é uma
das mais extraordinárias que se encontram, mesmo nas
Escrituras, quanto a este assunto. “Deus é o que opera em vós”.
Ele não se limita a apresentar-nos de fora algumas coisas.
Segundo o ensino do Novo Testamento sobre a salvação. Deus,
em Cristo, está realizando algo dentro da nossa natureza. Em
nós — não devemos diminuir o sentido dessa expressão,
realmente significa dentro — nas profundezas vitais do nosso
ser. Deus, por Seu Espírito Santo, está realizando algo. Que

187
será? Eis como Paulo o expõe: Deus nos energiza, opera em
nós “tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa
vontade”. Pode haver coisa mais radical? Significa que todo
bom desejo, que toda idéia e aspiração cristã que eu tenha, é
algo produzido em mim por Deus. Deus controla o meu
querer, é Deus que energiza os meus próprios desejos,
esperanças, aspirações e pensamentos; Ele estimula isso tudo.
Eu me pergunto se sempre nos damos conta disso como
deveriamos; se compreendemos que estes desejos de uma
vida cristã melhor e mais perfeita não são autogerados ou
autoproduzidos. Quando você tem desejo de fazer algo
bom ou de orar, é Deus que o energiza em sua vontade, é
Deus operando em nós tanto o querer como o efetuar. Mas
a ação divina não afeta só a nossa vontade. Ele é também a
energia e o poder em nosso ato de respirar, em nossa capaci­
dade de viver esta vida. Essa é a declaração do apóstolo, que
ele faz não somente aqui e sim também em muitos outros
lugares. A iniciativa é de Deus, do princípio ao fim. Foi
Deus que lhe deu início, é Ele que o mantém em andamento
e é Ele que o está aperfeiçoando.
E, todavia, ✓ diz o texto que eu e vocês operemos, que
façamos algo. E contradição? Opino que não, e podemos
expressar-nos da seguinte maneira: Deus efetua esta obra
dentro de nós colocando estes desejos e poderes em nós.
Noutras palavras. Deus nos está aperfeiçoando, está fazendo
com que o Seu grande propósito se cumpra em nossa vida
cristã, não agindo em nós estando nós num estado ou numa
condição de passividade, mas controlando a nossa vontade,
os nossos desejos,
✓ os nossos pensamentos e as nossas aspira
ções - tudo. E Deus que inicia o processo e que nos faz executá-
-lo. Não digo que Deus força a nossa vontade. Antes, Deus faz
algo mais bondoso: persuade a nossa vontade e nos dá santos
desejos, de modo que ficamos querendo essas coisas, e o nosso
desejo e ambição é efetuá-las, porque “Deus é o que opera

188
era nos . Não há contradição essencial nisto, na verdade não
há, era última instância, nenhuma contradição; é iniciativa
de Deus.
Permitam-me mostrar-lhes como Paulo expressa este
ponto: por que Deus começou esta obra? Por que Ele está
operando em nós tanto o querer como o efetuar? Ele o faz
^^segundo a sua boa vontade”. Não seria essa uma das declara­
ções mais admiráveis das Escrituras? Não entendamos mal o
versículo. Foi apesar do meu pecado e do de vocês que Deus
realizou esta obra. Não seria esta a gloriosa doutrina do Novo
Testamento? Embora fôssemos pecadores e rebeldes, embora
só merecéssemos punição. Deus, por Sua boa vontade, por
Sua graça, começou a obra e a está continuando. Pergunto a
mim mesmo: por que você é o que é? Respondo que é tudo
pela graça de Deus e que, contudo, sinto-me responsável.
Sinto a minha vontade e a minha energia entrarem, é-me
dito que eu as ponha em ação, e sinto grande desejo de fazê-lo.
E Deus que me faz desejar efetuá-lo, mas isso não diminui
a minha responsabilidade.
Permitam que eu diga uma palavra final sobre a questão
geral da minha perseverança nesta vida; e aqui devo fazer
duas observações. Acaso vocês não vêem que esta doutrina
garante a nossa perseverança nesta vida? Na medida em que
Deus controla a minha vontade, tenho que continuar. Muitos
parecem falhar porque não querem e não desejam o que é
certo, porém é Deus que opera em você, e Ele o fará querer
o que é certo, para que você possa continuar a fazê-lo. E,
graças a Deus, o processo não pára aí. Eu bem que poderia
querer viver esta maravilhosa vida cristã, mas sou firaco, não
tenho energia ou poder, não tenho uma dinâmica espiri­
tual. Não se preocupe, diz Paulo, Ele lhe dará também a
energia para efetuá-lo. “Deus é o que opera em vós tanto o
querer como o efetuar,” Noutras palavras, você terá o desejo e
lhe será dado o poder, e com estas duas coisas a sua vida

189
cristã está garantida e Deus, que começou o processo, o
continuará.
“Mas, que dizer do temor e tremor?”, alguém pergunta.
Sim, e eu espero tratar disso em nosso próximo estudo.
Todavia dá para você ver, nesta altura, que não significa
temor acerca da salvação final; significa um tipo de reverência
e santo temor. A garantia jaz no fato de que é Deus que está
agindo em você.
Assim, pois, examinamos apressadamente esta doutrina
gloriosa. Posso concluir fazendo uma só pergunta — sobre a
coisa mais importante? Você estaria ciente de que Deus está
agindo em seu ser? Saiba que essa é a prova de que somos
cristãos; não que sustentamos certas opiniões sobre a vida e
sobre o modo de viver, nem que temos um código moral, nem
qualquer coisa desse tipo. Este é o ponto fundamental - será
que estou ciente de que Deus opera em mim? Estaria ciente
de algo que só posso explicar em termos da poderosa ação
de Deus? Posso dizer que Deus está operando em mim tanto o
querer como o efetuar? Porventura estou ciente da Sua inter­
ferência em minha vida, desta ação inquietante e persuasiva,
desse irromper, desse movimento global de Deus que me faz
ver que senti “a Presença que me perturba com o gozo de um
pensamento elevado”? Teria eu sentido sobre a minha alma a
mão do meu Criador me refazendo e me remodelando? Essa
é a verdade a respeito de todo cristão. Deus está operando em
você. Graças a Deus por essa doutrina que me dá segurança,
apesar do meu pecado e de toda a minha indignidade;
Deus, que criou todo o universo e que sustenta tudo o que
Ele criou, está modelando esta minha vida, até apresentar,
finalmente, um produto perfeito, quando então eu estarei
diante dEle e O verei face a face.

190
14
Operando a nossa Salvação
^De modo que, meus amados, assim como sempre obedecestes,
não só na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência,
assim também operai a vossa salvação com temor e tremor; porque
Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo
a sua boa vontade.” — Filipenses 2:12,13

Vamos considerar estes dois versículos pela segunda vez


porque vimos que é impossível tratá-los adequadamente
apenas num estudo. Sugeri que, talvez, a melhor maneira de
dividir esta declaração seria examiná-la em três aspectos:
primeiro, em geral; depois, teologicamente; e, por último,
praticamente, e em nosso estudo anterior tratamos das duas
primeiras divisões.
Também vimos que o objetivo do apóstolo, ao escrever
as palavras em foco, não foi apresentar uma dissertação sobre
teologia, mas, antes, fazer um apelo prático sem colocá-lo em
termos de doutrina. Aí é onde o método do Novo Testamento
difere de um mero sistema ético. Qualquer apelo ao mundo
para que viva a vida cristã antes de ele se tornar cristão é,
como vimos, uma negação do ensino cristão. Temos aqui uma
perfeita ilustração do método do apóstolo. Mas isso também
é verdade quanto a todos os escritores do Novo Testamento;
é sua maneira característica de fazer um apelo em prol da
conduta geral e do procedimento cristão. Não somos colo­
cados debaixo de uma lei, mas um apelo nos é feito. Há no
Novo Testamento uma grande lei da vida, porém é a que o

191
Novo Testamento denomina “a lei perfeita da liberdade”.
Não significa que o cristão vive sem lei, mas que ele tem uma
espécie superior de liberdade. O Novo Testamento sempre
firma a sua doutrina primeiro, e depois, feito isso, diz: “Se
você crê nisso, não consegue ver que isto é inevitável?” É
um apelo para a eqüidade, para o jogo limpo. Ele não nos
confronta com um modo de vida e diz: “Vá vivê-lo”. Primeiro
nos fala sobre certas coisas que foram feitas em nosso favor,
e depois diz: “Agora, então...”. Quando se faz uma transição
da doutrina para a prática nas Epístolas, há sempre um “por
conseguinte” ou um “portanto”, e eu estou dando duro para
indicar que a abordagem essencial se acha nesse tipo de palavra
de ligação. Sem isso não há apelo, mas, por causa disso há
um apelo muito definido dirigido à razão e ao bom senso.
Talvez eu possa expressar o ponto desta maneira: havería
algo que teste a nossa profissão de fé tão completamente como
a nossa reação a ela quando nos chama para vivermos um certo
tipo de vida? Falo desse modo por esta boa razão: será que
não conhecemos, todos nós, por experiência, algo sobre essa
dicotomia antinatural e artificial? Pode ser que nós gostemos
de ouvir o evangelho com suas boas e grandiosas novas e com
tudo o que ele tem para oferecer, mas nem sempre nos agrada
quando nos chama para vivermos de um modo particular.
Há sempre os que dizem: “Mas isso é muito estreito”. Quando
o evangelho delineia um “caminho estreito e apertado”, eles
exclamam: “Estreiteza de novo!” Devido ao “por conseguinte”,
a esta conexão indissolúvel entre doutrina e prática, devido,
também, a esta inevitável seqüência lógica da doutrina para
a conduta, a nossa atitude para com o apelo revela muita
coisa sobre a nossa atitude fundamental para com a doutrina.
Diz o Novo Testamento que estas coisas são realmente inevi­
táveis, são interligadas, e, por isso, se eu me oponho a fazê-las,
certamente isso implica que, de uma forma ou de outra, há
algo errado com a idéia que eu faço da doutrina.

192
Não existe, pois, nenhum teste melhor da minha posição
do que a minha reação quando sou confrontado por este es­
tupendo chamado do Novo Testamento para que eu negue a
mim mesmo, tome a cruz e siga Cristo, para que eu mortifique
a minha “carne”, “os feitos do corpo”, “meus membros que
estão sobre a terra” — e todas as outras maneiras pelas quais
o Novo Testamento expressa esse chamado. Bem, o apóstolo
está fazendo algo parecido aqui, e então, procuremos ver o
que ele nos ensina, ao abordarmos o ponto de vista pura­
mente prático. Para assistir-nos em nossa consideração, faço
três perguntas óbvias. A primeira é: que significa “operar”?
A segunda: como, ou de que modo, devo operar a minha
salvação? E a terceira: por que devo fazer isso?
Então, que significa operar a nossa salvação? A melhor
resposta é definir os nossos termos, e, se descobrirmos a resposta
às duas primeiras perguntas, penso que automaticamente
encontraremos a resposta à última. Tentemos, então, fazer isso.
O apóstolo nos exorta a operar a nossa salvação pessoal e,
como ele nos diz aqui, e como dizem todas as demais Epís­
tolas, a salvação é a mensagem realmente essencial do Novo
Testamento. Quer dizer que eu tenho que ver a minha
pecaminosidade e que entender algo da natureza do pecado.
Os filipenses tinham compreendido que eram pecadores e
tinham se visto sob a ira de Deus. Tinham visto que estavam
condenados pela lei de Deus e que, portanto, eram culpados
aos olhos de Deus. Eles tinham chegado a ver que todo e
qualquer esforço que fizessem seria, em última análise, sem
nenhum valor. Paulo diz a mesma coisa com muitos deta­
lhes no capítulo três. Ele se descreve dizendo que era judeu
e fariseu, tinha sido circuncidado, etc., e, contudo, diz
Paulo, cheguei a ver que tudo isso era refugo, coisa indigna
e inútil.
Bem, estes filipenses também tinham passado a ver isso, e
tinham compreendido que estavam realmente impossibilitados

193
de livrar-se dessa situação. Mas então ouviram e creram nesta
boa nova, esta maravilhosa nova do evangelho, que Deus
tinha enviado o Seu Filho unigênito para morrer na cruz a
fim de fazer expiação por eles. Deus lhes estava dando a
salvação como um dom gratuito e lhes estava dizendo: “Eu
puni os seus pecados ali; não os vejo mais como pecadores,
mas como justos. Dou-lhes um presente”. Eles tinham visto
que lhes fora dada uma nova natureza, que tinham passado
por um novo nascimento. Tinham recebido o Espírito Santo,
e Ele lhes estava infundindo esta nova vida. Tinham uma
nova perspectiva e um novo entendimento - eram realmente
novas pessoas. Além disso, estavam cônscios de um novo
poder e força que os estava libertando, estavam cônscios de
um sentimento de emancipação. Tinham-se tornado filhos de
Deus e cidadãos do céu - “a nossa cidade está nos céus”, o que
significa que a nossa cidadania é lá. Estes filipenses agora
tinham chegado a ver que nesta vida eram viajores, residentes
temporários, peregrinos; tinham uma visão completamente
nova da vida.
Esse é, pois, o significado essencial da salvação, e o que o
apelo de Paulo lhes diz que façam é que operem a sua salvação.
E operar significa aperfeiçoar, efetuar, levar a um resultado
completo, ou finalizar algo que já fora iniciado.
E essa é a exortação prática do evangelho do Novo
Testamento para nós atualmente. Devo aperfeiçoar o que me
foi dado. A semente
✓ foi plantada; recebi em embrião o que
me foi dado. E meu dever permitir que este dom cresça e se
desenvolva, devo incentivar esse desenvolvimento até que
chegue à sua perfeição final e à sua plena maturidade. Possuo
o dom: não preciso preocupar-me temendo que Deus não
está presente e que Ele não está comigo. Deus está agindo
em mim, e eu devo desenvolver esta obra quanto eu puder.
Desejo que todos nós nos convençamos da total inevita­
bilidade deste apelo. Se eu creio no que acabamos de ver

194
sobre a natureza da salvação, não seria inevitável que devemos
fazer estas coisas? Em vista de eu ter recebido a salvação, que
me cabe fazer? Bem, antes de tudo, devo submeter-me inteira­
mente a Deus. O apóstolo o diz aqui em termos do admirável
relato que ele nos faz da vida terrena do nosso Senhor nos
versículos 5-11. Ora, diz Paulo, é justamente isso que Deus
exige de você. Ele quer que você manifeste a mesma obedi­
ência que se viu em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo —
uma completa e absoluta submissão à vontade de Deus.
Embora tenha vindo como homem, o nosso Senhor foi mais
longe, até à morte de cruz. Fosse o que fosse que Deus Lhe
pedisse, Ele fazia; e essa é a primeira parte da operação da
nossa salvação pessoal. Deve-se entender que, à luz desta
maravilhosa dádiva que Deus nos fez, Ele tem direito de
exigir de nós esta completa submissão da nossa vontade.
Antes de eu começar a fazer qualquer coisa, devo dizer a
mim mesmo: “Em vista do que Deus fez por mim, neste
mundo eu devo desejar ser-lhe agradável em todas as coisas.
Devo tornar Sua a minha vontade. Meu único interesse deve
ser o de viver para Sua honra e Sua glória”. Não penso que
isso requeira alguma prova. Se eu creio que Deus fez esta
coisa estupenda por mim, não seria isso inevitável?
Evidentemente, o próximo passo é que eu devo evitar
tudo o que é oposto a Deus, o que o Novo Testamento deno­
mina “o mundo”: “Não ameis o mundo, nem o que no mtmdo
há” (1 João 2:15). O Novo Testamento nos diz que o homem
não pode amar a Deus e ao mundo ao mesmo temo. Ele
coloca isso diante do nosso bom senso e da nossa razão. E
perfeitamente evidente que a perspectiva da vida e que a
organização deste mundo são opostas a Deus. Basta ler os
nossos jornais. O mundo é ímpio, está pronto a fazer troça
de Deus e da religião. Não se interessa por Deus; ele dá azo
à carne e ridicula tudo quanto tenha alguma ligação com
Deus. Mas o Novo Testamento declara que operar a minha

195
salvação significa a fuga de tudo o que se opõe a Deus.
Não há limite para isso. De modo algum devo preocupar-
-me com essas coisas, ou interessar-me por elas, ou deixar-me
seduzir ou atrair por elas. Devo evitar tudo o que é contrário
aos meus melhores interesses. Se eu acredito que o mundo é
um lugar perigoso para mim, que a tentação e o pecado me
rodeiam, e que o mundo faz o máximo que pode para me
arrastar para baixo, se eu vejo que isso me leva para o inferno
e para a destruição, mas que D eus me libertou disso tudo, não
estaria sendo contraditório se continuo fazendo coisas mun­
danas e se gosto
z de fazê-las? Este é um apelo dirigido _ ao
bom senso. E certamente ridículo dizer: “Quero ir para Deus
e dou graças a Deus que fui libertado”, e, todavia, continuar
na direção oposta. “Operai a vossa salvação”; aperfeiçoai-a.
Deus libertou você mediante este maravilhoso ato de auto-
-sacrifício; foi-lhe dado um novo começo e uma nova natureza,
a salvação está posta diante de você. Dê as costas para as
outras coisas, uma vez por todas. Se realmente crermos nisso,
não haverá necessidade de argumentar; é inevitável.
Podemos fazer um sumário disto. A melhor maneira de
fazê-lo é consultar o livro-texto sobre este assunto. Aqui está
perfeitamente claro: quanto mais eu leio a Bíblia e vejo o retrato
do homem cristão, mais entendo a natureza do pecado e da
vida neste mundo, e o que Deus fez por mim em Cristo, e
então mais eu desejo as coisas de Deus e odeio as outras. Por
isso eu sugiro que o passo melhor e mais prático é ler a Pala­
vra de Deus e ficar completamente ensopado dela. Aí está um
teste que cada um pode aplicar neste ponto. Pergunto-me qual
seria o resultado se nós todos mantivéssemos um gráfico por
uma semana e puséssemos no papel quanto tempo passamos
lendo a Palavra de Deus e coisas que nos ajudam a entendê-la,
e quanto tempo passamos lendo jornais e romances e vendo
filmes. Bem, estou apenas fazendo a pergunta. Nós dizemos
que cremos na salvação. Cremos que Deus nos fez esta dádiva.

196
e então, pergunto, qual a proporção do tempo que dedicamos
a estas coisas? Operar a nossa salvação significa que fazemos
tudo o que podemos para alimentar esta vida, para incentivá-
-la, para habilitá-la a estender-se, desenvolver-se e crescer.
E, claro está, a outra coisa é a oração: oração pelo crescente
conhecimento de Deus, por maior porção do Espírito Santo
e por maior entendimento desta Palavra; oração pedindo
orientação, direção e entendimento. Se eu creio em Deus e
que Ele fez isto por mim, por que passo tão pouco tempo
com Ele? Por que não aspiro a Ele cada vez mais? É assim que
operamos o que Ele fez, e eu devo seguir e obedecer tudo o
que eu sinta que me instiga e me leva nessa direção. Os pais
costumavam considerar a vida cristã como uma ocupação de
tempo integral. Passavam seu tempo com isso e, penso eu, uma
das maiores condenações que pesam sobre nós hoje é que
somos culpados de não operar esta maravilhosa salvação que
Deus nos deu.
Mas, então, de que maneira fazemos isso? Diz o apóstolo
que devemos faze-lo “com temor e tremor”. Aqui de novo
precisamos definir nossos termos. Ele não quer dizer que
devemos fazê-lo com medo de perder a nossa salvação. Vocês
verão que no Novo Testamento essas palavras nunca trazem
essa implicação. Quando Paulo escreveu aos coríntios, “Eu
estive entre vós... em temor e grande tremor” (1 Coríntios 2:3),
ele não quis dizer que estava com medo de perder sua alma.
Tampouco se trata de uma espécie de temor covarde, uma
espécie de tormento próprio. A expressão do apóstolo em
Filipenses significa humildade e santa reverência, ou, se
preferirem, uma santa vigilância e circunspecção. Significa
que, quando opero a minha salvação, devo estar ciente da
tremenda seriedade do que estou fazendo.
Pergunto: não seria isso que precisa ser mais salientado
na atualidade, não menos nas fileiras do povo evangélico? Fico
a me perguntar por que será que a idéia que se tinha do que

197
é um homem piedoso, de um modo ou de outro se perdeu
entre nós. Por que será que os cristãos não são descritos como
“gente que teme a Deus”? Por que será que há tanta diferença
entre nós e os cristãos de há cem ou duzentos anos, ou dos
purita-nos do século dezessete? Eles eram cristãos de verdade.
“Metodistas” era também uma espécie de apelido dado às
pessoas por causa da sua vida metódica. Pergunto-me por
que será que, de um modo ou de outro, perdemos esse
sentido particular da vida cristã. Não tenho nenhuma dúvida
de que a explicação é que se trata de uma exagerada reação da
nossa parte ao puro legalismo que era tão comum na virada
do século,^ quando muitos tinham perdido o espírito do Novo
Testamento. Eles impunham a si e a seus filhos um certo tipo
de vida; firmavam regras e regulamentos; e muitos reagiram
a isso e diziam: “Isso é puro legalismo, não é cristianismo”.
Mas agora nós estamos por demais semelhantes a todo o
mundo porque esquecemos o ensino bíblico sobre “temor e
tremor”, vigilância e circunspecção. As vezes eu receio que
ficamos tão ansiosos para não dar a impressão de que ser
cristão significa ter vida miserável, que imaginamos que
temos que ficar sorrindo e gargalhando o tempo todo e
acreditamos no chamado cristianismo “muscular”.
Ora, eu dou meu parecer de que isso é, de alguma forma,
uma negação do que é ensinado nesta passagem. O cristão dever
ser, necessariamente, sério e sóbrio. “Com temor e tremor”
significa uma santa reverência e um santo temor de Deus.
Devo compreender que o Deus por quem me interesso é
“o Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de
variação” (Tiago 1:17), que “Deus é luz, e não há nele trevas
nenhumas” (1 João 1:5). Se Ele está na luz, eu devo andar na
luz (versículo 7). Também devo temer o mundo no sentido de
que compreendo que o mundo é contrário a mim, que ele

Do século dezenove para o século vinte. Nota do tradutor.

198
aí está para arrastar-me para baixo e para longe de Deus.
Por tudo isso devo ter um respeito saudável.
Também devo temer a mim mesmo. Quem conhece o seu
próprio coração não pode ser leviano, negligente e irreverente.
Ele sabe que em sua carne “não habita bem algum”. O cristão
é alguém que opera a sua salvação com temor e tremor; teme
que venha a falhar ou a vacilar, que não consiga discernir a
sutileza do mundo, o poder do pecado e sua própria fraqueza,
e a santidade de Deus. Por isso anda com seriedade, para
que não seja indigno desta grande salvação.
Vimos, pois, o que significa operar a nossa salvação e
como devemos fazê-lo, e agora, por último, vejamos: por
que fazê-lo? Antes de tudo, como já vimos, devemos fazer
isso porque foi exata e precisamente o que o nosso Senhor
e Salvador Jesus Cristo fez. Ele submeteu-Se a Deus; Ele
disse: “Porque eu desci do céu, não para fazer a minha von­
tade, mas a vontade daquele que me enviou” (João 6:38).
Haveria coisa mais alta para nós do que imitar e emular
o Seu exemplo?
A segunda razão é pelo que Ele fez por nós; nós cremos
que Cristo derramou Seu sangue e deixou que o Seu corpo
fosse partido para que fôssemos libertados. Como Paulo
escreveu a Tito, “O qual se deu a si mesmo por nós para nos
remir de toda a iniqüidade, e purificar para si um povo seu
especial, zeloso de boas obras” (Tito 2:14). Essa foi a razão
pela qual Ele veio ao mundo e foi para a morte de cruz. Foi
para que nós pudéssemos fazer o que somos exortados a
fazer.
Depois, eu devo operar a minha salvação por Sua honra
e por Sua glória. O mundo O julga por Seu povo. Nesse
sentido, a Sua honra e a Sua glória estão em minhas mãos.
Se falho, causo desonra a Cristo.
Outra razão é que há outros me observando. Até o pró­
prio mundo me observa, e eu devo viver de maneira que os

199
atraía para Cristo, advertindo-os da sua condição pecaminosa
e terrível, e fazendo o máximo que posso para levá-los a
conhecê-lO.
Há ainda outra razão, e poderosa: se eu realmente creio
que vou para o céu, que sou cidadão do reino de Deus e que
quando eu morrer vou entrar nessa maravilhosa herança,
então “qualquer que nele tem esta esperança purifica-se si
mesmo, como também ele é puro” (1 João 3:3). Deus é absolu­
tamente puro e perfeito, e, se eu digo que vou a Ele, tenho
algum momento para desperdiçar? Devo preparar-me; não
há um segundo a perder.
E, finalmente, devo operar a minha salvação com temor
e tremor por esta boa razão: o Novo Testamento me ensina
que, se eu deixar de fazê-lo pessoalmente, não deverei ficar
surpreso se Deus começar a fazer certas coisas comigo.
Lembram-se do ensino de Hebreus, capítulo 12? “O Senhor
corrige o que (ele) ama, e açoita a qualquer que recebe por
filho.” Isso é dito mais contundentemente em 1 Coríntios,
capítulo 11, onde Paulo declara que na igreja de Corinto
havia muitos que estavam doentes, e que havia até alguns
que estavam mortos, e nos informa que a razão disso era que
eles não se haviam examinado antes de participarem da Ceia
do Senhor, e participaram indignamente. Quem faz isso, disse
Paulo, “come e bebe para sua própria condenação, não dis­
cernindo o corpo do Senhor” (1 Coríntios 11:29).
Pode-se expor a doutrina do Novo Testamento desta forma:
se Deus chamou você e lhe deu a Sua salvação, Ele o destinou
para a salvação e vai aperfeiçoá-lo. Seu método é colocar
instigações dentro de nós. Ele energiza a nossa mente e a
nossa perspectiva geral, mas, se nós deixarmos de praticar
estas coisas. Deus, em Seu amor por nós, vai nos corrigir -
uma doença, um mal qualquer, um desapontamento, uma
perda, uma tristeza. São meios que Deus usa por causa da
nossa frustrante negligência e da nossa atitude recalcitrante.

200
‘‘Horrenda
✓ coisa é cair nas mãos do _ Deus vivo” (Hebreus
10:31). E grande assim o amor de Deus! O cristão que não
faz o máximo que pode para viver a vida cristã é um in­
sensato, e não deve ficar surpreso se começarem a acontecer
certas coisas com ele. Se você é filho de Deus, Ele vai efetuar
a sua perfeição, e, se você não fizer o que pode para Lhe
agradar desta forma, digo-lhe então que pode bem ser que
você veja Deus realizar essa obra por um desses outros
meios. Isso é o que há de maravilhoso. Não estou dizendo
que todo cristão que sofre está sendo corrigido ou castigado,
mas de fato digo que Deus faz isso, e, se nós deixarmos de
responder ao Seu apelo, não devemos ficar surpresos se ex­
perimentarmos a correção por Ele a nós imposta.
Portanto, meus amados, “operai a vossa salvação com
temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o
querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade”.

201
15
O Interesse Especial de Deus
por Seu Povo
'‘Fazei todas as coisas sem murmurações nem contendas: para
que sejais irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus inculpáveis no
meio duma geração corrompida e perversa, entre a qual resplandeceis
como astros no mundo; retendo a palavra da vida'\ - Filipenses
2:14-16a

Aqui o apóstolo continua a desenvolver o tema que vem


ocupando a sua atenção em todo esse trecho. Ele está apelan­
do aos membros da igreja de Filipos para que vivam a vida
cristã em toda a sua plenitude^ e obviamente ele tem um
esquema em mente. Antes de tudo, ele lhes lembra a real
natureza da vida cristã. E vimos isso quando consideramos
aquelas conhecidas palavras: “Operai a vossa salvação com
temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o
querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade”. Deus
fez algo com vocês, diz Paulo. Ele os fez o que vocês são, e
continua operando em vocês, energizando até o seu pensar e
o seu querer, como também as suas ações. Portanto, operem
o que lhes foi feito, dêem-lhe plena amplitude, levem-no
à perfeição, terminem a obra. E vimos que ele dá ênfase a
isso de várias maneiras.
Mas nem com isso Paulo se contenta. Ele está muito
preocupado com o estado em que se encontram os filipenses
porque foi ele que Deus tinha usado para levá-los à fé em
primeiro lugar; ele tem tanto orgulho deles que tem grande

202
desejo de que eles cheguem a um estado completo. Como
sábio mestre, ele sabe da importância de uma negativa. Ele
se dá conta de que não basta que lhes diga o que devem
fazer de maneira geral, mas que também precisa dizer-lhes
o que devem evitar e o cuidado que devem ter. Ele sabe que
há certas coisas que provavelmente os atacarão, tem que
adverti-los de antemão e com isso prepará-los para o dia da
provação. Por isso ele desenvolve este apelo para o viver e a
conduta cristãos, e seleciona algumas coisas que, natural­
mente, são de primária importância. Ele já o tinha expres­
sado inteiramente numa grande declaração, quando lhes
disse que operassem a salvação deles “com temor e tremor”,
porém talvez fosse preciso dar-lhes os motivos para o uso
dessa frase.
Por que é necessário, então, este “temor e tremor”? O
motivo, ele lhes diz, é devido a certas coisas que provavelmente
os atacarão. Paulo não é somente um profundo psicólogo
cristão, é também alguém familiarizado com as Escrituras do
Velho Testamento e com certas advertências importantes e
básicas que se encontram na história dos filhos de Israel. O
apóstolo conhecia também algo desses perigos em sua vida
pessoal e já tivera muitas experiências com diversas igrejas;
e todas essas coisas se juntavam para deixá-lo ansioso quanto
à sua amada igreja de Filipos. Por isso lhes escreve para
adverti-los, preveni-los e salvaguardá-los contra esses sutis
inimigos da alma. E é isso que ele está fazendo nesta altura,
quando pinta para nós um daqueles grandes e inimitáveis
quadros do homem cristão e da vida cristã.
O apóstolo Paulo parece totalmente incapaz de mera­
mente fazer uma exortação como tal. Como já vimos, ele nunca
se limita a dar às pessoas um certo número de regras e
regulamentos — faça isto ou aquilo - ele sempre coloca as suas
advertências em termos de uma visão global. O propósito
imediato de Paulo aqui é exortá-los a fazer todas as coisas, a

203
operar a sua salvação, sem murmurações nem contendas. Mas
ele coloca isso tudo em termos da condição e posição deles
como filhos de Deus. Esse é o ponto central da sua exortação.
O apelo é expresso dessa maneira porque eles são filhos de
Deus, e é dirigido a eles nessa qualidade. A implicação é:
uma vez que vocês são isso, estas são as coisas que agora
vocês devem lembrar e pôr em prática. Dessa forma somos
outra vez levados a lembrar que o apóstolo Paulo nunca se
interessa pela ética qua^ ética; seu interesse é sempre teoló­
gico, e é claro que só pode ser, porque o cristão não é
tão-somente um bom homem ético, é mais que isso.
E essa verdade é vitalmente importante, porque nós
estamos vivendo numa época na qual, certamente, deveriamos
enxergar, com visão mais clara do que nunca antes, a completa
impossibilidade de uma ética e de uma moralidade cristãs
divorciadas da única base da qual a ética e a moralidade
derivam. A tragédia desta particular geração é que estamos
vivendo do capital do passado. Os nossos pais gostosamente
imaginavam que podiam largar o evangelho e continuar
mantendo a vida cristã; também achavam que podiam negar
os princípios básicos da fé cristã e ainda reter o que eles
consideravam bom nela, a saber, a sua ética e a sua morali­
dade. Todavia, hoje em dia por certo devemos ver claramente
que isso é uma total impossibilidade, e, se os nossos pais só
tivessem lido mais atentamente estas Epístolas, nunca teriam
imaginado tal estultice. O nosso texto revela um perfeito
entendimento de toda essa questão; quando o apóstolo quer
mostrar aos filipenses que eles não devem murmurar, ele diz:
“Agora, como filhos de Deus, vocês não devem murmurar”.
Que diferença, quando ele fala dessa maneira! Aqui vocês têm
um vigoroso apelo, e, se esquecermos isso, não deveremos ficar
surpresos se houver um grande fiasco na ética e na moralidade.

Como; como tal. Em latim no original. Nota do tradutor.

204
Permitam-me expressar este ponto na forma de uma
ilustração; é uma ilustração utilizada pelo Professor Emil
Brunner para mostrar a diferença que há entre a conduta
verdadeiramente cristã, que resulta da vida cristã, e esta tenta­
tiva de meramente incorporar a ética e a moralidade na vida
e no viver de cada dia. Diz ele que é a diferença existente
entre flores colhidas e postas num vaso, e flores crescendo da
terra. Você pode pegar essas flores colhidas e colocá-las num
vaso, e elas vão permanecer vivas por algum tempo, porém
logo vão morrer. Contudo, se as tivesse deixado na terra,
continuariam a viver — essa é a diferença. Pensar que se pode
manter a ética e a moralidade cristãs sem a doutrina cristã
é exatamente a mesma coisa. Você pode gozar a beleza e o
aroma dessas flores colhidas por uma noite, mas elas não
podem durar, porque foi cortado o fluxo da vida. O apóstolo
nos previne contra todo esse erro, e mais uma vez nos
mostra que nunca se deve fazer nenhum apelo na esfera
cristã, exceto em termos da doutrina aceita.
Talvez a melhor maneira de considerar o assunto e de
resumir a mensagem destes dois versículos e meio que estamos
estudando seja examiná-la primeiro em termos da descrição
que Paulo faz do cristão, e depois em termos das suas implica­
ções inevitáveis. Comecemos pela descrição propriamente
dita: “Fazei todas as coisas sem murmurações nem contendas;
para que sejais (ou vos torneis) irrepreensíveis e sinceros,
filhos de Deus”, como diz a Versão Autorizada (inglesa “sons^^,
ou “filhos de Deus”, como diz a Versão Revista (inglesa
^^childretf'), “inculpáveis...”. Pois bem, existem muitas maneiras
de descrever o cristão, mas eu suponho que essa é a descrição
característica do Novo Testamento, e certamente é a melhor
e a mais significativa. Os cristãos, lembra-nos Paulo mais
uma vez, são filhos de Deus.
O primeiro ponto que devemos desenvolver nesta cone­
xão é que isto só é verdade quanto aos cristãos, e, contudo,

205
não é suficiente só fazer uma asserção dogmática como essa.
Tem havido muitíssima prosa, especialmente nos últimos
cinqüenta anos mais ou menos,acerca da chamada
“paternidade universal de Deus” e da “fraternidade universal
do homem”, e uma teoria muito popular é que todos os
seres humanos são filhos de Deus. Não é de admirar, claro,
que essa teoria esteve em voga quando a doutrina cristã estava
sendo despojada do seu significado essencial. A idéia geral
consiste em contestar o velho ensino segundo o qual somente
os cristãos são filhos de Deus. Não, dizia este novo ensino,
você não deve salientar a sua doutrina e o seu dogma desse
jeito, todos os seres humanos são filhos de Deus, quer creiam
em Cristo quer não. Foi dada tanta ênfase à paternidade
universal de Deus e à firaternidade universal do homem que
desapareceu a necessidade da verdade cristã, e o evangelho foi
considerado como uma espécie de vago apelo geral às pessoas
para serem amáveis umas para com as outras e para viverem
uma vida moralmente boa. Esse tipo de pensamento tem
sido muito popular durante o presente século (vinte). Exami­
nemos isso então, porque o argumento geral do apóstolo
aqui, penso que posso demonstrá-lo a vocês, depende do
fato de que só os cristãos são filhos de Deus.
Pois bem, há quem diga que as declarações feitas em Atos,
capítulo 17, são uma confirmação dessa idéia de paternidade
universal de Deus, porque Paulo, quando pregou em Atenas,
disse que somos “geração de Deus”, e que Deus “de um só fez
toda a geração dos homens...” (Atos 17:29,26). Ora, é evidente
que o que o apóstolo estava ensinando era que, em última
instância, todos derivamos de Deus, no sentido de que todos
fomos criados por Ele. Somos todos descendentes de Adão,
e Adão, no último sentido, é descrito como “filho de Deus”,

Ou seja, aproximadamente desde os fins do século dezenove. Nota do


tradutor.

206
o que significa que ele foi criado por Deus. Deus é o nosso
Criador, Ele nos formou, e isso diz respeito a todos os seres
viventes.
Mas temos outra prova, ainda mais notável que essa. Vocês
se lembram do que o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo
disse certa tarde a respeito de algumas pessoas que estavam
discutindo com Ele e O estavam questionando? Ele disse: “Vós
tendes por pai o diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso
pai” (João 8:44). Vocês se dizem semente de Abraão, diz Ele,
mas vocês não são filhos de Abraão, pois, se fossem, creríam
em mim — vocês todos têm por pai o diabo. Depois vimos que
também o apóstolo Pedro diz aos cristãos para os quais escreve:
“Vós, que em outro tempo não éreis povo, mas agora sois povo
de Deus” (1 Pedro 2:10); “Antes”, praticamente é o que ele
diz, “vocês eram apenas uma plebe, mas agora são povo de
Deus, e por isso, “amados, peço-vos...”. E o mesmo argumento
que encontramos no texto que estamos estudando.
A seguir permitam que eu lhes apresente a declaração
positiva que temos, confirmando a doutrina. No prólogo do
Evangelho de João vemos estas significativas e importantes
palavras — “Mas a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder
(ou a autoridade) de serem feitos filhos de Deus” (1:12). Por
natureza eles não eram filhos de Deus; o pecado rompera essa
relação. Depois o próprio Paulo, em Efésios, capítulo 2, escre­
vendo aos crentes gentios, lembra-lhes o fato de que eles tinham
estado “separados da comunidade de Israel e (eram) estranhos
aos concertos da promessa, não tendo esperança, e sem Deus
no mundo”. Mas agora, em Cristo, diz Paulo, eles chegaram
perto. Antes estavam fora da família, e não eram membros da
casa, porém em Cristo eles foram introduzidos na casa e na
família de Deus. Tinham se tornado Seus filhos.
Também, em Romanos 8:15, Paulo escreve: “...não rece­
bestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em
temor, mas recebestes o espírito de adoção de filhos, pelo qual

207
clamamos: Aba, Pai”. Anteriormente não éramos filhos, mas
agora somos, porque recebemos este espírito que nos torna
filhos, o espírito de adoção, e clamamos: “Aba, Pai”. Pois bem,
certamente todas estas declarações, e há outras que poderia­
mos acrescentar, devem deixar muitíssimo claro que a
expressão “filhos de Deus” é uma expressão que impõe limites
e que só se aplica aos cristãos. Num sentido não precisamos
ir além das palavras que estamos considerando, porque toda
a ênfase aqui é que os cristãos são diferentes, são luzes no
mundo, luminares, postos à parte. São separados porque,
como ele diz, são filhos de Deus. Os outros não são; daí a
diferença, e também a razão pela qual eles são necessaria­
mente diferentes.
Temos aqui, pois, algo que é inteiramente básico e fun­
damental. O Novo Testamento sempre se empenha em mostrar
que ser cristão é ser inteiramente diferente de quem não o é.
Não podemos reiterar isso demasiadas vezes. Não é diferença
de grau, mas de espécie; não é diferença em coisas que faze­
mos na vida, algo quantitativo, é diferença qualitativa. É uma
diferença vital, a diferença que há entre pertencer a uma
família e não pertencer - é uma relação de sangue. Esse é o
ponto defendido aqui, e lhe dou ênfase porque o apelo do
apóstolo se baseia nessa diferença, de modo que, senão
estivermos certos nisso e não o entendermos bem, o apelo
cairá em ouvidos moucos.
No entanto, tendo estabelecido esse fato, devemos ir
adiante e considerar o que isso significa, o que implica e o
que nos diz a respeito de nós mesmos. Eis algumas coisas
que o Novo Testamento nos diz: como o apóstolo nos lem­
bra quando escreve aos romanos, fomos adotados na família
✓ Deus. Esta é uma grande concepção neotestamentária.
de
Éramos, por assim dizer, andarilhos perdidos, estávamos fora,
ninguém se preocupava conosco nem cuidava de nós, ou
ninguém estava vitalmente interessado em nós. Mas Deus em

208
Cristo Se apoderou de nós e nos adotou. Ele nos tomou e
nos introduziu na família. Ele nos considera como filhos; e
fez isso de maneira absolutamente legal, revestindo a adoção
de plenos direitos.
Entretanto não paramos aqui, porque, de acordo com o
Novo Testamento, além de adotados na família de Deus,
também somos participantes da natureza divina. Isso é um
grande mistério, uma doutrina que não podemos esperar
entender nesta vida e neste mundo, e, todavia, está aqui, na
Bíblia: lemos todas essas declarações acerca do fato de que
nascemos do Espírito, recebemos o Espírito, fomos regene­
rados, nascemos de novo, fomos criados de novo — são essas as
expressões. E então, em acréscimo a termos sido tomados e
adotados na família, uma mudança vital operou-se em nós;
recebemos algo da natureza divina. Sim, mas devemos ter
o cuidado de não pensar nisso em termos de um processo
material, como algo injetado em nós. Todavia é uma reali­
dade, e de fato recebemos a natureza de Deus. Mediante o
Espírito Santo que habita em nós, somos participantes da
natureza divina, de modo que não se trata apenas de uma
adoção legal; uma transação vital a acompanha.
Depois, as outras coisas que são verdadeiras com referên­
cia a nós como filhos de Deus são que nos tomamos objetos
especiais do cuidado e do favor de Deus; isso é inseparável da
idéia de que somos filhos. Claro está que os filhos constituem
sempre o interesse especial do pai; por isso existem as famí­
lias, a provisão de Deus neste mundo e nas quais nascemos.
Deus providenciou que houvesse duas pessoas que nos
amassem de maneira especial, somos seus filhos, eles vão velar
por nós e cuidar de nós; de igual modo é dito aos cristãos:
“sois filhos de Deus”. E, naturalmente, o resultado disso é que
estamos numa posição muito privilegiada. Fomos separados,
chamados e postos à parte. Estamos na posição privilegiada
de objetos especiais da solicitude e do interesse de Deus. “Sim”,

209
diz praticamente o apóstolo, “e por essa razão eu quero que
vocês vejam que há responsabilidades especiais que se nos
impõem”. E é isso que ele tem em mente: “Porque vocês são
filhos de Deus, por causa disso, portanto...”. Agora, diz o
apóstolo, em vista desta especial relação nossa com Deus,
devemos ser o que Ele pede que sejamos, e devemos fazer o
que Ele nos chama para fazer.
Assim demos uma olhada de relance no quadro geral do
cristão que Paulo nos apresenta. Agora, em segundo lugar,
devemos passar a considerar a maneira pela qual devemos
viver e conduzir-nos como filhos de Deus. Para começar,
examinemos o que o apóstolo tem para nos dizer acerca do
nosso caráter essencial como filhos de Deus. A primeira coisa
é: “Fazei todas as coisas sem murmurações nem contendas”.
Bem, a frase “todas as coisas” significa tudo quanto está
relacionado com a nossa salvação, e isso nos leva de volta à
exortação que consta no versículo 12: “De modo que, meus
amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha
presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim
também operai a vossa salvação com temor e tremor”. A
expressão “todas as coisas” refere-se a esta esfera da salvação
na qual vivemos e com a qual nos preocupamos. Todas as
coisas que ele nos pede que façamos, este viver a vida cristã,
devem ser feitas sem murmurações nem contendas.
Bem, essa é uma declaração notável, e devemos analisá-la
juntos. Não pode haver dúvida de que neste ponto o apóstolo
tem algo muito definido em sua mente - a história antiga dos
filhos de Israel. Leiam, por exemplo, o Salmo 106, porque ele
é um perfeito e maravilhoso relato sobre esse povo. Deus
separou essa nação dentre todas as nações do mundo.
Denominou-a Seu povo, conduziu-a e derramou bênçãos sobre
ela. Lembram-se da história do seu chamamento e libertação
do Egito e da escravidão? Esse povo foi destinado à gloriosa
e maravilhosa terra de Canaã; mas, que aconteceu depois? Os

210
filhos de Israel murmuraram em suas tendas contra Deus e
constantemente se queixavam e discutiam. Sim, eles reconhe­
ciam que Deus os tinha libertado, mas, que adiantava isso?
Por que não deveriam voltar para o Egito? Porventura Deus
os libertara para os destruir no deserto? E se lembravam
com saudade “dos porros, e das cebolas, e dos alhos” (Números
11:5) do Egito. Vocês encontram tudo isso especialmente no
livro de Números, mas também noutras partes do Velho
Testamento; eles murmuravam, e esse foi o seu problema.
Então o apóstolo tem esses fatos em mente quando escreve
aos membros da igreja de Filipos, e a maneira de aprendermos
deles é a seguinte: “Ora”, disse com efeito Paulo, “já os fiz
lembrar que Deus está agindo em vocês, e por isso eu quero
que examinem a vida cristã como uma grande peregrinação.
Naturalmente, o passo inicial foi o da conversão, quando vocês
foram tirados do mundo e entraram nesta esfera. Mas Deus
não terminou o que planejou fazer com vocês. Ele os está
conduzindo, exatamente como conduziu os filhos de Israel
na antigüidade, e lá está Canaã, o refúgio de eterna beatitude,
no futuro; porém vocês têm que ir daqui para lá”. “Lembro-
-Ihes”, diz Paulo, “que Deus os está conduzindo; é Deus que
opera em vocês tanto o querer como o efetuar — Deus está lá,
na nascente e origem da fonte da vida. Ele coloca na mente
de vocês desejos, pensamentos e sugestões, e vocês verão que
Ele os conduzirá, Ele os colocará em certas posições e situa­
ções. Deus vai realizar muitas coisas para vocês e com vocês”,
diz Paulo, “exatamente como fez em relação aos filhos de
Israel”.
“Mas, esta é a questão: vocês têm que ter todo o cuidado
de não cair no erro deles e seguir seu exemplo, e murmurar.
Pois saibam”, continua Paulo, “que vocês verão, como os filhos
de Israel viram, que às vezes Deus os colocará em lugares nos
quais vocês não querem estar. Haverá dias em que vai parecer
que não há água que mitigue sua sede; haverá dias em que o

211
apetite fugirá e a comida não despertará interesse; e haverá
dias em que o inimigo os confrontará; mas vocês verão que
Deus está operando em vocês, tanto o querer como o efetuar, Ele
os está conduzindo e está levando o Seu processo à perfeição.
Vocês verão que haverá dias em que dirão: “Por que isto?
Por que Deus me trouxe a isto? Deus diz que me ama e que
é meu Pai, e então, por que está acontecendo isto?” E nessas
ocasiões a tentação será para murmurarem e para terem essas
contendas em suas mentes. Mas, onde quer que cada um de
vocês esteja situado neste processo cristão por meio do qual
Deus o está levando e conduzindo, faça tudo sem murmurar
nem contender”.
Analisemos agora as palavras do texto. As murmurações,
naturalmente, são sem dúvida fruto de um espírito e de um
querer obstinados. Elas são sinais indicativos de rebelião moral,
ou, para dizê-lo de modo mais contundente, as murmurações
sempre são fruto da falta de amor. Aqui vocês vêem que o
apóstolo não emprega as suas palavras impensadamente; ele
coloca murmurações antes de contendas. Que psicólogo
profundo ele é! Imagino que muitos de nós pensariam que
contendas deveria vir antes de murmurações, que primeiro
duvidamos e questionamos, e depois murmuramos. Nada
disso! Na vida cristã é o inverso. A primeira coisa que vai mal
no cristão é que ele começa a duvidar do amor de Deus, e as
discussões e contendas são resultados da rebelião intelectual.
Assim como as murmurações são sinais indicativos de falta
de amor, assim também as contendas sempre são sinais
indicativos de falta de fé.
Essa é a ordem, e é como funciona. O cristão se vê em
dada situação, e seu primeiro pensamento é: “Por que Deus
fez isso?” Inquirir sobre o amor de Deus vem antes de tudo
mais. Depois, tendo entrado nessa condição na qual você
perde seu amor a Deus, você deixa de crer no amor de Deus
por você, e começa a fazer perguntas. “Haveria alguma coisa

212
nisso?”, você pergunta, e dessa forma as murmurações se
seguem às dúvidas. Quando pessoas nos procuram e querem
fazer-nos acreditar que as suas dificuldades são inteiramente
intelectuais, não estão falando a verdade. É falta de amor, é
carência moral, e isso leva o problema à esfera da fé —
murmurações e depois contendas.
Essas duas coisas vão juntas, claro. Se uma vez começamos
a duvidar do amor de Deus, logo começamos a duvidar de
tudo. Começamos a duvidar dos fatos; começamos a duvidar
dos princípios gerais; começamos a preocupar-nos com
milagres e com toda espécie de coisas — essa é a ordem. Primeiro
você ama, depois entende, e, se você não tiver essa confiança
fundamental, não pode esperar ter fé — essa é, de novo, a ordem.
E, claro, é isso que é ilustrado perfeitamente no caso dos
filhos de Israel. Eles tinham visto maravilhas operadas por
Deus, tinham tido uma prova absoluta do Seu poder, e,
enquanto ia tudo bem, como o Salmo nos lembra, eles criam.
Depois acontecia alguma coisa e eles se punham contra Deus
e se punham a questionar Seu amor. Quando você perde a
confiança em Deus, não pode crer em coisa alguma; quando
você ama Deus, pode ser capaz de não temer coisa alguma -
estas coisas sempre vão juntas, e as murmurações levam às
contendas.
Não há nada que tanto estrague a vida cristã, não há nada
que tanto arruine a vida, como este espírito de murmuração e
de contenda. Esse espírito arruinou a história geral do povo
antigo, arruinou a vida e a experiência cristã de muitos cristãos
neste mundo. Faz você sentir-se mal; deixa-o desanimado; você
fica sem entender coisa alguma; acha que o seu quinhão é
o único péssimo no mundo. E não somente isso, esse espírito
leva também a um testemunho pobre; traz deshonra e má
reputação ao nome cristão. Por isso o apóstolo concita os
filipenses a que o evitem a todo custo e a que tomem em con­
sideração aquela clara ilustração dos antigos filhos de Israel.

213
Todavia, permitam que eu coloque este aspecto do assunto
noutros termos. ‘‘Como posso executar a exortação do após­
tolo?”, talvez alguém pergunte. “Está muito bem que Paulo
diga: “Fazei todas as coisas sem murmurações nem contendas”,
e está muito bem que os pregadores subam ao púlpito e digam
a mesma coisa, mas, se você estivesse em minha situação, que
faria? Se você soubesse as coisas que tenho que enfrentar! Como
posso ir em frente sem murmurar e sem contender?” Permitam-
-me sugerir a você algumas respostas que encontramos na
própria Bíblia. Elas constituem o antídoto contra a tendência
e o terrível perigo de abrir alas para este danoso espírito. Antes
de tudo, comece lembrando o caráter de Deus. Deus é santo
e justo. Ele é absolutamente reto. Deus não tenta ninguém
para o mal, nem pode ser tentado, diz o apóstolo Tiago. Seja
qual for o mal ocorrido, disso podemos estar certos, e esse
fato jamais deverá ser examinado ou questionado. Deus é
incapaz de fazer qualquer coisa descortês ou injusta. Seu caráter
é absoluto. Portanto, quando você se vir prestes a resmungar,
murmurar e se queixar contra Deus, simplesmente trate de
lembrar-se desse caráter absoluto da Sua natureza.
Depois, o ponto subseqüente é que o apóstolo dá ênfase
aqui à paternidade de Deus. Se você é cristão, meu amigo,
significa que Deus é seu Pai, e Ele é um Pai que o ama e Se
interessa por você. Quando você era Seu inimigo, Ele enviou
Seu Filho unigênito para a cruel morte na cruz por você.
Foi Deus que iniciou todo este movimento de salvação para
que você pudesse ser perdoado e para que você pudesse ser
salvo e redimido. Portanto, seja qual for a sua situação e por
menos que você a entenda, lembre-se de que esse Deus
Santo é seu Pai. O que quer que esteja acontecendo, diga a
si mesmo: Sou filho de Deus, e Deus me ama e Se preocupa
comigo. Ele está especialmente interessado em mim, e vela
por mim.
Depois, em terceiro lugar, lembre-se da grandeza de Deus

214
e da sua própria pequenez, especialmente da pequenez da
sua mente e do seu entendimento. As vezes penso que aí
está a chave de toda a situação. Para mim o pecado final é
que queremos entender Deus. Acaso não foi esse o problema
no Jardim do Éden no princípio? “Por que vocês não
deveriam ser deuses?” - essa foi a insinuação que lhes foi
apresentada. E seu clamor foi: “Por que devemos ser proibidos
de comer do fruto do jardim? Somos suficientemente gran­
des para entender a mente de Deus!” Queremos ser capazes
de compreender Deus!
Mas eu e vocês temos mentes pequeninas, anãs, e Deus
é infinito, absoluto e ilimitável. Cada vez mais eu penso na
fé dessa maneira. Fé significa que eu me contento com a
revelação que me é dada, que eu devo contentar-me em não
fazer perguntas, que eu nem sequer desejo conhecer ou saber
mais, e que digo: “Estou satisfeito com o que me deste a
entender”. Não podemos entender como opera a mente de
Deus. Sua mente é tão grande, e a minha é tão pequena!
Posso não entender o processo, mas o fato de eu não poder
entendê-lo não significa que a mente de Deus está errada ou
é maldosa ou é cruel. Você não pode medir sua mente com-
parando-a com a mente de Deus.
O próximo ponto é que sempre devemos lembrar que o
principal interesse de Deus por nós é a nossa santificação. E
Ele que opera em nós “tanto o querer como o efetuar”, e a
vontade de Deus é a nossa santificação. O interesse de Deus
por mim e por vocês não é apenas que divertamo-nos para
valer nesta vida e neste mundo; não é essa a primeira coisa em
Sua mente quanto a nós. Sua vontade é que um dia sejamos
perfeitos como o Senhor Jesus Cristo é perfeito; que alcance­
mos a medida da estatura da plenitude de Cristo. Deus não
está preocupado em que sejamos prósperos nesta vida. Ele
está preocupado com a minha alma e com a de vocês, e vai
levar essa alma a um estado de perfeição, quando ela será

215
inculpável, imaculada e absolutamente pura e santa. É isso
que Deus quer, e Sua intenção é tão forte quanto a isso que,
por causa da nossa pecaminosidade e insensatez, às vezes é
preciso que, nesta vida, Ele faça conosco coisas de que não
gostamos, porque, por natureza, eu e vocês preferimos desfru­
tar a vida neste mundo à custa da alma. Nós gostaríamos de
continuar simplesmente como somos e como estamos, mas
Deus põe a alma em primeiro lugar. Ele tem tanto interesse
por seu espírito que pode ter que despojar você de coisas
terrenas, que podem ser lícitas, mas que você permitiu que
se intrometessem entre você e Deus. Ele faz isso por amor,
porque quer que a sua alma chegue à glória final e suprema.
Isso explica muita coisa que nos faz murmurar e queixar-
-nos. Deus está interessado em nossa santificação, e a meta final
é a glorificação, pelo que nesta vida os castigos disciplinares
são uma necessidade. Quando você pergunta: “Por que
aconteceu isto comigo?”, será que você tem certeza de que
não estava permitindo que algo se pusesse entre você e Deus?
Pode ser a morte de uma pessoa querida, pode ser uma
perda financeira - não importa o que é - será que você tem
certeza de que isso não estava monopolizando o lugar de
Deus? Permita-me repetir o que eu disse no fim do estudo
anterior: Deus nos ama tanto e Se interessa tanto por nós que
às vezes Ele nos golpeia com uma enfermidade, e podemos
até morrer, para que o bem final e supremo seja salvaguar­
dado. E aqui temos uma repetição dessa mesma doutrina.
Se permitimos que tais coisas se intrometam entre nós e
o propósito de Deus, não devemos ficar surpresos e de­
cepcionados se vemos que Deus nos dá o tratamento que
precisamos. Meu prezado amigo, ponha este propósito em
primeiro lugar, e nunca o largue: se você é filho de Deus, então
outras coisas terão que partir. Ele Se apegou a você, e vai
continuar operando em seu ser, até você chegar àquela condição
pessoal destinada a você. Se você se convencer disso, não
murmurará nem se queixará, mas^ no meio da sua perda e do
seu abatimento, você se voltará para Deus e dirá: “Perdoa-me,
ó Deus, e mesmo isto eu Te agradeço, porque agora vejo o
Teu propósito”.
Permitam-me resumir tudo isso nestes termos: o que o
apóstolo nos está pedindo é simplesmente que façamos o
que o Senhor Jesus Cristo mesmo fez. Lembrem-se de que
Ele veio do céu (verão isso nos versículos 5-8 deste mesmo
capítulo). Ele Se colocou nas mãos de Deus, e depois deixou
que Deus O usasse. E Deus O conduziu por meio de algims
estranhos lugares. Ele foi levado ao deserto para ser tentado,
porém não resmungou nem Se queixou - vocês se lembram
da história toda. Vejam-nO, supremamente, no Jardim do
Getsêmani. Nesse lugar Ele viu que chegara o tempo em que
aqueles pecados que Ele havia posto sobre Si iam colocar-se
entre Ele e Deus, mas não murmurou nem Se queixou,
nem mesmo ali. Ele pediu: se houver alguma outra maneira,
afasta este cálice de Mim; não obstante, não se faça a Minha
vontade, mas a Tua.
Muito embora Deus O tenha levado ao Getsêmani, Ele
nunca murmurou, nunca Se queixou. Haja em você o mesmo
sentimento que houve também em Cristo Jesus. Leve-o Deus
para onde quer que o leve, seja onde for que este processo de
santificação o faça apear, nunca dê lugar a este espírito de
murmuração e de contenda, e evite tudo isso lembrando-se
destas coisas concernentes a Deus e ao propósito da Sua
graça com relação a você.

217
16
Essencialmente Diferentes
‘'Fazei todas as coisas sem murmurações nem contendas; para
que sejais irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus inculpáveis no
meio duma geração corrompida e perversa, entre a qual resplandeceis
como astros no mundo; retendo a palavra da vida,''
- Filipenses 2:14-16a

Desejo lembrar-lhes que ainda estamos considerando a


exortação do apóstolo à igreja de Filipos^ na qual ele os con-
cita a operarem a sua salvação com temor e tremor, porque é
Deus que opera neles tanto o querer como o efetuar, segundo a
Sua boa vontade. Essa é a sua exortação geral, e aqui, nestes
versículos, ele dá aos cristãos filipenses instruções e ensino
quanto a como eles devem fazer isso. Já vimos que a chave
para o entendimento da exortação é que o apóstolo faz seu
apelo a eles em termos do fato de que eles são filhos de Deus.
Essa é a base do apelo: “para que sejais irrepreensíveis e sin­
ceros, filhos de Deus inculpáveis”. Eles devem fazer tudo
compreendendo que são filhos de Deus; e em nosso estudo
anterior consideramos juntos o sentido dessa expressão. Vimos
algo do significado desse designativo, e começamos a consi­
derar o apelo que o apóstolo faz em termos desta relação
filial com Deus.
Bem, o apelo que ele faz é tríplice: como filhos de Deus,
devemos considerar a nós mesmos, primeiramente, em nossa
relação com o Pai; em segundo lugar, devemos considerar a
nossa natureza como filhos de Deus; e, em terceiro lugar,

218
devemos considerar a nós mesmos em nossa relação com
o mundo que nos cerca. Essa é a divisão desta exortação,
nos versículos 14 e 15 e na primeira parte do versículo 16. Em
nosso estudo anterior consideramos o primeiro destes apelos
subsidiários — o filho de Deus em sua relação com seu Pai, e
a exortação de Paulo a nós foi que devemos fazer “todas as
coisas sem murmurações nem contendas”. Não permitamos
que nenhuma nuvem fabricada por nós lance sua sombra
entre nós e o semblante de Deus; estejamos sempre confian­
tes e seguros do Seu santo amor em relação a nós. Mas, em
seguida, devemos passar ao segundo plano: o cristão, em si
mesmo, ou, se vocês preferirem, em sua relação consigo pró­
prio. O apóstolo coloca o assunto em termos de três palavras
— ‘‘irrepreensíveis, sinceros e inculpáveis”. Pois bem, aqui
estamos contemplando algo da natureza essencial do cristão
como filho de Deus. Então, à luz da nossa relação com
Deus, que significam esses termos?
A primeira coisa que o apóstolo nos diz é que devemos ser
"'irrepreensíveis’' (VA: "inculpáveis”). Esse termo, num sentido,
explica-se por si mesmo. Significa que devemos ser inculpá­
veis a acusações; que não deve haver em nós nada que mereça
repreensão, nada para o que alguém possa apontar o dedo
acusador. Talvez a melhor maneira de expressá-lo seja dizer
que “inculpáveis” é uma descrição da integridade moral
manifestando-se exteriormente - ou que é uma referência a
ela. Noutras palavras, este termo nos chama para vivermos
de tal maneira que aqueles que estão à nossa volta, exami­
nando-nos e observando-nos, nunca consigam encontrar em
nós algo que mereça denúncia, ou crítica, ou reprimenda. A
ênfase aqui não é tanto ao que eu devo ser em meu ser, em
minha natureza interior, como em minha aparência entre
outros que me observam.
Isso é realmente de tal forma auto-evidente que não requer
nenhuma elaboração. Certamente devemos compreender.

219
numa época como esta, que, como cristãos, estamos sendo
atentamente sondados e vigiados em todas as relações da vida.
Pode ser que eu esteja dizendo algo vulgar, mas o mundo
sempre julga, não somente o cristianismo, mas também o nosso
Senhor, e mesmo Deus, pelo que vê em nós, que nos chamamos
por Seu nome e nos declaramos cristãos. Portanto, diz o
apóstolo, em todas as ocasiões e em todos os lugares, em todas
as circunstâncias que se possa conceber, quer em sua vida
pessoal, sua vida moral, sua vida no lar, quer em sua vida
profissional ou em suas atividades,
z cuide que não haja nada
que alguém possa criticar. E preciso que não haja evidência
de pecado ou de falha, você tem que ser inculpável.
Aqui, de novo, o modelo é o nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo. Por certo vocês se lembram de que um dia Ele
pôde voltar-se para os Seus acusadores e dizer-lhes: “Quem
dentre vós me convence de pecado?” (João 8:46). Sua vida era
inculpável; ninguém podia apontar o dedo para Ele; não
havia nada censurável. Quando os homens olhavam para Ele
e para a Sua vida, e para tudo o que Ele foi e fez, não podiam
encontrar nada que pudessem criticar moralmente, e a
exortação que o apóstolo nos faz é a que sejamos homens e
mulheres com essa qualidade, que a nossa vida esteja fora do
alcance de qualquer crítica. Isso é elementar, é simples, e,
todavia, penso que a maioria de nós concordaria em que essa
é uma das coisas que temos a tendência de esquecer. Acima
de tudo, e especialmente numa época como esta, o chamado é
óbvio. Somos filhos de Deus, e, como um pai, ao enviar seu
filho a uma festa ou à escola, diz: “Agora, veja lá como se
comporta. Lembre-se de a quem você pertence”, assim Deus,
num sentido, está dizendo isso a nós. Somos Seus filhos e
devemos viver de tal modo que nada que cause má reputação
a Seusanto nome venha por nosso intermédio. Por nossas
vidas devemos indicar que pertencemos a Ele, e que em
nossas vidas não haja nada que mereça repreensão.

220
A segunda palavra é ^^sinceros^^ (VA: ‘'inofenswos^'). Bem,
não significa que você não causa dano a ninguém — a palavra é
um pouco enganosa. Uma melhor maneira de traduzir o termo
seria dizendo inocente, sem mistura, simples, puro, ou não
adulterado, não contaminado. Assim como “inculpáveis” (VA)
é uma descrição de integridade moral manifestada exterior­
mente, assim também ‘‘inofensivos” é integridade moral
manifestando-se interior e intimamente. Com esta palavra
consideramos não tanto o que eu sou o que pareço ser para
os outros em minha conduta e em meu procedimento, porém
o que eu sou realmente nos recônditos recessos do meu ser,
não visíveis exteriormente para ninguém. O apóstolo diz que
eu devo ser inofensivo, inocente, inteiramente afastado de
tudo quanto é pecaminoso; devo ser puro, não contaminado -
não deve haver em mim nenhuma mistura.
Acaso vocês vêem como o apóstolo está seguindo uma
ordem lógica? Como cristão, eu devo posicionar-me, antes de
tudo, num mundo que observa o exterior, e ele põe isso em
primeiro lugar. Todavia, se eu quiser certificar-me bem de
que a minha conduta e o meu procedimento sempre vão ser
corretos, devo, necessariamente, dar atenção às fontes inter­
nas da conduta. O que sou e faço é, num sentido, o resultado
do que realmente sou, e é por isso que o apóstolo insere a
palavra inofensiva, puro. Noutras palavras, não somente não
devemos fazer coisas errôneas, mas também não devemos
sequer pensar nelas.
Há uma perfeita ilustração do que estou tentando dizer
no Sermão do Monte, no qual o nosso Senhor apresenta a
situação da lei antiga sobre isso. O nosso Senhor disse que
o mandamento, “Não adulterarás”, realmente inclui isto:
“Qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em
seu coração cometeu adultério com ela” (Mateus 5:27,28). A
lascívia ou o desejo é, no reino de Deus, tão condenável como
o ato praticado; cobiçar é tão repreensível como roubar. Não

221
só a minha ação deve estar além de denúncia e crítica, mas
também o meu pensamento, as fontes da ação, o motivo destas
coisas também precisam estar completamente livres do que e
mau e pecaminoso. Temos que ser inculpáveis e inofensivos
ou puros, filhos de Deus, que “não pode ser tentado pelo mal,
e a ninguém tenta” (Tiago 1:13); e que é “o Pai das luzes, em
quem não há mudanças nem sombra de variação” (Tiago 1:17).
Nele não há trevas; Ele é pureza, e santidade completa e
absoluta, não contaminada por nenhum mal. Esse é o pa­
drão supremo para os cristãos; inculpáveis, mas também
inofensivos, puros, sinceros. Essa deve ser a nossa natureza
essencial.
Depois Paulo emprega ainda outro termo a fim de com­
pletar a sua descrição - ^^inculpáveis^^ (VA): ^^irrepreensíveis^^ -
um sumário dos outros dois, pois significa sem mancha
alguma. Não deve haver no cristão nada que de algum modo
macule este espécimen perfeito. Não deve haver nenhuma
nódoa ou mancha, nenhuma indicação de qualquer mal. Esse
é o padrão, ou o modelo, posto para o cristão no Novo Testa­
mento, a meta para o qual devemos estar nos esforçando, e a
posição que devemos procurar alcançar. E a razão suprema
para tudo isso é que somos filhos de Deus, e que não há nada
que seja bom demais para nós. Devemos ser cada vez mais
semelhantes ao nosso Pai. Graças a Deus, há no Novo Testa­
mento uma promessa de que um dia seremos inculpáveis,
sem mancha e irrepreensíveis. Porquanto há Alguém “que é
poderoso para vos guardar de tropeçar” e que irá “apresentar-
-vos irrepreensíveis, com alegria, perante a sua glória” (Judas,
versículo 24), e no ínterim o nosso dever é lutar por estas coisas.
Meu alvo para mim mesmo, meu padrão para toda a minha
vida, deve ser esse mesmo - tornar-me inculpável, inofensivo,
ou puro, e sem absolutamente nenhuma nódoa.
Observem, porém, agora, que o apóstolo nos exorta a
tudo isso, não somente porque se preocupa conosco, nem

222
simplesmente porque todas estas coisas são importantes, e
sim porque se preocupa muito com o cristão em sua relação
com o mundo que o cerca. Vimos a nossa relação com o nosso
Pai, consideramos a nós mesmos como filhos de Deus, e
agora passamos à terceira destas principais divisões — o cristão
em sua relação com o mundo. Este é sempre o motivo que
vemos imposto a nós na exortação neotestamentária à
santidade. Jamais há a sugestão de que nos tomemos monges,
ou eremitas ou acólitos, a fim de nos tornarmos santos. Não,
somos chamados a ser inculpáveis, filhos de Deus, em parte
por causa da nossa condição e da nossa posição, mas também
por causa do mundo no qual vivemos, e por causa do que
Deus disse que devemos fazer quanto a esse mundo e nele;
é uma razão altamente prática.
Naturalmente, aqui de novo nos defrontamos com uma
das grandes exortações da Bíblia, este apelo aos cristãos para
que considerem a si mesmos em sua relação com o mundo
que os rodeia. Isso não está confinado no Novo Testamento,
vocês o vêem igualmente claro e definido no Velho Testamento.
Deus escolheu os filhos de Israel para serem o Seu povo, e
todos os regulamentos e normas que se vêem nos livros de
Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio são nada mais
nada menos que uma grande elaboração deste apelo que
estamos considerando juntos aqui. Deus disse aos filhos de
Israel: vocês são o meu povo, e, porque são o meu povo, vocês
têm que ter um tipo diferente de vida, têm que separar-se
de todas as outras nações: “Vós sereis santos, porque eu sou
santo” (Levítico 11:45, ARA) - esse é o grande apelo.
E com que grande urgência o povo cristão necessita desse
apelo na presente hora! Somos uma companhia pequena e
cada vez menor, mas nos preocupamos com o mundo, e a
primeira coisa que devemos compreender é a nossa relação
com esse mundo, a nossa responsabilidade com respeito a ele,
e para isso Deus nos chama, em vista dessa relação. Nunca,

223
talvez, este problema foi mais urgente, e nunca, talvez, foi
mais difícil do que hoje; por isso não devemos poupar nosso
tempo ao considerarmos os termos do apelo do apóstolo.
E que é que eu quero dizer exatamente quando falo sobre
a relação do cristão com o mundo? Bem, a expressão “o mundo”
aqui realmente significa a mentalidade e o modo de viver dos
que não são cristãos. Não me refiro ao mundo no sentido
material ou físico, mas no sentido de “cosmos”;^ a perspectiva
e a maneira de ver as coisas que caracterizam os que não são
filhos de Deus. Assim, pois, vamos considerar o cristão em
sua relação com o mundo, nesse sentido particular, e a primeira
coisa que Paulo nos diz é que o cristão é ou deve ser
essencialmente diferente do mundo. As próprias palavras e
expressões empregadas pelo apóstolo - inculpáveis, puros,
irrepreensíveis - tornam isso muitíssimo claro.
Essas expressões são especialmente significativas quando
eu as contrasto com as palavras que o apóstolo emprega para
descrever o mundo propriamente dito. O mundo, ele noz diz,
é corrompido (VA: tortuoso) e perverso. Detenhamo-nos por
um momento para examinar essas palavras também. A pala­
vra ‘‘tortuoso” significa que o mundo z é desonesto, que se
manifesta como pervertido e torcido. E a perversão em ação,
no procedimento e na conduta exterior. Perverso, por outro
lado, descreve uma qualidade interior. Significa uma natureza
interior distorcida. Assim vocês vêem o perfeito equilíbrio
aqui observado. Inculpável, diz o apóstolos, é o oposto de
pervertido, ao passo que puro é o oposto de perversidade de
coração. E dessa maneira que Paulo nos impõe este grande
princípio, significando que, como cristãos, filhos de Deus,
devemos ser total e essencialmente diferentes dos que não
são cristãos. O que não é cristão é torto, não é reto; você olha
’ Sentido primário da palavra grega: “ordem”. No Novo Testamento, entre
outras coisas, significa “a presente ordem de coisas” (ou, como tenho dito
ultimamente: a presente desordem de coisas). Nota do tradutor.

224
para ele e vê curvatura e tortuosidade em toda a sua conduta
e em todo o seu agir. Mas a conduta do cristão é semcur-
vaturas e tortuosidades, é uma vida inculpável.
E se, no sentido da vida interior, você observar os dois
tipos de pessoas, verá o mesmo princípio. O cristão é ou deve
ser inocente, inofensivo, puro e não contaminado, sem dobras
nem tortuosidades em sua natureza e em seu caráter, ao passo
que a característica essencial do ímpio, do incrédulo, é que
ele é perverso, tortuoso e pervertido. Sua própria namreza é
distorcida, além de suas ações, pois a ação surge da natureza.
Vemos aí, pois, que o filho de Deus, óbvia e necessariamente,
é ou deve ser essencialmente diferente de quem não é cristão.
Mas talvez o apóstolo exponha este contraste acima de tudo
na próxima frase que ele emprega, na qual ele nos diz que
devemos apresentar-nos ou brilhar como astros no mundo (VA:
“luzes no mundo”). A palavra traduzida por luzes realmente
significa luminares.^ E o termo geralmente empregado para
descrever a luz e as estrelas nos céus. Sendo assim, o cristão
neste mundo, diz o apóstolo, deve ser similar à lua e às
estrelas que brilham durante a noite. Ora, a primeira coisa
que isso nos ensina é, novamente, que o cristão é ou deve ser
absoluta e essencialmente diferente, como a lua e as estrelas
diferem da escuridão não somente na aparência, mas também
em sua natureza essencial. A natureza da luz é essencialmente
diferente da natureza das trevas, e Paulo diz que devemos ser
o que a luz é para as trevas, o que as estrelas e a lua são para as
trevas da noite. A nossa santidade é apresentada como
sobressaindo neste extraordinário contraste com as trevas e
a noite do pecado e do mal neste mundo no qual vivemos.
Mas bem pode ser que todos esses termos e expressões
empregados pelo apóstolo sejam inteiramente desnecessários;
há um sentido em que a coisa toda já havia sido posta na frase,
’ Cf Almeida Revista e Corrigida: no texto em foco: “astros”; em Gênesis
1:14-16: “luminares”. Nota do tradutor.

225
“filhos de Deus”. Há um ditado segundo o qual “a criação (no
lar) diz muita coisa” ou que “a família conta”, e há um aspecto
em que isso é perfeitamente verdadeiro. Você pode dizer muitas
coisas sobre os pais, se conhece bem os filhos. Muito freqüen-
temente os filhos são um reflexo dos seus pais, e, observando
o filho e sua conduta, você pode descobrir muita coisa sobre
os pais e sobre o lar no qual o filho está sendo criado. Ora,
diz Paulo, nós somos filhos de Deus. Isso, como vimos, só
diz respeito aos cristãos, e o mundo está dividido nos que são
cristãos e nos que não são. Portanto, acaso não se segue
necessariamente que tem que haver extraordinária diferença
entre os dois grupos? Podemos dizer que somos participantes
da natureza divina, que Deus é nosso Pai, que temos sido
instruídos e doutrinados por Deus mediante o Espírito Santo,
quando nos falta esta qualidade, a qualidade de estarmos
numa posição inteiramente diferente por nascimento, natu­
reza, treinamento e tudo mais? A tragédia está em que,
cônscios da natureza divina dentro de nós, não ansiamos
por mostrar que somos essencialmente diferentes.
Estaria sendo injusto quando sugiro que talvez o maior
contraste entre o cristão do século atual, especialmente dos
últimos vinte anos mais ou menos,^ e os cristãos da era dos
puritanos e do século dezoito (e, na verdade, de muitos cristãos
do século dezenove também), é o da atitude para com a questão
de o cristão ser essencialmente diferente do mundo não cristão?
Imagino que a primeira guerra mundial foi em grande parte
responsável por isso, quando havia no exército o tipo de capelão
que se fazia muito popular e era considerado como um exce­
lente cristão porque era notavelmente igual a todo o mundo.
Ele fazia tudo o que todas as outras pessoas faziam - “Que
belo cristão!”, diziam. Pois bem, esse não é o modo como o
Novo Testamento descreve o cristão. Os cristãos não são pessoas

Ou seja, a partir da década de 1920. Nota do tradutor.

226
notavelmente iguais a todos os outros, ainda que sejam cris­
tãos. Eles são filhos de Deus, não filhos do mundo, nem do
diabo, e são ou devem ser inteiramente diferentes de todas
as demais pessoas.
Que vergonha nós, que somos chamados cristãos, termos
este indigno desejo de ser iguais ao mundo, e termos medo de
manifestar este contraste! Posso dizê-lo deste modo - porque
o Velho Testamento expõe perfeitamente tudo o que estou
tentando dizer: o cristão deve ser como Moisés. Quando
Moisés subiu ao monte (Sinai) para entrevistar-se com Deus,
o resultado dessa entrevista e da sua comunhão e do seu
companheirismo com Deus foi que o seu rosto começou a
brilhar, e quando ele desceu do monte para a planície, seu
rosto resplandecia, ainda refletindo algo da santidade de
Deus. Os filhos de Deus o viram e se apavoraram, e ele tinha
que pôr um véu sobre o seu rosto quando falava com eles.
Eu e vocês devemos ser pessoas assim; algo do resplendor
de Deus deve estar em nosso rosto e em toda a nossa perso­
nalidade, de modo que, necessariamente, sobressaiamos no
mundo como luzeiros, como os luminares nos céus.
Mas permitam que eu passe ao segundo ponto. Em nossa
relação com o mundo, como cristãos, devemos repreender e
advertir o mundo. Mais uma vez o termo que o apóstolo
emprega torna estas coisas erfitamente claras: devemos viver
como luzes no mundo. Considerem o que as Escrituras dizem
a este respeito em João 3:20: “Porque todo aquele que faz o
mal aborrece a luz, e não vem para a luz, para que as suas
obras não sejam reprovadas”. Ou também: “Mas todas estas
coisas se manifestam, sendo condenadas pela luz, porque a
luz tudo manifesta” (Efésios 5:13). Uma das funções da luz
é reprovar e tornar manifestas as obras das trevas.
Pois bem, eu e vocês, como cristãos, como filhos de Deus,
devemos ser como luzes no mundo. Significa que, uma vez
que somos o que somos, e quem somos, devemos reprovar.

227
devemos desmascarar, devemos expor as obras ocultas das
trevas que nos rodeiam e nos cercam. O nosso dever na
sociedade, nesta presente hora, é fazer com que os homens e as
mulheres enxerguem a espécie de vida que estão levando, e a
maneira pela qual podemos fazer isso é viver a vida que é
exatamente o oposto da deles. Devemos fazer com que o
mundo enxergue o que ele se tornou em conseqüência do
pecado e do mal, e o faremos sendo luzes e pondo a descoberto
essas obras. Deixem-me, então, sugerir alguns meios pelos
quais devemos fazer isso numa época como esta, como deve­
mos apresentar este extraordinário contraste neste mundo
confuso e imoral.
Primeiramente, é uma questão de aparência. Sugiro a vocês
que o mundo está se tornando gritante em sua aparência,
atrevido, arrogante e agressivo. Quantas vezes vemos hoje uma
pessoa que nos sentimos instintivamente inclinados a descre­
ver como humilde? Há um atrevimento, uma agressividade,
uma altivez que se manifestam na aparência externa. Não hesito
em sugerir que numa época como esta os cristãos devem
reprovar as obras ocultas das trevas até em suas roupas, face a
toda a sugestão e insinuações do pecado que se vê no próprio
vestuário e na maneira de as pessoas se vestirem. Pergunto,
povo cristão, será que temos considerado estas coisas como
deveriamos? Não seria evidente que toda a organização destas
coisas é do diabo, da carne e de tudo quanto é indigno? Por
isso eu sugiro que a nossa própria aparência seja diferente,
seja uma censura à publicidade e às insinuações do pecado.
Permitam-me dar-lhes outro exemplo. Em nosso falar
devemos repreender as obras ocultas das trevas. Teriam vocês
notado o pavoroso aumento do lançamento de pragas, das
maldições e das imprecações, como essas coisas se tornaram
quase correntes no linguajar de muitos? Como cristãos deve­
mos apresentar este contraste, e devemos censurar a linguagem
e as expressões torpes.

228
Há depois a importância da veracidade e da exatidão na
fala e nas declarações. As mentiras e a falsidade correntes ao
nosso redor são pavorosas, alarmantes e aterradoras. Povo
cristão, simplesmente falando a verdade estará repreendendo
as obras do mal e levando o mundo à conviccão do seu
pecado.
Permitam que eu mencione outro assunto muito
importante, a questão da honestidade. Havería algo mais
alarmante do que os pequenos furtos, o roubo, os assaltos e
a desonestidade que se estão tornando cada vez mais carac­
terísticos da vida neste país? Irmãos cristãos, devemos
apresentar um contraste com isso sendo escrupulosamente
honestos. Não apenas para sermos diferentes, mas para levar­
mos os homens e as mulheres a verem a maldade da vida
que levam; e é nosso dever fazer com que fiquem convictos
desse mal.
Há depois a nossa atitude para com o trabalho. Um dos
grandes problemas atuais é a atitude do homem comum para
com o trabalho. Sua idéia é a de fazer o mínimo e ganhar o
máximo. O trabalho está sendo considerado uma amolação;
os homens em geral acham que têm o direito de viver num
constante rodízio de prazer e, daí, quando trabalham, fazem o
mínimo. Essa atitude é comum em todas e em cada uma das
classes da sociedade, e é completamente errada. Entendo que
é aí que eu e vocês podemos dar um testemunho particular­
mente notável. Se você estiver num escritório ou estiver
exercendo a sua profissão, dedique-se ao seu trabalho, seja
honesto, seja esforçado, faça o seu trabalho aplicando o melhor
da sua capacidade, e com isso mostre ao mundo ao seu redor
o que significa ser cristão e ponha em evidência a pecami-
nosidade essencial dessa falsa atitude para com o trabalho.
Façamos jus ao dinheiro que recebemos; sejamos escrupulo­
sos em nossa atitude para com o trabalho.
E depois, não posso deixar de mencionar a questão geral

229
do casamento e da relação matrimonial. Todos sabemos do
naufrágio do casamento por todos os lados. Que maravilhosa
oportunidade demos de testificar de Cristo simplesmente
mostrando a diferença que ser cristão faz ao estado civil de
casado. Mostremos, pois, em nossas relações matrimoniais,
como Cristo une duas pessoas num santo amor. Que a nossa
vida de casados sobressaia em contraste com o mundo atual,
como as estrelas nos céus sobressaem na escuridão da noite,
ou como a lua em seu esplendor. Vejamos que o conceito que
fazemos do casamento e do lar seja uma censura ao mundo;
vivamos de tal modo nesta relação que as pessoas do mundo,
observando-nos, digam: “Quisera Deus que pudéssemos
viver dessa maneira! Quisera Deus que nós fôssemos tão fe­
lizes como eles! Quisera Deus que os nossos lares fossem
como aqueles✓ lares cristãos!” Porventura há este contraste, esta
diferença? E para isso que Paulo nos chama, e, na verdade,
isto se aplica à totalidade da vida. O mundo é egoísta e
egocêntrico. Pensa em si e em seus interesses, e não leva em
consideração ninguém mais. Em certo sentido já considera­
mos isto na primeira parte do capítulo, onde Paulo diz: “Não
atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada
qual também para o que é dos outros”.
E assim, essa é a exortação do apóstolo, e as perguntas
que temos que responder são: como você reage a isso? Você
acha que eu fui estreito demais ao descer a detalhes? Você se
sente como que dizendo: “Ah, mas essa é a velha vida puri­
tana, tão estreita, tão acanhada e tão limitada!”? Meu amigo,
minha resposta a você é: isso é o Novo Testamento! E simples­
mente pedir que você seja tão diferente do mundo que o cerca
como o próprio Senhor Jesus Cristo foi; que você seja puro,
inculpável e irrepreensível. Se você é filho de Deus e declara
que ama seu Pai e quer honrar e dar glória a Seu nome, o apelo
é este. Devemos pôr a descoberto e desmascarar a licenciosi-
dade e o mal, a arrogância e a ruidosa propaganda do pecado.

230
o horror da imoralidade do mundo moderno. Devemos trazer
tudo isso à luz fazendo íulgir sobre isso tudo a luz da santidade.
como eu já disse, não só devemos reprovar o mundo
dessa maneira, também devemos adverti-lo. Assim como o
farol iluminado adverte o navio contra as rochas submersas
que poderíam fazê-lo naufragar, assim também eu e vocês
somos chamados, nesta era e geração, para advertir os homens
e as mulheres que estão ao redor de nós de que as suas
obras não somente os levarão à balbúrdia moral agora, mas
também levarão a fracassos maiores posteriormente. Este
fracasso moral pode arruinar o país, pode destruir toda a
comunidade de nações à qual pertencemos, como destruiu a
antiga Roma. Roma caiu por causa da podridão moral em seu
centro, e isso sempre leva à destruição em todos os sentidos.
Cabe-nos adverti-los disso, e nos cabe adverti-los de que
adiante jaz a morte, o juízo de Deus e a destruição eterna.
No próximo estudo deveremos considerar a parte posi­
tiva do apelo, que é que devemos reter a palavra da vida.
Contudo, agora concluímos o nosso estudo desta exortação
negativa; devemos viver de tal forma que o mundo seja
convencido de pecado por nós. Sendo luzes, exporemos as
coisas ocultas, submersas, das trevas. Sendo o que somos,
estaremos advertindo solenemente esta geração corrompida,
distorcida, perversa, imoral, do terrível e alarmante perigo
que corre, e da certa e inevitável nêmese* e condenação, do
juízo final e definitivo, que virá sobre ela, a menos que se
arrependa e seja convertida ao Senhor.
Oh, bendito privilégio, o de ser filho de Deus! Oh, terrível
responsabilidade, a de representar tal Pai em tal era e em tal
tempo como o que ora vivemos!

** Relativo a Nêmesisj deusa da mitologia grego-romana. Resumindo


variantes das tradições mitológicas, deusa da justiça e da vingança. Nota
do tradutor.

231
17
A Palavra da Vida
‘'Fazei todas as coisas sem murmurações nem contendas; para
que sejais irrepreensíveis e sinceros^ filhos de Deus inculpáveis, no
meio duma geração corrompida e perversa^ entre a qual resplandeceis
como astros no mundo; retendo a palavra da vida.
- Filipenses 2:14-16a

Vamos completar agora a nossa consideração da descrição


que aqui nos é dada do cristão neste mundo, como filho de
Deus. Vimos que o propósito é que os cristãos sejam intei­
ramente diferentes, um completo contraste com o mundo que
os cerca. Como luzes no mundo, espera-se que eles sobressaiam
na sociedade, ponham a descoberto as coisas ocultas das trevas
e advirtam as pessoas de certas conseqüências que lhes
acontecerão, a não ser que dêem ouvidos e dêem atenção à
mensagem cristã. Mas eu concluí o último estudo dizendo que
isso não é tudo. Ainda há outra coisa acerca dos cristãos como
filhos de Deus, especialmente como ‘‘luzes”, e o apóstolo aqui
nos diz o que é. No versículo dezesseis ele diz: “retendo a
palavra da vida”. Não terminamos nosso testemunho simples­
mente expondo o outro tipo de vida e advertindo os homens e
as mulheres das conseqüências que certamente sobrevirão. A
luz tem uma função positiva: infunde conhecimento e dá
instrução. Isso também é de fato auto-evidente. Temos alguns
termos e expressões em uso corrente em nossa língua que
realmente dizem tudo o que estivemos comentando. Costu­
mamos falar sobre o esclarecimento ou a “iluminação” de uma

232
pessoa — você a ilumina sobre o estado da sua saúde ou do
seu negócio; noutras palavras, você lança luz sobre isso. Você
não apenas expõe certos perigos, mas também, a fim de ajudá-
-la e de instruí-la, você a ilumina quanto a como ela deve
conduzir-se ou como deve viver e andar. O século dezoito
é geralmente descrito como o século da “iluminação”, e isso
foi particularmente verdade quanto à Alemanha, onde se
originou a grande escola de filosofia que orgulhosamente
se atribuiu esse nome, ou “filosofia do iluminismo”. Ela dizia
que, ao passo que até então a humanidade tinha vivido
num estado de semi-escuridão como fruto da ignorância, essa
escola agora descobrira a luz e a verdade, e, por conseguinte,
estava em condições de ensinar as pessoas e as nações.
Bem, isso constitui uma parte essencial da obra da luz.
Aqui a luz lança seus raios sobre a estrada; é uma espécie de
farol dianteiro que nos mostra o caminho por onde ir. A luz
não somente nos ajuda a evitar certas coisas; também indica
a rota. E essa é a última coisa que o apóstolo nos diz aqui
o dos cristãos em sua relação
sobre a função -» com o mundo.
Eles devem iluminá-lo e ensiná-lo; noutras palavras, eles
devem reter (expor) a palavra da vida, o que, naturalmente,
é apenas outra expressão para designar o evangelho de
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Pois bem, considero este ponto de tão grande importância
que me pareceu muito errado simplesmente incluí-lo no fim
do nosso último estudo. O próprio apóstolo lhe dá grande
proeminência, e penso que há diversas razões pelas quais nos
convém concentrar-nos nele. Pois o apóstolo aqui não escreve
só para ministros e líderes da igreja, mas para a igreja em geral,
na verdade para os membros individuais da igreja de Filipos.
Isto é algo que, de acordo com Paulo, todos os membros da
Igreja devem fazer, e quando, por exemplo, cantamos os no­
ssos hinos sobre a Igreja expondo a palavra da vida, devemos
compreender que isso significa todos e cada um de nós. Há

233
um constante perigo de pensar na Igreja somente em termos
dos seus pregadores ou clérigos, e a idéia de que todo
membro individual da Igreja deve reter “a palavra da vida”,
de um modo ou de outro foi para o último plano.
Todavia, se eu entendo a cena corrente, nenhum erro será
maior na atualidade. Penso que todos nós estamos cientes de
que não existe mais o hábito ou a moda de freqüência a um
local de culto, como se fazia há cem anos. Havia também o
costume que as pessoas tinham de ouvir a pregação da palavra
de Deus, e há um sentido em que se podia dizer acertada-
mente que o dever de expor a palavra da vida competia
principalmente ao ministro. Mas todo o mundo sabe que não
é esse o caso hoje. Nunca houve tempo em que o membro
de igreja, como individual, era mais importante que hoje, e,
se a palavra de Deus há de ser propagada e espalhada, isso
deve ser feito pelos indivíduos em seus contatos diários.
Foi assim no período primitivo da Igreja. Freqüente-
mente nos queixamos do estado atual, porém às vezes penso
que temos uma enorme vantagem sobre os que viviam no
século passado (dezenove), no sentido de que o nosso mundo
atual é extraordinariamente parecido com o da Igreja Primi­
tiva. Portanto, há um sentido em que podemos entender este
evangelho melhor do que aqueles. Pensem na época de meados
da era vitoriana, com sua riqueza, seu sucesso e sua comodi­
dade, sem maiores guerras no mundo e tudo estando em
paz. Para eles deve ter sido muito difícil entender o cenário
de fundo do Novo Testamento, com seu senso de destruição
e de urgência. Imagino que em alguns aspectos aqueles
vitorianos devem ter achado o Novo Testamento um livro
muito estranho.
Nós, com todos os nossos problemas, temos, de alguma
forma, os meios que nos permitem entender a Bíblia de um
modo não possível para eles, e não tenho dúvida de que é isso
que explica muitas vezes o fato de que, inconscientemente.

234
eles começaram a afastar-se da verdadeira ênfase do Novo
Testamento. Eles presumiam que este país era cristão, e por
isso pararam de pregar um evangelho evangelístico, supondo
que todos aqueles que nasciam neste território eram cristãos
e só precisavam que lhes ensinassem o evangelho. Contudo,
vivendo numa época em que os fundamentos estão abalados,
nós, penso eu, entendemos o cenário de fundo do Novo
Testamento — por que o mundo está como está. Sabemos o
que significam a ruína e a desgraça, sabemos algo da urgência
dos tempos e da incerteza da situação geral. Sabemos o que
é ter a experiência da Igreja como apenas um punhado de
gente numa numerosíssima sociedade que em sua essência
é pagã, uma sociedade que não entende a Igreja e não se
interessa por ela.
Bem, numa situação como essa, temos que compreender
que, como cristãos individuais, nos competem alguns deveres,
e um deles é este — a propagação do evangelho. Isso não é
somente algo que eu e vocês devemos fazer, somos as únicas
pessoas que podem fazê-lo, e, se não proclamarmos esta
palavra da vida, o mundo permanecerá na ignorância e nas
trevas. É um apelo a todo cristão, e esse apelo nos habilita
a entender a tremenda responsabilidade que pesa sobre nós
nesta pre-sente hora.
Consideremos primeiro o que esta exortação do apóstolo
nos diz acerca de nós mesmos. Devemos compreender que todo
o nosso procedimento e toda a nossa conduta devem levar a
isto, a saber, a divulgação da palavra da vida. Como já vimos
em nosso estudo anterior, o apóstolo nos disse que devemos
ser inculpáveis, puros e irrepreensíveis. Sim, mas também
devemos entender bem por que devemos ser assim, e por que
devemos viver este tipo de vida. Segundo Paulo, tudo isso visa
habilitar-nos, supremamente, a transmitir esta palavra da
vida. Permitam que eu me expresse da seguinte maneira: o
apelo feito aos cristãos não é só para que sejamos pessoas de

235
alto nível moral; é isso, claro, mas é mais que isso; não é tão-
-somente um apelo negativo, é também um apelo positivo.
Bem, há muita gente boa no mundo que, com sua vida
e com seu bom modo de viver, põe a descoberto as coisas
ocultas das trevas. Qualquer pessoa que conduza os seus
negócios de maneira honesta e verdadeira está fazendo essa
boa obra; igualmente a fazem as pessoas que têm um código
moral e vivem à altura dele. Há pessoas nas profissões libe­
rais, no comércio, nas diversas carreiras da vida que, porque
são íntegras, altamente morais e bondosas, e porque têm os
seus padrões, põem a descoberto, dessa forma, as coisas ocultas
das trevas. Elas são reconhecidas, nos círculos em que se
movem, como pessoas nas quais se pode confiar. “Você não
precisa de nenhuma garantia deles”, outras pessoas dizem
delas, “sua palavra é tão boa como a sua promissória. Elas
são pessoas nas quais você pode confiar.” Tais pessoas expõem
as coisas ocultas das trevas, e advertem aqueles que seguem
o mau caminho; mas elas param aí. Sua posição é, toda ela,
negativa, e a do cristão não deve ser só negativa. A nossa
moralidade e a nossa ética são apenas uma introdução ao
nosso evangelho. Devemos ser filhos de Deus inculpáveis,
puros, para podermos expor a palavra da vida.
Noutras palavras, tudo o que eu sou como cristão, tudo o
que eu faço e digo, e tudo o que eu deixo de fazer, nada mais é
que uma ✓ espécie de apresentação introdutória da minha
alma. E o pano de fundo do meu retrato, a condição na qual
eu vivo. E um indicador do que é verdade sobre mim; é uma
indicação de algo que é ainda mais vital. Agora, isso, penso
eu, é um princípio muito importante. Não devemos ser
apenas diferentes, nem simplesmente viver uma vida moral­
mente boa por amor disso. O cristão, neste mundo e nesta
vida, está numa posição essencialmente positiva. Ele não se
limita meramente a censurar o que está errado; ele pode
assinalar o que é certo. Não apenas expõe as coisas ocultas

236
das trevas, mas também mostra as coisas verdadeiras, tem
algo positivo para dar e com que contribuir.
Depois, o segundo ponto de que nos fala esta exortação
acerca de nós mesmos é que sempre deve estar perfeitamente
claro para o mundo que eu e vocês, como cristãos, somos o
que somos por causa do evangelho. Não deve haver nenhuma
incerteza quanto ao motivo, a fonte e a origem de tudo o que
fazemos e somos. Deve ficar perfeitamente claro para todo o
mundo que o que é responsável por nós é este evangelho,
esta palavra da vida, acerca da qual o apóstolo está falando.
Este é também um princípio muito importante. Você observa
um homem e vê que ele está vivendo uma vida virtuosa; é o
tipo da pessoa de boa ética e boa moral que há pouco descrevi.
Você vê que ele é diferente da imensa maioria e que há muita
coisa sobre ele que você admira. Mas de algum modo você
fica com a impressão de que ele é assim porque sucede que
ele nasceu assim. Nasceu com essa excelente natureza, e há
algo em torno dele que quase toma impossível imaginá-lo
como sendo qualquer outra coisa. E você diz a si mesmo:
“Bem, eu gostaria de poder ser como esse homem, porém
parece que nasci diferente”.
Mas não é essa a impressão que o cristão dá. Como cris­
tãos, sempre devemos dar a impressão de que não seríamos o
que somos se não fosse este evangelho. Toda a nossa conduta,
toda a nossa conversação, todo o nosso procedimento e toda
a nossa atividade, sempre devem apontar para o evangelho
de Jesus Cristo como a única explicação do que fazemos, como
a única motivação adequada para a nossa conduta. Devemos
ser inculpáveis e puros, filhos de Deus irrepreensíveis, no
meio de uma geração pervertida e perversa, entre a qual
resplandecemos como luzes no mundo, retendo a palavra da
vida, por sermos o que somos, como também por nosso falar.
Podemos expressar este ponto desta maneira: quando os
outros nos vêem, deveriam fazer estas perguntas: “Qual é o

237
segredo destas pessoas? Por que são como elas são? Qual
será a explicação da sua conduta? Por que sobressaem
dessa maneira? Por que parecem tão diferentes?” Vocês devem
viver de tal maneira, diz Paulo, que quando os homens
fizerem aquelas perguntas, sejam forçados a ouvir, como a
única resposta, o seguinte: “Estes homens e mulheres são o
que são porque são cristãos; são assim por causa deste evange­
lho no qual eles crêem. Eles foram feitos o que são pela
palavra da vida, acerca da qual eles estão sempre falando”.
Toda a nossa conduta e todo o nosso procedimento devem
ser um prelúdio do evangelho.
E isso me leva ao terceiro e último ponto sobre o assunto
relativo ao que esta exortação nos fala sobre o cristão. Não seria
inteiramente óbvio que o cristão é alguém que tem vida? -
“retendo a palavra da vida” Jamais deve haver algo mecânico
no que diz respeito ao cristão, jamais algo rígido e formal. Esse
é o problema do mero moralista. Ele é assaz completo e
perfeito, é um paradigma de todas as virtudes, mas o que ele
tem é uma moralidade tipo máquina; parece que vive de
acordo com regras e regulamentos. Há algo quase que horrí­
vel e rigorosamente exigente quanto a ele - a perfeição da
máquina. Ele não vive como uma flor ou uma planta; não há
vida nele; é uma perfeição feita pelo homem: que perfeição!
Mas, que firieza! Falta-lhe algo essencial, algo vivo e vital. Pois
bem, isso nunca é verdade quanto ao cristão. O cristão é alguém
vivo, e é por isso que ele se interessa pela palavra da vida.
Aí estão, pois, algumas das coisas que a exortação do
apóstolo diz sobre nós mesmos. Mas permitam-me passar
à segunda questão e examinar esta exortação do ponto de
vista do que ela nos diz sobre o evangelho. Eu e vocês
somos chamados para retê-lo (divulgá-lo), e aqui Paulo o
descreve de maneira sumamente fascinante e pitoresca. Ele
o descreve como “a palavra da vida”, e que maravilhosa
descrição do evangelho! Vocês a verão muitas vezes repetida

238
pelos pregadores através dos séculos e pelos escritores dos
hinos; por exemplo:
Amamos a palavra da Vida,
A Palavra que fala de paz.
- William Bullock
- Henry Williams Baker

— e esse é um dos motivos pelos quais gostamos de vir à


casa de Deus. Então, que é que exatamente o apóstolo quer
dizer com esta descrição do evangelho? Por que sempre nos
lembramos, quando o pregamos, ou quando conversamos
com outros sobre ele, de que o evangelho é a palavra da
vida? Permitam-me sugerir algumas razões: primeiramente,
e acima de tudo mais, sempre devemos guardar-nos do terrível
perigo de transformar o evangelho numa filosofia. O apóstolo
Paulo tinha consciência desse perigo: “Tende cuidado, para
que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias”, disse
ele aos colossenses (2:8), e ele disse aos coríntios que não
fazia uso da “sabedoria de palavras, para que a cruz de Cristo
se não faça vã” (1 Coríntios 1:17).
Naturalmente, a coisa mais simples do mundo é trans­
formar o evangelho numa filosofia, bastando achar que ele é
uma coleção de pensamentos e idéias, e que sua perspectiva é
filosófica. Há várias maneiras de estudar a vida, muitos dizem.
Há subdivisões da filosofia: o conceito puramente materialista,
o conceito idealista, o pessimista, e assim por diante, e depois,
entre outros, há este conceito cristão. E é muito fascinante
pensar nele apenas como uma filosofia e como um certo
número de pensamentos e idéias. Quando Paulo pregou em
Atenas, essa foi a primeira impressão que aparentemente ele
deu aos ouvintes. “Que quer dizer este paroleiro?”, comen­
tavam; eles se interessavam muito por filosofia. E ainda
hoje muitas vezes há quem diga: “Acho o cristianismo
estupendamente interessante; que fascinante visão da vida

239
ele é!” Ou sobre a Bíblia dizem: “Que livro interessante para
a gente estudar!” Meus caros amigos, quando vocês acham a
Bíblia só “interessante”, significa que a estão considerando
como uma filosofia. A Bíblia é um livro aterrorizante, se lido
completamente, porque muito mais profundo que a esfera
das idéias, dos pensamentos e dos conceitos. É uma palavra
viva, é capaz de penetrar “até à divisão da alma e do espírito,
e das juntas e medulas” (Hebreus 4:12).
Pois é esse tipo de coisa que o apóstolo está dizendo aqui.
O evangelho não é filosofia; não estamos aqui simplesmente
para expor idéias ou pensamentos ao mundo. Não, o evangelho
é a palavra da vida, a palavra que faz coisas. É a palavra que é
cheia de poder e que é vigorosa e ativa. “Não é a minha palavra
como fogo”, diz o Senhor a Jeremias, “e como um martelo que
esmiúça a penha?” (Jeremias 23:29) - o evangelho de Cristo,
que “é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê”
(Romanos 1:16). Ela é viva, não é meramente uma teoria, uma
idéia, uma filosofia, um ponto de vista, algo que é bom
considerar, algo em que é bom estar interessado, algo que se
presta para ser analisado, como se fosse um jogo de palavras
cruzadas ou uma charada, um quebra-cabeça. Não, ela é viva,
é a palavra da vida.
Mas, por que o nome “palavra da vida”? Permitam-me
sugerir algumas respostas. Ela é primeiramente e antes de
tudo a palavra que nos fala sobre a vida^ o que devo subdividir
ainda mais. Primeiro ela nos diz que estamos mortos. Essa
é sempre a primeira declaração da palavra da vida, é uma
palavra sobre a morte. A primeira coisa que ela nos diz é que,
por natureza, estamos todos mortos em ofensas e pecados. O
homem vai vivendo neste estado no mundo até que esta
pala-vra lhe vem e ele descobre que está espiritualmente
morto. A palavra o faz ver que ele tem vivido no nível da
carne e do animal. Ela lhe diz que há outra espécie de vida
e que o propósito é que vivamos em comunhão com Deus —

240
“E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único
Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (João 17:3)
Vemos que estivemos vivendo baseados em diversas
pressuposições. Estávamos interessados e ocupados em fazer
negócio, em estabelecer contato com outras pessoas, e nunca
consideramos aquela “outra coisa” chamada espiritual. Nunca
pensamos no fato de que há outra esfera totalmente diversa,
uma esfera que tem estado fora de toda a nossa vida e conduta.
Temos estado espiritualmente mortos, “mortos em ofensas e
pecados”. Só tínhamos a visão horizontal da vida, esquecidos
da vertical; temos vivido no nível mais baixo, esquecendo-nos
das grandes altitudes; estávamos mortos para certas realidades
espirituais invisíveis, que são as únicas verdadeiras realidades.
E esta palavra vem até nós e nos faz ver que estamos mortos;
é a palavra da vida que fala sobre a morte e expõe completa­
mente a nossa condicão natural.
Mas, naturalmente, e graças a Deus por isso, ela não pára
aí. Tendo nos feito ver que estávamos inteiramente sem vida,
ela começa então a falar-nos acerca desta outra espécie de vida.
Ela não nos diz apenas que juntemos forças e vivamos uma
vida melhor, ela faz algo infinitamente maior: diz-nos que nos
é possível outra ordem de vida. Vemos isto expresso claramente
naquelas palavras que o nosso Senhor dirigiu a Nicodemos.
Nicodemos era um homem capaz, um mestre e professor em
Israel; ele sabia tudo sobre a lei e era um homem altamente
moral. Estivera observando o nosso Senhor e então, certa noite,
foi ter com Ele e Lhe disse: “Rabi, bem sabemos que és Mestre,
vindo de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que
tu fazes, se Deus não for com ele” (João 3:2). Praticamente o
que Nicodemos disse foi: “Ora, eu posso ver em Ti algo que
eu não tenho; tens algo extra, o que é?” Vocês se lembram da
resposta que relampejou de volta? “Na verdade, na verdade te
digo que aquele que não nascer da água e do Espírito, não
pode entrar no reino de Deus... Necessário vos é nascer de novo”

241
Qoão 3:55 7). Você precisa de uma nova vida5 de um novo nasci­
mento. Você não pode conseguir isso pensando a respeito,
não pode consegui-lo trabalhando para obtê-lo. É algo que
vem de Deus, é “nascer do alto”, “nascer do Espírito”. O
evangelho nos fala amplamente sobre esta ordem de vida.
Ele nos diz que, mesmo nesta vida e neste mundo, podemos
entrar, por assim dizer, numa vida inteiramente nova, onde
Deus não é um termo ou uma proposição, porém uma reali­
dade, onde nós então O conhecemos. “E a vida eterna é esta:
que te conheçam.Qoão 17:3). O evangelho nos fala sobre a
comunhão, que é possível, com Deus e o nosso Senhor Jesus
Cristo, mediante o Espírito Santo - “a nossa comunhão é com
o Pai, e com Seu Filho Jesus Cristo” (1 João 1:3). Nós escre­
vemos a vocês, disse João em sua Primeira Epístola, para
que vocês também tenham esta vida e esta comunhão. O
evangelho nos diz que, o que quer que sejamos por natureza,
e por mais mal que tenhamos feito na vida, pode ser-nos
dada uma nova vida, e podemos ser transformados em “novos
homens”. Podemos surpreender-nos com nós mesmos. O
evangelho nos diz que, por mais fraca que a nossa vontade
seja, podemos receber força e poder que nos erguerão e nos
farão sair do poço e da voragem do mal, e que poderão
habilitar-nos a andar num novo nível, num nível mais alto.
Esta palavra da vida nos fala sobre esta maravilhosa vida
espiritual que nos é possível, mesmo neste mundo preso à
carne, e prossegue e diz como se pode obter essa vida. Ele
declara que estamos realmente mortos em ofensas e pecados,
tanto que não podemos sair desse túmulo. Mas, graças a
Deus, também declara que Jesus de Nazaré não era outro
senão o Filho unigênito de Deus, e que Ele veio, percorrendo
todo o caminho desde o céu e sua glória, e impôs aqueles
limites a Si mesmo, a fim de poder descer à terra. Não so­
mente isso, Ele desceu à cova, levou sobre Si a minha culpa e
a de vocês, e fez expiação por ela. Ele removeu a barreira

242
que havia entre nós e Deus — aquilo que nos cegava — e nos
elevou. Ele Se apoderou de nós identificando-Se conosco,
Ele nos dá a Sua própria natureza, e nela recebemos esta
nova vida. Ele envia o Seu Espírito Santo e recebemos
poder, entendimento e desenvolvimento. Todas estas coisas
nos são dadas por Cristo, a Palavra da vida.
Essa é a palavra que eu e vocês devemos desfraldar diante
dos homens e das mulheres numa época como esta. O nosso
dever é dizer-lhes que o seu maior problema é que eles estão
espiritualmente mortos. Temos que ter um grande coração
transbordante de compaixão por eles - razão pela qual eu nunca
denuncio o modo como as pessoas vivem. Faço menção dele,
mas espero que o faça com um coração um tanto partido. Eles
não podem deixar de viver como vivem; estão mortos, estão
sem vida espiritual, e nós devemos mostrar-lhes a condição
em que eles se encontram, e falar-lhes desta outra vida que
lhes é possível; devemos mostrar-lhes que esta nova vida
lhes é possível em Cristo. Este evangelho é a palavra que fala
sobre a vida.
Mas é também a palavra que dá vida. Tiago fala disso nestes
termos: “Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da
verdade, para que fôssemos como primícias das suas criaturas”
(Tiago 1:18). Fomos gerados pela palavra da verdade. Ou,
também, como Pedro diz: “Sendo de novo gerados, não de
semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de
Deus” (1 Pedro 1:23). E esta palavra que dá aos homens o novo
nascimento, o segundo nascimento, a nova vida. Quando esta
palavra da verdade, esta semente de vida, é implantada e
enxertada nas almas dos homens, ela dá vida. Que palavra
maravilhosa!
Sim, mas eu devo mencionar ainda outra coisa que ela
faz. Ela é a palavra que dá suporte à vida^ que a alimenta e a
sustém. Ouçam de novo Pedro: “Desejai afetuosamente, como
meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado

243
— para que? — para que por ele vades crescendo” (1 Ped. 2:2).
Esta palavra está cheia de vitaminas espirituais; não é um
daqueles alimentos sintéticos que só podem dar uma porção
limitada de nutrição; é, antes, uma palavra que dá vida. Se
você quiser crescer, precisa tomar este leite; ele tem qualidades
que infundem vida e sustentam a vida. Se você o tomar, ele o
edificará, você crescerá e se desenvolverá, seus músculos serão
fortalecidos e a sua qualidade geral de vida aumentará.
E, finalmente, ela é a palavra que nos mostra como viver esta
vida que nos foi dada e que já consideramos. Esta é a palavra
que é a lâmpada e a luz que nos mostram como andar; ela nos
expõe os males e os perigos, mostra-nos a nossa relação com
Deus e a vida que Ele quer que vivamos.
O evangelho é a palavra da vida em todos estes vários
aspectos, e aqui, de acordo com o apóstolo, está o chamado
feito a nós, especialmente numa época como esta. Devemos
“reter” esta palavra da vida. Como fazê-lo? Até certo ponto eu
já respondi a essa pergunta. Fazemos isso primeiro sendo o
que somos. Fazemo-lo sendo inculpáveis, puros, irrepre­
ensíveis. Fazemo-lo mostrando que temos vida em nós, de
modo que os homens e as mulheres, olhando para nós, digam:
“Que é que eles têm? Como podem manter-se tão calmos?
Que é que acontece com eles?” Devemos viver do modo como
alguém como D. L. Moody vivia. Recentemente li um caso
narrado pelo Presidente Woodrow Wilson e que se passou
assim: certo dia ele estava na barbearia quando, subitamente,
entrou um homem. Era corpulento, não tinha nada que além
disso chamasse a atenção, e, todavia, no momento em que ele
entrou, tudo mudou naquele salão de barbeiro; a conversa
mudou; houve uma diferença óbvia e evidente. Quando o
troncudo homem saiu, Woodrow Wilson perguntou ao bar­
beiro: “Quem é aquele homem?” E recebeu esta resposta:
“E Dwight L. Moody”. Moody não pregou naquele salão de
barbeiro, estava apenas sendo o cristão que ele era; algo se

244
irradiava dele, e, por ser ele mesmo, estava retendo a palavra
da vida.
E, graças a Deus, isso não se restringe a gente como D. L.
Moody. Ainda acontece entre pessoas bastante comuns, das
quais o mundo jamais saberá ou ouvirá. Conta-se isso, por
exemplo, a respeito de um jovem cristão que ingressara na
Força Aérea. Certa noite ele estava sendo maltratado por alguns
dos seus colegas que tinham bebido, e a simples maneira pela
qual ele lidou com isso, sua varonilidade, sua recusa a res­
mungar, o simples fato de ele ser o que era, influiu tanto no
chefete daquele grupo que ele começou a interessar-se pelas
coisas cristãs. Ele se perguntou o que seria que aquele jovem
tinha. Viu que gostaria de ser assim, e se interessou por ele e
pelo evangelho de Jesus Cristo. Sei que há muitos que têm
tido a mesma experiência, e é desse tipo de coisa que eu estou
falando — a retenção da palavra da vida. Se você fizer isso, os
homens o notarão e perguntarão: "‘Que é isso?”, e virão
conversar, e assim lhe darão a oportunidade de lhes falar.
Retemos a palavra da vida sendo o que somos, mas precisa­
mos conhecer com exatidão o evangelho; precisamos ser
capazes de explicá-lo; precisamos ser capazes de ajudar uma
alma em agonia; precisamos ser capazes de dizer aos outros
como eles podem tornar-se cristãos e explicar-lhes o que
significa isso. Cabe-nos reter esta palavra da vida, que pode
dar aos homens a verdadeira vida de Cristo e prepará-los para
passarem a eternidade em Sua santa presença.
Amados irmãos cristãos, levantemo-nos e ajamos; empu­
nhemos a tocha da palavra de Deus, acenemos com ela por
toda parte, para que as trevas do mundo sejam vencidas por
sua luz e os homens e as mulheres, assim iluminados, sejam
transferidos do reino das trevas para o reino da Luz, para o
reino do amado Filho de Deus. Que privilégio temos — o de
sermos luzes e portadores da luz nesta sombria e difícil hora
da história do mundo!

245
Até a Morte
^Retendo a palavra de Cristo^ para que no dia de Cristo possa
gloriar-me de não ter corrido nem trabalhado em vão. ainda que
seja oferecido por libação sobre o sacrifício e o serviço da vossa fé,
folgo e me regozijo com todos vós. E vós também regozijai-vos e
alegrai-vos comigo por isto mesmo. E espero no SenhorJesus que em
breve vos mandarei Timóteo, para que também eu esteja de bom
ânimo, sabendo dos vossos negócios. Porque a ninguém tenho de igual
sentimento, que sinceramente cuide do vosso estado. Porque todos
buscam o que é seu, e não o que é de Cristo Jesus. Mas bem sabeis
qual a sua experiência, e que serviu comigo no evangelho, como filho
ao pai. De modo que espero enviar-vo-lo logo que tenha provido a
meus negócios. Mas confio no Senhor, que também eu mesmo em
breve irei ter convosco. Julguei, contudo, necessário mandar-vos
Epafrodito, meu irmão, e cooperador, e companheiro nos combates,
e vosso enviado para prover às minhas necessidades. Porquanto tinha
muitas saudades de vós todos, e estava muito angustiado de que
tivésseis ouvido que ele estivera doente. E de fato esteve doente, e
quase à morte; mas Deus se apiedou dele, e não somente dele, mas
também de mim, para que eu não tivesse tristeza sobre tristeza. Por
isso vo-lo enviei mais depressa, para que, vendo-o outra vez, vos
regozijeis, e eu tenha menos tristeza. Recebei-o, pois, no Senhor com
todo o gozo, e tende-o em honra. Porque pela obra de Cristo chegou
até bem próximo da morte, não fazendo caso da vida para suprir
para comigo a falta do vosso serviço.'' - Filipenses 2:16-30

Em nossos estudos da Epístola de Paulo aos Filipenses,

246
passamos agora a considerar a parte que se acha no capítulo
dois, do versículo 16 até o fim do capítulo. Deixando de lado o
nosso método costumeiro, que na verdade tende a ser micros­
cópico, vamos agora ter o que se poderia chamar uma vista
telescópica. Vocês podem notar que há uma espécie de ruptura
em pleno argumento do apóstolo, no meio da primeira parte
do versículo dezesseis. Ele estava proferindo alta doutrina, a
da encarnação e da natureza essencial da vida cristã, descre-
vendo-a como operada por Deus em nós, e nós sendo, por
conseguinte, exortados a desenvolvê-la. Só essa declaração
já nos levantou grandes questões doutrinárias. Mas agora,
repentinamente se vê que o apóstolo se volta para assuntos
pessoais. Ele fala de si; diz a eles que espera poder enviar-
-Ihes Timóteo para poder ter um relato, em primeira mão, do
estado e condição deles, e para que, igualmente, Timóteo os
ajudasse e os fortalecesse. Além disso, ainda antes de poder
enviar-lhes Timóteo, Paulo está se propondo enviar-lhes logo
Epafrodito (provavelmente Epafrodito levou consigo esta
carta). Paulo entra em detalhes, explicando que Epafrodito
ficara desesperadamente enfermo, quase ao ponto de morrer,
mas que Deus tivera misericórdia dele e o livrara da morte,
e assim Paulo pode enviá-lo de volta.
A primeira vista, temos aí um chocante contraste com o
que estivemos examinando juntos em muitos estudos. Estive­
mos considerando o céu e a vinda dali do Filho unigênito
de Deus. Então, deixando de lado estas “infinidades e imen­
sidões”, como lhes chama Carlyle, repentinamente descemos
aos assuntos de família, assuntos comuns, terrenos e humanos,
à questão de visitas, doença, e coisas do gênero. Parece uma
ruptura completa, e, todavia, tudo o que eu quero tentar fazer,
ao tomarmos uma vista apressada e global desta parte com­
pleta, formada por quinze versículos, é mostrar a vocês que
na realidade está claro que não se trata de ruptura nenhuma.
O apóstolo está tratando de questões práticas, e, contudo.

247
penso que poderei mostrar-lhes com muita facilidade que,
mesmo ao fazer isso^ ele está sendo inteiramente doutrinário
e, num sentido, está expondo a verdade tanto como quando a
expôs nas declarações mais específicas e mais obviamente
doutrinárias e teológicas.
Pois o fato é que, como temos visto, o apóstolo é incapaz
de escrever sobre qualquer coisa sem ser doutrinário. Não há
departamentos estanques na vida deste homem - é um todo.
Ele não diz, por exemplo: “Ali escrevo como cristão, aqui
escrevo como homem”, porque nele não há lugar para qual­
quer dicotomia doutrinária. O cristão é alguém que não pode
dizer: “Digo isto como cristão, mas faço isto como outra coisa”.
Ele é um só, é um todo, e a presença de qualquer dessas
distinções artificiais em nossa vida é uma proclamação de que
não somos cristãos. O nosso cristianismo deve afetar todas as
partes integrantes da nossa atividade. Devemos agir como um
todo, como um só, como uma unidade, e é por isso que, se
vocês se derem ao trabalho de verificar, verão que quando o
apóstolo está tratando das questões mais triviais concebíveis,
todas elas estão baseadas na doutrina. Ele não pode falar sobre
o homem sem descrevê-lo em termos doutrinários, e não pode
expressar seus sentimentos pessoais na prisão sem fazer
exatamente a mesma coisa.
Portanto, temos aqui algo que pode ser exposto deste
modo: nesta parte temos uma manifestação e demonstração
prática do que o apóstolo já tinha estabelecido. Começando
no versículo 12 e indo até o versículo 16, ele fizera esta
maravilhosa descrição do cristão. Diz ele: “Você é filho de
Deus, e, como filho de Deus, deve lembrar-se da sua relação
com Ele, em toda a sua conduta, no que você é em seu ser e
em sua relação com o mundo lá fora; você deve operar esta
grande salvação com temor e tremor”. A seguir, na parte prá­
tica, parece-me, ele faz uma demonstração disso tudo, como
isso de fato funcionava em sua vida, na de Timóteo e na de

248
Epafrodito, e na vida dos membros da igreja de Filipos.
Ora, para mim, uma questão muito interessante para
discutir é: qual destes dois tipos de ensino é, supremamente,
de maior valor? Mas eu suponho que essa pergunta é tola, pois
ambos são valiosos e jamais devem ser submetidos a uma
comparação: tudo depende grandemente do estado e da
condição em que nos encontramos. Há dias e ocasiões em que
nos sentimos física, mental e espiritualmente aptos e bem, e
gostamos da doutrina clara e sem verniz, em sua forma pura
e não contaminada. Nós então nos agarramos a ela e pelejamos
com ela, e ela nos incentiva e nos conforta. Todavia, há ocasiões
em que talvez nos sintamos cansados e fatigados em todos os
aspectos, e, graças a Deus, parece que a Bíblia sabe de tudo
isso a nosso respeito, e então nos lembra esta mesma doutrina,
em sua forma prática. Vemo-la em ação. Ela não requer grande
esforço mental — simplesmente a vemos. Sentimo-nos atraídos
por ela, e dizemos: “Que coisa maravilhosa é a vida cristã!
Hoje não consigo envolver-me com a doutrina da encarnação,
mas posso admirar pessoas como Paulo e a igreja de Filipos”.
Noutras palavras, existem montes e vales nas Escrituras; há
nelas uma gloriosa e maravilhosa variedade, de modo que
qualquer que seja a mudança da nossa condição e disposição
pessoal, sempre há nelas alguma coisa que nos ajuda. E-nos
dada esta possibilidade de escolha, mas continuamos fazendo
a mesma coisa, de modo ligeiramente diferente. Depois de
um duro período de luta e de estudo nesta universidade
espiritual, tiramos umas breves férias, ficando na retaguarda
o que aprendemos.
Esse, ao que me parece, é o modo de abordar esta parte
realmente interessante e fascinante que agora estamos consi-
derando juntos. E um daqueles charmosos retratos (não hesito
em empregar essa palavra) da natureza da vida cristã que se
encontram no Novo Testamento; uma descrição realmente
esplêndida da vida de uma igreja. E uma vida de igreja como

249
essa que realmente vence o mundo, como o fez no mundo
antigo. Os homens e as mulheres viam na sociedade cristã algo
que nunca tinham visto em parte alguma. Temos vislumbres
disso aqui, mas imaginem o seu efeito em qualquer jurisdi­
ção ou vila ou distrito campestre! E isso tem sido repetido
numerosas vezes na história; todo avivamento reproduz esse
tipo de coisa, e, parece-me, é disso que o mundo tem grande
necessidade na atualidade.
Podemos resumir melhor o ponto da seguinte maneira:
examinemos por um momento o caráter e a natureza da vida
cristã retratada aqui em geral; e aqui há dois comentários
importantes. A primeira coisa que eu observo é que é uma
vida dominada pelo Senhor Jesus Cristo. Não é possível ler
este trecho sem ver isso. Há em particular dois versículos que
expõem essa verdade, os versículos 19 e 24: “E espero no Senhor
Jesus que em breve vos mandarei Timóteo, para que também
eu esteja de bom ânimo, sabendo dos vossos negócios (da vossa
situação)” (19); “Mas confio no Senhor, que também eu mesmo
em breve irei ter convosco” (24). Paulo é incapaz de pensar
sem pensar em Cristo; ele não chega a nenhuma decisão, a
não ser em termos de Cristo. Era Cristo que controlava toda
a sua vida, e é o Senhor Jesus Cristo que vai decidir se ele
vai enviar Timóteo ou não.
Talvez possamos expressar-nos melhor sobre isso expondo-
-0 em termos negativos. Permitam-me lembrá-los da situação
em que ele se encontrava quando escreveu essas palavras.
Lá está ele na prisão, em Roma - parece que nesse tempo o
imperador era Nero - e, contudo, o que é interessante é que
Paulo não considera as possibilidades em termos de Nero;
não é isso que governa a sua vida. Vocês imaginariam que
ele teria dito: “Bem, claro, sou um prisioneiro. Não sei o que
0 imperador pretende fazer; ele é um homem cheio de
caprichos, e de repente pode irritar-se e dizer que todos os
cristãos sejam executados - tudo depende do que Nero disser”.

250
Nada disso! Não, ele é um prisioneiro de Nero, mas se
descreve como escravo do Senhor Jesus Cristo, e, embora
acorrentado aos soldados de Nero, ele afirma que o que
realmente vai determinar se ele pode enviar Timóteo ou não,
ou se ele próprio poderá ir ou não, é o Senhor Jesus Cristo.
Pois bem, essa é a grande característica desta vida cristã:
é uma vida controlada, mantida ligada, rendida e governada
pela vontade do Senhor Jesus Cristo. O estado pessoal de Paulo
era de tal comunhão, de tal comunicação com Ele, que sabia
qual era a Sua vontade e não agiría à parte dessa vontade; na
verdade, toda a sua perspectiva era coberta e dominada pela
vontade do Senhor Jesus Cristo. Paulo só desejava agradá-10
e, nas coisas que fazia, estava cônscio de que estava sendo
definidamente guiado e dirigido por Ele. Certamente, pois,
esse é o chamado que chega até nós neste ponto. O perigo que
corremos não é o de nós decidirmos o que fazer - há muitas
coisas na vida que consideramos baseados no ponto de vista
do mero bom senso. Mas, conquanto isso tenha o seu lugar,
deve ser um bom senso que em última instância esteja sujeito
à vontade do Senhor Jesus Cristo. Cada ação ou movimento
nosso deve ter relação com a nossa relação central com Ele,
deve ser dominado por Ele, e com o reconhecimento de
que Ele está de fato no controle.
Sendo assim, temos aqui uma ilustração do que vimos
anteriormente. Acaso vocês se lembram que na parte dou­
trinária Paulo nos disse “que ao nome de Jesus se dobre todo
joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e
toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor para glória de
Deus Pai”? Aqui Paulo está colocando isso em sua forma
prática. Praticamente ele diz: “Bem, não fiquem apavorados
por causa de Nero. Embora César tenha grande poder, neste
mesmo momento ele está sob o domínio do Senhor Jesus
Cristo, e as próprias decisões de Nero são finalmente postas
abaixo pelo Senhor Jesus Cristo e Suas decisões. A vontade de

251
Cristo cobre todas as coisas”. E, naturalmente, se vocês lerem
a história sob essa luz, verão que muitas vezes isso foi
comprovado. Vejam isso no Velho Testamento: meditem em
como a palavra do Senhor vinha para aqueles reis e potentados,
como eram governados e controlados por Deus. Vemos exata­
mente a mesma coisa no Novo Testamento e na subseqüente
história da Igreja Cristã. Oxalá pudéssemos recapturar esta
pura e simples idéia! Oh, se soubéssemos neste momento que,
apesar de tudo o que se pode ver ou não ver na história do
mundo, em última instância tudo está sob as mãos do Senhor
Jesus Cristo! Ele pode abrir cárceres, pode mudar o pensa­
mento dos governadores - não há nada que Ele não possa
fazer. E Sua vontade que importa e, em última análise, nada
a pode frustrar. Esse é o primeiro princípio.
Isso nos leva à segunda declaração que, novamente, à
primeira vista, soa como se fosse uma contradição. Embora
seja uma vida elevada e muito exaltada esta vida cristã, con­
tudo, quão natural é, quão humana pode ser! Se há alguma
passagem das Escrituras que faz explodir definitivamente tudo
quanto há por trás da idéia geral de monasticismo, é segura­
mente esta. Ela mostra a falácia da idéia de que, se você vai
ser um cristão verdadeiro, deve tornar-se uma pessoa sobre­
natural, sem nenhum sentimento humano. Esta passagem
corrige a idéia de que o cristão tem que ser uma pessoa inatural,
a idéia de que o oposto de “natural” é “inatural”, em vez de
compreender que o oposto de natural é espiritual, e que o
homem espiritual não é inatural. Permitam-me mostrar isso
nesta parte. Notem, por exemplo, o que o apóstolo nos diz no
versículo 19: “E espero no Senhor Jesus que em breve vos
mandarei Timóteo, para que também eu esteja de bom ânimo,
sabendo dos vossos negócios (da sua situação)”. Vocês vêem,
Paulo estava ansioso acerca dos crentes de Filipos. Este
apóstolo é um magnífico homem de fé; ele pode dizer: “para
mim 0 viver é Cristo, e o morrer é ganho”; em certo sentido

252
ele vive nos lugares celestiais com Cristo, e todavia diz:
estou ansioso por lhes enviar Timóteo, a fim de que eu seja
confortado por um relato em primeira mão. Quão natural
e humano!
Permitam-me levá-los ao versículo 26, onde lemos o
seguinte sobre Epafrodito: “Porquanto tinha muitas saudades
de vós todos, e estava muito angustiado de que tivésseis ouvido
que ele estivera doente”. Eis aqui um maravilhoso servo de
Deus, este Epafrodito, homem que Paulo descreve como
irmão, cooperador, companheiro; um cristão tão excelente que
arriscava a vida no trabalho de Cristo. “Bem, vocês sabem”,
diz com efeito o apóstolo, “o homem estava doente e estava
ansioso para estar de volta em Filipos com seus amigos e
parentes, especialmente quando ficou sabendo que estes
estavam ansiosos e preocupados com ele justamente por
causa da sua grave enfermidade ali em Roma”. Este magnífico
✓ estava sofrendo devido às saudades!
cristão
E lamentável, mas existe uma escola de pensamento que
parece pensar que só somos cristãos quando perdemos todos
os sentimentos naturais, porém esta parte prática da Epístola
contradiz e denuncia esse ensino. Você pode ser chamado para
servir no campo missionário estrangeiro, e pode achar isso um
tanto difícil, porque se pergunta como poderá suportar esse
rompimento com seu pai e sua mãe. Você não deve considerar-
-se um cristão mais fraco por causa disso; não pense que só
vai ser um cristão perfeito quando não souber mais o que é
ter saudade. Pense neste vigoroso servo de Deus que sabia
o que era ter saudade, ter o coração pesado, e que desejava
muito ver mais uma vez os seus amigos face a face.
Permitam-me dar-lhes mais alguns exemplos de casos
semelhantes. No versículo 27 o apóstolo diz: “E de fato esteve
doente, e quase à morte; mas Deus Se apiedou dele, e não
somente dele, mas também de mim, para que eu não
tivesse tristeza sobre tristeza”. Talvez alguns passem algumas

253
horas lendo romances ou assistindo a coisas consideradas
comoventes e emocionantes, mas eu os desafio a que mostrem
alguma literatura ou forma de entretenimento que seja tão
grandiosa e comovente e que possa fazer vibrar tanto as
profundezas dos sentimentos e das emoções de alguém, como
essa declaração deste grande homem. Aqui está um homem
que diz, “para mim o viver é Cristo, e o morrer é ganho”, um
homem que estava pronto a sacrificar tudo por amor a Cristo,
e que, contudo diz: este meu caro irmão estava desesperada­
mente enfermo, e eu achava que ele ia morrer, mas Deus não
só teve misericórdia dele, teve misericórdia de mim também,
para poupar-me, para que eu não tivesse tristeza sobre tristeza.
Ele se sentia profundamente mal, sentia-se ferido, sabia o que
é sentir desolação. Oh, permitam que eu dê ênfase a esta
doutrina mais uma vez: Nunca houve o propósito de que o
cristão fosse inatural. “Mortificar os nossos membros” neste
mundo não significa mortificar, ou tentar matar, estas coisas
que foram implantadas por Deus. Ele nos fez seres humanos:
as coisas pervertidas é que constituem pecado; as coisas nobres
e legítimas têm seu lugar na vida cristã. Paulo sabia estar
angustiado por seu amado irmão que estava desesperada­
mente enfermo, e deu graças a Deus quando a vida dele foi
poupada. “Ele me poupou tristeza sobre tristeza”, diz Paulo -
ele experimentou esta maravilhosa consolação do Senhor
Jesus Cristo.
E então o versículo 28: “Por isso vo-lo enviei mais depressa,
para que, vendo-o outra vez, vos regozijeis, e eu tenha menos
tristeza”. Vocês vêem novamente o toque humano? “Sabem”,
diz com efeito Paulo, “estou enviando Epafrodito de volta a
vocês porque sei que, quando ele chegar a Filipos, e quando
vocês 0 virem, vão alegrar-se muito. E o fato de vocês ficarem
tão alegres também vai fazer com que eu me sinta menos triste;
pois eu penso em vocês e na sua felicidade quando virem o
rosto de Epafrodito, e isso me fará esquecer tudo o que passei

254
e me regozijarei como quem se regozija no Senhor”. Não
preciso acrescentar mais nada - já disse o suficiente para lhes
mostrar que esta maravilhosa vida, que é tão dominada por
Cristo e que permanece nos páramos celestiais, é também
perfeitamente natural. Este é um supremo exemplo do tipo
de coisa sobre a qual Wordsworth fala em seu poema in­
titulado “Cotovia”:

Tipo do sábio, que alto voa mas nunca se extravia,


Leal aos entrelaçados píncaros do céu e do lar!

Não há contradição entre os dois - Paulo pode alçar vôo


alcançando domínios invisíveis, e, contudo, sempre com os
pés no chão. O que temos aqui não é nada desse falso
asceticismo, nenhuma daquelas monstruosidades antinatu-
rais que acham que crucificar a carne é crucificar todos os
sentimentos e todos os dons. Não, a vida cristã é sempre “leal
aos entrelaçados píncaros do céu e do lar”. Oh, se pudéssemos
ver isso em nossa vida diária, comum e insípida, poderiamos
então manifestar e anunciar algo da beleza bem como da
glória do Senhor!
Há outro sentido no qual se mostra este elemento natural.
Certamente vocês observam que este apóstolo Paulo, que fora
capacitado pelo poder de Deus para operar estupendos
milagres, obviamente não pôde curar Epafirodito miraculo-
samente. Existe, vocês sabem, muito ensino falso sobre este
assunto no presente. Existem aqueles que gostariam de nos
fazer acreditar que qualquer doença que soframos, se tão-
-somente tivermos fé, podemos ser curados. Epafrodito não
foi curado - Paulo não pôde curá-lo. Não; a cura miraculosa é
possível, graças a Deus por isso, cremos com todo o nosso ser,
mas a cura milagrosa não é possível toda vez que você ache
que ela deve ocorrer. Está nas mãos do Senhor Jesus Cristo, se
Ele quer que ocorra ou não. Epafrodito estava às portas da

255
morte, e Paulo não pôde curá-lo, não pôde curá-lo por meio
da oração,
■O mas Deus teve misericórdia dele.
Tenhamos isso em mente. Aqui há uma contradição
aparente, não real. Todas estas questões são governadas por
esta regra: todos os dons do Espírito Santo estão sob a soberania
e o senhorio do Espírito Santo. Por conseguinte, quando
alguém diz, “Vou ser curado miraculosamente em tal ou qual
dia”, está negando uma doutrina escriturística e não tem direito
de dizer isso. O Espírito distribui os dons; Ele decide curar
miraculosamente uma pessoa, e outra não; alguns Ele permite
que morram. Não permita Deus que nós digamos que se al­
guém não é curado miraculosamente significa que ele não
tem fé, ou que, se alguém morre em conseqüência de uma
enfermidade, é porque lhe faltou fé. Tudo está sob a soberania
do Senhor Jesus Cristo; o que Ele decide é o que acontece.
Permitam-me agora dar-lhes os títulos da outra parte do
maravilhoso ensino desta passagem. Examinemos esta vida em
detalhe. Penso que vocês os verão nas três palavras que se acham
no versículo 25, palavras que Paulo emprega primariamente
acerca de Epafrotido, mas que são igualmente válidas quanto
a todos os cristãos: “Julguei, contudo, necessário mandar-vos
Epafrodito, meu irmão e cooperador, e companheiro nos
combates, e vosso enviado para prover às minhas necessi­
dades”. E aí está uma descrição perfeita, em detalhe, do cristão.
Somos primeiramente e acima de tudo, irmãos. Significa que
todos nós somos filhos de Deus. Não somos apenas a espécie
de diversificado ajuntamento de pessoas que há numa reunião
política, ou numa reunião cultural, onde se vêem diferentes
tipos de gente apresentando suas diferentes experiências e
mantidos juntos por um interesse comum naquilo que está
em pauta, mas que ficam separados uns dos outros assim que
dispersam da reunião. Isso não diz respeito aos cristãos. Somos
irmãos porque somos filhos de Deus, como o apóstolo já nos
dissera em sua doutrina.

256
Pois bem, esta fraternidade manifesta-se de muitas
maneiras, como mostra esta passagem. Sou quase tentado a
expor o assunto assim: a maneira de mostrar que somos cristãos
não é dirigindo-nos constantemente uns aos outros com o
apelativo “irmãos”; não se trata de fazer um uso mecânico do
termo dessa maneira; é, antes, uma manifestação de amor. Em
suas relações familiares, nem sempre você se dirige a seu irmão
como irmão, você o chama pelo seu nome; a relação de família
e de irmãos é algo que se manifesta na ação. Vocês vêem isso
perfeitamente na passagem em foco. Observem o interesse deles,
uns pelos outros. Os filipenses tinham enviado Epafrodito a
Paulo para atender às suas necessidades enquanto ele estava
na prisão - isso é manifestação do espírito fraterno. Embora
amassem Epafrodito, e muito, eles o enviaram todo aquela
distância para estar com Paulo, para servir o grande apóstolo
em suas necessidades - amorosa preocupação fraternal.
Timóteo também prestou ajuda a Paulo, diz este, servindo-o
como um filho a seu pai. E depois vocês notam o interesse de
Paulo por estas pessoas de Filipos. Lá em Roma, Epafrodito
foi de grande valor e ajuda para ele e, contudo, porque Paulo
sabia da necessidade que os filipenses tinham de Epafrodito,
enviou-o de volta; a necessidade deles foi a única coisa que
Paulo levou em consideração. E isso que significa relação
fraternal: este senso de relação de sangue, este grande interesse
uns pelos outros que se mostra em ação.
Em segundo lugar, Paulo também lhe chama seu coope-
rador, palavra que se pode traduzir por colega de trabalho, e
essa é uma descrição perfeita de todos os que somos cristãos.
Diz o apóstolo que a primeira coisa que devemos compreender
acerca da obra que nos diz respeito é a quem ela pertence. De
Epafrodito ele nos diz que pela obra de Cristo ele adoeceu e
chegou perto da morte. No versículo 21 ele diz: “Porque todos
buscam o que é seu, e não o que é de Cristo Jesus”. Somos
colegas de trabalho - Por quê? Porque a obra pertence a Cristo.

257
Trabalhamos juntos para o mesmo Senhor, e nunca devemos
esquecer essa verdade. Isso, como já consideramos na parte
doutrinária, é reter “a palavra da vida”, simplesmente falar
com as pessoas sobre a sua situação perigosa e conduzi-las
e introduzi-las na vida cristã.
Notem igualmente o espírito e a maneira como se deve
realizar a obra. Outra vez, permitam-me começar com uma
negativa, nos versículos 20 e 21. Paulo diz que lhes vai enviar
Timóteo por esta razão: “Porque a ninguém tenho de igual
sentimento, que sinceramente cuide do vosso estado. Porque
todos buscam o que é seu, e não o que é de Cristo Jesus”.
“Minha dificuldade aqui em Roma”, diz com efeito Paulo, é
que, embora estando rodeado de cristãos, o único homem
que lhes posso enviar é Timóteo, pois, que pena!”, diz ele a
respeito dos outros, “eu admito que eles são cristãos, são boas
pessoas em muitos aspectos, mas se preocupam mais com eles
mesmos e com as suas coisas do que com as coisas de Jesus
Cristo”. E isso é especialmente triste na igreja, mas é lamen­
tável que é igualmente uma verdade a respeito de muitos de
nós na presente hora. A maneira de trabalhar para Cristo é
simplesmente esta: temos que nos dar conta de que Ele vem
em primeiro lugar; não devemos tomar em consideração a
nós mesmos, o nosso conforto e os nossos benefícios; Ele
primeiro, não as nossas coisas. Isso também é uma aplicação
prática, porquanto Paulo dissera, logo no início do capítulo:
“Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas
cada qual também para o que é dos outros”. Essa é a norma,
e foi exatamente o que Paulo fez. Embora necessitasse de
Epafrodito, enviou-o de volta a Filipos. Devemos pôr de lado
a nós mesmos e nossas preocupações pessoais, e trabalhar
por Ele e para Ele.
Depois Paulo descreve as características da obra nos
versículos 16 e 17. Diz ele: “Retendo a palavra da vida, para
que no dia de Cristo possa gloriar-me de não ter corrido nem

258
trabalhado em vão. E, ainda que seja oferecido por libação
sobre o sacrifício e serviço da vossa fé, folgo (alegro-me) e me
regozijo com todos vós”. Quer dizer que ele considera a vida
cristã e o serviço cristão como um sacrifício oferecido a Deus.
Lembrem-se de que os judeus, em seus sacrifícios, pegavam
um animal, e depois se derramava uma bebida sobre ele, uma
espécie de libação, uma oferenda de bebida no ápice da oferta
sacrificial. E foi assim que Paulo se descreveu e descreveu os
crentes de Filipos. Diz ele, com efeito: “Vocês estão se ofere­
cendo e estão fazendo tudo como um serviço para Deus, e, se
o meu sangue vital deve ser derramado, bem, eu me regozijo,
e o considero como uma espécie de oferta de bebida sobre o
sacrifício de louvor que vocês estão oferecendo”. Que tremenda
concepção da nossa atividade neste mundo e nesta vida.
Depois somos descritos como companheiros nos combates
(VA: “companheiros como soldados”). Significa que eu e
vocês estamos no exército do Deus vivo. Estamos combatendo
os principados, as potestades e os príncipes das trevas deste
mundo, e as hostes espirituais da maldade nos lugares celes­
tiais. Porventura vocês sabem que existem forças do mal
atualmente neste mundo, as quais lutam contra o homem
tentando derrubá-lo, arruinar sua alma, batalhando contra
Deus e contra o céu - estas forças espirituais poderosas e
invisíveis? E eu e vocês temos o privilégio de combater como
soldados contra elas. Também lutamos contra a falsa doutrina,
contra o erro, na igreja e fora dela. Como temos visto anterior­
mente, Paulo diz isso no primeiro capítulo, onde descreve os
filipenses como “combatendo juntamente com o mesmo
espírito pela fé”, e eu e vocês devemos estar empenhados nessa
batalha. Devemos assegurar a pureza da doutrina, e devemos
contender zelosamente pela fé uma vez por todas dada aos
santos.
Contudo, acima de tudo mais, devemos ser colegas como
soldados no sentido de que somos animados por este glorioso

259
espírito que se encontra em Paulo, em Timóteo e em
Epafrodito. Paulo afirma que por Cristo ele está perfeita-
mente pronto, se necessário, a morrer. Timóteo, diz ele, não
leva a si mesmo em consideração, é o único homem em quem
Paulo pode confiar; ele considera primeiro as coisas de Jesus
Cristo. E, que dizer de Epafrodito? Bem, pela obra de Cristo
ele esteve bem
z perto da morte, não tomando em consideração
a sua vida. E certo que é assim. Não seria esse o espírito do
soldado que na guerra é recomendado, o homem que deixa
tudo e se dispõe a dar sua vida por seu rei e seu país? Para
mim, a tragédia desta geração é que, ao passo que todos nós
estamos prontos a exaltar o homem que manifesta esse espí­
rito em termos das nações, não vemos o mesmo espírito quando
falamos sobre o reino eterno e glorioso do nosso Deus e do
Seu Cristo. Em tempos de guerra, os homens são exortados a
dispor de suas vidas pelo rei e pelo país - tudo bem - mas será
que não somos chamados, num grau infinitamente maior e
mais grandioso, para estar preparados para fazer isso por
amor de Cristo? E, contudo, receamos o ar de mofa dos nossos
colegas, e os olhares significativamente escarninhos que nos
lançam na sala do clube quando lá entramos, porque nos
tornamos cristãos. Temos medo do mínimo grau de
perseguição.
Oh, que vergonha para nós, irmãos cristãos! Tratemos,
antes, de ser como estes três vigorosos servos de Deus, Paulo,
Timóteo e Epafrodito, que estiveram prontos a arriscar suas
vidas por Cristo e por Sua obra. A batalha continua, e o
combate está vivo e quente. Certifiquemo-nos de que, como
soldados e companheiros de luta, mantemos a posição, nunca
vacilando nem fugindo do dever, e então, sejam quais forem
as exigências, seja qual for o custo, estaremos prontos, a
qualquer momento, sim, e até à morte, a resistir e a lutar
por nosso glorioso Rei, o Senhor Jesus Cristo.

260
OUTROS títulos DA “PES
Amor de Cristo, O - R. M. M^Cheync
Amor Imensurável - C. H. Spurgeon
Aprendendo a Estar Contente - J. Burroughs
Arrependimento: a Porta para o Reino - D. M. Lloyd-Jones
Atributos de Deus, Os - A. W. Pink
Avivamento (enc. e bro.) - D. M. Lloyd-Jones
Base da Unidade Cristã, A - D. M. Lloyd-Jones
Bíblia: a Infalível Palavra de Deus, A - C. H. Spurgeon
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Calvino e a Responsabilidade Social da Igreja - A. N. Lopes
Calvino: o Teólogo do Espírito Santo - A. N. Lopes
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Cantando ao Senhor - D. M. Lloyd-Jones
Catecismo para Meninos e Meninas, Um - Carey Publications
Chamado para o Ministério, O - C. H. Spurgeon
Cinco Pecados que Ameaçam os Calvinistas - S. Portela
Cinco Pontos do Calvinismo, Os - W. J. Seaton
Clamor de um Desviado, O - D. M. Lloyd-Jones
Com Quem Me Casarei? - A. Svvanson
Como Posso EU Ter Certeza? - F. Allred
Confronto com Deus - J. D. MacMillan
Conquistador de Almas, O - C. H. Spurgeon
Conversões: Psicológicas e Espirituais - D. M. Lloyd-Jones
Correção: uma Prova do Amor de Deus - P. Golding
Crescimento na Graça - J. Newton
Criando Filhos: o iModo de Deus - D. M. Lloyd-Jones
Cristianismo Fácil - S. Waldron
Cristo: Sabedoria, Justiça, Santificação do Crente - G. Whiteíield
Cruz: a Justificação de Deus, A - D. M. Lloyd-Jones
Cura Miraculosa - H. W. Frost
Declarado Inocente - J. Buchanan
Depois da Morte: o Que? - E. Donnelly
Depressão Espiritual: Suas Causas e Cura - D. M. Lloyd-Jones
Descobrindo a Vontade de Deus - S. Ferguson
Deus Conosco - D. A. Carson
Deus e Cosmos - J. Byl
261
Deus e 0 Mal - W. Fitch
Deus não Muda - C. H. Spurgeon
Deus 0 Espírito Santo (enc. e bro.) - D. M. Lloyd-Jones
(GDB Vol. 2)
Deus 0 Pai, Deus o Filho (enc. e bro.) - D. M. Lloyd-Jones
(GDB Vol. 1)
Discernindo os Tempos (enc. e bro.) - D. M. Lloyd-Jones
Dispensacionalismo - uma análise - A. W. Pink
D. Martyn Lloyd-Jones: Cartas 1919-1981
D. Martyn Lloyd-Jones: Pregador da Palavra - F. Ferreira
Doença - J. C. Ryle
Dons do Espírito Santo, Os - D. M. Lloyd-Jones
Do Temor à Fé - D. M. Lloyd-Jones
Eleição: Incentivo para Pregar o Evangelho - B. Tyler
Ensino sobre o Cristianismo (“As Institutas”, um Resumo)
- J. P. Wiles
Enterro ou Cremação: Isso Importa? - D. Howard
Entrada Triunfal em Jerusalém, A - C. H. Spurgeon
Epístolas Pastorais, As - G. B. Wilson
Esboços de Teologia - A. A. Hodge
Evangelho Autêntico, O - J. E. Wilson
Evangelização Teocêntrica - R. B. Kuiper
Exigências de Deus, As - C. H. Spurgeon
Exposições sobre Atos (enc. e bro.) (Vols. 1-6)
- D. M. Lloyd-Jones
Exposições sobre Efésios (Vols. 1-8)
- D. M. Lloyd-Jones
Exposições sobre João, capítulo 17 (Vols. 1-4)
- D. M. Lloyd-Jones
Exposições sobre Romanos (enc. e bro.) (Vols 1-14)
- D. M. Lloyd-Jones
Fé: Dom de Deus - T. Wells
Fé Salvadora (livrinho) - D. M. Lloyd-Jones
Figueira Murcha, A - C. H. Spurgeon
Futuro Castigo Eterno - R. M. McCheyne
Genuína Experiência Espiritual, A - J. Edwards
George Whitefield (bro. e enc.) - A. A. Dallimore
Glória de Cristo, A - J. Owen
Guia Seguro para o Céu, Um - J. Alleine

262
História das Doutrinas Cristãs, A - L. Berkhof
História dos Poderosos Feitos de Deus, A - C. H. Spurgeon
Homens, Mulheres e Autoridade - Ed. B. Edwards
Idolatria Desmascarada, A - O. Olivetti
z

Igreja e as Ultimas Coisas, A (enc. e bro.) (GDB Vol. 3)


- D. M. L-Jones
Igreja e o Estado: Funções Diferentes, A - D. M. Lloyd-Jones
Inabilidade do Homem, A - C. H. Spurgeon
Inspiração das Escrituras, A - J. C. Ryle
Ira de Deus, A - D. M. Lloyd-Jones
Jamais me Tornarei Cristão - P. Jeffery
Jardim de Deus, O - C. H. Spurgeon
J. Edwards e a Crucial Importância de Avivamento
- D.M.Lloyd-Jones
Jesus Cristo e Este Crucificado - D. M. Lloyd-Jones
João Calvino e George Whitefield - D. M. Lloyd-Jones
John Knox, o Fundador do Puritanismo - D. M. Lloyd-Jones
Lições aos Meus Alunos (Vol. 1, 2, 3) - C. H. Spurgeon
Livre-arbítrio: um Escravo - C. H. Spurgeon
Mensagem para Hoje - D. M. Lloyd-Jones
Ministério Ideal, Um (Vol. 1 e 2) - C. H. Spurgeon
Não é para Rir! - S. Jebb
Nosso Manifesto - C. H. Spurgeon
Oração Eficaz - C. H. Spurgeon
Ordenação de Mulheres: que Diz o Novo Testamento?
- A. N. Lopes
Outro Evangelho - A. W. Pink
Paraíso Perdido e Recuperado - D. M. Lloyd-Jones
Pastor
_ Aprovado,
z O - R. Baxter
Pecado E Coisa Séria! - R. Venning
Pecadores nas Mãos de um Deus Irado - J. Edwards
Pensando Espiritualmente - J. Owen
Perseverança na Santidade, A - C. H. Spurgeon
Poder no Púlpito - H. C. Fish
z

Por que Prosperam os ímpios? - D. M. Lloyd-Jones


Por Quem Cristo Morreu? - J. Owen
Precioso Sangue de Cristo, O - C. H. Spurgeon
Pregando Cristo - E. Andrews
Princípio Regulador no Culto, O - P Anglada

263
Puritanos e a Conversão, Os - S. Bolton, M. Vincent, T. Walson
Puritanos: Origens e Sucessores, Os (enc. e bro.)
- D. M. Lloyd-Jones
Quatro Dimensões da Evangelização - O. Thomas
Que é a Igreja? - D. M. Lloyd-Jones
Que é um Cristão? - W. Mack
Que é um Evangélico? - D. M. Lloyd-Jones
Quem Foram os Puritanos? - E. Hulse
Raízes de uma Fé Autêntica, As - W. Guthrie
Reavivamentos: Sua Origem, Progresso e Realizações - E. Evans
Redenção Particular - C. H. Spurgeon
Romanos - G. B. Wilson
Se Deus Quiser - J. Flavel
Seja Cristo Engrandecido - J. H. M d’Aubigné
Senhor nosso Pastor, O - J. D. MacMillan
Sermões de Robert Murray McCheyne
Sermões do Ano de Avivamento - C. H. Spurgeon
Sermões Evangelísticos, Velho Testamento - D. M. Lloyd-Jones
Sermões Evangelísticos, Novo Testamento - D. M. Lloyd-Jones
Sermões sobre a Salvação - C. H. Spurgeon
Sinais dos Apóstolos - W J. Chantry
Sistema de Apelo, O - 1. H. Murray
Soberana Vocação da Maternidade, A - W. Chantry
Soberania de Deus na Salvação, A - J. Edwards
Sobrenatural na Medicina, O - D. M. Lloyd-Jones
Somente pela Graça - A. Booth
Spurgeon que Foi Esquecido, O - 1. H. Murray
Spurgeon versus Hipercalvinismo - 1. H. Murray
Tentação, A / A Mortificação do Pecado - J. Owen
Teologia Relacionai - A. N. Lopes
Tocha dos Puritanos, A - J. R. Beeke
Tolerância no Novo Testamento - A. N. Lopes
Urgente Necessidade de Avivamento, A - D. M. Lloyd-Jones
Verdades Chamadas Calvinistas: uma Defesa - C. H. Spurgeon
Vida de Deus na Alma do Homem, A - H. Scougal
Vitória: a Obra do Espírito Santo - P Potgieter
Vivendo a Vida Cristã - D. M. Lloyd-Jones
Vivendo com o Deus Vivo - G. Smeaton e J. Owen

264
&M^/ítíyU^ ^^2á^tíe/Z4^

Volume 1 • Capítulos 1 e 2
4 Vdade

-
legna --- ------

a vida do homem (é) solitária,


pobre, sórdida, brutal e curta ”,
escreveu Thomas Hobbes em Leviathan.

Os cristãos não podem escapar dos altos e baixos da


vida, e um dos vultos mais cientes disso foi o apóstolo Paulo.
Quando escreveu aos membros da igreja que ele tinha ajudado
a estabelecer em Filipos, estava sofrendo encarceramento,
provavelmente com a execução não muito distante.
Contudo, ele pôde dizer-lhes que se alegrassem
constantemente. Toda a sua vida irradiava uma certeza, uma
alegria e paz interior que as terríveis circunstâncias em que
se encontrava não puderam derrotar.
Qual será o segredo da vida de alegria que Paulo
partilhou em sua Epístola aos Filipenses.? Como a obtemos
e como podemos mantê-la.? Pois, se alguma vez nos foi
necessário descobrir a resposta, é em nosso século vinte, ferido
por conflitos, com todo o seu tumulto, tanto em escala global
como também em escala pessoal.
Com sua análise usualmente magistral, o Dr. Martyn
Lloyd-Jones rastreia a confiança de Paulo indo à sua origem
em Cristo, e desdobra o tema da vida de alegria que compõe
o assunto deste livro.

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS


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